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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
MUSEU NACIONAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
CARLOS CESAR LEAL XAVIER
A CIDADE GRANDE DE ÑAPIRIKOLI E OS PETROGLIFOS DO IÇANA
– UMA ETNOGRAFIA DE SIGNOS BANIWA –
Dissertação apresentada como requisito
para a obtenção do grau de
Mestre em Antropologia Social
ao Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social / Museu Nacional / UFRJ.
Orientador: Professor Doutor Carlos Fausto
RIO DE JANEIRO
FEVEREIRO 2008
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AGRADECIMENTOS
“No Rio Negro, ninguém faz nada sozinho”, disse-me alguém que, ironia, teimava em
trabalhar sozinho. No Rio Negro, ninguém faz nada sozinho, e essa longa lista de
agradecimentos – aos quais certamente há de faltar alguém – comprova o dito.
Agradecimentos Especiais
A Ricardo Ventura, pela decisiva e fundamental intuição/ação de, a partir da leitura de
um despretensioso e ingênuo ensaio sobre Antropologia e Tradução, recomendar-me ao
curso do Museu Nacional e, especificamente, à orientação do prof. Carlos Fausto;
A Carlos Fausto, pela orientação amiga e firme e pela amizade ‘orientante’, baseadas no
respeito e potencialização de minha eclética formação pregressa, ao mesmo tempo que
numa verdadeira e paciente educação antropológica;
A Luiza Garnelo e Sully Sampaio, amigos que ‘dividiram’ comigo os conhecimentos sobre
os Baniwa e sobre o Içana, sem os quais eu jamais teria sequer conseguido escrever a
primeira linha deste trabalho;
A André Fernando Baniwa, um dos homens mais inteligentes, éticos e generosos que já
conheci, que incha de orgulho o povo a quem serve com sofrida dedicação e também
àqueles que conquistaram o privilégio de tê-lo como amigo.
Finalmente, a Ñapirikoli, por ter conquistado a primazia desta humanidade, por ter
estendido o (meu) mundo e por ter inscrito seu ensino nas pedras do Içana;
a seu filho Kowai, por trazer em seu corpo todos os elementos,
todos os sons e todos os signos;
e às Amaronai prometéicas, por terem roubado as flautas
e difundido os conhecimentos pelo mundo.
O que seria de nós, não fossem elas?
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Agradecimentos
Aos Baniwa do Içana, povo gentil e sábio;
Aos companheiros de viagem e narradores de histórias: Irineu, Basílio, Liveston, Tiago, Armindo,
Laureano, Antonio, Olimpio, Alberto, Damásio, Marcelino, Mário, Valentim, Alfredo, Paulo, Juvêncio
Dzoodzo, Raimundo;
Às mulheres curripaco da comunidade de Coracy, por meio de D. Laura e suas filhas;
Aos capitães e habitantes das comunidades onde paramos, pernoitamos, compartilhamos alimentos:
Ilha Grande, Ambaúba, Arapasso, Araco, Coracy, Barcelos, Camanaus, Siuci, Tunuí, Tamanduá,
Juivitera, Jandu, Bela Vista, Tucumã, Assunção;
Às organizações indígenas do Alto Rio Negro: FOIRN (Domingos), OIBI, OICAI (Laureano), CABC;
À Escola Pamáali;
Ao Instituto Socioambiental (ISA), por meio de Beto Ricardo, Geraldo Andrello, Laíse Diniz, Adeílson
Silva, Renata, Andrezza;
À Saúde sem Limites (SLL), pela acolhida e hospedagem, por meio de Patrícia Torres, Lirian,
Marcelino, Luís;
À Funai, por meio do então responsável em Tunuí, Caldas;
À Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Rio de Janeiro e Manaus;
Ao Museu Nacional/UFRJ; ao Núcleo de Transformações Indígenas (NuTI);
Ao Programa Capes-Cofecub e Rede Artimagem;
À Fundação Gaia, ao professor Francisco Ortiz e a Marcos Wesley;
Ao Grupo GIPRI (Colômbia), aos professores Guillermo Muñoz e Carlos Rodriguez;
À Denise, arqueóloga, pelas dicas fundamentais no primeiro momento;
A Eduardo Neves;
À Maria do Carmo Leal, pela compreensão e apoio a este trabalho, realizado em meio às minhas
atividades na Fundação Oswaldo Cruz;
Aos meus amigos da VPEIC/Fiocruz: Kadu, Marco Aurélio;
Aos professores do Museu Nacional: Aparecida Vilaça, Eduardo Viveiros de Castro, Federico Neiburg,
Giralda Seyferth, Ligia Sigaud, Márcio Goldman;
Aos professores do IFCS, amigos: Raquel Moscowitz, Roberto Machado;
À Carla, biblioteca do Museu; À Tania e à Bete, secretaria do PPGAS:
À Carminha e ao Fabiano gente-boa.
Aos amigos de mestrado/doutorado, especialmente a meu parceiro de viagem ao Alto Rio Negro,
Bruno, e a meu parceiro de outras viagens, Martinho;
Às amigas, por muita compreensão, leituras, conversas: Ana Amstalden, Ana Beatriz, Cátia
Guimarães, Claudia Kamel, Érica Loureiro, Estela Vieira, Iaiá Leal, Kátia Machado, Luciana Alves,
Mariana Borges, Tânia Eberhardt;
Ao amigo de sempre, Sandro Lobo;
A Rose, por toda uma vida ao lado e por perto, pelas marcas em meu corpo e alma;
A Camila, Julia, Norma, Babi, mulheres das quais me orgulho, que de mim se orgulham;
À Bia, que chega agora a um mundo já pronto;
A Júnior, Márcia, Gabriel, Ivanise, Marcelo, família perto;
Ao meu oráculo predileto e ao número 19;
Aos bichos-gente, Billy, Laila, Shanti, ommm.
4
Ao meu pai
5
[A título de epígrafe...]
6
RESUMO
Este trabalho ocupa-se da rede sígnica que organiza, registra e recompõe a memória
social entre os Baniwa do Alto Rio Negro, tendo como principal objeto de estudo os
petroglifos ao longo do rio Içana. A autoria de tais signos gravados nas pedras, quase
sempre em lugares sagrados e cachoeiras onde importantes eventos ocorreram, é atribuída
ao herói-criador Ñapirikoli. Os desenhos são destinados a: i) mostrar aos walimanai (as
novas gerações) como era o mundo primordial; ii) registrar ensinamentos sobre técnicas
diversas (caça, cestarias); e iii) apontar modos de comportamento que devem guiar os
Baniwa. Esta pesquisa tem como base teórica a semiótica de Charles Sanders Peirce. As
questões que se impõem remetem à vida social dos signos e às relações entre oralidade,
memória e suporte material, isto é, ao lugar desses elementos não-humanos (signos,
paisagens-escrituras) na rede social dos Baniwa que, em sua maioria, são hoje evangélicos.
ABSTRACT
This research work has its focus on the relation between art/image based on how
the Baniwa ethnic group organize, register and recompose their social memory. This ethnic
group is based in a region known as Alto Rio Negro, Amazonas. The main object of this
study is the ‘petroglifos’ (signs carved on the stones), found along side ana River. The
authorship of those signs, found mostly in sacred places and waterfalls where important
events happened in the past, is accredited to the great creator and hero known as
Ñapirikoli. The ‘petroglifos’ were designed to: i) Show walimanai (the new generations)
how the primordial world used to be; ii) Register knowledge about various techniques such
as hunting and basket making amongst others; iii) Prescribe behavior patterns to be
followed by Baniwas. This research work is greatly supported by Charles Sanders Peirce´s
semiotic theory. The relevant matters pointed out in this study are deeply connected to
the social life of those signs in relation to their role in oral tradition, memory and
material support. This study investigates how those non-human elements (meaning signs,
landscapes–scriptures) are placed in today’s Baniwa´s social network, considering they’re
mostly evangelic nowadays.
7
SUMÁRIO
I. INTRODUÇÃO: Em São Gabriel da Cachoeira
1. Reunião Baniwa e a Cidade Grande de Ñapirikoli
2. Ñapirikoli e os petroglifos: a forma conta a história
II. A MONTANTE
1. O rio Içana e os ‘içaneiros’
2. Caapi: o olho-umbigo e a trompa
2.1. Um método de registro dos petroglifos
3. Tunuí: Os padrões geométricos diakhe
4. Pamáali, a escola-comunidade
4.1. A Semiótica de Charles Sanders Peirce:
Peirception, metodologia possível
4.2. Ação dos signos, agência
4.3. O signo como tríade: Signo | Objeto | Interpretante
5. Jurupari: Kowai e as flautas
5.1. Remos? Casas? Armadilhas?
5.2. O Signo e(m) suas relações
6. Moolito: relação complexa entre signo, conhecimento e memória
7. Siuci: as estrelas e a filiação
7.1. Indicação: a idéia de índice segundo Gell e segundo Peirce
8. Buya: duas figuras de mulher e o ‘falsos’ petroglifos
III. ALTO CURSO
1. A Cidade Grande de Ñapirikoli: paisagem-signo
1.1. As três histórias de seu Antonio
1.2. Signos ‘naturais’ e apropriações
1.3. Pedras sem petroglifos, mundo sem desobediência
1.4. A caverna das Amaronai e outras paisagens-signo
1.5. A história de seu Olímpio: a riqueza de Manaus
e o conhecimento dos brancos
2. Camanaus: desenho longe do rio
2.1. “Ñapirikoli é o diabo!”- signos antigos (des) (re) apropriados
2.2. Religião social
8
IV. A JUSANTE
1. A história de seu Marcelino:
Os tempos antigos e a disputa pela ‘humanidade dominante’
2. As três histórias de Seu Alberto: Ñapirikoli, o criador
2.1. O Corpo de Kowai: Todos os elementos, todos os sons, todos os signos
2.2. As flautas Kowai
2.3. A flauta Moolito, voz-entre-mundos
3. Oficina de desenho: Alberto e a história sem equívocos
4. Juivitera: Seu Valentim e a ‘história total’
5. De volta a São Gabriel: ‘prestação de contas’
V. CONCLUSÃO: O rio visto do Rio
1. Signos embaraçados e o embaraço dos signos
2. Antigas x Novas tradições
2.1.Ñapirikoli: um criador em processo de descriação e recriação
VI. BIBLIOGRAFIA
VII. ANEXOS
1. Quadro geral dos petroglifos
2. As três histórias de seu Antonio, copiadas por Livestone
3. A história de seu Olímpio
4. A história de seu Marcelino
5. As duas histórias de seu Alberto
6. A história de seu Valentim
7. (CD) Arquivos de texto, áudio e imagens :
fotos de campo, registro dos petroglifos e gravações digitais
pelos narradores baniwa, em língua nativa
9
I. INTRODUÇÃO: Em São Gabriel da Cachoeira
São Gabriel da Cachoeira, Alto Rio Negro, estado do Amazonas, a 1.000 km (por rio) de
Manaus. Por aqui passou Ñapirikoli
1
, o ancestral baniwa, o herói criador que conquistou a
primazia desta humanidade enfrentando os macacos da noite e o povo-jaguar. Descendo o
rio Içana desde sua maloca em Kerhipani, à beira do igarapé Jawiari, Ñapirikoli perseguiu
as mulheres que lhe roubaram as flautas Kowai, até onde hoje está localizada a cidade de
São Gabriel da Cachoeira. Aqui, o herói transformou-se em cobra para alcançá-las, mas as
mulheres mataram a cobra sem ferir a Ñapirikoli e seguiram na direção do grande mar,
de Manaus, onde por fim ele encerrou a perseguição, fincando sua borduna baaraita na
terra. A riqueza de Manaus provém dessa borduna, que era de ouro. As mulheres, então,
espalharam-se pelo mundo, até o outro lado do céu, levando consigo os conhecimentos das
flautas que implicam a fabricação de todo tipo de material e equipamento e entregou-
os aos brancos. Ñapirikoli voltou, então, para a sua maloca e descansou.
Essa história repete-se à exaustão na região habitada pelos índios Baniwa, com
diversas variações. Na maioria das versões, Ñapirikoli consegue recuperar as flautas e as
mulheres são mortas ou castigadas. Na versão resumida acima, coletada por mim entre os
Curripaco do Alto Içana (comunidades de Barcelos e Coracy), Ñapirikoli não tem sucesso e,
por causa disso, o conhecimento e as riquezas terminam por pertencer aos brancos e não
aos índios. Independentemente do desfecho, porém, conta-se sempre que, por todo o
caminho, nessa ou em outras viagens, Ñapirikoli gravou desenhos nas pedras às margens
dos rios: formas circulares, espiraladas, zoomórficas, antropomórficas. Tais desenhos
costumam permanecer de oito a dez meses do ano submersos pelas águas dos rios, mas,
apesar da erosão, sempre aparecem, nunca se extinguem. As pedras, os Baniwa bem
sabem, são os únicos elementos estáveis num mundo instável, a permanência na constante
mutação, onde bichos podem ser gente e gente virar bicho, onde as águas sobem e
descem, onde as matas mudam a paisagem a cada estação.
No lugar onde termina essa viagem de Ñapirikoli, inicia-se a nossa, seguindo os
desenhos nas pedras, seguindo o dedo do herói até o local onde ele surgiu e para onde
voltou, a sua ‘Cidade Grande’, uma serra de pedra de cujo cume ele enxergava todo o
mundo então existente. Os desenhos de Ñapirikoli e a sua cidade remetem-se, e nos
1
A grafia das palavras baniwa varia muito. Não há padronização mesmo entre as escolas das comunidades ao
longo do Içana, embora haja, atualmente, um grande esforço nesse sentido. Neste trabalho, adotei o seguinte
critério. A princípio, assumo a grafia que os próprios índios da expedição indicavam, quando eu inquiria acerca
de algum termo específico. A maioria dessas palavras são nomes de animais ou de lugares. Aqui, há diferenças
que decorrem tanto das formas de aprendizagem de cada um, como de variações dialetais (baniwa/curripaco).
Com relação aos termos mais gerais e nomes dos heróis míticos, utilizo a grafia do Dicionário Baniwa-
Português, de Henri Ramirez. Finalmente, quando faço uso de histórias e mitos recolhidos por outro pesquisador,
preservo a grafia original.
10
remetem, a um mundo primordial e antigo, e de falam a esta humanidade aqui, que
então estava por nascer. O que dizem esses signos? Alguém ainda hoje é capaz de os
escutar? E se os escuta, é capaz de entendê-los? E se os entende, de que modo o faz? Em
resumo, como se configura, atualmente, a vida social desses signos?
A decisão de assim construir este relato, cujo sumário foi construído a partir do
roteiro de viagem e em terminologia que remete ao curso do rio, baseou-se em três
premissas. Em primeiro lugar, os Baniwa são grandes viajantes, à semelhança de seus
heróis fundadores. ‘Seguir o nativo’, no caso baniwa, é quase como ‘seguir o rio’. Os
cânticos e as rezas dos pajés baniwa, como comprovam os trabalhos de Jonathan Hill
(1993), Robin Wright (1993, 1998) e outros, citam e descrevem cada local por onde esses
heróis passaram e o que aconteceu em cada estação. Nada mais adequado, portanto, do
que seguir o exemplo dos cânticos kalidzamai, a forma narrativa tradicional baniwa por
excelência, construindo este relato segundo os mesmos critérios.
Em segundo lugar, a narrativa construída desse modo evidencia o gradual
‘descobrimento de questões e dados, de minha parte, à medida em que avançava na
viagem de campo. Ofereço ao leitor um percurso análogo ao meu, no qual ele irá se
deparando com os problemas enquanto os dados surgem e os invocam e, por
conseqüência, e quando se faz pertinente, com as teorias a eles relacionadas. Tal decisão
conduz também a uma complexificação progressiva dos enunciados e dos enunciadores,
que, num primeiro momento, somos tentados a ‘estacar’ na aparente simplicidade dos
signos e dos relatos, dando-nos por satisfeitos com as primeiras ‘explicações’. Por fim, em
terceiro lugar, a narrativa cronológica e seqüencial nos permite transitar entre os espaços
de dúvida-crença-dúvida da abdução peirceana
2
(CP 5.388-410) à medida em que seguimos,
proporcionando a nós mesmos (pesquisadores, leitores) um ‘mapa da construção do
conhecimento’ semelhante ao que os próprios Baniwa de certo modo experimentam.
2
A obra e as propostas de Charles Sanders Peirce terão especial relevância neste trabalho. A Abdução é um dos
três modos de raciocínio por ele identificados, em conjunto com a Dedução e a Indução (ver tópico II.4.1). Para
ele, a Abdução configura-se como o único modo de raciocínio capaz de propiciar a formação de idéias novas, a
partir dos trânsitos cognitivos entre a crença e a dúvida que, gerando-se uma à outra mutuamente, permitem que
avancemos na compreensão do mundo.
11
1. Reunião Baniwa e a Cidade Grande de Ñapirikoli
O Rio Negro, em sua época mais seca, março de 2007
São Gabriel da Cachoeira, cidade de 40 mil habitantes à beira do Rio Negro, no
estado do Amazonas, é o terceiro maior município brasileiro em extensão, conta com 87%
de população indígena e é ponto de partida para a maioria das viagens de barco para as
terras dos integrantes das 23 etnias indígenas da região. Em 2002, o município tornou-se
célebre pelo ineditismo de co-oficializar, junto com o português, três idiomas indígenas: o
nheengatu (ou Língua Geral Amazônica), o tukano e o baniwa.
Em São Gabriel também está localizada a sede da Federação das Organizações
Indígenas do Alto Rio Negro (FOIRN), centro político de todas as decisões dos povos
indígenas da região. Nessa grande maloca de telhado de caranã e chão de terra vermelha,
acompanhei, em janeiro de 2006, a Conferência Distrital de Saúde Indígena. Ali, tive a
oportunidade de conhecer algumas importantes lideranças indígenas - como eles mesmos
se autodenominam de várias etnias, e rever André Fernando Baniwa, então vice-diretor
da FOIRN, a quem conhecia de um encontro na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em
Manaus. Na ocasião, André havia apresentado uma palestra sobre os lugares sagrados
baniwa, a convite da antropóloga Luiza Garnelo, e sua seriedade e inteligência
impressionaram a todos, principalmente a mim.
Durante a IV Conferência Nacional de Saúde Indígena
3
, eu e André tivemos chance
de conversar bastante sobre os lugares sagrados e sobre a noção de conhecimento para os
Baniwa. A partir do que André me disse, é possível afirmar que, para os Baniwa,
‘conhecimento’ tem sentido predominantemente coletivo, em detrimento de uma
construção individual, e encontra-se intrinsecamente ligado aos lugares sagrados. Segundo
ele, todo conhecimento pode vir a ser completamente perdido, caso tais lugares sejam
3
A Conferência aconteceu em março de 2006, em Rio Quente, Goiás. As necessárias etapas que antecedem o
grande encontro nacional, que são as etapas Locais e Distritais, tiveram lugar durante o segundo semestre de
2005. Eu, na época, coordenava a Comunicação da Conferência, e André era o relator da etapa distrital do Alto
Rio Negro, que acompanhei em São Gabriel da Cachoeira, em dezembro de 2005.
12
destruídos. André e eu combinamos uma viagem pelo rio Içana acima – o ‘rio dos Baniwa’ –,
em época seca, para ver e registrar os inúmeros desenhos gravados nas pedras às suas
margens, petroglifos que, segundo ele, eram sagrados para os Baniwa e que, com raras
exceções, não haviam ainda sido devidamente registrados. O convite pôde ser
concretizado um ano depois, quando eu cursava o mestrado em Antropologia Social no
Museu Nacional
4
.
Após quatro dias em São Gabriel, aguardando a ‘autorização’ de André para partir,
e também uma conversa mais específica acerca do planejamento da viagem, soube que
havia sido convocada uma reunião extraordinária da CABC (Coordenadoria das Associações
Baniwa-Curripaco) e que na pauta, entre outras coisas, estava a exposição de ‘meu’
projeto de pesquisa. À noite, havia cerca de vinte lideranças baniwa em torno de uma
grande mesa no centro da maloca, enquanto outros sentavam-se nas arquibancadas
laterais, acompanhando com interesse. Eles já haviam discutido, durante toda a tarde, um
extenso planejamento estratégico das ações para o próximo ano, que envolviam saúde,
educação, pesquisas. Adeílson Lopes da Silva, ecólogo, e Laíse Lopes Diniz, educadora e
coordenadora pedagógica da Escola Pamáali, no Médio Içana, ambos do Instituto de Saúde
Ambiental (ISA)
5
, ajudavam os Baniwa a sistematizar suas propostas numa grande tabela,
com a ajuda de um notebook e de equipamento multimídia. Tais profissionais, e mais Sully
Sampaio, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz-Manaus) têm atuado em estreito regime de
parceria com os Baniwa, e emprestavam apoio ao meu projeto.
Assim, na presença de praticamente todas as lideranças mais importantes do Baixo,
Médio e Alto Içana na verdade, um movimento estratégico e certeiro de André, que
vislumbrou na reunião a oportunidade para que todos me conhecessem e validassem
conjuntamente o projeto -, relatei o que sabia. E o que eu sabia, até então, era muito
pouco:
“Estou aqui a convite do André”, disse, “e alguns de vocês me conhecem da
última Conferência Distrital”. Os acenos de cabeça e os típicos on-homafirmativos me
incentivaram a prosseguir no mesmo tom. Continuei, portanto, a descrever o meu projeto.
Relatei, diante da assembléia das lideranças, que havia pouco mais de um ano que André
falou-me dos lugares sagrados baniwa e dos desenhos das pedras. Disse ele que, com
poucas exceções, tais lugares não havia, ainda, sido bem registrados, com raras exceções.
4
A concretização do trabalho foi possível mediante o auxílio para pesquisa composto em parte por recursos do
Museu Nacional, do Núcleo de Transformações Indígenas (NuTI) e do programa Capes-Cofecub, além de apoio
da Fiocruz na aquisição das passagens aéreas Rio-Manaus-São Gabriel da Cachoeira.
5
O Instituto Socioambiental (ISA), é uma entidade não-governamental que tem como missão propor soluções de
maneira integrada a questões sociais e ambientais, bem como defender bens e direitos sociais, coletivos e difusos
relativos ao meio ambiente, ao patrimônio cultural, aos direitos humanos e dos povos. O ISA tem sede em São
Paulo e escritórios em Brasília (DF), São Gabriel da Cachoeira e Manaus (AM), e Canarama (MT).
13
O registro pretende fazer com que esses lugares, essas pedras e desenhos, sejam
preservados e reconhecidos por todos como lugares sagrados eu disse, afirmando
entender, também, que muitos desses desenhos estão ligados a histórias, e as histórias
estão se perdendo porque não há mais velhos que as saibam contar.
Evidenciei minhas pretensões de, além de registrar os desenhos, registrar também
as histórias ligadas a eles. Nesse momento, achei sensato comprometer-me a compartilhar
os registros com todas as comunidades, para que elas pudessem deles se utilizar para
produzir materiais educativos para escolas baniwa. Para isso, comprometi-me ainda – o que
havia feito particularmente, com André a levar comigo dois pesquisadores baniwa,
para apoio na viagem e também para que aprendessem métodos e técnicas de registro dos
desenhos e das histórias.
Por fim, contei sobre as vagas diretrizes de André, que havia me falado de um local
bem distante, próximo à Colômbia, ainda não visitado nem registrado, e que se encontrava
em grande perigo de ser esquecido ou depredado. Eu disse:
– Também pretendo ir até lá. Confesso que é só até aí que eu sei. Ainda espero uma
nova conversa com André para estabelecer melhor meu roteiro e minha ‘missão’. Acho que
ainda tem muita coisa na cabeça dele, que ele ainda não me contou! - brinquei, sorrindo.
Voltei-me para o André, que ouvia calado, na cabeceira da grande mesa de
madeira: “É essa a idéia, André?”. Ele sorriu de volta, se aprumou na cadeira e disse:
- É essa a idéia, Caco. Agora eu vou explicar a idéia!...
Todos gargalharam e assumiram uma posição mais atenta. André contou, então, que
em 2002 chegou a Barcelos, uma comunidade baniwa do Alto Içana
6
, localizada no igarapé
Jawiari, com o objetivo de visitar os ‘lugares de reza’. Nessa época, ele sabia dos
lugares mais conhecidos, como Uapuí e Jandu Cachoeira. Ele encontrou, então, o seu
Pacheco
7
, bem velhinho, e perguntou-lhe sobre os ‘lugares de conhecimento’. À noite,
vendo o interesse dos visitantes, seu Pacheco reuniu todos no Centro Comunitário e
revelou sua grande preocupação com um lugar chamado ‘Cidade Grande de Ñapirikoli’.
Ñapirikoli é o herói-criador dos Baniwa, pai de Kowai (Jurupari, em língua geral) e
responsável por legar aos walimanai (‘os que vão nascer’)
8
todo o conhecimento sobre o
6
Os Baniwa referem-se aos diversos grupos localizados às margens do Içana e de seus afluentes como
‘comunidades’, e sentem-se algo desconfortáveis quando alguém as denomina ‘aldeias’. A palavra utilizada em
baniwa é ‘Iyakale’. O termo também é traduzido por ‘cidade’. A ‘Cidade Grande’ de Ñapirikoli é dita Iyakale
Maakakoe.
7
Assumo, agora e doravante, o tratamento comum entre os Baniwa, quando se referem aos mais velhos das
comunidades: ‘seu Pacheco’, ‘seu Marcelino’, ‘seu Alberto’, ‘seu Antonio’... Os mais jovens, mesmo quando são
importantes lideranças, são chamados apenas pelo primeiro nome: ‘André’, ‘Irineu’, ‘Tiago’... Quanto aos
pesquisadores brancos, os Baniwa referem-se a eles quase sempre pelo primeiro nome, qualquer que seja a idade
ou posição: ‘Laíse’, ‘Sully’, ‘Beto’ (do ISA), ‘Caco’, ‘Robin’ (Wright)...
8
Num sentido amplo, todos os homens, nascidos depois daquele mundo primordial; num sentido estrito, os
Baniwa.
14
mundo criado, desde as muitas armadilhas de pesca e as plantas domesticadas até os
benefícios do tabaco e da pimenta, passando por preceitos éticos e estéticos, como as
figuras das cestarias e raladores de mandioca. Ñapirikoli é, ainda, o autor dos desenhos nas
pedras às margens dos rios.
A ‘Cidade Grande’ ficaria numa serra, pouco abaixo da comunidade de São
Joaquim, onde há um pelotão de fronteira do Exército brasileiro, e estaria localizada numa
região bastante erma. Antigamente, dizia-se, havia uma comunidade perto, mas agora
não mais. Seu Pacheco manifestava duas preocupações em relação à ‘Cidade Grande’. A
primeira dizia respeito ao garimpo, pois na época em que este estivera em alta, há poucos
anos, muitas pessoas passaram por lá, quebrando tudo para achar ouro. A segunda
preocupação dizia respeito ao Exército. Segundo ele, os pelotões estavam avançando sobre
os lugares sagrados, chegando por barco e helicóptero, tirando fotos e desrespeitando os
locais, sem compreender o que significavam para os Baniwa. Seu Pacheco expressou,
então, seus desejos aos visitantes. Não queria ver a ‘Cidade Grande de Ñapirikoli’ ser
destruída ou esquecida. “Precisamos proteger aquele lugar”, teria dito, “porque ali vivia
Ñapirikoli, dali ele saía para os caminhos de Norte, Sul, Leste, Oeste!”.
Após reproduzir as palavras de seu Pacheco, André disse-nos que nunca ouvira essas
histórias e que elas jamais haviam sido registradas. Segundo ele, são histórias anteriores
àquelas que localizam o centro do mundo em pana, e mesmo as complementam, que
se remetem à casa de Ñapirikoli: “Onde ele nasceu? Onde e como vivia com seus irmãos?”,
são perguntas enfim respondidas pelas histórias da Cidade Grande. O problema era a
ausência de registros dos lugares a montante de Jandu Cachoeira, pois, dizia, “se nós não
registrarmos os nossos conhecimentos, qualquer um pode vir e dizer que tais
conhecimentos são dele”. Em Barcelos, havia apenas um velho, chamado ‘seu Antonio’,
que conhecia essas histórias, apenas ele e a mãe dele, já bem velhinha. Além destes, havia
seu Marcelino, da comunidade de Tamanduá, e seu Alberto, que vive em Jandu Cachoeira.
Seu Pacheco tinha morrido logo após a visita de André, e André contou-nos que
passara muito tempo tentando viabilizar os registros e realizar o desejo do velho. A minha
chegada, disse, “casou duas vontades”: a dele, de cumprir o compromisso assumido, e a
minha, de estudar os signos baniwa. A preocupação central, portanto, era com a Cidade
Grande de Ñapirikoli. “Quando nossos avós morrerem, e também nossos pais, será a nós
que nossos filhos vão perguntar sobre essas coisas. E o que teremos a dizer para eles?”.
Com essas palavras, André encerrou a reunião.
Eu me encontrava, assim, no ponto de conjunção entre as demandas dos Baniwa em
relação ao resgate de suas tradições, as exigências de um projeto de pesquisa acadêmico
que, no final das contas, tem como objetivo principal e objetivo a escrita de 120 páginas
15
de texto
9
, e minhas próprias inclinações e interesses acerca dos objetos gráficos.
Relacionar o segundo ponto e o terceiro não seria um grande problema. Mas eu me sentia
totalmente despreparado para a tarefa que estava sendo colocada sobre meus ombros, em
relação às chamadas ‘tradições baniwa’. A que essas lideranças estavam se referindo,
exatamente? Que tradições eram essas, como eram (ou seriam) validadas? E qual seria a
intenção em promover tal ‘resgate’? Para memória, para museus, para retomar antigas
práticas e torná-las (novamente) vivas nos seios das comunidades, para promover novas
práticas? Igualmente, o que seria, exatamente, um resgate’? Intuí que, para bem
compreender os signos nas pedras, eu teria que me instrumentar e me preparar para
entender minimamente o momento em que vivem os Baniwa do Içana, em relação ao que
eles mesmos chamam de ‘sua cultura’ e ‘suas tradições’. Percebi mesmo que um ponto e
outro se complementam: entender os signos me proporcionaria melhor entendimento dessa
relação, ao mesmo tempo que entender as tradições me diria muito sobre os signos.
No dia seguinte, eu tinha um encontro marcado com André, para que ele e Irineu
seu cunhado e o prático que iria me acompanhar durante toda a viagem aprofundassem
mais o assunto e para que definíssemos os últimos preparativos para a partida. Se tudo
corresse bem, no sábado, 3 de março, embarcaríamos na voadeira
10
da OIBI (Organização
Indígena do Baixo Içana) e, movidos a ‘motor 40’, em estimados seis dias estaríamos na
Cidade Grande de Ñapirikoli, de onde o criador partiu para percorrer seus quatro
caminhos.
2. Ñapirikoli e os petroglifos: a forma conta a história
André Fernando Baniwa
9
Bruno Latour, Reassembling the Social, Quinta Fonte de Incerteza (2005).
10
Como são chamados os barcos abertos, com motor de popa e espaço suficiente apenas para bagagem,
combustível e cerca de seis pessoas.
16
Tudo ainda me parecia incipiente e de certa forma desorganizado. Eu sabia muito
pouco acerca do que deveria ou poderia fazer, não conhecia a equipe indígena que viajaria
comigo, não sabia em que barco seguiríamos, ou quem cederia o motor, não tinha idéia de
roteiro de viagem ou distâncias em tempos de rio seco. Mas, sem escolha, confiava em
André e nos preparativos de Irineu, que se movia de um lado para outro descobrindo
palhetas de motor em bom estado e negociando com as lideranças das comunidades ali
presentes e que nos receberiam rio acima.
Após a reunião com a CABC, relatada, eu e André agendamos uma reunião, para
que ele expusesse sua visão acerca dos petroglifos e da idéia de conhecimento entre os
Baniwa. André Fernando Baniwa é diretor da OIBI e diretor vice-presidente da FOIRN.
Jovem, é uma das lideranças mais respeitadas no Alto Rio Negro, por sua inteligência,
senso político, opiniões e ações ponderadas e firmes em favor dos povos da região. Nesse
depoimento, André abriu-me pelo menos três campos de problemas que, como eu viria a
descobrir em seguida, estariam presentes em cada ponto da viagem, nas falas dos
narradores que eu encontraria e, ainda, nas relações estabelecidas entre os desenhos nas
pedras, as comunidades baniwa e o seu corpo de conhecimento. O primeiro campo diz
respeito à polaridade (não necessariamente contraditória ou em franca oposição) entre as
‘velhas tradições’ e o que André tem chamado de ‘novas tradições’. O segundo campo diz
respeito aos lugares sagrados e à noção de conhecimento. O terceiro campo, por fim,
conta especificamente dos desenhos nas pedras. Esses três campos, evidentemente, estão
implicados entre si, como se segue.
Valorização das tradições Não é de hoje que os Baniwa se relacionam com os
antropólogos e outros pesquisadores discutindo com eles a fundo os objetos e intenções de
suas pesquisas, e também demandando pesquisas que eles acham necessárias em sua área.
A idéia de ‘retorno para as comunidades’ está sempre presente nessas negociações. André
diz que uma preocupação constante nessas conversas, principalmente com os
antropólogos, é “a questão da memória, a valorização das tradições”. André revela não
gostar muito da palavra ‘memória’, porque o conceito o remete a “uma coisa que você
tem e não vale mais, algo em que não se tem mais uma coisa viva, para sua vida”. Diz ele
que, tradicionalmente, para os Baniwa, a ‘memória’ é, ao contrário, uma coisa viva. Ela
está ali, é usada. Ele cita a Bíblia como comparação, já que, como a base da crença cristã,
é algo vivo e está na vida das pessoas por meio do amor, da fé, dos atos de fazer o bem.
Segundo ele, os petroglifos e as histórias narradas, bem como os chamados lugares
sagrados são, igualmente, “coisa viva”, porque é a partir dessas histórias que os velhos dão
17
conselhos para seus filhos. “Aquilo é para o Baniwa”, diz André, “está vivo, e não depende
se você é evangélico, cristão ou não”. Diz ele que, hoje, todos aqueles que nascem e
crescem numa comunidade baniwa, em algum momento ouvem falar e vêem, fazem uso
dos desenhos nas pedras e das histórias, em certa medida. Ele assegura que, mesmo que
hoje, “por causa da crença”, as pessoas digam que não conhecem, que se esqueceram, não
é assim, tem um pouco de mentira”. É que, para ele, quando se descobre novamente o
sentido, as pessoas se lembram. E é aí que entra sua preocupação fundamental em relação
ao que ele chama de ‘memória’ e de ‘valorização da tradição’
11
.
Evangélico, André acredita que a religião trouxe aos Baniwa muitas coisas boas. Mas
não está de acordo com a idéia de que tudo o que existia antes (o que ele chama de
‘velhas tradições’) seja ‘do diabo’, como a maioria tem entendido. “É impossível deixar de
lado todo um conjunto de tradições, costumes, histórias”, diz. No fundo, o que André
combate veementemente é a mera e automática exclusão de um ponto de vista em favor
do outro. Ele acredita ser possível conciliar “o que de bom” nas tradições e costumes
antigos com “o que de bom” no que ele tem chamado de ‘novas tradições’, isto é, o
corpo de costumes, conhecimentos e práticas que veio com a religião evangélica, a partir
dos anos 50. Por isso, diz ele:
“Não podemos esquecer completamente nossa tradição e assumir totalmente
as coisas de fora. Como também não podemos deixar de lado as partes boas do que
vem de fora, porque vêm de fora. Eu quero valorizar o que eu chamo de nova
tradição, que está enraizada no meio baniwa, mas vamos rever aos poucos, de
modo consciente, as velhas tradições. Aos poucos, como deve ser. Por isso, eu falo
mais de valorização do que de ‘resgate’.”
O que eu gostaria de sublinhar, mais do que a preocupação de Andem relação à
valorização de tudo aquilo que está implicado com os conhecimentos baniwa existentes
antes da entrada da religião evangélica, é a noção de ‘novas tradições’, expressão que
aparentemente poderia ser vista como contraditória em si, que um dos atributos da
‘tradição’ não é exatamente a novidade’. A expressão de André aponta para um mundo
em constante transformação, transformação esta que pode ocorrer (e costuma ocorrer)
mesmo no interior daquilo que é tido como mais estável e enraizado.
Ao inserir as qualidades de ‘velha’ e ‘nova’, André diz simultaneamente que: nem
toda tradição é necessariamente antiga; novas práticas e regras podem cumprir a função
de tradição’, a despeito de sua novidade; o que é velho e o que é novo, ainda que se
11
Sobre a ‘invenção da tradição’, bem como sobre os debates (políticos, acadêmicos) em torno dela, ver o
trabalho de Alain Babadzan, ‘Antropologia, Nacionalismo e a ‘Invenção da Tradição’’ (2000). As perguntas
acerca de ruptura/continuidade, sobre o tradicionalismo e, até mesmo, sobre o que se entende, afinal, por
‘tradição’, aí estão postas em debate com Hobsbawn, Weil e Gellner. Abstenho-me, neste trabalho, de tentar
definir o que seja ‘tradição’ a partir de alguma literatura, para ouvir esta palavra segundo os sentidos (tampouco
muito precisos) atribuídos pelos Baniwa, em seus ambientes sócio-políticos.
18
contraponham, não necessariamente se excluem. A equação evidenciada no combate entre
as regras e práticas antigas e as regras e práticas novas algumas delas sem dúvida
inconciliáveis – é a expressão de uma grande disputa de sentidos no seio das comunidades,
que pode se dar ora de forma mais explícita, ora de forma predominantemente
subterrânea
12
. Essa disputa, por todos os modos, torna-se evidente quando enfim surgem as
questões acerca das histórias dos velhos e dos desenhos nas pedras. Em virtude das
diferenças regionais e das peculiaridades de cada comunidade, tal disputa costuma se dar
de maneiras e intensidades diversas do baixo ao alto Içana.
Lugares sagrados e o conhecimento Para André, todos os lugares onde existem
petroglifos são lugares sagrados. “Lugar sagrado, coisa sagrada, é algo que você não pode
ver, algo para o qual eu crio toda uma história em torno, algo que você não pode tocar”,
diz ele, acrescentando que, para os Baniwa, tornar uma coisa sagrada é uma forma de
protegê-la. A palavra que André identifica como mais apropriada para descrever os lugares
sagrados, segundo os usos baniwa, é Iarodatti. Ele lembra que essa palavra não tem
exatamente a significação de ‘lugar sagrado’, “mas é lugar de vida”. O Dicionário Baniwa-
Português, de Henri Ramirez (2001), diz que iarodatti significa ‘mundo subterrâneo’, local
(áaro) onde estão as almas dos mortos. Mas esta parece ser uma definição bastante
restritiva. Os dados colhidos por Hill (1993), Wright (1998) e Ortiz e Pradilla (Sem data)
confirmam a noção expressa por André, isto é, que iarodatti não se restringe somente a
uma aldeia dos mortos’, mas também ao mundo onde habitam os Yoopinai
13
, e ao mundo
para onde os xamãs viajam, por meio dos cânticos e do paricá
14
, para reaver as almas
perdidas de seus pacientes. São, também, além de moradas dos Yoopinai, a casa dos
antepassados dos diferentes clãs. “Essas moradas [...] existem em uma dimensão
alternativa ao plano de nosso mundo observável”, dizem Ortiz e Pradilla (sem data:23), e
acrescentam: “Elas se constituem como um afloramento do estrato cósmico subterrâneo”.
12
Ainda sobre a invenção da tradição: não me estenderei aqui, e ainda, sobre os debates relativos a essa questão
ou seus embates. Aponto a introdução de Time and Memory (Fausto; Heckenberg, 2007), que elenca várias
questões iniciais à discussão sobre o tempo as transformações: “Como a mudança é concebida? Como é
temporariamente inscrita nas práticas rituais, no espaço e no discurso?” E, principalmente, “quais são os
diferentes modos de produção da transformação e quais são os regimes de historicidade constituídos por essas
práticas?”. Ver também ‘Fazer o Mito: História, Narrativa e Transformação na Amazônia’ (Fausto, 2000), acerca
das marcas deixadas pelo contato interétnico em narrativas míticas dos Parakanã, grupo tupi-guarani do Xingu-
Tocantins.
13
André os denomina espíritos guardiões. São identificados, na literatura sobre a Amazônia, como os Mestres ou
Donos dos Animais, também xamãs, com os quais os xamãs humanos negociam a caça. Por essa razão, esses
lugares são considerados privilegiados em relação à procriação das espécies.
14
Rapé do caule ou das sementes da Piptadenia, também conhecida como angico. Os pajés baniwa o inalavam
para galgar os céus e ter a visão da cura do enfermo (Wright, 1996).
19
Com efeito, o universo, para os Baniwa, é formado por uma série de planos ou céus que se
intercomunicam precisamente nas zonas rochosas e nas cachoeiras
15
.
André diz que, num lugar iarodatti, “você sabe que tem seres viventes ali, almas
principalmente”. Segundo ele, se alguém ‘bagunça’ ali, morada de seres viventes, esses
seres podem se proteger e atingir essa pessoa de volta com doenças. “Os mais velhos
dizem que eles estão ‘brincando’ contigo, que para cá, para o nosso mundo, acontece
como doença”, explica.
O sentido de ‘sagrado’, assim, decorre do fato de que “não se pode mexer ali”. São
lugares onde ninguém pode morar, não se pode derrubar árvores, não se pode pescar. E
André saca daí uma conclusão de fundo ecológico: “Em outras palavras, todos esses lugares
iarodatti são lugares de reprodução de animais”. A exploração da caça e pesca nesses
locais leva ao desaparecimento dos peixes e animais e é por isso que, para que assim não
aconteça, cada um desses lugares possui guardiões espíritos. André justifica: “Nós temos
conhecimento para expulsar esses espíritos, mas estaremos promovendo a escassez de
peixes, de animais, porque são os yoopinai que os protegem!”.
André remete-se novamente à religião cristã, ao dizer que é comum que, com as
novas regras, algumas pessoas comecem a pensar que não há nenhum problema em pescar
ou caçar nesses lugares que antes eram chamados iarodatti, lugares sagrados, lugares de
vida. Mas ele reflete: “Talvez os nossos antepassados tenham feito aquilo como forma de
estratégia para proteger os animais, para que ninguém mexesse em lugares de
reprodução”.
A relação que se estabelece entre os lugares sagrados e o conhecimento é
fundamentalmente o suporte para a memória. “Você precisa ter alguma coisa com o que
lembrar”, diz André, e ilustra com um exemplo ocidental: “É como um livro”. Se alguém lê
um livro, tem contato com esse conhecimento e, posteriormente, o livro se perde, André
diz que essa pessoa vai lembrando das coisas, “mas depois vai esquecendo, se não ler de
novo”. Segundo ele, no final a pessoa “lembra com a forma resumida, mas nunca mais vai
ter aquela riqueza”. Para ele, tentando interpretar a noção de conhecimento entre os
Baniwa, uma relação de localização (ou, se preferirmos, de perspectiva):
“Conhecimento depende de onde você está”, diz, explicando que, se você está fora, se
você não visita mais o lugar sagrado chave e ponte para a memória do conhecimento
adquirido, e mesmo parte constitutiva dele -, se você não vai mais lá, o conhecimento vai
desaparecer. Do mesmo modo, se porventura o lugar desaparece (ou perde a significação),
o conhecimento que está ancorado nele, igualmente, perece.
15
Sobre a organização cosmológica dos Baniwa, ver Wright, 1996:91.
20
André diz que uma das palavras baniwa mais usadas para conhecimento é Ianheke,
comumente traduzida por ‘sabedoria’, e igualmente supõe uma relação, não mais entre o
conhecimento e o suporte para a memória, mas segundo a forma de conhecer, que sempre
pressupõe alguma espécie de transmissão social. “Significa que você sempre tem que
aprender com alguém, alguém tem que te ensinar”, diz ele, e finaliza com uma sentença
(em ambos os sentidos) sobre o modo de aprendizagem entre os Baniwa: “Ninguém
aprende sozinho”.
Petroglifos, os desenhos de Ñapirikoli - Todos os desenhos nas pedras foram feitos
por Ñapirikoli. Para André, os desenhos são ‘bonecos’ de Ñapirikoli. No entanto, ele tem
uma opinião que ultrapassa um pouco a generalização dessa sentença inicial, afirmando
que alguns signos “não são assim desenhos, mas, de repente, na mudança, fica aquela
imagem, é como se aparecesse automaticamente, por causa da transformação
16
mesmo”.
Aos poucos, André explica que, “na linguagem baniwa”, tais transformações estão
baseadas na desobediência, isto é, às vezes, em decorrência de uma grande persistência
em se ‘violar as regras’ ou as prescrições, “a situação fica insustentável e alguém tem que
entrar e mudar aquilo”. A desobediência é o estado em que surge a necessidade da
mudança. André lembra que, em algumas histórias, o desobediente “vira estátua em forma
de pedra”
17
. Assim, apesar de conferir a autoria dos desenhos a Ñapirikoli, André acredita
que muitas coisas que não foram exatamente feitas por alguém, mas que aconteceram,
e que acontecem, simplesmente em decorrência das conseqüências da desobediência.
De todo modo, segundo André, os desenhos nas pedras, todo e qualquer desenho
nas pedras, são sinais. Sinais que remetem a acontecimentos, acontecimentos que são
narrados em forma de histórias e descritos em cânticos. “A gente não é mais ensinado a
conhecer essas histórias como os velhinhos faziam”, diz ele. André tenta, novamente,
como é seu costume, traçar comparações com o ‘mundo branco’ para ilustrar seu
pensamento. A imagem que ele encontra, e que acredita expressar fielmente sua
compreensão, é surpreendente:
“Tentando comparar, você compara melhor com a internet, com um site. Se
você clicar em cima de uma coisa interessante, vai aparecer um monte de explicações
na outra subpágina. São sinais. Do mesmo modo, você um desenho na pedra e é
um desenho. Mas se você perguntar a alguém, tem uma história imensa por trás dele,
muitos ensinamentos. Esse é um sinal, alguém precisa querer saber, alguém precisa
16
‘Transformação’ é uma palavra muito utilizada entre os Baniwa. No entanto, tem um sentido muito preciso.
Em baniwa, diz-se ‘lipadameeta’, palavra usada em contextos específicos: o xase transforma em onça, Jesus
transformou água em vinho. A etimologia da palavra aponta que padáama significa ‘para fora’, e meeta quer
dizer ‘abrir-se’. Segundo meus informantes, essa palavra não é muito usada no dia a dia, mas faz parte do antigo
vocabulário xamânico. Ela decorre de um evento observado no mundo natural, que é a transformação da lagarta
em borboleta, indicando um ‘tornar-se outro’, a passagem súbita de um ser para outro ser.
17
Ver as histórias da mãe de Kowai (Wright, 1999b:52) e da cabeça saltitante (Garnelo et al, 2004/2005:68).
21
saber ler. E esses sinais hoje estão na cabeça de poucas pessoas. Por isso é
importante registrar, para não perder essas histórias. O que são esses desenhos? É
como na internet, é para clicar, é a indicação de que mais coisa ali, é um ícone.
Mas alguém tem que clicar, e alguém tem que saber o que está por trás dele.”
A maneira pela qual André concebe esses signos será especialmente útil adiante,
quando, confrontados com a obrigação de lidar com as diversas espécies de signos e suas
relações, identificaremos na Semiótica de Charles Sanders Peirce
18
definições e categorias
adequadas às nossas necessidades, e algumas das expressões de André (sinais, ícone,
indicação, etc) ganharão novos sentidos. Por enquanto, basta sublinhar três pontos:
primeiro, a idéia de que os desenhos são enunciadores, que eles dizem algo a respeito de
coisas que estão, por assim dizer, ‘fora’ deles; segundo, que tudo isso está em vias de
extinção, por falta de quem conheça as relações entre os signos e os ensinamentos que
estes indicam/enunciam/conectam; e, finalmente, que a tomarmos a sério a metáfora
internética e a ‘coisa viva’ dos lugares sagrados tais signos não propiciam a memória,
mas também atualizam ensinamentos que não estão exatamente ali, mas (na origem) em
Ñapirikoli e no mundo primordial dos Baniwa e (concretamente) latentes na mente dos
poucos velhos que os ouviram.
A relação entre os lugares e os desenhos também é direta: “Se desenho, é
porque ali aconteceram coisas”, diz André. Os desenhos remetem a histórias, as histórias
remetem a lugares, os lugares remetem a acontecimentos, os acontecimentos determinam
o aparecimento de desenhos. Embora as relações veremos adiante não sejam
exatamente circulares, como o parágrafo acima poderia fazer supor, a interrelação entre
esses quatro elementos (desenhos, histórias, acontecimentos, lugares) está longe de
bastar-se. A estes, novos elementos serão paulatinamente incorporados.
Irineu, que escutava calado até então, apressa-se em dizer que “lá em Jandu
Cachoeira tem moolito, que é [o desenho de] um sapo, mas moolito também é um
instrumento, uma flauta, que também fazia parte do corpo de Kowai!”. Ele dizia isso
porque tinha acabado de lembrar ao André que Ñapirikoli e seu filho Kowai “brigavam
18
Peirce foi, acima de tudo, um gico, entendendo-se essa expressão segundo a concepção que o próprio Peirce
lhe atribuía, fundida à filosofia, por um lado, e à sua teoria dos signos, por outro. Conhecedor de mais de uma
dezena de línguas, filho de cientista, o norte-americano Charles Sanders Peirce (1839–1914) era químico,
matemático, físico, astrônomo, filólogo, filósofo. Interessava-se pela lingüística, pela história, pela psicologia,
conhecia arquitetura, literatura e teatro. Depois de ler, aos 18 anos, a Crítica da Razão Pura a ponto de, alguns
anos mais tarde, ter o livro de Kant quase todo de cor, Peirce aos poucos vai atribuindo a si mesmo a tarefa de,
por meio de um diálogo intenso e obsessivo com 25 séculos de filosofia ocidental, estabelecer as categorias mais
gerais de todas as experiências possíveis. Calcado, por um lado, na fenomenologia kantiana e, por outro,
baseando-se como ponto de partida na experiência em si mesma, sem nenhuma outra espécie de pressuposto,
Peirce dedicou, segundo ele mesmo, os últimos 30 anos de sua vida ao estudo intensivo – 16 horas por dia – e à
produção de cerca de 90 mil páginas manuscritas, das quais somente cerca de 12 mil estão hoje publicadas nos
oito volumes que compõem os Collected Papers of Charles Sanders Peirce, cuja primeira edição data de 1931.
O grande acervo inédito encontra-se hoje na Universidade de Indiana, Indianapolis (EUA), no Peirce Edition
Project.
22
bastante”, e que muita coisa que Ñapirikoli fez nas pedras o como “fotografias de
Kowai”, para que as novas gerações se lembrassem de como ele era. Ou seja, ‘fotografias
de Kowai’ podem ser também ‘fotografias das flautas Kowai’, os instrumentos surgidos a
partir do corpo incinerado de Kowai, que devem ser confeccionados segundo as instruções
precisas do herói para serem usados nos rituais de iniciação (Hill, 1993; Wright, 1996)
Inquirido a respeito do estatuto dos desenhos em relação a seus suportes (as
pedras), André diz que um certo desenho na pedra, ou pintado num poste (como se nas
colunas de madeira da maloca da FOIRN), ou grafado em qualquer outro lugar, quer dizer
sempre a mesma coisa. “O sinal é que é mais importante”, diz. Segundo ele, o desenho
não perde seu significado, quando você o isola de seu suporte. Isto quer dizer que, se eu
copiar um certo desenho e mostrá-lo aos velhos, eles terão a mesma compreensão acerca
dele que se o vissem na pedra. Obviamente, o lugar (não a pedra, especificamente, mas a
cachoeira, ou a serra) onde esse desenho se encontra indica que foi ali que se deu o
acontecido, qualquer que tenha sido ele. Mas, como diz André, o desenho poderia estar em
qualquer lugar. “Quem conhece, quem sabe ler, sabe que é aquilo mesmo”, assegura, e
lembra: “A forma é que conta a história”.
Assim, os ‘desenhos nas pedras’, chamados em baniwa de hiipada idana (expressão
que, segundo Irineu, pode ser utilizada indistintamente como ‘desenho na pedra’ ou ‘pedra
com desenho’
19
), têm estreita relação com três outros tipos de signos:
1. Paisagens
20
Iarodatti, locais sagrados, cachoeiras, pedras, poços de rio onde
aconteceram eventos significativos ou pelos quais passaram os viajantes,
principalmente Ñapirikoli, o herói criador; Kowai, seu filho, ser ambivalente e
terrível; e as Amaronai, povo de mulheres, filhas de Amaro.
2. Histórias narradas principalmente sobre Nãpirikoli e seu filho Kowai. As
histórias remetem ao mundo primordial, quando Ñapirikoli combatia contra os
Dzawinai (povo jaguar), contras os macacos da noite e outros seres em disputa
pela perspectiva dominante da humanidade. As histórias sobre Kowai dão conta
de seu nascimento e morte, pelas mãos do próprio pai, e de como ele orientou a
iniciação dos jovens e a produção e uso das flautas. As flautas também têm
relação com os signos, pois muitos deles as representam.
3. Cestarias, raladores e outros objetos que sirvam de suporte para os padrões
geométricos.
19
Outra denominação muito utilizada é ‘Ñapirikoli idana nhimi’, ou ‘desenhos de Ñapirikoli’. A expressão tem
o sentido tanto de ‘desenho produzido por Ñapirikoli’ quanto de ‘desenho que pertence a Ñapirikoli’.
20
Em relação aos lugares onde existem petroglifos, Francisco Ortiz arrisca caracterizá-los da seguinte maneira
(1999:10): Espaços de aprendizagem (cerimônias de iniciação, etc); b) Lugares de descanso ou de passagem das
mulheres, quando roubaram as flautas e fugiram de Ñapirikoli; c) Iarodatti, lugares de habitação dos yoopinai;
d) Cachoeiras, lugares de emergência dos diferentes clãs baniwa.
23
No entanto, e adiantando-nos ao fato de que não encontraremos desenhos nas
pedras no nosso destino final a Cidade Grande de Ñapirikoli André diz que “tem pedra
que não tem desenho, que está com ela mesma”. Geralmente, quando desenho numa
pedra, é o desenho que é portador de sentido, não a pedra. E há pedras que, sem
desenhos, são elas mesmas portadoras de sentido. André conta a respeito de uma pedra do
rio Ayari:
“O Dzooli (um dos irmãos de Ñapirikoli) também é uma pedrona, no Ayari.
As pessoas que passam conversam com ele, né? Porque ele está vivo, em forma de
pedra.”
II. A MONTANTE
1. O rio Içana e os ‘içaneiros’
Helena e Basílio, pôr do sol no Içana
Os Baniwa são um povo indígena de língua arawak e residem ao longo do rio Içana e
de seus afluentes Aiari, Quiari e Cubate, na região do Alto Rio Negro
21
. Somam
aproximadamente 5 mil indivíduos em território brasileiro, distribuídos em 93 comunidades
(Ricardo, 2000), e se dividem internamente em grupos de parentesco (fratrias)
considerados consangüíneos entre si, subdivididos em sibs
22
(clãs) hierarquizados de acordo
com a ordem mítica de sua origem. Em território brasileiro, existem atualmente três
fratrias: Hohodene, Walipere e Dzawenai
23
(Garnelo, 2003). As relações entre as fratrias
são relativamente simétricas, comparando-se sibs de posição hierárquica similar. No
21
Os principais estudos sobre os Baniwa/Curripaco são de Nicholas Journet (1980, 1995), Robin Wright (1981,
1986, 1998, 1999) e Jonathan Hill (1989, 1992, 1993). É relevante citar, ainda, o trabalho recente de Luiza
Garnelo (2001, 2003), principalmente no que diz respeito à compreensão saúde/doença.
22
Os sibs são grupos patrilineares, descendentes de um mesmo ancestral mítico masculino.
23
Desses, apenas os Hohodene não habitam o rio Içana, residindo principalmente no Ayari.
24
entanto, segundo Garnelo (2003:115), é possível que tenha havido, no passado, uma certa
especialização de papéis entre as fatrias. Assim, os Walipere, principalmente os walipere-
dakenai, eram tidos como grandes estrategistas na guerra, enquanto os Dzawenai se
ocupariam da execução física das ações guerreiras, ficando, assim, sob o comando militar
dos primeiros.
