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DORVAL DO NASCIMENTO
FACES DA URBE
Processo Identitário e Transformações Urbanas em
+Criciúma/SC (1945 – 1980)
Porto Alegre, 2006.
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DORVAL DO NASCIMENTO
FACES DA URBE
Processo Identitário e Transformações Urbanas em
Criciúma/SC (1945 – 1980)
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, para obtenção do título de Doutor em
História, sob a orientação da Drª Sandra Jatahy
Pesavento.
Porto Alegre, 2006.
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TERMO DE APROVAÇÃO
4
À memória de minha mãe, Albina Córneo.
5
Não me peça que eu lhe faça uma canção como se deve
Correta, branca, suave, muito limpa, muito leve
Som, palavras são navalhas e eu não posso cantar como convém
Sem querer ferir ninguém.
Mas não se preocupe meu amigo, com os horrores que eu lhe digo
Isso é somente uma canção
A vida realmente é diferente quer dizer, ao vivo é muito pior.
Belchior, Apenas Um Rapaz Latino-Americano.
6
AGRADECIMENTOS
O ato de realizar a pesquisa e escrever a tese é tão individual e solitário, por um lado,
mas que envolve tantas pessoas que nos ajudam e apóiam em todos os momentos, em especial
naqueles mais angustiantes. Sou grato a todas as pessoas que acompanharam e contribuíram
comigo neste trajeto. Em primeiro lugar à minha família, Dete, Vitor Hugo e Bruno, que
suportaram meus momentos de ausência e, algumas vezes, de uma presença que incomodava, em
momentos de cansaço e estresse. Também a minha mãe, irmã, cunhados e cunhadas, sobrinhos e
sobrinhas, que sofreram principalmente com minha ausência durante estágio de Doutorado
realizado na França.
Agradeço à Sandra Jatahy Pesavento, que orientou este trabalho com competência e
atenção, pela amizade e carinho sempre paciente com minhas dificuldades, e que me propiciou
uma grande oportunidade de crescimento pessoal e profissional. Agradeço também a Jacques
Leenhardt, pela atenção dispensada a mim durante meu estágio na École des Hautes Études em
Sciences Sociales, em Paris.
Na dimensão profissional, sou grato a Universidade do Extremo Sul Catarinense
(UNESC) pelo período de licença que me permitiu elaborar o trabalho com mais tranqüilidade.
Na UNESC, agradeço aos colegas do curso de História, com quem tenho tido contatos mais
próximos nos últimos anos (João Henrique, Miranda, Carola, Lili, Lucy, Paulinho e Nivaldo) e o
7
pessoal da Diretoria de Pesquisa, local em que tenho exercido atividades na Universidade, pelo
apoio que recebi durante minhas ausências e presenças (Janine, Zélia, Adriano, Patrícia,
Elisandra e Márcia). Sou grato também a João Batista Bitencourt pela amizade e diálogo que tem
contribuído tanto para meu crescimento pessoal e profissional. Agradeço igualmente a Júlio
César Luz e Michele Gonçalves Cardoso, estudantes que, no desenrolar de seus levantamentos
documentais para suas pesquisas de iniciação científica, contribuíram também para este trabalho.
Da mesma forma, agradeço a Émerson César de Campos que me cedeu documentos importantes
para a pesquisa.
Faço um agradecimento especial a Vanderlei Machado, que me abrigou durante a
minha presença em Porto Alegre para as disciplinas do Doutorado. Da mesma forma, durante
nossa estada em Paris, quando precisou suportar minha presença em momentos de tristeza e
angústia pela distância que me separava de minha família e amigos, mas também pela amizade
em horas tão boas. Também a Nadia Maria Weber Santos, pela companhia em passeios
maravilhosos que fizemos em Paris.
Finalmente, agradeço a CAPES que me propiciou a realização do estágio de
doutorado em Paris e que possibilita a formação de tantos pesquisadores brasileiros.
8
RESUMO
NASCIMENTO, Dorval do. Faces da Urbe: Processo Identitário e Transformações Urbanas
em Criciúma/SC (1945 1980). Porto Alegre: 2006. Tese (Doutorado em História). Programa
de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Orientadora: Sandra Jatahy Pesavento.
Defesa: 15/12/2006
Estudo sobre os processos de mudança da identidade urbana da cidade de Criciúma (SC), no
período 1945 1980, a partir da emergência de discursos e pertencimentos centrados na
etnicidade e que provocaram uma efetiva transformação dos anteriores esquemas identitários
presentes na Urbe. Acompanha-se a constituição da cidade construída a partir da atividade de
extração do carvão e sua posterior transformação, urbana e identitária, a partir de esquemas de
pertencimentos centrados na noção de origem étnica. Observa-se a atuação dos grupos sociais e
governos municipais na consolidação de uma identidade urbana que teve na etnicidade o seu
ponto de confluência.
Palavras-chave: Identidade urbana, cidade, carvão, etnicidade, historiografia.
9
RÉSUMÉ
NASCIMENTO, Dorval do. Faces da Urbe: Processus Identitaire et Transformations
Urbaines à Criciúma (1945 1980). Porto Alegre: 2006. Thèse (Doctorad em Histoire).
Programme de Troissième
Cycle em Histoire, Université Féderale du Rio Grande do Sul.
Directrice de recherche: Sandra Jatahy Pesavento.
Défense:
C’est un étude sur le processus de changement de l’identité urbaine dans la ville de Criciúma
pendant la période 1945 – 1980 à partir de l’emergence des discours et des appartenances
centrées sur l’éthnicité qui ont causé une effective transformation des schémas identitaires
antérieurs présents dans la Urbe. Accompagnant ce processus, la constitution de la ville est
construite à partir de l’activité de l’extraction du charbon et sa posterieure transformation
urbaine, identitaire et aussi à partir des schémas des appartenances centrées sur la notion
d’origine ethnique. L’action des groupes sociaux et municipaux est nettement observée dans la
consolidation d’une identité urbaine qui a connu son point de confluence dans l’ethnicité.
Mots-clés: Identité urbaine, ville, charbon, ethnicité, historiographie.
10
ÍNDICE
Resumo ...............................................................................................................................7
Resume................................................................................................................................8
Introdução..........................................................................................................................11
Capítulo 1:
Eldorado Catarinense: Vida e Morte da Cidade do Carvão ................................21
1 – A Formação da Cidade Carbonífera.....................................................................23
2 – Os Construtores da Cidade Carbonífera...............................................................35
3 – O Monumento da Cidade do Carvão....................................................................42
4 – Diversificação Econômica da Cidade Carbonífera...............................................52
Capítulo 2:
Dizendo Outro Discurso: A Emergência da Etnicidade na
Cidade do Carvão..............................................................................................................61
1 – Dificuldades do Discurso Étnico na Cidade Carbonífera.....................................63
2 – Valorização Progressiva do Imigrante e sua Diferenciação.................................71
3 – Formação do Centro Urbano Como Diacrítico Étnico .........................................82
4 – Monumento ao Imigrante Como Discurso Sobre a Cidade..................................87
Capítulo 3:
Da Cabeça de Zeus: O Parto da Nova Cidade.......................................................100
1 – A Cidade Carbonífera Vista Pelo País..................................................................101
11
2 – Imagens da Cidade e Intervenções Urbanas.........................................................112
3 – Novo Monumento ao Mineiro e o desejo de Outra Cidade..................................118
4 – Governo Guidi e a Criação de Uma Nova Cidade................................................125
5 – Criciúma de Guidi Como Cidade de Cartão Postal..............................................135
Capítulo 4:
Cidade de Papel: O Discurso Historiográfico Sobre a Cidade.............................149
1 – História de Criciúma nos Jornais..........................................................................152
2 – As Obras da Década de 1970................................................................................163
3 – A Obra do Centenário de Colonização.................................................................182
Capítulo 5:
A Apoteose da Nova Cidade: As Comemorações do
Centenário de Colonização...............................................................................................194
1 – Preparação do Centenário.....................................................................................195
2 – A Festa do Centenário ..........................................................................................201
3 – Expo 100, a Exposição do Centenário..................................................................210
4 – Fim de Festa .........................................................................................................217
Conclusão ...........................................................................................................................226
Fontes e Bibliografia..........................................................................................................230
12
INTRODUÇÃO
Celebrando a união dos povos foi o lema geral da XVIIIª Festa das Etnias Quermesse
de Tradição e Cultura, ocorrida de 1 a 9 de setembro de 2006 em Criciúma/SC. A festa teve seu
início associado às comemorações do centenário de fundação de Criciúma em 1980, quando
foram organizados grupos folclóricos, entidades e associações étnicas, tornando-se a principal
festa municipal do Sul de Santa Catarina e integrando-se ao calendário de festas do Estado,
concentradas no segundo semestre de cada ano, em especial no mês de outubro. Ainda que não
concorra com as festas celebradas no Vale do Itajaí, em especial a Oktoberfest de Blumenau, a
Festa das Etnias tem um evidente apelo turístico e mercantil, a atrair visitantes da região e de
outras partes do Estado e do país. E vai além, ao buscar divulgar a cidade, colocando-se como
uma festa de todos os habitantes de Criciúma, a união dos povos do lema da edição de 2006.
Quais povos sejam estes, o folder da edição referida da festa deixa claro ao relacionar, em sua
capa, simpáticos desenhos de representantes de grupos da população divididos a partir de
critérios agrupados em torno do que se convencionou chamar de etnicidade, também presente no
termo Etnias do título da festa: Alemã, Negra, Italiana, Espanhola, Polonesa, Portuguesa, Árabe.
A festa assim, conforme se expressa no título, lema e folder, busca celebrar a união dos grupos
13
étnicos presentes na cidade de Criciúma, entendidos como os formadores da cidade, cuja
população identificar-se-ia com o evento em vista de seu pertencimento a um dos grupos étnicos
promotores da festa. Como palco reduzido onde a atriz principal é a própria cidade, a festa
pretenderia reavivar os vínculos da população com o passado de Criciúma, seus grupos
fundadores, fortalecendo o pertencimento dos habitantes a um dos citados grupos e reafirmando
uma identidade urbana fundada nas etnias, capaz de apresentar a cidade de modo afirmativo. A
positividade é dada pela diversidade étnica e riqueza de contribuições que cada cultura aporta
para o conjunto da cidade. Juntando lazer, turismo e cidade, a Festa das Etnias promove um
conjunto de representações sobre Criciúma e seus habitantes que tem na identidade étnica o seu
cimento agregador. Essa identidade é diversa, na medida em que diversos são os grupos, mas
também única em vista de que se referem à mesma cidade, apresentando Criciúma como cidade
das etnias.
Entretanto, um olhar mais atento sobre o folder da festa surpreende algumas interessantes
informações, como aquela de que George de Lucca, um descendente de italianos a se levar em
conta o patronímico, seja o representante da etnia portuguesa. Ainda que a atribuição de
identidades, mesmo aquelas estabelecidas a partir da etnicidade, se dê a partir de processos
subjetivos, o representante italiano dos portugueses revela dificuldades importantes na construção
da identidade urbana de Criciúma, como veremos mais adiante.
Este trabalho tem exatamente o propósito de analisar os processos de transformações da
identidade urbana na segunda metade de século XX, a partir da cidade de Criciúma, e as
implicações desses processos sobre a cidade e a vida de seus habitantes. Trabalhamos a partir de
dois termos identitários básicos relacionados à Criciúma – a cidade carbonífera e a cidade étnica
para explorar as nuances de interesses de grupos sociais presentes na cidade e os momentos
mais decisivos desse processo de construção de identidades. É importante frisar que investiguei
14
os processos de atribuição identitária relacionados aos grupos sociais apenas na medida em que
esses processos ajudaram a compreender as identidades construídas para a cidade de Criciúma e
as transformações pelas quais elas passaram.
A temática da identidade e do que se tem chamado ‘crises de identidade’ parece mesmo
estar na ordem do dia das sociedades contemporâneas. Essa temática tem perpassado diversas
situações, pessoais e coletivas, nas mais diferentes sociedades do mundo atual, pelo menos no
chamado mundo ocidental. Stuart Hall fala mesmo em uma explosão discursiva em torno do
conceito de identidade
1
. Alguns autores têm argumentado que as ‘crises de identidade’ são
próprias das sociedades atuais. Em vista de que as identidades não são herdadas e nem adquiridas
de uma vez para sempre, não sendo um atributo ligado definidamente a pessoa e aos grupos
sociais
2
, como produto e, ao mesmo tempo, processo, as identidades culturais estão sujeitas as
mais diferentes mudanças e instabilidades pelas quais tem passado as sociedades
contemporâneas, requerendo um reposicionamento permanente dos atores sociais. As
transformações globais pelas quais tem passado o mundo contemporâneo nas últimas décadas
colocam para os grupos sociais uma série de desafios que os remete para a afirmação e
reafirmação de suas identidades. Entre esses processos, se pode destacar aqueles movimentos
econômicos e culturais reunidos em torno do fenômeno da globalização, que altera as condições
de produção e consumo das sociedades contemporâneas, pondo em crise as estruturas mais gerais
representadas pelo Estado e pelas comunidades nacionais
3
. Ainda que o desenvolvimento
mundial do capitalismo não seja algo novo, entretanto, o que lhe caracteriza nas últimas décadas
é um movimento de homogeneização cultural das sociedades locais promovido pelo mercado
1
HALL, Stuart. Quem Precisa da Identidade? In: DA SILVA, Tomaz Tadeu (organizador). Identidade e Diferença
– A Perspectiva dos Estudos Culturais. 4ª edição. Petrópolis: Vozes, 2000.
2
VINSONNEAU, Geneviève. L’Identité Culturelle. Paris: Armand Colin, 2002.
3
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. 5ª edição. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
15
globalizado, o que leva os grupos sociais e locais a se posicionarem ante o fenômeno, ora
afirmando as possibilidades que a mundialização propicia, e em outras oportunidades e processos
culturais afirmando suas próprias especificidades, reafirmando identidades nacionais e locais, não
raro numa combinação das duas tendências. O próprio mercado capitalista, através da
publicidade, incita cada um a manifestar seu gosto como mera expressão de si mesmo
4
. A
mundialização dos mercados acaba por promover uma aceleração do deslocamento de populações
trabalhadoras para os países centrais, ocasionando países e cidades com uma população cultural e
nacionalmente diversificada, produzindo identidades plurais, mas também identidades
contestadas
5
. Diante de um mundo globalizado e que se modifica continuamente, sujeitos a
deslocamentos constantes e em contato com populações culturalmente diversificadas, pessoas e
grupos sociais buscam na afirmação de suas identidades uma ancoragem que lhes permita
estabilidade em um mundo em constante mutação, afirmando aquela noção que é mais cara na
definição de identidade, que a de permanência
6
. Além disso, em um processo em que as
fronteiras espaciais e culturais se dissolvem por ão dos mercados mundiais, os interesses locais
são realçados, para poder competir, e assim, precisam “delinear sua diferença, para que possam
ser reconhecidos, e vemos aparecerem os fenômenos recrudescentes de criação de identidades,
como os movimentos separatistas, bem como as lutas pelos direitos das minorias, e aí, os
contornos étnicos, sexuais, geracionais, históricos e culturais”
7
.
4
OSTROWETSKI, Sylvia. L’Écart Des Appartenances. In: RAGI, Tariq (dir.). Les Territoires de L’Identité.
Amiens: Licorne; Paris: L’Harmattan, 1999. Collection Villes Plurielles, p. 237 - 249.
5
WOODWARD, Kathryn. Identidade e Diferença: Uma Introdução Teórica e Conceitual. In: DA SILVA, Tomaz
Tadeu (organizador). Identidade e Diferença – A Perspectiva dos Estudos Culturais. 4ª edição. Petrópolis: Vozes,
2000, p. 21. A autora relaciona também o colapso da ex-União Soviética e do leste europeu como estimulador de um
contexto mundial favorável à emergência e contestação de identidades.
6
RAGI, Tariq. L’Identité Entre Permanence et Cohérence. In: RAGI, Tariq (dir.). Les Territoires de L’Identité.
Amiens: Licorne; Paris: L’Harmattan, 1999. Collection Villes Plurielles, p. 253 – 266.
7
FLORES, Maria Bernadete Ramos. Apresentação. In: SEVERINO, José Roberto. Itajaí e a Identidade Açoriana:
A Maquiagem Possível. Itajaí: Editora da Univali, 1999, p. 16.
16
Em Santa Catarina, a temática da identidade foi colocada como um problema pelos
governos e elites estaduais em vista da falta de identidade que o Estado possuía diante de uma
ocupação e permanência de populações de origem étnica diversificada. O Estado se constituiu a
partir de núcleos urbanos isolados no período colonial, fortalecidos posteriormente, com a criação
de novos cleos, no período de imigração estrangeira, constituindo-se regiões e microrregiões
praticamente independentes. O relacionamento dependente do Estado ao centro da economia
nacional comandado por São Paulo, a partir de 1930, e a ausência de uma metrópole ou
localidade central que fosse o ponto de convergência da rede de cidades, impedida pelo mesmo
processo, orientou o desenvolvimento econômico estadual para fora de sua área espacial, com
ligações internas muito tênues, expresso no esquema região localidade central ferrovia
porto, constituindo um Estado espacial e economicamente fragmentado e culturalmente diverso
8
.
Essa diversidade cultural era vista como um problema a ser superado pela ação dos governos
estaduais e de outras instituições, como o Instituto Geográfico e Histórico de Santa Catarina,
fundado em 1896 e responsável por unificar uma história do estado catarinense vinculada a
construção da identidade catarinense
9
. Uma tentativa importante de unificar o mosaico cultural
catarinense ocorreu no primeiro mandato de Esperidião Amin como governador do Estado (1983
1987), tomando a Guerra do Contestado (1912 1916) como o evento que poderia fornecer as
características do “homem típico” catarinense e a marca que Santa Catarina poderia ter. Segundo
Amin, “para criar a identidade de Santa Catarina, para expressar numa única palavra o que é o
8
SILVA, Etiene Luiz. O Desenvolvimento Econômico Periférico e a Rede Urbana de Santa Catarina. 1978.
Dissertação de Mestrado em Planejamento Urbano e Regional. UFRGS, Porto Alegre. SOUTO, Américo. Evolução
Histórico-Econômica de Santa Catarina: Estudo das Alterações Estruturais (Século XVII 1960).
Florianópolis: Centro de Assistência Gerencial – CEAG/SC, 1980.
9
SERPA, Élio Cantalício. A Identidade Catarinense nos Discursos do Instituto Histórico e Geográfico de Santa
Catarina. Revista de Ciências Humanas, volume 14, número 20. Florianópolis: Editora da UFSC, 1996, p. 63 – 79.
17
catarinense, podemos buscar no Contestado uma alternativa”
10
. Reafirmada como elemento de
seu programa eleitoral através da “Carta aos Catarinenses” na disputa para o governo do Estado,
que acabou vencendo, a proposta acabou sendo esquecida no decorrer de seu mandato em vista
de uma outra conjuntura política. A ocorrência de enchentes em Santa Catarina, especialmente no
Vale do Itajaí, em 1983 e 1984, no início de seu mandato, colocou uma situação nova que Amin
aproveitou para, no esforço de reconstrução do Estado, projetar-se nacionalmente e, no processo,
apresentar uma identidade catarinense adequada a seus interesses. Amin criou a Secretaria
Extraordinária da Reconstrução e passou a liderar uma campanha nacional de solidariedade aos
catarinenses atingidos e, ao mesmo tempo, disputar verbas federais para a reconstrução do
Estado. Méri Frotscher
11
narra como, a partir desta conjuntura de criação de um fato nacional e
da disputa de verbas federais, Amin utiliza um discurso que realça a capacidade de trabalho dos
catarinenses, exemplarmente enaltecida nos descendentes de alemães do Vale do Itajaí,
Blumenau na dianteira, difundindo uma “imagem única de Santa Catarina: a do estado alemão, de
povo trabalhador, onde a riqueza é igualmente distribuída”
12
. A transformação de Blumenau em
vitrine do Estado, no dizer de Frotscher, e a realização da primeira Oktoberfest em 1984
13
,
impulsionaram o surgimento de inúmeras festas municipais, primeiramente no Vale do Itajaí, e,
mais tarde, por todo o Estado, reconhecendo-se a diversidade cultural como vantagem de Santa
10
“Em Irani, Um Desfile Recorda a Guerra do Contestado”. O Estado, 16/09/1980, p. 17. Apud: AURAS, Marli.
Poder Oligárquico Catarinense: Da Guerra dos Fanáticos” do Contestado à “Opção Pelos Pequenos”. 1991.
Tese de Doutorado em Educação. PUCSP, São Paulo, p. 324. Para Amin, “a riqueza cultural de Santa Catarina é tão
vasta e tão marcante que impediu ao longo do tempo a formação de um ‘tipo’ do qual se possa dizer: Este é o
‘homem típico catarinense”. AMIN, Espiridião. O Homem do Contestado. In: Cadernos da Cultura Catarinense.
Ano I, julho a setembro de 1984. Florianópolis: Governo do Estado, p. 3.
11
FROTSCHER, Méri. Etnicidade e Trabalho Alemão: Outros Usos e Outros Produtos do Labor Humano.
1998. Dissertação de Mestrado em História. UFSC, Florianópolis, p. 24 – 48.
12
Ibid., p. 39.
13
FLORES, Maria Bernadete Ramos. Oktoberfest Turismo, Festa e Cultura na Estação do Chopp.
Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1997.
18
Catarina em uma conjuntura dominada pelo mercado do turismo, levando-se a afirmação de uma
identidade homogênea paradoxalmente construída a partir da diversidade cultural.
No império da imagem, na era do simulacro, do pastiche e da
mundialização da cultura, o Estado de Santa Catarina conseguiu compor
uma identidade para si. O que era dispersão, virou unidade. O que antes
constituía um problema para os governos e para os intelectuais que se
debatiam para enquadrar a dispersão as várias etnias que povoaram o
Estado num quadro coerente o qual desenhasse a identidade
catarinense, hoje constitui a sua peculiaridade no cenário nacional.
14
A emergência das disputas de identidade em Criciúma e a elaboração de uma nova matriz
de pertencimento para a cidade e seus habitantes se deram no interior desse movimento mundial e
nacional de ‘crises de identidade’, porém, guardando especificidades que são exploradas neste
trabalho, dividido em cinco capítulos. De um modo geral, tratou-se de demonstrar inicialmente o
quadro mais amplo do que se chamou cidade carbonífera, aquela sociedade saída do crescimento
populacional e urbano provocado pela exploração do carvão mineral na cidade e região, a partir
da Segunda Grande Guerra, e a consolidação de um imaginário social que tinha no carvão o seu
fundamento. Foi no interior desse imaginário urbano, em oposição a ele, ao mesmo tempo em
que compondo com ele, que se deflagraram outros processos de atribuição identitária que tiveram
na noção de etnicidade a sua ancoragem de pertencimento. Esses dois temas foram tratados nos
capítulos 1 e 2. Foi como crítica à cidade carbonífera e, ao mesmo tempo, como afirmação de
uma identidade urbana própria, que se iniciaram movimentos que confluíram para a atuação dos
governos municipais na década de 1970, em especial o primeiro governo de Altair Guidi (1977
1983), que promoveram diversas intervenções na cidade e foram atores centrais em seu processo
14
FLORES, Maria Bernadete Ramos. Apresentação. In: SEVERINO, José Roberto. Itajaí e a Identidade Açoriana:
A Maquiagem Possível. Itajaí: Editora da Univali, 1999, p. 11.
19
de transformação identitária, analisados no Capítulo 3. A identidade urbana baseada em noções
de pertencimento étnico emergiu e afirmou-se também a partir de uma releitura do passado de
Criciúma, e que perpassa todo o período histórico analisado, geradora de uma historiografia local,
analisada no capítulo 4, que realçou os feitos dos grupos étnicos presentes na cidade, que se
afirmaram no processo, e seus heróis, criando uma base histórica que assegurou a afirmação da
cidade étnica. A comemoração do Centenário de fundação da cidade pelos imigrantes italianos,
tema do último capítulo, acrescidos de outros grupos étnicos que se reconheciam como tal ou
assim foram nomeados, serviu de confirmação da nova identidade urbana, ao mesmo tempo em
que desencadeou uma rie de ações que se desdobraram na vida urbana, a Festa das Etnias entre
elas, e que tiveram a afirmação da etnicidade como seu fio condutor.
Mais especificamente, se analisa a transformação da identidade urbana de Criciúma no
período de 1945 a 1980. Procura-se mostrar a formação da cidade carbonífera, a partir do
tremendo crescimento da produção mineral durante a guerra e no imediato pós-guerra, e seus
atores principais compostos pelos trabalhadores mineiros e empresários mineradores, finalmente
consagrados no Monumento aos Homens do Carvão; mostra-se a problemática da diversificação
econômica da cidade carbonífera a partir de um discurso que se coloca como questionador da
realidade do carvão no espaço físico e no imaginário urbano; destaca-se as dificuldades de
afirmação dos discursos centrados na etnicidade emergentes a partir do imaginário do carvão e o
estabelecimento, apesar disso, de espaços próprios de afirmação dessa identidade a partir de
representações que valorizam o pertencimento ligado às origens e no espaço urbano, como a
formação do centro da cidade e a construção do Monumento ao Imigrante; evidencia-se a
circulação de imagens da cidade em revistas estaduais e nacional, em um período de transição de
identidades em fins da década de 1960 e início dos anos 1970, conectando-as com as ações dos
governos municipais na década de 1970 que tiveram uma atuação destacada na elaboração e
20
afirmação de uma identidade urbana em ruptura com o carvão; Identifica-se as narrativas que
informaram uma leitura da história de Criciúma, presentes em jornais e obras individuais ou
coletivas editadas, que informaram a proposta de cidade étnica e a fortaleceram diante do
imaginário urbano centrado no carvão; Apresenta-se a preparação e comemoração do Centenário
de fundação da cidade como um momento central de afirmação de uma nova cidade, baseada nas
intervenções urbanas promovidas pelo Governo Guidi e na afirmação do que se tem chamado
cidade étnica, presente no Monumento da Colonização.
O período histórico escolhido para análise – 1945/1980 - permitiu a verificação da
transformação de identidade urbana de Criciúma em processo. A Segunda Grande Guerra foi
tomada como marco inicial do período em vista de sua influência no aumento da produção
carbonífera do Sul de Santa Catarina e que forneceu o crescimento econômico e populacional das
cidades da região, sendo Criciúma a principal, permitindo a constituição da típica cidade
carbonífera e afirmação de representações vinculadas ao carvão. O final desse período,
representado pelo Centenário da fundação do cleo colonial italiano, é apresentado como um
primeiro fechamento desse processo de transformação da identidade urbana criciumense, capaz
de ter consolidado provisoriamente a cidade étnica, ao mesmo tempo em que significou um
impulso para o aprofundamento dessa identidade urbana, porém, não sem fraturas.
Calvino fala de uma cidade chamada Irene, que os habitantes do planalto avistam ao longe
e que magnetiza seus olhares e pensamentos, ocasionando conjecturas diversas sobre como a
cidade seria
15
. Diante da expectativa de Kublai Khan de que Marco mostre como é a cidade vista
da perspectiva dos que nela habitam, Calvino aponta para a impossibilidade dessa narrativa, em
vista de que as diferentes situações e possibilidades de visão produzem diferentes cidades. Irene é
15
CALVINO, Ítalo. As Cidades Invisíveis. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de São Paulo, 2003, p. 118
119.
21
uma cidade que muda a medida em que se aproxima dela. No fim das contas, sob o mesmo nome
de Irene a cidade abriga diferentes nomes que revelam cidades diversas, mas que são, na verdade,
a mesma cidade. O aproximar-se da cidade, como buscamos fazer neste trabalho, não teve a
intenção de revelar a verdadeira Irene vivida e pensada por seus habitantes, mas capturar
diferentes imagens que a cidade revelou a medida em que dela nos aproximamos, e que
expressam diversas possibilidades de nomeá-la, ainda que muitos de seus moradores gostassem
de que a cidade fosse chamada apenas por um nome.
CAPÍTULO 1
ELDORADO CATARINENSE
VIDA E MORTE DA CIDADE DO CARVÃO
A partir de 2004 o time do Criciúma Esporte Clube, então representante da cidade
no campeonato nacional da primeira divisão, teve como patrocinador o Sindicato Nacional
da Indústria de Extração do Carvão Mineral, com o lema Carvão Mineral – Energia
Nacional estampado em suas camisas. Financiado pelas empresas carboníferas da região,
praticamente todas com sede em Criciúma, o sindicato buscava revalorizar a atividade
carbonífera que lhe desse fôlego pelas próximas décadas, articulando-a a um projeto de
construção de pequenas e médias usinas termoelétricas próximas às minas, e, nesse projeto,
vinculando-se o carvão ao time do Criciúma, paixão de boa parte dos moradores da cidade
e região. O patrocínio, que implicou na modificação da tradicional camisa do Criciúma
Esporte Clube com o novo predomínio da cor preta, a cor do carvão, mereceu do cartunista
Tatá uma bem humorada crítica em sua tira de quadrinhos publicada no Jornal da Manhã de
14 de maio de 2004. Nesta tira, o novo uniforme do time, que deveria valorizar o carvão e
lembrar a todos a sua importância para a economia nacional, lembra na verdade “os tempos
23
da poluição do carvão”, numa inversão simbólica não prevista pelos patrocinadores,
denotando uma luta de representações em torno do carvão mineral.
Jornal da Manhã (Criciúma), 14/05/2004, p. 7.
Porém, o que é mais interessante na tira citada é a referência aos “tempos” do
carvão. Que tempos seriam esses? Ora, ainda que, na frase, os tempos do carvão estejam
conjugados à poluição, o que lhe um tom negativo, a própria presença do patrocínio do
carvão mineral nas camisas do time da cidade, estabelece, por um lado, a pujança
econômica do setor, capaz de patrocinar o clube, e por outro, a necessidade de conquistar
mentes e corações na cidade para que a situação da indústria carbonífera possa ser
semelhante àquela dos outros tempos, o do carvão. Diferentes representações do mesmo
contexto histórico, o dos tempos do carvão, remetem a diferentes interesses e percepções
presentes na cidade, a expressar processos históricos que a própria população citadina
vivenciou e que informou os diferentes olhares. De qualquer maneira, entretanto,
permanece o referencial dos tempos em que o carvão mineral forjou a economia e a cultura
da cidade e da região. O propósito deste capítulo é situar esse tempo em relação com a
cidade de Criciúma e os processos culturais, em termos de imaginários sociais e identidade
urbana, que tiveram o carvão como matriz.
24
A Formação da Cidade Carbonífera
Os tempos do carvão em Criciúma começaram efetivamente a partir da segunda
guerra mundial, quando a conjuntura internacional e nacional favoreceu a exploração do
carvão mineral. Ainda que o carvão tenha começado a ser explorado no local desde fins da
década de 1910, somente com o segundo conflito mundial se iniciaram processos sociais e
culturais que transformaram Criciúma em uma típica cidade carbonífera. O grande
crescimento da produção carbonífera brasileira no período, em especial catarinense,
explica-se pela conjugação de dois fatores, a substituição do carvão estrangeiro pelo
nacional que vinha sendo realizada desde décadas anteriores, mas que se acentuou em vista
da conflagração mundial, e a demanda de novas indústrias, com destaque para a indústria
siderúrgica impulsionada a partir da CSN e sua usina de Volta Redonda
16
. A constituição
da indústria siderúrgica como principal fonte consumidora do carvão mineral favoreceu a
produção carbonífera catarinense, a única a possuir carvão coqueificável, que teve sua
produção aumentada de pouco mais de duzentas mil toneladas em 1939 para mais de um
milhão de toneladas de carvão dez anos depois, em 1948. Durante todo o período que
estamos considerando como sendo o do carvão, em relação à Criciúma, Santa Catarina
respondeu pela maior parte do carvão produzido no Brasil, passando sua participação na
produção nacional de 20% em 1939 para quase 80% em 1962.
16
MARTIN, Jean-Marie. Processus D’Industrialisation et Développement Energétique du Brésil. Paris:
Institut des Hautes Études de L’Amérique Latine, 1966, p. 209.
25
A maior parte dessa produção concentrava-se em Criciúma, o que gerava um
impacto populacional e econômico muito grande sobre a pequena cidade nascida a partir de
um núcleo colonial fundado por imigrantes italianos em fins do século XIX. Os relatos de
que dispomos deste período põe lado a lado o vigor econômico trazido pelo carvão e a
pequena cidade então existente, como o produzido por Manif Zacharias, que chegou em
Criciúma em de maio de 1944
17
. Em suas memórias, publicadas na década de 1990,
Zacharias relata a impressão que teve da cidade ao chegar:
E Criciúma, em termos de desenvolvimento urbano, embora
pomposamente cognominada ‘Capital do Carvão’, era ainda
cidadezinha tímida, modesta, acanhada mesmo. Não se projetavam
suas lindes urbanas, em qualquer sentido, para mais de um
quilômetro da praça Nereu Ramos, que assim já se chamava seu
logradouro central. (...). Era a Criciúma bem provinciana, das
poucas ruas pavimentadas a macadame, esburacadas quase todas e
empoçadas em dias de chuva
18
.
O relato memorialístico localiza o ponto de comparação no presente daquele que
lembra, estabelecendo um padrão de cidade, a Criciúma de hoje, a partir do qual mede-se a
grandeza da Criciúma de ontem, tulo das memórias. As expressões “ainda cidadezinha” e
“era a Criciúma bem provinciana” apontam para uma outra cidade, a partir do agora,
ausente no tempo passado, mas impressa nos olhos do que rememora, e que informa a
17
Manif Zacharias nasceu em 5 de agosto de 1918, em Curitiba/PR. Formou-se em medicina e chegou em
Criciúma para trabalhar em uma das empresas do Grupo Jafet. Na cidade, casou-se com Dulce Rovaris.
ZACHARIAS, Manif. Criciúma – Vultos do Passado e Personalidades Contemporâneas. Criciúma;
edição do autor, 2000, p. 573.
18
ZACHARIAS, Manif. Minha Criciúma de Ontem. Criciúma: Edição do Autor, 1997, p. 11.
26
avaliação que o autor faz do seu passado
19
. Por outro lado, o autor afirma um contraste que
ele localiza no próprio tempo da lembrança e estabelece como uma atribuição que a
Criciúma de ontem fazia de si mesma: o pomposo cognome de ‘Capital do Carvão’ a
contrastar com sua modesta condição de cidadezinha. Nascido da avaliação subjetiva que
os habitantes e autoridades faziam do processo de crescimento urbano que estava ocorrendo
diante de seus olhos, a partir da exploração do carvão, o título de ‘Capital do Carvão’,
atribuído a/pela cidade em 1948, e de ‘Metrópole do Carvão’, também comum nesta época,
remetem ao forjamento de representações sociais que vinculam, nesse período, Criciúma ao
progresso e ao carvão.
Essas representações aparecem mais explicitamente em um outro relato feito por um
outro memorialista, Sebastião Netto Campos, chegado em Criciúma em 10 de maio de
1950
20
, ao afirmar que “a população das cidades e das vilas operárias crescia. O comércio
crescia, o dinheiro corria, os negócios prosperavam. Era um agito, uma compulsão coletiva.
Minas eram abertas em qualquer afloramento, em cada encosta, em cada plano inclinado”
21
.
Ainda que existam seis anos de diferença no tempo de chegada na cidade dos
autores, período de efetivo crescimento urbano propiciado pela exploração do carvão no
contexto da segunda guerra mundial, não foi esse crescimento suficiente para tirar Criciúma
de sua condição de cidade acanhada. Por outro lado, para a avaliação de muitos de seus
habitantes, acostumados a vida rural, o processo de crescimento era efetivamente imenso.
19
“A Criciúma de hoje, o mudada, tão crescida, já adulta, não a reconheço mais. (...). Foi por vê-la assim
tão alterada, tão diferente, tão dos outros, e também para que ela não se perdesse de vez nas brumas do
esquecimento, que eu ousei contar parte do que foi minha Criciúma de ontem”, Ibid., p. 106.
20
Sebastião Netto Campos nasceu em Catalão/GO, em 1º de janeiro de 1925. Engenheiro químico, chegou em
Criciúma, vindo de Curitiba/PR, para trabalhar no Departamento Nacional de Produção Mineral DNPM.
ZACHARIAS, Manif. Criciúma – Vultos do Passado e Personalidades Contemporâneas. Criciúma;
edição do autor, 2000, p. 466.
21
CAMPOS, Sebastião Netto. Uma Biografia Com Um Pouco de História do Carvão Catarinense.
Florianópolis: Insular, 2001, p. 31.
27
Na verdade, os relatos existentes de pessoas que chegavam em Criciúma neste período de
expansão da produção carbonífera no município, no pós-guerra, conjugavam a constatação
do tamanho modesto da cidade e sua condição de uma típica cidade de interior, com o
crescimento populacional, o movimento e circulação de riquezas, as oportunidades de
negócios que a crescente indústria carbonífera possibilitava.
Esses relatos, como impressões subjetivas, retiram sua força do processo real de
crescimento urbano promovido pela exploração carbonífera no período. A população do
município cresceu bastante no período, praticamente dobrando de 1940 a 1950, passando
respectivamente de 27.753 a 50.854 habitantes, chegando a 61.975 em 1960 e 81.451
habitantes em 1970. Entretanto, se situado no contexto do crescimento populacional do sul
e do próprio Estado de Santa Catarina ver-se-á que o impacto do crescimento populacional
da cidade diminui. No mesmo período, a participação da população do Sul do Estado no
total de Santa Catarina diminuiu de 20,73 em 1940 para 16,71 em 1970
22
, mostrando que
de certa forma o fenômeno de crescimento populacional foi delimitado a determinadas
cidades da região carbonífera, em especial Criciúma. Ao mesmo tempo, a participação do
oeste catarinense, por exemplo, cresceu de 7,61 em 1940 para 19,59 em 1970. Por outro
lado, se o crescimento relativo da população total do sul do Estado no período 1940 1950
foi acima da média catarinense, 47,37% contra 32,77%, para o período 1960 1970 ficou
abaixo da média catarinense, 23,63% contra 37,00%, e brasileira, 33,10%
23
.
De qualquer forma, os dados acima pretendem, por um lado, relativizar o
crescimento populacional provocado pela atividade carbonífera, e por outro demonstrar que
22
MIRA, Marly A. F. B. A Evolução Sociodemográfica de Santa Catarina. In: CORRÊA, Carlos Humberto
(org.). A Realidade Catarinense no Século XX. Florianópolis: IHGSC, 2000, p. 131. É verdade, no entanto,
que de 1940 a 1950 houve um aumento de quase três pontos na participação populacional do sul.
23
Ibid., p. 132.
28
o fenômeno foi notadamente local, no contexto do Sul do Estado, implicando num
deslocamento de populações dos municípios vizinhos da área carbonífera, populações que
se dedicavam principalmente à pesca e a agricultura. O Sul do Estado era, no período em
foco, maciçamente rural, ainda que em processo de urbanização, tendo uma população rural
de 81,41% em 1940 e 61,37% em 1970
24
. Criciúma, por outro lado, que teve um importante
processo de urbanização, somente teve a população urbana maior que a rural na década de
1960, quando, no censo de 1970, apresentou uma população urbana de 55.397 habitantes e
rural de 26.054 habitantes.
Ainda que tenha envolvido um número pequeno de pessoas, se comparado às
populações das grandes cidades brasileiras da época e aos movimentos de deslocamento
populacional que ocorriam em outras áreas, o crescimento populacional e urbano de
Criciúma atingiu uma repercussão maior na medida em que se situou em uma área
predominantemente rural, o Sul de Santa Catarina, e concentrou-se principalmente na
década de 1940. O movimento de circulação de pessoas e de mercadorias, gerador de
oportunidades de trabalho e de negócios, propiciou um sentimento na população local de
participação em um progresso até então impensável. É essa memória do crescimento
urbano e populacional referida a década de 1940 que se consolidará em um imaginário
social que conjugou carvão e progresso. Desta forma, elaborou-se um discurso que opera
através do contraste entre o acanhamento da cidade e seu pujante crescimento, de tal forma
que o progresso trazido pelo carvão fica destacado. O contraste entre a ‘metrópole do
carvão’ e a modesta cidadezinha pode ser entendido pela reelaboração, no nível do
imaginário, de um processo social real que era sentido em ruptura com o mundo até então
24
Ibid., p. 134.
29
estabelecido. A cidade do carvão nesse período, pequena e modesta ao estrangeiro que a via
pela primeira vez, assumia uma outra dimensão tão logo o mesmo estrangeiro entrasse em
contato com o dinamismo do mundo social do carvão e com a elaboração imaginária que o
percebia.
Os artigos da Tribuna Criciumense que tratam dos problemas da cidade nas décadas
de 1950 e 1960, período ‘clássico’ da cidade do carvão
25
, iniciam normalmente pela
afirmação do grande crescimento que Criciúma teve no período, mesmo quando abordam
assuntos não diretamente envolvidos com a temática. Era uma espécie de ritual discursivo,
necessário para lembrarem aos leitores que, no fim das contas, ainda que a cidade tivesse
inúmeros problemas e que, eles, os jornalistas, não dariam trégua aos responsáveis,
deveriam os leitores se lembrar que habitavam uma cidade que crescia. E mais, que crescia
aceleradamente, como na matéria abaixo:
A nossa cidade vem atravessando uma fase de franco
desenvolvimento, talvez dantes nunca verificada. As constantes
transformações em seu panorama urbanístico, a série de
melhoramentos introduzidos começam a dar-lhe foros de cidade
moderna. Efetivamente, Criciúma tem crescido admiravelmente
nestes últimos anos.
26
O discurso estabelecido na cidade apontava para a causa desse crescimento de
Criciúma como sendo a atividade carbonífera. A ênfase do autor na expansão econômica e
25
Denomino como ‘período clássico’ da cidade carbonífera aquele situado entre a Segunda Guerra Mundial e
a cada de 1970, quando a atividade carbonífera se tornou predominante na cidade e região. Na década de
1970, o questionamento do carvão no espaço urbano, a emergência de outros esquemas de identificação
coletiva e a diversificação produtiva alteraram a relação das cidades da região com a economia e cultura do
carvão.
26
“A Cidade e Seu Progresso” (A Cidade em Revista – Ézio Lima). Tribuna Criciumense, 16/07/1956, p. 8.
30
urbana da cidade no período, o leva a utilizar palavras como “desenvolve”, “evolução
progressiva”, “progresso” e “crescimento”. Conjuga, como era próprio desse discurso, o
carvão com o progresso.
Esse discurso tornou-se, assim, um relato padronizado quando se quer explicar a
maneira pela qual Criciúma tornou-se a maior cidade do sul de Santa Catarina. A Cidade
passou a depender economicamente do carvão mineral e a ser identificada com ele, como
também sua população, rompendo de certa forma com os esquemas identitários mais
presentes em Santa Catarina, em geral articulados com elementos étnicos, “açorianos” ou
“europeus”.
A representação social que conjugava todos esses elementos era aquela do
Eldorado. A relação de Criciúma com a extração do carvão nesse período se deu sob a
égide dessa imagem de desejo. Essa categoria ambígua, utilizada por Walter Benjamin para
marcar o caráter ambivalente do imaginário social, pode ser pensada, em relação ao
Eldorado, para situa-lo como representação que reforça o caráter ideológico do mundo
social, mas que trás consigo, ao mesmo tempo, sonhos de emancipação da condição
humana
27
.
Situada como o lugar por excelência de crescimento econômico e populacional em
Santa Catarina, Criciúma é identificada com o reino mitológico que remonta a época do
descobrimento, lugar imaginário situado em alguma parte da América, onde haveria
riquezas fabulosas em ouro e pedras preciosas a esperar pelos viajantes que possuíssem
27
BOLLE, Willi. Fisiognomia da Metrópole Moderna: Representação da História em Walter Benjamin.
2ª edição. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000, p. 65.
31
coragem suficiente para arriscar-se na floresta e, assim, desfrutar de suas riquezas
28
. Esse
sonho de coletividade aparece inúmeras vezes associado à Criciúma, como na passagem
seguinte, quando Manif Zacharias explica a denominação de Rádio Eldorado Catarinense,
dada por José de Patta, médico local, ao primeiro serviço radiofônico da cidade:
E Criciúma transformava-se, paulatinamente, em ponto de
confluência de muitos aventureiros sem maiores responsabilidades,
que aqui chegavam em busca do dinheiro que propalava-se
fora corria a rodo por estas bandas. O Doutor De Patta,
comentando o fato, afirmava repetidamente que esta nossa terra
estava se transformando num autêntico ‘Eldorado’, similar ao dos
filmes do far west norte-americano. Daí a sua idéia de dar
justamente esse nome – Eldorado – à sua criação radiofônica.
29
A localização imaginária do Eldorado em lugar indefinido permitia situá-lo em
qualquer lugar da América onde se abriam possibilidades de enriquecimento. A referência
ao oeste norte-americano se comporta um certo estranhamento causado pela presença, na
cidade, de pessoas desconhecidas e aventureiras, por outro lado, remete também para um
lugar que ofereceu a representação concreta da ambição coletiva americana, divulgada por
todo mundo através dos filmes de faroeste. Juntando poder da aventura e corrida do ouro,
portanto, a possibilidade de saída de um pesado cotidiano, o far west, mais longínquo e
simbólico dos oestes norte-americano, foi também uma atualização do mito do Eldorado,
multiplicado em seu poder de influência através da posterior indústria do cinema
30
. Como
far west de Santa Catarina, o Eldorado Catarinense, Criciúma se atribuía uma qualificação
28
MANGUEL, Alberto et GUADALUPI, Gianni. Eldorado. In: Dictionnaire des Lieux Imaginaires. Arles:
Actes Sud, 1998.
29
ZACHARIAS, Manif. Minha Criciúma de Ontem. Criciúma: Edição do Autor, 1997, p. 25.
30
LAGAYETTE, Pierre. L’Ouest Américain – Réalités et Mythes. Paris: Ellipses, 1997.
32
que a vinculava a produção de riquezas capaz de atrair pessoas. Essa riqueza era o carvão,
chamado de ‘ouro negro’:
O consumo do carvão de pedra cresceu então, e a indústria
carbonífera tornou-se um dos esteios da economia regional.
Famílias inteiras deixavam os municípios vizinhos e se transferiam
para o novo ‘Eldorado’ do ouro negro.
31
O carvão, o ‘ouro negro’ do Eldorado Catarinense, exercia uma função
determinante no sonho coletivo dessa época, tal como o ouro no mito do Eldorado
americano. Se o Eldorado é uma atualização das versões medievais do paraíso terrestre,
lugar de fabulosa abundância e felicidade, situado na terra em um local desconhecido,
necessitou ele cobrir-se de um sentido monetário, representando pelo ouro, adaptando-se as
novas condições do capitalismo nascente do século XVI. O carvão, como ‘ouro negro’,
exercia a função de produtor de riquezas, possibilitando a acumulação de capitais por parte
das empresas carboníferas e o enriquecimento de algumas famílias. Ao mesmo tempo,
permitia a circulação de riquezas e de pessoas, propiciando as condições para o crescimento
da cidade. Como sonho coletivo, o Eldorado criciumense expressava a mitologia do
progresso.
A “confluência de muitos aventureiros” para a cidade, de que nos fala Zacharias, foi
um dos elementos centrais para o estabelecimento dessa imagem sonho em relação à
Criciúma. No mito do Eldorado, o verdadeiro valor das riquezas, ouro e pedras preciosas, é
revelado pelos forasteiros, enquanto os nativos o desconhecem, que seus habitantes as
utilizam apenas para decorar seus palácios e as consideram inferior à comida e à bebida. Na
31
“Um Pouco de Nossa História II”. Tribuna Criciumense. 14 – 21/11/1964, p. 3.
33
Criciúma do carvão os forasteiros possuíram um papel destacado desde o início, quando
operários especializados estrangeiros chegaram para as minas na época da Primeira Guerra
Mundial, até posteriormente, por ocasião do efetivo crescimento da produção carbonífera,
que requereu a presença de inúmeros profissionais necessários ao funcionamento do setor e
inexistentes na então pequena cidade. São eles destacados no relato de Sebastião Netto
Campos, ele próprio um forasteiro:
Em Criciúma, e na região carbonífera que a circunda, eram os
forasteiros engenheiros, médicos, advogados, contadores e
contabilistas, comerciantes e prestadores de serviços os seus
propulsores.
32
Manif Zacharias, José de Patta e Sebastião Netto Campos, como tantos outros, são
forasteiros na Criciúma carbonífera, profissionais que aportaram na cidade, em geral se
casaram com moças das famílias locais e em torno do carvão fizeram suas vidas. Foram
integrados na vida local das elites, em vista de suas posições sociais, ainda que não sem
alguma resistência
33
. No entanto, foram outros forasteiros, em maior número que os
mencionados por Sebastião Netto Campos, que faziam a cidade do carvão efetivamente
funcionar.
A situação de vida dos forasteiros chegados ao Eldorado Catarinense não era a
mesma entre todos. A maioria, que veio para trabalhar nas minas, precisou experimentar o
progresso de outra maneira. No ano de 1957, a Câmara dos Deputados constituiu uma
32
CAMPOS, Sebastião Netto. Uma Biografia Com Um Pouco de História do Carvão Catarinense.
Florianópolis: Insular, 2001, p. 32.
33
Manif Zacharias narra a resistência do pároco a seu noivado com a filha de uma das famílias locais, em
vista de ser um “moço de ascendência não italiana, ainda não de todo afeito aos costumes locais e,
sabidamente, maçom” (p. 32).
34
comissão de inquérito com o objetivo de “apurar as denúncias feitas por jornais da Capital
da República, entre eles, O Globo, Diário de Notícias, O Jornal, Correio Radical, Diário da
Noite, Luta Democrática, Gazeta de Notícias, quanto às condições de trabalho nas minas de
carvão de Santa Catarina”
34
. Em seu relatório, de 27 de janeiro de 1959, a comissão
informa que visitou a região carbonífera de Santa Catarina, portos e instalações de
beneficiamento do carvão, desceu às minas, e escutou técnicos, administradores, mineiros
antigos e recentes, mulheres, prelados e professores, para formar uma opinião sobre as
condições de vida e trabalho dos operários do carvão na região. Em seu relato, a comissão
apresenta diversos problemas sociais da região carbonífera, entre eles as condições de
habitação das famílias mineiras:
(...) construídas de madeira, sujas, mal conservadas e cheias de
trinchas por onde os ventos reinantes rodopiam e pelas quais
podemos divisar o interior das casas, como tivemos ocasião de
verificar por solicitação dos mineiros: se no verão tais casas têm
condições de habitabilidade, como suportá-las assim esburacadas
no rigoroso inverno de Santa Catarina, quando muitas vezes é
mister aquecimento artificial? Não possuem serviços sanitários,
água encanada e esgotos. Além de tudo a água que os mineiros
bebem não sofre qualquer tratamento sanitário. o fato das casas
não possuírem água e esgoto, marca o grau de pauperismo desses
operários, sujeitos eles e suas famílias, em face da falta de água
34
BRASIL. Resolução 88, de 29/03/1957. Diário do Congresso Nacional, Seção I, 56, p. 1675.
35
potável e esgoto, a desinteria, tifo e verminoses. Quanto às
habitações, este foi o panorama encontrado.
35
A comissão cita relatório de Jorge Lacerda, dico que visitara o município de
Lauro Muller em 1948, e que constatara as mesmas condições de habitação operária, sem
que nenhuma mudança significativa houvesse sido feita até por ocasião da visita da
comissão em 1957. Eram as mesmas “habitações de madeira enfileiradas, totalmente pretas,
pois eram pintadas de piche (sic). Na paisagem nenhum jardim, nenhuma flor. Carvão por
toda a parte: no chão, nos rostos, nas ruas, nas paredes, nos pulmões. A tuberculose vai
ceifando inúmeras vidas”.
