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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Museu Nacional
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
Mulheres e Abortos: Negociando Moralidades
Lívia Krause Arnaud
Rio de Janeiro
2008
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Mulheres e Abortos: Negociando Moralidades
Lívia Krause Arnaud
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-graduação em Antropologia Social,
Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Mestre em Antropologia Social
Orientadora: Profª. Dra. Adriana de Resende Barreto Vianna
Rio de Janeiro
Maio de 2008
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Mulheres e Abortos: Negociando Moralidades
Lívia Krause Arnaud
Banca Examinadora:
Profª. Dra. Adriana de Resende Barreto Vianna (orient.) (PPGAS/MN/UFRJ)
Profª. Dra. Renata de Castro Menezes (PPGAS/MN/UFRJ)
Prof. Dr. Sérgio Luis Carrara (CLAM/IMS/UERJ)
Suplentes:
Prof. Dr. Luiz Fernando Dias Duarte (PPGAS/MN/UFRJ)
Profª. Dra. Anna Paula Uziel (CLAM/IMS/UERJ)
Arnaud, Lívia Krause
Mulheres e Abortos: Negociando Moralidades./ Lívia Krause Arnaud, 2008.
ix, 124 p.
Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, 2008.
Orientadora: Adriana de Resende Barreto Vianna
1. Aborto; 2. Interrupção Voluntária da Gestação; 3. Maternidade; 4.
Moralidades; 5. Mulheres; 6. Legalidades
I. Vianna, Adriana de Resende Barreto. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Museu Nacional, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. III. Título.
RESUMO
Esta dissertação visa analisar algumas moralidades relacionadas ao aborto voluntário a partir
de entrevistas com 8 mulheres que optaram pela realização da prática. A decisão pela
interrupção da gestação é discutida, focando algumas normas de comportamento envolvidas
na questão. Nesse sentido, a problemática do “cuidado” com os filhos encontra destaque entre
algumas destas mulheres, havendo também uma crítica ao “abandono” das crianças. As
opiniões a respeito da legalização e da realização da interrupção voluntária da gestação
também são discutidas. Apesar de a maioria ter tendido a uma aceitação do aborto, houve
também muitas críticas à “banalização” da prática e reprovações relacionadas ao tempo
gestacional limite para se realizá-la. Dessa forma, busca-se, nesta dissertação, através da
perspectiva destas mulheres, entender o tema do aborto voluntário a partir de diferentes
contextos em que este pode ser moralmente aceito ou reprovado.
Palavras-chave: Aborto, Interrupção Voluntária da Gestação, Maternidade, Moralidades,
Mulheres, Legalidades
ABSTRACT
This dissertation aims to analyze some moralities concerned in voluntary abortion, having as
start point interviews with 8 women who opted for the practice. The decision for the
pregnancy interruption is discussed, focusing some conduct rules that are implicated. The
“care” with sons displays relevantly among some of these women, and, also, there appears a
criticism towards children “abandonment”. The opinions with respect legalization and
effection of voluntary pregnancy interruption are discussed as well. In spite of the majority
have tended to an acceptance of abortion, there have been also lots of criticism of the
“banalization” of the practice and reproaches concerning the deadline with relation to
gestational stage for its effection. So, it’s sought in this dissertation, through these women’s
perspective, to understand the subject from different contexts within which it can be morally
accepted or disapproved.
Key-words: Abortion, Voluntary Pregnancy Interruption, Maternity, Moralities, Women,
Legalities
AGRADECIMENTOS
Primeiro de tudo, gostaria de agradecer às mulheres entrevistadas, anônimas, sem as
quais esta dissertação não existiria. Agradeço enormemente a generosidade de terem
compartilhado comigo suas histórias e momentos difíceis em suas vidas. Agradeço
enormemente também a todos aqueles que puderam colaborar com a indicação das mulheres
entrevistadas.
Agradeço especialmente a minha orientadora, Adriana Vianna, pela paciência, apoio e
atenção durante todo o processo desta dissertação. Agradeço ainda pelas suas aulas e pelas
sugestões e críticas na elaboração deste trabalho.
Gostaria de agradecer também a Angela Torresan pela atenção que me dá desde a
graduação, me tirando dúvidas e dando sugestões, apoio e incentivos. Agradeço
especialmente por dispor de seu tempo, e também pela sua amizade.
A João Pacheco, agradeço a oportunidade de realizar a Iniciação Científica sob sua
orientação. Suas aulas e orientações foram indispensáveis na minha formação. Agradeço
ainda pelas suas sugestões de bibliografias, já no meu primeiro ano do mestrado.
Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/
UFRJ por ter proporcionado a estrutura necessária para a realização desta dissertação. Aos
professores com os quais eu tive a oportunidade de assistir aulas: Antônio Carlos de Souza
Lima, Antonádia Borges, Federico Neiburg, Gilberto Velho e Giralda Seyferth. Às
funcionárias da biblioteca do PPGAS, Carla, Alessandra e Isabel, pela atenção no
atendimento, e aos funcionários da secretaria, em especial, à Tânia, sempre muito prestativa.
Agradeço à CAPES pela bolsa com a qual pude contar durante a maior parte do meu curso de
mestrado. Agradeço ainda aos recursos recebidos através do Projeto “Políticas para a
Diversidade e os ‘Novos Sujeitos de Direitos’: Estudos Antropológicos das Práticas, Gêneros
Textuais e Organizações de Governo”, coordenado por Adriana Vianna, Eliane Cantarino
Od’wyer e Antonio Carlos de Souza Lima, Convênio FINEP/FUJB 01.06.0794.00-
PROCESSO FUJB Nº 12.867-8.
Agradeço também aos professores do IFCS/ UFRJ, onde cursei minha graduação, em
especial a Marco Antônio Gonçalves, Elsje Lagrou e Beatriz Heredia, pelos incentivos
acadêmicos.
Agradeço, por fim, a Nina, Bia, Moana, Isabel e Liane, pelo apoio; a Patrícia, pelos
conselhos; e a Naara e Eduardo, pela indicação de leituras.
