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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em História
Linha de Pesquisa: História Política e Cultura
O Triunfo da Vontade e a Estética Nazista:
O Nacional-Socialismo como Modernidade Alternativa
Juliane Lassarotte Eichler
Dissertação de Mestrado
Orientador: Profº Drº Oswaldo Munteal Filho
Rio de Janeiro - 2007
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em História
Linha de Pesquisa: História Política e Cultura
O Triunfo da Vontade e a Estética Nazista:
O Nacional-Socialismo como Modernidade Alternativa
Juliane Lassarotte Eichler
Dissertação de Mestrado
Orientador: Profº Drº Oswaldo Munteal Filho
Rio de Janeiro - 2007
Dissertaç
ão d
e
Programa de Pós-
Graduação em História do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas -
IFCH -
da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro - UERJ -
como parte dos requisitos
necessários à obtenção do tulo de Mestre em
História Política.
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O “Triunfo da Vontade” e a Estética Nazista:
o Nacional-Socialismo como Modernidade Alternativa
Autora: Juliane Lassarotte Eichler
Orientador: Profº Drº Oswaldo Munteal Filho
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em História do Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas - IFCH - da Universidade do Estado do Rio de Janeiro -
UERJ - como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História
Política.
Aprovada por:
____________________________________
Prof. Dr. Oswaldo Munteal Filho
____________________________________
Prof Dr. Adriano de Freixo
____________________________________
Prof. Dr. Paulo Emílio Matos Martins
Rio de Janeiro - Outubro de 2007
iv
Agradecimentos
Ao Prof Dr Oswaldo Munteal Filho, meu amigo e orientador, que com suas opiniões
ponderadas e suas reflexões críticas, teve fundamental importância na elaboração deste
trabalho de pesquisa.
Ao Prof Dr Adriano de Freixo, que desde a minha graduação, na UERJ/FFP - Universidade
do Estado do Rio de Janeiro / Faculdade de Formação de Professores - tem sido para mim e
para muitos de seus alunos, um exemplo de profissionalismo no qual busco me espelhar. O
seu incentivo e a sua torcida me permitiram perseverar com confiança e determinação até o
fim, e hoje me possibilitam o grande orgulho de chamá-lo de amigo, além de mestre.
Aos Profºs Drºs Luís Edmundo de Souza Moraes e Lucia Maria Paschoal Guimarães que
como membros da Banca Examinadora do Projeto de Pesquisa, muito contribuíram para o
desenvolvimento teórico desta dissertação, por meio de suas contundentes sugestões.
Àquele, que de sua maneira, me fez reconhecer e, sobretudo reafirmar o meu grande potencial
e valor. Um agradecimento especial a você.
v
À minha mãe, Margarida, que, em todos os
momentos, sempre pro
curou me indicar o
caminho certo e, principalmente, me fez acreditar
que era possível.
Ao me
u grande amigo Adriano de Freixo, que me
mostrou os meandros de como tornar esse sonho
possível.
vi
Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade.
Impossível escrever um poema - uma linha que seja - de verdadeira poesia.
O último trovador morreu em 1914.
Tinha um nome de que ninguém se lembra mais.
Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples.
Se quer fumar um charuto aperte um botão.
Paletós abotoam-se por eletricidade.
Amor se faz pelo sem-fio.
Não precisa estômago para digestão.
Um sábio declarou a "O Jornal" que ainda falta muito
para atingirmos um nível razoável de cultura.
Mas até lá, felizmente, estarei morto.
Os homens não melhoraram
E matam-se como percevejos.
Os percevejos heróicos renascem.
Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado.
E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.
Desconfio que escrevi um poema.
(“O Sobrevivente” - Carlos Drummond de Andrade)
vii
O “Triunfo da Vontade” e a Estética Nazista:
o Nacional-Socialismo como Modernidade Alternativa
Autora: Juliane Lassarotte Eichler
Orientador: Profº Drº Oswaldo Munteal Filho
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em História
do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - IFCH - da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro - UERJ - como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em
História Política.
O Nacional-socialismo representou, ao negar os princípios centrais da modernidade ocidental,
a idéia de uma outra “modernidade” baseada, ao mesmo tempo, no resgate e na projeção
futura das antigas glórias da nação germânica. Neste sentido, o filme “O Triunfo da Vontade”
da cineasta alemã Leni Riefenstahl aparece como a grande representação estética do nazismo,
traduzindo em imagens os principais aspectos da ideologia nacional-socialista. Ao trabalhar
com extrema genialidade todo um conjunto de referências simbólicas e míticas presentes no
imaginário alemão, Riefenstahl construiu, portanto, uma das mais impactantes peças de
divulgação do regime hitlerista, apresentando ao mundo os ideais do Terceiro Reich e a força
da “nova Alemanha”.
Palavras-chave: Nazismo, Leni Riefenstahl, Imaginário Político, Cinema alemão,
Nacionalismo.
Rio de Janeiro - Outubro de 2007
viii
O “Triunfo da Vontade” e a Estética Nazista:
o Nacional-Socialismo como Modernidade Alternativa
Autora: Juliane Lassarotte Eichler
Orientador: Profº Drº Oswaldo Munteal Filho
Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em História
do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - IFCH - da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro - UERJ - como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em
História Política.
The National Socialism, as it denied the basic principles of the occidental modernism,
represented the idea of another “modernity” based on the rescue and the future projection of
the past glories of the Germanic nation. In this sense, the movie “Triumph of the Will”
produced by the German film-maker Leni Riefenstahl appears as the great representation of
the Nazism esthetics, showing through images the main aspects of the National Socialist
ideology. By working every symbolic and mythical reference presented in the German
imagination with a great geniality, Riefenstahl built one of the most impacting instruments of
distribution of the Hitler regime, showing to the world the ideals of the Third Reich and the
strength of the “New Germany”.
Key Worlds: Nazism, Leni Riefenstahl, Political imaginary, German cinema, nationalism.
Rio de Janeiro - Outubro de 2007
ix
Sumário
Introdução 01
Capítulo I - A Alemanha no Período Entre-Guerras e as Origens do Nacional-
Socialismo.
08
1.1- O Nacional-Socialismo: Entre a Tradição e a Modernidade. 13
1.2 - Política e Cultura nos Anos Críticos: Décadas de 1920 e 1930. 25
Capítulo II - A Outra Face da Modernidade: O “Modernismo Reacionário” no
Nacional-Socialismo.
49
2.1 - Interpretações Teóricas Sobre os Conceitos de Nação e
Nacionalismo.
50
2.2 - Nazismo: Tenaz Afirmação da Consciência Nacional Alemã. 60
2.3 - Nacional- Socialismo: A Perspectiva de Uma Outra
Modernidade.
69
Capítulo III - Em Busca de Uma Nova Síntese: O Nacional-Socialismo Como
Uma Obra de Arte Performática
79
3.1 - Por Trás das Bandeiras. 88
3.2 - Richard Wagner e a Construção da Identidade Nacional Alemã. 107
Conclusão. 118
Fontes e Bibliografia. 125
Introdução
Nas duas últimas cadas
1
, a historiografia sobre o fascismo conheceu uma pujante
retomada de interesse, com novas abordagens e teorias explicativas, visto que, ao que tudo
indica, os fantasmas do passado continuam assombrando o Ocidente. Como bem exemplifica
a manchete do jornal Folha de São Paulo, publicado em 08 de maio de 2005: “As feridas da 2ª
Guerra continuam abertas”, e apesar dos esforços empreendidos pelos Aliados em implantar
uma política antifascista – política esta que segundo François Furet irrigou todo o século XX -
“não se conseguiu enterrar a força do apelo nazista, muito menos a sua simbologia do
espetáculo”
2
.
Assim, o ressurgimento de grupos “neo-nazistas” que têm assolado diversas partes
do mundo nos últimos anos, nos revela que a explicação histórica do fascismo como
fenômeno exclusivo de uma época, se enfraquece perante essas novas circunstâncias. Neste
sentido, é importante ter em mente que o fascismo não é um movimento pertencente ao
passado, findo da aventura humana e sem qualquer expressão política contemporânea. No
entanto, é obvio que o seu ressurgimento como fenômeno de massa nos dias de hoje não deve
ser interpretado à luz dos fenômenos que pretensamente o explicariam nas décadas de 1920 e
1930. Portanto, ao procurar compreender o nacional-socialismo alemão, cabe ao historiador
buscar em uma análise cuidadosa do significado e da intencionalidade dos agentes situados
naquele contexto histórico e social particular, a explicação de suas práticas sociais e políticas.
Neste sentido, convém refletir sobre a idéia expressa pelo provérbio francês Tout
comprendre c’est tout pardonner que poderia ser traduzido sinteticamente pela expressão
1
Entre os fatores que contribuíram para isso está a reunificação alemã, com a queda do Muro de Berlim, em
1989, o que possibilitou a devolução e abertura de arquivos especificamente dedicados ao fascismo; a publicação
por vários países, como os EUA, a Inglaterra e a Federação Russa, de seus arquivos (grande parte referentes ao
fascismo) após os 50 anos do término da Segunda Guerra Mundial; e por fim, mas de grande importância, o
ressurgimento do fascismo como movimento de massas, obrigando os historiadores a reverem as análises que o
vinculavam diretamente à conjuntura do entre-guerras.
2
Apud MENEZES, Le Medeiros de. “Nazismo: a sacralização do profano”. In: LAGE, Lana et al (org.).
História e Religião. FAPERJ: Mauad, 2002, p.169.
2
“compreender é perdoar”, que nos remete à idéia de que o fato de se “compreender” um
delito, um crime ou transgressão moral significa estabelecer uma empatia com o criminoso e
conhecer seus meandros, o que acaba nos incluindo em seu ato. Isso predispõe, por sua vez,
ao perdão ou até mesmo à desculpa, ou eliminação da responsabilidade. Logo “compreender”
seria “perdoar”, mas também “desculpar” – e não por acaso, a tradução inglesa do provérbio é
To understand is to forgive. Mas o que acontece quando o delito” que se tem diante dos
olhos é o nazismo; buscar compreendê-lo significa necessariamente perdoá-lo ou desculpá-lo?
Não acreditamos que o fato de muitos estudiosos ao tentarem se aproximar desse
tema, procurando entendê-lo, acabem estabelecendo com o seu objeto de conhecimento uma
perversa empatia. Buscar compreender o nazismo não se trata de ser complacente a ele ou
muito menos de se fazer uma apologia, até porque, por mais que tal ideologia possa chocar,
não cabe ao historiador fechar os olhos e ignorar o assunto. Ao contrário, compete a este
procurar atingir a mentalidade daquele povo e seus motivos para desprezar tudo àquilo que
não correspondesse ao ideal de pureza e perfeição da nação alemã, então proposto pelo seu
Führer. Sendo assim, procurando deixar de lado a perplexidade e o horror que o contato com
a experiência nazista comumente provoca, buscamos refletir sobre uma das principais
questões relacionadas a esse tema. Afinal, como isso tudo pôde acontecer, ou melhor, como
pôde Hitler ascender e perpetuar-se no poder?
A imagem do poder de Adolf Hitler na Alemanha tem-se mostrado uma questão
espinhosa, uma espécie de enigma para os pesquisadores do Terceiro Reich. Segundo Ian
Kershaw, analisar o perfil de poder do Führer alemão revela-se um desafio para qualquer
historiador que se aventure por esse caminho cheio de curvas e armadilhas, uma vez que
Hitler:
Nos seus primeiros trinta anos de vida, foi um joão-
ninguém. Nos vinte e seis anos restantes de sua experiência,
deixou uma marca indelével na história, como ditador da
Alemanha e o instigador de uma guerra genocida, que
3
assimilou a queda mais vertiginosa da civilização que se
tem notícia nos tempos modernos, e que terminou deixando
em ruínas seu próprio país e grande parte da Europa”
3
.
Para tal análise, geralmente é atribuído ao movimento nazista um enfoque
puramente político e econômico. Contudo, acreditamos ser possível uma leitura diferente
desse assunto, vinculada a um ideal estético, ou seja, um ideal de beleza e apuro do “corpo”
do povo alemão, tanto no sentido físico quanto no de nação. Para esse fim seria necessário
erradicar os males que pudessem afetar essa obra, mas antes disso era preciso conscientizar a
própria sociedade alemã dessa necessidade, o que seria alcançado através da propaganda
nazista e sua utilização dos meios de comunicação, em especial a produção cinematográfica
que é nosso objeto de estudo. Assim, numa busca incessante para apreender e interpretar
pormenores que, por acaso, tenham escapado ao olhar inquiridor de outros pesquisadores
deste período marcante da história da nação alemã, bem como do perfil de poder do líder
dessa nação, procuramos dialogar com diversas obras que abordam e discutem o tema em
questão.
A partir dessas reflexões, a proposta deste trabalho então consiste em analisar a
relação entre política, cultura e arte no movimento nacional-socialista alemão. Sob esse ponto
de vista, a investigação das formas empregadas pelo Terceiro Reich de divulgar sua ideologia
através de todo um “espetáculo de poder” ganha destaque, representado por grandes eventos
públicos, como desfiles cívicos e suntuosos comícios, mas, sobretudo o cinema - como
afirmamos acima. Desse modo, buscamos analisar através do filme “O Triunfo da Vontade”,
de Leni Rifenstahl - uma produção sobre o VI Congresso do Partido Nacional-Socialista,
realizado na cidade de Nuremberg, em 1934 - a construção da imagem do líder da Alemanha
Nazista, Adolf Hitler - o Führer - como o “Salvador” de uma pátria destruída e humilhada
3
KERSHAW, Ian. Hitler, um perfil do poder. Rio de Janeiro, Zahar, 1993, p. 09.
4
pela guerra e segregada pelo caos da modernidade, assim como o Messias” de uma nova era
a emergir em meio a essa desordem.
Nesse sentido, ao discutir questões como a cultura política e o imaginário político
alemão no século XX, este trabalho insere-se no campo mais amplo da História Política,
enfatizado por René Rémond quando assegura que:
(...) se o político tem características próprias que tornam
inoperante toda análise reducionista, ele também tem
relações com os outros domínios: liga-se por mil vínculos,
por toda espécie de laços, a todos os outros aspectos da vida
coletiva. (...) Abraçando os grandes números, trabalhando
na duração, apoderando-se dos fenômenos mais globais,
procurando nas profundezas da memória coletiva, ou do
inconsciente, as raízes das convicções e as origens dos
comportamentos, a história política descreveu uma
revolução completa.
4
De tal modo, as conclusões a que chegamos, serão apresentadas a seguir, ao longo de
três capítulos. Essas páginas são dedicadas a dar identidade ao regime político que é objeto de
análise: o Nacional-Socialismo alemão. Através de exemplos pontuais, procuramos aproximar
o leitor aos símbolos e imagens utilizados por esse governo, sem esquecer, porém, que a
intensidade e a complexidade que oferecem devem ser interpretados à luz da própria história
nacional e à forma como foram vividos os acontecimentos que afetaram essa sociedade em
questão.
Assim, no primeiro capítulo, buscamos a princípio, refletir sobre o próprio conceito de
Nacional-socialismo e sobre os diversos elementos que compõem seu sistema de valores,
destacando, por exemplo, sua postura antiliberal e antiparlamentar - como forma de denúncia
e desconfiança da corrosiva influência do mundo moderno - bem como sua ênfase nos
elementos tradicionais e conservadores - como maneira de resgatar os laços de identificação
da sociedade então fragmentada, reatando assim a tão sonhada coesão nacional. Nesse
4
RÉMOND, René. Por uma História Política. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/ Editora FGV, 1996, p. 35-36.
5
sentido, somente o Estado, então abalizado no Führerprinzip assumiria a função de força
aglutinadora do conjunto da nação. Em seguida, traçamos um panorama político, econômico,
social e cultural da Alemanha entre os anos de 1920 e 1930, a fim de compreender através
desse cenário de crise, contestação e de múltiplas manifestações artísticas, em particular, as
condições que antecederam e colaboraram, seguramente para a ascensão do regime nazista.
Cale lembrar, que nos regimes fascistas, essa relação entre cultura e poder político assume um
papel central, na medida em que tolhe, propositalmente, a liberdade de expressão e criação
que não advenham do próprio Estado e sejam a favor deste. Assim, procuramos mostrar como
no Terceiro Reich, as artes foram usadas para inculcar nas massas os valores do Nacional-
socialismo. Dessa forma, na medida em que valorizavam a cultura nacional, negando os
valores alheios à sua cultura, este regime aliava o social ao político e justificava a intervenção
do Estado na preservação dos valores culturais nacionais.
No segundo capítulo, apresentamos uma discussão historiográfica acerca de conceitos
como nação, nacionalidade e nacionalismo, tendo como base a análise das principais obras
referentes a esse tema, a partir da matriz européia, entre os séculos XIX e XX. À luz de tais
leituras foi possível uma reflexão sobre a formação da consciência nacional alemã - que vinha
sendo edificada desde meados do século XIX para enfim ser consolidada durante o Terceiro
Reich, sobretudo como produto da política nazista que era baseada, de acordo com o estudo
de Eric Hobsbawm e Terence Ranger, na “invenção das tradições” - além do processo de
afirmação do poder do Partido Nacional-Socialista, fundamentado, essencialmente na
ideologia nacionalista. Fruto da Revolução Francesa e dos ideais iluministas do século XVIII,
o liberalismo bem como seus pressupostos racionais, vão representar, segundo o pensamento
conservador da época, o germe da depravação moderna, sendo considerado,
conseqüentemente, como algo danoso. O foco do problema residiria na desorganização da
sociedade tradicional, lançando os indivíduos em meio a uma multidão amórfica, gerando a
6
perda da identidade, da noção de ordem e hierarquia, além de antigos valores sociais. Assim,
o que os diversos matizes do pensamento de direita vão buscar, e será realizado pelo nazismo,
é reunir sob a escudo do Estado os anseios de união social. Dessa forma, abria-se espaço para
uma nova “religião social”, mantida e operada por este órgão de poder, capaz de garantir a
união redentora e o resgate das substâncias sociais ameaçadas, frente ao elemento
desagregador e lesivo, representado pelo liberalismo. O Estado, assim concebido, insurge
como fator de coesão nacional, apto a reerguer a Nação e restaurar a identidade nacional
dilacerada pelas lutas ensejadas pelo regime liberal, de modo que a fonte de todo direito passa
a residir no líder, que é o próprio representante dos anseios do povo. Neste sentido, o
Nacional-socialismo aparece como uma outra proposta de “modernidade”, diferente daquela
representada pela “modernidade liberal” baseada na tradição iluminista.
no capítulo 3, recorrendo constantemente a exemplos específicos, como imagens e
narrativas retiradas diretamente da película “O Triunfo da Vontade” e das obras de Richard
Wagner, respectivamente, buscamos interpretar o Nacional-socialismo como uma grande obra
de arte performática, uma vez que através de uma “política estetizada” - fazendo referência ao
termo de Walter Benjamim - ou seja, utilizando-se de grandes “espetáculos de poder”
afirmava sua ideologia nacionalista, recebendo assim o consentimento das massas. Deste
modo, um conjunto de mitos eram concebidos: Hitler “o Messias”, o “grande arquiteto da
comunidade nacional”, aquele que tinha a missão simbólica de dar fim à degeneração que
atrapalhava o êxito da nação alemã, garantindo, portanto, a sua purificação racial e cultural,
para que assim alcançasse a eternidade e fosse tão digna de glória como os povos da
Antigüidade.
Através dessa análise, pretende-se mostrar, portanto, como a produção cultural, insere-
se num projeto elaborado com base numa política de massas inaugurada no período, e que
conduziu a uma integração dos campos cultural e político adaptados às novas concepções de
7
poder. Esta reflexão sobre o significado da propaganda e da produção cultural direcionadas
para atender aos fins políticos específicos do nazismo, vem mostrar como, nesse contexto, a
obra de arte e obra de propaganda se tornam inseparáveis, formando um produto de natureza
cultural e política. Entretanto, é de fundamental importância destacar que se as artes foram
convocadas para expressar o poderio e as razões de um regime eliminacionista e totalitário,
foi a política que, em primeira e última instância, propiciou a insanidade nazista, oriunda de
um partido eleito livremente pela sociedade alemã, que lhe outorgou apoio e sustentação
incondicionais. O Nacional-Socialismo mostra o alcance incomparável de um projeto total de
estetização da vida política, encenada pela Alemanha de Adolf Hitler, supremo líder político e
eventual arquiteto da destruição. Na falácia nazista de vida como arte, a verdadeira arte se
despede. Seu desaparecimento perdurou até a destruição final da Alemanha.
8
Capítulo I
A Alemanha no Período Entre-Guerras e as Origens do Nacional-Socialismo.
Decorridos sessenta e dois anos do término da Segunda Guerra Mundial, quando em
1945 o mundo democrático acompanhou aliviado a derrota das forças do Eixo, sobretudo da
Alemanha nazista, bem como o processo de desnazificação da Europa, o debate sobre a
questão Nacional-socialismo - continua vigoroso, e por mais que se tenha escrito sobre o
tema, ele ainda permanece polêmico e aberto em várias direções. Como assinala Ian Kershaw:
No Nazismo, temos um fenômeno difícil de submeter-se à
análise racional. Sob um líder que falava em um tom
apocalíptico de poder ou destruição mundiais, e um regime
fundado numa ideologia absolutamente repulsiva de ódio
racial, um dos países mais cultural e economicamente
avançados da Europa planejou a guerra, lançou uma
conflagração mundial que matou cerca de 50 milhões de
pessoas, e perpetrou atrocidades culminando no
assassinato mecanizado em massa de milhões de judeus – de
uma natureza e escala que desafiam a imaginação. Diante
de Auschwitz, os poderes de explicação do historiador
parecem deveras insignificantes.
5
Assim, a racionalidade decididamente não é o caminho exato para se entender esse
movimento, que antes de qualquer outra característica, fundamentou-se no irracionalismo,
utilizando-se amplamente de uma coreografia política repleta de referências míticas e de
simbolismos. Esse pano-de-fundo composto pelo irracionalismo levava a crer que as grandes
proezas eram resultado antes da vontade heróica do que da inteligência e que a intuição racial,
obviamente ariana
6
, constituía o caminho para a verdade.
5
KERSHAW, Ian. Hitler, um perfil do poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1993, p. 03-04.
6
A visão de mundo Nacional-socialista (Weltanschauung) desenvolvida por Hitler em Mein Kampf previa um
Estado Nacional que reunisse os alemães com o propósito de selecionar todos os elementos raciais e conservá-
los, mas também elevá-los lenta, mas firmemente em uma posição de domínio”. Para ele, portanto, sua missão
seria a organização de um Estado que preservasse puros os elementos raciais do povo alemão. Essas idéias
defendidas por Hitler não eram originais, uma vez que vários pensadores contribuíram para a construção dessa
visão de mundo e conseqüentemente da formação da base ideológica do nazismo - muito embora, vale ressaltar,
a apropriação desse ideário pelo Nacional-socialismo esteja sujeito a questionamentos, que foi adaptado, de
acordo com as circunstâncias, a seus próprios interesses. Um dos filósofos que influenciou na constituição dessa
9
A existência de um líder com plenos poderes, capaz de tomar seu discurso apocalíptico
como política de destruição, é menos surpreendente do que o fato de ter adquirido tantos
colaboradores e adeptos, dispostos a segui-lo fanaticamente, ou mesmo, apoiá-lo em silêncio
implícito, como se ele representasse o retorno do kaiser medieval. De tal modo, com o
objetivo de compreender melhor o fenômeno em questão, antes de partirmos para a análise de
sua concretização política, bem como as conseqüências disso para a Alemanha, buscaremos
refletir sobre o próprio conceito Nacional-socialismo e os diversos elementos que compõem
seu sistema de valores.
O termo Nacional-socialismo possui vários significados e conotações distintas. No
geral, tem sido utilizado mais de um século, por ideologias
7
e movimentos políticos que
base ideológica foi Fichte. No contexto de invasão napoleônica, seus famosos “Discursos à nação alemã”
tiveram grande repercussão na Alemanha. Ele considerava os latinos em especial os franceses - e os judeus,
como raças decadentes e defendia a teoria de que somente os alemães possuíam capacidade de regeneração e
através de sua liderança seria possível o florescimento de uma nova época na História. Sob essa ótica, ao longo
do discurso, Fichte perfaz uma crítica aos padrões culturais estrangeiros, pois segundo ele, tal influência
poderia pulverizar a essência da nação alemã. François Gobineau, de forma semelhante, procurava justificar a
superioridade da raça ariana, buscando alertar, sobretudo, sobre os perigos da mistura racial, o que levaria a
espécie humana a graus cada vez maiores de degenerescência, tanto física quanto intelectual. Mas foi Houston
Stewart Chamberlain, em sua obra “Os fundamentos do século XIX” quem popularizou a teoria do mito ariano,
ao proclamar que o maior fato da segunda metade do século XIX foi o despertar dos povos germânicos.
Estimava que eles seriam chamados a impor sua dominação aos povos inferiores, combatendo dupla ameaça: o
capitalismo financeiro (cosmopolita e anônimo) e o socialismo (a criação do judaísmo internacional).
Chamberlain acreditava que a chave da História estaria na base da civilização, isto é, na raça, e que para explicar
o mundo contemporâneo devia-se considerar aquilo que fora legado de épocas remotas e que se resumia na
filosofia e artes gregas, no direito romano e na personalidade de Cristo (O fato de Jesus ser Galileu de origem e
sua incapacidade de pronunciar devidamente as guturais aramaicas eram sinal que Jesus possuía uma grande
quantidade de sangue não-semita e por esta razão, de acordo com a visão de Chamberlain, Jesus era ariano e não
judeu. Sobre isso ver SHIRER, William L. Ascensão e queda do III Reich. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1967, p. 170). Para ele, portanto, existiam três legatários: os judeus e os alemães, as duas raças puras” e a meia
raça de latinos do Mediterrâneo – um “caos de povo”. Entretanto, afirmava que apenas os alemães eram
merecedores desse legado de eras longínquas, por serem os mais dotados, e por terem herdado qualidades dos
gregos e dos indo-arianos. Além disso, embora o autor condenasse o anti-semitismo por considerar os judeus e
arianos as únicas raças puras remanescentes no Ocidente, via como dever sagrado” do homem conservar a
pureza de sua linhagem. Contudo, quando analisa os judeus em sua obra acabava mostrando-se contraditório e
revelando seu próprio anti-semitismo ao denunciar que os semitas se tornavam uma raça “negativa” e
“abastarda” e que nada foi capaz de mudar a “corrupta” linhagem hebraica, justificando assim a negação de
Israel por parte dos arianos. Destacamos ainda a influência das idéias do alemão Rosenberg. Em “O mito do
século XX”, o autor enaltecia a raça ariana colocando-a no topo de uma “escala racial” humana, sendo
considerada inclusive, a única apta a criar cultura. Destacava ainda que o colapso das antigas culturas fora
resultado da degeneração ocasionada pela mescla dos arianos com raças inferiores, relacionando todas as
faculdades mentais e morais a questões raciais. Sendo assim, sua teoria foi elevada a Antropologia científica
pelos nazistas.
7
Utilizamos o termo “Ideologia” segundo a concepção formulada por Antonio Gramsci. Sendo assim, a
ideologia deve ser entendida como um discurso que justifica/explica, simbolicamente, as práticas dos diversos
grupos sociais; desse modo, não podemos considerá-la como “falseamento do real”, mas como “(...) uma
10
defendem um tipo de socialismo diferente, ou até mesmo contrário, ao socialismo proposto
pelos partidos de esquerda
8
. Se por um lado o nacionalismo surgiu no século XIX, como
resposta ao liberalismo e à sociedade industrial, por outro, até o presente momento,
movimentos nacionalistas em países em desenvolvimento, como nos Estados árabes
9
,
defenderam outras concepções políticas que se constituem em formas diferentes de Nacionais-
socialismos. Dessa forma, segundo Karl Dietrich Bracher, qualquer utilização que se faça do
conceito, como nos exemplos acima, tenderá causar confusão, já que o “Nacional-socialismo,
como fenômeno político de dimensões históricas mundiais indica sobretudo o movimento
político alemão, fundado e guiado por Adolf Hitler após a Primeira Guerra Mundial,
polemicamente conhecido pelo diminuto de nazismo”.
10
Diversas vezes, os conceitos de fascismo e Nacional-socialismo são empregados de
forma imprópria, como instrumentos de polêmica, não levando em conta seu significado
original e correta aplicação à realidade. É preciso, portanto, ter o cuidado de não negligenciar
a origem, nem o significado político do Nacional-socialismo histórico, sempre que a palavra
concepção de mundo, que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as
manifestações de vida individuais e coletivas (...)”. In: GRAMSCI, Antonio. Concepção Dialética de História.
8ª ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989, p.16.
8
Nesse sentido, tomo o significado do termo Socialismo que tem sido historicamente definido como programa
político das classes trabalhadoras que se foram formando durante a Revolução Industrial, que visavam, entre
outras coisas, a limitação do direito da propriedade e, sobretudo, o controle dos principais recursos econômicos
por tais classes, promovendo a igualdade social (e não somente política ou jurídica).
9
O Nacionalismo foi a base ideológica das lutas anticolonialistas na África e na Ásia, ao longo do século XX,
mesmo que, em muitos lugares, o socialismo aparecesse como o modelo de organização social defendido por
vários dos movimentos de libertação. No mundo árabe, o nacionalismo aparecia como um projeto político
fragmentado, desde a dissolução do Império Otomano, nas primeiras décadas do século XX. Assim, se por um
lado encontravam-se visões como a da “Irmandade Muçulmana”, que defendia o uso do Islã para alcançar o
progresso, por outro, também existiam concepções como a do “Arabismo” que defendia a criação de uma única
nação árabe, baseada na cultura, na experiência histórica e nos interesses comuns de todos os povos árabes. No
pós-Segunda Guerra, este nacionalismo árabe incorpora elementos do pensamento socialista e se configura em
uma ideologia bastante vaga conhecida como socialismo árabe”, que teve em Gamal Abdel Nasser, Presidente
do Egito entre 1956 e 1970, a sua maior expressão. Portanto, este “nacional-socialismo” árabe, ainda hoje
bastante presente no Oriente Médio, difere enormemente do nacional-socialismo alemão, tendo, inclusive, um
viés esquerdista, configurando-se como uma ideologia que prega a superação do subdesenvolvimento, a luta
contra o imperialismo e a busca da modernização e do progresso econômico. Sobre esta questão ver:
GRINBERG, Keila. “O Mundo Árabe e as Guerras Árabe-Israelenses” In: REIS FILHO, Daniel Aarão et alli. O
Século XX - O Tempo das Dúvidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000; MASSOULIÉ, François. Os
Conflitos no Oriente Médio. o Paulo: Ática, 1994 e HOBSBAWM, Eric. Nações e Nacionalismo desde 1780:
programa, mito e realidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.
10
BRACHER, Karl Dietrich. “Nacional-socialismo”. In: BOBBIO, Norberto, MATTEUCCI, Nicola e
PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília: São Paulo:
Imprensa Oficial do Estado, 2000, p. 807.
11
for utilizada em sua terminologia atual. Sendo assim, a análise do fenômeno histórico em
ambos os casos fascismo italiano e nazismo alemão mostra-se como condição
imprescindível na tentativa de definição e aplicação de tais conceitos.
Então, podemos dizer que o Nacional-socialismo, enquanto fenômeno histórico, deve
ser explicado destacando-se em especial dois níveis: primeiramente como manifestação
contrária aos resultados da Primeira Guerra Mundial, mas sobretudo como efeito de idéias e
tendências bem mais remotas, relacionadas a fatores que marcaram o desenvolvimento
alemão desde o século XIX, como a questão da unificação nacional e da modernização social,
por exemplo. Dessa forma, ao mesmo tempo em que consideramos a fundação e ascensão
política do Nacional-socialismo como fruto da derrota de 1918 e suas implicações, é
importante não perder de vista que o ideário político fundamental desse fenômeno surgiu bem
antes de 1918 e da guerra, e que principalmente “o Nacional-socialismo é bem mais do que
um simples movimento de protesto pós-guerra, dirigido por um eficiente agitador de massas
como foi Hitler”.
11
historiadores, no entanto, que destacam o nazismo como a forma mais completa e
radical dentre outros fascismos. Pierre Milza
12
, por exemplo, ao distinguir quatro fases
principais no universo fascista, caracteriza o nazismo como aquilo que os teóricos norte-
americanos chamam de “Full Fascism” ou “Fascismo Integral”, expressão do reforço aos
métodos do terror psíquico e físico na construção de uma nova ordem, bem como da primazia
do político e do ideológico.
Segundo Umberto Eco, por detrás de um nome, diversas formas distintas. Sobre
isso, ele explica que “o termo fascismo adapta-se a tudo porque é possível eliminar de um
11
Idem.
12
MILZA, Pierre. Les Fascismes. Paris: Impremirie Nationale, 1985. Para Pierre Milza o “Primeiro Fascismo”
corresponderia a reação das classes médias no enfrentamento das dificuldades que a afligiam; o “Segundo
Fascismo”, seria o resultado da aliança entre o “Primeiro Fascismo” e setores destacados do mundo agrário e
industrial; o “Fascismo no poder” caracterizar-se-ia pela manutenção dessa aliança descrita, sustentando assim o
regime; e por fim, o “Full Fascism”ou “Fascismo Integral”.
12
regime fascista um ou mais aspectos, e ele continuará sempre a ser reconhecido como
fascista”. Portanto, basta que uma dessas características se apresente “para fazer com que se
forme uma nebulosa fascista”.
13
Eco, inclusive adverte: “O Ur-fascismo pode voltar sob as
vestes mais inocentes” e ainda completa: nosso dever é desmascará-lo e apontar o indicador
para cada uma de suas novas formas – a cada dia, em cada lugar do mundo”.
14
Nesse sentido, a denominação genérica fascismo seria proveniente da primazia do
regime italiano, alçado ao poder em 1922, servindo de modelo à maior parte dos demais
regimes. Assim, o fascismo às vezes mais corretamente no plural, fascismos -
corresponderia ao conjunto de regimes e movimentos de extrema direita existentes em
diversos países no período de 1920 a 1945. inclusive, uma tentativa de reaver o fascismo
como grande unidade de análise, resultado da afluência de configurações políticas de traços
diversos, marcado, porém, por forte coerência externa e interna. O objetivo de tal comparação
- das diversas experiências fascistas a partir da construção desse modelo seria o
estabelecimento de uma tipologia do fascismo que buscasse o que Ernst Nolte chamou de
minimum fascista, ou seja, que contemplasse ao mesmo tempo o caráter universal e autônomo
da teoria do fascismo, bem como suas especificidades históricas.
É importante destacar, entretanto, que apesar do presente trabalho privilegiar o uso do
termo Nacional-socialismo a fim de deixar clara a pretensão de análise desse fenômeno
dentro de um contexto histórico específico - não se pretende reconhecer na Alemanha do
Terceiro Reich a existência de um verdadeiro fascismo, muito menos, negar ao nazismo
qualquer relação política ou histórica com os outros regimes autoritários anteriores ou
contemporâneos a ele. Busca-se, porém, afirmar que as especificidades do nazismo são
históricas e de caráter nacional, mas não algo essencial ou único em relação aos demais
fenômenos fascistas, considerados apenas autoritários ou descaracterizados enquanto tais.
13
ECO, Umberto. Cinco Escritos Morais. Rio de Janeiro: Record, 1998, p. 41-43.