36
Carvão por toda parte. O mesmo carvão que fazia o dinheiro correr e os negócios
prosperarem gerava também uma condição de vida miserável para a maioria dos envolvidos
naquela atividade econômica. A chegada ao Eldorado Catarinense transformava-se numa
autêntica descida aos infernos, como em uma metrópole européia do século XIX,
especialmente Londres, cujos relatos sublinham as trágicas condições das habitações das
áreas operárias da cidade
37
. A expansão combinada e desigual do capitalismo para áreas
periféricas, como é o caso do Brasil, e em especial da região carbonífera catarinense, gerou
condições de vida das camadas populares semelhantes, em áreas de industrialização,
àquelas dos operários europeus de outras temporalidades. A paisagem da região carbonífera
35
BRASIL. Projeto de Resolução nº 186, de 27/01/1959. Diário do Congresso Nacional, Seção I, 29/01/1959,
p. 741.
36
Ibid., p. 741.
37
BRESCIANI, Maria Stella M. Londres e Paris no Século XIX: O Espetáculo da Pobreza. edição. São
Paulo: Brasiliense, 1992.
36
tornou-se semelhante àquela descrita por Émile Zola em Germinal
38
, juntando tempos e
espaços diferentes através das mesmas características sociais e culturais.
Como era possível juntar os discursos sobre o progresso com condições de
habitação e vida tão precárias? Isso era feito através de uma operação intelectual que
ressaltava o preço que se devia pagar pelo progresso, sendo que este era percebido como
um ideal a ser alcançado, capaz de gerar crescimento para as pessoas, as cidades e a região,
mas que possuía características nefastas que o acompanhavam em seu devir. Essa operação
do preço do progresso aparecerá com recorrência em relação aos problemas urbanos de
Criciúma, quando esses passam a ter visibilidade. Isto pode ser percebido no mesmo relato
citado acima em que Sebastião Netto Campos elogia o crescimento das cidades mineiras,
aonde o dinheiro corriam e os negócios prosperavam. No parágrafo seguinte ele descreve as
vilas operárias junto às minas, com suas casinhas de madeira, sem água ou energia elétrica,
“um progresso desordenado que acabou por criar e deixar seqüelas que perduram até
hoje”.
39
É o preço do progresso. “Mas diz ele era o progresso de toda a região e que fez
de Criciúma a cidade lo que é”. O progresso aparece como um objetivo a ser atingido, e
em sua avaliação ele o foi, independente do preço que se tenha que pagar por ele. É que
nem todos pagavam.
Os Construtores da Cidade Carbonífera
38
ZOLA, Émile. Germinal. Tradução de Eduardo Nunes Fonseca. São Paulo: Hemus, 1982.
39
CAMPOS, Sebastião Netto. Uma Biografia Com Um Pouco de História do Carvão Catarinense.
Florianópolis: Insular, 2001, p. 31 e 32.
37
Os forasteiros chegavam em grande número vindos das cidades e vilas da própria
região sul de Santa Catarina, na imensa maioria agricultores e pescadores. E chegavam à
cidade para serem mineiros. A Criciúma do carvão possuía no centro da praça principal da
cidade um monumento, denominado “aos homens do carvão”, que tinha como principal
elemento a estátua de um mineiro com seus instrumentos de trabalho. Os mineiros eram o
principal tipo de trabalhador na cidade carbonífera e em torno dessa figura elaborou-se uma
série de representações sociais que passaremos a explorar tomando como fonte poemas e
crônicas que apareceram no jornal local, Tribuna Criciumense, durante o período ‘clássico’
do carvão.
O primeiro poema a aparecer no jornal é assinado por José Tito Silva
40
, uma
homenagem ao mineiro das minas de carvão da região e de Criciúma em particular. Através
do poema busca o autor mostrar todo o sacrifício do mineiro e os frutos de seu trabalho. O
trabalho que o mineiro executa nas minas, diz o autor, é cansativo e perigoso:
Descalço, calça e camisa,
Às vezes de peito nu,
Co’a cara e as mãos em negrura
Da poeira desprendida,
Do solo vai extraindo
Em trabalhos cansativos
Todo o perigo enfrentando...
Essa particularidade do trabalho do mineiro, que se fundamenta na afirmação de que
seu trabalho não é qualquer trabalho e, assim, o mineiro não é qualquer trabalhador, assenta
suas raízes em dois aspectos do trabalho nas galerias do carvão que são sempre ressaltados,
40
“A Balada do Ouro Negro” (José Tito Silva). Tribuna Criciumense, 31/10/1955, p. 2.
38
a dureza e a periculosidade, extraindo-se daí duas qualidades que são louvadas no
trabalhador mineiro: seu sacrifício e sua coragem.
Assim, é exatamente através deste trabalho estafante e perigoso que o mineiro
arranca das “profundas galerias” o carvão, o ouro negro do tulo do poema, e garante o
crescimento das cidades do sul do Estado, que são, no entanto, apresentadas como frutos do
seu trabalho, mas também como resultado da exploração do carvão. Na verdade, o autor
reveza no poema as referências ao progresso das cidades da região como fruto do carvão e
do mineiro. Na referência abaixo é possível ver a maneira como isso é apresentado:
Ouço teus cantos mineiro,
Vejo tua obra, teus frutos,
Pois as cidades do sul
Às noites se iluminam
E agora estão crescendo
Graças a esse ouro negro
Que tu tiras das cavernas
Das galerias escuras.
O crescimento das cidades do sul nos é apresentado como um dos frutos do trabalho
do mineiro, que tira o ouro negro das cavernas. No entanto, a expressão “graças a esse ouro
negro” remete o crescimento econômico das cidades, na verdade, como dependente da
atividade carbonífera, isto é, é o carvão que propicia o progresso da região, sendo o mineiro
louvado no poema exatamente porque seu trabalho é trazer o carvão à superfície e propiciar
a sua exploração. O carvão é a matriz representacional a partir do qual o mineiro é
elogiado. Em outra passagem, no entanto, no final do poema, Criciúma é apresentada
explicitamente como obra do mineiro:
39
Essa cidade que vês
A capital do carvão
De arranha – céus e cinemas
Com hospitais e aeroporto
Com escolas e comércio
A cidade do futuro
É tua obra mineiro.
O poeta apresenta várias características de cidade grande atribuindo-as a Criciúma:
arranha céus, aeroporto, cinemas, hospitais, e vincula a construção da cidade ao trabalho
do mineiro. Ora, a caracterização do progresso da região como sendo dependente do
trabalho do mineiro faz-se através de uma operação discursiva que busca retirar dela a sua
radicalidade, na medida em que a homenagem se faz ao mineiro, individualmente. Não se
aponta no poema para uma atividade coletiva, do conjunto do grupo social. Os mineiros são
tratados individualmente, de tal maneira que ainda que se caracterize muito
apropriadamente o trabalho difícil que os mineiros executam, é ele louvado enquanto
indivíduo. Essa operação impede que apareça no poema temas vinculados às lutas sindicais,
por exemplo. As condições de trabalho são difíceis, mas o máximo que pode aparecer no
poema é o “canto sofredor” do mineiro e a sua qualificação de “homem forte” e “mineiro
modesto”. Sofredor, forte e modesto como qualidades que caracterizam o mineiro do
poema e finalmente apontam para a sua resignação. Não é a toa que o autor faz referências
aos “sinos que tocam na igreja” e a Deus que “hoje te agradece”, como a indicar que esse
trabalho penoso não ficará sem recompensa, ainda que seja ela remetida para uma outra
existência. Desta forma, opera-se uma despolitização do poema, ainda que se trate nele, de
maneira muito interessante, do trabalho e dos frutos do trabalho dos mineiros.
40
Uma outra linha de interpretação aponta para a representação que o autor faz da
natureza em relação com a atividade carbonífera. O autor utiliza expressões provenientes da
relação do homem, pelo trabalho, com a natureza para caracterizar o trabalho mineiro,
como “frutos”, “arrancá-lo”, “vês crescendo”, “trabalho fecundo”. O mineiro é quase um
agricultor a colher o carvão nas profundezas da terra. Ora, o carvão é também um elemento
natural e essa sua apresentação agrícola e, ao mesmo tempo, capaz de gerar crescimento
econômico para as cidades da região, nos mostra que o autor está trabalhando a partir de
representações que remetem para um tempo imaginário, quando o homem dependia da
natureza, mas também tinha com ela uma relação mais harmoniosa. O autor deixa bem
claro que esse tempo não mais existe, ao menos para o mineiro, que precisa realizar seu
extenuante trabalho. Na verdade, é exatamente o trabalho do mineiro que garante aos outros
a possibilidade de usufruírem o fruto da natureza, no caso o carvão. No início do poema ele
afirma que “o homem sua e trabalha para arrancá-lo das minas!...”, lembrando o veredicto
divino sobre o homem que comeria do suor do seu rosto. O mineiro é louvado por ter
recaído sobre si a sentença divina, suando seu rosto para todos comerem ou sendo expulso
do paraíso para que os outros pudessem ali permanecer. É o sonho edênico que está na base
dessa representação que o poema ajuda a pôr em circulação. Ou mais exatamente a
reapresentação do sonho edênico e a centralidade do trabalho na sociedade capitalista, sem
o qual a acumulação de riquezas não se opera. O sonho reaparece a partir da representação
do progresso, como tempestade que sopra do paraíso, no dizer de Walter Benjamin, e que
acumula um amontoado de ruínas que cresce até o céu sobre o solo da cidade carbonífera
41
.
41
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1985,
p. 226.
41
Desta forma, o trabalho mineiro é reconhecido como a base através da qual a
sociedade sul-catarinense é construída, porém, a forma naturalizada e abstrata como o tema
é tratado no poema esvazia esta afirmação de toda radicalidade que ela poderia conter.
É o que ocorre, de uma outra maneira, em um poema de Pedro Bernardino
42
.
Quando se seu título pela primeira vez, bastante inusitado, se tem a impressão de que se
trata de um escrito de denúncia social. No entanto, o sentido de “Os Escravos do Século
XX” vai noutra direção, como um olhar mais pormenorizado demonstra. Isso provoca uma
espécie de contraste entre o título e o corpo do poema, gerando uma sensação de que um é
inadequado em relação ao outro. Entretanto, é através do poema que o sentido do título se
esclarece.
Louva o autor, na primeira estrofe, o trabalho dos mineiros “tirando o produto
precioso; Para a nossa vida salvar”. O produto precioso a que se refere o autor é,
evidentemente, o carvão. É a retirada do carvão que salva a vida do autor e dos eventuais
leitores (“nossa vida”), a demonstrar a necessidade imperiosa do trabalho mineiro, sem o
qual a vida de autor e leitores não existiria, a dizer, as cidades e populações da região
carbonífera. É com base nesta necessidade, afirmada no primeiro verso, que se estabelece a
comparação entre os escravos e os mineiros. Assim, como a sociedade escravocrata devia
sua sustentação e existência ao trabalho dos escravos, da mesma forma deve a sociedade da
região carbonífera sua existência ao trabalho dos mineiros, os novos escravos do culo
XX. Essa afirmação da necessidade do trabalho mineiro não se a partir da noção de que
é esse trabalho que construiu a riqueza das cidades da região carbonífera, como seu fruto,
como é o caso do poema anterior, mas apenas reconhece a sua necessidade social para a
42
“Os Escravos do Século XX” (Pedro Bernardino). Tribuna Criciumense, 17/03/1958, p. 2.
42
sociedade da região. Isso fica claro na segunda estrofe, quando o alcance social do poema
mostra a sua limitação, ao falar em auxiliar e ajudar os mineiros, o máximo a que o autor
chega. Não é a condição de trabalho dos mineiros, comparada a de escravos como o título
parece sugerir, que é apontada no poema, mas a necessidade de seu trabalho para o
funcionamento da sociedade regional.
O trabalho dos mineiros, e o autor é um dos poucos que utiliza a palavra no plural, é
tomado como “gran (sic) exemplo”, a quem se deve tributar “honras”, em vista de seu
esforço. É a sociedade do trabalho que aqui se afirma, trabalho gerador de progresso, como
quando fala em trabalhar para “levar nossa terra à frente”. O motivo pelo qual os mineiros
trabalhariam é apresentado pelo autor como sendo o amor a sua cidade, do autor e dos
mineiros, Criciúma, sob o lema de “salve a Capital do Carvão”.
O aparecimento de um outro poema ao mineiro em 1956 teve por motivação o
primeiro de maio
43
. No poema o mineiro é apresentado como um “herói desconhecido” em
vista da “vida dura e cruel...” que leva, não obstante isso entra “nas profundezas das
minas”. O poema faz alusão ao tema das trevas, ao afirmar que o mineiro não vê o sol e tem
a escuridão das galerias como sua companheira inseparável”. Entretanto, é essa mesma
escuridão que o levará um dia à “sepultura”. O autor compara a morte com a galeria escura,
equivalendo a mina e a sepultura, para afirmar a dupla condição da mina na vida do
mineiro, de um lado o lugar em que ele pode ganhar o “pão de cada dia” e, de outro, o lugar
irremediável de sua morte (“que te levará algum dia à sepultura”). uma certa fatalidade
na condição do mineiro: ele sabe que a mina o levará à morte, mas permanece nela, como
43
“Mineiro Homenagem ao 1
o
de Maio” (Romeu Lopes de Carvalho). Tribuna Criciumense, 02/05/1956, p.
6.
43
estando antecipadamente em sua sepultura. Essa talvez seja a condição de seu heroísmo,
com que se abre o poema.
O fechamento do poema o liga ao primeiro de maio, quando o autor afirma que o
mineiro merece “mais conforto para que tu possas viver mais feliz”, dando-lhe um caráter
de reivindicação de melhoria, da vida do mineiro, ainda que limitada. Não sabemos
exatamente a que se refere o autor quando trata do “conforto”, se às condições de trabalho
nas galerias ou a melhoria das condições domésticas. Talvez as duas coisas. No terceiro
verso o autor se refere a família do mineiro, sua mulher e filhos, a sugerir que talvez se trate
efetivamente de conforto em sua casa. Isso, em assim sendo, não alteraria a condição de
sepultura das galerias onde o mineiro era obrigado a trabalhar, o que talvez desbotasse no
poema o seu heroísmo. De qualquer maneira, a impressão que se tem é que o tema do
mineiro herói contribui para justificar socialmente as condições de trabalho nas galerias.
Era exatamente porque o mineiro era um herói, que as condições das galerias não
precisavam ser modificadas. Algo que, de certa maneira e sem que o autor perceba, o
poema reforça.
O Monumento da Cidade do Carvão
Esse discurso que os poemas apresentam em relação aos mineiros, o do herói
trabalhador, parece ser o mesmo que foi estabelecido na edificação do Monumento aos
Homens do Carvão, cujo elemento mais visível é um mineiro com seus instrumentos de
trabalho. Construído no centro da praça da cidade, o monumento é o principal símbolo da
cidade carbonífera, a expressar a alta posição que o imaginário do carvão havia adquirido
44
em relação à identidade urbana de Criciúma. Buscaremos explorar o conjunto de
significações que ele evoca, a partir da conjuntura de sua construção e dos elementos
presentes no próprio monumento. A principal fonte de informações sobre o monumento,
desaparecido no início na década de 1970, é a parte histórica da obra Criciúma: Amor e
Trabalho, elaborada por José Pimentel e Mário Beloli, editada em 1974 pela Prefeitura
Municipal de Criciúma na gestão do prefeito Algemiro Manique Barreto
44
.
A construção do monumento parece ter sido uma iniciativa da igreja católica e da
indústria carbonífera. O Monumento foi inaugurado em 29 de dezembro de 1946, no centro
da praça Nereu Ramos, a principal de Criciúma, por ocasião do Congresso Eucarístico do
Sul do Estado de Santa Catarina, realizado na cidade de 25 a 29 de dezembro daquele ano,
acontecimento de grande repercussão social e política. José Pimentel e Mário Beloli narram
assim a repercussão do Congresso:
Foi sem favor nenhum, acontecimento de repercussão nacional,
com a emissão de selo e a inauguração do monumento
comemorativo do 33º aniversário da implantação, no sul
catarinense, da indústria carbonífera.
45
Através do monumento conjugaram-se os esforços da igreja católica, na realização
do Congresso Eucarístico, e dos empresários do carvão, em comemoração à implantação da
indústria do carvão em Criciúma, no sentido de atrelarem os trabalhadores mineiros,
numerosos e em crescimento naquela conjuntura, a um projeto de combate ao comunismo,
criando uma espécie de salvaguarda ideológica a influências esquerdistas através da
44
PIMENTEL, José e BELOLLI, Mário. Criciúma – Amor e Trabalho. Itajaí: Edições Uirapuru, 1974.
45
Ibid., p. 38.
45
reafirmação do catolicismo e do reconhecimento da importância do operário mineiro,
presente na colocação da estátua no pedestal. Na verdade, a julgar pela correspondência
enviada por Nereu Ramos ao prefeito de Criciúma, quando afirma que havia tomado
conhecimento do “programa organizado para comemorar o 33º aniversário da indústria
carbonífera cresciumense, figurando entre as solenidades um Congresso Eucarístico”
46
, a
iniciativa foi das empresas carboníferas e do poder público municipal, com as atividades
centradas em torno do carvão, elemento de galvanização identitária principal da cidade. O
congresso eucarístico, de acordo com a fala de Ramos, é parte das comemorações do
aniversário da indústria carbonífera, e não o contrário, comemorações que incluem também
a inauguração do monumento.
De fato, alguns indícios na realização do Congresso Eucarístico e elevação do
monumento que apontam para um desejo, por parte de empresários e hierarquia católica no
município, de tutelarem os trabalhadores mineiros. Nos versos do Hino do Congresso
Eucarístico, cuja letra foi elaborada pelo padre Agenor Marques, vigário auxiliar da
paróquia São José no centro da cidade e um dos organizadores do Congresso, transparece
esse desejo de combate a outras doutrinas que não o catolicismo:
Rejeitando essas falsas doutrinas
Ressurgidas de um mundo pagão;
De Jesus pelas sendas divinas,
Anda alegre o operário cristão.
47
46
Apud BELOLLI, Mário; QUADROS, Joice; GUIDI, Ayser. História do Carvão de Santa Catarina.
Volume I (1790 – 1950). Criciúma: Imprensa Oficial do Estado de Santa Catarina, 2002, p. 262.
47
PIMENTEL, José e BELOLLI, Mário. Criciúma – Amor e Trabalho. Itajaí: Edições Uirapuru, 1974,
p.38.
46
Fica claro que o objetivo é tornar católico o operário, no caso o mineiro,
praticamente único contingente da classe operária no município e região, livrando-o de
outras influências concorrentes. Essas influências parecem estar identificadas ao
crescimento do Partido Comunista Brasileiro no país, que considerava os trabalhadores
como seu principal alvo de apoio
48
. O PCB havia sido legalizado no processo de queda do
Estado Novo e redemocratização do pós-guerra e teve uma participação importante nas
eleições presidenciais e legislativas de 1945, quando então se iniciava um clima de
anticomunismo no Brasil como reflexo da conjuntura externa da guerra fria, levando a que
o partido fosse considerado ilegal em maio de 1947
49
. O retorno do país a um período de
normalidade democrática, vencendo as amarras ditatoriais do Estado Novo, abria uma fase
de intensa disputa pelo controle político do eleitorado nacional, levando partidos políticos,
personalidades públicas e organizações sociais como a igreja católica a se mobilizarem em
direção as camadas populares, mais numerosas e decisivas na hora do voto, no caso de
Criciúma e região, os mineiros. Talvez movimentos locais, como a fundação do sindicato
da categoria mineira em 1945
50
, ainda que de atuação moderada na época, e a greve dos
operários da Companhia Próspera em agosto do mesmo ano
51
, tenham também reforçado o
48
É possível que as “falsas doutrinas” dos versos do hino refiram-se também ao surgimento de igrejas
protestantes no município, como a igreja presbiteriana, cujo trabalho de organização iniciou em 1942, e a
Assembléia de Deus, iniciada a partir de 1943/1944 (GONÇALVES, Gesiel S. O Vento Sopra Onde Quer
Primeiros Anos da Igreja Assembléia de Deus em Criciúma. Criciúma: Edição do Autor, 2000, p. 41 e
44).
49
O PCB obteve 9,7% dos votos nas eleições presidenciais e 4,9% nas eleições legislativas em 1947,
conseguindo inclusive eleger Luis Carlos Prestes para o Senado (DELGADO, Lucilia de Almeida Neves.
Partidos Políticos e Frentes Parlamentares: Projetos, Desafios e Conflitos na Democracia. In: FERREIRA,
Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O Brasil Republicano. Volume 3: O Tempo da Experiência
Democrática. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 135 e 136).
50
VOLPATO, Terezinha Gascho. A Pirita Humana: Os Mineiros de Criciúma. Florianópolis: Editora da
UFSC/ Assembléia Legislativa do Estado de Santa Catarina, 1984.
51
GOULARTI FILHO, Alcides e LIVRAMENTO, Ângela Maria Antunes. Movimento Operário Mineiro em
Santa Catarina nos Anos 1950 e 1960. In: GOULARTI FILHO, Alcides (Organizador). Memória e Cultura
do Carvão em Santa Catarina. Florianópolis: Cidade Futura, 2004, p. 75.
47
objetivo de controlar as populações mineiras, expresso no congresso eucarístico e na
inauguração do monumento.
Está presente também no monumento a intenção de harmonizar as duas classes
sociais que atuavam no processo de extração do carvão, os mineradores e os mineiros. Isso
fica claro de imediato pela nomeação do próprio monumento, chamado Aos Homens do
Carvão, no caso empresários e operários. A forma que o monumento assumiu em seu
processo de construção denota essa intenção de maneira cristalina.
Os trabalhadores compareciam no monumento através de estátua em bronze de um
mineiro, em tamanho natural, com os seus instrumentos principais de trabalho: a picareta e
o gasômetro. O modelo para a confecção da estátua foi o mineiro Manoel Costa,
trabalhador da Companhia Brasileira Carbonífera Araranguá CBCA
52
. Ainda que tenha
modelo, a figura do mineiro no monumento é apresentada de forma a demonstrar o caráter
coletivo e impessoal da classe operária, que não tem meios individuais de prestígio ou
riqueza para dar uma contribuição individual ao crescimento do município, com exceção do
seu trabalho, exercido de forma coordenada por todos os seus membros. A multidão dos
operários é representada por um mineiro que não tem nome e nem rosto, anônimo, cujo
destaque é dado por aquilo que distingue a classe, os seus instrumentos de produção. O
mineiro – herói é criado simbolicamente como o herói do trabalho, exaltado no monumento
ao ser colocado em seu ponto mais alto, porém exaltado apenas em sua condição de
produtor de carvão, a partir do qual ele passa a existir. A picareta e o gasômetro tem
exatamente a função de criar a figura do bom mineiro, estandartizada no monumento, como
aquele que produz o carvão para as empresas carboníferas.
52
PIMENTEL, Joe BELOLLI, Mário. Criciúma Amor e Trabalho. Itajaí: Edições Uirapuru, 1974, p.
38.
48
Monumento aos Homens do Carvão (Criciúma/SC, c. 1950).
Em uma crônica aparecida na Tribuna Criciumense em 1956, Sebastião H. Pieri faz
considerações sobre os instrumentos de trabalhos presentes no monumento, por ele
chamado Monumento ao Homem do Carvão, a picareta e o gasômetro, em vista do
desaparecimento deste último. A intenção do artigo é mostrar que sem esses instrumentos o
mineiro não existe. Pieri fala em especial do gasômetro e mostra a sua importância no
trabalho mineiro, desde o momento em que o mineiro sai de casa até o momento em que
adentra no interior da mina e lá permanece durante horas:
49
É que aquela lanterna, de luz serena e forte, é a garantia de seu
trabalho e, conseqüentemente, do sustento de sua esposa e filhos. É
que o gasômetro para ele é um símbolo, é uma insígnia por
excelência.
53
O gasômetro simboliza no texto a condição de sobrevivência do mineiro em seu
trabalho na mina sempre escura. O texto de Pieri faz utilização do gasômetro para mostrar a
luta do mineiro contra as trevas. Sai ele de casa ainda à noite, quando o dia está quase
nascendo, e chegando a galeria da mina, “embrenha-se pela terra adentro”. O autor utiliza,
nos dois primeiros parágrafos de sua crônica, uma série de termos que remetem para uma
dialética dia noite, luz trevas. No primeiro parágrafo ele trabalha com a oposição no
nível da natureza entre “trevas” de um lado e “claridade” e “alvorada” de outro. No
segundo parágrafo a oposição se no nível do humano, entre “escuridão” e “galeria” de
um lado, e “lanterna” e “gasômetro” de outro. A mina é apresentada, desde forma, como a
continuação da noite e o mineiro nos é mostrado como um ser que vive mais tempo nas
trevas, seja a da natureza ou a da mina Entretanto, assim como o alvorecer venceu as trevas
da noite, o autor mostra como, com a ajuda do gasômetro, o mineiro vence as trevas da
mina “no afã de ganhar o sustento de sua família”. Vencer a noite e as trevas para
sobreviver utilizando o gasômetro nos remete imaginariamente para um tempo em que os
homens e mulheres possuíam recursos tecnológicos escassos, materiais e mentais, para
garantir a vida do grupo. Vencer as trevas era vencer as condições naturais inóspitas e,
assim, garantir a continuidade da espécie. A luz produzida pelo fogo era exatamente a
tecnologia mais importante que o homem dispunha para esse objetivo. Apresentado como o
53
“O Mineiro Sem Insígnias” (Sebastião H. Pieri). Tribuna Criciumense, 16/01/1956.
50
homem em sua primitividade, o mineiro porta simbolicamente a luz no gasômetro e com
seu trabalho de extração do carvão garante a sobrevivência da espécie. Por isso, Pieri
afirma que a estátua do mineiro sem o gasômetro “já não mais era um mineiro, pois lhe
faltava o adereço indispensável”. É como homem do carvão que o mineiro existe, no
singular, representando o conjunto da categoria, sem individualidades.
Os outros homens do carvão, os mineradores, estão presentes no monumento
através de efígies em forma de medalhões afixados no pedestal em granito
54
que sustentava
a estátua do mineiro. Neste pedestal, em seu lado frontal, havia a inscrição “Cresciuma aos
Homens do Carvão 1913 1946”, tendo abaixo o escudo do Congresso Eucarístico
55
. O
principal desses medalhões era aquele de Henrique Lage
56
, empresário carioca do início do
século XX com inúmeros investimentos no Sul do Estado. Dos empresários do carvão ele é
o principal homenageado
57
. Além dele, ficamos sabendo que existiam também as efígies
de Gonzaga de Campos e Paulo de Frontin
58
. O medalhão de Henrique Lage ocuparia no
projeto do monumento um local mais central, em sua parte frontal, tal como aparece no selo
54
A informação que o pedestal do monumento era em granito encontra-se em BOA NOVA JR, Francisco de
Paula. Problemas Médico-Sociais da Indústria Carbonífera Sul-Catarinense. Rio de Janeiro:
Departamento Nacional de Produção Mineral – DNPM, 1953, Boletim número 95, p. 17.
55
Conforme fotografia que aparece em CAROLA, Carlos Renato, Dos Subterrâneos da História As
Trabalhadoras das Minas de Carvão de Santa Catarina. Florianópolis: Editora da UFSC, 2002, p. 229.
56
Fotografia que aparece em MILANEZ, Pedro. Fundamentos Históricos de Criciúma. Florianópolis:
Edição do Autor, 1991, p. 177.
57
A homenagem a Henrique Lage, proprietário da CBCA e a utilização de um mineiro dessa empresa como
modelo para a estátua do mineiro mostra a importância dessa Companhia Carbonífera naquele contexto
histórico de edificação do monumento. A CBCA era então a principal empresa carbonífera da cidade e seus
proprietários administravam, entre outras empresas, a Estrada de Ferro Dona Tereza Cristina, responsável
pelo transporte do carvão ao porto de Imbituba.
58
“(...) Henrique Lage, Gonzaga de Campos e Paulo de Frontin, essa trilogia magnífica de pioneiros do
carvão nacional, perpetuados no monumento obelisco de Cresciuma, a encantadora Capital do Carvão (...)”.
Discurso do engenheiro Galba de Bôscoli em 31 de julho de 1948. Apud BELOLLI, Mário; QUADROS,
Joice; GUIDI, Ayser. História do Carvão de Santa Catarina. Volume I (1790 1950). Criciúma: Imprensa
Oficial do Estado de Santa Catarina, 2002, p. 261.
51
comemorativo do Congresso Eucarístico
59
, local ocupado posteriormente pelo escudo do
próprio Congresso. A intenção, ao que parece, era fazer representar os homens do carvão na
dupla Henrique Lage estátua do mineiro e, assim, concretizar a idéia de congraçamento
entre as duas classes carboníferas. Esses mineradores são homenageados como pioneiros da
indústria carbonífera, ou seja, sua memória é fixada no monumento também a partir do
carvão.
Homenageando a um tempo a memória dos homens que, com o
aproveitamento de nossas imensas reservas carboníferas, abriram
para a nacionalidade rumos luminosos, e o operário humilde que,
no seu labor fecundo mas anônimo, vinha concorrendo para o
engrandecimento do País nessa indústria vital, não se esqueceram,
como bons cristãos, de conclamar as bênçãos do criador para essa
atividade promissora.
60
A fala de Nereu Ramos capta bem a intenção do monumento, ao articular a
memória dos empresários, do operário humilde e as bênçãos do criador, isto é, mineradores,
mineiros e igreja católica os três temas presentes no monumento - com, respectivamente,
os termos reservas carboníferas, indústria vital e atividade promissora, ou seja, com o
carvão mineral, o verdadeiro homenageado pelo Monumento Aos Homens do Carvão. Na
verdade, o monumento que existiu na praça central de Criciúma de 1946 a 1971,
denominado Monumento aos Homens do Carvão, era de fato um monumento ao carvão
mineral, verdadeira base a sustentar a homenagem que se fazia a mineiros e mineradores. O
59
PIMENTEL, Joe BELOLLI, Mário. Criciúma Amor e Trabalho. Itajaí: Edições Uirapuru, 1974, p.
38.
60
Correspondência de Nereu Ramos ao prefeito de Criciúma. Apud BELOLLI, Mário; QUADROS, Joice;
GUIDI, Ayser. História do Carvão de Santa Catarina. Volume I (1790 – 1950). Criciúma: Imprensa Oficial
do Estado de Santa Catarina, 2002, p. 262.
52
elemento visível do monumento que simboliza a presença não nomeada do carvão é o
pedestal, sustentador do mineiro que sobre ele se colocou e também dos medalhões dos
pioneiros da mineração, nele afixados. Algumas das características do pedestal apontam
para determinados valores que o imaginário da mineração atribuía ao carvão. Em primeiro
lugar, a sua características de sustentador do progresso da cidade, inimaginável naquele
contexto sem a sua presença. Também o seu tamanho no conjunto do monumento e o seu
aspecto maciço, a demonstrar a solidez da indústria carbonífera, talvez mais uma solidez
desejada que propriamente real. De toda maneira, o Monumento aos Homens do Carvão
estabeleceu-se como uma ode visual ao carvão, a louvar o progresso que a atividade
mineradora trazia para a cidade e a região.
Essa necessidade de criação de permanências relacionadas ao carvão parece estar
em razão direta a sua instabilidade no presente e imprevisibilidade de futuro. O fato de ser
um combustível fóssil, por isso esgotável, colocava sempre em discussão o tamanho das
reservas do mineral e o tempo que a cidade ainda dispunha para minera-lo. De qualquer
forma, por muito ou pouco tempo, o que restava era que o carvão não podia sustentar o
crescimento da cidade e região indefinidamente. Além disso, as crises cíclicas do setor,
sempre dependente dos preços fixados pelo governo federal, também geravam apreensões
entre a população, pela dependência que a cidade e a região tinham em relação à atividade
extrativa. Assim, o tema da diversificação industrial se impôs a partir da década de 1950,
ganhando força nas décadas seguintes, como um campo de discussão da cidade carbonífera.
53
Diversificação Econômica da Cidade Carbonífera
Uma questão fundamental que os pensadores da cidade carbonífera colocavam,
também, como tarefa para si e para os governantes era a diversificação econômica de
Criciúma. Na década de 60 a Associação Comercial e Industrial fez uma ampla campanha
propondo que os empresários locais abrissem outros negócios e buscando atrair empresas
externas ao município. Criticavam a dependência que a cidade tinha em relação à indústria
carbonífera que, argumentavam, com suas constantes crises não permitia um futuro estável.
Ainda que tenham sido fundados estabelecimentos industriais no município desde os anos
1940, foi nas décadas de 1970 e 1980 que a cidade passou por um intenso processo de
diversificação produtiva, centrada na atividade cerâmica, de vestuário e de calçado.
A partir da segunda metade dos anos 70, em maior escala a
indústria cerâmica, do vestuário e de calçados e, em menor escala,
até meados dos anos de 1980, a indústria de matérias plásticas e
metal-mecânica passaram a comandar, em paralelo com as
atividades carboníferas, o processo de acumulação capitalista e,
portanto, de indução da renda, na região.
61
A luta pela diversificação industrial, no entanto, não era um assunto apenas de
âmbito econômico, mas questionava a própria imagem externa e interna da cidade, a sua
identidade de ‘Capital do Carvão’. O tema da diversificação industrial apontava para a
61
GOULARTI FILHO, Alcides. Diversificação Produtiva no Sul de Santa Catarina: Uma Contribuição à
História Econômica Regional. In: Ensaios Sobre a Economia Sul-Catarinense II. Criciúma: UNESC, 2005,
p. 19. Segundo o autor, “entre as diversificações microrregionais ocorridas em Santa Catarina, a da região de
Criciúma, nos anos de 1970 e 1980 foi a mais dinâmica” (p. 24). Ver também: GOULARTI FILHO, Alcides.
Formação Econômica de Santa Catarina. Florianópolis: Cidade Futura, 2002.
54
criação de uma nova modernidade urbana, que não tivesse mais o carvão como fonte
econômica principal. Ainda que não negasse a importância do carvão mineral para a cidade,
negava-se a modernidade advinda do carvão, a cidade carbonífera, e se propunha uma nova
modernidade urbana, baseada em uma diversidade de indústrias, que superaria a anterior
modernidade do carvão
62
. Saudado como a riqueza sem a qual Criciúma jamais teria se
tornado a principal cidade da região, o carvão, no entanto, impedia a cidade de tomar ares
de uma nova modernidade: o odor desagradável, a poeira que as ruas revestidas de pirita
levantava nos dias de sol, o lodo preto e pegajoso nos dias de chuva, o do carvão que a
tudo impregnava, o populacho indisciplinado e perigoso. Tudo isso criava uma atmosfera
contrária ao desejo de uma cidade limpa, arborizada, vertical, com pessoas educadas e de
bons hábitos. Ao mesmo tempo, as crises cíclicas do carvão punham apreensivos os
dirigentes da cidade quanto ao seu futuro de progresso, tantas vezes apregoado. Surgia,
assim, nessa época, o tema da diversificação industrial como um dos elementos da nova
modernidade que se desejava, buscando questionar a completa dependência do carvão.
A diversificação aparecia como um tema que não se vinculava apenas ao âmbito
econômico, mas apontava no sentido do questionamento das características de cidade que
Criciúma possuía no período. Em que pese as crises cíclicas da produção carbonífera,
sempre dependente das políticas oficiais de energia, crises que atingiam toda a cidade e
região em vista da dependência econômica que se estabeleceu em relação ao carvão, a
diversificação surgia como um componente da cidade moderna, pois a modernidade
citadina pressupunha a existência de outras indústrias na cidade para além da exploração
62
A noção de ‘cascatas de modernidade’ a indicar a sucessão e mesmo a sobreposição de diferentes
modernidades no decorrer do tempo encontra-se em GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos
Sentidos. São Paulo: Editora 34, 1998.
55
carbonífera. As fábricas, que deviam ser atraídas para a Criciúma carbonífera, seriam mais
um elemento de modernidade presente na economia e na paisagem, como defende Ézio
Lima, ao exemplificar a fase de desenvolvimento e progresso que Criciúma estava
passando na cada de 1950 com as edificações, os novos cinemas e “os estabelecimentos
comerciais e industriais, pelo seu aparelhamento e pelas suas instalações, que dão à cidade
um aspecto de vida moderna”
63
.
Mas não era apenas isso. Ficava claro aos pensadores da cidade que, além de não
desejarem mais uma modernidade carbonífera, a atividade não poderia sustentar a
modernização da cidade por muito tempo. Essa noção de esgotamento do carvão aparece,
por exemplo, em um conjunto de artigos que Pedro Henrique Osório publicou na Tribuna
Criciumense em 1957. A partir da proposta de criação de uma escola técnica industrial em
Criciúma, o autor discute o futuro da cidade carbonífera e a sua transformação em uma
cidade com outras indústrias. No primeiro artigo
64
, o mais importante deles, após afirmar
que “(...) é necessário, desde já, olharmos para os recursos capazes de lhe mudar o destino
de cidade mineira, quando surgir a ocasião precisa”, apresenta o exemplo negativo de
outras cidades mineiras, que não se prepararam para o fim da atividade econômica que
sustentava o seu crescimento.
Criciúma é possuidora de uma fonte de riqueza esgotável a qual,
embora dure ainda muitos anos faço votos para que isso
aconteça, chegará o dia em que seus habitantes hão de lançar mão
de outros meios além do carvão para manterem a cidade em pé;
pelo contrário, acontecerá como aconteceu às cidades chamadas de
mineração, situadas no centro-oeste brasileiro, cuja pujança e
63
“A Cidade e Seu Progresso”. (A Cidade em Revista). Ézio Lima. Tribuna Criciumense, 16/07/1956, p. 8.
64
“Escola Técnica Para Criciúma”. Pedro Henrique Osório. Tribuna Criciumense, 09/09/1957, p. 4.
56
progresso se extinguiram a partir das últimas gramas de ouro, das
últimas pedras preciosas encontradas em seu solo.
No sentido de preparar-se para o esgotamento da atividade carbonífera é que o autor
fazia a proposta da escola técnica industrial, já que a cidade não teria seu crescimento
econômico prejudicado “se, em vez de operários aptos a trabalhar apenas na indústria
extrativa do carvão, tivermos gente competente para se dirigir às fábricas de tecidos, de
calçados, de móveis, às tipografias, às alfaiatarias, às oficinas, etc”.
Em seu segundo artigo, publicado logo em seguida, Pedro Henrique Osório
apresenta ainda mais explicitamente o futuro sombrio da cidade se esta insistisse em se
manter dependente do carvão mineral
65
. Tornar-se-ia uma cidade fantasma. Contrapondo as
ruínas da cidade carbonífera ao futuro radioso da cidade diversificada, Osório
fundamentava sua visão de uma outra Criciúma moderna e apelava para a iniciativa da
população na defesa da cidade.
A terra ouronegrense não viverá das sombras do passado se seus
habitantes não permitirem, pela coragem, dedicação e trabalho com
que se entregarem à preparação dos moços; se não se limitarem a
corroer o seu subsolo deixando-o oco e enfraquecido, sem nada que
o possa manter produtivo no dia de amanhã. Essa Criciúma
pomposa de nossos dias não será desabitada, despida e agoniada,
não se alimentará de esperanças mortas e nem se movimentará
pelos pés dos fantasmas que lhe sugaram a seiva, as energias, o
65
“Escola Técnica Para Criciúma”. Pedro Henrique Osório. Tribuna Criciumense, 23/09/1957, p. 1 e 4.
57
encanto e a deixaram trêmula ao mais fraco vento, indefesa e
indesejável aos seres mais estúpidos deste mundo. Os criciumenses
do futuro não serão surpreendidos por visões de desolamento, nem
assistirão a retirada de homens vencidos, mas sim acompanharão a
marcha de ‘Ordem e Progresso’ de grandes levas de operários
destinando-se aos mais variados tipos de fábricas.
No fechamento da série de artigos, o autor cobra dos “senhores políticos,
mineradores e comerciantes” a responsabilidade pela criação da escola técnica industrial
para a formação de mão-de-obra que permitiria, no futuro, o desenvolvimento de outras
indústrias em Criciúma e na região
66
.
A preocupação com a mão de obra e sua vinculação a temática da diversificação
escondia outros motivos e apreensões que iam além da necessidade de prepara-la para o
futuro esgotamento das jazidas carboníferas e chegada das novas fábricas. Havia também a
compreensão que a diversificação industrial resolveria os problemas sociais existentes na
cidade e amenizaria os conflitos sindicais. O autor de uma matéria publicada na Tribuna
Criciumense em 1961 caracteriza Criciúma como uma cidade operária, heterogênea e
‘emocional’
67
. Este último termo é claramente um codinome para os conflitos sindicais, que
se acirraram na cidade e região após a conquista do Sindicato dos Mineiros de Criciúma por
uma diretoria ‘combativa’ a partir de 1957
68
. As greves se sucederam. Em março de 1957 a
66
“Escola Técnica Para Criciúma”. Pedro Henrique Osório. Tribuna Criciumense, 30/09/1957, p. 6.
67
“Trabalho: Eis a Solução”. Tribuna Criciumense, 20/11/1961, p. 11.
68
GOULARTI FILHO, Alcides e LIVRAMENTO, Ângela Maria Antunes do. Movimento Operário Mineiro
em Santa Catarina nos Anos 1950 e 1960. In: GOULARTI FILHO, Alcides (Organizador). Memória e
Cultura do Carvão em Santa Catarina. Florianópolis: Cidade Futura, 2004, p. 75 – 91. VOLPATO,
Terezinha Gascho. A Pirita Humana: Os Mineiros de Criciúma. Florianópolis: Editora da UFSC/
Assembléia Legislativa do Estado de Santa Catarina, 1984.
58
categoria mineira deflagrou uma greve na cidade, sem conflitos explícitos; em setembro de
1958 ocorreu uma greve na CBCA, uma das mais importantes companhias carboníferas na
região; em maio de 1959 nova greve de quase um mês de duração ocorreu em Criciúma.
Entretanto, foi a greve de janeiro de 1960 que demonstrou que havia ocorrido uma
alteração na correlação de forças entre mineiros e mineradores, o que modificava
completamente o cenário político da cidade. Neste ano, os mineiros deflagraram uma greve
que ocorreu entre os dias 4 e 28 de janeiro, mobilizou as cidades carboníferas e trouxe para
a região as tropas do 14º Batalhão de Caçadores, sediadas em Florianópolis
69
.
A greve que ocorreu em 1960 foi a mais ferrenha da história
sindical de Criciúma. Houve muita repressão. A greve nasceu na
Metropolitana e se estendeu por todas as mineradoras. Para
reprimir veio o exército na rua, com cacetetes, bombas de gás
lacrimogêneo, etc.
70
Diante disso, compreende-se porque o autor da matéria de 1961 caracterizou a
cidade como ‘emocional’. Essa combatividade sindical, como se pôde ver, estava centrada
na categoria mineira. O diagnóstico que as autoridades faziam é que os mineiros, em geral,
tinham que sustentar sua numerosa família sozinhos, com seu trabalho na mina
71
. A esposa
e os filhos, nesse período, em geral não possuíam ocupação remunerada em vista de que a
69
Estas informações encontram-se em GOULARTI FILHO, Alcides e LIVRAMENTO, Ângela Maria
Antunes do. Movimento Operário Mineiro em Santa Catarina nos Anos 1950 e 1960. In: GOULARTI
FILHO, Alcides (Organizador). Memória e Cultura do Carvão em Santa Catarina. Florianópolis: Cidade
Futura, 2004, p. 81 – 83.
70
Depoimento de Jorge Feliciano, liderança sindical do período. A Pirita Humana: Os Mineiros de
Criciúma. Florianópolis: Editora da UFSC/ Assembléia Legislativa do Estado de Santa Catarina, 1984, p.
117 – 118.
71
“Trabalho: Eis a Solução”. Tribuna Criciumense, 20/11/1961, p. 11. “Industrialização Fator de Progresso”.
Tribuna Criciumense, 22 – 29/02/1964, p. 1.
59
oferta de trabalho era basicamente fornecida pelas companhias mineradoras, que não
aceitavam trabalhadores com menos de vinte e um anos para o subsolo e dezoito anos para
a superfície. Além disso, as minas passavam por um novo processo de mecanização na
década de 1960, o que significa desemprego
72
, agravado pela inflação que corroia os
salários dos trabalhadores mineiros
73
. Na década de 1960, portanto, a diversificação
econômica era apresentada como o remédio capaz de curar todos os males da cidade,
notadamente os males sociais advindos das características carboníferas que Criciúma
possuía.
Os mineradores, grupo social poderoso na cidade, percebiam o movimento pela
diversificação também por este ângulo, como uma vantagem na medida em que poderia dar
trabalho aos demais membros da família mineira, produzir um decréscimo na participação
do pai na renda familiar e, assim, diminuir a pressão salarial sobre as companhias
mineradoras. O diagnóstico dos mineradores era claro:
As minerações, presas às quotas de produção, mantém uma mão-
de-obra fixa, que não se pode ampliar e que não tem condições
para atender às demandas de trabalho oriundas do crescimento
demográfico, que supera o da produção do minério. A iminente
mecanização das minas vai tornar essa situação ainda mais penosa.
Como nos trabalhos de mineração é vedada, por lei, a participação
de mulheres e de menores de 21 anos, conclui-se que os encargos
de família, cuja média, na região, é estimada em seis pessoas,
72
“Criciúma – Esta Jovem de Oitenta e Cinco Anos”. Tribuna Criciumense, 04/12/1965, p. 6.
73
“A inflação não permite que parte da família fique em casa sem ocupação remunerada a constante alta do
custo de vida pressiona a todos que então saem em busca de trabalho. O problema humano que seria a mão de
obra está a exigir imediata solução, pois nossa indústria básica, a extração do carvão, impõe uma série de
requisitos ao operário a começar com a idade de vinte e um anos para o trabalho no sub-solo e dezoito anos
para a atividade na superfície”. “Industrialização Fator de Progresso”. Tribuna Criciumense, 22 – 29/02/1964,
p. 1.
60
cabem quase que exclusivamente aos seus chefes, no caso os
operários mineradores (sic).
74
Os mineradores se posicionavam, através de seu sindicato, favoravelmente a
diversificação, pois entendiam que esta atenuava a pressão por melhores salários na
indústria carbonífera. Isso, no entanto, certamente não implica reconhecimento de que a
diversificação traria consigo a desvalorização representacional do carvão no imaginário
social e na paisagem da cidade. Eles percebiam a diversificação como complementar e
subordinada a atividade carbonífera
75
. Além disso, viam na diversificação uma
oportunidade de diversificar seus próprios negócios e lucros, a partir principalmente de
crédito oficial, como se percebe pelas ações dos principais grupos mineradores, Freitas e
Guglielmi, que efetivamente diversificaram suas atividades.
Entretanto, o tema tornou-se importante para a cidade, na medida em que não estava
circunscrito aos aspectos econômicos e sociais, mas remetia para um questionamento da
modernidade produzida pela cidade carbonífera. Apresentar Criciúma como uma cidade
moderna, na cada de 1960 e 1970, significava apresenta-la como superando a
dependência em relação ao carvão. Isso pode ser visto em um filme produzido em 1961, na
gestão do prefeito Nery Jesuíno da Rosa (1961 1963)
76
. No filme, apresentam-se as
diversas atividades econômicas existentes na cidade de Criciúma, como forma de atestar o
seu processo de modernização. Na verdade, relacionam-se dez estabelecimentos de
74
“É Um Imperativo cio-Econômico a Diversificação Industrial na Região Carbonífera de Santa Catarina”.
Revista Carvão de Pedra. 4, setembro-outubro-novembro de 1968, p. 29.
75
“A característica da região sul catarinense, em termos industriais, é puramente carbonífera. (...).
Praticamente tudo ali depende da atividade carbonífera”.
76
CRICIÚMA. Fundação Cultural de Criciúma. O Comércio e a Indústria de Criciúma. Filme. Produção
de William Gericke, c. 1961/1962, 12,20’.
61
pequeno porte existentes na cidade
77
, entre eles dois postos de gasolina! Se, por um lado, a
pouca representatividade das empresas apresentadas denuncia a fraqueza da diversificação,
por outro a existência do filme expressa o desejo de mostrar que Criciúma não é carvão.
O que aparece no filme como realidade da cidade, aquela que os produtores e promotores
do filme queriam que aparecesse como a cidade realmente existente, é uma cidade que
possui diversos estabelecimentos comerciais e industrias, que lhe atestam o progresso que
possuía, demonstrando que a cidade não dependia completamente do carvão. O desejo
superava e criava a realidade, como veremos nas décadas seguintes.
77
Os estabelecimentos apresentados são os seguintes: Casas Pernambucanas; Posto de Gasolina; Posto Esso,
de Júlio Gaidzinski; Retífica de Motores; Transporte Criciumense (representante Volkswagen); Frigorífico e
fábrica de banha; Curtume Dal-bó; Fábrica de Calçados Crisul; Pastifício Fio de Ouro; Padaria e Biscoitaria
Brasil.
CAPÍTULO 2
DIZENDO OUTRO DISCURSO
A EMERGÊNCIA DA ETNICIDADE NA CIDADE DO CARVÃO
O mover-se de outros atores e temáticas no interior da cidade carbonífera era feito
de forma lenta e dramática nos anos em que a cultura do carvão era predominante. A
impressão dos que viviam na cidade do carvão era a de que o carvão, seus interesses e
valores, tudo abarcava. Porém, determinados temas fugiam a esse controle, como aqueles
referentes à agricultura, o desejo de se ter outras indústrias ou a homenagem aos imigrantes
fundadores da cidade. Pretendo neste capítulo explorar as manifestações, presentes em
Criciúma no período carbonífero, que destoavam das representações sociais que se
articulavam em torno do imaginário do carvão, para emergirem como uma outra forma de
classificação social baseada na atribuição de origem e que definiremos como etnicidade.
A importância que o imaginário do carvão possuía na cidade naquele momento e, ao
mesmo tempo, o emergir de outras temáticas, pode ser vista em um artigo publicado na
Tribuna Criciumense de 1955
78
, no qual o autor reconhece inicialmente que a realidade da
cidade está carregada de carvão:
78
“... Não Abandonem os Colonos” (Ernesto Bianchini Góes). Tribuna Criciumense, 30/05/1955, p. 5 e 6.
63
O nosso município é conhecido, em todos os quadrantes da Pátria,
como se fosse apenas uma mina viva de carvão. Carvão na praça,
carvão nos arrabaldes, carvão nos subúrbios, carvão no
‘hinterland’, carvão em toda a extensão e em todos os sentidos.
Realmente, e isto nos coloca em evidência, somos uma pujança
econômica, fruto, em princípio, da exuberante riqueza
proporcionada pela hulha negra.
Por outro lado, o tom irritado do reconhecimento de que o carvão está por todos os
lugares do município e expressões como “apenas uma mina” e “fruto, em princípio...” nos
mostra que o autor está disposto a dar visibilidade a outros aspectos de Criciúma, aspectos
que não aparecem comumente, em vista exatamente de que o carvão está em toda parte. Por
isso, diz ele, acrescentando sua crítica, ainda que se devam tomar providências “para que
sejam atendidos os apelos dos que, como satélites, vivem na órbita do carvão”, se deve ao
mesmo tempo não esquecer “da agricultura, dos pequenos colonos, dos humildes
lavradores”.
E passa o autor a argumentar, na segunda parte do artigo, a importância da
agricultura enquanto atividade humana. Afirma que esta atividade é a única
“verdadeiramente produtiva, indispensável à vida e realmente moralizadora”. De fato, diz
ele, é nos campos que os indivíduos buscam a sua manutenção, de tal forma que as cidades
mesmo dependem do campo. Na terceira parte do artigo passa o autor a relatar o duro
cotidiano do agricultor, que se levanta desde cedo e trabalha até o surgir das primeiras
estrelas, diuturnamente. Compara a atividade do agricultor com a do operário,
subentendendo-se aqui o mineiro, com clara desvantagem do primeiro, pois não possui
horário, férias, descanso semanal, abonos, etc. Há uma ênfase no sofrimento e no trabalho
64
como gerador de riquezas. uma colocação do agricultor como um herói, mas não um
herói trágico como o mineiro, mas um herói que ensina, um herói cívico.