Embora o termo ‘baniwa’ não seja originalmente uma autodenominação, acabou
sendo plenamente adotado enquanto tal. São também chamados wakuenai, na Venezuela,
e de curripaco, na Colômbia
24
. Na metade do século XIX, teve lugar um programa para
“civilização e catequização” dos índios do vale do Alto Rio Negro (Wright, 2005:111). Os
Baniwa já tinham contato com religiosos desde o século XVIII, mas a partir de 1850
surgiram vários movimentos proféticos liderados por homens como Venâncio Kamiko,
descrito como um poderoso pajé, com uma formação religiosa que combinava profundos
conhecimentos do cristianismo e das religiões indígenas. Eram movimentos extemporâneos,
mas que reuniam grandes populações em torno desses profetas (Wright e Hill, 1988; Hugh-
Jones, 1994; Wright, 2005). Mais tarde, os Baniwa sofreram, como todos os povos da
região, a intervenção católica dos salesianos desde as primeiras missões, em 1914, mas foi
o trabalho missionário da americana Sophie Muller, na década de 50, que terminou por
definir a (nova) orientação religiosa dos grupos do Içana. Chegando ao Brasil em 1948,
vinda da Colômbia, a missionária evangélica realizou conversões em massa, pregando
veementemente contra os católicos e ordenando sumariamente que os Baniwa
abandonassem as práticas xamânicas, as danças, as flautas e máscaras, os rituais de
iniciação e muitos outros, bem como banindo o uso do caxiri e do tabaco (Wright, 2005).
As razões pelas quais os Baniwa abraçaram essas ‘novas tradições’ em detrimento
das práticas com as quais estavam familiarizados séculos causam espanto a
pesquisadores e merecem especial atenção no trabalho de Robin Wright, ‘O Tempo de
Sophie: história e cosmologia da conversão baniwa’ (2005:203-269). O fato é que,
atualmente, em sua imensa maioria, os Baniwa são evangélicos e organizam-se
autonomamente em torno de seus próprios líderes religiosos (chamados ‘anciãos’), sem a
presença de missionários estrangeiros na região
25
.
24
A literatura diz que ‘baniwa’ e ‘curripaco’ são dois identificadores que se referem à mesma etnia, apenas com
localização geográfica diferente (se no Brasil, se na Colômbia). Apesar disso, os próprios índios costumam se
distinguir, em determinadas ocasiões, quer pela fala (há diferenças pequenas, porém marcantes, entre os dois
dialetos), quer por algumas qualidades auto-atribuídas (“São duas horas de caminhada em passo curripaco! Em
passo baniwa demoraria três horas! Um branco, claro, levaria umas quatro horas para chegar lá!”). Não obstante,
utilizo como regra geral a expressão ‘baniwa’ para me referir indistintamente aos grupos baniwa-curripaco,
distinguindo-os apenas quando for necessário, em função de alguma característica peculiar ou de algum fato
lingüístico que o justifique.
25
Há, porém, algumas exceções. Ainda subsiste uma missão salesiana em Assunção do Içana, fundada em 1952,
além de quatro bases missionárias ao longo deste rio, todas elas mantidas pela Missão Novas Tribos do Brasil:
25
Os Baniwa são os ‘donosdo rio Içana, assim eles são conhecidos (‘içaneiros’) e se
fazem conhecer. O Içana tem cerca de 700 km da cabeceira, na Colômbia, à foz, no Rio
Negro, e caracteriza-se pela grande quantidade de cachoeiras em seu curso. São 19,
apenas no lado brasileiro. Nos meses de janeiro a meados de março e abril, sua navegação
torna-se difícil e penosa, que, com a seca, as pedras das cachoeiras ficam totalmente
expostas e a transposição por barco requer grande esforço e dispêndio de tempo. A
quantidade de cachoeiras interfere também na oferta de peixes, pequena e sem
variedades. A partir de uma certa altura do rio, além de redução na quantidade das
espécies, os índios dizem que também o tamanho dos peixes é menor. “Botos e cabeçudos
(tartarugas) não conseguem passar algumas cachoeiras fortes, e por isso não são vistos no
Alto Içana”, diz o capitão de uma comunidade curripaco.
O Içana tem em suas margens, como vários outros rios da região do Médio e Alto Rio
Negro, muitos petroglifos, figuras e desenhos gravados em pedra. Tais desenhos, em sua
grande maioria, ficam submersos durante cerca de 8 a 9 meses por ano e, nos meses de
seca, são visíveis nas grandes pedras às margens, sempre com a face voltada para quem
olha a partir do rio. Os desenhos abundam nas pedras das principais cachoeiras
26
. As
primeiras menções a eles, de cunho etnográfico, foram feitas pelo viajante alemão
Theodor Koch-Grünberg, que navegou pela região nos primeiros anos do século XX (1903 a
1905). Koch-Grünberg publicou, em alemão, cem anos, um trabalho ainda inédito em
português, importante documento sobre os petroglifos brasileiros da Amazônia
27
.
Até hoje, com apenas uma única exceção
28
, não há menção a esses petroglifos, ou a
esses signos, relacionados àquilo que os próprios Baniwa dizem sobre eles, ou aos mitos e
outros elementos da cultura baniwa. Na literatura sobre os Baniwa, ora os signos estão
totalmente ausentes, ora aparecem incidentalmente descritos e seguidos de um curto
parágrafo que os relaciona aos padrões das cestarias e raladores. Na literatura sobre
cestarias, aparecem de forma igual, agora perdidos em meio a muitos outros signos de
muitas outras regiões e etnias. De qualquer modo, os desenhos nas pedras ainda são, hoje,
objetos mudos e isolados do universo cosmogônico baniwa, para não dizer da vida social
das comunidades.
O objetivo de meu trabalho de campo foi, essencialmente, ‘seguir os signos’.
Naveguei pelo rio Içana sem entrar nos principais afluentes –, desde a sua foz no Rio
Boa Vista, localizada na foz, Tunuí, no médio curso, São Joaquim e Jerusalém, em seu curso alto (entre os
Curripaco).
26
Sobre arte rupestre e petroglifos na Amazônia, ver Williams, 1985; Pereira, 2001. Vale também a pena
conferir Gaspar, 2003.
27
Südamerikanische Felszeichnungen (Petroglifos Sulamericanos), Berlin, 1907.
28
O excelente trabalho de Francisco Ortiz e Helena Pradilla, ‘Rocas y Petroglifos Del Guainía – Escritura de los
Grupos Arawak-Manipure’.
26
Negro até a 70 km de sua cabeceira, já na Colômbia, percorrendo cerca de 1.500 km do rio
e de alguns de seus igarapés em época de seca, parando em cada ponto onde havia
petroglifos e registrando-os, com a colaboração de pesquisadores indígenas (Figuras 1 e 2).
No percurso, obtínhamos informações das pessoas em cada local acerca de novos lugares
onde havia ‘desenhos nas pedras’. Seguindo tais informações, apenas uma vez não
conseguimos encontrar petroglifos no local indicado. Ao todo, foram visitados 13 sítios
onde havia petroglifos, e registrados mais de 170 signos. Desses, três sítios eram pedras em
‘portos’, onde existiam comunidades, seis ficavam em cachoeiras, seja nas pedras nas
margens ou em grandes lajedos, e três em pedras às margens do rio, em lugares ermos e
sem cachoeiras. Apenas um sítio foi encontrado longe do rio a cerca de 300 metros da
‘beira’ –, no interior da comunidade de Camanaus, na Colômbia. Além destes, foram
também visitados sítios onde havia signos ‘de pedra’ e sem desenhos gravados, como a
Cidade Grande de Ñapirikoli, o Banco de Ñapirikoli, a caverna das Amaronai e locais ao
longo de igarapés, onde se avistou ‘flautas Kowai’ e outras pedras investidas de sentido.
Figura 1 – O Alto Rio negro e o Rio Içana, subdivisão e ocupação majoritária das principais fratrias.
27
Figura 2 – Mapa de Viagem. O rio Içana
A equipe de viagem contou com cinco integrantes indígenas, além de mim: o
prático
29
e tradutor Irineu Laureano Rodrigues, diretor da OIBI, originário da comunidade
de Jandu Cachoeira e que hoje reside em São Gabriel da Cachoeira; os pesquisadores
indígenas Basílio Pacheco e Liveston Rodrigues, ambos da comunidade de Barcelos, no Alto
Içana; e os estudantes da Escola Pamáali Armindo Plácido, baniwa falante de nheengatu,
morador da comunidade de Assunção, no Baixo Içana, e Tiago Pacheco, também de
Barcelos (Figuras 3 e 4). Além destes, participaram de trechos da viagem o professor da
Escola Pamáali Paulo, a mulher de Basílio, Helena, o narrador Antonio José Mandu e seu
filho Nastácio.
29
Os Baniwa têm uma palavra muito apropriada para esta função tecnicamente denominada ‘prático da
embarcação’. Eles o chamam muito simplesmente de ‘motorista’.
28
Nosso roteiro básico de viagem previa a navegação direta rio acima até o destino
final, a serra onde está localizada a Cidade Grande de Ñapirikoli. Nesse percurso,
identificaríamos os locais dos petroglifos e pararíamos nas comunidades onde residiam os
narradores já identificados, para conversar rapidamente com eles e agendarmos uma
conversa mais longa para a volta. Os narradores eram Antonio José Mandu (da comunidade
de Barcelos, no Alto Içana), Olímpio Lourenço (Coracy, Alto Içana), Marcelino Cândido Lino
(Tamanduá, Médio ana), Alberto Antonio Lourenço (Jandu Cachoeira, Médio ana) e
Valentim Paiva (Juivitera, Médio ana). Nossa previsão era voltarmos devagar, fazendo o
registro minucioso dos petroglifos e parando para ouvir as histórias dos velhos.
Tacitamente, estava estabelecido que as condições e tempos da viagem, os locais de
parada para refeições em pequenas praias do rio e descanso à noite, e todas as decisões
desse tipo estariam a cargo de Irineu, conhecedor do rio e das comunidades, e que a mim
caberia a orientação e coordenação dos trabalhos de pesquisa em si (registros, coleta das
histórias) e a palavra final acerca das decisões de cunho mais estratégico
30
.
30
Assim, Irineu poderia perguntar: “Temos mais duas horas de luz, e podemos chegar em tal comunidade;
podemos prosseguir mais umas duas horas no escuro e alcançar tal comunidade adiante, onde paramos à noite
para vencer a cachoeira de manhãzinha e assim ganhamos quase meio dia de viagem... O que faremos?”.
Entendendo que tínhamos lua cheia, e que a noite estaria clara, eu respondi, imprudentemente e pela última vez
nessa viagem: “Seguimos em frente!”. Erro de amador. Nas primeiras horas da noite, antes de a lua ganhar
altura, o céu é tomado por uma escuridão quase total. A lua cheia na Amazônia faz com que o ambiente ganhe
colorações de dia claro, mas apenas a partir das 10, 11 horas da noite. Irineu se ria do medo que senti navegando
às cegas entre as pedras e troncos do rio, e eu lhe prometi que, quando ele viesse ao Rio, o colocaria na garupa
de minha moto às seis horas da tarde na Avenida Brasil, para ele ter uma mínima idéia do que passei.
Figura 3
-
Em pé: Antonio José Mandu,
Armindo Plácido e Basílio Pacheco. Agachados:
Tiago Pacheco e Liveston Rodrigues.
Figura 4
-
Irineu Laureano
Rodrigues e Liveston
Rodrigues
29
No entanto, esse roteiro básico esteve longe de ser cumprido, principalmente
porque, logo que avistamos a primeira cachoeira com petroglifos, percebemos que o rio
estava em vias de encher tão logo chovesse nas cabeceiras e que provavelmente os
desenhos estariam cobertos pelas águas quando voltássemos, dali a quinze dias. Assim,
optamos por ir parando a montante e registrando os petroglifos, não com o rigor que eu
pretendia (segundo metodologias emprestadas da pesquisa arqueológica), mas apenas
dando conta das necessidades de análise deste trabalho.
Logo nos primeiros dias de viagem entrei em contato com dois conceitos dos quais
havia ouvido falar. Um diz respeito à forma peculiar pela qual os Baniwa se apropriam
das tecnologias modernas dos ‘brancos’, enquanto o segundo está relacionado ao que os
antropólogos e os próprios índios escolarizados chamam de ‘ética baniwa’. Certa vez,
comentando sobre as técnicas de construção baniwa, Laíse Diniz, educadora do ISA,
descrevia o emaranhado de fios, interruptores, lâmpadas e ‘gatosligados a rudimentares
baterias de carro, conjuntos comuns nas casas da Escola Pamáali, e dizia que “um dia,
alguém teria que estudar a idéia baniwa de eletricidade”. Essa ‘elétrica baniwa’ é
realmente fascinante, mas nada sei sobre ela, além da visão do mesmo emaranhado
descrito e que, incrivelmente, funciona! No entanto, exemplifico com um acontecimento
análogo sobre ‘mecânica baniwa’, vivido no primeiro dia de viagem.
Após pernoitarmos na comunidade de Ilha Grande, a meia hora da foz do Içana,
entramos no barco e Irineu tentou ligar o motor. A corda do arranque (o ‘automático’)
partiu-se e veio solta em sua mão. Púúú!”, fizeram os índios, sorrindo, enquanto o barco
flotava solto no meio do rio. Encostamos novamente, na beira, tiramos o motor do barco e,
primeira providência e primeiro problema: não havia ferramentas para desmontar o motor.
Na comunidade, tampouco. A custo, encontraram uma única chave de boca que, sorte,
serviu. Com o motor aberto, a cena era cômica: cinco índios acocorados em torno da
máquina, no que lembrava a célebre pintura de Rembrandt, ‘Lição de Anatomia do dr.
Tulp’, falando ao mesmo tempo, mexendo com as mãos aqui e ali, apontando, puxando um
ou outro elemento. Irineu se ria, e dizia para mim que ninguém sabia como colocar a corda
no lugar, mas que daqui a pouco “entenderiam o sistema”.
Emprestei meu canivete suíço que, nas mãos dos índios, virou chave de fenda,
chave de boca, suporte para porcas e parafusos, extensor e cumpriu muitos outros usos
que certamente a Victorinox jamais chegou a conceber. Ao abrirem o motor, descobriram
uma espécie de rã, morta e ‘fossilizada’ em óleo. A que eles apelidaram
apropriadamente ‘moolito’ – foi objeto de muitas brincadeiras de bordo nos dias seguintes,
como quando alguém a colocava entre dois pedaços de beiju, como se fosse peixe, e a
oferecia a um companheiro, só para se rir do susto quando ele aproximava o beiju da boca.
30
Nossa pequena múmia moolito nos acompanhou até o último dia de viagem, quando, na
volta, sucumbiu no leito do rio, depois que o barco virou ao passar a perigosa cachoeira de
Tunuí.
E eles falavam, enrolavam a corda, tentavam montar e remontar, testavam as
engrenagens, as molas pulavam todas de novo para fora, riam, tentavam de novo... Nisso,
o dia avançava. O fato é que, depois de quase duas horas, eles conseguiram remontar o
arranque. Colocamos o motor de novo no barco e ele funcionou melhor do que antes!
até o fim da viagem. O fato de eu não entender a língua baniwa fortaleceu a impressão de
que, como Irineu havia me falado, eles não tinham a menor idéia de como aquilo
funcionava, mas que, premidos pela necessidade, sim, ‘entenderam o sistema’. Qualidades
como a curiosidade, o espírito aberto, a grande paciência, a inteligência para descobrir e
lidar com engrenagens (em última instância, causa-conseqüência-movimento), o bom
humor e aquilo que as grandes empresas chamam hoje de ‘gestão coletiva na solução de
problemas’ são, sem dúvida, constitutivos do modo baniwa de se relacionar com a
tecnologia.
Nessa mesma noite, ao dormirmos, deixamos como de costume nossas mochilas num
estrado de madeira sob o telhado de caranã em cujas colunas esticamos as redes. De
manhã, ao deixarmos a comunidade em direção à beira do rio onde a seguir seríamos
confrontados com o problema da corda do arranque -, Irineu me falou: “Uma velha veio me
dizer que viu crianças pequenas brincando perto de nossas mochilas. Ela pediu para vermos
se elas mexeram em alguma coisa...”. Eu disse que veria, e dei uma olhada superficial em
meus equipamentos. Nada parecia faltar.
Mais tarde, quando o motor estava consertado e nos preparávamos para embarcar,
vejo um homem chegar, correndo, com duas crianças pelas mãos, com idades entre 3 e 4
anos. O homem se dirigiu diretamente ao Irineu e conversou com ele. Pareceu-me uma
conversa tensa. O velho olhava para o chão, Irineu tentava acalmá-lo. Ele passou às mãos
de Irineu alguns objetos pequenos e, rapidamente, sem olhar para mais ninguém, subiu de
volta para a comunidade, levando as crianças.
Irineu voltou e me devolveu um envelope pequeno onde eu guardava as notas e
documentos da viagem e também o meu pequeno gravador digital. Eu não havia sentido
falta. Irineu me disse que o velho estava profundamente envergonhado, porque as crianças
haviam aberto minha mochila e pego os objetos para brincar. Eu dizia que ele não
precisava ter se preocupado, que “eram crianças”. Irineu, rosto fechado, me disse que
não, que era um “caso sério” e que realmente envergonhava a comunidade toda. “Já ouviu
falar da ética baniwa?”, perguntou.
31
2. Caapi: o olho-umbigo e a trompa
O lajedo de Caapi
No segundo dia de viagem, chegamos à primeira das muitas cachoeiras que teríamos
que vencer, chamada Caapi. Essa cachoeira, com o rio seco, deixa à mostra um grande
lajedo, de cerca de 200 x 100m de largura, de pedras lisas e com muitos ‘ocos’ formados
pela erosão da água. Apenas um fio de água permanece fluindo, ao lado, e Irineu percebeu
que não seria necessário descarregar tudo e puxar o barco pelas pedras. Seria suficiente
que todos desembarcássemos, com nossas mochilas e as caixas de rancho, e ele passaria
sozinho pelo canal, levando apenas o combustível. Assim foi. Ele passou rapidamente e nos
esperou na enseada acima. Eu, Paulo, Basílio, Liveston e Armindo atravessávamos o lajedo,
quando o jovem estudante, apontando uma pequena elevação da pedra, excitado, mas sem
se deter, disse: “Desenho de Ñapirikoli!”. Todos continuaram a seguir, calmamente, mas
eu perguntei onde ele tinha visto. Ele se aproximou da pedra que apontava e contornou o
curso do desenho, com o dedo. “Aqui! Desenho de Ñapirikoli!” (figura 5).
Figura 5
Estava lá, quase oculto pela erosão, pela exuberância da paisagem, pela enorme
extensão do lajedo. Estava lá, o primeiro dos muitos ‘desenhos de Ñapirikoli’ que nós
veríamos e registraríamos. Era apenas um conjunto de três círculos concêntricos, com um
32
ponto no meio, de 40 x 40 cm, pouco nítido. Os antigos chamam esse desenho de ‘olho de
Kowai’, ou ‘umbigo de Kowai’ ou, ainda, o identificam como marca de seu bastão de
dança, batendo no chão. Foi significativo que o primeiro signo avistado tenha sido esse
um dos signos mais simples e também mais terríveis, relacionado diretamente a Kowai e
também que o tenha sido pelo menino Armindo que, como confessou mais tarde, jamais
havia visto um ‘desenho de Ñapirikoli’ de verdade, na pedra.
O dia estava findando, e descobrimos muitos outros signos em Caapi, espalhados ao
longo do lajedo. Por certo, haverá ainda outros tantos, que não chegamos a identificar.
Nesse momento, em conversas rápidas, percebemos que seria arriscado passar adiante e
registrar os petroglifos na volta. “As pedras vão estar debaixo dágua”, diziam todos. Assim,
apressados, descarregamos os equipamentos de registro (blocos, fichas, giz, máquina
fotográfica) e nos dividimos rapidamente: cada um vasculhava uma região do lajedo,
procurando signos nas pedras, e eu os seguia, registrando.
Essa correria durou cerca de duas horas, até a luz do dia faltar quase
completamente. Em Caapi, identificamos e registramos 15 signos, a maioria formados por
padrões geométricos. Pelo menos três deles foram identificados como ‘flautas’. “Esta é
uma trompa
31
”, disse Irineu (figuras 6 e 7). E, nesse conjunto de signos, sobressaía uma
estranha figura de feitio antropomórfico e olhos de batráquio (Figura 8), sobre a qual
nenhum dos narradores ou anciãos com os quais conversamos posteriormente soube emitir
qualquer opinião.
Figura 6 Figura 7 Figura 8
31
Os Baniwa referem-se indistintamente a ‘flautas’ e ‘trompas’, quando falam de seus instrumentos de sopro. A
distinção técnica utilizada em relação aos aerofones, entre flautas (possuindo defletores, com ou sem orifícios de
digitação), clarinetes (com palheta), e trumpetes (com passagem direta do ar) parece não ser considerada entre
eles. Opto por utilizar as mesmas expressões segundo as quais os Baniwa se referem a eles, em português. Quase
sempre, os chamam indistintamente de ‘flautas’ (phianeko, em língua baniwa).
33
2.1. Um método de registro dos petroglifos
A metodologia utilizada para o registro dos petroglifos transmitida aos
pesquisadores indígenas, por learning by doing e, posteriormente, aos alunos da Escola
Pamáali, em oficina específica foi adaptada a partir de leituras das edições da revista
colombiana Rupestre Arte Rupestre en Colombia (Martinez, 1997; Muñoz, 1997; Osório,
2000; Rodriguez, 1998), cujos artigos técnicos descrevem minuciosamente os métodos
usados por pesquisadores do Grupo Gipri (Grupo de Investigación de Arte Rupestre
Indígena), coordenado pelo professor Guillermo Muñoz.
Os petroglifos do Içana são figuras gravadas, desprovidas de pigmentos de cor,
quase sempre executadas por abrasão ou percussão. Os signos são inscritos em pedras ou
lajedos planos às margens do rio ou em cachoeiras. Geralmente, tais pedras não são de
difícil acesso e não se apresentam cobertas por vegetação, dada a proximidade do rio. No
caso específico do Içana, não são encontrados petroglifos em grandes paredões, ou mesmo
desenhos de grandes dimensões. Tais características facilitaram a escolha de uma
metodologia de registro que proporcionasse a clareza das formas, a relação entre elas a
partir da localização nas pedras e, ainda, a rapidez do registro, fundamental em razão da
época do rio e do tempo disponível para a viagem.
A partir dessas considerações, estipulei alguns critérios básicos para o registro, e
estes, posteriormente, ganharam forma na confecção de fichas de campo. Como a
intenção deste trabalho não seria o registro arqueológico, mas a coleta de dados que
permitisse o desdobramento da memória social e o estabelecimento de relação entre os
vários tipos de signos utilizados pelos Baniwa na construção de seu conhecimento e de seu
corpo social
32
, ative-me a este propósito e identifiquei como principais objetivos do
registro os seguintes pontos, do geral ao particular:
1. Conjunto (Localização da paisagem-signo)
Marcação das coordenadas GPS
Descrição da paisagem e localização geográfica, entorno e acessos, com
identificação do local das pedras em relação ao rio (margens, cachoeira, etc)
Fotos amplas de todo o local
Desenho de mapas e esquemas
Informações requeridas:
Nomes nativos e outras denominações do conjunto (ex. Enhiipani, Jandu
Cachoeira)
Área aproximada (em m
2
, comprimento e largura)
Quantidade de rochas existentes, quantidade de rochas com petroglifos
Divisões em grupos de petroglifos
Condições de observação (estado do rio, clima, hora do dia)
Identificação do registro fotográfico (digital, mecânica, P&B, numeração de
filmes, anotação sobre ISO, diafragma, velocidade)
32
A relação entre a memória social e imagens costumam ser menos claras, como aponta Carlo Severi (2000:121)
34
Identificação de outros registros (esquemas, mapas, croquis)
2a. Rocha
Identificação da rocha (numeração, nome)
Descrição da(s) rocha(s) suporte aos petroglifos, localização na paisagem
Fotos amplas da(s) rocha(s)
Desenho de mapas e esquemas
Informações requeridas:
Nomes nativos e outras denominações da rocha, quando há (ex. ‘pedra Siuci’)
Área aproximada (em m
2
, comprimento e largura)
Formato e faces
Tipos de inscrições (petroglifos isolados, grupos)
Condições de observação
Identificação dos registros fotográfico, croquis
2b. Características do petroglifo
Técnica (percussão, abrasão, incisão)
Condições das inscrições (difícil acesso, submerso, sobreposições, alterações,
descamação, erosão)
Calibre (dimensões médias do sulco, da área plana)
3. Face (descrição geral de motivos)
Identificação da rocha (por numeração, por denominação)
Faces trabalhadas (N, S, E, W, Nw, Ne, Se, Sw, superior)
Número de grupos de figuras
Número de figuras
Condições de observação
Identificação dos registros
4. Grupo (grupo independente de figuras)
Identificação da rocha
Localização na face
Número de formas
Figura principal
Condições de observação
Identificação dos registros
5. Figura (forma independente)
Identificação da rocha e do grupo
Nome nativo e outras denominações (Ex. Moolito, flauta kowai)
Condições de observação
Identificação dos registros
O procedimento básico para o registro, em cada sítio, consistiu de um checklist de
10 passos:
1. Identificação do local onde existem petroglifos, a partir das informações prévias dos
velhos e das comunidades, ou de informações colhidas durante a viagem;
2. Marcação do ponto GPS;
3. Anotações sobre a paisagem, o entorno, o acesso;
4. Identificação visual e tátil dos signos nas pedras;
5. Umedecimento e lavagem (quando necessário) dos signos, para melhor visibilidade;
6. Anotações acerca das características dos petroglifos (condições, calibre, técnicas
utilizadas);
7. ‘Enchimento’ dos desenhos com giz branco
33
, para evidência da forma;
33
Em virtude das condições de viagem e também dos locais nos quais se encontrava a maioria dos petroglifos,
foram descartadas técnicas que permitiriam maior rigor no registro dos signos, como o decalque, por exemplo,
mas que implicariam em um grande dispêndio de tempo e transporte de materiais pesados e que ocupariam muito
35
8. Registro fotográfico do geral ao particular: paisagem geral, grupos de rochas, grupos de
petroglifos, signos isolados;
9. Registro em forma de croquis, mapas e esquemas desenhados, com medidas;
10. Coleta inicial de informações acerca dos signos registrados.
Enquanto trabalhávamos, eu colhia as opiniões dos índios que estavam comigo e
inquiria a respeito dos signos, seus nomes, etc. Embora eles não fossem anciãos ou
narradores, interessava-me muito ouvir suas impressões, que expressavam, em
determinada medida, a compreensão comum da maioria dos homens baniwa a respeito
desses signos. Para esses jovens, era a primeira vez que eles tinham a oportunidade de ver
esses desenhos com tal disposição, e por isso encantavam-se com a tarefa de torná-los
visíveis, trabalho que executavam com o máximo prazer, evidenciando grande excitação e
correndo em minha direção (“Giz! Giz! Giz!”) quando descobriam um desenho
particularmente interessante. Depois, terminada a tarefa, permaneciam sentados, rindo,
apontando para um e outro desenho e comentando as formas (“Parece um macaco!”, “Isso
também é uma flauta?”) ou tentando estabelecer os limites das figuras, discutindo entre si
enquanto tentavam seguir desenhos bastante erodidos com os dedos
34
(“O traço vem por
aqui, e se liga a esse aqui!”, “Que nada, isso aí já é a marca da pedra mesmo...”).
Desse modo, foi possível visitar um grande número de sítios ao longo do Içana,
registrando os signos neles identificados, com clareza e rigor suficientes para fornecer aos
velhos e àqueles com quem conversaríamos posteriormente elementos para o
estabelecimento de ligações com as histórias, bem como dados suficientes de análise, a
mim mesmo e a outros pesquisadores. A identificação dos sítios, segundo a localização
geográfica, e dos signos, segundo as formas, acrescida das observações e interpretações
dos velhos, encontra-se no Anexo, VII.1. A clara identificação dos locais, com a marcação
dos pontos GPS e outras descrições, proporcionam ainda a possibilidade de retomada dos
registros, de modo mais aprofundado, quer por parte dos próprios estudantes baniwa, quer
por parte de pesquisadores de outros campos.
Embora eu tenha me esmerado em seguir todas as informações, e visitar todos os
sítios que me foram indicados, o aparecimento súbito de signos em locais que nem mesmo
os próprios Baniwa conheciam como lugares sagrados me leva à certeza de que ainda
espaço na embarcação. Apesar das orientações contrárias ao uso do giz, oriundas das principais escolas
arqueológicas modernas, optei por essa técnica em virtude de três fatores percebidos no campo: a) muitos
petroglifos, como os de Jurupari e da escola Pamáali, já estavam identificados e pintados – com tinta branca ou
cal – pelos próprios moradores do local; b) os pesquisadores indígenas sentiam-se confortáveis com essa forma
de registro, e deve-se a eles a identificação – por vezes tátil e quase intuitiva – de muitos desenhos; c) a maioria
desses signos permanece submersa nas águas correntes dos rios durante nove meses do ano e, assim, o risco da
deterioração do patrimônio em função dos elementos químicos era reduzido.
Ainda assim, a cada registro feito e
depois que os signos eram fotografados e copiados, nos acostumamos a lavá-los novamente em água corrente.
34
Como eu não estava inclinado a efetuar rigoroso registro arqueológico, adotei plenamente e sem questionar
todas as indicações dos Baniwa que me acompanhavam, a respeito dos traços dos desenhos.
36
existem, ao longo do rio Içana e de seus igarapés, muitos e muitos locais onde podem ser
encontrados petroglifos, bem como muitos e muitos signos que permanecem de todo
submersos. Desse modo, o ‘aparecimento’ de petroglifos ainda não conhecidos implica,
necessariamente, o aparecimento (e o reconhecimento) de um iarodatti, de um lugar
sagrado, que, por princípio, “todo lugar onde existem desenhos é um lugar onde algo
importante aconteceu”.
3. Tunuí: Os padrões geométricos diakhe
Tunuí-Seringa
A cachoeira de Tuné uma das mais perigosas e belas do Içana. Logo acima, num
remanso do rio, chamado Seringa (Takaliana), encontramos grupos de signos com
características geométricas bem marcantes. Alguns de tais signos haviam sido
registrados por Francisco Ortiz (Ortiz e Pradilla, sem data) e, ao comparar os meus
registros com os dele, percebi que no curto período de tempo entre as duas anotações
(oito anos), uma grande descamação teve lugar, num dos signos (figura 9). E, por outro
lado, um grande grupo de pontos marcados havia se erodido a tal ponto que nem eu e nem
os Baniwa que me acompanhavam nos sentimos seguros a considerá-lo ‘desenhos de
Ñapirikoli’. No relatório de viagem de Ortiz, tais signos são registrados com grande clareza.
Figura 9 - Descamação
37
Nesse local, são vários os signos do tipo diakhe, citados na bibliografia sobre o
artesanato baniwa como sendo formas geométricas que Ñapirikoli deixou gravadas nas
pedras para ensinar às novas gerações os padrões das cestarias de arumã (Ribeiro, 1995;
ISA/FOIRN/OIBI, 2001). Essa é a concepção mais comum e mais mencionada, mesmo entre
os próprios Baniwa, quando se comenta os desenhos nas pedras. Ainda que seja
praticamente impossível desconsiderar as explicações de Reichel-Dolmatoff, que vinculam
as formas geométricas às sensações luminosas (fosfenos) induzidas pela ingestão de
alucinógenos
35
, não as levarei em conta neste trabalho e em relação aos petroglifos, por
duas razões: em primeiro lugar, porque tais explicações podem dar conta de como e por
que os signos nas pedras de fato foram executados por seus autores, mas não dizem nada a
respeito da concepção baniwa acerca de sua autoria (Ñapirikoli); em segundo lugar, e
como decorrência do primeiro ponto, essas explicações situam-se fora do universo das
histórias baniwa e pouco ou nada acrescentam à rede de relações nas quais tais signos
se encontram.
Os velhos narradores baniwa, tampouco, têm explicações mais elaboradas para tais
desenhos geométricos. Alguns deles, mais tarde, disseram que tais signos foram os
primeiros a serem desenhados por Ñapirikoli, depois reproduzidos nas cestarias (figuras 10
e 11). Trata-se, digamos, de um ‘vínculo fraco’, já que é aparentemente pouco
significativa a relação entre os signos das pedras e os padrões das cestarias, se
simplesmente sobrepormos desenhos a desenhos. Na verdade, essa implicação aparece
quase sempre sem maiores explicações ou fundamentos que a justifiquem, que os
desenhos das cestarias não são exatamente representações ou derivados dos ‘modelos’ dos
desenhos nas pedras.
Nesse caso, buscar por um significado’ não parece ser o melhor caminho, nem o
mais interessante. Ainda mais que, como notou Berta Ribeiro, “não existe unanimidade
sobre o significado e a nomenclatura dos desenhos do trançado, tanto entre membros de
uma mesma tribo, como de uma a outra que executam os mesmos padrões” (1995:89). O
fato é que a semelhança e a relação parecem ser de outra ordem que não a da mera
representação gráfica. A desconfiança, na verdade, é semelhante a de Koch-Grünberg, ao
deparar-se com certo signo e ouvir a explicação de que seria um ‘jaguar’. “À tarde,
passamos pelas pedras-jaguar, ou dzaui-nedia, em língua siuci, com petroglifos que
35
A partir de estudos realizados entre os índios Tukano do Uaupés, Reichel-Dolmatoff estabelece
correspondência entre a ingestão de yajé (planta alucinógena) e as pinturas que os índios realizam. Segundo ele,
as alucinações visuais produzidas pelas drogas consistem, fundamentalmente, em imagens luminosas
geométricas, que têm, por sua vez, uma base neurofisiológica. São denominadas tecnicamente ‘fosfenos’,
“sensações luminosas que aparecem no campo da visão independentemente de uma luz externa, isto é, são
produtos da autoiluminação do campo visual, e se produzem no cérebro” (Dolmatoff, 1985:293).
38
somente com muita imaginação se poderia interpretar como jaguares” (1995:136).
Enquanto o viajante alemão remetia o estranhamento a uma simples imperícia técnica, ou
a uma capacidade rudimentar de representação, eu tendo a supor que pode tratar-se, por
outro lado, de uma outra espécie de relação icônica um outro modo de parecença que
não a da forma externa e visível. Tenho a mesma desconfiança em relação aos padrões das
cestarias.
Figura 10 Figura 11
Até aqui, no entanto, sabemos que as ‘gregas baniwa’ diakhe não se referem
exatamente a ‘desenhos sem nome’, como diz Ribeiro (1995:94) ou a indistintos ‘padrões
de cestaria’ simplesmente. A origem da palavra remete àquilo que é sem fim, a movimento
ininterrupto, “infinito” (ISA/FOIRN/OIBI, 2005:59). Um exemplo da aplicação desse radical
está na expressão Uni diakahle, o grande mar, o oceano (Wright, 1999b:91).
4. Pamáali, a escola-comunidade
A anta-mascote da Escola Pamáali
39
Em três dias, chegamos à escola Pamáali, no Médio Içana, logo acima da
comunidade de Tucumã Rupitá. A escola surgiu a partir dos ‘encontros de educação
baniwa’, organizados pela OIBI, destinada a oferecer o ensino fundamental da 5
a
à 8
a
série,
a estudantes indígenas que não tinham outra opção para a continuidade de seus estudos
depois da 4
a
série. Ela começou a funcionar em 1999, com apoio da FOIRN, do Instituto
Socioambiental (ISA) e da entidade norueguesa Rainforest. Em 2000, adotou-se o nome
Escola Indígena Municipal Baniwa Curripaco Pamáali. A escola foi construída em terras dos
walipere-dakenai, à feição de uma comunidade. As casas de alunos e professores seguem a
arquitetura atualmente utilizada pelos Baniwa, com paredes de madeira e barro e telhado
de caranã (Garnelo et al, 2004/2005).
O projeto político e pedagógico, segundo a coordenadora Laíse Diniz, foi concebido
para atender ao desenvolvimento sustentável das comunidades baniwa-curripaco da terra
indígena do Alto Rio Negro, das comunidades indígenas do rio Içana e afluentes
36
.
Atualmente, a escola conta com três projetos articulados em seu programa de ensino:
piscicultura com espécies nativas, meliponicultura e manejo agro-florestal. Há, também,
noções de Artes, Administração e Computação. Além disso, ensina-se as mesmas disciplinas
das escolas de 5
a
à 8
a
série das cidades. A implementação do ensino médio estava prevista
para este primeiro semestre de 2008.
A primeira visão do porto da Pamáali impressiona e encanta. Acostumados a ter que
‘descobrir’ os desenhos de Ñapirikoli nas pedras, quase invisíveis pela erosão e pelas
águas, somos confrontados, mesmo a distância, com dezenas de signos, numa grande
extensão do porto, muitos deles preenchidos pelos próprios alunos com tinta branca,
evidenciando formas de peixes, trompas, espirais, figuras humanas. Ao desembarcarmos,
notamos que, ao lado desses signos já pintados, existem outros, muitos outros, em ótimo
estado, e apresentando uma enorme variedade de motivos. O registro desses petroglifos
estendeu-se durante dois dias, com a ajuda dos alunos que chegavam para o início de
mais um período letivo (Figuras 12 e 13).
36
A Escola Pamáali possui doze casas, sendo um dormitório masculino, um dormitório feminino, duas salas de
aula, uma biblioteca, um refeitório com uma cozinha, e uma casa para secretaria e administração. As aulas são
dadas durante períodos letivos de dois meses cada, sendo que para completar uma série são necessários quatro
períodos letivos de aulas (oito meses). Durante o período letivo, os professores e alunos moram na escola.
Algumas aulas são teóricas, nas salas, outras são ministradas no campo, trabalhando-se na prática com os alunos.
As refeições são feitas em conjunto e os alunos se revezam em equipes de trabalho para cozinhar e limpar o
refeitório e a cozinha. Sendo uma escola-comunidade, os alunos se organizam segundo os mesmos padrões de
uma comunidade baniwa, reunindo-se no Centro Comunitário, elegendo capitão e vice-capitão, etc.
40
Figuras 12 e 13: Pedras do porto, com petroglifos preenchidos pelos próprios alunos
Por toda a extensão do porto e das pedras em volta (cerca de 50m), registramos 48
signos, de diversos tamanhos, muitos deles agrupados em conjuntos. Anotamos figuras de
peixes, camarões, trompas (flautas), objetos, signos antropomórficos, signos identificados
como Kowai, desenhos híbridos, signos geométricos e alguns moolitos’. Chamam especial
atenção as formas delicadas e caprichosas das muitas trompas (Figura 14), as figuras
humanas (executadas segundo vários formatos e estilos) e, particularmente, duas grandes
figuras híbridas, uma delas lembrando um homem (com falo) segurando em sua mão um
grande sapo (Figura 15).
Figura 14 Figura 15
4.1. A Semiótica de Charles Sanders Peirce: Peirception
37
, metodologia possível
A profusão e a variedade de signos nas pedras, bem como as relações percebidas
entre estes e outras espécies de signo (a paisagem, os cânticos, as histórias, os padrões das
cestarias, as flautas, etc) e, ainda, a necessidade de situar esses signos em relação aos
sentidos produzidos e às suas agências entre as populações baniwa, tudo isso termina por
requerer um corpo teórico que não ‘achate’ todas essas possibilidades de análise, mas que,
37
Para a psicologia e para as ciências cognitivas, percepção (perception) é o processo de adquirir, interpretar,
selecionar e organizar informação a partir dos sentidos. No trabalho de Peirce, igualmente. No entanto, sua base
fenomenológica e sua teoria social dos signos autorizam a invenção do neologismo do título.
41
ao contrário, as potencialize, que permita reunir condições para iluminar de modo
bastante eficaz as relações entre os objetos gráficos, as histórias a eles referentes, a
memória social das comunidades baniwa e a agência distribuída por, e entre, essas mesmas
relações. O que dizem esses signos? O que fazem? O que fazem fazer?
Creio ter encontrado na chamada teoria dos signos, ou Semiótica, de Charles
Sanders Peirce, elementos capazes de contribuir para a compreensão de objetos sígnicos
em geral, no curso de uma abordagem antropológica visando compreender a vida social
desse signos e, especificamente, para a compreensão desse conjunto de signos
produzidos, interpretados, recolhidos, reunidos e postos em circulação pelos índios Baniwa
do Içana. O autor não é de fácil compreensão, possui uma obra extensa e variada e,
freqüentemente, tem sido apropriado de forma simplificada.
Penso, no entanto, que a teoria peirceana, extensa, complexa, de certo modo
sempre a completar-se, continuamente revisitada pelo próprio autor e, posteriormente,
pelos pesquisadores que a acatam e estudam, pode oferecer novos instrumentos de análise
para problemas decorrentes da extensão, complexidade, diversidade e instabilidade desses
objetos sígnicos baniwa
38
. Para isso, é preciso que sua chave de leitura seja bem
compartilhada e compreendida. Por outro lado, não acredito que um corpo teórico em si
mesmo, ainda que bem amplo e sistemático, seja capaz de dar conta sozinho de tal
complexidade. Assim, Peirce recebe o consórcio e dialoga, neste trabalho, com muitos
outros autores e suas idéias, principalmente Alfred Gell e as noções de agência, pessoa
distribuída
39
e indexicalidade, e Carlo Severi e a Arte da Memória.
A visão dos petroglifos de Pamáali, enquanto eu ouvia as primeiras histórias sobre
as flautas, me trazia à mente a expressão de Benjamin Lee acerca das (aparentemente)
simples frases e sentenças: são “expressões semióticas multifuncionais” (1997:95). A
escolha de uma teoria deve decorrer, preferencialmente, dos problemas identificados no
campo. Os meus problemas, resumidamente, consistiam em ‘fazer os signos falarem’,
propiciar a partir deles o entendimento das relações que envolvem, entre os Baniwa,
memória e conhecimento, pessoas, lugares e coisas, origem, atualidade e futuro. No
entanto, no porto de Pamáali, contemplando cerca de meia centena de desenhos de
trompas, flautas, homens, peixes, formas geométricas e objetos, eu parecia imerso em
uma floresta de signos mudos
40
. Por que acredito que Peirce será de grande ajuda?
38
Essa expressão não tem o caráter de posse ou produção, isto é, não falo de autoria, e sim de circulação e
produção de sentidos. Por ‘signos baniwa’ entendo aqueles signos que circulam e são apropriados e fazem
sentido no ambiente sociocultural dos índios baniwa-curripaco.
39
Por sua vez, a agência das imagens de Gell remete-se diretamente a Freedberg (1989), e sua ‘pessoa
distribuída’ às pessoas partitiva de Strathern (1988) e fractal de Wagner (1991), numa espécie de semiose infinita
bibliográfica.
40
Roland Barthes assim descreve o seu ‘Robinson Crusoe moderno’: não mais isolado numa ilha, mas perdido
numa floresta de signos mudos. Ele disse isso ao lembrar-se da sensação de caminhar, pela primeira vez, pelas
42
Respondo, por enquanto e a princípio, com as palavras de Benjamim Lee sobre a teoria
semiótica peirceana e a razão pela qual ele acredita que tal teoria levante temas
relevantes para as discussões contemporâneas sobre conhecimento, significado e
inferência:
“Primeiro, Peirce combina ambas as abordagens, funcionalista e
disposicionalista, em sua compreensão dos processos mentais. Segundo, ele vincula
esses processos a uma epistemologia semiótica capaz de distinguir diferentes níveis
de abstração e diferentes tipos de mediação. Terceiro, porque a teoria semiótica
peirceana da estrutura proposicional está fortemente atada à sua epistemologia, sua
abordagem difere daquelas que se iniciam com a forma lógica e daí indagam como
essas podem ser instanciadas pela linguagem ou pelos processos mentais. Quarto, sua
ênfase na abdução [...] é uma alternativa ao conhecimento entendido como crença
verdadeira justificada ou produzida causalmente. Finalmente, os argumentos de
Peirce, de que verdade e realidade dependem de uma construção social, prenunciam
alguns dos debates atuais sobre o papel de uma ‘divisão do trabalho lingüístico’ na
constituição de sentido, denotação e extensão” (1997:132).
Pensamento e Cognição Qualquer conversa sobre Peirce deve iniciar-se pela
compreensão de suas categorias fundamentais e mais gerais. Deve iniciar-se, assim, pela
própria idéia de ‘categoria’, para ele. Como os exemplos ao longo deste trabalho irão bem
demonstrar, entendo as categorias peirceanas ainda que não tenhamos bons olhos, hoje
em dia, para as ‘categorizações’ não como meros descritores ou maneiras de se colocar
objetos em prateleiras, mas, ao contrário, válidas e úteis para apontar e iluminar as
diversas relações que um determinado signo, ou objeto, ou ente, estabelece numa rede
sígnica e numa rede social, tendo em vista a produção, apropriação e circulação de
sentidos.
Para este trabalho, é importante manter em vista dois outros pontos fundamentais
da teoria peirceana, além suas categorias gerais: sua noção de tipos de raciocínios e sua
idéia de signo e suas relações. Os tipos de raciocínio têm a originalidade da proposta da
‘Abdução’ como operador (verdadeiramente) cognitivo, isto é, capaz de formar idéias
novas. Abrimos com eles, então, esse intermezzo peirceano em meio à navegação do
Içana, como se nos aquietássemos um pouco no aprazível clima da escola Pamáali, antes
de seguir viagem a montante.
“Na ciência, há três espécies fundamentalmente diferentes de raciocínio”, diz
Peirce (CP 2.65)
41
. Ele extrai essas três espécies diretamente de Aristóteles. São elas a
Dedução (synagoge ou anagoge, em Aristóteles), a Indução (epagoge) e a Retrodução
(apagoge) que, segundo ele, foi traduzida erroneamente como ‘abdução’. No entanto, ele
avenidas principais da cidade de Tóquio, observando letreiros, luminosos e signos de toda espécie, mas
totalmente inacessíveis a ele, que não compreendia os ideogramas japoneses (Barthes, 1982).
41
Utilizo, aqui, a convenção largamente adotada para citações dos Collected Papers de Peirce: CP (Collected
Papers), número do volume (1 a 8) e número do parágrafo.
43
mesmo terminaria por adotar, adiante, essa expressão, e seria como Abdução que essa
espécie de raciocínio ficaria conhecida em seus trabalhos posteriores.
Se a Dedução é o modo de raciocínio pelo qual se examina o estado de coisas a
partir das premissas, isto é, partindo-se de leis gerais para explicar experiências
particulares, a Indução realiza o inverso, adotando conclusão aproximada a partir da
inferência sobre casos particulares. Mas é à Abdução que Peirce dedica seus maiores
esforços, escrevendo mais de uma dezena de artigos, a partir de diferentes pontos de
vista
42
. Ele afirma que a Abdução é “a adoção provisória de uma hipótese em virtude de
serem passíveis de verificação experimental todas as suas possíveis conseqüências” (2.68)
e que é, ainda, “um método de formar uma predição geral sem nenhuma certeza positiva
de que ela se verificará, seja num caso especial ou normalmente” (2.270). A sua
justificativa repousa no fato de que a única esperança possível de “regular racionalmente
nossa conduta futura” é que a abdução, a partir das experiências passadas, nos encoraja a
esperar que ela seja bem sucedida no futuro.
No entanto, o mais importante sobre a Abdução – e razão pela qual ela será
primordial à sua teoria semiótica – é que ela é reputada por Peirce como “a única operação
lógica que apresenta uma idéia nova” (2.171), já que a indução nada faz além de
determinar um valor e a dedução meramente desenvolve as conseqüências necessárias de
uma hipótese pura. “A Dedução prova que algo deve ser; a Indução mostra que alguma
coisa é realmente operativa; e a Abdução simplesmente sugere que alguma coisa pode ser”
(2.171. Ênfase do próprio autor). Abdução, para ele, é o processo de formação de uma
hipótese explanatória. A obra de Peirce é profundamente integrada em suas várias
vertentes. Assim, cada um desses modos de raciocínio estará identificado com uma de suas
três Categorias gerais (Primeiridade, Secundidade, Terceiridade
43
) e, por sua vez, com
cada elemento das tricotomias do signo (qualissigno, sinsigno, legissigno; ícone, índice,
símbolo; termo, proposição, argumento).
Um, Dois, Três, Categorias - A tríade (relação entre três elementos) é uma
constante em toda a obra peirceana. Quando pensamos em ‘categorias’, pensamos
sobretudo em uma ‘tríade de pensadores’: Aristóteles, Kant, Hegel. Assim também Peirce,
ressaltando que a aparente semelhança de suas categorias com as de Hegel foram por ele
notadas depois que ele estava já convicto acerca de sua formulação. Peirce assegura que
42
É comum, na vasta e dispersa obra de Peirce, a existência de várias e complexas redes de conceitos que são
continuamente apresentados, reapresentados, reformulados, revisitados, ampliados em vários ensaios e em
diferentes épocas e tópicos. Isso se dá em virtude da preocupação de traçar tais relações entre os conceitos
visando sua utilidade em tais e tais circunstâncias, quando olhados a partir de tais e tais perspectivas. Assim,
pode-se muito bem encontrar uma definição do pensamento abdutivo em meio ao ensaio sobre a divisão dos
signos, ou uma importante definição de signo em uma correspondência pessoal.
43
Em inglês: Firstness, Secondness, Thirdness.
44
suas categorias derivam-se principalmente do estudo de Kant. Insatisfeito com as
categorias aristotélicas, por considerá-las mais lingüísticas do que lógicas, e entendendo
que as categorias kantianas são extraídas da análise lógica da proposição o que, de certa
maneira, também pode se aplicar a Hegel –, sendo, assim, materiais e particulares e não
formais e universais, Peirce passa a dedicar-se a “dar à luz as categorias mais universais de
todas as experiências possíveis” (Santaella, 2005:6). Como único pressuposto e ‘unidade
experienciável’, considerou o fenômeno (phaneron), isto é, tudo aquilo que aparece à
mente.
“Tento uma análise do que aparece no mundo. Aquilo com o qual estamos
lidando não é metafísica, é lógica, apenas. Portanto, não perguntamos o que
realmente existe, apenas o que aparece a nós em todos os momentos de nossas vidas.
Analiso a experiência, que é a resultante cognitiva de nossas vidas passadas, e nela
encontro três elementos. Denomino-as Categorias. (...) Lembre-se, apenas, mais uma
vez e de uma vez por todas, que não pretendemos significar qual seja a natureza
secreta do fato mas, simplesmente, aquilo que pensamos que ela é. Algum fato
existe.” (CP 2.84).
pelo menos dois artigos historicamente significativos referentes às categorias. O
primeiro foi escrito em 1867, quando Peirce contava seus 28 anos. O artigo, chamado Por
uma nova lista de Categorias’, foi resultado de dois anos de estudo intenso. Desconfiado da
insistência da tríade, Peirce labutou sobre elas durante quase treze anos, até escrever um
novo e mais completo artigo, intitulado ‘Um, Dois, Três: Categorias fundamentais do
pensamento e da natureza’. A partir daí, Peirce dedicaria mais trinta anos a comprovações
empíricas sobre as categorias (ou modo pelas quais às coisas apresentam-se à consciência,
como Ge-Stell
44
), em rios ramos do conhecimento. Por fim, Peirce formalizaria uma
terminologia para elas: Primeiridade, Secundidade, Terceiridade.
A primeira está aliada às idéias de acaso, indeterminação, frescor, originalidade,
possibilidade, espontaneidade, potencialidade, qualidade, ‘presente’, imediato, mônada;
a segunda, à idéia de força bruta, ação-reação, conflito, ‘passado’, esforço, resistência,
díada; e é a terceira categoria fenomenológica que irá corresponder plenamente à
definição de signo genuíno como processo relacional a três termos, que implica mediação e
processo, crescimento contínuo (Santaella, 2005:8). As categorias não são estanques ou
44
Utilizo a expressão alemã Stell, Ge-stell, segundo o seu sentido heideggeriano e a partir dos desdobramentos
de Lacoue-Labarthe (2000:63-68). A expressão é de difícil tradução, mas a podemos entender principalmente
como radical de palavras ligadas à ‘instalação’ (Darstellung, apresentação, exposição; Vorstellung,
Representação; Gestalt, Idéia; Herstellen, produção, instalação; Aufstellen, ereção). Ge-stell costuma ser
traduzida como ‘armação’, nos textos de Heidegger sobre a técnica (1997, 2001), mas, como diz Lacoue-
Labarthe, a questão não é saber como traduzir Ge-stell, e sim saber como ela funciona e para que serve
(2000:64). Heidegger a relaciona a uma estátua (ou estela) erigida num templo, que, no sentido da Poiésis,
“deixa aparecer no desvelamento o que está presente” (1997:67). Lacoue-Labarthe a relaciona fortemente à
figura, à Gestalt, mas, igualmente, ao que ‘está de pé’, stands’, ao ereto, estável, estático (:72, 73). Ao erigir-se
(stell), o signo instala-se e produz (herstell) desvelamento, ao mesmo tempo possibilita dissimulação (verstell) e,
sobretudo, apresenta-se (darstell), muito mais do que representa (vorstell).
45
absolutas, mas estão intrincadamente relacionadas, de modo que o ‘terceiro’ pressupõe
um ‘segundo’, o ‘segundo’ pressupõe um ‘primeiro’ e o ‘primeiro’ é totalmente livre.
Segundo Peirce, qualquer relação superior a três pode muito bem ocorrer, mas sempre
poderá, ao final, ser decomposta em tríades.
Relacionei três citações a respeito das categorias, que definem bem a compreensão
peirceana acerca de suas próprias observações da experiência:
a. “Aqui, portanto, temos indubitavelmente três elementos radicalmente diferentes
da consciência, estes e nenhum outro. E eles estão evidentemente ligados à
idéia de um, dois, três. Sentimento imediato é a consciência do primeiro; o
sentido da polaridade é a consciência do segundo; e consciência sintética é a
consciência do terceiro ou meio” (CP 1.382).
b. “As três categorias fundamentais do fato são: fato sobre um objeto (qualidade);
fato sobre dois objetos (relação); fato sobre vários objetos (síntese ou
mediação)”
45
(CP 1.371).
c. “A Categoria Primeiro é a Idéia daquilo que é independente de algo mais. Quer
dizer, é uma Qualidade de Sensação; Categoria Segundo é a Idéia daquilo que é,
como Segundo para algum Primeiro, independente de algo mais, em particular
independente de Lei, embora podendo ser conforme uma lei. O que é dizer: é
Reação como elemento do fenômeno; Categoria Terceiro é a Idéia daquilo que faz
de um Terceiro, ou medium, entre um Segundo e seu Primeiro. Quer dizer, é
Representação como um elemento do fenômeno” (CP 5.66)
46
.
Sobre a primeira consciência’, Peirce diz que ela é puro sentimento, consciência
que pode ser compreendida como um instante no tempo, consciência passiva da qualidade,
sem reconhecimento ou análise. Sobre a ‘segunda’, Peirce diz que esta é uma “consciência
de interrupção no campo da consciência”, sentido de resistência, de um fato externo; e à
‘terceira’ ele atribui a consciência sintética, reunindo tempo, aprendizado, pensamento
(CP 1.377), isto é, inteligibilidade e pensamento sígnico. Como exemplo bem simples de
como tais categorias podem ser identificadas no mundo, imaginemos:
Azul a cor azul, como tal, sem estar relacionada a nenhum outro elemento, é
uma qualidade, uma potencialidade, um sentimento: é Primeiridade, aparece à
consciência como um primeiro.
O azul na parede de um quarto aparece, aqui, a noção da resistência, do
existente: é Secundidade, consciência de um segundo, de um momento único e
singular.
45
Mais tarde identificados com os termos ‘sentido’, ‘significado’, ‘significação’, utilizados por Lady Welby,
amiga e correspondente de Peirce, em verbete para a Encyclopaedia Britannica. Os conceitos foram comentados
por Peirce, em cartas e em artigos, ora considerando-os “fruto de uma prodigiosa sensibilidade de Percepção”,
com a qual não poderia rivalizar, ora afirmando que se tratava de uma concepção tão imperfeita quanto a dele
próprio (Teixeira Coelho, 1996:71).
46
É notável a semelhança formal entre essa definição das Categorias e a sua mais ampla definição de signo.
46
Quarto azul – o que vem à consciência é uma síntese, um conceito, uma
mediação: Terceiridade, signo genuíno que, por sua vez, remete-se a outros (o
azul na parede, a cor azul, o quarto, etc).
Anoto, aqui, para uso futuro e na compreensão dos signos nas pedras em toda a sua
extensão, o modo pelo qual percebo que tais categorias serão úteis. As ‘consciências’ de
qualidade, relação e mediação (um primeiro, um segundo e um terceiro) orientam não a
mera classificação dos signos, mas a forma pela qual eles (nos) (a)parecem e, ainda, de
que modo agem ou podem agir.
O breve tempo dedicado à tentativa de compreensão das categorias justifica-se
porque esta é a medula de todo o pensamento peirceano. Obviamente, por tão gerais, as
categorias devem ser vistas e estudadas, e mesmo aplicadas, segundo várias camadas de
interação e complexidade.
Semiótica - A Semiótica, segundo Lucia Santaella, “é a ciência que tem por objeto
de investigação todas as linguagens possíveis, ou seja, que tem por objetivo o exame dos
modos de constituição de todo e qualquer fenômeno como fenômeno de produção de
significação e sentido (Santaella, 1983:13). Ela se refere, obviamente, à semiótica tal
como Peirce a concebe: “Em seu sentido geral”, diz ele, “a lógica é (...) apenas um outro
nome para semiótica, a quase-necessária, ou formal, doutrina dos signos” (CP 2.227). Não
cabe aqui uma distinção exaustiva das várias compreensões e escolas da semiótica. Sempre
que me refiro a Semiótica, neste trabalho, refiro-me exclusivamente à compreensão
peirceana.
