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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
MUSEU NACIONAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA
SOCIAL
Carnaval em Terras de Caboclo:
uma Etnografia sobre Maracatus de Baque Solto
Suiá Omim Arruda de Castro Chaves
Rio de Janeiro
Fevereiro, 2008
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Carnaval em Terras de Caboclo:
uma Etnografia sobre Maracatus de Baque Solto
Suiá Omim Arruda de Castro Chaves
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-graduação em Antropologia
Social do Museu Nacional da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do grau de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. José Sérgio Leite Lopes
Rio de Janeiro, fevereiro de 2008
2
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Carnaval em Terras de Caboclo:
uma Etnografia sobre Maracatus de Baque Solto
Suiá Omim Arruda de Castro Chaves
Prof. José Sérgio Leite Lopes
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social do Museu Nacional, da Universidade Federal Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre.
Aprovada por:
________________________________________
Prof. Dr. José Sérgio Leite Lopes
________________________________________
Profa. Dra. Renata de Castro Menezes
__________________________________________
Profa. Da. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti
______________________________________
Prof. Dr. Moacir Gracindo Soares Palmeira
(Suplente)
_______________________________________
John Cunha Comerford
(Suplente)
Rio de Janeiro
Fevereiro, 2008
3
Chaves, Suiá Omim Arruda C.
Carnaval em Terras de Caboclo: uma Etnografia sobre Maracatus de
Baque Solto / Suiá Omim Arruda de Castro Chaves.
Rio de janeiro: UFRJ/ Museu Nacional – PPGAS, 2008.
p.114
Dissertação – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional.
1. Carnaval 2. Rivalidade 3. Ritual 4.Cultura 5. Pernambuco 6. Maracatu
I. Título
4
RESUMO
O objetivo desta dissertação é investigar os sentidos do carnaval, partindo das
concepções de quem brinca Maracatu de Baque Solto. Mais precisamente, abordar a
idéia do que é brincar Maracatu do ponto de vista das pessoas que, neste meio,
consideram-se conhecedoras, “gente que tem uma experiência em Maracatu”. O que é
brincar Maracatu? O que é ser Maracatuzeiro? Trata-se de um trabalho etnográfico que
busca pensar o Maracatu, através das relações e reciprocidades articuladas nas idéias
de saber e cultura, concebidas pelas pessoas que se dedicam a essa brincadeira.
O Capítulo 1 consiste na minha entrada no campo, em que apresento meus
principais interlocutores, bem como os dois grupos de Maracatu de Baque Solto, nos
quais brinquei de baiana, nos carnavais de 2004 e 2006, descrevendo o período pré-
carnavalesco e a sambada-ensaio.
O Capitulo 2 apresenta o momento do ápice, para o qual os Maracatus se preparam
o ano todo: os três dias de carnaval. Este capítulo forma uma parelha do texto com o
filme - Baque Solto -, que realizei em parceria com Tatiana Gentile, durante um certo
período do processo de escrita desta dissertação.
No Capitulo 3 abordo o ‘passado’ nas narrativas de Maracatu de Baque Solto,
como um território privilegiado para pensar o reconhecimento e a atribuição de
‘valores’, nas intensidades do ‘brincar Maracatu’. Isto é, o conjunto de narrativas
míticas e histórias sobre o passado nos guiam, na problemática da constituição do
Maracatu como ‘cultura’, nas atribuições de posição e nas relações em torno do ‘saber’
do Maracatu.
5
ABSTRACT
This thesis aims at investigating the meanings of Carnival, from the perspective of
the dancers (‘players’) of the Maracatu de Baque Solto. More precisely, what it means
to dance the Maracatu, as perceived by people from the milieu, who see themselves as
‘wise’, “people who are experienced in Maracatu”. What is it like, to dance the
Maracatu? How does it feel to be a ‘Maracatuzeiro’? This ethnographic work seeks to
think the Maracatu through its relations and reciprocities entailed on the ideas of
knowledge and culture, as conceived by the people devoted to this game/dance
(brincadeira).
Chapter One describes my arrival at the place where I did my fieldwork, and
introduces the local people who acted as my liaison with the groups, as well as the two
groups of Maracatu de Baque Solto (MBS) where I took part, as a ‘baiana’, during the
2004 and 2006 Carnival. It also depicts the pre-carnival period and the final rehearsal
(sambada).
Chapter Two presents the climax, that moment for which the Maracatu groups
prepared themselves throughout the whole year: the three days of Carnival. It also
outlines a parallel between the text and the film Baque Solto made in partnership
with Tatiana Gentile, during the process of writing this thesis.
In Chapter Three, I address the ‘past’ narratives of the MBS, as a privileged
territory to reflect upon recognition and to attribute ‘values’ to the different intensities
of Maracatu dancing. That is, a number of mythical narratives and stories from the
past that guide us towards understanding how the Maracatu ‘culture’ was formed, on
the basis of positions assigned and relations around the “knowledge” of Maracatu.
6
Agradecimentos
A meu orientador José Sérgio Leite Lopes, pela confiança , estímulo e generosidade.
Aos professores, pelo prazer de assistir a seus cursos durante o mestrado: José Sérgio
Leite Lopes, Marcio Goldman, Antonádia Borges, Gilberto Velho, Federico Neiburg,
Lygia Sigaud, Ovídio Abreu e Emerson Giumbelli.
Aos professores que foram fundamentais na graduação: Maria Laura Viveiros de
Castro Cavalcanti, Els Lagrou, Marco Antônio Gonçalves, André Botelho, John
Comerford, Peter Fry, Regina Novaes e Patrícia Monte-Mór.
A Moacir Palmeira, Renata Menezes e Fernando Rabossi agradeço por abraçarem o
projeto do filme.
Aos funcionários da Biblioteca, Secretaria e Xerox do PPGAS, pela eficiência e
dedicação. Agradeço também aos funcionários do NuaP e à CAPES pela bolsa
concedida.
Em Pernambuco:
A toda a família Arruda especialmente: Maria Ligia, Paulo, Léo e Emília, por
tornarem os períodos pernambucanos sempre aconchegantes, animados e afetuosos;
Clarissa, Barbosinha, Lúcia, Flora e Lara, por todo o apoio, amizade e dedicação;
Nara, pelo gravador emprestado em cima da hora. À Família de D. Maria e Seu
Geraldo, pelo espírito carnavalesco e pelos deliciosos almoços à grande mesa.
A Maria Acselrad e Gustavo Villar, pela amizade criada ao longo desta pesquisa, pela
sensibilidade com que me ‘acompanharam’ pelos caminhos da Mata Norte, pela ampla
troca, pelo quintal compartilhado e pelo brilho da quarta-feira de cinzas. À Mariá, pelo
encanto de sua presença na casa da goiabeira e à ‘semente’ de Tomás, que nos
mostrava como a vida cresce dia a dia.
A Carlos Sandroni, pelas ajudas diversas, amizade e incentivo.
A Siba Veloso, pela generosidade e colaboração.
Aos Amigos: Joaninha, Murilo, André, Climério, Sérgio, Niltinho, Ederlan (e família),
Mário, Aguinaldo (e família), Biu Alexandre, Fabinho, Martelo, Maria Paula e
Badango. Ao Maracatu Leão de Ouro de Condado. Ao Maracatu Estrela de Ouro de
Aliança e a todos que de alguma forma me ajudaram a transitar nesse ‘mundo’.
7
No Rio de Janeiro e outros mundos:
Martinha Arruda, dearest James Green e Yama Arruda, por todo apoio e incentivo,
agora e sempre. Adyr e Luiz pelos estímulos paternos, cada um a sua maneira.
À família carioca especialmente: Lina, Elza, Marcos, Moni, Tiana, Pablo e Catherine
pelo carinho e pela compreensão das minhas ausências festivas.
João Duarte pela grande amizade, amor, companheirismo e também pelas leituras.
Luiz Fernando Dias Duarte pelo carinho, generosidade e estímulo.
Clarisse Kubrusly pela constante interlocução, pela forte amizade nascida ‘entre rios’,
risos e lágrimas; pelos momentos compartilhados desde o campo até o fim da
dissertação. Tatiana Gentile por ser, além de grande amiga, ótima companheira de
trabalho e de viagem; por toda a participação, troca e colaboração nessa pesquisa.
Ana Carneiro e Paula Siqueira pelas leituras instigantes, conversas ‘vivas’ e toda a
amizade vivida nos momentos belos e difíceis. Aos amigos que estiveram presentes
nessa travessia: (‘las chicas’) Julieta, Virna, Camila, e, de novo, Aninha e Paulinha
pelos incentivos, pela antropologia pensada no bar, na praia, na rua, na cozinha; pelos
carnavais e corais que passaram e pelos que virão; Lu e Felipe que dão gosto mineiro à
vida carioca; Nicolas pela amizade e pelos quilos de erva mate gentilmente fornecidos;
Marcelo, Salvador, Flávio, Isabel, Marta, Rogério, Renato, Deborah, Cecília,
Bernardo, Chico, Cássia, Guto, Bia, Ciça, Cris e Lia pelos bons momentos.
Adel Novaes e Tomás Magno pela grande amizade de vínculos ‘amadrinhais’ e pela
finalização de som do filme. Constança Scofield e Thales Magno pela generosidade e
delicadeza. Cláudio Serra e Ana Heloísa pelas aulas ‘alegres’ de francês.
Lula Marcondes e Lucia Duncan por toda amizade ao ‘norte’, pela generosa
‘vizinhança de Adelaide’, pelos ‘chimas’ tomados, pela estréia internacional de Baque
Solto e pelos mapas de Pernambuco.
Alexandre Pimentel, Joana Correia, Emílio Domingos, Mariana Oliveira, Paloma Sá,
Beatriz Arosa, Ângela Mascelani, Moana e Lucas Van de Beuque, Stella Penido e
Norma Nogueira pelas colaborações diversas. Martinha pela revisão e tudo mais.
8
SUMÁRIO
Introdução 10
Capítulo 1 – O Encontro: a pesquisa de campo
1.1 Sambada do Leão: Pré-Carnaval de 2004 20
1.2 Pós-Carnaval 2004: outros contatos 26
1.3 Dois Carnavais: dois Maracatus 31
1.4 Leão de Condado 34
1.5O Ponto de Cultura Estrela de Ouro 38
1.6 Sambada da Estrela: Pré-Carnaval 2006 40
Capítulo 2 – A Jornada: Carnaval em terras de Caboclo
2.1 A pareia Filme-Dissertação 44
2.2 Golas e Bandeiras 25
2.3 O Ritual de Chegada dos Caboclos 51
2.4 A Jornada 54
2.5 A chegada na barraca ou a entrega do Maracatu 64
Capítulo 3 – A Guerra: as narrativas de Maracatu
3.1 Deus e o Diabo em terras de Caboclo 66
3.2 A ‘cultura’, a rivalidade e o saber 83
O fim do ciclo: Carnaval de Páscoa 97
Bibliografia 100
Anexos 107
9
Introdução
O objetivo dessa dissertação é investigar os sentidos do carnaval, partindo das
concepções de quem brinca Maracatu de Baque Solto. Mais precisamente abordar a
idéia do que é brincar Maracatu, do ponto de vista das pessoas que, neste meio
1
,
consideram-se conhecedoras, “gente que tem uma experiência em Maracatu”. O que é
brincar Maracatu? O que é ser Maracatuzeiro? Trata-se de um trabalho etnográfico que
busca pensar o Maracatu através das relações e reciprocidades, articuladas nas idéias
de saber e cultura, concebidas pelas pessoas que se dedicam a essa brincadeira
2
.
Este trabalho teve início durante minha graduação em Ciências Sociais (IFCS/
UFRJ), no projeto de iniciação científica. A pesquisa que eu vinha desenvolvendo, sob
a orientação da Prof. Dra. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti, tinha como
objetivo amplo investigar as imagens do “índio” vistas e atualizadas nos festivais
populares do Brasil contemporâneo. O Maracatu de Baque Solto despontou como
desdobramento desta pesquisa, no último ano da iniciação científica (2004), em que
realizei o trabalho de campo, durante um mês e meio, na Zona da Mata Norte de
Pernambuco
3
e, com base nessa primeira inserção etnográfica, escrevi o trabalho de
conclusão da pesquisa de iniciação cientifica. Esse trabalho consistiu em notas e
reflexões, sobre a jornada dos três dias de carnaval de um Maracatu da cidade de
Condado: o Maracatu de Baque Solto Leão de Ouro, no qual eu havia brincado de
baiana.
4
1
Como meio, utilizo de forma particular a noção de “mundos artísticos” de Howard Becker (1977). Melhor
dizendo, incluo nessa noção as brincadeiras ditas populares que, na reflexão de Becker, não constituíam uma
comunidade artística por não considerarem sua atividade uma profissão. De fato, ‘arte’ e ‘cultura’ são
categorias externas, para definir o que ‘se faz’ entre o povo de Maracatu. No entanto, com a crescente
profissionalização destes grupos, a formalização do conhecimento e o reconhecimento (por parte das pessoas
que brincam e da ‘sociedade’) de que o que ‘se faz’ é cultura, podemos dizer que se trata de um mundo, ou
seja: “pessoas e organizações que produzem os acontecimentos e objetos definidos por esse mesmo mundo”
como brincadeira.(Becker, 1977: 9).
2
Brincadeira é um termo nativo, que remete a festividade, envolvendo música, dança, poesia, improvisação,
etc.
3
Ver Anexo 1 Mapa Estado
4
Ver Anexo 2: Personagens do Maracatu.
10
No mestrado, decidi continuar a pesquisa, julgando-a merecedora de um trabalho
ampliado e aprofundado. Assim, voltei a campo, no ano de 2006 e, durante três meses
e meio, convivi com integrantes do Maracatu Leão de Ouro de Condado e do
Maracatu Estrela de Ouro de Aliança. Além destes grupos, conversei com pessoas (em
alguns casos entrevistei-as) e com outros grupos de Maracatu de Baque Solto
5
. As
visitas, conversas e entrevistas informais, gravadas ou não, foram realizadas nos
seguintes locais: Condado, o sítio Chã de Camará, Aliança, Nazaré da Mata, Barra de
Catuama, Itaquitinga, Upatininga, Recife e Olinda.
A palavra Maracatu
6
nomeia duas brincadeiras distintas e presentes no múltiplo
carnaval pernambucano: o Maracatu de Baque Virado ou Maracatu Nação
7
e o
Maracatu de Baque Solto ou Maracatu Rural
8
.. No Estado de Pernambuco, a Zona da
Mata Norte reúne um conjunto variado de brincadeiras e ritmos, que fazem parte do
ciclo anual de divertimentos dos moradores da região: Ciranda, Mamulengo, Coco,
Repente, Cavalo-Marinho, Maracatu de Baque Solto, etc. No calendário regional, as
festas natalinas, carnavalescas e juninas são as que mais mobilizam a população.
5
Com sedes em cidades da Zona da Mata Norte: Maracatu Leão da Mata de Itaquitinga e o Maracatu (de
Mulheres) Coração Nazareno de Nazaré da Mata. Sediados em Olinda (Zona Metropolitana): o Maracatu
Chuva de Prata e Maracatu Piaba de Ouro.
6
Mario de Andrade (1982) atribui a raiz lingüística da palavra ao tronco ameríndio, devido à semelhança com
fonemas guaranis. “Maracá é o instrumento ameríndio, de percussão, conhecidíssimo. Catu em tupi quer
dizer bonito. D’abbeville (285,188 face), que grafava bastante mal as vozes ameríndias, cita o nome do
morubixaba Maracapu (Maracapou) que diz significar ‘som de maracá’. Podia-se assim lembrar a formação
Maracá-catu, donde Maracatu, fundidas as duas sílabas cá. E ainda outra interpretação é lembrável. Marã
indica T.Sampaio (260, 309) como sendo ‘a guerra, a confusão, a desordem, a revolução’. Donde Marãcàtú e
posteriormente Maracàtú, por assimilação. Isto é guerra bonita, a briga bonita, a briga de enfeite, invocando o
cortejo real festivo mas guerreiro.” (Andrade, 1982: 137, 138)
7
Sobre Maracatu de Baque ver Pereira da Costa, Guerra Peixe, Katarina Real, Roger Bastide, Virginia
Barbosa, Isabel Guillen, Climério Santos & Tarcísio Soares, entre outros.
8
Guerra Peixe reagiu ao uso da expressão Maracatu Rural, por Katarina Real, no livro Folclore no
Carnaval Pernambucano. O maestro acusa a antropóloga norte-americana de ter lançado a denominação,
ignorando “por completo os designativos que os próprios populares usam para o tipo de Maracatu que
chamam de Maracatu-de-orquestra ou Maracatu-de-trombone.” (1981: Prefácio)
11
A maior parte dos grupos de Maracatus de Baque Solto
9
se concentra nas
cidades e municípios da Mata Norte
10
e, em menor número, sedes na Zona
Metropolitana. Os participantes dos Maracatus que habitam a Mata Norte são, em sua
maioria, trabalhadores sazonais no corte da cana-de-açúcar, moram na rua, como são
chamadas as cidades da região. O trabalho na cana, por ficha (carteira assinada), ou
por diária, muitas vezes não é suficiente para o sustento das famílias, sendo
complementado com outras atividades, como o trabalho como feirante ou pedreiro.
Brincar Maracatu e Cavalo-Marinho tornou-se uma forma de ganhar um dinheiro
extra.
Com a crescente profissionalização dessas brincadeiras, algumas pessoas
deixaram o trabalho na cana por conta das demandas das brincadeiras. Seu Luiz,
mestre de caboclo do Maracatu Estrela de Ouro de Aliança, é um desses casos:
“Já fui feitor, trabalhei muito tempo de feitor, cortei cana.
trabalhei na Santa Teresa, Tambu, na Usina Matari, que hoje é
fechada. E trabalhei em vários Engenhos: Acau... Então
trabalhei 20 anos de feitor dos outros, nada na vida eu arranjei,
então hoje eu ali no Ponto de Cultura, ali. Comecei
brincando em Camará e sugeriram eu tomar conta daquela casa
e tomar responsabilidade daquela cabocaria e tô ali em Camará.
A responsabilidade é grande, porque tomar conta de uma
cabocaria que nem Camará, que saiu esse ano com quase 50
homens na vara... Minha parte é vê caboclo, fazer chapéu, fazer
grade, fazer surrão, fazer vara, amarrar guiada, esse é meu
trabalho. E tomar conta da casa grande, zelar por ela, limpar
mato, zelar por ela, brincar de Mateus (no Cavalo-Marinho)”.
(Seu Luiz)
9
Estão registrados na Associação de Maracatus de Baque Solto 104 grupos. O Maracatu de Crianças e o
de Mulheres, ambos de Nazaré da Mata, não são filiados. No total são 106 grupos de Maracatu de Baque
Solto no Estado de Pernambuco, com sedes na Zona da Mata Norte e Zona Metropolitana. Informação do ano
de 2007.
10
Gilberto Freyre, em seu livro Nordeste, aponta para a ironia desta sub-região ser chamada de Zona da Mata,
diante de tamanha devastação da ‘mata’ para exploração agrícola. “Sabe-se o que era a mata do Nordeste,
antes da monocultura da cana: um arvoredo ‘tanto e tamanho e tão basto e de tantas prumagens que não podia
o homem dar conta’. (...) A fogo é que foram se abrindo no mato virgem os claros por onde se estendeu o
canavial civilizador, mas ao mesmo tempo devastador.” (2004:79).
12
Aguinaldo, puxador de cordão do Maracatu Leão de Ouro, deixou de fazer
ficha nas usinas, por conta das freqüentes viagens e apresentações do Maracatu e do
Cavalo-Marinho e das conseqüentes faltas que tinha no trabalho.
11
“Problema da viagem, de uma hora ali, outra aqui, atrapalha a
ficha, numa usina, num engenho particular.... o senhor de
engenho num quer um trabalhador que perdendo serviço.
Sabendo que a pessoa tem o direito de falar com o patrão e pedir
licença. Se ele me der licença me liberar, eu vou, e se ele não me
liberar eu também vou. Nunca deixei uma apresentação por
causa de serviço”.
Desde que deixou o trabalho na cana, Aguinaldo ajuda a mulher com a banca
de verdura na feira de sábado e recebe o auxílio do Programa Bolsa Família
12
pelos 3
filhos que estudam. Nas viagens, coloca à venda as golas de Maracatu que faz.
Ederlan é morador da cidade de Condado, tal como Aguinaldo e Luiz, mas, sendo
um jovem de família ‘classe-média’, nunca trabalhou na cana. Logo que criaram o
Ponto de Cultura de Chã de Camará, Ederlan conseguiu emprego de produtor.
Esses exemplos, sobre a ‘atividade profissional’ de alguns dos meus interlocutores,
dão a dimensão da mudança profunda no papel dessas brincadeiras, como fenômeno
total. (Mauss, 2003)
Na década de 1970, foram realizadas pesquisas etnográficas na Zona da Mata
Nordestina (Palmeira, 1966/ Sigaud, 1976/ Heredia, 1989), e é notável que não
apareçam nesses trabalhos as brincadeiras, que hoje são referência desta região. O forte
impacto das lutas políticas na região e a atenção desses pesquisadores, para questões
mais diretamente ligadas ao marcante período político brasileiro, não eram o único
aspecto da ‘invisibilidade’ de tais brincadeiras dos trabalhadores da cana. De acordo
com os Maracatuzeiros mais antigos, até os anos 1960, o Maracatu “andava pela mata,
11
Aguinaldo diz que a maior vantagem de trabalhar fichado é o abono do PIS (Programa de Integração
Social). Abono para trabalhadores que ganham até dois salários mínimos.
12
Programa do Governo que, por cada filho na escola, paga uma bolsa, na época, de R$15 por criança.
13
não era apresentação”. Duda, mestre do Estrela de Ouro, conta sobre quando
começou a brincar:
“O começo da minha entrada no Maracatu foi pelo mato. Eu
lembro bem o primeiro carnaval que eu tirei
13
na rua (cidade)
que eu entrei em Buenos Aires (PE). O resto era tudo
engenho, brincando na casa dos morador, aqueles lavrador,
aqueles proprietário tudo metido a rico, se fazia o carnaval.
Não ia em Nazaré. Mas o resto dos Maracatu se enfiava pelos
engenhos subindo e descendo serra, brincando numa casa
ganhava dinheiro, noutra arupemba de peiju, os cambinda
dava ao povo de comer, dava um dinheiro, era aquela festa.
Mas não ia pra cidade. Outra coisa: Maracatu não tinha
condução, pra carregar Maracatu, era de pés. Pronto, até 1960
ainda rodava pelo mato.”
Em meados dos anos 1950, a dissolução do sistema de morada nos engenhos
modificou uma estrutura estabelecida desde a abolição da escravatura, em que a força
de trabalho utilizada para plantar, limpar e cortar a cana-de-açúcar era constituída por
trabalhadores que ali residiam, os moradores
14
. A saída em massa dos trabalhadores dos
engenhos, especialmente após a queda de João Goulart, em 1964, gerou um grande
contingente para as cidades, dando início a um acelerado crescimento urbano da
região. (Sigaud, 1979/ Palmeira, 1976)
As transformações da plantation tradicional redefiniram o padrão das relações de
trabalho e moradia dos habitantes da região, num processo de desenvolvimento de
lutas de classes e da proletarização dos trabalhadores rurais (Palmeira, 1977:103)
15
. A
decadência do sistema de engenhos e a passagem para o sistema de usinas, na região
canavieira, abalaram o modelo “patriarcal tradicional familiar” das casas-grandes,
modificando relações familiares (Leite Lopes, 1977) e as relações de trabalho foram se
adequando ao sistema capitalista.
13
O mestre do Maracatu, o cantador, tira o Maracatu, isto é, canta para o Maracatu sair, se movimentar.
14
Morar significava ligar-se a um engenho. “Ninguém é morador de usina e trabalhador de engenho”. (104)
15
A importância da atuação das Ligas Camponesas e a estruturação de um projeto de lei, tendo em vista a
reforma agrária (Estatuto do Trabalhador Rural e Estatuto da Terra). Sobre a modificação da consciência
social dos trabalhadores através da noção de direito. (Sigaud, 1976).
14
Os anos ‘de chumbo’ parecem ter sido marcantes nesse ‘processo civilizador’
16
dos Maracatus. Na capital, Recife, o papel da Federação Carnavalesca de Pernambuco
(FCP)
17
é mencionado, pelos Maracatuzeiros, como delimitador de uma ruptura na
maneira como os Maracatus brincavam o carnaval.
“Tempo bom, era quando a gente pegava o dinheiro e botava
numa caixinha. Hoje, fica 60, 90 dias pra pegar o cheque de
cem reais. Era melhor de real em real, na casa do povo. Hoje é
dono de brinquedo devendo a todo mundo, sendo odiado. Mas
sabe por que ele é odiado? Por causa das prefeituras, as
prefeitura cheque pré-datado, quando chega no dia, o
cheque não depositado. Se fosse hoje, eu não afiliava não,
ficava brincando na casa do povo.” (Zé Duda, mestre do
Estrela)
De acordo com Araújo (1992), no projeto-político da Federação Carnavalesca
de Pernambuco (FCP) prevaleceu uma ‘postura ideológica’ dos grupos dominantes e
das autoridades públicas, relativa às brincadeiras, numa alternância de “tolerância,
repressão e proibição (...) com incentivos, propostas de substituição, domesticação e
invariavelmente manipulação simbólica” (op.cit. p.413 apud Assis, 1997).
Muitos autores referem-se às ‘perseguições’ da FCP aos Maracatus de Baque
Solto (MBS), acusando-os de “deturpados”, “descaracterizados”, em relação aos
Maracatus de Baque Virado, estes sim considerados como os ‘Maracatus tradicionais’,
tentando “forçá-los a mudar o ritmo para baque virado”. (Real, 1974: Guerra-Peixe,
1981). Em 1994, o presidente da instituição, Manoel Silva, atribui a perseguição ao
período da ditadura militar e nega a “discriminação”: “não, não, não... depois foi
16
Elias e Dunning (1992) abordam como o lazer se mostra no processo civilizador e seu importante papel no
alívio das pulsões e na internalização das regras que regem os grupos e a comunidade da qual os indivíduos
são parte. As situações de busca da excitação e lazer como parte do processo são: “submetidas
progressivamente ao controle mais acentuado que havia sucedido no passado.” (p.101)
17
Fundada em 1935, a FCP congrega todas as categorias de agremiações carnavalescas, organizando com
verba da Prefeitura do Recife e do Governo do Estado, o julgamento e o desfile das agremiações. De acordo
com o projeto apresentado no congresso, “uma das tentativas mais ousadas das elites governantes em busca da
legitimidade popular” (Araújo, 1992 apud Assis, 1997). Interessante notar que o ano de fundação da FCP
coincide com o ano em que Mário de Andrade é nomeado diretor do Departamento de Cultura de São Paulo.
