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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS
CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISAS EM ADMINISTRAÇÃO
ALFREDO RODRIGUES LEITE DA SILVA
AS PRÁTICAS SOCIAIS E O “FAZER ESTRATÉGIA”
UM ESTUDO DOS COMERCIANTES DE HORTIFRUTÍCOLAS
NO MERCADO DA VILA RUBIM
Belo Horizonte
2007
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Alfredo Rodrigues Leite da Silva
AS PRÁTICAS SOCIAIS E O “FAZER ESTRATÉGIA”
UM ESTUDO DOS COMERCIANTES DE HORTIFRUTÍCOLAS
NO MERCADO DA VILA RUBIM
Tese de doutorado apresentada ao Centro de
Pós-Graduação e Pesquisas em
Administração do Departamento de Ciências
Administrativas da Faculdade de Ciências
Econômicas da Universidade Federal de
Minas Gerais, como requisito para obtenção
do título de Doutor em Administração.
Linha de pesquisa: estudos organizacionais e
gestão de pessoas
Orientador: Dr. Alexandre de Pádua Carrieri
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À Jandira (in memoriam), minha avó
materna, que durante esta tese me deixou em
vida. Mas sempre estarei com ela.
AGRADECIMENTOS
Esta tese só foi realizada graças ao apoio do CEPEAD, da CAPES, do CNPQ e de um número
incontável de pessoas.
Ao lembrar da Vila Rubim preciso agradecer a cada comerciante, funcionário, cliente e
fornecedor, que dedicaram parte do seu tempo e contribuíram para o desenvolvimento desta
tese.
Sem fugir de minhas responsabilidades quanto a quaisquer falhas, agradeço a grande atenção
com a qual sempre fui tratado por meu orientador e pelos membros da banca. Sem essa
atenção, tenho certeza, minhas falhas teriam sido muito maiores. Em virtude dela, preciso
dividir com cada um qualquer mérito que exista nas reflexões propostas nesta tese.
Na minha experiência, a construção da tese teve momentos de solidão, entremeados por
outros de profunda discussão conjunta. Nesse processo, contei com os textos oferecidos pelo
professor Mozar, que me criaram inquietações frutíferas, sobre as quais em um momento
crucial pude discutir com a professora Ana Paula. Nessa oportunidade, foi possível
estabelecer limites e caminhos para conciliar os conflitos teóricos que me incomodavam. A
partir de então, os professores Gelson e Neusa por diversas vezes me deram a honra de
discutir pontos da tese que em alguns momentos ficavam obscuros para mim. A maneira dos
dois me tratarem foi sempre tão atenciosa que confesso ter me sentido acalentado, ao mesmo
tempo, em relação a inquietações teórico-metodológicas e pessoais.
Outro a quem devo muito é meu orientador, uma das pessoas mais brilhantes que já conheci.
Sempre teve atenção por tudo que fiz durante o doutorado, dando-me suporte tanto na vida
acadêmica quando pessoal. Nesse processo, ele, que eu mal conhecia antes de entrar no
doutorado, é hoje considerado por mim um grande amigo, que sempre poderá contar comigo.
Todos os que compreendem o seu jeito enxergam o profundo respeito que ele dedica a cada
um de seus alunos, e por isso mesmo ganha o respeito deles.
Preciso ainda agradecer aos professores, funcionários e colegas da turma do doutorado. Para
homenagear esse grupo, destaco as incontáveis vezes que meu colega Marcelo me ajudou com
os problemas mineiros e que a Edna, as Éricas e a Fátima me ajudaram a lidar com o fantasma
da burocracia.
Outro grupo que não pode ser esquecido é o dos bolsistas do NEOS, em especial o Thiago, o
Pablo, o Gustavo e o Ari. Tenham a certeza de que parte de nossas produções e discussões
está nesta tese.
Por fim, preciso agradecer às minhas mulheres, Francisca, Jandira, Helena, Geisa, Geisinha,
Geovana e Eliane, minha casa das sete mulheres, aquelas que me ajudam em tudo, cada uma
com sua especialidade.
RESUMO
Esta tese tem por objetivo compreender as relações entre os sentidos das práticas sociais e os
direcionamentos das maneiras de “fazer estratégia” das pessoas nas organizações. Nesse
sentido, ela se insere na chamada “visão da estratégia como prática social”, voltada tanto para
as práticas e construções sociais cotidianas – que envolvem as pessoas, a organização e a
estratégia –, quanto para as influências sobre essas práticas. Para alcançar o objetivo proposto,
inicialmente, apresentou-se o posicionamento da “chamada abordagem da estratégia como
prática social” no campo dos estudos sobre estratégia. Em seguida, discutiram-se aspectos que
caracterizam essa abordagem, no sentido de enxergar possíveis contribuições para o estudo da
estratégia como prática social. Buscou-se, então, uma proposta na qual os sujeitos possam
apresentar os delineamentos microssocial e macrossocial que envolvem suas práticas no fazer
estratégia na organização, bem como a relação existente entre esses níveis. A articulação
teórica que viabilizou essa proposta baseia-se em contribuições de uma abordagem de
Representações Sociais no âmbito da Teoria das Representações Sociais (TRS), proposta por
Moscovici (1961), e da concepção de estratégias e táticas cotidianas, proposta por Certeau
(1994). Para evidenciar a aplicação empírica do esquema conceitual desenvolvido, o esquema
norteou um estudo de caso que buscou compreender as relações entre os sentidos das práticas
sociais e os direcionamentos das maneiras de “fazer estratégia” na comercialização de
hortifrutícolas no Mercado da Vila Rubim, em Vitória-ES. Para a coleta de dados foram
empregadas a pesquisa documental e diferentes técnicas de observação e entrevista. O
tratamento dos dados dos documentos e das entrevistas se deu por meio da técnica da Análise
do Discurso (FIORIN, 2003) e as anotações de campo do próprio pesquisador foram
organizadas por meio da Análise do Conteúdo na abordagem temática (BARDIN, 1977). A
análise dos dados revelou construções sociais nas quais práticas semelhantes remetem a
sentidos diferentes e a novas práticas no fazer estratégia dos comerciantes, alterando
construções sociais anteriores. Ao mesmo tempo, construções sociais já estabelecidas
remetem à manutenção de práticas antigas e a novas práticas que reforçam e reproduzem
determinados sentidos. Por exemplo, em um determinado tempo e espaço, a prática da
“violência” contra o fiscal da prefeitura surge inserida na tática do comerciante. Ele usa essa
prática para transgredir uma ordem estabelecida em torno do sentido das relações formais, nas
quais o fiscal se baseia para multar e apreender as mercadorias dos comerciantes, que atuam
como ambulantes nas ruas. Mais tarde, após esses comerciantes invadirem um espaço público,
“privatizando-o”, essa mesma prática surge inserida na estratégia dos comerciantes. A
“violência”, agora, está dentro de uma ordem estabelecida em torno do sentido do espaço
privatizado, pois ao delimitar essa ordem o grupo de sujeitos a mantém e a reforça por meio
da violência usada para evitar o descumprimento de suas regras. A exposição dessa inter-
relação entre a manutenção, a mudança, os sentidos e as práticas, no cotidiano dos sujeitos de
pesquisa, revelou a estratégia como prática social dos comerciantes de hortifrutícolas no
Mercado da Vila Rubim. Portanto, as contribuições principais desta tese são: a proposição e a
aplicação de caminhos para a inclusão do dinamismo das construções sociais dos sujeitos nos
estudos sobre estratégia; e a exposição dessas construções no caso dos comerciantes de
hortifrutícolas no Mercado da Vila Rubim.
Palavras-chave: fazer estratégia; estratégia; tática; cotidiano; prática social; representações
sociais; sentido.
ABSTRACT
This thesis aims to comprehend the relationships between the social practices senses and the
directions taken by “strategizing” ways of people into the organizations. Therefore it belongs
to the vision of strategy as social practice, turned to both to the quotidian social practices and
constructions – that include people, the organization and the strategy –, and to the influences
upon this practices. To achieve the proposed objective, first the approach of strategy as a
social practice inside the field of strategy studies was introduced. Following, the aspects that
characterize this approach were discussed, to visualize possible contributions to the study of
strategy as social practice. In the propose supported a way to the subjects shows the
microsocial and macrosocial mappings that are involved in its practices of organization
strategizing, as well as the relationship between these two levels. The theoretical procedure
that made this propose possible is based in contributions of an approach of social
representations inside the theory of social representations proposed by Moscovici (1961) and
by the conception of quotidian strategies and tactics, proposed by Certeau (1994). To point
out the empiric application of the conceptual plan developed, it was applied in a case study
that aims to understand the relationships between the senses of social practices and the
directions of ways of “strategizing” in the selling of fruits and vegetables in Vila Rubim
popular market, located in Vitória-ES. To the data collection it was adopted the documental
research and different techniques of interview and observation. The documents and interviews
information was treated by the Discourse Analyses (FIORIN, 2003) technique. The researcher
field notes were organized by the content analyses procedure in the thematic approach
(BARDIN, 1977). The data analyses showed up social constructions in which similar
practices lead to different senses and to new practices in the “strategizing” of sealers,
changing previous social constructions, at the same time that established social constructions
lead to the maintenance of old practices and the new practices that reinforce this sense. For
instance, in a certain time and space, the practice of the "violence" against the city hall
inspector appears inserted in the sealer’s tactics to transgress an established order around the
sense of the formal relationships in which the city hall inspector is based to fine and
apprehend the goods of the sealers that work in the streets. Later, after those sealers invaded a
public space, "privatizing it", that same practice appears inserted in the sealer’s strategy inside
of the place of an established order around the privatized space. Because when delimiting this
place the group of subjects maintains and reinforces it through violence used to avoid the
noncompliance of their rules. The exposure of this inter-relationship between maintenance,
change, senses and practices in the quotidian of research subjects revealed the Vila Rubim
popular market fruits and vegetables sealers strategy as social practice. Therefore, the main
contributions of this thesis are the proposition and the application of ways for the inclusion of
the dynamism of subject’s social constructions in the studies about strategy and the exhibition
of those constructions in the case of the hortifrutícolas sealers at Vila Rubim popular market.
Key-words: strategizing; strategy; tactic; quotidian; social practice; social representations,
sense.
Como na administração de empresas, toda racionalização
“estratégica” procura em primeiro lugar distinguir de um “ambiente”
um “próprio”, isto é, o lugar do poder o do querer próprios. Gesto
cartesiano, quem sabe: circunscrever um próprio num mundo
enfeitiçado pelos poderes invisíveis do Outro.
Michel de Certeau
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.............................................................................................................15
2 A ESTRATÉGIA ORGANIZACIONAL: DA VISÃO CLÁSSICA À
ESTRATÉGIA COMO PRÁTICA .............................................................................25
2.1 A visão clássica da estratégia .......................................................................................26
2.2 A estratégia como um processo....................................................................................30
2.3 A estratégia como prática e o “fazer estratégia”........................................................36
2.4 Limitações e contribuições da abordagem da estratégia como prática para o
estudo do “fazer estratégia”.........................................................................................39
3 AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E OS ESTUDOS DE ESTRATÉGIA COMO
PRÁTICA SOCIAL ......................................................................................................51
3.1 As críticas construcionistas e as posições na TRS......................................................67
4 O ESQUEMA CONCEITUAL ....................................................................................91
5 UMA INVESTIGAÇÃO DA ESTRATÉGIA COMO PRÁTICA SOCIAL: O
COMÉRCIO DE HORTIFRUTÍCOLAS NO MERCADO DA VILA RUBIM.....95
5.1 Delimitações metodológicas..........................................................................................95
5.2 A escolha do locus da investigação: o Mercado da Vila Rubim................................97
5.2.1 O que é um mercado?......................................................................................................99
5.2.2 As organizações familiares ...........................................................................................104
5.3 Unidade de análise e instrumentos de coleta de dados ............................................106
5.3.1 A coleta de dados preliminar.........................................................................................108
5.3.2 As técnicas adotadas na coleta dos dados .....................................................................109
5.4 A escolha dos sujeitos a serem entrevistados............................................................127
5.5 A cronologia da coleta de dados e a escolha dos locais de observação...................130
5.6 A análise e as técnicas de tratamento dos dados ......................................................133
5.6.1 Análise do conteúdo......................................................................................................135
5.6.2 Análise do discurso .......................................................................................................137
5.6.3 A Análise do Conteúdo e a Análise do Discurso na investigação do fazer estratégia
na comercialização de hortifrutícolas no Mercado da Vila Rubim...............................144
5.7 Limitações do método.................................................................................................157
6 O MERCADO DA VILA RUBIM.............................................................................159
6.1 A história......................................................................................................................159
6.2 O contexto atual do comércio de hortifrutícolas......................................................172
7 O “FAZER ESTRATÉGIA” NA COMERCIALIZAÇÃO DE
HORTIFRUTÍCOLAS NO MERCADO DA VILA RUBIM..................................181
7.1 Quem é o comerciante da Vila Rubim?.....................................................................182
7.1.1 A face da família...........................................................................................................183
7.1.2 A face da aplicação pessoal em trabalhar e economizar...............................................187
7.1.3 As relações pessoais......................................................................................................190
7.2 O que sustenta a tradição de comprar no mercado da Vila Rubim?.....................198
7.2.1 Continuidade do comércio ............................................................................................199
7.2.2 O cotidiano que envolve o cliente.................................................................................205
7.2.3 O casamento entre a mídia dos grandes, o peixe e a galinha........................................216
7.3 Por que o mercado muda?..........................................................................................220
7.3.1 As demandas das e sobre as instituições públicas.........................................................221
7.3.2 A privatização do espaço público .................................................................................240
7.3.3 As pressões concorrenciais ...........................................................................................249
7.4 O esquema conceitual e a investigação empírica sobre o fazer estratégia na
comercialização de hortifrutícolas.............................................................................263
8 CONCLUSÃO.............................................................................................................273
REFERÊNCIAS ...................................................................................................................282
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Entendimento de estratégia e tática (Certeau, 1994) nas organizações adotado na
tese.........................................................................................................................48
Figura 2 – Esquema conceitual da tese.....................................................................................91
Figura 3 – Mapa do Mercado da Vila Rubim.........................................................................132
Figura 4 – Desembarque de mercadorias na região do Mercado da Vila Rubim no início do
século XX ............................................................................................................160
Figura 5 – Praça Manoel Rosindo ocupada pelos barraqueiros..............................................162
Figura 6 – Início do incêndio no Mercado da Vila Rubim.....................................................164
Figura 7 – Mercado da Vila Rubim após a explosão durante o incêndio...............................164
Figura 8 – Barracas improvisadas dos lojistas em torno dos galpões destruídos...................165
Figura 9 – Barracas construídas pela prefeitura em frente aos galpões destruídos................166
Figura 10 – Interior dos galpões reconstruídos pela prefeitura..............................................167
Figura 11 – Parte externa dos galpões reconstruídos pela prefeitura.....................................168
Figura 12 – Disposição dos hortifrutícolas em uma barraca..................................................169
Figura 13 – Disposição das barracas e produtos comercializados..........................................170
Figura 14 – Tabuleiros em frente à peixaria...........................................................................178
Figura 15 – Disposição dos tabuleiros em frente à peixaria e produtos comercializados.....179
15
1 INTRODUÇÃO
Na atualidade, o dinamismo e a complexidade são características cada vez mais associadas
aos ambientes que envolvem e permeiam as organizações. Como conseqüência, surge a
necessidade de se compreender melhor as maneiras pelas quais os atores organizacionais
lidam com as relações entre o ambiente externo, o ambiente interno e os interesses
associados a ambos. Por tratar especificamente dessas relações, o campo da estratégia tem
crescido em relevância no âmbito dos estudos organizacionais. As diversas abordagens
focam desde os aspectos macroeconômicos até a atuação dos sujeitos sociais. Nesse último
foco, surgem discussões sobre o “fazer estratégia”, voltadas às interações e inserções sociais
dos atores. Ao reconhecer a relevância dessa temática, esta tese tem como objetivo:
compreender as relações entre os sentidos das práticas sociais e os direcionamentos das
maneiras de “fazer estratégia” das pessoas nas organizações.
Ao alcançar esse objetivo, é possível desenvolver o campo dos estudos organizacionais e,
mais precisamente, da estratégia. A relevância da proposta está em assumir o estudo da
estratégia numa ótica que destaca as construções sociais dos atores. A abordagem dá espaço
àqueles excluídos da visão clássica, os diversos atores envolvidos com a organização,
membros ou não, dos níveis operacionais à alta administração, sem se limitar a esse último
grupo. Nessa ótica, busca-se evidenciar influências em torno das construções sociais dos
atores e suas implicações nas estratégias nas organizações, algo pouco explorado no campo.
Além da relevância em contribuir para o campo da estratégia, a justificativa para abordar a
temática em questão é a preocupação do autor desta tese sobre as limitações das correntes
predominantes no campo da estratégia. Essa inquietação é compartilhada por mim e por
16
meus pares no núcleo de pesquisa do qual faço parte, o Núcleo de Estudos Organizacionais
e Simbolismo (NEOS), do Centro de Pós-graduação e Pesquisas em Administração
(CEPEAD) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). As discussões no NEOS se
inserem numa oposição à lógica determinista da visão clássica de estratégia, na qual os
objetivos organizacionais serão alcançados em virtude de um planejamento deliberado por
atores “privilegiados” que dominam as tecnologias gerenciais.
Portanto, nesta tese assume-se que a importância de se definir os objetivos organizacionais e
as atividades a eles dirigidas é inquestionável, mas se defende que essas prescrições estão
sempre inseridas num processo de estratégia emergente, social e político, norteado pelas
interações entre os atores sociais. Essas características evidenciam o espaço do ator social
no “fazer estratégia” e a dificuldade de se lidar com esse fenômeno de maneira determinista,
na medida em que envolve uma infinidade de implicações sociais.
Para superar essas dificuldades, ao estudar esse “fazer”, propõe-se investigar as práticas
sociais a ele associadas, segundo a concepção de Certeau (1994, p. 40-41, 46- 47), que as
insere nas “estratégias” e “táticas cotidianas” dos sujeitos. Para o autor nas estratégias as
práticas contam com um cálculo de relações de forças com base em um lugar delimitado por
um próprio privilegiado. O termo próprio é utilizado pelo autor, assim como neste trabalho,
para indicar um lugar de poder e querer diferenciado em um ambiente – ou seja, uma ordem
estabelecida a partir de uma fronteira além da qual está a desordem, a fronteira do próprio –,
bem como os sujeitos posicionados de maneira privilegiada nessa ordem, que atuam
convergindo para ela e reforçando-a. Esse próprio se apresenta numa posição de poder que
permite distinguir e gerenciar ações em um “ambiente”.
17
Enquanto a estratégia pode contar com esse próprio, que articula suas práticas, a tática se
vale do “outro”, sem aquele lugar de poder. Esse “outro” se articula em espaços de
transgressão daquele lugar, ao mesmo tempo em que se utiliza de elementos do lugar de
poder como um elo legitimador dos espaços de transgressão, por meio do que Certeau
(1994) chama de “bricolagem”, ligada ao uso criativo e oportunista do “tempo” e do
“espaço”. Neste trabalho, para adotar esse aporte teórico, foi necessário buscar um conceito
de estratégia organizacional que reconheça as práticas do sujeito social nas construções
referentes ao “fazer estratégia” e encontrar um caminho para revelar o próprio e as
articulações que transgridem o seu lugar.
Em relação ao conceito de estratégia organizacional, a maneira como Certeau (1994) trata
da “arte do fazer”, articulada em estratégias e táticas cotidianas, leva ao questionamento do
foco desse fazer no tocante à estratégia organizacional: no lugar de se voltar para a
estratégia organizacional, enfatizar o estudo das estratégias e táticas nas organizações, que
incluem estratégias (organizacionais ou não) e táticas cotidianas. Enquanto as estratégias
organizacionais se limitam aos objetivos organizacionais, definidos por membros da
organização posicionados no lugar com o poder para definir esses objetivos, as estratégias e
táticas nas organizações envolvem uma infinidade de outros interesses convergentes ou
divergentes com os organizacionais.
Segundo essa concepção, as práticas nas estratégias nas organizações envolvem a mediação
de aspectos como interesses, recursos e resultados, que não se apresentam, necessariamente,
de maneira coerente entre si, pois não se trata de uma lógica racional instrumental, mas de
uma construção social inerente às práticas dos sujeitos em suas vivências com outros
sujeitos. Uma mediação inserida nos contextos sociais desses sujeitos, contextos que, de um
18
lado, constrangem as práticas desses sujeitos e, de outro, oferecem as condições para que
eles usem o tempo e o espaço a seu favor, a ponto de ser possível perverter aquele
constrangimento durante a própria mediação.
Para abarcar esse processo, propõe-se que as estratégias e táticas nas organizações sejam
entendidas como a composição de fluxos de práticas sociais inseridas em contextos
organizacionais específicos e sociais mais amplos. Esse entendimento inclui diferentes
fluxos nas organizações. Aqui estão os diversos tipos de estratégia, desde as
organizacionais, como as de crescimento no mercado por meio de redução de custo, até as
pessoais, como a busca por ascensão profissional, ou qualquer outra delimitação que gire em
torno de objetivos específicos dentro do lugar de um próprio, considerado como referência
por quem analisa essa composição. Entre uma e outra estratégia, varia apenas o corte
considerado em relação à inserção contextual dos sujeitos envolvidos. Nenhuma está isolada
das outras construções sociais; apenas buscam uma delimitação no lugar de um próprio em
torno do qual giram as práticas e os objetivos que indicam a especificidade da estratégia em
questão. Da mesma maneira, as táticas também estão inseridas nessa composição, mas em
fluxos que, na inserção contextual considerada como referência, não contam com um lugar
privilegiado de um próprio. Elas surgem de articulações que se utilizam desse lugar para
demarcar um espaço no qual ele é transgredido por sujeitos que assumem direções não
convergentes àquele lugar.
Essa concepção é proposta com base nas contribuições de Pettigrew (1977, p. 79, tradução
nossa), para quem a estratégia é “[…] um fluxo de eventos, valores e ações inserido em um
contexto”. Os eventos, os valores, as ações e o contexto (no singular) presentes no conceito
original do autor deram lugar às práticas sociais e aos contextos (no plural). A justificativa é
19
a adequação à concepção de Certeau (1994) de que as práticas sociais estão sempre nas
estratégias e táticas cotidianas dos sujeitos sociais. Como tal, elas também estão no interior
das organizações e nas estratégias e táticas nas organizações, incorporando de maneira
indissociável valores, ações e articulações em eventos, entre outros aspectos. Além disso,
essas práticas não estão inseridas apenas “em um contexto”, mas em vários “contextos”,
devido às múltiplas inserções sociais que envolvem os sujeitos. A partir desse entendimento,
neste trabalho, as estratégias e táticas nas organizações foram consideradas como fluxos de
práticas sociais inseridas em contextos organizacionais específicos e sociais mais
amplos. Nesse sentido, as estratégias organizacionais se restringiram a fluxos de práticas
demarcadas pelo lugar do próprio organizacional, aquele que tem autoridade para definir e
demarcar os objetivos organizacionais. Mas as estratégias e táticas nas organizações, além
de não se restringirem a essas estratégias, remetem a construções que as influenciam e são
influenciadas por elas.
O destaque dado às práticas sociais no conceito de estratégia e táticas nas organizações
proposto também se justifica por elas constituírem uma unidade de análise adequada para a
investigação do “fazer estratégia” (JARZABKOWSKI, 2002, 2005). Essas práticas têm uma
relação estreita com as representações sociais (VERGÈS, 2001), capaz de elucidá-las
(JODELET, 2001). Aqui se revela o caminho defendido nesta tese para revelar o próprio e
as articulações que fogem do seu lugar no estudo do “fazer estratégia”: a investigação das
representações sociais que envolvem as práticas associadas a esse fazer.
A análise das representações sociais referentes a determinados sujeitos e objetos permite
evidenciar o “fazer estratégia” por meio de estratégias e táticas cotidianas, na medida em
que expõe construções sociais em torno das quais se estabelece uma ordem social. Ou seja,
20
na análise tanto das articulações inseridas em um lugar de poder privilegiado, com base em
construções estabelecidas e reforçadas, quanto daquelas que pervertem esse lugar, há
necessidade de uma referência em termos de construções sociais anteriores que permita
confrontar elementos identificados na investigação. Aqui, as representações e as construções
sociais que a envolvem foram assumidas como essa referência.
A partir delas busca-se compreender as relações entre os sentidos das práticas sociais e os
direcionamentos das maneiras de “fazer estratégia” das pessoas nas organizações, na direção
da seguinte problematização: como os sentidos das práticas sociais se relacionam com os
direcionamentos das maneiras de “fazer estratégia” das pessoas nas organizações?
Essa problematização é norteada por três questões básicas: as práticas sociais relacionam-se
umas com as outras no cotidiano dos sujeitos sociais; no interior das organizações, essas
relações envolvem o “fazer estratégia” nas estratégias e táticas cotidianas; e o estudo das
representações sociais, dos atores organizacionais, dos clientes, dos fornecedores e dos
demais sujeitos destacados por eles sobre os objetos que eles próprios evidenciam em suas
estratégias e táticas cotidianas é capaz de revelar aquelas relações, pois expõe as práticas
sociais inseridas em lugares de reprodução de um próprio e em bricolagens nos espaços de
transgressão e criação.
No sentido de ilustrar e embasar empiricamente as contribuições teóricas propostas nesta
tese, desenvolveu-se uma investigação empírica que implicou o desafio de operacionalizar
metodologicamente a aplicação das reflexões teóricas propostas. O locus escolhido para o
estudo de caso foi o maior Mercado da cidade de Vitória, capital do Espírito Santo,
conhecido como Mercado da Vila Rubim. A escolha desse locus deve-se a três aspectos: a)
é uma organização peculiar, que reúne interesses e patrimônios públicos (municipal e
21
estadual) e privados (diversos lojistas e fornecedores com atividades concorrentes,
complementares ou diferentes) articulados num lugar comum; b) tem importância
sociocultural, pois, ao longo das décadas, inseriu-se de maneira significativa no cotidiano da
cidade; e c) tem sofrido o impacto direto da recomposição dos espaços urbanos, que remete
o centro da cidade a um espaço “marginalizado” e os estabelecimentos nele localizados a
uma maior dificuldade para a sobrevivência. Na diversidade de atividades existentes no
mercado, o foco do estudo foi para a comercialização de hortifrutícolas em geral, atividade
de origem do mercado e que predominou durante anos, com centenas de comerciantes, mas
que atualmente se restringe a menos do que uma dezena.
Além de ampliar os conhecimentos organizacionais sobre um locus com essas
características, ao basear-se no modelo conceitual desenvolvido nesta tese, o estudo de caso
possibilitou aplicar as contribuições teórico-metodológicas propostas. Dessa maneira, foi
possível ilustrar as adequações das propostas para outros estudos empíricos sobre estratégia,
com foco nas práticas sociais dos sujeitos. Uma aplicação que exigiu a escolha de técnicas
de coleta e análise de dados convergentes com o modelo conceitual proposto. Quanto à
coleta de dados, a preocupação esteve em escolher técnicas que permitissem um
aprofundamento característico de abordagens qualitativas. Nesta tese, foi realizado o uso
conjunto de técnicas de observação, entrevista e pesquisa documental, considerado
adequado por sua capacidade de aprofundamento no cotidiano social, voltando-se
simultaneamente para dois cortes: um histórico longitudinal, principalmente, por meio da
pesquisa de documentos e das entrevistas em duas etapas, uma não-estruturada, com ênfase
nas histórias de vida tópicas (MINAYO, 2000), e outra semi-estruturada, com base em um
roteiro (CRUZ NETO, 1994); e um transversal, voltado para as convivências e práticas na
22
atualidade, por meio, principalmente, do acompanhamento in loco por parte do pesquisador,
a partir das observações assistemática, sistemática e participante (GIL, 1999).
Quanto ao tratamento e à análise dos dados, buscou-se a aproximação de contribuições
metodológicas de uma área do conhecimento já voltada para as interações entre atores
sociais, a qual permite tratar de questões relativas às práticas sociais. Nesse sentido, ao
discutir sobre as “artes de fazer”, Certeau (1994) apresenta elementos do campo da
lingüística, comumente tratados na Análise do Discurso (AD), tais como a não limitação a
corpus “escritos”, a enunciação, o locutor, o interlocutor e a condição de produção do
discurso. Isso legitima a proposição de adotar as contribuições referentes ao Bakhtin (1986a;
1986b) e à vertente da chamada “abordagem francesa da AD da lingüística” (FARIA;
LINHARES, 1993; FIORIN, 2003), que permite reconhecer o sujeito como social em suas
inserções contextuais, em conjunto com a análise do conteúdo na abordagem temática
(BARDIN, 1977).
A AD foi assumida como uma técnica de tratamento de dados que permite ao pesquisador
alcançar o dialogismo dos discursos, pois se volta para os múltiplos discursos inseridos nas
relações entre o intradiscurso e o interdiscurso, revelando implícitos e silenciamentos com
sentidos que vão além dos significados semânticos. De acordo com tal característica, essa
técnica foi adotada no estudo de caso em questão para tratar os dados referentes aos
documentos e aos discursos dos sujeitos de pesquisa. Na análise o processo de significação
foi desvelado pela observação das estratégias de persuasão discursivas, que evidenciam
elementos dos discursos (FARIA; LINHARES, 1993), tais como: temas, figuras e percursos
semânticos. A análise das relações que envolvem esses elementos expõe o intradiscurso e o
interdiscurso. Portanto, chega-se a um nível aprofundado da comunicação entre os atores, o
23
que só é possível em virtude de se considerarem os contextos sociais, os gêneros
comunicativos e as interações nos quais eles se inserem.
A análise do conteúdo, mais simples do ponto de vista operacional, mas que não se volta
para o interdiscurso, foi utilizada como técnica para o tratamento dos apontamentos do
próprio pesquisador em suas notas de campo. Delas foram extraídos e categorizados temas
de acordo com seu sentido semântico, expresso pelo próprio pesquisador que escreveu as
notas e que, depois, utilizou a técnica da análise do conteúdo apenas para organizar as
informações.
Para desenvolver as opções teóricas e empíricas expostas, esta tese foi organizada em oito
tópicos principais, na seguinte seqüência: no primeiro tópico, é apresentada esta introdução;
no segundo, é feita uma breve revisão sobre o campo da estratégia, da visão clássica até a
abordagem da estratégia como prática social, para, em seguida, concentrar-se na discussão
dessa última, com foco em suas limitações e contribuições para o estudo do fazer estratégia;
no terceiro, discutem-se contribuições da abordagem das Representações Sociais para o
estudo da estratégia como prática social, enfatizando-se a necessidade de incorporar
contribuições oriundas das críticas à abordagem representacionista; no quarto, apresenta-se
o esquema conceitual proposto com base na discussão teórica desenvolvida; no quinto,
discutem-se escolhas metodológicas adotadas em uma investigação empírica baseada no
esquema conceitual proposto; no sexto, apresenta-se o Mercado da Vila Rubim, locus da
investigação empírica desenvolvida; no sétimo, discute-se o “fazer estratégia” na
comercialização de hortifrutícolas no Mercado da Vila Rubim; e no oitavo, é desenvolvida a
conclusão da tese.
24
A partir dessa estrutura, evidenciou-se que no processo de fazer estratégia existe um
movimento duplo de manutenção e mudança dos sentidos e práticas inseridas nesse fazer.
Observou-se que isso ocorre a partir de construções sociais anteriores, estabelecidas,
reproduzidas e que permeiam outras, mas sem limitar essas últimas a uma simples
reprodução, pois ocorre o dialogismo que remete ao dinamismo social, como revelado no
caso dos comerciantes de hortifrutícolas no Mercado da Vila Rubim.
25
2 A ESTRATÉGIA ORGANIZACIONAL: DA VISÃO CLÁSSICA À
ESTRATÉGIA COMO PRÁTICA
Os estudos organizacionais têm-se desenvolvido em torno de diversos temas, entre eles a
estratégia, que faz parte do grupo daqueles que obtiveram maior destaque (BARRY;
ELMES, 1997). Isso é explicado, conforme Clegg, Carter e Kornberger (2004, p. 22), pelo
fato de a estratégia ter o papel “[...] de ligação entre o mundo interior das organizações
hermeticamente fechadas e o mundo exterior dos ambientes nos quais tudo o mais se opera”.
Além disso, ela também serve de mecanismo de poder daqueles identificados como aptos a
“fazer estratégia” (KNIGHTS; MORGAN, 1991).
Segundo essa ótica, o campo da estratégia organizacional disseminou-se numa ênfase
positivista. Precursores como Chandler (1962) e Ansoff (1965) influenciaram autores
voltados para os posicionamentos e para as bases econômicas, como Porter (1989; 1991).
Em síntese, as demarcações giraram em torno da importância dos métodos estatísticos, da
visão cartesiana e da generalização dos modelos de estratégia (e.g. WIERSEMA; BANTEL,
1992). Nessa visão, em relação àquele “[...] mundo interior das organizações [...]”,
mencionado por Clegg, Carter e Kornberger (2004, p. 22), interessa apenas estudar o lugar
da alta administração e dos estrategistas (e.g. GELETKANYCZ; HAMBRICK, 1997). Aqui,
o “fazer estratégia” gira em torno desses atores privilegiados, com a atribuição de planejar o
futuro da organização.
26
Para Whipp (2004), essa abordagem no campo da estratégia é marcada pela influência da
economia neoclássica. Conforme o autor, essa é a abordagem que iniciou o campo e
permaneceu predominante. Mas, a partir da década de 1970, surgiram outras, associadas à
teoria organizacional e presentes na atualidade. Comumente nessas outras abordagens a
estratégia é vista “[...] como produto de processos incrementais, adaptativos e emergentes
[...]” (WHIPP, 2004, p. 235). Pettigrew (1977) e Mintzberg (1978) são precursores dessa
corrente, com propostas caracterizadas por repudiarem a concepção de que a estratégia se
baseia apenas num planejamento deliberado. Para os autores, além dos estrategistas da alta-
direção, outros atores podem interferir na estratégia organizacional, e ela não segue apenas
planos definidos a priori. Essa visão aproxima-se da idéia de construção social (BERGER;
LUCKMAN, 1985) e do paradigma interpretativista (BURREL; MORGAN, 1979). Aqui, o
“fazer estratégia” ganha contornos sociais e políticos, que remetem a uma diversidade de
discussões e de abordagens do estudo da estratégia. Esse percurso (da estratégia), com
movimentações que coexistem até a atualidade, será detalhado a seguir, pois compõe
influências que norteiam esta tese.
2.1 A visão clássica da estratégia
A visão clássica da estratégia surgiu numa época em que o racionalismo cartesiano
imperava nos estudos organizacionais (CLEGG; HARDY, 1999). Essas influências
marcaram o desenvolvimento do campo. Segundo essa lógica, o papel dos estrategistas foi
demarcado por Chandler (1962), ao disseminar a idéia de que “fazer estratégia” é
determinar metas e objetivos básicos a serem alcançados em longo prazo. Outro elemento
importante para a abordagem clássica é o ambiente. Seus níveis de previsibilidade atingem o
27
estrategista em seu “fazer”, pois ele deve ser capaz de perceber oportunidades, obstáculos e
ameaças em virtude de possíveis mudanças (ANSOFF, 1965).
Nessa concepção de “fazer estratégia”, a separação cartesiana entre a mente e o corpo, já
explorada pelo taylorismo, caracteriza a distinção entre a estratégia e a operação: “[...]
enquanto a primeira analisa, controla, lidera, pensa e planeja, a segunda aparece como um
mero objeto, passivo e inerte, que deve ser dirigido. A gestão enquanto ‘cabeça’ cria visões,
estratégias e planejamentos para dominar e conduzir a organização (‘corpo’)” (CLEGG;
CARTER; KORNBERGER, 2004, p. 22). Os problemas podem então ser subdivididos por
meio da ação de um planejador (racional) capaz de definir previamente a seqüência linear de
ações necessárias para a solução (CHAFFEE, 1985). Essa definição prévia seria o
planejamento estratégico, de responsabilidade dos estrategistas da organização, cabendo aos
pesquisadores e consultores oferecer instrumentos adequados a esse propósito.
Autores como Levitt (1965) e Porter (1989, 1991) ocuparam esses espaços, focando
formulações de base econômica. Os modelos propostos contribuíram para uma visão linear e
fragmentada, com foco em determinadas atividades consideradas mais relevantes ou
estratégicas. Por exemplo, Porter (1991) defendia que as organizações deveriam tratar suas
atividades estratégicas separadamente, ampliando sua compreensão sobre seus custos e
potenciais de diferenciação. Para o autor, a compreensão dos dois fatores nortearia a
inserção do gestor na passagem das chamadas “vantagens comparativas” para as “vantagens
competitivas”.
A grande receptividade das propostas pode ser explicada, pelo menos em parte, ao se
observar que na década de 1980, período de sua maior disseminação, a indústria japonesa
28
assumiu parcelas expressivas do mercado ocidental, com destaque para o norte-americano
(WHIPP, 2004). A competição passou então a legitimar a adoção de tecnologias gerenciais,
como a reengenharia e o downsizing, voltadas para a reorganização, o corte de custos e da
força de trabalho. A estratégia competitiva, de acordo com Porter (1991), seria o caminho
para as indústrias norte-americanas contra-atacarem invasões dessa natureza. Em propostas
como esta a lógica da economia neoclássica, de agir baseada na “auto-regulação” do
mercado, passou a dominar a estratégia. Conforme Whipp (2004), essas propostas têm em
comum o fato de se basearem na perspectiva da Organização Industrial, caracterizada por
presumir certa estabilidade na dinâmica da competição, o que permitiria aos estrategistas
atuarem antecipando oportunidades e ameaças. Entretanto, como destaca o autor, havia
grupos chamados de “heréticos” que se afastavam um pouco da ortodoxia, influenciados
pelas propostas schumpeterianas.
Para os heréticos, como Hayes e Albernathy (1980), o processo estratégico deveria ser
abordado de maneira mais ampla, para impulsionar as empresas por meio da inovação e da
diferenciação em seus produtos e nas tecnologias adotadas. Dessa maneira elas poderiam
competir e lidar com a incerteza. A base do desenvolvimento econômico seria a tecnologia,
que, ao evoluir, transforma as organizações e promove inovações capazes de revolucionar as
estruturas de mercados/setores (BARNEY, 1986). De qualquer maneira, a distinção entre os
dois grupos não chegou a romper com a ênfase dada ao desenvolvimento econômico das
organizações, à visão cartesiana e às abordagens quantitativas (WHITTINGTON, 2004).
Outro ponto, comumente criticado, é a incapacidade de essas propostas alcançarem a
apregoada intenção de oferecer às organizações instrumentos adequados para a condução da
estratégia, sempre esbarrando na resistência, foco das iniciativas clássicas mais recentes.
29
Essa questão e várias outras foram observadas por Clegg, Carter e Kornberger (2004) ao
analisarem diversos estudos no campo. Conforme os autores, a abordagem clássica é
permeada por “falácias” inseridas entre a realidade e a fantasia. De um lado, o da realidade,
estão as competências organizacionais, os objetivos reais, a implementação do
planejamento, as evoluções emergentes incontroláveis, os meios existentes, os membros da
organização como um todo e a desordem; de outro lado, o da fantasia, estão as pretensões
dos gestores, os objetivos futuros, o planejamento estratégico, a mudança planejada, os fins
a serem alcançados, a mente planejadora da administração e a ordem.
Ao se concordar com o entendimento de Clegg, Carter e Kornberger (2004), é necessário
destacar as implicações da simplificação da realidade e da idealização de um futuro. No
caso, a negação do cotidiano e o menosprezo ao presente afastam os gestores e os
estrategistas dos demais atores organizacionais, pois estes últimos compõem o presente e o
cotidiano da organização. Mesmo que se imponha a eles o discurso do crescimento
econômico infinito como a única alternativa para todas as sociedades, organizações e
pessoas em seu interior, suas construções não são planejadas e elaboradas no sentido desse
futuro infinito. Como mostram Berger e Luckmann (1985), a construção social da realidade
ocorre cotidianamente, incluindo-se interações passadas e presentes. Portanto, é esse o
contexto com o qual se tem que lidar ao atuar em uma organização.
A mencionada fantasia não constrói o futuro; ela é apenas mais uma das interações do
passado ou do presente nessa construção. Daí o interesse de vários autores em focar
diretamente essa construção para compreender os processos estratégicos nas organizações
(WHITTINGTON, 1996). Eles não vêem a estratégia como o caminho para um futuro certo,
mas como um processo de interações cotidianas no presente, com o qual todos os membros
30
organizacionais lidam e do qual fazem parte. A formação desses autores, interessados numa
outra visão da estratégia, sofreu influências européias, distintas do pensamento estratégico
norte-americano predominante. Isso explica o crescente questionamento das bases da
abordagem clássica e de suas prescrições estratégicas, voltadas para o controle hierárquico,
o formalismo do planejamento e a ênfase na análise industrial (VOLBERDA, 2004). A
contribuição deles indica um caminho para desenvolver estudos sobre estratégia
organizacional que reconheça seus aspectos subjetivos e qualitativos.
2.2 A estratégia como um processo
As principais influências sobre os críticos da abordagem clássica predominante são oriundas
da visão processual da estratégia (WILSON; JARZABKOWSKI, 2004). Essa visão surgiu
de contribuições de autores de outras áreas dos estudos organizacionais que se voltaram para
a estratégia (WHIPP, 2004). Pettigrew (1977, 1987, 1992) e Mintzberg (1967, 1973, 1978,
2004) são dois destaques dessa abordagem (KNIGHTS; MORGAN, 1991).
Desde a década de 1960, Mintzberg (1967, p.71) tem trabalhado o conceito de estratégia
como padrão, inicialmente de maneira mais superficial, ao conceituar que
[...] a formação estratégica é definida simplesmente como um processo de tomar
importantes decisões organizacionais (por exemplo, para reorganizar, desenvolver
uma nova linha de produtos, embarcar em um programa de expansão). Estratégia é
o conjunto dessas decisões, podendo evoluir na medida em que decisões
independentes são tomadas ao longo do tempo, ou ser resultado de processos de
formação de planos integrados.
Dessa maneira, evidenciou-se o esboço da abordagem que mais tarde Mintzberg (1978, p.
935) demarcou por meio do conceito de que estratégia é “[...] um padrão em um fluxo de
decisões” (MINTZBERG, 1978, p. 935). O padrão é concebido como “[...] consistência em
31
comportamento ao longo do tempo” Para demarcá-lo, o autor enfatiza a discussão da
concepção de estratégia como plano – “[...] uma direção, um guia ou curso de ação para o
futuro [...]” – e a coexistência dos dois conceitos (MINTZBERG, 2004, p. 34). Conforme
Mintzberg (2004, p. 34)
[...] ambas as definições parecem válidas – as organizações desenvolvem planos
para seu futuro e também extraem padrões de seu passado. Pode-se chamar uma
de estratégia pretendida ou intencional e a outra de estratégia realizada. Assim, a
pergunta importante passa a ser: as estratégias realizadas devem ter sido sempre
pretendidas?
De acordo com o autor, a resposta para essa pergunta pode ser obtida ao se questionar os
atores organizacionais sobre as estratégias realizadas e as pretendidas nos últimos cinco
anos, o que deve revelar uma tendência intermediária. Ou seja, uma parte das realizadas era,
também, pretendida, mas outra parte não, pois surgiu de adaptações não intencionais.
Observa-se que, ao chamar a estratégia como padrão de estratégia realizada, Mintzberg
(2004) deixa claro que ela inclui a estratégia como plano, chamada de “estratégia
pretendida”. Mas apenas uma parte das estratégias pretendidas se transforma em estratégias
deliberadas e realizadas. O restante compõe as estratégias não realizadas. Entre as
estratégias realizadas (como padrão) também estão algumas que não foram deliberadas.
Estas seriam as estratégias emergentes, completando os tipos básicos de estratégia no
processo defendido pelo autor. Para Mintzberg (1978) e Mintzberg e Walters (1985), as
estratégias emergentes seriam complementares às deliberadas, presentes nas concepções
clássicas. A proposta dos autores consistia em suprir a ausência dos processos subjetivos
nos estudos sobre estratégia, com ênfase nas trocas referentes ao processo de formação das
estratégias.
32
Mintzberg (1978) defende o reconhecimento do que ocorre além do controle racional,
espaço no qual surgem estratégias emergentes (formadas) passíveis de serem moldadas
pelos gestores e, então, transformadas em deliberadas (formuladas). O papel dos gestores é
atuar nessa passagem, da estratégia emergente para a deliberada, compondo estratégias
adequadas a cada organização e contexto de atuação. Em síntese, a proposta do autor
consiste em uma oposição à tentativa de definir planos claros e racionais para o futuro,
incapazes de considerar o processo de adaptação promovido pelos próprios planos. No lugar
dessa tentativa, o gestor deve focar o processo de adaptação organizacional em si, do qual
emerge a formação das estratégias, e, a partir dele, formular as suas estratégias para a
organização (MINTZBERG; AHLSTRAND; LAMPEL, 2000). De acordo com Mintzberg
(2004, p. 35), “[...] poucas estratégias podem ser puramente deliberadas (se é que alguma
pode) e poucas, puramente emergentes. [...] Todas as estratégias do mundo real precisam
misturar as duas de alguma forma – tentar controlar sem interromper o processo de
aprendizagem”.
Um exemplo dessa coexistência entre estratégias deliberadas e estratégias emergentes é
apresentado pelo autor quanto descreve uma política comum adotada para se mudar de
estratégia a despeito da resistência da alta administração. Nesse caso, o ator organizacional
interessado na mudança acaba atuando de maneira clandestina em relação à alta
administração, pelo menos até que sua proposta se transforme em um padrão reconhecido
por essa alta administração. “Para ele, ela [a estratégia] é deliberada, mas (ainda) não para a
organização como um todo” (MINTZBERG, 2004, p. 115). Ou seja, uma estratégia
deliberada em um nível pode ser emergente em outro. Caso a estratégia seja realizada antes
de a alta administração assumi-la, em relação a esse grupo os resultados devem ser
atribuídos a um processo de emergência de estratégia. Já em relação ao ator organizacional
33
que a planejou, tal estratégia é deliberada. Portanto, a demarcação entre emergência e
deliberação é relativa aos atores e grupos relacionados com o processo da estratégia em
questão.
É essa visão mais processual e política de estratégia que uniu as contribuições de Mintzberg
(1978) com as de Pettigrew (1977). Ao focar as influências políticas nos processos
decisórios, Pettigrew (1977, p. 79) defende que a “[…] estratégia pode ser entendida como
um fluxo de eventos, valores, e ações inserido em um contexto”. Conforme o autor, esse
contexto inclui a posição da estratégia no tempo;
1
a cultura da organização;
2
o ambiente de
atuação e seus níveis de mudança e estabilidade; a atividade, a estrutura e a tecnologia da
organização; o sistema de liderança; e a política interna da organização. Por meio desses
fatores, os níveis micro (das ações cotidianas), meso (da cultura da organização, do sistema
de liderança...) e macro (do ambiente de atuação) se encontram e se inter-relacionam,
(re)compondo continuamente os contextos. Inseridos nesses níveis, os fatores influenciariam
as soluções para os dilemas ambientais e intra-organizacionais que constituem o foco das
escolhas estratégicas. Além disso, eles também atuariam no processo político de tomada de
decisão que definiria quais dilemas deveriam ser tratados (PETTIGREW, 1977).
Ao analisar tais escolhas, o autor supera a excessiva ênfase na importância do nível macro
das instituições econômicas, predominante na abordagem clássica. Mintzberg (1978) e
1
A questão da posição no tempo se refere ao fato de as estratégias anteriores terem conseqüências sobre as
atuais, que, por sua vez, definirão parte do contexto que permeará as futuras estratégias (Pettigrew, 1977).
2
Para Pettigrew (1979, p. 574, tradução nossa) a “[...] cultura é um sistema de significados aceitos
publicamente e coletivamente por um grupo específico num tempo específico”.
34
Mintzberg e Walters (1985) foram ao encontro dessa idéia quando diferenciaram estratégias
emergentes de estratégias deliberadas. As primeiras são convergentes com o que Pettigrew
(1977) identificou como “estratégias que evoluem além da resolução parcial de
determinados dilemas ou questões”. As segundas aproximam-se do que o autor chamou de
“formulação estratégica como um processo intencional”, uma percepção parcial dos
membros organizacionais a partir de dilemas que aguçam sua consciência para a estratégia.
Para Mintzberg (1978) e Mintzberg e Walters (1985), as duas estratégias (emergentes e
deliberadas) são complementares em um continuum, no qual cada uma comporia um
extremo. Mas, ao identificar o que chamou de “processo intencional”, Pettigrew (1977)
refere-se apenas à percepção dos membros organizacionais. O autor explica que essa
percepção parcial ocorre em virtude de alguns dilemas organizacionais específicos, capazes
de aguçar a consciência dos membros organizacionais sobre a estratégia, o que permitiria
pensá-la como um processo intencional. A despeito da percepção parcial, não existiriam
dois tipos de estratégia, um deliberado e outro emergente, mas apenas um, que é a própria
estratégia. Ela é complexa, está em contínua transformação e, dependendo dos dilemas
abordados, apresenta-se de maneira mais evidente – quando os eventos decisórios são
identificáveis e ela é vista como intencional – ou de maneira mais implícita – quando os
eventos decisórios são discretos. Esse entendimento levou o autor a propor que o estudo do
processo de formulação estratégica envolve a análise dos eventos decisórios identificáveis e
discretos, com foco nos dilemas a eles associados. Os caminhos tomados por esses eventos e
seus resultados seriam analisados com base em seu contexto de inserção, em parte oriundo
das ligações entre eventos decisórios sucessivos, e nos processos políticos a eles
relacionados.
35
Outro ponto a se destacar é que Pettigrew (1977) não diferencia claramente formação e
formulação estratégica. Em uma posição distinta, Mintzberg (1978) associa o termo
formação (segundo a idéia de construção) à sua concepção de estratégia emergente e o
termo formulação (segundo a idéia de instrumentalização deliberada) à sua concepção de
estratégia deliberada. Nessa proposta, a formação e a formulação seriam processos
complementares, mas para Pettigrew (1977) a formulação estratégica deve ser tratada como
um processo político de tomada de decisão, inserido em determinado contexto, em
permanente construção, não cabendo desmembrá-la em um outro processo. Dessa maneira,
o autor consolidou seu conceito de estratégia como sendo um processo político de tomada
de decisão, sem precisar desmembrá-lo em tipos extremos para dar conta das complexas
construções cotidianas dos membros organizacionais.
Em síntese, o autor acima mencionado revelou a formulação estratégica como um processo
político, inserido em um contexto, com inter-relações nos níveis micro, meso e macro, que
se transforma cotidianamente, em virtude de uma variedade de fatores, que compreendem,
também, as próprias transformações oriundas das sucessivas formulações estratégicas. Esta
tese baseia-se em parte em suas idéias, mas não de maneira isolada. Aqui se busca articulá-
las com contribuições de outros campos do conhecimento e da própria estratégia. Nesta
última, destaca-se a corrente da estratégia como prática (ou microprática
3
), diretamente
relacionada com o objetivo desta tese e fortemente influenciada pelas contribuições de
3 Neste projeto os termos micropráticas e práticas são considerados como sinônimos, pois as práticas são
tratadas aqui, segundo o entendimento de Certeau (1994), no nível das interações sociais dos sujeitos; portanto,
um nível micro.
36
Pettigrew (1977) e Mintzberg (1978) (JARZABKOWSKI, 2004, 2005; HENDRY; SEIDL,
2003; JOHNSON; MELIN; WHITTINGTON, 2003).
2.3 A estratégia como prática e o “fazer estratégia”
A visão de estratégia como processo incremental, permeado pela ação de vários atores, abriu
caminho para a ênfase nas práticas sociais cotidianas, remetendo a diversas propostas. A
despeito de muitas adotarem escolhas teórico-metodológicas distintas, todas têm em comum
a busca pela compreensão do que ocorre no nível micro das práticas que unem o indivíduo,
a organização e a estratégia (WILSON; JARZABKOWSKI, 2004).
Os elos comuns e as distinções entre os estudos podem ser observados ao se confrontarem
os trabalhos de Brown e Duguid (2001), Orlikowski (2000), Cook e Brown (1999), entre
outros. A despeito de tratarem de temas distintos, como o conhecimento, a inovação e a
tecnologia, eles surgem sempre associados à prática social dos atores. Orlikowski (2000),
por exemplo, investigou como as pessoas interagiam com a tecnologia em suas práticas e
estabeleciam estruturas que influenciavam o próprio uso da tecnologia. Como contribuição,
a autora propôs uma abordagem na qual o uso da tecnologia era visto como um processo de
representação, baseado nas construções oriundas do papel das práticas sociais na
organização. Nesse e em outros estudos, o foco no nível microssocial do interior das
organizações passou a ser defendido como adequado para investigações mais aprofundadas.
Johnson, Melin e Whittington (2003) destacam que a tendência anterior dos estudos sobre
estratégia sempre foi focar os resultados, não as atividades referentes a esses resultados. Isso
se observa mesmo no caso da abordagem da estratégia como processo, na qual autores como
37
Mintzberg e McHugh (1985) reconheciam a importância das ações e de seus padrões no
estudo das estratégias organizacionais, mas colocavam a ação como o conteúdo realizado da
estratégia. Jarzabkowski (2005, p. 42) critica essa opção e destaca que a ação não deve ser
definida em função de resultados, mas ser considerada em uma visão mais micro, como
“[...] as instâncias individuais de interação entre a alta direção e essas práticas [do fazer
estratégia]”. A autora ilustra essa crítica com a análise que Mintzberg e McHugh (1985)
fizeram da entrada da National Film Board of Canada no ramo televisivo, no qual
consideraram esse resultado uma ação estratégica específica, ignorando as atividades
(ações) que antecederam esse resultado.
A ênfase nos resultados acaba limitando o potencial de análise dos estudos. Como
alternativa, a abordagem da estratégia como prática voltou-se para o nível micro, focando as
práticas. Isso deu destaque ao “fazer estratégia”, pois envolve diretamente essas práticas,
numa visão que pode ser conceituada como “a habilidade astuciosa para usar, adaptar e
manipular os recursos que são empregados para se engajar na formação da atividade
da estratégia ao longo do tempo” (JARZABKOWSKI, 2005, p. 34, grifo nosso, tradução
nossa). Esse é o conceito de “fazer estratégia” organizacional que norteia esta tese, sendo
necessário destacar que, nessa concepção, a inserção contextual passa a ser algo inerente ao
“fazer” (WILSON; JARZABKOWSKI, 2004).
A relevância da discussão do “fazer estratégia” baseia-se no reconhecimento de que essas
práticas e processos constituem as atividades organizacionais cotidianas e estão
relacionados com os resultados nas e das organizações. Nesse sentido, as preocupações
relativas ao “fazer estratégia” estão voltadas para “[...] os processos e as práticas detalhados
38
que constituem as atividades diárias da vida organizacional e que se relacionam com os
resultados estratégicos” (JOHNSON; MELIN; WHITTINGTON, 2003, p. 14).
Esse entendimento expõe a necessidade de discutir o nível a ser assumido na análise
daqueles “processos e práticas detalhados” e, conseqüentemente, do “fazer estratégia”.
Wilson e Jarzabkowski (2004) mostram que sem essa delimitação o pesquisador se depara
com infinitas práticas entre os atores organizacionais: cada olhar ou som pode estar incluído
no limite do nível micro. Além disso, as influências sobre esse nível podem estender-se, no
extremo macro, a qualquer instituição do planeta. Para os autores, é necessário delimitar os
dois níveis, pois na pesquisa sobre “fazer estratégia” ambos devem ser observados.
Conforme Wilson e Jarzabkowski (2004), os níveis macro e micro devem ser considerados
pólos de um continuum. Portanto, também existiriam infinitas possibilidades de níveis
intermediários entre os dois extremos (“distância relacional”), “[...] de comunidades de
prática a organizações, indústrias, setores e contextos nacionais [...]” (WILSON;
JARZABKOWSKI, 2004, p. 15).
Os autores sugerem ainda que o pólo no nível micro poderia ser definido de acordo com o
objeto de estudo e pelo que constitui o nível macro na situação em questão. Essa proposição
leva ao entendimento de que, ao analisar esses dois aspectos, caberia ao pesquisador definir
a priori as delimitações. É inevitável que o pesquisador tenha de fazer previamente várias
escolhas durante uma investigação. Entretanto, nesse caso, como defendem os próprios
autores, cabe aprofundar a discussão, pois se trata de escolhas com implicações na
contextualização das práticas, base dos estudos. Uma alternativa adotada nesta tese são as
contribuições da abordagem das representações sociais. Ela já foi utilizada em outros
estudos sobre estratégia (e.g. CAVEDON; FERRAZ, 2005) e permite lidar com essas
39
delimitações. Essa alternativa será discutida mais à frente, mas antes é necessário destacar
algumas limitações e contribuições da abordagem da estratégia como prática, com
implicações tanto no uso das representações sociais quanto no próprio estudo do “fazer
estratégia”.
2.4 Limitações e contribuições da abordagem da estratégia como prática para o
estudo do “fazer estratégia”
Os estudos na abordagem da estratégia como prática reconhecem a importância das
interações entre os atores sociais no processo da estratégia. Entretanto, a grande maioria
dos trabalhos volta-se para a alta gerência, considerada como a base do “fazer estratégia”
(e.g. WHITTINGTON, 1996, 2003; JARZABKOWSKI; WILSON, 2002; SAMRA-
FREDERICKS, 2003A, 2003B; REGNÉR, 2003). Em alguns estudos, os autores até
defendem a possibilidade de se investigar outros níveis organizacionais, mas em seguida
optam por focar o nível da alta gerência (e.g. JARZABKOWSKI, 2005).
Os autores justificam esse direcionamento pela falta de estudos que focam o “fazer
estratégia” da alta gerência, do ponto de vista de suas relações com as práticas nas
organizações (SAMRA-FREDERICKS, 2003B; REGNÉR, 2003). Outro aspecto, defendido
por Whittington (1996), é a necessidade de buscar novos conhecimentos que permitam
contribuir para a preparação dos responsáveis pelo “fazer estratégia” nas organizações. Para
o autor, o aprendizado desse último grupo deveria incluir habilidades tácitas referentes às
interações cotidianas, reconhecidas como inerentes ao processo de “fazer estratégia”.
40
A despeito dessas justificativas, a movimentação em torno da alta gerência no “fazer
estratégia” tem como conseqüência o reforço de certa fragmentação no campo, repudiada
pelos próprios autores. Na abordagem clássica, os privilegiados detentores dos mecanismos
de poder estratégicos formulavam a estratégia para que os demais atores a implementassem:
a “mente” e o “corpo”, cada um fazendo a sua parte (CLEGG; CARTER; KORNBERGER,
2004). Apesar de repudiarem esse entendimento e de defenderem uma visão integrada, os
adeptos da estratégia como prática mantiveram o papel de “fazer estratégia” focado na alta
gerência. Somente incluíram a influência das práticas dos demais atores no processo. Isso
apenas mudou a forma da fragmentação: agora, existem “duas mentes”, uma com maior
poder do que outra, e um “corpo”. A mente com menor poder é responsável pelo corpo e por
influenciar a outra mente responsável por “fazer estratégia”. Um argumento comum nos
estudos é a justificativa de que a assimetria do poder privilegia a alta gerência. Por isso,
seria interessante focá-la (JARZABKOWSKI, 2005), o que reforça a idéia de fragmentação.
Ou seja, a fragmentação entre mente e corpo é ocultada sob um discurso integrador que a
critica e, ao mesmo tempo, a reforça.
Outro aspecto a se criticar, concordando-se com Ezzamel e Willmott (2004), é o
deslocamento das preocupações referentes aos aspectos culturais e políticos do “fazer
estratégia”, para a identificação de instrumentos, técnicas e habilidades utilizadas no
processo cotidiano. A preocupação com inserção contextual desses elementos está presente
(e.g. WILSON; JARZABKOWSKI, 2004), mas a ênfase está na possibilidade de ela revelar
o adequado uso instrumental desses elementos.
Observa-se em alguns casos a aproximação com a perspectiva integrativa de cultura, na qual
os significados são vistos como compartilhados e instrumentalizáveis pela alta gerência na
41
busca por seus objetivos (MARTIN; FROST, 2001). Wilson e Jarzabkowski (2004)
evidenciam esse aspecto quando discutem possíveis inter-relações entre o nível
organizacional, o “fazer estratégia” em nível micro e a dimensão cultural. A argumentação
dos autores baseia-se numa concepção de cultura na qual “os processos de treinamento e
socialização suportam o desenvolvimento e a continuidade [...]” de uma lógica dominante
(WILSON; JARZABKOWSKI, 2004, p. 17). De maneira geral, o sentido das práticas na
organização é visto como compartilhado pelos autores (EZZAMEL; WILLMOTT, 2004).
Nesse contexto, o pesquisador poderia e deveria aproximar-se da prática cotidiana, pois
“[...] as práticas em suas rotinas locais não são facilmente compreendidas ou influenciadas
a distância”. Só então seria possível ensinar aos futuros estrategistas os conhecimentos
“tácitos” desse influenciar, referente ao aprendizado do “fazer estratégia”
(WHITTINGTON, 1996, p. 732, grifo nosso, tradução nossa).
Evidencia-se certa ênfase funcionalista, na qual seria possível oferecer instrumentos à alta
gerência para melhor atuar no “fazer estratégia”, o que também explica o fato de boa parte
de os estudos se concentrarem nesse nível. Tal ênfase não é a base das abordagens, mas está
presente, em conjunto com influências de diversas abordagens da teoria social, nas quais os
autores articulam contribuições de Foucault (1977), Giddens (1984), Bourdieu (1990),
Certeau (1994), entre outros (WILSON; JARZABKOWSKI, 2004).
A despeito das críticas apresentadas, essa articulação e a preocupação com as práticas ao
investigar o “fazer estratégia” levam à inserção desta tese nessa abordagem. Essa inserção
evidencia que nenhuma das críticas apresentadas tira a legitimidade da abordagem ou pode
ser generalizada para todo o campo. Elas apenas expõem alguns aspectos presentes no
42
campo e opostos à linha de argumentação proposta nesta tese, os quais devem ser
contornados ao se adotar as contribuições da abordagem.