O campo de abrangência da semiótica proposta por Peirce é, portanto, bastante
vasto, porém não indefinido. Santaella a considera uma “filosofia científica da linguagem”
(Santaella, 1983:22), uma “teoria lógica e social do signo” (2005:9) e, ainda, uma “teoria
sígnica do conhecimento (2005:9). Se tenho certa desconfiança em relação à primeira
afirmação cuja perfeita compreensão pode ocorrer se estivermos de posse plena das
idéias peirceanas acerca do que sejam filosofia’, ‘linguagem’ e ‘ciências’ –, sou
amplamente favorável às duas seguintes. Destaco, na segunda definição, a expressão
‘teoria social do signo’. Aqui temos uma noção de signo que não se restringe somente a um
ambiente privado e cognitivo, mas também a uma vida em relação
47
. Depreende-se que é
possível e, nesse caso, necessário também entender os signos como Stell
48
em redes
47
A começar, como veremos adiante, pela própria definição de Signo, fundada primordialmente na relação entre
este, um Objeto e um Interpretante.
48
Ver nota 44.
47
sociais, isto é, como agentes integrantes de uma rede
49
. Em que medida tal compreensão
pode ser levada a cabo é o que veremos a partir dos exemplos baniwa. No entanto, e para
meus propósitos neste trabalho, prefiro a terceira definição, como conceituação da
intenção peirceana. Para Peirce, não existiria mesmo outra forma de se abordar o
conhecimento senão por meio de uma teoria sígnica.
Pensamento, mente Assumir a afirmação de Santaella implica entender a
concepção de Peirce a respeito de termos problemáticos, tanto em sua época quanto
atualmente, tentando estabelecer o que o autor entende por ‘razão’, ‘pensamento’,
‘mente’, e de que modo esses termos relacionam-se com a produção de signos e com a
própria noção de semiose. Tal ‘dever de casa’ é essencial à compreensão da semiótica
peirceana, principalmente para os processos de significação, que Peirce tenta por todos os
modos detalhar formalmente.
Para Peirce, ‘pensamentonão está necessariamente ligado a um ‘cérebro’. “Surge
no trabalho das abelhas, nos cristais e em todo o mundo puramente físico”, diz ele (5.550).
Não apenas o pensamento está no mundo orgânico, como também ali se desenvolve. Mas
Peirce assegura que, se não pode haver um Geral sem Casos que o corporifiquem,
tampouco pode haver pensamento sem signos. Peirce atribui, aqui, a signo uma definição
bastante ampla, muito próxima de suas intenções primordiais, antes de, como ele mesmo
diz, ‘conceder’ algumas reduções visando à compreensão dos leitores. Se, assim,
‘pensamento’ pode bem existir sem um cérebro, a produção e compreensão de signos
igualmente pode prescindir da pessoa humana. Nesse caso, Peirce aproxima-se
grandemente da idéia mais larga de ‘representação’ (Vorstellung) schopenhaueriana
(Schopenhauer, 2001) relacionada ao ser objeto para um sujeito qualquer, inclusive não-
humano –, embora em outro lugar (5.66) Peirce se refira apenas à Terceiridade como
elemento de representação.
Teixeira Coelho ressalta que, em Peirce, termos como ‘mente’ ou ‘pensamento’
devem ser entendidos numa perspectiva mais ampla, Assim, para ele, ‘mente’ pode ser
entendida como semiose’, ou processo de formação de significações; ‘pensamento’ pode
muito bem ser substituído por ‘signo’ ou ‘símbolo’ ou mesmo ‘interpretante’ (1996:53). O
método peirceano, a partir daí, consistia, segundo Teixeira Coelho, em “desenvolver uma
concepção de mente derivada de uma análise do que está implícito na tendência humana
para a procura da verdade
50
” (idem).
49
Latour (2005), Gell (1998).
50
‘Verdade’, para Peirce, apresenta-se como uma atividade dirigida a um objetivo, capaz de permitir a passagem
de um estado de insatisfação para um estado de satisfação (dúvida crença). Esse movimento é cíclico,
dinâmico e se ‘retroalimenta’ (crença dúvida) (CP 5.383-407 e 5.358-387).
48
John Deely (1990) avança na proposta de Peirce acerca da possibilidade do signo
sem que haja necessariamente o consórcio da razão ou da pessoa humana. Ele parte da
afirmação segundo a qual o que es no cerne da semiótica é a constatação de que “a
totalidade da experiência humana, sem exceção, é uma estrutura interpretativa mediada e
sustentada por signos” (Deely, 1990:22). Adiante, ele refina essa afirmação, dizendo que o
ponto de vista semiótico está alicerçado na constatação de “uma única forma de atividade
na natureza”, a semiose (:29). Por fim, Deely chega a propor que todo método que revele
algo sobre o mundo, ou algum aspecto do mundo em seu campo de investigação, é ele
mesmo um método semiótico (:29), entendendo a semiótica como um ponto de vista
semiótico, isto é, como uma perspectiva “que emerge de um reconhecimento explícito
daquilo que todo método de pensamento ou de pesquisa pressupõe” (:29). Assim, para ele,
qualquer método deixa de ser semiótico na medida em que “trai seu caráter de método”,
ao traçar os signos como se fossem meros objetos. Ele exemplifica tais atitudes como as
tentativas de uma ‘teoria da verificação de significados’.
Em artigo sobre os tipos de raciocínio (5.265), Peirce estabelece alguns princípios,
como conclusões de uma longa série de argumentos:
Não temos poder algum de introspecção; todo conhecimento do mundo interno
deriva-se, por raciocínio hipotético (abdução), de nosso conhecimento dos fatos
externos.
Não temos poder algum de intuição; toda cognição é determinada logicamente
por cognições anteriores.
Não temos poder algum de pensar sem signos;
Não temos concepção alguma do absolutamente incognoscível.
Mesmo a autoconsciência, para Peirce, é expressa em signos. “Quando pensamos”,
diz ele, “nós mesmos, tal como somos naquele momento, surgimos como um signo”
(5.283). Esse signo, e qualquer signo, tem como tal três referências: é um signo para algum
pensamento que o interpreta, é um signo de algum objeto ao qual, naquele pensamento, é
equivalente e, por fim, é um signo em algum aspecto ou qualidade que o põe em conexão
com um objeto (5.283).
Da proposição que afirma que não podemos pensar sem signos, segue-se que todo
pensamento deve necessariamente endereçar-se a algum outro pensamento, deve mesmo
determinar outro pensamento, e essa, para Peirce, é a essência do signo (5:253). Peirce
concebe o pensamento, portanto, como uma semiose contínua, isto é, uma cadeia
contínua e infinita de signos que se referem a outros signos e que, por sua vez, são por
outros signos referidos. “Signo algum pode ser aparecer sozinho, independentemente de
outros signos”, diz Elizabeth Walther-Bense:
49
“Não é possível falarmos de um signo isolado, singular, pois, se todo signo
deve ser interpretável, isso significa que ele é explicável por meio, pelo menos, de
um outro signo. Mas, tendo em vista que a explicação de um signo é, por sua vez,
ainda um signo, o qual, por sua vez, pode ser explicado, as explicações sucedem-se ao
infinito” (Walther-Bense, 2000:6).
Depois de um pensamento qualquer, “a corrente de idéias flui livremente” segundo
leis de associação mental, pela qual cada pensamento sugere algo ao pensamento que se
segue, isto é, é também um signo para este último (CP 5.283). Ainda que o pensamento
possa a qualquer momento ser interrompido, por extinção gradual, Peirce lembra que,
além do motivo central do pensamento num momento qualquer, “há uma centena de
coisas em nossa mente, às quais apenas uma pequena fração de atenção ou consciência é
atribuída” (idem). Assim, ainda que se tenha a impressão de que o fluxo de pensamentos é
interrompido de quando em quando, nenhum aparecimento repentino de uma nova
experiência é um caso instantâneo. “Portanto, não há exceção à lei de que todo signo-
pensamento é transladado para ou interpretado num signo-pensamento subseqüente”, diz
Peirce, “a menos que todo pensamento tenha um fim abrupto e definitivo na morte”
(5.284).
Peirce diz, ainda, que na medida em que um signo denota um objeto, ele não exige
uma Razão particular (a capitular faz parte do texto peirceano) por parte de seu
intérprete. Segundo ele, para se ler um signo e distinguir um signo de outro, o que se
requer são “percepções delicadas e familiaridade com aquilo que são os concomitantes
usuais de tais aparências, e com aquilo que são as convenções do sistema de signos” (CP
2.181). Desse modo, a compreensão de signos é uma certa operação mental, mesmo que,
por ‘mente’, Peirce se refira por vezes a uma inteligência coletiva do tipo enxame de
abelhas, e por outras a uma indistinção ‘social’ denominada por ele quase-mente. No
entanto, essa operação não acontece necessariamente com o consórcio da razão, operação
restrita a apenas uma certa espécie de signos, aqueles relacionados à Terceiridade.
Há, assim, um certo ‘movimento’ indiscutível, diante da profusão de signos nas
rochas da beira do rio na Escola Pamáali. Há, certamente, mentes individuais gerando
interpretantes singulares, produzindo sentidos, sendo afetadas pelos signos, exercendo a
atividade de ‘prosseguir rumo à verdade’, alternando dúvida-crença-dúvida à medida que
‘compreende’ ou conhece. E há, por outro lado, a conformação de uma ‘mente coletiva’,
uma (no dizer de Peirce) ‘quase-mente’, segundo a qual aqueles signos dizem algo ou
agem de tal maneira. As altercações entre a ‘semiose individual’ de um estrangeiro que
chega, ou de um jovem baniwa que pela primeira vez pisa na escola para sua aulas iniciais
e esta compreensão social estabelecida (mas não estática e nem definitiva) se dão de
modo invisível, porém em constante tensão.
50
4.2. Ação dos signos, agência
Ao levarmos a sério a expressão de Peirce, segundo a qual “o universo está repleto
de signos, se não for composto exclusivamente por eles” (citado por Deely,1990:105), e
considerarmos que tais signos não são mudos ou inertes, isto é, mesmo que não haja um
sujeito humano a presenciá-los, eles dizem e agem, somos forçados a admitir outros tipos
de semiótica. John Deely parte daí e de trabalhos de autores como Thomas Sebeok, Martin
Krampen e Rulon Wells, todos vinculados a estudos sobre a biossemiótica, para observar e
estabelecer, fundado em bases peirceanas e além da conhecida antropossemiose, a
zoossemiose aquela que ocorre no mundo animal –; a fitossemiose semiótica da vida
vegetal ou semiose da matéria viva em geral –; e a fisiossemioseação própria do signo
presente na natureza física mesma, além dos limites da matéria orgânica ou mesmo antes
de seu advento –; (Deely, 1990:47-51). As duas primeiras são ‘semioses cognitivas’, que
dependem da cognição, enquanto as outras duas dela prescindem.
Deely trata ainda de uma certa agência dos signos, ao dizer que aquilo que os
estudos semióticos investigam é ação, a ação dos signos (:40). Segundo ele, este é um tipo
peculiar de ação, porque não é diretamente produtora de mudanças, mas sempre mediada.
Tal compreensão nos aproxima muito, a princípio, da idéia de ‘meio’ conduzida por
Marshall McLuhan nos anos 60
51
e, logo a seguir, da idéia de ‘mediadores criativos’ de
Bruno Latour e de sua idéia de agência. Latour assegura que a pergunta mais relevante a
se fazer, a respeito de qualquer agente (humano ou não-humano, o que inclui um signo) é:
ele faz diferença no curso das ações de outros agentes ou não? alguma forma de se
detectar essa diferença? (Latour, 2005:71). Assim, um ‘ator’, na expressão hifenizada
‘ator-rede’ (um signo-rede?), não é apenas a fonte de uma ação, mas “o alvo móvel de um
vasto elenco de entidades que se encaminham para ela” (Latour, 2005:46). Talvez seja
essa e não a proposta por Kockelman
52
(2007) a melhor formulação de agência possível
de um signo.
No entanto, parece que nos adiantamos um pouco, e torna-se necessário um breve
passo atrás, para retomarmos o que Peirce, exatamente (ou tão exatamente quanto
51
Em Understanding Media, seu trabalho mais conhecido, McLuhan profere uma sentença premonitória, com
ênfase minha: “O meio é a mensagem, porque é o meio que configura a forma e a proporção das ações e
associações humanas” (McLuhan, 1988:23)
52
Paul Kockelman, em seu artigo intitulado Agency – The relation between meaning, power and logic (2007),
concebe ‘agência’, a partir de “uma teoria peirceana do significado”, como uma forma de facilidade social e
semiótica, entendida como multidimensional, graduada e distribuída. Agência, assim, é pensada como “o
controle relativo e flexível de meios para se chegar a fins” (:375). Kockelman a distingue entre os níveis
‘residencial’ (ligada ao controle da expressão de um signo) e ‘representacional’ (ligada à tematização de um
processo sígnico).
51
possível) entende por ‘Signo’. Compreender um signo na pedra (moolito, trompa, peixe) e
tudo o que o envolve, depende de compreender o que seja (e como age) um signo. A
parada nos parece por demais demorada, a viagem está, por momentos, interrompida,
mas – não nos esqueçamos – estamos em tempos baniwa
53
.
4.3. O signo como tríade: Signo | Objeto | Interpretante
Peirce apresenta cerca de 30 definições de signo, nos Collected Papers e perto de
uma centena em seus manuscritos inéditos, segundo Joseph Ransdell, citado por Santaella
(2005). Tais definições são apresentadas de acordo com as circunstâncias próprias de cada
artigo, em diversos textos. Assim, temos desde definições mais amplas (as que ele
assumidamente mais gostava) até definições um tanto estreitas. Foram estas últimas que
acabaram alcançando a compreensão dos leitores e são essas, igualmente, que mais
aparecem nas citações acadêmicas. Segundo ele mesmo, tais tentativas são ‘colheradas de
sopa para Cérbero’, concessões ao entendimento comum.
Peirce tinha em mente conceber uma definição de signo a mais geral, abstrata e
formal possível, capaz de abranger todo e qualquer fenômeno que revele um
comportamento passível de se enquadrar na relação lógica estipulada por essa definição
(Santaella, 2005:13). Para economizar palavras, simplesmente listo algumas dessas
definições. A primeira é uma sistematização de Santaella, interpretando o que ela acredita
ser o senso comum sobre Peirce: ”Signo é alguma coisa que representa algo para alguém”
(Santaella, 2005:11)
54
.
Cito três definições de Peirce, da mais amplas à mais restrita:
“Um Signo é qualquer coisa que está relacionada a uma Segunda coisa, seu
Objeto, com respeito a uma qualidade, de tal modo a trazer uma Terceira coisa,
seu Interpretante, para uma relação com o mesmo Objeto, e isso de tal maneira a
trazer uma Quarta para uma relação com aquele objeto da mesma forma, ad
infinitum. Se a série é rompida, o Signo, nesse momento, perde seu caráter
significante perfeito” (CP 2.292).
53
O espaço é medido em tempo, e tudo é meio relativo. “Qual é a distância daqui a São Joaquim?”, pergunto.
“Quatro dias de voadeira. Com rio seco e motor quarenta, se não chover muito. Se não, bota aí mais um dia”.
Anedota sobre o tempo baniwa: Certo dia, esperava André para uma reunião, marcada para as 14 horas. Ele
chegou às 14:45. Brinquei, dizendo que os Baniwa tinham fama de pontuais, mas que ele estava muito atrasado!
E ele devolveu: “Contamos o tempo pelo relógio do sol, que não tem ponteiro de minutos. Se ainda não são três
horas, quer dizer que são duas!”.
54
Santaella lembra, numa nota à Teoria Geral dos Signos (2005), a dificuldade de tradução do inglês para o
português, principalmente em relação à linguagem precisa de Peirce. O exemplo da expressão ‘stands for’ é
significativo. A definição peirceana diz: “A Sign stands for something to the Idea which it produces, or modify
(CP 1.339). A expressão é quase sempre traduzida por “está para”, ou “representa”, e quer dizer, segundo
Santaella, algo mais próximo de “estar no lugar lógico de”. Eu tendo a entendê-la com sentido próximo ao da
Ge-stell alemã (ver nota 44). Outra dificuldade nessa frase, nota-se, é a difícil distinção necessária no jogo de
for’ e ‘to’.
52
“[Um signo é] qualquer coisa que conduz uma outra (seu interpretante) a referir-
se a um objeto ao qual ela mesma refere (seu objeto), de modo idêntico,
transformando-se o interpretante, por sua vez, em signo, e assim sucessivamente
ad infinitum” (2.303).
“Um signo [...] é aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para
alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria na mente dessa pessoa um signo
equivalente ou, talvez, um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado
denomino interpretante do primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu
objeto. Representa esse objeto não em todos os aspectos, mas com referência a
um tipo de idéia que eu, por vezes, denominei fundamento do representamen
55
(2.228) [ênfases e capitulares do autor].
Um signo é uma relação triádica, é uma espécie de terceiro. E “um terceiro é algo
que põe um primeiro em relação com um segundo” (Santaella, 2005:12). Um signo genuíno
é a relação entre ele mesmo (Signo), seu Objeto e seu Interpretante. O Interpretante não é
simplesmente um intérprete, mas um outro signo gerado (um Terceiro, mediação),
produzido pelo signo. O Interpretante é ele mesmo um (novo, outro) signo que coloca o
Objeto em relação a outro Interpretante possível. Esse processo é o que Peirce denomina
de semiose ou semiose infinita, entendida como uma relação entre relações. Um signo
stands for, está para ‘seu’ objeto e ‘seu’ interpretante de modo a trazer o interpretante a
uma relação com o objeto, correspondendo à sua relação mesma com tal objeto.
O Signo, para Peirce, não é a articulação de três termos, mas a própria relação que
estabelece. “Somente num processo analítico (didático) pode o signo ser considerado como
parte de uma relação. Na verdade, ele é toda a relação, e não qualquer relação, mas uma
em que a ordem dos três [termos] tem a maior importância” (Teixeira Coelho, 1999:67,
ênfase do autor). Assim, para Peirce, o signo não ‘contém’ elementos, pois ele só se define
de modo relacional, constituindo-se como a própria relação triádica que estabelece entre
ele mesmo, seu Objeto e seu Interpretante. No exemplo da palavra ‘cão’, um signo
genuíno (que é sempre relacionado à Terceiridade) seria a relação entre o Signo (a palavra
‘cão’) um Objeto (um cão)
56
e um Interpretante (uma idéia, outro signo, de cão’). Esse
interpretante assume o papel de um novo signo, ele mesmo determinando um Objeto (cão,
animal) e um Interpretante (exemplo: ‘animal doméstico’). Esse novo Interpretante, por
sua vez, assume o papel de Signo em relação a outro Objeto e outro Interpretante, e assim
por diante (Figura 16).
55
Omito, neste trabalho, por irrelevante, a distinção peirceana entre Signo e Representamen. A diferença,
segundo Peirce, entre o que ele chama de ‘signo’ e o que chama de representamené que “Um signo é um
Representamen com um Interpretante mental” (2.274), isto é, um representamen prescinde da cognição ou de
qualquer atividade mental, embora, como vimos, não prescinda de uma ‘mente’ ou de um ‘pensamento’.
56
Objetos são entidades abstratas por definição – e, portanto, também uma espécie de signo –, e não devem ser
confundidos com ‘coisas’ existentes. Kockelman os denomina correspondence-preserving projection a partir de
todos os interpretantes de um signo (2007:378).
53
Uma representação gráfica dessas relações, na qual a linha pontilhada indica uma
relação mediada, seria algo como:
Figura 16
Benjamin Lee lembra que não relação direta signo-objeto do tipo, por
exemplo, significante-significado, como em Saussure (1973) na compreensão peirceana.
Ao contrário, um signo media a relação entre ele mesmo e um objeto de modo a produzir
outro signo que, por sua vez, produz outro signo, e por aí vai (1997:96).
Peirce esforça-se por definir bem os tipos de Objeto e de Interpretante. Enquanto o
Signo, em si, está ligado à Primeiridade e, portanto, é livre de determinação, o Objeto
está ligado à Secundidade, e por isso pode ser categorizado em dois tipos:
Objeto Imediato (Primeiridade): tal como o signo o faz aparecer, tal como o
signo a ele está conectado, tal como o signo o torna conhecível este liga o
signo ao Objeto Dinâmico.
Objeto Dinâmico (Secundidade): o Objeto nas relações em que um estudo
ilimitado e final o mostraria, isto é, um possível.
O Objeto Imediato e, principalmente, o Objeto Dinâmico, devem ser considerados
como “condições pressupostas para a interpretação” (Santaella, 2005:60). Assim, temos
um conjunto de informações, eventos, pessoas, relacionado ao signo.
54
O Signo, então e ao mesmo tempo, gera um Interpretante, em relação com esse
Objeto, isto é, o Signo coloca esse Objeto em relação com um Interpretante (ou inúmeros).
O Interpretante é ele mesmo e também um signo. Assim, o Interpretante, vinculado à
Terceiridade, aparece em três tipos, como se segue:
Interpretante Imediato: qualidade da impressão ou interpretação que um signo
está apto a produzir, isto é, sua interpretabilidade peculiar, antes de alcançar
qualquer intérprete. (Primeiridade)
- Assumindo a terminologia proposta por Lady Welby, Peirce identifica esse
tipo de Interpretante como sendo o ‘sentidodo signo, isto é, aquilo que o
signo estaria apto a produzir em qualquer um. Exemplo: o sentido atribuído
a uma palavra, num verbete de dicionário: ‘cão’ – animal doméstico, etc
57
.
Interpretante Dinâmico: efeito realmente produzido na mente pelo signo.
Efeito real que o signo de fato determina. Aquilo que é experimentado em cada
ato de experimentação, em cada um diferente de qualquer outro. Um evento
real e singular. (Secundidade)
- Comparativamente a Lady Welby, este é o significado’ do signo, aquilo
que o signo realmente e de fato produz em alguém. Exemplo: o significado
‘cão’ determinado pelo objeto ‘cão’, aqui nessa rua escura.
Interpretante Final: Maneira pela qual o signo tende a se representar. Efeito
que um signo produziria numa mente em circunstâncias segundo as quais ele
expressasse seu efeito pleno. Resultado interpretativo ao qual todo intérprete
está destinado a chegar, se o signo for suficientemente considerado, efeito
último do signo, de natureza habitual e formal (lei). (Terceiridade).
- Esta, por fim, seria a ‘significação’ do signo, isto é, aquilo que o signo
provavelmente produziria em todos. Exemplo: diante desse cão, nessa rua
escura, o que a significação desse encontro pode representar para mim, esta
ou aquela imagem de natureza psicológica ou social, em função da qual
minha reação será esta ou aquela.
Os Interpretantes Imediato e Final são gerais e abstratos. O Imediato é pura
potencialidade, interpretabilidade ainda não realizada, inscrita na natureza do signo, o
teor daquilo que o signo é capaz de significar. O Final seria o limite último (se isso fosse
possível) dessa interpretabilidade realizada. O Dinâmico é interpretante produzido,
57
Exemplos de Teixeira Coelho (1996:73).
55
concretização singular e particular, atualizações mais ou menos adequadas da
interpretabilidade do signo rumo ao ideal ao qual o signo tende.
Ainda temos um pouco mais a entender acerca da concepção peirceana sobre o
signo, mas os registros dos petroglifos da Escola Pamáali foram feitos, algumas histórias
ouvidas, e a voadeira está pronta e carregada para a próxima estação, a temível cachoeira
de Jurupari, lugar de nascimento do ser mais terrível do universo cosmogônico baniwa:
Kowai, Jurupari.
5. Jurupari: Kowai e as flautas
Cachoeira de Jurupari
A cachoeira de Jurupari é um longo conjunto de rochas escuras e irregulares que
emergem de um lajedo central. O lugar produz uma sensação opressiva, e os índios a
atravessam quase em silêncio. No meio da cachoeira, uma grande elevação negra e, ao
fundo, à direita, nota-se muitos matapis (armadilhas para peixes) do último período de
cheia, danificados e encostados às altas rochas próximas à mata (Figura 17). ‘Jurupari’ é o
termo em língua geral para Kowai. As histórias dizem que foi nesse local que nasceu o
terrível filho de Ñapirikoli. Segundo o narrador Alberto Antonio Lourenço
58
, de Jandu
Cachoeira, Kowai foi fecundado por seu pai Ñapirikoli no ventre de sua tia Amaro,
indiretamente, por meio do sopro de um cigarro fabricado pelo irmão de Ñapirikoli,
Dzooli
59
.
58
Sistematização a partir da história contada a mim, em Jandu Cachoeira, e também descrita em Cultura, escola,
tradição: Mitoteca na Escola Baniwa (Garnelo et al, 2004/2005)
59
Para Ricardo Fontes, de Ucuqui, em relato compilado por Robin Wright (1999b), Kowai nasceu do
pensamento de Ñapirikoli. “Seu pensamento apareceu e penetrou nela [Amaro]. Não foi seu pênis que penetrou
nela”, diz.
56
Figura 17
Na hora do parto, Amaro sentiu muita dor, e desmaiou. Quando Amaro deu à luz,
Ñapirikoli viu que o filho era um ser terrível, e o escondeu na água. Amaro voltou à
consciência, perguntou pelo filho, e Ñapirikoli, pegando o “lugar de assento” de Kowai (a
placenta) respondeu: “Está aqui o seu filho”. A mãe não acreditou, achou que Ñapirikoli
havia escondido o filho. Ela pegou a placenta e viu que não tinha olhos nem boca, e que o
pedaço do fio do umbigo de Kowai ainda estava sangrando. Ela disse: “Esse não é o meu
filho”. E Ñapirikoli respondeu que sim, que era o filho dela, que ela havia desmaiado para
não ver o parto, porque o filho era diferente. Amaro, então, o mandou jogar no rio, e
Ñapirikoli assentiu: “Ele não será gente para você”. Assim que Ñapirikoli jogou a placenta
no rio, ela se transformou em arraia (yamaro). Ambos viram que as novas gerações
haveriam de supor que se tratasse de um animal comestível, mas não, este seria um animal
sem espinha, mas com ferrão e veneno.
Kowai cresceu longe das vistas da mãe, foi levado para Jandu em outras versões:
subiu aos céus - e tornou-se uma criatura imensa, de aspecto monstruoso. Essa é a origem
de Kowai. Seu Alberto conta, ainda, que um dia Amaro viu uma arraia comendo minhoca na
beira do rio e a pegou. Vendo que ela tinha olhos, boca e buracos no ventre, perguntou: “É
você mesmo, meu filho?”. A arraia respondeu que sim, que era aquele que Ñapirikoli havia
jogado no rio, mas que não era seu filho verdadeiro. Este estava vivo e fora embora.
“Procure por aquele que escondeu seu filho de você”, disse a arraia, acrescentando: “Ele
(Ñapirikoli) a escondeu porque a criança não era bem uma pessoa, quer dizer, era uma
pessoa, mas muito diferente e perigosa, e por isso as mulheres não o poderiam ver, porque
ele é todo veneno”. Esta é a origem de Kowai, segundo seu Alberto. Isso tudo aconteceu
ali, na cachoeira de Jurupari.
O narrador Marcelino Cândido Lino, de Tamanduá, diz:
“Quando Kowai nasceu, era imenso, grande. Em Jurupari tem uma lagoa, onde
Kowai deitou. Em Jurupari, onde Kowai nasceu, uma pedra bem grande, que era a
mãe de Kowai. Ali ela sentiu a dor do parto. Hoje em dia, Kowai é uma flauta na qual
as pessoas acreditam. Os velhos não ‘publicavam’, era confidencial e secreto, não se
57
podia falar para outras pessoas. Se alguém falasse de Kowai no meio das pessoas, eles
o matavam com veneno.”
5.1. Remos? Casas? Armadilhas?
Em vistas de tais acontecimentos, muitos desenhos nas pedras em Jurupari. Em
uma grande rocha, que se eleva uns cinco metros acima do lajedo, encontramos oito
petroglifos, e ainda uma figura isolada na rocha ao lado. Um outro conjunto de oito signos
encontra-se espalhado na grande elevação de pedra negra ao centro da cachoeira, ‘a mãe
de Kowai’, segundo seu Marcelino. Quando chegamos, quase todos os signos estavam
aparentes e com os sulcos preenchidos, de modo pouco caprichoso, com tinta branca,.
Ninguém, daqueles que estavam comigo, soube dizer quem os havia pintado, ou quando.
Havia, na grande pedra, pelo menos duas figuras que eu relacionei diretamente à
imagem de Kowai (Figuras 18 e 19), e duas que me pareceram estranhos animais. Seu
Marcelino diria, mais tarde, olhando as figuras de meu bloco de desenhos, que muitos
animais haviam nascido junto com Kowai, e que hoje desapareceram
60
. Ñapirikoli os
desenhou para que as novas gerações soubessem como eles eram. Sobre os desenhos de
Kowai, diz o seu Marcelino:
“Todo lugar onde tem desenhos nas pedras é um lugar por onde Ñapirikoli
passou. Ele morou um tempo em Jurupari [Tshepani], tem uma casa dele lá. Ali,
ele desenhou jurupari, Kowai, a flauta. Foi em Jurupari que Kowai nasceu. Esse é o
mesmo que Satanás. Ele tem tudo de coisas ruins e venenos, e sopros [benzimentos
para causar doenças e estragos]. Foi ele que trouxe todo tipo de doença.
(...) Ñapirikoli pegou o banco dele, sentou e ficou olhando. Depois voltou e
desenhou na pedra aquele que ele viu, em forma de preguiça
61
. Ele fez o desenho
enquanto a mãe de Kowai, Amaro, estava desmaiada. Ele ficava desenhando a forma
de Kowai, a imagem de Kowai, porque sabia que iria matá-lo. Ele então desenhava
justamente para lembrar, para recordar como Kowai era, antigamente.
(...) De lá, foram para Jandu, onde Ñapirikoli matou Kowai. Lá, tem vários
desenhos com a forma de Kowai, aquele que Ñapirikoli matou. Assim ele foi
desenhando nas pedras, descendo rio abaixo.”
60
Informantes de Ortiz (1999) dizem que, quando Kowai nasceu, nasceram junto com ele muitos yoopinai,
‘seres sem umbigo’. Seriam esses estranhos seres desenhados por Ñapirikoli nas pedras de Jurupari?
61
Kowai é associado à preguiça, por causa dos pelos e porque, ao nascer, foi amamentado por uma outra Amaro,
a preguiça (Wright, 1999:53).
58
Figuras 18 e 19: representações de Kowai
Seu Marcelino relaciona os desenhos na pedra diretamente à memória, não para
uma ‘memória daquele que viu’ como para uma ‘memória daqueles que não viram’. Em
relação às gerações futuras, os desenhos funcionam como uma ‘memória de um tempo
primordial’ não conhecido, para que estas conheçam o que um dia foi, e como foi. Não
desvinculo, ainda, os conceitos de ‘memória’ e ‘conhecimento’. Prefiro, antes, falar de
uma ‘memória do que não se viu’, para voltar ao assunto um pouco adiante. Por outro
lado, o desenho de Kowai serve para que o próprio Ñapirikoli se lembre de algo que ele viu
e que bem sabe está fadado a desaparecer, ao menos segundo aquela forma até então
conhecida
62
.
Os pequenos signos das rochas à direita trouxeram um certo embaraço. Havia, ali,
um conjunto de seis signos, lado a lado, que me remeteram a imagens diversas (Figura 20).
Tais signos eram muito semelhantes a alguns inscritos na pedra negra central. Todos
tinham um formato cuneiforme, e dispostos em pares. Sem conhecer a relação com as
histórias (a ‘quase-mente’ social), eu tentava ‘adivinhar’ (por minha ‘mente’ singular) seus
significados, ou melhor, eu tentava defini-los a partir daquilo com o qual eu entendia que
eles pudessem ‘se parecer’. E eles se pareciam’ com um par de remos, ou um par de
casas, ou um par de matapis (armadilhas). Se eu os visse grafitados num muro de minha
cidade, os acharia parecidos com dois foguetes, ou com seringas e agulhas, inserido que
estou na tal quase-mente-social do Rio de Janeiro em 2008.
62
Como quando, por exemplo, fazemos álbum de fotos de casamento, para memória daquilo que – sabemos –
não há de permanecer muito tempo naquela ‘forma’ até então conhecida.
59
Figura 20: desenhos das flautas
Mais tarde, em conversa com os velhos e mostrando meus croquis, todos eles foram
unânimes em afirmar que tais signos eram desenhos “das flautas verdadeiras”, das flautas
Kowai. Seu Marcelino identificava alguns tipos de flautas (dáapa, usada na inciação;
boboli, para a coleta de frutas), e dizia que Ñapirikoli assim as desenhava para mostrar os
tipos de flautas que existiam, mas não podia desenhá-las claramente, por causa das
mulheres. uma importante restrição à visão das mulheres e dos jovens não iniciados,
em relação às flautas Kowai
63
, proibição que abarca, igualmente, a visão dos desenhos das
flautas. Seu Marcelino disse que Ñapirikoli, em Jurupari, havia desenhado Kowai, em forma
de preguiça, para se lembrar de como ele era (os grandes desenhos, um com o braço
desproporcional e outro com o rosto pleno de buracos) e também em forma de flauta. Na
verdade, ambos são o mesmo desenho (ou, em linguagem peirceana: têm o mesmo
sentido), o mesmo Kowai. Como veremos mais detalhadamente adiante, o corpo de Kowai
tem em si todos os sons (as partes dele soam, através dos buracos), e as flautas Kowai
tanto expressam essa qualidade quanto executam essa função.
Relato esse breve incidente, baseado numa dificuldade de compreender os signos
em seu contexto e em suas relações, para refletir, a seguir, sobre as teias que ligam
(formalmente) os signos em relação. Um signo, enquanto mediador como vimos –, está
sempre em relação, não stands for um outro, mas simplesmente stands up (Stell) em
uma rede sociotécnica. Inicialmente, nos importa conhecer as relações que o regem
internamente: as relações que, por um lado, estabelece em si mesmo e, por outro, que
estabelece com o mundo.
63
Esta proibição será alvo de uma análise mais aprofundada, na seção IV.2.2.
60
5.2. Os signos e(m) suas relações
Configurando-se como uma relação triádica, o Signo pode ser olhado a partir de
qualquer uma das três linhas de relações possíveis. O Signo pode ser entendido em suas
relações:
Consigo mesmo, isto é, como um Primeiro. Nesse caso ele pode ser:
a. Qualissigno: ele mesmo como uma qualidade; Exemplo: a sensação súbita
de um certo aroma no ar, quando caminho à noite.
b. Sinsigno: ele mesmo como um existente; Exemplo: esse aroma me faz supor
a proximidade de uma certa flor.
c. Legissigno: ele mesmo como uma convenção, uma síntese; Exemplo: o
aroma me traz a lembrança da rua em que eu morava, quando menino, onde
havia árvores que enchiam o ar deste perfume.
2. Com seu Objeto, isto é numa relação Segunda, e então ele pode ser:
a. Ícone: em relação de semelhança; Exemplo: uma pegada na areia tem a
forma e a semelhança de um pé humano.
b. Índice: em relação de conseqüência; Exemplo: uma pegada na areia indica
que um ser humano passou por aquele local.
c. Símbolo: em relação de convenção; Exemplo: uma pegada na lua é um
pequeno passo para o homem, mas um grande passo para a humanidade!
3. Com seu Interpretante, como um Terceiro, sendo, nesse caso:
a. Termo (ou Rhema); um nome, sem valor; Exemplo: ‘gato’
b. Proposição, ou Dicissigno, ou Signo Dicente; uma sentença, com valor de
verdade que pode ser verificado; Exemplo: ‘Gato preto dá azar’.
c. Argumento (ou Juízo); um juízo, uma conclusão. Exemplo: ‘Um gato preto
cruzou o meu caminho. Todos sabem que gatos pretos dão azar. vi que
hoje não é o meu dia!’
Cada um ‘tipo’ de signo gerado (na verdade, observado e ‘considerado’, porque o
que está em jogo é nos situarmos em determinados pontos de vista) a partir dessas
relações está ligado às categorias gerais: Primeiridade, Secundidade, Terceiridade. Assim:
61
Relação/Categoria PRIMEIRIDADE SECUNDIDADE TERCEIRIDADE
Signo / Signo (ele mesmo) Qualissigno Sinsigno Legissigno
Signo / Objeto Ícone Índice Símbolo
Signo / Interpretante Termo Proposição Argumento
Para efeitos deste trabalho e da tarefa de entendimento dos signos baniwa, estas
classificações são importantes por permitirem a adoção de vários ângulos de análise, a
partir das relações estabelecidas no processo de semiose
64
. Se a relação do signo com ele
mesmo não diz propriamente nada de significativo, a não ser uma dada possibilidade e
estatuto do próprio signo, a relação do signo com seu Objeto, por exemplo, permite um
olhar sobre os petroglifos em suas relações icônicas, indiciais e simbólicas com seus
objetos
65
, isto é, aos quais ele se refere e às próprias condições de interpretação, ao passo
que a relação dos signos com o Interpretante permite avançar um pouco mais nos
processos de produção de sentido, significado e significação, quer particulares, quer
baseados em convenções gerais. Acredito que as classificações, levando-se em conta os
ditos peirceanos segundo os quais estas não são estáticas e rígidas, mas sempre
permeáveis, intercambiáveis e incompletas, permitem lançar um olhar em direção à vida
social desses signos e seus ‘lugares’ e funções entre os Baniwa, bem como às agências e
relações com sua história e memória.
A partir das tríades, e entrelaçando-as, Peirce traça uma tábua de dez classes de
signos principais e possíveis. Listo essas classes e seus exemplos, sem avançar em direção
às inúmeras subdivisões indicadas por Peirce em trabalhos posteriores:
SIGNO EXEMPLO
1. Qualissigno Uma cor, a sensação de ‘vermelho’
2. Sinsigno Icônico Um diagrama individual, o mapa desta rua
3. Sinsigno Indicial Remático Um grito espontâneo
4. Sinsigno Dicente Um cata-vento
5. Legissigno Icônico Um diagrama geral, o esquema do signo
6. Legissigno Indicial Remático Um pronome demonstrativo
7. Legissigno Indicial Dicente Um pregão de um camelô
8. Símbolo Remático ou Rema Simbólico Um substantivo comum
9. Símbolo Dicente Uma sentença
10. Argumento Um silogismo
64
Els Lagrou, por exemplo, nota, entre os Kaxinawa, do Acre, uma importante trilogia da percepção, em relação
às várias formas de imagens: desenho (kene), figura (dami), imagem (yuxin). (2007:108-136). Em dado
momento, Lagrou identifica o kene como um legisigno icônico, e explica: "A categoria peirceana de legisigno
diz respeito ao alto grau de focalização e abstração do grafismo, enquano o adjetivo icônico inica que a relação
entre o significante e seu significado não é arbitrária ou convencional, mas de semelhança. Entre os Kaxinawa,
esta semehança pressupõe metonímia. As duas imagens do yuxin, uma figurativa e concreta, o dami, outra
padronizada e exprimindo qualidade mais abstratas do referente, o kene, estão, mesmo assim, ambas ligadas a
seu referente de maneira indexical. Ambas, como parte de um todo maior, partilham a qualidade daquilo a que se
referem, invocando-o em vez de 'representá-lo' e substituí-lo" (:132).
65
E, como diz Teixeira Coelho, “a entidade funcionando como signo pode exercer simultaneamente (e
normalmente o faz) as três funções semióticas: a icônica, a indicial e a simbólica, não sendo sempre muito
simples a tarefa de determinar qual delas predomina” (1196:59).
62
De posse desses elementos, julgo poder responder a algumas questões que (já)
surgem a partir da mera contemplação dos signos e das histórias ouvidas sobre eles, ainda
que estas não sejam, a essa altura, em quantidade relevante. Elejo, por intuição, um signo
que me parece potencialmente capaz de ligar muitos elementos aentão desconectados:
desenho, flauta, história, animal, ritual. Apenas como exercício abdutivo para ‘testar
hipóteses’ em relação à utilidade de uma abordagem peirceana baseada nas relações
formais por ele propostas.
6. ‘Moolito’: relação complexa entre signo, conhecimento e memória
Moolito
Quando, em Paamáli, fazíamos o registro dos petroglifos, Irineu apontou para um
desenho e disse, sorrindo: Moolito”! E logo perguntou a um estudante: “Não é moolito?”.
Como o outro rapaz assentisse sorrindo, demonstrando tratar-se de um reconhecimento
não usual, perguntei: “É um sapo, não é?”. Era a deixa que Irineu esperava para me
explicar que sim, que moolito é um sapo. Mas que também é uma flauta Kowai (como
havia dito em sua participação no depoimento de André). Ele não soube ou não quis
dizer que tipo de flauta é, que ação tem, quando era tocada, ou mesmo por que é
identificada por moolito. Bastava-lhe, no momento, efetuar esse transporte: “Esse
desenho é moolito, é um sapo, que é uma flauta”.
O desenho não tinha proximidade ou aparente relação com outros em seu entorno,
e se repetiu em alguns sítios (Coro-coró e Jandu Cachoeira) (Figura 21). Sua expressão
gráfica é assim:
63
Figura 21 – Representações de moolito
Certamente, os desenhos têm a aparência de um sapo, ao menos se atentarmos
para as formas esquemáticas com que são representados outros animais, principalmente
peixes, aves e macacos. Algo lembra uma forma humana, mas a posição da cabeça, muito
curta, e, principalmente, a extensão do longo arco que forma as patas traseiras, o
identificam como um sapo.
Como Francisco Ortiz havia mostrado, nos petroglifos em Jandu Cachoeira,
desenhos de animais (principalmente aves) nomeados como flautas, como no exemplo do
conjunto de três flautas desenhadas: Maali (uma garça) e Waliadua (um ser híbrido) (Ortiz
e Pradilla, sem data). Ortiz não nomeia o terceiro desenho, o do centro, também
identificado como uma flauta. Este foi também identificado como Moolito, pelos rapazes
que me acompanhavam (Figura 22).
Figura 22: As flautas Maali, Moolito e Waliadua
Ortiz diz, baseado em seus informantes, que os diferentes tipos de flautas
correspondem aos dedos de Kowai, e estes por sua vez correspondem a diferentes animais.
Nessa classificação, moolito corresponde ao polegar (Ortiz e Pradilla, sem data)
66
. Os
Baniwa com os quais conversei não confirmaram essa correspondência, assegurando apenas
66
Ver também Hill, 1993.
64
que Kowai tinha (tem, em outros relatos) em seu corpo todos os sons do mundo, e que as
flautas são o corpo e a voz de Kowai.
Tomando o exemplo do signo moolito, podemos desenhar as seguintes relações, a
partir de uma primeira aproximação. Em primeiro lugar, dadas todas as condições de
interpretação de que dispomos para o conjunto geral dos petroglifos (listados em I.2,
sinteticamente), identifico esse signo como um argumento o cimo tipo listado por
Peirce –, isto é, um signo genuíno, terceiridade, que em si mesmo é um legissigno (por
pressupor uma regra, uma convenção para ser entendido). Em relação ao seu objeto é um
símbolo (por estar em relação convencional, não considerando apenas a semelhança com
um animal, mas ao seu caráter como flauta Kowai) e em relação ao seu interpretante é um
argumento (por expressar um certo tipo de juízo, tendo em vista as histórias que o
cercam).
Como a Terceiridade pressupõe necessariamente a Secundidade, e esta por sua vez
pressupõe a Primeiridade, são muitas as formas e ângulos de abordagem desse tipo de
signo.
Em relação a si mesmo, o signo moolito pode ser considerado no que diz
respeito:
À sua aparência, sua propriedade primeira, que permite que ele seja
copiado e imitado (Qualissigno). Isto é, à sua forma gravada, que remete
à imagem formada por poucos elementos gráficos dispostos de certa
maneira (estrutura), pela qual podemos identificá-lo como ‘o mesmo
signo’ ainda que apareça em vários locais diferentes, apesar das poucas
diferenças de estilo.
À sua existência, um desenho na rocha, um ente real (Sinsigno). Nesse
sentido, ao aparecer gravado em uma rocha, em meio a outros signos,
moolito requer uma autoria, precisa ser alvo de um processo ou ato
criador. Ao aparecer dessa forma, e pressupor uma autoria, o signo faz-
perguntar: “quem, ou o quê, o fez assim?”.
À sua condição de ser uma regra, isto é, um desenho que pode gerar
signos interpretantes, de estar imbuído de uma convenção que torne
possível sua atividade sígnica (Legissigno). Sua aparência e sua autoria
requerem uma intenção e implicam numa interpretação dessa intenção.
Por estar ali, e daquela forma, e de ser produto de um ato criador, o
signo faz-perguntar: “O que ele é? O que diz? Por que foi feito? Para
quê?”.
65
Identificar a relação do signo consigo mesmo conduz a uma série de perguntas no
âmbito da Primeiridade, isto e, da possibilidade. Ao nos debruçarmos sobre as relações
com seu Objeto e, depois, com seu Interpretante, teremos condições de descrever
minimamente a inserção desse signo numa certa ‘rede sociotécnica’, para permanecermos
na terminologia de Latour (2005).
Em relação a seu Objeto, o signo pode ser considerado no que diz respeito:
Às suas relações de semelhança com um animal, um sapo (Ícone). A
cabeça e o tronco curtos, patas dianteiras também curtas, patas traseiras
longas, em arco, toda essa forma esquemática e traçada em linhas
simples remete à forma do corpo de um sapo visto de cima. Em Jandu,
uma espécie de halo sobre a sua cabeça, enquanto em Paamáli há
indistinção em relação aos dois personagens de um desenho híbrido. A
figura superior tem cabeça de sapo, mas não apresenta o arco das patas.
A figura que aparentemente o segura também se parece com um sapo,
embora apresente o corpo mais longo e um falo.
À sua existência e motivação (Índice), como sendo um indicador da
‘escrita de Ñapirikoli’, aquele que é o autor de todos os desenhos das
pedras ao longo de todo o rio Içana. O fato de moolito estar desenhado
ali indica que Ñapirikoli passou por essa região, pisou nessas pedras e as
riscou com seus dedos (em umas versões) ou sua vara (em outras). O signo
indica ainda que ali, naquele lugar, algo importante ocorreu.
Ao fato de representar (estar para), além de um animal, uma flauta de
Kowai (Símbolo). Moolito é a representação gráfica de um sapo, mas é
também uma flauta Kowai. Esse fato implica numa operação de
significação (simbolização), que depende, por sua vez, de uma referência
pré-adquirida, de uma convenção. Se alguém chegasse a essa pedra e
visse esse desenho sem ter contato com nenhum índio baniwa, ou sem ler
nada a respeito, certamente saberia (ou intuiria) que esse desenho ‘está
para’ um sapo, em virtude do reconhecimento de suas formas. Mas jamais
saberia que esse ‘sapinho’ é também uma flauta. A relação desenho-sapo-
flauta só faz sentido na rede de convenções baniwa, em que estão
inseridas as histórias sobre as flautas. Por sua vez, talvez nem todo
baniwa pudesse reconhecer esse moolito como uma flauta. Talvez as
mulheres não o pudessem reconhecê-lo dessa maneira.
66
Em relação ao seu Interpretante, o signo pode ser considerado no que diz
respeito:
Ao Termo que evoca. É uma palavra’, uma expressão que aponta para
uma qualidade: moolito (ao mesmo tempo sapo e flauta). Nota: esta
‘expressão’ não é necessariamente verbal. Assim, o signo evoca um
conjunto de termos, ou, melhor, um conceito que se desdobra: ‘sapo’ (o
animal); moolito(a palavra, o som e a escrita); ‘flauta Kowai’; sapo-
flauta’...
À Proposição que enuncia, isto é, a um valor de verdade, do tipo:
‘Ñapirikoli passou por aqui e aqui aconteceu algo importante’. Ou:
‘Ñapirikoli gravou nesta pedra o desenho de uma flauta Kowai’. Ou, de
modo ainda mais sintético: ‘Ñapirikoli escreveu (inscreveu) aqui uma
flauta Kowai’.
Ao Argumento que constrói. O signo, graças à sua multiplicidade de
sentidos, termina por propiciar a construção de um juízo (um discurso),
ainda que não exatamente em forma de silogismo, e está atrelado a uma
história ou mito. Para ser completamente compreendido, o signo
relaciona-se a uma série de histórias narradas, sobre a origem do mundo,
a origem de Ñapirikoli que desenhou nas pedras –, o nascimento de seu
filho Kowai e a sua morte no fogo que proporciona o aparecimento das
flautas Kowai e os métodos de feitura e execução dos sons e muitas
outras. Tais histórias são elas mesmas signos, argumentos. O signo na
pedra, moolito, funciona (segundo as palavras de André Fernando
Baniwa), como um “ícone da internet, onde você clica e tem uma história
por trás”. Moolito remete a outros signos, fato previsto e necessário na
idéia da semiose infinita de Peirce. que seguir esses signos em seus
caminhos e interdependências ‘internos’, do mesmo modo que seguimos
os signos pelas margens dos rios.
67
7. Siuci: as estrelas e a filiação
Cachoeira de Siuci
A cachoeira chamada Siuci forma, perto do porto da comunidade, uma bacia
propícia ao banho das crianças. Nessa margem, uma formação que o velho senhor
Valentim, morador da comunidade, apressou-se em identificar como “a vagina de Amaro”
(Figura 23a). Segundo ele, essa informação lhe foi transmitida pelo antropólogo Francisco
Ortiz que, quando passou por ali, notou semelhança entre essa formação e outra,
encontrada em Jandu Cachoeira (Ortiz e Pradilla, sem data). A formação apresenta-se,
assim, como um ‘signo natural’, isto é, que não tem uma autoria (nenhum baniwa a
desenhou, nem mesmo Ñapirikoli), e que é investida de sentido a partir da transmissão de
relatos baniwa, mediada
67
por um antropólogo.
Figura 23a: Vagina de Amaro
Na outra margem, uma pedra, chamada ‘Pedra Siuci’, que contém apenas dois
signos, dispostos lado a lado: um conjunto de pontos elencados como numa pirâmide
invertida, e um outro, composto por traços curvos unidos por uma risca vertical (Figura
67
A pergunta, nesse caso, parece totalmente adequada: ‘mediada’ ou ‘criada’ por um antropólogo? Ao fim, é ele
que se torna o responsável pela circulação dessa informação, transferida de um sítio a outro (uma formação em
Siuci, semelhante a uma formação em Jandu, passa a significar o mesmo), e que já se insere na rede sígnica
validada por uma pesquisa antropológica.
68
23b). Quatro dos narradores com os quais conversei identificaram o desenho com os pontos
como sendo ‘estrelas ou, mais especificamente, as Plêiades, constelação chamada, em
língua baniwa, walipere ou siuci. Seu Marcelino e seu Antonio, no entanto, diziam que
eram desenhos de flautas, sempre desenhos de flautas, e que Ñapirikoli assim as
desenhava para ocultar das mulheres sua forma verdadeira.
Figura 23b: Walipere
No entanto, seu Alberto dizia enfaticamente que se tratava das Plêiades em
concordância com as opiniões colhidas por Francisco Ortiz (Ortiz e Pradilla, sem data) e
Filintro Rojas (1997). Este último, relatando a história a respeito das constelações, vincula
walipere em sua aparição gradual pelo céu, quando “cai do ocidente” aos ciclos do
aparecimento de certas espécies de peixes nos rios. Rojas relata a história segundo a qual
walipere “no céu está como que deitada, dando-nos as costas, e sobre ela leva nove
estrelinhas, luminares passarinhos” (:139).
Walipere, lembramos, é também a identificação de uma das fratrias baniwa,
relacionada ao Igarapé Pamáali (Ortiz e Pradilla, sem data). A presença do signo na pedra
pode trazer, ainda, a indicação da localização desse grupo, como defende Ortiz, ao
vincular alguns signos a uma expressão gráfica das hierarquias (Idem).
7.1. Indicação: a ídéia de índice segundo Gell e segundo Peirce
A idéia do Índice, do modo como Peirce a estabelece, tem especial relevância
nestas análises, como já é possível notar ou intuir. Em vista disso, e prevendo que me
referirei várias vezes a ela nas páginas por vir, são necessários alguns comentários acerca
das propostas de Alfred Gell
68
, referenciadas em conceitos peirceanos (Gell, 1998:13-14),
notadamente em relação à abdução e ao índice, principalmente por se tratar de uma
proposta teórica à qual, igualmente, as análises aqui exercitadas são devedoras.
68
Em Art and Agency, 1998.
69
Para responder às necessidades de análise dos objetos artísticos (e não deles),
Gell entende que é preciso haver uma espécie de teoria antropológica na qual ‘pessoas’,
ou ‘agentes sociais’ possam vir a ser, em certos contextos, substituídos por objetos
artísticos (1998:6). Sua proposta teórica baseia-se em três pontos fundamentais: i) uma
teoria do encantamento, resposta formalista que conta do efeito do encantamento no
processo cognitivo; ii) uma teoria social da agência, segundo a qual um objeto serve como
índice para uma agência superior. Desse modo, a agência humana pode ser redistribuída e,
assim, por essa ‘pessoa distribuída’
69
, é possível indexicá-la a partir de objetos; e, por fim,
iii) uma teoria do estilo, inaugurada nos últimos capítulos de Art and Agency. Por meio de
quatro termos (Protótipo Artista Objeto (Índice) Receptor) e suas relações a partir
do Índice, Gell pretende descrever como objetos de arte mediam relações sociais (:52).
Gell extrai de Peirce alguns conceitos e os modela segundo novos usos, adaptando-
os às suas necessidades de formulação teórica. O raciocínio abdutivo, apropriado
principalmente por meio de Boyer (1990), permanece no contexto e âmbito em que Peirce
o propõe, com poucas variações. Já a noção de índice – central à proposta de Gell -, esta é
totalmente descaracterizada em sua Secundidade, tornando-se um mero ‘indicador’ de
uma pessoa distribuída, de uma autoria, de uma intenção. Gell, ao recortar o conceito de
índice do signo que o integra, isto é, de suas relações triádicas, produz um novo conceito,
um índice que se basta a si mesmo, idéia impensável em Peirce. Gell passa a lidar, desse
modo, com uma indexicalidade, em vez de com um índice.
Assim e para esses efeitos, Gell toma toda obra de arte ou objeto analisado por
índice, supondo – em parte, acertadamente – que tais objetos remetam necessariamente a
uma ‘autoria’, isto é, que tais objetos ‘indiquem’ uma determinada agência. Ao restringir-
se a isso, Gell preserva apenas uma única função sígnica do objeto, aquela relacionada à
indexicalidade, logo, à Secundidade, ao existente. Peirce, no entanto, assegura que todo
signo genuíno (como um objeto artístico no âmbito de Gell) possui igualmente e
necessariamente uma função icônica pressuposta por princípio em qualquer índice e,
por depender de uma convenção para ser compreendido, deve exercer ainda uma função
simbólica. O ponto é que, para Peirce, “ícones e índices nada afirmam” (CP 1.291), e não
podem ser interpretados como sentença, o que reduz bastante o escopo da indexicalidade
69
Peirce e uma certa noção de ‘pessoa distribuída’ avant la lettre: “Estaremos encerrados numa caixa de carne e
sangue? Quando comunico meus pensamentos e meus sentimentos a um amigo que me inspira muita simpatia,
de modo que meus pensamentos passem para ele e eu tenha consciência daquilo que ele está sentindo, será que
não estou vivendo tanto em seu cérebro quanto no meu – quase que literalmente? (...) Há uma noção bárbara e
miseravelmente material segundo a qual um homem não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo, como se
ele fosse uma coisa! Uma palavra pode estar em vários lugares ao mesmo tempo, porque sua essência é
espiritual, e creio que o homem não é em nada inferior à palavra, nesse aspecto” (CP 7.591-592). Peirce sustenta
que um homem tem consciência de seu Interpretante (seu próprio pensamento em outra mente) e, assim, quando
escreve uma carta, por exemplo, e outro a lê, dá-se o que ele chama de ‘identidade projetada’.
70
de Gell, ou melhor, o conserva em seu mero âmbito de indicador, ao desfazer-se da função
simbólica. Por outro lado, no mesmo texto, Peirce refere-se a uma importante qualidade
do ícone, igualmente desprezado por Gell: “A única forma de comunicar diretamente uma
idéia é através de um ícone. (...) Daí, segue-se que toda asserção deve conter um ícone ou
um conjunto de ícones” (1.278)
70
.
