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Universidade Federal do Rio de Janeiro
O SÍTIO DO PICAPAU AMARELO : CARTOGRAFIA DE UMA
COSMOLOGIA FICCIONAL
Helena Vieira Gomes
2008
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O SÍTIO DO PICAPAU AMARELO : CARTOGRAFIA DE UMA
COSMOLOGIA FICCIONAL
Helena Vieira Gomes
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social, Museu Nacional, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de
Mestre em Antropologia Social.
Orientador: Prof. Dr. Eduardo Batalha
Viveiros de Castro.
Rio de Janeiro
Fevereiro, 2008
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O SÍTIO DO PICAPAU AMARELO : CARTOGRAFIA DE UMA
COSMOLOGIA FICCIONAL
Helena Vieira Gomes
Orientador: Eduardo Batalha Viveiros de Castro
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social,
Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Antropologia Social.
Aprovada por:
_______________________________________
Presidente, Prof. Dr. Eduardo Batalha Viveiros de Castro
________________________________________
Prof
. Dr. Otávio Guilherme Alves Velho
________________________________________
Prof
a
. Dra. Ana Luiza Martins Costa
________________________________________
Prof
a
. Dra. Aparecida Vilaça
________________________________________
Prof
a
. Dra. Cristiane Lasmar
Rio de Janeiro
Fevereiro, 2008
Gomes, Helena Vieira
O Sítio do Picapau Amarelo: cartografia de uma cosmologia ficcional.-
Rio de Janeiro: UFRJ/ PPGAS, 2008.
xi, 117 f.: il. 31 cm.
Orientador: Eduardo Viveiros de Castro
Dissertação (mestrado) – UFRJ/ Museu Nacional /
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, 2008.
Referências Bibliográficas: f. 99-106
1. Monteiro Lobato. 2. Antropologia da literatura. 3. Cosmologia. I.
Viveiros de Castro, Eduardo Batalha. II. Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social. III. Título
O SÍTIO DO PICAPAU AMARELO : CARTOGRAFIA DE UMA
COSMOLOGIA FICCIONAL
Helena Vieira Gomes
Orientador: Eduardo Batalha Viveiros de Castro
Resumo da dissertação de mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Antropologia
Social.
O tema de investigação desta dissertação é a cosmologia ficcional que se constrói ao
longo das aventuras performatizadas pelos habitantes de um precioso território imaginário
da literatura infantil brasileira: o Sítio do Picapau Amarelo. O ponto de enunciação
adotado para tornar tal objeto visível foi o de considerar a obra infantil de Monteiro
Lobato sob o mesmo ponto de vista que ela se apresenta a seus leitores: um microcosmos
fantástico, sediado no território físico e imaginário brasileiro, em permanente atividade
relacional com os habitantes de outras regiões ficcionais de diversas tradições literárias,
mitológicas e folclóricas. Partindo do pressuposto de que esta literatura fabrica um
mundo, este trabalho se propõe a analisar seus modos de funcionamento. Para isso,
procurou-se perseguir as operações de autoconceitualização, as práticas de conhecimento
e a economia da diferença em vigor neste microcosmos.
Palavras-chave: Monteiro Lobato – Antropologia da literatura – Cosmologia
O SÍTIO DO PICAPAU AMARELO : A CARTOGRAPHY OF A
FICCIONAL COSMOLOGY
Helena Vieira Gomes
Orientador: Eduardo Batalha Viveiros de Castro
Abstract da dissertação de mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Antropologia
Social.
The investigation theme of this dissertation is the fictional cosmology which is
constructed around the adventures performed by the inhabitants of a precious imaginary
landscape of Brazilian literature: O Sítio do Picapau Amarelo. The point of enunciation
adopted in order to make this object visible was to consider Monteiro Lobato’s work for
children from the same point of view that is intended for his readers, that is, as a fantastic
microcosm, situated on the physical and imaginary territory of Brazil, in permanent
relational activity with inhabitants from other fictional regions of multiple literary,
mythological and folkloric traditions. Parting from the premise that this literature
fabricates a world, the objective of this dissertation is to show the means through which
such world functions. This was done by pursuing the operations of self-conceptualization,
the practices of knowledge and the economy of difference at play in this microcosm.
Key-words: Monteiro Lobato – Anthropology of Literature – Cosmology
À minha mãe,
que passou sua infância entre esta literarura.
Agradecimentos
Agradeço ao CNPq pelos dois anos de bolsa de estudos.
Agradeço a Eduardo Viveiros de Castro pela receptividade com que aceitou orientar minha
pesquisa de mestrado, quando ela ainda estava longe de ter forma ou sentido. Suas brilhantes
idéias me serviram de inspiração primeira para a construção de meu objeto de estudo; e seu
temperamento teórico me guiou ao longo de todo o processo de escrita.
Agradeço a minha mãe, primeiramente, por aquela antiga edição de Reinações de Narizinho
com a qual me presenteou há muitos anos atrás. Seu apoio incondicional durante todo o
período da minha formação acadêmica e sua especial dedicação ao longo da fase de redação
desta dissertação foram fundamentais para que eu tenha conseguido chegar até aqui. Sua
cuidadosa revisão certamente elevou a qualidade deste texto, e também por isso devo-lhe
muita gratidão. Agradeço também a meu pai pelo apoio que me deu durante os anos de estudo
e ao longo da fase de produção deste trabalho.
Agradeço imensamente às minhas grandes amigas Tatiana Bacal e Katarina Wolter, com
quem sempre posso contar. Tati me deu todos os direitos a queixas e crises, me orientou em
muitos sentidos, leu meus textos, conversou antropologia e astrologia, ficou ansiosa comigo e
feliz por mim, sempre que precisei. Sem ela teria sido uma tortura. A Kata agradeço o ponto
de vista sempre estrangeiro, sempre disposto a me mostrar que as coisas podem ser feitas com
mais serenidade. Nossas conversas me recarregaram as forças e animaram as idéias. Todas as
duas estiveram comigo ao longo desse processo e se encarregaram da impressão e distribuição
do trabalho. E oxigenação dos ânimos. Octavio Bonet, como sempre, foi muito generoso em
me ceder um pouco de seu tempo para garantir que “tudo saia certinho”. Não somente na fase
da dissertação, mas durante o curso de mestrado, sempre pude contar com ele.
Agradeço a Max Luisetto pela paciência, dedicação e amor com que testemunhou meu
processo de escrita neste cinza inverno de Bruxelas. Mariela Luisetto e sua inspirada culinária
me confortaram imensamente ao longo deste período.
Agradeço aos amigos queridos João Francisco de Lemos e Fernanda Eugênio com quem
aprendo muito sobre antropologia e sobre a vida. Eles fazem parte fundamental da minha
formação. Frederico Coelho também esteve muito presente nos anos de mestrado e sua
participação como amigo e como intelectual foram muito importantes para mim.
Agradeço a Maria Isabel Mendes de Almeida pelos anos em que me acolheu no CESAP, me
dando a oportunidade de aprender com esse grupo muito especial que lá se encontra. Através
de nossas reuniões e discussões de textos, Bebel colaborou imensamente para minha
trajetória. Agradeço igualmente a Santuza Naves, sempre muito generosa e disposta a
compartilhar idéias, textos, fichamentos e pensamentos. Desde a época de minha graduação,
Santuza já contribuia como referência e inspiração.
Agradeço a Amir Geiger pela cuidosa leitura e pelos comentários de parte deste trabalho. Suas
“epifanias” foram extremamente inspiradoras. Agradeço igualmente a Ricardo Benzaquem
que sempre se mostrou disposto a conversar. Ronaldo Castro também contribuiu para esse
trabalho, através da leitura de uma parte “primitiva” do texto e das várias conversas que já
marcam alguns anos de amizade. Agradeço a Luiza Leite pela tradução do resumo.
Betina Ule foi indispensável durante o período de escrita, seus e-mails encorajadores me
ajudaram muito a atravessar essa fase. Agradeço seu carinho e dedicação à minha “causa”.
Marcio Deslandes sempre acreditou, e isso contribui para que eu também acreditasse.
Marcelo Motta também faz parte desta conquista. Ele sabe muito bem. Obrigada!
Finalmente, agradeço aos meus queridos amigos de Bruxelas. Stella Tutunzi, minha
companheira de todas as horas. Tenha sido em bares esfumaçados, quando me acompanhou
nas fugas boêmias, ou em visitas carinhosas, ela muito me ajudou com boas conversas durante
os dias de escrita. Thanh Lam sempre presente e atencioso, em pequenos jantares ou pausas
para o café, procurou me apoiar nesse momento.
[O mundo] não foi criado uma única vez
mas tantas quantas surgiu um artista original.
Proust
1
Sumário
INTRODUÇÃO 2
CAPÍTULO 1 15
SOBRE A FABRICAÇÃO DE PESSOAS NO SÍTIO DO PICAPAU AMARELO 15
1.1 Reinações de Narizinho: a cosmogênese de um microcosmos ficcional 15
1.2 Emília: um caso de (a)gentificação 22
1.3 A Marquesa de Rabicó e o Visconde de Sabugosa: um “clã” fe(i)tiche no Picapau Amarelo 42
CAPÍTULO 2 53
SOBRE A TERRITORIALIZAÇÃO DO SÍTIO DO PICAPAU AMARELO NO MAPA
DOS MUNDOS FICCIONAIS 53
2.1 A criação de alianças e a arte mediadora 53
2.2 A autoconceitualização ficcional 59
2.3 A comunidade ficcional e o Outro indispensável 65
CAPÍTULO 3: 74
SOBRE A CONSTRUÇÃO E A PRÁTICA DO CONHECIMENTO NO SÍTIO DO
PICAPAU AMARELO 74
3.1 As múltiplas províncias de significado 74
3.2 As três matrizes de um projeto de formação de personagens e leitores 82
3.3 Conhecimento como experiência e desejo de ruptura 91
CONSIDERAÇÕES FINAIS 97
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 100
2
Introdução
« Não se escreve com lembranças de infância, mas
por blocos de infância, que são devires-criança do
presente » (Deleuze & Guattari, O que é a
filosofia ?).
Comecemos com uma anedota de Freud. Para um método infalível de captura de
criminosos, basta que se crie uma praça onde todos os transgressores serão perdoados. E se o
crime em questão for a desestabilização das fronteiras ontológicas que distinguem os conceitos de
natureza e cultura no discurso ocidental? E se a conseqüência da corrupção destes dois domínios
tão cuidadosamente separados por este pensamento for a ameaça ao mais precioso patrimônio da
razão, o “real”? Quais seriam os habitantes potenciais da praça onde tais delitos seriam tolerados
sem que se tivesse de pagar as penas aplicadas aos loucos? Alguns gêneros da literatura seriam
certamente fortes candidatos ao título de freqüentadores deste asilo. As fábulas e os contos de
fadas, a maioria das obras da literatura infantil e também o gênero fantástico compartilham entre
si de uma vocação especial para o desenvolvimento de tramas baseadas na s uspensão estetizada
das ontologias que sustentam a imagem ocidental de realidade. É bem verdade que qualquer
ficção literária, seja ela do gênero que for, goza, por princípio, do direito à transgressão do real
através do imaginário. Algumas delas, porém, abusam desta virtude. Ao corromper as imagens e
fronteiras pós-iluministas de natureza e cultura e humano e não-humano, desatrelando-se do
compromisso com a verossimilhança, tais gêneros fundam sua distinção na implosão do
“realismo” como estilo de construção dos fatos narrados. Seja nas fábulas, onde personagens
3
animais agem como seres humanos; seja nos chamados contos de fadas, protagonizados por
habitantes de mundos encantados imaginários, na literatura infantil inspirada por esta mesma
espécie de conteúdo de fantasia, ou até mesmo na literatura fantástica, “onde o fato extraordinário
que o conto narra deve deixar sempre a possibilidade de explicação racional, ainda que seja a da
alucinação ou do sonho” (Calvino, 2004:10), a ficcionalidade das narrativas cruza os limites do
possível, potencialmente distendendo as fronteiras daquilo que fomos ensinados a chamar de
realidade.
Falar em fábulas, contos de fadas e literatura infantil é, sem dúvida alguma, aplicar termos
genéricos, atribuídos a expressões literárias ou práticas de transmissão oral fundadas em tradições
particulares que buscam inspiração em fontes mitológicas e narrativas populares das mais
variadas origens. O que se convencionou denominar por contos de fadas, por um lado, constitui
um conjunto de narrativas provenientes da tradição oral européia, onde as personagens não
necessariamente advêm do mundo das fadas, mas de uma maneira ou de outra carregam
elementos herdados da idéia de magia e encantamento (Collingwood, 2005:115). Fábula, por sua
vez, é o nome aplicado às narrativas protagonizadas por animais que, invariavelmente, apresenta
em seu desenlace uma conclusão moral. O gênero foi supostamente criado pelo grego Esopo no
século VI a.C. e, durante a segunda metade do século XVII, teve na figura do poeta francês Jean
de La Fontaine seu maior difusor. Tanto os contos de fadas quanto as fábulas, porém, devem sua
difusão, em grande parte, à prática de transmissão oral e compartilham freqüentemente de uma
obscuridade autoral. Sua transposição à forma de registro literário, em muitos casos, é resultado
da compilação e edição de narrativas populares que já circulavam desde longa data. Collingwood
(2005:117) defende, inclusive, que evidências históricas levam a crer que os chamados contos de
fadas europeus contam com uma origem milenar. Estes dois gêneros, que parecem habitar o
limbo entre a mitologia e a literatura, serviram de matéria prima elementar para o que, a partir do
4
Iluminismo, organizou-se sob a forma de uma literatura infantil. Os contos de fadas e as canções,
assim como os livros populares e as fábulas, constituíram fontes para os textos dos livros infantis
que, em sua primeira década, são edificantes, moralistas e prestam-se ao grande programa de
remodelação da humanidade (Benjamin, 1996a: 237).
A literatura fantástica, em contrapartida, possui um estatuto radicalmente distinto destas
tradições que acabam por se fundir na literatura infantil. Uma das produções mais características
do século XIX, o conto fantástico, nasce com o Romantismo alemão, no final do século
precedente, no terreno específico da especulação filosófica, explorando “a relação entre a
realidade do mundo que habitamos e conhecemos por meio da percepção e a realidade do mundo
do pensamento que mora em nós e nos comanda” (Calvino, 2004: 9). O conto fantástico é
também filosófico, alega Ítalo Calvino. O projeto que sustenta sua produção carrega a “intenção
declarada de representar a realidade do mundo interior e subjetivo da mente, da imaginação,
conferindo a ela uma dignidade equivalente ou maior do que a do mundo da objetividade e dos
sentimentos” (Calvino, 2004:11). Embora esta seja uma literatura comprometida com um
conjunto de questões distintas das obras dirigidas ao público infantil, alinhá-la a este grupo serve-
nos tão somente para o propósito de agrupar gêneros que parecem compartilhar do gosto por
borrar o “triângulo ortodoxo natureza, sobrenatureza e humanidade” (Calavia, 2004: 236).
É bem verdade, porém, que os crimes perdoados na anedota de Freud só serão tolerados
conquanto os transgressores se limitem a permanecer na praça que lhes é designada. A estes
criminosos da razão é reservado o terreno da ficção, ou dos “textos de fruição” (Barthes, 2004),
região onde sua proliferação está autorizada pelo suposto cordão de isolamento que distingue
fundamentalmente o conteúdo da criação imaginária artística daquilo que transita por outras vias
do pensamento ocidental, seja sob o título de ciência, filosofia ou religião. Contudo, como nos
alerta Borges (2001:7), um conto fantástico, para que seja aceito pelo leitor, só deve permitir um
5
elemento fantástico por vez. A ficção não exime por completo seus freqüentadores do tributo à
coerência. Dentro dos limites da praça da fantasia e da imaginação literária, os acontecimentos se
desenvolvem sob um plano de consistência que lhes confere sentido interno. O texto literário
permanece ainda, porém, como sensivelmente o caracterizou Roland Barthes (2004:8), uma
“Babel feliz”. O leitor do texto, no momento em que se entrega a seu prazer, converte-se em
contra-herói, fruto da abjeção de nossa sociedade; “os tribunais, a escola, o asilo, a conversação,
convertê-lo-iam em um estrangeiro: quem suporta sem nenhuma vergonha a contradição?”
Barthes declara: “então o velho mito bíblico se inverte, a confusão das línguas não é mais uma
punição, o sujeito chega à fruição pela coabitação das linguagens, que trabalham lado a lado: o
texto de prazer é Babel feliz”.
Inspirando-se na noção de múltiplas realidades de William James, Alfred Schütz
(2002:752) defende que há diferentes ordens de realidade, cada uma das quais com seu estilo
peculiar de existência e separada das outras. O autor alega que a distinção entre o real e o irreal é
elaborada sempre a partir de contextos de interpretação relativos. Ao lado do “subuniverso” da
vida cotidiana, do senso comum, encontramos o mundo da arte, o mundo dos sonhos, da
experiência religiosa, da atividade científica, da loucura e da fantasia, entre outros. “Cada um
desses mundos, enquanto desperta nossa atenção, é real a seu modo, e qualquer que seja a sua
relação com nossa mente, se não houver uma relação mais forte com a qual se conflitue, bastará
para tornar este objeto real” (Schütz, 2002: 752). Seria ingenuidade, no entanto, presumir que
aquilo que se produz no terreno da ficção se mantenha respeitosamente confinado ao seu próprio
feudo, seu “subuniverso” particular, mantendo-se necessariamente a uma distância segura das
fronteiras de sua própria praça. A relação de contágio e atrito incessante entre os “subuniversos”,
entre estas múltiplas realidades, para usar a expressão de Schütz, confere energia à produção
literária “fantástica”, que opera sob um regime de captura dos “subuniversos” que cruzam seu
6
terreno. Nas palavras de Deleuze “... é preciso considerar a filosofia, a arte e a ciência como
espécies de linhas melódicas estrangeiras umas às outras e que não cessam de interferir entre si”
(2004: 156). Deste modo, um livro não é uma imagem do mundo, ou no caso do “fantástico”
simplesmente uma anti-imagem do mundo, o livro faz, antes, rizoma com o mundo, ele assegura
a desterritorialização do mundo. “... Mas o mundo opera uma reterritorialização do livro, que se
desterritorializa por sua vez em si mesmo e no mundo” (Deleuze & Guattari, 2004b: 20).
Tomando como inspiração a proposta de Deleuze & Guattari (2004b: 12), de que a
literatura não deve ser compreendida em termos de significados e significantes, mas abordada em
termos de seu funcionamento, em conexão com “o que ela faz ou não faz passar de intensidades”,
em que multiplicidade ela se introduz, este trabalho procura perseguir o conjunto de relações e as
operações de auto-conceitualização que sustentam o funcionamento do microscosmos ficcional
Sítio do Picapau Amarelo, ilustrado nas páginas da obra infantil de Monteiro Lobato.
Muito embora os livros infantis de Lobato tenham sido exaustivamente abordados sob a
ótica da análise sociológica do discurso, aquela que se volta para o texto tomando-o como
indicador, documento do que se passa na sociedade” (Costa Lima, 2002), acreditamos que o
exercício de uma cartografia do “mundo” criado pela sua literatura infantil seja uma tarefa para a
qual a obra nos convida sedutoramente. Entretanto, não é difícil compreender a força de atração
que a personalidade intelectual, política e empreendedora de Lobato exerce sobre aqueles que se
concentram em extrair a expressão ideológica de sua literatura. Senhor de uma participação
enérgica e muito freqüentemente controversa no cenário cultural brasileiro modernista, o autor,
crítico, editor, ativista e empresário Monteiro Lobato revela uma biografia que se mistura muito
intensamente com a história do Brasil das décadas de 1910 a 1940.
Uma de suas obras de maior sucesso editorial, o livro de contos Urupês, publicado em
1918, imortaliza a figura do Jeca Tatu, anti-herói que contradiz não apenas a retórica patriótica,
7
mas também o processo de idealização das minorias aos quais a tradição literária romântica
atribuía dimensões épicas. A personagem de Lobato, que faz sua estréia em 1915 em artigo
homônimo ao livro publicado no Estado de S. Paulo, é pintada como um caboclo indiferente ao
desenvolvimento do país, imagem que contrasta com a figura dos heróis do indianismo; e seu
criador não economiza nas tintas ao descrever o Jeca como “funesto parasita da terra”,
“inadaptável à civilização”. A perspectiva de Lobato a respeito do caboclo gerou enorme
polêmica, num momento em que a poesia celebrava o caipira como uma criatura simples, mas
feliz, cheia de bons sentimentos
1
(Campos, 1986: 17). O livro é publicado pelo próprio autor,
dando início à promissora carreira de Lobato no mercado editorial brasileiro
2
, e encontra
excelente aceitação – esgotou em um ano milhares de volumes (Lajolo, 1985: 32). O enorme
sucesso encontrado por Urupês pode ser em parte entendido como resultado do interesse da
época em desvendar o ethos dos tipos nacionais, num momento em que se discutia enormemente
a questão da nacionalidade, as possibilidades de modernização do país e, acima de tudo, o papel
das “raças” formadoras do povo brasileiro. O que se percebe nessa conjuntura, que tem como um
dos elementos de sua paisagem mais ampla a Primeira Grande Guerra, é um surto de
nacionalismo que, entre os membros da intelectualidade, se manifestava pelo crescente interesse
nos problemas nacionais. Neste sentido, como o formulou Campos (1986: 18), quando se discutia
o Jeca Tatu, o objeto de discussão era o próprio Brasil. A personagem do caboclo e seu mundo
constituem verdadeiros símbolos de um atraso econômico, político e mental que, no entender de
Lobato, precisavam ser vencidos. Esse caipira, com sua vida seminômade, sua economia de
subsistência, sua submissão aos coronéis e sua mentalidade fatalista, era um obstáculo ao
1
As virtudes do caboclo são cantadas, por exemplo, por Menotti del Picchia em Juca Mulato, obra publicada em
1917. Outros dois adeptos à exaltação do camponês em sua lírica são Valdomiro Silveira e Ricardo Gonçalves
(Campos, 1986).
2
Para um aprofundamento da questão da importante participação de Lobato na modernização do mercado e da
indústria editorial brasileiras, conferir a dissertação de mestrado de MORAES, Pedro Rodolfo Bodê de (1995),
Fidalgos do café e livros do Brasil: Monteiro Lobato e a criação das editoras nacionais.
8
progresso representado pela via férrea, pelo italiano, pelo arado e pela valorização da propriedade
(ibid.: 21).
A presença de narrativas populares como material bruto para a criação literária que resulta
nos contos publicados em Urupês estimula Silviano Santiago (2003) a estabelecer um
contraponto entre a produção de Lobato e aquela de Guimarães Rosa. Entretanto, como assinala o
crítico, se no caso de Rosa o “causo alheio” serve de apoio “nos tratos da poesia e da
transcendência”, em Lobato a estilização é mínima, uma vez que o autor despreza
declaradamente a sofisticação discursiva e desenvolve seus enredos utilizando linguagens e
estruturas narrativas as mais simples possíveis, já que o objetivo primeiro de sua obra é assegurar
a comunicabilidade entre o autor e seu público. Esse é um dos pontos que acompanhará toda a
trajetória literária lobatiana. Seja na produção para o público adulto ou em sua obra consagrada a
leitores infantis, o autor toma como missão desenvolver o gosto da população pela leitura, num
país assolado pela herança escravista e colonialista. Com isso, segundo a análise de Santiago,
Lobato rebaixa o valor literário do próprio conto em nome do diálogo do livro com o leitor.
“Livros existem para serem lidos, eis a grande descoberta de Lobato num país de iletrados”,
conclui o crítico (2003: 659).
A utilização do imaginário popular para a construção dos contos de Urupês que motivou
Santiago a estabelecer um contraponto entre essa obra e a produção literária de Rosa encontra
também rendimento em discussões que propõem relações de contraste e semelhança entre o conto
de Lobato e o emblemático texto do movimento modernista brasileiro O Manifesto Antropófago,
assinado por Oswald de Andrade. Encontramos em Geiger (1999), em diálogo com as
formulações de Martins (1965), a indicação de uma relação entre o conto lobatiano e o célebre
texto de Oswald, que assume como recurso o ponto de vista do selvagem. Entretanto, o ponto de
contato não estaria presente no conteúdo do discurso, mas sim no tom “expressionista” e no
9
sentido em que ambos produzem uma inversão do indianismo romântico. Contudo, Geiger (1999:
207) esclarece que as inversões de Lobato e Oswald são inteiramente distintas, já que a utopia
oswaldiana do “matriarcado sem pecado na terra de Pindorama” teria vínculos românticos,
quando Lobato a produz em defesa explícita da modernização. Contudo, apesar do diálogo
potencial entre a produção literária do autor de Urupês e algumas das obras de referência do
movimento modernista brasileiro (liderado por Oswald e Mario de Andrade) ser apontado por
certos críticos, o conservadorismo estético de Lobato estimula os modernistas a transformarem o
escritor em símbolo maior de um passado que deveria ser enterrado (Passiani, 2003).
O célebre episódio que funda essa relação de rivalidade é a ácida reação crítica de Lobato
às novas experiências estéticas catalisadas pela exposição de Anita Malfati em 1917. Em um
artigo publicado no Estado de S. Paulo, intitulado Paranóia ou mistificação, o escritor ataca
severamente o trabalho da jovem pintora, de forte inspiração expressionista, utilizando
argumentos extremamente tradicionalistas para desvalorizar as propostas estéticas que florescem
entre as vanguardas européias. O infeliz artigo é utilizado pelos modernistas, simpatizantes dos
novos caminhos adotados pelas artes plásticas, para transformar Lobato no símbolo do
conservadorismo brasileiro. De maneira indireta e involuntária, Monteiro Lobato consagra Anita
Malfati que, como vítima de sua crítica, é apropriada pelos modernistas como mártir da
vanguarda brasileira. Na observação de Menotti del Picchia, Anita “passou então para o nosso
martirológico artístico. Resuldado: ganhando terreno o Modernismo, a pintora ilustre tornou-se
uma espécie de santa da ala demoníaca dos reformadores. Seu nome traz o prestígio dos
taumaturgos e dos mártires” (apud. Brito, 1964: 60). O ápice da exclusão de Lobato da paisagem
vanguardista brasileira se dá em 1926, quando Mário de Andrade, em artigo publicado pelo jornal
carioca A Manhã, declara a morte literária do escritor.
