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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Kenia Peres
Estudos sobre a Psicopatia
MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA
SÃO PAULO
2008
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Kenia Peres
Estudos sobre a Psicopatia
MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA
Dissertação apresentada à Banca examinadora como exigência
parcial para a obtenção do título de MESTRE em Psicologia Clínica
– Núcleo de Método Psicanalítico e Formações da Cultura pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob orientação do
Prof. Doutor Renato Mezan.
SÃO PAULO
2008
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ESTUDOS SOBRE A PSICOPATIA
Kenia Peres
Banca Examinadora
____________________________________
____________________________________
____________________________________
São Paulo, ____ de _________ de 2008.
Dedico esse trabalho
Aos meus pais.
Ao Agenor e amigos que sempre presentes, tornam minha
vida muito mais feliz.
Agradeço
Primeiro ao meu orientador Prof. Dr. Renato Mezan, pela paciência, dedicação e
sabedoria com que conduziu esse trabalho.
Aos meus pais, pelo amor incondicional, por facilitarem meu caminho e pela torcida
tão amorosa pelo sucesso de mais essa aventura.
Ao Agenor Carvalho, fonte de estímulo e amor.
Aos meus preciosos e queridos amigos, que estiveram próximos nesse período
alegrando meus dias. Especialmente agradeço a Dora Ostronoff, Gabriela Dias Pires, Gláucia
Lespinasse, Lidiane Lemos e Mariana Cintra.
Agradeço especialmente a Sandra Regina Macedo - amiga de conversas
intermináveis, que mais uma vez pude contar com o pleno apoio e confiança.
E, finalmente ao CNPQ, pelo apoio para a realização dessa dissertação.
Quando uma ciência progride rapidamente, idéias que a
princípio foram expressas por indivíduos isolados logo se
tornam de domínio público. Assim, ninguém que hoje procure
expor concepções sobre a histeria e, seu fundamento psíquico
pode evitar expressar e repetir uma porção de idéias de
outros, idéias que deixaram de ser patrimônio pessoal para
passar ao patrimônio público. É quase impossível citar
sempre quem as expressou pela primeira vez, e, além disso,
corre-se o risco de imaginar ser produção própria aquilo que
foi dito por outros. Assim, peço que desculpem se aqui houver
poucas citações e se não for rigorosamente diferenciado o que
é meu e de outros. Pouco do que será dito nas próximas
páginas pode ter pretensões de originalidade.
Estudos sobre a Histeria
J. Breuer e S. Freud (1895)
RESUMO
PERES, Kenia. Estudos sobre a Psicopatia. 2008. 150 páginas. Dissertação – Mestrado em
Psicologia Clínica – Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica, Núcleo de método
psicanalítico e formação da cultura, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-
SP, São Paulo, 2008.
Esta dissertação é resultado de extensa pesquisa sobre a psicopatia, fenômeno
psicopatológico tão recorrente no cotidiano social, porém pouco explorado, talvez pela
indiscutível dificuldade técnica no manejo desses pacientes. O interesse em compreender o
psicodinamismo desses indivíduos caminha paralelamente ao meu desenvolvimento
profissional, tanto como pesquisadora como psicóloga clínica. Neste trabalho, utilizei além
da pesquisa bibliográfica da teoria psicanalítica sobre o tema, estudos de casos reais e
cinematográficos, a fim de enriquecer tal investigação. A finalidade deste estudo é além do
exercício do pensamento clínico para a compreensão do indivíduo psicopático, criar
subsídios para o desenvolvimento do manejo clínico desses pacientes e, conseqüentemente
diminuir o sofrimento psíquico dos mesmos, daqueles que o cercam e de toda sociedade. A
metodologia de trabalho é a psicanálise, enquanto teoria do psiquismo, método de
investigação do inconsciente e técnica terapêutica.
Palavras-chave: psicopatia, psicopatologia, crime.
ABSTRACT
PERES, Kenia. Study about psychopathy. 2008. 150 páginas. Dissertação – Mestrado em
Psicologia Clínica – Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica, Núcleo de método
psicanalítico e formação da cultura, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-
SP, São Paulo, 2008.
This thesis is the result of the extensive research in psychopath, a psychopathologic
phenomenon so common in our society nowadays; however, it’s very little explored, maybe
because of the difficult technique in handling with these patients. The interest in
understanding the psychodynamics of these people matches my Professional development,
as a researcher and as a psychologist. In this work I have used, besides the bibliography
research of the psychoanalytic theory about the issue, studies of real cases and more stores
with the intention of enrich such investigation. The objective of this study is besides of the
thinking exercise to understand the psychopathic person, to create resources to develop ways
to handle with these patients and, consequently diminish the psychic suffering of them, of
the ones who are near them and all society. The methodology used in this work is
psychoanalysis, as a theory of the psyche, investigative method of the unconscious and
therapeutic technique.
Key-words: psychopath, psychopathology, crime.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11
CAPÍTULO I – CONSIDERAÇÕES SOBRE A HISTÓRIA DA DOENÇA
MENTAL
Primeiras idéias sobre doença mental ......................................................................... 17
A. Hipócrates e a origem do organicismo ................................................................ 18
B. A loucura da Idade Média à compreensão médica ............................................ 19
C. Philippe Pinel e o Tratamento Moral da doença mental ................................... 23
D. Idealistas versus organicistas ............................................................................... 26
CAPÍTULO II – PSICOPATIA: NOÇÕES GERAIS
1. Dados históricos sobre psicopatia ......................................................................... 34
2. Classificação segundo a psiquiatria ...................................................................... 42
3.
Psicopatia como fenômeno clínico e psicopatológico ........................................ 47
A. Aspectos gerais ...................................................................................................... 47
B. Questionamentos sobre moralidade e consciência moral ................................. 50
C. Criminoso neurótico e psicopatia ........................................................................ 58
D. Psicodinâmica da psicopatia ................................................................................. 70
E. Breve relato da visão de outros autores sobre a psicopatia .............................. 81
4.
Psicopatia e crime ..................................................................................................... 83
CAPÍTULO III – PSICOPATIA E NOÇÕES CORRELATAS
1. A problemática do superego ................................................................................... 90
2.
Psicopatia e perversão ............................................................................................. 97
3.
Psicopatia e sadismo ............................................................................................... 101
4.
Criminologia ............................................................................................................ 104
CAPÍTULO IV – ESTUDOS DE CASO
1.
Primeira abordagem – alguns dados .................................................................. 110
2. Casos clínicos ........................................................................................................... 111
A. Cecília .................................................................................................................... 114
B. Bárbara .................................................................................................................. 122
3.
Psicopatas no cinema ............................................................................................. 128
A. Hannibal Lecter .................................................................................................... 130
B. Frank Abnagale .................................................................................................... 136
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 142
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 149
INTRODUÇÃO
O assunto da psicanálise é o ser humano, e este não consiste apenas
na “realidade psíquica”: habita um corpo, vive em sociedade, adota
costumes e crenças, produz obras de arte, lida com os outros e por
vezes os maltrata. A psicanálise não pode nem pretende dar conta da
totalidade dos fenômenos humanos, mas tem sua palavra a dizer
sobre muitos deles, graças a um sistema conceitual extremamente
sofisticado e a um método de interpretação cuja flexibilidade e
sutileza não cessam de surpreender.
Renato Mezan
Este trabalho consiste no estudo da psicopatia enquanto fenômeno psicopatológico,
está fundamentado no referencial psicanalítico e privilegia as leituras de Sigmund Freud e
Otto Kernberg a respeito da complexidade da constituição psíquica e dos determinantes do
comportamento destes indivíduos. Para isso, utilizei casos reais de pacientes atendidos em
uma instituição jurídico-psiquiátrica e de casos da ficção, mais especificamente de dois
personagens do cinema: Hannibal Lecter (Hannibal, a origem do mal, direção de Peter
Webber, O silêncio dos inocentes, filme de Jonathan Demme, Hannibal, direção de Ridley
Scot – todos baseados na obra literária de Thomas Harris) e Frank Abnagale (Prenda-me se
for capaz, filme de Steven Spielberg).
11
Inicio este trabalho com a apresentação da história da doença mental e, por
conseguinte, já no capítulo II, a história da construção do conceito de psicopatia enquanto
psicopatologia e sua relação com o comportamento criminoso, a forma como a psicopatia é
entendida pela psiquiatria e talvez o mais importante para esse trabalho: a psicopatia
enquanto fenômeno clínico e psicopatológico. No capítulo III, discorro sobre alguns
conceitos que têm correlação com a psicopatia. Por fim, no capítulo IV os estudos de casos,
primeiro os casos reais de duas mulheres internadas em um Hospital de Custódia e depois os
dois personagens fictícios.
As motivações para a investigação da psicopatia se desdobram no interesse em
compreender o que leva um indivíduo a transgredir normas sociais, que muitas vezes
atentam contra a vida de outro ser humano. Esse já é um tema que investigo há algum tempo,
desde a primeira pesquisa desenvolvida ainda na graduação, que tratava da análise de um
sujeito envolvido em vários crimes, inclusive um homicídio. O objetivo inicial era investigar
as diferenças psíquicas que tal sujeito apresentaria em relação ao que é considerado normal.
Para isso, foram utilizados além de entrevistas, testes psicológicos (inteligência,
personalidade e projetivos gráficos). Apesar das expectativas iniciais, o resultado da
investigação demonstrou que o sujeito se encaixava dentro dos padrões de normalidade
sugeridos pelos testes. Ou seja, a despeito da sintomatologia que levava à hipótese da
psicopatia, esta não foi facilmente identificada, e que o sujeito poderia ser considerado
normal.
Logo após, durante dois anos, trabalhei como psicóloga aprimoranda em um Hospital
de Custódia, no qual a aproximação da loucura com o crime era uma experiência cotidiana.
O interesse em continuar estudando este tema permaneceu no mestrado, porém como projeto
inicial, minha intenção era pesquisar a constituição da moralidade. Após um caminho
tortuoso, resolvi retornar ao estudo da psicopatia e investigar a estruturação de tal
12
psicopatologia, através da teoria psicanalítica. Portanto, o interesse dessa pesquisa é estudar
a psicodinâmica da psicopatia, como é o funcionamento psíquico do indivíduo que possui tal
estruturação, sempre incluindo a psicopatia como uma doença mental causadora de
sofrimento para aquele que a possui e para os que o cercam.
O que torna esse trabalho interessante é a relação direta do indivíduo com a
sociedade, uma vez que os sintomas psicopatológicos estão relacionados com os contatos
sociais que a pessoa estabelece - a ação dele no mundo - com o destino que dá a seus desejos
e pulsões.
A questão da harmonia entre pulsão e civilização é um dos impasses trazidos pela
modernidade para o sujeito. Como se sabe, ao desenvolvimento da capacidade social de
produção corresponde o aumento das demandas materiais e das potencialidades individuais
de saciá-las. Ao contrário de sua crença inicial, quando considerou viável a satisfação plena
da vontade, Freud se inclinou, a partir do período entre guerras, pela impossibilidade da
plenitude da felicidade humana. Refletindo sobre o processo civilizatório, concluiu não
haver experiência humana possível sem o mal-estar,
1
à medida que o homem está
inexoravelmente compelido a aceitar os limites encontrados no caminho da auto-realização,
em permanente luta contra si mesmo, os outros e a natureza. Quando Freud analisa as razões
do sofrimento humano, aparece o famoso paradoxo: é a cultura responsável por nossa
desgraça e infelicidade. O esforço realizado pelo homem, no afã de tornar possível a vida em
sociedade, representa um enorme entrave para a felicidade. E é justamente nossa cultura que
nos leva a desenvolver as técnicas de suplantação do sofrimento, através da arte, da ciência,
1
Joel Birman avalia que esse mal-estar é característica e conseqüência da modernidade, inaugurada com a
Revolução Francesa, por força da queda do Legislador que havia no Antigo Regime e que dava forma a uma
organização política, absolutista monárquica de paz e teológica. A morte da tradição teológico-política, e, no
seu lugar, o surgimento da soberania popular e do Estado-Nação, vão organizar um mundo onde haveria uma
espécie de passe permanente para a subjetividade e o natural desenvolvimento das técnicas de repartição e
gerência do gozo dentro do espaço social (palestra na ALERJ, em 17.8.2001, disponível em
http://www.alerj.rj.gov.br/). Acessado em 03 de janeiro de 2008.
13
do trabalho, a fim de minimizar os conflitos gerados pelo princípio do prazer em permanente
oposição ao princípio da realidade.
O discurso freudiano enunciou os conceitos básicos para pensar a relação do sujeito
com a lei, consistente na regulação das demandas de desejo e satisfação. É o superego a
instância psíquica que condensaria o conjunto dos interditos a serem observados, enquanto
que o ideal do ego materializaria o conjunto de regras que delimitam a ordem do permitido.
O viés psicanalítico tem muito que esclarecer acerca do Direito, essa ciência de
regência e controle do gênero humano. Buscar a realidade obscurecida por trás do texto da
lei pode ser tarefa semelhante à técnica analítica que examina com minúcias o texto do
paciente a ser decodificado para descobrir a verdade que se esconde por trás das trincheiras
da inconsciência. Como explica Mezan sobre a difícil tarefa de exercer a psicanálise
aplicada, que abre a possibilidade de compreender como se estruturam certos modos de agir,
pensar e sentir e, dessa maneira:
[...] Não se trata de rotular este de obsessivo ou aquele de psicopata, mas
sim de percorrer os dados disponíveis e deles inferir o jogo de forças que,
plausivelmente, origina um comportamento ou uma obra. Este exercício é
antes de mais nada útil para o psicanalista, que assim se aperfeiçoa no
manejo dos seus próprios instrumentos; também pode servir ao aprendiz de
psicanálise – e quem não o é? – mostrando, com clareza que me foi
possível, como funciona o raciocínio analítico e o que ele pode (ou não)
esclarecer.
2
Sandor Ferenczi já destacava a influência da psicanálise no Direito, esse conjunto de
regras a que se submetem os indivíduos para se adequarem à vida em sociedade, num
evidente processo psíquico de adaptação.
3
Àqueles que violam tais regras se reserva à
punição, capaz de aplacar a revolta dos demais, e o seu desejo de vingança diante do culpado
que ousou traduzir em ato o descontrole que existe em estado latente nos outros indivíduos.
2
MEZAN, R. Tempo de muda: ensaios de psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
3
FERENCZI, S. Importância da psicanálise na justiça e na sociedade. Obras Completas, vol. II. Rio de
Janeiro: Martins Fontes, 1992.
14
Em relação à utilização da psicanálise enquanto método de investigação, o caráter
científico da psicanálise
4
foi atestado por Althusser em Freud e Lacan, texto publicado pela
primeira vez em 1965:
Resumamos, pois, esse objeto que é para nós Freud: 1. Uma prática (a cura
analítica). 2. Uma técnica (o método da cura) que dá lugar a uma exposição
abstrata, de aspecto teórico. 3. Uma teoria que está em relação com a prática
e com a técnica. Este conjunto orgânico prático [1], técnico [2], teórico [3]
lembra-nos a estrutura de toda disciplina científica. Formalmente, o que
Freud nos dá possui, na verdade, a estrutura de uma ciência.
5
Para a prática e a técnica analítica (o método analítico) terem autenticidade, haveriam
que estar fundados sobre uma teoria científica, cujo objeto é o inconsciente, aquilo de que a
técnica analítica deve se ocupar na prática da análise. Coube a Lacan, ao ler Freud, enxergar
o laço da psicanálise com a ciência. Trata-se de um conhecimento sui generis,
inclassificável, estando o seu objeto – o inconsciente – fora do campo do cálculo. Apresenta-
se, enfim, como uma práxis, a saber, a experiência da cura analítica, que é um evento
singular.
Com a teoria psicanalítica e o estudo do inconsciente, descoberto e vivenciado em
sua prática clínica, Freud inaugurou um saber e tratou de edificar o espaço teórico desse
objeto. A princípio sem se dar conta disso, tocou em um ponto essencial da ideologia
estabelecida e desafiou o ideal iluminista do homem como sujeito, cuja unidade está
respaldada pela consciência.
6
A ferida narcísica aberta pela noção de inconsciente e o
descentramento do eu produziu notável insegurança para o indivíduo, por lhe ter subtraído o
suposto domínio sobre as suas ações.
7
A partir daí, entra em incômoda evidência uma
4
BIRMAN, J. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003.
5
ALTHUSSER, L. Freud e Lacan, Marx e Freud. Rio de Janeiro: Graal, 2000, p.53.
6
Idem.
7
Joel Birman, apud CARVALHO, S. de. Observações sobre as (dis) funções do controle penal na sociedade
contemporânea. In: MENEGAT, M.; NERI, R. (Org.). Criminologia e subjetividade. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2005.
15
vontade de ignorar no lugar da secular vontade de saber. É desconcertante a descoberta que
desafia o controle do pensamento, no sentido do discurso do sujeito dizer mais do que sabe
que diz.
8
Segundo Mezan a psicanálise é essencialmente uma prática clínica, fundada sobre
uma teoria que se pretende consistente
9
, mas não uma verdade absoluta e, talvez seja melhor
termos em mente que não há verdade absoluta, que ela é relativa ao tempo e àquele que se
refere – e pode ser vista pelo viés psicanalítico quanto por qualquer outro viés.
Para encerrar esta seção introdutória espero que este trabalho possa iluminar esse
recôndito do saber sobre o sofrimento humano e incentivar outros trabalhos a respeito deste
tema. Assim, recorro a Mezan que afirma que a psicanálise, que tanto contribuiu para dar sua
feição ao nosso século, continua a ser o que sempre foi: uma exploração audaciosa dos
recessos e dos mecanismos da mente humana. Ela reconhece o poder das paixões, mas
acredita que o conhecimento de si, adquirido pela experiência do contato com o outro nas
condições específicas da situação analítica, seja capaz de as colocar a serviço da liberdade
interna – e da diminuição dos sofrimentos inúteis que tão bem sabemos nos impor.
10
8
KOZICKI, E. De la dimension jurídica de la vida. In: MARÍ, E. (et al). Derecho y Psicoanálisis: teoría de las
ficciones y función dogmática. Buenos Aires: Edicial, 1994.
9
MEZAN, R. Ibidem, p. 11.
10
Idem, p. 12.
16
CAPÍTULO I - CONSIDERAÇÕES SOBRE A HISTÓRIA DA DOENÇA
MENTAL
O abismo da loucura em que estão mergulhados os homens é tal que
a aparência de verdade que nele se encontra é simultaneamente sua
rigorosa contradição.
Michel Foucault
PRIMEIRAS IDÉIAS SOBRE DOENÇA MENTAL
A consciência que o homem tem da existência da doença mental e seus esforços para
descrevê-la e entendê-la possui longa história. A literatura da civilização ocidental apresenta
vários exemplos dessa preocupação. Das tragédias gregas à loucura do Rei Lear, e o ritual
compulsivo de lavagens das mãos de Lady Macbeth, tudo isso exemplifica o interesse pela
psicopatologia.
O modelo mais antigo sobre o conceito de saúde e doença tem origem no pensamento
pré-lógico e mágico do homem primitivo. Nessa perspectiva, explica-se a doença da mesma
maneira que se explica tudo o que existe no mundo, de forma sobrenatural. Portanto, as
primeiras tentativas do homem para entender as doenças surgiram através de explicações
17
mágico-religiosas, sendo as causas atribuídas a outros seres humanos ou fenômenos
sobrenaturais, em atitude animista.
11
A. Hipócrates e a origem do organicismo
As primeiras descrições da personalidade humana podem ser encontradas nos textos
científicos das civilizações clássicas, nos quais o comportamento inadequado ou anômalo foi
estudado e, em alguns casos, descrito ou explicado com grande perspicácia. Hipócrates (460-
377 a.C.) acreditava – contra a idéia então aceita, de que a interferência dos deuses era a
causa do comportamento anormal – que a doença mental resultava de causas naturais,
reconhecendo a existência de processos orgânicos na gênese da loucura; por exemplo,
admitia que a patologia cerebral era uma conseqüência de lesões cerebrais ou da
hereditariedade. Baseado na observação clínica objetiva, Hipócrates propôs um sistema de
classificação para os distúrbios mentais. Classificou os distúrbios mentais em três categorias
gerais – mania, melancolia e frenite
12
– e sugeriu, para esses distúrbios, tratamentos muito
avançados para afastar os males que perturbavam esse indivíduo. A unidade do cérebro era
fundamental para a saúde mental, idéia que estabelece o princípio do organicismo que seria
retomado muitos séculos depois, com o surgimento da psiquiatria.
13
11
O animismo baseia-se na tentativa do homem em dominar a interferência que os fenômenos e forças da
natureza exercem sobre os assuntos humanos. Para o antropólogo inglês Edward B. Tylor (1832 – 1917), o
animismo é o primeiro grande passo evolutivo do pensamento religioso. Ainda, segundo o Dicionário da
Língua Portuguesa Larousse Cultural, o termo animismo designa a crença que atribui uma alma a todos os
fenômenos naturais. Refere-se à concepção filosófica que atribui a todos os seres do universo uma alma
análoga à alma humana.
12
A frenite (phrenîtis) é uma enfermidade bem descrita pelos médicos da Grécia antiga. Ela se localiza nas
phrénes, isso é, no diafragma, e consiste numa alienação mental acompanhada de febre. Essa descrição sucinta
é posterior aos tratados hipocráticos. Os que sofrem sob a ação da frenite parecem, sobretudo com os
melancólicos, graças ao delírio (paranóia). Isso porque, nos melancólicos, quando o sangue é perturbado pela
bile e pelo fleuma, a doença prevalece e eles tornam-se delirantes (paránooi); alguns se tornam maníacos
(máinontai), e o mesmo se passa na frenite. Assim, a mania e a alienação (paraphrónesis) diminuem à medida
que a bile se torna mais fraca.
13
BUTCHER, J.N. Psicologia do anormal. São Paulo: Cultrix, 1986.
18
Depois de Hipócrates, o médico grego Asclepiades Betiniensis manteve a mesma
conduta organicista e, mais tarde o médico romano Celsius (42 a.C. - 37 d.C.) ratificou tal
posição. O grande nome após Celsius é Areteu da Capadócia (século II-III d.C.), que
inaugurou a balneoterapia, terapia pelas águas e banhos, por suas conseqüências benéficas
sobre o físico e o mental. Outros contribuíram com suas idéias: Soranus de Éfeso, autor de
De morbis acutis et chronicis, Cláudio Galeno (131-200 d.C.), com seus trabalhos sobre a
phrenitis e o conceito de pneuma - ar, alma -, e ainda Célio Aureliano (metade do século II
d.C.), que reuniu alguns fatores que poderiam causar doenças mentais, como ferimentos na
cabeça, supressão da menstruação, superstição, etc.
14
.
Em caminho contrário ao que aconteceria na Europa ocidental nos próximos séculos,
o médico árabe Ali Al-Husayn Ibn Sina (980-1037 d.C.), conhecido como Avicena, possuía
uma compreensão equilibrada da loucura e do tratamento humanitário do doente mental,
opondo-se à interpretação demoníaca da enfermidade e às usuais torturas praticadas pelos
seus contemporâneos. Seus trabalhos deram origem à obra Princípios da medicina, com
capítulos sobre mania e melancolia.
B. A loucura da idade média à compreensão médica
Na Idade Média, período histórico conhecido como época da escuridão, cujo centro
do poder político, cultural e religioso se concentrava na Igreja Católica, o modelo
predominante de entendimento da doença mental era o da concepção místico-religiosa,
segundo a qual o comportamento desviante era analisado através das noções de demoníaco,
de feitiçaria e de possessão. A superstição e a preocupação com a bruxaria substituíram as
tentativas científicas para entender a doença mental e o comportamento anormal,
14
PALOMBA, G.A. Tratado de psiquiatria forense – civil e penal. São Paulo: Atheneu, 2003.
19
considerados, portanto, conseqüências de possessões pelos demônios e de artes de feitiçaria;
eram submetidos a um tratamento - para usar o termo em uma acepção muito imprecisa - de
responsabilidade total do clero. No início desse período, as rezas e os rituais eram
empregados para livrar a vítima de seus distúrbios. No fim da Idade Média, as pessoas
possuídas pelo demônio eram mais severamente torturadas, perseguidas e até queimadas
vivas.
O caráter sagrado dado à loucura e o exorcismo tiveram ponto culminante com a
edição do Malleus maleficarum, em 1484, reeditado várias vezes, que se destinava a instruir
os inquisidores e eclesiásticos a identificar casos de possessão demoníaca e a proceder
eficazmente nessas situações.
15
Em 1576, Jerônimo Menghi de Viadana (1529-1609) editou
o Compêndio da arte exorcista, em cujo texto doutrinário explicava metodicamente as
estupendas operações do demônio para dominar a mente humana e os modos de ação
demoníaca sobre o cérebro.
16
A concepção místico-religiosa predominou por cerca de mil e quinhentos anos da era
cristã; porém, à medida que o tempo ia passando, as idéias racionais se desenvolviam,
tomando o lugar do misticismo; ocorreu o primeiro grande embate entre misticismo religioso
e razão; o médico Johann Weyer (1515-1588) foi o responsável por esse marco divisório.
Johann Weyer, holandês, estudou medicina em Paris, tornou-se médico particular do
duque Cléves, que sofria de depressão crônica. Na época, os feiticeiros eram executados na
fogueira, e o duque tinha muitos parentes que haviam ficado mentalmente enfermos e,
durante a insanidade, manifestaram sintomas iguais aos dos feiticeiros condenados. Isso
despertou a atenção do médico que investigou todos os casos notificados de feitiçaria,
acumulou dados e depois de maneira cuidadosa e sistemática, destruiu as acusações com
explicações naturalistas. Durante doze anos, continuou suas pesquisas sobre os abusos que
15
PALOMBA, G.A. Ibidem.
16
PESSOTI, I. (1994). A loucura e as épocas. São Paulo: Editora 34, 1994, p.109.
20
envolveram as identificações de feitiçaria, até que, em 1563, publicou De praestgiis
daemoonum (Da ilusão dos demônios). Na obra, postulava firmemente que as doenças
mentais cuja origem eram atribuídas à feitiçaria provêm de causas naturais. Esse foi o
primeiro trabalho sistemático que refutava, categoricamente, a crença que admite serem os
demônios as causas das enfermidades mentais.
17
Contudo, ainda levou muito tempo para que o movimento renascentista que privilegia
a razão e a ciência fosse amplamente aceito: desde a publicação de Da ilusão dos demônios
(1563), até a execução da última feiticeira (1762), morta na fogueira da Inquisição,
passaram-se duzentos anos.
18
Na Renascença, ocorreu o retorno aos autores clássicos e a busca do pensamento
racional. As primeiras grandes manifestações dessa nova mentalidade foram realizadas por
Copérnico (1473-1543), Paracelso (1493-1541), Kepler (1571-1630) e Galileu (1564-1642),
que revolucionaram a concepção do mundo natural, concebendo de modo totalmente novo as
relações humanas com o mundo ao seu redor, possibilitando ao homem se individualizar
perante o universo. A revolução coperniana fez com que o homem perdesse a sua posição
central, para ser um mero elemento no infinito cósmico.
Nota-se, dessa maneira, uma profunda transformação que ocorreu em meados do
século XVII em relação à tolerância que a sociedade tinha com a loucura:
19
o mundo da
loucura se transformou no mundo da exclusão. [...] antes do século XVIII, a loucura não era
sistematicamente internada, e era essencialmente considerada como uma forma de erro ou
de ilusão.
20
Nesse movimento de produção de conhecimento, as psicologias filosóficas
21
do
século XVII forneceram aos médicos um conhecimento menos fatalista de ser enfermo,
17
PALOMBA, G.A. Ibidem.
18
TOYNBEE, A. A humanidade e a mãe terra, apud PALOMBA, G.A., Ibidem.
19
FOUCAULT, M. (1979) Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
20
FOUCAULT, M (1972). A história da loucura na época clássica. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 70.
21
Termo usado para designar o período em que a psicologia ainda não aparecia como uma ciência
independente e sim uma extensão da filosofia.
21
fazendo declinar o poder da teologia. A partir daí, dogmas religiosos foram se transformando
gradativamente em dogmas da razão. Com a Renascença, a loucura passou a ser vista como
forma relativa à razão. Uma recusa à outra, identificam-se e se isolam mutuamente. Isso foi
possível graças à dialética
22
: tese, antítese e síntese. Dessa forma, só existia a loucura porque
existia a razão, e quem não a possuísse precisaria ser isolado dos ditos normais. Os loucos
eram então, vistos como pessoas perigosas ou improdutivas, tais como os criminosos e
miseráveis que subsistem graças à mendicância; por esta razão deveriam ser excluídos da
sociedade e internados.
23
Assim, foram fundadas na Europa, as Casas de Internamento
24
que, apesar da
expansão dessas instituições e da mudança na concepção das causas da perturbação mental, o
tratamento do indivíduo raramente era um pouco melhor do que em épocas anteriores.
Ocorreu que o doente mental, desprovido de razão, embora não fosse visto como possuído
pelo demônio, não era, entretanto, entendido como doente; mas como devasso, decaído, que
não prestava para nada, motivo pelo qual acabava trancafiado nessas instituições, junto com
prostitutas, doentes venéreos e criminosos comuns. Os loucos passaram de endemoninhados
a degenerados, e eram freqüentemente acorrentados em quartos escuros, espancados e
exibidos em público para serem vistos como espetáculo, a troco de pequena gratificação.
Com o passar do tempo, também foram forçados a trabalhar, pois se eram considerados
22
Segundo Leandro Konder, em seu livro O que é dialética, a dialética era, na Grécia antiga, arte do diálogo.
Aos poucos, passou a ser a arte de, no diálogo, demonstrar uma tese por meio de uma argumentação capaz de
definir e distinguir claramente os conceitos envolvidos na discussão. Na acepção moderna, entretanto, dialética
significa outra coisa: é o modo de pensarmos as contradições da realidade, o modo de compreendemos a
realidade como essencialmente contraditórias em permanente transformação.
23
FOUCAULT, M. (1972) Ibidem.
24
Porém, antes do desenvolvimento do Renascimento criou-se, dentro da Igreja Católica, o primeiro hospício
(de hospitium = hospitalidade, hospedagem), criado em 1409, em Valência, Espanha, pelo Frei Juan Gilbert
Jofré, com a aprovação do rei Martin, o Humano. Embora considerando o mais antigo, no Egito, em 875,
existia um sistema asilar embrionário, que viria a dar origem aos modelos europeus. Ao hospício de Valência
seguiu-se o de Saragoza (1425), Sevilha (1436) e Toledo (1483) (PALOMBA, 2003).
22
decaídos pressupunha-se que fossem preguiçosos, e a melhor forma de condená-los era o
contrário disso: o trabalho duro.
25
Assim, o século XVIII foi marcado pela grande internação, a institucionalização da
loucura.
26
Os novos valores, ligados à mentalidade da era moderna, foram fundamentados no
trabalho e no dinheiro. Estruturaram-se as idéias de que só o trabalho produzia riquezas, e a
loucura passou a ser uma ameaça social e um problema moral; a responsabilidade sobre a
loucura deixou de ser da coletividade caridosa e foi transferida às mãos dos médicos.
C. Philippe Pinel e o Tratamento Moral
27
da doença mental
No final do século XVIII, surge Philippe Pinel (1745-1826), seguido depois por Jean-
Étienne Dominique Esquirol (1772-1840), que criaram a Teoria Moral sobre a loucura. A
reforma dos manicômios, que ocorreu nesse período, foi um passo histórico no tratamento
humanitário do doente mental. O médico francês Pinel, provavelmente com risco da própria
vida, retirou as correntes dos internados e abriu as portas das masmorras. O seu tratamento
do mentalmente enfermo com carinho e consideração teve resultados milagrosos. Pinel e
Esquirol comumente são lembrados como responsáveis pelo desacorrentamento dos loucos e
pelas reformas nos manicômios, que se espalharam pela Europa no início do século XIX.
Contudo, as idéias a respeito da promoção da humanização no tratamento dos considerados
insanos não eram exclusivas de Pinel,
28
porém, havia na sua concepção de loucura a
25
PALOMBA, G. A. Ibidem.
26
Idem.
27
O Tratamento Moral seria uma técnica de intervenção contra a loucura baseada na disciplina, na autoridade
médica, na instituição asilar. A maneira como o Tratamento Moral poderia ser aplicável em outros contextos
ganha sentido se o compreendermos dentro de uma vasta analogia pedagógica.
28
Pouco antes de Pinel pôr em prática suas idéias, Joseph Daquin (1733-1815) escreveu Philosophie de la folie
(1791), no qual recomenda abolição dos grilhões e da reclusão em celas, por ser nocivo aos alienados
(Alexander apud Palomba, 2003), cuja prática aplicou num pequeno hospital de quarenta leitos, em Chambéry,
23
representação da originalidade de seu pensamento. Baseado nas teorias de John Locke
29
(1632-1704) e Étienne Bonnot de Condillac
30
(1715-1780), Pinel concebeu a loucura como
doença moral: não é no órgão que se localiza a origem da maioria das doenças mentais, mas
no desarranjo das impressões sensíveis responsáveis pela produção de idéias e vínculo com a
realidade, o que por si acarreta a ocorrência de comportamentos imorais. Por isso a loucura é
basicamente um erro, e o papel do médico é reconduzir o doente à racionalidade. Como o
desarranjo perceptivo era causado por fortes paixões vividas pelo sujeito, o ambiente do
tratamento e as atividades terapêuticas deveriam ser adequados ao restabelecimento da
racionalidade. Daí a importância de um ambiente calmo e tranqüilo, da ausência de situações
conflituosas e ameaçadoras (o que justificava o isolamento do louco nos manicômios, longe
dos conflitos familiares e sociais), de disciplina para coibir a desordem na relação com o
mundo, de passeios e música para restaurar o contato com a realidade, etc.. Algumas dessas
atividades também seriam prescritas pelos organicistas, mas com outra concepção de doença,
porque esses acreditavam que essas atuariam sobre os órgãos afetados, e por isso,
prescreviam, sob o mesmo princípio, tratamentos físicos de excessiva violência para o
paciente, recusados pelos moralistas justamente por provocarem mais paixões violentas nos
pacientes. É essencial reforçar a importância afetiva da presença do médico no tratamento do
na cidade de Savóia (província no sudeste da França), permitindo aos interessados andar livremente dentro do
pátio do hospital.
29
A idéia para Locke é tudo que o espírito percebe em si mesmo, e que é objeto imediato de percepção e
pensamento. Portanto, essa noção de idéia foi feita e corresponde com a idéia cartesiana. Não tem a ver com a
idéia platônica, que, aliás, John Locke rebateu por ser contrário ao inatismo. A noção de idéia em John Locke
deve ser compreendida como o conteúdo da consciência, o material do conhecimento. Ele foi contra o inatismo
presente em Platão e Descartes, e defendeu a teoria de que o conhecimento deriva da prática. Compara a mente
a uma tábula rasa, uma folha de papel em branco. O intelecto humano não pode formular idéias do nada, nem o
espírito traz em si memórias e conceitos presentes a priori. Para Locke, todos os dados da mente derivam da
experiência. A experiência é a fonte e o limite do intelecto.