Nesta tese, tais contribuições são direcionadas para evidenciar relações que envolvam as
práticas dos atores organizacionais como um todo, reconhecendo suas diferentes inserções
contextuais. Assume-se que as estratégias na e da organização só existem a partir de
práticas sociais, em complexas interações, cabendo a esta tese o desafio de evidenciar
relações existentes nesse processo e, conseqüentemente, legitimar esse entendimento.
Wilson e Jarzabkowski (2004) ilustram parte dessas movimentações ao descreverem a
estratégia organizacional como a combinação da animação com a orientação, elos essenciais
para a compreensão da estratégia. A animação expressa a idéia de uma ação viva, inserida
em um contexto e com um reconhecido potencial de interação e construção; já a orientação
refere-se a uma direção assumida a partir de construções oriundas da mencionada animação,
o que compreende e ultrapassa os direcionamentos (como as metas e os objetivos) prescritos
formalmente pelos gestores. O desafio é então encontrar suporte na teoria social que permita
a compreensão do processo dessa combinação no “fazer estratégia”.
Wilson e Jarzabkowski (2004) reconhecem nas contribuições de autores como Giddens
(1984), Bourdieu (1990) e Certeau (1994) preocupações sobre as práticas sociais que
oferecem caminhos para a análise em questão. Há muitas diferenças entre as propostas, e
uma crítica simplista e superficial abre espaço para grandes equívocos (MISOCZKY, 2001),
mas, em linhas gerais, no caso de Giddens (1984) e Bourdieu (1990), é mais clara a ênfase
na recursividade a partir da qual se voltam para as práticas como base tanto da manutenção
quanto das possibilidades de mudança (PAÇO-CUNHA et al., 2006). Já Certeau (1994) não
43
centraliza suas preocupações na recursividade; ele a mantém em sua obra, mas como mais
um elemento que faz parte da composição das práticas cotidianas, ordinárias, foco das suas
preocupações. Para o autor, dentre essas práticas algumas lidam com aquelas estruturas no
sentido de mantê-las, assim como a legitimidade das próprias práticas, ao passo que outras
atuam por meio da subversão dos próprios elementos da estrutura, tal como a recursividade
de determinado processo privilegiado de produção de um grupo específico utilizado por um
outro (grupo ou sujeito) em seu proveito. O novo uso, em si, já seria uma mudança, mas tem
ainda o potencial de desencadear o questionamento do processo por parte do grupo inicial
ao observar seu uso “inadequado”.
4
A relevância das contribuições de Certeau (1994) para esta tese está na ênfase da
investigação do uso das práticas cotidianas por parte dos atores, o que vai ao encontro do
objetivo proposto. Tal ênfase é evidente até na designação dada pelo autor – a “arte” –
quando propõe investigar a “arte de fazer” (CERTEAU, 1994). Para isso, Certeau (1994, p.
37) sugere interrogar as “[...] operações dos usuários, supostamente entregues à passividade
e à disciplina”. A intenção do autor é fornecer
4
Essa abordagem pode ser ilustrada pelo caso do direito do cidadão livre de usar a tecnologia dos celulares
para trabalhar ou aumentar sua produtividade, subvertido pelo primeiro preso que utilizou a tecnologia a favor
de seus atos criminosos, seguido por muitos outros colegas de profissão. As tentativas mais simplistas e óbvias
de impedir que as empresas de telefonia comercializem seus serviços na região das penitenciárias esbarram na
legitimidade de qualquer cidadão livre usar seu aparelho nessa região, o que passa a ser discutido. A primeira
mudança, a do uso dos celulares por parte do presidiário, pode se transformar em algo recursivo e aceito por
todos ou podem surgir novas mudanças, por exemplo: como reações a partir da primeira, a limitação daquele
direito do cidadão livre ou o investimento em tecnologias (de gerenciamento penitenciário ou de
equipamentos) necessárias para impedir o uso do aparelho no interior da penitenciária; sem caracterizar uma
reação a partir da primeira, o aumento do custo da ligação a ponto de o presidiário desistir de usar o celular
para crimes com pouca rentabilidade. A escolha do tema em questão se refere ao fato de qualquer brasileiro
leitor estar familiarizado com o contexto envolvido, o que é indispensável numa análise que vá além da
simples descrição de práticas e busque esclarecer as relações socioistórica envolvidas em torno delas. Essa
contextualização socioistórica, no caso, envolve tanto implicações do gerenciamento penitenciário – os
salários baixos, os subornos, as impunidades, os equívocos administrativos..., que permitem ao preso usar o
celular – quanto implicações do uso do celular pelo cidadão livre, como o lucro de cada um e das empresas
que prestam o serviço e a banalização da posse do celular como algo “natural”.
44
[...] alguns caminhos possíveis para análises ainda por fazer. A meta seria
alcançada se as práticas ou ‘maneiras de fazer’ cotidianas cessassem de aparecer
como o fundo noturno da atividade social, e se um conjunto de questões teóricas e
métodos, de categorias e de pontos de vista, perpassando esta noite, permitisse
articulá-la (CERTEAU, 1994, p. 37, grifo nosso).
O autor parte do pressuposto de que os usuários passivos e disciplinados também se
relacionam numa antidisciplina, a partir das bricolagens em suas práticas (as maneiras de
fazer). Transpondo esse entendimento para o “fazer estratégia”, a passividade e a disciplina,
que contribuem para a atuação de determinados atores em condição de planejar de maneira
deliberada, convivem com a antidisciplina, que viabiliza certa transgressão por parte desses
(eles também são submissos à disciplina) e dos outros atores.
Para investigar esse “fazer”, buscar-se-á tratar o que Certeau (1994, p. 46) chama de
“bricolagem”, a arte criativa de combinar associada ao “fazer”; ela compõe a base das
“táticas”: “um cálculo que não pode contar com um próprio, nem, portanto, com uma
fronteira que distingue o outro como totalidade visível”. Conforme o autor, isso ocorre, pois
ela se situa em espaços
5
de transgressão que permanecem inseridos no lugar
6
(uma ordem
estabelecida) do próprio. É nesses espaços de bricolagem no lugar controlado pelo “forte”
que o “[...] fraco deve tirar partido de forças que lhe são estranhas [...] [uma movimentação
que caracteriza as táticas e compreende] [...] muitas práticas cotidianas (falar, ler, circular,
fazer compras, preparar refeições etc.)” (CERTEAU, 1994, p. 47).
5 “Espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam, o temporalizam e o levam a
funcionar em unidade polivalente de programas conflituais ou de proximidades contratuais [...]. Diversamente
do lugar, não tem portanto nem a univocidade nem a estabilidade de um ‘próprio’” (CERTEAU, 1994, p. 202).
6 “Um lugar é a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relações de coexistência [...]
Aí impera a lei do ‘próprio’: os elementos considerados se acham uns ao lado dos outros, cada um situado num
lugar ‘próprio’ e distinto que define. Um lugar é portanto uma configuração instantânea de posições. Implica
uma indicação de estabilidade(CERTEAU, 1994, p. 201).
45
O lugar que permite diferenciar o outro é fundado pelos procedimentos disciplinares
(FOUCAULT, 1977) e viabiliza o que Certeau (1994, p. 46) chama de “estratégia”
7
:
[...] o cálculo das relações de forças que se torna possível a partir do momento em
que um sujeito de querer e poder é isolável de um “ambiente”. Ela postula um
lugar capaz de ser circunscrito como um próprio e portanto capaz de servir de base
a uma gestão de suas relações com uma exterioridade distinta.
Para o autor, a estratégia existe na medida em que se observa o outro de um lugar do qual se
apresenta como algo visível e delimitado e se tem poder sobre ele. Esse lugar baseia-se na
disciplina, na “microfísica do poder” evidenciada por Foucault (1977). Mas, apesar de
reconhecer as contribuições do autor, Certeau (1994, p. 42) afirma opor-se a ele quando
defende que essa disciplina é transgredida pela rede de uma “antidisciplina”, baseada no uso
astucioso e oportunista dos próprios procedimentos disciplinares. Esse uso faz parte das
práticas cotidianas do sujeito social, em suas táticas de transgressão da disciplina presentes
em toda parte (CERTEAU, 1994).
Nesse jogo entre disciplina e antidisciplina, as estratégias e táticas cotidianas estão presentes
na vida contemporânea dos sujeitos sociais, inclusive no interior das organizações, onde elas
permeiam o processo de construção das estratégias organizacionais. Portanto, um elo
comum que permitisse investigar essas estratégias e táticas cotidianas também possibilitaria
o estudo do “fazer estratégia” organizacional. Esse elo é oferecido por Certeau (1994); são
as práticas, sempre atuando nos lugares e espaços, nas estratégias e táticas, na disciplina e
na antidisciplina.
7 A estratégia de Certeau (1994) não se refere especificamente às organizações privadas ou públicas, mas à
sociedade como um todo.
46
Esse entendimento levou à busca por um conceito de estratégia organizacional que
reconheça as práticas do sujeito social nas construções referentes ao “fazer estratégia”.
Nesse sentido destacam-se as contribuições de Pettigrew (1977, p. 79, tradução nossa), para
quem a estratégia é “[…] um fluxo de eventos, valores, e ações inserido em um contexto”.
As ações, os valores de seus atores e os eventos no qual tudo o mais se articula são
indissociáveis das práticas, inseridas simultaneamente nas estratégias e táticas cotidianas
dos sujeitos sociais (CERTEAU, 1994) e, conseqüentemente, nas estratégias
organizacionais. Ou seja, não existe evento sem ações, nem ações dissociadas de valores.
Todas surgem articuladas nas práticas sociais.
A prática se configura como a unidade de análise capaz de evidenciar o “fazer estratégia”,
desde que situada em seus contextos de inserção (JARZABKOWSKI, 2004, 2005). Logo,
propõe-se substituir os três elementos pela sua síntese, as práticas. Além disso, a idéia de
inserção “em um contexto”, no singular, não remete à adequada complexidade das diversas
inserções contextuais, do nível macro mais amplo ao micro mais localizado, de um fluxo de
práticas, ficando como segunda proposição sua passagem para o plural. Com base nessas
proposições, nesta tese a estratégia organizacional é considerada como fluxos de práticas
sociais inseridas em contextos organizacionais específicos e sociais mais amplos.
Mas ao se observar as articulações em torno da “arte de fazer”, defendidas por Certeau
(1994), em que estratégias e táticas cotidianas surgem imbricadas, não há sentido em tratar
de estratégias sem tratar das táticas, ambas atreladas às práticas e às inserções contextuais.
Da mesma maneira, não há sentido em tratar de estratégias em relação a um tipo de objetivo
específico, como os organizacionais em torno da estratégia organizacional, e ignorar outras
estratégias também presentes e atuantes no cotidiano das organizações. Ou seja, tanto as
47
estratégias quanto as táticas cotidianas são fluxos de práticas sociais inseridas em contextos
organizacionais específicos e sociais mais amplos. A distinção é que as estratégias contam
com o lugar de um próprio, no qual construções sociais estabilizadas e reproduzidas
baseiam uma referência de um ideal e do cálculo de forças em relação a um ambiente e a
objetivos nele inserido. Aqui, construções como as representações sociais demarcam para o
grupo um lugar de poder no qual se pode atuar de maneira estratégica, calculada com base
em referências estabelecidas e estabilizadas pelo grupo. Já as táticas não contam com esse
lugar privilegiado, nem com um próprio idealizado; as pessoas nas táticas utilizam ambos
para obter elementos a serem bricolados para legitimar a construção de um espaço de
transgressão, no qual interesses não convergentes com os estabelecidos e reproduzidos
podem se estabelecer, em cálculos realizados na ausência de uma fronteira para os seus
limites e resultados. Resta questionar sobre a ênfase adequada nas investigações sobre
estratégia como prática social. Se estratégia e tática cotidiana são ambas fluxos de práticas
sociais inseridas em contextos organizacionais específicos e sociais mais amplos que se
diferenciam apenas em virtude de sua inserção, ou não, no lugar de um próprio, o foco não
deve se limitar a uma ou a outra. Elas são indissociáveis. Ao se tratar de tipos específicos de
estratégia, como as organizacionais, em torno de objetivos como o crescimento no mercado
e a liderança por preço, não se pode ignorar as relações com táticas cotidianas e com outras
estratégias em inserções contextuais mais amplas. Portanto, a investigação deve se voltar
para o estudo das estratégias e táticas nas organizações, como uma composição de fluxos
de práticas sociais inseridas em contextos organizacionais específicos e sociais mais
amplos, entendimento sintetizado e explicitado na Figura 1.
48
Figura 1 – Entendimento de estratégia e tática (CERTEAU, 1994) nas organizações adotado na tese
Fonte: articulações do referencial teórico
Na figura os diferentes fluxos de práticas sociais constroem um mosaico sempre incompleto,
uma composição dinâmica de fluxos inseridos em estratégias ou táticas cotidianas. Cada
fluxo é articulado de acordo com certa inserção em torno do lugar de um próprio, uma
ordem estabelecida e demarcada pelas construções sociais dos sujeitos e pelas maneiras
como suas práticas se posicionam em relação a essas construções.
O destaque dado à inserção contextual remete à necessidade de retomar a questão da
delimitação, dos níveis micro e macro, no estudo da estratégia como prática. A proposta
aqui defendida é superar essa dificuldade por meio das contribuições dos estudos sobre
representações sociais. Essa opção faz com que o problema passe a ser a escolha dos
sujeitos e dos objetos sobre os quais se investigarão suas representações. Quanto aos
sujeitos, no caso das organizações (públicas ou privadas), três grupos parecem claros: os
atores organizacionais (que articulam as práticas), os clientes e os fornecedores (os dois
Foco e limite da visão clássica
Estratégia -
cálculo das
relações de
forças baseada
no lugar de um
próprio (ordem
estabelecida)
Estratégias em
Interesses além dos
objetivos
o
r
g
aniza
c
i
o
nai
s
Estratégias na
organização
Táticas -
cálculo que não
pode contar
com um
próprio -
b
ricola
g
e
m
Táticas na
organização
Fluxos de práticas
sociais
Interesses das
pessoas que se
relacionam na
organização
Interesses das pessoas que se
relacionam na organização
Estratégias
Organizacionais
Objetivos
organizacionais
específicos
Fluxos de práticas
sociais
Estratégias e
táticas nas
organizações
Um mosaico
Composição de
fluxos de
práticas sociais
inseridas em
contextos
organizacionais
específicos e
sociais mais
amplos
Contextos
organizacionais
específicos e sociais
mais amplos
49
últimos estão envolvidos em boa parte das práticas). Defende-se ainda a possibilidade de
surgirem outros sujeitos, sendo adequado colocar esse grupo como inicial e capaz de indicar
outros sujeitos. Em relação aos objetos, cabe destacar a dificuldade de definir a priori
aqueles em torno dos quais os sujeitos vão articular suas práticas no “fazer estratégia”.
Entretanto, desde que se definam os sujeitos iniciais da pesquisa e o foco nas práticas
cotidianas para orientar a investigação, existem metodologias capazes de partir dessas
delimitações iniciais para chegar a outras, com o auxílio dos próprios sujeitos de pesquisa.
Isso inclui a delimitação dos objetos destacados nas construções referentes às representações
sociais desses mesmos sujeitos.
Essas opções permitem que a “distância relacional” (WILSON; JARZABKOWSKI, 2004,
p. 15) não seja definida a priori e dão aos sujeitos de pesquisa a chance de revelarem a
distância na qual suas práticas se inserem. Parte-se do pressuposto de que no estudo das
representações sociais não cabe delimitar previamente a que os sujeitos vão associar suas
construções no sentido de determinada representação social, se é que eles vão associá-las a
algo. Caso existam essas representações, a delimitação no tocante aos níveis micro ou macro
fica por conta do próprio sujeito de pesquisa. Assim como o pesquisador, o sujeito é
obrigado a simplificar a realidade para lidar com ela – não se pode delimitar a priori os
limites nos quais ele vai inserir suas representações.
Além de oferecer essa possibilidade, deve-se ressaltar o fato, destacado por Certeau (1986),
50
de Moscovici
8
, entre outros autores, revelar processos inseridos na sociedade relacionados
com práticas sociais que vão além da construção de normalizações institucionalizadas na
sociedade; ou seja, procedimentos que coexistem dentro do processo disciplinar. Portanto, a
escolha por adotar as contribuições de Moscovici (1978; 1988; 1993; 1995; 2003b) na TRS
é coerente com a argumentação da oposição à passividade disciplinar, desenvolvida até
aqui, uma opção balizada nos aspectos dos estudos sobre representações sociais que vão ao
encontro do objetivo desta tese, como se discute a seguir.
8
Em outra obra, Certeau (1995, p. 239) se refere ao estudo de Moscovici (1978) sobre as representações
sociais da psicanálise com a seguinte afirmação: “Ela [a psicanálise] devolve as representações às suas
condições de produção e os enunciados a um não-dito. Fugindo ao controle dos especialistas, constituindo um
novo mito”. Certeau (1995) comenta que Moscovici (1978) em seu estudo com base nas representações já
tratava dessa movimentação da psicanálise. A intenção nesta tese é justamente aproveitar as propostas de
Moscovici (1978) sobre as representações, bem como os desenvolvimentos posteriores, para tratar do objetivo
em questão alinhado com as contribuições de Certeau (1986; 1994; 1995; 1996).
51
3 AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E OS ESTUDOS DE ESTRATÉGIA
COMO PRÁTICA SOCIAL
Ao aplicarem as representações sociais no estudo das estratégias como práticas, Cavedon e
Ferraz (2005) sintetizaram o que justifica a adoção dessa proposta. Para as autoras,
[...] a contribuição da conjugação estratégia/representações sociais se dá
exatamente pela observância e respeito para com a alteridade, para com o
significado que o “outro” constrói sobre as suas estratégias negociais, para com o
saber cotidiano, que nem sempre vem ao encontro dos postulados desenvolvidos
no âmbito científico (CAVEDON; FERRAZ, 2005, p. 14).
O estudo em questão evidenciou “[...] o reflexo das representações sociais na construção de
estratégias” por parte dos gestores de pequenas empresas (CAVEDON; FERRAZ, 2005, p.
16). Esta tese foi então influenciada pela possibilidade de se seguir parte dos caminhos das
autoras, para se aproximar das práticas dos sujeitos sociais no “fazer estratégia” nas
organizações. Mas aqui o desafio não foca os gestores; a estratégia organizacional é
assumida como pertinente a todos os atores organizacionais. Não existiria uma estratégia
organizacional, mas um mosaico de estratégias organizacionais imbricadas, resultante dos
fluxos de práticas dos sujeitos sociais. Esse mosaico pode até parecer uma estratégia
organizacional e ser tratado por muitos pesquisadores como tal, mas aqui é considerado um
mosaico – ou seja, um espaço no qual partes diferentes coexistem. Essas partes surgem no
que Certeau (1994) chamou de “estratégias e táticas”. A partir do embate entre elas, “a
diferença que define todo lugar não é da ordem de uma justaposição, mas tem a forma de
estratos imbricados” (CERTEAU, 1994, p. 309).
52
A compreensão de parte desse estrato só é alcançada pelas “maneiras de fazer” nele
inseridas, as práticas dos sujeitos sociais. Isso aproxima esta tese dos estudos de
representações sociais, nos quais a ênfase nessas práticas está presente em sua base teórica
fundadora, a chamada “Teoria das Representações Sociais” (TRS) (MOSCOVICI, 1978;
1993; 1995; 2003b). Desde então “[...] existe uma relação estreita entre representações e
práticas cotidianas” (VERGÈS, 2001, p. 344). A partir das primeiras, é possível elucidar
processos de interação social nos quais as segundas são construídas e utilizadas (JODELET,
2001).
A abordagem está associada à corrente da Psicologia Social moderna defendida por
Moscovici (1978, 1993, 1995, 2003b). O conceito de representações sociais foi influenciado
pelo conceito de “representações coletivas”, de Durkheim (1978), mas distingue-se das
propostas deste autor por não enfatizar a primazia do social sobre o individual, pois assume
que a sociedade e o indivíduo se influenciam mutuamente. Ao defender essa abordagem,
Farr (1995) destaca sua adequação ao contexto moderno e pós-moderno. Para o autor, a
visão do social em uma relação complementar ao individual permite às representações
sociais oferecerem sentido à tensão cotidiana, envolta pela individualização e pela
socialização.
Ao tratar dessas representações sociais, a TRS proposta por Moscovici (1978; 2003b)
oferece uma base teórico-metodológica capaz de lidar com a diversidade e o dinamismo das
mudanças na sociedade contemporânea. Para o autor, as representações sociais interagem
entre si em oposições, convergências, distinções, desaparecimentos e recriações, o que exige
considerar as representações sociais originais ao investigar outras, associadas a elas. Nessas
interações, as práticas sociais, o tempo e o espaço passam a ser mediados em representações
53
sociais do passado, presente e futuro, na construção do senso comum. Ao evidenciar essas
ligações e os processos pelos quais elas ocorrem, a TRS permite a compreensão do uso das
práticas. Essas últimas, conforme o entendimento de Certeau (1994), aqui assumido, podem
estar inseridas ora em lugares atemporais, dos quais se tem poder sobre um outro, ora em
espaços que dependem do uso astucioso do tempo por um fraco (o outro) sem poder.
Quando se aproxima das representações sociais dos sujeitos, o pesquisador está se
aproximando dos conhecimentos que expõem articulações referentes às suas maneiras de
fazer cotidianas. O alvo dos estudos e desta tese é “[...] captar os saberes do ‘Outro’ dentro
dessa noção de contemporaneidade, onde tudo se dilui, se mistura, se fragmenta”
(CAVEDON, 2005, p. 11). Isso justifica a adoção nesta tese de um conceito de
representação social que destaque esse conhecer, o de Jodelet (2001, p. 22), para quem ela
“[...] é uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo
prático, e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social”.
Para se aproximar dessas formas de conhecimento, é necessário que elas sejam descritas de
maneira detalhada, considerando sua estrutura e evolução (MOSCOVICI, 1978; 2003b). No
caso da tese em questão, só depois de confrontar essas descrições é que será possível
compreender os relacionamentos existentes entre as práticas sociais e o “fazer estratégia”. O
desafio é diferenciar das práticas inseridas nas representações sociais aquelas que
correspondem ao “fazer estratégia” na organização e, dentre essas, as que se posicionam
num lugar de poder ou num espaço de transgressão (CERTEAU, 1994).
Conforme Moscovici (1978) e Sá (1998, p. 32), inicialmente, a pesquisa deve ocupar-se
“[...] dos suportes da representação (o discurso ou o comportamento dos sujeitos,
54
documentos, práticas, etc.), para daí inferir seu conteúdo e sua estrutura, assim como da
análise dos processos de sua formação, de sua lógica própria e de sua eventual
transformação”. Aqui entra a coleta de dados e, em seguida, a análise, e em ambos os casos
não existe uma técnica específica da TRS, mas uma variedade de técnicas quantitativas e
qualitativas (SÁ, 1998). Nesta tese, optou-se pelas últimas, mais adequadas para a
compreensão aprofundada de construções que envolvem os sujeitos sociais em suas
inserções contextuais. A partir dessas inserções, busca-se observar a tentativa dos sujeitos
de familiarizar-se com o que lhes é estranho, afastando o não-familiar, na medida em que
ele é transformado em familiar (CAVEDON, 1999a).
Guareschi (1995, p. 212) explica que “[...] o ‘não-familiar’ é produzido, e se situa, na
maioria das vezes, dentro do ‘universo reificado’ das ciências, e deve ser transposto ao
‘universo consensual’ do dia-a-dia”. A despeito da ênfase na ciência como origem do não-
familiar, como apregoa o fundador da TRS (MOSCOVICI, 1978), observa-se, na explicação
apresentada, que isso ocorre na maioria das vezes, não sempre, o que pode ser útil no
entendimento de diversas representações sociais. Indo na direção das bases da TRS,
Guareschi (1995) destaca que a representação social atua como o elo daquela transposição,
produzindo um conhecimento de maneira espontânea num grupo social. Por isso, é
considerada teoria do senso comum. Sobre essa produção, Moscovici (2003b, p. 60)
esclarece que “não é fácil transformar palavras não-familiares, idéias ou seres, em palavras
usuais, próximas e atuais. É necessário, para dar-lhes uma feição familiar, pôr em
funcionamento os dois mecanismos de um processo de pensamento baseado na memória e
em conclusões passadas”.
Esses mecanismos são a ancoragem e a objetivação. Segundo Moscovici (2003b, p. 60-61),
55
[...] o primeiro mecanismo tenta ancorar idéias estranhas, [classificá-las] reduzi-
las a categorias e a imagens comuns, colocá-las em um contexto familiar. Assim,
por exemplo, uma pessoa religiosa tenta relacionar uma nova teoria, ou o
comportamento de um estranho, a uma escala religiosa de valores. O objetivo do
segundo mecanismo é objetivá-los, isto é, transformar algo abstrato em algo quase
concreto, transferir o que está na mente em algo que exista no mundo físico. [...]
Esses mecanismos transformam o não-familiar em familiar, primeiramente
transferindo-o a nossa própria esfera particular [ancoragem], onde nós somos
capazes de compará-lo e interpretá-lo; e depois, reproduzindo-o entre as coisas
que nós podemos ver e tocar [objetivação], e, conseqüentemente, controlar.
Além desses dois conceitos, outros dois são destacados por Marková (2000), compondo
quatro conceitos considerados pela autora como inter-relacionados e necessários para se
compreender as representações sociais em seu processo dialógico, no qual não há pleno
consenso, mas eternas negociações de oposições em determinadas direções comuns. O
terceiro conceito é o de themata (MOSCOVICI, 1993; MOSCOVICI; VIGNAUX, 2003) e
o quarto, o de gêneros comunicativos (MOSCOVICI; MARKOVÁ, 1998; 2003). O uso
conjunto desses conceitos surgiu com o desenvolvimento do campo da TRS (MOSCOVICI,
1993; MOSCOVICI; VIGNAUX, 2003; MOSCOVICI; MARKOVÁ, 1998, 2003) e
explicita a mencionada posição dialógica. Como tal posição nem sempre foi observada pelos
próprios membros do campo, existe margem para críticas em relação à epistemologia (não
dialógica) adotada (SPINK, 1996), a ponto de os críticos generalizarem o não
reconhecimento dessa posição como algo do campo como um todo.
Nesta tese, essa crítica é refutada ao se assumir os dois últimos conceitos como parte
inseparável da compreensão do processo de construção das representações sociais. O
primeiro, o de themata, é entendido por Liu (2003, p. 255, tradução nossa) como “[...]
pressuposições historicamente contextualizadas, antinomias culturalmente compartilhadas, e
lógicas profundas do pensamento social”. Esse conceito é trabalhado por Moscovici (1993)
e Moscovici e Vignaux (2003) na TRS, a partir das contribuições de Holton (1978) para a
epistemologia, nas quais a themata é apresentada como unidades cognitivas relativamente
56
estáveis, preconceitos ou pressuposições que permeiam a vivência e formação dos cientistas,
capazes de transformar e moldar o pensamento científico. Ou seja, as thematas levam os
cientistas a se concentrarem em tipos específicos de explicações e fatos (MOSCOVICI,
1993; MOSCOVICI; VIGNAUX, 2003).
A aplicação desse conceito na TRS se legitima por sua capacidade generativa de temas, o
que remete à possibilidade de abordá-lo empiricamente por meio das relações que mantém
com esses mesmos temas, capazes de serem acessados pelo pesquisador. Os temas,
considerados como unidades de análise e acessados por meio das metodologias de coleta de
dados, são dialogicamente interdependentes com as thematas. Uma themata deriva temas
que são “[...] manifestações pragmáticas, ou reconstruções parciais da themata em diferentes
formas e esferas da vida cotidiana” (LIU, 2003, p. 255-256).
Liu (2003) explica que, diferentemente das thematas, os temas não têm um amplo poder
generativo e normativo, mas estão ligados a esse poder, na medida em que as pessoas
compõem e expressam temas ao levarem em conta as thematas que para elas baseiam a
questão em discussão. Isso contribui para a distinção defendida pelo autor entre tema e
themata, na qual o tema pode ser efêmero, situacional e não constitui, necessariamente,
forma de díade ou terno. Por outro lado, as thematas são relativamente estáveis, constituídas
ao longo do tempo, “[...] são tipicamente díades antitéticas, como atomicidade / continuum
ou análise / síntese, mas, ocasionalmente, são ternos-apolares, como continuidade / evolução
/ mudança catastrófica” (LIU, 2003, p. 254).
A inserção das themata na TRS é uma resposta à busca pela compreensão de onde vêm as
idéias que permitem ao sujeito atuar em sua inexorável lida com o desconhecido, por meio
57
da ancoragem e da objetivação. Liu (2006), por exemplo, segue esse caminho para estudar a
questão da Qualidade de Vida para os chineses, por meio da TRS. A partir de diversos
temas revelados pelos informantes, o autor identificou que a representação social de
Qualidade de Vida para os chineses se organiza em torno da themata sendo/tendo. O autor
revelou que a oposição entre o ser e o ter envolve influências confuncionistas, muito
antigas, do ponto de vista histórico, nas quais se celebram o espírito, o ser, em oposição ao
materialismo, o ter. Ao mesmo tempo, essa themata envolve a história recente da transição
chinesa nos anos de 1980, na direção de uma economia de mercado, na qual o ter é
celebrado à medida que o conforto material, a maior liberdade econômica e a diversidade de
estilos de vida se inserem na sociedade chinesa, na qual coexistem as influências
confuncionistas, marxistas e capitalistas.
Em um estudo anterior, no qual discute essa mesma pesquisa, Liu (2003) destaca que a
themata sendo/tendo apresenta sua face hegemônica, na medida em que a antinomia entre
ser e ter está presente na sociedade chinesa como um todo. Entretanto, as manifestações e
seus temas variam conforme os diferentes domínios da sociedade, com claras distinções
entre os setores rural e urbano da sociedade chinesa. O primeiro enfatiza uma lógica
existencial e o segundo a aplica simultaneamente ou alternadamente com a lógica
econômica, uma distinção que está ligada às posições das pessoas nos diferentes setores da
sociedade e na construção dessa mesma sociedade. Portanto, a themata sendo/tendo
58
apresenta, além da face hegemônica, uma face “emancipada”,
9
no sentido de ser específica
de um grupo de maneira emancipada em relação à sociedade.
A terceira e última face observada por Liu (2003) foi a polêmica. Ela surge das oposições
abertas no embate entre os setores rural e urbano, intensificando-se à medida que as
mudanças sociais na direção do capitalismo ficam mais presentes na sociedade, criando
dilemas e conflitos na inserção do sistema de valores capitalistas dentro do sistema de
valores tradicional chinês. A importância dessa dimensão polêmica é esclarecida por Liu
(2003, p. 260-261; tradução nossa) ao afirmar que
[...] a dimensão polêmica de uma representação é particularmente relevante para a
simbiose de sistemas de valores rivais coexistindo no centro da mudança social.
Firmemente inserida em contextos sociais e históricos particulares que evoluem e
mudam, uma representação social é, por um lado, gerada a partir da themata, e, por
outro lado, engendrada nos conflitos sociais, econômicos e políticos por meio da
construção e participação do atores sociais.
Por exemplo, no contexto de transição chinês para uma economia de mercado, há
um conflito óbvio em relação a como alcançar uma boa vida, entre as gerações mais
antigas e as mais jovens. Esta questão envolve visões opostas sobre a relação entre o
indivíduo e a sociedade. Para a antiga geração, a QDV [Qualidade de Vida] tende a
ser estimulada pela contribuição individual abnegada para o bem comum da
sociedade. Porém, para a geração mais jovem, a QDV tende a ser estimulada pela
autonomia do indivíduo. Essa dimensão polêmica da QDV é gerada na simbiose de
sistemas de valores que competem entre o Confucionismo, o Marxismo e o
9
Para esse entendimento e uso do termo emancipada Liu (2003) se baseia em Moscovici (1988). Para
Moscovici (1988) o termo emancipada indica as representações emancipadas, que são construídas dentro de
determinados grupos, de maneira emancipada em relação à sociedade como um todo, mas sem entrarem em
conflito com as representações sociais compartilhadas nessa sociedade como um todo. As Representações
Sociais compartilhadas por essa sociedade seriam as Representações Hegemônicas, existindo ainda um
terceiro tipo, as Representações Polêmicas. Estas últimas se referem aos grupos que apesar de possuírem
Representações Sociais sobre um objeto comum, entram em oposição aberta e explícita em relação a aspectos
diversos e, comumente, a representações hegemônicas ou emancipadas. No estudo em questão, Liu (2003) não
se utiliza dos termos Representação Hegemônica, Emancipada ou Polêmica, mas da idéia de que existe uma
face hegemônica nas Representações Sociais, as thematas, bem como existem as faces emancipadas e
polêmicas. Essas duas últimas oriundas dos compartilhamentos e das oposições temáticas que giram em torno
das thematas e das construções cotidianas dos sujeitos.
59
Capitalismo que coexistem no centro da transição social chinesa. Nesse sentido, a
representação social da QDV é, em parte, compartilhada de uma maneira polêmica.
Ao evidenciar essa manifestação da face polêmica, em conjunto com a da hegemonia e a da
emancipação, já apresentadas, Liu (2003) defende que essas três maneiras de compartilhar
atuam simultaneamente e de maneira complementar na mesma Representação Social. Para o
autor, essa seria sua contribuição para a TRS, segundo ele, indo além da idéia de Moscovici
(1988) de que diferentes Representações Sociais são compartilhadas de uma das três
diferentes maneiras, tendo a themata como gênese. Essa concepção de Mocovici (1988) será
discutida mais à frente, mas é importante destacar que para o autor tais representações
coexistem simultaneamente. Portanto, a contribuição de Liu (2003) não está em revelar a
simultaneidade entre hegemonia, emancipação e polêmica, mas em evidenciar o potencial
de uma abordagem de análise na qual a Representação Social em si fica em segundo plano.
Diferenciando-se de Moscovici (1988), Liu (2003) desloca a questão da hegemonia, da
emancipação e da polêmica de tipos de compartilhamentos de Representações Sociais para
compartilhamentos de aspectos de uma Representação Social em torno das themata, sua
gênese. Dessa maneira, Liu (2003) mostra um caminho para entender fenômenos sociais por
meio das Representações Sociais, focando o processo de construção no qual ela se insere,
sem a ênfase na Representação Social em si, mas nos aspectos e relações envolvidos em sua
construção. Essa abordagem foi adotada nesta tese ao se concordar que
[...] as dimensões emancipadas e polêmicas de uma representação expressam as
condições das sociedades particulares dos atores sociais que as estimulam, seu
contexto específico, em relação a diversas esferas de vida. Ao mesmo tempo, elas
refletem a ampla mudança social, econômica, política e ideológica, e os conflitos.
Assim, uma representação social pode ser uma e, ao mesmo tempo, hegemônica,
emancipada e polêmica. Essas maneiras diferentes de compartilhar são
dialogicamente inter-relacionadas umas às outras (LIU, 2003, p. 261; tradução
nossa).
60
Ao investigar essas múltiplas dimensões, é possível uma aproximação tanto com elementos
socioistóricos anteriores quanto com as interações do momento. A partir das primeiras, as
segundas são responsáveis pela reestruturação das Representações Sociais e dos
conhecimentos filtrados por meio “[...] dos discursos de outros, das experiências que
vivemos, das coletividades às quais pertencemos” (MOSCOVICI; VIGNAUX, 2003, p.
221). Na concepção sociocognitiva, que marca a TRS, Moscovici e Vignaux (2003)
atribuem à cognição o papel de atuar nessa filtragem, em conjunto com a comunicação, a
linguagem, os aspectos discursivos do conhecimento. Aqui, a proposição da themata
concretiza o “[...] laço entre cognição e comunicação, entre operações mentais e
lingüísticas” (MOSCOVICI; VIGNAUX, 2003, p. 220).
Essa cognição a que Moscovici e Vignaux (2003) se referem não é algo biológico que
simplesmente se desenvolve no cérebro, mas, como destaca Marková (2000, p. 421), a “[...]
co-construção social de representações e imagens” na mente. A autora afirma que a
distinção entre cérebro e mente é primordial para a compreensão do conceito de cognição de
Moscovici e Vignaux (2003). Além disso, ela ressalta a necessidade de diferenciar o
entendimento de cognição como simples processamento de informação, incompatível com
as idéias do autor, e outro, de acordo com suas proposições, o de que
[...] os agentes humanos constroem em conjunto sua cognição e informação. Neste
último caso, cada expressão de uma ‘cognição’ no indivíduo tem uma orientação
dupla: sócio-cultural e individual. A cognição é uma relação dentro de um sistema
e ele não pode ser decomposto em elementos ou partes individuais (MARKOVÁ,
2000, p. 422).
Daí a busca por um conceito que contribuísse para a compreensão das relações entre
cognição e comunicação sem decompor a primeira, assumindo-se o conceito de themata por
abarcar o de cognição. Ao fazer essa escolha, Moscovici (1993, p. 3) explica que as themata
61
“[...] motivam ou compelem as pessoas na sua busca cognitiva. Isto é o que vem às suas
mentes quando são atingidas por algum item não-familiar da informação e é sobre o que elas
se comunicam”. Essa comunicação inclui o conhecimento popular, pois, como destaca o
autor, ele está inserido nas thematas capazes de formar e transformar as Representações
Sociais.
Dessa maneira, na familiarização por meio da ancoragem e da objetivação, a themata e a
comunicação estão inter-relacionadas. Mas resta o desafio de lidar numa investigação com
esse inter-relacionamento. Ou seja, a questão é: Como interpretar as manifestações do
processo de familiarização e dos fenômenos a ele associados? A resposta para essa questão
está em voltar-se para a investigação dos gêneros comunicativos, o quarto conceito aqui
destacado. Ele surge de contribuições do campo da lingüística de Bakhtin (1986b) sobre
gêneros discursivos, aliada por Moscovici (1993) à sua concepção de sistemas
comunicativos adotada em estudos baseados na TRS. Segundo esse último autor:
Minha hipótese em La Psychanalyse era que existiam diferentes sistemas de
comunicação e conversação nos níveis interpessoais, assim como há a difusão, a
propagação e a propaganda no nível da ‘massa’; e que suas ‘regras’ ou lógicas
moldam as representações sociais de maneiras específicas. Depois que eu li
Bakhtin, eu prefiro chamá-las de ‘gêneros comunicativos’ (MOSCOVICI;
MARKOVÁ, 1998, p. 402-403).
Marková (2000) esclarece que esses sistemas moldam as representações e, também, são
moldados por elas. Ao incorporar a idéia de “gêneros”, os até então chamados “sistemas
comunicativos” se legitimam nas contribuições de Bakhtin (1986b) para reforçar a idéia de
que por meio deles se enfatizam ou minimizam diferentes questões a partir do uso de
terminologias específicas e de acordo com as práticas e grupos sociais dos quais eles fazem
parte. Ao expor esses aspectos, Marková (2000) destaca que eles não posicionam os gêneros
comunicativos por si sós como a origem de todas as práticas sociais e atividades humanas;
62
pelo contrário, há uma interdependência entre os gêneros comunicativos e o pensamento
social – eles se (re)formam mutuamente.
Essa interdependência pode ser observada nas propostas precursoras de Bakhtin (1986a;
1986b) ao tratar de gêneros literários e, também, trazer o conceito de gêneros discursivos
como algo presente nas atividades cotidianas da sociedade. Para Holquist (1986) as
contribuições de Bakhtin (1986a) na distinção entre linguagem literária e linguagem
cotidiana ressaltaram a importância de se explorar essa última, reconhecendo os gêneros
primários – associados às maneiras de se expressar admissíveis ao longo da vida, como o da
conversa face a face, o de contar piada – e os gêneros secundários – como o jornalístico, o
científico e o legal, presentes na sociedade na qual o primeiro vai sendo composto. Nesse
sentido, Bakhtin (1986b, p. 87) desenvolve a seguinte conceituação: “Os gêneros
correspondem a situações típicas de discurso comunicativo, temas típicos, e,
conseqüentemente, também de contatos particulares entre os significados das palavras e a
realidade concreta e atual sob certas circunstâncias típicas”. O autor explica que a seleção
das palavras a serem usadas na construção de uma elocução qualquer não é feita com base
na neutralidade do sistema lingüístico, mas com base em elocuções anteriores,
principalmente as que são familiares, transformando-se em algo típico e compondo
determinados gêneros discursivos.
Com base nesse conceito, o discurso não é algo individual, pois tudo na elocução do sujeito
envolve gêneros relacionados com compromissos com práticas sociais, culturas ou grupos
sociais; ou seja, convenções sociais que marcam os gêneros com uma natureza convencional
e institucional (MARKOVÁ, 2000). Na ausência desses gêneros não haveria como articular
63
discursos com base no vazio, mas esse vazio não ocorre, pois os homens desenvolvem
gêneros comunicativos à medida que se socializam.
De acordo com Marková (2000), os gêneros comunicativos e as representações sociais se
influenciam mutuamente, apresentando-se em composições dinâmicas ou relativamente
estáveis. O dinamismo vem das mudanças oriundas das práticas comunicativas cotidianas e
a relativa estabilidade vem da inserção socioistórica que envolve essas práticas, dificultando
a criação e a alteração dos gêneros comunicativos. A autora destaca que no caso das
representações sociais a ancoragem remete à inserção social do novo, do diferente, e a sua
estabilização ao ser associado a uma construção social anterior, ao mesmo tempo em que a
objetivação leva à “concretização” do novo abstrato.
Rosa (2006) esclarece que o “concreto” anterior, estabilizado, que serviu à objetivação,
ganha novos sentidos. Nesse processo, a oposição entre estabilidade e dinamismo remete à
dialogia das representações sociais, associada aos quatro conceitos apresentados, da
seguinte maneira (MARKOVÁ, 2000): os gêneros comunicativos têm como característica a
formação de thematas. À medida que isso ocorre, elas servem de base para se lidar com o
desconhecido (ou o questionamento do conhecido), por meio da construção de
representações sociais que incorporam e articulam o desconhecido com as thematas (o
conhecido). Por sua vez, essa construção se dá a partir de processos de ancoragem e
objetivação inseridos em gêneros comunicativos necessários às comunicações simbólicas
que viabilizam esses processos e expressam as representações sociais. Por essa relação de
dependência os gêneros comunicativos influenciam as representações sociais, que, por sua
vez, se tornam pressupostos pragmáticos dos próprios gêneros comunicativos nos quais se
64
inserem, influenciando esses gêneros com o surgimento de maneiras de veicular e de temas
novos ou renovados.
Aqui, assume-se que, ao expor essas relações, é possível uma maior compreensão dos
sentidos das práticas sociais e suas relações no direcionamento de práticas específicas, como
aquelas referentes ao “fazer estratégia” das pessoas nas organizações. Com base na
discussão teórica apresentada, defende-se o argumento de que a abordagem da estratégia
como prática social aqui adotada tem na incorporação de elementos da TRS contribuições
que permitem o desenvolvimento do campo. Para legitimar esse argumento em evidências
empíricas, buscou-se expor a ancoragem, a objetivação, a themata e os gêneros
comunicativos relacionados com as representações sociais dos atores organizacionais,
clientes e fornecedores em seu cotidiano e os sentidos a elas associadas na comercialização
de produtos hortifrutícolas no Mercado da Vila Rubim. A partir dessa exposição, buscou-se
evidenciar as articulações táticas (CERTEAU, 1994) que os atores fazem de elementos de
representações sociais na direção de interesses nem sempre coerentes com essas mesmas
representações, o que não impede o uso desses elementos no processo de bricolagem. A
intenção é evidenciar relações entre os sentidos das práticas sociais desses atores e o “fazer
estratégia”.
Para concretizar essa intenção, na análise dos dados, as influências de Certeau (1994),
Bakhtin (1986a; 1986b) e, especificamente no campo das representações sociais, de
Marková (2000) e Spink (1995a, 1995b) levaram à adoção da AD como ferramenta de
análise. Essa opção vai ao encontro e, ao mesmo tempo, de encontro às contribuições de
Spink (1996), a partir de um artigo publicado em 1996, no qual a autora apresentava
argumentos referentes a sua contínua aproximação a idéias de Bakhtin (1986a; 1986b) e ao
65
seu afastamento da TRS, em virtude de uma série de limitações e questões epistemológicas.
A autora assume uma abordagem mais voltada para contribuições da lingüística, na direção
da chamada “abordagem construcionista”. Nesta tese, a aproximação com a lingüística é
seguida ao se assumir a AD como uma técnica de análise de dados. Mas, a despeito das
críticas da autora, isso é assumido em uma posição complementar à TRS, o que possibilitou
confrontar o uso que os atores fazem das práticas sociais em seu cotidiano com o sentido
das representações sociais a elas associadas.
Ao optar pela análise do discurso, parte-se do pressuposto, corroborado por Bakhtin
(1986a), de que as formas de enunciação são geradas nas relações sociais, que marcam a
comunicação quando os discursos manifestam verbalizações sempre inseridas em uma
determinada situação social. O autor explica que a língua não surge dos atos individuais ou
de signos sistematicamente combinados, mas da interação social. Dessa maneira, o
nascimento do sujeito se dá em um processo dialógico de múltiplas interações sociais,
marcado pela multiplicidade discursiva permeada pela contradição. Quando o sujeito
verbaliza algo, ele está inserido socialmente naquele processo dialógico, o que faz com que
todos os discursos tenham relação com seu contexto social de produção. Bakhtin (1986a, p.
36-37) explica:
Cada domínio possui seu próprio material ideológico e formula signos e símbolos
que lhe são específicos e que não são aplicáveis a outros domínios. O signo, então,
é criado por uma função ideológica precisa e permanece inseparável dela. A
palavra, ao contrário, é neutra em relação a qualquer função ideológica específica.
Pode preencher qualquer espécie de função ideológica: estética, científica, moral,
religiosa.
É importante analisar com cuidado quando Bakhtin (1986a) atribui a condição de “neutra” à
“palavra”, para não confundir uma neutralidade absoluta com uma relativa ao fato de que a
palavra assume infinitos partidos ou ideologias. Ou seja, ela é neutra apenas no tocante a
66
não servir a “uma” função “específica” por servir a “todas”, nunca havendo uma
neutralidade absoluta, mas uma relativa ao fato de ela servir simultaneamente a todas as
ideologias. Bakhtin (1986a, p. 36) deixa isso claro ao afirmar que “[...] a palavra é o
fenômeno ideológico por excelência”. O signo, por sua vez, deixa de ser um signo para ser
outro signo quando separado de sua função ideológica original.
Outro ponto que deve ser esclarecido é o entendimento de ideologia e de representação de
Bakhtin (1986a). Em relação ao primeiro Miotello (2005, p. 176) esclarece que o sentido de
ideologia para o autor se refere ao “[...] sistema sempre atual de representação de sociedade
e de mundo construído a partir de referências constituídas nas interações e nas trocas
simbólicas desenvolvidas por determinados grupos sociais organizados”. Esse entendimento
é compatível com o da posição dentro da TRS adotada nesta tese. Entretanto, não se pode
deixar de observar que a ênfase de Bakhtin (1986a) na base material, segundo a tradição do
materialismo histórico, está presente em suas contribuições, bem como em seu
entendimento de representações (MINAYO, 1995).
A abordagem da TRS aqui adotada implica certo afastamento dessa visão, na medida em
que se assume o processo sociocognitivo defendido por Moscovici (1978). Resta questionar
se a aproximação de Bakhtin (1986a) com o determinismo material exige o pleno
afastamento da TRS de suas contribuições, pois obscurece, de certa maneira, o sujeito.
Nesta tese, ao assumir as contribuições da TRS e de Bakhtin (1986a; 1986b), segue-se o
entendimento de autores como Marková (2000), Fávero (2005) e Moscovici e Marková
(1998; 2003), e a resposta é a busca por articular as contribuições de Bakhtin (1986a;
1986b) no tocante aos gêneros comunicativos e ao dialogismo discursivo. Essa opção se
deve ao fato de Bakhtin (1986a) assumir uma postura na qual o materialismo se posiciona
67
no discurso em conjunto com um entendimento de construção de sentido referenciada no
social (CALLINICUS, 1985), o que é convergente com a concepção de sociocognição de
Moscovici (1978) e oferece espaço para o uso da Análise do Discurso na TRS. Em um
enfoque no qual, concordando-se com Certeau (1994, p. 82), se reconhece uma “[...]
historicidade social na qual os sistemas de representações ou os procedimentos de
fabricação não aparecem mais só como quadros normativos, mas como instrumentos
manipuláveis por usuários”.
Para autores da chamada “abordagem construcionista”, que também assumem contribuições
de Bakhtin (1986a; 1986b), como Gergen (1997), Spink (1996), e Shotter (1997), cabe uma
série de críticas à TRS, com implicações epistemológicas que indicariam a incoerência da
opção por adotar a AD na TRS, nas bases aqui propostas. A discussão dessas críticas
permite demarcar a posição da abordagem da TRS adotada nesta tese, dentro da
heterogeneidade do campo. Essa demarcação não apenas permite refutar algumas críticas,
mas também destacar aquelas com as quais a corrente adotada está de acordo e segue como
crítica interna ao campo.
3.1 As críticas construcionistas e as posições na TRS
A abordagem da TRS adotada nesta tese assume uma série de críticas sobre o campo como
contribuições a serem reconhecidas em sua aplicação, o que inclui as autocríticas dos
adeptos do campo e as críticas dos que se inserem fora dele. O estudo de Spink (1996) está
inserido neste último grupo. Ao discutir o estado da arte dos estudos sobre representações
sociais, a autora apresentou argumentos que, segundo ela, legitimam seu afastamento do
campo da TRS na direção da chamada “abordagem construcionista”. Spink (1996, p. 181)
68
polariza a discussão ao generalizar aspectos básicos do construcionismo, sua nova opção, e
do construtivismo, que seria a opção da TRS:
[o construcionismo é caracterizado] [...] como uma modalidade de epistemologia
pós-moderna radicalmente anti-representacionista; [e o construtivismo como] [...]
mescla de anti-determinismo (e portanto a crença na atividade construtiva do
sujeito) e de historicismo (e portanto o reconhecimento da natureza histórica e
cultural dos fenômenos sociais).
Essas duas concepções acabam simplificando algo muito mais complexo: a gênese
epistemológica comum que envolve o construtivismo e o construcionismo; e as diversas
correntes dentro das duas abordagens, que para alguns são apenas divisões a partir e dentro
do desenvolvimento do construtivismo (DINIZ NETO, 2005). O próprio Gergen (1985),
reconhecido como um dos precursores da abordagem construcionista na psicologia social,
afirma que o uso do termo construtivismo para identificar a abordagem por ele defendida é
comum, mas ele optou pelo termo construcionismo para evitar confusões com o uso do
termo anterior em diversos campos.
De qualquer maneira, se, por um lado, as diferenças atribuídas por Spink (1996) às
distinções entre cada vertente têm certo sentido, por outro lado, a partir do desenvolvimento
dos estudos surgem correntes distintas que aproximam as duas vertentes. Nesse sentido, Rey
(2003) destaca compatibilidades e incompatibilidades entre cada vertente e se opõe a uma
generalização simplista que indique a existência de um “construtivismo” e de um
“construcionismo”. Isso mostra os obstáculos para tentar classificar abordagens que se
aproximam, como pode ser ilustrado ao se observar as distinções de Arendt (2003, p. 8)
sobre cada vertente:
Os dois paradigmas são contrastados a partir de uma dicotomia: de um lado
[construtivista] teorias, objetos, sujeitos que executam procedimentos e refletem
sobre coisas a partir de seus interesses, representando a realidade, confiando nas
69
próprias experiências como forma de compreender o mundo, investigando
baseados em fundamentos considerados legítimos; do outro [construcionista],
práticas, atividades, sujeitos que negociam a coordenação de ações sociais com
outros no fluxo cotidiano, em função de interesses compartilhados, questionando
os processos de "construção social" da realidade, atuando com modos de
investigação que aceitam o erro e encontram suas garantias em situações
localmente constituídas.
Para afastar a TRS do segundo e situá-la no primeiro, Spink (1996) foca o
representacionismo da abordagem, mas os problemas da classificação se apresentam quando
adeptos da TRS, como Arruda (2003), explicam que há uma confusão, inclusive interna ao
campo, sobre o que é representação para a TRS e para o próprio Moscovici (1978), seu
precursor: o sentido não é o de representar um objeto concreto como em um espelho, mas
construir algo a partir de uma construção anterior. Essa visão aproxima a TRS do
construcionismo, como defende o próprio Moscovici (1997) em uma reposta direcionada
aos críticos construcionistas da TRS. Isso não indica um pleno equívoco de Spink (1993;
1996), pois muitos adeptos do campo da TRS, como defendem e mostram Nascimento-
Schulze e Camargo (2000), assumem uma postura representacionista e uma visão do
discurso diametralmente oposta aos desenvolvimentos do construtivismo na direção do
chamado “construcionismo”, apresentados por Arendt (2003). Nesta tese, considera-se um
equívoco apenas generalizar as críticas para todo o campo e assumir a complexa decisão da
incomensurabilidade paradigmática, uma opção comum em muitos campos do
conhecimento, que, para os que discutem o tema, tem contornos tanto epistemológicos
quanto políticos (BURREL; MORGAN, 1979; BURREL, 1999; CLEGG; HARDY, 1999).
A intenção aqui não é realizar um aprofundamento nas motivações relacionadas com a
generalização e a decretação da incomensurabilidade dentre construcionistas, como Spink
(1996) e Gergen (1985), mas expor as críticas desse grupo direcionadas à TRS, buscando
oferecer contribuições. Isso implica a ruptura com a generalização e com a
70
incomensurabilidade paradigmática, bem como o delineamento de uma abordagem inserida
na TRS, mas influenciada pelas críticas dos construcionistas. Um exemplo disso são as
críticas de Spink (1996, p. 180-181) que focam as inserções epistemológicas da TRS, as
quais dão destaque às implicações em relação à “natureza da atividade construtiva do
sujeito” e à base dessa natureza, o “compromisso com o representacionismo”. Segundo a
autora, os problemas epistemológicos da TRS são envolvidos por escolhas teóricas e
metodológicas marcadas pela imprecisão e pela falta de clareza.
Diversos pesquisadores, como Medrado (1998) e Ibañez (1992), concordam com essas
críticas e advogam um direcionamento para o construcionismo. Outros pesquisadores, como
Räty e Snellman (1992), Voelklein e Howarth (2005) e Arruda (2003), concordam com
algumas das críticas, mas destacam que elas são contribuições para o campo da TRS, pois a
partir delas surgem propostas teórico-metodológicas opostas, distintas ou complementares
às existentes no campo, sem exigir um afastamento dele, ampliando seu potencial para lidar
com fenômenos sociais. Esta última posição é assumida nesta tese, segundo o entendimento
de que não há uma ruptura que exija a passagem para uma “nova” abordagem, mas o
reconhecimento de que na origem da TRS há espaço para abarcar as contribuições dos
críticos internos e externos. O próprio Mocovici (1997) deixa claro que há espaço para a
aproximação entre a TRS e aspectos do construcionismo, estranhando a postura de autores
que ignoram essa abertura ou se opõem a ela promovendo uma suposta incompatibilidade,
como Gergen (1985), Ibañez (1992), Spink (1996) e Medrado (1998).
Como ressalta Spink (1996), as críticas mais intensas à TRS são realizadas por
pesquisadores britânicos e norte-americanos, como Gergen (1985) e Potter e Edwards
(1999), em uma inserção na chamada “abordagem construcionista”. Mas isso é paradoxal,
71
pois esses autores estão abertos a metodologias interdisciplinares e a estudos que não se
limitam à experimentação, e assim como Moscovici (1978) e Jodelet (2005), dentre muitos
outros adeptos da TRS, eles também se opõem à visão convencional da psicologia na qual
predominam os modelos positivistas com ênfase individualista (ROSA, 2006). Potter e
Edwards (1999), inclusive destacam como aspectos positivos da TRS a preocupação com o
processo de construção das versões de mundo, com os conteúdos no cotidiano das pessoas e
com a comunicação, e as relações nela baseada. A despeito do reconhecimento desses
aspectos, poucos autores, como Billig (1993), posicionam-se no sentido de assumir
possíveis contribuições da TRS para os construcionistas. Comumente, os esforços estão
direcionados à crítica da TRS (DUVEEN, 2003). De outro lado, os autores que advogam a
favor da TRS, geralmente, estão dispostos ao diálogo com os construcionistas e a buscar
neles contribuições para a TRS. Räty e Snellman (1992), Arruda (2003), Voelklein e
Howarth (2005) e Rosa (2006) defendem essa postura. E, ao assumi-la nesta tese, busca-se
esclarecer as críticas, respondê-las e destacar aquilo que elas oferecem de contribuição para
a TRS.
A crítica de Spink (1996) sobre a maneira como a TRS lida com o sujeito e sua atividade
construtiva se relaciona com uma visão na qual para a TRS a construção seria uma maneira
de reproduzir objetos de uma realidade substantiva. Entretanto, Duveen (1998, p. 446)
destaca que a construção na TRS envolve um engajamento ativo
[...] que considera a cultura como um padrão estruturado de significados,
sustentado por formas de relações e práticas sociais. [...] [Ela envolve e não
impede] o processo pelo qual são geradas novas formas de compreensão, e é este o
sentido de “construção” que mais se aproxima com o fenômeno das
representações sociais.
72
De acordo com o autor acima mencionado, na TRS as representações construídas se
distinguem por umas serem relativamente estáticas, compondo padrões de significados
estáveis, e outras serem mais dinâmicas, marcando um processo construtivo do qual surgem
novos significados no mundo social. Os que criticam a TRS, como Spink (1996) e Medrado
(1998), enfatizam que ela está centrada na estabilidade e que o dinamismo estaria apenas nas
maneiras dos sujeitos apresentarem objetos inseridos na estabilidade social, o que remeteria à
idéia de representação desses objetos.
Esses críticos advogam que o uso do termo representação seria um equívoco no âmbito de
uma proposta que reconhece o conhecimento como produto da construção social. Para eles a
idéia de representação por si só remeteria a um “objetivismo” implícito, pois pressupõe a
existência de um objeto anterior, a ser representado (MEDRADO, 1998; SPINK, 1996). Ao
discordar desse ponto, é necessário destacar que o argumento em parte têm coerência, não
no tocante à necessidade de um objeto anterior que preexiste independente do sujeito, mas
na necessidade de se reconhecer uma anterioridade, histórica, que demarca um passado de
origem das representações que continua no presente, em um eterno processo de demarcação
que envolve a dimensão temporal na construção social do conhecimento – o objeto em si é
um corte nessa dimensão. Como explica Marková (2000, p. 430) é necessário reconhecer a
diferença “[…] entre a definição de objetos estáticos e monolíticos versus a definição de um
fenômeno dinâmico e relacional”. A segunda definição marca a posição da TRS, em
oposição à primeira, que marca a tradição positivista.
73
Quando se coloca na TRS que a representação é de um sujeito sobre um objeto, este objeto é
uma delimitação proposta pelo pesquisador ou oferecida pelos sujeitos,
10
para que exista
um foco na análise das mediações e construções que ocorrem nesse cotidiano, no decorrer
da investigação realizada pelo pesquisador. A importância da definição do objeto no estudo
das representações sociais não vem de sua concepção como uma referência objetiva ou real,
mas do fato de este objeto delimitar o contexto social em que se expressa a representação
social (REY, 2003). Sem isso o que se tem é o infinito de relações sociais impossíveis de
serem tratadas pelo pesquisador. Não cabe aqui discutir a necessidade das delimitações em
qualquer estudo, mas é importante deixar claro os caminhos para se chegar a essas
delimitações. No caso da TRS, segundo a abordagem aqui adotada, o objeto é o meio para
essa delimitação, de uma realidade socialmente construída. Portanto, ele não é a realidade e
tampouco a representação é o reflexo desse objeto.
Para Moscovici (1978), o termo representação não é sinônimo de reprodução, mas de uma
nova produção, na qual os objetos, ao contrário de serem parcial e mentalmente
reproduzidos pelo indivíduo, são produzidos e “vividos” em um processo sociocognitivo
daqueles que interagem com eles e que os insere em contextos históricos e culturais
(HOWARTH, 2002; VOELKLEIN; HOWARTH, 2005). Arruda (2003, p. 349; tradução
nossa) explica que para a TRS “[...] a realidade é socialmente construída;
10
O pesquisador, como na abordagem adotada nesta tese, pode buscar esse foco nas próprias manifestações
dos sujeitos, pois os sujeitos delimitam objetos por conta própria em suas interações cotidianas, e revelam
construções sociais associadas a esses objetos (o que inclui as representações sociais). Comumente, para
direcionar e facilitar a coleta e o tratamento dos dados, o pesquisador oferece um foco (objeto) para o sujeito
se manifestar a respeito, o que oferece oportunidade para as críticas em que haveria ênfase numa relação
simplista de oposição entre sujeito e objeto.
74
conseqüentemente, ela obscurece os limites entre sujeito e objeto”. Ou seja, uma separação
simplista é inviável e incoerente.
Wagner (1998, p. 309, tradução nossa) esclarece que Moscovici (1978) raramente utiliza o
termo construção social em seus primeiros estudos “[...] seu termo preferido,
‘représentation’, em francês, tem um âmbito dinâmico e construtivo. O termo inglês e
germânico representation tem um âmbito mais estático de reprodução, por exemplo, uma
fotografia ou um mapa”. Essa distinção explica parte das críticas que associam de maneira
generalizada a TRS a uma visão estática de uma realidade objetivada (VOELKLEIN;
HOWARTH, 2005), ignorando estudos em posições totalmente distintas (WAGNER, 1998).
Ainda, Rey (2003) destaca que, diferentemente dos construcionistas, Moscovici (1978) não
descarta uma ontologia da realidade, mas se aproxima deles ao associar essa ontologia às
relações sociais. Ou seja, a realidade existe a partir das delimitações do sujeito, não como
algo nato, pois a ontologia que define a suposta realidade comum é uma construção dos
sujeitos.