14
Idem. p. 52. O conceito de Ur-Fascismo” ou “fascismo eterno” é utilizado pelo autor para referir-se a tudo
que diz respeito à origem do fascismo, ou o que lhe é seminal.
13
Dessa forma, procuraremos refletir a seguir sobre os diversos elementos que constituem o
sistema de valores do Nacional-socialismo, que não deixam, entretanto, de serem comuns a
outros regimes de caráter fascista, mesmo que estes não sejam o foco desta pesquisa.
1.1. O Nacional-Socialismo: Entre a Tradição e a Modernidade.
Uma característica de destaque do fenômeno nazista é o culto da tradição. No entanto,
embora o nazismo se especializasse na retórica da volta ao passado tradicional, e recebesse
apoio de classes que teriam realmente pretensão de aniquilar o século XIX se pudessem, o
era de modo algum um movimento tradicionalista. Enfatizava valores tradicionais, o que é
outra questão.
Os nazistas denunciavam as concepções liberais e desconfiavam da corrosiva
influência do mundo moderno, sobretudo do modo de vida capitalista. O espírito de 1789, o
Iluminismo e o pensamento racional eram vistos como o início da depravação moderna.
Contudo, não apelavam aos históricos guardiões da ordem conservadora o rei e a Igreja
mas, procuravam complementá-los com um princípio de liderança não tradicional, constituído
no homem que se faz a si próprio, legitimado pela adesão das massas, por ideologias laicas e
às vezes cultas.
Nesse sentido, o nazismo tem uma postura antiliberal e antiparlamentar, uma vez que
acusa as formas liberais de representação e organização de originarem a crise contemporânea.
Aliás, ao mesmo tempo em que adotam a idéia de falência do sistema liberal, discutem o
caráter geneticamente desagregador do liberalismo. No primeiro caso, o sistema estabelecido
no século XIX, fruto da Revolução Francesa, não seria mais compatível com as novas
condições de desenvolvimento da moderna sociedade de massas, contraditoriamente gerada
pela própria revolução de 1789 e pelo domínio liberal ao longo do século. Deste modo, o
nazismo, no que diz respeito à Alemanha, se apresentaria como único sucessor desse sistema
14
que não possuía mais condições de garantir a coesão nacional. Em 1919, podemos perceber
essa idéia na declaração da direita alemã ao recusar a recém-votada Constituição: “[...] o
direito eleitoral ampliado, a dominação do parlamento, a debilidade do governo, a
insignificância do presidente e a prática do referendum [...] o respondem nem ao caráter
nem à missão que o Estado alemão deve cumprir, tanto no presente como no futuro próximo”.
Da mesma forma, o discurso proferido por Hitler em 30 de janeiro de 1944 exemplifica bem
essa opinião: “[...] o Estado de classes [a República de Weimar] perdera toda a sua razão de
ser e não podia mais do que transformar em ódio o bom senso das grandes massas”.
15
Nos 25 Pontos do Programa do NSDAP Partido Nacional-Socialista dos
Trabalhadores Alemães publicados em 1920 e republicados 21 anos depois, a oposição ao
liberalismo parlamentar também é evidente: Nós lutamos contra o Parlamento corrompido,
local de disputas partidárias conduzidas por pessoas desprovidas de caráter e capacidade
(Ponto 6)”. Podemos depreender daí que a liderança nazista dispunha-se, melhor do que
ninguém, a interpretar as aspirações das massas, tal como Hitler sugere em Mein Kampf: “Tal
qual as mulheres [...] as massas amam mais o domínio do que a gentileza e sentem-se
interiormente mais seguras através de uma doutrina, que não tolera qualquer outra, do que
através do beneplácito da liberdade liberal”.
16
Concordavam, portanto, que a eficácia do Estado liberal burguês que a Revolução
Francesa havia imposto desmoronara. O liberalismo e a democracia esgotaram-se,
principalmente pelo esvaziamento de seu conteúdo ideológico, não mais havendo
correspondência entre os sentimentos e os princípios dos homens que se diziam servi-los.
Dessa forma, não correspondiam mais às necessidades dos novos tempos. Tais necessidades
exigiam um Estado forte, capaz de impedir o conflito social internamente e garantir o
15
Apud SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. “Os Fascismos”. In: REIS, Daniel Aarão; FERREIRA, Jorge;
ZENHA, Celeste (orgs.). O Século XX. O tempo das crises, revoluções, fascismos e guerras. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1999, p.128.
16
Idem. p. 129.
15
fortalecimento do país externamente, espaço este visto como uma selva, marcada pela brutal
luta pela sobrevivência. Conseqüentemente, o liberalismo era considerado incompatível com a
coesão nacional, então considerada a pedra angular do nazismo.
No segundo caso apontado, a idéia do liberalismo como elemento desagregador da
ordem conservadora surgiu como uma doutrina do antiliberalismo nazista. Neste caso, o se
trataria de uma crise do liberalismo. Na verdade, este passou a ser avaliado, desde sua gênese,
na revolução de 1789, como uma força capaz de fragmentar a sociedade tradicional. O fulcro
da questão encontrar-se-ia numa série de medidas decorrentes da Revolução Francesa e a
conseqüente libertação do indivíduo dos entraves do Antigo Regime, visto como ícone da
Tradição. O desmoronamento das instituições tradicionais como a antiga sociedade dos
privilégios, onde cada indivíduo era auto-reconhecido quando aludido ao seu estamento
provocou a perda da noção de ordem e hierarquia, logo de identidade. Dessa forma, os
indivíduos foram lançados no seio de uma massa amorfa, numa multidão anônima, incapaz de
reatar seus laços de identificação. Além disso, a Revolução solapou a relação do homem com
o místico, o sobrenatural e a promessa de imortalidade, laicizando a vida pública e exibindo a
mesquinhez da vida religiosa cristã.
Nesse sentido, não podemos deixar de citar o importante papel da Igreja Católica, em
seu embate contra o liberalismo, ao propor formas tradicionais de associação a fim de conter o
conflito de classes, tais como as corporações. O nazismo, por sua vez, buscou reunir sob a
égide do Estado os objetivos de coesão social proclamados pela Igreja. Inaugurava-se, deste
modo, um novo tipo de mitologia social, ou então, uma religião social, sustentada pelo
Estado.
Quanto ao aspecto político, tal destruição da Tradição pelo liberalismo, levaria a
atuação do princípio de representação, considerado manipulador e danoso, uma vez que os
diversos partidos políticos fonte de todas as desavenças e fragmentação das nações, desde
16
1789 - defenderiam interesses particulares de certas classes, sendo de tal modo, parciais e
não-nacionais. No Parlamento, por conseguinte, cenário para onde o exercício do poder seria
deslocado, este perderia seu vigor; ao invés de ação o poder tornar-se-ia palavra, debate; de
exercício nobre passaria a um não-poder com base nas versões mais ordinárias de barganha.
Além disso, a diferenciação da esfera do público e do privado, típica da ordem social
liberal, também seria denunciada como maneira de cercear o poder. Essa forma inarticulada
de organização social, capaz de domesticar e enclausurar o poder por meio de domínios e
esferas singulares, apontava mais uma vez o afastamento entre este e o homem. Para os
nazistas, portanto, o poder seria concebido, sobretudo como ão, já que um poder que
reconhecesse limitações à sua ação estaria fadado à impotência, ao não-poder.
Deste modo, outra característica essencial do Nacional-socialismo seria a existência de
um Estado orgânico
17
, regido por uma liderança carismática, no caso o Führer em pessoa. Ao
contrário do Estado liberal, esfacelado por querelas de grupos, o Estado orgânico deveria ser
despido de contradições no seu próprio interior, visto, portanto, de forma harmoniosa. Assim
concebido, este seria capaz de restaurar a identidade nacional destroçada pelas lutas travadas
no regime liberal, e consequentemente reerguer a nação, tornado-se fator de coesão nacional.
No Código Civil Alemão, de 1936, podemos observar que a própria divisão clássica
dos poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – proveniente do Iluminismo, é rejeitada,
sendo o judiciário absorvido pelo próprio Estado:
O juiz não é a mais alta autoridade do Estado no exercício
da Lei sobre os cidadãos, porém um membro da
comunidade viva do povo alemão. Sua função é
fundamentalmente guardar concretamente a comunidade do
povo, fazendo cumprir suas diretrizes e ante uma decisão do
Führer, seja sob a forma de Lei, seja revestida da aparência
17
A idéia de Estado orgânico deve ser entendida por meio da comparação do funcionamento da sociedade ao
funcionamento de um corpo biológico, visto como um organismo que funciona como um todo coerente, no qual
cada órgão exerce uma determinada função em dependência recíproca com as outras, impossibilitando dessa
forma, o conflito entre as partes do organismo.
17
de um decreto, não cabe qualquer julgamento.
18
Assim, a fonte de todo o direito passaria a emanar dos anseios do próprio líder, que se
tornaria intérprete e encarnação do bem-estar da comunidade popular. Ao mesmo tempo, a
autonomia do legislativo o parlamentarismo e o pluripartidarismo seria eliminada frente
ao poder do Estado autoritário, afastando de tal modo, qualquer possibilidade de divisão ou
debate típica da luta partidária. O partido Nacional-Socialista, portanto, declarado, em julho
de 1933, por decreto de lei como partido único da Alemanha, insurgia-se “como o portador da
idéia germânica de Estado e a personificação do direito público da comunidade germânica”
19
, instaurando, assim, uma profunda unidade entre partido e Estado.
Desta forma, suplantada a doutrina liberal do Estado de direito, derivada da Revolução
Francesa, foi possível a construção de um novo tipo de Estado, fruto de uma verdadeira
comunidade popular, erguida com base na raça e no sangue alemão. Esse Führerstaat
20
, ao
contrário do Estado liberal, buscava na unidade do povo seu poder político, introduzindo
deste modo, uma nova relação entre a comunidade e seu líder, fundamentada no princípio da
liderança Führerprinzip “pelo qual se estabelecia a autoridade de cada líder, de cima para
baixo, e a correspondente obediência, de baixo para cima.”
21
Todavia, se a maior parte do ordenamento jurídico do Estado nazista continuava como
um legado do Estado liberal, mesmo que de maneira deturpada - visto que a Constituição de
Weimar jamais tenha sido revogada formalmente as grandes questões nacionais dependiam
inteiramente de seu líder, personalidade autoritária e carismática, que se preciso fosse
suplantava as leis ou ordens escritas, sancionando disposições orais de amplo alcance.
Segundo Hans Frank, chefe da Associação dos Advogados Nazistas, a lei
constitucional no Terceiro Reich não representava mais do que “a formulação legal da
18
SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. op. cit. p.133.
19
Idem. p. 134.
20
A expressão alemã Führerstaat indica o sentido de Estado guiado por um líder.
21
SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. op. cit. p.134.
18
vontade histórica do Führer”. Da mesma maneira, Ernst Rudolf Huber, grande especialista
em teoria legal na Alemanha, reportou-se à lei como “nada além da expressão da ordem
comunitária em que o povo vive e que deriva do Führer
22
. Assim, utilizando a terminologia
de Max Weber, podemos dizer que tais sentimentos equivaliam à subordinação da autoridade
legal-racional frente à autoridade carismática, de tal modo que a ‘vontade’, fundamentada nas
‘realizações destacadas’, acabou substituindo as determinações legais impessoais e abstratas
como premissa essencial da lei
23
.
22
Apud KERSHAW, Ian. op. cit. p. 82.
23
A análise weberiana sobre os três tipos puros de dominação legítima auxilia a compreender o papel de Hitler
no movimento nacional-socialista e como sua liderança foi fundamental para que seu poder se consolidasse na
Alemanha. Segundo Weber, portanto, dominação seria a probabilidade de encontrar obediência a uma
determinada ordem, fundamentando-se em diversos motivos de submissão. Nesse sentido, as bases de
legitimidade da dominação são as seguintes: dominação legal, dominação tradicional e a dominação carismática.
A dominação legal refere-se à legitimidade das ordens estatuídas e do direito de mando daqueles que são
nomeados para exercer essa dominação em virtude dessas ordens. Obedece-se, portanto, à ordem impessoal,
legalmente instituída e aos seus superiores por ela determinados. Logo, denomina-se como dominação legal em
virtude de seu estatuto, sendo seu tipo mais puro, a dominação burocrática. Do ponto de vista social, a
dominação legal com quadro administrativo burocrático significa a dominação da impessoalidade, isto é, sem
ódio ou paixão e, portanto, sem amor e entusiasmo. Não existem considerações pessoais, sendo assim, o conceito
de dever é o que rege a burocracia. a dominação tradicional é baseada na crença cotidiana, nas tradições
vigentes. O seu tipo mais puro seria a dominação patriarcal, na qual se obedece à pessoa em virtude de sua
dignidade santificada pela tradição. Em outras palavras, submete-se à pessoa do senhor, nomeada pela tradição e
em virtude de devoção aos hábitos costumeiros. A devoção afetiva do povo alemão à pessoa de Hitler pode ser
analisada, contudo, a partir do conceito weberiano de dominação carismática. O ponto de partida para sua
compreensão é a devoção afetiva à pessoa do senhor e a seu carisma. Este carisma poderia ser representado por
algo novo, fora do cotidiano, que provocasse um arrebatamento emotivo constituindo a devoção pessoal. O
carisma pode ser a transformação de um ponto de vista íntimo que, nascido da miséria ou do entusiasmo,
representa uma modificação das ações assumindo uma orientação totalmente nova diante do mundo. Segundo
Weber, portanto, é possível denominar o Carisma” como uma qualidade pessoal considerada extra-cotidiana e
em virtude da qual atribuem ao portador do carisma qualidades fora do comum que o tornariam como uma
espécie de “enviado de Deus” e, por esta razão, um líder. Entretanto, a expressão carismática é empregada sem
“juízos de valor”, pois o que importa é se o líder carismático encontrou ou não reconhecimento, isto é, como ela
é avaliada pelos carismaticamente dominados. Destacamos ainda, os três tipos mais puros de dominação que são
do grande demagogo, do herói guerreiro e do profeta. Quanto ao primeiro, sua dominação pode ser explicada em
virtude da revelação de seu poder intelectual e de oratória, e do arrebatamento emotivo que o portador do
carisma é capaz de provocar nas massas. O demagogo, produto da cidade-estado Ocidental, seria o político
carismático que utiliza o dom da oratória e seu poder intelectual para conquistar as massas. o herói guerreiro
aclamava as massas através das revelações de seu heroísmo; tal figura reportava às caças e campanhas bélicas
que exigiram um líder pessoal dotado de qualidades excepcionais. O profeta, por sua vez, seria portador de um
carisma pessoal, que em virtude de sua missão anunciava uma espécie de doutrina religiosa. Assim, a magia
constituía o âmbito espiritual de sua dominação.
A associação de dominação seria uma relação comunitária de caráter emocional, o tipo que manda é o líder e o
que obedece o “apóstolo”, pois este obedece devido às qualidades excepcionais daquele. De acordo com Weber,
o líder carismático tem que “fazer-se acreditar”, pois seu domínio se faz por meio de milagres, êxitos e
prosperidade, ou seja, a validade do carisma é consolidada em virtude de provas e oriunda da confiança no líder.
Todavia, a e o reconhecimento o considerados um dever, cujo cumprimento que exige para si é passível de
castigo. Dessa forma, é importante destacar que a dominação carismática opõe-se tanto à dominação racional,
especialmente a burocrática, quanto à dominação tradicional, sobretudo a patriarcal, por ambas estarem
vinculadas às regras. Em contrapartida, a dominação carismática é especificamente irracional por não conhecer
19
Podemos perceber, portanto, que o Führerprinzip garantia uma posição de poder
ilimitada e até mesmo irresponsável, ou seja, sem qualquer restrição de âmbito legal aos
membros da burocracia nazista Estado e partido assim como às forças armadas
24
. O
Estado, então, baseado no Führerprinzip assume a função de força aglutinadora do conjunto
da nação. Deste modo, como uma resposta à crise de identidade gerada pelo individualismo
liberal, ele busca integrar o homem em favor de uma participação plena na comunidade
popular, edificada no sangue germânico: pode ser cidadão quem for membro da
comunidade popular. pode ser membro da comunidade popular quem é de sangue alemão
[...]”
25
.
Em resumo, o liberalismo seria o componente causador da crise e sua existência
acarretaria, permanentemente, os meios de deterioração da sociedade, sendo o Estado
orgânico, entretanto, a única solução para a reestruturação social da nação. Nesse sentido, se
fazia por deveras necessária a superação da distinção burguesa liberal entre a esfera do
público e do privado, garantindo assim, a afirmação do Estado como potência, que
exatamente por sua natureza expansiva, desconhecia esferas limitativas.
Devemos ressaltar, contudo que o Estado não é o alvo primordial da ação nazista, mas
o instrumento fundamental para fins garantidores da própria existência da comunidade
nacional, como, no caso alemão, a conquista do Lebesraum, o espaço vital da superior raça
ariana, bem como a eliminação de qualquer empecilho para a conquista de tal espaço. Em
meio ao avanço da sociedade liberal e a diluição dos antigos laços de identidades, baseados na
regras. Rompe com o passado, e nesse sentido, é revolucionária. é legítima enquanto encontrar
reconhecimento. Sobre esta questão ver: WEBER, Max. Economia e Sociedade: vol. I, edição. São Paulo:
IMESP, 1994 e Metodologia das Ciências Sociais: parte II. São Paulo: Cortez, 2002.
24
É importante destacar, entretanto, que o Estado Nazista não deve ser caracterizado pela idéia de autocracia ou
absolutismo, e sim como uma policracia, com fontes autônomas de poder, cujos objetivos - muitas vezes
conflitantes - agrupados ao redor de uma doutrina que servia de argamassa gravitavam, sobretudo, em torno do
chefe carismático. De tal modo, a administração pública apresentava-se como uma hierarquia de obediência
pessoal, até chegar ao ápice, Adolf Hitler, delineando assim, um tipo de dominação política em que lealdades
pessoais do tipo “neofeudais” adquiriam prioridade sobre as estruturas burocráticas do governo, onde a posição
formal acabou suplantada pela posição pessoal no séqüito do supremo Führer.
25
SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. op. cit. p.136, (Os 25 Pontos do NSDAP).
20
Tradição, ruíam consequentemente as organizações sociais que proporcionavam alguma
segurança. Assim, a idéia-força de revolução como destruição dessa sociedade, consentia uma
autonomia exacerbada de fazer política, transformando-a num substituto de modo de vida.
Portanto, mais do que política, tornou-se catarse.
Muitas vezes, a perplexidade daqueles que ao retornarem para a Alemanha no pós-
guerra, deparando-se com as ruínas de um mundo que não mais voltariam a ver, fez surgir o
suposto de um nazismo sem doutrina, utopias ou idéias, baseado apenas numa face
monstruosa, de ação negativa, destruidora e sem proposições. Durante muito tempo
insistiram, que o que existia, na verdade, era uma imensa confusão entre o público e o privado
no Estado nazista. No entanto, o que a historiografia clássica sobre o nazismo, e sobretudo, a
ciência política liberal não perceberam sobre este fenômeno foi a profunda operação de
subversão de valores exercida por ele, com capacidade de propor meios eficientes de
resistência à transcendência no mundo moderno – como uma forma de proteção ante o
desconhecido - e à constante transformação geradora de anomia e insegurança. Deste modo,
podemos dizer que havia um projeto nazista, cuja utopia era capaz de seduzir e atrair
multidões, através de instituições, cerimônias e rituais com o objetivo de devolver a
identidade aos alemães, mesmo que esta fosse irracional por sinal como assinalado no
início desse capítulo, o irracionalismo é outro traço característico do nazismo, uma vez que o
espírito crítico gera distinções, e distinguir era um sinal da modernidade liberal.
Como dito anteriormente, a principal finalidade do nazismo – como resposta à crise de
identidade atribuída à adoção dos princípios liberais - seria a de deter os fatores da
desagregação social, superando assim o estranhamento dos indivíduos e dotando-os de uma
identidade autêntica. Todavia, o nazismo reconhecia que o Antigo Regime não retornaria
mais, tendo sido extinto por definitivo pela Revolução Francesa, pela secularização e pelo
individualismo. Dessa forma, sua proposta não seria o restabelecimento da Tradição, mas a
21
recuperação da integridade do homem através do estabelecimento de um novo tipo de quadro
social. Para isso, a ordem social liberal-burguesa deveria ser destruída pelo nazismo,
insurgindo aí seu caráter revolucionário.
Ao invés das tensões sociais, reproduzidas no interior do sujeito individualmente
responsabilizado pelo malogro da sociedade, o nazismo sugeria uma teia social, na qual
família, trabalho e capital, comunidade profissional e local estariam em perfeita comunhão
com base nos interesses essenciais da nação. De tal modo, a raça, o sangue, a história e o
espírito nacional deveriam ser os elementos de coesão da nova sociedade, garantindo a
identificação recíproca entre seus diversos componentes. Eis a transcendência do
estranhamento, possibilitando a restauração de identidades fragmentadas, e revelando
igualmente todo o poder de encantamento e sedução do nazismo.
Além disso, o nazismo com sua proposta de Estado potência, acabava privilegiando a
recuperação do político sobre o econômico, submetendo este a rígido controle:
A economia serve ao Estado e com isso ao povo. Ela é uma
economia popular e, ao mesmo tempo, uma economia
organizada, cujo objetivo é servir ao povo: 1. Ela não é uma
economia estatal, quer dizer, administrada pelo Estado; 2.
tampouco é uma economia de interesses privados, voltada
apenas para objetivos individuais
26
.
De tal maneira, o nazismo negava o marxismo e o liberalismo, apresentando-se, então,
como única garantia de paz social, capaz de superar os eminentes conflitos da sociedade de
massas. No entanto, a retórica nazista precisava dar conta de um intenso movimento sindical e
operário, presente na Alemanha, o que fez apropriar-se de grande parte do layout socialista.
Nesse sentido, a sociedade alemã seria constituída pela noção de corporação
27
, local
26
Hermann Messerschmidt apud SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. op. cit. p.142.
27
Na corporação os interesses dos empresários e trabalhadores estariam organizados de forma harmônica, numa
espécie de relação vertical que congregava ambos os pólos da produção, ao contrário das organizações sindicais,
cuja relação vertical impunha a luta de classes. Daí o nazismo caracterizar-se como um regime de produtores,
onde a produção constituía o elemento exaltado, e não o antagonismo, como desejariam o marxismo e o
liberalismo.
22
privilegiado de colaboração, em vez de incompatibilidade, entre trabalho e capital.
O discurso nazista em prol de uma comunidade solidária, baseada em um regime de
produtores, estabelecia de certa forma um liame duvidoso com o socialismo, certamente
manipulado. Sendo assim, o nazismo representaria o verdadeiro socialismo, uma vez que seria
nacional, e não mancomunado com o bolchevismo internacional judaico:
Tudo, absolutamente tudo, deve contribuir para fortalecer
as bases raciais que garantam o progresso da nação. Deste
ponto de vista, o socialismo, depurado do marxismo,
aparece como um meio político a serviço do indivíduo e da
comunidade para proteger a unidade do povo dos apetites
particulares desenfreados.
28
Aliás, enquanto o socialismo marxista definia-se capaz de organizar a sociedade por
meio de leis econômicas e sociais de cunho histórico, o nazismo recorria a irrefutáveis valores
místicos, como nos mostra o texto de Goebbels:
Somos socialistas porque vemos no socialismo, quer dizer,
na interdependência vital de todos os membros da
comunidade, uns diante dos outros, a única possibilidade de
manter nosso patrimônio étnico e, por conseguinte, de
recuperar nossa liberdade e renovar o Estado alemão.
29
Dessa forma, a organização corporativa, referida no texto como socialista, apresenta-
se como um instrumento da primazia do político em busca do objetivo maior, ou seja, a
afirmação do Estado potência alemão. Portanto, o socialismo corporativo, por ser harmônico e
solidário distinguia-se do socialismo bolchevista judaico, sectário e divisionista.
Por fim, destacamos a desconfiança ante o outro tendo a possibilidade de violência
como resposta - como mais uma característica básica do nazismo. De tal maneira, uma vez
definido o que seria nacional, todo o restante seria lançado ao extremo oposto, considerado
antinacional, como por exemplo, o cigano, o comunista, o estrangeiro, o negro, o judeu e de
28
Alfred Rosemberg apud SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. op. cit. p. 147.
29
Idem.
23
modo geral todos aqueles que de alguma forma afetassem a perfeição nacional-racial. A
negação da alteridade individual e social mostrava-se, por conseguinte, como elemento
fundamental da ação nazista. Nesse sentido, em prol dos verdadeiros elementos
homogeneizadores corporação, raça, nação deveriam esvaecer as bases da diferença a
diversidade partidária, étnica, bem como as classes sociais.
No nazismo, portanto, não havia lugar para o outro, uma vez que ao redor da
concepção de raça ou nação edificou-se um poderoso código de ação, tornando-se o único
valor moral possível. Assim, munido de um sistema ideológico e mental adequado, o nazismo
congregou em si valores absolutos, onde qualquer diferença tornar-se-ia alvo de violenta
proscrição. Aliás, para os que se viam privados de qualquer identidade nacional, os únicos
que poderiam fornecê-la seriam os inimigos. Daí, na raiz da psicologia nazista encontrar-se a
obsessão do complô – possivelmente internacional – onde a maneira mais fácil de fazer
emergi-lo seria através do apelo à xenofobia.
No entanto, tal inimigo deveria preencher certos requisitos de veracidade, a fim de
que, em termos de recepção de idéias, o convencimento pudesse funcionar de fato. Nesse
contexto, o judeu se destaca, preenchendo os requisitos necessários para a maioria da
população: eram estrangeiros, identificavam-se tanto com o capitalismo quanto com o
comunismo, possuíam uma religião peculiar, além de serem a vanguarda artística em geral
classificada como arte degenerada - capazes de aniquilar a verdadeira concepção de arte,
segundo os valores nazistas
30
.
30
É importante destacarmos, contudo, que o anti-semitismo assim como o Holocausto o devem ser filiados
exclusivamente à história da Alemanha. De forma comparativa, o anti-semitismo ltico, polonês e russo, antes
mesmo do nazismo, foi bem mais agressivo do que o alemão. o Holocausto e outras formas de genocídio,
segundo a concepção de Theodor Adorno, devem ser interpretados levando em conta uma visão de mundo ligada
à desconfiança e ao o ódio contra todos que são considerados – imaginariamente – débeis, fracos, fortes e felizes.
Assim, tal visão de mundo recusa a existência de qualquer contratipo ao seu tipo alardeado como padrão, e não à
história particular de um povo. Nesse sentido, o mal do racismo deveria ser buscado nos perseguidores, e não nas
vítimas, cuja escolha de uns, e não de outros, como alvo de aversão – sob os mais mesquinhos pretextos - deveria
ser considerado um elemento de eficácia no convencimento para o crime, e não como explicação do crime.
Aliás, ao refletirmos sobre os tipos que foram alvo dos nazistas, como por exemplo, homossexuais, ciganos,
judeus, poderíamos enfatizar que são grupos constituídos por vínculos de cumplicidade, e têm, em suma, a
24
Podemos dizer, portanto, que o nazismo inscreveu seu sucesso, seu grande poder de
sedução, justamente por sua capacidade de vincular à estranheza psicológica o contexto
social, político e econômico de mal-estar de sua época. O medo de exposição ao desencanto
do presente, bem como a dura luta pela sobrevivência, mediante a irrupção da moderna
sociedade industrial e a destruição dos anteparos sociais, sustentaram a concepção de mundo
fundamentada na fórmula de que apenas os fortes venceriam. Daí, a fuga às emoções
burguesas, o autocontrole e valores como honra, força, lealdade, temperança e
desprendimento com sua própria vida tornarem-se o material de moldagem do novo homem
nazista.
Tal culto falocrata desse homem superior, cuja virilidade nunca se esgota, mas se
sublima num amor compulsivo pela guerra e pela morte, podem ser observadas inclusive na
literatura de Ernst von Salomom:
Eles eram selvagens, indomáveis, proscritos do mundo de
normas burguesas, descarrilados que se reuniam em
pequenos grupos para buscar sua frente de combate [...].
Eles haviam reconhecido o grande cansaço desta paz e não
queriam ter nenhuma participação nela. Não queriam
participar desta ordem de bom-tom [...]. Seguiram em de
guerra em virtude de um instinto infalível. Atiravam em
todas as direções, porque atirar lhes dava prazer [...]. Eles
não tinham, entretanto, a palavra. Pressentiam-na,
pronunciavam-na, envergonhados de sua sonoridade
decaída, davam voltas, experimentavam-na com um terror
secreto, desterravam-na de suas conversações e, apesar
disso, essa palavra planava por sobre eles, envolta em
espessos vapores, pulverizada, sedutora, carregada de
mistério, irradiando uma potência mágica, sentida sem ser
reconhecida, amada sem haver-se oferecido. Essa palavra
era Alemanha.
31
De tal forma, a alteridade é plenamente identificada com o liberalismo sua atitude
capacidade de encarar desafios em nome do amor. Tal característica é diferente da de seus algozes, cujo
comportamento é marcado basicamente pela frieza, pelo distanciamento do outro, enquanto pessoa, em nome da
identificação com um coletivo anônimo. Portanto, como conseqüência de uma educação autoritária, um eu
regressivo incapaz de amar o outro, mas pronto para identificações salvadoras de aniquilação do eu através da
entrega a um outro indivíduo, o pai, o herói, o amigo ou o líder que substitui o amante, esclarecer-se-ia a eficácia
do Führerprinzip.
31
Apud SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. op. cit. p. 157.
25
antinacional e antinatural –, com o desequilíbrio da comunidade orgânica nacional e racial e
com o caráter de facção do marxismo. Assim, somente o nazismo com sua moralidade própria
seria capaz de forjar esse novo homem, o “bárbaro do futuro”
32
.
1.2. Política e Cultura nos Anos Críticos: Décadas de 1920 e 1930.
O alemão, debilitado, desagregado, com o espírito dilacerado, a vontade
aniquilada, incapaz de agir, perde toda a energia para afirmar sua própria
vida. Sonha com o direito às estrelas e o chão foge aos seus pés (...) Afinal,
restava aos alemães o caminho da vida interior. Esse povo de cantores, de
poetas, de pensadores sonhava com um mundo onde viviam os outros, e foi
preciso que a dor e a miséria o atingissem de modo desumano para que a arte
gerasse o desejo de um novo levante, de um império novo e também de uma
nova vida.
33
Alguns autores referem-se aos anos 1920 e 1930 ou a parte deles como “os anos
loucos”. Tal denominação não é fortuita, à medida que revela as expressões de nervosismo, de
inquietação e de incertezas radicais, fenômenos característicos de um período compreendido
entre duas guerras mundiais.
Na Alemanha, por exemplo, essa situação não foi diferente. Atordoada após sua
derrota na Primeira Grande Guerra, humilhada frente às diversas imposições dos vencedores e
palco de crise nos mais variados setores, a pátria encontrava-se, ao mesmo tempo, devastada
por suas próprias contradições nacionais. Nesse sentido, a política e, sobretudo as artes
daquele tempo nos fornecem preciosas indicações a respeito do clima em que viviam as
pessoas. A propósito, em raras vezes neste século, política e cultura se confundiram tanto
como na Alemanha entre-guerras. Entretanto, antes de delinearmos o cenário político-cultural
desses anos que antecederam e contribuíram, certamente para a ascensão do Nacional-
socialismo (1919-1933), é preciso enfatizar que tal fato só foi possível graças à conjugação de
32
Bleuel apud SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. op. cit. p. 159.
33
M. Domarus apud FEST, Joachim. Hitler vol. 1 (1889-1933). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p. 402.
26
fatores que marcaram o desenvolvimento alemão desde os primórdios do século XIX
34
, com
as raízes fatídicas e a trajetória repleta de crises da República de Weimar, como assinalado
anteriormente. Este novo governo, considerado responsável pela derrota na Primeira Guerra
Mundial, e de suas conseqüências, se tornou o alvo de ódio das forças de restauração bem
como de reação no Estado e na sociedade alemã.
35
A República de Weimar, proclamada a 9 de novembro de 1918, pelo social-democrata
Philipp Scheidemann, surgiu após quatro longos anos de uma guerra sangrenta, em que as
tropas alemãs se encontravam em desordem, a administração imperial desmoralizada e o
Estado-Maior frenético por paz. O país estava exaurido pela aventura que havia se lançado
em agosto de 1914: “A Alemanha tinha 1,8 milhões de mortos, e mais de 4 milhões de
feridos; o custo em material, talentos desperdiçados, mentes mutiladas, desespero total, era
incalculável”.
36
O descontentamento da população frente às péssimas condições de vida
possibilitou uma grande polarização, que na prática fez com que a República nascesse
destinada a morrer. Essa situação chocava-se com o período anterior à eclosão da guerra, no
qual a Alemanha destacava-se como uma grande potência industrial, ultrapassando mesmo a
França e a Inglaterra, sendo superada apenas pelos EUA.
Nesse contexto, o Tratado de Versalhes
37
, imposto aos alemães pelos países
vencedores, teve um papel fundamental no agravamento da crise e principalmente no aumento
34
As raízes ideológicas do Nacional-socialismo, fruto dos acontecimentos históricos alemães do século XIX,
estão vinculadas às três fases mais importantes da caminhada da Alemanha rumo ao sonhado Estado nacional: a
reação nacionalista à ocupação napoleônica (1806-1815); a falência da revolução liberal de 1848; e a solução
conservadora e militar do problema alemão, durante o governo de Bismarck, a partir de 1871. Nesse complexo
contexto em que progredia o processo de modernização e de unificação política, a idéia nacionalista alemã
experimentou um desenvolvimento especial. Com a sensação de ser a última a chegar entre os Estados europeus,
a “nação tardia” encontrava-se agora pronta para se adequar ao imperialismo da época. De tal modo, podemos
concluir que esses sentimentos nacional-imperiais preparavam o caminho para os movimentos pré-fascistas
bem antes da Primeira Guerra Mundial.
35
O “mito da punhalada nas costas” teve ampla aceitação na população alemã e foi um fator importante no
crescimento dos movimentos da extrema direita. Essa idéia difundida pelo alto comando do exército consistia
que os políticos esquerdistas haviam apunhalado o exército pelas costas, sendo este derrotado não no campo de
batalha, mas em decorrência de traição interna.
36
GAY, Peter. A Cultura de Weimar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p.165.
37
Mesmo diante de grande impacto e hesitação por parte dos alemães, o texto foi finalmente aprovado, em junho
de 1919, por 237 votos contra 138. O fato de ter sido assinado simbolicamente no Palácio de Versalhes, mesmo
27
da oposição aos republicanos - a coalizão Weimar foi formada por três partidos principais, os
Social-Democratas, o Centro e os Democratas - pela sua submissão frente às duras condições
estabelecidas pelo tratado. Essa oposição foi composta na maior parte pelos partidos da direita
parlamentar o Partido Nacional Alemão, o Partido Popular Alemão e até mesmo os
Democratas
38
. Desse modo, pode-se afirmar que “o Tratado de Versalhes, iria, senão
determinar, ao menos, condicionar de forma importante toda a vida da República de Weimar,
sua história, bem como as condições que permitiram o ascenso do nazismo em 1933”.