Percebe-se no artigo o esforço que o autor faz para mobilizar argumentos em favor
de uma atividade que ocupa uma parcela razoável da população, em vista da atividade
carbonífera que é predominante na cidade. É um claro exemplo de quanto o imaginário do
carvão superpovoou as mentes e as imagens da cidade e da região naquele período.
A apresentação do agricultor como um herói, ao lado do mineiro, trás a tona outras
representações que circulavam na cidade naquela época. O agricultor é chamado de colono
e, por intermédio desta palavra carregada de ambigüidade, é igualado ao imigrante, como
quando afirma que “é extraordinária a luta do colono, que está, desde os primórdios da
República, abandonado à própria sorte”. O lembrar-se do início da República aponta para o
mesmo tempo de chegada dos imigrantes ao sul de Santa Catarina. A defesa do agricultor e
da agricultura, assim, transmuta-se em defesa dos interesses dos colonos e das zonas
coloniais, isto é, dos descendentes de imigrantes presentes no município e região.
Dificuldades do Discurso Étnico na Cidade Carbonífera
Os discursos que valorizavam relações sociais de tipo étnico em Criciúma no
período apresentavam-se a partir de temáticas vinculadas ao aniversário de fundação da
cidade e a figura dos imigrantes fundadores. A etnicidade é um sistema de classificação
social, entre outros possíveis, elaborado a partir da valorização de determinadas
65
diferenciações físicas, culturais e psicológicas entre os grupos que atribuem a característica
de étnicos a si mesmos e aos outros grupos sociais
79
.
Etnicidade é uma forma de organização social, baseada na
atribuição categorial que classifica as pessoas em função de sua
origem suposta, que se acha validada na interação social pela
ativação de signos culturais socialmente diferenciadores.
80
Na verdade, as relações sociais de fundo étnico não se estabelecem a partir da
existência de características físicas, psicológicas ou culturais objetivas dos grupos, mas a
partir da percepção de sua importância para as relações sociais, a partir das quais os
indivíduos e grupos se classificam e classificam aos outros, atribuindo ao seu grupo social,
definido como étnico, e no mesmo movimento aos outros grupos também, determinados
conteúdos culturais que constrói uma relação de tipo étnica. A etnicidade envolve critérios
de tipo físico e cultural, mas eles são construídos social e culturalmente por um discurso e
prática que os destaca como elementos diferenciadores de indivíduos e grupos, e não como
características naturais intangíveis.
A etnicidade se define, sobretudo, pela construção social e política
dessas substâncias e dessas diferenças biológicas e culturais na
medida onde ela permite a criação de grupos distintos. Em uma
frase, a etnicidade é um aspecto das relações sociais entre atores
sociais que se consideram e que são considerados pelos outros
como sendo culturalmente distintos dos membros de outros grupos
com os quais eles têm um mínimo de interações regulares.
81
79
MARTINIELLO, Marco. L’Ethnicité Dans Les Sciences Sociales Contemporaines. Paris: PUF, 1995, p.
18.
80
POUTIGNAT, Philippe e STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade. São Paulo: UNESP,
1998, p. 141.
81
MARTINIELLO, Marco. L’Ethnicité Dans Les Sciences Sociales Contemporaines. Paris: PUF, 1995, p.
18 e 19.
66
Essas diferenças não são fixadas de uma vez por todas, mas são construídas e
reconstruídas através das relações sociais entre os grupos ditos étnicos, perpassadas por
clivagens de classes sociais, sexo ou ainda, relações regionais e nacionais. Martiniello,
dentre outros, chama a atenção para a necessidade de se evitar a reificação da etnicidade, ou
seja, tratá-la como uma realidade dada, fixa e natural
82
. Essas relações fornecem a base para
importantes sentimentos de pertencimento, que organizam a vida cotidiana e as relações
individuais e coletivas das populações envolvidas.
A etnicidade é uma forma de expressão de desigualdades sociais e de classificação
entre outras. É preciso não exagerar sua importância e de a considerar como a única
dimensão significativa da vida social. Entretanto, as relações de fundo étnico assumem, em
determinadas épocas e certos contextos, uma pertinência efetivamente fundamental nas
relações sociais. Em Criciúma, emergiu no interior mesmo da cidade carbonífera um
discurso centrado na atribuição de pertencimentos que se operacionalizou a partir da noção
de origem. Essas estratégias discursivas centraram-se na figura do imigrante e valorizaram
o grupo social constituído pelos seus descendentes.
A primeira referência pública sobre imigração relacionada com a cidade é artigo
escrito por José Pimentel sobre a necessidade de se construir um monumento em
homenagem ao imigrante no centro de Criciúma
83
. Pimentel, em seu artigo, conjuga
imigrantes e patriotismo, elaborando um discurso que situa os imigrantes no panteão dos
82
Ibid., p. 20 e 21.
83
“Monumento ao Imigrante” (Jo Pimentel). Tribuna Criciumense, 01/08/1955, p. 1 e 4. José Pimentel
nasceu em Aracruz/ES, em 3 de março de 1915. Fornou-se em Direito em 1943, na cidade de Niterói. Chegou
em Criciúma em 1945. Foi presidente da ACIC Associação Comercial e Industrial de Criciúma (1951) e
fundador do jornal Tribuna Criciumense (1955). Foi também vereador pela UDN (1947 1951).
ZACHARIAS, Manif. Criciúma – Vultos do Passado e Personalidades Contemporâneas. Criciúma;
edição do autor, 2000, 543 e 544.
67
heróis nacionais, a quem a nacionalidade brasileira deve prestar um culto cívico. É
interessante perceber, no artigo, como o tema da imigração, que remete ao estrangeiro,
adapta-se a um discurso cívico nacionalista. As representações que valorizam o tema da
imigração tateiam no universo imaginário da cidade do carvão em busca de frestas pelas
quais possa emergir como discurso na cidade e sobre a cidade. Para isso, reveste-se de uma
forma própria ao discurso da cidade do carvão, o nacional e o nacionalismo, mas com um
conteúdo que, adaptado, é diferente.
Pimentel assinala que as pessoas em sua época dedicavam pouco amor, e mesmo
indiferença, às “tradições”, inclusive afirmando que as datas cívicas não eram mais
comemoradas “nem mesmo nas escolas públicas”, a não ser como feriados, afirmando que
“um povo que não procura formar a juventude no culto e veneração a obra e realização dos
seus antepassados, caminha para a desagregação e oferece campo propício às manobras e
experiências das doutrinas mais extravagantes, que estão levando nossa civilização a uma
verdadeira encruzilhada”. Essa referência às doutrinas extravagantes aponta claramente
para a ameaça do comunismo, no contexto da guerra fria. Apenas a rememoração dos feitos
dos antepassados, num verdadeiro culto patriótico, permitiria formar a juventude e, por
conseqüência, toda a população em um espírito cívico, de amor à pátria. A ossatura do
discurso de Pimentel é aquela do nacionalismo e do culto à pátria, sem que houvesse
contradição com o culto a antepassados da nacionalidade que eram de outros países. A
impressão é que eles são entendidos como formadores do povo brasileiro e de seu território
e, nesta condição de heróis, deveriam ser cultuados.
Esse caráter cívico e pedagógico da abordagem do autor orienta todo o seu artigo e
proposta de construção do monumento. Para ele, a iniciativa não deveria ser apenas dos
68
poderes públicos e pessoas com maiores posses, mas deveria resultar “num grande
movimento, no qual se mobilize toda a população criciumense (...)”.
Não é o comércio, a indústria, o Rotary Club, cujas realizações
em problemas de interesse coletivo tem sido realmente notáveis,
mas também os agricultores, operários e todas as camadas de
nossas populações que devem participar, ativamente, nesse
empreendimento de gratidão e civismo.
A sua convicção era de que a população compreenderia a proposta, desde que
“saibamos conduzir essa iniciativa explicando em linguagem simples e sincera o que ela
significa para a existência de Criciúma (...)”. Percebe-se uma necessidade de extensa
argumentação no artigo sobre a importância de se ter o monumento, além da necessidade de
se convencer o conjunto da população de que tal iniciativa é importante. O autor vai
tentando alargar um espaço de representação referente aos imigrantes e a imigração em um
campo dominado pelo discurso do carvão na formação da cidade. Desta forma, ele apela
para o caráter cívico da proposta e do exemplo de outras cidades, que não cita, em terem
encaminhado semelhante iniciativa.
A proposta de Pimentel era que o monumento fosse inaugurado em 6 de janeiro de
1956, ano seguinte, para apresentar a gratidão da cidade “aos sobreviventes dessas levas
imigratórias, que vivem hoje de recordações e de saudades”. O monumento pretendido por
Pimentel não se concretizou naquele ano. Porém, na condição de diretor da Tribuna
Criciumense, e não podendo erguer o monumento aos imigrantes que havia proposto, fez,
em 6 de janeiro de 1956, um monumento memorial nas páginas do jornal, incitando
lideranças políticas da cidade a posicionarem-se diante da data e, desta forma, diante do
tema da imigração. Naquela edição do jornal apareceram posicionamentos assinados pelo
69
deputado estadual Paulo Preis
84
, pelo prefeito eleito Addo Caldas Faraco
85
, por José
Pimentel
86
, editor do jornal, por Napoleão de Oliveira
87
, prefeito municipal, e pelo
deputado estadual Ruy Hülse
88
. A maior parte dos discursos valoriza os imigrantes em um
tom cívico-nacional, inaugurado por Pimentel no ano anterior. Os posicionamentos de Preis
e Faraco, no entanto, nos deixam entrever interessantes questões relacionadas com a
etnicidade na cidade carbonífera.
Na condição de deputado estadual identificado com o distrito de Forquilhinha,
localidade pertencente à Criciúma na época e com uma relevante população de
descendentes de alemães, Preis
89
realizou uma operação discursiva que o aproximava da
população das minas, muito numerosa. Por isso, a questão do carvão colocou-se de forma
destacada em sua mensagem. Nela, ainda que fale sobre o trabalho dos imigrantes,
apresenta o tema da miscigenação como característica fundamental que permitiu o
progresso de Criciúma, ao afirmar que “ao lado dos colonizadores italianos vieram colocar-
se homens das mais variadas origens étnicas, confundindo-se com eles, nesta admirável
mistura que, em que pese a diversidade, constitui um todo harmônico, que é o brasileiro”. E
depois acrescenta que Criciúma absorveu “a outros que vieram antes e depois, e os integrou
num só bloco, onde todos dão de si o que é possível, para erguê-la sempre mais no conceito
dos que nos observam e nos acompanham”. Assim, forja uma concepção de progresso da
84
“Feliz Aniversário, Criciúma” (Paulo Preis). Tribuna Criciumense, 09/01/1956, p. 1.
85
“Criciúma – Cidade do Presente e do Futuro”. Tribuna Criciumense, 09/01/1956, p. 5.
86
“Salve Criciúma” (José Pimentel). Tribuna Criciumense, 09/01/1956, p. 1 e 4.
87
“Honra ao Mérito” (Napoleão de Oliveira). Tribuna Criciumense, 09/01/1956, p. 3.
88
“6 de Janeiro de 1956” (Ruy Hülse). Tribuna Criciumense, 09/01/1956, p. 3.
89
Paulo Preis nasceu em 5 de abril de 1914, em Imaruí/SC, chegando em Criciúma (Forquilhinha) em 1918.
Foi vereador (1948 1951), prefeito municipal (1951 1955) e deputado estadual (1955 1958 e 1963
1966). ZACHARIAS, Manif. Criciúma Vultos do Passado e Personalidades Contemporâneas.
Criciúma; edição do autor, 2000, p.545.
70
cidade que tem em uma ponta o agricultor e na outra o mineiro, de certa forma
harmonizando dois pólos discursivos sobre a identidade urbana neste período.
Com Addo Caldas Faraco ocorreu exatamente o inverso. Político vinculado ao PSD
e que tinha sua base eleitoral situada nas vilas operárias mineiras, Faraco necessitava se
posicionar diante da população do centro da cidade, na maioria descendentes de imigrantes
italianos
90
. Por isso, em sua mensagem a temática e as palavras são aquelas da imigração,
mas o formato discursivo é o do carvão, centrado em trabalho, produção e progresso.
Assim, ressalta o progresso de Criciúma e o considera como o elemento de ligação entre a
geração sua contemporânea e àquela dos imigrantes. Depois de afirmar que considerava o
município “fadado a se constituir em um dos mais sólidos esteios do desenvolvimento
econômico, social e cultural de Santa Catarina, quiçá do Brasil”, compromete-se ele a, na
condição de prefeito, “acelerar seu ritmo de progresso” para que pudesse aquela geração se
considerar digna “das gloriosas tradições de lutas, de sacrifícios e de labor honesto e
produtivo que nos legaram nossos antepassados, aqueles bravos e indômitos pioneiros”.
Faraco deixa bem clara a sua condição de forasteiro na cidade, o que lhe causa dificuldades
eleitorais, quando afirma que é “criciumense de coração”, compensando o fato de não ter
nascido na cidade, com o amor que indica ter por ela. A sua condição de forasteiro é dupla:
não era descendente de imigrantes e não havia nascido na cidade. Por isso, fala em “nossos
antepassados”, assumindo, enquanto cidadão e prefeito, os antepassados que a própria
cidade tinha e, desta forma, afirmando a sua própria cidadania. Em matéria de 1961
91
, isso
se verifica novamente. Apesar de homenagear a “primeira leva de imigrantes italianos”,
90
Addo Caldas Faraco nasceu em 15 de junho de 1905, em Petrópolis/RJ. Chegou em Criciúma em 1934
como funcionário público federal, agente dos correios e telégrafos (1934 1945). Foi prefeito municipal pelo
PSD por três vezes (Nomeado para 1945 1947, eleito para 1947 1951 e 1956 1961). ZACHARIAS,
Manif. Criciúma Vultos do Passado e Personalidades Contemporâneas. Criciúma; edição do autor,
2000, p. 487.
91
“6 de Janeiro – Dia do Município” (Addo Caldas Faraco). Tribuna Criciumense, 09/01/1961, p. 1.
71
enfatiza, no entanto, que havia “outros que posteriormente a eles se vieram juntar, daquela
primeira derrubada, passamos à magnífica ‘Capital do Carvão’, de hoje”. E depois cita os
grupos sociais que construíram a cidade, as “nossas classes conservadoras” (comércio,
indústria, lavoura e profissionais liberais) e, “de modo particular, a massa obreira de nosso
município”, referência explícita aos mineiros.
Esses variados discursos que relacionam a imigração, o carvão e a cidade, nos
mostram uma instabilidade no imaginário do carvão, que não dava mais conta de responder
de forma adequada às demandas que recebia dos grupos sociais, ainda que mantivesse o
principal de sua força. Assim, aqueles que falam querendo incentivar os valores
relacionados à imigração e, ao fazê-lo, buscam brechas no discurso do carvão, como
Pimentel, para que possam agasalhar seu próprio discurso. Mas também os que,
obrigados a posicionarem-se sobre o tema da imigração, no mais das vezes por
necessidades eleitorais, o fazem a partir do discurso do carvão, como é o caso de Faraco.
Em sua mensagem, Napoleão de Oliveira
92
, prefeito municipal, apresenta a
contribuição específica e concreta dos imigrantes para a cidade: o trabalho agrícola. Todo o
trabalho dos imigrantes em sua tarefa de povoar e retirar partes do território da natureza
(incluídos os índios) e colocá-las na esfera da civilização se faz através do trabalho
agrícola:
Foram eles, foram estes pioneiros que, com o produto de seus
trabalhos, com a tenacidade de seus esforços, com a luta constante
e diuturna em combate incessante contra a natureza agreste e
92
Napoleão de Oliveira nasceu em Joinville/SC, em 17 de junho de 1923, e chegou em Criciúma em 1954.
Foi eleito vereador e presidente da Câmara Municipal. Nesta condição, assumiu a Prefeitura de Criciúma na
vaga de Paulo Preis, que renunciou em vista de sua eleição para a Assembléia Legislativa. ZACHARIAS,
Manif. Criciúma Vultos do Passado e Personalidades Contemporâneas. Criciúma; edição do autor,
2000, p. 535.
72
selvagem, plantaram junto às criciúmas a base fundamental, pedra
angular da história de Criciúma de hoje.
93
Toda a linguagem utilizada para caracterizar a obra dos imigrantes é vazada em
termos que remetem ao trabalho agrícola, como “produto de seus trabalhos” e “luta
diuturna” que poderia resultar no ato de “plantar” as bases de uma cidade. No fim da
mensagem ele fala em “fruto daquela mesma história [dos imigrantes]”. Emerge do texto
uma concepção pela qual a obra dos imigrantes é situada na órbita exclusiva do passado da
cidade, ou seja, ainda que a cidade seja conseqüência do trabalho dos imigrantes, seu fruto,
não tem eles muito a ver com o crescimento posterior de Criciúma. Faz o autor uma divisão
de trabalho entre os imigrantes, que lançaram as bases através do trabalho agrícola, e outros
que desenvolveram a cidade através de outra atividade. O último termo da equação ele não
diz, mas está explícito na cidade nesta época, como sendo o carvão e aqueles, os “homens
do carvão”, que com ele estão envolvidos. Assim, a cidade devia aos imigrantes a obra
civilizatória e ao carvão a obra do progresso. Civilização e progresso, aqui separados
conceitualmente e em relação aos grupos sociais, mas juntos no forjamento de uma cidade
representada como metrópole do carvão.
Valorização Progressiva do Imigrante e sua Diferenciação
A palavra colono condensa representações que remetem para o início de um
processo de formulação de uma identidade que tem por fundamento a origem e, portanto, se
posiciona social e culturalmente no campo da etnicidade. Utilizada como sinônimo de
93
“Honra ao Mérito” (Napoleão de Oliveira). Tribuna Criciumense, 09/01/1956, p. 3.
73
imigrante, a palavra aponta, de um lado, para a principal contribuição que o discurso sobre
a imigração atribui ao colono/imigrante: o trabalho agrícola civilizador, que ocupou vastas
áreas de matas no sul do Brasil e, assim, garantiu a ocupação desta parte do país. Esse
discurso afirmava o trabalho imigrante como de superior qualidade quando comparado ao
nacional. Em Santa Catarina, houve processos de qualificação do trabalho imigrante,
notadamente de descendentes de alemães, que afirmava a superioridade do trabalho
estrangeiro sobre o trabalho nativo, cujas populações eram sinônimo de atraso e pobreza. A
desqualificação do espaço litorâneo catarinense e de suas populações na primeira República
servia, ao mesmo tempo, para afirmar o trabalho imigrante como provido de qualidades
superiores que traziam o progresso para o sul do país
94
. A atribuição de valor ao trabalho
imigrante e, nos anos 1950 a revalorização do trabalho açoriano e, por conseqüência, do
litoral, era parte do esforço para sustentar áreas políticas e culturais próprias.
Giralda Seyferth afirma
95
, por outro lado, que a palavra indica uma identidade
coletiva comum compartilhada pelos vários grupos de emigrados da Europa que possuem,
como substrato, uma cultura específica construída no Brasil no processo de ocupação da
terra e de relacionamento com grupos locais, isto é, uma palavra que brota de relações
construídas no processo histórico da colonização e que opera a partir de uma concepção
própria desse processo. Se por um lado Seyferth diferencia usos e costumes próprios desses
grupos étnicos utilização cotidiana da língua, organização escolar ou religiosa próprias,
dentre outras, anteriores a reificação de uma cultura germânica pretendida original pelos
imigrantes e seus descendentes, portanto, estabelecendo uma distinção entre conteúdo
94
CAMPOS, Cynthia Machado. Identidades e Diversidades no Sul do Brasil: As Tentativas de
Homogeneização do Espaço Catarinense na Era Vargas. Fronteiras: Revista de História, Florianópolis, n.
7, 1999, p. 56 e 57.
95
SEYFERTH, Giralda. A Identidade Teuto-brasileira numa Perspectiva Histórica. In: MAUCH, Cláudia;
VASCONCELOS, Naira (org.). Os Alemães do Sul do Brasil Cultura, Etnicidade, História. Canoas:
ULBRA, 1994, p. 22 e 23.
74
cultural e etnicidade, por outro, ao propor o termo comunidade étnica para substituir grupo
étnico, aproxima-se, segundo ela própria, das “definições mais tradicionais, que ressaltam
usos e costumes comuns como base das diferenças”
96
. uma oscilação entre
características culturais mais ou menos orgânicas na constituição dos grupos étnicos.
Partindo do conceito de grupos étnicos tal como formulado por Weber
97
, podemos dizer
que os grupos étnicos se constituem subjetivamente ao tomar determinados aspectos de sua
vivência coletiva e os erigir em diferenciadores que constroem a si mesmos e aos outros no
mesmo processo. O acento no aspecto subjetivo de constituição desses grupos, ou seja, a
diferenciação entre traços culturais e identidades étnicas, tem sido uma constante nos
estudos sobre etnicidade. Isso tem levado autores a distinguir mais rigorosamente categoria
e grupo étnicos:
A primeira é definida com um simples agregado de indivíduos
colocados em condições comuns ou percebidos como similares
pelos outsiders (aí inclusos os etnólogos); o segundo não aparece
senão quando tais indivíduos compartilham um sentimento de
pertença comum, uma crença em uma mesma origem e dispõem de
organizações unificadoras.
98
A intenção desses autores é ressaltar o caráter subjetivo na constituição do grupo
étnico, fundado sobre um sentimento de pertencimento que remete para processos de
diferenciação cultural. A categoria colono, atribuída a todo descendente de imigrante
96
Ibid., p. 15.
97
Os grupos étnicos são “esses grupos que alimentam uma crença subjetiva em uma comunidade de origem
fundada nas semelhanças de aparência externa ou dos costumes, ou dos dois, ou nas lembranças da
colonização ou da migração, de modo que esta crença torna-se importante para a propagação da
comunalização, pouco importando que uma comunidade de sangue exista ou não objetivamente”. Apud
POUTIGNAT, Philippe e STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade. São Paulo: UNESP, 1998,
p. 37.
98
Ibid., p. 83.
75
europeu e utilizada como um diferenciador desses grupos em relação aos demais habitantes,
foi construída em oposição a categorias que demarcavam uma diferença em relação às
populações locais, saídas de outros processos imigratórios anteriores, e que eram
denominadas brasileiros ou caboclos
99
.
Na cidade carbonífera dos anos 1950 e 1960, colono expressava ainda ambigüidades
próprias ao processo que estamos descrevendo. Como sinônimo de trabalhador rural, a
palavra trazia consigo todos os preconceitos atribuídos pelos citadinos às populações do
campo, ao mesmo tempo em que era positivamente qualificada nos discursos sobre a
história da cidade, que situava o imigrante como principal personagem. Podemos perceber
essas ambigüidades em um artigo escrito por Sebastião H. Pieri por ocasião do dia do
colono
100
. Ainda que o artigo tenha uma clara intenção de elogiar os colonos, é possível
entrever em suas linhas algumas tensões que subsistiam entre uma matriz imaginária
carbonífera “brasileira” e uma matriz imaginária imigracionista – “européia”. No caso, as
letras vão além do que pretende o autor.
No artigo, Pieri identifica os colonos com os imigrantes para os elogiar. Afirmando
a saga dos pioneiros, coloca a atividade agrícola como instrumento de civilização na
medida em que trouxeram “o progresso para a enorme extensão não cultivada de nossa
pátria”. Pieri os chama de “os primeiros colonos que chegavam a nossa terra”. E os
homenageia qualificando-os de valentes e fortes e afirmando que tudo o que era a cidade
devia-se a bravura e tenacidade dos imigrantes. Entretanto, podemos observar também que
em algumas partes do artigo o autor se trai, ou melhor, determinadas representações sociais
99
CAMPOS, Cynthia Machado. Identidades e Diversidades no Sul do Brasil: As Tentativas de
Homogeneização do Espaço Catarinense na Era Vargas. Fronteiras: Revista de História, Florianópolis, n.
7, 1999, p 58.
100
“Colono – Vida da Coletividade” (Sebastião H. Pieri). Tribuna Criciumense, 29/07/1957, p. 7.
76
vêm à luz, talvez sem a colaboração consciente do articulista. De qualquer maneira, elas
emergem em seu artigo, como quando afirma que é necessário homenagear, além dos
imigrantes, “os colonos de nossa atualidade, que, com seu esforço e trabalho incessante e
profícuo garantem a nossa existência de nós que vivemos na cidade e nos ocupamos em
outros afazeres também eles tem direito de nossa gratidão e reconhecimento”. Ora, esta
divisão entre o “nós que vivemos na cidade” e os “colonos de nossa atualidade” remete
para um conjunto de representações que entende a cidade como o lugar por excelência da
cultura, em oposição ao campo, lugar da natureza. Assim, se parece que Pieri faz uma
concessão à agricultura ao afirmar que é essa atividade que garante a existência dos
citadinos, na verdade afirma ele a superioridade da cidade sobre o meio rural, como lugar
de identificação desse “nós”, o autor e os leitores, citadinos e cultos, em oposição à “eles”,
colonos trabalhadores e esforçados, mas que não possuem aquelas distinções culturais,
nesta matriz representacional, que os citadinos tem. uma perspectiva preconceituosa
evidente em relação aos habitantes do campo e aqui, malgrado a intenção do autor ou
apesar dela, o colono torna-se pejorativo. E mais ainda, na medida em que Pieri articulou o
colono ao imigrante, a qualificação de um passa ao outro, de tal maneira que não apenas os
que habitam no meio rural estão incluídos, mas também os grupos de descendência
européia, em especial os italianos, descendentes diretos dos imigrantes citados. Os
processos de atribuição identitária que ocorrem na cidade neste período parecem possuir
uma mão dupla, através da qual não apenas os grupos de descendentes de imigrantes
europeus qualificam os outros grupos e a si mesmos, mas são também qualificados e
desqualificados.
A tensão em relação aos imigrantes reaparece no último parágrafo do artigo, quando
Pieri fecha a sua homenagem:
77
Parabéns imigrantes colonos de nosso município! Muito obrigado e
que Deus recompense a despretensiosa coragem com que vos
embrenhastes por nossos sertões, fundando esta cidade que hoje se
orgulha de ser a Capital do Carvão e a verdadeira Metrópole do Sul
do solo barriga-verde!.
A divisão se estabelece aqui novamente em relação ao “nós” presente na expressão
“nossos sertões” e os “imigrantes colonos”. A impressão que se tem é que o autor afirma
nas entrelinhas que os imigrantes fizeram um determinado trabalho útil, e que por isso
devem ser homenageados e agradecidos, mas, por outro lado, esse trabalho localiza-se no
passado, no tempo da fundação da cidade, sendo que no presente são outros, identificados
como “nós”, que cooperam para o crescimento de Criciúma. Os dois lemas que fecham o
artigo, Criciúma Capital do Carvão e Metrópole do Sul, apontam claramente para a
natureza desse “nós”, aquele conjunto imaginário que se articula em torno da atividade
carbonífera e da afirmação dessa atividade como portadora do progresso. No artigo
reaparece uma certa divisão de trabalho na história da cidade que atribui a obra da
civilização aos imigrantes e a obra do progresso a atividade carbonífera.
Houve um longo caminho através do qual o significado da palavra colono, em
Criciúma, deslocou-se de uma atribuição ao habitante do meio rural para o de descendente
de imigrante habitante da cidade
101
. Esse caminho foi trilhado na direção de uma passagem
de um discurso sobre a imigração e imigrantes para um discurso sobre etnias e grupos
étnicos, passagem quase imperceptível, mas através da qual o discurso sobre a imigração
forneceu a base para um sentimento de pertencimento ao grupo étnico. As mudanças de
101
Para um exemplo da palavra tratada mais como sinônimo de trabalhador rural que de imigrante ver o artigo
de Ernesto Bianchini Góes intitulado “... o Abandonem os Colonos”, citado. Tribuna Criciumense,
30/05/1955, p. 5 e 6.
78
sentido da palavra colono e os tratamentos que ela recebe nos permitem acompanhar a
maneira como os relacionamentos sociais assumem um viés étnico crescente na cidade
carbonífera. Os grupos étnicos são entendidos como grupos sociais que se estabelecem a
partir das relações sociais, mais que como grupos sustentados por uma determinada
cultura
102
. Esses grupos étnicos se organizam a partir de sentimentos de pertença que não
podem ser definidos a não ser a partir de uma linha de demarcação, a fronteira étnica, que
define os membros e os não membros do grupo.
Quando se define um grupo étnico como atributivo e exclusivo, a
natureza da continuidade dos traços étnicos é clara: ela depende da
manutenção de uma fronteira étnica. Os traços culturais que
demarcam a fronteira podem mudar, e as características culturais
de seus membros podem igualmente se transformar apesar de
tudo, o fato da contínua dicotomização entre membros e não-
membros permite-nos especificar a natureza dessa continuidade e
investigar a forma e o conteúdo da transformação cultural.
103
Em Barth a cultura não é considerada como um elemento de definição dos grupos
étnicos, mas como o resultado da organização desses grupos, sobretudo como uma
conseqüência ou uma implicação de estabelecimento e de reprodução das fronteiras entre
si. Não que a especificidade cultural sustentada pelo grupo étnico não seja importante em
suas relações com outros grupos; ao contrário, são fundamentais para a manutenção das
fronteiras de pertencimento, porém, esse conteúdo cultural, por ser dinâmico, se modifica
102
Pensamos os grupos étnicos a partir da noção de ethnic boundary tal como formulada por Fredrik Barth,
cuja obra é considerada como o ponto de ruptura maior nos estudos de etnicidade. Barth conduz a
antropologia a se afastar de seu exclusivo interesse pelo conteúdo cultural dos grupos étnicos para centrar sua
análise sobre os elementos mais ecológicos e estruturais da etnicidade. MARTINIELLO, Marco. L’Ethnicité
Dans Les Sciences Sociales Contemporaines. Paris: PUF, 1995, p. 48 e 49.
103
BARTH, Fredrik. Os Grupos Étnicos e Suas Fronteiras. In: POUTIGNAT, Philippe e STREIFF-
FENART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade. São Paulo: UNESP, 1998, p. 195.
79
sem que, necessariamente, as fronteiras étnicas se transformem também. Não é a
especificidade cultural objetiva dos grupos sociais que define a etnicidade, mas a afirmação
de diferenças que traçam linhas de pertencimento e positivam a pertença a determinado
grupo. Assim, podemos dizer que o grupo étnico é o ator que, por sua ação no mundo
social, define a etnicidade
104
. São essas ações e relações que demarcam pertencimentos e
exclusões, e assim definem os grupos étnicos na cidade do carvão, que estamos
perseguindo.
Podemos perceber diversas representações sociais ligadas a esses processos de
atribuição de identidades étnicas em uma outra mensagem por ocasião ao dia do colono,
desta vez assinada pelo secretário municipal de agricultura de Criciúma, Luiz Gabriel
105
,
publicada em 1962. Inicia o secretário por identificar completamente o colono com os
“emigrantes (sic) que conosco promovem, dia a dia, sol a sol, a grandeza e a prosperidade
nacionais”. E acrescenta, para não deixar dúvidas, que a contribuição do colono, ou seja, do
imigrante, se dá “quer na faina lavoureira, quer na iniciativa industrial, quer ainda na
valiosa contribuição técnica ou profissional, o colono tem sido o colaborador eficiente na
nossa evolução social e material (...)”. O colono é, nesta mensagem, claramente
caracterizado como os descendentes de imigrantes, sem interessar em que setor econômico
eles estão exercendo sua atividade profissional. A noção de colono na mensagem extrapola
completamente a atividade agrícola, para expressar as atividades múltiplas dos
descendentes de imigrantes, até mesmo industriais, que seria comumente considerada como
o oposto da agricultura e, portanto, das atividades picas que caracterizariam o trabalho do
colono. Quando, no fim da mensagem, dirige-se especificamente aos agricultores, deixa
104
VILLAR, Diego. Uma Abordagem Crítica ao Conceito de “Etnicidade” na Obra de Fredrik Barth.
Mana, abr. 2004, vol. 10, nº 1, p. 165 – 192.
105
“Mensagem ao Colono” (Luiz Gabriel). Tribuna Criciumense, 28/07/1962, p. 1.
80
bem marcado que “envolve o reconhecimento dos méritos do colono na exploração
inteligente do fértil solo catarinense”. Ao tirar o colono do campo, ou talvez não deixá-lo
apenas no campo, está em jogo uma operação discursiva que visa valorizar o imigrante ao
não identificá-lo somente com o colono – agricultor.
Trabalha também o secretário, em sua mensagem, contra o estigma de se considerar
o colono como estando isolado em sua condição cultural, ao afirmar que além da valiosa
contribuição em várias atividades profissionais citadas, os colonos contribuem também
“como fator considerável e positivo no panorama da cultura, através de uma descendência
de altovel mental e moral”. O tom dessa afirmação, se combate os estereótipos negativos
vinculados aos colonos na dimensão da contribuição cultural, por outro lado, reafirma
representações de cunho biologista vinculadas ao melhoramento da raça pela introdução do
elemento europeu, presente na expressão através de uma descendência”. De fato, o
secretário em outras partes de sua mensagem argumenta explicitamente que uma das
contribuições, senão a principal, dos colonos foi em relação à “constituição de nosso padrão
étnico”. Ainda, quando se refere aos vultos políticos de origem européia:
Nem por outro milagre, que não o dessa miscigenação espontânea e
magnífica, é que, entre os vultos históricos de que nos orgulhamos
em comum no culto do civismo nacional há nomes que assinalam a
sua origem étnica, ombreando os que se vinculam pela genealogia
às tradições brasileiras.
O destaque de homens públicos que deixaram bem marcada sua origem étnica, e o
secretário cita Lauro ller e os Konder, não anula o processo de miscigenação que,
segundo a mensagem, deu origem ao povo brasileiro, mas, ao contrário, o valoriza na
medida em que foi pelo milagre desse processo que esses elementos étnicos citados,
81
provenientes da imigração européia mais recente, puderam se destacar e afirmar. Além
disso, faz ele uma distinção entre “homens que assinalam a sua origem étnica” e “os que se
vinculam pela genealogia às tradições brasileiras”. As expressões que o secretário utiliza,
de um lado “origem étnica” e de outro “tradições brasileiras”, opera uma distinção entre
aqueles que, no processo de miscigenação foram assimilados a um grande conjunto que ele
denomina exatamente “tradições brasileiras”, cuja origem perdeu-se no cadinho das raças
formadoras do Brasil, e aqueles que ainda possuem “origem étnica”, ou seja, conhecem a
sua procedência. Nesse sentido, divide ele ainda os homens públicos entre os de origem
étnica, isto é, imigrantes e descendentes de correntes imigratórias mais recentes, e os
“brasileiros”, miscigenados completamente. Talvez por isso louve o processo de
miscigenação “espontânea e magnífica”, pois permitiu a uma parte que se integrasse sem
perder as suas origens étnicas.
Ao afirmar que “há homens que assinalaram sua origem étnica” nos o secretário
pistas preciosas para entender quais os sinais, origem do termo “assinalaram”, que no
espaço público tiveram esses homens para marcar a sua origem. A etnicidade marca as
relações sociais a partir de determinados traços culturais, psicológicos ou físicos, ou uma
combinação deles, que são erigidos em marcadores simbólicos do grupo, sinais
publicamente reconhecidos que fundamentam uma relação contrastante entre os grupos
étnicos. A etnicidade se estabelece a partir da percepção dessa especificidade grupal
fundada sobre esses traços erigidos em emblemas, ainda que não tenham eles existência
objetiva despregada desse poder de nomeação. O citar os nomes de Lauro Müller e os
Konder não é fora de propósito. Na verdade, os patronímicos Müller e Konder é que
definem, para esses homens públicos, o sinal de sua descendência européia recente, no caso
a alemã. O patronímico tem então o caráter de marcador simbólico, e o perguntar ou
82
afirmar o sobrenome carrega consigo, em áreas de imigração, toda uma valoração cultural
da origem e da posição social. O sobrenome funciona como um indicativo de um estilo de
vida socialmente valorizado e afirmado publicamente, sem que tal estilo exista
efetivamente como prática social diferenciada. Entretanto, afirma-se aquilo que Weber
chama honra étnica, a pretensão de dignidade de determinadas características do grupo
étnico e o desprezo por traços de outros grupos
106
. Com dificuldades para se diferenciar
publicamente por seus costumes e situações culturais específicas, os grupos de
descendentes de imigrações mais recentes agarram-se cada vez mais aos patronímicos
como capazes de lhes dar uma marca positiva no espaço público, em sociedades cada vez
mais homogêneas do ponto de vista cultural. As festas de família, juntando muitas vezes
desconhecidos que se ligam apenas pelo patronímico comum, é a afirmação por excelência
dessa tendência social nas relações étnicas em áreas de imigração. O patronímico torna-se
um etnônimo, isto é, passa a designar um grupo humano provido de uma identidade própria
e homogênea.
Essas representações estão na base da prática social comum nessas áreas de
imigração de se denominar as pessoas que tem patronímicos vinculados as correntes
imigratórias mais recentes como de origem. Quando assim ocorre, se trata da mesma
distinção operada no texto da mensagem, entre aqueles que conhecem a sua origem por
participarem a menos tempo do processo de miscigenação e aqueles cuja origem perdeu-se
na “tradição brasileira”. Não dá, talvez, para se falar que nessa representação a intenção
seja afirmar que os últimos não tenham origem. Na verdade, as suas origens estão
misturadas na tradição brasileira. Porém, desconhecem eles exatamente sua origem por
106
Apud POUTIGNAT, Philippe e STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade. São Paulo:
UNESP, 1998, p. 40.
83
conta dessa mistura. Talvez existam aqui elementos que valorizam a idéia de pureza racial.
Se assim é, o elogio do milagre da miscigenação feito pelo secretário tem efeito retórico.
Ou ainda, é um elogio que louva a miscigenação apenas na medida em que ela permite que
uma parte da população permaneça pura, isto é, tenha origem.
A cidade carbonífera foi sendo classificada com base também em outros critérios
que não somente aqueles que advinham do carvão mineral. Os grupos de descendentes de
imigrantes recorriam a diacríticos que lhes permitisse afirmar publicamente uma diferença
e, nesta operação, valorizar sua própria identificação.
Formação do Centro Urbano Como Diacrítico Étnico
A ocupação de determinados espaços do município foi um desses diacríticos de
afirmação dos grupos étnicos. Alguns espaços sofreram um processo de territorialização,
tendo a localidade assumido uma identidade relacionada a determinado grupo étnico, como
é o caso de Forquilhinha, identificada com os descendentes de alemães e Linha Batista,
com descendentes de poloneses. No entanto, foi na formação do centro da cidade que se
verificou mais claramente um processo de diferenciação espacial, fruto de processos
econômicos e políticos, que teve também elementos de caráter étnico.
O centro urbano atual de Criciúma definiu-se efetivamente a partir do início da
exploração do carvão mineral em Criciúma, a partir da década de 10 do culo XX. Houve
evidentemente um processo anterior de centralização urbana, a partir de elementos próprios
da vida social do núcleo colonial fundado em 1880, como a construção da igreja católica e
o cruzamento de estradas coloniais, mas foi a exploração do carvão mineral que tornada a
84
atividade econômica predominante na cidade e por muito tempo forneceu a base social
principal para a formação do centro urbano. É preciso lembrar que o espaço não é
meramente o invólucro que agasalha determinadas relações sociais. Ele é, na verdade,
espaço social, na medida em que se forma a partir das relações presentes na sociedade e, ao
mesmo tempo, serve de suporte material para o exercício dessas relações
107
. Se o que define
o grupo étnico é a fixação de fronteiras em relação aos outros grupos, mais que a sua
matéria cultural específica, o lócus de estabelecimento dessas fronteiras é o social. Porém,
diz Barth
108
, pode haver contrapartidas territoriais. Neste caso, em relação à Criciúma,
habitar no centro tornou-se um meio de manifestar uma pertença a um determinado grupo,
em primeiro lugar econômico, mas também com conotações étnicas.
A delimitação do centro de Criciúma se deu a partir do contraste que seus habitantes
fizeram em relação à atividade de exploração do carvão mineral e às localidades que
surgiam, nas proximidades do centro, relacionadas com as minas de carvão. As primeiras
minas foram abertas em Criciúma nas proximidades do atual centro, aproveitando as
encostas do morro Cechinel (Morro da TV), a partir das quais abriam-se túneis que
encontravam os veios do carvão. Essas minas, como a do bairro Santo Antônio e a da
Carbonífera Próspera que foram as principais nesse período, e a mina Brasil, mina do
Bainha, outras que surgiram nas imediações do bairro Operária Nova, foram abertas entre
1916 e a segunda guerra mundial, todas muito próximas do centro. Para se ter uma idéia da
proximidade do centro em relação ao carvão, basta dizer que até a cada de 40, carros de
bois subiam a rua João Zanette, uma das principais da cidade, carregados com carvão para
107
SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. edição. São Paulo:
Hucitec, 1997.
108
BARTH, Fredrik. Os Grupos Étnicos e Suas Fronteiras. In: POUTIGNAT, Philippe e STREIFF-
FENART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade. São Paulo: UNESP, 1998, p. 195.
85
serem levados até a estação ferroviária, localizada no centro, onde havia um depósito de
carvão a ser embarcado nos trens e levado aos portos de Laguna e Imbituba
109
.
O contexto histórico de territorialização do centro urbano foi o da economia do
carvão e do deslocamento de populações das localidades vizinhas a Criciúma, populações
em sua maioria constituída por “brasileiros”. Em vista da manutenção de sua identidade e
interesses, os habitantes do centro da cidade lançaram mão de diferenças em relação aos
grupos de trabalhadores que chegavam para trabalhar nas minas, para afirmar sua própria
origem e distinção. São os contatos entre os grupos sociais, e não o isolamento capaz de
preservar uma cultura, que está na base da diversidade étnica. Barth critica a definição
usual de grupo étnico, aceita na antropologia, que enfatiza a unidade entre grupo isolado e
manutenção de especificidade cultural e demonstra sua limitação na medida em que “somos
levados a imaginar cada grupo desenvolvendo sua forma cultural e social em isolamento
relativo, essencialmente, reagindo a fatores ecológicos locais, ao longo de uma história de
adaptação por invenção e empréstimos seletivos. Esta história produziu um mundo de
povos separados, cada um com sua cultura própria e organizado numa sociedade que
podemos legitimamente isolar para descrevê-la como se fosse uma ilha”
110
. Na verdade, a
produção e manutenção de fronteiras étnicas baseiam-se no reconhecimento público das
diferenças étnicas no contexto das interações sociais.
A área do centro de Criciúma definiu-se em oposição à área de carvão que existia
em sua proximidade. Ao redor das minas de carvão, formavam-se comunidades de
trabalhadores mineiros que se chamavam vilas operárias. Normalmente as companhias de
109
Bernardino João Campos em entrevista concedida a Dorval do Nascimento em 10/05/2000. Bernardino
João Campos nasceu em Porto Belo em 1916 e chegou em Criciúma em 1940, estabelecendo-se como
comerciante a partir de 1946.
110
BARTH, Fredrik. Os Grupos Étnicos e Suas Fronteiras. In: POUTIGNAT, Philippe e STREIFF-
FENART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade. São Paulo: UNESP, 1998, p. 190.
86
mineração disponibilizavam pequenas casas e outros serviços, como açougue, mercado,
salão de bailes e campo de futebol, como forma de atrair a mão de obra e, ao mesmo tempo,
controlá-la. As vilas operárias mais importantes desse período foram a da Próspera e de
Operária Velha, atual bairro Santa Bárbara. Entretanto, vilas operárias menores ou bairros
populares formaram-se ao redor do centro da cidade. Ao norte do centro, existiam as
localidades de Vera Cruz - Morro do Bainha e, mais longe, Mina do Mato e Mina
Naspolini. Ao leste, havia uma antiga área de mineração, vinculada à carbonífera Próspera,
conhecida como Bairro Pio Corrêa. Ao oeste do centro, era a área sob controle da CBCA
Companhia Brasileira Carbonífera Araranguá, a mais importante empresa de mineração até
a década de 40. A CBCA possuía sua antiga vila operária e construiu, nos anos 40, uma
nova vila de mineiros, respectivamente os atuais bairros Santa Bárbara e Operária Nova.
Mais próximo do centro, nas imediações da rua Henrique Lage, entre a rua Anita Garibaldi
e a rua Wenceslau Bráz, a CBCA possuía casas para os funcionários mais graduados da
empresa. Ao sul do centro, havia a linha férrea da Estrada de Ferro Dona Tereza Cristina, a
partir da qual existiam os bairros Michel, Comerciário e São Cristóvão. A ferrovia,
vinculada à economia e a cultura do carvão, demarcava o fim do centro na parte sul. O
“lado de dos trilhos” não era considerado como centro da cidade, mas como tendo uma
espacialidade própria e diferenciada
111
.
A distinção entre centro da cidade e o que se chamava zona de mineração
expressava diferenças que se situavam no campo das relações econômicas e culturais.
Havia, no entanto, uma correlação entre as fronteiras sociais e as fronteiras étnicas, de tal
maneira que a organização das identidades étnicas, e sua expressão territorial, guardava
111
NASCIMENTO, Dorval do. As Curvas do Trem A Presença da Estrada de Ferro no Sul de Santa
Catarina. Criciúma: UNESC. 2004.
87
uma correspondência com a divisão social de caráter econômico. Os habitantes das zonas
de mineração eram identificados, em geral, como os brasileiros, migrantes que não eram
originários da cidade. Nas fontes do período percebe-se uma tensão em torno da condição
de “legítimo criciumense”. Os profissionais de classe média chegados à cidade carbonífera
- médicos, advogados, funcionários graduados das carboníferas eram incorporados a elite
étnica do centro urbano através, principalmente, do casamento. A transposição da fronteira
étnica se realizava por meio da inclusão social, na medida em que o brasileiro tinha a sua
origem desconsiderada, ou a falta dela, como qualidade que emanava do cônjuge. Nodari,
em seu estudo sobre a renegociação das fronteiras étnicas no oeste de Santa Catarina,
afirma que a elite de origem portuguesa era incluída na vida cio-cultural das
comunidades teutas e ítalas, enquanto que “a exclusão que existia era a do caboclo, que
havia se retirado para outras áreas, por imposição das colonizadoras”
112
. Há um cruzamento
dos dados sociais e culturais de pertencimento, e as linhas de fronteiras étnicas e de classes
quase estão estabelecidas uma por sobre a outra.
A atribuição de nomes próprios, os bairros, a “pedaços” espaciais que até então não
tinham personalidade, constituindo-os como um território destacado e desvinculando-os do
centro, não foi uma operação ingênua. Na verdade, percebe-se que a manutenção de um
espaço geográfico próprio, desvinculado do carvão, foi uma maneira das famílias da área
central preservarem a sua identidade e seus interesses, demarcando claramente a sua
superioridade em relação às pessoas que viviam do carvão. É a manutenção daquilo que
112
NODARI, Eunice Sueli e VIEIRA, Alexandre Sarda. O Oeste de Santa Catarina: A Renegociação das
Fronteiras Étnicas. Fronteiras - Revista Catarinense de História. Florianópolis, 09, dez/2001, p. 49.
88
Pierre Bourdieu chamou de capital cultural, ou seja, determinadas qualidades simbólicas e
culturais que permitem uma vantagem nas relações sociais
113
.
Em vista disso, mesmo determinadas áreas que estão situadas no centro da cidade,
mas que guardaram uma relação ou proximidade com a atividade carbonífera, tornaram-se
de identidade incerta, diluída. É o caso, por exemplo, da rua Marcos Rovaris e suas
imediações, construída na década de 20 para que os trabalhadores da vila operária da
Carbonífera Próspera tivessem acesso rápido ao centro e, além disso, localizada nas
proximidades do bairro Pio Corrêa. Ou a área de casas dos funcionários mais graduados da
CBCA, citada. São áreas que de alguma maneira eram identificadas com os territórios
próprios que as companhias carboníferas construíram no município de Criciúma e que, por
isso, tiveram a sua identificação com o centro contaminada. São espaços - fronteiras, áreas
híbridas, de identidade incerta, que estão no centro urbano, mas é como se nele não
estivessem.
Essas expressões de etnicidade no espaço público encontraram também ocasião para
se exprimirem através de um monumento erguido em uma das praças do centro de
Criciúma.
Monumento ao Imigrante Como Discurso Sobre a Cidade
O Monumento ao Imigrante foi inaugurado em Criciúma no dia seis de Janeiro de
1966, em uma pequena praça localizada no centro da cidade. O monumento consiste em
duas pedras de moinho sustentadas por três colunas revestidas de azulejo. Os elementos que
113
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Lisboa/Rio de Janeiro: Difel/Bertrand Brasil, 1989.
89
constituem o monumento, bastante simples, guardam entretanto uma relação muito próxima
com o que se pensava da cidade naquela época. Vamos tratar o monumento como uma
síntese da cidade naquele período, ou melhor, uma síntese de um desejo de cidade que ali se
manifestava como uma figura de linguagem, dando a ler representações em forma de
discurso fixado em pedra.
Paul Ricoeur vislumbra a possibilidade de ler o vivido e o sentido da cidade em seus
marcos de pedra, o que nos possibilita pensar que é possível ler a identidade urbana através
do monumento público. uma narrativa do espaço construído, no sentido trazido por
Ricouer quando afirma que há proximidades entre a narratividade, que consiste em pôr uma
intriga no tempo, e a arquitetura, incluídos os traçados de ruas e praças, que poderia ser
vista como uma operação narrativa configurante em relação ao espaço
114
. Explorando ainda
um pouco mais a semelhança referida por Ricoeur, é possível dizer que tanto a narrativa
quanto a arquitetura tem possibilidade de tornar presente o ausente que existiu, funcionando
assim como memória, através do contar e do construir. O construído torna-se suporte da
memória e do imaginário urbano, contando uma história de sonhos que pode ou não ter se
realizado.
O interesse é encontrar determinados sentidos que se pretendiam atribuir à cidade,
como futuro ou como portadora deles, e que podem ser encontrados ou relacionados ao
monumento. O monumento assim pode ser um índice da identidade urbana, revelador de
sentidos que se lhe atribuíam. Esses sentidos aparecem articulados a determinados
imaginários sociais que são fundamentais serem decifrados para que àquela realidade
histórica seja compreendida. Os imaginários sociais são, na definição dada por Bronislaw
114
RICOEUR, Paul. Architecture e Narrativité. Urbanisme, nov/dec 1998, nº 303.
90
Baczko, um sistema complexo de representações que avaliam e qualificam o real, um
aspecto da vida social através dos quais as coletividades atribuem sentido ao mundo, a si
mesmas e aos outros, ou como afirma, “através de seus imaginários sociais, uma
coletividade designa a sua identidade; elabora uma certa representação de si; estabelece a
distribuição dos papéis e das posições sociais; exprime e impõe crenças comuns; constrói
uma espécie de código de ‘bom comportamento’, designadamente através da instalação de
modelos formadores tais como o do ‘chefe’, o ‘bom súdito’, o ‘guerreiro corajoso’, etc”
115
.
Ora, os imaginários sociais operacionalizam-se através da produção de discursos, isto é,
como um sistema de linguagem inteligível que busca modelar as representações, impondo
àquele modo específico de representar o mundo a todo o corpo social. Daí a possibilidade
de ler imaginários sociais no monumento em questão.
