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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
ESCOLA DE BELAS ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES
VISUAIS
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
A GRANDE ARCA DE JESUS A MATEUS:
FOTOGRAFIAS E INSTALAÇÃO.
UM ESTUDO DO IMAGINÁRIO DE PRESÉPIOS ATUAIS
NA CHAPADA DIAMANTINA
EDGARD OLIVA
SALVADOR-BAHIA
2006
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A GRANDE ARCA DE JESUS A MATEUS:
FOTOGRAFIAS E INSTALAÇÃO.
UM ESTUDO DO IMAGINÁRIO DE PRESÉPIOS ATUAIS NA CHAPADA
DIAMANTINA
Edgard Mesquita de Oliva Junior
Especialista em Fotografia, Cinema e Vídeo
Oficina Cinema e História FFCH UFBA 2002
Dissertação de Mestrado submetida ao programa de Pós-Graduação em Artes
Visuais da Universidade Federal da Bahia como requisito parcial para obtenção
do Grau de Mestre em Artes Visuais.
Orientadora: Profa. Dra. Sonia Lucia Rangel
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
Mestrado em Artes Visuais
Salvador Bahia 2006
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Biblioteca Central UFBA
O 48 Oliva Junior, Edgard Mesquita de.
A grande Arca de Jesus a Mateus: fotografias e instalação.
Um estudo do imaginário de presépios atuais na Chapada
Diamantina / Edgard Mesquita de Oliva Junior. 2006.
159 f.: il.
Orientadora: Prof. Dra. Sonia Lucia Rangel
Dissertação (mestrado) Universidade Federal da Bahia.
Escola de Belas Artes, 2006.
1. Artes - tradições populares. 2. Presépio. 3. Fotografia. I.
Rangel, Sonia Lucia. II. Universidade Federal da Bahia.
Escola de Belas Artes. III. Título.
CDU: 7:398.1
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
Escola de Belas Artes
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais
EDGARD MESQUITA DE OLIVA JUNIOR
A GRANDE ARCA DE JESUS A MATEUS:
FOTOGRAFIAS E INSTALAÇÃO.
UM ESTUDO DO IMAGINÁRIO DE PRESÉPIOS ATUAIS NA CHAPADA DIAMANTINA
Dissertação para obtenção do Grau de Mestre em Artes Visuais
Salvador, 10 de julho de 2006
Banca Examinadora:
Sonia Lucia Rangel______________________________________________
Doutora em Artes Cênicas
Universidade Federal da Bahia
Maria Hilda Baqueiro Praraíso _____________________________________
Doutora em História Social
Universidade Federal da Bahia
Renato José Amorim da Silveira____________________________________
Doutor em Antropologia Visual
Universidade Federal da Bahia
A
Edgard M. de Oliva e Gildeth de A. Oliva, meus pais, um especial
agradecimento pela compreensão quanto às minhas ausências devido aos
momentos dedicados a esta pesquisa.
Aos amigos, pelo longo período de afastamento do nosso convívio
social, a minha eterna gratidão.
AGRADECIMENTOS
Agradeço aqui o apoio de diversas pessoas e instituições para que o “encontro” com
esses presépios se realizasse. O investimento financeiro foi alto, assim como o investimento
em tempo de deslocamento até a região pretendida, sem falar no árduo trabalho de
garimpagem para que os objetivos se cumprissem. Os presépios ali encontrados são
verdadeiros tesouros da cultura popular e será necessário percorrer outros 5.936 quilômetros
para se ter um conhecimento mais amplo da sua fenomenologia.
Em especial a todas as famílias que, pacientemente, me receberam para uma visita a
seus presépios, das quais pude ocupar o precioso tempo. Entre tantas, cito as das senhoras
Aurenive Moreira Neves (João Correia Mucugê/Ba); Antonia Pereira dos Santos (Utinga-
Bahia); Alice Ferreira Braga (Wagner Bahia); Antonia Santana da Silva (Igatu/Andaraí-Ba);
Zenilda Pina (Palmeiras Bahia); Idalícia dos Santos, in memoriam, (Igatu/Andaraí-Ba), Maria
de Lourdes Rodrigues de Sousa (Bonito-Ba); Delzuita de Souza Santos (Igatu/Andaraí-Ba).
Aos Professores do Programa de Pós Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas
Artes da Universidade Federal da Bahia, pela atenção a esta pesquisa e o desejo de vê-la
concluída. Um especial agradecimento à minha orientadora, Professora Dra. Sonia Lucia
Rangel, pela atenção e dedicação a este trabalho, orientando-me para a “medida certa” das
palavras e termos empregados.
Aos colaboradores diretos, como Alex Simões, Beatriz Franco, José Mário Peixoto,
Marta Luna e Janete Catharino, pela companhia, presença e participação em viagens de
campo. A Euler Oliva, pela importante contribuição no Design gráfico dos produtos desse
projeto; a Beto Oliveira da Objetiva Foto & Filme, pelos apoios concedidos. Ao mestre Pedro
e sua família bairro do Uruguai pela sua colaboração na coleta de material para
concretização da instalação.
Aos amigos e a todos aqueles que apoiaram direta e indiretamente as etapas até aqui
executadas, como Padre José Pinto, pela preciosa informação sobre a obra de Celso Oliva; a
Abel Kanaú, D. Mariana, Marco Aurélio e Vera Teixeira em Igatu, pelas gostosas dormidas
em seus lares; a Justino Marinho e Dra. Sandra Moreira, por facilitarem contatos na região; ao
Professor Edson Gonçalves, Aroldo, Iara e Alina Tavares, por colaborarem com a equipe
durante a terceira etapa da pesquisa no município de Bonito; ao Sr. Herculano Oliveira por ter
me conduzido a Sra. Lícia Maciel Neves que prestou rico depoimento sobre a cultura dos
presépios e ao Sr. Joaquim Coutinho, pela sensibilidade com a cultura popular, resgatando a
arte de fazer presépios na cidade de Andaraí, Chapada Diamantina; a Erivaldo Sales Nunes e
Milton Júlio, pela santa paciência em montar tão complexo projeto enviado ao Minc.
Às empresas Objetiva Foto filme, Minas Pneus e Pousada Rosa, em Rio De Contas,
pelos importantes apoios às viagens realizadas.
Ao Instituto Goethe Inter Nationes, na direção do Sr. Peter Anders pela realização da
primeira mostra fotográfica com este tema durante o IV Mercado Cultural, 2002.
Aos Prefeitos e Secretários de Cultura dos municípios abaixo:
Sr. Ezequiel Paiva - Prefeito do Município de Boninal (jan. 2001);
Sr. Antonio Fernando de Sousa - Prefeito do Município de Iramaia (dez.2001);
Sr. Edival Luz Silva - Prefeito do Município de Abaíra (jan. 2002);
Sr. Jaime de Oliveira Rosa - Prefeito do Município de Piatã (jan. 2002);
Sr. Alberto Muniz - Prefeito do Município de Utinga (dez. 2002);
Sra. Maria J. Freitas, Coordenação de Turismo do Município de Utinga (2002);
Sra. Leidiane S. Silva - Secretária de Cultura e Turismo de Bonito (dez. 2002);
Sra. Sulamita Senna Matos - Secretária de Administração e Finanças do Município
de Wagner (dez. 2002);
Sr. Heraldo Barbosa Filho - Secretário de Cultura e Turismo do Município de
Lençóis (jan. 2003);
Sr. Walterson Coutinho - Prefeito do Município de Iraquara (jan. 2003);
Sra. Ana Medrado – Prefeita do Município de Mucugê (dez. 2004);
Sr. Marcos Teles Prefeito do Município de Palmeiras (jan. 2005);
Sr. Dálvio Leite, prefeito de Seabra e ao Sr. Pitágoras de Luna Freire Alves -
Secretário de Cultura do Município (jan. 2005).
RESUMO
O presente trabalho descreve uma poética que tem como tema principal a investigação dos
presépios atuais na Chapada Diamantina, Estado da Bahia, com ênfase nos processos de
criação desses cenários natalinos. Com uma abordagem sócio-compreensiva, o objeto foi
investigado com base na estética do visível, tendo como princípio o imaginário do sujeito para
a ação criadora a partir da investigação oral e dos elementos presentes nos presépios
estudados. Foram utilizadas para abordagens teóricas autores como Roland Barthes, Michel
Maffesoli, Luigi Pareyson e Ítalo Calvino, que tratam a ação criadora como o modus operandi
do sujeito. Foram empregadas as técnicas da fotografia e do vídeo, assim como entrevistas
diretas e aplicação de ficha de identificação para inventário do objeto, como instrumentos de
coleta das informações necessárias à compreensão da pesquisa. O processo criativo finalizado
ou configurado em fotografia e instalação ocorre a partir dos recortes fotográficos que foram
realizados enfocando elementos, ou conjuntos de composição, que extrapolam a estrutura
religiosa, sendo, contudo, reveladores de situações sociais e da crença inseridos no contexto
do imaginário no presépio. A partir desse princípio foi gerada a instalação todos os dias, na
qual se faz uma analogia entre as figuras “mutiladas” dos presépios com as crianças de rua
dos grandes centros urbanos, simbolizadas nos bonecos encontrados ‘abandonados’ em nossas
vias urbanas.
Palavras-chave: Poéticas Visuais. 2. Fotografia. 3. Instalação. 4. Presépio. 5. Tradições
Populares.
ABSTRACT
The Present work describes the poetics that investigate representations of the Nativity
scene nowadays at Chapada Diamantina, State of Bahia, emphasizing the process of making
these Christmas sceneries. With a social-comprehensive approach, the object was investigated
based on the aesthetics of the visible, coming to the imaginary of the subject to the creative
action from oral investigations and the current elements of the studied sceneries. Theoretical
approaches of authors such as Roland Barthes, Michel Maffesoli, Luigi Pareyson and Ítalo
Calvino were adopted, for the treatment of the creative action as the modus operandi of the
subject. Techniques of photography and video were used, as well as direct interviews and
identification forms for the inventory of the objects, as means of collecting the necessary data
for this research’s comprehension. The creative process concluded or configured in
photography and installation happens from the photographical cuts I realize, focusing
elements or composition wholes that surpass the religious structure, being, nevertheless,
revealers of social and creed backgrounds inserted in the scenery’s imaginary context. The
installation Todos os Dias was based on this principle, in which I make an analogy between
the “mutilated” figures used on Nativity sceneries and the children on the streets of the big
urban centers, symbolized by the abandoned dolls found on our city’s ways.
Keyworlds: Visual Poetics. 2. Photography. 3. Installation. 4. Nativity scene. 5. Popular
traditions.
ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES
Ilustração 01. Mapa geográfico demarcando os municípios investigados. 22
Ilustração 02. Mapa rodoviário das etapas realizadas, destacando a etapa 2004/05. 23
Ilustração 03. Primeiro estudo para a instalação todos os dias. 37
Ilustração 04. Evolução dos estudos. 38
Ilustração 05. Estudos para objetos. Visão frontal e lateral das peças para
compor a instalação. 38
Ilustração 06. Estudo final para composição da instalação. 39
Ilustração 07. Planta baixa da Galeria Cañizares, mostrando plano de montagem
para exposição das obras. 40
Ilustrações 08, 09 e 10. Detalhes da instalação todos os dias. 46
Ilustração 11. Detalhe da instalação todos os dias. 47
Ilustração 12. Manuseio do espaço para construir presépio por Edna P. de Oliveira. 53
Ilustração 13. Antonia Pereira dos Santos e menina na montagem do pequeno cenário. 53
Ilustração 14. Crianças confeccionam pequeno presépio em nicho de madeira. 54
Ilustração 15. Final da criação do presépio em nicho de madeira. 54
Ilustração 16 D. Aurenive confecciona presépio em nicho de madeira. 55
Ilustração 17. Presépio tradicional de Telma M. de Quadro Costa. 67
Ilustração 18. Presépio de Anita Oliveira Ramos. 67
Ilustração 19. Presépio de D. Laura Pereira Sousa ornamentado
com grande diversidade de materiais. 69
Ilustração 20. Detalhe de presépio contendo contrastes de elementos. 69
Ilustração 21. Presépio de Aurenive Moreira Neves. 70
Ilustração 22. Detalhe do centro do presépio de Aurenive M. Neves. 71
Ilustração 23. Presépio de D. Aurenive Moreira Neves com a presença
de Catita e Mateus. 76
ilustração 24. Detalhe de presépio com iconografia de Iemanjá e boneca “mutilada”. 78
ilustração 25. Detalhe de presépio com figura “mutilada”. 78
ilustração 26. Presépio de Antonia Santana. Ao centro, o casal Catita e Mateus.
Nota-se, também, o estilo tracejado da pintura sobre a forração do presépio. 82
Ilustração 27. Presépio de Idalícia dos Santos forrado com papel jornal e pintado com
tracejados em um azul semelhante ao da parede. Abaixo e no lado inferior direito, vê-se
a presença do casal Catita e Mateus. 83
Ilustração 28. Detalhe de presépio contendo elementos decorativos e entre
eles parte de uma arma de brinquedo. 85
Ilustração 29. Detalhe do presépio de Antonia Pereira dos Santos. 88
Ilustração 30. Antonia Pereira dos Santos e parte do seu presépio. 93
Ilustração 31. Composição com Nossa Senhora de Anhangüera em detalhe
no presépio de Antonia Pereira dos Santos 94
Ilustração 32. Minha presença como escala de proporções no presépio
de Antonia Pereira dos Santos. 95
Ilustração 33. Detalhe de presépio de Aurenive M. Neves, mostrando figuras híbridas
construídas pela autora. 106
NOTA. Com exceção da ilustração 32 que é de autoria de Beatriz Franco, as demais foram realizadas
por mim durante as etapas que estive em campo para coleta de material.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO 14
Estórias e motivações 14
História e motivos 18
Princípios e conexões 24
CAPÍTULO I: OS PRINCÍPIOS DE UMA CRIAÇÃO 30
Os caminhos para minha construção memorial 31
Um convite à criação 48
Trocar: um modus operandi da criação 49
Olhos tapados orelhas vendadas, uma metáfora do cotidiano 55
CAPÍTULO II: O OBJETO VISÍVEL OU O CENÁRIO CODIFICADO 61
No contexto da visibilidade, o cenário e a fantasia do sagrado 72
A poética da vida cotidiana 83
CAPÍTULO III: A GRANDE ARCA DE JESUS A MATEUS 96
Nos caminhos de areia do presépio arte 99
A grande arca: uma estética mutante 103
Personagens e cenário: sobre o imaginário de Catita e Mateus 107
CONCLUSÃO 115
REFERÊNCIAS 118
ANEXOS: 122
14
APRESENTAÇÃO
Estórias e Motivações
Esta pesquisa se desenvolveu no âmbito do Mestrado em Artes Visuais, na linha
de Poéticas e Processos Criativos, tendo como referência os presépios atuais na
Chapada Diamantina, e configura o aprofundamento de um estudo que venho
realizando, como fotógrafo e artista plástico, desde o final da década passada.
Sobre a minha história de convivência com os presépios, lembro que, desde
criança, tinha curiosidade em observá-los nas residências de vizinhos e amigos da
família. Àquela época, por volta dos anos 60 e 70, na cidade de Itapetinga Bahia
costumávamos, eu, meus pais e meus irmãos, visitar o presépio de Dona Cota e Sr.
Fernando que, no período das festas natalinas, era montado na sala principal da casa em
que viviam, no pequeno sítio a 10 km do centro da cidade. Em outros momentos, pude
observar, também, os presépios de Amélia de Almeida Sampaio (Milu) e Helena de
Almeida Sampaio (Neni), duas primas da família de minha mãe, na cidade de
Itaquara/Bahia, que montavam grandes “instalações” de presépios demasiado criativos.
Como tradição da fé dos católicos, esse objeto de referência fora herdado de uma irmã
das referidas primas, Marieta de Almeida Sampaio, que, ao falecer, deixou-lhes como
herança, segundo narra uma das minhas tias.
Com a minha mudança para a Capital do Estado e os posteriores retornos às
cidades nas quais passei a infância Itapetinga e Itaquara para reencontros com
parentes e amigos à época das festas de Natal, a ansiedade de rever os amigos fez-me
deixar as costumeiras visitas ao sítio de Dona Cota e Sr. Fernando, assim como de
outros presepistas
1
. Porém, com o passar dos anos, a lembrança dos presépios de minha
convivência na infância nunca se apagou, ficando como referência na memória. No
entanto, a religião e o significado de religiosidade ganharam questionamentos na
1
Referente àquele(a) que monta presépios. Existe, também, a denominação de “belenista”, que diz
respeito à cidade de Belém de Nazaré, local onde nasceu o menino Jesus.
15
experiência pessoal, a partir do momento em que percebi no âmbito da minha família
correntes religiosas crentes na criação divina, bem como correntes de pensamento de
cunho ateísta ou questionador da doutrina da Igreja católica.
O meu reencontro com os presépios deu-se em um momento de busca por novas
imagens nas pesquisas visuais e para as construções fotográficas que vinha realizando
em meados dos anos 1990, mais precisamente entre 1995 e 1999, período em que
desenvolvi uma série de imagens, em um outro contexto, enfocando o sagrado e o
profano. Misturando em um mesmo negativo imagens de fontes de captura diferentes
para as quais as matrizes são diapositivos, utilizo uma técnica própria como forma de
expressar-me na construção de uma nova imagem para a minha fotografia, técnica que
pretendia utilizar nas primeiras imagens obtidas dos presépios na Chapada Diamantina,
misturando-as em minhas construções/criações, em que exploro novos conceitos para os
elementos estéticos e formais existentes na arte. Teria sido esta a motivação inicial para
a utilização das imagens de presépios.
Os primeiros registros de presépios realizados por mim na Chapada Diamantina
ocorreram em janeiro de 1998, na casa de D. Idalícia dos Santos. Neste primeiro caso o
presépio não me chamou tanto a atenção. Um ano mais tarde, em janeiro de 1999,
realizei novas imagens do presépio de Idalícia e de outros na região. Ainda com
intenções de “misturá-los” às imagens que vinha desenvolvendo com a técnica citada
acima, pude, depois de revelado o filme, constatar a estética particular desses presépios.
Os presépios eram constituídos de elementos que dantes eu não tinha como referência
nessas montagens natalinas. Esses elementos, a princípio estranhos à minha memória e
à representação religiosa mais tradicional, causaram-me um grande impacto, fazendo
com que eu, a partir daí, passasse a dirigir minhas atenções para esta forma de
representação, sobretudo pela estética popular voltada para o religioso, porém,
construída a partir do imaginário do indivíduo criador. Naquele ano, registrei sete
presépios, sendo um deles na cidade de Mucugê.
Dentre as peças fotografadas, chamou minha atenção o presépio de Idalícia dos
Santos, que ficava localizado num dos cantos da sala da sua pequena casa, cômodo que
possuía as paredes azuis, um azul cerúleo que parecia refletir a cor do céu de Igatu.
16
Nesta sala e montado sobre uma pequena mesa do tipo porta objetos (as duas vezes que
registrei o presépio ele estava sobre a referida mesa) que ela forrava com jornal e
pintava com pigmentos ou corantes artificiais, observei, também, que havia uma forma
particular de pintar o papel jornal que forrava seu presépio. A princípio, pensei que se
tratava de uma maneira própria de Idalícia enriquecer cromaticamente seu objeto
sagrado, porém, ao conhecer outros presépios naquele pequeno povoado, percebi que o
modus operandi se repetia, parecendo, em uma primeira impressão, ser um traçado
característico daquela localidade. O traçado, ou pincelada, é constituído de um tipo de
linhas interrompidas, normalmente com uma ou duas cores, o que, pela repetição do
estilo, levou-me a questionar sobre a possibilidade de estar ali uma forma de identidade
própria daqueles presépios. Somente em Igatu e mais recentemente em Andaraí,
município ao qual pertence Igatu, eu percebi esta maneira de pintar sobre os presépios e,
reitero aqui, a importância para esta característica entre os presépios daquela
microrregião, (ver ilustrações 26 e 27).
A partir do exposto, o presépio de Idalícia provocou o insight para a elaboração de
novas capturas em imagens no âmbito desses objetos, por sua estrutura simples e por ser
construído a partir de elementos singulares como bonecos e outros brinquedos de
plástico, além de lâmpadas queimadas e ampolas de medicamentos vencidos que
entravam como objetos decorativos no seu presépio. Não me restou outra alternativa
senão dar início e prosseguimento a um levantamento mais sistemático. Posso afirmar
que daí surgiu o meu interesse por esse tema como fonte para a pesquisa que
desenvolvo, com uma abordagem no ato da criação a partir do imaginário popular e sua
estética peculiar.
Sobre Idalícia, tenho outras imagens; tenho largas lembranças embora nossa
convivência tenha se dado por pouco tempo, limitada às minhas viagens turísticas a
Igatu. A minha pesquisa está fundamentada na estética desses objetos, exatamente e a
partir de um dos presépios de Idalícia. Esses objetos, de uma maneira geral, narram a
vida das pessoas que os montam, trazendo como pano de fundo o referencial do
nascimento do menino Jesus. Possuem, portanto, um forte conteúdo simbólico dos
cultos religiosos e do cotidiano de cada família, com referenciais no passado e na
história pessoal de cada um deles, autores dos presépios.
17
no ano de 2001, mais precisamente no mês de março, fui selecionado para o
curso de especialização, lato sensu, da Oficina Cinema-História da Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas da UFBa, recorrendo a esta temática como meus
primeiros passos para melhor compreensão do objeto. Desenvolvi o projeto de pesquisa
com o título Persistências e Sobrevivências dos Presépios: a estética da cultura
popular nas sociedades da Chapada Diamantina, cujo Trabalho de Conclusão de
Curso (TCC) seguiu por uma linha teórica abordando a problemática social e política
nas comunidades mais carentes, a partir do observado em campo, das entrevistas diretas
documentadas em ficha própria e da análise das imagens obtidas. Na referida pós-
graduação, e no processo por uma melhor compreensão dessa estética popular,
“encontrei-me” com Roland Barthes (1915-1980), e em um de seus livros, o clássico A
Câmera Clara (1984), no qual li a seguinte definição para a imagem fotográfica: “Em
primeiro tempo, a Fotografia, para surpreender, fotografa o notável; mas logo, por uma
inversão conhecida, ela decreta notável aquilo que ela fotografa” (BARTHES, 1984,
p.57). Foi justamente isto o que ocorreu: fotografei os primeiros presépios com
determinado objetivo, mas por uma percepção do que poderia estar além daquelas
imagens, “decretei” o objeto “notável” para que eu pudesse ir além da imagem
fotográfica. A partir daí, questionei o modus operandi daquelas construções além da
presença de tantos elementos estranhos ao plano da representação religiosa mais
tradicional, como a grande quantidade de bonecos plásticos e outros pequenos
brinquedos ali presentes. Completava esta minha curiosidade a presença das ampolas de
medicamentos. Também a maneira especial como são pintados os papéis que fazem a
forração dos presépios, a presença de conchas de moluscos somente encontrados na
costa oceânica, etc. Para mim, aqueles objetos se constituíam em algo novo, expressivo
e significativo; mereciam, portanto, um desdobramento e uma leitura mais profunda a
respeito de sua estrutura e criação a partir dos instrumentos fornecidos por aquela gente,
seus objetos e suas falas. Mereceram atenção especial para que esta pesquisa pudesse
mostrar as múltiplas formas da diversidade cultural do nosso povo, de uma gente
sofredora e de grande capacidade criativa. Para tanto, realizei entrevistas tomando
depoimentos em audiovisual para que ficassem registrados, para a história dessas
populações e para um futuro banco de dados, os referenciais de uma cultura com
identidade própria da gente do Nordeste brasileiro, com seu jeito simples de viver,
potencialmente criativo.
18
Ao dar prosseguimento às minhas investigações, fui percebendo que vários
elementos “exóticos” são introduzidos nas construções desses presépios, o que ratifica
essa identidade própria, possibilitando, a partir daí, o exercício da criatividade através
da representação nos cenários e da narrativa pessoal a partir do imaginário.
Na especificidade do tema a ser tratado, ficam os presépios daquela região
vulneráveis a variações estéticas quanto à introdução de elementos visuais “modernos”,
que contribuirão para uma rápida “modificação” no que se refere à estética, a sua
história e à história da família executora do presépio.
História e motivos
Sobre a origem da região, e os primeiros presépios ali instalados, sabe-se que a
Chapada Diamantina foi descoberta na época dos bandeirantes pelo interior do Brasil.
Datam do século XVI as primeiras investidas naquelas terras. Segundo BANDEIRA
(1988),
As primeiras expedições dos bandeirantes baianos e paulistas à região
central do Estado da Bahia datam do século XVI, sendo que duas
delas são de relevante interesse para o estudo. Foram elas: a de
Gabriel Soares de Souza e a de Belchior Sarayva Dias Moreyra, que
partiram em direção da Chapada Diamantina. Embora não a tivessem
penetrado, foram as únicas que inicialmente a contornaram, beirando
seus limites mais exteriores (BANDEIRA, 1988, p.17).
Em recente visita à região, pude tomar o depoimento da professora Zenilda
Pina
2
, também pesquisadora e que em breve lançará um livro contando a história da
2
Zenilda Pina é diretora e professora de escola de Primeiro Grau na cidade de Palmeiras. Atua, também,
como pesquisadora sobre a região da Chapada Diamantina, mais especificamente sobre o município de
Palmeiras. Está no prelo o livro de sua autoria Encontro com a Villa Bella das Palmeiras, cujo conteúdo
se refere à fundação e à história da cidade e aos costumes locais.
19
fundação de Palmeiras, município localizado na Chapada Diamantina. Neste livro, a
professora Zenilda Pina relata as conquistas das terras pelos garimpeiros e posseiros,
bem como as brigas políticas entre as famílias em disputa pelas terras férteis daquela
região, à época das primeiras descobertas das lavras de pedras preciosas.
Com a chegada dos primeiros ‘senhores da terra’ à localidade, implantam-se ali
os costumes da Coroa Portuguesa, incluindo, também, a herança religiosa e católica.
Segundo a Professora Zenilda Pina, o presépio foi introduzido na Chapada
Diamantina em 1851, pelo casal português Benedito Ferreira Souza Chagas e sua esposa
Isabel Cerqueira Novaes Chagas (D. Rosa). Montado no casarão da família,
encontravam-se, em seu conjunto iconográfico, apenas os personagens bíblicos, como
no costume português.
A Professora Zenilda conta, também, que a descoberta do diamante no povoado da
fazenda das Palmeiras ocorreu em 1864, data que marca a fundação do antigo povoado.
Na fazenda cultivava-se cana, criavam-se suínos e mais tarde procedeu-se a exploração
dos diamantes. Com a notícia da descoberta dos diamantes, em 1855 veio de Minas
Gerais, da cidade de Grão Mongol, para habitar a região, o Barão de Grão Mongol,
amigo de D. Pedro II, com finalidade de conhecer melhor aquela terra para posterior
exploração das pedras preciosas. O Barão de Grão Mongol permaneceu na Vila das
Palmeiras até que um desentendimento com um dos seus subalternos o fez decidir ir
para a cidade de Rio Claro em São Paulo, abandonando, com isso, as suas funções na
recém criada Vila das Palmeiras.
A Professora Zenilda Pina relata, ainda, as entradas por terras indígenas para a
exploração das lavras, as quais vieram a se tornar, mais tarde, áreas de garimpo. Relata,
ainda, a migração e o desaparecimento dos índios, citando, também, as inscrições
rupestres que os aborígines deixaram como registro da passagem por aquelas terras.
Segundo ela, viveram ali, até a chegada dos portugueses, os tapuias, que habitaram as
serras das Pulgas e Cariri.
É certo que a região da Chapada Diamantina é rica em história de guerras e
conquistas pela exploração mineral das suas riquezas. E quem pode melhor nos
exemplificar sobre isto, mostrando-nos o quanto os ‘diamantes’ valiam para todos os
que ali chegavam e habitavam, é o escritor Herberto Sales, em seu romance Cascalho
20
(1975), no qual o autor narra com doses de realismo o cotidiano da vida do garimpo
nestes locais, que por vezes parecem ser inóspitos. Sua gente, seus costumes, os
excessos depois de bamburrar
3
, o conforto das minorias e a expectativa por mais uma
boa lavagem do cascalho na terra já conquistada e removida, levaram a batalhas e
sacrifícios de vidas. Vejamos um dos trechos em que o autor relata uma das passagens:
Com os cabarés cheios de gente dia e noite, com tropas entrando com
grandes carregamentos de mercadorias e a caixeirada suando no
balcão sem respeitar domingo nem feriado, porque volta e meia
estava um garimpeiro bamburrando e procurando em que gastar o
dinheiro, de tal sorte que tudo isso compunha aos olhos deles a
imagem de um mundo que atordoava pela exuberância, atraindo-os
como uma voragem (SALES, 1975, p.170-1).
Assim se fez, e ainda se faz a história da Chapada Diamantina: entre construções
e desconstruções, entre pedras preciosas e vidas preciosas. Ambas se vão. Uma para se
compor em colares de alto valor comercial, símbolo do poder; outras preciosidades
como a vida humana e a natureza devastada se vão para sempre, para não serem mais
vistas, mas para serem lembradas em futuras histórias. Histórias de garimpos e de
ganâncias; de coronéis que disputaram nas terras dos nativos os índios , o sonho
dourado da riqueza, deixando uma infinidade de cicatrizes. Restaram, então, as
lembranças, estórias e contos de aventuras que muitos narram como fatos heróicos de
seus antepassados.
Em Igatu/Andaraí não foi diferente. O comércio foi influente no apogeu das
pedras preciosas, os diamantes pululavam nas bateias dos garimpeiros e estes mesmos
garimpeiros não sabiam como gastar tanta moeda. A fartura e a vida mundana deixavam
atordoado aquele bando de homens que se propuseram a deixar marcas naquelas terras,
marcas que os rios, agora assoreados, trazem à minha imaginação como deve ter sido
aquela massa humana em movimento nos leitos dos rios à procura dos diamantes,
rolando seixos e escavacando o cascalho na busca das pedras mais valorizadas do
3
Conseguir coletar uma boa quantidade de diamantes ou encontrar uma pedra de bom tamanho e
excelente qualidade.
21
mundo. Em um outro texto de Herberto Sales, o autor cita um bairro de Xique-Xique,
hoje vila de Igatu, no qual se nota a passagem histórica do homem a partir das ruínas ali
existentes, revelando ao visitante que houve vida social intensa no passado. Vejamos:
O Bairro do Luís dos Santos, hoje totalmente em ruínas, era habitado
até meados do século passado. Por se tratar de uma grande área de
mineração, aqui se estabeleceram rapidamente as construções
residenciais dos garimpeiros. Bairro popular, era famoso por seus
blocos de carnaval e reisados. Era um dos núcleos de maior
concentração populacional. Após seu abandono, por estarem
inseridos numa área própria de mineração, muitas casas sucumbiram
devido à procura de diamantes nos seus subterrâneos (SALES)
4
.
É neste cenário que o presépio se insere no contexto de um passado cercado de
excessos, e de um presente com escassez, o que para muitos torna o enfoque do presépio
um misto entre a realidade e a ficção, o religioso e o profano, uma conseqüência visível
da saga pela riqueza. Reflete, também, o contexto pessoal inserido numa grande “arca”
5
que “transporta” os sonhos de cada pessoa executora do presépio, como parte do seu
imaginário. É o passado em “confronto” com o presente, a realidade exposta no plano
do inconsciente e no âmbito da memória daqueles que a reconstroem. É, também,
através desse grande histórico, como uma grande “arca” memorial, que se pode revisitar
o passado, a partir das estórias do imaginário que cada depoente concede no momento
da entrevista.
4
Citação atribuída a SALES (sem data), impressa em placa acrílica na Galeria Arte e Memória, Igatu,
Bahia.
5
Insiro o termo arca no sentido de o presépio ser um grande depósito da memória coletiva. Esta arca
transporta, através dos anos, o memorial da família, propiciando, com isso, a preservação do modus
vivendi da comunidade.
22
Ilustração 1. Mapa geográfico demarcando os municípios investigados a partir do ano de
2000, destacando a viagem de 2004/05 especialmente para coleta de dados desta pesquisa.