30
Condillac foi inicialmente discípulo de Bacon e de Locke, elaborando depois sua própria doutrina, o
sensualismo. No seu Traité des Sensations, de
1754, defende o princípio de que todas as idéias provêm dos
sentidos.
24
indivíduo mentalmente doente, já que se tratava de uma ligação ao mesmo tempo terapêutica
e pedagógica na reordenação das idéias delirantes e do comportamento imoral.
31
Por causa da obra de Pinel na França, de Vicenzo Chiarugi
32
(1759-1820) na Itália, da
família Tuke
33
na Inglaterra, de Dorothea Dix
34
nos Estados Unidos, e outros como eles, a
reforma humanitária dos manicômios se propagou em todo o mundo ocidental, tornando as
instituições mais suportáveis para os internados e mais abertas à investigação médica
objetiva e à compreensão científica.
As teorias morais da doença mental foram progressivamente cedendo lugar à noção
de lesões anatomopatológicas, e a loucura no final do século XIX encontra-se inserida
totalmente no discurso médico organicista. Consolidava-se a idéia da possibilidade do
comportamento humano irracional vir a ser explicado pelo funcionamento anormal do
cérebro, coerente com as descobertas no campo da microbiologia e neurologia no final do
século. O modelo dominante é fornecido pela racionalidade anatomopatológica, estando a
racionalidade psicológica sobre as inter-relações em um plano marcadamente secundário, e
mesmo ausente.
35
31
PESSOTI, I. (1994). Ibidem.
32
Vicenzo Chiarugi,: médico italiano, considerado por muitos um antecessor de Pinel nas reformas
hospitalares, empregou práticas “humanitárias” no tratamento dos insanos no hospital de San Bonifazio em
Toscana, onde tornou-se diretor em 1788. Seu livro intitula-se Della pazzia in genere e in specie, publicado em
1793.
33
William Tuke (1732-1822), William Tuke Jr. (1755-1811), Samuel Tuke (1784-1857): família de
comerciantes quakers. Na Inglaterra fundaram a colônia de York Retreat em 1794. As experiências de Tuke são
consideras similares ao que na França foi chamado de Tratamento Moral. William Tuke, ao lado de Pinel e
Chiarugui é considerado um dos expoentes da psiquiatria moderna. Projetou em
1792 o Retiro de York, que
ficou famoso como instituição na qual tentava-se corajosamente implantar o tratamento humanizado dos
doentes mentais e manter condições sem restrições excessivas, que eram entendidas como essenciais na época.
34
Em 1841, Dorothea L. Dix, uma professora de Massachussetts, EUA, iniciou uma campanha obstinada para
conseguir que os doentes mentais fossem mais bem alojados, cuidados e tratados. Sob o seu estímulo, muitos
hospitais psiquiátricos foram instalados nos EUA e, até mesmo, na Europa. No Brasil, os nomes de Franco da
Rocha e Juliano Moreira se inscrevem entre os pioneiros da reforma da assistência aos doentes mentais.
35
FREIRE COSTA, J. História da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Xenon, 1989.
25
D. Idealistas versus organicistas
Durante o período marcado pela doutrina do Tratamento Moral proposta por Pinel em
1793, até a sintetização da clorpromazina
36
em 1950, o pensamento filosófico preponderante
que influenciou as ciências das perturbações mentais foi a Filosofia Moderna, representada
por René Descartes (1596-1650).
Descartes cria o cartesianismo, ou a filosofia cartesiana, a qual toda a concepção de
mundo e de homem se baseia na divisão da natureza em dois domínios opostos: o da mente
ou alma (res cogitans), a coisa pensante ou coisa da consciência, e o da matéria ou do corpo
(res extensa e res corporea), a coisa extensa ou coisa do corpo. É também durante esse
período que a psiquiatria surge como uma nova ciência, e assim com as outras, subordina-se
ao dualismo cartesiano de Descartes. A psiquiatria então é divida por duas correntes
distintas, que serão as bases de toda psiquiatria ocidental: uma delas é a concepção idealista
(influenciada pela res cogitans), a outra é a concepção organicista (regida pela res
corporea).
37
Dentre os idealistas, o principal nome é de Sigmund Freud (1856-1939), que iniciou
uma grande transformação histórica intelectual sobre o funcionamento mental humano e a
visão que o homem tinha de si mesmo, através da criação da teoria da Psicanálise. Assim,
como Freud, todos os outros psicanalistas, fazem parte do grupo dos idealistas. Nomes como
Joseph Breuer (1842-1925), Alfred Adler (1870-1937), Wilhelm Reich (1897-1957), Jacob
Levi Moreno (1889-1974) e Gustave Le Bon (1841-1931), também fazem parte desse grupo,
sendo o último, precursor da psicologia coletiva. Os autores desse grupo tinham idéias
completamente diferentes dos organicistas que, herdeiros da concepção da res corporea,
explicam todos os fenômenos da patologia mental por um viés biológico organicista.
36
Clorpromazina é uma substância anti-psicótica clássica ou típica sendo uma substância protótipa no
tratamento de pacientes
esquizofrênicos. Foi descoberta pelo cirurgião francês Henri Laborit em 1947.
37
PALOMBA, G.A. Ibidem.
26
Assim, em meio às descobertas significativas no campo da biologia, física e química,
a medicina postulava que a loucura tinha causas físicas, e procurou no substrato orgânico as
suas origens. Os progressos alcançados pela ciência médica haviam levado à descoberta de
que muitas doenças mentais podiam estar diretamente relacionadas com mudanças orgânicas
no cérebro ou no sistema nervoso central, porém, ainda não possuíam soluções para todos os
questionamentos, como explica Isaías Pessoti:
[...] a neurofisiologia do período não tinha condições para determinar e
localizar substratos orgânicos claros para a loucura e, muito menos,
correlatos cerebrais específicos para as diversas formas de insanidade. Mas
a postura médica de recusar qualquer ‘filosofia’ ou uma visão ‘passional’ da
loucura impõe a procura das mudanças orgânicas subjacentes ao delírio e ao
comportamento desviante.
38
Os organicistas têm um grande número de representantes, porém, para cumprir o
objetivo deste trabalho de apresentar apenas os principais momentos e representantes da
história da doença mental, apresentar-se-á o médico alemão Emil Kraepelin (1859-1926),
que propôs o desenvolvimento da interpretação causal orgânica da doença mental, em seu
sistema de classificação das perturbações mentais com base na conduta manifesta.
39
Por
volta de 1900, Kraepelin empreendeu essa tarefa, fazendo uma classificação cuidadosa das
doenças mentais. Através das várias edições de seu Tratado de Psiquiatria, elaborou as
bases das modernas descrições psiquiátricas, apoiado em um rigoroso método de observação
dos fatos clínicos (sintomas). A custa dessas inúmeras observações e registros clínicos, ele
sistematizou as doenças mentais para que a psiquiatria emergisse como uma ciência
autônoma. Desde então, a psiquiatria viu-se livre de muitos dos pressupostos que a inibiam e
pôde dedicar-se inteiramente à tarefa de curar as doenças mentais e ocupar-se de sua
38
PESSOTI, I. (1996) O século dos manicômios. São Paulo: Editora 34, 1996.
39
BUTCHER, J.N. Ibidem.
27
profilaxia. Kretschmer e Bleuler, entre muitos outros, continuaram a obra iniciada por
Kraepelin.
Durante o século XX, os psiquiatras buscaram explicações das desordens do
comportamento, da afetividade e do pensamento em causas físicas como as lesões ou
modificações da estrutura cerebral. Essa orientação organicista resultou da transferência de
conceitos e métodos considerados úteis no tratamento das doenças físicas para o campo dos
distúrbios comportamentais e emocionais.
A abordagem orgânica explicou algumas perturbações mentais e acabou levando ao
seu tratamento satisfatório, porém, havia uma série de perturbações que continuavam sem
explicação. A abordagem orgânica do comportamento anormal não podia explicar facilmente
por que algumas pessoas ficavam perturbadas e manifestavam até sintomas físicos sem que
pudesse ser descoberta qualquer base orgânica para isso. Apesar do aparente fracasso dessa
abordagem para o esclarecimento da etiologia da maioria das doenças mentais, ela foi
amplamente adotada. Acreditava-se que os distúrbios mentais se baseassem em mecanismos
biológicos específicos, deu-se grande ênfase ao estabelecimento do diagnóstico correto, para
o qual utilizaram, principalmente, o sistema classificatório de Kraepelin.
Ainda no século XX, a despeito da descoberta da origem da sífilis que levava a uma
progressiva paralisia e dos esforços na busca de um bacilo causador da esquizofrenia, o
modelo psiquiátrico entrou em decadência, dado o insucesso nos resultados e ineficácia dos
tratamentos utilizados. Surgiram inquietações ao mesmo tempo em que a situação nos
manicômios se agravava, com denúncias de maus tratos aos pacientes e de super lotação
dessas instituições. Os nomes dos representantes dos idealistas como Sigmund Freud, e os
unicistas
40
Martin Charcot (1825-1893) e Pierre Janet (1859-1947) contribuíram com seus
40
Os teóricos unicistas entendem que corpo e alma são substâncias diferentes, mas que no homem estão
fundidas uma na outra, a ponto de não haver operação mental, por mais elaborada que seja, que não tenha a
sua parte no corpo e vice-versa (PALOMBA, 2003).
28
trabalhos sobre distúrbios sem causas neurológicas ou fisiológicas discerníveis, produzindo
progressos na compreensão da base psicológica da neurose e perspectivas de melhoria da
qualidade da assistência psiquiátrica. A interpretação psicológica da doença mental originou-
se diretamente das brilhantes observações e formulações teóricas de Freud, a partir do
lançamento de A Interpretação dos Sonhos, em 1900, como explicita Joel Birman:
[...] este autor [Freud] descortinava um novo, desconhecido e complexo
terreno humano, o inconsciente. [...] As paralisias histéricas não reenviavam
ao corpo concreto da medicina, corpo anatomopatológico, mas a um corpo
representado pelo enfermo, corpo simbólico. Assim, as linhas corporais
fixadas pela operação conversiva se orientavam pela geografia corporal
estabelecida no imaginário destes pacientes.
41
Freud descobriu que os sintomas têm sentido e significam não apenas os indícios de
uma doença, mas transmitem uma mensagem a ser interpretada de um indivíduo que não
pode expressar-se senão por eles, sendo a via pela qual se processa a descarga pulsional, ou
seja, a liberação de uma carga energética que se encontra na origem da atividade motora do
organismo e do funcionamento psíquico inconsciente.
42
43
A psicanálise desafiou a tradição
positivista da ideologia burguesa e sua idéia das ciências naturais ilusoriamente neutras e
fora do conflito. Contudo, está longe de ser pacífica a posição ocupada pela psicanálise no
campo do conhecimento humano, havendo aqueles que a vêem como uma ciência natural,
ligada à biologia, e os que a tratam como ciência humana. Embora esteja presente até hoje, o
dualismo cartesiano entre o corpo e a alma foi enfrentado por Freud, que buscou inscrever a
41
BIRMAN, J. (1980) Enfermidade e loucura. Rio de Janeiro: Campus, 1980.
42
RODINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 628.
43
Segundo LAPLANCHE e PONTALIS, no Vocabulário da psicanálise (1998, p. 394-396), o conceito de
pulsão proposta por S. Freud é um processo dinâmico que consiste numa pressão ou força (carga energética,
fator de motricidade) que faz o organismo tender para um objetivo. Para ele, uma pulsão tem sua fonte numa
excitação corporal (estado de tensão); o seu objetivo ou meta é suprimir o estado de tensão que reina na fonte
pulsional; é no objeto ou graças a ele que a pulsão pode atingir a sua meta. A pulsão é definida como um
conceito-limite entre o psiquismo e o somático, está ligada, para Freud, à noção de representante, pela qual ele
entende uma espécie de delegação enviada pelo somático ao psiquismo.
29
vontade no registro da ação, sem contrapor esta à reflexão.
44
A revolução promovida por
Freud no espaço da individualidade, consistiu na invasão de áreas do conhecimento até então
reservadas às ciências tradicionais que formavam a base de sustentação da classe dominante.
Essa possibilidade, de transformação pelo indivíduo através do desejo representou um marco
que mudou os rumos da modernidade.
Independente se por Freud, Kraepelin ou outro teórico, todo pensamento psiquiátrico
ocidental, até 1950, era direta ou indiretamente influenciado por um ou vários desses
pensadores citados até o momento. Porém, a partir de 1950, um novo caminho se abriria, não
fruto de todas as doutrinas formadas até então, mas um novo caminho que se inicia dentro de
um laboratório de pesquisas químicas.
E assim, surgiram os psicofármacos, começando com a sintetização da clorpromazina
pelo químico francês Paul Charpentier, em 1950, e por sua aplicação nas psicoses, em 1952,
por Jean Delay e Pièrre Deniker que tiveram a idéia de experimentar esta droga, a qual
chamaram de clorpromazina, na enfermaria do Hospital Sainte Anne, em Paris. Havia uma
paciente que se dizia possuída pelo demônio. Iniciaram com uma dose mínima do fármaco.
Após uma semana, o demônio já estava fora do corpo da paciente, porém ainda dentro de sua
casa. Dobraram a dose e, após dias, o demônio já estava fora de sua casa, porém no seu
jardim. Aumentaram a dose e, no seguimento, a paciente referiu que o demônio já estava
longe de seu bairro. A sintetização desse neuroléptico deu início à era da psicofarmacologia,
que iria revolucionar toda a terapêutica psiquiátrica até então em vigor.
Se, de um lado os psicofármacos, promoveram substancial modificação na atmosfera
dos hospitais psiquiátricos, favorecendo, de certa forma, o progresso da psicoterapia
individual e grupal, os hospitais-dia, os hospitais-noite, e outras modalidades socioterápicas,
por outro criaram problemas: como reduzir ou anular os efeitos colaterais, as manifestações
44
BIRMAN, J. (1999). Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
30
delirantes por eles provocadas e as expressões motoras que acompanhavam estes
medicamentos, como por exemplo, a discinesia tardia
45
Além disso, os resultados práticos
dessas novas sínteses medicamentosas não foram suficientes no sentido de curar a doença
mental, uma vez que a essência da droga psiquiátrica não é curativa e sim supressiva. Vale
dizer que os fármacos psiquiátricos serenam, mas não curam, são, em verdade, camisas de
força químicas: prendem a psicopatologia dentro do indivíduo ou prendem o indivíduo
dentro de sua psicopatologia.
Surgiu então, a necessidade de se produzirem alternativas terapêuticas para a doença
mental. Estudaram-se as relações das doenças mentais com os fatores ambientais e sociais, e
assim, descobriu-se a necessidade de não apenas lidar com as origens biológicas dos
problemas mentais, mas também com os fatores sociais. Criou-se a chamada psiquiatria
social, que passou a descrever as estruturas sociais como fatores geradores de doença,
estando, nesse ponto, os alicerces do movimento de saúde mental e antipsiquiatria.
O termo antipsiquiatria passou a ser usado na década de sessenta para designar uma
corrente doutrinária na área de saúde mental que tinha por característica principal contestar a
validade da Ciência Médica para resolver os problemas de psiquiatria. Seus conceitos
propagaram-se para áreas afins, no bojo dos movimentos de protesto das conturbadas
décadas de 60 e 70 que, quando julgaram não existir doenças mentais e que a nosologia
médica psiquiátrica não passava de um conjunto de rótulos, apregoaram o fechamento dos
estabelecimentos médicos psiquiátricos. Elisabeth Roudinesco e Michel Plon, em seu
Dicionário de Psicanálise, fornecem a seguinte definição: Embora o termo antipsiquiatria
tenha sido inventado por David Cooper em um contexto muito preciso, ele serviu para
designar um movimento político radical de contestação do saber psiquiátrico, desenvolvido
45
A discinesia tardia aparece após o uso crônico de antipsicóticos (geralmente após dois anos). Clinicamente é
caracterizada por movimentos involuntários, principalmente da musculatura oro-língua-facial, ocorrendo
protusão da língua com movimentos de varredura látero-lateral, acompanhados de movimentos sincrônicos da
mandíbula. O tronco, os ombros e os membros também podem apresentar movimentos discinéticos.
31
entre 1955 e 1975 na maioria dos grandes países em que se haviam implantado a psiquiatria
e a psicanálise: na Grã-Bretanha, com Ronald Laing e David Cooper; na Itália, com Franco
Basaglia; e no Estados Unidos, com as comunidades terapêuticas, os trabalhos de Thomas
Szasz e a Escola de Palo alto de Gregory Bateson. [...] Como utopia, a explosão da
antipsiquiatria foi radical, e Cooper sublinhou isso ao discursar em Londres, na tribuna do
congresso mundial de 1967, o qual almejava inscrever a antipsiquiatria no quadro de um
movimento geral de libertação dos povos oprimidos.
46
Constatou-se, a partir daí, um crescente interesse no objetivo preventivo de se
promover saúde mental em contraposição ao objetivo puramente atenuante de amenizar a
gravidade da doença mental, pelo menos como proposta. A instituição psiquiátrica do século
XX foi chamada a repensar suas reais funções. Passou da função de apenas oferecer
isolamento e proteção estéril ao portador de doença mental, para a necessidade de ter que
proporcionar situações terapêuticas, condizentes com seus autênticos propósitos.
Contudo, os hospitais não conseguiram concretizar esse intento dado sua estrutura
física e administrativa: número reduzido de recursos humanos; inexistência de estratégias
terapêuticas; despreparo do pessoal disponível; desinteresse por parte dos administradores e
superlotação, além das características de instituição total.
47
Segundo Foucault,
48
a crise da psiquiatria é, antes de tudo, uma crise de poder. Resta
saber se a loucura ou o louco podem ser tratados segundo a objetividade das ciências
naturais, isto é, se a relação médico-loucura (ou médico-paciente) pode se dar nos quadros da
relação sujeito-objeto que organiza todo o nosso conhecimento científico. Uma visão
46
RODINESCO, E.; PLON, M. Ibidem.
47
Segundo Erving Goffman (1974), instituição total pode ser definida como um local de residência e trabalho
onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por
considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada. Essas instituições podem
ser divididas em cinco grupos, sendo uma delas os locais estabelecidos para cuidar de pessoas consideradas
incapazes de cuidar de si mesmas e que são também uma ameaça à comunidade, embora de maneira não
intencional; sanatórios para tuberculosos, hospitais para doentes mentais e leprosários.
48
FOUCAULT, M. (1979). Ibidem.
32
estritamente organicista da loucura não questiona, naturalmente, a relação sujeito-objeto de
conhecimento. Por isso, Foucault fala que a psico-cirurgia e a psiquiatria farmacológica
modernas podem visar à redução do poder do médico aos sintomas mínimos da doença, ao
contrário de sua produção ou exacerbação (como nos tratamentos de Charcot), mas não
contestam esse poder que lhes é conferido pelo conhecimento objetivo. A psicanálise, uma
vez que entende que os sintomas expressam o sentido da doença, procura, ao contrário,
intensificá-los, mas em uma relação eqüitativa analista-paciente. Ao analista cabe escutar e
servir de acesso para a transferência dos conflitos inconscientes do paciente, que devem se
tornar conscientes nessa relação, de modo que o sujeito possa assumir o destino de sua vida.
É lógico que para Foucault o espaço da escuta psicanalítica ainda é um espaço de poder,
inserido no dispositivo histórico da sexualidade, mas de qualquer maneira, a psicanálise
contrapõe-se à psiquiatria clássica porque entende que o paciente deve assumir os conflitos
expressos em seus sintomas, ao invés de simplesmente eliminá-los através de psicofármacos
e similares terapias. Por fim, Foucault vislumbra no movimento da antipsiquiatria a
contestação do par sujeito-objeto no conhecimento da loucura. Basta saber, pergunta ele, se a
loucura pode ser tratada não em nome de um saber, mas no reconhecimento da alteridade do
louco ou de sua experiência.
49
49
FOUCAULT, M. (1972). Ibidem.
33
CAPÍTULO II - PSICOPATIA: NOÇÕES GERAIS
Mesmo que eu tivesse cem línguas, cem bocas e férrea voz, não
poderia enumerar todos os tipos de loucos, nem todas as formas de
loucura.
Erasmo de Rotterdam
(paráfrase de Virgílio em Eneida)
1 DADOS HISTÓRICOS SOBRE PSICOPATIA
Essa seção irá tratar do percurso histórico da inserção da psicopatia dentre as doenças
mentais e a evolução do seu conceito.
Desde os primórdios da história dos estudos da doença mental, os especialistas
defrontaram-se com indivíduos que, embora apresentassem comportamento de insanidade
mental, não evidenciavam sintomas delirantes, alucinatórios ou mesmo deficiências mentais.
Em 1801, Philippe Pinel publicou seu Tratado médico filosófico sobre a alienação
mental e fala de pessoas que têm todas as características de mania,
1
mas que carecem de
delírios ou alucinações. Dizia em seu tratado que admirava ver muitos loucos que, em
nenhum momento, apresentavam prejuízo algum do entendimento, e que estavam sempre
dominados por uma espécie de furor instintivo, como se o único dano fosse em suas
1
Pinel chamava de mania os estados de furor persistente e comportamento florido, diferente do conceito atual
de mania.
34
faculdades instintivas. A falta de educação, uma educação mal dirigida ou traços perversos
naturais poderiam ser a causa dessa espécie de alteração, segundo o autor. O psiquiatra
inglês James Cowles Prichard (1786-1848) acredita, assim como Pinel, que existiam
insanidades sem comprometimento intelectual, mas possivelmente com prejuízo afetivo e
volitivo (da vontade). Tal posição acabava por sugerir que essas três funções mentais: o
intelecto, a afetividade e a vontade poderiam adoecer independentemente. Na sua obra
Treatise on insanity and other disorders affecting the mind, publicada em 1835, apresenta o
conceito de insanidade moral, que designava sujeitos que manifestam comportamento
caracterizado por perversidade mórbida.
2
Estes indivíduos apresentavam-se pouco decentes,
careciam de sentimentos e de capacidade de autodomínio e do sentido ético mais elementar.
Os loucos morais representavam uma classe de seres anormais que se achavam muito
próximos dos autênticos enfermos psíquicos.
3
A escola francesa, representada por Morel, Magnan, Debray entre outros, acreditava
que a idéia de desequilíbrio mental estava associada a algo constitucional, ligada aos
distúrbios de ordem afetiva, portanto um desequilíbrio instável, passível de se romper.
Benedict Morel (1809-1873) parte do pressuposto religioso para elaborar sua teoria da
degeneração. O ser humano tinha sido criado segundo um tipo primitivo perfeito e, todo
desvio desse tipo perfeito, seria uma degeneração. A essência do tipo primitivo e, portanto,
da natureza humana, é a contínua supremacia ou dominação do moral sobre o físico. Para
Morel, o corpo não é mais que o instrumento da inteligência. A doença mental inverteria
esta hierarquia e converteria o humano em besta. Uma doença mental não é mais que a
expressão sintomática das relações anormais que se estabelecem entre a inteligência e seu
instrumento doente, o corpo. A degeneração de um indivíduo se transmite e se agrava ao
2
BERGERET, J. A personalidade normal e patológica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.
3
SERAFIM, A.P. Investigação psicológica da personalidade na conduta criminosa. In: RIGONATTI, S.P.
(Org.) Temas em psiquiatria forense e psicologia jurídica. São Paulo: Vetor, 2003, p. 66.
35
longo das gerações, até chegar à decadência completa. Alguns autores posteriores, como é o
caso de Valentín Magnan (1835-1916), suprimiram o elemento religioso das idéias de Morel
e acentuaram os aspectos neurobiológicos. Esses conceitos afirmavam a ideologia da
hereditariedade e da predisposição em várias teorias sobre as doenças mentais.
4
Seguindo essa trajetória, Cesare Lombroso (1835-1909) defendeu a idéia do homem
criminoso: os tipos criminosos podem ser identificados com base na fisionomia, e
constituem uma forma de homens inferiores. Nota-se que a busca de uma explicação para o
ato criminoso por um determinismo biológico, é uma hipótese defendida por alguns em
relação aos psicopatas. Diferente dessa idéia, o termo inferioridade psicopática foi definido
por J. Koch em 1888, e consistia em um conceito muito extenso no qual estava incluída
grande parte da atual neurose. Essa definição consistia em caracterizar o indivíduo por suas
anomalias de temperamento e de caráter, que determinavam uma conduta anti-social. Tal
patologia teria natureza congênita e permanente, não sendo considerada pelo autor como
doença em sentido estrito. Seu conceito advém das idéias sobre degenerescência.
5
Porém o termo mais utilizado até a atualidade, personalidades psicopáticas, foi
adotado em 1904 por Emil Kraepelin (1856-1926), quando empregou o termo para se referir
exatamente a indivíduos que não seriam nem neuróticos nem psicóticos, também não estão
incluídas no esquema de mania-depressão, mas que se mantêm em choque com os
parâmetros sociais vigentes. Para esse autor, as personalidades psicopáticas são formas
frustradas de psicoses, definidas segundo um critério fundamentalmente genético e considera
que seus defeitos se limitam essencialmente à vida afetiva.
6
Foi Ernest Kretschmer (1888-1964), em 1930, que instituiu a orientação
constitucional e construiu um sistema no qual considerava a ocorrência de morbidade
4
PALOMBA, G.A. Tratado de psiquiatria forense – civil e penal. São Paulo: Atheneu, 2003.
5
SHINE, S. K. Psicopatia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000.
6
MORANA, H. C. P. Identificação do ponto de corte para a escala PCL-R (Psychopathy Checklist Revised)
em população forense brasileira: caracterização de dois subtipos de personalidade; transtorno global e parcial.
São Paulo, 2003.Tese de doutorado. Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.
36
gradativa entre as condições de normalidade, personalidade psicopática e doença. Sugeria
que existiria uma gradação, sem limites precisos, entre a personalidade normal, a
esquizotímica, a psicopatia esquizóide e a esquizofrenia. A doença seria uma acentuação ou
um agravamento de temperamentos psicopáticos e normais. Dessa forma, para Kretschmer, a
personalidade psicopática seria uma forma acentuada de transtorno mental (grifo da autora).
7
O termo personalidade psicopática inicialmente adotado por Kraepelin, também foi
utilizado por Kurt Schneider (1887-1967), porém como sendo um distúrbio da personalidade
que não afeta a inteligência nem a estrutura orgânica do indivíduo, cujo caráter anormal lhes
faz sofrer ou faz sofrer a sociedade. Por isso (...) um dos méritos de sua definição reside em
tornar claro que o psicopata não é uma pessoa que sofre de uma doença chamada
psicopatia, mas que o termo caracteriza a personalidade como um todo.
8
Como critério de
definição da psicopatia, levava-se em conta o sofrimento infligido a si próprio e aos outros,
no relacionamento interpessoal. Para ele, os psicopatas seriam deficientes quanto à
afetividade e à volição,
9
assim como os oligofrênicos seriam deficientes quanto à
inteligência. Ainda para esse autor, as personalidades psicopáticas formam um subtipo
daquilo que classificava como personalidades anormais, de acordo com o critério estatístico
e da particularidade de sofrerem por sua anormalidade e/ou fazerem outros sofrer.
Entretanto, a classificação de personalidade psicopática não pode ser reconhecida ou aceita
pelo próprio indivíduo e, às vezes, nem mesmo por algum grupo social, pois, a característica
de causar sofrimento aos outros ou a sociedade é demasiadamente relativa e subjetiva.
Em conseqüência dessa relatividade de diagnóstico (devido à também relatividade
dos valores), Schneider sugere que não é sensato ou válido realizar um outro diagnóstico do
mesmo modo que fazemos com as outras doenças. Resumindo, pode-se destacar neles certas
7
MORANA, H.C.P. Ibidem.
8
VARGAS, H. S. Manual de psiquiatria forense. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1980, p. 329.
9
Atividade voluntária sem a compulsão externa.
37
características e propriedades que os caracterizam de maneira nada comparável aos sintomas
de outras doenças. O psicopata é, simplesmente, uma pessoa; assim, o psicopata não tem
uma psicopatia, no sentido de quem tem uma tuberculose, ou algo transitório, mas ele é um
psicopata. Psicopata é uma maneira de ser no mundo, é uma maneira de ser estável. Como
em tantas outras tendências, também há um certo determinismo na concepção de Schneider.
Para ele os psicopatas são assim em toda situação vital e sob todo tipo de circunstâncias. O
psicopata é um indivíduo que não leva em conta as circunstâncias sociais, é uma
personalidade estranha, separada do seu meio. A psicopatia não é, portanto, exógena, sendo
sua essência constitucional e inata, no sentido de ser pré-existente e emancipada das
vivências.
Mas a conduta do psicopata nem sempre é toda psicopática, existindo momentos,
fases e circunstâncias de condutas adaptadas, as quais permitem que ele passe desapercebido
em muitas áreas do desempenho social. Essa dissimulação garante sua sobrevivência social.
Schneider englobou no conceito de personalidade psicopática todos os desvios da
normalidade não suficientes para serem consideradas doenças mentais verdadeiras, incluindo
nesses tipos, também aquele nomeado como sociopata. Dizia que a personalidade
psicopática (que não tinha o mesmo conceito do psicopata de hoje) como aquelas
personalidades anormais que sofrem por sua anormalidade e/ou fazem sofrer a sociedade.
Essa imprecisão conceitual suscitou inúmeras críticas como as de Mayer-Gross que
acreditava que a definição de personalidade psicopática proposta por Schneider não tinha
valor diagnóstico, sintomático, sindrômico ou qualquer outro.
10
Garcia, da mesma forma
critica tal definição: Sua definição de personalidade psicopática é irrelevante. Nela cabem a
esquizofrenia, a gripe e a fratura de fêmur. Todos os doentes sofrem e fazem sofrerem os
10
MAYER-GROSS, W.; SLATER, E.; ROTH, M. – Psiquiatria clínica. Mestre Jou, São Paulo, 1976.
38
seus, a sociedade, a economia interna e a comunal.
11
Apesar dos ataques, o termo
personalidade psicopática alcançou prestígio por várias décadas. Schneider distinguia dez
tipos diferentes de personalidade psicopática: hipertímicos, depressivos, inseguros, fanáticos,
carentes de atenção, emocionalmente lábeis, explosivos, desalmados, abúlicos, e astênicos.
O que se entende hoje por psicopata ou sociopata seria, na classificação de Schneider,
os desalmados.
12
Essa questão sobre a consideração da psicopatia como doença mental ou
não permanece até hoje, ora tratada como transtorno (como no CID-10), ora como patologia
derivada de falhas bioquímicas ou simplesmente como um desvio de conduta, passível de
correção. Muito mais tarde, Emílio Mira y López (1890-1968) definiu a personalidade
psicopática como aquela personalidade mal estruturada, predisposta à desarmonia
intrapsíquica, que tem menos capacidade que a maioria dos membros de sua idade, sexo e
cultura para adaptar-se às exigências da vida social. E considerava onze tipos dessas
personalidades anormais muito semelhantes aos tipos de Schneider. Eram eles: astênica,
compulsiva, explosiva, instável, histérica, ciclóide, sensitivo-paranóide, esquizóide,
perversa, hipocondríaca, e homossexual.
13
Ampliando o conceito, em 1941, Hervey Cleckley (1903–1984), na sua obra A
máscara da sanidade, considera os transtornos psicopáticos da personalidade como
insanidade, porém sem os sintomas característicos das psicoses. Portanto, mantém nesta
questão o conceito originário de Pinel. Estabeleceu nessa obra alguns critérios para o
diagnóstico do psicopata. Em 1976, Robert Hare completa esses critérios. Somando-se as
duas listas podem-se relacionar as seguintes características:
1. problemas de conduta na infância;
2. inexistência de alucinações e delírio;
11
GARCIA, J.A. Psicopatologia forense. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 200.
12
VARGAS, H. S. Ibidem.
13
MIRA Y LOPEZ, E. Manual de psicologia jurídica. São Paulo: Mestre Jou, 1976.
39
3. ausência de manifestações neuróticas;
4. impulsividade e ausência de autocontrole;
5. irresponsabilidade;
6. encanto superficial, notável inteligência e loquacidade;
7. egocentrismo patológico, auto-valorização e arrogância;
8. incapacidade de amar;
9. grande pobreza de reações afetivas básicas;
10. vida sexual impessoal, trivial e pouco integrada;
11. falta de sentimentos de culpa e de vergonha;
12. indigno de confiança, falta de empatia nas relações pessoais;
13. manipulação do outro com recursos enganosos;
14. mentiras e insinceridade;
15. perda específica da intuição;
16. incapacidade para seguir qualquer plano de vida;
17. conduta anti-social sem aparente arrependimento;
18. ameaças de suicídio raramente cumpridas;
19. falta de capacidade para aprender com a experiência vivida.
Para Cleckley, o psicopata não tem capacidade de sentir os componentes emocionais
do comportamento pessoal e interpessoal. Ele copia características da personalidade
humana, mas é incapaz de sentir realmente.
14
É incontável a série de autores que, desde o início do século, estudou a questão das
personalidades psicopáticas. Desde a primeira classificação de personalidades psicopáticas
14
SERAFIM, A.P. Ibidem, p. 67.
40
de Schneider no ano de 1923, os autores vêm continuamente buscando formas mais
adequadas de defini-las, descrevê-las e categorizá-las, assim como explica Vargas:
Cabe-nos observar que a antiga tendência dos diversos autores (muito
própria da época em que viveram, principalmente pelo estágio em que se
encontrava a Psiquiatria) era a de enfatizar perturbações morais, como algo
oposto às intelectuais, além da forte tendência para usar aquele termo como
o mais adequado para contemplar situações de anormalidade mental que não
cabiam em qualquer outra reconhecida doença mental. [...] a ênfase sobre
fraqueza moral levou compreensivelmente, à tentação de se superestimar a
proximidade de relação entre a psicopatia e o crime. Por outras palavras, se
nem todo delinqüente era um psicopata, pelo menos todo psicopata era um
delinqüente.
15
Nos últimos vinte anos, o termo psicopatia começou a ser substituído, registrando-se,
entre outros, os de transtorno do caráter, distúrbio do comportamento, distúrbio de conduta,
sociopatia e, com a vinda dos grandes esquemas de classificação, apareceram: transtorno de
personalidade e de comportamento em adultos (CID-10) e transtorno de personalidade
(DSM-IV). Atualmente outro termo, a condutopatia, foi utilizado pelo psiquiatra forense
brasileiro Arthur Guido Palomba em 1985, no laudo de exame de sanidade mental.
16
Dessa maneira, na psiquiatria atual, procura-se limitar o conceito de psicopatia a
tipos claramente definíveis, considerando mais as diferenças, que as semelhanças, entre o
estado psicopático e outros; contudo em 1980, com o DSM-III, com a criação do eixo II, que
o diagnóstico das personalidades anti-sociais encontrou destaque na nosografia psiquiátrica.