SUMÁRIO
Convenções Tipográficas...............................................................................................1
Introdução.......................................................................................................................2
Capítulo I: Um Panorama...............................................................................................6
1.1 A questão do aborto...............................................................................................6
1.2 Caracterização das Entrevistas..............................................................................16
a) Narrativas e Silêncios..........................................................................................16
b) As Entrevistas ..................................................................................................... 21
c) As Entrevistadas..................................................................................................24
Breve Caracterização Sócio-Econômica..............................................................24
Projetos de Maternidade.......................................................................................25
Religiosidade........................................................................................................26
Opinião com Relação à Legalização ....................................................................28
Capítulo II: A Decisão....................................................................................................31
2.1 A decisão...............................................................................................................31
a) Valores Individualistas.......................................................................................37
b) Relações Parentais..............................................................................................41
c) O ‘cuidar ........................................................................................................... 46
2.2 “Ser mãe e não ser mãe”?......................................................................................49
2.3 Cabe ao homem ou à mulher decidir sobre o aborto?...........................................60
Capítulo III: Moralidades e Legalidades ........................................................................72
3.1 As entrevistadas e a regulamentação legal............................................................ 72
3.2 O tempo limite.......................................................................................................77
3.3 A “banalização”.....................................................................................................89
Considerações Finais......................................................................................................102
Referências Bibliográficas..............................................................................................105
Anexos............................................................................................................................113
Anexo 1 – O aborto no Código Penal .........................................................................113
Anexo 2 – As entrevistadas.........................................................................................115
Anexo 3 – As definições sobre maternidade ..............................................................123
1
CONVENÇÕES TIPOGRÁFICAS
“aspas duplas” para seqüências literais (transcrições, palavras ‘coisificadas’) e
expressões utilizadas nas entrevistas e em de textos alheios
‘aspas simples’ para aspas minhas, para relativizar termos
itálico para as palavras estrangeiras e conceitos discerníveis mas que não se
filiam ao trabalho de nenhum autor específico
sublinhado para grifos (aplica-se também ao grifos originais dos textos de outros
autores)
negrito para títulos ou grifos mais enfáticos meus
2
INTRODUÇÃO
O objetivo geral desta dissertação é pensar na experiência e na discussão sobre o aborto
no Brasil. O aborto é uma prática amplamente praticada, sendo proibido, entretanto, em vários
países, o que leva muitos abortos a ocorrerem na clandestinidade. Segundo a Organização
Mundial de Saúde, se estima que ocorram 46 milhões de abortos induzidos por ano no mundo
(o que representa 22% das gestações), sendo 20 milhões inseguros
1
(OMS, 2003). No Brasil, a
interrupção voluntária da gestação é crime, mas isso não impede que se estime para a ordem
de 1 milhão de abortos realizados por ano no país (AGI, 1994).
A legislação não implica em silêncio: há tentativas de modificá-la, ampliando seus
permissivos ou restringindo-os; tentativas de autorização e desautorização de abortos (de
fetos sem viabilidade extra-uterina) no judiciário; além de haver ‘contestações mudas’ das
mulheres, ou dos casais, e de profissionais de saúde ao desafiar a legislação.
Viso captar algumas destas resistências à legislação, tanto com relação à discussão
política do aborto no Brasil, quanto com relação às experiências subjetivas, sendo que o
objetivo específico desta dissertação é captar algumas possibilidades do que pensam as
mulheres, sujeitos centrais na experiência do aborto e na própria decisão. Para isso, analisarei
as falas de 8 mulheres de classe média que passaram pela experiência da gravidez e optaram
pela interrupção.
Quando surgiu meu interesse em estudar o tema do aborto na minha dissertação de
mestrado, eu não acompanhava o debate público sobre a interrupção voluntária da gestação.
Meu interesse por este tema estava ligado a sua polêmica quanto aos ‘direitos’ da mulher e a
questão da vida do nascituro, e a questão do DIU e da Pílula do Dia Seguinte serem ou não
considerados métodos abortivos. Além disso, em 2005, ouvi uma notícia no rádio de que o
Ministério da Saúde havia autorizado o atendimento para a prática do aborto, sem a
apresentação do Boletim de Ocorrência, a mulheres vítimas de estupro. Ao começar a estudar
esse tema, comecei a ver maiores nuances nestas mesmas questões.
1
Aborto Inseguro: provocado por pessoas sem treinamento e em locais sem um mínimo de padrão médico
(OMS, 2003).
3
Falar em aborto
2
pode significar falar em coisas diferentes porque, sendo o aborto a
interrupção de uma gestação, uma certa polêmica sobre quando ela começa. É com a
fecundação do óvulo? É com a implantação do óvulo fecundado no útero? É quando a mãe
sente os movimentos do feto
3
? Não consenso social sobre o começo de uma gestação.
Essas perguntas envolvem vários problemas, como, por exemplo, a questão falada acima
sobre considerar ou não o DIU (Dispositivo Intra-Uterino), ou a Pílula do Dia Seguinte
4
(Anticoncepção de Emergência), métodos abortivos
5
.
Mas a polêmica sobre a interrupção da gestação não envolve apenas determinar quando
a gestação começa. Ela envolve os direitos de vários atores, como a mulher, o feto e o pai,
além da determinação sobre o que é o feto: uma vida, uma pessoa, enfim.
Essas questões estão presentes no debate sobre o aborto. Apesar da atual legislação
brasileira referente ao abortamento datar de 1940, vários projetos de lei tentando
regulamentar a questão da interrupção da gestação. diversas proposições relacionadas ao
aborto no Congresso Nacional objetivando dar nova redação aos artigos do Código Penal,
criar outras leis, ou mesmo alterar a Constituição, que vão, desde considerar o aborto como
crime hediondo, ou proteger a vida do nascituro desde a concepção, até a ampliação dos
permissivos legais, ou mesmo a despenalização e regulamentação para o atendimentos de
abortos pela simples vontade da gestante.
Nesses projetos, pode-se perceber diversas concepções a respeito do aborto. Ele envolve
as questões referidas acima: concepções sobre o que é a vida humana e quando ela começa,
questões que estão relacionadas à religião e à ciência; envolve também o direito das mulheres
de disporem do próprio corpo; os direitos do feto; e como o poder legislativo deve
regulamentar a prática abortiva e a questão da saúde das mulheres, que continuam abortando
em condições impróprias, mesmo havendo a proibição.
2
O abortamento, medicamente falando, é a interrupção da gestação até a 20ª ou 22ª semana (a contagem das
semanas é feita a partir da última menstruação), pesando o produto da concepção menos do que 500 gramas
(Ministério da Saúde, 2005), e pode ser espontâneo, ou provocado. o aborto, é o produto da concepção
expelido. Como costuma-se tratar o “abortamento” por “aborto” e no próprio Código Penal a referência a essa
prática utiliza este termo, essa dissertação também utilizará o termo “aborto” para a prática do abortamento.
Além deste termo, será utilizado também outros, como, por exemplo, “interrupção da gestaçãoe “interrupção
da gravidez”.
3
Até a década de 1940, a confirmação da gestação ocorria apenas quando a mulher sentia os primeiros
movimentos fetais (Chazan, 2005: 134).