Em um contexto peirceano, diríamos que Gell reduz o signo ao índice, ou à
indexicalidade presente em todo signo genuíno, e o despe de sua Primeiridade necessária,
isto é, da iconicidade que deve acompanhar todo índice. Assim, livrando-se de um lado da
convenção e da ‘simbolicidade’ (para evitar as explicações baseadas na ‘simbolização’) e
de outro da semelhança e da ‘iconicidade’ (para evitar, talvez, as explicações baseadas na
‘verossimilhança’)
71
, Gell constrói uma espécie de signo, como diria Peirce, ‘degenerado’.
Apesar de reconhecer a utilidade e a originalidade da proposta de Gell, creio que,
com uma rede tão rica, seria bem-vinda a compreensão de signo também como relação
triádica, isto é, uma compreensão genuinamente peirceana. Com um pouco de esforço,
preservar-se-ia o fundamento da teoria de Gell em relação à indexicalidade, e esta seria
ampliada para dar conta daquilo que o índice não alcança como, por exemplo (e ele
mesmo parece assumir), as questões relacionadas ao estilo.
A noção de índice, tal como Alfred Gell a expõe, é coerente com sua abordagem e
faz sentido dentro dela, mas apenas se a pensarmos como uma invenção dentro de um
contexto específico, concedendo sua inspiração peirceana que, de resto, poderia ser até
mesmo e mais adequadamente uma inspiração husserliana, quando este trata dos dois
conceitos relativos ao signo: indicador
72
e expressão. Por fim, creio que aquilo que Peirce
70
Benjamin Lee é um dos poucos a lembrar que Peirce divide os ícones em imagens, diagramas e metáforas
(1997:119). Essa distinção é importante, porque amplia o escopo do que entendemos por ícone. Diz ele que um
ícone cuja qualidade representativa é uma simples qualidade, como uma cor ou forma, e que pode representar
outro objeto de cor ou forma similar, é uma imagem. Esta é a noção mais comum acerca de um ícone, e a que
costumamos emprestar maior atenção. No entanto, ícones que representam relações ou partes de objetos por
relações análogas em suas próprias partes são, eles mesmos, diagramas. E, por fim, metáforas são os ícones que
“representam o caráter representativo de um representamen ao representar um certo paralelismo com alguma
outra coisa” (CP 2.277). A distinção é especialmente bem vinda à tentativa de compreensão da iconicidade em
que se fundam os signos nas pedras.
71
A esse respeito, é bem vindo o diálogo com David Freedberg (1989) e Hans Belting (1994) que, sob pontos de
vista diferentes, realizam aprofundados debates sobre as questões relativas à imagem no Ocidente. Em
Freedberg, especificamente, em seus ‘estudos na História e Teoria da Resposta’, temos a questão da
verossimilhança ligada ao que ele chama de ‘cognição universal da imagem’, indagando-se em que medida a
resposta à imagem funda-se na necessidade ou não da semelhança entre esta e o objeto representado. Belting, em
Likeness and Presence’, parte de um aparente paradoxo (“Como uma ‘religião do Livro’ pôde produzir um tal
universo de imagens?”) para, por meio dos ícones religiosos e relíquias, anteriores à ‘Era da Arte’, discutir o
poder da imagem. Segundo ele, “a humanidade nunca conseguiu livrar-se do poder das imagens, mas esse poder
tem sido exercido por diferentes imagens, por diferentes modos, e em diferentes épocas” (:16).
72
Valeria uma investigação paralela a respeito desses conceitos em Husserl, mesmo que por meio da
interpretação de Derrida em ‘A Voz e O Fenômeno’. Vejamos a definição de Husserl a respeito da “comunidade
de essência mais geral que reúne todas as funções indicativas”: “Objetos ou estados de coisas quaisquer da
consistência, dos quais alguém tem um conhecimento atual, lhe indicam a consistência de certos outros objetos
71
acrescenta para uma abordagem dos signos do Içana, em relação a Gell, pode ser
explicitado em quatro pontos principais
73
:
i. A compreensão do signo como relação triádica permite uma análise não
excludente a partir de qualquer ponto dessa relação (Signo Signo, Signo
Objeto, Signo Interpretante), e isso implica a possibilidade de se realizar
uma espécie de levantamento cartográfico ‘horizontal’ dos elementos
abarcados por essas ltiplas relações. Assim, a ‘classificação’ dos signos
segundo essas relações nos diz algo sobre o tipo de relação que se estabelece
(ver seção II.6).
ii. A noção de semiose infinita, conseqüência necessária do conceito do signo
como relação triádica, oferece um mergulho vertical e algo rizomático no
entrelaçamento e produção de novos signos a partir daqueles analisados,
estendendo o escopo do mapa de relações (ver toda a seção IV.2, especialmente
IV.2.3).
iii. Análises a partir dos dois tipos de Objetos e dos três tipos de Interpretante
(ver seções III.1.2 e III.1.4) propiciam, ainda, a visualização acerca das
condições de aparecimento de um signo, bem como dos processos mesmos
segundo os quais ele é apropriado, compreendido e compartilhado.
iv. Por fim, o entendimento dos signos integrados à arquitetura maior da
Semiótica peirceana permite relacioná-los sempre a partir das grandes
categorias (Primeiridade, Secudidade e Terceiridade), o que permite uma
melhor compreensão comparativa de suas relações extrínsecas (signos entre
signos)
74
.
ou estados de coisas no sentido em que a convicção do ser de uns é vivida por ele como motivo, determinando a
convicção ou a presunção do ser dos outros” (Husserl, citado por Derrida, 1994).
73
Ver seções II.4.2, II.4.3 e II.5.2 deste trabalho.
74
Evidentemente, tais críticas não invalidam de modo nenhum a proposta de Gell, já que ele não tem obrigação
de fidelidade à Peirce ou se propõe a isso. O que desejo mostrar é que, com o consórcio da teoria integral
peirceana, o mapa de relações sociais desejado por Gell seria bastante ampliado. O foco deste trabalho não
permite uma análise mais acurada que implique, até mesmo, uma contribuição mais objetiva à teoria de Alfred
Gell, o que penso ser plenamente possível de realizar, em breve.
72
8. Buya: duas figuras de mulher e os ‘falsos’ petroglifos
Matapi – Buya
Na cachoeira de Buya (também chamada Matapi), duas figuras humanas grafadas
sobre duas pedras distintas. As duas figuras estão cobertas de limo, o que fazia com que
seus traços parecessem bastante nítidos sobre as pedras, mesmo a certa distância. São
signos semelhantes entre si, bastante diferentes das figuras antropomórficas encontradas
em outros sítios, como a escola Pamáali, por exemplo. As duas figuras aparecem mais
delineadas do que os esquemáticos desenhos da Pamáali, apresentam braços e pernas
abertas, e em cada uma delas vê-se a representação de uma vagina (Figuras 24 e 25).
“Sim, são desenhos de Amaro”, diziam prontamente os velhos, tão logo eu mostrava os
croquis. Foram as únicas inequívocas representações de mulheres encontradas em todo o
percurso, com exceção de apenas uma outra figura, em Pamáali. No entanto, ninguém
soube dizer a razão desses signos estarem ali, isto é, ninguém os relacionou a algum
acontecimento específico, a não ser a rápida conclusão de que “as mulheres devem ter
passado por aqui, quando roubaram as flautas; e com certeza Ñapirikoli passou por aqui,
porque fez os desenhos!”.
Figuras 24 e 25: Amaro
73
Um interessante diálogo teve lugar enquanto eu e Laureano, vice-capitão da
comunidade de Coracy, trabalhávamos no registro desses desenhos. Sentados sobre a
pedra, enchendo os sulcos de giz, seu Laureano me perguntou, subitamente:
– Caco, o que dizem as pessoas sobre esses desenhos nas pedras?
– Pessoas? Que pessoas, seu Laureano? – devolvi a pergunta.
- Os teus amigos da faculdade, quer dizer, os brancos...
Disse a Laureano que as pessoas da faculdade’ costumam dizer que os desenhos
foram feitos muito tempo, por gente que viveu bem antes dos Baniwa. Disse que
ninguém sabe ao certo quem eram e por que fizeram os desenhos nas pedras.
Seu Laureano fez ‘ohnnnn’ e, depois de um silêncio que me pareceu bastante longo,
emendou:
– E você, Caco, o que acha que são?
Enquanto estávamos dialogando de acordo com os mesmos registros, isto é,
enquanto habitávamos o mesmo entorno sócio-cultural, o grande abismo da construção
subjetiva do conhecimento ou, mais especificamente, da crença pessoal, jamais havia até
então aparecido. Mesmo entre os Baniwa evangélicos, eu jamais havia (ainda) inquirido
acerca da ‘crença’ em Ñapirikoli ou no mundo primordial, e eles tampouco não se sentiam
à vontade ou movidos a falar sobre isso. Tais questões iriam aparecer de fato, e de
forma bastante problemática, quando enfim chegamos nas cercanias da Cidade Grande e,
depois, na comunidade colombiana de Camanaus. Mas, bem, Laureano perguntava a mim o
que eu achava que eram aqueles desenhos.
Estou entre os Baniwa eu disse ouvindo o que os Baniwa têm a dizer sobre os
desenhos. Eu nunca tinha visto um desenho como esse, ouvido falar sobre eles e visto
fotografias. A primeira vez que eu vi um desenho na pedra foi quando Armindo o apontou
para mim, em Caapi, dizendo: “Desenho de Ñapirikoli”. Portanto, seu Laureano, aqui,
hoje, entre os Baniwa, quando eu vejo um desenho desses gravado na pedra, não consigo
ver senão um desenho de Ñapirikoli.
Confesso que a perspectiva do desdobramento do diálogo me inquietava. E se ele
me perguntasse se eu de fato ‘acreditava’ na existência de Ñapirikoli, ou se acreditava ser
ele o primeiro baniwa, ou se eu acreditava que os peixes eram gente, e tudo o mais? Mas,
aparentemente satisfeito com minha resposta, seu Laureano emitiu mais um longo
ohnnnn’, com um meio sorriso nos lábios, e voltou aos traçados de giz.
A pergunta de Laureano, no entanto, abriu-me uma janela oportuna. Eu havia
notado, ali mesmo em Buya, uma grande pedra com petroglifos claramente executados
recentemente. Eu os chamei, a princípio e de brincadeira, de ‘falsos petroglifos’, para
diferenciá-los daqueles ‘verdadeiros’, identificados pelos índios como tendo sido
74
desenhados nos tempos primordiais por Ñapirikoli. Estes ‘falsos Ñapirikoli idana nhimi
eram praticamente riscados na pedra de modo muito superficial e com técnica rudimentar.
Além de figuras (um homem, um peixe), eu podia ver palavras escritas em português
(Figura 26). Era evidente que eram produções modernas e não tinham nada a ver com as
histórias antigas, ainda mais que estavam desenhados na face da pedra que dava as costas
para o rio. Uma característica geral dos petroglifos do ana é que, rigorosamente, todos
eles poderiam ser avistados do rio, isto é, foram executados para serem vistos por quem
navegava.
Figura 26: ‘falsos’ petroglifos
Eu não tinha dúvidas a respeito da origem desses pseudo-petroglifos, mas me
interessava muito saber como os Baniwa lidavam com isso. Embora eu tivesse passado por
ali caminhando com vários baniwa, nenhum deles sequer olhou para eles, ou me apontou,
ou emitiu qualquer opinião. E seu Laureano me abria uma brecha para uma pergunta de
cunho mais pessoal:
E o senhor, seu Laureano, o que acha que são esses desenhos ali daquela pedra?
São também desenhos de Ñapirikoli?
– Não, esses não – respondeu, rápida e laconicamente.
– Por que não? – insisti.
- Porque não.
Mas... vocês não dizem que todos os desenhos na pedra foram feitos por
Ñapirikoli?
- Foram. Mas esses não.
- Por que não? Como sabem?
- Porque não – tornou, rindo.
Inútil insistir mais. Interpretei essas respostas vagas como um desconforto evidente
de reconhecer que, de alguma forma, ‘alguém’ brinca e desenha nas pedras, e que isso
nada tem a ver com as histórias e com os desenhos de Ñapirikoli. Semanas tarde, quase
75
chegando a São Gabriel, defrontei-me com situação semelhante. Na comunidade de
Camarão, no Baixo Içana, existem vários signos complexos e belos, desenhos de pássaros e
de figuras identificadas como camarões. No entanto, ao lado, na mesma rocha,
desenhos riscados (Figura 27). Os moradores da comunidade não parecem ter o menor
constrangimento em dizer que “esses foram feitos pelas crianças”. Na verdade, e Irineu
havia me alertado, as tradições são mais fortes no Alto Içana, e seu rigor vai esmaecendo à
medida em que se desce o rio. Ali, perto da foz, as histórias sobre Ñapirikoli e seus
desenhos podem ser, literalmente, pisoteadas na beira do porto, e se tornarem alvo de
brincadeira das crianças.
Figura 27
Lembro-me dos relatos e da insistência de Koch-Grünberg a respeito da origem dos
petroglifos. Segundo ele, quando descansava sobre essa mesma Pedra dos Camarões,
perguntou ao capitão Mandu sobre a autoria dos desenhos. “Cristo as gravou”, disse o
capitão. “E quem é esse Cristo?”, perguntou o alemão. “Ñapirikoli! Era um deus (tupana) e
um ser humano ao mesmo tempo, o primeiro homem, o primeiro baniwa. Ñapirikoli é
também o autor de todos os outros petroglifos”, respondeu o índio (1995:218). Mais tarde,
Koch-Grünberg achou ter entendido a (real) origem dos desenhos. Ele havia se deparado
com “petroglifos levemente gravados na pedra e que tinham semanas, talvez dias, de
existência” (:237). E concluiu:
“Pude ver aqui [Curicuriary], pela primeira vez, como se formam e como se
executam esses gravados que, com freqüência, atingem profundidades consideráveis.
Essas rochas gravadas se encontram, quase sempre, nos lugares onde a corrente é
mais forte devido às correntezas, onde rochas lisas e onde o arrasto das
embarcações exige uma maior demora. Um índio grava, sem dar maior importância,
uma figura qualquer, rascunhando a rocha com um fio de uma pedra. O desenho se
conserva por longo tempo na rocha dura e lisa. Outro índio que passa pelo lugar mais
tarde, impulsionado pelo instinto de imitação, repete os contornos da figura. Assim
ocorre, uma e outra vez, até que se formam as profundas ranhuras. Isto acontece ao
cabo de menos tempo do que se poderia imaginar.”
76
Se o alemão não permitiu a si mesmo a ‘ingenuidade’ de simplesmente ‘crer’ num
‘Cristo’ ao mesmo tempo deus e homem, primeiro baniwa, e apostou em outra ingenuidade
– acreditar que todos os petroglifos foram executados por sucessivos índios entediados com
uma pedrinha nas mãos -, ao menos foi etnograficamente correto’ e concretizou o
primeiro registro da sentença mais ouvida no Içana, a respeito dos desenhos nas pedras:
“Ñapirikoli os fez!”.
III. ALTO CURSO
1. A Cidade Grande de Ñapirikoli: paisagem-signo
A serra Kerhipani
Partimos da comunidade de Barcelos, no igarapé Jawiari, rumo à Cidade Grande de
Ñapirikoli, no dia 8 de março, guiados por Antonio José Mandu e seu filho Nastácio. O velho
seu Antonio é vice-capitão de Barcelos, filho de pai kubeo e mãe curripaco, e é um dos
poucos que conhecem as histórias sobre a Cidade Grande, ouvidas do avô, pai de sua mãe.
Silencioso e sábio, seu Antonio estendia sua rede entre duas árvores na entrada das matas,
ao acamparmos e não na improvisada barraca de lona que os índios levantavam na praia
do rio – e era capaz de permanecer duas horas agachado, sozinho, coberto por um pequeno
plástico preto, em meio a uma violenta tempestade tropical, enquanto todos nós, outros,
nos espremíamos para nos abrigar sob as lonas do acampamento (Figura 28).
Após quatro horas de viagem lenta, tenteando entre os troncos caídos do igarapé
ainda seco, paramos em uma pequena praia do rio. “Estamos muito perto da Cidade
Grande”, disse Irineu. “Se estamos tão perto, por que não vamos logo para lá?”, perguntei,
considerando que era ainda o início da tarde, e tínhamos tempo de sobra. A resposta de
Irineu me surpreendeu:
77
Não é assim. Seu Antonio disse que temos que cumprir as prescrições, tomar
banho... Estamos perto da Cidade de Ñapirikoli!
“Mas ele não é evangélico e ancião da igreja? Por que se preocupa com isso?”,
perguntei. Irineu disse – rindo do aparente descabimento de minha indagação – que aqueles
são “domínios de Ñapirikoli” e que, nos domínios de Ñapirikoli, nada mais natural e
prudente do que seguir as regras de Ñapirikoli. A cada passo da viagem, e quanto mais me
acercava de nossos objetos mais problemáticos, surgia a tensão do convívio entre as
tradições. O ‘novo’ e o ‘antigo’, aqui, parecem aflorar dispersos e em formas inesperadas.
O que pode haver de mais ‘novo’ do que a (re)valorização dos ‘escritos de Ñapirikoli?
Ainda mais na forma do discurso acerca do patrimônio cultural.
Figura 28 - Acampamento no igarapé
Depois de uma refeição rápida de peixe e beiju (em silêncio) e banhos no rio, seu
Antonio resolveu subir a serra, chamada em baniwa Kerhipani, para uma visita de
reconhecimento. Simplesmente viramos uma curva do rio e, à direita, entramos pela larga
trilha no mato (Figura 29). Alguns minutos depois, Tiago me explicava que “ali, à
esquerda, é onde ficava a antiga comunidade”, aquela que havia no sopé da Cidade
Grande. Ali, viveu o finado Pacheco, antes de mudar-se para Barcelos. Ali vivia também o
seu Antonio. Os irmãos ainda vivem na Colômbia, e depois que o pai morreu é que ele
fixou-se definitivamente em Barcelos. Até hoje, ele e alguns outros mantêm o lugar
preservado. “Se alguém chegar até aqui sem ter conhecimento, não entra”, diz seu
Antonio.
78
Figura 29 – Trilha para a Cidade Grande
Mais uns minutos de caminhada fácil e nos deparamos com uma grande extensão em
pedra (Figura 30), um caminho largo, em subida, que eles chamavam de ‘estrada de
Ñapirikoli’
75
. As marcas da degradação são evidentes. Ao lado das ‘guias’ de pedra que
marcam, segundo eles, a estrada de Ñapirikoli, vê-se pedras formando nomes de pessoas,
ou riscos nas pedras (Figura 31). Os Baniwa entendem essas intervenções de duas
maneiras, não desvinculadas entre si: a vêem como a degradação de um patrimônio
cultural, e por isso investem no registro e na publicização desse registro; e a vêem como
profanação a um iarodatti, a um lugar sagrado, e por isso investem na retomada e registro
das histórias sobre ele. Ambas as atividades dependem da congregação de um movimento
interno com a indução de um movimento externo. Por movimento interno aponto o esforço
dos jovens e dos velhos em narrar e ouvir as histórias antigas, valorizando-as como traços
de uma viva e imprescindível memória social baniwa, e não mais desprezando-as como
resquícios de um tempo em que não se conhecia a Palavra de Deus. A indução do
movimento externo é a abertura necessária a uma ‘pesquisa’ (antropológica, arqueológica)
que tenha como produto final um ‘texto’.
Ao subirmos a Cidade Grande, a primeira ‘edificação’ que encontramos é uma pedra
maciça, identificada como a ‘Casa do Sentinela’, soldado de Maadodo. Maadodo é um
pássaro (um Yoopinai?), espécie de capitão de Ñapirikoli e guardião da cidade. A maloca de
Maadodo, logo à frente, é uma grande pedra irregular, rodeada de árvores de raízes
aparentes que, na base, forma uma gruta capaz de dar passagem a uma pessoa em pé. Essa
maloca tem quatro aberturas, quatro entradas, por onde Maadodo toma conta dos
caminhos da Cidade (Figura 32 e 33).
75
Caminho’, ou ‘estrada’, se diz Iinipo. Estrada grande é iinipo makakhai, e um caminho estreito, uma picada,
é iinipo tsookhai. A mesma palavra é usada para caminhos de terra e de rios.
79
Figura 30 – Estrada de Ñapirikoli Figura 31 – Depredação
Figura 32 - A casa do Sentinela Figura 33 – A casa de Maadodo, vista por dentro
Caminhando um pouco mais, agora sempre sobre o chão de pedra negra,
encontramos a maloca de Ñapirikoli, uma grande rocha de formato oval, erguida
orgulhosamente sobre uma paisagem plana cujo fim é o horizonte, até onde a vista
alcança, em três direções (Figuras 34 e 35). Imediatamente atrás da maloca, outra
edificação imponente, um grande conjunto de rochas, identificado como a cozinha de
Ñapirikoli (Figura 36). Ao contrário da casa de Maadodo, rocha formada por um vão (uma
gruta), tanto a cozinha quanto a casa de Ñapirikoli são totalmente compactas. A maloca de
Ñapirikoli é uma rocha maciça, um monolito oval, em cuja base encontra-se uma pedra
branca. Sobre ela, uma pedra menor. Com esta pedra pequena, percutimos a branca, e um
som como de um sino ecoa pelo vale. Seu Antonio diz que aquele é o sino de Ñapirikoli, e
que hoje ainda soa (como se pode ouvir), mas que “naqueles tempos, percutida pela força
de Ñapirikoli, essa rocha emitia um som que reverberava no mundo todo
76
” (Figura 37).
76
O mundo, naquela época, antes de Kowai, era pequeno. Quanto à pedra do sino, Koch-Grünberg (1995)
descreve os grandes tambores (trocanos), que produziam som altíssimo e que funcionavam como elemento de
80
Figuras 34 e 35 – A Maloca de Ñapirikoli
Figura 36 – A Cozinha de Ñapirikoli Figura 37 – A pedra do sino
Um pouco mais abaixo, encontramos o túmulo de Maawerikoli, o irmão de
Ñapirikoli. É também uma grande rocha, em cuja base vemos uma outra, menor, como se
fosse uma pessoa deitada, envolvida em pano. Este é o ‘Defunto’, Maawerikoli
77
. Seu
Antonio diz que, antigamente, era possível passar de um lado a outro da rocha do túmulo,
que hoje parece mais um pequeno vão. Não se sabe se foi a rocha que desceu ou se foi o
defunto que se ergueu. Ele diz, e aponta, que os pés de pedra do defunto foram quebrados
(Figuras 38 e 39).
comunicação entre as aldeias. Atualmente, eles não existem mais. Será que este ‘sino de Ñapirikoli’ era uma
espécie de trocano?
77
Muito me intrigava os Baniwa referirem-se às pessoas mortas acrescentando a expressão ‘finado’ (“o finado
Pacheco”, “o meu pai finado”, “o Finado”, ou “o Defunto” – identificando o irmão de Ñapirikoli, morto por
envenenamento). Mais tarde, descobri que se trata de um empréstimo da língua baniwa para o português, e não
tem relação aparente com algum tipo de restrição a nomear mortos ou coisa assim. Em baniwa, diz-se sempre
mi koirí’ (masculino), ‘mi kóidoa’ (feminino), antes do nome do morto, e esse costume foi transportado ao
português.
81
Figuras 38 e 39 – O túmulo de Maawerikoli
A Cidade Grande de Ñapirikoli tem quatro caminhos de acesso: ao Norte, temos o
início da estrada de Ñapirikoli, na direção de Uapuí, onde fica o Porto de Ñapirikoli; ao Sul,
na direção do Uaupés, na foz do rio Querari, onde ficam as serras onde viviam as
Amaronai; a Leste, o caminho es fechado por mato, mas diz-se que era por onde
Ñapirikoli seguia para o igarapé e colocava armadilhas para peixes, na direção da
cabeceira do rio Uaupés; finalmente, a Oeste (na verdade, a Sudoeste), temos outro
caminho de descida (Figura 40).
Figura 41 – A Cidade Grande de
Ñapirikoli.
Figuras 42 a 46 – Desenhos de
Tiago Pacheco, estudante da
Pamáali, na Cidade Grande:
Maloca de Ñapirikoli, Casa do
Sentinela, Casa de Maadodo,
Cozinha de Ñapirikoli e o
Túmulo de Mawerikoli
82
Estimo que todo o perímetro da Cidade, incluindo tais caminhos, alcance mais de
1.500 m
2
. As principais edificações são aquelas mencionadas. Seu Antonio diz que,
antigamente, não havia mato e touceiras em volta, era tudo bem limpo, “como um pátio
bem cuidado”. Perguntei ao Irineu se seu Antonio iria contar as histórias prometidas.
“Agora não”, respondeu. “Quando, então? Hoje à noite, no acampamento?”, insisti. “Não”,
tornou ele, “amanhã, aqui na Cidade Grande, em frente à maloca de Ñapirikoli”.
Seu Antonio, durante todo o tempo, manteve absoluto controle sobre os tempos da
viagem. Silencioso, emitia poucas orientações, que os jovens acatavam sem questionar. Ele
nos levou até lá, acampamos onde ele indicou e ficamos sempre sujeitos aos ‘tempos da
narrativa’ do velho que, decididamente, sabia exatamente o que estava fazendo e que tipo
de impressão tinha intenção de causar. Para ele, não se tratava apenas de ‘mostrar um
lugar sagrado’ ou ‘contar algumas histórias’, mas, sobretudo, atualizar a sua prerrogativa
sobre aquele território. Seu Antonio estava ciente do seu papel como guardião de um certo
corpo de conhecimentos, e também da oportunidade única de registrá-lo e validá-lo
socialmente, dentro e fora dos âmbitos da sociedade baniwa. Estava profundamente
ciente, ainda, do meu papel nessa história, de ‘antropólogo’ selecionado e escolhido
78
78
Essa constatação não é interpretação minha. Foi-me explicitada algumas vezes por Luiza Garnelo, antropóloga
que lida com os povos baniwa do Içana há vinte anos (“Eles escolhem com quem vão trabalhar. E, uma vez,
83
pelos Baniwa para efetuar a ‘acreditaçãodas histórias e dos lugares sagrados em vias de
extinção e (quase) destinados ao esquecimento. O dia quente começava a serenar, a noite
caía rapidamente, “Vamos?”, ordenou suavemente seu Antonio, em língua baniwa.
“Vamos”, disseram todos. Voltamos ao acampamento, famintos, cansados, ruidosos. O dia
seguinte seria longo.
1.1. As três histórias de seu Antonio
O dia acordou cedo. Os barulhos noturnos da floresta amazônica deram lugar ao
quase-silêncio do sol forte e súbito, e subimos novamente a serra, dessa vez com tarefas
bastante específicas. Anotei localização GPS do perímetro (a partir dos quatro caminhos,
Norte, Sul, Leste, Oeste), fotografei o local e as edificações’, fizemos desenhos e
esquemas e, por fim, nos assentamos ao da imponente maloca de Ñapirikoli para que
seu Antonio contasse suas histórias
79
.
Seu Antonio não havia permitido que se falasse das histórias antes desse dia, e nem
sobre as paisagens que constariam das histórias (a caverna das Amaronai, as flautas, os
rios). depois de narrá-las, quando descíamos o rio de volta, é que ele ia apontando e
comentando cada lugar que, assim, ganhava sentido de paisagem-signo. Antes, subindo o
rio, estas eram, para mim, ‘meras paisagens’: uma pedra, uma gruta, um remanso. Depois,
a ‘pedra’ poderia ser uma flauta ou uma mulher, ou uma bacia; a ‘gruta’ poderia ser um
esconderijo de flautas ou a casa das Amaronai; o remanso’ poderia ser o grande Porto de
Ñapirikoli.
Para minha surpresa, em vez de começar a falar, com a interpretação e retórica
próprias das tradições orais, seu Antonio mostrou ao jovem Tiago um caderno grande,
escolar, espiralado, aberto numa certa página. Irineu me diz que ele, sabendo que nós
iríamos, e desejando ser o mais preciso e correto possível, escreveu as histórias no
caderno, para não esquecer de nada. Assim, Tiago começou a ler as histórias, devagar, e
Irineu traduzia parágrafo por parágrafo para mim, enquanto seu Antonio, de e apoiado
na pedra do sino, guardava silêncio, intervindo vez por outra para sanar alguma dúvida a
respeito da leitura, ou corrigir palavras, ou para acrescentar uma ou outra informação
(Figuras 47 e 48).
escolhido, você é alvo de um paciente, suave e irresistível esforço de sedução. Quando vê, o projeto deles passa a
ser também o teu projeto!”), e também pelo próprio André Baniwa.
79
Segundo o estudante Tiago Pacheco, ‘história’ é dita Ikaitepekheetti, em baniwa. Seu sentido não tem como
constitutiva a polaridade falso/verdadeiro, ficção/realidade. Assim, uma história da Bíblia, a ‘História’ de um
povo, mitos, lendas, um acontecimento do dia, qualquer espécie de narrativa é dita ikaitepekheetti. A palavra tem
como raiz o verbokaité’, que significa ‘conversar sobre’, está fundada no sentido da oralidade. No entanto,
atualmente, os Baniwa costumam também usar, para se referir aos seus mitos, a palavra portuguesa ‘história’,
mesmo quando falam na língua nativa.
84
Figura 47 – Liveston, Tiago e seu Antonio, contando as histórias ao pé da Maloca de Ñapirikoli
Figura 48 – Seu Antonio José Mandu
Seu Antonio disse que conhecia três histórias, essas que estavam no caderno. Depois
que Tiago as leu, inteiras, disse, ao modo dos narradores: “É até que eu sei”
80
,
acrescentando que, “se fosse com os mais velhos de antigamente, ficaríamos uns dois, três
dias aqui, ouvindo histórias”.
Uma longa história oral é composta de repetições, paralelismos. Uma vez despidas
dessas técnicas de transmissão oral e reduzidas a uma forma escrita, pode ser
praticamente ‘encurtada’ por vezes até em 50% do seu tamanho. Seu Antonio parece ter
‘feito algumas contas’: confiaria na história como lhe foi contada, baseando-se em sua
memória e acrescentando-lhe as onomatopéias e repetições próprias da predominância da
tradição oral
81
da qual é devedor? Ou, ao contrário, apostaria no registro escrito, que
poderia ser pacientemente construído por ele mesmo durante longo tempo, com releituras,
acomodações, revisões? O que está em jogo, no caso, é a perenidade, a permanência, a
estabilidade do relato, bem como sua fidelidade às tradições ancestrais. Talvez o que
80
“É só até aí o que eu sei”, “isso é tudo o que eu tinha para dizer”, e outras expressões semelhantes, são comuns
nos relatos e nas falas do Alto Rio Negro e, pude perceber, por minha breve experiência com muitas etnias de
diferentes regiões, quando atuei na Conferência Nacional de Saúde Indígena, que este cuidado com o âmbito do
que se diz faz parte das práticas dos diversos grupos indígenas. É preciso que se identifique claramente os limites
da fala, até onde ela vai, definindo-se bem o que é ‘certo’ e o que é ‘incerto’, distinguindo-se bem ‘o que sei’
(quase sempre: o que vi, ou o que alguém confiável viu e me contou) do que ‘não sei’ (o que não vi ou o que
‘alguém viu’). Fausto (2000) oferece o exemplo dos Parakanã, que não distinguem entre narrativas (‘mito’ e
‘história’) e dos Waurá - via Ireland – cuja distinção corresponde a fatos tão antigos que não se pode identificar
quem os presenciou (mitos) e fatos cuja cadeia testemunhal é possível precisar (histórias). É sabido, ainda, que
várias línguas indígenas da Amazônia possuem marcas epistêmicas e citacionais, por vezes de uso obrigatório,
destinadas a distinguir, por exemplo, um fato do qual o narrador foi testemunha de outro em que ele é apenas
mais um elo na cadeia de transmissão (Franchetto, 1989).
81
Ainda que tenhamos em mente que uma pura ‘tradição oral’ não existe de fato, como nos lembra Severi
(2004:13)
85
tenha decidido a equação foi, simplesmente, não a tradição baniwa
82
, mas a tradição do
antropólogo que a ouviria, fundada na escrita. É melhor, assim, para guardar a fidelidade
do registro e para assegurar a permanência futura de seu conteúdo, que este fosse (já)
construído segundo a mesma tradição narrativa daquele escolhido para concretizar tal
ação. Ou, quem sabe, eu esteja simplesmente subestimando a importância da tradição
escrita a que eles foram expostos durante todos esses anos, com alfabetização em língua
nativa através da Bíblia, que, por sua vez, é capaz de conformar todo um espaço mental e
social por meio de sua força como única escritura divina e verdadeira.
O fato é que seu Antonio escreveu as histórias de próprio punho, em língua
curripaco, e posteriormente Liveston as copiou, palavra por palavra (Anexo VII.2). As três
histórias, tal como Tiago as leu e segundo a tradução de Irineu, para o português,
enquanto o jovem as ia lendo, são assim:
1. A Origem da Morte
Esta história conta a origem da morte. Ñapirikoli vivia em sua Cidade, com
seus irmãos. Um deles, Maawerikoli, começou a adoecer de veneno, lançado por seus
cunhados, os macacos da noite [Iipeeko]. Esse foi o primeiro envenenamento, origem
de todos os envenenamentos até hoje. Maawerikoli sofreu muito, ficou doente
durante muito tempo. Como ele demorava muito a morrer, os Iipeeko o envenenaram
novamente e, por causa desse segundo envenamento, ele morreu. Foi a primeira
morte entre os Baniwa
83
.
Ñapirikoli ficou muito furioso com a morte do irmão, e se vingou dos seus
cinco cunhados, matando todos eles. Ele os esperou no caminho e os matou com cinco
flechas envenenadas em curare.
Foi assim. Certo dia, Ñapirikoli levou sua mulher para acampar em algum
lugar. Ela era irmã dos macacos, e Ñapirikoli depois a transformaria em sapo. Seu
nome era Kapero, em curripaco, e Korawali, em baniwa. Ele a levou para acampar no
lugar em que ele viria a matar os macacos, os irmãos dela. Ñapirikoli pediu que ela
ficasse longe, mas ela não quis. Ela sabia da intenção de Ñapirikoli, e não quis ficar
longe. Por isso, ela deitou-se com ele, para fazer com que ele dormisse e assim não
visse os cunhados passarem. Mas Ñapirikoli era mais inteligente e ele é que fez a
mulher dormir.
Ele tinha cinco flechas, e com elas matou os cinco cunhados. Enquanto ela
estava dormindo, ele flechou os cinco, e eles começaram a cair. Quando a mulher
ouviu o tombo dos irmãos, perguntou:
– Ñapirikoli, onde você está?
Mas ele já tinha voltado e deitado embaixo da rede dela. E respondeu:
– Hey, hey! Estou aqui!
Ñapirikoli, então, foi acender a tocha para eles voltarem, porque estava
amanhecendo. Antes de amanhecer, ele transformou a mulher em formato de sapo, e
a deixou em um pau oco. Largou ela no lugar onde ele matou os macacos, no lado
do Uaupés, ao sul, e foi embora.
Como não havia conseguido matar todos os cunhados, mas apenas aqueles
cinco, Ñapirikoli voltou para a Cidade Grande. Os outros cunhados começaram a
derrubar a pupunheira para matá-lo. A pupunheira fica a leste, e as folhas da
pupunheira caíram na maloca e não conseguiram atingir Ñapirikoli. Esses
inimigos/cunhados eram chamados Eenonai. A pupunheira que caiu sobre a maloca de
82
Novamente: ela mesma em profunda tensão entre o antigo e o novo.
83
Comparar com o relato colhido por Robin Wright (1999:138).
86
Ñapirikoli ocasionou marcas e lascas na pedra, e um cacho grande de pupunhas caiu
sobre a terra. A marca desse cacho pode ser vista na pedra do chão, quebrada.
Ñapirikoli tirou os cachos da pupunheira que caiu ali, e pediu a um pássaro
[aawado, bacurau
84
] para cozinhar à noite. Mas ele dormiu e, à meia-noite, as
pupunhas ainda estavam cruas. Quando o bacurau assim mesmo tentou comê-las, as
pupunhas, que eram muito fortes, cortaram sua língua como um ácido.
Mas havia uma outra mulher cozinhando, e conseguiu cozinhar até o
amanhecer. A fruta transformou-se em abiu, que vem da pupunha. Hoje em dia, o
abiu é doce. As duas panelas onde se cozinharam as pupunhas ainda existem, numa
cachoeira pequena do igarapé abaixo da Cidade Grande. Numa panela se cozinharam
as pupunhas, e na outra o abiu.
Aqui termina a vingança que os cunhados de Ñapirikoli queriam realizar. As
casas dos cunhados ficam nas serras a leste, chamadas Perhipani, que é igual a
Perhiadape. Perhi significa gavião
85
.
2. A Flauta de Kowai
Esta história não conta a origem de Kowai, mas apenas como vai ser utilizado
esse instrumento, que é a flauta de Kowai.
No início, os homens manuseavam as flautas de Kowai, para pegar todas as
frutas em que se precisa subir no pé para tirar, como bacaba, wacu, etc. Flauta se diz
phianeko, instrumento de sopro. Ñapirikoli tinha disponibilizado o instrumento para as
mulheres [Amaronai], mas mesmo assim elas não conseguiam subir nos pés para tirar
as frutas. Como ele viu que nem assim as mulheres conseguiam tirar as frutas,
Ñapirikoli pediu as flautas de volta, mas as mulheres não quiseram devolver, e
fugiram com as flautas para uma cachoeirazinha chamada Kowaithepani, onde moram
os galos da serra. E foram morar lá, também.
Ñapirikoli perseguiu as mulheres, para que
elas devolvessem as flautas, mas elas sabiam
que ele estava vindo e desceram mais para baixo,
onde pensaram em como esconder as flautas para
ele não achar. Ali foi feito o primeiro desenho nas
pedras, em Kadanadalimi. As mulheres
começaram a desenhar enquanto planejavam o
que fazer. [Seu Antonio traça um desenho no
chão. Figura 49].
De lá, elas foram embora de novo, sempre
descendo o rio. A segunda parada delas foi
Kowhaipani. Na tentativa de capturar as
mulheres, Ñapirikoli colocou matapi [armadilha
para peixes], no lugar onde hoje é Matapi Cachoeira [Buya]. Mas elas eram
inteligentes, se desviaram do caminho e passaram mais para baixo. Elas entravam no
matapi, mas, quando percebiam que tinham entrado, se transformavam em folhas.
Ñapirikoli pegava os matapi, via folhas dentro e jogava fora. Elas passaram
adiante e continuaram a tocar as flautas.
Mais abaixo, Ñapirikoli tentou colocar novas armadilhas, na forma de majuri
[um tucano pequeno], só que não conseguiu mais. De lá em diante é que elas
começaram mesmo a desenhar nas pedras, todos os tipos de flautas que levavam:
mayali, jacame [mutum], waliadoa. Todos os desenhos dos rios foram feitos pelas
mulheres, e são desenhos das flautas Kowai, como elas as viam. Elas as desenhavam
para celebrar sua vitória, porque conseguiram levar as flautas e não serem capturadas
por Ñapirikoli. Desenharam tudo o que conseguiram levar. De lá, desceram rio abaixo,
sempre
86
.
84
Este pássaro e identificado como uma mulher, nesse relato.
85
Péeri, segundo a grafia do Dicionário Baniwa-Português (Ramirez, 2001).
86
As versões mais correntes da história dizem que Ñapirikoli conseguiu recuperar as flautas das mulheres.
Figura 49
87
3. A Origem da Mandioca
A origem da roça partiu de um ser chamado Kaalittairi, que morava na foz do
igarapé Katali [um peixe elétrico], perto daqui da Cidade Grande
87
. Esse Kaali, um
dia, tomou caxiri com os filhos e, quando ficaram bêbados, os irmãos mais velhos
brigaram com os pais. Kaali pensou: “Meus filhos o gostam de mim, por isso vou
embora!”. Depois, orientou os dois filhos caçulas e a prima, dois meninos e uma
menina, sobre como conseguir comida.
Quando vocês ouvirem o inambu [maami] cantar, vocês o ver uma planta
[maniwa] e, quando chegarem lá, vão sacudir ela e vai cair beiju. Enquanto ela é
pequena, vai cair beiju pequeno. Quando a planta for aumentando, vai aumentando
também o tamanho do beiju.
Ele orientou também para que os meninos limpassem ao redor da planta. Eles
limparam, colocaram fogo e quebraram o galho da planta. Esse foi o primeiro plantio
de mandioca. É de lá que vem a maniwa para todos.
Depois que Kaali foi embora, os filhos menores ficaram, e como que uma
mágica começou a acontecer. Tudo aquilo em que eles pensavam surgia
automaticamente para eles. Na primeira noite, eles pensaram: Que bom se a gente
tivesse uma casa bonita!”. Amanheceu, e apareceu uma casa bonita para eles. Na
segunda noite, eles pensaram: “Que bom se a gente tivesse uma roça!”. Amanheceu e
apareceu uma roça. Eles eram crianças, pequenos, e na terceira noite pensaram:
“Que bom se a gente fosse adulto!”. Amanheceu e eles haviam se tornado adultos. A
prima também. O pai deles, Kaali, não tinha ido embora, apenas tinha ficado
invisível, e cuidava deles de longe. Certo dia, Kaali orientou os irmãos pequenos a
irem ver a mãe e os irmãos mais velhos, porque eles estavam passando fome.
À noite, assim, os pequenos estavam bem alimentados, e os irmãos mais
velhos e a mãe não. Os mais novos comiam beiju, e um pouquinho de beiju caiu sobre
o peito da mãe, que dormia na rede embaixo. Ela comeu e se sentiu bem.
Na terceira e última vez que Kaali apareceu para os caçulas, pediu que a nora
de um deles fizesse caxiri. Kaali tomou tudo aquilo, e gostou. Ele tomou o caxiri e,
depois que ficou bêbado, vomitou grandes tachos de cerâmica. Depois começou a
dançar no meio do pátio, e disse que os filhos caçulas dele estavam comendo uma
frutinha chamada waanhe. Ele não quis revelar que era mandioca.
O vômito de Kaali se transformou em caxiri, e dali veio sua origem e seu
preparo. De lá, ele foi embora e nunca mais voltou.
Depois de concluída a narração das histórias, seu Antonio colocou-se à disposição
para responder às minhas perguntas. Na verdade, todos os jovens, ansiosos, passaram a lhe
fazer perguntas, indistintamente, e ele as respondia. Assim, ficamos sabendo algumas
coisas mais. Havia, de minha parte e também dos meninos da Pamáali, grande curiosidade
em relação à origem de Ñapirikoli. Seu Antonio disse que Ñapirikoli teve origem “aqui
mesmo, na Cidade Grande”. Disse ainda que ele é um homem e que vive ainda nesse
mundo, ninguém sabe onde. “Ñapirikoli não morreu”, disse ele, “porque não existe
nenhuma história sobre a morte dele”. Segundo ele, a morte começou com Maawerikoli, e
por isso até hoje as pessoas morrem. “Por isso existe a morte. Se o irmão de Ñapirikoli não
tivesse morrido, ninguém morreria, até hoje”, diz.
Seu Antonio lembra que Ñapirikoli tinha muitos inimigos, mas que sabia que
haveria um grande futuro para os seus descendentes (os Baniwa). Seus inimigos que
87
Comparar com os relatos de Robin Wright (1999b:74 e112). Na primeira história em que aparece (:74), Kaali é
identificado como “o Adão dos brancos”.
88
viviam nas três serras que podem ser vistas da Cidade Grande também sabiam disso, e
por isso queriam matá-lo. Para ele, Ñapirikoli é o ser que fez nascer todas as nações do
mundo. “Mas ninguém sabe de onde veio nem como surgiu”, acrescenta.
O velho falou um pouco sobre a Cidade Grande. Disse que foi ele, Ñapirikoli, quem
fez a serra, e depois começou a construir a maloca. Segundo ele, a maloca de Ñapirikoli é
o ponto central da Cidade Grande, e a Cidade Grande é o centro do mundo. Os domínios da
Cidade Grande iam até as serras, no horizonte, nas quatro direções. Diz seu Antonio que
Maadodo, o soldado de Ñapirikoli, ainda vive ali, em sua maloca, e que, antigamente,
aquilo não era uma gruta, era tudo aberto. Ele disse, ainda, que foi Ñapirikoli quem
construiu o túmulo de seu irmão Maawerikoli.
Sobre os desenhos nas pedras, ou melhor, sobre a falta de desenhos justo no mais
importante iarodatti da região, e onde aconteceram tantas coisas, seu Antonio disse que
não desenhos na Cidade de Ñapirikoli “porque os desenhos surgem a partir de Kowai e
sempre em razão de alguma desobediência”. E não havia ainda desobediência na Cidade
Grande. “Na cachoeira de Cabeçudo, por exemplo”, ele conta, “há poucos desenhos,
porque as mulheres ainda não tinham aberto todos os pacotes para ver o que tinha
dentro. Elas iam abrindo e vendo as flautas”. Seu Antonio disse que, em alguns lugares, há
desenhos que não são de flautas, porque as mulheres estavam cansadas e tristes, e
desenhavam nas pedras chorando e lamentando a sua sorte, registrando as coisas que
tinham antes de fugir, e também as pessoas, os animais. Esses são, segundo ele, “desenhos
comuns”, não desenhos de flautas.
A conversa que se seguiu à narração não explicou, porém, por que ele contou essas
histórias. A história de Ñapirikoli, da Cidade Grande e da primeira morte tem sentido em
relação à preservação do lugar, bem como a história das flautas Kowai, universo sempre
ligado a Ñapirikoli. No entanto, a história acerca de Kaali e da origem da roça me
intrigava, parecia um elemento isolado. Seriam essas as únicas histórias que seu Antonio
conhecia? Eu não acreditava nisso. Aguardei, então, que mais à frente, a jusante, as
coisas, de alguma forma, se conectassem.
1.2. Signos ‘naturais’ e apropriações
A Cidade Grande de Ñapirikoli é uma paisagem-signo, e com isso quero dizer que é
uma paisagem investida de sentido, significado e significação. A passagem de uma serra
rochosa repleta de pedras de diversos formatos para uma verdadeira cidade, com estradas,
pátio, malocas e até um túmulo, indica a presença de, por um lado, características
próprias desse objeto (a serra e as rochas) que potencialmente permitem tal vinculação e,
89
por outro, de um conjunto de narrativas e operações mentais que de fato concretizem esse
vínculo.
Podemos abordar esse signo-paisagem a partir de seu aspecto Primeiro, isto é, de
suas condições potenciais e possibilidades, da sensação que imprime ao afetar uma
mente
88
. A serra, enquanto tal, sem nome e sem epíteto, e sem as histórias que se refiram
a ela, imprimem em nosso espírito a sensação da imutabilidade, da grandeza, da fixidez,
da permanência. É de pedra
89
, é alta, é vasta. Ao mesmo tempo, inscreve-se no centro de
uma paisagem plana e plena de florestas, baixa e extensa até outras serras, a muita
distância, no horizonte. As primeiras sensações, portanto, remetem-se principalmente à
dureza e permanência das rochas, à imponência de sua altura, aos domínios de seu vasto
perímetro e à sua centralidade na paisagem em torno
90
.
No entanto, ao olhar para essa serra ou ao ouvir sobre ela –, os Baniwa do Alto
Içana vêem uma cidade, uma Cidade Grande, a Cidade Grande de Ñapirikoli, o herói
transformador, o primeiro baniwa, “um tupana e um ser humano” (Koch-Grünberg,
1995:218), vêem um lugar onde aconteceram muitas coisas, vêem o centro do mundo. A
relação, portanto, do signo com seu Objeto (a serra de pedra), é fundamentalmente uma
relação simbólica (em relação ao Interpretante, um argumento), baseada numa síntese e
no estabelecimento de convenções, o que pressupõe necessariamente uma relação indicial
que, por sua vez, pressupõe necessariamente uma relação icônica.
Partindo do mais simples, não é difícil estabelecer a relação icônica da serra com
uma cidade. Pode-se dizer que tal semelhança icônica é mesmo determinante para a
passagem da ‘paisagem’ ao ‘signo’, uma vez que os caminhos pela rocha, desde a trilha
até o topo, têm a feição de caminhos e estradas construídas, e que cada uma das rochas
existentes na serra assemelha-se a edificações (maloca, cozinha, túmulo). Tais
semelhanças não se restringem somente à aparência externa, mas, principalmente, aos
usos. Assim, a ‘estrada de Ñapirikoli’ não só se parece com um caminho construído, mas se
parece porque pode ser trilhado, isto é, caminha-se de fato pelo ‘caminho’. A casa de
Maadodo é uma grande pedra em cuja base há uma gruta, um vão. É possível ‘habitar’ ali –
não fossem os inúmeros grupos de morcegos que ocupam o local como se fosse uma
maloca. O túmulo de Maawerikoli, além da imensa rocha acima, forma também um
pequeno vão na base, onde se encontra uma outra pedra (o ‘Defunto’ sepultado). As únicas
88
Sempre no sentido peirceano, não necessariamente vinculada à razão, mas à consciência e à percepção.
89
O termo baniwa para pedra é Hiipada, e de seu radical formam-se muitas outras palavras, sempre com o
sentido de permanência e fixidez, como hiipani (cachoeira – não o curso de água, como o entendemos em
português, mas as formações rochosas que determinam o movimento das águas), hiipana (montanha, no dialeto
curripaco) e, por fim, hippai (país, minha terra).
90
Ainda que talvez de forma inadequada, lembro-me dos conceitos de ‘ordem e saliência’ em Severi (2005),
onde elementos intuitivos e contraintuitivos constituem um optimum cognitivo (Boyer, 1990) capaz de assegurar,
a certos objetos, uma representação de rápida propagação entre a comunidade e que persista no tempo.
90
rochas que não apresentam ‘vão’ algum são a cozinha e a maloca de Ñapirikoli. Quanto a
esta última, no entanto, com boa vontade, vemos uma leve inclinação à qual poderíamos
emprestar um uso de abrigo e residência. No entanto, ela o é de todo desprovida da
relação icônica baseada no uso: por meio de duas pedras em sua base, é-nos possível soar
o sino de Ñapirikoli, sua ‘voz’ por sobre as serras que, então, configuravam o mundo todo.
A Cidade Grande, paisagem-signo, exerce uma função indicial, relativa à
Secundidade, ao seu aspecto enquanto um existente. Se vista como uma serra de pedra,
poder-se-ia dizer que ela simplesmente ‘estaria ali’, como um objeto já dado
91
. No
entanto, uma cidade remete a um planejamento, a um construtor (ou construtores) e,
ainda, a uma utilidade (habitantes). A Cidade Grande é obra de Ñapirikoli, construída para
si mesmo. Segundo os relatos do seu Antonio, Ñapirikoli teve sua origem ali mesmo,
naquele lugar. Ele, então, primeiro fez a serra, depois a cidade, depois a maloca. Ele
também construiu o túmulo do irmão. Cada signo que compõe a Cidade (a maloca, o
túmulo, a casa de Maadodo, as estradas) funciona, igualmente, como índice de algo (uma
ação, um existente, um acontecimento). Assim, as lascas da pedra da maloca de Ñapirikoli
são índice de um acontecimento: uma pupunheira foi derrubada naquele local. E por
segue.
No entanto, o que parece importante nessa relação indicial é que se trata de um
círculo de auto-referências, onde um elemento referencia-se em outro e esse outro, em
determinada medida ou segundo outras qualidades referencia-se de volta no primeiro,
como a narrativa de Münchausen a erguer a si mesmo pelos cabelos. Desse modo, a Cidade
valida (enquanto índice) as histórias sobre ela, isto é, as histórias são verdadeiras porque a
Cidade é o existente que atesta cada acontecimento narrado. Por outro lado, são as
histórias que ‘eregem’ a Cidade Grande como signo, que são elas que identificam cada
elemento da Cidade e mesmo que promovem, de fato e fortemente, a passagem da
paisagem muda ao signo que comunica.
A Cidade Grande, segundo outro ponto de vista, indica um outro tempo, uma era
anterior à ‘nossa’ humanidade, um mundo primordial e menor, no qual Ñapirikoli, seus
irmãos e seus inimigos habitavam em condições muito diferentes das nossas, atuais. Acima
de tudo, porém, a paisagem-signo aponta de maneira fundamental e inequívoca para
aquele ao qual todos os signos do Içana (sejam petroglifos, sejam histórias, instrumentos
de pesca ou técnicas diversas) terminam sempre por indicar: Ñapirikoli.
A Cidade Grande é um iarodatti, um lugar sagrado. Segundo seu Antonio, Ñapirikoli
não mais vive ali, mas Maadodo, sim, bem como o defunto Maawerikoli ainda ‘está’ ali,
91
Obviamente, alguns poderiam inferir daí a indicação de um Criador, autor de todo e qualquer objeto da
natureza. Mas tal concepção abarcaria todos os objetos naturais, e não especificamente esta serra.
91
deitado em seu túmulo. O que faz um lugar iarodatti é, como se sabe, a existência de
seres viventes, guardiões, espíritos. E o que faz com que saibamos que tais seres estão ali
são suas ações, mediadas (narradas) pelas histórias, pelas narrativas. André dizia,
apropriadamente, que iarodatti é “algo para o qual eu crio toda uma história em torno”.
As histórias vêm dos antigos, que se esmeram em contá-las sem aumentar nem diminuir. As
histórias vêm, na origem, de Ñapirikoli. Essa é a dimensão simbólica desse signo-paisagem.
A rede de convenções sobre a qual a compreensão do povo baniwa se funda enquanto
corpo de conhecimento coletivo, ou ‘quase-mente’ social o as narrativas contadas e
recontadas por infindáveis gerações. Obviamente, essas narrativas são modificadas por
meio da transmissão oral, e existem diversas versões de uma mesma narrativa, a partir do
ponto de vista de um determinado sib ou fratria (variações ‘sociais’) ou mesmo de um
certo narrador (variações ‘individuais’). Essas variações, como veremos adiante, não são
bem vistas entre os Baniwa. Ao contrário, para eles, parecem mesmo tratar-se de um
desconforto, inclusive consideradas como ‘desvios’.
Chama a atenção, nesse sentido, uma declaração de seu Antonio, a respeito de
Ñapirikoli: “Sabe-se com certeza que ele não morreu, porque não existe nenhuma história
a respeito de sua morte”. Se um acontecimento, ele deve ser narrado, para tornar-se
um signo parte da rede social, compartilhado, apto a produzir novos conhecimentos. Se
algo não é narrado, é porque não aconteceu. O silêncio, portanto, diz algo de suma
importância. O silêncio acerca da morte de Ñapirikoli diz que ele está vivo, porque um fato
de tal magnitude, se tivesse ocorrido, não poderia deixar de ser narrado. A ‘narrativa’,
nesse caso, não se resume a boatos ou falatórios vãos, ou a conversas de beira de rio, mas
a histórias ‘autenticadas’, validadas pela narração de um velho (que, certamente, a tenha
ouvido de outros velhos) ou registradas por outros modos (cânticos, rezas). Para seu
Valentim Paiva, narrador da comunidade de Juivitera, os desenhos nas pedras cumprem a
mesma função de uma narrativa tradicional. Diz ele:
“Ñapirikoli desenhou nas pedras para as novas gerações verem e se
lembrarem das histórias e de como era o mundo naquele tempo. Isso é sinal de que
tudo é verdade, porque ele desenhou [ênfases minhas].”
O fato de seu Antonio levar seu caderno escrito para o topo da Cidade Grande e,
aos pés da maloca de Ñapirikoli, narrá-la a mim por intermédio de um jovem estudante,
tudo isso faz parte, certamente, de um esforço de validar, por um lado, as ‘suas’ histórias
ouvidas de seu avô e, por outro, de validar a perspectiva de seu grupo, uma vez que
são correntes, longo tempo, no Alto Rio Negro, as muitas versões sobre as origens de
Ñapirikoli e sobre o Centro do Mundo, a partir dos hohodene do rio Ayari (ver Wright,
1999b), como sugere o diagrama descrito por Ortiz (1999) (Figura 50). Finalmente, e por
meio das histórias, há o esforço de validação e preservação da Cidade Grande como centro
92
do mundo e como lugar sagrado, isto é, de afirmação da ‘verdade’ desse grupo do Alto
Içana que tem visto seu corpo de tradições ‘perder terreno’ em relação a outras versões.
Essa disputa de sentidos ganha ainda mais dramaticidade ao lembrarmos que, nas
comunidades baniwa como a do Alto Içana, onde todos são evangélicos, as narrativas
acerca de Ñapirikoli são constantemente emudecidas em favor dos discursos bíblicos, que
atribuem ao antigo herói criador baniwa, bem como às histórias sobre ele, a pecha de
‘coisa do diabo’.
Figura 50
A dimensão simbólica da Cidade Grande, portanto, vai muito além do mero
estabelecimento de uma regra convencional acerca de um lugar (“essa serra rochosa está
para uma cidade”), mas funda-se na paciente e complexa construção de relações entre
acontecimentos míticos, seus personagens, os locais onde ocorreram tais eventos e as
histórias narradas sobre eles. Desse modo, um elemento (neste trabalho: um signo) não
funciona sem o outro. Inseridos nessa complexa rede de sentidos, estão ainda os
narradores (detentores dos discursos) e as comunidades baniwa, que produzem ou estão
aptas a produzir sentidos (bem) diversos, a partir de suas outras e demais relações sociais.