39
As condições impostas por esse tratado variavam desde a devolução de territórios
conquistados pela Alemanha durante a guerra – e mesmo antes desta, como o caso da Alsácia-
Lorena - até a redução do exército para um contingente máximo de 100 mil homens, a
diminuição drástica de seu arsenal bélico, a quase destruição da marinha, a desmilitarização
da margem esquerda do rio Reno e a proibição do Anschluss a união da Alemanha com a
Áustria. Certamente, as mais inflamatórias entre todas as cláusulas eram os artigos que
privavam os alemães daquilo que para eles era algo intangível: a honra. O tratado exigia que
os alemães entregassem seus “criminosos de guerra”, inclusive o ex-imperador, para
julgamento pelas “atrocidades”, além de insistir que aceitassem a responsabilidade de terem
causado perdas e danos” aos Aliados, cujas reparações” deveriam pagar. Como justificativa,
inseria-se uma cláusula no “tratado de paz” fazendo da Alemanha “a única” responsável pela
local onde a França havia assinado a sua rendição à Alemanha, em 1871, comprova o que chamaram de Diktat,
ou seja, a evidência dos anseios de revanchismo francês.
38
Após desfazer-se o “Governo dos Seis Comissários do Povo”, composto por Ebert, Scheidemann e Landsberg
representantes do SPD (Partido Social-Democrata) e Haase, Dittmann e Barth do USPD (Partido Social-
Democrata Independente), houve uma eleição nacional para deputados em 19 de janeiro de 1919, realizada em
Weimar, na qual votaram mais de trinta milhões de alemães. O SPD liderou a votação com 11 ½ milhões de
votos e 163 cadeiras; o Partido Central Católico, formado por uma mistura de monarquistas e republicanos
brandos, obteve menos de 6 milhões de votos e 89 cadeiras; e o recém criado Partido Democrata, composto por
intelectuais progressistas e burgueses intelectuais em evidência, saiu-se muito bem, somando cerca de 5 ½
milhões de votos e 75 cadeiras. Esses partidos de maior expressão formaram, portanto, a coalizão Weimar. No
entanto, cabe destacar que embora os Democratas compusessem tal coalizão que acabou aprovando o Tratado
de Versalhes, sendo acusada por muitos como a responsável por toda a situação caótica da Alemanha mesmo
seu significativo número de votos e cadeiras não foram suficientes para barrar as determinações dos sociais-
democratas.
39
ALMEIDA, Ângela Mendes de. A República de Weimar e a Ascensão do Nazismo. São Paulo: Brasiliense,
1982, p.14.
28
guerra - rapidamente apelidada de cláusula da culpa de guerra” a qual, além de
historicamente duvidosa, revelou-se um presente ao nacionalismo alemão. A propósito, a
quantia a ser paga pela Alemanha permaneceu vaga, como um compromisso entre a posição
dos EUA que pretendiam fixar os pagamentos segundo a capacidade de pagar do país e a
dos outros Aliados, especialmente os franceses ávidos a recobrar todos os gastos da guerra.
40
Mediante essas imposições conclui-se que “mesmo inevitável como era, a submissão,
deixou cicatrizes que nunca se fecharam (...). Enquanto praticamente todos os alemães
esperavam por uma revogação, alguns esperavam por vingança”.
41
De 1919 a 1923, portanto, a Alemanha foi marcada pela violência interna e a
intransigência externa, ambos influenciando-se e reforçando-se mutuamente para a
infelicidade do país. A derrota na Primeira Guerra, a queda do imperador e as imposições do
Tratado de Versalhes vieram junto com sucessivas ondas revolucionárias das diferentes
frações do movimento socialista, que se defrontavam ansiosas para controlar as massas postas
em ação
42
. Os próprios trabalhos da Assembléia aberta solenemente em 9 de fevereiro de
1919 - encontravam-se emperrados, ainda que não interrompidos, por desordens no país e
gestões pela paz no exterior. Em Berlim, o movimento espartaquista grupo de
revolucionários marxistas foi massacrado, tendo seus líderes, Rosa Luxemburgo e Karl
Liebknecht, sido assassinados em 15 de janeiro de 1919 em circunstâncias de causar
indignação
43
. Na Bavária, em 28 de fevereiro foi a vez de Kurt Eisner
44
ser assassinado. Em
40
A verdadeira pretensão dos Aliados, ou ao menos da França, era garantir uma Alemanha enfraquecida e ter um
meio de mantê-la pressionada. Em 1921, por exemplo, a quantia a ser paga ficou fixada em 132 bilhões de
marcos ouro, isto é, 33 bilhões de dólares na época, o que todos sabiam tratar-se de uma fantasia.
41
GAY, Peter. op. cit. p.168-169.
42
Ao traçar um panorama da Alemanha no período em que denomina como anos turvos (1919 a 1923) P. Guillen
esclarece que enquanto os espartacistas queriam estabelecer um regime do tipo bolchevique, os socialistas
independentes partidários das reformas políticas e sociais recusavam-se, entretanto, a ligar-se inteiramente a eles.
os socialistas majoritários, ligados ao reformismo, queriam apenas transformar a Alemanha numa democracia
do tipo ocidental. Para maiores informações ver: GUILLEN, P. A Alemanha de 1919 a 1939”. In: NERÉ,
Jacques. História Contemporânea. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1991, p. 398.
43
No calor da situação conflituosa da Alemanha, que permanecia aberta depois da revolução de novembro de
1918 que derrubou o kaiser, Rosa Luxemburgo foi assassinada, ao lado de Karl Liebknecht. Desde 9 de janeiro,
Berlim era uma cidade em estado de sítio e ambos sabiam que estavam encurralados, e que o cerco se apertava
cada vez mais. vários dias viviam em permanente mudança de endereços, aque a delação levou as milícias
29
março, o social-democrata Noske, investido de plenos poderes, organizou a repressão com a
ajuda um tanto duvidosa - dos Freikorps
45
que começaram evacuando os edifícios
ocupados, prendendo operários, para em seguida prosseguir com execuções sumárias. Em
toda parte as tropas irregulares esmagavam os insurretos.
É nesse contexto de crise nacional intensa e de grande movimentação contra-
revolucionária que a força da social-democracia começava a declinar, tornando-se visível a
passagem das camadas dias para o terreno da direita. Sentindo o peso da crise econômica,
aguçada pela desvalorização do marco, essas camadas acusavam o Partido Social-Democrata
Alemão (SPD) por tal situação, percebendo-o incapaz de garantir um estado de paz e ordem.
Sobre isso, Ângela Mendes de Almeida afirma: “A social-democracia também havia falhado
ao permitir que a direita se fizesse a representante dos interesses nacionais”.
46
Diante dessas condições, a extrema direita e os militares viam-se numa situação
favorável para tentar a deposição do governo através de um golpe de estado. O Putsh Kapp,
ocorrido em março de 1920 marcava a primeira tentativa séria de uma contra-revolução geral,
no qual a direita pretendia restaurar a monarquia. Contudo, o golpe foi esvaziado por uma
ultranacionalistas, ex-militares desmobilizados, ressentidos sociais radicalizados pela derrota do Império ao seu
esconderijo. Refugiados, nos dias 12 e 13, em uma residência no bairro operário de Neukölin, Rosa e Liebknecht
mudaram-se, no dia 14, para um apartamento em um distrito de classe média em Wilmersdorf. Suas cabeças
estavam a prêmio, com uma substantiva recompensa oferecida por empresários da extrema-direita. No entanto,
sem documentos, Rosa e Liebknecht não tinham como fugir, e o improviso em matéria de organização,
característico do espartaquismo, cobrou o seu preço; os dois foram presos às nove horas da noite, ainda na
presença de Pieck, um dirigente do comitê central, que tinha acabado de lhes trazer documentos pessoais falsos –
produzidos na Rússia dos sovietes para facilitar a saída de Berlim. Assim, foram levados até o hotel Eden,
onde estava instalado o quartel-general de uma das divisões protofascistas, na parte central da cidade, sabendo,
provavelmente, que o seria uma prisão como outra qualquer. De tal modo, depois de duramente atingidos por
coronhadas na cabeça e levados para fora do hotel, foram colocados dentro de um carro. Descobriu-se, todavia,
que foram fuzilados, imediatamente, à queima roupa: Liebknecht, arrastado para fora do carro, para simular uma
fuga, foi baleado pelas costas. Rosa recebeu o tiro na nuca, ali mesmo. O corpo de Luxemburgo foi lançado nas
águas do canal Landwehr, de onde foi resgatado somente em março daquele ano. Ali foi colocada uma placa, ao
lado de uma das pontes, para honrar a sua memória: Rosa, a alemã, a judia-polonesa, a internacionalista, a
vermelha, morreu na Berlim que tanto amou, assassinada pela fúria fascista que, em 1933, chegaria ao poder.
44
Em 8 de novembro de 1918, o socialista independente Kurt Eisner proclamou uma república na Bavária e
nomeou-se Primeiro Ministro, buscando assim a abdicação do imperador Guilherme II e o fim do antigo regime
na Alemanha.
45
Segundo a definição de Peter Gay: organizações paramilitares formadas às pressas, por ex-oficiais,
desempregados à deriva e jovens aventureiros ansiosos para matar”. In: GAY, Peter. op. cit. p.168.
46
ALMEIDA, Ângela Mendes de. op. cit. p.32.
30
greve geral empreendida pelos trabalhadores. Mas o fracasso do Putsh não significou o
enfraquecimento da direita, uma vez que nas eleições desse ano verificou-se uma votação
expressiva para as forças de centro-direita, sendo em contrapartida, desastrosas para os
republicanos
47
. Nessa conjuntura, sob a direção de Hitler, formou-se em abril de 1920, em
Munique, o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP).
48
O exército, por sua vez, sob o comando do general von Seeckt, assumiu uma postura
aparentemente apolítica, o que na prática significava subtraí-lo à jurisdição do governo.
Transformando-se numa força política à parte, “não favorecia a atuação dos grupos
paramilitares financiados pelas grandes indústrias, mas também pressionava a justiça para não
punir os culpados que mantinham a onda de atentados e assassinatos”.
49
Em 1921, o ministro
Matthias Erzberger foi assassinado a tiros por dois ex-oficiais e no ano seguinte foi a vez do
ministro Rathenau, de procedência judaica. Munique era então o centro das atividades do
terrorismo de direita.
A economia alemã, portanto, após o abalo da guerra recuperava-se com grande
dificuldade, pois não podia contar com o estimulante surto demográfico outrora
constituído. As perdas da guerra, as agitações e a miséria ocasionaram uma diminuição
durável da natalidade, de modo que a população envelhecia enquanto aumentava lentamente.
A cessão de regiões agrícolas e distritos industriais agravava o peso das importações, ao passo
que as desordens do pós-guerra comprometiam as exportações. A entrega da frota de
comércio, a apreensão dos bens no exterior e as “reparações” desestabilizavam a balança de
pagamentos; acrescentando ainda uma enorme dívida pública e um crescente déficit
47
As eleições realizadas em junho de 1920 marcaram o fim da liderança social-democrática. Enquanto a votação
do Partido Social-Democrata Alemão (SPD) desceu a 5,6 milhões – comparada aos 11,5 milhões de votos
obtidos em janeiro de 1919 -, a do Partido Social-Democrata Alemão Independente (USPD) subiu a 4, 9 milhões
comparada aos 2,3 milhões do ano anterior. No entanto, foram os partidos de centro-direita os mais votados,
formando o novo governo. Sobre esses dados ver ALMEIDA, Ângela Mendes de. op. cit. p.34.
48
A princípio, alguns aristocratas faziam parte do partido, mas a maior parte dos militantes era composta por
lojistas arruinados pela crise, que anteviam a possibilidade de saquearem as grandes lojas dos judeus, e por ex-
soldados que organizavam agressivos grupos paramilitares de repressão aos insurretos.
49
LENHARO, Alcir. Nazismo: O Triunfo da Vontade. São Paulo: Ática, 1990, p.20.
31
orçamentário, cuja solução buscava ser sanada com a emissão de papel moeda. Dessa
maneira, a depreciação do marco, bem grave no final da Primeira Guerra, degenerara em
catástrofe. Mas apesar da maioria dos alemães responsabilizar as “reparações” pela derrocada,
esta deve ser entendida principalmente, pela falta de confiança no regime, pela desordem
orçamentária e financeira e pela política inflacionária do governo, contrário a aplicar o
fiscalismo aos proprietários. A inflação, consequentemente, beneficiava os grandes
produtores agrícolas e industriais, enquanto o proletariado e as classes médias eram reduzidos
à miséria, o que reforçava ainda mais às oposições ao regime.
50
Em 1921, a Alemanha foi assolada por uma inflação angustiante, que em 1923 atingiu
dimensões fantásticas. Acompanhando seus índices de crescimento, podemos refletir sobre
seus efeitos na população: “em 1919 o marco em papel-moeda valia 1/4 do marco-ouro; em
1920, 1/13; em 1921, 1/21; em janeiro de 1922, 1/50; em outubro de 1922, 1/1000; em janeiro
de 1923, 1/40 000”.
51
Sobre esses índices de inflação que assolaram esse período, Peter Gay
ainda é mais enfático quando diz:
por volta de outubro de 1923 não eram milhões ou bilhões,
mas trilhões de marcos que eram necessários para se
comprar um pedaço de pão, ou enviar uma carta. Os
fazendeiros recusavam-se a embarcar os produtos, a
manufatura atingiu índices baixíssimos, havia distúrbios por
comida, os trabalhadores estavam quase morrendo de fome,
milhões de burgueses perderam todos os seus bens, enquanto
que os especuladores enriqueciam. A desarticulação
econômica e a revolta psicológica resultantes, só vinham
reforçar a penetrante desconfiança na República de
Weimar.
52
50
À esquerda, socialistas independentes e comunistas, que não perdoaram a república pela sangrenta repressão
de 1919, estenderam o seu prestígio às massas, vítimas da alta dos preços e decepcionadas com a socialização
forçada. À direita, a alta burguesia desejava recuperar as concessões que lhe foram arrancadas pelos sindicatos e
a antiga classe dirigente sonhava reconquistar o seu lugar predominante no Estado. Assim, exploraram a emoção
provocada pela derrota e pelas humilhações de Versalhes nas classes médias, essencialmente patriotas, buscando
erguê-las com o auxílio da propaganda nacionalista contra o regime, acusado de todos os males.
51
ALMEIDA, Ângela Mendes de. op. cit. p.32.
52
GAY, Peter. op. cit. p.173.
32
Com relação a tudo isso, podemos concluir que os principais prejudicados do processo
inflacionário - as suas verdadeiras vítimas - foram a classe média e os assalariados, que
fizeram suas economias em dinheiro. Em contrapartida, os proprietários rurais, os meios
financeiros e os industriais nutriram-se dele. Acumulavam enormes fortunas especulando com
o dinheiro barato. Mesmo os sindicatos, que até pouco tempo antes exerciam seu peso na
política, perderam sua função, já que sem dinheiro, nada tinham a oferecer aos seus aderentes.
Todavia, para agravar a situação, e contribuindo ainda mais para o crescimento de
movimentos da extrema direita, o vale do Ruhr foi ocupado por um contingente militar
franco-belga, em 11 de janeiro de 1923, sob o pretexto de garantir a extração e o
fornecimento de matérias-primas, sobretudo o carvão, como pagamento pelas reparações, ou
melhor, como indenização pelas despesas de guerra. Nesse sentido, o atraso da Alemanha no
pagamento de suas dívidas era interpretado pelos franceses como sabotagem deliberada. É
importante ainda ressaltar, que este local fornecia à Alemanha quatro quintos de seu carvão e
da produção de aço e, após a ocupação francesa, a economia alemã sofreu, portanto, mais um
golpe.
Por iniciativa do primeiro-ministro Cuno, o governo e a população aderiram então a
uma campanha de resistência passiva, ou seja, nenhum funcionário alemão deveria colaborar
com as forças de ocupação e os pagamentos e fornecimentos deveriam ser boicotados. Esse
acontecimento, no entanto, não só intensificou a ira dos alemães, mas alastrou o clima
nacionalista. Não demorou para os invasores serem o alvo preferido da ação das associações
paramilitares, que agiram por meio de sabotagem e terrorismo, sob o manto cúmplice do
exército. Nesse sentido, o governo alemão autorizou o Freikorps a operarem no Ruhr, bem
como consentiu que o exército regular (Reichswehr) - contrariando os termos de Versalhes -,
criasse um exército secreto denominado Schwarz Reichswehr (Exército Negro), muitos dos
33
quais recrutados entre os membros dos Freikorps. Os franceses, por sua vez, reagiram com
prisões e até mesmo sentenças de morte.
Mas, em 23 de setembro de 1923, com o fracasso da estratégia de confrontação aos
franceses, o novo primeiro-ministro Stresemann, anunciou o reinício do pagamento das
indenizações alemãs, o que tornou a autoridade do governo ainda mais frágil. O marco perdeu
valor e o poder aquisitivo dos salários foi reduzido à zero, acarretando ainda mais a
insatisfação do povo alemão em relação ao governo. Assim, em decorrência da resistência
passiva contra as tropas francesas de ocupação na região do Ruhr, foi preciso recorrer à
impressão de dinheiro extra para financiar a operação. Tal política desencadeou uma inflação
sem precedentes na Europa, que fez com que as contas de poupança que haviam sofrido
uma redução de valor no pós-guerra fossem liquidadas. De tal modo, a conseqüência da
grande inflação foi o aumento da alienação da classe média, além da intensificação dos
esforços da direita a fim de destruir o regime republicano.
Nesse clima, “Hitler procurava agrupar monarquistas, autonomistas, nacionalistas, e
buscar apoio das autoridades e do exército a fim de tentar um golpe de Estado”
53
, o Putsch de
Munique. Este foi realizado em 8 de novembro de 1923 sob inspiração da “Marcha sobre
Roma”, de Mussolini - , juntamente com o herói de guerra Ludendorff (que também
participou do Putsch Kapp em Berlim). Fracassada a tentativa de golpe contra a República,
Hitler e Ludendorff foram acusados de alta traição. No entanto, antes de ser preso, Hitler
transformou seu julgamento numa “festa de propaganda contra a República”
54
. No período
em que esteve na prisão - da sentença de cinco anos, ele ficou apenas oito meses - escreveu
Mein Kampf, considerado a “bíblia nazista”. Se até então, Hitler ainda era um mero
desconhecido, naquele momento ele voltava à cena como uma significativa figura política.
55
53
LENHARO, Alcir. op. cit. p. 21.
54
GAY, Peter. op. cit. p. 173.
55
Cabe destacar que a falta de apoio da Reichswehr a Hitler nessa ocasião comprometeu o sucesso do golpe, mas
o exército em 1923 “permaneceu condicionalmente leal ao regime porque o governo não demonstrava qualquer
34
A propósito, sobre seu perfil de poder, destacamos dois trechos um tanto pertinentes
sobre o assunto. Na análise de Peter Gay:
Quando a rebelião de Hitler em novembro de 1923 abortou
e quando a estabilidade financeira voltou gradualmente, os
republicanos respiraram melhor; será que Hitler não era,
no final das contas, apenas um outro excêntrico? Passaram-
se anos até que se provasse que estavam errados.
56
Alcir Lenharo, ainda completa:
A reflexão sobre o vivido e sobre as novas condições do
país ao sair da grande crise levará Hitler a reconsiderar a
tática golpista como meio certo de atingir o poder; ao invés
da ação armada, projeta chegar ao poder pela via legal,
parlamentar e eleitoral.
57
É importante ainda comentar, que essas tentativas da extrema direita em derrubar o
governo republicano podem ser relacionadas à análise realizada por Norbert Elias sobre o
declínio do monopólio estatal da violência na República de Weimar
58
. Segundo o autor, com
o objetivo de conter o avanço da esquerda, o governo não mediu esforços em financiar
unidades do Freikorps, motivo este que fez da Alemanha palco de ordinário conflito entre a
esquerda e a direita. Sua verdadeira finalidade seria então aniquilar as quadrilhas
republicanas” como bem ressaltou um líder dos “corpos francos”.
59
Nesse sentido, Elias caracteriza o Estado alemão à época da República de Weimar
como “rudimentar”, explicado pelo limitado controle das autoridades governamentais sobre as
forças militares e policiais necessárias à paz interna. Esta circunstância favoreceu a ação de
movimentos e organizações da classe média, da classe trabalhadora, assim como o conflito
relutância em reprimir a esquerda”. In: STACKELBERG, Roderick. A Alemanha de Hitler. Rio de Janeiro:
Imago, 1999, p. 112.
56
GAY, Peter. op. cit. p. 174.
57
LENHARO, Alcir. op. cit. p. 22.
58
ELIAS, Norbert. Os alemães: a luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e XX. Jorge Zahar
Ed., 1997, p. 196-204.
59
STACKELBERG, Roderick. op. cit. p.99.
35
extra-estatal entre a esquerda e a direita, com esta se sobressaindo devido a falta de confiança
da classe dia na democracia liberal. Portanto, as organizações da classe-média, pela
ausência de uma tradição parlamentar, acreditavam que o regime parlamentar-republicano as
discriminava e, por isto, se opuseram a ele.
Embora essas organizações extra-estatais de direita desejassem, além da destruição de
tal regime, o rearmamento militar e a recuperação da Alemanha como grande potência nos
primeiros anos do pós-guerra, isto não era possível naquele momento, uma vez que não
podiam agir abertamente em decorrência da supervisão dos Aliados para que a Alemanha não
excedesse seu potencial militar ao que foi permitido pelo Tratado de Versalhes. Sendo assim,
no final da década de 1920 e início da de 1930, os estadistas ocidentais deixaram o
militarismo alemão em segundo plano frente ao temor do militarismo soviético.
Conseqüentemente, por não temerem o fortalecimento de grupos anticomunistas na
Alemanha, permitiram que essas organizações se expusessem em público, por meio de atos
violentos sem que fossem punidas.
60
De 1924 a 1929, no entanto, a Alemanha teve um período de retomada da produção
capitalista e uma relativa estabilidade econômica, proporcionada pelo Plano Dawes
61
, no qual
os EUA e a Inglaterra investiram vultosamente no país. Houve maior oferta de emprego,
aumento de salários e até um seguro desemprego foi fornecido, muito embora a diminuição da
jornada de trabalho para oito horas não tivesse sido concebida. Apesar da ferrenha oposição
da direita, o governo alemão acabou aceitando o plano. Em 1927, a recuperação do país era
um fato consumado, voltando a produção geral a atingir o nível de 1913. “Os dourados anos
vinte” haviam chegado enfim ao país, mas, em contrapartida a Alemanha ficava nas mãos dos
60
Tais organizações, como o movimento Nacional-socialista, podem ser vistas, portanto, como associações de
massa que se prepararam para destruir o regime multipartidário com o auxílio de manifestações de grande escala,
dissolvendo o monopólio da força, sem o qual o Estado não poderia funcionar por muito tempo. Em outras
palavras, pretendiam destruir o Estado republicano e sua estrutura social de dentro para fora, bem como abalar o
monopólio estatal da violência pela prática de atos de terror.
61
Esse plano foi assim denominado devido ao estadista e banqueiro americano Charles G. Dawes, que propôs a
evacuação do Ruhr, além de reduções consideráveis nos pagamentos de reparações e empréstimos à Alemanha.
Ver: GAY, Peter. op. cit. p. 174
36
ingleses e dos norte-americanos. Porém, esses “anos dourados” estavam assentados em bases
frágeis. Peter Gay assinala que aquela prosperidade: “Era como se fosse uma bela cortina
escondendo realidades desagradáveis.”
62
Isso pode ser percebido com a quebra da Bolsa de
Nova Iorque, em 1929, que alterou profundamente esse quadro de aparente estabilidade. Se a
Grande Depressão abalou muitos países, golpeou a Alemanha de forma especial devido a sua
estrutura econômica, inteiramente dependente de empréstimos estrangeiros e voltada para a
exportação.
Podemos enfatizar, por conseguinte, a inegável influência da Grande Depressão para
a trajetória de ascensão do Partido Nacional-socialista ao poder, uma vez que os nazistas se
fazem na crise e não no estado de paz e prosperidade. Embora o número de votos do NSDAP
fosse insignificante antes de 1929, sua base ativista na época da crise estava bastante
fortalecida e contava com mais de 100.000 membros.
63
. Quanto ao seu desempenho
eleitoral, ainda modesto até então, começou a ganhar importância a partir de 1930: “os
nazistas subiam de 12 para 107 cadeiras; os comunistas, de 54 para 77. Os social-democratas
e a direita nacionalista começaram a perder votos”
64
.
O “crack” da Bolsa, contudo, fez com que o período de prosperidade econômica do
final da década de 1920 chegasse ao fim, reduzindo a produção industrial em 39% e elevando
o desemprego a mais de 6 milhões de pessoas
65
. Segundo Eric Hobsbawm:
A imagem predominante da época era as das filas de sopa,
de ‘Marchas da Fome’ saindo de comunidades industriais
sem fumaça nas chaminés onde nenhum o ou navio era
feito e convergindo para as capitais das cidades, para
denunciar aqueles que julgavam responsáveis.
66
62
Idem. p.175.
63
KERSHAW, Ian. op. cit. p. 52.
64
LENHARO, Alcir. op. cit., p. 25.
65
STACKELBERG, Roderick. op.cit. p.120
66
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. o Paulo: Companhia das Letras,
1995, p. 98.
37
A análise desse quadro social, todavia, é suficiente para demonstrar a relativa perda do
papel político que os sindicatos exerciam na cena política e da dificuldade que as esquerdas
encontravam para enfrentar as forças nazistas em ascensão. Ângela de Almeida, ao observar
isso, diz que um dos motivos da ascensão do poder nazista é a própria falta de organização
dos partidos da esquerda, como pode ser notado no índice de votos nas eleições de novembro
de 1932, cujos resultados contrariam a tendência que se vinha manifestando desde 1930, de
ascenso do nazismo” e ainda completa “isso mostra que o destino da Alemanha poderia ter
sido outro se a classe operária tivesse iniciativa e se houvesse unidade dos partidos operários”
67
.
Peter Gay tem uma outra interpretação. Ele acredita que Hitler foi salvo dessa crise
pelo qual seu partido passava por seus “competidores da ala da direita”. Com relação ao
gabinete, o então chanceler von Papen, havia convocado Hitler para um acordo de
sustentação do governo do presidente Hindenburg (que havia sido reeleito no início de 1932
por 58% dos votos contra 36,8% do próprio Hitler). Mas a posição do nazista era clara: a
chancelaria ou nada. Naquele momento ele nada teve. No entanto, após ser sucedido no
gabinete por Schleicher, von Papen, cheio de rancor e desejo de voltar ao poder, decidiu usar
Hitler como uma espécie de joguete. Subestimando seu poder, acreditava poder manipulá-lo
quando fosse, então, chanceler. Foi o próprio von Papen quem o indicou ao cargo para o senil
Hindenburg, que assim decretou em 1933.
Alcir Lenharo, de forma bastante similar a Hannah Arendt, levanta outras questões.
Ele assegura que “não é na fraqueza da desunião das esquerdas e sim na força do movimento
nazista que se pode entender sua ascensão”
68
, do mesmo modo que Arendt coloca que “sua
67
Nas eleições de novembro de 1932, apesar dos nazistas terem perdido 2 milhões de votos e 34 cadeiras no
Reichstag, ainda eram o partido mais forte de uma delegação de 196, contra 100 dos comunistas (que mais uma
vez ganharam força), 121 para os social-democratas e 90 para o centro, ambos tendo sofrido perdas moderadas.
Mas havia aqueles que interpretavam os resultados como o início de um declínio. Sobre esses índices eleitorais
ver: ALMEIDA, Ângela Mendes de. op. cit. p.112.
68
LENHARO, Alcir. op. cit. p. 26.
38
organização (do Partido Nazista) e sua propaganda são mais fortes que a inexpressividade de
seus oponentes”.
69
Como afirma Hobsbawm, a depressão da economia capitalista mundial acontece,
mesmo com a década de 1930 tendo sido uma época de vultosa inovação tecnológica na
indústria, sobretudo no campo da diversão e do entretenimento - que posteriormente veio a
chamar-se de “meios de comunicação”. Este setor vivenciou grandes avanços no entre-
guerras - ao menos no mundo anglo-saxônico - com o surgimento do rádio, da indústria do
cinema, além da imprensa ilustrada de rotogravura. Neste contexto, as gigantescas casas de
exibição cinematográfica se ergueram como verdadeiros palácios naquelas cinzentas cidades
atingidas pelo desemprego e um dos fatores explicativos do seu imediato sucesso foi o fato
dos ingressos serem extremamente baratos e, portanto, acessíveis tanto aos muitos jovens
como aos mais idosos, que eram os setores mais atingidos pelo desemprego de então e
consequentemente os que tinham mais tempo de sobra.
Sobre a questão do desenvolvimento cultural alemão nas últimas décadas do século
XIX e nas primeiras do século XX, cabe ressaltar que antes da Primeira Grande Guerra
faltavam a Berlim todos os pré-requisitos para um verdadeiro centro artístico, uma vez que os
reis prussianos desprezavam o requinte da cultura: A mente dos Hohenzollern era
culturalmente tão estéril como a urze de Brandenburgo. As musas, assim como os
mosqueteiros, eram convocadas a servir para a glória marcial”
70
. Mesmo em 1871, depois
da cidade tornar-se a capital do Reich alemão, o imperador continuou mantendo
belicosamente a tradicional hostilidade de sua dinastia para com as artes, com exceção da
militar. Assim, em 1908, ao demitir o diretor da Galeria Nacional de Berlim Dr. Hugo von
Tschudi , acusado de favorecer a tendências modernas, o Kaiser Guilherme II enfrentou
uma grande onda de protestos, principalmente contra sua hipócrita postura de mediocridade e
69
Apud LENHARO, Alcir. op. cit. p. 26.
70
VON ECKARDT, Wolf e GILMAN, Sander L. A Berlim de Bertolt Brecht: um álbum dos anos 20. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1996, p. 62.
39
também contra o sentimental romantismo dos protestadores originais, o que em contrapartida,
desencadeou uma espantosa, não obstante caótica, vitalidade artística em Berlim. Em 1929, o
jornalista Paul Westheim, inclusive observou:
Berlim é uma cidade para artistas, para os jovens, para os
criativos. Não para artistas idílicos, que desejam ficar
sentados, sonhando, à beira de um pequeno lago, mas para
aqueles aos quais uma melodia pode vir das lutas pela
vida... Berlim deu um grande passo para tornar-se um
centro, senão o centro, da força artística da Alemanha.
71
O primeiro influxo veio, por conseguinte, da Noruega, em 1892, através de uma
exposição de pinturas sombrias e obsessivas, com teor angustiante, de Edvard Munch. Tal
evento revelou-se tão perturbador que a exposição foi fechada alguns dias depois por seus
próprios organizadores. Tal escândalo fez de Munch internacionalmente conhecido, levando
Max Liebermann - destacado artista de Berlim na época, além de um judeu rico, espirituoso e
mundano a liderar a primeira “Secessão de Berlim” desertando da Academia Imperial. Sob
a influência principalmente de Manet e Monet, Liebermann tornou-se o primeiro e mais
destacado impressionista alemão. De tal modo, com o patrocínio de alguns ousados
marchands, sua secessão exibiu na capital novas obras de Van Gogh, assim como dos
impressionistas, pós-impressionistas, cubistas e fauvistas franceses. Essa semente logo
germinou, fazendo a arte alemã, carregada de expressão emocional e preocupação social,
aliar-se às grandes correntes da pintura européia. Do sul da Itália, por exemplo, vieram os
futuristas; da Rússia chegou Wassily Kandinsky e, posteriormente, os suprematistas e
construtivistas El Lissitzky e Kasimir Malevitch; da Hungria veio o construtivista Laszlo
Moholy-Nagy.
72
71
Apud VON ECKARDT, Wolf e GILMAN, Sander L. op. cit. p. 62.
72
Podemos caracterizar os futuristas como confusos profetas da era tecnológica que, em suas esculturas,
pinturas, e visões gráficas das novas cidades, buscavam captar o movimento motorizado, além de idolatrarem a
velocidade. Já os suprematistas e construtivistas, dando um passo à frente dos futuristas utilizavam a tecnologia
– o logus, ou conhecimento de fazer coisas técnicas – a fim de criarem novas percepções artísticas.
40
Essa jovem vanguarda do pré-guerra, contudo, foi além da secessão impressionista de
Liebermann, instaurando uma segunda “Secessão de Berlim”, em 1910, levando adiante uma
perspectiva não de evolução, mas, sobretudo de revolução. Nesse sentido, a revolta
abrangia grupos de artistas que se denominavam “Die Neue Kunst” (A Nova Arte), “Die
Brücke” (A Ponte), “Der Blaue Reiter” (O Cavaleiro Azul), “Aktion” (Ação) e
“Revolution”. Os nomes de Erich Heckel, Otto Müller, Wassily Kandinsky, Franz Marc,
August Macke, Oskar Kokoschka, Ernst Ludwig Kirchner entre outros, ficaram famosos,
principalmente, devido ao apoio dado a eles pelo poeta e dramaturgo Herwarth Walden.
Assim, ao fundar, em 1910 a revista Der Sturm (A Tempestade), Walden tornou-se o
principal propagandista da vanguarda da Alemanha.
Graças a Max Liebermann e Herwarth Walden, portanto, as novas forças estiveram
reunidas em Berlim antes mesmo da revolução. Com a fuga do kaiser, viram-se ansiosas para
assumir a direção do país, tendo a arte como principal arma contra os valores burgueses, a
injustiça social e a arrogância militar. Desta forma, buscando alcançar uma nova totalidade de
cultura e “unidade de arte e vida” (Gesamtkultur), com a finalidade de realizar uma utópica
combinação de idealismo, religião e socialismo. Nessa sublevação, a força mais vigorosa foi o
expressionismo, cujo termo é vago, refletindo uma resposta igualmente vaga, emocional e
frequentemente stica à época ultramecanizada e desumanizada em que estava entrando a
Europa naquele tempo. O “Manifesto do Extremo Expressionismo”, de Johannes Molzahn,
publicado na revista Der Sturm em 1919, nos permite apreender um pouco do que
pretendiam:
A obra – a que nós, como pintores, escultores e poetas,
estamos ligados é a poderosa energia da experiência –é a
vontade cósmica – fogo eterno – uma flecha viva – alvejando
você – brilhando em seu sangue – correndo assim mais
rápida e animada brilhando melhor na eternidade. Sol e
lua são nossas imagens – que lhe passamos bandeira
estrelada de eternidade – florescendo em sua direção – entre
início e fim – jogada entre poço e pico – não temos nenhuma
tradição nem posses que valha a pena reivindicar.
41
Trazemos grande promessa.
73
O dadaísmo também floresceu na capital, em meio a esse desesperador clima de
protesto. O “clube dada” de Berlim, que organizou sua primeira exposição em 1918, incluía
artistas como Richard Hülsenbeck e George Grosz, e teve, em 1920, uma outra exposição
fechada pela polícia através de considerável violência. Essa tentativa de fazer da arte um
instrumento da revolução teve início com o Novembergruppe (Grupo de Novembro),
inaugurado em 1918 pelo pintor Max Pechstein. Esse grupo era integrado por grandes
intelectuais de Berlim, incluindo pintores (Nolde, Otto Müller, Feininger), escultores (Georg
Kolbe, Gerhard Marcks), arquitetos (Walter Gropius, Erich Mendelsohn), historiadores da
arte (Wilhelm Valentiner, Paul Zucker), compositores (Paul Hindemith, Kurt Weill), poetas e
teatrólogos (Bert Brecht), entre outros profissionais da arte, que totalizavam mais de cem
pessoas. O Novembergruppe, bem como seu Arbeitsrat für die Kunst (Conselho de
Trabalhadores pela Arte) tornaram-se um brilhante foco da vida cultural de Berlim, cujo
primeiro apelo dizia:
O futuro da arte e a gravidade desta hora nos obriga, a nós,
revolucionários do espírito (expressionistas, cubistas,
futuristas), à busca da unidade e da estreita colaboração...