Nesse sentido, a TRS não se insere numa visão objetivista da realidade e tampouco na plena
relativização contextual defendida pelo construcionistas. Ao discutir essa questão, Guareschi (2003)
discorda da posição de total relativização defendida pelos construcionistas. O argumento do autor se
justifica pelo entendimento de que a centralidade na plena relativização e contextualização é
contraditória, uma vez que a proposição da plena relativização passa a ser assumida como uma
verdade absoluta, não relativa, contrariando o próprio argumento (ROSA, 2006). Para Guareschi
(2003), a contingência e a relativização, que caracterizam os discursos nas análises
construcionistas, também devem ser assumidas no tocante ao entendimento da produção
teórica e nos resultados das investigações dos construcionistas, o que deve incluir as críticas
75
à TRS. Isso remeteria à existência de espaço dentre os construcionistas para a visão da
realidade defendida pela TRS e destacada por Arruda (2003): uma realidade socialmente
construída com base em processos de comunicação e interação permeados por formas de
conhecimento distintas, que permitem ao sujeito criar e lidar com a diferença e a novidade
(heterogeneidade), sem, necessariamente, a eliminar, o que envolve seus interesses, valores e
idéias.
Para a autora, esses aspectos norteiam a discussão que parte dos construcionistas sobre a
existência ou não da realidade e a maneira como a TRS lida com ela. A autora explica ainda
que a questão central em torno dessa temática é o fato de que para a TRS “[...] a
representação de algo também é a representação da pessoa que o construiu [...] A ‘pessoa
que construiu’ baseia sua construção no domínio do simbolismo e da experiência de vida
que fornecem as bases de sua leitura do mundo” (ARRUDA, 2003, p. 349). A criatividade e
a novidade não são eliminadas; pelo contrário, elas vêm dessa base, também responsável
pela relatividade da realidade como algo que é construído por pessoas, mas uma relatividade
que não é plena, pois as próprias construções anteriores das pessoas impõem limites
simbólicos a essa relatividade (HOWARTH, 2002). Aparentemente, em relação à questão
da relatividade da realidade, o ponto de confronto entre os construcionistas e os adeptos da
TRS é a aceitação desses limites simbólicos por parte dos últimos, uma referência que
permite a existência de representações. Sem o simbólico e seus limites não existiriam
representações sociais.
Guareschi (2003) destaca que nas propostas construcionistas os discursos assumem o papel dos
limites simbólicos e da atuação do sujeito, uma abordagem com a qual o autor discorda, pois
implica que o sujeito deixa de ser o produtor dos discursos influenciados por diversos
76
aspectos da interação e contextualização social para ser primordialmente produzido por
discursos que ele mesmo reproduz a partir de uma contextualização também discursiva, e
por isso considerada social. Assim como defendido nesta tese, o autor não nega a condição
social do discurso. O que ele questiona é a exclusividade ou prioridade do social a partir do
discurso em detrimento das outras manifestações sociais. Além de ser considerado um
produto associado a uma situação interativa específica, o próprio discurso é visto como
reprodutor de discursos mais amplos, presentes na esfera social, chamados, por exemplo, de
repertórios interpretativos (GUARESCHI, 2003; ROSA, 2006). Rosa (2006) explica que,
para os construcionistas, por meio desses repertórios ocorreria a ligação entre o indivíduo e a
esfera social, com o primeiro buscando seus objetivos por meio do uso de estruturas
discursivas presentes na linguagem e que emergem da relação interpessoal. O sujeito
construtor da realidade, como na TRS, passa a ser uma “[...] construção da realidade [...] de
sujeito falante é transformado em sujeito constantemente falado pelos microdiscursos
contextualmente variáveis” (ROSA, 2006, p. 173). Rosa e Farr (2001) corroboram com esse
argumento ao destacarem que a conseqüência dessa visão é ter o discurso, a realidade e os
sujeitos identificados entre si de maneira tautológica no próprio discurso.
A crítica ao radicalismo dessa visão do discurso não significa que a TRS se opõe ao
discurso ou ao seu estudo. Muito pelo contrário, o problema é a reificação do discurso,
assim como a TRS é acusada de reificar as representações. Portanto, o alerta sobre os
aspectos negativos da reificação, destacados também pelos construcionistas, serve para
ambos. As representações e os discursos devem ser tratados dentro de um corte que se
oponha a uma reificação simplista, na direção do reconhecimento de uma constituição
dinâmica e socialmente construída. Dessa maneira, o discurso, base do processo de
comunicação, relaciona-se de maneira indissociável com as representações, compondo seu
77
processo de transformação, por meio do qual, segundo Arruda (2003), as representações de
um sujeito se entrosam com as de outros grupos.
Essa ligação entre a TRS e o discurso justifica os interesses de Rosa e Farr (2001) em
aproximar as proposições teóricas e metodológicas da Análise do Discurso com a TRS, o
que só é possível ao se opor à reificação, seja do discurso, seja das representações. Os
autores destacam que
Se na espécie humana a palavra é um canal privilegiado para definir, objetivar e
construir realidade, não obstante a realidade não pode ser definida exclusivamente
por meio da palavra: imagens, sons, condutas, ritos... são outros modos de gerar e
comunicar aspectos "multiformes" (não necessariamente complementares e, em
alguns casos, antagônicos) de representações sociais (ROSA; FARR, 2001, p. 238;
tradução nossa)
Nesta tese, ao se assumir essa posição, buscou-se um caminho que permite focar aspectos
distintos das práticas sociais e dos sujeitos em suas inserções contextuais. A Análise dos
Discursos acompanha o estudo de práticas e manifestações diversas por meio de
observações no cotidiano dos sujeitos. Por esse caminho se revelam as Representações
Sociais, com ênfase em seus dinamismos mais ou menos estáveis que envolvem tanto a
heterogeneidade quanto o compartilhamento, à medida que ocorre o entrosamento dos
sujeitos em uma infinidade de grupos sociais.
Outra crítica dos construcionistas à TRS se refere à problemática da delimitação do grupo
de sujeitos de pesquisa e à associação desse grupo como um todo a uma determinada
representação social. Defendendo esse argumento, Medrado (1998, p. 10-11) alerta para as
limitações da TRS nas pesquisas empíricas, pois
[...] aquilo que define um grupo social a ser investigado seriam as representações
por eles compartilhadas, ou seja, aquilo que só será alcançado no final do trabalho.
78
[...] Assim, nos trabalhos de Moscovici, é circular e tautológico o critério utilizado
para se identificar um grupo, resultando numa confusão conceitual, na medida em
que o grupo é definido a partir daquilo mesmo que define as representações, a
saber, sua natureza social.
Novamente, a delimitação de uma dimensão da abordagem empírica é colocada em questão,
mas os críticos reconhecem apenas a primeira etapa da delimitação dos sujeitos; a decisão
inicial da escolha é do pesquisador e de seus critérios. A TRS mantém essa condição, mas o
equívoco dos críticos está em não reconhecer a segunda etapa que envolve os estudos. O
argumento de Medrado (1998) remete ao entendimento de que àquele grupo, inicialmente
definido, será atribuída determinada representação, de maneira simplista e direta, mas na
TRS cabe ao sujeito a palavra final sobre suas relações sociais. Ou seja, o pesquisador pode
incluir os sujeitos que bem entender. Mas, ao analisar as relações entre eles com base na
TRS, surge o papel dos sujeitos na demarcação dos espaços de suas relações sociais, e os
membros do grupo escolhidos pelo pesquisador podem não se confirmar como aqueles que
interagem entre si, em torno dos temas também escolhidos pelo pesquisador. Sá (1998)
reconhece que essa característica da TRS é ignorada em estudos dentro do próprio campo.
Considera uma falha daqueles que a adotam, ignorando o rigor necessário para evitar que o
pesquisador defina arbitrariamente as relações sociais em torno das representações, sem
oferecer espaço aos sujeitos de pesquisa, como defende a TRS.
Essa característica foi um dos principais motivos da inserção da TRS nesta tese: uma base
para que o sujeito ofereça contribuições ao se estudar a estratégia como prática social, no
sentido de suprir as limitações dos pesquisadores do campo na escolha das delimitações do
escopo adequado para investigar as infinitas relações sociais que podem envolver as práticas
na estratégia. A circularidade mencionada – o grupo de sujeitos remete às representações
sociais que remetem ao grupo de sujeitos – ignora que o primeiro grupo não é igual ao
segundo. O primeiro, quem define é o pesquisador; o segundo grupo interessa à TRS, pois é
79
a construção dos próprios sujeitos que rejeita, confirma ou reconstrói as escolhas do
pesquisador, o que faz parte da análise das construções dos sujeitos.
Rosa (2006) destaca que a solução proposta pelos construcionistas demarca uma diferença
básica em relação à TRS. Os primeiros vão adotar uma concepção na qual o discurso é o
processo fundador de tudo, focando um caminho para acessá-lo. Os repertórios lingüísticos,
por exemplo, não mantêm conexão com grupos sociais específicos, mas estão associados a
todos os sujeitos (MEDRADO, 1998). Nesse caso, os outros processos e construções (como
os comportamentos, as ações e o senso comum) e os diversos níveis (como o individual, o
social e o interpessoal) estão constituídos intrinsecamente no discurso, e o discurso é o
espaço de manifestação analisado e do qual o pesquisador escolhe o que lhe interessa ou
rejeita o que foge desse interesse, por exemplo, os aspectos individuais.
Os adeptos da TRS posicionam a representação social como constituída intrinsecamente
pelos processos e construções, em diferentes níveis (como o individual, o social e o
interpessoal), mas, ao integrá-los, ela não é considerada como capaz, por si só, de manifestá-
los. Pelo contrário, é a análise desse conjunto, o que inclui o discurso e a comunicação, que
permite revelar as representações sociais e as relações sociais em torno delas. Essa opção,
de um lado, remete à mencionada crítica da circularidade por parte dos construcionistas e,
de outro, é responsável por uma característica da TRS, “[...] seu dialogismo subjacente: quer
dizer, esta interdependência envolve a tensão dinâmica, a transformação de significados e de
gêneros comunicativos que são o resultado desta interdependência, desta polifonia e deste
confronto” (MARKOVÁ, 2000, p. 456, tradução nossa). Neste caso, o dialogismo está
intrínseco às representações sociais a partir das relações a elas associadas pelos sujeitos,
80
capazes de manifestá-las em suas práticas sociais, que incluem os discursos e uma
infinidade de maneiras de comunicar, de ações e de comportamentos.
Outra crítica a ser discutida é a noção de consensualidade na TRS, que, para os críticos,
“[...] pressupõe uma uniformidade nos discursos e ações de indivíduos pertencentes a um
dado grupo” (MEDRADO, 1998, p. 16; HERMANS, 2003). A despeito de alguns autores
que adotam a TRS, como Nascimento-Schulze e Camarco (2000), defenderem abordagens
que focam fragmentos lexicais na busca por uma suposta homogeneidade, outros
pesquisadores, como a própria Spink (1995) em estudos anteriores à sua ruptura com o
campo, não buscam essa homogeneidade e desenvolvem metodologias nas quais as
oposições, inclusive as discursivas, fazem parte das construções dos sujeitos sociais. Rose et
al. (1995) destacam que o consenso não significa a plena homogeneidade das construções
dos sujeitos em torno das representações sociais, pois isso faria das representações sociais
algo estático e inútil para lidar com a complexidade dos fenômenos sociais.
Existe certo grau de consenso que permite o desenvolvimento de processos de comunicação
e cognição, mas ele se restringe a certas bases desse desenvolvimento, como os rituais, as
tradições e a linguagem comum, e é envolvido pela contradição, pela fragmentação e pela
mudança social que caracterizam a interação social imediata em seu nível argumentativo
(VOELKLEIN; HOWARTH, 2005). O consenso está apenas nos limites simbólicos
construído por representações sociais na medida em que elas compõem uma cultura comum
(HOWARTH, 2002). A partir desses limites simbólicos, pode-se identificar o consenso ou
dissenso grupal e a heterogeneidade dentro dos grupos e entre eles, tanto se atendo a esses
limites quanto forçando-os até a ruptura. Não existe “o consenso”, mas infinitos níveis de
consenso e, conseqüentemente, de dissenso simultâneos, uma vez que não se trata de lidar
81
com uma construção social como algo isolado, mas um conjunto de construções sociais
simultâneas e cotidianas que, também, compõem níveis de consenso e dissenso.
A visão equivocada da idéia de consenso na TRS, associada à uniformidade, passa pelo
recorte da concepção do que é “compartilhar” para o campo. Para esclarecer a questão,
Duveen (1998, p. 462, tradução nossa) defende a distinção na TRS do sentido do termo
compartilhar além da idéia de algo dividido entre pessoas, reconhecendo um sentido mais
específico no uso do termo pelo campo, ilustrado pelo autor da seguinte maneira: “quando
eu divido uma maçã com um amigo, nós não consumimos a mesma coisa, mas
compartilhamos diferentes partes da maçã”. Ou seja, nessa ótica o compartilhar da TRS não
está voltado para a plena homogeneidade, mas para a articulação de diferenças em torno de
um elo comum.
Na ilustração de Duveen (1998) a maçã é esse elo. Aqui surge o objeto (a delimitação de
uma referência abstrata do sujeito, que é a chamada “realidade”) não como um elemento
para compor a dicotomia com o sujeito, mas como o elo em torno do qual ocorrem as
negociações das diferenças na direção de uma determinada representação social. Resta
questionar se ao surgir a Representação Social em relação a um objeto não emergiria daqui
o consenso, a homogeneidade. Com base em Moscovici (1978, p. 26), a resposta é “não”.
Surge apenas uma maneira negociada de lidar com o dado externo, “[...] que jamais é algo
acabado ou unívoco; ele deixa muita liberdade de jogo [...]”. Em virtude dessa liberdade, os
“pedaços das maçãs” são diferentes para cada sujeito de um grupo de amigos. As diferenças
não desaparecem em favor do consenso. Elas estão lá, mas são negociadas na direção de
construções comuns do grupo a respeito da maçã, um mero alimento ou a expressão da
amizade. O aparente consenso é parcial, temporário (mesmo que esse tempo possa ser longo
82
e remeter a certa estabilidade) e limita-se às interpretações oriundas das articulações sociais,
o que inclui a mediação das diferenças entre os sujeitos. Nesse processo de construção
social, mesmo que as diferenças sejam colocadas em segundo plano, elas estão prontas para
outras negociações, contribuindo para o dinamismo que norteia as Representações Sociais.
Duveen (1998, p. 463) corrobora com o argumento anterior ao defender que as
Representações Socais não tratam de
[...] reprodução de crenças e pensamentos idênticos em cada indivíduo [...] as
representações estabelecem um caminho de pensamento e comunicação que serve
para manter junta uma coletividade. Elas estabelecem um universo discursivo no
qual pode ter lugar a fala com significado; mas se isso fosse estabelecido com base
em representações idênticas na mente de todos, isso seria um universo sem
diferença, e sem diferença é difícil ver como alguma mudança seria possível.
Isso não nega a existência de representações hegemônicas de grandes grupos de pessoas e
que permanecem estáticas ao longo da existência de várias gerações, mas mesmo elas têm
certo nível de dinamismo e convivem com muitas outras representações dentro desses
grupos e nos infinitos subgrupos formados pelas múltiplas inserções dos sujeitos. Moscovici
(1988) mostra em seu estudo sobre a representação social da psicanálise que as mudanças
possibilitadas pelas diferenças entre os sujeitos possuem níveis de dinamismo distintos,
desde algo quase estático, que pode permanecer por séculos na sociedade de um país, a algo
dinâmico, referente a subgrupos sociais e conhecimentos cotidianos específicos.
Para explicitar os diferentes níveis de dinamismo, o autor demarca três níveis básicos, nos
quais existem infinitas possibilidade temporais relativas à mudança. Cada nível caracteriza
um tipo de representação não excludente:
83
Representações hegemônicas. Compreendem as mais estáticas e coesas, comumente
relacionadas com grupos e conhecimento institucionalizados, como as pessoas com
determinada nacionalidade ou opção política;
Representações emancipadas. Tendem a compreender níveis de mudança mais
dinâmicos que a anterior, pois estão relacionadas a segmentos ou subgrupos
específicos da sociedade e os conhecimentos que perpassam esses grupos nas
interações cotidianas de seus membros, como os parentes dos chamados “doentes
mentais” e as comunicações que em um tempo defendiam o isolamento em um
manicômio e algumas décadas depois passaram a advogar a permanência no seio da
família como melhor tratamento;
Representações polêmicas. Abarcam as características das emancipadas, mas
incluem uma oposição aberta a outras representações sociais e a aspectos diversos
que, comumente, apresentam-se de maneira hegemônica ou emancipada em relação
a um determinado objeto. A polêmica está no embate aberto entre diferentes grupos
em torno do mesmo objeto. Um exemplo, oferecido por Moscovici (2003b), são os
grupos que vêem na AIDS o castigo de Deus resultante da decadência moral e
defendem a pureza e a abstinência sexual como solução; opondo-se aos argumentos
e àqueles que colocam a AIDS como o resultado da ignorância e da desinformação,
defendendo a disseminação da educação sexual e do sexo seguro como solução.
As representações nos três níveis de dinamismo convivem e interagem entre si. Tais
“interferências” explicam a ausência de compartilhamentos homogêneos, mesmo ao se
reconhecer a existência de representações hegemônicas. Segundo Duveen (1998, p. 463,
84
tradução nossa), de um lado, as representações hegemônicas mudam muito lentamente e
caracterizam determinadas sociedades em um tempo; de outro, elas estão inseridas em
mundo social “[...] composto por representações diferentes e concorrentes, e mesmo dentro
dos grupos é possível a variação e a discussão”.
Essa composição complexa das representações sociais é explicada por Rey (2003, p. 130) ao
afirmar que
[...] as representações seriam uma produção subjetiva sobre uma realidade social,
mas estariam revelando elementos de sentido diferentes dessa realidade social,
independente de qual fosse o seu conteúdo explícito. Os próprios mecanismos de
objetivação e ancoragem são uma manifestação dos processos subjetivos de
distorção que caracterizam o processo de formação e desenvolvimento das RS. A
ancoragem não é somente um processo cognitivo como é assumido pela maioria
dos autores, pois nele influem os sentidos subjetivos, que em última instância são
os facilitadores do resultado final desse processo.
Tal processo, para Duveen (1998), escora-se na cultura e é impulsionado por seus pontos de
tensão e ruptura que mantêm espaço no sistema representacional para novas representações.
Em outras palavras, nesses pontos de clivagem há uma falta de sentido, um ponto
no qual surge o não familiar, e da mesma maneira que a natureza detesta um
vazio, a cultura detesta uma ausência de sentidos, colocando em ação algum tipo
de atividade representacional para familiarizar o não familiar e restabelecer um
senso de estabilidade (DUVEEN, 1998, p. 467, tradução nossa).
O reconhecimento dessa característica leva a TRS a se interessar por elementos
compartilhados, reconhecendo que eles são acompanhados por características distintas e
dinâmicas, manifestadas, por exemplo, nos discursos, dentre outras práticas sociais (ROSA,
2006). Ou seja, não há sentido em reduzir a TRS a um de seus aspectos, que é o
reconhecimento da influência da sociedade sobre os indivíduos na qual a cultura atua sobre
a cognição. É necessário reconhecer que “[...] cultura e cognição existem numa relação
simbiôntica de uma com a outra. Uma representação não é simplesmente uma repetição ou
85
réplica de alguma idéia apresentada por um grupo social dominante; ela envolve a ação
deliberada dos envolvidos” (VOELKLEIN; HOWARTH, 2005, p. 439; tradução nossa).
Para Arruda (2003, p. 342, tradução nossa), “o cenário para esta mistura, esta possibilidade
de comunicação na sociedade, é tributário da cultura, com suas grandes representações
hegemônicas, hábitos institucionalizados e pensamento pré-teórico, como Berger e
Luckmann (1966) diriam”. A constatação da autora remete ao reconhecimento da psicologia
social sobre a importância da cultura e da história. De acordo com Farr (1993), a TRS faz
parte desse movimento, aproximando antropologia e psicologia ao colocar a cultura e a
história como aspectos a serem considerados em conjunto no estudo do senso comum, que
impulsiona a cultura e viabiliza a comunicação. Arruda (2003) destaca essa aproximação
enfatizando as contribuições em relação à possibilidade do uso de técnicas e métodos de
pesquisa legitimados pela área da antropologia, como a observação participante e a pesquisa
documental, ambas adotadas nesta tese. Para a autora, por meio do intercâmbio com outras
disciplinas e de outras maneiras de tratar o conhecimento, com destaque para a visão da
pesquisa com prática social, é possível contribuir para o estudo de como os sujeitos e os
grupos constroem e interpretam seu mundo, em suas inserções sociais, culturais e históricas.
Ainda segundo a autora, esse posicionado remete à necessidade de flexibilizar oposições
comumente assumidas nas pesquisas, tais como cultura e natureza, sujeito e objeto, emoção
e razão.
A abertura para essa flexibilização, para o intercâmbio com outras disciplinas e para a
inclusão de contribuições dos pesquisadores do campo norteou a opção de Moscovici (1978;
2003b) por definições pouco restritas na TRS. Isso gerou críticas no tocante à vagueza e à
falta de rigor epistemológico, assim como possibilitou o desenvolvimento do campo e sua
86
extensão a diversas áreas do conhecimento, como mostra Rangel (1998) em uma análise da
área da educação. A autora confrontou críticas de Spink (1996) à TRS por meio de um
mapeamento de estudos que adotam a abordagem no campo da educação. Em relação à falta
de precisão e clareza, que para Spink (1996) origina uma imprecisão nociva para a TRS,
para Rangel (1998, p. 74) cria “[...] a possibilidade de ampliar os horizontes de suas
aproximações”. O mapeamento de teses e dissertações que adotaram a abordagem entre os
anos de 1990 e 1995, catalogadas pelas agências federais de fomento no Brasil, por meio da
Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPED), mostrou as
contribuições da efetiva multidisciplinaridade, segundo Rangel (1998, p. 74),
com relação aos campos de formulação teórica, encontram-se, nos estudos
examinados, a Sociofilosofia de fundo marxista [centradas na ideologia], a
Psicologia Social, a Antropologia, assim como aportes do desenvolvimento
sociocognitivo (incluindo os acercamentos genéticos) além das incursões no
terreno do imaginário.
O estudo de Rangel (1998) corrobora com a argumentação da amplitude conceitual, que
acompanha a idéia da falta de precisão e clareza, e explica o fenômeno do surgimento de
correntes relativamente autônomas, intenção do próprio Moscovici (1978; 2003b) ao propor
a TRS. Se, de um lado, isso enfraquece uma concepção da TRS como algo monolítico, de
outro, possibilita o surgimento de correntes mais independentes, que, por sua vez, sustentam
e legitimam a teoria, remetendo a uma concepção de “Teoria Viva”, distinta das concepções
positivistas de teorias que giram em torno de leis absolutas e precisas. Essa movimentação
traz uma grande dificuldade: a diversidade de correntes que se diferenciam enormemente é
um obstáculo à crítica da abordagem como um todo, pois passa a ser necessário especificar
a que corrente se está referindo a cada crítica, uma vez que no campo a crítica interna sobre
uma corrente em relação à outra assume os mesmos contornos da externa em relação ao
campo como um todo, o que é incoerente. Um exemplo disso são as críticas de Arruda
87
(2003, p. 350, tradução nossa) sobre a “metodolatria” no uso de computadores na TRS, que
passaram a ser considerados “artefatos confiáveis para produzir uma interpretação imediata
e objetiva no estudo do fenômeno por representações gráficas”. De outro lado, Nascimento-
Schulze e Camargo (2000) defendem o uso desses equipamentos e destacam a utilidade de
softwares como o ALCESTE no campo da TRS.
Seria um equívoco considerar correntes distintas como uma abordagem homogênea baseando-se
apenas numa visão quantitativa do que é predominante em uma determinada época em
detrimento de outras contribuições presentes e atuantes. Aparentemente, há duas alternativas que
fogem de uma simplificação quantitativista e permitem a crítica da TRS: criticar os princípios de
origem da TRS que embasam todas as correntes; e ou definir os aspectos básicos que identificam
a corrente e norteiam sua crítica. Aqui, buscou-se unir essas duas alternativas, demarcando a
própria abordagem adotada nesta tese segundo um rigor epistemológico que exige expor as
opções do pesquisador, mas sem se restringir aos limites de uma ou outra disciplina, pelo
contrário, expor a busca por ultrapassá-los e a tentativa de superar dificuldades no sentido de unir
contribuições de campos distintos do conhecimento.
O rigor epistemológico e sua importância para a coerência das escolhas metodológicas são
aqui assumidos como fundamentais para a legitimidade do estudo realizado, mas apoiados
no entendimento multidisciplinar proposto por Arruda (2003, p. 346; tradução nossa):
Sob a luz de uma perspectiva epistemológica, método é, de certa maneira, a
percepção das limitações de uma proposição. Ele define a extensão e limites da
pesquisa empírica, como também os limites dos dispositivos teóricos. Ele
estabelece o princípio de realidade dentro da busca pelo conhecimento. Na relação
simbiôntica entre método e teoria, a ascensão de um e o desvanecimento do outro
podem ser tão fluidos quanto a relação de sujeito/objeto na construção social de
realidade. Isto não significa que a teoria deveria ser evasiva ou restrita a algum
método específico. Pelo contrário, é necessário que ambos sejam integrados
cuidadosamente, de acordo com cada caso.
88
Moscovici (1978; 2003b) sempre defendeu a abertura da TRS, optando por delimitações
mais vagas na defesa da necessidade de se buscar amplamente clarear e descrever o
fenômeno das representações sociais, o que pode ser explicado pelo fato de que, até então,
na história da psicologia social a precisão era privilegiada em detrimento da interação com o
fenômeno social (DUVEEN, 1998).
Arruda (2003) destaca que, ao optar por delimitações mais vagas, a TRS permaneceu aberta,
privilegiando a inovação na busca pelo conhecimento em detrimento da confirmação do
conhecimento. Para a autora, o resultado foi o surgimento de diferentes abordagens, teorias
e conceitos integrados à TRS. Ainda segundo a autora, a diversidade metodológica das
abordagens pode ser sintetizada em três tendências, a estrutural, a sociológica e a
processual. A primeira e a segunda privilegiam procedimentos estatísticos e ou semi-
experimentais; e a terceira, a etnografia, os mapas mentais e outros tipos de coleta de dados.
A inflexibilidade metodológica afeta a interpretação do pesquisador, podendo implicar
dificuldades conceituais, principalmente quando se ignora que a metodologia é apenas uma
maneira de limitar as possibilidades de investigação, do pesquisador, do contexto e do
objeto, o que viabiliza lidar com essas tensões, algo impossível sem alguma delimitação que
permita focar parte da ampla complexidade que, comumente, permeia os fenômenos
estudados (ARRUDA, 2003).
As negociações ocorrem entre as aspirações do pesquisador por conhecimento,
suas preferências conceituais, seus princípios filosóficos e ideológicos e as
possibilidades de concretizar essas expectativas. […] O objeto para a psicologia
socio-construcionista é situado na cultura e na história. Ele permanece móvel,
sendo rígido e fluído. Uma representação social, por exemplo, é, ao mesmo tempo,
constituída pela razão e emoção e combina memória com aspiração. Ela expressa
nossa curiosidade e nossa ambição. Mas a metodologia é também um produto da
extensão dos limites com os quais nós temos que lidar (ARRUDA, 2003, p. 348,
tradução nossa).
89
Para Smedslund (1998), a flexibilidade não é um problema, desde que não afete a precisão, o
que, para o autor, ocorreu na TRS quando Moscovici (1978) desenvolveu o conceito central
de Representação Social de maneira vaga. Duveen (1998) discorda da posição de Smedslund
(1998) no tocante à posição e às implicações das definições vagas da TRS. Para Duveen
(1998) a definição central do conceito não é vaga. Os contornos conceituais foram
suficientemente claros para nortear e estimular o surgimento de um corpo de pesquisas no
campo, a vagueza está nas delimitações teóricas referentes às relações entre representações,
modernidade e influência social. Além disso, o autor, concordando com Moscovici (1978;
2003b), destaca que é um equívoco apregoar a clareza conceitual como um pressuposto de
cientificidade, argumentando que a clareza e a precisão conceitual são mais um produto da
atividade científica do que uma pré-condição. No caso da TRS, ao se assumir a incompletude
dos estudos, o argumento não se restringe às representações sociais estudadas, mas às próprias
bases teórico-metodológicas nas quais os estudos se baseiam.
Com base nesse entendimento, a abordagem da TRS assumida nesta tese é relativa aos
interesses do pesquisador e aos objetivos assumidos. Os argumentos apresentados sobre as
críticas à TRS posicionam a abordagem aqui adotada como inserida na TRS, mas em uma
visão de representação na qual ela é em si uma produção de conhecimento, e não um
espelhamento (ARRUDA, 2003), algo que se aproxima das visões construcionistas. Cabe,
portanto, questionar o motivo de não se adotar a abordagem construcionista na tese. A reposta
vai ao encontro da proposta de Duveen (1998) sobre a importância de reconhecer as
contribuições anteriores sem negar a possibilidade de um desenvolvimento, o que não implica,
necessariamente, ruptura com essa anterioridade.
90
As incompatibilidades entre a TRS e o construcionismo não são generalizáveis aos campos
como um todo. Portanto, optou-se por permanecer na base de origem e destacar seus
desenvolvimentos, inclusive os que o aproximam dos chamados “construcionistas”. Mas é
necessário destacar um aspecto fundamental em relação a essa vertente, os desenvolvimentos
da TRS em sua direção não devem implicar a centralidade discursiva assumida por correntes
construcionistas em detrimento de outras manifestações importantes para a TRS, como as
crenças, tradições, ações e comportamentos cotidianos e a liberdade dos sujeitos para atuar
sobre eles, a partir de sua individualidade socialmente construída.
Nesse sentido, adotou-se a corrente da TRS defendida por Jodelet (2005) e Marková (2000),
marcada por uma aproximação com as idéias de Moscovici (1978; 2003c) no tocante a uma
inserção na epistemologia dialógica. O conhecimento compartilhado por sujeitos sociais se faz
em um processo dialógico que pressupõe a heterogeneidade e o dinamismo em conjunto com
conhecimentos relativamente estáveis. Marková (2000, p. 442, tradução nossa) explica que
nessa abordagem
[...] o que faz a Teoria das Representações Sociais uma teoria do conhecimento
social é a concepção:
da dinâmica do pensamento, da linguagem e das práticas sociais
através de um fenômeno sócio-cultural e individual por meio de
tensões, conflitos e polarizações de oposições;
de um conjunto de conceitos definidos de maneira inter-relacionada e
dialógica, capazes de gerar hipóteses.
Dentre esses conceitos, a autora destaca a themata, a ancoragem, a objetivação e os gêneros
comunicativos, adotados nesta tese no sentido de operacionalizar a aplicação do conceito de
representações sociais dentro do quadro conceitual aqui adotado e apresentado a seguir.
91
4 O ESQUEMA CONCEITUAL
Figura 2 – Esquema conceitual da tese
Fonte: articulações do referencial teórico
A operacionalização da investigação das representações sociais por meio dos conceitos da
themata, da ancoragem, da objetivação e dos gêneros comunicativos permite evidenciar as
faces hegemônica, emancipada e polêmica das representações como construções sociais em
um contexto mais amplo, que reúne as experiências sociais de todos os sujeitos. No esquema
conceitual (Figura 2), esse contexto social mais amplo está no primeiro plano, abarcando e
permeando todos os outros elementos, um plano no qual se inserem outros três.
Lugar demarcado por grupos de sujeitos sociais - o lugar do próprio
Contexto social mais restrito – faces das representações sociais
articuladas pelos comerciantes, funciorios, clientes e fornecedores no
cotidiano
Espaço de transgressão do lugar do próprio legitimado
em alguns de seus elementos bricolados por
determinado(s) sujeito(s)
Táticas cotidianas
Práticas cotidianas
Práticas cotidianas
Fazer
estratégias
nas
organizações
Contexto social mais amplo – todas as experiências sociais de todos os sujeitos em suas idiossincrasias
sociais
Fluxos na estratégia cotidiana
Fluxos na tática cotidiana
Composição
de fluxos de
práticas
inseridos em
contexto
s
ociais
Práticas e
sentido
Práticas e
sentido
92
O segundo plano é o das mencionadas faces das representações sociais, o do contexto social
mais restrito. As faces das representações sociais demarcam naquele contexto social mais
amplo um mais restrito, delimitado pelas construções dos comerciantes, funcionários, clientes
e fornecedores, os sujeitos de pesquisa. Esse nível mais restrito serve como referência para
aquele lugar do próprio, a ordem estabelecida com a qual determinadas práticas são
convergentes, legitimando-se e reforçando-a. Essas práticas, dentro da referência das faces
que a delimitam nessa ordem estabelecida, inserem-se no fluxo da estratégia cotidiana na
composição do fazer estratégias nas organizações, outro plano no esquema conceitual. O
plano do fazer estratégias nas organizações não é composto apenas pelos fluxos referentes
à estratégia cotidiana, e como tal sua composição remete a práticas e sentidos que interferem
nas construções sociais naquele contexto social mais restrito. Isso ocorre pois o fazer em si,
dentro da concepção aqui assumida, inclui estratégias e táticas cotidianas. Portanto, o fazer
estratégia nas organizações
11
está articulado no contexto social mais amplo, dos sujeitos
como um todo, incluindo os fluxos de práticas inseridas na tática cotidiana, oriunda do quarto
e último plano do esquema conceitual, o espaço de transgressão do lugar do próprio.
O espaço de transgressão do lugar do próprio está imbricado naquele do contexto social
mais restrito, mas não se limita a ele, pois também é permeado pelas construções sociais mais
amplas, engendradas nas histórias de vida únicas de cada sujeito, nas quais as múltiplas
construções sociais vivenciadas criam as combinações exclusivas de cada um, as
11
Dentro dessa concepção do fazer, como sendo a relação entre estratégia e tática cotidiana, o termo “fazer
estratégia” remete à idéia de redundância. Certeau (1994) não se envolve nela, pois assume apenas o termo
“fazer”, e discute a “arte de fazer”, mas nesta tese essa redundância é reconhecida e admitida, com a intenção
de enfatizar, no contexto organizacional, a tentativa de atuar no lugar do próprio, da estratégia em torno de
objetivos organizacionais específicos, o que não afasta a atuação do outro em suas táticas e espaços de
transgressão no fazer cotidiano.
93
idiossincrasias sociais. Por meio da bricolagem, os sujeitos utilizam elementos do contexto
social mais restrito de uma ordem estabelecida e privilegiada, mas não convergem,
necessariamente, para ela, pois seus interesses envolvem aquelas idiossincrasias sociais que
extrapolam essa ordem e podem transgredi-la. A inserção parcial numa ordem estabelecida
articulada com elementos de contextos sociais mais amplos, ao mesmo tempo em que permite
demarcar um espaço de transgressão dentro de um lugar privilegiado, também abre espaço
para que as práticas e sentidos desse lugar, na composição do fazer estratégia nas
organizações, sejam incluídos na bricolagem da tática cotidiana. Nesse sentido, tanto as
práticas na tática cotidiana compõem o fazer estratégia quanto as práticas na estratégia
cotidiana que também compõem esse fazer têm elementos inseridos em construções sociais
referentes à tática, em uma inter-relação que remete ao dinamismo social.
Uma das bases desse dinamismo e do esquema conceitual proposto é o entendimento de que o
conjunto das experiências sociais dificilmente é reproduzido de maneira idêntica ao longo da
história de vida de pessoas diferentes. Há aqui uma idiossincrasia social na qual o indivíduo é
único, em virtude de suas múltiplas vivências sociais, e, ao mesmo tempo, possui
compartilhamentos (não necessariamente homogêneos, como as partes da maçã compartilhada
entre amigos) com os outros sujeitos. Nesses compartilhamentos estão as thematas e os
gêneros comunicativos, que oferecem a base para outras construções comuns, na busca por
lidar com o desconhecido, a familiarização do não-familiar, por meio da ancoragem e da
objetivação. Desse processo surgem as faces das representações sociais e, delas, as
construções estabilizadas e reproduzidas, em torno das quais se demarca o lugar de um
próprio, de uma ordem na qual se insere o sujeito com práticas idealizadas pelo grupo social e,
por isso mesmo, legitimadas no poder desse lugar e desse próprio. O enquadramento nesse
lugar insere tais práticas na estratégia cotidiana, definida como
94
[...] o cálculo das relações de forças que se torna possível a partir do momento em
que um sujeito de querer e poder é isolável de um “ambiente”. Ela postula um
lugar capaz de ser circunscrito como um próprio e portanto capaz de servir de base
a uma gestão de suas relações com uma exterioridade distinta (CERTEAU, 1994,
p. 46).
Mas as construções sociais nas organizações não se limitam a esse lugar, a essa ordem
estabelecida, pois o “fazer”, como arte, inclui também as táticas cotidianas, mesmo no fazer
estratégia. Nesse sentido, alguns elementos das faces dessas representações são inseridos na
bricolagem, a arte criativa de combinar e articular o “fazer”, compondo a base das “táticas”:
“um cálculo que não pode contar com um próprio, nem, portanto, com uma fronteira que
distingue o outro como totalidade visível” (CERTEAU, 1994, p. 46), situada em espaços de
transgressão dentro do lugar controlado pelo “forte”. Um espaço no qual o “[...] fraco deve
tirar partido de forças que lhe são estranhas [...] [uma movimentação que caracteriza as
táticas e compreende] [...] muitas práticas cotidianas (falar, ler, circular, fazer compras,
preparar refeições etc.)” (CERTEAU, 1994, p. 47).
Aqui, o contexto social mais amplo das idiossincrasias sociais se faz presente no dinamismo
que foge à simples reprodução social. São tantas peças de quebra-cabeças diferentes que
algumas servem para montar um novo quebra-cabeça. É essa a arte do fazer. No caso do fazer
estratégia nas organizações, o que se quer é compreender em conjunto os vários quebra-
cabeças nele inseridos, tanto os construídos na estratégia cotidiana quanto os construídos na
tática cotidiana.
Para ilustrar empiricamente essas proposições, a seguir, desenvolveu-se uma investigação
empírica, que tem como base o quadro conceitual apresentado.
95
5 UMA INVESTIGAÇÃO DA ESTRATÉGIA COMO PRÁTICA SOCIAL: O
COMÉRCIO DE HORTIFRUTÍCOLAS NO MERCADO DA VILA RUBIM
5.1 Delimitações metodológicas
Nesta tese, o estudo da estratégia como prática social insere-se no paradigma interpretativo
(BURRELL; MORGAN, 1979). A justificativa para essa inserção está no fato de que, ao
investigar os fenômenos sociais, a abordagem interpretativa volta-se para os significados
das práticas humanas, o que vai ao encontro do esquema conceitual proposto. Para Litlle
(1991), um aspecto central dessa abordagem é o entendimento de que toda ação social tem
um significado. Ela nunca é neutra; envolve a atuação de um agente e certa orientação em
direção à ação de outros agentes. Para o autor, isso implica que o entendimento dos
significados das ações individuais e das práticas sociais depende da interpretação e
compreensão dos significados e valores atribuídos a elas pelos agentes nelas envolvidos.
O desafio passa a ser adotar metodologias que permitam tais interpretações e compreensões.
Nesse sentido, as contribuições weberianas voltam-se para viabilizar a compreensão do
significado subjetivo da ciência social, permitindo que as ciências sociais assumam sua
função compreensiva ou interpretativa da realidade social.
Um aspecto sempre presente na obra weberiana é sua concepção de ação “[...] dotada de
sentido e orientada teleologicamente” (DOMINGUES, 2004, p. 61). Aqui se observa a
simbiose entre os fatos e as significações, a qual oferece espaço para se questionar a
separação decartiana entre corpo e mente, bem como a concepção positivista da existência
96
de uma verdade única, a ser apreendida pelo cientista na plenitude de sua neutralidade.
Weber (2004) afasta-se da associação da causalidade à lei como algo que definiria uma
relação constante entre variáveis, para associar a causa à noção de possibilidade em
detrimento da noção de necessidade que definiria uma causalidade única e generalizável
(DOMINGUES, 2004). Dito de outro modo, o autor reconhece a possibilidade de que mais
de uma explicação causal seja coerente com um mesmo conjunto de fatos ou ações, sendo
necessário buscar apoio na interpretação para acessar um contexto mais amplo, permitindo a
escolha da causa. A diversidade de “sentidos” sai da condição de obstáculo a ser contornado
para a de um caminho a ser trilhado para a compreensão de fenômenos sociais.
Esse entendimento vai ao encontro do problema proposto que, no corte teórico adotado,
envolve questões relacionadas com as complexidades humanas, exigindo instrumentais com
características que surgem na pesquisa qualitativa (BOGDAN; BIKLEN, 1994): a) o
pesquisador como principal instrumento da pesquisa; b) o ambiente natural como fonte
direta de dados; c) a investigação descritiva; d) a ênfase no “processo”, nas manifestações e
não no resultado; e) a preocupação em chegar à “abstração”; e f) o foco no “significado”,
buscando a “perspectiva das pessoas” nos diferentes pontos de vista. Essas são as
características pelas quais a investigação em questão se enquadra na perspectiva qualitativa,
concordando-se com Minayo (2001) sobre a utilidade da pesquisa qualitativa na observação
de níveis não quantificáveis da realidade, em fenômenos relacionados com valores, atitudes,
crenças, significados e motivações. Uma proposição validada por Triviños (1987), segundo
o qual é possível afirmar que o caráter qualitativo da pesquisa está explícito pela intenção de
descrever de forma detalhada fenômenos e fatos de uma realidade específica, voltando-se
para o processo, e não apenas para o resultado.
97
Ao relacionar as transformações dos dados com a abordagem qualitativa, também se deve
fazê-lo em relação aos modos de investigação (BRUYNE; HERMAN; SCHOUTHEETE,
1991). Dentre eles, o estudo de casos pareceu ser o mais adequado, diante do problema
proposto. Isso se justifica por se concordar com Yin (2001) ao afirmar que o estudo de caso
é, muitas vezes, de natureza qualitativa e permite um estudo detalhado de um caso
particular, de maneira intensa, em uma organização.
É importante ressaltar que nesta investigação o estudo de caso é, como defende Yin (2001),
uma estratégia de pesquisa abrangente, que deve incorporar abordagens particulares de
coleta e análise de dados.
Ao investigar o “fazer estratégia”, o estudo de caso estará voltado para a descrição
(BRUYNE; HERMAN; SCHOUTHEETE, 1991), por abordar a descrição de um fenômeno
particular.
Logo, pelo que foi exposto, de acordo com a prática metodológica, a pesquisa dará ênfase a
uma abordagem qualitativa, adotando como estratégia o estudo de caso, voltado para a
descrição de relações entre os sentidos das práticas sociais e os direcionamentos das
maneiras de “fazer estratégia” das pessoas em um locus delimitado. No caso desta
investigação, o locus é o Mercado da Vila Rubim, em Vitória-ES, mais especificamente os
comércios de hortifrutícolas no mercado.
5.2 A escolha do locus da investigação: o Mercado da Vila Rubim
Ao discutir sobre o conhecimento no campo da administração, Cavedon (2002) destaca a
necessidade de buscar incluir aspectos locais associados a interfaces históricas e a
98
construções sociais específicas, preocupação observada em estudos como os de Fischer et
al. (1996), Ficher e Dias (1998), Vergara, Palmeira e Moraes (1997) e Pimentel e Leite-da-
Silva (2006). Nesta tese essa preocupação baseia a escolha dos comércios de hortifrutícolas
no Mercado da Vila Rubim como locus da investigação, na qual as articulações teóricas
propostas serão colocadas em jogo.
O Mercado em décadas de história se apresenta para a localidade da Grande Vitória e do
bairro da Vila Rubim como um elo entre o passado, o presente e o futuro. Lá, coexistem
atividades do início do século que persistem até a atualidade. Dentre elas, a comercialização
de hortifrutícolas foi, durante muito tempo, a principal atividade desenvolvida em seu
interior, mas hoje persiste apenas em alguns poucos comércios. A busca por compreender
um pouco mais dessa transição, o que inclui especificidades históricas locais e construções
sociais dos sujeitos envolvidos, levou à escolha por investigar as práticas sociais articuladas
na estratégia nas organizações associadas à transformação e atual configuração do comércio
de hortifrutícolas no Mercado da Vila Rubim.
Ao assumir esse locus, coube destacar algumas características evidenciadas em estudos
anteriores voltados para contextos aproximados aos que o envolvem. A despeito da
limitação em relação às generalizações para casos com inserções históricas locais
específicas, existe ainda uma inserção histórica no desenvolvimento econômico brasileiro
envolvendo a escravidão, a imigração de estrangeiros, o êxodo rural, a concentração urbana
e a necessidade crescente de abastecimento de alimentos desses centros. Em conjunto com
essas construções, os estudos anteriores permitem vislumbrar parte da complexidade e dos
desafios para a investigação aqui desenvolvida.
99
5.2.1 O que é um mercado?
Mayol (1996, p. 158), ao discutir a arte de morar, incluiu na sua descrição do bairro francês
lionense da Croix-Rousse o mercado do bairro, pois,
[...] tradicionalmente, o mercado é um importante ponto de referência sociológico
para a compreensão das relações humanas. Nenhuma cidade, nenhum povoado
pode prescindir dele. Ao mesmo tempo que é um lugar de comércio, é um lugar
de festa [...], a meio-caminho entre o pequeno comércio de rua e o grande
shopping, ou o supermercado, sem que os elementos que o constituem se
confundam com um ou outro desses termos. Oferece uma profusão de bens de
consumo que vai além do que pode oferecer um comerciante, sem cair no
“distribucionismo” dos supermercados (distribuição dos bens de consumo em
classes de objetos, que chamamos de rayons (setores): setor de lingerie, setor
infantil, etc.).
Na medida em que essa configuração envolve os atos de vender e comprar, como os
observados nos mercados, além da função econômica, estão em jogo construções sociais
expressas em comportamento e simbolismos socialmente contextualizados (FERRETTI,
2000; SOUZA, 2000), um processo dinâmico, no qual os significados dos espaços e tempos
de comércio se alteram quando eventos e intervenções do dia-a-dia são confrontados nas
articulações dos grupos sociais (SOUZA, 2000).
Segundo esse entendimento, ao estudarem as trocas comerciais que se dão no Mercado
Público de Porto Alegre, Castilhos e Cavedon (2003, p. 1) destacaram incêndios e reformas
que ocorreram ao longo das décadas de sua existência e que o levaram a ter na atualidade
“ares de modernidade”. Esse processo é semelhante ao que ocorreu no Mercado Público da
Vila Rubim, mesmo que em uma cronologia própria. Outro aspecto comum é que ambos os
mercados se enquadram na definição oferecida pelos autores para os quais “[...] Mercado
Público é um local onde ocorrem diariamente inúmeros atos de consumo que são precedidos
100
pelas trocas entre os donos das bancas e seus fornecedores, engendrando assim, o ciclo
fornecedor, mercadeiro e cliente” (CASTILHOS; CAVEDON, 2003, p. 2).
Em Porto Alegre, as reformas, a redistribuição das bancas e um processo de higienização
aproximaram o mercado da lógica do comércio atual, voltado a oferecer mais conforto aos
clientes (CAVEDON, 2002). A busca pela inserção nessa lógica também foi observada no
estudo de Pimentel et al. (2006) sobre o Mercado Central de Belo Horizonte. Neste estudo,
os autores destacaram os impactos de eventos como, a privatização, ao ser vendido para os
próprios permissionários, e a perda para a CEASA da função de centro de abastecimento,
além da chegada dos confortos da modernidade, caracterizados em aspectos, como a
instalação de um elevador ou o redimensionamento das passagens para os clientes.
As mudanças nos três mercados, o da Vila Rubim, o de Belo Horizonte e o de Porto Alegre,
levou a novas estruturas internas, mas, como Cavedon (2002, p. 5) destaca em relação ao
Mercado de Porto Alegre, “[...] externamente, a marginalidade e a malandragem ainda se
fazem presente, com os ladrões e pedintes percorrendo as cercanias do Mercado, se
aproveitando da distração dos menos avisados”. A despeito dessa proximidade com a
insegurança, os clientes das classes A, B e C continuam freqüentando os mercados. Esse
múltiplo foco dos mercados reflete o conjunto de diferentes segmentações exploradas pelos
comerciantes, como revelam Gramkow e Cavedon (2001) ao observarem a comercialização
de produtos mais voltados para cada uma dessas diferentes classes.
As reformas realizadas nos mercados remetem também à questão da relação entre o público
e o privado, principalmente no caso de mercados com áreas sob a administração da
prefeitura, como no caso da Vila Rubim e de Porto Alegre. Em relação ao Mercado de Porto
101
Alegre, segundo Cavedon (2002), a prefeitura assume a responsabilidade por essas reformas
e por conceder as permissões para os comerciantes (permissionários) atuarem em suas
diversas atividades.
Além dessas reformas, a responsabilidade por atrair públicos de diversos segmentos não
recai necessariamente apenas sobre a prefeitura. É o conhecimento sobre os clientes que
possibilita esse processo. Nesse sentido, é lógica a necessidade do envolvimento daqueles
que têm autonomia para definir os segmentos a serem abordados, mesmo dentro da linha de
produtos que a prefeitura os autoriza trabalhar: os comerciantes responsáveis pelas bancas.
Outra característica desse grupo, que viabiliza seu papel de desenvolver prática voltadas
para a segmentação, está na sua interação com os clientes no cotidiano do mercado, como
revela Rossato Neto (2003, p. 5) ao afirmar que
[...] uma das particularidades do fazer administrativo local do Mercado Público é a
presença constante dos permissionários em suas bancas, estando diretamente em
contato com os clientes, fornecedores, familiares, amigos, transeuntes que entram ou
passam por ali, de uma certa forma facilitando a observação e a vivência do seu dia-
a-dia.
Além de viabilizar a segmentação, o próprio relacionamento com os clientes apresenta-se
como a base da disputa entre os concorrentes no mercado (CASTILHOS; CAVEDON,
2003). Cavedon (2002) evidencia o atendimento personalizado como algo citado de maneira
recorrente pelos seus sujeitos de pesquisa, levando o comércio a uma conotação de casa
(DAMATTA, 1997) para os clientes, na medida em que o convívio permite reconhecer os
clientes, seus gostos, sua vida – ou seja, o acesso a relações de afetividade que incluem os
patrões, os funcionários e as práticas das brincadeiras e da pessoalidade no cotidiano do
mercado. No tocante aos clientes, esse envolvimento é, também, uma maneira de fidelizá-
los por meio de relações informais.
102
Conforme Gramkow e Cavedon (2001), as relações informais entre permissionários,
funcionários e clientes remetem ainda à idéia de família, com funcionários e permissionários
se reunindo em festividades nos finais de semana e com os clientes dando gorjetas aos
funcionários, pagando lanches a eles ou convidando-os para almoçar ou tomar uma cerveja.
Essa lógica extrapola a puramente econômica, incluindo laços afetivos de amizade recíproca
e de simbolismos associados a esses laços, por meio dos quais “[...] o diálogo é aberto e a
proximidade e pessoalidade emprestam caráter familiar às trocas que se realizam nesse
locus” (CASTILHOS; CAVEDON, 2003, p. 12). Essa família convive com a dos vínculos
consangüíneos, pois, como observa Cavedon (2002), é comum encontrar parentes
trabalhando como funcionários e expressando afetividade sobre o que fazem, bem como o
interesse em preservar o negócio da família. O conjunto dessas duas famílias constrói
distinções entre o trabalho no Mercado Público de Porto Alegre e em outros lugares,
sintetizadas em cinco aspetos básicos pela autora:
ter um salário acima da média;
ter amizade com os clientes e demais pessoas no mercado;
saber que o cliente é bem atendido;
ter o patrão como uma família, igual e companheiro; e
conviver com as brincadeiras que fazem todos sempre alegres
Dentre esses, além dos já destacados, cabe aprofundar a discussão na associação do
pai/patrão com a família, que, segundo a autora, é algo
103
[...] constante nos discursos dos funcionários do Mercado, é possível pensar-se
como Colbari (1996), que evidencia, em seu estudo, o fato de as imagens
familiares presentes na cultura organizacional favorecerem a dissimulação das
contradições internas do trabalhador, fomentando a estabilidade emocional no
ambiente de trabalho (CAVEDON, 2002, p. 9).
A família gira em torno da imagem paternal, na qual, como afirma Colbari (1996), o pai
patrão é responsável por sustentar a família (o comércio) e seus filhos (os funcionários) do
ponto de vista tanto moral quanto material. Por sua vez, seus filhos devem corresponder
dedicando-se e tendo responsabilidades para com a família, respeitando e obedecendo ao pai
(o patrão). Conforme a autora, nessas bases, a afetividade familiar, dos favores, da lealdade
e da solidariedade oculta a exploração do trabalho, e a dominação sai da ênfase na relação
capital/trabalho para uma lógica na qual a afetividade/trabalho entra em cena nos moldes do
paternalismo clássico.
Em relação a essa lógica, cabe destacar a necessidade de reconhecer construções mais atuais
da sociedade, nas quais as mulheres e os filhos contribuem com a renda da família,
inserindo a negociação como um elemento de contraposição à lógica autoritária do
paternalismo (CAVEDON, 2003). Além disso, concordando-se com Cavedon e Ferraz
(2003), não existe um único modelo de família, e como tal as organizações que giram em
torno da representação da família se baseiam em construções diferenciadas. Não cabe aqui
colocar a família como uma maneira homogênea de se ver determinada organização. Como
destacam as autoras, é mais importante contextualizar de que família se está falando e em
qual sociedade ela está inserida.
Na lógica da família paternalista, as pequenas empresas, dentro ou fora de um mercado,
quando são caracterizadas pela propriedade em torno de uma única pessoa, seja homem ou
mulher, teriam nessa pessoa a figura do pai. Nesse caso, seria uma empresa familiar
104
paternalista. Mas nas construções mais atuais não cabe surpresa se esse pai ouve os filhos
(funcionários) e toma decisões em conjunto com eles. A família não deixou de existir; só é
diferente daquela na qual tudo gira em torno de um pai autoritário. Portanto, ao investigar
empresas que, como as do mercado, articulam-se em torno de um ou mais fundadores e seus
respectivos familiares, consangüíneos ou não, deve-se “[...] considerar os diferentes
modelos de empresas familiares tal como os diversos modelos de família existentes uma vez
que a simbiose empresa/família parece-nos inevitável” (CAVEDON; FERRAZ, 2003, p.
14).
5.2.2 As organizações familiares
No Brasil, em 2003, ocorreram movimentações em discussões no XXVII ENANPAD e no
XII Colóquio de Poder Local indicando o início de articulações sobre o tema das
organizações familiares, envolvendo pesquisadores de diversos núcleos de pesquisa. Mas
essas iniciativas devem ser ampliadas, como indica o reduzido número de trabalhos que
tratam de aspectos específicos das organizações familiares. Por exemplo, nos anais dos
ENANPADs dos últimos doze anos, Rossato Neto (2003) encontrou, em 2003, apenas
dezesseis artigos sobre o tema entre os milhares publicados. Ao retomar esses anais
observando os anos de 2003 até 2006, apenas mais 22 artigos sobre o tema foram incluídos.
É necessário investir esforços nesse locus, o que exige uma base conceitual comum ou, pelo
menos, com características adequadas ao compartilhamento das contribuições, impondo,
assim, o desafio de buscar uma definição de organização familiar adequada a essa
necessidade, em uma diversidade de conceitos. Como exemplo dessa diversidade, Silva,
Fischer e Davel (1999) apresentam nove conceitos, de diferentes autores, como Donnelley
105
(1964), Bernhoeft (1989) e Lodi (1978), com base em critérios como: controle da família,
controle da sucessão, direção familiar, empresa de mais de duas gerações; gerenciamento
influenciado pela família, propriedade familiar, tradições e valores familiares. Em conjunto
ou isoladamente, esses critérios foram aplicados para definir o que caracterizaria uma
organização como familiar.
Tal diversidade revela a dificuldade de encontrar um conceito a ser adotado neste estudo. A
alternativa foi optar por um conceito mais restrito, no qual é necessário o enquadramento em
vários daqueles critérios para que uma organização seja considerada como familiar, assim
como o fizeram Silva, Fischer e Davel (1999, p. 5), no entendimento de que a organização
deve reunir
[...] simultaneamente as seguintes características para ser qualificada como uma
empresa familiar: 1) A família deve possuir propriedade sobre a empresa, podendo
assumir propriedade total, propriedade majoritária ou controle minoritário; 2) A
família deve influenciar nas diretrizes da gestão estratégica da empresa; 3) Os
valores da empresa são influenciados ou identificados com a família; 4) A família
determina o processo sucessório da empresa.
Neste caso, uma banca no mercado ou uma grande empresa podem ser consideradas
empresas familiares, por se enquadrarem em todos os critérios.
A propriedade, no caso de uma banca, os direitos, ou a permissão, inserem-se na dimensão
objetiva, na medida em que pode ser simplesmente vendida ou transferida pela Prefeitura.
De outro lado, até o ato de vender envolve construções sociais anteriores, que influenciam o
seu processo. As influências nas diretrizes da gestão estratégica, dos valores e da sucessão
se relacionam também com as construções sociais anteriores. As quatro características
destacadas estão associadas a essas construções, pois todas são articuladas pelo conjunto de
sujeitos e não estão isoladas do mundo social.
106
O reconhecimento da inserção na dimensão social demonstra a adequação do conceito a esta
investigação com o objetivo de compreender relações entre os sentidos das práticas
sociais e os direcionamentos das maneiras de “fazer estratégia” das pessoas inseridas
na comercialização de hortifrutícolas no Mercado da Vila Rubim.
Parte-se do entendimento de que os arranjos das construções sociais compõem o contexto no
qual as relações organizacionais são articuladas em uma relação que extrapola, mas não
elimina, a lógica do mercado, como constataram Davel e Colbari (2003, p. 9), ao avaliarem
pesquisas empíricas em organizações familiares que
[...] sugerem que a dinâmica sociocultural da família influencia a dinâmica
sociocultural das organizações em termos de motivação, consenso, conflito,
iniciativa empresarial, mudança e liderança. Não deixando, entretanto, de
serem influenciadas pela lógica impositiva do mercado.
A partir desses entendimentos associados à família, às organizações familiares e ao
mercado, bem como do reconhecimento de que os três estão imbricados no cotidiano do
próprio mercado, buscou-se uma metodologia que permitisse investigar as práticas inseridas
no fazer estratégia nesse contexto.
5.3 Unidade de análise e instrumentos de coleta de dados
O objetivo proposto nesta tese remete a uma investigação que tem como unidade de análise
a prática social dos sujeitos (maneiras de vender, comprar, negociar, brincar...). Essas
práticas envolvem o que Minayo (1994, p. 22) identifica como as preocupações da pesquisa
qualitativa, “[...] o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos
e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis”. A visão de
que os estudos em estratégia se enquadram nesse entendimento e exigem o uso das
107
abordagens qualitativas não é novidade. Autores como Pettigrew (1990; 1992),
Jarzabkowski (2005) e Cavedon e Ferraz (2005), dentre muitos outros, já argumentaram a
favor desse caminho. A despeito de diferenças nas propostas, em comum, os autores
defendem a necessidade de tratar a temática da estratégia nas organizações por meio de uma
abordagem que ofereça profundidade à investigação, mais voltada para os significados e os
complexos processos humanos que os permeiam, um potencial característico da proposta
qualitativa (DENZIN; LINCOLN, 2006).
Para isso, nesta investigação, dentre as técnicas de coleta de dados adotaram-se a pesquisa
documental, a observação participante, a observação sistemática, a observação assistemática
e a entrevista em duas etapas, uma não estruturada, com ênfase na história de vida tópica, e
outra semi-estrutura, norteada por um roteiro.
Cavedon e Ferraz (2005) já utilizaram conjuntamente as observações, as entrevistas e as
histórias de vida em um estudo sobre estratégias e representações de pequenos comerciantes
permissionários de lojas no viaduto Otávio Rocha, em Porto Alegre. Concordando-se com
as autoras sobre a adequação do uso conjunto de tais técnicas em estudos sobre estratégia,
nesta investigação elas foram adotadas como complementares.
Inicialmente, foi realizada uma observação preliminar no mercado, em conjunto com a
coleta de documentos, no Arquivo Público Municipal e no Arquivo Público Estadual, de
documentos, fotos e reportagens sobre o Mercado da Vila Rubim. Em seguida, no locus do
estudo, deu-se a observação participante como cliente. Quando encerrada essa primeira fase
da coleta, passou-se para a busca de documentos, reportagens e fotos na Associação dos
Comerciantes da Vila Rubim, e entrevistas com clientes, fornecedores e comerciantes. Os
108
entrevistados foram indagados inicialmente sobre sua trajetória de vida no Mercado da Vila
Rubim. Quando necessário, indagações se seguiram, de acordo com um roteiro de tópicos
(APÊNDICE A) a serem focados. No caso de alguns respondentes, procedeu-se por meio da
técnica da história de vida tópica (MINAYO, 2000), o que exigiu entrevistas seguidas,
posteriores. Em paralelo com as entrevistas, foi realizada a observação sistemática do
cotidiano dos comerciantes de hortifrutícolas no Mercado, com base no mesmo roteiro da
entrevista, bem como a observação assistemática, em duas residências de clientes que
residem próximos ao Mercado e em duas idas à CEASA acompanhando diferentes
comerciantes em suas compras de hortifrutícolas.
Essas escolhas vão ao encontro de propostas de diversos autores (TRIVIÑOS, 1987;
MINAYO, 2001; YIN, 2001, entre outros) sobre a adequação do uso de múltiplas fontes de
evidências para uma coleta de dados mais abrangente. Entretanto, cada fonte exige
procedimentos e dificuldades específicas, a serem mediadas pelo pesquisador, para que o
procedimento de uma técnica de coleta não prejudique a outra, como se discutirá a seguir.