23
Ilustração 2. Mapa rodoviário de todas as etapas realizadas, destacando a etapa 2004/05
para fins de coleta desta pesquisa.
24
Princípios e conexões
Para dar conta deste objeto tão complexo utilizei-me de procedimentos tais como
a observação direta do objeto no seu lócus de origem, ao tempo em que realizei
documentação fotográfica e em vídeo digital. Posteriormente, as imagens capturadas
ficaram como uma referência imagética para a pesquisa prático-teórica. Para dar
embasamento teórico e buscar uma compreensão do objeto a partir do que ele oferece ao
olhar, foi estabelecida a conexão com autores e pesquisadores através de um referencial
bibliográfico, cuja abordagem nos processos criativos fez-me compreender as ações do
homem “criador” como parte do seu processo de vida, baseado na crença no divino.
Inicialmente, a grande presença de ícones no objeto de estudo levou-me às
questões mais elementares a respeito do que estariam fazendo ali, ou qual seria, de fato,
a sua função nos presépios, observando que, no campo simbólico, esses ícones exercem
papel importante como objetos representativos de um grupo social. A partir dessa
observação, questionei o princípio da criação dessas pessoas e o que lhes proporciona
criar narrativas para seus objetos e personagens. Este fato foi observado tanto no
aspecto do imagético quanto no da oralidade das estórias a partir da narrativa do sujeito.
Atento a esta problemática, cada vez que viajo à região da Chapada Diamantina no
período natalino, sou “possuído” por um desejo imenso de conhecer melhor esta forma
de manutenção da cultura que vem estabelecendo conexões com o passado e o presente
das famílias que montam presépios.
Durante o processo de investigação procurei compreender o cenário natalino
como um objeto arte, a partir da minha percepção artística, para a qual o homem atua
como um ser que produz arte em função de algo que poderá ser material ou imaterial,
onipresente, espiritual.
Em um outro momento, com o avanço das investigações e o arquivamento de
imagens, perguntei-me o que fazer com “aquilo”, ou seja, sentia-me diante de tamanha
responsabilidade perante um objeto tão rico para estudos em futuras pesquisas, e com
25
grande possibilidade de abertura para a pesquisa no âmbito da criação plástica a partir
do observado.
Para estabelecer um diálogo com a minha obra fotográfica e o objeto em estudo
procurei ver o cenário natalino como pertencente às criações e interpretações humanas
no qual se percebe, em cada elemento ali posicionado, que o presépio cumpre sua
função enquanto signo para o contexto da realidade à qual pertence. Foi exatamente
neste ponto, entre o mundo projetado externamente e o mundo interior do sujeito
abordado, que busquei estabelecer a relação daquele sujeito com o seu mundo expresso,
ou seja, o objeto e seus signos. Para estas representações ou projeções do indivíduo,
conduzi as investigações procurando compreender o processo criativo a partir do
depoimento e da narrativa do entrevistado. Sendo assim, os elementos dispostos nos
presépios tornam-se importantes referenciais para o desenvolvimento da narrativa que,
em um contexto mais amplo, possui uma grande dose da expressão e criatividade
popular.
Em sua formulação na Câmara Clara , Barthes (1984) descreve a imagem como
reveladora de um punctum que atinge sensivelmente o perceptor. Palavra em latim que
significa “picada”, “ferida”, “pequena mancha”, “pequeno corte” na imagem
fotográfica, efeito este, segundo Barthes, que é produzido pela própria existência da
imagem. Diz: “parte da cena, como uma flecha, e vem me transpassar” (BARTHES,
1984, p. 46). O que Barthes quer dizer com “vem me transpassar” ou a ‘presença’ deste
ponto ou punctum tem referência com as ‘zonas’ sensíveis da imagem, às quais o olhar
do espectador se atém “amortizando” este olhar àquele ponto de maior reflexão na cena.
Para o autor, “o punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me punge (mas também
me mortifica, me fere)” (idi., 1984, p. 46). O autor também nos diz que a imagem
possui uma espécie de ponto de atração ou um ponto agudo para a percepção além do
studium, ou seja, o plano geral da imagem e o assunto distribuído em seu espaço
imagético. Quanto a este aspecto percebi nas imagens dos presépios capturadas nas
diversas localidades da Chapada Diamantina a presença do elemento studium
6
em um
primeiro momento para, logo em seguida notar, também, a presença do punctum.
Naqueles primeiros anos, ou seja, nas primeiras imagens capturadas, entre 1997 e 1999,
6
Barthes define o studium como um primeiro elemento da fotografia, e o punctum como o segundo.
26
eu ainda não conhecia a obra de Roland Barthes. Portanto, a minha percepção foi
meramente intuitiva levando-me a um desejo imenso de conhecer melhor aquela
fenomenologia.
No âmbito desta pesquisa foi necessário compreender o objeto no tempo e no
espaço para o processo criativo. A tradição de montar presépios remete à história da
formação e solidificação da religião católica, situando o presépio como coadjuvante do
sujeito criador no aspecto social e memorial da religião. Nesse sentido ele exerce o
papel de documento e elo cultural entre as comunidades enquanto meio de expressão
popular a partir do imaginário do indivíduo. Calvino (1990) cita as imagens como
“pontes” entre gerações distintas, tornando a história dos povos conectada através dos
tempos, entre o passado e o presente através do seu coletivo. Em seu texto
Multiplicidade (1990), o autor que inicia com a citação de um romance do italiano Carlo
Emilio Gadda afirma ser “o romance contemporâneo como enciclopédia, como método
de conhecimento e principalmente como rede de conexões entre os fatos, entre as
pessoas, entre as coisas do mundo” (CALVINO, 1990, p. 121). Fazendo uma analogia
com os presépios, percebo que os elementos presentes trazem uma informação global da
complexidade histórica e cultural das comunidades. O imaginário do sujeito atua como
arquivo das experiências visuais vividas pelo indivíduo em um processo natural e
permanente da formação da identidade cultural da comunidade, tornando esta ‘maneira
de permanência da cultura com uma identidade própria, embora diante da diversidade
entre os povos.
Na realização dos laboratórios de investigação, pude criar e desenvolver
instrumentos para melhor compreensão do meu processo criativo. A idealização e
confecção de um ‘espaço para construir presépios’, que posteriormente passou a ser
denominado de ‘nicho’, tornou possível a observação da criação desses pequenos
cenários, sem, contudo, estabelecer qualquer regra para a criação. O gesto criador das
mãos, como extensão da mente, no processo da construção dos cenários que presenciei
surgir no ‘espaço para construir presépios’, teve como objetivo observar a ação criadora
do indivíduo, para aquele instante uma demonstração da criação para os que
montam presépios. Depois da observação direta e do registro fotográfico, passaram a
não mais existir, ou seja, realizaram o papel da efemeridade numa ação criativa e num
contexto processual. Neste ponto, o ato de criar a partir de uma proposta opcional
27
talvez pré-estabelecida para a construção de um presépio no interior de uma caixa a
qual eu transportava como se fosse um cenário mambembe, opõe-se a uma sistemática
para o livre-arbítrio da criação. Segundo Pareyson (1993), “trata-se de fazer, sem que o
modo de fazer esteja de antemão determinado e imposto, de modo que bastaria aplicá-lo
para fazer bem” (PAREYSON, 1993, p. 59). Contudo, minha pequena interferência
levando até o sujeito o ‘espaço para construir presépio’, como disse acima uma
demonstração da criação tornou-se necessário para a observação da ação criadora,
dada a impossibilidade de minha presença e coabitação em data oportuna à montagem
do cenário principal na região pesquisada. A utilização dessa “metodologia” permitiu o
registro e a captura de imagens do momento da criação. Os registros fotográficos
obtidos foram mostrados na exposição realizada na Galeria Cañizares, EBA/UFBA
como resultado do material coletado. Para essas imagens denominei o espaço expositivo
como o espaço 2, ou ‘sala dos relicários’.
No capítulo I, no subcapítulo olhos tapados, orelhas vendadas, uma metáfora
do cotidiano, estabeleço uma relação, um diálogo, entre o objeto documentado e a
relação que faço com o mundo atual no contexto da sociedade contemporânea marcada
por conflitos. A estes recortes fotográficos, atribuo uma visibilidade para o grau de
violência à qual as populações e, principalmente, as minorias discriminadas estão
sujeitas. Nos referenciais apontados no contexto da criação, estabeleço um diálogo com
Calvino (1990), que cita Dante, metaforicamente, a partir do poder do imaginário e
alusivo ao favorecimento criativo da oralidade humana, sustentado pela possibilidade da
colagem como linguagem e estética diferenciada. Ainda, sob este argumento, Salles
(1988) destaca a importância de que “tudo se constrói sobre o anterior...”, as
novelísticas, as superposições de imagens que favorecem as narrativas heróicas, o que
vem sustentar a hipótese da herança cultural entre as comunidades.
No processo de investigação, surgem nos presépios as personagens Catita e
Mateus que, numa primeira abordagem, problematizo como índices culturais, fato que
vem a se confirmar em BARROSO (1996), a partir de pesquisas e depoimentos obtidos
no nordeste brasileiro e da presença dessas personagens nos reisados e bumbas-meu-boi
da atualidade.
28
Nos capítulos seguintes, traço uma abordagem do objeto como sujeito
pertencente e identificado com a cultura popular. No capítulo II, a partir da observação
direta do objeto em estudo, das imagens capturadas e entrevistas concedidas, faço
leituras a partir do modus operandi do sujeito autor dos presépios, investigando quais os
motivos que o levam a uma dedicação especial a este ícone/símbolo da religião.
Ainda no capítulo II, realizo um inventário dos presépios com uma abordagem
em seu conteúdo imagético no qual estabeleço um diálogo entre o objeto e sua matéria
presente a representação física do objeto e o signo, como conteúdo deste. Também
faço observações do presépio quanto ao seu aspecto morfológico, notando que há uma
variação de formatos, materiais utilizados e ‘estilos’, que identificam regiões, criando,
com isto, traços comuns entre as comunidades mais próximas. No mesmo capítulo
trago considerações às personagens Catita e Mateus, personagens significativamente
presentes nos presépios da Chapada Diamantina, fato que no contexto do presépio é
analisado a partir dos depoimentos obtidos. Pude perceber a importância desses duplos
como elementos de grande valor simbólico no contexto da cultura popular, incluindo os
presépios, através das diversas narrativas que ouvi e que foram gravadas. Assim,
estende-se às comunidades formadas, partindo do princípio da herança cultural como
efeito transferidor das manifestações, ou seja, a manutenção da diversidade cultural
através dos séculos. Le Goff (1988) define as heranças culturais como “documentos
que testemunham esses sentimentos”. Portanto, insere o elemento cultural sob forma
icônica da representação, registro do tempo.
Utilizei-me dos conceitos de Maffesoli (1984), para quem a estética constitui
uma dimensão específica na qual estão implícitos processos delicados e reveladores do
cotidiano. A partir deste princípio, pude compreender que há uma escrita visual no
processo da construção e da distribuição dos elementos ali encontrados, permitindo uma
leitura mais cuidadosa e sistemática no contexto particular de cada cenário. Ainda, com
os teóricos Luigi Pareyson (1918-1991) e Dupront (1988), pude perceber o objeto em
estudo a partir da liberdade do criar como ação fundamental para a livre expressão e
concretização do objeto em processo, tomando como princípio o imaginário do sujeito,
a partir do qual a ação criadora faz surgir as regras do processo criativo. Pareyson
(1993) sinaliza o sentido da criação a partir do modus operandi não estabelecido, pois a
obra deverá indicar os caminhos a serem seguidos. A partir da sua teoria, a da
29
formatividade, conclui-se que a obra se forma à medida que o fazer se constitui uma
ação criadora, sem seguir regras, mas respeitando as regras que se formam no percurso
da construção da obra. Dupront (1988) define a construção dos signos humanos como
uma linha, um processo evolutivo do próprio homem, em seu tempo e espaço, que deixa
rastros para serem analisados. É o próprio homem decifrando sua escrita para
compreensão de si mesmo, numa cartografia antropológica.
No capítulo III, discorro sobre minha abordagem para chegar até o objeto da
pesquisa, com a investigação in loco em cada município no qual efetivei minha ida
objetivando a coleta de material. Aqui, o presépio é analisado como uma grande ‘arca’,
estrutura que guarda coisas e lembranças do passado. Para finalizar o capítulo III, traço
considerações a partir do observado por mim sobre o imaginário de Catita e Mateus,
personagens significativos no contexto da cultura popular, utilizando-me de referenciais
bibliográficos existentes. A presença marcante desses duplos nos folguedos populares
do norte e nordeste brasileiro como o reisado e o bumba-meu-boi levou pesquisadores
como Barroso (1996) e Cascudo (1984), este sustentado pelas pesquisas de Brandão
(1953), a pesquisarem sobre a origem das personagens, que são frutos da importação
das danças européias e da cultura afro-oriental trazidas para o Brasil através dos
portugueses. Fecho o capítulo citando Rodrigues (1997) sobre a importância da
continuidade das manifestações populares, especialmente no interior do Brasil, onde se
pode encontrar em diversas localidades uma preocupação em manter essas tradições
como forma de preservar uma cultura que teve sua origem em diferentes países e que
aqui encontrou um alimento que a mantém viva: o povo.
CAPÍTULO I
Os princípios de uma criação
31
Os caminhos para minha construção: memorial
Em primeiro lugar, é preciso sentir o efeito
violento de um signo (DELEUZE, 2003, p. 22).
Para o meu processo criativo, parti do seguinte principio: ver, ler e criar.
Ver
Sim, o efeito violento do signo, foi o que senti ao entrar em contato pela
primeira vez com as iconografias que “ornamentavam” os primeiros presépios visitados
por mim na Chapada Diamantina. Em busca de uma resposta para a abrangência do
tema e o impacto visual que aquelas imagens provocam, segui uma forte intuição:
“persegui-las”, com o objetivo de que os signos ali presentes ficassem mais claros para
mim diante da representação da natividade, perante o possível significado de um
“retrato” da realidade social com a qual a maioria das pessoas que montam os presépios
convive.
Particularmente houve um forte impacto visual na minha experiência pessoal, o
que me fez questionar sobre a estética diferenciada desses presépios para representações
religiosas, nas quais os signos se misturam e o signo principal se torna mais um, em
meio a tantos outros de valores incontestes. Ainda, a grande diversidade de elementos
presentes cria um grandioso conjunto de formas, cores, movimentos e texturas que os
denotam também como ‘estruturas do inconsciente’, reveladoras dos seus mentores.
As primeiras amostras que obtive dessas imagens me surpreenderam pelo fato de
-las feito, apenas, para um simples registro daqueles presépios localizados na vila de
Igatu. Entretanto, as primeiras impressões do objeto que, para mim e à época, não
passava de uma estrutura decorativa do Natal, tornou-se surpreendente pela sua
32
diversificação de elementos decorativos e valores simbólicos. Contudo, houve uma
‘revelação’ e um questionamento imediato da minha parte quando passei a percebê-los
com um outro olhar, que me dirigiu para indagar sobre o que aquele conjunto de
elementos imagéticos poderia significar para mim e para eles quem monta e para
todos nós, os visitantes. Essas imagens se mostraram para além do que eu poderia
compreender naquele primeiro instante. Posteriormente, pude perceber o quanto são
ricas no contexto social e psicológico para uma abordagem estética, sociológica e
compreensiva. Segundo Roland Barthes (1915-1980), “a foto se torna ‘surpreendente’ a
partir do momento em que não se sabe por que ela foi tirada” (BARTHES, 1984, p. 57).
A partir desta passagem, encontrei em Barthes o ponto, ou punctum, inicial de algo que
estava por vir. E, inspirado no princípio barthesiano, adotei os presépios daquela região
do Estado da Bahia como o meu objeto de investigação para esta pesquisa.
Tentando compreender Barthes me fiz a seguinte pergunta: como poderia ou
pôde o autor entregar-se e narrar com tão íntimo prazer a imagem registrada sobre uma
película com emulsão de prata sensível à luz e posteriormente copiada sobre o papel
fotográfico? Constituiu-se, para mim, também, a revelação ou a deambulação do prazer,
do gozo, do homem como o Ser da câmara clara, frente ao engenho criado por ele, a
câmara escura. A partir daí surge o processo para a compreensão de outras questões,
como: o que as fotografias/imagens nos dizem quando elas ultrapassam a fronteira do
retrato? Será um documento? Será a imortalidade da coisa? Ou se tornará, apenas, como
referencial histórico e antropológico? Claro que muitas outras questões poderão surgir
no processo do trabalho, entretanto, neste momento, elas suscitam, em primeira mão, as
questões aqui colocadas. Ainda, como dizem os povos que cultuam o “animismo”
1
, ou
ainda, os povos indígenas que, em respeito à integridade do espírito preferem achar que
a fotografia rouba a alma da gente”. Sim, ela mostra e revela a alma da gente, nosso
íntimo, nossa privacidade, nossa energia, nossa história passada e presente; traz
recordações e revisita nossa memória que foi congelada no tempo pura e simplesmente
sobre um papel sensível à luz. Conserva como documento social, antropológico,
etnológico ou cultural a cena ou a personagem registrada. Fruto da câmara escura que
registra a câmara clara o homem no seu momento presente que se tornará passado.
Como memória eletrônica atravessa o espaço infinito, seja em forma de luz do espectro
1
Tendência a considerar todos os seres da natureza dotados de vida e capazes de agir conforme uma
finalidade (apud Buarque de Holanda).
33
ou em forma de ondas eletromagnéticas, registrando todos os detalhes do cosmo, da
vida, da natureza que nos cerca, dos homens, das cidades, das nossas casas, do nosso
mundo pessoal, da visibilidade da alma vista pela subjetividade da imagem; a cena
congelada.
A respeito do mencionado no parágrafo anterior, nada é substituível à expressão
humana, no que tange à guarda em seus interstícios a pura “revelação” do sentimento,
um sentimento que se manifesta sem necessariamente ter a fotografia como meio de
expressão, porém, nas formas que compõem o meio. Pertençam elas à natureza ou não,
da criação divina ou não, das mãos do homem ou não, é a verdade originada e
representada a partir do imaginário humano e posta às vistas através das cenas que este
mesmo homem cria. Neste caso, a fotografia torna-se testemunha documento histórico
atual e múltipla, como no romance contemporâneo que, para Ítalo Calvino (1923-
1985), poderá ter um sentido da enciclopédia: revela ícones, ressignifica o sujeito.
Como meio de leitura visual, a fotografia filtra e reconstrói os conceitos, expõe
os sonhos, projeta-os à ‘mesa da realidade’, através do ‘registro do cotidiano’; funciona
também como ‘máquina do poder’, atua na transformação da ‘imagem bruta’ para a
‘imagem manipulada’, como arma’ que atinge, ‘punge’ e mata’. Em alguns casos,
serve como consolo, lembranças recuperadas de fatos bem vividos ou não. Aplicada
para diversos fins, há, também, a imagem intencional e perniciosa dirigida em prejuízo
de alguém ou alguma coisa; registra catástrofes humanas, propaga cenas de guerra e
pode ativar tanto a indignação como nosso senso de indiferença entre tantos horrores do
cotidiano. Imagens penetram em nossas vidas através da TV, vivas, diretas, do outro
lado do planeta, sob as quais podemos acompanhar as centenas, se não milhares, de
mortes por dia.
Ler
A partir dessa percepção, passei a questionar-me por que dirigia meu olhar para
a iconografia dramática dos presépios. Ao redor de nós, aqui no planeta, há milhões de
situações invisíveis/visíveis que para mim representam uma realidade transportada para
34
esses cenários do nascimento. Convivemos no dia-a-dia com situações paradoxais ao
mesmo tempo que não sabemos lidar com elas para que possamos eliminá-las, ou, na
melhor das hipóteses, suavizá-las para quem as vive.
Portanto, diante de uma representação de realidades e no processo de captura das
cenas representativas desse cotidiano, parti em busca de tão significativas imagens,
construindo, perante meu processo criativo, uma identidade visual. Neste sentido,
espero que se registre e se guarde na memória cultural de nossa gente, minha e de todos
os produtores de imagens nos presépios estudados, a construção de um meio ideal para
o homem, diminuindo as grandes diferenças sociais impostas pela atual sociedade de
consumo.
Para o processo da criação, entenda-se aqui o artista, o artesão, o idealizador,
como o embrião de um pensamento mais humanista, talvez. Seu processo dá-se no
contexto da sua realidade presente. Trabalha com signos e ícones que referendam a
própria existência do homem e da natureza que o circunda; cria, apropriando-se desses
signos/ícones, porque deles extrai toda a essência do ser, estar para e entre os seres,
fazer parte do processo vital sem negar a própria existência. Revela-se. A artista plástica
Roseli Amado da S. Garcia (2003), em sua dissertação de mestrado, definiu assim o ato
de criar: “Compreende-se assim que os trabalhos de arte são signos icônicos,
demonstrando através de formas não-verbais, as vivências subjetivas do artista aliadas à
concepção de mundo de uma época” (GARCIA, 2003, p. 80). Evidencia-se, a partir
desta concepção, que o processo criativo estabelece uma dialética com o universo do
seu criador, no seu plano social e psicológico.
Criar
Em um primeiro instante, o pensar. Depois do pensar, o fazer, depois do fazer, o
que fazer? Ah! Olhar, ver, analisar, comentar, pichar... Todos verbos transitivos que nos
levam a uma reflexão. Arte para quê? Como disse Barthes (1984), por uma inversão
conhecida, ela decreta notável aquilo que ela fotografa. Mas, estamos falando de
fotografia ou de criação artística? Segundo Calvino (1990), a multiplicidade será o
35
futuro da humanidade. Conhecer o mundo em seus diversos aspectos tornará mais fácil
o entendimento entre os povos. Será uma espécie de ‘globalização cultural’ preservando
o bem de cada comunidade. Produzir e ler imagens tornará o homem mais sábio, pois a
partir delas, alimentar-se-á o imaginário para a produção artística. O ato criativo implica
em procedimentos tais como imaginar, dobrar, cortar, colar, pregar, ampliar, olhar além
dos limites, ser coadjuvante, interpretar, representar, coabitar, participar, até manipular,
tocar, trocar, beijar meu amigo e colega ZM beija paredes, postes e muradas em pleno
ato criativo. Vejamos.
Primeiramente, a fotografia apoderou-se de mim, tomou conta de meus
pensamentos, minhas idéias. Meu imaginário entrou em ação. Apresentá-las para o
público tornou-se um problema, pois como se trata de fotografias, em quais dimensões
deveriam ser copiadas? Como montá-las e/ou como emoldurá-las? Nada disso, não há
limites para a criação, vou em busca de outras soluções além da fotografia, mais
próximas do objeto ou do sujeito que me levou a esta estrada, ou às estradas que fui à
plena deriva em busca das respostas.
Laboratório 1
Neste processo, apresentei algumas fotografias ampliadas no formato 60 x 80
cm, imagens que, na minha percepção, estão cercadas de elementos simbólicos, dando
um significado maior para o que este tema representa para mim. As imagens foram
expostas em sala de aula laboratório , e observadas sob o ponto de vista instrumental
para uma leitura preliminar do objeto em estudo, tanto para ressignificar aquilo que
percebo quanto para “ler” o que as imagens colocadas por outrem significam,
respeitando, contudo, o que fotografo conquanto expressão de terceiros. Durante esse
processo criativo foram pensadas e discutidas algumas maneiras de formatação do meu
trabalho prático enquanto expressão plástica susceptível de alimentar o meu imaginário,
respeitando a complexidade do objeto quanto à estrutura imagética original, a partir do
material “fornecido” e visível no contexto do presépio. Daí, então, surgiram as
perguntas: 1. Há, de fato, uma função psicossocial do objeto? 2. Qual a relação de
alguns elementos que compõem o meu objeto de pesquisa os presépios da Chapada
36
Diamantina sobre o sujeito que o instala e seu universo social? 3. Sob qual formato
deveria expressar o processo do meu olhar “documentarista” e artístico? 4. Quais as
imagens que eu deveria selecionar para a exposição e para a análise do projeto teórico?
5. Deveria fazer uma instalação que remetesse diretamente ao objeto da minha pesquisa
aliando ao memorial do processo teórico prático? E qual deveria ser o formato da
exposição? No processo prático, houve um longo caminho a ser garimpado, até que os
procedimentos se definiram.
Idéias, desenhos e croquis surgiram neste processo para simulação de espaços e
cenas que remetiam ao objeto de estudo. Pensar o material que seria utilizado e que
tivesse melhor adequação à problemática em questão significaria encontrar uma
coerência com o meu processo criativo e a relação significante/significado no contexto
social do objeto e de seus representantes. O presépio é, também, elemento de
comunicação e aproximação social, visto que ele se presta à visitação pública para toda
a comunidade local e estrangeira. No meu processo criativo deveria pensar numa forma
que contextualizasse todo aquele “clima” e tensão presente nas imagens que percebi na
fonte desta pesquisa. Comecei a observar cuidadosamente as fotografias obtidas e a
formatar idéias, através do desenho, para criar peças tridimensionais as quais
representariam os objetos sagrados e cercados daquela tensão.
Em um primeiro instante, a idéia, o croqui da proposta inicial, revelava certo
excesso de elementos dispostos no espaço expositivo e pensados a partir de formas
impressas em papéis de filtro de café
2
. Porém, com o desenvolvimento dos estudos e
analisando esta proposta, abandonei a idéia que consistia em dispor toda a sala, a partir
do teto, de objetos em papel no formato de bandeirolas contendo frases e gravuras que
teriam o significado da data do Natal. Na parede, caixas de madeira em cujo interior
deveria haver objetos que remetessem às montagens vistas na Chapada Diamantina.
Após algumas reflexões, o plano original foi abandonado, pois, percebi que ficaria
parecendo festejos do período junino. Contudo, a idéia dos caixotes de madeira
permaneceu e, com cuidado, fui buscando novas soluções. O exercício passava por
2
A proposta do reciclado como aproveitamento de material para construção do novo é de grande interesse
da minha parte, pois, como os montadores de presépios, eu costumo guardar objetos que podem ser
reutilizadas posteriormente em algum momento do ato criativo. Neste caso, pensei nos papéis de filtro
para café que guardo há muito tempo. Em algumas casas que visitei, percebi que são muito utilizados
sobras de papéis de presente, de embrulhar produtos em geral e todo tipo de material que se pode
aproveitar no processo de construção do cenário natalino.
37
“mutações”, buscava uma relação com os símbolos sociais e religiosos da população
daquela região e por isso procurei encontrar no diálogo com o objeto a evolução e
construção do meu plano (ver ilustrações 3, 4, 5 e 6).
Ilustração 3. Primeiro estudo para a instalação todos os dias.
38
Ilustração 4. Evolução dos estudos.
Ilustração 5. Estudos para objetos. Visão frontal e lateral das peças para compor a instalação.
39
Ilustração 6. Estudo final para composição da instalação. Sala 3 da Galeria Cañizares, Escola
de Belas Artes, UFBa.
40
Ilustração 7. Planta baixa da Galeria Cañizares mostrando plano de montagem para exposição
das obras. Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia.
Exposição: novembro-dezembro de 2005.
41
Com uma abordagem para o processo da criação, Luigi Pareyson (1918-1991)
deixa claro que a liberdade do criar está exatamente em construir sem o pré-estabelecer
um modus operandi do projeto a partir de regras estabelecidas, o que limitaria e, até,
prejudicaria o ato criativo para a obra em curso. O autor esclarece o pressuposto acima,
com as seguintes palavras:
É preciso, sobretudo, recordar que o “fazer” é verdadeiramente um
“formar” somente quando não se limita a executar algo já idealizado
ou realizar um projeto já estabelecido ou a aplicar uma técnica já
predisposta ou a submeter-se a regras já fixadas, mas no próprio
curso da operação inventa o modus operandi, e define a regra da obra
enquanto a realiza, e concebe executando, e projeta no próprio ato
que realiza. Formar, portanto, significa “fazer”, mas um fazer tal que,
ao fazer, ao mesmo tempo inventa o modo de fazer (PAREYSON,
1993, p. 59).
A partir do exposto, faço uma relação com o objeto da minha pesquisa, na qual
observo as “mutações” que os presépios sofrem a cada ano que os revejo. Em alguns
casos, como na vila de Igatu, localidade que costumo passar com mais freqüência,
percebo, constantemente, as modificações ‘naturais’ no objeto. Estas modificações são
notadas em outros presépios revisitados, nos quais pude observar “alterações” na
estrutura do desenho cenográfico, sem comprometer, contudo, a estrutura original do
ponto de vista do motivo principal, o nascimento. Isto nos dá indícios da mutabilidade
do processo criativo e de que o modus operandi-se no instante da criação. Também, e
através dos depoimentos de seus autores, que dão pistas, através da narrativa ou de
algum flashback sobre o objeto do ano anterior, é notório que essas modificações são
realizadas de ano para ano, montagem a montagem. Percebo tanto na estrutura
cenográfica quanto no devir da “formatividade” que essas mudanças são necessárias a
cada nova construção, havendo, dessa maneira, uma renovação do conteúdo
cenográfico. Portanto, percebe-se que o autor do objeto não seguiu regras pré-
estabelecidas, e que não há fórmulas a seguir, e que ali está o mais puro e significativo
sentido da criação na sua arte. Com isso, ‘ele’, o construtor do presépio, atua,
intuitivamente, no âmbito da teoria da formatividade, revelando que “a operação é
42
formativa na medida em que da obra resultante se pode afirmar que está bem feita não
enquanto ‘obedeceu a regras’ mas enquanto é um ‘sucesso’, um ‘êxito’, ou seja, quando
descobriu as próprias regras ao invés de aplicar regras prefixadas” (PAREYSON, 1993,
p. 60). A obra concluída, ou não, deverá atingir o seu propósito: revelar-se a seu leitor
como “texto” possível de interpretações de uma estética pessoal, social ou fractal no
sentido macro no âmbito das sociedades contemporâneas.
É evidente que este modus operandi, do não ‘obedecer a regras prefixadas’,
permite ao artista fazer da sua obra um processo de ‘devir’ que o leva a uma maior
liberdade de expressão para com o desenvolvimento da idéia inicial, adquirindo, a partir
dali, personalidade e ‘vida própria’, para seu pleno desenvolvimento e concretização.
Para este processo, não importa que a construção artística seja de caráter museológico
ou de caráter popular.
Portanto, no ato de criar está implícito o ato do fazer, da tekné
3
, que conclui a obra
em sua formatividade, ou seja, permite ao idealizador que a partir do seu imaginário,
inicie a construção e concretização daquilo proposto. Somente o ato do fazer permite o
experimentar, uma regra natural para as experiências do devir humano. E neste sentido,
Pareyson (1993) nos dá uma direção para o ato formativo:
formar significa por um lado fazer, executar, levar a termo, produzir,
realizar e, por outro lado, encontrar o modo de fazer, inventar,
descobrir, figurar, saber fazer; de tal maneira que invenção e
produção caminham passo a passo, e só no operar se encontrem as
regras de realização, e a execução seja a aplicação da regra no próprio
ato que é sua descoberta (PAREYSON, 1993, p. 60).
Sendo assim, tem-se uma completa relação entre obra e artista, ou seja, a
natureza do ato criativo favorecendo a criação (o insight), desvinculando-se das regras
canônicas como as pertencentes ao mundo original. Portanto, o artista cria e executa em
pleno momento de interpelação entre si e o objeto diálogo , entre as coisas que dão
3
“A palavra arte vem do latim ars e corresponde ao termo grego tékhne, ‘técnica’, significando ‘toda
atividade humana submetida a regras em vista da fabricação de alguma coisa” (Cf. CHAUI, 2003, p. 275).
43
forma ao objeto, ou aos objetos, e sobre a natureza dessas coisas que transitam em
liberdade entre o plano material, existencial, e o plano imaginário do criador.
Laboratório 2
Durante o processo de investigação, apresentei uma maquete a qual poderia vir a
ser uma segunda etapa nessa minha busca por algo significativo: um objeto que “revela”
e guarda memórias. Memórias que poderão remeter ao presépio, às nossas vidas
pessoais, ou memórias de histórias de vidas as quais não “conhecemos”. Esses objetos
são depositários de pistas ou elementos particulares, como “impressões digitais”, que
são deixadas no corpus delitu, como parte da memória social. Transformam-se em
estradas/registros que “solicitam” a interpretação por parte do espectador, que procura
refazer no tempo o memorial das passagens que NAQUELECORPOBJETO foram
experimentadas.