1.3. Pedras sem petroglifos, mundo sem desobediência
“Na Cidade de Ñapirikoli não desenhos nas pedras, porque os desenhos surgem a
partir de Kowai e em razão de alguma desobediência”, dizem, com palavras diferentes,
seu Antonio e também André. Nesse ponto, vale lembrar as ‘três eras’ segundo às quais os
Baniwa subdividem sua história (Wright, 1998; Garnelo, 2003). O primeiro ciclo refere-se a
um período intenso de guerras e conflitos entre Ñapirikoli e os animais/espíritos canibais.
Aqui, a família dos irmãos-órfãos (Hekoapinai), tendo à frente Ñapirikoli, luta para
assegurar o domínio da ordem humana (ou melhor, desta humanidade) sobre o caos.
93
“Naquele tempo”, diz seu Marcelino, “todos eram humanos, peixes e homens eram iguais”.
Não havia (ainda) a diferença de perspectivas, em que homens vêem a si mesmos como
humanos, peixes vêem a si mesmo como humanos, etc, mas que uma ‘barreira’ no
reconhecimento entre as espécies. Naquele tempo, a humanidade era indistinta, e todos
viam-se igualmente e uns aos outros como sociedades providas de cultura. Naquele mundo
primordial, disputava-se a ‘humanidade dominante’.
A segunda época relatada pelos antigos caracteriza-se como uma era de transição,
entre aquele primeiro mundo e o atual. Nesse ciclo, Ñapirikoli cria condições para a
reprodução da ordem social, e nasce Kowai, o personagem principal desse período. Aqui,
têm início os ritos de iniciação masculina e as prescrições e regras de comportamento.
Com a lei’, surge, por oposição necessária, a possibilidade da quebra da lei. Por fim, o
terceiro ciclo, segundo Luiza Garnelo, “é um momento de conquistas culturais para a
humanidade” (2003:36-37), como a domesticação do fogo e a cultura das plantas selvagens
e medicinais. É nessa época que as mulheres roubam as flautas. É nessa época que habita a
humanidade de hoje
92
.
Assim, podemos dizer que um primeiro ciclo do mundo
93
inicia-se com a origem de
Ñapirikoli dentro do osso
94
; o segundo ciclo inicia-se com o nascimento de Kowai e finda-se
com a sua morte no fogo; o terceiro ciclo, por fim, inicia-se com os acontecimentos
imediatamente posteriores à morte de Kowai, como a confecção das flautas Kowai. Ainda
vivemos esse terceiro ciclo.
Retomando as histórias de seu Antonio, identificamos na Cidade Grande o local por
excelência do mundo primordial de Ñapirikoli
95
, quando o mundo era pequeno e diferente,
onde não havia ainda prescrições às novas gerações, que, nesse tempo, Ñapirikoli batia-
se com os espíritos canibais em disputa pela dominância da ordem do mundo. Ou, melhor,
lutava pelo direito de conformar o mundo à sua feição, para os seus descendentes. Seu
Antonio não se refere, em suas histórias, ao segundo ciclo, do aparecimento de Kowai, da
primeira iniciação dos quatro meninos (Wright, 1998) e de sua morte no fogo, pelas mãos
92
Ainda segundo Robin Wright, há os que afirmam que uma quarta época já se iniciou, com a chegada da
missionária norteamericana Sophie Muller (2005:263,264).
93
Esta, na verdade, é uma versão que tem como ponto de vista os walimanai (nós, os que estávamos por nascer).
Já existia um mundo e muito povoado, anteriormente a Ñapirikoli. Outros relatos, como o de um líder walipere-
dakenai, coletado por Wright (2005:263,264), dá conta de um estágio em que havia um ser chamado Eeko, do
qual se sabe pouca coisa, que habitava um mundo onde tudo era possível. Esse mundo teve fim com a derrubada
da árvore de Kaali (idem), não por acaso identificado como o “Adão baniwa”.
94
As narrativas de origem de Ñapirikoli relatam que ele e seus irmãos foram recolhidos por uma tia, muito
pequeninos, e guardados dentro de um osso de seus parentes mortos. Esta é também a origem etimológica do
nome de Ñapirikoli, que significa ‘ele-dentro-do-osso’ (Ñapi = osso; riko = dentro, interior; li = nominalizador)
(Ramirez, 2001).
95
Segundo narrativa de Marcelino Cândido Lino, no projeto Mitoteca: “Antigamente, a noite passava bem
rápido, ou seja, era curta, quase não existia. O sol, dessa época, ficava no centro do universo, e a terra ainda não
girava em torno dele, por isso a noite era bem rápida. Esse era o mundo verdadeiro de Ñapirikoli”.
(2004/2005:38)
94
de seu pai Ñapirikoli. O terceiro ciclo, quando Kowai vive por meio das flautas que ele
mesmo ordenou que fossem confeccionadas, refere-se à extensão do mundo por meio
dessas flautas, às conquistas culturais igualmente, por meio das flautas, que fazem fazer
coisas e à apropriação das flautas Kowai por parte das mulheres, sua fuga e posterior
desaparecimento no mundo. É nessa terceira época que surgem os desenhos nas pedras,
porque, embora as prescrições e regras de comportamento tenham sido apresentadas no
ciclo anterior, é que advém a desobediência. A primeira e principal desobediência,
segundo o seu Antonio, é justamente a apropriação das flautas Kowai pelas mulheres e a
sua fuga.
Por essa razão, contemplar a Cidade Grande de Ñapirikoli é contemplar pedras sem
desenhos e, logo, um mundo sem desobediência. É contemplar um mundo primordial
marcado pela violência e pela disputa, literalmente, indicialmente marcado: nas lascas da
pedra em razão da queda da pupunheira, no túmulo de Maawerikoli que nos lembra que foi
nesse período que a humanidade herdou a morte, não em conseqüência de alguma
desobediência, mas em razão da disputa inerente que tinha lugar naquele mundo, isto é,
em razão de ataques dos inimigos
96
. Tais inimigos, como seu Antonio lembra bem,
conheciam como Ñapirikoli o promissor futuro dos walimanai, e queriam ‘derrubá-lo
pela raiz’.
Essa seria a significação
97
dessa paisagem-signo, a contemplação do mundo
primordial, um mundo em cruel e desordenada disputa pela ordem e pela (próxima)
humanidade; a contemplação do Centro do Mundo. “A maloca de Ñapirikoli é o centro da
Cidade Grande, e a Cidade Grande é o centro do mundo”, diz seu Antonio, estabelecendo
o pomo de uma outra disputa, uma disputa simbólica e narrativa
98
, que cada grupo
estabelece o ‘seu’ centro do mundo. Para os Hohodene do Ayari, o centro do mundo é
Uapuí Cachoeira, Hipana, enquanto para o seu Alberto é o local onde aconteceu a primeira
iniciação, Jandu Cachoeira. André diz que essas histórias não se contradizem mas, ao
96
A história registrada por Wright (1999:138-143), no entanto, relata que Maawerikoli enganou a tia, dizendo
que não ia encontrar-se com os Eenonai junto com os irmãos. Assim, todos os irmãos receberem um remédio,
enquanto Maawerikoli não, porque não seria necessário. Mas ele não cumpriu sua palavra e foi. Desse modo,
morreu envenenado. O narrador, Manuel da Silva, de Uapuí Cachoeira, diz: “Começou com ele, ele que
começou, fez mal para todos nós, gente. Para todos os brancos também. Só um que começou, ele que fez, o
Mawirikoli!”.
97
Retomando Peirce, e a título de exercício: o sentido do signo, isto é, aquilo que o signo está apto a produzir,
sua interpretabilidade, poderia ser identificado como a passagem (fundada predominantemente na iconicidade)
de uma serra de pedra para uma cidade; o significado, aquilo que o signo realmente produz, tem relação com sua
condição de existente, com as histórias sobre ele (seu aspecto indicial), e pode ser expresso pela identificação
dos locais e eventos que lhe conferem a existência como ‘Cidade Grande de Ñapirikoli’. Sua significação, isto é,
o efeito pleno do signo, aquilo segundo o qual o signo tende a representar-se para todos os que possuem todas as
informações necessárias sobre ele, é o que arrisquei descrever acima. A significação, quase sempre, é o que
possibilita e induz uma certa ação ou reação diante do signo, é onde se expressa mais fielmente a sua agência.
98
Sobre isso, ver os conceitos relativos ao capital simbólico, de Bourdieu (1989), que implica em ‘fazer ver e
fazer crer’, isto é, na imposição de uma certa visão de mundo, em concorrência com outras igualmente válidas.
95
contrário, se complementam. Quantos ‘centros’ têm esse mundo? Como o próprio André
disse (talvez com outra intenção), “o conhecimento depende de onde você está”.
1.4. A caverna das Amaronai e outras paisagens-signo
Pude notar, de modo bastante significativo, o modo pelo qual as paisagens-signo se
relacionam com a memória, quando descíamos o igarapé, de volta a Barcelos. Seu Antonio,
que a montante se apresentava silencioso e misterioso, desceu o rio falando e
gesticulando, animado. A paisagem muda que até então eu conhecia revestia-se, agora, de
novos e múltiplos sentidos. Ainda perto do acampamento, poucos metros abaixo, seu
Antonio apontou para duas cavidades nas rochas, à margem direita, e as identificou como
“as bacias onde as pupunhas foram cozinhadas” (Figura 52). Logo adiante, encontramos a
cachoeira de Cabeçudo, onde registramos os primeiros desenhos feitos pelas mulheres,
apenas três signos, em conjunto, muito sugestivos: o primeiro é uma versão minimalista de
um par de flautas, o segundo é um conjunto de dois traços curvos e dois pontos (numa
configuração que lembra um emoticon da comunicação digital), e o terceiro é um conjunto
de pontos em forma de pirâmide invertida, identificado em Siuci como walipere, as
Plêiades. Segundo seu Antonio, os desenhos eram poucos e simples, aqui, porque as
mulheres ainda não tinham aberto todos os pacotes das flautas. Elas desenhavam o que
viam, e até então tinham visto muito pouco (Figura 53).
Figura 52 – As bacias da pupunha Figura 53 – Petroglifos em Cabeçudo
Adiante, seu Antonio apontou uma grande pedra no meio do rio e disse: “Aqui, as
mulheres primeiro esconderam as flautas de Ñapirikoli, embaixo dessa pedra!” (Figura 54).
Cada elemento da história encontrava ressonância num existente, e esse existente (uma
pedra, uma gruta) tornava-se um signo pleno (um Terceiro, argumento) em função da
história narrada. Seu Antonio pediu que encostássemos à margem direita do rio. Subimos
96
uma trilha íngreme, quase totalmente coberta pelo mato e, um pouco acima, nos
deparamos com uma grande caverna rochosa. Os jovens estavam visivelmente excitados
com a visita. Era “a casa dos galos da serra”, era a “morada das Amaronai”, onde as
mulheres foram viver depois que roubaram as flautas. Segundo eles, as mulheres ficaram
bastante tempo ali (Figura 55). A gruta é grande e ampla, medindo aproximadamente 12m
de largura por 12m de profundidade. A altura de sua cavidade, calculo, também estaria
próxima aos 12m. A entrada é ampla e, no interior, pilhas de pequenas pedras
amontoavam-se ao fundo. “São as mercadorias das Amaronai”, disse-me o Tiago, voltando-
se para o seu Antonio, que confirmou a informação. As mulheres eram ricas, e as
mercadorias (comida, adornos, ouro) eram a comprovação. Numa das paredes da caverna,
encontramos alguns papéis velhos e colados. Todos diziam que eles estavam ali desde
aquela época e que, antigamente, “havia letras nesse papel”, escritos das Amaronai.
Figura 54 – A pedra onde as mulheres esconderam flautas Figura 55 – A gruta das Amaronai
Após passarmos mais uma cachoeira, novamente encostamos à margem, e seu
Antonio nos mostrou uma pequena gruta rochosa à beira do rio. Disse ele que foi ali que as
mulheres esconderam a “flauta menor” (Figura 56). Finalmente, seu Antonio sentou-se
perto da proa do barco e disse para irmos direto, porque “agora não mais nada daqui
até Matapi Cachoeira”. Segundo ele, portanto, daquele ponto em diante, a paisagem seria
só paisagem, as pedras pedras, as grutas só grutas. Assim, relaxamos – à medida em que
é possível relaxar no banco apertado de uma voadeira lotada – e seguimos viagem.
No entanto, a certa altura, entre as cachoeiras do Veado e de Kherapaipani, seu
Antonio levanta-se, olha para um lado e para o outro, pede que Irineu a volta. O barco
reduz a velocidade, volta um pouco rio acima, e seu Antonio aponta um pequeno conjunto
de pedras suavemente deitado à margem, quase oculto por um vão rochoso. “Me lembrei!
Vejam, aquela é a flauta Waliadoa! Ela ainda está embrulhada, não foi aberta!”.
Novamente, a relação icônica favorece a compreensão: realmente, o conjunto de pedras,
97
de cerca de 3,5 m de comprimento, ‘parece’ com um objeto longo, embrulhado (Figura
57). Mas o que me chamou a atenção foi a lembrança súbita de seu Antonio, ao reconhecer
a paisagem (Figura 59). Aquela pedra era um ‘ícone a ser clicado’. Nenhum de nós, com
exceção do seu Antonio, sabia que aquela pedra era um ícone. A pedra (e não um desenho)
é que era “o termo final de uma série de ídéias” (Severi, 2004a). Assim, uma vez
‘acionado’, a história a que esse ícone’ se remetia pôde vir à tona, e deu-se um duplo
reconhecimento: primeiro, a pedra tornou-se (melhor seria dizer ‘transformou-se’,
utilizando o verbo baniwa lipadameeta) um ícone, que remete a histórias e eventos; e, a
partir das histórias, a pedra torna-se uma flauta.
Figura 56 – Esconderijo de flautas Figura 57 – Uma flauta ainda embrulhada
Figura 59 – A
descida do rio:
paisagem ganha
sentido
98
Uso a palavra com a qual André nomeou os petroglifos, “ícones da internet”. Em
termos peirceanos, a pedra ainda-não-signo (ou apenas potencialmente-signo, como tudo o
mais no mundo) torna-se um índice, a secundidade impondo-se sobre a primeiridade
icônica. A partir daí, temos contato com a história sobre ela (terceiridade) e, somente
posteriormente, a relação icônica aparece inequívoca, ao vincularmos a forma da pedra à
forma de uma flauta.
O último elemento significativo desse conjunto de paisagens-signo, de pedras sem
desenhos, do Alto Içana depois do ‘Porto de Ñapirikoli (Figura 60) -, é o chamado Banco
de Ñapirikoli. Para chegar até ele, empreendemos uma curta viagem a partir de Barcelos,
retomando o Içana até a comunidade de Camanaus, já na Colômbia e, depois de entrar no
igarapé Surubim, navegamos cerca de uma hora. O ‘banco’ é uma formação rochosa no
alto de uma serra. É uma pedra partida em três pedaços, medindo cerca de 0,60m de
altura por 2,10m de comprimento (Figuras 61 e 62). Sentado nessa pedra, Ñapirikoli
chamou os rios e os nomeou, e neles lançou os peixes
99
. O rio Içana (Iniali, em baniwa) foi
o último a responder ao chamado de Ñapirikoli e, por isso, recebeu poucas espécies de
peixes.
Figura 60 – O Porto de Ñapirikoli
Figuras 61 e 62 – O Banco de Ñapirikoli e a vista para o igarapé Surubim
99
Ver relato da Mitoteca na Escola Baniwa (Garnelo et al, 2004/2005:44)
99
1.5. A história de seu Olímpio: a riqueza de Manaus e o conhecimento dos brancos
De Barcelos, descemos o ana até a comunidade de Coracy, onde nos encontramos
com Olímpio Lourenço, para ouvir as histórias que ele sabia. Seu Olímpio quis primeiro
ouvir o que o seu Antonio havia dito, e Irineu passou um longo tempo contando a ele todas
as histórias que ouvimos na Cidade Grande. Seu Olímpio, então, disse que sua história seria
“um complemento” das histórias do seu Antonio, que estava ausente, em Barcelos. Antes
de contar a história, seu Olímpio deu-nos uma longa explicação, dizendo que essas
histórias são de um tempo em que não se conhecia a Palavra de Deus, quando não se tinha
o conhecimento que se tem hoje e que, por isso, os antigos acreditavam nelas. “Mas, hoje,
sabe-se que um Deus que é o criador de tudo”, diz. Segundo seu Olímpio, antes da
chegada da Palavra de Deus, Ñapirikoli era o deus dos Baniwa, era ele quem dava as regras
e prescrições, dizia o que se podia fazer e o que não se podia. Ele informa que,
antigamente, os lugares eram bastante sagrados, respeitados, ninguém podia mexer. Mas,
depois do entendimento da Palavra de Deus, isso não vale mais. “As pessoas andam
tranqüilamente, pescam onde era proibido pescar, a prática mudou”, diz. No entanto, um
dos jovens que o ouvia acrescentou, em voz baixa e respeitoso: “O espírito da mata ainda
é forte, não é bom desobedecer às regras” (Figura 63).
Figura 63 - Seu Olímpio Lourenço
Seu Antonio, descendo o rio, havia nos dito algo semelhante. Dizia ele que, hoje,
pode contar abertamente sobre tudo isso “porque não pratica mais essas coisas”, é
evangélico. “Se fosse antigamente”, disse o seu Antonio, “eu não poderia passar essas
informações, e nem as mulheres poderiam saber dessas coisas”. Para ele, relembrar o
passado é importante, e também repassar esses conhecimentos, “para construir uma
História”. Segundo ele, os Baniwa, hoje, não estão mais vinculados a essa história. “Não
são mais coisas importantes para os mais velhos”, disse, sem demonstrar tristeza,
“enquanto, para os mais novos, são só histórias do passado”.
100
Tão logo seu Olímpio começou a contar sua história, muita gente (principalmente
jovens) vem às portas e às janelas para ouvi-lo. Irineu diz que, para eles, é uma
oportunidade rara, que os velhos, hoje evangélicos, não contam mais as antigas
histórias. Era evidente, para mim, o contentamento com o qual seu Olímpio narrava a
história, como se eu fosse um ótimo pretexto para que ele pudesse, sem culpa, lembrar-se
dos tempos antigos. A história que ele apresentou, de fato, complementa as informações
de seu Antonio, e acrescenta novos e interessantes dados. A versão integral da história
está nos Anexos, e descrevo, aqui, as principais modificações ou acréscimos, em relação às
histórias de seu Antonio:
Depois que Kaali foi embora, aparece Kowai. Ñapirikoli começou a andar com as
Amaronai. Quem fez Kowai (a flauta), foram as mulheres Amaronai, e logo depois
as esconderam no igarapé. Para esconder as flautas das vistas de Ñapirikoli e as
levarem até o rio, as mulheres as colocaram em suas vaginas;
Ñapirikoli queria pegar as flautas de volta porque as Amaronai tinham vários
conhecimentos. Elas eram ricas, tinham riquezas e mercadorias. As flautas Kowai
significavam um processo de aprendizagem para o conhecimento, poder e
riquezas.
Ñapirikoli queria as flautas, e as Amaronai começaram a fugir dele. As mulheres
entravam debaixo da terra e ficavam tocando as flautas. Ñapirikoli disse então
que teria que matá-las.
Ñapirikoli fez os desenhos nas pedras, desejando ter as flautas de volta e
pensando nelas.
Ñapirikoli perseguiu as Amaronai, entrando e saindo da terra, escutando-as tocar
as flautas embaixo da terra.
Ñapirikoli bem que tentava alcançar as mulheres, mas não conseguia. E elas bem
que tentavam matar Ñapirikoli, mas não conseguiam. Elas, para se esconder, ou
se transformavam em espíritos (que Ñapirikoli não enxergava), ou se enfiavam
debaixo da terra. E foram sair em Jandu Cachoeira, onde ficaram mais tempo, e é
por isso que lá existem vários lugares que têm histórias.
De , foram embora para onde hoje é São Gabriel da Cachoeira. Ali, Ñapirikoli
tentou se transformar em uma cobra grande, porém as mulheres mataram a cobra
(mas sem conseguir ferir a ele). A cobra morta ainda está lá, perto da igreja, em
forma de uma grande pedra abaixo da Matriz, uma pedra-sucuri.
De São Gabriel, as Amaronai foram embora e saíram no lugar onde hoje é Manaus.
Foi que Ñapirikoli finalmente deixou de perseguir as mulheres. Lá, ele deixou a
borduna dele, chamada Baaraita. Por isso, em ngua baniwa, Manaus se chama
Baara. A riqueza de Manaus vem daquela borduna de Ñapirikoli, porque ela era
toda de ouro.
De lá, as mulheres foram embora, até o outro lado, até o fim do mundo, até o
outro lado do céu. De começaram a dar o conhecimento aos brancos,
conhecimento de fabricação de todo tipo de material e equipamento que existe
hoje. Ninguém vê as Amaronai, mas elas até hoje estão lá.
Se Ñapirikoli tivesse conseguido tomar as flautas de volta, os índios é que seriam
os ricos e os conhecedores, e não os brancos.
De Manaus, Ñapirikoli voltou para a maloca dele. Aqui termina a história que eu
sei.
A única informação contraditória diz respeito à execução dos desenhos nas pedras.
Para seu Antonio, as Amaronai os desenharam, enquanto fugiam de Ñapirikoli; para seu
Olímpio, foi o próprio Ñapirikoli que os fazia, enquanto perseguia as mulheres. No entanto,
o que eu gostaria de salientar, no relato de seu Olímpio, é a relação entre as flautas e o
101
conhecimento, e entre o conhecimento e as riquezas e o poder. Para ele, as flautas Kowai
fazem-saber, além de fazer-fazer. Seu Antonio havia dito que as flautas serviam para
coleta de frutas e outras ações semelhantes, mas seu Olímpio relaciona diretamente, seja
a partir das habilidades e riquezas das mulheres por portarem as flautas, seja a partir da
extensão do conhecimento aos brancos, o conhecer ao possuir. Os brancos se tornaram
“ricos e conhecedores”, portadores do “conhecimento de fabricação de todo tipo de
material e equipamento que existe hoje”. Essa expressão, ‘conhecimento de fabricação de
todo o tipo de material e equipamento’, parece estar diretamente relacionada a outra,
que diz que ‘Kowai tem em seu corpo todos os sons e todos os elementos do mundo’, com
exceção do fogo (Wright, 1998, 1999b; Hill, 1993). As flautas Kowai são o próprio Kowai
(apresentam suas propriedades), ambos se confundem. As flautas são o próprio corpo de
Kowai, porque feitas da planta (paxiúba) que nasceu no local onde seu corpo foi queimado.
Adiante, descendo o rio, certamente teremos uma melhor compreensão acerca das flautas
Kowai e seu lugar nessa rede de signos. Por ora, basta-nos o reconhecimento de seu papel
como determinante do conhecimento-para-o-fazer.
Dois elementos, no entanto, comuns às histórias de seu Antonio e de seu Olímpio,
são dignos de nota. O primeiro é o fato de que o caso do roubo das flautas (corriqueiro em
relatos de histórias entre os povos de língua arawak) termina sem que as flautas tenham
sido retomadas das mulheres. As versões hegemônicas dizem que Ñapirikoli consegue
tomar de volta as flautas roubadas e castigar (ou matar) as mulheres. Nessa versão, do Alto
Içana, as amaronai apropriam-se definitivamente das flautas, e difundem o conhecimento
(e o poder) delas oriundo para o mundo inteiro, inclusive para os brancos. E é esta – e não
a história das origens dos povos e da escolha das armas
100
, relatada por Wright (1999b:89-
92) e também na Mitoteca (Garnelo et al, 2004/2005) a razão pela qual os homens
brancos têm mais conhecimento, riquezas e poder do que os índios. No entanto, a
pergunta que fica é: se Ñapirikoli nunca mais retomou as flautas, como é que elas
permanecem como objeto sob controle de um rito essencialmente masculino, depois desse
episódio? O segundo elemento é o fato de que, em ambos os relatos, a questão da iniciação
dos jovens atrelada às flautas Kowai é totalmente olvidada. Trata-se, será, de uma
‘versão evangélica’ do mito?
100
Ñapirikoli oferece armas distintas a ancestrais de povos distintos, para que escolham. Todos pegam a
espingarda em primeiro lugar, mas ela não funciona. Uns, então, pegam o arco e a flecha, outros a zarabatana. É
o homem branco que, escolhendo a espingarda, consegue dispará-la. Por isso, ele tem mais poder do que todos
os outros (índios), porque escolheu e conseguiu manejar a melhor arma.
102
2. Camanaus: desenho longe do rio
A comunidade de Camanaus, no lado colombiano
A comunidade de Camanaus, na Colômbia, não guarda tanta distância das
comunidades curripaco do lado brasileiro, e nem distinções relevantes entre sua
organização social, mas as diferenças decorrentes da presença do Estado são visíveis, seja
na oferta de telefonia, seja nas edificações – alvenaria e telhados de zinco no lado
colombiano -, seja na organização escolar. Descansamos em Camanaus, a caminho da serra
onde se localiza o Banco de Ñapirikoli, e tivemos oportunidade de acompanhar uma grande
reunião, na qual um oficial da Marinha colombiana apresentava-se às lideranças indígenas
como candidato a um cargo importante no Departamento de Guainia. Entre as surpresas do
dia, o delicioso ‘chibé
101
de cacau’ e a notícia de que haveria uma grande pedra com
desenhos, ali mesmo, na comunidade.
nos púnhamos a caminho da beira do rio quando os homens da comunidade nos
indicaram que a pedra em questão não ficava no porto, mas para dentro da cidade,
perto de algumas casas, ao fundo. Foi a única constatação de petroglifos longe das
margens do rio que encontramos em toda a viagem. Nos deparamos, assim, com uma única
pedra grande, baixa, distante cerca de 400m do rio, localizada entre duas casas e rodeada
de vegetação rasteira. Havia, nessa pedra, um único desenho, pouco erodido,
apresentando excelente visibilidade. Rapidamente, executamos seu traçado a giz. Surgiu,
diante de nossos olhos, um desenho híbrido, grande, retangular, composto de vários
quadrados geométricos (Figuras 64 e 65). Mais tarde, ao deparar-se com nossa cópia do
desenho, o narrador Alberto Lourenço, de Jandu Cachoeira, iria reconhecer, na parte
101
‘Chibé’ é alimento imprescindível na vida baniwa. Trata-se, simplesmente, de farinha de mandioca misturada
em água fria (geralmente do rio). Bebida diretamente na caneca ou na cuia, o chibé é obrigatório durante as
viagens longas, depois das refeições e também como oferecimento de praxe a qualquer visitante, ao chegar nas
comunidades. Há, ainda, variações, onde o suco de frutas toma o lugar da água: chibé de ‘vinho’ de açaí, chibé
de omari, chibé de bacaba e, como notamos em Camanaus, chibé de cacau.
103
superior do gravado, a flauta chamada Athine. O restante do desenho estaria relacionado
aos padrões dos cestos e dos raladores de mandioca
102
.
Figuras 64 e 65 – Petroglifo em Camanaus
2.1. “Ñapirikoli é o diabo!”- signos antigos (des) (re) apropriados
Como de hábito, buscamos, na comunidade, algum ancião que pudesse nos falar a
respeito daquele petroglifo. Nos indicaram o senhor Zacarias Joaquim, um dos mais velhos
do local. Seu Zacarias acercou-se da pedra, em volta da qual estávamos todos reunidos, e
dirigiu-se sorrindo zombeteiramente a outro homem próximo, falando em espanhol.
Acreditando que eu não o entenderia, disse coisas como ‘tonterías de antropólogo’,
referindo-se ao meu interesse pelos petroglifos. Fingi não tê-lo ouvido, e fiz perguntas (em
espanhol) a respeito dos desenhos. Disse eu que estava viajando com os Baniwa,
registrando os desenhos nas pedras ao longo de todo o rio Içana, e que todos me diziam
que esses desenhos tinham sido feitos por Ñapirikoli.
– Ñapirikoli é o diabo! – falou o velho, de chofre.
Embora eu tivesse ouvido palavras com teor semelhante (de seu Olímpio, de seu
Antonio), era a primeira vez que alguém explicitava em alto e bom som, e com tanta
rudeza, essa impressão acerca do herói baniwa. “Ñapirikoli é o diabo!”, repetiu. “Mas,
então”, indaguei, “quem fez os desenhos na pedra?”. “Ele mesmo, Ñapirikoli, o diabo!”,
reiterou uma vez mais o velho Zacarias. E foi explicando que, como uma criança rabisca as
paredes recém-pintadas de uma casa, apenas pelo prazer de estragar uma bela obra, assim
Ñapirikoli ‘marcava’ as pedras dos rios, obra perfeita de Deus, “para estragá-las”. “E
também”, acrescentou, “para usurpar a obra de Deus, para enganar a todos, numa forma
102
O ralador de mandioca, ou ‘ralo’, como é mais conhecido, é um dos artefatos baniwa mais cobiçados no Alto
Rio Negro, e alcançava altos valores nos antigos Dabukuris, as festas intertribais da região, regadas a caxiri, que
duravam três dias e eram realizadas principalmente para troca de mercadorias. O ‘ralo’ é feito de uma tábua
côncava de madeira, incrustada, antigamente, de pedrinhas de quartzo (Ribeiro, 1995:65).
104
de dizer que ele é que criou a humanidade!”. Seu Zacarias continuava falando, contando
que, antigamente, antes de conhecer a Palavra, acreditava em tudo isso:
Eu dançava, escutava barulhos, rodava pelas trilhas, pelos rios... Antigamente,
as pessoas dançavam, se embebedavam, esfaqueavam uns aos outros. Agora, não. Agora
não mais disso, por causa da Palavra de Deus. Agora, não acredito em mais nada disso
[Ñapirikoli, Kowai, as danças] e nem acho importante para o povo disse o velho, em
excelente espanhol.
Seu Zacarias disse muito pouco sobre o desenho na pedra, apenas que se tratava de
“esquemas para a dança, para os raladores, para a cestaria”. Um outro homem da
comunidade de Camanaus, comentando de modo divertido a fala enfática de seu Zacarias,
disse que “o velho conheceu pessoalmente Sofia Muller, quando tinha uns quinze anos”.
“Pessoalmente?”, perguntei, espantado. “Sim”, respondeu-me o homem, sorrindo, “por
isso ele é assim, bem radical!”
Como vimos, Sophie Muller (ou Sofia, como todos a chamam) foi uma missionária
norteamericana “de espírito pioneiro e corajoso, com claras tendências messiânicas”
(Wright, 2005:228) que, tendo trabalhado durante três anos na Colômbia, no rio Guainia,
em 1948 estendeu sua missão aos Baniwa do Brasil. Durante quarenta anos de trabalho no
noroeste amazônico, até sua morte, no início dos anos 90, no rio Jawiari, Sofia traduziu o
Novo Testamento para três línguas indígenas, e trechos da Bíblia para outros oito idiomas,
ensinando muitos dos seus fiéis a ler e escrever em língua nativa. Ela treinou centenas de
pastores e implantou igrejas evangélicas em dezenas de comunidades da região (Idem).
Entre os Baniwa, no entanto, Sofia trabalhou somente poucos anos, até 1953, quando teve
que fugir do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e refugiar-se na Colômbia
103
.
Sofia, segundo ela mesma (Wright, 2005), considerava-se uma mediadora entre
Deus e “aqueles que tinham sede e não sabiam onde encontrar água pura”. Era uma
evangelista que não fazia concessões: ordenava o banimento das tradições que atribuía
com o consórcio de trechos da Bíblia – ao Diabo, como as máscaras, as danças e as práticas
xamânicas, bem como a poligamia e outras regras de comportamento. Suas regras simples
diziam enfaticamente que não se podia mais “fumar, beber, dançar” (Journet
1980/1981:133). Com isso, não os vícios ‘dos brancos’, mas também todos os rituais e
práticas xamânicas tradicionais estavam automaticamente proibidos, porque implicavam o
uso do tabaco, da chicha e de alucinógenos. Assim, o evangelismo eliminou da vida dos
Baniwa todas as manifestações sociais da cultura antiga, substituindo-as, de certa forma,
103
Em junho de 1953, o delegado Ataíde Cardoso, do SPI, depois de registrar formalmente várias queixas acerca
dos métodos usados por Sofia para evangelizar, ordenou que ela fosse levada rio abaixo a São Gabriel da
Cachoeira, para explicações. Ela, porém, fingiu aceitar a intimação e, altas horas da noite, fugiu numa canoa
tripulada por cinco remadores, subindo rio acima ininterruptamente, renovando sempre a tripulação, até chegar
ao território colombiano (Wright, 2005:233).
105
por reuniões bíblicas periódicas, principalmente a Santa Ceia mensal e as Conferências
semestrais.
Ao mesmo tempo, Sofia introduzia a Palavra de Deus, mediante a escrita. Seu
esforço evangelizador incluía, necessariamente, a alfabetização em língua nativa.
Diferentemente dos catequistas católicos, que fixavam a presença de sacerdotes e
missionários nas áreas indígenas por onde passavam, Sofia Muller treinava e ordenava
pastores e anciãos entre os próprios índios, e seguia em frente. Assim, as comunidades
evangélicas permaneciam sob suas próprias lideranças nativas. A evangelização contribuiu
para a transformação de muitos aspectos da vida comunitária dos Baniwa. Eles passaram
definitivamente das grandes malocas para as casas familiares e se agruparam em
comunidades estáveis. No entanto, segundo Journet (1980/1981), o evangelismo deixou
quase intactas as tradições que regem o parentesco, os matrimônios e as agrupações
humanas.
Sofia sofreu, por outro lado, algumas derrotas, principalmente entre os índios
Guahibo e Cuiva. Os Baniwa, no entanto, não só acolheram sua incisiva pregação, como até
hoje vivem, ou dizem viver, em conformidade com os preceitos cristãos, na quase
totalidade das comunidades do rio ana. Em algumas dessas comunidades, além de um
Centro Comunitário, podemos notar, no centro do grande pátio retangular, uma edificação
das Igrejas Bíblicas Unidas.
2.2. Religião social
Segundo André Baniwa, muita coisa na Bíblia que “já era coisa dos Baniwa
mesmo, por isso é que houve aceitação; de outro modo, não haveria”. Ele diz que os
velhos expressavam oralmente sua sabedoria, e que agora é tudo escrito na Bíblia, mas
muita coisa que está ali “já era baniwa”. Sua tese, em conformidade com a de muitos
pesquisadores que lidaram com o tema em outros grupos indígenas, supõe que a adoção de
uma ‘nova tradição’ é precedida de condições que estejam dadas entre o povo em
questão
104
. No caso dos Baniwa, é corrente dizer-se que sua complexa e rígida organização
social, bem como alguns de seus preceitos éticos herdados, por ironia, dos ensinamentos
do próprio Ñapirikoli –, foram facilitadores da aceitação do cristianismo evangélico,
104
Por exemplo, Aparecida Vilaça (1996) relata o caso dos Wari, grupo de fala Txapakura da Rondônia, que se
converteram em massa na década de 70 e, na década de 80, abandonaram (igualmente, em massa) o cristianismo
e voltaram às suas antigas práticas tradicionais. Segundo a autora, o ideal cristão de conduta, conforme proposto
pelos missionários, coincidiu com o ideal wari de conduta, que tem relação com a supressão da afinidade no seio
do grupo: “Tudo se passa como se o cristianismo lhes tivesse dado a oportunidade de experimentar, em vida, o
que só conseguiam efetivamente depois da morte: viver em um mundo de consangüíneos” (1996:113).
106
igualmente fundado em rígida organização social e de comportamentos, ao mesmo tempo
que num código moral dogmático.
O cristianismo evangélico baniwa, movimento singular, criativo e com
características bem peculiares, configura-se como uma religião social. Adoto essa
expressão em contraposição a uma religião baseada na crença individual, como se
apresenta o cristianismo protestante entre os ocidentais, na maioria dos casos. O mesmo
se deu em relação aos Wari, segundo relato de Vilaça (1996): “A adesão ao cristianismo só
se fazia eficaz se fosse partilhada pela família e pelo grupo como um todo”
105
. Para ela, a
idéia que estava em jogo para os Wari não era uma relação com um credo estrangeiro, mas
a relação com preceitos de sua própria cultura. Ao contrário do que ocorreu entre os
Guarani e seus catequizadores (Fausto, 2005), o que se deu entre os Wari foi mais um
encontro de sociologias do que de cosmologias (Vilaça, 1996:117). Segundo a interpretação
de André, teria acontecido algo similar com os Baniwa.
Nas ‘cidades’, o principal discurso dos missionários e pastores é que a salvação é
individual e pessoal, decorre do fato de um indivíduo “aceitar a Jesus Cristo como seu
Senhor e salvador”, crendo na ‘obra da cruz’ e, posteriormente, passando pela cerimônia
do batismo nas águas, que lhe atesta uma “novidade de vida em Cristo” (Freligh, 1975). O
indivíduo, só então, passa a fazer parte (congregar) de um ‘corpo social’, de uma igreja ou
denominação (‘corpo deste mundo’), e da Igreja de Cristo (‘corpo espiritual). E,
finalmente, do mesmo modo como ‘chegou a Cristo’, esse indivíduo pode desligar-se,
mudar de congregação ou mesmo “desviar-se” e perder a sua salvação pessoal. Assim,
embora o crente esteja fortemente vinculado a uma rede social (uma igreja, uma
congregação, uma comunidade), o relacionamento com Deus é pessoal, a obtenção da
salvação é pessoal, a manutenção da é pessoal. O depoimento desesperançado, colhido
por Aparecida Vilaça, de um missionário da Missão Novas Tribos do Brasil e que vivia com
os Wari há muito tempo, esclarece algo a respeito da época áurea da conversão dos índios:
“[...] Todo mundo virou crente, para imitar os crentes. [...] Crente, para
eles, era mudar de vida, e crente é uma relação íntima com Deus, que eles o
tinham conhecido. [...] Por mais que eu explique que é o espírito de Cristo que traz a
salvação, ainda ligam a salvação à sua conduta...” (Vilaça 1996:114).
Entre os Baniwa, obtive alguns exemplos que demonstram que, igualmente, a
crença social é determinante sobre uma crença individual. Embora sem ter me
aprofundado nos cultos e práticas cotidianas, pude observar que quase não se fala em
‘salvação’ ou mesmo na chamada ‘obra da cruz
106
’. A ênfase é dada à idéia de Deus como
105
Ver ainda Robbins, 2004.
106
Segundo as epístolas aos Romanos e aos Hebreus, a primeira escrita pelo apóstolo Paulo e a segunda de
autoria incerta, a crucificação de Cristo opera a remissão dos pecados de todo aquele que nela crê. Jesus, homem
107
criador (em lugar de Ñapirikoli, como vimos) e nas regras de comportamento (não beber,
não roubar, não mentir, amar o próximo, etc). A organização social das comunidades
evangélicas baniwa aponta para a impossibilidade prática ou, pelo menos, para um
grande desconforto – de algum de seus integrante ‘não crer’ (pelo menos ‘oficialmente’) e
não participar dessa comunhão. Histórias contadas informalmente falam das dificuldades
pelas quais passaram os antigos pajés, os homens que sabiam benzer, rezar, e que
conheciam as práticas xamânicas. Em muitas comunidades, estes se viram subitamente
sem função, já que as pessoas não os procuravam mais. Assim, muitos ‘se converteram’,
talvez não por decisão pessoal de abraçar uma nova fé, mas simplesmente para
permanecer sentindo-se membro da comunidade. Tendo a crer que, no caso baniwa, as
comunidades é que são evangélicas, não necessariamente as pessoas.
Um exemplo simples pode ilustrar, em tom anedótico, o que chamo de ‘religião
social’. Em conversa com um homem baniwa, em São Gabriel da Cachoeira, bem longe de
sua comunidade nativa, percebi que ele estava completamente bêbado. Perguntei por que
ele estava bebendo, que era evangélico e diácono da igreja. “Porque estou de férias”,
respondeu, simplesmente. O fato, que posteriormente veio a se mostrar bastante
corriqueiro, me fez desconfiar que a religião tem um peso maior quando o indivíduo se
encontra em sua comunidade, cercado por seus parentes, e não está primariamente
baseada em uma crença pessoal.
Ademais, Wright (1996), e também Journet (1980/1981), lembram que essa radical
‘troca’ de religiões parece não ter se dado de modo tão absoluto assim. Wright aponta o
que aconteceu em relação à música das flautas, a fala de Kowai, que foi transformada na
‘fala de Deus’, como dizem os evangélicos. Para ele, “não é adequado dizer que os
evangélicos simplesmente apagaram a identidade religiosa baniwa apenas por queimar as
flautas em público” (Wright, 2007:18). De algum modo, houve um forjar de uma nova
identidade. Wright observa, ainda, que os pajés incorporaram alguma coisa dos discursos
evangélicos às descrições de suas práticas. Assim, eles dizem que Ñapirikoli “é como nós
conhecemos o que os padres conhecem como Jesus Cristo” (1996:80). Os pajés, assim,
como eram os principais intérpretes dos ensinamentos dos missionários, utilizavam
interpretações destes de tal modo que, em épocas de rápida introdução das idéias cristãs,
não só podiam explicar perfeitamente às comunidades, de forma comparativa, essas
conexões, como ainda as utilizavam a doutrina cristã a seu favor.
e Deus, é o ‘cordeiro do sacrifício’ perfeito, o único que, com o derramamento de seu sangue, é capaz de
realizar, completamente e de uma vez por todas, a remissão dos pecados de toda a humanidade que descende de
Adão. Para que isso ocorra, cada um, de per si, é chamado a arrepender-se, crer na obra da cruz (no sacrifício) e
aceitar a Cristo como Senhor.
108
Ainda investindo nesse deslocamento de sentidos, Sully Sampaio (2000), ao
descrever uma Conferência Bíblica, traça um paralelo entre esta e os antigos dabukuris. As
Conferências são encontros realizados a cada seis meses, reunindo cerca de seis
comunidades e chegando a contar com mais de 400 pessoas. A Conferência costuma durar,
em média, 4 ou 5 dias, nos quais realizam-se cultos e celebrações. Uma Conferência
Bíblica deve ser exaustivamente planejada e organizada. A comunidade que a sediará
deve, a princípio, eleger o ‘Dono da Conferência’, responsável por toda a logística de
preparação e também da organização na data do evento. Entre suas principais
preocupações está prover os alimentos necessários para todos, durante os dias do
encontro. Naturalmente, essa atividade pode se iniciar já no término da Conferência
anterior, e durar até seis meses. Uma das funções mais interessantes da Conferência é a
dos chamados ‘policiais’, homens escolhidos pelo Dono da Conferência para manter a
ordem, o que significa, também, impedir que jovens rapazes e moças se encontrem para
namorar.
Sampaio destaca alguns acontecimentos que têm lugar durante uma Conferência
Bíblica, não diretamente relacionados aos cultos, batismos, Santa Ceia, leituras bíblicas ou
outras atividades religiosas (2000:45-47). Primeiramente, a Conferência promove o
encontro de parentes que não se vêem muito tempo, e as intermináveis conversas
repletas de perguntas acerca de tal e tal parente sempre têm lugar no primeiro dia do
encontro. Além disso, há a possibilidade de se ‘fechar negócios’, quando as pessoas
aproveitam para realizar trocas comerciais envolvendo vários produtos, como a pimenta,
raladores e outros. A Conferência propicia, também, a circulação de informações
‘políticas’ que favorecem as tomadas de decisões nas associações do movimento indígena
da calha do Içana. Por fim, podem acontecer trocas matrimoniais, mesmo que esses
contratos sejam ‘firmados’ e concluídos depois, em outra ocasião. Por tudo isso, é possível
enxergar as Conferências Bíblicas e os antigos dabukuris como eventos que, de certo modo,
funcionam segundo os mesmos objetivos e estrutura (:50).
Lembro, ainda, a história de uma jovem liderança baniwa citada por Luiza Garnelo
(2003:96-98) que, evangélico e com um cargo importante no movimento indígena,
acreditando-se vítima de veneno, aceita os serviços de um pajé curripaco, que o trata e
promove uma certa melhora. Mais tarde, chega a São Gabriel onde o jovem morava seu
tio materno, um pajé hohodene que, após usar o paricá e identificar o foco da doença
(envenenamento por outro xamã, com intenções de matá-lo, por inveja de seu cargo
político), declarou-se, tal a gravidade do envenamento, incapaz de curá-lo, caso o
sobrinho continuasse à frente da Organização que liderava.
109
O exemplo nos alerta para a ambigüidade segundo a qual os Baniwa circulam e,
com eles, a profusão de signos que os acompanha -, entre as novas e as antigas tradições,
e com que reservas é preciso entender a organização, as práticas e, sobretudo, as crenças
e ressignificações implicadas na ‘nova’ religião baniwa.
IV. A JUSANTE
1. A história de seu Marcelino: Os tempos antigos e a disputa pela humanidade
dominante
A comunidade de Tamanduá
O velho Marcelino Cândido Lino (Figura 66) é um homem cercado de polêmicas, no
rio Içana, e não é difícil entender por quê. Marcelino não é evangélico e nem católico.
Rejeita veementemente (e igualmente) padres e pastores, e vive segundo as chamadas
‘antigas tradições’ baniwa, em sua pequena comunidade de Tamanduá, na fronteira com a
terra curripaco. Ao mesmo tempo, seu Marcelino torna-se um incômodo para as
comunidades porque, além de optar por esse modo de vida, não o faz discretamente. Ao
contrário, é comum segundo me disseram que ele, nas assembléias e reuniões, assuma
em alto e bom som essa opção e ainda admoeste duramente os seus parentes, batendo no
peito e dizendo: “Não há ninguém como eu no Içana! Tenho três mulheres
107
, e cada uma
tem sua casa, sua roça, sua canoa! Eu sou o último homem do Içana!”.
107
Antigamente não havia, entre os Baniwa, restrições à poligamia. Hoje, em virtude da religião, a monogamia é
a regra e a prática comum.
110
Figura 66 - Seu Marcelino
Seu Marcelino é walipere-dakenai, e nos recebeu com chibé e cozido de jacaré em
sua pequena comunidade, onde moram apenas ele, as três mulheres, os três filhos, as
noras e os netos. Quando chegamos, logo ouvimos o som de uma forte buzina, em lugar do
sino característico das comunidades evangélicas. Era seu Marcelino que chamava os filhos,
avisando que havia visitantes na comunidade. Irineu me contou que era assim que,
antigamente, os integrantes de uma comunidade se comunicavam a distância
108
.
Segundo Irineu e Tiago, seu Marcelino, provavelmente, tem flautas Kowai. Tiago
disse que ele tocou (flautas comuns) durante a formatura dos meninos, na Escola Pamáali,
e que ele toca muito bem. Sentou-se conosco no pequeno centro comunitário feito de
varas de madeira, longe da vista das mulheres, e contou-nos a história sobre a origem de
Kowai e das flautas.
“Vou contar a história da maneira como entendo sobre os desenhos nas pedras”,
iniciou, assegurando de início que os autores de todos os desenhos foram Ñapirikoli e Kaali,
executados com “uma coisa de escrever, como um bastão”. Disse ele que os dois não
escreviam (dana
109
) com o dedo, porque a pedra era dura, como é hoje, mas se tornava
mole com aquele instrumento que eles tinham. Depois, seu Marcelino praticamente
esqueceu-se um pouco da autoria de Kaali, e disse que “os desenhos nas pedras são de
Ñapirikoli, imaginando como é que apareceram as flautas [Kowai]”. Segundo ele, os
desenhos servem para que a nova geração (walimanai), que somos nós, vejam e aprendam,
para que possamos imaginar como eram os tempos antigos e como eram as coisas que se
faziam antigamente. Seu Marcelino disse que eles, Ñapirikoli e Kaali, desenhavam todas as
108
Ver nota 76, a respeito dos trocanos. O principal meio de comunicação entre as comunidades baniwa e entre
todos os habitantes do Rio Negro, hoje, é a radiofonia. Acredito que um estudo acurado das várias faixas de
onda, da rede, do uso e dos sentidos dessa comunicação é algo que se torna cada vez mais urgente para a
compreensão das relações entre as comunidades, as etnias, as línguas e as diversas instituições do Rio Negro.
109
Dana’ é um verbo, que significa igualmente ‘desenhar’ e ‘escrever’. Ver também o tópico IV.3.
111
coisas que benziam: peixes, animais, kuaru
110
. E imaginavam como seriam as flautas, os
balaios. Ele fez uma relação com as rezas, que será retomada adiante:
Quem conhece as rezas sobre os desenhos, começa do alto, percorrendo todo
o caminho que Ñapirikoli fez, até embaixo. Ele andou em toda parte, desenhando nas
pedras dos igarapés, nas pedras onde aconteceram coisas. Na época, o mundo era
bem pequeno. Quando Ñapirikoli ia escrever numa pedra, era como se estivesse indo
para roça. Era também como se estivesse escrevendo no mundo todo. Ele já sabia que
teria gente morando aqui, por isso tem desenho até na cabeceira do rio Querari.
Seu Marcelino expressa uma certa desesperança em relação ao conhecimento (o
sentido) dos desenhos nas pedras. Para ele, tal conhecimento “é como qualquer outro;
quem estuda pouco, não sabe o que vem depois”. Ele diz que, para que pudéssemos
compreender, hoje, esses desenhos, necessitaríamos de um conhecimento maior, um
conhecimento dos antigos. Ele exemplificou com as séries escolares, onde não se pode
aprender disciplinas da 8
a
série sem antes ter passado pela 1
a
, 2
a
, 3
a
, e assim por diante.
Segundo ele, voltamos, atualmente, à infância desses conhecimentos, se comparados aos
antigos e, por isso, os signos nos são, em grande medida, incompreensíveis. “Eles falam
sobre o passado, não dizem nada hoje”, diz seu Marcelino, acrescentando que “o seu
sentido se perdeu”. Um sentido, no entanto, que permanece pleno, é indicial, como
vimos: “Todo lugar onde tem desenhos nas pedras é um lugar por onde Ñapirikoli passou”,
confirma seu Marcelino.
Ademais, (sempre) algo que podemos saber. Os desenhos sobre os quais seu
Marcelino emitiu opinião podem ser vistos, a partir de suas palavras e histórias, sob dois
pontos de vista. Tais abordagens, de resto, parecem aplicar-se a todos os signos descritos
até aqui. Todos são “coisas do passado”, e é que têm origem. A direção dos desenhos é
inequívoca e unânime entre os Baniwa: eles foram feitos por Ñapirikoli (de um mundo
primordial) para os walimanai, as novas gerações (para o mundo atual). Suas duas funções
principais estão, ambas, relacionadas ao conhecimento. A primeira diz respeito à
memória, e a segunda ao aprendizado.
Vejam e se lembrem A primeira de suas funções é ativar a memória acerca
daquilo que se extinguiu. Ñapirikoli sabia que iria matar Kowai, e a forma de reter a sua
imagem (“tal como ele era”) foi desenhando-a na pedra. Ao mesmo tempo, os desenhos
cumprem a função de ativar uma memória’ que está mais para uma ‘visão’ (“imaginar”,
foi a palavra usada por Irineu, ao traduzir), como uma fotografia de um mundo que não
110
Seu Marcelino, ao ser informado acerca do desenho kuaru, identificado por Ortiz como um desenho de
proteção (Ortiz e Pradilla, sem data), tatuado no braço de um homem, disse que não é o desenho que protege, e
sim a tinta com a qual o homem havia se pintado, que é feita de substâncias medicinais e é benzida.
112
existe mais e ao qual apenas os xamãs têm acesso, por meio do paricá
111
, quando eles se
tornam “como Ñapirikoli”. Resta saber se esses xamãs podem, por exemplo, redescobrir o
sentido dos desenhos.
Ñapirikoli desenhou os animais que foram criados com Kowai e não existem, e os
desenhou para “mostrar como eram os tempos antigos, e todas as coisas que se faziam”.
Esse é o sentido de ativar a memória do mundo antigo e desaparecido. Aqui, tal
mecanismo utiliza-se de ‘escadas de acesso’ a esse mundo (semelhantes ao paricá,
considerada a ‘escada para o céu’ (Wright 1996:81,97)): o signo gravado na pedra ativa a
memória dos walimanai sobre certas histórias que apenas alguns narradores retêm e que,
por sua vez, ativam uma certa ‘memória imaginativa’ dos ouvintes, ao descreverem o
mundo antigo. Vinculo, aqui, a memória ao que se poderia supor um ato imaginativo,
porque esta se refere não propriamente a uma memória individual de fatos acontecidos e
presenciados, autobiográfica, dos quais é possível reter ‘lembranças’, mas a uma memória
social e coletiva.
A comparação que me ocorre é uma visita de adultos, guiada, ao Museu Imperial,
em Petrópolis, onde, diante do original de um documento assinado por D. Pedro II, o guia
nos conta quem foi esse homem que ali viveu, o que fez, qual era a situação de seu
governo, etc. O documento manuscrito cumpre uma função indicial (D. Pedro II esteve
aqui, colocou sua marca nesse papel), ativa a memória do narrador (o guia) para contar
sua longa história decorada e esta, por sua vez, ativa nossa memória coletiva acerca de um
mundo que não existe mais, monárquico, quase 200 anos no passado. Não se trata,
assim, de simplesmente levar-nos a ‘imaginar’ como era esse mundo, mas de ativar sobre
ele tudo o que sabemos, tudo o que soubemos, ouvimos, lemos ou vimos em outras
imagens. Ou, em palavras peirceanas, de desencadear uma certa semiose.
Faz parte dessa construção, ainda, a relação estipulada pelo seu Marcelino,
envolvendo os desenhos e as rezas que, até então, não havia aparecido nas palavras dos
narradores do Içana, nem na literatura sobre os cânticos. Não foi possível obter mais
informações a respeito dessa fala do seu Marcelino. Ele mesmo, quando inquirido,
desconversou, dizendo não saber de nada além disso (“Os antigos, sim, esses sabiam
tudo!”). Não pude perceber se ele realmente não tinha mais conhecimentos ou, por outra,
se estava empenhado em encobrir o que sabia. Lembro que seu Marcelino, ao contrário dos
narradores evangélicos - que afirmavam só me contar as coisas porque não mais as
praticavam -, está imerso nas tradições e convicto da presença e das regras de Ñapirikoli
neste mundo. Para ele, contar as histórias sobre o herói e seu filho Kowai não faz parte de
nenhum ‘resgate’ ou ‘valorização de tradições’. Trata-se, simplesmente, de narrar o que
111
Ver Wright (1996) e Hill (1993)
113
vive. Ou, em certos casos, da impossibilidade – em virtude de um segredo – de narrar o que
vive.
As rezas, ou benzimentos, relacionam-se, na origem, aos cânticos malikai, descritos
por Hill (1993) e Wright (1993). Tais cânticos formam um gênero complexo de linguagem
mítica, incluindo performances faladas e cantadas em vários contextos rituais e sagrados.
As rezas e benzimentos podem ser vinculados aos signos nas pedras segundo as falas de
seu Marcelino - por meio de dois elementos: a partir de sua localização ao longo do rio,
“percorrendo todo o caminho feito por Ñapirikoli” e, também, a partir do processo mítico
de nomeação das coisas e, assim, trazê-las à existência. Esse primeiro elemento tem uma
função predominantemente indicial-icônica (diagramática). “Os desenhos eram como um
mapa para nós, mostrando os lugares importantes onde coisas aconteceram”, como disse
seu Marcelino. Esse ‘mapa’ pode ser entendido como um diagrama geográfico descritivo e
ainda como um mapa cognitivo, destinado a ativar a memória
112
.
Quanto à nomeação das coisas, ainda que seja algo imprudente, por falta de dados,
relacionar de imediato tais benzimentos aos malikai
113
, de todo modo pode-se entrever
uma relação estreita entre ela e os desenhos. Seu Marcelino diz: “Antigamente, era assim.
Eles [Ñapirikoli e Kaali] desenhavam todas as coisas que benziam: peixes, animais, kuaru. E
imaginavam as flautas, os balaios”.
‘Benzer’ é, de certa forma, nomear. Nomear é, de certa forma, criar (como os
balaios e as flautas, ainda não existentes). Seu Alberto Lourenço, em história narrada para
a ‘Mitoteca da Escola Baniwa’ (Garnelo et al, 2004/2005:147) diz que “Ñapirikoli começou
a benzer a comida, e o seu irmão Dzooli ia ouvindo e recitando os nomes dos animais”. E
ele acrescenta: “A mesma coisa é feita hoje em dia: no benzimento para a carne do peixe,
fala-se sobre os animais, com seus respectivos nomes, junto à pimenta”. Por que razão
Ñapirikoli e Kaali desenhavam os seres que benziam/nomeavam? Talvez como uma forma
outra de ‘nomeação’, inscrevendo-os na pedra, materializando-os uma escritura,
literalmente, avant la lettre - ou, talvez, simplesmente como indicação de que tais seres
foram ali benzidos/nomeados/criados por eles.