5.3.1 A coleta de dados preliminar
A despeito de o Mercado não ser um locus desconhecido para o pesquisador, que o deixou
de freqüentar há cerca de sete anos, havia necessidade de informações adicionais sobre sua
história mais antiga e mais recente, bem como sua atual situação, para orientar as definições
metodológicas iniciais da investigação. Nesse processo de coleta preliminar, foi necessário
tomar a precaução de não identificar o pesquisador. Como será apresentado mais adiante,
algumas técnicas de coleta podem atuar em um contexto no qual o pesquisador não se
revela. Portanto, antes de definir se esse seria ou não um caminho adotado optou-se
109
inicialmente pela não identificação (mais tarde, essa opção foi assumida durante a
observação participante). Nesse sentido, a coleta de dados preliminar se deu em duas
semanas por meio da coleta de documentos, fotos e reportagens no Arquivo Público
Municipal e no Arquivo Público Estadual, além de observações assistemáticas do Mercado,
que possibilitaram verificar a disposição física dos estabelecimentos comerciais, em especial
os que comercializavam hortifrutícolas, e o volume de pessoas envolvidas no processo em
diferentes papéis.
5.3.2 As técnicas adotadas na coleta dos dados
Malinowski (1978) foi um precursor no uso da observação participante. Em 1922, o autor
publicou um estudo no qual a técnica de coleta de dados foi empregada para estudar povos
nativos na Nova Guiné Melanésia. Nesse estudo, ele apresenta a observação participante
como uma técnica que contribui para um processo no qual deve ser possível distinguir “[...]
os resultados da observação direta e das declarações e interpretações nativas e, de outro, as
inferências do autor, baseadas em seu próprio bom-senso e intuição psicológica”. Conforme
Blalock Jr. (1973) e Cavedon (1999b), isso é possível, pois a observação participante
envolve a profunda inserção do pesquisador no cotidiano em estudo. Dessa maneira, ele
pode captar conhecimentos amplos ao fazer parte das interações cotidianas.
Blalock Jr. (1973) destaca o ideal da não interferência do pesquisador no cotidiano no qual
se insere. Para o autor, o pesquisador deveria apenas apreender, sem alterar o que veio
investigar. Entretanto, nesta tese defende-se a necessidade de reconhecer as limitações para
alcançar esse ideal proposto, pois quando o pesquisador se revela para qualquer sujeito
110
como um novo elemento do seu cotidiano, preocupado em investigá-lo, uma alteração já
está efetivada. Conforme Cavedon (1999b, p. 8),
[...] os informantes ao terem consciência da diferença de mundo que os separa do
pesquisador tendem a usar esse último como um meio através do qual suas
reivindicações possam vir a ser encaminhadas, ou seja, o pesquisador assume
mesmo que indiretamente um compromisso político com a comunidade estudada.
A impossibilidade da plena não interferência exige reconhecer um meio termo que inclua
uma interferência minimizada pelo esforço do pesquisador, mas que seja inerente à
aproximação necessária para alcançar a confiança dos sujeitos, a ponto de eles revelarem
seu cotidiano. Nesse processo, outro desafio é vencer as limitações de ordem etnocêntricas
do pesquisador. Ou seja, o pesquisador deve permanecer aberto a se sujeitar a construções
sociais resultantes de histórias de vida diferentes das suas. Ao coletar e interpretar os dados,
ele não deve tipificá-los de maneira simplista a seu quadro de referência pessoal, que, por
sua vez, também não pode ser ignorado. Tal quadro deve ser reconhecido como existente,
pois ele está nos dados coletados, nas percepções e nos sentimentos do pesquisador. Ao ser
exposto, é possível buscar sua relativização, a partir das próprias observações provenientes
da participação do cotidiano dos sujeitos. Dessa maneira, configura-se um processo de
aculturação que fundamenta a técnica da observação participante e possibilita a coleta e
interpretação dos dados (CAVEDON, 1999b). No dizer de Cruz Neto (1994, p. 59), “o
observador, enquanto parte do contexto de observação, estabelece uma relação face a face
com os observados. Nesse processo, ele, ao mesmo tempo, pode modificar e ser modificado
pelo contexto”.
Essa aculturação permite lidar com as limitações impostas pelas idéias preconcebidas,
oriundas das experiências passados do pesquisador, inclusive seu embasamento teórico.
Conforme Malinowski (1978), comumente, tais idéias levam a hipóteses a serem
111
confirmadas, limitando o potencial da investigação, que passa a girar em torno dessa
confirmação. Uma alternativa, sugerida pelo autor, é ocupar o lugar das hipóteses com
problemas, nos quais os elementos preconcebidos deixam de ter um sentido próprio para ser
algo “natural”. Eles passam a remeter a problemas a serem tratados, possibilitando a
relativização daquilo que é preconcebido, e, portanto, dão espaço para um olhar distinto
sobre o cotidiano do outro. Dessa maneira, a observação participante tem nas bases teóricas
e nas experiências anteriores do pesquisador elementos a serem problematizados e
questionados, impulsionando o processo de aculturação do observador, mesmo que parcial.
A parcialidade vem do fato de que, concordando-se com Blalock Jr. (1973), o pesquisador
permanece com uma parte de suas idéias preconcebidas. Além disso, o afastamento dessas
prenoções ocorre aos poucos. Conforme o autor, o amadurecimento desse processo deve
ocorrer em paralelo com uma coleta de dados o mais detalhada possível. Por sua vez, os
dados serão analisados apenas quando o pesquisador se sentir livre de parte de suas
prenoções que prejudicam a familiarização com o cotidiano do grupo social em estudo. Ou
seja, é um processo imbricado, no qual a própria imersão no cotidiano para a coleta dos
dados permite um olhar crítico do pesquisador sobre suas idéias preconcebidas, o que o
prepara para a análise dos dados sobre um grupo social diferente do seu.
A observação participante potencializa, assim, a ação do pesquisador, pois permite a ele
questionar pressupostos prejudiciais à coleta de dados, oferecendo como dados adicionais à
investigação a própria crítica sobre esses pressupostos. Aquele que coleta passa, também, a
ter “seus dados” coletados. Ou melhor, inserem-se como dados reflexões que expõem
pressupostos do observador que tendem a permear a investigação. Nesta tese, tal
característica justifica a adoção da observação participante, pois é o caminho para se
112
alcançar o que não está explícito, o que Malinowski (1978, p. 29) chamou de
“imponderáveis da vida real”, conceitos e significados no cotidiano do grupo social que
impregnam e dão sentido a suas práticas, como os seus cuidados corporais, as maneiras de
trabalhar, de negociar, de cozinhar, de comer, de brincar, de expressar hostilidade ou
amizade e de viver socialmente. Malinowski (1978, p. 30) explica que
[...] a simples descrição dos aspectos exteriores, seja da pompa e do aparato de uma
solenidade de Estado, seja de um costume pitoresco dos garotos de rua, não é
suficiente para demonstrar se o rito ainda floresce com total vigor nos corações
daqueles que dele participam, ou se o consideram como coisa já ultrapassada e
quase morta, conservada apenas por amor à tradição.
Sem a compreensão desses imponderáveis, o pesquisador tende a permanecer na superfície
dos fenômenos. Ao acessá-los ganha-se a profundidade oculta na complexidade das relações
humanas. Um exemplo seria o caso de um norte-americano que visite o Brasil em época de
copa do mundo e atribui um forte nacionalismo aos brasileiros, em virtude das bandeiras
nacionais espalhadas em ruas, casas, carros e pessoas. Ele ignora que aquilo só ocorre a
cada quatro anos e que em outras épocas raramente se vê uma única bandeira brasileira nas
ruas, surgindo apenas as dos times de futebol em ação nos diversos campeonatos existentes.
A interpretação do norte americano em questão envolve os significados que, para ele,
estariam nas manifestações supostamente nacionalistas observadas superficialmente.
Conforme Malinowski (1978), ao observar e participar o observador obtém um acesso além
dessa superficialidade. Para isso, o caminho é deixar os fatos falarem por si mesmo, na
medida em que ocorrem ao seu redor e são devidamente anotados num diário. De acordo
com Cavendon (1999, p. 7), ao registrar em um diário de campo os imponderáveis da vida
real,
113
[...] o pesquisador irá narrar com acuidade todos os acontecimentos ocorridos dia
após dia. As expressões próprias daquele grupo também serão anotadas, bem como
os sentimentos do pesquisador [...] de modo que as impressões muito particulares do
pesquisador poderão ser melhor compreendidas e eliminadas por ocasião da
descrição do êmico, ou seja, das categorias dos pesquisados [...] o que se procura é
não misturar as duas falas, de modo que o êmico (categorias dos pesquisados) e o
ético (categorias do pesquisador) não se confundam.
Ou seja, os sentimentos narrados pelo pesquisador revelam elementos para a mencionada
reflexão sobre as prenoções do observador e o alcance de seu aculturamento para investigar
um contexto social distinto do seu. Isso possibilita enxergar o etnocentrismo que pode
permear a atuação do observar, bem como indica a intensidade de sua inserção no grupo
estudado. Uma questão importante envolve as limitações dessa inserção: o observador não
se torna um dos informantes e nem precisa chegar a esse ponto; ele permanece alguém de
fora, mas que se aproxima o suficiente para obter informações com profundidade do grupo,
a partir de relações construídas no convívio com seus membros (CAVEDON, 1999b;
LENGLER; CAVEDON, 2001). Não se espera que os membros do grupo considerem o
pesquisador como um igual, mas que eles o aceitem como alguém diferente em quem
confiam (FOOTE-WHITE, 1980).
Mais tarde, o diário de campo servirá para embasar a análise e a apresentação dos dados.
Além de fornecer detalhes para a análise que se perderiam pelo esquecimento, por meio de
fragmentos extraídos do diário de campo é possível ilustrar e esclarecer melhor alguns
aspectos para o leitor “[...] é como se os caminhos trilhados pelo pesquisador pudessem ser
percorridos pelo leitor” (CAVEDON, 2001, p. 10), que, por sua vez, é levado a se
aproximar do contexto investigado, que, na investigação empírica desenvolvida nesta tese, é
o contexto organizacional.
114
O uso da observação participante nos estudos organizacionais não é uma novidade. Wright
(1994) destaca o uso da técnica desde a década de 1950, em abordagens que permitiram
extrapolar a ênfase que Mayo (1960) dá às relações sociais dos trabalhadores associadas à
estrutura a que estão submetidos no espaço fabril. Conforme o primeiro autor, a técnica
baseou-se em estudos que compreenderam contextos mais amplos, nos quais são
reconhecidas as relações dos trabalhadores nas sociedades nas quais viveram e estão
inseridos, permeadas por aspectos culturais próprios considerados nas análises.
No campo organizacional no Brasil, a observação participante e a observação sistemática
foram assumidas como adotadas em estudos sobre uma diversidade de temas, tais como:
vínculos sociais numa oficina de marcenaria (BRESLER, 1997); formas de classificação
social refletidas no ambiente organizacional de livrarias (PEREIRA, 2005); relações entre
os arranjos familiares e empresas familiares em suas implicações familiares, sociais e
mercadológicas (CAVEDON; FERRAZ, 2003); significação atribuída a um shopping center
por adolescentes que nele se socializam (LENGLER; CAVEDON, 2001); cultura
organizacional num mercado público (CAVEDON, 2002); processo de transição de um
hospital psiquiátrico da lógica racional-instrumental para a racionalidade comunicativa
(VIZEU, 2004); favorecimento ou impedimento da aprendizagem em ambientes de trabalho
numa indústria química (GROPP, 2003); comprometimento e a participação dos
funcionários do Serviço Social do Comércio (SESC) em Pernambuco nas atividades que
eles próprios definem na programação social voltada para o uso do tempo livre dos
associados (SANTOS; OLIVEIRA, 2001); relações entre a implantação de um programa de
qualidade total e a qualidade de vida dos membros da gerência administrativa da Empresa
Brasileira de Correios e Telégrafos (MONACO; GUIMARÃES, 1999); e desenvolvimento
115
de um modelo de remuneração por habilidades numa indústria eletroeletrônica
(RODRIGUES; CORRÊA; LADEIRA, 2004).
Esses estudos têm em comum a tentativa de captar o cotidiano dos sujeitos relacionados
com o fenômeno investigado. Entretanto, a despeito de afirmarem que adotam a observação
participante, eles se diferem quanto à maneira como o pesquisador se insere no campo.
Esses diferentes posicionamentos em relação às maneiras como o pesquisador desenvolve a
observação participante foram destacados por Gold (1958), que as classificou em quatro
tipos básicos:
1) “Pleno participante”. Caracteriza-se pela plena participação e inserção social nos
contextos que envolvem o grupo estudado, sem que a identidade e os propósitos do
pesquisador sejam conhecidos por aqueles que ele observa. De um lado, essa
abordagem oferece a oportunidade de aprender sobre aspectos do comportamento
invisíveis para quem está menos inserido no grupo, mas, de outro, pode surgir
implicações morais e éticas que prejudiquem o estudo, o que inclui a dificuldade do
pesquisador de se distanciar do grupo, perdendo as condições para manter seu papel
de observador.
2) “Participante como observador”. Nesta abordagem, o observador se apresenta para o
grupo e aqueles que serão observados, revelando suas intenções e mantendo a ampla
inserção no cotidiano investigado. O observador oferece a si mesmo uma base para
certo distanciamento, mas problemas podem surgir caso certo envolvimento e a
percepção do papel do observador façam o informante também assumir esse papel,
afastando-se de seu próprio cotidiano. Permanece aqui a possibilidade de o
116
observador envolver-se em demasia com o contexto investigado, “transformando-se
em um nativo”, o que exige atenção e possíveis afastamentos do campo para uma
reflexão sobre seu papel como observador.
3) “Observador como participante”. Caracteriza-se pela observação formal, restrita a um
contato único e formal com o campo e aquele que se observa. Durante esse contato,
ele será entrevistado, e a observação, mais formal do que informal, ocorre sem
nenhum tipo de participação. Os problemas citados nas duas abordagens anteriores
são minimizados, mas o potencial de compreensão do contexto investigado também
é reduzido, e se destaca o problema de interpretações equivocadas, oriundas da
análise superficial de manifestações de várias pessoas em encontros breves. A lógica
da participação é mantida aqui em virtude da inserção do informante no campo, algo
preservado nessa abordagem.
4) “Pleno observador”. O pesquisador permanece afastado dos informantes, sem se
envolver em participação ou qualquer interação social com o grupo investigado. As
pessoas não sabem que estão sendo observadas, nem que fazem o papel de
informante para um observador qualquer. A plena ausência de interação social tende
a intensificar os problemas destacados na abordagem anterior, mas, em
contrapartida, ocorrem a redução da possibilidade de envolvimento equivocado do
pesquisador e a conseqüente confusão sobre qual é o seu papel no campo.
Ao discutir as quatro abordagens, Gold (1958, p. 222, tradução nossa) destaca que “[...] à
medida que a observação se intensifica em detrimento da participação, as chances de se
‘tornar nativo’ diminuem, mas se amplia a possibilidade de ocorrer o etnocentrismo”. No
117
primeiro extremo, a visão do informante torna-se importante demais, interferindo no papel
do pesquisador; no segundo, ela é menosprezada, prejudicando a compreensão de aspectos
do contexto em estudo. As dificuldades e vantagens de se aproximar de um ou outro
extremo impedem a afirmação de que uma abordagem é simplesmente melhor do que a
outra. Dependendo das demandas do pesquisador, uma pode ser apenas considerada mais
adequada do que a outra, em termos da disposição e da maturidade do pesquisador para
assumir papéis sem deixar de ser quem ele é e dos níveis de profundidade das informações
que ele deseja tratar em sua pesquisa (CICOUREL, 1980).
A despeito de se concordar com Gold (1958) sobre as implicações de se optar por um maior
ou menor nível de interação com os informantes, no tocante à terminologia adotada é
necessário fazer algumas ressalvas. Nesta tese, assume-se que a participação está associada
à predisposição por parte do pesquisador em se inserir nas atividades cotidianas do grupo
em estudo. No caso da abordagem nominada de “Observador como participante”, Gold
(1958) a caracteriza pela intenção do pesquisador em ter um contado breve o suficiente
apenas para realizar uma entrevista, o que não se reconhece como participação. Na
abordagem denominada “Pleno observador” o autor deixa claro que não há intenção do
pesquisador em interagir com os sujeitos, logo, também não é considerada aqui como um
tipo de participação. Portanto, segundo o conceito de participação aqui assumido, caberia
identificar as duas últimas abordagens reconhecidas por Gold (1958) como modalidades de
observação. No caso do “Observador como participante”, seria uma observação mais
próxima da abordagem assistemática, marcada por observações pontuais, e a quarta, a do
“Pleno observador”, seria uma observação mais próxima da abordagem sistemática.
118
Cruz Neto (1994, p. 60) defende a classificação adotada por Gold (1958) ao afirmar que
“um distanciamento total de participação da vida do grupo” é uma situação de observação
participante escolhida pelo pesquisador. Mas nesta tese questiona-se o potencial de essa
classificação mais confundir do que esclarecer sobre as intenções do pesquisador. Deve ficar
claro que toda a classificação sobre observação que busque distinguir participação de não-
participação tem como propósito indicar os direcionamentos principais assumidos na
abordagem metodológica, pois, a rigor, na prática da pesquisa a distinção não é tão clara e
serve apenas para fins analíticos (MINAYO, 2000). Conforme Alencar (1999, p. 109), “[...]
na prática nem sempre é possível traçar um limite rígido entre observação participante e
observação não-participante, pois participação geralmente é parcial”. A partir dela,
observam-se acontecimentos que estão além do locus da participação, também
caracterizando a obtenção de informações por meio da não-participação. De outro lado, a
simples presença de um observador que opte pela não-participação provoca interferências
que podem ser consideradas como algum nível de participação.
Portanto, com a intenção de indicar claramente os direcionamentos metodológicos adotados
nesta tese, assume-se que a técnica de observação consiste na obtenção de dados a partir da
possibilidade de acompanhar por meio da visão e dos demais sentidos o cotidiano dos
informantes. Essa observação é considerada participante na medida em que houver a
intenção e as condições para que o pesquisador, mesmo parcialmente, atue no papel de
observador e, ao mesmo tempo, em outros papéis que cotidianamente os informantes
assumem. Esse posicionamento, concordando-se com Godoy (1995) e Alencar (1999),
justifica-se pela importância de diferenciar como observação as técnicas que exigem intensa
inserção do pesquisador no campo, destacando-se que ela pode ocorrer por meio da
observação participante e da observação não-participante. Na primeira, o investigador se
119
insere na posição do outro, diretamente envolvido com o fenômeno em estudo (CRUZ
NETO, 1994); na segunda, ele assume a postura de espectador, e, com base “[...] nos
objetivos da pesquisa e num roteiro de observação, o investigador procura ver e registrar o
máximo de ocorrências que interessam ao seu trabalho” (GODOY, 1995, p. 27).
No caso da observação não-participante, uma subdivisão que permite um maior
detalhamento dos caminhos adotados na coleta de dados é a distinção entre as técnicas de
observação não-participante, comumente chamadas de “observação sistemática” e
“observação assistemática” (ou “simples”) (GIL, 1995). Na primeira, a observação segue
uma seqüência de observações planejadas no mesmo lócus, ao longo de um determinado
tempo, com base em um roteiro. Na segunda, não há uma permanência sistemática no locus
que permita um aprofundamento com base em um roteiro de observação, mas, ainda assim,
aproveita-se a oportunidade para observar, destacando-se as limitações impostas pela falta
de inserção. Devido a essa limitação, aqui ela foi utilizada apenas nos casos em que não foi
possível atuar com a observação participante e sistemática, o que ocorreu no cotidiano da
pesquisa quando o pesquisador teve duas oportunidades de visitar residências de dois
clientes do Mercado da Vila Rubim e acompanhar duas vezes diferentes comerciantes em
suas compras na CEASA.
A observação participante foi adotada nesta tese quando o pesquisador coletou as
informações relativas ao comportamento dos comerciantes do Mercado da Vila Rubim com
foco no grupo social dos clientes. Para tanto, ele assumiu o papel de cliente, fazendo suas
compras cotidianas no Mercado, aproximadamente duas vezes por semana, como diversos
outros clientes. É necessário destacar que, no tocante à inserção social, o pesquisador se
inseriu plenamente apenas em um dos quatro grandes grupos nos quais se pode classificar os
120
clientes do Mercado: clientes com baixa renda que residem nas proximidades do Mercado;
clientes com maior poder aquisitivo que residem nas proximidades do Mercado; clientes
com baixa renda que residem distantes do Mercado; e clientes com maior poder aquisitivo
que residem distantes do Mercado.
Diferentes inserções sociais envolvem esses quatro grupos, em virtude das distinções em
termos de suas histórias de vida, demarcadas pelas diferenças entres as regiões onde foram
criados, locais onde residem e as condições de vida, de uma maneira geral. Na
impossibilidade de uma aproximação com os quatro grupos, o pesquisador optou por se
aproximar do último, pois sua atual residência contribui, até do ponto de vista geográfico,
para essa inserção. Ao se inserir no grupo de clientes e atuar como seus membros no
cotidiano do Mercado, optou-se por não revelar a condição de pesquisado, buscando a
“plena participação”. A justificativa para essa opção está nas vantagens, já destacas, dessa
abordagem, além da menor incidência dos problemas a ela associados, que se deve à
característica do próprio grupo de inserção, que não se desloca diariamente para o Mercado,
senão uma ou duas vezes por semana, o que permite ao observador um distanciamento
periódico do campo, para refletir sobre seu papel, protegendo-se da inserção excessiva.
Outros dois aspectos que contribuíram para essa opção foram: dificuldade instrumental de
revelar a condição de pesquisador na sua inserção de cliente em várias lojas e convívio com
outros clientes em filas e no interior das lojas; e percepção de que as interações com os
informantes se dariam apenas no espaço público, em um nível de convívio com implicações
morais dentro de limites aceitáveis para o pesquisador, no tocante a obter informações de
pessoas que não sabem que estão sendo observadas.
121
As reflexões sobre implicações morais geraram no pesquisador uma série de inquietações no
tocante à opção adotada. Como discute Bulmer (1982), devem ser considerados os dilemas
éticos ao assumir a abordagem da observação participante sem se apresentar para aqueles
que são observados, o que exige cuidados. Entretanto, o autor deixa claro que isso não
implica abandonar a abordagem, que, em alguns casos, é necessária por questões práticas ou
pela intenção do pesquisador em influenciar o mínimo possível no cotidiano no qual está
inserindo. Nesse sentido, há desde uma ocultação total, deliberada, na qual ninguém
conhece a posição do observador, até uma ocultação parcial, na qual alguns conhecem sua
posição, mas não há meios práticos para o pesquisador se apresentar a todos com os quais
mantém contado no campo. No caso desta tese, a observação participante se deu de maneira
totalmente oculta, tanto pela intenção de não interferir, quanto por envolver o contato
cotidiano com diferentes clientes, funcionários e proprietários em contextos nos quais,
muitas vezes, a apresentação não seria algo viável, como nas conversas numa fila de um
caixa ou nos comentários sobre uma discussão na rua. Após três meses de iniciada a
observação participante, quando outras técnicas de coleta de dados foram aplicadas, foi
possível observar que a opção pela ocultação inicial foi adequada. A partir do momento em
que o observador se apresentou e permaneceu no campo, ficou evidente a diferença de
tratamento em relação à interferência no cotidiano observado. O observador passou a ser
uma atração à parte, que dividia a atenção dos observados e, de certa maneira, alterava seu
cotidiano.
A opção pela ocultação e o reconhecimento dos dilemas éticos levaram a uma maior atenção
com os cuidados sobre as implicações para os respondentes das informações divulgadas no
texto da tese. Essa é uma preocupação indispensável a qualquer estudo. Mas nesta tese foi
redobrada, pois na etapa inicial de coleta de dados os informantes não tinham conhecimento
122
do papel do observador quando interagiam com ele. Sabiam apenas que havia um
desconhecido num espaço público e assumiam os riscos de se manifestar. Portanto, quando
da passagem dos acontecimentos de cada dia para o diário de campo houve a preocupação
em demarcar aquilo que incomodava o pesquisador do ponto de vista ético, o que passou a
fazer parte dos dados, pois é considerado um aspecto relevante das limitações do
pesquisador, a serem observadas na análise dos dados.
Após a observação participante, as abordagens da observação não-participante sistemática e
assistemática foram adotadas nesta tese quando o pesquisador coletou as informações
relativas ao comportamento dos comerciantes do Mercado da Vila Rubim, com foco no
grupo social dos funcionários e dos proprietários de uma loja, três barracas e dois
tabuleiros
12
que comercializavam hortifrutícolas em geral. Nesta etapa, buscou-se
estabelecer, como defende Godoy (1995, p. 27), “[...] um relacionamento agradável e de
confiança entre o observador e o observado”, desde o momento em que o pesquisador
solicitou a autorização do proprietário e se apresentou aos demais funcionários, indicando o
propósito da investigação. Durante a observação, foi constante a atenção para não contribuir
para que os informantes se colocassem no papel de observador, sempre buscando mantê-los
na condição de participante. O pesquisador evitou fazer questionamentos intempestivos com
o potencial de demarcar o papel de observador dos sujeitos e de afastá-los de sua
participação cotidiana. Quando percebida a inadequação do momento, os questionamentos
12
O termo “tabuleiro” é utilizado no texto dentro do sentido assumido pelos sujeitos de pesquisa: tábuas de
madeira, ou algo similar, colocadas sobre caixotes ou no chão. As mercadorias são expostas nesses tabuleiros,
que podem ser carregados pelos comerciantes ou montados no início do dia de trabalho e desmontados no final
do dia. O termo “banca” tem um sentido similar, mas refere-se tanto a uma montagem fixa, dentro de galpões,
barracas e lojas, quanto a algo móvel, surgindo com os dois sentidos em fragmentos das falas dos sujeitos de
pesquisa.
123
foram anotados e realizados mais tarde, quando a questão parecia coerente com a atividade
ou a situação, ou, após a realização da observação, no momento das entrevistas. Quanto à
preocupação com a inserção excessiva no campo e a confusão entre os papéis do
observador, optou-se por realizar uma reflexão diária sobre essa questão, ao repassar os
acontecimentos do dia para o diário de campo.
Do ponto de vista da operacionalização da observação, a maior dificuldade foi buscar o
equilíbrio entre as informações necessárias para uma análise aprofundada e o excesso de
informações irrelevantes. De acordo com Godoy (1995, p. 27):
Embora o observador deva manter uma perspectiva de totalidade, é importante
ter claros seus focos de interesse. É de grande utilidade que ele oriente a sua
observação em torno de alguns aspectos, evitando, assim, terminar com um
amontoado de informações irrelevantes ou deixando de lado dados que
possibilitariam uma análise mais completa do problema.
No caso da observação, essa delimitação surgiu no momento da composição do diário de
campo, com base nas anotações de campo. Elas foram realizadas de acordo com as
percepções do pesquisador sobre os aspectos relevantes para o objetivo proposto,
evidenciados no referencial teórico e na própria experiência de campo. O roteiro de
observação (APÊNDICE A) auxiliou nesse processo. Como defende Godoy (1995), foi a
partir dessas delimitações que o pesquisador construiu tanto a parte descritiva do que foi
observado quanto suas reflexões pessoais a serem também confrontadas na análise dos
dados.
Um aspecto a se destacar é que tal delimitação, em conjunto com as próprias características
da técnica de observação e dos estudos no campo da administração, não contribui
especificamente para a obtenção de informações em um corte longitudinal. Pelo contrário,
124
em estudos típicos do campo da administração a observação não tende a durar vários anos.
A duração é definida a partir do critério da recorrência do que se observa e dos prazos para a
coleta de dados das teses, dissertações e artigos acadêmicos, o que nem sempre é suficiente
para a obtenção de dados longitudinais. Neste contexto de aplicação, a observação tende a
remeter a um corte transversal, mesmo que sempre associada a uma historicidade que
contextualize as informações do presente. A dificuldade está em associar o passado e o
presente sem ter vivenciado o passado durante a participação. Possivelmente, uma
participação que durasse anos, como fez Malinowski (1978), revelaria dados do passado de
maneira aprofundada, pois as pessoas revelam esse passado dia-a-dia e ao longo dos anos os
dados longitudinais surgiriam espontaneamente. Mas nesta tese, na impossibilidade prática
de dedicar anos à participação para obter esses dados longitudinais, para lidar com essa
limitação, buscou-se um questionamento mais direto, por meio da conjugação das
observações com a técnica da entrevista não-estruturada, voltada para a etapa da história de
vida dos respondentes na qual eles se inserem no Mercado da Vila Rubim.
Cruz Neto (1994, p. 58) explica que as entrevistas podem se configurar de maneiras
diversas, indo desde uma configuração aberta ou não-estrutura, passando pela semi-
estrutura, até a estrutura plena. Concordando-se com o autor, é necessário entender que o
que está em jogo é o grau de direcionamento imposto pelo entrevistador e,
conseqüentemente, o grau de liberdade para o entrevistado abordar o tema proposto. Se, de
um lado, a liberdade total pode implicar um grande volume de informações
“desnecessárias”, de outro, a imposição de uma plena estrutura pode implicar um pequeno
volume de informações tendenciosas. Ao adotar a entrevista como um caminho para um
aprofundamento nos dados longitudinais, ficou claro que não cabia impor uma
tendenciosidade sobre um passado desconhecido. Portanto, optou-se pela entrevista não-
125
estruturada, partindo-se apenas de uma provocação inicial que consistia na seguinte questão:
Fale de sua trajetória no Mercado da Vila Rubim, desde a primeira vez que teve
contado com ele até hoje.
Por meio dessa provocação, buscou-se levar o respondente a apresentar suas histórias sobre
fatos e pessoas, caracterizando-se como histórias de vida do tipo tópica, conforme Minayo
(2000)
13
, voltada para a ênfase numa etapa específica da vida do sujeito de pesquisa. A
autora destaca ainda que, comumente, a técnica da história de vida é colocada de maneira
complementar às entrevistas e à observação participante e que seu uso permite ao
pesquisador alcançar aspectos pessoais em relação a um lugar social específico, no qual se
posiciona a própria pessoa à medida que conta sua história, revelando um entendimento
convergente com o objetivo da investigação em questão.
A partir dessas escolhas, observaram-se, na prática, dificuldades na aplicação da entrevista
não-estrutura. Isso ocorreu a partir daquela provocação única, pois alguns entrevistados não
verbalizavam questões livremente, por vezes se limitando a dizer que não tinham nada para
falar, que não sabiam de nada ou que sabiam o mesmo do que as outras pessoas com quem o
pesquisador pudesse ter falado.
Para superar a resistência dessas pessoas observou-se, que era necessário fazer algo que
norteasse um diálogo, envolvendo questões específicas, o que levou a adotar-se o roteiro da
observação sistemática (APÊNDICE A) também nesses casos, em uma segunda etapa da
13
A autora diferencia a história de vida tópica da história oral ao afirmar que a primeira volta-se para uma
etapa da vida e a segunda, para a vivência de um evento específico.
126
entrevista, agora caracterizada como semi-estruturada. Portanto, passou a se usar
conjuntamente as duas técnicas de entrevista. Inicialmente, o pesquisador apresentava a
provocação inicial e deixava o respondente se manifestar livremente. O pesquisado apenas
se expressava para demonstrar sua atenção ou incentivar o respondente a continuar sua fala.
Na medida em que o respondente dá por encerrado sua fala, o pesquisador verifica se algo
no roteiro não foi abordado e elabora questões sobre os tópicos a serem aprofundados.
Durante esse processo, ocorreram entrevistas em que não foi necessária a inclusão de
questões adicionais, com base no roteiro, e de outras que foram quase totalmente orientadas
pelo roteiro, pois o respondente se limitava a responder o que era perguntado. Mas, de
maneira geral, na maioria das entrevistas, o roteiro baseou alguns poucos questionamentos,
após a provocação inicial e a palavra livre dos respondentes. Portanto, considera-se que as
entrevistas foram realizadas em duas etapas, uma não estruturada e outra semi-estruturada.
Outro ponto a se destacar na aplicação das técnicas no campo é que apenas no caso de três
sujeitos de pesquisa a história de vida tópica (MINAYO, 2000) foi explorada
adequadamente. Nesses três casos, foram realizadas entrevistas adicionais com os próprios
sujeitos e com outros a ele relacionados, no sentido de um aprofundamento nessas histórias.
Essa opção se deve à impossibilidade operacional de efetuar um aprofundamento com todos
os sujeitos. Portanto, foram escolhidos três com base nas próprias entrevistas realizadas e
nos critérios definidos para a escolha do grupo de sujeitos e dos locais específicos de
observação sistemática.
Deve-se destacar que as múltiplas fontes de dados, por convergirem para o mesmo
fenômeno, possibilitam a triangulação e, conseqüentemente, uma pesquisa mais bem-
127
sucedida, sob o ponto de vista de possíveis questionamentos quanto à sua legitimidade
(YIN, 2001). Mas isso depende da coerência na definição dos critérios que norteiam e
delimitam a aplicação de cada uma das técnicas, como a escolha dos sujeitos de pesquisa e
dos locais de observação.
5.4 A escolha dos sujeitos a serem entrevistados
A escolha do grupo de sujeitos a serem entrevistados se deu de maneira não probabilística,
pois foi definida de forma intencional, e por tipicidade, uma vez que os elementos serão
selecionados a partir de determinados critérios (TRIVIÑOS, 1987; MINAYO, 2001). Esses
critérios foram definidos após a etapa preliminar da investigação, na qual se realizaram a
observação inicial no locus do mercado da Vila Rubim e a leitura de documentos referentes
à história do Mercado.
A partir dos documentos, ficou clara uma trajetória na qual atuavam no mercado, em
meados da década de 1970, mais de 300 comerciantes trabalhando especificamente com
hortifrutícolas em geral. Já na observação preliminar, identificou-se que atualmente existem
apenas seis comércios com essas características: o Supermercado A
14
, que, apesar da
identificação como supermercado, é chamado por todos, menos pelo proprietário, como
“Hortifruti”, pois é, e sempre foi, especializado em hortifrutícolas em geral; três
comerciantes que atuam nas barracas
15
; e dois dentre os oito comerciantes que atuam em
14
A denominação “Supermercado A” foi escolhida para preservar a organização em questão.
15
No mês de março de 2007, após o encerramento da coleta de dados, a prefeitura inaugurou 48 novas lojas
para os barraqueiros na praça Manoel Rosindo e foram abertos novos comércios de hortifrutícolas naquela
área.
128
frente à peixaria, os comerciantes dos tabuleiros aqui identificados como “A” e “H”, pois os
outros seis comercializam especificamente temperos, incluindo apenas hortifrutícolas que,
segundo os respondentes, enquadram-se como tempero
16
.
Pelo exposto, adotou-se os seguintes critérios para a escolha do grupo inicial de sujeitos da
pesquisa:
1 - os comerciantes responsáveis pelos seis comércios que atuam especificamente com
hortifrutícolas em geral no Mercado da Vila Rubim e, quanto existente, pelo menos
um funcionário de cada comércio;
2 - cinco comerciantes que atuavam especificamente com hortifrutícolas na década de
1970 e mudaram de segmento ou atividade;
3 - cinco clientes que freqüentam o mercado há mais de dez anos; e
4 - cinco fornecedores que atuam no mercado há mais de dez anos e, dentre eles, pelos
menos três que atuam com hortifrutícolas.
Além dos argumentos já apresentados, os critérios para as escolhas dos tipos de sujeitos
(comerciante, funcionário, cliente e fornecedor) baseiam-se nas seguintes questões: a) os
responsáveis pelo “fazer estratégia” são os atores organizacionais (comerciantes e
16
Eles citam especificamente como temperos as seguintes hortaliças: salsa, coentro, cebolinha, cebola,
pimenta e alho. A limitação a esses produtos os diferencia do comércio de hortifrutícolas em geral, que já foi
predominante no mercado e é o foco desta investigação.
129
funcionários) a partir de suas práticas e de suas representações sociais relacionadas com o
cotidiano do mercado e as próprias práticas; e b) a estratégia organizacional trata das
relações entre o ambiente interno e ambiente externo – o “fazer estratégia” inclui atores
externos, ou seja, clientes e fornecedores, que também envolvem as práticas e
representações sociais como um todo. A definição dos períodos de tempo de atuação no
mercado tem como propósito interagir com sujeitos já inseridos no processo de
familiarização de questões relativas ao mercado, ao comércio de hortifrutícolas e às práticas
e representações sociais no cotidiano.
Deve-se destacar que um comerciante que atua especificamente com hortifrutícolas em geral
não se dispôs a dar entrevistas. Portanto, o grupo inicial contou com 5 comerciantes. O
grupo final de sujeitos foi ampliado pela técnica da bola de neve, na qual os respondentes
anteriores indicaram os seguintes (BOGDAN; BIKLEN, 1994). A intenção foi considerar as
indicações do grupo inicial para alcançar contribuições de outros sujeitos no sentido de se
compreender o contexto histórico de atuação dos comerciantes de hortifrutícolas. O grupo
final dos sujeitos foi definido por meio do critério de saturação (recorrência das
informações) (SÁ, 1998), constituído da seguinte maneira:
24 proprietários, sendo 5 comerciantes que atuam especificamente com hortifrutícolas
em geral, 5 ex-comerciantes que atuavam nesse segmento e 14 comerciantes de outros
segmentos;
5 fornecedores, sendo 3 de produtos hortifrutícolas;
9 clientes;
130
2 representantes de associações;
11 funcionários, sendo 4 do segmento de hortifrutícolas, um deles ex-comerciante que
atuava especificamente com hortifrutícolas em geral; e
3 policiais militares.
Nesse grupo, três comerciantes foram escolhidos para um aprofundamento em suas etapas
da história de vida em relação ao Mercado. As escolhas se deram a partir de informações
colhidas por meio das entrevistas e das observações. Em síntese, cada um representa
movimentações distintas, mas com aproximações no tocante à sua inserção no contexto do
mercado: um jovem vindo do interior, que começou como vendedor ambulante de
hortifrutícolas nos arredores do mercado, passou a feirante, depois a ter uma banca própria
no galpão do mercado e hoje possui várias lojas de supermercados; um jovem “nascido e
criado” no Mercado da Vila Rubim, que desde cedo trabalhou por conta própria como
vendedor ambulante de hortifrutícolas dentro do Mercado, fez parte da invasão da Praça
Manuel Rosindo, em frente ao mercado e hoje atua em uma barraca própria, referente à
invasão na praça e em mais uma área alugada em frente à peixaria; um comerciante que
começou atuando no Mercado como fornecedor de hortifrutícolas, o qual, na quitação da
dívida de um barraqueiro da Praça Manoel Rosindo, aceitou a barraca, passando a trabalhar
nela até hoje, tendo sido o primeiro presidente da Associação dos Barraqueiros.
5.5 A cronologia da coleta de dados e a escolha dos locais de observação
Como já exposto, a observação se iniciou como participante, no papel de cliente, sem a
identificação do pesquisador. O processo se iniciou no dia 19 de maio 2006 e se estendeu
131
até o dia 15 de agosto de 2006. Durante esse período, o pesquisador freqüentou duas vezes
por semana os comércios que trabalhavam especificamente com produtos hortifrutícolas em
geral no Mercado da Vila Rubim, sempre realizando compras. A partir do dia 16 de agosto
de 2006, o pesquisador passou a apresentar sua pesquisa e a convidar os sujeitos de pesquisa
para participarem das entrevistas. A partir dessa data, o pesquisador continuou comprando
no Mercado, mas passou a ser identificado pelos comerciantes e, ao mesmo tempo,
negociou sua permanência duas ou três vezes por semana em três pontos de observação,
marcados na Figura 3, que representa o mapa do Mercado da Vila Rubim, com um círculo e
uma numeração de 1 até 3.
132
Figura 3 – Mapa do Mercado da Vila Rubim
Fonte: adaptado de material cedido pela ACVR
Obs.: Para a Prefeitura, o Mercado se restringe aos galpões indicados na figura como “GALPÃO 1” e
“GALPÕES 2 e 3, Após a reforma”. Entretanto, na observação do cotidiano e nas entrevistas, evidenciou-se
que para os sujeitos de pesquisa o mercado se estende a toda área sombreada na figura, assumida nesta tese
como a área do Mercado da Vila Rubim.
Na definição dos locais da observação sistemática, considerou-se a viabilidade da
permanência do observador no local, bem como o foco da pesquisa na comercialização de
hortifrutícolas. No caso, ao observar a disposição física do Mercado (Figura 3) buscou-se
uma posição que permitisse a observação dos comércios de hortifrutícolas. Na
impossibilidade de encontrar uma única posição, optou-se pelos pontos 1, 2 e 3 de
observação indicados na Figura 3, distantes cerca de setenta passos (sessenta metros) um do
outro. Ao longo do dia, o pesquisador se revezava entre os três, permanecendo
aproximadamente uma hora em um e passando para o próximo, até retornar para o primeiro,
e assim sucessivamente. Dessa maneira, foi possível a observação, respectivamente, das três
barracas voltadas para hortifrutícolas em geral, dos tabuleiros A e H e do supermercado A.
133
5.6 A análise e as técnicas de tratamento dos dados
O esquema conceitual adotado (Figura 2) na análise dos dados baseou-se nas contribuições
apresentadas no referencial teórico que reconhece relações entre o “fazer estratégias” nas
organizações, as estratégias e táticas cotidianas das pessoas e as representações sociais. O
foco está nas inserções contextuais das práticas sociais nas organizações, alvo da
investigação, portanto, o tratamento dos dados segue esse foco.
Em virtude do uso conjunto das técnicas de observação e entrevista, adotaram-se duas
técnicas de tratamento de dados que atendiam às especificidades dos dados oriundos de cada
técnica de coleta: a Análise do Discurso e a Análise do Conteúdo.
Para os dados oriundos das entrevistas, foi adotada a Análise do Discurso, pois permite um
aprofundamento tanto nas dimensões sintática e semântica que envolvem os significados
veiculados no intradiscurso quanto nas oposições discursivas, segundo o dialogismo que
marca o interdiscurso e revela a diversidade discursiva que compõe, em convergências e
oposições, cada discurso em análise. Ou seja, o significado do discurso é tratado além do
conteúdo semântico, pois passa a incluir o que está nas entrelinhas dos silenciamentos e do
implícito pressuposto e subentendido. Essa técnica foi escolhida por oferecer espaço para
uma visão dialógica das manifestações dos respondentes. Entretanto, no tocante às
anotações do campo, referentes às percepções do próprio pesquisador ao observar o locus
em estudo, não se viu sentido em tal aprofundamento, uma vez que o contexto de produção
discursiva – neste caso, uma investigação para uma tese de doutorado realizada por um
doutorando em Administração – e a formação discursiva desse locutor não têm relação
134
direta com o caso em estudo, mas com o processo de estudo do caso, o que é inerente à
maioria das investigações acadêmicas.
O argumento defendido é que não há sentido, no âmbito do tema abordado nesta tese, em
um processo no qual o pesquisador busque compreender o que está por trás de seu próprio
silenciamento, em seus implícitos pressupostos e subentendidos. Se ele escreveu algo no
diário de campo, presume-se que compreende seu próprio texto, mesmo que lá ele trate de
algo desconhecido. Ou seja, o tema desconhecido não deve ser confundido com a sua
veiculação. No caso dos respondentes, as duas dimensões estão juntas, e nem sempre
surgem de maneira explícita. Por isso, a necessidade de tratá-las em conjunto. Mas, no caso
do pesquisador, ele as separa no próprio esforço de construção do diário, quando sua
posição de pesquisador fica marcada no instante em que ele pára, concentra-se em escrever
sobre o campo e se expressa sobre suas inserções e percepções.
Deve ficar claro que a necessidade de tratamento dos dados permanece, mas não há sentido
em se analisar um interdiscurso atrelado ao contexto de produção discursiva do próprio
pesquisador que faz a análise e já deve indicar e confrontar esse contexto explicitamente no
próprio texto. Portanto, seria algo redundante, principalmente em uma tese de doutorado em
que a tese em si, seu objetivo, seu referencial teórico e seu método se voltam (ou pelo
menos deveriam) para a indicação explícita do contexto de produção discursiva do
pesquisador, pois é a expressão explícita das posições do pesquisador que oferece
legitimidade e clareza ao trabalho acadêmico. Nesse sentido, para o tratamento dos dados do
diário de campo optou-se pela análise do conteúdo, de acordo com a abordagem da análise
temática na vertente voltada para os significados dos temas, o que permitiu organizar e
depurar o grande volume de informações provenientes das notas de campo.
135
As duas técnicas de tratamento de dados serão detalhadas a seguir. Primeiramente, será
abordada a técnica adotada para tratar os dados oriundos das anotações referentes às
percepções do próprio pesquisador, a Análise do Conteúdo, pois em sua discussão surgem
aspectos que também serão abordados na Análise do Discurso, mas com algumas distinções
e elementos adicionais. Em seguida, discute-se a Análise do Discurso, com foco nos
aspectos, já destacados, que levam a sua adequação ao tratamento dos dados referentes às
manifestações veiculadas pelos sujeitos de pesquisa.
5.6.1 Análise do conteúdo
Minayo (2000) explica que o termo Análise do Conteúdo surgiu na época da Primeira
Guerra Mundial, associado a estudos referentes à propaganda de guerra, o que se estendeu
até a Segunda Guerra Mundial. Nessa fase, marcada pelo positivismo, os procedimentos
enfatizavam o rigor matemático, pelo qual a quantificação objetiva dos conteúdos de um
texto seria a fonte de legitimidade do estudo. A autora destaca que nas décadas de 1950 e,
principalmente, de 1960 a análise do conteúdo se apresenta de maneira mais aberta em torno
de ênfases que dão espaço para a abordagem qualitativa. Então, passa a existir espaço para o
reconhecimento de que na mensagem o que está sendo expresso a partir do contexto e da
situação em questão é mais importante do que o conteúdo manifestado.
136
Nessa trajetória, como destaca Bardin (1977, p. 42), o termo análise do conteúdo
comumente designa
Um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando a obter, por
procedimentos, sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens,
indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos
relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens.
Do conjunto dessas técnicas e segundo a abordagem qualitativa que norteia esta
investigação, buscou-se aqui adotar a análise temática, na variante que “[...] trabalha com
significados em lugar de inferências estatísticas” (MINAYO, 2000, p. 210). Nela, os dados
são organizados em temas, buscando-se padrões de significados contextualizados, a serem
destacados e categorizados (BOGDAN; BIKLEN, 1994; BARDIN, 1977).
Nessa técnica, a unidade de registro adotada é o “tema”. Conforme Bardin (1977), no texto
o tema expressa significados específicos e surge à medida que o texto é recortado com base
no referencial teórico que orienta a análise, como o esquema conceitual apresentado nesta
tese.
A escolha da técnica da análise temática se deve à adequação do “tema” como unidade de
registro “[...] para estudar motivações de opiniões, de atitudes, de valores, de crenças, de
tendências, etc. As respostas a questões abertas, as entrevistas (não diretivas ou mais
estruturadas) individuais ou de grupo...” (BARDIN, 1977, p. 106). A partir dessa unidade de
registro, viabiliza-se a categorização para chegar a “[...] uma representação simplificada dos
dados brutos [...] [no sentido de] conhecer índices invisíveis, ao nível dos dados brutos”
(BARDIN, 1977, p. 119). O processo consiste em definir as categorias temáticas, o que
pode ser feito a priori, com base no referencial teórico e em dados preliminares sobre o caso
em estudo, ou a partir dos próprios dados coletados, fazendo parte do início do tratamento
137
dos dados coletados de maneira aberta, como no caso da investigação desenvolvida nesta
tese. Neste caso, a análise se inicia pela busca de categorias, dos temas que sintetizam
padrões ou recorrências em termos de palavras, frases, idéias e tópicos, e de interesse
(BOGDAN; BIKLEN, 1994).
Para chegar a temas capazes de sintetizar os outros, são desenvolvidas releituras dos dados
coletados e o agrupamento dos recortes temáticos, de acordo com padrões e recorrências
que surgem em torno de temas específicos, que se revelam como as categorias do próprio
processo de classificação.
5.6.2 Análise do discurso
A Análise do Discurso (AD), no campo da lingüística, é vista como uma área do
conhecimento que tem um fim em si mesmo. Mas nesta tese ela é assumida apenas como
uma técnica de tratamento de dados.
Como disciplina, a AD tem suas origens na França, nos anos de 1960, na busca por uma
alternativa às limitações da análise de conteúdo (BRANDÃO, 1998), uma intenção
confirmada por Bardin (1977, p. 213) ao afirmar que a análise automática do discurso de
Pêcheux (1990) “[...] pertence ao campo da análise do conteúdo [...]”, e a critica por
objetivar a “[...] ‘destruição da análise do conteúdo’ visando a sua substituição”.
Independentemente dessa disputa, observa-se que o impulso para o desenvolvimento da AD
está na prática da “explicação do texto” no sistema educacional francês, anterior aos anos de
1960, e à tradição francesa, como também européia, de refletir de forma conjugada sobre a
história e o texto (MAINGUENEAU, 1997).
138
Essa reflexão pode ser encontrada, de certa maneira, nos trabalhos de Pêcheux (1990), um
dos precursores da AD, e de seus colaboradores, ao se voltarem para a investigação de
documentos de caráter político-histórico. Para eles, a AD deveria relacionar-se com as “[...]
condições sócio-históricas vigentes em determinada sociedade”, uma abordagem que os
levou a buscar contribuições de origens diversas, tais como na lingüística, no materialismo
histórico e na psicanálise (MACHADO, 1998, p. 111).
Saussure (1989) é uma dessas fontes, ao oferecer o campo propício para o desenvolvimento
da lingüística por meio de idéias apresentadas no Curso de Lingüística Geral (CLG)
escrito
17
a partir dos três cursos de Lingüística Geral ministrados por ele, entre 1906-1911,
na Universidade de Genebra. Para Saussure (1989), a língua é um fato social e está inserida
em uma dicotomia que a coloca como algo sistêmico, abstrato e objetivo, em oposição à
fala, que é considerada pelo autor como algo variável para cada falante, concreto e subjetivo
(BRANDÃO, 1998). O objeto de estudo da lingüística seria, então, a língua. Isso, de um
lado, contribuiu para o reconhecimento da importância do “fato social” na lingüística, mas,
de outro, excluiu a fala do campo dos estudos lingüísticos, o que foi considerado por
Pêcheux (1990) como uma limitação daquela dicotomia.
Outra abordagem sobre o tema é oferecida por Bakhtin (1986a; 1986b). Apesar de também
colocar a língua como fato social, o autor a considera como algo concreto, a manifestação
individual de cada falante, com o enunciado composto pela matéria lingüística e pelo
contexto da enunciação (o não-verbal). A palavra, inserida nesse enunciado passa a ser um
17
É uma obra póstuma desenvolvida com a contribuição de Albert Riedlinger, Albert Sechehaye e Charles
Bally a partir de anotações do próprio Saussure e de seus alunos.
139
fragmento da realidade em um papel de signo ideológico (BRANDÃO, 2002). Assim, a
enunciação
18
passa a ser vista como necessária para a compreensão e a explicação da
estrutura semântica de qualquer ato de comunicação verbal.
Pêcheux (1990), ao propor suas idéias sobre a AD, vai ao encontro de contribuições de
Bakhtin (1986a), pois foi o deslocamento da lingüística da dicotomia língua/fala para o foco
no discurso, como elemento de articulação entre a ideologia e os fenômenos lingüísticos,
que criou o campo propício para o desenvolvimento da AD. Segundo Pêcheux (1990), a
dicotomia língua/fala contribuiu para a fonologia, a morfologia e a sintaxe, mas propiciou
pouco avanço para a semântica, pois, ao tratar a linguagem apenas como percurso interno,
essa dicotomia excluiu a semântica de caráter discursivo (BRANDÃO, 1998). Portanto,
Pêcheux (1990) destaca a necessidade de se pensar um caminho para estudar os diferentes
sentidos que as palavras podem assumir de acordo com os posicionamentos daqueles que as
utilizam. Sua proposta volta-se para algo além das limitações da lingüística, mas que parte
dos avanços nas dimensões mais autônomas por ela propiciadas, considerando, em conjunto,
os processos discursivos como elo entre as condições socioistóricas e as significações do
texto.
Nessas bases, desenvolveu-se AD, compondo o que Maingueneau (1997, p. 21) destaca
como “primeira fase da AD”, que foi dos fins da década de 1960 até início da década de
1970, e “[...] procurava essencialmente colocar em evidência as particularidades de
18
Benveniste (1989) define a enunciação como um ato individual no qual a língua é colocada em
funcionamento, mas não envolve um único enunciador, pois a interação prevalece.
140
formações discursivas (o discurso comunista, socialista, etc.) consideradas como espaços
relativamente auto-suficientes, apreendidos a partir de seu vocabulário”.
No princípio dos anos de 1980, as bases teóricas da AD foram fragmentadas, compondo
“[...] um conjunto de pesquisas em análise do discurso que, sem pertencer a uma mesma
escola compartilham algumas características [...]” (MAINGUENEAU, 1998, p. 71):
estudam, preferentemente, corpus ‘escritos’, formações discursivas que
apresentam um interesse histórico;
refletem sobre a inscrição do sujeito no seu discurso;
fazem uso das teorias da enunciação lingüística (em particular através dos
autores como Benveniste ou Culioli);
atribuem um papel privilegiado ao interdiscurso.
A despeito de vários estudos substituírem a preocupação com corpus “escritos” pela ênfase
nos textos (que pode ser escrito ou falado), como nesta tese, as demais características
demarcam um caminho para investigar fenômenos diversos, uma maneira para lidar com a
complexidade das significações presentes em diversos locus de interação social, como as
organizações, reconhecendo o processo de produção de sentido em suas articulações e
relações de interesses individuais, grupais e institucionais. A proposição de que a AD faria
frente a essa complexidade justifica-se pelo fato de ela ir além da superficialidade da
interpretação, lidando com seus limites e mecanismos, como componentes do processo de
significação (ORLANDI, 2001).
A AD transcende a simples decodificação de um texto, indo para a dimensão da produção
dos sentidos, na qual o silêncio, o não-dito, produz tanto sentido quanto a narrativa. Isso
141
ocorre, pois o foco da compreensão dos sentidos está na observação das formas de produzi-
los, com base em um contexto histórico e social no qual o discurso é produzido, dando a ele
sentido e, ao mesmo tempo, sendo necessário para sua compreensão (ORLANDI, 2001). A
partir da delimitação oferecida pelo conhecimento das “formações discursivas”
19
(FOUCAULT, 1972), é possível lidar com o nível do interdiscurso, indo além do
intradiscurso. No caso dos estudos organizacionais, a contribuição da AD está na análise dos
discursos que permeiam o cotidiano das organizações, evidenciando contextos e ações a eles
relacionados.
Em uma investigação envolvendo gestores organizacionais de uma empresa de ônibus, Faria
e Linhares (1993) mostraram as potencialidades dos procedimentos da AD no campo dos
estudos organizacionais. Os autores iniciaram a análise destacando as personagens presentes
no discurso e evidenciando que a criação de cada uma delas não é casual, mas uma
estratégia de persuasão discursiva, pois na enunciação os posicionamentos do locutor o
afastam ou aproximam de determinadas personagens. No caso, a transferência de
responsabilidade do locutor para uma das personagens pôde ser identificada como um efeito
de sentido ideológico.
Uma segunda estratégia de persuasão discursiva observada por Faria e Linhares (1993) foi a
relação entre o explícito, competência do locutor, e o implícito, envolvendo a participação
19
Para Foucault (1972, p. 147), “prática discursiva” (“formação discursiva”) é “[...] um conjunto de regras
anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma época dada, e para
uma área social, econômica, geográfica ou lingüística, as condições de exercício da função enunciativa”. Esse
conceito oferece espaço para a compreensão dos processos que produzem a delimitação do que é ou não dito,
concebendo o discurso como um conjunto de práticas discursivas com expressão institucional e enunciativa
(MAINGUENEAU, 1997).
142
do interlocutor, levando-os juntos à construção de um sentido – no caso, uma determinada
imagem organizacional. A terceira estratégia de persuasão discursiva observada foi o
silêncio. A quarta foi a escolha lexical, pois aquilo que não é dito, assim como o vocabulário
escolhido para se dizer algo, cria efeito de sentido. No caso, quando elementos do
vocabulário popular foram substituídos por outros mais técnicos, delineou-se um sentido
que distingue o locutor em relação aos demais indivíduos.
Os efeitos de sentido dessas estratégias de persuasão discursivas evidenciam a relação entre
a sintaxe e a semântica discursiva. Isso é explicado, de acordo com Fiorin (2003), pelo fato
de a sintaxe e a semântica discursiva se inter-relacionarem dentro das estratégias de
persuasão discursiva. A sintaxe, como é o campo da manipulação consciente, é mais
autônoma que a semântica, definida pela formação social. Para fins de análise dos discursos,
as duas são separadas, mas é necessário considerar essa inter-relação para a identificação
dos discursos e das ideologias por eles manifestadas.
Isso fica evidente em um estudo no qual Carrieri e Sarsur (2002) aplicaram a AD para
discutir o tema “empregabilidade” em uma empresa de telefonia. Nesse estudo, novamente,
a AD evidenciou sua aplicação no locus organizacional. Nesse caso, os autores focaram os
seguintes aspectos discursivos: temas, construção das personagens, seleções temática e
lexical, percursos temáticos e figurativos. Partindo deles, exploraram a construção das
significações, as ambigüidades e as contradições do cotidiano organizacional.
Deve-se observar que os estudos de Faria e Linhares (1993) e Carrieri e Sarsur (2002) se
iniciaram pela identificação das estratégias de persuasão discursiva e dos temas delas
oriundos, bem como das figuras associadas aos temas. Isso faz parte do início dos
143
procedimentos da AD, pois o tema equivale a um arranjo discursivo que evidencia a
ideologia, por meio de uma análise que deve ir do mais concreto (intradiscurso) para o
abstrato (interdiscurso), em diferentes níveis, observando-se os esquemas narrativos e a
relação entre quem enuncia e quem interpreta o enunciado (FIORIN, 2003).
Portanto, entre os elementos e os aspectos da sintaxe e da semântica discursiva, os temas
assumem papel central na AD. A partir deles, é possível identificar o discurso e a
correspondente ideologia manifestada no texto, um processo que deve passar pelas seguintes
etapas: a) identificar os principais temas e figuras do texto, buscando as inter-relações
existentes entre eles; b) listar os principais percursos semânticos; c) buscar o(s) elemento(s)
subjacente(s) a cada percurso semântico e, a partir dele(s), a principal oposição subjacente
entre cada percurso semântico ou entre subconjuntos de um mesmo percurso semântico; d)
caracterizar o discurso ou os discursos manifestados no texto; e e) situar o texto em um
espaço e em um campo discursivo.
Essas etapas e as demais contribuições da AD discutidas compõem e evidenciam um
caminho para os pesquisadores interessados em fenômenos que envolvem as organizações,
como ilustrado nos estudos organizacionais apresentados. Nesta tese, essas contribuições,
em conjunto com as da TRS, são assumidas como capazes de viabilizar o alcance do
objetivo apresentado, argumento que se propõe legitimar por meio de uma investigação
empírica detalhada a seguir.
144
5.6.3 A Análise do Conteúdo e a Análise do Discurso na investigação do fazer estratégia
na comercialização de hortifrutícolas no Mercado da Vila Rubim
A partir dos dados coletados, foi possível evidenciar distintas práticas sociais desenvolvidas
pelos sujeitos. Entre si essas práticas guardavam sentidos que, além de permeá-las, eram por
elas disseminados. Como os processos de construção social que norteiam essa disseminação,
ao mesmo tempo, apresentaram-se como responsáveis pela construção de novas ou
renovadas práticas sociais, estas últimas eram contextualizadas nas anteriores e naqueles
sentidos. Uma inserção com duplas conseqüências, as novas ou renovadas práticas assumem
um espaço do qual podem disseminar e ou perverter aqueles sentidos e práticas anteriores,
bem como as intenções daqueles que antes as articulavam em seu cotidiano. Esse
entendimento é oriundo da análise conjunta do que foi alcançado por meio das respostas dos
sujeitos de pesquisa entrevistados e das observações do pesquisador no locus do estudo.
A AD das falas dos respondentes indicou um grande percurso semântico – nesta
investigação identificado como o percurso semântico do trabalho no comércio da Vila
Rubim – subdividido em três subconjuntos: a) das implicações sobre o trabalho na Vila
Rubim; b) das reações às implicações sobre o trabalho; e c) dos resultados do trabalho.
Cada um deles foi composto por uma série de temas centrais nos discursos:
Subconjunto das implicações sobre o trabalho na Vila Rubim – Temas centrais: o
incêndio; as mudanças concorrenciais; as limitações nas dimensões espaciais; a
segurança; a necessidade de recursos; o caráter dos comerciantes; a atuação das
instituições públicas; as relações familiares; as relações entre os comerciantes; e a
vida privada;
145
Subconjunto das reações às implicações sobre o trabalho – Temas centrais:
aproveitar as oportunidades do incêndio; ampliar o local de trabalho; sobreviver em
espaços reduzidos; unir os comerciantes; aguardar a iniciativa das instituições
públicas; articular o usufruto sobre o que é público; o saber negociar; as articulações
para a sobrevivência da familiar; a busca por uma vida regrada; e articulações sobre
o proibido;
Subconjunto dos resultados do trabalho – Temas centrais: o crescimento; o viver
bem; a sobrevivência; a perda de tudo; e usufruir do que é público.
No caso da Análise do Conteúdo os temas identificados para organizar os dados referentes
às anotações de campo do pesquisador se aproximaram dos expostos pela AD, mas, como já
exposto, não se optou por categorias definidas a priori. A proximidade se deve ao fato de o
caso, o esquema conceitual e o pesquisador serem os mesmos. Como apenas as técnicas de
coleta e de tratamento de dados são distintas, é esperada certa aproximação no processo de
análise. As categorias aplicadas na Análise de Conteúdo foram obtidas do confronto dos
temas recortados das notas de campo, como padrões de palavras, frases, idéias e tópicos de
interesse (BOGDAN; BIKLEN, 1994), identificados nas releituras dessas notas e do
referencial teórico adotado. Ao final desse processo, foram adotadas 17 categorias para o
tratamento das notas de campo: convívio entre pobreza e riqueza; mudanças do incêndio;
mudanças concorrenciais; a CEASA e a arte de comprar hortifrutícolas; venda de
hortifrutícolas; violência; ingerência pública; família; comerciantes; clientes; funcionários;
fracasso; sobreviver; trabalhar para crescer; articulações sobre o proibido; articulações sobre
o que é público; e continuidade do comércio. A despeito de se buscar categorias que não se
146
sobreponham, como esclarecem Bogdan e Biklen (1994), há espaço para certa inter-relação
entre as categorias, como se pode observar nas aqui adotadas.