A seguir, veremos como tal conceituação é feita, na necessidade da padronização diagnóstica
e classificação da psicopatia.
15
VARGAS, H. S. Ibidem, p. 330.
16
PALOMBA, G.A. Ibidem.
41
2 CLASSIFICAÇÃO SEGUNDO A PSIQUIATRIA
(...) a psicopatia é uma variante extrema da existência humana.
Karl Jaspers
A classificação da Organização Mundial de Saúde (OMS) refere-se ao distúrbio de
personalidade com predominância de manifestações sociopáticas ou associais. Sugere que o
distúrbio da personalidade seja caracterizado pela inobservância das obrigações sociais,
indiferença para com outrem, violência impulsiva ou fria insensibilidade. Apresenta grande
desvio entre o comportamento e as normas sociais estabelecidas, sendo o comportamento
considerado pouco modificável pela experiência, inclusive pelas sanções. Os sujeitos desse
tipo são freqüentemente não-afetivos e podem ser anormalmente agressivos ou irrefletidos.
Toleram mal as frustrações, acusam os outros ou fornecem explicações enganosas para os
atos que os colocam em conflito com a sociedade.
17
O termo distúrbio sociopático de personalidade foi introduzido em 1952 pelo DSM-I,
visando diminuir a confusão terminológica e buscar uma padronização. Porém, muitos
continuaram a usar os termos psicopatia e sociopatia como sinônimos, enquanto outros
continuaram a considerar a sociopatia como um subgrupo dentro de uma categoria mais
ampla, a psicopatia.
O conceito, direcionado para o contexto forense, foi inicialmente proposto por
Cleckley (1988) e posteriormente desenvolvido por Hare (1991), que o relacionaram à
previsibilidade de identificação do comportamento e à reincidência criminal. Todavia, é
importante salientar que:
17
KAPLAN, H. I.; SADOCK, B. J.; GREEB, J. A. Compêndio de psiquiatria. Porto Alegre: Artes Médicas,
1997.
42
[...] o transtorno da personalidade anti-social é caracterizado por atos anti-
sociais e criminosos contínuos, mas não é sinônimo de criminalidade. Em
vez disso, trata-se de uma incapacidade de conformar-se às normas sociais
que envolvem muitos aspectos do desenvolvimento adolescente e adulto do
paciente.
18
Dessa forma, a personalidade se torna o elemento no qual a doença se desenvolve, e o
que vai determiná-la é a realidade e a medida da doença. Assim, a realidade do sujeito não
permite uma generalização dos sintomas, cada indivíduo deve ser entendido através das
práticas que o meio exerce sobre o mesmo.
19
As implicações das pesquisas realizadas sobre esse transtorno são de extrema
importância, seja por sua relação com taxas de incidência criminal, seja para a busca de
tratamento apropriado e programas de reabilitação no sistema penitenciário, tão discutido e
tão precário no Brasil.
Em pesquisa realizada em instituições penitenciárias recentemente no Brasil, Hilda
Morana, médica pesquisadora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo,
considera que a justificativa para isso está fundamentada na premissa de que a personalidade
e o comportamento dos agressores diagnosticados como psicopatas diferem de modo
fundamental dos demais criminosos quanto aos seguintes aspectos:
São os responsáveis pela maioria dos crimes violentos em todos os países;
Iniciam as carreiras criminais em idade precoce;
Cometem diversos tipos de crimes e com maior freqüência que os demais
criminosos;
São os que recebem o maior número de faltas disciplinares no sistema
prisional;
Apresentam insuficiente resposta aos programas de reabilitação, e
18
KAPLAN, H. I.; SADOCK, B. J.; GREEB, J. A. Ibidem, p.692.
19
FOUCAULT, M. (1954) Doença mental e psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991.
43
Apresentam os mais elevados índices de reincidência criminal.
20
Ainda segundo Hilda Morana,
21
não existem nos critérios internacionais diferenças
entre tendências anti-sociais encontradas em populações psiquiátricas e forenses, mas sim
muita discussão quanto à psicopatia como categoria diagnóstica específica entre os
transtornos da personalidade.
O DSM-II propõe uma definição limitada de personalidade anti-social, pressupondo
que esta condição é restrita a indivíduos que são basicamente não socializados, e cujos
padrões de comportamento fazem com que repetidamente entrem em conflitos com a
sociedade. Trata-se de indivíduos incapazes de fidelidade significativa com pessoas, grupos
ou valores sociais. São excessivamente egoístas, insensíveis, irresponsáveis, impulsivos e
incapazes de sentir culpa ou aprender com a experiência e com a punição. Sua tolerância à
frustração é baixa. Tendem a queixar-se dos outros, ou verbalizar racionalizações plausíveis
para seus comportamentos.
22
No DSM-III, acontece uma importante modificação, onde o foco muda para uma
orientação criminal-comportamental, cujo diagnóstico seria atribuído se houvesse uma
persistente violação das normas sociais, incluindo mentir, roubar, cabular aula, histórico de
empregos inconstantes e detenções policiais.
23
Em 1995, entra em vigor o DSM-IV, atualmente utilizado. Classifica como
transtorno da personalidade anti-social, tendo como característica essencial o padrão
invasivo de desrespeito e violação dos outros, que inicia na infância ou começo da
adolescência e continua na idade adulta. Em relação aos termos, trata como sinônimos:
psicopatia, sociopatia ou transtorno da personalidade dissocial. Os critérios diagnósticos são
descritos como: 1) Padrão invasivo de desrespeito e violação dos direitos dos outros que
20
MORANA, H. C. P.Ibidem.
21
Idem.
22
KERNBERG, O. F. (1995). Agressão nos transtornos de personalidade e nas perversões. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1995.
23
SHINE, S. K. Ibidem, p. 19.
44
ocorre desde os quinze anos, como indicado por algumas das seguintes características:
fracasso em conformar-se às normas sociais com relação a comportamento legais indicado
pela execução repetida de atos que constituem motivos de detenção; propensão para enganar,
indicada por mentir repetidamente, usar nomes falsos ou ludibriar os outros para obter
ganhos pessoais ou prazer; impulsividade ou fracasso em fazer planos para o futuro;
irritabilidade e agressividade indicadas por repetidas lutas corporais ou agressões físicas, por
exemplo, espancamento do conjugue e filho; desrespeito irresponsável pela segurança
própria ou alheia, por exemplo, direção perigosa, comportamento de risco com sexo e drogas
e negligência dos filhos; irresponsabilidade consistente indicada por um repetido fracasso em
manter um comportamento laboral consistente ou honrar obrigações financeiras; ausência de
remorso, indicada por indiferença ou racionalização por ter ferido, maltratado ou roubado
outra pessoa, por exemplo, a vida é injusta, isto aconteceria de qualquer modo. 2) O
indivíduo deve ter no mínimo dezoito anos de idade. 3) Existirem evidências de transtorno
de conduta (delinqüência) com início antes dos quinze anos. 4) A ocorrência de
comportamento anti-social não deve ocorrer exclusivamente durante o curso de
esquizofrenia ou episódio maníaco.
Em relação a apercepção fenomenológica, são descritos alguns aspectos: falta de
empatia (insensíveis e cínicos, desprezam os sentimentos, direitos e sofrimentos alheios);
auto-estima enfatuada (rei na barriga), arrogante (‘o trabalho comum não está à minha
altura’), opiniáticos, auto-suficientes, vaidosos; encanto superficial e não sincero, volúveis,
facilidade com palavras (usam termos técnicos que impressionam); histórico de múltiplos
parceiros sexuais; pai/mãe irresponsável. Das queixas apresentadas, aparecem a disforia
(perturbação ou mal-estar provocado por ansiedade) e a tensão, ou seja, incapacidade de
tolerar tédio e humor deprimido.
45
Pode ainda estar associado a outros transtornos como: os transtornos do controle dos
impulsos (transtorno de ansiedade, transtorno depressivo, transtorno relacionado a
substâncias, transtorno de somatização, jogo patológico).
Quando há transtorno de conduta (antes dos 10 anos) associado a transtorno de déficit
de atenção/hiperatividade, há uma probabilidade de desenvolver o transtorno anti-social de
personalidade.
Outra característica descrita nesse manual é que tal psicopatologia é mais comum
entre os homens. Há preocupação com sub-diagnóstico pela ausência do item componentes
agressivos nas mulheres. A prevalência é de 3% em homens e 1% em mulheres na
comunidade e, estão de 3% a 30% presentes na população clínica. Na população carcerária, a
prevalência é de 15-20%. Em relação ao padrão familiar, é mais comum entre parentes
biológicos em primeiro grau e os parentes de mulheres com transtorno têm um risco maior.
Os filhos adotivos ou biológicos com pais com transtorno anti-social de personalidade têm
risco maior.
24
Segundo Morana, uma em cada trinta pessoas poderia ser diagnosticada como
psicopata, e que haveria até cinco milhões de pessoas assim somente no Brasil. Das
observações feitas pela pesquisadora, poucas dessas pessoas seriam violentas. A maioria não
comete crimes, mas deixa as pessoas com quem convivem desapontadas. São indivíduos que
andam pela sociedade como predadores sociais, rachando famílias, aproveitando-se de
pessoas vulneráveis e deixando carteiras vazias por onde passam. Pode-se dizer que são os
sub-tipos de psicopatia.
25
24
ASSOCIAÇÃO PSIQUIÁTRICA AMERICANA DSM – IV. Manual diagnóstico e estatístico de
transtornos mentais. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
25
MORANA, H. C. P. Ibidem.
46
3 PSICOPATIA COMO FENÔMENO CLÍNICO E PSICOPATOLÓGICO
Se há no mundo pessoas cujos gostos chocam todos os preconceitos
aceitos, não apenas não se deve ficar espantado com elas, como não
adianta lhes passar sermão, nem os punir... Porque não depende de
vós ser espirituoso ou estúpido, perfeito ou corcunda... Que será de
vossas leis, vossa moral, vossa religião, vosso cadafalso, vosso
paraíso, vossos deuses, vosso inferno, quando ficar demonstrado que
este ou aquele movimento dos humores, um certo tipo de fibra, um
certo grau de acidez no sangue ou nos espíritos animais são
suficientes para fazer de um homem objeto de suas penas ou de suas
recompensas?
Marquês de Sade
A. Aspectos gerais
Ao se pensar o termo psicopatia, também chamado de sociopatia ou transtorno de
personalidade anti-social, é natural que seja relacionado à doença mental. Porém, a
psicopatia é entendida pela maioria dos autores consultados como um fenômeno
psicopatológico que se manifesta de forma diferente dos outros estados mentais patológicos.
Isso ocorre porque, na psicopatia, não estão presentes sintomas característicos como
alucinações, delírios ou grave déficit intelectual, encontrados na maioria das doenças
mentais conhecidas, como a esquizofrenia, o transtorno obsessivo compulsivo, etc; não
deixando, por isso, de ser um estado mental patológico.
A seguir, veremos os aspectos gerais da psicopatia, começando por Hervey Cleckley
que, em sua obra A máscara da sanidade, de 1941, propõe a seguinte definição de
psicopatia: o psicopata está livre de sinais ou sintomas geralmente associados a psicoses,
neuroses ou deficiência mental. Ele conhece as conseqüências de seu comportamento anti-
social, mas dá a impressão de que possui muito pouco reconhecimento real de sentimentos
47
dos quais verbaliza tão racionalmente.
26
É incapaz de se adaptar em suas relações sociais de
forma satisfatória, de uma maneira geral; o psicopata não é detido em suas ações pela
punição. Sua conduta carece normalmente de uma motivação, ou se uma motivação pode ser
inferida, ela é inadequada, enquanto explicação para tal comportamento. Ele sabe se
expressar em termos de respostas afetivas esperadas, mas demonstra uma total falta de
consideração e uma indiferença em relação aos outros, além de uma pobre capacidade de
julgamento e incapacidade de aprender com a experiência, que pode ser vista nas mentiras
patológicas, crime repetitivo, delinqüência e outros atos anti-sociais.
A conduta psicopática ainda se caracteriza quando suas necessidades pessoais
adquirem papel dominante em relação ao mundo externo e às outras pessoas. As funções de
controle e regulação do ego são deficientes e o indivíduo persegue a gratificação imediata,
dando pouca importância aos outros aspectos do funcionamento psíquico ou às demandas da
realidade externa, uma vez que o ego não funciona de acordo com o princípio de realidade
27
.
Na psicopatia, os indivíduos procuram evitar a tensão resultante dos impulsos não-
gratificados, evitar a ansiedade que aparece quando a frustração é iminente e, ainda, proteger
o ego dos sentimentos de inadequação.
Dessa forma, há pouca consideração pelas demandas da consciência, a afetividade é
superficial e há pouca capacidade de tolerância à ansiedade. O insucesso do caráter
psicopático em desenvolver defesas neuróticas adequadas faz com que se torne necessário
fugir à frustração e à ansiedade.
28
O indivíduo psicopático recusa a responsabilidade e evita
situações que exponham seu déficit afetivo. Ele é, relativamente, indiferente a seus objetos,
independentemente de sua relação com eles. Esse indivíduo enxerga as outras pessoas
26
FERRAZ, F.C. (2000). Perversão. São Paulo: Casa do Psicólogo (Coleção Clínica Psicanalítica), 2000.
27
Segundo definição de LAPLANCHE e PONTALIS, o princípio de realidade é um dos dois princípios que,
segundo Freud, regem o funcionamento mental. Forma par com o princípio de prazer, e modifica-o; na medida
em que consegue impor-se como princípio regulador, a procura da satisfação já não se efetua pelos caminhos
mais curtos, mas faz desvios e adia o seu resultado em função das condições impostas pelo mundo exterior
(1998, p. 368).
28
Em seção posterior, explicar-se-á, as razões da psicopatia não desenvolver e utilizar as defesas neuróticas.
48
apenas como fontes potenciais de perigo ou gratificação, pouco se preocupando com sua
segurança, conforto ou prazer. Impulsos internos são experimentados como urgentes e
opressivos, seu adiamento ou substituição não parece possível. Finalmente, o sentimento que
resulta da gratificação de seus impulsos tem uma qualidade de tensão, alívio ou saciedade, ao
invés de felicidade.
Essas condições implicam características de grave desajustamento nas relações
interpessoais, violência social e criminalidade, o que associa esse transtorno ao sistema
penitenciário, tornando importante e necessária a identificação desses sujeitos e um número
maior de pesquisadores envolvidos nesse tema. É no âmbito forense, portanto, que tais
condições encontram maior prevalência. Desde os primeiros códigos penais, a justiça
demanda à medicina principalmente, não apenas responder em quais condições um sujeito
pode responder por seus atos, mas, sobretudo, descrever aqueles estados mentais ou
disposições de personalidade que, por si só, poderiam conduzir à conduta criminosa. A
entidade clínica psicopatia é aquela que, atualmente, responde de modo mais direto a essa
demanda do direito penal e das ciências psicológicas.
Mas é necessário enfatizar que criminalidade não é sinônimo de psicopatia e que nem
todo psicopata é um criminoso. A presença de atos anti-sociais transgressivos é, antes de
qualquer coisa, um critério externo, ou seja, social e legal. É preciso avaliar a existência ou
não de uma instância moral ou de valores para o próprio sujeito. Ou seja, como ele se coloca
(ou não) frente à questão de um compromisso com alguma lei internalizada.
29
29
FERRAZ, F. C. (1994) A eternidade da maçã – Freud e a ética. São Paulo: Escuta, 1994.
49
B. Questionamentos sobre moralidade e comportamento moral
Se existe proibição é porque existe desejo.
Sigmund Freud
Segundo a psicanalista Maria Rita Kehl,
30
o homem contemporâneo quer ser
despojado não apenas da angústia de viver, mas também da responsabilidade de arcar com
ela; quer delegar à competência médica e às intervenções químicas a questão fundamental
dos destinos das pulsões; quer, enfim, eliminar a inquietação que o habita em vez de indagar
seu sentido. Mas não percebe que é por isso que a vida lhe parece cada vez mais vazia, mais
insignificante.
Ao analisar O Mal-Estar na Civilização (1930) de Freud e a constante busca da
inalcançável felicidade, Bauman
31
observa que a civilização impõe sacrifícios ao homem
moderno: a troca de parte de sua felicidade por um quantum de segurança. É a mesma base
do pacto de Thomas Hobbes, através do qual os indivíduos renunciam ao exercício de seu
direito natural e reconhecem o direito supremo do soberano, obtendo em compensação a
segurança propiciada por esse poder. Já na pós-modernidade, o homem troca parte de sua
segurança por uma parcela de felicidade. Explicitando: as redes de segurança outrora
mantidas pelo poder público, endossadas na presença do Estado de bem-estar social, adepto
da política de pleno emprego e sólidas garantias previdenciárias foram substituídas pela
desregulamentação universal. O que antes era legítimo direito dos cidadãos (a teia de
dispositivos sociais que garantiam minimamente uma sobrevivência digna, como o seguro-
desemprego, os serviços de saúde pública), transforma-se, de repente, em insuportável ônus
para a sociedade. A ausência de política passou a ser pré-requisito para a felicidade
individual, somente atingível a partir da mais absoluta liberdade de mercado.
30
KEHL, M. R. Sobre ética e psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
31
BAUMAN, Z. O mal-estar da pós modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
50
Sobre essas questões Joel Birman explica que, quando a lei passa a ser ditada pelo
mercado e os grupos econômicos são autorizados a falar em nome do pai e dizer a lei,
aqueles que são a ela subordinados não sentem mais o conforto da segurança em troca da
submissão à autoridade. Em uma sociedade onde não há bem-estar para os indivíduos, em
que não estão asseguradas as mínimas possibilidades de gozo para grande parte da
população, em que sequer encontram condições de sobrevivência para se reproduzirem como
força de trabalho, não é surpreendente, nem inaceitável assistir aos subordinados à lei –
agora formando hordas de despossuídos – procurarem garantir para si, através da violência,
uma fração das fontes de gozo. O conflito entre pulsão e civilização, por certo, não será
superado por formas tradicionais de controle, como o sistema penal. Esse quadro tão
sombrio traz como conseqüências mais visíveis a perda dos laços de solidariedade e a
debilidade do desejo como instrumento de afirmação e transformação do indivíduo.
Enquanto alguns se acham desinvestidos da própria subjetividade, outros direcionam seu
querer para um horizonte exibicionista e autocentrado.
32
Observa-se que as questões sociais podem induzir a distorções morais e a uma
conseqüente confusão acerca dos padrões éticos que influenciam diretamente as concepções
psicanalíticas de saúde mental, mudança psíquica, entre outras.
Kehl situa a crise moral em que vivemos na atualidade em duas vertentes: a
dificuldade do reconhecimento da lei que interdita o gozo, por não encontrar mais
sustentação em nossa cultura e a desmoralização do código moral em decorrência das
transformações culturais que resultaram em uma mudança em relação ao outro. Para essa
autora, o sujeito vive, hoje, um estado profundo de desamparo, tendo perdido seus laços
sociais e sua certeza do bem e da verdade.
33
32
BIRMAN, J. (1999). Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
33
KEHL, M.R. Ibidem.
51
Não devemos esquecer que a questão da moralidade traz o conflito eterno entre o que
se deve e o que se deseja fazer, conflito esse que pode ser chamado de fonte do mal-estar da
civilização. Mas, o que define moral e comportamento moral? Por moral, considera-se
(nesse trabalho) um sistema de leis e de valores estudados pela ética,
34
que pertence a uma
determinada cultura e a um determinado tempo histórico, que tem como característica
principal organizar as relações entre os indivíduos de uma determinada comunidade,
definindo e prescrevendo comportamentos. Por comportamento moral, compreende-se
qualquer ação que se dê em acordo com um código de valores específico.
35
Cabe aqui de forma resumida, apresentar a considerações acerca da moralidade para
Freud, uma vez que esse trabalho trata fundamentalmente de indivíduos que estão em
constate conflito com os sistemas de leis e valores da sociedade a qual está inserido. Freud se
deu conta de que as normas sociais atravessam as pessoas, têm uma incidência dinâmica
sobre elas e que o comportamento é, certamente, governado por aquilo em que se acredita,
mas aquilo em que se acredita vai muito além do que se pode imaginar. Ainda defende uma
idéia audaciosa para sua época: a necessidade de uma moral sexual menos repressiva. Isso
porque os desejos e impulsos sexuais não-satisfeitos, incapazes de obter satisfação direta ou
sublimada, acabam funcionando como combustível para a formação dos sintomas neuróticos.
Para Freud, a moral tem a função de regular os relacionamentos entre os homens a
fim de possibilitar o convívio em comunidade e o desenvolvimento da civilização. Ou seja,
Freud não propôs uma nova conceituação de termos, ele os acata como são genericamente
definidos pela filosofia: uma busca da distinção entre o bem o mal, entre o certo e o errado,
uma ciência dos costumes. A novidade em Freud está na especulação acerca da gênese dos
34
Ética é definida como a parte da filosofia responsável pela investigação dos princípios que determinam,
orientam e motivam o comportamento humano e que refletem normas e valores, e, por meio desse processo de
investigação, procura fundamentar e definir a natureza do Bem e do Mal, bem como propor um método para
sua distinção e para a escolha entre um e outro.
35
Tal definição bastante genérica não reproduz nenhum sistema filosófico específico, mas tiveram como base
dicionários de filosofia e de língua portuguesa, tais como: JAPIASSU e MARCONDES (1990) e HOUAISS
(2007).
52
sentimentos morais no indivíduo e na sociedade. Segundo ele, tais sentimentos não são
naturais ou inerentes ao espírito humano como pensaram alguns filósofos, e sim, criados a
partir da convivência em comunidade, e se justificam a partir da necessidade de domínio das
forças da natureza – necessidade essa da ordem da sobrevivência da espécie.
Embora Freud no artigo O mal-estar da civilização de 1930, afirme, em determinado
momento de sua obra, que o Bem e o Mal possam ser definidos a partir da relação de
dependência do indivíduo com as outras pessoas, ele não se propõe a definir a natureza do
Bem e do Mal, nem, portanto, a realizar uma fundamentação da ética. Todavia, acredita que
a psicanálise pode esclarecer a origem e as formas de manutenção da ética através da
necessidade e do amor. Entretanto, o mais importante para a psicanálise é a constatação de
que a moral, enquanto produtora de um sistema de valor, está na origem de algumas
patologias psíquicas.
36
A partir de seu estudo, Freud percebeu que a convivência em comunidade se constrói
sobre uma cota de renúncia pulsional, especialmente no que tange aos impulsos sexuais e
agressivos, em que as normas éticas se apresentam como balizas para essa renúncia.
Contudo, é importante destacar que, de acordo com a proposta de Freud, os indivíduos só são
capazes de aderir às normas morais e de viver em civilização porque contam com um
aparelho psíquico capaz de organizar as pulsões, dando-lhes destinos possíveis. Para Freud, a
gênese da moral no indivíduo se superpõe à da moral na civilização, ou seja, a ontogênese
remonta a filogênese. Assim, o processo de constituição de uma barreira moral na cultura é,
em essência, o mesmo que ocorre em um indivíduo.
37
No texto Projeto para uma psicologia científica (1895), Freud explica o acontecer da
vivência de satisfação, que está condicionada a partir da existência de um outro, na maioria
36
FREUD, S. (1930). Mal-estar na civilização. ESB. Edição Standard das obras completas de Sigmund Freud,
24 vol., Rio de Janeiro: Imago, 1996, vol. XXI.
37
FREUD, S. (1930).Ibidem.
53
das vezes, a mãe. Essa experiência vai além da simples presença, necessita do
reconhecimento desse outro. Na vivência de satisfação, ocorre a gênese da pulsão sexual e a
instauração do desejo. Vale salientar que essa satisfação não é somente alimentar, mas
também libidinal, sendo essa última, provavelmente, mais importante. É também nesse texto
que Freud traz um importante registro sobre a origem da moralidade no ser humano. Ele fala
de uma ação específica que ocorre no interior do corpo do bebê e que a mesma só pode ser
promovida de determinadas maneiras.
O organismo humano é, a princípio, incapaz de promover essa ação
específica. Ela se efetua por ajuda alheia, quando a atenção de uma pessoa
experiente é voltada para um estado infantil por descarga através da via de
alteração interna. Essa via de descarga adquire, assim, a importantíssima
função secundária da comunicação, e o desamparo inicial dos seres
humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais
38
.
Seguindo esse pensamento, pode-se dizer que, a partir do contato com o mundo
externo, organiza-se o ego. Esse deve ser capaz de: buscar na realidade os objetos de
satisfação pulsional; substituir o princípio do prazer, que reina absoluto no id, pelo de
realidade; realizar recalcamentos, retirando da consciência tudo aquilo que é desprazeroso ou
perigoso para sua existência. Uma das principais funções do ego é a autopreservação.
Concomitantemente, há o desenvolvimento do superego a partir da internalização do conflito
entre a pulsão e ser impedimento, que é de extrema importância para a sobrevivência do ego,
pois, após sua ocorrência, não necessita mais de se expor à realidade, nem arcar com as
conseqüências, podendo internamente calcular seus atos.
O julgamento moral se apóia nos limites do superego, mas depende das funções do
ego, tais como teste de realidade, memória, pensamento, etc., para ser realizado. Ao ego
cabe, então, a preciosa função de mediar a relação entre os impulsos do id, as exigências do
superego e as proibições e possibilidades de satisfação substituta oferecidas pela realidade.
38
Idem. (1895). Projeto para uma psicologia científica. Ibidem, vol. I, p. 370, grifos do autor.
54
Psiquicamente, a moral é descrita por Freud como uma limitação da pulsão, diante da qual o
aparelho psíquico tem a função de absorver o impacto, encontrando novos caminhos
possíveis para a pulsão.
Segundo Freud, o desenvolvimento moral do indivíduo está vinculado à passagem
pelo complexo de Édipo, quando a criança experimenta uma série de sentimentos
ambivalentes, fundamentais para a organização de seu ego e para a formação do superego.
Contudo, sabe-se que, em muitos casos, a restrição pulsional (fundamental para a formação
da consciência moral) leva à estruturação da neurose, ora porque o indivíduo não é capaz de
encontrar uma satisfação substituta, ora porque essa satisfação, devido a mudanças da
realidade ou da economia pulsional, deixa de desempenhar seu papel, resultando em algum
sintoma neurótico.
Mas como ficam os psicopatas? A relação dos psicopatas com a moralidade é
diferente daquela que se estabelece na neurose. Nesse caso, assemelha-se ao que acontece na
perversão (não que sejam iguais), mas ambas não aceitam a necessidade de renúncia
pulsional do mesmo modo que o neurótico. Os psicopatas ignoram e transgridem as leis e
valores sociais, recusando a castração imposta pela Lei do pai.
O desenvolvimento da moralidade no indivíduo remonta ao desenvolvimento da
moralidade na espécie humana. Isso não ocorre por acaso. Para Freud, há uma relação direta
entre a filogênese e a ontogênese, conforme dito anteriormente. Entretanto, a partir de
evidências clínicas sobre o superego, o complexo de Édipo, do sentimento de culpa, ou seja,
da formação da moralidade no indivíduo, Freud constrói um mito
39
de como tal formação
39
O mito do assassinato do pai da horda primitiva, escrito em 1912-1913, no artigo Totem e tabu, é criado por
Freud para explicar o estabelecimento do horror ao incesto na sociedade. Freud acredita que tal sentimento não
é inato, muito mesmos os povos primitivos percebiam a justificativa biológica para sua não-realização, como
por exemplo, os prejuízos genéticos. Freud propõe, então, a história da horda primitiva e do assassinato do pai
para explicar a origem do horror ao incesto, um crime que ligaria a sociedade através do sentimento de culpa e
do remorso. Mas Freud lembra que o que está por trás do sentimento de culpa do neurótico é a realidade
psíquica, e não concretas. Desse modo, não há nenhuma necessidade de pensar que o mito freudiano do
assassinato do pai tenha ocorrido de fato. Apenas uma fantasia movida por um desejo hostil em relação ao pai
55
teria se desenvolvido na espécie. Tem ainda o cuidado de afirmar que de nada importa se o
mito não passar de uma invenção, pois, aos neuróticos, o que importa é a realidade psíquica,
ou, no caso, o desejo de eliminar o pai, não a concretização do ato (veremos como na
psicopatia a dinâmica psíquica é outra).
A importância do mito freudiano é então sustentar a idéia de que a civilização e a
psicopatologia têm a mesma origem, a saber, a renúncia pulsional. Uma das implicações
dessa hipótese é pensar que os conflitos morais vividos pelos indivíduos são, na realidade,
conflitos pulsionais que podem, portanto, ser tratados em análise. Os conflitos psíquicos,
assim como propostos por Freud, ocorrem sempre entre um desejo (expressão de uma
pulsão) e uma proibição (seja da realidade ou do superego), ou seja, têm uma natureza
essencialmente moral, uma vez que decorrem da necessidade de se abdicar da realização de
certas pulsões em favor da sobrevivência. Desse modo, a revisão de valores que se desenrola
em uma possível análise, não é uma simples troca de valores disfuncionais por outros mais
interessantes do ponto de vista do ego. Trata-se de uma reorganização das forças psíquicas
envolvidas nos conflitos, de uma amenização da força inexorável do superego, de um
aumento da capacidade do ego de gerenciar as exigências da realidade e do superego.
Visto isso, a teia de relações que se estabelece é extremamente complexa e singular
de cada indivíduo, e assim, quando se trata da investigação da relação do indivíduo com a lei
e as normas sociais, não pode se reduzir a uma abordagem em termos desenvolvimentistas,
já que por essa via se ofusca o fato fundamental de que a presença dessa relação é
constitutiva da subjetividade humana.
De acordo com Flávio Carvalho Ferraz,
40
a questão da gênese e do desenvolvimento
da consciência moral constitui um dos pilares da estruturação da teoria psicanalítica. Desde o
da horda já teria sido suficiente para produzir a reação moral que criou o totemismo e os tabus, assim como a
fantasia hostil em relação ao próprio pai que opera na passagem pelo complexo de Édipo e colabora na
instituição da moralidade no indivíduo.
40
FERRAZ, F. C. (1994). Ibidem.
56
princípio, a investigação psicanalítica procurou compreender quais os motivos que levariam
o homem a agir de determinada maneira, ou seja, que espécie de motivação se encontra
subjacente à formação dos mecanismos psíquicos que, tanto no nível intelectual, quanto no
cultural, determinam um código moral utilizado em nome da fundação e da manutenção da
civilização.
Tratar-se-á do conflito eterno entre o que se deve e o que se deseja fazer, a fonte do
mal-estar na civilização. Para Freud, a moralidade é tratada como parte da condição humana,
e que a relação do sujeito com a norma opera como constitutiva da subjetividade. Sobre isso
escreve:
(...) o problema que temos pela frente é saber como livrar-se do maior
estorvo à civilização – isto é, a inclinação, constitutiva dos seres humanos,
para a agressividade mútua; por isso mesmo, estamos particularmente
interessados naquela que é provavelmente a mais recente das ordens
culturais do superego, o mandamento de amar ao próximo como a si mesmo
41
.
Para alguns autores, a existência de atos anti-sociais delituosos é, antes de tudo, algo
externo, ou seja, social e legal. Segundo Jurandir Freire Costa:
[...] os ataques, agressões, pedidos ou súplicas, que estes indivíduos
(delinqüentes) dirigem ao social não são apenas tentativas de extrair do
mundo gratificações imediatas, que manifestam por um caminho ‘ilegal’, a
crença na lei e nos seus direitos a uma vida psíquica, fora da psicose. A
delinqüência é uma trincheira contra a perda do sentido da realidade ou, o
que é mais grave, contra o avanço da própria morte.
42
Outros estudos abordaram o problema da criminologia, dando maior importância à
etiologia familiar do quadro. A busca da gratificação dos desejos reprimidos do pai pode
levar a uma atuação anti-social na criança, instalando um conflito na internalização de
41
FREUD, S. (1930). Ibidem.
42
FREIRE COSTA, J. Violência e psicanálise. Rio de Janeiro: Graal, 1982, p. 101-102.
57
regras. Outra hipótese leva a pensar-se que a privação da mãe ou da vida familiar pode levar
à criminalidade.
Assim, fica o questionamento sobre a psicodinâmica do psicopata: se há
predominância de caráter neurótico ou psicótico. Para Grassano,
43
as características
diagnósticas de níveis de patologia se designam fundamentalmente à diferenciação entre
neurose e psicose, mas que considera a psicopatia como uma outra categoria diagnóstica.
C. Criminoso neurótico e psicopata
Acerca das questões sobre indivíduos criminosos, encontram-se na obra freudiana
referências quanto a tal questão: no artigo Moral sexual civilizada e doença nervosa
moderna, de 1908, Freud observa que o criminoso é aquele que não pode suportar as
restrições impostas pelo meio social.
44
Em outro artigo de 1916, Alguns tipos de caráter
encontrados no trabalho psicanalítico, preocupava-se com a questão da diferenciação dos
tipos de motivações para o crime. Para ele, existiam os criminosos em conseqüência de um
sentimento de culpa e os criminosos que executavam seus atos sem qualquer sentimento de
culpa e que não desenvolveram quaisquer inibições morais ou, em seu conflito com a
sociedade, consideram sua ação justificada.
45
.
Nesse artigo, analisa o caráter de alguns tipos de criminosos e intui que a idéia que se
tinha sobre a psicopatia, não explica exatamente o problema, mas deixa claro que existiam
tipos diferentes de indivíduos criminosos.
Para ele, alguns indivíduos eram movidos pelo sentimento de culpa, ou seja, esse
sentimento não seria decorrência da ação criminosa, mas a causa. O sentimento de culpa já
43
GRASSANO, E. Indicadores psicopáticos nas técnicas projetivas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1996.
44
FREUD, S. (1908). Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna. Ibidem, IX.
45
FREUD, S. (1916). Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico. Ibidem, XIV, p. 190.
58
existente no indivíduo é que o leva a delinqüir, para que pudesse se conectar a algo no plano
da realidade externa. Assim, coloca que as ações criminosas são praticadas principalmente
por serem proibidas e por sua execução acarretar, para seu autor, um alívio mental.
46
Além da busca de tal alívio mental, o sentimento de culpa inconsciente pode levar o
indivíduo a praticar um ato delituoso para também ser punido. Assim, esse sentimento se
mistura com a necessidade de punição, que pode ser pensada como uma outra espécie de
motivação para o crime. Tal sentimento de culpa ocorre quando o ato criminoso até sem a
total consciência do indivíduo, que o executa, mas que lhe escapa o real motivo de seu ato.