Busca-se pensar o imaginário no plural. Seguindo as pistas de Baczko, é possível
afirmar que um nível do imaginário que se coloca como em comum a toda à sociedade,
que funciona como uma resposta a seus desequilíbrios e tensões e que lhe permite, no
limite, a convivência em comum. Mas um outro nível, onde o imaginário se pluraliza, e
as representações sociais se constituem em determinados sistemas que buscam capturar a
alma de uma cidade. É preciso lembrar que Baczko conjuga o imaginário com a sociedade e
com a política, ressaltando a importância que tem o controle do imaginário social e de sua
difusão, que “assegura em graus variáveis uma real influência sobre os comportamentos e
as atividades individuais e coletivas, permitindo obter os resultados práticos desejados,
canalizar as energias e orientar as esperanças”
116
. Vamos perceber, na medida em que
115
BACZKO, Bronislaw. Imaginação Social. Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da
Moeda, 1985, p. 309.
116
Ibid., p. 312.
91
discutirmos a identidade urbana de Criciúma através do Monumento ao Imigrante, que
alguns imaginários sociais circulavam na cidade e buscava dar-lhe um sentido próprio.
A figura de linguagem, no caso, através da qual o monumento fala, é a alegoria. A
intenção de ler o monumento através da alegoria vem, em primeiro lugar, pela
complexidade dessa figura de linguagem. A alegoria costuma ser conceituada como uma
representação concreta de uma idéia abstrata e é mais complexa que uma metáfora por ser
mais detalhada, tendo um maior número de elementos comparativos no mesmo corpo de
comparação
117
. Ainda que seja uma figura de linguagem, a alegoria costuma estar presente
também na pintura e na escultura. Como figura de linguagem, é possível encontrar a
alegoria em variados discursos, como na publicidade, pintura, escultura, por exemplo, ou,
como no nosso caso, na narrativa arquitetônica da cidade. A imagem da justiça, com seus
olhos vendados, a espada e a balança nas mãos, representando a sua imparcialidade, o
poder de aplicar suas decisões e a capacidade de julgar, é uma das mais recorrentes quando
se trata da alegoria. Flávio Kothe chamou, em vista disso, a atenção para o caráter
convencional da alegoria
118
, porque se repete continuadamente os mesmo significados para
os mesmos significantes, ossificando assim uma mesma interpretação estabelecida. Ele
afirma ainda que o signo alegórico, assim, possui um caráter icônico, com seu significado
definido. Entretanto, quando se trata de imagens que a interpretação não está ainda
estabelecida, a alegoria pode revelar-se um excelente meio de compreensão de
determinados modos de manifestação das representações, na medida em que, como afirmou
Jeanne Marie Gagnebin, o significado é extraído através do labor intelectual, que a
117
KOTHE, Flávio René. A Alegoria. São Paulo: Ática, 1986, p. 6 e 7.
118
Ibid., p. 16.
92
relação que se estabelece é arbitrária, no sentido de não ser transparente e não estar,
portanto, pré-definida
119
.
Walter Benjamin foi quem reabilitou a alegoria enquanto figura de linguagem capaz
de expressar o mundo social de nosso tempo, em detrimento da transparência do símbolo,
por ser talvez a única figura a dar conta das contradições da época moderna. A alegoria
trabalha exatamente a partir de uma vida e de um sujeito que se estabelecem no fragmento e
na incapacidade de se ter um sentido unitário da realidade. Ora, diz Benjamin, é exatamente
essa a condição trazida pelo capitalismo na modernidade, o que explica o ressurgimento da
alegoria em um poeta como Baudelaire, um dos primeiros a compreender o papel
diferenciado que o intelectual teria diante da modernidade e do mercado: o poeta é obrigado
a vender sua mercadoria, a obra, no mercado. Baudelaire recusa-se a ser um mero produtor
de mercadorias, a não ser com a condição de poder refletir sobre essa nova situação, o que
faz ao assimilar sua condição no mercado na produção de sua poética
120
. Assim, é a
alegoria uma figura de linguagem adequada, pois mostra as contradições trazidas pela
organização capitalista da vida moderna, renunciando a uma harmonia e transparência que
não mais existe.
Desta discussão em torno da alegoria, me interessa reter para a análise a capacidade
que a linguagem alegórica tem de ultrapassar o aparente e buscar sentidos que se enxergam
para além do que está dado. A alegoria é figura que revela o outro, fala de algo que não ela
mesma, daí no grego allos, outro, e agorein, falar, ou seja, manifestar o outro, que está
oculto
121
. Numa leitura alegórica do Monumento ao Imigrante, pretendo tomar os seus
119
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin – Os Cacos da História. 2ª edição. São Paulo: Brasiliense,
1993, p.46.
120
Ibid., p. 42 – 45.
121
Ibid., p. 41.
93
elementos constitutivos como guia para conhecer os imaginários sociais presentes em
Criciúma na década de 1960. Esses imaginários sociais articulavam-se em uma operação de
releitura étnica da cidade, através de estratégias de ação que buscavam valorizar a presença
dos descendentes de imigrantes europeus, no caso italianos, alemães e poloneses, no espaço
da cidade.
O primeiro elemento presente no monumento, com o qual começaremos a entendê-
lo, são as três colunas que sustentam as pedras de moinho. Não há nada, no próprio
monumento, que nos indique o seu significado. Entretanto, ficamos conhecendo esse
significado através de uma notícia de jornal que informou sobre a inauguração do
monumento, onde se afirma que este
Foi construído pela Prefeitura, na administração Arlindo Junkes e é
composto de duas pedras de moinho sustentadas por três colunas,
estas simbolizando as nacionalidades dos imigrantes italianos,
alemães e poloneses, que de 1880 em diante aqui se fixaram.
122
A notícia deixa bastante claro que as colunas representam os três grupos principais
de imigrantes europeus que compuseram a população criciumense: os italianos, fundadores
do núcleo colonial, em 1880; alemães, que vieram para o território do então distrito de
Criciúma no início do século XX, fixando-se principalmente na localidade de Forquilhinha;
e os poloneses que se fixaram na área leste do município em fins do século XIX. Ora, o
identificar as colunas, o elemento material mais visível do monumento, com os grupos de
imigrantes aponta para uma valorização desses grupos e seus descendentes como
formadores da cidade e o seis de janeiro, data da chegada dos primeiros imigrantes italianos
122
“Inaugurado no dia 6 o monumento ao imigrante”. Tribuna Criciumense, 546, 08/01/1966, p. 8.
94
à futura área do município, como marco fundador. O próprio fato de serem as colunas a
representarem esses grupos, e não outro elemento qualquer, desvela essa intenção, na
medida em que ‘coluna’ remete à sustentação de algo, sendo um dos elementos mais
importantes senão o mais em um edifício. No Monumento ao Imigrante, a cidade é
alegorizada como construção, sendo representada como sustentada pelos grupos de
imigrantes europeus presentes em Criciúma. Revela-se, desta forma, presente no
monumento a partir das suas colunas, uma estratégia de valorização das famílias mais
tradicionais da cidade, descendentes de imigrantes europeus.
Monumento ao Imigrante (Criciúma/SC).
A estratégia de valorização de representações que se articulam em um imaginário
que tem sua matriz fundada na etnicidade foi se delineando lentamente no decorrer das
décadas de 1950 e 1960. Em 1951, o prefeito de então, Paulo Preis, descendente de
alemães, ele próprio vindo de outra colônia para Criciúma com seus pais em 1918,
sancionou uma lei que denominava 6 de janeiro uma rua, que então se valorizava em vista
95
da abertura da rua Marechal Deodoro para se fazer o contorno do centro de Criciúma em
direção à cidade de Araranguá. Na mesma lei, autorizava o executivo a construir a pequena
praça onde seria instalado o monumento, bem como contratar a elaboração de sua planta:
Art. - Será construído pequeno logradouro triangular no final da
citada rua, o qual tomará a designação de “Praça do Imigrante”.
Art. - Fica o executivo autorizado a contratar engenheiro ou
empresa de arquitetura para elaborar a planta de um monumento
que será localizado na aludida praça, em homenagem aos
imigrantes que fundaram a cidade.
123
Rua 6 de Janeiro, Praça do Imigrante e monumento em homenagem aos imigrantes:
tomavam-se medidas, desde o início dos anos cinqüenta, para se espacializar formas de
representações que determinados grupos sociais elaboravam sobre a cidade. O fato de o
monumento ter sido autorizado em 1951 e inaugurado apenas em 1966 demonstra as
dificuldades que tinham essas representações para afirmarem-se socialmente, constituindo-
se como um imaginário dominante. Isso significa afirmar, na linha aberta por Roger
Chartier
124
, que essas representações não são neutras, ou seja, elas buscam impor-se
socialmente, buscando prevalecer e moldar toda uma forma de ver e de julgar o mundo
social. Assim, buscar entender essas representações em seus conflitos não significa abrir
mão do entendimento do social, pelo contrário, significa mesmo adentrar no âmago aonde o
social é decidido. Como afirma Chartier, a investigação sobre as representações “supõe-nas
como estando sempre colocadas num campo de concorrências e de competições cujos
desafios se enunciam em termos de poder e de dominação. As lutas de representação têm
123
CRICIÚMA. Lei nº 72, de 29/12/1951. mara Municipal de Criciúma.
124
CHARTIER, Roger. A História Cultural entre Práticas e Representações. Lisboa: Difel, Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1990.
96
tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais
um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção de mundo social, os valores que são seus,
e o seu domínio”
125
.
Em relação ao nosso tema, isso transparece nos jornais que circulavam em Criciúma
nesse período. O jornal Folha do Povo, semanário que circulou entre 1949 e 1953, dirigido
pelo advogado trabalhista Pedro Vergara Corrêa, que era assessor jurídico do Sindicato dos
Mineiros de Criciúma, e a Tribuna Criciumense, semanário fundado em 1955 pelo também
advogado José Pimentel, que circulou na cidade até os anos noventa
126
. Não mais existem
em arquivo todos os números do Folha do Povo, mas apenas àqueles referentes ao ano de
1952. Nesse ano, em relação ao dia seis de Janeiro, data de fundação do núcleo colonial e,
portanto, marco bastante valorizado pelo imaginário da imigração, não uma única
palavra sobre aniversário de Criciúma ou sobre imigrantes
127
. E isso quando o prefeito da
cidade, Paulo Preis, aprovava lei no final de 1951, já citada, que criava uma série de marcos
urbanos relacionados à imigração, certamente visando às comemorações da fundação da
cidade em 6 de janeiro de 1952. Isso poderia expressar disputadas partidárias da época, mas
que eram perpassadas por imaginários sociais que valorizavam ou desvalorizavam uma
certa maneira de representar a cidade. Por outro lado, a primeira edição da Tribuna
Criciumense referente ao seis de janeiro, em 1956, foi totalmente dedicada à comemoração
do 76º aniversário de fundação da cidade
128
.
125
Ibid., p. 17.
126
MACHADO, Agilmar. História da Comunicação no Sul de Santa Catarina. Criciúma: BTC
Comunicação, 2000, p. 80.
127
Folha do Povo, 53, 07/01/1952.
128
Tribuna Criciumense, nº 37, 09/01/1956.
97
Desta forma, as colunas representando os grupos de imigrantes italianos, alemães e
poloneses no Monumento ao Imigrante revelam uma intenção de representar espacialmente
no corpo da cidade um imaginário étnico que vinha se valorizando em seu espírito.
O segundo elemento presente no monumento, e que aparece de forma central, são
duas pedras de moinho sustentadas pelas três colunas referidas. Na placa fixada no
monumento por ocasião de sua inauguração, podemos compreender qual o significado
dessas pedras:
Movidas Pela Força Humana
Estas pedras foram roladas entre mata virgem, cerca de 40 Km,
Destinadas à primeira indústria de Criciúma, em 1880.
Promoção da Uesc
129
na gestão 63/64, executada pelo Prefeito
Arlindo Junkes.
Em 6 – 1 – 1966.
Homenagem aos Bravos Colonos Fundadores desta Cidade.
As pedras de moinho destinavam-se a homenagear os fundadores da cidade, como
diz a placa comemorativa, e nesse sentido elas participam daquele imaginário que havia se
articulado em torno da imigração. As pedras foram, como afirma a placa, movidas com
muito esforço e “destinadas à primeira indústria de Criciúma, em 1880”, ou seja, no ano
mesmo de chegada dos primeiros imigrantes e fundação da cidade. Colocava-se, desta
maneira, o crescimento da cidade sob a égide dos imigrantes que, com grandes sacrifícios,
haviam sido os primeiros impulsionadores do progresso de Criciúma. A matéria jornalística
que narrou a inauguração do monumento confirma essa intenção:
129
União dos Estudantes Secundários de Criciúma, fundada em 12 de Março de 1960. Cf. NASPOLINI
FILHO, Archimedes. Criciúma, Orgulho de Cidade Fragmentos da História de seus 120 Anos.
Criciúma: edição do Autor, 2000.
98
Posteriormente elevado número de pessoas compareceu à praça
onde foi cortada a fita simbólica ocasião em que os senhores
Arlindo Junkes e Lúcio Nuernberg discorreram sobre aquele
histórico monumento que é o símbolo de nossa primeira indústria e
cujas pedras em sua aparência tosca e simples significam a
primeira alavanca para o trabalho e o progresso de nossa terra.
130
As pedras de moinho são apresentadas como a origem que permitiu o progresso da
cidade. Ao serem roladas por quarenta quilômetros pela mata virgem, mostram todo o
esforço e heroísmo do imigrante para trazer o progresso a esta parte da América. Trabalham
nessa narrativa representações vinculadas à relação entre cultura e natureza, e o papel do
homem europeu como portador da civilização. Não é o caso de se perguntar se essas foram
mesmo as pedras roladas pela mata ou se existiu alguma pedra nessa condição. Isso é pouco
provável. O que nos interessa é perceber esse movimento de atribuição de valor que esses
grupos sociais deram a essa materialidade, atribuindo a ela um significado que dava sentido
a sua existência e os situava na cidade.
Porém, as pedras dizem mais. A narrativa jornalística as apresenta como “símbolo
de nossa primeira indústria”. No monumento, as colunas que significam os grupos
imigrantes, sustentam as pedras de moinho, símbolo da indústria e do progresso da cidade.
O significado é transparente, quase simbólico: os imigrantes é que foram os promotores da
industrialização e do progresso de Criciúma. Há, no entanto, algumas áreas opacas nessa
caracterização. Primeiro, que a principal atividade econômica do município, que
efetivamente lhe permitiu o crescimento, foi a extração do carvão mineral e, ainda que
tivesse participação de imigrantes locais, não foram esses grupos descendentes dos
130
“Inaugurado no dia 6 o Monumento ao Imigrante”. Tribuna Criciumense, 546, 08/01/1966, p. 8.
99
colonizadores que se tornaram os principais empresários do carvão. Segundo, que as pedras
de moinho remetem a uma outra indústria, diferente da chamada indústria carbonífera, que
não possui fábricas e cuja atividade consiste em extração de matéria-prima, portanto algo
que não se pode mesmo caracterizar comumente como indústria. O desejo de se ter uma
outra indústria, diferente da carbonífera, que ao mesmo tempo permitisse diminuir a
importância do imaginário articulado em torno do carvão, que este remetia a força do
movimento sindical mineiro, dos mineradores como articuladores políticos e do
nacionalismo, e valorizar ou revalorizar outros grupos sociais que se pretendiam os
legítimos fundadores da cidade, talvez esteja a chave para compreender as pedras de
moinho no Monumento ao Imigrante.
No monumento a preocupação com a imagem da cidade e, ao mesmo tempo, com a
diversificação industrial, aparece também relacionada com o revestimento cerâmico das
três colunas que sustentam as pedras de moinho, fechando assim o magma de significações
que o monumento apresenta. Não registro conhecido sobre a data em que as colunas
foram revestidas, se na construção do monumento ou posteriormente. De qualquer maneira,
foi no período em que estamos tratando, década de 1960 ou no máximo primeira metade
dos anos 1970, quando se valorizou muito o tema da diversificação e da mudança da
paisagem urbana. Nesse período, se fez uma campanha para que as residências e prédios da
área central fossem revestidos com azulejo, o que efetivamente ocorreu em muitos casos,
ao mesmo tempo em que se acrescentavam as palavras ‘e do Azulejo’ ao lema oficial da
cidade como ‘Capital do Carvão’. Buscava-se, assim, relacionar ao imaginário da imigração
as representações relacionadas com o progresso, a diversificação industrial e,
principalmente, a cidade moderna.
100
O Monumento ao Imigrante, construído em 1966, é o único monumento de
Criciúma, dos que foram levantados até 1980, ano do centenário da colonização, que não se
relaciona ao carvão, ou melhor, que não é comemorativo do imaginário do carvão. O
Monumento ao Imigrante se contrapõe, em uma luta simbólica, ao Monumento aos Homens
do Carvão erguido em 1946 no centro da praça Nereu Ramos, a principal da cidade. O
Monumento aos Homens do Carvão é um monumento-símbolo, transparente, a simbolizar a
pujança da indústria carbonífera e as relações fraternais entre operários e empresários. Isso
não significa que o monumento não possa ser problematizado e desconstruído no discurso
que faz sobre a cidade, mas, significa que a língua que ali aparece é a daqueles que
situaram o seu poder sobre um imaginário que estava estabelecido. Não necessidade
de muito esforço para entender o que ele quer dizer.
O Monumento ao Imigrante não se situa na praça principal, mas numa das menores
da cidade, a demonstrar a fraqueza das representações que evocava por ocasião da sua
inauguração. Ele expressa um imaginário que lentamente foi se impondo ao opor o
imigrante fundador da cidade ao “homem do carvão” que chegou depois, a indústria
diversificada a mono-indústria carbonífera, enfim, a cidade nova e étnica à antiga cidade do
carvão, que deveria ser esquecida, e acabou por se tornar o principal elemento de identidade
da cidade de Criciúma.
CAPÍTULO 3
DA CABEÇA DE ZEUS
O PARTO DA NOVA CIDADE
A Prefeitura de Criciúma, conforme relatou matéria do Jornal do Sul em 1977,
plantava coqueiros ao longo da Avenida Axial, “ganhando dessa forma um novo aspecto
que a transformará radicalmente sob todos os ângulos de visualização”
131
. A principal
avenida da cidade ganhava uma roupagem vegetal que a humanizava. As razões apontadas
para o plantio dos coqueiros iam desde a necessidade de se implantar áreas verdes na
cidade até o favorecimento do trânsito de veículos durante a noite, diminuindo “a densidade
de ofuscamento provocada pelos faróis altos dos carros que trafegam em sentido contrário,
entrando ou saindo da cidade”. Poder-se-ia, inclusive, lembrar que a presença de coqueiros
ao longo da mais moderna via pública da cidade remete também à época da fundação do
núcleo colonial, que teria sido feita junto a um Rio Criciúma ladeado de coqueiros
132
.
Entretanto, é sob os “ângulos de visualização” que a obra de plantio dos coqueiros foi
131
“Coqueiros Para Embelezar Axial”. Jornal do Sul, 16/07/1977, p. 8
132
FERREIRA, Jurandir Pires (direção). Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Volume XXXII. Rio de
Janeiro: IBGE, 1959, p. 81 – 87.
102
avaliada, demonstrando uma preocupação exacerbada com a estética da cidade neste
período.
O que se pretende neste capítulo é acompanhar as preocupações com a imagem da
cidade de Criciúma através, principalmente, da imprensa estadual e nacional, de um lado, e
perceber as intervenções do poder público no corpo mesmo da cidade, ao mesmo tempo
mudando a cidade vivida e a cidade representada no espaço público. Buscaremos decifrar
uma certa estratégia de aparência da cidade
133
, que engloba tanto a sua exposição mediática
quanto a forma concreta como as intervenções urbanas se realizaram. Para além de
contrapor uma cidade concreta e uma cidade metafórica, ainda que tenha conhecimento da
existência desta dicotomia, o que se pretende é relacionar esses dois níveis de aparecimento
e leitura da cidade real, “concreto-imaginária”.
A Cidade Carbonífera Vista Pelo País
Em junho de 1967 a revista Realidade, em seu número 15, trouxe uma reportagem
de várias páginas sobre Criciúma e a região carbonífera. Revista de circulação nacional
lançada em abril de 1966 com uma tiragem de 250.000 exemplares que se esgotaram em
três dias, publicada em São Paulo pela editora Abril entre 1966 e 1976, Realidade trazia em
suas páginas temas controversos para a época como divórcio, casamento de padres,
liberação feminina, homossexualismo, e outros
134
. Também se encontram em suas ginas
133
MONS, Alain. La Métaphore Sociale – Image, Territoire, Communication. Paris: PUF, 1992.
134
FARO, J. S. Revista Realidade 1966 – 1968Tempo da Reportagem na Imprensa Brasileira. Canoas:
Editora da Ulbra/AGE, 1999. MORAES, Letícia Nunes de Góes. A Dança Efêmera dos Leitores
Missivistas na Revista Realidade (1966 1968). 2001. Dissertação de Mestrado em História. USP, o
Paulo.
103
reportagens sobre tipos humanos, profissões e cidades do interior do Brasil. Sob o tulo
Eles vivem Embaixo da Terra e tomando o trabalho mineiro como tema inicial, a edição de
junho de 1967 apresenta uma ampla descrição da cidade de Criciúma
135
.
A reportagem de Realidade acompanha o primeiro dia de trabalho de Emodeno,
nome provavelmente inventado pelo repórter Narciso Kalili, em uma mina de carvão. Ao
fazê-lo, o repórter descreve desde as vilas operárias até as etapas do trabalho mineiro,
mostrando as suas mazelas, a começar pelas condições no interior da mina.
Aqui os mineiros ficam apenas de calção. Suam muito e respiram
com dificuldade. O calor não vai além de 25 graus, mas a taxa de
umidade (nossas minas são as mais úmidas do mundo) é violenta,
transformando em pasta a mistura de pó e suor que não se evapora de
seus corpos. Luz, nenhuma; calor, silêncio e o cheiro forte do
carvão.
136
Descreve também o tremendo esforço físico necessário para despedaçar as pedras
que desprendem das paredes de rochas através de detonações com dinamite, encher e
empurrar o carro cheio de carvão pelo túnel da mina, “com o corpo curvado, a cabeça
apoiada nos braços estendidos, os olhos voltados para o chão”, condições de trabalho que
gerava rias doenças do pulmão e coração, lesões da coluna vertebral e os freqüentes
acidentes de trabalho.
Das condições de trabalho dos operários ele passa à cidade carbonífera.
Confrontado com o discurso do progresso trazido pelo carvão, o repórter apresenta uma
135
“Eles Vivem Embaixo da Terra”. Realidade, número 15, junho de 1967.
136
Ibid., p. 130.
104
cidade aonde as pessoas não têm perspectivas de futuro e a expectativa de vida é de 50
anos. Apresenta a população citadina como dependente da atividade carbonífera, que
empregaria oito mil trabalhadores, dos quais dependeria cerca de trinta e sete mil pessoas, a
maioria menor de 14 anos. Cerca de cinco mil pessoas viveriam com a pensão dos institutos
de aposentadoria. Os jovens, dependentes dos pais, se marginalizam e “nem pensam em
abandonar a região, por ignorância, falta de visão e de dinheiro, para tentar a aventura”
137
.
Quando ganham algum dinheiro, gastam nas várias formas de jogo existentes na cidade ou
freqüentam as casas de Maracangalha, a zona de meretrício do lugar. As moças aguardam a
hora de serem “roubadas”, forma de acerto entre as famílias através da qual o casal passa a
viver junto sem casamento civil ou religioso. Às vezes se empregam em casas de famílias
ricas ou no comércio do centro de Criciúma.
Afirma-se na cidade que, em muitos casos, a moça é obrigada a se
entregar para conseguir colocação. Depois disso, não é difícil que a
jovem chegue à prostituição: passa alguns dias em Maracangalha e,
depois que arranja dinheiro para a passagem, some da região para
não submeter a família a vexames.
138
Como o comércio e a indústria local não tem condições de absorver a mão-de-obra
ociosa e do grande número de dependentes por família, os mineiros, ainda que recebam um
salário relativamente alto, vivem mal e com medo de perderem o emprego. As relações
trabalhistas são marcadas pelo autoritarismo, onde as empresas demitem ou admitem dentro
de um esquema de chantagem e favores pessoais. Diomício Freitas, empresário do setor
137
Ibid., p. 136.
138
Ibid., p. 138.
105
carbonífero, “mineiro nas horas vagas e antigo funcionário da Estrada de Ferro Dona
Cristina (sic)”, é apresentado como o único mineiro que enriqueceu, fruto de suas
atividades de exploração do carvão durante a segunda guerra mundial, quando “a ditadura
do Estado Novo não se importava como viviam os trabalhadores, nem perguntava o lucro
dos proprietários de minas”
139
.
O aspecto geral da cidade é apresentado como cinzento, resultado da atividade de
exploração do carvão.
Estava acostumado, desde o seu nascimento, àquela paisagem
sempre igual, cinzenta. As casas, o mato, as roupas, o céu, as
pessoas, tudo é cinzento na região das minas de Santa Catarina.
140
Habitações de péssima qualidade, com casas de “25 metros quadrados de construção
de madeira, sem forro, sem água corrente, num terreno de sete por quinze metros”, trabalho
extenuante, falta de expectativa de futuro, jovens desocupados, autoritarismo patronal,
grande número de dependentes, o repórter pinta um quadro de intranqüilidade social que
ameaça a cidade, expressa na frase de um morador.
Estamos sentados em cima de uma bomba. Qualquer dia desses ela
estoura e vamos todos juntos para o inferno.
141
Nunca Criciúma havia sido apresentada dessa maneira. Não era mostrada como a
cidade que mais crescia no sul do Estado, como aparece em diversos jornais da década de
139
Ibid., p. 134.
140
Ibid., p. 130. O subtítulo da página 132 diz o seguinte: “Aqui, tudo tem cheiro e cor de carvão”.
141
Ibid., p. 136.
106
1960, adaptação do lema do IV centenário de São Paulo, mas como uma cidade que vivia
um problema social dos mais sérios, que poderia estourar a qualquer momento.
A reportagem caiu como uma bomba na cidade. A julgar pela repercussão nos
jornais e o tom raivoso das matérias, o repórter havia tocado em um ponto sensível de
Criciúma, a forma como esta se via e como poderia ser vista. Ainda em junho, tão logo
tomou conhecimento da matéria de Realidade, o jornal Tribuna Criciumense se posicionou
em uma matéria de primeira página
142
. Após elogiar o caráter inovador dos temas e
matérias da revista e declarar-se leitor assíduo de Realidade, o articulista lamenta a matéria
feita sobre Criciúma, “nossa cidade”.
Perdão, nossa cidade não! O que acabamos de ler não é, não pode ser
Criciúma. Mas que a reportagem diz que é, vamos tentar limpar as
míopes lentes do repórter de REALIDADE e mostrar a ele a
realidade não do nosso caixão de lixo (...). Vamos dizer ao
repórter que nós também temos uma casinha modesta, limpa,
arrumadinha, na frente da qual cultivamos com carinho umas flores.
Pela resposta de Tribuna Criciumense ficamos sabendo quais os pontos da
reportagem de Realidade que mais chocou as elites citadinas e adentramos, assim, na
maneira como essas mesmas elites imaginavam sua própria cidade ou, ao menos, como
queriam que a cidade do carvão fosse vista em outros centros. O primeiro ponto de defesa
de Criciúma, na matéria da Tribuna, é afirmar que se a cidade era sinônimo de carvão, não
vivia apenas dele. E enumerava uma série de atividades existentes na cidade e que não
estavam relacionadas com o carvão, desde a diversificação da produção agrícola até a
142
Realidade não Viu a Realidade”. Tribuna Criciumense, 10/06/1967, p. 1.
107
existência de escolas profissionalizantes e clubes de serviços. Atacava a visão do repórter
de que a paisagem da cidade era cinzenta e, em tom irônico e depois de acusa-lo de ter
pedido propina para fazer uma reportagem favorável à cidade, descreve assim as condições
para a conclusão do repórter.
Ao acordar-se perto do meio-dia, com o ruído do trem das onze que
sempre tem duas máquinas, chegou até a janela do hotel, e
naturalmente, teve que sentir nos olhos e nariz, a fumaça vomitada
pelas locomotivas que transportam o nosso progresso. Pegou no seu
lápis e caderninho e depois na página 130 e 132 de REALIDADE
assim escreveu: ‘Aqui tudo tem cheiro e cor de carvão’.
O vínculo da cidade com o carvão, ainda que seja “o nosso progresso”, vínculo em
termos de atividade econômica praticamente única na cidade ou quando marca com sua cor
e cheiro a paisagem urbana, parece ser aquilo que o repórter de Realidade enfatizou e que a
matéria de Tribuna mais critica, a mostrar um certo mal-estar da cidade com a sua condição
carbonífera.
Além desse aspecto referente à paisagem urbana, podemos perceber, nas matérias
publicadas no jornal Tribuna Criciumense e nas cartas enviadas à redação de Realidade e
publicadas nos números de julho e agosto de 1967, quais os pontos da reportagem que mais
incomodaram as pessoas em Criciúma e que mereceram destaque nas várias defesas da
cidade:
108
- A afirmação referente às moças da cidade, que aguardam para serem
“roubadas” ou se prostituem na zona local de meretrício
143
;
- A impressão de que somente oito mil mineiros trabalham na cidade, sendo que
os demais habitantes “são vadios, e... o restante é prostituição”
144
;
- A afirmação de que a zona do meretrício de Criciúma conta com cem
prostitutas, “um número bem fictício, arredondado, próprio de quem foi fazer tudo menos
contar o que viu”
145
;
- A apresentação de Diomício Freitas como o único mineiro que enriqueceu, em
vista das condições de exploração dos trabalhadores na Segunda Grande Guerra. Diomício
Freitas é destacado “em sua modéstia e honradez” e lembrado pela sua expressiva votação a
deputado federal
146
.
Para o Lions Club de Criciúma, a reportagem de Realidade “é um retrato
adulterado, que ampliou e deformou os defeitos de uma comunidade, sem lhe creditar um
mérito"
147
. João Aderbal, vereador da cidade, diz que “de Criciúma, de verdade, nada
foi escrito. O repúdio é geral contra tão baixa revista”
148
. Mário Emídio, por sua vez,
mineiro, diz que a reportagem “mostrou como, nós, mineiros, vivemos na Capital do
Carvão, Criciúma, SC. Achei notável a reportagem porque expressa realmente a verdade
sobre a promiscuidade em que vivem os ‘mineiros’ de Santa Catarina”
149
. A reportagem de
143
Realidade Não Viu a Realidade”. Tribuna Criciumense, 10/06/1967, p. 1. “Continua Repercutindo a
Reportagem de Realidade”, Tribuna Criciumense,30/09/1967, p. 2 e 7.
144
Carta de Luiz Oswaldo da Silva Leite, publicada em Realidade, Agosto de 1967.
145
Realidade Não Viu a Realidade”. Tribuna Criciumense, 10/06/1967, p. 1.
146
“Continua Repercutindo a Reportagem de Realidade”, Tribuna Criciumense, 30/09/1967, p. 2 e 7.
147
“Ainda Sobre a Reportagem de Realidade”, Tribuna Criciumense, 01/07/1967, p. 3.
148
Carta de João Aderbal, publicada em Realidade, Julho de 1967.
149
Carta de Mário Emídio, publicada em Realidade, Agosto de 1967.
109
Realidade despertou uma disparidade de vozes a concordar com ela ou ataca-la. Diferentes
olhares que avaliavam a cidade do carvão e concordavam ou não com a cidade apresentada
pelas páginas de Realidade. De toda a maneira, de um lado ou de outro da trincheira, o que
sobra de conclusão de todo esse imbróglio é que, por fim, a cidade do carvão restou
questionada.
Na verdade, não era somente na imprensa nacional e na década de 1960 que a
cidade carbonífera era avaliada. Nesse sentido, na avaliação da cidade do carvão coube um
papel muito especial à imprensa local e seus articulistas que, em suas palavras, se “nos
dermos ao trabalho de observar a cidade com olho crítico, certamente muita coisa errada
haveremos de encontrar”
150
. Através do jornal Tribuna Criciumense, articulistas como Ézio
Lima, Sylvio Bittencourt, Jair J. da Motta, S. Souza e Sebastião Pieri, em colunas como A
Cidade em Revista, A Crônica da Cidade e Reverberando, passavam literalmente em
revista os problemas da cidade, apontando dificuldades e propondo soluções, buscando
“despertar a atenção dos poderes competentes para algumas necessidades nossas que
estejam talvez passando despercebidas”
151
. Essa consciência de seu papel de leitores
especiais da cidade, capazes de verem problemas e chamar a atenção para aspectos da urbe
que passavam desapercebidos aos cidadãos comuns e ao próprio poder público, registrando-
os em suas colunas semanais, nos permite fazer uma leitura não apenas de suas
preocupações cotidianas, daquilo que viam, mas também das representações que colocavam
em circulação em termos de uma nova cidade que desejavam. A imprensa, se por um lado,
divulga determinadas visões de mundo e as e em circulação em um público mais amplo,
expandindo temas para além da cabeça dos que os pensavam naquele momento, por outro,
150
“Pequeninas Falhas” (A Cidade em Revista). Ézio Lima. Tribuna Criciumense, 11/06/1956, p. 8.
151
“Medida Que se Impõe” (A Cidade em Revista). Ézio Lima. Tribuna Criciumense, 23/05/1955, p. 6.
110
leva em conta os interesses e preocupações de seu público leitor, assimilando seu horizonte
de expectativas e falando muitas vezes o que o blico quer ouvir. Torna-se assim em uma
fonte privilegiada para o estudioso da cidade, na medida em que através dela é possível
vislumbrar a estrutura urbana da cidade real, mas também avançar na visão que a cidade
real possui da cidade possível
152
.
Na apresentação dos problemas da cidade do carvão fica patente, ao
acompanharmos as matérias jornalísticas, a preocupação de se comparar às cidades
modernas, identificadas como sendo as grandes cidades. Quando Donatila Borba refere-se
ao aniversário de Criciúma em 1959, ao falar dos esforços que estavam sendo feitos na
cidade, afirma que eles se destinam a que “a capital do carvão, num futuro breve, possa dar
a seus habitantes o conforto e tranqüilidade indispensáveis, como acontece nas cidades
modernas”
153
. Em outro artigo de 1961, parabeniza o prefeito municipal pelas obras que
realizara na praça principal da cidade, “embelezando-a e nivelando-a as grandes
metrópoles”
154
. Ao avaliar a cidade do carvão e compara-la com as cidades modernas, as
grandes cidades brasileiras da época, os articulistas apontam para a falta de determinados
elementos que Criciúma não tinha e que deveria tê-los na medida em que se desenvolvesse
“buscando preencher na sua marcha firme e decidida todos os claros existentes em seus
mais variados setores”
155
. Preencher os claros existentes, no dizer do autor, é igualar
Criciúma às grandes cidades, através da construção de ícones da cidade moderna, como
cinemas, edifícios e aeroporto, e da resolução de problemas urbanos que caracterizavam
Criciúma, a seus olhos, como uma cidade pequena e provinciana.
152
PESAVENTO, Sandra J. Entre Práticas e Representações: A Cidade do Possível e a Cidade do Desejo. In:
RIBEIRO, Luiz sar de Queiroz; PECHMAN, Robert. Cidade, Povo e Nação Gênese do Urbanismo
Moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996, p. 377 – 396.
153
“Salve Criciúma”. Donatila Borba. Tribuna Criciumense, 05/01/1959, p. 8.
154
“Praça Dr. Nereu Ramos”. Donatila Borba. Tribuna Criciumense, 02/01/1961, p. 1.
155
“O Viaduto da Estrada de Ferro”. Ézio Lima. Tribuna Criciumense, 29/08/1955, p. 8.
111
Um primeiro levantamento dos problemas urbanos da cidade carbonífera, que
aparece com relativa constância na imprensa, refere-se ao estado das ruas, especialmente
aquelas do centro urbano. Critica-se a falta de calçamento de ruas importantes da urbe, a
poeira e a lama existentes, a existência de buracos que dificultam a circulação e a falta de
ação do poder público.
O que de fato surpreende é que numa cidade progressista como a
nossa, onde tão bem se cultivam as letras e as artes, continue a
passar despercebido pelos olhos responsáveis o espetáculo tristonho
de nossa rua Henrique Lage, que atualmente bem nos recorda a treva
do meio dia de que nos fala a bíblia.
156
A “treva do meio dia” a que se refere a autora era causada pela nuvem de poeira que
levantava na rua sem calçamento, além de animais que circulavam por ali, uma das
principais ruas da cidade, restando-lhe desabafar pelas páginas do jornal e “sacudir um
pouco da poeira, que de tanta quantidade, nos sobra na cabeça”. A poeira era também
tamanha que impedia as autoridades de perceberem e resolverem um problema que lhe era
evidente, e impedia até mesmo as pessoas de sonharem, “invadirem o universo de
encantamento e de amor” por estarem cercadas bem de perto pelo feio, “o tremendamente
feio, em pleno coração de Criciúma, o mais lamentável espetáculo de feiúra”.
Essa preocupação com os aspectos estéticos da cidade, aquilo que a podia tornar
bela ou feia, desde um ponto de vista que situava o ideal de beleza urbana na aparência que
possuíam os grandes centros, era talvez a principal temática que aparecia nos jornais. O tipo
156
“Trevas do Meio Dia”. Beverly Godoy Costa. Tribuna Criciumense, 10/02/1958, p. 2.
112
de cidade bela, por um lado, e os problemas que Criciúma possuía a esse respeito
transparecem em suas matérias.
Todo indivíduo de uma leve tendência de observação, visitando uma
cidade, embora pela vez primeira, quase que mecanicamente é
compelido a verificar, por lhe tocar a sensibilidade, se suas ruas são
varridas, as travessas e avenidas limpas, as valetas desobstruídas, os
passeios construídos, os terrenos não edificados murados, o jardim
conservado, onde a vida e o colorido da vegetação o integra,
momentaneamente, a natureza. Verificará se é eficiente o serviço de
coleta de lixo ou se terrenos baldios servem de canteiros aos resíduos
inaproveitáveis, formando quistos ou focos para a proliferação de
germes e insetos nocivos, propagadores de males epidêmicos.
157
A partir de um ponto de vista afirmado pelos articulistas de querer “que nossa
cidade tenha feição urbanística atraente, moderna e bela”
158
, abordam diversos aspectos da
cidade, aquilo que, em sua opinião, a enfeava, e tratam de temas como limpeza das ruas,
animais soltos que circulavam pela cidade, calçamento, estado dos passeios públicos,
terrenos abandonados, pintura de casas e prédios, embelezamento de fachadas e vitrines das
lojas, ausência de marquizes, entre outros temas. A cidade, no dizer dos jornalistas,
expressa o tipo de população que a habita, e uma cidade limpa “revela que seu povo é
civilizado, culto, educado, cuidadoso, ao passo que o conceito inverso está representado
157
“Limpeza Pública”. Ernesto Bianchini Góes. Tribuna Criciumense, 09/05/1955, p. 3 e 6.
158
“Passeios Públicos” (A Cidade em Revista). Ézio Lima. Tribuna Criciumense, 03/10/1955, p. 8.
113
numa cidade suja, desleixada, mal cuidada”
159
. A preocupação com o comportamento da
população no espaço público, e em relação a seu cuidado com as vias urbanas,
especialmente em relação à colaboração com a limpeza da cidade, é uma constante, e
expressou-se na adesão a uma campanha de cunho estadual, realizada pelos clubes de
serviços e Sociedade Amigos dos Bairros na década de 1960, e que atendia pelos lemas
“Cidade Limpa, Povo Civilizado” e “Cidade Limpa, Sinal de Progresso”
160
. Educar o
povo, civiliza-lo, significava ensina-lo a se comportar no espaço urbano de uma cidade
moderna, em especial nas ruas centrais. Isso, no entanto, parecia não dar muito resultado,
pois as matérias enfatizam a “pejorativa alcunha ‘Criciúma, Cidade Suja’”
161
e “a cidade
mais suja que se tem conhecimento”
162
. Talvez a presença do carvão no espaço urbano,
incrustado nas casas e prédios, presente na cultura popular e, muitas vezes, com o rejeito
espalhado nas ruas, é que se constituía no pano de fundo que levava os jornais a preocupar-
se tão constantemente com a limpeza das ruas.
Os que escrevem através dos jornais colocam o aspecto urbano da cidade, sua
limpeza e ordem, como sendo “o cartão de visita número um de uma cidade”
163
. A
preocupação com aquilo que os visitantes poderiam observar e falar da cidade e como ela
era vista pela imprensa estadual e nacional é uma preocupação constante. Criciúma crescia
e tornava-se o maior centro urbano do sul do Estado e precisava afirmar-se como cidade
importante, não apenas pelo seu progresso econômico, mas também pelo vel
civilizacional de seus habitantes, e que se mostrava através do aspecto urbano da cidade.
159
“Cidade Limpa é Cidade Civilizada” (A Cidade em Revista). Ézio Lima. Tribuna Criciumense,
10/10/1955.
160
“Criciúma Vestirá Roupa Nova”. Tribuna Criciumense, 01/02/1964, p. 8.
161
“Limpeza Pública”. José Carlos Pieri. Tribuna Criciumense, 05/04/1969, p. 3.
162
“A Cidade é Suja Porque Quer”. Tribuna Criciumense, 30/12/1967, p. 8.
163
“Limpeza Pública”. José Carlos Pieri. Tribuna Criciumense, 05/04/1969, p. 3.
114
E, então, perguntamos: qual o juízo que de nós poderão fazer aqueles
que pela vez primeira aqui vem ter? Será favorável? Criciúma é uma
cidade limpa? Suas ruas são bem cuidadas?
164
A impressão que a cidade causava aos visitantes e, em especial, à imprensa estadual
e nacional, era algo que preocupava os articulistas dos jornais.
Imagens da Cidade e Intervenções Urbanas
Em uma matéria que apareceu na Revista Carvão de Pedra em 1968
165
, em sua
página de abertura, uma fotografia do Monumento aos Homens do Carvão e, abaixo
deste, um brasão municipal oficioso que circulou nesta época e que tem uma ‘boca’ de
mina com duas picaretas cruzadas. Não era coincidência que a matéria abria com essas
ilustrações. Criciúma era apresentada neste período como cidade carbonífera e nossa
intenção é acompanhar as representações que a imprensa estadual fazia da cidade,
cruzando-a com as preocupações e atuação dos governos municipais do período.
Criciúma foi, assim, apresentada na reportagem
jornalística citada como uma cidade carbonífera e
moderna, isto é, como uma cidade que tinha sua
modernidade derivada de sua situação carbonífera.
A cidade foi apresentada como um exemplo da
influência positiva do carvão mineral sobre a
sociedade, representando a positividade do carvão
164
“Cidade Limpa é Cidade Civilizada” (A Cidade em Revista). Ézio Lima. Tribuna Criciumense, p. 6.
165
“Criciúma ‘Capital do Carvão’ Comunidade que Reflete a Pujança da Indústria Siderúrgica Nacional”.
Carvão de Pedra, Junho – Julho – Agosto de 1968, p. 27 – 36.
115
para toda a região, “demonstrando a pujança da
região carbonífera de Santa Catarina,
estereotipada no adiantamento de sua ‘capital’”.
Criciúma é uma agradável surpresa para quem a pela primeira
vez. É, também, uma comprovação da grande influência sócio-
econômica que a mineração, beneficiamento e utilização do carvão,
vem causando em extensa região catarinense, onde está sendo criada
uma comunidade progressista e cônscia da patriótica tarefa que lhe
está cabendo representar na formação do complexo industrial
carvão-carboquímica – de que tanto necessita o país.
166
A reportagem destaca também as obras do prefeito municipal, Ruy Hülse
167
,
especialmente a urbanização da Praça do Congresso e a construção da nova sede do poder
executivo municipal. A Praça do Congresso, em especial, tornar-se-ia extremamente
valorizada na imagem urbana, como área de lazer e por sua estética de uma natureza
controlada e disponível para a fruição dos populares. Era algo que as autoridades, a
população e os visitantes consideravam belo na cidade carbonífera.
O carvão ser louvado na cidade em uma reportagem de uma revista que se colocava
em “defesa dos interesses da indústria carbonífera nacional” não pode ser considerado
como algo inusitado. Talvez a análise de outras reportagens, em revistas que não tinham um
compromisso tão explícito com o carvão mineral, possa nos ajudar a capturar outras
representações que se faziam sobre a cidade, o carvão e a modernidade. A Revista
166
Ibid., p. 27.
167
Ruy Hülse foi o único prefeito municipal eleito pela UDN no período 19451968, e exerceu seu mandato
de 31/01/1966 a 03/02/1970 (In: NASPOLINI FILHO, Archimedes. Criciúma 70 Anos – Ensaio Para a Sua
História Político-Administrativa. edição. Criciúma: Edição do Autor, 1995, p. 40 41). Sua vitória
eleitoral foi fruto do enfraquecimento do PSD e, principalmente, do PTB e PCB que tinham uma atuação
destacada em Criciúma e na região carbonífera, em vista do golpe militar de 1964.
116
Catarinense, por exemplo, publicou uma matéria jornalística sobre Criciúma
168
alguns
meses após a publicação daquela publicada na Carvão de Pedra. A reportagem constitui-se
em uma divulgação explícita do governo Ruy Hülse. Apresenta uma biografia do prefeito e
as obras de seu governo. Além de uma fotografia panorâmica do centro da cidade, na
primeira página da matéria, abaixo do texto de apresentação da cidade, apresenta outras
fotografias de obras do governo municipal. Na reportagem, Criciúma é novamente
destacada a partir de sua contribuição para o desenvolvimento de Santa Catarina e do
Brasil, tendo por base as reservas carboníferas presentes na cidade e na região, na medida
em que “Criciúma se integra, incontestavelmente, como uma das vigas mestras no
complexo econômico-industrial brasileiro, como elemento básico e fundamental para o seu
desenvolvimento”
169
. Entretanto, se valoriza o carvão presente na cidade, em sua economia
e paisagem, a reportagem apresenta uma certa tensão em relação a esse fato:
Daí porque nada mais justo que o orgulho dos filhos dessa cidade – potência quando
a proclamam ‘a Capital Brasileira do Carvão’; e aqueles que, a falta de quaisquer
argumentos para criticá-la, se referem ao negrume que cobre algumas de suas vias públicas,
apesar de excelente pavimentação, o criciumense bem que poderia responder: ‘bendito
negrume, este!’ Bendito negrume, bendita escuridão, que se transforma em luz, calor e
energia, e que se espraia por todos os quadrantes do território pátrio, conduzindo o
progresso.
Na medida em que precisava reafirmar a suposta defesa que o criciumense fazia do
‘bendito negrume’ do carvão diante dos críticos, pela conhecida via do progresso, ao
mesmo tempo a autora da reportagem sabia que isso não era suficiente diante das críticas
168
“Criciúma Capital Brasileira do Carvão” (matéria assinada por N. C. Vieira). Revista Catarinense,
fevereiro de 1969, nº 5, p. 14 – 17.
169
Ibid., p. 14.
117
que sofria a presença do carvão na cidade. E apresentava uma outra linha de argumentos,
fazendo eco à reportagem da revista Realidade, que ainda rondava as cabeças carboníferas:
Mas, Criciúma não é apenas extração de carvão! Não são apenas
nove mil mineiros a perfurar a rocha em busca da pedra-dínamo.
Criciúma é também uma bela cidade, dotada de excelentes hotéis,
magníficos clubes sociais, ótimos cinemas, bons estádios
desportivos, pujantes estabelecimentos comerciais, indústrias
diversificadas, rede de ensino das mais importantes do Estado e
senhora de notáveis tradições importantes e culturais!
170
Neste momento, de intenso debate sobre a diversificação econômica e a necessidade
de modificar a paisagem urbana, o carvão é defendido como necessário ao crescimento da
cidade, mas também como indesejável em sua paisagem. Só que isso era dito
implicitamente, como quem sussurra um segredo terrível. Um segredo que a cidade
guardava e que estava se tornando matéria de comentários públicos.
Três anos depois a revista voltou a Criciúma para uma nova reportagem
171
. Na
matéria, a autora
172
abandonou de vez a defesa do carvão na paisagem urbana, o louvor do
‘bendito negrume’, presente na reportagem anterior e aprofundou a linha de argumentos de
que Criciúma não era só carvão.
A indústria que até pouco tempo se alicerçava exclusivamente na
exploração do carvão mineral (...) diversificou-se e expandiu-se.
Surgiram as grandes fábricas de têxteis, de material de transporte, de
produtos alimentares, de móveis e artefatos de madeira, de bebidas,
170
Ibid., p. 14.
171
“As Novas Cores de Criciúma”. Revista Catarinense, 1972, nº 26, p. 40 – 49.
172
A matéria não foi assinada, mas é provável que tenha sido escrita também por N. C. Vieira. De qualquer
forma, uma referência direta à primeira reportagem, ao afirmar, na reportagem, “mil dias decorridos e
voltamos a Criciúma”.
118
de produtos agro-pecuários, de pescado, de ferro fundido, de couros,
de minerais não metálicos e, principalmente, as imponentes
cerâmicas. Aí, os índices de produção e qualidade atingiram tal porte
que estão a justificar para Criciúma o título de ‘Capital do
Azulejo’.
173
E a reportagem cita desde “as atividades sociais e
desportivas ao aprimoramento educacional e
cultural, desde a modernização arquitetônica e
urbanística da cidade à dinamização da
administração pública municipal” para demonstrar
que a cidade tinha uma projeção que não dependia
mais da atividade carbonífera. O objetivo
principal da reportagem, expresso em seu título,
é apresentar uma cidade que superou o ‘bendito
negrume’ do carvão, passando a ser uma cidade
colorida, seja por suas atividades econômicas
diversificadas ou mesmo culturais e esportivas.
Isso fica também claro pelo papel destacado que tem as fotografias na reportagem,
se comparadas às reportagens anteriores. As fotografias se distribuem pelas páginas da
reportagem e esta distribuição parece ter seguido uma lógica peculiar. Na primeira página
aparece uma fotografia panorâmica do centro da cidade, de uma perspectiva que destaca a
Praça do Congresso, colorida, com fotografias menores à direita, também coloridas: novo
Monumento ao Mineiro, Criciúma Clube, asfaltamento de rua no bairro Pio Corrêa, Escola
Municipal do bairro São Cristóvão. São obras do governo Nélson Alexandrino, ou de
governos anteriores assumidas’ por ele e, ao mesmo tempo, pontos ‘apresentáveis’ da
173
Ibid., p. 40.
119
cidade. Na segunda gina, mais uma vez uma fotografia central, colorida, com a Praça do
Congresso, apresentada como “um dos mais belos logradouros públicos da Capital do
Carvão” ao mesmo tempo em que destaca que a “urbanização e ajardinamento de praças
na cidade e nos bairros foi preocupação constante da atual administração de Criciúma”, e
abaixo há três fotografias menores, também coloridas, a fonte luminosa (popularmente
chamada de ‘chafariz’, “com quatro esguichos multicores, na praça Nereu Ramos”), Igreja
Nossa Senhora da Salete no bairro Próspera e o novo prédio do Centro Municipal de
Compras e Prefeitura Municipal. Nas demais páginas há também fotografias abundantes, só
que em preto e branco e se referem completamente a obras da administração municipal.