A análise do discurso das entrevistas e a análise do conteúdo das notas de campo foram
tratadas de maneira complementar na investigação em questão. A primeira permitiu um
corte longitudinal, ao tratar das histórias de vida dos respondentes do primeiro contato com
a Vila Rubim até a atualidade. A segunda situa-se em um corte transversal, pois, apesar de
incluir manifestações associadas a construções sociais anteriores, inseridas na dimensão
história, apresenta-as já rebatidas em inserções contextuais da atualidade, característica das
evidências obtidas das observações dos informantes durante a investigação em questão. Esse
corte transversal aproximou o pesquisador das práticas sociais do momento e da
possibilidade de contextualizá-las e interpretá-las com os sujeitos de pesquisa em suas
construções anteriores, na medida em que se inseriu em seu grupo social. Já o corte
longitudinal possibilitou a reconstrução, mesmo parcial, dos elementos e processos
históricos associados a essas contextualizações atuais.
Segundo esse entendimento, as evidências obtidas em ambos os cortes são tratadas de
maneira complementar e apresentadas de maneira conjunta na análise a seguir. Isso permitiu
alcançar práticas sociais articuladas no cotidiano da comercialização de hortifrutícolas no
Mercado da Vila Rubim, bem como os sentidos que as envolvem no fazer estratégia nas
organizações inseridas no locus em estudo.
Os sentidos giraram em torno de duas thematas identificadas na análise:
o terno família/sobrevivência/trabalho; e
147
a díade público/ privado
Em torno delas, identificou-se a ancoragem de três representações sociais dos sujeitos de
pesquisa, identificadas nesta tese da seguinte maneira:
1. representação social do comerciante da Vila Rubim como um homem devotado ao
trabalho;
2. representação social da Vila Rubim como um lugar de tradição no comércio na
Grande Vitória; e
3. representação social das mudanças no mercado da Vila Rubim como conseqüência
dos eventos do dia-a-dia rebatidos em demandas do e sobre o Estado e o
comerciante.
A demarcação dessas representações se deu a partir de gêneros comunicativos que
dependeram dos locutores e das situações nas quais se inseriram. Ou seja, depende do
sujeito ou sujeitos de pesquisa em contato com o pesquisador, na medida em que ele assume
o papel de alocutário, durante as entrevistas e observações, acompanhando as situações
cotidianas dos sujeitos de pesquisa. A base da identificação desses gêneros foi a análise dos
contextos de produção dos discursos, o que envolve as posições dos locutores no discurso e
na sociedade, indicadas nas histórias de vida que eles próprios apresentaram e nas menções
de outros sujeitos sobre essas histórias. Aqui entram a aprendizagem formal (na escola, em
cursos...) e informal ao longo da vida, as atividades que desenvolveu, os resultados obtidos,
os grupos sociais dos quais se aproximou; enfim, suas construções sociais ao longo do
148
tempo. A partir dessas construções observadas na Vila Rubim, identificaram-se seis
gêneros comunicativos:
1 Gênero das conversas coloquiais no mercado da Vila Rubim. Nele, as locuções
foram permeadas por brincadeiras ou respostas simplistas e exageradas, presentes
durante as observações realizadas pelo pesquisador. Como no caso de brincadeiras
sobre um vizinho que “bebeu todas” na noite anterior, que servia para reforçar e
explicar o fato de ele ter aberto a barraca mais tarde do que os outros. Ou a
afirmação de um de que vai matar o outro, pois ele pagou uma bebida para uma
prostituta, que acabou roubando o celular que o primeiro havia emprestado ao
segundo. Sem que isso nem mesmo se transformasse em uma briga. Apesar de o
primeiro estar nervoso, os outros em volta riam, e ficou “tudo por isso mesmo”,
como eles diriam nesse gênero permeado por expressões coloquiais.
2 Gênero da entrevista ou do atendimento formal. Alguns respondentes, ao serem
entrevistados, assumiram uma veiculação diferente à da observada em seu cotidiano
das conversas coloquiais. Eles apresentaram respostas objetivas, em alguns casos
apenas “sim”, “não” ou “não sei”, afirmando ainda não saber o que dizer quando a
pergunta era pouco específica. Caso ela fosse refeita de maneira mais específica, era
então respondida de maneira objetiva. Este gênero também foi observado no contato
com os caixas e demais funcionários do supermercado. Mas, nesse último caso, tal
gênero era substituído pelo das conversas coloquiais, à medida que o pesquisador
passava a ser “conhecido” pelo funcionário.
149
3 Gênero da discussão técnica. Determinados respondentes assumiam um discurso
técnico ao serem entrevistados, principalmente em relação ao marketing, com foco
no atendimento ao cliente. O discurso se volta para técnicas específicas de como
proceder no dia-a-dia que, supostamente, eles adotavam. Um exemplo é o
detalhamento de um respondente que indicava até a maneira correta de olhar o
cliente para não constrangê-lo. Os próprios respondentes que apresentaram esse
gênero em suas elocuções afirmaram ter participado de treinamentos com
especialistas, patrocinados pela Associação de Comerciantes da Vila Rubim
(ACVR), e que haviam aprendido muito com eles. A despeito de o discurso ser
convergente com esse treinamento especializado, deve ficar claro que as práticas
observadas não apresentaram essa mesma convergência. Ainda neste gênero
comunicativo, enquadram-se manifestações de comerciantes com maior infra-
estrutura, associados a redes com muitas lojas e que possuem a seu dispor
consultores e pesquisas de mercado, ambos devidamente citados nas entrevistas. O
último grupo com discursos aqui enquadrados considera aqueles que vendem
produtos com fins medicinais, desde ervas a garrafadas (espécie de medicamento
líquido, artesanal, feito a partir de um conjunto de ervas em uma garrafa com vinho).
Eles citam doenças ou partes do corpo, algumas vezes pelo termo científico, bem
como citam cursos que realizaram, médicos e programas de TV, mostram rótulos e
livros, sempre buscando uma conotação técnica quando o assunto, de alguma
maneira, direciona-se para a questão dos produtos que eles comercializam.
4 Gênero do processo de vendas comedido no mercado da Vila Rubim. Enquanto o
gênero anterior veicula discursos em processos de vendas específicos, associados a
produtos medicinais, com ênfase no conhecimento técnico, este gênero surge em
150
praticamente todos os processos de venda, apoiado na ênfase do conhecimento
popular. Ele foi observado quando o pesquisador entrou em contato direto com o
proprietário ou um funcionário das lojas, dos chamados “tabuleiros”, das barracas, da
peixaria ou de qualquer outro comércio. Ele só não foi observado nas lojas maiores,
onde existe a lógica de auto-serviço, na qual o cliente se serve e vai para o caixa,
caso dos supermercados no Mercado. Este gênero é marcado por histórias sempre
prontas para justificar as características dos produtos e ancorá-las em concepções
positivas. Na observação participante, aprendeu-se, por exemplo, que: batatas
pequenas “são mais gostosa para fritar”; tomates pequenos “dão mais sabor para a
moqueca”; as bananas estão mais maduras (em alguns casos, quase estragando), pois
“não levam química, são naturais”; o coco amarelo, bem velho, “tem pouca água,
mas é mais doce”. Enfim, há um repertório para justificar quaisquer características
que possam parecer estranhas aos olhos do cliente. Em paralelo a esse foco e
complementar e ele, há o das experiências dos outros clientes (muitas vezes amigos
que confirmam tudo), por exemplo, ao oferecerem uma garrafada: “Esta garrafada,
seu Zé [o senhor ao lado dele], tomou e ficou bom do fígado. Ele até voltou a beber”.
5 Gênero do processo de vendas expansivo no mercado da Vila Rubim. Algumas
vezes, o gênero anterior só se desenvolve após este, que não se apresenta em todo o
Mercado, sendo predominante nos tabuleiros, na peixaria e, com menor intensidade,
nas barracas. Aqui os proprietários e funcionários gritam para atrair os clientes.
Basta que alguém passe na calçada. Mesmo se outra pessoa está sendo atendida, há
uma breve interrupção no atendimento e se dirige ao outro que passa: “Vai um
tempero aí?”; “Já comprou o tempero pra moqueca?”; “O senhor vai levar o que
hoje?”; “Está tudo fresquinho, pode chegar”, entre outras chamadas. Quando o
151
cliente se aproxima, a veiculação por meio do gênero do processo de vendas
comedido se inicia, articulando a venda.
6 Gênero da burocracia pública. Esse gênero refere-se às veiculações de discursos nos
documentos das instituições públicas que faziam referência ao Mercado, obtidos no
Arquivo Público Municipal e no Arquivo Público Estadual. Esse último gênero não
estava presente no cotidiano do Mercado, mas deve ser considerado, na medida em
que os documentos mencionados estão incluídos na análise. É marcado por uma
terminologia formal, em que as solicitações, despachos, aprovações, reprovações,
prestações de conta e planejamentos seguem procedimentos formalmente
predefinidos de acordo com os órgãos públicos envolvidos. Incluem, em alguns
casos, planilhas, fotos e mapas, além de textos elaborados por funcionários públicos
no exercício de suas funções e por pessoas articulando seus interesses no Mercado da
Vila Rubim relacionados com essas instituições públicas.
Esses gêneros comunicativos foram aqui destacados pois os sujeitos os articulam em seus
discursos. Portanto, na análise, o pesquisador sempre os considerou. Entretanto, existem
construções explícitas que nem sempre exigem destacar na análise aspectos específicos do
gênero comunicativo em jogo para sua compreensão. Nesse sentido, para evitar a repetição
desnecessária de qual gênero comunicativo está sendo articulado a cada fragmento, apenas
em algumas partes da análise apresentada ele é destacado, pois entendeu-se que a
compreensão da construção discursiva em questão exige isso.
Os gêneros comunicativos destacados contribuíram para a demarcação dos conjuntos de
representações sociais mencionados, na medida em que permitem contextualizar os temas
152
manifestados pelos respondentes. Dessa maneira, aquelas thematas e as representações
sociais nelas ancoradas ganham diferentes contornos ao se observar as veiculações distintas.
Isso pode ser ilustrado ao se observar a themata caracterizada pelo terno
“família/trabalho/sobrevivência”, presente nos três conjuntos de representações sociais. No
gênero comunicativo da discussão técnica, o tema da família só é mencionado para indicar
outro tema, o de que um dos membros familiares está se aperfeiçoando ou se aperfeiçoou,
como a menção de que o proprietário 17 faz a seu filho, afirmando que ele cursa
Administração na faculdade, ao falar sobre marketing e que essa formação ofereceria uma
visão melhor para o filho, hoje ajudando na gestão da loja. Diante dessa manifestação
limitada sobre a família, poderia se considerar que ela só está associada ao sucesso na
comercialização se os seus membros se aperfeiçoassem. Mas essa última constatação deve
ser excluída por ser uma inferência que está ignorando a inserção do discurso do
respondente no gênero comunicativo da discussão técnica, e não no contexto mais amplo da
representação social ancorada na themata família/trabalho/sobrevivência, que extrapola um
gênero específico.
Em relação à ilustração em questão, ao se reconhecer que o gênero das conversas coloquiais
no Mercado da Vila Rubim também se faz presente veiculando representações sociais
relacionadas com o tema da família e do sucesso, é possível observar que o sucesso é
representado socialmente associado ao tema da possibilidade de propiciar à família uma
“especialização” – no caso, o estudo aos filhos – que, muitas vezes, os pais não tiveram.
Portanto, o sucesso não é, necessariamente, algo que será alcançado por meio dessa
“especialização” aplicada no comércio. A possibilidade de oferecer a “especialização” à
família, em si, já representa o sucesso para muitos sujeitos de pesquisa engajados na
comercialização dos hortifrutícolas. Essa ilustração revela o potencial de as representações
153
sociais demarcarem espaços. No caso, a prática social de incentivar o estudo dos filhos
posiciona-se no lugar de um próprio e insere-se na estratégia cotidiana dos comerciantes, em
um lugar de poder privilegiado do qual se calcula o resultado daquela prática. Portanto, ao
identificar os três conjuntos de representações sociais apresentados, está-se evidenciando as
demarcações do lugar do próprio, em ordens estabelecidas na comercialização de
hortifrutícolas no Mercado da Vila Rubim.
Dessa maneira, ao mesmo tempo em que os lugares da ordem estabelecida das estratégias
cotidianas se revelam, também se evidenciam os espaços de transgressão, das táticas
cotidianas oriundas da bricolagem de sujeitos que pervertem aqueles lugares, uma perversão
que se legitima justamente naquilo que está sendo pervertido, pois apresenta práticas sociais
diferentes, mas imbricadas com as do próprio. Ou seja, o sujeito, na bricolagem, entra em
dissonância com as representações sociais dos grupos de sujeitos nos quais se insere, mas
não abandona nem entra em divergência com todas as articulações sociais relacionadas com
essas representações sociais, pois uma parte é sua matéria-prima ratificada pelo grupo
social.
Do ponto de vista da operacionalização da análise, deve ficar claro que qualquer prática
pode ser estratégia cotidiana, tática cotidiana ou nenhuma das duas. A inserção como
estratégia ou tática cotidiana diz respeito apenas aos contextos em que se insere o grupo em
questão e que são assumidos como referência, para expor relações nas construções sociais
dos sujeitos. Ou seja, aquilo que para um grupo é tática cotidiana para outro grupo poder ser
estratégia cotidiana, e essa construção diz respeito à maneira como os grupos se articulam
em determinadas construções sociais anteriores. No caso desta tese, essas construções
anteriores foram delimitadas às representações sociais dos grupos de sujeitos pesquisados.
154
Nesse sentido, não se quer apenas identificar o que é estratégia ou tática cotidiana, pois isso
não tem um sentido em si mesmo. A intenção é usar essa distinção para compreender como
as práticas se posicionam em relação a determinadas inserções contextuais. A identificação
da inserção na estratégia ou tática cotidianas é apenas uma maneira de se viabilizar essa
análise e expor as relações contextuais.
Essa complexa construção envolve o processo de fazer estratégia nas organizações e foi
evidenciada nesta tese a partir de figuras e temas identificados nas observações de campo e
nas entrevistas. As categorias da análise do conteúdo e os percursos semânticos
identificados pela AD permitiram chegar a esses elementos que serão discutidos a seguir, já
apresentados em suas articulações com as práticas sociais, representações sociais,
estratégias e táticas cotidianas, no fazer estratégia nas organizações no locus em estudo. A
opção por apresentá-los já em suas inserções no fazer estratégia se deve ao entendimento de
que a apresentação isolada da análise do conteúdo e do discurso, como se tivessem um fim
em si mesmo, tende à repetição de aspectos redundantes e a uma longa discussão descolada
do objetivo proposto nesta tese.
Com base no exposto, a organização da discussão sobre a estratégia dos comerciantes de
hortifrutícolas como prática social é norteada não por percursos semânticos, subconjuntos
ou categorias da análise do conteúdo, mas por construções desenvolvidas pelos sujeitos no
sentido de oferecer sentido a algo supostamente desconhecido, sem uma explicação única e
clara. Com base na TRS, entende-se que, ao construir esses sentidos, é em torno deles que
os sujeitos articulam suas práticas sociais. Portanto, aqui, parte-se dos desconhecidos
confrontados nessas construções de sentido, nas representações sociais, para se chegar às
práticas sociais em suas inserções contextuais e nos fluxos de práticas inseridos em
155
contextos organizacionais específicos e sociais mais amplos (as estratégias e táticas
cotidianas nas organizações). Nesse sentido, a discussão girou em torno de três questões do
“desconhecido”, evidenciadas, como tal, no cotidiano dos sujeitos de pesquisa: Por que o
mercado muda? O que sustenta a tradição de comprar no mercado da Vila Rubim? Quem é
o comerciante da Vila Rubim?
A análise do conteúdo e a análise do discurso, bem como os percursos semânticos, os temas
e as figuras referem-se apenas às técnicas adotadas para viabilizar um caminho capaz de
expor esse desconhecido e investigar as construções em torno dele. Portanto, a discussão foi
articulada a partir daqueles três questionamentos e das representações sociais a eles
associados, o que inclui as faces dessas representações. Esses elementos no texto estão
grafados em negrito, para destacar as referências contextuais adotadas, necessárias à
exposição do processo de construção de práticas e sentidos em torno de determinado
desconhecido. É a partir dessas referências que as figuras e os temas são articulados no
texto, para expor o referido processo de construção social. Portanto, também cabe destacar e
diferenciar os temas e as figuras, o que foi realizado por meio da grafia em itálico no texto
da análise.
Nos contatos durante as observações e as entrevistas, surgiram temas e figuras que
revelaram construções que lidam, no cotidiano, com uma série de aspectos relacionados com
cada uma daquelas questões. Tais aspectos fazem parte do óbvio para os sujeitos inseridos
nesse cotidiano, suas teorias do senso comum. Portanto, na análise dos dados, partiu-se
deles para desenvolver a abordagem dialógica, na qual a redundância de temas impera em
conjunto com o dialogismo. Quando em seu discurso o sujeito remete a uma outra
construção, ele não abandona a anterior; ele a retoma, em uma redundância que viabiliza
156
uma abordagem que busca lidar com o dialogismo. O reconhecimento deste processo levou
esta tese a um afastamento da tentação funcionalista de simplificar o trabalho de pesquisa e
os discursos, cortando esse último em fragmentos isolados, cada um com sua categoria
limpa e independente.
Assume-se aqui que a categorização está no cotidiano de todos, no uso das palavras, dos
gestos, das significações. Portanto, não se pode negar que nesta tese há processos de
categorização, o que se quer é um afastamento da visão na qual existiriam categorias
independentes. Ou seja, além de a categorização permear as vidas das pessoas, nenhuma
categoria é independe das demais. Quando assume, mesmo parcialmente, a existência de
uma categoria independente, o pesquisador está apenas optando por perder as
interdependências para viabilizar seu estudo, de acordo com os recursos disponíveis e as
posições adotadas. Nesta tese, não se tem a pretensão de alcançar todas as interdependências
existentes em qualquer fenômeno social, mas parte-se do reconhecimento dessa
impossibilidade para confrontá-la em parte. Por isso mesmo, o pesquisador opta por dar
espaço aos sujeitos, para que as limitações do primeiro possam ser parcialmente trabalhadas
em conjunto com os segundos, numa construção que insere ambos em parte daquelas
interdependências, revelando-as para o iniciado.
Os destaque dado à redundância dos temas, repetidos ao longo da análise, faz parte da
tentativa de revelar essa construção, da qual se fez parte e na qual aquilo que é redundante
deixa de ser percebido como tal quando passa a fazer parte do cotidiano, e nem é visto mais,
pois de redundante passa a invisível. Repetidas uma ou mil vezes, explícita ou
implicitamente, muitas das construções manifestadas passam despercebidas no cotidiano de
sua reprodução. Ao desconhecer esse cotidiano, no qual buscou se inserir e sobre o qual
157
indagou aos sujeitos que o constroem, o pesquisador assumiu a postura na qual as
interdependências seriam reconhecidas na análise. Para isso, baseou-se no âmbito das
delimitações e redundâncias apresentadas pelos sujeitos, estes, por sua vez, delimitados pelo
pesquisador como os comerciantes de produtos hortifrutícolas no Mercado da Vila Rubim e
às pessoas que, segundo eles próprios, relacionaram-se e se relacionam com eles no
cotidiano de trabalho. Limite suficiente para viabilizar a investigação proposta.
A partir dessa delimitação inicial, a abordagem aqui defendida foi assumida como adequada
para se lidar com o problema da distância relacional (WILSON, JAZARBKOWSKI, 2004),
pois dá ao sujeito espaço para expressar os cortes microssociais e macrossociais na coleta de
dados, a partir de suas representações sociais. A análise a seguir busca evidenciar esses
cortes e aquelas interdependências, todos construídos e expostos pelos sujeitos, partindo das
questões supostamente desconhecidas, que para eles são familiares em suas diversas faces.
Deve-se destacar o fato de as inserções contextuais expostas na análise incluírem
fragmentos discursivos e observações do pesquisador referentes a sujeitos de pesquisa que
nunca atuaram comercializando produtos hortifrutícolas. Isso se justifica pelo fato de eles se
relacionarem com esse grupo e, portanto, estarem envolvidos na construção de suas práticas
sociais, considerada a unidade (assumida como pluralidade) de análise adequada para o
estudo em questão.
5.7 Limitações do método
Ao considerar as limitações do método adotado, deve-se destacar a limitação da abrangência
de um estudo de caso. As generalizações de conclusões provenientes de dados qualitativos
levantados em uma organização são de responsabilidade dos investigadores futuros,
158
levando-se em conta que, para Yin (2001, p. 29), os estudos de caso “[...] são generalizáveis
a proposições teóricas, e não a populações e universos”. Ou seja, a generalização é analítica.
Além disso, no tocante às técnicas de observação, uma participação mais extensa, sem se
limitar àquela como cliente, tenderia a oferecer dados mais aprofundados, a partir de um
maior envolvimento do pesquisador no contexto dos sujeitos de pesquisa. Entretanto, em
virtude dos obstáculos para assumir o papel do comerciante e dos funcionários em seu
cotidiano, a alternativa foi assumir outras modalidades de observação e reconhecer o
distanciamento referente à menor participação no cotidiano.
O último aspecto a se destacar foi a dificuldade de obter dados longitudinais por meio da
observação. Em virtude disso, quando a análise se volta para as construções anteriores,
ocorre uma concentração nos dados oriundos das entrevistas, além da impossibilidade,
nesses casos, de confrontar os dados das entrevistas com os provenientes das observações.
159
6 O MERCADO DA VILA RUBIM
6.1 A história
O bairro da Vila Rubim, situado na cidade de Vitória, capital do Estado do Espírito Santo,
data do início do século XX, quando era chamado de “Cidade de Palha”. O nome deve-se à
condição de pobreza do lugar, habitado pelos imigrantes do interior do Espírito Santo e de
outros estados (PREFEITURA DE VITÓRIA, 2006). Aos poucos, o bairro desenvolveu-se,
tornando-se reconhecido como um lugar de passagem e comércio dos que se deslocavam do
continente para a ilha principal do arquipélago que compõe a cidade, servindo de
atracadouro para embarcações que traziam produtos do interior (BOTELHO, 2005).
Como explica Canal (2006), no final da década de 1920, parte do então Mercado Municipal,
o Mercado da Capixaba, transferiu-se para esse local, criando-se o Mercado da Vila Rubim,
inaugurado em 1928. No pavimento superior, ficavam sua administração e cerca de 20
mercearias; no térreo, o comércio de hortigranjeiros e açougues; e nos fundos, um
atracadouro, que, mais tarde, deixou de existir, em virtude de um aterro que possibilitou a
expansão do Mercado. A movimentação de mercadoria por meio de embarcações na região
do mercado pode ser observada na Figura 4.
160
Figura 4 – Desembarque de mercadorias na região do Mercado da Vila Rubim no início do século XX
Fonte: arquivo público municipal
Na Figura 4, é possível evidenciar ainda a extensão dos aterros que permitiram expansões
posteriores do Mercado. Toda a área apresentada foi aterrada, inclusive a que fica abaixo da
ponte que aparece no canto esquerdo, conhecida atualmente como Ponte Seca. Vêem-se,
ainda, as imediações do entorno do prédio do antigo Mercado, na qual se desenvolveu a
comercialização de produtos diversos, em barracas de madeira descritas como precárias por
vários respondentes. Alguns afirmaram que era possível ver a maré subindo de dentro das
barracas, através das frestas das tábuas, até quase atingir as mercadorias. Uma prática
comum era a construção de palafitas elevadas em relação à maré alta, como se vê no canto
direito da figura. Ao longo dos anos, essa área nas imediações do Mercado desenvolveu
uma atividade comercial com grande movimentação de pessoas. Segundo os sujeitos de
pesquisa, em virtude das constantes confusões que ocorriam na área específica das barracas
161
ela passou a ser chamada de Coréia, uma analogia com a Guerra da Coréia, ocorrida no
início da década de 1950.
Em 1969, os comerciantes que trabalhavam com produtos hortifrutigranjeiros foram
transferidos para três galpões próximos ao antigo prédio do Mercado. Esses galpões eram de
propriedade do governo do Estado, os quais foram transferidos para a Prefeitura, por
comodato. Para lá foram aqueles que comercializavam hortifrutigranjeiros no térreo e nas
proximidades do prédio. Os comerciantes que trabalhavam no prédio com outros produtos
receberam a doação da área em volta dos três galpões para que financiassem a construção de
suas lojas, o que foi feito, e eles se transferiram para lá na década de 1970. Isso permitiu a
demolição do antigo prédio e a construção de uma praça em seu lugar, a Praça Manoel
Rosindo. Deve-se destacar que desde então, formalmente, apenas os três galpões passaram a
ser chamados de Mercado da Vila Rubim, como consta nos endereços e documentos da
Prefeitura. Mas, para as pessoas que trabalham e circulam entre os outros galpões e a Praça
Manoel Rosindo, toda a área faz parte do Mercado da Vila Rubim, construção social
assumida nesta tese para delimitar a área do mercado. No mapa apresentado na Figura 3,
essa área corresponde à parte sombreada, aproximadamente uma circunferência com cerca
de 200 metros de diâmetro.
Em relação à Praça Manoel Rosindo, é preciso explicar sua atual inserção no Mercado.
Segundo os respondentes, após a demolição do antigo mercado, a Praça foi tomada por
mendigos, os quais foram expulsos por ambulantes, que instalaram lá suas barracas, fazendo
com que a Praça Manoel Rosindo seja conhecida como a “Praça da Feirinha”. A Figura 5
revela a ocupação desordenada da praça, com as pessoas aguardando os ônibus em pontos
bem próximos das barracas de produtos hortifrutícolas, que, então, predominavam.
162
Figura 5 – Praça Manoel Rosindo ocupada pelos barraqueiros
Fonte – Associação dos Barraqueiros da Vila Rubim
Havia grande distância entre as mudanças que a Prefeitura planejava para o Mercado e o que
as pessoas construíam. Essa distância não se restringe à praça, no planejamento inicial dos
três galpões, de fins da década de 1960, cada um dos 100 boxes deveria ser ocupado por um
pequeno comerciante de produtos hortifrutigranjeiros. Entretanto, vários comerciantes
adquiriram mais de um boxe e passaram a comercializar produtos diversos, como roupas,
artesanato, produtos medicinais e religiosos, não apenas hortifrutigranjeiros.
Durante esse processo, a Vila Rubim, que até então fazia o papel de abastecer a cidade de
alimentos, foi aos poucos dividindo esse papel como outras regiões. O atacado de produtos
hortifrutigranjeiros que era realizado lá passou para o município de Cariacica, sob a
administração da Centrais de Abastecimento do Espírito Santo (CEASA/ES), em 1974. No
163
início da década de 1980 a CEASA também buscou administrar o varejo de
hortifrutigranjeiros e, nesse sentido, assumiu da prefeitura a administração dos galpões da
Vila Rubim. Mas, em meados de 1980, afastou-se, entregando a gestão para a Associação
dos Usuários do Mercado da Vila Rubim, criada para esse fim pelos próprios comerciantes e
que, mais tarde, se transformaria na Associação dos Comerciantes da Vila Rubim (ACVR),
incluindo todos os comerciantes da região.
Naquela época, além de a CEASA ocupar o papel de atuação no atacado de hortifrutícolas,
nas vendas a varejo o papel do Mercado da Vila Rubim passou a ser dividido com os
“Kilões” e supermercados, criados em diversos bairros e municípios vizinhos, oferecendo os
principais produtos encontrados no Mercado da Vila Rubim. Conforme os respondentes, a
partir de então, embora mantivesse certa movimentação, o Mercado já evidenciava seu
declínio. Em julho de 1994, um incêndio de grandes proporções destruiu parte do Mercado.
Além de várias lojas construídas para abrigar os comerciantes do antigo mercado, dois dos
três galpões inicialmente voltados para o comércio de hortifrutigranjeiros foram quase
totalmente destruídos, como se observa nas Figuras 6 e 7.
164
Figura 6 – Início do incêndio no Mercado da Vila Rubim
Fonte: Comerciante Jair da Vitória
Figura 7 – Mercado da Vila Rubim após a explosão durante o incêndio
Fonte: comerciante Jair da Vitória
165
As duas figuras permitem entender o motivo de alguns respondentes se referirem ao
incêndio como “a explosão”. A Figura 6 mostra o início do incêndio, uma coluna de fumaça
que sobe das janelas onde ficava um galpão ocupado inicialmente pelos comerciantes do
antigo mercado. Logo em frente às janelas estão três longos telhados, um de cada galpão
inicialmente ocupado por comerciantes de hortifrutigranjeiros. Na Figura 7, observa-se o
que ocorreu após uma grande explosão dos fogos armazenados no local, quando metade das
janelas e das lojas desapareceu, em conjunto com boa parte de dois dos galpões.
Os lojistas que perderam seus comércios nos galpões foram transferidos para barracas
construídas pelo Poder Público, localizadas na Avenida Nair Azevedo Silva (Figura 3), em
uma área próxima do Mercado, cerca de 200 metros. Mas em poucos meses, segundo os
respondentes, devido ao isolamento da área e ao baixo movimento de pessoas, eles
retornaram para a parte destruída e lá construíram suas barracas, onde permaneceram
trabalhando de maneira improvisada, como se observa na Figura 8.
Figura 8 – Barracas improvisadas dos lojistas em torno dos galpões destruídos
Fonte: ACVR
166
Ao centro da Figura 8 está a área antes ocupada pelos galpões 2 e 3. Em torno da área, estão
as barracas improvisadas dos lojistas. À direita, ainda dentro do terreno, vê-se uma
cobertura. Lá está a única loja de dentro do galpão 3, que permaneceu funcionando, mesmo
após o incêndio. Esse é o Supermercado A, que comercializava produtos hortifrutigranjeiros
e continua no ramo até hoje, mas agora do outro lado da rua, não mais nos galpões.
Após os lojistas terem ocupado a área em torno de onde ficavam os galpões destruídos, a
prefeitura fez um acordo, comprometendo-se a reconstruir os galpões. Enquanto isso, os
comerciantes passariam a trabalhar em barracas de madeira construídas pela prefeitura em
frente ao Mercado. A Figura 3 mostra a posição dessas barracas no Mercado da Vila Rubim
e a Figura 9 mostra como eram essas barracas ocupadas pelos antigos lojistas.
Figura 9 – Barracas construídas pela prefeitura em frente aos galpões destruídos
Fonte: ACVR
Os lojistas acabaram por permanecer nessas barracas durante vários anos. Quando retomou
os planos para a reconstrução do Mercado, a Prefeitura incluiu a demolição da loja do
167
Supermercado A. Iniciou-se, então, um embate com o proprietário da loja, só resolvido
quando ele adquiriu o espaço das lojas destruídas em frente ao galpão e lá construiu uma
nova loja, retirando-se dos galpões. Esse conflito, agravado pelas discussões entre os
governos estadual, municipal e a ACVR, resultou em um processo judicial que durou até
2002. Resolvidos os impasses a Prefeitura terminou a reconstrução dos dois galpões, de
acordo com um plano no qual constava a redefinição das atividades do Mercado,
direcionando-as para o turismo (BOTELHO, 2005), desde então, nos Galpões, o artesanato
passou a predominar. As Figuras 10 e 11 mostram as novas instalações, que incluem 38
lojas e um mezanino, onde podem ser realizados shows.
Figura 10 – Interior dos galpões reconstruídos pela prefeitura
Fonte: ACVR
168
Figura 11 – Parte externa dos galpões reconstruídos pela prefeitura
Fonte: ACVR
As Figuras 10 e 11 mostram que as novas instalações deram aos galpões o perfil de um
pequeno centro comercial urbano, com espaço e poucas lojas, haja vista que as 200 bancas
que ocupavam os dois galpões agora são 38 lojas com tamanhos diversos.
Após a transferência dos lojistas das barracas para as lojas nos galpões, das quais são
permissionários,
20
as antigas barracas foram preparadas pela Prefeitura e ocupadas pelos
barraqueiros da Praça Manoel Rosindo (Figura 3). Eles aceitaram a transferência sob a
promessa de que a praça seria reformada, com a inclusão de pequenas lojas de alvenaria
para eles. Na Figura 11, fica clara a posição das barracas em relação aos galpões novos, pois
20
Segundo a ACVR, o enquadramento legal dos comerciantes que ocupam os galpões ainda não está claro em
relação à Prefeitura. A Prefeitura construiu os novos galpões, e reconhece o direito dos comerciantes sobre as
lojas, mas não a propriedade. Entretanto, a propriedade anterior à reconstrução não era da Prefeitura, nem dos
comerciantes. Esses últimos ocupavam as lojas há muitos anos, sem contratos específicos com o Estado, o que,
para eles, do ponto de vista jurídico, contribuiria para a obtenção do reconhecimento da propriedade.
169
os telhados das barracas podem ser vistos bem em frente aos galpões, na parte inferior
direita da figura. Na Figura 12, é possível ver a disposição dos hortifrutícolas em uma
barraca com a frente voltada para a Rua Pedro Nolasco.
Figura 12 – Disposição dos hortifrutícolas em uma barraca
Fonte – Associação dos Barraqueiros da Vila Rubim
Na Figura 12, observa-se um balcão com hortifrutícolas e abaixo dele várias caixas. Essas
caixas, comumente, são utilizadas como uma extensão do balcão, ocupando parte da
calçada, mesmo sendo algo proibido pela prefeitura. A figura mostra que as pessoas que
passavam de carro ou de ônibus na rua em frente às barracas de madeira, não tinham como
ver o resultado das reformas dos galpões do Mercado. Isso rendeu comentários de
respondentes que afirmavam que a Vila Rubim, depois de anos, voltou ao passado, ao tempo
170
das barracas de madeira do início até meados do século XX. Essa posição das barracas em
relação à rua principal pode ser observada na Figura 13.
Figura 13 – Disposição das barracas e produtos comercializados
Fonte: notas de campo
Na Figura 13, a Rua Jair Andrade fica entre as barracas e os galpões novos, sendo uma via
interna do mercado, nas quais circulam pessoas e veículos que, comumente, se dirigem a
ele. A Rua Pedro Nolasco é uma das vias de acesso da cidade de Vitória para outras regiões
mais ao sul, com trânsito intenso de veículos. A figura também mostra a variedade de
produtos comercializados nas barracas, com destaque para o fato de que são poucas as que
comercializam hortifrutícolas, ao contrário do passado, quando, segundo os respondentes,
predominavam. Mas, ainda segundo eles, houve queda no movimento quando saíram da
171
Praça, e isso levou ao afastamento de muitos barraqueiros que comercializavam
hortifrutícolas.
Depois de anos de espera dos barraqueiros, em 2006, a Prefeitura iniciou a revitalização da
praça, que incluiu a construção de 48 pequenas lojas (com cerca de 4 metros quadrados),
concluídas no início de 2007, quando os barraqueiros voltaram à praça. As barracas onde
estavam foram retiradas. Só então a calçada em frente ao Mercado foi liberada, depois de
ocupada por treze anos pelas barracas nas quais trabalharam os lojistas e, depois, os
barraqueiros.
Atualmente, os comerciantes nos galpões e em torno deles oferecem uma ampla variedade
de produtos, tais como artigos de umbanda, roupas, aviamentos para costura, mel, queijo,
sapato, doces, balas, produtos para higiene pessoal, pequenos animais, verduras, carne,
peixe, artesanato, hortifrutigranjeiros e temperos.
A despeito da variedade dos produtos e dos esforços da Prefeitura, em conjunto com a
ACVR, no sentido da revitalização da Vila Rubim, o Mercado e seu entorno continuam a
sofrer conseqüências de um progressivo esvaziamento da região central da cidade, a favor
de outras áreas menos associadas à idéia de violência e de dificuldade de acesso
(PREFEITURA DE VITÓRIA, 2006).
O conjunto dos argumentos aqui apresentados evidencia parte do contexto histórico no qual
os comerciantes, funcionários, clientes e fornecedores que circulam pelo Mercado interagem
no dia-a-dia. Como se observou, após as sucessivas reconstruções, não há no Mercado da
Vila Rubim interesse arquitetônico. As novas construções substituíram as antigas.
172
Entretanto, a relação com o passado continua na cultura das pessoas que lá se envolvem há
décadas, como seus pais e avós já faziam, nos papéis de comerciantes, vendedores, clientes
e fornecedores. Hoje, para muitos, freqüentar o Mercado pode ser apenas lazer ou costume;
para outros, trabalho e sobrevivência. Acredita-se que neste último grupo (ou em ambos)
estão inseridos os atores organizacionais, em seu “fazer estratégia” no cotidiano do Mercado
da Vila Rubim.
6.2 O contexto atual do comércio de hortifrutícolas
Na Vila Rubim, o Mercado, tradicionalmente, apresentou uma configuração do que se
poderia chamar de “mercado aberto”, no qual os três galpões construídos inicialmente para
produtos hortifrutigranjeiros ficavam no centro e, em torno deles, os outros galpões, para
onde se transferiram os demais comerciantes do antigo mercado, além de mercearias que
atuavam em suas proximidades. Os galpões eram separados por ruas estreitas, e as pessoas
que circulavam pelo mercado transitavam livremente entre um galpão e outro por essas ruas.
Daí a idéia de mercado aberto, em que as pessoas circulam pelas ruas ao fazerem suas
compras. Hoje, boa parte das lojas dos galpões foi adquirida por alguns poucos
comerciantes. Isso fez com que as lojas crescessem e tivessem frente para a rua, sendo
poucas as que ficam exclusivamente na parte de dentro de um galpão.
Ao chegar à Vila Rubim com o propósito de manter os primeiros contatos com os
comerciantes que lidam com os produtos hortifrutícolas, lembrei-me de Malinowski (1980,
p. 41) e o início de seus trabalhos na costa sul da Nova Guiné, quando “[...] um pouco de
tabaco oferecido induzia uma atmosfera de mútua amabilidade”. Essa relação de troca é
enfatizada quando Malinowski (1978, p. 21-22) afirma:
173
sabendo que eu meteria o nariz em tudo, até mesmo nos assuntos em que um
nativo bem educado jamais ousaria intrometer-se, os nativos realmente acabaram
por aceitar-me como parte de sua vida, como um mal necessário, como um
aborrecimento mitigado por doações de tabaco.
No caso dos sujeitos investigados nesta tese, não havia um interesse especial em tabaco que
eu pudesse oferecer, mas em clientes, e eu poderia oferecer isso ao comprar produtos.
Comecei, então, minhas compras e fui aos poucos me aproximando dos sujeitos de pesquisa.
Ao circular pelo Mercado para comprar sua lista de hortifrutícolas do dia, o pesquisador viu
na prática o número reduzido de comércios que atuam especificamente com esses produtos.
Isso foi algo que se destacou, principalmente ao saber do passado no qual o Mercado era o
principal ponto de comercialização desses produtos. Além dos seis comércios que
comercializam especificamente hortifrutícolas em geral, apenas mais dois supermercados e
uma mercearia também trabalhavam com hortifrutícolas em geral, mas em uma variedade
reduzida desses produtos, pois privilegiam secos e molhados. Algumas vezes, os produtos
da lista de compras de hortifrutícolas nem foram encontrados no Mercado.
Em relação à questão de não encontrar os produtos hortifrutícolas no Mercado, é importante
destacar que a variedade de produtos muda de um dia para o outro, pois as compras na
CEASA desses produtos são diárias, ou quase. Algumas vezes, o próprio comerciante, no
caso dos barraqueiros e dos tabuleiros, avisa que trará o produto em falta no dia seguinte ou
em dois dias.
Ao acompanhar um grupo de comerciantes, um das barracas e dois dos tabuleiros em suas
compras na CEASA, o pesquisador confirmou essa informação e pôde observar que as
encomendas aos agricultores na CEASA ocorrem apenas no caso de alguns produtos mais
difíceis de serem encontrados, o que pode ocorrer por ser entressafra ou por algum evento
174
específico, como falta ou excesso de chuva. Mas, mesmo nesses casos, antes de comprar, o
comerciante verifica o preço dos outros agricultores e pressiona aquele para o qual fez a
encomenda, podendo até comprar com outro se não houver um entendimento sobre o valor.
Deve-se destacar que essa lógica se repetiu quando o pesquisador acompanhou outro
comerciante, que antes trabalhava especificamente com hortifrutícolas, mas que atualmente
compra hortifrutícolas para suas seis lojas de supermercado. A despeito da grande diferença
na escala de compras entre eles, os procedimentos de negociação são semelhantes; apenas o
uso do argumento do maior volume de compras, para negociar descontos, foi algo exclusivo
do supermercadista.
No tocante à disposição física, a análise inicial do pesquisador teve como base a última vez
que havia visitado o Mercado, após o incêndio e antes da reconstrução dos galpões. Agora,
os dois galpões destruídos foram agrupados em um só. Possuem um mezanino, passagens
largas e não conta com nenhum comércio voltado especificamente para a comercialização
de produtos hortifrutícolas em geral. Atualmente, parece mais um pequeno shopping, com o
predomínio de lojas de artesanato em seu interior, mas mantendo certa diversidade, já
mencionada como típica do Mercado, nas lojas abertas para a rua.
Outros dois aspectos que destoam do passado relembrado são a segurança e a limpeza. No
caso da segurança, agentes particulares foram vistos circulando por dentro dos galpões, em
conjunto com guardas municipais e policiais militares, que também circulam por todo o
Mercado. No caso da limpeza, a todo o momento se viam funcionários limpando os galpões
e as ruas ao seu redor.
175
Essas alterações revelam mudanças no espaço de interação das pessoas, que, na atualidade,
a despeito de toda a reformulação física, ainda apresentam comportamentos que, conforme
os sujeitos, têm relação com as tradições do mercado.
Nesse sentido, o pesquisador, ao circular pelas lojas durante meses como um cliente,
observou que muito dos clientes se conheciam, bem como os funcionários dos
estabelecimentos. Enquanto estavam nas filas, as pessoas passavam e se cumprimentavam
de maneira discreta ou bastante efusiva, com brincadeiras feitas a distância, acompanhadas
por todos ao redor. Nas barracas e nos tabuleiros, há sempre algum cliente conversando com
o comerciante e brincadeiras sendo feitas a qualquer momento. É só dar uma deixa, como
mostra o seguinte fragmento do diário de campo: “Enquanto ele me atendia, passava um
ambulante vendendo balas, e o rapaz que me atendia deixou cair uma moeda. O ambulante
pegou, devolveu a ele e falou: ‘O dinheiro vem atrás de mim’” (Notas de campo).
No caso das barracas que são abertas para as duas ruas, a Rua Pedro Nolasco e a Rua Jair
Andrade, essa lógica de dar atenção e conversar uns com os outros e com os clientes deveria
ser um problema, pois não há como vigiar as duas frentes e ainda conversar, mas isso não
impede a conversa; apenas leva a algumas correrias quando chega um cliente do outro lado,
o que gera a interrupção da conversa, que, após a venda, é retomada.
Essa capacidade de fazer várias coisas ao mesmo tempo também é aplicada no dia-a-dia,
quando eles têm que atender mais de um cliente. E, como foi observado no campo, ao
mesmo tempo chamam para comprar uma pessoa qualquer que esteja passando por perto.
Mesmo no supermercado A, certa vez, enquanto a responsável pelo guarda-volumes
176
conversava comigo, ela, ao mesmo tempo, guardava as sacolas de outros clientes e passava
o cartão de crédito de um terceiro em uma máquina.
No dia-a-dia do Mercado, observou-se também certa distinção entre o cliente que circula
durante a semana e o que faz compras no sábado. Além de o Mercado aumentar muito o
volume de pessoas no sábado, inclusive com algumas filas para comprar em vários
comércios, não se observaram aos sábados manifestações específicas, comuns durante a
semana, como certo predomínio da circulação de pessoas com roupas surradas e que param
para contar o quanto de dinheiro possuem antes de definir a compra. Isso foi visto durante a
semana com maior freqüência nas barracas e tabuleiros e em menor freqüência no
Supermercado A. Em um fragmento das notas de campo esse aspecto fica claro, quando o
pesquisador destaca que as pessoas ao terminarem as compras
[...] não iam para os carros estacionados; elas seguiam a pé. Aparentemente, a
maioria das pessoas que vai para o supermercado é de moradores das proximidades,
mas o açougue e, principalmente, a peixaria, as lojas de condimentos, de ervas, e de
artesanato e de mantimentos específicos (animais, sorveteria...) atraem pessoas de
outras regiões. No tocante aos supermercados, aparentemente, o Mariano faz um
papel de feira livre permanente de hortifrutícolas, papel também assumido pelos
tabuleiros de frente à peixaria. As barracas se dividem entre produtos mais baratos,
inclusive hortifrutícolas, muitas vezes com uma qualidade inferior aos das lojas, e
outros incomuns, como a lamparina, o urucum em grãos, o feijão fradinho (Notas de
campo).
Essa demarcação entre dois públicos fica clara no tocante à comercialização de
hortifrutícolas ao se confrontar a estrutura do supermercado A, muito próxima de qualquer
supermercado da atualidade, com carrinhos de compras, corredores ao longo dos quais os
produtos ficam em bancas devidamente identificados com nome e preço, vários caixas com
balanças e caixas registradoras eletrônicas, guarda-volumes, uniforme e máquina para cartão
de crédito. Nas barracas, o contexto é outro, como mostra o seguinte fragmento das notas de
campo sobre o interior de uma barraca que comercializa hortifrutícolas:
177
No seu interior de madeira vários pregos permitem pendurar todo tipo de coisa. [...]
A energia é separada para cada barraqueiro. A Escelsa (
Espírito Santo Centrais
Elétricas) instalou todos os relógios em torno de dois postes próximos. Outro
aspecto interessante é a existência de um balde ou uma caixa pendurada, que
funciona como o caixa da barraca. Lá fica o troco e parte do dinheiro das vendas do
dia. Nas barracas que vendem verdura, uma coisa que não falta são as pequenas
bacias. Ao perguntar ao funcionário sobre as bacias, ele falou que sempre repõe os
produtos na bacia. Como os clientes não ficam mexendo no produto como numa
banca, os produtos estragam menos. Se o cliente insiste em escolher, o preço é
outro. Ou melhor, segundo ele, o preço pode ser o mesmo, mas a quantidade é
menor. Se o cliente quiser pesar eles usam a balança do vizinho e cobram um preço
pelo quilo definido pelo proprietário. De qualquer maneira, ele [o funcionário]
comentou que o que vende é o mais barato, por isso, usam as bacias, que são
também mais simples, com dois tipos de conjunto de produtos, cada um arrumado
de um lado do balcão: duas bacias por um real; e uma bacia por um real. Perguntei a
ele sobre como eles faziam com os ratos, pois em outras barracas eles tinham os
barris plásticos azuis com tampa para colocar os produtos lá e evitar os ratos. Ele
falou que não precisavam daquilo, pois tinham os armários de madeira embaixo da
barraca e que quando aparecia algum buraco pelo qual os ratos entravam, eles viam
as mercadorias comidas e tampavam. No alto da barraca entre uma viga de madeira
horizontal e outra apoiada nela, o vendedor colocou uma conta de luz que acabava
de chegar, ao lado de uma faca que também ficava espremida lá (Notas de campo).
No caso dos tabuleiros, essa distinção na configuração do espaço permanece, pois são
apenas caixas jogadas na rua em frente à peixaria, sobre as quais são colocadas tábuas ou
placas velhas, e em cima delas vão as mercadorias expostas ao tempo, como se observa na
Figura 14.
178
Figura 14 – Tabuleiros em frente à peixaria
Fonte: dados da pesquisa
Nesses tabuleiros não é comum o uso de bacias. O preço é dado literalmente no olho. Mas,
algumas poucas vezes, quando o cliente pedia que a mercadoria fosse pesada, o comerciante
utilizava a balança de um peixeiro. No canto esquerdo da Figura 14 observa-se a parede da
peixaria, bem próxima dos tabuleiros, e a Figura 15 mostra a disposição desses tabuleiros
em relação às entradas da peixaria, além dos produtos comercializados.
179
Figura 15 – Disposição dos tabuleiros em frente à peixaria e produtos comercializados
Fonte: notas de campo
Como se observa na Figura 15, a peixaria tem duas entradas, uma em cada extremidade de
um corredor. Nesse corredor as bancas de peixe ficam dispostas uma de frente para a outra.
O Tabuleiro A, mais próximo da Rua Orlando Rocha, e o Tabuleiro H, mais próximo da
Rua Jair Andrade, trabalham com hortifrutícolas em geral e temperos, enquanto os demais
180
tabuleiros atuam somente com esse último tipo de produto, mas todos gritam e perguntam a
quem passa se vai querer levar tempero para o peixe.
É nesse contexto, entre lojas, barracas e tabuleiros, que se dá o dia-a-dia da comercialização
dos hortifrutícolas, em um cenário permeado por histórias de um passado de violência,
como ilustra o fragmento das notas de campo do pesquisador, referente a um diálogo com
um comerciante:
[...] ‘aqui tem cara muito bravo. Aquele que estava aqui já matou uns dois, tudo com
faca’. Contou da vez em que o ‘cara’ brincou com um amigo no bar. O amigo jogou
um copo na cara dele, o cortou, e ele cortou o cara, que foi parar no hospital, com o
pulmão perfurado. A polícia foi lá, pegou o depoimento do presidente da
Associação deles, que falou ter sido apenas uma briga, mas que o cara era
trabalhador, e ficou tudo por isso mesmo. Eu perguntei: ‘E o cara, morreu?’. Ele
respondeu: ‘Não. Fica por aí. Mas eles não se bicam. O que esfaqueou ainda tentou
reatar, mas o outro não quis saber’ (Notas de campo).
É importante destacar que durante toda a pesquisa a única violência observada foi a dos
barulhos dos brincalhões exaltados, dos bêbados, das prostitutas e dos viciados. Apenas
barulhos, pois em nenhum momento se observou uma aproximação entre eles e os clientes.
Mas as gritarias e correrias entre essas pessoas fazem parte do dia a dia com o qual logo o
pesquisador se acostumou. E, como muitas das pessoas que efetivamente freqüentam o
Mercado, passou a achar graça em lugar do medo.
É nesse contexto que atuam os comerciantes de hortifrutícolas, em uma vivência que inclui
a história mencionada. Suas práticas sociais articuladas no cotidiano remetem a elementos
nele inseridos, bem como a outros construídos em bricolagens que extrapolam construções
anteriores, compondo o fazer estratégia na comercialização de hortifrutícolas no Mercado da
Vila Rubim, foco da investigação empírica aqui desenvolvida.
181
7 O “FAZER ESTRATÉGIA” NA COMERCIALIZAÇÃO DE
HORTIFRUTÍCOLAS NO MERCADO DA VILA RUBIM
Uma das características da teoria das representações sociais é a ancoragem de uma
representação social atual em representações sociais anteriores (GUARESCHI, 1995). Ou
seja, a familiarização de hoje envolve a do passado. Nesse sentido, os processos de
ancoragem e objetivação que compõem as representações incluem categorias e figuras que
por si sós trazem consigo outras construções sociais. Elas não são socialmente
independentes; muito pelo contrário, de maneira imbricada, uma representação social
permeia a outra.
Ao se defender que as práticas sociais inseridas nesse processo são capazes de oferecer
espaço para a bricolagem, destaca-se o uso astucioso e oportunista que Certeau (1994)
atribui aos sujeitos em sua concepção de estratégia e tática cotidianas. Por meio desse uso, a
construção oriunda de um conjunto de representações sociais pode, também, incluir práticas
legitimadas, em certos aspectos, de determinadas representações, mas nem sempre
convergentes com elas, pois tais práticas se voltam para interesses de sujeitos específicos,
sem um espaço privilegiado de poder, enquadrando-se nas táticas cotidianas. De outro lado,
o alinhamento entre as práticas sociais e as representações sociais revela a inserção das
práticas no lugar de um próprio, de uma ordem estabelecida em um grupo social, indicando
o enquadramento nas estratégias cotidianas.
182
As representações sociais são aqui assumidas como construções sociais, nas quais as
práticas naqueles fluxos se inserem, contextualizando-as. Portanto, a reprodução de práticas
e representações sociais que continuam ao longo do tempo coexiste com construções
distintas, que levam a práticas e representações diferentes. Com base na teoria das
representações sociais, esse processo se baseia na familiarização do desconhecido: as
construções sociais que os sujeitos desenvolvem para lidar com o novo, aproximando-o de
um contexto familiar.
A discussão aqui apresentada será organizada em torno de três questionamentos: 1) “Quem
é o comerciante da Vila Rubim?”; 2) “O que sustenta a tradição de comprar no Mercado da
Vila Rubim?”; e 3) “Por que o Mercado muda?”. Nenhum deles tem uma resposta definida.
São tantas as alternativas possíveis que, na análise do pesquisador, não eram
questionamentos a serem feitos aos sujeitos de pesquisa, e não foram feitos. Entretanto, os
sujeitos insistiam em respondê-los. De diferentes maneiras, e com diferentes faces, esses
três questionamentos eram respondidos insistentemente, o que levou o pesquisador a
entender que cada um deles faz parte do desconhecido já familiarizado pelos grupos de
sujeitos sociais na Vila Rubim. São perguntas que os sujeitos respondem a eles mesmos, por
meio de construções de representações sociais com as quais o pesquisador conviveu durante
parte do ano de 2006 e continua convivendo desde então.
7.1 Quem é o comerciante da Vila Rubim?
Do conjunto das manifestações observadas, surgiram diversas representação sociais dos
sujeitos de pesquisa. Uma delas envolve as construções dos sujeitos sobre quem é o
comerciante da Vila Rubim, aqui identificada como a representação social do comerciante
183
da Vila Rubim como um homem devotado ao trabalho. Em sua face hegemônica, essa
representação surge ancorada na themata família/trabalho/sobrevivência, mas inclui três
faces emancipadas, que baseiam de maneiras distintas essa devoção: a) a da família; b) a da
aplicação pessoal em trabalhar e economizar; e c) a das relações pessoais.
7.1.1 A face da família
Na face emancipada da família, a representação social em questão apresenta um
comerciante construído socialmente como um pai de família. Por isso, tem vida regrada e é
persistente para alcançar o crescimento ou, pelo menos, manter a sobrevivência da família.
A objetivação dessa face se dá em um conjunto de temas e figuras que fazem parte do
cotidiano dos sujeitos de pesquisa, sendo insistentemente manifestados por eles, como se
observa nos fragmentos 1 e 2.
(1) [...] se tem um cume nisso aí tudinho foi estar em família, porque os
nossos pais
foram todo o apoio para chegar onde nós chegamos. [...] a
gente vê é o seguinte: a pessoa cresceu em família, como nós
crescemos. Ele botou esposa, veio o filho, cresceram, criaram um bolo.
Quando se estava bem grande, numa situação boa, talvez esse pai de
família esqueceu quem ajudou ele a crescer e talvez ali ele começou a se
envolver com mulheres, com embriaguez. [...] na maioria das vezes que a
gente viu a regressão foi porque a pessoa cresceu junto a um familiar, cresceu
junto a uma situação que não foi valorizada quando se estava grande. [...]
Mas meu pai valoriza muito isso
. Se você convidou meu pai para almoçar, não
bote menos do que uns 12 pratos na mesa, porque ele não vai sozinho
(PROPRIETÁRIO 24).
(2) [...] tem que ter uma persistência
muito grande para a gente vencer unido. Graças
a Deus, eu tenho vencido. Eu comecei com uma loja, hoje eu já estou com seis
lojas de varejo, através da ajuda dos filhos
, da minha esposa e das noras, que três
deles já casaram (PROPRIETÁRIO 18).
As escolhas lexicais e os trechos sublinhados no fragmento 1 associam os personagens
explícitos “pais”, “esposa”, “filho”, “pai de família”, “um familiar” e “meu pai” ao tema
implícito vida pessoal desregrada, demarcado pelo trecho “envolver com mulheres, com
184
embriaguez” e aos temas explícitos crescimento e comerciante que não valoriza a família
regride. Esse último sintetiza a lógica que envolve aquela associação. E em uma visão
dialógica, esses personagens e temas também remetem ao tema implícito o comerciante que
valoriza a família é o que cresce.
O conjunto desses temas se insere na mencionada representação social e envolve práticas
sociais que podem ou não estar delimitadas no lugar de um próprio, ou seja, pela ordem
onde vale a sua lei (CERTEAU, 1994), um lugar demarcado por essa e outras
representações, e por isso mesmo elas são capazes de indicar se determinadas práticas estão
ou não delimitadas nesse lugar, evidenciando, respectivamente, construções inseridas na
estratégia ou na tática cotidiana. Uma dessas práticas sociais é destacada pelo sujeito de
pesquisa no fragmento 1. Ela é demarcada nos trechos “meu pai valoriza muito isso”, “Se
você convidou meu pai para almoçar” e “ele não vai sozinho”. Considerando os
personagens e temas anteriores articulados a esses trechos, juntos, eles remetem ao tema
implícito o pai do locutor (o proprietário 18, um comerciante de produtos hortifrutícolas que
começou vendendo produtos hortifrutícolas em feiras e de porta em porta e que hoje os
comercializa em seus supermercados) tem como prática ir acompanhado da família em seus
momentos de lazer, o que contribuiu para sua integração familiar e para o seu crescimento.
Aqui, a prática do comerciante de ir acompanhado da família em seu lazer se posiciona no
lugar de um próprio, uma ordem estabelecida e demarcada por construções anteriores, que
leva ao entendimento de que, supostamente, isso fará dele um maior (ou melhor)
comerciante. Tal prática se insere na estratégia cotidiana, legitimando-se na representação
social em questão, ao mesmo tempo em que a reforça.
185
No fragmento 2, o tema explícito persistência é associado de maneira implícita aos temas
família, vitória e crescimento. Durante as observações do pesquisador no Mercado, os temas
perseverança, como sinônimo de persistência, e família surgiram, muita vezes, associados
às explicações sobre lojistas que cresceram, por se alinharem a essa construção, ou que
fecharam suas lojas, por se distanciarem dessa construção. Na mesma direção, o
pesquisador, em suas observações, deparou-se com o tema importância da família, tanto
para o pequeno comerciante, no sentido de obter a garantia de sobrevivência da sua família,
quanto para o comerciante que vem crescendo ao longo do tempo, de modo a garantir a
continuidade do crescimento para a sua família. Em torno de ambos, bem como da última
prática social destacada, está o tema implícito a valorização da família é uma característica
do comerciante da Vila Rubim. Aqueles que não compartilham daquela importância acabam
se inserindo no grupo dos que fecharam, desistiram ou foram embora.
Deve ficar claro que essa explicação causal, aparentemente simplista, de que o comerciante
não deu importância à família, e por isso quebrou e deixou de ser comerciante na Vila
Rubim, faz parte das construções sociais dos respondentes sobre o seu cotidiano, em que
alguns permanecem no comércio e outros não. Essa é a maneira de os sujeitos simplificarem
uma infinidade de causas possíveis associadas ao fenômeno da saída do comércio, pois eles
não têm meios para se aproximarem de todas e confrontá-las com o fenômeno. Mas,
concordando-se com Moscovici (1978), eles têm a necessidade de familiarizar-se com o
desconhecido, de maneira que possam lidar com ele em seu cotidiano. Nesse sentido, a
inclusão dos temas família, crescimento e sobrevivência nos discursos veiculados no
cotidiano é, em si, uma prática social na estratégia cotidiana articulada na representação
social em questão. Essa prática é utilizada para justificar desde a necessidade de as
instituições públicas apoiarem os comerciantes até o motivo de um comerciante permanecer
186
sofrendo em um local sem condições adequadas de trabalho, no meio da rua, quando
menciona que aquilo não é trabalho, e sim sobrevivência, mas que com isso eles “garantem
a família”.
A família surge articulada com o tema homem regrado, persistente, trabalhador. Quando
seus membros não se enquadram nesse perfil, acaba-se por gerar um afastamento da lógica
familiar, com conseqüências negativas, sob a ótica dos comerciantes. Ou seja, o tema
família se articula com os temas trabalho e sobrevivência, sem existir uma hierarquia entre
eles, como se pode ilustrar no fragmento 3.
(3) Eu vendi muito para ele, não podendo me pagar. Ficou me devendo uma
importância grande na época. Aí, ele disse: “Para pagar essa conta a
você, que eu tô aporrinhado para sair desse Mercado, eu te vendo a
barraca”. [...] E o ponto dele era muito bom [...] [mas] ele era desorganizado.
As mulheres carregavam o dinheiro dele todinho. [...] Ele tinha amantes. Ele era
desregrado. Todo mundo passava troco na gaveta dele, todo mundo
mexia no negócio dele. [...] tivemos um trabalhado danado, porque o pessoal
tava acostumado a roubar mesmo (FORNECEDOR 3).
No fragmento 3, o tema explícito homem desregrado está associado ao tema envolvimento
com amantes e mulheres, e, a partir desse último, ao tema implícito afastamento da lógica
familiar. Eles são articulados para, implicitamente, justificar a prática social de um
comerciante vender o seu comércio, mesmo estando em um ponto muito bom, na medida em
que fica endividado. Destaca-se ainda o tema implícito necessidade de um trabalho
adicional, para corrigir os problemas originados nas características do ex-comerciante,
antigo dono do ponto, demarcado nos trechos “tivemos um trabalhado danado” e “o pessoal
tava acostumado”, em articulação como os temas anteriores. Aqui, o trabalho adicional se
insere na estratégia cotidiana como uma prática capaz de corrigir os desvios do desregrado,
que tende a se omitir e deixar que outros façam o trabalho dele, acumulando prejuízos até
um ponto em que vende o comércio, sua última prática como comerciante.
187
7.1.2 A face da aplicação pessoal em trabalhar e economizar
Na face emancipada da aplicação pessoal em trabalhar e economizar, a representação
social do comerciante da Vila Rubim como um homem devotado ao trabalho se volta
para a preocupação dos comerciantes em persistir no trabalho de maneira dedicada e sem
desperdiçar seus recursos financeiros. A construção gira em torno do entendimento de que,
ao perseverar, dedicando-se no dia-a-dia e com recursos financeiros disponíveis, o
comerciante oferece mais estabilidade e possibilidade de crescimento para o seu comércio.