10
Contudo, se o valor da produção literária de Lobato para adultos é questionada por
diferentes críticos, pelos mais variados motivos, a importância de sua obra para crianças parece
ser unanimemente reconhecida. Mesmo que as idéias veiculadas através de seu trabalho dedicado
ao segmento infantil possam ser questionadas, foi através desse gênero que o autor entrou
efetivamente para a história da literatura brasileira. O desejo de escrever para crianças ter-lhe-ia
surgido a partir da observação de como seus filhos recontavam aos amigos as fábulas que ouviam
da mãe (Azevedo, 2002: 40). Nas primeiras décadas do século XX, os livros dedicados ao
público infantil no país eram, em sua maioria, traduções, muitas vezes portuguesas, de contos e
fábulas européias. Lobato toma para si a missão de produzir uma literatura nacional, inspirada
pelas questões e cores locais, fabricada com uma linguagem acessível, que desperte nas crianças
brasileiras o prazer da leitura. A dedicação de mais de quarenta anos ao gênero infantil é
inspirada pela esperança de Lobato de que, escrevendo para as crianças, ele estaria, de fato,
transmitindo suas idéias ao adulto do futuro. Quando lança, em 1921, Narizinho Arrebitado e dá
início às aventuras dos habitantes do Sítio do Picapau Amarelo, o Brasil contava com 30 milhões
de habitantes, entre os quais somente 6 milhões sabiam ler e escrever (Belli e Sinder, 2005: 32).
A literatura infantil de Lobato revela efetivamente conter o objetivo político de formar cidadãos,
despertar nos seus jovens leitores a curiosidade intelectual e a atitude crítica. Em poucas palavras,
o autor confessa sua profunda crença na educação como o meio mais eficaz de atingir seu projeto
maior: a modernização do país.
A criança é a humanidade de amanhã. No dia em que isso se transformar num axioma –
não dos repetidos decoradamente, mas dos sentidos no fundo da alma – a arte de educar as
crianças passará a ser a mais intensa preocupação do homem (Monteiro Lobato, 1972:
103).
Grande parte das pesquisas voltadas para o estudo da obra infantil de Monteiro Lobato se
concentra na demonstração dos aspectos ideológicos que participam da construção deste mundo
11
de fantasia. Efetivamente, a leitura desses livros, em muitos momentos, nos leva a captar, através
das aventuras fantasiosas que se desenrolam no curioso ambiente rural que é o Sítio do Picapau
Amarelo, os ecos não somente de um projeto pedagógico formador, mas do positivismo, do
evolucionismo e do darwinismo social que inspiravam as idéias do autor. Lobato, que declarou
ter sido fundamentalmente formado pela leitura de Augusto Compte, Nietzsche, Gustave Le Bon
e Herbert Spencer (Campos, 1986: 13), utiliza, em muitos momentos, suas personagens infantis
para pregar seus ideais políticos e filosóficos. O próprio efeito atenuante ou permissivo do gênero
literário infantil, onde todas as miscelâneas são admitidas conquanto o teor prazeroso e educativo
da leitura sejam preservados, estimula a manifestação das mais intempestivas idéias, amaciadas
pela fantasia. Ciente disso, Lobato constrói um mundo onde todos os seus desejos podem ser
realizados e neste lugar projeta um novo Brasil, argumentam muitos de seus críticos e
pesquisadores
3
de sua obra. O título que melhor expressa essa tendência é O poço do Visconde,
onde o primeiro poço de petróleo do Brasil é aberto, nas terras de Dona Benta; uma realização
ficcional que trata de um das mais importantes lutas de Lobato: a industrialização do país através
da campanha do petróleo.
No entanto, muito embora diferentes pesquisadores da obra infantil de Lobato tenham
mostrado, com propriedade, que o mundo de fantasia por ele criado reflete suas idéias, uma
atenção diretamente voltada para a substância ideológica de seus escritos e para as condições
sociais e políticas de produção de sua obra ameaça ofuscar o tremendo potencial que a saga
vivida pelas personagens do Sítio do Picapau Amarelo oferece para uma “abordagem
etnográfica” dos mundos e relações que ali se criam. Portanto, propomos tomar como inspiração
a regra aplicada por algumas correntes da etnologia ameríndia, segundo a qual “uma vez fixada a
3
Um dos exemplos de pesquisa que adota essa abordagem é o livro de VASCONSELLOS, Zinda Maria Carvalho de
(1982), O universo ideológico da obra infantil de Monteiro Lobato.
12
perspectiva no pólo indígena, tudo é interno a ele – inclusive a sociedade ‘envolvente’” (Viveiros
de Castro, 1999:120), e transpô-la ao projeto de antropologia da literatura que se procura
desenvolver nesta pesquisa. Evita-se, assim, um olhar que se deixe dominar pelo contexto de
produção da ficção e se aposta na busca pelo “composto de perceptos e afectos” (Deleuze &
Guattari, 2004a: 213) da obra em questão. A idéia de uma “abordagem etnográfica” pretende
unicamente elucidar o ponto de enunciação adotado nesta pesquisa, isto é, o de considerar a obra
infantil de Monteiro Lobato sob o mesmo prisma através do qual ela se apresenta a seus leitores:
um microcosmos fantástico, sediado no território físico e imaginário brasileiro, em permanente
atividade relacional com os habitantes de outras regiões ficcionais de diversas tradições literárias,
mitológicas e folclóricas.
Imaginar que a extensa obra infantil de Lobato não faz senão expressar suas idéias
políticas seria negar-lhe o valor artístico. Da mesma forma que a leitura de seus livros nos mostra
a presença de um projeto de formação engendrado por claras posições ideológicas, a visita ao
microcosmos ficcional que é o Picapau Amarelo também revela que Lobato foi ligeiramente
superado pelo mundo que criou. A declaração da autonomia das personagens sobre seus autores
não é uma posição vanguardista no campo da produção artística: a imagem das musas que
inspiram os artistas com seu sopro criador habita a imaginação ocidental desde a Antigüidade
clássica. Latour (2004), ao tratar da obsessão moderna pela separação entre o que é feito –
construído pelo homem e, portanto, irreal – e aquilo que é fato – não construído pelo homem,
não-fabricado, logo, real – , aponta o caráter falacioso desta “crença moderna” tomando como
exemplo a atividade artística paralelamente à prática científica e ao “pensamento primitivo”. Ele
afirma:
“Os romancistas também não dizem que são ‘levados por seus personagens? Nós os
acusamos, é verdade, de má fé, submetendo-os primeiro à questão ‘Vocês fabricam seus
13
livros? Vocês são fabricados por eles?’ E eles respondem, obstinadamente, como os
negros e como Pasteur, através de uma de suas admiráveis fórmulas, cujo sentido corre
sempre o risco de ser perdido: ‘Somos os filhos de nossas obras’” (ibid.:46).
Ao contrário de colocar em pólos opostos e inconciliáveis o sujeito e o objeto da arte,
como o fazem os pensadores críticos denunciados por Latour, Deleuze & Guattari (2004b)
defendem que a literatura opera um agenciamento rizomático sobre um plano de consistência de
multiplicidades. “Os fios da marionete, considerados como rizoma ou multiplicidade, não
remetem à vontade suposta una de um artista ou de um operador, mas à multiplicidade das fibras
nervosas que formam, por sua vez, uma outra marionete, seguindo outras dimensões conectadas
às primeiras” (ibid.: 16).
Esta sugestão em muito se aplica ao funcionamento da obra infantil de Monteiro Lobato,
atravessada por múltiplas linhas de intensidade para além daquelas produzidas pelo projeto de
formação do público infantil brasileiro. “Um livro não tem objeto nem sujeito; é feito de matérias
diferentemente formadas, de datas e velocidades muito diferentes. Desde que se atribui um livro a
um sujeito, negligencia-se este trabalho das matérias e a exterioridades de suas relações. Fabrica-
se um bom Deus para movimentos geológicos”. (Deleuze & Guattari, 2004b: 11). Partindo do
pressuposto de que a literatura infantil lobatiana fabrica um mundo, este trabalho se propõe a
analisar seus modos de funcionamento.
A obra infantil de Monteiro Lobato conta com vinte e dois títulos organizados em
dezessete volumes. Seus livros sofreram recorrentes remodelações até serem cristalizados nessa
obra completa organizada em 1946 pelo próprio autor. Embora seja numerada e conte com um
sistema de notas de rodapé que informa ao leitor as eventuais continuidades entre episódios
espalhados pelos muitos volumes, a obra é concebida de forma a ser abordada a partir de
qualquer um de seus pontos, sem que o leitor tenha que necessariamente acompanhar a ordem
14
cronológica dos volumes. A própria seqüência dos acontecimentos desrespeita, por vezes, a
suposta ordem estabelecida pela numeração dos títulos.
Esta dissertação se organiza sob a forma de três capítulos, onde os temas da fabricação de
pessoas no microcosmos do Sítio do Picapau; a questão da territorialização desta paisagem no
mapa de mundos ficcionais; os processos de produção e prática de conhecimento neste mundo
são tratados respectivamente. Na abordagem de tais aspectos fundamentais para a construção do
mundo do Picapau Amarelo, percorremos os volumes da obra infantil, sem nos fixarmos em uma
análise detalhada de cada um dos livros, mas pinçando trechos, falas e situações através dos
vários títulos, episódios e referências que contribuíram para formular as idéias que desejamos
expor. A edição utilizada como fonte de consulta desta pesquisa data de 1957 e optou-se por não
guardar as convenções ortográficas da época nos trechos transcritos. A única exceção em relação
a essa escolha foi a não hifenização da palavra “pica-pau” quando esta se refere ao sítio de Dona
Benta, uma vez que, nesse caso, trata-se de um nome próprio.
15
CAPÍTULO 1
Sobre a fabricação de pessoas no Sítio do Picapau Amarelo
1.1 Reinações de Narizinho: a cosmogênese de um microcosmos ficcional
Emília, aquela que se tornará a heroína das aventuras do Sítio do Picapau Amarelo, é
uma boneca, uma forma feminina em miniatura, que nasce das mãos de uma cozinheira. Sua
pele é feita de um pano ordinário e seu corpo recheado de flores de macela. Apesar de feita
por mãos humanas, um determinado dia ela ganha a palavra, e tal acontecimento marcará a
inscrição do Sítio do Picapau Amarelo no mapa do "Mundo das Maravilhas". Passar a compor
tal paisagem representa entrar em relação com os outros coletivos ficcionais que também têm
o seu território definido neste mapa. “Mundo das Maravilhas” ou “País-das-Maravilhas” é um
conceito que faz parte do vocabulário descritivo utilizado pelas personagens do Sítio e pelo
narrador, para denominar o território infinito e indefinido ocupado por personagens da
literatura universal que, de uma maneira ou de outra, experimentam acontecimentos que
desafiam o real. A lista de habitantes deste mundo compreende tanto personagens como Peter
Pan e Alice, quanto Dom Quixote, o Minotauro, a Quimera ou Tom Mix
4
. Em O Picapau
Amarelo o narrador nos apresenta a seguinte definição deste conceito:
O sítio de D. Benta foi-se tornando famoso tanto no mundo de verdade como no
chamado mundo de mentira. O Mundo de Mentira, ou Mundo-da-Fábula, é como a
gente grande costuma chamar a terra e as coisas do País-das-Maravilhas, lá onde
4
Cowboy e ator do cinema norte-americano que conquistou o público do gênero western durante as décadas de 1920
e 1930.
16
moram os anões e os gigantes, as fadas e os sacis, os piratas como o Capitão Gancho,
e os anjinhos como Flor-das-Alturas. Mas o Mundo-da-Fábula não é realmente
nenhum mundo de mentira, pois o que existe na imaginação de milhões e milhões de
crianças é tão real como as páginas deste livro. O que se dá é que as crianças logo que
se transformam em gente grande fingem não mais acreditar no que acreditavam
(Monteiro Lobato, 1957m: 3).
Na 8° edição da obra, datada de 1957, encontramos efetivamente na folha de rosto de
cada volume um mapa onde aparecem impressos: a Ilha de Robinson, o Castelo de Cinderela,
o Castelo de Bela Adormecida, a Ilha de Branca de Neve, o País das Fábulas, o Castelo de
Barão de Munchausen, o País da Maravilhas, a terra de Liliput (território que aparece em “As
viagens de Gulliver”), a Terra do Nunca, a Terra das Mil e Uma Noites, o Reino das Águas
Claras e, finalmente, o Sítio do Picapau Amarelo. O acontecimento que inaugura a
reterritorialização do que nos é narrado, a princípio como um simples sítio e seus habitantes
neste mapa de mundos ficcionais, criados por Daniel Defoe, recolhidos pelos Irmãos Grimm,
pelo fabulista La Fontaine, presentes na literatura de Rudolph Erich Raspe, de Lewis Carrol e
de Jonathan Swift, é a conquista da palavra por Emília, a boneca de pano que mede 40
centímetros de altura.
Esse evento de fundação da relação entre o Sítio e outros mundos fantásticos narrados
por diferentes tradições literárias é relatado nas primeiras páginas do primeiro livro da saga,
Reinações de Narizinho (Monteiro Lobato, 1959a). À beira do riacho que corre nos fundos do
sítio de sua avó, Dona Benta, a menina de sete anos de idade apelidada de Narizinho, cochila
agarrada a sua boneca de pano. Surpreendentemente, a menina se vê acordada pela presença
de um peixinho vestido de gente, com um guarda-chuva em punho, que caminha sobre seu
rosto acompanhado de um besouro que porta óculos, sobrecasaca e bengala. Após uma curta
conversa com estes dois seres, Narizinho é convidada pelo peixinho Príncipe das Águas
Claras a visitar seu reino. Os dois, acompanhados da boneca de pano, se dirigem “a certa
17
gruta que Narizinho jamais havia visto naquele ponto. Que coisa estranha! A paisagem estava
outra!” (Monteiro Lobato, 1957a: 8). Os dois atravessam o belíssimo portão de coral que
separa o sítio do Reino das Águas Claras. Entre os inúmeros acontecimentos que se
desenrolam durante a visita de Narizinho ao fundo do mar, o mais central deles é aquele em
que Emília, a boneca de pano feita pela cozinheira do sítio, ganha a fala através das pílulas
que lhes são ministradas pelo médico local, o Doutor Caramujo. Eis que a partir de então a
boneca começa a falar e não pára nunca mais. Ao longo de toda a obra, Emília vai ocupando
de maneira galopante o centro dos acontecimentos. “Evoluindo” para a condição de “gente” e
usurpando o lugar de protagonista de Narizinho, Emília alegoriza perfeitamente, como
veremos mais adiante, a idéia de que “em cada uma de nossas atividades, aquilo que
fabricamos nos supera” (Latour, 2002:47).
A conquista da palavra pela boneca é o evento de fundação do Sítio do Picapau
Amarelo como um território no mapa das “Maravilhas” por ser o evento que transpõe os
acontecimentos extraordinários que se desenvolvem no espaço da imaginação e do sonho da
menina Narizinho para a exterioridade do cotidiano do sítio onde ela vive. A boneca opera a
dissolução entre as fronteiras da interioridade da imaginação de Narizinho e o mundo exterior,
habitado pelas duas únicas figuras adultas da trama. Emília não só começa a falar, mas passa a
ser ouvida por Dona Benta, avó da menina, e Tia Nastácia, a cozinheira cujas mãos teceram
os trapos que viraram verbo. Como nos explica o narrador,
Dona Benta, de fato, nunca dera crédito às histórias de Narizinho. Dizia sempre: ‘Isso
são sonhos de crianças.’ Mas depois que a menina fez a boneca falar, Dona Benta
ficou tão impressionada que disse para a boa negra: - Isto é um prodígio tamanho que
estou quase crendo que as outras coisas fantásticas que Narizinho nos contou não são
simples sonhos, como sempre pensei (Monteiro Lobato, 1957a:33).
18
A transposição de acontecimentos que faziam parte da experiência individual da
menina para a exterioridade onde podem ser testemunhados pelas duas senhoras marca a
explosão da bolha imaginária onde vive Narizinho. Ao contaminar o mundo exterior, as
aventuras da menina não só se proliferam em múltiplas direções, deixando mesmo de lhe
pertencer, como veremos mais adiante, mas passam a ser narráveis para uma comunidade de
leitores, galgando um espaço no mundo da literatura infantil universal.
Walter Benjamin (1996b: 252), num ensaio onde tece considerações sobre o papel do
brinquedo no desenvolvimento da relação da criança com o mundo que a cerca, defende que
“antes que o amor externo nos faça penetrar na existência e nos ritmos freqüentemente hostis
de um ser humano estranho, ensaiamos primeiro com os ritmos originais que se manifestam,
em suas formas mais simples, nesses jogos com coisas inanimadas. Ou antes, é justamente
através desses ritmos que nos tornamos senhores de nós mesmos”. Algo próximo à tal idéia de
mediação é caracterizado por Winnicott (Laplanche e Pontalis, 1971) como objeto ou
fenômeno transicional. Segundo as observações do psicanalista britânico, muito
freqüentemente, crianças de idades que variam entre quatro e doze meses apegam-se a um
pedaço de pano ou a um ângulo do cobertor, do qual não se separam sem muita dificuldade e
o qual guardam perto de si especialmente na hora de dormir. Tal objeto, segundo suas
observações clínicas, pode acompanhar a criança por muitos anos, em alguns casos até a vida
adulta, voltando a exercer sua função em períodos de depressão do sujeito. Segundo a
conceitualização desenvolvida por Winnicott, o objeto transicional, que constitui uma parte
quase inseparável da criança, seria um elemento mediador entre sua interioridade e a
exterioridade do mundo, um objeto que contribuiria para o desenvolvimento de um espaço,
um intervalo, entre a mãe e a criança. Ele proporcionaria desde os primeiros meses de vida
algo que continuará sendo indispensável a todo ser humano, a saber, um campo neutro de
19
experiência. O objeto transicional pertenceria, para o psicanalista, ao terreno da ilusão, ao
campo intermediário da experiência, que não constitui parte nem da realidade interior nem da
realidade exterior compartilhada.
A boneca Emília, que, se seguirmos a observação de Benjamin, serviria como um
espaço de “ensaio de relação” para Narizinho, transgride sua função quando ganha a palavra e
inicia um processo de individualização. Emília, no lugar de cumprir seu papel de ser
inanimado com o qual a criança pode praticar uma relação inofensiva antes de partir para o
campo das relações humanas, conquista a palavra tornando-se ela mesma senhora de si. A
boneca de pano, que poderíamos caracterizar como um “objeto transicional”, para usar o
conceito de Winnicott, a primeira possessão de algo que não sou eu – not-me-possession
(Laplanche e Pontalis, 1971: 265) – ganha vida própria e profana sua missão passiva de se
situar entre o interior e o exterior proporcionando um campo neutro de experiências.
Certamente, se há algo que não caracterizará a personalidade de Emília será a neutralidade. A
boneca, que tem resposta para tudo e enverga uma personalidade explosiva, vai ao longo da
obra desenvolvendo sua própria ética, uma ética emiliana, a “escola das que não concordam”
(Monteiro Lobato, 1957b: 202).
Embora Winnicott diferencie o objeto transicional do brinquedo, tal conceito pode nos
ser interessante na medida em que a “natureza” de Emília em muito se assemelha àquela dos
objetos descritos pelo psicanalista: é um corpo de pano, que Narizinho sempre mantém perto
de si na hora de dormir e do qual raramente se separa. É importante marcar, ainda, que não
encontramos ao longo de toda a obra qualquer referência à mãe de Narizinho, termo
fundamental para o desenvolvimento da relação com um objeto transicional segundo a
psicanálise, já que seria justamente na fase final da lactação que o objeto se inscreveria na
relação. Não somos informados pelo narrador a respeito da filiação de Narizinho, sabemos
20
unicamente que a criança é criada pela avó em sua residência rural. A iniciativa de associar a
figura de Emília a tal conceito psicanalítico pretende exclusivamente produzir um efeito
ilustrativo, já que não nos interessa explorar as implicações de tal idéia dentro de um esquema
interpretativo psicanalítico. É justamente o ponto de transgressão do conceito de objeto
transicional que elucida aspectos interessantes a respeito do nascimento de Emília: a figura
desta personagem vira do avesso a idéia do objeto em sua existência passiva.
Quando a boneca passa a ser ouvida pelas personagens adultas do sítio,
compreendemos que o que vem a seguir não faz parte do mundo subconsciente dos sonhos de
uma criança de sete anos. Contrariamente àquilo que parece ser sugerido em diferentes
narrativas da chamada literatura infantil
5
, os acontecimentos protagonizados pelas
personagens do Sítio ao longo dos vinte e dois títulos que compõem a obra infantil parecem
querer distinguir-se de experiências vividas no âmbito de universos oníricos. A dimensão dos
sonhos, é importante dizer, não está completamente ausente da obra, isto é, ela não é ignorada
como uma instância de acontecimentos ou como um espaço que promove o acesso a mundos,
seres e experiências a princípio inatingíveis dentro dos limites da realidade cotidiana. A
diferenciação entre as aventuras protagonizadas pelas personagens do Sítio e as vivências
oníricas de Narizinho, a protagonista do livro de abertura da obra, se desenrola ao longo de
“Reinações de Narizinho”, quando o narrador ainda nos confunde ao descrever a visita de
Narizinho e Emília ao Reino das Abelhas, que em seguida nos é revelada como parte de um
5
É importante sinalizar que a definição disto que passou a partir de um determinado momento a ser classificado
como literatura infantil permanece ainda hoje obscuro até mesmo para os especialistas da área. Segundo Lesnik-
Oberstein (1994: 4-6), “the definition of a children’s book is still variously based on publishers’ and editors’
decisions, general trends of style and illustration, supposed or claimed readership, and theories of the creative
process which produced a book. [...] Whether a book started as an adult book and ends up as a children’s book, or
vice-versa, or straddles both types (traditional examples of these shiftting books range from Swift’s Gulliver’s
Travels and Carroll’s Alices to Richard Adam’s Whatership Down) we have a little ground to be sure why children’s
books are produced, created, or recreated. [...] Almost the only statement that can be made, as Peter Hunt (1985)
has observed, is that children’s book is a very curious classification, a chaotic collection of texts that have in
common nothing other than some undefined relationship to children”.
21
sonho da menina (Monteiro Lobato,1959b: 78). No decorrer das mais de três mil páginas que
se seguem ao primeiro livro da obra, o espaço dos sonhos não voltará a ser explorado como
um território de aventuras.
Na abertura de A lógica do sentido, trabalho em que trata de dois livros infantis de
Lewis Carrol, Alice no país das maravilhas e Alice através do espelho, Deleuze (2006) afirma
que “as núpcias da linguagem e do inconsciente já foram contraídas e celebradas de tantas
maneiras que é preciso procurar o que foram precisamente em Lewis Carrol”. Nesta obra,
onde Deleuze desenvolve uma teoria do sentido a partir das criações de Lewis Carrol,
utilizando como termo de elucidação o pensamento estóico, o filósofo parte do princípio de
que os dois livros analisados tratam de uma “categoria de coisas muito especiais: os
acontecimentos, os acontecimentos puros” (2006: 1). Poderíamos dizer que as narrativas
concentradas nos volumes da obra infantil de Lobato também tratam de acontecimentos puros,
já que a quase totalidade da obra viverá o “devir-ilimitado” de Emília. No entanto, se Deleuze
identifica em Alice a consagração das núpcias entre a linguagem e o inconsciente, o que
encontramos ao longo da leitura dos livros infantis de Lobato é o nascimento de uma nova
consciência como fruto destas núpcias, uma consciência que rivalizará, como veremos mais
adiante, com a -consciência nietzschiana (Nietzsche, 2002). O advento da fala de Emília é
o acontecimento matriz do Sítio do Picapau Amarelo, pois marca o surgimento desta nova
consciência. Quando passa a falar, a boneca liberta-se de sua função de mediação passiva,
transgride sua natureza transicional, declara independência à simbiose que mantinha com
Narizinho e se apropria deste espaço que não constitui nem parte da realidade interior nem
parte da realidade exterior compartilhada, este entre habitado pelo fenômeno transicional, para
nele exercer sua agência.
22
– Mas afinal de contas, Emília, o que é que você é? (perguntou Visconde)
Emília levantou para o ar aquele implicante narizinho de retrós e respondeu:
– Sou a Independência ou Morte” (Monteiro Lobato, 1957e: 115).
1.2 Emília: um caso de (a)gentificação
Em Art and Agency (1998), obra onde Alfred Gell apresenta sua proposta teórica para
uma nova antropologia da arte, encontramos um vocabulário conceitual que sugerimos adotar
como chave de leitura da produção de relações entre os personagens que habitam o
microcosmo ficcional Picapau Amarelo. Neste trabalho, onde põe sob suspeita a tendência de
veneração que as sociedades euro-americanas mantêm em relação à estética e à arte (Lagrou,
2003: 96), Gell parte em busca da construção de uma teoria da arte que não se baseie nem na
idéia de estética nem na idéia de comunicação visual (Layton, 2003: 447). Em lugar de
produzir um modelo que parta em busca da comunicação simbólica dos objetos de arte, ele
opta por colocar a ênfase na agência, na intencionalidade, na causa, no resultado e na
transformação de tais objetos (Lagrou, 2003: 100). A força de aceleração do pensamento de
Gell parece ser seu desejo de produzir uma antropologia da arte que não parta da estética
como categoria de definição de seu objeto. Tal teoria se coloca como desafio a proposta de
reunir sob seu espectro tanto ídolos de pedra maori, telas renascentistas e esculturas da
Antiguidade grega, quanto peças de arte conceitual. A solução encontrada pelo autor para a
realização de tal tarefa é a exploração do poder que emana de tais objetos, poder este que não
lhes pertence intrinsecamente, mas que é resultado de um processo relacional em que seres
humanos atribuem intencionalidade a coisas. Nesta direção, o autor procura seguir os passos
apontados pela teoria maussiana da troca de dádivas, que estende a categoria de pessoa às
prestações que fomentam a cadeia dar-receber-retribuir, sugerindo uma teoria antropológica
da arte que trate objetos, sejam eles artefatos ou objetos de arte (distinção que pretende
23
dissolver), como pessoas (Gell, 1998:9). Para Blcoh (1999), com a substituição do conceito de
estética pelo conceito de intencionalidade, Gell não procura somente um modelo analítico
amplo o suficiente para abranger objetos tão diversos quanto fetiches africanos e telas
assinadas por Rembrandt, mas busca também desestabilizar o pedestal epistemológico erigido
pelas teorias da arte. Para ele, a arte seria uma forma de idolatria
6
, seja ela sutil ou intensa,
fetichista ou atropomórfica.
A categoria pierceana de índice (index) é apropriada por Gell em um esforço declarado
de recusa à idéia de símbolo. Segundo o autor (1998: 13), a semiótica de Pierce identifica o
índice como um signo natural, a partir do qual um observador externo pode desenvolver
algum tipo de inferência. O exemplo clássico de um índice seria a fumaça como sinal de fogo.
Embora fenômenos outros que não o fogo possam produzir fumaça, ou seja, tal inferência não
seria resultado de nenhum cálculo exato, a fumaça seria um dos índices possíveis da presença
de fogo. Este processo “interpretativo”, esta inferência é caracterizada pela semiótica e pela
lógica como abdução (abduction) (ibid.:14). Um índice, segundo Layton (2003: 452), faz
referência a um objeto a partir da ação que este objeto exerce sobre ele: assim, a sombra que
se forma sobre um relógio de sol constituiria o índice da hora marcada. Os índices que
representam o centro de interesse da teoria de Gell, porém, são aqueles que permitem a
abdução da agência social. Ou seja, índices que permitem inferências a respeito da
intencionalidade presente nas coisas. Se fumaça é sinal de fogo, ela também pode ser índice
de agência, índice de que pode haver intencionalidade por detrás deste fogo, índice de que
possivelmente alguém acendeu a primeira chama.