A cidade apresentada desta forma é referida na reportagem como tendo sido obra da
administração Nélson Alexandrino
174
. O prefeito teve uma administração caracterizada por
muitas dificuldades de relacionamento com o governo estadual e federal, dominados pelos
militares, por ser um dos prefeitos de oposição no Estado. Mesmo a reportagem da Revista
Catarinense, que certamente tinha seu patrocínio, não tinha muito que mostrar. Algumas
obras eram de menor impacto popular, como a construção do ossuário e da capela
ecumênica do Cemitério Municipal, outras haviam sido terminadas por governos anteriores,
como a própria urbanização da Praça do Congresso. Entretanto, havia uma obra que Nélson
Alexandrino podia dizer que era inteiramente sua e que, talvez, caracterize bem as suas
preocupações expressas na cidade colorida apresentada pela reportagem da Revista
Catarinense: a destruição do Monumento aos Homens do Carvão, construção de um novo
Monumento ao Mineiro e a colocação de uma fonte luminosa multicolorida no lugar do
174
Nélson Alexandrino nasceu em Imaruí/SC em 4 de abril de 1932, tendo vindo ainda pequeno para
Criciúma, em janeiro de 1935. Foi eleito pelo MDB e cumpriu mandato como prefeito de 03/02/1970 a
01/02/1973 (In: NASPOLINI FILHO, Archimedes. Criciúma 70 Anos – Ensaio Para a Sua História
Político-Administrativa. 2ª edição. Criciúma: Edição do Autor, 1995, p. 42 – 43).
120
antigo monumento, no centro da Praça Nereu Ramos. Uma fonte que talvez representasse
bem a nova cidade que o prefeito quis construir.
Novo Monumento ao Mineiro e o Desejo de Outra Cidade
A estátua do mineiro, existente no Monumento aos Homens do Carvão, passou a
compor um outro monumento, chamado Monumento ao Mineiro
175
, localizado na praça
Etelvina Luz, contígua a praça Nereu Ramos. Era o dia 21 de outubro de 1971, uma quinta-
feira
176
. O desmantelamento do Monumento aos Homens do Carvão implicou na destruição
do pedestal de granito e na transferência da estátua do mineiro e dos medalhões de
homenagem aos empresários do carvão para compor esse outro monumento, ao Mineiro.
Toda esta operação foi apresentada como uma busca por um lugar de maior destaque para o
mineiro, “em ponto de destaque e que real valor ao operário do carvão”
177
, “já que
atualmente se encontra escondido pelas árvores do jardim Nereu Ramos”
178
. O jornal
Tribuna Criciumense havia realizado uma campanha para remover o monumento do centro
da Praça Nereu Ramos e chegou a propor, inclusive, a Praça Sebastião Toledo dos Santos,
pouco construída no bairro Pinheirinho, na entrada oeste da cidade, como o local mais
apropriado para colocar o monumento
179
. Entretanto, a destruição do Monumento aos
Homens do Carvão é apresentada também como uma descida do pedestal por parte do
175
Tanto o antigo monumento erguido em 1946 no centro da Praça Nereu Ramos, quanto o novo monumento
da Praça Etelvina Luz, que trataremos aqui, possuíam o nome oficial de Monumento aos Homens do Carvão,
enquanto que popularmente foram chamados de Monumento ao Mineiro. Entretanto, prefiro guardar o nome
oficial para o primeiro monumento e o popular para o segundo, em vista de não os confundir, ao mesmo
tempo em que se reconhece que o nome popular dos monumentos acabou por se impor.
176
“Mineiro já Desceu do Pedestal”. Tribuna Criciumense, 23/10/1971, p. 1.
177
Ibid.
178
“Mineiro Vai se Mudar”. Tribuna Criciumense, 18/09/1971, p. 1.
179
“Mineiro Deve Sair do Centro”. Tribuna Criciumense, 19/06/1971, p. 1.
121
mineiro, cruzando uma suposta valorização imediata da visibilidade do monumento,
escondido pelas árvores, com uma desvalorização simbólica de sua representatividade para
a cidade, arrancado do coração da urbe.
De fato, a formação do espaço da praça Nereu Ramos remonta ao século XIX e é
relatado nas memórias da colonização de Criciúma como o local em que os primeiros
habitantes italianos levavam seus animais para beberem água, aonde havia uma vegetação
abundante de cressiúmas (ou cresciúmas, crixiumas, criciúmas), pequena taquara abundante
na região, e que acabou por dar o nome à cidade
180
. Ora, sabemos que a atribuição de nome
remete a definição de uma identidade. O vínculo do nome da cidade com a Praça Nereu
Ramos, aponta aquele espaço como o lugar simbólico de nascimento de Criciúma. Além
disso, aponta-se também, nos relatos da colonização, aquele local como sendo aonde os
imigrantes “arrearam as bagagens junto a um velho barracão erguido e abandonado por
alguns sertanistas, à margem de um riacho, estava fundado o núcleo colonial de
Criciúma”
181
. De fato, a praça se constituiu como um espaço livre entre a estrada colonial
de Urussanga a Araranguá e o templo da igreja católica do distrito, terminado em 1917,
tendo sido efetivamente urbanizada na década de 1930. Ao redor da praça se localizaram as
famílias mais importantes do lugar. Todos esses vínculos, reais e imaginários, colocaram a
Praça Nereu Ramos como o coração da cidade, o espaço simbólico mais importante em
relação à identidade urbana. Situar-se, como era o caso do Monumento aos Homens do
Carvão, no coração da Praça Nereu Ramos, que era o coração da cidade, era estar em um
lugar privilegiado pela história e cultura do município, que remetia a sentimentos profundos
de pertencimento e identificação. A destruição do monumento e a transferência da estátua
180
PIMENTEL, José e BELOLLI, Mário. Criciúma – Amor e Trabalho. Itajaí: Edições Uirapuru, 1974,p.
11.
181
Ibid., p. 12.
122
do mineiro para um outro local, em que pese todos os discursos sobre a visibilidade e as
boas intenções em relação ao assunto, expressou uma desvalorização simbólica do carvão
em relação à identidade da cidade, ainda que em sua economia e na da região a produção
carbonífera estivesse crescendo naquele período.
No entanto, o outro local não era nada desprezível. De acordo com o Tribuna
Criciumense, defendendo o local onde o Monumento ao Mineiro foi construído, “O atual
local é ponto de convergência e, por isso mesmo, o Mineiro está sendo visto, o que é o mais
importante”
182
. Este novo local, a Praça Etelvina Luz, contígua a Praça Nereu Ramos,
localiza-se na confluência das ruas Seis de Janeiro e Conselheiro João Zanette, local de
intenso movimento no centro da cidade, razão pela qual o articulista do jornal afirmava que
o monumento seria visto. Além disso, o cruzamento em questão também remonta aos
tempos do núcleo colonial. As ruas são sucedâneas de importantes estradas coloniais, como
a que ligava Urussanga a Araranguá e que corresponde às ruas Coronel Pedro Benedet,
Conselheiro João Zanette e Desembargador Pedro Silva, e a estrada colonial de Linha Anta
a Mãe Luzia e Nova Veneza, que corresponde às ruas Osvaldo Pinto da Veiga, Seis de
Janeiro e Henrique Lage. O cruzamento em questão, proximidades de onde o monumento
foi construído, é um dos possíveis lugares de cruzamento das ditas estradas coloniais, que
foi um dos elementos importantes de formação do centro da cidade. É, portanto, um local
também valorizado na área urbana. A construção do Monumento ao Mineiro neste local,
utilizando a estátua e os medalhões do monumento anterior, parece expressar a atitude da
cidade em relação ao carvão neste período, que foi a de nega-lo como elemento único de
determinação de sua economia e identidade e, portanto, afastá-lo da vista imediata, mas não
182
“O Mineiro”. Tribuna Criciumense, 04/12/1971, p. 1.
123
para muito longe, mantendo-o em local aonde se pudesse receber a sua contribuição sem
ser comprometido pela sua presença.
O Monumento ao Mineiro foi construído praticamente ao nível do solo e é
constituído pela estátua do mineiro, transferida do Monumento aos Homens do Carvão, e
uma estrutura de concreto por trás de si. Nesta placa de concreto, acima da estátua do
mineiro, foi gravada a inscrição “Criciúma Aos Homens do Carvão 1913 1971”,
reproduzindo a inscrição existente no monumento anterior, porém atualizando-a na medida
em que mudou a grafia de ‘Cresciúma’ para Criciúma e a data, de 1946 para 1971,
modificando o ano final da inscrição, aquele que indica a inauguração, o que foi
interpretado por José Pimentel e Mário Belolli como uma “alteração arbitrária de fato
histórico, qual seja o início da exploração carbonífera oficial, 1913 1946”
183
. Na placa de
concreto foram afixadas as efígies em forma de medalhão de Henrique Lage e Paulo de
Frontin, existente no monumento anterior, sendo que a de Gonzaga de Campos
desapareceu. Além dessas efígies, foram acrescentadas as de Giacomo Sônego e Sebastião
Toledo dos Santos. A impressão que se tem é que o Monumento ao Mineiro foi uma
atualização do Monumento aos Homens do Carvão, alterando-se os dados anteriores com
aqueles mais recentes, realizando novas homenagens e modernizando a sua apresentação
estética. Para uma nova cidade que se pretendia colorida, um novo monumento era
necessário. De fato, a estrutura de concreto pintada de dourado, a grama verde nos pés do
mineiro e as flores em sua volta sobrepunham uma paisagem colorida sobre as
representações do ‘bendito negrume’ do carvão. O monumento era mesmo colorido. Mas,
nem todos concordaram com isso.
183
PIMENTEL, José e BELOLLI, Mário. Criciúma – Amor e Trabalho. Itajaí: Edições Uirapuru, 1974,
p. 10. Posteriormente, a data original foi recolocada no monumento.
124
Monumento ao Mineiro (Criciúma/SC)
Uma das vozes que se levantaram na cidade questionando o novo monumento foi a
de Olindo Rosso, ex-padre e articulista da mesma Tribuna Criciumense que havia feito a
campanha pela transferência do monumento. Tão logo o novo monumento é inaugurado,
ele publica um artigo no jornal
184
em que simula uma entrevista feita com o mineiro do
monumento:
“Mas, voltando a vaca fria, que iluminação, o jardim uma beleza, o
conjunto um encanto. Isso representa a mina [responde o mineiro].
Mina? Não?!. O senhor é mineiro de mina de ouro? Não, por que?
[responde o mineiro]. Então estas minas (...) deveriam ser
encarvoadas e não douradas. onde os mineiros trabalham e como
representa aqui? Grama, iluminação, ventilação!”.
184
“Visita” (assinado por Olindo). Tribuna Criciumense, 13/11/1971, p. 8.
125
De fato, a placa de concreto por trás do mineiro, com uma abertura, lembra a
embocação de uma mina de carvão. A fúria de Olindo Rosso se devia ao fato de o
monumento não representar a ‘realidade’ da exploração carbonífera, com a onipresença do
carvão e as duras condições de trabalho dos mineiros. Chamado a se explicar, o autor da
obra, arquiteto Fernando Carneiro, compareceu ao Tribuna justificando que estava apenas
simbolizando e que, por isso, não teria a obrigação de reproduzir, no monumento, as
condições reais da exploração carbonífera.
O autor do Monumento aos Homens do Carvão não quis, por ser
desnecessário, imitar a realidade, transpor para a praça uma mina de
‘galeria’ ou ‘céu aberto’. Mesmo porque, seria impraticável: levaria a
vagoneta, os trilhos, o gincho, os esteios, as lâmpadas, as
ferramentas, a água, a dinamite, o ar, o cheiro... e, ainda assim
faltaria o principal, o carvão!
185
Trabalhando no nível dos mbolos, diz Carneiro, o significado pode ser atribuído
conforme o gosto do passante. Assim, o dourado da placa de concreto “pode (se quiserem)
apenas lembrar a esperança em dias melhores” e assim por diante. Ao que, retruca Olindo
Rosso, seria preciso pagar alguém para encarregar-se “das explicações dos símbolos aos
turistas” e arremata afirmando que “apesar das explicações dadas no artigo, ainda continuo
pensando que não se deveria sacrificar a realidade em função do estético, nesse caso”
186
.
O problema é que, por tudo que temos visto neste capítulo, não havia as mínimas
condições sociais e políticas para transpor para a Praça Nereu Ramos, o lugar de maior
visibilidade da cidade, a ‘realidade’ da exploração carbonífera, com vagoneta, trilho,
185
“A Propósito do Mineiro e seu Monumento” (Fernando Jorge da Cunha Carneiro). Tribuna Criciumense,
11/12/1971, p. 4.
186
“O Manda Brasa”. Tribuna Criciumense, 18/12/1971, p. 9.
126
dinamite, cheiro e carvão. Nem no nível do símbolo. Na verdade, nos parece que a tentativa
dos promotores do monumento foi de criar um monumento ao mineiro e ao carvão que,
embora os homenageando em vista da posição importante que ocupavam na cidade,
buscasse também diminuir a sua presença na paisagem urbana, como de resto estava
acontecendo no centro da cidade, com a retirada ou disfarce das marcas que o carvão havia
deixado. A destruição do pedestal de granito do Monumento aos Homens do Carvão, a
atualização de datas e efígies e a própria arquitetura modernista do monumento, expressam
essa disposição de construir um monumento que fosse mais adequado à cidade moderna da
década de 1970. É possível que o que estava sendo simbolizado no Monumento ao Mineiro
não fosse, efetivamente, a ‘realidade’ da exploração carbonífera e as condições de trabalho
dos mineiros, mas a realidade de um desejo de cidade moderna e colorida, presente no
imaginário urbano e nas intenções do poder público.
A destruição do Monumento aos Homens do Carvão abriu um vazio no centro da
Praça Nereu Ramos que foi preenchido, ainda na gestão de Nelson Alexandrino, pela
construção de uma fonte luminosa, popularmente chamada de chafariz, inaugurada em 24
de dezembro de 1971
187
. Informa ainda a matéria que “a fonte luminosa foi construída em
tempo record pois era, e é, desejo de nosso prefeito embelezar nossa cidade nos dias
festivos de fim de ano, complementando o que se encontra concluído”. O que estava
concluído e que embelezava a cidade talvez se referisse ao novo monumento, próximo de
onde se inaugurava a fonte. De qualquer maneira, o chafariz parecia expressar o interesse
que o poder público tinha em construir uma cidade que fizesse esquecer a cidade
carbonífera e que se construía em ruptura, senão completa ao menos parcial, com aquela
cidade carbonífera construída anteriormente.
187
“Fonte Luminosa Será Inaugurada Amanhã”. Tribuna Criciumense, 23/12/1971, p. 1.
127
A fonte luminosa não resistiu ao governo seguinte. Eleito pela ARENA, Algemiro
Manique Barreto abandonou o chafariz que foi, por fim, demolido. Entretanto,
preocupações mais profundas, que povoavam o imaginário dos habitantes de Criciúma em
relação à cidade, foram levados em conta pelos novos governos municipais.
Governo Guidi e a Criação de Uma Nova Cidade
Em uma crítica feita a Altair Guidi, prefeito que o sucedeu, Manique Barreto foi
apresentado como estando naquela categoria dos “humildes colonos investidos no mais
elevado cargo executivo municipal que proporcionam verdadeiras e sábias lições de lisura e
fino trato, capacidade e entendimento, cautela e sensatez”
188
. Natural do distrito de São
Bento Baixo, Nova Veneza, cidade próxima a Criciúma, Manique Barreto veio para a
cidade carbonífera em 1948, para trabalhar como alfaiate, tornando-se mais tarde
empresário, vereador e, finalmente, prefeito municipal, tendo assumido a prefeitura no
início de 1973
189
. As novas condições conjunturais e, em especial, o fato de ter sido eleito
pelo partido oficial e, assim, ter acesso aos gabinetes do governo estadual e do governo
militar, permitiram a Manique Barreto realizar intervenções urbanas estruturais, que
transformaram o cotidiano da cidade e tiveram uma forte incidência sobre sua imagem.
Quando relaciona as obras de Manique Barreto, em seu livro sobre a história
político-administrativa da cidade, Arquimedes Naspolini Filho coloca em primeiro lugar a
“abertura e implantação da Avenida Centenário”
190
. De fato, ainda que tenha realizado um
188
“Como Um Prefeito Deve Agir”. Tribuna Criciumense, 17/03/1979, p. 12.
189
NASPOLINI FILHO, Archimedes. Criciúma 70 Anos Ensaio Para a Sua História Político-
Administrativa. 2ª edição. Criciúma: Edição do Autor, 1995, p. 44 e 45.
190
Ibid., p. 45.
128
conjunto de obras importantes na cidade, como construção de centros comunitários,
remoção do aeroporto municipal e implementação de distritos industriais, foi a implantação
da Avenida Axial, chamada de Avenida Centenário na administração seguinte, que marcou
a passagem de Manique Barreto pela prefeitura municipal.
A avenida foi construída sobre o leito da estrada de ferro, que cortava Criciúma no
sentido leste oeste, indo do bairro Próspera ao bairro Pinheirinho, passando praticamente
pelo centro da cidade. As margens da estrada de ferro, tanto os lotes legalizados quanto a
faixa de domínio, fora densamente ocupada por uma população pobre, cuja presença no
centro urbano era referida pela imprensa local como um problema para a cidade
191
. A
própria passagem do trem pelo centro expressava, aos olhos dos observadores da cidade,
uma situação que denotava o atraso que a cidade ainda tinha. Enfim, o trem e os pobres no
centro urbano eram conseqüências da cidade carbonífera que precisavam ser resolvidas. A
solução veio através da retirada dos trilhos e da conseqüente remoção daquela população
para uma área afastada do centro urbano, dando lugar à implantação da Avenida Axial,
primeiro nome da Avenida Centenário, e da estação rodoviária municipal, obras que se
tornaram símbolo da administração de Manique Barreto.
A substituição do trem e dos pobres pela avenida e rodoviária juntou-se aos esforços
de construção de uma cidade moderna, livre das marcas da cidade carbonífera. A retirada
dos trilhos do centro da cidade, efetuada em 1975, teve um valor simbólico importante, de
afirmação da cidade moderna que Criciúma ia se tornando, entendendo o moderno como
191
Em 1977, anos depois da retirada dos trilhos, um jornalista, lembrando o episódio, fala da remoção das
famílias “que residiam em pequenos casebres edificados às margens da estrada de ferro, então verdadeiras
favelas que enfeavam a cidade (...)”.Coluna Cidade Aberta, assinada por Aires J. Filho. Jornal do Sul.
16/07/1977, p. 2.
129
oposição ao carbonífero na paisagem urbana. As marcas da ferrovia, e do carvão que ela
representava, foram apagadas do centro urbano de Criciúma.
A avenida foi, no entanto, apropriada como obra pela administração seguinte a de
Manique Barreto, no governo de seu correligionário e desafeto Altair Guidi. Este iniciou
sua gestão criticando a forma como a Avenida Axial fora planejada, sem resolver o
problema da divisão da área urbana em duas partes, que a estrada de ferro havia provocado,
e sem que, segundo suas opiniões, houvesse uma integração com as ruas da área central.
Superdimensionada em relação à escala da cidade, segundo essas críticas, a avenida havia
consolidado a secção do centro urbano e atraído o tráfego pesado, o que precisou ser
retificado
192
. A palavra de ordem para a avenida era humanizá-la.
A primeira grande preocupação de Guidi, se no sentido de
transformar a Avenida Axial em uma via pública mais humana. Para
isso, serão desenvolvidos estudos detalhados e em longo prazo que
poderão transforma-la, inclusive, na Avenida do Centenário.
193
As obras de modificação da avenida incluíram o seu prolongamento no sentido
norte, em direção a BR 101, a construção de calçadas, arborização e a instalação de uma
iluminação moderna, e uma intervenção na área em que a avenida mais interage com o
centro urbano, onde antes se localizava a estação ferroviária da cidade, com a construção de
um terminal urbano central, chamado Ângelo Guidi, e a Praça Maria Rodrigues. A
apropriação prática e simbólica da avenida pela administração Guidi foi completada com a
mudança do nome, para Centenário, em substituição a Axial. A Avenida Centenário tornou-
192
“Caderno Especial”. Tribuna Criciumense. 22/08/1981, p. 2.
193
“Equipe de Arquitetos Fez Levantamento”. Tribuna Criciumense. 16/04/1977, p. 5.
130
se a principal imagem da proposta de cidade que Altair Guidi estava construindo, junto com
calçadão, e que era mostrada e vista a partir de suas obras.
Uma matéria publicada na Revista Quem, em abril de 1982
194
, pode ser utilizada
como exemplo. Ainda que se tratasse, na reportagem, de mostrar a importância do carvão
catarinense, a matéria acaba por falar na diversificação econômica de Criciúma, que rompe
com a dependência ao carvão, e por mostrar uma cidade que não era mais a acanhada
cidade carbonífera, igualando-se as cidades modernas estaduais e nacionais. A fotografia
utilizada é exatamente da área da Avenida Centenário em que se localizava o terminal
urbano, mostrando o movimento intenso de automóveis, os prédios no entorno da avenida e
os postes de iluminação, que criam uma ambiência de cidade grande e moderna para
Criciúma. As obras de Guidi, como veremos mais adiante, marcaram as imagens pelas
quais a cidade passou a ser vista.
Altair Guidi foi eleito prefeito pela ARENA em 1977 e cumpriu mandato até 1983.
Teve um segundo mandato, eleito pelo Partido Democrático Social – PDS, de 1989 a 1992.
Nascido em Criciúma, Guidi formou-se em arquitetura na primeira turma da Universidade
Federal do Paraná
195
. Em seu discurso por ocasião da inauguração da nova sede do poder
público municipal, Guidi avaliou o sentido de sua atuação como prefeito para a cidade.
Poderá a muitos parecer, por isso, que é uma incoerência realizar
uma obra desse porte e com tanta beleza numa época como essa. No
entanto, basta voltar os olhos para a realidade de Criciúma de alguns
anos atrás, para compreender o significado e a importância desse
evento que assinalamos hoje. A Criciúma de alguns anos atrás era
uma cidade marcada pelo seu destino carvoeiro. Os sinais da
194
“A Importância do Carvão Catarinense”. Revista Quem, nº 11, abril/1982, p. 34.
195
NASPOLINI FILHO, Archimedes. Criciúma 70 Anos Ensaio Para a Sua História Político-
Administrativa. 2ª edição. Criciúma: Edição do Autor, 1995, p. 46 e 47.
131
exploração do carvão não ficavam apenas nas casas e nas praças, mas
na própria alma da cidade. Criciúma era uma cidade feia, acanhada,
pequena no dimensionamento de seu futuro e no debate de suas
perspectivas como comunidade. Era por isso que os próprios
criciumenses não assumiam a sua cidade, não viviam com
entusiasmo seu dia-a-dia.
196
Retirar o carvão da paisagem urbana e da alma da cidade era a tarefa que o prefeito
se propunha a fazer. Para isso, contou com sua experiência de estudante de arquitetura na
capital paranaense, quando presenciou o começo do processo de planejamento de Curitiba,
que a tornou conhecida no Brasil e no exterior, e com a presença, em Criciúma, do
arquiteto Manoel Coelho, que havia vivenciado aquela experiência como técnico do
Instituto de Planejamento Urbano de Curitiba, e que havia conhecido Guidi na primeira
turma do curso de arquitetura da UFPR
197
. Com a contratação de Coelho e, através dele, de
outros profissionais paranaenses, elementos da experiência de planejamento urbano de
Curitiba foram adaptados para Criciúma.
Vincular-se a experiência de planejamento urbano de Curitiba foi, para Guidi,
importante na medida em que, além de buscar um certo capital técnico de intervenção no
espaço urbano, apontava para uma cidade que Criciúma, em sua gestão, poderia tornar-se,
aliando competência cnica, modernidade e imagem urbana positiva. Curitiba era
apresentada, neste momento, como exemplo de planejamento urbano que dera certo e que
elevara a qualidade de vida da população. Ainda que o plano diretor da cidade que deu
origem ao modelo de Curitiba tenha sido aprovado em 1966, mesmo ano da criação do
196
“Caderno Especial”. Tribuna Criciumense. 22/08/1981, p. 12.
197
Manoel Coelho nasceu em Florianópolis e transferiu-se em 1959 para Curitiba, onde cursou arquitetura na
Universidade Federal do Paraná, formando-se em 1967. Atuou em Criciúma no primeiro governo Altair
Guidi.
132
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC), foi a partir de 1971 que
o plano foi posto em prática, tendo sido implantado no decorrer da década de 1970
198
,
sendo, portanto, uma experiência que guardava seu impacto inicial e que foi aproveitada
por Guidi para referendar o seu governo e as opções de intervenção urbana que tomou. Para
além da realidade que o modelo curitibano possui, o que se coloca é que a construção de
uma imagem de cidade com alto padrão de vida urbana advinda do acerto do planejamento
sustentou a apresentação de Curitiba como um modelo a ser imitado, transformando a
cidade em uma marca nacional e internacional de modernidade urbana
199
. Vincular
Criciúma a Curitiba, uma marca consagrada, era para Altair Guidi apontar para o tipo de
cidade que queria construir e, ao mesmo tempo, respaldar as opções de intervenção urbana
que fazia.
Uma das primeiras medidas de intervenção do governo Guidi foi a implementação
de uma área exclusiva para pedestre no centro da cidade, abrangendo a Praça Nereu Ramos
e as ruas de seu entorno. O calçadão comparecia na proposta de cidade do governo Guidi
como capaz de humaniza-la, estabelecendo uma nova escala que não fosse aquela do
automóvel.
Também em função dessa filosofia de administração, voltada para o
homem, é que buscamos promover a revitalização da cidade,
revalorizando pontos de encontro tradicionais, e criando novos,
estabelecendo transições entre a escala do automóvel e a do pedestre,
por meio da implantação de ruas destinadas exclusivamente a
198
OLIVEIRA, Dennison de. Curitiba e o Mito da Cidade Modelo. Curitiba: Editora da UFPR, 2000, p. 76.
OBA, Leonardo Tossiaki. Os Marcos Urbanos e a Construção da Cidade A Identidade de Curitiba.
1998. Tese de Doutorado em Arquitetura e Urbanismo. USP, São Paulo.
199
MOURA, Rosa. Os Riscos da Cidade-modelo. In: ACSELRAD, Henri. A Duração das Cidades –
Sustentabilidade e Risco nas Políticas Urbanas. Rio de Janeiro: DP & A, 2001, p. 203 – 237.
133
pedestres e também para estimular a livre troca de idéias e a criação
de alternativas de lazer para a população.
200
Ainda que tenha tido oposição, no início do projeto, especialmente por parte dos
comerciantes da área central, a proposta de calçadão é sentida desde o começo como uma
modernização da cidade, no sentido de acompanhar os movimentos das cidades
“atualmente em desenvolvimento, em cujo rol está a nossa”. As matérias citam as cidades
que também implantaram calçadões, como São Paulo que “resolveu converter em rua de
lazer parte da famosa ‘Augusta’ sob protestos iniciais dos comerciantes (...)” e Porto
Alegre, com a “Rua da Praia (Andradas)”, pioneira, segundo a reportagem, em calçadão,
“agora muito útil ao porto-alegrense como haverá de ser o calçadão da Praça Nereu
Ramos”
201
. Ao propor o calçadão e, com a proposta, equiparar Criciúma às grandes cidades
brasileiras, Guidi tocava uma música que soava como irresistível aos ouvidos da cidade.
A proposta do calçadão era, segundo os seus promotores, no sentido de criar uma
área de lazer no centro da cidade. “Mediante quiosques, luminárias especiais, todo um
mobiliário urbano especialmente desenhado, foi possível executar a principal transformação
de mudança física para uma mudança de comportamento”
202
, tornando a praça Nereu
Ramos em lugar de encontro e lazer para a população urbana.
A proposta de calçadão para a área central foi feita no primeiro ano do governo
Guidi, pela equipe do arquiteto Manoel Coelho
203
, em conjunto de propostas relacionadas
ao trânsito urbano. Sua implementação, na segunda metade de 1977 e no decorrer do ano de
200
Discurso de posse de Altair Guidi citado por ocasião da transmissão de cargo a José Augusto Hülse,
prefeito que o sucedeu. “Altair Guidi: Cumpri o Meu Papel”. Tribuna Criciumense. 05/02/1983, p. 10.
201
“Calçadão Poderá Humanizar (Mais) a Cidade”. Tribuna Criciumense. 05/08/1978, p. 1.
202
“Caderno Especial”. Tribuna Criciumense, 22/08/1981, p. 6.
203
“Coelho Garante Que Trânsito Vai Melhorar”. Tribuna Criciumense. 06/08/1977, p. 3.
134
1978, foi acompanhada pelos jornais, em matérias que destacavam a sua importância,
“destinado a emprestar a cidade um aspecto humano tão almejado e decantado por tantas
cidades que, não se precavendo em tempo, hoje se afogam num maluco burburinho”
204
.
Entretanto, no início de 1979, começam a surgir críticas a sua implementação. As primeiras
se referem ao aumento de impostos municipais a serem cobrados dos proprietários de
imóveis da Praça Nereu Ramos, especialmente comerciantes, em vista da construção do
calçadão. Este é qualificado como “famigerado calçadão” e fala-se em cobrança de
impostos para alimentar “vaidades e recalques pessoais”
205
. No entanto, uma outra linha
de críticas que vai além do aspecto conjuntural e que contrapõe a intervenção do Governo
Guidi no centro da cidade à falta de obras na área periférica, “a miséria [que] campeia pelos
bairros”. As críticas, que foram formuladas pela imprensa e pelo principal partido de
oposição na época, o PMDB, contrastam os bairros abandonados às obras realizadas quase
todas na área central
206
e criticam “tanto exibicionismo” da parte do poder público
municipal
207
. Na verdade, ainda que Altair Guidi possuísse bom trânsito por ser do partido
de situação, para buscar financiamentos no governo federal, dominado pelos militares
apesar da abertura política, seus investimentos buscavam a área central, capaz de dar
visibilidade ao projeto de cidade que queria implementar. Ou seja, em situações de
disponibilidade limitada de recursos, a tendência dos processos de modernização urbana é
buscar aquelas áreas de maior visibilidade social, criando um eixo de modernidade capaz de
204
“Calçadão com Excelente Aspecto”. Tribuna Criciumense. 28/08/1978, p. 16. “As Primeiras Mudanças no
Trânsito Central”, Jornal do Sul, 01/10/1977, p. 8. “Problema do Engraxate se Agrava”. Tribuna
Criciumense, 11/02/1978, p. 3. “Calçadão Poderá Humanizar (Mais) a Cidade”. Tribuna Criciumense,
05/08/1978, p. 1.
205
“Confirmado: Calçadão – Um ‘Presentão de Grego’”. Tribuna Criciumense. 13/01/1979, capa e p. 12.
206
“Os Positivismos e as Mazelas da Administração”. Tribuna Criciumense. 09/06/1979, p. 16.
207
“Confirmado: Calçadão – Um ‘Presentão de Grego’”. Tribuna Criciumense. 13/01/1979, capa e p. 12.
135
teatralizar e espetacularizar a vida urbana naquela área e, por extensão, no conjunto da
cidade.
208
Uma outra obra pública que marcou o governo Guidi foi o deslocamento da sede do
poder executivo do centro da cidade e a construção de um centro cívico na área do antigo
aeroporto municipal. O conjunto, denominado Parque Centenário, era constituído pelo Paço
Municipal, um centro cultural, um centro esportivo e um monumento denominado da
Colonização, que homenageava as etnias formadoras da cidade, em cujo subsolo havia o
memorial da cidade.
Na mesma Revista Quem de abril de 1982, apareceu uma reportagem de divulgação
das obras de Altair Guidi relacionadas ao Parque Centenário
209
. A reportagem notícia da
construção do Paço Municipal, inaugurado, e das providências para construir o centro
cultural e o centro esportivo. Quando se refere ao primeiro, a reportagem sintetiza a
proposta do governo Guidi no sentido de superar as marcas do carvão na cidade, na medida
em que o Centro Cultural “será o espaço cultural onde germinará uma nova postura da
cidade em relação a si mesma, traduzindo seu empenho e determinação em superar os
condicionamentos negativos de seu histórico destino carvoeiro”. A impressão que se tem é
que as obras de Guidi se orientam por uma concepção de cidade que busca explicitamente
superar a antiga cidade carbonífera e constituir uma cidade contemporânea fundada em uma
paisagem urbana moderna e em uma identidade urbana que remetia ao passado, aquele das
etnias fundadoras. Grandes obras e identidade urbana se conjugaram no Governo Guidi, a
primeira apontando para a modernidade e a segunda apontando para o passado, mas ambas
208
BERMAN, Marshall. Petersburgo: O Modernismo do Subdesenvolvimento. In: Tudo o Que é Sólido
Desmancha no Ar – A Aventura da Modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p. 167 – 269.
209
“Criciúma: O Futuro é uma Conquista do Presente”. Revista Quem, 11, Abril de 1982, p. 33.
136
consolidando a cidade étnica que se queria afirmar. Por isso, Archimedes Naspolini Filho
caracteriza desta forma a passagem de Altair Guidi pela prefeitura municipal:
Caracterizado como ‘um prefeito de grandes obras’, preocupou-se,
sobretudo, em dar uma identidade à cidade, facilitada, a tarefa, pelas
comemorações alusivas ao centenário de colonização do
município.
210
Guidi preocupou-se em dar uma identidade à cidade através de diversificadas ações,
que foram das grandes obras até a comemoração do centenário, passando por uma
preocupação extrema em relação a comunicação do poder público municipal com a
população. A logomarca que Manoel Coelho criou para a gestão Guidi tornou-se símbolo
da cidade e foi utilizado pelas administrações que sucederam a de Guidi, sendo ainda hoje o
símbolo do time de futebol. A gestão Guidi na prefeitura municipal se esforçou por dotar a
cidade de uma nova visualidade, uma identidade visual que destacasse as obras que Guidi
havia realizado e que apresentasse uma cidade que houvesse superado “a feia, pobre, suja e
maltratada Criciúma de tão poucos anos atrás”
211
. Ou seja, a cidade carbonífera.
Um conjunto de imagens promovidas pelo Governo Guidi nos ajudará a explicitar
melhor a proposta de cidade que seu governo promovia e que, por sinal, ainda que em
parte, materializou-se em uma outra Criciúma.
210
NASPOLINI FILHO, Archimedes. Criciúma 70 Anos Ensaio Para a Sua História Político-
Administrativa. 2ª edição. Criciúma: Edição do Autor, 1995, p. 47.
211
“Altair Guidi: Cumpri o Meu Papel”. Tribuna Criciumense. 05/02/1983, p. 10.
137
Criciúma de Guidi Como Cidade de Cartão Postal
Em meados da década de 1980, a Administração
Municipal de Criciúma lançou um álbum com um
conjunto de doze cartões-postais
212
retratando a
nova cidade que havia saído de um conjunto de
obras públicas, entre elas a retirada dos trilhos da
área central, a implementação da Avenida
Centenário, a nova estação rodoviária, o calçadão
da Praça Nereu Ramos e a Praça do Congresso
remodelada. A cidade do carvão havia dado lugar,
nos postais, a uma outra cidade, que se
apresentava com a face da modernidade. Uma
cidade que agora merecia ser retratada e virar
cartão-postal.
O cartão-postal é sempre um ponto de vista em
relação ao real. Carrega ele determinados valores
e mensagens bem estabelecidas. Isso se
consubstancia na pose que a imagem fotográfica
presente no postal é portadora. Na pose, a
artificialidade da imagem, que a diferencia do
real, é reforçada. A partir do momento em que
sinto que estou sendo fotografado, diz Barthes,
“tudo muda: preparo-me para a pose, fabrico
instantaneamente um outro corpo, metamorfoseio-
me antecipadamente em imagem”
213
. Mais do que
212
Criciúma. Álbum de Cartões Postais. São Paulo: Editora Cultural Ltda, s/d.
213
BARTHES, Roland. A Câmara Clara. Lisboa: Edições 70, 1981, p.25.
138
isso, Barthes afirma mesmo que a natureza da
fotografia é a pose, seja daquele que é fotografado
ou do que contempla a fotografia realizada; há
sempre uma duração física da pose, mesmo que
seja um milionésimo de segundo. Essa paragem
(do fotografado, do que fotografa ou de quem
contempla a fotografia) é o que constitui a pose.
No cartão-postal como que uma pose da
cidade, onde outra cidade comparece para ser
publicamente consumida.
O álbum em questão contém doze cartões postais
no formato 21cmx15cm e um pequeno texto como
legenda no verso de cada cartão. A capa é formada
por uma das imagens com a palavra
“CRICIÚMA” em dourado. O trabalho é muito
bem realizado e acabado, tendo sido executado
pela empresa Edicard Editora Cultural Ltda, de
São Paulo. A ordem de aparição dos cartões é a
seguinte, com o título que aparece no Álbum e
uma pequena caracterização:
1 Vista Parcial Aérea (capa): Tomada
panorâmica do centro de Criciúma, tendo a
Avenida Centenário e o terminal Ângelo Guidi à
esquerda e a praça Nereu Ramos à direita.
2 Praça Dr. Nereu Ramos: Imagem do
Monumento ao Mineiro.
3 – Praça Dr. Nereu Ramos: Imagem de uma parte
da praça, àquela localizada entre as ruas Pedro
Benedet e João Zanette.
4 Estação Rodoviária: Imagem da Estação
Rodoviária de Criciúma, à noite.
139
5 Igreja de Nossa Senhora da Salete: Imagem da
igreja do bairro Próspera, uma dos maiores da
cidade.
6 Praça do Congresso: Imagem de uma parte da
praça, àquela constituída pelo lago artificial.
7 O Mineiro e o Carvão: Imagem de um
trabalhador mineiro no subsolo de uma mina, em
pleno trabalho.
8 Avenida Centenário: Imagem da Avenida
Centenário no trecho defronte ao Terminal Ângelo
Guidi.
9 Praça Dr. Nereu Ramos: Imagem noturna da
praça, no trecho compreendido entre as ruas João
Zanette e João Pessoa.
10 Vista Aérea Parcial: Tomada aérea
panorâmica do centro da cidade, no trecho
localizado aos fundos da igreja São José.
11 Matriz São José: Imagem da igreja São José,
com uma parte do calçadão.
12 – Mina de Carvão (contracapa): Imagem do
subsolo de uma mina de carvão.
Os postais trabalham a partir de três núcleos de
referência. Um primeiro relacionado com as obras
da administração Altair Guidi (postais número 1,
3, 4, 8, 9, 10 e 11), que é o núcleo mais forte e na
direção do qual aponta a mensagem geral do
álbum. Um segundo núcleo formado por imagens
que remetem a atividade carbonífera (postais 2, 7
e 12). E um terceiro núcleo formado por imagens
tradicionais da cidade e que tem por função
140
principal dar suporte aos outros núcleos (postais
número 2, 5, 6 e 11). A ordem que os postais
aparecem no álbum parece estar em relação com a
diversificação de núcleos temáticos, de tal
maneira que apenas as imagens do núcleo
relacionado com a administração Altair Guidi
possui imagens consecutivas, duas imagens
seguidas numa primeira vez e três imagens depois.
Isso fortalece a afirmação feita de que este é o
núcleo temático principal do álbum. A impressão
que é que na ordem de imagens se priorizou
este núcleo, colocando-se outras imagens de tal
maneira que a intenção dos autores fosse
disfarçada para o leitor dos postais.
O cartão-postal é caracterizado fundamentalmente
pela presença de uma imagem fotográfica, cuja
centralidade é evidente. Aborda-lo a partir desse
fato é tomar a fotografia nele presente como sendo
o centro da análise. Mesmo as legendas presentes
no postal, se têm a sua importância, estão em
função da imagem fotográfica, para a qual dão
sentido. Barthes trata do caráter diferenciado do
referente na fotografia, em relação a outras formas
de representação, como a pintura ou o discurso. O
referente fotográfico não é apenas
facultativamente real, como na pintura ou no
discurso, mas necessariamente real, ou seja, se
houve fotografia é porque o referente
necessariamente existiu: “... na Fotografia não
posso nunca negar que a coisa esteve . uma
dupla posição conjunta: de realidade e de
141
passado”
214
. A fotografia mostra o real no estado
passado, simultaneamente o real e o passado. Isso
fornece à fotografia um estatuto de verdade que
outras formas de representação não possuem. Essa
veracidade é transferida ao postal de tal maneira
que ele se torna como que uma imagem-gêmea da
cidade, servindo de testemunha da presença do
viajante naquela cidade ou de um desejo de
presença do possível viajante que lá quer estar.
Como retrato da cidade, sua carte de visite,
podemos surpreender o cartão-postal em seu
caráter icônico, quase que unifônico, a promover a
cidade como uma reprodução do sempre-o-
mesmo. No cartão-postal a representação posta em
movimento tem aquele caráter de imagem urbana
que Lucrécia Ferrara chamou de emblemática,
como “resgate físico e visual de marcas
memoráveis da cidade que, por meio dela, escreve
a sua história documental de episódios, datas,
estéticas e personagens”
215
.
Como dimensão comunicacional, a existência do postal significa a afirmação de
uma presença através da mensagem ou mensagens que o postal porta, e de ausências, quais
sejam, a do emissor e a do receptor, que só podem vir à tona na análise através de
procedimentos próprios do historiador, ausentes do objeto postal, ainda que alcançados
através dele. Para produzir conhecimento a partir da imagem presente no cartão-postal é
necessário estabelecer um contraste entre as representações visuais que os cartões-postais
põe em circulação e o mundo sócio-cultural que possibilitou a circulação dessas imagens
214
BARTHES, Roland. A Câmara Clara. Lisboa: Edições 70, 1981, p.109, grifos do autor.
215
FERRARA, Lucrecia D. Cidade: Imagem e Imaginário. In: Os Significados Urbanos. São Paulo: Edusp,
Fapesp, 2000, p. 119.
142
visuais, tornando possível assim a utilização dos cartões-postais como fonte de
conhecimento da cidade. Barthes fala na necessidade de carregar de reflexão o objeto
imagético. Para ele se estabelece quase uma indistinção entre a fotografia e o seu referente,
dado pelo efeito de real que a fotografia contém (“verdade da imagem”)
216
. Para se
perceber o significado fotográfico, diz Barthes, o que os profissionais conseguem, é
necessário um segundo ato, que carregue de reflexão o objeto fotográfico e, assim, haja
uma espécie de descolamento entre a imagem e o referente. Neste descolamento entre
imagem e mundo é possível introduzir o olhar atento do pesquisador e produzir um
conhecimento, em forma de representações, diferente daqueles que o cartão-postal
apresenta na sua superfície.
Trabalharemos a partir de alguns postais do álbum
para explicitar as concepções de cidade que os
autores das imagens veiculam. Inicialmente a
imagem presente na capa do álbum (Imagem 1
Vista Parcial Aérea), ela própria um postal da
cidade. A altura da fotografia é, nesta imagem, o
elemento mais relevante. Ela é feita de tal maneira
que a cidade se apresenta como um todo
homogêneo a se espalhar, transbordando as
margens do postal. Ainda que os edifícios
aparentam ser pequenos, pela altura em que a
imagem foi captada, entretanto, essa desvantagem
é compensada pelo espalhamento da cidade em
relação às margens, buscando apresentá-la, desta
forma, como uma grande cidade. Essa
homogeneidade é quebrada na imagem pela
presença, à esquerda e abaixo, da Avenida
216
BARTHES, Roland. A Câmara Clara. Lisboa: Edições 70, 1981, p.108.
143
Centenário e do Terminal Ângelo Guidi, que o
estão no centro físico da foto, mas se pode dizer
que constituem o seu centro imagético, para aonde
escapa o olhar. A intenção do fotógrafo foi
destacar a avenida em contraste com o conjunto da
cidade, notadamente o seu centro mais tradicional.
Essa impressão é reforçada pelo eixo que se abre,
mais vertical, a partir de dois rasgos retilíneos de
ruas na concretude homogênea da cidade, formada
pelas avenidas Rui Barbosa e Getúlio Vargas à
direita da imagem e, ao centro, pelas ruas Seis de
Janeiro e João Pessoa. A comparação é inevitável.
Essas ruas são importantes vias na cidade, porém
demonstram sua modéstia em contraste com a
Avenida Centenário. Em meio aos dois conjuntos
de ruas destaca-se a igreja São José, na frente da
qual encontra-se a praça Nereu Ramos. Forma-se
assim um contraste binário constituído pela
Avenida Centenário Terminal Ângelo Guidi, de
um lado, e Ruas Igreja São José Praça Nereu
Ramos de outro. Esse contraste não representa,
necessariamente, oposição. Basta ver que os dois
conjuntos de ruas confluem em direção à avenida
na parte de baixo da imagem, como num
complemento, parecendo sugerir que a avenida é o
desenvolvimento normal das duas ruas e, portanto,
da cidade.
144
Vista Parcial Aérea (Imagem 1) – Álbum de
Cartões Postais
A mensagem que o postal porta remete para uma
valorização das obras realizadas em um período
recente pela Administração Altair Guidi,
representadas na Avenida Centenário e Terminal
Ângelo Guidi. Na medida em que essas obras
contrastam com elementos espaciais urbanos mais
tradicionais, e de forma inclusive vantajosa,
afirma-se a construção de uma nova cidade, mais
moderna e melhor, representada pelos elementos
da esquerda na imagem, mas que não rompe com
a cidade antiga, pois é a sua continuidade. As
casas, ruas e edifícios a transbordarem pelas
margens da imagem reforçam esse caráter de
cidade grande e moderna que o postal busca
afirmar. A escolha dessa imagem para a capa do
álbum mostra bem a sua representatividade para
145
as intenções que os promotores dos postais
possuíam. E, de fato, é ela uma imagem que
expressa bem, em sua composição, as mensagens
que o conjunto do álbum veicula.
Essa mesma intenção pode ser vista na maneira
como o carvão aparece no álbum. São três
imagens vinculadas a esta temática (Imagens 2, 7
e 12). Estes três postais formam um conjunto
imagético que se refere explicitamente a temas
ligados à mineração do carvão.
A primeira imagem aborda o Monumento ao
Mineiro, tal como ele foi estabelecido após a sua
retirada do centro da Praça Nereu Ramos
217
. Toma
a estátua do mineiro no plano central de tal
maneira que a parte posterior da imagem, em
perspectiva, para a esquina das ruas João
Zanette e Seis de Janeiro. A Segunda imagem
deste conjunto explicita um mineiro em seu labor
no fundo de uma mina de carvão. Ainda que estas
duas imagens não apareçam lado a lado no álbum,
um evidente contraste entre elas, ao abordarem
o mesmo tema do trabalho mineiro, porém de
maneira diferente. A primeira imagem, ao centrar
na estátua do mineiro, remete para uma outra
época da exploração carbonífera, seja pela
antiguidade do monumento ou pelos indícios
presentes no mineiro e que remetem a sua
existência para um outro tempo, como o chapéu e
a picareta. Este efeito é reforçado pelo fundo da
imagem, que mostra a esquina das duas ruas
217
Imagem publicada neste capítulo quando tratamos do Monumento ao Mineiro (página 124).
146
citadas. Ora, essas ruas davam acesso a estação
central da ferrovia em Criciúma, antes da retirada
dos trilhos do centro da cidade, de tal forma que a
referência a elas implica uma referência à outra
temporalidade, diferente daquela de produção do
álbum. Essa volta ao passado também esta
presente, enfim, no movimento que a imagem
indica para o olhar, da direita para a esquerda, o
movimento de retorno do atual para o mais antigo
se tomarmos uma linha do tempo. A Segunda
imagem centra toda a sua força no trabalho do
mineiro. A intenção é mostrar o mineiro em plena
atividade, produzindo a riqueza através do
trabalho. As peças de vestuário que o mineiro
porta, ainda que esteja sem camisa, aponta para a
contemporaneidade da imagem e sua modernidade
mesmo, como o capacete com a lanterna e as botas
de borracha. Porém, é seu instrumento de
trabalho, que fornece a maior parte do impacto
visual que remete para o moderno. O mineiro que
a imagem mostra é aquele que possui ferramentas
apropriadas e modernas para o exercício do seu
trabalho. O sentido de leitura dessa imagem, por
outro lado, vai da esquerda para a direita, de tal
maneira que o longo furador da perfuratriz serve
de suporte para os olhos, em um sentido que vai
do antes para o depois, do passado para o presente
e futuro. A imagem busca também mostrar a
coluna de carvão, nesta simbiose cujo imaginário,
assentado na matriz carbonífera, considera
geradora de progresso, o mineiro – carvão.
147
O Mineiro e o Carvão (Imagem 7) – Álbum de
Cartões Postais
O contraste que se faz parece óbvio. Formam-se
duplas contrastantes entre elementos das duas
imagens, tais como o chapéu e o capacete, o
sapato e a bota de borracha, a picareta e a
perfuratriz, o sentido da leitura que induz a se
referir ao passado, de um lado, e ao presente e
futuro, de outro. A mensagem que as imagens
produzem refere-se ao tipo de trabalho que o
mineiro daquela temporalidade, a da produção do
álbum, exerce. Frisa-se a sua equipagem e
modernização, e mesmo a humanização de suas
condições de trabalho. O contraste final, e que
reforça a mensagem, é dado pelo caráter de
imobilização da estátua, sua desumanização,
paralisada no tempo e no espaço, tal como o
passado, do qual na imagem a estátua do mineiro
148
metaforiza. Isso em oposição ao mineiro no fundo
da mina, vivo e exercendo a sua atividade em
movimento. Para uma cidade moderna, produziu-
se a imagem de um mineiro moderno. O fato das
duas imagens não estarem lado a lado, o que daria
uma interpretação explícita aos leitores dos
postais, não dificulta o entendimento sobre as
intenções dos autores. Pelo contrário, a própria
colocação das imagens em lugares distantes do
álbum, tendo outras quatro imagens entre elas,
exatamente explicita as suas intenções, de
propiciar aos leitores dos postais uma dedução
implícita da mensagem divulgada, sem que exista
reflexão.
Roland Barthes cunhou o termo unária para se referir a determinado tipo de
fotografia que tem por principal característica a uniformidade. A fotografia unária é aquela
que induz a uma leitura destituída de inconvenientes, de perturbações. O adjetivo unária
denota uma unidade na composição fotográfica que induz uma leitura quase transparente,
destituída de controvérsias, tornando a fotografia um objeto banal, pois “a fotografia é
unária quando transforma enfaticamente a ‘realidade’ sem a desdobrar, sem a fazer vacilar
(a ênfase é uma força de coesão): nenhum duelo, nenhuma indireta, nenhum distúrbio”
218
.
Barthes cita dois exemplos de fotografia unária: as fotos de reportagem, que podem
produzir choque, já que a fotografia unária não é necessariamente pacífica, mas que não
traumatizam, e fotos pornográficas, inteiramente constituídas pela apresentação de uma
única coisa, o sexo, diferentemente da fotografia erótica, onde o pornográfico se apresenta
fendido, desorganizado. Esse tipo de fotografias é homogêneo, sem contradições. Poderia
218
BARTHES, Roland. A Câmara Clara. Lisboa: Edições 70, 1981, p.64.
149
ser chamada de uma fotografia pasteurizada, unívoca. Poderíamos acrescentar a esses
exemplos também os cartões-postais.
As representações gráficas da cidade, presentes nos cartões-postais, reforçam os
esquemas imaginários existentes, ilustrando sem fazer refletir. Não é qualquer parte da
cidade que se torna cartão-postal, mas àquelas que possuem representatividade suficiente
para isso. Aquilo que chamo representatividade, que significa possuir valor suficiente para
ser apresentada como imagem típica daquela cidade aos olhos dos produtores e
consumidores de cartões-postais, o é se referenciada pelas representações presentes no
mundo sócio-cultural que o produz. As representações presentes nos cartões-postais
freqüentemente reforçam os imaginários sociais presentes em uma determinada realidade
citadina, que se utiliza dos cartões exatamente para reafirmar suas representações
dominantes, em um círculo vicioso.
Há, no entanto, um detalhe que perturba a mensagem dos cartões-postais de
mineiros, tal como foi até aqui discutido. O mineiro que está em pleno labor no interior da
mina, portanto em movimento, tem uma pose excessivamente estática. A tensão de seu
corpo e a forma de seu rosto denunciam a sua pose para a objetiva. Ainda que toda imagem
pressuponha a pose, neste caso não foi ela devidamente disfarçada. E mesmo a sujeira de
carvão em seu corpo e vestuário, marca registrada do trabalho mineiro, parece estar bem
arrumada, como tendo sido realizada uma espécie de maquiagem para a execução da foto.