Porém, isso não o exime da responsabilidade por um desejo que por mais inconsciente que
seja, não faz dele um inocente. Ricardo Goldenberg em seu livro Ensaio sobre a moral de
Freud (1994), analise esse tipo de indivíduo e explica:
É [...] tão falso acreditar na fraqueza da consciência moral do criminoso,
como concluir que seus crimes não passam de um desafio lançado ao rosto
da lei. Ao contrário, muitas vezes delinqüir é seu modo de invocar a ajuda
da lei, para que esta o impeça de continuar na trilha inexorável da destruição
na qual se encontra preso. Apesar do que se imagina a lei não prende, libera.
Por isso, e contra o pai Karamazov, que se apressa a concluir que se Deus
morreu, então, tudo está permitido, diremos: nada estaria permitido se Deus
estivesse morto.
47
Os neuróticos costumam supervalorizar os pensamentos, reagindo à realidade
psíquica veementemente, como se fossem fatos concretos. Se a intensidade dos desejos
proibidos que estão encobertos for tamanha a ponto de dominar seus pensamentos, esses
podem se sobrepor à realidade. Freud observou que, mesmo quando se comporta como o
mais escrupuloso e respeitável membro da sociedade, o neurótico obsessivo pode ser
oprimido por uma sensação de culpa intolerável, que seria adequada para um grande
assassino.
48
Esta hipermoralidade se apresenta desde cedo, com a inibição dos impulsos
46
FREUD, S. (1916). Ibidem, p. 195.
47
GOLDENBERG, R. Ensaio sobre a moral de Freud. Salvador: Ágalma, 1994, p. 19.
48
FREUD, S. (1913/14). Totem e tabu. Ibidem, XIII.
59
hostis perante os pais, culminando no pudor, isto é, uma defesa contra os próprios impulsos
agressivos, consistentes no respeito a si mesmo diante do olhar agressivo do outro.
49
Como
já dito, o sentimento de culpa pré-existente resulta da tensão entre as demandas do superego
e a performance do ego. Suas raízes podem ser achadas no complexo de Édipo dos primeiros
anos de vida, cujo herdeiro é o superego.
50
As pulsões que o indivíduo não suporta (estando inconscientes por isso) surgem na
infância, no âmbito das relações filho-mãe e, logo depois, filho-pai. Ferenczi alertou para o
erro que é cultivar a pureza e inocência das crianças, seres egocêntricos e sexualizados. Ao
contrário, nelas se identificam diversas tendências delituosas. Recalcados nos primeiros anos
de vida certos acontecimentos, que assim são esquecidos ou extirpados da consciência, o
adulto geralmente não consegue perceber, a não ser através do trabalho clínico de análise, a
gravidade de eventos da primeira infância. A adaptação social começa após a superação do
complexo de Édipo pelo indivíduo, a partir dos seis anos e até a adolescência. É quando os
impulsos anti-sociais são reprimidos. Muitas experiências dolorosas do período inicial
podem evoluir para disposições patológicas ou criminosas.
51
É necessário assumir que a
primeira forma de controle exercida sobre o indivíduo é a educação, que deve gradualmente
conter e domesticar as pulsões da primeira infância, através do recalcamento e da
sublimação. Enquanto o primeiro sufoca as pulsões primitivas pela severidade de sua
atuação, a sublimação procura aproveitar a potencialidade criativa e a energia contida nessas
pulsões, desviando-as para fins superiores, socialmente aceitáveis, como as artes, ciência, a
religião, os trabalhos comunitários. A sublimação dos desejos provenientes das pulsões,
49
MEZAN, R. (1985). Freud, pensador da cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 235.
50
Freud, através de observações dos neuróticos, psicóticos e histéricos pôde investigar os mecanismos do
inconsciente presentes em todo ser humano, cujo psiquismo desenvolve formas de proteção contra as
percepções dolorosas da realidade e os pensamentos desagradáveis. É no inconsciente que se encontram
recalcados o destino de pulsões primitivas, da infância, ocultos por força da adaptação cultural do indivíduo,
sendo que quanto maiores as necessidades a serem satisfeitas numa determinada classe social, mais importante
será a atuação do recalque.
51
FERENCZI, S. Psicanálise e criminologia. Obras Completas, vol. IV, Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1992.
60
através de prazeres substitutos dos mesmos, é estratégia comum de busca da felicidade: a
abstinência e negação do prazer físico deslocam o investimento libidinal, substituindo-o pela
satisfação dos prazeres do espírito.
Enfim, é a partir da renúncia à satisfação de algumas pulsões por parte dos indivíduos
que uma sociedade se desenvolve. O início da civilização tem como conseqüência a
domesticação do homem primitivo, com o gradual decréscimo de sua sensação de
onipotência. A atenuação do egoísmo e da libido representa a vitória do princípio da
realidade sobre o princípio do prazer e trazem a evolução social, desde que aos homens não
seja exigida maior carga de sacrifícios que o estritamente necessário. Essa última ressalva se
justifica pelo receio do totalitarismo do Estado, ao impor a renúncia ao individualismo,
produzir doenças sociais mais devastadoras do que as que se pretendia evitar.
52
Freud nos chama a atenção para a dificuldade em adaptar as exigências sociais à
condição psicológica própria de cada indivíduo.
53
Após anos de clínica, pôde ele entender e
denunciar a indesejável complicação, o estorvo que representava, tanto para a medicina
quanto para o direito, a existência das neuroses. A patologia mental e os aspectos psíquicos
da vida exigiam métodos de tratamento muito diferentes dos utilizados pelos médicos nas
doenças orgânicas, fisiológicas.
Apesar desse sentimento de culpa não ser o mesmo do sintoma neurótico (que é
produzido pela repressão), sua origem diferencial não aparece na obra freudiana. Ele se
refere ao sentimento de culpa cultural que atinge toda humanidade. Suas origens estão na
herança filogenética da culpa pelo incesto e pelo parricídio, os dois grandes impulsos
criminosos, dos quais derivam todos os outros
54
.
52
Ferenczi observava que o ascetismo excessivo que caracteriza os Estados fundamentados na religião, assim
como os Estados sociais-democratas, corresponde ao processo de recalcamento com efeitos nocivos sobre o
desenvolvimento individual normal (FERENCZI, S. Importância da Psicanálise na Justiça e na Sociedade.
Obras Completas, vol. II. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1992, p. 9).
53
FREUD, S. (1926). A questão da análise leiga. Ibidem, XX.
54
Idem.
61
Na Conferência XXI, das Conferências introdutórias à psicanálise (1917), Freud
afirma que a humanidade como um todo pode ter adquirido seu sentimento de culpa, a
origem primeira da religião e da moralidade, no começo de sua história com o complexo de
Édipo.
55
Já em o Ego e o id,
56
reformula sua teoria, trabalhando com a possibilidade da
existência de um superego severo e uma atividade intensa da pulsão de morte. Dessa forma,
o superego rígido e severo se volta contra o ego, desenvolvendo um componente altamente
destrutivo.
Segundo Ferraz
57
, nas tendências anti-sociais, pode-se detectar a mesma rigidez
superegóica presente na necessidade de punição. Ainda segundo esse autor, esse mecanismo
é diferente do da melancolia, onde a destrutividade se volta para o ego porque esse está
identificado com o objeto. Já na psicopatia, o mecanismo elegido é a paranóia e a
destrutividade está dirigida ao objeto externo, vivenciado como objeto perseguidor.
Em Tipos libidinais (1931)
58
, Freud faz uma classificação dos tipos psicológicos
através da organização da libido. Dos três tipos principais classificados por Freud, um deles
apresenta fatores que podem levar à criminalidade. Ferraz escreve que:
O tipo erótico (cuja libido é voltada na maior parte para a vida amorosa com
angústia de perda do amor, dependência dos objetos externos e, portanto,
cuja principal necessidade é a experiência de ser amado), o tipo obsessivo
(dominado pela ação do superego e pela angústia moral, o que o limita e o
coloca na dependência interna das instâncias interditoras), o tipo narcisista,
sem tensão entre o ego e o superego, nem predominância das necessidades
eróticas, orientado para a auto-observação, autônomo e pouco intimidável;
impõe-se como ‘personalidade’ particularmente qualificada para servir de
sustento aos outros, assegurar o papel de líder, dar ao desenvolvimento
cultural novas impulsões ou atacar aquilo que está estabelecido. Nesta
qualidade de ser transgressivo às normas vigentes, ele pode ser tanto
aproximado à figura do ‘herói’ quanto do criminoso.
59
55
FREUD, S. (1917b). Conferências introdutórias sobre psicanálise. Ibidem, XV.
56
Idem. (1923). O ego e o id. Ibidem, XIX.
57
FERRAZ, F. C. (1994). Ibidem.
58
FREUD, S. (1931). Tipos libidinais. Ibidem.
59
FERRAZ, F. C.(1994). Ibidem, p.102.
62
Com a inauguração de suas aprofundadas reflexões sobre o social e a cultura, em
1913 com Totem e tabu, Freud escandalizou ao apontar como marca indelével da
humanidade o primeiro crime, praticado em razão do ódio ao pai e da tentação do incesto.
Voltando ao O mal-estar na civilização, de 1930, em natural desdobramento da primeira
concepção, apresentou o sentimento de culpa como o problema-chave na evolução da
civilização, representado no aparelho mental como a rigorosa inibição da agressividade do
ego realizada pela consciência.
Essa culpa generalizada, partilhada por toda a espécie humana, aparece
fundamentalmente na religião, sob a denominação de pecado. No início, crime, vício e
pecado não se distinguiam, englobados na mesma categoria de mal. Também a história das
civilizações mostra que os crimes, nos primeiros tempos da vida social, eram tratados como
uma responsabilidade coletiva e não mera questão individual.
Pois bem, já foram lançadas as bases que possibilitam o esclarecimento da motivação
dos delitos e sua ligação com esse sentimento universal. Para o efeito de se identificar de
onde provém as condutas criminosas, considere-se três as fontes possíveis do ato pulsional, o
ego-pulsão (id), ego-realidade (o ego propriamente dito) e superego, conforme resume
Ferenczi:
[...] em primeiro lugar, da imensa força da base pulsional que as
organizações, hierarquicamente superiores, do ego não conseguem
controlar; em segundo lugar, da debilidade do ego-realidade ou, para falar
de maneira superficial, da faculdade intelectual de julgamento; em terceiro
lugar, somente, vem a possibilidade, enunciada por Freud e Reik, do crime
por sentimento de culpa, o qual encontra sua explicação na supermoralidade
sádica do superego.
60
Em uma conferência proferida em 1928 na Associação de Psicopatologia Aplicada de
Viena, Ferenczi demonstrou seus interesses pelo estudo da criminologia, expondo uma
60
FERENCZI, S. Psicanálise e criminologia. Obras Completas, vol. IV. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1992,
p. 199-200.
63
possível criminologia psicanalítica, que partiria da constatação da familiaridade entre os
fenômenos do crime e da perversão e teria como uma de suas tarefas a rediscussão, sob o
prisma psicanalítico, da velha problemática do inato versus o adquirido no campo da
criminalidade. Outro autor que se interessou pela constituição de uma possível criminologia
psicanalítica foi Franz Alexander que, em seus estudos sobre criminalidade, propôs três
classificações para o criminoso: o criminoso psicótico, o criminoso neurótico e o criminoso
normal. Para ele, a motivação para o crime podia ser encontrada na necessidade de
autopunição. Friedlander também influenciou a criminologia psicanalítica. Enfatizou as
atitudes maternas vivenciadas como violência emocional pela criança na formação da
estrutura de caráter anti-social. Dentre outros, Lagache citou, em seus trabalhos sobre
personalidade criminosa, algumas características como fraqueza do ego, imaturidade,
egocentrismo e anomalias do superego, relações interpessoais marcadas pela violência
sofrida ou infligidas, falta de franqueza, falta de consciência e falta de vontade de curar-se.
61
No que se refere ao crime por sentimento de culpa, fruto do sadismo do superego
contra o ego submetido, é estabelecido como diferença entre o criminoso e os demais
indivíduos o fato daquele não possuir a faculdade de controlar suas pulsões. É interessante
destacar que a moralidade aqui funciona como reação às forças pulsionais do delinqüente,
que vive, no extremo, a tensão criada entre suas tendências egoístas e o seu autocontrole, não
raro traduzido na necessidade de autopunição.
62
Está presente no criminoso uma moral
suficientemente rigorosa para defendê-lo das tentações. O ato pulsional, em busca do alívio,
quando não está a serviço da vida, na forma de atividades de adaptação (podem ser variadas,
como visto, manifestando-se através das aptidões artísticas, atos de caridade, o trabalho),
toma a forma de forças destrutivas ou autodestrutivas.
61
SHINE, S. K. Ibidem.
62
FERENCZI, S. Ibidem, p. 203.
64
Em sua experiência clínica, Freud analisou as más ações cometidas por alguns de
seus pacientes, tendo alcançado importantes conclusões acerca da motivação dos atos
criminosos. Foi detectada a existência de indivíduos que praticam crimes movidos por um
sentimento de culpa. Suas ações proibidas acarretariam ao transgressor um alívio mental que
atenua a opressão decorrente do sentimento de culpa que o acompanhava. Com a prática do
crime e a conseqüente reação punitiva, o indivíduo tornava então palpável aquela culpa
experimentada previamente, cuja origem ignorava.
Mas, qual a raiz dessa ação implacável do superego, capaz de impor ao ego uma
culpa torturante que clama por alívio? O trabalho analítico freudiano mostrou que o
sentimento de culpa da humanidade em geral representava uma reação às intenções
criminosas originais de matar o pai e ter relações sexuais com a mãe,
63
64
o que infelicita o
gênero humano, impossibilitado de se livrar do desejo do crime. O complexo de Édipo se
encontra presente de forma decisiva na obra de Freud, que buscou na mitologia a
comprovação da existência de desejos presentes e atuantes na infância do indivíduo.
Voltemos assim à nossa principal testemunha em assuntos concernentes aos
tempos primevos – a mitologia. Ela nos informa que os mitos de cada povo,
e não somente dos gregos, estão repletos de casos amorosos entre pais e
filhas e mesmo entre mães e filhos. A cosmologia, não menos que a
genealogia de raças reais, está fundamentada no incesto. Para que finalidade
o senhor supõe que essas lendas foram criadas? Para estigmatizar deuses e
reis como criminosos? Para imputar-lhes a repulsa da raça humana? De
preferência, por certo, porque os desejos incestuosos constituem um legado
humano primordial e jamais foram plenamente superados, de modo que sua
realização ainda era concedida aos deuses e aos seus descendentes quando a
maioria dos seres humanos comuns já era obrigada a renunciar a tais
desejos.
65
Desse modo, fica mais fácil aceitar que o sentimento de culpa, bem como o desejo de
punição, longe de representarem característica de exceção, são comuns aos homens
63
FREUD, S. (1916). Ibidem, p. 347.
64
Não se deve menosprezar nem tampouco ironizar a força desse elo entre culpa e castração edipiana, presente
na mitologia e nos ícones religiosos de vários povos. Também a literatura mais consagrada trata do parricídio,
como o Hamlet de Shakespeare e Os Irmãos Karamazov de Dostoiewski.
65
FREUD, S. (1926). Ibidem, p. 207.
65
civilizados e constituem a sobrevivência de uma revolução produzida na pré-história da
humanidade.
66
Em um estágio primitivo de adaptação à civilização, quando a espécie
humana ainda não estava diferenciada em raças, identifica-se a figura do pai tirano,
67
beneficiário de todas as vantagens materiais e sexuais, contra quem se formou a aliança dos
filhos, desejosos de tomar suas qualidades e seu poder. Em uma relação ambivalente, os
irmãos odiavam o pai, que era um obstáculo aos seus anseios, mas também o admiravam.
Após o confronto sangrento, que resultou na eliminação do pai, adveio a culpa e a veneração.
Os irmãos passaram a restabelecer a forma patriarcal de organização social, que leva
necessariamente ao rigor e à opressão. A morte do pai, temido e amado, inaugura a
possibilidade do crime como estigma indissipável da civilização e introduz o homem no
infeliz destino da culpa e da renúncia. Aí reside a origem das religiões hoje existentes, assim
como o fundamento do pecado original, que traz aos homens uma percepção inconsciente de
excessivo rigor em suas pequenas infrações, sentidas como ataque a autoridade paterna.
68
Aparece a figura do Deus, formada à semelhança do pai: a fim de atenuar sua culpa, os filhos
passam a procurar um pai substituto, capaz de oferecer-lhes conforto emocional e proteção,
enfim, alguém que pudessem glorificar. Com o passar do tempo, Deus passou a ser exaltado
muito acima da humanidade e o domínio da autoridade chegou ao seu clímax, em um ponto
talvez mais implacável que aquele dos tempos do pai deposto.
69
O poder da lei deriva desse
mito do pai ausente, em nome de quem a lei é ditada, no primitivo elo do indivíduo com o
social e a norma. Um pai que concebeu a lei e cujo homicídio a ela ligou indelevelmente o
66
FERENCZI, S. Importância da psicanálise na justiça e na sociedade. Obras Completas, vol. II. Rio de
Janeiro: Martins Fontes, 1992.
67
A imagem do pai da horda primitiva corresponde ao modelo de Deus, definido por Freud como um pai
glorificado (Totem e Tabu – 1913/14, p. 151).
68
Deve-se a Freud o paralelo entre a história da sociedade primitiva e a formação do superego, a partir do
estudo dos aborígenes da Austrália em Totem e Tabu, sua primeira e inovadora reflexão sobre o social e a
cultura.
69
FERENCZI, S. Ibidem, p. 153-154.
66
sujeito. Sem o evento da morte violenta do pai déspota pela horda, talvez inexistissem crime,
moral ou religião, ao menos do modo como se apresentam.
Diante da evidência de que, na raiz de toda forma de religião se encontra a saudade
do pai, sucedido então por Deus, vale destacar, agora, uma relevante narrativa que retrata
momento crucial na história da civilização. É através de um mito, o da queda do homem do
paraíso, que Reik identifica a constituição da propalada culpa universal no primeiro e
fundamental crime da humanidade, o crime da desobediência ao Senhor pela prova do fruto
proibido. Longe de pertencer a uma religião exclusiva, essa passagem aparece sob diferentes
roupagens mitológicas, inclusive orientais. Não é só na passagem bíblica do Gênesis que se
tem o registro dos ancestrais do homem vivendo felizes em sintonia com o todo-poderoso,
até a prática de uma determinada violência (ou negligência) contra a divindade, causando a
indignação divina, que condenou a raça humana, desde então, a viver longe de Deus e a
trabalhar diariamente por seu alimento. É um mito comum a quase todos os povos do globo,
já remoto por ocasião da primeira vez em que foi escrito, possivelmente por volta de
novecentos anos antes de Cristo, e fundado em tradições anteriores à divisão dos homens em
grupos e nações. Postas às claras tantas evidências, não é surpreendente encontrar o modelo
de culpa anterior à objetividade do cometimento do delito na culpa religiosa, nomeadamente
a cristã.
O drama da horda primeva não foi um evento singular, como pode parecer a partir da
forma condensada como é narrado. Duraram séculos e, por certo, foi repetido inúmeras
vezes, de modo a ecoar no presente. A eterna rivalidade do filho com o pai é
inexoravelmente experimentada em uma etapa inicial da vida e deve ser superada e resolvida
já na puberdade, quando o rapaz passa a admirar e seguir os passos do pai, ao invés de a ele
se opor. Com o passar do tempo, a influência desse pai é atenuada e acaba transferida para a
consciência moral, essa potência repressiva interior, formada pelo superego e nascida em
67
parte dos resquícios do complexo de Édipo, de certa forma como medida de proteção contra
este.
70
Boa parte dos comportamentos criminosos e a necessidade de castigo resultam de uma
resolução deformada desse complexo.
A condição humana sempre encerrou o dilema de sua agressividade: ou se entrega
aos seus impulsos agressivos ou a eles resiste. Em ambos os casos, a escolha traz a
infelicidade. Restrições e privações, especialmente na área da sexualidade,
71
provocam
ressentimento, ainda que reclamados no interesse da sociedade. A essa altura, percebe-se,
com clareza, que o sentimento de culpa resulta da ação repressiva do superego,
72
que assume
o papel do pai repressor. A cultura desenvolveu mecanismos para inibir a agressividade e
internalizá-la. Os controles internos operam, fazendo o homem sentir-se culpado, sempre que
seu querer colide com sua consciência imbuída dos freios sociais. Deglutir as pulsões hostis
inerentes aos indivíduos esvazia o seu desejo de agressão. Ou melhor: coloca-o em local
aparentemente seguro, o próprio ego, que passa a sofrer, por conta de sua sujeição ao
superego, a hostilidade que anteriormente queria endereçar a um semelhante. Ocorre que
essa aparente segurança, consistente em dirigir contra si a agressividade, não leva à auto-
aceitação das próprias limitações e, por extensão, não atenua aquele inconsciente sentimento
de culpa.
O papel do superego é mesmo primordial, por conta de sua força, a distinção entre a
efetiva prática de um ato criminoso e a simples intenção de cometê-lo passa a ser
imperceptível para a consciência. Poucas coisas incomodam mais que a circunstância de se
70
FERENCZI, S. Psicanálise e criminologia. Obras completas, vol. IV. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1992,
p. 201.
71
Essa restrição quanto ao sexo se dá por meio de discursos públicos e não pela simples proibição. Na hipótese
de Foucault, na modernidade, a partir do século XIX, a sexualidade está ligada a dispositivos de poder, o que se
expressa através da valorização do corpo como objeto de saber. Não é mais necessário reprimir o sexo ou
limitá-lo ao papel reprodutivo. O controle se dá, então, através da exposição. É o que chama a colocação do
sexo em discurso (In: História da Sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1985).
72
Também já se pode aqui afirmar que o superego não aparece apenas individualmente; ele foi estabelecido
pela humanidade, em nome de sua própria virtude.
68
ver perseguido pela idéia da prática de uma ação criminosa contra seu semelhante. Os
pensamentos inconscientes são supervalorizados em comparação com a realidade, o simples
exercício da expressão de desejos malignos pode ser visto pelo indivíduo como um risco
insuportável de sua realização. Empurrar alguém em um precipício, esganar uma criança,
imaginar-se o responsável por um homicídio brutal recém-ocorrido, a literatura policial e as
páginas cotidianas dos periódicos são pródigas na descrição de casos que excitam a
imaginação. Parece loucura que gente pacata seja assaltada por pensamentos tão
inconvenientes e, ao mesmo tempo, incontroláveis, que levam a um sentimento incômodo,
como se tratasse de um assassino procurado.
A preexistência de um sentimento de culpa, buscado nos impulsos reprimidos do
complexo de Édipo, pode ajudar a esclarecer a motivação de crimes gerados desse impulso
nebuloso que expele a tensão acumulada. Se tão poderoso sentimento existia antes do crime,
não é conseqüência da ação, mas sim o seu motivo.
73
Foi observado, ainda, que muitas
crianças criam situações de maneira a provocar o castigo, que as deixaria mais tranqüilas
pelo simples fato de terem sido punidas.
74
Tome-se o caso hipotético de uma menina de dez
anos que furtou uma barra de chocolate ostensivamente diante da vendedora, que a tudo viu
e denunciou o ocorrido à mãe. Por força dos modos de proteção desenvolvida nos primeiros
anos de vida e geradores de neurose, o sintoma apresentado pela garota revela uma clara
contradição: primeiro, satisfaz uma necessidade de afeição através da apreensão do objeto
alimentar; em seguida, ao se deixar descobrir, alivia seus escrúpulos, mas acaba perdendo a
afeição que buscava, por conta da punição aplicada pela mãe. O desejo simbolizado pelo
furto do chocolate é instantaneamente satisfeito e o sentimento de culpa acaba sendo
73
FREUD, S. (1923). Ibidem, p. 57, XIX.
74
Idem. (1916). Ibidem, p. 348, XIV.
69
amplificado. O quadro é complexo, como se percebe, com uma conduta única contraditória,
que apresenta absurda coerência, ao aprofundar uma contradição que tenta superar.
75
Os criminosos adultos trazem essa necessidade de punição, com exceção daqueles
que não tenham o superego desenvolvido e pratiquem condutas condenáveis sem
experimentar qualquer sentimento de culpa. O pálido criminoso do discurso de Zaratustra
corresponde ao criminoso em conseqüência de um sentimento de culpa focalizado por Freud,
conforme este último alertou. Com efeito, Nietzsche já falava na loucura antes da ação,
quando falou do homem que cometeu um homicídio simplesmente porque sua alma queria
sangue. Tão logo cravou a faca na vítima, porém, roubou seus pertences, como forma de
justificar a própria loucura.
76
Ocorreu, portanto, o que seria um latrocínio para poder sentir
de forma palpável todo o peso de sua culpa. Um exemplo clássico do criminoso que traz
consigo um pecado anterior à ação, que precisa ser purgado através da penitência.
A partir das considerações acerca do sentimento de culpa, o criminoso que age em
função de tal sentimento não pode ser considerado um indivíduo psicopático e sim um
neurótico criminoso. Então, como o psiquismo do psicopata funciona? Com certeza de uma
maneira totalmente diferente do neurótico, como veremos a seguir. Para a compreensão do
psicodinamismo da psicopatia serão utilizados como base fundamental os estudos de Otto
Kernberg, que se dedicou ao estudo de psicopatologias graves, incluindo a psicopatia.
D. Psicodinâmica da psicopatia
Otto Kernberg, psicanalista americano, realizou grande parte dos seus estudos sobre
os transtornos de personalidade e as perversões. Para ele, as perversões, do ponto de vista
75
FOUCAULT, M. (1954). Doença mental e psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991.
76
NIETZSCHE, F.W. Assim falou Zaratustra. (Coleção Os pensadores). São Paulo: Nova Cultural, 2005.
70
psico-estrutural podem ser classificadas em seis grupos principais, sendo um desses grupos
constituído pelo distúrbio de personalidade anti-social,
77
como descritos por vários autores
citados anteriormente nesse trabalho, como, por exemplo, Cleckley. Para Kernberg esses
casos, além de não terem sido conceituados de modo preciso no DSM-IV, representam o tipo
mais severo de distúrbios narcísicos de caráter, [...] no qual o desenvolvimento do superego
fracassou totalmente. Diz ainda que uma perversão consolidada em uma personalidade
psicopática deve sempre ser [...] considerada extremamente perigosa, até que se prove o
contrário. É nesse tipo de indivíduo que são encontrados os assassinos sexuais e os [...]
serial killers, nos quais resíduos eróticos são totalmente obscurecidos por formas extremas
de agressão primitiva.
78
Kernberg defende a idéia de que uma personalidade psicopática é independente do
grau de comportamento delinqüente, ou mesmo, da sua existência. Para esse autor, a
primeira indicação da possível existência da psicopatia (chamada por ele de transtorno anti-
social), é a presença de um transtorno narcisista de personalidade. Considerando as idéias de
Cleckley, o perfil clínico desse tipo de personalidade se enquadra em três categorias:
Certas características básicas que diferenciam a personalidade psicopática da
psicose e das síndromes cerebrais orgânicas: ausência de delírios e outros
sinais de pensamento irracional e comportamento psicopático
inadequadamente motivado;
Uma série de características encontradas em patologia grave de caráter
narcisista: vida sexual impessoal, corriqueira e muito pouco integrada,
relações interpessoais em geral apáticas, pobreza generalizada na maioria
das reações afetivas, egocentrismo patológico e incapacidade para o amor;
77
Kernberg utiliza o termo personalidade anti-social, correspondente à categoria do DSM-IV: transtorno da
personalidade anti-social, o qual o autor associa à psicopatia.
78
KERNBERG, O. (1998). Perversão, perversidade e normalidade: diagnóstico e considerações terapêuticas.
Revista Brasileira de Psicanálise, vol. 32, n. 1, p. 67-82, 1998, p. 72.
71
Tudo o que se relaciona com manifestações de patologia de superego; falta de
confiabilidade, insinceridade, ausência de sentimento de remorso ou
vergonha, falta de crítica e incapacidade de aprender pela experiência e
incapacidade de perseguir qualquer plano de vida.
79
Apesar de acreditar que a psicopatia está geralmente associada a um transtorno
narcisista de personalidade, não considera critério suficiente para o diagnóstico de
psicopatia. Explica que comportamentos anti-sociais podem emergir no contexto de outros
transtornos de personalidade:
[...] o diagnóstico diferencial torna-se muitíssimo relevante para a avaliação
desse sintoma por sua importância, tanto em termos de prognóstico como da
terapia. O comportamento anti-social, numa estrutura de personalidade não
narcisista, tem prognóstico extremamente negativo do comportamento anti-
social na personalidade anti-social propriamente dita.
80
Apesar dessas considerações sobre o diagnóstico da psicopatia serem interessantes, o
que torna extremamente valioso na obra desse autor para este trabalho são suas idéias acerca
do funcionamento psíquico do psicopata. Para ele, a psicopatia deve ser estuda a luz do nível
geral de organização das funções do superego. Todavia, o autor apresenta uma classificação
da personalidade psicopática do ponto de vista da sua gravidade, lembrando que em
praticamente todos transtornos de personalidade é possível encontrar comportamentos anti-
sociais, por isso sua preocupação com o diagnóstico preciso da psicopatia.
Segundo Kernberg, os indivíduos tipicamente psicopáticos apresentam, como já dito,
um transtorno narcisista de personalidade. Os sintomas característicos da personalidade
narcisista na área de auto-amor patológico caracterizam-se pela excessiva auto-referência e
egocentrismo; grandiosidade e as características derivadas de exibicionismo, e uma atitude
79
KERNBERG, O. (1995).Agressão nos transtornos de personalidade e nas perversões. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1995, p. 76.
80
Idem. (1995). Ibidem, p. 77.
72
de superioridade, atrevimento, ambição extrapolada; super-dependência de ser admirado,
superficialidade emocional e crises de excessiva insegurança, alternadas com grandiosidade.
Na área de relações objetais patológicas, os sintomas predominantes nesses pacientes são:
inveja excessiva (consciente e inconsciente); desvalorização dos outros como defesa contra a
inveja; espoliação manifestada por ganância, apropriação de idéias ou propriedades de outros
e uma atitude de merecer tudo; uma incapacidade marcante de estabelecer empatia ou
compromisso com outros. O estado básico do ego destes indivíduos caracteriza-se por um
sentimento crônico de vazio, evidência de uma incapacidade de aprender, uma sensação de
isolamento, necessidade de estímulo e um sentimento difuso de que a vida não tem
significado. Além disso, os indivíduos narcisistas apresentam algum grau de patologia do
superego, que inclui a incapacidade de vivenciar uma tristeza auto-reflexiva, profundas
mudanças de humor, predominância de vergonha contrastada com culpa no que tange suas
regulações intra-psíquicas de comportamento anti-social e um sistema de valores mais
infantil do que adulto, ou seja, a valorização da beleza física, poder e riqueza e a admiração
de outros em oposição a capacidades, realizações, responsabilidades e ideais.
81
Porém, na psicopatia os sintomas são muito mais graves, principalmente a patologia
do superego. O comportamento desses indivíduos está freqüentemente associado à presença
de mentiras, roubos, falsificações, fraudes e prostituição que, segundo o autor são traços de
uma tipologia predominantemente passivo-parasita. Por outro lado, assaltos, estupros,
assassinatos e roubos a mão armada são característicos de comportamento tipo agressivo.
82
A diferença mais importante entre o comportamento passivo e o
comportamento anti-social agressivo, como parte do [...] transtorno de
personalidade social propriamente dito depende da ausência, neste último,
da capacidade de sentir culpa e remorso. Assim, mesmo depois de terem
sido confrontados com as conseqüências de seu comportamento anti-social
e apesar de inúmeras manifestações de arrependimento, não houve qualquer
81
KERNBERG, O. F. (1995). Ibidem.
82
HENDERSON (1939), HENDERSON e GILLESPIE (1969), apud KERNBERG, O. (1995). Ibidem.
73
modificação de comportamento em relação àqueles a quem atacara ou
espoliara, ou mesmo qualquer preocupação espontânea por não ter
conseguido mudar seu comportamento. [...] O paciente anti-social pode
confessar sua culpa, mas somente em relação àquelas ações em que foi
flagrado, daí entrar em evidente contradição com o remorso
simultaneamente professado a respeito de atitudes no passado.
83
Kernberg enfatiza que a incapacidade de estabelecer relacionamentos mais
satisfatórios gera relacionamentos passageiros, superficiais, indiferentes, e até mesmo uma
certa incapacidade em se relacionar afetivamente com animais domésticos e a ausência de
quaisquer valores morais internalizados inviabilizam sua capacidade de empatizar com tais
valores em outras pessoas.
84
Ou seja, esses indivíduos são incapazes de acreditar que outras
pessoas possam respeitar as normas morais. Afirma ainda:
A deterioração da experiência afetiva destes pacientes é expressa por sua
intolerância quanto a qualquer aumento de ansiedade, sem desenvolver
sintomas adicionais, comportamentos, patologias e em uma incapacidade
para deprimir-se com tristeza reflexiva e incapacidade para apaixonar-se ou
demonstrar qualquer atitude terna em suas relações sexuais.
Tais pacientes não têm a percepção de que o tempo passa, em planejar o
futuro, em comparar a experiência e o comportamento atual com aspirações;
eles são capazes apenas de planejar no sentido de avaliar desconfortos
atuais e reduzir a tensão, atingindo os almejados objetivos de forma
imediata. Suas deficiências quanto à aprendizagem pela experiência são a
expressão da mesma incapacidade de imaginar suas vidas um passo a frente
do momento atual. As mentiras manipuladoras e patológicas e
racionalizações superficiais são bem conhecidas.
[...].
A ausência virtualmente total de capacidade para relações objetais não
espoliativas e de qualquer dimensão moral no funcionamento de
personalidade é o elemento-chave na distinção da personalidade anti-
social.
85
Como dito anteriormente, Kernberg considera que existam dois tipos de
personalidades psicopáticas: o tipo predominantemente agressivo e o tipo passivo-parasítico.
Sobre o primeiro tipo explica que provavelmente esses indivíduos tenham tido experiências
83
KERNBERG, O. (1995). Ibidem, p. 80.
84
Idem, p. 80.
85
Idem, p. 81.
74
de agressão selvagem de seus objetos parentais,
86
Na sua experiência clínica, os pacientes
com essa personalidade, freqüentemente, relatam terem observado e sofrido violência na sua
tenra idade. Da mesma forma, estão totalmente convencidos da impotência de qualquer
relação objetal boa, ou seja, são fracas e não confiáveis. Por conseqüência, o indivíduo
desrespeita aqueles que são vagamente percebidos como objetos potencialmente bons. Ao
contrário, os objetos poderosos, são necessários para fins de sobrevivência, mas também
não-confiáveis e, invariavelmente sádicos. A conseqüência dessas relações é explicada por
Kernberg da seguinte maneira:
A dor por ter que depender de objetos parentais poderosos,
desesperadamente necessitados, mas sádicos, transforma-se em
agressividade e é expressada como raiva – em sua maior parte projetada –
daí exagerar intensamente a imagem sádica dos objetos maus que se
transformam em grandes tiranos sádicos.