112
A esse respeito, ver o trabalho de Carlo Severi, sobre a memória ritual, no qual o autor descreve o canto kuna
do Um-Igala, vinculado a três elementos mnemotécnicos clássicos: o paralelismo do verso, o espaço e os
pictogramas (1993).
113
Segundo Hill, os wakuenai, da Venezuela, distinguiam dois princípios de nomeação dos espíritos (1993). O
primeiro é um processo taxonômico de invocar nomes-espíritos, e envolve o estabelecimento do quadro básico
de categorias semânticas, descrevendo a primeira criação mítica, como peixes, animais aquáticos, animais da
floresta, pássaros, plantas selvagens e domesticadas, etc. O segundo princípio envolve uma “hiperanimada
atividade de movimento através de uma enorme variedade de categorias genéricas de seres míticos” (1993:14).
“Vamos à procura dos nomes”, dizem eles, e isso implica no alargamento de duas ou mais categorias de modo a
incluir dois ou três nomes específicos na criação de um novo. Esta segunda forma, naturalmente, é a mais
poderosa, já que termina por gerar um novo ‘ser’.
114
Vejam e aprendamA segunda função dos signos é o ensinamento. Ñapirikoli, para
seu Marcelino, desenhou nas pedras para que as novas gerações “vejam e aprendam”.
Segundo ele, os primeiros desenhos de Ñapirikoli são aqueles para serem feitos nos
artefatos baniwa, mostrando os conhecimentos e as técnicas daquele tempo. Este sentido
de ‘mostrar’ refere-se ao como-fazer, e tem força de prescrição. “É assim que deve ser
feito”. Comentando os inúmeros desenhos de peixes que eu havia copiado dos diversos
sítios visitados, seu Marcelino diz que naquele tempo não havia nem peixe e nem caça, que
todos eram seres falantes, “mas Ñapirikoli sabia que, para essa nova geração, teria que
ensinar essas coisas”. Em outro momento, ao ser questionado se uma figura que apresenta,
lado a lado, um peixe e um homem (Figura 67), poderia ‘contar uma história’, seu
Marcelino foi enfático: “Sim, esse desenho conta uma história! Ele diz que, naquele tempo,
homens e peixes eram iguais, não havia diferença entre eles, todos eram gente!”.
Figura 67
Ñapirikoli antevia que, nesses nossos tempos, não seria mais assim. Embora exista a
compreensão de que os animais, dentro de suas espécies, sejam capazes de ver a si
mesmos como gente
114
, esta visão de uma humanidade indistinta estava restrita “àquele
tempo”. Por essa razão, Ñapirikoli viu a necessidade de ‘ensinar’ aos seus descendentes
que: i) Naquele tempo, todos eram gente; e ii) Agora, no nosso tempo, peixe é caça, é
presa, é comida. Daí, naturalmente, decorre uma série de ensinamentos práticos (também
114
Para Eduardo Viveiros de Castro (1996), tal compreensão é comum a diversos povos indígenas da América
do Sul, para os quais (segundo muitas variações) há uma intencionalidade de atos e propósitos comum a todos
os seres. Viveiros de Castro denomina essa noção de perspectivismo cosmológico, ou multinaturalismo – em
oposição ao multiculturalismo – segundo o qual aquilo que distingue os diferentes tipos de gente são seus
corpos, não suas culturas. Vale lembrar, ainda, o conceito de Ecosofia, de Karl Arhen (1993) que, a partir de
estudo entre os Makuna, enxergou a compreensão de que todo os seres vivos têm uma forma material e outra
imaterial, invisível, mas percebida pelos xamãs durante seus transes, e que podem, de acordo com sua
cosmologia, ser encaixadas como presa e que também compartilham de uma sociedade única, mas diversificada,
com os humanos. A diversidade de forma exterior disfarça uma unidade interna de essência espiritual, o que
coloca os animais como parentes virtuais dos índios, com uma relação íntima através de rituais e festas. A partir
daí, Arhen desenvolve um conceito de ponto de vista, onde cada ser pertencente ao cosmo Makuna possui sua
própria e legítima visão de mundo. Interessante relacionar essa idéia com a frase de seu Alberto Lourenço: “Os
peixes são assim como nós, diferentes” (Garnelo et al, 2004/2005:137, ênfase minha).
115
inscritos nas pedras, segundo seu Marcelino e os demais narradores) acerca das diversas
espécies de caça, de como produzir venenos e construir armadilhas, de como identificar as
épocas corretas de caçar tal ou tal espécie, etc.
Um bom exemplo desses ensinamentos encontra-se nos relatos de Alberto Lourenço
para a ‘Mitoteca da Escola Baniwa’ (Garnelo et al, 2004/2005:138), Ele diz que “para eles
[os peixes], os lagos são comunidades e os peixes são pessoas”. E continua:
“Eles dançavam com o instrumento musical japurutu-surubim, dentro da casa,
eles dançavam e os humanos que estavam com eles viam tudo. Aqui, nesse mundo, a
casa de peixe é para nós a samambaia. Às vezes, ouvimos um barulho dentro, é
porque eles estão dançando. (...) Para nós, eles são peixes, mas eles são pessoas”.
Adiante, seu Alberto apresenta de maneira muito clara a barreira que separa nossa
humanidade da humanidade dos animais, principalmente em relação aos mecanismos de
predação, isto é, à relação assimétrica construída pelas perspectivas presa/predador,
constituída quando Ñapirikoli derrotou os espíritos canibais e ‘estendeu o mundo’,
soprando as flautas Kowai.
“O inambu, ou melhor, todas as aves, se sentem pessoas. Para eles,
acontecem as coisas do jeito que acontecem para nós, mas ao contrário. Para nós, as
armadilhas são visíveis, mas, para as aves e os animais, a armadilha é invisível, eles
não a vêem. Assim é para os animais. Para nós, o que é invisível é a doença chamada
sopro, que acontece com a gente. Para nós, ela é que é a armadilha. Acontece, e
ninguém vê, nós só sentimos quando ela ataca e a pessoa fica doente”.
A dificuldade que se apresenta (para quem não sabe onde ‘clicar’) é olhar para um
desenho de um peixe e entendê-lo como um ‘ensinamento’ desse tipo, vinculado tanto a
concepções de caráter ontológico, quanto a técnicas e modos de proceder em atividades
cotidianas. Novamente, o ‘ensinamento’ parece estar o exatamente no desenho, mas
nas histórias e nas próprias práticas. Retomemos, como exemplo, o caso dos padrões das
cestarias, já citado em II.3, à luz da experiência já citada de David Guss entre os Yekuana.
Guss (1990) relata que, dispondo-se a ouvir os mitos e histórias dos Yekuana da Venezuela,
sentiu-se desconfortável quando os índios lhe aconselharam a aprender a fazer cestos.
Depois de muito insistir acerca das histórias, e receber a mesma resposta que, de resto,
lembra anedotas de mosteiros zen , Guss rendeu-se e foi aprender cestaria com um dos
mais velhos e habilidosos da aldeia. Surpreendentemente, para ele, ao começar a fazer os
cestos, percebeu que os padrões e desenhos que ia aprendendo tinham histórias por trás, e
estas lhe iam sendo narradas à medida que executava o trançado. Entre os Yekuana, os
desenhos serviam como chaves para as histórias. Desse modo, as práticas de confecção de
cestarias e as práticas mítico-xamânicas estavam com o perdão do trocadilho
estreitamente entrelaçadas.
116
Assim, os signos baniwa entendidos como padrões para serem aplicados nos cestos,
na verdade podem estar referidos a todo um modo de fazer no qual estão implicados a
colheita do arumã, sua preparação e tingimento, o estabelecimento do desenho, a
tessitura e o acabamento. Um desenho, assim, pode funcionar não exatamente como um
ícone, em relação de semelhança imagética, mas como uma chave da memória para
histórias e técnicas e, até mesmo, de histórias.
O que faz o desenho na pedra? Para permanecer na linguagem e na imagem de
André Baniwa, cria o link entre o mundo antigo (de Ñapirikoli) e o atual, remetendo
aqueles que “sabem onde clicar” aos ensinamentos que estão na memória (individual,
social), sejam estes ensinamentos histórias sobre as origens, sejam técnicas bem precisas
de como-fazer. Compreendo que esta é uma interpretação (ainda) sem fundamentos
empíricos que a justifiquem. No entanto, tendo em mente a abdução peirceana, proponho
que a retenhamos às vistas por mais um pouco, a ver se ela é confirmada ou não, enquanto
‘descemos o rio’.
Podemos assegurar, no entanto, que ambas as funções e abordagens dos signos
(memória e ensinamento) são o desdobramento de uma única função, também atribuída
aos cantos malikai e às histórias dos narradores: estabelecer uma continuidade entre um
mundo e outro, entre aquele mundo primordial da indiferenciação entre humanos e não-
humanos e este “universo cultural diferenciado” (Hill, 1993:21), reformado por Ñapirikoli
para uso das novas gerações. Em proporções reduzidas se observados em relação aos
malikai -, tais desenhos podem ser entendidos também como parte da restauração das
relações entre os ancestrais míticos (principalmente Ñapirikoli) e seus descendentes.
“Assim ele foi, escrevendo nas pedras até o outro lado do mundo”, finaliza o relato
seu Marcelino, o ‘último homem do Içana’.
2. As duas histórias de Seu Alberto: Ñapirikoli, o criador
A comunidade de Jandu Cachoeira
117
Alberto Lourenço é um velho walipere-dakenai, do sib Awadzooro, e mora em
Jandu Cachoeira, no Médio Içana (Figura 68). Seu Alberto nos recebeu em dois dias
seguidos, e contou duas histórias cada uma com exatos 45 minutos de gravação –, a
primeira sobre a origem de Ñapirikoli e a segunda sobre a origem das flautas Kowai. Ele as
contou no Salão Comunitário, com jovens e mulheres em volta. Seu Alberto contava as
histórias dramatizando, com muita seriedade, fazendo sons e gestos. Seu Alberto era pajé,
e abandonou as atividades em razão da crença evangélica. Recentemente, deu vários
depoimentos e narrou muitas histórias para os estudantes da escola Pamáali, como parte
do projeto de pesquisa ‘Mitoteca na Escola Baniwa’. Diz ele que, por conta disso, voltou a
ser respeitado na comunidade, em função da retomada do interesse pelas histórias antigas
(que só ele sabia contar). “Até fizeram uma casa para mim”, disse.
Figura 68 – Seu Alberto Lourenço
Seu Alberto narrou com detalhes a origem de Ñapirikoli (a versão integral encontra-
se no Anexo VII.5), com pouca variação significativa em relação à coletada por Wright
(1999b:33-41). Em resumo, seu Alberto diz que, antes do surgimento de Ñapirikoli, havia
um mundo e gente no mundo. Um certo Dzawi
115
, de um povo-onça, matou todos os
parentes de Ñapirikoli. A mulher de Dzawi era tia de Ñapirikoli (que ainda não tinha
nascido) e, quando soube da matança, foi à antiga cidade de seus parentes. Entre as
vísceras de seus parentes mortos, lançadas ao rio por Dzawi, essa mulher viu dois pequenos
seres, do tamanho e em forma de grilos, que haviam sobrevivido. Eram Ñapirikoli e seu
irmão Dzooli. A tia, então, recolheu um osso de seus parentes, tirou o tutano e ali guardou
os dois, enquanto eles cresciam. A tia escondeu o osso no canto da maloca, para que Dzawi
não encontrasse os dois sobreviventes.
Aos poucos, as crianças foram crescendo e iam à roça com a tia. Dzawi percebeu, e
tentou matar os meninos. A tia intercedeu, e ele concordou em mantê-los em casa. No
entanto, Dzawi tentava por todos os modos matar os meninos, mas eles sempre
115
Dzawi’ é a palavra baniwa para onça, jaguar.
118
escapavam, e cresciam, e aprendiam. Em certo momento, resolveram matar a própria tia,
mesmo admitindo que ela havia feito muito bem a eles. Após matar a tia, mataram Dzawi
e, depois de matarem os dois, saíram pelo mundo, combatendo e eliminando todos os
inimigos que encontravam pela frente (a anta, um iñami
116
, um tamanduá, e muitos
outros). Até que, por fim, chegaram até onde moravam outra tia, seu marido (sempre um
Dzawi) e muitos outros Dzawi. Ali, Ñapirikoli defronta-se com o maior dos Dzawi,
justamente o marido da tia. Seu Alberto diz que eles “cresceram em poder, até subir e
bater no céu”. Ficaram cara a cara, e nenhum conseguiu bater o outro. Por fim, Ñapirikoli
fez uma reza que matou de uma vez todos os Dzawi e, de tão forte, também a tia. Depois
disso, os dois irmãos voltam à Cidade Grande. Seu Alberto não sabe se ainda estão lá.
Seu Alberto descreve Ñapirikoli como o criador de tudo o que nesse mundo. “Ele
era sabido para fazer coisas”, diz
117
(Garnelo et al, 2004/2005:144). Diz, ainda, que “tudo
foi feito por Ñapirikoli, utilizando seu cigarro” (:140). Não se trata, no entanto, de uma
criação ex nihilo, ou mesmo de uma ‘fabricação’ no sentido tecnológico, mas de uma
transformação do mundo segundo um objetivo preciso, isto é, servir de morada e prover
alimentos para as novas gerações. Este é o real sentido de ‘criação’ entre os narradores
baniwa: a adequação de um mundo existente, com a extinção de seres e coisas e
aparecimento de outros seres e coisas, em função de uma conquista, de uma vitória sobre
muitos inimigos que, igualmente, disputavam o privilégio de conformar o mundo à sua
feição. Diz seu Alberto:
“Eram três irmãos: Ñapirikoli, Dzooli e Éeri, que estavam sentados pensando
como seria o mundo para os walimanai, nós, as pessoas. Eles estavam fazendo
cigarros, e se perguntaram: ‘Como seria?’” (Garnelo et al, 2004/2005:139)
Outro narrador da Mitoteca, Fernando José, de Tucumã Rupitã, relata uma história
parecida, distinguindo as habilidades e funções de cada um dos irmãos:
“Ñapirikoli, Dzooli e Éeri eram três personalidades, cada um fazia uma coisa.
O Ñapirikoli era imaginador, pensava em criar as coisas do mundo para as deixar para
nós. Já a personalidade de Dzooli era de dizer como devia ser feito. Éeri era
executor, ou seja, quem fazia as idéias de seus irmãos acontecerem na prática.
Sentados juntos, eles faziam cigarros e fumavam. Daí, começavam a imaginar como
seria o mundo e o que ainda precisava ser feito. O cigarro ia passando pelas os de
cada um, até chegar às mãos da pessoa que o havia acendido e feito circular no
grupo, no caso, às mãos de Ñapirikoli, porque foi ele quem pegou o cigarro, acendeu,
fumou e soprou a fumaça no meio deles.” (Idem:55)
As tias de Ñapirikoli eram as Amaronai. Seu Alberto diz que elas eram cinco.
Ñapirikoli matou duas, e três sobreviveram. Essas três foram as que, mais tarde, roubaram
as flautas. “Só temos fábricas e todas essas coisas produzidas porque Ñapirikoli não matou
116
Um ‘diabo’, um ‘demônio’, como diz o próprio seu Alberto, um espírito da natureza.
117
Utilizo aqui trechos da história que seu Alberto narrou quando de nossa visita a Jandu Cachoeira, e também
trechos coletados pelos jovens estudantes da Pamáali, por meio do projeto Mitoteca.
119
todas as tias”, disse seu Alberto, e concluiu: “Se ele tivesse conseguido matá-las, não
teríamos nada disso”. As mulheres estão, assim, tanto no relato de seu Alberto, quanto
naqueles de seu Antonio e seu Olímpio, identificadas como responsáveis (‘Donas’) de toda
uma gama de produção e tecnologias de fabricação de equipamentos e coisas, e de
processos artesanais e manufaturas
118
. Os homens, a partir de Ñapirikoli, estão
identificados com a produção por meio do pensamento, do tabaco, do sonho. A eles
compete o estabelecimento e o controle da relação de predação (caça, pesca) e da
negociação com os seres míticos, visando à manutenção e recuperação da saúde. O fazer-
neste-mundo, portanto (quer se a partir do uso das flautas Kowai, quer não), está
vinculado às mulheres ancestrais, enquanto o saber-de-entre-mundos
119
está vinculado aos
heróis Ñapirikoli, Kowai, Dzooli, Éeri. Atualmente, a faina da roça e da produção de
alimentos é atividade principal das mulheres baniwa, enquanto aos homens compete todo
o relacionamento do ‘eixo vertical’
120
, que envolve a caça e a pesca e o xamanismo.
Interessante notar que, entre os Baniwa, a confecção da cestaria está a cargo dos homens.
Será por que essa atividade que envolve a aplicação dos signos
121
- seria considerada
como um ‘saber-de-entre-mundos’, e não um ‘fazer-deste-mundo’, como nosso primeiro
olhar poderia sugerir
122
?
Para seu Alberto, foi Ñapirikoli quem executou os desenhos nas pedras, a partir de
Jandu Cachoeira que, então, era o Centro do Mundo. Os desenhos estão vinculados à
história de Kowai e às flautas, como demonstra a segunda história que ele nos contou.
2.1. O Corpo de Kowai: Todos os elementos, todos os sons, todos os signos
Como vimos, na seção II.5, Kowai, filho de Ñapirikoli e Amaro, nasceu
monstruoso. Seu corpo é formado por todos os elementos do mundo exceção do fogo), e
seus zumbidos e cânticos formaram todas as espécies de animais (Wright, 1996:87). Kowai
ensina à humanidade os primeiros ritos de iniciação, mas é morto por seu próprio pai,
118
Para Hill (1993:XV), Amaro é uma categoria extraordinariamente poderosa de nomes-espíritos ligados a
‘coisas quentes’, como ferramentas de metal, armas de fogo e doenças contagiosas trazidas à região pelos
homens brancos
119
Por fazer-deste-mundo tenho em mente a descontinuidade, a produção descontínua em que certos materiais e
objetos, combinados por meios técnicos, tornam-se outros. Por saber-de-entre-mundos tenho em vista a
continuidade, não só do mundo primordial com o mundo dos walimanai, por meio dos cânticos, das flautas, dos
ritos, dos signos, mas também entre este nosso mundo, os mundos subterrâneos (iarodatti) e os celestiais, por
meio do paricá, das prescrições e dos sonhos xamânicos.
120
Ver Wright, 1996:91
121
No livreto Arte Baniwa, editado em conjunto por ISA/FOIRN/OIBI (2001), tais padrões geométricos são
chamados de ‘sílabas gráficas’. A expressão não me parece totalmente adequada, visto que não há combinações
dessas sílabas de modo a formar, por exemplo, ‘palavras gráficas’. Eu adotaria, de modo mais pertinente, a
simples expressão ‘grafemas’, como unidades gráficas primordiais, mesmo que estas não se combinem entre si.
122
Entre os Yekuana, como vimos no relato de Guss (1990), a cestaria é uma atividade relacionada aos mitos
xamânicos.
120
lançado ao fogo, o único elemento capaz de destruí-lo. As histórias dizem que o corpo de
Kowai não era feito de todos os elementos, mas igualmente de elementos
‘manufaturados’, como cacetes, terçados, machados, armas de fogo (Figura 69).
Figura 69 – Desenho de Kowai, em Uapuí, copiado por Koch-Grünberg
Dizem, ainda, que o seu corpo é “cheio de buracos que produzem melodias”
(Wright, 1996) e que, quando ele canta, todas as partes de seu corpo soam; quando ele
fala, todas as partes se pronunciam (Garnelo et al, 2004/2005:118). Seu Alberto diz, ainda,
que cada parte do corpo de Kowai servia para alguma coisa, e que ele é todo veneno e é o
Dono do Veneno e das Doenças. Para ele, o corpo de Kowai não se apresentava apenas sob
uma única forma, ao contrário, modificava-se o tempo todo, o que justifica a grande
variedade de desenhos nas pedras sobre Kowai, retratando-o de modos diferentes. “São
várias maneiras de ver Kowai”, disse. Seu Alberto explicou, ainda, que cada parte do corpo
de Kowai é um instrumento musical e que, hoje, os velhos se lembram disso, quando fazem
as rezas. Wright (1999:55) diz que cada parte do corpo de Kowai emite uma canção com
melodia diferente: “O corpo dele é cheio de buracos que produzem melodias. Quando
todas as partes do corpo dele cantam ao mesmo tempo, produz-se o poderoso som que
criou o mundo”. Esta é a descrição do corpo de Kowai e também a de uma orquestra de
flautas. Assim, podemos entender por ‘corpo de Kowai’ tanto o invólucro anterior à sua
morte no fogo quanto o conjunto das flautas que nasceram de suas cinzas.
É diante de Kowai que os pajés se apresentam para pedir de volta as almas
daqueles que adoecem (Wright, 1996:79). Segundo ele, em outro lugar (1993:19), Kowai é
associado ainda à umidade celeste, às chuvas (‘lágrimas de Kowai’). Diz ele:
O poder de Kowai em uma palavra, de uma perigosa e ancestral fertilidade
é excessivamente prejudicial aos seres humanos, a não ser quando controlado. A
condição de ser excessivamente aberto, bruto e úmido refere-se à sexualidade sem
controle, ao pensamento sem controle, ao contato sem controle com os espíritos
(doenças), isto é, tudo aquilo que está em franca oposição à almejada condição dos
iniciados, ao exercitarem voluntariamente o controle de seus próprios instintos, por
meio da observação de restrições, a fim de tornarem-se seres culturais plenos (Idem).
121
O corpo de Kowai é, ainda, uma espécie de mapa geográfico de suas próprias
viagens
123
, já que alguns lugares podem ser relacionados a certos aspectos dele. Assim, seu
pênis pode ser um rio, sua boca uma caverna, etc (Idem).
Segundo seu Alberto, depois da morte de Kowai, no fogo, Ñapirikoli começou a
sonhar com ele, à noite. Um dia, Kowai, em sonhos, disse a seu pai: “Vá lá, onde eu
queimei, e veja onde era o meu umbigo, e espalhe o que sobrou dele”. A intenção era
matar Ñapirikoli e, quando ele mexeu no umbigo de Kowai, este tornou-se veneno. Mas
Ñapirikoli não morreu e, no lugar do umbigo, nasceu uma palmeira, chamada paxiúba
(póopa). Era uma planta que chegava ao céu, e Ñapirikoli viu que era muito bela. À noite,
sonhou novamente com Kowai, que disse que fizesse flautas, segundo tais e tais medidas.
Ñapirikoli chamou animais para ajudá-lo. Uma rãzinha mediu todos os segmentos até o
céu, marcando as medidas que Kowai descreveu, enquanto o besourinho takairu cortava os
pedaços. Segundo seu Alberto, o último ‘tronquinho’ é chamado moolito.
Ñapirikoli sonhou novamente, e Kowai lhe mostrou como guardar as flautas na água.
Depois disso, Ñapirikoli sentou-se e observou todas as flautas, ‘montadinhas’, aos pares.
Naquela época, segundo seu Alberto, “o mundo era todo perto”, era bem pequeno.
Ñapirikoli, então, soprou as flautas e o mundo se estendeu
124
. Ele soprou de novo, e ele se
estendeu um pouco mais. Soprou de novo, e ainda se estendeu mais... até que alcançou o
tamanho que é hoje. As mulheres, mais tarde, como se sabe, roubaram essas flautas e
foram perseguidas por Ñapirikoli, que desejava retomá-las.
Fausto, discorrendo sobre o regime de flautas e troféus na Amazônia (2007b),
descreve a flauta chamada waaru, dos curripaco, quando estes batiam-se em guerras
contra seus inimigos
125
. Tal flauta era confeccionada com o fêmur de um inimigo morto, e
o seu matador poderia/conseguiria tocá-la, porque era quem havia ‘tomado o sopro’ da
vítima. Fausto, citando Journet (1995:137), informa que esta era uma atividade perigosa,
porque o som da flauta waaru, quando tocada pelo matador, era a própria voz do inimigo
morto (:27). São dignas de nota as semelhanças entre essa prática e o episódio da morte
de Kowai, quando Ñapirikoli, depois de lançá-lo ao fogo, toma a palmeira (seus ‘ossos’?)
que nasce de suas cinzas e, com ela, confecciona flautas. Ao soprá-las (inicialmente
apenas ele, o matador, o fazia), o som obtido é a voz de Kowai, que ‘age’ segundo as
123
Não me estenderei, neste trabalho, a respeito das chamada ‘rotas de Kowai’, os caminhos de migração
utilizados pelos Warekena e pelos Baré, povos de fala arawak, como resistência à exploração colonial e pós-
colonia de seus territórios, durante o século XIX. Para melhor compreensão desta abordagem, aponto o artigo de
Sílvia Vidal (2000), listado na Bibliografia.
124
Hill (1993) e Wright (1996) dizem que a voz de Kowai, quando este era vivo, estendeu o mundo pela primeira
vez. Com sua morte, no fogo, o mundo queimou num grande inferno e contraiu-se, voltando ao tamanho que
tinha anteriormente. E foi aí que, depois de feitas as flautas, Ñapirikoli as tocou e estendeu o mundo pela
segunda vez.
125
Sobre uma breve historiografia das guerras baniwa/curripaco, ver Wright, 2005:83-107.
122
mesmas qualidades e funções de seu corpo quando vivo. É importante lembrar, ainda, que
Ñapirikoli é ‘aquele-dentro-do-osso’, criado dentro do osso de seus parentes mortos.
Antes de prosseguir na descrição do ‘corpo estendido de Kowai’ (as flautas),
detenho-me ainda um pouco mais na análise de seu ‘corpo original’, valendo-me de uma
importante explicação de seu Alberto. Morador de Jandu Cachoeira, o velho ex-pajé
conhece muito bem os petroglifos do grande lajedo à margem esquerda do rio. Tais signos,
junto com aqueles encontrados em Uapuí Cachoeira, no local chamado Hipana, no rio Ayari
(Ribeiro, 1995; Ortiz e Pradilla, sem data), são, sem sombra de dúvida, os conjuntos de
petroglifos mais conhecidos do Içana, objetos de registros e análises. Quando cheguei a
Jandu Cachoeira, tinha em mãos o livro de Francisco Ortiz e Helena Pradilla (Sem data)
que, em detalhes, apresenta um mapa do lajedo e seus principais signos gravados. Ortiz
ouviu especialistas baniwa, e relacionou os signos aos rituais de iniciação masculina,
descritos na história sobre a morte de Kowai. Cada signo, assim, é um índice e um ícone (à
maneira da web) de um dado acontecimento: há figuras de flautas, há as figuras dos jovens
iniciados, há figuras de grandes cestos, e há figuras totalmente indiciais, como a marca das
batidas do bastão de dança de Kowai. Em razão desse trabalho tão minucioso, me abstive
de planejar o registro da região, contentando-me em ‘conferir’ os desenhos que via no
chão, a partir do mapa e dos registros de Ortiz.
Meus companheiros baniwa, no entanto, mesmo assim pediram-me giz para traçar
os desenhos. E qual não foi minha surpresa ao reparar, mais tarde, que havia formas
nítidas e inequívocas, signos geométricos, que não constavam dos registros de Ortiz. Além
disso, havia uma grande área descamada na pedra, que sugeria uma forma, de grandes
proporções, de um corpo humano (Figuras 70 e 71). Irineu disse tratar-se de “uma imagem
de Kowai”, que havia sido queimada. “A imagem de Kowai queimado no fogo?”, perguntei.
“Aqui foi o lugar preciso onde ele queimou?”, insisti. “Não”, respondeu-me ele, “aqui
havia uma imagem de Kowai, um desenho, e ele foi queimado!”. Fotografei o local, fiz
cópia do desenho, guardei essa informação e, depois que seu Alberto terminou sua
história, como de praxe, fiz várias perguntas sobre os signos. Uma delas referia-se aos
desenhos ‘estranhos’, não anotados por Ortiz (Figuras 72, 73 e 74g). O que seriam eles? E a
outra pergunta dizia respeito à imagem queimada de Kowai.
Sim, é verdade, havia ali um grande desenho de Kowai, igualzinho como ele era
disse.
E acrescentou:
“Ñapirikoli que o fez, para lembrar-se dele, depois que o matou. Mas a região
começou a ser visitada por mulheres e, a qualquer momento, elas poderiam vê-lo.
Assim, os velhos de antigamente queimaram o desenho, e ficou a forma que a gente
hoje. Os desenhos que vome mostrou são desenhos incompletos, que estavam
no corpo de Kowai. Kowai tinha, em seu corpo, todos os elementos, todos os sons e
123
também todos os desenhos, todas as figuras. Quando queimaram o desenho de Kowai,
alguns desenhos de seu corpo saíram e se colaram às pedras. São esses, , pedaços
de desenhos, incompletos. Estavam no desenho de Kowai, estavam no corpo de
Kowai.”
Figuras 70 e 71 – O desenho de Kowai, queimado pelos velhos de antigamente
Figuras 72, 73 e 74 – Desenhos ‘incompletos’
O corpo de Kowai parece ser, a princípio e por um lado, uma Primeiridade absoluta,
que contém potencialmente todas as coisas (elementos, sons, imagens), isto é, a
possibilidade em estado concreto, se isso não fosse uma contradição em termos; e, por
outro lado, pode ser visto como uma espantosa síntese onde tudo se articula e pode vir a
124
se articular, do mesmo modo que seu corpo (como uma unidade) e também as partes dele
exercitam várias autonomias (Terceiridade). No relato de Hill (1993) e Wright (1996),
Kowai “abre o mundo” com sua voz. Kowai ainda não está literalmente estendido pelo
mundo (é um corpo), mas é capaz de estender o mundo. De certa forma, é como se
estendesse a si mesmo, não como por meio de uma obra de arte (Gell, 1998), mas à
maneira da utilização de algo como os media de McLuhan
126
.
A extensão do mundo, assim, depende diretamente da existência de Kowai e,
quando esta é suprimida, isto é, quando Kowai é lançado ao fogo e morto, o mundo é
novamente contraído. Nesse momento, é oportuno responder a uma questão que pode ter
saltado aos olhos algumas páginas atrás: por que razão os Baniwa referem-se a um ser
mítico (Maawerikoli) como ‘o Defunto’ ou ‘Finado’, e não usam essa mesma expressão para
referir-se ao morto Kowai? Porque, de uma vez por todas, Maawerikoli está morto e,
morto, é uma pedra na Cidade Grande. Não uma pedra com o estatuto daquela citada por
André, de Dzooli no rio Ayari, com a qual as pessoas conversam, porque o consideram vivo,
mas como uma pedra que o identifica como um morto, cumprindo, analogamente, a
mesma função que as imagens de reis medievais, estátuas que representavam o monarca
morto, deitado, de olhos fechados, com a espada apoiada ao peito. A diferença
fundamental é que a pedra da Cidade Grande não ‘representa’ Maawerikoli, não é algo que
está em lugar dele, não é um ‘duplo’
127
, mas simplesmente e isso não tem nada de
simples – é Maawerikoli, e Maawerikoli morto.
Kowai, no entanto, continua a aparecer em sonhos a Ñapirikoli, orienta a feitura
das flautas e, hoje, pode ser encontrado nos céus pelos pajés em busca da alma de seus
pacientes. Enquanto Maawerikoli (como signo) é a representação da morte, “a primeira
morte” e, em decorrência disso, de toda morte por vir, Kowai, ao contrário, estende-se
pelo mundo outra vez, quando da primeira fabricação das flautas e, por meio delas,
estende o mundo mais uma vez. As flautas, importante lembrar, não são uma
representação de Kowai, não o um símbolo (relação baseada em convenção), mas são
Kowai, porque foram feitas de seu corpo. Seu umbigo, ou suas cinzas, geram uma planta;
dessa planta são feitas as flautas, em relação não indicial, mas principalmente icônica
com o corpo ‘original’ de Kowai – as flautas têm signos gravados e ‘ocos’ por onde soam.
126
Para McLuhan, ‘meio’ é tudo o que amplifica ou intensifica um órgão, sentido ou função. Mas, como “o meio
é a mensagem”, isto, é, como as condições formais do meio sobrepõem-se, em termos de agência e
determinação, à própria mensagem nele contida, o meio torna-se também um agente criativo e transformador de
relações (1988:21). McLuhan prenuncia a idéia de pessoa estendida, ao dizer que “as conseqüências sociais e
pessoais de qualquer meio – ou seja, de qualquer uma das extensões de nós mesmos constituem o resultado do
novo padrão introduzido em nossas vidas por uma nova tecnologia ou extensão de nós mesmos” (ênfase minha).
Por fim, ele se apressa a lembrar que “os meios, ou extensões do homem, são agentes ‘produtores de
acontecimentos’, mas não agentes ‘produtores de consciência’ (:67).
127
A esse respeito, ver o trabalho de Jean-Pierre Vernant (1973).
125
Para se constituir como uma relação indicial, obviamente, esse signo depende de
informações que a maioria das pessoas não possuem. No entanto, o mesmo se com
tantos outros índices clássicos, como, por exemplo, quando um homem da cidade
apenas formas onduladas na areia, enquanto um baniwa vê o rastro de uma cobra. Um não-
signo para mim é um signo, um indicador muito preciso, para ele, que conhece os
movimentos da cobra e esta específica relação de causa-conseqüência.
Mas, talvez, a melhor analogia seja a fumaça branca (e somente branca, não cinza
ou preta) que é vista a partir de uma certa chaminé (e não de qualquer uma) do Vaticano e
que indica que habemus papa. Esse signo pode ser naturalmente entendido como um
índice. No entanto, o índice fumaça fogo não contempla o ritual de escolha de um papa.
É preciso, para que esse signo funcione como índice de uma decisão do colégio de
cardeais, da compreensão de uma certa convenção. Este é, portanto, de acordo com
classificação peirceana, um legissigno indicial dicente
128
, o que significa dizer que: em
relação a si mesmo, é fundado numa convenção; em relação a seu Objeto a escolha de
um novo papa -, é um índice; e, em relação a seu Interpretante – ao novo signo que produz
na mente de um intérprete é uma proposição, um signo dicente, com valor de verdade
que pode ser verificado (“Habemus Papa).
Uma flauta Kowai, de igual modo, é um legissigno (baseado em uma convenção,
estabelecida a partir de outro signo, uma história que afirma a continuidade entre o corpo
de Kowai e a paxiúba da qual é feita a flauta), indicial (da presença de Kowai, em função
da história narrada, numa relação de causa e conseqüência que, de resto, funda todo e
qualquer índice), dicente (visto que, ao ouvi-la e vê-la no caso dos homens ou mesmo
somente ao ouvi-la – no caso das mulheres uma proposição é criada: “Kowai está
falando”).
2.2. As flautas Kowai
A confecção e a performance (relacionadas a tocar e dançar) das flautas Kowai,
instrumentos considerados altamente poderosos e potencialmente perigosos, uma vez que
são entendidos como partes do corpo de Kowai, é uma atividade exclusivamente
masculina. Tal atividade tem como objetivo o ‘reajuntamento’ (reassembling) do corpo de
Kowai (Hill, 2007:9) e, em relação estreita com os cânticos malikai e com os desenhos nas
pedras, promove o estabelecimento da continuidade entre o mundo primordial e este, dos
walimanai. Seu Valentim Paiva, de Juivitera, atesta esse fato, ao dizer que os homens
128
Ver tabela, no tópico II.5
126
criaram as flautas Kowai, depois da morte do herói, “para que isso tudo [as propriedades
de seu corpo, os ritos de iniciação] não se acabasse para as novas gerações”.
As flautas sagradas são “símbolos multivocais dos criativos poderes de Kowai” (Hill,
1993:83). Entre as características principais de uma ‘orquestra de flautas’, a mais evidente
é a identificação com animais. A maioria das flautas tem nomes de animais, e são mesmo
índices deles, ainda que, quase sempre, tais índices não sejam óbvios (Journet, 2007).
Assim, temos as flautas maaliawa (garça branca), dzaate (tucano), dápa (paca), moolito
(uma espécie de pequeno sapo) e muitas outras. Quando são tocadas em conjunto, nas
cerimônias chamadas kwepani (dança de Kowai), os sons das flautas constituem uma
expressão musical e zoomórfica da atividade criadora de Kowai, cuja voz trouxe à
existência todas as espécies de animais (Hill, 1993:84). Ás vezes, o som da flauta é um
índice
129
da voz do animal, como a flauta-tucano, mas essa não é a regra.
Paulo Maia, em seu trabalho com os Baré do Alto Rio Negro (2007), descreve a
relação dos músicos com as flautas Jurupari (Kowai), que são chamadas xerimbabos’. Um
xerimbabo é o termo em língua geral para ‘animal de estimação’, cativo na falta de
melhores palavras –, e todo xerimbabo tem um ‘dono’ ou ‘mestre’
130
. Maia observa que o
tratamento de xerimbabo dado às flautas não evidenciam as implicações destas como
‘animais’, mas também configura-se uma forma de linguagem dissimulada, da qual os
homens se utilizam para ocultar das mulheres as verdadeiras atividades ligadas às flautas
Jurupari. Assim, ‘fumar um xerimbabo é tocar uma flauta, e ‘laçar um xerimbabo é
confeccionar uma flauta. Um informante diz que “cada animal tem o seu formato. Se a
gente faz num formato fica com um som, agora a gente fabrica cada animal que tem
o seu som, varia de som e de tamanho. O som é o tamanho” (Maia, 2007:66). Esse trecho
explicita a idéia da apropriação de um animal cativo e associa seu formato (tamanho) ao
som, de tal maneira que estabelece uma relação entre o ‘formato’ do animal e o ‘formato’
da flauta, relação não inteiramente convencional, mas icônica.
A relação entre a flauta e o animal é, ainda, mediada pela atividade mimética do
músico-dançarino. Maia, descrevendo um ritual da dança de Kowai (Jurupari) presenciado
entre os Baré, narra o que um dançarino lhe contou:
“Cada um desses animais tem o modo de fazer para se sentir que seja o
próprio animal, imitando o animal. Paca tem, Mamanga tem, Caba tem, Uacari tem,
Jacamim tem, Uari tem, Cutia tem. Uma pessoa que está usando o Cutia [tocando a
flauta], ela tem que fazer do próprio modo que o próprio Cutia faz, como se ele
virasse Cutia, o próprio Cutia. Então quando a gente está tocando é como se a gente
estivesse se transformando no próprio animal” [:67].
129
Isso, naturalmente, no dizer de Journet. No âmbito deste estudo, o melhor seria dizer um ícone, já que,
sobreposta e anterior à relação de causa-conseqüência, há a relação de semelhança.
130
O xerimbabo explica-se melhor por meio da relação com seu mestre. Assim, ele pode ser um inimigo
capturado, um inimigo onírico apaziguado ou contido, etc. Sobre a relação mestre x xerimbabo, ver Fausto,
2001.
127
As flautas Kowai não são instrumentos comuns, como tantos outros que os Baniwa
possuem. Elas implicam a construção de um segredo, que consiste, aparentemente, na
exclusão das mulheres
131
. Nenhuma mulher ou jovem não-iniciado podem ver uma flauta
Kowai, e por isso os instrumentos devem ser confeccionados e preparados longe das
comunidades, embrulhados caprichosamente e guardados no rio, em locais distantes dos
acessos comuns, longe dos caminhos de todo dia e, quando tocados, exigem que as
mulheres permaneçam em ambientes restritos
132
.
No entanto, como aponta Journet (2007), esse segredo refere-se principalmente ao
sentido da visão. As mulheres sabem da existência desses instrumentos, são chamadas’ a
ouvi-los e até mesmo, em certas ocasiões, a ‘dialogar’ com eles. Mas não podem vê-los ou
ver os homens tocando
133
. Desse modo, Hill entende que ambos, homens e mulheres, são
chamados a participar da co-construção ritual desse segredo. Após descrever sua
compreensão acerca do ‘segredo declarado’ e estabelecer os modos pelos quais homens e
mulheres o constroem e compartilham, Journet conclui:
“Todos esses argumentos levam a uma conclusão. A proibição de ver as flautas
sagradas, imposta às mulheres e aos mais jovens, não tem significação natural ou
sobrenatural: não funciona sequer como fundamento simbólico para a divisão social
do trabalho. (...) A proibição não é um tabu: é um segredo imposto pelos homens, que
não tem relação com algum fundamento simbólico para a diferença sexual e,
portanto, deve ser considerado em suas dimensões pragmáticas e cognitivas
134
” (:6).
A relação entre as flautas e os desenhos nas pedras é intermediada (tecida) pelas
histórias. Nesse caso, a imagem de um animal é vinculada (como um link) a uma flauta por
meio de uma história geral (a origem das flautas Kowai, por exemplo), ou por uma história
específica a respeito do instrumento, de sua técnica ou de sua função ritual. O signo
gravado na pedra torna-se, assim, uma espécie de pronome demonstrativo, onde a figura
de um sapo diz que se trata de aquelaflauta. A pergunta que se segue a esta função
indicial é: “por que razão esta ‘flauta’ está inscrita ali, nesse lugar, e não em qualquer
131
A associação é quase inevitável, a partir de uma mesma expressão: ‘Reassembling the body of Kowai’, como
diz Hill, era, entre os Baniwa, uma das principais formas de ‘reassembling the social’ (Latour, 2005), e isso
ganha contornos mais interessantes à medida em que percebemos que a ‘cola’ que une esse corpo social é
fundada na idéia de um segredo e de uma (aparente) exclusão.
132
Koch-Grünberg narra o desconforto que uma imprudência de seu companheiro de viagem Schimidt causou,
quando subiu a uma aldeia carregando nos braços os embrulhos de uma flauta recém-adquirida. Os homens
correram em sua direção e o instaram a escondê-la no rio até que fossem embora (1995, v. 1:217).
133
Para maior entendimento desse ponto, contribui a distinção, feita por Journet (2007), entre ‘segredo
verdadeiro’ (algo que os não-iniciados sequer sabem que existe) e ‘segredo declarado’, que configura essa co-
construção das mulheres em relação às flautas Kowai, já que o único ‘segredo’, de fato, é a interdição da visão.
134
A história de seu Valentim, no entanto (ver Anexo VII.6), empresta o sentido da divisão do trabalho entre os
gêneros quando, por conta do roubo das flautas, havia uma inversão em relação ao que acontece atualmente. Por
essa razão, Ñapirikoli resolveu retomá-las. O final da história diz: “Se Ñapirikoli não tivesse pegado as flautas de
volta, as mulheres é que fariam dabukuri, e os homens é que iriam para a roça e fariam comida...”.
128
outro? O que ocorreu nesse lugar para que Ñapirikoli a inscrevesse ali? Os velhos dizem que
“os antigos sabiam”, mas que agora esse conhecimento se perdeu. No entanto, é sabido
que algo ocorreu, que esse lugar foi palco de algum acontecimento, uma indicação que
aponta para uma direção geral e hoje diz pouco.
De uma maneira geral, os narradores com os quais conversei concordam que os
desenhos vinculados às flautas têm sempre dois sentidos, antagônicos e complementares:
identificar as flautas, ao mesmo tempo em que as não-identifica. A princípio, o desenho
de uma flauta torna possível que todos a reconheçam. Assim, seu Alberto identificou a
parte superior do desenho geométrico da pedra de Camanaus que ele nunca havia visto
antes – como sendo a flauta athine. Seu Marcelino, olhando desenhos das pedras de
Jurupari, não hesitou em identificar as flautas daapa e boboli (cuja função é a coleta de
frutas). Tal identificação baseia-se na forma gráfica das figuras. Trata-se, assim, de um
reconhecimento a partir das formas, não exatamente da forma das flautas como objetos,
mas de uma outra espécie de iconicidade, outras semelhanças ou, mesmo, do
reconhecimento dessa mesma forma desenhada em outros contextos.
Ao mesmo tempo, o desenho nas pedras cuida de não permitir a identificação das
flautas, isto é, tem um caráter enganoso. Journet aponta para alguns aspectos enganosos
(deceptive) das próprias flautas, como quando anunciam uma chuva que não vem
(2007:5). Para ele, as flautas waliadoa e moolito são instrumentos mais enganosos do que
informativos, porque “os sinais que eles produzem podem ser ouvidos em alto e bom som,
mas tais sinais não desvelam suas verdadeiras naturezas” (:16), configurando-se, assim, em
instrumentos típicos de um ‘segredo declarado’, que é e deve ser meio transparente e
meio opaco. Os velhos dizem que os desenhos das flautas, do mesmo modo, foram feitos
de maneira a ocultar das mulheres suas verdadeiras naturezas (flautas Kowai), e por isso
são expressos em formas de animais ou outras.
Assim como nas cerimônias das flautas, as mulheres são igualmente convocadas à
co-construção desse ‘segredo’, uma vez que, como Journet explicita, crianças e
adolescentes podem estar sinceramente convencidos de que alguma coisa sobrenatural
esteja acontecendo, mas que as mulheres sabem exatamente o que acontece na casa
ritual, isto é, este ‘segredo declarado’ é obviamente um falso segredo’ (:16).
Confirmando os dados de Journet, chamou-me a atenção uma frase ao final da narrativa de
seu Valentim Paiva, de Juivitera, quando, ao contar que Ñapirikoli finalmente consegue
recuperar as flautas roubadas, ele lança sobre elas um ‘sopro’ para que se esqueçam de
tudo o que viram. Ñapirikoli, então, pergunta a elas: “Como são feitas essas flautas, avós?
E como se tocam?”. Elas respondem: “Não sabemos, meu neto, não sabemos”. E seu
129
Valentim termina a história com a seguinte frase: Elas haviam esquecido tudo. Na
verdade, as mulheres sabem, mas ficam caladas”.
Irineu chamou-me a atenção para o fato de que, nas comunidades do Alto Içana, as
mulheres afastavam-se quando eu mostrava o caderno de desenhos aos velhos, evitando
ver os signos
135
. A restrição à visão das flautas estende-se igualmente à visão dos desenhos
das flautas. O ‘falso segredo’ está evidenciado justamente nesse afastamento. Se as
mulheres não sabem, ou não conseguem, identificar uma flauta desenhada, como é
possível que desviem o olhar da figura de um sapinho? Sendo assim, mesmo esse ‘não-
identificar’ não é um ocultamento absoluto (um ‘segredo verdadeiro’), mas um modo de
‘declarar o segredo’. Journet exemplifica essa idéia relatando a cerimônia do adeusinho’,
quando, nos dias de rituais, em que os homens precisavam preparar os instrumentos, a
mulher perguntava ao marido, bem alto: “Você está indo para a mata?”, e ele, sorridente,
estendendo a mão, diz: “Sim, estou indo para a mata!” (2007:10). Journet diz que se trata
de um ritual, porque é um comportamento não-usual – os homens vão para a mata todos os
dias, sem que se estabeleça esse diálogo teatral –, uma performance destinada a enganar
os estrangeiros e pessoas não autorizadas acerca de que algo extraordinário estaria para
acontecer.
Para alguns narradores, todos os desenhos nas pedras são desenhos de flautas, em
seus variados modos de expressão. Para outros, nem todos. Mas concordam que as flautas
estão muito presentes e têm lugar central entre os temas dos petroglifos. Tais signos
remontam, portanto, a uma iconicidade sempre presente que os torna reconhecíveis em
razão da semelhança com seu objeto, mesmo que essa semelhança não seja a óbvia
aparência externa –, a uma indexicalidade constitutiva e complexa apontam para
Ñapirikoli, apontam para o animal-flauta, apontam para o corpo de Kowai, etc e de uma
simbolicidade que se funda na relação convencional com as histórias narradas.
Reunindo o que ouvi dos velhos e dos jovens que me acompanhavam, as flautas
podem ser gravadas nas pedras segundo as seguintes formas:
1. A flauta, ela mesma Como os ‘remos-casas-armadilhas’
(ver tópico II.5.1) de Jurupari, desenhadas em pares. “Estas
são as flautas verdadeiras, como elas são”, disse o seu
Alberto. Todas as representações das flautas, como
adiantei, cumprem uma função indicial semelhante a de um
pronome demonstrativo. À parte isso, cada modo de
135
Lembremos: são mulheres evangélicas, em comunidades evangélicas. Porém, o desconforto ocasionado pelas
regras da velha tradição está mantido, ainda que, às vezes, de modo bastante sutil.
130
representação termina por fundar-se num certo tipo de relação. Quando a flauta é
desenhada ‘verdadeiramente’, trata-se de evidenciar uma relação principalmente
icônica, baseada na semelhança da forma e, desse modo, não se pode atribuir a
esses signos a característica do ‘ocultamento’ de sua verdadeira natureza; ao
contrário, é a única forma de representação a visar explicitamente a clara
identificação e reconhecimento das flautas
136
.
2. O animal A garça em Jandu, o sapo moolito, peixes (“há
muitas flautas com nomes de peixes”, diz seu Alberto). Aqui,
a relação entre o signo e seu objeto é antes simbólica, que
a semelhança a vincula ao animal ao qual a flauta, por sua
vez, está vinculada. Cria-se, assim, a partir de um terceiro,
uma relação entre um segundo e um primeiro. Como
necessita de uma convenção para ser plenamente assimilado e compreendido, é
nesse registro que se o suposto ‘ocultamento’, para as mulheres, de sua
verdadeira natureza de flauta Kowai. Basta, apenas, que a história que a deve
acompanhar não seja posta em circulação e conhecida por todos. Assim, em vez de
o signo ser a imagem de uma flauta, passa a ser apenas o indicativo de um segredo.
No entanto, é óbvio que as mulheres sabem que o signo de um animal pode ser uma
flauta. Nesse caso, a questão do segredo co-construído ganha contornos de um
‘jogo de enganos’, no silêncio mútua e implicitamente consensuado, do tipo: “eu
sei que você sabe, mas faço que não sei que você sabe, do mesmo modo que você
sabe e sabe que eu sei que você sabe, mas faz que não sabe e que eu não sei que
você sabe”.
3. O som Alguns narradores (seu Marcelino, seu Alberto)
137
identificam as volutas e espirais (chamadas, às vezes, de
‘trompas’) como o som das flautas. A imagem, assim, tem um
aspecto ícônico, mas em relação de semelhança não com a
aparência de um objeto, e sim com a ‘aparência’ de um som,
a expressão gráfica (visual) de um outro sentido (audição).
136
Ainda que, como demonstrei em II.5.1, é requisitada uma mínima inserção no universo gráfico dos baniwa,
para não confundir tais signos com casas, remos, armadilhas. É necessário, ainda, ter visto as flautas, para
conhecer suas formas, saber que são confeccionadas aos pares, etc. Isto é, nenhum signo, por mais evidente que
seja, existe em si mesmo como produtor inequívoco de sentidos. E, como diz Peirce, “cognição alguma e Signo
algum são absolutamente precisos, nem mesmo um Percepto; e a indefinição é de dois tipos, indefinição quanto
ao que é o Objeto do Signo, e indefinição quanto ao seu Interpretante, ou indefinição em Amplitude e em
Profundidade” (CP 5.543).
137
E também informantes de Ortiz (Ortiz e Pradilla, sem data).
131
Essa relação, naturalmente, também tem um caráter simbólico, porque é
necessária uma certa convenção para que seja compreendida. Se essa convenção,
porém, é culturalmente ampla o suficiente, de modo que todos aqueles que
compartilham tal universo a tenham ‘naturalmente’ introjetada, ela ganha, na
prática, caráter de ícone. O melhor exemplo desse tipo de ‘tradução
intersemiótica’ (Jakobson, 1985) é o vasto repertório utilizado pelos artistas de
histórias em quadrinhos para evidenciarem quando um personagem está gritando,
ou cantando, ou falando suavemente, isto é, quando ‘traduzem’ a sensação
provocada pela audição para uma sensação análoga causada pela visão. Desse
modo, a intenção é que as volutas, as espirais, as ondas e outras expressões gráficas
semelhantes provoquem em nossos sentidos visuais sensações análogas às do som
das flautas Kowai, isto é, preenchimento, fluidez, potência suave, alcance.
4. Kowai Seu Alberto diz que algumas imagens de figuras
humanas, principalmente de Kowai, são imagens das flautas.
Ele diz que Ñapirikoli fez assim porque, simplesmente, “as
flautas são Kowai”. Esta é, portanto, uma relação icônica,
com um elemento simbólico (a história da destruição de Kowai
e sua conseqüente continuidade por meio das flautas, feitas
com a madeira que surgiu de seus restos).
5. Outros signos Quando alguns dizem que o desenho de um
objeto parecido com um pente, ou de um signo enigmático,
ou de uma forma geométrica são desenhos de flautas, a
relação que se estabelece é de caráter puramente simbólico,
que fundada numa ‘petição de princípio’, na convenção
geral que diz que “todos os desenhos na pedra são flautas”.
6. Incompletos Por fim, signos que os narradores
identificam como ‘incompletos’, por diversos motivos.
Quando explica os signos enigmáticos de Jandu, seu Alberto
os apresenta como incompletos e atribui tal incompletude à
‘explosão’ que se deu quando a imagem de Kowai foi
queimada, e desenhos que faziam parte do corpo de Kowai
fragmentaram-se e ‘colaram-se’ em pequenas partes à pedra. São “pedaços de
desenhos de flautas”. Seu Zacarias, por outro lado, diz que alguns desenhos eram
132
incompletos porque foram os primeiros a serem feitos por Ñapirikoli, os primeiros
ensinamentos, e que ainda não estavam de todo ‘prontos’. Tal relação é
predominantemente simbólica, porque se funda numa convenção, na noção de
incompletude ou parcialidade.
Atualmente, as cerimônias envolvendo flautas Kowai não são mais encontradas no
Içana
138
, porque estas estavam vinculadas, principalmente, à iniciação dos jovens, rituais
longo tempo banidos pelas regras da ‘nova tradição’ evangélica. No entanto, o projeto
pedagógico e os jovens da Escola Pamáali promoveram um deslocamento dos sentidos das
performances relativas às flautas – não em relação às flautas Kowai, obviamente –,
convocando os velhos do Içana que ainda têm o conhecimento das técnicas de confecção e
execução a ensinar os alunos (Figura 75). O contexto é aquele da ‘valorização das
tradições’, ‘para que não se percam’. Os jovens sentem-se felizes e animados com a
possibilidade de retomarem práticas esquecidas, e os velhos sentem-se honrados e
valorizados por deterem tais conhecimentos
139
. Durante as cerimônias anuais de formatura,
os jovens, coordenados pelos velhos, tocam e dançam com as flautas que eles mesmos
confeccionaram, numa atividade que ganhou um sugestivo nome em português:
‘demonstração’. Este pode ser um bom conceito nativo para definir uma prática que sofreu
um grande deslocamento de sentidos em relação às suas funções.
Figura 75 – Flautas confeccionadas pelos alunos da Escola Pamáali
138
A não ser, segundo os próprios informantes, em alguns pontos do rio Ayari e também entre os wakuenai da
Venezuela, reputados pelos Baniwa do Içana como ‘poderosos feiticeiros’. No entanto, lembro o surpreendente e
recente relato de Paulo Maia (em trabalho já citado) quando, entre os Baré do Rio Negro, indagou durante dois
anos sobre as flautas Jurupari (nome em língua geral para Kowai) e todos diziam que “há muito tempo não se faz
mais a cerimônia das flautas”, que não existiam mais flautas. De repente, no espaço de um mês, ele não só
descobriu que sim, que havia flautas Jurupari na região, como ele mesmo participou de um ritual de iniciação
(2007). Não seria de espantar, portanto, se algo semelhante acontecesse entre os Baniwa.
139
Ao contrário do que diz Hill (1993:84) e Maia (2007), os alunos da Escola Pamáali identificaram os pares de
flautas (menor, maior), como ‘irmão maior’ (eliperi) e ‘irmão menor’ (elipemeri), e não como ‘marido’ e
‘mulher’, descaracterizando, assim, a participação dos conceitos de gênero e sexualidade nas flautas.
133
Podemos entender que a formatura da Escola Pamáali, de certo modo, tomou o
lugar da iniciação dos jovens que fazia parte da ‘velha tradição’, onde as flautas sagradas
exerciam uma função ritual vital. Atualmente, se a formatura não deixa de ser um ‘ritual
de iniciação’, quando se atesta o ingresso de um jovem num novo patamar social, a
performance das flautas despe-se de sua função ritual específica mas, de alguma forma,
ainda pode ser vista como uma ‘mantenedora da continuidade’ entre mundos. Não mais
entre o primordial e o atual, mas entre o das velhas tradições e o das novas tradições,
numa função análoga a um quadro na parede de um museu a lembrar-nos de um mundo
extinto
140
(Heidegger, 1977), quase como um réquiem. A ‘demonstração’ não se refere,
assim, tão-somente a uma certa atividade e a certos instrumentos hoje em ritual desuso,
mas a um mundo, ao mundo antes de Sofia
141
.