O planejamento e realização de um programa de longo
alcance, a ser realizado com a cooperação de gente
confiável nos vários centros de arte, deve nos trazer a mais
íntima mistura de arte e do povo.
74
Destinado aos artistas, outro manifesto expunha:
Nós pintores, estamos ligados aos pobres numa
sagrada solidariedade. Não aprenderam muitos de nós
a conhecer a miséria e a vergonha da fome?... Não irá
em breve a burguesia retomar as rédeas do poder
através de golpes, corrupção e inescrupulosa
manipulação de votos? Não irá esta Alemanha da
conquistadora classe média mais uma vez fazer uso
73
Apud VON ECKARDT, Wolf e GILMAN, Sander L. op. cit. p. 66.
74
Idem. p. 68.
42
desavergonhado da força dos trabalhadores e humilhar
os pobres ainda mais? Não desejará triunfar em coisas
espirituais de maneira ainda mais arrogante e
descarada do que na Alemanha imperial...?
75
No entanto, algo importante a destacar é que as palestras, exibições de filmes e
exposições organizadas pelo Novembergruppe, apresentando uma excitante arte de vanguarda,
eram direcionadas principalmente às massas proletárias, que a desdenhavam e rejeitavam. a
instruída classe média berlinense, que o grupo, por sua vez rechaçava, abraçou encantada sua
arte moderna. Por conseguinte, seu objetivo de alcançar uma nova unidade de arte e vida”
fracassou, ocorrendo assim uma estranha inversão de efeitos: “Pela primeira vez o artista se
viu privado não só de sua aceitação, mas também do seu isolamento”.
76
Desse modo, os artistas se retiraram. Seus lemas, sua falta de preparação e organização,
bem como a confusa situação política e social não tardaram a aliená-los da República de
Weimar, por eles ridicularizada. Neste contexto, três destacados artistas alemães estiveram
inseparavelmente envolvidos com a feiúra da vida na grande e torpe cidade de Berlim:
Heinrich Zille, Käthe Kollwitz e George Grosz.
77
Por sinal, sobre Grosz, é válido destacar que
a maior parte de sua obra é trágica, mostrando uma preocupação com o sexo sórdido, vício,
drogas e violência, buscando chocar a burguesia alemã, arrancando-a de sua complacente
Gemütlichkeit (estado de conformação). Ao ser acusado pelo crime de blasfêmia pública,
respondeu ao juiz em 1928:
Eu tenho certas obrigações como artista. Pertenço a todo o
povo alemão e sinto que tenho, portanto, uma certa missão.
Fui posto neste mundo com uma espécie de chicote, mesmo
que artístico e assim razoavelmente inofensivo... Eu crio de
75
Idem. p. 69.
76
Idem.
77
Heinrich Zille era conhecido como cronista do proletariado urbano, observador do sombrio humor e da
estranha beleza na privação e decadência da cidade. Era imensamente popular, destacando-se em apresentar o
lado humano da vida na cidade. Se ele abordava a miséria do homem moderno com um compassivo humor,
Käthe Kollwitz tornava heróica a sua compaixão, retratando a tragédia cósmica. George Grosz era o mais
versátil e sofisticado do trio, entregando-se à selvagem sátira a fim de revelar sua repugnância pela prostituição,
pobreza, patriotas e aproveitadores.
43
meu próprio tempo, de minha própria personalidade, de
meu próprio senso do artístico... Estou junto de minha obra,
sou responsável e, como artista, estou em minoria. Vocês
têm a seu lado a maioria e o poder... Se os tempos são
inquietos, se o alicerce da sociedade está sendo atacado,
então o artista não pode simplesmente se pôr de lado,
especialmente o artista talentoso com seu mais apurado
senso histórico. Ele se torna, portanto, quer queira ou não,
político.
78
O modernismo alemão e seus artistas perderam sua batalha política, quando Hitler
enfim declarou a nova arte “degenerada”, queimando grande parte dela. Ele ainda divulgou
sua “intransigente limpeza desses últimos elementos de decadência social”, alegando:
Cubismo, dadaísmo, futurismo, impressionismo etc. não têm
nada a ver com a raça alemã. Pois todos esses conceitos
não são velhos nem novos, eles são os resmungos artificiais
de gente a quem foram negados os atributos divinos do
verdadeiro artista, tendo em vez disso um dom para a
impostura... E isso é fundamental: arte que não pode
depender do apoio instintivo e sadio do sentimento popular
e confia numa facção pequena e interessada não pode ser
tolerada. Tenta confundir os sentimentos instintivos e sadios
do povo em vez de alegremente apóia-los.
79
Portanto como assinalado anteriormente - foi em meio a essa conjuntura de crise
que emergem os movimentos fascistas, quer no âmbito econômico - onde a livre concorrência
liberal é questionada, exigindo a intervenção cada vez maior do Estado na economia - quer no
âmbito político - onde o Estado Liberal é considerado fraco e incapaz de impor uma solução,
e principalmente de conter a ameaça socialista - quer no âmbito social e cultural - onde os
pressupostos racionais do liberalismo eram vistos como o início da depravação moderna, e,
por conseguinte maléficos. Nesse sentido, podemos dizer que a novidade advinda do nazismo
era sua força psicológica
80
, que predispunha todos, trabalhadores ou não, a aceitarem ou
78
Idem. p. 72.
79
Idem. p. 79.
80
Wilhelm Reich, através de uma aproximação polêmica entre o marxismo e a psicanálise, insistiu em explicar
que não era pela base econômica crítica ao marxismo que analisa qualquer tipo de fenômeno pela infra-
estrutura econômica que se entenderia o misticismo nazista, mas pelo meio ideológico. E cita Otto Strasser
44
assumirem seu corpo ideológico. Hitler, a partir de suas próprias fraquezas, sabia lidar com a
“má consciência, o sentimento de culpabilidade, o furor contra o mundo, o instinto
revolucionário, a concentração inconsciente dos desejos explosivos de compensação...”
81
.
Não foi por acaso que os movimentos fascistas, mesmo tão “novos” em seus métodos
de domínio e organização, nunca prepararam uma doutrina nova ou inventaram uma ideologia
que já o fosse popular - na Alemanha nazista visavam, sobretudo, a nacionalização do
homem alemão. Por conseguinte, o que distingue os líderes fascistas dos outros políticos, é
que dentre as ideologias já existentes, procuraram escolher os componentes que mais se
destacavam como fundamentos para a criação de um mundo inteiramente fictício; nesse
sentido, a propaganda totalitária cria um mundo fictício capaz de competir com o mundo
real, cuja principal desvantagem é não ser lógico, coerente e organizado”.
82
Desse modo, surge a necessidade de construção de um universo simbólico, cujos
mitos políticos muitas vezes desempenham o papel de elementos de coesão social. Assim, não
se pode negar o sucesso da reprodução e das releituras desses mitos ao longo da história da
Alemanha nazista. Isso incide em uma perspectiva semelhante àquela assinalada por José
Murilo de Carvalho em seu livro “A Formação das Almas”, sobre a construção do imaginário
republicano no Brasil, em que, a partir das reflexões desenvolvidas por Bronislaw Baczko
83
,
ele afirma que:
A elaboração de um imaginário é parte integrante da
legitimação de qualquer regime político. É por meio do
imaginário que se pode atingir o a cabeça mas, de
para justificar sua crítica à permanente cegueira dos marxistas alemães: Seu erro é que rejeitam ou
ridicularizam a alma e a mente, e não compreendem que estas movem tudo”. Apud LENHARO, Alcir. op. cit. p.
15. Ver também: REICH, Wilhelm. Psicologia de massa do fascismo. Porto: Publicações Escorpião, 1974.
81
Idem. p. 14
82
ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo.o Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 411. Em sua análise,
Hannah Arendt, tende a equiparar o nazismo e o comunismo, que são para ela dois sistemas essencialmente
idênticos; portanto, quando fala em totalitarismo, refere-se a ambos os sistemas. Quanto a importância da
propaganda na veiculação da ideologia nazista trataremos desse assunto posteriormente.
83
Uma boa síntese das reflexões de Baczko sobre o "Imaginário" e a "Imaginação Social" pode ser encontrada
em: BACZKO, Bronislaw. Imaginação Social”. In: Enciclopédia Einaudi, Volume 5, Anthropos-Homem.
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa de Moeda, 1984.
45
modo especial, o coração, isto é, as aspirações, os medos e
as esperanças de um povo. É nele que as sociedades definem
suas identidades e objetivos, definem seus inimigos,
organizam seu passado, presente e futuro
84
.
Portanto, os mitos desempenham um papel fundamental na formação de qualquer
imaginário político. De acordo com a análise de Pierre Grimal, o mito se opõe ao logos
(conhecimento racional) uma vez que “tem por finalidade apenas a si mesmo. Acredita-se ou
não nele, conforme a própria vontade, mediante um ato de fé, caso pareça ‘belo’ ou
verossímil, ou simplesmente porque quer se acreditar. O mito, assim, atrai em torno de si toda
a parcela do irracional existente no pensamento humano”.
85
Dessa forma, os mitos
fundadores fazem parte da construção de praticamente todas as identidades nacionais,
revelando-se, no caso alemão, através da imagem do próprio Führer, como se figurasse o
regresso do Kaiser medieval, ou ainda, o “novo Redentor” da nação.
Mircea Eliade, historiador das religiões e filósofo romeno, em um de seus mais
famosos estudos, apresenta uma definição de mito bastante elucidativa:
O mito conta uma história sagrada; ele relata um
acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo
fabuloso do “princípio”. (...) O mito narra como,
graças ás façanhas dos entes sobrenaturais, uma
realidade passou a existir (...) É sempre, portanto, a
narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo
algo foi produzido e começou a ser. O mito fala apenas
do que realmente ocorreu, do que se manifestou
plenamente.
86
Nesse sentido, devemos entender o mito como uma narrativa explicativa sobre a
origem de algo, quer seja costumes ou mesmo instituições sociais. Em outras palavras, este
deve ser visto como parte integrante da cultura de um povo, utilizando-se de elementos
84
CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: O Imaginário da República no Brasil. o Paulo:
Companhia das Letras, 1990, p. 10.
85
GRIMAL, Pierre. A Mitologia Grega. 3ª edição. São Paulo, Brasiliense, 1982, p. 08-09.
86
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 11.
46
simbólicos para explicar o mundo e dar sentido à vida humana. Contudo, na mesma obra
Eliade afirma que “a partir de certo momento, a origem o se encontra apenas num passado
mítico, mas também num futuro fabuloso”
87
, fenômeno este denominado por ele de
“mobilidade da origem”, fonte da maioria das crenças que proclamam uma nova Idade do
Ouro” projetada no futuro, como as concepções políticas do Nazismo baseadas no Reich de
mil anos, por exemplo.
Essa projeção do passado no futuro, portanto, é algo recorrente no imaginário político
alemão, o que se reflete na resignação constante desses mitos fundadores em diversas
conjunturas. O próprio Führer resumiria que “só entende o Nacional-Socialismo quem
conhece Wagner”, experiência decisiva que tivera aos quinze anos em sua cidade natal: a
pequena Linz, quando assistiu a ópera Rienze. Na Roma decadente, o herói torna-se porta-voz
do povo contra a aristocracia e planeja voltar ao tempo para restabelecer a República da
Antigüidade. Contudo, Rienze é vítima de uma conspiração e acaba morrendo, numa última
batalha no Capitólio. Profundamente impressionado com a estética wagneriana, Hitler é
instigado a traçar os primeiros planos para o seu futuro e o da Alemanha, e fantasia escrever
óperas, cujas extravagâncias superariam a própria matriz inspiradora. Wagner, artista criativo
e político em uma pessoa, com suas concepções ideológicas e a noção de arte para uma
nova civilização ocupará um lugar especial na mente de Hitler, dando contorno à sua visão
sobre o mundo.
A encenação da ópera que tanto fascinava Hitler será utilizada nos “comícios de
pseudo-arte”, dos quais o Führer pode ser visto como o ator principal, representando o papel
de um líder. Mais do que ator principal, ele era o próprio cenógrafo e diretor. Não é por acaso,
que nos grandes encontros, fazia parte da teatralização -lo como ponto central do cenário
87
Idem. p.52
47
feito de luz, de multidão e de ordem. A liturgia teatral realçava ainda mais a sua condição de
grande Führer, quando mesmo em meio à massa aparecia cercado da maior solidão.
Esses espetáculos também tinham como finalidade fundir o destino individual de cada
um em um destino coletivo, ou melhor, promover a fusão do volk (povo ligado por laços de
sangue) com o intérprete profético de sua História. Assim, a força de sedução do nazismo
junto às massas, acima de qualquer explicação objetiva, demonstra como seus articuladores
souberam conjugar mitos e símbolos de modo poderoso, em uma coreografia política
absolutamente inovadora. Para Girardet o mito, apesar de aludir o passado, conserva no
presente um valor explicativo, uma vez que justifica e esclarece “certas peripécias do destino
do homem ou certas formas de organização social”
88
.
O autor, sobretudo, distingue quatro categorias mitológicas principais, presentes nos
processos políticos: a do Salvador, a da Conspiração, a da Idade do Ouro, e a da Unidade. Se
mitos e símbolos são construídos de acordo com as necessidades, carências e ambições de
uma sociedade em um dado momento de sua história, assim, o próprio Hitler surge enquanto
tal: o Homem providencial, o Guia, o Salvador, pois esses são cheios de poder e pontos de
identificação coletiva. Ao seu redor, cristalizam-se poderosos impulsos de esperança, emoção
e adesão. Porque ele na história aquilo que os outros ainda não vêem, sendo, portanto, o
anunciador dos tempos por vir. Nesse sentido, o Guia profético, não deve ser visto apenas
como um simples orador, ou representante da vontade geral, mas como a própria encarnação
da totalidade de suas dimensões sociais e de seu destino histórico. Perder-se nele é, sem
dúvida, renunciar à identidade individual; mas é reencontrar, ao mesmo tempo, a
integralidade da identidade coletiva, a fusão íntima e indissolúvel com a comunidade mãe”.
89
A ele caberia a missão de livrar a Alemanha das “forças perniciosas” e conduzir o seu povo,
por uma espécie de impulso sagrado, pelos caminhos do futuro.
88
GIRARDET, Raoul. Mitos e Mitologias Políticas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 12.
89
Idem. p. 80.
48
O mito da Conspiração pode ser identificado nas práticas e representações anti-semitas
e nas idéias de pureza racial que sustentam a ideologia do nazismo alemão. Quanto ao mito da
Idade de Ouro, a necessidade de fuga do presente em busca de um passado ideal, que
represente a recuperação e a valorização do orgulho nacional. No caso do nazismo, esse
passado referencial seria o Primeiro e o Segundo Reich. Associado a esses outros mitos, o da
Unidade também teve expressão no seio do nazismo, uma vez que condenava o
individualismo e exaltava um bem maior: o “bem comum”, através de uma sociedade
homogênea e coerente.
Todas estas questões inserem-se na perspectiva definida por Lená Menezes, para
quem “os símbolos tendem a ser forças unificadoras, com funções a um só tempo pedagógicas
e terapêuticas. Nesses sentido, eles exercem funções de mediação, apresentando-se,
invariavelmente, ligados a experiências totalizantes”
90
. Dessa forma, o nazismo soube
brilhantemente se utilizar desse arcabouço simbólico, afirmando-se e integrando-se naquela
novidade em que se constituía a sociedade de massas.
90
MENEZES, Lená M. op. cit. p.177.
Capítulo II
A Outra Face da Modernidade: o “Modernismo Reacionário” do Nacional-Socialismo.
Os conceitos de nação, nacionalidade e nacionalismo, embora tenham começado a
circular há no mínimo dois séculos - tempo o bastante para supor que já fossem entendidos de
forma clara e generalizada - ainda hoje continuam revelando um caráter intrigante, carente de
um consenso analítico. Sob esse ponto de vista como bem atestou Eric Hobsbawm no prefácio
de “Nações e Nacionalismo desde 1870”, “a ‘questão nacional’ é notoriamente, um tema
controverso”
91
. Nesse sentido, a análise das principais obras referentes ao tema nações e
nacionalismos, a partir da matriz européia, entre os séculos XIX e XX, faz-se importante, à
medida que permite ampliar o conhecimento sobre as diversas interpretações e teorias
referentes ao assunto em questão. E, sobretudo, possibilita compreender, à luz de tais leituras,
as idéias de Estado-nação, de nacionalismos, de cultura e identidade nacional, bem como suas
origens, seus desdobramentos e seus resultados tanto no plano interno quanto internacional.
De tal modo, inseridas no presente trabalho, as reflexões sobre tais obras tornaram
possível uma ampla discussão sobre o contexto histórico e a confluência de idéias que dizem
respeito à questão do nacionalismo ao longo dos culos XIX e XX, servindo como base para
a análise da construção da consciência nacional alemã, assim como do processo de ascensão
do regime nazista ao poder, fundamentado, especialmente na ideologia nacionalista. Além
disso, levando-se em consideração a nossa proposta de privilegiar o estudo do impacto da
tradição cultural sobre a política, por meio do discurso da propaganda - especificamente o
fílmico -, buscamos analisar as tensões entre o progresso iluminista e o conservadorismo
presente no ideário político do Terceiro Reich, verificando até que ponto o Estado nazista
rejeitava a razão na construção de uma “nova nação alemã” em meio aos agitados tempos
91
HOBSBAWM, Eric. Nações e Nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1998, p. 10.
50
modernos.
2.1. Interpretações Teóricas Sobre os Conceitos de Nação e Nacionalismo.
Antes de partirmos para a análise sobre a construção da identidade nacional alemã e
sua eloqüente afirmação durante o governo nazista, é primordial fazermos algumas reflexões
sobre o amplo debate acerca das idéias de nação e nacionalismo, que estiveram em voga no
decorrer dos séculos XIX e XX. Segundo Maria Helena Rouanet, o conceito de nação tal
como hoje o concebemos começou a circular pela Europa dita “iluminista” há cerca de
trezentos anos, ou seja, desde a transição do século XVIII para o XIX. As idéias acerca desse
conceito encontraram fortes raízes na retórica política do Ocidente, sendo adotadas por sua
vez em todo o mundo. Assim, tal noção, apesar de não ser unívoca, nem unânime, instalou-se
com tamanha força, que num período de tempo relativamente curto, acabou abafando os
diferentes sentidos que gravitavam em torno de sua constituição, assim como as vozes que a
ela se contrapunham.
Dessa forma, como assinala Rouanet, o conceito de nação ao longo de sua existência,
consolidou-se de tal maneira, a ponto de se afirmar como “verdade atemporal e
inquestionável”
92
. No entanto, ela lembra que as coisas não são inquestionáveis por essência
própria, mas porque os indivíduos é que a concebem assim, por meio de estratégias e
mecanismos do sistema cultural em que estão inseridos. Sob esse ponto de vista, tal idéia
passa a ser considerada como uma “verdade inquestionável”, que durante esses quase três
séculos dispensou-lhe tratamento habitualmente atribuído às matérias dogmáticas. Assim, ela
afirma que as “noções não surgem, mas são construídas”
93
, de modo que sua afirmação, seu
fortalecimento e até mesmo sua desconstrução se dão através do “processo de inserção do
92
ROUANET, Maria Helena (org.). Nacionalidade em Questão. Cadernos da Pós-Letras, 19. Rio de Janeiro:
UERJ, 1997, p. 05.
93
Idem.
51
indivíduo num grupo, numa sociedade, numa cultura”
94
. Considerando-se, portanto, a idéia
de nação como uma realidade culturalmente construída, é importante retomar o percurso
trilhado por essa idéia, visando analisar o processo discursivo através do qual ela se constituiu
e que vem garantindo a sua manutenção e fortalecimento até os dias atuais.
Em 1882, uma conferência pronunciada por Ernest Renan, na Sorbonne, deu origem
ao texto “O que é uma nação?”, que caminha no sentido da afirmação desta noção enquanto
fato cultural. A julgar pelo que afirmavam certos teóricos políticos, que uma nação era antes
de mais nada uma dinastia, Renan negava essa idéia ao admitir que semelhante lei não é
absoluta e que esse velho princípio que considerava apenas o direito dos príncipes não poderia
mais ser mantido, pois o século XVIII havia mudado tudo. Depois de um longo período de
aviltamento, o homem havia voltado ao espírito antigo, ao respeito por si mesmo e à idéia de
se seus direitos. Assim, além do direito dinástico, havia o direito nacional. A propósito, Renan
não fundamentava este direito nacional a partir do critério de raça, nem de consangüinidade.
Para ele, “assim como o princípio das nações é justo e legítimo, este de direito primordial das
raças, é limitado e cheio de perigo para o verdadeiro progresso”
95
. Aliás, ele não acreditava
na idéia de raça pura e dizia que basear a política na análise etnográfica seria fazê-la apoiar-se
numa quimera. Dessa forma, segundo o autor, a consideração etnográfica não teve qualquer
participação na constituição das nações modernas.
O mesmo é dito a respeito da língua: “A língua convida à reunião; não força à isto”
96
.
Para ele, a vontade do homem é algo superior à língua. No caso da Suíça, apesar dos diversos
idiomas existentes, a vontade de estar unida é um fato mais importante que uma similaridade
muitas vezes obtida por meio da coerção. Logo “as línguas são formações históricas, que
94
Idem. p. 06.
95
RENAN, Ernest. “O que é uma nação?” In: ROUANET, Maria Helena (org.). op. cit. p. 25. É importante
ressaltar que, ao proferir este discurso, Rennan tinha em mente o crescente poderio do Império alemão, uma
década após a sua vitória na Guerra Franco-Prussiana. As observações desse intelectual francês sobre a idéia de
nação, opõem-se de forma conclusiva à concepção de nação dominante na rival Alemanha.
96
Idem. p. 32.
52
pouco indicam acerca do sangue de seus falantes, e que em todo caso, não poderiam
acorrentar a liberdade humana quando se trata de determinar a família à qual nos unimos para
a vida e para a morte”
97
. De acordo com Renan, nem mesmo a religião ofereceria base para o
estabelecimento de uma nacionalidade moderna. Enquanto no passado, a religião estava
atrelada à própria existência do grupo social - sendo fundamentalmente uma extensão da
família - com o passar do tempo, tornou-se algo individual, passando a dizer respeito
unicamente à consciência de cada um.
Tampouco a comunhão de interesses é suficiente para formar uma nação, apesar de ser
seguramente um poderoso laço entre os homens. “Há na nacionalidade, um lado de
sentimento; ela é a um tempo alma e corpo; um Zollverein não é uma tria”.
98
Nem a
geografia, com seu importante papel na divisão dos territórios nacionais, pode garantir a
constituição das nações. Nenhum elemento material, portanto, é suficiente na formação dessa
coisa sagrada chamada povo, somente o homem, à medida que fornece sua alma. Segundo as
palavras de Renan: “uma nação é um princípio espiritual que resulta das profundas
complicações da história, uma família espiritual, não um grupo determinado pela
configuração do solo”
99
. A propósito, constituem esse princípio espiritual, dois elementos,
que na realidade, são apenas um: a posse em comum de um rico legado de lembranças, bem
como o consentimento e o desejo de se viver juntos.
Uma nação é então uma grande solidariedade, que se constitui por um longo passado
de esforços, devoções e sacrifícios (os que foram feitos e aqueles que ainda estão dispostos a
se fazer). De modo que o homem não é escravo de raça, de língua, nem de religião. Quando
uma enorme agregação de homens, de coração caloroso e espírito são, cria uma consciência
moral, forma-se então uma nação. Enquanto essa consciência moral se mantiver por meio dos
sacrifícios exigidos pelo indivíduo em favor de uma comunidade, ela terá o direito de existir e
97
Idem. p. 33.
98
Idem. p. 36.
99
Idem. p. 38.
53
será legítima. Portanto para Renan, a constituição de uma nação se por seu legado
histórico, mas sobretudo, através da autodeterminação de seu povo. Sua existência é um
plebiscito cotidiano, cujo único critério legítimo que se deve ter sempre presente é a vontade,
o desejo de fazer parte dela.
Por volta de um século depois, Benedict Anderson, ao refletir sobre a idéia de nação,
destaca três paradoxos que, muitas vezes, têm deixado os teóricos do nacionalismo perplexos:
“a modernidade objetiva das nações aos olhos do historiador versus sua antigüidade subjetiva
aos olhos dos nacionalistas; a universalidade formal da nacionalidade como conceito
sociocultural versus a particularidade irremediável de suas manifestações concretas; e o poder
político dos nacionalismos versus sua pobreza, e até mesmo incoerência filosófica”
100
. Para o
autor, parte dessa dificuldade se explica pela tendência dos teóricos a hipostasiar
inconscientemente a existência no Nacionalismo, classificando-o como uma ideologia. Ele
acredita que as coisas ficariam mais fáceis, se o nacionalismo fosse associado a “religião” e
“parentesco”, ao invés de “fascismo” ou “liberalismo”.
Assim, partindo de um viés antropológico, Benedict Anderson define nação como
“uma comunidade política imaginada e imaginada como implicitamente limitada e
soberana”
101
. Segundo o autor, ela é imaginada, pois embora os membros de uma nação, por
menor que esta seja jamais venham a conhecer nem mesmo a encontrar a maioria de seus
compatriotas, mesmo assim estará viva a imagem de sua comunhão na mente de cada um
deles. Referindo-se a esse ato de imaginação, Renan escreveu à sua maneira suavemente
sarcástica que “a essência de uma nação é que todos os indivíduos tenham muito em comum,
e também que todos tenham esquecido muitas coisas”
102
. Sob esse ponto de vista, diz que
todo cidadão francês deveria ter esquecido os massacres da noite de São Bartolomeu, bem
100
ANDERSON, Benedict. Nação e Consciência Nacional. São Paulo: Ed. Ática, 1989. Neste livro da década de
1980, Anderson traz um frescor para a análise da questão nacional, ao inserir um viés antropológico à discussão.
101
Idem. p. 14.
102
RENAN, Ernest. op. cit. p. 20.
54
como não haveria dez famílias na França que pudessem apresentar provas de sua origem
franca, que vários cruzamentos desconhecidos foram capazes de desconsertar todos os
sistemas dos genealogistas. Nesse sentido, o esquecimento apresenta um caráter positivo, à
medida que garante o sentimento de unidade e de pertencimento à nação.
Ainda com relação ao pensamento de Anderson, a nação além de imaginada, é
também limitada uma vez que possui fronteiras finitas, para além das quais existem outras
nações e soberana conceito este que surgiu numa época em que a Revolução e o
Iluminismo buscavam destruir o reino dinástico, divinamente constituído e legitimado. Desse
modo, o Estado soberano passava a ser o símbolo dessa liberdade tão sonhada pelas nações.
Além disso, segundo o autor, a nação é imaginada como comunidade porque é sempre
concebida como um profundo companheirismo, cujo sentimento de fraternidade, inclusive,
tornou possível, nos últimos duzentos anos, que tantas pessoas não apenas matassem, mas
também morressem voluntariamente por imaginações tão limitadas.
A propósito, entre os fatores que contribuíram para a criação das comunidades
imaginadas da nacionalidade, Anderson destaca o crescimento do Estado-nação, a
convergência do capitalismo e da tecnologia da imprensa, bem como o surgimento de nguas
vernáculas no início da Europa moderna
103
. Se a princípio tais experiências foram
especificamente européias, o colonialismo tratou de transmitir a cultura do nacionalismo para
a América Latina do século XVIII, assim como mais tarde, o imperialismo o fez no continente
asiático. Entretanto, enquanto alguns estudiosos, por um lado, admitiam a equação nação =
Estado = povo e, principalmente povo soberano, relacionando indubitavelmente a nação ao
território - uma vez que a estrutura e a definição dos Estados eram agora fundamentalmente
territoriais - havia aqueles que, por outro lado, queriam desvincular nacionalidade e Estado,
como é o caso de Lord Acton e Otto Bauer, por exemplo.
103
Não é pretensão deste trabalho detalhar uma abordagem teórica específica, portanto para mais detalhes sobre
os processos pelos quais a nação chega a ser imaginada, ver principalmente os capítulos 2 e 3 da obra de
ANDERSON, Benedict. op. cit. pp. 17 - 56.
55
Durante o auge do poderio imperialista britânico, na década de 1860, o conservador
Lord Acton, defensor esclarecido do princípio universal da legitimidade, criticava as
mudanças produzidas pela Revolução Francesa, que segundo ele, ensinaram ao povo a encarar
suas vontades e desejos como o supremo critério do direito, de modo que a tradição e a norma
deixaram de ser guardiãs da autoridade. Acton ainda observou que dentre as três teorias
subversivas modernas que negavam a legitimidade da ordem existente – a igualdade, o
comunismo e a nacionalidade era esta última a “mais atraente no momento atual e a mais
rica em promessa de poderio futuro”
104
.
Contrariando a opinião de John Stuart Mill de que “em geral é condição necessária
para instituições livres que as fronteiras dos governos coincidam basicamente como as da
nacionalidade”
105
, Acton, como dito acima, criticava a idéia de Estado-nação, argumentando
que essa concepção era um resíduo pernicioso da Revolução Francesa, cuja tendência
moderna visava fundamentar o Estado em idéias monistas abstratas e especulativas. Dessa
forma, acreditava que tal tendência levaria a uma política absolutista de forma inevitável,
destruindo o princípio do governo limitado e conseqüentemente minando as bases pluralistas
da verdadeira liberdade. Para ele, “enquanto a teoria da unidade faz da nação uma fonte de
despotismo e revolução, a teoria da liberdade a encara como o baluarte da autogestão e como
o limite principal ao poder excessivo do Estado. Os direitos privados, que são sacrificados à
unidade, são preservados pela união das nações”
106
. Sendo assim, a coexistência de diversas
nações sob um mesmo Estado, seria a melhor garantia de sua liberdade, bem como um dos
principais instrumentos de civilização.
Portanto, em sua opinião, “são substancialmente mais perfeitos os Estados que, como
os impérios britânico e austríaco, englobam várias nacionalidades distintas sem oprimi-las”,
104
ACTON, Lord. “Nacionalidade”. In: BALAKRISHNAN, Gopal (org.). Um Mapa da Questão Nacional. Rio
de Janeiro: Contraponto, 2000, p. 25.
105
Idem. p. 33.
106
Idem. p. 36.
56
pois “na união política, as raças inferiores se elevam, através do convívio com raças
intelectualmente superiores” e “as nações esgotadas e decadentes são revigoradas pelo contato
com uma vitalidade mais jovem”
107
. Desse modo, concluía que a combinação de diversas
nações num Estado seria uma condição tão necessária da vida civilizada quanto o convívio
dos homens na sociedade.
Enquanto Acton via as nações como fenômenos naturais em termos a-históricos e
essencialmente aculturais pleiteando, sobretudo a imposição de um Estado legitimista ético
acima delas, Otto Bauer concebia os Estados e as nações como sendo historicamente
constituídos, mas tendo como fontes de valor o caráter e a cultura nacionais, e não o próprio
Estado. Assim como Renan, Bauer não compreendia a nação como uma comunidade de
pessoas que descendessem da mesma raça ou da mesma língua, ao contrário, afirmou que as
nações eram produto da história e se constituíam sobre séculos de mesclagem social e sexual
de grupos diferentes. Para ele, então, a questão da nação só poderia ser abordada a partir do
conceito de caráter nacional, entendido “não como explicação do modo de comportamento de
nenhum indivíduo, mas apenas o conhecimento da relativa semelhança de comportamento dos
compatriotas num período de tempo definido”. Porém, diferente de Renan, não concorda que
os atos de uma nação e seus membros pudessem ser explicados em termos de um misterioso
“espírito do povo” (Volksgeist), uma vez que “ele próprio nada mais é do que o caráter
nacional transformado num ser metafísico, num espectro”
108
.
Bauer, antecipando em parte as idéias de Ernest Gellner, dizia que a nação era fruto da
Grande Transformação, que convertera em modernas sociedades industriais todas as antigas
107
Idem. p. 35.
108
BAUER, Otto. “A Nação”. In: BALAKRISHNAN, Gopal (org.). op. cit. p. 48. Otto Bauer foi um dos mais
destacados dirigentes da social-democracia austríaca e da II Internacional, chegando a ser Ministro dos Negócios
Estrangeiros da República da Áustria em 1918-1919. Autor da teoria da “autonomia cultural nacional”, Bauer
recusava o desmantelamento do Império em Estados independentes, defendendo um Estado multinacional que
garantisse a autonomia meramente cultural das nações. Neste sentido, em 1913, ele admite a idéia de Anschluss,
ou seja, a anexação político-militar da Áustria por parte da Alemanha, o que ocorreria somente em 1938. Ainda
durante a Primeira Grande Guerra, Bauer torna-se prisioneiro na Rússia, transformando-se num vivo adversário
do bolchevismo, participando, portanto, de maneira ativa no esmagamento das ações revolucionárias da classe
operária na Áustria.
57
comunidades isoladas, exigindo para isso uma solidariedade baseada em uma cultura abstrata
superior, fundamentada na alfabetização. No entanto, segundo o autor, além do capitalismo
empreender uma profunda modificação na cultura dos camponeses
109
, os arrancando do solo
a que estiveram presos desde que o povoamento se dera pela primeira vez e os redistribuindo
por diferentes lugares e ocupações, ele ao mesmo tempo, os impediu de fazer parte da
comunidade de cultura nacional essencialmente criada pelas classes alta e média. A realidade
da exploração, do excedente de mão-de-obra, bem como toda humilhação que o sistema fabril
os impunha apresentavam-se como uma barreira ao envolvimento do trabalhador em tal
comunidade. Desse modo, Bauer afirmava que “o capitalismo inibe a evolução do povo
inteiro na direção de uma comunidade de cultura nacional, o apenas através da exploração
em si, mas também através da necessidade de defender essa exploração”
110
, garantindo assim,
apenas às classes abastadas, a plena posse da cultura intelectual como forma de manter e
perpetuar seu poder. De forma, que caberia ao socialismo a tarefa histórica de ajudar as
massas trabalhadoras, oprimidas e exploradas a sair dessas trevas e a seguir rumo ao
Iluminismo. Somente nesse dia, portanto, a comunidade cultural nacional passaria a existir
pela primeira vez em sua plenitude.
Mas, apesar de acreditar que a vitória do socialismo daria à nação uma autonomia
completa, uma autêntica autodeterminação jamais vista na história, Bauer contestou a idéia,
então sustentada por muitos, de que este criaria uma espécie de cosmopolitismo pleno e
uniforme. Ao estabelecer a diferença entre comunhão e semelhança, ele alegou, por exemplo,
que apesar das nações modernas vivenciarem o capitalismo industrial de forma semelhante,
não o fizeram em comum. Assim, cruzando as fronteiras de classe, a comunhão ligava
determinados grupos pelo que ele denominava de “comunhão de destino”, entendido o
apenas como sujeição a uma sina comum, mas como uma experiência comum de mesmo
109
De acordo com Otto Bauer, entre os principais fatores que contribuíram para a modificação dos padrões
culturais do campesinato destacam-se a educação popular, o serviço militar universal e a democracia.
110
BAUER, Otto. op. cit. p. 52.