Sobre esse ponto, é relevante pensar o projeto-político do Estado Novo.
15
democratizado o negócio, de 1980 pra cá, (sic) começou a liberar pra Maracatu Rural e
ele representa a turma do interior.” (Assis, 1997: 45)
O interessante trabalho de Vicente (2005), sobre os discursos produzidos sobre
os MBS na mídia local, ressalta a década de 1980 como um período em que se começa
a construir um discurso de valorização do MBS que, nos anos 90, “passou a ser
constantemente exaltado, como símbolo do Estado de Pernambuco”. (op.cit: 56)
A Associação de Maracatus de Baque Solto
18
, criada nos anos 90, é
frequentemente identificada como responsável pelo fim das brigas e controle da
violência, entre os Maracatus que se encontravam no carnaval.
“Depois que a cultura olhou, viu de perto aquela situação, depois
que Mestre Salustiano viu, abriu uma lei que a gente não pode
fazer essas coisas. Se tiver briga, o Maracatu pode ficar sem
brincar um ano ou dois. uns 25 anos atrás, desmanchava o
brinquedo todo por causa de briga. Aí, depois, Manel Salu
arrumou e foi bom.” (Inácio, arreiamar do Leão)
Para entrar a fundo nessa questão, seria necessário trazer outros planos para
a discussão: como o movimento da contracultura em várias partes do mundo, os
movimentos regionais (o Movimento de Cultura Popular na década de 60, Armorial,
década de 70, o Manguebeat nos anos 90, assim como outros movimentos) enfim,
pensar circunstâncias e relações circulares
19
significativas, no processo de
‘espetacularização’ dos Maracatus. E não cabe aqui fazer uma revisão crítica da
bibliografia sobre Maracatu, dialogando com os movimentos intelectuais, políticos e
estéticos que, por si só, seria uma outra pesquisa. Embora bastante instigante, ela nos
tiraria do nosso caminho
20
.
18
Fundada em 1990, em Aliança, na Mata Norte, por 13 dirigentes, tendo como seus principais articuladores
mestre Salustiano, mestre Batista, Biu Hermenegildo.
19
A noção de circularidade de níveis de cultura. Bakthin (2002), Ginzburg (2002), Da Matta.
20
A literatura sobre Maracatu de Baque Solto constitui um conjunto bastante heterogêneo, com orientações e
objetivos distintos. Entre autores que escreveram sobre Maracatu estão: Pereira da Costa (1908), Câmara
Cascudo (1956), Mauro Souto Maior (1969), Katarina Real (1974), Roger Bastide (1945/1959), Guerra-Peixe
(1981), Mario de Andrade (1982), Roberto Benjamin (1976/1982), Olimpio Bonald Neto (1987), Leonardo
Dantas (1988). Quanto a trabalhos acadêmicos na área de antropologia, temos as dissertações de mestrado de
Elisabeth Assis (1997) e Mariana Mesquita Nascimento (2000), as monografias de Melo (1997), Sévia
Sumaia Vieira (1999) e Ana Valéria Vicente (2003). Em 2005, a Coleção Maracatus Maracatuzeiros editou
16
O que desejo ressaltar aqui é que, nos anos 80, o processo de abertura política e
democratização do Estado brasileiro pode ser pensado como um tempo liminar
21
, isto
é, uma ruptura que, do ponto de vista nativo, delimita o ‘tempo passado’, marcando o
processo de transformação do Maracatu em ‘cultura’.
“Antigamente, quem dava valor era quem brincava. Se
existia cultura, ninguém sabia. Hoje a gente sabe que tudo na
vida era cultura: Cavalo-Marinho, Maracatu, cantador de
Coco, Xangô. Tudo era cultura, mas não existia. Hoje a cultura
descobriu tudo, que tudo é cultura”. (Biu Alexandre, dono do
Leão de Ouro)
As atribuições de ‘valor’ trazem, para a investigação, um plano relevante no qual
opera uma rede de reciprocidades, articulando diversos veis da relação entre esses
‘mundos’. O reconhecimento, por parte da cultura oficial, ‘da sociedade’, de um ‘valor
cultural’ na brincadeira, é dado através da decodificação do MBS e uma conseqüente
recodificação, de maneira que seja ‘cultura’. A circularidade entre essas noções
‘inventa’ valores, estabelecendo rupturas simbólicas. Como na fala de Biu Alexandre,
o valor que os Maracatuzeiros davam ao que faziam é visto, pelo outro, como
‘cultura’, se ele se comportar como tal, especialmente rivalizando dentro de um código
‘dominante’ comum. O Maracatu se reterritorializa como brincadeira, folguedo,
enquanto valor singular ‘inventado’, por meio de uma ‘contra-invenção’ do que é
cultura, para a ‘cultura’ (cf. Deleuze & Guattari: 2002)
22
.
A questão do reconhecimento em algumas instâncias perpassa todo este trabalho e,
inspirada pelo trabalho de Quirós (2006), -- que toma como sujeito de seu trabalho as
pessoas, que participam das atividades dos movimentos piqueteiros da grande Buenos
três volumes sobre Maracatu Rural: “Festa de caboclo” de Severino Vicente, a publicação da dissertação
(op.cit) de Mariana Mesquita Nascimento e da monografia (op.cit) de Ana Valéria Vicente. Ainda em 2005,
foram lançados: “Maracatu Rural: Luta de Classes ou Espetáculo?” de Roseana Borges de Medeiros e o
Batuque Book, um songbook de Maracatu Baque Virado e Baque Solto de Climério de Oliveira dos Santos e
Tarcísio Soares Resende
21
A idéia de liminaridade de Turner (1974) nos serve, na medida em que qualifica um redimensionamento de
uma ordem da estrutura vigente.
22
Conceito de ‘território’: “O território é de fato um ato, que afeta os meios e os ritmos, que os ‘territorializa’.
O território é um produto de uma territorialização dos meios e dos ritmos.” (op. cit. 2002: 120)
17
Aires, e não ‘os movimentos’ como plano de investigação -- esta etnografia trata dos
sujeitos que integram este universo dos Maracatus.
23
A etnografia, sendo um encontro entre ‘sujeitos’, é também um encontro entre
‘culturas’. A partir da inspiração de Lispector: “o vazio é um meio de transporte”, eu
diria, o vazio cognitivo está no encontro entre antropologias (a do etnógrafo e a do
nativo, em relação mútua de produção de alteridade e, assim, de criação de campos de
produção de sentido).
24
Imagino este vazio cognitivo como aquilo que, na pesquisa
etnográfica, instiga a uma espécie de ‘preenchimento’ deste entre das relações.
“An anthropology that refuses to accept the universality of mediation, that reduces
the meaning to belief, dogma, and certainty, is forced into the trap of having to believe
either the native meanings or our own.” (Wagner, 1981: 30). Destaco a visibilidade do
papel do antropólogo, no processo de “invenção” das culturas, tal como concebida por
Wagner
25
(op.cit), a “etnografia como texto” sendo a dimensão narrativa da relação
(Gonçalves, 2002: 20).
A idéia, aqui, não é estabelecer uma discussão teórica com a literatura
antropológica, sobre os termos cultura, folclore e carnaval, mas pensá-los como
conceitos nativos, isto é, nas suas propriedades intrínsecas ao universo etnográfico dos
Baque Solto, aliás, nesta pequena parte, em que a pesquisa se deteve, de uma ampla
rede de mundos.
O Capítulo I consiste de minha entrada no campo, onde apresento meus principais
interlocutores; os dois grupos de MBS onde brinquei de baiana (nos carnavais de 2004
e 2006) e a descrição do período pré-carnavalesco, a sambada-ensaio.
O Capitulo 2 apresenta o momento do ápice, para o qual os Maracatus se
preparam o ano todo: os três dias de carnaval. Este capítulo constitui uma parelha, do
23
Aproximação com a idéia de Mauss “O potlach, a distribuição dos bens, é o ato fundamental do
‘reconhecimento’ militar, jurídico, econômico, religioso, em todos os sentidos da palavra.” Mauss (2003:247).
24
Viveiros de Castro (2004) fazer antropologia é comparar antropologias.
25
Encontro a partir das noções de “objetividade relativa” e “relatividade cultural”.(op.cit)
18
texto e do filme, Baque Solto, que realizei em parceria com Tatiana Gentile, durante
um certo período do processo de escrita desta dissertação
26
.
No Capitulo 3, abordo o ‘passado’ nas narrativas de MBS, como um território
privilegiado para pensar o reconhecimento e a atribuição de valores’, nas intensidades
do ‘brincar Maracatu’. Isto é, o conjunto de narrativas ticas e histórias sobre o
passado nos guia, na problemática da constituição do Maracatu como ‘cultura’, nas
atribuições de posição e nas relações em torno do ‘saber’ do Maracatu.
Na conclusão, retomo alguns pontos centrais, através da situação do Carnaval
de Páscoa.
* * *
As falas e diálogos de meus interlocutores, registrados durante o trabalho de
campo (entrevistas e diário), são citados ao longo do texto de duas maneiras: trechos
longos que identificam ou não o interlocutor (o caso de não identificação ocorre por
não julgar apropriada a exposição) e trechos curtos, que se misturam ou são
propositalmente apropriados pela minha fala.
Sendo meus interlocutores participantes principalmente de dois Maracatus (com
nome) “de Ouro”: Leão de Ouro de Condado e o (Ponto de Cultura) Estrela de Ouro
de Aliança, utilizarei ao longo do texto as denominações Leão e Estrela, com a
intenção de ajudar o leitor a se familiarizar com os dois grupos sem confundi-los.
27
As palavras em itálico são termos nativos, as palavras com aspas duplas são
conceitos de outros autores, ou citações, e as aspas simples são usadas para delimitar
conceitos a que estou me referindo, ou os quais pretendo grifar.
26
O filme foi viabilizado por uma verba obtida através do Edital de Memória Camponesa do NuaP (PPGAS).
A idéia era fazer um filme que reunisse meu material de pesquisa, filmado em 2004 - juntamente com Emilio
Domingos - e o material de Tatiana Gentile, filmado em 2006, período em que ambas estávamos no campo.
27
Para sua denominação, os Maracatus elegem o seu ‘símbolo’, seja animais como leão, águia, pavão, seja
elementos da natureza como estrela, chuva, seguidos de características ou adjetivos como, brilhante, da mata,
vencedor, de ouro, etc. Há muitos grupos com o mesmo nome, por exemplo, Leão da Mata, e o que os
diferencia é o nome da cidade a que pertencem.
19
Capítulo 1 - O Encontro: a entrada no campo
1.1 - A Sambada do Leão: o Pré-Carnaval 2004
Assim que cheguei ao Recife, em janeiro de 2004, para dar início à pesquisa de
campo, dois amigos que moram na capital pernambucana convidaram-me para
acompanhá-los a uma sambada (ensaio) do Maracatu de Baque Solto, onde iriam
brincar naquele carnaval. Faltavam duas semanas para o carnaval, quando chegamos à
cidade de Condado
28
, para o último ensaio do Maracatu de Baque Solto Leão de Ouro.
O dono do Maracatu, Biu Alexandre,
29
nos recebeu dizendo: “vem jantar, que a noite
vai ser longa”. Essa foi a primeira de muitas noites que passaria em claro, com o povo
do Maracatu. nessa primeira viagem à Mata Norte, definiu-se o grupo que eu
acompanharia, melhor dizendo, no qual eu brincaria de baiana, durante o carnaval
daquele ano: o Maracatu de Baque Solto Leão de Ouro de Tupaoca
30
.
Esse Maracatu havia sido transferido de Tupaoca, município de Aliança, para
Condado, cidade onde moram Biu Alexandre e sua família, que tomam conta de dois
brinquedos
31
: o Maracatu e o Cavalo-Marinho
32
.
28
A cidade de Condado tem 24.271 habitantes. A via de acesso é a PE-005/062(P). A agricultura é a principal
atividade econômica, produzindo: batata doce, mandioca, abacate, laranja, cana-de-açúcar, milho e coco.
29
Biu, na região, é apelido de Severino.
30
No ano de 2005, o Leão de Ouro passou a levar o nome da cidade onde está sediado, Condado. Tupaoca é o
nome da cidade do antigo dono e fundador do Leão, Severino Memezo.
31
Há diversos termos, usados tanto para se referir ao Maracatu, quanto ao Cavalo-Marinho, tais como:
brincadeira, sambada, samba, etc. As diferenças intrínsecas às duas brincadeiras tornam estes termos
categorias ao mesmo tempo gerais e especificas.
32
Segundo Acselrad (2002:21), essa brincadeira é uma: “mistura de dança, música e poesia, organizados sob
a forma de espetáculo de rua, com duração de até oito horas, a brincadeira do Cavalo-Marinho teve sua
origem nas senzalas da Zona da Mata Norte pernambucana. Nos últimos tempos, a brincadeira tem sofrido
significativas mudanças. Alterações na duração do espetáculo, na sua localização dentro das festas, no
relacionamento entre os brincadores e destes para com a brincadeira têm contribuído para que esta
experiência, assim como a sua concepção esteja sendo transformada. Aqui todas essas mudanças nos
interessam não apenas pelo seu caráter sociológico, mas também porque reafirmam uma das mais
20
Estas duas brincadeiras, o Maracatu e o Cavalo-Marinho, quando não estão se
apresentando, brincando, constituem um conjunto de objetos e artefatos (roupas,
chapéus, surrões, golas, guiadas, instrumentos musicais, máscaras, arcos, bandeira,
etc.). Isto é, fora da situação de brincadeira, o conjunto de objetos fica guardado:
‘adormecido’ ou em manutenção
33
. O espaço destinado a este fim é comumente
chamado de sede, terreiro ou barraca, lugar que agrupa o brinquedo e a brincadeira. O
lado de fora da sede, o terreiro, é onde acontecem as sambadas. No carnaval, esses
artefatos e roupas são ‘animados’ pelas pessoas que brincam.
34
Nas sambadas, todos
brincam à paisana.
“A sambada é o ensaio, que a gente tem que treinar o povo.
Eu não gosto de ensaio, por mim saía no dia (do carnaval)
mesmo. A gente faz porque o povo gosta. Pelo menos vai
treinando e o mestre vai se desenvolvendo, outra, para
aprumar o terno. Se um cabra não vem, aí arruma outro, para
no dia do carnaval estar tudo certo. Tem também a sambada
com dois mestres que é ensaio também. que são 2 mestres
discutindo um com outro. A sambada é assim, eles vão cantar
como cantador de viola. O mestre de Maracatu é o mesmo
que um cantador de viola, discute eles dois, depois
abraçado eles dois. A disputa é na poesia, não é material, não
é pessoalmente. Agora tem gente que briga, o que abraça com
a brincadeira é a torcida.” (Biu Alexandre).
O dono do Maracatu trata principalmente dos assuntos de ordem estrutural e
administrativa, define as pessoas que irão compor o grupo, seus personagens, negocia
os cachês, compõe o terno, conjunto de 5 tocadores dos instrumentos de percussão: o
tarol (caixa), bombo (surdo), mineiro (ganzá), póica (cuíca) e gonguê (agogô) e os
músicos do Maracatu, responsáveis pelos instrumentos de sopro (trombone, piston,
significativas características do Cavalo-Marinho: sua fatalidade móvel - uma capacidade de conviver com a
alteridade, que constitui um tipo de identidade em movimento. Movimento este que faz com que toda
brincadeira seja uma experiência única.”
33
Trocam as lantejoulas ‘sem brilho’ das golas, restauram vestidos, etc.
34
“Um boi-artefato, que baila, morre e ressuscita, é foco de brincadeiras pelo país a fora” (Cavalcanti,
2006:69), no carnaval pernambucano há vários bois. Em Pernambuco, costuma-se chamar de alma a pessoa
que brinca no boi, isto é, embaixo do boi. Esse termo me parece significativo pois dá a idéia de que o artefato
e a alma dão vida ao boi.
21
clarinete, saxofone, etc.). A sambada é um espaço de organização, treinamento e
negociação para o carnaval. Configura-se uma situação em que as pessoas que têm
interesse em brincar no Maracatu podem demonstrá-lo ali. O dono, ou pessoas ligadas
ao Maracatu fazem convites, estabelecem-se compromissos entre o dono do Maracatu
e os participantes. É um dos momentos em que se assumem responsabilidades e
posições dentro do Maracatu.
35
As pessoas que brincam em um único grupo de Maracatu o, geralmente,
moradores de diferentes cidades, sítios, chãs da região da Mata Norte. Nas ocasiões de
“sambada”, ensaio, apresentação, muitas vezes é necessário que o dono do Maracatu
providencie um meio de transporte para locomover, por exemplo, um integrante de
posição, ou um número grande de integrantes que moram em outra cidade.
A comunicação da sambada ou da apresentação de uma brincadeira é falha
em algumas situações, justamente pela dificuldade em espalhar as notícias por todos
esses lugares, alguns de difícil acesso. Mandar recados, fazer visitas, ligar para
telefones públicos e o boca-a-boca são alguns dos meios mais utilizados para avisar os
brincadores sobre um compromisso. Com a facilidade dos aparelhos de celular, a
comunicação por essa via é usada, em pequena proporção, devido ao alto custo das
chamadas e o baixo poder aquisitivo das pessoas. A falha na comunicação de um
brinquedo é motivo de desentendimentos, mágoas e substituições. “A consideração e o
cuidado (...) fazem parte da relação de confiança que permeia a brincadeira e seus
desdobramentos, e começa a se esboçar na fase de aviso da brincadeira.” (Acselrad,
2002 : 49).
A sambada é também forma de diversão, para quem brinca e para quem
assiste. É o momento oportuno, para quem gosta de Maracatu, de poder ouvir o
mestre sambar (cantar versos), dançar, beber e principalmente observar e aprender a
sambar Maracatu. O Samba, além de ser um dos estilos poéticos do Maracatu,
35
Muitos compromissos são estabelecidos cotidianamente, através de recados, conversas, ou articulações
variadas entre as pessoas. Combina-se por exemplo de tirar as medidas da pessoa para fazer uma roupa, ou
consegue-se emprestado uma arrumação, combina-se de costurar uma gola, etc.
22
improvisado em seis ou dez linhas, se liga a sentimentos e atitudes diante da
brincadeira: gostar, brincar, dançar, lutar, responder verso, beber, farrar, fazer resenha
(fazer gozação), se interessar, observar, curtir, aprender, etc.
36
É possível pensar em diversos aspectos que singularizam a situação da
sambada, em contraste com a configuração das apresentações dos três dias de carnaval
de um Maracatu. Numa sambada, todos estão à paisana, o que torna menos evidente a
separação entre o público e os participantes do Maracatu. Na sambada, durante toda a
noite o clima é de descontração e festa. Possivelmente, os momentos mais tensos são
decorrentes de brigas ou confusões entre os cabras mais bicados (bêbados). Durante os
dias de carnaval, os muitos contratos de apresentações de um Maracatu, e
principalmente a competição na passarela, são motivos de muita tensão ao longo dos
três dias. O clima mais relaxado e fanfarrão fica reduzido às ‘frestas’ do carnaval:
viagens de ônibus, ou momentos de espera entre as apresentações.
A dança é outro ponto que diferencia os dias de carnaval e a sambada.
37
Muitos movimentos, danças e lutas acontecem somente na sambada (ou em momentos
de espera/descontração durante o carnaval), isto é, o samba neste sentido da
brincadeira no terreiro não é parte da performance das apresentações do carnaval.
Os joelhos sacudindo flexionados dão base para uma dança-jogo, com
movimentos que enganam o outro. Ataca e desvia. Luta e brinca. É um enfrentamento
amigável, entre dois caboclos, que lembra um jogo de capoeira
38
. O cabo de vassoura
ou a lança manejada pelos caboclos pode ser utilizada nessa luta.
A manobra é um movimento do Maracatu que envolve todos os seus
participantes e que é invariavelmente realizado, tanto na sambada, quanto na evolução,
ou apresentação do Maracatu nos palcos carnavalescos e na passarela. As duas
36
Samba, no Brasil, constitui um tema interessante, para pensar a diversidade musical que este gênero
propicia, nas várias regiões do País. A diversidade do ritmo, a dança e os sentidos sociais singularizam
diferentes sambas, embora, num plano geral, pareçam estar relacionados a situações festivas.
37
Esta dança a que me refiro pode ser vista no DVD Baque Solto, no início da Segunda-Feira de Carnaval.
38
Capoeira: jogo-luta-dança em roda, ao som de atabaques, pandeiro, agogô e berimbau.
23
manobras, realizadas no início e no final da noite de sambada, ‘abrem’ e ‘fecham’ o
samba. Nos três dias de carnaval, como veremos adiante, as manobras são parte dos
rituais de chegada e entrega que marcam o ciclo: o início e o fim do carnaval.
O mestre do Maracatu conduz a manobra, cantando uma marcha (versos em 4
linhas de sete sílabas, a/b/c/b, com a repetição, a resposta, das duas primeiras linhas)
sempre intercalada com o terno e os músicos. Os movimentos da manobra são sempre
feitos ao som de uma marcha, nunca enquanto o mestre canta outros tipos de verso de
Maracatu como: samba (10 linhas de sete sílabas, com resposta na 5ª e 6ª linhas), galope
ou samba em seis (6 linhas de sete sílabas, resposta nas duas primeiras linhas), samba
curto (igual ao galope, mas a primeira linha tem 4 sílabas apenas), samba curtinho (4
linhas de sete sílabas).
39
Todos os estilos de versoo cantados pelo mestre, alternando-se com o toque
do terno e a melodia dos músicos. “A apresentação começa com o apito do mestre,
que faz vários silvos rápidos, instigando a entrada do terno; este, toca sempre em
andamento super veloz, parando ao novo sinal do apito para a nova entrada do mestre.
O terno e o mestre vão se alternando até o final.” (Santos, 2005: 32)
As respostas aos versos podem ser feitas por um contramestre, alguém que tem
a intenção de ser mestre e criar versos (ou que é mestre e está na posição de
contramestre) ou, na falta deste, por uma ou mais pessoas que respondam aos versos
40
.
Na sambada “até qualquer bebo responde,” como resenha Biu Alexandre. O mestre do
Leão, Negoinho, não tinha um contramestre, ou outra pessoa fixa que respondesse os
versos, quem respondia eram alguns tocadores do terno.
41
Enquanto o mestre canta
versos, todos os personagens do Maracatu ficam parados (em ou agachados).
Quando o terno começa a bater, o movimento da manobra é feito.
39
Ver anexo 3. Esquema Rápido de Versos de Maracatu.
40
No carnaval, se o Maracatu não tem um contramestre, algumas baianas podem ser chamadas para responder
aos versos.
41
Durante o carnaval (2004), isto foi um problema que se refletiu na rouquidão do Mestre. Ao final dos três
dias, Negoinho estava quase afônico.
24
“Marcha, que chama quadra, é manobra, quando o
Maracatu evoluindo. Marcha puxa o brinquedo avante, é
pra botar Maracatu em cima do palanque, tirar de cima do
palanque. O mestre tira outra marcha, apita e todo mundo
abaixa. O Samba é pra ficar levantando guiada, galope.
Todo mundo parado levantando a guiada. Samba é pé-de-
palanque. Galope é o samba de três, galope é o samba curto.
Três pernas, Galope tem um taco de marcha, um taco de
samba. Três pés de samba.” (Luiz)
Na manobra, os caboclos de lança formam dois cordões, também chamados de
trincheiras, que envolvem o miolo, formado pela bandeira, a dama da boneca, a corte
(rei, rainha, guarda-chuvas), o arreiamar, as baianas, o terno.
42
A manobra acontece de
forma ágil: o Maracatu move-se rapidamente em diferentes sentidos, finge que vai para
um lado e sai para outro. Os movimentos da manobra são como uma “estratégia de
guerra que faz que vai para um lado e vai pro outro,” de acordo com Biu Alexandre. O
mestre de caboclos é quem propriamente manobra o Maracatu, comandando os
movimentos e as direções.
Naquele sábado, a sambada aconteceu na frente da sede, no bairro de Novo
Condado. A sede do Maracatu e do Cavalo-Marinho, nessa época, ocupava a mesma
casa onde Biu Alexandre vivia com a mulher e os três filhos mais novos. Os poucos
participantes presentes estavam todos à paisana (apenas em dois momentos, ao longo
da noite, apareceram um ou dois caboclos com arrumação): os tocadores do terno, o
mestre do Maracatu, alguns caboclos que dançavam manejando um cabo de vassoura
representando a guiada (lança); o arreiamar; duas baianas e um pequeno público.
Feita a manobra, a sambada teve início e se estendeu noite adentro, regada a
pitu
43
, cerveja e umas ‘comidinhas,’ vendidas pela mulher de Biu Alexandre. O Mestre
sambou e galopeou, animando os caboclos que dançavam movimentando a guiada,
‘lutando’.
42
Ver Anexo nº. 2 - personagens e desenho do Maracatu.
43
Marca de aguardente de cana, produzida e muito consumida no estado de Pernambuco, a ponto do nome
Pitu ser um sinônimo de cachaça.
25
Ao longo da sambada, Biu Alexandre veio conversar e me perguntou se eu
queria brincar de baiana. Eu lhe disse que não sabia ‘brincar de baiana’ e ele
respondeu: “brincar de baiana é muito cil, é querer.” Dona Maria, mulher de Biu
Alexandre, tirou minhas medidas para fazer a roupa de baiana e ficou combinado que
eu estaria lá no Domingo de Carnaval.
1.2 - Pós-carnaval 2004: o Toque para Orixá em Chã de Camará e outros contatos
Nesse ano de 2004, fiquei um mês e meio entre idas e vindas da Zona da Mata
para o Recife. Dona Maria, mãe de Ederlan, me recebeu diversas vezes na sua casa
em Condado. Sempre que eu me despedia, ela repetia: “você não tem que agradecer de
ficar em minha casa, afinal você não pára aqui, é que nem Ederlan, roda muito.
Conheci Ederlan no sábado, antes de ir para a sambada do Leão de Ouro, quando fui
com meus amigos até a casa dele, entregar uma máscara de Cavalo-Marinho. Desde
então, Ederlan, na época com 23 anos, tornou-se um dos meus principais
interlocutores, grande amigo e companheiro de estrada. Ederlan me acompanhou em
diversas viagens pelas cidades da Zona da Mata
44
, presenciou entrevistas, levando-me à
casa de pessoas que achava que eu gostaria de conhecer.