Diante de tanta matéria memorial, o que fazer? Como trabalhá-la, e
redimensioná-la, sem ferir a integridade do motivo principal, o objeto sagrado? Ou,
como trabalhar este sagrado respeitando a memória de terceiros, aqueles dos quais
tomei o objeto como fonte de referência para a pesquisa?
Através do meu olhar e dos recortes fotográficos que realizo, procurei trazer à
visibilidade aquilo que está “invisível” na cena. É sair da condição do óbvio em busca
de um possível significado do que representa o cenário do Natal no processo criativo e
pertencente ao imaginário do indivíduo. Além disso, percebo, através das observações
diretas dos cenários e nas imagens por mim registradas, que há entre os elementos
simbólicos e os não simbólicos à religião, uma interface que denota a realidade social
no contexto da religiosidade popular, fato significante e que expressa a face dos
esquecidos. Com BARTHES (1980), que define esta percepção como um sentido, fica
mais claro entender, à parte da estética visível, o que eu poderia interpretar a partir do
conjunto imagético apresentado ao meu olhar. Segundo Barthes (1980) este sentido,
o terceiro, aquele que é ‘demais’, que se apresenta como um
suplemento que minha intelecção não consegue absorver bem,
44
simultaneamente teimoso e fugidio, proponho chamá-lo de sentido
obtuso. [...] parece-me que o terceiro sentido abre o campo do sentido
totalmente, isto é, infinitamente; admito até que este terceiro sentido
tenha uma conotação pejorativa: o sentido obtuso parece desdobrar
suas asas fora da cultura, do saber, da informação; analiticamente,
tem algo de irrisório; porque leva ao infinito da linguagem, poderá
parecer limitado à observação da razão analítica; pertence a classe
dos trocadilhos, das pilhérias, das despesas inúteis; indiferente às
categorias morais ou estéticas (o trivial, o fútil, o postiço e o
pastiche), enquadra-se na categoria do carnaval. O obtuso convém,
pois, perfeitamente (BARTHES, 1980, p. 47 8).
Portanto, quando Roland Barthes descreve esta categoria de perceber e ‘sentir’
os fatos através das imagens, ele nos aponta para um olhar além do imagético presente,
porém significativo à expressão humana. Para o autor, o significado da imagem está
além da forma, podendo levar o espectador a diversas interpretações em um diálogo
bilateral entre o perceptor e objeto percebido. Então, “isto quer dizer que o sentido
obtuso está fora da linguagem (articulada), mas no entanto, no interior da interlocução
(idi., 1980, p. 55).
A partir deste princípio, percebe-se que o presépio não contém, apenas, uma
simples bricolagem. Ultrapassa, pois, fronteiras do óbvio ou “à sua significação plena
no sentido óbvio da imagem” (idi., 1980, p. 49); está além da instauração do cenário,
como forma, com uma significância plena do objeto. No presente, podemos perceber
através das imagens o que foi o passado; ainda, o que as torna tão significativas no
contexto da representação e como signos da cultura de massa. Portanto, as fotografias
que realizo no processo da criação dessas imagens na fonte desta pesquisa enquadram-
se no conceito do obtuso, pois, a partir da narrativa fotográfica que venho
desenvolvendo, interessa-me, sim, a captura do fator “oculto” para construção e
elaboração da minha expressão artística, a qual o objeto me permite.
O formato multimídia da exposição tornou-se necessário para mostrar os
diversos instrumentos que utilizei para a coleta de material e como obtive as principais
informações, tenham sido elas através da fotografia química, do vídeo digital, ou sobre
45
as entrevistas diretas e para áudio. Neste caso, os objetos, as caixas contendo bonecos
encontrados nas ruas da cidade do Salvador e que apresentei na exposição são
memoriais e significados da ‘vida nossa de cada dia’, enquanto história de passageiros
urbanos em um mundo complexo, como o das grandes metrópoles, sobretudo em nossa
própria sociedade e no contexto delas.
Para as imagens e objetos da exposição, os processos de captura e construções
foram dirigidos à compreensão da estrutura do presépio como objeto de grande
expressividade e portador de memórias individuais e coletivas, em caráter urbano e
rural. A fotografia é o ponto de partida para o objeto tornar-se visível e para isso
formatei uma seqüência para as seguintes maneiras de elaborar, construir e ver: Espaço
1, ou sala das imagens, constituída de imagens significativas e alusivas ao processo do
imaginário criador pertencente aos mentores dos presépios analisados com recortes do
meu olhar sobre o objeto (ver ilustração 7, planta baixa da galeria); espaço 2, ou sala
dos relicários, na qual foram mostradas algumas imagens com cenas de forte conteúdo
alusivo ao caos social. São recortes nos quais focalizo elementos que expressam a dura
realidade da atual condição dos diferentes níveis da sociedade humana (ver ilustração
28). Além destas, registros de ações capturadas através da fotografia a partir de uma
pequena oficina que foi realizada com material levado por mim. Efetuadas as trocas,
possibilitou-se o “fazer” do objeto tornar-se visível; (ver ilustrações 12, 13, 14, 15 e 16);
espaço 3, ou sala dos nichos, na qual mostrei através de pequenas caixas de madeira,
apoiadas sobre uma base de metal, como percebo o planeta e o homem dominado pelo
horror das últimas décadas, numa analogia às guerras e às corrupções, que levam à
miséria e à exclusão social. Para este fim, utilizei-me de brinquedos velhos, como
bonecos quebrados e encontrados nas ruas da cidade do Salvador, criando uma analogia
com os elementos encontrados nos presépios. Ver ilustrações 8, 9, 10 e 11.
46
Ilustração 8 Ilustração 9
tulo: todos os dias
Detalhes de instalação.
Materiais: Ferro soldado, madeira, papel laminado de embalagem de café, cola, bonecos plásticos.
Quantidade: oito unidades de expressão.
Dimensões por unidade: 30 x 40 x 8 cm.
Altura da base: 100 x 115 cm
Ano: 2005
Documentação em fotografia digital.
Ilustração 10
47
Ilustração 11
Título: todos os dias
Detalhe da instalação.
Materiais: Ferro soldado, madeira, papel laminado de embalagem de café, cola, bonecos plásticos.
Quantidade: oito unidades de expressão.
Dimensões por unidade: 30 x 40 x 8 cm
Altura da base: 100 x 115 cm
Ano: 2005
Documentação em fotografia digital.
As caixas de madeira apoiadas em base de metal com seu plano posterior
inclinado a 30º, continham bonecos quebrados encontrados nas ruas da cidade do
Salvador, coletados numa visita no subúrbio.
Com esse elemento encontrado e coletado na capital do Estado, passei a
observar que havia uma estética semelhante aos bonecos introduzidos nos presépios da
Chapada Diamantina e possível de ser visto com relativa freqüência em nossas vias ou
esquinas. Posteriormente, fui ao bairro do Uruguai e lá solicitei, ou melhor, troquei
48
bonecos novos por bonecos velhos encontrados nas calçadas e amontoados de lixos,
através da colaboração de conhecidos. Analisando-os sob a ótica do social, no meu
discurso estético os bonecos passam para uma categoria do símbolo, ou seja,
ressignificam o objeto e a minha criação no contexto social. Assim é minha leitura;
assim os bonecos quebrados encontrados nos presépios da Chapada Diamantina me
sensibilizaram, direcionando o meu processo criativo para uma abordagem sócio-
compreensiva.
Portanto, a minha criação implica em ressignificar o cenário natalino como fonte
identificadora de elementos que revelam situações do nosso cotidiano. Visto que,
atrelado ao processo da representação do nascimento/surgimento do mito, o mito
religioso para o mundo cristão, tem-se o processo criativo como forma significativa da
representação, da qual se pode perceber, em seus variados formatos, que o imaginário
domina a partir de elementos informativos os quais pertencem à memória cultural da
comunidade que o vivencia. Entretanto, há nessas imagens, além do registro histórico e
estético, uma inversão “conhecida” que revela uma outra realidade
4
, uma realidade
obtusa.
Um convite à criação
Buscando uma aproximação e uma compreensão do processo criativo dos
presépios na fonte, idealizei e criei nichos em madeira para a coleta de material.
Tomando conhecimento da existência de um trabalhador autônomo, Antonio do
Caixão
5
, carpinteiro que reutiliza madeira de caixotes de embalagens industriais,
solicitei-lhe que construísse uma pequena caixa de madeira com a finalidade de uma
experiência no laboratório de processos criativos. Recebido o caixote, colei sobre este e
no interior do mesmo pequenas partes de folhas de laminados de alumínio na cor
dourada, utilizadas como embalagem de café. A cor dourada tem uma analogia com o
4
Parafraseando Roland Barthes.
5
A oficina do operário carpinteiro está temporariamente localizada na Cidade Baixa e ao pé da ladeira do
Taboão, mais precisamente nas instalações físicas da antiga loja O Ospiton.
49
metal ouro, adotado pelo homem desde épocas mais remotas, como símbolo do poder,
embutindo nele os valores para a riqueza, religião, hierarquia, etc., significados que
continuam até a atualidade. Em seguida, foi estudado, no processo do laboratório 2, o
que deveria ser utilizado em campo como instrumento para coleta de material, ou seja,
foi testado o caixote de madeira em formato de nicho. Este instrumento se tornaria uma
nova experiência para o processo criativo no âmbito da execução dos presépios, para
aquelas pessoas que montam os presépios, concomitantemente se tornando, para esta
pesquisa, uma metodologia aplicada à coleta de material. Outro objetivo pretendido foi
realizar novo ato criativo para o cenário de Natal, pois os indivíduos selecionados já
tinham construído no calendário por eles estipulado, não me permitindo, assim, uma
proximidade com o objeto no momento exato da criação. Tive a necessidade de que um
ato de criação fosse registrado durante o momento de sua execução como parte de um
processo colaborativo.
Trocar: um modus operandi da criação
Foi a partir do desejo do conhecer o modus operandi para a construção de tais
objetos que me propus a levar e a fornecer meios de visualizar tal atividade, no que
tange ao momento criativo, para que algumas pessoas me fornecessem pistas desse
processo através da troca de experiências.
Em campo, o processo de seleção para quem deveria confeccionar um pequeno
presépio utilizando a caixa de madeira e os elementos complementares, como bonecos
novos, pequenos carrinhos, barbante de algodão, fibra de sisal, e restos de laminados em
separado, deu-se por uma ação seletiva da minha parte. Os critérios adotados para que
algumas pessoas realizassem tão importante procedimento foram: o interesse, a
motivação e a disponibilidade, qualidades facilmente percebidas durante o momento em
que estive presente em seus lares no mesmo dia da entrevista pois não haveria
tempo de retorno, já que se trata de região distante de Salvador, onde resido. Para tanto,
havia um diálogo entre as partes e que antecedia a minha decisão final em escolher
50
aquela pessoa para execução do pequeno presépio. Não houve uma escolha por idade ou
sexo, mas pela disposição do cidadão em realizar a proposta, se percebida por mim. O
tempo em hora/trabalho para execução e permanência em determinada localidade
também foi uma condição adotada, já que não haveria possibilidade de solicitar que
todos realizassem tal ação.
A partir dessa seleção criteriosa para colher amostras nas localidades em que me
encontrava, procurei perceber o indivíduo como potencial criativo para montar seu
pequeno objeto a partir dos elementos fornecidos por mim.
Os elementos empregados não tiveram a obrigatoriedade de estar no cenário
temporário ou no conjunto final, condição clara; porém, não houve, por parte de
nenhum co-autor, rejeição à proposta. Com exceção dos brinquedos novos ofertados,
todos os outros elementos, incluindo a caixa de madeira, deveriam retornar para mim.
Os brinquedos que os ofertei foram introduzidos em seus presépios, como uma troca
entre as partes, um presente para o menino Deus. Para tanto, tomei o cuidado de não
comprar e levar coisas estranhas ao contexto do presépio, quanto à forma e ao conteúdo
imagético.
Para o momento da ação, os instrumentos de captura foram: ficha de entrevista,
o diálogo direto com gravação em áudio, fotografias e registros em vídeo digital. Nas
imagens obtidas, pode-se ver que crianças e adultos de todas as idades tiveram ação
participativa. Cito como amostras: Antonia Pereira dos Santos (Utinga); Maria José
Andrade Alves, ato realizado pelas duas filhas ainda crianças (Utinga); Alice Ferreira
Braga (Wagner); Edna Profeta de Oliveira, filha de Lormina Profeta de Oliveira, autora
do presépio (Guiné-Mucugê); Aurenive Moreira Neves (João Correia-Mucugê);
Castriciana de Oliveira Franco (Palmeiras); Carolina de Jesus Ferreira (Palmeiras);
Manuela Almeida de Oliveira (Campos São João Palmeiras) e Laura Cândida de
Aquino (Seabra).
Entre as pessoas que praticaram essa experiência da “troca”, pude perceber parte
do processo criativo do indivíduo, apesar de terem utilizado alguns elementos
fornecidos por mim. Quanto a esses elementos e especialmente os bonecos que atuam
como representantes humanos são róseo-claros, além da cor marrom e preta,
51
simbolizando as diversas etnias conhecidas entre a nossa população, especialmente a do
sertão nordestino. Todos os brinquedos eu adquiri em lojas de Salvador, tendo o
cuidado de escolher objetos similares aos que eu já havia encontrado nos presépios
daquela região.
O produto final de cada “autor” em campo, ou seja, o que veio a se tornar a
manjedoura, ou o recinto do nascimento, possuindo como princípio o caixote de
madeira forrado em dourado da minha criação teve como direção uma composição
livre, utilizando, ou não, os elementos que forneci. Uma segunda proposição foi que os
“presentes” oferecidos por mim poderiam, a partir dali, continuar no presépio, se o
anfitrião o desejasse. Não houve da minha parte, interferência no processo criativo do
indivíduo para cada ação executada. Fiquei como observador, registrando através de
fotografias e vídeo as cenas que se sucediam. A referida proposta obteve 100% de
aceitação e o processo transcorreu sem problemas.
Este modo de operar permitiu-me observar um pouco do ato criativo dessas
pessoas, deixando-as livres quanto ao conceito para o pequeno “presépio”, permitindo,
pois, revelar o modus operandi de cada um naquele momento. Além disso, foi um
laboratório para entrar em contato com o potencial criativo presente a partir do
imaginário pessoal e transportado para o “nosso” objeto. Vale dizer que o presépio
principal já fora montado antes ou próximo ao dia 24 de dezembro, data oficial cristã do
nascimento de Jesus. Esse laboratório no lócus de origem do objeto em estudo
evidenciou as minhas investigações quanto ao processo criativo para o meu trabalho
fotográfico, criando uma situação prática para as conclusões sobre o trabalho dos
belenistas e estabelecendo um campo fértil para as conversas, entrevistas e foto-
documentação.
A partir da experiência citada acima percebi o diálogo entre obra e o seu mentor,
ou seja, a prática e o exercício da criação sem importar-se com as regras estabelecidas,
como no modelo original, ou seja, o modelo padrão da religião. Nota-se claramente na
concepção desses presépios que há uma maneira própria de criar e que esta maneira
revela uma identidade particular da criação. A improvisação, não somente para o
momento da oficina realizada, conduz a uma estética pessoal pertinente ao devir, o devir
do imaginário e das fantasias de cada indivíduo. Neste processo criativo, podem-se
52
encontrar os diversos caminhos da natureza humana, as diversas expressões através de
uma arte bruta e que releva ao mundo a função da obra de arte que, se não perdida em
seu tempo, é resgatada de um tempo perdido. É tempo de revelar, de repensar, pois que,
se a arte serve de alerta, da mesma forma a vida pode sucumbir quando desrespeitada.
O resultado obtido foi de excelência e pude perceber que houve uma
participação efetiva dos indivíduos selecionados, como um feedback para a minha
proposta, no que diz respeito ao desejo do “[re]fazer” o cenário, ainda que em outra
circunstância. Dessa forma, pude perceber a ‘qualidade’ da criação e o processo de cada
uma delas. Pude constatar, neste período de 2004-5, que a maioria dos presépios foi
construída por mulheres, com exceção do presépio do Sr. Zelito Queiroz (Palmeiras)
que, seguindo a tradição da sua falecida mãe, continua juntamente com a esposa que
também herdou do pai, a “mania” de montar presépio.
O silêncio dominante no momento da criação demonstrou que o belenista
necessita de uma organização mental para a realização do ato criador: concentração,
ação, execução. A distribuição das figuras, como animais e elementos que compõem
aqueles cenários, demonstra grande domínio da espacialidade no contexto criativo e
intuitivo do artista popular. O conceito da obra fora um só: o nascimento do menino
Jesus; portanto, uma pequena manjedoura, uma pequena lapinha, um pequeno estábulo,
óbvio na mais pura forma do ser, do representar o cenário, efetivamente simbólico. O
que mais eu desejaria se a minha presença já “interferia” no espaço diante de tão
grandiosas obras?
As ilustrações seguintes mostram o processo da troca realizada na fonte.
53
Ilustração 12
Manuseio do espaço para construir presépio por Edna P. de Oliveira.
Guiné/Mucugê - Bahia, janeiro de 2005.
Ilustração 13
Antonia Pereira dos Santos e menina na montagem do pequeno cenário
Utinga Bahia, dezembro de 2004.
54
Ilustração 14
Crianças confeccionam pequeno presépio em nicho de madeira.
Utinga Bahia, dezembro de 2004.
Ilustração 15
Final da criação do presépio em nicho de madeira.
Guiné/Mucugê Bahia, janeiro de 2005.
55
Ilustração 16
D. Aurenive confecciona presépio em nicho de madeira.
João Correia/Mucugê - Bahia, dezembro de 2004.
Olhos tapados orelhas vendadas, uma metáfora do cotidiano
“Me desculpe moço, mas eu não tenho nem um café, um suco
pra oferecer pro senhor.”
Maria Santana Souza
Iramaia Bahia, dezembro de 2001
Na epígrafe acima, me reporto ao que ouvi em determinado endereço quando me
encontrava na cidade de Iramaia, mais ao sudoeste na Chapada Diamantina. Localidade
que apresenta grande contraste social, constantemente eu ouvia apelos de esperança. Os
gestos, as palavras, os olhares, os cheiros, o calor, as moscas que rondavam a carne ao
sol prestes a ser frita antes do almoço ou do jantar. Comemo-la.
Foi o contato direto com um mundo com que eu raramente pude estar presente
que me despertou para a realidade aquém da qual eu vivia. Raras vezes vivenciei
situações como esta, entretanto, isso ocorreu de forma espontânea quando decidi que
visitaria residências mais carentes no contexto social e à época das festividades
56
natalinas. A seleção das famílias que seriam abordadas se deu a partir do critério da
percepção do objeto no lócus da sua criação, ou seja, em residências de diversas
camadas sociais. Para tanto, essa seleção foi participativa, não excludente, alternando as
visitas entre residências pertencentes a indivíduos de camada social mais baixa, média e
média-alta, com predominância entre aqueles mais carentes socialmente. Com este
critério pude perceber em que maneiras, ou formatos, o objeto pôde me passar
sensações e informações.
Observando os objetos, ou seja, cada representação do cenário e a grande
diversidade de formatos e elementos que se apresentam, pude estabelecer conexões com
autores e trechos que remetem à criação como em Dante, “Purgatório” (XVII, 25) apud
Calvino (1990): “Poi piovve dentro a l’alta fantasia” [Chove dentro da alta fantasia],
trecho que introduzo no contexto da minha narrativa sobre o tema aqui tratado: “a
fantasia, o sonho, a imaginação é um lugar dentro do qual chove” (CALVINO, 1990,
p.97). A partir desse princípio, têm-se as imagens mentais [do sonho] como fonte
alimentadora do imaginário do sujeito. O “sonho”, a “fantasia”, passa a ser o locus
criador [gênese] do objeto, ou seja, o presépio. Forma-se, na mente do sujeito, a imagem
visiva que posteriormente tomará forma e se tornará visível no cenário natalino. No
gênero da criação, o artista restabelece conexão com os signos passados, resgata-os
através da memória cultural da sua comunidade, aplicando-os no seu cotidiano ou no
conteúdo do trabalho em desenvolvimento. O processo se torna contínuo.
Segundo BURKE (2000), que discorre sobre a história cultural dos povos, o
autor adota a teoria segundo a qual “não há concordância sobre o que constitui história
cultural, menos ainda sobre o que constitui cultura” (BURKE, 2000, p. 13). Afirma,
ainda, que a construção da história cultural “só pode ser definida em termos de nossa
própria história” (BURKE, 2000, p. 13). Reporto aqui que a história cultural se funde
com a memória cultural a partir do instante em que tratam da continuidade das tradições
nos grupos sociais. Para uma abordagem no contexto da criação percebe-se que a
construção dessa memória e/ou história cultural acompanha gerações, continuamente,
pelos indivíduos nas suas comunidades. Permanecem dessa forma, as imagens, no
imaginário coletivo do homem.
57
Em epígrafe do capítulo abordagens para o movimento criador, SALLES
(1998, p. 88) traz a seguinte citação de Focillon: tomando em sua mão algumas sobras
do mundo, o homem pode inventar um novo mundo que é todo dele. A arte começa pela
transmutação e continua pela metamorfose. É nesse sentido que interpelo e percebo as
transformações que os presépios engendram no contexto de uma leitura do imaginário
das comunidades visitadas. A partir dessa visibilidade pude criar, através da imagem
fotográfica e posteriormente utilizando-me da matéria bruta produzida pelo homem
contemporâneo, partindo do princípio da reciclagem de materiais pré-fabricados
seriam, então, ready mades? , objetos ou “janelas” fotográficas que remetem aos fatos
da atualidade, como por exemplo, “cenas” ou “quadros” que me fazem refletir sobre o
grau de violência no planeta. Na minha percepção, estas imagens realizadas por mim ou
os objetos construídos para compor a instalação todos os dias, constituem uma
narrativa, na qual me utilizo da minha criação plástica para “revelar” a problemática dos
grandes “degraus” sociais.
Segundo Salles (1998), “É sempre possível identificar um elemento no processo
contínuo como o mais próximo do ponto inicial e toda parada é, potencialmente, uma
nova partida” (SALLES, 1998, p. 88). Esta partida é fundamental para continuidade do
processo individual da criação, no qual o homem, enquanto Ser criador, busca a partir
da sua história de existência, o significado das coisas e da simbologia que essas “coisas”
tornam visíveis, ou permitem identificar. Nesse contexto, o registro fotográfico e as
entrevistas em áudio e vídeo trazem à minha construção elementos identificadores da
história cultural das pessoas e comunidades visitadas, reforçando o raciocínio de que a
continuidade das tradições está diretamente relacionada à retomada ou a uma nova
partida no contexto da visibilidade.
Completando o raciocínio de Salles, a autora nos traz parte do pensamento de
SÁBATO (1982, p. 15), no qual ele diz que “Tudo se constrói sobre o anterior, e em
nada do que é humano se pode encontrar a pureza. Os deuses gregos também eram
híbridos e estavam ‘infectados’ de religiões orientais e egípcias”. Como se pode
perceber, a história das culturas está alicerçada no passado, nas raízes do fazer humano,
na tékné e no contexto da formação da sociedade. Então, sem interferências e sem
modificar o objeto original, entendo o princípio da criação como algo contínuo,
permanente e evolutivo.
58
As raízes culturais levam o homem criador a buscar no seu lugar de origem os
elementos índices de sua formação cultural (saudade?) como se pode ler na expressão
“Terra, por mais distante, o errante navegante” no qual o autor Caetano Veloso faz
alusão à sua terra de origem, que em tempos de exílio ficara tão longínqua. Em outro
momento, Antonia Pereira dos Santos diz que “O céu de Bom Jesus da Lapa é o céu da
Terra”, (Utinga, Bahia, dez. de 2004), e Calvino (1990) transcreve Dante com a citação
“chove dentro da alta fantasia” trecho do título “Purgatório”. Comparando as três
citações como parte do processo criativo do homem, demonstra-se aí que o imaginário
é, sobretudo, carregado de fantasias. A “terra” ‘letrada’ e ‘forrada’ de musicalidade a
partir da sua raiz cultural, matriz genética do artista, simbólica ao lugar da partida ,
transporta o compositor CaetanoVeloso para o seu lugar de origem, a “terra” natal,
quando estava no exílio em Londres. O céu da “Terra” que é igual ao de Bom Jesus da
Lapa, segundo a expressão verbal de Antonia P. dos Santos, tem conotação diferente,
mas não divergente. A terra-mãe, lugar de origem, nascimento e fé, símbolo/referência
da raiz biológica ou da origem divina está presente no imaginário de ambos. Para cada
um deles a Terra se manifesta visível a partir de desejos diferentes, contudo, encontra
similitudes no fato de ser a Terra elemento protetor, que faz parte do imaginário,
memorial, ponto inicial para a criação de ambos. Em Dante (apud Calvino, 1990),
podemos perceber que há uma síntese desse pensamento criador, pois a fantasia dá
“asas” à criação, fertiliza o imaginário.
Para compreender o trecho acima, faço uma analogia entre a “Terra” no presépio
e o desejo da ‘terra-mãe’, da saudade da casa materna, da manjedoura, das raízes
culturais, das quais ambos estão imbuídos. A fantasia é alimentadora para a poiesis e
para a construção do processo criativo a partir das imagens que emergem no contexto do
homem criador. Sobre o processo de criação e surgimento das imagens, Calvino (1990)
pontua que “podemos distinguir dois tipos de processos imaginativos: o que parte da
palavra para chegar à imagem visiva e o que parte da imagem visiva para chegar à
expressão verbal” (CALVINO, 1990, p. 99). Como se faz perceber, a “terra”, como
UNO revela-se, para ambos, de acordo com seu imaginário ou fantasia; faz parte da
memória e da história cultural de cada indivíduo.
Segundo Meira (2003), “Num país como o Brasil a relação entre as várias
realidades sociais forçosamente demanda uma visibilidade capaz de ser exercida
59
sensível, criadora e criticamente, a partir do local, da esfera íntima da vida coletiva das
comunidades” (MEIRA, 2003, p. 125). A partir desse raciocínio, no qual a iconografia
presente no objeto em estudo me faz observar uma estética da “esfera íntima da vida
coletiva das comunidades” (op. cit.), estabeleço, então, uma relação com a história que
pude escutar de alguns depoentes com relação à sua vida pessoal. Simultaneamente, o
punctum para cada recorte fotográfico a partir do meu olhar sobre o objeto leva-me a
associações para com a realidade das grandes metrópoles nas quais vivemos ou que
conhecemos.
Como artista observador e pesquisador, procuro estabelecer uma relação entre a
minha criação, ou seja, a imagem fotográfica e outros derivados da fonte desta pesquisa,
a partir de elementos fornecidos no processo da imagem visível e a partir do meu
imaginário.
A partir do imagético presente e como perceptor do objeto em estudo, utilizei de
referenciais morfológicos dos presépios para posterior leitura e construção do meu
processo criativo. Seguindo o princípio de que ‘o que os olhos não vêem a boca não
fala’, parti para as observações mais diretas sobre os recortes e enquadramentos que
produzo nas imagens fotográficas. Esses recortes são importantes para uma releitura do
objeto revelador de conteúdo social que, creio, deixam perceber o quão significativas,
como elementos denunciadores, são essas montagens. Com isso, o meu objetivo é
“revelar”, através do meu olhar, e das fotografias que realizo as desigualdades sociais
demasiadamente crescentes, ainda na atualidade. Para tanto, utilizo a câmera fotográfica
como instrumento que captura e transforma este olhar, a minha percepção e emoção,
devolvendo para a sociedade o meu sentimento, a minha ‘fala’ incorporada às imagens.
Estar presente no ambiente que se constrói o presépio, cujos símbolos estão
cognitivamente “embrenhados” de substância subjetiva e perceptiva que afloram do
objeto, traz à tona emoções que dificilmente seriam detectadas apenas por um olhar
passivo e evasivo sobre a situação da maioria desses lares. O desejo de fotografar esses
‘lugares’, seus arredores e o entorno dos presépios me leva à elaboração e à construção
de um memorial da criação no qual tenho como sustentáculos a importância e o
significado destes elementos para o plano da interpretação imaginária e expressiva do
objeto.
60
Apontando nesta direção, Meira (2003) aborda com grande importância o ato de
se fotografar as coisas do cotidiano, como
fotografar o quintal, as coisas mais usadas, mais desejadas, mais
repugnadas, resignificar objetos triviais, relacionais, fragmentos em
cor, textura e forma, criar noções de microestrutura dentro de
macroestruturas plásticas e visuais macro e micro tamanho e relações
monumentalidade e insignificância. Da impressão à expressão
(MEIRA, 2003, p. 137-8).
Esta impressão de microestrutura dentro da macroestrutura é que se torna o
sustentáculo, a base, da minha poiesis. Concretamente, o meu modus operandi está
dentro desse conceito do micro pertencente ao macro, no qual procuro mostrar que a
natureza expressiva do “ser” está nas “pequenas” estruturas de composição que fazem
parte do objeto. Quando direciono o meu olhar para cenas ou imagens as quais revelam
situações do cotidiano urbano e das relações humanas, percebo sintomas da violência à
qual estamos sujeitos na atualidade. Portanto, para uma ressignificação do objeto,
reforço o paradigma “da impressão à expressão” (MEIRA, 2003, p. 138.), como método
qualificador da percepção artística. A imagem fotográfica atua como instrumento, da
sensibilização à impressão e daí para a expressão. Revela também o conteúdo do sujeito
artista num objeto “estático”, mas “vivo”, passivo e ativo para muitas outras
interpretações.
Capítulo II
O objeto visível ou o cenário codificado.
62
Quase todo dia chegava gente. A fama das Lavras continuava
a correr mundo. Os viajantes, que por ali transitavam com as suas
malas de amostras, iam gabando a praça adiante, muito boa para
negócio, com grandes feiras, o povo sem saber onde botar dinheiro,
diziam, e as notícias dos garimpos eram levadas a toda parte. [...]
homens e homens abandonavam suas terras distantes, reunindo
apenas o indispensável para a viagem, e em verdadeira romaria se
dirigiam para Andaraí. Arranchavam nas pontas de rua, e se
espalhavam pela cidade à procura de trabalho, dispostos a aceitar
qualquer coisa para começar, crentes de que também teriam a sua
oportunidade, e enquanto esta não surgia, que nenhum deles era pior
do que os outros, se compraziam com a ilusão de que tudo era uma
simples questão de dar tempo ao tempo. Se não eram logo bafejados
pela sorte, o movimento do comércio era de qualquer forma
animador.
Herberto Sales
Pela descrição de Herberto Sales no seu romance Cascalho, pode-se imaginar
como aconteceu a história das fundações das cidades na Chapada Diamantina. As
conquistas ocorreram de forma marcante com lutas por cada palmo da terra que
prometia muitos diamantes. O dinheiro corria fácil e procurava-se em que usá-lo. Como
no trecho do mesmo romance Cascalho (1975), “volta e meia estava um garimpeiro
bamburrando e procurando em que gastar o dinheiro, ...”; a descrição literária transporta
nosso imaginário para os confins de um período não muito distante da nossa história,
levando-nos à percepção do que aconteceu no passado, seguido de uma decadência
plural e que deixou cicatrizes nas cidades abandonadas com suas populações carentes.
Na atualidade se pode perceber a imagem do abandono que deixou marcas na memória
dos remanescentes ou herdeiros de uma época.
A Chapada Diamantina tem sido, para mim, um ‘caldeirão histórico’ e cultural e
por isso me interessei por uma de suas tradições que é o presépio popular, uma prática
festivo-religiosa montada anualmente em muitas residências.
Interesso-me por esses objetos e pelo seu “entorno” e, como artista visual, venho
fotografando esses cenários de uma estética popular marcante.