58
destino, em constante comunicação e em interação contínua uns com os outros. De modo que
essa vontade compartilhada com relação ao futuro, sujeita a constantes modificações na luta
real pela vida, era precipitada por meio da cultura comum, dos hábitos e da linguagem
comuns da vida cotidiana e até mesmo por instituições políticas comuns – no caráter nacional.
Uma vez entendida essa diferença entre os termos comunhão e semelhança, enfim a nação
pode ser definida segundo o autor “como uma comunhão de caráter que brota de uma
comunhão de destino, e não de uma mera semelhança de destino”
111
.
Em meados da cada de 1960, Ernest Gellner, elabora sua influente teoria sobre o
nacionalismo. Diferente de outros teóricos que vêem esse fenômeno como fruto da Revolução
Francesa, para ele este surge como uma resposta à Grande Transformação, ou seja, ao advento
do mundo industrial que trouxe consigo uma grande e clara mudança nas condições sociais da
humanidade. Enquanto numa sociedade agro-industrial cuja posse de um status e o acesso a
seus direitos e privilégios são a consideração mais importante – a homogeneidade cultural não
é algo interessante para os governantes, uma vez que a especificidade cultural ajuda a definir
os nichos sociais e geográficos das pessoas, inibindo o surgimento de identidades e lealdades
possivelmente perigosas; de modo que a cultura mais separa que unifica; na sociedade
industrial, pela primeira vez na história da humanidade, a cultura passa a ter um caráter
universal, imposto por um grupo de letrados com ajuda da escrita. Assim, caso pretendesse
funcionar, a sociedade inteira deveria ser perpassada por uma só cultura superior padronizada,
garantindo às pessoas não apenas o acesso ao emprego, mas à cidadania legal e moral, e a
todos os tipos de participação social.
Os custos desses sistemas educacionais deveriam ser absorvidos pelo Estado, de modo
a preparar os indivíduos para sobreviverem em situações em que a divisão do trabalho e a
mobilidade social fossem mais avançadas. Assim, a sociedade passava a ser homogeneizada,
111
Idem. p. 58.
59
sendo o Estado protetor de sua cultura. Entretanto, é importante ressaltar que Gellner não
compreendia o nacionalismo como um fenômeno associado às culturas nacionais ou à
sentimentalismos. Ao contrário, dentro do espírito eurocosmopolita do Iluminismo, o entendia
em termos globais e sociológicos.
Segundo o autor, o nacionalismo se manifesta em sua forma mais aguda em alguns
dos pontos de transição entre esses dois tipos societários. Dessa forma, destaca cinco estágios
típicos no trajeto de um mundo de impérios e microunidades não étnicos para um mundo de
Estados nacionais homogêneos: linha basal (anterior a 1815), era do irredentismo nacionalista
(1815-1918), fase do irrendentismo triunfal e autodestrutivo (principalmente durante a
Primeira Guerra Mundial), Nacht und Nebel (principalmente durante a Segunda Guerra
Mundial), e finalmente a fase de diminuição da intensidade dos sentimentos étnicos (iniciada
em 1945)
112
.
Dentre essas etapas chamamos atenção para a fase Nacht und Nebel (Noite e Neblina)
- expressão empregada pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial como referência a
algumas de suas operações - em que os padrões morais ficaram em suspenso e o princípio do
nacionalismo, que exigia grupos étnicos homogêneos e compactos dentro de determinadas
unidades político-territoriais, foi implantado de forma implacável, não mais pelo velho e
benigno todo de assimilação, mas pelo assassinato em massa ou pela transplantação
forçada das populações. Segundo as palavras de Gellner: a realização do nazismo e de sua
ritualização da política consistiu em dotar uma Gesellschaft (sociedade) anônima e industrial
da ilusão poderosa e eficaz de que ela era uma autêntica Gemeinschaft (comunidade)”
113
.
112
Para a melhor compreensão de cada uma dessas fases ver GELLNER, Ernest. “O Advento do Nacionalismo e
sua Interpretação: os mitos de nação e da classe”. In: BALAKRISHNAN, Gopal (org.). op. cit. pp. 121-136.
113
Idem. p. 131.
60
2.2. Nazismo: Tenaz Afirmação da Consciência Nacional Alemã.
De certa forma, buscar compreender as origens do fascismo e o motivo pelo qual se
fundamentou em uma doutrina nacionalista torna-se uma etapa importante para refletir sobre a
grande expressão que obteve na Alemanha, representado pelo nazismo que é o elemento
chave de estudo em questão. Para tal objetivo é preciso olhar para trás, para um período
anterior à emergência pública do fascismo, ou seja, olhar para o final do século XVIII com a
Revolução Francesa, e suas conseqüências ao longo do XIX. Foi o triunfo do liberalismo, que
ao mesmo tempo em que provocou, diretamente, os novos movimentos do socialismo e
comunismo, incitou também, indiretamente, o outro movimento autoritário que apareceu
como seu antídoto. Ou ao menos, gerou parte dos elementos intelectuais que iriam compor o
fascismo posteriormente. Estes elementos consistiam em idéias que, naquele momento, eram
puramente conservadoras. Mas, depois, em circunstâncias muito diferentes do século XIX, se
converteriam em radicais.
Assim, como definiu François Furet: “A guerra de 1914 tem para a história do século
XX o mesmo caráter matricial que a Revolução Francesa tem para o XIX”.
114
Pode-se
compreender, então, a Primeira Guerra Mundial como um grande catalisador de
transformações na sociedade liberal, as quais, embora já estivessem em curso, processavam-se
lentamente. Destarte, conforte discutimos no capítulo anterior, foi nesse ambiente de grande
crise econômica, política e social que insurgem os movimentos fascistas, facilitados pela
pretensa fragilidade e incompetência do Estado Liberal em impor soluções eficazes nesses
novos tempos de instabilidade e insegurança.
Isaiah Berlin, no texto intitulado “Joseph de Maistre e as origens do fascismo”, ao
analisar a atmosfera política e social do final do século XVIII e início do XIX, época esta de
confluência de idéias, marcada pela transição entre pontos de vista totalmente divergentes,
114
FURET, François e NOLTE, Ernst. Fascismo e Comunismo, Lisboa: Gradiva, 1999, p.13.
61
derivados de tradições históricas heterogêneas, encontra no temperamento e nas opiniões
radicais do saboiano De Maistre as bases conservadoras, tradicionalistas, antiliberais e a
irracionais que caracterizam a ideologia fascista do nosso tempo.
Joseph de Maistre era um aristocrata, erudito e reacionário católico, que se sentia
ultrajado tanto pela doutrina quanto pelos atos da Revolução Francesa, se opondo com igual
firmeza ao racionalismo e ao empirismo, ao liberalismo, à tecnocracia e à democracia
igualitária, além de mostrar-se hostil ao secularismo e a todas as formas de religião não
sectárias e não institucionais. Durante os anos mais criativos de De Maistre, o problema mais
importante para a consciência pública, era uma forma específica de como o homem deveria
ser melhor governado, uma vez que a Revolução Francesa, - considerada um inexplicável
cataclismo, que varreu para longe os alicerces do velho mundo - havia desacreditado o
considerável conjunto de soluções racionalistas que tinham sido defendidas da forma mais
eloqüente durante as últimas décadas do século XVIII.
Os efeitos da Revolução sobre a mente determinada e tenaz de De Maistre, fez com
que surgisse um feroz crítico de toda forma de constitucionalismo e liberalismo, um crente na
divindade da autoridade e do poder, bem como um firme adversário de todos os ideais que o
Iluminismo do século XVIII havia apresentado comprometimento liberal, individualismo,
esclarecimento secular e racionalismo. Seu mundo havia desmoronado pelas forças da razão
ateísta, podendo ser reconstruído se fossem eliminados os vestígios da Revolução.
Portanto, em lugar dos ideais de liberdade, progresso e perfeição humana, ele pregou a
tradição e a salvação pela fé. Como não acreditava na bondade natural do homem, De Maistre
insistiu na natureza inapelavelmente e corrupta deste, e conseqüentemente na necessidade
de autoridade, obediência, hierarquia e submissão. Para ele, a figura principal sobre a qual se
apoiava toda a sociedade européia era o carrasco, figura esta capaz de salvar os homens, uma
vez cerceados pelo terror da autoridade. Ao invés da ciência, defendeu a primazia do instinto,
62
do preconceito, da sabedoria cristã e da cega; em lugar do otimismo pregou o pessimismo;
em lugar da paz e da harmonia afirmou a necessidade do sofrimento e do conflito, da guerra e
do derramamento de sangue.
A concepção de mundo desse erudito era mais realista e brutal que dos a liberais e a
dos românticos. Ele próprio via-se como o último defensor de uma civilização agonizante,
que cercada por rios inimigos aqueles que procuravam subverter a ordem estabelecida -
devia ser defendida com grande ferocidade, através de uma violenta repressão exercida por
seletos instrumentos de poder, desenvolvendo uma autoridade esmagadora e uma guerra
implacável contra toda tendência à livre indagação ou a busca da vida ou da liberdade por via
secular. Assim, o poder ocupa a posição mais elevada na escala de valores de De Maistre,
uma vez que os seres humanos, fracos demais para governarem a si mesmos, deveriam se
submeter à liderança de uma hierarquia de seres dotados de grande sabedoria e vontade
inflexível, capazes de dedicar a sua vida à tarefa de organizar e preservar a ordem
divinamente instituída. A visão que esse aristocrata tinha dessa nova ordem chocou
profundamente seus contemporâneos. Porém, os juízos que pareceram perversamente
paradoxais em sua época, soam hoje quase como lugares-comuns, revelando uma
estarrecedora visão de futuro. Essa terrível visão de vida proposta por De Maistre, tem uma
grande afinidade como o mundo paranóico do fascismo moderno, e é surpreendente que isso
já ocorra nos primórdios do século XIX.
Karl Polanyi, em sua obra “A grande transformação: as origens de nossa época”,
parece compartilhar da visão pessimista de De Maitre em relação à sociedade liberal. Na
perspectiva de Polanyi, ao analisar a formação da economia capitalista de mercado no século
XIX, um novo tipo de sociedade havia emergido, distinta de tudo que se conhecera até então.
Nos sistemas produtivos anteriores à Revolução Industrial, os interesses econômicos eram
mínimos, imperando as relações sociais e familiares. Porém, com a expansão do sistema fabril
63
e os altos custos de sua implantação, foi preciso transformar a sociedade por inteiro, tornado-a
um imenso mercado regido pelo interesse e pelo lucro, sendo o trabalho um negócio como um
outro qualquer.
Ao invés das relações sociais definirem as relações econômicas, como havia ocorrido
até então, houve uma inversão no capitalismo: as relações econômicas passaram a definir as
relações sociais. Assim, a “Grande Transformação” - vale lembrar que essa idéia perpassava a
Otto Bauer e a Ernest Gellner, que viam a nação como fruto desse processo - foi erigida pela
Revolução Industrial, que eliminou antigos padrões de relacionamento social, implantando
novos, baseados nas relações de mercado. Dessa forma, relações de reciprocidade,
redistribuição e obrigações para com a comunidade foram deslocadas por relações de
mercado, provocando mudanças sociais significativas. Percebe-se, então, que ao mesmo
tempo em que a ação do mercado auto-regulável proporcionou ao século XIX a sua dinâmica,
também produziu as tensões e pressões típicas que, em última instância, destruíram aquela
sociedade.
De acordo com a ideologia liberal, o planejamento, o controle e a regulação deviam
ser banidos como riscos à liberdade da sociedade. Assim, quanto menor fosse o poder do
Estado, mais facilmente funcionariam os mecanismos de mercado. Mas, ao contrário do que
queriam fazer acreditar os liberais, o laissez faire não era um regime natural de organização
social. Era uma ilusão admitir uma sociedade que fosse modelada apenas pelo desejo e a
vontade do homem. Para Polanyi, deixar a sociedade “solta”, sem maiores impedimentos e
regulações, como defendiam os liberais, era excitá-la a ser um “moedor de carne” ou um
“moinho satânico” , como ele definiu, destruindo todas as relações sociais. Sendo assim, em
meio à crise da civilização liberal, a vitória do fascismo tornou-se praticamente inevitável.
Surge do próprio capitalismo como um anticorpo, que acaba paralisando e corrigindo a
expansão desregulada dos mercados auto-regulados e se fortalecendo com a destruição que
64
esta expansão desregulada dos mercados acaba provocando, em longo prazo, do trabalho, da
terra, do dinheiro e da própria capacidade produtiva das nações.
Ao contrário do princípio do liberalismo econômico, o fascismo adota o princípio da
“auto-proteção social”, uma reação defensiva que se articula - pelo menos em tese - não em
torno de interesses de classes particulares, mas em torno da defesa das substâncias sociais
ameaçadas pelos mercados. no fascismo, portanto, um caráter agregador e uma intenção
de resgatar os antigos valores da sociedade. Diferente do liberalismo que representava um
elemento desagregador, o fascismo possibilitava a coesão nacional e a recuperação da
existência do homem, que não fosse só satisfazer sua felicidade individual no estabelecimento
do mercado auto-regulável. Somente o Estado-nação iria garantir a unidade redentora; seria a
garantia da política e do Estado sobre as práticas do liberalismo que exaltava a economia e o
mercado. Assim, o Estado-nação garantia a primazia da política sobre os interesses pessoais
egoístas, que levariam à luta de classes.
Na perspectiva de Liah Greenfeld
115
, em sua análise sobre o desenvolvimento da
consciência nacional alemã, diz que esta, apesar de suas raízes datarem do século XVI, se
consolida efetivamente no século XIX, sendo fruto da confluência de várias tradições
independentes, tanto importadas, como o Iluminismo e a Revolução Francesa, quanto por
fatores endógenos, principalmente o Pietismo produto da Reforma Protestante e o
Romantismo primitivo. Segundo a autora, os arquitetos da identidade nacional alemã não
vieram da aristocracia ou da elite dirigente, mas dos intelectuais profissionais, classe esta
marginalizada, pois se encontrava suspensa entre dois diferentes estratos sociais da sociedade,
que o reconheciam nada que ficasse entre a nobreza e a classe média em geral. Para esses
intelectuais, a educação era tida como foro da mobilidade social em direção ao topo. Isto
aumentou a auto-estima dos educados, mas freqüentemente, negavam-lhe a entrada nos altos
115
GREENFELD, Liah. “A Solução Final da Ambição Infinita”. In: Nacionalismo: cinco caminhos para a
modernidade. Lisboa. Publicações Europa América, 2003, pp. 271-387.
65
escalões e não deixavam esquecer-se de sua origem mais humilde. Desta forma, quando a
consciência nacional alemã emergiu, no início do século XIX, representou a culminação de
um longo e tortuoso processo de fermentação intelectual, freqüentemente esporeado pela
questão da inconsistência do estatuto social desta classe.
No último quartel do século XVIII, a classe média intelectual alemã achava sua
posição cada vez mais insuportável. Angustiados pela dolorosa discrepância entre a sua auto-
estima, que tinham adquirido pela sua educação, e a falta de respeito da sociedade,
almejavam, sobretudo, mudar esta situação. Assim, influenciados pelas idéias de nação e de
razão crença na razão humana como a razão dos seres humanos eleitos e superiores que
eram capazes de chegar à filosofia correta, a razão cultivada, a razão dos educados, a razão
como característica distintiva entre humanos”
116
- que pertenciam à bagagem do Iluminismo,
os intelectuais viram neste fenômeno o despertar de uma nova era, que lhes permitiria
dignidade e avanço na vida.
Porém, o Aufklärung não cumpriu essa promessa aos intelectuais, pois ele penetrou
somente em certas áreas da vida, mas não conseguiu afetar as esferas políticas e das relações
sociais. Dessa forma, a acusação dos românticos à sociedade iluminada era a generalização de
sua experiência pessoal nela. A promessa não cumprida do Iluminismo para com eles,
intelectuais sem sucesso, levou-os a pensar que a razão separava o homem da comunidade.
Para eles, imbuídos de um pensamento romântico, a comunidade ideal poria fim ao
isolamento e à exclusão, não deixando ninguém de fora, ao contrário, juntaria a todos no seu
abraço de ferro. Em outras palavras, a autora afirma que eles visionavam uma sociedade
totalitária.
A palavra Estado passou a ser usada como sinônimo de sociedade, vida social, vida
civil. O homem era visto como um ser social e viver dentro da sociedade era natural ao
116
Idem. p. 306.
66
homem, sendo a existência humana exterior à sociedade algo impossível. Logo, o homem não
podia ser imaginado fora do Estado. Assim, o ideal social dos românticos refletia a
insatisfação dos intelectuais pela sua situação social. Queriam escapar a uma condição que
lhes era dolorosa, buscando então a terra da comunidade perfeita.
Quanto a Revolução Francesa, outro fator externo, mas que de forma semelhante
contribuiu na construção da identidade nacional alemã, Greenfeld afirma que esta geração
romântica também se identificou com suas práticas, principalmente quanto ao sentimento de
ódio à nobreza. Além disso, esta revolução, ao pregar a igualdade, influência a idéia de que
na Alemanha, finalmente, o mérito intelectual subiria ao seu lugar, derrubando o privilégio
não merecido. Mas a insatisfação com a falsa promessa do Iluminismo que era ligado à
França – fez com que muitos se afastassem do movimento. Vários intelectuais alemães
mudaram de opinião acerca da Revolução Francesa e seus excessos revolucionários, ligados
ao avanço de Napoleão na Alemanha. Com o vitorioso avanço do exército francês, novas e
inesperadas oportunidades se abriram aos intelectuais, e com elas a era do nacionalismo.
Segundo a autora, foi a derrota da Prússia nas guerras revolucionárias da França que
finalmente introduziu no mundo o nacionalismo alemão. O nacionalismo proporcionava uma
solução prática aos intelectuais para seus problemas e punha um termo à sua alienação. Agora
havia um objetivo pelo qual lutar e uma possibilidade realística de mudar o status quo e de
uma pessoa se distinguir no mundo. Tudo isso sem deixar de lado à visão do mundo e os
padrões pietistas-românticos. O nacionalismo alemão é um nacionalismo romântico e a
primeira expressão desta mentalidade romântica e da nascente consciência nacional alemã foi
a guerra contra os franceses. Isso explica o fato do nacionalismo alemão ter se desenvolvido
de forma tão violenta e xenófoba, afirma Greenfeld.
Ainda contribuiu, como um toque final à construção da identidade nacional alemã, a
visão do Ocidente como o antimodelo, a encarnação do mal, de todos os valores do
67
Aufklärung que o romantismo rejeitava pelas suas próprias razões. A função do ressentimento
na Alemanha foi a de alimentar o nacionalismo definido pelas tradições culturais alemães,
renegando o Ocidente (França e Inglaterra, principalmente), essa civilização estranha e tudo o
que ela representava. Segundo a autora, o próprio anti-semitismo surgiu como uma válvula de
escape, que os alemães, em sua luta contra as “nações avançadas” do Ocidente,
relacionavam o judeu como o símbolo do próprio Ocidente. Mas esse ressentimento não
diminuía, pelo contrário aumentava, porque não podia ser exercido sobre seu verdadeiro
objetivo, do qual os judeus eram apenas substitutos. Dessa forma, isso passou a ser um
estimulante constante para o nacionalismo alemão, estimulando o pior que havia nele.
Portanto, no século e meio que se seguiu ao nascimento do nacionalismo alemão,
parece que a insistente profecia dos intelectuais românticos, por mais absurda que fosse na
sua arrogância, de que o mundo iria se sujeitar ao domínio da mente alemã, tornou-se
verdadeiro, assegura Greenfeld. Nada tinha afetado tanta gente tão profundamente como o
fizeram duas tradições alemães, que vinham da mesma linhagem, cuja mente era ainda a dos
pietistas e românticos, que ardiam no mesmo desejo e eram impelidos pelo ressentimento e
pelo ódio ao Ocidente; uma da esquerda e outra da direita: o marxismo e o nacional-
socialismo.
No entanto, mesmo depois de 74 anos desde a ascensão de Hitler ao poder, em 30 de
janeiro de 1933, muitas ainda são as lacunas a serem preenchidas, a começar pelo próprio fato
deste homem, que se tornou um líder todo poderoso, ter conseguido tantos adeptos e
colaboradores dispostos a segui-lo de forma fanática, apesar de uma política fundamentada
em uma ideologia irracional, radical e absolutamente repulsiva de ódio racial. Tomando
como base o estudo dos historiadores ingleses Eric Hobsbawm e Terence Ranger, podemos
analisar a política nazista a partir da idéia de tradição inventada”, entendida como “um
68
conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas”
117
.
Essas práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de
comportamento através da repetição, implicando automaticamente, numa continuidade em
relação ao passado. Aliás, sempre que possível tenta-se estabelecer continuidade com um
passado histórico apropriado. No caso da Alemanha de Hitler, a “invenção das tradições”
tinha como um de seus principais objetivos estabelecer a continuidade entre o Primeiro, o
Segundo e o Terceiro Império Alemão, sendo este último a própria realização das aspirações
nacionais seculares do seu povo.
Portanto, é exatamente por grande parte dos constituintes subjetivos da “nação”
moderna alemã consistir em tais construções - estando associada a símbolos adequados - que
o fenômeno nacional-socialista não pode ser investigado de forma adequada sem atribuir-se a
devida atenção à “invenção das tradições. Assim, através do emprego carregado de
simbolismo e referências míticas, o nazismo era capaz de reinventar a dialética entre o
sagrado e o profano, de modo que as paradas monumentais, entonação de cantos, o uso de
fogo e espetáculos pirotécnicos, representavam na ritualística as antigas procissões religiosas
e autos de fé, demonstrando toda a idéia de ordem, força e poder do regime. A principal
intenção dessa inovadora coreografia política era a sedução das massas, de modo a fazer o
indivíduo envolver-se no todo. O destino individual deveria dissipar-se então, num destino
coletivo.
Além dessas cerimônias e rituais inventados, os nazistas, com o intuito de disseminar
seu corpo ideológico e arregimentar as massas ao seu redor, fizeram o uso de uma arma
poderosa na luta política: a propaganda. Extrapolando os limites do uso desse recurso, que
passou a ser o centro de sua estratégia de persuasão das massas, o nazismo realizou uma
117
HOBSBAWM, Eric e RANGER, Terence (org.). A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
p. 09.
69
verdadeira “teatralização” da política, onde a via de acesso ao emocional era capaz de romper
todas as fronteiras da racionalidade.
O “Triunfo da Vontade”
118
, da cineasta alemã Leni Riefenstahl, não escapa dessa
realidade, e exatamente por isso é de grande importância para esse estudo, porque nos permite
entrar em contado com a sociedade da época e refletir sobre seus problemas e anseios.
Riefenstahl consegue dar conta de grande parte da ideologia nacionalista que o movimento
nazista queria propagar, bem como de sua sedutora magia, uma vez que é capaz de agregar
em seus filmes muitos dos apelos audiovisuais utilizados com esse objetivo: discursos,
desfiles, fogos de artifício, arquitetura, monumentos, músicas que fornecem o tom exato da
solenidade, podendo servir num momento como fundo para em seguida transformar-se num
hino de louvor.
Se uma das principais características da “tradição inventada” é estabelecer
continuidade com um passado histórico apropriado, assim como o esforço de manipulação das
lembranças e percepções, Leni Riefenstahl assim concebeu. Logo, muito mais do que somente
filmar ou registrar a festa do partido nazista, essas imagens pretendem falar aos corações e
mentes daqueles que o assistem, e especialmente, apresentar ao mundo um símbolo, ou
melhor, um novo símbolo do futuro da Alemanha: o Führer.
2.3. Nacional-Socialismo: A Perspectiva de uma Outra Modernidade.
A oposição entre os conceitos de civilização e barbárie é bem remota. Na Antigüidade,
a palavra “bárbaro” designava as nações não gregas, mas sobretudo, aquelas consideradas
atrasadas, primitivas e brutais. Atualmente, o termo “barbárie” apresenta dois significados
diferentes, porém interligados entre si: “crueldade de bárbaro” e “falta de civilização”.
118
“O Triunfo da Vontade” (1936), esta obra cinematográfica de Leni Riefenstahl não propôs uma nova
modalidade de filme de propaganda, como também alcançou um excelente nível de realização estética, sendo o
filme oficial que documentou o VI Congresso Nacional do Partido Nazista em Nuremberg, ocorrido em
setembro de 1934.
70
Todavia, a história do século XX nos força a desagregar tais noções e a refletir sobre o
conceito de “barbárie civilizada”, que à primeira vista pode parecer incoerente, mas que é
perfeitamente lógico - como pretendemos mostrar.
Norbert Elias em sua célebre obra “O Processo Civilizador”, destaca que um dos
aspectos mais terríveis da sociedade moderna é o fato da violência passar a ser centralizada e
monopolizada pelo Estado, e não mais desempenhada de maneira irracional e espontânea
pelos indivíduos, uma vez que as emoções foram cerceadas, os trilhos da sociedade
pacificados e a coerção física acumulada nas mãos do poder político. No entanto, ao buscar
compreender esse extraordinário potencial de violência concentrado pelo Estado sob a
inspiração de uma filosofia otimista de progresso, Elias parecia não perceber o reverso dessa
brilhante moeda. Ainda em 1939, este sociólogo alemão escreveria:
Comparada ao furor do combate abissínio (...) ou daquelas
tribos da época das grandes migrações, a agressividade das
nações mais belicosas do mundo civilizado parece
moderada (...); ela se manifesta em sua força brutal e
sem limites em sonho e em alguns fenômenos que nós
qualificamos de patológicos.
119
Contudo, foram necessários apenas alguns meses após essa inscrição para estourar na
Europa uma guerra entre nações “civilizadas” de proporções praticamente impossíveis de
serem comparadas com a escassa fúria dos combatentes etíopes, tamanha era sua força bruta e
ausência de limites. Podemos assim afirmar que o caráter alarmante do “processo civilizador”
e do monopólio da violência exercido pelo Estado revelou-se no seu mais terrível vigor. Neste
sentido, ao atribuirmos à palavra “bárbaro” a acepção de crueldade e atos desumanos,
reconhecemos que nenhum século na história manifestou ações de barbárie” tão amplas e
sistemáticas quanto o século XX
120
. O próprio Karl Marx, ao criticar os horrores da expansão
119
ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Uma história dos costumes (vol 1). Trad. Ruy Jungmann. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990. p. 190.
120
A história humana, seguramente, é cheia de exemplos de ações bárbaras exercidas tanto pelas tribos
“selvagens” quanto pelas nações “civilizadas”. Na história moderna, por exemplo, posteriormente à conquista da
71
colonial, associadas - segundo seu pensamento - às necessidades de acumulação do capital,
registraria, em 1847, a surpreendente e quase profética citação: “A barbárie reapareceu, mas
desta vez ela é engendrada no próprio seio da civilização e é parte integrante dela. É a
barbárie leprosa, a barbárie como lepra da civilização”.
121
Entretanto, no século XX, a
“barbárie” chega a uma condição superior, transgredindo todo e qualquer limite, revelando do
ponto de vista de sua estrutura, ideologia e ethos uma especificidade do mundo moderno,
tendo na Primeira Guerra Mundial a origem desse processo. Sob essa perspectiva, Rosa
Luxemburgo e Franz Kafka - cada um a seu modo - têm em comum o fato de terem soado, em
1914-1915, o sinal de alarme de algum fenômeno sem precedente na história, mas que estava
por irromper no decurso da guerra.
Durante a Primeira Grande Guerra, Rosa Luxemburgo liderou as posições contrárias
ao envolvimento da classe trabalhadora nesse conflito, esclarecendo seu caráter imperialista e,
portanto, negando qualquer participação operária nessa guerra do capital. Quando em 4 de
agosto de 1914 a bancada do Partido Social-Democrata votou a favor dos créditos de guerra,
Rosa Luxemburgo disparou uma bateria de ataques à direção do partido que culminou com a
publicação do texto "A Crise da Social-Democracia", também conhecido como "O Folheto
Junius", publicado em 1915, e no qual faz a seguinte afirmação sobre a guerra:
A demência não terá fim, o sangrento pesadelo do inferno
não vai parar até que os operários da Alemanha, da
França, da Rússia e da Inglaterra despertem de sua
embriaguez, se apertem fraternalmente as mãos e afoguem
o coro brutal dos agitadores belicistas e o grito das hienas
capitalistas no poderoso grito do trabalho - 'Proletários de
todo o mundo, uni-vos!’
122
América, há uma sucessão de atos dessa espécie: a dizimação dos povos indígenas, as guerras coloniais, o tráfico
negreiro. Trata-se, portanto, de uma barbárie civilizada”, uma vez que é empreendida pelos mais avançados
impérios coloniais.
121
Apud LÖWY, Michael. “Barbárie e Modernidade no Século XX”. Publicado no Brasil pelo jornal Em Tempo
e originalmente em francês, na revista Critique Communiste nº 157, hiver 2000, p. 01.
122
Apud LÖWY, Michael. op. cit. p. 02.
72
Assim, ao adotar a palavra de ordem “socialismo ou barbárie”, Rosa Luxemburgo
rompe com a percepção da história enquanto progresso inevitável - conseqüência das leis
“objetivas” da evolução social ou do desenvolvimento econômico - instaurando então uma
concepção da história como processo aberto, onde o “fator subjetivo” dos oprimidos - sua
organização, consciência e iniciativa - tornam-se determinantes. Desse modo, não caberia
mais aguardar que o fruto amadurecesse de acordo com as leis naturais” da economia e da
história, mas de agir antes que a “barbárie” se instalasse. Embora, num primeiro instante, ela
pareça considerar a “recaída na barbárie” como resultado da “decadência da civilização” -
num processo de declínio semelhante ao da Roma Antiga, produto de uma possível
“regressão” a um passado primitivo - logo se dá conta de que se trata de uma “barbárie”
moderna, conseqüência da Primeira Guerra Mundial, que inaugura uma era de desumanidade
assassina ainda mais grotesca do que as práticas guerreiras dos povos “bárbaros” no processo
de declínio do Império Romano. Nunca na história da humanidade tecnologias tão modernas
haviam sido utilizadas em prol de uma política imperialista de agressão e eliminação em
tamanha grandeza.
Franz Kafka, por sua vez, descreve a “barbárie” de maneira literária, em uma narrativa
intitulada “A Colônia Penal”. O livro trás uma análise crítica sobre o instituto da pena,
analisando os seus limites e a impropriedade das penalidades baseadas em castigos corporais,
bem como ilustra com clareza e precisão a “barbárie” em que constituíam as técnicas
medievais na aplicação desses castigos punitivos. Kafka, narra a história de um explorador
que, durante visita a uma colônia francesa, presencia o sistema empregado na execução de um
soldado acusado de insubordinação. O sistema que o condenou está baseado numa doutrina
jurídica arbitrária, em que o acusado não tem direito à defesa. Quem administra essa “justiça
maquinal” é um instrumento de tortura que escreve lentamente sobre a pele, no corpo do
condenado, com agulhas feitas de vidro, a sentença do crime que, muitas vezes, ele mesmo
73
não sabe que cometeu. O funcionamento da máquina se justifica, na voz dos seus utilizadores,
por ser uma máquina infalível, portanto seu julgamento nunca poderia ser contestado
123
.
Neste sentido, a obra apresenta uma crítica desvelada a todas as formas de tortura, assim
como aos estados despóticos nos quais o processo judicial e o direito de liberdade o eram
respeitados. Desse modo, poucos são os textos literários que revelam de forma tão envolvente
e extraordinária a lógica mortífera da “barbárie” moderna como mecanismo impessoal.
O próprio Walter Benjamin foi um dos poucos intelectuais marxistas a reconhecer a
capacidade destruidora e maléfica da modernidade. Ao compreender que o progresso técnico
e industrial poderia ser portador de grandes catástrofes, redigiu um artigo em 1929, em que
concebia a política revolucionária como a “organização do pessimismo”, pessimismo este
entendido como desconfiança quanto ao destino da liberdade, bem como em relação ao
destino do povo europeu. De maneira irônica, Benjamim ainda acrescentou que somente o IG
Farben e o aperfeiçoamento pacífico da Luftwaffe poderiam ser dignos de confiança ilimitada
124
.
Assim, ao analisar a “barbárie” dentro da perspectiva moderna, podemos ressaltar as
seguintes características segundo o estudo do sociólogo brasileiro Michael Löwy: extermínio
em massa por meio das avançadas tecnologias científicas; impessoalidade do massacre;
gestão administrativa, burocrática e “racional” - em termos instrumentais - das ações de
violência; ideologia legitimadora de tais atos, de caráter científico e biológico - e não
tradicionalista ou religioso -; associação de traços arcaicos e modernos, estabelecendo graus
distintos de modernidade” aos crimes contra a humanidade. Neste sentido, podemos então
destacar os quatro massacres que representam de maneira mais eficaz a modernidade da
123
Podemos atribuir a essa “máquina de poder” bárbara - aparelho da autoridade e sacrificador de vidas humanas
- criada segundo a narrativa de Kafka, um sentido metafórico, uma espécie de alusão à própria Primeira Guerra
Mundial. Assim, o fato desta obra ter sido escrita em outubro de 1914, três meses depois da eclosão desse
conflito, não seria mera coincidência.
124
Para maiores informações ver BENJAMIN, Walter. “O Surrealismo. O Último Instantâneo da Inteligência
Européia”. In: Obras escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura.
São Paulo: Brasiliense, 1985.
74
“barbárie”: o genocídio nazista, a bomba atômica em Hiroshima, o Goulag stalinista e a
Guerra no Vietnã
125
. Dentre esses quatro exemplos, os dois primeiros são possivelmente os
mais integralmente modernos, possuindo de certa forma todos os elementos da “barbárie”
tecno-burocrata moderna. Assim, voltaremos nossa atenção para esses casos em especial.
Com relação ao genocídio nazista, além de representar a modernidade pela sua
estrutura de morte cientificamente aparelhada, também apresenta-se como pico produto da
cultura racional burocrática ao eliminar da gestão administrativa toda influência moral,
simbolizando, portanto, um dos “possíveis resultados do processo civilizador como
racionalização e centralização da violência e como produção social da indiferença moral”.
126
a ideologia legitimadora do genocídio - principalmente no caso judeu - é igualmente do
tipo moderno, biológico e eugenista. Para esse fim atroz de eliminação houve, inclusive
obsessiva utilização de fórmulas pseudo-medicinais, como podemos observar no seguinte
trecho da carta redigida por Hitler a Himmler, em 1942: “A batalha na qual nós estamos
engajados hoje é do mesmo tipo que a batalha liderada, no século passado, por Paster e Koch.
Quantas doenças não tiveram sua origem no vírus judeu... Nós não encontraremos nossa
saúde sem eliminar os judeus”
127
. Assim, podemos afirmar que tanto a motivação
determinante do genocídio - a biologia racial - quanto suas formas de efetivação - as câmaras
de gás - eram manifestações patológicas da modernidade, de uma “barbárie” industrial e
racionalmente tecnológica, do ponto de vista instrumental. Ao mesmo tempo que ele instituiu
uma ruptura com os ideais iluministas - como o humanismo por exemplo - representou um
terrível arquétipo das potencialidades destrutivas e negativas da civilização industrial
ocidental.
125
Para a melhor compreensão das especificidades de tais massacres enquanto exemplos dabarbárie civilizada”
ver LÖWY, Michael. op. cit. p. 03-05.
126
Idem. p.04.
127
Idem.
75
Outro crime de guerra que tem grande semelhança com o genocídio nazista é a bomba
nuclear de Hiroshima, que “nos dois casos delega-se a tarefa a uma máquina de morte
formidavelmente moderna, tecnológica e racional”.