87
Ainda sobre esse tipo de psicopatia, o autor considera que o indivíduo é convencido
de que somente seu poder é confiável e que o prazer pelo controle sádico é a única
alternativa para o sofrimento e destruição do fraco.
Sobre o tipo passivo-parasítico, Kernberg acredita que o indivíduo encontra uma:
[...] maneira que não a da gratificação através do poder sádico, negando a
importância de todas as relações de objeto e idealizando, regressivamente, a
gratificação de necessidades receptivo/dependentes (comida, objetos,
dinheiro, sexo), e o poder simbólico exercido sobre outras pessoas ao extrair
delas tais gratificações.
88
Dessa forma, o significado de suas vidas reside no fato de tirar deles o suprimento
necessário, ao mesmo tempo em que os ignoram como pessoas que são, em uma espécie de
proteção de si próprio contra punição revanchista. Essa estrutura psicológica do psicopata
86
KERNBERG, O. (1995). Ibidem, p. 88.
87
Idem.
88
Idem, p. 89.
75
passivo-parasítico permite a negação de agressão e sua transformação em espoliação cruel.
Nesses indivíduos, ocorre uma proteção da inveja agressiva somente pela apropriação
agressiva, violenta, ou pela espoliação passivo-parasítica de outros.
Percebe-se que Kernberg é categórico: o que diferencia o criminoso freudiano que
age pelo sentimento de culpa é aquele que de fato não tem o superego formado, esse para ele
o é verdadeiro desviante. O verdadeiro psicopata não demonstra nenhum arrependimento. Na
psicopatia, o objetivo é o ato em si, é o ato que o referencia em si mesmo.
Outro ponto que deve ser analisado em relação ao psicodinamismo da psicopatia é a
constância, diferente do comportamento ocasional desviante. A constância faz parte do
comportamento do psicopata, caracterizando o funcionamento marcado pela atuação direta,
ou seja, o psicopata realiza a cena, ao contrário do neurótico que pode fantasiar a cena. A
atuação é um elemento essencial dessa personalidade e se deve a incapacidade de mediar
através de outros meios, principalmente as fantasias, as tensões internas e a luta contra
autoridade. Portanto, existe conflito interno, como nas neuroses, mas há uma dificuldade de
simbolizar, o que o aproxima das psicoses. Essa incapacidade de integrar as pulsões em uma
linguagem simbólica (outra que não a do corpo e a da atuação) é um elemento fundamental
da psicopatologia do psicopata. Se o Marquês de Sade não tivesse assassinado ninguém,
poderia evitar toda aquela barbaridade e continuado apenas escrevendo, e assim, não seria
considerado um psicopata. Sobre a questão da atuação escreve Dejours:
[...] a única via possível para evacuar a excitação que não pode ser
absorvida pelo pré-consciente é descarregá-la diretamente no exterior, sob
pena de fazer eclodir o aparelho psíquico (descompensação). O principal
modo de descarga é a atuação (violenta) que tem a vantagem sobre os
outros de ser dirigida ao exterior e de conservar a clivagem sã e salva. Essa
atuação tem um caráter compulsivo, quase incontrolável. Impõe-se ao
sujeito que quer salvar sua organização tópica da destruição. Duas formas
motoras oferecem-se: subtrair-se a situação excitante pela fuga, fuga efetiva
e não figurada, ou destruir a fonte externa da excitação pela violência física.
Tanto num caso como no outro, encontra-se a violência compulsiva das
descargas instintivas e das montagens comportamentais inatas. A atuação
pode ter um caráter tão brutal e incoercível que se confunde com uma crise
76
plástica cega na qual é bem difícil distinguir um conteúdo específico.
89
Outro caso que ocorre diferença na atuação é do criminoso passional, que não atua
violentamente por nenhuma razão específica, ele tem um motivo que justifica sua ação,
mesmo que seja a mais bárbara possível, ele está se vingando de algo que o ofendeu; esse
tipo é um criminoso comum e não um psicopata.
A questão da constância é muito importante no psicodinamismo da psicopatia,
podendo inclusive ser o elemento central, pois o problema da psicopatia, talvez pensando no
diagnóstico, é que a constância é importante porque ela fala da compulsão; na verdade, o
psicopata faz por necessidade, e a necessidade é diferente do sujeito poder assaltar, fazer um
seqüestro relâmpago, bater na vítima todo santo dia, mas ele tem o objetivo de pegar o
dinheiro e ir embora. O psicopata age pela necessidade da ação mesmo em si, ele não está
interessado no dinheiro que vai levar dali; o importante para ele é a compulsão
90
a realizar
aquela cena.
91
Voltando a Dejours, que explica:
A atuação aparece, portanto, como um meio para o sujeito preservar seu
aparelho psíquico e não ficar louco. Mas acontece que a atuação não é
possível porque o sujeito se recusa num último esforço para lutar contra a
descarga da sua violência. Reage, então, por uma inibição maior que pode
chegar até um episódio de prostração, de estupor ou de catatonia. Nesse
momento, senão há atuação, também não há passagem pela percepção, a
qual é preciso evitar também a todo custo. Neste caso, a inibição motora
acompanha-se de uma inibição do pensamento e de uma sensação de cabeça
vazia. Essa extinção do pensamento pode conduzir o sujeito até seus limites
e fazê-lo bascular na perda da consciência.
92
O deslocamento da compulsão para o registro do social, pensando na psicodinâmica,
ou seja, da ordem da estruturação psíquica, está na incapacidade desse sujeito de fantasiar.
89
DEJOURS, C. O corpo entre a biologia e a psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas, 1988, p. 118.
90
A compulsão referida diz respeito à conotação descrita por Luis Hannz no seu Dicionário comentado do
alemão de Freud (Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 103: ‘Compulsão’ evoca o repetido e irrefreável ímpeto de
praticar certa ação, como que obrigado por uma força maior de ‘origem interna e nuclear’ que irrompe no
sujeito. A ‘compulsão’ definida como ‘ato de compelir’ se refere a um ‘impelir’ interno.
91
MEZAN, R.; FERRAZ, F.C. (Comunicação pessoal), 2007.
92
DEJOURS, C. Ibidem, p. 119.
77
Ele não fantasia e então reproduz a cena (atua). Da mesma forma que não produz fantasias,
também não mantém a fantasia no aparelho psíquico, daí a necessidade de repetição da cena,
ou seja, da compulsão de realização do impulso, como Masud Khan dizia da inabilidade de
sonhar, de fantasiar, que faz com o que não é sonhado precisa ser atuado. Existe uma
violência constitutiva que tem que ser atuada que não consegue encontrar escoamento nas
fantasias, palavras e representações para a qual não existe outra saída senão a atuação. Isso é
a essência da psicodinâmica do psicopata.
Podemos pensar ainda que o ego do psicopata é extremamente frágil: é imaturo,
dependente e está sob a ameaça da depressão. A agressividade, as atuações, o desvio e o
desprezo pelos outros e pelo conformismo podem ser facilmente concebidos como atitudes
de supercompensação que o psicopata busca para afirmar sua personalidade marcada por
uma identidade incerta. O psicopata não busca a instabilidade, mas sim, através de suas
iniciativas afirmar-se como indivíduo maduro.
Os sentimentos do psicopata não duram muito: jamais fica feliz, infeliz, sofrido,
alegre ou satisfeito por muito tempo; é o que podemos chamar de amnésia afetiva, de quem
os sentimentos escapam entre os dedos e vive em um eterno vazio emocional. Em função
disso, as punições, as recompensas, os fracassos e as situações perigosas não o marcam; não
adquire experiência no registro afetivo. Pior ainda, as relações com as pessoas não se
inscrevem em uma continuidade. Os outros, para ele, nada mais são do que distribuidores de
sentimentos efêmeros. Não existem no plano afetivo. Isso explica a ausência da moral, no
sentido legal, e esse desprezo esmagador que geralmente choca a todos quando o psicopata
passa ao ato. A incapacidade de metabolizar a experiência afetiva caminha de mãos dadas
com um investimento objetal limitado ou mesmo inexistente.
A labilidade dos afetos explica igualmente a instabilidade social. Adapta-se ao
ambiente conforme sua necessidade momentânea, o que também explica a eterna
78
insatisfação vivida pelo psicopata: quando o sentimento é imenso, ele perde imediatamente
seu interesse e as emoções evaporam; restam apenas o tédio e a morosidade, a impressão de
existir menos. Quando já não existe pulsão, nada mais lhe resta. O psicopata só consegue
disfarçar esse vazio na busca de prazeres exacerbados e na atuação agressiva ou perversa, a
fim de tentar a qualquer preço sentir alguma coisa, encontrar seus limites. Isso faz lembrar a
música do Arnaldo Antunes, Socorro:
Socorro!
Não estou sentindo nada
Nem medo, nem calor, nem fogo
Não vai dar mais pra chorar
Nem pra rir...
Socorro!Alguma alma
Mesmo que penada
Me empreste suas penas
Já não sinto amor, nem dor
Já não sinto nada...
Socorro!
Alguém me dê um coração
Que esse já não bate
Nem apanha
Por favor!
Uma emoção pequena
Qualquer coisa!
Qualquer coisa
Que se sinta...
Tem tantos sentimentos
Deve ter algum que sirva
[...]
Socorro!
Alguma rua que me dê sentido
Em qualquer cruzamento
Acostamento, encruzilhada
Socorro!
Eu já não sinto nada [...].
Assim, os impulsos desmedidos se sucedem a fases de tédio, sem o escape da fantasia
ou do imaginário, sem a canalização do racional ou do hábito. Em relação a isso, os
psicopatas afirmam que são impelidos sem razão, de maneira impulsiva, a cometer atos de
violência. A isso Debray define o psicopata como um cego afetivo, que só existe por suas
79
pulsões, rapidamente dissolvidas na passagem ao ato, sem referência a uma história afetiva –
assim como na conversão histérica, essa passagem ao ato absorve a emoção.
A tal cegueira afetiva de Debray pode ainda explicar a ingenuidade, a crença na
própria sabedoria os arrebatamentos do psicopata, que se acha muito esperto, tão cheio de
psicologia. O psicopata não delira e geralmente é inteligente. No entanto, o que é uma
inteligência que funciona sem o referencial afetivo estável? Os símbolos, as recordações, as
vivências e as imagens não são habitados por uma experiência emocional que possa lhes
representar: tornam-se abstratos. Em vista disso, o passado é manipulado sem perdas, como
as peças de um quebra-cabeça: é a mitomania, lógica, porém sem realce. Alicerces idênticos
se erguem para o futuro: são os projetos do psicopata: inadaptados e megalomaníacos ou, ao
contrário, superadaptados e irrealistas em seu conformismo.
O psicopata também tem dificuldades em desenvolver um pensamento imaginativo
verdadeiramente rico ou um pensamento abstrato original, pois lhe faltam marcos
identificatórios dos sentimentos. É nessa perspectiva que se diferencia do histérico, do
artista, do escritor e do apreciador da arte. Somente a atuação na realidade parece por fim
aplacar temporariamente sua ânsia, isso inclui as toxicomanias, inclusive a toxicomania do
objeto. Para essa necessidade que se formula e se satisfaz de modo tão precário, o psicopata
encontra soluções transitórias até o momento em que nada mais é possível retirar daquela
cena. Aparece então a depressão e, o psicopata revela o fundo de si mesmo, o inverso
daquilo que deseja aparentar.
Os excessos e fantasias sexuais do psicopata transbordam de agressividade contra a
sociedade e também contra o parceiro sexual, que é desprezado e eventualmente humilhado.
Diversas práticas perversas visam buscar o prazer sexual fora do ato comum. A identificação
sexual nem sempre é clara e a homossexualidade aflora.
93
93
DEBRAY, Q. O psicopata. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982.
80
E. Breve relato da visão de outros autores sobre a psicopatia
Para August Aichhorn, as pessoas que cometem crimes manifestam uma total
indiferença quanto às conseqüências de seus atos, porque haveria uma falta de independência
do superego das pessoas reais do ambiente, ou seja, identificação com o superego dos pais.
Em uma perspectiva um pouco diferente, Franz Alexander definiu o caráter neurótico e o
criminoso neurótico, que constituiria um subgrupo do caráter neurótico. Acredita que
existam motivações inconscientes para os atos transgressivos, reforçando a tese freudiana da
origem associal do homem e de um necessário processo de amadurecimento emocional para
a aquisição de atitudes sociais. O psicopata seria definido como o criminoso nato ou normal,
no qual o ego não recebe influência de drogas, distúrbios orgânicos, sentimentos de culpa
inconsciente (criminoso neurótico) e nem de condições sociais ligadas ao seu
desenvolvimento.
94
Outra posição em relação a esse tipo de personalidade é a de Wilhelm Reich (1897–
1957), que define os casos relacionados a crimes como caráter impulsivo, ligando a
impulsividade à relação difusa que tem com o objeto externo, pois mantêm um padrão de
comportamentos marcados por atuações (acting out). A existência do sentimento de culpa
estaria presente na forma masoquista; sendo assim, Reich pressupõe a existência do
superego, porém malformado. A impulsividade, existente neste quadro, é acompanhada por
formações neuróticas.
Pode-se pensar que os impulsos são representações mentais de necessidade que
formam a força propulsora por trás de toda conduta. Alguns psicopatas experimentam seus
impulsos como egossintônicos, isto é, sentem que querem atuar de acordo com eles, mas
94
SHINE, S. K. Ibidem.
81
outros têm uma sensação subjetiva de urgente e constrangedora força externa. São comuns as
combinações dessas atitudes.
O indivíduo psicopático é impaciente e hedonista, seus atos estão comumente ligados
ao prazer, mas estes, na maioria das vezes, proporcionam-lhe apenas passageiro alívio de
tensão. Os prazeres que realmente vivenciam têm uma qualidade oral primitiva e estão mais
relacionados com respostas fisiológicas do que com relações interpessoais. A bebida, as
drogas, a oportunidade para a gratificação sexual ou a aquisição de bens oferecem
temporária diminuição de sua pressão interna para obter gratificação.
Esses indivíduos procuram manter uma conduta discreta. As explosões de cólera
podem desaparecer tão subitamente como começaram e o psicopata poderá se tranqüilizar
quase a ponto do desinteresse, após o episódio. Na maioria das vezes, não consegue
compreender porque os outros atribuem tanta importância à sua violência.
Ainda sobre a questão da impulsividade, Schmideberg faz uma relação entre a
impulsividade e a dificuldade de fantasiar. A autora alega que a impulsividade é oriunda de
uma intolerância à tensão, e isso:
[...] leva à procura de uma gratificação pulsional imediata e uma inabilidade
em renunciar ao prazer. Ora, a renúncia a uma gratificação só é possível
frente à crença na gratificação postergada ou substituída. Entraria aí a
capacidade de manter a idéia dessa gratificação (objeto desejado)
suficientemente forte e vivo. Esta capacidade está na dependência da
capacidade de manter a possibilidade de fantasiar. É desta forma que
podemos considerar o que significa dizer que o psicopata tem um mundo
afetivo pobre, apresentando uma grande inibição da capacidade de fantasiar
95
.
Essa explicação constata a fraqueza do ego e, conseqüentemente, a relação falha com
a realidade. Melita Schmideberg defende a idéia de que o comportamento psicopático
representa uma fuga para a realidade do que poderia configurar-se uma psicose. Caracteriza
95
SHINE, S. K. Ibidem, p. 32.
82
o ponto de fixação da libido permanecendo na fase oral tardia ou na fase anal inicial, onde as
estruturas da mente do psicopata e do psicótico estariam pouco distantes, diferenciando que
o psicótico deixou as relações com os objetos da realidade e o psicopata as manteve, mas de
forma negativa.
Tais considerações mostram segundo essa autora, que o estado psicopático oscila
entre a neurose e a psicose, não se confundindo nem com uma nem com outra, porém
compartilhando certas características de cada quadro. Assim, a psicopatia pode também
emergir no contexto de outros transtornos de personalidade: o diagnóstico diferencial se
torna muitíssimo relevante para a avaliação desse sintoma por sua importância, tanto em
termos de prognóstico como da psicoterapia.
4 PSICOPATIA E CRIME
Antes da psicanálise e ainda hoje, pesquisadores buscam compreender o criminoso
através de estudos sobre o componente hereditário. Porém, há um maior interesse no estudo
da psicodinâmica do indivíduo, incluindo suas relações familiares e sua própria experiência
com o meio. Assim, alguns autores discutem que é possível perceber que o ponto de fixação
da libido, em indivíduos com traços anti-sociais, encontra-se na fase oral sádica (onde há o
predomínio das fantasias de aniquilação do objeto), ou no início da fase anal sádica, a qual
está ligada à pulsão sádica de destruição do objeto e a relação do erotismo anal com a função
de evacuação.
Wittels em 1932 propõe que os indivíduos psicopatas teriam um ponto de fixação na
fase fálica, mais especificamente na fase protofálica (prioriza a libido nos genitais, mas até o
83
momento, não leva em conta a diferença entre os sexos, não existindo ainda o medo da
castração, pois ainda não foi instaurado o Complexo de Édipo). Sendo assim,
[...] o assim chamado psicopata, ou um certo grupo de psicopatas, tem o seu
ponto de fixação na fase protofálica. A complicação da neurose com a
psicopatia ocorrem em função de um segundo ponto de fixação na fase
deuterofálica. O psicopata protofálico é um indivíduo cujo superego difere
consideravelmente do superego do indivíduo normal tanto quanto do
indivíduo neurótico. A sua evolução é tardia, poupando o psicopata dos
inevitáveis conflitos normais e neuróticos entre o id e o ego. Ele é
impulsivo, controlado apenas pelo medo a agentes externos. Ele vê e
compreende os perigos de fora, mas os perigos dentro de si e conflitos de
consciência são coisas desconhecidas por ele.
96
É importante salientar que essa é uma visão datada, uma vez que cada vez menos se
fala em seqüência repetida de fatores de fases e fixações correspondentes e sim em um
conjunto de fatores para o adoecer psíquico.
Pensando em pontos de fixação, acredita-se que a posição da libido na psicopatia
poderia estar na fase oral, anal ou fálica, levando a crer em um distúrbio decorrente das fases
pré-genitais.
Edmund Bergler explica o mecanismo para o ato criminoso, acreditando que o ponto
de fixação encontra-se na fase oral, no qual o bebê está muito desamparado, sendo
totalmente dependente da mãe. Conforme o autor:
O sentimento de profunda injustiça conduz à mesma situação do mecanismo
de oralidade com a seguinte modificação – a frustração real ou imaginada
em tenra idade tem como conseqüência uma absoluta impotência para
obrigar a mãe a reconhecer a capacidade da criança para vingar-se. Essa
impotência interior é contraposta por um ‘ato erostrático’ (o crime e suas
diferentes fases) para obrigar à mãe (ou seus representantes sucessivos) a
reconhecer a sua capacidade para vingar-se. Ora, neste sentido o ato
criminoso serviria como defesa, inscrevendo a resolução do conflito em
uma solução neurótica de fundo masoquista, na qual a sensação de ‘justa
indignação’ dá lugar a uma autocomiseração.
97
96
WITTELS citado por SHINE, S. K. Psicopatia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000, p. 34.
97
BERGLER, E. Suposiciones sobre el ‘mecanismo de criminosos’. Revista de Psicoanálisis, Buenos Aires,
Argentina, n. 3, p. 65-99, 1945-46, p. 67.
84
A personalidade psicopática pode ser aproximada da doença neurótica quando se
relaciona a dificuldade de formação de relações de objeto com a problemática do narcisismo.
O mesmo autor destaca que a fixação narcisista tenha acontecido devido à insegurança em
fases pré-edípicas de organização. Isso geraria uma baixa auto-estima, oriunda de
relacionamentos com figuras de autoridade cujas imagens foram de pais rechaçantes. Assim,
[...] como o bebê teve de valer-se de seus próprios recursos frente a uma
situação de falta, ele não criou a possibilidade de abandonar a onipotência e
atribuí-la a um outro externo. Tal possibilidade estaria prejudicada frente a
necessidade de o bebê buscar uma auto-suficiência a fim de suprir uma falta
real às suas necessidades.
98
Para Cohen, Ferraz e Segre,
99
pode-se dizer que a criminologia não existe, uma vez
que o crime é uma entidade sem núcleo, apenas formal.
100
Questionam a existência de uma
ciência que procura causas comuns para condutas que nada têm entre elas a não ser o
desrespeito a uma norma. Poderia então, defender o normal, sendo a aceitação da regra e
assim, estabelecer um paralelo com a psicanálise, na qual a norma é o superego, a ausência
ou debilidade do superego corresponderia a uma desestruturação da personalidade. Pensando
sobre essa perspectiva, o criminoso, pela incapacidade de aceitar regras, seria o doente
social.
A Psicanálise [...], concebe o crime como um comportamento funcional
simbólico, expressão dos conflitos psíquicos profundos, pretéritos, de
desequilíbrios da personalidade que só podem ser revelados
introspectivamente, aprofundando-se no inconsciente do indivíduo. Unidas
em suas origens ao estudo de certas patologias (neurose e histeria), criou um
emaranhado conceitual complexo, capaz de explicar o comportamento
delitivo em termos muito semelhantes às enfermidades mentais
101
.
98
BROMBERG (1948) apud SHINE, S. K. Ibidem., p. 38.
99
COHEN, C.; FERRAZ, F.C.; SEGRE, M. (orgs.) Saúde mental, crime e justiça. São Paulo: Edusp, 1996.
100
Idem, p. 27.
101
MOLINA, A. G. P.; GOMES, L. F. Criminologia – introdução a seus fundamentos. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1997, p. 215.
85
É importante pensar na aproximação entre a loucura e o crime. A forma de reflexão
que coloca o crime como manifestação de uma doença mental se dá, segundo Sérgio
Carrara,
102
com o próprio aparecimento das sociedades liberais. Segundo esse autor, existe
uma aproximação lógica, representada em termos, onde a sociedade aparece estruturada na
idéia racional de que é feito um contrato social que visa à promoção do bem comum.
Percebido enquanto ataque à sociedade e ruptura do contrato social que a
constitui, o crime não deixava de se transfigurar em espécie de erro ou de
irracionalidade. Se for justamente através da sociedade que os interesses
individuais encontram condição para se expressarem e se realizarem
livremente; se, portanto, interesse individual e interesse social se superpõem
harmoniosamente, atacar a sociedade não seria, de certa forma, atacar a si
próprio? E atacar a si próprio não seria o ato irracional por excelência?
103
Para esse autor, não é fácil resolver a questão da transgressão às normas sociais nas
sociedades liberais, quer no nível das representações, quer no nível das práticas que suscita.
As dificuldades estão certamente representadas na figura mítica da prisão e nas questões que
foram colocadas desde seu surgimento: punição, ou correção? Expiação de uma culpa, ou
compreensão de um ser humano pervertido, de natureza corrompida?
Para justificar essas dificuldades Sérgio Carrara diz que a sociedade burguesa, liberal,
capitalista, democrática, progressista, que é a representação do próprio paraíso
reconquistado, não aceita que alguém possa transgredir esse ideal em são consciência.
Pode-se dizer que um indivíduo que nunca infringiu a lei e um outro que é
considerado delinqüente não são morfologicamente diferentes, em seu aspecto físico, mas
são diferentes na maneira de dominar seus impulsos anti-sociais, presentes nos que cometem
crimes ou não. Acontece que o delinqüente realiza, no plano da realidade, de forma concreta,
seus impulsos anti-sociais inconscientes. Já o indivíduo socialmente adaptado, tem maiores
102
CARRARA, S. Crime e loucura: o aparecimento do manicômio judiciário na passagem do século. Rio de
Janeiro: Eduerj, São Paulo: Edusp, 1998.
103
Idem, p. 69.
86
condições de perceber o caráter ilícito das ações e perceber que a realização desses impulsos
poderá provocar prejuízos para ele mesmo e para a sociedade.
Luis Ângelo Dourado lembra que não se pode negar a importância dos estudos
psicanalíticos na comprovação de que as ações humanas, inclusive o crime, são determinadas
por aspectos inconscientes, e que as origens dessas condutas, provavelmente, vêm de
experiências da primeira infância.
104
. Em seu livro Privação e Delinqüência, Donald
Winnicott ressalta que:
[...] uma criança sofre privação quando passam a lhe faltar certas
características essenciais da vida familiar. Torna-se manifesto um certo grau
do que poderia ser chamado de ‘complexo de privação’. O comportamento
anti-social será manifesto no lar ou numa esfera mais ampla.
105
Para W. Stekel, o indivíduo criminoso é um enfermo que possui uma afetividade
patológica e uma vida instintiva mórbida. Coloca ainda, existir uma possibilidade de cura
(individual e social) dos indivíduos que são tratados pela psicanálise, uma vez que esta não
somente possibilita a compreensão desses casos, como também permite-nos canalizar e
provocar a modificação de um caráter humano ao por o descoberto causas profundas, ao
retificar desvios afetivos, ao educar e reeducar, ao modificar a posição do indivíduo e ao
destruir as suas idéias dominantes.
106
O autor ainda considera que o homem é intimamente bom e mau, podendo este seguir
um sentido ou outro. Cabe à sociedade transformar os instintos anti-sociais do indivíduo em
sociais, utilizando-se dos afetos positivos que o ser humano é capaz de dar ao outro, daí a
importância dos vínculos parentais, enquanto formação da personalidade do indivíduo. O uso
de violência e punições produzem resultados opostos do esperado, impossibilitando acreditar
104
DOURADO, L. A. Ensaio de psicologia criminal – o teste da árvore e a criminalidade. Rio de Janeiro:
Zahar, 1969.
105
WINNICOTT, D. Privação e delinqüência. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
106
STEKEL, W. (1922) Atos impulsivos. São Paulo: Mestre Jou, 1968, p. 457.
87
que essas ações dêem origem a uma transformação do tipo ético, o que seria ignorar o
sentido da ética. Ethos significa superação e não embotamento. Explica que:
[...] a ser válido esse critério, poderíamos amputar as mãos dos criminosos e
afirmar em seguida que os curamos dos seus impulsos criminais. Creio não
estar muito afastado o dia em que todo criminoso será submetido à analise,
antes de ser julgado. [...] ‘Compreender e perdoar’ só tem sentido através da
análise [...].
107
É difícil pensar na natureza do crime e na forma como a sociedade lida com esse
fenômeno, pois pregam uma educação orientada para o sentimento social, para o altruísmo e
o verdadeiro amor. Como ser isso possível em uma época onde as desigualdades e as guerras
fazem milhões de vítimas? Toda a cultura está baseada na repressão dos impulsos em
benefício do coletivo, mas as guerras fizeram do mais perigoso dos impulsos, o impulso
homicida, um fato social.
O homicídio, apesar de ser proporcionalmente menos freqüente do que os outros atos
anti-sociais constitui a mais temida reação, por causa de seu caráter agressivo, súbito,
paradoxal e sanguinário.
Em 1960, em seu Manual de psiquiatria, Henry Ey, Bernard e Brosset, escrevem que
os crimes cometidos por psicopatas perversos, antigamente chamados de degenerados
impulsivos, não devem ser considerados como patológicos a não ser em razão de seu
desequilíbrio no caráter ou de sua imaturidade afetiva.
108
Assim, o indivíduo criminoso vive um conflito, onde de um lado, o eu verdadeiro,
incapaz e inseguro, herdeiro da infância; de outro, a necessidade de reprimi-lo. Para isso cria
uma imagem irreal de força, poder e domínio. Enquanto puder manter reprimido o eu
verdadeiro, é possível haver certo sentimento de euforia. Mas se falhar por querer demais, o
ódio e o desprezo que sente por si próprio passa a atuar fortemente. Cai a máscara,
107
STEKEL, W. (1922). Ibidem, p.403.
108
EY, H.; BERNARD, P.; BROSSET, C. (1960) Manual de psiquiatria. Rio de Janeiro: Masson, 1981.
88
desequilibra-se todo o sistema pacientemente elaborado desde a infância, a fim de manter
escondidas antigas fraquezas, múltiplas debilidades humilhantes e vergonhas inconfessáveis.
Todos aqueles aspectos de poder, arrogância, orgulho e vaidade vêm abaixo. O ódio contra
tudo e contra todos se introverte com violência e o indivíduo entra em depressão, podendo
cometer assim, atos anti-sociais.
109
109
DOURADO, L. A. Ibidem.
89
CAPÍTULO III PSICOPATIA E NOÇÕES CORRELATAS
1 A PROBLEMÁTICA DO SUPEREGO
O termo Uber-Ich foi empregado por Freud pela primeira vez em O ego e o id
(1923). Trata-se de uma instância diferenciada do ego e que parece tomar conta dele (ego).
Porém, a idéia de se pensar em uma instância cuidadora do ego, já estava presente em Luto e
melancolia, de 1917, uma vez que Freud ao estudar o luto patológico, observa um estado de
autocrítica e depreciação. Vemos como nele (melancólico) uma parte do ego se coloca
contra a outra, julga-a criticamente, e, por assim dizer, toma-a como seu objeto.
1
Porém, foi ao estudar os delírios de auto-observação que Freud se viu levado a
diferenciar, na estrutura do aparelho psíquico, uma agência de controle e punição.
Poderia dizer simplesmente que a instância especial que estou começando a
diferenciar no ego é a consciência. É mais prudente, contudo, manter a
instância como algo independente e supor que a consciência é uma de suas
funções, e que a auto-observação, que é um preliminar essencial da
atividade de julgar da consciência, é mais uma de tais funções. E desde que,
reconhecendo que algo tem existência separada, lhe damos um nome que
lhe seja seu, de ora em diante descreverei essa instância existente no ego
como o ‘superego’.
2
1
FREUD, S. (1917a). Luto e melancolia. ESB. Edição Standard das obras de Sigmund Freud, 24 vol., Rio de
Janeiro: Imago, 1996, vol. XIV.
2
Idem. (1932). Novas conferências introdutórias sobre psicanálise, XXII.
90
Mas, antes disso, já em A interpretação dos sonhos, de 1900, Freud escreve sobre tal
instância, ou pelo menos sobre sua função, porém usando o termo censura. Dizia que tal
censura podia funcionar de maneira inconsciente. Também o esquecimento dos sonhos
permanece inexplicável enquanto não se leva em consideração o poder da censura
psíquica.
3
Em relação à formação do superego, para Freud o mesmo não é inato, é uma
construção, que ocorre a partir do declínio do complexo de Édipo, de maneira inversamente
proporcional. O superego que, assim assume o poder, a função e até mesmo os métodos da
instância parental, é, porém, não simplesmente seu sucessor, mas também, realmente, seu
legítimo herdeiro.
4
[...] a consciência seja algo ‘dentro de nós’, ela, mesmo assim, não o é desde
o início. Nesse ponto, ela é um contraste real com a vida sexual, que existe
de fato desde o início da vida e não é apenas um acréscimo posterior. Pois
bem, como todos sabem, as crianças de tenra idade são amorais e não
possuem inibições internas contra seus impulsos que buscam o prazer.
5
Concordando com Freud, Violante afirma que o modelo identificatório surge a partir
da resolução edipiana, querendo dizer que os ideais se constituem na base das identificações,
em primeiro lugar, com os pais, mas não só, pois além do seu aspecto individual, tem seu
aspecto social – constitui também o ideal comum de uma família, de uma classe ou uma
nação. Essa afirmação nos leva a pensar em um superego que constitui além das
identificações parentais, mas também com a social, ou seja, com a cultura.
O superego situa-se em uma tópica psíquica sendo uma espécie de limite – uma pele
– que sofre influência do externo e do interno. É o que se refere à culpa e ao ideal, e sem ele
3
FREUD, S. (1900). A interpretação dos sonhos. Ibidem, IV/V.
4
Idem. (1932).Novas conferências introdutórias sobre psicanálise.
5
Idem.
91
o ego ficaria desprotegido. O superego é o âmbito da culpa, já que ele intermedia as relações
do indivíduo com seus desejos pulsionais e as interdições sociais.
Sobre isso escreve Freud:
Enquanto o ego é essencialmente representante do mundo externo, da
realidade, o superego coloca-se, em contraste com ele, como representante
do mundo interno, do id. Os conflitos entre o ego e o ideal [...], em última
análise refletirão o contraste entre o que é real e o que é psíquico, entre o
mundo externo e o mundo interno.
6
O superego é definido por Freud como herdeiro do complexo de Édipo, mais
especificamente, é herdeiro do superego dos pais, aquele com os quais se está identificado,
sendo que:
No início dos anos 20, Freud apresenta a idéia de que o superego é o
herdeiro do Complexo de Édipo e que incorpora as proibições paternas e
maternas; de alguma maneira, é a voz da consciência, uma agência interna
de controle dos impulsos, cuja origem é a identificação com os objetos de
amor abandonados, isto é, com os pais da primeira infância. A constituição
do superego depende, portanto da existência do Complexo de Édipo, de um
mecanismo de introjeção e de uma série de operações psíquicas
relativamente complexas.
7
Sobre tal instância psíquica, Kusnetzoff explica que:
[...] o superego não é a interiorização dos pais, como às vezes se
compreende literalmente. O superego está construído por aspectos dos pais,
e muito mais ainda: o Superego está identificado com o Superego dos
próprios pais. Por tal motivo, encontra-se no Superego os valores ditados
pela cultura em que viveu o sujeito.
8
Em O problema econômico do masoquismo (1924), Freud fala que o superego é tanto
representante do id, quanto do mundo externo, tendo aparecido através da introjeção no ego
dos primeiros objetos dos impulsos libidinais do id – ou seja, os dois genitores. Dessa
6
FREUD, S (1923). O ego e o id. Ibidem, XIX, p.51.
7
MEZAN, R. (1985) Freud, pensador da cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.460.
8
KUSNETZOFF, J. C. Introdução à psicopatologia psicanalítica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p.131.
92
maneira, o sujeito retém características essenciais das pessoas introjetadas – a sua força,
sua severidade, a sua inclinação a supervisionar e punir.
9
Para Freud, o superego retém o caráter do pai, sendo que quanto mais poderoso o
Complexo de Édipo e mais rapidamente ocorrer o caminho para a repressão mais severa será
depois a forma de dominação do superego sobre o ego, sob a forma de consciência ou, talvez
de um sentimento de culpa.
10
Ainda no mesmo artigo, Freud diz que:
A religião, a moralidade e um senso social — os principais elementos do
lado superior do homem — foram originalmente uma só e mesma coisa.
Segundo a hipótese que apresentei em Totem e Tabu, foram
filogeneticamente adquiridos a partir do complexo paterno: a religião e a
repressão moral através do processo de dominar o próprio complexo de
Édipo, e o sentimento social mediante a necessidade de superar a rivalidade
que então permaneceu entre os membros da geração mais nova.