2.3. A flauta Moolito, voz-entre-mundos
A flauta moolito, por seu caráter enunciativo complexo, por suas características
especiais que veremos logo adiante e por estar identificada a um signo na pedra de
ocorrência constante torna-se, para nós, um elemento que permite iluminar de modo
bastante abrangente as relações que temos apontado entre o signo na pedra, os lugares
sagrados, as histórias e as flautas, entre continuidade e descontinuidade dos mundos
masculino e feminino, primordial e atual, ritual e cotidiano e, principalmente, entre
memória e conhecimento entre os Baniwa. Esta seção trata, a partir das informações sobre
os signos (desenho, paisagem, histórias, heróis, flautas) e de alguns preceitos da Semiótica
peirceana, de ‘desenhar’ essas relações, traçando um esboço da rede sígnica-social que
envolve elementos humanos e não-humanos.
Moolito, como vimos em uma primeira aproximação no tópico II.6, é uma flauta
Kowai, contendo em si várias características que a singularizam enfaticamente na
orquestra de flautas. Em língua geral, o instrumento é dito mawa
142
. Curta, robusta e
grossa, moolito é sempre tocada sozinha (não em pares ou em trios), segura com a mão
140
Não se trata, advirto, de uma ‘demonstração’ como, por exemplo, as que os índios xinguanos costumam
apresentar em grandes encontros com os brancos, ou mesmo em suas aldeias, para estrangeiros e visitantes. Entre
estes, os rituais estão ‘vivos’, nas épocas precisas e segundo todos os procedimentos ancestrais. Tais
apresentações (de dança de flautas, ou outras quaisquer) têm como objetivo, assim, tornar visíveis rituais de um
mundo ainda existente, apenas fora da época e dos locais próprios à sua realização. Sobre isso, ver Fausto
(2007a).
141
É fato que os salesianos expuseram os objetos rituais e os queimaram muito antes disso. Mas é impossível
negar todo o aparato simbólico e a radical ruptura que envolveram a chegada e a atuação de Sofia Muller à
região do Alto e Médio Içana, como mostra Wright em ‘O Tempo de Sophie’ (2005).
142
No trabalho já citado de Paulo Maia, relatando o ritual de Jurupari entre os Baré (2007), há a menção a uma
flauta-sapo, chamada Abu, com as mesmas características e funções de Moolito.
134
esquerda pelo dançarino, enquanto sua mão direita modula o som, pela abertura e
fechamento da cavidade oposta
143
a do sopro. O músico-dançarino, com essa técnica,
produz sons como de sílabas, sugerindo palavras.
A origem dessa flauta remete, como a de todas as demais, às cinzas de Kowai, de
onde nasce a palmeira paxiúba. Moolito é feita do último ‘tronquinho’ da paxiúba, o
último pedaço a ser cortado, o menor deles. Hill conta que Ñapirikoli pegou esse pequeno
pedaço e soprou nele, ouvindo, então, a voz de um sapo, e esse canto lhe soou muito belo.
Moolito é uma espécie de pequeno sapo e a ‘voz’ da flauta evoca o chamado desse sapo,
ouvido em clareiras da floresta ou nos roçados. Hill utiliza-se da onomatopéia mupara
ilustrar esse som. Moolito é um sapo comum, encontrado nas roças, sempre próximo,
portanto, à comunidade das pessoas.
Essa flauta, segundo Journet, é um “instrumento enganoso”, porque sua eficácia
depende, em primeiro lugar, da ocultação da identidade do músico-dançarino (2007:16),
isto é, depende do velamento do elemento humano para desvelamento de seu estatuto
não-humano, o que faz com que a flauta exerça a função de uma ‘máscara vocal’
144
,
levando os ouvintes a crerem na ‘voz de moolito e a assumirem como uma espécie de
oráculo. Isso se pelo fato de que ela é a única flauta a estabelecer uma comunicação
direta com as mulheres, e esta constitui a sua característica principal. Depois que todas as
flautas se calam, moolito emite um som, semelhante ao chamado do sapo. Segundo o
exemplo de Hill (1993:85), as mulheres ouvem a flauta, a distância, do interior da casa
onde se encontram reclusas, e fazem perguntas a ela (“Moolito, qual é o sexo de meu bebê
que vai nascer?”). Moolito responde: Inarruatsa (feminino). O músico sopra as sílabas
diretamente no instrumento, emitindo um pequeno repertório de palavras (‘sim’, ‘não’,
‘masculino’, ‘feminino’), e até mesmo ‘dizendo’ nomes de pessoas (“Moolito, com quem
vou me casar?” é outra pergunta bastante popular). Em razão disso, a identificação das
palavras é propositalmente difícil e, quase sempre, à ‘fala’ de moolito segue-se a pergunta
kwami?(“o quê?”), ao que a flauta é instada a repetir a resposta. Moolito, desse modo,
localiza-se, por sua multivocalidade, “no espaço semiótico entre logocentrismo e
musicalização” (Hill, 2007:11), assegurando, em sua voz-tradução, a continuidade entre
som e logos.
Moolito tem dois sentidos distintos. Em primeiro lugar, esse sapo integrou o
exército masculino de Ñapirikoli que perseguiu as Amaronai
145
, quando estas roubaram as
flautas. Ele expressa, assim, a masculinidade e o controle masculino do ritual. Além disso,
143
Como dizem os músicos, da ‘bunda’ da flauta.
144
A respeito disso, ver o trabalho de Carlos Fausto (2007b), que aborda o conceito de ‘máscara vocal’, e Severi
– ‘máscaras acústicas’ – (2004b).
145
Ou, segundo outras versões, os soldados de Ñapirikoli transformaram-se em moolitos, em pequenos sapos,
para enganar as mulheres e tomar as flautas de volta.
135
ele é a mais masculina das partes de Kowai, o pênis, ou, como Hill entende, “a voz do
prototípico pênis humano” (2007:10). Moolito é o símbolo por excelência da masculinidade
e da fertilidade masculina.
Em segundo lugar, moolito é identificado como um dos filhos de Kaali
146
. Sua voz
‘canta’ o tempo correto de limpar a mata e preparar a terra para o plantio da mandioca.
Segundo Hill (1993), a associação de moolito com a sexualidade masculina, por um lado, e
com as atividades masculinas de preparo das roças, por outro, é peça crucial para o
entendimento de como os processos sociais são codificados no mito das origens das flautas
Kowai.
Moolito, assim, relaciona de modo icônico as formas do animal e da flauta
(pequeno, largo), bem como as suas ‘vozes’. A proximidade das pessoas, como um ‘sapo de
roça’, é o que permite, talvez, a comunicação entre o ritual secreto e as mulheres
excluídas. Comunicar é ‘tornar-comum’
147
, e moolito propicia a (única) troca real de
sentidos, na dança de Kowai, entre o universo masculino do poder rital (do saber-de-entre-
mundos) e o universo feminino do saber-deste-mundo. De certa forma, é o que proporciona
igualmente o pênis, ao tornar possível o encontro entre o masculino e o feminino visando à
troca de substâncias que concretizará uma nova criação. Moolito relaciona, ainda, a
fertilidade humana e a fertilidade natural, ao reunir os sentidos (sempre em relação ao
masculino) da potencial fertilidade do pênis com a da roça. É significativo, ainda, que
moolito exerça uma função oracular com respeito, principalmente, a questões de âmbito
sexual e reprodutivo (“Com quem vou me casar?”, “Qual é o sexo da minha criança que vai
nascer?”).
Com essas informações em mente, estamos em condições de promover uma segunda
aproximação com o signo-moolito, em suas relações com outros signos, tentando extrair,
daí, segundo a idéia de ‘ícone da internet’ expressa por André Baniwa e segundo a noção
peirceana de semiose infinita, uma melhor compreensão de seu lugar e agência nessa rede
sígnica-social. Não é demais lembrar que, aquilo que podemos, à primeira vista, reputar
como um ‘desenho simples’ (em sua forma e estilo), deve ser entendido como elemento
importante em um ambiente ‘lógico’ no qual imagem e língua estão – ao contrário de nossa
tradição ocidental profundamente vinculadas. Como diz Carlo Severi, “o texto ameríndio
é definido pela articulação entre visual e língua” (2004b), e um simples desenho, como
esse moolito, é o último ato de uma seqüência de idéias e representações, é um objeto
que materializa o último termo de uma série de idéias (2004a). Por essa razão, estudamos
um desenho que se movimenta dentro de um espaço mental, isto é, não estudamos um
146
Ver tópico III.1.1, a história sobre a origem da mandioca.
147
Segundo os dicionários etimológicos e segundo os conceitos de Muniz Sodré (2002).
136
‘sapinho’ por sua aparência gráfica ou por seu estilo, mas pelas operações mentais
148
que
ele implica. Com isso em mente, podemos avançar, quase em forma de tópicos (em lógica
de hiper-texto), de acordo com a Figura 76, para, a seguir, visualizarmos a série de idéias
que moolito, como poderoso artefato mental (Severi, 2004a) vem a expressar.
Cada um desses interpretantes gera outro e outro. A tabela da figura 76 é a melhor
tentativa de explicitar em forma impressa uma edificação sobre hipertexto, na qual cada
termo iluminado poderia ser ‘clicado’ e abrir-se-ia uma ou mais informações sobre ele,
com mais termos iluminados, que abririam outros e assim por diante. Do mesmo modo,
seria possível estabelecer ‘links’ entre vários termos, internamente. Um exemplo em outra
mídia (CD) está no Anexo VII.7. Assim, a partir do signo da pedra, somos remetidos a uma
sensação Primeira e icônica (a forma de um pequeno sapo), a uma condição existente,
indicial e Segunda (Ñapirikoli passou por aqui) e a uma convenção simbólica e Terceira
(uma flauta Kowai).
A partir do termo sapo, temos as informações sobre a relação com os roçados, com
o preparo da mata, sobre o exército de Ñapirikoli, sobre sua suposta condição de ‘filho de
Káali’. A partir da Secundidade indicial temos Ñapirikoli e todas as histórias que a ele se
referem, inclusive o propósito pelo qual ele gravou os signos nas pedras. Cada termo
subseqüente origem a outros e outros. Por fim, ao estendermos as relações rumo à
Terceiridade, temos as flautas Kowai, que abrangem todo o ciclo de histórias a elas
relacionadas, como a importância no ritual de iniciação, sua origem e preparo, o roubo das
mulheres. Insisto que tais ‘links’ não são apenas tópicos organizados em seqüências
lineares e em ‘árvore’, como a tabela pode levar a entender. Ao contrário, a partir do
segundo nível, os termos se embaraçam, remetem-se uns aos outros, interpenetram-se e
geram outros termos.
Minha intenção, ao tentar descrever tais relações, é mostrar, por um lado, o que
eles ‘abrem’ e, por outro, aquilo que eles ‘ligam’. A concepção de André e de outros
narradores
149
é que tais elementos (um lugar sagrado, um desenho na pedra, uma pedra
com sentido) são eles mesmos portadores de um certo conhecimento, mas portadores de
um modo especial. Se eles são extintos, ou se degeneram, ou (no caso dos petroglifos)
emudecem, os conhecimentos a ele ‘linkados’ tendem igualmente a desaparecer.
148
Assim, dentro dos conceitos da Arte da Memória de Severi (2004a) e forçando um pouco a mão, posso
arriscar-me a dizer que moolito, à semelhança de um quipo peruano, não é uma técnica de memorização, mas a
imagem mesma de um certo processo da memória.
149
Como, por exemplo, Divino Dasilva, informante de Ortiz (sem data, contracapa): “Dizem os antepassados
que os petroglifos foram desenhados segundo as distintas cores do mundo, mas à medida que essa escritura
sagrada vai desaparecendo, do mesmo modo vai desaparecendo o comportamento e o conhecimento intelectual e
moral do homem, para findar assim o período desta atual geração”.
137
INSERIR TABELA Fig. 76
138
A analogia de André é adequada. Se um ‘ícone da internet’, que remete a uma subpágina
de informações, não for ‘clicado’, aquelas informações perdem sua utilidade. Isto é, se
não há quem o reconheça como ícone, tudo o que está ‘por trás dele’ e tudo aquilo ao qual
ele remete (tudo o que ele ‘abre’) está fora de uso. Se, por fim, o ícone desaparece
radicalmente, as informações que ele aponta vêem-se perdidas para sempre, porque
‘desvinculadas’. Tudo o que o signo ‘liga’ continua lá, em algum lugar, é ainda um real,
porém inacessível, perdida a possibilidade de atualização
150
.
Aquilo que o signo ‘abre’ está no âmbito da memória. Ao remeter a uma série de
informações, o signo deflagra (ou possibilita) operações mentais (reconhecimento de
relações icônicas, estabelecimento de relações indiciais de causa e conseqüência). Aquilo
que o signo ‘liga’ está no âmbito do conhecimento, na promoção da síntese (operação
mental ligada à significação, à simbolicidade) de um formidável corpo de ensinamentos
técnicos, estéticos, éticos
151
. Talvez cause espanto ouvir os Baniwa referirem-se a esses
signos como portadores de conhecimento, porque a princípio podemos ser levados a pensar
que as informações estão contidas neles mesmos, quase como códigos a serem decifrados.
O mais adequado, no entanto, é entendê-los como chaves que abrem a memória para
conhecimentos e fios (ou ‘colas’) que ligam e vinculam tais conhecimentos, não apenas
entre si, mas, principalmente, entre estes e as pessoas, à vida social baniwa.
É possível, assim, estender até onde for desejável as análises dos (novos) signos
continuamente gerados e, por extensão, das relações que apontam. A Figura 77 mostra,
em forma esquemática, um primeiro traçado dessas relações mais básicas, a partir do signo
moolito.
150
Sobre os conceitos de real e atual, ver Lévy (1996).
151
Assumo a opinião de David Guss (1990), quando ele diz, a respeito dos Yekuana, que não há uma distinção
precisa entre esses termos, que as funções ‘estéticas’ e ‘éticas’, em razão da forte vinculação das cestarias com as
histórias, se fundem e se sobrepõem. O mesmo se dá, com os Baniwa, penso, na relação petroglifos / histórias.
139
Figura 77
Por meio desse diagrama, temos uma visão da agência do signo, o que ele abre e o
que ele liga. Moolito, a princípio, abre o mundo primordial para os walimanai. Por meio
dele
152
, Ñapirikoli ‘abriu’ para si próprio o mundo atual, ao estender-se no tempo
153
como
estendeu o mundo espacialmente. São eles (nós), os walimanai, os depositários das
intenções de Ñapirikoli. Para que a continuidade entre os mundos primordial e atual
pudesse de fato ser concretizada, moolito somente não bastaria. Era preciso que tal
continuidade de mundos acontecesse para alguém. Os walimanai fazem parte do mundo
primordial na mente e na intenção de Ñapirikoli, nas orientações de Kowai e
praticamente são o mundo atual. No entanto, quando falamos em walimanai, esquecemos
152
A expressão ‘por meio de’ deve ser entendida, aqui, no sentido que lhe atribuem, nos anos 60, Marshall
McLuhan (1964) e, recentemente, Alfred Gell (1988) e Bruno Latour (2005). Moolito (e todos os signos nas
pedras) exercem uma função que pode ser sintetizada como a da mediação criativa, conceito presente, ora de
modo mais implícito ou explícito, com essas ou outras palavras, nas obras desses três pesquisadores
mencionados.
153
Ver Gell, 1988:96-154.
140
que mesmo esses dependem ainda de outra mediação, já que não é qualquer baniwa que é
capaz de ‘clicar no ícone, abrir os conhecimentos e vinculá-los. Aquele que torna isso
possível é quem eu chamei, no esquema acima, de narrador’: um velho, um pajé, um
xamã. É ele que, por meio das histórias apre(e)ndidas, opera a continuidade (para os
walimanai) entre o mundo de Ñapirikoli e este atual. No esquema, esse mundo ‘das
histórias’ está iluminado em azul.
Assim, seguindo as setas direcionais (às vezes bi-direcionais), temos uma visão das
relações, aqui descritas limitadamente em forma de função copulativa e quase sempre em
perspectiva (“Ñapirikoli é o diabo para os evangélicos”, ou Moolito e as mulheres
dialogam”). Note-se a relação próxima e incerta entre as Amaronai do mundo primordial e
as mulheres do atual, e o lugar-ponte dos walimanai que, para usufruir de todos os
conhecimentos deixados por Ñapirikoli, devem estar por princípio inseridos nesta ‘velha
tradição’, ainda que vivam cotidianamente uma ‘nova tradição’. Mas (apenas um exemplo)
quem são, hoje, os walimanai de Sofia Muller? Para quem ela ‘estendeu o mundo’? O
ponto é que um esquema aparentemente simples como esse apresenta, a partir de
enunciadores complexos, uma grande capacidade de dispor questões. E um signo na pedra,
este moolito, que parecia ser um objeto mudo, age como a flauta que representa:
responde a perguntas. Talvez ainda não tenhamos ‘ouvidos treinados’ para entender sua
voz-de-entre-mundos. Moolito, você fica conosco mais um pouco, ensina-nos mais um
pouco?”, perguntamos. “Oh-hom-maa-txaa”, ouvimos de volta. “Kwami?”, insistimos, como
de praxe. On-hom, matsia!”, retruca, “Sim, está bem!”. Moolito, o sapo, a flauta, o
signo, o signo-flauta-animal, fala também conosco, em alto e bom som.
3. Oficina de desenho: Alfredo e as histórias sem equívocos
Oficina de desenho
Reparei, em algumas ocasiões, que os Baniwa gostam de desenhar à toa, riscando
despretensiosamente na areia padrões geométricos semelhantes aos que encontramos nos
141
petroglifos e nas cestarias. Seu Laureano, brincando com o neto de um ano, na praia do
rio, riscou desenhos com uma varinha; uma velha mulher, ao nos ouvir falar sobre os
petroglifos, em sua comunidade, disfarçadamente traçou uma grega com a ponta do
descalço; Liveston e Basílio, no chão do Centro Comunitário de Jandu Cachoeira, traçaram
várias figuras a giz (Figuras 78, 79 e 80). Tais desenhos foram feitos, obviamente, porque
falávamos sobre os petroglifos. O meu ponto, porém, é que essas imagens estavam nas
mentes e nas mãos dos Baniwa, de alguma maneira. Que pensamento conformam? Qual é a
‘idéia gráfica’ que repousa no imaginário baniwa? Será ela devedora dos signos das pedras?
Se não, de onde?
Figuras 78, 79 e 80 – Desenhos na areia: seu Laureano, uma mulher, Liveston e Basílio.
O nosso retorno à Escola Pamáali tinha um objetivo concreto de ‘contrapartida’ em
relação ao apoio que a pesquisa recebeu por parte de seus orientadores pedagógicos,
professores e alunos. Sabendo de minha formação como artista gráfico, Laíse Diniz,
coordenadora pedagógica, e Alfredo Brazão, ‘capitão’ baniwa da comunidade-Escola,
agendaram uma oficina de desenho envolvendo os professores e alunos que, nessa época,
estariam chegando para o início de um período letivo. A atividade justificava-se em função
da necessidade de os alunos expressarem e ilustrarem, em formas que não a de um texto
escrito, as pesquisas que fazem parte das atividades escolares. Todos queriam ‘aprender a
desenhar’ e, com essa expressão, se referiam a técnicas de desenho artístico, como
anatomia humana, luz e sombra, perspectiva, etc.
Eu tinha outras ambições. Artista habituado à linguagem das histórias em
quadrinhos, entendo o desenho, nesses termos, como uma linguagem expressiva, por meio
da qual, se compreendermos suas propriedades formais e as formas de combinação de seus
diversos repertórios de signos, é possível ‘contar histórias’ sem palavras. E estava decidido
a transmitir aos jovens baniwa essas técnicas de representação, em detrimento das
técnicas de desenho artístico que eles a princípio demandavam (Figura 81). Tal estratégia
tinha como fundamento uma particularidade lingüística: a palavra para ‘desenho,
desenhar’, entre os Baniwa, é a mesma utilizada para ‘escrita, escrever’, o verbo dana,
que também funciona como palavra independente para ‘desenho’, ‘escrita’. Essa palavra
tem como origem a planta utilizada em pinturas corporais (jenipapo, dáana). O próprio ato
de pintar-se era dito dana, como em nodananáasakakawa phirimáapa iyo (pinto-me com
142
urucu) (Ramirez, 2001). Desse modo, todo desenho nas pedras também é denominado
dana
154
, e alguns velhos se remetem a eles como ‘a escrita de Ñapirikoli’.
Figura 81
Eu acreditava que a oficina de desenho poderia iluminar, para mim, algo da
compreensão desenho-escrita por parte dos jovens baniwa. Acreditava, ainda, que a partir
disso eu poderia até mesmo reunir recursos e dados para estabelecer essa vinculação de
modo mais preciso e, quem sabe, vir a conceituar os desenhos na pedra como uma
verdadeira escritura, e não somente como uma escrita
155
. Minhas pretensões e ambições
foram, de certo modo, desmontadas: por um lado, pelos dados etnográficos e, por outro,
pelos desdobramentos da própria oficina.
Apesar da expressão corrente ‘escrita de Ñapirikoli’, utilizada pelos velhos, nada,
nos relatos ou mesmo na análise formal dos signos das pedras, me permitia concebê-los
como uma escrita, portadores auto-suficientes de sentido, articulando e combinando
pequenas unidades com vistas à formação de palavras e, por meio da combinação destas,
de sentenças
156
. no início da pesquisa, quando André Baniwa referiu-se aos signos como
se fossem ‘ícones da internet’, eu poderia ter intuído que estes não exerciam uma real
função de escritura. Os signos nas pedras não são ‘sílabas gráficas’, o funcionam como
ideogramas (ao menos em seu contexto-escritura), não podem sequer ser encarados como
hieróglifos a serem decifrados. Ao contrário, são signos que, para que funcionem como
portadores de sentido, precisam estar, como vimos, necessariamente erigidos (Stell) numa
certa rede sígnica e social que envolve muitos outros enunciadores. Tal sistema de formas
não são alfabetos, mas orientam a imaginação. O essencial é estabelecer a relação mental
entre as imagens e um conjunto organizado de idéias e palavras (Severi, 2004a).
154
Ver nota 109.
155
A esse respeito, ver ‘O Grau Zero da Escritura’, de Roland Barthes (1974).
156
Pelos mesmos motivos, não seria possível, ainda, estabelecer uma relação de semelhança ou analogia entre os
petroglifos e uma escrita ideográfica.
143
A oficina de desenho, por outro lado, não revelou sobre o pensamento gráfico e
narrativo dos jovens nada além do que eu havia observado em oficinas semelhantes, na
cidade do Rio de Janeiro, entre adolescentes urbanos. As únicas diferenças entre os
desenhos e narrativas dos estudantes baniwa e as dos estudantes da cidade foram a
temática e o ‘vocabulário gráfico’, em virtude de estes últimos terem mais acesso a
publicações e maior exposição às mídias. Em termos de pensamento narrativo, os jovens
baniwa apresentavam a mesma disposição e inventividade (também as mesmas
dificuldades) das dos jovens urbanos. Enquanto estes desenhavam carros, andróides,
roupas de marca e objetos da modernidade, os primeiros representavam rios, animais,
roupas simples, ferramentas, etc. No entanto, a anatomia humana, a apreensão dos
recursos de luz, sombra e perspectiva, bem como o encadeamento gráfico da narrativa,
tudo parecia muito semelhante entre um grupo e outro. Entre os Baniwa escolarizados,
habituados ao uso da internet, à escrita (em português e em ngua nativa), à leitura da
Bíblia e à TV, não pude perceber nenhum resquício de algo que se pudesse atribuir a uma
outra lógica
157
de pensamento gráfico.
A falta de dados empíricos e de mais foco na questão, quando de minha passagem
pelo campo, não me autorizam a afirmar nada além do que aqui descrevo. No entanto,
forço-me a tentar dispor algumas questões que, se não podem ser alvo, agora, de um
maior aprofundamento, ao menos serão úteis para se pensar algumas relações entre a
escrita, os petroglifos e a memória social entre os Baniwa. Por um lado, a vinculação
desenho-escrita promovida pela única palavra dana
158
- talvez uma mera transposição do
‘nome’ de uma atividade conhecida (desenhar, pintar o corpo) para uma atividade então
desconhecida e que pareceu aos índios semelhante (escrever) pode não ter maiores
fundamentos ou implicações que uma analogia baseada no ato de ‘inscrever’. Assim, a
questão da escrita parece impor-se sobre a maneira de enxergar os petroglifos, não pelo
viés das formalidades da linguagem, mas pelas práticas que resultaram na descontinuidade
entre os fundamentos de uma velha tradição (oral, baseada nos cânticos malikai) e uma
nova tradição (escrita, baseada na alfabetização compulsória). Vale lembrar que a escrita
e sua associação com os desenhos, no caso baniwa, é mediada não por qualquer escrita,
mas pela Bíblia. Pode residir aí, talvez, a ressignificação dos Ñapirikoli idana nhimi -
literalmente, ‘desenhos de Ñapirikoli’
159
.
157
De modo romântico e ingênuo: a uma lógica ‘ancestral’, ‘indígena’, ‘tradicional’, ‘baniwa’.
158
A relação entre o desenho e a escrita é variada entre os grupos indígenas. Em muitos povos ameríndios, como
mostrou Silvia Lopes Macedo-Tinoco (2006), estabeleceu-se uma sinonímia entre escrita e desenho. Em alguns
casos, houve também uma ‘xamanização’ da escrita (Gow, 2001). Celia Collet, no entanto, mostra que, entre os
Bakairi, desenho e escrita têm estatutos diferentes (2006), o que contraria a hipótese geral de Macedo-Tinoco.
159
No entanto, temo que essa seja uma análise superficial, ainda mais levando-se em conta a crítica de Carlo
Severi a respeito da oposição entre tradição oral e tradição escrita. “Não é falsa, mas é uma falácia” (2004), diz
ele. Nesse ponto do trabalho, parece oportuno evidenciar uma direção ainda não trilhada mas que, seguramente,
144
Assim, a expressão ‘escrita de Ñapirikoli’ pode, muito bem, ter origem numa
compreensão baniwa pré-escrita, adotada em português apenas depois que a palavra dana
passou a ser traduzida segundo o contexto’, isto é, como ‘desenho’ ou como escrita’,
dependendo da prática à qual se refere. Quando denominam os petroglifos de ‘desenho de
Ñapirikoli’ (mais freqüentemente) ou ‘escrita de Ñapirikoli’ (mais raramente), os Baniwa
parecem ver-se às voltas com uma ambigüidade que, para eles, não é problemática: os
desenhos nas pedras são um legado de um ancestral mítico para as novas gerações, para
lembrança e ensinamento destas. Não por acaso, a Palavra de Deus, expressa de forma
escrita na Bíblia Sagrada, é investida de funções semelhantes.
Essa relação tem outro importante desdobramento, não mais no que diz respeito
aos petroglifos em si, mas às histórias que compõem o corpo de conhecimentos tradicional
baniwa. É comum, como percebemos na literatura sobre a cosmogonia baniwa e até
mesmo no restrito âmbito deste trabalho, a profusão de histórias que, seguindo troncos
narrativos comuns, diferem enormemente em relação a detalhes, quer sejam muito ou
pouco significativos. Uma mesma história, como aquela aqui apresentada, sobre a origem
das flautas Kowai e sua apropriação por parte das mulheres, pode sofrer grandes variações,
a considerar a origem do narrador (fratria, sib), o objetivo da narrativa ou a própria
intervenção subjetiva do narrador. No entanto, essa proliferação de versões, comum entre
tradições fundamentadas na oralidade, não tem sido bem vista entre alguns baniwa, sejam
velhos ou moços.
Alfredo Brazão é jovem, não tem ainda 30 anos de idade e coordena a Escola
Pamáali. Ele me disse, certo dia, à beira do rio, que às vezes sofria com a falta de
coerência das histórias narradas pelos velhos. E tinha uma solução:
Alguém deveria reunir todas as histórias, divididas pelos temas e, aos poucos, ir
arrumando as informações de modo a que ficasse, em cada tema, apenas uma história sem
partes diferentes nem fatos que não combinam. Apenas uma história – repetiu.
Acredito que tal angústia tenha relação com a formação de Alfredo professor de
História) e também com a inserção num ambiente social no qual a Bíblia é, hoje, o
principal critério de ‘verdade’, o corpo de conhecimentos por excelência. De fato, por
princípio, não contradição alguma (não pode haver), ou sequer alguma incoerência, ao
deve ser considerada nas análises aqui propostas. A relação entre escrita e oralidade, aquisição da escrita,
alfabetização, escolarização, etc, está vinculada à situação ‘entre’ tradições vivida pelos Baniwa de hoje. A
tendência de se anular a oralidade em favor do que seria um seu ‘contrário’, a escrita, torna-nos, segundo Severi,
incapazes de entender seu modo específico de funcionamento (a forma, a representação mental típica), além de
ocultar o fato de que, entre esses dois extremos, entre a oralidade pura e o uso exclusivo da escrita (“se é que isso
existe na realidade, e não somente na imaginação ideológica da cultura ocidental”, diz ele), existem numerosas
situações intermediárias (2004a:XIII). Além disso, Severi alerta ainda para o perigo em relegar à oralidade toda a
tradição que não é escrita (alfabética), deixando de lado todo o universo de imagens presentes nas culturas ditas
de tradição oral.
145
longo dos milhares de versículos integrantes dos 66 livros do Velho e do Novo Testamento,
ainda que estes tenham sido escritos em épocas que às vezes distam entre si mais de mil
anos, por cerca de quarenta autores e em duas línguas diferentes (hebraico e grego koiné).
Por princípio, é a Palavra de Deus, e esta é invariável e perfeita, “viva e eficaz”
160
. Do
mesmo modo, a História aprendida por Alfredo sofre igualmente uma certa padronização
na escrita, um ‘achatamento’ de versões para que seja construída uma ‘linha do tempo’ na
qual cada acontecimento ou personagem estejam relacionados a uma data e a um lugar.
Tais acontecimentos são conseqüência direta de causas estabelecidas (e registradas em
texto) e, por sua vez, tornam-se causa de outras conseqüências necessárias.
Ao desejar a supressão das ambigüidades, contradições e equívocos das histórias
baniwa, Alfredo, a princípio, leva-nos a entender que tal desejo tem como pano de fundo
as novas tradições, seja por meio da escolarização e da ‘disciplinarização’ dos
conhecimentos, seja pela normatização e dogmatização dos acontecimentos e
comportamentos. Ou seja, o que está em jogo é o controle das narrativas, e o controle
destas sobre a ‘vida real’. Ademais, percebemos que tal pensamento não grassa apenas
entre os ‘novos baniwa’. Seu Alberto Lourenço, velho ex-pajé de Jandu Cachoeira, conclui
um de seus relatos ao Projeto Mitoteca com uma advertência:
“Essa é a minha versão. Pode ser que essa explicação que eu sei sobre o
kakuri [uma certa armadilha para peixes] não combine com o conhecimento de outras
pessoas. [...] Por isso, meninos, quando tiver outra versão da história, temos que
adaptar para que fique só uma” (Garnelo et al, 2004/2005:152) [ênfase minha].
O anseio pela ‘unidade das histórias’ parece ser compartilhado entre velhos e
moços, talvez por razões diferentes. Com isso, mas com outras tintas, parece concordar
também o velho seu Valentim, rio abaixo.
4. Juivitera: Seu Valentim e a ‘história total’
160
Carta aos Hebreus, capítulo 4, versículo 12, Bíblia Sagrada.
146
Descemos à comunidade de Juivitera, onde encontramos seu Valentim Paiva, que é
dzawenai e ali chegou com 8 anos de idade, em 1945. Juivitera fica logo abaixo da foz do
Ayari, no Médio Içana. Seu Valentim contou-nos uma história sobre a origem das flautas
Kowai, no Centro Comunitário, ladeado pela neta pequena e pelo filho mais novo (Figura
82). Antes, perguntou-nos se Helena, a mulher de Basílio, entendia o português. Dissemos
que entendia muito pouco. Ele, então, começou a narrar a história em português, e eu
comentei com o Irineu para dizer a ele para contá-la em baniwa, que depois nós faríamos a
tradução. Mas o seu filho me disse: “Ele está contando em português para que a mulher
não entenda. As mulheres não podem ouvir essas histórias”.
Figura 82 - Seu Valentim e a neta
Seu Valentim é católico, sua comunidade está incrustada numa região evangélica, e
nos recebeu perguntando sobre a então recente execução de Sadam Hussein (“Vocês
acham que ele morreu mesmo? Não era alguém muito parecido com ele, que foi posto ali
em seu lugar?”) e sobre o Osama Bin Laden (“Já encontraram o Osama?”). Em vez dos
presentes tradicionais, com os quais pagávamos os narradores e que consistiam de fumo,
redes, anzóis, chumbo e pólvora, nós estávamos avisados do interesse de seu Valentim
por informações do mundo macro-político e, por isso, seu ‘pagamento’ recebido com
grande alegria – foi um pequeno lote de edições recentes das revistas Veja, Istoé, Época.
“Não sei bem como tudo isso teve início. Cada um conta do jeito que aprendeu”,
diz seu Valentim, iniciando seu relato sobre a origem das flautas Kowai. A história, em si,
não acrescenta informações relevantes às descritas aqui. A versão que seu Valentim
apresenta é a mais corrente no Içana, ou seja, Ñapirikoli consegue recuperar as flautas e
punir as mulheres, sem matá-las.
Bem informado e com opiniões muito bem elaboradas, seu Valentim o se esquiva
de responder às nossas perguntas com firmeza e sem medir palavras. Ele tem uma idéia
147
formada a respeito da relação entre as velhas e as novas tradições.”Hoje, o que atrapalha
é que tem duas religiões”, diz ele, acrescentando que “a religião não quer mais fazer as
flautas”. Seu ressentimento para com as religiões ou, mais precisamente, para com a
religião evangélica funda-se na certeza de que teria sido ela a principal responsável pela
‘destruição da cultura baniwa’:
“Quem destruiu a cultura foi a Sofia. Naquele ano em que ela chegou, ainda
existiam dabukuris. Em 1969, fizeram o último dabukuri geral. Foi a despedida dos
antepassados. Ela proibiu os dabukuris, os missionário proibiram. Foi quando eu disse
para o missionário: ‘O senhor não tem nada a ver comigo!’”.
Acerca de tal cultura, seu Valentim tem uma compreensão estrutural e total das
narrativas e histórias dos Baniwa. Para ele, uma história, “uma história completa,
total”. Ele traça uma analogia, segundo a qual todo o conjunto de histórias e suas versões,
dispersas entre vários grupos, comunidades, fratrias e narradores, tudo isso “é como uma
árvore”. Segundo ele, as pessoas de cada comunidade conhecem as histórias, “mas estas
são os galhinhos da copa das árvores”. Ele chama a atenção para o fato de que não é
possível “pegar um pedaço” dessa árvore e esquecer o resto, sob pena de se perder a
compreensão do todo.
Reluto em considerar essa opinião bem como a de seu Alberto - como decorrente
de uma inserção numa cultura escrita, poderosamente conformada pela leitura e pelo peso
das Escrituras Sagradas. Seu Valentim, ao contrário de seu Alberto, não predica pela
unidade das histórias, ou em favor da desambigüação dos detalhes. O que parece estar em
jogo em sua idéia de ‘história total’ é simplesmente isso: que uma história total, que
esse corpo narrativo (oral, escrito) é finito e tradicional, é um todo articulado, que não é
possível reinventá-lo todo o tempo, ou modificá-lo ao bel-prazer. Ao contrário da
concepção algo rizomática que pode advir da observação da alternância e proliferação de
versões das histórias, bem como de suas variações clânicas ou sucessivas
inserções/supressões de conteúdos e informações, as palavras de seu Valentim nos levam a
crer que, ao contrário, as histórias baniwa organizam-se segundo uma estrutura
arborescente
161
.
Passando os olhos sobre os muitos relatos referentes aos alimentos, integrantes do
Projeto Mitoteca (Garnelo et al, 2004/2005), bem como das histórias compiladas por Hill
(1993), Wright (1996, 1999b) e Garnelo (2003), segundo objetivos diversos, nota-se que a
primeira ‘explicação’ para tudo costuma fundar-se, para a maioria dos narradores e
informantes baniwa, num tradicional ‘tronco’ principal de poucas histórias: a origem de
Ñapirikoli e dos ‘irmãos-universo’ (hekoapinai), a origem de Kowai, do rito de iniciação
masculina e das flautas Kowai, o roubo das flautas e o papel das Amaronai, a disputa entre
161
Sobre a distinção entre rizoma e árvore, ver Deleuze e Guatarri (1995).
148
Ñapirikoli e seus inimigos gente-animal: os macacos da noite (Ipeeko, Eenonai), Dzawi, a
serpente Omawali, etc. A partir delas, e a partir de suas muitas versões, explica-se tudo. O
tronco principal ramifica-se em vários troncos mais delgados, e estes em galhos, com
folhas, flores, frutos. Seu Valentim reclama:
“Os jovens vêm aqui e me pedem uma história sobre a origem de certo
peixe... Ora, isso é um raminho da história! eu conto, ele colhe o raminho e vai
embora, contente. Mas, para mim, ele não levou nada, esse raminho não vai servir
para quase nada, separado da árvore!”.
Seu Valentim quase não fala especificamente sobre os petroglifos. Ao contrário,
parece considerá-los, também, integrantes dessa ‘história total’. O grande problema, e a
causa de seu ressentimento em relação às religiões, é o fato de que tudo está se perdendo,
que hoje em dia não ninguém que conheça a árvore em sua totalidade. Entendo, a
partir dessa observação, que essa árvore não é um conjunto abstrato de relatos sobre a
cosmogonia baniwa, formado por diversas histórias aqui e ali, como um corpo mítico.
Entendo que essa árvore é composta de elementos concretos, de histórias que poderiam (e
um dia foram) reunidas em uma só memória, e que o trabalho desses velhos que a
detinham seria justamente transmiti-los segundo os recursos e instrumentos disponíveis (os
cânticos, as narrativas, os desenhos).
- Hoje, está tudo esquecido. É como ler uma língua morta. Você vê o sinal, mas não
sabe o que significa – diz ele, desesperançado
Seu Valentim afirma sua resignação: “Tudo vai acabar”. No entanto, uma das
características de uma árvore é justamente a constante renovação, o crescimento sem
pausa, a adaptação às condições do ambiente visando à própria preservação e subsistência.
Galhos apodrecidos caem ao solo, novos ramos brotam, as estações se sucedem e ela se
transforma sem descaracterizar-se. Mas creio que tais considerações terminam por
estender a analogia para além das intenções de seu Valentim e dos rigores requeridos para
este trabalho. Ainda mais porque, pensando bem, árvores também são arrancadas, ou
secam e morrem.
Eu sabia que este seria o último encontro com um velho narrador e que, dali a São
Gabriel, navegaríamos apenas mais dois dias, com algumas paradas rápidas para registro de
petroglifos em uma cachoeira e na comunidade de Camarão. As idéias de seu Valentim
rondaram-me a cabeça durante longo tempo, como mais um elemento do embate entre o
novo e o antigo. O que de mais antigo, se não as histórias baniwa sobre as origens? E o
que de mais novo, se não o registro dessas histórias em meio impresso e digital? A
‘união’ do novo e do antigo acontece simplesmente ao se registrar as histórias e aprisioná-
las/preservá-las em ‘mídia CD’? Quando eu pensava nisso, a palavra que me vinha à mente
não era baniwa, sequer portuguesa. É alemã e eu nem consigo pronunciá-la direito:
149
Gelassenheit, serenidade. Diante de épocas de formidável transição, como a do advento da
revolução atômica abordada em magistral pronunciamento de Martin Heidegger, “nasce
uma posição totalmente nova do homem no mundo e a respeito do mundo” (Heidegger,
1994). São épocas de excessos de possibilidades, incertezas e ansiedades. Como se diria
‘serenidade’ em baniwa?
5. De volta a São Gabriel: ‘prestação de contas’
O Rio Negro, cheio, com a serra Bela Adormecida ao fundo
Chegando à foz do Içana, ainda pudemos registrar petroglifos ao longo do rio, em
Coro-coró, Maçarico e na comunidade de Camarão. Já no dia seguinte à nossa chegada em
São Gabriel da Cachoeira, André novamente reuniu as lideranças do Baixo, Médio e Alto
Içana para que eu e Irineu relatássemos nossa viagem. Irineu falou em baniwa e eu, devido
ao tempo passado exclusivamente entre seus falantes, me esforçava por entender o
sentido do que ele dizia, preocupado se a visão dele a respeito do cumprimento de nossos
objetivos estava de acordo com a minha. Os homens, reunidos na maloca da FOIRN,
expressaram concordância e contentamento. Tentei, a seguir, descrever, tão fielmente
quanto me foi possível, os registros, as impressões, os encontros que havíamos
concretizado nesse curto período de tempo.
André permanecia calado, ouvia as perguntas dos homens a mim e a Irineu com
atenção, avaliando bem as respostas, sem quase intervir. Antes de eu começar a viagem,
durante uma conversa informal, ele havia me contado sobre seu grande sonho “como
liderança”: reunir, em São Gabriel, todos os pesquisadores que estiveram em contato
com os Baniwa, para um grande seminário, compilar todos os produtos dessas pesquisas
(relatórios, publicações, teses, fotos, vídeos) e começar por a construir o registro da
história dos Baniwa. Essa conversa me veio à mente durante a reunião, porque a relacionei
tanto à ‘árvore total’ de seu Valentim quanto à idéia de ‘registro’ em forma
predominantemente escrita. Por um lado, tais registros aprisionam e cristalizam os
conhecimentos que até então circulavam livremente, moldando-se em contínua
150
transformação por entre as comunidades e ao longo do tempo, mas, por outro, permitem a
sobrevivência de algo fadado a desaparecer ou, senão, descaracterizar-se por meio de
transformações abruptas ou, por outra, não desejadas.
Esta é a equação em meio à qual se move, hoje, o povo baniwa. Uma grande
população escolariza-se com mais qualidade e segundo os preceitos da autodeterminação,
ao mesmo tempo em que as organizações baniwa sentem-se cada vez mais capazes e
firmes ao dialogar com pesquisadores e outras instituições, visando o aumento da
qualidade de vida das comunidades e do conhecimento sobre si mesmas. Por outro lado, a
pressão das lideranças evangélicas continua forte, e os jovens ‘anciãosnão são, como os
mais antigos, ex-pajés, isto é, sequer conheceram bem o mundo antes de Sofia. Em meio a
tudo isso, a ‘valorização das tradições’ implica tanto na retomada do respeito às histórias,
práticas e técnicas que, hoje, são propriedades de poucos velhos, quanto na reapropriação
delas, por intermédio dos trabalhos acadêmicos dos pesquisadores.
‘Escrita’, ‘registro’, valorização’ são palavras na ordem do dia. Também a palavra
‘memória’, apesar de pouco pronunciada. Quando nos despedimos, no final da reunião,
perguntei a André se ele havia ficado satisfeito com o resultado da viagem. “Ainda não
sei”, disse ele, muito sinceramente. “Agora tenho que esperar você escrever o teu
trabalho”, acrescentou, sorrindo. De que vale um relato oral numa reunião extemporânea,
se todo esse conhecimento não vir a ser registrado, descrito, escrito, inscrito nessa rede
que se forma sem pressa e que atualiza e vivifica a memória da história baniwa?
Atualmente, para os Baniwa, acredita-se naquele velho dito do Jogo do Bicho
162
: “Vale o
escrito”.
V. CONCLUSÃO: O rio visto do Rio
Em março de 2008 cumpre-se exatamente um ano da viagem ao, e pelo, Içana.
Nesse período, o rio encheu e inchou, subitamente opulento de águas e chuvas, novamente
esvaziou-se e ‘desceu’, bem devagar, como se deve e, agora, neste mês em que defendo
minha
163
dissertação, encontra-se novamente seco, pleno de peixes, acolhendo famílias
baniwa em festa, que acampam e pescam em suas inúmeras praias de areia branca.
Jamais, como diz Heráclito, entrarei no ‘mesmo’ rio. Esta é a época, também, em que os
Ñapirikoli idana nhimi, os desenhos de Ñapirikoli, gravados em pedra, oferecem-se às
vistas, como expressão de permanência na mutação.
162
O ‘Jogo do Bicho’ é um sorteio clandestino, loteria que teve origem no período do fim do Império, baseada
em números segundo valores atribuídos a 25 tipos de animais, a partir dos quais o apostador tem total liberdade
de escolha e combinação. Apesar de sua popularidade, o Jogo do Bicho é uma contravenção penal, no Brasil.
163
A palavra é pura provocação, claro. Melhor seria dizer ‘nossa’, e ainda em sua forma inclusiva, segundo a
distinção de muitas línguas indígenas.
151
Nesta cidade, que também tem nome de ‘Rio’, ‘praia’ é outra coisa, ‘cachoeira’ é
outra coisa, e certamente ninguém jamais ouviu falar de Ñapirikoli ou reconheceria o som
de uma flauta Kowai. Por aqui, o mundo sempre foi desse tamanho. Pequeno, quero dizer.
Daqui, desse mundo diminuto de cadeira-mesa-computador sessão solitária da tarefa
antropológica –, é que surge, ou deve surgir, uma etnografia dos signos baniwa, signo sobre
signos, pleno argumento peirceano, silogismo categórico regular: introdução, corpo,
conclusão; premissa maior, premissa menor, conclusão. Se ‘trapaceei’ na organização do
trabalho, seguindo mais o curso do rio do que os cursos do Rio, autorizo-me a ‘trapacear’,
mais uma vez, nesta ‘conclusão’. Não por mera irreverência, mas por perceber que, ao
longo do trabalho, várias conclusões que cheiram sempre a inconclusões, pois abrem
mais do que fecham. A seção-coração sobre a flauta moolito é uma delas. A Gelassenheit
baniwa-heideggeriana bem poderia ser outra. Ou mesmo o inteligente e esclarecedor
depoimento de André Baniwa, espécie de conclusão-como-introdução.
Por conta disso, opto por fazer desta conclusão não uma volta ao texto, no sentido
de sistematização e síntese daquilo que foi dito. Ao contrário, volto ao texto no exato
sentido de Hannah Arendt, citada por Carlos Fausto a respeito dos projetos de registro da
cultura kuikuro (Fausto, 2007a): o “passado [...] estirando-se por todo seu trajeto de volta
à origem, ao invés de puxar-nos para trás, empurra-nos para frente”.
1. Signos embaraçados e o embaraço dos signos
Petroglifo em Pamáali
um evidente embaraço no estudo dos signos. Se eles, como diz Peirce
notadamente, um dos homens que mais os estudou em toda a história da filosofia –, são
por natureza imprecisos, e imprecisos sob vários aspectos, seria um contra-senso esperar
que qualquer estudo sobre eles primasse pela precisão. Navegar, sim, é preciso; viver é
impreciso. Porque viver é significar, é signo-ficar. Neste trabalho, tratei todos os
elementos enquanto signos, isto é, como coisas que aparecem para alguém, e como
aparecem, em tais e tais posições (Stell, estelas). Márcio Goldman, em diálogo-escrito no
152
site Abaeté
164
, diz, parafraseando Wagner ou Strathern, que por antropologia, entende-se
o estudo de certas ‘coisas’ como se elas fossem humanas”. Eduardo Viveiros de Castro
completa: “E também, parafraseando (mais ou menos) Gell, o estudo de todas as relações
como se elas fossem relações sociais”. Aqui, tento o estudo dos signos como se
165
fossem
pessoas, e as relações entre eles como se fossem sociais. Bem sucedida ou não, essa é a
minha idéia de uma etnografia dos signos que, como/enquanto pessoas, não podem ser
concebidos a não ser em relação e em si mesmos como relação. De igual modo, ‘pessoas’
podem ser entendidas e estudadas como signos, que o único acesso que temos a elas é
como nos (a)parecem. Na ‘Gramatologia’, (2002) Derrida diz que “a coisa-em-si é um
signo”, isto é, se mesmo o absolutamente incognoscível nos aparece como signo, nada mais
natural que pessoas – relativamente incognoscíveis – igualmente assim nos apareçam.
Daí o embaraço: os signos estão sempre embaraçados (em seu sentido em português
e também em espanhol). Como pudemos perceber, a semiose infinita não é como o
diagrama da Figura 16 pode nos levar a crer uma ‘escadinhalinear fundada em causa-
conseqüência. Ao contrário, é mesmo, como Deleuze e Guattarri apontavam (1995:),
rizomática como os entrelaçamentos de axônios e dentritos. Aliás, esse é o caminho fisico
da semiose como/enquanto conjunto de operações mentais. Mas, como não tratamos de
neurofisiologia, e sim de antropologia, entendemos que aquilo que ‘liga’ desenho, pedra,
história, flauta, gente, gente-animal, homens, mulheres, velhos, xamãs, evangélicos,
mundo antigo, mundo atual e tantos outros signos não são cérebros, são mentes
(subjetividades), e mentes em rede entre si e também em rede com as quase-mentes
sociais. Seguir a vaca é mais fácil do que seguir o signo (a menos que a vaca seja um signo,
o que é quase sempre o caso). Seguir os signos é seguir seus embaraços e, a estes, em vez
de ‘deslindá-los’ (desembaraçá-los), ao contrário, acrescentar mais alguns.
Signos estão grávidos, sempre embarasados de outro(s) signo(s), Ao embaraço das
redes soma-se o embaraso da contínua produção. Um signo não se refere a outros, mas
também é capaz de gerar tantos outros, em gestação formidável como a de uma abelha-
rainha. Muito do meu trabalho, ao seguir os embaraços dos signos do Içana, foi mera
concretização da tarefa filosófica de Wittgenstein: em algum momento é preciso
interromper, parar, limitar (1979), e esse momento não é nem completamente arbitrário,
nem completamente determinado. Ele praticamente impõe-se e exige-se, segundo cada
situação. Circunscrevi, portanto, um determinado ‘universo dos signos baniwa’, a partir
dos petroglifos, mas é óbvio que esta não é (ao contrário do que acreditariam seu Valentim
e Alfredo), uma história total e inequívoca dos signos, nem em seu sentido horizontal,
164
http://abaete.wikia.com/wiki/Em_Torno_de_uma_Antropologia_Pós-Social
165
Eduardo Viveiros de Castro lembra que esse ‘como se’ deve ser melhor lido como ‘enquanto’.
153
referindo-se a tantos outros conjuntos de signos (histórias, ‘artes’, técnicas,
conhecimentos), muito menos em seu sentido vertical, em direção aos mundos
‘subterrâneo e celestial’ dos signos, aos signos potenciais e em geração. As pedras e
cachoeiras do Içana são também iarodattis de signos, isto é, lugares cósmicos de
reprodução e encontro. E, como se sabe, sempre yoopinais ali, zelando por eles e
defendendo-os. Espero ter cumprido todas as prescrições.
2. Antigas x Novas tradições
A Maloca de Ñapirikoli, Cidade Grande
Na reunião da CABC (Coordenadoria das Associações Baniwa-Curripaco), dias antes
de minha viagem, Laureano, diretor da OICAI (Organização Indígena Curripaco do Alto
Içana), apresentou a demanda de um projeto de pesquisa para a sua região, que constava
apenas de uma frase: “Estudar a religião”. Adeílson, ecólogo do ISA, coordenando o
trabalho de sistematizar numa tabela do Word todas as propostas surgidas, insistiu,
tentando compreendê-la um pouco mais para descrevê-la melhor: “O que isso quer dizer,
seu Laureano? Para que serve essa pesquisa?”. Seu Laureano explicou, então, que as
comunidades queriam que ‘alguém’ estudasse como o cristianismo evangélico se organiza
hoje no Alto Içana, isto é, estudasse o processo e a história desse movimento religioso,
para que se viesse a saber “se ele está sendo bom ou ruim para as comunidades”.
No dia seguinte, recebi a visita de um outro diretor de associação, dessa vez do
Médio Içana. O rapaz foi direto: “Queremos saber se você pode fazer uma pesquisa em
nossas comunidades”. Evitando comprometer-me, ciente de que esse trabalho que eu
então iniciava iria me ocupar durante, no mínimo, um ano, ainda assim, por curiosidade,
indaguei um pouco mais. O rapaz me disse que todos os pesquisadores estão sempre muito
interessados nos ‘tempos antigos’, nas histórias e nos mitos e, mesmo assim, sempre
voltados preferencialmente para o Alto Içana terra dos curripacos ou para o rio Ayari
154
terra dos hohodene. Mas que ninguém quer saber sobre como os Baniwa vivem hoje, “sua
vida cotidiana normal”.
Entre os extremos do ‘último homem do Içana’ e os filhos de Irineu, que nasceram
em São Gabriel da Cachoeira, freqüentam a lan house da cidade, estudam só em português
e jamais visitaram a comunidade em que o pai cresceu (Jandu Cachoeira), a maior parte da
população baniwa organiza-se em torno dos dilemas postos pelas tradições, a ‘nova’ e a
‘velha’. Projetos que tentam lidar com essa complexidade, como a Escola Pamáali e sua
Mitoteca, têm grande aceitação entre os Baniwa. Como esses, as iniciativas de preservação
de um certo patrimônio cultural, como a Cidade Grande, situam-se exatamente nesse
‘entre’ mundos, promovendo ponte e passagem para passado e futuro. Um jovem professor
da Pamáali concorda com um velho ex-pajé no sentido de organizar as histórias (metonímia
para a cultura’?) de modo a tornarem-se inequívocas. Um estudante e músico aprendiz,
que estuda as flautas para demonstração’, suspira por um tempo em que os pajés
encontravam-se com Kowai. “Eu queria tocar uma flauta Kowai”, diz, perfeitamente
consciente do fato de que produzir uma ‘flauta Kowai’ não é uma questão de escolher a
madeira certa e prepará-la de modo tecnicamente correto. Uma flauta Kowai é uma parte
do corpo de Kowai. Se Kowai é ‘ressignificado’ como o diabo ou como um personagem
mítico de histórias do tempo em que não se conhecia a Palavra de Deus, é impossível
existir uma flauta Kowai sequer.
Mas, talvez, nada tenha se posicionado tão estrategicamente entre as duas
tradições como esse Ñapirikoli, esse grande trapaceiro e superador de obstáculos, o
primeiro baniwa, deus, herói, criador, diabo, xamã, mito, história, signo, avô. Esse
Ñapirikoli, aquele-dentro-do-osso.
2.1.Ñapirikoli: um criador em processo de descriação e recriação
Não há um único desenho nas pedras do Içana representando Ñapirikoli. Mais do que
a inferência de que o ‘autor’ não seria inclinado a auto-retratos, relaciono esse fato a duas
observações: i) Não necessidade de se guardar uma memória de Ñapirikoli, a não ser
aquela a partir da categórica autoria dos próprios signos; ii) Os ensinamentos de Ñapirikoli,
gravados nas pedras, o também o conhecimento sobre ele. Desse modo, é totalmente
irrelevante existir um signo cujo último termo seja ‘Ñapirikoli’, que todos os signos
apontam para ele.
Ñapirikoli é uma figura fascinante. Sobrevivente de uma violenta carnificina,
ocultou-se nos restos de seus parentes mortos e foi escondido, mais tarde, no interior do
osso de outro ancestral. O vínculo com seus parentes havia sido rompido, e ele e seu(s)
155
irmão(s) seriam os rebentos de uma nova gente. Para isso, combateram e derrotaram todas
as outras ‘humanidades em potência’, adquirindo o direito de reorganizar (criar) o mundo
à sua feição, para seus descendentes. Ñapirikoli idealizou, gerou e matou seu monstruoso e
dionisíaco filho, recompôs seu corpo por meio das flautas, soprou-as e estendeu o mundo
para os walimanai. Como no raciocínio comum segundo o qual pai e filho engendram-se
mutuamente o pai gera o filho que, ao nascer, ‘gera’ o pai –, Ñapirikoli e os walimanai
engendraram-se mutuamente. Ao vencer seus opositores, estender e preparar o mundo
para os que iam nascer, Ñapirikoli tornou possível o nascimento do povo baniwa. Os
walimanai, por sua vez, por meio de seus xamãs, tornam-se como Ñapirikoli e
constantemente recriam o mundo (Wright, 1996:98). No entanto, esse auto-
engendramento não termina por aí, porque Ñapirikoli continua sendo continuamente
criado e descriado.
Sofia Muller e, antes dela, os salesianos, ‘descriam’ Ñapirikoli como ‘o primeiro
baniwa’, tupana’, e o recriam como uma entidade demoníaca. Ñapirikoli jamais
desaparece do panteão, apenas muda de lugar. Na verdade, essas são apenas palavras de
efeito didático, já que ele nem de fato é ‘descriado’ totalmente, nem tampouco é
‘recriado’. Os pajés e o povo baniwa parecem entender essa des/recriação não como
ruptura ou troca de lugar, mas como mutação em continuidade. Um ‘personagem’ não
substitui um outro; antes, sobrepõem-se e, em certos casos, se fundem em partes. Os
velhos pajés, por exemplo, recriam Ñapirikoli segundo uma forma cristã, não como o
diabo, mas como o Cristo
166
(Wright, 1996:80; Koch-Grünberg, 1995:218).
Hoje, e a partir das compilações de histórias promovidas pelos pesquisadores e
pelos próprios estudantes baniwa, Ñapirikoli volta a ocupar seu lugar original. ‘Volta’?