128
No entanto, diferente do caso alemão,
as autoridades americanas não tiveram como finalidade empreender o extermínio de toda uma
população. O objetivo da bomba não era aniquilar a população japonesa como fim autônomo,
mas, sobretudo, apressar o desfecho da guerra e demonstrar a superioridade bélica americana
frente à União Soviética. Hiroshima, todavia, em vários aspectos sinaliza um patamar superior
de modernidade, tanto pela inovação tecnológica e científica concebida pela bomba atômica,
quanto pelo modo ainda mais distante e impessoal da ação de extermínio, ou seja, o
pressionar de um botão.
Dessa forma, a conflitante natureza do “progresso” e da “civilização” moderna
representa o principal foco das reflexões da escola de Frankfurt, como podemos perceber na
constatação de Adorno e Horkheimer, na obra “Dialética do Iluminismo”, de que a tendência
da racionalidade instrumental era a de se transformar em loucura assassina. Assim, concluíam
que a luminosidade gelada da razão calculista trazia o germe da barbárie. Contudo, é
importante ressaltar que, apesar de tudo, o genocídio nazista e Hiroshima não devem ser
interpretados enquanto um “progresso regressivo” ou ainda uma regressão à barbárie”, à
medida que não existe nada no passado capaz de ser comparado ao desenvolvimento
científico-industrial e à produção anônima e racionalmente administrada da morte típicas do
século XX. Nesse sentido, o genocídio nazista e Hiroshima não o mais “regressões” e sim
crimes excepcionalmente modernos, uma vez que as crueldades de massa, tecnologicamente
aprimoradas e burocraticamente constituídas, competem exclusivamente à nossa arrojada
civilização industrial
129
.
128
Idem. p. 05.
129
Cabe destacar que para se compreender a “barbárie” moderna do século XX é necessário abandonar a
ideologia do progresso linear. Não estamos querendo dizer com isso que o progresso técnico e científico é
76
Sendo assim, em meio a esse período de grande instabilidade e subversão de valores e
de identidades consagradas, caracterizado por profundas transformações em todos os âmbitos
da sociedade - conseqüências do processo de revolução científico-tecnológica - nada e
ninguém tem resistido à efervescência e ao redemoinho que tornam reais a famosa frase do
Manifesto Comunista: tudo o que é sólido desmancha no ar”
130
. Mesmo nos dias de hoje,
temos assistido ao triunfo dos valores liberais, redefinidos em relação às acepções clássicas e
ajustado às novas circunstâncias, impondo-se muitas vezes como únicos e hegemônicos, e
nesse sentido, sem chance de propostas alternativas. Contudo, a despeito do grande poderio
do chamado neo-liberalismo, e de suas aspirações absolutistas, surgem nas mais variadas
partes - Europa, Ásia, África subsaariana, mundo muçulmano e Américas - o questionamento
a esse credo dominante, emergindo assim movimentos que pleiteiam por tais propostas
alternativas. Destarte, o que podemos observar tanto na presente época - na qual vigora o neo-
liberalismo como também o que denominam de globalização - quanto no século XIX e parte
do XX - momento de intenso questionamento ao liberalismo clássico - é o embate entre as
propostas da modernidade liberal e das modernidades alternativas. Aliás, é válido ressaltar
que a revolução científico-tecnológica, bem como o processo de globalização em curso,
constituem uma etapa a mais da modernidade - uma aceleração ainda mais intensa, porém
equivalente à revolução industrial do passado, se comparada às novas circunstâncias
históricas - em outras palavras, garantiram uma radicalização da modernidade.
Deste modo, faz-se necessário compreender o processo de modernização do mundo em
que vivemos, o que inaugurou uma nova era na história da humanidade. Logo, o conceito de
moderno nos parece eficaz para designar os processos de grandes transformações e contrastes
que caracterizaram a destruição de um mundo estamental, hierarquizado, corporativo,
essencialmente mensageiro de malefício, mas sim que a “barbárie” simboliza uma das possíveis manifestações
de nossa civilização industrial/capitalista moderna.
130
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. o Paulo:
Companhia das Letras, 1986.
77
comunitário, guiado pela religião e fundamentado nos antigos regimes. Em seu lugar, teria
surgido uma nova forma de sociedade, onde por sua vez, predominam o sucesso individual, os
mercados auto-regulados, a riqueza e propriedade privadas, a laicização e a conseqüente
dessacralização do âmbito político e cultural, todos elementos picos dos estados nacionais e
do mundo moderno. Assim, todo o conjunto de fatores que compõem a modernidade - as
transformações na economia, a desordem das estruturas sociais, a intensa urbanização, as
mutações nos padrões culturais e comportamentais, o surgimento e concretização de um
mercado mundial cada vez mais dinamizado por enormes empresas particulares, as influentes
revoluções políticas (desde o século XVI até fins do XVIII tendo resultados distintos, porém
categóricos), o desenvolvimento dos transportes e comunicações, cujos vertiginosos
progressos vão estreitando o mundo a transformá-lo numa espécie de “aldeia global” -
fomentaram crises permanentes de identidade, desestruturação e reestruturação, como se a
humanidade, fazendo referência à conhecida metáfora, tivesse libertado um gênio e não mais
conseguisse dominá-lo.
Neste sentido, acompanhando a glória e a disseminação dos valores liberais surgiria a
crítica e a condenação dos mesmos, uma vez que era imenso o contraste entre as promessas e
os resultados e, sobretudo, entre as esperanças e as realidades que se instituíam. Assim, o
programa liberal com seus anseios universalistas acabava aprofundando as disparidades
sociais e políticas, substituindo, conforme apontaram os críticos do período, a nobreza de
sangue pela aristocracia do dinheiro. Tudo isso, serviu como fomento para o surgimento de
propostas alternativas, que não devem ser “consideradas arcaizantes, embora muitos
tentassem assim configurá-las, para melhor combatê-las. Ao contrário: olhavam para o futuro,
mas com outras concepções a respeito da modernização”
131
. Antes mesmo da Primeira
131
REIS, Daniel Aarão. “Os Intelectuais Russos e a Formulação de Modernidades Alternativas: Um Caso
Paradigmático”. In: Seminário Internacional REG GEN: Alternativas Globalização (8 a 13 de outubro de 2005,
Hotel Glória, Rio de Janeiro, Brasil). Rio de Janeiro, Brasil: UNESCO, Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura, 2005, p. 05.
78
Guerra Mundial, forjava-se, no campo de ão de certos estados nacionais, um processo
histórico de desenvolvimento capitalista com arquétipo diferente da ortodoxia liberal. Nesse
paradigma de união entre os movimentos de trabalhadores e o Estado, desejando a elaboração
de mecanismos estatais de regulação do mercado e de redes de proteção social, encontramos
na Alemanha um caso clássico. No Terceiro Reich, o Nacional-socialismo, na contra-corrente
das propostas liberais, apresentar-se-ia com a perspectiva de uma outra modernidade - ou seja,
uma modernidade alternativa aos padrões do liberalismo - exprimindo, portanto, novas
tendências e possibilidades.
Capítulo III
Em Busca de uma Nova Síntese: O Nacional-Socialismo como uma Obra de Arte
Performática.
Em 1967, no livro “A Sociedade do Espetáculo”, Guy Debord
132
havia constatado que
o “espetáculo moderno” já havia se constituído essencialmente em reino autocrático da
economia mercantil que acendera ao status de soberania irresponsável, transformando-se em
um conjunto de novas técnicas de poder, cujo processo veio se desenvolvendo desde o fim da
Primeira Grande Guerra, ou seja, desde uns quarenta anos antes da publicação do livro.
Assim, quando o jornal Le Monde, de 19 de setembro de 1987 reconheceu como “ponto
pacífico que a sociedade contemporânea era uma sociedade de espetáculo”, isso não era
mais nenhuma novidade, apesar das severas críticas sofridas por Debord, acusado de ter
inventado o assunto em si, de fio a pavio, e de ter exagerado muito ao avaliar a profundidade
e a unidade desse espetáculo, bem como sua ação real.
De acordo com este autor, instalou-se uma total acumulação de espetáculos” nas
sociedades regidas pelas modernas condições de produção, de modo a converter a realidade
vivida num pseudomundo integrado ao mercado, fazendo com que tudo que se vivia
diretamente se tornasse uma representação. No entanto, mais do que simples conjunto de
representações e imagens, ele entende o espetáculo como uma relação social, mediada por
imagens, convertendo-se, todavia numa objetivada e operacional visão de mundo. Dessa
forma, “as forças históricas que provocaram esta formação econômico-social abrigam-se na
degradação do ser para o ter, pela exarcebação do valor de troca pelo de uso, chegando às
132
DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. São Paulo: Contraponto, 1992. Publicado em 1967, este livro foi
traduzido para o português apenas em 1992. Ainda sobre o mesmo tema, o autor publicou, em 1979, um texto
denominado Commentaires sur la société de spectacle. Ambos os textos foram incorporados à edição brasileira,
tornando mais prático o entendimento dos escritos originais. Afamado pelo livro, Debord também realizou
filmes sobre o assunto, além de ter se destacado como líder estudantil na revolta de 1968. Em 1994, suicidou-se,
aos 62 anos.
80
sociedades industrializadas no momento em que o ter cedeu vez ao parecer
133
. Partindo
dessa visão, o historiador Orlando de Barros afirma que tendo a cultura moderna se
convertido numa civilização predominantemente mimética, podemos esperar que não apenas a
cultura material se organize pelo princípio de performance
134
basicamente, como também
performática deve ser a orientação de grande parte das ações sociais, mesmo as relacionadas à
ordem do poder. Deste modo, segundo o autor, a performance então passou a ser conceito-
chave para se entender o mundo moderno.
Assim, seja de qual tipo for, a performance segundo sua significação original na língua
inglesa (perform), subentende “a execução de uma ação que se espera seja realizada em
atendimento a dada prescrição, em conformidade com determinado índice reconhecível de
marcas balizadoras”. O interessante a guardar dessa origem é a idéia de ação, movimento para
frente, progresso, avanço ou processo vinculada com a noção de complementação, resultado;
algo que “conota a aplicação de um excedente de energias, uma espécie de superabundância
vital, que alguns teóricos da cultura têm posto em relação com a arte e o jogo”
135
.
Portanto, se a performance converteu-se em chave para o entendimento do mundo
moderno, de forma semelhante e como recurso metodológico ao considerarmos e
analisarmos o filme O Triunfo da Vontade” como uma obra de arte performática, este
133
BARROS, Orlando de. “A Performance: em busca de uma metodologia”. In CD-rom Anais do Congresso
Pré-Fieale, América Latina e o Processo de Modernização, UERJ, 2005, ISBN: 85-98875-03-1, p. 01.
134
Procurando desvendar o pleno sentido de performance Orlando de Barros lança mão de três glossários de
língua inglesa, que acredita advir daí o vocábulo - o dicionário etimológico de John Ayto, o Webster e a
Enciclopédia da Barnes & Noble - revelando assim sentidos e metonímias variados do termo. Incorporada da
língua inglesa performance hoje é uma palavra muito corrente em nosso idioma, apesar de o se tratar de um
conceito de cil entendimento, apresentando idéia de difícil conceptualização, por seu caráter escorregadio, que
se move nos interstícios de diversas áreas. Contudo, tal expressão foi se definindo mediante certas práticas e
ocupando terrenos inesperados, como por exemplo, da lexicologia, lingüística, semiologia, teatro, artes em geral
(em especial as plásticas), etc.
135
BARROS, Orlando de. op. cit. p. 03. Sobre a existência de algumas características comuns entre arte e jogo
Siches afirma: “Neste sentido, se tem assinalado que jogo e arte representariam atos que levam implícito, em si
mesmos, seu objeto. O verdadeiro jogador jogaria por jogar, não para ganhar; e o autêntico artista criaria por
prazer de criar, e não para cumprir fins extrínsecos”. In: SICHES, Luis Recasens. Sociologia. México: Porrua,
1980, p. 641-643. Já o teórico da cultura e da história Huizinga observou que a cultura tem origem no jogo e se
desenrola no jogo, sendo este mais antigo e geral que a cultura, uma vez que ele não é privativo dos seres
humanos. In: HUIZINGA J. Home Ludens: El Hombre y la Cultura. México: Fondo de Cultura Económica,
1943.
81
também se transforma em instrumento para a compreensão da sociedade e contexto histórico
em que foi realizado a Alemanha nazista, altamente representativa e performática no que se
propôs. Refletindo sobre o que disse Debord, que no pós-guerra instalou-se uma “acumulação
de espetáculos”, de modo que o espetacular encontra-se imbricado na sociedade moderna,
pareceria então uma tarefa complicada separar o que é do que não é espetáculo. No entanto, é
possível ater-se a situações - recortes temáticos e/ou cronológicos - em que a idéia de
performance esteja bem distinta. Segundo Orlando de Barros, “o que se referir a uma
promessa de desempenho (qualquer projeto social que tenha uma história e percurso está no
caso); qualquer fato que se prenda a executar a vontade de uma coletividade (a performance
se realiza com interlocutores e para um público); a consecução de toda promessa heróica e
espetacular”
136
e inclusive a própria política podem ser estudados como um recorte de
performance.
Sendo assim, tomamos a obra referida como uma expressão artística performática, e
como tal reserva em si elementos que oferecem um panorama rico para a compreensão de um
momento, “já que em cada situação histórica concreta, indivíduos e grupos projetam anseios,
marcam posições e constroem imagens de si e de seus ‘outros’ e da sociedade envolvente
através de formas pelas quais se apresentam e atuam publicamente, dentro de estruturas mais
ou menos ritualizadas”
137
. Dessa forma, o uso de linguagens corporais, expressões faciais,
técnicas retóricas, regras de procedimento coletivo, manipulação de emoções, decoração
visual do corpo e do espaço citando apenas alguns elementos performáticos em meio a
manifestações públicas contribuem para a construção de identidades coletivas.
No entanto, a maior dificuldade para se fazer uma história da performance está em
como readquirir a força do momento único que caracteriza a relação ao vivo, uma vez que o
poder sensual da relação com o fato se perdeu para sempre, transformou-se em matéria morta,
136
BARROS, Orlando de. op. cit. p. 04.
137
LOPES, Antonio Herculano. Performance e História. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura/Fundação Casa
de Rui Barbosa, 1994, p. 04.
82
misturada na “pilha de escombros” que constitui o passado, utilizando uma imagem alusiva a
Walter Benjamim
138
. Mas, são justamente esses escombros, traços de batalhas passadas, que
constituem a matéria-prima de toda pesquisa histórica. Assim, ao se fazer a história de uma
performance, não se pode fugir de uma investigação sobre as provas do crime, os traços, os
elementos mortos que são testemunhas de uma vida passada. Contudo, aplicar a idéia de
performance ao estudo de História, significa trazer novamente à vida o momento do crime,
detonar a força bruta do momento vivido que jazia sepultada sob aqueles escombros.
Benjamin, ao distinguir entre as funções do comentador e do crítico em Literatura, ilustra bem
o que se quer dizer:
Se, para usar uma comparação, visualizarmos o que ocorre
numa pira funerária, seu comentador pode ser equiparado
ao químico e seu crítico ao alquimista. Enquanto o primeiro
deve contar apenas com madeiras e cinzas como objetos de
sua análise, o último só se preocupa com o enigma da
chama em si: o enigma de estar vivo. Assim o crítico indaga
sobre a verdade cuja chama viva prossegue queimando as
achas pesadas do passado e as cinzas leves da vida que se
foi.
139
Cabe ao historiador da performance agir como o químico, buscando investigar os
elementos que lhe foram legados a fim de reconstituir o momento passado. Mas, se quiser
recuperar a essência desse momento em favor do presente a performance na história - deve
então agir como o alquimista, com seu poder de transformar. Assim, com esse espírito de
químico e de alquimista buscar-se-a analisar os mais variados elementos constitutivos do
filme para neles descobrir flashes retidos na memória coletiva que possibilitariam reter o
curso dos eventos, suspender aquele momento para fora da história e projetar luz sobre a
“pilha de escombros”, recuperando então, o sentido do presente.
Nesse sentido, o flash deve ser entendido como imagem retida do passado, o que
138
BENJAMIN, Walter, llluminations: Essays and Reflections. Nova York: Schocken, 1969.
139
Idem, p. 05
83
revela a admiração de Benjamin pela fotografia e pelo cinema, como tecnologias capazes de
oferecer acesso ao que ele denominou deinconsciente ótico”. Assim, “amara nos
introduz ao inconsciente ótico como a psicanálise aos impulsos inconscientes”
140
, como se
nos possibilitasse recuperar uma sensação que ficou registrada na memória, misturada à
“pilha de destroços”. Desse modo, uma vez que permite trazer de volta à vida uma
experiência direta, podemos considerar essa percepção sensorial como performática. O
cinema, por exemplo, apesar de não constituir em si uma relação ao vivo, cria uma sensação
de vivência, uma experiência performática. Tomado pelos seus sentidos, o espectador de um
filme, pode então penetrar na própria história e vivenciá-la por dentro.
As idéias de Walter Benjamin, cheias de mistério e imagens inquietantes, nos
oferecem mais uma provocação intelectual do que todo para a pesquisa histórica. Contudo
nos ajudam a refletir sobre os meios de se realizar uma história da performance, fazendo uso
da performance na História. Portanto, em busca de uma análise do filme “O Triunfo da
Vontade” enquanto uma expressão artística performática, tomaremos como auxílio as
sugestões metodológicas propostas por Orlando de Barros em seus já citados textos “A
performance: em busca de uma metodologia” e “A propósito de um texto, a propósito de um
texto, a propósito de outro texto ...”
141
Segundo o autor, de certo modo, uma situação performática é sempre uma narração; é
um texto por assim dizer. E, como tal, deve ser recortado em suas partes, decomposto por
técnicas de análise de texto e de discurso tomados de empréstimo à lingüística e à semiologia.
Seja qual for a direção tomada pelo historiador, a prioridade é a obtenção de um extrato de
significação de acontecimentos vividos ou aludidos no texto, assim como dos elementos
constitutivos do modo de produção textual. O texto, portanto, exige do historiador tanto o
conhecimento de seu modo de produção ou seja, as circunstâncias históricas (forças sociais
140
Idem. p.237.
141
Orlando de Barros, A propósito de um texto, a propósito de um texto, a propósito de um outro texto... , UERJ,
mestrado /doutorado de História, original de 1996, revisto em 2005.
84
e culturais) que levaram à sua existência, quanto do quadro de uma “história paralela”, bem
como da capacidade de exercer variadas articulações intertextuais.
Tomando como primeiro passo a visão do conjunto do filme (entendido como
“texto”), pode-se dizer que seu tema de superfície trata-se da “cobertura”, “registro”, e
sobretudo da “apresentação” ao mundo do VI Congresso do Partido Nazista, realizado na
cidade de Nuremberg entre os dias 05 e 10 de setembro de 1934. Porém, como temas mais
profundos, apresentam-se em oposição: estético versus inestético; humilhação versus
superação; derrota versus triunfo; insegurança versus proteção; modernidade versus
conservadorismo; entre outros. Logo, podemos entender como hipótese geral sobre o tema
profundo, que o filme trata das questões estruturais da sociedade em que foi produzido, da
proposta de ordem política e social da Alemanha sob o nazismo, bem como de sua ideologia
conservadora. Assim, mais do que uma propaganda política, ou um documentário, o filme
pode ser entendido como um libelo político e como tal, até mais eficaz do que o próprio
Mein Kampf, pois o cuidado em demonstrar toda a magia e a comunhão mística entre o
Führer e as massas, não é feito por meio das palavras, mas pelo impacto da imagem, que
internaliza os fatos - que busca apresentar a trilha correta para a reconstrução da identidade
nacional alemã e o encontro de seu futuro. Instaura a imagem de um novo tempo (avesso às
humilhações passadas e às depravações modernas, consideradas maléficas), justapondo um
passado ideal no futuro aproximado. De modo que isso poderia ocorrer se o povo alemão
acompanhasse sua estrela guia, Hitler.
142
Partindo dessa hipótese, podemos observar, ao longo do filme, os vários “seres” que o
povoam, bem como os demais elementos analíticos que nos auxiliam na apreciação da obra.
Nela, todos os esquemas do que é considerado extraordinário, espetacular (como o
movimento da câmera, as tomadas em ângulos insólitos, os planos construídos de modo a
142
Sob esta perspectiva esta questão se encaixa dentro da lógica do “Mito da Idade do Ouro” que foi discutido no
primeiro capítulo deste trabalho.
85
darem à imagem na tela a dimensão de epopéia), harmônico (as bandeiras e militares
uniformizados, as marchas ritmadas, o écran pulsando pela dança de estandartes, os detalhes
rigorosamente ajustados e encaixados no quadro, etc) e demonstrativo de felicidade (a
multidão vibrante nos estádios, canções alegres, exercícios em grupo) são intensamente
explorados pela cineasta. Esta tendência, ainda hoje bem-sucedida, é a de transformar todos
os conteúdos numa forma agradável de ser vista, enfatizando os aspectos emocionais, mas
principalmente contribuindo para a propagação da ideologia nazista e buscando resgatar uma
verdadeira identidade nacional, seus valores e tradições, que deveriam ser arregimentados em
torno de um líder carismático, o Führer em pessoa.
Sob esse aspecto, o corpo, elemento central nas manipulações performáticas – segundo
a especialista em arte Roselle Goldberg
143
também deve ser objeto de demorada análise.
Podemos perceber nos desfiles militares diante do Führer, em “O Triunfo da Vontade”, com
sua disciplina e coreografia meticulosas, a idéia de ordem, obediência e determinação, como
também unidade de propósitos e aspirações coletivas, que são elementos essenciais na
ideologia do partido nazista. Além disso, a imagem desses desfiles como também dos
corpos dos atletas filmados em “Olympia”
144
iriam celebrar o renascimento do corpo e da
comunidade em grandes ocasiões de festa (como é o caso do VI Congresso do NSDAP e os
Jogos Olímpicos de 1936, em Berlim), ou melhor, em situações extracotidianas, e, deste modo
distante da média de realismo que tanto afligia a artista
145
. Por conseguinte a celebração da
143
GOLDBERG, Roselle. La performance, du futurisme a nos jours. Paris: Thames & Hudson, 2001.
144
Com relação à exaltação dos alemães, essa “civilização musculosa e sadia”, foi rodado o filme “Olympia”,
que estreou no dia 20 de abril de 1938, 49º aniversário de Hitler. Este documentário, realizado em duas partes – a
Festa dos Povos e a Festa da Beleza consagrava os jogos olímpicos de 1936 na Alemanha, ou o delírio de
Hitler pela supremacia dos jovens arianos que desfilavam em Berlim. Nas palavras de Lenharo, o filme “é um
hino de exaltação à Alemanha nazista, através da glorificação da força física, da saúde e da pureza racial,
miticamente fotografadas.” Para sua realização, foram necessários 800 mil metros de filme, a fim de mostrar
através do sacrifício individual de cada atleta, como essa energia e essa força forjavam a nação, guiada pelo
próprio Führer. Em “Olympia”, o grande vencedor era evidentemente o regime nazista. Para chegar a isso, Leni
Riefenstahl usaria as mesmas técnicas que quatro anos antes a haviam consagrado pela realização de “O Triunfo
da Vontade”. Ver: LENHARO, Alcir. op. cit. p. 60.
145
SONTAG, Susan. “Fascinante Fascismo”. In _______. Sob o Signo de Saturno. Trad. Albino Poli Jr. Porto
Alegre: L&PM Editores, 1986, p.59-83.
86
vida, em suma, do belo, encontraria no corpo (e por meio do corpo) a maneira de separar a
simples regularidade da manifestação da harmonia.
É lido ressaltar, contudo que a negação da vida regular e ordinária foi possível pela
estetização do próprio cotidiano, com base em artifícios que buscaram a relação entre a
harmonia e a beleza nas formas épicas, espetaculares, majestosas, e que, ao mesmo tempo,
deveriam ser consideradas exemplos de perfeição formal bem como do saudável. Nesse
sentido, longe do comum, do diário, da falta de clareza e do doentio. Essa relação, portanto,
pode ser explicada a partir da associação do nazismo - enquanto movimento conservador - a
mitos, símbolos e lembranças de um passado glorioso, assegurado pelos sentimentos
comunitários e pela idéia de um espaço vital regado pelo sangue - a consangüinidade. Desse
modo, “O Triunfo da Vontade” pode ser analisado como exemplo coerente de um sentimento
anti-moderno, expresso num desejo de retorno ao corpo, baluarte da natureza frente às mentes
industriais, intelectualistas e tecnológicas do início do século XX. Assim, através das imagens
dos militantes uniformizados, a estética de Riefenstahl estaria fundamentada numa concepção
de corpo como síntese de saúde, de harmonia e, sobretudo de fuga do cotidiano. Podemos
inclusive perceber que o nazismo” da cineasta não estaria demarcado apenas pelos detalhes
das bandeiras e uniformes, mas no “culto” ao corpo, visando a volta à natureza, por isso,
nunca deixou de flertar com o anseio de retorno, conservador antes de tudo, presente no
ideário nacional-socialista.
Ainda com relação ao corpo, Orlando de Barros afirma que “o domínio do corpo no
espaço, a exploração de suas potencialidades sedutoras e de domínio tem sido elementos
políticos usados para provocar a adesão catalisadora das vontades, [motivo pelo qual] Hitler
procurava os espaços elevados (alusivos ao celeste) para proferir seus discursos”
146
. A
propósito, nas seqüências iniciais do filme aparece a imagem de um avião sobrevoando
146
BARROS, Orlando de. op. cit. p. 15.
87
Nuremberg (antípoda de uma cidade moderna como Berlim, portanto guardiã das tradições),
como se viesse de algum lugar celestial para dar o sinal de que a profecia em breve estava
para se cumprir: o encontro do enviado de Deus com os seus, logo se daria.
Vale também ressaltar que, segundo Debord, uma das principais características do
poder do espetáculo é a falsificação da memória e da história, assim como o esforço contínuo
de manipulação das lembranças e percepções. Dessa forma, Leni Riefenstahl acrescentou ao
VI Congresso do NSDAP uma história de retorno a um momento mítico e perfeito,
sobrepondo-o ao passado recente, histórico e marcado por desgraças, como a derrota em
1918, a humilhação de Versalhes, a crise econômica e social. Assim, transformou uma
reunião política numa festa de comunhão mística entre as massas, em que o rosto do Führer é
apresentado como síntese da multidão alemã. É possível ainda dizer que o colossal esforço
para a consecução da obra de Leni Riefenstahl representou o coroamento do sonho alemão,
pois em grande medida a militarização daquele país reforçou a crença de que as ruas da
cidade estavam finalmente livres da violência, da insegurança e da penúria da década de 1920.
Podemos afirmar, então, que as imagens do filme “O Triunfo da Vontade” vão muito
além da pretensão original de mostrar ao mundo apenas o VI Congresso do Partido Nazista,
ocorrido em setembro de 1934, visto que Riefenstahl não fizera simplesmente um filme sobre
o congresso. Se realmente este fosse o objetivo, não teriam sido esquecidas de forma tão clara
as reuniões da juventude feminina, bem como não teria se dado a exclusão da Wehrmacht
(exército) do filme.
147
Por outro lado, esta linha de raciocínio também é válida para as SS e as
SA, pois se a festividade tinha como intuito celebrar os “agitadores”de primeira hora, foi para
os jovens SS que foram reservadas as melhores seqüências. Cabe lembrar, portanto, que “O
147
Em suas memórias, Leni Riefenstahl narra uma ocasião em que se indispôs com o general Reichenau,
exatamente em virtude da exclusão do exército do filme. Segundo a cineasta, o tempo não teria ajudado,
prejudicando as tomadas e, consequentemente, as imagens dos exercícios militares. Daí a necessidade de
regressar a Nuremberg para cumprir a promessa de rodar ali um curta sobre as atividades da Wehrmacht no
congresso do partido do Reich, em 1935. Assim se originou um filme de duração de vinte e cinco minutos
aproximadamente que recebeu o tulo de “Dia de Liberdade”. Ver: RIEFENSTAHL, Leni. Memorias. Madri:
Evergreen, 2000, p. 172.
88
Triunfo da Vontade” foi concebido para e sobre Hitler. No entanto, como se pode relacionar
as noções de triunfo e vontade, assim como a de domínio, se o Führer não é mostrado
dirigindo um carro, montando um cavalo e nem mesmo mantém sua habitual sisudez? Se
prestarmos atenção, ele pode não aparecer desta forma, porém seu papel era ser apresentado e
atuar como aquele que domina, dirige e controla a massa. Logo, não fazia falta a Hitler estar
sobre um cavalo ou na direção de um automóvel, uma vez que a disciplina, a camaradagem e
o espírito de grupo, forjados na dor e na privação, realizavam o processo de adestramento da
“massa organizada”
148
, preparando-a para ser cavalgada e dirigida pelo seu líder. O trabalho e
a educação, por conseguinte, deveriam proporcionar o aparecimento de um ideal comum de
futuro por meio do sofrimento. Isso porque neste novo tempo – no futuro os homens
deverão ser duros, cunhando uma nova Alemanha que não pode ser fraca, uma vez que
endurecer significa aceitar privações sem nunca esmorecer. Assim, sob tal lema é que se
pretendia erguer o país e o futuro: uma educação pelo endurecimento
149
.
3.1. Por trás das bandeiras.
Leni Riefenstahl - ao aglutinar milhares de homens através da lente de uma câmera -
apresenta em sua película imagens que como o próprio nome indica deveriam manifestar o
triunfo da vontade, a vitória da aspiração aspiração esta de ser unidade, nação; de ser
coletivo, massa
150
. A massa, foco para o qual dirigimos nossa contemplação, está presente na
148
O termo “massas organizadas” é utilizado no sentido de reunião de um grande número de pessoas em
movimentos marciais e ritmados, distinguindo-a da multidão, que denota a idéia de desorganização, algo fora do
ritmo disciplinado e militar.
149
Coube a Theodor Adorno perceber no “endurecimento” um das grandes características daquela que poderia
ser denominada de “educação para Auschwitz”, que tinha como finalidade traçar ... a disposição de aderir ao
poder e, externamente, submeter-se como norma àquilo que é mais forte, à mentalidade dos algozes (...)”. Ver:
ADORNO, Theodor. “Educação após Auschwitz”. In. COHN, Gabriel (org.). Theodor W. Adorno. Trad. Flávio
R. Kothe, Aldo Onesti e Amélia Cohn. São Paulo: Ática, 1986, v. 54, p. 33-45.
150
Tomamos a definição de massa sugerida por Hannah Arendt, que refere-se à aglomeração de pessoas reunidas
a um mesmo fim e percebidas visualmente como um conjunto organizado, coeso, homogêneo. ARENDT,
Hannah. As Origens do Totalitarismo. o Paulo: Cia das Letras, 1991, p.361. Em outras palavras, ela apresenta
o nazismo – visto sob o prisma de um regime totalitário - como uma “organização maciça de indivíduos
atomizados e isolados. Distinguem-se dos outros partidos e movimentos pela exigência de lealdade total,
89
obra em quase sua totalidade. Entretanto, cabe distinguirmos aqui as cenas da multidão
desorganizada que acompanha o Führer pelas ruas de Nuremberg, das imagens das massas de
soldados em desfile ou em formação. Assim, para analisarmos o filme e apresentarmos quem
poderia ser chamada de a protagonista”, com a qual Hitler dialoga - a massa organizada” a
saber - partilharemos das idéias do húngaro Elias Canetti, de maneira a torná-las efetivas para
a discussão em curso. De acordo com o autor, a massa natural é a massa aberta, ou seja, os
ajuntamentos de indivíduos que surgem de um acanhado agrupamento e que, de modo
repentino, estão formadas, compostas por toda e qualquer espécie que tenha a forma humana:
Ela não reconhece casas, portas ou fechaduras; aqueles que
se fecham a ela são-lhe suspeitos. A palavra aberta deve ser
entendida aqui em todos os seus sentidos: tal massa o é em
toda a parte e em todas as direções. A massa aberta existe
tão-somente enquanto cresce. Sua desintegração principia
assim que ela pára de crescer.
151
Segundo Canetti, esta seria a massa original, pois é assim que ela se constitui,
tomando, posteriormente, determinadas características pela necessidade de preservação, ou
seja, de durabilidade. Se é certa a desintegração, terminando o ajuntamento do mesmo modo
como começou, rapidamente, a necessidade de mantê-lo exigirá a criação de limites que
evitem a evasão. É o que acontece nas massas fechadas, que abdicam da quantidade numérica
pela durabilidade determinada. Sobre o conceito de massa fechada o autor, então, discorre:
A massa fechada se fixa. Ela cria um lugar para si na
medida em que se limita; o espaço que vai preencher foi-lhe
destinado. Tal espaço é comparável a um vaso no qual se
derrama um líquido: sabe-se de antemão a quantidade de
líquido que ele comporta. Os acessos a esse espaço são em
número limitado; não se pode adentrá-lo em um ponto
qualquer. A fronteira é respeitada, seja ela de pedra ou de
alvenaria. Talvez um ato particular de admissão seja
necessário; talvez tenha-se de pagar uma certa quantia pelo
ingresso. Uma vez preenchido o espaço, apresentando-se ele
denso o suficiente, ninguém mais pode entrar, e ainda que
transborde de gente, o principal segue sendo a massa densa
irrestrita, incondicional e inalterável de cada membro individual”. In: ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito: o
pensar, o querer, o julgar. Rio de Janeiro: Relumi Dumará, 1993, p. 373.
151
CANETTI, Elias. Massa e Poder. Trad. Sergio Tellaroli. São Paulo: Cia das Letras, 1995, p. 15.
90
no interior do espaço fechado, massa esta à qual não
pertencem de fato os que ficaram do lado de fora.
152
Destarte, podemos observar na obra fílmica de Riefenstahl, fortes exemplos de
manifestação imagética da massa fechada: o próprio exército, com suas paradas militares de
rua, mostra-se como receptáculo de massa amorfa, o que também pode ser visto nos estádios,
locais onde o Führer estará discursando. Se a massa aberta apresenta-se como um
ajuntamento, que independe do tempo e do espaço, a fechada, ao privilegiar a durabilidade,
administra-os muito bem, instaurando um cronograma, um calendário de reuniões e algo
característico apenas dela, a repetição. Assim, não devemos considerar a massa fechada como
uma mera aglomeração de pessoas, que tomam para si em determinados tempos, espaços pré-
construídos para jogos e festas. Ao contrário, ao organizar o tempo e o espaço dos
agrupamentos, ela fornece a quem participa a sensação de que não está sozinho, mas de que
faz parte do todo e que não há impertinência alguma em sua vida – a não ser que não possua o
“passaporte” adequado para estar ali. Essa unidade em relação ao todo, portanto, é o que mais
aproxima a idéia de nação e de massa, sendo o melhor caminho para compreender o motivo
pelo qual as pessoas podem lutar e morrer por alguma coisa, como se todos constituíssem um
só grupo, religião ou nação.
De acordo com o autor, pouco importa a língua, a geografia ou a história para a
construção do sentimento nacional, ainda que cada um desses elementos, cedo ou tarde, sejam
invocados em comícios ou em grandes convocações, como para a guerra, por exemplo. O que
importa, então, é exatamente a sensação religiosa de unidade, de modo que esta se torna mais
ampla quando o indivíduo sente-se ligado, ou melhor, representado por um símbolo de
massa” a chuva, o fogo, o mar, a floresta, etc -, cujas características simbólicas mesclam-se
com as “... idéias e sentimentos que as nações possuem em relação a si próprias”. Ainda com
relação a este pensamento, Canetti afirma:
152
Idem.