Segundo Gell (1998: 16), agente é todo aquele que produz acontecimentos: “an agent
is the source, the origin, of casual events, independently of the state of the physical universe”.
6
Termo que pretende empregar sem julgamento de valor
24
Para o autor, animais e objetos também seriam potenciais portadores de agência, uma vez que,
muito freqüentemente, lhes são atribuídas intenções. Automóveis, obras de arte, plumas e
máscaras seriam agentes na medida em que participam ativamente como termos de relações
sociais. Gell adverte, porém, para o fato de que os objetos não são agentes auto-suficientes,
mas agentes secundários que atuam em conjunção com seus associados humanos. Os objetos
de arte não seriam agentes eles mesmos, mas meras extensões (índices) da agência de seus
criadores ou usuários (Layton, 2003: 451). E seria justamente a categoria de agente em sua
existência secundária que constituiria o objeto de estudo da teoria apresentada em Art and
Agency:
The philosophical theory of ‘agents’ presupposes the autonomy and self-sufficiency of
the human agent; but I am more concerned with the kind of second-class agency
which artifacts acquire once they become enmeshed in a texture of social
relationships (Gell, 1998: 18)
Um dos exemplos adotados por Gell para explicitar seu ponto é a relação entre uma
menina e sua boneca. Esta seria para ele uma amostra arquetípica do tema da antropologia da
arte: “What is (Michelangelo’s) David if it is not a big doll for grown-ups. This is not really a
matter of devaluing David so much as revaluing little girls’ dolls, which are truly remarkable
objects, all things considered” (idem). Todavia, o conceito de agente ainda permanece
incompleto e só poderá ser devidamente compreendido se o associarmos a seu par
complementar: o paciente (patient). Gell (1998:22) enfatiza o caráter relacional da idéia de
agência insistindo em que, para cada agente, haverá sempre um paciente e, para cada paciente,
sempre um agente. Pessoas e coisas só ganham a capacidade de agência na medida em que se
projetam sobre um remetente. Objetos de arte, artefatos, ou coisas em geral, não possuem uma
natureza intrínseca independente do contexto relacional. Desta forma, voltando ao exemplo da
boneca, um brinquedo jamais possuirá agência em si mesmo, mas sempre em relação à
25
criança que o possui, e vice-versa. O interesse do autor se dirige, assim, à relação agente-
paciente que se inaugura em contextos temporários da vida social onde, transitoriamente,
podemos atribuir agência a coisas inanimadas como carros, imagens e prédios. A combinação
entre agente e paciente, porém, é um estado intercambiável: isto é, dois termos podem (e
devem) alterar suas posições de acordo com modificações de contexto. Gell alerta, ainda, para
o fato de que o conceito de paciente não deve ser confundido com a idéia de passividade, pois
em interações do tipo agente-paciente podemos encontrar resistência por parte deste último.
The concept of agency implies the overcoming of resistence, difficulty, inertia, etc” (Gell,
1998: 23).
A teoria antropológica da arte, desenvolvida por Gell em sua obra póstuma Art and
Agency, sofre críticas de diferentes direções; sua apropriação incompleta do conceito
semiótico de índice, originalmente pierceano, é um dos pontos mais frágeis de sua
argumentação, segundo Layton (2003: 452). Lagrou (2003: 100) alerta para o fato de que ao
tentar se esquivar da idéia de cultura ou de quadros de referência que guiem a percepção, Gell
acaba por denominar todos os objetos artísticos como índices inseridos em redes de ação, não
levando em conta o fato de que tais índices assim funcionam por terem sido processados por
uma leitura informada capaz de desencadear a rede de interações que interessam ao autor. Se,
por um lado, Gell é atacado pelo uso indiscriminado que faz de conceitos pierceanos, como
ícone e índice, por outro, o autor encontra uma ressonância produtiva de seu modelo teórico
entre pesquisadores interessados em investigar os diferentes sentidos que a relação entre
objetos e pessoas pode adquirir (Lagrou, 2003: 101).
26
As limitações da proposta de Gell como um novo modelo teórico para a antropologia
da arte podem ser inúmeras, como fazem questão de apontar seus críticos
7
. Porém, embora
não pretenda discutir a sustentabilidade de Art and Agency como um aparelho conceitual para
a antropologia da arte em geral, algumas categorias apresentadas em suas páginas estimulam
minha leitura sobre a produção de pessoas ficcionais e a proliferação de relações na obra
infantil de Lobato. Pretendo, assim, adotar os conceitos de agente e paciente como
marcadores de posições na rede de relações que articula o microcosmos ficcional Sítio do
Picapau Amarelo.
A categoria de agência, se seguirmos as reflexões de Gell, poderia ser facilmente
aplicada a Emília mesmo se esta fosse uma simples boneca muda. O par Narizinho-Emília das
primeiras vinte e oito páginas do livro inaugural da obra encarna perfeitamente um dos
exemplos adotados por Gell em sua explicitação teórica: “This may seem a trivial example,
and the kinds of relations small girls form with their dolls are far from being ‘typical’ of
human social behavior. But it is not a trivial example at all; in fact it is an archetypical
instance of the subject-matter of the anthropology of art” (1998: 16). Ou seja, a relação de
atribuição de intencionalidade que Narizinho pratica com Emília corresponderia com exatidão
ao tema da agência. Durante a célebre primeira visita de Narizinho ao fundo do mar, quando
Emília ainda não fala, a boneca não é tratada, nem pela menina nem pelos habitantes do Reino
da Águas Claras, como um ser inanimado: ela já estaria preenchida de intenções:
7
Em artigo onde pretende examinar o uso feito por Gell da idéia de agência em contextos de arte ritual, Layton
(2003:447) acusa o autor de falhar em sua explicitação dos modos pelos quais objetos de arte funcionam como
extensões da agência de seus criadores e usuários. Pynney et Thomas (apud Layton, 2003: 447), por sua vez,
criticam seus esforços de exclusão do simbolismo de Saussure. Maurice Bloch (1999), apesar de reconhcer o valor
revolucionário da obra de Gell, manifesta algumas ressalvas em relação a Art and Agency. Entre outras críticas
dirigidas as limitações do livro, Bloch sinaliza, por exemplo, que o termo agência adotado pelo autor possui um
passado na historia dos conceitos, mais especificamente no campo da filosofia moral, que não parece ser reconhecido
por Gell. Além disso, o próprio conceito de intencionalidade estaria carregado de uma acepção fenomenologista que
não é devidamente apropiada por Gell, apesar de suas menções à Husserl e Merleau-Ponty.
27
– Parece que Dona Emília está emburrada – observou o príncipe.
– Não é burro, não, Príncipe [argumentou Narizinho]. A pobre é muda de nascença.
Ando à procura de um doutor que a cure (Monteiro Lobato, 1957a: 8).
Seu silêncio é atribuído à sua deformação: Emília é muda e deve ser curada pelo
médico real. Enquanto isso não acontece, ela já ajuda (exercendo assim sua agência)
Narizinho a despistar D. Carochinha, a guardiã de personagens e histórias infantis. Quando a
velha senhora, uma “baratinha de mantilha” (ibid.: 10), desembarca no Reino das Águas
Claras à procura do Pequeno Polegar que estaria foragido, a menina, apoiada pela boneca,
resolve cooperar com a causa revolucionária da minúscula criatura e o ajuda a esconder-se.
Até então, estaríamos ainda no plano da relação criança-boneca descrita por Gell como
arquetípica do modelo da agência dos objetos. No entanto, como salienta o autor,
The little girl’s doll is not a self-sufficient agent like an (idealized) human being, even
the girl herself does not think so. But the doll is an emanation or manifestation of
agency (actually, primarily the child’s own), a mirror, a vehicle, or channel of
agency, and hence a source of such potent experiences of the ‘co-presence’ of an
agent as to make no difference (1998: 20).
Assim sendo, o acontecimento extraordinário que mudará as equações relacionais no
Sítio será a conquista da fala de Emília, quando a boneca se apropria daquilo que Gell
denominou por agência primária. A partir de então, a personagem se tornará um ser
intencional categoricamente distinto de meras coisas ou artefatos, pois irá gradualmente
deixando de ser um suporte sobre o qual Narizinho projeta suas intenções para se tornar não
somente uma fonte autônoma de intenções, mas também uma fonte de atribuição de intenções
ela mesma. As aventuras do Sítio passam a ser narráveis, a constituir um material
literariamente interessante, quando Emília começa a virar “gente”. Antes de começar a falar, a
boneca já poderia ser considerada “pessoa” nos termos que pretende empregar Gell, pois já
agia dentro da rede de relações que a envolvia, mas vivia ainda limitada a sua posição de
28
agente secundário, um espelho, um veículo, um canal de agência para Narizinho. Quando
deixa de ser muda, porém, ela vai “virando gente”.
Ao longo de toda a obra infantil de Lobato, acompanhamos a progressão ontológica de
Emília. Em O Minotauro (1957n), livro no qual D. Benta, seus netos, Emília, Visconde e
Rabicó partem em viagem à Grécia Antiga e à Grécia mitológica, a sábia senhora, ao
apresentar Emília a Péricles, define a personagem da seguinte maneira: “uma boneca de pano
[...] que foi mudando até virar no que é hoje: gentinha de verdade” (ibid.:39). A partir de
então, o narrador passa a utilizar o termo “ex-boneca” para se referir à Emília (Monteiro
Lobato, 1957n: 211). A idéia de “gentificação” da personagem, porém, não diz respeito nem a
sua natureza, nem a sua possível humanidade. Nada parece mudar substancialmente em seu
corpo, ela continua sendo materialmente a mesma – corpo de pano, olhos de retrós. Emília
não come: “[...] eu não como. Só como de mentira, por brincadeira” (Monteiro Lobato,
1957a); e Emília não morre: “[...] não pretendo morrer. Finjo que morro só” (1957e: 3). Se a
sua progressiva “gentificação” em nada afeta a sua materialidade, por outro lado, a boneca
também não desenvolve uma humanidade no sentido moral ou emocional, no sentido
“humanitário”. Emília não chora: “Eu nunca chorei nem hei de chorar!” (1957a: 166); e
Emília não tem coração: “Sou mazinha. Tia Nastácia se esqueceu de me botar coração,
quando me fez...” (1957a: 178). Embora, como veremos mais adiante, a personagem cultive
uma personalidade sofisticada, seus traços estariam mais próximos ao ideal do “super-
homem” nietzschiano do que do modelo humano como um composto de emoções, fraquezas e
limitações. Sua gentificação, portanto, não seria uma humanização nem no sentido de sua
“natureza”, pois quase nada se altera em seu corpo, nem no sentido de sua “cultura”, já que as
direções em que sua personalidade se desenvolve não indicam qualquer resultado de uma
29
educação moral, social ou sentimental. Sua “gentificação” exprime a transformação de Emília
em um ser carregado de intenções, desejos, opiniões e potência.
Apesar de continuar medindo 40 centímetros e gozar das vantagens de ser boneca, de
não sofrer das mesmas limitações físicas que os humanos, num determinado momento da
obra, já num dos últimos livros da coleção, Emília faz uma referência um tanto surpreendente
em relação à mutação de seu corpo. Se em nenhum momento ao longo da obra o leitor é
confrontado com o processo de humanização física da boneca, no antepenúltimo livro, A
chave do tamanho (1957o), ela declara: “Fui virando gentinha e gente sou; belisco-me e sinto
a dor da carne. E também como. Já o Visconde permaneceu milho. Fala, pensa, raciocina
muito bem, sabe todas as coisas, mas não come nem sente dor de beliscão” (ibid.:193). Essa
declaração não apaga a ambigüidade da figura de Emília, pois, embora a personagem declare
nesta fase final da obra ter adquirido uma natureza humana, em nenhum dos episódios
narrados testemunhamos as conseqüências desta conquista. O único momento em que Emília
efetivamente come, é em viagem ao Olimpo, quando rouba o néctar e a ambrosia dos deuses
gregos (Monteiro Lobato, 1957n). Fora esta declaração (dirigida, aliás, ao presidente dos
Estados Unidos), não encontramos nenhum outro vestígio ao longo dos vinte e dois títulos que
indique que Emília virou gente de carne e osso. Na edição de 1957, nos dois tomos do último
título da coleção, “Os doze trabalhos de Hércules”, fase da obra em que supostamente a
boneca já seria humana, se seguirmos a declaração feita na Chave do Tamanho, Emília
continua a ser representada nas ilustrações de André Le Blanc como uma boneca, um corpo
significativamente menor do que Pedrinho e Narizinho. Lajolo (2007) conclui que “se pela
fala, ela transcende sua condição de ser inanimado, ao manter-se boneca ela goza de uma
liberdade muito maior do que a dos seres humanos dos quais, afinal, é mero simulacro. Além
30
de imortal por natureza, por ser uma criatura híbrida e mestiça, boneca falante, Emília
desfruta do melhor dos dois mundos: o das coisas e o das gentes…".
O processo de “gentificação” da boneca acontece progressivamente e, na primeira
metade do primeiro livro da obra, Narizinho ainda possui algum poder sobre a personagem,
como nos explica Pedrinho:
– Emília muda muito, não é como vocês que são sempre os mesmos. Cada vez que
Narizinho se enjoa da cara dela, muda. Muda tudo. Muda a boca mais para baixo ou
mais para cima. Muda as sobrancelhas. Houve até uma vez que Emília passou sem
olhos cinco dias (Monteiro Lobato, 1957a: 139).
Ao longo de Reinações de Narizinho, como indica o título do livro, a boneca ainda
alegoriza a figura de paciente em relação à agência de Narizinho. A cada interrupção
inconveniente no desenrolar dos acontecimentos, Emília é castigada pela menina, indo parar
de cabeça para baixo no bolso de seu vestido, sendo impedida de opinar ou agir. Este tipo de
poder que Narizinho exerce sobre a boneca vai desaparecer em seguida, dando lugar a uma
acelerada metamorfose de Emília em um ser indomável. Com a emancipação da boneca, sua
conquista crescente de agência primária, Narizinho perderá todo o controle que mantinha
sobre Emília, que exercerá radicalmente a inversão desta relação. Assim que começa a falar, a
boneca dá início a uma rebelião progressiva contra sua natureza de índice, produzindo
acontecimentos que marcam sua agência sobre o mundo e as coisas. Se, por um lado,
Narizinho conta com um livro que trata de suas reinações (1957a), Pedrinho protagoniza duas
histórias
8
, e o Visconde de Sabugosa figura em duas aventuras que o colocam no centro dos
acontecimentos
9
, Emília inspira quatro livros da obra. Além de protagonizar o maior número
8
O Saci (Monteiro Lobato, 1957b) e Caçadas de Pedrinho (Monteiro Lobato, 1957c).
9
O poço do Visconde (1957j) e Aritmética de Emília (Monteiro Lobato, 1957f). Este último, apesar do título, conta a
história de um circo montado por Visconde com a intenção de apresentar ao público os personagens da matemática.
No final da história, Emília rouba-lhe o manuscrito e coloca o seu nome no título.
31
de títulos da coleção, a personagem está no centro dos acontecimentos de quase todas as
narrativas que supostamente trazem outros personagens como protagonistas. Antes de a
metade da obra completa ser atingida, a boneca já publica suas memórias, com as quais
pretende tornar célebres suas façanhas.
O título Memórias de Emília (1957e) é o primeiro de quatro romances que trazem a
personagem como heroína oficial. Tal volume, que, assim como outros que compõem a obra,
é um livro dentro de um livro, narra o episódio onde Emília explora a mão-de-obra de
Visconde, obrigando-o a redigir suas memórias. O ghost writer faz uma tentativa de
revolução, mas, obviamente, não é bem sucedido e acaba se sujeitando à tirania da boneca.
Começar sua série de livros pelas suas memórias já consiste num ato de rebeldia de Emília
contra a febre historicista (historische Fieber), denunciada por Nietzsche (2005: 69) como um
dos sintomas que corrói os intelectuais daquilo que denomida por época moderna. Alguns dos
acontecimentos narrados na biografia em questão nunca teriam chegado a acontecer
10
, o que
desperta a indignação de Visconde, o mais científico dos “picapaus”. A boneca responde suas
acusações declarando: “minhas memórias são diferentes de todas as outras. [...] Eu conto o
que houve e o que deveria haver. [...] São memórias fantásticas” (ibid.:129). Suas Memórias
são “memórias da vontade” : “um ativo não-mais-querer-livrar-se, um prosseguir querendo o
já querido...” (Nietzsche, 1998:48).
Os três livros seguintes seriam, de certa forma, variações sobre um mesmo tema: o
impulso incontrolável de Emília em transformar o mundo a seu redor. Em cada um desses
volumes, Emília ataca um alvo diferente, sendo eles a língua portuguesa, a natureza e a escala
humana. Em Emília no país da gramática (Monteiro Lobato, 1957f), é a boneca quem sugere
uma viagem ao território da gramática, garantindo a todos, apesar dos protestos de Pedrinho
10
Como é o caso da suposta viagem de Emília a Hollywood onde esta teria se encontrado com Shirley Temple.
32
de que a gramática não seria um país, mas um livro, que tal território existe. Lá estando,
Emília declara guerra à Ortografia Etimológica, “uma velha de nariz de papagaio e ar
rabugentíssimo” (ibid.:142), que não admite que as palavras se vistam com o figurino
moderno. Com a ajuda da força física do rinoceronte Quindim
11
, Emília revoluciona o bairro
onde governava a Ortografia Etimológica, ajudando palavras como thesouro, machina e
kágado a se livrarem de seus enfeites etimológicos e a passarem a vestir a roupa da ortografia
fonética. Em passagem pela prisão de Dona Sintaxe, onde esta mantém encarcerados os
Vícios de Linguagem, Emília liberta dois prisioneiros: o Neologismo
12
e o Provincianismo
13
.
A Reforma da Natureza (Monteiro Lobato, 1957m) narra as intervenções de Emília
não somente no mundo animal e vegetal, mas na natureza das coisas em geral. Quando as
duas personagens adultas do sítio são convidadas a comparecer às negociações de paz na
Europa por ocasião do fim da Segunda Guerra Mundial, Emília se recusa a acompanhar o
grupo em sua viagem, já contando com a oportunidade de sozinha no sítio poder levar a cabo
o seu antigo plano de reformar a natureza. De retorno à casa, Dona Benta encontra seu mundo
“melhorado” segundo critérios emilianos: passarinhos que possuem costas côncovas onde
11
Esta personagem é acrescentada ao grupo ao longo do volume Caçadas de Pedrinho (Monteiro Lobato, 1957c), e é
justamente Emília a responsável por sua agregação. O rinoceronte, que fugira do zoológico e encontrara sossego nas
matas do entorno do Sítio do Picapau Amarelo, é perseguido pelo “Departamento de Caça ao Rinoceronte” criado
pelo governo para resgatá-lo e restituí-lo a seu proprietário. Emília torna-se grande amiga da “fera africana” e
encontra um meio de tapear os agentes incompetentes e instalar definitivamente o rinoceronte no sítio. A partir de
então o poder da boneca é potencializado, uma vez que passa a contar com um aliado assim fisicamente forte.
12
“ – Está aí uma coisa com a qual não concordo. Se numa língua não houver Neologismos, essa língua não
aumenta. Assim como há sempre crianças novas no mundo, para que a humanidade não se acabe, também é preciso
que haja na língua uma contínua entrada de Neologismos. Se as palavras envelhecem e morrem como já vimos, e se
a senhora impede a entrada de palavras novas, a língua acaba acabando. Não! Isto não está direito e vou soltar este
elegantíssimo Vício, já e já...” (Monteiro Lobato, 1957f: 118)
13
“Emília não achou que fosse caso de conservar na cadeia o pobre matuto. Alegou que ele também estava
trabalhando na evolução da língua e soltou-o.
– Vá passear, Seu Jeca. Muita coisa que hoje esta senhora condena vai ser lei um dia. Foi você que inventou o
VOCÊ em vez de TU e só isso quanto não vale?” (idem).
33
acoplam-se os ninhos, laranjas que já nascem descascadas e livros comestíveis
14
, são algumas
das transformações realizadas pela boneca.
O quarto livro que traz Emília como protagonista oficial é A Chave do tamanho
(Monteiro Lobato, 1957o), talvez um dos volumes mais geniais da obra infantil de Monteiro
Lobato. Inquieta com as preocupações de Dona Benta em relação às atrocidades cometidas
durante a Segunda Guerra Mundial, Emília decide se dirigir à “Casa das Chaves” e fechar
a “Chave da Guerra”. As coisas não saem como planejadas e Emília, por descuido, acaba
fechando a “Chave do Tamanho”, o que reduz instantaneamente a espécie humana a
aproximadamente 4 centímetros de altura. Tal “reinação”, para utilizar o vocabulário
descritivo adotado pelo narrador, resulta em conseqüências radicais para o destino da
humanidade, que passa a encontrar em pintos, gatos, aranhas e ratos seus maiores inimigos e
predadores. A façanha de Emília resulta em muita morte: soldados em campos de batalha na
Rússia morrem congelados, já que perdem suas roupas com a repentina diminuição de seus
corpos; multidões de pessoas sofrem desastres de automóvel quando perdem o controle de
seus carros; inúmeras famílias se transformam em presas de seus animais domésticos; e
muitos morrem de fome, incapazes de se adaptar à nova realidade da espécie. Emília, porém,
não se deixa abater e declara “guerra ao Tamanho”, convencida de que o fenômeno da
diminuição seria a melhor solução para os problemas da humanidade. Segundo as palavras
pragmáticas de Emília: “Chorar não adianta [...] o que temos de fazer é nos adaptar” (1957o:
45). A própria guerra teria perdido o sentido, uma vez que a diminuição da espécie humana
representaria uma multiplicação do mundo: pessoas menores, mundo maior, e com isso o fim
14
A reforma dos livros consiste em imprimir as páginas em um papel fabricado de trigo muito bem temperado. O
leitor vai lendo e comendo o livro. Cada capítulo terá um sabor diferente, salada, sopa, carne assada, até chegar no
índice que terá gosto de café. Quando quiser reler o livro, o sujeito deverá comprar um outro, “do mesmo modo que
compramos o pão todos os dias” (1957m: 238).
34
dos conflitos em nome de território ou recursos naturais. Dona Benta consegue persuadir
Emília a uma decisão democrática sobre o tema da “morte do Tamanho”, e a boneca, depois
de muito protesto, aceita retornar à “Casa das Chaves” e restituir a escala humana, caso a
maioria dos votos recolhidos no plebiscito entre os membros do Sítio assim decida. Antes que
a votação aconteça, porém, a boneca parte em viagem ao redor do mundo com a intenção de
avaliar as conseqüências de sua reforma. Em passagem pela Alemanha, Emília aproveita para
ir ao encontro do Grande Ditador
15
, com quem tem uma entrevista que, segundo o narrador,
“dava um livro de mil páginas” (Monteiro Lobato, 1957o: 160). Visconde e Emília encontram
um Hitler nu, encolhido numa fresta, a quem a boneca ameaça não restabelecer o tamanho da
humanidade, caso o ditador não se comprometa a declarar o fim da guerra. Depois de ir ao
Japão e à Rússia, com a mesma intenção que a levara a Berlim, Emília visita o presidente dos
Estados Unidos. De volta ao sítio, o plebiscito formado pelos personagens que o habitam
decide pela restituição do Tamanho, apesar da insatisfação daquela que pretende declarar sua
morte.
Quando não protagoniza os livros, Emília sempre encontra uma maneira de ocupar o
centro dos acontecimentos. Uma de suas maiores vocações é a perspicácia para a solução
engenhosa de problemas, talento que a boneca explora com fins lucrativos. Se, por um lado, é
invariavelmente ela quem salva a pele de todos quando os personagens se vêem em perigo,
Emília nunca deixa de tirar alguma vantagem da situação. Aquilo que os personagens
chamarão de “espírito da ciganagem” já começa a brotar na boneca no primeiro livro da série,
quando o narrador declara: “Estava nascendo nela aquele espírito interesseiro que a ia tornar
célebre nos anais da ciganagem” (Monteiro Lobato 1957a: 73). A imaginação criativa da
boneca, capaz de encontrar saída para os dilemas mais complexos, se desenvolve na mesma
15
O narrador em momento algum menciona o nome de Hitler.
35
medida de seu amor pela propriedade privada. Emília espera a aproximação máxima do
perigo para “vender” a solução. Em Caçadas de Pedrinho (1957c), a boneca aguarda o
momento em que todos estão prestes a serem devorados pelas onças para propor uma saída
em troca de algumas condições:
– Primeiro: que todos reconheçam que sou a mais esperta e inteligente do bando.
Segundo: que Dona Benta me dê o regadorzinho de jardim, dos verdes – de outra cor
não quero. Terceiro que... (ibid.:58).
Em outro episódio narrado no mesmo volume, Emília precisa de uma determinada
soma de dinheiro para levar a cabo um de seus planos (que envolve a conquista de um
“carrinho de cabrito” que pertencia a Pedrinho) e, para consegui-lo, esconde secretamente os
óculos de Dona Benta para, em seguida, cobrar pela busca dos mesmos. A tal “ciganagem” de
Emília está diretamente ligada a sua paixão pela coleção que começa a cultivar desde os
primórdios de sua “gentificação”. Em “Reinações” (ibid.,1957a), por ocasião da visita de
personagens do “Mundo das Maravilhas” ao Sítio, Narizinho já se vê constrangida com os
freqüentes pedidos de presentes (varinhas de condão, coroas, sapatos) que Emília dirige a
Branca de Neve e Cinderela. Botões, um cachimbo de Tia Nastácia e cacos de objetos
quebrados passam a compor o variado museu da boneca. Ainda no primeiro volume da obra, o
narrador afirma que “Emília sempre fora interesseira, mas depois que encasquetou com a
idéia de ser a boneca mais rica do mundo (rica de brinquedos), virou uma perfeita cigana,
dessas que não fazem nada de graça” (1957a: 200). Quando toma coragem para desabafar a
respeito da difícil personalidade de Emília, Visconde descreve a coleção da boneca:
[...] O quartinho de Emília está cheio. [...] É dona de grande número de pernas e
braços e cabeças de bonecas – das que Narizinho quebrou. Tem uma coleção de
panelinhas de barro, e outra de caquinhos coloridos de louça. Uma vez quebrou de
propósito uma linda xícara verde de Dona Benta só para completar a sua coleção de
caquinhos – porque estava faltando um caquinho verde. [...] Tem besouros secos, um
morcego seco, e até um camarão seco. Tem coleção de fios de cabelo, que ela enrola
um por um como cordinhas. Cabelos de Dona Benta, de Narizinho, de Pedrinho, do
36
capitão Gancho, do Popeye. Na sua coleção, diz ela, só falta uma coisa: fio de cabelo
de um homem totalmente careca. [...] E tem mais coisas. Tem uma coleção de selos
todos cortados. Emília recorta as cabecinhas e mais figurinhas dos selos e prega-as
num álbum. [...] Durante uns tempos andou com mania de colecionar verrugas, das
que têm um fio de cabelo plantado no meio (Monteiro Lobato, 1957e: 114).