De outro lado, a ausência desses elementos seria sinal de problemas.
Os dois primeiros elementos – a persistência e a dedicação – são muito próximos, mas
remetem a construções distintas. Na face emancipada em questão, ambos são necessários
para um comerciante, como se observa nos fragmentos 4 e 5.
(4) [...] eu acho que é nesse sentido de você persistir, naquilo, você ter um
objetivo, ter um ideal naquilo. E aí num fica difícil de conseguir, não
(FUNCIONÁRIO 6).
(5) Esse pessoal aí [dos tabuleiros em frente à peixaria] já tem a tradição daquilo ali,
há muitos anos. [...] sobrevive
, porque, apesar de ser uma coisa praticamente no
tempo, mas é o dono que trabalha e acaba se dedicando e continua vendendo
(PROPRIETÁRIO 22).
No fragmento 4, persistência surge como tema explícito associado ao fato de que ela está
voltada a objetivos ou ideais. Essa persistência consiste em dar continuidade ao comércio
em uma direção, ano após anos, sem desistir, sem esmorecer, ou não será comerciante. Por
sinal, para o pesquisador, parecia uma construção óbvia, pois se alguém desiste do comércio
não será mais comerciante. Mas essa explicação é colocada de maneira corriqueira ao se
falar do motivo de uma loja ou barraca vir a ser fechada. Essa persistência envolve ainda a
maneira como o comerciante a desenvolve –, no caso, com ou sem dedicação. O tema
188
dedicação surge de maneira explícita no fragmento 5, bem como surge o tema implícito
essa dedicação consiste numa atuação próxima do dia-a-dia do comércio, por parte do
próprio comerciante, o que garante a sobrevivência do comércio, tema marcado pelos
trechos “sobrevive”, “dono que trabalha”, “acaba se dedicando” e “continua vendendo”.
Esse último tema implícito demarca a maneira como deve ocorrer aquela perseverança: além
de permanecer com o comércio, tem que participar diretamente dele, dia após dia.
Deve ficar claro que os termos persistência e dedicação, no dia-a-dia do Mercado, são
utilizados como sinônimos, em um sentido ou em outro, mas o que interessa são as
distinções entre as duas construções apresentadas, que são complementares. Ou seja,
persistência sem dedicação seria tão problemática quanto dedicação sem persistência. Isso
fica menos claro quando um único termo é utilizado para expressar ambos, mas se evidencia
quando eles são separados e utilizados pelos próprios comerciantes na familiarização dos
motivos do insucesso ou do sucesso de algum comerciante. Outro ponto a se destacar é que
tanto a persistência quanto a dedicação são características consideradas pessoais, mas que se
revestem como práticas, pois têm um rebatimento direto em uma série de práticas menores,
inerentes à persistência e à dedicação, como acordar cedo, tomar café da manhã todo dia no
mesmo bar, montar o tabuleiro ou ir para a CEASA, como foi acompanhado pelo
pesquisador e que se inserem na estratégia cotidiana.
Para viabilizar essas práticas, o último elemento destacado nessa face emancipada é a
disponibilidade de recursos financeiros, evidenciado no fragmento 6.
(6) [...] não posso falar mal da Vila Rubim, porque eu ganhei dinheiro durante o
tempo que eu trabalhei aqui, 10 a 12 anos aqui. E aqui eu não fiz nada
,
porque não tive uma boa cabeça
, não fiz uma economia [...] E a coisa piorou. A
gente vive aqui, sofrendo, passando uma grande dificuldade (PROPRIETÁRIO
4).
189
(7) Você tem que valorizar o que você ganha hoje [...] Então, ele [o homem que lhe
vendeu o ponto de comércio] era o tipo de uma pessoa que não se dedicava muito
ao trabalho dele, uma pessoa que sentava numa mesa de jogo, vendia 100 gastava
150. [...] Eu trabalhava num ponto hoje
, num outro depois, não tinha lugar certo.
Aí, em 89, eu peguei e consegui o dinheiro pra comprar o local
(PROPRIETÁRIO 5).
No fragmento 6, o locutor assume o papel de personagem, quando demarca o pronome “eu”,
e destaca os temas explícitos ganhou dinheiro, não fez economia e sua situação piorou. No
âmbito do dialogismo, a oposição a esses dois últimos temas demarca o tema implícito o
comerciante que faz economia melhora sua situação no comércio. Esse tema remete ao
valor pessoal da economicidade, que, durante as observações do pesquisador e em diversos
outros fragmentos, surge identificado por escolhas lexicais diversas, como “não podemos
esbanjar”, “poupança”, “dinheirinho reservado”. Em comum, todas destacam a necessidade
de guardar recursos para investir no comércio, como no tema valorização do que você
ganha para adquirir um ponto para trabalhar, implícito no fragmento 7.
Nessa face emancipada, a prática de economizar se insere na estratégia cotidiana, assim
como as práticas relacionadas a aplicação dos recursos economizados: ampliação dos
estoques (principalmente em datas especiais, como o final de ano), reforma dos comércios e
aquisição de novas lojas, barracas, tabuleiros ou de veículos para o transporte de
mercadorias. Algumas dessas práticas são observadas tanto no caso do comerciante de
produtos hortifrutícolas que cresceu, com uma loja acima de 200 metros quadrados, quanto
entre os comerciantes que atuam nas barracas e nos tabuleiros, com menos de 2 metros
quadrados.
190
7.1.3 As relações pessoais
A face emancipada das relações pessoais na representação social do comerciante da Vila
Rubim como um homem devotado ao trabalho expõe uma construção social na qual o
comerciante é um homem com um caráter marcado por valores específicos, que contribuem
para o desenvolvimento de suas relações pessoais, quais sejam: honestidade e amizade.
Nessa construção, por meio dessas características, ele desenvolve boas relações pessoais, o
que viabiliza a manutenção e o crescimento do seu comércio. De outro lado, a ausência
dessas características levaria à destruição das relações comerciais. Os temas e figuras que
objetivam essa face no cotidiano dos sujeitos de pesquisa estão evidentes nos fragmentos a
seguir.
(8) Sempre foi um homem muito honesto nos negócios dele, sempre certo, e
foi expandindo. Ele cresceu um trem fora de série, por causa da honestidade
dele também, que todo mundo vendia para ele, procurava ele para vender,
como até hoje. É um cara que compra e paga (FORNECEDOR 5).
No fragmento 8, os trechos sublinhados explicitam não apenas o tema honestidade, mas,
também, os dos resultados provenientes dela, como a expansão e o crescimento como
conseqüência do interesse em se comercializar com quem é honesto. Deve-se observar que
o locutor é um agricultor que atua na CEASA, o que indica um contexto de produção
discursiva, no qual o termo todo mundo remete ao personagem implícito fornecedores de
produtos hortifrutícolas, o que, em conjunto com os outros temas, demarca o tema implícito
a honestidade contribui para as relações entre fornecedores de produtos hortifrutícolas e
comerciantes, no sentido de benefícios mútuos. Na direção do benefício para os
comerciantes está a prática do fornecedor de facilitar o acesso aos produtos e na direção do
benefício para o fornecedor está a prática do pagamento, ambas inseridas na estratégia
cotidiana.
191
Durante a observação do pesquisador, presenciaram-se manifestações relacionadas com a
honestidade entre os comerciantes que iam além da relação entre fornecedor e comerciante,
incluindo relações entre comerciantes que confiavam ou desconfiavam de seus pares de
acordo com a leitura que faziam de sua honestidade. Em geral, àquele considerado
desonesto não são permitidos pequenos empréstimos de dinheiro e mercadorias, trocas de
cheques por dinheiro, nem propostas de negócios conjuntos (compra ou venda de um
veículo, de um equipamento, aluguel de um ponto...), práticas relativamente comuns dentre
os comerciantes com percepção mútua de honestidade.
Outra questão observada em torno do tema honestidade é a referência adotada pelos sujeitos
para identificar o honesto ou o desonesto. Como está implícito no fragmento 9, não está em
jogo aqui uma simples comparação entre práticas consideradas legais ou ilegais do ponto de
vista da legislação ou de normas formais do mercado.
(9) Já vendi sacola, já vendi picolé, já fiz de tudo. Aqui, só nunca roubei. Corri
do rapa muito tempo (PROPRIETÁRIO 14).
No fragmento 9, o locutor se coloca como personagem implícito ao usar os verbos na
primeira pessoa do singular. Dessa maneira, no trecho sublinhado “só nunca roubei” ele
remete ao tema implícito o roubo é algo com o qual o locutor não concorda, algo
manifestado com muita freqüência pelos sujeitos de pesquisa durante as observações. Esse
tema poderia remeter à idéia de que a ilegalidade em relação às leis em geral é algo com o
qual os sujeitos não concordam. Entretanto, o trecho sublinhado em seguida, “corri do rapa
muito tempo”, remete ao tema implícito de que o locutor concordava ou, pelo menos,
praticava, um ato ilegal. Isso se explica pelo fato de o chamado “rapa” ser a designação
para indicar os fiscais que buscam coibir a comercialização de produtos proibidos e ou em
locais proibidos, comumente legitimados no suposto cumprimento da legislação e das
192
normas em vigor. Portanto, se havia necessidade de fugir desse fiscal, o ato era ilegal, como
foi confirmado durante as observações, mas nem por isso é visto como desonesto pelos
sujeitos de pesquisa.
Em síntese, algumas práticas ilegais podem ser socialmente aceitas e construídas pelo
grupo, como a sonegação fiscal, e outras não, como o roubo de mercadorias. A prática da
sonegação fiscal se insere na estratégia cotidiana
21
do grupo, legitimada no lugar demarcado
pela face emancipada em questão. De outro lado, o roubo se apresenta como uma prática
social que apenas reforça as construções relativas à face emancipada em questão, pois, ao
roubar, o comerciante, ou qualquer outro sujeito, tende a ser considerado desonesto e visto
com desconfiança. Mas a prática do roubo em si não se apresentou articulada nessas
construções sociais nem em algum de seus elementos, como ocorre na sonegação de
impostos e na venda de produtos sem autorização das instituições públicas, vistas como
práticas “honestas” na ordem do próprio das relações pessoais, e por isso mesmo podem
contar com esse próprio para legitimá-las.
Em relação a algum grupo, não identificado nem abordado neste estudo, a prática de roubar
pode até se enquadrar como estratégia ou tática cotidiana, mas em relação aos sujeitos de
pesquisa deste estudo essa prática não se insere nem em uma nem em outra. Não está no
lugar de um próprio, nem em um espaço de transgressão no qual seus elementos são
bricolados. Nesse entendimento, reforça-se o argumento já apresentado de que a mesma
21
A sonegação seria tática em relação ao próprio do Estado se ele estabelecesse uma ordem na qual a prática
do pagamento de imposto se legitimasse e se fizesse presente, impulsionada pelo poder e ordem do próprio.
No caso do Mercado da Vila Rubim, isso não foi evidenciado; muito pelo contrário. Em relação aos sentidos
da sonegação, há evidências de construções que estabelecem uma ordem na qual essa prática conta com um
lugar privilegiado nas relações comerciais no Mercado em questão.
193
prática social pode se inserir como estratégia ou tática cotidiana, de acordo com a inserção
contextual do grupo na qual as construções são assumidas como referência. Portanto,
assume-se que o lugar de um próprio não é algo absoluto para todos os sujeitos do mundo.
Ele está circunscrito a grupos específicos, fazendo com que uma mesma prática seja em
relação a um grupo estratégia e a outro, tática cotidiana. Por isso, a concepção de estratégia
e tática cotidiana é assumida aqui apenas como separações relativas a determinadas
construções sociais, adequadas para viabilizar a investigação da dinâmica social que
envolve as práticas e as inserções contextuais dos sujeitos de pesquisa em seu “fazer
estratégia”.
No caso da prática do roubo, quando o grupo deixa de indicar elementos que a enquadrem
como estratégia ou tática cotidiana, isso não significa ausência de relação entre essa prática
e outras enquadradas em um dos dois fluxos, pois a identificação de uma (o roubo) pelos
sujeitos remete às outras (como a surra dada em quem rouba algo). Neste estudo, observou-
se que a partir da identificação da prática do roubo os sujeitos articulam práticas inseridas na
estratégia cotidiana, voltadas a articulações dentro do lugar de um próprio, uma ordem
estabelecida que viabiliza a análise e aplicação das forças disponíveis (CERTEAU, 1994).
Especificamente em relação ao roubo, na observação do pesquisador e nas entrevistas, essas
práticas identificadas foram: denúncia à polícia, agressão física e disseminação da notícia do
roubo e de seu autor, o que, aparentemente, denigre a imagem do sujeito e alerta os outros
comerciantes.
Nessa relativização contextual, a honestidade se articula com uma outra característica
pessoal destacada na face emancipada das relações pessoais: a amizade. Essa última fica
evidente, também, em práticas sociais às quais os sujeitos só têm acesso a partir de sua
194
inserção em construções que os enquadram como honestos, práticas que surgem nos
fragmentos a seguir.
(10) [...] são todos amigos. [...] Se eu não tiver uma erva, eu vou lá e pego com
eles. Um ajuda o outro. [...] Todo mundo é uma irmandade só
(PROPRIETÁRIO 10).
(11) Era tudo amigo [os barraqueiros]
. [...] Todo mundo a mesma coisa. [...] Amigo
mesmo, de sofrimento mesmo, para qualquer coisa. Um emprestava um dinheiro
para o outro quando o outro não tinha. No outro dia, aquele que emprestou o
dinheiro já não tinha dinheiro
(PROPRIETÁRIO 14).
(12) Aqui tem concorrência
, mas todo mundo é amigo (PROPRIETÁRIO 11).
No fragmento 10, os trechos sublinhados remetem ao tema explícito amizade e ao contexto
de produção do discurso, no qual as ervas são comercializadas nas lojas e nas barracas, e
ambas são mencionadas de maneira conjunta por quem comercializa ervas, como tema
implícito essa amizade se estende a lojistas e barraqueiros. Além disso, os trechos “se eu
não tiver”, “pego com eles” e “um ajuda o outro” remetem ao tema implícito existe a
prática social da troca de mercadorias entre esses amigos, o que foi utilizado pelo locutor
para demarcar discursivamente essa amizade, assim como pôde ser observado no cotidiano
do mercado.
No fragmento 11, novamente, surge o tema explícito amizade. Mas neste caso o contexto de
produção discursiva se refere aos barraqueiros, pois esse fragmento foi extraído de uma
argumentação que em trechos anteriores e posteriores se referia apenas aos barraqueiros.
Portanto, surge o tema implícito amizade entre os barraqueiros. Outros temas veiculados,
mas de maneira explícita, foram sofrimento e prática do empréstimo. Implicitamente, o
primeiro qualifica a amizade como relativa a algo intenso, sofrido, e o segundo deixa clara
a disposição de oferecer a quem é amigo o pouco que se tem – no caso o dinheiro –, ambos
195
reforçando o laço de amizade. Reconhecendo essa amizade, o fragmento 12 a insere em
conjunto com a competitividade, ao apresentar o tema explícito a amizade existe em
conjunto com a competição. Durante as observações, isso ficou evidente entre os
comerciantes de produtos hortifrutícolas das barracas e dos tabuleiros. De um lado, alguns
praticavam a ajuda mútua, dividindo despesas, como o frete para trazer mercadorias da
CEASA, e a vigilância sobre possíveis pessoas com atitudes estranhas circulando nas
proximidades, paradas e observando a movimentação de dinheiro. De outro lado, quando
um cliente passa na calçada, principalmente ao lado da peixaria, um busca chamar mais a
sua atenção do que o outro, gritando: “Olha a verdura. Pode chegar, freguês!”, para atrair o
cliente e realizar a venda.
Deve-se destacar que o tema explícito empréstimo de mercadorias, no fragmento 10, tem
relação com essa lógica de coexistência entre amizade e competição. Durante a observação
do pesquisador, por diversas vezes, foi possível presenciá-la, principalmente entre
comerciantes localizados mais próximos. Quando o cliente pede algo que não está
disponível na loja, no tabuleiro ou na barraca, o comerciante pede-lhe para esperar um
segundo, vai até a loja do vizinho, pega a mercadoria e, em seguida, após o cliente pagar,
entrega o dinheiro ao dono da mercadoria. Ninguém fala nada. É tudo muito rápido. Todos
parecem saber o que está acontecendo (menos o pesquisador, pelo menos no início).
Diversas vezes, os sujeitos de pesquisa disseram que fazem isso para manter o cliente, pois
se ele ficar circulando compra com outro. Nesse sentido, há, aparentemente, um privilégio à
amizade em detrimento da competitividade, pois o não fornecimento do produto ao vizinho
poderia levar o cliente a comprar todos os produtos na loja, na barraca ou no tabuleiro de
quem tem o produto, não apenas aquele que o concorrente não tem. Entretanto, isso exigiria
o desgaste de romper negociações com aqueles “companheiros de sofrimento”, que
196
“sobrevivem com muito esforço”, como, muitas vezes, os respondentes se identificam
mutuamente.
Essa ruptura não foi identificada comumente, mas ela acontece de maneira parcial, velada,
sem uma oposição aberta à face emancipada da representação social em questão, como se
evidencia no fragmento 13.
(13) Aqui todo mundo é amigo. Mas só que é Deus pra todos, mas cada um é pra si.
Se eu estou aqui
e o freguês chegou apreçou a mercadoria, o colega aqui
pode dar o preço, pode vender ali pra mim, pegar o dinheiro e tal: “—
Olha aqui o que eu vendi pra você
”. Se eu não estou aqui, estou lá na frente,
ninguém faz isso. Aí, chega uma pessoa que quer a mercadoria, vem a
pessoa do lado e fala: “Não. ele não tá aí não
, mas eu tenho a mercadoria
(PROPRIETÁRIO 4).
O fragmento 13 apresenta como tema explícito a amizade e como tema implícito a
regulação do comportamento de um comerciante pela proximidade do outro. O locutor se
refere a algo muito comum no cotidiano das barracas e dos tabuleiros do mercado, pois as
mercadorias ficam expostas e muito próximas umas das outras (Figuras 12 e 14). Por isso,
ocorre de os clientes se aproximarem de uma barraca ou de um tabuleiro, olharem os
produtos, mas, quando o responsável pela barraca não se manifesta, eles se dirigem ao
comerciante de outra barraca que está em pé, na calçada ou rua, entre os dois tabuleiros ou
as duas barracas, pensando que ele é o responsável. Nesse ponto, existem três práticas
comuns: vender para o vizinho, chamá-lo ou atrair o cliente para o seu próprio comércio e
realizar a venda. Essa última não fere a honestidade, pois o trabalho dos dois comerciantes é
vender e sobreviver, como fica claro quando eles gritam para atrair os clientes em dias com
mais movimento de pessoas. Entretanto, ela vai de encontro a construções referentes à
amizade aqui destacadas, pois é algo feito de maneira traiçoeira, escondida, não ocorre às
claras como os gritos. Aparentemente por isso mesmo, nem sempre ocorre. Quando ocorre,
197
é numa situação na qual não se chama muita atenção dos outros vizinhos, principalmente o
responsável pela barraca inicialmente abordada
22
pelo possível cliente.
As duas primeiras práticas sociais – vender para o vizinho ou chamá-lo – bem como aquela
referente ao empréstimo de mercadoria, na face emancipada da representação em questão,
inserem-se na estratégia cotidiana. Já a última prática – atrair o cliente para o seu próprio
comércio e realizar a venda – insere-se na tática cotidiana. As três primeiras se caracterizam
como estratégias cotidianas, na medida em que se posicionam no lugar de um próprio, uma
ordem estabelecida, privilegiada e idealizada, a do amigo. Aqui, a honestidade e a amizade
se perpassam e permitem a previsão das forças e dos resultados dentro do grupo dos
comerciantes de produtos hortifrutícolas. Já a última prática não conta com esse lugar do
próprio, mas se apropria de elementos dele. A bricolagem entre a caracterização do ato de
vender, seu trabalho e sua sobrevivência, a despeito de se opor ao lugar demarcado pela
amizade, não entra em confronto direto com esse lugar, pois é articulada na astúcia de só
agir quando o próprio não o vê, para não ser desonesto, um mau amigo, demarcando um
espaço de transgressão no qual a venda para o cliente do próprio é tolerada e bem-sucedida.
A face emancipada das relações pessoais, em conjunto com a face emancipada da família e
a face emancipada da aplicação pessoal em trabalhar e economizar, expõe uma série de
construções inseridas na representação social do comerciante da Vila Rubim como um
homem devotado ao trabalho, com implicações no cotidiano do mercado. Elas apresentam
apenas parte das complexas construções em torno de aspectos pessoais dos comerciantes,
22
No caso narrado no fragmento 13, a barraca em questão tem saída para duas ruas, de um lado e do outro.
Quando o comerciante está em pé na frente oposta à do vizinho, “batendo papo com alguém” ou atendendo um
cliente, tem-se a melhor situação para que a última prática seja efetivada sem chamar a sua atenção.
198
mas já oferecem um delineamento no qual os sentidos das práticas sociais estão imersos em
contextualizações múltiplas que devem ser consideradas em conjunto. A multiplicidade já
evidente nesse primeiro conjunto de construções se estende de maneira muito mais ampla a
outras representações sociais, envolvendo questões desconhecidas a serem familiarizadas.
Dentre as muitas ênfases possíveis sobre o que focar nas construções relativas ao
desconhecido, a da tradição se destaca, por se apresentar de maneira recorrente no cotidiano
do Mercado e, comumente, em articulações que indicam uma inter-relação em torno das
construções sobre os aspectos pessoais dos comerciantes aqui discutidos. Nesse sentido, o
desconhecido pode ser sintetizado no seguinte questionamento: O que sustenta a tradição de
comprar no Mercado da Vila Rubim?
7.2 O que sustenta a tradição de comprar no mercado da Vila Rubim?
Ao manifestarem construções sociais sobre o que sustenta a tradição de comprar no
Mercado da Vila Rubim, os sujeitos de pesquisa permitiram destacar, em conjunto com a
representação social anterior, a questão da tradição, aqui chamada de “a representação
social da Vila Rubim como um lugar de tradição no comércio na Grande Vitória”. Ela
é articulada em construções nas quais os sujeitos lidam com o desconhecimento dos motivos
pelos quais a Vila Rubim ainda atrai compradores, a despeito dela, agora, não ser mais um
dos poucos pontos de comercialização de alimentos da região, como era antes, um tema
demarcado explicitamente nos fragmentos 14 e 15.
(14) Porque naquela época [início da década de 1970] não existia os
supermercados que têm hoje na periferia. Então, era tudo aqui no Mercado da
Vila Rubim. Tanto é que nós tínhamos uma Kombi pra fazer entrega. A
gente colocava 5 ou 6 entregas
dentro da Kombi e quando voltava tinha mais
5 ou 6 entregas para fazer novamente (PROPRIETÁRIO 8).
199
(15) A Vila Rubim sempre foi tradição, por isso que a gente está aqui até hoje. O
comércio aqui praticamente não atingiu
muito justamente por isso aí. [...] Por isso
que não acabou a Vila Rubim. Diminuiu, logicamente diminuiu um pouco. Há
cerca de 25, 30 anos atrás não era como é hoje. Também tudo era aqui. O centro
da capital aqui era a Vila Rubim (PROPRIETÁRIO 2).
Ao observar os fragmentos, deve-se destacar que o sentido de tradição discutido aqui não se
refere à identificação das tradições na Vila Rubim como um todo. A discussão do tema
refere-se às tradições às quais os sujeitos relacionam suas práticas. No âmago da
preocupação com a questão da distância relacional (WILSON; JARZABKOWSKI, 2004), a
opção aqui adotada foi a de focar aquilo que os sujeitos incluem em suas manifestações
sobre a tradição no Mercado, o que, até por se tratar de um mercado, apresentou-se,
comumente, associado ao processo de comercialização e às relações pessoais que o
envolvem.
Nessa construção, a representação social da Vila Rubim como um lugar de tradição no
comércio na Grande Vitória apresentou em sua face hegemônica, compartilhada com a
representação anterior, a ancoragem na themata família/trabalho/sobrevivência. Ao mesmo
tempo, essa face hegemônica se apresentou articulada em três faces emancipadas, aqui
identificadas como: a) continuidade do comércio; b) cotidiano que envolve o cliente; e c)
casamento entre a mídia dos grandes, o peixe e a galinha.
7.2.1 Continuidade do comércio
Na face emancipada da continuidade do comércio na representação social da Vila Rubim
como um lugar de tradição no comércio na Grande Vitória inserem-se construções que
remetem a práticas sociais voltadas para a continuidade do tipo do negócio e dos produtos
comercializados. Essa face gira em torno da tradição que privilegia os comerciantes já
200
estabelecidos, com a posse dos clientes e demais recursos transferidos em família. Uma
transferência entre pais e filhos, tios e sobrinhos, e irmãos, enfim, com base em laços
familiares relativamente próximos, além de pessoas agregadas que são inseridas nesses
laços como se fossem adotadas pela família. Essas transferências têm em comum a
passagem do comércio de um membro da família a outro com o objetivo de dar
continuidade ao trabalho que se via como certo. Essa prática permitia ao mais velho ou ao
mais bem sucedido garantir o sustento ou o sucesso do ente querido, que, comumente,
contribuía no dia-a-dia com o seu trabalho para a continuidade do comércio. Nesse processo
de trabalho, aos poucos, o familiar se prepara para assumir novas responsabilidades no
comércio.
A lógica em torno dos adotados segue um raciocínio próximo. Alguns funcionários, mesmo
de fora da família, são nela inseridos, tal a afinidade e a afeição do proprietário do comércio
para com esses funcionários. Esses adotados recebem o privilégio de serem introduzidos na
estratégia cotidiana da família. Em comum com os membros da família, os adotados
também contribuem com o comércio antes de terem a “permissão” e o apoio para prosperar.
Os fragmentos 16, 17, 18 e 19 expõem o conjunto dessas construções.
(16) O dono dessa empresa gostava muito de mim [...] E ele me fez uma promessa:
“— Quando aparecer alguma coisa, um pontinho, eu vou te ajudar
”. [...] e
foi ele quem realmente me ajudou (PROPRIETÁRIO 17).
(17) [...] minha tia trabalhava aqui
. Eu comecei a trabalhar, e estou aí até hoje. [...]
tinha o esposo dela que trabalhava aqui, e eu continuei trabalhando no lugar dele.
Ele parou de trabalhar. [...] Eu fui aprendendo devagarzinho (PROPRIETÁRIO
11).
(18) [...] hoje eu já estou com seis lojas
de varejo, através da ajuda dos filhos, da
minha esposa e das noras [...]. Meus filhos foram criados dentro de uma banca
dentro do Mercado da Vila Rubim [...] fomos crescendo junto
, e hoje nós
trabalhamos em união (PROPRIETÁRIO 18).
201
(19) [...] os fornecedores chegavam lá, era só eu tocar no nome do meu pai que as
portas se abriam.[...] surgiu a oportunidade de nós nos filiarmos a uma rede de
supermercado [...]. Intermediário a isso, eu teria que me desfazer daquela
pequena mercearia em São Pedro. Mas sabendo tudo o que ela tinha produzido,
eu falei: “Eu poderia passar isso para algum irmão meu”
(PROPRIETÁRIO 24).
O fragmento 16 apresenta o tema implícito a finidade do locutor com o dono da loja
propiciou o apoio necessário para montar o seu próprio negócio. Já no fragmento 17, é a
relação tia sobrinho que expõe o tema implícito ao ajudar a tia em seu negócio, o locutor
ganhou a oportunidade de apreender e, mais tarde, assumir o lugar do tio. No fragmento
18, demarcam-se dois temas implícitos: preparação do filho para continuar o negócio
crescente da família e incorporação da família trabalhando nas diversas empresas. No
fragmento 19, evidenciam-se dois temas implícitos: a rede de relacionamentos do pai se
estende e beneficia o filho nas negociações comerciais e um bom comércio deve ficar em
família, para que um outro membro usufrua dele.
Esses temas remetem a práticas sociais inseridas na estratégia cotidiana que incluem:
colocação do familiar e dos adotados para trabalhar no comércio, acompanhando-os no dia-
a-dia; transferência do negócio, com clientes incluídos; disponibilidade de apoios
financeiros; e acesso aos conhecimentos e à rede de influências para acessar os bons pontos
de comércio, os fornecedores e as práticas de comercialização. Quando os comerciantes
colocam sua família e seus adotados para trabalhar ao seu lado e recebem deles a ajuda
desejada, acabam levando-os a participarem de construções sociais que, mais tarde, tendem
à continuidade dos procedimentos e do próprio comércio atual, bem como à disseminação
de outros comércios semelhantes. Em relação a essa última opção, nem sempre a
disseminação ocorre na mesma região, como se evidenciou no fragmento 19, em que um
outro bairro, o de “São Pedro”, é a região do comércio do filho.
202
Nas observações realizadas pelo pesquisador, a questão de continuar no comércio da família
ou a opção por uma disseminação, com o desenvolvimento do seu próprio comércio, tem
relação com: idade do pai, tempo em que ele atua, disposição dele em se afastar (pelo menos
parcialmente), necessidade do filho de uma renda mais alta e a capacidade do comércio de
gerar renda.
Esse último aspecto foi citado diversas vezes em conversas informais com barraqueiros,
comerciantes dos tabuleiros e lojistas. No caso dos barraqueiros e comerciantes dos
tabuleiros, mesmo os que trabalham com os filhos, ainda crianças ou adolescentes, afirmam
não querer que o filho continue naquele comércio, pois a renda não seria suficiente e as
condições de trabalho são muito difíceis. Foi possível presenciar a satisfação de um pai em
relação a um dos filhos, que o ajudava na barraca, por ele ter conseguido um “emprego
fichado”, ou seja, um emprego em uma empresa que faz o registrado em sua carteira de
trabalho, conforme a legislação trabalhista. Outro aspecto evidenciado foi a preocupação de
muitos para que os filhos estudem, justificada pelo argumento de que assim eles
conseguirão mais do que os pais conseguiram. Dessa maneira, rompe-se a ancoragem da
tradição na família no tocante aos filhos, mas não em relação aos irmãos, esposas e adotados
que mantêm essa relação familiar e continuam a atuação comercial nas barracas e nos
tabuleiros. Aqui, inserem-se na tática cotidiana práticas que articulam elementos do lugar de
um próprio da família, uma ordem estabelecida no sentido de viabilizar o comércio, mas em
um espaço no qual a transgressão surge à medida que eles buscam afastar os filhos mais
velhos na direção do que chamam “um futuro melhor”, após um período em que já
contribuíram para a manutenção do comércio. Essa percepção difere daquela dos lojistas
que cresceram e buscam manter tudo e todos no lugar de um próprio articulando a estratégia
cotidiana em práticas no sentido de garantir o crescimento dos filhos dentro do comércio.
203
No caso dos lojistas, deve-se destacar que essa última postura não é a única, pois existem
aqueles que não cresceram e se alinham aos comerciantes anteriores na mencionada prática
social inserida na tática cotidiana. Mas os que viram no comércio o seu crescimento têm
como prática o estímulo para que os próprios filhos dêem continuidade e ampliem o
comércio. Como mencionado, enquanto esse último grupo se insere totalmente na estratégia
cotidiana associada à face emancipada da continuidade do comércio na representação
social da Vila Rubim como um lugar de tradição no comércio na Grande Vitória, o
grupo anterior, assim como os barraqueiros e comerciantes dos tabuleiros, desenvolvem a
bricolagem destacada por Certeau (1994), pois associam práticas sociais inseridas no lugar
da tradição, como trazer os filhos para ajudá-los, a outras, como o incentivo para que eles
busquem outras atividades profissionais. Aqui surge a tática cotidiana (CERTEAU, 1994).
Na tática cotidiana, não há uma divisão clara até onde os sujeitos se inserem na lógica da
tradição, pois se apóiam nela para obter a continuidade do que eles chamam de
“sobrevivência, dele e da família”, diferente do trabalho, visto como algo distinto,
desconhecido, situado no lugar de um próprio distante, uma ordem com a qual não podem
contar. Ou seja, os comerciantes que cresceram têm a estratégia cotidiana e suas práticas
sociais mencionadas inseridas em um lugar de tradição para a continuidade desse sucesso,
referenciado no crescimento, a ser transferido aos seus filhos, como fica evidente nos temas
explícitos nos fragmentos 18 e 19.
Os comerciantes sem expectativas de crescimento têm o sucesso associado a sua
sobrevivência e a da família, bem como à possibilidade de oferecer aos filhos a chance de
substituir a sobrevivência por um trabalho que lhes permita crescerem. A tradição serve para
garantir a continuidade dessa sobrevivência, mas é articulada na tática cotidiana em práticas
204
sociais voltadas a estimular os filhos a não continuarem nessa sobrevivência, substituindo-a
por um trabalho formal. Essas práticas sociais bricoladas podem ser ilustradas pelo
incentivo ao estudo, ou pela disponibilidade de horários de atuação no comércio, necessária
à sobrevivência inicial, que não prejudiquem o estudo, ou pelo uso da rede de
relacionamentos para conseguir empregos formais para os filhos. Essa articulação entre
continuidade, sucesso na sobrevivência e desejo de um emprego formal para os filhos fica
evidente nos fragmentos 20, 21 e 22, inseridos em um contexto de produção discursiva
alinhado com as mencionadas práticas na tática cotidiana.
(20) [...] tem os [filhos] que estudam, que trabalham comigo [na barraca ou no
tabuleiro]. Agora, os que já acabaram o estudo
já estão todos procurando
serviço. Já têm três, que terminaram o terceiro ano, que já estão procurando
trabalho. [...] É isso aí. Está dando para viver. Com um pouco de dificuldade,
mas é assim mesmo (PROPRIETÁRIO 14).
(21) [...] ele [um dos filhos] estudava
, vinha pra cá [para a barraca] de manhã cedinho
comigo, trabalhava
de 7 da manhã até 11 horas. Quando era 11 horas, ele ia para
casa, tomava banho e ia pro colégio, meio-dia. [...] Aí, depois, ele pegou, tirou
documento, arrumou emprego
. Aí, ficou o outro mais novo. Aí, também, agora
ele casou e arrumou um outro trabalho pra ele (PROPRIETÁRIO 5).
(22) [...] [a loja] dá para manter a minha família, meus filhos [...] não quero
eles com uma vida igual a minha não. Eu quero que eles estudem para
trabalhar num serviço bom (PROPRIETÁRIO 21).
Os fragmentos explicitam as manifestações mencionadas, nas quais o afastamento dos filhos
ocorre mesmo que isso custe a perda do apoio do filho na sobrevivência do comércio e da
família, o que pode exigir a substituição por um irmão mais novo, outro membro da família,
ou um funcionário “adotado”, que trabalha sem ser fichado e sem direitos trabalhistas, até
que arranje um emprego com carteira assinada. Essa última perspectiva é distante para
vários desses funcionários com os quais o pesquisador teve contato, pois têm consciência
das dificuldades oferecidas a quem não é jovem e tem baixo nível de escolaridade. Alguns
205
têm cerca de 50 anos e não cursaram todo o ensino fundamental. Sobrevivem, segundo eles
próprios, da Vila Rubim.
Ao expor essas construções, os sujeitos revelaram parte do cotidiano referente à
continuidade do comércio no Mercado. Mas, a continuidade da tradição não se centraliza
apenas em torno das práticas aqui destacadas. Outras, voltadas especificamente para os
clientes, são articuladas no dia-a-dia do Mercado da Vila Rubim.
7.2.2 O cotidiano que envolve o cliente
A face emancipada do cotidiano que envolve o cliente na representação social da Vila
Rubim como um lugar de tradição no comércio na Grande Vitória apresenta, além da
ancoragem hegemônica na themata família/trabalho/sobrevivência, uma outra ancoragem
com base no resultado que o trabalho/sobrevivência dos comerciantes teria gerado: a
fidelidade dos clientes, como se observa nos fragmentos 23 e 24.
(23) Eu compro com Tião desde o tempo em que ele tinha um armazém lá onde
era a feirinha (CLIENTE 8).
(24) Hoje, é Rede Show Supermercados.
Tem gente que vem na loja e fala assim:
“Eu compro no Tião
”. [...] E hoje, eu tenho certeza, que eu devo ter ainda
uma base de uns 30 a 40% de clientes fidelizados
. E hoje supermercado
não tem isso. [...] É o trabalho realizado durante esse tempo todo. Isto aí conta
muito [...] (PROPRIETÁRIO 17).
No fragmento 23, o locutor se coloca como um personagem explícito demarcado pelo
pronome pessoal do caso reto na primeira pessoa do singular, “eu”, e destaca o tema
implícito longevidade do ato de comprar com um dos comerciantes da Vila Rubim,
identificado como o personagem “Tião”. Essa longevidade é evidenciada ao se inserir o
discurso do locutor no gênero comunicativo das conversas coloquiais no mercado da Vila
206
Rubim, identificado nas observações do pesquisador. Nessa inserção, fica claro que o
personagem “Tião”, ao qual o locutor se refere, é o proprietário, de nome Sebastião, de uma
loja no antigo Mercado da Vila Rubim, desativado na década de 1970 e localizado na Praça
Manoel Rosindo. Essa praça é chamada coloquialmente de “Praça da Feirinha”, pois após a
demolição do prédio do Mercado velho houve uma invasão, e lá se instalou uma feira. Dessa
maneira, a respondente se coloca implicitamente como compradora há mais de 30 anos.
Hoje, daquela antiga loja, o “Tião” de quem ela compra é o proprietário de um
supermercado na Vila Rubim, com cerca de 500m
2
, mais de cinqüenta funcionários,
pertencente a uma rede de supermercados com 57 lojas identificadas como Rede Show.
No fragmento 24, o próprio “Tião” destaca como temas explícitos: a relação do seu nome
com a fidelização do cliente; a fidelização dos clientes em seu supermercado na Vila Rubim
é fruto do seu trabalho anterior. Em outros discursos, essa fidelidade é demarca, também,
com a inclusão da idéia de família, na continuidade das compras no mercado da Vila Rubim
de ascendentes para descendentes, tema implícito nos fragmentos 25 e 26.
(25) Ainda tem cliente daquela época [de quando ele começou há cerca de 38
anos] ainda comprando
. [...] Depois vêm os filhos e compram.
(PROPRIETÁRIO 22).
(26) Eu tenho freguês aqui de 35 a 38 anos
. Os velhos já faleceram, mas os filhos e
netos ainda vêm me comprar. [...] Eu tenho freguês que vem lá de Carapina [um
bairro do município de Serra a cerca de 15 km da Vila Rubim] ainda vem aqui na
Vila Rubim: “— Não, me acostumei a comprar aqui
”. Eu não sei se é por causa
da amizade do comércio [...] (PROPRIETÁRIO 13).
No fragmento 25, o personagem “cliente” tem no sentido do substantivo que o identifica o
tema implícito ele está envolto numa relação de consumo. Esse personagem é posicionado
de maneira implícita em três circunstâncias de tempo: no passado, marcado pela expressão
“daquela época”: no presente e no futuro, marcado pelo advérbio “ainda”, ao se referir ao
207
verbo comprar no gerúndio, o que remete o personagem e o seu ato de compra para os
temas implícitos continuidade das compras e fidelidade do cliente. Como o ato de compra
está associado ao de venda, surge o tema implícito alguém está trabalhando para vender
no caso, os comerciantes, um personagem implícito. O tema implícito continuidade das
compras e trabalho de venda do comerciante é reforçado no mesmo fragmento pela
inclusão da personagem explícita “filhos” e a personagem implícita família, associada aos
filhos. Esses personagens seguem a continuidade de seus ascendentes, um tema explícito
marcado pelo advérbio “depois”, referindo-se ao verbo vir no tempo presente, indicando
seqüência no ato de comprar, ato que surge como tema explícito no uso do verbo comprar
no presente.
No fragmento 26, a personagem “freguês” também é associada de maneira implícita aos
temas continuidade e fidelidade no processo de compra. Isso fica claro pela escolha lexical
do substantivo “freguês”, indicando o tema implícito relações de consumo e do verbo ter,
indicando a posse do locutor sobre o “freguês” no processo de comercialização, seguido de
um longo período de tempo referente ao exercício dessa posse: “de 35 a 38 anos”. Esse
longo período remete ao tema implícito da fidelidade do freguês, o que é reforçado,
novamente, com a introdução da personagem implícita família, marcada pelas personagens
explícitas “filhos” e “netos”, representando os descendentes dos antigos fregueses, que
assumem o lugar dos seus ascendentes. Deve-se destacar que nas observações realizadas
pelo pesquisador a família também está associada à continuidade do trabalho do
comerciante na fidelização do cliente, passados de pai para filho, de tio para sobrinho, um
tema implícito no fragmento 27.
208
(27) [...] o cliente, quando chegava na loja, ele falava: “Uai! Mudou de dono? Não
é mais o mercadinho do Tio Élcio?”. “– Olha, mudou. E nós somos sobrinhos do
Tio Élcio...” (PROPRIETÁRIO 24).
Nos fragmentos 25, 26 e 27, o tema tradição está presente de maneira implícita. No
fragmento 26, o locutor oferece alternativas para explicá-lo. Ele faz isso inicialmente pela
escolha lexical do termo “acostumei”, ao “falar” pelo freguês e remeter ao tema implícito de
que a tradição em comprar na Vila Rubim surgiu de uma prática freqüente, um hábito,
perpetuado à medida que foi assimilada pelos fregueses. Em seguida, em conjunto com o
fragmento 28, apresentado a seguir e no qual o locutor se insere no contexto de produção
discursiva do Mercado, surge outro tema, explícito, amizade do comércio. Esse último
remete ao tema implícito existência de um componente afetivo no trabalho de quem vende e
na construção da tradição do cliente comprar na Vila Rubim.
(28) O cliente é amigo. Então, eles não largam a gente de jeito nenhum
(FUNCIONÁRIO 9).
Essa tradição é ainda associada à característica de o Mercado ser um local em que as
pessoas sabem que lá tem de tudo. Ou seja, além do hábito e da amizade, o elo definidor da
tradição seria a imagem construída ao longo dos anos de que lá as pessoas vão sempre que
precisam de algo, pois sempre teve e tem tudo, como se evidencia nos fragmentos 29, 30 e
31.
(29) A vila Rubim, eu conheço desde 73. É um mercado tradicional. Todo mundo
procura vir até o Mercado da Vila Rubim comprar. Tem lugar que eles
não
encontram o que o encontrar no Mercado da Vila Rubim (PROPRIETÁRIO
5).
(30) [...] é aquela tradição que tem a Vila Rubim
. Eu quero uma galinha fresquinha,
eu vou na Vila Rubim. Eu quero comprar um peixe, Vila Rubim. Vo quer
comprar, por exemplo, um caranguejo, um siri, um artesanato, ele
sabe que tudo
ele vai encontrar aqui. (PROPRIETÁRIO 2).
209
(31) O movimento aqui sempre foi muito bom. Vila Rubim é o tipo do comércio, é um
centro comercial que quando você chega aqui, você encontra tudo
. Você sai da
sua casa e: “Bom, eu vou comprar um peixe”. Encontra! “Eu vou comprar um
frango”. Encontra! O que quiser, aqui você encontra tudo. Isso aí é
importantíssimo. Isso atrai muito
. [...] (PROPRIETÁRIO 9).
Os fragmentos 29, 30 e 31, nas escolhas lexicais das expressões – “é um mercado
tradicional”, “todo mundo”, “vão encontrar no mercado”, “tradição que tem a Vila Rubim”,
“sabe que tudo ele vai encontrar aqui”, “O movimento aqui sempre foi muito bom”, “aqui
você encontra tudo”, “isso atrai muito” – apresentam um discurso semelhante, todos tendo
como personagem implícito o cliente, marcado pelas expressões “todo mundo” e “você”, e
pelos pronomes “eles”, “eu”, “ele”, “eu”. Os fragmentos remetem ao tema implícito a
tradição da Vila Rubim está no fato de o cliente procurar e achar o que quer comprar na
Vila Rubim. Isso fica demarcado pelo uso de termos como “tradicional”, “tradição” e
“sempre”, associados a produtos a serem comprados e ou ao ato de comprar. Na observação
do pesquisador, a variedade desses produtos surgiu como um marco da tradição do mercado,
além da variedade típica de qualquer supermercado, já que lá existem vários, com diferentes
dimensões. Os informantes destacaram uma infinidade de lojas específicas, que
comercializam embalagens, produtos religiosos, artigos do vestuário, utensílios domésticos,
produtos hortifrutigranjeiros, pequenos animais domésticos e selvagens, temperos, carne,
peixaria, galinhas vivas, queijos, artigos de caça e pesca, fogos, papelaria e artesanato.
Durante as observações, ficaram evidentes as articulações dos sujeitos numa estratégia
cotidiana em torno de práticas sociais voltadas para a manutenção dessa grande variedade de
produtos comercializados. Aqui, inserem-se as práticas da escolha da gama de produtos
comprados para serem revendidos, da observação do que o cliente quer comprar e do modo
de tratar o fornecedor pessoalmente de maneira a fidelizá-lo, em virtude da dificuldade em
ter onde comprar. Essas práticas levam ao reforço da tradição na estratégia cotidiana a ela
210
associada. Tanto nas entrevistas quanto na observação evidenciou-se que essa variedade de
produtos se dava e se dá tanto nos tipos de produtos como em diferentes níveis de qualidade
e de preço de um mesmo produto. No passado, para alcançar essa variedade de produtos,
havia obstáculos relacionados com a própria dificuldade para comprar, tema explícito no
fragmento 32.
(32) Era a concorrência que tinha na compra naquela época. Era mais difícil
comprar do que vender. Na época de 70, essa época aí, 65, era mais difícil o
comerciante conseguir a mercadoria do que vender. Vender era fácil. Você
botava em cima do tabuleiro, rapidinho vendia tudo (PROPRIETÁRIO 2).
Mas, a despeito dessa dificuldade, por meio da prática social da criação de laços de
amizade com os fornecedores, fidelizando-os, os comerciantes conseguiam suas
mercadorias, tema explícito no fragmento 33.
(33) Eles [os fornecedores] chegavam pra vender e tomavam amizade comigo.
Tomavam amizade comigo e mandavam a mercadoria pra mim pagar depois.
[...] Encostavam o caminhão ali de mercadoria e vendia para quem quisesse
.
[...] Mas o que vinha para mim era pra mim mesmo. Tá vendido
(PROPRIETÁRIO 1).
Deve-se ressaltar que no fragmento 33 o proprietário está se referindo a um período anterior
à década de 1970, antes da organização dos fornecedores na CEASA e da disseminação das
distribuidoras de produtos diversos no Espírito Santo. Mas essa mesma lógica foi observada
pelo pesquisador em 2006, quando acompanhou e observou, em duas oportunidades,
comerciantes em suas compras na CEASA. Como os produtos hortifrutícolas são sazonais e
dependem de condições climáticas favoráveis, em determinadas épocas há uma queda na
produção, e fica muito difícil conseguir alguns produtos. Na observação, verificou-se que
esses produtos colocam em jogo a relação de afinidade entre os comerciantes e os
fornecedores (comumente agricultores e, algumas vezes, atravessadores de produtos
agrícolas), envolvendo o acesso a esse produto “difícil”.
211
Os próprios fornecedores e comerciantes, em conversas coloquiais com o pesquisador,
indicaram que aquela relação de afinidade é fruto de uma longa trajetória de negociações
bem-sucedidas, em que um ajuda o outro agora e é ajudado depois. No caso do agricultor,
esse “depois” ocorre quando há uma oferta maior do que a demanda de determinada
mercadoria. Dá-se o que eles chamam de estar “boiado”, termo que indica mercadoria
sobrando, sem conseguir comprador. Nesse momento, surge a prática social dos
comerciantes com os quais se tem afinidade: eles se apresentam como uma fonte segura de
escoamento de parte da produção agrícola. Além disso, essa afinidade se estende até à
prática dos pagamentos, para uns, sem ligação, só em dinheiro; para outros, de confiança,
até “fiado” sem anotar. Esse último, aparentemente, reforça os laços de confiança. Portanto,
desde muitas décadas, até a atualidade, as práticas dos comerciantes se voltam para a
construção de laços de afinidade com seus fornecedores, o que permite a manutenção da
tradição da variedade de produtos no mercado.
Especificamente em relação à composição dessa variedade, é possível destacar três práticas
sociais a ela relacionadas, todas articuladas na estratégia cotidiana: a) além de buscar
determinada variedade de produtos, o comerciante define o seu nível de qualidade e preço
de acordo com os seus clientes; b) o comerciante busca a inovação ou a novidade dos
produtos como parte da tradição da variedade; e c) o comerciante busca produtos com
características ou preços que poucos ou que nenhum comerciante têm acesso. A primeira
dessas práticas sociais está explícita no fragmento 34.
(34) Um comprava a mercadoria de primeira, outro de segunda, outro de terceira. Aí
que vinha os clientes. Igual tomate. Hoje em dia, por exemplo, o tomate e
batata, tem o extra, tem o segunda e tem o primeira. A diferença tá aí em
qualidade. [...] uns trabalhavam com mercadoria de primeira, aí vendia
mais caro, né. De acordo com o cliente. E tinha os outros que vendiam
mercadoria de segunda, com um preço mais barato. E tinha aqueles clientes
212
procurando um preço mais barato. É por isso que todo mundo vendia
(PROPRIETÁRIO 2).
Fica claro no fragmento 34 o tema implícito havia uma variedade de produtos que incluía
diversos níveis de qualidade de um mesmo produto entre os comerciantes. Além desse tema,
o fragmento apresenta um outro, também implícito: a variedade de qualidade e,
conseqüentemente, de preço viabilizava o trabalho de vender dos comerciantes. Esses temas
reforçam a relação entre o trabalho de vender e a tradição associada à variedade de produtos,
sendo marcados pelos trechos: “Um comprava a mercadoria de primeira, outro de segunda,
outro de terceira”, “vendia mais caro”, “preço mais barato”, “tinha aqueles clientes
procurando” e “por isso que todo mundo vendia”.
Outro tipo de variedade destacada foi a da inovação. Os comerciantes praticam a inovação
ou a novidade dos produtos como parte da tradição da variedade. No fragmento 35 isso é
colocado de maneira explícita no tema da tradição da novidade.
(35) As coisas estão inovando, e as pessoas estão procurando inovação. Então,
você não pode ficar 25 anos com a mesma coisa. Então, você tem que
ter aos 25 anos: “Pô! Eu vou naquela loja lá porque é uma loja tradicional
.
Provavelmente, eu encontro o produto que eu estou querendo, que é uma
novidade”. Ele confia nisso, porque eu vou buscar a novidade
(PROPRIETÁRIO 23).
Ao acompanhar um dos barraqueiros em suas compras na CEASA, ele próprio revelou que
já sabia quase tudo o que ia comprar, mas sempre incluía uma novidade para os clientes
quando estava comprando.
Outra prática consiste em buscar produtos com características ou preços que poucos ou
nenhum comerciante têm acesso, ampliando a variedade de produtos no Mercado, como se
evidencia explicitamente nos fragmentos 36 e 37.
213
(36) Aqui na Vila Rubim ainda o que prevalece é a tradição da Vila Rubim e
alguns produtos diferenciados. Por exemplo, o Ribeiro. Ele trabalha com
alguns produtos ali que você não acha por aí em qualquer lugar
(PROPRIETÁRIO 17).
(37) Meu produto é mais da roça
, porque eu tenho muito conhecimento. Então,
através dos meus colegas na roça
, eu vou e pego. Se na CEASA uma caixa
de banana vale oito reais
, lá na roça eu pego a seis, cinco (PROPRIETÁRIO 5).
Os dois fragmentos são convergentes com as observações do pesquisador, nas quais se
verificou que no sentido dessas práticas alguns comerciantes traziam produtos do Norte ou
Nordeste, comumente, não perecíveis ou produtos secos. Nessa lógica de trabalhar com
produtos diferenciados, alguns comerciantes mudaram até de segmento, como dois
comerciantes de produtos hortifrutícolas entrevistados, que passaram a trabalhar, aos
poucos, com ervas medicinais e logo pararam de trabalhar com produtos hortifrutícolas,
concentrando-se nas ervas. Outros dois comerciantes de produtos hortifrutícolas ampliaram
sua variedade de produtos, incluindo secos e molhados, dando origem a dois supermercados
na Vila Rubim. Já entre comerciantes que permaneceram com produtos hortifrutícolas nas
barracas e nos tabuleiros, um deles buscava comprar no interior, chamada de “roça”, sem
passar pela CEASA, conseguindo preços mais baixos. Mas o problema da escala de compra
e venda se apresenta como um obstáculo, pois o produto é perecível e todo o estoque precisa
girar rapidamente. A solução praticada foi abdicar da exclusividade e fornecer para parte
de seus “amigos”, tema explícito no fragmento 38.
(38) Não fica tudo para mim, eu distribuo [...] eu mesmo forneço pros próprios
meus amigos aqui da Vila Rubim. Eu tenho um preço melhor pra eles. Pego
da roça, ponho aí e, em vez de pagar na Ceasa 10 reais
(com frete com tudo
vai chegar aqui a 12 reais), eu bato pra eles aqui a 9 reais (PROPRIETÁRIO
5).
Há um silenciamento por parte do locutor sobre lucros que ele poderia obter com essa
distribuição, mas as escolhas lexicais do verbo distribuir e do substantivo preço remetem,
214
segundo o gênero comunicativo das conversas coloquiais no mercado da Vila Rubim,
respectivamente, à idéia de uma atividade a ser remunerada e ao lucro. Ou seja, neste gênero
quem distribui deve ser remunerado pelo seu esforço e quem define preço inclui nele algum
lucro. Portanto, os trechos “eu distribuo”, “Eu tenho um preço melhor”, no fragmento 38,
remetem ao tema implícito há uma compensação financeira pela perda da exclusividade de
acesso a produtos com preços mais baixos. Como esses amigos comercializam praticamente
lado a lado, fica o tema implícito da ausência de competição entre eles, o que permite
entender o compartilhamento que viabiliza a variedade de produtos deles, e não entre eles.
Nas observações do pesquisador, evidenciou-se que aqueles que possuíam um espaço maior,
pois ocupavam mais de uma barraca, apresentavam maior variedade dos produtos, mas boa
parte desses produtos era semelhante em todas as barracas, e os preços eram iguais. Os
produtos são vendidos em bacias. Dependendo do produto, duas bacias custam um real ou
uma bacia custa um real. O máximo que se observa são algumas barracas com bacias mais
cheias do que outras, o que foi explicado por um comerciante como sendo a prática deles
para vender mais rápido, quando os produtos começavam a estragar.
Aparentemente, a competição entre eles se restringe a variações no volume de produtos nas
bacias e à busca por fidelizar o cliente por meio do diálogo, da oferta de brindes (algumas
pimentas, um limão, uma espiga de milho a mais na sacola...) e da venda fiado. Como
conseqüência, aquele compartilhamento da variedade do preço mais baixo se viabiliza, em
conjunto com outras práticas observadas pelo pesquisador, destacando-se a compra conjunta
na CEASA, quando alguns comerciantes vão em grupo. Lá, eles trocam informações sobre
os produtos oferecidos e cada um compra e paga o que é seu. Em seguida, o grupo reúne as
mercadorias e divide o frete, trazendo a mercadoria em conjunto para o mercado, cada um
arrumando o seu tabuleiro ou a sua barraca. Esta prática, já destacada na face emancipada
215
das relações pessoais na representação social do comerciante da Vila Rubim como um
homem devotado ao trabalho, ilustra o imbricamento das diferentes faces, na medida em
que elas permeiam as práticas sociais dos sujeitos.
Em relação à face discutida neste tópico, essa prática, em conjunto com as outras
destacadas, revela que, no caso dos barraqueiros e dos que trabalham nos tabuleiros, a
tradição da variedade não está apenas na diferença entre as barracas ou tabuleiros de
produtos hortifrutícolas, que não é tão grande, mas em uma variedade comum a elas, obtida
e sustentada por construções sociais que incluem as mencionadas relações pessoais entre os
comerciantes. Nesse sentido, a novidade de um pode ser a novidade de todos, sendo um
atrativo conjunto de clientes. No lugar de ser apenas um fator que diferencia os
comerciantes, pode também distinguir o conjunto deles e o próprio mercado. Ou seja, as
práticas destacadas ao discutir a face emancipada em questão se inserem na estratégia
cotidiana dos comerciantes, demarcada dentro do lugar de um próprio idealizado em torno
da ordem estabelecida na tradição do cliente e de seus descendentes durante muitos anos, de
comprarem e buscarem a variedade de produtos do Mercado, um processo no qual eles se
habituam, criam laços de amizade e se envolvem na representação social da Vila Rubim
como um lugar de tradição no comércio na Grande Vitória.
Essa representação social inclui ainda uma terceira face, que, em conjunto com as já
discutidas, converge para a construção da representação em questão. Mas essa terceira face
se distingue das anteriores por incluir construções que enfatizam três tipos de comércio
específicos: grandes supermercados; peixaria; e abatedouro de galinha.
216
7.2.3 O casamento entre a mídia dos grandes, o peixe e a galinha
Na terceira face da representação social da Vila Rubim como um lugar de tradição no
comércio na Grande Vitória, a tradição surge como algo construído em torno de três
aspectos específicos: a) iniciativa dos grandes supermercados de investir em mídia, para
divulgar suas lojas e, conseqüentemente, a região em torno delas – no caso, a Vila Rubim –,
contribuindo para manter o comércio na região; b) existência de uma peixaria que seria
referência no comércio de peixe fresco na região da Grande Vitória; e c) exclusividade de
contar com um abatedouro de galinhas no qual as pessoas podem escolher a ave a ser
abatida e levá-la fresca para casa. Quando esses aspectos foram enfatizados nos fragmentos
39 e 40, fica como tema implícito que a falta deles prejudicaria em muito o movimento de
comercialização no mercado da Vila Rubim e, conseqüentemente, a tradição em torno
dessa comercialização, que, portanto, giraria em torno deles.
(39) Se a galinha [o abatedouro de galinha] sair aqui da Vila Rubim cai 70% do
movimento. Se a peixaria sair daí, já era. Todo dia passa muita gente aí.
Semana Santa então, lota. Parece até uma discoteca de tanta gente. Final de mês
também (PROPRIETÁRIO 14).
(40) [...] suponhamos que essas duas lojas
[Rede Show e Extrabom, os dois maiores
supermercados] saíssem da Vila Rubim hoje. [...] o movimento cairia de 100 para
30%. Eu não tenho dúvida disso. Eu não tenho medo de errar. [...] Porque hoje
sem mídia é impossível tentar correr atrás de alguma coisa
. (PROPRIETÁRIO
17).
Ao analisar os fragmentos 39 e 40, deve-se destacar o contexto de produção do discurso de
cada um. O fragmento 39 tem como locutor o proprietário de um tabuleiro de hortifrutícolas
em frente à peixaria e ao lado do abatedouro de galinhas, onde ele manifestou a locução. Já
o fragmento 40 tem como locutor o proprietário de lojas de supermercado, dentre as quais
uma é a da Rede Show, mencionada no fragmento, onde ocorreu a entrevista que levou ao
fragmento. Essa contextualização permite vislumbrar que existem interesses e vivências
217
norteando dois temas explícitos: no caso do fragmento 39, o de que o movimento na Vila
Rubim cairá se o abatedouro de galinha ou a peixaria saírem de lá; no caso do fragmento
40, o de que o movimento na Vila Rubim cairá se os dois maiores supermercados saírem de
.
Os dois temas têm relação com o grande fluxo de pessoas em torno do supermercado, da
peixaria e do abatedouro de galinha, como foi observado pelo pesquisador. Entretanto, não
cabe aqui uma pesquisa de mercado para verificar se é o Mercado que atrai mais clientes
para esses estabelecimentos ou se são eles que atraem mais clientes para o Mercado como
um todo. O que interessa aqui é a articulação da dimensão emancipada da representação
social da Vila Rubim como um lugar de tradição no comércio na Grande Vitória em
torno dessas questões. Ou seja, a despeito de os respondentes não se basearem numa
pesquisa de mercado dita científica, eles têm suas construções sobre o tema. Isso é que
interessa a este estudo. Mesmo no caso dos comerciantes de hortifrutícolas, que não atuam
diretamente nos três tipos de atividades, alguns destacam a existência das três ou de uma
delas como base da explicação do que atrai clientes para comprar seus hortifrutícolas,
mesmo quando os produtos que comercializa já são vendidos nos bairros e, até, nos
supermercados.
Nessas construções, os sujeitos alinhados com o tema explícito no fragmento 39 articulam a
tradição da compra e do movimento no Mercado com a preferência das pessoas por peixe e
frango fresco, produtos destacados como sendo algo difícil de encontrar em outros lugares.
Deve-se ressaltar que eles não desconhecem a existência de colônias de pescadores na
Grande Vitória e da comercialização desses produtos em feiras livres na região, pois na
observação do pesquisador verificou-se que eles freqüentam e ou citam esses lugares no dia-
218
a-dia. Mas, quando articulam o tema em questão, qualquer menção a respeito de tais lugares
permanece silenciada. Aparentemente, essa prática de omitir no discurso a existência desses
concorrentes não tem relação com a manutenção racional e instrumental de uma farsa sobre
o destaque desses dois segmentos no Mercado da Vila Rubim. No lugar de uma farsa
instrumental, surge a construção social de uma realidade vivenciada pelos comerciantes,
pois à prática do silenciamento discursivo se somam outras: buscar posicionar-se perto da
peixaria para vender seus produtos hortifrutícolas, como no caso de um barraqueiro
observado alugando um tabuleiro próximo da esquina entre a peixaria e o abatedouro de
galinha e passando a atuar lá concomitantemente com sua barraca de hortifrutícolas; e
aumentar os estoques de produtos hortifrutícolas em épocas nas quais o consumo e a
procura pela galinha e pelo peixe é maior, como finais de semana, véspera de feriados e, no
caso do peixe, na véspera de alguns dos chamados dias santos
23
, quando só eles são
consumidos por muitas pessoas, com base em tradições religiosas.