91
Contudo, eles jamais figuram cruamente, jamais aparecem
sozinhos: o membro de uma nação vê-se sempre, travestido
à sua maneira, em contato permanente com um determinado
símbolo de massa que se tenha feito o mais importante para
sua nação. No retorno regular deste, em seu aparecimento
quando o momento exige, reside a continuidade do
sentimento nacional. É juntamente com ele, e somente com
ele, que a autoconsciência de uma nação se modifica. Esse
símbolo é mais mutável do que se pensa, podendo-se extrair
daí alguma esperança de que a humanidade siga existindo.
153
No estudo da construção do sentimento nacional alemão, destacaremos, portanto dois
símbolos de massa: as bandeiras e a floresta. Esses mbolos, ou emblemas nacionais, são
tomados como personagens principais do filme, vistos em atuação, pressupondo assim, o
objeto como expressão dos sujeitos, de suas necessidades e comportamentos, bem como sua
interação com os outros elementos que constituem a narrativa fílmica – o que, de acordo com
Renata Pallottini, corrobora em seu desempenho como personagem cinematográfico.
154
Partiremos então pelo caminho delineado por estas que se apresentam como uma das
protagonistas do Triunfo da Vontade”, e que, como designou Canetti, são uns dos símbolos
que melhor abrangem o significado da nação, assim como os hinos. Deste modo,
acompanharemos as bandeiras, um dos grandes emblemas do nacionalismo e, de certa forma,
desse ardor da massa pelo pertencimento
155
. A própria cineasta havia alertado sobre a
importância das bandeiras em sua obra, ao destacá-las como centro das atenções, não apenas
por sua quantidade, mas, especialmente, por representarem as personagens soberanas da
seqüência que ela mesma escolheu como clímax de seu filme.
156
No início da película, cuja mera acompanha a chegada de Hitler à cidade de
153
Idem. p.169.
154
PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia: a construção do personagem. o Paulo: Ática, 1989.
155
Ao enfatizar o papel das bandeiras nas cenas do “Triunfo da Vontade”, de Leni Riefenstahl, bem como dos
demais símbolos de massa referidos, estabelecemos um critério de divisão do filme em cinco dias e cinco noites,
que parece ser o número de partes em que a cineasta deseja decompor sua obra utilizando-se de cortes
profundos, lentos, para passar de uma seqüência noturna para uma diurna, ou ao contrário.
156
Sobre esses comentários ver: Macht der Bilder: Leni Riefenstahl (The Wonderful, Horrible Life of Leni
Riefenstahl. Direção de Ray Muller. Alemanha: s.n., 1994. 180 min., sonoro, legendado, preto-e-branco e
colorido, Alemão/Português. No Brasil, particularmente, foi exibido com o título A Deusa Imperfeita.
92
Nuremberg - depois de descer de seu avião envolto em nuvens, aludindo à idéia de
desvelamento
157
a presença das bandeiras ainda é escassa, sendo poucas as que tremulam
sobre as construções. O mesmo ocorre no caminho percorrido pelo Führer em seu carro em
direção ao Deutscher Hof Hotel, onde apenas algumas flâmulas estão para recepcioná-lo.
Posteriormente, um profundo corte apregoa as festividades de abertura da primeira noite
158
do congresso. Uma multidão se encontra diante do hotel a fim de saudar seu guia, que acena
da janela. Nesse instante, ainda que em pequena quantidade, lá estão as bandeiras novamente.
Ao analisar essa cena, o sociólogo Mauro Luiz Rovai assinala:.
(...) até esse momento, as bandeiras com a suástica
desenhada ainda não ganharam primazia sobre a objetiva
dos cinegrafistas. Elas estavam penduradas nos postes e
pontes e espalhadas pelas ruas, tanto quanto inúmeras
outras flâmulas regionais. (...) Como se verá a partir da
manhã seguinte, e até o final do filme, a suástica ganhará
lugar de destaque na tela, como se para existir o símbolo do
NSDAP fosse necessário tornar invisíveis todas as outras
que, até essa noite, ainda embandeiravam Nuremberg lado
a lado com a cruz gamada.
159
157
Para essa seqüência inicial, consideramos a idéia de desvelamento, como se, resguardadas pela névoa, as
antigas tradições germânicas, conservadas em Nuremberg, estivessem prestes a serem resgatadas pelo novo
império alemão, representado pelo seu líder. Assim, Nuremberg, uma vez que é portadora do tesouro germânico,
ou seja, as tradições da nação, despertou feliz para receber seu Führer, envolvido em mistério, que as nuvens
que encobriam a cidade eram as mesmas que permitiam a Hitler apresentar-se não apenas como um homem
devotado à causa nacional, mas como seu Salvador.
158
Cabe destacar nessa imagem de escuridão, o importante papel dramático atribuído à noite, uma vez que é
apresentada cobrindo todos os que ali estão com um grande manto, envolvendo-os num terno abraço e apagando
a diferença entre os indivíduos. É como se durante a chegada de Hitler, que ocorreu durante o dia, o contorno das
silhuetas ainda fosse determinante para a segregação e identificação das faces expostas ao sol. A propósito, a
construção das imagens da população de Nuremberg com os rostos voltados para o sol, justapostos à imagem de
Hitler, faz referência à idéia de como se o Führer rivalizasse com o próprio astro rei, sendo aquele que
iluminaria os novos tempos. Nesse sentido, Rovai estabelece, didaticamente, o seguinte pensamento: “sem o sol
(o líder) não existe clareza/claridade, apenas voa. Se alguém para determinar, agir e fazer, rompendo a
névoa e dissipando o esfumaçamento, este é o guia da nação, o único capaz de fazer a diferença. Se o sol forte,
claro e quente é o líder, tudo o que embaça e deforma é individual, abstrato, intelectual, fraco, misturado e
degenerado”. In: ROVAI, Mauro Luiz. Imagem, tempo e movimento. Os afetos “alegres” no filme O Triunfo da
Vontade de Leni Riefenstahl. São Paulo: Associação Editorial Humanitas: Fapesp, 2005, p. 168.
159
ROVAI, Mauro Luiz. op. cit. p. 161.
93
Imagem extraída do filme “O Triunfo da Vontade”
160
Imagem extraída do filme “O Triunfo da Vontade”
161
Após o toque da corneta ou da trombeta, que tem o sentido de anunciar a
importância do que está acontecendo ou do que virá acontecer, exigindo, sobretudo atenção e
160
A primeira bandeira com a suástica aparece pendente em uma ponte, ao lado da flâmula com a cruz gamada,
aos 07’ 14”.
161
Celebração de abertura da primeira noite do congresso do NSDAP, diante do Deutscher Hof Hotel, aos
11’45”.
94
respeito o som dos tambores e da caixa irão informar de qual solene e grandioso
acontecimento se trata, o verdadeiro motivo da festa: a de que um novo tempo se aproxima,
porém agora sob a guarda do esperado líder.
O segundo dia advém depois de outro longo corte, ou melhor, após as impactantes
imagens do ritual noturno envolto em mistérios esfumaçados
162
, nos revelando agora a cidade
de Nuremberg ao alvorecer - em paz, para mais um dia de felicidade desde o renascimento
alemão, proporcionado pelo seu Salvador -, onde mais uma vez as bandeiras tremulam nas
sacadas dos prédios, nos mastros dos telhados e penduradas nas pontes. A câmera, entretanto,
deixa a cidade, deslocando-se rumo aos acampamentos nas imediações da mesma para uma
visita às tropas, que despertam em meio a banhos e a camaradagem, tão estimada entre os
nazistas. Porém, aqui as bandeiras não acompanham as filmagens, pois necessitam estar lá,
altivas, sempre prontas a resguardar seu condutor.
162
No filme, os ritos iniciáticos noturnos, tendo o fogo sempre presente, propiciam uma vultosa cerimônia em
que a abdicação de si coincide com a entrega do corpo e da alma ao todo. Com relação às tochas, além de serem
utilizadas como pontos de iluminação nas ruas, seu fogo aparece como a luz que cada uma das pessoas carrega
para um tipo de culto em local público, cuja chama todos lançarão, em seguida, em uma grande fogueira,
predizendo o envolvimento dos sujeitos em uma volumosa massa. Quanto a fumaça, geralmente relacionada à
conseqüência da consumação, ela é o comprovação de que realmente ocorreu a destruição do que era impuro.
Assim, poderíamos inclusive aludir tais imagens aos atos de realizados por Joseph Goebbels - Ministro da
Propaganda - nos quais vários livros foram queimados de acordo com o poder de purificação associado às
chamas.
95
Imagem extraída do filme “O Triunfo da Vontade”
163
De volta à urbe, onde as flâmulas continuam a acompanhar os festejos, assistimos ao
que Rovai classifica como desfile das tradições”
164
, em que civis de ambos os sexos em
indumentárias típicas alemãs apresentam a imagem de bem-estar presentes na atmosfera de
uma cidade pequena, atrelada às tradições e costumes, e repleta de mulheres, homens e
crianças que desejam perseverar nessa vida. Contudo, é importante ressaltar, que trata-se agora
de um outro público, uma vez que os civis, os homens uniformizados e as pessoas
paramentadas com roupas tradicionais não se encontram mais segregados, mas misturados na
multidão, na massa que aclama mais um cortejo.
163
17’11”: o banho, mais do que a concepção de ser uma prática habitual de higiene, ou mesmo de livrar o corpo
do vício, será relacionado a mais um feitio de celebração da vida coletiva, como se após o consumo das
individualidades nas fogueiras da noite anterior, as cinzas da subjetividade, ainda presas ao homem, tivessem
que ser terminantemente lavadas. Além do que, as cenas em que homens seminus aparecem se ensaboando
mutuamente, em um banho comunitário a céu aberto, têm menos a ver com limpeza do que com o ideal de
camaradagem propriamente. Esse caráter recíproco de camaradagem revela-se então como mais um exemplo da
relação de cada um com o todo, sem qualquer menção de homossexualidade, vale lembrar. Nesse sentido, as
imagens de higiene coletiva, presentes no filme, remetem a noção, muito comum entre os nazistas, do valor da
limpeza como modo de apagar as diferenças sociais.
164
ROVAI, Mauro Luiz. op. cit. p. 187.
96
Imagem extraída do filme “O Triunfo da Vontade”
165
Logo em seguida, as filmagens são conduzidas para o salão do congresso, local onde
se dará a abertura oficial do evento nesta segunda noite. Os símbolos do partido, especialmente
o estandarte - uma longa haste encimada pela suástica, rodeada por um círculo - oferecem ao
ambiente o tom sóbrio peculiar às solenidades, parecendo tratar-se de uma grande igreja
aprontando-se para o seu magnífico culto. Entre os vários discursos proferidos pelo alto staff
do partido nazista destacam-se o de Goebbels - que revela sua posição com relação à
importância da imagem e da palavra como propaganda, que através dela seria possível
conquistar o “coração do povo”
166
e o de Rudolf Hess, interino do partido, cujas palavras
vêem homenagear e avigorar o valor das bandeiras para o partido nazista e para a própria
nação: “Meu Führer à sua volta estão reunidas as bandeiras do nacional-socialismo. Somente
quando seu tecido estiver surrado as pessoas olharão para trás e poderão compreender
completamente a grandeza deste período e perceber o que o meu Führer significa para a
Alemanha.”
165
Essa seqüência de imagens que apresentam o “desfile das tradições” inicia-se aos 18’36” e vai até aos 22’53”,
sendo esta cena específica aos 20’40”.
166
O emprego das imagens, dos sons e da palavra, imbuídos da lógica da reprodução em série, visava cativar
uma grande quantidade de pessoas, fazendo a mensagem do partido chegar à população por meio da emoção, e
não pela intelecção. Eis uma das grandes contribuições do nazismo ao mundo contemporâneo.
97
Alcançamos, então, ao terceiro dia do congresso e a abertura dessa nova seqüência se
dará através de uma variação do pavilhão nazista, que não será a suástica a imagem que a
estampará, mas a de duas espigas de trigo que parecem brotar do cabo de uma levantada.
Cabe destacar que ambos os desenhos - o trigo e a - são elementos que fazem referência ao
campo alemão, tema recorrente no hipernaturalismo artístico da era nazista.
167
Muito embora a
168
possa ser vista como um instrumento de trabalho que excede os limites rurais, uma vez
que também pode estar associada à construção civil, no filme, ela aparecerá nas mãos de
soldados que representam os homens do campo - ou homens-trabalhadores-soldados
169
,
compondo o tríptico nazista pelo qual a Alemanha seria apresentada ao mundo. São 52.000
homens organizados em uma formação geométrica de pás em punho que, em um bem ensaiado
espetáculo de jogral fílmico, confirma a relevância dos trabalhadores rurais para a reconstrução
e unificação do país. Eles compõem, portanto uma massa, mas ainda com semblantes e olhares,
roupas e corpos, como bem assinala Rovai:
(...) embora em meio a uma massa geometricamente
definida, a pergunta arremessada ao ar ‘de onde você vem,
camarada’, não apenas traz forte apelo e acento cênico,
167
Os estetas nazistas, inspirados na literatura romântica e regionalista, que se insurgia contra a vida nas cidades
e contra a industrialização acelerada da Alemanha, celebravam a Heimat, isto é, o tema de volta à terra e da
glorificação do modo de vida do camponês, em oposição à corrupção das cidades e de suas modas estrangeiras,
que descaracterizariam os costumes germânicos e a pureza de sua raça. Entre os pintores, por exemplo, tornou-se
comum a retratação do trabalho fora das condições do mundo contemporâneo, ou seja, não era o trabalho
industrial que desejavam mostrar, mas sim o rural. Privilegiava-se o camponês ao operário, até porque, os
nazistas não se sentiam à vontade em montar suas mitologias em torno dos operários, personagens ligados à
tradição revolucionária dos comunistas e socialistas. Quanto à mulher alemã, o peso mitológico atribuído à sua
imagem na construção idealizada do novo homem” fica ainda mais evidente. Se os temas recorrentes giravam
em torno do mundo rural, a mulher camponesa surge como a base da ideologia nazista, por representar, assim
como a terra, a fecundidade e a pureza da raça ariana. A prostituta do expressionismo dava lugar à jovem atleta e
à aldeã cheia de filhos. “Na pintura, a nus camponesa aparece sempre com olhos azuis, quadris largos, seios e
ventre salientes, feita para parir”, e assim, dar prosseguimento àquela civilização maravilhosa. A mulher
encarnava, portanto, o papel da verdadeira “guardiã da raça ariana”. In: LENHARO, Alcir. op. cit. p. 69. Ver
também NAZÁRIO, Luiz. Reflexões sobre a estética nazista. In: Revista Cultura Vozes, n.3, ano 90, 1996.
168
Além disso, a pode ser vista como único item nesta seqüência que corresponde ao discurso de Hitler, que
saúda os trabalhadores do campo e faz uma admoestação contra a luta de classes, que o novo conceito a
orientar a Alemanha seria o da harmonia proporcionada pelo trabalho.
169
Apesar de estarem uniformizados como soldados no exército, estes homens-trabalhadores - como Hitler
refere-se a eles em seu primeiro discurso - não simbolizam a guerra, mas a força nacionalista e o exemplo
patriótico do Terceiro Reich. Dizemos isso tomando como referência a seguinte afirmação de Hannah Arendt: “o
Exército, como disse Marx, é o ponto de honra dos fazendeiros: transformados em senhores, o Exército os
corporifica, defendendo nos externos da propriedade recém-adquirida (...) O uniforme era sua roupa de gala, a
guerra era sua poesia, o seu lote de terra era a pátria e o patriotismo era a forma ideal de propriedade.” In:
ARENDT, Hannah. op.cit., p. 261.
98
como também são ambas, pergunta e resposta, dadas por
uma fisionomia que está distinta do todo, numa
demonstração de que a cineasta filma, ali, uma multidão que
tem rosto, voz e, portanto, é identificável. Justamente por
esses homens serem individualizados é que servem como
matéria para formar ‘uma só nação’.
170
Imagem extraída do filme “O Triunfo da Vontade”
171
170
ROVAI, Mauro Luiz. op. cit. p. 214.
171
Bandeira que precede a cena do Serviço de Revista do Trabalho do Reich antes de Hitler aos 34’12”.Após ser
apresentado aos 52.000 trabalhadores rurais, o Führer pronunciará seu primeiro discurso aos 37’18”, o que não
excede dois minutos.
99
Imagem extraída do filme “O Triunfo da Vontade”
172
São exatamente nestes rostos que encontramos a força da massa, como se fossem
rostos-espelhos a refletir o grande poder do Terceiro Reich. São eles que nutrem a massa com
o alento que precisa para se estabilizar, se fortalecer e persuadir sobre seu anseio de unidade
nacional. Consequentemente, por meio desses closes, podemos perceber o individual
compondo o coletivo em mais de cinqüenta mil fragmentos.
E mais uma vez elas se fazem presentes, agora dentre os semblantes dos homens-
trabalhadores, o grande símbolo da potência do nazismo e insígnia da força do Führer: as
bandeiras-suásticas. Neste ponto do filme, elas surgem como outro elemento da divisa sangue e
solo, representado pelas flâmulas que são abaixadas lentamente para então serem erguidas, de
pronto, ao som de um canhão. Sobre esta cena, Rovai estabelece o seguinte comentário:
O sangue derramado nas batalhas irriga o solo alemão,
donde de florescer uma nova era para a nação, em que
todos sejam um corpo, uniforme, teso e com apenas uma
face - a de Hitler, estampada na tela, em primeiro plano,
sempre que as palavras “Alemanha” e “nação” são
cantadas.
173
172
34’56”: cena de uma massa identificável por rostos, traços e fisionomias.
173
ROVAI, Mauro Luiz. op. cit. p. 212.
100
Imagem extraída do filme “O Triunfo da Vontade”
174
De tal modo, preparados, expurgados e finalmente prontos, esses homens se tornam
exército, uma massa de bravos combatentes que marcham dispostos a dar a vida pela pátria. Na
seqüência, observamos outra noite, cujos lábaros com as suásticas estão presentes em toda a
tela, em primeiro plano, concentrando-se principalmente no palanque onde se darão as
alocuções da reunião noturna das tropas SA, que culminará em uma grande festa. a quarta
manhã do congresso vem anunciada por um clarim, que divulgará da mesma forma a Reunião
da Juventude Hitlerista
175
. Os pendões, dessa vez, estão suspensos nas cornetas, além de
empunhados em mastros pelos jovens no meio do estádio, fazendo parte da própria massa.
Quando cai a noite novamente, acompanhamos a advento da maior concentração de
174
Culto às bandeiras aos 38’40”.
175
Todo o cuidado com esse movimento tinha a finalidade de garantir o futuro da raça e da nação nazista, alheio
às humilhações passadas. O jovem, portanto, seria educado segundo a lógica nacional-socialista, mantendo a
força, a disciplina, e a militarização: a educação pela dor. o é à toa que quando Hitler disser “que não importa
o que ele e seus contemporâneos fizeram, porém o que os jovens farão, no futuro, a projeção do desejo do
idêntico no porvir não consegue esconder que o modelo a ser repetido é aquele que não suporta a sua própria
história”. Dessa forma, ao proferir “... no futuro não desejamos ver classes”, ele o rejeita apenas a clivagem
econômica, mas também a temporal, como se pronunciasse que “no futuro, o presente será nosso passado
mítico”. In: ROVAI, Mauro Luiz. op. cit. p. 228.
101
flâmulas vistas antes no filme, um verdadeiro “mar de bandeiras”
176
a inundar a Luipold
Arena, talvez com a função de purificar o local para o grande acontecimento da manhã
seguinte: a revista das tropas SA e SS por seu Führer e a homenagem póstuma ao ex-
presidente do Reich e general-de-campo Paul von Hindenburg . Neste cenário onde tudo é
impressionante, 200.000 homens participam desse espetáculo de disciplina, ordem e,
sobretudo, poder.
Imagem extraída do filme “O Triunfo da Vontade”
177
Como na imponente abertura do filme, essa seqüência inicia-se com a representação de
um dos mais soberanos símbolos do Reich, podendo até mesmo ser interpretada como a
imagem e sombra de Hitler, da maneira como Leni Riefenstahl o pressente e anuncia,
buscando tornar um só o líder e a sua altiva insígnia: a águia. De asas abertas sobre a suástica,
e localizada numa posição mais alta, sob a qual marcham milhares de militantes e estandartes,
ela parece vigiá-los, resguardando-os de todo mau. Logo em seguida, a câmera escolta o
176
O embaixador britânico Sir Neville Herderson criou os termos “mares de bandeiras”, “catedral de luz” e
“floresta de estandartes” para descrever, respectivamente, a imagem da chegada dos estandartes no Zeppelinfeld,
as luzes dos 130 holofotes anti-aéreos dispostos ao redor da Luitpold Arena por Albert Speer neste mesmo
período e, finalmente, a organização criteriosa das massas na cena posterior a essa.
177
Cena da entrada das bandeiras no estádio aos 57’12”.
102
caminhar de Hitler por entre as tropas, enquanto as massas esperam, em formação, seu
momento de apogeu.
Imagem extraída do filme “O Triunfo da Vontade”
178
Na cena posterior, um “mar de bandeiras” com a suástica e a inscrição Deutschland
Erwache (Alemanha Renascida), vindo do fundo da tela em direção ao espectador - na alusão
a uma grande onda que a estes também envolveria - percorre por entre a perfeita formação
geométrica das tropas, para em seguida oferecer juramento de fidelidade ao Führer. De tal
modo, esses homens perfilados ladeando as bandeiras em desfile representam perfeitamente a
alegoria da floresta sendo inundada pelos mares. Nas palavras de Mauro Luiz Rovai:
(...) se pouco tempo atrás, tínhamos na tela os homens-
trabalhadores-soldados louvando a purificação pelo
trabalho, agora, como a estabelecer uma passagem
178
1:04’24”: essa imagem nos remete a observação de Goebbels, que dizia que a massa, convertida em
ornamento, aguardava por horas as aparições de Hitler, que entrava através de um canal aberto entre a turba, a
via triumphalis”. Nazário ainda completa, dizendo que esse ritual nazista o era alheio à imagem de uma
possessão sexual: “como se Hitler penetrasse na massa por um órgão sexual e a levasse ao orgasmo”. In:
NAZÁRIO, Luiz. op. cit. p.50. Em marcha, no centro da imagem, estão Heinrich Himmler - comandante da SS e
Chefe da Polícia Alemã - , Hitler e Viktor Lutze - comandante de equipe.
103
“natural” para o próximo estágio da perfeição alemã, eles
se tornarão, além disso, um modelo de comportamento
disciplinado pela repressão das paixões: o homem que foi
educado pela dor na juventude hitlerista e, depois, aprendeu
a marchar e segurar s, exibe, agora, a sua vitória sobre a
natureza (dentro de si e fora de si).
179
É provável que essas imagens não apresentem precisamente um exemplo de
comportamento disciplinado de repressão das paixões. Talvez sua verdadeira grandeza esteja
antes na canalização das paixões do que em sua repressão, ou ainda na canalização da vontade,
tomando como referência o que Marc Ferro chamou de solidariedade patriótica, isto é, o
sentimento de união nacional que aguça a vontade de pertencer e estimula a massa fascinada.
180
Sob essa perspectiva, podemos afirmar, então, que aqueles rostos são a imagem da auto-
estima enaltecida pelo pertencimento, sendo este exaltado pela força de vontade daqueles
homens, vontade esta nobilitada pela auto-estima da massa, e assim, continuamente, num ciclo
nacionalista fundamentado no pertencimento de uns e no abandono de todo o restante, uma
vez que podiam participar daquelas massas os eleitos, os legítimos, as tropas nazistas SA e
SS.
Voltando ao filme, podemos visualizar, durante cerca de vinte segundos, a tomada de
um plano conjunto que mais parece infinito, no qual apenas as pontas dos mastros são
identificáveis. Este efeito, alcançado pela posição alta da câmera - plongê - e pela utilização
de lente teleobjetiva, permite extinguir as diferenças na tela. Nem homens, nem símbolos,
somente uma multidão incontável de estandartes, como Rovai tão bem descreveu: “(...) o
uniforme que os militares trajam não permite destacá-los suficientemente das bandeiras, o que
proporciona a impressão de que são elas mesmas a se moverem.”
181
Nesta cena, portanto, não
visualizamos mais o céu, nem mesmo conseguimos enxergar nitidamente onde estão e
179
ROVAI, Mauro Luiz. op. cit. p. 234.
180
FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p.15.
181
ROVAI, Mauro Luiz. op. cit. p. 249.
104
quantos são os componentes da massa.
Imagem extraída do filme “O Triunfo da Vontade”
182
Dessa forma, massa e bandeira se justapõem, se fundem, se aglutinam e finalmente se
tornam apenas um. Agora aqueles homens-soldados constituem o próprio pavilhão que
carregam, em artefato e ideologia. A floresta inundada pelos mares, portanto, pode ser
considerada a melhor expressão dos ideais de nacionalismo nazista, como nos revelam as
palavras de Elias Canetti:
A bandeira é um dos símbolos que apreendem a nação,
assim como o hino. E não é por acaso, o mar e a floresta são
dois dos mais importantes símbolos de massa, pois são
compostos por pequenas unidades que, sozinhas, pouco
significam, mas reunidas às suas semelhanças, formam
massas gigantescas. Mergulhe a mão na água, erga-se a
mão novamente e contemple-se as gotas escorrendo isoladas
e débeis por ela. A compaixão que se sente é como se elas
fossem pessoas desesperadamente sós. As gotas contam
quando não mais se pode contá-las, quando se dissolvem
totalmente no todo.
183
182
Essa seqüência de imagens vai de 1:7’50” até 1:08’10”.
183
CANETTI, Elias. op.cit. p. 80.
105
Imagem extraída do filme “O Triunfo da Vontade”
184
Imagem extraída do filme “O Triunfo da Vontade”
185
Na seqüência, as bandeiras seguem desfilando em meio às tropas organizadas, em um
movimento que mais parece que estão dançando, numa espécie de coreografia circular. Neste
184
1:07’49”: imagem que alude a concepção da floresta sendo inundada pelos mares.
185
1:14’00”: homens e bandeiras como um só.
106
instante, já não distinguimos mais corpos ou olhares, vemos somente as flâmulas a bailar. E
essa felicidade parece não se conter apenas no estádio, de modo que a mera regressa às
avenidas de Nuremberg a fim de registrar os constantes desfiles das tropas nazistas orgulhosas
de seu Reich. Os pavilhões, por sua vez, continuam a escoltar os desfiles, tendo seu foco,
porém dissipado por entre imagens de tanques e marchas.
Imagem extraída do filme “O Triunfo da Vontade”
186
A derradeira noite chega finalmente, e junto a ela os discursos de encerramento no
salão do congresso. Concluindo a participação das flâmulas, o Sturmbannführer Jakob
Grimminger adentra o local trazendo a simbólica Blutfahne (bandeira de sangue)
187
, um dos
objetos mais reverenciados do Terceiro Reich, considerada a bandeira-madre das suásticas.
186
1:08’40”: estandartes a dançar.
187
O culto da bandeira de sangue representa um dos momentos mais enfáticos da legenda nazista. Segundo
contam, o porta-bandeira Andreas Bauriedl havia sido mortalmente atingido durante o Putsch de Munique, e seu
sangue manchara o estandarte que sustentava. Este, portanto, guardado como relíquia, passou a ser utilizado para
batizar as bandeiras das novas unidades das SS e SA. Nessas cerimônias cabia ao próprio Hitler consagrar essas
novas bandeiras, tendo a bandeira-relíquia em uma de suas mãos. Para os alemães ali presentes, aquilo não era
uma mera simbologia, mas um ritual de “transfusão stica”. Segundo Guyot e Restellini quem não na
consagração das bandeiras o análogo da consagração do pão, uma espécie de sacramento alemão, corre o risco de
não compreender nada do hitlerismo”. In: Apud LENHARO, Alcir. op..cit.p. 44.
107
Assim, ao som da canção Host Wessel
188
, o hino da NSDAP, termina “O Triunfo da
Vontade”. No desfecho de sua obra, ao fundir em uma mesma imagem soldados em marcha e
a suástica, Leni Riefenstahl enfim conclui que as massas são realmente a insígnia das
bandeiras que sustentam. Nas palavras de Mauro Luiz Rovai: “a imagem com que Riefenstahl
terminará o filme, então, será uma marcha sem fim, quase em Flou, rumo a uma grande
suástica. Seria a sua versão para o ‘... e eles viveram felizes para sempre’ ”.
189
Imagem extraída do filme “O Triunfo da Vontade”
190
3.2. Richard Wagner e a construção da identidade nacional alemã.
Em meados do século XIX - conforme assinalado no capítulo anterior - enquanto
países como a Inglaterra e a França já constituíam Estados Nacionais consolidados, a
Alemanha ainda não possuía uma unificação político-administrativa, sendo, por conseguinte,
não mais que um aglomerado de ducados e principados independentes. Será nesse contexto,
188
A canção traz a seguinte idéia: “Elevação da bandeira/ As colunas estão firmemente unidas/ A SA marcha
com um passo forte e calmo/ Camaradas lançados pela Frente Vermelha/ E os Reacionários marchando/ Com o
espírito unido em nossas colunas.”
189
ROVAI, Mauro Luiz. op. cit. p. 322.
190
1:49’15”: fusão das massas e a suástica, seu emblema.
108
portanto, que surgirá o compositor alemão Wilhelm Richard Wagner - tendo nascido na
cidade de Leipzig, em 1813, e falecido em Veneza, em 1883 -, cuja obra, sempre baseada em
contos de uma Alemanha mítica e predestinada à glória, influiu o espírito alemão de tal forma
que acabou contribuindo na construção de uma forte tendência nacionalista. Desse modo,
Wagner concebeu através de sua música o desenvolvimento de um novo orgulho nacional
alemão, o que fez desse artista um símbolo, uma figura quase heróica no Reich de Otto von
Bismark e na dinastia dos Hohenzollern, por volta de 1871, durante a unificação alemã, após a
derrota da França na Guerra Franco-Prussiana.
191
Assim, a unificação e a formação da identidade nacional alemã não advêm apenas da
destreza de Bismark, ou dos anseios pangermanistas do Kaiser Guilherme I - Wilhelm
Friedrich Ludwig Hohenzollern, em alemão. Na verdade, grande parte do que a Alemanha
representou, especialmente entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do
XX, foi reflexo do desejo de construção de uma cultura legitimamente alemã, que fosse capaz
de garantir a unidade do povo antes mesmo da unificação da nação. Nesse sentido, estamos
nos referindo a Kultur
192
alemã, que de modo distinto da concepção universalista de cultura,
sugerida pelos franceses, vai buscar na regionalização e nos costumes locais a sua própria
realização.
191
Destarte, podemos perceber que a presença de Richard Wagner na formação do orgulho nacional alemão
mostrou-se bastante relevante. Wagner representou para a cultura germânica do século XIX o mesmo que Verdi
representou para a cultura italiana: uma espécie de ícone cultural, e aglutinador da identidade nacional quando o
país ainda estava em formação. Não foi por acaso que, por exemplo, o termo Führer, usado por Adolf Hitler,
tenha sido extraído de um trecho da ópera Lohengrin, na qual consta o diálogo “Zum Führer sei er euch ernannt”
(Aceitem-no como seu líder).
192
O choque entre os conceitos de civilização e cultura ocorre, na Alemanha, principalmente, no que diz respeito
às diferenças entre a nobreza germânica que fazia constante uso dos modos e língua da corte francesa
representando um tipo de civilização de fachada” e a burguesia alemã em desenvolvimento. Para a nobreza
alemã, fazia-se necessário o uso da língua francesa, pois com isso evidenciava-se educação e civilidade; contudo
a burguesia germânica pensava de modo distinto, frente o crescente desejo e necessidade de sair de uma posição
marginal no cenário político alemão. Essa burguesia procurou construir não apenas um conceito de civilização
ou Zivilisation, mas sim uma cultura específica, fundamentada nas características que atrelaria a etnia alemã,
dando origem ao conceito de Kultur. O embate entre a nobreza cortesã dita “civilizada” e a intelligentsia de uma
classe média que dialogava em alemão produzirá o que podemos chamar de um contraste entre os conceitos de
Zivilisation e Kultur. A burguesia alemã, por conseguinte, procurará ascender no cenário político e social alemão
através da Kultur, ou melhor, por meio da defesa de uma cultura regional que enfatizasse as diferenças nacionais
e a identidade particular dos povos. É evidente que para a burguesia intelectual alemã existia a Zivilisation, no
entanto, a idéia de civilização de acordo com os modelos franceses estava em segundo plano, sempre abaixo do
valor da idéia de Kultur, da cultura regional e nacional.
109
De acordo com o filósofo e escritor alemão Johann Gottfried von Herder
193
, o povo é
um ser vivo caracterizado por forças interiores e silenciosas que segrega uma espécie de
consciência popular, o espírito do povo (Volksgeist), do qual brota tanto a língua como o
direito, consideradas produções instintivas e quase inconscientes, que nascem e morrem com
o próprio povo. Além disso, para Herder, este seria anterior e superior ao Estado, e por
conseguinte, no caso específico do direito, o costume teria de ser mais importante do que a
lei, porque o que emana do Volksgeist tem de estar numa posição de superioridade em relação
aos próprios ditames do Estado. Logo, poderíamos afirmar que para este filósofo alemão
também se fazia necessário um conceito de cultura que restituísse nas nações o seu orgulho
nacional. Essa idéia, contudo, no que se refere à formação da sociedade alemã e de sua
identidade enquanto nação vai ser fruto de implicações muito maiores, uma vez que a
concepção de cultura e, conseqüentemente, do nacionalismo germânico incidiu não somente
pelo som dos exércitos prussianos marchando rumo aos campos de batalha, mas sobretudo
através da arte, sendo neste ponto que evidenciamos o personagem em questão, o músico
alemão Wilhelm Richard Wagner.
Este artista soube como ninguém explorar a energia de uma grande orquestra e o fez
de maneira à sempre exaltar narrativas relacionadas a uma Alemanha envolta em mitos, ou
ainda, a uma Germânia de divindades como Tor e Odin, além de figuras dramáticas como as
193
Nascido, em 1744, em Mohrungen na Prússia oriental, o escritor alemão, crítico literário e clérigo, Johann
Gottfried von Herder, chamou a atenção dos intelectuais alemães com a obra “Fragmentos sobre a nova literatura
alemã” publicada em 1767, com a qual praticamente lançou os fundamentos do movimento literário alemão
Sturm und Drang (“Tempestade e Impetuosidade”) de cunho nacionalista, que ganhou força por volta de 1770.
Em 1772, Herder publicou um de seus trabalhos mais notáveis, intitulado “Sobre a origem da linguagem”, no
qual sustenta que a linguagem e a poesia o necessidades espontâneas da natureza humana, mais que dons
especiais. Já em 1773 reuniu textos de canções populares de toda a Europa em seu Volkslieder, publicado de
1778-79, e fez um ensaio sobre o fortemente expressivo teatro de Shakespeare. Em sua valorização do
nacionalismo foi mais longe, estendendo-a a uma interpretação da História em “Idéia sobre a filosofia da história
da humanidade”, redigida entre 1784 e 1791.