Ele não participa fixamente de nenhum grupo de Maracatu, como bem disse
sua mãe, “ele roda muito”. Ederlan freqüenta diversos Maracatus, circula pelo
universo de brincadeiras populares da Mata Norte, atuando em diferentes posições. É
sempre chamado para substituir algum tocador, em grupos de Maracatu ou Cavalo-
Marinho
45
. A circulação nesse meio exige certa sutileza e delicadeza, uma vez que os
grupos de Maracatu e Cavalo-Marinho nutrem entre si uma grande rivalidade. Quem
circula também agencia informações, o que na maior parte dos casos é ritualmente
escondida de seus rivais.
44
Além de Condado, estive em outras cidades da Zona da Mata durante o carnaval, numa verdadeira
peregrinação. E, após o período carnavalesco, viajei, realizando entrevistas (Condado, Itaquitinga e
Upatininga); em Aliança, assisti à Reunião da Associação de Maracatus e ao Toque para Orixá no sítio Chã de
Camará.
45
Além de tocar, Ederlan bota figuras no Cavalo-Marinho.
26
Goldman (2003) assemelha algumas técnicas do trabalho do etnógrafo no
campo, com certas formas de aprendizado, presentes em culturas orais. No candomblé
essa busca é denominada “catar folha”:
“Alguém que deseja aprender os meandros do culto deve logo perder a
esperança de receber ensinamentos prontos ou acabados de algum mestre; ao
contrário, deve ir reunindo (‘catando’), pacientemente ao longo dos anos, os detalhes
que recolhe aqui e ali (as ‘folhas’), com a esperança de que, em algum momento, uma
síntese plausível se realizará.” (op.cit.:455)
A busca pelos ensinamentos é considerada uma demonstração do interesse,
amor, ou paixão pela brincadeira. Os Maracatuzeiros consideram ter interesse uma
motivação fundamental para ser bom sambador. Essa dinâmica, de transmissão e a
apreensão desses conhecimentos, se em diferentes registros de fala e escuta,
percepção e ação, observação e imitação, colecionamento e singularização.
Cada grupo compõe-se de uma trama de relações, em torno dos segredos e do
acesso aos conhecimentos, que é ligada a uma prática - em que a hierarquia interna se
estrutura ao redor da detenção dos saberes em questão estarem entremeados de
segredos. O saber é para os iniciados. A própria travessia de obtenção de acesso ao
conhecimento faz parte desses rituais iniciáticos, que passam a garantir o direito do
saber e a responsabilidade de cuidar. A transmissão dos saberes da brincadeira está
ligada às relações de confiança e reconhecimento do ‘aprendiz’ em alcançar o
conhecimento, como veremos no Capítulo 3.
Ederlan, sendo um habilidoso ‘catador de folhas’, circula com certa liberdade
entre alguns grupos de Maracatu e Cavalo-Marinho. Dentro dessa ampla rede de
relações e circulação no meio, Ederlan mantém uma relação estreita com o Maracatu
Estrela de Ouro de Aliança. E foi através dele que, pela primeira vez, fui a Chã de
Camará.
27
O breve contato que tive com integrantes do Estrela de Ouro, no ano de 2004,
foi num toque para orixá, no centro espírita de Seu Mário, que fica dentro do sítio Chã
de Camará. Centro Espírita é usualmente chamado de xangô, catimbó, casa de
espírito, ou simplesmente centro. Nessa época, Chã de Camará ainda não era Ponto de
Cultura, mas era um local conhecido por conta do Maracatu Estrela de Ouro, um
dos maiores e mais famosos.
Assim que pisei em Chã de Camará, procurei por Deda, a rainha do Estrela de
Ouro, que eu havia conhecido rapidamente no Rio de Janeiro e que me havia dado as
referências para chegar lá. Deda era mulher de Seu Mário, o Pai-de-santo que estava
oferecendo o toque. Deda me recebeu alegremente dizendo: “eu fiquei te esperando no
carnaval”. Contei que havia brincado de baiana com Biu Alexandre e ela disparou:
“mas eu estava te esperando para brincar com a gente”. Lamentou que eu não tivesse
brincado o carnaval no Estrela e disse: “para o ano você vem para brincar com a
gente”.
Depois de nos servir o café
46
na sua casa, Deda apresentou seu marido, o Pai-de-
santo do centro. Mario e Deda formavam um casal na vida real e na realeza do
Maracatu: são respectivamente o rei e a rainha do Estrela de Ouro.
47
Antes de começar o toque, Deda levou-nos ao terreiro que ficava a poucos
metros de sua casa e nos mostrou detalhadamente os altares do centro espírita, o
quarto com os objetos rituais e as comidas preparadas para a festa.
Logo que o toque começou, avistei Biu Alexandre e sua esposa, Moça,
sentados, assistindo e cantarolando o ponto de Exu que dava início à festa.
46
Lanche da noite. come-se carne ou frango, fubá também chamado de quarenta (cuscuz soltinho), macaxeira
(mandioca), inhame, pão, biscoito, manteiga, café, etc.
47
Nos Maracatus de Baque Virado, o rei e a rainha estão no topo da ‘hierarquia’ dos personagens,
especialmente a rainha, posição de grande prestígio. No Maracatu de Baque Solto, os personagens de maior
destaque são o mestre, o mestre de caboclo, caboclos de frente e arreiamar, etc. O rei, a rainha e a corte são
personagens incorporados pela política da FCP, que não teriam tanto destaque. No caso do Estrela de Ouro, a
‘posição’ de Rei e Rainha adquire importância dentro do brinquedo, que, Mário e Déda exercem papéis de
liderança na comunidade de Chã de Camará e no Maracatu.
28
A festa propriamente aconteceu com seqüências de toques e cantos para Exu,
Ogum, Oxossi, Xangô, Iansã, Oxum, Iemanjá, Oxalá. Alguns pontos eram os mesmos
que se cantam em centros de umbanda no Rio de Janeiro. Ao final do toque, foram
servidos: farofa, frango, arroz, vatapá, acarajé, camarão, primeiro aos filhos de santo e
depois ao público.
No intervalo do toque, Biu Alexandre, com uma expressão de surpresa por
encontrar-me ali, sorriu dizendo: “Não sabia que você era catimbozeira.”
Mal troquei algumas palavras com Biu Alexandre, Deda conduziu-me para a
sede do Maracatu Estrela, um casarão conectado ao centro espírita. O casarão da sede
do Maracatu é ligado, através de um cômodo, à pequena casa do centro espírita. Na
sede, Deda mostrou-me uma foto de Severino Batista vestido de caboclo, com uma
arrumação antiga (gola pequena, surrão amarrado com arame). Batista era o dono do
sítio, um pequeno proprietário rural, que foi fundador do Maracatu Estrela e também
de um Cavalo-Marinho. Com a morte de Batista, o Maracatu ficou sob a
responsabilidade de seu filho Zé Lourenço, ou Batista
48
. Quando Batista era vivo, o
local onde hoje é o centro espírita funcionava como quarto de fazer cangalha, cesta feita
de palha, amarrada em cima do burro para transportar a cana, que era vendida para
usinas e engenhos. Conforme conta Zé Duda, o Mestre da Estrela:
“Batista trabalhava de ciência. Agora, no sítio dele, tinha o
centro de xangô de um tal do Barrete, Nego Barrete. Não era
ali na vila da frente, era um outro que tinha de lado, no rumo
do sítio... tinha a casa dele. (Nego Barrete) era xangozeiro
dali e tesoureiro do Sindicato de Aliança, morreu novo. Foi
tempo que Batista adoeceu e morreu também. Batista morreu
em 1991. O (centro) de Mario fazendo 11 anos, é 11 anos
que ele botou aquele centro ali. Mas antes não era ali, era
do lado, mas Mario foi pra ali, falou com (Lourenço)
Batista... e um valor pra aquilo da cibola
49
. Ali naquele
centro era onde a gente fazia cangalha. Naquela casa
trabalhava 12 pessoas e por trás delas trabalhava 6 fazendo
capa, era 12 na cangalha e 6 fazendo capa atrás.”
48
O Cavalo-Marinho que está no sitio, hoje
49
Expressão que atribui intensidade: “da cibola”
29
Deda falou durante muito tempo sobre a personalidade de Batista e como
conduzia o Maracatu. Se ela queria convencer-me, da importância de mestre Batista
50
e
de Chã de Camará no universo das brincadeiras da região, conseguiu. O toque para
orixá, no terreiro de Chã de Camará, revelou-se um lugar privilegiado, para pesquisar
o conjunto de relações que reúnem a estrutura e a organização de um grande Maracatu
(Estrela de Ouro), com as práticas religiosas de um centro espírita (Centro Espírita
Nossa Senhora da Conceição, Pai Mário).
Os catimbós da região, como são denominados cotidianamente, são cultos rurais
que se assemelham aos rituais da jurema no Recife, tal como descreve Carvalho (2003:
89): “os cultos que introduzem entidades várias, além dos orixás, tais como caboclos,
mestres, exus, pretos velhos, pomba-giras. (...) é possível que rituais similares aos que
descrevo, como pertencentes ao mundo da jurema, (sic) apareçam em outros escritos
definidos como rituais de umbanda, ou de quimbanda, ou de macumba.”
Este vínculo entre o Maracatu e uma religiosidade específica me chamava
atenção, pois, mesmo que o Maracatu não tenha uma relação direta com as práticas de
um centro espírita, como é o caso do Estrela, o universo do Maracatu traz uma
constante referência cosmológica e ritual ao universo dos catimbós, como é o caso do
Leão.
O toque foi o evento que encerrou o meu campo de 2004: uma festa de orixá
num centro espírita, que fica dentro do sítio Chã de Camará, ao lado da sede do
Maracatu Estrela de Ouro. O dono do Maracatu Leão, com o qual eu passei o
carnaval, freqüenta, isto é, assiste aos toques, deste e de outros centros espíritas da
região. Foi também no toque de orixá que conheci Joabe, um jovem músico que, tal
como Ederlan, se relaciona com diferentes grupos de Maracatu e mora com a família,
na sede da Associação de Maracatus de Baque Solto, em Aliança.
50
Traçando um paralelo, a função que no Maracatu é denominada dono, na brincadeira do Cavalo-Marinho é
chamada mestre.
30
Esta primeira ida ao campo definiu um dos principais objetivos da pesquisa de
então: articular as relações entre o carnaval, a religiosidade e os modos de aprendizado
dentro de um Maracatu de Baque Solto.
No Leão de Ouro, o fato de ter brincado o carnaval gerou uma cumplicidade
com aquelas pessoas, especialmente Aguinaldo e Biu Alexandre, que me abriram as
portas desse mundo complexo e masculino, cheio de segredos e manobras.
As viagens com Ederlan, pela Zona da Mata, deram-me um panorama da
região e da heterogeneidade dos grupos de Maracatu. Conheci, através dele, jovens
envolvidos com Maracatu, que se relacionam com as brincadeiras do Maracatu e do
Cavalo-Marinho com um espírito de bricolagem, em que o ‘catar folhas’ não constitui
um julgamento de ‘certo’ ou ‘errado’, mas um colecionamento da diversidade de
formas do saber-fazer.
51
1.3 - Dois Carnavais: dois Maracatus
No ano de 2006, voltei à Zona da Mata Norte, para fazer o campo para a
pesquisa da dissertação. Optei por aceitar o convite de Deda e brincar o carnaval no
Maracatu Estrela de Ouro de Aliança. Minha intenção era ter um horizonte
comparativo, no que se refere à dinâmica específica dos três dias de carnaval e, assim,
ampliar também minha rede de relações com integrantes de Maracatus. Melhor
dizendo, isto foi o que consegui fazer. De início, meu interesse era permanecer mais
tempo em Chã de Camará, pensar as relações e prestações de um Maracatu, que tem
dentro do próprio terreiro um Centro Espírita (cujo Pai-de-santo é o rei) e que se
tornou, em 2005, um Ponto de Cultura
52
. Considero fascinante o trabalho a ser feito
51
Lévi-Strauss (2002) usa o exemplo da bricoláge (bricolagem - arte de trabalhar com restos de matérias já
usadas, reunindo-as em um novo conjunto) para exemplificar, no plano prático, aquilo que, no plano teórico
ou especulativo, seria uma ‘ciência do concreto’.
52
Projeto do MinC iniciado no governo Lula. Os pontos de cultura são: “iniciativas desenvolvidas pela
sociedade civil, que firmaram convênio com o Ministério da Cultura (MinC), por meio de seleção por editais
públicos, tornam-se Ponto de Cultura e fica responsável por articular e impulsionar as ações que já existem
nas comunidades. O Ponto de Cultura não tem um modelo único, nem de instalações físicas, nem de
programação ou atividade. Um aspecto comum a todos é a transversalidade da cultura e a gestão
compartilhada entre poder público e a comunidade. Para se tornar um Ponto de Cultura é preciso participar
31
nesse sítio, que, Chã de Camará reúne, no mesmo terreiro, o centro espírita, o
Maracatu e outras brincadeiras: Cavalo-Marinho, Coco e Ciranda e, mais
recentemente, o Ponto de Cultura. Tal configuração apresenta, de forma bastante
concreta, uma situação (contemporânea) dos Maracatus, em que convivem a ‘cultura’
e a ‘religião’, que (no passado) eram consideradas noções antagônicas, como
mostraremos adiante.
“Maracatu era uma religião, onde eles chegavam fazendo
suas orações, se apresentando. Antes de se apresentar, faziam
seus rituais de corte, de chegar e oferecer animais para os
orixás, oferecer o sangue. E isso era o que fazia o Maracatu
se afastar da sociedade, era a religiosidade. Depois, com o
passar do tempo eles foram percebendo isso e eles abriram
mão.” (Joabe)
Retomando o que estava dizendo acima, no desenrolar da pesquisa, a
permanência em Camará após o carnaval foi se mostrando difícil, por algumas
circunstâncias. O fato de eu ter brincado dois carnavais, com diferentes grupos de
Maracatu, teve algumas implicações significativas, tanto nas relações com os meus
interlocutores, como nos próprios rumos da pesquisa.
Os dois Maracatus, com os quais convivi mais intensamente, estão sediados em
terreiros próximos. Condado, onde se localiza a sede do Leão de Ouro, fica a quinze
minutos de carro
53
do sítio Chã de Camará, pertencente ao Município de Aliança,
recentemente conhecido como Ponto de Cultura Estrela de Ouro.
Em 2004 eu brinquei no Leão, “fiz amizade” e, dois anos depois, voltei à
região e brinquei de baiana em outro Maracatu o Estrela. Essa atitude causou certo
da seleção por meio de edital público – até hoje a Secretaria de Programas e Projetos Culturais do MinC, que
coordena o Programa Cultura Viva, já emitiu quatro editais. Quando firmado o convênio com o MinC, o
Ponto de Cultura recebe a quantia de R$ 185 mil (cento e oitenta e cinco mil reais), divididos em cinco
parcelas semestrais, para investir conforme o projeto apresentado. Parte do incentivo recebido na primeira
parcela, no valor mínimo de R$ 20 mil (vinte mil reais), é utilizado para aquisição de equipamento
multimídia em software livre (os programas serão oferecidos pela coordenação), composto de
microcomputador, mini-estúdio para gravar CD, câmera digital, ilha de edição e o que for importante para o
Ponto de Cultura.
53
Kombi, Van, ou carro lotação são os meios de transportes mais comuns na região.
32
desconforto aos meus amigos do Leão. Inicialmente, eles não manifestaram nenhum
sinal de incômodo, mas com o tempo, passaram a me ‘alfinetar’, por eu não ter
brincando no Leão. O grande prazer do Carnaval é brincar entre amigos, entre
pessoas com quem temos certa intimidade. Afinal de contas, o Maracatu vale é pela
amizade”, como repete Aguinaldo. Se eu havia feito amizade no Leão, não tinha
sentido (para eles) a ‘mudança’ de Maracatu.
À minha ‘gafe’ com o Leão, somou-se a existência de alguns conflitos, de
ordem pessoal, envolvendo meus principais interlocutores em Camará, que me
pareceram definir a impossibilidade de passar longos períodos no Sítio-Ponto de
Cultura.
Depois do carnaval de 2006, a cidade-base da pesquisa foi novamente
Condado, como em 2004, onde moram meus principais interlocutores do Leão
Aguinaldo, Biu Alexandre, Martelo, Martim, Rosil e o casal Bel e Eliane além de
Ederlan e alguns caboclos do Estrela – Luiz, o mestre de caboclo, Badango e outros.
Outra questão, que gerou certos desconfortos, foi a minha ‘hospedagem'. Fiquei
boa parte do tempo na casa de Aguinaldo e sua família: a mulher, Vanice e os três
filhos, Clécia, Ine e Minho. Para não ficar pesado para a família que me acolheu, ‘me
mudei’ para casa de Dona Maria, mãe de Ederlan. Essa mudança criou certos
ressentimentos, por parte de meus anfitriões, que reforçavam a conduta de minha
atitude de brincar em outro Maracatu.
A narrativa etnográfica parte deste contraste, resultante das duas experiências
de campo que criaram um foco específico de observação, participação e circulação
entre os Maracatuzeiros.
O fato de eu ter brincado de baiana cria um vínculo de amizade e
compromisso com aquelas pessoas e aquele Maracatu, e minha estratégia de brincar
em outro Maracatu, de alguma forma, me tornou alvo de disputa entre aquelas
33
pessoas, enquanto ‘pertencentes’ a Maracatus distintos. Como a disputa faz parte do
‘jogo’, não houve grandes contratempos, afinal (cito novamente Aguinaldo): “carnaval
são 3 dias, amizade é pro ano todo”.
A amizade e a confiança dessas pessoas geraram atitudes de solidariedade dos
meus interlocutores, para com a pesquisa, isto é, muitos deles passaram a ‘fazer
pesquisa’ comigo, sugerindo pessoas com quem eu deveria conversar, me apresentando
a amigos de seu círculo de relações e ‘entrevistando’
54
essas pessoas junto comigo. A
situação da entrevista em conjunto se repetiu muitas vezes. Meus interlocutores faziam
questionamentos que -- imaginavam eles -- eu desejaria fazer, ‘traduziam’ minhas
perguntas, provocavam o ‘entrevistado’ insinuando que as informações estavam sendo
ocultadas: “ele não está dizendo tudo que sabe não, diz a ela”.
Em algumas circunstâncias, a entrevista gravada, que eu realizei no último
mês do campo, era quase uma ‘exigência’ de meus interlocutores, sendo a gravação
uma forma de valorizar o ‘conhecimento’ de determinada pessoa, ou de assegurar a
importância dela naquele meio.
1.4 - O Leão de Ouro de Condado
O ano de 2006 foi, para o Maracatu Leão de Ouro, de muitas conquistas. Ao
final do carnaval, foi vice-campeão do grupo 2, desfilando com as agremiações
campeãs do carnaval multicultural, que aconteceu junto com as comemorações do
aniversário de 469 anos da cidade do Recife, no Marco Zero.
O Leão de Ouro saiu com uma nova bandeira portando o nome da sua nova
cidade: Condado. Cada Maracatu de Baque Solto traz bordado na sua bandeira o
nome, (Leão), com uma característica ou adjetivo (de Ouro), a cidade de
pertencimento (atualmente, Condado) e a data de fundação (1972).
54
Refiro-me à entrevista aqui como conversa, gravada ou não.
34
O Leão de Ouro foi fundado em 1972 na cidade de Tupaoca, Aliança, por
Severino Memezo. Em 2001, Biu Alexandre passou ser o dono do Maracatu, a pedido
de Memezo, que não tinha mais condição de cuidar do brinquedo, por motivo de
saúde. Memezo entregou o Maracatu para Biu Alexandre, em troca dos remédios de
que precisava.
“O antigo dono, foi o tempo que ele adoeceu e eu tomei
conta do Maracatu. Até que eu fiz um negócio para ele, fui
dar um remédio para ele, e ele me passou o Maracatu, e
estamos até hoje traquejando. Ele adoeceu e não podia
assumir as coisas que o Maracatu precisava. a gente fica
com o Maracatu e estamos tentando levantar. Eu peguei o
Maracatu derrubado.” (Biu Alexandre)
O título de vice-campeão foi uma prova, para Biu Alexandre, de que ele está
conseguindo ‘levantar’ o Maracatu. O fato de o Leão ter mudado de dono e de cidade
trouxe a discussão sobre o que é correto estar bordado na bandeira do Maracatu: a
cidade em que foi fundado, ou a cidade em que está sediado? Durante a reunião da
Associação de Maracatus de Baque Solto, logo após o carnaval de 2004, esse debate
sobre a cidade do Leão se manifestou numa briga, em que o dono de outro Maracatu
contestava o fato de a Prefeitura de Aliança ter cedido o ônibus, para transportar o
Leão de Ouro, que estava em Condado. Na época, Biu Alexandre se defendeu,
dizendo que o certo era o Maracatu ter o nome da cidade onde foi fundado.
“(O Leão de Ouro) aqui (em Condado) mas é de Tupaoca,
com o outro dono, desde 1972. Porque é o seguinte: para a
gente tirar de Tupaoca a gente tem prejuízo, pois os povo
daqui não sabe o que é cultura, sabe o que é dinheiro mas não
sabe o que é cultura. E Aliança, com toda a ruindade deles,
pelo menos eles entendem um pouco, e sempre dá uma ajuda.
Os daqui não ajuda nada, eu não vou tirar o Maracatu de
Tupaoca para botar aqui, fica o pessoal daqui (Condado) e o
Maracatu é de Aliança. É de Aliança, não posso tirar de lá,
quer dizer poder posso, mas não quero.”
(Biu Alexandre, 28/02/2004)
35
De acordo com Biu Alexandre, depois de muita discussão, no ano de 2005, o
Leão de Ouro passou para a cidade de Condado, com apoio do prefeito, Dr. Egberto.
Na mesma linha dos slogans de outras cidades da Mata Norte: Nazaré da Mata, a
Terra dos Maracatus, e Goiana a Terra dos Caboclinhos, a prefeitura de Condado está
investindo na cidade como Terra do Cavalo-Marinho. O vislumbre do potencial de
turismo cultural da região está em pleno desenvolvimento e o pessoal de Maracatu e de
Cavalo-Marinho está muito entusiasmado com a atuação do prefeito. “A gente tem
que agradecer muito ao prefeito, que dando o maior apoio, Dr. Egberto, pois ele foi
o prefeito que entrou na nossa cidade pra dar valor à cultura.” diz Aguinaldo
55
.
Em 2005, a prefeitura inaugurou duas praças na cidade com conjuntos de
fiteiros e uma praça de alimentação
56
. A praça de entrada da cidade ganhou o nome de
Praça Cavalo-Marinho Estrela de Ouro
57
. Em outro ponto da cidade, nomeou-se a
Praça Cavalo-Marinho Estrela Brilhante,
58
em frente à Sorveteria Polar, também
conhecida como Praça do Banco do Brasil.
Esta última é cotidianamente chamada pelos Maracatuzeiros de Praça dos
Caboclos sendo um ponto de encontro do pessoal que brinca Maracatu. Todos os dias
da semana, eles se encontram no fim da tarde, depois de largar o trabalho (às 16hs),
para conversar. Os papos são variados, mas a conversa sobre Maracatu tem um lugar
especial nas tardes da praça. Como grande parte dos caboclos que brincam em Chã de
Camará (Ponto de Cultura) moram em Condado, os assuntos eram quase sempre
sobre os pagamentos que não saíram, as viagens e apresentações do Maracatu, as
histórias do carnaval, os Maracatus vencedores, os “erros” cometidos, e por vai. A
praça é um dos pontos onde as notícias ‘se espalham’.
Biu Alexandre e Aguinaldo avaliam o ‘crescimento’ do Maracatu, como
devido também à atuação da madrinha do Leão de Ouro, a bailarina, coreógrafa e
55
Entrevista de 11/04/2006, Condado.
56
Os fiteiros vendem bebidas, salgados e doces, muitas vezes produzidos caseiramente, por pequenos
comerciantes e fornecidos aos fiteiros.
57
O Cavalo-Marinho de Biu Alexandre, que é dono do Leão de Ouro.
58
O brinquedo de Antonio Teles.
36
diretora Maria Paula Rego. Maria Paula, que dirige a Cia. Grupo Grial, montou
alguns espetáculos sobre Maracatu e Cavalo-Marinho, dos quais participaram quatro
integrantes do Leão de Ouro. As três gerações da família - Biu Alexandre, Aguinaldo
(filho) e Fabinho (neto) - e Martelo, o mais antigo caboclo de lança e Mateus
59
(de
Cavalo-Marinho) da região, que há dois anos brincava no Leão.
60
Fabinho, diferente das gerações anteriores que se dedicavam ao Maracatu e
Cavalo-Marinho, no tempo livre do trabalho na cana, atua profissionalmente com
dança e teatro. Fabinho, 26 anos, saiu de Condado para morar no Recife e trabalhar
como dançarino na Cia. Grial.
Em 2004, a sede do Maracatu e do Cavalo-Marinho era dentro da casa de Biu
Alexandre. Na sede, ficam guardados os surrões, golas, vestidos das baianas,
máscaras, chapéus, roupas das figuras, etc. Em 2006, Seu Biu se mudou para uma casa
financiada pela prefeitura e a sua antiga casa passou a ser exclusivamente a sede do
Maracatu Leão e do Cavalo-Marinho.
Biu Alexandre e, por extensão, algumas pessoas de sua família que o ajudam a
manter as brincadeiras, enfatizam sempre a peleja
61
que é cuidar desses brinquedos.
Em Condado, a família de Biu Alexandre forma o que podemos chamar de
núcleo do Leão de Ouro. Três gerações participam intensamente tanto do Cavalo-
Marinho quanto do Maracatu.
59
Personagem em diversas brincadeiras do boi, e também presente no Maracatu.. No Cavalo-Marinho: o
“Mateus é o palhaço da festa, é o responsável pela ordem e desordem da roda, junto com Bastião, que chega
logo em seguida. Ambos possuem bexigas de boi
l
nas mãos, que têm por função, além de marcar o ritmo do
pandeiro na própria perna, bater naqueles que se intrometem inadvertidamente na roda, geralmente, quando
embriagados. São as famosas ’lapadas’, expressão que curiosamente também significa dose de
cana.” (Acselrad, 2002: 60)
60
Em abril de 2006, Biu Alexandre, Martelo e Fabinho foram com a Cia. Grial, para a Alemanha,
apresentar espetáculos num dos eventos da Copa do Mundo.
61
Pelejar: Lutar, enfrentar as dificuldades da vida, farrear, brincar.