A obsessão que a personagem desenvolve pela sua coleção marca um dos aspectos de
seu processo de “gentificação”, pois ao possuir coisas ela cria traços de sua agência no
mundo, ela cultiva índices de sua intencionalidade. Mesmo que essa não seja uma utilização
fiel do conceito pensado por Gell para o estudo de rituais de magia, podemos dizer que o
museu de Emília alegoriza a sua “pessoa distribuída”. A cada grande aventura, seja uma
viagem à Lua, à Grécia ou ao País das Fábulas, a personagem sempre leva consigo uma
“canastrinha”, uma espécie de baú, repleta de objetos diversos que podem servir-lhe em caso
de emergência, caso ela precise “agir”. Esse arsenal contribui para a distribuição da agência
de Emília sobre o mundo que a envolve. Os itens que compõem a coleção da personagem
constituem índices da existência de Emília, de sua ação no mundo, são objetos que remetem
às aventuras dos que a antecederam, aventuras de conquista. É curioso notar, ainda, que
grande parte dos objetos descritos por Visconde como parte do acervo da personagem são
detritos, partes, frações, que comunicam uma existência anterior, índices eles mesmos daquilo
que foram um dia. Benjamin (1996a) nota que as crianças costumam desenvolver especial
atração pelos detritos, onde quer que eles surjam, seja na construção de casas, na jardinagem,
na carpintaria ou na confecção de roupas. “Nesses detritos, elas reconhecem o rosto que o
mundo das coisas assume para elas. Com tais detritos, não imitam o mundo dos adultos, mas
colocam os restos e resíduos em uma relação nova e original. Assim, as próprias crianças
constroem seu mundo de coisas, um microcosmos no macrocosmos” (Benjamin, 1996a: 238).
Quando passa a colecionar objetos curiosos como verrugas, animais secos e cacos de louça,
Emília atribui valor e sentido a coisas que, à primeira vista, estariam condenadas ao
37
desinteresse estético ou utilitário, mas que ganham nova vida a partir da inclusão neste
estranho conjunto.
Outra faceta da personagem que contribui para a sua “gentificação” seria sua
potencializada capacidade de atribuição de intenções. Emília é dotada de uma habilidade para
ver e ouvir coisas e seres aos quais nenhum dos outros personagens tem acesso. Em um trecho
de “Reinações” (1957a) ela garante a Narizinho que compreende a conversa das formigas:
– Já reparou, Emília, como as formigas conversam? Que pena a gente não entender o
que dizem...
– A gente é modo de dizer – replicou Emília – porque eu entendo muito bem o que
elas dizem.
– Sério, Emília?
– Sério, sim, Narizinho. Entendo muito bem, e se você ficar aqui comigo, contarei
todas as historinhas que elas conversam. (ibid.: 44)
Efetivamente, o desenrolar da narrativa comprova que Emília compreendera o diálogo
entre as duas formiguinhas que se aproximaram da dupla. No entanto, tal dom permanece um
mistério até mesmo para a boneca.
– Mas, Emília, como é que você entende a linguagem das formigas? – perguntou
Narizinho logo que se deitou. A boneca refletiu um bocado e respondeu:
– Entendo porque sou de pano.
Narizinho deu uma gargalhada e respondeu:
– Isso não é resposta de uma senhora inteligente. O meu vestido também é de pano e
não entende coisa nenhuma.
A boneca pensou outra vez.
– Então é porque sou de macela.
Nova risada de Narizinho.
– Também não é resposta. Este travesseiro é de macela e entende as formigas tanto
quanto eu.
– Então... então... engasgou Emília, com o dedinho na testa. Então não sei.
Era a primeira vez que Emília se engasgava numa resposta. Primeira e última. Nunca
mais houve pergunta que a atrapalhasse (Monteiro Lobato, 1957a: 46).
Em outro momento da obra, quando Pedrinho fabrica um telescópio que não parece
ser muito eficaz, Emília garante a todos conseguir enxergar São Jorge combatendo o dragão
na superfície lunar. Suas descrições geram a desconfiança dos presentes, e como explica o
38
narrador, “a boneca tinha fama de possuir uns olhos verdadeiramente mágicos – mas quem
poderia jurar sobre o que ela afirmava? A ânsia de ver coisas, porém, era maior que a dúvida,
de modo que resolveram aceitar como verdade as afirmações da Emília e nomeá-la a
olhadeira do telescópio. Ela que fosse vendo tudo e contando aos outros” (Monteiro Lobato,
1957b).
Embora, em alguns momentos, não fique claro se Emília efetivamente viu o que viu,
ou ouviu o que ouviu, isso não nos apresenta grande importância, pois não estamos
interessados em desmistificar Emília ou seus superpoderes. O que parece ser crucial para a
pesquisa do funcionamento da rede de relações no Sítio, no entanto, é o fato de que, quando
Emília atribui intenções a coisas e seres aos quais os outros personagens não teriam acesso,
ela prolifera pessoas e multiplica relações. Seu dom se manifesta nas mais diferentes situações
e, graças à boneca, leitores e personagens ganham acesso a manifestações de besouros,
marcianos e sereias.
Em “Reinações” (1957a), Narizinho caçoa da boneca quando esta se refere a um
relógio de parede como uma pessoa: “ – Tão inteligente e não aprende nunca a diferenciar as
criaturas vivas das coisas inanimadas...” (ibid.:143). A crítica da menina, que acredita ter
encontrado na boneca uma limitação, não leva em consideração que Emília só faz levar às
últimas conseqüências a relação que os seres humanos estabelecem com os objetos que os
rodeiam. Emília dá mostras de possuir a compreensão de que os objetos encarnam o estatuto
de pessoa em virtude da existência de relações sociais entre seres humanos e coisas, e de
relações sociais entre pessoas via coisas (Gell, 1998:12). Emília atribui sem problemas a
categoria de pessoa a elementos que demonstram sua importância na vida cotidiana do sítio
onde vive. Num trecho de “Memórias de Emília”, quando a boneca já teria aprendido a
39
empregar os conceitos de animado e inanimado, a personagem continua fiel a sua
categorização de objetos como personagens, a “categoria picapau” de pessoa:
Os outros personagens do sítio são inanimados, embora excelentes pessoas. [...] Entre
os personagens inanimados gosto muito da porteira e da pitangueira. A porteira só
sabe fazer uma coisa: abrir-se e fechar-se. Para abrir-se espera que as pessoas
animadas a ajudem. Abre-se, a pessoa animada passa e ela fecha-se por si mesma,
com o peso, fazendo nhem, nhem. Boa pessoa. Dali não vem mal ao mundo. A
pitangueira, essa é importante. Está enorme. Bate em altura todas as árvores do pomar,
exceto a figueira do oco, e tem casca sem nenhum musgo, lisa. Cada ano se enche de
pitangas, das bem doces, divididas em gomos. Não gomos como os de laranja
separados uns dos outros; os gomos da pitangas são apenas para enfeite, grudadinhos.
É outra excelente pessoa, donde também não vem mal ao mundo (Monteiro Lobato
1957e: 143).
Como procurei mostrar até agora, a “gentificação” de Emília é um processo de
resistência ativa da personagem à sua posição de índice e agente secundário na rede de
relações do Sítio do Picapau Amarelo. Originalmente, sua natureza de artefato faria de Emília
um duplo índice: um vestígio da agência daquela que a criou – Tia Nastácia –, e um veículo
de manifestação da agência daquela que a utiliza – Narizinho. Como já vimos, a boneca
transgride sua função mediadora entre as experiências imaginárias de Narizinho e o mundo
exterior, implodindo o dualismo interioridade/exterioridade, quando se torna ela mesma a
mais importante fonte de intencionalidade do Sítio. Gell afirma que o que faria do jogo com
bonecas uma atividade extremamente prazerosa para as crianças seria o grau de passividade
destes objetos: “[...] the doll does whatever the child wants, [...] the doll’s thoughts and inner
life [...] are a reflex of the child’s own thoughts...” (1998: 129). A “gentificação” de Emília é
justamente a sublevação radical da personagem em relação a seu destino como um “outro
passivo” (passive other).
Se por um lado, a boneca rebela-se claramente contra sua caracterização como um
índice da agência de Narizinho, Emília não esconde a violenta rejeição que cultiva a respeito
da cozinheira a quem deve sua existência material. Tia Nastácia é freqüentemente alvo do
40
ataque ácido e implacável da boneca, e o tema recorrente da crítica envergada por Emília é a
suposta ignorância científica da cozinheira ou sua “origem racial”. Em alguns momentos, a
boneca se refere à cozinheira adorada por todos os personagens do Sítio como “pretura”
(Monteiro Lobato 1957c: 59); em um outro, define Tia Nastácia como a “ignorância em
pessoa” (1957e: 145), e em uma determinada ocasião, após recortar a sombra da cozinheira
deixando-a completamente desolada, Emília se dedica a reproduzir a prótese do Capitão
Gancho para assustar a pobre senhora: “quero ganchar aquele beição dela” (1957e: 199). Tia
Nastácia, por sua vez, reconhece desde cedo os traços individualistas e “interesseiros” que vão
se desenvolvendo no caráter de Emília: “A gente vê cada coisa nesse mundo! Uma
bonequinha que eu mesma fiz, e de pano tão ordinário, tapeando a gente desta maneira!
Credo!...” (1957a: 238).
Um dos aspectos que parece estar na base dos conflitos que envolvem a relação entre
Emília e Tia Nastácia é a resistência apresentada pela boneca a encarnar um rastro da
intencionalidade da cozinheira. A revolta de Emília contra a personagem pode ser em parte
explicada pelo desejo da boneca de libertar-se de sua identidade de índice, uma vez que a
relação que as une remete inevitavelmente à origem de Emília como um objeto manufaturado.
A agressividade que a boneca destila em relação a Tia Nastácia é invariavelmente uma
manifestação gratuita de desprezo que não encontra qualquer sentido no contexto dos
acontecimentos narrados. Assim, frases como “Cale a boca! Você só entende de cebolas e
alhos e vinagres e toucinhos. Está claro que não poderia nunca ter visto fada porque elas não
aparecem para gente preta” (1957e: 165), são disparadas por Emília sem que haja qualquer
razão que justifique tal ataque de fúria. Quando a boneca manifesta tais opiniões racistas, logo
é repreendida por Dona Benta, cujas argumentações são seguidas por discursos científicos de
Visconde a respeito da pigmentação das células epiteliais.
41
Seguindo a conceitualização de Gell (1998), todo artefato gera uma abdução que
possivelmente revela a agência do artista que o criou. Nesse sentido, o índice (o artefato)
ocupa a posição de paciente em relação a seu criador. Sem a agência do artista, tal objeto não
existiria. Em alguns casos, porém, a origem de alguns objetos pode ser esquecida ou apagada,
bloqueando a abdução que conecta a existência material deste à agência do artista. Nas
palavras do autor, “many objects which are in fact art objects manufactured by (human)
artists, are not believed to be originated in that way; they are thought to be of divine origin or
to have mysteriously made themselves” (1998: 23). Emília pratica a partir de seus ataques a
Tia Nastácia uma estratégia de desvalorização da cozinheira como um agente na rede de
relações do Sítio, para assim desviar a atenção de sua existência como um índice da ação
desta personagem.
Quando começa a falar e implementar alterações no mundo que a envolve; quando
coloniza o espaço transicional de Narizinho e dá inicio a uma proliferação de relações;
quando passa a colecionar objetos e atribuir intencionalidade a elementos a princípio
inauditos, e quando pratica uma resistência cotidiana àquela que denuncia sua natureza
manufaturada, Emília realiza, emblematiza e enuncia a sua (a)gentificação. A personagem
não se limita, como os objetos de arte conceitualizados por Gell, a absorver a intecionalidade
que lhe é atribuída pelos agentes que a inserem numa rede de relações. Ela também não
vivencia e nem muito menos aspira a uma humanização, como parece ser o caso do
personagem Pinocchio, imortalizado pela obra do italiano Carlo Lorenzini. A idéia de
(a)gentificar-se implica justamente incorporar uma categoria ontológica que habita o espaço
maleável entre ser um objeto, com todas as implicações que isso representa para a teoria de
Gell, e ser humano. Nem um, nem outro, Emília continua sendo feita, e a cada página
percorrida, mais fato. Emília é um caso de fe(i)tiche radical.
42
1.3 A Marquesa de Rabicó e o Visconde de Sabugosa: um “clãfe(i)tiche no Picapau Amarelo
O microcosmos Sítio do Picapau Amarelo é povoado por uma diversidade de “seres”:
personagens infantis e personagens adultas; animais domésticos, como o porco Marquês de
Rabicó, o Burro Falante e o rinoceronte Quindin; animais selvagens que habitam a mata; seres
encantados moradores da floresta, como a “sacizada”, o Boitatá, o Lobisomem, a Cuca, etc;
habitantes da corte do Reino das Águas Claras e, finalmente, Emília e o Visconde de Sabugosa.
Este pequeno mundo, assim como parece ser o caso de alguns outros territórios ficcionais do
“Mundo das Maravilhas”, sugere operar a partir de um modelo “multinaturalista” (Viveiros de
Castro 2002b), onde o plano de expressão da diferença se apresenta na diversidade dos corpos. A
rica variedade de alteridades ontológicas presente neste pequeno universo fortalece o Picapau
Amarelo como uma máquina de produção de relações, um aparelho que exercita incessantemente
a expansão de suas forças para o fora: para o cultivo de relações com os muitos outros que
habitam não só os mundos diretamente vizinhos, como a mata e o rio, mas o território em
constante expansão que é o “Mundo das Maravilhas”. As diferentes personagens que povoam o
Sítio, equipadas de suas múltiplas naturezas, quando em relação com estes outros territórios
ficcionais se apresentam sob a forma de uma coletividade – o Picapau Amarelo –, não agrupada a
partir da afinidade substancial, mas reunida em torno de uma afinidade relacional. Os
personagens híbridos que povoam essa paisagem ficcional colaboram para a multiplicação de
pólos de contato com os outros mundos fantásticos nas incessantes aventuras de exploração
descritas ao longo da obra. Em diálogo com a Quimera, personagem mitológica que, entre outras
criaturas, vai habitar temporariamente as terras do Sítio no volume O Picapau Amarelo
(Monteiro Lobato, 1957m: 44), o Visconde de Sabugosa, sempre dedicado a seu projeto
43
taxonômico, questiona a criatura a respeito de suas qualidades físicas, procurando situá-la dentro
da zoologia tradicional.
– É curioso esse fenômeno de sair fumaça de suas entranhas – disse ele. Parece contrário a
todas as leis da fisiologia.
– Que é fisiologia? – perguntou a Quimera. A rainha deste reino?
O Visconde riu-se com superioridade de sábio.
– Fisiologia é a ciência que estuda o funcionamento do corpo dos animais.
– Mas não sou animal – disse a Quimera – apesar de minha aparência de leão, cabra e
serpente.
– Que é então?
– Sou uma fábula grega, como você me parece uma fábula moderna.
O inventário de personagens que circulam pelas páginas da obra infantil de Lobato revela
uma complexa variedade de corpos, mas as diferenças não param por aí: as linguagens e os
tempos também são múltiplos. Existe, porém, um plano de unicidade que reúne esses seres, um
plano que os habilita às operações de troca, onde se revela a afinidade potencial entre a Quimera
e o Visconde, entre Emília e Dom Quixote, Pedrinho e Peter Pan e Narizinho e Alice, para citar
alguns exemplos. Modernos ou gregos, mitos ou fábulas, humanos ou animais, os habitantes do
“Mundo das Maravilhas” são todos “pessoas ficcionais”, os tais filhos das núpcias do
inconsciente com a linguagem (Deleuze, 2006), e essa é a sua possível condição de
universalidade.
Os seres que se encontram no Sítio do Picapau Amarelo possuem, portanto, um traço
comum que os permite compartilhar o mesmo mapa existencial, uma espécie de segunda natureza
que os iguala independentemente da forma de seus corpos ou suas origens espaço-temporais. São
todos resultado de uma fabricação imaginária. Entretanto, duas importantes criaturas do núcleo
principal de personagens do Sítio vivenciam duplamente a marca da fabricação. Visconde de
Sabugosa e Emília não só foram feitos por Monteiro Lobato, mas também criados (e recriados)
pelas mãos de Nastácia e de Pedrinho, respectivamente.
44
A “decodificação” de Emília a partir da máquina conceitual apresentada por Gell em Art
and Agency, contribuiu para revelar os percursos traçados pela personagem em sua conquista de
uma identidade de objeto desejante. Esse exercício exigiu uma certa distorção (consciente e
proposital) da teoria antropológica de Gell, uma vez que autor desenvolve seu pensamento tendo
em mente objetos que coabitam com seres humanos o espaço social do mundo real, e nós estamos
a lidar com um objeto que possui um duplo vínculo com a fabricação: nossa heroína é
imaginariamente criada como criatura manualmente construída. E ela não é a única. Visconde de
Sabugosa também teve o seu corpo confeccionado por mãos humanas. O sábio, porém, não
atravessará o mesmo processo de (a)gentificação descrito como fomentador da “psicogênese
emiliana. Visconde é um sabugo de milho científico e reciclável.
A origem da personagem remonta às primeiras páginas de Reinações (Monteiro Lobato
1957a), quando Narizinho arquiteta um plano para convencer Emília a se casar com o porco
Rabicó. A boneca, a princípio, se recusa terminantemente a contrair matrimônio com tal criatura,
mas Narizinho acaba por persuadi-la, apelando para suas aspirações a um título de nobreza:
– [...] Estive sabendo que Rabicó é príncipe dos legítimos, que uma fada má virou em
porco e porco ficará até que ache um anel mágico escondido na barriga de certa minhoca.
Por isso é que Rabicó vive roçando a terra atrás de minhocas. [...] Quem me revelou toda
essa história foi justamente o pai de Rabicó, o Senhor Visconde de Sabugosa, um fidalgo
muito distinto que vem fazer o pedido de casamento. [...] O Visconde finge de visconde,
mas na verdade é rei, e muito bom rei de um reino lá atrás do morro ... (ibid.:82).
Visconde é cuidadosamente fabricado por Pedrinho para a ocasião do noivado de Emília
com o porco marquês. Feito a partir de um sabugo de milho, a personagem porta uma cartolinha
desenhada para lhe emprestar ares de nobreza. Logo nos seus primeiros dias de vida, o sabugo
falante cai atrás de uma estante de livros, onde fica esquecido por três semanas. Quando volta à
convivência com o grupo, o fidalgo está coberto por uma espessa camada de bolor e contaminado
pela Química e pela Física, disciplinas tratadas nos volumes entre os quais ficou morando por
45
quase um mês. A partir de então, passa a “falar dificílimo” e a buscar respostas científicas para
todas as questões. Os dois principais traços que distinguem o Visconde de Sabugosa são a sua
relação contagiosa com a ciência e o conhecimento impressos nos livros, e a sua natureza
reciclável. Se por um lado, a cada período passado entre o bolor dos livros, Visconde absorve seu
conteúdo informativo, por outro, sua vida parece ter muito pouco valor para os personagens do
sítio, uma vez que o sábio pode ser refeito incessantemente. Sua “imortalidade” faz com que
Visconde seja selecionado pelos “picapaus” para executar as missões mais perigosas, e que suas
sucessivas “mortes” sejam tratadas como uma banalidade cotidiana. Após uma das visitas do
grupo ao fundo do mar, quando o sabugo retorna ao sítio gravemente embolorado, Narizinho
embrulha-o num velho fascículo das Aventuras de Sherlock Holmes, embora acredite que o sábio
já esteja morto. O Príncipe das Águas Claras, chocado com a notícia, lamenta o fim prematuro da
personagem, mas a menina acalma o inquieto peixe declarando: “O nosso Visconde já andava
meio maluco com as suas manias de sábio. Ficou tão científico que ninguém mais o entendia. Só
falava em latim, imagine! Logo chega o tempo da colheita de milho e eu arranjo um Visconde
novo” (1957a: 130). Finalmente, o fidalgo acaba por recuperar-se da umidade marítima, mas
agrega à sua personalidade científica um sofisticado talento investigativo.
Ainda em Reinações, Visconde sofre de uma nova convalescença, desta vez ligada ao
consumo excessivo de ciência. Depois de alguns dias passados no isolamento de sua casinha
16
,
dedicando-se à leitura, o sábio manifesta uma “crise de empanturramento”. O Doutor Caramujo é
rapidamente convocado para examiná-lo e declarar o diagnóstico: “– Hum! O caso é dos mais
graves. Tenho de operá-lo imediatamente. Sua Excelência está empanturrado de álgebra e outras
16
“A casa do Visconde era um vão de armário na sala de jantar. Dois grossos volumes do Dicionário de Morais
formavam as paredes. Servia de mesa um grosso livro de capa de couro chamado O banquete, escrito por um tal
Platão que viveu antigamente na Grécia e devia ter sido um grande guloso. A cama era formada por um exemplar da
Enciclopédia do riso e da galhofa, livro muito antigo e danado para dar sono. [...] Os outros ‘móveis’ – armários,
cadeiras, estantes, também eram formados dos livros de capa de couro, que Dona Benta havia herdado de um seu tio,
o Cônego Agapito Encerrabodes de Oliveira” (Monteiro Lobato 1957a: 229).
46
ciências empanturrantes ...” (1957a: 229). Quando o corpo do doente é aberto, Pedrinho e
Narizinho ficam surpresos ao observar que, no lugar de tripas, o ventre de Visconde es
preenchido por uma “maçaroca de letras e sinais algébricos, misturados com ‘senos’ e ‘co-senos’
e ‘logaritmos’” (idem). As crianças solicitam que o médico não extraia todas as letras, mas deixe
algumas sementes para que o Visconde não fique “bobo demais”. O doutor segue as instruções,
tirando só o que é álgebra, que “é pior do que jabuticaba com o caroço para entupir o freguês”
(Monteiro Lobato, 1957a: 229). Entretanto, algumas semanas se passam e o sábio volta a falar em
“senos” e “co-senos”, pois as sementes deixadas pelo médico acabam por brotar. Nas palavras do
narrador, “não há nada mais perigoso do que semente de ciência...” (1957a: 250)
A obra segue repleta de narrativas curiosas sobre as inúmeras mortes e renascimentos do
visconde científico. Seja ele vítima de esmagamento por uma pesada jaca ou uma volumosa
edição de Dom Quixote de Cervantes, os “picapaus” sempre encontram uma maneira de trazer o
sábio de volta ao grupo. O método desenvolvido por Emília para garantir que o “espírito” do
fidalgo se mantenha presente em seu novo corpo de sabugo nos é narrado ao longo de D. Quixote
das crianças (1957i). O procedimento a ser seguido em casos de esmagamento do Visconde é
torcer o corpo da vítima até que todo o seu “caldo científico” seja extraído e possa ser depositado
em um novo sabugo. O método causa polêmica, uma vez que Pedrinho não se convence da
propriedade líquida da ciência: “ – [...] ciência não é coisa sólida, nem líquida. Poderá ser gasosa
– um fluido, um gasinho, como alma de pessoa” (ibid.: 61). Apesar dos argumentos do menino, a
teoria da ciência líquida defendida por Emília fica provada. Quando Nastácia aplica os braços, as
pernas e a cabeça do Visconde esmagado num novo tronco de sabugo, a criatura continua muda.
Mas basta que Emília lhe pingue algumas gotas do velho Visconde para que o sábio volte a vida:
“Maravilhoso efeito! A criatura arregalou os olhos, começou a mexer os braços, as pernas, e por
47
fim murmurou: ‘A matéria atrai a matéria na razão direta das massas e na razão inversa do
quadrado da distância’” (ibid.:73).
Apesar de Emília e Visconde partilharem a mesma “natureza” de objeto confeccionado
por mãos humanas, cada um deles extrai conseqüências inteiramente inversas de sua origem
como pessoa fabricada. Como os exemplos supra citados devem ter sido capazes de ilustrar, a
existência de Visconde é inteiramente baseada em sua imortalidade calcada na reencarnação de
sua pessoa em novas versões de um mesmo corpo. O mesmo princípio não se aplica à Emília, que
embora também tenha sido feita, nunca vê sua vida colocada em risco sob o pretexto da
possibilidade de refabricação. A boneca de pano e o sábio sabugo de milho parecem, portanto,
revelar diferentes faces de uma mesma moeda. Se por um lado, cada um deles carrega na mesma
medida o elemento da fabricação na origem de suas existências, Emília e Visconde são também
ambos fatos reais, vivos e ativamente influentes na rede de relações do Sítio. Eles parecem
alegorizar perfeitamente a idéia de fe(i)tiche desenvolvida por Bruno Latour (2002), na medida
em que são categoricamente construídos e verdadeiros, e dissolvem a suposta oposição entre
imanência e transcendência. Entretanto, se a trajetória de Emília tende a apresentar uma atração
crescente para o pólo da existência autônoma, da superação de sua identidade como um índice da
fabricação, Visconde, inversamente, personifica repetidamente a marca da fabricação em suas
inúmeras experiências de “reencarnação”.
A categoria fe(i)tiche (faitiche) é desenvolvida por Latour como um operador para a
“antropologia simétrica” (2002: 56) que deve ser capaz de oferecer uma alternativa analítica para
o conceito de crença, exaustivamente explorado pelos “modernos” para digerir as práticas rituais
e religiosas dos “outros”. O autor inicia a apresentação de sua proposta imaginando a reação
escandalizada de exploradores portugueses ao desembarcarem em algum ponto da costa da África
Ocidental e se depararem com os cultos a ídolos de pedra, argila ou madeira. O elemento
48
relevante desse encontro, para Latour, seria a indignação dos europeus diante da afirmação serena
dos africanos de que fabricam seus deuses. Latour identifica a origem da palavra fetichismo, que
remontaria a meados do século XVIII, na invenção do paradoxo resultante do diálogo (ou mal-
entendido) entre esses dois mundos. Os europeus acreditariam ter encontrado uma incongruência
nas práticas religiosas do continente negro quando se confrontaram com adoradores de imagens
que se recusavam a escolher entre a verdade de seus deuses e sua artificialidade. O ideal
antifetichista teria se desenvolvido, portanto, a partir da recusa de que podemos ser manipulados
por marionetes que nós mesmos fabricamos. “Se vocês reconhecem que fabricam inteiramente
seus fetiches, reconhecem, então, que manejam os fios como faria um marionetista” (ibid.: 21),
argumentaria o antifetichista incapaz de enxergar que também os “modernos” vivem cercados de
objeto que eles mesmos “fizeram-falar”.
Em sua empreitada exploratória, os europeus se confrontam com povos adoradores de
objetos por eles mesmos construídos, incapazes de discernir entre o que é feito e o que é fato.