Tais práticas sociais se inserem como estratégia cotidiana, demarcadas no lugar de um
próprio, de uma ordem que permite calcular seu resultado com base em uma exterioridade
visível e destacável no ambiente: a partir delas, vender mais hortifrutícolas, em virtude da
movimentação em torno da venda de frango e peixe frescos, pois são a base da tradição de
comprar no mercado. Tais práticas, por sua vez, reforçam essas construções.
23
No passado, os adeptos da religião Católica defendiam que a carne deveria ser substituída pelo peixe na
Quarta-feira de Cinzas e nas Sextas-feiras durante o período de quarenta dias da quaresma, até a Sexta-feira da
Paixão. Atualmente, esse hábito é mais comum na Sexta-feira da Paixão, quando há um grande aumento na
demanda de peixes no mercado da Vila Rubim.
219
No fragmento 40, evidencia-se uma construção distinta da anterior, com base no tema
explícito o movimento na Vila Rubim cairá se os dois maiores supermercados saírem de lá.
Ela se articula em torno do tema mídia, que está expresso de maneira explícita no próprio
fragmento, no trecho: “sem mídia é impossível tentar correr atrás de alguma coisa”. Isso
remete ao tema implícito os supermercados são reconhecidos pelo seu potencial para
investir na divulgação de suas lojas, por meio da mídia, o que divulga o mercado e
contribui para o movimento. Os supermercados são marcados como personagens implícitos,
pois estão associados ao personagem explícito “lojas”, que antecederam o trecho destacado.
No sentido dessa construção, em suas observações, o pesquisador se deparou com a prática
dos supermercadistas de anunciarem em jornais, rádio, TV, carros de som e panfletos suas
promoções. Todas essas práticas estão inseridas na estratégia cotidiana no lugar de um
próprio, de uma ordem estabelecida em torno da face emancipada em questão. Da mesma
maneira que o pesquisador, outras pessoas observaram essas manifestações, citando-as
durante a investigação e articulando-as na construção social relativa à importância dos
supermercados para a continuidade da tradição no comércio da Vila Rubim.
Essa construção encerra aquelas referentes à face emancipada do casamento entre a mídia
dos grandes, o peixe e a galinha. Em conjunto com a face emancipada da continuidade do
comércio e a face emancipada do cotidiano que envolve o cliente, têm-se as construções
aqui inseridas no que foi chamado de “representação social da Vila Rubim como um
lugar de tradição no comércio na Grande Vitória”. Como um todo, a representação
social em questão permitiu delimitar a estratégia e a tática cotidianas no contexto
organizacional dos comércios de hortifrutícolas no tocante às construções sociais sobre a
tradição de comprar no Mercado. Mas, como qualquer representação social, ela não existe
isolada. No caso do Mercado da Vila Rubim, além de ser articulada com a representação
220
social do comerciante da Vila Rubim como um homem devotado ao trabalho, já
discutida, uma terceira representação veio somar-se às duas primeiras: a representação
social das mudanças no Mercado da Vila Rubim como conseqüência dos eventos do
dia-a-dia rebatidos em demandas do e sobre o Estado e o comerciante. Essa última
compõe o quadro final das representações sociais evidenciadas pelo pesquisador como
articuladas pelos sujeitos no cotidiano do Mercado. Por meio dela, os sujeitos lidam com o
desconhecido do que leva às mudanças no Mercado. Tal construção compreende todas as
práticas apresentadas até aqui, que também estão envolvidas nas mudanças no Mercado da
Vila Rubim, e inclui outras práticas sociais, discutidas a seguir.
7.3 Por que o mercado muda?
Para lidar com o desconhecido dos motivos pelos quais o Mercado da Vila Rubim se altera,
os sujeitos de pesquisa associam as representação sociais já discutidas a uma outra, aqui
identificada como a representação social das mudanças no Mercado da Vila Rubim
como conseqüência dos eventos do dia-a-dia rebatidos em demandas do e sobre o
Estado e o comerciante. Esta representação se ancora tanto no terno
família/trabalho/sobrevivência quanto na díade público/privado. Essa última demarca
articulações na estratégia e tática cotidiana em práticas sociais voltadas para a apropriação e
significação de espaços públicos e privados.
As relações entre as representações sociais discutidas e a que será aqui tratada ficam
evidentes quando se observa a questão da mudança em torno de construções sociais já
destacadas. Por exemplo: na distinção entre trabalho, que pressupõe mudança para suportar
o crescimento e a sobrevivência, que pressupõem adaptação às dificuldades existentes; e na
221
continuidade do comércio, que pressupõe a mudança na propriedade ou direito sobre o
espaço, muitas vezes público, para alguém da família ou adotado.
Mas a representação social das mudanças no Mercado da Vila Rubim como
conseqüência dos eventos do dia-a-dia rebatidos em demandas do e sobre o Estado e o
comerciante envolvem construções que enfatizam especificamente a questão da mudança,
inserida em três faces emancipadas identificadas nesta tese como: a) das demandas das e
sobre as instituições públicas; b) da privatização do espaço público; e c) das pressões
concorrenciais. A primeira mais voltada ao Estado, a segunda envolve de maneira
intermediária o Estado e o comerciante e a terceira privilegia a lógica da concorrência
privada. Da ancoragem nas thematas família/trabalho/sobrevivência e público/privado, essas
faces emancipadas remetem a construções que, apesar de serem distintas, coexistem, cada
uma sendo objetivada, respectivamente, em figuras como: os representantes do Estado em
ação ou omissão; o direito de uma pessoa transferir o uso do espaço público para outra
pessoa; o incêndio que levou à destruição dos galpões velhos e à construção dos novos
galpões pela Prefeitura; a expansão dos supermercados e dos kilões, levando os pequenos
comerciantes a mudarem de ramo ou a venderem seus direitos a outros comerciantes, que
cresceram. A análise de cada uma delas e das práticas sociais que as articulam permitiu
evidenciar práticas sociais dos comerciantes de hortifrutícolas inseridas na estratégia e na
tática cotidiana articulada no Mercado da Vila Rubim.
7.3.1 As demandas das e sobre as instituições públicas
A face emancipada das demandas das e sobre as instituições públicas surgiu objetivada
em figuras associadas a demandas no cotidiano que envolvem questões como: destruição
222
pelo incêndio, segurança, infra-estrutura, fiscalização e fluxo de clientes. Entre muitas
delas, há certa inter-relação, ligada aos impactos de uma na outra, na medida em que uma é
mais ou menos atendida pelo Estado. Este último também uma figura na objetivação desta
face.
Nesse atendimento das demandas no Mercado, evidenciaram-se duas articulações comuns
por parte dos sujeitos de pesquisa em torno das instituições públicas: a) obrigação das
instituições públicas de atender às demandas do Mercado e, conseqüentemente, dos
comerciantes; e b) demandas das instituições públicas sobre os comerciantes do Mercado.
No cotidiano, as duas se confundem, pois, para os sujeitos de pesquisa, a omissão em
relação à primeira ou às maneiras de lidar com ela leva à segunda. Isso ficou claro por meio
de construções sociais nas quais acontecimentos pontuais e marcantes, como o grande
incêndio de 1994, ou questões cotidianas relacionadas com a falta ou a existência de
segurança e de infra-estrutura comumente levam os sujeitos a mencionarem ações e
omissões das instituições públicas e de seus representantes. Aqui, surge o chamado
“governo”, nas instâncias federal, estadual e municipal, na figura de políticos e ou
funcionários públicos, com destaque para os chefes do executivo, os membros do
Legislativo, os fiscais e as polícias, como se observa nos fragmentos a seguir.
(41) [...] o começo desta melhora da Vila Rubim foi no governo do prefeito Paulo
Hartung e, depois, no prefeito Luiz Paulo. [...] E, agora, o novo prefeito deu
uma parada. Parece que para reformular os projetos que haviam. E, agora,
parece que está começando de novo a construção do resto que precisa.
Eu não sei até quando vai, porque o órgão público, às vezes, ele falta também
capital ou alguma coisa, mas está indo (PROPRIETÁRIO 13).
No fragmento 41, os trechos sublinhados remetem ao tema explícito as melhorias ocorridas
na Vila Rubim estão associadas à gestão de determinados prefeitos, que podem interrompê-
las ou continuá-las. Os prefeitos surgem como personagens explícitos no fragmento, bem
223
como a figura do “órgão público”, este último associado ao tema explícito “falta de capital e
de outras coisas”, que remetem ao tema implícito além da vontade do prefeito, existem
restrições nas instituições públicas que podem levar às interrupções das melhorias. Aqui, a
identificação dessas melhorias é algo silenciado, bem como a identificação de qualquer
articulação em termos de práticas dos sujeitos de pesquisa sobre os prefeitos, na direção de
eles atenderem alguma demanda específica. Mas tal silenciamento se refere apenas ao corte
do fragmento realizado pelo pesquisador, pois os respondentes comumente apresentaram
explicitamente essas construções sociais, como nos fragmentos 42, 43 e 44.
(42) [...] vai ser polícia, direto, direto, e ele [o dono do bar] não vai ficar ali por
muito tempo. Até mesmo as mulheres vão sair dali. [...] este é o problema da
Vila Rubim hoje: a prostituição (ADMINISTRADOR DA PREFEITURA 1).
No fragmento 42, o pronome “ele” se refere ao personagem “o dono do bar”, como fica
implícito em virtude da inserção contextual oriunda de trechos do discurso anteriores ao
fragmento destacado. Outros dois personagens explícitos são a “polícia” e as “mulheres”. O
primeiro está associado ao tema implícito de que a polícia vai abordar continuamente as
pessoas no bar em questão, como fica demarcado pela escolha lexical do advérbio “direto”,
no sentido de continuidade, referindo-se à polícia, seguido de um trecho sublinhado que leva
ao tema explícito o dono do bar não vai ficar onde está por muito tempo. Por sua vez, a
personagem explícita mulheres surge associada ao tema explícito sairão de lá,
implicitamente associadas aos temas já destacados referentes à atuação da polícia, à saída do
dono do bar e ao tema explícito o problema da Vila Rubim hoje, a prostituição. Juntos,
esses temas remetem a dois temas implícitos: as mulheres no bar são prostitutas e,
portanto, o problema da Vila Rubim; e o Estado, por meio da polícia, está trabalhando
para resolver esse problema.
224
Aqui, é importante destacar um aspecto do contexto de produção do discurso referente ao
fragmento 42. O locutor é um funcionário público municipal que cuida de parte da
administração do Mercado. Portanto, tem conhecimento das práticas desenvolvidas pela
administração pública. Mas tais práticas, apesar de estarem demarcadas no espaço do
próprio, da ordem estabelecida delineada pela face na representação social aqui tratada, não
são desenvolvidas pelos comerciantes e tampouco pelos que trabalham com produtos
hortifrutícolas. Portanto, não são práticas desse grupo. Entretanto, os sujeitos atribuem a
elas a condição de serem, mesmo parcialmente, resultado de práticas construídas por eles
próprios, como fica explícito nos fragmentos 43 e 44.
(43) [...] não tem tanto trombadinha, ladrão, igual nós passamos uma época aqui [no
mercado] [...] Eu atribuo isso hoje ao policiamento que nós temos aqui [...] a
prefeitura, com os guardas municipais
aí rodando, e a polícia também. [...] Eu
acho que eles resolveram, devido à necessidade e, um pouco também, à
Associação buscar isso (PROPRIETÁRIO 22).
No fragmento 43, a expressão “não tem tanto” apresenta os advérbios “não” e “tanto”, que,
respectivamente, negam e expressam a intensidade da existência dos personagens explícitos
“trombadinha” e “ladrão”. Em seguida, o trecho “igual nós passamos uma época” remete,
implicitamente, à intensidade da existência dos personagens para o passado e a negação
dessa intensidade para o presente. Essa negação é reforçada pelo tema explícito a condição
atual é atribuída ao policiamento, aos guardas municipais, gerenciados pela Prefeitura, e à
polícia. Aqui, os substantivos policiamento, polícia e guardas remetem ao tema implícito
segurança. Em conjunto, os elementos discursivos presentes no fragmento demarcam o
tema implícito a segurança no mercado mudou para melhor. Nos últimos dois trechos
sublinhados, surgem, explicitamente, dois temas que justificam essa mudança: necessidade;
e busca da associação.
225
O primeiro tema é demarcado no trecho “eles resolveram devido à necessidade”. Apesar do
silenciamento sobre o que é necessário, pelo contexto discursivo em questão, esse tema
reforça implicitamente o tema antes havia grande insegurança e necessidade de segurança,
também relacionado com a maneira como foram apresentados os personagens explícitos
“trombadinha” e “ladrão” no início do fragmento, pois o trecho “não tem tanto” indica a
redução de algo intenso, que permanece com menor intensidade. No trecho, o pronome
“eles” é antecedido do uso dos substantivos “Prefeitura” e “polícia” e do adjetivo
“municipal”, o que remete ao personagem implícito instituições públicas e, em conjunto
com as construções anteriores, ao tema implícito o Mercado mudou, passando a ter maior
segurança, pelo fato de as instituições públicas reagirem à necessidade de fazer algo sobre
o grande nível de insegurança existente, resolvendo o problema. Entretanto, essa não é a
única justificativa para a mudança, pois o trecho seguinte “e, um pouco também, à
associação buscar isso” demarca o tema implícito a necessidade divide “um pouco” do seu
espaço com outra justificativa para a mudança, apresentada como tema explícito: a busca
da associação.
No contexto de produção discursiva do fragmento, a associação a que o locutor se refere é a
ACVR, criada e sustentada a partir de práticas sociais cotidianas, como: reuniões, eleição do
presidente e pagamento de mensalidades. A partir dessas práticas, a ACVR busca atender
determinadas às demandas de seus membros. Nesse contexto e a partir das construções
destacadas em relação aos dois últimos trechos apresentados, remete-se ao tema implícito
aquelas práticas são um pouco responsáveis pela atuação das instituições públicas. Nesse
sentido, nas observações do pesquisador e nas entrevistas, os respondentes manifestaram
práticas tanto como membros da Associação, já destacadas, quanto aquelas que eles
atribuem à própria “Associação”, como um personagem específico. No caso, seriam as
226
práticas da Associação, articuladas com as práticas daqueles que fazem parte dela, ambas
inseridas na estratégia cotidiana demarcada no lugar de um próprio sustentado no papel e na
legitimidade do Estado em agirem nas mudanças do Mercado. Essas práticas da Associação,
em alguns casos figuradas pelo seu presidente, são evidenciadas no fragmento 44.
(44) [...] na questão da segurança, o Guia de Monitoramento é um projeto
nosso [...] a Associaçãotem a autorização da obra por parte dos seus
associados, de 150 mil reais, mas não conseguimos fechar a parceria nem com o
estado e nem com o município [...] entendemos que a responsabilidade de
implantação e a utilização destas imagens têm que ser de ordem pública [...]
são 36 câmaras que ficarão monitorando toda a área do Mercado [...]
Investiu-se nos flanelinhas [...] Só em cadastrar, em parceria com a Polícia
Militar e com a Polícia Civil, já tiramos uns 5 ou 6 que viviam na
marginalidade se ocultando neste espelho de flanelinha [...].Nós temos uma
interatividade com a Polícia Militar em todas as instâncias [...] mas isto não
impede que eu vá a imprensa e reclame que a segurança está falhando nisto e
nisto (PRESIDENTE DA ACVR).
No fragmento, a partir dos trechos sublinhados, fica implícito o tema os investimentos da
associação em segurança dependem das ações das instituições públicas municipais e
estaduais. Esse tema é demarcado por outros dois temas explícitos: a Associação não
conseguiu parceria nem com o estado nem com o município para o desenvolvimento do
projeto das câmeras de monitoramento, uma responsabilidade de ordem pública; e em
conjunto com a Polícia Civil e a Polícia Militar, a Associação investiu no cadastramento
dos flanelinhas, conseguindo tirar 5 ou 6 marginais ocultos no espelho de flanelinha. Os
dois temas expressam articulações público/privada entre instituições públicas e a
Associação em torno da demanda por um maior segurança. A diferença é que no primeiro
tema a articulação não atende a essa demanda, ao passo que no segundo há esse
atendimento. Aqui, surgem as práticas de investir recursos em infra-estrutura, em
cadastramentos e parcerias inseridas na estratégia cotidiana alinhada com a face na
representação em questão.
227
Outras práticas, voltadas para a articulação com as instituições públicas em relação às
demandas, são destacas nos temas explícitos existe interatividade com a Polícia Militar e
essa interatividade não impede que o representante da Associação vá para a imprensa
reclamar de falhas específicas na segurança. Aqui, as práticas referentes à manutenção da
interatividade, como as reuniões com o comandante do policiamento da região, inserem-se
na estratégia cotidiana no lugar do próprio já mencionado. De outro lado, a prática de expor
as falhas na mídia para pressionar as instituições públicas, ao mesmo tempo em que reforça
e parte da necessidade de articulação com as instituições, elementos do lugar do próprio em
questão, perverte essa ordem nele estabelecida, pois demarca um espaço de transgressão, no
qual reina a crítica. No caso, há exposição da omissão e a instituição é colocada como mais
uma fonte do problema que caberia a ela resolver, sendo ela própria apresentada como uma
das origens dos problemas. Aquele lugar privilegiado oferece elementos bricolados no
espaço de transgressão na qual se articula a tática cotidiana. Nele não há a fronteira entre a
solução e o problema em relação às instituições públicas.
Outros temas que mostram as práticas nessa relação entre os interesses privados e a ação das
instituições pública envolvem as mudanças nas atribuições dos espaços do Mercado,
inclusive de um espaço livre de cobrança de impostos, como se evidencia nos fragmentos
45, 46 e 47.
(45) Eles [os clientes] sabem que aqui [nas barracas] tem o açúcar mascavo,
a rapadura, e é mais barato porque saiu do imposto. [...] Então, o imposto ele
só pagou lá [nas lojas], porque a feira-livre é livre do imposto também
(FUNCIONÁRIO 2).
(46) Aqui
[no Mercado] era tipo um terminal de ônibus [...] Então, aqui fazia uma
baldeação, e por isso que o movimento aqui era intenso. O comércio era muito
bom, e hoje já isso não existe. Tem terminais diretos aí. [...] E todo mundo
sentiu um abalo com isso (PROPRIETÁRIO 10).
228
(47) [...] com o CEASA lá [no município de Cariacica] ficou pior, porque agora tem
que pagar frete, pagar isto, pagar aquilo. Já aqui não dependia disto. Comprava
aqui mesmo, aqui vendia (FUNCIONÁRIO 4).
No fragmento 45, o tema explícito feira-livre isenta de imposto sustenta a prática
comumente observada pelo pesquisador do uso do argumento de que os produtos nas
barracas e nos tabuleiros em frente à peixaria são mais baratos. Essa prática, na medida em
que inclui o argumento da isenção de impostos como uma diferença em relação a outras
áreas que pagam impostos, enquadra-se como uma estratégia cotidiana legitimada no lugar
do próprio das instituições públicas com autonomia para definir as fronteiras de quem paga
ou não impostos. Mas essa autonomia para mudar as atribuições dos espaços do Mercado
nem sempre leva a uma construção na qual este estabelecimento e seus comerciantes são
vistos como beneficiados. Nesse sentido, no fragmento 46, surgem dois temas explícitos: o
primeiro, ao ser demarcado pelo verbo ser no pretérito “era”, remete ao passado: o tema
explícito o mercado era como um terminal de ônibus onde eram feitas as baldeações, o que
levava a um movimento intenso e a um comércio que era muito bom; o segundo, ao ser
demarcado pelo advérbio “hoje”, insere-se no tempo presente: o tema explícito hoje tem
terminais diretos e todo mundo no mercado sentiu um abalo.
Como a gestão dos terminais se dá por meio de uma instituição pública estadual, a
Companhia de Transportes Urbanos da Grande Vitória (CETURB-GV), a referida mudança
é fruto da ação pública, na qual a definição das instalações de terminais e de pontos de
ônibus não tem impacto apenas em quem utiliza o transporte coletivo, mas, também, em
quem quer comercializar produtos para essas pessoas.
Portanto, com base nessa contextualização e nos dois temas explícitos apresentados, surge o
tema implícito a ação de uma instituição pública na implantação de terminais diminuiu o
229
número de passageiros de ônibus circulando nas proximidades do Mercado e,
conseqüentemente, piorou a situação do comércio na região. Ou seja, à medida que a
atribuição de terminal de ônibus se afasta do Mercado, há um impacto negativo no
comércio. Nessa mesma linha, o fragmento 47 apresenta como tema explícito a existência
de implicações negativas para o Mercado, em virtude de a CEASA ter sido transferida da
Vila Rubim para outro lugar.
A gestão da CEASA no Espírito Santo, realizada por uma instituição pública federal, a
Companhia Brasileira de Alimentos (COBAL), na época, início de década de 1980, decidiu
transferir o atacado do comércio de hortifrutícolas da Vila Rubim para a CEASA do Espírito
Santo, construída no município de Cariacica. Essa mudança na atribuição do espaço do
Mercado foi destacada como prejudicial para os comerciantes de produtos hortifrutícolas,
em virtude de uma questão que surge como tema explícito no fragmento 47, a necessidade
de fazer frente a custos adicionais, em virtude das compras deixarem de ser realizadas no
próprio mercado. Uma prática social dos pequenos comerciantes de produtos hortifrutícolas
para fazer frente a esses custos foi a ajuda mútua, na qual alguns dividem os custos,
viabilizando o seu comércio. Essa prática já foi apresentada nas faces emancipadas do
cotidiano que envolve o cliente e das relações pessoais, respectivamente, nas
representações sociais da Vila Rubim como um lugar de tradição no comércio na
Grande Vitória e do comerciante da Vila Rubim como um homem devotado ao
trabalho. Isso, novamente, reforça o argumento do imbricamento entre as construções
sociais e as práticas nelas inseridas, aqui enfatizadas separadamente apenas por limitações
no tocante à organização da análise dos dados.
230
Esse imbricamento com a face emancipada na representação social aqui discutida pode ser
ilustrado pelo entendimento de que as instituições públicas levam a mudanças, que, por sua
vez, geram demandas sobre os comerciantes, e eles as resolvem com base em elementos de
outras representações sociais, como a construção social anterior de um tipo de amizade que
permite conciliar competição entre comerciantes vizinhos e a prática da ajuda mútua. Nessa
base, quando a CEASA se distanciou, foi “natural” para os sujeitos o surgimento da prática
social de compartilhar o mesmo frete para a redução do custo, dividido entre os que
transportarem seus produtos juntos, no mesmo veículo. Quando o pesquisador acompanhou
um grupo de comerciantes às compras na CEASA, isso foi observado no momento da
prática. Mas antes, no cotidiano do Mercado, também foi possível observar comerciantes
combinando a ida conjunta à CEASA. A nova prática social, neste caso, não tem como alvo
as próprias instituições públicas, mas apenas fazer frente a demandas adicionais geradas por
uma delas. Nesse caso, a ancoragem na themata público/privado se evidencia na relação
entre essa demanda e a prática para resolvê-la, enquanto a transferência da CEASA é uma
figura que objetiva essa construção.
Mesmo quando a demanda inicial não é atribuída às instituições públicas, mas a um evento
específico, outras demandas subseqüentes atribuídas ao público e relacionadas ao evento são
inseridas na construção social, na ancoragem, na themata público/privado. Isso pode ser
ilustrado a partir das implicações do evento mais citado pelos respondentes durante toda a
pesquisa: o incêndio em lojas de fogos que provocou explosões e a destruição de boa parte
do Mercado em julho de 1994, abordado nos fragmentos a seguir.
(48) Quando veio a explosão, eu trabalhei [...] Ali, perto da bomba de gasolina. O
governo arrumou para nós. Trabalhamos, mais ou menos, uns 60 dias.
Vimos que não dava jeito
. Aí, voltamos para a rua. [...] A minha loja era aqui
mesmo, mas foi explodido tudo [...] Estava queimado, mas nós tínhamos feito
uma banquinha aqui dentro estávamos aqui dentro. Então, nos tiraram daqui
231
de dentro e construíram lá para nós ficarmos provisórios até voltar de novo
para cá. O jeito foi esse. A Prefeitura prometeu, nós saíamos daqui, para
trabalhar lá. Quando fizesse, nós íamos voltar para o mesmo local
(PROPRIETÁRIO 16).
(49) Veio esse negócio aí do incêndio
. Nós ficamos aí quase 10 anos. Aí, com a Vila
Rubim meio parada, devagar. Aí, depois a Prefeitura fez tudo de novo. Fez os
galpões todos de novo (PROPRIETÁRIO 22).
No fragmento 48, o tema explícito explosão que destruiu a loja é associado a dois
personagens explícitos, “o governo” e a “Prefeitura”, e a um personagem implícito, o
próprio locutor. Após a explosão e a destruição das lojas, os respondentes solicitaram ajuda
das instituições públicas e aceitaram ficar em um galpão improvisado nas proximidades do
Mercado, mas numa área mais isolada. O fragmento 48 ilustra a trajetória do grupo que teve
as lojas destruídas. No trecho “Ali perto da bomba de gasolina”, uma área reconhecidamente
mais isolada, associada à expressão “não dava jeito”, remete ao tema implícito o mercado
era melhor do que onde eles estavam o que é convergente com o tema explícito de que os
comerciantes só permaneceram lá cerca de 60 dias. O fragmento revela ainda, como tema
explícito, a ação realizada ao saírem da área próxima ao posto de gasolina – fizeram
banquinhas dentro de onde estava queimado e trabalharam lá dentro – e, como tema
implícito, as ações subseqüentes a saída para barracas construídas pela Prefeitura, pelo
fato de ela ter prometido a reconstrução do local queimado e o retorno dos comerciantes.
No período da observação do pesquisador, essas barracas construídas para alojar os
comerciantes durante a construção ainda eram utilizadas, mas agora pelos comerciantes da
Praça Manoel Rosindo. Diferentemente das barracas construídas antes, essas não ficavam
em um local isolado, mas na parte da frente do Mercado, entre a Rua Jair Andrade e a Rua
Pedro Nolasco, na altura do galpão 3. No fragmento 49, o tema implícito essas barracas
232
foram ocupadas durante muito tempo surge a partir do tema explícito a Prefeitura demorou
quase 10 anos para fazer os galpões de novo.
Aqui, a prática dos respondentes de seguir opções oferecidas pelas instituições públicas é
mediada na bricolagem que os comerciantes fazem dessas opões com os seus interesses. Em
um primeiro momento, a prática de ir para as barracas oferecidas e construídas pelo estado
se enquadra como uma estratégia cotidiana em relação à face na representação social
tratada, pois ela se posicional no lugar do próprio das instituições públicas. Mas, em
seguida, ao perceberem que o local era inadequado, os comerciantes desenvolveram suas
práticas próprias, indo contra a decisão da Prefeitura de isolar a parte queimada. A
construção dessa última prática envolve elementos de construções sociais anteriores, já
discutidas: as faces da família e da aplicação pessoal em trabalhar e economizar na
representação social do comerciante da Vila Rubim como um homem devotado ao
trabalho. O lugar do próprio, do homem trabalhador idealizado, demarca uma ordem
estabelecida em um lugar que, ao ser articulada com a representação social discutida neste
tópico, oferece um espaço de transgressão em relação a ela. Tem-se a bricolagem atuando
entre diferentes representações sociais, como ocorre no cotidiano permeado por inúmeras
representações simultâneas.
Nesse sentido, a sobrevivência da família e do comércio propiciada pelo seu trabalho
constrói justificativas para as articulações de oposição ao lugar do próprio, da ordem
estabelecida demarcada na representação aqui discutida, como no caso das práticas que se
opõem às ações das instituições públicas. Isso não quer dizer que as instituições públicas são
abandonadas pelo grupo de comerciantes; muito pelo contrário. A bricolagem envolve
justamente a capacidade criativa de viabilizar a convivência, o que, em um segundo
233
momento, permite compreender a coerência de os comerciantes novamente atenderem às
demandas de uma instituição pública, mas, agora, aceitando ir para barracas com uma
melhor localização para o trabalho do comerciante e sob a promessa de que esse seria o
caminho para a Prefeitura atender à demanda de reconstrução das lojas destruídas.
Essa aceitação não é algo isolado; ela ocorre em paralelo com dois conjuntos de práticas já
mencionadas: as práticas de buscar articulação com políticos; e a exposição na mídia. A
primeira envolve as práticas políticas admitidas pelo presidente da ACVR, algumas
acompanhadas pelo próprio pesquisador em suas observações no Mercado, quando entrou
em contato com políticos em campanha lá dentro. Aqui, as práticas dos comerciantes como
um todo, não necessariamente do presidente da ACVR, incluem: marcação de reuniões para
o político expor suas idéias, panfletagem, colocação de cartazes e acompanhamento pelo
Mercado, além da exposição das demandas que se quer que o político faça frente, se
possível, desde já, como era o caso da demora na reconstrução dos galpões do mercado.
O segundo conjunto de práticas foi observado, por exemplo, em fotografias apresentadas
pelos sujeitos de pesquisa e analisadas pelo pesquisador, nas quais a cada ano eles
comemoravam o aniversário do incêndio, até com discursos, bolo e participação da
imprensa, no sentido de expor na mídia as falhas da instituição pública em relação à demora
na construção dos galpões, pressionando.
Esses dois conjuntos de práticas são aqui considerados como inseridos na tática cotidiana
em virtude da ausência de uma fronteira que defina o outro, sem poder contar com um
próprio, sendo necessário usar elementos do seu lugar privilegiado, como a busca pela mídia
e a necessidade de votos nas eleições. Deve ficar claro que o político aqui não é considerado
234
em sua possível inserção atual em uma instituição pública, como no caso da reeleição de um
prefeito, quando, então, aquelas práticas políticas podem contar com o lugar privilegiado
deste próprio dentro de uma instituição pública, em posição de atender a uma grande
variedade de demandas. A despeito de a eleição e as promessas serem permeadas pela
incerteza, neste caso, a demarcação do lugar do próprio já está dada. A intenção passa a ser
a de se inserir nele por meio de práticas, então enquadradas na estratégia cotidiana,
demarcada pela face emancipada das demandas das e sobre as instituições públicas.
Deve ficar claro que essas articulações por meio de prática voltadas para a mítica e a
política não se apresentam isoladas em relação a outras. No caso do incêndio, elas
comumente surgem em torno de práticas discursivas que incorporam construções que
ressaltam a relevância da sobrevivência e do trabalho, articulando esse tema com as demais
práticas. Isso fica evidente no fragmento 50, que expõe a bricolagem na qual essas
construções se unem a outras, nas quais os sujeitos se valem da legitimidade política nas
instituições públicas para se opor a elas, a favor de seus interesses.
(50) [...] a nossa loja aqui dentro foi a única que não pegou fogo. Ela ficou boa,
só queimou as partes de cima. Aí, nós batalhamos, fomos no Corpo de
Bombeiros, pedimos muito para poder continuar trabalhando. Porque
trabalhava muita gente com a gente. O pessoal ia ficar tudo desempregado
.
[...] Aí, a secretária de obras embargou
. [...] Aí, depois, o Lelo veio aqui. Ele
antes era cliente da gente. Nós tínhamos muitos clientes assim
. Tinha a
Luzia Toledo. A esposa do José Inácio,
24
dona Maria Helena, era cliente
nossa. [...] Era uma boa influência
[...] Aí, chamamos o Corpo de
Bombeiros [...] Isso tudo em 15 dias. [...] Aí, vieram aqui, fizeram a vistoria
da loja [...] continuamos trabalhando
(FUNCIONÁRIO 10).
24
As pessoas citadas são políticos que atuam no Espírito Santo.
235
No fragmento 50, o tema explícito desemprego sustenta o tema implícito uso do
desemprego para se opor à decisão da secretária de obras, em conjunto com o fato de que a
loja não pegou fogo. Essa construção, como já mencionado, vai ao encontro das faces da
família e da aplicação pessoal em trabalhar e economizar na representação social do
comerciante da Vila Rubim como um homem devotado ao trabalho. Como tal, a prática
de incluir nos discursos essa linha de argumentação se insere como estratégia cotidiana no
lugar de um próprio demarcado por essa face e representação social. Mas, simultaneamente,
a mesma prática se insere como tática cotidiana no espaço de transgressão demarcado pela
bricolagem de elementos do lugar de um próprio situado na face emancipada das demandas
das e sobre as instituições públicas, pois há uma oposição bem-sucedida contra a decisão
legitimada numa instituição. Isso reforça o argumento já exposto de que a distinção entre
estratégia e tática social não é estática, mas dinâmica e relativa às inserções contextuais
assumidas como referência. Portanto, nesta tese, defende-se que na investigação da
estratégia como prática social o importante é expor essa dinâmica, não a classificação em si
(estratégia ou tática), que é apenas um caminho para essa exposição.
Deve ficar claro que a inserção simultânea que baseia esse último argumento não surge de
maneira isolada, pois uma prática se articula com outras. Isso fica evidente no mesmo
fragmento, quando se observa uma série de personagens explícitos citados como “Lelo”,
“Luzia Toledo” e “esposa do José Inácio”. No contexto de produção discursiva do
fragmento em questão, o locutor está se referindo a três pessoas ligadas ao meio político e às
instituições públicas do Espírito Santo. Lelo Coimbra, em 1994, época do incêndio, foi
Secretário de Saúde da Prefeitura de Vitória; Luzia Toledo, em 1994, foi candidata a uma
vaga no senado; e o José Inácio era um ex-senador, que retornou ao Senado em 1995 e foi
governador do estado em 1999.
236
O tema implícito o conjunto desses políticos era uma boa influência para que se alcançasse
a liberação do embargo da secretária de obras é convergente com o tema explícito que no
fragmento segue-se à menção dos últimos personagens citados: em 15 dias os bombeiros
foram lá fizeram a vistoria, e eles continuaram trabalhando no local antes embargado.
Aqui, surge a prática da influência nas instituições públicas por meio da articulação de
relações pessoais com atores políticos. A visita desses atores sendo aproveitada para a
realização de pedidos que, como o deste caso, enquadram-se como oposição à decisão de
uma instituição pública, a secretária de obras, com a questão girando em torno da secretária.
Essa prática se utiliza das demandas políticas daqueles que têm influência sobre as
instituições públicas para que as demandas do sujeito possam prevalecer. Nesse sentido,
elementos do lugar do próprio, de uma ordem estabelecida demarcada pela representação
social discutida neste tópico, são imbricados em um espaço de transgressão voltado para os
interesses dos sujeitos frente a decisão da secretária de obras.
Tal prática foi observada com freqüência, articulada em função tanto de lojistas como no
caso do fragmento 50, que trata de uma loja que comercializa produtos hortifrutícolas,
quanto entre barraqueiros, como se evidencia no fragmento 51.
(51) [...] uma época, o prefeito deu 24 horas para nós sairmos. Aí, nós reunimos
todo mundo: “O que é que nós vamos fazer? Chegou a intimação para nós
desocuparmos”. [...] procuramos, na época, um vereador. Explicamos
a
situação a ele, e ele falou assim: “Oh! Formem a associação de vocês”. [...] aí
nós entramos na Justiça
. Isso já tem uns 12 anos já. Aí, teve a proposta do
outro prefeito, que agora é o governador. Fez a proposta de fazer as
barracas ali [apontando para a praça] para nós. Foi enrolando, enrolando. Aí,
entrou o outro,
que é o Luiz Paulo. Prometeu, e está aí. Está saindo as
barracas. Agora, tem esse também que entrou agora. Falou que vai sair, e está
saindo (PROPRIETÁRIO 14).
No fragmento 51, o contexto de produção do discurso é a Praça Manoel Rosindo, tendo
como locutor um de seus barraqueiros. O personagem “prefeito” aparece várias vezes, de
237
maneira explícita ou implícita, associado a diferentes gestões. Em relação à primeira gestão
citada, fica implícito que ela se opunha aos interesses dos barraqueiros, como fica marcado
pelo tema explícito de que o prefeito deu 24 horas para eles saírem. Nesse momento, surge
a prática da articulação política, já mencionada no fragmento anterior, mas agora articulada
por barraqueiros que comercializavam produtos hortifrutícolas, secos e molhados, entre
outros. A articulação dessa prática surge implicitamente quando o personagem “vereador” é
mencionado, associado ao tema explícito de que ele foi procurado pelos comerciantes e os
orientou. Em seguida, surge o tema implícito os barraqueiros também se articularam com
outra instituição pública, a Justiça, para se opor às demandas impostas pela Prefeitura,
como marca a expressão “entramos na justiça”.
O resultado que beneficiou os interesses dos comerciantes fica evidente pelo trecho “Isso já
tem uns 12 anos” e pelo fato de a observação do pesquisador ter verificado que eles
continuam com direitos sobre a Praça. Novamente, tem-se uma prática bem-sucedida
inserida na tática cotidiana que se utiliza de elementos imbricados da face emancipada das
demandas das e sobre as instituições públicas na representação social das mudanças no
mercado da Vila Rubim como conseqüência dos eventos do dia-a-dia rebatidos em
demandas do e sobre o Estado e o comerciante.
Em seguida, o fragmento apresenta as outras gestões da Prefeitura em uma posição distinta
da anterior, como fica claro pelo tema explícito um outro prefeito queria construir as
barracas na praça. Ou seja, eles permaneceriam onde estão, mas teriam barracas novas. A
aceitação dessa proposta se insere como uma prática na estratégia cotidiana demarcada pelo
lugar do próprio da Prefeitura que permite um cálculo de forças com base em uma
exterioridade distinta (a esfera de atuação da Prefeitura em reformar praças), que tem como
238
resultado o atendimento de demandas dos comerciantes. Aqui, novamente, como no caso do
incêndio e no da reconstrução dos galpões destruídos, essa aceitação não é algo isolado; ela
ocorre em paralelo com práticas políticas e de exposição na mídia, já discutidas. Entretanto,
em relação ao grupo de barraqueiros, há uma especificidade a ser discutida, em virtude do
caráter inicialmente ilegal para a Prefeitura de seu processo de comercialização.
A ênfase aqui sai da instituição pública propriamente dita e vai para um grupo de seus
representantes, o fiscal. Os respondentes manifestaram nas entrevistas variações de suas
práticas ao longo do tempo em relação a esse grupo, mas tendo como base as decisões da
Prefeitura sobre esses comerciantes que atuaram como ambulantes, com seus tabuleiros,
sem autorização municipal, como se evidencia no fragmento 52.
(52) [...] o pessoal tinha os tabuleiros aí na Vila Rubim antigamente [...] o fiscal ia
em cima para pegar o tabuleiro, e o cara partia pra cima dele, de porrada
também, entendeu. [...] Mas foi se organizando, foi dialogando, se
entendendo, coisa e tal com a Prefeitura, com vereador: “a gente precisa
trabalhar, não é assim, tem que arrumar um local” [...] E foi normalizando.
Hoje não existe isso. [...] o fiscal toda hora anda por aí, ainda com a
caminhonete: “— Oh! Se chegar aqui amanhã e essa mercadoria tiver aí
[apontando para a calçada], eu não quero nem saber que seja de papai ou
de mamãe, eu vou levar”. [...] E aqui é o seguinte: é muito difícil de você
vender a mercadoria que está aqui dentro [...] ficava uns 2 ou 3 dias parado, sem
colocar. Daí você olhava lá na frente e tava: “— Pô, fulano botou. [...]. – Ah,
eu vou botar o meu também”. Daqui a pouco, passava uns 15 dias, vinha o
fiscal de novo [...] Todo mundo ia lá, aí juntava tudo bonitinho e tal
(PROPRIETÁRIO 4).
O personagem explícito “pessoal” refere-se implicitamente aos comerciantes que
trabalhavam com tabuleiros na Vila Rubim sem a autorização da Prefeitura, como fica
demarcado pelo tema explícito o fiscal tentava tomar o tabuleiro deles e eles reagiam com
violência. O termo antigamente, em conjunto com o trecho “Hoje não existe isso”, indica
que o tema em questão se alterou no presente. A prática da violência foi alterada por outras
que surgem no tema explícito eles foram se organizando, dialogando e se entendendo com a
Prefeitura e com vereadores em torno do tema necessidade de trabalhar a ponto de não
239
existir mais aquele tipo de ação da fiscalização. Aqui, o conjunto de práticas políticas atua
mudando a relação entre os fiscais e os barraqueiros a partir de pressões perante as
instituições públicas, o que, novamente, destaca a inclusão de construções referentes às
faces da família e da aplicação pessoal em trabalhar e economizar na representação social
do comerciante da Vila Rubim como um homem devotado ao trabalho.
Para ilustrar a alteração de relações, o próprio locutor apresenta uma prática cotidiana na
atual relação entre os fiscais e os barraqueiros, marcada pelo tema explícito o fiscal manda
que eles tirem as mercadorias da calçada e as coloquem para dentro da barraca, nos
primeiros dias eles obedecem, mas depois voltam a colocar na calçada, o fiscal chega
novamente e tudo se repete. Esse tema explícito remete ao tema implícito agora há uma
negociação com os fiscais que privilegia o barraqueiro, basta articular a prática de ceder
ou obedecer temporariamente e depois voltar à condição anterior. Essa prática inserida na
tática cotidiana se sustenta em um espaço demarcado a partir da própria legitimidade das
instituições públicas nas quais os fiscais se inserem. Aquele diálogo com a Prefeitura e os
vereadores empresta aos barraqueiros certa legitimidade do lugar do próprio para os seus
espaços de transgressão, mas isso não os autoriza a afrontar plenamente a autoridade do
fiscal, esse sim posicionado no lugar de um próprio, de uma ordem estabelecida. Portanto,
na sua presença e sob sua insistência, eles cedem, mas apenas temporariamente.
Essa lógica transcende a face emancipada das demandas das e sobre as instituições
públicas, pois, de certa maneira, vai aparecer em construções sociais em torno de outra
temática: a privatização do espaço público, reforçando o argumento aqui defendido de que
as práticas socais perpassam, sustentam e se sustentam simultaneamente em várias
construções sociais.
240
7.3.2 A privatização do espaço público
Quando os sujeitos de pesquisa argumentam sobre os motivos que levam à mudança do
mercado, parte de suas construções se posiciona em torno do processo de apropriação do
espaço público pelos comerciantes, o que foi aqui considerado como uma face emancipada
distinta das construções inseridas na representação social das mudanças no mercado da
Vila Rubim como conseqüência dos eventos do dia-a-dia rebatidos em demandas do e
sobre o Estado e o comerciante.
O conjunto das construções sociais na face emancipada da privatização do espaço público
revela a ancoragem na themata público/privado da representação social em questão a partir
de práticas que envolvem três movimentações: a) privatização do espaço público, seja no
sentido de usufruir ou tomar posse da propriedade do Estado, seja no sentido de um grupo
de sujeitos (a família, por exemplo) oferecer significados privados a um espaço
compartilhado com muitos outros grupos sociais; b) manutenção do espaço privado;e c)
ampliação de um espaço privatizado por meio da apropriação de outros espaços
privatizados.
A objetivação da face emancipada na representação social em questão se dá em torno dessas
três movimentações, nas seguintes figuras: nos espaços ociosos transformados em
produtivos; nos pequenos espaços, que, com esforço e certo sofrimento, são adaptados e
permitem a sobrevivência; e nos grandes espaços, que surgiram da ampliação de espaços
pequenos, na medida em que o sucesso de uns permitiu a ampliação em detrimento de
outros, gerando mais sucesso aos primeiros, mais ampliação espacial, e assim por diante.
241
Em torno dessa construção e das práticas a elas associadas estão outras já discutidas em
tópicos anteriores, como se observa no fragmento 53.
(53) [...] na época, eu trabalhei ali [no Mercado vendendo verdura] e a gente
não podia nem vender ali na peixaria, não. [...] Então, agora, eles estão ali
quietinhos, ninguém está mais mexendo com eles, por quê? Por causa do
desemprego
. Por que é que você vai tirar ele dali? Tirar para quê? Para ele
virar um marginal? Se é aquilo ali que ele sabe fazer (FUNCIONÁRIO 10).
(54) Eles, os barraqueiros
, por exemplo, [...] eles também precisam ganhar o pão deles
também. Eu acho que hoje é importante a pessoa estar ganhando o seu pão
honestamente
. [...] Ali já tem alguns amigos meus que já estão ali há muitos anos
também. Então, eu acredito que eles também precisam continuar sobrevivendo
,
porque também têm família
(PROPRIETÁRIO 22).
No fragmento 53, o uso do tempo verbal no pretérito indica o passado, tempo no qual insere
o tema explícito não podia vender na peixaria. Mas essa situação foi alterada, como indica
o uso do advérbio “agora”, remetendo ao tempo presente, e do pronome “eles”, que, pelo
contexto de produção discursiva de um comerciante de hortifrutícolas falando sobre este
comércio na peixaria, refere-se ao personagem implícito “comerciantes de hortifrutícolas em
tabuleiros em frente à peixaria”. Por sua vez, este último personagem está associado ao tema
explícito estão trabalhando na peixaria e ninguém está mexendo com eles por causa do
desemprego, da marginalidade e de ser essa a sua única profissão. Cabe ainda ressaltar o
personagem implícito demarcado pelo pronome “ninguém”, que leva ao questionamento: “A
quem os comerciantes atribuem o papel de mexer com os próprios comerciantes irregulares
no mercado?”, que tem como resposta: os membros das instituições públicas, com destaque
para os fiscais da Prefeitura, portanto, personagens implícitos no trecho. Há aqui uma
relação entre diferentes construções já discutidas, mas agora inseridas em outras
construções, referentes à ocupação da área do entorno da peixaria. Durante a observação do
pesquisador, evidenciou-se que os comerciantes dos tabuleiros ocupam permanentemente
242
toda uma rua em frente à peixaria e que não há espaço para carros enquanto eles estão
trabalhando, inclusive já com autorização da Prefeitura.
No fragmento 54, o raciocínio é o mesmo, mas, neste caso, a argumentação gira em torno do
personagem explícito “barraqueiros” e dos temas explícitos precisam ganhar o pão
honestamente e são amigos de muitos anos do locutor há muito tempo em seus locais e
precisam continuar trabalhando. O locutor desse fragmento é um feirante que trabalhava
com hortifrutícolas, cresceu e hoje possui a maior loja de hortifrutícolas do Mercado. Os
laços de amizade com os barraqueiros e a defesa da sobrevivência dos comerciantes pela
permanência em seu local de trabalho são argumentos que giram em torno de construções já
discutidas, mas, neste caso, utilizadas para legitimar a invasão e a permanência dos
barraqueiros em uma praça na Vila Rubim. Esse argumento é demarcado pelo advérbio “ali”
no trecho “já estão ali há muitos anos”, que, pelo contexto de produção discursiva, um
comerciante de hortifrutícolas falando dos barraqueiros no mercado, remete a esse local.
Em ambos os fragmentos, as explicações e argumentos sobre a permanência em áreas
públicas, como calçadas, ruas e praças, dos barraqueiros e dos comerciantes que atuam com
tabuleiros em frente à peixaria sustentam-se na representação social do comerciante da
Vila Rubim como um homem devotado ao trabalho em todas as suas faces emancipadas:
família, aplicação pessoal e relações pessoais. Mas, neste caso, a ancoragem na themata
público/privada remete a articulações específicas e distintas, que foram aqui identificadas na
face emancipada da privatização do espaço público na representação social das mudanças
no mercado da Vila Rubim como conseqüência dos eventos do dia-a-dia rebatidos em
demandas do e sobre o Estado e o comerciante. Ou seja, aquelas construções anteriores,
tratadas com ênfase no comerciante, são também articuladas em construções referentes à
243
maneira deles se apropriarem de espaços públicos e à reação do Estado a essas demandas,
algo que faz parte do cotidiano do Mercado.
Uma evidência dessa construção está no fragmento 55, em que um dos barraqueiros narra a
primeira invasão da Praça Manoel Rosindo, da qual agora tem o direito de uso do espaço
formalmente reconhecido pela Prefeitura, que a está reformando e construindo lojas para
eles, como se evidenciou na observação do pesquisador.
(55) Nós fizemos uma reunião. Aí, falei assim: “Vamos embora invadir aquela
praça lá. Os mendigos estão lá, nós botamos eles para correr e ocupamos o
lugar”. Aí, foi todo mundo. Cada um pegou um tabuleiro [...] teve três
invasões. Teve a nossa primeira invasão, aí depois teve a segunda
invasão, do lado da Giacomin, mas era só na frente, aí depois invadiram
as laterais. [...] como diz o ditado, como nós tivemos apoio e tinha espaço
para eles trabalharem também, o fizemos questão, não. Porque quanto mais
gente melhor. [...] Deve ter uns oito anos já que não tinha mais espaço para
ninguém, não. Já tinha gente querendo invadir o meio, que não vendia nada.
Aí, nós falamos assim: “— Não, isso aí não pode, não”. E aí nós fizemos
questão, porque o cara o ia arrumar nada. [...] Brigava, botava ele para
correr. Eles já queriam já moradia para fazer até ponto de droga
(PROPRIETÁRIO 14).
No fragmento, as práticas relacionadas à invasão se iniciam pela definição do grupo que,
unido, vai invadir a Praça. A existência desse grupo é demarcada pelo pronome “nós”,
primeira pessoa do plural, e pelo tema explícito os personagens implícitos fizeram uma
reunião. No contexto de produção discursiva em questão, no qual o locutor do fragmento foi
criado na Vila Rubim em conjunto com vários garotos que vendiam hortifrutícolas como
ambulantes, fugindo da fiscalização que tentava tomar seus tabuleiros, esse “nós” se refere
implicitamente a esse grupo. Outros personagens destacados no fragmento são os
“mendigos”, que, como tema explícito, são expulsos da praça pelo grupo que ocupou o
lugar deles. Aqui, surge o tema implícito ociosidade do lugar ocupado pelos mendigos,
articulado explicitamente em outros fragmentos e que, de certa maneira legitima a invasão,
pois o lugar passou a ser de trabalho, provendo a sobrevivência.
244
Esse tema implícito adequação do espaço ao trabalho, e não a outra função qualquer se
reforça por dois temas explícitos no fragmento: a) enquanto tinha espaço adequado ao
trabalho os invasores anteriores permitem que novos invasores fossem trabalhar lá; e b)
quando o espaço restante só serve para moradia ou ponto de droga, não mais ao trabalho,
os invasores anteriores definem regras que proíbem novas invasões e atuam com violência
para o seu cumprimento.
Aqui, a Praça, antes pública, com regras definidas pela Prefeitura para esse tipo de espaço,
ganha novas funções e regras. Se antes as regras da Prefeitura não eram cumpridas, as dos
barraqueiros eram, até pela violência. Essa prática da violência se insere como uma
estratégia cotidiana legitimada no lugar de um próprio que trabalha, constrói o seu lugar,
opondo-se às regras do Estado e demarcando o seu domínio, com uma fronteira clara que
distingue os limites, a exterioridade, o que é ou não permitido, o que deve ser cumprido até
as últimas conseqüências, mantido pela prática da violência, se necessário. Essa construção
surge no sentido de resolver diversos problemas do dia-a-dia, como a questão da
fiscalização, discutida no tópico anterior, e da violência, esta última, tema explícito no
fragmento a seguir.
(56) Eles [os ladrões] queriam invadir a nossa área de serviço, e nós não deixávamos.
[...] Então, nós sempre conservamos com eles
. Agora, quando eles não
aceitavam, a gente apelava. [...] Na minha barraca, lá mesmo, eu não
deixava. Se tivesse na barraca do vizinho, chegava assim: “Oh! Não
pode, não”. Nós não deixávamos, não. Era todo mundo unido
. Roubava o
freguês, e nós corríamos atrás (PROPRIETÁRIO 14).
(57) O pessoal que mexia ali, os batedores de carteira
, eles não mexiam com a gente
na feira [os barraqueiros], não, porque a gente era muito unido
. Se um cara
partisse pra cima de um, já juntavam 5 ou 6 atropelando ele
, entendeu, na porrada
e tal (PROPRIETÁRIO 4).
245
Durante as observações do pesquisador, foi possível observar as articulações explicitadas
nesses fragmentos, como foi evidenciado quando, certa vez, um estranho ficou rondando os
tabuleiros em frente à peixaria e um comerciante começou a falar com o outro para prestar
atenção nele, que logo em seguida foi embora. Em outro caso, os comerciantes na barraca
apontavam para três rapazes no ponto de ônibus e diziam algo como “Aqueles ali são
vagabundos, estão esperando para roubar, vão entrar no ônibus e bater a carteira de alguém,
depois voltam para cá. Se chegar a polícia, eles somem”. Dito isso, dois policiais
começaram a se dirigir do outro lado da rua na direção do ponto de ônibus, e os rapazes
entraram no primeiro ônibus que passou. Aqui, deve-se fazer um parêntese sobre essa
questão da “gestão da segurança” por parte dos barraqueiros que reforça a construção de um
espaço privado deles. A preocupação com violência só vai até os limites do seu comércio.
Se o “marginal”, nas palavras dos comerciantes, estiver parado por ali, mas roubar o cliente
em outro lugar, o problema não é dos comerciantes, tema explícito no fragmento a seguir.
(58) [...] quem que vai pagar se o freguês está comprando e eles forem lá e roubarem
o dinheiro? Quem que vai pagar? Como é que fica? depois que o freguês
saísse da banca e pegasse o ônibus, aí já era problema dele. Mas na nossa
barraca não deixava, não. Cansamos de picar o pau neles lá. Não tinha
medo, não. É como se diz, é igual linchamento, não ficava mesmo
(PROPRIETÁRIO 14).
Essa lógica da definição dos limites de propriedade e responsabilidade dos barraqueiros e da
prática da violência ocorre até em relação aos usuários do ponto de ônibus que fica na Praça,
mas a violência aqui se restringe a gritos dirigidos aos usuários, tema explícito no próximo
fragmento.
(59) A gente pega até hoje o ônibus ali. [...] Eles ficavam em cima do ponto, porque
não tinha espaço pra nós ficarmos. Tinha que ficar praticamente cercado dentro
da verdura pra pegar ônibus, entendeu. E eles não gostavam da gente ficar
ali encostado. Gritavam: “barreira, barreira” (FUNCIONÁRIO 8).
246
A construção do sentido de uma praça privatizada por parte dos barraqueiros se expõe nessa
prática inserida na estratégia cotidiana, pois o barraqueiro assume o lugar de um próprio,
uma ordem estabelecida na qual, de certa maneira, são os donos da Praça. Ele até permitia
que as pessoas pegassem ônibus lá, atribuição dada à parte daquele espaço pelas instituições
públicas, até porque essas pessoas também eram seus clientes, mas não podiam atrapalhar o
comércio, ou eram advertidas aos gritos, da mesma maneira que eles agrediam os marginais
que ousassem se infiltrar e atrapalhar o trabalho deles. Enfim, eles demarcavam seu lugar e
cuidavam dele, com base em suas construções sobre as regras a serem respeitadas. Essa
apropriação do espaço se evidencia ainda pela possibilidade de o barraqueiro já estabelecido
vender a parte do seu lugar na Praça para outra pessoa, como revela o fragmento a seguir.
(60) Hoje, para você adquirir um ponto comercial é muito caro. Se for optar por
um aluguel, também é caro. Como na época tinham as barracas [na Praça
Manoel Rosindo], então o preço era mais acessível. Então, dava condições
melhores pra você adquirir um ponto. [...] eu já comprei os meus direitos
aproximadamente uns 7 ou 8 anos (PROPRIETÁRIO 7).
No fragmento fica explícito que o locutor adquiriu os direitos sobre um ponto na praça
onde ficavam as barracas, pois o preço era mais acessível. Ao se utilizar do termo “direito”
no lugar de adquiri o ponto, ele já reconhece aqui a propriedade pública sobre a Praça.
Entretanto, quando alguém tem o direito sobre um ponto e não tem a propriedade do imóvel
onde fica o ponto, essa pessoa paga aluguel ao proprietário, depois de pagar os direitos,
também chamados de “luvas”, àquele que ocupava o ponto anteriormente. No caso da Praça,
nada se pagava ao “dono” dela, ou seja, a Prefeitura, algo que, com a reforma por parte da
própria Prefeitura, segundo os barraqueiros, vai mudar, pois eles passarão a pagar
mensalmente um valor a título de taxa de manutenção das novas lojas que serão construídas.
Deve-se destacar que até então a Prefeitura não reconhecida o direito dos barraqueiros sobre
seus lugares na Praça, mas desde o primeiro momento em que se iniciou o planejamento
247
para a reforma isso mudou, e os barraqueiros foram informados que após a reforma
receberão uma documentação, algo que já teria sido realizado nos galpões novos
reconstruídos, como se observa nos fragmentos a seguir.
(61) Não quer dizer que nós vamos ser donos. Nós vamos receber o documento. Se
eu quiser passar para você, eu passo. Se eu quiser passar para ele, eu
passo, sabendo que você pode, qualquer coisa, vender o direito
(PROPRIETÁRIO 4).
(62) Eu tenho os direitos. O galpão é da Prefeitura (PROPRIETÁRIO 16).
O primeiro fragmento tem como contexto de produção discursiva as barracas na Praça sendo
veiculado por um barraqueiro. O segundo fragmento tem como contexto de produção o
galpão sendo veiculado por um comerciante que atua lá. Em ambos fica claro o papel da
Prefeitura retomando a propriedade do espaço público. Pode-se questionar: Mas o espaço
antes já não era público? A resposta é que do ponto de vista legal talvez seja, mas das
construções sociais, não, o que remete a práticas específicas, como se observa no fragmento
a seguir.
(63) [...] aquele imóvel ali [os galpões] toda vida ele foi administrado pela
Associação, inclusive obras ali tudo é eles que contribuem e fazem. Mas
agora, com a administração de fora, o secretário esteve lá e falou: “A obra que
tiver que ser feita aqui, vai ser feita pela Prefeitura, porque isto aqui é da
Prefeitura. Não é da Associação de Comerciantes”. (ADMINISTRADOR DA
PREFEITURA 1).
Nessa ótica, alteram-se as práticas referentes às contribuições para obras e alterações nos
espaços de maneira geral, uma conseqüência da reapropriação por parte da instituição
pública de antigos espaços públicos privatizados pelas construções sociais, já que as lojas
dos galpões ou os espaços na Praça nunca foram vendidos a ninguém, mas as práticas sobre
eles eram de proprietários sobre seus comércios. Esse reconhecimento da propriedade da
instituição pública, expresso como tema explícito nos fragmentos 61, 62 e 63, acaba por
248
implicar uma série de regras a serem cumpridas pelos permissionários, tema implícito no
fragmento 63. Uma delas, segundo os barraqueiros e os lojistas dos galpões novos, é a
impossibilidade de fazer alterações nas lojas sem permissão da Prefeitura. Nesse ponto, em
diversas conversas com os barraqueiros, observou-se uma prática comum que remete ao
planejamento da reapropriação de parte do lugar do próprio que a Prefeitura retirou deles.
Agora, a Prefeitura, em um processo de submissão dos barraqueiros às “novas” regras, vai
cadastrá-los, oferecer documentação, registros, taxas, direitos e deveres bem definidos.
Funcionários municipais vão cuidar de tudo isso presente no dia-a-dia deles. Dessa maneira,
a fronteira entre quem manda e quem obedece será restabelecida. A Prefeitura assume o
lugar do próprio, aquela ordem estabelecida apresentada na face emancipada das demandas
das e sobre as instituições públicas, na representação social aqui discutida. Resta questionar:
Como esse processo será articulado pelos barraqueiros? Aparentemente, já existem práticas
sendo articuladas numa inserção como tática cotidiana, segundo uma lógica semelhante
àquela das práticas adotadas para tratar os fiscais ao colocar as mercadorias na calçada em
frente às barracas, mas agora a questão gira em torno das proibições em se alterar os espaços
das futuras lojas, pois a Prefeitura não permitiu as alterações desejadas. No fragmento a
seguir, um dos barraqueiros explica o seu plano em relação a essa alteração, que, como foi
observado pelo pesquisador no cotidiano, é o plano de vários outros barraqueiros.
(64) [...] se [na loja na Praça Manoel Rosindo] esse mesmo vizinho ficar aqui atrás de
mim, eu vou quebrar essa parede aqui por dentro e vou fazer um salão só igual
aqui. [...] Aqui por enquanto eu pago 50 reais [de aluguel] (PROPRIETÁRIO 4).
A alteração está expressa no tema explícito ampliar a loja quebrando paredes e juntando a
loja germinada, seja ela comprada ou alugada. O problema é a postura da Prefeitura, que
não permite essa alteração. A solução, segundo os barraqueiros, é ter paciência e ir alterando
249
devagar. Com o tempo, vai ficar do jeito que eles querem. Se essa prática será bem
sucedida, só o futuro vai dizer, mas ela revela a capacidade criativa dos barraqueiros,
sempre associada a construções anteriores, e nem por isso limitada a elas.
Especificamente em relação à questão da ampliação do espaço, as construções que
impulsionam essa intenção têm relação com outras construções sobre a questão
concorrencial, no sentido de que quem tem sucesso amplia seu espaço. Com isso, tem mais
sucesso, e assim por diante. Essa construção é tão marcante no Mercado como um todo que
a boa parte das alterações, no tocante ao seu espaço físico, é atribuída aos produtos
comercializados e à transformação dos comerciantes de hortifrutícolas em empresários bem-
sucedidos ou sobreviventes. Mesmo quando esse processo envolve bairros da região da
Grande Vitória distantes do Mercado, ele é associado a mudanças como fonte de impactos
fora do controle dos comerciantes, mas que promoveram demandas sobre eles.
7.3.3 As pressões concorrenciais
As pressões concorrenciais compõem a última face emancipada da representação social
das mudanças no mercado da Vila Rubim como conseqüência dos eventos do dia-a-dia
rebatidos em demandas do e sobre o Estado e o comerciante. Esta face surge quando os
sujeitos, em suas construções, atribuem os motivos das mudanças do Mercado a questões
que envolvem principalmente os comerciantes, a partir de pressões concorrenciais, ou seja,
de alterações na competição sobre os comerciantes dentro e fora do Mercado.