63
O preparatório para cada etapa realizada deu-se com bastante empenho no
sentido de alcançar o máximo de municípios almejados, com o intuito de observar a
variedade e a singularidade dos presépios. Contatos com prefeituras locais para
obtenção de apoio foram feitos e algumas responderam positivamente, apoiando a
equipe de trabalho. No período de 2001, 2002 e 2003, viajaram comigo três
colaboradores, auxiliando-me na coleta de dados, porém, na etapa realizada para fins da
pesquisa de campo para esta dissertação viajei sozinho com o propósito de revisitar a
fonte em ambientes já vivenciados em períodos anteriores.
Durante o processo de coleta de dados, ou seja, a captura de material para
análise, cerco-me de certos cuidados, como por exemplo, em primeiro instante
aproximar-me do autor do presépio e apresentar-me como fotógrafo pesquisador. Em
seguida, informo sobre os propósitos da pesquisa, como a coleta de imagens com
objetivos de estudos sobre o processo criativo do presépio, aspectos históricos do
mesmo no contexto familiar. A partir daí, inicia-se um diálogo com o autor do objeto,
de forma a conhecer melhor a casa e os entremeios da família que o constrói. Questiono
sobre o porquê da confecção daquele presépio alguns têm propósito de “pagar”
alguma promessa feita pelo seu realizador, outros são, apenas, de cunho religioso
tradicional, ou seja, pela história do nascimento do menino Jesus e na crença da religião.
Continuo a investigação do objeto, inicialmente abordando o/a autor(a) com uma breve
entrevista na qual ele/ela costuma revelar os segredos do seu processo criativo.
As entrevistas foram capturadas da seguinte forma: inicialmente e para os
períodos de 2001, 2002 e 2003, utilizei fichas de anotações com transcrição direta da
fala das pessoas/autores entrevistados, documentação em vídeo e fotografias. Neste
mesmo fichamento, realizei o inventário dos objetos constantes nos presépios.
Posteriormente, este material foi catalogado e registrado em meus arquivos.
Para o período 2004-2005, voltei a algumas localidades com objetivos de
revisitar as fontes, devido à importância de rever o objeto já identificado anteriormente,
de forma que a reaproximação e as novas entrevistas vieram enriquecer as
investigações. A captura deste novo material, ou seja, as entrevistas gravadas em áudio
e vídeo, além de novas imagens obtidas em visitas anteriores, permitiram-me uma
64
melhor percepção do objeto em estudo e de seus autores no processo da criação. Pude
perceber como se dá o princípio criativo destes objetos, já a partir da narrativa do
indivíduo, a qual me levou a compreender melhor o conteúdo do seu imaginário,
centrado na criação e elaboração do presépio baseado no mito da sua própria criação.
Projetam-se, dessa forma, os conhecimentos que são apreendidos através de gerações
ascendentes. Com isso, o cenário de natal adquire grande potencial imagético e
narrativo advindo da cultura familiar a partir do imaginário do sujeito. O presépio torna-
se, então, um cenário significativo da realidade do(a) cidadão(ã) que o criou,
observando que nele está, subjetiva e objetivamente presente, a fantasia que alimenta o
imaginário do Ser, exteriorizando-se no momento do ato da criação para aquilo a que
ele(a) se dedica com fé.
A importância desta revisita é relevante às novas percepções de figurantes no
cenário do presépio, de forma que pude notar que, apesar da grande diversidade de
elementos, há particularidades que ainda conferem personalidade no contexto criativo
do cenário. Para mim, foi surpreendente o “encontro” com alguns personagens que ora
eu desconhecia para este tipo de ambientação, a exemplo dos bonecos de tecido que
representam Catita e Mateus
1
, elementos de grande valor simbólico presentes na maioria
dos presépios visitados. Para melhor investigação desse “ilustre” casal, utilizei-me de
entrevistas em audiovisual e fotografias como meio de dar-lhes visibilidade na pesquisa.
Entretanto, há uma diversidade muito grande de “seres” e personagens que ilustram
esses presépios cercados de histórias e significados. No meu modo de ver, percebo-os
como indicadores de uma “situação” social. Como significado atribuído a partir da fala
de seus construtores/mentores, e autores depoentes sobre os presépios, são apenas
elementos ilustrativos que “recheiam” o cenário e “ficam bonitinhos” na lapinha
2
. Como
recortes do meu olhar, os percebo como objetos do vivido, presentes no inconsciente e
decodificados no presente, vejo-os como signos de alguma mensagem portadora da
vivência, e/ou sobrevivência daquela gente.
É, portanto, através desse olhar, um olhar sinestésico, dialogando com o presente
e o passado, que me “aproprio” do conteúdo imagético presente naqueles cenários, para
1
As personagens Catita e Mateus serão abordadas com mais relevância no capítulo III desta dissertação.
2
Termo referente a uma pequena gruta que tem recorrência na criação do presépio, e é utilizado por
muitos montadores do cenário do nascimento.
65
posteriormente narrar ao público estrangeiro àquela vivência, através da minha
fotografia, principal suporte de captura de material desta pesquisa. Será, ao longo de
todo o processo, um exercício do olhar além da figuração e de suas histórias. Na minha
concepção, volto a enfatizar aqui, os presépios são relatos pertinentes à vida de cada um
e, por que não, da vida como espelho das sociedades que a geram, que todos a
alimentam; dos sonhos a serem realizados, mas que se repetem no desejo de todos os
anos. Ademais, há cenas que parecem pedir socorro, pelas minorias, pelos
discriminados, e pelos excluídos. É este o foco da minha construção e
conseqüentemente da minha leitura visual.
Estes presépios, geralmente “plantados” na sala principal ou em ambiente
reservado da casa de seu mentor, oferecem uma cosmovisão daquela família ou da
comunidade onde estão situados, a partir dos objetos ali dispostos. Erguem-se a partir de
instrumentos como pedras, blocos de tijolos, mesas e cadeiras velhas e/ou pedaços de
troncos de árvores coletados no campo. Essas bases que dão origem à construção do
presépio estão posicionadas em cantos de paredes localizadas num ponto da sala de
visitas, ou ainda em um cômodo especial ocupando duas meias-paredes, de forma que
tome proporções diversas em relação à espacialidade daquele ambiente. Finalmente,
após as amarrações das diversas estruturas internas que delimitarão o seu formato final,
forra-se com papel jornal ou embalagem de cimento acrescido da matéria bruta
“casca”
3
, ou ainda, pinta-se com pigmentos artificiais, sendo mais comum o produto
conhecido como Xadrez®, também utilizado para colorir pisos e paredes. Há, ainda, os
pigmentos como a mistura de sumo vegetal e terra, uma técnica utilizada no distrito de
Guiné, município de Mucugê (ver ilustração 18). É importante observar que os
presépios da vila de Igatu, município de Andaraí, têm uma pintura de características
próprias, contendo, geralmente, as cores nos tons verde ou azul, podendo variar para o
vermelho e terra, marcados sobre papel jornal. Esta prática foi observada em todas as
residências visitadas, caracterizada por um traçado de linhas interrompidas, uma pintura
característica daquela localidade, podendo-se “classificar” os presépios de Igatu como
aqueles que apresentam esse traçado interrompido (ver ilustrações 26 e 27).
3
Matéria orgânica oriunda das montanhas e encontrada sobre as rochas, os liquens, servem como forração
para os presépios, dando-lhes um aspecto natural da rocha; signos da natureza.
66
Não importa qual o tamanho do cômodo, se a sala ou se um pequeno quarto
propício à montagem. Os presépios estão lá, nos mais variados formatos retangulares,
triangulares, circulares, mais horizontais, mais verticais; formatos que, em geral,
seguem a geometria do “canto” da casa que foi escolhido para acolher o presépio ,
podendo, portanto, fornecer ao visitante uma grande visibilidade, como um todo, diante
da diversidade de elementos ali presentes. Um outro detalhe observado é que estes
presépios estão sempre voltados para as janelas ou a porta da rua, sempre entreabertas
com o intuito de atrair o visitante. Torna-se assim uma arte pública pelo seu caráter de
visitação, exposta mesmo àqueles que estão apenas de passagem na comunidade.
Nas residências que visitei pude observar elementos que, na sua origem, não têm
uma função ou um compromisso com o sagrado, como por exemplo, lâmpadas
queimadas, brinquedos, maquetes de casas feitas com pau de picolé, ornamentações
com flores sintéticas, frascos de perfumes vazios; molduras de quadros e relógios
quebrados; brinquedos como carros, bonecos e signos da casa como saboneteiras,
garfos, pratos, colheres, pentes coloridos, prendedores de cabelos, panelas, fogão, etc.,
(ver ilustrações 19 e 20) que os diferencia dos elementos representantes da crença
católica como as iconografias de Maria e José (pais de Jesus), a manjedoura com o
menino Jesus, os três Reis Magos e os animais: boi, carneiro, galo, jumento, cachorro,
camelos, ou seja, os elementos “oficiais” para o cenário do nascimento. Ainda,
assemelha-se o cenário, ou sua geografia, aos desertos da parte oriental do planeta e que
nos remete à região da Palestina (ver ilustração 17). Portanto, na linha do presépio
popular, o que se percebe é uma grande liberdade para a ação criadora, o que, de certa
forma, leva seus mentores ao devir da criação, que resgata o passado e relata, no
presente, as histórias de cada um a partir de um imaginário sedutor. No caso dos objetos
inusitados ao contexto, pois não foram “produzidos” para o ato religioso, ou como algo
simbólico à religião, porém, naqueles cenários, assumem uma condição de sagrado,
como parte do ato criativo e do imaginário do sujeito.
Significativos aos demais seres vivos e à natureza, pode-se perceber nos
presépios a presença de conchas de moluscos e brinquedos que representam diversos
animais, incluindo-se os dinossauros. Algumas plantas são cultivadas em vasos e
transportadas para o entorno do presépio, especialmente para germinar e crescerem
67
coincidindo com a data festiva do Natal, como por exemplo, o arroz, o feijão, o milho, a
batata, etc.
Ilustração 17
Presépio tradicional de Telma M. de Quadro Costa.
Palmeiras Bahia, janeiro de 2005.
Ilustração18
Presépio de Anita Oliveira Ramos.
Guiné, Mucugê Bahia, janeiro de 2005.
68
Quanto às dimensões, variam em tamanhos e proporções, porém a maioria
possui medidas entre 100 cm largura x 120 cm altura x 90 cm de profundidade. Contêm
diversos planos que representam montanhas, ruas, grutas ou lapinhas, podendo, ainda,
conter maquetes de casas, igrejas, prédios escolares e outras “construções”, além de
adereços decorativos que os tornam iconograficamente ricos.
Para inventariar esses presépios, utilizei-me de anotações em fichas próprias (ver
amostras em anexos), como um dos instrumentos para decodificar o objeto, tomando o
cuidado quanto à identificação do autor; endereço completo, incluindo a cidade, o local
de nascimento; a idade; a etnia; a religião; o gênero predominante entre aqueles que
tomam a iniciativa de montar o cenário; a escolaridade; se trabalhador(a) em atividade
ou aposentado(a), incluindo a profissão. Foram observados, também, o local da casa
onde o presépio estava instalado; quantos dias antes da data festiva se iniciou a
montagem do mesmo; o suporte sobre o qual está sustentado; tipo de forração; quantos
planos o constituem, a contar desde o piso ou outro suporte que o apóia até o plano mais
alto.
Quanto ao tipo, ainda pude observar se predomina o mais “tradicional” ou mais
“popular”, no que se refere à sua estrutura física e à presença de elementos culturais.
Para o primeiro, entendo o presépio cuja constituição parte de elementos religiosos
baseados na descrição da Igreja Católica, como por exemplo, o modelo de iconografia
utilizada desde sua origem. Para o segundo tipo, o presépio “popular”, percebo-o com
uma estética diferenciada em relação à presença de determinados objetos cênicos, assim
como quanto aos materiais que o constituem, a exemplo de variados modelos de
bonecos e enorme diversificação de material variando em grande colorido e em sua
forma bruta com os quais são fabricados ou manufaturados (ver ilustrações 19, 20 e 21).
69
Ilustração 19
Presépio de D. Laura Pereira Sousa (in memoriam), ornamentado com grande
diversidade de materiais.
Andaraí - Bahia, janeiro de 2001.
Ilustração 20
Detalhe de presépio contendo contrastes de elementos.
Bonito - Bahia, dezembro de 2002.
70
Ilustração 21
Presépio de Aurenive Moreira Neves.
Mucugê Bahia, janeiro de 2001.
Na ilustração acima (21), vê-se um dos presépios da região do município de
Mucugê, o de Aurenive Moreira Neves, no qual se percebe que a autora utiliza uma
grande variedade de elementos domésticos, juntamente com produtos oriundos do
ambiente natural das cercanias daquela comunidade. Ainda sobre este presépio, nota-se
a coexistência e diversidade desses elementos, como os brinquedos; as representações
de personagens humanos, através dos bonecos industrializados ou manufaturados pela
autora utilizando materiais como fibras naturais, tecidos de algodão, madeira, plástico, e
tantos outros que lhe venham às mãos. Vidros vazios, vasos com plantas, iconografias
emolduradas, objetos de louça e maquetes construídas com isopor também fazem parte
do seu contexto criativo. Também, ocorre a presença de outros objetos aparentemente
estranhos ao contexto religioso, tais como postes de iluminação, caminhão
transportando ampolas de medicamentos (notado na visita realizada em 2004), armários
de cozinha, faróis de automóveis como sucatas decorativas misturando-se a búzios
(conchas de moluscos marinhos), etc., que fazem parte desse imenso cenário, objetos
71
estes agora “sacralizados”. Esse presépio é do tipo prateleira
4
, o que foge ao usual
quanto ao formato triangular e com suporte apoiado a partir do piso da casa. Há, ainda,
um suporte em tecido azul, localizado na sua parte superior e que representa o céu,
ornado com estrelas e anjos. Ver ilustração abaixo.
Ilustração 22
Detalhe do centro do presépio de Aurenive M. Neves, com as
figuras/elementos convergindo para o local onde está posicionado o Menino
Jesus. Observa-se, aí, a grande variedade de materiais utilizados. Dezembro de 2004.
4
Uma classificação adotada pelo autor, com base na diversificação e semelhanças entre presépios de
localidades próximas, situados na Chapada Diamantina.
72
No contexto da visibilidade, o cenário e a fantasia do sagrado
Tenho observado na constância desses objetos em estudo que, a partir de um
eixo central, ou seja, baseado no fato do nascimento e na história religiosa, há uma
grande ação para o ato da criação, ricamente elaborado e ornado a gosto pelo imaginário
do sujeito criador. Os belenistas geram e introduzem novas personagens no processo da
construção e histórico dos presépios, apropriando-se de narrativas da oralidade dos
contos populares, além dos elementos figurativos que enriquecem o cenário em seu
contexto geral.
O sujeito criador quando monta seu presépio se aproxima, de uma maneira geral,
de certo ‘enredo’, para ‘narrar’ através de seus objetos a sua história de vida,
consubstancialmente enriquecida com a experiência e a convivência que a comunidade
na qual habita, favorece. Utiliza-se, para isso, de uma grande diversidade de materiais e
elementos naturais, sobre os quais o imaginativo de cada um vai construindo a história e
narrativa dos personagens presentes. Dessa maneira, cria-se o vínculo entre natureza
inanimada e natureza viva, do bem material e do bem espiritual, do real e do sonho, e,
em alguns casos, percebe-se certo “realismo” dentro do contexto da narrativa. Esta
narrativa está inserida dentro das tradições, a partir da herança cultural advinda de
gerações anteriores, daquilo que se acumulou na memória pessoal de cada um, ou seja,
dos conhecimentos adquiridos ao longo da vida e do que se “trouxe” da memória dos
ascendentes.
Em busca de informações sobre ‘cada’ processo criativo dos presépios e no
âmbito individual da residência visitada, continuei com o método das entrevistas, nas
quais pude registrar a diversidade e riqueza do imaginário pessoal, quanto aos objetos
que entram no cenário e quanto ao discurso que narra a história de cada elemento ali
presente. Particularmente, um par desses personagens se repete em diversas localidades,
porém, com denominações diferentes e histórias similares. Refiro-me à personagem
Catita e ao seu parceiro Mateus
5
, que são recorrentes em diversas microrregiões,
5
CARVALHO, 1996, em sua dissertação de mestrado, cita a presença dessas bonecas de tecido e de cor
preta ou na cor branca, como representantes de dois personagens. Segundo a pesquisadora, “Catita e
Mateus são dois bonecos de tecido, geralmente um branco e outro preto ou os dois da mesma cor.
73
comumente é um casal de cor preta, podendo variar entre as duas cores, que atuam
como símbolos de uma cultura, ou melhor, de uma tradição e de uma questão
subliminar étnica e interétnica (ver ilustrações 23, 26 e 27). A presença constante desses
duplos fez-me questionar o que/quem representavam, e por que a presença deles se
repete como figuras de tamanha importância nos presépios. Sobre essas personagens,
questionei aos autores de presépios o porquê da presença daquele par de representantes
humanos nos cenários, e por que na maioria das vezes os bonecos são confeccionados
na cor negra. As explicações foram diversas, contudo, pode-se perceber que a inclusão
desses elementos remete a um caráter étnico. Em Reis de Congo, Barroso (1996), o
autor pesquisou folguedos populares, entre eles o grupo de reisado denominado Reis de
Congo, inventariando, nesse “tipo”
6
, a presença de
dois personagens exceções, o Mateus e sua mulher, Catirina, ambos
negros e ex-escravos que atuam com liberdade total de improvisação
junto ao público e aos demais brincantes do Reisado, desobedecendo
às ordens do mestre e fazendo galhofa com os mais respeitosos
valores morais constituídos, sejam profanos ou religiosos
(BARROSO, 1996, p.13).
Percebe-se, a partir daí, que há uma verossimilhança dos fatos quanto à origem
das personagens como significados étnicos e quanto à sua função na cena do reisado e
do presépio. Porém, após analisar as entrevistas, constatei que as pessoas que montam
os presépios não guardam mais em suas memórias o motivo da presença, ou introdução,
do casal Catita e Mateus nos cenários, ou ainda, se possuem uma relação direta com os
folguedos populares, no caso das festividades do Natal com os grupos de reisados.
Portanto, não houve nenhuma referência oral dos depoentes de quando e por que estes
personagens passaram a fazer parte dos presépios.
Costuma predominar o casal de cores escuras.” Ainda, segundo CARVALHO, “no recôncavo da Bahia,
estes bonecos de pano eram confeccionados pelas filhas de escravas para oferecerem às sinhazinhas
menos abastadas que não podiam importar presentes da Europa à época do Natal” (CARVALHO,1996,
p.40). Observei que, em algumas localidades da Chapada Diamantina, esses bonecos de tecido ainda
persistem na tradição dos presépios como representantes de uma tradição.
6
Uma classificação utilizada pelo autor.
74
Transcrevo aqui neste subcapítulo quatro amostras de trechos referentes a
entrevistas nos quais os autores mencionam a presença do casal de bonecos. Assim, a
partir das falas de D. Alice Ferreira Braga, em Wagner, Bahia; D. Aurenive Moreira
Neves, em João Correia, distrito de Mucugê, Bahia e de D. Antônia Santana Silva em
Igatu, distrito de Andaraí, Bahia, percebe-se o quanto é importante, para essas pessoas, a
presença de tais personagens. Ver entrevistas completas em Anexos.
Trecho de entrevista a Alice Ferreira Braga.
O que significam aquelas duas bonecas pretas?
Catarina e Brás.
Catarina e Brás?
Catarina e Brás.
E quem foram Catarina e Brás?
Catarina e Brás porque eles freqüentaram, foram visitar o menino Deus quando
nasceu, aí eles ficou seno da lapinha porque eles freqüentaram meu menino Jesus
quando nasceu; aí eles ficaram na lapinha. Pode dizer que é os dono da lapinha. Fora
meu santo lá, é eles quem faz mais graça na lapinha, é eles dois.
Eles são sempre de cor preta, Catarina e Brás?
É, todos dois preto.
Então, eu vi na casa de D. Minelvina, também, Catarina e Brás, de cor negra, né?
Eles são preto; Catarina e Brás, eles são preto, são nagô [cita uma palavra e há uma
mistura de vozes indecifráveis] e eles freqüenta a lapinha. Todas as lapinha que você
chega tem Catarina e Brás. Na lapinha que não tem Catarina e Brás não tem graça;
onde chega tem eles dois.
A partir do que fora colocado por D. Alice, pressupõe-se que o casal Catarina e
Brás
7
tenha uma relação direta com a herança cultural africana, ou com as populações
de negros presentes no Brasil. Alice F. Braga possui tez de predominância branca,
entretanto não nega a herança da cultura e da etnia africana em seu presépio. Ainda, e a
partir do trecho da entrevista acima, faço a observação que há uma variação nominal
dos bonecos para Catarina e Brás, a princípio observada a partir da margem direita da
7
Trata-se do mesmo tipo de significado dos personagens Catita e Mateus.
75
estrada federal que corta a região, direção Centro-Oeste, fato que merece maiores
investigações. Em um outro momento encontro-me no outro lado da margem da estrada
que corta a Chapada Diamantina e ouço, mais uma vez, a expressão Catita e Mateus.
Vejamos o próximo trecho de entrevista.
D. Aurenive Moreira Neves, falava de seu presépio, quando espontaneamente cita
Catita.
Pergunto:
E quem é Catita?
Catita, é, é, é, Catita e Mateus, né, quem começa o presépio com eles dois, nunca teve
um presépio pra não ter eles, Catita mais Mateus.
Por quê?
Sem, sem dúvida que é uma ciência, não é! que tem no mundo que desde eu
pequenininha que eu vejo Catita e Mateus no presepe que eu tinha uma tia e um
cumpadre que fazia presepe de pequeno também, e, quando eu comecei eles me dava os
resto dos brinquedo deles pra mim até que Deus me ajudou que eu pude comprar, né!
Quando eu pude comprar eu fui comprano, comprano e guardano uns quebra, outros,
fica bom e os que vai quebrano a gente vai jogano pro mato e comprano outros novo,
mais ... sempre Catita e Mateus daí foi do começo do meu presepe, nunca, Deus ajudou
que eles piorou.
O diálogo com D. Aurenive sobre o casal Catita e Mateus se desenvolve com tal
desenvoltura entre a realidade misturada à ficção, que nos transporta ao plano do
imaginário como crença, evidenciado pela descrição detalhada da vida dos dois
personagens. Ela atribui ao casal de bonecos a formação de uma família com casa
mobiliada, carro para transporte dos bens materiais, a prática da cultura de subsistência
e até uma arma sobre um caminhão para a caça e a defesa. Pela primeira vez ouvi tal
história, que faz parte do imaginário pessoal daquela senhora e de cada criador de
presépio, que defini cada personagem pertencente à herança cultural daquela gente. D.
Aurenive monta seu presépio há mais de cinqüenta anos, e, naturalmente, vem
enriquecendo suas histórias com novos enredos que estão impregnados na memória da
autora, como a ‘vida’ e a permanência das personagens, em especial, Catita e Mateus
(ver ilustração 23).
76
Ilustração 23
Presépio de D. Aurenive Moreira Neves. Vê-se no canto inferior direito o casal de bonecos
que representa Catita e Mateus, além de relógios e objetos de cozinha materializando o lar do
lendário casal. Podemos ver, também, um plano geral do presépio.
João Correia/Mucugê - Bahia, dezembro de 2004.
A presença dessas personagens ratifica a memória cultural das comunidades, nas
quais novas gerações se abastecem e refazem de “seu tempo” a “gramática visual
moderna” parafraseando Veyne (1988, p.74), no sentido de conservar a linha de
expressão e escrita com as peças e linguagens da atualidade. Ou seja, a persistência de
um determinado elemento, seja ele visual ou literário, no contexto da cultura popular,
solidifica essa memória que, ao longo de gerações, alimenta as histórias do imaginário
do indivíduo. Essa “gramática visual moderna” está explícita na criação com
abordagens contemporâneas entre os elementos físicos (objetos) e fictícios, pertencentes
à imaginação, como parte do processo criativo nos presépios. Neste sentido, Veyne
(1988) aponta para a solidificação da cultura, mostrando que ela é cúmplice das
emoções humanas, afirmando que, “de uma maneira geral, crer a partir da confiança
desempenha um enorme papel na vida cultural e religiosa” (VEYNE, 1988, p.76).
Percebo que a crença alimenta a criação, e que, em primeira instância se releva o
significado do objeto no cotidiano dessas pessoas, dada a importância da espiritualidade
e “pertencente” à cultura religiosa. Portanto, as estórias narradas no contexto do
presépio são estórias da crença enriquecidas pelo fenômeno da bricolagem e de uma arte
bruta a partir dos elementos encontrados no plano geral do objeto. Complementam-se,
77
assim, com as narrativas imagéticas e pessoais, tornando-se referenciais importantes no
contexto histórico dos grupos sociais.
A partir do exposto nota-se que esses presépios, por mais que estejam imbuídos
de elementos que não dizem respeito na sua origem ao significado religioso, estão
implicitamente sujeitos à crença e à herança das tradições populares. A partir dos
contatos que tive in locus para esta pesquisa, percebo, subjetiva e objetivamente, que
cada elemento introduzido traz na sua ‘alma’ um pouco do ‘espírito’ da casa e da
família que nela habita. Revela-se, por inteiro, ‘íntimo’ daquele ambiente, tornando-se
capaz de traduzir ao espectador os “indícios” de uma estrutura social vigente, da
psicologia individual e da fé de seus seguidores.
Nos presépios encontram-se presentes informações sensoriais dos habitantes das
comunidades. Cotidiano e extraordinário, dor, alegria, prazer e festa, decepção e
conquista, toda a vida social se desvela em códigos aos olhares mais atentos, sejam
bonecos, espelhos, garfos, facas, colheres, animais de pelúcia, conchas abandonadas por
seus moluscos, maquetes de casas, pessoas, animais, carros, aviões, pássaros, anjos,
menino Deus, vegetais plantados em pequenos vasos, imagens de santos, imagens com
corpos seminus. Imagens que me fazem pensar sobre quais outros signos irei encontrar,
e quais perguntas deverei fazer! Para Deleuze (2003), “os signos emanam de objetos
que são como caixas ou vasos fechados. Os objetos retêm uma alma cativa, a alma de
outra coisa que se esforça para entreabrir a tampa” (DELEUZE, 2003, p. 84). É
exatamente a partir dessa “alma cativa” que me interessa “abrir a tampa” desses signos-
objetos presentes nos presépios, pois, entendo-os, vejo-os como algo que retém imagens
ocultas ao mundo exterior (ver Ilustrações 24 e 25).
78
Ilustração 24
Detalhe de presépio com iconografia de Iemanjá e boneca “mutilada”.
Iraquara-Bahia, janeiro de 2003.
Ilustração 25
Detalhe de presépio com figura “mutilada”.
Campos São João, Palmeiras-Bahia, janeiro de 2005.
79
Continuando as entrevistas, é possível perceber na fala seguinte que há uma
migração da cultura entre os povos, e que as formas de representações chegam de fato
aos mais recônditos lugares. Entrevistando Antonia Santana Silva (Igatu/Andaraí), a
autora narra sobre a construção e motivos do seu presépio. Em certo momento, cita
Catita e Mateus.
Primeiramente, indaguei sobre a presença dos brinquedos. Ela respondeu:
porque fica mais bonito, mais colorido, e, enfins, que a gente, eu acho assim, que se a
gente fazer só com as plantas num vai ficar mais bonito, né? Aí a gente coloca uns
brinquedinhos umas bonecas, eu tenho Catita, tenho Mateus, e aí pra ficar mais bonito.
Então perguntei:
quem é Catita e Mateus?
São esses dois aqui ó. Ó, aqui é Catita, aqui é Mateus e aqui é a família dela e aqui é
a casa de Catita.
Então, tem casa de Catita também?
Tem, aqui é a casa de Catita.
[...]
E a senhora sabe contar um pouquinho a história de Catita e Mateus, quem são
Catita e Mateus? Na verdade, no fundo, no fundo quem são eles?
Menino! Olhe eu não sei. Tinha uma velha aqui que era muito boa nisso, nessa
história, né?
Quem era?
Idalice [ela não usa o prenome correto da pessoa Idalícia], uma que morava lá em
cima.
Eu conheci, eu conheci.
Ela que era boa pra contar a história. Agora, já eu, eu só não sei...
D. Idalícia faleceu no ano de 2002; residia em Igatu e foi mulher garimpeira.
Depois de enviuvar enamorou-se do pai de D. Antonia, com quem teve um romance.
Viveram como marido e mulher até o fim de suas vidas, morando em casas separadas.
Algumas peças do presépio e algumas iconografias de parede que pertenceram a D.
80
Idalícia estão presentes na residência de Antonia, fazendo parte, hoje, do presépio de
sua herdeira.
Conheci pessoalmente D. Idalícia, pessoa pela qual me “apaixonei” desde o
primeiro momento. Dela ouvi muitas estórias que fizeram história; era a memória viva
de Igatu. Entretanto, não me recordo da sua história sobre as personagens Catita e
Mateus. Com certeza a indaguei sobre eles. À época e apenas como um visitante
curioso, realizei as primeiras imagens sobre o tema, em janeiro de 1998. Lembro-me
que foi na casa de Idalícia que vi esses personagens pela primeira vez, assim como foi
lá, também, que registrei, pela primeira vez, um presépio na Chapada Diamantina.
Recordar Idalícia me faz sentir o perfume do delicioso café que ela fazia e servia
em canecos de metal. Sua casa, muito limpa, tinha o perfume das flores do campo. Sua
arte de fazer renda de bilros deixava admirado o mais leigo no assunto. Visitar o quintal
da casa de Idalícia era respirar um ar tão puro, era como atravessar do meio caótico do
cotidiano de nossas vidas para o encontro com a tranqüilidade. Aquele espaço tinha algo
de mágico, um divisor de sensações. Eu ficava admirando suas plantas, a organização
do quintal sempre florido e com a plantação de subsistência e árvores de frutas
saborosas, como a manga, por exemplo. Sua casa estava sempre pintada. O interior, as
paredes, com a cor azul, um azul cobalto, profundo, que tocava fundo em nossas
emoções. Na parte externa, ainda na cor do cimento, cinza. O imóvel se localiza na
passagem para a casa de amigos na qual eu me hospedava e através dos quais tomei
conhecimento dessa senhora humilde e cativante. Alguns finais de tarde ficávamos, eu e
meu companheiro de viagens à Chapada Diamantina, Alex Simões, ouvindo suas
estórias e vendo-a fazer rendas de bilros. A conversa rendia muitas estórias. Certa vez
consegui fixar em imagens estas cenas incomuns, imagens que são “envolvidas” por
uma luz azul de final do dia, de um tom de azul que eu defini como “o azul da Chapada
Diamantina”. Sim, percebo isso, na Chapada percebo que a luz se torna mais azul,
devido à altitude e à pureza do ar das montanhas.
Portanto, quando sua enteada, D. Antonia, me disse que “tinha uma velha que
era muito boa nisso, nessa história,...” imediatamente lembrei-me de Idalícia. Era ela,
sim, que sabia contar as mais belas histórias de Catita e Mateus, quiçá de Igatu, a velha
vila dos garimpeiros, no rico passado de Xique-Xique, hoje, para os novos visitantes,
81
simplesmente Igatu. Eles não conhecerão “Idalice”, suas estórias, seu delicioso café, seu
pé de manga, suas mãos fazendo rendas de bilros, o cão e as galinhas com os quais ela
conversava, dando-lhes até nomes próprios, inclusive às aves que pareciam mesmo
atendê-la ; tinha mais de 80 anos de vida e certo dia, quando eu chegava para visitá-la,
estava ela com uma cobra morta dentro de casa, uma coral venenosa, que ela mesma
havia golpeado até matar. Segundo ela, o animal peçonhento habitava a casa já há
alguns dias, pois percebera atitudes estranhas nos animais domésticos, até que viu o
réptil se rastejando pelo centro da casa, quando não pensou duas vezes e o golpeou com
uma vassoura.
Idalícia não podia andar direito, tinha seus pés deformados pelas andanças no
garimpo. Contava que de tanto correr atrás de seu primeiro marido (que segundo ela
ficou louco e atirava pedras nas pessoas), necessitava segurá-lo, de forma que, com
tanta luta para dominar os impulsos do homem, quebrou várias vezes os dedos dos pés.