4
A “pílula do dia seguinte” pode inibir a ovulação, alterar o transporte dos espermatozóides, do óvulo (pelas
trompas), alterar o endométrio, atuar sobre o muco cervical, inibir a fertilização e alterar a função lútea (Palma,
1998).
5
Nesta dissertação, em geral, ao falar em aborto provocado estarei pensando na interrupção voluntária de uma
gestação conhecida pela mulher, o que não inclui o DIU ou a Anticoncepção de Emergência como métodos
abortivos.
4
Comecei, inicialmente, a estudar essa discussão em torno do aborto no Brasil, me
centrando, principalmente, nas reivindicações feministas. Ao longo desse estudo, ao perceber
que o que o que está em jogo na polêmica do aborto é que, através dela, configura-se uma
disputa pelas definições dos sujeitos sociais, principalmente, a mulher e o feto, resolvi tomar
por objeto de pesquisa este primeiro sujeito, já que ele é considerado como central na
discussão: é com base no sujeito mulher que se reivindica a descriminalização, e é o sujeito
mulher que busca-se sensibilizar para a manutenção da vida de seu filho ainda não nascido.
Desta forma, optei por realizar entrevistas com mulheres que interromperam a gestação, a fim
de captar o que elas pensam sobre a prática abortiva a partir das suas próprias experiências.
Conforme Ardaillon (1998: 373),
“Se o aborto é proibido e se as mulheres têm recorrido, e recorrem ainda a ele,
apesar da ilegalidade, é que elas têm alguma razão mais forte do que o medo da
desobediência à lei e até do que o medo da própria mutilação ou morte, como
mostram os dados de internações hospitalares por seqüelas de abortos.”
Nesta dissertação, busco entender alguns dos motivos que as mulheres podem ter ao
interromper uma gestação e suas vivências e opiniões relacionadas à legislação e à moralidade
da prática do aborto. Desta forma, através de entrevistas com mulheres que realizaram a
prática, busco examinar algumas das possibilidades relativas à questão do aborto. Não viso
generalizar o que ‘as mulheres’ pensam sobre isso, mas analisar em profundidade a recriação
dessa experiência por parte das mulheres entrevistadas e o que elas pensam a respeito dela
depois de terem vivido-a. Para isso, dialogarei com algumas das questões levantadas na
discussão política. Assim, espero poder contribuir para um maior conhecimento sobre como a
interrupção da gestação pode ser vivida e concebida pelas mulheres que a praticaram.
No capítulo 1, faço um panorama da discussão sobre o aborto no Brasil, apresentando
os principais argumentos levantados, de modo a contextualizá-la e poder retomar estes
argumentos nos capítulos seguintes. Ainda neste capítulo, faço uma caracterização das
entrevistas realizadas.
Os capítulos seguintes centram-se em torno das moralidades relativas ao aborto. No
capítulo 2, trato do processo de tomada de decisão das mulheres entrevistadas pela
interrupção, com base nas suas justificativas. A questão do ‘cuidado’ com os filhos será
destacada. Ainda neste capítulo, discuto o que elas pensam sobre quem deve decidir sobre o
aborto e sobre como esta decisão deve ser tomada.
5
No capítulo 3, foco as opiniões das entrevistadas com relação à legislação, que foram,
em geral, favoráveis, para, em seguida, mostrar algumas situações em que a prática do aborto
foi condenada por elas. Assim, algumas das entrevistadas falaram que o aborto não deve ser
“banalizado”, deve ser feito com “consciência” e dentro dos períodos iniciais da gestação,
mostrando como o aborto, caso seja a escolha da mulher, ‘deve ser feito’.
Nas considerações finais, retomo as questões anteriores. Para essas informantes, que,
em sua maioria, concordam com a legalização do aborto, existe uma ‘forma correta’ de se
fazer a interrupção. Além da prática do aborto poder envolver considerações morais sobre as
crianças que são ‘abandonadas’, ou não são criadas da forma como crianças ‘devem ser
criadas’, existe também considerações sobre um ‘modo correto’ de se fazer o aborto: a mulher
deve dividir a escolha com o seu parceiro, não deve “banalizar” a prática, e, caso opte pelo
aborto, deve fazer de forma “consciente” e nos períodos iniciais da gestação.
6
CAPÍTULO I
UM PANORAMA
1.1) A questão do aborto
Atualmente, o aborto é crime no Brasil, não sendo punido legalmente, no entanto, se a
gestação for resultado de estupro ou se a gestante correr risco de vida (a legislação encontra-
se em anexo). Contudo, se estimou que houvesse 1 milhão de abortos por ano no país,
como falado na Introdução desta dissertação, o que sugere que, mesmo na ilegalidade, a
interrupção da gestação é amplamente praticada.
Apesar das estimativas altas para a prática do aborto, Ardaillon (1997), analisando
materiais no Tribunal do Jabaquara (Estado de São Paulo) das décadas de 1970 e 1980, afirma
que havia pequena porcentagem de condenações, e que em 87% dos casos não foi possível a
configuração delitiva. A autora conclui que o crime de aborto é de difícil comprovação, sendo
raramente punido quando as réus são as mulheres, e levemente penalizado quando são outros
os acusados, mesmo quando provocam a morte das gestantes (Ardaillon, 1997).
A punição legal, mesmo que não ocorra para a maior parte dos abortos, pode criar uma
atmosfera underground para quem opte por realizar a prática (como disse uma das minhas
entrevistadas, Mônica
1
), além de fazer com que a punição apareça, no mínimo, como algo
possível, ou seja, como passível de ocorrer. Ademais, a não punição legal do aborto não é,
necessariamente, um quadro estático, de modo que essa conjuntura pode ser alterada.
Além da penalização legal, ou, ao menos, do risco da penalização, as mulheres que
optam por interromper a gestação também podem ter problemas decorrentes do aborto
inseguro, como a perfuração do útero, hemorragia e infecção, podendo acarretar em várias
seqüelas, como a esterilidade, ou mesmo a morte.
Quanto ao aborto legal, apesar de não ser punido pela legislação desde 1940, este não
havia regulamentação de atendimento no sistema público de saúde até, pelo menos, o ano de
1985. Me refiro ao projeto de lei de Lúcia Arruda, do Rio de Janeiro, que foi aprovado porém
revogado logo em seguida. Depois desse episódio, alguns Estados e Municípios começaram a
aprovar leis semelhantes, havendo, inclusive, tramitação de um Projeto de Lei sobre a questão
1
Os nomes das entrevistadas são fictícios.