Nesta face emancipada, a ancoragem no terno família/trabalho/sobrevivência e na díade
público/privado envolve construções referentes à competição na qual a manutenção da
250
família, na lógica do crescimento pelo trabalho ou da sobrevivência, depende de decisões
dos comerciantes sobre sua inserção no mundo privado, de acordo com os recursos
disponíveis no espaço público e privado. Aqui, entram em jogo as práticas cotidianas que
envolvem a escolha do que vender, como vender, aonde vender e para quem vender,
decisões que não são realizadas com base em um conhecimento neutro, uma análise
racional. Muito pelo contrário, envolvem todas as construções sociais discutidas até aqui,
além de construções específicas da face emancipada em questão, voltada para a questão
concorrencial, como fica evidente no fragmento a seguir.
(65) De primeiro, não tinha comércio fora daqui. Na verdade, o pessoal todo vinha
comprar no Mercado da Vila Rubim. Vinha da Serra, vinha de Cariacica,
vinha de outros lugares, como Vila Velha. Não tinha supermercado. [...] Aí,
então, depois que começaram os supermercados, e aí foi diminuindo
. Foi caindo
(FUNCIONÁRIO 9).
(66) [...] começou a surgir os “kilões”, depois surgiram
vários supermercados, que
voltaram-se para vender produto de “kilão” também
. [...] Caiu muito, e já não
tinha mais como a gente dentro da Vila Rubin trabalhar com uma lojinha pequena
e com hortifrutigranjeiro. E aí tinha que comprar na CEASA [de Cariacica]. [...]
Para você trabalhar com hortifrutigranjeiro, você tinha que trabalhar com cereais
em geral, num supermercado grande (PROPRIETÁRIO 16).
O fragmento 65 remete ao tema explícito a Vila Rubim era o local onde as pessoas de
vários municípios vinham comprar antes de existirem os supermercados, depois essa
movimentação foi diminuindo. O fragmento 66 reforça esse segundo momento, mas com
ênfase no comércio de hortifrutícolas. Isso ocorre por meio do tema implícito o crescimento
da concorrência, em conjunto com maiores custos operacionais, inviabilizaram o comércio
de hortifrutícolas em pequenas lojas na Vila Rubim, como fica demarcado pelas escolhas
lexicais sublinhadas no fragmento e pelos temas já discutidos sobre as construções em torno
da transferência da CEASA da Vila Rubim para o município de Cariacica. Além da CEASA,
o incêndio é outro tema que aproxima construções anteriores, já discutidas, da questão
concorrencial, o que é evidenciado no fragmento a seguir.
251
(67) [...] houve uma queda no comércio aqui [no mercado da Vila Rubim],
justamente por esse caso, do incêndio na Vila Rubim. [...] Perdi tudo. A
gente começou tudo de novo. [...] Trabalhei com hortifruti ainda uns 3 meses
[...] mas senti que não dava praticamente nem para tirar o que eu empatava,
né.
Foi na hora que eu parei. [...] Porque a gente sempre está naquela expectativa
do comércio que dá e que não dá. [...] eu já tinha alguma experiência com esse
negócio de ervas medicinais. [...] Foi aonde eu pensei em partir para isso aí [...]
pra mim deu certo (PROPRIETÁRIO 2).
Neste fragmento, o incêndio é articulado explicitamente com a queda do comércio no
mercado da Vila Rubim e, ainda, com a perda de tudo. Fica implícito que essa perda não
impediu que o comerciante continuasse comercializando hortifrutícolas, mas a queda no
movimento, sim. Isso é marcado explicitamente pelos temas o locutor ainda trabalhou três
meses depois do incêndio com hortifrutícolas e depois parou. A prática de parar com o
comércio que dá prejuízo fica evidente, estando inserida na estratégia cotidiana, demarcada
pela face emancipada das pressões concorrenciais, na qual a ordem do lugar do próprio não
permite a permanência do prejuízo. Essa prática é acompanhada de outra: a da constante
análise do comércio que é ou não viável. Essa última surge como um tema implícito
demarcado pelo trecho “a gente sempre está naquela expectativa do comércio que dá e que
não dá”. Portanto, a prática de parar a comercialização dos produtos foi articulada à medida
que se observou, por meio daquela análise constante, que os hortifrutícolas começaram a dar
prejuízo, esse último argumento um tema implícito demarcado pelo trecho “não dava
praticamente nem para tirar o que eu empatava”. Por fim, a prática de passar a trabalhar com
outro produto, que, comumente, também acompanha as outras duas práticas, surge como
tema implícito a partir do tema explícito o locutor obteve sucesso ao dar continuidade a
uma experiência anterior com ervas medicinais no lugar dos hortifrutícolas.
No fragmento seguinte, essas práticas surgem novamente, mas em algumas combinações
distintas, que revelam a pluralidade das construções no cotidiano dos sujeitos.
252
(68) Eu, por exemplo, tinha feito uma pesquisa já dentro do Mercado, e o último
[produto] que estava faltando para ficar bem no Mercado e conseguir
[trabalhar] aqui dentro era trabalhar com ervas medicinais. [...] Foi uma
pesquisa que a gente vê trabalhando a gente mesmo. [...] Ou seguia esse
caminho ou vendia a loja para outra pessoa, porque não tinha condições de
trabalhar com outro produto. [...] depois da gente, deve ter entrado mais
uns quatro ou mais [com ervas medicinais]. [...] O que não foi para isso foi
para artesanato. [...] não tem mais nenhum que trabalha com verdura aqui dentro
[dos galpões] (PROPRIETÁRIO 16).
Neste fragmento, outro comerciante que antes trabalhava com produtos hortifrutícolas
destaca as práticas da análise, de parar de trabalhar com o produto e de passar a trabalhar
com outro produto, e também apresenta uma construção na qual essa última prática é
substituída pela venda da loja. No fragmento também surge o tema explícito além de ervas
medicinais o artesanato, foi a outra opção dos comerciantes de produtos hortifrutícolas,
não restando mais esse tipo de comércio nos galpões. As observações do pesquisador
confirmam a inexistência desse tipo de comércio nos galpões que antes eram
exclusivamente voltados para ele. Entretanto, tanto o fragmento 67 quanto o 68 se silenciam
sobe os pequenos comerciantes de produtos hortifrutícolas que atuam fora dos galpões, mas
próximos a ele, nos tabuleiros em frente à peixaria e nas barracas. Esse silenciamento oculta
as maneiras que esses comerciantes buscaram para se manter mesmo comercializando
produtos hortifrutícolas durante a queda no movimento destacado nos dois fragmentos
anteriores. Aqui, surgem as práticas do saber comprar e do saber vender, apresentadas como
temas explícitos no fragmento a seguir.
(69) A pessoa tem que ter muita cabeça, saber comprar e saber vender. [...] Não é
uma coisa que dá muito lucro.[...] porque estraga muita mercadoria. [...] Muitas
coisas que, se não vender de um dia para o outro, por exemplo, já era. É prejuízo.
Saber comprar é, como se diz, agora tem a Ceasa, é chegar na Ceasa e
explorar preço. [...] o cliente vê que está fresquinha tem que aproveitar e ganhar
dinheiro nela agora, porque se começar vendendo barato só vai para trás. [...] a
mercadoria tá novinha eu vou procurar ver se tiro o meu empate, o que está
empatado ali. [...] Depois, sim, por exemplo, tem a banana, tá de vez,
começou a madurar, já tem que vender mais barato. Aí, sempre eu faço um
bacião, assim por um real (FUNCIONÁRIO 4).
253
No fragmento, o termo “pessoa” remete ao personagem implícito comerciante de
hortifrutícolas, como fica demarcado pelo tema explícito a pessoa tem que saber comprar e
vender, atribuições de um comerciante, e de que saber comprar é chegar na Ceasa e
explorar preço, local onde ficam os fornecedores de hortifrutícolas. Esse último tema
explícito remete ao tema implícito existiriam práticas específicas dos barraqueiros que
sabem negociar na CEASA. Isso foi evidenciado durante a observação do pesquisador
quando acompanhou um grupo de barraqueiros em suas compras na CEASA. Lá ficou claro
que o explorar preço envolve uma lógica de custo benefício. Ou seja, busca-se o menor
preço possível dentro de certo limite de qualidade e durabilidade dos hortifrutícolas.
Há aqui uma prática a destacar: comprar produtos de acordo com o público alvo. Como o
próprio barraqueiro mencionou, se alguns produtos estão muito caros para vender, esses ele
não leva, pois não atendem ao limite de preço do público alvo dele. Além disso, ele busca
comprar produtos mais frescos. Esta opção, em parte, também tem relação com o público
alvo que gosta de produtos mais frescos, mas o próprio comerciante prefere esses produtos,
pois demoram mais para estragar, reduzindo as perdas daquilo que estraga antes de ser
vendido. No fragmento anterior, as questões das perdas e dos prejuízos também surgiram
como temas explícitos, mas lá ambos estão associados ao saber vender, como fica
demarcado pelo trecho “se não vender de um dia para o outro, por exemplo, já era”.
Tanto a partir da argumentação anterior, com base na observação do pesquisador, quanto
nos temas do fragmento em análise, o saber vender se apresenta de maneira indissociável do
saber comprar, mas cada um apresenta práticas distintas. O saber comprar observado
envolve a prática de chegar à CEASA antes das 5 horas da manhã, horário permitido para a
entrada dos compradores. Para isso, os barraqueiros entraram pela entrada dos carregadores,
254
às 4 horas da manhã, como se fizessem parte do grupo de dezenas de homens que entravam
ao mesmo tempo. Em seguida, começaram a andar olhando a mercadoria, perguntando
preço e fazendo lances, como se fosse um leilão. Caso a negociação não fosse fechada, o
comerciante continuava esse processo procurando o mesmo produto. Algumas vezes,
voltava em um agricultor com o qual já tinha negociado e oferecia um valor maior, igual ou
menor do que o anterior. Segundo o barraqueiro, a negociação mais fácil de um produto
depende de o Mercado estar com muito ou pouco produto daquele tipo. Quando o volume
de um produto é alto, ele compra barato e fácil; quando é baixo, a mercadoria some, e os
preços sobem e, às vezes, nem é possível comprar. Para evitar que isso aconteça, eles
chegam cedo. Assim, podem tentar comprar antes de essas mercadorias sumirem e os preços
subirem. Aguardar até mais tarde para comprar pode permitir conseguir preços menores se o
produto desejado sobrar, ou maiores se ele ficar escasso.
Todas essas práticas se inserem na estratégia cotidiana, como fica claro por sua inserção na
lógica concorrencial referente à face emancipada aqui discutida, na qual as construções se
voltam para a “lei” da oferta e da procura, e a CEASA poderia ser chamada do lugar dessa
“lei”. Entretanto, não se deve esquecer de que lá também reina uma série de construções
referentes à representação social identificada nesta análise como do comerciante da Vila
Rubim como um homem devotado ao trabalho, na qual articulações em torno de temas
como honestidade interferem, sempre parcialmente, nessa “lei”, fazendo com que ela
própria reine parcialmente. Nesse contexto, permeado por construções múltiplas, é que se
apresenta o saber comprar, que, por sua vez, faz parte do saber vender, pois é do primeiro
que se dá o acesso aos produtos a serem vendidos.
255
No tocante ao saber vender, o fragmento 60 apresenta explicitamente uma série de práticas
que, como as do saber comprar, já destacas, também estão inseridas na estratégia cotidiana.
Essas práticas surgem no fragmento 69, demarcadas nos trechos “o cliente vê que está
fresquinha, tem que aproveitar e ganhar dinheiro nela agora”, “se começar vendendo barato,
só vai para trás”, “a mercadoria tá novinha, eu vou procurar ver se tiro o meu empate”,
“começou a madurar, já tem que vender mais barato”. Deles emerge dois temas implícitos:
a) o preço de venda do hortifrutícola deve ser mais alto enquanto ele está fresco, para
tentar recuperar o dinheiro utilizado para comprá-lo, caso contrário haverá prejuízo; e b)
quando começa a amadurecer, o preço de venda deve ser reduzido, para vender logo, antes
de estragar. Essas práticas de definição de preço são ainda mais detalhadas ao se observar o
trecho “Aí sempre eu faço um bacião assim por um real”, em conjunto com as construções
sobre a comercialização por meio de bacias, já discutidas na face emancipada do cotidiano
que envolve o cliente na representação social da Vila Rubim como um lugar de tradição
no comércio na Grande Vitória. Em conjunto, eles remetem ao tema implícito a maneira
de operacionalizar aquela variação no preço está na variação do volume de produtos nas
bacias.
Tal prática permite que, mesmo com as bacias tendo um preço fixo, a variação da
quantidade de produtos permite lidar com a necessidade de obter maior lucratividade com os
hortifrutícolas frescos, reduzindo a quantidade na bacia, que vai sendo aumentada à medida
que eles amadurecem. Da mesma maneira, se o preço do produto sobe, não há necessidade
de aumentar o preço da bacia; basta diminuir a quantidade de hortifrutícolas. Isso permite
trabalhar a segmentação de clientes em um público de mais baixa renda, algo inserido na
lógica concorrencial e exposto explicitamente no fragmento a seguir.
256
(70) [...] o rico chega aqui hoje, ele quer levar qualidade. Já tem uns pobrezinhos
que querem levar quantidade, entendeu? Então, quando eu cheguei no
Mercado aqui, era kilo. Aí, eu sempre freqüentava feira [...] eu via o
pessoal com aquelas bacias grandonas, depois surgiu essa bacia
pequena. Então, eles botavam as bacias de chuchu, bacias de cenoura,
tudo da bacia grande [...] depois, surgiu a bacia pequena pra botar
pimenta, botar colorau. Foi nessa aí que eu com os outros barraqueiros
botamos as verduras nas bacias pequenas, botar três bacias por um real
[...] de tudo ele levava um pouquinho e pagava pouco. [...] Isso aí foi em
92 ou 93 que começou isso aí. [...] Agora, de uns três anos para cá não
deu mais para fazer as três por um real, e passamos a aumentar mais a
quantidade na bacia e fazemos duas por um real. [...] Quem chega no
supermercado ele vê lá um quilo de chuchu lá hoje é 1,80 o quilo
, ele
chega aqui no mercado são duas bacias por um real [...] e dá mais de um
quilo e meio (PROPRIETÁRIO 5).
O fragmento apresenta explicitamente o processo de inovação no qual a prática do uso da
bacia foi introduzida e dois grandes segmentos de clientes: os ricos, querendo qualidade, e
os pobres, querendo quantidade. Nele, fica implícito que esse último grupo é atendido pela
prática do uso das bacias, como demarca os trechos “1,80 o quilo”, “duas bacias por um
real” e “dá mais de um quilo e meio” todos tratando da questão da quantidade, enquanto a
questão da qualidade permanece silenciada após o período inicial do fragmento.
O tema da segmentação explica ainda a existência de apenas dois portes de comércios
trabalhando com produtos hortifrutícolas, as grandes lojas e os pequenos comerciantes com
barracas ou tabuleiros na rua, cada um trabalhando em segmentos distintos, com apenas uma
ou outra exceção entre os comerciantes que atuam nos tabuleiro em frente à peixaria, como
fica evidente no fragmento a seguir.
(71) Porque ali [nos tabuleiros] é considerado classe baixa, que vai ali comprar na
mão deles, pessoas menos favorecidas. Já lá na loja, a maioria que chega,
chega de carro. [...] Então, eles [nos tabuleiros] já compram a mercadoria assim,
mais barato, para poder vender mais barato. [...] Mas eu acho que é opção de
cada um. O Wagner [um dos que ficam nos tabuleiros] ele tem produtos bons
e produtos mais ou menos. A única coisa que falta ali é espaço, ele quer botar
muita coisa [...] o Antonio, o que trabalha logo na pontinha, logo chegando
assim, do lado daquela lanchonete ali, ele também, os produtos dele são bem
bons (FUNCIONÁRIO 10).
257
Este fragmento complementa a argumentação desenvolvida na discussão dos temas nos
fragmentos 67 e 68 a respeito da impossibilidade de continuar com pequenas lojas
comercializando produtos hortifrutícolas. Nesses dois últimos fragmentos, os locutores estão
se referindo a comércios que se posicionariam de maneira intermediária entre os dois
segmentos extremos apresentados explicitamente nos fragmentos 70 e 71. O primeiro
segmento é diferenciado pelos termos “rico” e “pobrezinhos”; o segundo, pelos trechos “na
loja, a maioria que chega, chega de carro”, o que remete implicitamente à riqueza, e “ali
[nos tabuleiros] é considerado classe baixa que vai ali comprar na mão deles”, o que remete
implicitamente à pobreza. Durante a observação do pesquisador, esse posicionamento
realmente não foi encontrado em pequenas lojas na Vila Rubim, nenhuma comercializava
especificamente produtos hortifrutícolas em geral. De outro lado, ele foi identificado em
pelo menos dois comerciantes que atuam nos tabuleiros próximos à peixaria e três nas
barracas, o que foi observado pelo pesquisador no campo e mencionado pelos entrevistados.
No fragmento 71, os dois personagens explícitos “Wagner” e “Antonio” são evocados pelo
locutor para evidenciar a prática de comprar uma parte de seus produtos com melhor
qualidade, com preços um pouco mais altos, em uma variedade maior, o que também exigiu
a ocupação de maiores espaços. Durante a observação do pesquisador, observaram-se
críticas dessa postura de ocupação de espaços acima do que os outros comerciantes com
tabuleiros próximos fazem. Mas essas críticas não levam a nenhuma atitude concreta dos
vizinhos, estando sempre mediada por construções anteriores, já tratadas aqui, que
envolvem a amizade, a família, a sobrevivência e o trabalho. Ou seja, há aqui um
imbricamento entre o descontentamento com uma invasão de espaço que não pode ser
seguida por todos, pois, simplesmente, não há espaço para isso, e o cotidiano no qual os que
258
ocuparam um espaço maior deixam claro que estão ali sobrevivendo e sustentando a família,
como todos os outros.
Um aspecto a se destacar sobre os dois personagens explícitos citados no fragmento 71 é o
silenciamento do locutor sobre a posição privilegiada dos tabuleiros de ambos em relação ao
grupo que trabalha em frente à peixaria. Cada um dos dois fica em uma ponta da rua ao
longo da qual os tabuleiros estão, como mostrado na Figura 15. Na figura, observou-se
ainda que a peixaria tem duas entradas, que para chegar à entrada mais próxima da Rua
Orlando Rocha, todos passam em frente ao tabuleiro do Wagner (Tabuleiro A), e que, para
chegar à entrada mais próxima da Rua Jair Andrade, todos passam em frente ao tabuleiro do
Antonio (Tabuleiro H). Enfim, o chamado “ponto”, no caso dos dois, parece ter uma
localização privilegiada, o que deve facilitar a prática de comprar e vender produtos para um
segmento um pouco diferente dos demais vizinhos, bem como viabiliza a prática de ocupar
mais espaço do que eles, pois de um lado de cada um dos dois não há vizinho algum; eles
são os últimos em cada extremo da rua.
Essa questão da importância do ponto surgiu em várias construções em torno das quais se
articularam práticas e justificativas para o sucesso e ou o insucesso dos comerciantes de
hortifrutícolas, como se observa no fragmento a seguir.
(72) Era tudo barraquinha [dentro do galpão]. [...] naquela época, todo mundo só
trabalhava com hortifruti. [...] Eu acho que era o ponto. Tinha tinha lugar que era
bem mais estratégico, aparecia mais. [...] Aqueles que estavam lá para dentro,
mais escondido, aí começaram a ter menos movimento, e aí o teve como
crescer (FUNCIONÁRIO 10).
(73) Teve uma época que eu consegui uma barraquinha dentro de um galpão
[...]
Pensei em romper minha vida pra mim mesmo, mas não deu, porque na beira de
parede o comércio é muito fraco. [...] Peguei e fui obrigado a vender
(FUNCIONÁRIO 4).
259
(74) [...] poucos resistiram lá [no mercado da Vila Rubim]. Agora, os que estão,
adquiriram o imóvel dos demais, e simplesmente ampliaram as suas lojas. Então,
virou um rumo de poucas lojas (CLIENTE 3).
Os trechos sublinhados no fragmento 72 e 73 remetem, em conjunto, ao tema implícito na
localização do comércio de hortifrutícola, o ponto fazia a diferença entre os que cresciam,
com pontos que apareciam mais, ou os que vendiam o próprio comércio, com pontos mais
escondidos. Essa prática da venda do pondo já foi discutida, mas aqui ela se associa a outra
prática que surge em um tema explícito no fragmento 74: os comerciantes que resistiram no
mercado adquiriram os imóveis dos demais comerciantes e ampliaram suas lojas. Essa
prática da ampliação, inserida na estratégia cotidiana demarcada na face emancipada aqui
discutida, na qual o próprio, a ordem estabelecida, gira em torno da lógica concorrencial,
tem duas grandes conseqüências a serem destacadas. A primeira surge como tema explícito
no final do fragmento 74: “o Mercado passou a ter um número menor de lojas”; ou seja,
mudou a configuração espacial do mercado. Por exemplo, dos 300 boxes iniciais nos três
galpões, voltados para o comércio de hortifrutigranjeiros, agora são apenas 42 lojas atuando
com outros produtos.
A segunda conseqüência da prática da ampliação foi observada na história de vida daqueles
que conseguiram ampliar seu comércio. Esses sujeitos indicaram uma construção na qual a
ampliação gera mais recursos, o que possibilita mais ampliação, e assim por diante, sempre
associada às construções anteriores, inseridas na face emancipada da aplicação pessoal em
trabalhar e economizar na representação social do comerciante da Vila Rubim como um
homem devotado ao trabalho. Aqui, a ancoragem nas thematas
família/trabalho/sobrevivência e público/privado se evidencia. Os dois fragmentos a seguir
ilustram isso, tendo como locutores dois comerciantes de produtos hortifrutícolas que atuam
260
desde o início dos galpões, ainda nos pequenos boxes, até hoje em duas grandes lojas em
frente aos galpões, com dezenas de funcionários.
(75) [...] eu e o meu irmão entramos de sócios na banca. Aí, o tempo passou,
e eu fiquei com uma banca e ele ficou com a outra. E com essas
bancazinhas, nós conseguimos comprar mais direitos dos outros. [...] para crescer
dentro da Vila Rubim. Eu ia dormir, tinha dia, de meia-noite a uma hora da
manhã, porque 5 horas da manhã eu levantava e ia abrir a minha banca para
atender os clientes, que eram de restaurantes. Depois fazia a feira. [...] Então, os
produtos que estavam na banca de manhã, de tarde eu tirava e vendia na feirinha,
comprava de novo e começava de novo
(PROPRIETÁRIO 18).
(76) [...] fomos ao longo dos tempos crescendo e sempre aperfeiçoando mais no
trabalho de hortifruti, que era o nosso ramo. E eu cheguei até agora com as portas
abertas, sempre na frente, trabalhando
. [...] Vi muito amigo meu, eu era menino e
trabalhavam perto de mim, saindo, passando a loja dele para outro [...] Minha
sobrevivência foi porque eu fui melhorando a minha loja, mesmo naqueles
tempos e sempre procurando eu mesmo comprar
. Comprar qualidade, sempre
atendendo bem (PROPRIETÁRIO 22).
Nos dois fragmentos, surge o tema explícito continuidade do crescimento em uma
construção que o associa ao tema implícito trabalho com esforço, marcado no primeiro por
trechos como “ia dormir, tinha dia, de meia-noite a uma hora da manhã” e “eu levantava e ia
abrir a minha banca” e no segundo por trechos como “sempre na frente, trabalhando” e “eu
mesmo comprar”. No segundo fragmento, a prática de sempre buscar melhorar a loja está
marcada explicitamente, já as práticas do saber vender e saber comprar estão marcadas
implicitamente no trecho “Comprar qualidade, sempre atendendo bem”. Outro ponto a se
destacar é de que o crescimento inicial dos dois locutores se deu dentro dos galpões; ou seja,
eles não compravam as lojas, apenas os direitos sobre o espaço público. Além disso, ambos
se silenciam sobre a questão da localização do ponto, mas, aparentemente, à medida que se
cresce dentro de um galpão a tendência é que o comércio acabe se posicionado de maneira
destacada. A ênfase de ambos os sujeitos, em diversos trechos da entrevista e em outros
momentos de interação durante a observação por parte do pesquisador, é no trabalho com
261
esforço, que permitiu a eles acumular riquezas para adquirir as lojas vizinhas e dar
continuidade ao crescimento.
Aqui, surge uma distinção entre os comerciantes de hortifrutícolas das barracas e dos
tabuleiros e esses dois lojistas com maior crescimento. Para os primeiros, a questão da
ampliação do espaço dentro da lógica concorrencial não está associada ao contínuo
crescimento do comércio, mas à sobrevivência, como fica claro no fragmento a seguir.
(77) [...] o meu direito aqui nessa banca é desse pau aqui até aqui [essa parte
tem 1 metro por 1,22 metro]. Agora, imagine você uma parede aqui, de
cima embaixo, pra eu me movimentar, como seria a minha situação
para
sobreviver de aluguel, família, filho e tudo de dia-a-dia que uma pessoa
precisa para sobreviver, mesmo não sendo renda, só pra sobreviver. [...] O
que aconteceu. Aqui era uma vizinha. Como ela não resistiu a pressão do
mercado e ela estava, vamos dizer assim, falida, aí ela entregou pro
dono. O dono não precisa desta banca aqui, tem outra profissão e ele ia
alugar [...] eu aluguei essa aqui
. O outro vizinho aqui alugou essa de cá e daí pra
frente (PROPRIETÁRIO 4).
O tema explícito ampliação do espaço da barraca para a sobrevivência remete ao tema
implícito as barracas eram tão pequenas que não permitiam a sobrevivência, por isso
muitos faliram e outros puderam sobreviver ao juntar o seu espaço com o do outro. Nessa
prática, em torno de metade das 48 barracas foram agrupadas. Isso não quer dizer que os
barraqueiros que ampliaram conseguiram adquirir os direitos dos outros; eles apenas
alugaram dos donos. Aqui, não se concretiza a construção do crescimento contínuo; é
apenas uma prática para a sobrevivência, e é reconhecida como tal. Nesse sentido, a lógica
da pressão concorrencial de que quem não cresce continuamente não sobrevive é pervertida.
Alguns elementos do lugar demarcado por ela são imbricados com construções referentes à
sobrevivência criadas pelos barraqueiros, e sua prática de ampliar aqui se insere na tática
cotidiana. Novamente surge aqui a inserção simultânea de uma mesma prática como
262
estratégia e tática cotidiana, mas agora dentro de uma mesma face emancipada. O que muda
é a inserção contextual do grupo que articula a prática.
No caso dos barraqueiros, suas construções se voltam para o crescimento do espaço do
comércio, mas a preocupação é com um limite mínimo de espaço, abaixo do qual não é
possível sobreviver, mas nele a sobrevivência já ocorre, como eles têm demonstrado ao
longo dos anos. E, na impossibilidade de obter recursos para comprar, eles alugam dos
donos os direitos de usar o espaço das barracas vizinhas. Essa última construção apresentada
nesta análise novamente revela o imbricamento entre as diferentes construções aqui
discutidas.
Em síntese, a partir das três representações sociais identificadas e de suas faces
emancipadas, evidenciou-se que, como um todo, as práticas cotidianas dos comerciantes de
hortifrutícolas são indissociáveis de construções relativas à família, à sobrevivência e ao
trabalho, bem como à posse de recursos públicos privatizados. Esses elementos compõem
partes de um quebra-cabeças sempre incompleto, pois suas peças são dinâmicas. Mas, como
foi apresentado ao longo desta análise, mesmo dentro dessa incompletude foi possível obter
certa compreensão da estratégia como prática social na comercialização de hortifrutícolas no
Mercado da Vila Rubim.
O termo aprofundamento justifica-se pelo fato de a análise não ter se limitado a indicar
práticas e ou resultados capazes de identificar e diferenciar uma estratégia de outra. Esses
elementos estavam presentes ao longo da argumentação, mas, com base no esquema
conceitual adotado, as técnicas de tratamento de dados foram direcionadas para expor o
dinamismo que os envolve, na medida em que o próprio esquema reconhece que as práticas
263
e os resultados são sociais e, como tal, estão em permanente (re)construção por parte dos
sujeitos em suas interações cotidianas.
7.4 O esquema conceitual e a investigação empírica sobre o fazer estratégia na
comercialização de hortifrutícolas
Com base no esquema conceitual proposto (Figura 2), a análise dos dados revelou
construções sociais nas quais as mesmas práticas remetem a sentidos diferentes e a novas
práticas no fazer estratégia dos comerciantes de hortifrutícolas da Vila Rubim. Dessa
maneira, como foi evidenciado, observou-se que essas práticas alteram construções sociais
anteriores. Mas esse não é um processo isolado, pois, ao mesmo tempo, ficou evidente que
construções sociais anteriores, já estabelecidas, remetem à manutenção de práticas antigas e
a novas práticas convergentes com essas construções e que a reforçam, bem como os
sentidos a elas relacionados. Portanto, há uma dupla movimentação no cotidiano em torno
das práticas do fazer estratégia: uma na direção da manutenção e outra na direção da
mudança de sentidos e das próprias práticas.
Os quadros 1, 2 e 3 sintetizam a análise apresentada e as mencionadas movimentações
evidenciadas ao longo dela, na medida em que se buscou compreender o fazer estratégia dos
comerciantes de hortifrutícolas no Mercado da Vila Rubim.
264
QUADRO 1 – Síntese das práticas sociais articuladas em torno da questão: Quem é o comerciante da Vila
Rubim?
Representação social do comerciante da Vila Rubim como um homem devotado ao trabalho
Face emancipada da família
Face emancipada da aplicação
pessoal
Face emancipada das relações
pessoais
Práticas na
estratégia
cotidiana do
próprio da família
Práticas na
tática
cotidiana
Práticas na
estratégia cotidiana
do próprio aplicado
ao comércio
Práticas na
tática
cotidiana
Práticas na estratégia
cotidiana do próprio
das relações pessoais
Práticas na
tática
cotidiana
O comerciante vai
acompanhado da
família em seu
lazer.
Veicular discursos
sobre a
sobrevivência da
família.
Afastar-se do
membro familiar
que não se
enquadra no perfil
de homem
regrado,
persistente,
trabalhador.
Vender o
comércio.
Trabalhar mais
para corrigir
desvios de um
antecessor.
Persistência e
dedicação: acordar
cedo, tomar café da
manhã todo dia no
mesmo bar, ir para a
CEASA, montar a
banca.
Economizar.
Aplicar recursos
economizados para
ampliar estoques,
equipar, reformar e
ou ampliar o
comércio.
Pagar em dia.
Aproveitar o crédito
com os fornecedores.
Impedir o acesso dos
considerados
desonestos a
empréstimos, trocas de
cheques e negócios
conjuntos e liberar o
acesso dos honestos.
Vender sem
autorização das
instituições públicas.
Sonegar impostos.
Buscar a segurança
denunciando à polícia,
agredindo fisicamente e
disseminando a notícia
do roubo e de seu autor.
Vender o produto da
loja do vizinho ou
chamá-lo, quando o
cliente dele chega sem
que ele o veja.
Emprestar mercadoria
para o vizinho.
Ajudar mutuamente,
dividindo despesas com
frete da CEASA e
vigiando desconhecidos
em torno dos
comércios.
Gritar para atrair para o
seu comércio os
clientes que passam.
Atrair o
cliente do
vizinho para
o seu próprio
comércio e
realizar a
venda.
Fonte: dados da pesquisa
265
QUADRO 2 – Síntese das práticas sociais articuladas em torno da questão: O que sustenta a tradição de comprar
no mercado da Vila Rubim?
Representação social da Vila Rubim como um lugar de tradição no comércio na Grande Vitória
Face emancipada da continuidade
do comércio
Face emancipada do cotidiano que
envolve o cliente
Face emancipada do casamento
entre a mídia dos grandes, o peixe
e a galinha
Práticas na
estratégia cotidiana
do próprio do
comércio
tradicional
Práticas na
tática
cotidiana
Práticas na estratégia
cotidiana do próprio
envolvido com o cliente e
o fornecedor
Práticas na
tática
cotidiana
Práticas na estratégia
cotidiana do próprio
dos diferenciais
específicos do Mercado
da Vila Rubim
Práticas
na tática
cotidiana
Colocar o familiar e
os funcionários
considerados como
tal para trabalhar no
comércio,
acompanhando-os
no dia-a-dia.
Transferir o
negócio, com
clientes incluídos.
Disponibilizar ao
familiar apoio
financeiro, acesso
aos conhecimentos e
à rede de
influências.
Continuar no
comércio da família
ou abrir seu próprio
comércio.
Impedir que o
filho continue
naquele
comércio.
Exigir que os
filhos estudem.
Afastar os
filhos mais
velhos para
eles
trabalharem
em um
emprego
melhor.
Disponibilizar
horários de
atuação no
comércio para
o filho, sem
prejudicar o
estudo.
Usar a rede de
relacionament
os para
conseguir
empregos
formais para
os filhos.
Manter a grande variedade
de produtos
comercializados.
Escolher a variedade,
qualidade e preço dos
produtos a serem
comprados e revendidos
de acordo com o cliente.
Observar o que o cliente
quer comprar.
Tratar o fornecedor
pessoalmente para
fidelizá-lo.
Dar crédito a quem confia
e só vender a dinheiro para
quem não confia.
Oferecer a inovação ou a
novidade como parte da
tradição da variedade.
Buscar produtos com
características ou preços
que poucos têm acesso.
Abdicar da exclusividade
e fornecer para seus
“amigos”.
Encher as bacias de
hortifrutícolas para vender
mais rápido, quando o
produto começa a estragar.
Fidelizar o cliente por
meio do diálogo, da oferta
de brindes e do fiado.
Ajudar mutuamente
dividindo o frete na
CEASA e viabilizando a
compra da variedade de
produtos.
Posicionar-se perto da
peixaria para vender os
hortifrutícolas.
Aumentar os estoques
de hortifrutícolas
quando o consumo e a
procura por galinha e
peixe é maior.
Aproveitar os clientes
atraídos pelos
investimentos em mídia
dos supermercados.
Fonte: dados da pesquisa
266
QUADRO 3 – Síntese das práticas sociais articuladas em torno da questão: Por que o mercado muda?
Representação social das mudanças no mercado da Vila Rubim como conseqüência dos eventos do dia-a-dia
rebatidos em demandas do e sobre o estado e o comerciante
Face emancipada das demandas das
e sobre as instituições públicas
F
ace emancipada da privatização do
espaço público
Face emancipada das pressões
concorrenciais
Práticas na
estratégia
cotidiana do
próprio das
relações formais
Práticas na tática
cotidiana
Práticas na
estratégia cotidiana
do próprio do
espaço privatizado
Práticas na
tática cotidiana
Práticas na
estratégia
cotidiana do
próprio das leis do
mercado
Práticas na
tática cotidiana
Fazer reuniões na
associação.
Eleger um
presidente para a
associação.
Pagar
mensalidades da
associação.
Investir recursos
da associação em
infra-estrutura,
cadastramentos e
parcerias.
Manter a
interação com as
instituições
públicas.
Argumentar que
os produtos em
barracas e
tabuleiros são
mais baratos, nem
pagam impostos.
Ajudar e ser
ajudado,
dividindo o custo
do frete e
viabilizando o
negócio frente às
dificuldades
impostas pelas
instituições
públicas.
Ir para as barracas
oferecidas e
construídas pelo
estado.
Expor as falhas
das instituições
públicas na mídia
para pressioná-
las.
Fazer barracas
para trabalhar
onde for
necessário,
mesmo contra as
instituições
públicas.
Articular-se com
políticos,
marcando
reuniões para ele
expor suas idéias,
panfletando,
colocando
cartazes, o
acompanhando e
expondo a ele o
que quer em
oposição às atuais
demandas das
instituições
púbicas.
Veicular o tema
do desemprego
para se opor às
instituições
públicas.
Definir o grupo de
invasores antes de
invadir.
Fazer cumprir as
regras até pela
violência.
Planejar a
reapropriação
do espaço
público da
prefeitura.
Ter paciência e
ir alterando
devagar o que é
proibido alterar.
Parar com o
comércio que dá
prejuízo.
Analisar
constantemente o
comércio que é ou
não viável.
Passar a trabalhar
com outro produto.
Vender a loja.
Saber comprar,
explorando preço
na CEASA,
chegando cedo,
entrando antes
como carregador e
fazendo várias
ofertas.
Comprar produtos
de acordo com o
público alvo.
Comprar produtos
mais frescos, para
atender o público
alvo e para não
estragar logo.
Variar a
quantidade de
hortifrutícolas na
bacia no lugar de
variar o preço.
Ampliar seu
espaço apenas
para sobreviver.
Continua...
267
Continuação...
QUADRO 3 – Síntese das práticas sociais articuladas em torno da questão: por que o mercado muda?
Representação social das mudanças no mercado da Vila Rubim como conseqüência dos eventos do dia-a-dia
rebatidos em demandas do e sobre o Estado e o comerciante
Face emancipada das demandas
das e sobre as instituições públicas
Face emancipada da privatização
do espaço público
Face emancipada das pressões
concorrenciais
Práticas na
estratégia
cotidiana do
próprio das
relações formais
Práticas na tática
cotidiana
Práticas na
estratégia
cotidiana do
próprio do espaço
privatizado
Práticas na
tática cotidiana
Práticas na
estratégia
cotidiana do
próprio das leis do
mercado
Práticas na
tática cotidiana
Aceitar a oferta
do usufruto de
recursos
públicos.
Articular-se com
atores políticos
por meio de
relações pessoais
para se opor às
instituições
públicas.
Enfrentar os
fiscais das
instituições
públicas com
violência.
Substituir a
violência pelo
diálogo com as
instituições
públicas e seus
representantes.
Ceder ou
obedecer ao fiscal
temporariamente,
depois voltar à
condição anterior.
Diminuir a
quantidade de
hortifrutícolas
quando estão
frescos, recuperar
o capital investido
e ir aumentando a
quantidade na
bacia até vender
tudo , antes de
estragar.
Comprar uma parte
dos hortifrutícolas
com melhor
qualidade, preços
um pouco mais
altos e maior
variedade,
ocupando maiores
espaços.
Ampliar seu
espaço para
crescer, ganhar
mais, ampliar os
espaços, e assim
por diante
Sempre melhorar a
loja.
Fonte: dados da pesquisa
Nos quadros, cada prática destacada se insere em uma ou nas duas movimentações
(manutenção e mudança) em relação à inserção contextual dos sujeitos e às representações
sociais construídas por eles, expondo a configuração do “fazer estratégia” em termos de
práticas e sentidos que o perpassam.
268
Em relação à inserção contextual na representação social e na face emancipada que foram
utilizadas como referência na análise e reproduzidas nos quadros, as práticas cotidianas
enquadradas como táticas baseiam as movimentações na direção da mencionada mudança
de sentidos, com a manutenção ou não das práticas. Já as práticas cotidianas enquadradas
como estratégia baseiam as movimentações na direção da mencionada manutenção dos
sentidos, também com a manutenção, ou não, das práticas. Ou seja, as mudanças nas
práticas nas construções sociais dos sujeitos não significam, necessariamente, mudanças nos
sentidos inseridos nessas construções sociais, pois também ocorre o contrário: as práticas
mudam em torno de sentidos anteriores, reforçando-os.
Isso foi observado com base no esquema conceitual proposto, quando, no caso investigado,
o “fazer estratégia” dos que comercializam os hortifrutícolas se apresentou articulado em
torno das thematas família/sobrevivência/trabalho e público/privado. Esses elementos, ao
mesmo tempo em que se apresentaram de maneira hegemônica, remeteram a construções
específicas, expostas a partir da análise do conjunto de faces emancipadas das
representações sociais ancoradas naquelas thematas. A partir dessa organização, foi
possível destacar dois conjuntos de práticas: as inseridas na estratégia; e as inseridas na
tática cotidiana.
A inserção da prática em um ou outro conjunto foi relativa à referência social assumida, seja
no tocante ao grupo social (comerciantes de hortifrutícolas do mercado da Vila Rubim), seja
no tocante a um corte em seus compartilhamentos (as faces emancipadas em questão). Um
aspecto a se destacar, observado ao longo da análise e evidente nos quadros de 1 a 3, é que
nesse processo algumas práticas se posicionam ao longo do tempo como tática e como
estratégia cotidiana.
269
Ao sintetizar nos quadros as práticas dos comerciantes de hortifrutícolas, foi possível
evidenciar essas duplas inserções, condição adequada para ilustrar o potencial da proposta
de investigação baseada no esquema conceitual (Figura 2) defendido nesta tese. É
justamente ao oferecer espaço ao dinamismo social que se pode observar a inserção das
práticas nesse dinamismo, no qual, mesmo permanecendo a mesma, a prática pode ser
permeada por sentidos distintos simultaneamente ou ao longo do tempo. Ou seja, a prática
pode envolver desde uma simples reprodução de construções anteriores, posicionadas no
lugar de um próprio no qual uma determinada ordem estabelecida deve ser mantida como
tal, até, sem necessariamente alterar as manifestações concretas da prática em si, uma
condição na qual transgride esse lugar, essa ordem, e demarca um espaço singular.
Isso ocorre no caso das práticas em torno das articulações políticas, ora voltadas à oposição
de demandas formais estabelecidas, ora para se enquadrarem nessa ordem e usufruírem dela.
De maneira mais específica, a ambigüidade das práticas sociais pode ser ilustrada ao se
destacar uma prática específica: a de “ampliar seu espaço” (Quadro 3), demarcada na face
emancipada das pressões concorrenciais na representação social das mudanças no
mercado da Vila Rubim como conseqüência dos eventos do dia-a-dia rebatidos em
demandas do e sobre o estado e o comerciante. Em relação a essa face e ao grupo de
sujeitos dos comerciantes de hortifrutícolas, essa prática se posiciona no lugar do próprio
quando está articulada em torno da idéia do crescimento mercadológico e em um espaço de
transgressão quando está articulada em torno da idéia de sobrevivência. Em uma lógica
simplista, poderia se conceber que a definição de uma ou outra inserção viria do resultado
alcançado ou almejado a partir dessa prática. Mas segundo o esquema conceitual proposto
(Figura 2), o resultado é permeado pelo contexto social; ele não está isolado. A própria
270
definição do que é um resultado de crescimento ou de sobrevivência só existe a partir de
construções sociais que delimitam um e outro.
A demarcação dos sentidos das práticas sociais é a base da análise, sem a qual não há
referência. Por exemplo, para se saber o que é crescimento e o que é sobrevivência, já que
ambas podem articular a mesma prática, ou seja, a mesma evidência concreta para quem
observa. No quadro conceitual, essa demarcação de sentido ocorre por meio das
representações sociais, que se inserem na condição privilegiada de demarcar o lugar dos
próprios, de estabelecer ordens. Nesse sentido, no exemplo, a face emancipada das pressões
concorrenciais na representação social na qual a prática se articula oferece a base para a
análise. Nessa análise, o comerciante de hortifrutícolas bem-sucedido, citado em diversos
fragmentos, é bem-sucedido por ter esse crescimento. Portanto, nessa inserção contextual, a
prática de “ampliar seu espaço” está posicionada no lugar do próprio e o reforça. Entretanto,
no esquema conceitual proposto, a tática não esta subordinada a essas representações, nem à
estratégia. De certa maneira, é ao contrário.
Ao utilizar-se de um dos elementos daquele lugar – no caso, a prática de “ampliar seu
espaço”, mas associada ao sentido da sobrevivência – a própria representação social em
questão passa a ser alterada pela prática. Se antes ela a reforçava, agora, associada a um
novo sentido, faz com que a face emancipada se altere e em conjunto com outras
construções que “atacam”. Dessa maneira, pode surgir uma nova face emancipada, um novo
lugar de um próprio, onde, talvez, sobreviver seja ter sucesso e “ampliar seu espaço” para
sobreviver seja uma estratégia demarcada nesse lugar.
271
Essa última movimentação, no caso investigado, não foi evidenciada na prática de “ampliar
seu espaço”, mas envolveu outra prática identificada, a da “violência” (Quadro 3) por parte
dos barraqueiros. Antes, a violência se enquadrava como tática, na medida em que os
barraqueiros, então ambulantes, deparavam-se com os ficais (o rapa) e a polícia, e os
enfrentava. Depois, os mesmos barraqueiros passaram a se utilizar da violência enquadrada
como estratégia no lugar de um próprio que mantinha sua ordem estabelecida na Praça. A
dinâmica social evidenciada remete à manutenção da prática a partir das alterações e
inovações nos sentidos que as envolvem.
De outro lado, novas práticas surgem articuladas em construções sociais anteriores, como a
prática de “ajudar e ser ajudado, dividindo o custo do frete”. Na análise, ela se apresenta
articulada e associada simultaneamente às faces emancipadas das relações pessoais do
cotidiano que envolve o cliente e das demandas das e sobre as instituições públicas,
respectivamente, nas representações sociais do comerciante da Vila Rubim como um
homem devotado ao trabalho, da Vila Rubim como um lugar de tradição no comércio
na Grande Vitória e das mudanças no Mercado da Vila Rubim como conseqüência dos
eventos do dia-a-dia rebatidos em demandas do e sobre o estado e o comerciante. Em
todas essas faces a prática em questão se insere na estratégia cotidiana, convergindo com a
ordem estabelecida por essas faces e se legitimando nelas. Mas, como se observou na
análise, essa prática só surgiu no cotidiano da Vila Rubim quando a comercialização do
atacado de hortifrutícolas transferiu-se da Vila Rubim para a CEASA, fazendo com que
existisse um frete a ser dividido. Essa nova prática não altera sentidos inseridos nas
construções sociais anteriores, apresentados nas faces emancipadas; ela os reforça, indo ao
encontro de práticas, também anteriores, que os articulavam, como o empréstimo de
dinheiro e mercadoria entre os comerciantes.
272
Pelo exposto, o fazer estratégia na comercialização de hortifrutícolas na Vila Rubim envolve
um dinamismo social no qual se articulam construções sociais em movimentações na
direção da manutenção, da mudança e do surgimento de práticas e sentidos que envolvem
essas construções. Em tais movimentações, as alterações em manifestações concretas dessas
práticas não dependem, necessariamente, de mudanças nos sentidos que as envolvem, e
vice-versa. Portanto, uma maior compreensão desse dinamismo dependeu de um
aprofundamento da inserção contextual socioistórica, que gira em torno deles, indo além de
uma análise pontual de manifestações concretas e de resultados almejados ou obtidos, mas
que inclui esses elementos ao serem articulados pelos sujeitos de pesquisa naquele
dinamismo social.
273
8 CONCLUSÃO
Ao resgatar o objetivo proposto – compreender as relações entre os sentidos das práticas
sociais e os direcionamentos das maneiras de “fazer estratégia” das pessoas nas
organizações – é possível identificar que ele foi alcançado ao se confrontar os Quadros 1, 2
e 3 com o esquema conceitual (Figura 2). Esse confronto revela que em seu processo
socioistórico os comerciantes de hortifrutícolas no Mercado da Vila Rubim articularam
diversos fluxos de práticas inseridos em contextos sociais mais amplos e organizacionais
específicos, ou seja, diversas estratégias e táticas. Dentre elas, a investigação empírica
permitiu identificar 14 fluxos, 9 como estratégias e 5 como táticas, de acordo com as
referências sociais assumidas na análise. Com base nos quadros, as 9 estratégias podem ser
identificadas como: da família; da aplicação no comércio; das relações pessoais; do
comércio tradicional; do envolvimento com o cliente e o fornecedor; dos diferenciais
específicos do Mercado da Vila Rubim; das relações formais; do espaço privatizado; e das
leis do mercado.
Seguindo a mesma linha de argumentação, as 4 táticas podem ser identificadas como: das
relações pessoais; do comércio tradicional; das relações formais; e das leis do mercado.
Aqui as práticas nos fluxos incluem construções inseridas nas estratégias homônimas para
transgredir, na direção de determinados interesses, aspectos reforçados por essas mesmas
estratégias. Por exemplo, na estratégia das relações pessoais o comerciante se aproxima do
cliente para realizar a venda por um comerciante vizinho, repassa o que vendeu para ele,
reforça os laços pessoais e, conseqüentemente, a ordem que legitima essa prática. Mas o
mesmo comerciante pode se aproximar do cliente como se fosse realizar a venda para o
274
outro, verificar que não está sendo observado e vender para si mesmo, na tática das relações
pessoais. A possibilidade e o ato de se aproximar do cliente do comerciante vizinho é o elo
que une a estratégia e a tática homônimas, mas o processo em cada uma delas tem
implicações (reforço ou transgressão de uma ordem) e se desenvolve de maneiras distintas e
dinâmicas.
Pelo exposto, dentro da abordagem adotada nesta tese a denominação das estratégias e
práticas é dinâmica, relacional e temporária, pois o foco está voltado para o processo que
permeia cada estratégia e suas articulações nas práticas e sentidos em cada fluxo. Nos
Quadros 1, 2 e 3 cada fluxo tem suas práticas identificadas na análise sintetizadas em uma
coluna, mas só é possível compreender os processos que envolvem as práticas, no fazer
estratégia, ao se recorrer aos sentidos relacionais de cada prática. No caso desta tese, esses
sentidos foram detalhados na discussão das três questões que percorrem o cotidiano dos
sujeitos de pesquisa. Sem essa discussão anterior o quadro em si não teria sentido, pois
apresenta apenas práticas isoladas, o que reforça o argumento de que a compreensão da
estratégia como prática social exige o reconhecimento das construções sociais que
permeiam tais práticas. Isso vai muito além da identificação de manifestações concretas,
mas envolve essa identificação na medida em que é uma etapa para se alcançar as demais
construções sociais em torno dessas manifestações.
No esquema conceitual, esses sentidos permeiam as práticas sociais nas articulações em
torno das faces emancipadas das representações sociais apresentadas na análise. Esses
sentidos se apresentaram de maneira indissociável dos direcionamentos do “fazer estratégia”
dos comerciantes de hortifrutícolas do Mercado da Vila Rubim. Isso não quer dizer que há
aqui uma relação de causalidade simplista entre os sentidos e o “fazer estratégia”, como se
275
um sentido levasse a um fazer, ou vice-versa. Observou-se que as práticas inseridas no fazer
estratégia dos sujeitos de pesquisa podem se manter as mesmas em relação à suas
manifestações concretas, mas articulada em sentidos distintos, bem como novas práticas
surgem articuladas em sentidos anteriores, como foi observado na divisão da despesa do
frete da CEASA para aqueles inseridos no sentido de amigo dentro das relações pessoais
dos comerciantes.
Esses aspectos evidenciados na análise empírica legitimam o entendimento de que o modelo
conceitual proposto permitiu alcançar o objetivo desta tese, bem como a problematização
oriunda dele: como os sentidos das práticas sociais se relacionam com os
direcionamentos das maneiras de “fazer estratégia” das pessoas nas organizações?
Essa última sem uma resposta única, mas com um entendimento único: de maneira
dinâmica, envolvendo movimentações simultâneas na direção da manutenção e da mudança
nos sentidos e no fazer estratégia, inter-relacionados nas práticas cotidianas. Tal
entendimento não é uma surpresa, pois, antes da aplicação empírica do esquema conceitual
proposto, o próprio esquema foi desenvolvido em torno de três questões básicas assumidas
como norteadoras da problematização em questão: 1) As práticas sociais relacionam-se
umas com as outras no cotidiano dos sujeitos sociais; 2) No interior das organizações, essas
relações envolvem o “fazer estratégia” nas estratégias e táticas cotidianas; e 3) O estudo das
representações sociais, dos atores organizacionais, clientes, fornecedores e demais sujeitos
destacados por eles, sobre os objetos que eles próprios evidenciam em suas estratégias e
táticas cotidianas, é capaz de revelar aquelas relações, pois expõe as práticas sociais em suas
inserções em lugares de reprodução de um próprio e em bricolagens em espaços de
transgressão e criação.
276
O esquema conceitual desenvolvido e sua aplicação corroboram com essas três questões
assumidas como base da discussão desta tese. Nesse sentido as principais contribuições da
tese são a instrumentalização teórica e metodológica da investigação da estratégia como
prática social em torno dessas questões e a compreensão da estratégia como prática social
no caso da comercialização dos comerciantes de hortifrutícolas no Mercado da Vila Rubim,
como foi observado ao longo da discussão apresentada.
Para isso, a discussão se iniciou por meio de argumentos voltados para a defesa de que a
investigação da estratégia como prática social deve se voltar para os estudos das estratégias
e táticas nas organizações, como uma composição de fluxos de práticas sociais inseridas
em contextos organizacionais específicos e sociais mais amplos. Com base em
contribuições de autores como Pettigrew (1977), Certeau (1994) e Jarzabkowski (2004,
2005), essa composição é aqui reconhecida como construída a partir de diferentes fluxos,
alguns com práticas inseridas como estratégia e outros como táticas cotidianas. Uma
inserção que vai depender das relações dessas práticas entre si e em torno do lugar de um
próprio, uma ordem estabelecida, construída socialmente e dentro de certo dinamismo.
Como foi observado na análise, e defendido por Certeau (1994), essas construções
apresentam certo dinamismo, pois há um movimento duplo entre manutenção e transgressão
de uma ordem estabelecida.
Existem construções que podem corroborar com outras, anteriores, apresentando práticas
então identificadas, em relação às construções anteriores e à ordem por elas estabelecidas,
como estratégia. As práticas que essas construções anteriores articulam convergem para essa
ordem, legitimam-se nela e a reforçam. Mas, ao mesmo tempo, e aqui está a base do
dinamismo, elementos dessa ordem são aproveitados em articulações que não são
277
convergentes com ela. As práticas nesses fluxos são então identificadas, novamente, em
relação às construções anteriores e à ordem por elas estabelecidas, como tática. Portanto, a
relação entre estratégia e tática não é algo estático, mas relativo à referência social
assumida. A utilidade é expor o dinamismo das construções e práticas sociais em torno da
referência, do contexto, social assumido na análise, não a simples classificação do que é
estratégia ou tática, que, em si, de uma referência para outra, podem ser as duas coisas. O
que se tem é um caminho para expor articulações daquele dinamismo social, não para
classificar uma suposta realidade única.
No processo de construção do esquema conceitual, a referência em torno do estabelecimento
dessa ordem passou a ser o desafio. Como delimitar as infinitas construções sociais? Ao
optar pela TRS (MOSCOVICI, 1978; 1993; 1995; 2003b), em seus desenvolvimentos mais
recentes, que enfatizam o dialogismo (MARKOVÁ, 2000) e a dinâmica social na
heterogeneidade das representações (LIU, 2003), encontrou-se uma alternativa que delimita
essas construções em torno do que os sujeitos consideram relevantes para tratar de suas
relações com o desconhecido presente no cotidiano. Dessa maneira, a análise da estratégia
como prática social pôde se utilizar do desmembramento do processo de familiarização dos
sujeitos sociais para estudar o “fazer estratégia”. Conceitos da TRS, a ancoragem, a
objetivação, a themata e os gêneros comunicativos foram adotados para expor processos de
construções dos sujeitos relacionados com esse fazer, na medida em que a esses processos e
sujeitos foi atribuída a condição de estabelecimento de uma ordem, bem como sua
manutenção e mudança.
Dessa maneira, o esquema conceitual inclui um caminho para expor o dinamismo da
articulação das práticas no cotidiano: a ênfase nas estratégias e táticas cotidianas, em torno
278
de uma referência social de uma ordem estabelecida. E o complementou com uma maneira
de expor as construções relativas a essa ordem, sem deixar de dar espaço para o mencionado
dinamismo social: a abordagem da TRS aqui assumida.
Em conjunto, esses aportes teóricos viabilizaram as contribuições desta tese em torno do
objetivo proposto. Foi possível a partir delas expor a estratégia em suas implicações sociais,
norteada pelas interações entre as práticas dos sujeitos. Essas características evidenciam o
espaço do sujeito no fazer estratégia na organização e a dificuldade de se lidar com esse
fenômeno de maneira determinista, na medida em que envolve uma infinidade de
implicações sociais. Para lidar com essa complexidade, ao estudar esse “fazer”, legitima-se
a proposição da investigação das práticas sociais a ele associadas, segundo a concepção de
Certeau (1994). Como foi observado no caso apresentado, trata-se de uma mediação
inserida nos contextos sociais dos sujeitos, contextos que, de um lado, constrangem as
práticas desses sujeitos e, de outro, oferecem as condições para que eles usem o tempo e o
espaço a seu favor, a ponto de ser possível perverter aquele constrangimento durante a
própria mediação, o que foi observado no caso dos barraqueiros e sua prática da “violência”.
Para dar conta desse dinamismo é que se optou por considerar as estratégias e táticas nas
organizações como fluxos de práticas sociais inseridas em contextos organizacionais
específicos e sociais mais amplos. Ao mesmo tempo, aproximou-se o conceito de estratégia
do de representação social, pois, se as práticas sociais estão sempre nas estratégias e táticas
cotidianas dos sujeitos (CERTEAU, 1994), conseqüentemente, elas também estão nas
organizações e nas estratégias organizacionais. Como mantêm uma relação estreita com as
representações sociais (VERGÈS, 2001), capazes de elucidá-las (JODELET, 2001), essas
279
práticas constituem uma unidade de análise adequada para a investigação do fazer estratégia
na organização.
Deve-se destacar que o posicionamento das práticas sociais como unidade de análise não é
uma contribuição desta tese. Outros autores do campo da estratégia como prática já
revelaram a adequação dessa opção (JARZABKOWSKI, 2005). A contribuição desta tese
está na proposição de um caminho para se lidar com essas práticas na investigação empírica,
segundo uma abordagem que enfatiza o dinamismo das construções sociais e o papel dos
sujeitos em expor as suas próprias articulações em torno das práticas nesse dinamismo
inserido no fazer estratégia. Dessa maneira, o esquema conceitual e as opções
metodológicas adotadas revelaram um caminho para lidar com um problema específico
dentro do campo dos estudos de estratégia como prática social, destacado por Wilson e
Jarzabkowski (2004): a distância relacional. No caso, os sujeitos receberam a atribuição de
fazer a delimitação do que entre os níveis microssocial e macrossocial deve ser ressaltado
em suas construções em torno do seu próprio fazer estratégia.
A aplicação dessa proposta foi observada no caso dos comerciantes de hortifrutícolas do
Mercado da Vila Rubim. Os sujeitos destacaram no extremo do nível macro as ingerências
oriundas de pressões concorrenciais e das instituições públicas com suas definições de
normas e regras. No extremo do nível micro, os sujeitos manifestaram as maneiras de falar,
conversar e negociar veiculando sentidos no cotidiano, por meio dos quais eles interagem.
Mas entre esses dois níveis persiste o problema da distância relacional, pois existem
infinitas possibilidades de aprofundamento. Portanto, no lugar de preocupar-se com esses
limites, de tentar identificar quais são os mais extremos do que os outros, ensejou-se espaço
para os sujeitos de pesquisa revelarem suas articulações dentro desses níveis. Isso pôde ser
280
observado na análise dos dados, quando se evidenciou que aquelas ingerências das
instituições públicas são articuladas por meio da antiga prática da violência, com os fiscais
sendo agredidos quando tentavam tirar o meio de sobrevivência de um ambulante – um
sentido, o da sobrevivência, que envolve a articulação, o apoio e a reprodução dessa prática.
Além da questão da distância relacional, outro ponto destacado nesta tese, como algo a ser
desenvolvido no campo dos estudos sobre estratégia como prática social, foi a ênfase nos
níveis diretivos. Os estudos nessa abordagem, a despeito de criticarem essa ênfase,
continuaram por focar esse nível organizacional. Aqui, surge uma limitação desta tese. Na
mesma linha dos estudos que criticou e, a despeito de argumentar contra um foco restrito ao
nível da alta direção, a investigação empírica aqui apresentada também se delimitou a esse
nível, apesar de incluir dentre os sujeitos de pesquisa clientes, funcionários e fornecedores.
Na análise, ficou clara a maior participação das manifestações dos comerciantes, os
proprietários do comércio. A justificativa para isso está nas características das organizações
investigadas, os comércios de hortifrutícolas. Em todas elas os comerciantes acompanham a
quase totalidade das operações no dia-a-dia, pois têm poucos ou nenhum funcionário. Dessa
maneira, eles se destacam nas articulações do fazer estratégia no estudo em questão, ainda
que se defenda nesta tese o caráter plural do fazer estratégia em movimentações que
extrapolem o nível gerencial, o que exige investigações que, também, extrapolem esses
níveis.
Em relação a essa limitação, a partir das contribuições apresentadas, a expectativa é que
desenvolvimentos posteriores a superem, permitindo uma maior compreensão do processo
de fazer estratégia na organização, ao incluir como questões relevantes construções sociais
que envolvam todos os níveis organizacionais. Dessa maneira, enriquecerão a discussão em
281
torno do desenvolvimento de estratégias nas organizações, comumente focada na busca pela
obtenção de resultados e pela compreensão de supostas disfunções estratégicas.
Na abordagem proposta, a idéia de disfunção deve ser criticada e em seu lugar assumida o
entendimento de que existem construções sociais distintas em torno do “fazer estratégia” no
interior de uma organização. A intenção é tornar saliente a necessidade de promover
mediações mais intensas entre determinados interesses, enfim, uma infinidade de
construções sociais pertencentes às pessoas, às organizações e às estratégias nelas
desenvolvidas. Não se observa contribuição ao campo da estratégia ao negar essas
construções, o que legitima a proposição de um caminho para se aproximar dessas
construções sociais e compreender os processos a elas associados.
A discussão desenvolvida até aqui oferece como contribuição final desta tese a sugestão de
que as propostas apresentadas sejam aplicadas e ampliadas. O desenvolvimento da proposta
apresentada não se encerra aqui. Muito pelo contrário, a intenção é o debate que permita
abrir a discussão e incorporar conhecimentos de pesquisadores e grupos interessados no
desenvolvimento da abordagem da estratégia como prática social.
282
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300
APÊNDICE
301
APÊNDICE A
ROTEIRO DE ENTREVISTA E OBSERVAÇÃO SISTEMÁTICA
a) Tradições versus mudanças no mercado e no comércio de hortifrutícolas
b) Problemas / Soluções no cotidiano
c) Práticas e relações pessoais e profissionais dos seguintes personagens no cotidiano
do comércio de hortifrutícolas:
1) Lojistas
2) Barraqueiros
3) Pessoal dos tabuleiros
4) Concorrentes
5) Fornecedores
6) Funcionários
7) Clientes
8) Políticos
9) Poder público
Livros Grátis
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Milhares de Livros para Download:
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