Estes eram tortos como pregos que resistiam a perfurar as paredes, e por isso se
curvaram para todos os lados. Mal calçava um par de sandálias; mesmo assim, a
presenteei com um par de havaianas® e mais alguns provimentos de alimentação.
Quando retornei a Igatu, ainda em 2002, fiquei sabendo da sua morte. Nunca
visitei o seu túmulo. A antiga casa ainda é o meu referencial de passagem e lembranças.
O seu tom de voz, rouco, ainda posso “ouvir” à minha proximidade; o seu tom de pele,
de uma cor preta, marrom escura, reluzia ao sol e as cicatrizes do tempo do garimpo
impressos na sua tez ainda são vivas nas minhas lembranças. Na sua antiga moradia
vive João, filho de Antonia e que cuidou da anciã até seus últimos momentos. O jovem,
já casado e pai de um filho, constitui uma nova família que habita a casa de paredes
azuis, dantes ocupada por uma velha preta, de pés tortos e contadora de estórias. Com
ela, se foi uma parte da história de Igatu. Com a família de João, começa uma nova
história para aquele espaço.
Catita e Mateus fizeram parte do imaginário de Idalícia, personagens fiéis ao seu
presépio e motivo de muitos contos narrados por ela. Personagens que conheci naquele
lugar e que hoje sei que fazem parte do imaginário coletivo da nossa cultura e de um
universo que remete ao período da escravidão dos negros no Brasil e, por conseguinte,
da história do nosso povo. Catita e Mateus, casal representativo do vaqueiro, do homem
82
do Nordeste, herança de uma gente importada para trabalhar duro nas terras do novo
mundo. A princípio sem importância para os nobres da colônia de Portugal, hoje faz
parte de uma herança cultural em conseqüência da mistura de raças que aqui chegaram e
com elas as tradições de suas terras de origem. Uma herança que está ameaçada e se
dilui no espaço e no tempo, perdendo seu valor enquanto história cultural e memória de
um povo. Para as novas formas de cultura de massa, entre os jovens, registram-se as
narrativas eletrônicas. Contudo, Catita, também conhecida como Catirina ou Catarina e
Mateus, ou Brás, ainda estão presentes nos folguedos de Reis, estejam eles no Ceará, na
Bahia, em Pernambuco, nas Alagoas, Sergipe ou outro sítio geográfico do nosso país.
Serão eles, sempre, figuras marcantes do imaginário local, brincantes da tradição do
bumba-meu-boi ou do reisado, presentes na cultura popular brasileira. Nas ilustrações a
seguir detalhe do presépio de Antonia Santana, Igatu, mostrando o casal Catita e
Mateus, e o ambiente de Idalícia com a presença no presépio do referido par de
bonecos.
Ilustração 26
Presépio de Antonia Santana. Vê-se, ao
centro, o casal Catita e Mateus. Nota-se,
também, o estilo da pintura sobre a forração
do presépio.
Igatu/Andaraí - Bahia, janeiro de 2001.
83
Ilustração 27
Presépio de Idalícia dos Santos, montado sobre um pequeno móvel e
forrado com papel jornal, que é pintado com tracejados em um azul
semelhante ao da parede. Abaixo e no lado inferior direito, vê-se a
presença do casal Catita e Mateus. Ambos confeccionados em tecido.
Igatu/Andaraí - Bahia, janeiro de 1999.
A poética da vida cotidiana
O histórico da diversidade cultural brasileira leva a uma estrutura complexa do
imaginário no que diz respeito a nossas heranças culturais. Há um sincretismo visível e
laico no ambiente do presépio. Há uma liberdade absoluta para a criação, muitas vezes,
em oposição à própria idéia de ordem colocada pelas religiões, neste caso, a religião
católica.
No contexto da formação das culturas, há uma afirmação de Le Goff (1988) que
pontua a importância dos dados históricos associados aos fatos da criação popular a
partir da história das comunidades. Segundo o autor, “a história das mentalidades tem
suas fontes privilegiadas, aquelas que, mais e melhores que outras, conduzem à
psicologia coletiva das sociedades. Seu inventário é uma das primeiras tarefas do
84
historiador das mentalidades” (LE GOFF, 1988, p.76). Na formação do inventário, Le
Goff revela a importância da ‘captura’ do que vem a chamar, mais adiante, de
“documentos que testemunham esses sentimentos”, e que estão escritos nas mais
diferentes linguagens. Para o estudo do presépio, tridimensional por natureza, que
apresenta grande diversidade de elementos em sua elaboração, fiz uso dos instrumentos
da fotografia, do vídeo e de entrevistas gravadas em áudio como forma de captura
desses documentos de revelação”, que se constituirão no seu inventário.
A fotografia que pratico no âmbito do contexto natalino torna-se uma “janela”,
para os recortes desse “elemento invisível”, através do “visível”, ou seja, eu procuro
“retratar”, através da minha abordagem interpretativa, verossimilhanças que subjazem
de um cotidiano que atinge a maioria das nações pobres. A partir daí, estabeleço um
diálogo entre o objeto que pesquiso o presépio como um todo e como criação de
terceiros , e o meu trabalho plástico, tanto para a criação dos recortes fotográficos
como para os objetos criados por mim a partir do referencial imagético que se apresenta
ao meu olhar. Como expressão artística pessoal, me interessa, sobretudo, a “revelação”
desse conteúdo produzido pela sociedade moderna, cercada de violência e “apartheid”
social em uma esfera global.
Para exemplificar a abordagem descrita acima, durante uma das etapas de
viagens à Chapada Diamantina para investigação dos presépios, registrei na cidade de
Iramaia no ano de 2001 no interior de uma das casas visitadas, uma composição
integrada a um desses presépios, que continha parte de um revólver de brinquedo. Este
“pequeno” detalhe chamou-me atenção por tratar-se de um elemento que nos remete à
violência, e ainda, pelo segundo detalhe desta mesma composição, o objeto ‘arma’,
estava posicionado próximo aos pés de três pequenos bonecos que simbolizavam o
nascimento. Senti naquele exato momento da captura fotográfica, que estava
conseguindo uma das mais fortes imagens deste trabalho, ou melhor, desta garimpagem
imagética sobre um tema aparentemente simples, mas que tem um enorme conteúdo
psicossocial. No meu modo de ver, interpretei-a como sendo um “quadro” significativo
da violência urbana na atualidade. Como reminiscência da infância vivida, o presente
das crianças, reporta-me à disputa e aos jogos que foram introduzidos em nossas mentes
alimentados pelas brincadeiras de heróis e vilões. Logo, pude “ler” a partir daquele
conjunto de elementos que se apresentava ao meu olhar e do enquadramento por mim
85
elaborado, que havia uma composição onde repercutia o tema da violência vigente no
planeta, inconscientemente arquivada na memória do cidadão e que ali se fez
representar (ver ilustração 28).
Ilustração 28
Detalhe de presépio contendo elementos decorativos, entre eles parte de uma arma de
brinquedo.
Iramaia - Bahia, dezembro de 2001.
Este pequeno detalhe de presépio me chamou atenção especial, revelando que,
como conteúdo que faz parte do objeto, ele estabelece uma dialética entre o sagrado e o
profano no contexto religioso. É a criatividade que emerge, e o logicus surge como
fragmentos do cotidiano, recortes da vida real em meio a uma iconografia plural.
Segundo Maffesoli (1984), “a parte do imaginário é importante naquilo que chamamos
de minúsculas situações da vida cotidiana” (MAFFESOLI, 1984, p. 64). Sendo assim, o
imaginário atua como o “elixir” do modus vivendi, operando como cognição da
memória pessoal e histórica. Completando este pensamento, Maffesoli (1984) afirma
que “a vida humilde e seus trabalhos simples só podem ser vividos na medida em que
existe uma força mágica, poética que os alimenta sem cessar. A poética da vida
cotidiana, as criações minúsculas e imperceptíveis permitem, de fato, a permanência da
socialidade” (MAFFESOLI, 1984, p. 73). São essas poéticas, do bem e do mal, da razão
e da emoção, da crença e da não crença, da fé e do agradecimento, que alimentam esses
86
gestos de solidariedade para com a convivência coletiva e que motiva essas pessoas a
continuarem vivendo em seu nicho social.
Observando com cuidado a estrutura e modelo de criação do presépio, percebem-
se os laços com as tradições do homem religioso, seu tempo e sua inter-relação social.
Há algo estacionado, quase invisível, que narra uma história, seja pessoal, cultural ou
religiosa. Segundo Dupront (1988), “o fenômeno religioso pertence, do ponto de vista
temporal, ao longo prazo. Mais ainda: as suas transformações, mesmo a sua evolução,
são muito lentas, no que se refere aos hábitos adquiridos e à visão do mundo”
(DUPRONT, 1988, p. 83). Portanto, a presença de brinquedos antigos, e de certas
figuras da iconografia presente, remete imediatamente à infância deixada para trás, o
que, de certa forma, gera a importância da manutenção desse formato, sobretudo
porque, através desses “caminhos” religiosos, o indivíduo criador do presépio tem a
oportunidade de expressar-se e de expor suas histórias e sentimentos. Surge, a partir
dessa “lenta evolução”, e do imaginário de cada um, as idéias e estórias pessoais que
são revisitadas, logo, desveladas, pelo homem que cria, saindo, então, da sua forma
latente. Revela-se por inteiro o íntimo do indivíduo, buscando no seu estrato social e na
natureza presente os referenciais para a sua criação. O mundo da fantasia, da infância e
dos rituais religiosos acaba por compor todo o ritual da ordem da vida. Constroem-se, a
partir da imaginação pessoal, os elementos figurativos que representam os seres diante
das variadas possibilidades da criação. Para melhor compreensão desse processo, o
mesmo autor ainda afirma que:
Através da experiência religiosa, o homem vive num ritmo lento, o
qual oferece, quando apreendido em seu próprio movimento, uma
extraordinária e talvez única possibilidade de decifrar confissões e
testemunhos
8
, e o duplo sentido do combate de existir e da
interpretação que o próprio homem dá a si mesmo de tal combate.
[...] Assim, a história dos fatos religiosos pode validamente
estabelecer-se como fornecedora de material antropológico
(DUPRONT, 1988, p. 84).
8
Grifo do autor.
87
É exatamente a partir desse decifrar confissões e testemunhos que os
sentimentos das pessoas emergem nos presépios. Cada peça colocada e disposta no
arranjo final tem seu grau de significância. Cada vegetal associado ao sujeito
pertencente ao nascimento tem sua importância para a genética cultural do objeto em
estudo. Cada boneco “amputado” tem seu valor e significado perante a sociedade que o
gerou e cada boneco novo que passa a pertencer ao objeto terá uma história construída,
se não uma nova narrativa para as futuras gerações.
A respeito da minha colocação e para melhor compreender esta passagem do
bem sagrado e do bem cultural dos povos, retomo Dupront (1988), para quem,
a religiosidade é, no entanto, impulso religioso, e sempre, seja busca
ou consciência elementar do sagrado, coloca um universo religioso
ou uma maneira religiosa de aproximação da existência e das coisas.
Em seu conjunto, a antropologia do sagrado é quase dado imediato; o
seu material, bruto, sem dúvida, é freqüentemente manifesto, e
sobretudo (sic) é mostrado de forma maciça, pois um dos terrenos da
evidência é constituído pelos cultos populares. É um dado
inumerável, no qual as práticas, os gestos, os ritos aparecem como
uma linguagem de expressividade comum, da antropologia no lugar.
Essa facilidade de aproximação, na qual a principal dificuldade
consiste na imensidade do material, não nos deveria, no entanto,
conduzir a resumir, muito, o sagrado. O sagrado é essencialmente
vida do objeto; há, todavia, uma criação do sagrado que precede o
objeto e que pode permanecer sem objeto. É uma dupla reverência ao
total, a da ambivalência: a criação sobrenatural e tudo o que, por
qualquer via que seja, é sagrado e vem do alto; a criação coletiva,
intra-humana, em que o grupo, o meio, a sociedade reconhecem-se no
instante ou no tempo, como portadores de poder sacral (DUPRONT,
1988, p. 86).
Como se pode perceber, as manifestações populares, as do ato religioso, são
indicadoras de valores pertencentes às sociedades humanas, que se apegam à crença no
Divino para revelar seus sentimentos de dor, felicidade, fraternidade, etc., desde que
essas ações sejam no sentido construtivo da própria inter-relação dos grupos.
88
O presépio de Antonia Pereira dos Santos (Utinga-Ba) é rico em elementos que
revelam essa potencialidade criadora, possibilitando que a autora exerça sua forma de
expressão com vigor, permitindo que o público visitante participe e “atue” também no
ato da criação. Seus objetos partem da forma bruta para o refinado
9
, característica
particular do seu cenário que, concluído, expressa seus sonhos, fantasias e desejos para
com sua comunidade (ver ilustração 29).
Segundo Meira (2003), o processo criativo dá-se a partir da ação para a
transformação. Para a autora, “A arte tem a pretensão de capturar a vida onde ela se
esconde ou se camufla para o olhar, mesmo nas coisas banais e simples” (MEIRA,
2003, p. 122). Sim, percebo na maioria dos presépios visitados que o simples se
transforma em formas “complexas”, que “falam” e revelam vida em seu conteúdo.
Ilustração 29.
Detalhe do presépio de Antonia Pereira dos Santos. Ao fundo, mesa com altar
alusivo à cidade de Bom Jesus da Lapa, segundo depoimento da autora.
Utinga - Bahia, dezembro de 2004.
9
A criação de Antonia é cercada de cuidados técnicos quanto à elaboração das figuras que ela constrói a
exemplo de pequenas maquetes de casas feitas com palitos de picolé, e/ou flores confeccionadas a partir
de garrafas plásticas.
89
A seguir, trechos da entrevista concedida por Antonia Pereira dos Santos, em
Utinga, Bahia, dezembro de 2004. Ver entrevista completa em anexos.
D. Antonia, por que a senhora constrói seu presépio tão grande assim?
É pra ser da forma da terra de Bom Jesus da Lapa. Com as coisas que eu tive
em um sonho, né! Então, esse ano eu cresci mais, aumentei mais o presepe, fiz a serra
grande como assim a serra de Bom Jesus da Lapa, e também esse céu que tá feito aí,
aquele ano que vocês vieram, [referia-se ao período de 2002-03 quando estive em
Utinga, pela primeira vez, juntamente com os demais integrantes da equipe de trabalho],
não tinha, mas foi no sonho que tive, um sonho assim visive, então a coisa disse pra
mim, que era pra mim fazer, pegar um papel pintar, fazer uma pintura como o céu, com
todas as coisa que eu vi no sonho. Eu fiz o,... Eu pintei o papel, fiz essa cobertura, fiz as
estrela, a chave de São Pedro, o terço da Senhora, a lua com todas as coisa que eu vi
no sonho.
D. Antonia continua a sua narrativa sobre a ‘programação’ do que ocorre nos
dias em que o presépio fica montado, inclusive a encenação do nascimento do menino
Deus, utilizando uma criança recém-nascida, para atuação no papel de Jesus. Segundo a
autora, esta criança deverá ter entre 30 e 90 dias de nascimento e deve estar
acompanhada da mãe, que faz o papel de Maria. O público presente à encenação recebe
rosas brancas artificiais, confeccionadas pela própria Antônia, e que serão depositadas
na Cruz oferecida a Bom Jesus da Lapa, objeto também construído pela autora e
colocado em posição que o identifica como aquele sítio.
O presépio de Antônia é como um “ecossistema” e representa diversas
comunidades. Segundo ela, no mundo há diversas cidades e em cada uma delas há,
também, diversos presépios. Por isso, no seu imenso presépio, há representações de
centros urbanos, uma homenagem às principais referências dos locais que ela tem
visitado, como Bom Jesus da Lapa e Anhangüera, segundo a autora. Um presépio
religioso e cercado de atos de fé, como afirma. Contudo, seu presépio também é de
promessa, e como veremos em mais um trecho da sua entrevista, foi a partir da
promessa da sua mãe, pela saúde da filha (ela mesma) e do filho (seu irmão), que se deu
90
a origem do objeto sagrado, cujo ritual de montagem não deve ser interrompido até o
fim das suas vidas. Vejamos:
O presépio da Senhora parece uma cidade, aliás, ele é a representação de
uma cidade, tem até ruas e a gente pode andar por dentro do presépio, e isso é um
fato inédito; eu nunca vi um presépio em que o construtor ou que o visitante entre
e distribua rosas. Por que a senhora faz assim, o presépio com características de
cidade?
O presepe que eu faço assim dessa forma, é uma coisa assim, foi um dom que
Deus me deu, porque quando eu tinha de 5 até 8 anos de idade, eu cresci ouvindo
minha mãe dizer que tinha feito uma promessa pra meu irmão mais velho, e como eu
vivia muito doente, também, e ela queria ver eu crescer, ficar moça, se casar, ter o
maior prazer, né, então ela entregou a minha vida, minha saúde para o menino Jesus.
Ela dizia pra mim assim: eu também coloquei você nessa promessa, agora só tem uma
coisa; se você crescer gostando de, de, do presepe e achar que deve fazer, quando você
casar você vai fazer na sua casa; saiba você que o presepe agora vai ser seu, eu não
tenho mais parte na sua promessa, aí fica para sempre, porque eu fiz a promessa para
você e para meu filho mais velho, para sempre, e a sua também é a mesma coisa.
D. Antonia é bastante religiosa. Há, em sua casa, além do presépio que é um
altar temporário montado para a data comemorativa da natividade de Cristo, um altar
permanente e mais reservado à visitação pública. Tomei conhecimento deste em minha
primeira ida a Utinga, quando a conheci. Percebi-o através de uma cortina transparente
que dava visibilidade para um outro cômodo da casa. Quanto a este segundo ambiente
não lhe pedi permissão para conhecer nem a indaguei sobre o assunto. Percebi que se
tratava de um altar com santos reservado às suas orações ou somente aberto ao público
em dia muito especial. Antonia também lidera um grupo religioso, reza nas casas de
pessoas que lhe solicitam, como se fosse uma pregadora volante. É viúva, professora na
zona rural e sobrevive com o salário dessa atividade.
A entrevista de Antonia nos dá uma dimensão da fé, da crença e da criatividade
em nome do Divino. Antonia Pereira dos Santos mostra sua potencialidade para a
criação, tanto plástica quanto literária. Ela constrói o cenário e do seu imaginário
elabora as estórias criando uma narrativa para as personagens ali presentes. Traça uma
91
geografia do presépio, com ruas, morros, ladeiras, campos de aviação, seres vivos e não
vivos, o deslocamento para Anhangüera, e, sobretudo suas maquetes de imóveis que
variam de Igrejas a casas para os “moradores” da(s) sua(s) cidade(s) fictícia(s). Sobre
seu conhecimento do tema: é de origem popular, como a catequese, a igreja, a fé, e os
ensinamentos oriundos de gerações passadas. Seu objeto é cercado do motivo religioso
ao mesmo tempo em que é recheado de “contos” populares, tornando-se quase uma obra
literária. Sua narrativa é quase onírica, beira o surrealismo, mas, acredito que se define
como uma espécie de realismo fantástico para os contos sagrados.
O segundo encontro com Antonia P. dos Santos me deixou muito emocionado.
Parti convicto de que eu estava no percurso correto das investigações, a partir das
informações prestadas por ela, além de possuir mais dados que complementavam a
pesquisa para o processo criativo. Dali seguiria estradas, quilômetros, sozinho na
Chapada Diamantina, com meus aparelhos de gravar imagens e entrevistas. Senti-me
mais seguro depois da sua atenção. Não sou tão crente quanto ela e outras pessoas que
conheci, porém, neste processo da minha pesquisa, o encontro com Antonia foi
decisivo. Segui adiante. A sua imagem continua forte na minha memória; estou certo de
que ainda nos encontraremos em futuro próximo. A dinâmica desta mulher me faz
perceber o poder do objeto sagrado, a promessa da permanência e a fé ‘exposta’
materializada e visível na sua criação.
Para enriquecer este meu diálogo com Antonia cito, ainda, Dupront (1988) cujas
palavras me ajudaram a compreender melhor esta relação do homem com a
religiosidade. O autor traduz, ainda, o meu sentimento pelas coisas da natureza e
voltadas para o equilíbrio entre vida, crença, fé e religião.
Nessa crispação ou nessa angústia do equilíbrio vital, e, portanto, do
poder de existir, o que é sagrado conserva uma surpreendente virtude.
O objeto sagrado cura lá onde os remédios caseiros e a medicina
popular não são suficientes, num encontro extraordinário em que
intervém a crença no sobrenatural, algumas vezes a manifestação do
sobrenatural, a exigência humana de integridade, do normal e do não-
sofrimento e o desenvolvimento de uma energia vital sem medida.
92
Esse objeto toma forma humana no mundo cristão: o que permite o
recurso à palavra, mesmo muda (DUPRONT, 1988, p. 88).
A permuta de idéias e de ideais faz o homem transgredir para os planos
sobrenaturais, revelados, apenas, pela fé em algo desconhecido, invisível, como nos
sonhos de Antonia, mas presentes no seu mundo material e religioso.
Observando a participação da mulher na construção dos presépios, Antonia se
destaca pela sua capacidade criadora para com seu objeto sagrado, o presépio, bem
como pela sua facilidade de expressão através da oralidade na qual se pode classificar
como portadora de excelente narrativa para a literatura da cultura popular brasileira.
Neste sentido, Cascudo (1984) afirma que:
As mulheres possuem o arquivo mental em desenvolvida extensão.
Cícero dizia-as sabedoras de arcaísmos porque tinham menor contato
com a multidão e falavam com menos gente. Porque são as
narradoras de estórias para os filhos e netos, e exercitam-se com
vantagem, talvez seja uma razão lógica, como crê Paul Sébillot
(CASCUDO, 1984, p. 165).
Sobre a mulher, nota-se, entretanto, que há uma grande participação feminina na
criação e elaboração dos presépios. Mantêm-se as mulheres como grandes fontes das
narrativas heróicas dos personagens neles encontrados, sejam santos ou pertencentes ao
folclore nacional, perpetuando-se, assim, a tradição e a existência desses “mitos” tão
importantes para a nossa memória cultural.
Sendo assim, cito, ainda, outro trecho em que Cascudo (1984) reforça a teoria da
oralidade, no qual ele afirma que “A literatura oral é mantida e movimentada pela
tradição. É uma força obscura e poderosa, fazendo a transmissão, pela oralidade, de
geração a geração” (CASCUDO, 1984, p. 165).
93
Sim, percebe-se este fato quando se ouve uma dessas mulheres narrando a
história de seu presépio. Cada palavra, cada gesto, cada elemento ali colocado possui
uma razão de ser. São signos que fazem parte da memória cultural de cada um desses
indivíduos. Pertencem ao “patrimônio” da família, da comunidade e quiçá, da
humanidade. Entretanto, são essas estórias que passarão para uma próxima geração,
através da oralidade, como os contos e fábulas de todas as épocas.
Ilustração 30
Antonia Pereira dos Santos e parte do seu presépio ao fundo.
Utinga Bahia, dezembro de 2004.
94
Ilustração 31
Composição com Nossa Senhora de Anhangüera em detalhe no presépio de Antonia
Pereira dos Santos.
Utinga Bahia, dezembro de 2004.
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Ilustração 32
Minha presença como escala de proporções no presépio de Antonia
Pereira dos Santos.
Utinga-Bahia, dezembro de 2002.
CAPÍTULO III
A grande Arca de Jesus a Mateus
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Ô de casa!
Bom dia ou Boa tarde. Faço minhas apresentações, e explico o motivo da visita.
Abre-se uma porta ou uma janela e percebo a dimensão do objeto. À primeira
vista o olhar é confuso, as informações são muitas, contudo, aos poucos o olho vai se
adequando a cada detalhe do cenário. Os elementos vão se identificando, definindo
forma e conteúdo; é como se ganhassem vida própria adquirindo força no contexto do
cenário, “falando” para o mundo o que eles significam. Na maioria dos casos, ou das
casas, é assim.
Era um dia ensolarado; fazia muito calor. Eu guiava o veículo por uma estrada
que, segundo informações colhidas, me levaria até a cidade de Mucugê. Entretanto, por
uma dúvida sobre qual direção seguir ao chegar numa bifurcação, tomei sentido para a
comunidade de João Correia, distrito de Mucugê, situado na divisa com o município de
Abaíra. Conforme o mapa rodoviário que eu tinha em mãos, a estrada deveria cruzar
pela comunidade de João Correia e seguir até Mucugê. O mapa estava errado. Fiz pausa
para beber uma água gelada, matar a sede, e comprar alguns suprimentos para o longo
caminho que estava por vir.
O meu colega de viagem e auxiliar de entrevistas, Alex Simões, foi mais adiante
para conhecer a localidade e uma pequena igreja da comunidade. Chegando lá, indagou
ao nativo que o guiou sobre a possibilidade de existir algum presépio naquela
comunidade. Foi informado sobre o presépio de D. Aurenive Neves, como sendo o
maior da região. O imprevisível e inesperado desvio do roteiro original da viagem
começou a revelar-se. Fui comunicado por Alex sobre a existência do presépio e dirigi-
me ao local para checar a informação. Chegando à residência onde estava o grande
presépio, fiquei surpreso com o que vi de tão grande e maravilhoso. A princípio senti-
me como se estivesse diante de uma grande mina de diamantes. Pedi licença à dona da
casa, falei dos objetivos do projeto
1
e, após autorização daquela senhora, fui até o carro
apanhar a câmera fotográfica e o único filme que me restava. Quando adentrei à casa de
Aurenive Moreira Neves, eram aproximadamente 11h30min da manhã naquele dia 8 de
1
À época, o projeto era apenas de cunho independente com fins de editoração de livro temático sobre o
assunto. Hoje, embora ainda mantenha a idéia do livro, esse mesmo tema transformou-se no projeto que
foi aprovado como pesquisa acadêmica e que gerou essa dissertação de mestrado.
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janeiro de 2001, mais precisamente. Aquele cenário mereceu o mais completo registro
fotográfico feito na primeira viagem deste projeto. Aquela estrada “errada” mereceu
momentos de reflexão sobre o que fazer com esses objetos fotografados, que destino dar
a eles, já que eu os acolhia na minha pessoalidade, criando, a partir daí, laços muito
próximos. A partir de então, a pergunta principal foi (é): como agir, interagir diante de
tanta beleza plástica, diante de tanta doação daquelas pessoas para com seu objeto
votivo, sem agredi-las, sem deturpar sua verdadeira razão? Percebi que eu estava diante
de um presépio de grande valor histórico e muito importante para com meus objetivos
fotográficos e a pesquisa que se iniciava.
O meu método de aproximação para com o(a) autor(a) dos presépios é o diálogo,
seguido de entrevista. Antes, porém, falo do que se trata e para que fins se destina a
pesquisa. Procede-se a fixação do objeto através da fotografia, maneira pela qual posso
ver, pelo visor da câmera, as “janelas”, ou a parte significativa da composição à vista
para a construção das imagens. Da referência material, os elementos em cena, para os
recortes fotográficos, são reveladores de uma realidade dura e criativa, ao mesmo tempo
lúdica, pertencente ao maravilhoso dos heróis e ao maravilhoso no religioso. Nestes
casos a câmera funciona como um “Raio-X” do cenário fotografado e a imagem
fotografada é a matéria reveladora do cotidiano e do labor criativo do cidadão. É, ainda,
o terceiro olho do fotógrafo, o suporte e memória de um passado que acabou de ser
registrado. Segundo Gombrich (1981, p. 278), “a foto não é uma réplica simples da
realidade em questão, mas sim uma transformação visual que deve ser novamente
interpretada pelo observador a fim de assegurar a informação necessária” (apud
Santaella e Nöth, 1997, p. 41). Neste caso, a leitura da imagem registrada se torna mais
que necessária para melhor interpretação do imagético presente nos presépios, bem
como dos contos populares, ou das narrativas, pertencentes a esses elementos. Juntos,
poderão relevar a ação criadora, colocando-a como instrumento sócio-compreensivo dos
presépios.
Compreender e interpretar, através do trabalho de artista visual, o objeto no
contexto sócio-cultural daquela gente é tarefa desta pesquisa, a partir do entendimento
entre a arte e a realidade presente, uma realidade que é transferida do plano imaginário
do sujeito criador para o plano do mundo real, sem, contudo, ser o objeto direto da
informação pretendida. Para o sujeito que cria, o objetivo do presépio está em
99
homenagear o nascimento do menino Jesus, porém, e a partir do ato da criação, o objeto
vai tomando forma própria, como um grande rizoma que cresce a cada necessidade de
“expansão” da sua narrativa, cuja “história”, “ilustrada” através de seus representantes,
povoa a mente e os domínios do criador. Esses representantes que são signos do
presente pertencem ao mundo visível, são formas icônicas da representação, ou seja,
segundo Goodman (1968) “representações são imagens que têm aproximadamente o
mesmo tipo de função que descrições” (apud Santaella e Nöth, 1997, p.19).
Observando-os sob esta ótica, as representações do cotidiano estão presentes através dos
signos ali instalados como extensões desse imaginário. As figuras, as plantas, os
elementos diversos do cenário, a composição e estrutura do presépio dizem respeito ao
modus vivendi do sujeito e da comunidade à qual pertence. Ainda, segundo Goodman
(1968), “quando nós observamos um símbolo, que é sempre um objeto do mundo
exterior no amplo sentido da palavra, não olhamos para ele como o próprio objeto, mas
como representante daquilo que ele representa” (apud Santaella e Nöth, 1997, p. 21). Os
elementos/objetos presentes na Lapinha ou presépio tornam-se referenciais do cotidiano,
enriquecidos pela narrativa pessoal que está imbuída de histórias com origem no
passado, como um importante “silo” do conteúdo pertencente ao imaginário coletivo.
Compõem-se em um grande patrimônio para a atualidade.
Nos caminhos de areia do presépio arte
A “estrada”, os morros, as ruas e as cidades em maquetes que configuram os
presépios possuem o elemento terra para afirmar a presença do homem. Para os
belenistas, a “praia” ou o local de assento de todas as outras figuras, incluindo o cenário
completo, simboliza a terra que nasceu Jesus. Subjetivamente, remete aos desertos do
oriente, como referência às imagens bíblicas que reproduzem aquele ambiente.
Observando cuidadosamente esses cenários, pude perceber o grau de
organização da estrutura cênica e da disposição dos elementos que os compõem,
proporcionando uma movimentação do olhar em consonância com o motivo da
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representação. Este motivo é enriquecido com elementos figurativos que representam o
aspecto urbano, rural e social do indivíduo criador, enriquecido pela história de cada
um. Os materiais que compõem o presépio são constituídos por iconografia adquirida no
comércio local, ou reaproveitadas do uso constante e cotidiano das crianças como
brinquedos, por exemplo, utensílios domésticos sem uso, flores artificiais, animais de
louça, iconografias gráficas em grande variedade, pedras de diversos tipos, jornais
impressos, etc. Contudo, há, também, elementos que são manufaturados pelo sujeito a
partir do pré-conhecimento da forma, como pequenas reproduções do mobiliário
doméstico, através de técnicas que foram desenvolvidas por familiares ou amigos que a
utilizavam na construção desses objetos. Reproduzem, também, representações de
imóveis como residências, igrejas, aeroportos, escolas, quadras esportivas, piscinas, etc.
O presépio se torna, a partir daí, a grande casa dos sonhos, estabelecendo, dessa forma,
um diálogo entre o mundo interior e exterior do sujeito.
Pode-se observar através de um detalhe do presépio (ver Ilustração 20) que a
ordenação dos objetos presentes segue certo alinhamento na sua estrutura de
movimento, como uma grande caminhada, em direção a algum lugar. O presépio se
torna o espaço geográfico da expressão religiosa e artística, sobretudo quanto se trata da
expressão popular. Segundo depoimento de vários belenistas, todas as personagens do
presépio seguem numa espécie de caminhada, primeiramente, em direção à
representação da manjedoura onde nasceu o menino Jesus, para uma visita simbólica ao
nascimento. Este direcionamento-se até o dia 31 de dezembro, data em que todas as
figuras permanecem de costas para o visitante da casa onde está instalado o presépio, ou
seja, estão reverenciando o menino Jesus. Contudo, este é um fato curioso e que
encontra algumas divergências, quanto à data, em diferentes localidades. Para alguns,
este comportamento deve ser seguido até 25 de dezembro, para outros até 31 de janeiro.