Como argumenta Latour, a idéia de crença é criada pelos “modernos” para explicarem a si
próprios a bizarria dessa adoração. “À medida que a frente da colonização avança, o mundo se
povoa de crentes. É moderno aquele que acredita que os outros acreditam” (Latour, 2002: 15).
Derrubar o fetichismo equivaleria a restituir a iniciativa da ação ao seu verdadeiro mestre. No
entanto, como argumentará o autor, não é exatamente assim que as coisas se passam, uma vez
que o mundo sem fetiche parece ser povoado por tantos “aliens” quanto o mundo dos fetiches
(ibid.:29). O pensamento crítico, filho das Luzes, não restitui as forças ao indivíduo, senhor de si,
mas entrega-as a manipuladores tão invisíveis quanto as forças ocultas dos “não-modernos”.
Assim sendo, o ator humano nada faz senão trocar uma transcendência por outra. No lugar de
divindades que controlam o destino dos homens, o pensador crítico planta as forças econômicas,
sociais, lingüísticas, genéticas, mecânicas, etc:
49
Se vocês acreditam ser manipuldos pelos ídolos, vamos mostrar-lhes que vocês os criaram
com suas próprias mãos; mas se vocês se vangloriam orgulhosamente de poder acreditar
tão livremente, vamos mostrar-lhes que vocês são manipulados por forças invisíveis e
organizados à sua própria revelia (Latour, 2002: 32)
Segundo Latour, o pensador crítico pensaria triunfar duplamente sobre a ingenuidade do
ator comum, pois acreditaria ser capaz de ver não somente o trabalho invisível que o ator projeta
sobre as divindades que o manipulam, mas também as forças invisíveis que movimentam o autor
quando ele acredita estar manipulando livremente (idem). Entretanto, o objetivo de Latour não é
assumir uma posição antifetichista diante dos modernos e acusá-los de acreditarem em forças
ocultas que os superam quando foram eles mesmos que as construíram. Sua argumentação não
termina nesse ponto, mas nele começa. O autor pretende neutralizar a oposição entre realismo e
construtivismo a partir da idéia de fe(i)tiche, onde une as fontes etimológicas de fato e fetiche,
com o intuito de revelar que “somos todos ligeiramente superados por aquilo que fabricamos”
(Latour, 2002: 45). Dessa forma, ele acredita poder desviar-se do conceito de crença e equipar a
antropologia com uma ferramenta capaz de retomar o trabalho da comparação. Latour revela que
lá onde encontramos as entidades mais respeitadas da cultura dita moderna, os laboratórios
científicos, construído e real são termos que não parecem se contradizer
17
. A partir de
constatações como essa, ele conclui que o fe(i)tiche, segundo um pensamento que pratique a
antropologia simétrica, ganha um sentido positivo, ele é aquilo que faz-fazer, o que faz-falar
(ibid.:69). Essa proposta conceitual não pretende roubar do sujeito toda a sua autonomia ou
capacidade de ação, subordinando-o à vontade de forças que ele mesmo fabricou (deuses,
experiências científicas, obras de arte). Nas palavras do autor, “não existe em lugar algum ácido
capaz de dissolver o sujeito” (Latour, 2002: 102). O fe(i)tiche seria o operador capaz de revelar
17
O autor toma como exemplo os relatórios de experiências de laboratório de Louis Pasteur, onde o cientista declara
“no mesmo tom que os negros, que o fermento de seu ácido lácteo é real porque montou com precaução, com suas
próprias mãos, a cena onde ele – o fermento – se revela por si só” (Latour, 2002: 38).
50
que o sujeito “ganha autonomia ao conceder a autonomia que não possui aos seres que advêm
graças a ele” (idem).
Essa ligeira apresentação do argumento desenvolvido por Latour (2002) em Reflexão
sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches está longe de fazer justiça à complexidade e às
implicações da proposta teórica apresentada no ensaio. Entretanto, ela parece ser suficiente para
nos permitir a apropriação do conceito de fe(i)tiche para a análise da ontologia dos dois
personagens que alegorizam, no Sítio do Picapau Amarelo, a confluência entre fabricação e
realidade, construtivismo e realismo. Nem Visconde nem Emília são inteiramente autônomos.
Embora o sabugo de milho vivencie mais corriqueiramente a sua condição de artificialidade, pois
experimenta ao longo da obra um eterno retorno ao evento de sua fabricação, Emília também se
submete, de tempos em tempos, a algumas sessões de manutenção do seu corpo. Apesar disso,
ambos mostram superar ligeiramente seus criadores, embora o façam instrumentalizando forças
distintas. Se Emília exercita sua agência através de um crescente investimento de sua vontade, de
seu desejo, Visconde surpreende seus companheiros com seu saber, sua ciência, seu intelecto.
Cada um dos dois personagens parece encarnar uma caricatura oposta do conceito de
fe(i)tiche. A idéia de caricatura, nesse caso, não deve ser entendida em termos de uma ilustração
grotesca, mas absorvida como um retrato, que revela através do exagero alguns traços do objeto
que reproduz, que faz vir à tona aspectos marcantes constitutivos de uma imagem. Ao adotar a
idéia de que Visconde e Emília caricaturam duas imagens de fe(i)tiche, buscamos nos esquivar de
um tipo de leitura que procure caracterizar as personagens como representações simbólicas de
ideais político-filosóficos do autor que as criou. E tentamos preservar, dessa maneira, o conteúdo
ambíguo e paradoxal que estas duas figuras carregam. Duas marionetes que passam a agir à
revelia dos fios que as conectam às mãos de seus criadores, as duas criaturas caricaturam
aspectos opostos de ser feito e, ao mesmo tempo, fato.
51
Visconde de Sabugosa, através de suas aventuras de morte e renascimento, encarna
exageradamente sua existência fabricada. Quando Emília desenvolve o método de extração do
“caldo científico” do sábio, ela materializa ainda mais a vida desta personagem: o espírito, e não
só o corpo do fidalgo, passa a ser manipulável. Poderíamos dizer, com isso, que Visconde
representa uma das caricaturas possíveis do fe(i)tiche já que é atraído existencialmente para o
pólo da construção, da fabricação. Esse fato se revela interessante quando levamos em
consideração que, na maioria dos estudos voltados para a obra infantil de Lobato, Visconde é
repetidamente descrito como um representante do poder da ciência (Campos, 1986: 143). Sim,
podemos certamente afirmar que o sabugo fidalgo se pretende um filho das Luzes, e preenche o
mundo que o cerca de explicações lógicas, racionalistas e científicas que absorve dos livros
embolorados. Entretanto, seria precipitado assumir que Visconde simplesmente emblematiza o
poder científico. Como caricatura do fe(i)tiche, identificamos na personagem uma exagerada
inclinação à artificialidade de sua existência. O sabugo é uma “marionete científica”, que embora
conquiste o poder de ação e o controle de seus próprios movimentos, revive sem cessar o evento
de refabricação, que não nos deixa esquecer sua origem como uma invenção. Assim, talvez a
maneira mais interessante de caracterizar essa personagem seja aquela proposta pela Quimera na
charada que lançou para o sábio: Visconde é um mito moderno (Monteiro Lobato, 1957m: 44).
Embora faça as vezes de porta-voz do pensamento crítico na rede de relações do Sítio, o fidalgo
não consegue optar, ele mesmo, entre a fabricação e a verdade transcendente.
Emília, por sua vez, assume os contornos de uma caricatura do fe(i)tiche que revela o
outro lado da moeda do “faz-fazer”. A personagem encarna decididamente os traços da superação
em relação àqueles envolvidos em sua fabricação, como já procuramos demonstrar na sessão
anterior. A (a)gentificação da ex-boneca descreve justamente o processo através do qual ela,
52
como uma caricatura do fe(i)tiche, aspira ao pólo da autonomia, sem jamais, porém, chegar a
apagar inteiramente sua origem-marionete.
53
CAPÍTULO 2
Sobre a territorialização do Sítio do Picapau Amarelo no mapa dos mundos
ficcionais
2.1 A criação de alianças e a arte mediadora
O primeiro volume da série de literatura infantil das Obras Completas de Monteiro
Lobato pode ser considerado, em certo sentido, um livro à parte em relação ao resto da obra.
Alguns dos capítulos de Reinações de Narizinho, publicado em 1931, são contos que foram
escritos, publicados e inúmeras vezes alterados ao longo dos anos 1920 e 1930 (Bignotto, 2007).
O texto de abertura do livro de estréia da coleção infantil, Narizinho arrebitado, tem sua origem
num conto de Lobato lançado em 1920 sob o título Lucia, a menina do narizinho arrebitado,
onde o Sítio do Picapau Amarelo e parte de seus personagens fazem sua primeira aparição na
literatura brasileira. Lido dentro do conjunto da obra completa, o volume Reinações de Narizinho
se destaca em função de seu caráter inaugural. Não apenas porque introduz os leitores a um grupo
de personagens e seu contexto de vida, mas também porque narra os acontecimentos de fundação
do Sítio como um território ficcional entre outros. O evento mais importante entre eles, o advento
da capacidade de fala da personagem Emília, foi explorado no capítulo precedente como a pedra
de toque para a invenção desse mundo. Os acontecimentos que se seguem à mutação de Emília
preenchem as páginas de Reinações com narrativas que revelam a inclusão gradativa do Sítio no
“mapa das Maravilhas”. Entre estas, está a importante aliança que se estabelece entre os
“picapaus” e o Reino das Águas Claras, uma corte submarina habitada por criaturas do mundo
54
animal (que, entretanto, não se limitam às espécies aquáticas). Essa fase das experiências alter-
mundos das personagens parece remeter ao ambiente das narrativas míticas ameríndias,
“povoadas de seres cuja forma, nome e comportamento misturam inextricavelmente atributos
humanos e não-humanos, em um contexto comum de intercomunicabilidade idêntica ao que
define o mundo intra-humano atual” (Viveiros de Castro, 2002b: 354).
A associação não pretende propor um tratamento da literatura infantil lobatiana a partir da
sugestão de que ela se constrói ou se desenvolve sob as mesmas bases das narrativas míticas.
Longe disso, ela se presta unicamente a um esforço descritivo da paisagem ficcional que se
desenha quando a dupla Narizinho e Emília se aventura na exploração de mundos que desafiam
as fronteiras entre humano e animal da chamada vida real. Após a primeira visita ao Reino das
Águas Claras, quando Emília já fala e pode ser ouvida por todos os habitantes do Sítio, as duas
personagens vivenciam uma experiência que parece marcar o alargamento da “rede
sociocósmica” do Picapau Amarelo. Emília e Narizinho são convidadas a visitar o Reino das
Abelhas, onde entram em contato com a sofisticada organização social desses insetos, que as
surpreende sobremaneira.
– Já reparou, Emília, como é bem arrumado este reino? Uma verdadeira maravilha de
ordem, economia e inteligência! Estive no quarto das crianças. Que gracinha. Cada qual
com seu berço de cera, com pernas e braços cruzados, todas tão alvas, dormindo aquele
sono gostoso... O que admiro é como as abelhas sabem aproveitar o espaço, como sabem
economizar a cera, tudo dispondo de modo que a colmeia funcione como se fosse um
relógio. Ah, se no nosso reino também fosse assim.
[...] E quem manda aqui? Quem é o delegado? – perguntou Emília.
– Ninguém manda – e é isso o mais curioso. Ninguém manda e todos obedecem.
– Não pode ser! – exclamou a boneca. Quem manda há de ser a rainha. Vou perguntar, e
foi chamando uma abelha que ia passando. “Faça o favor, senhora abelinha, de nos dar
uma informação. Quem é afinal de contas, que manda neste reino? A rainha?”
– Não senhora! – respondeu a abelha. Nós não temos governo, porque não precisamos de
governo. Cada qual nasce com o governo dentro de si, sabendo perfeitamente o que deve
e o que não deve fazer. Nesse ponto somos perfeitas (Monteiro Lobato, 1957a: 69).
55
Após uma conversa instrutiva com a rainha da colmeia, as visitantes são presenteadas
com potes de mel e seguem viagem de volta ao sítio, lamentando não serem elas também abelhas
para morarem numa comunidade organizada como aquela. O que se passa em seguida parece
denunciar os riscos da passagem a outros mundos. Durante a ausência de Narizinho e Emília, um
feiticeira ataca o Sítio e transforma as pessoas em animais: Pedrinho vira um pássaro tisiu, Dona
Benta toma a forma de uma tartaruga e Tia Nastácia vira uma galinha preta. Finalmente,
acabamos por ser informados que, tanto a viagem ao Reino da Abelhas, quanto a mutação física
das personagens humanas tinham sido sonhadas por Narizinho. Ainda assim, a associação entre
essas duas experiências permanece interessante, já que remete ligeiramente à idéia do risco de
intercâmbio de pontos de vista presente nas cosmologias ameríndias povoadas de
intencionalidades extra-humanas.
A primeira metade do volume Reinações de Narizinho se desenrola num ambiente de
iniciação das personagens na relação com mundos paralelos ao real, onde não-humanos são
dotados de intencionalidade consciente e ocupam a posição enunciativa de sujeito. Nessa fase da
narrativa, antes de passarem ao encontro com seres ficcionais pré-existentes à obra (Cinderela,
Barba Azul, Chapeuzinho Vermelho, etc.), duas das personagens do Sítio atravessam um “ritual
de passagem” que consagra a aliança entre mundos. A possibilidade de cohabitação destes dois
universos constitui grande parte dos temas narrados ao longo da obra. O acontecimento
extraordinário que se segue à conquista da fala da boneca é o casamento de Narizinho e Emília
com personagens do reino animal. As duas alianças híbridas, entretanto, não compartilham do
mesmo glamour. Se o matrimônio de Narizinho com o peixe Príncipe Escamado
18
se dá em
18
A aliança causa o espanto de Dona Benta, que não faz idéia da dimensão que a proliferação de híbridos ainda está
para assumir em seu sítio:
“ – Todos se casam, não há dúvida. Eu me casei, sua mãe se casou. Mas todos se casam com gente da mesma
igualha. É muito diverso disso de casar com um peixe...
56
grande estilo, no salão principal da corte submarina, o casamento de Emília com o porco Rabicó,
falso marquês, é de tal maneira perturbado pela ausência completa de modos do noivo, que a
boneca acaba por declarar-se divorciada no dia mesmo do matrimônio.
Embora a expansão do universo social no Sítio habilite todos os personagens à relação
com uma multiplicidade de seres, Emília manifesta uma capacidade especial de se comunicar
com sujeitos que não estão disponíveis às outras personagens sob a forma de interlocutores. No
capítulo anterior, exploramos esse dom a partir da idéia de que a boneca, em seu processo de
(a)gentificação, desenvolve uma carga exagerada de intencionalidade que exerce sob a forma de
atribuição de agência. Essa aptidão e suas conseqüências práticas, contudo, acabam por conceder
à personagem uma posição especial dentro do grupo. Graças à Emília, a comunicação e a troca
entre mundos que não compartilham os mesmos “suportes lingüísticos” se torna possível. Nesse
sentido, a personagem encarna a mediadora entre as partes ou, se quisermos, uma espécie de
diplomata. As qualidades de Emília que a destacam como visionária de mensagens que outros
não vêem chegar nos instiga a estabelecer uma correspondência entre sua figura e aquela dos
xamãs ameríndios em cosmologias perspectivistas. A associação, embora tentadora, não deve ser,
contudo, levada a sério, pois o perspectivismo ameríndio é uma teoria da alteridade altamente
complexa; e a análise minimamente atenta da epistemologia que o sustenta prova ineficaz a
tentativa de aplicação de sua fórmula sob a ecologia da diferença no Picapau Amarelo. Ainda
assim, a imagem do xamã, como figura capaz de assumir o papel de interlocutor ativo no diálogo
– Dobre a língua, vovó! Escamado é príncipe. Se se tratasse aí dum peixe vulgar de lagoa, vá que vovó falasse. Mas
o meu noivo é um grande príncipe das águas!...
– Mas não é criatura da nossa espécie, menina.
– E que tem isso? A Emília, que é uma boneca, não se casou também com Rabicó, que é leitão? Acho as suas idéias
muito atrasadas, vovó...
– Já não entendo estes meus netos. Fazem tais coisas que o sítio está virando um livro de contos da Carochinha.
Nunca sei quando falam de verdade ou de mentira. Este casamento com peixe, por exemplo, está me parecendo
brincadeira, mas não me admirarei se um belo dia surgir por aqui um marido-peixe, nem que esta menina venha me
dizer que sou bisavó de uma sereinha” (Monteiro Lobato, 1957a: 102-103).
57
transespecífico (Viveiros de Castro, 2002b: 357), contribui para revelar a atuação de Emília como
comunicadora de intencionalidades invisíveis. Vejamos dois exemplos que parecem ilustrar essas
“qualidades xamânicas” da boneca falante.
Talvez o episódio que expresse com mais clareza o talento que diferencia Emília dos
outros seres seja a visita dos “picapaus” ao planeta Marte. O volume Viagem ao céu (1957b)
narra as aventuras das personagens no espaço sideral e, durante a passagem por Marte, Emília
revela ver e ouvir os habitantes locais, invisíveis para Pedrinho e Narizinho. Ela assim os
descreve para seus companheiros:
– São esquisitíssimos! Parecem grandes morcegos brancos. Em vez de caminharem com
dois pés, como nós, deslizam pelo chão e erguem-se no ar quando querem. O corpo é oval
e cheio de crocotós, isto é, de coisas esquisitas que não entendo bem. Precem ter uma
porção de braços e mãos, maiores e menores; e no lugar que deveria ser a cara, há mais
crocotós – tudo muito diferente das criaturas da Terra. Nós temos olhos, nariz, boca e
orelha – eles devem ter tudo isso, mas de formas diferentes. São uns seres absurdos...
– E falam?
– Devem falar – mas sem sons, sem palavras, dum modo muito diverso do nosso. Bem no
meio de tal coisa que deve ser a cara existe um chicotinho flexível que eles manejam com
grande rapidez.
– Antenas, como nos insetos?
– Talvez. É com o movimento desses chicotinhos no ar que eles se entendem (ibid.:83).
A boneca resolve verificar mais de perto os estranhos seres com a intenção de descobrir se
os marcianos estão conscientes da presença de intrusos em seu planeta. Ela acaba por perceber
que a invisibilidade é inversamente simétrica: os seres de Marte não são visíveis para os humanos
na mesma medida em que também não os enxergam. Finalmente, Emília é a única criatura que
transita entre esses dois mundos, apesar de ela mesma não ser visível aos olhos marcianos
(embora não seja humana). Essa condição facilita muito a visita ao planeta, e a boneca vai
descrevendo aos companheiros o palácio e seus habitantes, enquanto passeiam sem serem
notados. Eis que, repentinamente, “os dois meninos começaram a ficar com medo da boneca.
Parecia transformada. Não mais lembrava a Emília bobinha e asneirenta lá do sítio. Falava e
58
raciocinava na maior perfeição como se alguma misteriosa fada lhe houvesse enxertado um novo
dom” (Monteiro Lobato, 1957b: 85). A boneca entrara em transe e tornara-se capaz de
decodificar a linguagem marciana. Sua tradução do diálogo marciano revela a Pedrinho e a
Narizinho que os habitantes locais, pressentindo uma invasão, colocaram em ação suas
“máquinas detectoras”. Contudo, graças à astúcia de Emília, o grupo terrestre consegue fugir do
planeta antes de ser capturado pelo exército local, que recebera ordens de aprisionar os invasores
em garrafões de álcool para exposição no museu de Marte.
Se os habitantes de Marte possuem “máquinas detectoras” capazes de capturar presenças
que não identificam a “olho nu”, o Picapau Amarelo, em contrapartida, conta com Emília e sua
aguda qualidade perceptiva, que a habilita a desvendar ações potenciais. “A boa interpretação
xamânica é aquela que consegue ver cada evento como sendo, em verdade, uma ação, uma
expressão de estados ou predicados intencionais de algum agente” (Viveiros de Castro, 2002b:
359). Nessa viagem espacial, o dom de Emília permitiu às personagens se defenderem de ações
que, sem a boneca, não seriam capazes de prever. A habilidade da boneca de cruzar as barreiras
corporais e captar a perspectiva de subjetividades inatingíveis aos seres humanos comuns, por
vezes, assume um caráter menos “sobrenatural” e mais diretamente político. Este parece ser o
caso narrado em Caçadas de Pedrinho (1957c), quando o menino do bando “picapau”,
Narizinho, Emília, Visconde e Rabicó se engajam numa aventura predatória que talvez constitua
uma das narrativas mais violentas da obra.
Convencido de que uma onça anda rondando a mata dos arredores do Sítio, o grupo se
arma como pode e parte à caça do felino. As suspeitas se confirmam e já na primeira expedição o
curioso bando de caçadores se vê confrontado com a fera, que acaba por matar com relativo
desembaraço. Este ato predatório resulta em uma grave desestabilização das relações de
vizinhança entre os habitantes do sítio e os animais da floresta que cobre parte das terras de Dona
59
Benta. Reunidos em assembléia, os animais optam pela retaliação, convencidos de que a
demonstração violenta de caça à onça anuncia o início de relações belicosas entre os ocupantes
do Sítio e a fauna que os cerca. Decide-se que o ataque ficará por conta das onças, dos cachorros
do mato e das iraras. Entretanto, os habitantes do sítio serão capazes de preparar sua defesa,
graças à ajuda de dois insetos com quem Emília havia socializado
19
na ocasião da caça à onça.
Entre os animais da floresta que iam atacar o sítio de Dona Benta havia traidores. Eram os
espiões de Emília. A terrível bonequinha fizera amizade com um casal de besouros
cascudos, muito santarrões, que viviam fingindo estar a dormir mas que não perdiam
coisa nenhuma do que se passava na floresta. Na reunião dos animais também eles
estiveram presentes, vendo e ouvindo tudo lá do seu cantinho. Em seguida foram dar parte
do acontecimento à boneca (ibid.: 27).
Com as informações que lhe são transmitidas pelos seus colaboradores, Emília
esquematiza uma estratégia de defesa do Sítio e, como de costume, salva todas as personagens da
morte. Tanto o episódio de Marte, quanto a aventura de caça à onça, revelam o fundamental papel
da boneca como comunicadora, ou mesmo tradutora, não somente de linguagens, mas também de
intencionalidades. A personagem se encarrega, em certo sentido, da segurança do grupo nas
perigosas aventuras de cruzamento das fronteiras ontológicas. Seja através de seu dom para a
compreensão de linguagens extra-humanas, ou de sua habilidade política como fabricadora de
relações de aliança, Emília possui uma importância crucial na rede “sociocósmica” do Picapau
Amarelo.
2.2 A autoconceitualização ficcional
Como já procuramos mostrar ao longo do capítulo precedente, a série de livros infantis de
Lobato implementa, ao longo de suas páginas, uma relação de aliança entre os “picapaus”,
19
Em linguagem que só ela é capaz de entender e pronunciar, é claro.
60
personagens “nativos” do mundo fantástico inaugurado pela obra, e os outros habitantes de um
nebuloso território ficcional, que compreende um conjunto de seres imaginários oriundos da
literatura infantil universal, da mitologia grega e do folclore brasileiro (que nos chega através de
figuras como o Saci, o Boitatá e a Cuca, entre outros), e até mesmo do cinema norte-americano
(no caso já citado de Tom Mix). O que parece haver de singular no Sítio do Picapau Amarelo é a
sua vocação para inventar-se a partir de aventuras de contato com esses tantos outros, aventuras
que se distribuem de forma rizomática, para usar a imagem deleuzeana. Esse microcosmo se
constrói a partir da expansão da sua mancha no mapa infinito da ficção: ele não se fecha em si
mesmo; mas, como um rizoma, “procede por variação, expansão, conquista, captura, picada”
(Deleuze e Guattari, 2004b: 32).
Em visita ao “País-das-Fábulas”, onde encontra um La Fontaine escondido entre arbustos,
a recolher os episódios que presencia, Emília não se conforma com a eterna repetição de certos
eventos que despertam sua indignação e, após ajudar a cigarra a vingar-se da amarga formiga
trabalhadeira, arquiteta a fuga de um sábio burro condenado à morte por covardes felinos. O
animal será incorporado ao grupo dos “picapaus” e passará a morar no Sítio, ocupando o cargo de
“conselheiro”. As diversas regiões mitológicas, fantásticas, literárias ou imaginárias visitadas
pelas personagens da saga de Lobato sofrem a interferência exercida pelo curioso bando, na
mesma medida em que também o alteram. As aventuras de contato são um exercício de constante
reescritura do mapa cosmológico do “Mundo das Maravilhas”. Neste sentido, a idéia de
funcionamento rizomático parece esclarecer os modos como operam os “picapaus” em contato
com os outros ficcionais: “ [...] o rizoma se refere a um mapa que deve ser produzido, construído,
sempre desmontável, conectável, reversível, modificável, com múltiplas entradas e saídas, com
suas linhas de fuga” (ibid.: 33).
61
A identidade dos seres que ocupam a paisagem narrativa de Lobato como ficções é por
eles mesmos reconhecida repetidamente ao longo de toda a obra. “Picapaus”, fábulas, mitos, e
todos os membros da “espécie” ficcional que se encontram nas aventuras do Sítio possuem,
independentemente de suas origens históricas, dois “outros” em comum: leitores e narradores (ou
algo que corresponda a esses dois papéis). Não são raros os momentos em que os personagens se
referem aos seus criadores ou propagadores e à recepção de suas sagas por parte de uma
comunidade de leitores. Já nas primeiras páginas de Reinações de Narizinho (1957a) somos
surpreendidos com a tentativa de rebelião do Pequeno Polegar
20
contra uma existência limitada à
repetição eterna de sua saga. O personagem, que foge do livro onde morava e se dirige ao Reino
das Águas Claras em busca de abrigo, lidera um movimento revolucionário contra Dona
Carochinha
21
(considerada a guardiã das histórias infantis), pois, assim como outras criaturas
ficcionais, deseja “correr mundo a fim de se meter em novas aventuras” (ibid.: 11). Os fabulistas
La Fontaine e Esopo, por sua vez, são eles mesmos convertidos em personagens, que vivem em
permanente trabalho de campo no “País-das-Fábulas”, a recolher as histórias do mundo animal,
para as quais tecem conclusões morais nos livros que redigem. Entretanto, um dos momentos
mais interessantes de auto-referência à ficcionalidade ao longo da obra talvez seja o diálogo entre
Dom Quixote e o Capitão Gancho, que se dá na varanda da casa de Dona Benta entre cafezinhos
e bolinhos preparados por Tia Nastácia:
[...] Já perdi a conta das façanhas que pratiquei. Combati gigantes terríveis, e exércitos –
mas o maldito mágico Freston sempre me roubou a maior parte das glórias. Era, por
exemplo, um gigante que surgia na minha frente. Eu o atacava de lança em punho e,
20
Personagem imortalizado pela obra de Charles Perrault, escritor francês que publicou na segunda metade do século
XVII os “Contos da mãe gansa”, onde apresenta sua adaptação de narrativas da cultura popular européia. Além do
Pequeno Polegar, a obra de Perrault registra também as histórias de personagens clássicos da literatura infantil
universal como a Gata Borralheira, Chapeuzinho Vermelho e a Bela Adormecida, entre outros.