7
da regulamentação do aborto legal no Congresso Nacional (PL 20/91
2
). Em 1998, o
Ministério da Saúde lançou uma norma regulamentando a situação. Em meio a esse contexto,
os hospitais que fazem esse tipo de atendimento, no Brasil, passaram a aumentar em
quantidade, dado que eram apenas quatro hospitais no ano de 1996, passando para 250 em
2002 (Duarte e Osis, 2005).
Além do aborto legal feito por causa de gravidez resultante de estupro ou de casos de
risco de vida para a mulher, também expedição de autorizações por juízes para interrupção
de gravidezes em que o feto não tenha chances de vida extra-uterina, sendo que a primeira
data de 1989 (Gallop, 2006)
3
. Em 1997, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios
instituiu o primeiro programa de atenção a gestantes de fetos sem viabilidade extra-uterina, o
que facilita as gestantes a conseguir sua autorização, que podem conseguí-la em 24 horas
(Diniz, 2005).
Dentre as inviabilidades extra-uterinas, destaca-se a anencefalia
4
. Segundo Penna
(2005), a defesa da possibilidade de interrupção da gestação nos casos de anencefalia vem
sendo feita sob a alegação da inviabilidade de vida extra-uterina do feto, enquanto que
posições contrárias à possibilidade de interrupção da gestação é feita através da defesa de que
o feto seria um indivíduo vivo que merece proteção estatal e que, na verdade, não haveria
morte cerebral, que a presença de parte do tronco cerebral. Em 2004, esta anomalia
mereceu destaque na discussão política sobre o aborto com uma ação (argüição de
descumprimento de preceito fundamental - ADPF
5
) que a Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Saúde, com assessoria de Debora Diniz, da ONG Anis, entrou no Supremo
Tribunal Federal (STF), através de seu advogado Luiz Barroso (Gallop, 2006). O ministro
Marco Aurélio de Mello concedeu liminar em julho de 2004, facultando o aborto nesses casos
sem a autorização judicial. Em 20 de outubro, a ADPF foi anulada, mas havia estimativa de
nova votação (Diniz, 2005).
2
Projeto de lei que dispõe sobre a obrigatoriedade de atendimento na rede pública de saúde de casos de aborto
não punidos pela legislação.
3
O diagnóstico pré-natal de anomalias fetais foi incorporado à medicina na década de 1950, sendo introduzido
no Brasil na década de 1970 (Gallop, 1994-5), posteriormente à data de elaboração da lei sobre o aborto no
Código Penal. Na década de 1980, a ultra-sonografia obstétrica tornou-se indispensável no acompanhamento da
gestação, reforçando a gravidez como um “fato médico” (Chazan, 2005). Em meados da década de 1990, com a
popularização da ecografia na medicina pública (brasileira), a questão do que deve ser feito em caso de
inviabilidade fetal deixou de ser uma questão restrita aos consultórios e hospitais, entrando em debate no
parlamento e nos tribunais (Diniz, 2005).
4
A anencefalia “é o diagnóstico mais freqüente de patologia fetal obtido apenas pela ultra-sonografia” (Gallop,
2006: 74). A freqüência estimada para essa anomalia é de 1 para 700 nascidos vivos (Gallop, 2006).
5
A ADPF foi prevista na Constituição de 1988, mas foi apenas em 1999, através de decreto presidencial, que foi
regulamentada (Diniz, 2005). Através dessa ação, a sociedade pode recorrer ao STF sem passar pelos juizados
locais e tribunais intermediários e é uma ação que pode ser proposta em caso de infração dos princípios
constitucionais (Diniz, 2005).
8
A ADPF proposta pela CNTS se embasa na não expectativa de vida extra-uterina do
feto, querendo, com isso, desvincular a antecipação terapêutica do parto da definição penal
de aborto (Diniz, 2005). Segundo Diniz (2005), sendo o aborto considerado pelo Código
Penal um crime contra a vida, no caso do feto anencefálico, não haveria como enquadrar o
aborto como um crime, já que o feto não teria capacidade de vida extra-uterina e, por isso, não
haveria como utilizar o argumento da santidade da vida. Portanto, na ADPF, a falta de vida do
feto é o ponto de partida para a desvinculação da antecipação terapêutica do parto do aborto.
Esta não poderia ser negada, segundo a autora, por não ser proibida e por violar os direitos
fundamentais da mulher (Diniz, 2005). Assim, a obrigação do prosseguimento com a gestação
foi considerada um ato de tortura e uma violação ao direito à liberdade, à saúde e à dignidade
(Diniz, 2005).
Apesar de desde 1940 não haver modificações no Código Penal, com relação ao aborto,
modificações nas esferas do Executivo e do Judiciário, como foi visto acima, e também
“um grande debate de idéias, que reflete a discussão” (Rocha e Andalaf, 2003: 275). Depois
da abertura do Congresso Nacional em 1946, em 1949 foi apresentada a primeira
proposição no legislativo tentando alterar a situação legal do aborto (Rocha e Andalaf, 2003)
e, desde lá, várias proposições foram apresentadas. Segundo Diniz (2002: 24), a permanência
da questão do aborto no legislativo demonstra o quanto este é um tema de “difícil mediação
moral”.
Realmente, este tema é muito polêmico por envolver disputas acirradas em torno dele.
Isso porque pensar no aborto é pensar em vários valores muito fortes, como a vida humana
(quando ela começa, seus significados), a família, a maternidade e o individualismo (com a
questão dos direitos individuais). Esses valores estão presentes tanto nos processos de tomada
de decisão com relação à interrupção da gravidez, quanto no debate público sobre a questão, e
tornam a discussão bastante polêmica.
O debate do aborto, no Brasil, tem sido feito através de redes de indivíduos e de
instituições que reivindicam, ou a legalização do aborto e a efetiva implementação do aborto
legal no Sistema Único de Saúde, ou a proibição dos dois permissivos legais ao aborto. Vários
são os atores que participam dessa discussão: as feministas, a Igreja Católica, representantes
de Igrejas Evangélicas, os parlamentares, os profissionais de saúde, enfim
6
.
6
Com relação às decisões tomadas no Congresso, Rocha (1996) afirma que estas dependem do jogo político que
se dá, principalmente, na tensão entre as iniciativas dos movimentos de mulheres e parlamentares progressistas e
a postura da Igreja Católica e das igrejas evangélicas, sendo que essa postura representa uma reação às
iniciativas dos primeiros. A evolução das discussões desencadeou o aparecimento de uma postura conservadora
no país, que acabou por desencadear uma "forte tomada de posição progressista" pelos grupos já articulados.
9
Por um lado, argumenta-se que a ilegalidade, somada à baixa punibilidade dessa prática,
ao invés de impedir as mulheres de abortar, faz com que elas abortem clandestinamente e de
forma insegura, acarretando em problemas de saúde ou mesmo na morte das mulheres.