Segundo Luzinete Alves Feitosa, residente na cidade de Bonito, “os três Reis
Magos ficam de costas para o menino Jesus até o dia 24 de dezembro e depois da data
do Natal vira os reis Magos para a Manjedoura, pois, estão visitando e homenageando a
chegada do deus menino” (entrevista concedida no dia 28/12/2004). Em entrevista a D.
Zenilda Silva Costa, na cidade de Mucugê, a depoente diz que “no Natal os enfeites são
pra cá (voltados para o público) e quando vira o ano vão visitar e estão voltados para
Ele. Vira à meia noite. Junto da Lapinha tem os bichos como boi, carneiro, galo, burro,
101
vaca” (entrevista concedida em 01/01/2005). Em Igatu, distrito de Andaraí, Antonia
Santana Silva relata que o presépio é disposto com os elementos de costas para as
pessoas até o dia 31 de dezembro, quando são virados e passam a ficar de frente, isto é,
com a face voltada para o público visitante do presépio. Segundo a autora, isto significa
que após o nascimento e visita do “grande público” eles iniciam a caminhada de volta, o
que faz sentido, já que as pessoas não ficam mais que algumas horas quando vão visitar
um recém-nascido. Pude observar este “movimento” das figuras dos presépios em
diversas residências, constatando a potencialidade do sujeito quanto à sua criatividade.
Sobre a movimentação das figuras não há uma padronização quanto a este
“deslocamento”, contudo está presente na grande maioria dos presépios e para aqueles
que depositam sua fé no menino Jesus.
Durante as entrevistas alguns depoentes confirmaram com naturalidade este
“movimento”, ou seja, a mudança de posição das figuras dos presépios, das quais pude
constatar que, na maioria dos casos, realiza-se a “virada” na passagem de um ano par o
outro
2
. Para tanto, cito como exemplo e amostra os presépios de Ivonice Alcântara
(Lençóis), Minelvina Cruz de Oliveira (Wagner), Alice Ferreira Braga (Wagner),
Aurenive Moreira Neves (João Correia/Mucugê), Eurides Oliveira Franco e Castriciana
Oliveira Franco (Palmeiras). Já a depoente Maria Oliveira dos Santos, Lagoa da Boa
Vista no município de Seabra, afirmou que “os bonecos não viram. Não muda nada, do
jeito que coloca fica da data da armação até o desmonte”. Em todos os casos o gosto
popular alimenta a tradição e permanência do objeto, embora haja aqueles que se negam
a seguir o “modelo” da religião católica e um conceito padrão para a montagem do
presépio.
A partir do exposto, percebe-se que há tradição na maioria dos casos para a
“virada” dos personagens dos presépios, especialmente àqueles que figuram mais
próximos ao menino Jesus e que têm a missão da visita. Em casos raros, como o de
Maria Oliveira dos Santos, em Lagoa da Boa Vista no município de Seabra, não há uma
“movimentação” dos personagens, ou seja, estarem com a face voltada para o menino
Jesus até 31 de dezembro e, com a mudança do ano virá-los para a entrada da casa. O
2
Cf. entrevistas gravadas em áudio.
102
fato consome-se ali, no momento da montagem do presépio, permanecendo as
personagens na mesma posição até o final das comemorações.
A contingência de figuras nos presépios que ocupa todo o espaço físico deste,
para um conceito mais formalista, tem como função criar tensões e levar o olhar do
espectador a percorrer todo o espaço. É como um ‘caminhar’ pelos labirintos de uma
grande cidade à procura daquilo que se deseja encontrar. Os sentidos se aguçam e o
olhar, especialmente, se torna apreensivo, busca seu alvo, o desejo de encontrar, que
nem sempre o satisfaz diante de tantas opções para potencializar os diversos sentidos
humanos. O pegar se torna tentador, os cheiros das casas e de seus residentes, as
diversas perguntas, os ruídos ao redor do ambiente. Aumenta a sensação de
grandiosidade diante de tanta potencialidade humana, juntamente com o estado de
pobreza e humildade daquelas pessoas. Nos caminhos de areia dos presépios arte,
pode-se perceber o sacrifício do cidadão, todo o labor de seus mentores, todos os
desejos que fazem parte dos sonhos de cada um. Naqueles cenários as crenças se
misturam e os símbolos da diversidade religiosa se fortalecem, tornam-se híbridos,
fazendo parte de um mesmo contexto alentado pela ação não excludente de seus
“decoradores”, os belenistas. Os diversos signos se aproximam pela fé e se impõem pela
sabedoria de seus autores. Transformam-se em conteúdo único a partir do conhecimento
popular. É a imagem construída a partir do imaginário, na qual “A imagem é um
modelo da realidade” (Wittgenstein apud Santaella; Nöth, 1997, p. 29). Uma realidade
sempre presente, refletida e visível o que torna lógica a presença absoluta da “criação”.
Entende-se, a partir das palavras de Wittgenstein, que o filósofo da era moderna quer
deixar claro sobre a necessidade do pensamento como forma de gerir algo, arte, ou a
imagem que o ideal humano transforma em poesia, pertencente a uma narrativa própria
a partir do pensamento. Sendo assim, é algo visível e o mesmo pensador diz que “a
imagem lógica dos fatos é o pensamento” (apud Santella; Nöth (1997, p. 29). Tudo se
torna compreensível diante de um universo múltiplo, no qual a diversidade das figuras
predomina em todo o contexto do cenário e da data comemorativa. Quantitativamente:
quantos presentes em números exatos? Que importa se haverá infinitas possibilidades de
montagem? Veremos.
103
A Grande Arca: uma estética mutante
A idéia ou denominação da “Arca” adveio das minhas lembranças e impressões
sobre o presépio de Aurenive Neves. À primeira observação, no momento do encontro
com o objeto, a pluralidade de elementos encontrados naquele presépio me remete, de
imediato, à idéia da arca de Noé e da salvação dos seres vivos sobre o planeta quando
ocorreu o ‘dilúvio’, segundo consta no texto bíblico:
O Senhor disse a Noé: Entra na arca tu, e toda a tua casa, porque te
reconheci justo diante dos meus olhos, no meio dessa geração. De
todos os animais puros tomarás sete casais, machos e fêmeas, e de
todos os animais impuros tomarás um casal, macho e fêmea; das aves
do céu igualmente sete casais, machos e fêmeas, para que se conserve
a raça sobre a face da terra. [...]. Noé entra com a família e com eles
os animais selvagens de toda espécie, os répteis de toda espécie que
se arrastam sobre a terra, e tudo que voa de toda espécie, todas as
aves e tudo que tem asas (Bíblia Sagrada, 1961; Gênesis 7, 13; 7, 14).
Fazendo uma analogia com a arca de Noé como um espaço para a salvação, o
cenário do presépio em alguns casos parece ter esta função, ou seja, o ajuntamento
como fato simbólico à vida e a representações da natureza. Para esta reflexão volto a
mencionar o presépio de Aurenive Moreira Neves, em João Correia/Mucugê, que me
faz lembrar a passagem bíblica citada acima. Como se quisesse perpetuar a sua história
de vida possui em seu conjunto cênico elementos que me fazem acreditar o quão
significativa é sua presença naquela pequena comunidade. Naqueles dias festivos à data
do nascimento de Jesus, a autora resgata no seu “imenso planeta”, a história cultural da
sua comunidade através dos contos de origem dos entes passados ou, ainda, criados pela
própria autora, revelando sua capacidade de criação e reprodução da literatura oral para
a comunidade a qual habita.
104
O presépio de Aurenive M. Neves dialoga com cada visitante que dele se
aproxima, numa imensurável analogia da criação. É inevitável este diálogo com as
figuras que se aglomeram e se “movimentam” como numa grande metrópole, com “um
trânsito congestionado entre seus transeuntes”, demonstrando haver ali uma grande
variedade de formas, personagens de vasto histórico e de colorido exuberante. Estes
objetos ou figuras representantes da vida são os instrumentos que fazem daquele
presépio um cenário “vivo”, compondo uma verdadeira trama de informações, que
provocam no espectador tensões e movimentos para o olhar em toda a sua extensão.
Ímpar quanto à estrutura, parece estar presente no cotidiano do ambiente doméstico,
como um objeto permanente, tal a sua imponência. Suas dimensões ultrapassam os três
metros da parede de fundo mais uns dois metros da lateral.
Sua estrutura de prateleiras dá apoio e equilíbrio ao corpo central do objeto onde
estão as principais figuras que o enriquecem. É constituído, também, de inúmeros
ornamentos, como plantas, bolas e árvore de Natal, estrelas que representam o anúncio
do nascimento, iconografias de parede que simbolizam a religião católica, além de
relógios em diversos tamanhos e formatos, simbolizando o tempo e a importância do
presépio para aquela família. Na estrutura central do seu presépio há a presença de um
andor que sustenta um tecido em cor azul celeste composto de inúmeras estrelas na face
voltada para baixo, além de um “anjo da guarda”, posicionado à frente do mesmo e no
alto como guardião da casa, segundo a autora. Este elemento do presépio protege a sua
“nave central” na qual estão instalados o menino Jesus e sua família. Mutante no seu
formato geral, percebem-se mudanças na estrutura primária de ano para ano.
Para manutenção do seu objeto, Aurenive M. Neves faz questão de trocar as
vestes dos(as) bonecos(as) todos os anos. Ela mesma confecciona e faz a substituição
para que seus personagens principais, ou aqueles que fazem parte da sua criação,
estejam sempre limpos, com vestes sem poeira ou resquícios de fungos em decorrência
do longo período em que ficam guardados. Cada figura presente em seu presépio é
tratada como um humano vivo, com carinho, respeito e cuidado. A autora não se limita
apenas a comprar seus personagens. Ela também os cria, dando-lhes forma e nome,
além de montar vestuário pessoal para cada um deles. Há, ainda, outros personagens de
aparência estranha ao “normal” que são construídos a partir de tecido de algodão e
fibras naturais encontradas na região. A estes, dá forma de corpos como os humanos.
105
Para outros, utiliza partes como a cabeça de uma cor vibrante unida a corpos de bonecos
de origem diferente, dando-lhes uma aparência estranha ao usual, demonstrando, mais
uma vez, que sua criatividade não tem limites. Visivelmente, as figuras parecem um
híbrido de humano com animal, meio bicho meio homem, um misto de personagem da
ficção científica e das lendas que povoam o imaginário (ver figura 33).
No presépio de Aurenive Neves observei, também, que a autora utiliza cera de
abelha para montar novos personagens. Com esse material molda cavalos e vaqueiros,
identificando-os para que possam fazer parte do corpo de “atores” do seu cenário. Está
presente, também, o casal Catita e Mateus, ela como representante do lar, ele,
tipicamente trajado como um vaqueiro nordestino. Personagens importantes no contexto
dos festejos populares, marcam presença nos presépios como representantes heróicos. O
trabalho desta senhora revela a grande importância histórica e cultural nesta modalidade
de expressão.
Aurenive M. Neves possui uma capacidade criadora surpreendente quando se
trata de instalar o seu presépio a partir dos elementos que dispõe e do seu imaginário,
particularidade da sua vida que pude conhecer através do objeto visitado em seu local de
origem e através das narrativas da autora. Mulher lavradora sobrevive do que planta e
colhe no seu “pequeno quintal”, como ela mesma o chama. Vende seus produtos na
feira de Abaíra, para onde segue de ônibus com outros comerciantes da localidade de
João Correia. Esta é sua rotina diária, até a chegada do período do Natal, quando ela se
volta para a montagem do seu presépio. Até lá, outras estórias surgirão.
Outros presépios são de grande importância para este estudo, como por exemplo,
o presépio instalação de Antonia Pereira dos Santos, presente no município de Utinga
Bahia. Imponente em sua dimensão, possui figuração própria e é ricamente elaborado
pela sua autora. Comentado em capítulo anterior, este assume a mesma importância no
contexto histórico cultural que o presépio de Aurenive Neves, constando da presença
de elementos e personagens próprios inseridos em seu espaço criativo. Idem aos
presépios de Alice Ferreira Braga no município de Wagner, Antonia Santana da Silva
em Igatu, distrito de Andaraí, presépios tomados como amostras para esta pesquisa.
106
Ilustração 33
Detalhe de presépio de Aurenive M. Neves, mostrando figuras híbridas quanto ao
material empregado na confecção.
João Correia, Mucugê Bahia, janeiro de 2001.
107
Personagens e cenários: sobre o imaginário de Catita e Mateus
As Catirinas são homens vestidos de mulheres e os Mateus vestem-se
com roupas engraçadas (chapéu grande e bengala ou pandeiro),
circulando o jogo dramático dos dois partidos e, geralmente,
ironizando o clima de luta criado pelos mesmos. Estes personagens,
que aparentam fragmentos desconexos da encenação também são os
que mais aproveitam para pedir esmolas aos espectadores enquanto
os guerreiros estão se digladiando ou preparando-se para a guerra
(REIS, 1997, In: Greiner e Bião [org.], 1999, p. 121).
Personagens surpresas para mim desde que eu passei a ter contatos com os
presépios da atualidade, Mateus e Catita ou Catirina
3
são dois personagens recorrentes
dos festejos folclóricos brasileiros, especialmente à época natalina, como brincantes
ativos nos grupos de Reis. É sabido que os autores de reisados compõem e cantam
músicas direcionadas ao poder, pois, são representativas de “lideranças políticas”,
seguindo uma tradição que vem de território africano, daí a denominação de Reis de
Congo, segundo BARROSO (1996). De acordo com o autor, “A festa se dava em torno
do Santo Rei Baltazar, o negro entre os Reis Magos, que era relacionado ao Rei de
Congo pelos brincantes” (BARROSO, 1996, p. 22).
A tradição
4
dos Reis de Congo contribuiu para a permanência dos ditos
personagens no folclore brasileiro. Entretanto, nas investigações de campo pude
perceber que há um ‘distanciamento’ entre os representantes desses personagens
encontrados nos presépios e sua relação direta com o reisado. Em nenhum momento no
processo de coleta de material na fonte foi identificado através das investigações diretas
com os depoentes, que estes dois personagens recorrentes da tradição sejam, também,
brincantes nas festas de Reis. Até o presente e durante as investigações nas diversas
localidades em que estive na Chapada Diamantina, conforme entrevistas diretas e/ou
gravadas, não houve depoimento que identificasse a relação dos Mateus e
3
A denominação Catirina é empregada no nordeste do Brasil entre os Reis de Congo localizados do
Ceará até o estado de Alagoas, verificando-se que a partir do estado alagoano já há ocorrências das
Catitas. Na Bahia, é mais freqüente a denominação Catita.
4
Apud CASCUDO (1984, p. 29), “entende-se por tradição, traditio, tradere, entregar, transmitir, passar
adiante, o processo divulgativo do conhecimento popular ágrafo.”
108
Catitas/Catirinas dos presépios com os brincantes das apresentações de reisados.
Entretanto, percebi que estes personagens que simbolizam o homem do campo, mais
especialmente o vaqueiro, estão presentes na maioria dos presépios investigados. Por
tradição há, sim, a presença desses personagens nos cenários de Natal, o que leva às
evidências de uma relação direta com a história cultural das festividades religiosas e dos
folguedos populares. Como foi dito em capítulo anterior, e a partir de depoimentos de
pessoas que montam os presépios no qual a presença dos personagens é uma constante,
há uma narrativa oral sobre o casal, um negro e outro branco ou os dois negros, que
povoa o imaginário de cada mentor. É importante lembrar que há indícios dessa
narrativa, passada através da oralidade para outras gerações de brincantes.
“O Mateus e o Vaqueiro são figuras dos engenhos, pertencem a uma
comunidade social diferente, lá dos sertões” (BARROSO, 1996, p. 43). O presente
trecho me remete à figura do Mateus de Aurenive Neves, cujo personagem é um típico
nordestino. Na versão de Barroso (1996), a palavra ‘engenho’ remete ao negro, ao
escravo, representado pelo Mateus, cuja indumentária é do vaqueiro nordestino que usa
chapéu de couro e porta uma espingarda no braço esquerdo; portanto, uma personagem
híbrida. Ao seu lado está a Catita que Aurenive Neves ‘molda’ como a figura feminina
do presépio, usando uma vestimenta bastante típica da mulher camponesa e nordestina.
À sua Catita é dado o cuidado da troca de roupa a cada ano, conforme a autora,
enquanto que o Mateus repete o figurino do vaqueiro. A partir desse referencial, nota-se
que a figura do Mateus é um representante típico das tradições do nordeste brasileiro,
diferenciando-o dentre outras regiões. Para melhor compreensão da personagem,
transcrevo outra descrição a respeito deste, abordada por Oswald Barroso (1996) em sua
pesquisa sobre os reis de Congo:
Cartola vermelha (que chama de cafuringa) enfeitada de espelhos e
fitas sobre a cabeça. [...]. Óculos escuros, rosto pintado de preto (com
tinsa de panela e vaselina) mesmo que já seja negro, uniforme de
cangaceiro, com revólver, cartucheira e pente de balas atravessado no
peito (antigamente carregava uma espingarda de bambu nos
ombros)
5
, junto com um enorme rosário (feito com semente de
mucunã ou manucaba, pedaços de espiga de milho, carretéis de linha,
5
Nota-se que o Mateus confeccionado por Aurenive Neves possui uma espingarda apoiada no ombro.
109
pequenas bonecas de plástico ou madeira etc.), no qual reza um
irreverente “Pai Nosso”. Numa mão leva um pandeiro ou um ganzá e
na outra uma “macaca” (espécie de chicote), com a qual corre em
perseguição aos meninos e surra os personagens grotescos. Assim é o
Mateus, negro e ex-escravo, a segunda figura mais importante na
estrutura de personagens do Reisado e, certamente, a primeira na
preferência do público. ‘É a graça do Reisado’, como diz o mestre
Antônio Félix (BARROSO, 1996, p. 93).
O trecho acima me permite traçar paralelos entre os brincantes dos Reis de
Congo e os personagens encontrados nos presépios da Chapada Diamantina. Conforme
descrição de Barroso (1996), a aparência externa do figurante do reisado se confunde
com a figura observada nos presépios. Comparando os elementos que fazem parte da
indumentária de ambos vestido comprido e largo, como na tradição nordestina, além
de colares, argolas, torsos e pulseiras na Catita, e chapéu de couro, couraça protetora
para o corpo, cartucheira de balas, espingarda, e lenço no bolso do Mateus, percebo a
proximidade entre essas personagens.
Segundo Alice Ferreira Braga, em Wagner, ‘o presépio sem Catita e Mateus não
tem graça’. Depoimentos como esses confirmam que se trata de personagens recorrentes
e importantes para a cultura popular, especialmente por darem margens à fantasia’ e
deixarem o imaginário traçar o rumo da história. Ainda segundo Barroso (1996), “O
Mateus representa o mundo invertido. Parodia com galhofa todos os rituais, sejam
religiosos ou guerreiros do Reisado” (BARROSO, 1996, p. 93). Completa: “mais que
dionisíaco, é um personagem grotesco” (BARROSO, 1996, p. 94). Assim se
apresentam, e por isso se destacam perante os outros elementos do reisado, guardando
semelhanças pelas funções com sua aparição também no presépio.
Consultando outro autor a respeito dos elementos brincantes dos reisados,
Cascudo (1984) faz a seguinte referência, indicando que havia uma segunda
personagem de igual importância nas danças folclóricas:
110
Birico e Mateus, do ‘Boi Kalemba’
6
, são os elementos humorísticos,
encarregados de distrair o auditório com constantes discussões e
brigas espalhafatosas, permutando injúrias, declamando versos,
escorregando, caindo. Constituem a dupla da inteligência, da
improvisação chistosa, desembaraçada e com prontidão verbal
(CASCUDO, 1984, p. 380).
Sobre a segunda personagem, “Birico”, não é raro encontrar nos presépios
denominações diferentes para a mesma personagem como apontam os belenistas por
mim entrevistados, sem, entretanto, definirem a origem desses “seres”. Vários
pesquisadores da cultura brasileira citam a presença de outros vaqueiros, personagens
igualmente importantes nos Bumba-meu-boi, que se identificam com os diversos
Mateus nos presépios. Sobre sua origem, Cascudo (1984) afirma:
“A mais antiga alusão ao BUMBA-MEU-BOI que conheço é de
1840, uma página mal-humorada de frei Miguel do Sacramento
Lopes Gama no seu “Carapuceiro”, que durou de 1822 a 1847, e
daria interessantíssimo volume de coletânea. Pereira da Costa
transcreve o trecho: De quantos recreios, folganças e desenfados
populares há neste nosso Pernambuco, eu não conheço um tão tolo,
tão estúpido e destituído de graça, como o aliás bem conhecido
BUMBA-MEU-BOI. Em tal brinco não se encontra um enredo, nem
verossimilhança, nem ligação: é um agregado de disparates.
Um negro metido debaixo de uma baeta é o boi; um capadócio
enfiado pelo fundo dum panacu velho, chama-se o cavalo-marinho;
outro, alapardado, sob lençóis, denomina-se burrinha; um menino
com duas saias, uma da cintura para baixo, outra da cintura para
cima, terminando para a cabeça com uma urupema, é o que se chama
de caipora; há além disto outro capadócio que se chama o pai Mateus.
O sujeito do cavalo marinho é o senhor do boi, da burrinha, da
caipora e do Mateus.
Todo divertimento cifra-se em o dono de toda esta súcia fazer dançar
ao som de violas, pandeiros e de uma infernal berraria do tal bêbado
6
O BUMBA-MEU-BOI, BOI KALEMBA, BOI BUMBÁ ou simplesmente BOI, é um auto popular
formado no norte do Brasil, de Bahia para cima, pela reunião de vários reisados tradicionais, ao redor da
dança do Boi, possível reminiscência das Tourinhas de Portugal” (Apud CASCUDO, 1984, p. 421).
111
Mateus, a burrinha, a caipora e o boi, que com efeito é animal muito
ligeirinho [...] (apud CASCUDO, 1984, p. 427).
Sobre a personagem feminina, cujo prenome varia entre regiões, haja vista a
presença das diversas nomenclaturas empregadas, esta, assim como o Mateus, é uma
personagem irreverente. Vale, aqui, uma breve descrição a partir das pesquisas de
Barroso:
É a parelha do Mateus, sua noiva. Como ele é um personagem
cômico. Nos Reisados de Congo, veste-se de preto, um pano amarrado na
cabeça, o rosto tisuado de preto e um chicote na mão, para correr atrás das
moças e das crianças. Em outros Reisados, aparece com o vestido estampado
e o rosto maquiado ou mascarado. Mas, em todo caso, sempre é interpretada
por um homem, que fala em falsete, sem, contudo imitar a sensualidade da
mulher, como fazem usualmente os travestis. Negra e grávida, escandalosa e
indecente, vive levantando a saia por causa do calor. Acusa um e outro de ser
pai de seu filho (BARROSO, 1996, p. 96).
Na descrição acima pode-se perceber a importância dessa personagem cômica
no interior dos grupos folclóricos, especialmente no Reis de Congo pesquisado pelo
autor. Nas montagens de presépios, sem danças de rua nem irreverência, ela se
transforma num referencial do gênero feminino e seus afazeres domésticos,
caracterizada como companheira fiel de seu esposo. Personagem visitante da lapinha do
menino Jesus, integra-se ao cenário como elemento de destaque entre os demais
figurantes, pelo seu diferencial expressivo e simbólico.
Como referencial das tradições européias do período medieval e renascentista,
BARROSO (1996) cita BRANDÃO (1953), mostrando que essas inversões e
irreverências têm origem na Europa, não sendo, portanto, uma particularidade da
herança escravagista. Vejamos: “Cabe observar, entretanto, que estas rezas irreverentes
(falando das cantatas dos Reis), invertidas, eram comuns nas festas populares da Europa
Medieval e Renascentista, não se constituindo uma particularidade ou resultado da
catequização dos negros” (apud BRANDÃO, 1953, p. 38). Vale salientar, contudo, que
a Epifania culmina com os festejos dos Reis, a disputa de lideranças entre marujadas e
Reinados do Congo está também influenciada pela presença africana no Brasil. O final
112
do período Medieval e o clímax do Renascimento coincidem com as descobertas dos
espanhóis e portugueses no Novo Mundo, conseqüentemente trazendo influências
européias e africanas com a importação do negro para aqui trabalhar.
Portanto, a personagem Mateus é introduzida nos folguedos populares do Brasil,
não a partir dos presépios, mas da hibridização das danças populares européias com os
costumes mouros e afro-orientais, através de Portugal, e adaptadas à nossa realidade
social.
Outros autores citam a presença da personagem nos congados, folias de reis e
bumbas-meu-boi. Silvio Romero cita personagens “no Reisado do Cavalo Marinho e
Bumba-meu-boi (Pernambuco)”, com a participação de “Catarina (que vai casar com
Sebastião)”; Pereira da Costa também cita a “Catarina” e Melo Morais Filho “referindo-
se a Bahia e Alagoas: Boi, tio Mateus, tia Catarina,” entre outros. Gustavo Barroso
cita inúmeros figurantes para a versão do Bumba-meu boi do Ceará e também dá
destaque a “Catarina ou Catita, representada por uma boneca negra”. E, segundo “Sr.
Amadeu Amaral Junior em censo realizado sobre ‘Reisado, Bumba-meu-boi e Pastoris’,
pelo norte do Brasil, mais precisamente em São Luis do Maranhão, S. Bento, Pinheiro:
Capataz, Pai Francisco, Catrina (companheira de Pai Francisco), Cabloco (indígena
emplumado)”, entre outros, que identificou como figurantes dos folguedos populares
(apud CASCUDO, 1984, p. 429)
O imaginário criativo dessa gente ultrapassa os limites das lendas históricas e
por isso merece uma atenção especial quanto às suas falas. É dessa oralidade atual que
colhi e selecionei o material para as conclusões da pesquisa, rico em histórias e estórias
cultivadas no imaginário daquelas pessoas, o que as faz permanecer “conectadas” por
meio de um vínculo sócio-cultural.
Em artigo contido no título Etnologia: textos selecionados (Greiner e Bião
[org.]1999) Oswald Barroso em A cena tradicional e a renovação do teatro, é enfático
ao colocar-se sobre a predominância de uma cultura ‘mais original’ na arte popular
brasileira. No subtítulo “O Apelo à Revitalização” o autor refere-se à
113
ocorrência do popular, como por exemplo, a cena dos reisados,
dramas, bumbas-meu-boi, [...] lapinhas, pastoris, [...], demais autos e
danças dramáticas [...]. Em todas estas manifestações, arte e vida
social ainda estão profundamente associadas e o homem mantém seu
vínculo simpático com a natureza, referencial primeiro de sua
linguagem da expressividade de seus gestos e movimentos
(BARROSO, 1997, In: Greiner; Bião [org.] 1999, p. 178).
O autor continua sua tese a respeito das tradições “feridas” do homem
contemporâneo, mostrando que a necessidade da representação na atualidade não
impediria a plena evolução das formas simbólicas para a atuação da arte e sua função,
ou seja, de significar para as sociedades uma representação da realidade, sem, contudo,
ferir a história, o percurso das massas sociais e hegemônicas no contexto criativo. Para
tanto, afirma: “deste modo, cabe ao artista contemporâneo ir além do horizonte da arte
tradicional popular sem, contudo, romper o seu referencial” (BARROSO, 1997, In:
Greiner; Bião [org.] 1999, p. 178). Ainda voltando às origens das tradições, acredita que “a
arte nasceu com o imaginário animista nas práticas mágicas e narrativas míticas”
(BARROSO, 1997, In: Greiner; Bião [org.] 1999, p. 179).
Sobre a encenação ou a arte cênica brasileira, Oswald Barroso, no subtítulo
“Onde buscar o teatro original”, complementa apontando a necessidade de a cultura
nacional ser valorizada pelo nosso povo através da preservação e manutenção dos
grupos sociais e culturais vigentes. Vejamos:
Nós, artistas cênicos brasileiros, todavia, não precisamos sair de
nosso país para alcançar as fontes do teatro. Nem mesmo de nossa
região, ou do nosso Estado, no caso do Nordeste e de quase todas as
outras regiões brasileiras. O Brasil possui uma tradição cênica
popular viva, que remonta à época medieval e revela semelhanças
com outras tradições, como as antigas tradições européias, asiáticas e
africanas. Leis fundamentais e elementos universais comuns às
diferentes tradições do teatro, estão presentes não apenas no conjunto
dos nossos autos, folguedos e danças dramáticas, como também nos
114
rituais das religiões populares, nas festas, praças e feiras do povo
(BARROSO, 1997, In: Greiner; Bião [org.] 1999, p. 180).
Importante perceber que o autor trata da questão da preservação da cultura
popular, sem, contudo, querer estabelecer que esta tenha de impor-se às outras formas
de manifestações artísticas. Os trechos acima citados têm o propósito de afirmar a
necessidade de um reforço das tradições populares e como elas podem servir de base
para as manifestações dos artistas contemporâneos. Na atualidade, principalmente aqui
no Brasil, os artistas têm se voltado para “o povo”, ou melhor, para o amálgama do
senso popular com propósitos de buscar na fonte do cotidiano dramático e histórico a
base para a “nova” criação. Neste contexto está a permanência dos presépios como
“entremezes” entre o passado e o presente, a criação advinda do imaginário popular e a
criação a partir dos ecos desse imaginário. Portanto, a presença de personagens
folclóricos reforça uma tradição longínqua para o presente, no entanto, com a distância
do tempo perdeu-se o meado da história cultural. Hoje, mesmo sem este “meado”
cultural, a tradição continua a narrativa histórica, que a estória oral faz permanecer viva
na mente dos homens. Portanto, na memória popular, perdeu-se a ligação de onde ‘eles’
vieram, mas os tornam presentes como parte da memória da atualidade. Como disse
uma das depoentes: “sem eles o presépio não tem graça”. Rodrigues (1997) também
releva as nossas tradições, associando-as ao cenário medieval, e escreve: “os interiores
brasileiros ainda redescobrem em suas festas os cenários antigos e medievais, onde o
homem mergulha nos mistérios de suas raízes essenciais” (RODRIGUES, 1997, p. 32).
Vê-se, então, a importância desses cenários, além de suas estórias para a sua
manutenção e como fonte de pesquisa para a arte brasileira. Percebo, nesse sentido, que
a transformação do fio inicial da tradição da arte européia deu início a uma identidade
popular brasileira, que por sua vez trará uma identidade própria à nossa cultura. Nesse
sentido, o norte e nordeste brasileiro são possuidores de grande parte dessas raízes
culturais com suas lendas, fábulas, contos e folguedos populares, que trarão para seu
povo uma identidade própria e definitiva em relação às demais comunidades nacionais.
115
CONCLUSÃO
Durante o processo desta pesquisa pude perceber que o objeto em estudo se
apresenta para o observador como um grande cenário, no qual estão contidas histórias e
estórias do cotidiano, propondo ao olhar a observação cuidadosa dos elementos que o
compõem enquanto formato concebido para uma interpretação direta e para uma leitura
dos signos ali implantados.
Através da fotografia procuro compreender o meu processo criativo articulado
ao universo do objeto e de seu criador, a partir da cenografia do Natal que permite
leitura diversificada. Dessa forma, percebo que o cenário do presépio tem uma estrutura
física e simbólica fundamentada no contexto da realidade presente para cada situação ou
região em que se encontra.
A minha percepção a partir das imagens que venho capturando durante este
processo levou-me a indagações a respeito do conteúdo dessas instalações natalinas, as
quais puderam rememorar a minha infância, quando visitava algumas casas que
continham presépios e podia admirar tais representações do nascimento. Entretanto, o
diferencial observado entre o passado e o presente no contexto dos elementos
dramáticos encontrados na atualidade levou-me, definitivamente, a buscar algumas
reflexões.