37
1.5 - O Ponto de Cultura Estrela de Ouro
O Maracatu Estrela de Ouro foi fundado em 1966, por Severino Batista. Chã
de Camará é o nome do sítio que, “no tempo de Batista”, tinha uma plantação de
cana, produzia e fornecia, de cangalha a capa, para engenhos e usinas, além de ter
uma vila de casas, onde moravam os trabalhadores.
“Quase todo mundo que morava brincava ali, naquele sítio
(Chã de Camará). Hoje em dia, tem aquelas taperas, mas
antes tinha 22 casas. Mas ali era cheio de morador. Tinha
cana ali. Ele arrendou uma propriedade ali na rua de trás de
Aliança, ele plantava cana, ele comprava cana ali perto de
Timbaúba. Ele era fiscal da Usina Aliança. Eu aprendi fazer
cangalha ali, ele me entregou o quarto de cangalha, eu
trabalhava no quarto de cangalha com 12 homens, fazendo
cangalha pras usina. A gente trabalhava a safra todinha, o
inverno todinho, estocando esteira pras usinas, pros
engenhos. E ele (Batista) era do campo, ficava no jipe, era
fiscal.” (Zé Duda, 17/04/2006)
Duda, o mestre do Estrela, é considerado uma das mais belas vozes de
Maracatu, ‘o peito de aço’. Ele é uma das lideranças do Maracatu, juntamente com
Lourenço - o dono, Seu Luiz, Mário - pai-de-santo e Deda.
Muitos dos atuais donos de Maracatu e mestres de Cavalo-Marinho
brincaram com Batista: Biu Alexandre, Mestre Grimário, Biu Roque, Antonio Teles,
Mariano Teles, entre outros. Ele é muito conhecido, pela seriedade e dedicação com
que levava os brinquedos e a rigidez com que tratava o pessoal.
Após a morte de Batista, em 1991, o Maracatu Estrela ficou dois anos em Chã
do Esconso, sob a responsabilidade de Ramiro, o atual mestre de caboclo do Leão de
Biu Alexandre, e depois passou para Lourenço (chamado também de Batista)
filho do finado Batista.
38
O Ponto de Cultura foi inaugurado em julho de 2005. Desde então, muitas
mudanças foram realizadas: a sede do Maracatu ganhou sala de informática, sala de
aula, biblioteca.
O Estrela era um Maracatu de grande visibilidade, realizava viagens mais
longas, antes mesmo de se tornar Ponto de Cultura. Um exemplo disso é a viagem ao
Rio de Janeiro, quando assisti, pela primeira vez, à apresentação do Estrela no Museu
da República, em 2003. Depois que o sítio se tornou Ponto de Cultura, o Maracatu
passou a viajar muito: Bahia, Sergipe, São Paulo, França, etc. E as festas, que
passaram a acontecer mensalmente no terreiro, consolidaram uma abertura para
receber outros mestres com suas brincadeiras (Coco, Ciranda, Maracatu, Cavalo-
Marinho), bandas regionais, shows de artistas de fora, ampliando o público local e
aprimorando o potencial turístico.
No início de 2007, Lourenço (dono do Estrela) me telefonou,
entusiasmado, com mais uma novidade: Chã de Camará entrou para o projeto de
Reestruturação e Implantação da Rota Engenhos e Maracatus” do PROMATA
62
.
“No sítio Chã de Camará, onde está o Ponto de Cultura Estrela de
Ouro, o ambiente carrega uma importante história da cultura
popular, além do surgimento de grupos de forte expressão da
música pernambucana. Nesse local, o Mestre Batista criou o
Cavalo-Marinho e o Maracatu Estrela de Ouro e, depois, José
Lourenço, seu filho, criou o Coco Popular de Aliança e a Ciranda
Rosas de Ouro.
Grande parte dos recursos obtidos até agora está sendo destinada
para a melhoria de vida dos moradores do sítio Chã de Camará.
Pela primeira vez, em mais de 30 anos, os principais componentes
dos grupos estão discutindo a destinação dos recursos, as melhorias
de instrumentos, figurinos e a produção geral de suas
apresentações. Os mestres do Maracatu, dos Caboclos, do Cavalo-
62
“A existência de Produtos Turísticos estruturados, que possibilitem a elaboração de roteiros, representa um
dos principais pontos para o crescimento da atividade turística em uma região. Desta forma, o PROMATA –
Programa de Apoio ao Desenvolvimento Sustentável da Zona da Mata de Pernambuco -, desenvolveu o
projeto de “Reestruturação e Implantação da Rota Engenhos e Maracatus”, transformando, assim, a Zona
da Mata em um destino turístico que venha a se consolidar no Estado de Pernambuco.” Citado texto do site:
http://www.promata.pe.gov.br/internas/turismo/rotas.asp
39
Marinho, da Ciranda e do Coco estão recebendo R$ 190,00 por
uma apresentação realizada mensalmente no próprio sítio e
também receberão cachê para realizar as oficinas, melhorando
ainda mais os recursos para cada família. Uma bolsa do Ministério
do Trabalho irá contemplar, com R$ 150,00, quarenta moradores
da região, participantes dos grupos culturais, entre os 16 e 24 anos
de idade. É importante salientar que a comunidade de Chã de
Camará está mobilizada, no sentido de transformar a realidade em
que vivem. Foram eles que entraram com grande parte da mão de
obra na reforma da casa-sede e têm participado de todas as
reuniões de trabalho.”
63
Em 2007, o Maracatu Estrela de Ouro se apresentou no palco do Teatro Nelson
Rodrigues, no Rio de Janeiro, com Jorge Mautner e Jacobina. Afonso de Oliveira,
produtor geral do Ponto de Cultura, declara:
“Uma pequena revolução cultural está acontecendo na Zona da
Mata de Pernambuco, que vai crescer muito ainda, pois está
começando agora. O filme Baixio das Bestas, de Cláudio Assis; a
Banda Ticuqueiros, O Festival Canavial, O Festival Tipóia e o
Ponto de Cultura Estrela de Ouro e seus grupos são reflexo deste
movimento. Primeiro foi o Mangue, depois veio o Sertão. Agora,
as luzes se voltam para a Zona da Mata. Mautner, Jacobina e
Afonjah perceberam isso e o intercâmbio com o Rio de Janeiro
tende a ser uma parceria de reflexões, criações e de política
cultural. Extrapolando os objetivos de mercado”.
1.6 - A Sambada do Maracatu Estrela: Pré-Carnaval 2006.
Logo que cheguei a Recife, dia 16 de fevereiro de 2006, liguei para Ederlan para saber
como estavam as coisas, e ele com entusiasmo me disse: “aqui cheio de novidade. Chã de
Camará, agora, tem um Ponto de Cultura Estrela de Ouro e o Maracatu está com mais de cem
pessoas esse ano”. Contou que estava trabalhando com produção no Ponto de Cultura. “Amanhã
vai ser o último ensaio antes do carnaval, na Chã, você não pode perder”. Combinamos que
estaria em Condado no dia seguinte à tarde. Conforme havia combinado com Ederlan, cheguei a
Condado sábado à tarde.
63
http://www.estreladeouro.org/index.php
40
Ederlan não iria mais para o ensaio do Estrela, estava a caminho de Olinda, onde ia
substituir um tocador do terno do Piaba de Ouro, o Maracatu de Mestre Salustiano. (Ainda que
eu tivesse em Deda uma interlocutora em potencial, Ederlan teve quase sempre um papel de
mediador em Chã de Camará.)
Caminhamos para a praça dos caboclos, onde estava parado o ônibus que levaria os
moradores de Condado para Camará. Ederlan me apresentou ao Major, um dos caboclos que
estava sentado no meio fio, dizendo: “Major, essa menina aqui é de casa e ela vai para Camará
com vocês.” E pediu para ele me apresentar para Luiz, o Mestre dos Caboclos. Neste instante,
chegou de bicicleta outro caboclo, filho de Luiz, chamado Leo.
64
Quando Luiz apareceu, Leo me
apresentou a ele dizendo que eu era amiga de Ederlan, e Luiz falou: “Tá com Ederlan, com a
gente.”
No ônibus, que partiu para Camará, já se via a animação do pessoal a caminho do
ensaio, cantando bregas de sucesso, dançando, enfim, fazendo zoada
65
.
Chegamos a Camará sob uma chuva fina. Fui para perto de Luiz que me apresentou ao
Afonso, Professor Biu Vicente (respectivamente produtor e coordenador do Ponto de Cultura) e Zé
Lourenço (dono do Maracatu e filho de Batista). Perguntei por Deda e eles me apontaram uma
senhora magra de azul, bem diferente da alegre anfitriã de dois anos atrás.
Na frente do antigo quarto de cangalha agora está escrito em letras grandes: Centro
Nossa Senhora da Conceição Pai Mário. Perguntei por Seu Mário e ela, me conduzindo pela
mão, foi perguntando a todos onde estava Mário. Alguns diziam que ele estava dentro do quarto
da sede, outros diziam que não. Ficamos um bom tempo procurando.
Mário estava ocupado ‘preparando’ a boneca do Maracatu, a Ritinha. Deda disse:
“vamos ver a boneca, a boneca é segredo”. Acompanhamos Mário ao centro e ele tirou a boneca
preta, vestida luxuosamente, de um saco plástico. Deda ajeitou o vestido da Ritinha e logo a
guardou de volta no plástico, conduzindo-me à sua casa, para mostrar algumas fotos da abertura
do Ponto de Cultura. Deda contou que Gilberto Gil e o Presidente de Angola tinham ido à
inauguração do Ponto de Cultura.
64
O meio mais utilizado para se locomover dentro da cidade é a bicicleta.
65
Barulho, bagunça, brincadeira, confusão
41
O ensaio estava para começar. Eu fazia parte de um dos cordões das baianas,
organizados por Deda, que se encarregou de segurar minha bolsa, para eu dançar. O Maracatu
fez uma longa manobra, a ponto de o suor escorrer.
Seu Mário vendia bebidas através de uma porta de um cômodo que liga a sede ao centro
espírita. Depois da manobra, o ensaio seguiu mais informalmente. Num certo momento, teve
início uma disputa entre o Duda, Mestre do Maracatu e o Contramestre, Jurandir. Os versos
eram feitos num enfrentamento crescente. O pessoal vibrava em torcida, com os versos de um e
outro. Quando a coisa ficou um tanto agressiva, Jurandir começou a fazer versos que falavam do
respeito que tinha por Duda. Essa atitude de Jurandir pareceu demarcar um certo limite de
enfrentamento que ele, como contramestre, se colocava, em relação ao mestre, Duda. Ficou a
impressão de que as hierarquias 'atuam' na conduta pessoal dos sambadores, isto é, que o
'campo' da disputa poética pode ser influenciado por afirmações de posições internas.
O carnaval era promissor para o Estrela, pois havia muito investimento naquele ano,
nas roupas, na bandeira, nos enfeites de cabeça encomendados para as baianas.
O processo de volta para Condado começou na alta madrugada. As pessoas mais
cansadas iam se acomodando nos bancos do ônibus, onde havia corpos adormecidos. O pessoal
mais bicado
66
continuava pelo terreiro fazendo zoada
67
. Bem próximo do ônibus estacionado,
explodiu uma briga entre o mestre de caboclo e um outro cabra. Uma senhora resmungou:
“oxente, gente arengando
68
essa hora, vamo simbora pra casa, oi os menino, vamo simbora” e
afagou a cabeça de uma criança que estava dormindo no seu colo.
Quase 5 horas da manhã, debaixo de chuva forte, escutávamos gritos: “pára aqui,
moço!”. Gente sendo acordada para saltar, outros saltando irritados por terem perdido a sua
parada.
Termino este capítulo com este trecho do meu diário de campo, que descreve
a sambada-ensaio do Estrela, por dois motivos basicamente.
Primeiramente, porque considero uma situação riquíssima, que revela o
Maracatu na expectativa do carnaval. É uma preparação para o carnaval e um
momento que reúne o povo que gosta de sambar, brincar, tomar bicada (beber),
66
Bêbo, embriagado.
67
Barulho, bagunça, brincadeira, confusão
68
Arengar: brigar, discutir, bater boca.
42
independente de comparecer ao Maracatu durante o carnaval. A sambada é um espaço
para quem quer ‘aprender’ a sambar Maracatu, observando, imitando, dançando,
escutando e respondendo aos versos do mestre, batendo pau, bebendo cachaça,
fazendo farra, compartilhando da descontração de brincar na barraca. É talvez o
momento em que o Maracatu mais se aproxime do sentido ‘relaxado’ de brincar.
O segundo motivo da citação, relaciona-se ao fato de que muitas das questões
que me instigaram - nessa segunda visita a Chã de Camará, assim como, meu primeiro
encontro com o Maracatu Estrela (enquanto ‘conjunto’) - ficaram em aberto na
pesquisa. A nova configuração do sítio, com o estabelecimento do Ponto de Cultura,
os reflexos dessa mudança estrutural na comunidade e no Maracatu, as relações do
Maracatu com o centro espírita, são algumas dessas perguntas que não foram
respondidas. O motivo, como mencionei anteriormente, foi o raso contato que tive
com a comunidade após o carnaval.
As pessoas (do Estrela), com quem tive uma relação mais cotidiana’, são
moradores de Condado: Luiz, Badango, o casal Coxinha e Janete, outros caboclos -
que se encontravam na praça para conversar. E com Duda, que mora com a irmã,
a filha e a neta, -- que também brincam de baiana no Maracatu -- no litoral da Mata
Norte, Barra de Catuama, onde passei três dias.
Ainda que nessas condições, considero que esta descrição nos ajuda na
problemática geral da dissertação, trazendo questões que nos conectam com a vivência
do terreiro de Maracatu e seu processo de profissionalização.
43
Ô pai vai lá na casa de Domingo
Diga a Domingo que Domingo venha cá
Domingo pai, Domingo filho, Domingo neto
Domingo que mora perto
Domingo de Carnaval
69
Capítulo 2 - O Carnaval em Terras de Caboclo
2.1 - A pareia da dissertação: filme e texto
A sugestão é que, neste momento, o leitor seja por 26 minutos espectador do
filme Baque Solto, que acompanha esta dissertação. A idéia é aproximar o leitor da
experiência dos três dias de carnaval, através da jornada do Maracatu de Baque Solto
Leão de Ouro de Condado. A maior parte dos grupos de Maracatu empreende essa
jornada carnavalesca, apresentando-se nos palcos das cidades interioranas da Zona
da Mata Norte e nos chamados pólos carnavalescos da Zona Metropolitana.
A etnografia “como texto” traz como substrato múltiplas experiências e
intensidades de uma pesquisa. No caso desta pesquisa, o tema, ou a busca do tema,
descortina um emaranhado de relações: com pessoas, grupos, “territórios
existenciais”; com o material produzido durante o campo (notas, entrevistas,
imagens fotográficas, fílmicas, transcrições, decupagens); com outras obras (textos,
artigos, livros, filmes, fotografias, músicas, discos, artefatos, entrevistas, jornais,
telas), que de alguma forma se vinculam ao universo construído durante a escrita de
uma dissertação.
A realização do filme, em parceria com Tatiana Gentile, se deu paralelamente
ao processo de confecção da dissertação, mais precisamente, durante o trabalho de
transcrição e decupagem do material
(áudio e vídeo)
70
. A construção do filme
contribuiu grandemente para a reflexão sobre o tema, não pelo trabalho exaustivo
69
Música de autor desconhecido cantada por Ronaldo, 10 anos, filho de Badango, que brinca de caboclo de
lança no Estrela, e neto de Martelo, caboclo do Leão.
70
O empreendimento ocorreu, por ocasião da aprovação do projeto do filme no Edital de Memória
Camponesa e Cultura Popular do NuaP (PPGAS) e com o financiamento que obtive junto ao NuaP, Nead e
Asepa.
44
com o material e o conseqüente enriquecimento dos dados, como pela valiosa
possibilidade de dialogar, discutir, testar e trocar informações, com alguém que
conhece muito bem o universo que estamos tratando, como é o caso da Tatiana.
A escrita da dissertação foi, em vários planos, “afetada” pelo exercício de
construir uma narrativa através da imagem e do som. Considero, assim, o texto e o
filme uma pareia
71
, em especial neste segundo capítulo, que trata especificamente da
dinâmica dos três dias de carnaval dos Maracatus contemporâneos. A idéia aqui é
‘brincar’ em duas pernas (o texto e o filme), trazendo a experiência de pensar,
descrever e dar movimento à vivência intensa, que se inicia no domingo de carnaval
e vai até a quarta-feira de cinzas.
Não cabe aqui explicar o filme, nem se pretende que o filme conta das
diversas atividades que envolvem os três dias. Cada um num registro diferente, de
informação e expressão, faz a sua parte. A intenção é enriquecer a atuação de um
Maracatu de Baque Solto, durante o período para o qual se prepara o ano todo.
2. 2 Golas e bandeiras: bordando as preparações para a jornada
“Eu brinco Carnaval, não faço Carnaval. Tenho que honrar minha profissão.
Essa frase de seu Martim, num tom bem humorado, uma idéia do trabalho e da
seriedade do ‘brincar’ Maracatu nos dias de carnaval. Fazer carnaval seria o
contrário de ter responsabilidade. Brincar carnaval implica cumprir uma agenda de
contratos de apresentações, mobilizar um grande grupo de pessoas e competir na
passarela.
Por trás dos aproximadamente 15 minutos de apresentação de um Maracatu
no carnaval há muito trabalho e muita gente envolvida. O ciclo anual do Maracatu
se faz de muitas e diferentes atividades. O momento-ápice, em que o brinquedo
deve estar mais bonito, caprichado, completo, é o momento da evolução, melhor
dizendo, das evoluções.
71
Parelha
45
As preparações para o carnaval são de muitas ordens, como vimos no
capítulo anterior. As preparações espirituais e o saber constituem alguns dos
aspectos que demonstram o interesse, o amor e a paixão do Maracatuzeiro pela
brincadeira. A dedicação e o trabalho no Maracatu, ao longo do ano, também
revelam o interesse do folgazão.
A fantasia, por exemplo, é um elemento que mostra o investimento da
pessoa na beleza do brinquedo. Se o Caboclo tem sua própria arrumação,
investindo dinheiro em sua fantasia, ele ajuda o coletivo, que tem um trabalho a
menos, além obviamente de o Maracatu ter menos gasto.
De maneira geral, os Maracatus têm um dono e um presidente, e um ou
mais diretores, que se dividem nos trabalhos administrativos. Cada grupo de
Maracatu tem uma diretoria que se organiza de forma específica.
As grandes responsabilidades dentro do Maracatu obviamente são
concedidas, não apenas pela posição/função das pessoas dentro da brincadeira,
mas por uma figuração especifica de cada grupo, que se liga à historia, organização
e circularidade de pessoas no brinquedo.
Biu Alexandre fala sobre a sua responsabilidade como dono do Maracatu:
“É organizar. A organização é o seguinte: é chamar o povo, organizar o pessoal,
explicar, é assim, é assim. Vamos brincar deste jeito assim.”
No caso do Leão, a família de Biu Alexandre constitui um núcleo que
trabalha e se dedica tanto ao Maracatu, quanto ao Cavalo-Marinho: Aguinaldo,
Pinone, Fabinho, Moça (esposa de Biu Alexandre), etc. Além da família, Paulo, o
presidente do Maracatu, é responsável por inscrever o brinquedo nas prefeituras.
Maria Paula, como foi dito, tem colaborado com as brincadeiras.
Cotidianamente, outras pessoas trabalham, tais como: Martelo, que faz bexigas e
46
chapéus, o casal Bel e Eliane, que bordam golas de Maracatu, fazem buquês para as
baianas de frente, Adailton, que fez o chapéu do arreiamar, etc.
“Por exemplo, se é para ir em Carpina, ai tem que ir na
prefeitura de Carpina para se inscrever, ai eles pegam os
dados todos, ai o papel para a gente receber, pois se não
tem o papel a gente não recebe o dinheiro. A gente tem que
procurar as prefeituras antes do carnaval. Todas essas cidades
que a gente viajou, a gente foi antes. Vai com 15 dias
antes.” (Biu Alexandre)
Depois do carnaval de 2006, Aguinaldo, ajudado por Bel e Eliane, bordou
uma gola de caboclo para mim. Aguinaldo, que aprendeu a cortar, riscar e bordar a
gola em 2005, numa oficina da Associação, tem aproveitado as viagens que faz
para vender as golas, verdadeiras obras de arte.
No caso do Estrela e do Ponto de Cultura, algumas das funções se
acoplaram, isto é, os funcionários do Ponto de Cultura têm posições especificas na
logística do carnaval, alguns desses funcionários tinham suas funções mais ou
menos informais dentro do brinquedo.
Lourenço Batista é o presidente e dono; uma diretoria, composta por
cinco membros; Duda é o mestre e suas opiniões têm grande peso na
organização do Maracatu, ainda que não tenha uma responsabilidade formalmente
administrativa; Luiz, mestre de caboclo e funcionário do ponto de cultura, é
responsável por disciplinar as mais de 50 varas
72
, além de acompanhar todo o
processo de feitura das golas, surrões e guiadas (varas) da sede. Seu Mário, pai-de-
santo do terreiro, que brinca de rei, prepara espiritualmente o Maracatu para o
carnaval: a boneca, o calço do cravo, o sacrifício de animais. Junto com Deda, a
rainha e presidente das baianas, ajuda a organizar os bordados da bandeira, das
golas e os enfeites de camará. Deda cuida de tudo relacionado às baianas, desde a
escolha das participantes, até as encomendas dos vestidos, os arranjos do cabelo,
brincos, armação da saia, etc.
72
Forma de se dizer quantos caboclos tem um Maracatu: 50 varas é igual a 50 caboclos.
47
Enfim, a pré-produção é longa, exige trabalho, paciência e paixão. A
sambada tem um relevante papel nesta preparação, que é agregar e treinar o povo,
afiar o terno.
Os dois Maracatus com os quais vivi a intensidade dos três dias de carnaval,
diante da Federação Carnavalesca, competem em grupos diferentes, que dizem
respeito ao seu ‘tamanho’ e ‘riqueza’: o Estrela integra o Grupo Especial, no qual
competem os Maracatus grandes (por volta de cem pessoas). E o Leão está afiliado
ao grupo B, os Maracatus pequenos (mais ou menos cinqüenta pessoas).
73
Essa associação entre o Maracatu grande e rico e o Maracatu pequeno e
pobre tem uma razão evidente. Para o Maracatu ser grande, em termos numéricos,
ele precisa ser rico, para pagar o cachê de uma grande quantidade de pessoas. Cada
pessoa que brinca recebe um cachê, que varia de acordo com o grau de
responsabilidade da sua posição. O mestre do Maracatu, o mestre de caboclos, os
arreiamar e os tocadores do ‘terno’ e os músicos são os que têm o maior cachê.
Cada um à sua maneira, eles têm a responsabilidade de proteger a sua bandeira e
cuidar dos demais integrantes do grupo.
Através da Associação de Maracatus de Baque Solto se estabeleceu uma rede
de solidariedade entre grupos, com a doação de fantasias, para os grupos com
menos recursos. No ano de 2004, o Leão recebeu algumas doações, provenientes de
uma oficina de bordado realizada na Associação de Maracatus Rurais. Essas
oficinas, na Associação, ensinaram a cortar, riscar e bordar, dando uma certa
autonomia aos Maracatuzeiros, que passaram a confeccionar suas próprias golas,
não dependendo exclusivamente dos antigos bordadores, que cobravam caro pela
sua especialidade (cerca de R$500,00 em 2004).
73
Ver Anexo 4: Tabela das Agremiações Campeãs do Carnaval 2006.
48
Embora os dois grupos não sejam diretamente rivais na passarela, entre
seus integrantes o sentimento de rivalidade e hostilidade, como também
amizade e solidariedade.
Em relação aos caboclos de lança, que estão em maior número no
Maracatu, vários cachês diferenciados. A começar pelo caboclo que tem sua
própria arrumação, que recebe um cachê maior do que o caboclo que brinca com a
arrumação da sede. A hierarquia das posições, nas trincheiras de caboclos, também
é consolidada no cachê. O mestre dos caboclos ganha mais do que os dois
puxadores de cordão, que por sua vez têm um cachê maior que os dois bocas. Os
caboclos comuns ganham mais do que as baianas e assim por diante, (sempre com
variações).
Os cachês de cada participante são pagos após o carnaval, em geral quando
os cheques das prefeituras são descontados, e também operam as hierarquias na
ordem dos pagamentos. O mestre do Maracatu, os tocadores do terno e os músicos
são, em geral, os primeiros a receberem. Um dos motivos recorrentes de brigas é o
atraso do pagamento do cachê.
Alguns donos, para garantir que pessoas consideradas ‘boas’ (caboclos de
posição, arreiamar e outras posições) brinquem no seu Maracatu, podem adiantar
uma parte do cachê, como forma de assegurar sua presença.
Os Maracatuzeiros de posição, que são respeitados e admirados, costumam
ser muito cobiçados, com propostas de cachê mais alto, por outros Maracatus.
Muitos citam essas ofertas de outros Maracatus, como uma valorização de sua
performance, um sinal de amplo reconhecimento do seu estilo, manejo de brincar.
Esses convites de outros grupos chegam em geral por meio de recados.
Um conflito comum é quando um caboclo combina que vai brincar num
Maracatu e pega arrumação da sede. Esse mesmo caboclo se apresenta para outro
49
Maracatu e combina de brincar “com sua própria arrumação”, o que garante um
cachê maior, enquanto desfalca o outro Maracatu, que fica com uma vara a menos.
Nestas situações, quando a ‘armação’ é descoberta a tempo, o dono do Maracatu
desfalcado vai tirar satisfações com o dono do outro Maracatu, que paga pelo
prejuízo causado.
As posições dentro de um Maracatu são uma atribuição de confiança e uma
entrega de responsabilidade a uma determinada pessoa. As pessoas que se tornam
respeitadas, em sua atuação naquela posição, frequentemente são cobiçadas por
outros Maracatus, através de oferta de dinheiro, por serem considerados ‘bons’,
talentosos, responsáveis, competentes, confiáveis, etc. Uma grande rivalidade
também se expressa nesse mercado de posições.
Muitas vezes um caboclo deixa o Maracatu, em que costuma brincar, por
dinheiro ou posição. Ser chamado para brincar em outro Maracatu, do ponto de
vista do indivíduo, é receber um grande elogio. É sinal de sua competência para
exercer aquilo com talento. Por exemplo, um caboclo que costuma brincar na
posição de puxador de cordão, ao ser chamado para brincar de mestre de caboclo,
está sendo ‘promovido’, recebendo a oferta de um cargo de mais responsabilidade.