Defende-se que o abortamento deveria poder ser feito em hospitais da rede pública de saúde,
caso a mulher solicitasse. Dessa forma, evitaria as práticas abortivas perigosas à saúde da
gestante
7
. Assim, o aborto inseguro é colocado como um problema de saúde pública sendo
utilizadas estatísticas, inclusive da Organização Mundial de Saúde, que apontam para o alto
número de abortos clandestinos e, conseqüentemente, para as seqüelas decorrentes. O aborto
inseguro também é visto como uma afronta ao direito de saúde das mulheres.
Além disso, também coloca-se o abortamento, em si, como um direito relacionado à
cidadania das mulheres, sendo considerado um direito sexual e reprodutivo
8
e enquadrado,
como tal, dentro dos direitos humanos. Segundo Ardaillon (1997), a demanda pelo acesso ao
aborto situa-se numa zona conflituosa de relações entre o Estado e a condição feminina
porque esta demanda questiona a idéia de cidadania. O Estado lidar com “seres humanos
genéricos”, assexuados, e não com “indivíduos humanos femininos” e “indivíduos humanos
masculinos”, complica o reconhecimento das mulheres como plenamente cidadãs. Para a
autora, com a proibição do aborto, a cidadania das mulheres não está completa, ou seja, “as
‘indivíduas’, por serem mulheres, não completam sua individuação política” (1997: 385). A
ilegalidade do aborto pode ser considerada, inclusive, como uma “violação da dignidade da
mulher na sua qualidade de pessoa” (Ventura, 2006: 182). Dessa forma, uma preocupação
com a mulher em si e seus direitos
9
.
Também têm-se associado a clandestinidade do aborto à desigualdade atribuída à classe
social e à cor/ raça, na medida em que as mulheres das classes mais favorecidas poderiam
pagar por abortos com menos riscos à saúde, enquanto as mulheres das classes menos
favorecidas, que, em geral, são ‘negras’ e ‘pardas’, não têm condições de pagar tais abortos. A
ilegalidade pode ser colocada também como uma forma de discriminação de gênero, uma
discriminação contra as mulheres em relação aos homens, na medida em que apenas estas,
7
Sorj (2002) chama atenção para o fato de os argumentos favoráveis à descriminalização do aborto, no Brasil, se
basearem mais em critérios pragmáticos e circunstanciados, em direitos sociais e em justiça social do que como
um direito das mulheres sobre seus próprios corpos, ao contrário de outros países.
8
Ávila (2003) exemplifica esta questão: “Na perspectiva feminista aqui adotada, os direitos reprodutivos dizem
respeito à igualdade e à liberdade na esfera da vida reprodutiva. Os direitos sexuais dizem respeito à igualdade e
à liberdade no exercício da sexualidade. O que significa tratar sexualidade e reprodução como dimensões da
cidadania e conseqüentemente da vida democrática.” (Ávila, 2003)
9
Essa argumentação é enfatizada, principalmente, pelas feministas, e o slogan “Nosso Corpo nos Pertence” é
bastante ilustrativo desta questão.
10
quando optam pelo aborto, estão sujeitas às conseqüências físicas do aborto ilegal e a serem
punidas legalmente (como sujeitos da reprodução).
também o problema da laicidade do Estado, que é uma questão muito presente nas
discussões em torno do aborto. Muitos dos militantes contrários à legalização desta prática
são religiosos. O Papa, outros membros da Igreja Católica, além de membros de outras
religiões se pronunciam publicamente contrários à descriminalização
10
. Têm-se considerado
também que a influência da Igreja Católica na vida social e política nos países da América
Central e América do Sul estaria relacionada à legislação mais restritiva ao abortamento
nesses países (Rocha e Andalaf Neto, 2003). Ademais, a defesa da proibição do aborto conta,
várias vezes, com argumentos religiosos, como a sacralidade da vida humana. Com isso,
feministas e outras pessoas que se manifestam publicamente a favor da descriminalização,
como profissionais de saúde, costumam chamar atenção para a necessidade de não
interferência religiosa neste assunto, lembrando que o Brasil é um país laico.
As tentativas que visam o direito ao aborto atuam tanto no Legislativo (visando, ou
legalizá-lo, ou ampliar seus permissivos legais), quanto no Judiciário (como o caso narrado
sobre a anencefalia no STF), e no Executivo (de modo a assegurar o atendimento ao aborto
legal). Além disso, essas tentativas também se utilizam de conferências internacionais
realizadas no âmbito da ONU (Organização das Nações Unidas), de modo a dar maior
legitimidade às suas idéias. Assim, a Conferência Internacional sobre População e
Desenvolvimento, realizada no Cairo em 1994, e a IV Conferência Mundial sobre a Mulher,
realizada em Beijing no ano seguinte, passaram a ocupar um papel central nas reivindicações
para a legalização do aborto, em função das terminologias e idéias utilizadas nos documentos
oficiais. O governo brasileiro é signatário dessas conferências, e isso é utilizado como
argumento para a reivindicação dos direitos especificados nesses textos.
Consta no documento final da reunião do Cairo o conceito de direitos reprodutivos
11
na
esfera dos direitos humanos (Ventura, 2005), conceito bastante utilizado na reivindicação pelo
aborto. Na redação final desta conferência, se estabeleceu que a interrupção da gestação não
deve ser considerada um método de planejamento familiar. Os governos e organizações inter
e não-governamentais foram convidados a intensificar seus compromissos com a saúde das
10
Ver, por exemplo, Pierucci (1989) a respeito dos evangélicos na constituinte.
11
Sobre os direitos reprodutivos, Ventura (2005) afirma que "Sua concepção originária e até hoje a mais comum
está diretamente relacionada ao direito ao aborto seguro e legal, à maternidade segura, à anticoncepção, à
assistência integral à saúde sexual e reprodutiva, à igualdade de responsabilidades contraceptivas e reprodutivas
entre homens e mulheres, ao direito à informação e ao acesso aos meios para realizar escolhas sexuais e
reprodutivas. O termo traz um forte caráter contestatório aos aspectos coercitivos do modelo biomédico utilizado
em relação à mulher, à excessiva medicalização e instrumentalização do corpo feminino nos seus ciclos
reprodutivos." (Ventura, 2005: 121).
11
mulheres, a lidar com o aborto inseguro como um problema de saúde pública e a expandir e
criar serviços de planejamento familiar para a redução da busca pelo aborto provocado.
Quando este não contrarie as leis do país, deverá, segundo o documento final da reunião, ser
seguro. Além disso, estabeleceu-se que as mulheres deverão ter acesso a serviços de saúde
para o atendimento a complicações resultantes do aborto inseguro.