Compreender o presépio como ação criadora e puramente simbólica do
nascimento fez-me investigar o objeto com abordagens a partir de referenciais
encontrados na literatura presente. Para isso, procurei compreender o presépio como
forma de expressão do cidadão que o monta, tanto para uma abordagem religiosa como
para uma leitura a partir do visível , do elemento social em seu contexto. Neste
sentido, foi importante compreendê-lo a partir das leituras de MAFFESOLI (1984),
MEIRA (2003), BARTHES (1984), DELEUZE (2003), SANTAELLA; NÖTH (2001),
ARANTES (1995), entre outros, que contribuíram para melhor compreensão da ação do
sujeito criador e sua conseqüente riqueza no objeto enquanto expressão da arte popular.
116
Pude acrescentar a esta pesquisa dados importantes no contexto da cultura
popular, como por exemplo, a presença nesses presépios, de duas personagens até então
desconhecidas por mim e que estão presentes nos festejos populares do Brasil.
A respeito das personagens citadas, busquei referenciais na bibliografia presente,
na qual pude encontrar em BARROSO (1996) e CASCUDO (1984) elementos que me
deram suporte para registrar a sua presença como decorrente de uma cultura híbrida
advinda da mistura das manifestações populares dos povos europeus, africanos e afro-
orientais. Este formato híbrido cria, aqui no Brasil, fortes alicerces de uma cultura que
teve sua origem no Velho Mundo e, que encontra no Novo Mundo terreno fértil para
sua sedimentação. Portanto, o Mateus e sua parceira Catita/Catirina/Catarina encontram
nos folguedos populares do Brasil larga disseminação, especialmente no nordeste
brasileiro, como brincantes e personagens irreverentes dos folguedos.
Quanto à presença desse par irreverente de brincantes, pude observar que na
literatura consultada eles não são citados como integrantes dos presépios e
representantes do povo, ou de uma etnia, como disseram alguns depoentes, para o
objeto em estudo. No aspecto documental, mais especificamente etnográfico, classifico-
os como importante elemento presencial nos presépios que enfoquei, fato este que
deverá ser investigado em outra oportunidade, ficando aqui, portanto, uma possibilidade
de novas perspectivas de pesquisa.
Outro elemento que me chamou bastante atenção nos presépios daquela região é
a constante presença de bonecos de plástico ou de outros materiais que representam os
seres humanos. A estes, especialmente os bonecos quebrados e manchados, dediquei
especial ‘olhar’, pois passei a interpretá-los, na minha poética, como cenas de
decadência, e de indícios de exclusão social. Foi a partir deste ponto que busquei uma
reflexão para minha criação com as fotografias e a instalação na exposição final. Às
fotografias foi dada uma edição buscando compartilhar com o público a mesma
percepção, sensação e reflexão que tive ao tomar contato com os presépios. Além do
desejo de compartilhar essas sensações das grandes diferenças e do choque de materiais,
ao concluir meu trabalho, as fotografias também revelam um presépio arte, criado com
poucos recursos e muito bem equacionado pela criatividade do sujeito que o monta.
Nesse contexto, para melhor compreender o processo criativo desses presepistas,
elaborei uma estratégia realizada com uma caixa de madeira. Meu objetivo foi
117
estabelecer uma troca, processo durante o qual algumas pessoas já entrevistadas
puderam montar um pequeno presépio. Esta ação de troca foi documentada com
registros fotográficos e em vídeo.
A idéia da caixa de madeira foi também utilizada, totalizando oito peças, na
instalação final montada numa das salas da Galeria Cañizares. Nas caixas elegi e utilizei
um dos elementos freqüentes no presépio da Chapada Diamantina, os bonecos
quebrados. Para mim, no cruzamento entre o objeto na sua realidade das fontes
criadoras e as imagens que produzi está o que posso denominar o eixo do meu trabalho,
ou seja, há neste espaço entre o presépio feito pelo devoto e o presépio interpretado por
mim na fotografia o material que me interessa explorar como artista visual, a minha
grande arca.
Para a sala com as caixas os nichos , utilizei uma iluminação mais branda,
quase na penumbra, para que o espectador focasse sua atenção nas figuras. A
iluminação foi um elemento importante na composição da instalação.
Numa outra sala montei o documentário em vídeo, uma edição de 25’: 45" min.
de um total de quatro horas de depoimentos gravados. Nele estão presentes as falas de
três mulheres que montam presépios. Nessas imagens em movimento ficaram registros
mais completos dos presepistas em seu contexto de vida social, que, complementam a
compreensão dos sujeitos com os seus objetos.
Portanto, numa abrangência complexa e mostrando os resultados desta pesquisa
integrando três linguagens da expressão artística, fotografia, instalação e vídeo, declaro
que as estradas estão abertas para continuidade do processo investigatório.
118
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122
ANEXOS
1. Transcrição das entrevistas capturadas em áudio;
2. Fichas de entrevistas e autorizações para publicação.
123
1. Entrevistas concedidas no período 2004-5, à época da viagem à Chapada
Diamantina para coleta de material na fonte.
Haja vista os objetivos desta pesquisa se restringirem ao escopo dos estudos das
artes visuais, a transcrição tentou respeitar, na medida do possível, as variedades
lingüísticas e as idéias dos entrevistados. Do meu ponto de vista, qualquer interferência
na fala dessas pessoas significaria uma incoerência com a natureza dessa pesquisa, que é
de valorização da cultura popular da Chapada Diamantina. Houve basicamente ajustes
ortográficos e de pontuação.
Para a coleta do material apresentado abaixo, foram percorridos 1.789,9 km com
abrangência de oito municípios e quatro distritos, em um período de duas semanas
completas. Foram revisitadas 20 famílias as quais eu já conhecia de etapas anteriores ao
projeto de mestrado, sendo que dois referenciais como Antonia Pereira dos Santos e
Aurenive Moreira Neves foram tomados como amostras principais desta pesquisa, por
considerar que a originalidade e a diversidade entre ambos, demarcam as estruturas da
criação como um processo histórico e icônico de cada um desses autores. As falas de
Antonia Santana Silva, em Igatu/Andaraí e de Alice Ferreira Braga em Wagner, são
depoimentos complementares e igualmente importantes.
Portanto, apresento em transcrição abaixo, as entrevistas dos autores citados.
ENTREVISTA 1, Antonia Pereira dos Santos, Utinga Bahia, 27 de dezembro de 2004.
D. Antonia, seu presépio é grande, cresceu em relação há dois anos
quando estive aqui. Por que o seu presépio é tão grande assim?
Olha, desde o ano passado que esse presépio era para ser grande desse jeito.
Era para ser a forma da terra de Bom Jesus da Lapa, com todas as coisas que vi, tive
em um sonho n? Então, esse ano eu cresci mais, aumentei mais o presepe; tem a Serra
Grande, como assim a terra de Bom Jesus da Lapa, e também esse céu que tá feito a.í
124
Aquele ano que vocês vieram não tinha, mas, foi um sonho que eu tive, um sonho assim
visível, então a coisa disse pra mim o que era pra mim fazer, pegar um papel, pintar,
fazer uma pintura como o céu, com todas as coisas que eu vi no sonho. Eu fiz o, o ...
pintei o papel, fiz essa cobertura aí, fiz as estrelas, a chave de são Pedro, o terço de
Nossa Senhora, a lua com todas as coisas que eu vi no sonho, e esse cruzeiro que tá
plantado aí na Lapa, aí nessa serra, é como se fosse o cruzeiro da Lapa de Bom Jesus;
então, no dia 6 de janeiro pros Reis ser festejado aqui. Então todo esse cruzeiro vai ser
enfeitado todo de rosas brancas, cantando a dita música que no dia do sonho eu tive.
Enfeitando o cruzeiro, cantando a música até quando terminar é uma apresentação que
eu faço durante os seis anos aqui na frente do meu presépio. Nesse dia, esse presépio é
chamado ... essa cidade do presépio é chamada Belém, aonde Jesus nasceu. Eu faço
uma apresentação com Jesus, José e Maria, então eu apresentando Jesus, nesse dia,
Maria, José e o menino Jesus, então eu consigo arrumar uma criança, um bebê recém-
nascido, apresento ele como o menino Jesus. Faço apresentação do lado de fora, no
meu terreiro
1
, e cada pessoa eu dou uma rosa branca, canto louvor pra Jesus, outro
louvor pra Maria; faço uma celebração nesse terreiro, depois volto aqui pra dentro da
minha casa, e faço, assim durante duas horas mais ou menos, eu faço esse festejo pra o
santo Reis. Todas as músicas que é cantada neste dia foi um dom dado por Deus que eu
aprendi em sonho, aquela visão que Deus me dava; a dita música que enfeita o
cruzeiro, ela fala de quase todas as coisas que tem no céu do presépio. Então, esse céu
que tá feito, pintado, luz branca, estrela, lua, o cruzeiro, as três Maria, o terço de
Nossa Senhora, tudo isso foi visto num sonho. Fiquei um ano com a maior confusão na
cabeça, pensando até que alguém ia achar errado, porque todos os presépios são
bonitos, mas eu achava que não deveria fazer porque alguém ia detestar.Fazer um
presépio, depois fazer uma cobertura, pintar igualmente um céu com as estrelas e todas
as coisas, mas depois eu vi que eu tinha de fazer, resolvi fazer, resolvi a fazer, e na dita
hora do sonho eu vi o refrão da música que era pra ser cantada nesse dia, pra enfeitar
o cruzeiro. Então, copiei todas as músicas, apresento o menino Jesus como o rei da
Glória, explico nesse momento uma mensagem, leio a mensagem na hora da
apresentação e, e ... é duração de duas horas, mais ou menos, aí termina tudo. No
terminar, eu rezo o terço.
1
N.E. Referindo-se à área á frente da casa.
125
D. Antonia, a senhora falou do menino Jesus. O menino Jesus que a
senhora apresenta aqui no dia da festa de Reis é uma criança mesmo, uma criança
recém nascida.
Uma criança recém nascida, até de zero, até assim de zero até 3 meses mais
ou menos, uma criança que pode ficar deitada nos braços né? Quetinha, sossegadinha.
Mas assim uma criança que não consegue ficar como um bebê, não dá, né? Então todos
os anos eu consigo uma criança, menino homem, um bebezinho assim de um mês, até
três, eu faço assim a apresentação com ele. Então Maria vem como o menino Jesus nos
braços, José, com aquela sacolinha nas costas né, então quando chega no mei do
terreiro, na frente da minha porta, a gente já ta tudo esperando, tudo com rosas
brancas na mão. Então naquele momento que Maria chega, ela vai, ela vai ler, ela vai
dizer uma mensagem com a gente. Depois da mensagem, aí, eu, nós começamos a
celebração perante aí no meio do terreiro aí. Depois da celebração a gente aí, ela diz
pra gente que vai seguindo até a cidade de Belém e pede que todos acompanham ela. Aí
nós todos acompanhamos ela, tudo com rosas brancas na mão, e ela com os braços
cheio de terços, rosários, pra oferecer pra gente como presente, porque ela vai ganhar
as rosas. Nós vamos presentear ela com as rosas brancas e ela vai dar à gente o terço
pra nós rezar; então na hora que ela entregar os terços pra gente, a gente entrega as
rosa branca pra ela. Ela vai presentear o presépio com as rosas branca em cada local
onde tem o presépio de, de, de menino Jesus. Então, como a cidade de Belém, é, é,
chamada aqui de Bom Jesus da Lapa, nesse dia em vez de chamar Bom Jesus da Lapa,
então aqui é a cidade de Belém, onde Jesus nasceu. Então Maria entra aqui nessa rua,
vai em todos os presépios e presenteia o presepe com as rosas brancas que todos nós
damos pra ela de presente.
Então quer dizer que a rosa branca é um símbolo que a senhora utiliza na
...
Na festa, no festejo de Santo Reis.
E porque rosas brancas?
Porque acho que rosa branca é uma coisa assim, da paz, é uma coisa assim ...
eu, eu gosto de todas as cores de rosas, agora a minha preferência mesmo é de rosas
brancas. Acho que é um símbolo mais maravilhoso, é uma rosa branca, eu acho. Dá
mais alegria, mais paz, eu acho que a rosa branca é mais bonita pro causa do festejo,
então nesse dia o presépio fica bem cheinho de rosa branca; aí tem bastante rosa
branca! Agora as rosa são feitas por mim porque eu não acho o tanto de rosa que eu
126
prefiro assim natural, nesse dia eu não encontro né? Então, eu tenho que fazer as rosas
de papel. Então, ali, aqueles jarrinhos que tá feito ali, ó, é tudo feito por mim né? Eu
faço as rosas. Então, nesse dia, cada pessoa, adultos e crianças, recebe uma rosa
branca e ficamos todos ali na frente do, do,... da porta do terreiro, esperando Maria
chegar com José e o menino Jesus, pra visitar a cidade de Belém.
Então essa festa já é tradição na sua casa?
É, tem três anos, aliás, tem mais de três anos. Agora que eu faço dessa forma
aí, faz três anos.
O presépio da Senhora parece uma cidade. Aliás, ele é a representação de
uma cidade, tem até ruas e a gente pode andar por dentro do presépio, e isso é um
fato inédito; eu nunca vi um presépio em que o construtor ou que o visitante entre
e distribua rosas. Por que a senhora faz assim, o presépio com características de
cidade?
O presepe que eu faço assim dessa forma, é uma coisa assim, foi um dom que
Deus me deu, porque quando eu tinha de 5 até 8 anos de idade, eu cresci ouvindo
minha mãe dizer que tinha feito uma promessa pra meu irmão mais velho, e como eu
vivia muito doente, também, e ela queria ver eu crescer, ficar moça, se casar, ter o
maior prazer, né? Então ela entregou a minha vida, minha saúde, para o menino Jesus.
Ela dizia pra mim assim: “eu também coloquei você nessa promessa. Agora só tem uma
coisa: se você crescer gostando de..., de...., do presepe e achar que deve fazer, quando
você casar você vai fazer na sua casa. Saiba você que o presepe agora vai ser seu, eu
não tenho mais parte na sua promessa, aí fica para sempre, porque eu fiz a promessa
para você e para meu filho mais velho, para sempre, e a sua também é a mesma coisa”.
Eu respondi para minha mãe assim: “Olha mãe, eu acho muito bonito nesse tempo, é o
tempo que eu tenho mais alegria, então, quando eu ficar moça, quando eu me casar,
vou fazer na minha casa”. Então, eu resolvi mesmo, né? Então, em 79, no dia ... em 79
eu me casei, em março de 79. Em dezembro, eu já fiz o presépio na minha casa. Então,
agora já tem uns 25 anos né? Mais ou menos, 25 anos. Eu nunca tive tristeza, é o tempo
que eu tenho mais alegria e todos os anos quando eu armo o meu presepe, antes eu vejo
ele no sonho; eu vejo o formato dele assim, numa visão assim, até acordada, como eu
devo fazer. Fica tudo na mente assim como eu devo fazer o presepe, até aquelas grutas
que eu faço ali (aponta) pra pôr aqueles santos, fica na mente como é pra ser feita, se
eu fazer alguma coisa assim que não me agrada né? Eu, eu desmancho, faço do jeito
pra me agradar, e peço sempre a Deus assim: que ele me ajude, que eu sempre face,
127
faça um presepe que me agrada e agrada a Ele também. Então, todas as vezes que eu
faço, eu gosto, eu acho bonito, não quero dizer que o meu é mais bonito que todos, né?
Às vezes as pessoas falam, mas eu não falo, porque eu mesmo não vou, eu não vou
elogiar mais do que os outros, porque todos os presépios são lindos, nem que coloque
só um pezinho de árvore ... Então, todos os anos eu evoluí muito mais. Eu compro mais
coisas, ganho presentes, e é feito da forma que eu sonho, que eu penso que eu vejo
aquela visão visível. E essa cruz aí, foi como eu falei nestante: essa cruz era pra ser
feita desde 2000, mas eu tive uma dúvida que eu achava que era bobagem fazer tanta
coisa, aí eu achei que não, depois eu resolvi então, dito não que foi 2003, 2002, foi
desde 2002 que eu coloquei essa cruz aí, mas essa cruz é feita é colocada as rosa no dia
6 de janeiro, agora, antes, eu já coloco aquela cruz ali (aponta para a cruz), é o
cruzeiro da Lapa; essa outra parte aqui, eu considero assim, é a romaria de Nossa
Senhora de Anhangüera, quase toda...
Qual parte?
Essa parte aqui que tá com essa outra cruz toda, toda essa cruz aqui toda
enfeitada de flores de todas as cores, né? Então, aqui é a romaria de Nossa Senhora de
Anhangüera; desde quando eu comecei ir em Anhangüera, eu acho, acho, as coisa
muito linda lá, então eu olho assim, eu digo assim, meu Deus, eu queria, eu queria ter
um dom de fazer, de fazer uma parte de um presepe parecido com Anhangüera.
Onde é Anhangüera, D. Antonia?
É na fazenda Malhada Nova, a entrada dela é no..., no..., no portão de Bonfim
de Feira, perto de Feira de Santana, certo? Então eu sou acostumada a fazer viagem
para Anhangüera, aí eu armo assim aquela lotação aqueles 40 e tantos romeiro,
sempre vou, né? Aí eu fui inventar de fazer uma parte assim parecida né? Então, aqui
tem uma aparência assim com Anhangüera. Então, essa parte aqui que eu dividi, eu fiz
assim: ali naquela parte ali, é aquelas casa do pessoal parente de Pedro, parentes de
Pedro, família de Pedro. Aqui é a igreja, a capela de Nossa Senhora de Anhangüera.
Essas bonequinha que tão aí é os romeiro que tá visitando a cruz, tão rezando, fazendo
oração; os carro estacionado. Aquela casa ali que fica na frente da cruz, eu quero dizer
a casa de Pedro. Esse dividimento ali onde tem aquele tanque ali, ali é um tanque ao
lado da cruz. Então, tudo isso tem lá, né? Mas falta mais coisa que eu não fiz né? Mas
no ano que vem vou fazer todo formatinho, da forma que eu quero, que sei que foi
Nossa Senhora que consentiu, que eu pedi, que se ela visse que não fosse errado, me
desse o dom da sabedoria, queria saber fazer uma forma que parecia com a romaria de
128
nossa Senhora de Anhangüera. Então foi concedido, porque se não fosse eu achava que
eu não deveria continuar e eu continuo sempre, sempre pra vê, né? Tudo que tá feito
aqui é tudo assim aquele dom dado por Deus, até as músicas religiosa né? Cantada no
dia que é, que é, no dia assim da apresentação, tudo foi eu que fiz.
Quem canta as músicas?
Eu canto as música junto com todo mundo; dou as cópias pras pessoas e todo
mundo me ajuda.
Então, a senhora compõe as músicas? Você pode cantar uma para eu
ouvir agora?
eu posso cantar só, eu posso cantar só o refrão da música que eu enfeito o
cruzeiro. É assim:
Vou encher o céu de rosas com imensa alegria
Para festejar Jesus e São José, Santa Maria,
Para festejar Jesus e São José, Santa Maria.
As estrelas da chave de São Pedro é tanta só manda em rosa,
É a festa de Santo Rei e de São José, Nossa Senhora;
É a festa de Santo Rei e de São José Nossa Senhora.
A música é mais grande né? Ela tem mais refrão, mas eu cantei os dois. Tá
bom? Se quiser que eu canto mais, eu continuo né, mas tem mais.
A senhora falou desse cruzeiro aqui, que é de Nossa Senhora de
Anhangüera, né?
É porque ela aparece aqui nesse cruzeiro, o..., a ... aqui é o cruzeiro onde ela
aparece, tem uma pilastrazinha, só que eu não queria assim, só que eu vou fazer, vou
arrumar uma pedra, assim, bem quadradinha, forrar como eu forrei, fazer a pilastra
onde ela fica em pé na hora que aparece. Aliás, quem vê ela é Pedro, ele é o vidente
né? Então o cruzeiro é enfeitado de flor, desse jeito aí, bonito dessa forma, aqui nos pés
do cruzeiro é cheio de flor, é muito bonito, e as pessoas que vêm fazer oração fica tudo
de frente à cruz, orando pedindo as graças à Nossa Senhora e esse lado aqui fica a
capela de Nossa Senhora, o pessoal também vai fazer a mesma visita quando sai do
129
cruzeiro, vem praqui, só que a aparição de Nossa Senhora é ali mesmo, não é dentro da
igreja, é ali mesmo n? Toda festa que tem lá é... é na frente do cruzeiro.
A senhora trabalha, também, com vários materiais, como plástico,
pauzinho de picolé, lâmpada queimada, né? E são objetos que a princípio não são
da religião e eles fazem parte de toda construção do seu presépio. Como é que a
senhora vê a colocação desses objetos sintéticos, industrializados, no seu presépio?
Como é essas coisas que eu fiz de plástico, né? A garrafa de guaraná eu cortei
e fiz aquela árvore, né? (aponta); Fiz aquela árvore, e esses jarrinhos que tá aí, eu fiz
assim como o pezinho de capim, coloquei assim na tampa, no fundo da garrafa, fiz
assim como um jarrinho, quer dizer, tudo enfeite, né? E as coisinha de palito de picolé
é como eu tava explicando nestante eu dou o formato de cidade com ela né? Essas
bonequinhas de papelão, eu compro papelão pra fazer as bonequinhas porque eu tenho
várias bonecas de plástico aqui. Mas, então, pra fazer assim, vários romeiros, pra
apresentar assim como são vários romeiros, tem que ter mais. Então fiz as bonequinhas
de... de papelão; cortei o papelão, fiz as bonequinhas, e coloco bastante na frente da
cruz, ali naquela escada, do... do, que sobe pra, pro santuário de Bom Jesus da Lapa,
n?, Então uma parte das bonequinhas fica aqui, aqui em frente da cruz de Nossa
Senhora de Anhangüera, a outra parte fica ali na esplanada de Bom Jesus da Lapa.
Quem desenhou essas bonequinhas pra senhora? Onde é que a senhora
tirou esse modelo de boneca?
Isso é inventado por minha mente mesmo, da cabeça, isso é um dom assim
dado por Deus mesmo, aí eu penso de fazer uma coisa assim rapidinho, eu já faço,
essa, essa, ... esses outros jarrinhos de plástico aqui, aqueles vidro de desodorante. Aí
eu peguei, achei que dava pra fazer alguma coisa de enfeite pra o presepe, arrumei
vários vidro de desodorante, fiz jarrinhos também; daí é um enfeite, né?
E as lâmpadas? Engraçado que vários presépios têm lâmpadas
queimadas, lâmpadas velhas. Por que se usam lâmpadas nos presépios?
Olha, eu acho assim: pra mim presepe... qualquer enfeite assim é bonito pra
um presepe. Agora, essas lâmpadas aqui, eu ia usar elas assim: eu ia fazer uns
coelhinhos, pegar uns papel, pegar um papel, um papel um pouquinho durinho como
130
assim, assim um... vamos dizer, um papelão mais fino, n? E cortar assim um modelo
assim como uma sainha, fazer uns olhinhos, umas orelhas assim como um coelhinho; eu
faço essas coisa, né? Mas como não tive tempo, esse ano foi muito trabalho pra mim, eu
coloquei as lâmpada queimada aí no meio, só que aí não tá enfeitando nada, mas daqui
pra findar o dia 20 de janeiro, eu vou fazer tudo isso, pra enfeitar mais o presépio,
fazer mesmo!
Ainda vai colocar mais coisa no presépio?
Mais coisa, ainda tá pouco.
Então quer dizer que seu presépio, ele ... vai crescendo, né?
É, a cada ano ele vai evoluindo mais. E sobre falar em 20 de janeiro, esse
presepe eu desarmava antes do dia 20 de janeiro. Eu desarmava no dia 8, no dia 10,
mas depois eu fiz uma promessa com São Sebastião, se ele me concedesse uma graça
pra mim, que eu estava precisando muito e tava difícil mesmo; primeiramente eu pedi a
Deus né? E então fiz a promessa com São Sebastião. Então, se a graça fosse concedida,
eu fazeria todos os anos festejo dele aqui no presépio. Então, depois, eu consegui o que
eu queria, né? Foi uma graça tão fácil pra mim conseguir, era difícil pra mim, mas pra
Ele foi fácil, pra Deus mais ainda né? Eu consegui, então todos os anos, dia 20 de
janeiro, eu rezo um terço aqui de São Sebastião, às vezes eu faço “uns comes e bebes”
pras pessoas né? É muito bonito. E, São Sebastião, ele também foi um apóstolo que ele
visitou também o menino Jesus, ele foi o único que visitou; eu não sabia dessa parte aí,
mais alguém que já lê, que lê bastante a sagrada escritura, já me explicou isso, teve
uma mulher aqui que falou isso, então tá bom, então eu não tou fazendo nada de
errado, então o meu presepe eu só desarmo depois do dia 20, é depois do dia 20, eu, eu,
armei esse ano no dia 15 de dezembro, ele vai ficar mais de um mês, né? Então, no dia
20 eu termino de armar, de fazer tudo que tinha de fazer; terminei no dia 20 de
dezembro. Então, nos dias 21 ou 22 de janeiro é que vou desarmar, depois que
comemorar são Sebastião.
E, no presépio tem várias manjedouras, não tem uma só não, né?
Tem várias.
Por que a senhora coloca várias manjedouras?
131
Oh, porque aqui é uma cidade, uma cidade, e em uma cidade não tem só um
presepe. Então aqui, ó, essa manjedoura aqui, já é... eu já... eu falo aqui que é
Paratinga; aqui é no caminho de Bom Jesus da Lapa (aponta para outro cenário) aqui é
Paratinga, tem a Igreja de Santo Antonio de Pádua e aqui o presepe na frente da igreja
(aponta para o conjunto religioso), então ali também, ali é outra manjedoura, ali já é
Anhangüera, então em Anhangüera também tem presepe, né? Nossa Senhora de
Anhangüera, lá também tem um presepe. Já fiz outro presepe ali, ali na gruta de Nossa
Senhora da Soledade, em Bom Jesus da Lapa, também tem mais outro, porque tenho
certeza também que em Bom Jesus da Lapa tem muito presepe, né? Naquela outra rua
ali, de Bom Jesus da Lapa, outro presepe. Então, em quase todas as ruas em Bom Jesus
da Lapa, eu acredito que tem um presepe. O povo religioso né? Gosta da festa mesmo,
e aprecia tudo que é bom. Tudo que pertence a Deus, que é bom, acho que a gente deve
acompanhar, né?
ENTREVISTA 2, Aurenive Moreira Neves, João Correia/Mucugê Bahia, 31 de
dezembro de 2004.
D. Aurenive, mais uma vez eu fico muito emocionado com o seu presépio,
é o presépio mais bonito que já vi na região, ele realmente passa para nós um
sentimento muito grande de amor e devoção que a senhora tem. Eu gostaria que a
senhora falasse um pouco do seu presépio aqui neste depoimento.
Oh, meu filho, o meu presépio é desde pequena que eu faço ele, tou viveno, tou
fazeno até quando Deus me chamar, aí agora entregar pros... pros que quiser fazer, né?
Mas eu tenho essa divoção que Deus me deu e com fé em Deus eu cumpro e não quero
deixar, se Deus quiser!
A senhora deve ter no seu presépio aí várias estórias sobre cada coisinha
dessa aí que entra no seu presépio, cada brinquedinho, cada frasco, cada boneco
feito pela senhora, cada animal também feito pela senhora. A senhora poderia
contar um pouquinho da história de um desses elementos?
Tem o engenho que eu fiz que é acostumado nós moer. Eu fiz o engenho. Tem
a casa de farinha que eu fiz, tem muitas coisa, tem a igreja que eu também fiz; tem
132
muitas coisa aqui que eu faço, o que eu puder fazer, que eu sei fazer, eu faço, pra não
comprar tudo.
E essas coisas todas, a senhora depois guarda tudo ...
Quando tá tudo guardado, a gente tem a vazia
2
de guardar, a gente deixa
guardado, agora, os mato, as casca, todo ano é que é buscado, todo ano tem que tirar.
Agora, os brinquedo a gente guarda tudo.
São quantas caixas de brinquedos guardados?
Tem umas dez caixas, tudo guardado. E todo ano é preciso reformar a
vestimenta das boneca, dos trem, consertar tudo que dum ano pra o outro fica tão feio
que preciso a gente tornar ter o trabaio de fazer aquilo.
Quer dizer que a senhora veste as bonecas, todas às vezes, todo ano muda
a vestimenta da boneca. E a senhora faz tudo isso?
A vestimenta da boneca. Faço. Sozinha e Deus, né?
Ah, é, sozinha e Deus. (fala do filho Regi)
Começa quando?
Ah, e toda vez que quando eles tá perto, aí agora eu começo a fazer, já
começo a trabaiá que eu sozinha não deixo ninguém fazer, que muitos faz, mas não faz
do meu gosto, e eu vou, vou fazeno divagar.
O filho Regi: Aí ela ... chama uma pessoa né? aí ela mesmo, ela sozinha que tem
obrigação de fazer, que ela faz tudo direitinho. Outro vai fazer, fica feio, e ela tem o
jeito de fazer.
D. Aurenive, tem um caminhãozinho aqui cheio de ampola de seringa, de
medicamento. Por que a senhora coloca remédios nos presépios?
Isso aí é prazer que é bebida que nós tem na roça (risos), tem no mundo né?
(risos).
Quer dizer que o caminhãozinho vai carregado de bebida pra festa?
2
Vasilha.
133
Pra festa. É por que lá é a lapinha né? Então é o negócio que vai pra ver,
visitar o Deus menino; tem a casa de Catita, tem o engenho, tem, tem no presépio, tem,
onde lá, na cidade onde Deus menino nasceu, tem isso tudo. Tem a procissão, tem tudo
isso. Tem os toureiro, a gente vai e faz. Agora a lapinha mesmo é a de lá que é a
lapinha reservada a Deus menino, tééé....
(O filho Regi): O senhor tá vendo o carro lá carregado, pra moer, fazer moer a
cana, fazer a rapadura, não é, d. Nive?
D. Nive, tem ali, também, uns garfinhos, ali em cima, bem coloridos,
porque a senhora coloca os garfinhos?
É pra, pra, os brinquedo das boneca, quando fugia pra casa de Catita, Catita
dá comida (risos), dá comida.
E quem é Catita?
Catita, é, é, é, Catita e Mateus, né? Quem começa o presépio com eles dois.
Nunca teve um presépio pra não ter eles, Catita mais Mateus.
Por quê?
Sem, sem dúvida que é uma ciência, não é? Que tem no mundo que desde eu
pequenininha que eu vejo Catita e Mateus no presepe que eu tinha uma tia e um
cumpadre que fazia presepe de pequeno também, e, quando eu comecei eles me dava os
resto dos brinquedo deles pra mim até que Deus me ajudou que eu pude comprar, né?
Quando eu pude comprar eu fui comprano, comprano e guardano. Uns quebra, outros
fica bom e os que vai quebrano a gente vai jogano pro mato e comprano outros novo,
mais ... sempre Catita e Mateus daí foi do começo do meu presepe, nunca, Deus ajudou
que eles piorou.
E Catita e Mateus, são sempre de pano?
É. Sempre de pano.
Por que de pano?
Nunca teve eles de ... de massa, de ... de ... toda vida foi de pano, porque no
começo do mundo não tinha, existia, esse negócio desses brinquedo de hoje, né? Era,
tudo era boneca de pano, era tudo, era tudo feito por mão de gente, hoje tá usando tudo
de mangaba, de, de lousa, de tudo; mas de primeiro não tinha não, era só pano.
As pessoas nas casas faziam os bonecos ..
134
É ... é ... os bonecos ... é ...
Outros objetos interessantes que a senhora coloca são os relógios. Por que
a senhora coloca relógios no seu presépio?
Na casa de Catita, né? Pra dizer que tem as horas pra ela. Aí é tudo...
Então quer dizer que esse lado direito aqui é a casa de Catita?
É, tem a muié pilano arroz, tem a rua..., tem rendeira fazeno a renda, tem, tem
o curral de gado, tudo é dela, isso aí pertence a ela, tem os fogão a gás, de lenha...
Tem tudo?
Tem tudo. Na casa dela não falta nada.
E aquela casa suspensa ali, onde tem as bonecas?
É dela.
É dela, também?
É dela também.
Estou vendo que Mateus tem um dinheiro no bolso!
Eh, eh, eh (mais risos), sempre eu deito um dinheiro no bolso dele.
Parece um dólar americano!
Eh, eh, eh ,(continuam os risos)
É dinheiro americano ali?
Não, é dinheiro, é dinheiro desse que perdeu.