21
O nome desta personagem faz referência ao título do livro de Alberto Figueiredo Pimentel “Contos da
Carochinha”. Durante a segunda metade do século XIX, o autor, um dos primeiros a redigir livros voltados para o
público infantil no Brasil, traduziu e adaptou sessenta contos europeus, que se encontram reunidos neste volume.
62
quando o ia vencendo, o maldito mágico, para roubar-me a glória, transformava o gigante
em qualquer outra coisa – moinho de vento ou odres de vinho. Hoje estou velho, cansado –
e difamado. O tal Cervantes escreveu um enorme livro em que me pinta como me
imaginou – não como na realidade sou. E o mundo cruel aceita com a maior ingenuidade
tudo quanto esse homem diz...
– Console-se comigo – disse o Capitão Gancho. Tive o meu Cervantes num historiador
inglês de nome Barrie, o qual me meteu a riso diante do mundo inteiro. Imagine, senhor D.
Quixote, que esse Barrie me pinta em seu livro como derrotado várias vezes por uma
criança – um menino de nome Peter Pan! E, ainda mais, como perseguido e devorado por
um jacaré... Ora isso é infâmia pura, porque na realidade sou um dos maiores chefes de
flibusteiros do mundo e gozo de perfeita saúde (Monteiro Lobato, 1957m: 101).
A própria relação entre as personagens do Sítio e Monteiro Lobato é freqüentemente
tematizada, especialmente quando o assunto é a fama crescente de Emília. Não são poucas as
vezes em que Narizinho se refere à popularidade de Emília entre os leitores da obra,
responsabilizando Monteiro Lobato e sua suposta preferência pela boneca. Também são comuns
as ocasiões em que os próprios leitores se apresentam no Sítio sob o pretexto de visitarem seus
personagens favoritos, convertendo-se eles mesmos em elementos da trama.
22
Poderíamos dizer que as personagens apresentadas nas páginas da obra sejam eles
“picapaus” ou não, parecem todos compartilhar da consciência de sua ficcionalidade, sendo esta
uma característica que exploram como traço identitário comum. Essa população reconhece
claramente sua existência paralela à realidade, habitada por autores e leitores e, ao citá-la ou ao
trazê-la para dentro de seu território existencial, acaba por englobá-la em sua cosmologia.
Entretanto, ao se reconhecer como parte de um território imaginário, o mundo criado por Lobato
não desenvolve uma concepção dicotômica a propósito do par ficção e mundo extratextual, mas
insiste sobretudo na relação de continuidade entre o fantástico e o real, sem mascarar o potencial
ambíguo ou paradoxal desta escolha. A adesão consciente à ficcionalidade como um traço
identitário produz conseqüências diretas sobre o funcionamento desse mundo. As personagens do
22
Essas visitas de leitores ao Sítio são relativamente freqüentes ao longo da obra, podemos encontrá-las, por
exemplo, nos volumes O Picapau Amarelo (Monteiro Lobato, 1957m), em Reforma da natureza (idem) e em
Caçadas de Pedrinho (1957c).
63
sítio, lideradas, naturalmente, por Emília, parecem extrair todos as vantagens de sua existência
como “faz de conta”. Durante as aventuras vividas pelo bando “picapau”, quando estes se
encontram em algum dilema para o qual não parece haver saída possível, a solução proposta
invariavelmente é a “aplicação do faz-de-conta”. A técnica infalível é normalmente sugerida por
Emília, e sua utilização consiste em simplesmente desejar e acreditar. Segundo palavras da
boneca: “Há o ‘faz-de-conta. Quando tudo parece perdido, eu recorro ao ‘faz-de-conta’ e salvo a
situação” (Monteiro Lobato, 1957m: 93). Ao contrário de dissimularem sua origem ficcional,
essas personagens a instrumentalizam abertamente.
Wolfgang Iser (2002) desenvolve uma conceitualização do texto ficcional na qual busca
revelar o caráter falacioso de uma classificação baseada na oposição entre ficção e realidade que
pode nos orientar na compreensão dos modos como os nossos personagens se relacionam com
suas identidades ficcionais. O autor argumenta que o texto literário ficcional não se opõe
diretamente à realidade, já que há nele não só muito da realidade social, mas também da realidade
sentimental e emocional. Se, por um lado, tais realidades não seriam simplesmente convertidas
em ficções por figurarem na literatura, por outro, esta reprodução, ou repetição, não deixaria de
ser também um exercício da produção ficcional e não um retrato da realidade repetida. Nas
palavras do autor, “se o texto ficcional se refere à realidade sem se esgotar nesta referência, então
a repetição é um ato de fingir, pelo qual aparecem finalidades que não pertencem à realidade
repetida” (ibid.: 958). Como o fingir não pode ser deduzido da realidade repetida, nele haveria
um imaginário que se relacionaria com a realidade retomada pelo texto. Para Iser, “o ato de fingir
ganharia a sua marca própria, que seria a de provocar a repetição, no texto, da realidade
vivencial, por esta repetição atribuindo uma configuração ao imaginário, pela qual a realidade
repetida se transforma em signo e o imaginário em efeito do que é assim referido” (idem). Nesse
sentido, Iser substitui a concepção dualista do texto ficcional pela relação triádica do real, com o
64
fictício e o imaginário. O ato de fingir seria uma transgressão de limites, e nisso se expressaria a
sua aliança com o imaginário. Segundo o autor, o texto ficcional contém muitos fragmentos da
realidade sociocultural e da literatura prévia ao texto, nele reconhecíveis sob o signo do
fingimento. Assim,
o mundo é posto entre parênteses, para que se entenda que o mundo representado não é o
mundo dado, mas que deve apenas ser entendido como se o fosse. Assim se revela uma
conseqüência importante do desnudamento da ficção. Pelo reconhecimento do fingir, todo
o mundo organizado no texto literário se transforma em um como se (Iser, 2002:973).
Iser desenvolve os conceitos de seleção e de combinação para discutir os meios através
dos quais a intencionalidade do artista organiza os mundos construídos, já que “como produto de
um autor, cada texto literário é uma forma determinada de tematização do mundo” (ibid.: 960).
Não nos interessa, entretanto, explorar minuciosamente esta direção de sua argumentação, mas
apenas reter sua constatação de que o como se do texto de ficção significa que o “mundo
representado não é propriamente um mundo, mas que, por efeito de um determinado fim, deve
ser representado como se o fosse” (Iser, 2002: 974).
Alguns dos aspectos da crítica literária desenvolvida por Iser neste ensaio nos parecem
interessantes, na medida em que nos ajudam a entender que os personagens da obra infantil de
Lobato vão além da transgressão própria da ficção literária: eles mantêm como matriz, como
campo de referência em relação ao qual criam parênteses, não apenas o mundo real, extratextual,
mas todo um “patrimônio ficcional”. Embora possamos efetivamente encontrar, na produção do
mundo de Lobato, elementos contextuais que comunicam repetições da realidade extratextual,
como, por exemplo, a Seguda Guerra Mundial
23
, que é incorporada à trama mais de uma vez ao
longo da obra, o Sítio do Picapau Amarelo, antes de se inscrever como parênteses em relação ao
23
A obra infantil de Monteiro Lobato é repleta de referências diretas e indiretas ao contexto político e social do
Brasil e do mundo dos primeiros quarenta anos do século XX. Entretanto, como já foi explicitado na introdução, este
trabalho não se coloca como missão desvendar os caminhos pelos quais o autor explorou o terreno da literatura
infantil como veículo para a comunicação de visões pessoais sobre a História.
65
mundo real, pretende ser parênteses do “Mundo das Maravilhas”
24
. É através da ficção,
primeiramente, que a ficção se cria no Picapau Amarelo. Se a partir da conceitualização de Iser, o
mundo organizado no texto literário se transforma em como se através do reconhecimento do
fingimento, a “farsa picapau” que, antes de repetir o mundo, repete a própria farsa, transgride não
só o mundo, mas a própria ficção
25
.
Como pudemos constatar a partir dos inúmeros exemplos expostos até aqui, os
acontecimentos narrados nas páginas da obra infantil de Lobato envolvem invariavelmente o
encontro com personagens cuja existência é prévia à saga do Picapau Amarelo. Desde o primeiro
livro da série, acompanhamos as aventuras de encontros entre os personagens de Lobato e os
tantos outros que habitam as fábulas, mitos e literaturas de diferentes origens. Poderíamos, com
isso, concluir que a construção do mundo Picapau Amarelo depende desses outros para existir,
ou, mais precisamente, ela passa a existir no “Mundo das Maravilhas” a partir do contato e da
troca com essa população. Em outras palavras, o Picapau Amarelo é um mundo de ficção que se
constrói a partir da ficção.
2.3 A comunidade ficcional e o Outro indispensável
Essa constatação toma como inspiração a conceitualização de Roy Wagner, esboçada em
The Invention of Culture (1981), onde o autor procura demonstrar que a antropologia estuda a
cultura alheia através de sua própria cultura. O argumento de Wagner deve ser, entretanto,
24
“O pôr entre parênteses explicita que todos os critérios naturais quanto a este mundo representado estão suspensos.
Desta forma, nem o mundo representado retorna por efeito de si mesmo, nem se esgota na descrição de um mundo
que lhe seria pré-dado. Estes critérios naturais são postos entre parênteses pelo como se” (Iser, 2002: 973).
25
“Os atos de fingir, que aparecem no texto ficcional, apresentam um traço geral dominante: serem atos de
transgressão. Na seleção, são transgredidos os sistemas contextuais do texto, mas também é a imanência do próprio
texto, por incluir em seu repertório a transgressão dos sistemas contextuais selecionados” (ibid.: 982).
66
abordado cautelosamente, uma vez que o próprio conceito de cultura ganha contornos
particulares em seu pensamento. O ponto de partida de sua teoria é a idéia de que os antropólogos
fazem um uso da noção de cultura que envolve uma certa fé na existência prévia do conceito;
quando, na verdade, a cultura seria uma espécie de operador desenvolvido pelo pensamento
ocidental para explorar uma variedade específica de fenômenos humanos. Wagner adverte-nos
para a curiosa situação que a antropologia cria entre o pesquisador e seu objeto de estudo. Assim
como a epistemologia, que se volta para o significado do significado, ou a psicologia, que pensa
sobre como as pessoas pensam, a antropologia força o observador a se colocar em questão, pois é
através de seus próprios suportes culturais que este poderá pensar a cultura alheia (1981: 2). A
situação peculiar da antropologia seria, portanto, que esta parte da cultura do pesquisador como
ferramenta para estudar as outras culturas. Sugerindo uma prática etnográfica fenomenológica,
Wagner adverte para o fato de que o trabalho do antropólogo realiza-se na missão de colocar em
relação dois sistemas diferentes de pensamento e ação: o seu próprio e aquele da “cultura
estudada. O conceito de cultura produziria um sinal de igualdade entre o mundo do observado e o
mundo do observador, e a experiência etnográfica faria eclodir as diferenças no choque do
encontro entre estes dois planos. A partir dos encontros que vive ao longo do trabalho de campo,
o pesquisador vivencia a outra cultura; através dessa experiência, torna-se consciente de aspectos
de sua própria cultura que passavam despercebidos, tomados como auto-evidentes; e,a partir da
relação que se estabelece nesse encontro, inventa-se o Outro. A invenção da cultura se daria a
partir da objetivação deste mundo ao qual o observador tenta se ajustar. Uma objetivação de algo
que não é por si só um objeto: a cultura. Com esta advertência, Wagner nos alerta para a
inexistência de um mundo pré-objetivo, pois o que constitui a cultura, segundo seu pensamento, é
o olhar que se lança ao mundo experimentado.
67
Podemos identificar na perspectiva antropológica de Wagner uma influência decisiva da
corrente fenomenologista de Merleau-Ponty (1971), onde está dito que, se existe uma “coisa”, ela
existe para uma consciência. Em resposta ao pensamento empirista fundador da ciência moderna,
a fenomenologia recupera a experiência como instrumento de conhecimento. Se para a tradição
platônica conhecer é conhecer por princípios e não por sensações, para a fenomenologia, ao
contrário, o sujeito é tornado objeto do conhecimento: conhecer é dar-se conta do caráter
relacional. A apropriação da sugestão fenomenologista se dá no pensamento de Roy Wagner
quando este argumenta que na impossibilidade da anulação do bias, o antropólogo deve se
favorecer da experiência do choque com o Outro, da desestabilização de seus suportes culturais,
para inventar a cultura que estuda, e conseqüentemente a sua própria. Portanto, ampliando a idéia
de como se de Leach (1996), Wagner sugere que, para fazer antropologia, é preciso que se
proceda como se a cultura existisse independentemente do olhar etnográfico. Esse sentido que o
autor atribui à atividade etnográfica, uma prática de invenção da cultura, faz da antropologia uma
arte criativa. “Se há algo que cabe de direito à antropologia, não é decerto a tarefa de explicar o
mundo de outrem, mas a de multiplicar nosso mundo” (Viveiros de Castro 2002a: 132).
Vejamos em que sentidos o pensamento wagneriano pode contribuir para a reflexão sobre
os modos como o mundo ficcional do Picapau Amarelo se fabrica. A inspiração fundadora foi a
ponto de partida de Invention of Culture, a idéia de que a cultura, como objeto de estudo do
antropólogo, é também a ferramenta de trabalho deste: através da sua própria cultura, de seus
suportes culturais, o etnógrafo inventa a cultura dos povos estudados. Mas como vimos, a cultura
ela mesma não existe para Wagner, ela é mera ficção conceitual. O antropólogo vai a campo
estudar a cultura de um determinado grupo, como se ela existisse previamente a seu olhar. No
mundo ficcional que estudamos neste trabalho, os personagens se inventam no território do como
se literário – no sentido atribuído por Iser, em que o mundo representado não é propriamente um
68
mundo, mas deve ser representado como se o fosse – a partir do encontro com outros seres
ficcionais. A existência dos “picapaus” não é prévia a seu encontro com os seres do “Mundo das
Maravilhas”: eles se inventam no resultado do encontro, mas a narrativa se organiza como se (no
sentido wagneriano) já houvesse o sítio antes que a troca com o Príncipe Escamado, o Saci,
Belerofonte e Peter Pan, entre tantos outros, o inaugurasse. Em outras palavras, o mundo
ficcional de Lobato se inventa a partir da inclusão de personagens cuja existência é prévia a ele
mesmo. Mas os mitos, fábulas e personagens com quem os “picapaus” se encontram em suas
aventuras não são os mesmos que ilustram os livros de origem: é como se o fossem, mas nas
páginas da obra de Lobato eles são resultado de uma reinvenção. Nas muitas aventuras que
preenchem os dezessete volumes da obra infantil de Monteiro Lobato, testemunhamos uma
“segunda vida” de personagens canônicos das mais diferentes literaturas. Se, por um lado, esses
mundos ficcionais são utilizados como matéria-prima para a fundação da comunidade Picapau,
por outro, eles recebem, como contrapartida, o direito a uma segunda performance. Através da
obra infantil de Lobato, que realiza o encontro de uma multiplicidade de sujeitos ficcionais,
relemos alguns clássicos da literatura, mas os encontramos tão livres, fora da repetição cíclica de
suas sagas, que até parecem outros. E realmente o são, pois, através do processo de invenção por
captura, o Picapau Amarelo registra em suas páginas uma imagem tridimensional desses
personagens, atribuindo-lhes contornos que suas histórias originais não parecem revelar. É como
se essas personagens fossem as mesmas que ilustram a literatura e a mitologia, e é através dessas
presenças reinventadas que os “picapaus” se definem dentro do território ficcional. “As
multiplicidades se definem pelo fora: pela linha abstrata, linha de fuga ou de desterritorialização
segundo a qual elas mudam de natureza ao se conectarem a outras” (Deleuze e Guatarri, 2004b:
17)
69
Um dos volumes que ilustra com clareza a idéia de que, no Sítio, os personagens se
inventam a partir do contato com outros ficcionais é O Picapau Amarelo (1957m), narrativa que
coloca justamente em questão a “comunidade ficcional” e seu desejo de encontrar um território
comum em relação à realidade. Neste livro, as persoangens do “Mundo das Maravilhas”,
lideradas pelo Pequeno Polegar, resolvem solicitar permissão a Dona Benta para se mudarem
para suas terras. A boa senhora aceita a proposta, sob a condição de que os novos habitantes se
limitem a ocupar a área de duas fazendas vizinhas ao Sítio, compradas justamente para acolhê-
los. É construída uma cerca e uma porteira que separa o Sítio das “Terras Novas”, e cuja
vigilância fica a cargo do rinoceronte Quindim, instruído a atacar qualquer intruso que não
respeite o protocolo de visitas. A motivação que originou o desejo dos personagens de se
instalarem definitivamente no Sítio é explicada pelo Pequeno Polegar nos seguintes termos:
– Eles sempre sonharam uma coisa assim. Nunca puderam habitar sossegados numa terra
que fosse unicamente deles. Uns moravam em livros, outros na cabeça das crianças.
Agora vão ser donos de um território próprio, só deles, vão sossegar, os coitados
(ibid.:19).
O movimento imigratório é massivo e envolve o transporte de importantes elementos da
paisagem das terras de origem dos personagens, como o “Mar dos Piratas”, castelos e florestas
encantadas. O narrador descreve a lista de habitantes das “Terras Novas”:
O Pequeno Polegar veio puxando a fila. Logo depois, Branca-de-Neve com os sete anões.
E as Princesas Rosa Branca e Rosa Vermelha. E o Príncipe Codadade, com Aladino, a
Xarazada, os gênios e o pessoal todo das ‘Mil-e-Uma-Noites’. E veio a Menina da
Capinha Vermelha. E veio a Gata Borralheira. E vieram Peter Pan com os Meninos
Perdidos da ‘Terra-do-Nunca’, mais o Capitão Gancho com o crocodilo atrás e todos os
piratas; e a famosa Alice do ‘País-das-Maravilhas’; e o Senhor de La Fontaine em
companhia de Esopo, acompanhados de todas as suas fábulas; e Barba Azul com o facão
de matar mulher; e o Barão de Munchausen com as suas famosas espingardas de
pederneira; e os personagens todos dos contos de Anderson e Grimm. Também veio D.
Quixote acompanhado de Rocinante e do gordo escudeiro Sancho Pança (idem).
70
A numerosa população da mitologia grega se soma à já vasta horda de imigrantes, assim
como toda a corte do Reino das Águas Claras, e o Sítio do Picapau Amarelo vive dias de intensa
atividade relacional. A criação da comunidade das “Maravilhas” encontra resultados um tanto
caóticos. Heróis, feras, princesas, monstros e piratas reinventam seus conflitos e o sonho de
convivência pacífica encontra fins trágicos.
Mesmo que a ficcionalidade seja explorada como um traço identitário comum entre os
personagens do sítio e os outros literários, o valor fundamental a ser afirmado parece não ser a
suposta condição de igualdade entre esses seres, mas a troca e seus efeitos na transformação
contínua das personagens. O Sítio do Picapau Amarelo é cosmologicamente dependente do
Outro. Se considerada sob o ponto de vista literário, a obra infantil de Lobato revela um uso
intenso da chamada intertextualidade, sob a perspectiva da construção de um mundo; porém,
poderíamos dizer que o outro não é ali apenas pensável, mas indispensável. Essa imagem da obra
acaba por encontrar uma certa “vocação Tupi” entre os membros do Picapau Amarelo: aspirar ao
outro em sua alteridade plena, absorvê-lo e, neste processo, alterar-se, ou ainda, desejar ser o
outro, mas em seus próprios termos (Viveiros de Castro, 2002c).
O exercício quotiodiano praticado pelos “picapaus” de contato com alteridades das mais
distintas naturezas e a inscrição de sua presença no mapa dos mundos ficcionais são
possibilitados por um curioso facilitador. Os personagens do Sítio do Picapau Amarelo contam
com um instrumento fundamental para suas aventuras exploratórias: o pó de pirlimpimpim, uma
substância que, quando inalada corretamente, permite o acesso a qualquer lugar situado no espaço
e no tempo, sejam regiões paralelas ficcionais, o espaço sideral, ou acontecimentos do passado.
Este é um elemento chave para o funcionamento desse mundo. A origem do pó possui uma
história ligeiramente misteriosa. Na última parte de Reinações de Narizinho o grupo recebe a
visita de um menino invisível que os convida para uma viagem. O visitante os apresenta o pó de
71
pirlimpimpim, que é inalado pelas personagens e as transporta para o “País-das-Fábulas”. O
amigo invisível, que passará a ser chamado de Peninha, quando Emília decide amarrar uma pena
de papagaio em sua testa para facilitar a interação, reúne uma série de características que
despertam a desconfiança do grupo sobre sua verdadeira identidade. Em diversos momentos da
obra, Pedrinho, Emília e Narizinho encontraram motivos para supor que Peninha seja Peter Pan.
O mistério nunca chega a ser desvendando, mas o pó entra na vida do Picapau Amarelo
alterando-o para sempre. É graças aos seus poderes que as personagens farão viagens ao céu, ao
País da Gramática, à Grécia Antiga e a muitas regiões do planeta. A substância deve ser
consumida na dosagem certa para que o efeito seja satisfatório, e o destino da viagem deve ser
pronunciado ou mentalizado por todos no momento da inalação. A ação do pó é por vezes
comparável à do clorofórmio (1957n: 91), no que tange à perda da consciência. Em alguns
trechos da obra, os consumidores descrevem uma tonteira e um ruído agudo como resultado da
inalação e, em algumas ocasiões, o consumo inadequado da substância provoca resultados
desastrosos. Apesar de o menino invisível não retornar periodicamente ao sítio para abastecer o
grupo do pó mágico, sua fabricação fica por conta de Visconde. O cientista estuda a fórmula,
passa a manipular a substância em seu laboratório e desenvolve o pó número 2, apropriado para
viagens no tempo. Essa transferência do pirlimpimpim para os domínios de Visconde não deixa
de ser curiosa, uma vez que o sábio passa a atribuir um caráter científico a um instrumento cujas
origens são mágicas.
O pó herdado do personagem misterioso, que ao que tudo indica é realmente Peter Pan, é
apenas um dos muitos elementos estrangeiros adotados pelo Picapau Amarelo. No que diz
respeito ao “estilo de vida”, as personagens tomam a decisão de não crescer, como na “Terra-do-
Nunca”. As palavras são de Emília: “aqui no Sítio nós fizemos guerra ao tamanho e empacamos.
Ninguém cresce. Pedrinho e Narizinho estão parados há anos – como Peter Pan” (Monteiro
72
Lobato 1957m: 221). Uma outra característica que revela a importância do fora como matriz de
inspiração para a construção desse mundo é a presença de personagens estrangeiros dentro da
“célula picapau”. O elenco de personagens conta com alguns membros capturados durante as
viagens exploratórias. Em passagem pela Via Láctea, Emília resgata um anjo cuja asa havia sido
danificada em acidente astral. A bela criatura habitará o Sítio durante um determinado período,
atraindo a visita de leitores e personagens como Alice e Peter Pan, que tem por verdadeira
intenção apropriar-se do anjo. O Burro Falante, como já foi apontado anteriormente, foi
“importado” do “País-das-Fábulas” e acabou por preencher o importante papel de conselheiro do
Sítio. Num determinado momento, durante os eventos narrados em O Picapau Amarelo, Pedrinho
caça uma sereia no “Mar dos Piratas” e a instala num lago nas terras do Sítio. A criatura fará
parte do grupo temporariamente, mas conseguirá voltar a sua vida marinha.
Outra personagem que se torna membro definitivo do Picapau Amarelo mas que possui
origens externas a esse mundo é o rinoceronte Quindin. Curiosamente, a narrativa de sua
“captura” constitui a segunda parte do título Caçadas de Pedrinho, em que o incidente da caça à
onça é descrito. Ao contrário da relação predatória que os “picapaus” estabelecem com parte da
fauna local, a reação do grupo à presença de um rinoceronte, animal cuja origem remete a um
ecossistema do continente africano, é a de englobamento. Se os “picapaus” reagem à presença de
um animal selvagem local de maneira predatória, quando se trata da “fera africana”, eles acabam
por estabelecer uma relação de aliança. A aproximação fica por conta de Emília, que arquiteta um
plano para despistar os funcionários do governo responsáveis pelo resgate do rinoceronte e ganha
a confiança da fera. Quindim passa, assim, a fazer parte da família e, apesar de atuar
majoritariamente com sua força física em situações onde o Sítio e seus habitantes precisam de
defesa, revela-se extremamente inteligente, sábio e sensível. O contraste entre a relação belicosa
que as personagens estabelecem com o ecossistema local e o encantamento que a fera exótica
73
desperta nos habitantes do Sítio denuncia um certo apetite “picapau” pela diferença máxima. O
lema modernista: “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”
(Oswald de Andrade, 1990), parece encontrar ressonância na economia da diferença do Picapau
Amarelo.
74
CAPÍTULO 3:
Sobre a construção e a prática do conhecimento no Sítio do Picapau Amarelo
3.1 As múltiplas províncias de significado
A construção do conhecimento no Sítio do Picapau Amarelo conta com diversas fontes
discursivas que, apesar de estrangeiras umas às outras e freqüentemente contraditórias quanto a
seus princípios, se reúnem sob a forma de um duplo projeto de formação: tanto os personagens
quanto os leitores mirins são submetidos a experiências educativas em cada uma das aventuras
narradas nas páginas da obra infantil de Lobato. A composição híbrida desta formação, na qual as
lições de Física, História e Geografia de Dona Benta e as pregações lógicas e matemáticas de
Visconde acontecem paralelamente às experiências fantásticas que desafiam todos os preceitos da
razão iluminista, não apresenta índices de inconsistência epistêmica: ao contrário, parece realizar
harmonicamente a acomodação de múltiplas realidades. Vejamos como a relação de coexistência
de diferentes províncias de significado se fabrica e se sustenta neste microcosmos.
No ensaio Dom Quixote e o problema da realidade, Alfred Schütz (2002) se inspira nas
reflexões de William James para discutir a temática da existência de diferentes ordens de
realidade. O ponto de partida de seu argumento é a suposição de que a origem e a fonte de toda
realidade, seja de um ponto de vista absoluto ou prático, está sempre situada no observador. Em
conseqüência desta premissa, as ordens de realidade são multiplicadas ao infinito, cada uma delas
com seu estilo peculiar de existência e separada das outras. Os subuniversos que surgem das
75
inúmeras formas de se experimentar o mundo constituem diferentes províncias de significado.