A outra conferência que destaca os direitos reprodutivos é a realizada em Beijing. No
documento final de Beijing, o texto do Cairo foi reiterado, com ênfase nas questões de
sexualidade da mulher (Ventura, 2005). Além disso, a noção de direitos sexuais foi incluída
(Ventura, 2005), mas houve controvérsia quanto a tornar explícito este termo (direitos
sexuais), que não foi incluído (Corrêa, 1999). Dessa forma, essas duas conferências
legitimaram os direitos reprodutivos (Ventura, 2005; Corrêa, 1999), a saúde sexual e aspectos
relacionados aos direitos sexuais (Corrêa, 1999).
Por outro lado, o abortamento, além de envolver construções sociais e políticas sobre a
mulher e os seus direitos, envolve construções também sobre o feto, que também pode ser
considerado sujeito de direitos, equivalente à gestante. Por isso, movimentos pró-vida e a
Igreja Católica, por exemplo, se posicionam contrários à despenalização da prática abortiva.
Considera-se que o óvulo fecundado seria uma pessoa humana digna de respeito à vida,
direito esse que seria o primeiro, sem o qual não haveria outros. Aqui, há um deslocamento do
foco da mulher ao embrião/ feto, ou criança, como costumam se referir, o que demonstra o
status de pessoa que lhe é atribuído
12
.
Assim, para os anti-abortistas, o direito à vida é o argumento principal, e é estendido
também aos fetos. Utiliza-se o artigo da Constituição de 1988, que protege a vida, como
argumentação e, além disso, busca-se mesmo alterá-lo para que a defesa da vida seja um
direito desde a concepção. Uma destas tentativas se deu durante a Constituinte, quando o
Deputado Meira Filho apresentou uma emenda com esta proposta (Feghali, 2006). Em
contrapartida, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM)
13
e os movimentos de
mulheres colheram assinaturas para uma emenda popular que descriminalizaria o aborto
12
Segundo Diniz (2002), os projetos mais restritivos ao aborto costumam se referir ao feto como “nascituro” ou
“criança”. A autora, destacando que as terminologias utilizadas pelos parlamentares variam muito, afirma que
elas não são um acaso lingüístico, mas sim "um dos mecanismos mais eficazes de sensibilização e confronto"
(2002: 24-25). Conforme Diniz, estas opções conceituais não são característica apenas do debate travado na
esfera legislativa, mas estão presente em todos os espaços de discussão sobre a questão, sendo uma característica
própria das moralidades envolvidas nesta discussão.
13
Durante a Constituinte, houve bastante mobilização do movimento de mulheres, que foi facilitada, inclusive,
pela criação de órgãos públicos voltados para as questões das mulheres (Teles, 1993). O Conselho Nacional dos
Direitos das Mulheres (CNDM) foi um desses órgãos. A maioria das reivindicações do movimento de mulheres
foi incorporada à Constituição (Pitanguy, 1999; Teles, 1993), tendo como exceção principal o aborto (Teles,
1993).
12
(Pitanguy, 1999). O CNDM também argumentou que o aborto não seria matéria
constitucional, o que, após várias discussões, foi aceito (Pitanguy, 1999)
14
.
Há, contudo, outras Propostas de Emenda Constitucional visando incluir à Constituição
o direito à vida desde a concepção. Uma que se destaca é a que foi apresentada em 1995 pelo
deputado Severino Cavalcanti (Pec 25/95), reintroduzindo o debate sobre o aborto na esfera
dos direitos constitucionais (Vianna e Lacerda, 2004), mas, no ano seguinte, a proposta foi
rejeitada
15
(Rocha, 1996).
também outras tentativas de alteração da legislação sobre o aborto propostas por
parlamentares, como a tipificação da interrupção voluntária da gravidez como crime
hediondo, a autorização para o Poder Executivo poder criar centrais telefônicas para denúncia
de abortos ilegais (disque-aborto), a obrigatoriedade do registro público da gravidez, a
punição de abortos em caso de anomalia fetal, a obrigatoriedade do sepultamento de do
assentamento dos óbitos fetais, independentemente da idade gestacional, a supressão dos
permissivos legais ao aborto, e a instituição do Dia do Nascituro.
Dentre as idéias dos contrários ao direito do aborto, não apenas a defesa do direito à
vida do feto. Callahan e Callahan (1984), tratando desta discussão com ênfase no debate
norte-americano, apontam, além do direito de vida dos indivíduos, outros aspectos
considerados pelo lado denominado pro-life, contrário ao aborto: o comprometimento com a
necessidade de se proteger os mais fracos e menos poderosos, a aceitação de acidentes como
parte da vida e a negação de soluções violentas para a resolução dessas questões, a obrigação
da sociedade de prover suporte às pessoas cujos problemas poderiam levá-las a escolhas
destrutivas e forçadas, e a convicção de que ideais e valores morais com relação à vida
nascente deveriam ser mantidas mesmo com dificuldades individuais. Com relação aos anti-
abortistas, no Brasil, poder-se-ia dizer que seguem padrões semelhantes.
Além disso, a gestante, entre os anti-abortistas, também é considerada, já que, fazendo o
aborto, poderia sofrer com a síndrome pós-aborto. Segundo McNeil (1991), o termo médico
“trauma pós-aborto” (post-abortion trauma), originado nos Estados Unidos, é um dos mais
utilizados, ao longo da história médica, para regular o comportamento das mulheres. Dessa
forma, há uma alegação contrária ao aborto que não se restringe aos direitos do feto, mas foca
na mulher, com base nas conseqüências psicológicas que o aborto acarretaria nela própria,
14
Na primeira tentativa de voto da emenda sobre o direito à vida desde a concepção, não houve quorum
(Feghali, 2006). No dia seguinte, não conseguiu os votos necessários (Feghali, 2006).
15
Foi rejeitada no Plenário por 351 votos a 33 e 16 abstenções (Rocha, 1996).
13
desafiando o conceito de autonomia feminina, prezado pelas feministas. Além disso, essa
alegação utiliza a linguagem da ciência para se legitimar
16
.