Ora, todos esses procedimentos são corriqueiros na produção da imagem visual. Entretanto,
a eficácia da imagem em transmitir sua mensagem está na relação direta com o
desaparecimento desses traços na imagem final. É exatamente isso que não acontece aqui.
O mineiro que devia estar em movimento, está parado, quando devia estar em trabalho de
exploração do carvão, esatuando teatralmente, denunciando desta forma a artificialidade
150
da imagem produzida. Talvez isso fale mais sobre a produção dos postais do que tudo o
mais que foi dito até aqui.
O último postal da série apenas reforça a
mensagem que foi discutida a partir das imagens
de mineiros. Apresenta-se uma galeria de mina,
sem a presença humana explícita, mas com trilhos
e carrinhos de carvão, e um conjunto de fios e
lâmpadas que dirige um olhar para o fundo da
fotografia e, portanto, da mina. O que se
demonstra aqui é a modernização da mina e, em
conseqüência, do trabalho mineiro. Aquilo que foi
dito sobre a modernização do mineiro vale
também para essa imagem da mina, isto é,
produziu-se uma imagem de uma mina moderna
adequada à representação de cidade moderna que
os postais divulgam.
A última imagem que gostaria de destacar é a de
uma parte da praça Nereu Ramos (Imagem 3),
àquela localizada entre as ruas Pedro Benedet e
João Zanette. A imagem foi realizada de costas
para a rua João Zanette e quase em frente das
Avenidas Rui Barbosa Getúlio Vargas e rua
Pedro Benedet. A imagem abarca um conjunto de
objetos, tais como árvores, bancos de praça, caixa
de correio, luminárias, edifícios e carros,
unificados a partir da praça e de seu calçadão. Os
objetos estão organizados à esquerda e à direita da
imagem, formando em seu centro uma espécie de
túnel, com o calçadão abaixo e os galhos de uma
árvore na parte de cima, apenas perturbado por um
pequeno banco com uma vegetação. À esquerda
151
destaca-se o busto do coronel Marcos Rovaris,
primeiro prefeito da cidade, tendo a seu lado um
pequeno suporte em concreto, assemelhando-se a
uma plataforma, e em frente a caixa de correio. A
imagem remete para o exercício da atividade
política, destacando-se a possibilidade de exercê-
la de forma pluralista e democrática, ressaltada
pela presença da plataforma, a partir da qual era
teoricamente possível a qualquer cidadão
pronunciar-se.
Praça Dr. Nereu Ramos (Imagem 3) – Álbum de Cartões Postais
À direita a presença de um conjunto formado
por bancos, árvores e luminárias, afirmando a
praça como um local de permanência e fruição,
aonde os cidadãos podem fruir a cidade e aquilo
que ela tem a oferecer. No primeiro plano da
imagem, as árvores projetam sua sombra sobre o
chão calçado por petit pavé, destacando o
152
calçadão e projetando uma representação de lugar
agradável, próprio para se estar.
A mensagem do postal explicita a idéia de que a
praça é o lugar por excelência dessa cidade que o
álbum afirma. Num primeiro sentido, a praça
entendida como local de exercício da palavra e
dos direitos, dado pela presença da tribuna
pública. Essa imagem contrasta com as
características do período histórico em que a
imagem foi elaborada, na medida em que se vivia
então no governo do General João Batista
Figueiredo, em plena ditadura militar. Por outro
lado, a praça é afirmada como local agradável
para se estar, na medida em que possui
equipamentos adequados para isto.
Além da representação de valorização da praça,
aponta o postal para a idéia que a praça foi
valorizada exatamente pela colocação, nela, de
equipamentos que permitem o seu usufruto pelos
cidadãos, tais como bancos, luminárias, tribuna,
vegetação, calçamento, etc., valorizando a
administração Altair Guidi. Porém, isso não é o
central nessa valorização, ou seja, a administração
é valorizada não somente no sentido de que foi ela
que equipou o praça central. Percebe-se também
que se busca um consenso maior, centrado no tipo
de cidade que se está propondo e que a praça,
como local de debates e posicionamentos,
supostamente proporciona.
um elemento onírico fortíssimo, dado pela
presença abundante de vegetação na imagem, das
153
sombras que ela propicia e pela sensação de prazer
que se tem ao olhar para ela. A praça torna-se
assim um lugar de descanso e harmonia, local
onde a cidade e a natureza se reconciliam. Essa
idéia é reforçada pelos edifícios e carros em
segundo plano. A matriz imaginária para essa
representação é o Jardim do Éden, local de plena
fruição humana, ou o Eldorado em sua versão
profana.
A maior parte das imagens tem como local
espacial o centro da cidade, num total de nove
postais. Um postal remete ao bairro Próspera e
dois outros a mina de carvão. No centro da cidade,
os locais mais utilizados foram a Avenida
Centenário (postais 1, 4 e 8) e a Praça Nereu
Ramos (postais 2, 3, 9 e 11). Pressupõe-se a partir
deste dado que estes dois locais continham as
obras que a administração municipal pretendia
divulgar. Com o Álbum de Postais, Altair Guidi
confirmou uma tendência que foi dominante em
sua administração, qual seja a de fixar um
determinado tipo de cidade que se queria mais
adequada aos novos tempos que se vivia.
154
CAPÍTULO 4
CIDADE DE PAPEL
O DISCURSO HISTORIOGRÁFICO SOBRE A CIDADE
Em uma mensagem do prefeito Addo Caldas
Faraco à população criciumense por ocasião do
aniversário da cidade, ao contar a história de
Criciúma, aporta ele ao relato um elemento que
nos interessa de perto. Afirma o prefeito que há 79
anos passados “aqui chegaram os primeiros
colonizadores, imigrantes italianos, trazendo na
vanguarda, como condutor e orientador o bugreiro
Manoel Miranda (...)”
219
.
Na mensagem do prefeito surpreende o papel
atribuído ao bugreiro, o de condutor dos
imigrantes. Efetivamente os que chegavam da
Europa não tinham a menor condição de se
localizar e sobreviver em meio à mata e
necessitavam serem guiados, ainda que os
imigrantes destinados a fundar o núcleo colonial
que viria a ser Criciúma, estacionaram por um
período em Urussanga. Entretanto, lembrar esse
fato e inclusive citar o nome do guia, de origem
“brasileira”, é algo que não aparece em nenhum
relato de fundação da cidade. O bugreiro,
219
“Mensagem do Prefeito Addo Caldas Faraco ao Povo de Criciúma”. Tribuna Criciumense, 05/01/1959.
155
profissão de Manoel Miranda, era assalariado pelo
governo estadual para caçar índios e proteger os
núcleos de imigrantes que se estavam
estabelecendo na região. Eram eles, desta forma,
profundos conhecedores da mata.
Manoel Miranda é apresentado como “condutor e
orientador”, sem o qual os imigrantes não
chegariam ao seu destino e pereceriam na mata.
Parece sobressair no relato uma estratégia
discursiva que não se refere efetivamente à
chegada dos imigrantes no sul do Brasil, mas a
situação concreta vivida pelo prefeito em relação à
cidade que governava, especialmente em relação
àqueles que detinham maior influência na cidade.
Na condição de forasteiro e tendo que render
homenagens aos colonizadores, o que lhe
enfraquecia politicamente, Faraco mobilizava a
seu favor um dado histórico, supostamente
objetivo, pelo qual demonstrava que os
descendentes de imigrantes serem dirigidos por
um forasteiro e “brasileiro” não era inusitado, pois
assim fora desde o princípio. A condição de
bugreiro não diminui o papel de Manoel Miranda,
ao contrário, o fortalece na medida em que no
relato da fundação da cidade os indígenas são
apresentados, juntamente com os animais ferozes,
como os maiores perigos que enfrentavam os
imigrantes. Nesses relatos, para fundarem a
cidade, os imigrantes tiveram que vencer
heroicamente a mata, com índios e animais. A
mensagem do prefeito simplesmente subverte o
156
relato da fundação, ao afirmar que a mata foi
vencida não pelo heroísmo e esforço próprio do
imigrante, mas pela proteção do bugreiro, através
de sua condução e orientação.
Além disso, diz ele, todos têm orgulho do
povoado fundado então, não “os descendentes
de seus fundadores como também para todos os
que tem dado sua contribuição para o seu
desenvolvimento”. Faraco busca igualar, em seu
relato, os descendentes dos imigrantes e aqueles
que vieram depois, os forasteiros, apresentando a
cidade como obra dos dois grupos.
E mais ainda, ele eleva a figura de Manoel
Miranda, ou seja, a de si próprio, e apresenta-a em
termos bíblicos, ao equiparar o bugreiro a figura
de Moisés conduzindo e orientando o povo. Isso é
tanto mais verossímil na medida em que todo o
seu discurso inicial é vazado em termos religiosos,
ao agradecer a Deus pelo ano que passou “com
uma prece ao Senhor” elevando seus olhos para o
céu, “bem para o alto”. A travessia da mata, qual
deserto, em direção a “Canaã Criciúma”,
necessitava de seu Moisés, no passado o bugreiro
Manoel Miranda, e no presente o prefeito Addo
Caldas Faraco. O relato bíblico do êxodo fornece
a forma discursiva a partir da qual o prefeito
agasalha o seu próprio discurso, legitimando-o
diante dos descendentes de imigrantes,
notadamente os italianos, louvados como católicos
e religiosos. Canaã, a terra bíblica da fartura, e o
Eldorado, a terra profana das oportunidades, são
157
igualadas como imagens de desejo, utilizadas no
discurso do prefeito.
no texto, ao que parece, um esforço para fazer
daqueles que não haviam nascido na cidade ou,
ainda, que não eram descendentes dos imigrantes,
filhos efetivos de Criciúma, legítimos moradores
da terra e que a amavam como os outros, os
habitantes primeiros. No texto, Faraco afirma que
Criciúma é a “namorada de todos quantos a
visitam pela primeira vez”. Mais uma vez procura
o prefeito igualar os imigrantes e os que chegaram
depois, os forasteiros, pois todos imigrantes e
forasteiros - a haviam visitado pela primeira vez,
sendo assim a cidade namorada de todos os dois
grupos de habitantes. Transparece no texto do
prefeito uma intensa luta de representações que se
desenvolvia em torno da história da cidade e que
vinha a tona em determinados momentos.
Pretende-se, neste capítulo, explorar os relatos
sobre o passado que se produziram em Criciúma
até a comemoração do Centenário de fundação da
cidade e cruzá-los com diferentes identidades que
se elaboraram em relação à cidade.
História de Criciúma nos Jornais
A fala do prefeito é inusitada porque se destaca de
um discurso que se tornou o discurso padrão em
relação à história de Criciúma. Esse discurso
padrão, que podemos chamar de memória oficial
da cidade, foi elaborado no decorrer dos anos e
158
teve a comemoração do Centenário como seu
momento de consolidação.
A memória que estamos tratando como memória
oficial da cidade se distingue daquelas memórias
elaboradas no nível do vivido pelos grupos
sociais. É ela uma memória-história que garimpa
acontecimentos e lembranças e que elabora um
esquema explicativo da origem e evolução da
cidade. É a mesma distinção feita por Maurice
Halbwachs, por exemplo, somente que em outros
termos, quando trata das relações entre memórias
coletivas, entendidas como “uma corrente de
pensamento contínuo, de uma continuidade que
nada tem de artificial, já que retém do passado
somente aquilo que está vivo ou capaz de viver na
consciência do grupo que a mantém”
220
, e a
história, “que se coloca fora dos grupos e acima
deles”, existente como relato escrito verdadeiro
dos acontecimentos e que não admite
pluralidade
221
. Ao refletir sobre a transformação
da memória em história nos processos que
ocorrem nos dias de hoje, Pierre Nora também
distingue entre o que ele chama de “memória
verdadeira” e a “memória transformada por sua
passagem em história”:
Aceitemos isso [a necessidade da palavra memória], mas com a
consciência clara da diferença entre memória verdadeira, hoje
abrigada no gesto e no hábito, nos ofícios onde se transmitem os
saberes do silêncio, nos saberes do corpo, as memórias de
220
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice, Editora Revista dos Tribunais, 1990,
p. 81 e 82.
221
“A história é uma e podemos dizer que não há senão uma história” (p. 85).
159
impregnação e os saberes reflexos e a memória transformada por
sua passagem em história, que é quase o contrário: voluntária e
deliberada, vivida como um dever e não mais espontânea;
psicológica, individual e subjetiva e não mais social, coletiva,
globalizante.
222
O objetivo dessa memória é, segundo Michael
Pollak, manter a coesão interna e defender as
fronteiras que o grupo possui em comum através
da elaboração de um quadro de referências e de
pontos de referências, que no nosso caso, orientam
os cidadãos para uma determinada perspectiva de
interpretação da história da cidade, que valoriza
mais determinados grupos sociais. A memória-
história da cidade está também colocada no campo
das lutas de representações que perpassam a vida
social como um todo.
A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e
das instituições que compõe uma sociedade, para definir seu lugar
respectivo, sua complementariedade, mas também as oposições
irredutíveis.
223
Pollak fala de memória enquadrada
224
para dar
conta desta memória que é elaborada para além da
espontaneidade da vida social, mas que mantém
uma relação de cumplicidade com as
representações presentes na sociedade, na medida
em que não é uma memória que possa ser
222
NORA, Pierre. Entre Memória e História – A Problemática dos Lugares. Revista Projeto História, São
Paulo, nº 10, Dezembro/1993, p. 14.
223
POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Rio de Janeiro, Estudos Históricos, vol. 2, n. 3,
1989, 3 – 15, p. 9.
224
ROUSSO, H. Apud: POLLAK, Michael, op. cit.
160
construída arbitrariamente, que deve “satisfazer
a certas exigências de justificação”. Recusar-se a
levar a sério o imperativo da justificação, diz
Pollak, é instaurar a memória sob a égide da
violência e da injustiça, o que rompe com o seu
caráter agregador, perdendo a memória a sua
função primordial que é criar consensos que
favoreçam determinadas perspectivas de
interpretação do passado e posições na vida social
do presente.
Essa memória que existe enquanto história da
cidade, portanto memória-história oficial,
apareceu inicialmente nas páginas do principal
jornal de Criciúma no período, Tribuna
Criciumense, vinculada a temas diversos. As
primeiras referências que abrem um debate sobre
a memória da cidade estão vinculadas à proposta
de se construir um monumento em homenagem ao
imigrante no centro de Criciúma
225
. Na
fundamentação da proposta os autores destacam a
importância da ação dos imigrantes,
especialmente italianos, para o surgimento e
desenvolvimento da cidade. Pimentel, em
especial, vincula o passado da cidade com a
situação que vivia no presente, a proposta de
erguer o monumento, a partir dos grandes feitos
dos imigrantes. Reafirma durante todo o artigo
que a geração sua contemporânea tinha uma
dívida de reconhecimento e gratidão para com os
225
“Monumento ao Imigrante” (José Pimentel). Tribuna Criciumense, 01/08/1955, p. 1 e 4. “Monumento ao
Imigrante” (Ézio Lima, A Cidade em Revista). Tribuna Criciumense, 07/05/1956. “Significado de uma
Comemoração”. Tribuna Criciumense, 07/01/1957, p. 1.
161
imigrantes “por tudo o que fizeram esses bravos
pioneiros em benefício de nossa terra”. E em outra
parte ele afirma que os imigrantes contribuíram no
“engrandecimento de Criciúma”. Os imigrantes
são apresentados, em sua obra, como povoadores,
desbravadores, fundadores de vilas, povoados e
cidades, aqueles que colocaram as bases para a
civilização no sul catarinense e, enfim, “aqueles
que ajudaram a povoar, civilizar e engrandecer o
Brasil”. A sua obra nos é apresentada como àquela
de civilizadores que arrancaram partes
importantes do território nacional às mãos de
índios, feras e matas. Eles são, nesse sentido,
explicitamente comparados aos bandeirantes
paulistas, em um período em que o sonho de
cidade para Criciúma era a metrópole paulista. Em
um outro artigo
226
, Pimentel inova em relação a
sua formulação anterior ao trazer à tona o tema da
miscigenação de raças na formação da cidade, ao
afirmar que da fusão dos “sangues” italiano,
alemão e polonês ao elemento nativo brotou um
município que tem contribuído, valiosamente para
que nossa estremecida pátria se projete perante as
demais nações e Santa Catarina”. Isto também se
expressa ao tratar ele do tema do futuro de
Criciúma, garantido assim como o presente
por sua “imensa riqueza mineral”, pelo trabalho
“heróico dos operários [mineiros]” e “diuturno
dos agricultores”, e pela “expansão de teu
comércio e da tua indústria”. Há, então, uma
226
“Salve Criciúma” (José Pimentel). Tribuna Criciumense, 09/01/1956, p. 1 e 4.
162
proposta de valorização dos antepassados
imigrantes que, para Pimentel, em nada diminui a
importância da atividade carbonífera no
crescimento da cidade. Ele encaixa perfeitamente
a obra civilizatória dos imigrantes com o
progresso trazido pelo carvão.
Essa espécie de divisão de trabalho entre a
imigração como obra civilizatória que forneceu as
bases para o início da cidade e o carvão que lhe
garantia o crescimento econômico e urbano é uma
constante em diversos artigos. Napoleão de
Oliveira, por exemplo, aborda esta temática na
condição de prefeito municipal em sua mensagem
de 1956 por ocasião do aniversário da cidade
227
.
uma certa articulação na escrita do autor entre
a especificação da obra civilizatória dos
imigrantes quando fala em “nossa cidade” e
nomeia as famílias que descendem dos pioneiros,
com a colocação dessa obra no passado, como se
suas conseqüências tivessem cessado lá de existir.
Ele fala em “base fundamental”, “pedra angular da
história de Criciúma de hoje” e “mérito de uma
empreitada histórica”. Parece que ele coloca a
obra dos imigrantes em relação com a cidade
posteriormente como estando situada na órbita das
conseqüências, isto é, ainda que a cidade seja
conseqüência do trabalho dos imigrantes, seu
fruto, não tem muito a ver com a evolução
posterior de Criciúma. Também Ézio Lima
228
227
“Honra ao Mérito” (Napoleão de Oliveira). Tribuna Criciumense, 09/01/1956, p. 3.
228
“A Epopéia do Imigrante Peninsular (Ézio Lima A Cidade em Revista). Tribuna Criciumense,
07/01/1957, p. 8.
163
conjuga muito claramente a questão da imigração
e a do carvão, colocando a obra dos imigrantes
como os que colocaram os “alicerces” da cidade,
cujo progresso teve “origem” no trabalho deles:
“(...) bravos e denodados colonos que, não
olhando nem mesmo o sacrifício da própria vida, a
suor e sangue construíram os alicerces da ‘Capital
do Carvão’”. E nas últimas palavras do artigo
explicita qual é a posição do imigrante na visão
que ele tem da história da cidade:
A eles é que devemos a edificação do progresso de nossa terra.
Criciúma, centro da bacia carbonífera e da indústria extrativa do
carvão, é hoje comuna de grande vulto e possuidora de invejável
posição no cenário estadual. Não podemos esquecer que esse
progresso teve origem no suor e sangue vertido pelo alienígena
italiano.
Pequena matéria publicada em 1964, também por
ocasião do aniversário da cidade, é exemplar na
forma como elabora a relação entre imigração e
carvão na história de Criciúma
229
. Inicialmente, a
obra dos imigrantes é apresentada de forma muito
simples e singela ao afirmar que “em 1880 alguns
imigrantes italianos aqui se reuniram e formaram
um agrupamento, depois de edificada uma igreja e
uma escola acabou tornando-se vila”. A partir do
tema dos imigrantes, é introduzido àquele do
carvão, de maneira muito engenhosa: “Talvez eles
nem suspeitassem que sob o solo em que pisavam
havia uma riqueza negra que faria de Criciúma um
229
“Cidade Aniversaria”. Tribuna Criciumense, 04 – 11/01/1964, p. 1.
164
dos municípios mais progressistas do Estado”. A
conclusão é, então, bastante clara ao afirmar a
articulação entre os dois elementos, um que
iniciou a cidade e outro que a sustenta: “Se em
1964 o carvão extraído de nosso solo nos
alimenta, não podemos deixar de lembrar aqueles
imigrantes que para cá vieram e plantaram a
semente da colonização que transformou esta
região antes selvagem”. Aos imigrantes a obra de
civilização no princípio e ao carvão a obra do
progresso do presente e futuro.
Como temos visto, diversas matérias aparecem no jornal e tratam do tema da
história da cidade a partir da comemoração do seu aniversário, em 6 de janeiro. Esta data,
considerada como o principal dia cívico da cidade e feriado municipal desde o início de sua
vida administrativa, era uma ocasião especial para se prestar homenagens aos fundadores e,
desta forma, se construir uma memória em torno da cidade. A comemoração coloca a
memória no espaço público, a ser dita coletivamente e de maneira a instituir o rito
230
.
Através da comemoração, acrescenta Catroga, fica ressaltado o papel pragmático e
normativo da memória, que busca inserir os indivíduos em uma estrutura identitária
diferenciando-os em relação a outros. A memória tende, assim, por sua repetição ritual, a
traduzir-se numa mensagem e a ser interiorizada como norma. Através da comemoração, o
passado não se apresenta apenas como objeto de um culto nostálgico e regressivo, mas é
oferecido também como arquétipo ao presente e ao futuro, de forma a compor
representações que inserem o que foi no que é, interferindo nas vivências do presente e
compondo uma certa imagem daquilo que virá a ser. Feito memória normativa pelas
230
CATROGA, Fernando. Memória, História e Historiografia. Coimbra: Quarteto, 2001, p. 25.
165
comemorações, o passado torna-se um horizonte de expectativas e se coloca no futuro
como probabilidade.
A comemoração do 6 de janeiro como dia de fundação da cidade pelos imigrantes
italianos, se insere, para Criciúma, naquilo que Nora chama “grandes acontecimentos”,
“por vezes ínfimos, apenas notados no momento, mas aos quais, em contraste, o futuro
retrospectivamente conferiu a grandiosidade das origens, a solenidade das rupturas
inaugurais”
231
. Como acontecimento-fundador, que se torna acontecimento-espetáculo a
cada ano que é comemorado, o dia de fundação da cidade expõe publicamente
determinadas memórias que se valorizaram no processo histórico da cidade a partir das
ações de grupos sociais interessados em sua perpetuação.
Nas matérias de jornais referentes ao 6 de janeiro, a obra dos fundadores é louvada e
os imigrantes são apresentados como heróis. Pimentel, por exemplo, verte seus primeiros
artigos em termos cívicos, acentuando que Criciúma e o sul catarinense também possuíam
heróis para fornecer a pátria, no caso os imigrantes fundadores. Pimentel acentua o caráter
heróico do imigrante ao abordar, por exemplo, o tema do abandono no aniversário da
cidade em 1956
232
, isto é, a idéia de que os imigrantes foram colocados no meio da mata e
abandonados pelas autoridades, principalmente brasileiras, mas também italianas. Afirma
ele que as primeiras levas de colonos
aqui chegaram, desprotegidos de tudo, enfrentando, desajudados de recursos e de
amparo moral, os matagais impenetráveis, infestados de feras e de indígenas que resistiram
bravamente à dominação do homem branco; que precisaram construir uma tosca choupana
e esperar, pacientemente, a primeira colheita e aguardar que os filhos nascidos neste
torrão os auxiliassem na imensa e árdua tarefa de edificar uma civilização.
231
NORA, Pierre. Entre Memória e História – A Problemática dos Lugares. Revista Projeto História, São
Paulo, nº 10, Dezembro/1993, p. 25.
232
“Salve Criciúma” (José Pimentel). Tribuna Criciumense, 09/01/1956, p. 1 e 4.
166
A temática do abandono, e o destaque da coragem e heroísmo do imigrante em
terras americanas, tornaram-se uma constante nos escritos sobre o passado da cidade. Não
apenas isso, mas também sua nobreza de propósitos em relação à nova terra, diferenciando-
os de meros aventureiros que quisessem simplesmente enriquecer, como o faz Ruy Hülse
em matéria aparecida no mesmo número de 1956
233
, ao afirmar que
(...) pisaram o solo de nossa comuna os primeiros colonos, imbuídos, não do
espírito de aventura ou com o mero desejo de rápido enriquecimento para retorno à Mãe
Pátria, mas com o elevado propósito de realmente colonizar a nossa terra e trabalhar pelo
seu engrandecimento.
No parágrafo seguinte, o autor diz que eles estavam “animados desse patriótico
desejo” e que, por isso, não mediram esforços ante os obstáculos, “sempre estimulados pela
férrea vontade de constituírem uma nova pátria”. A obra dos imigrantes é considerada
heróica em vista dos enormes sacrifícios que tiveram que passar e dos elevados objetivos
que tinham em vista. As condições contextuais e históricas (por exemplo, a impossibilidade
financeira de voltar à Itália, a extrema distância que havia, a pobreza dos imigrantes) são
desconsideradas, restando uma imigração “ideal” e um imigrante quase sobre-humano.
Os sofrimentos dos imigrantes sempre
comparecem nos escritos para compor a obra
heróica a que eles se entregaram. Sebastião H.
Pieri, em artigo de 1961
234
, relacionou uma rie
de sofrimentos a que os imigrantes tiveram que
233
“6 de Janeiro de 1956” (Ruy Hülse). Tribuna Criciumense, 09/01/1956, p. 3.
234
“Ao 6 de Janeiro” (Sebastião H. Pieri). Tribuna Criciumense, 09/01/1961, p. 1.
167
passar. Na lista dos sofrimentos atribuídos aos
imigrantes pela celebração de sua obra, destaca a
despedida dos parentes no porto na Itália, “uns
por verem partir seus entes queridos, estes por
deixarem Pátria, parentes e amigos sem saber se
algum dia os tornaria a ver”, a travessia do
Atlântico, “longa e penosa”, e a jornada para o
interior, bastante mencionada em outras matérias,
“sem estradas nem meios de locomoção, aqueles
bravos pioneiros se atiraram contra a natureza
virgem abrindo picadas a facão e calcando com
seus pés de heróis anônimos a terra úmida e
fértil”.
As noções de herança e dívida estão constantemente presentes na construção do
lugar da imigração e dos imigrantes na história da cidade. A cidade é apresentada como um
patrimônio legado pelas primeiras gerações às gerações contemporâneas dos autores, diante
do qual “(...) sentimo-nos profundamente desvanecidos em prestar esta singela homenagem
àqueles que, com sacrifícios da própria vida, legaram às gerações atuais este grandioso
patrimônio que é a nossa querida terra (...)”
235
. Diante disso, e em vista do patrimônio
recebido, as gerações contemporâneas têm uma dívida para com os imigrantes: “A eles
devemos, sobretudo, a prosperidade atual deste município, em marcha acelerada para um
grande futuro”
236
. O “a eles devemos” (aos imigrantes) remete à dívida contemporânea a
ser paga por um trabalho realizado no início da história da cidade. No entanto, a
consciência dessa dívida como memória de Criciúma acaba por alterar as relações sociais,
culturais e políticas que existem na cidade naquele momento.
235
“6 de Janeiro de 1956” (Ruy Hülse). Tribuna Criciumense, 09/01/1956, p. 3.
236
“77
o
Aniversário da Colonização de Criciúma e 31
o
da Instalação do Município” (Silval Rosário Bohrer).
Tribuna Criciumense, 07/01/1957.
168
De fato, a valorização dos imigrantes e da imigração nessas matérias articuladas a
partir da proposta do monumento ao imigrante e do aniversário de fundação da cidade,
valorizava em especial aquelas famílias que descendiam dos imigrantes italianos
fundadores do núcleo colonial, e os descendentes de italianos em geral, fortalecendo sua
posição social e cultural nas relações presentes na cidade. Efetivamente, algumas matérias
referem-se explicitamente aos descendentes de imigrantes, que são homenageados
juntamente com seus ascendentes. Como afirmou Ézio Lima, “descendentes destas famílias
ainda estão espalhadas pelos mais diversos recantos de Criciúma, continuando a obra
iniciada por seus ancestrais”
237
.
Entretanto, apesar destas inúmeras matérias que realizam uma abordagem da
memória da cidade, quase não existem artigos explicitamente dedicados a história de
Criciúma nos jornais do período. O primeiro artigo deste tipo apareceu em 1959, assinado
por S. Souza
238
. O autor afirma que pretende apresentar um “retrato descritivo da história
de Criciúma” graças à “iniciativa, à colaboração e ao apoio irrestrito do Prefeito Addo
Caldas Faraco”. Inicia seu relato dizendo que narrará “acontecimento, ações e biografias,
dignos de memória, dos desbravadores destas plagas (...)” e começa referindo-se ao
processo geológico que formou uma “jazida carbonífera inesgotável”. Relata o surgimento
de “ranchinhos de taipas” erguidos pelos “modernos bandeirantes”. Mais tarde, pelo
trabalho dessas pessoas, “aqueles ranchinhos foram multiplicados e remodelados,
constituindo-se a célula mater da Criciúma de hoje”. Refere-se ao nome da cidade, “que
teve origem pela abundância nesta região, de uma planta da família das gramináceas (...)”.
Nomeia alguns fundadores, “punhado de homens ilustres e timoratos”: Marcos Rovaris,
237
“Criciúma – 87 Anos de Lutas Pelo Progresso”. Tribuna Criciumense, 07/01/1967, p. 8.
238
“Retrato de Criciúma” (S. Souza – Reverberando). Tribuna Criciumense, 06/04/1959, p. 1.
169
Pedro Benedete (sic), João Zanette, José Gaidzinski, Frederico Minatto, João Ângelo
Gomes, Adolfo Campos, Francisco Meller, Olympio Motta. É interessante perceber a
lembrança de nomes “brasileiros”, que não estavam entre o grupo que fundou o núcleo
colonial, mas eram homens importantes nas primeiras décadas do núcleo, ainda que o autor
afirme que esteja falando da fundação (“A primazia da fundação de Criciúma cabe a um
punhado...”). O fato de citar “brasileiros” na fundação e chamar os fundadores de
“bandeirantes do culo XX” é um indício de que ele considera a história da fundação para
além do ato fundador das famílias italianas que chegaram em 1880, fato sequer citado. Ao
que parece, ele atribui “fundação” aos primeiros anos ou décadas da história do núcleo
colonial, o que lhe permite introduzir pessoas que não participaram do grupo inicial de
fundadores, inclusive Marcos Rovaris. Além disso, há a presença de Addo Caldas Faraco
como patrocinador, que tem uma intenção clara que “abrir” o relato histórico da cidade.
Entretanto, isso pode também significar simplesmente a ausência de conhecimentos mais
objetivos relacionados com a história da cidade, suficientes quando se tratava de prestar
uma homenagem aos fundadores, mas deficientes quando se pretendia escrever um relato
mais articulado do passado do município.
De fato, o primeiro texto mais claramente escrito dentro dos cânones da disciplina
histórica apareceu na Enciclopédia dos Municípios Brasileiros
239
no mesmo ano de 1959.
No texto, assinado pela Inspetoria Regional de Estatística Municipal de Santa Catarina, são
articuladas diversas informações sobre o município, como dados de sua história, principais
riquezas naturais, dados geográficos e estatísticos, relação de atividades econômicas, etc.
No histórico, o autor faz um relato objetivo e breve, situando a fundação do núcleo colonial
239
FERREIRA, Jurandir Pires (direção). Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Volume XXXII. Rio de
Janeiro: IBGE, 1959, p. 81 – 87.
170
em 6 de janeiro de 1880, às margens do “pequeno rio ensombreado por coqueiros rio
Criciúma”, estabelece o número de famílias e de pessoas, e as nomeia. Em relação ao
desenvolvimento econômico afirma que era inicialmente baseado na agricultura e
comércio, tendo havido mais tarde “três novos fatores que vieram impulsionar ainda mais o
progresso latente da comunidade: o início da exploração do carvão-de-pedra, em 1913; a
construção da Estrada de Ferro Dona Teresa Cristina, na década 1920 1930, e a criação
do município em 1925”. Destaca o período da segunda guerra mundial como impulsionador
do desenvolvimento econômico, ao estimular o crescimento da produção carbonífera. Essas
formulações e causas explicativas para o progresso da cidade, tantas vezes louvado, foram
reproduzidas nas matérias que apareceram nos jornais na década de 1960.
Nos meses de novembro e dezembro de 1964, apareceram no jornal Tribuna
Criciumense, seis artigos consecutivos com temas relacionados à história de Criciúma
240
. A
fonte dos artigos é a Enciclopédia dos Municípios Brasileiros e reproduz, resumidamente,
as informações contidas na enciclopédia, centrando seu relato em dois aspectos principais, a
fundação do núcleo colonial e a história do carvão no sul de Santa Catarina. As matérias
que relatam a história de Criciúma, aparecidas nos anos seguintes
241
, reproduzem em
termos gerais a organização de temas, informações e mesmo frases inteiras retiradas da
enciclopédia.
240
“Criciúma – Um Pouco de Nossa História”. Tribuna Criciumense, 07 – 15/11/1964, p. 3. “Criciúma – Um
Pouco de Nossa História II”. Tribuna Criciumense, 14 21/11/1964, p. 3. “Criciúma Um Pouco de Nossa
História III Exploração do Carvão de Pedra”. Tribuna Criciumense, 21 28 /11/1964, p. 3. “Um Pouco de
Nossa História IV Exploração do Carvão de Pedra”. Tribuna Criciumense, 28/11– 05/12/1964, p. 3. “Um
Pouco de Nossa História V”. Tribuna Criciumense, 05 12/12/964, p. 3. “Um Pouco de Nossa História VI”.
Tribuna Criciumense, 12 – 19/12/1964, p. 3.
241
“Criciúma Esta Jovem de Oitenta e Cinco Anos”. Tribuna Criciumense, 04/12/1965, p. 6. “Criciúma
87 Anos de Lutas Pelo Progresso”. Tribuna Criciumense, 07/01/1967, p. 8. “Criciúma Comemora 88 Anos de
Existência”. Tribuna Criciumense, 06/01/1968, p. 2 e 7. “Criciúma Faz 89 Anos”. Tribuna Criciumense,
04/01/1969, p. 2.
171
As matérias jornalísticas estabeleceram as bases
para uma interpretação da história de Criciúma,
porém, são as obras escritas na década de 1970 e
por ocasião da comemoração do Centenário da
cidade que sistematizaram as informações e
construíram uma história que se popularizará
como a História de Criciúma.
As Obras da Década de 1970
O período compreendido pela década de 1970 até a comemoração do Centenário de
Criciúma em 1980, pode ser entendido como uma conjuntura propícia a comemorações e
criação de memória histórica, tal como Catroga analisou o período do chamado
comemoracionismo português em fins do século XIX
242
. Neste período, para Criciúma, se
escreveram as obras modelares de sua história-memória oficial e se instituíram ritos que
atravessaram os anos e estabeleceram uma nova identidade urbana, aquela centrada na
etnicidade. Se seguirmos a nomenclatura de Michael Pollak, foi um período de intenso
trabalho de enquadramento
243
da memória. Pollak lembra que, se é necessário analisar
como a memória se solidificou e dotou-se de durabilidade e estabilidade, a investigação
precisa se interessar pelos processos de formalização das memórias e seus atores
244
. Entre
estes últimos, Pollak cita, de forma privilegiada, os “profissionais da história das diferentes
organizações de que são membros, clubes e células de reflexão”
245
, no nosso caso, os
242
CATROGA, Fernando. Memória, História e Historiografia. Coimbra: Quarteto, 2001, p. 61, 62.
243
POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Rio de Janeiro, Estudos Históricos, vol. 2, n. 3,
1989, 3 – 15, p. 9.
244
Ibid., p. 4.
245
Ibid., p. 10.
172
historiadores da cidade que fazem um trabalho de enquadramento de sua memória. Catroga
também lembra essa relação entre a historiografia e a memória, no nosso caso urbana, ao
afirmar que:
A historiografia, com as suas escolhas, valorizações e
esquecimentos, também gera a ‘fabricação’ de memórias, pois
contribui, através do seu cariz narrativo e da sua cumplicidade,
directa ou indirecta, com o do sistema educativo, para o
apagamento ou secundarização de memórias anteriores, bem como
para a refundação, socialização e interiorização de novas
memórias.
246
O texto historiográfico é, desta forma, um demarcador do passado e provocador de
efeitos performativos sobre o presente, que “marcar um passado é dar, como no
cemitério, um lugar aos mortos, é permitir às sociedades situarem-se simbolicamente no
tempo, mas é também um modo subliminar de redistribuir o espaço dos possíveis e indicar
um sentido para a vida”
247
. Ao dizer o texto, o autor institui o discurso autorizado no
mundo social através do reconhecimento daquilo que enuncia.
O auctor, mesmo quando só diz com autoridade aquilo que é,
mesmo quando se limita a enunciar o ser, produz uma mudança no
ser: ao dizer as coisas com autoridade, quer dizer, à vista de todos e
em nome de todos, publicamente e oficialmente, ele subtrai-as ao
arbitrário, sanciona-as, santifica-as, consagra-as, fazendo-as existir
como dignas de existir, como conformes à natureza das coisas,
‘naturais’.
248
246
CATROGA, Fernando. Memória, História e Historiografia. Coimbra: Quarteto, 2001, p. 57.
247
Ibid., p. 44.
248
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Lisboa: Difel, Rio de Janeiro: Bertrand, 1989, p. 114.
173
Texto historiográfico, profissionais da história, historiografia. A análise de obras
historiográficas da década de 1970 e da comemoração do Centenário de Criciúma nos
permitirá estabelecer relações entre os discursos sobre o passado e a identidade urbana que
se construía no período.
Estas obras podem ser classificadas dentro daquele conjunto que Cristina Scheibe
Wolff chamou de história local tradicional
249
. Elas possuem aquelas características que
Peter Burke associou com a história tradicional, em comparação com a nova história, quais
sejam, a apresentação dos fatos “como eles realmente aconteceram” em uma cadeia
contínua de acontecimentos, especialmente acontecimentos políticos, depreendidos do
fluxo do tempo através de documentos, sancionadores de que o fato ‘realmente
aconteceu’
250
. Acrescente-se que, nestas obras, em geral se trata de uma grande quantidade
de acontecimentos e informações sem uma relação explícita entre si, a não ser a “localidade
onde todos os eventos se passam”. Entretanto, diz Wolff,
“devemos ainda ressaltar que todas as críticas feitas a esta maneira
de se escrever a história não a tornam menos importante, mesmo
no momento atual. Em Santa Catarina, por exemplo, boa parte do
conhecimento histórico sobre as diversas regiões pode ser
obtido em obras com este tipo de orientação metodológica”
251
.
Para Criciúma, a atividades destes “historiadorese as obras que produziram foram
fundamentais para o despertar de uma certa valorização da história da cidade. Eles
descobriram fontes, levantaram temas, coletaram informações, batalharam pelo passado,
249
WOLLF, Cristina Scheibe. Historiografia Catarinense: Uma Introdução ao Debate. Revista
Catarinense de História, 2, p. 5 – 15. Florianópolis: Editora Terceiro Milênio, 1994.
250
BURKE, Peter (organizador). A Escrita da História Novas Perspectivas. edição. São Paulo: Editora
da UNESP, 1992, p. 7 – 37.
251
WOLLF, Cristina Scheibe. Historiografia Catarinense: Uma Introdução ao Debate. Revista
Catarinense de História, 2, p. 5 – 15. Florianópolis: Editora Terceiro Milênio, 1994, p. 7.
174
enfim, trilharam um caminho que, de certa forma, é o mesmo que trilhamos hoje. A análise
das obras nos permitirá relacionar o discurso sobre a história da cidade com a disputa em
torno de sua identidade.
a) Mini Biografia de Um Pioneiro: Marcos Rovaris
252
Esta obra foi o primeiro texto publicado em forma de livro sobre a história de
Criciúma e é de autoria de José Pimentel e Mário Belolli
253
, dois autores intensamente
envolvidos com a história da cidade.
A obra foi escrita, segundo os autores, com o fim
de conscientizarem as gerações contemporâneas e
futuras da necessidade de reconhecer o trabalho de
seus antepassados, já que “povo que não cultua
seus antepassados (...) não sobreviverá”. A
história da cidade é vista com objetivo cívico,
como uma matéria que visa formar os cidadãos e
conscientizá-los de seu passado.
A fim de atender às insistentes solicitações da mocidade criciumense o maior
capital que possuímos resolvemos (...) dar à estampa pequena notícia sobre a vida de
Marcos Rovaris.
254
Entretanto, um outro objetivo não muito explicitado pelos autores, mas bastante
presente, que é o de dotar Criciúma de um desenvolvimento cultural corresponde ao seu
252
PIMENTEL, Jo e BELOLLI, Mário. Mini Biografia de Um Pioneiro: Marcos Rovaris. Criciúma:
Edição dos autores, 1971, 8 páginas.
253
Mário Belolli nasceu em Criciúma em 9 de julho de 1939 e atuou profissionalmente como comerciário,
formando-se posteriormente em Direto e História. ZACHARIAS, Manif. Criciúma Vultos do Passado e
Personalidades Contemporâneas. Criciúma; edição do autor, 2000, p. 450.
254
PIMENTEL, Jo e BELOLLI, Mário. Mini Biografia de Um Pioneiro: Marcos Rovaris. Criciúma:
Edição dos autores, 1971, p. 1.
175
desenvolvimento econômico. um contraste entre o crescimento econômico de Criciúma
e sua condição cultural, que precisaria ser melhorada, já que enfraquecia a cidade diante de
outras no sul de Santa Catarina. A falta de conhecimento da história da cidade “produz
péssima repercussão, colocando Criciúma junto as suas co-irmãs sulinas em situação
melancólica” (p. 1). Assim, a escrita da história da cidade tem um sentido de
desenvolvimento cultural, “(...) a fim de que possa ela [Criciúma] projetar-se, também, no
cenário barriga-verde e nacional, como a capital cultural do sul catarinense” (p. 2).
Criciúma estava se tornando, em princípios dos anos 1970, na mais importante cidade do
Sul de Santa Catarina, superando Tubarão que, desde as cadas de 1930 e 1940, havia se
tornado a cidade principal. Entretanto, cidade nova, de crescimento recente, com população
maciçamente operária, Criciúma era caracterizada como uma cidade que não possuía
cultura, o que precisava ser superado, aos olhos de sua elite intelectual
255
.
A partir de vários indícios, se percebe que a
principal fonte do texto foi a oral. O termo
“Reminiscências Criciumenses”, presente como
título na primeira gina, remete, pela palavra
reminiscência, “ao que se conserva na memória” e
que pode ser conhecido, portanto, pela oralidade.
Logo abaixo, na mesma página, como atribuição
de autoria, aparece explicitamente a expressão
“subsídios orais colhidos por José Pimentel e
Mário Belolli”. Também quando narra a ocupação
dos municípios de Turvo e Jacinto Machado,
refere-se a Ângelo Antonio Nichele, “que sempre
255
Houve uma acirrada disputa entre Tubarão e Criciúma entre os anos 1950 1970 pela liderança do Sul de
Santa Catarina. “Os tubaronenses nos chamavam de colonos”. Depoimento de Carlos Ernesto Lacombe Filho.
Apud: SORATTO, Delotide Cristina Flores. Poderes Locais e a Implantação da Diocese de Tubarão (1940
– 1960). 2002. UFSC. Dissertação de Mestrado em História. Florianópolis, p. 62.
176
residiu na cidade de Urussanga e com seus 85
anos continua lúcido, recordando com segurança,
os primórdios da colonização do atual município
de Jacinto Machado” (p. 8).
Toda a obra é organizada a partir das funções referenciais de Marcos Rovaris,
aquelas atividades a partir das quais pode-se falar em um personagem que vale a pena ser
biografado. Essas funções referenciais são os subtítulos da obra e descrevem a
personalidade e as realizações de Marcos Rovaris:
- Apoiador da educação (p. 3): cedeu uma casa de sua propriedade, por 14 anos, à
Ordem São José, para residência das freiras, que lecionavam em vários lugares.
“Nesse setor fundamental foi, também, um pioneiro”;
- “Criador de progresso”: “propugnou pela criação da pecuária e desenvolvimento da
agricultura, atirando-se, arrojadamente, mais tarde, para as atividades comerciais e
industrias” (p. 3 e 5). Cita, como empreendimentos, fábrica de banha, loja, serraria,
aquisição de um caminhão Fiat, “o primeiro veículo motorizado a trafegar solo
criciumense” (p. 5), um dos fundadores do Hospital São José;
- “Construtor de estradas”: Cita, como exemplos, a “estrada Criciúma Pontão (hoje
Jaguaruna)” e a “estrada Criciúma – Mãe Luzia” (p. 5);
- “O primeiro administrador de Criciúma”: cita a campanha pela emancipação
política do distrito, que Rovaris participou, e a aprovação da lei de criação do
município. Marcos Rovaris foi escolhido o superintendente municipal e destituído
pela revolução de 1930: “(...) Marcos Rovaris agüentou perseguições, mas
amargurado, conformou-se por não sofrer suas honra qualquer reparo por parte dos
triunfadores, porque sua administração proba, não deu margens à devassas, o que
não aconteceu com a maioria dos administradores de então” (p. 7).
177
- “O colonizador”: “foi quem começou a colonização do município de Turvo” (p. 7).
Marcos Rovaris é apresentado na obra como o exemplo máximo de imigrante
italiano: empreendedor, líder político sobre quem não pairava nenhum deslize, primeiro
superintendente municipal da cidade recém emancipada. Tudo isso lhe credenciou para ser
apresentado como exemplo do tipo de pessoa que veio da Europa para o Brasil e modelo
para as gerações contemporâneas, que desconheciam a história de sua cidade, e para a
mocidade criciumense, “maior capital que possuímos”. De fato, ainda que seja o ator
histórico principal na obra, Marcos Rovaris atua a partir de um cenário montado por outros
atores, que os autores nomeiam, basicamente os pioneiros italianos, “extraordinários e
indomáveis” (p. 1), e os imigrantes italianos, alemães e poloneses, que ensejaram o surto
surpreendente de progresso da ‘capital do carvão’” (p. 8). Desta forma, através de suas
qualidades, por “sua infatigável capacidade de trabalho, amor à terra adotiva...” (p. 1),
Marcos Rovaris, “um italiano de ampla visão” (p. 1), é apresentado como exemplo típico de
imigrante, fortalecendo um certo imaginário da imigração que, na década de 1970, havia
ganhado um espaço considerável.
Em 1980, a Prefeitura Municipal publicou uma segunda edição da obra, já no
contexto das comemorações do Centenário de fundação da cidade
256
. Os subtítulos e a
redação da primeira edição são a base para esta segunda edição. A diferença é que, além de
uma edição mais bem cuidada, acrescentou-se inúmeras fotografias e reproduções de
documentos. Este acréscimo na obra, em tão grande número, pode ser uma tentativa de
retirar o seu caráter de oralidade e dar-lhe uma apresentação mais ‘científica’. De fato as
256
PIMENTEL, Joe BELOLLI, Mário. Mini Biografia de Um Pioneiro Marcos Rovaris. 2ª edição
modificada e ampliada. Criciúma: Prefeitura Municipal, 1980, 129 páginas.
178
referências à oralidade, presentes na primeira edição, foram todas retiradas para a segunda
edição.
Além disso, acrescentou-se especificamente as seguintes seções: - Um pequeno
capítulo intitulado “Episódios da Colonização de Criciúma” (p. 15 17) que transcreve
partes do livro Coloni e Missionari Italiani Nelle Foreste Del Brasile, do padre Luigi
Marzano
257
; Uma seção intitulada “Marcos Rovaris In Memoriam” (p. 100 118) que
trata principalmente da inauguração do busto de Marcos Rovaris na praça Nereu Ramos,
em 4 de novembro de 1975. – Uma seção chamada “Os 100 Anos de Criciúma e a
Participação de Seus Capitães de Indústria” (p. 121 126), onde são homenageados
Maximiliano Gaidzinski, fundador do Grupo Eliane, e Diomício Freitas, fundador do
Grupo Freitas, que “simbolizam o grupo desenvolvimentista de nossa terra vindo ambos de
origem humilde e que, acreditando no trabalho e tenacidade, são exemplos que devem e
merecem ser imitados pela juventude que encontrará neles roteiro seguro para triunfar nas
lides da existência” (p. 121).
b) Tímido Ensaio Biográfico: Giácomo Sônego
258
A obra busca fundamentar, através da vida exemplar de Giácomo Sônego, a
contribuição dos imigrantes europeus para o crescimento da cidade de Criciúma.
Município pujante, cidade que cresce vertiginosamente, não é
possível retardar mais essa iniciativa, deixando às gerações que
257
Firenze: Tip. Barbèra, 1904, 335 páginas.
258
PIMENTEL, José e BELOLLI, Mário. Tímido Ensaio Biográfico: Giácomo Sonego. Criciúma:
Gráfica Líder, 1972, 23 páginas.
179
estão surgindo, o testemunho imperecível do que realizaram os
valorosos imigrantes italianos, alemães e poloneses, que não
mediram sacrifícios para que Criciúma fosse, o que hoje ostenta
entre seus co-irmãos barriga-verdes (p. 3 – Apresentação).
A narrativa articula crescimento da cidade imigrantes - carvão, e tem seu núcleo
central no relato da descoberta do carvão mineral por um imigrante italiano e na utilização
de suas terras como impulso para o desenvolvimento da cidade, pois “das férteis terras de
Giácomo Sônego transbordou o veio rico do carvão, muito conhecido por ‘ouro negro’,
dado em função de sua extraordinária importância” (p. 16).
Se a primeira obra dos autores foi organizada a partir das funções do biografado, na
presente obra são os fatos que organizam a narrativa, mais que as qualidades de Giácomo
Sônego, ainda que essas também sejam importantes para reforçar a temática central, que é
vincular progresso e imigração através do carvão mineral. A narrativa está organizada em
quatro acontecimentos principais, que se desdobram em fatos de menor alcance, da seguinte
forma:
A Travessia da Itália para o Brasil (“A Grande Viagem” – p. 5 – 8).
- Partida (11 de novembro de 1879).
Sacrifícios antes do embarque: Morte do pai e casamento da irmã, o que não impediu a
vinda da família Sônego (p. 5).
Despedida: “... lágrimas e sorrisos brotavam involuntariamente, o último adeus confundia-
se com o grito do capitão, ordenando a largada do navio”. (p. 5).
180
Futuro incerto: “No horizonte, as linhas da embarcação se perdia; restava somente as ondas
crespas, bordadas de brancas espumas, que como ístimo (sic) final ligava filhos e pátria” (p.
5).
- Travessia do Atlântico.
Perigo: “Seis longos e tenebrosos dias viriam aterrorizar crianças, mulheres e mesmo
homens, que sentindo baldados os seus sacrifícios, as suas saudades, balouçavam sem
rumo, ao sabor das ondas e na escuridão da tempestade furiosa. (...). Nos camarotes
improvisados, apenas o monólogo com Deus” (p. 6).
- Chegada (ao Rio de Janeiro em 17 de dezembro de 1879; em Urussanga em 24 de
dezembro de 1879; no futuro núcleo colonial de Criciúma em 6 de janeiro de 1880).
“Simultaneamente com o nascer do dia, grita o vigilante: Terra à vista! Terra à vista! A
alegria transborda dos corações, lágrimas até então reprimidas, rolam pelas faces
mortificadas, as crianças pulam, extravasando aleluias; as mulheres agradecem a Deus” (p.
7).
Sacrifícios na Nova Terra (“A Morte de Seu Irmão”, p. 11).
- Trabalho em condições precárias
“As taboas que estavam sendo serradas serviriam para o reparo e construção de seus
casebres”.
- Ataque indígena
181
“Uma flecha arremessada por indígena que, silenciosamente se achava postado atrás de
uma árvore...”. “A traiçoeira flecha certeira e mortífera penetrara o corpo de Domingos...”.