O puxador de cordão do Estrela, Seu Martim, deixou o Maracatu na
Segunda-feira de Carnaval e foi brincar no Leão. Diante desta situação, Seu Luiz,
como mestre de caboclo, teve que escolher um outro caboclo que o substituísse e
desse conta do ‘recado’. Para Seu Luiz, uma qualidade importante para um
puxador de cordão é “ser tranqüilo e cabeça fria.”
Essas diversas atividades, necessárias para brincar o carnaval, são feitas de
muitos trabalhos, relações, brigas, disposição, energia e paixão. A tensão e a
expectativa marcam o início do ritual carnavalesco, cuja jornada é pesada.
50
3.2 - O Ritual de Chegada dos caboclos
A chegada dos caboclos é um ritual que marca o início do carnaval. O mestre do
Maracatu faz os versos e o mestre de caboclos vai chamando os caboclos, um a um,
ou dois a dois, ou três a três quando o tempo é curto. O caboclo da vez dança,
maneja a guiada, às vezes afronta algum outro caboclo, isto é, “se mostra” diante
de todo o Maracatu e do público que vai assistir o Maracatu no terreiro.
“O problema da chegada é o seguinte: é um prazer que a
cabocaria tem. Porque todo mundo quer se mostrar, muita
gente acha que é obrigação, não é obrigação. É um prazer dos
caboclo. Vamo supor eu sou um caboclo, Aguinaldo é outro. A
gente tem o prazer de fazer aquela chegada, pra gente se
mostrar. Mostra o que a gente são, o que a gente vai fazer, essas
coisas. Não é por obrigação. É um prazer que a pessoa tem e é
bonito. Cada um quer fazer mais. Mas tudo é prazer.”
(Biu Alexandre)
A chegada é único momento de ‘protagonismo’ do caboclo, dentro do
Maracatu. Enquanto um caboclo chega outro o recebe , em geral algum caboclo de
posição: puxador de cordão, boca. O momento da chegada é um momento de
muito cuidado, pois a expressão de braveza de um caboclo pode ser tomada como
desafio a outro caboclo, ou ser de fato um desafio. Seu Martim, o puxador de
cordão do Leão de Ouro, diz que, se um caboclo aponta a guiada para outro três
vezes, ele está desafiando. “O mestre de caboclo ou puxador de cordão vai me
receber. Eu faço a minha vez. Ele tá me recebendo, eu não vou me amostrá, eu vou
chegar manerinho (de leve). Se botar ponto difícil, desafiando. Se eu botar mais
de 3 pontos, eu to desafiando ele. Eu não sei da intenção dele, ele não sabe da
minha.” Diz Martim.
Os caboclos mais antigos dizem que, hoje em dia, “não existe mais chegada
de Maracatu” de tanto que se modificou. A quantidade de apresentações de um
Maracatu durante o carnaval, faz com que a chegada seja reduzida, cortando certas
etapas como a chamada dos caboclos.
51
“A chegada de Maracatu é uma graça para aquele
representante que vai olhar. O Maracatu sem chegada fica feio
demais, porque todo mundo quer ver a graça do caboclo. Hoje
se acabando chegada de Maracatu. Antes Maracatu não
tinha muita revolução em Federação, saia de 18hs, 17:30 da
barraca, compromisso era pouco. Hoje, tem representação, pra
chegar de dois e dois não ia dar, para chegar no Recbeat de
18hs. No Maracatu mesmo, o bonito mesmo é a chegada, eu
faço aquilo porque eu sou mandado, não posso mandar em
tudo. Mas eu sei que o povo acha graça chegando de um em
um, pra ver o caboclo que sabe pegar numa vara, sabe chegar,
sabe manobrar. Para ver quem sabe fazer uma manobra bonita”
(Luiz, mestre de caboclo)
Em 2006, devido a essa pressa de sair, para se apresentar no RecBeat
74
, o
Estrela não fez a chamada dos caboclos, a chegada se resumiu a uma manobra do
Maracatu, pra encruzar terreiro. O Ritual não pode deixar de ser feito, então passa
a ser simplificado. O Mestre é quem tira o Maracatu no terreiro, cantando versos de
boas vindas, cumprimentando as pessoas que estão brincando, uma a uma ou em
grupos, o dono do Maracatu, os protetores espirituais, saudando o público que está
assistindo. Na chamada de cada caboclo, o mestre faz versos. Martim diz que se
lembra do samba que Zé Duda cantou para ele, na primeira chegada que ele fez:
“Com três pedras eu levanto
Quatro levanto não
Samba não der pra você
Diga qu’eu canto um baião”
A primeira seqüência do filme Baque Solto mostra, no Domingo de
Carnaval, a chegada do Maracatu Leão de Ouro na frente da sede, antes do
Maracatu começar a jornada. O Mestre Negoinho canta a marcha:
Boa tarde pessoal
Como vai como passou
Canta para Negoinho
Canto que ele já chegou
Boa tarde o baterista
74
Importante Festival criado em 1995, com o objetivo de mostrar a nova cena da música pernambucana,
durante o Carnaval.
52
Brinca com leão de ouro
Também bastarde Biu Lexandre
Deus que guarde o tesouro
Com fé em Nossa Senhora
Com poder Santa Luzia
Em vim brincar em Condado
Com todas Cabocaria
Na chegada, os caboclos o tomando seus lugares, formando as trincheiras
que protegem o miolo do Maracatu. A bandeira, a boneca, a corte, os arreiamar e
as baianas formam o que se chama de miolo do Maracatu, isto é, a parte que fica
mais protegida pelas trincheiras de caboclo. O terno, os músicos e o mestre ficam
atrás do miolo, durante a manobra, mas têm uma mobilidade que varia de acordo
com a situação do Maracatu na manobra no terreiro, na apresentação, etc. Na
frente do Maracatu, correm a burra, o Mateus, a Catirina e o caçador, personagens
que ficam ‘fora’ das trincheiras. Esses quatro personagens, presentes em outras
brincadeiras da região
75
, têm uma interação maior com o público, fazem graça,
pedem dinheiro, são o espaço do ‘riso’ e do ‘cômico’ dentro da brincadeira, que
justamente fica ‘fora’ do desenho nuclear em torno da bandeira do Maracatu. Esses
personagens anunciam e abrem espaço para o Maracatu entrar.
A postura dos demais integrantes é de seriedade, sisudez. O Maracatu é um
exército pronto para a guerra. Isto fica estampado no rosto dos caboclos, baianas.
Para entendermos o Maracatu em seu conjunto, é necessário sabermos mais sobre
os personagens que ali estão, as posições que ocupam, as responsabilidades
individuais e coletivas que se tem num Maracatu.
76
Seu Inácio, arreiamar do Leão, fala sobre as responsabilidades e os movimentos
originais da chegada:
“É na chegada que ele faz a chegada de barraca, que todo
mundo quer ver se tá bonito, se bom. Na chegada, o
arreiamar as vezes faz coisas que ele faz ali, mas não faz
brincando. Às vezes cai desmantelado, às vezes brinca mais do
75
Cavalo-Marinho, Boi de Carnaval, etc. Personagens do mito do boi, ver Cavalcanti (2006).
76
Anexo 2: Personagens do Maracatu
53
que quando no brinquedo. E ali, a gente se esforça muito
mais do que no brinquedo, porque ali, ele se ajeitando pra
chegar, é onde fazendo o que ele quer fazer, mostrando a
posição dele. Ele é responsável por tudo ali, para mostrá que
errado”
2.4 - A Jornada
Como já foi dito, o carnaval começa com a chegada no terreiro, e depois,
na estrada --“é pra rodar o motor”. Os três dias de carnaval são uma vivência
intensa entre as pessoas que compõem o Maracatu, que convivem em diferentes
espaços e situações sociais. Os três dias de carnaval são marcados pelos
compromissos com as apresentações, a tensão da competição na Dantas Barreto, e
pelo trabalho que é transportar e alimentar todo o grupo, cumprindo todos os
contratos.
O carnaval do Maracatu de Baque Solto é dinâmico, itinerante e um tanto
repetitivo. O ciclo anual começa em setembro, com as sambadas, período de estio e
época do corte da cana, em que os trabalhadores voltam ao trabalho tendo mais
dinheiro (Medeiros, 2005:101). O ciclo de três dias começa no Domingo de
Carnaval com a Chegada e termina na madrugada da Quarta Feira de Cinzas com a
Entrega do Maracatu na barraca.
Passar os três dias de carnaval brincando no Maracatu é uma experiência
intensa, para não dizer pesada. As pessoas ali estão unidas, seja pela vontade de
brincar, de estar ‘bonito e brilhoso’, seja pelo dinheiro. Esses três dias de
convivência são atravessados por diversas situações de conflito, rivalidade, tensão,
amizade, solidariedade, diversão, êxtase, cansaço, e cada vez mais, a exigência de
‘profissionalismo’.
Como todo ciclo tem seu nascimento e morte, toda a sua travessia é vivida
com grande expectativa. A barraca, ou sede do Maracatu, é onde tudo começa e
54
termina, e onde se retorna, algumas vezes durante o carnaval, para almoçar ou
dormir.
Em 2004, o Leão de Ouro se apresentou em 11 cidades: Condado, Tupaoca,
Araçoiaba, Itaquitinga, Chã de Esconso, Upatininga, Carpina, Paudalho, Recife,
Olinda e Buenos Aires (PE). Para almoçar e para dormir, voltava-se para Condado.
As pessoas que brincaram no Leão de Ouro, mas não moravam em Condado,
arrumavam alguma casa para se hospedarem, nas poucas horas de descanso entre
um dia e outro do carnaval. Havia um ônibus, cedido pela prefeitura de Aliança,
para transportar todos os cinqüenta e três integrantes do Maracatu e mais alguns
familiares que acompanhavam o grupo. Além do ônibus, um caminhão levava os
surrões, os chapéus e as guiadas dos Caboclos de Lança.
O Estrela de Ouro, ao longo dos três dias de carnaval de 2006, se
apresentou em 10 palcos diferentes. No Recife: no Recbeat, na Avenida Dantas
Barreto, Seleção do Galo, Nova Descoberta, Areias. Em Olinda na Cidade
Tabajara. Na Zona da Mata: Buenos Aires, Nazaré da Mata, Aliança e Upatininga.
As mais de cem pessoas deste Maracatu eram transportadas num ônibus escolar,
levando as mulheres e crianças; um ônibus de viagem, para os homens e ainda um
caminhão que levava os surrões, guiadas, chapéus, etc. Para o almoço, voltava-se
pra Chã de Camará, onde se comia e se seguia viagem. Para dormir, o Maracatu se
‘hospedou’ numa Escola Municipal, no bairro do Pina, no Recife. No andar de
baixo, dormiam os homens e no de cima, as mulheres, todos dormindo no chão.
Na escola, tomava-se o café da manhã e o da noite.
As apresentações dos Maracatus acontecem em contextos distintos durante
o carnaval. São os contratos, que o grupo tiver no carnaval, que rendem dinheiro.
A seguir descrevo as diferentes situações em que o Maracatu brinca durante o
carnaval.
55
Os encontros
Os Maracatus de Baque Solto durante o carnaval se apresentam nos
chamados ‘Encontros de Maracatus’. Na Zona Metropolitana, em Olinda, o
Encontro de Maracatus se no Ilumiara Zumbi, espaço criado por Mestre
Salustiano, e sede de seu Maracatu, o Piaba de Ouro.
Na Zona da Mata Norte, o famoso Encontro de Maracatus de Nazaré da
Mata, a Terra dos Maracatus Rurais, é organizado por uma parceria da prefeitura
com a África Produções. O palco montado reúne uma enorme quantidade de
grupos, de todas as cidades e municípios e, nos últimos anos, tem atraído muitos
turistas. Os dois encontros de Maracatu recebem prioritariamente grupos de
Maracatu de Baque Solto, embora também se apresentem outras brincadeiras.
A Passarela
O momento-ápice do Maracatu, durante o carnaval, se na passarela.
Organizada pela Federação Carnavalesca de Pernambuco e pela Prefeitura do Recife,
a passarela é montada numa das principais avenidas do centro, onde as diferentes
brincadeiras carnavalescas se apresentam, competindo de acordo com sua categoria.
Os Maracatus filiados à Federação recebem 50% do cachê, quinze dias antes
do carnaval (verba da Prefeitura repassada pela FCP), e a outra metade, depois do
carnaval.
A apresentação da passarela, na Avenida Dantas Barreto, costuma ser bem
tensa, já que, cada erro significa perda de ponto, na avaliação dos jurados.
Mestre, contramestre, terno e músicos ficam diante dos microfones,
enquanto o Maracatu manobra, de acordo com os 15 minutos estipulados.
Após a apresentação, é comum um jogo de acusações, que tenta prever os
possíveis ‘erros’ cometidos na passarela.
Os Pólos do Carnaval Multicultural
O Carnaval organizado pela prefeitura é dividido em pólos culturais, isto é,
em várias diferentes regiões da cidade uma estrutura de palcos e caixas de som,
56
para receber as muitas atrações carnavalescas. O principal deles é o Pólo Recife
Multicultural, que fica no Marco Zero. Alguns dos outros pólos são: Pólos das
Agremiações, Pólo das Fantasias, Pólo de Todos os Frevos, Pólos de Todos os
Ritmos, Polinhos, Pólos Descentralizados, etc. Logo após as apresentações, o
Maracatu recebe o cachê.
Os palcos das cidades do interior
Semelhante à estrutura dos pólos, na maior parte das cidades da Zona da
Mata Norte, as apresentações se realizam em palcos montados por algum político
local, por onde passam diversas atrações: Maracatus, Caboclinhos, Ursos, Blocos,
Bois, etc. Quanto mais cidades visitam durante o Carnaval, mais dinheiro para o
Maracatu. Em cada cidade, o Maracatu recebe o cachê do contrato assinado
anteriormente.
As apresentações de contrato vão para os palcos de toda a Zona da Mata
Norte. O mestre do Maracatu faz os versos de saudação à cidade e ao político que
os recebe. O público é, na grande maioria, constituído pelos moradores das cidades,
ou habitantes de municípios próximos.
Casas e Homenagens
Alguns políticos ou moradores, de maior poder aquisitivo, contratam grupos
de Maracatu para passarem na frente de suas casas. É uma forma de atrair pessoas
para perto da casa e chamar atenção sobre seu ‘interesse na cultura’.
É um contrato que remete aos carnavais antigos, em que o Maracatu
passava e as pessoas chamavam o brinquedo, para brincar na sua porta e, em troca,
davam uma condição, isto é, um dinheiro, uma bebida ou comida.
57
As hierarquias internas do Maracatu ficam claras, nas homenagens feitas em
algumas das cidades em que ele se apresenta. Quando o Maracatu tem um
contrato, numa cidade onde mora alguém de posição, pode haver um esforço no
brinquedo, para prestar uma homenagem à família daquela pessoa.
Em 2004, após se apresentar em Itaquitinga, cidade do Mestre Negoinho, o
Maracatu Leão fez uma homenagem, passando na casa da ‘mãe’ (de santo) do
mestre. Negoinho cantou versos agradecendo e elogiando a pequena senhora que
chorava na janela.
Ao passar em Buenos Aires, o Estrela de Ouro também homenageou o
mestre do Maracatu, Duda. Na volta de uma apresentação no centro de Buenos
Aires, o Maracatu voltou para onde estava estacionado o ônibus, fazendo um
caminho que passava em frente à antiga casa dos pais de Zé Duda.
Filas
Nos palcos dessas cidades do interior é preciso esperar numa fila. Às vezes
espera-se por horas, até o grupo se apresentar. Os grupos se arrumam: formam os
cordões, as trincheiras, ficam prontos para se apresentarem. Com o tempo de
espera na fila, uma tendência à dispersão do grupo, uns saem para comer ou
beber algo, ir ao banheiro, ou alguns caboclos saem pra beber escondido. A
dispersão torna-se uma grande preocupação para as pessoas responsáveis pelo
brinquedo: o dono, o mestre e o mestre de caboclo fazem esforço para controlar
quem está ali, para vigiar uma grande quantidade de pessoas.
Os caboclos de posição costumam ter algum outro caboclo para substituí-
los, caso ocorra algum imprevisto. Atrás dos puxadores de cordão, ficam os contra-
cordão, que devem estar sempre a postos na ausência dos puxadores.
Estas filas de espera constituem, entre outras coisas, um espaço de contato
entre os diferentes grupos de Maracatu. Os integrantes dos grupos aproveitam esses
momentos de espera, para verem os outros Maracatus. Os conhecidos e amigos
são cumprimentados. Embora muitos cumprimentos sejam amigáveis, a condição
58
em que ali se encontram é de rivalidade. A comparação, com outros grupos de
Maracatu, mostrava-se quase sempre carregada de comentários negativos,
xingamentos e uma constante afirmação da superioridade do seu Maracatu. Em
muitos momentos, assisti algumas pessoas, tanto do Leão quanto do Estrela, se
agrupando, para comentar como os caboclos do Maracatu ‘de fulano’ estavam
mirrados, os vestidos das baianas estavam tronchos, o Mestre não cantava nada, o
arreiamar não sabia dançar. Por vezes, se escutava algo como: “aqueles vestidos até
estão bonitos, mas o chapéu tá todo desmantelado.” A rivalidade, mais uma vez,
ganha expressão.
Os moradores da cidade, que gostam das brincadeiras, têm o costume de
oferecer água para o pessoal que está esperando sua vez de se apresentar.
O ônibus
O ônibus é um espaço de convivência, onde se passa grande parte do tempo
do carnaval. O terno não pára de tocar e o pessoal faz a festa, canta, dança, os
caboclos fazem umas brincadeiras ‘masculinas’ de agarrar, meter a mão nas partes
baixas, apanhar em corredor polonês, etc.
O ônibus é também o lugar dos cochilos, embora entre os caboclos possa ser
‘perigoso’ por causa das ‘brincadeiras’ (amarrar a fofa para ele tropeçar, colocar
algum objeto dentro da boca ou do ouvido, jogar água em cima, etc.)
Cada vez que o ônibus estacionava numa nova cidade, para o Maracatu se
apresentar, o movimento se repetia: todos os integrantes saíam do ônibus, cada um
responsável por sua roupa; o caminhão era descarregado com os surrões, chapéus,
lanças, a bandeira, a carcaça da burra, etc. Os caboclos botavam a arrumação, as
baianas a armação da saia, o vestido, o rei e a rainha suas capas, coroas, os
arreiamar o cocar, enfim, todos se vestiam e/ou pegavam os objetos que lhes cabia,
seguindo o dono do Maracatu em direção ao palco.
59
Feita a apresentação, o grupo andava de volta para onde o ônibus estava
estacionado, tirando algumas peças do vestuário. O caminhão era novamente
carregado. Todos entravam no ônibus e partíamos para o próximo destino.
Chegando à outra cidade, toda a movimentação se repetia, como um outro ciclo do
carnaval.
O Maracatu e a política
No estatuto da Associação de Maracatus, uma proibição de seus
membros realizarem pronunciamentos de caráter político-partidário “em
assembléias, reuniões, nos versos cantados pelos mestres e demais atividades da
Associação”. (Assis, 1997:50) Mas o mercado cultural do carnaval está estruturado
nos contratos políticos, e a relação brincadeira/política é estreita.
Alguns grupos, por exemplo, trazem na bandeira do Maracatu mais de uma
‘bandeira’. Em Nazaré da Mata, dois grupos fazem parte de ‘movimentos sociais’:
o Maracatu Leão dos Sem Terra, criado num assentamento do MST (Movimento
dos Trabalhadores Sem Terra) em 1999, (Medeiros. 2005: 173) e o Maracatu de
Mulheres Coração Nazareno, criado em 2005, pela Ong AMUNAM
77
, que atua na
região, em defesa dos direitos da mulher. Conforme uma das jovens tocadoras do
terno me disse: “Aqui não tem esse negócio de religião, não, esse é um Maracatu
Social.”
De longe, pode-se identificar a aproximação de um Maracatu de Baque
Solto. O som, de fato, é algo marcante, na composição estética e musical do
Maracatu. São muitas as fontes sonoras dentro de um Maracatu: os chocalhos dos
77
Associação de Mulheres de Nazaré da Mata. De acordo com o site: “Em comemoração à semana da
Mulher, realizada pela AMUNAM, a coordenação define junto com a equipe, a formação de um Maracatu
100% feminino. Maracatu Coração Nazareno. Idealizado e fundado em 08 de março de 2004. Neste últimos
três anos, tem se destacado na região Mata Norte, principalmente na festividade carnavalesca, com seu brilho
e beleza. O Maracatu Coração Nazareno é umas das formas mais evidentes que a AMUNAM encontrou, para
levar a delicadeza, a leveza, a feminilidade e a fortaleza da mulher a um ambiente formado prioritariamente
por homens.”
60
caboclos, as vozes e os apitos do mestre e do contramestre, o apito do arreiamar, o
terno (conjunto de percussão), as melodias dos instrumentos de sopro (trombone,
trompete, clarinete, piston, saxofone), a batida da bexiga do Mateus, o estalar do
chicote da burrinha, a corneta (de chifre de boi) do caçador, etc.
O núcleo musical do Maracatu, propriamente, é composto de: conjunto de
percussão do terno, os sopros e metais tocados pelos músicos, a voz do mestre
cantando marchas, sambas e galopes e o contramestre respondendo os versos. O
conjunto do Maracatu, em movimento, ressoa invariavelmente os chocalhos dos
caboclos de lança, os personagens em maior número dentro do brinquedo. O
chocalho faz parte da arrumação e a indumentária do caboclo é constituída de
várias peças: chocalho, guiada, chapéu. A parte mais pesada da arrumação o os
chocalhos, sonoros sinos de metal presos numa estrutura quadrada de madeira,
coberta por uma pelúcia, para ficar ‘fofo’. O surrão é preso nas costas do caboclo
com duas correias que trazem uma cobertura em volta, para não machucar
demasiadamente os ombros e o tronco.
Dentro de tanta sonoridade, a voz do mestre tem grande importância, é
como a de um porta-voz, torna-se a voz do Maracatu, na relação com o mundo.
O carnaval é um período em que os políticos se mostram ao povo. E o povo
também se mostra a eles. Os políticos fazem uso dos palcos como uma espécie de
palanque eleitoral carnavalesco: pedem votos, para continuar festejando o carnaval,
fazem promessas de conseguir um palco maior, enfeitar mais a cidade no próximo
ano, etc..
Quando o Maracatu vai se apresentar no carnaval, é costume que o mestre
apresente seu grupo, com versos de saudação ao prefeito, ou vereador que promove
aquele palco. Nas cidades do interior pernambucano, é muito estreita esta relação
entre os políticos locais e os festejos do carnaval, que esses palcos são a principal
fonte de renda dos grupos.
61
Os versos cantados durante o carnaval são muito reduzidos, pelo pouco
tempo de apresentação. Basicamente, o mestre canta uma marcha de boas vindas,
um samba e uma marcha de despedida. O conteúdo desses versos, na maior parte
das vezes, apresenta o Maracatu, dizendo a cidade de onde veio, citando nomes de
pessoas de posição no brinquedo (dono, mestre de caboclo, etc.), cumprimenta o
povo da cidade, o político que os recebeu e já começa a se despedir.
No filme, um trecho do mestre Negoinho, cantando uma marcha,
saudando o prefeito de Araçoiaba, Cuscuz, que estava no palco e anunciando as
brincadeiras que se apresentavam.
Num outro dia, o Leão esperava para se apresentar no palco, montado por
um vereador, em Araçoiaba e ocorreu uma situação interessante. Enquanto
esperávamos na fila o momento da apresentação, eu conversava com Negoinho, o
mestre do Leão, quando fomos interrompidos por um homem que dizia ser
vereador por Goiana. Ele perguntou para Negoinho: “Tá vendo aquele outro
mestre ali? Eu dei R$10 a ele e vou te dar também, pra você falar o nome do
Boiadeiro. Ele é candidato a prefeito daqui de Araçoiaba, oposição ao Cuscuz (o
prefeito).” Negoinho respondeu: “tá bom, ligado” sem dar muita importância. O
homem insistiu: “É Boiadeiro, não se esquece. Depois da apresentação passa e
pega os 10 reais”.
Esta situação, em que os políticos negociam (com oferta de dinheiro) alguns
versos do mestre de Maracatu, é bastante comum durante o carnaval.
Muitos grupos de Maracatu também utilizam esse espaço eleitoral
politicamente. Buscam obter prestígio dos políticos, em benefício do seu grupo. Em
Upatininga, houve uma situação que me chamou atenção para essa prática. Inácio,
arreiamar do Leão, mora com a família em Upatininga. Na segunda-feira de
carnaval, quando o Leão passou por lá, ele parecia estar muito feliz,
cumprimentava os conhecidos a todo instante e vez por outra nos apresentava a
62
alguém. Num certo momento, ele nos chamou e nos apresentou a uma mulher
dizendo: “Essa aqui é a nossa vereadora, ajuda muito a gente, gosta muito do
Maracatu. E esses aqui (apontando para Emílio e para mim) são gente da cultura,
eles estão filmando a gente, são gente da cultura !”
Quando entrevistei Inácio, depois do carnaval, perguntei sobre o episódio e
ele disse que a tal vereadora nunca havia ajudado o Maracatu, mas sempre
prometia alguma coisa. E esperançoso disse: “Vamos ver se esse ano ela ajuda.”
A proximidade de pesquisadores, com pessoas ou grupos de Maracatu, é,
para a comunidade em que se inserem, uma forma de ganhar legitimidade e
credibilidade, já que vem até gente ‘de fora’, para brincar, pesquisar, filmar, etc.
O Maracatu e os pesquisadores
Uma outra situação também é instigante, para pensar as reações à presença
de pesquisadores e pessoas de ‘fora’ no Maracatu.
Em 2004, brincavam no Leão três pessoas de ‘fora’, isto é, não moradores
da Zona da Mata: duas baianas ‘cariocas’ e um músico de Recife, que tocou o
mineiro no terno, além de outro carioca, que acompanhava o grupo com uma
câmera.
Durante a manobra de chegada do Leão, no ano de 2004, mais
especificamente numa das paradas do terno, em que o mestre cantou uma marcha,
uma mulher de classe média, que depois soubemos ser sulista (como eles chamam
os paulistas, cariocas, gaúchos), se aproximou sorrindo e me disse: “você está
parecendo uma palhaça, todos estão vendo que você o é deste contexto.” Maria,
a outra ‘baiana’ carioca, também foi acusada de ridícula, pela mesma espectadora,
que também era de fora’ daquele contexto, e provavelmente ficou desapontada ao
ver duas baianas muito brancas, dançando num Maracatu pequeno e pouco
63
conhecido, de uma cidade de 20 poucos mil habitantes. A busca por uma
‘autenticidade’, nas brincadeiras populares, é um eficaz dispositivo de acusações e
depreciações. A baiana virou ‘palhaça’ aos olhos de um terceiro ‘outro’, que se
encontrava na posição de espectador da brincadeira e que não admitia que aquele
contexto pudesse incluir baianas ‘de fora’, brancas.