Hum real?
Não, 500 reais.
É de quê?
Daqueles antigo. Esse ano eu deitei e os meninos panharam, porque os
menino pega e panha, panha, e eu sempre, eu deito dinheiro no bolso dele, porque é de
divoção deitar o dinheiro no bolso...
Então Mateus tem sempre dinheiro no bolso?
Tem, nunca é inté promessa que a pessoa faz, é valido(sic). Ali tem uma véia
que falou que teve um home aí embaixo, tinha aquele... disse que andava nas esmola
sem poder fazer roupa, sem nada, aí que pegou com Catita mais Mateus se Deus
ajudasse que eles conseguisse vestir direito, que ele dava uma roupa a Catita mais
Mateus, quando que Deus ajudou disse que ele plantou roça e continuou manteno a
vida deles sem precisar. Aí foram dar roupa Catita mais Mateus, todo ano, disse que
dava a roupa de Catita mais Mateus. Por isso que eu falo, é porque é do começo do
mundo Catita mais Mateus, é desde do começo. Enquanto Deus quiser me dano saúde e
135
vida pra mim fazer ele, eu faço. Não deixo não. Mas, agora, eu, eu, faleceno, não sei
quem vai tomar conta, porque tem muitos neto e neta, mas, não tem um que gosta de
fazer! Fica aí na paz de Deus.
Eu percebo no seu presépio, alguns animais que parecem que são ... que
têm penas de verdade, que têm lã de verdade. Onde a senhora consegue esses
bonequinhos, esses bichinhos?
Eu faço. Faz ele de pano com, e agora forro por cima, de algodão, quando é o
bode, quando é o galo, a ... a ... eu coloco a pena ...
Pena mesmo?
É pena mesmo de galo, os cocá, tudo aí eu que faço.
Tem um indiozinho ali também, né? Vestido com penas.
É esse daí foi comprado.
Foi comprado, o índio?
Foi.
E aqueles homenzinhos lá em cima que parecem ter caras de macacos? Lá
com pelo, né? Com ...
Aí foi comprado, dois aí foi eu quem fiz, por causa dos outros que eu vejo, eu
vou e faço.
Então, a senhora é também uma ... é uma pessoa que constrói seus objetos
do presépio, não é? D. Aurenive, estou vendo ali uma arma, um revólver no seu
presépio, em cima de um caminhão com uma criança bem ao lado. Por que a
senhora coloca uma arma, um brinquedo ali de ...
A arma é, é de Mateus; o menino vai aí e amonta no carro (risos), mas a arma
é de Mateus; Mateus tem tudo, tem arma, tem ... tem ... tudo quanto é coisa, ele tem ...
tem a espingarda ali,de cano, tem faca, facão...
Então Mateus seria um caçador? Ele pode ser o caçador?
Pode ser, porque ele dava conta de ... acho de ... de ficar ao redor de ... de
menino Deus, pra ninguém não ... não mexer com menino Deus.
Então ela era o guarda do menino Deus?
Regi: Hum, hum. O mestre Canito e Charutão que era o toureiro agora o dono
era, era Lingüiça. Ela viu fazeno eles, fazeno na rua e ela foi e então transformou o
136
circo. E aí ela continuou fazeno. Aí fez a armação toda e quando acabou ela fez o
Charutão, mestre Canito e o Zé Lingüiça, tudo de cera; e tem um boi também de cera.
Que tipo de cera?
Cera de abelha, essa mandaçaia
A mandaçaia. Então, quer dizer que ela ...
É, a mandaçaia, a não ser a mandaçaia não tem a cera que presta para isso,
não. E aí ela transformou.
Quer dizer que ela faz esses personagens todos em cera, ela mesmo que
moldou?
É, foi ela mesmo quem fez todos três que tá aí, esse boi ali de cera. Quer ver o
boi pr’ocê vê? É tudo de cera, aí ela transformou e fez. Já aquele dali, ela fez de ... de
madeira e ... e tem de pano.
(Aurenive) Vai ser virado tudo, os brinquedo pra cá e agora os reis vai
chegar na porta de Deus menino. Amanhã eles vai cantar Os Reis pra Deus menino.
E por que volta esses brinquedos pra cá?
Porque eles já visitaram Deus menino e já vieram imbora! e os reis foi
chegar, amanhã, inté no dia 6, eles tão cantano reis, pra Deus menino.
Então só eles que ficam lá, junto do Deus menino, visitando?
É, só eles fica lá visitano, três dias amontado e três dias de pé.
Então, quer dizer que amanhã (era véspera de Ano Novo) a senhora entra
no presépio e desmonta tudo?
É, desmonto tudo, tudo, tudo.
Volta todo mundo pra trás ... já voltando da visita.
É. Agora é os reis que vai chegar na, na beira de Deus menino, amanhã ...
amanhã cedo se Deus quiser.
Após a entrevista com Aurenive Neves, o filho se identifica: GENIVAL DA
SILVA NETO.
137
ENTREVISTA 3, Antonia Santana da Silva, Igatu/Andaraí Bahia, 1º de
janeiro de 2005.
D. Antonia, é a terceira vez que eu visito seu presépio, sua armação de
presépio, e a senhora sempre arma nessa estrutura de caixa e madeira. Por que a
senhora faz assim?
Eu faço assim porque, aí fica mais, ... eu acho que fica mais arrumadinho, o
presépio, aí a gente põe em caixa de madeira, em caixa de papelão, e depois a gente
forra tudo de jornal e usa tinta a óleo pra, pra pintar assim de várias cores, de várias
cores pra ficar colorido, e aí a gente vai no mato, pega planta nativa e enfeita o
presépio. Tem as planta também que a gente usa em casa, aí, pra ficar mais bonito,
mais atraente, e é uma tradição que já vem dos mais velho e aí os mais novo vai
passando de vó, de mãe, pai, filho e aí vai seguino a tradição. E há já muito tempo que
eu comecei a armar presepe e foi, foi em 80, parece que em 85 que eu comecei a armar,
aí, daí pra cá não parei mais, aí que meus filho gosta, aí eu cheguei e fiquei armano, e
eu pretendo essa tradição eu levar adiante até, quando eu não agüentar mais fazer, aí
os filho e neto vai fazeno, porque eu adoro e acho muito bonito e enfins, que a gente faz
porque acha bonito, e é também uma coisa que representa a ... o nascimento de Cristo,
o ... a lapinha. Tanto que a gente tem Deus menino ali; no dia de Natal a gente deita
Deus menino, aí, 12 horas, aí no Ano Novo a gente pega e renova o presepe todo,
coloca outras planta e aí já levanta Deus menino, aí ela já ta em pé, e aí ele vai até o
dia 10, 15 de janeiro, aí a gente desmancha a lapinha.
Por que a lapinha vai até o dia 10 ou 15 de janeiro?
É porque aí já passou a tradição.
Geralmente se desmonta no dia 7, não é? Depois de reis.
É.
A senhora vai até mais.
É, tem ora que eu desmonto depois do dia 10, que eu gosto de deixar assim em
casa, deixo por, q’eu acho bonito, mas depois que os reiseiro passa a gente já pode
desmanchar, depois do dia 7.
138
A senhora tem vários brinquedinhos no presépio, não é?
Têm vários.
Por que a senhora coloca brinquedinhos assim no presépio?
Porque fica mais bonito, mais colorido, e, enfins, que a gente, eu acho assim,
que se a gente fazer só com as plantas num vai ficar mais bonito, né? Aí a gente coloca
uns brinquedinhos umas bonecas, eu tenho Catita, tenho Mateus, e aí pra ficar mais
bonito.
Quem são Catita e Mateus?
São esses dois aqui, ó. Ó, aqui é Catita, aqui é Mateus e aqui é a família dela
e aqui é a casa de Catita.
Então, tem casa de Catita também?
Tem. Aqui é a casa de Catita. Aqui é o lugar dos reis magos e aqui é a casa do
Deus menino, que ele fica acima de todos.
E os bichinhos de lousa, os ... os ...
Fica aqui embaixo.
Separados, então?
É separado porque aí dá espaço, aí faz como a gente arma uma casa; aí a
gente monta e cada qual tem a sua estrutura.
E tem uns bichos de plástico aqui do lado também, não é?
Tem. Aí a gente coloca os bichos, a gente rança um negoço que dá nas pedras
que chama casca, aí a gente rança que é esse negoço aqui ó, isso aqui ó, que é casca,
esse aqui é lodo, esse lodo aqui a gente pega no mato, esse aqui é musgo, crote,
girassol, esse negoço ali é barba de velho, esse negoço aí que, que, a gente panha, pega
tudo no mato pra fazer enfeite do presépio.
Qual a diferença de musgo pra casca?
É porque o musgo é uma planta amarela e a casca é uma coisa que dá pela
natureza, ela dá grudada assim na pedra que pra arrancar aí a gente usa uma faquinha
pra arrancar ela que, aqui, ó, como ela é ó.Tá vendo? Isso aqui a gente dá o nome de
casca.
E o musgo é qual?
139
O musgo é esse aqui, ó. Essa planta aqui.
E aquele ali é casca também, aquele ali embaixo?
Aqui é lodo. O lodo a gente se pega ele no mato aí, ó, e tipo que ele fica que a
gente olha assim ele é um negoço que é dado mesmo na natureza. A gente chega lá e
tira pra ... pra enfeitar o presépio, enfim, e aqui é planta que a gente usa em casa
mesmo, que eu planto em casa. Essa planta aqui ó, se dá o nome de árvore de Natal;
essa aqui a gente chama de, de espada de Ogum, que essa planta é cultivada no quintal.
A forração, a senhora sempre faz com jornal?
É. Com jornal que, aqui quando passa eu ranco as folha e guardo, depois,
quando chega no ano seguinte aí eu vou, forro de novo, pinto e a areia a gente pega
num lugar que chama “requeijão”, que é um, um lugar que tem aqui em cima, aí a
gente vai pegar areia pra poder colocar no presépio.
Antonia, o que significa aquela parte ali embaixo com um monte de
“gente”, um monte de “animal”, com uma “população” enorme? Por que a
senhora coloca tanta gente assim no presépio?
É, eu coloco porque aí fica uma coisa assim é, representano muitos, muitos
tipo de cultura que a gente vê hoje em dia né? Porque, por exemplo, num lugares aí a
gente coloca uma parte de pessoas, né? Aquelas pessoas ali, outra parte, aqueles
bichinhos, como aqueles bichinho ali, ó! Quando a gente arma o presépio, a gente vira
eles pro lado de Deus menino, eles tão indo visitar Deus menino, é, no Natal, eles tão
visitano Deus menino. No Ano Novo, a gente levanta Deus menino. Aí os bichinho já
visitou Deus menino, e já vai voltano, de novo, aí vira os bichinho pra cá. Que aquele
dia mesmo que o senhor teve aqui, aí me perguntou por que a gente deixa assim, é
porque eles vão visitar Deus menino. E agora, como é o Ano Novo, eles já tá vino aí a
gente coloca uma parte de bichinho, que é aqueles bichinho ali, que significa, tem o
boi, tem o cavalo, tem os reis mago, ali eles já tá vino da visita. É uma coisa que, a
gente, o presépio, eu, a gente vai fazer, e aí vem, o que vir na idéia da gente, a gente
coloca, as coisa, sei lá, assim q’eu, é, muito bonito a gente inventar assim uma coisa da
idéia da gente mesmo, e acaba fazendo uma coisa criativo que as pessoas vem e gosta;
eu mesmo às vezes tenho umas idéia assim,ah! Eu vou fazer uma coisa, eu vou e faço e
dá certo e todo mundo adora.
140
D. Antonia, por que tem ... estou vendo aí que tem umas ampolas de
injeção, é ... de medicamentos. Por que a senhora coloca isso no presépio?
3
Ali é a família de Catita, né? Ali ... ali a gente coloca fruta, coloca muitas
coisas, né? Remédio, se os filho adoecer, o remédio já tá ali ... ali é ... é ... a ... a ...
segurança da família.
Quer dizer que o remédio já fica de prontidão, né?
Já fica de prontidão. Qualquer coisa o remédio já tá ali.
E a senhora sabe contar um pouquinho a história de Catita e Mateus,
quem são Catita e Mateus? Na verdade, no fundo, no fundo, quem são eles?
Menino! Olhe, eu não sei. Tinha uma velha aqui que era muito boa nisso,
nessa história, né?
Quem era?
Idalice, uma que morava lá em cima.
Eu conheci, eu conheci.
Ela que era boa pra contar a história. Agora, já eu, eu só não sei...
E o que você ouviu falar dela? Você sabia, sabe de alguma coisa que ela
contou?
Ah, ela dizia assim, é que às vezes né? No Natal ela colocava Catita, aí a
gente ia visitar o presépio, e: ai sinhá d’Alice: cadê Mateus? “Ah minha fia, Mateus
sofreu um acidente e Catita tá ali toda, tá chorando e Mateus tá todo esbagaçado, aí ele
tá no hospital, quando ele melhorar, talvez no Ano Novo ele chega”. Aí a gente quando
dá o Ano Novo: e aí sinhá d’Alice? “Mateus já chegou aqui, minha fia, com uma
quantidade de fi
4
e Catita pegou ele e meteu o rei
5
, olha ele aqui” e botava Catita no
canto e já fazia outra casa lá separada para Mateus. “Ele agora arrumou outra muié e
Catita não quer mais saber dele, aí só os filho”, e dividia a família um tanto pra um
lado, um tanto pra Mateus e outro pra Catita, e aí a gente chegava lá e ficava fazeno
várias perguntas aí ela contava assim essas histórias e a gente ficava dano risada,
então o presépio dela era o presépio que tinha mais história, e eu lembro assim de
alguma coisa que ela falava, mas não sei é, eu não sei mais.
3
No presépio de D. Idalice, em Igatu, detectei as primeiras ampolas de medicamento injetável no cenário.
4
Filho
5
Meter o rei significa dar uma surra em alguém.
141
Mas quem são eles mesmo, quem significam ou representam, a senhora
não sabe, não tem idéia?
Menino, não, não, não tenho idéia, não.
Eles são de pano não é?
É. Esse, essa Catita aqui e Mateus, é eles, têm mais de trinta anos.
Eles foram de Idalice?
Foram da mãe dela, da mãe dela, e aí depois a mãe dela morreu e aí ela ficou
fazeno o presépio; depois ela já tava velhinha, aí ela disse: “ah, eu não vou fazer mais
que eu não agüento”. Aí eu disse pra ela: ah então eu vou fazer eu já tenho o presépio,
aí ela chegou e me deu, mas, mas, esses daí desde quando eu me entendo por gente eu
já conhecia eles, há muito ...
Da casa de Idalice!
Sim, da casa de Idalice. Sim, que esses foram o dela. E aí a gente tem que
preservar, né? Eu tenho muito cuidado com essas coisa, alguns brinquedinho aí foi do
presépio dela, e aí eu guardo com muito carinho, foi uma lembrança dela, que eu era
uma pessoa que gostava muito, aí a pessoa tem que preservar, né?
ENTREVISTA 4, Alice Ferreira Braga, Wagner Bahia, 29 de dezembro de
2004.
D. Alice, é a segunda vez que eu venho aqui na sua casa para visitar a sua
lapinha. Estive aqui no ano de 2002 e fiquei impressionado com o tamanho da sua
lapinha, com as figuras que a senhora coloca, e hoje eu volto e vejo que a lapinha
está quase no mesmo formato, mas, tem outras figuras, outras personagens que
entraram na lapinha. A senhora poderia falar um pouco dessas entradas de outros
personagens que entram na lapinha?
O meu causo é este: eu arrumei algumas coisas independência que não teve
aqui na lapinha, aquela rede, que tinha, não teve porque a que tinha queimou e eu tirei,
joguei fora, mas tem as outra coisas que coloquei, as planta, tem planta aqui que não
tinha daquela vez e eu coloquei, como ... veja aquela: tem uns pés mesmo que não tinha
aqui, eu coloquei este ano; e as coisa que tinha de brincadeira, tem esses bichinhos
142
aqui, que não tinha; tem, xover
6
, aquele não tinha; o porquinho não tinha e algumas
coisas aqui que não tinha, aquela lagoa lá dos bichinho beber água, que vai tudo beber
água não tinha, coloquei essa semana; e ... não tem quase nada de novidade, as
novidade que tem é pouquinha.
É ... mas eu estou vendo ali, por exemplo, aranha, parece uma aranha
caranguejeira?
É, tem aranha, tem besouro, aquele grande lá, tem mosca, tem sapinho ...
E por que a senhora coloca esses bichos assim tão diferentes no seu
presépio?
É porque é da praia. A gente tem que colocar os bichinhos da praia e sempre
só vai pra (em direção ao menino Jesus), agora quando é no dia 31, eles tão
voltando, depois da meia noite, eu volto todos. Quando é a base de 1 hora da manhã,
meu menino Jesus alevanta e fica na frente. Aí, fica na frente ali, porque os bichinhos
vai visitar. Aí agora quando eu levanto meu menino Jesus, agora eu volto tudo, boto
tudo pra voltar pra cá.
Qual é a data mesmo?
É no dia 31 para o dia 1º, na madrugada eu volto eles tudo.
Quer dizer que na madrugada a senhora faz a mudança de posição dos
bichinhos?
É, volta tudo, volta tudo de lá pra cá, porque aqui eles tão indo.
E por que eles estão voltando no dia 1º?
Porque eles já foram lá fazer a visita ao meu menino Jesus, e voltou agora
quando é do dia 31 para o dia 1º eles estão voltano, voltano pra casa, estão seguindo
viagem pra cá.
Bem, tem também um porco ali amarelo, não é?
É, um porco que não tinha.
Que é um porco de mealheiro que se guarda moeda
6
Deixa eu ver.
143
É.
Tem ali um super-homem, ...
Aquele super-homem, tem também um cocazinho que era de colocar dinheiro,
o que tinha era aquele de lá, mas não tinha esse de cá, ta vendo aí? Os potinho de
barro, não tinha, esse ano já tem.
E por que a senhora coloca esses objetos de colher dinheiro, receber
dinheiro, no presépio?
É porque aí, é por causa que a gente tinha guardado, não é, aí depois que
tirar o dinheiro, muito bonitinho, sem quebrar, porque tem gente que quebra , o
porquinho mesmo eu não deixei quebrar, e o cocazinho que era do menino meu, ele
veio do sertão, que ajuntava dinheiro, aí me deu o cocazinho aí eu cheguei e coloquei,
e, a todo mundo que chega me dá uma coisinha e eu coloco aí, de buzo
7
a tudo que os
menino trás pra mim; tem buzinho aí que veio de Salvador que um sobrinho meu
trouxe, e eu coloco eles tudo tem o prazer de chegar e me dá qualquer brincadeira, e eu
coloco aí.
E a senhora vai colocar sempre na lapinha ...
Sempre na lapinha. Agora essas coisa que eu coloco agora, torno guardar
tudo pro ano que vem, torno colocar tudo outra vez.
Guarda tudo?
Guardo tudo.
o perde nada?
Não.
– Não devolve para os meninos, não?
Não. Aquelas duas bonecas pretas, eu era menina, quase menina, menina
nova, quando a minha tia fez aquelas bonecas duas boneca preta.
O que significam aquelas duas bonecas pretas?
Catarina e Brás.
Catarina e Brás?
7
Búzio; concha de molusco.
144
Catarina e Brás.
E quem foram Catarina e Brás?
Catarina e Brás porque eles freqüentaram, foram visitar o menino Deus
quando nasceu, aí eles ficou seno da lapinha porque eles freqüentaram meu menino
Jesus quando nasceu; aí eles ficaram na lapinha. Pode dizer que é os dono da lapinha.
Fora meu santo lá, é eles quem faz mais graça na lapinha, é eles dois.
Eles são sempre de cor preta, Catarina e Brás?
É, todos dois preto.
Então, eu vi na casa de D. Minelvina, também, Catarina e Brás, de cor
negra, né?
Eles são preto; Catarina e Brás, eles são preto, são nagô e eles freqüenta a
lapinha. Todas as lapinha que você chega tem Catarina e Brás. Na lapinha que não tem
Catarina e Brás não tem graça; onde chega tem eles dois.
É verdade. Nagô quer dizer o quê?
É desses lugar, ... nagô de Salvador, que veste essas rouponas, [aponta para
as baianas presentes no presépio], ó lá, que bota aquelas corrente no pescoço, ta lá ó...
Então, eles têm essa relação com a raça negra?
É, é ... com a raça negra ... e tem meu Cosme e Damião também, que fica
naquela frente e todo ano tenho que colocar aqui, na frente, em deferência tem, ...
quando você veio não tinha aquela dali ...
Qual é?
A Santa Bárbara, eu não tinha, Santa Luzia eu não tinha, coloquei esse ano,
inclusive coloquei eles onte. E mais algumas coisa que coloquei aí que não tinha, que
esse ano eu tenho. Tem muito bichinho aqui; tem os dois que você procurou esse
negócio aqui, eu tenho, foi desse ano também, não, do ano passado, o ano passado já
tinha eles dois, esses bichinho aqui. E aqui eu coloco porque tem os netinho que é
danado e quando vai chegando aqui embaixo, pego uma lagartixa que tem aí, coloco
aqui, cê só vê o grito, ninguém malina aqui. Ninguém, porque na hora que malina é só
apresentar e logo, logo, jogo nos pé e o moleque sai, sai picado (risos) que é bom por
isso aí ...
Esses bichos protegem ...
É, protege a lapinha. Q’eu armo minha lapinha e não gosto, onte mesmo botei
um, o moleque trouxe um carrinho colocou ali, e onte foi pegar sem minha ordem e
derrubou os bichinhos. Hoje falei pra o pai: olha, no dia que Wellinton chegar aqui eu
145
vou bater nele, malinando na minha lapinha. Segundo a depoente, o pai: “pode bater,
pode dar tapa, porque o moleque já tá grande demais”, já tá grande, eu não gosto, tudo
que arma o presépio aí, menino não malina não, porque eu não gosto. Não gosto de
forma nenhuma.
D. Alice, eu estou vendo ali que tem uma fila de soldados, né?
Tem, é.
Soldados ...
É, soldado.
Lembram guerras.
É. Eles vão pra guerra.
E também na lapinha tem, tem esses soldados que vão pra guerra?
Tem, tem, todos eles vai tudo, vai visitar o menino Jesus, já vieram da guerra
e agora vão visitar o meu menino Jesus, vai tudo. E agora quando for dia 1º, pode vir
aqui que tá tudo virado pra cá, oh, tudo voltando, tudo, é os guerreiro, tudo, é tudo tá
voltando.
E a senhora deixa essa lapinha até quando?
Até o dia 7 de ... como esse ano eu atrasei, porque eu armo no dia 20, deixei
pra armar no dia 22, deixo pra desarmar pro dia 8 ou dia 9.
Tem uma quantidade de dias certa?
Tem, tem quantidade certa.
Por quê?
Porque eu armo no dia 20 de dezembro e desarmo no dia 8 ou 9 de janeiro. É
pra mais de quinze dias, né?
Mais ou menos.
É, quinze dias. Porque eu armava presepe, que eu acho que te falei, como uma
brincadeira que eu tive desde pequenininha, que o povo fazia assim, armava os
presepe, o que jogava no mato, os trem, e aí agora eu voltava ia apanhar e fazia, no
canto. Na casa que a gente morava, de primeiro era muito grande e tinha o ponto de
venda, lá eu fazia o meu presepe e colocava um bocado de coisa, botava areia, ficava a
vida todinha, eu brincando com essas brincadeira, pequena. Aí, quando fui cresceno,
fiquei na idade de cinco ano, eu falei pra minha mãe: digo, ô minha mãe, eu armo o
meu presepe pra eu brincar e agora eu vou ficar armano. Ela: “onde é que você tem o
santo menina?” nós tinha sim, um Bom Jesus da Lapa, nós tinha. Eu digo: esse eu não
coloco, não. Eu coloco aí, só boto aí o seu Bom Jesus da Lapa, a senhora me dá? Aí ela
146
me dava, eu colocava assim, o quadro era grande, aí quando foi, eu ia para a igreja
dos crente, lá eles me deram os cartãozinho com o menino Jesus, com Nossa Senhora,
São José e o menino Jesus. Aí eu fiz o meu presepe, pequenininho, só se tu vê! Desse
tamanhozinho, lá no canto, coloquei meu menino Jesus no cartão assim, aí os reiseiro
vieram e cantaram. Quando os reiseiro cantou, aí eu me entusiasmei, ali, eu digo, não,
mãe, eu vou ficar armano meu presepe. Mãe: “menina, isso é complicança, vai ser
complicança pra você, você não pode pegar esse peso”. Eu digo: eu vou mãe, eu vou
pegar, eu vou fazer meu presepe. Ele era tão grande que a minha fia vinha e fazia pra
mim, e de caixão, fazia, botava os caixão assim, e fazia, enchia tudo de planta, quando
os reiseiro chegava era aquele esntusiasmo, cantava, e eu ficava naquele entusiasmo;
no primeiro dia que recebi o meu reis foi de joelho, e de joelho eu recebo até hoje. Aí
eu fui cresceno. Na idade de 15 ano tinha um rapaz aqui, e nós não conhecia dessas
doença né? Aí chegou e pediu a minha mãe pra lavar uma roupa dele. Aí mãe disse: “ô
Louro, seu Louro, eu não tenho tempo de lavar pro que eu tou costurando, mas o senhor
traz que Alicinha lava”. Ele trouxe a roupa. Eu fui pra o rio e lavei uma calça e uma
camisa, quando cheguei fui sentindo uma dor aqui. Digo: mãe, minha mão tá doeno, ó
como tá isso aqui! Já tava umas manchinha roxa aqui, assim. Ela disse: “é porque a
mão fina machucou”. Ah menino, com 15 dia esse couro saiu todo, arrancou todo, ficou
somente nos osso, aquela coisa mais feia do mundo. Aí chegou uns turco, e toda vida só
chegava turco e cigano, eu digo eu vou lá nos turco. Mãe: “não vai pro sol!”. Botei a
mão na tipóia e fui. Até essa data eu não tinha coragem, de forma nenhuma, de ir no
hospital. Quando eu cheguei lá, conversando mais a turca, ela foi assim olhando pra
mim e disse: “baiana bonita, o que é que você tem nessa mão? Ai, ai, quando eu tirei a
mão e mostrei a ela, ela: “vixe que guarda sua mão, guarda! E cuida pra você não ficar,
ou morrer ou ficar aleijada, você tão bonita e ficar aleijada, minha baiana! Você vai
cuidar de você.” Aí eu me assombrei, cheguei em casa, falei pra minha mãe. Digo: oh
mãe, a turca disse que eu vou ficar aleijada se eu não tomar uma providência e ir no
médico! Mãe disse: “já lhe falei, você não quer ir! Aí nesse dia mesmo eu fui. Aí tinha
um médico aqui com o nome de Dr. Armindo, assim, muito bom, esse médico tava no
hospital. Aí eu cheguei, ele disse: “que tu veio fazer menina?” Aí eu mostrei a mão.
“Vixe, menina, aonde tu achou essa doença? Aí eu falei pra ele que tinha sido daquela
roupa que eu tinha lavado, e a minha mãe disse que foi machucado, que a mão fina
machucou. Ele disse:”Não minha filha, de quem foi a roupa?” Aí eu falei: de Louro
vida triste. Ele disse: “Ave Maria! Louro tá arrancando os pedaço a doença de Louro é
147
braba, que escapou de você morrer menina! Aí ele me levou, aí mãe fez uma promessa a
menino Jesus e assim já era em dezembro, e já tava quase d’eu viajar pra pegar enfeite
pra minha lapinha. Aí quando ela pediu a menino Jesus: se eu não ficasse com defeito,
sarasse, não ficasse com defeito na minha mão, e que eu armava por brincadeira, ia
ficar armano para sempre, enquanto vida tivesse. Tu credita que os médico rasgou
minha mão aqui, ó, rasgou e espremeu sem nestesia, que não pegava anestesia,
espremeu, quando espremeu a imundiça pulou lá, tinha caído na cara dele, aí ele
espremeu e fez o curativo; tu credita no menino Deus, primeiramente no meu menino
Jesus, com quinze dias já eu tava sãzinha dessa mão. Fui três vezes no hospital e fiquei
sã da minha mão; não ficou com defeite nenhum, sei que no dia 20 eu já fui armar meu
presépio. Fui na serra, peguei os enfeite e no dia 20 armei meu presépio; tanto é que no
20 que armo ele, mas esse ano eu atrasei porque muita gente dentro de casa, eu digo
vou deixar pra armar meu presepe no dia 21 até 22. quando foi no dia 22 eu armei, mas
senti diferença em mim, eu senti deferença em mim, fiquei nervosa, só não fiz foi cair,
mas fiquei nervosa ficano com aquela falta de paciência assim, aí pedi a eles, falei com
eles, assim porque tinha muita gente, deixava sair pra fora, pra eu poder armar, mas eu
armei, e aí também graças a Deus não senti mais nada, e tou aí ó, com minhas duas
mãos, e fico armano meu presepe enquanto vida eu tiver eu tou armano meu presepe,
meu menino Jesus tá ali atrás, ó, ele só vai sair no dia 31 de madrugada para o dia 1º .
Então, quer dizer que a data 20 de dezembro é uma data muito
importante pra senhora?
É muito importante pra mim.
É uma data simbólica a sua cura!
A minha cura.
A partir daí, então, a senhora só arma o presépio no dia 20 por causa
desse acontecimento da senhora ter ficado curada, não é?
porque se fosse brincadeira como eu vinha armando, por brincadeira, com 7
anos eu abandonava, não tinha nada, mas eu agora se eu for viaj..., eu já falei aqui
olha, tu não vê, eu armo meu presépio. Deus o livre guarde, se chegar morrer um, eu
tenho que fazer a forma, tenho que colocar meu menino Deus, porque não posso deixar
de armar.
Até sete anos pode deixar de armar?
Até sete ano; não teno devoção pode deixar de armar.
148
O seu é de devoção?
É devoção, o meu é devoção.
Devoção porque a senhora foi curada?
Na base de Deus, fui curada com aquela fé, porque disse que a fé quem cura,
né? A minha mãe ajoelhou e pediu a Ele, e eu sarei Graças a Deus. Também no dia de
armar esse presepe ninguém me contraria, eu levantei esse ano; o meu menino me
ajudou a fazer isso aí porque a planta era pouco dura, e eu tou com problema nessas
mão, fiquei rui dessas mão, aí fiquei quase sem força pra pegar as coisa tudo, aí ele fez
o morro; ele disse: “bom, mãe eu vou, já fiz e agora a senhora faz o resto que a
senhora sabe” , e agora joguei aqui as planta e fui colocar os bichinho. Mas, nesse dia
ninguém fala comigo, ninguém me contrareia, ninguém me diz nada; também todo
mundo, no tempo de meu marido, meu marido tinha o maior prazer, no dia que era o
dia de armar o presepe, era de uma alegria dentro de casa, desde o tempo dele, e tou
nessa inté hoje. E quando for pegar pra armar e desarmar, eu digo: ô gente vocês não
m coração porque é uma alegria tão grande que a gente tem quando tá com o presepe
armado dentro de casa.
E no momento de desarmar, tem outra festa?
Não, aí agora não tem mais festa; só tem festa de Cosme e Damião, (risos)
todo ano, eu faço cariru de dois filhos que tenho em São Paulo.
A senhora faz festa de Cosme e Damião também?
Faço, cariru.
Eles nasceram no dia de Cosme e Damião?
Não. Eles nasceu no dia 13 de abril, aí eu digo assim: ah, eu não vou fazer
negócio de cariru, não vou fazer que eu não pedi dois meninos, dois gêmeos na minha
família, e minha família tem. Agora mesmo minha neta tem dois pequenininhos, dois
gêmeos, já tá com dois ano.
Então a senhora faz caruru por eles serem gêmeos, não é? Cosme e
Damião!
É, porque dois gêmeos, aí eu coloquei os nome deles José e Joselito porque eu
tinha uma promessa com o senhor São José, aí eu botei José e Joselito.
149
2. Fichas de entrevistas abertas aplicadas aos indivíduos selecionados para compreensão
do objeto desta pesquisa e autorização assinada pelo sujeito entrevistado para
publicação do material coletado.
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