‘Original’? Certamente, isso não faz o menor sentido. Do mesmo modo que é impossível
descer ao mesmo rio duas vezes, porque suas águas fluem incessantemente, Ñapirikoli não
pode ocupar o mesmo lugar, porque tudo o mais flui incessantemente. Continuamente
descriado e recriado, com todas as ressalvas a essas expressões, cada vez mais múltiplo
(como as várias camadas do mundo baniwa) e mais mutável do que nunca, imagino que o
herói assenta-se à sombra de sua maloca, na Cidade Grande, bate com força o grande sino
que ecoa por todo o mundo e de convoca, não mais os rios, mas seus queridos
walimanai:
Hey, meus netos, quero seguir estendendo o seu mundo e, assim, seguir
estendendo-me!
166
Um dos primeiros profetas baniwa, Venâncio Kamiko, intitulava-se ‘Christu’, como Ñapirikoli. Acreditava-se
que os pajés mais poderosos entre os Baniwa também tinham a capacidade de superar todo tipo de dificuldade e,
assim, eram considerados “como Ñapirikoli, ou Christu” (Wright, 2005:120).
156
Rio abaixo, estávamos numa difícil passagem de cachoeira, e vários homens da
comunidade próxima vieram nos ajudar, como de costume, em troca de tabaco e anzóis.
Ali, vi um rapaz responder ao chamado do avô, de maneira inusitada e sob a lógica de uma
nova tradição. Eu respondia solicitamente às perguntas de praxe (“De onde você é? O que
está fazendo aqui?”) quando, ao ouvir o nome ‘Ñapirikoli’, dito por mim com péssimo
sotaque carioca, o jovem baniwa de não mais que 16 anos, estudante da Pamáali, vestindo
botas pretas para chuva grande ajuda para entrar nos rios e pisar nas pedras disse, em
alto e bom português:
- Ñapirikoli, o criador do mundo!
Os homens o repreenderam fortemente, em língua baniwa. Meu parco
conhecimento do idioma impediu-me a compreensão precisa do que falavam, mas era
evidente que os mais velhos diziam coisas como “Ñapirikoli não é criador de coisa
nenhuma, é o Satanás!”, e coisas parecidas, ouvidas por mim antes, em outros lugares.
Mas o jovem, sem mostrar nenhuma intimidação face às reprimendas, retrucou, ainda em
português (para que eu compreendesse, naturalmente), com um leve sorriso irônico no
canto dos lábios:
- Pelo menos é assim que aparece no dicionário baniwa...
167
167
Este signo, registrado por mim em Jandu Cachoeira, segundo os traçados dos pesquisadores baniwa que me
acompanhavam, foi anotado por Ortiz como ‘moolito’, não em linhas, mas com formas cheias.
157
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165
VII. ANEXOS
1. Quadro geral dos petroglifos
2. As três histórias de seu Antonio, copiadas por Livestone
3. A história de seu Olímpio
4. A história de seu Marcelino
5. As duas histórias de seu Alberto
6. A história de seu Valentim
7. (CD) Arquivos de texto, áudio e imagens : fotos de campo, registro dos petroglifos
e gravações digitais pelos narradores baniwa, em língua nativa
166
1. QUADRO GERAL DOS PETROGLIFOS
i. Cachoeira de Caapi
GPS: N – 01.14.623 ; WO – 67.51.824 ; El. 80m ; 04/03/2007 ; 19h09
Lajedo à margem esquerda
16 signos
Não foi possível desenhar o mapa do local, com a indicação dos petroglifos, em virtude do
reduzido tempo destinado à identificação e registro dos signos.
167
i. Tunuí-Seringa
GPS: N – 01.26.119 ; WO – 68.10.796 ; El. 82m ; 05/03/2007 ; 12h50
Pedra à margem direita
10 signos
Não foi feito mapa com a localização dos petroglifos.
168
iii. Escola Pamáali
GPS: N – 01.30.938 ; WO – 68.40.364 ; El. 81m ; 06/03/2007 ; 10h58
Pedras do porto da comunidade, margem esquerda
46 signos
169
170
171
iv. Jurupari
GPS: N – 01.37.361 ; WO – 68.52.766 ; El. 111m ; 07/03/2007 ; 08h42
Lajedo à margem direita, conjunto de pedras ao fundo
16 signos
172
173
v. Siuci Cachoeira
GPS: N – 01.37.454 ; WO – 68.53.120 ; El. 117m ; 07/03/2007 ; 11h54
Pedra à margem esquerda
2 signos
Não foi realizado mapa com a localização dos petroglifos
vi. Cachoeira de Matapi-Buya
GPS: N – 01.37.672 ; WO – 69.03.371 ; El. 105m ; 07/03/2007 ; 16h26
Pedra à margem esquerda
2 signos
Não foi realizado mapa com a localização dos petroglifos
174
vii. Cachoeira de Cabeçudo
GPS: N – 01.39.317 ; WO – 69.33.972 ; El. 152m ; 11/03/2007 ; 10h17
Pedra à margem esquerda
3 signos
175
viii. Camanaus
GPS: N – 01.42.630 ; WO – 69.50.789 ; El. 158m ; 13/03/2007 ; 08h11
Pedra longe do rio, entre as casas da comunidade
1 signo
176
ix. Jandu Cachoeira
GPS: N – 01.30.471 ; WO – 68.42.715 ; El. 109m ; 15/03/2007 ; 10h53
Lajedo à margem esquerda
Foram anotados apenas os signos que não apareciam nos registros de Francisco Ortiz.
Não foi feito mapa de localização dos petroglifos.
177
x. Tucumã
GPS: N – 01.29.235 ; WO – 68.38.735 ; El. 92m ; 20/03/2007 ; 08h35
Pedra no porto da comunidade, à margem esquerda
11 signos
Não foi feito mapa de localização dos petroglifos.
178
xi. Coro-coró
GPS: N – 01.29.426 ; WO – 68.21.103 ; El. 121m ; 20/03/2007 ; 15h17
Pedra à margem esquerda
29 signos
179
180
xii. Maçarico
GPS: N – 01.06.763 ; WO – 67.43.067 ; El. 76m ; 21/03/2007 ; 13h43
Pedra à margem direita
8 signos
181
xiii. Camarão
GPS: N – 00.37.387 ; WO – 67.26.978 ; El. 70m ; 21/03/2007 ; 18h03
Pedra no porto da comunidade, à margem direita
14 signos
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2. AS TRÊS HISTÓRIAS DE SEU ANTONIO
(Copiadas por Livestone)
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Página 5
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3. A HISTÓRIA DE SEU OLÍMPIO
Olímpio Lourenço
Coracy
Tradução: Irineu Laureano Rodrigues, enquanto seu Olímpio narrava.
História das Amaronai
Depois da pupunheira derrubada com a tentativa de matar Ñapirikoli, o próprio
Ñapirikoli tentou levantá-la novamente, mas a fruta não tinha mais semente. E então ele
pediu: “Agora também vou querer semente pra plantar”. Os Eenonai, os donos da
pupunheira, não queriam dar as sementes pra ele. Ñapirikoli tentou roubar as pupunhas
assadas, mas não nasceu nada. Ñapirikoli perseguiu os Eenonai com o objetivo de pegar as
sementes, mas eles não davam. Certo dia, Ñapirikoli encontrou as pupunhas sem estarem
cozidas, escondidas. Então ele pegou as sementes, voltou e falou: “Agora, sim! Encontrei!
Como é que faz para plantar? Vocês estavam escondendo as sementes de mim!”. Os
Eenonai não podiam fazer mais nada, e orientaram como fazer para plantar. No entanto,
eles tinham a intenção de matar Ñapirikoli, e por isso não davam a orientação correta.
“Plante-as bem no seu cóccix”, diziam eles, para que a pupunheira crescesse rapidamente
e matasse Ñapirikoli.
Ñapirikoli sabia que esta explicação tinha o objetivo de matá-lo, e não fez o que
eles mandaram fazer. Pegou uma vara e rachou a ponta para plantar de longe num buraco.
Assim que ele botou a semente no buraco, ela ziuuuunnnn cresceu rapidamente, como se
fosse uma flecha, e pááááá bateu lá no céu. A semente foi bater bem no lugar onde estava
Ñapirikoli, mas ele já tinha saído.
Por isso a pupunha não tem folha em pé, é sempre meio caída, conseqüência de ter
batido no céu e voltado. Depois disso, como os Eenonai não conseguiam matar Ñapirikoli,
organizaram uma festa e prepararam caxiri. Na verdade, foram as Amaronai, as tias de
Ñapirikoli, que o prepararam. O dono do caxiri era Kaali, que também foi convidado.
ofereceram caxiri pros dois, pra Ñapirikoli e Kaali, e eles beberam até ficarem bêbados.
Enquanto estavam bêbados, brigaram, brigaram muito, até o amanhecer. Quando
amanheceu, Kaali falou: “Vocês brigaram comigo, e por isso vou levar essa comida”, que
era a mandioca. Os filhos de Kaali participaram dessa briga, por isso ele ficou com mais
raiva ainda.
Depois que ele foi embora, aparece Kowai. Ñapirikoli começou a andar com as
Amaronai. Quem fez Kowai, feito (a flauta), foram as mulheres Amaronai. E foram
188
escondê-las no igarapé. Para esconder as flautas de Ñapirikoli e as levarem até o rio, elas
as colocaram nas vaginas,
Na despedida de Kaali, ele tinha dois filhos pequenos, um menino e uma menina.
Kaali falou pra eles: Vou deixar para vocês dois, meus caçulas, um pouquinho dessa
comida, para que vocês não morram. Agora, deixem que seus irmãos mais velhos e sua mãe
passem fome! Ela foi a culpada por toda essa briga que aconteceu!”. Ele foi embora
enquanto os mais velhos ainda dormiam, embriagados. Quando acordaram, procuraram o
pai. Os irmãos mais novos disseram que ele tinha ido. Foram ver na panela de barro e
não tinha mais caxiri. Foram ver na roça e as maniwatinham se transformado em mato.
tinha uma planta muito parecida com a maniwa, chamada kapoiro, mas que era
mato mesmo.
Depois de três dias, eles começaram a ficar fracos, com fome. Tudo o que havia na
roça havia se transformado em mato. Mas os meninos pequenos continuaram fortes,
brincando com o beiju. Certo dia, deitados em cima da rede da mãe deles, ela perguntou:
Vocês estão vendo o pai de vocês? Ou estão com alguma coisa que ele deixou pra
vocês?
Eles responderam:
– Não, não temos visto o nosso pai, e não temos nada.
Nessa brincadeira, um farelo de beiju caiu no peito da mãe. Ela sentiu, pegou,
comeu e se sentiu aliviada. Deu um suspiro, voltou a respirar normalmente, refez as
energias. Quando sentiu isso, perguntou:
– Onde vocês encontraram isso?
– O que foi?
– Encontrei um pedacinho de beiju no meu peito. Quero saber como o conseguiram!
– O próprio pai nos deixou!
Ela pediu mais um pedacinho, e eles deram. é que ela voltou mesmo a se sentir
bem, e saiu e começou a cantar: Daakha, daakha, daakha...”, o canto do inambu. O
irmão mais velho também perguntou:
– Como vocês conseguiram isso?
– O próprio pai nos deixou!
E pediu um pedacinho, O irmão menor então transformou novamente o mato em
maniwa, pra disponibilizar a roça e a comida.
A partir daí, as Amaronai começaram a fugir de Ñapirikoli, com as flautas, e ele as
perseguiu. As mulheres entravam debaixo da terra e ficavam tocando as flautas. Ñapirikoli
disse então que teria que matá-las.
189
Ñapirikoli perseguiu as Amaronai e saiu acima de Yoweenai, saiu dali e escutou as
mulheres embaixo da terra, com as flautas. De lá, desceu mais pra baixo, numa reta mais
comprida. As mulheres saíam, mas Ñapirikoli não saiu completamente, deixando de fora
apenas o pênis. Por isso aquele lugar se chama Lixiwhidami (cabeça do pênis). De lá, se
transformou novamente e foi sair em Matapi (Buya Cachoeira), onde começou a desenhar
nas pedras. Lá, desenhou peixes, flautas e mais outras coisas. De lá, sai dentro do mato,
num lugar chamado Tapinai. De lá, saiu em Jurupari.
As Amaronai se transformaram novamente, abaixo de Araco (Waliromi). Ñapirikoli
bem que tentava alcançar as mulheres, mas não conseguia. E elas bem que tentavam
matar Ñapirikoli, mas não conseguiam. De lá, ou se transformavam em espíritos (que
Ñapirikoli não enxergava), ou se enfiavam debaixo da terra. E foram sair em Jandu
Cachoeira. Elas ficaram mais tempo em Jandu, e é por isso que existem vários lugares
que tem histórias. Embaixo, no lago, as Amaronai se esconderam, e fizeram muitas coisas
ali.
De lá, foram embora para onde hoje é São Gabriel da Cachoeira. Lá, Ñapirikoli
tentou se transformar em uma cobra grande, porém as mulheres mataram a cobra (mas
não mataram ele). A cobra morta ainda está lá, perto da igreja, em forma de uma grande
pedra abaixo da Matriz, uma pedra-sucuri. De São Gabriel, as Amaronai foram embora e
saíram no lugar onde hoje é Manaus. Foi lá que Ñapirikoli deixou de perseguir as mulheres.
Lá, ele deixou a borduna dele, chamada Baaraita. Por isso, em língua baniwa, Manaus se
chama Baara. A riqueza de Manaus vem daquela borduna de Ñapirikoli, porque ela era toda
de ouro.
De lá, as mulheres foram embora, até o outro lado, até o fim do mundo, até o outro
lado do céu. De lá começaram a dar o conhecimento aos brancos, conhecimento de
fabricação de todo tipo de material e equipamento que existe hoje. Ninguém vê as
Amaronai, mas elas até hoje estão lá. De Manaus, Ñapirikoli voltou para a maloca dele.
Aqui termina a história que eu sei.
Depoimento de seu Olímpio
- Ñapirikoli fez os desenhos nas pedras, desejando ter as flautas de volta e
pensando nelas.
- Antes da chegada da palavra de Deus, Ñapirikoli era o deus dos baniwa. Ñapirikoli
dava as regras e prescrições, dizia o que se podia fazer e o que não se podia. O espírito da
mata ainda é forte, não se pode desobedecer as regras.
190
- Ñapirikoli queria pegar as flautas de volta porque as Amaronai tinham vários
conhecimentos. Elas eram ricas, tinham riquezas e mercadorias. As flautas Kowai
significavam um processo de aprendizagem para o conhecimento – poder e riquezas.
- Se Ñapirikoli tivesse conseguido tomar as flautas de volta, os índios é que seriam
os ricos e os conhecedores, e não os brancos.
- Antigamente, os lugares eram bastante sagrados, respeitados, ninguém podia
mexer. Mas depois do entendimento da Palavra de Deus, isso não vale mais. As pessoas
andam tranqüilamente, pescam onde era proibido pescar. A prática mudou.
191
4. A HISTÓRIA DE SEU MARCELINO
Marcelino Cândido Lino
Tamanduá, fronteira com a terra curripaco
Walipere-dakenai
Tradução: Irineu Laureano Rodrigues, ouvindo a gravação da narração em baniwa.
História de Kowai
Vou contar a história da maneira como entendo sobre os desenhos nas pedras.
Quem fez os desenhos foram Ñapirikoli e Kaali. Eles tinham uma coisa de escrever, como
um bastão. Não escreviam [daana] com o dedo. A pedra se tornava mole com aquele
instrumento. Os desenhos nas pedras são de Ñapirikoli imaginando como é que apareceram
as flautas. Os desenhos servem para que a nova geração [walimanai], que somos nós,
vejam. Ele deixou os desenhos justamente também para os novos poderem imaginar como
eram os tempos antigos, para vermos como eram as coisas que se faziam antigamente.
“Antigamente, era assim”. Eles desenhavam todas as coisas que eles benziam: peixes,
animais, kuaru. E imaginavam as flautas, os balaios.
Quem conhece as rezas [liapana] sobre os desenhos, começa do alto, percorrendo
todo o caminho que Ñapirikoli fez, até embaixo. Ele andou em toda parte, desenhando nas
pedras dos igarapés, nas pedras onde aconteceram coisas. Na época, o mundo era bem
pequeno. Quando Ñapirikoli ia escrever numa pedra, era como se estivesse indo pra roça.
Era também como se estivesse escrevendo no mundo todo. Ele sabia que teria gente
morando aqui, por isso tem desenho até na cabeceria do rio Queari.
Todo lugar onde tem desenhos nas pedras é um lugar por onde Ñapirikoli passou.
Ele morou um tempo em Jurupari [Tshepani], tem uma casa dele lá. Ali, ele desenhou
jurupari (Kowai, a flauta). Foi em Jurupari que Kowai nasceu. Esse é o mesmo que
Satanás. Ele tem tudo de coisas ruins e venenos, e sopros [benzimentos para causar
doenças e estragos]. Foi ele que trouxe todo tipo de doença. Do outro lado, tem um
igarapé chamado Paniali [pedra que tinha formato de uma anta, cabeça e corpo].
Quando Kowai nasceu, era imenso, grande. Em Jurupari tem uma lagoa, onde Kowai
deitou. Ñapirikoli pegou o banco dele, sentou e ficou olhando. Depois voltou e desenhou na
pedra aquele que ele viu, em forma de preguiça. Ele fez o desenho enquanto a mãe de
Kowai, Amaro, estava desmaiada. Ele ficava desenhando a forma de Kowai, a imagem de
192
Kowai, porque sabia que iria matá-lo. Ele então desenhava justamente pra lembrar, pra
recordar como Kowai era, antigamente.
Hoje em dia, Kowai é uma flauta na qual as pessoas acreditam. Os velhos não
‘publicavam’, era confidencial e secreto, não se podia falar para outras pessoas. Se alguém
falasse de Kowai no meio das pessoas, eles o matavam com veneno.
De lá, foram para Jandu, onde Ñapirikoli matou Kowai. Lá, tem vários desenhos
com a forma de Kowai, aquele que Ñapirikoli matou. Assim ele foi desenhando nas pedras,
descendo rio abaixo. Até em São Gabriel da Cachoeira tem um lugar onde ele andou
fazendo benzimento. Em Kurukui [cachoeira perto de São Gabriel] como uns pratos de
cerâmica, que eram dele. Assim ele foi, escrevendo nas pedras até o outro lado do mundo.
Depoimento de seu Marcelino
- Kuaru é um desenho para ser feito em balaios. As pessoas confundem o desenho
kuaru [como registrou Francisco Ortiz]. O desenho não é nenhuma proteção, nunca ouvi
falar disso. A proteção está na tinta com que o desenho era feito. Os antigos extraíam
remédio de uma planta, misturavam com jenipapo e tatuavam na pele.
- Os primeiros desenhos de Ñapirikoli são aqueles para serem feitos nos artesanatos
baniwa, mostrando os conhecimentos e as técnicas daquele tempo.
- [Sobre o desenho de peixes] Naquele tempo não havia peixe e caça, todos eram
seres falantes, mas ele sabia que para essa nova geração teria que ensinar essas coisas. Os
desenhos eram como um mapa pra nós, mostrando os lugares importantes onde coisas
aconteceram.
- Em Jurupari, onde Kowai nasceu, uma pedra bem grande que era a mãe de
Kowai. Ali ela sentiu a dor do parto. Antigamente, a vagina era pequena. Na reza, eles
pediam que a capivara e outros animais que roem as coisas, pediam que esses animais
roessem o local por onde as crianças sairiam.
- Kowai mesmo deu as medidas exatas de cada flauta (única, dupla, ou três). Cada
flauta tem uma finalidade diferente: coleta de frutas, etc. As flautas fazem parte do
processo de iniciação dos jovens. É a primeira visão das flautas. Todas as flautas são
Kowai. Na iniciação, saem todas as flautas. São coisas sagradas, ninguém podia falar disso.
Até mesmo os evangélicos, hoje, não falam tudo.
193
5. AS DUAS HISTÓRIAS DE SEU ALBERTO
Alberto Lourenço
Jandu Cachoeira
Sib Awadzooro, da fratria walipere-dakenai
Tradução: Irineu Laureano Rodrigues. A primeira história foi traduzida a partir da
audição da gravação da história narrada em baniwa. A segunda história foi traduzida
enquanto seu Alberto narrava.
1. A Origem de Ñapirikoli
várias versões para a origem de Ñapirikoli, de acordo com o cda pessoa que
conta. Ñapirikoli nasceu depois do aparecimento do mundo. Já existiam outros seres. Havia
o povo de Ñapirikoli e um ser-onça [Dzawi]. A esposa do Dzawi era tia de Ñapirikoli. Certo
dia, ela falou para Dzawi: “Você diz que é bom caçador, mas não caça nada! Vamos, vai
caçar alguma coisa pra mim!”. Dzawi saiu pra caçar e, no meio do caminho, benzeu o
breu, justamente para matar os parentes da esposa, seus cunhados. Chegou lá, com o breu
benzido, e viu que as pessoas estavam na maloca. Dzawi falou “Heeeeyyyy!” e jogou o
breu no esteio da casa. Todos os cunhados se transformavam em quati [kapitti]. Aí, Dzawi
flechou os quatis com zarabatana, matou todos eles e moqueou a carne ali mesmo, na casa
deles. Depois, fez um paneiro, encheu com a carne e voltou para a mulher dele.
– Aí está a caça, pode comer à vontade! – disse.
Mas a mulher sabia que ele tinha matado os parentes, e perguntou:
– Será que você não fez besteira? Você costuma fazer isso...
Quando a mulher abriu o cesto, viu ali todos os parentes: pais, irmãos, cunhados,
etc. E disse para Dzawi:
– Esses são os meus parentes! Você caçou, você come! Eu não vou comer!
Ela, então, saiu de casa e foi ver a cidade onde viviam os parentes, mas não
encontrou mais nada. No porto, achou umas buchadas. Aí, vai aparecer Ñapirikoli. Parece
que ainda tinha um espírito ali vivo, naquelas buchadas, Eram os sobrinhos dela. Quando
Ñapirikoli viu a tia, apareceu no meio dos buchos dos mortos. Ela viu dois seres pequenos,
em forma de grilo. Eram Ñapirikoli e seu irmão Dzooli. Ela voltou, pegou um osso de seus
parentes, tirou o tutano e escondeu os serezinhos no osso. Depois, o tampou e deixou-o no
canto da casa. Quando ia para a roça, a tia levava o osso com ela, para esconder do
marido. Ñapirikoli, assim, foi criado dentro do osso. quando ela saía, o abria e deixava
194
eles saírem, na roça. Em casa, os guardava novamente no osso.Os meninos começaram a
crescer, e se ornavam cada vez mais espertos e ‘sapecos’. Eles brincavam pelo meio do
caminho. Um dia, Dzawi viu brinquedos de criança no caminho, e se perguntou: “O que é
que ela está escondendo de mim?”.
Dzawi passou a seguir a mulher. Ele ia pra roça e via o local onde eles brincavam.
Um dia, falou para seus parentes-dzawi para fazerem coletas de frutos com as flautas
Kowai. “Vocês vêm fazer a coleta, tocam a flauta bem perto, e assim a mulher tem que se
afastar, porque não pode ver a flauta”. E, depois, falou para a mulher: “Hoje, os meus
parentes vão fazer dabucuri de frutas”. À tarde, começaram a tocar a flauta longe, se
aproximando. A mulher correu para o mato, mas lembrou dos sobrinhos e resolveu voltar.
Dzawi não deixou, e ela teve que ir embora. Ele, então, procurou nos cantos da casa e
achou o pedaço de osso. Quando abriu, o primeiro grilo pulou de dentro. Ele pegou os
grilos, jogou no chão e arrebentou com os meninos, que começaram a chorar, rastejando
pelo caminho, procurando a tia, com o bucho pra fora, gritando:
– Ai, ai, ai, o marido de nossa tia nos matou!
Ela ouviu, voltou e viu os dois. Pegou o bucho, ajeitou pra dentro e os escondeu de
novo no pedaço de osso. E falou para Dzawi:
Quero te pedir uma coisa! Tenho aqui meus dois sobrinhos, e você já os tentou
matar. Mas quero deixá-los morar aqui com a gente!
Tudo bem Dzawi falou Estou sozinho, preciso de alguém para fazer companhia
pra mim!
Mas a intenção dele era matar os dois. De todo modo, ele deixou os dois
aparecerem, e passaram a andar com Dzawi. Certo, dia, Dzawi convidou os dois para
tinguijar [colocar veneno no rio]. Eles foram e, quando chegaram no iagarapé, pegrama a
folha cunambi, específica para matar peixe. Dzawi fez um buraco no chão, para socar e
triturar as folhas, Depois, mandou os sobrinhos entrarem no buraco, que ele ia socar as
folhas em cima deles. Eles entraram, mas levaram duas cuias. Dzawi começou a socar as
folhas no chão, mas os dois se esconderam no meio do mato e deixaram as cuias no lugar
deles. As cuias quebraram, e Dzawi disse: “Bem feito! Eram filhos daqueles que eu
matei!”. Os dois meninos ouviram.
Daí, Dzawi tirou o veneno triturado e os dois tomaram o lugar das cuias quebradas e
saíram do buraco.
– E aí, tio? O que você falou mesmo? Nós ouvimos algo, lá do fundo...
- Eu disse: “Ah, que bom que eu tenho os meus sobrinhos!” – Dzawi mentiu.
Dzawi continuou tentando matar os meninos. Um dia, convidou os dois para pescar,
e eles foram. Eles sabiam que o tio queria matá-los, e fizeram benzimento de proteção,
195
como um curral, deixando formigas ao redor deles, para que ninguém pudesse se
aproximar. Os meninos pescaram um pouco e começaram a escutar os gritos de Dzawi.
Eram as formigas picando ele. Ñapirikoli disse para o irmão: “É ele! Está ouvindo os
gritos!”. E Dzooli respondeu: “Sim, sim!”. Dzawi dava a volta, tentava outro caminho, mas
era ferroado de novo, até que desistiu e voltaram para casa, levando peixe para a tia.
Outro dia, Dzawi chamou os dois e disse: “Vamos queimar o nosso mato derrubado,
para fazer roça!”. Chegou lá, mandou eles pro meio do derrubado, dizendo: “Vocês vão
por aqui, que eu vou pela beira, porque não tenho força para correr”. Dzawi começou a
tocar fogo no derrubado, tentando fechar os dois. Acendeu tudo ao redor deles, mas os
meninos se transformaram em grilos e deixaram as cuias em seu lugar. Como grilos,
voaram e ficaram perto de Dzawi. O fogo queimou tudo, e Dzawi ouviu o estouro das cuias.
“Bem feito! Eram os filhos daqueles que eu matei!”. Os meninos ouviram, e foram para
casa antes dele. A tia perguntou: “Dzawi ficou no roçado?”, e eles disseram “Sim, sim!”.
Foram para o porto e, quando Dzawi chegou, viu os dois tomando banho, nadando.
Vocês estão de volta? perguntou, espantado Eu fiquei lá, no meio do fogo,
gritando!
– E o que o senhor dizia, tio?
- Eu dizia: “Ah, que bom que eu tenho os meus sobrinhos!” – mentiu.
Outro dia, os dois foram para a roça, com a tia. Chegando lá, subiram uma árvore
grande, chamada wadana. Ficaram em no galho, no alto, vendo a tia de cima.
Ñapirikoli falou para Dzooli:
– Dzooli, vamos ver se você é capaz de fazer alguma coisa...
Ele pegou a fruta da árvore e deu para Dzooli, que jogou a fruta na direção da tia.
Quando a fruta caiu no chão, se transformou numa cotia (pritsi), que correu na direção da
tia. Ela gritou: “Olha a cotia! Olha a cotia!”. Os dois vieram, cercaram a cotia e a
mataram. Ñapirikoli disse para Dzooli:
Você ainda não é capaz! Não é assim que se faz! Agora você vai ver como vou
fazer!
Ñapirikoli pegou outra fruta e jogou. Quando ela caiu no chão, se transformou em
cotia, que correu na direção da tia. “Olha a cotia!”, gritou ela. Eles tentaram matar a
cotia, mas ela fugiu. “Ta vendo, Dzooli? É assim que se faz!”, disse Ñapirikoli. Voltando da
roça, trataram a cotia. Dzooli e Ñapirikoli sabiam que aquela cotia era semente, fruta
daquela árvore. A tia convidou eles para comer a cotia que tinham matado. Eles negaram,
porque sabiam que não era caça de verdade, mas uma brincadeira que fizeram.
Outro dia, Dzawi pediu para ir flechar calango [doopo]. Eles fizeram flechas e
foram. Andando, no caminho, apareceu um calango grande. “Olha, Dzooli, pode flechar”,
196
disse Ñapirikoli. Ele queria flechar bem no do ouvido, mas errou, flechou no corpo, e o
calango foi embora. Quando eles voltaram, Dzawi disse: “Meus sobrinhos, venham ver!
Acho que tenho piolho!”. Os dois foram ver, e viram a marca onde Dzooli flechou.
Ñapirikoli deu um beliscão em Dzooli, pra dizer que aquele calango era Dzawi, que estava
caçoando deles.
Outro dia, Dzawi estava fazendo cuivara [queimando pedaços de madeira da roça,
para limpar] e a tia disse: “Meus sobrinhos, vão subir pequiá, para deixar amadurecer
pra vocês comerem!”. Os meninos foram tirar pequiá. A tia os guardou num local à beira
do caminho, para deixar amolecer e amadurecer pra comer. Passaram uns dias, e Dzooli
achou que os pequiás estavam bons. Ele se transformou em esquilo [maaderi] e foi
onde guardaram os pequiás. Quando ele viu a tia, pulou e ficou pensudrado na árvore, com
o pequiá na boca. E tia falou: “Eu não tirei os pequiás pra você, tirei pros meus
sobrinhos!”. Então, ela quebrou uma vara e tentou matar o esquilo. Ela bateu nele, e a
vara pegou bem nos dedos. Dzooli caiu da árvore, se transformou novamente e voltou
antes dela pra casa, chorando. Ñapirikoli perguntou o que havia acontecido e Dzooli
respondeu: “Minha tia quis me matar!”. Ñapirikoli, então, disse:
É, ela tem razão. O próprio marido dela matou nossos pais, e por isso somos
órfãos.
A tia chegou em casa e perguntou o que tinha acontecido com Dzooli. Ñapirikoli
falou que ele tinha caído da árvore, não quis contar o que tinha acontecido de verdade.
Ñapirikoli pensou que eles estavam ficando adultos, e ele e Dzooli começaram a desejar a
morte dela. Um dia, ela os convidou para tinguijar, e pediu pra eles pegarem pequiá. Eles
foram pro mato, subiram no de tiquiá, e a tia estava com eles. Quando chegaram num
galho bem alto, chamaram pela tia, e pediram que ela saísse prum lugar aberto, pra ver
onde iria cair a fruta. Ñapirikoli falou: “Deite-se no chão, tia, pra ver onde a fruta vai
cair!”. Ele pegou a fruta seca e jogou de cima. A fruta caiu bem no peito dela. “Minha
tia, onde caiu?”, perguntou ele. “Caiu bem no meu peito”, disse ela. Então, Ñapirikoli
pegou a fruta, sem estar seca, e jogou de novo, já para matar a tia. A fruta caiu
novamente bem no peito dela, e ela morreu. Esse modo de matar a tia é a origem de uma
doença, chamada wahama, que os pajés jogam nas pessoas e é fatal. Depois de ter jogado
a última fruta, Ñapirikoli chamou pela tia três vezes, e ela não respondeu mais.
– Dzooli, desce lá e veja se ela realmente morreu – disse ele.
Dzooli se transformou em formiga e viu a tia deitada. Deu uma mordida na bunda
dela, e ela não se mexeu. Mordeu de novo e ela não se mexeu. Então, disse para o irmão:
“Ñapiriko, ela morreu mesmo!”. Ñapirikoli desceu da árvore e disse:
197
Tudo bem. O ser humano não escapa disso, é pra morrer, mesmo. Ela fez um bem
para a gente, nos criou em lugar de nossos pais, mas agora ela morreu.
Eles transformaram o corpo da tia numa paca, e cortaram as patas dianteiras e
traseiras. É por isso que a paca tem patas curtas. Eles a pintaram como paca, cortaram ela
ao meio, e cada um levou um pedaço. Quando chegaram em casa, Dzawi não estava,
porque costumava chegar mais tarde. Eles cozinharam o pedaço traseiro da paca, para
matar Dzawi, e penduraram o outro pedaço em cima do fogo. Prepararam tudo antes dele.
Também cortaram uma madeira e fizeram um cacete para matar Dzawi, fizeram pimenta
para jogar nos olhos dele e depois pegaram as folhas de um cipozinho [marumaru-phe]. E
combinaram entre eles, planejaram bem.
Ñapirikoli era mais inteligente, e disse a Dzooli:
Quando ele chegar, a gente oferece essa comida. Depois, ele vai pedir água, e
você dá a pimenta. Quando ele sentir a dor, você pega a folha, mistura na água e joga nos
olhos dele.
Mais tarde, Dzawi chegou, perguntando: “Meus filhos, vocês chegaram?”. “Sim”,
disseram eles. “matamos uma paca e a tia mandou a gente voltar para preparar a comida”.
Depois, serviram o tio, pegaram o prato e o beiju, botaram no meio da casa. Disseram que
tinham comido e pediram pra ele comer. Eles tinham benzido a comida, ´para que ele
se engasgasse e morresse.
Dzawi sentou, pegou beiju, comeu e, na terceira vez, engasgou e tossiu. Pediu
água, e deram pimenta pra ele beber. Depois, pegaram o cipó e jogaram nos olhos dele.
Ele descobriu que estava sendo morto, se transformou em onça, mas os olhos estavam
fechados. Ñapirikoli e Dzooli, então, pegaram seus cacetes e mataram o tio. Depois,
quebraram e tiraram o queixo da onça. Foi assim que mataram ele. Depois que fizeram
isso, voltaram e viram o pedaço de carne em cima do fogo. “O que faremos com ele,
Dzooli?”, perguntou Ñapirikoli. Dzooli falou:
– Vamos deixá-lo ir embora, para servir de alimento para as novas gerações.
Ñapirikoli jogou o pedaço no cerrado, e ele se transformou em paca. “Vai servir de
alimento”, disse Ñapirikoli, “mas não vai ser tão bom”. Antigamente, os velhos não
deixavam as crianças comerem o fígado da paca, porque ficariam com cabelos brancos
muito rápido, envelheceriam rápido. Depois de terem feito isso, começaram a se
perguntar:
– Para onde nós vamos agora?
- Vamos para baixo, de onde o sol está nascendo disse Ñapirikoli Vamos ver a
planta de nossos bisavós. E de lá vamos voltar, para procurar nossa tia, onde o sol se põe.
198
De lá, desceram. Acima de Arapaço tem uma pedra, uma ponta, e lá tinha um pé de
abacate. Lá, havia alguém se aproveitando da planta. Era uma anta [heema], que corria
para pisar no pé de abacate, para as frutas caírem. E ela dizia:
– A planta dos mortos Dzawinai!
“Está vendo, Dzooli?”, disse Ñapirikoli, “ela está falando dos nossos avós!”. Os dois
se aproximaram da anta e ela perguntou: “Hey, meus netos, são vocês?”. E eles disseram:
“Sim, sim, avó, somos nós!”. A anta sabia que os dois iriam matá-la. Eles perguntaram o
que ela estava fazendo, e a anta respondeu que estava triste: “Estou vendo a planta dos
pais de vocês!”. Dzooli era menor, pegou uma fruta, abriu e cheirou. Era gostoso.
Ñapirikoli perguntou se era boa de comer. A anta respondeu: Sim, mas tem que deixar
amolecer”.
Dzooli queria uma para ele, e perguntou como se fazia pra tirar as frutas. A anta
respondeu que era preciso dar um pisão no pé. A anta pisou, pisou, pisou e não caiu
nenhuma fruta. Nâpirikoli disse: “Avô, quando nós chegamos, ouvimos que o senhor disse
uma frase. O que você falou?”.
Ah, eu falei assim: “A planta dos mortos Dzawinai” respondeu a anta, e as frutas
caíram.
Dzooli juntou as frutas e fez um monte, e disse que queria um pouco mais. Na
verdade, ele queria matar a anta. Ñapirikoli pediu pra ela tomar distância e pisar de novo.
Quando ela se virou, Ñapirikoli foi ao pé de abacate e botou um sopro pra matar a anta. A
anta pisou bem onde estava o sopro, que era um espeto, em forma de benzimento, não
podia ser visto. A anta caiu, e os dois tentaram cacetear ela, mas ela fugiu pela água. No
rio Ayari, tem um igarapé que se chama Heemapawa [sujeira de anta].
De lá, Ñapirikoli e Dzóoli desceram e foram encontrar um diabo, Satanás [Iñaimi].
Avistaram ele de longe, e viram que não tinha ânus. O iñaimi estava na lagoa, pegando
peixe. E dizia: “Lagoa dos mortos Dzawinai”. Essa frase irritou os irmãos, que apareceram.
O iñaimi disse: “E aí, meus netos? Eu estou aqui sofrendo com a morte dos pais de
vocês...”. Os dois perguntaram o que eles estavam fazendo, e ele disse que estava
pegando peixe.
– E esses peixes, a gente come? – perguntaram.
“Sim”, disse o iñaimi. Dzooli era o meio pra fazer qualquer coisa, pra matar os
outros. E se fazia de coitadinho, pedindo pra que o iñaimi desse peixe a ele. que o
iñaimi não conseguia pegar nenhum peixe. Ñapirikoli disse:
– Nós ouvimos o senhor dizer uma frase, avô!
O iñaimi disse: “Lagoa dos mortos Dzawinai”, e pegou peixes. Eles pediram mais,
porque queriam matá-lo. Ñapirikoli tinha uma cuia, e a afundou na água. Saiu ar,
199
borbulhas, e disse para Dzooli: “Dzooli, não fique peidando na frente de nosso avô!”. O
iñaimi perguntou: “Você tem ânus, meu neto?”. Ñapirikoli respondeu: “Sim, ele tem, e fui
eu mesmo que fiz isso para ele”. O cu do diabo era muito perto da boca, e por isso ele se
animou e disse:
Você faria isso para mim, meu neto? Porque jogo minha sujeira muito perto da
boca...
Ñapirikoli disse que faria, e pediu a Dzooli que pegasse talipa [uma espécie de
arumã], que é como uma lança, mas não conseguiu furar. “Esse é mole, me outro”,
disse Ñapirikoli. Dzooli voltou com outra planta, que tem espinhos, chamada nerira.
Ñapirikoli fez o cu do iñaimi, mas furou e tirou tripa e tudo. O diabo morreu, e sua tripa
foi a origem de todo tipo de sarapó.
De lá, os dois desceram até Bacaba-poço, que é um lago bem grande, e
encontraram Tamanduaí (paapali). “O que você está fazendo?”, perguntaram eles. “Estou
chorando porque vejo as plantas que eram os pais de vocês”, respondeu o tamanduaí. E
pegou urucum e passou nos olhos dos irmãos, que o amaldiçoaram, dizendo: “Está bem,
meu avô, nós já vamos. Mas você vai comer esse fruto do urucum pro resto da vida!”.
Eles continuaram descendo, e embaixo encontraram o porco-espinho (cuandu)
fazendo um arco e dizendo: “Certeiro em Ñapirikoli!”.De longe, Ñapirikoli o ouvia e,
depois, chegando-se, perguntou: “O que está fazendo?”. O porco-espinho disse: “Estou
fazendo um arco, porque sei que Ñapirikoli está vindo para matar a todos”. “E como é que
você flecha com esse instrumento?”, perguntou Ñapirikoli. As flechas, na verdade, eram os
pêlos dele, e ele mostrou, atirando um monte de flechas de uma vez só. “Ninguém pode
me matar”, disse o porco-espinho, “porque eu tenho minhas defesas! Meu único ponto
fraco é aqui, entre os olhos!”. “Onde?”, perguntaram os irmãos. “Bem aqui”, respondeu o
porco-espinho, mostrando o local exato. E os irmãos o cacetearam e o mataram.
Dali, desceram mais um pouco, e encontraram a capivara também fazendo arco.
Fizeram a mesma pergunta, e ela respondeu: “Estou me preparando para a chegada de
Ñapirikoli”. Mas esse foi mais esperto, porque sabia que os dois meninos eram Ñapirikoli e
Dzooli, e entrou num buraco e fugiu. Descendo mais, encontraram Ttiroliwheri (japim),
levando ttiroli (cesto) pra baixo. Ñapirikoli e Dzooli se transformaram em meninas, e
perguntaram: “Para onde você está indo?”. “Para cima”, respondeu o animal, “posso ir
com vocês?”. “Pode, sim”, responderam os irmãos. E foram subindo, voltando. Quando
anoiteceu, o japim quis deitar com um deles, pensando que eram mulheres, e eles não
deixaram. O japim começou a ficar triste.
Abaixo de Pana-panã, num igarapé, passaram a segunda noite, e ouviram o japim
cantar, fazendo arma pra matar Ñapirikoli. Os irmãos foram ver o que ele estava fazendo,
200
e o japim respondeu: “Estou fazendo uma borduna pra matar Ñapirikoli, porque sei que ele
vem matar a todos”. Os meninos, transformados em meninas, perguntaram para o japim:
“Vamos tomar banho?”. E ele gostou, descendo para o iagarapé. Os irmãos combinaram:
“Deixa ele mergulhar, e caceteamos ele assim que voltar à tona”. E assim foi.
Por fim, continuaram a viagem até onde o sol se põe, e encontraram a tia. Eles iam
ofertar os cestos e fazer festa. Chegaram e começaram a beber. O marido da tia era
sempre um Dzawi. E começaram a querer brigar, Dzawi e Ñapirikoli. Os dois começaram a
crescer, crescer, ficar mais e mais poderosos. Dzawi subiu e bateu no céu, Ñapirikoli
também. Ficaram cara a cara, tinham o mesmo poder, não tinha como continuarem
brigando. Beberam a noite inteira, até o amanhecer. A intenção de Ñapirikoli era buscar a
tia e voltar. Assim, preparou um lugar para esconder a tia do marido. Ele andava com
conhecimento maléfico, e matou muita gente, Quando ela abriu a porta, ele estava
justamente fazendo uma reza para matar todos os Dzawi, e a reza acabou pegando nela
também.
Ñapirikoli, assim, matou todos os Dzawi, e falou para Dzooli: “Agora, sim! Está
feito!”. Mas, quando foi buscar a tia, viu que ela também tinha morrido. “Olhe, Dzooli,
matamos também a nossa tia! Vamos tentar devolver a vida a ela!”. Pegaram um de
padhu e tentaram colar o pescoço dela, que tinha se separado do corpo. Mas, quando
fizeram isso, todos os Dzawi também se levantaram, e eles viram que assim não daria.
“Não tem jeito para a nossa tia”, disse Ñapirikoli, “deixemos assim mesmo”. E tiraram
novamente a cabeça da tia, e todos os Dzawi morreram de novo. Depois disso, não sei mais
onde Ñapirikoli e seu irmão foram. Acho que foram de volta para sua maloca. Acho que
Ñapirikoli continua lá, até hoje, vivo.
2. A origem de Kowai
O mundo era pequeno, e Ñapirikoli andava com as tias, e apaixonou-se por uma
delas, Amaro. que não podia deitar com ela, e falou para Dzooli: “Como faremos? A
gente pode?”. Esta é a história da origem de Kowai. Dzooli deu a Ñapirikoli um cigarro, e
ele soprou a fumaça nas costas da tia, sem que ela percebesse. Ela engravidou. Depois de
um tempo, disse para Dzooli que estava grávida.
Ñapirikoli, então, foi com ela para Jurupari, e soprou de novo o cigarro sobre ela.
Ela sentia muita dor, e sentaram-se numa pedra. Ela pariu e a dor foi tanta que desmaiou.
Ñapirikoli pegou o filho e o escondeu na água. Dzooli lhe deu outro cigarro, ele soprou, e
Amaro voltou à consciência. “Onde está o meu filho?”, perguntou ela. Ñapirikoli respondeu
201
que tinha placenta, que não era gente. No meio da placenta, tinha um lugar ainda
sangrando. Ñapirikoli jogou-a no rio, e ela transformou-se na arraia (Yamaro).
Kowai foi crescendo sem a mãe perceber, escondido, e foi crescendo até virar um
monstro. Ficou aqui em Jandu. Ñapirikoli tinha três avôs, e disse: “Hoje vou mostrar Kowai
para eles”. Foi a primeira iniciação dos jovens. Ninguém via Kowai, nem os avôs,
Ñapirikoli. Ñapirikoli preparou doze meninos, por um ano. E depois foi a Jandu pegar a
fruta chamada waku, em língua geral (awina). Os meninos também foram, com o próprio
Kowai, e começaram a subir na árvore. Ñapirikoli pediu para fazerem fogo, para os
meninos.Lá de cima, da árvore, Kowai começou a jogar as frutas, e uma delas caiu no
fogo. Um dos meninos viu o waku assado, sentiu o cheiro. Eeri estava com eles. Os
meninos, então, comeram as frutas assadas, e a garganta de Kowai secou. Eles quebraram
a regra. Kowai estava morrendo, desmaiou no galho. Depois, Kowai fez aparecer a chuva, e
os meninos foram procurar palha, bem longe. Kowai abriu sua boca, e ela ficou como uma
grande caverna de pedra. Ele, então, chamou os meninos. Eeri percebeu que era uma
armação, e não entrou. Todos os outros entraram, e Kowai os comeu. Depois, voltou para o
lugar opnde hoje estão os desenhos na pedras [em Jandu] e vomitou os meninos.
Como Kowai sabia que tinha feito mal, fugiu e foi morar num lago ali perto,
entrando num caminho bem profundo na terra. De lá, do fundo, subiu para o mais alto céu
e ficou lá. Ñapirikoli tinha o seu mensageiro, seu neto, uma abelha pequena. Essa abelha
foi chamar Kowai em cima, onde ele estava. Kowai tinha um som de flauta, e esse som
era um ser. O som que saía de sua boca era uma porta. A abelha tentou entrar, mas o som
fechou, e ele bateu na porta. Por isso, tem a cintura fininha, até hoje. No dia seguinte,
Kowai desceu e foi falar com Ñapirikoli em Jandu.
Durante todo esse período, Ñapirikoli permaneceu em Jejum, não comia nada. Por
isso, Kowai teve que voltar para fazer a reza e ele poder comer. O próprio Kowai, então,
fez o benzimento, que durou uma noite inteira. começaram a oferecer caxiri para
Kowai. Quando ele estava bêbado, o empurraram para dentro do fogo, e começaram a
jogar mais e mais lenha. Pouco antes de morrer, Kowai chamou a pedra, a aranha, a
árvore. Ninguém respondeu, as árvores. Por isso, hoje a gente morre, quebra. Se as
pedras tivessem respondido, não morreríamos. Se as aranhas ou os besouros tivessem
respondido, a gente também não morreria, mas cresceríamos até ficar velhos e então nos
regeneraríamos, soltando a casca antiga.
Depois da morte de Kowai, Ñapirikoli sonhava com ele, à noite. Certo dia, Kowai
falou para Ñapirikoli: “Vai até lá, onde me queimaram, e você vai ver onde era o meu
umbigo, e lá você pode espalhar aquilo que ficou ali”. O umbigo de Kowai parecia algodão.
A intenção de Kowai, porém, era matar Ñapirikoli. De apareceu o primeiro veneno
202
[manhene], que se espalhou por toda a terra, quando Ñapirikoli mexeu. Mas Ñapirikoli não
morreu. Então, do umbigo de Kowai apareceu a paxiúba [póopa], da qual são feitas todas
as flautas. Depois que ela cresceu, Ñapirikoli chamou os animais para cortarem na medida
que são as flautas de hoje. A é que fez a medida das flautas, até o último pedaço.
Ñapirikoli chamou um besouro [takairu], que foi cortando até lá em cima. O último
tronquinho é chamado moolito, Depois, a cotia começou a pisar no da paxiúba e os
pedaços começaram a cair, todos certinhos.
Ñapirikoli sonhou novamente com Kowai, que o orientou sobre como guardar as
flautas, determinando que as guardasse na água, para cupim não comer. Toda instrução
que Ñapirikoli tinha era dada por Kowai, nos sonhos. Depois de toda instrução, Ñapirikoli
foi sentar numa pedra, na cabeceira do igarapé Pamáali, e lá deixou todos os instrumentos
em pares, montadinhos. Naquela época, era tudo perto. Quem primeiro tocou as flautas foi
Ñapirikoli, e o mundo se estendeu. Antigamente, ninguém tocava as flautas como se fosse
sopro, mas era um outro processo, mágico.
Ñapirikoli benzeu e depois soprou. Com o primeiro sopro, a terra cresceu. Ñapirikoli
e Dzooli sopraram, e o mundo foi crescendo, aos poucos. Nesse processo de andança é que
ele fez os desenhos. Cada instrumento tinha nome de animais.
203
6. A HISTÓRIA DE SEU VALENTIM
Valentim Paiva
Juivitera
Dzawenai
Seu Valentim narrou essa história em português.
História das flautas Kowai
Não sei bem como tudo isso teve início. Cada um conta do jeito que aprendeu.
Ñapirikoli desenhou nas pedras para as novas gerações verem e se lembrarem das histórias
e de como era o mundo naquele tempo. Isso é sinal de que tudo é verdade, porque ele
desenhou. Ñapirikoli fez os desenhos depois do mundo criado. Os antepassados diziam
que a pedra, naquele tempo, era mole como barro. E ele desenhou as coisas como elas
eram. Por exemplo, em Jandu Cachoeira (meu avô dizia), tem um sinal de balaio, três
balaios.
Naquele tempo, em Jandu, quando Kowai mostrou o próprio corpo, levou os quatro
meninos. Lá, havia uma grande árvore, na beira do rio, e ele trepou, e disse para os
meninos: “Vocês, esperem aqui! Eu vou ver se a fruta waku está madura!”. Kowai trepou,
tirou a fruta e jogou para baixo. “Está madura ou não?”. Os meninos partiram e viram que
estava madura. Kowai disse para que eles não arranhassem a casca com as unhas: “Elas vão
ser os meus pés, para que eu não caia do alto”. Kowai abraçou a árvore, caiu e eles tinham
consigo a fruta de waku. Ela foi deitada no galho, e sua saliva desceu para a terra,
formando um tipo de cipó.
Kowai desceu da árvore e disse para que eles não assassem a fruta, e não a
comessem. Mas as crianças nunca acreditam quando a gente aconselha! E, assim, três
meninos assaram a fruta e a comeram. O quarto menino, não, ele acreditou. Quando Kowai
perguntou se eles haviam comido a fruta, todos disseram que não. Mas Kowai abriu a boca
deles e viu que eles tinham comido. Viu também que o menorzinho foi o único que não
comeu a fruta.
Aí, escureceu o mundo e choveu muito forte. O gurizinho foi protegido da chuva,
mas os outros três resolveram entrar numa gruta. que essa gruta era a boca de Kowai!
Kowai os engoliu de uma vez, e voltou para a comunidade. Lá, levaram para ele três
balaios, e ele vomitou um menino de cada vez, e dali foi embora.
204
O mundo era muito pequeno naquele tempo, isso tudo aconteceu antes de
Ñapirikoli ter esticado o mundo.
Depois disso, Kowai subiu para o céu e, como não conseguiam mais encontrar ele,
tentaram matá-lo. Queriam se vingar dele, por causa dos meninos que ele comeu. Assim,
fizeram bonecos, acangataras, bebida. O menino pequeno, que sobreviveu, estava no meio
deles. E perguntaram: Como vamos chamar Kowai?”. Resolveram chamar uma vespinha.
Derrubaram uma bacabeira, torraram as bacabas e deram para ela. Pediram para a
vespinha levar as frutas até ele e, se ele não a deixasse entrar, que desse as frutas para
ele.
Ela voou para o alto, até a porta do céu, mas havia uma espécie de tesoura, que se
fechou justo no momento em que a vespinha iria entrar. É por isso que ela hoje tem a
cintura bem apertada. Lá, ela deu a mensagem, para ele benzer. Eles então saíram e
vieram para a terra. Kowai viu que estavam com acangataras, tudo bem feitinho, e
resolveu ir à festa. Prepararam carne, peixe, pimenta.
Kowai desceu e chegou. Mostrou como benzer e como fazer caxiri. Começou a
benzer a noite toda, até amanhecer. De manhã, terminou. Aí, Kowai chamou o menino
pequeno e veio também o conselho geral do mundo inteiro. Ele aconselhou como eles
deveriam viver, de que jeito. Kowai disse para o menino para não matar gente, não
envenenar os outros, não ter inveja. Disse para ele trabalhar, roçar, fazer casa, tapiti,
paneiro, balaio, tudo. Disse para não desprezar sogro, cunhado, cunhada, parentes. Disse
para não mentir, não roubar.
O menino ia gravando tudo. Quando Kowai terminou, pegaram a pimenta,
mandaram o menino abrir a boca e mastigar. Depois, mandaram ele levantar o braço e
deram treze chibatadas. Aí, fizeram peixe e ofereceram pra todo mundo. Tentaram,
depois, matar Kowai com cacete, depois com pedra. Mas Kowai disse: “Vocês não podem
me matar! Cacete é o meu braço, pedra é a minha cabeça!”. E disse: “Só existe um jeito
de me matar, é fazer fogo!”.
Assim fizeram, e empurraram Kowai no fogo. Ele queimou durante dois minutos, e
depois subiu e foi embora, até hoje. Mas deixou sinal! Em Uapuí Cachoeira, tem desenhos
dele. O corpo de Kowai era cheio de buracos, como um paneiro. Levantavam o cabelo dele
e soavam muitos sons. Para que isso tudo não se acabasse para as novas gerações, tiraram
a casca do pau da paxiúba, fizeram varas e amarraram. Deixaram o pau amarrado, e
fizeram todos os tipos de flautas Kowai. Naquele tempo, eles soavam as flautas com uma
pena de gavião. Era fácil para aquela geração. Uma pessoa podia fazer uma flauta Kowai
sozinha, todo tipo de flauta.
205
Depois disso, havia Ñapirikoli. Ele ficou ao fundo, escondido. Kowai estava ali,
também. Havia também a pena da asa de gavião. Às sete horas da noite, escondidos,
Ñapirikoli falou baixinho para seu filho Kowai, sobre as flautas. Disse onde as havia deixado
e falou: “Às duas horas da madrugada, você vai tomar banho”. As mulheres que estavam
ali ouviram e foram lá. Passaram a pena da asa de gavião, e soaram as flautas. O velho
acordou, achou que o filho estava lá, e se acalmou. Depois percebeu que o filho estava
dormindo, e o acordou e deu chibatadas nele.
As mulheres, então, roubaram as flautas. Andaram por aqui, também no Vaupés, na
cabeceira do Ayari, na Venezuela... Andaram o mundo inteiro com elas. As mulheres
faziam dabukuri, era para elas ficarem como os homens. Os homens iam para a roça, e
faziam tapiti. Por isso o antebraço do homem, até hoje, é achatado pela forma da
mandioca, e não redondo como os das mulheres.
Mas Ñapirikoli pensou: “Isso não pode ser assim!”. Ele estava pensando na nova
geração. E andou pelo mundo todo para tomar as flautas de volta. Ele conseguiu, e matou
as mulheres, que eram tias dele. Aí, ele modificou a maneira de tocar. Agora, passou a ser
com a boca, e não mais com a pena de gavião. Ñapirikoli, um dia, estava soando de novo
as flautas, para que as mulheres esquecessem e não lembrassem, e perguntou para elas:
“Tia, tia, como faz para tocar a flauta?”. E as tias responderam: “Não sabemos mais, não
sabemos como foram feitas, nem como apareceram...”. Elas haviam esquecido tudo. Na
verdade, as mulheres sabem, mas ficam caladas. E assim foi. Se Ñapirikoli não tivesse pego
as flautas de volta, as mulheres é que fariam dabukuri, e os homens é que iriam para a
roça e fariam comida...
Depoimento de seu Valentim
- [Gozando com os outros narradores] Ñapirikoli fez tudo! Como é que ele aparece
depois das coisas?
- uma história, uma história completa, total. É como uma árvore. As pessoas
de cada comunidade conhecem as histórias, mas são os galhinhos das árvores. Não
pra pegar só um pedaço e esquecer o resto.
- Hoje, está tudo esquecido. É como ler uma língua morta. Você os sinais, mas
não sabe o que significam.
- Hoje, o que atrapalha é que tem duas religiões. A religião não quer mais fazer as
flautas.
- O índio, hoje, tem uma vida perdida na cidade.
206
- Quem destruiu a cultura foi a Sofia. Naquele ano em que ela chegou, ainda
existiam dabukuris. Em 1969, fizeram o último dabukuri gera, foi a despedida dos
antepassados. Ela proibiu os dabukuris, os missionários proibiram.
- Eu disse para o missionário: “O senhor não tem nada a ver comigo!”.
- [Valentim está desesperançado] Tudo vai acabar.
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