A brincadeira do Cavalo-Marinho atrai muitos pesquisadores para a região,
no período de natal e ano novo, o pré-carnaval. Nas duas vezes, eu cheguei à região
poucas semanas antes do carnaval. Fui recebida como parte de um ‘grupo de
sulistas’ que sempre visitam a região, pesquisando, filmando e brincando. Minha
presença ali engendrava uma produção de alteridades, que me colocava sempre
nesse ‘grupo’, onde meus bitos eram identificados, através deste conjunto de
pessoas que perguntam coisas óbvias, querem aprender as danças e músicas,
comem pouco, e alongam o corpo.
2.5 - A chegada na barraca ou a entrega do Maracatu
A entrega do Maracatu na terça-feira de carnaval também é chamada de
chegada. O ritual de fechamento do carnaval acontece ao fim da jornada, em geral na
madrugada de terça pra quarta-feira de cinzas, no terreiro do Maracatu. O mestre
canta marchas de despedida, agradecimentos e boas vindas para o ano que começa.
As manobras são feitas e basicamente estão presentes as pessoas que brincaram o
carnaval os três dias. (No filme, a entrega do Leão é mostrada na sede do Maracatu,
ao som de uma toada de despedida, cantada por Biu Alexandre, com som indireto).
O Mestre entrega o Maracatu de volta para a barraca e assim desencruza o
terreiro que foi encruzado na chegada, no domingo de carnaval. É o momento de
se despedir, de agradecer e chamar o descanso, fazendo morrer o Maracatu, para o
ano começar, e renascer no próximo.
“Tem que desencruzar o terreiro, a gente deixemo encruzado
quando chegamo. Domingo encruzamos o terreiro e quando
64
chegar tem que desencruzar. Chegou pra sua sede tem que
desencruzar pra conduzir tudo de bom pro próximo ano. Se
não, fica um terreiro enguiçado. Dá trabalho pela frente.
Fomo em paz voltamos em paz voltamos em paz.” (Luiz)
Seu Luiz, mestre de caboclo do Estrela, explica que, na chegada, o
Maracatu cruza o terreiro e na entrega, é necessário desencruzar para o ano seguir
bem, para não haver nenhum obstáculo espiritual para o terreiro e nem para o ano
que começa.
Ao final da manobra de entrega, as pessoas se cumprimentam com um
sentimento de missão cumprida, uma emoção-exaustão compartilhada pelos
calorosos comprimentos, a valorização do resultado atingido, através da união
daquele coletivo.
Na sede, vão sendo guardados os objetos, as arrumações, os vestidos, a
bandeira. Pouco a pouco as pessoas vão tomando seus rumos, enfadadas, mas felizes
e esperançosas pelo novo ano que começa.
65
“Eu sempre digo que assim:
o Maracatu nem é do Diabo nem de Deus
é coisa dos homens, porque os homens que criaram.
Mas a verdade é que ninguém
sabe quem é que administra.” (Joabe)
Capítulo 3 – A Guerra: as narrativas de Maracatu
3.1 Deus e o Diabo em terras de caboclo
Na região, se costuma dizer pareia quando se forma um par. Nestes grupos em
que minha pesquisa se concentrou o Maracatu e o Cavalo-Marinho formam uma
pareia. O universo compartilhado por essas brincadeiras compõe muitos vínculos e
diálogos entre esses dois mundos. Além das duas brincadeiras trazerem referências em
comum (personagens, locais, estética visual), elas compartilham muitos de seus
participantes. A proximidade destas duas brincadeiras traz um universo comum e cria
uma relação de complementaridade e oposição.
O Cavalo-Marinho aparece como uma festa criada por Deus, que celebra,
entre outras coisas, o nascimento de Cristo, a alegria, a graça, a beleza. o
Maracatu, a brincadeira carnavalesca, é considerado uma festa inventada pelo
diabo numa tentativa de pegar Cristo. Lida com o lado maligno da vida, o perigo, a
rivalidade declarada, a canalização de ‘maus sentimentos’, uma espécie de
obstrução religiosa. A seqüência temporal em que as festas acontecem, o Cavalo-
Marinho no período natalino, até o dia de reis, e o Maracatu durante o Carnaval,
sugere um “modelo estrutural” (Levi-Strauss, 1967) da celebração regional: a
brincadeira de deus e a brincadeira do diabo.
Essa pareia sugere uma ‘cosmologia’ comum, em que a vinculação do
Maracatu com o a figura do Diabo está estruturalmente oposta à atribuição do
66
Cavalo-Marinho como brincadeira de Deus. José Borba, falecido ‘Mateus', atribuía
a criação do Cavalo-Marinho ao tempo em que os homens surgiram na terra e aqui
viviam infelizes e dispersos. “Por compaixão, Deus teria decidido colocar uma
beleza entre eles, inventando o Cavalo-Marinho e colocando-o no fundo do mar.
Diante de um animal o bonito, o homem o resiste e, então o traz para a terra.
Na terra, o Cavalo-Marinho imediatamente se transforma em brincadeira e passa a
existir com o sentido de fazer os homens felizes.” (Acselrad, p.40)
O diabo, numa roda de Cavalo-Marinho, chega até a beirada, por medo
da rabeca e do baje
78
, instrumentos musicais que, quando tocados, remetem à
imagem da cruz que afastaria da roda coisas negativas. “Cabe a essa interpretação,
a justificativa da preferência de alguns brincadores, de uma por outra, que
envolveria também a diferença entre o caráter descontrolado do desejo que
desencadeia a vontade de brincar Maracatu em relação àquele, um pouco menos
violento, responsável pela vontade de brincar Cavalo-Marinho.” (Acselrad. 2002:
39-40)
A idéia de sorte é outro aspecto de oposição nas duas brincadeiras. No
Cavalo-Marinho o coletivo assegura sorte para os brincadores
79
“quem não brinca
está desprotegido” (Acselrad, p.40), o Diabo chega até a beirada da roda,
supondo-se que quem está dentro da roda está com sorte. No Maracatu, quem está
brincando precisa ter respeito, estar com o corpo fechado, pois, quem toma parte
no Maracatu está mais vulnerável aos maus sentimentos, ao desmantelo
80
. “Não
porque carnaval é muito pesado, muito pesado mesmo. Rola muita inveja, olho
grande. Se um caboclo tem inveja de outro e você não bem preparado, acabou-
se” diz Fabinho.
78
O Banco do Cavalo-Marinho é formado por quatro instrumentos: rabeca, baje, pandeiro e o mineiro.
79
Categoria nativa para quem brinca Cavalo-Marinho. No Maracatu nunca ouvi referência às pessoas que
brincam como brincadores mas como Maracatuzeiros.
80
O desmantelo é uma categoria usada na região para designar o descontrole, o erro, o azar, a desagregação,
à desafinação.
67
Acselrad fala sobre o cuidado, como categoria primordial no Cavalo-Marinho,
por tratar-se de uma brincadeira que gera um vínculo coletivo ou compartilhamento
de algo que merece respeito. “O cuidado é orientado por dois juízos de valor
considerados referenciais bastante populares nesta região: o desmantelo e a
consonância.” O desmantelo se associa ao descuido, à desagregação e a consonância à
atenção e ao cuidado. (op.cit. 36)
No Maracatu, “todo cuidado é pouco, pois carnaval todo mundo aberto
pra tudo” diz Fabinho. Pra não desmantelar é necessário que todos estejam bem
protegidos num momento tão especial e rico de expressões.
O carnaval é um período festivo, particularmente privilegiado para pensar a
possibilidade do “mundo de cabeça para baixo”, uma ruptura da vida cotidiana, a
inversão da ordem, uma ocasião de êxtase e libertação, o dilema de permanecer e
mudar, a possibilidade de renascimento e renovação. (Bakthin, 2002; Burke, 1999;
Matta, 1979; Cavalcanti, 1995).
Considerando os aspectos universalizantes do Carnaval, a idéia aqui é
pensar a festa para as pessoas que brincam, fazem e narram o Maracatu. À luz da
sugestão de Cavalcanti (2006), sobre um uso flexível e etnográfico dos conceitos de
mito, rito e figuração como distintivos, para refletir sobre diferentes planos de
existência dos fatos, na brincadeira do Maracatu; sem perder de vista, como nos
lembra Mauss (2003), a natureza integrada do homem e suas produções.
(Cavalcanti, 2006: 74).
81
Durante todo o tempo em que estive no campo, escutei inúmeras referências
à relação do Maracatu com o diabo. Esta relação se expressa no plano mítico, em
81
A autora cita um artigo de Vernant (2001) em que são identificados três lugares onde se pode encontrar
o que chamamos de ‘crer’: “Seriam eles: os ritos – a ação humana concertada e expressiva; as imagens, os
ídolos e os artefatos as formas de figuração, e os mitos as narrativas orais desprovidas de dogma ou
teologia.” (Cavalcanti, 2006: 74)
68
que o diabo aparece como o criador do Maracatu, e na dimensão ritual, em que o
diabo faz parte do calço do carnaval, a preparação espiritual.
“Maracatu não pertence a Deus não. Maracatu pertence ao
diabo. O diabo foi quem fez o Maracatu. Fez uma festa de três
dias. O Maracatu começou assim: o diabo passou e viu Nosso
Senhor dando a medicina aos dotô, que vive nos hospital e posto
de saúde. Quando chegou à terra dele (do diabo) que tinha o
patrão dele (disse): ‘eu vi o senhor do povo dando a medicina
aos dotô e eu achei bonito. Que a gente faz? Ele disse: ‘Vamo
fazer uma festa de 3 dias. Faz a festa e vai chamá ele (NS). Em
cada beco de rua a gente bota 2 vigias.
(o Diabo): ‘A gente vai fazer uma festa de 3 dias o Senhor vai?’
ele (o Senhor) disse: ‘vou’. Em todos os 3 dias NS foi: no
domingo, na segunda e na terça, quando foi na quarta ele (o
Diabo) chegou: ‘cadê você eu não lhe vi’. Em cada beco de rua
tinham botado 2 vigias pra pegar Nosso Senhor, mas não tinha
podido pegar. Eles atentaram Nosso Senhor na quarta feira da
cinzas até na sexta feira da paixão, botaram os judeus pra pegar
Nosso Senhor na virada e pegou, né? Quando foi domingo de
páscoa fizeram Maracatu, fizeram carnaval, pra ver se Nosso
Senhor tava aqui na terra. Ai ficou o Maracatu.” (Martelo)
Essa narrativa atribui a criação do Maracatu a uma tentativa do diabo de
enganar Nosso Senhor, trazendo-o para a terra. Temporalmente, se inicia no
Domingo de Carnaval e termina no Domingo de Páscoa
82
. Os caboclos de lança
seriam os judeus perseguindo Cristo por todo o período da Quaresma. E no
Domingo de Páscoa, eles fazem o ‘carnaval’ e comemoram o sucesso da
perseguição. Essa dimensão temporal apresenta uma inversão no calendário cristão
e, portanto, no sentido ‘dominante’ de Carnaval. Os três dias de carnaval do
Maracatu são narrados como a representação da perseguição a Cristo (um
momento de grande seriedade, respeito, abstinência sexual) e a Páscoa, mais
especificamente o Domingo, é vivida como a situação de comemoração pela morte
de Cristo (momento em que os caboclos efetivamente fazem ‘carnaval’: não têm o
compromisso, é farra e bebedeira). Conseqüentemente, inverte-se o ciclo anual
nos domínios do Carnaval e da Quaresma.
82
Oposição cosmológica entre Carnaval e Quaresma (Burke, 1999, Cavalcanti, 1995, apud op.cit: Baroja,
1979)
69
“Quando eles acabaram com Cristo eles não voltaram pra casa. É
como a cabocaria da Páscoa, os caboclos que tá brincando é a volta
dos judeus, quando acabaram com Cristo. Quem gosta brinca
mais, é mais folia de bebida. É a volta dos caboclos, hoje, que
representa. Não é que eles são os judeus, eles tão representando o
que fizeram com Cristo. Na quarta de cinzas não passou o
carnaval? Aquelas sete semanas, é respeito. Ai chegou a
Páscoa.” (Biu Alexandre)
Essa narrativa de “onde o Maracatu partiu” nos foi contada por pessoas de
uma geração de mais de sessenta anos: Martelo, Biu Alexandre e Seu Mané Silva.
Os três moradores de Condado relataram o mito de origem do Maracatu, revelando
o valor do conhecimento dessa explicação, como algo que poucas pessoas sabem.
O conteúdo das narrativas trata do Maracatu como uma invenção do diabo
e que teria permanecido na terra entre os escravos, nas senzalas de engenhos.
Como conta Biu Alexandre:
“Na época que Cristo sofreu, num foi os judeus quem ajudiou
com Cristo? Então, é a apresentação que o Maracatu faz hoje.
Tem muita gente que não entende que é isso. Depois que se
brinca o Maracatu, tem a feira de cinzas, que foi quando o
povo judeu começou perseguindo Cristo. Teve sete semanas eles
perseguindo Cristo. É que não é tanto bem assim, porque
Maracatu pertence aos escravos. Do tempo de Cristo, foram as
sete semanas perseguindo Cristo, é o que o Maracatu
representa.”
A perseguição a Cristo teria o Maracatu ‘a serviço’ do diabo, na perseguição
e na crucificação. As lanças dos caboclos seriam as armas da perseguição (para
furar, ferir e crucificar). “O carnaval foi partido dos judeus fazendo judiação com
Jesus Cristo. Aquelas flechas de caboclo de Maracatu... não sai com aquelas
flechas?, aquilo é da parte do judeu, furando ele, pregando ele na cruz.” (Mané
Silva)
Os carnavais antigos, são narrados como um grande enfrentamento: quando
dois grupos de Maracatu se encontravam no meio do caminho, eles tinham que
70
passar pelo ritual de encruzamento de bandeiras, uma maneira dos Maracatus
passarem um por dentro do outro, simbolizando um acordo de paz, de forma que
cada grupo seguia o seu caminho. Se um dos grupos se recusasse a encruzar as
bandeiras, a guerra estava anunciada.
O encruzamento é descrito como um momento de grande perigo, um
entrelaçamento de partes rivais, em que os dois Maracatus são colocados numa
posição vulnerável, pois se coloca em risco a bandeira. Uma das principais
conseqüências do ritual de encruzamento, segundo os Maracatuzeiros, era
justamente a guerra, visto que, o maior desejo de um Maracatu é furar a bandeira
do outro.
“Porque todos os cabôcos torce pela bandeira do Maracatu. A
bandeira representa isso. Comparando mal, que a bandeira
passa às vezes de Cristo. Porque todos caboclos é pra
defender a bandeira. A vontade era furar bandeira. Era tudo pela
bandeira.” (Biu Alexandre)
A bandeira seria o elemento síntese do conjunto do Maracatu. Se a
bandeira é furada ou rasgada, o Maracatu fica arruinado, desmantelado, ele não é
mais um Maracatu. A organização espacial confere à bandeira um lugar de
máxima proteção: o miolo do Maracatu, que é rodeado de caboclos de lança. Biu
Alexandre sugere que a bandeira “passa às vezes de Cristo” e precisa ser protegida
ferozmente. Essa posição conferida à bandeira a idéia de que, em cada
Maracatu, Cristo “se esconde” na bandeira. A “perseguição” seria direcionada à
bandeira do outro Maracatu, o inimigo.
O diabo é um personagem fascinante na história ocidental
83
. As várias faces
desse personagem, que está em cena pelo menos um milênio, do cômico
83
A História do Diabo de Robert Muchembled fala da multiplicidade e transmutação de formas e da figura
do século XII ao século XX: “ele é parte integrante do dinamismo do continente, sombra que se adivinha no
não dito e de cada página no livro do processo ocidental de civilização do qual Norbert Elias se tornou o
teórico, sem realmente propor a questão do Mal e de suas relações com o movimento em direção ao Bem e
ao Progresso.” (Muchembled. 2001:8).
71
medieval ao maligno romântico, o diabo compõe uma figura complexa e
misteriosa. É um personagem que protagoniza muitas histórias, contadas no
interior: em cada encruzilhada, à meia noite no canavial, nos vapores da usina.
No universo dos cordéis nordestinos, o diabo também é um personagem bastante
presente. Na literatura ocidental, a disputa entre Deus e Diabo, o bem e o mal,
encontra na história de Fausto um marco desse personagem.
Desde o final do
século XVI, popularizou-se na Europa, surgindo diversas representações teatrais
sobre a História de Fausto, meio mago, meio cientista considerado, na época, um
charlatão.
No mito de Fausto, na versão escrita por Goethe (de 1797 a 1832), o pacto
com o demônio é engendrado na consciência de Fausto, dos limites da
compreensão do mistério da existência através do domínio das ciências, gerando o
anseio de conhecer mais e ter vivência da alegria, do amor, da magia. A oferta de
Mefistófeles de conduzir Fausto ao universo das emoções plenas, do prazer, da
sabedoria infinita, em troca de entregar-lhe sua alma, é o resultado da aposta de
que Deus é vencido pelo diabo.
“Fausto e Mefistófeles empenham-se num duelo no qual Deus é a principal
testemunha. Fausto o sabe que antes de ser procurado por Mefistófeles, Deus
apostara com o demônio a sorte de sua vida eterna.” (1976: V)
A história de Fausto coloca em relação deus, o diabo e o homem,
articulados numa disputa ligada ao conhecimento como poder (a religião, a magia,
a ciência, a experiência, etc.). A idéia knowledge is power (Chartier, Pierre.
2003:150) que se insinua nas muitas versões literárias das aventuras do Doutor
Fausto, nos serve aqui de inspiração, para pensar as transversalidades da violência
das narrativas míticas do Maracatu, articuladas nas elaborações nativas da
atualidade agonística da brincadeira.
72
Semelhante ao Fausto, cujos anseios o levaram a vender sua alma, o homem
que brincava de caboclo, nas narrativas de Maracatu, fazia um pacto com o demônio
em busca da superação dos limites humanos. Uma supressão da ordem dominante, o
poder de Deus, que o tornasse poderoso e sábio, para manipular sua força de forma
maligna. A figura do diabo no Maracatu se vincula à inconformidade com os limites
(terrestres, corporais, naturais), tendo como guia a expressão da rivalidade. A disputa
pelo ‘poder’ torna-se aqui o nosso foco, na medida em que, a própria investigação do
que está em jogo nessa disputa, torna-se um elo das narrativas de origem e dos
enfrentamentos contemporâneos dos Maracatus de Baque Solto.
Brincar de caboclo, no passado, era se aliar ao demônio e seus domínios, em
busca de uma vivência ‘poderosa’ do confronto. Este poder em questão ultrapassa o
território do inimigo e circunscreve a possibilidade de transgressão das limitações
da vida social em geral.
Mauss e Hubert (2003) explicitam o importante lugar dos mitos, tradições
orais e lendas populares no estudo da magia. Uma citação de um trecho, dos contos
hindus de Somadeva, me chama atenção: ‘os deuses têm uma felicidade
constante, os homens estão numa infelicidade perpétua, as ações dos que estão
entre os homens e os deuses são, pela diversidade de sua sorte, agradáveis. Eis
porque vou contar a vida dos Vidyâ-dhâras’, isto é, dos demônios e,
conseqüentemente, dos mágicos.” (op.cit: 69)
Os mitos, contos e histórias sobre os demônios, mágicos, e me arrisco a
dizer, espíritos, entidades, caboclos e orixás mostram-se fascinantes, inclusive por
seu potencial dramático e literário. “Aliás aqui não limite possível entre a fábula
e a crença, entre o conto, de um lado, e a história verdadeira e o mito
obrigatoriamente acreditado, de outro. À força do ouvir falar do mágico acaba-se
por vê-lo agir e sobretudo por consultá-lo.” (op.cit: 70)
73
O pacto com o demônio, aparece nas narrativas como uma maneira de o
caboclo negociar a sua força, para ficar melhor na briga. A violência física é
identificada como motivadora dos carnavais antigos “a diversão era brigar” e o
pacto com o demônio, “o calço de antigamente”, era uma maneira de preparar o
caboclo para a briga, para ele poder “sair no pau sem levar a pior” . O pau, a lança
do caboclo, que é a arma de proteção da sua bandeira e ataque da bandeira do
outro Maracatu, é um objeto que traz em si um ‘problema espiritual’ para o
Maracatu:
“Maracatu, Maracatu, quem fez Maracatu foi o diabo, pra trair
Nosso Senhor. Óia, o Maracatu é tão atravessado que a gente
pega, corta um pau numa mata e faz a ponta do do pau. A
ponta da guiada é feita do do pau. anda com o pra
riba. Se a gente fizer uma casa e botar a ponta do pra riba
depois ninguém mora. Porque ninguém mora, fica tudo é…
doente. Enquanto não tirar aquele cabo é gente doente dentro
de casa direto. Porque é negócio de enguiço, a mesma coisa é o
Maracatu. Agora hoje todo mundo brinca, mas no tempo que
eu era menino não era pra todo mundo brincar não. Porque
era de barulho, andava de pés. Saia no domingo de carnaval
e tinha uma coisa, não passava de meia-noite pra chegar em
casa não. Se passasse de meia-noite, o cabra se encontrava com
o Maracatu do diabo no caminho. E tinha que brigar e tinha
que encruzar. Pra brincar de caboclo, o cabra tinha que ser
macho, um cabra dum cacete. Mas era pra brigar quando se
encontrava, pra modo de cruzar a bandeira. Se contava no
tempo que eu era menino”.
84
A metáfora usada por Martelo, para explicar o enguiço do Maracatu, é a casa
de pau-a-pique, feita de troncos de madeira preenchida com barro, tipo de moradia
muito comum na região. Ele explica que se a casa for construída com o ‘pé do pau’
pra cima, isto é, fixada no chão na direção inversa ao crescimento da árvore, aquela
moradia fica com um enguiço, um comprometimento espiritual, que prejudica a
saúde das pessoas que habitam a casa. De acordo com Martelo, a guiada do
caboclo é feita com o do pau propositalmente trabalhado para ser a ponta da
lança que o caboclo carrega apontando para cima. Seguindo essa lógica o Maracatu
seria uma brincadeira enguiçada por princípio, associado a ‘coisa ruim’, energias
84
Entrevista com Martelo realizada por Tatiana Gentile. Condado, 2006.
74
baixas e sentimentos cruéis. Martelo aponta para esta dimensão ‘maligna’ do
Maracatu, contrastando o brinquedo do tempo em que era menino, em que “o
cabra tinha que ser macho” pra brincar, com o Maracatu de hoje que “todo mundo
brinca”.
A noção de enguiço nos traz a idéia de um rito negativo, que lida com o lado
sombrio, violento e maléfico. Numa disputa entre deus e o diabo, o Maracatu
aparece como brincadeira do diabo, anticristã que, numa acepção moralizante da
experiência religiosa, estaria a serviço do mal, lidando com a ‘malignidade’ do
mundo, propagando a violência. Estes elementos em muito se assemelham aos
rituais pertencentes ao mundo da jurema no Recife, especialmente os cultos de
“esquerda” tal como descrito por Carvalho (2003)
85
.
Entre os Maracatuzeiros, é predominante a familiaridade com uma
religiosidade baseada num catolicismo popular politeísta, chamado genericamente
de catimbó, xangô (versão pernambucana do Candomblé, dito tradicional) ou jurema
(torés, culto semelhante ao que se chama macumba quimbanda, umbanda). No
interior, vários centros como o de Mário, em Camará, que têm toques (festas,
giras, cultos) “que introduzem entidades várias além dos orixás, tais como,
caboclos, mestres, exus, pretos velhos, pomba-giras” (op.cit: 88)
Embora muitos neguem ter uma relação direta com essas casas ou centros,
quase todos os meus interlocutores afirmam que, no passado, quem brincava
Maracatu necessariamente estava ligado a uma religiosidade, muito próxima aos
chamados cultos de “esquerda” da jurema. “Só brincava homem e homem que
soubesse respeitar.”
“Antigamente tinha mais respeito. Sabe o que era o respeito?
Porque muita gente brincava pra Pata, então era o calço dele era a
Pata. Você sabe o que é a Pata? Então vou explicar, a Pata era: ele
85
Carvalho (2003) faz uma descrição etnográfica de rituais da jurema, ressaltando a simbólica da violência e
do caos nos cultos ditos de “esquerda”. “É normalmente nestas festas que se concentram os contextos
religiosos rejeitados pelas outras modalidades de culto no Brasil.” (op.cit)
75
negociava com o bicho preto, eles faziam um contrato, eles se
contratavam. Antigamente uma mulher num brincava, os meninos
não brincavam, as baianas era baiano, homem vestido de mulher,
hoje é diferente, hoje tudo se modificou. Hoje ninguém brinca pro
Pata, porque ninguém quer se contratar com o bicho preto. Eu
mesmo num quero. Mas antigamente, era contrato. Então fazia
contrato de 7 anos, de 14, de 21, era ímpar. Então, quando
terminava o contrato, fazia outro. (O contrato) era se entregar ao
demônio. Para brincar de caboclo, eles se entregavam ao demônio.
E naquele dia (em que o sétimo ano se completava), o demônio
vinha buscar ele. Antigamente o pessoal era mais maligno, era para
fazer malignidade no mundo. Aqui, Condado, era terra de caboclo
ruim, a gente passou num lugar que os caboclos se encontrava lá,
os Maracatuzeiro se encontrava lá. Os caboclos que ia, que levava,
se encontrava, tocaiava. A gente passou no Bringa, (o cemitério)
de Itaquitinga, eles esperava um pelo outro. Ali morreu muito
caboclo. Eles esperavam para brigar com o caboclo de outro
Maracatu. Brigar, matar, morrer.” (Biu Alexandre, 28/02/2004)
Biu Alexandre chama de Pata pois não gosta de falar o nome dele. O contrato
com a Pata mencionado por Biu Alexandre traz a idéia de que, a proteção do caboclo
que fazia o calço, era uma forma de ‘ficar com o diabo’ e poder fazer tudo, brigar,
matar e nada lhe acontecer. O contrato com o demônio é narrado como uma forma de
se preparar para a diversão daqueles dias: brigar, lutar, matar ou morrer, mas com
respeito.