- Ferimento e Morte de Domingos Sônego
“O corpo já sem forças caiu irremediavelmente nos braços de Giácomo (...), o bravo
Domingos ao chegar ao regaço de sua pobre progenitora veio a falecer dias depois”.
Descoberta do Carvão Mineral em Criciúma (“Descobridor do Carvão Mineral
de Criciúma”, p. 16 e 17).
- Proteção de suas mulas diante da ameaça de expropriação por “revolucionários”
(“‘Maragatos’ e ‘Pica-Paus’ são os revolucionários a que estamos nos referindo”, p.
17).
“Apavorado ante a perspectiva de perder seus animais, nego não titubeou: abriu uma
picada disfarçada na mata e no seu interior fez um cercado para guarda-los” (p. 16).
- Descoberta acidental do carvão mineral.
“Jogou sobre a galharia restantes das pedras e terra antes amontoadas, tocando fogo na
coivara, para limpeza do local. Alguns dias depois, surpreendeu-se, pois o fogo que julgara
extinto continuava ardendo debaixo das cinzas, exalando um cheiro diferente do da madeira
queimada e desprendendo uma fumaça negra e esquisita” (p. 17).
- Confirmação da importância da descoberta
182
Benjamin Bristot fez experiência em sua forja constatando tratar-se realmente de carvão
mineral” (p. 17). “Pedro Genovez, profundo conhecedor do minério na Europa, fez com
que a população do distrito de Criciúma, tomasse maior interesse pelo produto que Sônego
acabara de descobrir em suas terras” (p. 17).
Início da exploração do carvão, propiciando o desenvolvimento da cidade
(“Giácomo Sônego Assina Contrato”, p. 13 e 14; e “Contrato Pioneiro”, p. 19 e
20).
- Autoridades brasileiras se interessam pelo carvão descoberto.
“... justamente pela difícil aquisição do produto nos mercados exportadores da Europa e da
América, causada pela deflagração da primeira grande guerra (1914 – 1918)” (p. 13).
- Assinatura de contrato para exploração do carvão na área de sua descoberta.
“Na data de 19 de agosto de 1916 (...) assinaram o contrato que dava pleno e irrevogável
direito aos contratantes de explorarem o mineral existente nas terras de Sônego e
adjacências...” (p. 13).
- Início efetivo da exploração do carvão mineral.
“Em fins da primeira guerra (1917), o engenheiro Paulo de Frontin visitou Criciúma. Da
visita daquele eminente brasileiro, resultou a fundação da Companhia Brasileira
Carbonífera de Araranguá (CBCA)” (p. 13).
183
A narrativa inicia com a partida da Itália e termina com a descoberta e exploração
do carvão mineral nas terras de Sônego e seus vizinhos, demonstrando na prática a
contribuição dos imigrantes para o desenvolvimento da cidade.
A capa do livro é extremamente reveladora das intenções que presidiram a feitura e
publicação da biografia. É uma fotografia panorâmica do centro de Criciúma no início da
década de 1970, com a seguinte frase abaixo: “Criciúma, a ‘Capital Brasileira do Carvão’,
fundada por imigrantes italianos, em 6-1-1880, entre os quais Giácomo Sônego”. A
fotografia apresenta Criciúma como uma cidade grande e moderna, que teve seu
crescimento baseado no carvão mineral, demonstrado através da utilização do lema oficial
da cidade. Entretanto, Criciúma foi fundada por imigrantes italianos, e é a importância
desse grupo que o livro quer ressaltar. Giácomo Sônego, como personagem exemplar, é
aquele que une imigração e carvão, através da descoberta do mineral em suas terras. Por
intermédio da narrativa, se mostra que foram os imigrantes, representados por Sônego, que
afinal propiciaram as condições para que Criciúma se desenvolvesse. uma linha de
raciocínio que articula Criciúma a crescimento, passando pelo vínculo entre carvão –
imigrantes italianosGiácomo Sônego. Como imigrante modelo, Sônego sintetiza a cidade
como fruto das atividades dos imigrantes através do carvão. O relato da descoberta do
carvão mineral por Giácomo Sônego tornou-se um dos relatos fundadores da cidade.
A biografia de Sônego é apresentada de modo a reforçar o objetivo da obra, que é
explicar o crescimento da cidade a partir da contribuição dos grupos de imigrantes,
especialmente o italiano. Sônego é apresentado como pioneiro e fundador da colônia de
Criciúma, “... unindo-se a dezenas de famílias que faziam parte das pioneiras levas
imigratórias do sul catarinense, cuja leva fundou a colônia de Criciúma, a 6 de janeiro de
184
1880” (p. 9) e descobridor do carvão: “Nas suas longas caminhadas, usava uma de cada vez
[suas mulas], até que um dia, ao esconder um dos animais, acabou descobrindo ‘carvão’”
(p. 9). A partir daí tornou-se uma autoridade importante, que com o carvão o lugar
passou a ter importância, despertando o interesse de autoridades nacionais e estaduais, “que
passaram a freqüentar sua modesta residência” (p. 9). Desta forma, Sônego e com ele os
imigrantes é o propiciador do desenvolvimento da cidade, por intermédio da descoberta
do carvão (p. 9 e 16, 17) e da assinatura de contrato para exploração do carvão mineral em
suas terras e adjacências (p. 13 e transcrição do contrato na página 19 e 20).
A partir desta data [da visita do engenheiro Paulo de Frontin as
terras de Sônego e da fundação da CBCA, primeira companhia
carbonífera da cidade], famílias inteiras deixavam as localidades
vizinhas e transferiram-se para o distrito de Criciúma, município de
Araranguá. Igualmente acontecia com vários colonos de Criciúma,
que deixavam sua agricultura e mudavam-se para os trabalhos da
mineração.
259
Como um dos relatos de origem da cidade de Criciúma, o relato da descoberta do
carvão por Giácomo Sonego base de sua biografia, é exemplar para entender o papel que
a historiografia exerce no estabelecimento de memórias, no caso para a memória de
Criciúma. No dizer de Catroga,
A historiografia também funciona como fonte produtora (e
legitimadora) de memórias e tradições, chegando mesmo a fornecer
259
PIMENTEL, José e BELOLLI, Mário. Tímido Ensaio Biográfico: Giácomo Sonego. Criciúma: Gráfica
Líder, 1972, p. 14.
185
credibilidade cientificista e novos mitos e (re)fundação de grupos e
da própria nação (reinvenção e sacralização das origens e de
momentos de grandeza simbolizados em ‘heróis’ individuais e
coletivos).
260
c) Criciúma – Amor e Trabalho
261
O livro possui duas partes. A primeira intitulada Criciúma Amor: Apontamentos
Para Uma História de Criciúma, de autoria de José Pimentel e Mário Belolli, e a segunda
Criciúma Trabalho, escrita por Hélio dos Santos Corrêa e Agostinho da Silva e tratando
mais de aspectos da estrutura urbana e econômica do município. Vamos explorar a primeira
parte, que é um relato da história da cidade.
Esta é a primeira obra que busca apresentar de forma sistemática a história de
Criciúma, anunciada como uma necessidade desde a apresentação da biografia de Giácomo
Sônego. Entretanto, diante das dificuldades de tal empreitada, os autores buscam minimizar
o texto que apresentam ao público, colocando a palavra “apontamentos” no título para frisar
o caráter incompleto do texto
262
, cujas lacunas devem ser preenchidas posteriormente “para
as celebrações do centenário”. Lamentam também a ausência de documentos escritos, sobre
os quais basearia sua história, e apontam as perseguições aos imigrantes e descendentes,
com destruição de registros, por ocasião da Segunda Guerra como causa desta ausência;
Também deploram a necessidade que tiveram de utilizar a fonte oral, “processo que
260
CATROGA, Fernando. Memória, História e Historiografia. Coimbra: Quarteto, 2001, p. 50.
261
PIMENTEL, José e BELOLLI, Mário. Criciúma – Amor e Trabalho. Itajaí: Edições Uirapuru, 1974.
262
“Não alimentamos a pretensão de dar à publicidade uma História de Criciúma. São apontamentos para uma
história de nossa terra”. (p. 9, “Explicação Indispensável”, assinada por José Pimentel).
186
normalmente deixa muito a desejar”, para substituir a ausência de documentos escritos.
Talvez por isso exista no texto a reprodução de vários documentos escritos, como leis (de
criação do distrito de paz, de criação do município, etc), cartas, atas, jornais, discursos, etc.
A presença de documentos escritos atestaria a autenticidade das informações históricas
narradas na obra. Também as fotografias são ilustrativas, como as da biografia de Sônego.
E são ainda mais, ilustram os acontecimentos, como prova de que eles efetivamente
aconteceram, e da maneira como os textos da obra os narram. As imagens estão no mesmo
nível do documento escrito, isto é, são apresentadas como provas que garantem a
confiabilidade dos fatos narrados na obra. Porém, diferentemente dos documentos escritos
reproduzidos na obra, parecem não ser utilizadas como fonte de informações para compor a
narrativa.
Os principais atores históricos que o texto apresenta são os grupos étnicos, alguns
indivíduos importantes e algumas instituições, sendo os primeiros os mais relevantes. Os
autores seguem o esquema que Pimentel defendia desde 1955
263
, de considerar como
imigrantes e grupos étnicos os imigrantes e descendentes de italianos, alemães e poloneses.
São esses grupos os atores privilegiados na obra e é a partir deles que a história da cidade se
organiza. Aliás, os grupos são apresentados como ocupantes de áreas definidas da cidade,
de tal forma que mesmo espacialmente a cidade se articula a partir da ocupação do espaço
tornado urbano pelos grupos imigrantes.
Dos três grupos, o mais importantes são os
imigrantes italianos, apresentados como
“pioneiros habitantes de Criciúma” e responsáveis
263
“Monumento ao Imigrante” (José Pimentel). Tribuna Criciumense, 01/08/1955, p. 1 e 4. Neste texto, os
imigrantes estão identificados como sendo “vários contingentes de imigrantes, italianos em sua grande
maioria, de poloneses e de alemães”.
187
pelo “... desbravamento e colonização da atual
área urbana e periférica” (p. 14). São reconhecidos
como os “... primeiros colonizadores de
Criciúma...” (p. 15). Sua história é apresentada do
modo como temos visto até aqui, como uma
atividades civilizatória cheia de coragem e
perigos, notadamente pela presença de animais
selvagens e indígenas, “... arrostando imensos
perigos, não pela falta total de estradas, como,
ainda, expondo-se aos ataques de animais ferozes
e dos silvícolas, que acompanhavam,
assiduamente, as pegadas desses homens
destemidos” (p. 15). Reproduz o relato da morte
de Domingos Sônego, publicado originalmente na
biografia de Giácomo Sônego, e afirma que o
indígena “matreira e silenciosamente se achava
postado atrás de uma árvore” e traiçoeiramente
atingiu o imigrante (p. 16). Os imigrantes alemães
são apresentados como fundadores de
Forquilhinha, atualmente município, porém por
muitos anos pertencente à Criciúma, apesar de
existirem na área famílias de origem luso-
brasileira, remanescentes de imigrações anteriores
e migrações da área litorânea e de outros estados.
Quando caracteriza esse grupo, que no contexto da
obra poderíamos chamar de “brasileiros”, os
autores afirmam que “no passado, Forquilhinha
foi uma localidade pobre, de muitos e pequenos
casebres, de população lusa que não era dona das
terras, pertencentes a grandes sesmeiros” (p. 14).
Diante disso, a presença dos imigrantes alemães é
188
louvada na narrativa pelas transformações
positivas que provocou no lugar.
O aspecto econômico, social e religioso se alterou por completo,
quando em 1911, para ali se movimentou, rapidamente, uma
corrente imigratória alemã. (...). A colônia desenvolveu-se logo,
quer pela fertilidade das terras, quer pelo espírito de trabalho e
coragem daqueles bravos colonizadores. É notória a união agrícola
e industrial daquelas famílias, bem como a instituição imediata da
escola.
264
Neste contexto de afirmação de uma vida econômica e cultural superior, Paulo
Evaristo Arns, na época Arcebispo de São Paulo, representa o maior exemplo dos
“inúmeros filhos ilustres” de Forquilhinha, “sendo o de maior proeminência” (p. 14), como
que para atestar o sucesso da colonização alemã e européia na cidade.
Os imigrantes poloneses são apresentados como fundadores do “primeiro núcleo de
colonização, na zona leste nordeste do município, compreendido pelas localidades de
Linha Batista, Linha Anta e Linha Cabral” (p. 14). É o menor relato dentre os três grupos.
Destacam-se apenas fatos históricos como data de chegada e movimentações de partida.
Além disso, é destacada a construção da igreja católica e a vinda de sacerdote polonês (p.
14).
O livro é organizado a partir das seguintes temáticas: Colonização, o tema mais
importante, História Política e Administrativa, Carvão, História Econômica e Instituições,
sendo os três últimos temas tratados como uma espécie de “história dos primeiros”. Em
cada uma das temáticas, com exceção da primeira, são relacionadas personalidades
proeminentes que contribuíram para o desenvolvimento da cidade, num desfilar incessante
264
PIMENTEL, José e BELOLLI, Mário. Criciúma Amor e Trabalho. Itajaí: Edições Uirapuru, 1974, p.
14.
189
de personagens destacados pelos autores. Os temas, assim, são desdobrados em
acontecimentos e personagens, compondo uma narrativa que busca apresentar uma história
coerente para a cidade, como demonstrado no quadro abaixo.
Tema Desdobramento em Fatos Personagens
Colonização (p. 12 – 17).
-Viagem transoceânica.
-Chegada ao local a ser
colonizado (o relato referente
aos italianos é mais
detalhado).
-Organização das atividades
econômicas e das instituições mais
importantes (igreja, escola).
-Conflito com os indígenas e com
o ambiente.
-Afirmação do sucesso da
colonização.
História Política e
Administrativa (p. 17, 19-22, 32-
34, 41).
-Criação do Distrito de Paz (1892):
p. 17.
-Criação e instalação do Município
(1925/1926): p. 19 e 20.
-Instalação da Comarca (1944): p.
21.
-Acontecimentos referentes à
revolução de 1930 no município e
região (1930): p. 32-34.
-Galeria dos Prefeitos: p. 41.
Frederico Minatto
Marcos Rovaris
Marcos Rovaris, João Bortoluzzi,
Pedro Benedet, Gabriel Arns,
Fabio Silva, Olivério Nuernberg,
Henrique Dal Sasso
Cincinato Naspolini
Elias Angeloni
Celestino Sachet
Ernesto Lacombe
Addo Caldas Faraco
Carvão (p. 18, 35-37). -Descoberta e primeiras atividades:
p. 18.
-Fundação da Carbonífera
Próspera: p. 35.
-Acontecimentos relacionados com
a crise do carvão no pós-segunda
guerra: p. 36 e 37.
Giácomo Sônego
Paulo Marcus, Jorge da Cunha
Carneiro, Júlio Gaidzinski
Heriberto Hülse
190
História Econômica
(p. 15,
24, 26, 28, 31).
-A primeira mó, que compôs um
moinho a beira do rio Criciúma,
considerada a “primeira indústria
criciumense”: p. 15.
-Estabelecimentos comerciais: p.
24.
-Primeiros veículos automotores:
p. 26.
-Estrada de Ferro: p. 26.
-Indústria cerâmica: p. 28.
-Atuação de Henrique Lage: p. 31.
Pedro Benedet, Frederico Minatto,
Antonio de Lucca, João Targhetha,
Francisco Meller.
Jorge Cechinel
Maximiliano Gaidzinski
Diomício Freitas
Henrique Lage (tb carvão).
Instituições
(p. 21, 23, 25,
29, 30, 38-40).
-Grupo Escolar Professor
Lapagesse: p. 21.
-Igreja (construção da matriz São
José: p. 23, realização do
Congresso Eucarístico: p. 38-40).
-Hospital São José: p. 25.
-Sociedade Musical Cruzeiro do
Sul: p. 29.
-Bairro da Juventude: p. 30.
-Escola Técnica General Osvaldo
Pinto da Veiga, da SATC: p. 30.
Ludovico Cocolo
João Canônico
Francisco José Bertero
Antonio Guglielmi
Paulo Evaristo Arns
Pedro Baldoncini
Em 1977, a Prefeitura Municipal de Criciúma relançou a obra com o mesmo título,
porém com algumas alterações
265
. A obra se divide em duas partes, a primeira intitulada
Aspectos Históricos e a segunda Aspectos Administrativos, com informações sobre a
atuação do governo municipal no mandato de Algemiro Manique Barreto (1973 1976),
promotor da obra. A primeira parte da obra é uma reprodução daquela de 1974, com uma
redação ligeiramente diferente e a ausência de algumas matérias. A seleção destas matérias
da obra de 1974 para constar na obra de 1977, permite-nos identificar, dentre aquele
material, quais os conteúdos que os autores julgavam mais apropriado para constar na
história de Criciúma: 1) O relato da ocupação do município pelos grupos de imigrantes; 2)
Os acontecimentos vinculados com a situação administrativa (criação do Distrito de Paz, do
Município e da Comarca); 3) Relato de instituições ou atividades pioneiras (Hospital,
265
CRICIÚMA. Criciúma – Amor e Trabalho. Criciúma: Prefeitura Municipal, 1977.
191
Matriz, descoberta do carvão, primeira carbonífera, chegada da estrada de ferro, etc)
266
. Na
verdade, a gica de organização do material histórico foi mantida: 1) Imigração; 2)
História Administrativa; 3) História “dos inícios”.
A Obra do Centenário de Colonização
A obra Criciúma 1880 1980 A Semente Deu Bons Frutos”
267
foi organizada
como mais uma atividade de comemoração do Centenário de Criciúma, que ocorreu em
1980. Segundo escreveu em seu prefácio o prefeito Altair Guidi, pelo esforço de Otília
Arns “tornou-se possível edificar mais este marco comemorativo ao Centenário de
Criciúma” (p. 7). Na condição de marco comemorativo, o livro reproduz representações
presentes na comemoração do Centenário de Criciúma.
O livro é uma obra oficial, entendido como uma ação de governo, no caso o
Municipal, promotor das comemorações do Centenário, das quais o livro faz parte, e
Estadual, na condição de promotor oficial da publicação. Ela conta, já em sua abertura, com
a publicação de mensagens do então presidente João Figueiredo, do papa João Paulo II, do
então governador de Santa Catarina Jorge Konder Bornhausen, do bispo Dom Anselmo
Pietrulla e de Dom Paulo Evaristo Arns, então arcebispo metropolitano de São Paulo, e que
comparece nesta parte do livro como personagem eminente nascida em Criciúma, no caso
266
Ficaram de fora as seguintes matérias: 1) Carta de Estima (p. 15); 2) A Primeira (p. 15); 3) Ricordo
D’Itália (p. 16); 4) A Reação dos Silvícolas (p. 16); 5) Provável Origem do Topônimo “Maina” (p. 17); 6)
Biografias de personalidades políticas (p. 19, 20); 7) Criciumenses Ilustres (p. 27); 8) Criciúma e a
Contribuição de seus Capitães de Indústria (28); 9) Instituições Sociedade Musical Cruzeiro do Sul, Bairro
da Juventude e SATC (p. 29, 30); 10) A Atuação de Henrique Lage (p. 31); 11) A Atuação de Ernesto
Lacombe e seus Comandados (p. 32, 33, 34); 12) Congresso Eucarístico (p. 38, 39, 40). Os números das
páginas se referem à obra de 1974.
267
ARNS, Otília (Coordenação Geral). Criciúma 1880 1980 “A Semente Deu Bons Frutos”.
Florianópolis: Governo do Estado de Santa Catarina, 1985, 266 páginas.
192
no então distrito de Forquilhinha. Estão presentes todas as autoridades possíveis, federais,
estaduais e municipais, civis e eclesiásticas.
A depreender-se do prefácio assinado pelo prefeito e da introdução, certamente
redigida por Otília Arns, dois são os objetivos principais do livro, que se relacionam. O
primeiro está em valorizar o momento de fundação da cidade e os grupos que a fundaram,
considerado como a base a partir da qual a cidade foi construída. No dizer do prefeito, “os
exemplos do passado são como pedras moldadas pelo tempo para formar a base da
civilização do presente e, em muitíssimos casos, esta base é mais importante do que tudo
que posteriormente se construiu por cima”
268
. O segundo objetivo tem um caráter quase
cívico, nos moldes de José Pimentel, quando anuncia a intenção de contribuir para que os
grupos étnicos compreendam a importância que tiveram para a construção da cidade.
Existem poucas referências a obras anteriores sobre as
comunidades criciumenses. Reconhecendo-lhes o mérito, este livro
quis, pela sua própria metodologia, adotada, abordar a história
pioneira sob um prisma que possibilitasse o principal objetivo do
presente trabalho que foi: a conscientização histórica das cinco
etnias que se empenharam no desenvolvimento material e espiritual
neste primeiro centenário do município de Criciúma.
269
O livro se propõe a fixar uma memória oficial sobre a origem e o desenvolvimento
de Criciúma, isto é, aquela memória que tem os grupos étnicos como os únicos atores
efetivos na história da cidade. Se por um lado, o livro apresenta uma novidade importante,
que é mostrar a cidade democraticamente construída por cinco etnias, entre elas os negros,
por outro lado, na medida em que apenas as etnias são as construtoras da cidade, a obra
268
Ibid., p. 7.
269
Ibid., p. 9 (Introdução).
193
etniciza Criciúma e retira da sua história outras dimensões temáticas possíveis, silenciando
vozes e fechando possíveis olhares, numa cidade cuja história-memória torna-se unívoca.
O livro é resultado de uma pesquisa realizada por uma equipe que envolveu diversas
pessoas da comunidade, coordenadas por Otília Arns. A obra está dividida em cinco
capítulos: O primeiro e mais importante intitulado “As Etnias” relata o estabelecimento das
etnias formadoras do município e suas características distintivas; o segundo trata da
estrutura étnica e cio-econômica do município no ano do Centenário (1980) e se baseou
em uma pesquisa quantitativa; o terceiro é uma miscelânea de informações históricas sobre
diversas atividades e instituições; o quarto traça a história política e eclesiástica do
município a partir das pessoas que ocuparam as funções no governo municipal e na igreja
católica; o último capítulo relata as atividades festivas ocorridas por ocasião da
comemoração do Centenário de fundação da cidade.
A narrativa se estrutura a partir da trajetória e
contribuição das cinco etnias formadoras da
cidade. Ainda que a temática das etnias esteja
presente em toda a obra, é no capítulo primeiro
que ela é mais desenvolvida. Nesse capítulo, a
abordagem de cada etnia busca seguir um
esquema que envolve os seguintes elementos:
chegada e implantação da etnia na localidade e
evolução dos elementos ligados a religião, escola,
língua e costumes. Cada etnia é localizada
também espacialmente na cidade. Assim, a etnia
italiana se estabeleceu no centro e estendeu sua
colonização para Rio Maina, a etnia polonesa
fixou-se nos atuais núcleos de Linha Batista,
Linha Cabral e Linha Anta, e a etnia alemã,
194
dividida em dois grupos, “dirigiu-se (...) à região
de Linha Anta e Três Ribeirões” e, mais tarde, um
outro grupo fundou a colônia de Forquilhinha
270
.
Neste particular, é interessante perceber como a
presença da etnia lusa perturbou o esquema
narrativo, tanto dos fatos históricos quanto da
localização espacial, e exigiu uma outra
organização do seu conteúdo. Os próprios autores
reconhecem que “o atual grupo de origem
portuguesa difere dos mencionados [italianos,
alemães e poloneses] por duas razões: não se
fixaram no município de Criciúma em levas; não
fundaram uma comunidade colonizadora”
271
.
Desta maneira, não nenhuma área da cidade a
ser identificada com a colonização lusa e,
principalmente, não é possível relatar aspectos
relacionados com a história da implantação de
escola, construção de igrejas, etc. O relato da
especificidade cultural da “etnia lusa” de Criciúma
é o daquelas práticas culturais presentes no litoral
catarinense e identificadas com a ocupação
açoriana e valeria para qualquer comunidade
litorânea catarinense, de São Francisco do Sul a
Araranguá. A presença de imigrantes portugueses
em Criciúma é atestada pela citação de seis
pessoas (Jorge da Cunha Carneiro, Daniel
Rodrigues Lopes, Antonio Joaquim Rodrigues
Souza, Luiz Ramires, Antonio Fernandes Teixeira
e dona Micas), o que demonstra a dificuldade de
270
Ibid, p. 27.
271
Ibid.
195
estabelecer para a cidade a imigração portuguesa
como fato histórico. Na verdade, a presença de um
suposto grupo étnico de origem portuguesa parece
ter sido criado para dar conta da existência na
cidade de um grupo extremamente numeroso,
constituído de “brasileiros” migrantes de cidades
litorâneas vizinhas e de outros estados, e que não
se “enquadravam” em nenhuma das etnias
presentes. Quanto à chamada etnia negra, os
autores também reconhecem que “o atual grupo de
origem negra se assemelha ao luso pelas duas
razões mencionadas. Ainda segundo a história oral
dirigiram-se a Criciúma em pequenos grupos ou
isoladamente, no início deste século (...)”. Na
verdade, a nomeação das etnias lusa e negra na
obra busca dar conta do fenômeno migratório
causado pela exploração do carvão mineral no
município e enquadrá-lo dentro do esquema
explicativo da história da cidade que tem os
grupos étnicos como atores exclusivos. Em uma
cidade étnica, porém pretensamente democrática,
a nomeação de negros e “brasileiros” como grupos
étnicos buscava contemplar a maior parte da
população e conformá-la a um esquema que, na
prática, relegava a ela um papel secundário, que
o principal era desempenhado pelas etnias de
origem européia (italianos, alemães e poloneses),
mas que no contexto do período marcado pelo
autoritarismo da ditadura militar, era um ganho
considerável. No fim das contas, a identidade
urbana centrada na cidade étnica possuía talvez
196
uma proposta melhor para a população do que
aquela pensada a partir da idéia de Capital
Brasileira do Carvão.
A estratégia da obra de etnicizar Criciúma pode também ser vista no capítulo II, que
faz uma análise da estrutura étnica e das características sócio-econômicas e culturais da
cidade, baseada em uma pesquisa que “teve por objetivo levantar a estrutura étnica da
população do município de Criciúma, juntamente com algumas características sócio-
econômicas e culturais de cada grupo étnico”
272
. A pesquisa foi realizada por meio de
entrevista, com um questionário padronizado, de uma amostra representativa de
informantes de todo o município. Foi considerado informante o pai da família e, no caso de
sua ausência, a mãe ou o membro que estivesse em condições de prestar informações. A
seleção da amostra foi feita a partir do princípio aleatório e do princípio territorial,
garantindo que todas as áreas do município fossem proporcionalmente representadas. O
município foi dividido em três áreas: a cidade de Criciúma, o distrito de Forquilhinha e o
distrito de Rio Maina. Cada área foi subdividida e os informantes selecionados
aleatoriamente
273
. Para uma população de 112.746 habitantes em 1980, a amostra obtida
foi de 1.951 informantes.
Os primeiros dados que a pesquisa abordou foram relacionados como perfil étnico
da população e com o grau de miscigenação étnica atingida
274
. Pelos resultados (Gráfico n°
2 A População do Município de Criciúma e sua filiação étnica, p. 150) a população de
Criciúma (incluindo Forquilhinha e Rio Maina) era formada, por ocasião do Centenário,
por 38,29% de descendentes de italianos, 19,84% de lusos, 12,40% de brasileiros, 8,15% de
alemães, 3,13% de negros e 1,84% de poloneses, além de outras origens citadas.
272
Ibid., p. 149.
273
Ibid.
274
Ibid., p. 150.
197
Interessante que a pesquisa quantitativa separa “lusos” e “brasileiros”, talvez considerando
os últimos como aqueles que não identificaram sua origem familiar com a imigração
portuguesa. De qualquer forma, os motivos da separação não são claros. Os autores da
pesquisa fazem a seguinte observação em relação à categoria “brasileiros” [aspas no
original]: “Brasileiros: não tem noção de descendência lusa; talvez reminiscência de
índios”
275
. Na categoria “Outros” (5,59%), menciona-se outras etnias como espanhola,
árabe, francesa, indígena, etc e os casos de descendência mista. Como conclusão, em vista
do baixo número de informantes descendentes de mais de uma etnia, os autores afirmam
“que a maior parte dos informantes dos diferentes grupos étnicos se mantém fiel à etnia de
seus antepassados, evitando os cruzamentos; de outro lado, em todos os grupos étnicos já se
iniciou, embora em proporções reduzidas, o processo de cruzamento interétnico”
276
. O
resultado da pesquisa é uma cidade étnica, onde mais de 75% pertence as cinco etnias
oficiais (italianos, alemães, poloneses, lusos e negros). Entretanto, utilizando os próprios
dados da pesquisa e considerando lusos, brasileiros e negros como populações vinculadas à
cidade carbonífera, este conjunto atingiria mais de 35% da população, o que mostra a sua
importância mesmo em uma pesquisa que tem claramente o objetivo de mostrar uma cidade
étnica.
Essa motivação da pesquisa, que a faz mais um elemento comemorativo do
Centenário de colonização do município, pode ser mais bem vislumbrado se a
compararmos com uma outra pesquisa realizada duas décadas depois e que visou também
entender a estrutura étnica da população criciumense. Esta pesquisa, realizada em
2002/2003, estabeleceu a composição étnica da população criciumense a partir do
275
Ibid.
276
Ibid, p.151.
198
sobrenome, levantado por dados referentes ao cadastro de usuários de energia elétrica
(CELESC) e dados cadastrais da Prefeitura Municipal referentes ao pagamento de IPTU
277
.
O resultou surpreendeu a cidade, tida como habitada por maioria de descendentes de
italianos ou, no mínimo, de descendentes das imigrações européias do século XIX. O
resultado final mostrou que a população é composta por 70% de luso-brasileiros e 25,19%
de descendentes de italianos, vindo após outros grupos étnicos com percentuais bem
menores como descendentes de alemães, espanhóis e poloneses
278
. Dentre os cinqüenta
sobrenomes com maior ocorrência no município, apenas três são de origem italiana, sendo
todos os demais luso-brasileiros
279
.
A discrepância de resultados entre as duas pesquisas não pode ser explicada apenas
em relação ao período de tempo que passou entre uma e outra. Questões de natureza
metodológica entram também no conjunto de causas da mudança de resultados. A divisão,
por exemplo, que a pesquisa de Arns faz entre lusos (19,84%) e brasileiros (12,40%), ainda
que não exista diferença prática em termos de identidade étnica, contribuiu para que as
cinco etnias oficiais fossem maioria. Além disso, na pesquisa de Arns entrou um
componente fundamental que passou sem análise na sua apresentação de resultados, que foi
a valorização do imaginário da imigração no contexto das comemorações do Centenário de
fundação da cidade, o que certamente levou muitas pessoas a se identificarem como sendo
de origem italiana, em especial, mesmo quando seus ascendentes fossem, em sua maioria,
de origem luso-brasileira. Os autores da pesquisa realizada em 2002/2003 sentiram esta
dificuldade ao realizarem um levantamento com questionário, quando entrevistaram 416
277
GOULARTE, Nivaldo Aníbal, CAROLA, Carlos Renato, GOULARTE, Maria de Lourdes Milanez e
MARTINS, Miriam da Conceição. Perfil Étnico no Município de Criciúma. UNESC, Relatório de
Pesquisa, 2004.
278
Ibid., p. 34.
279
Ibid., p. 24.
199
pessoas
280
de diferentes bairros da cidade. O resultado foi que “as respostas dadas pelos
entrevistados e a análise feita, adotando o critério dos sobrenomes do dicionário, não
coincidiram com a precisão desejada. Indivíduos com sobrenome de uma etnia, de acordo
com o critério do dicionário, responderam como sendo de outra etnia”
281
.
Neste caso, 33,9% se consideram italianos e 25% açorianos [luso-
brasileiros], um número bastante diferente do obtido na pesquisa
por sobrenomes, o que coloca sem dúvida algumas interrogações
tanto sobre o número de amostragem como sobre o que leva
alguém a se declarar descendente de italiano, açoriano ou outra
etnia. Pode ser o status, o meio em que vive? O fato de ser
indiferente sobre a qual etnia pertence? O sobrenome declarado
quando mulher é o do marido e não o da sua etnia?
282
Sem dúvida que a valorização dos patronímicos de origem italiana influenciaram a
resposta dos entrevistados. Entretanto, em sendo a identidade uma construção cultural
muito mais que dados objetivos, a metodologia utilizada por Arns e o segundo
levantamento da pesquisa de 2002/2003 não deixam de ser metodologicamente
sustentáveis. O que está em jogo aqui não é, afinal, se descendentes de luso-brasileiros ou
de italianos são a maioria, mas como os dados são utilizados na sustentação de
determinadas posições acadêmicas e na disputa simbólica entre os grupos sociais.
Voltemos a pesquisa de Otília Arns. Um outro dado que é analisado pela pesquisa
do Centenário é o referente a línguas estrangeiras aprendidas na infância como uma forma
de perceber se os grupos étnicos estariam mantendo seus conteúdos culturais, ou seja, a
língua seria um indicador do processo de aculturação:
280
Ibid., p. 58.
281
Ibid., p. 8.
282
Ibid., p. 73.
200
No capítulo referente às etnias já se fez menção ao processo de
aculturação que os descendentes dos pioneiros das diversas etnias
hoje estão atravessando. Um indicador seguro do estágio deste
processo de aculturação é o grau de domínio da língua dos
antepassados”.
283
De acordo com a pesquisa (Gráfico 14 Línguas Estrangeiras Aprendidas na
Infância, p. 154), 25,94% dos descendentes de italianos aprenderam uma língua estrangeira
na infância, 4,93% de alemães, 1,33% de poloneses, 7,43% de outras e 56,58% não
aprenderam nenhuma ngua estrangeira. Os autores concluem que isso “revela o grau de
imposição atingido pela língua portuguesa sobre as demais línguas dos imigrantes”
284
. Os
dados da pesquisa excluem os chamados lusos, brasileiros e negros, por razões óbvias,
ainda que signifique o retorno daquelas dificuldades de manutenção do esquema da cidade
étnica já anteriormente mencionadas, e conclui com a afirmação de que os descendentes das
correntes imigratórias européias mais recentes não mantiveram suas línguas características.
Porém, isso é feito em um tom de lamentação, como se a suposta manutenção da língua e,
por conseqüência, de outros traços culturais do grupo imigrante, fosse o mais aconselhável.
Pode-se perceber este tom quando os autores cruzam as informações sobre aprendizagem
de uma ngua estrangeira na infância com informações relativas a cruzamentos
interétnicos, e afirmam que “os dados revelam que as condições mais propícias para a
conservação de uma língua estrangeira de um grupo de imigrantes são encontradas no
próprio grupo dos respectivos imigrantes, sem miscigenação étnica. O cruzamento étnico,
por parte dos falantes, representa um fator inibidor para a conservação das línguas dos
283
ARNS, Otília (Coordenação Geral). Criciúma 1880 1980 “A Semente Deu Bons Frutos”.
Florianópolis: Governo do Estado de Santa Catarina, 1985, p. 154.
284
Ibid., p. 155.
201
grupos de imigrantes envolvidos”
285
. Também quando cruzam as informações sobre
aprendizagem de uma ngua estrangeira com o local de habitação dos informantes, e
concluem que “a cidade de Criciúma, em comparação com os distritos de Forquilhinha e
Rio Maina, constitui a zona do município em que as línguas introduzidas pelos imigrantes
pioneiros são, hoje, menos cultivadas: apenas 21,10% da população aprendeu, em sua
infância, e ainda entende, a língua italiana e 10,66% aprendeu, e ainda entende, outra
língua, como a alemã ou a polonesa. Conseqüentemente um alto percentual da população,
65,21% não aprendeu qualquer língua estrangeira em sua infância”
286
. Diante das
diferenças entre o município de Criciúma e os distritos no tocante a aprendizagem de uma
língua estrangeira na infância, os autores afirmam a existência de três fatores, “o ambiente
de cidade na sede do município, o grau de relações com representantes de outras etnias por
parte dos diferentes grupos étnicos e a consciência de identidade étnica” (p. 158).
Na cidade de Criciúma, sede do município, domina, de algumas décadas para cá, o
estilo de vida típico de cidade. Aí, o domínio da língua nacional é mais necessário para a
sobrevivência do que nos pacatos núcleos do interior como Rio Maina e Forquilhinha. Por
outro lado, o cultivo da língua dos pioneiros, na cidade de Criciúma, sempre foi mais difícil
devido à presença de representantes de uma variedade de outras etnias, sobretudo a partir
do início da era da exploração do carvão.
287
O que se depreende das observações acima é uma
proposta de cidade onde os grupos étnicos possam
viver isolados, sem cruzamentos interétnicos, em
um meio predominante rural. Isso significaria,
para Criciúma, abstrair o processo de crescimento
econômico baseado no carvão mineral, que
285
Ibid., p. 156.
286
Ibid., p. 157.
287
Ibid, p. 158.
202
modernizou a cidade e trouxe populações de
origem diferente daqueles grupos originários de
imigrações européias recentes. Ora, aqui também
se percebe uma certa tônica anticarvão na
proposta da cidade étnica. Se Criciúma está
excluída da condição de cidade ideal proposta nas
entrelinhas da pesquisa, resta Rio Maina e
Forquilhinha, mais esta última. De acordo com os
autores, “o distrito de Forquilhinha, por sua vez,
constituiu, em termos relativos, o maior centro de
cultivo das línguas introduzidas pelos
imigrantes”
288
. De fato, a impressão que se tem é
que a cidade ideal por trás do cenário, e que
orienta a interpretação dos dados da pesquisa, é
uma Forquilhinha idealizada, tal como aparece na
obra na parte referente à etnia alemã: rural, sem
cruzamento étnico, desprovida de outras etnias.
Criciúma, entretanto, já não era assim. Talvez a
festa que se programou para a comemoração do
Centenário de fundação da cidade pudesse recriar
no real uma cidade que a pesquisa anunciou no
papel.
288
Ibid.
CAPÍTULO 5
A APOTEOSE DA NOVA CIDADE
AS COMEMORAÇÕES DO CENTENÁRIO DE COLONIZAÇÃO
Na quente noite do dia 6 de janeiro de 1980, “debaixo de um céu carregado de
nuvens negras, a cada instante entrecortadas por raios fulminantes seguidos de trovões
assustadores”
289
, um grupo de homens postava-se diante de cerca de trinta mil pessoas, no
Estádio Heriberto Hülse, para realizar o hasteamento das bandeiras em uma das cerimônias
mais populares das comemorações do Centenário de fundação de Criciúma. Entre eles
estava Salomão da Rosa, “filho de pioneiro da etnia negra”, defronte a bandeira da Guiné.
Ao seu lado, colocava-se o Governador Jorge Konder Bornhausen, o Cardeal-Arcebispo de
São Paulo Dom Paulo Evaristo Arns, o Prefeito Municipal Altair Guidi, os cônsules da
Itália, Polônia e Portugal, e o Bispo Diocesano Dom Anselmo Pietrulla, que hastearam as
bandeiras dos respectivos países (Brasil, Itália, Alemanha, Polônia e Portugal), do Estado
de Santa Catarina e de Criciúma, ao som do hino nacional brasileiro e de hinos dos demais
países representados.
A presença de Salomão da Rosa entre autoridades tão importantes, portando a
bandeira da Guiné, representa o fechamento de um longo processo de etnicização das
relações sociais e culturais presentes na cidade de Criciúma, e, por último, promovida pelo
289
ARNS, Otília (Coordenação Geral). Criciúma 1880 1980 “A Semente Deu Bons Frutos”.
Florianópolis: Governo do Estado de Santa Catarina, 1985, p. 230 e 231.
204
governo Altair Guidi a partir de diversas ações de governo que culminaram nas
comemorações do Centenário, sem o qual Salomão da Rosa e a bandeira da Guiné não
estariam presentes em cerimônia tão importante.
Gostaríamos de, nesse capítulo, narrar as comemorações do Centenário de fundação
de Criciúma e refletir sobre a cidade que a festa do Centenário expôs para ser publicamente
consumida pelos cidadãos criciumenses e visitantes. De certa forma, a presença de um
homem comum entre as autoridades na cerimônia de abertura de um dos eventos mais
populares do Centenário indica que a identidade urbana elaborada pelo Governo Guidi e
exposta na festa promoveu a valorização de grupos subalternos da cidade. Porém, como
veremos, houve um preço que precisou ser pago.
Preparação do Centenário
O prefeito Altair Guidi, em discurso por ocasião da visita do cônsul italiano a
Criciúma, em 20 de maio de 1978, ressaltava a criação de “um Conselho de Cultura para,
entre outras atribuições, coordenar o programa de comemorações alusivas à data para que o
esforço e a memória dos primeiros imigrantes, sejam condignamente celebrados”
290
. O
Conselho, como vemos, tinha por principal objetivo organizar as comemorações do
Centenário de fundação de Criciúma, entendidas como um momento de homenagear os
fundadores, na medida em que “esta comunidade, é o fruto do trabalho, do sacrifício, da
290
CRICIÚMA. Discurso de Altair Guidi por ocasião da visita do cônsul italiano a Criciúma, em 20 de maio
de 1978. Este documento, além de outros, estava em posse do arquiteto Manoel Coelho e foi repassado a
Émerson César de Campos com o compromisso de ser, posteriormente, encaminhado ao Centro de
Documentação da UNESC (CEDOC). Os documentos me foram cedidos por Émerson, a quem agradeço, com
o mesmo compromisso, que será cumprido ao término dessa pesquisa. As fontes que forem citadas adiante e
não tiverem indicação de origem, fazem parte deste mesmo conjunto documental.
205
perseverança e da coragem de um grupo de famílias italianas que aqui vieram, quase
cem anos atrás, semear nesta terra as suas esperanças”.
No decorrer de toda a década de 1970, a comemoração do aniversário de fundação
da cidade remetia para o Centenário, seja no sentido de justificar o pouco entusiasmo e a
pobreza das atividades de comemoração da data de aniversário, seja para garantir, diante da
população, que a comemoração do Centenário seria diferente. Assim, em 1973 a falta de
celebração do aniversário de fundação da cidade foi justificada “por estarmos as portas do
primeiro centenário, quando os festejos deverão ser grandes e bem organizados”
291
. No ano
seguinte, o governo Manique Barreto afiançava que “muito em breve iniciará a adoção de
providências objetivando promover estudos em torno das comemorações alusivas ao
centenário da capital do carvão, que transcorrerá no dia seis de janeiro de mil novecentos e
oitenta”
292
, o que de fato não ocorreu.
De qualquer maneira, diante da pobreza das comemorações de aniversário da
fundação da cidade na década de 1970, a imprensa cobrava do Poder Público Municipal
providências no sentido de que a festa do Centenário fosse preparada. Diante da falta de
qualquer comemoração especial em 1975, a Tribuna Criciumense apontava para as
comemorações do próximo ano que “terão ainda, o objetivo de motivar toda a comunidade
e as autoridades constituídas, no sentido de que se iniciem o mais rapidamente possível, os
preparativos destinados aos festejos do primeiro centenário que acontecerá no dia seis de
janeiro de 1980
293
. No ano seguinte, os prognósticos do jornal não se confirmaram, e o
aniversário foi comemorado apenas com um desfile da Escola de Samba Rosa de Maio.
Diante disso, o jornal mais uma vez vociferou que “o acontecimento lembra-nos que
291
“Criciúma – 93 Anos”. Tribuna Criciumense, 06/10/1973, p. 1.
292
“Machadinha Abriu o Caminho do Progresso”. Tribuna Criciumense, 12/01/1974, p. 5.
293
“Está Próximo o Centenário”. Tribuna Criciumense, 11/01/1975, p. 5.
206
estamos apenas a quatro anos do centenário de fundação deste município, o que impõe às
autoridades constituídas a necessidade de irem sendo preparadas as comemorações do
significativo evento”
294
.
Essa preocupação com as comemorações do Centenário de fundação da cidade vem
de muito longe. Em 1956, José Pimentel, fez uma previsão profética em relação ao
Centenário, ao afirmar que “é bem possível que, por ocasião de teu centenário, os que
viverem naquela época, mais reconhecidos do que os que hoje te habitam, ergam pedestal,
exaltando numa tocante solenidade, o que fizeram os humildes e abnegados colonos em teu
benefício”. Na verdade, no Centenário, como veremos, se fez muito mais que erguer um
pedestal e realizar uma tocante solenidade. Jamais Pimentel imaginaria a dimensão que a
homenagem aos imigrantes assumiria no Centenário, porém, apontou esse evento como
aquele que poderia modificar a situação de indiferença para com os antepassados que ele
via nas autoridades e no povo da cidade carbonífera. De fato, a comemoração do
Centenário fez muito mais que isso, pois foi a apoteose de todo um processo de afirmação
do imaginário da imigração e da etnicidade, do qual a luta e a obra de Pimentel fazem parte.
De qualquer forma, Altair Guidi tomou medidas práticas, a partir de 1978, para
efetivamente organizar as comemorações do Centenário de fundação de Criciúma. Neste
ano, no dia 4 de maio, foi criada a Comissão Central dos Festejos do Centenário de
Criciúma, através da Resolução 04/78 do Conselho Municipal de Cultura
295
. A comissão
era composta por Presidente, Vice-Presidente e Secretário, indicados pelo Conselho e
nomeados pelo Prefeito Municipal, podendo ainda a comissão criar outras funções, o que
acabou ocorrendo. O objetivo da comissão, estabelecido na resolução em seu primeiro
294
“Criciúma Festejou 96 Anos”. Tribuna Criciumense, 10/01/1976, p. 3.
295
ARNS, Otília (Coordenação Geral). Criciúma 1880 1980 “A Semente Deu Bons Frutos”.
Florianópolis: Governo do Estado de Santa Catarina, 1985, p. 220.
207
artigo, era “organizar, nos anos de 1979 e 1980, as festividades referentes ao Centenário da
Colonização do Município de Criciúma”. O artigo estabelecia que a comissão contaria
“com recursos que lhe forem destinados pelos poderes públicos, podendo ainda receber
doações e contribuições de outras fontes” e o artigo garantia que a comissão poderia
requerer a “disposição de servidores municipais e autárquicos para colaborarem no
cumprimento de suas atribuições”.
Entretanto, somente um ano mais tarde, em 16 de abril de 1979, a comissão foi
nomeada. Foram designados para presidente da Comissão, o senhor Dino Gorini, “médico
conceituado e digno representante da sociedade criciumense”, Guido José Búrigo para
Vice-Presidente e Desidério Meller para Secretário, através do Decreto SE/052/79.
O Conselho de Cultura criou ainda diversas comissões vinculadas a Comissão
Central dos Festejos do Centenário, através de seu regulamento geral. Dentre essas
comissões, merece destaque a criação da Assessoria de Etnia, composta de cinco membros
“representando a cultura italiana, alemã, polonesa, negra e portuguesa” e que tinha por
objetivo coordenar a atuação dos grupos étnicos nas festividades; e a comissão de cultura,
também composta de cinco membros, vinculada a Secretaria Geral, e que tinha amplos
objetivos, entre eles a composição do livro do Centenário, a organização do museu
histórico, a construção do “Monumento ao Imigrante” e a organização dos grupos
folclóricos
296
. A Comissão Central dos Festejos do Centenário de Criciúma passou a
integrar um grande número de comissões e assessorias e coordenar um grupo expressivo de
pessoas, conforme se em organograma da comissão publicado na página 221 do livro
oficial do Centenário, organizado por Otília Arns, e que bem a medida da importância
que as comemorações do Centenário haviam assumido para o Governo Municipal.
296
Ibid., p. 221 e 222.
208
Em 25 de maio de 1979 houve a festa de posse da Comissão Central, dos
coordenadores de comissões especiais, assessores e demais ocupantes de cargos
relacionados com a comemoração do Centenário, na Sociedade Recreativa União Mineira,
com a presença do prefeito municipal, do representante do Governo do Estado e demais
autoridades municipais.
Os festejos do Centenário envolviam um número crescente de pessoas. Era
necessário elaborar a programação oficial, constituir grupos folclóricos, pesquisar as
histórias das etnias para serem utilizadas na festa e compor o livro do Centenário, organizar
festas e comemorações específicas, enfim, coordenar pessoas e esforços que requeriam um
soma importante de trabalho e dinheiro. E que o Governo Municipal estava disposto a dar.
O Governo Guidi investiu maciçamente na comemoração do Centenário da cidade, e tinha
bom motivo para isso. Os festejos assumiam, de início, um caráter eleitoral imediato, em
uma conjuntura de fim da ditadura militar, em que as eleições assumiam cada vez maior
importância. Daí a preocupação do Vice-Prefeito, Mário Sonego, às vésperas da cerimônia
de abertura das comemorações, com o trabalho da Comissão Central, que, segundo ele, não
atingia a população.
“As poucas marcas existentes dos trabalhos da Comissão dos
Festejos do Centenário da Colonização de Criciúma foi alvo de
críticas do vice-prefeito Mário Sonego, na semana passada.
Preocupado com o desconhecimento quase total da população em
relação aos festejos do centenário, Sonego acusou a Comissão de
inepta, ‘uma vez que não conseguiu sensibilizar a opinião pública
209
para o evento, da maior importância para toda a comunidade
criciumense’”
297
.
A participação popular nos festejos do Centenário
era central para o projeto eleitoral que o Governo
Guidi possuía para a cidade. Daí que “a irritação
do vice-prefeito de Criciúma para com os
resultados dos trabalhos de preparação às
comemorações do Centenário do município
também se relacionam com a programação
elaborada pela comissão ‘onde não há qualquer
participação popular, mas sim uma série de
atividades para o povo assistir e aplaudir’”. Além
de preocupar-se com o desconhecimento da
população em relação à programação, o vice-
prefeito criticava também com o tipo de eventos
propostos, que dispensava a participação popular.
Na verdade, como veremos, as críticas do político
municipal parecem ter sido descabidas, na medida
em que as comemorações do Centenário em
Criciúma mobilizaram uma quantidade enorme de
pessoas e marcaram definitivamente a cidade.
Como parte dos preparativos do Centenário, a comissão social da CCF organizou o
concurso da Rainha do Centenário, realizado em 9 de setembro de 1979. O júri foi
composto de políticos importantes, inclusive o prefeito municipal, e jornalistas. Foram
escolhidas “cinco finalistas, uma de cada grupo étnico para rainha e princesas”. A rainha
297
“Sonego Critica Comissão do Centenário”. Jornal do Sul, 06/01/1980, p. 3.
210
escolhida foi Suzana Inês Meller, do grupo italiano
298
. Em novembro de 1979 também foi
realizado o concurso que escolheu, dentre quarenta e dois concorrentes, o Hino do
Centenário de Criciúma, sendo vencedor aquele apresentado por Cornélio Dal’Alba e Suely
Mazzurana. Para a seleção do texto o júri era composto de professores do ensino médio e
superior, especialistas em sica e representantes da comissão de cultura, órgão da
Comissão Central dos Festejos – CCF
299
.
Com uma programação oficial organizada, munida de Rainha e Hino oficiais,
aproximando-se o 6 de janeiro de 1980, a Comissão Central dos Festejos possuía as
condições para cumprir seu objetivo. A festa podia começar.
A Festa do Centenário
A festa começou com o claro objetivo de conquistar e envolver toda a cidade. O
governo municipal não queria deixar de chamar a atenção para o aniversário da cidade e, no
fim das contas, para si mesmo. A programação dos festejos do Centenário tomariam todo o
ano de 1980, até 6 de janeiro de 1981, no que ficou divulgado como o Ano do Centenário.
Realizar uma festa de poucos dias, ou mesmo de poucas semanas, como outras cidades da
região haviam feito, era pouco para a importância que Criciúma possuía a seus olhos como
capital regional e para os planos que Altair Guidi tinha para a cidade. No Ano do
Centenário, o Brasil vivia um momento muito específico de sua conjuntura, o que analistas
políticos chamam de redemocratização, e que implicava na transição da ditadura militar
para um regime democrático. Desde o Governo Geisel o poder militar tinha um projeto de
298
ARNS, Otília (Coordenação Geral). Criciúma 1880 1980 “A Semente Deu Bons Frutos”.