Dessa forma, a discussão do aborto acaba sendo colocada como uma confrontação de
interesses entre a mãe e o feto. Mas existem ainda reivindicações individuais de homens com
o objetivo de impedir as suas parceiras sexuais de interromperem a gestação. Prado (1984),
por exemplo, narra uma dessas situações, ocorrida no Rio de Janeiro, divulgado pela
imprensa, em que o noivo denunciou à uma patrulha da Polícia Militar a clínica em que sua
noiva estava para realizar um aborto. Além disso, existe também um debate sobre o direito
dos homens, dada uma gestação, de não serem pais. O jornal Folha de São Paulo publicou
uma matéria sobre uma discussão levantada pelo Centro Nacional dos Homens, nos Estados
Unidos, relativa aos homens poderem abdicar dos direitos e responsabilidades de um filho
nascido por decisão unilateral da mulher, considerando-se a legalidade do aborto neste país
(Ramírez-Gálvez, 1999). Ou seja, a questão dos direitos paternos é colocada tanto com
relação aos pais negarem os direitos e responsabilidades sobre um filho que não eles não
queriam, quanto com relação a impedir a mulher de interromper a gestação um filho que eles
queriam. Dessa forma, a questão do aborto é bastante construída em cima da linguagem dos
direitos destes vários atores, estando inserida, portanto, numa área de direitos bastante tensa.
Além do conflito de direitos entre a mãe e o feto, também os direitos paternos sobre o seu
feto, que podem chocar-se com os direitos da mãe sobre o seu corpo.
É interessante ressaltar que ambos os lados do debate, tanto os contrários quanto os
favoráveis à legalização do aborto, estão falando em defesa da vida, em democracia, em
justiça social, em direitos humanos e em responsabilidade. Ou seja, estas questões não são
postas em questão apenas se discute os seus significados. Dessa forma, nas argumentações
sobre o aborto, os dois lados se utilizam da mesma linguagem dos Direitos Humanos
17
. Para
isso, são utilizados tratados internacionais e legislações nacionais de modo a embasar as
argumentações.
Ademais, os dois lados da discussão podem se utilizar também da linguagem da
maternidade e do afeto pelos filhos. Apesar da maternidade não ser vista pelos defensores do
direito ao aborto como o único objetivo da mulher, a aceitação de uma gestação pode ser vista
16
A linguagem da ciência tem uma importância muito grande na discussão do aborto. Diniz (2003), analisando
processos de autorização de aborto seletivo, conta que, para um processo ter chance de ser deferido, é necessária
a inquestionbilidade do laudo médico. Aliás, a própria detecção da anomalia se faz através da ecografia, técnica
de diagnóstico pré-natal.
17
É importante chamar atenção para o fato de que a trajetória dos Direitos Humanos está relacionada,
historicamente, ao surgimento de uma concepção individualista de sociedade: os indivíduos passam a deter um
conjunto de direitos inalienáveis (Vianna e Lacerda, 2004).
14
como um ato que deve ser voluntário e fruto do amor
18
, ou mesmo que, com a possibilidade
do aborto, a continuação da gestação não signifique “apenas a aceitação de uma contingência
biológica, mas a gestação amorosa de uma nova pessoa”, como coloca Rosado-Nunes (2006:
32), católica e feminista: “É exatamente o reconhecimento da dignidade e da ‘sacralidade da
vida’ que coloca a exigência moral de tornar possível a interrupção de uma gravidez e o
correlato respeito por essa decisão”.
Dessa forma, o aborto pode mexer, em ambos os lados, com a questão da maternidade.
Se há estudos que têm apontado em direção à sacralidade da maternidade na sociedade
brasileira (Aragão, 1983; Dauster, 1983), o caso do aborto é um caso bastante evidente de
como essa valorização da maternidade pode ocorrer, que, várias vezes, ao se justificar o
aborto, pode-se mesmo reafirmar o valor da maternidade.
Além disso, os dois lados também podem considerar a questão da responsabilidade e do
amor que se deve ter com os filhos, de modo que a maternidade e o cuidado com os filhos,
apesar da polêmica em torno da interrupção da gestação, podem permanecer inalterados. A
diferença consiste, neste caso, na ‘escolha’ que os defensores do direito ao aborto,
principalmente as feministas, acreditam que a mulher deve ter para ela decidir prosseguir ou
interromper a gestação. É importante atentar para isso porque, nos próximos capítulos, será
visto como, por parte das entrevistadas, a defesa da vida, tanto das mulheres quanto dos
fetos, além da valorização da maternidade.
Além disso, mesmo entre os defensores da legalização do aborto, uma ênfase nos
aspectos morais da interrupção da gestação. Scott (1989) também comenta a respeito desta
questão. A autora afirma que quem defende a legalidade do aborto pode defendê-la pela
crença de que o aborto deva ser uma decisão privada e pela crença no direito de escolha do
indivíduo, o que não quer dizer que essas pessoas considerem que a interrupção da gestação
seja a escolha certa, de forma que, mesmo entre as pessoas que defendam fervorosamente o
direito à sua legalidade, algumas podem ter considerações morais sobre o uso casual do
aborto. A utilização ‘indevida’ da prática pode ser relacionada, por exemplo, a uma utilização
sexista da mesma
19
.
18
Por exemplo: "Acreditamos também que, após a descriminalização, a decisão de assumir ou não a paternidade
e a maternidade será fruto do amor, da consciência e da responsabilidade, e não uma indevida imposição do
Estado." (Paixão, 2006: 209)
19
Grandberg (1981) também trata da questão. Falando de uma pesquisa feita nos Estados Unidos com membros
das duas principais organizações militantes pela causa do aborto, uma contrária (National Right to Life
Committee), e outra favorável (National Abortion Rights Action League), afirma que 58% dos entrevistados
desta última organização responderam que poderiam aprovar legalmente um aborto por escolha do sexo fetal,
embora 85% se dissessem favoráveis à mulher obter um aborto por qualquer razão.