O respeito é considerado essencial para a brincadeira dar certo, para o
brinquedo não se desmantelar. Respeitar, como diz Biu Alexandre, é entender o
Maracatu. A demonstração do respeito se primeiramente com o resguardo
sexual, “ficar afastado de mulher” antes e durante o carnaval, para manter o corpo
fechado. Os rituais de respeito, no Maracatu, estão ligados ao segredo, um tipo de
preparação espiritual:
“O apito é o segredo, segredo da sambada. Chegando o
carnaval, ninguém pode pegar naquele apito, o mestre. Não
pode deixar ele num canto, ele preparado para tudo. Todo o
segredo do mestre no apito. Quando a mãe-de-santo calça,
vem todo aquele segredo na bola do apito. Se bobear não canta
nada, se alguém pegar, desmantela, pode até acabar o
Maracatu, todo cuidado é pouco.”
76
A interdição do contato sexual é a principal forma de respeito, tendo um
caráter inquestionável entre os Maracatuzeiros
86
. O corpo carnavalesco do
Maracatu parece manter a sua força, entre outros segredos, através do controle dos
fluidos vitais.
87
A importância dos fluidos vitais, no universo do Maracatu, se mostra
também na proibição da presença das mulheres, como elemento perturbador, não
pela interdição sexual, mas por conta da menstruação, que o sangue, quando
não é ritualmente oferecido às entidades, deixa o ‘corpo aberto’.
A proximidade com a morte também estabelece um vínculo de sangue: “dar
o sangue ao demônio como os caboclos antigos faziam” é visto como um
compromisso que transcende o plano da vida, numa aliança de sangue e fluido
vital, com o “porteiro do inferno”. O caboclo assume, no pacto, uma liberdade
(poder) para matar em vida e um aprisionamento infernal na morte. Diante da
possibilidade da morte, reúne todas as forças e fluidos vitais para lutar, o
oferecimento do sangue e a retenção do sêmen, para garantirem a força.
A força e o poder adquiridos através do contrato com o demônio são narrados
em fascinantes histórias sobre os caboclos velhos, em performances
‘sobrenaturais’
88
. Pular a janela de costas “com o surrão e tudo”, saltar para dentro
do miolo de um Maracatu rival para furar a bandeira, brigar de lança com vários
caboclos sem ficar com arranhão, passar os três dias de carnaval “cortando pelos
engenhos a pé” com o surrão nas costas.
86
Wacquant (2002: 87) trata a abstinência sexual como um dos sacrifícios exigidos do pugilista, nas semanas
antes da luta, “sob pena de perder os fluidos vitais e minar sua força física e sua energia mental.”
87
Serve-nos aqui a idéia técnica, no sentido que Mauss (2003: 407) lhe atribui: “um ato tradicionalmente
eficaz (e vejam que nisso não difere do ato mágico, religioso, simbólico)”.
88
Uma das histórias mais famosas na região é a do caboclo João de Mônica, que desapareceu depois do 21º
carnaval do contrato com o diabo. Conta-se que o diabo veio buscá-lo, pois ele não refez o contrato pra
brincar o carnaval no 22º ano. “Ele só fazia tudo encarnado (vermelho): chapéu gola tudo” diz Martelo.
77
“Que nem antigamente, que o povo fazia calço para isso
mesmo, para pular a janela de costas, para encontrar o
camarada dele e mete-lhe o cacete, bater pau um com outro e
até se matá e furar uns aos outros. Às vezes ele pegava uma
briga com o amigo dele, antes do carnaval, guardava aquilo
ali tudinho, para pegar durante o carnaval, ia descontar na
semana de carnaval. Agora não tem mais isso não, até porque
os Maracatus agora são cheios de meninos, ninguém qué botá
as crianças em bico de pau. Mas, antigamente, a diversão era
brigar. Desconta a mágoa de São João no
Carnaval.” (Aguinaldo)
As inúmeras práticas ligadas à preparação espiritual, como o contrato, o calço,
os banhos de descarrego, inspiram a idéia do carnaval como um ritual de guerra. A
violência religiosa, operando como fronteira dos conflitos interpessoais, é analisada
no livro Guerra de Orixá, através das mútuas agressões simbólicas e físicas entre
diversos integrantes de um grupo de umbanda (Maggie 1979: apud Carvalho,
2003).
Carvalho, ao falar da simbólica de violência da jurema, explicita seu contraste
com xangôs ditos tradicionais: “Excluídos assim os símbolos tradicionais do xangô
os conteúdos que aludem à marginalidade acabam entrando no culto por outro
lado, pelas relações interpessoais e pelas relações entre indivíduos e seus santos” (p.
91).
O caboclo de lança é descrito num tal estado de braveza e êxtase que, ao
encontrar qualquer pessoa pela frente, seja seu próprio pai ou mãe, ele enfrenta. Esse
espírito diabólico do caboclo, no carnaval, pode ser aproximado ao tipo de relação
agonística a que Aguinaldo se refere: “desconta a mágoa do São João, no Carnaval”.
Para Martelo, um dos caboclos mais antigos e que ainda brinca no Maracatu,
“caboclo de verdade é aquele que foi no inferno.” Ele é conhecido na região por
78
conhecer muitas histórias de Maracatu e quem diga que ele é uma “prova viva”,
isto é, um caboclo que efetivamente fez o contrato.
89
Essas histórias antigas de Maracatu circunscrevem uma noção da diversão
carnavalesca associada à violência, bebedeira, brutalidade, masculinidade. As Três
Vendas,
90
local conhecido na Zona da Mata Norte pela convivência, bebedeira e
briga da cabocaria, tem histórias famosas que expressam essa forma de diversão dos
caboclos antigos. As Três Vendas foram tema de uma música do grupo
pernambucano Mestre Ambrósio
91
:
Bebeu cana nas três vendas
Engoliu cobra coral
Não vá lá mano
Que os cabra pega você
E a cana já tá cortada
Nem tem pro’onde se esconder
Vadeia mano
Escuta o que eu digo a tu
Melhor tá no teu terreiro
Sambando Maracatu
Bebeu cana nas três vendas
Engoliu cobra coral
Pra ir lá mano
Escuta o que eu digo a você
Beber com a cabocaria
Muito macho tem de ser
Pra pegar na cobra viva
Matar com o dente e comer
Vou chamar minhas cobrinha
Do tronco do jurema
Surucucu, cascavé,
Salamanta, jiricoá*
Bebeu canas nas três vendas
89
“Existia, antigamente que, quem brincava um ano, tinha que brincar sete (...) Isso é bem antigo,
muito tempo, no tempo que Maracatu andava a pé, uns 60, 80, 90 anos atrás. E hoje existe uma prova
viva disso, que é um tal de Martelo lá de Condado, ele foi um dos caras que fez o pacto com o demônio.”
90
As três vendas ficavam em Chã de Camará, no município de Aliança, Zona da Mata Norte de Pernambuco.
Eram três armazéns muito próximos, localizados neste sítio pertencente a Mestre Batista, famoso dono de
Maracatu e Cavalo-Marinho. Atualmente, há apenas uma das vendas.
91
As Três Vendas: faixa 7 do primeiro disco do Mestre Ambrósio, música e letra de Siba.
79
Engoliu cobra coral
*linha tradicional de catimbó
A letra mostra uma sociabilidade dos caboclos Maracatuzeiros, vista na
bebedeira da cana’, estimulando a exaltação de ‘uma masculinidade’
marcadamente agressiva, que se mostra na imagem do homem que come uma
cobra viva.
92
muitas histórias recorrentes, sobre os carnavais antigos, que demonstram
essa atuação violenta das pessoas que brincavam. Conta-se, por exemplo, que os
caboclos roubavam baianas de outros Maracatus que estivessem desacompanhadas.
Baianas que, embora fossem homens vestidos de mulher, não tinham como lutar
com um lanceiro e viam-se obrigados a brincar no Maracatu rival. Diz-se que, por
causa disso, os caboclos passaram a ter que buscar as baianas em casa para tentar
evitar o roubo. E, mesmo assim, era capaz de um grupo maior de caboclos querer
roubar as baianas. referências também a um tipo de trabalho espiritual que se
fazia, para criar a ilusão de um grupo de três caboclos levando baianas, parecer aos
olhos de outros caboclos um grupo de trinta caboclos, intimidando um possível
ataque.
As sambadas pé-de-parede, a disputa poética de dois mestres também são
descritas como eventos que podiam acabar “manchando o terreiro de sangue”. Na
disputa de dois mestres, as torcidas exaltadas se provocavam, até o ponto em que
“embolava tudo” e no fim havia mestre morto, gente ferida, instrumentos
destroçados.
O cemitério da cidade de Itaquitinga é descrito como o cenário de muitas
mortes de Maracatu. Os caboclos dirigiam-se para o cemitério dos Bringas, para
bater pau, e ouve-se dizer até que alguns eram “enterrados lá de surrão e tudo”.
92
Peter Burke (2000: 219)
P
descreve os carnavais europeus tradicionais com características como: ênfase na
bebida e na violência, composição de sociedades carnavalescas dominadas por adultos do sexo masculino,
interpretadas por ele como rituais de afirmação da masculinidade.
80
Outra recorrente narrativa é sobre uma bebida tomada pelos caboclos, o
azougue, que seria uma mistura de cachaça, pólvora e limão e ervas, que deixaria
os caboclos ligados, agitados, azougados.
A ênfase na preparação para o carnaval, na construção de um corpo
invencível, com privações e controle do corpo durante esse período, tem motivação
na idéia de êxtase, sacrifício, de grotesco e de flagelo do corpo.
93
As chamadas “demandas” da umbanda, ou “provas de fogo”
94
, também
podem ser pensadas como um contraponto deste tipo de comportamento dos
caboclos antigos: de comer cobra, autoflagelo, etc.
Essa imagem de uma guerra generalizada, violência, descontrole, hybris êxtase,
essa simbólica diabólica do carnaval dos antigos constitui uma ruptura com a
ordem, com a vida social, num plano de destruição radical.
A festa como agenciamento da agressividade, esse quadro carnavalesco
“anticristão”, logo profundamente cristão, que, “ao negar seus símbolos, usa o
mesmo universo mítico”, descrevendo não uma inversão da ordem, como uma
intenção de “assustar chocar, infundir o medo, através de uma simbólica do
imaginário dominante” (Carvalho, 2003: 98- 99).
“Se Carnaval é da parte do satanás, eu acho que foi, não é
mais. Aqueles tempos atrasado, eu ouvia pessoa velha falar:
fulano vai pra mata, faz um negócio pra fazer assim: vai ali
pedir ao satanás pra brincar tantos anos de carnaval. o
sangue ao satanás, um dedo, um braço, uma perna, um olho.
Tudo isso eu ouvia cabra velho dizer. Que caboclo véio fazia
aquilo ali. E conseguia aquilo através do satanás. Hoje não,
93
Bataille (1993) em sua teoria da religião, concebe o sacrifício como um “retorno a intimidade, da imanência
entre o homem e o mundo, entre o sujeito e o objeto.” (op.cit: 38)
94
“Colocar a mão no azeite de dendê fervendo para ver se está mesmo com o santo” Maggie, 1975 apud
Carvalho, 2003. No Cavalo-Marinho há uma figura, o Caboclo de Ororubá, que pisa e deita em cima de
cacos de vidro.
81
hoje mudou muito. É que nem seu Martim e pai falou pra você.
O cara saia daqui e ia pra Nazaré a pé, ia pra Aliança a pé, pra
Timbaúba a pé. Não tinha passarela, não tinha esse negócio de
prefeituras fazendo aquela festa nas cidades. Era pesquisando,
como um caboclo sai, pedindo um trocado. Hoje toda cidade
aqui no Pernambuco tem carnaval. Hoje todo mundo corre
atrás ...mas é do dinheiro.” (Aguinaldo 07/07/06)
O tempo ‘passado’ é um ‘território’ privilegiado, para se discorrer sobre
assuntos ‘pesados’, que carregam tantos preconceitos de uma sociedade da qual
hoje o Maracatu faz parte. Os Maracatuzeiros com quem convivi atribuem
‘tempos’ e ‘razões’, repletas de superposições e imprecisões, para este processo de
‘mudança’ do Maracatu. Referem-se ao recurso da afiliação na FCP, que passou a
incentivar a presença de mulheres e crianças como forma de ‘pacificar’.
Mencionam a Associação de Maracatus que proibiria as brigas, entre seus
membros. Enfim, a idéia aqui não é construir uma versão do processo histórico de
‘espetacularização’ da brincadeira, mas investigar, tal como é identificado pelos
Maracatuzeiros, esse código de ‘cultura’, através do qual o Maracatu teria passado
a se expressar.
O passado aparece, nesses discursos, como uma forma de atribuir sentido ao
respeito, às praticas espirituais e rituais presentes no Maracatu atual e também
aciona um ‘fundamento’ que se conecta à noção de carnaval desses Maracatus.
“Porque Maracatu... no interior, a turma diz que quem brinca
Maracatu tem pacto com demônio, é amaldiçoado. Tem gente
que diz que no pai, dá na mãe. Essa história eu tinha
escutado desde criança: tem que amaldiçoar o pai, amaldiçoar a
mãe. A turma falava que, antigamente, caboclo pulava a janela
de costas, fazia todo o ritual, fazia pacto com o diabo para
brincar aquela quantidade de anos. Depois sumia, ou o diabo
vinha carregar. Amaldiçoava o pai, a mãe. (como assim?)
Quando botava arrumação não conhecia mais ninguém e se
tivesse na frente matava... Por isso que não respeita nem pai,
nem mãe, se tivesse na frente passava por cima. Aquela época
era uma época bem mais religiosa que essa, porque hoje
qualquer pessoa, até um cara bicado pega arrumação e brinca
82
de caboclo, mas naquele tempo não. Tinha um resguardo
maior, viviam pra aquilo ali mesmo, aquilo ali era outra
coisa.... Ainda tem, ainda existe isso. Do respeito. Respeitavam
mais, você botou aquilo ali pro que der e o que vier. Morria
por aquilo ali. Quem brinca de caboclo, eles não dizem, mas
um quer ser melhor que o outro. E quando um caboclo arreia
guiada pro outro, procurando confusão. E o outro não quer
ficar por baixo. Ai é a hora de dizer que é melhor é agora.
Ninguém fala, faz.” (Fabinho)
3.2 - A ‘cultura’, a rivalidade e o saber
Maracatu com valia (a)
em algum tempo passado (b)
Não era tão divulgado (b)
Como está sendo hoje em dia (a)
Divulgação não havia (a)
Para Maracatu rural (c)
Mas hoje em todo local (c)
Virou página de manchete (d)
No rádio e na internet (d)
Televisão em jornal (c)
Em alguns anos atrás
Maracatu se encontrava
Com outros sempre brigava
Mas hoje não brigam mais
Acharam um caminho de paz
E de muita boa vontade
Porque hoje na verdade
O que vale é fantasia
Talento e sabedoria
Perfeição e qualidade
Quem é Maracatuzeiro
Do passado se recorda
Bombo amarrado de corda
Carbureto no terreiro
No farol de um candeeiro
Até manhecer o dia
Mas hoje é com energia
Tudo é eletrificado
Com carro de som ligado
Isso é tecnologia
83
Maracatu de Outrora
Passava por desespero
O brinquedo do terreiro
Brigava com o de fora
Só que está sendo agora
muito mais civilizado
Depois de modernizado
Ninguém briga com ninguém
Que a modernidade vem
Dando apagão no passado.
Maracatu do povão
Quem é musico tem espaço
Valete, dama de passo
Guarda-chuva e lampião
E com penas de pavão
O arreiamar não se engana
Tem bandeirista bacana
Rei, rainha e bailarina
Mateu, burra e Catirina
Caboclo, terno e baiana
Quando duas brincadeiras
No caminho se encontravam
Caboclos se entrincheiravam
Formando duas barreiras
Se não cruzasse as bandeiras
A confusão tava feita
Mas hoje ninguém aceita
Esse tipo de ingrisia
Que o povo quer alegria
E tudo que é bom se aproveita
Maracatu hoje traz
Mais emoções pra família
Já vai daqui pra Brasília
Pra Mato Grosso e Goiás
Maranhão, Minas Gerais
São Paulo, Rio de Janeiro
E quem é Maracatuzeiro
Brinca feliz e contente
Vendo a cultura da gente
Se espalhar no mundo inteiro
Pro Maracatu ser bom
Bem ampliado e moderno
84
Exige o toque do terno
Sax, trombone e piston
E povo escutando o som
De um mestre bem popular
Cantando o que precisar
Com idéia bem completa
Que onde existe poeta
Tem poesia no ar
Mestres de antigamente
Alguns não sabiam ler
Hoje é possível se ver
Mestre mais inteligente
Cantando corretamente
Com talento e vocação
É que a nova geração
Vem se conscientizando
É o futuro nos chamando
Para globalização
Até mesmo a criançada
hoje já não sente medo
De ver caboclo rochedo
De surrão gola e de guiada
Ela fica é encantada
Com o brilho da fantasia
O toque da bateria
Agita adulto e criança
Maracatu virou dança
Pra criançada hoje em dia
Eu mesmo não me atrapalho
Com bengala e apito
Fazendo samba bonito
Para quem bate chocalho
Se cantar é meu trabalho
Vou viver cantando assim
E se depender de mim
A cultura não desaba
Carnaval não se acaba
Nem Maracatu tem fim
Mestre Antonio Roberto, autor do samba, em dez linhas sintetiza bem, os
principais contrastes do Maracatu do Passado,
95
com a contemporaneidade. O
95
Faixa 2 do Cd 6 da coleção poetasdamatanorte de Antonio Roberto. Samba em dez linhas.
85
processo de ‘espetacularização’ e ‘profissionalização’ dos Maracatus, como revela o
poeta, traz um deslocamento do eixo de expressão da rivalidade entre os grupos.
A disputa é identificada como uma das principais pulsões do Maracatu, seja
no enfrentamento físico (dos caboclos), na batalha poética (entre mestres de
Maracatu), ou na beleza do Maracatu (na plasticidade, na dança, nos gestos).
Neste sentido, o passado marca um tempo em que a força e braveza do
caboclo era o que o qualificava, como melhor do que o outro. A arrumação do
passado é freqüentemente descrita como ‘feia’ e ‘mal cheirosa’: “um chucaiozinho
de Mateu, com duas correias de couro fedido”. Essa passagem de uma brincadeira
que “só era de barulho,” para um espetáculo visual de cores, brilhos e movimentos,
tem no próprio referencial da luz elétrica, um significante da visualidade.
Se, no passado, a maior qualidade agonística de um Maracatu era
identificada na braveza “o pessoal fazia intriga no meio do ano e guardava pro
carnaval”, nos tempos atuais, a busca dos grupos gira em torno da beleza e da
plasticidade. Biu Alexandre compara o Maracatu, dos dias de hoje, com uma festa
‘leve’, como um aniversário: “Carnaval hoje é como um aniversário. Aquela
quantidade de amigo, aniversario é aquilo, não tem nenhuma confusão.”
“Nosso carnaval de 20 anos atrás era violento, saía para
desmantelar os outros. Antigamente, um caboclo num saía
sozinho, porque tinha caboclo de outro Maracatu esperando.
Hoje, a vingança é na arrumação, de fazer um caboclo mais
bonito que o deles.” (Inácio)
O Maracatu, tal como se encontra hoje, é considerado uma brincadeira onde
todo mundo brinca, mulheres, crianças, gente que está atrás de dinheiro, ou
simplesmente quem quer “aparecer cheio de boniteza e brilho no carnaval”. Assim,
não existe restrição para quem brinca Maracatu, como Biu Alexandre me disse:
“para brincar, é só querer”.
86
A idéia aqui é a cultura valorizando a beleza do Maracatu, o espetáculo. A
brincadeira, na linguagem atual, reveste suas armas nos termos da cultura, isto é,
no que se pode comprar com o dinheiro. O reconhecimento da sociedade é visto,
pelos Maracatuzeiros, como ‘um olhar diferente sobre aquilo que eles faziam’,
como fica claro numa conversa entre Aguinaldo e Martim:
Martim: Esse negócio de folclore começou de um tempo pra cá. Eu nem me lembro o
tempo.
Aguinaldo: Esse negócio, quem descobriu isso foi esses povos de fora, isso é com
vocês.
O dinheiro é um valor, considerado pelos Maracatuzeiros como uma das
mudanças trazidas pela cultura, para o Maracatu. “Dinheiro tem valor agora,
antigamente dinheiro o tinha valor.” diz Martim, contando que quem brincava
antigamente não esperava ganhar “um troco” depois do carnaval.
“Hoje muita gente brinca por amor... mas por amor ao dinheiro e não por
amor à brincadeira”, resenha Biu Alexandre, ressaltando o valor do dinheiro como
uma maneira de medir o interesse e amor da pessoa pela brincadeira.
Se a pessoa brinca por amor à brincadeira, ela brinca até sem ganhar nada.
Se a pessoa gosta daquilo de verdade, investe seu próprio dinheiro, para fazer ou
melhorar sua arrumação: “não fica só pegando arrumação de sede”.
“Brincar Maracatu é muito fácil, o negócio é entender Maracatu.” diz Biu
Alexandre. E o que é entender Maracatu? O que sabem as pessoas que entendem
Maracatu? Diante destas perguntas, a primeira coisa que aprendi é que quem sabe
não diz. O ‘saber’ está relacionado a uma entrega. Como Joabe disse: “Maracatu é
mistério, é muito difícil de entender. Tem que se entregar de corpo e alma, virar um
amante de MBS.”
87
Se “hoje todo mundo brinca” a alusão ao passado, ao respeito, qualifica quem
“conhece” Maracatu. O respeito é uma noção nativa, que demonstra a consciência
de quem brinca, do que se faz no Maracatu, da profundidade daquele mundo.
“Agora como é entender o Maracatu: primeira coisa respeito. No Maracatu se a
pessoa é casada, não pode nem dormir junto com a mulher. Ele tem que respeitar
aquela brincadeira. É porque muita gente não respeita, às vezes até um certo
desmantelo”.
“Antigamente, a nação do Maracatu saía na rua. Se o
homem em casa deitasse com a mulher, acontecia um monte
de desavença no Maracatu, isso é real. Por isso que muito
Maracatu acabou em merda, todo mundo deu disenteria.
Aconteceu de Maracatu se perder dentro de uma cidade, da
qual ele era de lá, e não conseguir sair pra outra cidade. As
pessoas acham que isso é coisa da cabeça do povo, mas não é,
essa é a realidade do nosso povo. Hoje, tem muito
Maracatuzeiro que vai fazer coisa pra o outro Maracatu não
sair, porque é mais bonito do que ele. E se der um vacilo,
qualquer coisa acontece. Acontece de o carro quebrar, do
mestre adoecer, acontece muito do mestre ficar rouco, não
cantar nada. Pra todos os efeitos ainda existe o
respeito.” (Joabe)
Como vimos anteriormente, quem toma parte num Maracatu está sujeito ao
perigo, ao azar, ao desmantelo. Não somente o carnaval é considerado um período
em que “tem muita coisa-ruim solta”. Para agravar, quem está brincando no
Maracatu está muito visado, “está cheio de brilho e boniteza”. Quem brinca no
Maracatu deve estar com o corpo fechado, para não se tornar alvo de inveja, do
olhado, enfim dos sentimentos negativos, dos quais o carnaval parece ser um forte
catalisador.
Assumpção (2006) em seu artigo o Ator Yaô associa o conjunto de preceitos
preparatórios do candomblé “cujo efeito psicofísico nos seus praticantes assemelha-
se às mais modernas técnicas de preparação do ator no que diz respeito a alcançar
um estado não cotidiano propício para a representação.” (op.cit: 2)
88
A mulher, no passado, como “gênero fisicamente ausente, mas
simbolicamente onipresente em negativo” (Wacquant.2003:87) nos conduz a esta
problemática contemporânea do Maracatu.
96
A proibição das relações sexuais - que se inicia antes do carnaval (o tempo varia
de Maracatu para Maracatu, de pessoa para pessoa: 1 mês, 15 dias, 7 dias) e se
estende a a quarta-feira de cinzas é um princípio do Maracatu, confirmado por
absolutamente todas as pessoas com quem conversei. O resguardo sexual é uma
questão de respeito ao Maracatu, associado ao ‘saber’.
“Teve um ano, quando eu brincava no Piaba (de Ouro), com
Mestre Salustiano, que uma baiana fez um negócio errado e a
gente ficou pagando pato. Quase todo mundo adoeceu, porque
ela fez coisa errada. Ninguém pode dormir junto. Porque o que
acontece: adoece baiana, adoece folgazão, qualquer coisa aparece
no Maracatu. A gente não quer mandar em ninguém, a gente
avisa. Quem não sabe, não sabe, mas aqui no interior todo
mundo sabe disso. Porque alguma coisa acontece no Maracatu,
pode acontecer até com a própria pessoa, mas não acontece com
a própria pessoa, acontece com os outros. Eu mesmo, eu não
brincando, mas eu dormi aqui no chão. Porque a gente tem que
procurar o lugar da gente, mesmo se alguém lá fora não respeitar,
a gente tem que respeitar e ainda paga o pato. (...) Quando se
respeita, ninguém adoece, quer dizer, do meu conhecimento,
né?” (Biu Alexandre)
O contato entre os sexos masculino e feminino é uma espécie de ‘tabu’ no
Maracatu, é algo que perturba o equilíbrio’ da brincadeira, vai contra o ‘princípio’
de ordem do Carnaval. Visto que nesta separação, neste sacrifício reside uma
‘força’, as pessoas que estão brincando devem controlar seus sentimentos e ações
que possam prejudicar o coletivo e, fatalmente, ajudar o inimigo.
Conta-se que a primeira mulher que brincou num Maracatu era uma mãe-de-
santo, que preparava espiritualmente o brinquedo de João Lianda, em 1965. Ela
96
“Porque aquelas baianas que sabem brincar dançam mesmo como as baianas dos Xangôs, é quase
a dança do Xangô. Principalmente o traje, os vestidos, que é traje de xangô. É a mesma coisa. Você num
brincou de baiana? Você já brincou de Xangô, você é xangozeira.”
89
brincou com a boneca que é a madrinha do Maracatu, que precisa de cuidados que
ajudem a manter a harmonia coletiva. Joabe conta que, “quando os outros Maracatus
viram que era mais bonito botar uma mulher de dama do passo, todos começaram a
botar.” Mas, ressalta, que muitas mulheres o tinham preparo para brincar Maracatu
por não saberem lidar com aquilo.