Entre eles, encontramos
o mundo dos sentidos ou das ‘coisas físicas’, que são experimentadas pelo senso comum,
constituindo a realidade preponderante; o mundo da ciência; o mundo das relações ideais;
o mundo dos ‘ídolos da tribo’; os mundos sobrenaturais, tais como o céu e o inferno
cristãos; os numerosos mundos da opinião individual, e finalmente, os mundos da pura
ociosidade e loucura, que são também infinitamente numerosos (ibid.: 751-752).
Cada um desses mundos, segundo o autor, é real a seu próprio modo, uma vez que a
distinção entre real e irreal se elabora sempre a partir de contextos de interpretação relativos, ou
seja, algo é real em relação a um subuniverso de significação particular adotado por um ponto de
vista. Schütz desenvolve esta elaboração para apresentar a tese de que o romance Dom Quixote
de Cervantes trata sistematicamente do problema das múltiplas realidades, e que as diversas fases
de aventuras do cavaleiro são variações de um tema principal: de que forma experimentamos a
realidade. O autor procura revelar os mecanismos que permitem a Dom Quixote conferir valor de
realidade a seu subuniverso de fantasia, quando isso conflita com a realidade preponderante, na
qual não existem castelos, exércitos, nem gigantes, mas somente estalagens, rebanhos de
carneiros e moinhos de vento. Paralelamente, Schütz elabora sua análise buscando mostrar que
nem o subuniverso da loucura de Dom Quixote, nem a realidade preponderante dos sentidos “na
qual nós Sanchos Panças, vivemos nossas vidas quotidianas” (ibid.: 752) são tão monolíticos
quanto podem parecer.
A discussão apresentada pos Schütz pode nos ser interessante em dois sentidos. Num
primeiro plano, o conceito de múltiplas realidades pode contribuir para a consideração da
coexistência de múltiplos subuniversos de significado no Picapau Amarelo. Além disso, a própria
análise que o autor elabora a respeito da obra de Cervantes encontra pertinência para a nossa
temática, uma vez que Dom Quixote é uma personagem que ganha considerável importância na
76
formação da identidade de Emília. O fidalgo espanhol faz duas aparições diretas na obra de
Lobato. A primeira delas é através da leitura de seu livro
26
, uma idéia proposta por Emília, que
desenvolve uma complexa estratégia para fazer o grosso volume da edição portuguesa desabar da
prateleira. Dona Benta aceita a sugestão literária da boneca e começa a ler a obra para o curioso
público
27
. Entretanto, a antiga tradução portuguesa, repleta de expressões inacessíveis e
descrições enigmáticas, parece minar o interesse da platéia, e as crianças, lideradas por Emília,
exigem uma narrativa livre das aventuras de Dom Quixote.
28
A proposta é aceita, e Dona Benta
passa a contar com suas próprias palavras a história da consagrada personagem. Com o avançar
da narrativa, Emília começa a mostrar-se gravemente afetada pelo contato com a personalidade
do Cavaleiro da Mancha e a relativizar a dita insanidade da personagem:[...] ainda não consegui
distinguir loucura do que não é. Por mais que pense e repense, não consigo diferenciar quem é
louco de quem não é. Eu, por exemplo, sou ou não sou louca?” (Monteiro Lobato 1957i: 124). O
que se inicia com uma agitação excessiva vai se transformando em entusiasmo mimético, e,
durante uma de suas crises, os habitantes do Sítio começam a se questionar a respeito da saúde
mental de Emília:
Emília continuava a dar vira-cambotas. Depois foi buscar um cabinho de vassoura e disse
que era lança, e começou a espetar todo mundo. E botou um cinzeiro de latão na cabeça,
dizendo que era o elmo de Mambrino. Por fim, montou no Visconde dizendo que era
Rocinante.
- [...] Sou de pano, sim, mas de pano falante, engraçado paninho louco, paninho aqui da
pontinha. Não tenho medo de vocês todos reunidos. Agüento qualquer discussão. A mim
26
D. Quixote das Crianças (Monteiro Lobato, 1957i).
27
Visconde de Sabugosa fica ausente a maior parte da narrativa, já que foi esmagado pela queda do volume de
Cervantes.
28
O tema da importância da adaptação da linguagem literária para o público infantil é muito presente na obra de
Lobato. O autor utiliza freqüentemente a voz de Emília para expressar suas opiniões a respeito da necessidade de que
os clássicos da literatura universal sejam traduzidos para o português brasileiro, e para insistir na importância de que
a literatura produzida no Brasil se utilize de uma linguagem coloquial capaz de desenvolver na população o prazer da
leitura. O tema da reforma ortográfica também é inúmeras vezes inserido nas narrativas através das opiniões rebeldes
de Emília.
77
ninguém me embrulha, nem governa. Sou do chifre furado – bonequinha de circo. Dona
Quixotinha... (ibid.:153)
A partir deste contato com a personagem, Emília passa a declarar-se “quixótica”, e em
suas Memórias cita o romance de Cervantes como sendo seu livro de cabeceira. Mas não é apenas
sob a forma literária que o cavaleiro marca sua presença no Sítio do Picapau Amarelo. No
episódio da imigração de personagens ficcionais para as terras de Dona Benta
29
, Dom Quixote,
devidamente acompanhado de seu fiel escudeiro Sancho Pança e do “corcel” Rocinante, também
encontra abrigo no Picapau Amarelo. Emília organiza sua chegada de forma a abrigá-lo na casa
de Dona Benta, contrariando o projeto de separação da matriarca, que pretendia manter os
colonos nas terras vizinhas.
Quando discute as temáticas levantadas pelo romance de Cervantes, Schütz (2002) expõe
as conseqüências derivadas dos conflitos entre os subuniversos de significação em que vivem as
personagens. O subuniverso da cavalaria, através do qual Dom Quixote organiza a realidade, se
caracteriza por modificações peculiares de categorias básicas do pensamento, em especial o
espaço, o tempo e a causalidade (ibid.: 754). Entretanto, embora o fidalgo possa ser considerado
louco por aqueles que o cercam, seu comportamento encontra perfeita coerência em relação à
instituição da cavalaria andante narrada na literatura arturiana. A simpatia que Emília desenvolve
pela personagem parece derivar de uma certa cumplicidade que a boneca cultiva em relação às
verdades que só sobrevivem dentro de um subuniverso fechado, já que ela mesma só é capaz de
existir, de ser real, dentro do subuniverso literário lobatiano. Ao contrário de Quixote, porém, a
boneca não sofre as conseqüências de incompatibilidade de províncias de significado, pois,, no
Picapau Amarelo as múltiplas realidades coexistem harmonicamente. Encontramos no conjunto
da obra infantil estudada a convivência de discursos, subuniversos, que a princípio poderiam ser
29
O Picapau Amarelo (Monteiro Lobato, 1957m).
78
considerados diametralmente opostos, como a fantasia e a ciência. Grande parte dos livros da
coleção se dedicam a narrar acontecimentos ou sessões didáticas, onde Dona Benta instrui seus
pupilos em temas como a física, a astronomia, a matemática, e a história. Entretanto, as lições
aprendidas, embora aplicadas quotidianamente pelos “picapaus”, que demonstram uma elevada
capacidade de assimilação das informações, não são transformadas em paradigmas organizadores
da realidade. Paralelamente às lições de lógica, as viagens ao fundo do mar, ao espaço sideral e
ao castelo do Barão de Munchausen continuam encontrando pertinência e verossimilhança. Deve-
se isto ao fato de que, no Picapau Amarelo, os sistemas interpretativos são dispositivos internos
aos subuniversos, e os critérios da física não são aplicados à fantasia, assim como o “faz-de-
conta” não possui eficácia quando o assunto é ciência.
Dom Quixote, por sua vez, ainda seguindo a leitura de Schütz, vive um constante
desencontro interpretativo em relação ao subuniverso daqueles que o cercam. Os encantadores,
que preenchem o papel de causalidade e motivação no mundo do cavaleiro, são os responsáveis
por traduzir a ordem do reino da fantasia nos reinos da experiência do senso comum, por
transformar os gigantes reais atacados por Dom Quixote em moinhos de vento, por exemplo
(2002: 755). Esses mágicos podem mudar as formas naturais de todas as coisas. Entretanto,
estritamente falando
o que eles mudam é o esquema de interpretação que prevalece em um subuniverso no
esquema de interpretação válido em outro. [...] A função das atividades dos encantadores
é garantir a coexistência e a compatibilidade de diversos subuniversos de significado ao
se referir às mesmas coisas, e garantir o valor de realidade conferido a algum desses
universos. Nada permanece inexplicado, paradoxal ou contraditório, assim que as
atividades do encantador são reconhecidas como elemento constitutivo do mundo (idem).
Diferentemente da experiência de Dom Quixote, no Picapau Amarelo o subuniverso de
significado das fantasias de Narizinho passam a ser compartilhados pelas personagens adultas da
obra a partir da fala de Emília, de sua transgressão do espaço transicional, de sua (a)gentificação.
79
A abertura deste subuniverso fantasioso, sua expansão, não anula ou neutraliza os efeitos de
outros subuniversos ordenadores da realidade, como a ciência, por exemplo. No caso de Dom
Quixote, entretanto, a ação dos encantadores não é compreendida fora do subuniverso da
cavalaria, onde a realidade do fidalgo é traduzida como loucura.
Nossa era iluminada certamente não está preparada para aceitar a ação dos encantadores
invisíveis como um princípio de explicação para as ocorrências e fatos na estrutura causal
do mundo. Com efeito, reconhecemos a existência de vírus ou de neutrinos invisíveis, ou
de um ‘id’, no sentido psicanalítico, como um princípio de explicação para as ocorrências
e fatos na estrutura causal de fenômenos observados. Mas quem ousaria comparar esses
achados de nossos cientistas às atividades dos encantadores loucos de Dom Quixote?
(Schütz, 2002: 755).
A associação que criamos entre o papel exercido por Emília e a figura dos xamãs em
cosmologias ameríndias pode, em certo sentido, ser estendida a Dom Quixote, já que o
xamanismo é considerado “um modo de agir que implica um modo de conhecer, ou antes, um
certo ideal de conhecimento” (Viveiros de Castro, 2002b: 358). E tal transposição foi
efetivamente realizada por Calavia (2004: 241) em um artigo onde compara a transição que se
nas culturas ameríndias entre o olhar do xamã e o olhar “profano”; à transição entre a visão
proposta pelo “louco” Dom Quixote e a visão “realista” dos sãos que o rodeiam; àquela entre a
natureza animista do paganismo e a natureza dependente de um ser supremo que o cristianismo
impõe; e ainda à transição entre a crença no poder das bruxas e a negação desse poder.
Entretanto, o sentido em que a comparação entre Emília e Dom Quixote e o xamã ameríndio mais
nos interessa é aquele que revela como, para essas três personagens, a “forma do Outro é a
pessoa”. Viveiros de Castro (2002b: 358) conceitua o ideal de conhecimento xamânico como o
oposto polar da epistemologia objetivista favorecida pela modernidade ocidental. Para essa
última, conhecer seria objetivar, ou ainda dessubjetivar, explicitar a parte do sujeito presente no
objeto, de modo a reduzi-la a um mínimo ideal.
80
Os sujeitos, tanto quanto os objetos, são vistos como resultantes de processos de
objetivação: o sujeito se constitui ou reconhece a si mesmo nos objetos que produz, e se
conhece objetivamente quando consegue se ver ‘de fora’ como um ‘isso’. Nosso jogo
epistemológico se chama objetivação. O que não foi objetivado permanece irreal e
abstrato. A forma do Outro é a coisa (idem).
O autor argumenta que o xamanismo, por sua vez, seria guiado pelo ideal inverso, onde
conhecer é personificar, é tomar o ponto de vista daquele que dever ser conhecido, já que “o
conhecimento xamânico visa um ‘algo’ que é um ‘alguém’, um outro sujeito ou agente” (2002b:
358). Tal ideal de conhecimento parece corresponder tanto aos modos como Dom Quixote
organiza seu mundo, quanto à epistemologia “emiliana”. Contudo, uma diferença radical separa
as experiências das duas personagens. Se por um lado, Dom Quixote enfrenta gigantes onde seus
convivas só enxergam moinhos de vento, por outro, Emília realiza a tradução dos objetos em
sujeitos; ela, efetivamente, dá forma às intencionalidades. Formas que podem ser experimentadas
por todos a seu redor.
Um exemplo desta sua habilidade de conversão pode ser encontrado no volume Emília no
país da gramática (Monteiro Lobato 1957f), no qual a personagem propõe aos companheiros
uma expedição ao mundo da língua portuguesa. Embora Pedrinho argumente que a gramática não
é um lugar, mas um livro, a boneca insiste em fazer a viagem, e com a ajuda do pó do
pirlimpimpim, o grupo é efetivamente transportado para um mundo onde os elementos da língua
são apresentados sob a forma de pessoas. A visita à “Portugália” começa pela região periférica:
[Portugália] era uma cidade como todas as outras. A gente importante morava no centro e
a gente de baixa condição, ou decrépita, morava nos subúrbios. Os meninos entraram por
um desses bairros pobres, chamado o Bairro do Refugo, e viram grande número de
palavras muito velhas, bem corocas, que ficavam tomando sol à porta de seus casebres.
Umas permaneciam imóveis, de cócoras, como os índios das fitas americanas; outras
coçavam-se (ibid.: 10).
Nesta mesma região remota onde os visitantes encontram os Arcaísmos, também habitam
os Neologismos, pois “em matéria de palavras a muita mocidade é tão defeito como a muita
81
velhice. O Neologismo tem que envelhecer um bocado antes que receba autorização para residir
no centro da cidade” (ibid.: 12). Seguindo viagem, os meninos passam por uma praça muito
maltratada, cheia de capim, sem calçamento nem polícia, onde brinca um bando de peraltas
maltrapilhas: são as Gírias. Como explica o rinoceronte Quindim, especialista no tema das
línguas, essas palavras são “criadas e empregadas por malandros e gatunos, ou então por homens
dum mesmo ofício. A especialidade delas é que só os malandros ou tais homens do mesmo ofício
as entendem. Para o resto do povo nada significam” (ibid.:13). Antes de acessar a região central
da cidade, o grupo ainda atravessa a área periférica habitada pelos Barbarismos, palavras
oriundas de línguas estrangeiras (Galicismos, Anglicismos, Italianismos, etc.), e o guia Quindim
descreve aos meninos as condições sociais enfrentadas por esse grupo de imigrantes: “são muito
maltratados nesta cidade. As palavras nascidas aqui torcem-lhes o focinho e os ‘grilos’ da cidade
(os gramáticos) implicam muito com elas. Certos críticos chegam a considerar crime de cadeia a
entrada de Galicismo numa frase. Tratam os coitados como se fossem leprosos” (ibid.: 15).
Passeando entre os rejeitados estrangeirismos, algo chama a atenção de Emília:
– Olhem! [...] Aquela palavrinha acolá acaba de tirar do bolso um par de aspas, com as
quais está se enfeitando, como se fosses asinhas...
– É que recebeu chamado para figurar nalguma frase lá no centro e está vestindo o
passaporte. Trata-se da palavra francesa SOIRÉE. (ibid.:16)
A viagem ao País da Gramática é repleta de encontros e acontecimentos que realizam a
atribuição do estatuto de pessoa a elementos da língua portuguesa. De todos os volumes
diretamente didáticos da obra infantil de Lobato
30
, este é aquele em que a boneca ganha o direito
a figurar como protagonista oficial, e a exercer assim sua prática de conhecimento, em que revela
30
Os outros títulos que compõe esse conjunto são: História do mundo para as crianças, Geografia de Dona Benta,
Serões de Dona Benta e História das invenções.
82
a intencionalidade potencial por detrás das coisas. No subuniverso de significados de Emília, “é
preciso personificar para saber” (Viveiros de Castro, 2002b: 360).
3.2 As três matrizes de um projeto de formação de personagens e leitores
Como já foi afirmado anteriormente, a questão da formação dos sujeitos atravessa
duplamente a obra infantil de Monteiro Lobato. Se, por um lado, a intenção do autor de contribuir
para a produção de uma geração de leitores brasileiros através da literatura infantil à qual se
dedica por mais de vinte anos é notoriamente reconhecida
31
, por outro, o próprio tema central da
obra que realiza é a formação intelectual das personagens infantis que protagonizam o conjunto
da saga. Embora a instituição escolar não seja mencionada mais de duas vezes ao longo das
páginas que narram as experiências vividas no Sítio, a educação, a formação não apenas
intelectual, mas de sujeitos, é certamente a finalidade última de cada uma das aventuras
realizadas pelos “picapaus”. O leitor é informado de que, durante o tempo que passa no Sítio,
Pedrinho está em período de férias escolares; mas, no que diz respeito a Narizinho, não há
qualquer referência à sua freqüência escolar. Entende-se, com isso, que a menina é educada em
casa pela avó. Conseqüentemente, parte do quotidiano desta vida rural é preenchido por sessões
didáticas, sobre os mais variados temas, ministradas por Dona Benta. Alguns dos livros da
coleção infantil de Lobato narram efetivamente essas aulas, assim como as reações dos pupilos
aos temas abordados.
31
O tema do engajamento de Lobato no projeto de desenvolvimento do hábito literário entre a população brasileira é
abordado por quase todos os pesquisadores que tratam de sua vida ou obra. Para um aprofundamento da questão,
conferir o artigo de Belli e Sinder (2005), Um país se faz com homens e livros: Monteiro Lobato e a formação de
uma comunidade de leitores.
83
Em lugar das figuras materna e paterna como matrizes primárias da educação infantil, e
da escola como representante institucional desta formação, o microcosmos do Picapau Amarelo
conta com pelo menos três fontes principais de conhecimento, ou ainda, três imagens do
pensamento. A primeira delas é encarnada pela erudita Dona Benta, responsável por garantir a
assimilação da agenda curricular escolar, por transmitir princípios humanistas, inspirar em seu
público uma moralidade baseada nos ideais de justiça e liberdade, e por despertar nas crianças o
desejo pelo conhecimento. As lições de Dona Benta são claramente atravessadas por valores
iluministas, pela apreciação da Antigüidade grega como modelo ideal de sociedade e pela aposta
na liberdade como base fundamental de um projeto pedagógico que tem por objetivo a formação
de sujeitos críticos. Paralelamente às lições “formais” ministradas pela matriarca; ao encontro
efetivo com personagens da literatura e da mitologia; às viagens às mais diferentes regiões do
planeta e do espaço que acontecem dentro de um espírito de trabalho de campo, tais valores
contribuem para uma “formação empírica”.
A figura de Emília, por sua vez, ocupa um lugar de destaque na missão formadora do
“espírito”. Poderíamos, sem dúvida alguma, afirmar que a personagem emblematiza a idéia de
consciência crítica. Embora seu comportamento possa ser, por vezes, repreendido por Dona
Benta, sua coragem de emitir opiniões, por mais controversas que sejam, é admirada e
incentivada pela figura adulta de autoridade maior no Sítio. Emília alegoriza a vontade de
potência nietzschiana; seus desejos criadores estão certamente para além do bem e do mal, e a
compaixão ou a piedade são elementos que não constituem parte de seu repertório analítico
32
.
Embora sua impulsividade e seu radicalismo sejam reconhecidos pelas personagens e pelo
próprio narrador como excessivamente incontroláveis, a boneca ocupa o papel de porta-voz de
32
Nesse sentido, podemos identificar um grande contraste entre a personalidade de Emília e o caráter de Narizinho,
já que esta última sempre demonstra reações extremamente sentimentalistas e piedosas em relação às injustiças e
dores do mundo.
84
uma ética da vontade contestadora do comportamento de rebanho. Como foi explorado no
primeiro capítulo deste trabalho, a personagem alegoriza uma imagem caricatural do fe(i)tiche,
uma vez que sua trajetória explora a possibilidade de transgressão da existência como índice da
agência alheia. Com isso, Emília performatiza o ideal de superação neste projeto de formação de
personagens e leitores que é o Sítio do Picapau Amarelo.
Uma terceira imagem do pensamento, ou matriz de conhecimento, que completa esse
conjunto de fontes instrutivas do projeto pedagógico presente na obra é a sabedoria popular ou
tradicional representada por tia Nastácia e pelo tio Barnabé. Através desta dupla de personagens,
as crianças são educadas nos temas da vida doméstica rural e introduzidas ao universo do folclore
brasileiro. Tio Barnabé, “negro de mais de oitenta anos que morava no rancho coberto de sapé
junto da ponte” (Monteiro Lobato, 1957b: 185), faz sua primeira aparição no título O saci,
quando orienta Pedrinho nas artes de caçar este “diabinho de uma perna só que anda solto pelo
mundo, armando reinações de toda sorte e atropelando quanta criatura existe” (ibid.: 186). Nesta
narrativa, tio Barnabé inicia o menino no tema das criaturas misteriosas que ocupam a floresta e,
graças a sua sabedoria, Pedrinho terá o privilégio de penetrar o mundo encantado da natureza.
Decidido a capturar um saci, o menino segue à risca as instruções do negro velho e consegue
aprisionar uma dessas “criaturas das trevas” em uma garrafa de vidro. Orgulhoso do êxito com
que realizou sua missão, Pedrinho se aventura em um passeio pela mata, levando consigo seu
prisioneiro. Entretanto, quando atinge um determinado ponto da floresta, onde decide se instalar
para contemplar a beleza do local, o menino é interpelado pelo saci, que o previne dos riscos que
está correndo:
[...] Este lugar é o mais perigoso da floresta; e [...] se a noite pilhar você aqui, era uma
vez o neto de Dona Benta... [...] Porque é justamente aqui o coração da mata, ponto de
reunião dos sacis, lobisomens, bruxas, caiporas e até mula-sem-cabeça. Sem meu socorro
85
você estará perdido, porque não há mais tempo de voltar para casa, nem você sabe o
caminho (ibid.: 199).
Uma vez que o menino constata depender da colaboração da criatura para se defender dos
perigos que o cercam, os termos do acordo são negociados e Pedrinho restitui a liberdade ao saci,
com quem atravessará uma longa noite cheia de aventuras, durante as quais a entidade lhe
revelará os segredos da mata virgem. Uma relação de camaradagem se estabelece entre o menino
e a criatura misteriosa, e a narrativa segue descrevendo os arriscados encontros das personagens
com animais selvagens, como a onça e a cobra sucuri, e com uma variedade de seres do bestiário
folclórico brasileiro
33
que habitam aquele território. Paralelamente ao enfrentamento dos mais
diversos perigos, o livro narra a iniciação de Pedrinho nos temas da sabedoria folclórica e sua
introdução a uma nova imagem da natureza, proporcionadas pelo contato com o saci e pela visita
a seu mundo. Pedrinho, que no início da narrativa portara a atitude de predador em relação a uma
criatura que despertara sua curiosidade, se vê repentinamente confrontado com uma construção
da realidade em que a sua visão de mundo é desafiada, e sua primeira reação é a de
enfrentamento.
– Você nunca poderá fazer idéia da vida encantada que temos por aqui [disse o saci].
– Ora, ora! – exclamou Pedrinho. Não há o que os homens não saibam. Vovó tem lá uma
História Natural que conta tudo.
O saci riu-se e tirou uma baforada do pitinho.
– Tudo? Ah, ah, ah! ... Livros como esses não contam nem isca do que é, e estão cheios de
invenções ou erros. Basta dizer que para cada inseto seria preciso um livro inteiro só para
contar alguma coisa da vidinha deles. E quantos insetos existem? Milhões...
– Em todo caso, volveu Pedrinho, nós homens pomos o que sabemos nos livros e vocês
sacis não escrevem coisa nenhuma. Nunca houve livros entre vocês, e quem não escreve
obras não pode ensinar aos filhos o que sabem.
– Não temos livros – disse o saci – porque não precisamos de livros. Nosso sistema de
saber as coisas é diferente. Nós adivinhamos as coisas. Herdamos a sabedoria de nossos
pais, como vocês homens herdam propriedade e dinheiro. Nascer sabendo! Isso é que é
bom. Um pernilongo, por exemplo. Sabe como é a vidinha dele? Nasce na água, saído de
um ovinho. Logo que sai do ovinho ainda não é pernilongo – é o que vocês chamam larva
– uma espécie de peixinho que nada e mergulha muito bem. Um dia essa larva cria asas,
pernas compridas e voa.
33
A lista completa de seres confrontados inclui: o Boitatá, o Curupira, o Negrinho, o Lobisomem, a Mula-sem-
cabeça, a Cuca e a Iara.
86
[...]
– Sim – disse Pedrinho. Nascem sabendo e nós temos que aprender com os nossos pais ou
nos livros. Isso só prova o nosso valor. Que mérito há em nascer sabendo? Nenhum. Mas
há muito mérito em não saber e aprender pelo estudo.
– Perfeitamente – concordou o saci. Não nego o mérito do esforço dos homens. O que
digo é que eles são seres atrasadíssimos – tão atrasados que ainda precisam aprender por
si mesmos. E nós somos seres aperfeiçoadíssimos porque não precisamos aprender coisa
nenhuma. Já nascemos sabidos. Que é que você preferia: ter nascido já com toda a ciência
da vida lá dentro ou ter de ir aprendendo tudo com o maior esforço e à custa de muitos
erros?
O menino foi obrigado a concordar que o mais cômodo seria nascer sabendo. (Monteiro
Lobato, 1957: 220-222).
O debate entre Pedrinho e o saci coloca em cena a confrontação entre dois ideais de
natureza e cultura como pólos opostos que competem entre si. O saci procura comprovar a
superioridade da natureza sobre a cultura, utilizando-se do argumento de que uma espécie que
depende do lento processo de aprendizagem para estar devidamente capacitada a atuar em seu
meio é claramente inferior àquela cujo conhecimento necessário para a existência faz parte do
aparato biológico. Essa idéia vai de encontro aos princípios básicos da visão de mundo de
Pedrinho, segundo a qual o cultivo de si é considerado como um ideal e a educação um signo de
distinção e de superação. A filosofia exposta pelo saci se mostra radicalmente contra-intuitiva aos
olhos do menino, uma vez que a mitologia evolucionista moderna, à qual pertence o esquema
interpretativo herdado por Pedrinho, vê a espécie humana como um resultado da evolução
animal. Quando afirma que as espécies animais são “aperfeiçoadíssimas” em relação aos
humanos, o saci inverte a direção da evolução. Essa imagem apresentada pela criatura folclórica
nos remete mais uma vez às cosmologias ameríndias reveladas pelo estudo dos mitos, onde
A condição original aos humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade. A
grande divisão mítica mostra menos a cultura se distinguindo da natureza que a natureza
se afastando da cultura: os mitos contam como os animais perderam os atributos herdados
ou mantidos pelos humanos [...]. Os humanos são aqueles que continuaram iguais a si
mesmos: os animais são ex-humanos, e não os humanos ex-animais (Viveiros de Castro,
2002b: 355).