11
O comportamento psicopático deve ser explorado em relação à organização das
funções do superego do paciente, que remete à análise da questão do delinqüente por
sentimento de culpa inconsciente. Os indivíduos que têm comportamentos derivados de um
sentimento de culpa inconsciente e de uma conseqüente busca de punição inconsciente têm
de ser diferenciados da grande maioria de casos nos quais a autodestrutividade e a punição
autoprovocada são uma conseqüência do comportamento anti-social, mas não refletem tal
motivação inconsciente. Por assim dizer, a hipótese psicanalítica de um sentimento de culpa
inconsciente pode ser considerada válida somente se a culpa se torna consciente após uma
investigação psicanalítica.
12
Em resumo: o superego como herdeiro do complexo de Édipo é o resultado de
identificações e, conseqüentemente, é também um resquício de escolhas de objeto, além de
ser o encarregado do controle social. É, nesse sentido, que se pode pensar na relação do
9
FREUD, S. (1924). O problema econômico do masoquismo. Ibidem, XIX, p.208
10
Idem. (1923). O ego e o id, XIX.
11
Idem.
12
KERNBERG, O. F. (1995). Agressão nos transtornos de personalidade e nas perversões. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1995.
93
superego com a moralidade. Mas que moralidade? Pode-se chamar de moralidade ou
consciência moral, mas o que interessa a esse trabalho é tentar determinar aquilo que rege as
condutas, o que podemos chamar então de moral atual.
A sociedade precisa estabelecer e impor, de alguma maneira, o modo de conter a
agressividade de seus membros e, quando se diz sociedade, trata-se de um conceito
universal. Para que esses limites sejam estabelecidos é indispensável à existência de modelos
identificatórios, para que os indivíduos tenham com o que (e quem) se identificar. A
problemática é quais serão tais modelos e se estarão acessíveis a todos, para a obtenção de
um registro positivo (ou não) na vida de cada indivíduo. Dessa forma, para se tornar
humano, segundo Mezan é necessário:
[...] aprender a falar e a caminhar com suas próprias pernas, necessita
separar-se de seus pais, constituir-se como indivíduo, aceitar limites
impostos pelas regras sociais à realização de seus desejos, investir objetos
diferentes dos que foram os seus primeiros e realizar atividades que exigem
alguma tolerância à frustração.
13
Esses processos estão vinculados a uma organização psíquica, que, segundo a
psicanálise, constitui um ego organizado, a introjeção do superego, a passagem pelos
complexos de Édipo e de Castração e ao estabelecimento de defesas estáveis e, também
flexíveis. E a questão da moral está inserida nesse processo, como explica Mezan:
Será preciso a segunda tópica para que, com a noção de superego,
radicalmente inconsciente, a moralidade possa ser concebida como um
conteúdo inconsciente, mas ela sempre pressuporá a dimensão da alteridade,
já que o superego será concebido como ‘herdeiro do Complexo de Édipo’.
[...] a moral vai entrando paulatinamente na categoria do que Freud
denominará ‘formações reativas’, ou seja, um dos resultados possíveis, mas
de forma alguma o único, do processo repressivo.
14
13
MEZAN, R. (2002). Interfaces da psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 270.
14
Idem. (1985). Freud, pensador da cultura, São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.173.
94
E, o superego, na qualidade de herdeiro do complexo de Édipo, continuará a exercer
a função de guardião dos interditos e, na qualidade de representante da instância moral, virá
a exercer a crítica contra o ego. A tensão entre o severo superego e o ego, que a ele se acha
sujeito, é chamada por Freud
15
de sentimento de culpa; expressa-se como uma necessidade
de punição.
Porém, quando se discute a problemática do superego, coloca-se a falha quanto à
integração completa ao ego, portanto falho na sua função. Friedlander justifica essa
problemática, colocando que o portador de caráter anti-social tem um código moral falho, e
sua capacidade de julgamento do que é certo ou errado está subordinada à satisfação
instintual, pois o indivíduo busca somente a satisfação de suas pulsões, fazendo uso de tudo
para alcançar seus objetivos. Assim, essa falha do superego estaria relacionada a uma falha
do ego, não funcionando de acordo com o princípio da realidade.
16
Segundo Mezan,
17
a primeira irrupção da cultura na problemática freudiana se dá
precisamente pela questão da moral, e isto nos faz pensar naquilo que acima está descrito
como função da sociedade em oferecer modelos a seus indivíduos, uma vez que Freud fala
que o sucesso das regras morais está no desejo do amor do outro e no temor de perdê-lo. Em
relação a isso, Mezan define motivação moral como sendo aquela em que o reconhecimento
de outro ser humano como semelhante a mim representa um momento essencial
18
. É a
humanização do homem pelo reconhecimento recíproco.
Uma vez que o humano se dá através do reconhecimento do outro, o olhar divino é
substituído pelo olhar do outro e assim, quando se é desprezado ou repreendido pelo outro,
dá-se à referência moral. Porém, quando há reprovação dos atos pelo outro, têm-se uma
existência atormentada (e, então, organizada) por uma culpa. Assim, a culpa seria uma fonte
15
FREUD, S. (1930). O mal-estar na civilização. Ibidem.
16
FERRAZ, F. C. (1994) A eternidade da maçã – Freud e a ética. São Paulo: Escuta, 1994.
17
MEZAN, R. (1998). Ibidem, p. 149.
18
Idem, p. 169.
95
de moral, mas uma fonte nociva, uma vez que os atos inspirados pela culpa visam, sobretudo
à punição de quem se acha culpado. Dessa forma, se a ação é impulsionada pela culpa, a
escolha moralmente correta não será em fazer algum bem, mas em dar um jeito para que
haja sofrimento.
Para Mezan, a diferença fundamental reside em que a severidade do superego não é
a que o objeto nos fez sentir ou a que lhe atribuímos, mas corresponde antes à nossa própria
agressão contra o objeto [...]
19
E, nesse caso, o objeto alvo da agressão poderá ser o próprio
ego.
Pensando nas idéias de Melanie Klein, o psicopata foi privado do objeto primário de
amor, quando mãe e bebê ainda formavam uma unidade. A privação ocorreria na posição
esquizo-paranóide, na qual acontece o processo de separação entre mãe e bebê. Assim,
considera-se que o bebê, ao perder a mãe (objeto primário de amor), perde também parte de
si. É isso que o psicopata busca reencontrar incansavelmente.
Retornando a Kernberg, como já dito em seção anterior, considera o
comprometimento do superego e a qualidade das relações objetais enquanto critérios
diagnósticos. Dessa forma, afirma que:
[...] manter uma honestidade social comum e experenciar um adequado
sentimento de culpa e responsabilidade moral nas relações com as outras
pessoas defendem a capacidade de manter funções básicas do superego.
Pelo contrário uma desonestidade geral nas relações humanas e a falta de
preocupação e responsabilidade em todas as trocas humanas indicam a
ausência ou deterioração das funções do superego. Naturalmente, a
severidade da patologia de superego está refletida no grau de
comportamento anti-social presente. Entretanto, é importante lembrar que a
patologia do superego deve ser avaliada com base na relação interna da
pessoa com seu ambiente social, e não segundo definições convencionais ou
legais do que é anti-social.
20
19
MEZAN, R. Freud, pensador da cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.509.
20
KERNBERG, O. (1995). Ibidem, p. 234.
96
Kernberg faz uma menção sobre a predominância ou não de um superego sádico, que
se expressa por meio de uma agressividade não contida pelos pais idealizados pelo superego.
Assim, o indivíduo identificar-se-ia com o poder primitivo, impiedoso, imoral, que somente
obtém satisfações através de uma agressão não aliviada, sem buscar qualquer racionalização
para justificar seu comportamento, a não ser o exercício do poder.
2 PSICOPATIA E PERVERSÃO
Apesar da perversão ter sido inicialmente definida por Freud como uma forma de
condução sexual, atualmente, ela é designada como categoria psicopatológica e diagnóstica.
Mesmo assim, ela pode ser inserida nos mais diversos quadros clínicos, como no caso da
psicopatia, porém, possui suas próprias características.
Para Joyce McDougall,
21
o fato de designar alguém como neurótico, psicótico,
psicossomático ou perverso pode não ser importante na esfera do real, uma vez que as
variações de estrutura psíquica dentro das chamadas categorias clínicas são inumeráveis. O
que se deve valorizar na estrutura psíquica – e também genética – dos seres humanos é sua
singularidade. Os sintomas psicológicos são tentativas de cura de si mesmo, de evitar o
sofrimento psíquico; este mesmo propósito se aplica às sexualidades sintomáticas.
22
Na literatura psicanalítica, o termo freqüentemente designa fixações infantis da
sexualidade em objetos e atividades que se cronificam no adulto. Tais fixações se
21
McDOUGALL, J. As múltiplas faces de Eros: uma exploração psicoanalítica da sexualidade humana. São
Paulo: Martins Fontes, 1997.
22
Idem, p. 186.
97
manifestam como comportamentos repetitivos e estereotipados em que o parceiro é um mero
figurante em ritos sexuais.
Uma concepção a respeito das idéias iniciais de Freud sobre perversão é definida por
Laplanche e Pontalis:
Desvio em relação ao ato sexual normal, definido este como coito que visa
a obtenção do orgasmo por penetração genital, com uma pessoa do sexo
oposto.
Diz-se que existe perversão quando o orgasmo é obtido com outros objetos
sexuais (homossexualidade, pedofilia, bestialidade, etc.), ou por outras
zonas corporais (coito anal, por exemplo) e quando o orgasmo é
subordinado de forma imperiosa e certas condições extrínsecas (fetichismo,
travestismo, voyeurismo e exibicionismo, sadomasoquismo); estas podem
mesmo proporcionar, por si sós, o prazer sexual.
De forma mais englobante, designa-se por perversão o conjunto de
comportamento psicossexual que acompanha tais atipias na obtenção do
prazer sexual.
23
Ferraz se preocupa com o problema do uso do termo perversão, pois, muitas vezes,
ocorre juízo desfavorável no que se refere à palavra perversão. Essa forma distorcida de se
entender o termo vem do fato de ser confundido com perversidade, que não é o mesmo que
perversão.
24
Outros autores preferiram utilizar outros termos para fugir do aspecto
moralizante aparente. McDougall utilizou o termo neo-sexualidades, enquanto Kernberg
dividiu as ocorrências perversas em vários grupos – sexualidade perverso-polimorfa normal,
perversões no contexto da organização neurótica da personalidade, perversões ao nível da
organização de personalidade borderline, perversão combinada com um distúrbio narcísico
de personalidade, perversão em casos de narcisismo maligno, distúrbio de personalidade
anti-social e perversões como parte da organização psicótica da personalidade.
23
LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 341.
24
Flávio Carvalho Ferraz, no seu livro Perversão, escreve que o termo perversão tem origem no latim
perversione que designa o ato ou efeito de perverter-se, isto é, tornar-se perverso ou mau, corromper, depravar,
desmoralizar. Pode designar ainda a alteração ou o transtorno de uma função.[...] Desse modo, estamos a um
passo de deixar o campo de deixar o campo asséptico da estatística como crivo para a determinação da norma e
ingressar no campo da moralidade para definir o que é normal, portanto certo e desejável, e o que é anormal ou
perverso, portanto errado e indesejável. Não se pode menosprezar o fato de que, da mesma raiz de perversão,
deriva o termo perversidade, p. 13.
98
Alguns analistas franceses designam perversão como tipos de prática onde se força
alguém a ter relação sexual contra sua própria vontade, como nos casos de abuso sexual.
Ferraz considera como perversos certos atos ou rituais praticados com o consentimento
formal do outro. É evidente que algumas condutas sexuais perversas podem encaminhar
para uma outra forma psicopática de relação objetal.
25
Já Schimideberg
26
faz um esclarecimento sobre essa questão da psicopatia e
perversão: justifica que a prática perversa não é necessariamente delinqüente, mas certos
delinqüentes, ou fragmentos deles, podem ser notados sob esse ângulo, ou seja, seguem em
direção às práticas sexuais.
O psicanalista francês Dejours
27
define o mecanismo da perversão como o mesmo da
psicose: a clivagem do ego. Considera uma terceira tópica (em relação às duas tópicas da
teoria freudiana). Essa terceira tópica estaria relacionada com a clivagem do ego. No caso da
psicopatia, o indivíduo possui poucos recursos defensivos em relação à realidade, ou seja,
dessa pobreza, provém a fraqueza do aparelho psíquico para suportar as ameaças
traumáticas. Se o mecanismo de recusa não der conta dos afetos relacionados a essas
ameaças, o único caminho possível de saída seria a descarga no externo. Não acontecendo,
seria explodir o aparelho psíquico que, em termos psicológicos, corresponderia a uma
descompensação. Dessa forma,
[...] o principal modo da descarga seria atuação violenta (manifestação da
violência compulsiva das descargas instintivas e dos comportamentos
inatos), dirigida aos outros. A forma de manifestação desta atuação seria
[...] fuga, ou a destruição da fonte externa da excitação pela violência física.
Neste sentido, se o psicopata não consegue fugir ou destruir a causa que lhe
perturba, ele enlouquece, descompensa.
28
25
FERRAZ, F. C. Perversão.São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000, p. 17.
26
Idem.
27
DEJOURS,C. O corpo entre a biologia e a psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas, 1988.
28
Idem, p. 55.
99
Inegavelmente, Freud, no início de suas formulações teóricas, trazia o conteúdo da
psiquiatria da época, principalmente naquilo relacionado à perversão e a sexualidade. Porém,
aos poucos, Freud rompe com o discurso da velha psiquiatria do século XIX, e impõe novas
formas de se pensar o psiquismo, o que o leva a um posicionamento cada vez mais singular e
diferenciado dos seus colegas de profissão.
Já no artigo escrito em 1901 – O Caso Dora – Freud demonstra sua visão distante das
idéias moralizantes da época, fazendo uma alusão à sociedade grega, praticamente
justificando a normalidade das perversões, principalmente a questão da homossexualidade.
Deve ser possível falar sem indignar-se do que chamamos perversões
sexuais, estas transgressões da função sexual, tanto no âmbito do corpo
quanto no do objeto sexual. A imprecisão dos limites do que há de chamar-
se de vida sexual normal em diferentes raças e em épocas diversas já
deveria acalmar os que dão provas de tanto zelo. Tão pouco, deveríamos
esquecer que a mais depreciável, para nós, destas perversões, o amor sexual
entre homens, num povo que tanto se avantajara em cultura como foram os
gregos, não só era tolerada como a ela eram atribuídas importantes funções
sociais. E cada um de nós, em sua própria vida sexual, ora nisso, ora
naquilo, transgride um pouquinho os estreitos limites do que se julga
normal. As perversões não são bestialidades nem degenerações no sentido
patético da palavra.
29
Freud entende as perversões a partir das transformações de algumas disposições
sexuais indiferenciadas na criança, que são passíveis de sublimação e, portanto de serem
potencialmente responsáveis por grandes realizações culturais. Neste sentido, ninguém se
torna perverso, mas permanece como tal em função de uma inibição no desenvolvimento da
libido.
30
É também, nesse texto, que Freud declara que a neurose é o negativo da perversão,
mas convém analisar que, apesar de Freud comparar as duas psicopatologias, essas são
extremamente diferentes entre si. A aproximação pode ser questionada uma vez que na
29
FREUD, S. (1905). Fragmentos da análise de um caso de histeria, VII, p. 145.
30
PEIXOTO JUNIOR, C. A. Metamorfoses entre o sexual e o social: uma leitura da teoria psicanalítica sobre a
perversão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p. 59.
100
perversão, existe uma falha do mecanismo do recalcamento, defesa por excelência presente
na estrutura neurótica.
A partir dos anos 20, com o esclarecimento do funcionamento do psiquismo e das
defesas próprias da perversão, a psicanálise pode se expandir em busca da compreensão de
vários fenômenos psicopatológicos e clínicos que fugiam do que se habitualmente chamava
de neurose e psicose. Os outros foram acrescentados à teoria como a recusa e a clivagem do
ego, o que possibilitou uma possível compreensão da perversão e de outros fenômenos.
3 PSICOPATIA E SADISMO
Quando se fala do desgosto, do desconforto, da humilhação e da dor provocados ou
sofridos nos relacionamentos, todos utilizam livremente os termos sadismo e masoquismo.
Mas qual o real significado dessas palavras? Por sadismo pode-se dizer que diz respeito a
atividades em geral, sexuais que visam provocar dor ou humilhação em outra pessoa e dar
satisfação sexual àquela que inflige a dor. Segundo Laplanche e Pontalis, encontramos o par
sadismo e masoquismo:
Expressão que não enfatiza o que pode haver de simétrico e de
complementar nas perversões sádica e masoquista, como também designa
um par de opostos fundamental, quer na evolução, quer nas manifestações
da vida pulsional. Nesta perspectiva, o termo sadomasoquismo, usado em
sexologia para designar formas combinadas destas duas perversões, foi
retomado em psicanálise, particularmente na França por Daniel Lagache,
para realçar a inter-relação destas duas posições, quer no conflito
intersubjetivo (dominação-submissão), quer na estruturação da pessoa
(autopunição).
31
31
LAPLANCHE, J., PONTALIS, Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
101
No DSM-IV, encontram-se referências ao sadismo que designar fantasias ou os atos
sádicos que podem envolver atividades que indicam o domínio do indivíduo sobre a vítima.
Tais indivíduos também podem atar, vendar, dar palmadas, espancar, chicotear, beliscar,
bater, queimar, administrar choques elétricos, estuprar, cortar esfaquear, estrangular, torturar,
mutilar ou matar a vítima. Segundo o mesmo manual, são comuns as fantasias sexuais
sádicas terem existido na infância. Assim, os atos sádicos contam sempre com a participação
de outras pessoas, que podem ser parceiras consensuais ou vítimas involuntárias. É
importante observar na análise do sadismo sexual, a diferença entre fantasias sádicas e atos
sádicos. O que geralmente se considera perversão são os atos, não as fantasias, ou seja, todos
podem ter fantasias sexuais de qualquer natureza sem nenhuma preocupação de serem
rotulados de perverso. Krafft-Ebing foi o primeiro a empregar o termo sadismo, derivado do
sobrenome do Marquês de Sade, escritor do século XVIII que escrevia sobre atos sexuais
brutais e cruéis. O próprio Sade se envolveu em várias dessas atividades, que resultaram na
sua prisão. Mesmo preso, Sade continuou escrevendo, utilizando suas fantasias para produzir
obras bastante perturbadoras, mas muito influentes na sua época.
Segundo Mezan
32
existem três tipos de sadismo:
Sadismo como pulsão sexual;
Sadismo comum e,
Sadismo criminoso ou psicopata.
Nesse terceiro caso, o indivíduo, não só fantasia, mas atua, e age no mundo real; além
disso, essa atuação não se restringe à esfera do sexual, e assim sai cometendo crimes, ou
seja, o que é importa é seu desejo, sem repressões. O outro nesse caso está totalmente à
mercê da vontade desse tipo.
32
MEZAN, R. (1998) Tempo de muda – ensaios de psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
102
No que se refere às perversões próprias do sadismo e do masoquismo, a satisfação
sexual está ligada a infligir ou a receber maus-tratos. Segundo Roudinesco e Plon,
33
o termo
sadomasoquismo foi forjado por Freud, a partir de sadismo e masoquismo, para designar
uma perversão sexual baseada em um modo de satisfação ligado ao sofrimento infligido ao
outro e ao que provém do sujeito humilhado. Enquanto o sadismo abrange todas as atitudes
ativas e violentas para com o objeto sexual e o prazer está condicionado a causar-lhe dor e
humilhação, o masoquismo abrange as atitudes passivas e está condicionado ao sofrimento
de dor física ou emocional causada pelo objeto sexual. Para Freud, o sadismo corresponde a
um componente agressivo exagerado da pulsão sexual que se tornou autônomo e é deslocado
para o lugar predominante da sexualidade, enquanto o masoquismo, na maioria das vezes, é
uma derivação do sadismo voltado contra a própria pessoa. É importante ressaltar que
nenhuma das duas formas aparece de maneira pura; as formas ativa e passiva encontram-se
de algum modo, sempre juntas em uma mesma pessoa. Pensar essa possibilidade como um
possível traço na psicopatia pode levar a um outro caminho bastante fértil para ser
investigado, porém, não neste trabalho.
33
ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 681.
103
4 CRIMINOLOGIA
Conheci muito bandido
que era muito bom pai, bom filho,
bom amigo dos seus amigos.
Guimarães Rosa
Etiologicamente, pode-se dizer que criminologia define-se como sendo o estudo do
crime e do criminoso. Molina e Gomes conceituam a criminologia:
[...] como ciência empírica e interdisciplinar, que se ocupa do estudo do
crime, da pessoa do infrator, da vítima e do controle social do
comportamento delitivo, e que trata de subministrar uma informação válida,
contrastada, sobre a gênese dinâmica e variáveis principais do crime -
contemplando este problema individual e como problema social -, assim
sobre os programas de prevenção eficaz do mesmo e técnicas de
intervenção positiva do homem delinqüente.
34
No entanto, a criminologia não se limita somente ao estudo do crime e do criminoso
em si, mas de todos os fatores que permeiam o delito, isto é, a estrutura familiar do
indivíduo, a dinâmica de sua personalidade, o contexto sócio-econômico o qual está inserido,
etc..
Vale ressaltar que a criminologia não é uma ciência independente, mas está ligada a
outras como a sociologia, uma vez que esta última lida com a organização da sociedade
humana. Porém, não só do pensamento sociológico se sustenta à criminologia, mas sim da
multidisciplinaridade de outras áreas do conhecimento, inclusive da Psicologia.
A criminologia não enfoca somente a pessoa humana, pois o homem é o agente do
ato anti-social, mas considera que existem várias causas e muitas ainda desconhecidas, que
34
MOLINA, A.G.P.; GOMES, L.F. Criminologia – introdução a seus fundamentos. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1997, p. 33.
104
poderão ou não modificar o caráter essencialmente humano ou antropológico do fenômeno.
Deve ainda ser considerada, de acordo com a maioria dos estudiosos do assunto, uma ciência
pré-jurídica: sua matéria de estudo é o homem, o seu viver social, suas ações, toda sua
evolução, como espécie e como indivíduo.
Para um estudo completo de criminologia, deve-se estudar tanto a sociologia,
filosofia, psicologia e a ética. Essa última é a base moral da humanidade, assim, para
entender a relação entre uma e outra é necessário saber quais suas diferenças. Assim sendo:
[...] a diferença entre ética e moral [...], é o caráter egóico da ética, baseado
no desenvolvimento da personalidade por meio dos acertos e erros, e do seu
conhecimento, ao passo que a moral, embora, etiologicamente, signifique o
mesmo que ética, já é a observância de determinadas normas e preceitos,
sem entrar nos seus méritos e simplesmente obedecendo-lhes, com o temor
da repressão (pena ou pecado). A moral é, portanto, superegóica, sobre o
ponto de vista psicanalítico. A ética é evolutiva, passando pelo crivo da
razão, individual visto que germina da psique de cada ser humano, ao passo
que a moral é paralisante, pois retira de cada ser humano o poder de
decisão, de escolha, impingindo-lhe simplesmente uma conduta pela
ameaça da repressão.
35
Dentre os objetivos básicos da criminologia, podemos citar dois mais importantes: a
determinação de causas, tanto pessoais quanto sociais, do comportamento criminoso e o
desenvolvimento de princípios válidos para o controle social do delito.
36
A lei penal admite que os loucos e as crianças não possuem o necessário
discernimento para decidirem sobre seus atos. Não são, assim, responsabilizados pela prática
35
COHEN, C.; FERRAZ, F. C.; SEGRE, M. (Orgs.) Saúde mental, crime e justiça. São Paulo: Edusp, 1996, p.
29.
36
Albergaria (apud Molina E Gomes, op. cit.), aborda várias teorias científicas para explicar as causas dos
delitos. Franz Joseph Gall buscou relacionar a estrutura cerebral com as tendências criminosas. No fim do
século XIX, o criminologista Cesare Lombroso dizia que os delitos são cometidos por aqueles que nascem com
certos traços físicos hereditários reconhecíveis. Charles Goring refuta essa teoria no início do século XX, onde
realizou um estudo comparativo entre delinqüentes encarcerados e cidadãos respeitadores das leis, concluindo
que não existem os chamados tipos criminais, com tendência inata para o crime. Na França, o escritor e jurista
Montesquieu, buscou relacionar o comportamento criminoso com o ambiente físico e natural. Já os estudiosos
ligados aos movimentos socialistas, têm considerado o delito como um reflexo da miséria. Outros teóricos
acreditam que a criminalidade tem sua gênese no estado geral da cultura, principalmente pelo impacto gerado
pelas crises econômicas, guerras, revoluções e conseqüentemente causando uma angústia oriunda da
insegurança e desproteção derivados de tais fenômenos. Ainda no século XX, as teorias de psicólogos e
psiquiatras, indicam que cerca de um quarto da população reclusa é composta por psicóticos, neuróticos ou
pessoas emocionalmente instáveis, e outro quarto, padecem de deficiências mentais.
105
de crimes, situando-se na posição jurídica de inimputáveis. Resta saber se os demais
membros da coletividade são livres para agir, determinando as ações de acordo com suas
consciências. A tradicional noção de livre arbítrio deve ser questionada e relativizada diante
da evidência de que, em dadas circunstâncias, a razão pode ceder lugar às pulsões e atos
reflexos.
Criminologia e psiquiatria mantêm um diálogo constante desde a segunda metade do
século XIX, com a consolidação do contexto histórico em que a medicina foi alçada à
condição de modelo para as ciências humanas. Deu-se a junção do poder de polícia com a
política sanitária. O modelo disciplinar, instaurado na modernidade, assumiu múltiplas faces
na função primordial de controle, tendo promovido a saúde e a educação da população, no
projeto de qualidade de vida como condição para o desenvolvimento das nações.
37
Nesse
projeto, a psiquiatria se inscreveu no âmbito de uma medicina concebida como reação aos
perigos inerentes ao corpo social e ganhou a missão de fomentar a higiene moral dos
indivíduos;
38
a criminologia veio para estudar as classes perigosas, que tanto ameaçavam a
higidez e a normalidade do espaço social; finalmente, o direito penal passou a se ocupar da
recuperação do criminoso. O exercício dos saberes sobre a individualidade representou a
constituição do biopoder, revestido de duas formas principais: o adestramento e disciplina
dos sujeitos e a gestão da vida pelo controle da população
39
. Através da criminologia,
passou-se a buscar uma demonstração científica e uma explicação biológica para a suposta
inferioridade moral do criminoso. A partir da antropologia criminal produzida pela escola
italiana com Lombroso, responsável pela elaboração do mais completo quadro de
37
BIRMAN, J. Saberes do psíquico e criminalidade. In: MENEGAT, M.; NERI, R. (Org.). Criminologia e
subjetividade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 86.
38
Ao ligar a loucura a condições insalubres de vida, como o alcoolismo, a promiscuidade, a superpopulação,
além de percebê-la como fonte de perigos para o meio e até para a descendência, por conta da hereditariedade,
a psiquiatria do século XIX, pelo menos tanto quanto uma medicina da alma individual foi uma medicina do
corpo coletivo (FOUCAULT, M. (1994) Ditos e escritos V: ética, sexualidade e política. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2004, p. 9-10).
39
NERI, R.; CAVALCANTI, M. Novas tecnologias de vigiar e punir. In: MENEGAT, M.; NERI, R. (Org.).
Ibidem.
106
estereotipia penal jamais traçado, procura-se estabelecer uma relação entre crime e
anormalidade, fazendo do criminoso um ser biologicamente isolável, sobrevivente de uma
forma arcaica da espécie.
40
A psiquiatria enquadra o crime como fruto de pulsões atávicas,
uma dentre outras manifestações de loucura, a justificar o afastamento do anormal do
convívio social, não para fins de punição, mas tratamento. Tem-se a reeducação pela ação
terapêutica moral, que se vale de métodos semelhantes aos das ciências naturais,
classificando o elemento desviante através da observação, mensuração e comparação.
41
A
desresponsabilização penal do louco-delinqüente, desde um ponto de vista da
responsabilidade subjetiva, calcada na idéia de culpabilidade, é reflexo da interseção entre o
dispositivo penal e o psiquiátrico. Paradoxalmente, ganha corpo uma responsabilização
objetiva implícita desse louco criminoso, já que se lhe pode impor tratamento sem
necessidade de se determinar se agiu livre ou culposamente, pela ligação do ato praticado
com o risco inferido de sua própria personalidade perigosa.
42
É justamente na ocorrência dos
crimes inexplicáveis, sem motivo ou interesse aparentes, que a psiquiatria invade a justiça
penal.
Com a descoberta e identificação da loucura como doença mental, foi produzida a
medicalização do louco, incapaz de trabalhar. Por razões essencialmente econômicas, é
instituído o hospital psiquiátrico, durante o século XIX. Passa-se a estabelecer uma distinção
entre as duas técnicas de seqüestro exercidas pelo direito penal e pela psiquiatria (pena e
40
Tal idéia do criminoso nato ou degenerado, o indivíduo perigoso, permanece na atualidade em suas teses
fundamentais, normalmente encontrada com roupagem científica. Foi recentemente noticiada a realização da
conferência Neurologia da Violência e da Agressão, de 10 a 12 de junho de 2004, no Rio de Janeiro, ocasião
em que foi apresentado estudo, realizado a partir de ressonância magnética, indicando que o cérebro de alguns
indivíduos, ao contrário das pessoas normais, apresenta pouca ativação nas áreas correspondentes à emoção e
intensa atividade na região ligada à razão. Esses indivíduos, classificados como psicopatas comunitários, por
conta de seus cérebros, agiriam friamente, sem a percepção de culpa ou compaixão. Ventilou-se, na
reportagem, a criação de cartilha para ajudar o cidadão comum a reconhecer e se proteger desses seres
ameaçadores (MAGESTE, P. Psicopata: você conhece um. Revista Época, São Paulo, n. 314, p. 64-69, maio.
2004).
41
BATISTA, V. M. O medo na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 152.
42
SOZZO, M. Cuestiones de responsabilidad entre dispositivo penal y dispositivo psiquiátric: delito y
sociedad. Revista de Ciencias Sociales. Editorial La Colmena: Buenos Aires, año 8, n. 13, p. 163-181, 1999.
107
tratamento, respectivamente): enquanto a primeira se fundamenta em leis decorrentes do
contrato social de cunho liberal, a última é baseada na tecnologia médica.
43
O que deve ser
assinalado é que ambos – o louco e o criminoso – passam a ser alvo de controle através da
finalidade de recuperação, inseridos que estão no projeto mais amplo, já assinalado, de
restauração civilizadora.
O crime é então olhado como um fato natural, tão incorrigível e inevitável como a
doença.
44
Especialidades como a frenologia, que estuda o caráter através das medidas do
crânio, e a fisiognomonia, que realiza tal medição pelas características faciais, subsidiam a
construção de um discurso jurídico-penal importante na consolidação das estratégias do
biopoder. A medicalização da noção de crime dá ao psiquiatra o poder de apreciar a conduta
delituosa, pois várias são as formas e os graus de loucura, bem como diversos os casos de
redução da capacidade de discernimento do criminoso.
45
Ao abrir o leque da
inimputabilidade, a psiquiatria, à primeira vista, restringe a ação da justiça penal. Na
verdade, apresenta outra opção de controle social, sob o discurso do tratamento terapêutico,
o que nos mostra o outro lado da mesma moeda. Ou alguém é capaz de duvidar do caráter
essencialmente penal das internações? Foucault ponderava que a exclusão recíproca entre o
discurso médico e o judiciário (a instituição médica tomando o lugar da judiciária em caso
de loucura) deu lugar, na segunda metade do século XIX, a uma conexão entre o saber
médico e o poder judiciário, ambos qualificados como técnicas de normalização. Trata-se,
43
RAUTER, C. Criminologia e subjetividade no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 43.
44
BARRETO, T. Menores e loucos em direito criminal. Obra fac-similar. Coleção História do Direito
Brasileiro. Brasília: Senado Federal, 2003, p. 69.
45
Ao comentar a célebre obra de Cesare Lombroso, L’Uomo delinquente, que há pouco chegara às suas mãos,
Tobias Barreto, em 1884, reflete sobre a transferência de poder do direito para a psiquiatria, examinada quase
um século depois por Foucault, com a observação de que a intenção do psiquiatra italiano era destronar o
jurista, tornando a psiquiatria dispensável o direito penal (idem, op. cit., p. 71).
108
em verdade, de um misto institucional,
46
constituído de dois pólos complementares, o
terapêutico e o judiciário, funcionando como resposta homogênea de defesa social.
Em 1928, ao colocar a dinâmica das pulsões na origem das condutas criminosas,
Ferenczi pôs em xeque a noção de crime como um defeito congênito, uma tendência
revelada em alguns indivíduos:
[...] à famosa questão de saber se a criminalidade é inata ou não, pode-se
responder desde agora, e segundo toda probabilidade, que não é o crime em
si, ou seja, a ausência da faculdade de adaptação, mas presumivelmente a
acentuação demasiado forte de tal ou qual disposição pulsional o que forma
a base constitucional; esta, em seguida, torna mais difícil a adaptação à
ordem da sociedade; leva ao conflito com o meio social, que quer atenuar
ou impedir as manifestações das pulsões, e culmina mais tarde na
criminalidade.
47
O olhar psicanalítico sobre o crime deixa em segundo plano a questão biológica e
hereditária para se deter mais especificamente sobre o comportamento do delinqüente e suas
motivações. Foi no período de entre guerras, em meio ao cenário de devastação e de
nacionalismos feridos, que irrompeu uma extensa bibliografia criminológica com viés
psicanalítico.
48
A noção de inconsciente como força motriz dos atos humanos, criminosos ou
não, embaralha os conceitos até então fornecidos pela psiquiatria. Não é mais o anormal, nas
diversas categorias médicas produzidas, o sujeito de crimes, mas qualquer um. A dicotomia
homem íntegro e são – homem criminoso e deformado mental perde o sentido e se esvazia.
Aí reside a maior contribuição que a psicanálise pode dar à criminologia e ao direito penal: a
supressão das fronteiras que o discurso oficial ergueu entre os cidadãos de bem e aqueles
que vivem à margem, os ditos marginais.
46
FOUCAULT, M. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975). São Paulo: Martins Fontes, 2001,
p. 43.
47
FERENCZI, S. Psicanálise e criminologia. Obras completas, vol. IV. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1992,
p. 199.
48
ZAFFARONI, E. R. Criminología, aproximación desde un margen. Bogotá: Editorial Temis, 2003 (tradução
livre).
109
CAPÍTULO IV - ESTUDOS DE CASO
1 PRIMEIRA ABORDAGEM – ALGUNS DADOS
É necessário explicar que os dois primeiros casos que serão analisados nesse trabalho
são histórias reais, de pacientes internados em um Hospital de Custódia. Esses pacientes (são
duas mulheres) estavam nessa instituição por determinação da Justiça, sob Medida de
Segurança (será explicado adiante o que isso significa), e foram atendidas pelo serviço de
psicologia da referida instituição, da qual eu fazia parte como psicóloga aprimoranda. No
decorrer dos casos, contarei os detalhes da situação de uma delas.