110
Valquírias, Siegfried e Lohengrin, o cavaleiro do Graal. A obra de Wagner, que era tão poeta
como músico, conjeturava, portanto, uma tria alemã pujante e unificada, o que pode ser
apreendido em suas constantes referências a um “Império Alemão”, como no caso da ópera
Lohengrin de 1848, composta mais de duas décadas antes da efetiva unificação do estado
germânico:
(...)Escutai!
Condes, nobres, homens livres de Brabante!
Henrique, rei dos alemães, veio a este lugar
para consultá-los
segundo o Direito do Império!(...)
(...)Agora é a hora de defender
A honra do Império;
Que todas as terras germânicas
angariem forças para o combate.
E então ninguém ousará vilipendiar
o Império Alemão!
Adiante, com Deus e pelo
Império Alemão!(...)
194
Nesse sentido, essas sagas cheias de dramas e paixões satisfeitas, bem como de
amores impossíveis, traduz o que de mais íntimo da própria alma germânica. Podemos
então alegar, que a necessidade de Wagner em apresentar uma Alemanha imperial, poderosa,
e nacionalista explica-se, em grande parte, pelas suas próprias convicções políticas. Esse seu
nacionalismo quase mítico, acabará influenciando, por conseguinte, toda uma geração de
políticos, pensadores, e industriais alemães, segundo assinala Otto Maria Carpeaux:“a
mentalidade dessa nova burguesia corresponde à glorificação do passado germânico, com
todos os recursos de um luxo de nouveau riche. É o neo-romantismo de Wagner”. Essa
burguesia, todavia, correspondia à mesma classe que “submeteu-se aos poderes feudais da
Prússia para conseguir a unificação nacional da Alemanha”.
195
194
Lohengrin KAREOL. Disponível em:
<http://www.geocities.com/Vienna/Choir/7652/lohengrin/lohengrin.htm>. Acesso em 28 julho 2007.
195
CARPEAUX, Otto Maria. Uma Nova História da Música. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d, p.205.
111
Assim, formou-se ao redor de Wagner o que Carpeaux classificou como a “seita dos
wagnerianos”
196
, que pode ser relacionada, no século XX, ao surgimento do Partido
Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães. É importante destacar, no entanto, que o
pretendemos atribuir a esse artista a condição de “nazista”, mas enfatizar que seu anti-
semitismo e sua música notoriamente pangermanista fomentaram os ânimos daquilo que seria,
posteriormente, o germe do nazismo na Alemanha.
Embora, muitos estudos sobre este mestre da música clássica insistem em transformá-
lo no grande pai do nazismo ou então venerá-lo como o maior redentor da ópera, devemos
buscar refletir sobre o momento histórico em que ele viveu, procurando extinguir alguns
filtros sociais e ideológicos atuais, a começar pelas idéias anti-semitas conferidas ao
compositor. Vale lembrar que o anti-semitismo é um dos componentes ideológicos do regime
nazista, porém não é o próprio nazismo. Logo, assegurar que ele era “nazista”, seja por seu
anti-semitismo ou por seu nacionalismo, é tanto uma manifestação de anacronismo quanto
uma grande confusão sobre o propósito político de sua obra. Assim, Wagner está longe de ser,
de fato, o fundador do nazismo. Ele era apenas um produto de seu tempo, tempo este que
coincide com um período de intensa ebulição política na Alemanha. Portanto, sendo ele um
nacionalista, sua obra pretendia exaltar o mito de uma antiga Germânia, sem refletir, no
entanto, qualquer coisa de semelhante ao nazismo, sendo a sua preocupação central a
constituição de uma identidade cultural alemã.
Desta forma, esta extensa e vigorosa obra musical tornar-se-á um verdadeiro baluarte
do alvedrio e da união nacional nas os dos grupos que lutavam a favor da unificação, em
fins do século XIX e início do XX, bem como posteriormente em meio ao Terceiro Reich.
Mas como não de louros vive-se um artista, Wagner também atraiu a fúria de intelectuais
avessos à sua obra pangermanista, como a maior parte da imprensa, os próprios judeus e os
196
Idem. p 207.
112
membros do chamado Círculo de Brahms.
No entanto, foi exatamente na França, país
execrado por Wagner, que sua obra veio a encontrar seus mais dedicados admiradores.
Embora muitas vezes caiba ao Estado a função de determinar o destino dos povos
quer na paz ou na guerra, a obra wagneriana apresenta-nos uma segunda via, ou seja, de que a
constituição da nação possa anteriormente passar pelo desenvolvimento de um verdadeiro
orgulho nacional, fundamentado, sobretudo na identidade cultural e étnica. Assim, podemos
encontrar nas composições de Wagner, o exemplo da música genuinamente germânica, uma
vez que expunha uma preocupação em relatar as mitológicas sagas nórdicas
197
como a ilustre
tetralogia do “Anel dos Nibelungos”
198
, constituída pelas óperas “O ouro do Reno” (1854),
197
A mitologia nórdica, mitologia germânica, mitologia viking ou mitologia escandinava se refere a uma religião
pré-cristã, crenças e lendas dos povos escandinavos, incluindo aqueles que se estebeleceram na Islândia, onde a
maioria das fontes escritas para a mitologia nórdica foram construídas. Esta é a versão mais bem conhecida da
mitologia comum germânica antiga, que inclui também relações próximas com a mitologia anglo-saxônica. Por
sua vez, a mitologia germânica evoluiu a partir da antiga mitologia indo-européia. A mitologia nórdica é uma
coleção de crenças e histórias compartilhadas por tribos do norte da Germânia (atual Alemanha), sendo que sua
estrutura não designa uma religião no sentido comum da palavra, pois o havia nenhuma reivindicação de
escrituras que fossem inspirados por algum ser divino. A mitologia foi transmitida oralmente principalmente
durante a Era Viking e o atual conhecimento sobre ela é baseado especialmente nos Eddas e outros textos
medievais escritos pouco depois da Cristianização. No folclore escandinavo estas crenças permaneceram por
mais tempo, e em áreas rurais algumas tradições o mantidas até hoje, tendo sido recentemente revividas ou
reinventadas através do Ásatrú ou Odinismo. A mitologia permanece também como uma inspiração da literatura
assim como do teatro e do cinema. A família é o centro da comunidade, podendo tanto ser estreitamente
relacionada com a fertilidade-fecundidade, quanto com a agressividade de um povo hostil e habituado as guerras,
em uma sociedade totalmente rural que visa a prosperidade e a paz para si. Deste modo, a religião é muito mais
baseada no culto do que no dogmatismo ou na metafísica, sendo a religiosidade baseada em atos, gestos e ritos
significativos, muitas vezes girando em torno do sacrifício humano a certos deuses, como Odin e Tîwaz
(identificado por alguns estudiosos como predecessor de Odin).
198
A execução completa do ciclo dessa tetralogia dura cerca de 15 horas, e o tema, como não podia ser diferente,
é épico. vários deuses, gnomos, e o anel cuja posse garante poder sobre todo o mundo. Feito do ouro que foi
roubado do Rio Reno pelo anão Alberich, o nibelungo do título, quando as donzelas do Reno, suas guardiãs, se
distraíram, este anel percorre o ciclo até a última ópera “Crepúsculo dos Deuses”. A Valquíria Brunhilda, a mais
querida das nove pelo pai Wotan (Odin), é o tema da segunda ópera. Como as irmãs, é encarregada de levar para
o Valhala - o grande palácio de Wotan, onde ele se divertia em festins com os heróis escolhidos, aqueles que
morriam valentemente em combate, pois eram excluídos todos os que faleciam pacificamente - as almas dos
guerreiros mortos. Ao desobedecer seu pai, este a repreende. O castigo de Brunhilda seria dormir cercada por um
círculo de fogo, aque um cavaleiro suficientemente intrépido fosse capaz de atravessar a cortina de chamas
para resgatá-la. Este herói seria Siegfried - filho do rei Siegmund dos Países Baixos e da bela Sieglinde - que
dominado pelo espírito da aventura, teria abandonado o castelo familiar para sair errante pelas florestas, campos
e aldeias. Além de salvar Brunhilda, que se apaixonará por ele, Siegfried também vence o temível dragão que
guardava o anel. Como prova de seu reconhecimento, os reis dos nibelungos oferecem a Siegfried a Balmung, a
melhor espada que um guerreiro poderia ter, e sobretudo, um tesouro fabuloso. Na realidade, a lenda não faz
mais do que contar e transpor a história, uma vez que esses rudes combates a que se entregavam essas tribos
primitivas, nessa massa mole que prefigurava as nações ocidentais, eram conhecidos. Porém, é importante
destacar que esses povos não se defrontavam unicamente para aumentarem os seus territórios e riquezas. As suas
batalhas simbolizavam também um ideal. Assim, o ouro dos nibelungos não significava tanto um tesouro
fabuloso como uma espécie de poder mágico, gerador e protetor dos heróis. É a poderosa - e quase mítica -
113
As Valquírias” (1856), Siegfried” (1859) e “Crepúsculo dos Deuses” (1874), que ao todo
demorou cerca de vinte anos de idealização. Nesse sentido, ao longo do regime nazista, o
Ministro da Propaganda Goebbels, que presidia também a Reichsmusikkammer, mostrou, de
maneira espetacular, como se utilizar de obras e referências do passado para favorecer seus
interesses no presente. A associação da obra de Richard Wagner com o nazismo, portanto,
toma força, sendo aproveitada pela máquina de propaganda a ponto de comparar Hitler com
personagens de suas óperas como os já mencionados Lohengrin e Siegfried, por exemplo.
A própria Leni Riefenstahl não deixa de prestar sua homenagem a Wagner ao reservar
uma cena do “Triunfo da Vontade”- aos 08’50” - apresentando uma estátua do artista em
meio à cidade de Nuremberg. E como no papel de uma Valquíria
199
, a cineasta buscou
empreender o feito de traduzir em linguagem cinematográfica duas vertentes poderosas que se
ocultavam por detrás da imagem do Führer e que vieram a ser muito eficazes junto ao público
alemão. A primeira delas, como tratado anteriormente neste trabalho, vinha da tradição
cristã que, depositava enormes esperanças na chegada de um Salvador, de um Messias. Hitler
definitivamente tinha que ser apresentado assim. Portanto, logo que o filme começa, vê-se o
aeroplano dele aproximando-se, envolvido misteriosamente por entre as nuvens, como se
estivesse a anunciar com expectativa o advento de seu divino líder. Referindo-se a essa cena,
Riefenstahl declararia: “O sol desapareceu atrás das nuvens. Mas quando o Führer chega, os
raios de sol cortam o céu. O céu hitleriano”
200
. Quando Hitler adentra no estádio em meio a
uma multidão, estimada em 200 mil milicianos de todos os cantos da Alemanha,
arregimentados em duas grandes alas, assemelha-se a um Moisés cortando a passo as águas
personalidade de Siegfried que domina a história dos nibelungos. Ver: BULFINCH, Thomas. O Livro de Ouro
da Mitologia: histórias de deuses e heróis. 5ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999.
199
Riefenstahl, através de seu filme, torna-se a mensageira de Hitler, convocando todos aqueles heróis aos
campos de batalhas, onde fatalmente seriam mortos. Assim, a cineasta pode ter seu papel comparado aos das
mitológicas Valquírias, cujo nome significa “as que escolhem os mortos”.
200
Apud LENHARO, Alcir. op.cit. p.60.
114
do Mar Vermelho para conduzir o seu povo, liberto do algoz estrangeiro, à terra prometida, ao
império da nova ordem nacional-socialista.
A outra vertente advinha do herói da mitologia nórdica, Siegfried, o lendário guerreiro
que, depois de incríveis aventuras e feitos extraordinários, mata o dragão na margem do Rio
Reno, livrando os seus da desgraça. Nada mais adequado do que relacionar o Führer como a
ressurreição do cavaleiro audaz que abate as forças do mal - o comunismo, o liberalismo, o
expressionismo, o judaísmo, todos expressões diversas de um nocivo antigermanismo -,
preservando para o futuro a integridade moral, ideológica e racial dos arianos. Hitler aparece,
portanto, como a simbiose dessas duas legendas, a do Messias e a do Herói. Ao deificá-lo, ele
surgia nas telas do filme como um divisor de águas da Alemanha moderna. Aquele que com
sua determinação inquebrantável afastara as sombras das humilhações passadas (as punições
do Tratado de Versalhes) para apresentar ao seu povo um futuro luminosos, radiante, pleno de
realizações e imortais façanhas (a aventura do Estado nacional-socialista).
Hitler era o Partido Nazista, era a Alemanha; sua tarefa era conduzi-la para dirigir o
mundo. Somente ele era um indivíduo, sendo que os demais alemães se dissolviam num
imenso mecanismo unido para servir ao seu Führer. O próprio título do filme “Triunfo da
Vontade”, sugerido por Hitler, parecia-lhe a realização mais autêntica do que ocorrera com
ele. O até então fracassado pintor, um ex-combatente da Primeira Guerra Mundial, um
alguém que até os 30 anos de idade nunca se destacara na vida, graças à sua vontade
inquebrantável e à sua determinação fanática - mesmo convivendo por anos num partido de
refugados e de marginais da sociedade alemã e sendo ridicularizado por seus trejeitos -
chegara ao mais alto posto do Reich. Naquele momento, sentava-se ao lado do trono que fora
dos kaiseres, no posto de Bismarck, o chanceler de ferro, que quase sozinho construíra o
segundo império em 1871. Neste sentido, convém lembrar que, graças ao nazismo, a
alarmante situação de miséria e desemprego que assolou a Alemanha por tanto tempo foi
115
superada, demonstrando que a vitória, sugerida pelo título do filme, também era da nação
como um todo.
Hitler em pessoa era a prova viva da transmutação de valores: o anônimo pobretão que
atingira a glória, o nada que imprimia para sempre o seu nome na história. Se a vontade de
Hitler era mesmo a de ter sua imagem imortalizada, Leni Riefenstahl realizou o seu desejo. A
cineasta o mostrou ao mundo de forma definitiva e no estilo em que ele queria ser visto.
Nesse sentido, são de grande valor ilustrativo as palavras de Erwin Leiser, citadas por Luís
Nazário, ao referir-se à forma como Riefenstahl filmou e construiu a imagem de Hitler: “(...)
Nenhum ator era julgado digno de personalizá-lo. Nenhum outro filme sobre ele era mais
necessário. Nenhum outro projeto foi elaborado”
201
.
Cabe ainda destacar nesta obra que o principal vínculo imagem-movimento - mais
importante do que os desfiles, a bandeira e a suástica - é o que narra a epopéia do
renascimento alemão transformando todos esses elementos em personagens da trama. Nesse
sentido, outra personagem - ou símbolo de massa - que atua no filme nos permitindo
desvendar os meandros da ideologia nazista é a floresta, como bem explica Mauro Luiz
Rovai:
(...) “levar a Alemanha para uma nova era” pode significar
torná-la uma enorme floresta de homens plantados
(profundamente ligados aos valores do solo) tais como as
mais frondosas e imponentes árvores que, enraizadas, fazem
circular a seiva (o sangue) desde a raiz até a última das
folhas - num movimento cíclico constante, como uma
aliança -, como se a multidão organizada tivesse sido
plantada, uma floresta de homens regada pelo desejo
coletivo de não mudança, de fixidez, de vida não refletida -
em outros termos, sem os problemas da civilização.
202
Esta histórica ligação entre a floresta e o homem germânico fundamentará o discurso
em torno da famosa divisa do sangue e do solo. Nesse sentido, o sonho de um espaço para a
201
Apud NAZÁRIO, Luiz. De Caligari a Lili Marlene. São Paulo:Global, 1983, p. 51.
202
ROVAI, Mauro Luiz. op. cit. p. 219.
116
Alemanha viver futuramente, o Lebensraum, entendido como o espaço vital para sua
existência cuja essência germinaria do solo e do sangue, achará respaldo na floresta como a
união determinante entre a natureza e o homem. Assim, como conseqüência do mundo
moderno, com todas as suas técnicas, máquinas, e luta de classes, o país teria se
desmembrado, buscando, portanto, urgentemente, o retorno da adesão decaída, mesmo que
preciso fosse o sacrifício. Não por acaso, que o Führer aparece no filme, sempre a predicar
em seus discursos, em nome da “dor, do sofrimento e da privação”. Entretanto, de acordo com
a concepção de Wilhelm Reich:
(...) a divisa “sangue e solo” não significa apenas que o
sangue deva ser puro, mas também que o homem do campo
está ligado à terra, como uma árvore, em contato com a
essência do que é (ou foi e será) a Alemanha. O sangue é a
seiva, o alimento, a circulação da cultura, que não pode ser
interrompida. Dentro dessa imagem, todas as humilhações e
derrotas alemãs equivaleriam às árvores destruídas pelos
estrangeiros (...).
203
Logo, podemos perceber a significação da floresta como símbolo e como valor para o
povo alemão. Nesses termos, a floresta constituiria a própria nação, a Alemanha, e até mesmo
o sentimento de pertencimento ou de estar ligado a algo, seja ao passado, ou à própria
natureza. Assim, nessa consagração fílmica da antiga Germânia, que seria o próprio “Triunfo
da Vontade”, as novas árvores que formariam essa floresta aludiriam o mesmo papel
desempenhado por aqueles homens-bandeiras, ou seja, as massas em formação, o exército em
marcha, como nos revela Elias Canetti: “O símbolo de massa dos alemães era o exército. O
exército, porém, era mais do que um exército: era a floresta em marcha. Em nenhum país
moderno do mundo o sentimento pela floresta manteve-se tão vivo quanto na Alemanha”
204
.
No entanto, é importante ressaltar, a composição desta floresta se deu por árvores que
foram cultivadas, e não que germinaram de forma natural. Deste modo, a massa então seria
203
Idem, p. 220.
204
CANETTI, Elias. op. cit. p. 171.
117
uma reunião de árvores replantadas, formando uma nova espécie de soldados a brotar no solo
da Alemanha. O que existiria, portanto, seria uma plantação, e não uma relva genuína.o há
uma floresta com sua típica confusão de espécies que crescem em uma mistura de glória e
terror, uma vez que aqui como requer o nazismo todas as árvores são idênticas, formando
uma floresta hierárquica, fruto de uma silvicultura metódica. Essas árvores, por conseguinte,
possuem “... o caráter rígido e paralelo... decorrentes de sua qualidade de serem eretas e
densas - e que impressionam em virtude de sua inabalável harmonia, ao contrário das florestas
tropicais,... onde as plantas trepadeiras emaranham-se, crescendo em todas as direções”
205
.
Destarte, nos deparamos com uma densa floresta de espécimes fortalecidos pelo sofrimento
pós-Versalhes, preparados para a guerra iminente e incentivados pelos ideais de seu Führer,
buscando, então, resistir bravamente a toda e qualquer ameaça. Sobre esse caráter, Elias
Canetti atribui a seguinte narrativa:
O rapaz, que da estreiteza de sua casa, partia para a
floresta, a fim segundo acreditava sonhar e estar sozinho, ali
vivenciava de antemão a acolhida no exército. Na floresta,
os outros fiéis, verdadeiros e retos como ele queria ser
estavam a postos, todos iguais entre si (...) a vida e a
luminosidade da floresta ele não sentia medo; sentia-se
protegido; sentia-se um entre muitos. O caráter íngreme e
retilíneo das árvores, ele o transformou em regra para si.
206
Neste sentido, a floresta aparece, simbolicamente, como a representação da nova
Alemanha que estava sendo construída sob a liderança do Führer, projetando um futuro
glorioso para o Reich, ao mesmo tempo em que restaura, de certa forma, as glórias passadas da
nação germânica.
205
ROVAI, Mauro Luiz. op. cit. p. 217.
206
CANETTI, Elias. op. cit. p. 172.
Conclusão
Podemos afirmar que há, na história do cinema, um antes e um depois de Nuremberg,
um antes e um depois de “O Triunfo da Vontade”. Essa obra cinematográfica de Leni
Riefenstahl, em grande medida contribuiu para a divulgação do ideário nazista, num momento
em que o cinema vivia todo um processo de desenvolvimento e de melhorias técnicas -
servindo, portanto como referência para outras produções de cunho espetacular e de caráter
propagandístico. Nesse sentido, o filme em questão, muito mais do que um simples
documentário, apresenta-se como uma obra de propaganda política, uma vez que estamos
diante de uma realidade que foi construída
207
, buscando influências num passado mítico ideal
a fim de conquistar as massas, imbuindo-as de uma ideologia conservadora - mesmo que
tenha se utilizado para isso de todo um conjunto de técnicas essencialmente modernas. Assim,
visto desta maneira, “O Triunfo da Vontade” tem a função de responder a uma das principais
incumbências daquilo que seria o cinema nacional-socialista, “ou seja, instigar a adesão de
cada espectador a Hitler, reforçando assim a síntese do povo com o grande líder de sua nação,
o que poderia ser expresso na máxima: “Ein Reich, ein Volk, ein Führer! ”.
Além disso, pode-se dizer que esta película, em sua totalidade, correspondeu aos
objetivos imediatos do próprio Führer, tais como manifestar a unidade do Partido Nacional-
Socialista ao redor de seu guia depois da Noite dos Longos Punhais e a eliminação da SA; a
coesão do exército e das tropas de choque SS; bem como a harmonia da juventude e do
207
Afirmar que a forma do Congresso Nazista, em Nuremberg, foi concebida inteiramente em função do filme
pode ser um tanto excessivo. No entanto, foi a primeira vez que o fato cinematográfico foi tomado em
consideração na organização estética de tal manifestação. A própria cineasta Leni Riefenstahl descreveria com
detalhes que os preparativos do congresso foram estabelecidos conjuntamente com os trabalhos preliminares do
filme; em outras palavras, que o acontecimento foi organizado de maneira espetacular, não somente como
reunião popular, mas também de maneira a rodar um filme de propaganda. Isso ocorre de modo que o
desenvolvimento das cerimônias, o plano muito preciso das paradas, dos desfiles, dos movimentos de multidão,
da arquitetura, dos monumentos e do estádio, tudo isto foi determinado em função da mara. Em entrevista à
BBC, Riefenstahl ainda comentaria que o destino da sua obra era o movimento, por isso passava mais de 18
horas por dia tentando transformar as 61 horas do que havia filmado em algo interessante. No entanto, para que
houvesse o movimento pretendido, a ordem dos acontecimentos tinha de ser alterada, não importando a verdade
cronológica.
119
conjunto da população alemã. Assim, tanto quanto Mein Kampf, esta obra representou o
próprio “Manifesto Nazista”, pois através da fusão entre imagem e texto, onde a imagem vira
texto, e o texto vira imagem, ela alcançava a internalização dos fatos. Isto é dito porque desde
que os dirigentes de uma sociedade compreenderam o papel que o cinema poderia
desempenhar, buscaram apropriar-se dele e colocá-lo a seu serviço. Dessa forma, os filmes,
sejam documentários ou obras de ficção, sob a aparência de representação, doutrinam e
glorificam.
Um viés de análise possível sobre a Primeira Guerra Mundial é o de que esse conflito
foi uma conseqüência da remobilização do Antigo Regime europeu, cujas forças da antiga
ordem ainda estavam suficientemente dispostas a lutar para prolongar sua vida frente às forças
inovadoras do capitalismo industrial e mundial, da sociedade política e democrática e do
modernismo cultural, exigindo, portanto, uma visão dialética entre o grande drama da
transformação progressiva e a permanência histórica. Sob esta perspectiva, podemos salientar
que a concepção de mundo nacional-socialista resultou de uma articulação entre a tendência
cultural e política derivada do século XIX, ou seja, tradição versus ruptura, e a novidade do
século XX, isto é, a aliança da técnica com a propaganda de massa, de modo que no III Reich,
os estetas nazistas se utilizarão dessas novas técnicas para divulgar seus ideais políticos e
culturais. Nesse sentido, o filme O Triunfo da Vontade” veio expressar a compreensão de
uma nova relação entre o conhecimento, oriundo da técnica, e o desejo, proveniente do
espírito nacional. Assim, o singular adquire um espaço de poder no seio da universalidade. A
partir desta obra cinematográfica, consequentemente, não bastava mostrar ao mundo apenas o
que era visível ou manifesto, mas o que estava sendo filmado como motor dos
acontecimentos, ou seja, as personagens, os sentimentos, logo, o que o era dito ou
diretamente perceptível.
120
Hoje em dia, a frase “uma imagem vale mais de mil palavras” parece ter-se
naturalizado, tornando-se uma espécie de expressão popular. É como se, ao repeti-la, uma
brasa capaz de iluminar um cenário, ou um fato em questão, fosse assoprada e a verdade então
reaparecesse clara, com seus contornos bem definidos. Ao que parece, no entanto, foi
Goebbels quem pronunciou tal citação pela primeira vez, tendo esta então surgido em meio à
Alemanha nazista. Para o Ministro da Propaganda, portanto, a imagem tinha a capacidade de
mobilizar multidões, uma vez que seria o tipo de linguagem apropriada para fazer as
engrenagens da sensibilidade se moverem, tornando mais fácil potencializar e direcionar as
massas. Assim, mais uma vez “O Triunfo da Vontade” se encaixa nessa concepção,
ilustrando, por conseguinte, o poder que a imagem pode adquirir, com seu potencial hipnótico
de movimentar multidões.
Entretanto, o que nos interessa, realmente, é problematizar a imagem que se vê, como
também a finalidade pela qual é produzida, procurando deste modo, analisar toda imagem
enquanto signo, ou enquanto traço pelo qual o olhar, ao significá-la, a transforma em signo.
Destarte, a película em questão permite-nos perceber que a imagem-movimento é composta
por signos de naturezas diversas, mas que ao serem relacionados, seu potencial se multiplica.
Assim, levando em consideração o método de análise de propaganda, desenvolvido pelo
semiólogo e filósofo francês Roland Barthes, devemos dividir em três os elementos
semiológicos: significante lingüístico, significante plástico e significante icônico.
208
Antes de
tudo, faz-se mister ressaltar a distinção entre o significante e o significado, na medida que
208
Uma figura destacada da semiologia foi Roland Barthes (1915-1980). Num texto chamado “Elementos de
semiologia”, editado inicialmente em 1964, Barthes definiu a semiologia como tendo “por objeto qualquer
sistema de signos, sejam quais forem a sua substância ou os seus limites: as imagens, os gestos, os sons
melódicos, os objetos e os complexos dessas substâncias que encontramos nos ritos, nos protocolos ou nos
espetáculos constituem, senão “linguagens”, pelo menos sistemas de significação”. Barthes ordenou os
elementos fundamentais da semiologia em quatro rubricas: língua e fala; significante e significado; sistema (ou
paradigma) e sintagma; e denotação e conotação. Para o presente estudo, dois desses binômios foram essenciais:
significante/significado e denotação/conotação. A denotação é a significação óbvia, de senso comum, do signo.
A conotação é quando o signo se encontra com os sentimentos e emoções dos utilizadores e com os valores da
sua cultura. Numa fotografia, por exemplo, a denotação é aquilo que é fotografado; a conotação é a forma como
algo é fotografado. A conotação é, todavia, arbitrária e específica de uma cultura. Ver: BARTHES, Roland.
Elementos de semiologia.o Paulo: Cultrix, 1987.
121
estes não representam dois termos de igual sentido. Segundo Ferdinand de Saussure, por
exemplo, o signo lingüístico constitui-se numa combinação de significante e significado -
como se fossem dois lados de uma moeda - de modo que o significante é uma inscrição, seja
ela através de traços fonéticos, escritos ou pictóricos consistindo no plano da forma - o
significado é o conceito, a idéia - residindo no plano do conteúdo
209
. Todavia, aplicar esta
teoria na análise do filme confere uma outra potência; grandiosa por sinal.
No caso do “Triunfo da Vontade”, podemos identificar o significante lingüístico,
especialmente, nos gritos da multidão ao proferirem Heil Hitler! É importante destacar,
contudo, que ao observar essas cenas, não estamos escutando brados somente, mas assistindo
a imagem-movimento de uma massa disciplinada, esbravejando em meio à ordem e simetria
totais. Desse modo, corpo e alma apresentam-se em uma cadência rítmica, mobilizados por
outros signos que, ao estarem imbricados, se potencializam, multiplicando, por conseguinte o
poder de significação. Não esquecendo, porém, que existe signo uma vez que o olhar
captura a inscrição e a conceitua.
Com relação ao significante plástico, ao aplicá-lo ao filme, adquirimos diversos
elementos, entre eles os planos, os cortes, o foco, o jogo de luz e sombra, os contrastes, a
melodia, o som delirante e glorioso de Wagner, o movimento, a velocidade e ainda objetos
focados dentre tantos outros desfocados.
o significante icônico, o último a ser trabalhado, relaciona-se a desenhos, fotos, e
imagens em geral. Contudo, cabe salientar - como bem alertou Charles Sanders Peirce
210
-
209
As elaborações teóricas do lingüista suíço Ferdinand de Saussure propiciaram o desenvolvimento da
lingüística enquanto ciência e desencadearam o surgimento do estruturalismo. Além disso, o pensamento de
Saussure estimulou muitos dos questionamentos que comparecem na lingüística do século XXI. Para mais
detalhes do assunto ver: SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. 22ª ed. São Paulo: Cultrix, 2000.
210
Charles Sanders Peirce foi um filósofo, cientista e matemático norte-americano. As áreas pelas quais é mais
conhecido, e às quais dedicou grande parte de sua vida e estudos, são a Lógica e Filosofia. Propôs aplicar nesta
última os métodos de observação, hipóteses e experimentação a fim de aproximá-la mais das características de
ciência. Peirce concebia a Lógica dentro do campo do que ele chamava de teoria geral dos signos, ou Semiótica.
Os últimos 30 anos de sua vida foram dedicados a estudos acerca da Semiótica, para Peirce um sistema de
lógica. Produziu cerca de 80.000 manuscritos durante a vida, sendo que 12.000 ginas foram publicadas.A
Semiótica Peirciana pode ser considerada uma Filosofia Científica da Linguagem. A Fenomenologia é a ciência
122
que o ícone é um tipo de signo considerado perigoso, uma vez que tem como característica a
pretensão de querer estar no lugar da coisa, isto porque ele tem seus traços semelhantes ao
referente. Vale a pena, inclusive, destacar a frase de Goebbels uma imagem vale mais que
mil palavras”, ou em outras palavras, um ícone vale mais de mil palavras porque ele ganha o
status de estar no lugar do referente.
Sendo assim, é possível fazer a análise de um anúncio publicitário e até mesmo, de um
filme enquanto propaganda política, por meio destes três significantes. No entanto, não
pretendemos analisar o filme semiologicamente, mas apenas refletir alguns elementos
semióticos nesta obra, destacando em primeiro lugar seu próprio título: “O Triunfo da
Vontade”, nome este que aspira denotar o triunfo do poder estabelecido, ou o triunfo dos
valores que estavam sendo constituídos pelo partido Nacional-Socialista. Triunfo que além de
tudo, também se manifesta na união das massas, massa esta que não tem gosto, não tem rosto
e nem mesmo opinião, produzindo então o anonimato e a extinção de traços singulares, mas
que, ao mesmo tempo, resulta no vigor de uma força maior. É essa força que cria no espaço
social um diagrama onde se pode localizar os indivíduos e através de dispositivos - e o cinema
propaganda se encaixa como tal - regular o corpo e a alma. É provável que este seja o foco
principal, à medida que é na disciplina e no controle que a força coletiva se torna mais
poderosa, em prejuízo das singularidades.
Esse filme, portanto, revela isto, o triunfo de uma vontade regulada pelo nacional-
socialismo e que tinha na propaganda o meio de alcançar seus objetivos, bem como divulgar o
ideário nazista. Dá-se assim, o processo da decomposição de forças individuais pelo contágio
de uma força maior, sendo isto que caracteriza um devir-maior, ou seja, uma experiência
controlada e regulada, e que caberia denominar de devir-massa.
que permeia a semiótica de Peirce, e deve ser entendida nesse contexto. Para Peirce, a Fenomenologia é a
descrição e análise das experiências do homem, em todos os momentos da vida. Nesse sentido, o fenômeno é
tudo aquilo que é percebido pelo homem, seja real ou não.
1
23
Podemos ainda inserir em nossa análise um quarto significante, o símbolo, uma vez
que este perpassa três conjuntos de imagens que estão presentes ao longo de todo o filme: a
massa, o Führer e a suástica, a saber - que de certa forma estão relacionados entre si. A
massa ao saudar Hitler, reconhece o seu poder e sua função fascinante de guiá-la. A suástica
211
, por sua vez, apresenta-se como símbolo da própria personificação do Führer da nação
alemã, bem como da ideologia do nacional-socialismo. Sob esse ponto de vista, a cena que, de
certo modo, melhor ilustra a constituição deste significado sobre a suástica, é quando Hitler
dá início à “celebração da bandeira” cumprimentando os soldados, porém sem vê-los, que à
sua frente encontra-se a flâmula com a insígnia em questão. Assim, à medida que o Führer
saúda os soldados, mas não os observa, vendo, por conseguinte a suástica, estabelece-se um
ritual de inscrição do ideário nazista nos corpos desses combatentes, por intermédio deste
símbolo majestoso.
É nesse momento que o significante plástico insere-se em uma produção
cinematográfica - quer através de um corte, quer na passagem de uma imagem para outra,
dando origem a um mosaico que acaba adquirindo sentido - conferindo significado a esse
conjunto de signos de naturezas diversas. À medida que como os diferentes signos vão sendo
combinados, existe todo um cuidado que implica no modo como o espectador deve se
comportar e reagir diante do filme. Em uma película de propaganda, sobretudo, em que há um
rígido controle na utilização dos significados, estes devem ser captados na sua exatidão, em
outras palavras, eles devem ser compreendidos sem desvio de interpretação. No entanto, não é
211
Apesar de ser um símbolo poderoso, não devemos entender a suástica de maneira mistificada, atuando de
modo subliminar, mas, buscando compreender o seu significado que - como todo símbolo - se de forma
arbitrária. Nesse sentido, o significado que a suástica adquiriu no período nazista, estava relacionado com os
discursos produzidos sobre ela. Assim, tanto quanto a imagem do Führer - e amesmo confundindo-se com ela
- a suástica aparece exaustivamente, simulando o próprio ideário nazista.
124
este o sentido que nos interessa, uma vez que procuramos nos aproximar do sentido obtuso
212
, de acordo com a concepção de Barthes.
Concluímos, portanto, afirmando que é através dessa relação entre signos que a
propaganda consegue encantar e envolver o espectador. Neste sentido, um filme pode ser
apreendido como um texto que se insere nos indivíduos a partir do momento que é o olhar e o
ouvir que convertem a produção artística em signo, ou melhor, que transformam o traço em
signo e essa conversão se dá no interior do próprio sujeito.
212
O obtuso seria um terceiro espaço de significação. O primeiro que é o informacional, a leitura óbvia, aquela
que o produtor, e neste caso a diretora, quer que o espectador faça, chamada de intencional. O segundo espaço de
significação é a relação do signo com o outro a que cada signo remete, como por exemplo, o símbolo da
Mercedes Bens que aparece no filme podendo representar, entre outras coisas, a força do espírito nacionalista. O
terceiro espaço, o obtuso, é o sentido errático, é aquela leitura que o leitor em hipótese alguma poderia fazer.
Fontes e Bibliografia
Fontes
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Direção: Ray Müller. Alemanha, 1994, VHS, 180 min.,
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Olympia (Festa do Povo). Direção e produção: Leni Riefenstahl. Alemanha, 1938, VHS, 126
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