87
A discussão estimula Pedrinho a observar o mundo de um outro ponto de vista, segundo o
qual o ideal de superioridade do homem sobre a natureza é contrariado, e onde o “sistema de
saber as coisas” é outro. Apesar de sua primeira reação ser de confrontação, ele acaba por admitir
que outras conceitualizações da relação natureza-cultura podem também fazer sentido. Mais uma
vez, o Picapau Amarelo dá mostras de harmonicamente praticar a acomodação de múltiplas
realidades. O volume O saci descreve a experiência de encontro de Pedrinho com um saber que
habita uma província de significado distinta daquela que organiza as lições de ciência que recebe
na escola e através dos sermões de Dona Benta
34
. Diante da constatação da existência de
múltiplos pontos de vista que fabricam distintas imagens da realidade, a rivalização de Pedrinho
com os modos de conhecimento do saci se mostra improdutiva e o menino termina por decidir
desfrutar da sabedoria que lhe é transmitida pela criatura. A experiência de contato com a
“filosofia do saci” envolve também debates a propósito da existência relativa do sobrenatural
35
e
conversas sobre a morte e o medo. Ao mesmo tempo em que descreve os seres mitológicos ou
folclóricos, narrando suas histórias, o saci explica a Pedrinho os sentidos de sua existência, e
através disso, o lugar que o sobrenatural ocupa no mundo, assim como seu funcionamento na
imaginação humana.
34
A leitura de um trecho de uma das sessões instrutivas ministradas por Dona Benta às crianças pode ajudar a revelar
como a visão de mundo do saci desafia aquilo que o menino foi ensinado a entender como verdade evolutiva:
“No começo o homem era um pobre bípede que valia tanto como os quadrúpedes de hoje. Vivia como todos os
animais, nu em pêlo, morando só nos lugares de bom clima, onde houvesse abundância de frutas silvestres e caça.
Um animal como outro qualquer. Mas a inteligência que foi nascendo nele fez que começasse a observar os
fenômenos da natureza e a tirar conclusões. O homem teve a idéia de plantar, e com isso criou a agricultura. Teve a
idéia de inventar armas, o arco e a flecha, o machado de pedra, o tacape, e com isso aumentou a eficiência de seus
músculos. [...] Também aprendeu a domesticar certos animais, de que se servia para a alimentação ou para ajudá-lo
no trabalho. E a inteligência do homem de tanto observar os fenômenos, foi criando a ciência, que é o modo de
compreender os fenômenos, de lidar com eles e produzi-los quando se quer. E o homem tanto fez que chegou ao
estado em que se acha hoje – dono da terra, dominador da natureza, rei dos animais” (Monteiro Lobato, 1957h: 5-6).
35
“– [...] Enquanto houver medo, haverá monstros como os que você vai ver [disse o saci].
– Mas se a gente vê esses monstros, então eles existem.
– Perfeitamente, existem para quem os vê. Por isso digo que os monstros existem e não existem” (Monteiro Lobato,
1957b: 226).
88
Com isso, podemos dizer que tio Barnabé contribui para o projeto formador dos
“picapaus” através da iniciação aos mundos das criaturas do “imaginário popular”, uma vez que é
através de suas experiências que as crianças encontram acesso a esse universo. A participação de
Tia Nastácia, por sua vez, como parte desta matriz de conhecimento revela-se um tanto ambígua.
É principalmente no domínio das competências domésticas que a personagem exerce suas
qualidades. Quando se referem a ela, os outros habitantes do Sítio invariavelmente associam sua
identidade a seus talentos culinários. Emília em mais de uma ocasião a define como “máquina de
comida”. Com efeito, praticamente a totalidade de participações de Tia Nastácia nas aventuras
está atrelada à preparação do alimento
36
. Neta de escravos moçambicanos
37
, a personagem parece
ter mais dificuldade em digerir os acontecimentos fantásticos que animam a vida do Sítio do que
a cartesiana Dona Benta; e suas reações de espanto aos seres ficcionais com os quais é
confrontada são normalmente acompanhadas de exclamações que denunciam seu apego à fé
católica (cruzes!, credo!, Deus me livre!)
38
. Embora todas as personagens demonstrem muita
afeição pela figura de Tia Nastácia – com exceção de Emília que, apesar de eventualmente
manifestar consideração pela cozinheira, nutre um certo sadismo em relação à sua criadora – , a
admiração e o respeito se limitam aos domínios dos saberes domésticos. Sua ingenuidade e
ignorância, no que diz respeito à erudição intelectual, são freqüentemente apontadas, tanto pelo
narrador quanto pelas personagens. Neste sentido, apesar de ser um símbolo de competência na
36
Em Viagem ao céu (1957b), por exemplo, a personagem permanece uma certa temporada habitando a Lua e
atuando como cozinheira de São Jorge. Já no episódio narrado em O Minotauro (1957n), a cozinheira é raptada pela
fera mitológica e levada para seu labirinto, mas consegue escapar da morte preparando bolinhos que caem no gosto
da criatura.
37
Segundo nos informa Dona Benta em Histórias de Tia Nastácia (1957l: 189)
38
Não são poucas as vezes em que a cozinheira reage negativamente à presença de criaturas classificadas como
pagãs pela tradição católica, como pode demonstrar o seguinte exemplo: “Deus me livre entrar num quarto onde há
garrafa com saci dentro! Credo! Num sei como Dona Benta consente semelhante coisa em sua casa... Num parece ato
de cristão...” (Monteiro Lobato, 1957b: 196).
89
administração do funcionamento do mundo doméstico, Tia Nastácia emblematiza uma espécie de
antimodelo no que diz respeito à formação intelectual dos “picapaus”.
Isso pode ser claramente observado através da leitura do volume Histórias de Tia
Nastácia (Monteiro Lobato, 1957l), onde a cozinheira é compelida a ministrar sessões de
narrativas da tradição oral popular. A idéia é proposta por Pedrinho:
[...] Uma idéia que eu tive. Tia Nastácia é o povo. Tudo que o povo sabe e vai contando de um
para o outro ela deve saber. Estou com o plano de espremer tia Nastácia para tirar o leite do
folclore que há nela.
Emília arregalou os olhos.
– Não está má idéia, não, Pedrinho! Às vezes a gente tem uma coisa muito interessante em casa e
nem percebe. (ibid.: 4).
As histórias contadas por tia Nastácia fazem parte de dois grupos de narrativas. Uma delas
envolve elementos da paisagem medieval, como castelos, princesas, reis e rainhas, que segundo
Dona Benta teriam se espalhado pelo imaginário brasileiro através da presença do colonizador
português. O segundo grupo de narrativas é protagonizado exclusivamente por animais, e
encontraria raízes nas mitologias indígenas e africanas, de acordo com a explicação da matriarca.
Ao fim de cada uma das histórias contadas pela cozinheira, os espectadores mirins reagem com
comentários críticos. Esse estilo de dinâmica é típico do comportamento “picapau” e pode ser
encontrado em outros volumes, como, por exemplo, naquele em que Dona Benta narra as fábulas
de La Fontaine e Esopo
39
, sempre seguidas de discursos de aprovação ou desaprovação do
público. Mas, no caso das histórias de tia Nastácia, não só os critérios de avaliação são outros,
mas também o grau de tolerância em relação ao produto das narrativas populares é muito menor.
Já em resposta à primeira história, Emília exclama: “Essas histórias folclóricas são muito bobas
[...] por isso é que não sou democrática! Acho o povo muito idiota...” (ibid.:13). Essa primeira
idéia lançada pela boneca parece instaurar a diretriz da avaliação das narrativas, e grande parte
das críticas que serão formuladas pelas crianças dali em diante, em especial por Emília, parecem
39
Fábulas (Monteiro Lobato, 1957p).
90
querer provar a teoria da ignorância popular. Os ataques encontram como alvo a inconsistência
das histórias que não são registradas pela escrita e sofrem as alterações típicas da oralidade.
Nesse caso, o Picapau Amarelo parece não se utilizar de seu talento para acomodar as múltiplas
províncias de significado que determina o tom de outras relações com a alteridade. Quando ouve
as histórias narradas pela cozinheira, o público lhe exige um tipo de coerência e estética que
encontra na literatura européia, aplicando critérios de avaliação de um subuniverso a outro
radicalmente diferente.
[...] As tais histórias populares andam tão atrapalhadas que as contadeiras contam até o
que não entendem. Esses versinhos do fim são a maior bobagem que ainda vi. Ah, meu
Deus do céu! Viva Andersen! Viva Carrol [exclama Emília]!
– Sim – disse Dona Benta. Nós não podemos exigir do povo o apuro artístico dos grandes
escritores. O povo... Que é o povo? São essas pobres tias velhas, como Nastácia, sem
cultura nenhuma, que nem ler sabem e que outra coisa não fazem senão ouvir as histórias
de outras criaturas igualmente ignorantes, e passá-las para outros ouvidos, mais
adulteradas ainda (ibid.: 29).
Como mostra o comentário acima descrito, Dona Benta procura contextualizar as histórias
de tia Nastácia, para com isso instruir o jovem público a respeito da impossibilidade de se querer
extrair deste material o mesmo tipo de complexidade encontrada na literatura européia. Mas, ao
fazê-lo, a matriarca adota o conceito de “cultura” segundo a acepção de “ideal convencional de
refinamento individual” (Sapir, 1985), cuja etimologia revela uma associação com a imagem de
cultivo agrícola, de manipulação da natureza que tem por finalidade a produção controlada e
melhorada das espécies vegetais (Wagner: 1981, 21). Assim, quando justifica a suposta
“pobreza” das histórias desta representante “picapau” do povo, Dona Benta insiste na ausência de
“cultura” das “tias velhas”, que não são educadas segundo o ideal ocidental de cultivo de si, de
refinamento progressivo proporcionado pelo investimento na sofisticação intelectual e artística. A
lição, neste ponto da narrativa, que contraria os sentidos relativistas da idéia de cultura, insiste
justamente em transmitir a superioridade da formação do sujeito através da educação sistemática
91
sobre as tradições que praticam a transmissão oral do conhecimento. Pode ser interessante
entender o sentido “etnocêntrico” das críticas dirigidas às histórias de tia Nastácia a partir da
idéia de que o microcosmos do Picapau Amarelo, que, como já vimos, reclama uma identidade
literária, afirma sua superioridade ao negar qualidade às narrativas que vivem fora de livros, na
boca do povo. O próprio Picapau Amarelo pratica a transformação do imaginário popular em
literatura, como é o caso do volume O saci, em que Lobato, instruído pelas informações
recolhidas através de uma enquête
40
, organiza e, assim, imortaliza e cristaliza a personagem
folclórica, que até então vivia “solta” nos domínios da tradição oral.
Com isso, podemos concluir que essa terceira matriz de conhecimento, representada por
Tia Nastácia e tio Barnabé e que participa do projeto de formação de leitores e personagens do
Sítio, permanece sujeita aos critérios analíticos da matriz erudita que é Dona Benta e aos ataques
críticos do espírito intempestivo de Emília. Ainda assim, seja através de seu conteúdo imaginário,
seja como um antimodelo que serve para afirmar a importância do cultivo de si nos termos da
erudição intelectual, o “material popular” participa diretamente da missão formadora à qual essa
literatura duplamente se dedica.
3.3 Conhecimento como experiência e desejo de ruptura
Além de se autoconceitualizar como um microcosmos ficcional situado no território físico
e imaginário brasileiro, complexo e completo o suficiente para fazer frente aos mundos ficcionais
40
Em 1917, fase em que atuou como colaborador do jornal O Estado de São Paulo, Lobato deu início a uma enquête
sobre o saci, utilizando sua coluna da edição vespertina para convidar os leitores a contribuírem com descrições da
criatura e com narrativas de sua aparição. Sua iniciativa encontrou tamanho entusiasmo por parte de leitores, que
enviaram relatos das diferentes regiões do estado do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e, especialmente, do interior de
São Paulo, que o então jornalista decidiu financiar a publicação da pesquisa, intitulada O Saci-Pererê: resultado de
um inquérito. A edição de aproximadamente trezentas páginas é lançada em 1918 e é assinada com o pseudônimo de
Demonólogo Amador (Lajolo, 1985: 31).
92
das obras clássicas da literatura universal, o Sítio do Picapau Amarelo se inventa, se imagina,
como um mundo modelo, onde se pratica um método educativo ideal para a formação de uma
geração habilitada a conduzir a nação brasileira rumo à modernização. Em um dos volumes da
obra infantil de Lobato, O Minotauro (1957n), Dona Benta compara o Sítio à Grécia do século de
Péricles:
A Grécia, meus filhos, foi o Sítio do Picapau Amarelo da Antigüidade, foi a terra da
Imaginação às soltas. Por isso floresceu como um pé de ipê. A arquitetura e a escultura
chegaram a um ponto que até hoje nos espanta. O pensamento enriqueceu-se das mais
belas idéias que o mundo conhece – e deu flores raríssimas, como a sabedoria de Sócrates
e Platão... (ibid.: 18-19).
Mesmo que em alguns momentos a obra narre sessões de educação relativamente
“formais”, como é o caso, por exemplo, de História do mundo para as crianças, onde Dona
Benta se inspira no livro Child’s History of the World, de V. M. Hillyer, para ministrar a seus
netos aulas de História Geral, o conhecimento transmitido ao jovem público é sempre
transportado para o plano da experiência. As lições aprendidas com a matriarca se refletem
diretamente nas viagens fantásticas do grupo; e os conceitos de aprendizagem e diversão se
encontram misturados na pedagogia praticada no sítio de Dona Benta. A prática de conhecimento
experimentada nesse mundo parece ressoar ecos das idéias de Nietzsche (2005) expostas no
ensaio Consideração intempestiva sobre a utilidade e os inconvenientes da História para a vida,
onde o filósofo critica a febre histórica decoradora que teria tomado conta da intelectualidade no
final do século XIX. O projeto educacional que se pratica no Sítio parece levar às últimas
conseqüências o lema nietzschiano de “não querer servir à história senão na medida em que ela
sirva à vida” (ibid.: 68). No trabalho citado, o filósofo insiste na idéia de que toda ação exige
esquecimento, uma vez que não é possível viver sem esquecer. Segundo sua formulação, há um
grau de insônia, de ruminação, no sentido histórico que prejudica o ser vivo e que acaba por
93
destruí-lo, quer se trate de um homem, de uma nação ou de uma civilização (ibid.:73). Nietzsche
utiliza a imagem da criança, “que não tem ainda um passado para negar e que brinca, em sua feliz
cegueira, entre as balizas do passado e do futuro” (ibid.: 71), para contrastar com aquela do
homem da cultura historicista prisioneiro do passado, que por mais longe que vá, por mais rápido
que corra, estará sempre aprisionado a seus grilhões. Com isso, o autor não pretende,
evidentemente, negar completamente a importância do elemento histórico, mas denunciar os
riscos de seus excessos e a importância de se aprender a usar o passado em benefício da vida.
Esta lição parece ser perfeitamente praticada no Picapau Amarelo através das diversas
ocasiões em que as personagens apóiam os movimentos revolucionários contra Dona Carochinha,
a guardiã das histórias infantis, figura que pode, com efeito, ser associada a uma das três
modalidades historicistas descritas por Nietzsche: o antiquário. A “velha baratinha”, como boa
colecionadora, aprisiona as personagens em uma vida fadada à repetição, e dedica sua existência
à missão de preservação. Ela impede, com isso, que novas ações extraordinárias aconteçam e,
cultivando cuidadosamente o que esses personagens sempre foram, conserva para as futuras
gerações uma imagem empoeirada de protagonistas ficcionais. Essa personagem emblematiza,
assim, a imagem do historiador tradicionalista que só sabe de fato preservar a história e não
engendrá-la, e cuja preocupação maior é conservar o que já veio antes, e não produzir vida. “Este
não é o estado no qual o homem está em melhores condições de transformar o passado num puro
saber” (Nietzsche, 2005: 93), parecem constatar os “picapaus” quando praticam suas sabotagens
à missão de Dona Carochinha, através da colaboração à fuga de suas personagens.
Entretanto, aquela que lidera claramente a implementação de uma ética da ação no
Picapau Amarelo é, sem dúvida alguma, Emília. Em alguns momentos, ao longo da obra, o
narrador inclui a personagem no grupo de crianças, e essa associação pode ser entendida através
do sentido de infância descrito por Nietzsche, como o período em que se vive no limiar do
94
instante. A personagem demonstra repetidamente uma sede de ruptura com o passado e de
reinvenção do homem, da natureza e da história. O episódio em que esse desejo é levado às
últimas conseqüências é aquele narrado em A chave do Tamanho (Monteiro Lobato: 1957o),
quando, acidentalmente, a boneca diminui a escala da espécie humana. Mesmo que esse ato não
tenha sido premeditado, quando constata os resultados de seu feito, Emília se convence de ter
realizado uma grande revolução que proporcionará à espécie humana a oportunidade de um
recomeço. Todo o mundo material que cerca e dá suporte a vida dos homens desaparece, ou
melhor, se transforma radicalmente, quando a espécie passa a medir aproximadamente 4
centímetros. E mesmo que os resultados sejam drásticos para uma grande parte da humanidade
41
,
a boneca acredita ter feito um favor aos homens, em suas palavras: “um dia a humanidade nova
há de me agradecer o presente, depois que a raça nova de ‘homitos’ se adaptar” (Monteiro
Lobato, 1957o: 99). Como já foi dito anteriormente, Emília se convence de que o apequenamento
é uma ótima solução para o problema da Segunda Guerra Mundial. Mas não apenas isso, ela
aposta efetivamente num recomeço da civilização. Como bem define Visconde, Emília deu fim à
“humanidade clássica”, e a espécie humana terá que reaprender a viver, reinventar seus hábitos
alimentares, recriar suas ferramentas, seu vestuário e suas habitações. Em poucas palavras, com a
obra de Emília, a humanidade é arremessada de volta ao estado de natureza. Todos os suportes
materiais que permitiam aos homens se considerarem evoluídos em relação às outras espécies
animais desaparecem. Com isso, segundo a boneca, a espécie perde o próprio direito ao título de
humanidade:
41
O seguinte trecho descreve apenas algumas das muitas conseqüências trágicas do apequenamento: “Um dos mais
interessantes aspectos do mundo novo era o da enorme quantidade de aviões despedaçados. Todos os aparelhos que
haviam erguido vôo no dia do apequenamento ficaram sem governo e foram caindo aqui e ali. O mesmo sucedeu aos
trens e navios. Os trens em movimento descarrilharam todos, depois que seus maquinistas viraram insetos. O mesmo
desastre nos oceanos. Os navios transformaram-se em ‘navios fantasmas’, isto é, que andam soltos pelo mar ao sabor
dos ventos, sem tripulação que os dirija” (Monteiro Lobato, 1957o: 164).
95
Foi isso o que deu, a completa extinção da Humanidade, porque os insetos de dois pés que a
substituíram já não eram propriamente a Humanidade – eram a Bichidade, como Emília os
classificou. E, portanto, ela, a Emília, a Emilinha do Sítio de Dona Benta, havia realizado um
prodígio sem nome: suprimido a Humanidade! O que os gelos dos períodos glaciais não
conseguiram, e o que não conseguiram as erupções vulcânicas, e os terremotos, e as inundações, e
as pestes, e as grandes guerras, a Marquesinha de Rabicó havia conseguido da maneira mais
simples – com uma virada de chave! (ibid.: 156)
Contudo, justamente como preconiza a boneca, quando todos estão ainda estupefatos
diante das novas condições de vida, uma “Ordem Nova da Humanidade Sem Tamanho” começa a
se erguer. Quando Emília parte em viagem ao redor do mundo, acompanhada de Visconde, para
avaliar as conseqüências da morte do Tamanho, fica encantada ao se deparar com uma nova
sociedade em plena construção em Hollywood. Reunidos em torno de um balde, um grupo de
homens e mulheres já apresenta um alto grau de adaptação às novas condições de vida: secam
minhocas ao sol para fins de alimentação, domesticam besouros que passam a servir de meio de
transporte, e se utilizam de pedaços de papel e todo tipo de material que podem encontrar para
mobiliar a casa balde. A pequena cidade se chama “Pail City”, conforme lhes informa Doutor
Barnes, professor de antropologia da Universidade de Princenton dos tempos da “humanidade
clássica”, e líder desta nascente sociedade da “Ordem Nova”. Em conversa com os visitantes,
Doutor Barnes se confessa muito otimista em relação à nova civilização humana e extremamente
inspirado para a empreitada de adaptação da vida à nova condição física da espécie. Seu
entusiasmo é tamanho que o narrador chega a afirmar que o ex-antropólogo é “uma verdadeira
Emília masculina” (ibid.: 185). Eis parte dos argumentos que sustentam a teoria do líder de “Pail
City”: de que a morte do Tamanho marca uma positiva transformação da vida humana:
As minhas conclusões [...] resumo-as em poucas palavras. Aquele tipo de civilização que
havíamos realizado era uma simples conseqüência do fogo. Enquanto o homem não
descobriu o fogo, viveu muito bem dentro da lei biológica, a civilizar-se lentamente. Veio
o fogo e tudo mudou – começou o galope sem fim. Que eram aqueles monstruosos
arranha-céus deste país, que era a Blitzkrieg dos alemães, que era a nossa pressa de
transporte e comunicação por meio de trens, aviões, navios, telégrafos, telefone e rádio, se
96
não uma conseqüência do fogo? Apague-se o fogo e tudo desaparece. [...] Tudo naquela
civilização era produto do ferro, continuou o sábio, e o ferro era filho do fogo [...] (ibid.:
178-179).
O ex-antropólogo parece efetivamente ter sido aquele que melhor compreendeu a visão de
mundo de Emília, já que, como a boneca, acredita nas vantagens de uma reinvenção da cultura
humana a partir de uma nova natureza da espécie. O apequenamento implica, de certa forma, um
abandono de todo sentido histórico, já que o passado não servirá mais como raiz dessa nova
humanidade, ou “bichidade”, como quer Emília. Quando advoga esse retorno à natureza, a
personagem parece, como o fez Nietzsche, querer demonstrar as vantagens do animal que “vive
de maneira a-histórica: ele está sempre inteiramente absorvido pelo presente, tal como um
número que se divide sem deixar resto; ele não sabe dissimular, não oculta nada e se mostra a
cada segundo tal como é, por isso é necessariamente sincero” (2005: 97). Em A chave do
Tamanho, Emília revela a potência de seus ideais revolucionários e, embora acabe cedendo ao
desejo da maioria e restitua o Tamanho, deixa registrado todo o seu desprezo pelas conquistas
monumentais da civilização humana e sua profunda aspiração por uma ruptura radical.
97
Considerações Finais
Ao basear esta pesquisa na suposição de que a literatura infantil de Monteiro Lobato
fabrica um miscrocosmos ficcional, partimos do princípio de que o Sítio do Picapau Amarelo,
como um coletivo organizado em torno de uma cosmologia, encerra uma concepção de mundo
que se expressa através de formas discursivas e de dispositivos simbólicos. A iniciativa de adotar
um ponto de enunciação baseado na imagem de um microcosmos ficcional foi inspirada pelo
conceito de cosmologia nos termos definidos por Herzfeld (2001). O autor descreve a idéia de
cosmologia em antropologia como aquilo que define o nosso lugar no universo, questão esta que
estaria fundamentalmente ligada à demarcação das fronteiras entre natureza e cultura. A idéia de
cosmologia no campo das ciências físicas e químicas estaria associada ao princípio central de
organização, onde o universo é concebido como ordenado, e não como um conjunto de elementos
físicos espalhados ao acaso. Tal uso do conceito de cosmologia teria inspirado sua transposição
para as áreas de antropologia, sociologia e história interessadas no estudo de doutrinas religiosas.
Herzfeld pretende libertar o conceito desse passado durkheimiano ligado ao estudo da vida
religiosa e demonstrar como a idéia de cosmologia pode viabilizar a empreitada comparativa em
antropologia. Uma vez que o foco é transferido do conteúdo da narrativa e da estrutura das idéias
para os usos que fazemos delas, a cosmologia se revela presente nas diferentes práticas da vida
cotidiana.
Partindo da proposta feita por Herzfeld, esse trabalhou procurou perseguir o lugar que o
Sítio do Picapau Amarelo pretende ocupar no universo de narrativas ficcionais. Em termos da
representação de uma visão de mundo, sua especificidade fundamental está expressa em sua
capacidade de comportar pontos de vista que não compartilham as mesmas demarcações da
98
fronteira entre natureza e cultura. A partir de uma prática de acomodação de múltiplas realidades,
termo que tomamos de empréstimo de Schütz, esse mundo se concebe como um território capaz
de abrigar harmonicamente a diferença, mesmo que ela implique a coabitação de visões de
mundo contraditórias.
No que tange à inscrição do Picapau Amarelo numa comunidade ficcional que pré-existe
a ele mesmo, composta por personagens literários, míticos e folclóricos que ocupam um mesmo
“sistema solar”, esse microcosmos atua como uma força inspiradora de mudança e ruptura. Em
contato com o Sítio, personagens registradas sob o rótulo de clássicos da literatura passam a
aspirar a uma nova vida fora de suas prisões cíclicas. E, através desse encontro e dos
acontecimentos que dele resultam, o Picapau Amarelo coloca em prática seu exercício de
englobamento do Outro. Não apenas personagens estrangeiros, mas também a figura de leitores,
que reforçam a identidade ficcional dos habitantes do Sítio, são incorporados a esse mundo
durante seu processo de fabricação. Como procuramos demonstrar ao longo das páginas deste
trabalho, o Outro constitui um fator indispensável para o funcionamento do Picapau Amarelo, já
que esse território ficcional se reinventa incessantemente a partir de aventuras de contato.
Infelizmente essa pesquisa não encontrou espaço nem tempo para se dedicar a uma
discussão que procure apontar as continuidades entre a produção literária infantil de Monteiro
Lobato e os ideais advogados pelo movimento modernista brasileiro das primeiras décadas do
século XX. Este debate envolveria não apenas uma dedicada consulta ao material crítico que se
produziu em torno da produção literária do autor, mas especialmente uma cuidadosa avaliação da
agenda reformadora proposta pelos intelectuais reunidos em torno do desejo de direcionar os
caminhos da arte vanguardista brasileira.
Contudo, este trabalho, embora não se tenha colocado como tarefa a releitura do papel de
Monteiro Lobato na história da literatura nacional, procurou revelar a complexidade de um
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mundo ficcional que seduziu mais de uma geração de leitores mirins brasileiros. Lobato parece
efetivamente ter realizado ao menos um de seus muito objetivos: ele contribuiu para a produção
de uma geração de leitores. Mesmo que possamos encontrar idéias questionáveis nesse duplo
projeto de formação que é sua literatura infantil, devemos admitir que ele o realizou com muito
sucesso. Fabricou um mundo ficcional através do qual fez chegar ao público infantil brasileiro
conteúdos das mais distintas literaturas, lições de História, Geografia, Física, Matemática,
mitologia grega e folclore brasileiro, sem perder suas características de texto de fruição. Ao
convidar seus leitores a uma visita através da leitura a um microcosmos em certa medida
subversivo – onde não há escolas, pais ou mães – , Lobato alimentou o imaginário nacional com
aventuras fantásticas com forte sabor de Brasil.
100
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