Os outros dois são personagens retirados de produções cinematográficas escolhidos
(com muita dificuldade) pela possibilidade de analisar casos que, aparentemente, tão
diferentes, aproximam-se no que diz respeito à sua psicopatologia: a psicopatia.
Veremos como a psicopatia ocorre em diferentes gradientes tanto de quantidade ou
da qualidade dos sintomas, o que torna ao mesmo tempo, interessante e difícil o estudo de tal
patologia.
O objetivo de mesclar casos tão diferentes é aumentar as possibilidades de
compreensão, uma vez que muitos serão os conteúdos e situações a serem analisados.
110
2 CASOS CLÍNICOS
Antes de iniciar o relato dos casos, convém explicitar a situação que as duas
pacientes se encontravam (até o momento da pesquisa), em relação à Justiça. Para isso será
necessária a explicação de alguns instrumentos jurídicos, ou seja, conteúdos do Código Penal
Brasileiro que tratam da relação do indivíduo que comente um crime e, é considerado
portador de alguma patologia mental que o impeça ou ao menos atrapalhe a capacidade do
mesmo de avaliar se a ação cometida é lícita ou não.
A partir dessa avaliação (geralmente realizado por um perito psiquiatra), o indivíduo
poderá ser considerado imputável, semi-imputável ou inimputável
1
e, nos dois últimos casos,
será determinada uma Medida de Segurança.
Segundo Cláudio Cohen a medida de segurança é a forma legal que a justiça
encontrou para tratar dos doentes mentais que transgrediram o Código Penal.
2
Uma vez
que um indivíduo que possua uma patologia mental não pode ser considerado legalmente
como criminoso, mas também não se pode negar que ele transgrediu a lei, podendo ser
considerado perigoso, criou-se o instrumento jurídico da medida de segurança.
O que concretamente vai influenciar em tal medida é a avaliação da periculosidade
do indivíduo. Para clarificar essas idéias e como ocorre todo processo, será relatado um caso
que atendi na mesma instituição: Renata tinha por volta dos quarentas anos quando comecei
atendê-la. Estava no hospital há aproximadamente seis meses e o motivo que a levou para lá
foi o assassinato do próprio filho de três anos.
1
Sobre esses conceitos ler o capítulo nove (Imputabilidade, Semi-imputabilidade e Inimputabilidade) de Luiz
Antonio Moura localizado no livro organizado por Cláudio Cohen, Flávio Carvalho Ferraz e Marco Segre,
Saúde mental, crime e justiça, lançado pela Edusp.
2
COHEN, C. Medida de segurança In: COHEN, C.; FERRAZ, F.C.; SEGRE, M. (Orgs.) Saúde mental, crime
e justiça. São Paulo: Edusp, 1996.
111
Renata, como relataram mãe e irmãs sempre foi tímida, quieta e retraída, mas que vez
ou outra era tomada por acessos de raiva. Melhorou quando começou a freqüentar uma
Igreja Evangélica, a qual tomava a maior parte do tempo de Renata, que participava dos
cultos diariamente. Foi lá que conheceu o marido que não agradava à família de Renata.
Mesmo assim, em pouco tempo, casaram-se e foram morar em um bairro muito distante de
onde viviam a mãe e as irmãs. Renata teve três filhos, duas meninas e um menino (o mais
novo). Desde o nascimento da primeira filha, Renata passava por períodos de depressão e
confusão mental. Foi medicada e consultava-se periodicamente com o psiquiatra do Centro
de saúde do seu bairro. Porém, desde o nascimento do terceiro filho, deixou de ir às
consultas e também abandonou os remédios, pois acreditava que seria curada na sua Igreja e
assim, participava dos cultos cada vez com mais freqüência. Certo dia, saía de casa com as
três crianças quando uma vizinha percebeu que estava muito estranha, dizia coisas
totalmente incompreensíveis. Tentou impedi-la de sair, porém o máximo que conseguiu foi
ficar com as duas meninas. Renata saiu com o filho mais novo sem dizer aonde ia, aliás,
dizia muitas coisas, porém a vizinha nada entendia. Permaneceu três dias desaparecida.
Vagou pelas antigas linhas da estação ferroviária em pleno surto psicótico. Contou em sessão
que ouvia as vozes de Deus e dos anjos do céu. Entre delírios e alucinações, matou o filho
sufocado em uma poça d’água. Quando foi encontrada, estava sentada no chão com os filho
nos braços, sem ter nenhuma consciência do que havia feito. Foi imediatamente presa e
assim permaneceu durante todo processo. Novamente foi medicada e, aos poucos, os
sintomas mais graves sumiram e pôde entender o que acontecia. Passou por uma perícia
psiquiátrica determinada pela Justiça. O laudo atestava uma psicose e ainda que, no
momento do crime, Renata não tinha nenhuma condição de determinar o caráter ilícito
daquele ato, ou seja, era incapaz determinar-se, de entender o que fazia. Dessa maneira, não
podia ser responsabilizada pelo acontecimento, não configurando a existência da culpa (no
112
sentido jurídico). Sem culpa não há pena, e a pessoa é considerada inimputável e não
culpada.
Porém, Renata foi considerada uma pessoa com alta periculosidade, ou seja, havia
prenúncio de que circunstâncias extremamente graves poderiam ocorrer novamente,
colocando Renata e as pessoas próximas a ela em situação de risco. Foi então determinada
uma Medida de Segurança de três anos em Hospital de Custódia para tratamento
psiquiátrico.
Com todas as pessoas que se encontram nessa situação, o prosseguimento do
processo é o seguinte: terminado o período da Medida de Segurança, o indivíduo é
novamente avaliado e o juiz determinará o fim da Medida de Segurança ou a prorrogação
por mais um ano. E assim, a cada ano, nova perícia é realizada até a completa cessação da
periculosidade e a concessão da liberdade. O processo é extremamente complexo e
permeado de singularidades, mas não cabe essa discussão neste trabalho. Esse relato foi
apenas para contextualizar a situação que as pacientes que serão aqui analisadas faziam (ou
fazem) parte.
Apenas um último esclarecimento: uma vez que era extremamente difícil avaliar se o
paciente realmente tinha condições de ser reinserido na sociedade e, muitas vezes, na própria
família foi criada como medida de ressocialização uma Colônia de regime intermediário, na
qual os pacientes eram progressivamente desinternados, daí o nome dado: Colônia de
Desinternação Progressiva (CDP).
No momento da pesquisa, nos prontuários médicos e criminais das pacientes, ambas
tinham recebido parecer favorável e recomendação para a Colônia de desinternação
progressiva. O juiz responsável acatou o parecer e assim, elas aguardavam a transferência.
Os relatos apresentados a seguir são necessariamente breves e incompletos,
construídos a partir de fragmentos de atendimentos, observações e anotações dos prontuários
113
médicos, além de alguns dados objetivos retirados dos prontuários criminais de cada uma,
arquivados no próprio hospital. Com certeza, insuficientes para a análise global de um caso
clínico, mas uma amostra satisfatória para o exercício do pensamento clínico.
A. Cecília
Cecília nasceu na cidade de Maringá/PR, estava com trinta e oito anos e internada em
um Hospital de Custódia desde 1996. Atendida com freqüência pelo serviço de psicologia
dessa instituição, sempre se inscrevia para participar dos grupos terapêuticos, mas não
mantinha freqüência regular e quando comparecia, geralmente arrumava confusão com
outras pacientes. Várias vezes atendi Cecília no plantão psicológico, serviço oferecido aos
pacientes do hospital, recurso encontrado para atender a excessiva demanda de pacientes
para uma quantidade limitada de psicólogos. A queixa era sempre parecida: sentia-se
deprimida e não conseguia mais esperar a hora de sair da instituição (sic.).
Cecília relata que teve uma infância normal, vivia com sua família: mãe, irmã e
irmão. Mesmo quando questionada, Cecília não apresentava mais do que um discurso
superficial, montado e sem afetividade. Repetia sempre: sei lá, era tudo normal, nada
demais (sic.).
Aos poucos, contou outras histórias, dizia que sua vida mudou aos doze anos.
Freqüentou a escola até a quarta série do ensino fundamental e parou de estudar porque saiu
de casa e foi morar na casa de uma amiga, com a família da mesma. Era considerada como
integrante da família, todos gostavam muito dela e tratavam-na muito bem.
Até aqui algumas considerações podem ser feitas: 1º) se saiu da escola aos doze anos
e estava na quarta séria significa que estava dois anos atrasada, o que supõe problemas
escolares, que não são relatados pela paciente; 2º) é necessário uma boa razão para motivar
114
uma garota de apenas doze anos sair de casa e não ser impedida pela família. Isso também
não é explicado pela paciente; 3º ) se Cecília desejava uma vida diferente e saiu de casa para
morar com uma amiga e sua família, pode-se supor que deveria essa nova família
proporcionar algo diferente e atraente para ela. Essas questões não são respondidas pela
paciente que alega que era como se fosse sua família. Apesar disso, não perde o contato com
sua família verdadeira, visitava-os com freqüência. Já trabalhava e ganhava seu próprio
dinheiro.
Suas primeiras experiências sexuais foram desastrosas e superficiais. A primeira
relação sexual foi aos 15 anos com o namorado da irmã. Não apresenta nenhum sinal de que
isso teria sido um comportamento errado, que traíra sua irmã. Disse apenas que os dois
queriam e isso bastava. Viveu algumas relações homossexuais, mas diz que não é o que
prefere.
Segundo seu relato, permaneceu com a família da amiga até arrumar um namorado
com quem foi morar. O relacionamento durou por volta de cinco anos, tiveram um filho e
estava grávida de outro quando se separaram, obrigando-a a voltar para a casa da mãe. Logo
depois do nascimento do filho, foi embora cuidar da sua vida (sic.), deixando as duas
crianças com a mãe. Trabalhava muito, mas sempre retornava à casa da mãe para ver os
filhos.
A hipótese que levanto (já que Cecília nunca disse isso) é que ela se prostituía para
conseguir dinheiro e, provavelmente, a tal família da amiga com quem disse viver estava
ligada a essa condição, ou não existia família nenhuma. Tal inferência surge de algumas
pequenas lacunas na fala de Cecília como, por exemplo, trabalho por conta. Não explica
porque foi viver com a tal família e como mantinha contato com sua família real,
aparentemente não ocorreu nenhuma grande ruptura, briga ou expulsão. Foi realmente uma
escolha para ganhar dinheiro. Quando sai novamente da casa da mãe, deixa os filhos e vai
115
cuidar da sua vida, não fica claro porque isso não poderia ser realizado com ela morando
com a família, uma vez que não saiu da cidade em que morava. Por que para trabalhar
precisou sair de casa? Outro dado que justifica essa hipótese se baseia no relato da própria
paciente e também de outras pacientes durante sessão do Grupo terapêutico, que Cecília
aceitava namorar pacientes da Colônia masculina para que estes lhe enviassem presentes
(que poderiam ser inúmeras coisas, mas principalmente cigarro e produtos de uso pessoal
como sabonete, pasta de dente, xampu, condicionador e hidratante; algumas vezes, algum
alimento comprado na cantina do hospital).
3
Retornando à sua história: o relacionamento que manteve por cinco anos não aparece
como relevante para sua vida, e sim como se fosse um romance que tivesse durado apenas
cinco minutos. Conta que, após a nova saída da casa da mãe, viveu por muito tempo nas ruas
sem residência fixa, que se virava roubando e dormindo em hotéis, pousadas e casas de
amigos e, e um fator importante nesse período foi o uso abusivo de drogas ilícitas e bebidas
alcoólicas, passando quase o tempo todo drogada.
Depois de algum tempo, conheceu outro rapaz e logo foi com ele morar na casa da
mãe do mesmo. Esse relacionamento apesar de considerado sempre muito bom, assim como
o outro parece apenas um detalhe na vida de Cecília, não consegue falar nada que demonstre
afeto, vínculo real com o outro e concretos planos futuros, pois dizia que ainda eram
casados.
Três anos depois, saíram de Maringá e foram morar em São Paulo, tinha 25 anos. Os
dois trabalhavam, ela como sacoleira (vendedora ambulante) e o companheiro em uma
empresa do Rio de Janeiro e só voltava para casa nos finais de semana. Não soube explicar
do se tratava o trabalho do marido, disse apenas que era algo relacionado a transportes.
3
Vale esclarecer que os pacientes ficavam separados, homens em um prédio, mulheres e outro; encontravam-se
apenas em eventos como bailes, que aconteciam quinzenalmente, na melhor das hipóteses.
116
Cecília conta que, nesse período, conheceu uma senhora da qual se tornou muito
amiga e que muito lhe ajudou. Novamente, mais uma pessoa aparece na vida de Cecília para
ajudá-la, e não diz nada mais, nem nome, profissão e muito menos como se conheceram, por
que ajudou Cecília e que tipo de ajuda era essa; referia-se a ela como essa senhora.
Com seu companheiro, compraram um terreno no interior do estado de São Paulo,
construíram uma casa e para lá se mudaram. Tiveram dois filhos.
Cecília relata que nunca deixou de trabalhar, que o faz desde pequena, quando
confeccionava bichinhos de pelúcia para ter seu próprio dinheiro. Saiu da casa da mãe, pois
almejava coisas melhores para sua vida, não queria levar a mesma vida humilde e
sacrificada que a família levava (sic). Gostava da vida de sacoleira, era um trabalho árduo,
mas que dava um bom dinheiro e não pretendia deixá-lo.
Na seqüência, Cecília é presa pela primeira vez: em sua casa foram encontrados:
grande quantidade de crack e maconha, um revólver e alta quantia em dinheiro. Ela e seu
marido foram presos e indiciados por porte e tráfico de drogas. Cecília foi considerada
inimputável, conseqüência da dependência de drogas, e assim, foi internada em um Hospital
de Custódia para tratamento, sob Medida de Segurança. Em seu prontuário, consta que, antes
disso, já havia sido submetida a tratamento em uma clínica especializada em dependência
química. Considera-se dependente desde os 12 anos, consumia crack e cocaína inalada e
endovenosa.
Os filhos mais novos ficaram com a sogra e os mais velhos continuaram com a mãe
de Cecília. O companheiro continua preso.
Internada no Hospital de Custódia desde 1996, em 2000 foi transferida para a
Colônia de desinternação progressiva. Lá, não conseguiu seguir as regras, retornando para a
Colônia Normativa. Ao mesmo tempo, ficou grávida de um outro paciente, mas acabou
perdendo o bebê.
117
Além do cumprimento da Medida de Segurança, Cecília foi acusada e condenada,
culpada, por furtar peças de roupas de uma loja, quando estava na CDP. Foi pega em
flagrante e, dessa forma, além da Medida de Segurança, ainda tem uma pena para cumprir
em instituição carcerária comum em regime fechado.
Em novembro de 2004, seu filho mais velho, com 15 anos, foi assassinado em
Curitiba, por provável ligação com o tráfico de drogas. Não há dados sobre a reação da
paciente.
Durante sua internação, Cecília tinha acompanhamento psicoterápico, principalmente
nos grupos terapêuticos e era constantemente atendida no plantão psicológico. Garantia que
não precisava de psicoterapia individual e a impressão era de que freqüentava os grupos
apenas para obter alguma vantagem, para adular os terapeutas ou simplesmente para
ridicularizar as outras pacientes. Seu contato com os funcionários era de modo geral cordial,
agradável e amistoso, ao mesmo tempo em que era frio, superficial e agressivo.
Em relação ao exame psíquico, Cecília se encontrava situada no tempo e no espaço,
com discurso coerente entre a realidade externa e interna. Pensamento linear, mas havia
incoerência entre sua afetividade e sua inteligência. Não havia evidências de delírios ou
alucinações.
Sempre que possível se tentava fazê-la falar sobre o que realmente sentia,
principalmente em relação às frustrações, pois o desejo de ter uma vida melhor e diferente da
sua família estava muito difícil de acontecer, situação intimamente ligada ao modo de vida
que escolhera para que conseguir realizar suas ambições, gerando apenas problemas para ela
sofrimento aos outros. Parecia que essa fala não fazia nenhum sentido, como se a história
não fosse dela, trata tudo com total distanciamento e é incapaz em ter consciência crítica
quanto aos delitos cometidos e ao processo destrutivo ligado a ela. Tenta encontrar
justificativas sempre externas, não assumindo e se responsabilizando pelos seus erros e atos.
118
Percebe-se a presença de um sentimento superficial de culpa, facilmente perceptível como
uma manipulação. Cecília é imatura, vulnerável e tenta mascarar aquilo que realmente é, faz
e sente.
Há uma aparente preocupação em manter os laços familiares, principalmente com
seus filhos, mas novamente é possível perceber ligações muito tênues e superficiais.
Atualmente, a paciente encontra-se na Colônia Feminina Normativa do Hospital de
Custódia, mas possui um laudo favorável para que seja transferida para a Colônia de
desinternação progressiva desse mesmo hospital, a fim de que possa reiniciar seu convívio
familiar e social através da supervisão da equipe técnica do hospital.
Aspectos psicodinâmicos de Cecília
Um primeiro ponto a se destacar do caso de Cecília é uma vida marcada por um
desequilíbrio mental, seja na questão da sua instabilidade social até sua perturbada
afetividade.
Além da instabilidade social, Cecília ao longo de sua história não consegue se fixar
de maneira duradoura em nenhuma outra instância (afetiva, profissional, familiar); apesar de
dois aparentes relacionamentos estáveis, Cecília demonstrava incapacidade para se ligar
afetivamente aos parceiros. O amor, o arrebatamento, as paixões súbitas, as decepções, os
rancores e as rupturas preenchem sua vida afetiva, mostrando-se extremamente dependente
das circunstâncias. Entretanto, esses arrebatamentos são superficiais, não duram e não se
fixam; mal se podem qualificar como sentimentos – estados afetivos que são por definição,
duradouros. As paixões de Cecília não eram autênticas: não pareciam comovê-la, a não ser
no sentido dela mesma, sem reciprocidade, sem um verdadeiro interesse pelo outro, sem
119
amor. São relações iniciadas incessantemente, porém, sem investimento, mas que por outro
lado, Cecília demonstrava uma extrema necessidade delas, caracterizando uma afetividade
oral, uma exigência acentuada, imatura, infantil e egoísta.
Desde muito nova (doze anos), busca formas de mudar de vida. A insatisfação
principalmente ao modo como a família vivia, fez com que saísse de casa precocemente e
tentasse a qualquer custo satisfazer a necessidade de uma vida melhor. Vivia de arranjos,
favores e improvisações, sujeitando-se a uma série de aventuras e episódios caóticos e
degradantes. Esqueceu desses acontecimentos da sua vida, porém eles marcaram pouco. Isso
faz com que tudo pareça novo, estando a realidade objetiva, está indefinidamente por
construir. Paralelamente, Cecília não exprimia e nem sentia angústia, ao menos no sentido
clássico, sendo sempre traduzida pela atuação.
É nítido como toda história, é marcada por mentiras, atos ilegais e circunstâncias
desordenadas, que obedecem a uma regra: a obtenção de prazer, ou mais exatamente, pelo
desejo urgente de experimentá-lo. Percebe-se a intolerância quanto ao adiamento do
momento de prazer, não tolera a frustração. Isso poderia explicar certos atos de delinqüência,
principalmente, os furtos: quando desejava alguma coisa, por exemplo, usar drogas, não
importava o meio de conseguir, fazia o mais depressa possível.
Em outras circunstâncias, o mesmo ocorria como a inferida prostituição, como meio
para conseguir mudar de vida, da mesma forma que aceitava namorar outros pacientes em
troca de alguns presentes, ou seja, o outro serve apenas como modo de conseguir suprir suas
necessidades, demonstrando indiferença em relação aos outros, inclusive aos filhos. Quase
não falava deles e quando o fazia, aparentava uma fria sensibilidade, como se usasse essa
fala apenas para mobilizar pena nas outras pessoas, o que geralmente tinha como objetivo
conseguir algo a seu favor. Na realidade, nunca se preocupou em desempenhar seu papel de
mãe, o que demonstra o descuido com suas obrigações sociais e afetivas. Quando ficou
120
sabendo do assassinato do filho mais velho, contou o fato e quando perguntado sobre o que
estava sentindo, respondeu que estava muito triste, mas que sabia que isso poderia acontecer
a qualquer momento, pois ele (o filho) tinha escolhido o caminho errado. O que chama a
atenção é a total desconexão entre a fala estou muito triste com o total desprendimento e
distanciamento do fato em si, fato de que seu filho fora assassinado.
Cecília falava pouco da família, nada se sabe sobre o pai; da mãe, apenas que morava
ainda na mesma cidade e cuidava de seus filhos mais velhos. Nos dois anos que estive no
hospital, Cecília não recebeu visita de nenhum familiar.
Não conseguia perceber que suas escolhas causavam sofrimento em outras pessoas,
tentava sempre colocar a culpa em outros ou então dizia que a vida era muito cruel com ela.
Negava que ela e o marido traficavam drogas, apenas consumiam. Nega também que tentou
furtar roupas da loja, disse que estava apenas provando, mas que as vendedoras não foram
com sua cara.
No hospital, Cecília se colocava em uma posição superior às outras pacientes,
extremamente arrogante, falava como se fosse injustiçada e era um erro ela estar internada
no hospital de custódia.
Fundamentada na teoria de Otto Kernberg, apesar de alguns momentos, Cecília ter
demonstrado comportamentos violentos, impulsividade, incapacidade para se responsabilizar
pelos seus atos e afetividade extremamente empobrecida, pode-se considerar que sua
psicopatia seja do tipo passivo-parasita, pois apresenta algumas manifestações de
arrependimento, mesmo que isso não leve à mudança do seu comportamento.
É possível que Cecília possa se beneficiar das condições da Colônia de Desinternação
Progressiva, apesar de que em uma primeira tentativa não conseguiu manter-se estável,
regredindo na sua situação.
121
O papel da família, nesse momento, talvez pudesse ajudar, mas não se pode esquecer
de que a família é a mesma e assim, é possível que não apresente condições para conter
tamanha complexidade de sintomas apresentados por Cecília.
B. Bárbara
Bárbara era paciente do Hospital de Custódia desde junho de 2002 e estava com vinte
e cinco anos. Quando chegou ao hospital apresentava delírios e alucinações, provavelmente
causados pelo uso abusivo de drogas na penitenciária na qual estava,
4
aguardando
julgamento por roubo a mão armada a um ônibus, além de vários outros roubos.
Concluído o processo, foi considerada inimputável pela Justiça por conseqüência da
dependência química de crack, droga de sua preferência, mas também usava maconha e
ocasionalmente bebidas alcoólicas, além de ser fumante desde os dez anos de idade. Assim,
Bárbara passa a ser paciente permanente do Hospital de Custódia.
Após alguns dias na instituição, controlados os delírios e alucinações o serviço de
psicologia realizou uma entrevista de inclusão, com o objetivo de conhecer a nova paciente,
apresentar a ela as atividades da psicologia e assim auxiliar a integração da paciente na
instituição. Quando foi entrevistada pela primeira vez, estava aparentemente tranqüila, mas
os efeitos das altas doses de medicamento eram nítidos. O contato era artificial e submisso,
comum nas relações entre funcionários e presos nas instituições penitenciárias comuns.
Percebiam-se seus dedos das mãos manchados, característica do usuário de crack, presença
de tremores e um olhar atravessador.
4
É comum indivíduos que cumprem pena ou aguardam julgamento em penitenciária comum serem transferidos
para o Hospital de Custódia quando apresentam sintomas de confusão mental, delírios, alucinações ou
quaisquer outros sintomas que necessitem de cuidados médico-psiquiátricos.
122
Na entrevista, disse desconhecer condições do seu nascimento e qualquer outro dado
a respeito disso. Foi adotada aos três meses de idade e viveu com a família adotiva até os
onze anos. Não sabe nada sobre seus pais biológicos, nem os motivos de a terem deixado
para a adoção, diz que para ela eles não existem. Constava no prontuário que foi estuprada
pelo pai biológico e que Bárbara sabia sobre esse fato, porém, nunca o mencionava e,
quando questionada sobre os seus pais biológicos, repetia que eles não existem.
Referia-se como uma criança calma e obediente, sem histórico de enurese noturna,
sonambulismo ou qualquer tipo de doença grave. Nunca foi dedicada aos estudos, cursou até
a quinta série do ensino fundamental e foi reprovada várias vezes.
Bárbara contou que cometera vários crimes desde que saíra da casa dos pais a
primeira vez, aos onze anos, principalmente roubos para comprar drogas. Desde então,
definiu sua vida como tumultuada: fugia de casa, voltava quando não tinha para onde ir e
estava cansada, tornava fugir, saía com muitas pessoas, principalmente mulheres, passava
dias drogada. Conheceu uma mulher bem mais velha e com ela foi morar em uma favela. Diz
que os pais ficariam muito decepcionados de vê-la morando naquele lugar. Continuou
roubando e se drogando cada vez mais, já não voltava para a casa dos pais. Sobre eles, diz
que os ama e sente pena de vê-los sofrendo por causa dela, mas que esse é seu jeito, não tem
como mudar (sic.). Diz ainda que a família faria tudo para o bem dela, mas não é isso que
quer, não sabe explicar, mas lá [casa dos pais] não é o lugar dela (sic.). Tem dois irmãos
(mais velhos) com quais sempre teve um relacionamento ótimo, eles tinham muitos ciúmes
dela (sic.), mas é possível que agora não queiram vê-la, sabe que decepcionou todos.
No hospital, Bárbara gostava de trabalhar, aceitava fazer qualquer serviço, porém sua
relação com as outras pacientes era complicada, não conseguia se adaptar em nenhum
quarto. Mantinha vários relacionamentos amorosos com as pacientes, o que na maioria das
vezes era motivo de confusão e brigas. Nessas situações, Bárbara era muito agressiva e
123
violenta, era necessário isolá-la das outras pacientes. Relacionava-se com pacientes homens
também, porém nenhuma dessas relações apresentava um real envolvimento e afetividade.
Em atendimento no plantão psicológico, Bárbara disse que esses casos serviam para passar
o tempo e não gostava de ninguém.
Durante um período, Bárbara quase não saía do quarto, não participava das
atividades, passava o tempo todo deitada. Apesar da mudança na medicação, pouca ou
nenhuma alteração ocorreu, ao contrário, Bárbara ingeriu grande quantidade de veneno para
ratos (não se sabe como conseguiu isso) e ficou alguns dias hospitalizada.
Quando Bárbara voltou, disse querer morrer quando tomou o veneno, pois estava
enlouquecendo de ficar naquele lugar. Foi a partir daí que mudou de estratégia: voltou a
trabalhar, inclusive entrou para o grupo de crochê e, para a surpresa de todos, Bárbara era
uma crocheteira de mão cheia (sic). Extremamente hábil e caprichosa confeccionava peças
lindas.
Conseqüentemente, Bárbara após avaliação favorável do psiquiatra perito, foi
transferida para a Colônia de desinternação progressiva. Continuou o tratamento e parecia
bastante estável. Havia, várias vezes, visitado a casa dos pais, na qual ficou até vinte e cinco
dias sem nenhum problema. Em umas das visitas programadas pela equipe técnica, Bárbara
não fora para a casa dos pais, que avisaram a equipe do hospital, mas Bárbara não foi
encontrada.
Meses depois, Bárbara chegou sozinha à instituição dizendo que queria se entregar.
Contou que não foi para a casa dos pais, pois exigiam que ela fosse à Igreja evangélica que
os mesmo freqüentavam. Além disso, queriam que ela se casasse com um irmão da igreja.
Quando saiu do hospital, decidiu fugir e foi para uma cidade do interior onde trabalhou como
cortadora de cana-de-açúcar. Conheceu um caminhoneiro com quem passou a viver,
viajando com ele para todos os lugares que fosse. Bárbara disse que quando contou sua
124
situação pendente para o companheiro, esse exigiu que ela se entregasse e terminasse de
cumprir sua pena, assim o fez.
Não havia queixa de nenhum delito que Bárbara tivesse praticado durante o tempo
fora do hospital. Depois de seu retorno, também não foi registrada qualquer visita ou mesmo
carta enviada pelo tal companheiro.
Bárbara manteve-se estável, continuou trabalhando e está novamente esperando para
ser transferida para a CDP. Porém, disse que não iria para a casa dos pais, tentaria
reconstruir sua vida sozinha até ter condições de ser finalmente desinternada.
As relações bárbaras
Na breve descrição acima, pode-se inicialmente perceber a incapacidade de Bárbara
de manter seus desejos em nível imaginário. Tal incapacidade, que leva à atuação pode ser
pensada não exatamente como ausência de fantasia, mas falta de integração entre as fantasias
e a vida pulsional. Normalmente, a elaboração simbólica ocorre a partir de imagens
primitivas do id e é isso que permite uma síntese progressiva das diversas pulsões que
permeiam o processo de simbolização e, conseqüentemente, a capacidade do indivíduo de
apresentar seus desejos na forma de fantasias inconscientes, que funcionariam como nos
sonhos: meio de aliviar a pressão dos conteúdos inconscientes.
Na psicopatia, entretanto, as pulsões não são vinculadas as estruturas simbólicas,
resultando na incapacidade de representação, manipulação e experiência de uma vida
pulsional desestruturada.
Percebe-se que, quando Bárbara falou do total desconhecimento das suas origens,
referia-se a total inexistência de elementos simbólicos formados a partir dessas primeiras
125
relações objetais. Levando em conta que a constituição do psiquismo acontece visando a um
menor sofrimento do indivíduo, essa impossibilidade de integração das figuras paternas
biológicas de Bárbara, protegem-na de algo que poderia ser muito mais destruidor ao seu
aparelho psíquico. Por outro lado, pode-se pensar na identificação com essas figuras, que de
tão aversivas não podem ao menos existir no registro da linguagem. São seres impensáveis,
mas que atormentam a vivência dessa pessoa que, por identificação, acredita não merecer,
(ou não pertencer), da família que a adotou. Parece que assim como uma característica da
psicopatia é a incredulidade quanto às aspirações morais das pessoas, Bárbara também não
acredita que possa ser amada de verdade por alguém (ou pela família).
Pensa-se um curto-circuito no seu aparelho psíquico, acarretando entre outras coisas
a incoerência emocional, instabilidade pulsional e uma perturbação no sentido da duração da
vivência. Existe uma dissociação manifesta nas suas atuações conscientes e a lógica diante
daquele que a escuta. De um lado, uma vida pulsional inconsciente, porém que escapa às
soluções simbólicas, de outro.
Considerando o relato das primeiras experiências enquanto bebê, pode-se supor uma
perturbação nas primeiras relações afetivas, momento esse que decorre diversas
conseqüências, sendo uma das mais importantes a carência do narcisismo primário, da qual
resulta a carência de apego do objeto e a incapacidade de amar. Resultam, na mesma medida,
dificuldades na capacidade de fantasiar, suportar frustrações e canalizar ou integrar as
pulsões. Todos esses fenômenos se manifestam na atuação, que pode ser pensada também
como uma tentativa desastrada de afirmação de si, mesmo que megalomaníaca e narcísica,
mas que tem como finalidade satisfazer o sentimento de incompletude vivido pelo psicopata.
Poderia repetir a história de Bárbara para exemplificar as hipóteses acima, mas nada
parece mais conveniente nesse momento do que voltar às idéias de Kernberg, que acredita
que os indivíduos psicopáticos apresentam um transtorno narcisista caracterizado entre
126
outros por: superficialidade emocional e crises de excessiva insegurança, alternadas com
grandiosidade; sentimento de vazio crônico; necessidade de estímulo; sentimento difuso de
que a vida não tem significado e os sintomas ligados à patologia do superego (incapacidade
de vivenciar uma tristeza auto-reflexiva, profundas mudanças de humor, predominância de
vergonha contrastada com culpa, entre outros).
No caso de Bárbara, podemos ainda considerar sintomas mais graves ligados ainda à
patologia do superego: mentiras, roubos à mão armada, uso extremamente excessivo de
drogas e outros comportamentos anti-sociais. Esses sintomas estão ligados ao tipo passivo-
parasítico, o qual Kernberg acredita que o indivíduo (como no caso de Bárbara) nega a
importância das relações objetais ao mesmo tempo em que idealiza a gratificação, ou seja,
estabelece relações apenas para tirar proveito daquilo que lhe interessa, ao mesmo tempo em
que praticamente ignora a existência das pessoas, principalmente naquilo que se refere a si.
Podemos observar essa dinâmica na relação de Bárbara com a família, negligenciando
qualquer aspecto afetivo que possa existir dessa relação.
Manter Bárbara em uma instituição como o Hospital de Custódia serve apenas para
excluí-la das relações sociais, não favorecendo o seu desenvolvimento psíquico-afetivo.
Devem ser buscadas soluções mais sociais: recurso a instituições de caráter educativo e
terapêutico, com equipe técnica capacitada para trabalhar com esse tipo específico de
paciente.
Lembrando que a leitura que realizei desses casos está longe de ser completa e
conclusiva, insistindo na idéia de um exercício do pensamento clínico.
127
3 PSICOPATAS NO CINEMA
A experiência cinematográfica pertence inteiramente à
espectralidade, que relaciono com tudo o que se pode dizer do
espectro em psicanálise – ou com a natureza mesma do traço. (...)
Todo espectador, durante uma sessão, põe-se em contato com um
trabalho do inconsciente que, por definição, pode ser assimilado ao
trabalho da obsessão segundo Freud. Ele chama a isso a
experiência do “estranhamento familiar” (Unheimlich). A
psicanálise, a leitura psicanalítica, encontra-se inteiramente à
vontade no cinema.
Jacques Derrida
Para justificar a escolha de personagens cinematográficos para a composição desse
trabalho utilizarei justificativas anteriores de autores que, da mesma forma, usaram essa
estratégia para o desenvolvimento de seus trabalhos. Um autor que utiliza o cinema para
pensar o psiquismo humano é Sérgio Telles, e foi em seu livro O psicanalista vai ao cinema
que encontrei além das palavras do próprio autor, também de seus apresentadores Renata
Udler Cromberg e Luis Carlos Merten, sobre a utilização do cinema para estudos
psicanalíticos.
Renata Cromberg explica que o cinema e a psicanálise são invenções quase que
simultâneas e têm inúmeros pontos em comum. A revelação de que nossos sonhos pensam,
essencialmente, através de imagens, transforma o livro inaugural da psicanálise , a
interpretação dos sonhos, de Freud, no primeiro grande ensaio sobre a mecânica psíquica
do cinema.
5
A mesma autora sugere três movimentos de aproximação entre cinema e psicanálise:
1º) o filme serve como ocasião e pretexto para a reflexão psicanalítica, quase como se ao
descrever o filme estivéssemos criando a imagem da narrativa de casos clínicos que, muitas
5
CROMBERG, R. Prefácio. In: TELLES, S. O psicanalista vai ao cinema: artigos e ensaios sobre psicanálise e
cinema. São Paulo: Casa do Paulo; São Carlos, SP: EdUFSCar, 2004, p. 13.