97
O Carnaval cultural’ do Maracatu traz no corpo da brincadeira muitas
mulheres, o que torna tudo mais complicado, pois um dos inimigos está dentro do
Maracatu. As mulheres não participavam da brincadeira no passado de guerras e
ainda assim, havia a proibição do contato sexual. Pois agora, ainda com a
proibição, a mulher faz parte, é uma rival que está no ‘interior’ da própria
obstrução.
Este contato é evitado, sempre que possível, na organização espacial do
Maracatu durante o carnaval. No ano de 2006, o Maracatu Estrela reuniu
aproximadamente cem integrantes, havia um ônibus para os homens e outro para as
mulheres. Na escola municipal, em Recife, que hospedou o Estrela durante o
carnaval, com comida e dormida, também havia uma separação: as mulheres
dormiam no andar de cima e os homens no andar de baixo.
Além do resguardo sexual e da separação de espaços femininos e
masculinos, uma recomendação de que as mulheres não toquem nos objetos,
fantasias e também no corpo dos caboclos. Esta recomendação é ainda maior,
quando se trata da esposa, namorada, etc.
O respeito pela brincadeira é uma maneira de manter o corpo fechado e não
enfraquecer o coletivo, pois, as conseqüências de uma conduta podem recair
sobre outra pessoa ‘mais fraca’, que esteja menos preparada.
97
Hoje as pessoas levam Maracatu como esporte mais ainda existe isso, preparar a boneca, entendeu? Porque
era uma religião, hoje não é uma religião mas tem que ser respeitado.”
90
Os conhecedores do Maracatu costumam dizer, que as mulheres não têm
compromisso com o Maracatu, que elas não respeitam, pois não acontece nada
com elas “acontece com o cabra”. As atribuições dos infortúnios carnavalescos
trazem o elemento feminino como base de “acusações”.
Algumas situações, como um caboclo deixar a guiada cair no chão durante
uma apresentação, na boca do povo, vira uma besteira’ que o caboclo fez. E a
suspeita gera também o medo, de que o desmantelo possa pegar em mais gente
‘desprevenida’.
As tentativas de coerção são visíveis ao longo do carnaval: o controle social
das ações individuais, as chamadas de atenção dos mais velhos sobre as meninas
(adolescentes) que brincam. Neste plano é que se distingue quem conhece a
brincadeira, quem respeita.
Como diz Seu Luiz: “Um caboclo que pega uma arrumação é um caboclo,
né? É um caboclo, mas falta muito pra ser um caboclo. Tendo umas pessoas que
sabem o que é Maracatu, brincar Maracatu é muito fácil. O negócio é ter uma
experiência de um caboclo, ai é que são elas.
Essa idéia de que, para ser caboclo, não basta simplesmente botar uma
arrumação, mas saber ser caboclo, inclui sempre uma moral de não dizer que sabe.
No interior se diz que quem é bom, não diz que é: quem é bom, o povo é quem fala. O
saber está ligado ao segredo. Quem sabe guarda.
O saber é definidor das posições e responsabilidades dentro do Maracatu,
especialmente tratando-se dos caboclos, que são os protetores do Maracatu como
um todo. E como foi dito, o carnaval é um momento de grande intensidade dos
maus sentimentos, como a inveja, o mau olhado.
98
98
O trabalho de Malinowski (1978) nos inspira, aqui, na medida em que uma das dimensões centrais do
kula é a rivalidade entre os parceiros e a magia é utilizada para assegurar o bom desempenho. Bem como
as análises de Mauss (2003) sobre o potlatch.
91
O respeito dinamiza uma noção de responsabilidade individual, que
assegura o equilíbrio espiritual do coletivo. O esquema de coerção eautocontrole’,
se revela na tentativa de estabelecer a sorte, isto é, de afastar o desmantelo.
O calço é conhecido pelo povo de Maracatu como uma preparação espiritual, a
busca de uma ‘força externa’ para brincar o carnaval protegido. O ritual de feitura
do calço é descrito de formas variadas, sendo uma prática utilizada ainda hoje, para
fechar o corpo no período do carnaval.
Entre as formas mais mencionados de fechar o corpo estão os preparos
individuais: banhos de descarrego, defumar a arrumação, acender vela.
O calço propriamente é considerado como preparação, que precisa ser feita
por um especialista, um pai ou mãe-de-santo. No caso dos caboclos, o calço seria
um preparo no cravo, no caso dos mestres, um preparo no apito ou na bengala.
“O cravo é a chave do corpo do caboclo. Pra fechar o corpo, ele
leva o cravo pra casa de macumba, pra calçar. O mestre leva a
bengala. Quando você veste aquela arrumação, você não é mais
você, você é um caboclo de lança, uma entidade de Maracatu.
A pessoa não reconhece mais as feições, você fica incansável,
brinca sem parar. Maracatu hoje virou um bloco, uma diversão.
Poucas pessoas estão ali por causa da religião.”
O ‘segredo’ parece ser uma fórmula mágica, coletiva ou individual, que tanto
pode ser falada como tocada. Se o segredo for revelado, o Maracatu desmantela.
Se alguém toca no segredo (o apito do mestre ou o cravo do caboclo), também
desmantela. Mesmo que o segredo tenha sido bem guardado, se alguém
desrespeitar, desmantela. O segredo do Maracatu também é sua ‘força’. Cito uma
conversa entre Aguinaldo e Amaro:
Aguinaldo: “o dono de Maracatu tem segredos, tem coisa que ele não pode dizer.
Eu mesmo que não sou dono tenho coisa. Tem coisa que ele guarda com ele até
92
morrer. Tem coisa que sabe quem é de Maracatu. Por que se vira fuxico, é fácil
outro Maracatu saber. Dono de Maracatu nenhum conta seu segredo, pois o outro
pode tentar acabar com ele e a brincadeira.”
Amaro: “É quase que nem candomblé, que também tem segredo. Eu levanto meu
terreiro, faço um filho de santo, mas tem coisa que eu não ensino a ele, o ponto de
matar. Um dia ele pode ter ódio de mim e me matar: ele vai usar o segredo.”
99
Esta e outras conversas me levaram à idéia de que, “quase que nem candomblé”
uma iniciação no Maracatu. Que os segredos do Maracatu dizem respeito ao
‘saber’, ao ‘fundamento’. Não se pode deixar escapar o saber do Maracatu, pois ele
constitui uma força que, caso fique fora do controle dos seus ‘guardiões’, torna-se
um ponto fraco.
Este ‘saber’, no entanto, não está ao alcance de qualquer pessoa que brinque no
Maracatu. Muito pelo contrário, os que ‘sabem’ devem tornar-se merecedores
através do próprio caminho de busca do saber.
No plano coletivo, o Maracatu parece necessitar de um ‘preparo’, para estar
protegido de qualquer problema que possa desmantelar o grupo: seja por motivo de
doença, ou bebedeira em excesso de algum integrante; seja por uma apresentação mal
feita; seja pelo fato de o mestre não dar conta da improvisação dos versos; seja porque
os sicos ou o terno não estão ‘aprumados’; ou porque outro grupo fazmandinga’.
O dono do Maracatu é que deve se responsabilizar pela preparação do Maracatu como
um todo: consultar uma mãe-de-santo, jogar búzios e fazer o que for necessário para
‘botar’ o Maracatu. ‘Botar’ o Maracatu se refere a um esforço (trabalho) do dono do
Maracatu, para botar o brinquedo na rua. Mas é muito usual ouvir esse verbo em
relação aos brincantes: “fulano tem que saber a hora de ‘botar’ o caboclo”, que
expressa uma habilidade do brincante em se deixar ser possuído pelo personagem e
também ter controle sobre ele.
99
Amaro brinca de baiana no Leão de Ouro. Esta conversa aconteceu durante a entrevista com Amaro, em
que Aguinaldo estava presente. (28/02/2004)
93
A preparação espiritual, no plano individual, transmite a idéia de que o
Maracatuzeiro precisa “construir um novo corpo”, para brincar o carnaval. Um
corpo espiritualmente imunizado à doença, ao insucesso numa briga, à ressaca e ao
cansaço depois do carnaval.
O carnaval na Zona da Mata a idéia de que uma espécie de ‘espírito’
Maracatuzeiro possui os folgazões e os faz terem disposição para uma verdadeira
peregrinação. Desta forma, os Maracatuzeiros passam 3 dias e 3 noites viajando
por estradas esburacadas, apresentando o brinquedo sob sol fortíssimo e sob o
sereno da madrugada, dormindo cerca de 3 horas, bebendo muito (grande parte,
apesar de alguns donos proibirem a bebida) e, ainda assim, motivados pela certeza
de que, se nenhum deslize espiritual for cometido, não vão ficar doentes e muito
menos cansados. É como se, mesmo forçando ao máximo os limites do corpo, ele
não cedesse, pois está sustentado por uma força espiritual’. Essa força espiritual é,
em alguns casos, um espírito encostado, que acompanha e protege o caboclo.
O carnaval em terras de caboclo parece ser uma espécie de prova de resistência.
Mesmo sendo uma grande diversão, tem um sabor de sacrifício.
Neste plano, é que parece acontecer a simbólica de uma guerra, tendo os
caboclos de lança nas trincheiras, como também uma batalha com o próprio corpo,
em que o Maracatuzeiro luta com sua resistência física, com a exaustão mental,
indo até os últimos limites do corpo e da saúde, pelo carnaval.
“Eu, no carnaval, sou uma coisa. Eu aqui to em mim mesmo,
no carnaval, eu tenho uma companhia comigo. no pintar da
cara a gente se sente.... Isso ai eu aprendi com meu tio: se você
é caboclo de Maracatu e tem aquele clima pra carnaval e no
domingo de carnaval, depois que vo se vestir, você for pintar
sua cara, no espelho, e depois de pintar a cara não vê outra cara
encostada, você não preparado pra brincar o carnaval. Quer
dizer que você é aquela companhia, que botaram em você pra
brincar. Depois que to no espelho e me pinto, a minha família
94
reconhece que eu to diferente, que eu mudei. Meu sangue se
some. uma evolução no corpo. Chega na terça-feira, tomo
um banho de mato cheiroso, troquei de roupa e tô novo.”
Nas várias conexões, dos modos de conhecimento do Maracatu, com as religiões
afro-brasileiras, uma noção que nos parece central é a idéia de uma concepção
ontológica carnavalesca. Tal como no candomblé, a concepção ontológica central é o
caminho entre o ‘Não-Ser’, do homem (não-iniciado), e o ‘Ser’ pleno, dos orixás ou
caboclos, podendo ser pensado e construído como uma “continuidade que poderia ser
percorrida por aqueles que, ingressando no culto, passam por todos os rituais e aceitam
todas as obrigações”. (Goldman, 2003: 14)
O Homem que se entrega para brincar de caboclo se renova no devir
carnavalesco
100
.
Como sugere Goldman (op.cit), o caminho entre o ‘Ser’ e o ‘Não-Ser’ é “uma
estrada aberta e cheia de idas e vindas, de perigos, que se acentuam ao longo do
percurso. (...) nesse sentido a possessão aparece como um clarão fugaz e passageiro,
dessa realização do ser” (ibidem)
A criatividade carnavalesca, deste processo de ‘ser plenamente’, dando lugar a um
‘outro’ encostado, se mostra na idéia de sacrifício e renovação, “um dom um
abandono, mas o que é doado não pode ser um objeto de conservação para o
donatário: o dom de uma oferenda a faz passar precisamente para o mundo do
consumo precipitado. É o que significa ‘sacrificar à divindade’, cuja essência sagrada é
compatível a um fogo.”
Conforme nos mostra Bataille, “A virtude da festa não está integrada em sua
natureza e, reciprocamente, o desencantamento da festa foi possível em razão dessa
impotência da consciência de tomá-lo pelo que é. O problema fundamental da religião
está dado nesse desconhecimento fatal da festa. O homem é o ser que perdeu, até
100
O devir e o ser são uma mesma afirmação.” (Deleuze, 1999. apud Goldman, 2003)
95
mesmo rejeitou, o que é obscuramente intimidade indistinta. (...) A religião cuja
essência é a busca da intimidade perdida se resume no esforço da consciência de si:
mas esse esforço é tão vão, que a consciência da intimidade é possível ao nível
que a consciência não é mais uma operação cujo resultado implica duração, quer dizer,
ao nível em que a clareza, que é efeito da operação, não está mais dada.” (op.cit: 46)
A renovação carnavalesca é no Maracatu um devir-brincar, atravessado por
variados níveis de intensidades marginais à ‘cultura’.
Esses diferentes níveis, em que a brincadeira se ‘manifesta’ e é manifestada, nos
conduzem à dimensão criativa do Maracatu como “território existencial”.
96
O Fim do Ciclo: o Carnaval de Páscoa
Chuva forte da manhã. Escuta-se o bater do surrão de caboclos que andam na rua. Um
caboclo passa na porta da casa. Clécia, filha de Aguinaldo, comenta: “parece até véspera de
Carnaval”. É Sábado de Aleluia. Quando saímos na rua avistamos catitas brincando, fazendo
graça com as pessoas.
Aguinaldo: “Semana Santa aqui, tem gente que come uma vez por dia, não toma
banho e não namora” Eu indagando: “como no Carnaval?” e ele responde: “é, quase que nem
Carnaval”.
Na manhã seguinte, Domingo de Páscoa, dez caboclos de Condado, entre eles
participantes do Leão e do Estrela, lotam duas kombis para Itaquitinga. Todos na expectativa da
surpresa que fariam, para Seu Baixa, dono do Maracatu Leão da Mata de Itaquitinga. Bel, o
caboclo que estava organizando o Carnaval de Páscoa, havia combinado com os tocadores do
terno do Maracatu de seu Baixa.
O Maracatu da Páscoa, composto apenas de terno e caboclos, manobrou algumas vezes
na frente da sede do Leão da Mata, surpreendendo Baixa e sua mulher, que logo trataram de
improvisar um almoço para o pessoal.
Na volta de Itaquitinga para Condado, as duas kombis que vieram cheias, uma voltou
vazia e a outra com espaço sobrando. A maior parte dos caboclos ficou por tomando bicada e
brincando o carnaval de Páscoa com surrão nas costas. Na mesma noite, Aguinaldo e eu, que
voltamos na kombi semi-vazia, tivemos notícias do bando de caboclo bicado, que não queria
deixar os bares fecharem, sambando Maracatu. Como Fabinho nos contou depois, a cabocaria
de Páscoa foi caminhando por todo o trecho, de Itaquitinga até Condado, parando nas biroscas,
botando um CD de Maracatu, para sambar e tomar bicada. Afinal, é na Páscoa que a
cabcocaria faz o Carnaval.
A conclusão desta dissertação é uma pequena retomada de uma questão,
apresentada no início do terceiro capítulo, sobre a dimensão ritual do ‘brincar’
Maracatu. Se cosmologicamente a oposição Carnaval Quaresma é ritualmente
97
vivida através valores dominantes dos festejo nas idéias de finitude do corpo /
resguardo, o riso / a reserva, a matéria / o espírito, etc., essas oposições operam
contrariamente nos valores do Maracatu.
O carnaval como é feito e narrado pelos Maracatuzeiros, desde guerra até o
espetáculo, é pensado como uma atividade séria que exige respeito, que vai bem com a
idéia de profissionalismo. A páscoa é o momento em que o caboclo pode fazer
carnaval, brincar livremente, descontraído, sem obrigação, não se preocupando com
desmantelo. O domínio do riso, tão celebrado por Bakthin, está presente na páscoa do
Maracatu, numa idéia “carnavalizante” do carnaval do Maracatu.
Muito além do Carnaval como uma festa do diabo, ou ‘a serviço do diabo’ ou
anti-Cristo, a festa é vivida como uma experiência religiosa de outras ‘ordens’, ainda
que fortemente conectada à simbólica cristã em seus infindáveis processos criativos.
Nessa dimensão estrutural, nos termos de Levi-Strauss, seja na ordem cultural
ou natural expressa, “a presença inconfundível do espírito humano. (...) a
transformação que se opera de uma ordem para outra é a mutação convencional entre
repressão e liberação, tão bem teorizada, para o caso dos dramas sociais, por Victor
Turner.” (Carvalho, 2003: 111)
A superposição de níveis em que a brincadeira do Maracatu é plenamente
vivida se revela no palmilhar dessa travessia de ‘saber-ser’.
Um assunto que me parece muito instigante para novas pesquisas sobre a
brincadeira na região é a riqueza das disputas poéticas do samba de Maracatu. Os
temas de disputa dos versos improvisados constitui um território fértil de criatividade e
atualidade da brincadeira. Novamente inspirada por Lispector, termino esse trabalho
vendo na poesia de Maracatu, e nos espaços em que ela é criada cantada e sambada ,
uma espécie de ‘expressão social total’ da atualidade da brincadeira na região:
98
“pois a atualidade não tem esperança, e a atualidade não tem futuro: o futuro será
justamente uma nova atualidade.”
101
“Vejo a tradição como um gosto compartilhado, que cria uma linhagem ao longo
do tempo. O Maracatu tem sua tradição, o rock tem sua tradição. No disco (Toda vez
que eu dou um passo o mundo sai do lugar) diferentes tradições se comunicando.
Não gosto do termo ‘contemporâneo’ como oposição a ‘tradição’. Ele é usado
geralmente, para reforçar preconceitos contra coisas consideradas arcaicas ou
primárias. Minha música e minhas letras estão profundamente ligadas ao meu tempo.
Mesmo porque, não tenho a menor preocupação com a preservação ou manutenção de
nada. Faço Maracatu porque ele está vivo, e as pessoas da minha terra gostam dele
porque gostam, e não para preservá-lo. (..) Se ele acabar um dia, é porque o
conseguiu se adaptar. O Maracatu sobreviveu porque foi pra cidade, teve contato com
a TV e o rádio, seus poetas tiveram alfabetização e ampliaram seus temas. Se a
tradição o passo à frente, acompanhando o mundo, ela segue viva. Se não, não
adianta gravar, fazer livro, registrar, defender...” (Siba)
101
Essa frase e também trecho da introdução são parte do texto A Paixão segundo GH de Clarice Lispector.
99
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SILVA, Severino V. Festa de Caboclo. Recife: Ed. Associação Reviva, 2005.
VICENTE, Ana Valéria. Maracatu rural o espetáculo como espaço social: um estudo da
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TURNER, Victor. O Processo Ritual: estrutura e anti-estrutura.. Petrópolis: Vozes, 1974.
VIEIRA, Sévia Sumaia. Dinâmica e Reprodução: O caso do Maracatu Rural Cambinda
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VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O Nativo Relativo. Mana – Estudos de Antropologia
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WACQUANT, Loïc. Corpo e Alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Rio de
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WAGNER, Roy. The Invention of Culture. Chicago & London: The University of
Chicago Press, 1981.
10
Anexo 1
MAPAS
10
10
Anexo 2
Personagens do Maracatu
Na frente do Maracatu:
Mateus: Personagem presente em outras brincadeiras como o Boi e o Cavalo-
Marinho, da lenda de Mateus e Catirina. Usa um chapéu de funil com fitas de
celofane, usa um surrãozinho de madeira, nas mãos carrega uma bexiga que bate na
coxa.
Catirina: A Catita como é chamada nas ruas é um homem vestido de mulher com a
cara pintada de preto e uma cesta nas mãos. Ela faz graça com o público e pede
dinheiro. Conta-se que, no passado, a Catita era quem conseguia algum dinheiro e
comida do público pra o Maracatu. a Catita deve ser ágil e saber “roubar” comida.
Burra Calu: um homem vestido de burra que estala um chicote no chão abrindo
espaço para o Maracatu.
Caçador: de acordo com Biu Alexandre é o caçador dos escravos, da lenda de Mateu
e Catirina. Toca um berrante de chifre de boi, tem um chapéu de pele de animal,
carrega uma espingarda e leva pendurado um bode empalhado ou só a pele.
No miolo:
O Bandeira: um homem que carrega a bandeira. Veste uma roupa de súdito real.
A Bandeira: Na bandeira do Maracatu estão bordados: o tipo de Maracatu (baque
solto), o nome do Maracatu (em geral algum animal leão, águia), a cidade em que ele
foi fundado, a data de fundação e o símbolo. A bandeira é objeto de maior cuidado, e
o desejo de um Maracatu rival é furar a bandeira do outro. É como se, tendo a
bandeira rasgada, o Maracatu estará desmantelado, perde-se um elo entre aquelas
pessoas.
A corte: Rei, Rainha e dois carregadores de guarda sol que cobrem o casal real. Ficam
atrás da bandeira. A corte nos Maracatus de Baque Solto foram uma imposição da
Federação Carnavalesca de Pernambuco (data).
10
Boneca/ Calunga: preta de pano. É o mbolo do Maracatu, todo Maracatu tem uma
boneca, inclusive os de Baque Virado.
A Dama da Boneca: uma baiana que carrega a boneca, fica perto do Bandeira ao
centro.
Arreiamar ou Caboclo de Pena: Usa um grande e pesado cocar enfeitado e um saiote
de penas. Traz uma gola mais curta que a do caboclo e nas mãos carrega uma
machadinha de índio. Além do mestre, o arreiamar é o único que tem um apito e a sua
responsabilidade principal é cuidar das baianas.
Baianas: formam dois cordões simétricos atrás dos arreiamar. Usam um vestido longo
e armado, na cabeça usam um lenço ou um chapéu, as baianas de vestido de cor igual
formam pareias, cada uma no cordão. Atualmente, os homens que brincam de baiana
em meio à maioria de mulheres, moças e meninas, são homossexuais. As baianas se
enfeitam com colares, brincos, maquiagem. Com as inovações das exigências da FCP,
em 2006, as baianas devem levar nas mãos uma varetinha com o símbolo do
Maracatu.
Trincheiras (envolvendo o miolo do Maracatu) :
Caboclos de Lança: lanceiros ou guerreiros africanos. O caboclo usa um surrão de
metal pendurado nas costas, coberto por uma gola feita de veludo bordado com
lantejoulas. Na cabeça tem um chapéu feito com fitas de celofane coloridas. Carregam
uma lança de madeira decorada com fitas de pano, chamada guiada. Além de muito
pesada, a fantasia dos Caboclos emite um som estrondoso, produzido pelo grandes
chocalhos de metal que compõem o surrão. Costuma-se dizer que caboclo tem que
saber bater surrão. A própria palavra surrão indica o ato de surrar, bater. O saber bater
o surrão está associado a movimento do corpo que carrega o surrão, a habilidade com
que ele manobra, anda, corre, luta, dança, maneja a guiada (lança), balança a cabeça
(com o pesado chapéu), engana, faz graça, mostra sua beleza. O rosto é pintado de
vermelho, usam óculos escuros, e na boca levam um cravo branco ou um galho de
arruda, que são sua proteção. São os personagens de maior destaque dentro do
Maracatu e também os mais numerosos. Como num exército, os caboclos têm uma
10
hierarquia interna que se define pelas posições. O mestre de caboclos é o que tem
maior autoridade e responsabilidade, é quem cuida da cabocaria. Ele organiza, toma
conta e controla os lanceiros. Os dois puxadores de cordão e os dois bocas de
trincheira são os caboclos que têm uma relação direta com o mestre de caboclos na
condução da manobra do Maracatu. A comunicação entre eles é chamada de namoro,
pois eles ficam atentos à movimentação da manobra através do olhar. O pé-de-
bandeira é o caboclo responsável pelo terno que fica atrás do Maracatu.
Atrás do cortejo:
O Mestre: carrega uma bengala e um apito. Faz de improviso as marchas, sambas e
galopes. que movimentam o Maracatu.
O terno: conjunto musical: cuíca, ganzá, bumbo, tarol e gonguê.
Músicos: tocam os instrumentos de sopro geralmente trombone, piston e saxofone.
11
Anexo 3
Esquema de rápido dos versos de Maracatu
(por Siba Veloso)
102
Marcha
4 linhas de sete sílabas
a
b 2x
c
b
Ex:
Abriu-se o portão do samba
Cada um que seja ativo
Ninguém morre antes do tempo
Nem corre sem ver motivo
Samba em dez
10 linhas de sete sílabas
a
b
b
a
a
c 2x
c
d
d
c
102
2x significa resposta das duas linhas ou da única, no caso do samba curtinho.
11
Ex:
Enquanto eu vivo no chão
Cantando samba pesado
Vive o Pardal pendurado
Em fio de alta tensão
Cantando a única canção
Que Deus lhe deu pra cantar
Canta o pardal pra jantar
E eu só canto quando janto
Pardal canta em todo canto
e eu canto em todo lugar
Galope/Samba em seis
seis linhas de sete sílabas
x
a 2x
a
b
b
a
Ex:
Cantar qualquer coisa
Que o povo ache legal
Senão o seu pessoal
Vai dizer desde o começo
Tem mestre de todo preço
Mas tu não vale um real
11
Samba curto
Igual ao galope mas primeira linha tem 4 sílabas apenas
Ex:
De novo eu vou
Subindo o mesmo batente
Com mais futuro pra frente
Bem mais história pra trás
E carregando bem mais
Samba pesado na mente
Samba curtinho
4 linhas de sete sílabas
Ex:
Destrambelhado e demente 2x
Dorminhoco e desleixado
Doido, desmoralizado
demagogo, decadente
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Anexo 4
Quadro Leão X Estrela
Maracatu de Baque Solto
Leão de Ouro de
Condado
Estrela de Ouro de
Aliança
Fundação
O Leão de Ouro foi
fundado por Severino
Memezo em 1972 em
Tupaoca, município de
Aliança. Em 2001 o
Maracatu passou para Biu
Alexandre
Em 1966 o Estrela de
Ouro foi fundado em Chá
de Camará, por Batista.
Quando em 1991 Batista
morreu o Maracatu ficou
dois anos com Ramiro em
Chã de Esconso. Depois o
filho de Batista, Zé
Lourenço (Zé Batista),
passou a tomar conta. Em
2005 Chã de Camará
tornou-se Ponto de
Cultura.
Sede Condado Sitio Chã de Camará,
Município de Aliança
Distância do Recife 90km 86km
Mestre do Maracatu Negoinho Zé Duda
Mestre de Caboclo Ramiro Luiz
Dono Biu Alexandre Zé Lourenço
Presidente Paulo Zé Lourenço
Compete na Federação
Grupo 2 Grupo Especial
Principais interlocutores Biu Alexandre (dono);
Aguinaldo e Martim
(caboclos de frente,
puxadores do cordão);
Fabinho,Martelo, Bel
(caboclos) e Rosil
(arreiamar)
Zé Duda (mestre);
Luiz (mestre de caboclos);
Deda (rainha e diretora
das baianas); Badango
(puxador de cordão)
Minha posição Brinquei de baiana no
carnaval do ano de 2004
Brinquei de baiana no
carnaval do ano de 2006
11
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