Florianópolis: Governo do Estado de Santa Catarina, 1985, p. 223.
299
Ibid., p. 224. “Hino do Centenário Já é Conhecido”. Tribuna Criciumense, 10/11/1979.
211
distensão “lenta, gradual e segura” para o país, organizando a constitucionalização do
Brasil e buscando manter o controle sobre os movimentos sociais e a oposição. Com a
reforma legal de 1979, o sistema político tornou-se mais complexo, com a existência de
diferentes partidos e a realização de eleições cada vez mais amplas, o que colocava
inúmeros problemas para o partido oficial, do qual Altair Guidi fazia parte. Neste contexto,
projetos de hegemonização da sociedade tornavam-se prementes, em vista de que a ditadura
militar perdia sua força e os projetos de poder eram disputados na sociedade através de
eleições
300
.
O esquema geral das comemorações do Centenário previa, como pontos altos, uma
abertura e uma espécie de encerramento quando se realizaria uma exposição econômico-
industrial:
Em linhas gerais, Criciúma festejará durante todo o próximo ano o seu Centenário.
Teremos um ponto alto na abertura, dia 6 de janeiro, seguindo-se depois programações
mensais, e culminando nos últimos meses do ano numa grande exposição feira, com a
realização simultânea de festas populares, apresentação de corais, grupos folclóricos,
cozinhas típicas, etc.
301
Haveria uma série de outras atividades festivas
diluídas no decorrer do Ano do Centenário, o que
recebeu a crítica da imprensa. Em matéria
aparecida em 26 de janeiro de 1980, na largada do
Ano Centenário, a Tribuna Criciumense afirma
que a população preferia concentrar as
comemorações do Centenário em uma única
300
DA SILVA, Francisco Carlos Teixeira. Crise da Ditadura Militar e o Processo de Abertura Política no
Brasil, 1974 1985. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. O Brasil Republicano.
Volume 4: O Tempo da Ditadura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 245 – 282.
301
CRICIÚMA. Entrevista a TV Eldorado em 12 de julho de 1979 (transcrição). O documento não revela o
autor da entrevista, mas, presumimos, tenha sido o presidente da CCF, Dino Gorini.
212
semana inteira, “como foi o caso de Urussanga”, e
não estende-las por todo o ano, com promoções
distanciadas e que não atraem a atenção popular.
Cita como exemplo o “Carnaval 100sacional do
Centenário” que em “nada se diferencia dos outros
carnavais”
302
. De fato, inúmeras festividades do
Centenário eram atividades que ocorriam
anualmente, como festas católicas, carnaval,
semana da pátria, e que foram integradas aos
festejos do Centenário sem que sua estrutura fosse
modificada. Incluía-se a festa na programação
oficial e se fazia sua divulgação utilizando-se as
marcas publicitárias criadas para o Ano do
Centenário, o que fez com que, durante esse ano,
todas as festividades da cidade tivessem a marca
do Centenário. De certa forma, as festas populares
de Criciúma, e aquelas nem tanto assim, foram
capturadas pela CCF para o Ano do Centenário.
Iniciemos então as comemorações do Ano do
Centenário. A festa começou as vinte e três horas
do dia 5 de janeiro de 1980, com fogos de
artifício, repicar de sinos e toques de sirenes e
buzinas. A abertura oficial foi realizada pelo
Prefeito Municipal, Altair Guidi, e pelo presidente
da Comissão Central, Dino Gorini, através de
rádios e da TV Eldorado e TV Catarinense, nos
primeiros minutos do Ano do Centenário
303
. Pela
manhã, às seis horas, houve cerimônia na Praça
302
“Comemorações do Centenário Não Está Agradando”. Tribuna Criciumense, 26/01/1980, p. 1.
303
ARNS, Otília (Coordenação Geral). Criciúma 1880 1980 “A Semente Deu Bons Frutos”.
Florianópolis: Governo do Estado de Santa Catarina, 1985, p. 225. “Criciúma 100 Anos”. Tribuna
Criciumense, 05/01/1980, p. 1.
213
Nereu Ramos com salva de tiros pelo 28º GAC e
outras atividades, com a participação de bandas
marciais de colégios de Criciúma. Às oito horas
da manhã houve a apresentação da Banda Musical
Cruzeiro do Sul, a principal da cidade. Às nove
horas houve homenagem aos grupos étnicos
fundadores do município, “com a apresentação de
canções pelos corais, na língua original dos
pioneiros”. Apresentaram-se primeiro o grupo
italiano, depois polonês, alemão, luso e negro. Às
onze horas “todos os corais, juntamente com o
povo, cantaram ‘parabéns pra você’, seguindo-se
o corte do bolo pelos ex-prefeitos presentes”,
sendo o bolo distribuído ao público.
Logo no início das festividades aparecem os
cantos e as danças executadas por grupos
folclóricos vinculados a colégios da cidade e que
buscavam recuperar as raízes culturais dos grupos
étnicos fundadores de Criciúma. Na Festa do
Centenário se buscou homenagear as etnias
fundadoras da cidade, identificadas como italiana,
alemã e polonesa. Entretanto, era preciso também
contemplar o conjunto da população citadina, a
maioria formada por ‘brasileiros’, originários de
imigrações mais antigas, espontâneas e forçadas
como no caso da população negra, que haviam
chegado na época da cidade carbonífera e que
agora a representação das etnias buscava dar
conta. A inclusão da etnia portuguesa procurou
responder a essa demanda, juntamente com a etnia
negra, que guardava sua especificidade em vista
214
de sua presença diferenciada na cidade. A Festa
do Centenário, e o esquema identitário que lhe
dava base, procurava ser inclusiva e democrática,
não deixando ninguém de fora. Um dos lemas que
as festividades do Centenário utilizaram foi ‘A
Festa é de Todos’, conforme aparece no folheto de
divulgação do ‘Carnaval 100sacional’
304
e na
programação do encerramento dos festejos do
Centenário
305
. A festa, tal como a identidade
urbana que se expressou nela, buscou integrar o
conjunto dos moradores. Entretanto, como
veremos, a entrada no esquema identitário não
significava que todos eram iguais e tinham a
mesma importância. As etnias tinham também sua
própria hierarquia.
A recuperação dos cantos e danças dos grupos
étnicos também coloca uma série de dificuldades.
Não se busca, ao que parece, recuperar os
costumes dos imigrantes no tempo do núcleo
colonial, mas aquilo que se chama o ‘típico’
daquela cultura e que, quando elaborado, é dado
como espetáculo na festa. No fim das contas, o
que é apresentado como típico daquela cultura
(italiana, alemã, polonesa, portuguesa e negra) é,
na verdade, uma prática que se descolou do
cotidiano, envelheceu e morreu como cultura,
restando seu estereotipo, lugar comum e vulgar,
que é apresentado como folclore, que vale como
espetáculo para o turista, mas que não guarda
304
CRICIÚMA. Carnaval 100sacional. Folheto de divulgação. 1980.
305
CRICIÚMA. Programação de Encerramento do Centenário. 1981.
215
nenhuma ligação orgânica com comunidade
alguma. Esses cantos e danças não se estabelecem
a partir do que se chama costumes de uma
sociedade tradicional, mas entram na rubrica do
que Hobsbawm chamou de tradições
inventadas”, ou seja, a formalização de práticas
fixas impostas a partir de um passado real ou
forjado.
Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas,
normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais
práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos
valores e normas de comportamento através da repetição, o que
implica, automaticamente uma continuidade em relação ao passado.
Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com
um passado histórico apropriado.
306
O estabelecimento de um certo folclore das etnias
não é fruto de um sentimento nostálgico de
preservação de uma cultura que está
desaparecendo, mas um esforço de distinção do
grupo e sua afirmação diante de outros grupos. O
relato da participação do Colégio Marista no
Centenário demonstra a distância que entre a
elaboração desses traços culturais, folclóricos, e
os costumes dos descendentes das ‘etnias
formadoras da cidade’. Depois de afirmar que o
Colégio, o principal formador da elite econômica
e cultural da cidade, participou gratuitamente na
abertura das festividades do Centenário
306
HOBSBAWM, Eric e RANGER, Terence. A Invenção das Tradições. edição. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1997, p. 10.
216
representando a etnia negra, relata que teve
dificuldades na preparação das danças folclóricas,
“visto que no Colégio Marista estudam poucos
alunos da etnia negra. Foi necessário convidar
moços e moças da etnia negra, sem serem alunos
do Colégio Marista”
307
.
Voltemos a Festa. A abertura oficial do Ano do Centenário prosseguiu com uma
cerimônia oficial realizada na noite de 6 de janeiro de 1980, no estádio Heriberto Hülse, e
reuniu cerca de trinta mil pessoas “para assistir a sessão solene do Centenário, levada ao ar
pela TV Eldorado”
308
. Foi uma das atividades mais populares do Centenário. Além do
público no interior do estádio e da transmissão televisiva, a Tribuna Criciumense relatou
que os portões foram fechados deixando muitos populares fora do local
309
.
Após o hasteamento das bandeiras ao som dos hinos nacionais, estadual e
municipal, a rainha e princesas do Centenário desfilaram em carro alegórico, “para prestar
homenagem aos imigrantes das cinco etnias pioneiras de Criciúma”. Em seguida, ao som de
música típica de cada grupo étnico, crianças de colégios da cidade formaram, uma de cada
vez, os nomes dos grupos étnicos formadores de Criciúma, na seguinte ordem: Italianos
(Colégio Michel), Poloneses (SATC), Lusos (STS), Negros (Colégio Marista) e Alemães
(Colégio São Bento).
Após as apresentações, foi celebrada a “missa solene do Centenário” por Dom
Paulo Evaristo Arns, então Arcebispo de São Paulo, Dom Anselmo Pietrulla, Bispo
Diocesano, e outros quarenta e três sacerdotes nascidos no município. A missa foi
307
CRICIÚMA. Relatório de Participação no Centenário de Criciúma. 20 de fevereiro de 1980. Arquivo
Histórico de Criciúma, caixa 68.
308
ARNS, Otília (Coordenação Geral). Criciúma 1880 1980 “A Semente Deu Bons Frutos”.
Florianópolis: Governo do Estado de Santa Catarina, 1985, p. 229.
309
“Público Não Pode Assistir a Festa do Centenário”. Tribuna Criciumense, 12/01/1980, p. 12.
217
programada como o momento principal da sessão solene, de tal maneira que nas notícias
sobre a sessão solene, é ela chamada de “missa no estádio Heriberto Hülse acompanhada de
diversas atrações executadas por alunos de nossa cidade”
310
. A presença da igreja católica
romana foi uma constante nas festividades do Centenário, seja como reafirmação da
religião oficial dos imigrantes, que devia ser celebrada, e também no sentido de que as
festas católicas foram incluídas como festividades do Centenário. Somente no
encerramento das festividades aparece uma menção a outra igreja, quando se incluiu na
programação oficial
311
a realização de culto na Igreja Evangélica Assembléia de Deus, na
manhã do dia 6 de janeiro de 1981, seguido da inauguração da Praça Maria Rodrigues,
defronte ao templo, o que significou a inclusão do culto e da inauguração da praça na
programação oficial um reconhecimento da importância daquela igreja na cidade.
Entretanto, na sessão solene, o relato de Otília Arns busca destacar a presença católica e o
favor divino sobre Criciúma e seus habitantes. No relato de Arns, apesar do céu carregado
daquela noite quente de verão, “enquanto uma chuva desabava com ventos tempestuosos
em volta de Criciúma, outra caía serena, em forma de flocos de neve (sic), sobre as cabeças
dos quarenta e cinco sacerdotes celebrantes”. Fenômeno metereológico que levou a autora a
concluir que “a Providência Divina protegeu Criciúma para que seu povo pudesse render
graças pelos cem anos de semeadura realizada pelos pioneiros, seus filhos e netos, ao
mesmo tempo em que pediam bênçãos para as gerações do presente e do futuro”
312
. Na
festa de todos, nem as forças celestes ficaram de fora.
A cerimônia foi encerrada com jovens em trajes
típicos e ao som de música própria que dançaram
310
“Criciúma – 100 Anos”. Tribuna Criciumense, 05/01/1980, p. 1.
311
ARNS, Otília (Coordenação Geral). Criciúma 1880 1980 “A Semente Deu Bons Frutos”.
Florianópolis: Governo do Estado de Santa Catarina, 1985, p. 234.
312
Ibid., p. 230 e 231.
218
“em homenagem as cinco etnias pioneiras da
colonização de Criciúma”. Os grupos folclóricos
ficaram a cargo dos mesmos colégios que
realizaram a coreografia dos nomes dos grupos
étnicos.
As comemorações, porém, prosseguiram no
decorrer daquele ano de 1980. Em 9 de janeiro foi
realizada a inauguração do Museu da Colonização
Augusto Casagrande, coordenado por Otávia
Gaidzinski, em um sobrado doado por Joacy
Casagrande Paulo e sua esposa Maria Madalena
Giulla Paulo no bairro Comerciário
313
. Houve na
oportunidade homenagem ao descendente mais
idoso dos primeiros imigrantes, Caetano Sônego,
e ao descendente mais próximo do primeiro
criciumense, Maria Darós Zanette
314
.
A partir daí, as comemorações do Centenário integraram festas comuns da cidade,
civis e religiosas, em sua programação. De 15 a 19 de fevereiro de 1980 foi realizado o
Carnaval 100Sacional, que teve coordenação da Comissão Central através de sua Comissão
Social. O evento abrangeu atividades em clubes e sociedade recreativas, bem como os
desfiles de rua. A programação incluiu desfile público pelas avenidas Rui Barbosa e
Getúlio Vargas, bailes no Criciúma Clube e União Mineira, e bailes públicos, infantis e
adultos, na praça Nereu Ramos
315
. Em setembro, a Semana da Pátria foi também integrada
nos festejos do Centenário, quando “os criciumenses prestaram homenagem a Pátria, que
313
“Museu da Colonização Será Inaugurado dia 9”. Tribuna Criciumense, 05/01/1980, p. 1.
314
ARNS, Otília (Coordenação Geral). Criciúma 1880 1980 “A Semente Deu Bons Frutos”.
Florianópolis: Governo do Estado de Santa Catarina, 1985, p. 231 e 232.
315
CRICIÚMA. Carnaval 100sacional. Folheto de divulgação. 1980.
219
acolheu os imigrantes pioneiros”
316
. A integração se deu a partir de uma programação
especial, relativa ao Centenário e ocorrida no dia 31 de agosto. Neste dia, a programação
foi aberta pelo translado da “chama sagrada” de Urussanga a Criciúma, refazendo o
caminho dos primeiros imigrantes italianos e “lembrando o início da colonização de
Criciúma”. Às 9 horas ocorreu um “desfile alegórico”, quando crianças dos colégios da
cidade prestaram “uma homenagem a nossas raízes: Italiana, Alemã, Polonesa, Negra e
Portuguesa”
317
. Neste desfile algumas Escolas da cidade representaram oficialmente as
etnias: Italiana pelo Jardim de Infância Criança Feliz, Alemã pelo Colégio São Bento,
Polonesa pela E. B. São Cristóvão, Negra pela E. B. Joaquim Ramos e Portuguesa pelo C.
E. Sebastião Toledo dos Santos
318
.
Outros eventos e festas, especialmente religiosas, as mais numerosas, foram
articuladas, sempre que possível, a uma das cinco etnias. Assim, a Festa de São José,
ocorrida no centro da cidade, no calçadão, de 19 a 22 de março de 1980, utilizada para
homenagear a etnia italiana. Em Linha Batista, se realizou a Festa de São Casimiro, de 28
de fevereiro a 2 de março de 1980, em homenagem a etnia polonesa. A Festa do Divino
ocorreu de 19 a 21 de abril de 1980, a cargo da etnia lusa, presumidamente na então igreja
matriz São José, no centro da cidade. A etnia alemã foi homenageada com a comemoração
do Dia do Colono, realizada de 25 a 27 de julho de 1980, na então localidade de
Forquilhinha, então distrito de Criciúma e hoje município independente. A etnia negra foi
vinculada a atividade carbonífera e homenageada na Festa de Santa Bárbara, ocorrida de
28 de novembro a 4 de dezembro de 1980. Tradicional festa do ciclo do carvão, presente
316
ARNS, Otília (Coordenação Geral). Criciúma 1880 1980 “A Semente Deu Bons Frutos”.
Florianópolis: Governo do Estado de Santa Catarina, 1985, p. 233.
317
Ibid.
318
CRICIÚMA. Semana da Pátria, “A Independência Somos Todos Nós”. Folheto de divulgação. 1980.
Arquivo Histórico de Criciúma, Caixa 76.
220
em todas as comunidades carboníferas da região, foi integrada aos festejos do Centenário e
relacionada à população negra porque “a devoção a Santa Bárbara e ao samba registram a
religiosidade e a veia artística do negro”
319
. Além dessas festas relacionadas às etnias, a
Festa de Corpus Christi, tradicional comemoração católica, foi integrada ao Ano do
Centenário como “uma tradição trazida da Europa pelos imigrantes” e que “foi revivida de
maneira intensiva por toda a comunidade de Criciúma no ANO 100”
320
.
A programação do Ano do Centenário previu “um ponto alto na abertura, dia 6 de
janeiro, seguindo-se depois programações mensais, e culminando nos últimos meses do ano
numa grande exposição – feira”
321
. A exposição – feira chamou-se Exposição do Ano 100 –
EXPO 100, e ocorreu de 4 a 12 de outubro de 1980, constituindo-se de fato em um
momento ímpar dos festejos do Centenário.
EXPO 100, a Exposição do Centenário
Em 15 de junho de 1979, os senhores Dino Gorini, presidente da Comissão Central
dos Festejos do Centenário, Mário Sonego, Vice-prefeito, Altamiro Furlaneto e Wanderley
Rocha, foram até a cidade de Caxias do Sul com o objetivo de “buscar subsídios para a
comissão de exposição, tais como: regulamentação, divulgação, venda de stands, aspectos
gerais de funcionamento da Feira do Centenário
322
. A intenção era conhecer a experiência
da festa realizada em Caxias do Sul para municiar a comissão, coordenada pelo Vice-
prefeito, que preparava uma “exposição feira” integrada nas comemorações do
319
ARNS, Otília (Coordenação Geral). Criciúma 1880 1980 “A Semente Deu Bons Frutos”.
Florianópolis: Governo do Estado de Santa Catarina, 1985, p. 232.
320
Ibid., p. 233.
321
CRICIÚMA. Entrevista a TV Eldorado em 12 de julho de 1979 (transcrição).
322
CRICIÚMA. Relatório de Viagem a Caxias do Sul, em 15 de junho de 1979.
221
Centenário de Criciúma. Caxias do Sul tinha uma longa experiência na organização da
Festa da Uva, que era realizada desde 1931, e era essa experiência que a comissão foi
buscar
323
.
Saudada como “o ponto alto das comemorações” do Centenário de Criciúma
324
, A
Expo 100, Exposição do Ano 100 ou Exposição do Centenário, foi aberta no dia 4 de
outubro de 1980, as 10:30 horas, com a presença de diversas autoridades, como Altair
Guidi, Prefeito municipal, Jorge Konder Bornhausen, Governador do Estado, Henrique
Córdova, Vice-Governador, Esperidião Amin Helou Filho, Secretário Estadual de Obras,
Moacir Bértoli, Presidente da Assembléia Legislativa, Dom Anselmo Pietrulla, Bispo
Diocesano, Cônsules da Itália, Polônia e Portugal, outros secretários estaduais, deputados,
ex-governadores, prefeitos, vereadores
325
, a demonstrar a importância do evento. A
exposição durou nove dias, tendo a visitação de cerca de 300 mil pessoas e ocupou as
dependências de um pavilhão de cerca de 7 mil e 500 metros quadrados e que, finda a festa,
serviria para abrigar o poder executivo criciumense, constituindo-se no Paço Municipal
Marcos Rovaris
326
.
O evento foi organizado em torno de uma mostra de produtos criciumenses, mas
que teve também expositores de Tubarão, Urussanga, Joinville, Blumenau, Jaraguá do Sul,
Florianópolis e Rio de Janeiro
327
. Paralelamente houve espetáculos nacionais com artistas
conhecidos da população como e Guarabira, Luiz Gonzaga, maestro Augusto Zácaro,
Francisco Egídio, banda Cavalinho Branco e Trio Parada Dura. Foram organizadas
atividades culturais e religiosas. Estiveram presentes bandas e grupos folclóricos de
323
RIBEIRO, Cleodes Maria Piazza Julio. Festa & Identidade Como Se Fez a Festa da Uva. Caxias do
Sul: EDUCS, 2002.
324
“Viva o Ano 100 de Criciúma”. Tribuna do Vale, 27/09/1980, p. 3.
325
“Expo 100 – O Marco de Um Tempo Novo”. Tribuna Criciumense, 25/10/1980, p. 6.
326
Ibid., p. 5 e 6.
327
Ibid., p. 6.
222
Curitiba, Porto Alegre, Blumenau e Nova Veneza, bem como os grupos folclóricos das
etnias de Criciúma. Houve um desfile em trajes típicos das cinco etnias e um coral de mil
alunos de escolas primárias, que cantaram o Hino do Centenário e o Hino de Criciúma
328
.
Funcionou um restaurante e uma churrascaria durante todo o evento, quando foram servidas
cerca de 25 mil refeições. No último dia da exposição foi realizada uma sessão de
homenagem as primeiras famílias colonizadoras, com entrega de diplomas.
Homenagearam-se também inúmeras outras pessoas e instituições, desde ex-prefeitos,
industriais, até clubes de serviço, profissionais liberais, etc. Para os homenageados mais
importantes, como Diomício Freitas, Santos Guglielmi, Maximiliano Gaidzinski, Dom
Paulo Evaristo Arns, entregou-se um troféu, “réplica do monumento da colonização” que
não havia ainda sido inaugurado. Paralelamente ao evento, ocorreu a 14ª Jornada
Catarinense de Medicina e um encontro dos prefeitos de cidades de porte médio
329
.
Fenômeno típico do século XIX, as exposições avançaram sobre o século seguinte
já sem possuírem aquela aura de novidade que as caracterizava no século precedente,
divulgadoras de um novo mundo centrado na indústria e na ciência
330
. Porém, ainda
possuíam seu lugar no mundo dos negócios e do entretenimento, constituindo-se em um
dos lugares, por excelência, divulgadores de novos produtos e oportunidades. No caso de
Criciúma, a Exposição foi pensada para ser o momento mais importante da comemoração
do Centenário, atestando que a cidade era um lugar de progresso, refletido na capacidade
que ela tinha para produzir.
328
ARNS, Otília (Coordenação Geral). Criciúma 1880 1980 “A Semente Deu Bons Frutos”.
Florianópolis: Governo do Estado de Santa Catarina, 1985, p. 233 e 234.
329
“Expo 100 – O Marco de Um Tempo Novo”. Tribuna Criciumense, 25/10/1980, p. 6, 9 e 10.
330
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Exposições Universais Espetáculos da Modernidade do Século XIX.
São Paulo: Hucitec, 1997.
223
A exposição do centenário foi uma mostra daquilo que a comunidade
criciumense tem capacidade de fazer e está fazendo, além de se
constituir em mais uma condigna homenagem a memória dos
pioneiros da colonização.
331
Juntando pioneiros e indústria, numa operação que já vimos funcionar, ao atribuir
aos imigrantes o pioneirismo no desenvolvimento industrial da cidade, a exposição
demonstrava a todos que Criciúma era uma cidade industrial e moderna, portanto, lugar de
progresso. Essa qualidade da cidade podia ser constatada na dimensão de feira que a
exposição assumia, em sua dimensão econômica, isto é, como propiciadora de negócios e
expositora de novos produtos. As matérias de jornais sobre o evento comentam que o
volume de comercialização atingiu a soma de 238 milhões e 150 mil cruzeiros.
Entretanto, ainda que os aspectos lúdicos e lucrativos da exposição sejam
importantes, é em sua dimensão cultural que a exposição verdadeiramente se destaca, na
medida em que se constitui num momento privilegiado de criação de representações
coletivas e imaginários sociais relacionados, no caso, com a cidade e seus fundadores.
Observa-se, no caso, uma convergência nas análises: a identificação
das exposições para além de seu caráter de mostra de mercadorias e
máquinas. Este elemento comum é dado pela associação feita entre
as exposições e a visualização ideológica de uma época levada a
efeito pela burguesia.
332
331
“Expo 100 – O Marco de Um Tempo Novo”, Tribuna Criciumense, 25/10/1980, p. 5.
332
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Exposições Universais Espetáculos da Modernidade do Século XIX.
São Paulo: Hucitec, 1997, p. 44.
224
A proeminência dos dados culturais e representacionais sobre o econômico, que
Sandra Pesavento encontra como elemento comum das análises sobre as exposições
universais do século XIX, e que se condensa na “visualização ideológica de uma época”, se
transmuta, em se tratando de Criciúma do final do século XX, para uma visualização
ideológica da nova cidade que Altair Guidi havia construído e que expunha para ser
consumida na Expo 100.
Essa dimensão da Expo 100, de divulgadora da nova cidade construída por Altair
Guidi, pode ser observada, de início, em um anúncio publicado pelo Poder Executivo
criciumense no jornal Tribuna do Vale, de Araranguá, convidando a população a participar
da Festa. No que se refere aos motivos das comemorações, afirma o anúncio o que deve ser
comemorado.
[Deve ser comemorada] a importância energética da mais produtiva
região carbonífera do Brasil; o exemplo de uma comunidade típica
do Sul, aonde o progresso veio da colaboração íntima e fraterna entre
o elemento imigrante e o brasileiro; E, principalmente, vamos estar
todos comemorando esse modelo de planejamento urbano em Santa
Catarina, que é Criciúma.
333
É interessante observar como, no mesmo anúncio, reúnem-se os elementos mais
importantes da identidade urbana criciumense: carvão, imigração e a nova cidade moderna
que Guidi construiu. O uso do principalmente, referindo-se ao modelo de planejamento
urbano, encaminha os leitores a atentarem para as intenções do Governo Municipal em
relação à Expo 100.
333
“Viva o Ano 100 de Criciúma”. Tribuna do Vale, 27/09/1980, p. 3.
225
Todas as atividades do Ano 100 foram vislumbradas e programadas pelo Governo
Guidi como um momento privilegiado para fixar na alma da cidade uma nova definição
sobre o que era Criciúma e o que era ser criciumense, isto é, novas determinações
identitárias. Em um folheto da Administração Altair Guidi, produzido provavelmente no
final de seu governo, se pode observar como as comemorações do Centenário aparecem
como obra da administração municipal que, por sua vez, serviu para divulgar e fixar na
população a própria Administração. O folheto foi elaborado em papel cartão, colorido, em
três meia-folhas horizontalmente unidas, tendo na capa as palavras “Criciúma, hoje” e
inúmeras fotografias, que foi o meio utilizado para mostrar a nova cidade, quase sem texto.
Nas fotografias predominaram a praça Nereu Ramos, com o calçadão e os novos
equipamentos urbanos; a Avenida Centenário, em imagens panorâmicas, noturnas e de
detalhes; e as comemorações do Centenário, relacionadas às apresentações de grupos
folclóricos e a desfiles étnicos. Na parte interna há um texto louvando a nova cidade criada.
Nele, apresenta-se o lugar do Centenário na composição da cidade nova:
Ou a promoção de eventos culturais, a criação do Museu da
Colonização (reciclando uma das mais antigas construções de
Criciúma), a realização das festas do Centenário atos e fatos que
vão sedimentando a personalidade e o caráter de uma cidade.
Essa necessidade de marcar a cidade de forma permanente, seu caráter e
personalidade, de tal maneira que os governos municipais posteriores não pudessem
destruir a obra realizada, e que é preocupação de qualquer político, com óbvio conteúdo
eleitoral, tornou-se uma obsessão para o Governo Guidi, em vista de que catalizava todo
um sentimento social presente na cidade, que se expressava na valorização dos
226
descendentes de correntes imigratórias de fins do século XIX. A fixação de placas e marcos
comemorativos por todo o corpo da cidade é um indício dessa obsessão de demarcar um
território para essa nova forma de ver a cidade e, em decorrência, para o Governo Guidi,
criador da nova cidade. De fato, articulados as festas de responsabilidade dos grupos
étnicos no decorrer do Ano 100, as placas e marcos foram fixados em diferentes lugares da
cidade. Assim, na Praça Nereu Ramos, coração da cidade, foi fixada uma “Placa da
Colonização Italiana”
334
por ocasião da Festa de São José. Também no centro, articulada a
Festa do Divino, foi descerrado um marco que “lembra a presença do elemento luso em
Criciúma”. Na Festa de Santa Bárbara, de responsabilidade do grupo negro, foi descerrada
uma placa que “honra o mineiro que, com suor, contribui para o progresso de Criciúma”.
Em Linha Batista, por ocasião da Festa de São Casimiro, foi fixado o “marco da
colonização polonesa”, onde “foram inscritos os nomes das primeiras famílias que aqui
aportaram e juntando suas forças ao trabalho insano (sic) dos primeiros colonizadores
ajudaram a construir o futuro que vivemos hoje”
335
.
De fato, as representações colocadas em circulação pela Expo 100 e pelas
comemorações do Centenário de Criciúma em 1980 se fixaram no corpo e na alma da
cidade. Os festejos dos aniversários subseqüentes da cidade sempre se remeteram ao Ano
100, considerado ele próprio um marco fundador da nova cidade. Uma matéria publicada
na Tribuna Criciumense de 1982 bem a medida disso
336
. Ainda que seja uma matéria
noticiosa, o jornalista ecoa todo o vocabulário que o Governo Guidi implantou junto com a
nova cidade: identidade cultural, revitalização de pontos de encontro tradicionais, recriação
334
ARNS, Otília (Coordenação Geral). Criciúma 1880 1980 “A Semente Deu Bons Frutos”.
Florianópolis: Governo do Estado de Santa Catarina, 1985, p. 232 e 233.
335
“Etnia Polonesa Foi Homenageada”. Tribuna Criciumense, 08/03/1980, p. 4.
336
“Criciúma Comemorou 102 Anos Neste 6 de Janeiro”. Tribuna Criciumense, 09/01/1982, p. 5.
227
de sentido de comunidade vivido pelos núcleos de imigração, calçadão como território livre
para desfrute dos cidadãos, etc. Também as fotografias sobre a cidade, no período posterior
ao Ano do Centenário, centram-se na Avenida Centenário e no calçadão, em um olhar que
valoriza as obras do Governo Guidi. Esses fatos vão além da confluência de interesses entre
governo e imprensa, tão comum também em Criciúma. Na verdade, foi uma
impossibilidade de dizer e ver a cidade com outras palavras e imagens que não fossem
aquelas criadas pelo Governo Guidi.
Fim de Festa
A finalização do Ano 100 e da festa do Centenário da cidade ocorreu às 20:30 horas
do dia 6 de janeiro de 1981, com a presença de corais e grupos folclóricos, autoridades e
ex-prefeitos, e a população em geral no Parque Centenário, no mesmo conjunto que abrigou
a realização da Expo 100 e a nova sede do poder executivo municipal, quando se realizou
uma cerimônia que incluiu o descerramento da bandeira do Centenário, a inauguração do
Monumento da Colonização e do Memorial da Cidade. Pela manhã, realizou-se culto na
Igreja Evangélica Assembléia de Deus, seguido da inauguração da Praça Maria Rodrigues,
defronte ao templo. As festividades, no entanto, se iniciaram no dia no dia 3 de janeiro de
1981, com um baile de congraçamento das cinco etnias realizado na sede campestre da
Sociedade Recreativa Mampituba. No dia seguinte, 4 de janeiro de 1981, realizou-se uma
missa transmitida pela TV Eldorado, com a presença de representantes dos cinco grupos
étnicos.
228
No programa de encerramento do ano 100, publicado em um folheto impresso
337
, o
ponto alto da festa foi a inauguração do Monumento da Colonização. O Monumento havia
sido objeto de um concurso público cuja comissão julgadora era constituída por Altair
Guidi, prefeito municipal, “Roberto Monteiro, Maria Marlene Milanez Justi (sic), Edison
Paegle Balod, Antônio Jaime Januário, Carlos Ferreira, Eduardo Tasca, Nivaldo Aníbal
Goulart e Inês Furlanetto”
338
. O projeto escolhido, anunciado no primeiro dia do Ano do
Centenário, foi o de Manoel Coelho, mesmo autor do Parque Centenário e das principais
obras arquitetônicas do período Altair Guidi à frente da Prefeitura Municipal, tendo
concorrido com artistas e arquitetos da cidade, tais como João Carlos Mello, Nelson
Gaidzinski, Décio Góes e Norberto Zaniboni.
337
A capa deste folheto possui uma fotografia da maquete do Monumento da Colonização, com a frase
‘A Festa é de Todos’ acima e, na parte inferior, o logotipo da Prefeitura Municipal, com a data ‘Janeiro
– 1981’.Na parte interna há um texto na primeira página e a programação de encerramento do ano de
festejos do centenário, relativa a 3, 4 e 6 de janeiro de 1981. Na última página há a impressão da letra
do Hino do Centenário de Criciúma, com a logomarca do Centenário na parte inferior.CRICIÚMA.
Programação do Encerramento do Centenário.1981.
338
“Comissão Escolheu Monumento ao Centenário”. Jornal do Sul, 06/01/1980, p. 14.
229
Monumento da Colonização (Criciúma/SC)
(Fotografia do Acervo de Manoel Coelho)
A inauguração do Monumento expressa bem os objetivos traçados pelo Governo
Guidi em relação à comemoração do Centenário, de um lado, homenagear os colonizadores
pioneiros, valorizando os grupos étnicos presentes em Criciúma, e de outro comemorar as
obras do governo municipal, que haviam criado uma nova cidade diante dos olhos da
população, na medida em que “uma nova etapa [na vida da cidade] que se expressa no
monumento que está sendo erguido em memória do centenário de uma cidade”
339
,
marcando a passagem de Guidi pela Prefeitura Municipal. Esses objetivos estão expressos
no discurso de Altair Guidi por ocasião da cerimônia de encerramento do Ano 100 no
Parque Centenário.
Sim, meus amigos, tudo o que se possa dizer é vão, diante do
passado que aqui marcamos com este monumento que é a memória
339
“Expo-100: A Mostra do Ano Cem de Criciúma”. Tribuna Criciumense, 30/08/1980, p. 9.
230
da cidade. O dever está cumprido. E é extraordinariamente
gratificante poder concluir esta jornada com a entrega desse
memorial, à posteridade. Que ele seja o símbolo concreto do Ano
Cem que agora termina e não faça apagar a chama que brilha no
coração de cada um.
340
Manter acessa a lembrança das obras de Guidi e das comemorações do Centenário
da cidade, que se confundiam no decorrer dos festejos do Ano 100, evitando o apagamento
de sua passagem pela Prefeitura Municipal, o que poderia ocorrer nos governos municipais
posteriores, parece ter sido uma preocupação fundamental do Governo Guidi.
O Monumento é constituído por cinco colunas de concreto, em tamanhos diferentes.
As medidas de suas colunas que representam as etnias são: 70m,
33m, 25m, 17m e 14m, respectivamente. A parte subterrânea conta
com uma sala de 502 metros quadrados, para guardar e conservar
objetos dos antepassados, e do centenário, relacionados com a
cultura.
341
O material usado para construção foi de 1.500 metros cúbicos de concreto, 90.000
kg de ferro, além de vidro e alumínio. Ainda que integrado a “harmonia do conjunto maior
do Parque Centenário”, o Monumento está localizado no centro dominante do referido
Parque, na verdade seu centro espacial, e é mais alta que as edificações do Parque, a
simbolizar a “homenagem desta geração as que a precederam, uma homenagem que é a
maior e mais alta do que tudo que a rodeia”. Sua forma é conceituada como “simples [na
340
ARNS, Otília (Coordenação Geral). Criciúma 1880 1980 “A Semente Deu Bons Frutos”.
Florianópolis: Governo do Estado de Santa Catarina, 1985, p. 236.
341
“CS Cultural”. Correio do Sudeste, 21/08/1981, p. 2.
231
concepção em forma de mão], despojado [pois desprovido de adereços] e grandioso [por
seu tamanho]”
342
.
As colunas do Monumento foram lidas de maneira diferente pelo autor e pela
cidade. Nas matérias jornalísticas do período, como naquela do Correio do Sudeste citada
anteriormente, as colunas representam as etnias fundadoras da cidade, enquanto que no
texto oficial, publicado nos jornais e nas programações dos festejos, retirado da justificativa
de Manoel Coelho, as colunas representam os dedos de uma mão que brota da terra. Essa
querela aparece no nome do Monumento, oficialmente chamado Monumento da
Colonização, enquanto que a população o denomina Monumento às Etnias.
Entretanto, algumas inscrições oficiais como que deixam escapar a intenção do
Poder Público de identificar as colunas com as etnias, como na inscrição do painel exposto
no Memorial da Cidade, no subsolo do Monumento.
Neste lugar repousa a memória da cidade.
Aqui, as raízes que deram fundamento à nossa comunidade.
Estão simbolizadas nas cinco etnias que formam a base da
Nossa população.
São os cinco mastros que se erguem do fundo da terra para o
Alto, da escuridão para a luz.
E assim esta geração marca, com este memorial, o ANO 100.
Desta cidade que os pioneiros semearam.
É uma homenagem ao passado.
Mas é também o símbolo maior da nossa esperança no futuro.
E a nossa certeza de que vale à pena continuar semeando.
343
342
“Monumento da colonização” (Anúncio da Prefeitura Municipal de Criciúma). Tribuna Criciumense,
06/09/1980, p. 4.
343
ARNS, Otília (Coordenação Geral). Criciúma 1880 1980 “A Semente Deu Bons Frutos”.
Florianópolis: Governo do Estado de Santa Catarina, 1985, p. 236.
232
De qualquer forma, as duas leituras acabam por se cruzar. A forma de mão que se
ergue da terra, como queria o projeto do Monumento, aponta para a obra dos colonizadores
que, com suas próprias mãos, plantaram a cidade que as gerações presentes colhem.
A obra dos colonizadores foi a semeadura de um amanhã melhor,
conquistado com a força de suas próprias mãos. Em meio à
adversidade e a desesperança, essa semente fundou raízes profundas
e ergueu uma cidade sobre o nada, arrancando da terra um
testemunho de luta, de perseverança e de grandeza.
344
O falar em plantar e colher, mãos e terra, e os próprios colonizadores, lembra o
trabalho agrícola, principal atividade do núcleo colonial, expresso também na representação
de que o Monumento em forma de mão representa a vitória humana sobre a natureza (“É a
afirmação do homem sobre o meio”). Entretanto, também o uso da expressão “do fundo da
terra” , como na frase “do fundo da terra brotou um novo tempo”, lembra a atividade
carbonífera e a importância do carvão no desenvolvimento da cidade, mais explícita na
frase seguinte, “do fundo da terra, somando e integrando seu trabalho, cinco etnias
extraíram a energia que as impulsionou para frente e para cima, etapa após etapa”. As
atividades econômicas são explicitamente nomeadas, quando se diz que o fruto que se fez
maduro, brotado do fundo da terra, chegou ao Ano do Centenário “com a agricultura, com o
carvão, com a indústria”. O Monumento buscava integrar agricultura, carvão e indústria em
sua forma, etnias e populações carboníferas, numa espécie de síntese identitária que
buscava afirmar a superioridade da identidade étnica, sem, no entanto, desconsiderar os
esquemas identitários anteriores, em especial o imaginário do carvão
345
. Essa posição em
344
Ibid.
345
Essa concepção também se expressa, quase com o mesmo texto, na Oração de Graças constante da
programação de encerramento do Centenário, quando se refere ao Monumento: “Olhamos este monumento,
233
relação a atividade carbonífera, um imaginário poderoso na cidade naquele momento, se
expressou também na logomarca adotada para o Ano do Centenário. A logomarca do
Centenário possui a palavra ‘Criciúma’ grafada na terça parte superior do material, com o
termo ‘Ano 100’ na parte central, em fundo azul. No terço inferior do material está grafado
o lema do Centenário, “A semente deu bons frutos”. Interessante de se observar na
logomarca é a presença de um capacete com lanterna, utilizado pelo trabalhador mineiro. O
objeto remete imediatamente a cultura do carvão e parece expressar, de um lado, a força
que o imaginário do carvão ainda possui na cidade, bem como a identidade urbana ainda
estabelecida a partir da economia mineira. Por outro lado, também pode significar uma
estratégia discursiva que, assimilando em parte ummbolo que remete a identidade urbana
anterior, acaba por fortalecer a nova identidade urbana que se está expondo. O objeto
símbolo, por ser conhecido da população, acabaria por facilitar o trânsito de outros
símbolos e representações que as festividades do Centenário colocavam em movimento.
Assim sendo, compreende-se que o símbolo maior do trabalho mineiro estivesse integrado
a logomarca do Centenário.
Senhor/ e reconhecemos que do fundo da terra brotou um novo tempo/ somando e integrando o seu trabalho
cinco etnias/ extraíram a energia que as impulsionou para frente e para cima/ etapa após etapa. Do fundo da
terra brotou um dia o fruto/ que um dia se fez maduro e chegou, Senhor, o Ano 100/ com a agricultura, com o
carvão e com a indústria”. Ibid., p. 235.
234
Logomarca do Ano do Centenário (1980)
A identificação popular das colunas do
Monumento com as etnias, no entanto, colocava
um problema, que era aquele de relacionar cada
coluna com cada etnia nela representada. Muito
rapidamente a população identificou as colunas
maiores com os grupos étnicos pertencentes as
correntes imigratórias mais recentes, os imigrantes
italianos, alemães e poloneses, criando uma
espécie de hierarquia na contribuição das etnias à
formação da cidade. Se o novo esquema
identitário centrado na etnicidade buscava integrar
toda a população da cidade, o que era necessário
para seu efetivo funcionamento, as representações
postas em circulação pelo Centenário criavam
uma hierarquia da contribuição de cada grupo,
afirmando uma supremacia da etnia italiana,
representada pela maior coluna do Monumento,
desproporcionalmente maior que as demais, ainda
que isso fosse oficialmente negado. Na nova
identidade urbana valorizadora da etnicidade
havia lugar para todos. Entretanto, os melhores
235
lugares eram reservados para um grupo bem
específico de pessoas.
Este mal-estar se expressou em diferentes
ocasiões da Festa do Centenário e ainda paira
sobre as cabeças dos habitantes da cidade. Em seu
discurso na inauguração do Museu da
Colonização Augusto Casagrande, Joacy
Casagrande Paulo, doador da edificação e neto de
Augusto Casagrande, precisou ressalvar a
homenagem que se fazia a todos os grupos
étnicos.
Gostaríamos de enfatizar e deixar bem explícito a todos que esse
Museu da Colonização Augusto Casagrande não procura somente
enaltecer a raça italiana, mas, pelo contrário, procura exaltar todos os
cinco grupos étnicos representados pelos italianos, poloneses,
alemães e negros (sic), que irmanados constituíram-se no
sustentáculo e no alicerce do nosso desenvolvimento e progresso.
346
A necessidade de ressalvar a participação de outros grupos não era desmedida. Tudo
no museu apontava para a valorização dos imigrantes italianos e seus descendentes, a
começar pelo seu nome. As famílias homenageadas na oportunidade, Sônego, Darós e
Zanette, e as peças postas em exposição, pertencentes às famílias de imigrantes e
descendentes de italianos
347
, demonstrava que a colonização da cidade era lida a partir
desse grupo.
Na verdade, a leitura popular do Monumento da Colonização, que hierarquiza as
etnias, havia sido estimulada pela própria forma como a história oficial e o poder público
346
“Inaugurado o Museu Augusto Casagrande”. Tribuna Criciumense, 10/01/1980, p. 8.
347
ARNS, Otília (Coordenação Geral). Criciúma 1880 1980 “A Semente Deu Bons Frutos”.
Florianópolis: Governo do Estado de Santa Catarina, 1985, p. 231 e 232.
236
vinham tratando da formação da cidade. Desde a proposta de José Pimentel em 1955 para
se construir um Monumento em homenagem aos imigrantes
348
até às portas do Centenário,
os grupos étnicos reconhecidos eram aqueles constituídos pelos italianos, alemães e
poloneses, nesta ordem. Para as comemorações do Centenário, foram acrescentados os
negros e portugueses, com o objetivo de contemplar também as populações que migraram
para a cidade durante o ciclo do carvão
349
, os chamados “brasileiros”. Durante as
comemorações do Centenário, as apresentações seguiam essa ordem, com pequenas
exceções: Italianos, alemães, poloneses, negros e portugueses, algumas vezes variando a
ordem dos grupos, mas sempre com o grupo italiano em primeiro lugar. No fim das contas,
a leitura popular do Monumento da Colonização e da identidade urbana que ele expressa é
extremamente sóbria e convincente.
Na noite de 6 de janeiro de 1981 as autoridades e a população reuniram-se no
Parque Centenário para a cerimônia final dos festejos do Centenário, debaixo de uma chuva
torrencial. A bandeira do Centenário foi descerrada e o povo cantou o Hino do Centenário
para encerrar o Ano 100 de Criciúma
350
. As comemorações haviam findado, porém uma
nova identidade urbana havia sido afirmada para a cidade e que a marcaria desde então,
ainda que com fraturas.
348
“Monumento ao Imigrante” (José Pimentel). Tribuna Criciumense, 01 de Agosto de 1955, p. 1 e 4.
349
“A história dos negros, assim como dos portugueses, no município de Criciúma, não pode ser dissociada
do início das atividades extrativas do carvão mineral, abundante no sub-solo, e de alta qualidade”. “A
Contribuição Luso-Africana”. Jornal do Sul, 06/01/1980, p. 8.
350
ARNS, Otília (Coordenação Geral). Criciúma 1880 1980 “A Semente Deu Bons Frutos”.
Florianópolis: Governo do Estado de Santa Catarina, 1985, p. 235.
CONCLUSÃO
Alain Musset trabalhou com as cidades nômades da América Espanhola no período
colonial, que eram deslocadas em vista do esgotamento de suas atividades econômicas
351
. O
deslocamento colocava inúmeros problemas, para além do econômico. Como símbolo do
poder civil e religioso, as cidades possuíam determinadas prerrogativas, dadas pela
representação que tinham e que os moradores não queriam perder. Musset narra a luta que
as cidades mudadas levavam a cabo para manter seu nome, apesar da transferência de lugar.
O trabalho que concluímos narra os deslocamentos produzidos no nome da cidade, criando
novas representações e prerrogativas, ainda que a cidade mesma continuasse no mesmo
lugar.
As identidades urbanas construídas para Criciúma no período que tratamos neste
trabalho se fizeram valorizando determinadas características apresentadas de forma positiva
e que esconderam ou desconsideraram outras possibilidades de pertencimento. A cidade
carbonífera fundou-se na mitologia do progresso e na contribuição que Criciúma dava ao
desenvolvimento do país, valorizando os trabalhadores mineiros e o espírito empreendedor
dos empresários do carvão, destacando o crescimento urbano e a circulação de riquezas, em
uma operação que desvalorizava outras atividades econômicas, como a agricultura, e outros
grupos sociais que tinham na sua origem as imigrações mais recentes, desconsiderando o
preço humano e social da atividade carbonífera. A cidade étnica, por seu lado, foi
construída a partir da mitologia da união dos povos fundadores da cidade, valorizando
351
MUSSET, Alain. Villes Nomades du Nouveau Monde. Paris: Editions de L’Ehess, 2002.
227
grupos sociais que tinham na etnicidade o seu ponto de contato com o mundo, maquiando a
presença do carvão na paisagem urbana e desvalorizando as populações que tiveram na
atividade carbonífera o ponto de inflexão de sua memória e cultura. A invenção de uma
determinada cidade no imaginário urbano se fez como tentativa de unificar as culturas e
histórias presentes na cidade vivida, geradora de representações que não se adequavam à
cidade carbonífera ou à cidade étnica. Como operação de construção de uma
homogeneidade cultural surpreendemos a identidade urbana construída como violência
simbólica que determina graus diversos de pertencimento a mesma cidade.
Ainda que no senso comum se possa perceber a identidade como o contrário da
diferença, percebemos que, na verdade, para que a identidade se estabeleça é necessário que
ela o faça a partir de uma noção que valorize a existência do diferente. Enquanto relação
entre grupos sociais e culturais, a identidade pressupõe um sistema classificatório que opere
distinções em uma determinada população de tal forma que possa dividi-la e, nesta
operação, valorizar determinados grupos em detrimento de outros. Enquanto sistemática de
divisão e classificação do conjunto de habitantes da cidade, surpreendemos a identidade
urbana como hierarquia que se afirma sobre a valorização de uma cidade em detrimento de
outras. Na medida em que as operações de atribuição identitária funcionam a partir da
oposição à outra identidade ou da reivindicação de alguma identidade autêntica, que
permaneceu igual ao longo do tempo, é possível notar que em Criciúma, especialmente em
relação à cidade étnica, as duas operações foram concomitantemente postas em
funcionamento, ainda que a primeira tenha sido disfarçada. A cidade étnica afirmou-se na
oposição não confessada à atividade carbonífera e as culturas que a partir dela foram
construídas.
228
A afirmação de uma determinada identidade urbana, em detrimento de outras,
pressupõe a autenticação dessa identidade em um imaginário que possua verossimilhança
com o real e que tenha condições de fornecer a base para um efetivo sentimento de
pertencimento. Se a cidade carbonífera buscou no progresso esse elemento autenticador, a
cidade étnica encontrou na história, dada o seu apelo às origens, o universo a partir do qual
buscou as representações que permitiram a sua afirmação no conjunto da população urbana.
Foi possível perceber a importância que tiveram os relatos de fundação da cidade pelos
grupos étnicos e o destaque de determinados homens cujas atividades foram encaradas
como heróicas. Desde os relatos jornalísticos sobre a história de Criciúma, as obras
historiográficas da cada de 1970, criando um passado de feitos gloriosos para a cidade
imaginária que se construía, culminando nas comemorações festivas, percebemos que a
identidade urbana é uma operação que lida com o presente da cidade a partir de uma leitura
interessada de seu passado. Na condição de passado autêntico e verdadeiro, surpreendemos
a identidade urbana como memória oficial validando a identidade reivindicada. Não que a
identidade urbana não tenha um passado, mas ao afirma-la, esse passado sofre uma
mutação adequando-se a operação que a cria.
O passado e a identidade urbana afirmada valorizam determinados grupos sociais
que os utilizam em seus posicionamentos na cidade. A construção da identidade urbana é
simbólica, mas tem seus pés assentados sobre o terreno do social, impulsionando
representações que significam também vantagens políticas e materiais na sociedade urbana.
A presença dos governos municipais, em especial o Governo Guidi, promovendo
intervenções urbanas, editando livros, erguendo monumentos e realizando festividades
revela que a atribuição de identidade à cidade não é uma operação destituída de interesses
materiais e políticos. Enquanto objeto de ação de governos e lutas de representações
229
levadas a cabo por grupos sociais presentes na urbe, surpreendemos a construção da
identidade urbana como um exercício de poder que se funda na fixação de um nome para a
cidade, ainda que ela mesma possua também outros.
Alain Musset pergunta, em seu trabalho, se a cidade possuiria uma alma. Sim,
responderíamos, desde que se considere que essa alma possui alguns duplos ou que, ao
menos, ela se encontre cindida.
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6 – Biblioteca da UNESC
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Quem (Revista), 1982.
233
8 – Acervo Particular de Manoel Coelho
Discurso de Altair Guidi por ocasião da visita do cônsul italiano a Criciúma, em 20 de
maio de 1978.
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9 – Acervo Particular do Autor
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