128
vezes esbarram em questões éticas que dificultam a exposição dos reais casos atendidos pelo
psicanalista. Nesse caso, os personagens e seus dramas são analisados como se fossem casos
clínicos. Abro parênteses para esclarecer que esse formato se encaixa nas pretensões desse
trabalho; 2º) a análise pode ser realizada tratando das questões mais abrangentes do filme e
não de personagens do mesmo; 3º) a utilização do cinema cria a oportunidade de se pensar a
vida enquanto movimento, que pede para ser escutada com o olho e vista com o ouvido.
Para Luis Carlos Merten que também faz a apresentação do livro de Sérgio Telles, a
psicanálise possui a chaves que servem para abrir as portas ocultas do cinema, e assim
descobrir as riquezas insuspeitadas dos filmes.
6
Sobre a comunicação cinematográfica Sérgio Telles diz: por usar uma comunicação
predominantemente visual, o cinema tem uma especial proximidade com os sonhos, a via
régia para o inconsciente (grifo do autor).
7
Inspirado em um artigo do Internation Journal of
Pyscho-Analysis para dar nome ao seu livro Telles cita um trecho de Gabbard:
[Ocorre o] reconhecimento de que a arte cinematográfica hoje em dia se
equipara ao teatro, à literatura e à arte como produto cultural, sendo assim
merecedora de sérios estudos. Os filmes se transformam num celeiro de
imagens psicológicas de nosso tempo. Eles exercem sobre as platéias
contemporâneas as mesmas funções que a tragédia sobre os gregos do
século V. Eles não apenas proporcionam catarse, como também unem as
platéias às suas cultuas por meio de suas dimensões mitológicas, da mesma
forma como Ésquilo ou Sófocles iluminavam os cidadãos de Atenas.
8
Espero que o leitor esteja convencido de que as justificativas para a utilização de
produções cinematográficas seja uma viável solução para o exercício da discussão
psicanalítica de casos. Para reforçar esse pensamento Eliane Kogut defende que a vantagem
6
MERTEN, L.C. Prefácio. Ibidem, p. 19.
7
TELLES, S. Ibidem, p. 182.
8
GABBARD, G.O. The psychoanalyst at the movies. In: TELLES, S. Ibidem, p. 182.
129
de se empregar filmes para discutir tais temas reside no fato de o filme possibilitar uma
aproximação intermediária entre o texto e a clínica viva.
9
Vamos aos filmes:
A. Hannibal Lecter (Hannibal, a origem do mal, direção de Peter Webber; O
silêncio do inocentes, direção de Jonathan Demme; Hannibal, direção de Ridley
Scot – todos baseados na obra literária de Thomas Harris).
Hannibal tem oito anos e vive com seus pais, irmã e empregados na Lituânia. Nutria
um amor quase paterno por sua irmã, se sentindo responsável por ela e a protegendo o tempo
todo.
Com a invasão do exército alemão durante a segunda Guerra Mundial, são obrigados
a fugirem para uma cabana no meio da floresta. Alguns empregados da casa não
conseguiram fugir a tempo e foram assassinados pelos soldados alemães, ajudados por
alguns mercenários que os acompanhavam.
Durante um bombardeio, os pais de Hannibal e os empregados morrem diante dos
seus olhos. Restaram apenas ele e a irmã mais nova, Mischa. A cabana é então tomada pelos
mesmos mercenários que colaboraram com o exército alemão e que agora agiam por conta
própria, tirando proveito dos horrores da guerra.
As duas crianças ficam presas na cabana junto deles. Uma nota interessante é que
mantêm uma outra criança presa no celeiro que depois desaparece. Hannibal percebe haver
roupas de crianças no celeiro que não são suas nem de sua irmã. Passam por um rigoroso
inverno, com pouco alimento. Hannibal presencia a voracidade daqueles homens, comendo
animais ainda vivos. Pior do que isso, Hannibal assiste aos homens levarem sua irmã para
9
KOGUT, E. C. Perversão em cena. São Paulo: Escuta, 2004.
130
servir de alimento para eles. Tentou lutar, mas foi em vão, apanhou e caiu desmaiado. Por
causa de um incêndio, Hannibal consegue fugir e é encontrado por soldados soviéticos na
floresta quase inconsciente. É levado por eles até a aldeia mais próxima.
Depois disso, Hannibal vive em um orfanato, justamente onde havia sido sua casa
antes da guerra. No orfanato sofre mais humilhações e agressões, apesar de ser considerado
extremamente indisciplinado e violento. Desde que foi encontrado, não pronunciou uma
única palavra, mas seu sono é atormentado por pesadelos, onde grita pelo nome da irmã.
Também não se lembra do que aconteceu naquela cabana, principalmente em relação à sua
irmã.
Aos 13 anos, é encontrado pelo tio paterno, Robert Lecter, que o tira do orfanato e o
leva para morar na França. É lá que conhece Lady Marasaky, esposa de seu tio, com que
estabelecerá um forte vínculo.
Pouco tempo depois, Hannibal comete seu primeiro assassinato. Lady Marasaky é
insultada na feira por um açougueiro. No mesmo momento, Hannibal parte com violência
para cima do açougueiro, mas nada acontece. O tio de Hannibal fica sabendo da história e
vai atrás do açougueiro para tirar satisfações. Robert Lecter é morto. Após isso, Hannibal
premeditadamente planeja e executa o assassinato do açougueiro. Só não é preso porque
Lady Marasaky intervém e o salva.
Ambos vão morar em Paris. Hannibal vai para a escola e posteriormente para a
universidade, onde resolve estudar medicina. É, nessa época, que se lembra do que
aconteceu com a irmã, e agora entende de onde vem tamanho ódio e desprezo pelos outros.
Através de um negociante de obras de arte, descobre um quadro que pertencera a sua
família e que junto com os outros, havia desaparecido. Começa então uma verdadeira caçada
pelos homens que mataram e comeram sua irmã.
131
Hannibal age com extrema frieza e inteligência até assassinar todos, com requintes de
maldade. Hannibal é preso, mas apesar disso, consegue sua liberdade por intermédio de seus
professores da faculdade que conseguem uma transferência para uma universidade dos EUA.
Forma-se em psiquiatria e agora longe do seu passado poderia reconstituir nova vida.
Porém, não é isso que acontece. Hannibal se torna um assassino canibal, matando e comendo
qualquer um que, no seu julgamento, não merecesse a vida. Hannibal agora é um juiz
impiedoso, cometendo uma série de assassinatos.
O psicopata tipo agressivo
Como já dito em seção anterior, o psicanalista Otto Kernberg considera dois tipos de
personalidades psicopáticas: o tipo predominantemente passivo-parasítico e o tipo agressivo.
Segundo a caracterização de cada tipo, Hannibal pode ser compreendido como um psicopata
do tipo predominantemente agressivo. Segundo Kernberg, esses indivíduos provavelmente
tenham tido experiências de agressão selvagem de seus objetos parentais ou terem observado
e sofrido violência na sua tenra idade. Assim, tornam-se indivíduos totalmente convencidos
da impotência de qualquer relação objetal boa, ou seja, são fracas e não confiáveis. Da
mesma maneira, tais indivíduos não respeitam aqueles que são vagamente percebidos como
objetos potencialmente bons. Ao contrário, os objetos poderosos, são necessários para sua
sobrevivência, mas também não são confiáveis e, aparecem invariavelmente como objetos
sádicos. Kernberg explica que para essas pessoas, como Hannibal, o fato de depender de
depender de objetos parentais poderosos, desesperadamente necessitados, porém sádicos,
causa uma extrema dor, transforma-se em agressividade e é expressa como ódio – em sua
maior parte projetada.
132
É possível pensar nessa relação de Hannibal com os objetos parentais sádicos.
Enquanto garoto, antes mesmo da guerra era responsável por Mischa, inclusive por sua
educação, quando nos primeiros momentos do filme A origem do mal, Hannibal está com a
irmã ensinando-a a primeira letra de seu nome: M de Mischa. A forma extremamente
violenta como os pais morreram na frente de Hannibal e constatação dupla: da perda dos
seus próprios pais e a concreta realidade de que agora era responsável pela irmã mais nova.
Hannibal pode ter internalizado que todos esses acontecimentos, e os posteriores também, se
originam de um castigo recebido, talvez por ter odiado a irmã, quando esta lhe toma o amor
dos pais (bem se sabe dos ciúmes das crianças em relação aos irmãos mais novos). Ou ódio
do pai de tirar a família de casa e os levado para um lugar tão perigoso, ou então, por não ter
protegido essa mesma família dos perigos da guerra. São apenas divagações de possíveis
experiências que podem significar identificações com objetos sádicos.
No filme Dragão Vermelho, Hannibal é preso pela primeira vez por um detetive que
investigava o desaparecimento de um membro da orquestra local. Foi Hannibal quem o
matei e, ainda o serviu como parte do jantar que ofereceu aos outros membros da orquestra.
Sua justificativa para tal ato era simplesmente a incompetência do músico (no seu
julgamento).
Foi levado para um presídio de segurança máxima e mantido sob rigoroso controle.
Apesar de preso, Hannibal é procurado pelo mesmo detetive que o prendeu para que o
ajudasse na definição do perfil de um outro assassino serial. Hannibal o ajuda em troca de
alguns benefícios, porém articula um jogo perverso, colocando o detetive próximo do
assassino. Ou melhor, coloca-os em situação de igualdade, um podendo ser a presa do outro.
Em um primeiro momento, pode-se pensar que Hannibal busca se vingar do detetive e, como
está preso e nada pode fazer o coloca (e sua família também), como presa fácil para um
133
louco assassino.
10
Apesar desta possível evidência, pode-se pensar também que Hannibal se
interessa pelo encontro dos dois. Como dois gladiadores, apenas um sairá vivo depois da
batalha sanguinária. E Hannibal assistirá a esse duelo da tribuna de honra. Delicia-se com
essa possibilidade.
Despreza a norma social, para ele, não importa se um é um detetive que simboliza a
lei (o Bem) e, o outro um assassino cruel, que mata famílias premeditadamente a serviço do
seu grande delírio (o Mal). Isso não o interessa, manipula as pessoas a partir de seus medos,
conflitos, loucuras, etc.. O que importa é apenas seu prazer, a realização de um desejo
perverso. Ele se sente superior, diferente, acima da lei, que não é feita para seu uso. O que
fortalece essa posição é o desprezo, a descrença pelo humano. Tem para com sociedade que
o cerca um sentimento de insatisfação, que se traduz em uma atitude descontente, negativista
e desiludida. É nesse contexto de insatisfação e desprezo pela norma e pelo humano
normativo que se instauram as perversões. Hannibal recorre a elas para intensificar suas
sensações. Contudo, no plano relacional, encontra nessa circunstância, um meio de dominar,
de manipular e de comprometer todos na sua cena sádica.
Da mesma maneira, no filme O silêncio dos inocentes, Hannibal utiliza os conflitos
da jovem agente do FBI, Clarice Starling, como moeda de troca para ajudar na captura de
outro assassino serial. Mas, dessa vez, Hannibal exige muitas regalias no presídio e, em um
determinado momento consegue fugir. A crueldade desses atos, a maneira como utiliza os
corpos dos policiais assassinados é própria de alguém que não considera o Outro como
semelhante. Na verdade, o Outro não existe, então não irá considerá-lo como coisa alguma.
Existe apenas seus desejos e a necessidade de satisfazê-los.
Talvez um raro sinal de humanidade que se observa em Hannibal é sua admiração
por Clarice, assim como por Lady Marasaky e sua irmã Mischa, todas figuras femininas, mas
10
A questão da psicopatologia do assassino serial não será discutida neste trabalho, mas nem por
isso, deixa de ser um caso menos interessante e difícil.
134
que são destruídas, aniquiladas, como por exemplo, com Clarice: ele abusa sadicamente de
seus dolorosos conflitos psíquicos. Nessa condição, Hannibal não utiliza facas, espadas, etc.
para ferir, e sim a palavra, com a mesma crueldade. Não consegue estabelecer nenhuma
possibilidade de construção vincular. Isto caracteriza a cegueira afetiva do psicopata, que só
existe por suas pulsões, rapidamente dissolvidas na passagem ao ato, sem referência a uma
história afetiva.
A cegueira afetiva do psicopata, tão nítida em Hannibal, explica o emprego curioso
que faz de sua inteligência e de seu imaginário. Não há presença de delírios e sua
inteligência é visivelmente superior. No entanto, o que é uma inteligência que funciona sem
um referencial afetivo estável? Os símbolos, os conceitos, as recordações, as imagens não
são habitados por uma vivência emocional que lhe possa configurar uma identidade real:
tornam-se abstratos. Em vista disso, o passado é manipulado sem perdas, como se faria com
as peças de um quebra-cabeça: pode-se se pensar em uma possível mitomania.
No quarto filme, Hannibal, que passa grande parte na Itália, onde Hannibal está
vivendo livre e com uma vida bastante confortável. Utilizando o mesmo padrão
comportamental, consegue alcançar seus objetivos assassinando, mentindo e se escondendo
atrás de outra identidade.
Segundo alguns autores como Lagache, a respeito dos assassinatos cometidos pelos
psicopatas: não é sua vítima que o psicopata mata, mas sim um personagem arcaico,
fantasmático. Seguindo esse pensamento, pode-se pensar que Hannibal mata em uma
repetição compulsiva os assassinos de sua irmã Mischa, o pai que não o protegeu e o deixou
sozinho, com a responsabilidade de cuidar da irmã, os homens que fizeram a guerra, os
governantes de seu país que não protegeu sua população, ou seja, mata todos que o
abandonaram e que são responsáveis pelo monstro que se tornou. Assim, pode-se pensar que
o responsável por isso não é o superego, mas sim o ego, em ego em que é necessário
135
reconhecer dois pólos: um pólo de estabilidade – criado e fortalecido pelas gratificações
maternas – e um pólo de expansão, que visa à incorporação do mundo. No funcionamento
desse indivíduo, ocorreria a inflação do ego, ou seja, o ego perderia seu papel de mediador
das realidades e coordenador das pulsões. Isso tornaria a capacidade de fantasiar
extremamente pobre ou inexistente. Se o psicopata atua, isso não ocorre para exprimir suas
fantasias, mas representa antes a ausência da fantasia, a falta de integração entre a realidade
externa e sua vida pulsional. Normalmente, a elaboração crescente dos símbolos a partir de
imagens primitivas do id permite uma síntese progressiva das diversas pulsões entre eles e, é
nesse ponto que se situa a função do superego, que no psicopata é falha. Isto explicaria que
nos psicopatas, como Hannibal, as pulsões não são vinculadas a suas estruturas simbólicas,
daí decorrendo a incapacidade de representação da vida pulsional.
Tudo isso ocasionado por um “curto-circuito” entre ego e id e a falha completa da
função superegóica, acarretam a uma possível dissociação manifesta entre sua lógica
aparente diante de seu interlocutor, de um lado, e de uma vida pulsional inconsciente que lhe
escapa à estruturação simbólica, de outro. Talvez, essa possível dissociação é que torna o
psicopata tão difícil de apreender para o observador.
B. Frank Abnagale (Prenda-me se for capaz, direção de Sten Spielberg)
A família de Frank Abnagale era bem sucedida, participante do Rotary Clube. Os
pais haviam se conhecido na França durante a guerra. Uma sutileza na história é que eles se
conheceram durante um show realizado para os soldados americanos, onde a mãe é
dançarina e abandona cidade, país, família e tudo mais para se casar com um soldado
americano. Sugere que ela fazia isso – dançava – por dinheiro ou para arrumar um marido.
136
O pai ensina que com uma boa aparência tudo se consegue, como a anedota sobre os
Yankees, na qual eles só ganhavam todos os jogos porque todos prestavam atenção apenas
nos seus uniformes que eram lindos e, o time adversário da mesma forma, não se
concentrava no jogo e perdiam.
O pai de Frank está falido e envolvido em sonegação de impostos. São obrigados a
mudarem de casa e irem para um pequeno apartamento no subúrbio. O mesmo está sempre
ridicularizando a situação, não assumindo seus erros ou responsabilidades. Diz o tempo todo
que é perseguido pelo governo, mas que irá conseguir vencê-los e tudo voltará ao que era
antes.
Na nova escola (pública, mas que Frank insiste em usar o uniforme da antiga escola),
Frank finge ser professor e engana a todos, mostrando sua ótima articulação, capacidade de
persuasão e inteligência. Não há nenhuma represaria pelos pais, ao contrário, o pai dá risadas
com filho sobre o acontecido e parece orgulhar-se disso.
Quando Frank percebe que sua mãe está tendo um caso com o amigo de seu pai, fica
furioso, mas diz que não vai contar ao pai, sua mãe dá-lhe dinheiro como forma de
agradecimento. Frank nega a realidade, o que está realmente acontecendo na sua vida, a
decadência de sua família.
Os pais se divorciam e é pedido a Frank que escolha com qual dos dois quer ficar.
Frank foge, perdido e transtornado. É a partir daí que Frank começa a cometer seus delitos.
Falsificações de cheques, emissão de cheques sem fundo. A princípio para se manter, pagar
aluguel, alimentação. Mas a facilidade das transações comerciais e sua alta capacidade
criativa e de persuasão das pessoas o leva a crimes cada vez maiores.
Falsifica documentos, consegue se fazer passar por profissionais de áreas distintas e
extremamente específicas, como co-piloto de avião, médico pediatra, assistente de promotor.
137
Mas o que chama atenção é seu desprendimento em relação a tudo e a todos. Todas
suas relações são extremamente planejadas, inclusive na escolha do caixa do banco que
trocaria os cheques. É extremamente sedutor.
Apesar de uma vida extremamente movimentada é muito sozinho, está longe de sua
família, não tem ninguém; todos seus relacionamentos são superficiais e irreais. Até seu
nome é irreal: Barry Allen é o The Flash. Mas na sua onipotência pode realizar qualquer
sonho na realidade, como ser o James Bond.
Então, para curar sua solidão resolve ter amigos (comprar amigos). Tem uma mansão
onde dá festas, mas nada o deixa satisfeito por muito tempo, apesar de ter uma facilidade de
aprender e possuidor de inteligência fora da norma. Consegue se passar como pediatra e
promotor, sempre mudando de vida, de nome, de profissão.
Conhece uma moça que é enfermeira em um hospital e aparentemente se interessa
verdadeiramente por ela. A princípio pode-se pensar que realmente deseja estabelecer
vínculos reais, mas novamente está apenas buscando realizar seu desejo de modo concreto.
Quando é descoberto pela polícia foge novamente deixando tudo para trás. Dessa vez
consegue sair dos EUA e vai para a Europa, onde continua falsificando, roubando, mentido,
ou seja, mantém o mesmo padrão compulsivo.
Frank é preso na França pela polícia francesa e pelo agente que o perseguia desde o
começo de seus crimes. Na volta para os EUA, Frank fica sabendo da morte de seu pai, o
que o deixa completamente transtornado. Novamente consegue fugir e vai direto para a casa
da mãe, que provavelmente era a casa que antes morava com seus pais. Lá descobre que o
mundo que ele acreditava não existe mais: a mãe estava casada com outro homem e já tinha
uma filha. Parece que Frank desiste, não tem mais pelo que viver. Pede para o agente que
chega com vários outros policiais que o leve para longe dali.
138
Frank é preso, julgado e condenado a muitos anos de prisão. A única pessoa que vai
visitá-lo é o agente que o prendeu. Após um tempo, o mesmo agente (depois de Frank tê-lo
ajudado a identificar algumas falsificações), propõe que Frank seja solto sob sua custódia e
que o mesmo realize trabalhe na solução de casos de falsificações do FBI. Essa nova
possibilidade dá a Frank a chance de reconstruir sua vida, o que realmente acontece, pois
Frank se mantém nesse trabalho por muitos anos, casa-se e consegue ter aquilo que desejava,
uma família.
O impostor
Diferente de Hannibal Lecter, Frank pode ser considerado, segundo as elaborações de
Otto Kernberg, como possuidor de uma tipologia psicopática predominantemente passivo-
parasita. Segundo este autor, esses indivíduos negam a importância de todas as relações de
objeto e idealizam, de uma maneira bastante regredida, a gratificação de suas necessidades
não através do poder sádico (como no tipo agressivo), mas na ordem de uma necessidade
receptivo-dependente, principalmente nas questões ligadas à comida, aos objetos, ao
dinheiro e ao sexo. Além disso, a gratificação ligada ao poder simbólico exercido sobre as
outras pessoas quando delas extraem tais gratificações.
Assim, o significado da vida desse tipo de indivíduo é justamente tirar dos outros o
que considera necessário para si, ao mesmo tempo em que os ignora (os outros) enquanto
pessoas que são. Para Kernberg, essa estrutura psicológica do psicopata passivo-parasítico
permite a negação de agressão e sua transformação em espoliação cruel. Como exemplo
disso, pode-se lembrar de todos atos de falsificações que Frank comete, desde as
falsificações de cheques até de diplomas universitários, como o de médico, o que coloca em
139
risco a vida de pessoas, pois Frank pensava que bastava assistir alguns filmes e repetir a fala
das personagens.
Em uma passagem do filme, Frank pede ao pai para fazê-lo parar, ou seja, castrá-lo,
mas pode-se perceber um pai inacessível, no sentido simbólico daquele que é o interditor, o
nome da Lei. O pai de Frank pode ser observado como fraco, ausente e dono de uma imagem
social desprezível. Essa ausência da função simbólica paterna torna difícil a identificação
masculina, ou pelo menos, ela só pode ser feita de maneira mítica.
Como conseqüência disso, pode-se pensar em uma estruturação psíquica marcada
pela dissociação do ego – não consegue aceitar a separação dos pais, nítida negação. Porém,
as dificuldades desse indivíduo não teriam origem apenas no conflito edípico, mas anterior a
isso: nas primeiras relações afetivas, das quais decorrem diversas conseqüências, sendo a
mais importante delas uma carência do narcisismo primário. Disso resultam a carência de
apego ao objeto e a incapacidade de amar. Derivam igualmente dificuldades de fantasiar,
sonhar e planejar o futuro; suportar as frustrações e canalizar ou integrar as pulsões. Todos
esses fenômenos se manifestam na atuação, que também pode ser compreendida como uma
tentativa desajeitada de afirmação de si, megalomaníaca e narcísica, que visa satisfazer um
sentimento de incompletude, como bem define Kernberg em suas considerações sobre o
transtorno narcisista de personalidade.
Frank inconsciente deseja parar, mas não quer ser punido, não quer se responsabilizar
pelos seus atos. Isso muda quando fica sabendo que seu pai morreu e que sua mãe tem outra
família, inclusive uma outra filha. Ele então pede para ser preso, pois a realidade é
insuportável e Frank não dá conta de tamanha frustração.
Uma possível hipótese é a de que Frank consegue mudar porque encontra um outro
modelo diferente com qual pode se identificar: Carl, o agente do FBI que o captura. Este sim
irá fazê-lo parar, castrá-lo a partir do senso de realidade que lhe mostra, como por exemplo,
140
lhe fala da filha que não tem muito contato, mas gostaria de ter, do casamento que não deu
certo. Porém, mais importante que relatar esses fatos da vida real, foi mostrar para Frank que
nem por isso seu mundo mental foi destruído, que podia ter uma outra vida, não exatamente
a que tinha idealizado, mas uma outra possível. Isso pode ter sido possível, pois desde o
início ocorre uma dupla identificação entre os dois, principalmente relacionada à solidão e a
falta da família.
Frank consegue então, redirecionar a energia gasta nas falsificações para decifrá-las,
possivelmente por meio de sublimações. Pode-se pensar que Frank vive uma castração
tardia, porém não menos eficiente, quando percebe que não pode salvar sua família, que não
devolverá o dinheiro ou poder que ele supostamente considerava que injustamente tinha sido
tirado de sua família.
141
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O psicopata é um ser sutil de apreender. Difícil é defini-lo a partir de um sintoma
central, como o histérico, o paranóico ou o deprimido, mais viável é vê-lo como um conjunto
de sintomas comportamentais e traços clínicos que constitui uma personalidade familiar,
muito freqüente e, na maioria das vezes, estereotipada. Entre todos, alguns são mais fáceis de
destacar: instabilidade social; agressividade e impulsividade; sedução, no contexto de um
contato fácil; sexualidade perturbada; afetividade pobre; dependência e imaturidade
entrecortadas por atitudes de desafio; e possibilidade de acidentes patológicos graves, tais
como depressão, acessos de delírio, gestos suicidas e toxicomanias. No contato com o
psicoterapeuta, isso é confirmado com a presença no primeiro momento de narrativas
floreadas e de projetos ousados para depois transparecer as recorrentes queixas de familiares,
de outros pacientes (quando institucionalizado), além do histórico desanimador e a posterior
confirmação da incapacidade de empatia, de investimento em objetos bons e boicote a
psicoterapia – faltas constantes ou abandono.
Para alguns autores, a psicopatia não é propriamente uma doença, mas uma
personalidade, ou seja, uma constelação de características afetivas permanentes – ou
freqüentemente engendradas pelo meio – em um certo indivíduo. Tal personalidade não se
manifesta sem um certo grau de sofrimento no sujeito que a possui e naqueles que o cercam.
142
Dessa forma, os psicopatas são doentes, porém, sem que possa dizer claramente que têm
uma doença.
No entanto, essas considerações não são tão simples, pois, se ele é um doente, é
também, muitas vezes, um ser amoral, e não é muito fácil unir as ideais de doença e
amoralidade. Transgride as leis facilmente, porém, essa ilegalidade é insuficiente para definir
o psicopata por si só, pois tal critério é bastante relativo. Podemos perguntar: de que lei se
trata? Será a lei daquele que fala, a lei da sociedade em que está (e não a de outra)? Dessa
forma, ele poderia ser aquele que se opõe, que contesta, o que torna ingênuo designar como
associal aquele que, freqüentemente, nada mais é do que um contestador. Além disso, é sem
dúvida, demasiadamente simples dizer que o psicopata é associal ou anti-social, ele não
ignora a lei e, ele não a aceita.
Será o psicopata um bruto obstinado, ávido de violência e de homicídio, incapaz de
controlar seus instintos mais tumultuados? Sem dúvida, seu comportamento é marcado pelo
descontrole instintivo, observado principalmente na compulsão à atuação e incapacidade de
considerar o outro.
Tal brutalidade inspirou a idéia de degenerescência proposta pelos psiquiatras
franceses do século XI para explicar esse tipo de personalidade: o degenerado abandona seu
gênero e sua espécie, descendo na escala biológica em direção ao animal – e, por outro lado,
para alguns autores, como Lombroso com sua teoria do homem criminoso, existem sinais
físicos que acompanham essa degeneração.
Já foram apontados, inclusive, elementos em Freud que apresentam clara analogia
com Lombroso, como a questão do caráter atávico do crime, por conta do delito original
11
e
11
No conceito freudiano, corresponderia ao parricídio e ao incesto.
143
a suposta admissão de um criminoso nato
12
. A manipulação e o empobrecimento da
criminologia psicanalítica mantém o paradigma etiológico.
Voltamos à questão teórica sobre a idéia da Freud sobre psicopatas, no artigo Tipos
de caráter encontradas no trabalho psicanalítico (1916). Ele fala claramente dos criminosos
em conseqüência de um sentimento de culpa, quer dizer, a culpa precede o ato e não o
contrário, primeiro o sujeito sente a culpa. É importante tomar cuidado aqui porque o próprio
Freud diz que isso talvez fosse válido para alguns criminosos no início da carreira e não
fosse válido para os criminosos bárbaros, e aí, sem querer, talvez intuindo alguma coisa,
Freud sugere a diferença entre o psicopata e o criminoso neurótico (o que tem o sentimento
de culpa e busca a punição). Fazendo uma releitura através do Kernberg, este diz que não se
trata disso – esse é o neurótico - e sim, que o verdadeiro psicopata é aquele que, de fato, tem
uma deficiência de superego. Freud era contraditório, ele intuía que havia um problema por
aí, que não era possível explicar como o superego emergindo do crime, ao invés de ser
punido, mas que para, além disso, talvez algumas vezes, tivesse uma questão com o próprio
superego.
Voltando para as características, percebe-se que a personalidade psicopática é
constituída por certo número de traços, dentre os quais a instabilidade social, a delinqüência
e a agressividade são os mais importantes. Essa agressividade pode-se desenvolver em
diversos níveis, desde a impulsividade física banal até os comportamentos perversos.
Paradoxalmente, o psicopata tem contato amável, sua afetividade é marcada pela
imaturidade, egoísmo, dependência e caráter lábil dos sentimentos. Insatisfeito em todas as
áreas, o psicopata improvisa incessantemente novos projetos, pelos quais se apaixona, mas
que não leva a bom termo. Ao mesmo tempo vítima e perseguidor, leva finalmente uma
12
Freud não fez nenhuma referência expressa a essa figura. No entanto, Alexander e Staub, que fizeram uma
análise psicológica da função punitiva, criaram a categoria do delinqüente nato como homem sem superego, no
estágio natural do homem primitivo. (ZAFFARONI, E. R. Criminología, aproximación desde um margen.
Bogotá: Editorial Temis, 2003, p. 215).
144
existência dolorosa, pontuada de diversos momentos por descompensações depressivas e
acidentes de maior aspecto (prisões, tentativas de suicídio).
Psicanalistas, ao longo do tempo, vincularam o comportamento anti-social a uma
culpa inconsciente ligada a uma relação parental precária, a uma má identificação com a
figura paterna e ambigüidade da relação com a figura materna. Porém, vimos que essa
dinâmica está associada ao criminoso comum, e que autores mais modernos evocam outras
características como: as particularidades dos estágios pré-genitais do desenvolvimento
psicossexual; a possibilidade de um superego regressivo e arcaico, originário do estágio anal;
uma carência do narcisismo primário, ligada a uma perturbação das primeiras relações
afetivas, das quais resultariam a dificuldade de domínio das pulsões e a incapacidade (ou
pobreza) de fantasiar e conseqüente compulsão do ato.
Se o meio social original pode ser considerado um fator dos fatores constitucionais da
personalidade psicopática, o meio sócio-econômico atual é um fator de exacerbação de seus
sintomas, em particular o da delinqüência, que é o sintoma mais estudado pelos
levantamentos sociais. Sendo assim, o psicopata escolhe seu meio em função de suas
tendências pessoais, daí decorrendo a constante interação entre os fatores psíquicos e sociais.
Entretanto, a delinqüência que percebemos cotidianamente não é mais que o
resultado da intersecção de certas atuações psicopáticas com o controle social. O meio
familiar desfavorecido no plano econômico, afetivo e educativo parece ser um elemento
importante na organização da personalidade psicopática, não sendo desprezível a
porcentagem de comportamentos anti-sociais dos próprios pais. A anomia
13
, a segregação
simultaneamente social e geográfica e a acentuação das tendências e frustrações em uma
sociedade que idealiza a aquisição de bens constituem a parte essencial dos fatores sociais
13
Incapacidade de internalização de leis, regras e normas sociais.
145
atuais. Os fenômenos históricos, tais como as guerras, as revoluções e as crises econômicas,
são igualmente fatores de aumento da psicopatia.
As pulsões e desequilíbrios emocionais que motivam o ato criminoso podem, ainda,
como decorrência disso, serem encarados como uma questão social – não mais individual –
passível de correção através de medidas educativas. A desestruturação do núcleo familiar e a
fragilidade dos valores morais e éticos criariam o caldo de cultura propício à proliferação de
condutas criminosas. Tais desajustes trariam, como efeito, a pobreza e a inadaptação social.
Nesse aspecto, as teorias rotulacionistas, que procuram explicar o comportamento desviante
apenas como parte integrante da estrutura social, indicam que a aplicação da sanção penal
traz como efeito imediato uma mudança na identidade social do indivíduo. A estigmatização
que acompanha a pena gera a tendência a mantê-lo no papel social a ele destinado,
14
ou seja,
de um ser que não tem lugar nessa sociedade, desprovido de condições para exercer sua
humanidade, seja ela como for.
Parece, assim, razoável que o discurso repressivo oficial se volte, preferencialmente
contra as classes desfavorecidas. O encarceramento dos indisciplinados teria função
terapêutica, a transformar seus hábitos de vida através da obediência à lei e da valorização do
trabalho. Sob essa ótica pedagógico-reformadora, a teoria criminal psicanalítica se
aproximaria de tantas outras, medida que busca possíveis causas da criminalidade,
vinculando-a sutilmente à pobreza. Exercer o poder do sistema penal pela análise do
indivíduo não como sujeito do ato, mas a partir do que ele simplesmente é: aí está uma das
armadilhas que se tentou evitar no percurso desse trabalho.
É preciso, ainda, manter-nos atentos à concepção foucaultiana da heterogeneidade do
poder, exercido de múltiplas formas através da produção dos diversos saberes. Todo campo
de saber é constituído com base nas relações de poder e o seu exercício se dá,
14
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 1997, p.
89.
146
fundamentalmente, a partir das noções oferecidas por essas construções teóricas. A
psicanálise e o direito estão incluídos no mesmo contexto – em áreas diferentes – de
produção dos saberes: as ciências humanas. Tendo o homem como objeto de conhecimento,
obedecem a esses saberes a uma certa metodologia comum, caso sejam observados de fora,
como estratégia de sustentação teórica das estruturas econômicas e políticas a partir do
século XIX. Tal amparo teórico foi edificado por força das relações do poder disciplinar,
difuso e anônimo, que faz imperiosa a individualização daqueles sobre quem tal poder é
exercido: para vigiar e controlar há que se focalizar o objeto do controle.
Nesse contexto, a psicanálise pode servir ao projeto de poder de controle permanente
sobre os corpos, com o fim de forjar individualidades rotuláveis e adaptáveis. Mas não é esse
o verdadeiro objetivo da psicanálise, pois possui o inegável potencial de auxiliar na leitura
de concepções contrárias a essa, já que a revolução do inconsciente pode ter representado um
obstáculo para as estratégias de dominação.
O fim almejado com a interlocução do discurso jurídico com a psicanálise é,
justamente, criar condições que possibilitem rejeitar o papel reservado ao indivíduo como
um ser economicamente funcional e socialmente adaptado.
Não sabemos ao certo de onde vem o psicopata, mas sabemos para onde vai: para a
rejeição, a degradação e a morte. Não deve ser almejado ou desprezado, mas sim assistido.
Esse é um trabalho para especialistas, habituados a esse exercício e que trabalhem em
equipe. Os leigos, amigos e parentes do paciente devem ser bem recebidos, para que
participem daquilo que se espera ser uma reintegração e que, com freqüência, não é mais do
que uma proteção incerta.
Proteger o psicopata contra seu destino é proteger, secundariamente, suas vítimas e a
sociedade contra suas atuações, mas é também refletir e tentar compreender em sua
profundidade e em suas ressonâncias esse ser misterioso, tão próximo de nós. O psicopata
147
não se reduz às suas atuações, ele é mais interessante por suas carências do que por sua
devassidão, mais atraente pela impressão no vazio do que pela conduta anti-social que o
define tão bem.
148
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