15
Além de defensores da legalização poderem fazer ressalvas quanto ao uso que é feito do
aborto, convém notar que eles também não defendem o aborto em si. Os defensores da
legalização não consideram que o aborto seja “um bem” em si mesmo, como demonstram a
fala de Pimentel e Pandjiarjian (2002: 75): “Não estamos aqui advogando a prática
irresponsável ao aborto, o qual, em si, não consideramos um bem, mas sim propugnando por
sua descriminalização”. Desta forma, uma ênfase de que a contracepção é preferível ao
aborto. Pinotti (médico e, na época do texto, Secretário de Saúde de São Paulo), se
posicionando favorável à descriminalização do aborto, diz que ninguém é favorável a esta
prática e que esta não deve ser banalizada:
“Discutir o processo de normatização do aborto provocado sem antes implantar
um Programa de Planejamento Familiar que ofereça aos casais a regulação de sua
própria fertilidade de maneira segura e eficiente, significaria que somos favoráveis
ao aborto como método de anticoncepção. Somos contra. Ninguém, em
consciência, é favorável a ele. [...] Sua normatização no país deve ser feita, não
com o propósito de incrementá-lo, mas com o de diminuí-lo. Não com o propósito
de banalizar a questão, que de fato é agressão física e psíquica à mulher e extinção
de vida em formação, mas evitando que recaia como penalidade, onde a única
criminosa é a mulher.” (1989: 60, grifos meus)
É bom chamar atenção aqui para essa discussão de que o aborto não é “um bem” em si
mesmo e também para essa preocupação com a sua “banalização”, exposta por Pinotti, porque
elas serão exploradas, através das entrevistadas, no terceiro capítulo. Ademais, a questão da
responsabilidade em torno do aborto, colocada por Pimentel e Pandjiarjian (2002), é bastante
chamativa e também será trabalhada no Capítulo 3. Quanto a isso, vale notar que a defesa da
legalização do aborto não está isenta de produção de normatizações. Desse modo, Vianna e
Lacerda (2004), tratando das regulações internacionais em torno dos Direitos Sexuais e dos
Direitos Humanos, afirmam que os programas de ação, diretrizes e recomendações buscam
estipular caminhos éticos e normativos. Nesse sentido, a noção de responsabilidade é uma
questão chave, que está em todas as recomendações relacionadas à reprodução e à
sexualidade, dentro dos direitos humanos (Vianna e Lacerda, 2004), a exemplo do direito de
decidir livre e responsavelmente” quanto ao número de filhos e ao intervalo de espaçamento
entre eles, mencionados na Convenção sobre Todas as Formas de Discriminação contra a
Mulher (1979), na IV Conferência Mundial sobre a Mulher (realizada em Pequim, em 1995) e
na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (realizada no Cairo, em
1994).
16
Mas, apesar do aborto não ser considerado “um bem” em si, as próprias moralidades
envolvidas no debate podem ser, ainda, invertidas, de modo que a ilegalidade do aborto pode
ser considerada como “imoral” por defensores da sua legalização, como considera a Rede
Feminista de Saúde (2005): “[...] em pleno século XXI é imoral permitir que mulheres fiquem
seqüeladas e imolem suas vidas ao decidirem interromper uma gravidez inesperada e
indesejada quando meios seguros de tais fatos não acontecerem”. Considerações sobre a
moralidade e a imoralidade do aborto também serão feitas no capítulo 3, através das
entrevistadas.
1.2) Caracterização das Entrevistas
a) Narrativas e Silêncios
Fiz contato com as informantes pelo sistema de rede, sendo que as entrevistadas não
pertenciam a minha rede mais próxima de amizade. Os contatos foram feitos através de
colegas que se dispusessem a indicar alguma conhecida que se enquadrasse na pesquisa. O
critério de enquadramento era apenas de que tivessem realizado aborto voluntário. Desta
forma, não consegui as entrevistas ‘na rua’, precisando, portanto, de um certo grau de contato,
ou seja, pessoas que eu não conhecia se dispuseram a dar as entrevistas, na medida em que eu
fui indicada por alguém que elas conheciam.
Fui apresentada às entrevistadas como aluna de mestrado em antropologia, sendo que as
entrevistas seriam utilizadas em minha dissertação de forma anônima. Em face deste
anonimato, todos os nomes das entrevistadas são fictícios.
Tive muitos pedidos negados quando comecei a tentar os contatos. Havendo
justificativas por parte do colega que faria o contato, era de que a experiência trazia dor à
mulher conhecida que abortou, ou que ela não gosta de falar disso. Além disso, algumas
colegas me disseram que não perguntariam à pessoa que conheciam porque esta não ia gostar,
e/ou que ela não me daria a entrevista, ou mesmo que seu aborto era um segredo.
Estes pedidos negados podem ser interpretados pelo grau de proximidade baixa que
havia nas relações, no sistema de rede, mas podem ser interpretados também pela aura de
silêncio que recobre o aborto. Como afirmam Scavone e Côrtes (2000), a obtenção de dados
sobre a questão fica dificultada devido a sua condenação moral e legal.
17
Diez (1998), tratando em um artigo sobre 14 mulheres da cidade de Neuquén e de zonas
aldeãs (Argentina) que foram atendidas num serviço de assessoria da ONG Mujeres por el
Derecho a Elegir para mujeres que enfrentaban sus embarazos con diferentes malestares
(1998: 359), conta que estas mulheres, que haviam decidido pelo aborto, foram convidadas a
retornar ao serviço depois da prática real do aborto (o aborto também é crime na Argentina).
Mas, destas 14 mulheres, apenas duas retornaram. A maioria enviou mensagens telefônicas ou
através de terceiros para comunicar que “estavam bem”. Segundo a autora, Creemos que, al
menos en el caso de las mujeres atendidas, la mayoría no quería volver a hablar del aborto.”
(1998: 365, grifo meu). Este caso pode ser interpretado por essa aura de silêncio que recobre a
interrupção voluntária da gestação.
As justificativas dadas ao negarem meu pedido (como a dor sentida ao tocarem no
assunto, ou que a mulher que abortou não gosta de falar disso) também explicam, em parte,
esse silêncio. Mônica, por exemplo, uma das minhas informantes, busca transmitir seus
sentimentos com relação ao aborto: “Tive bastante dor depois pensando no fato, bastante.
Momentos de bastante dor. [...] De dor... de dor... de dor de alma né? –, de... de tristeza
mesmo”.
Além da dor, o silêncio também pode ter relação com o aborto ser considerado uma
coisa pessoal, que não se fala a estranhos, além das mulheres não quererem ser julgadas por
outras pessoas. O julgamento dos outros e o aspecto pessoal do aborto, na fala de Mônica,
abaixo, mostram o quanto este, mesmo quase evidente, pode permanecer no silêncio. Mônica,
quando foi fazer o aborto, precisou deixar sua filha pequena com uma funcionária de seu
comércio, e diz:
[Pesquisadora] – Ela soube? [Mônica] Acho que ela desconfiou, né? Falar, eu
não falei não. Mas eu acho que ela desconfiou – né? –: foi tudo meio assim... meio
sem explicação. Saí com a [nome da cunhada], voltei horas depois, fiquei sempre
de repouso e tal né? –, a pessoa não é boba né? Ela, mãe de filho e tudo, ela
não é boba. Mas eu não falei por isso, eu acho que é uma coisa tão... tão pessoal.
Pra que que vai ficar falando pra todo o mundo né? Depois fica muito
complicado porque a sociedade te julga mesmo, a hipocrisia domina aqui.”
O fato de não quererem ser questionadas também levou outras duas entrevistadas a
justificarem não ter contado para amigos, na época
20
. Elas disseram que estavam decididas
20
Apenas duas das mulheres entrevistadas por mim mencionaram terem contado sobre seus abortos, na época
que foram feitos, para várias pessoas . Uma porque, segundo ela, nunca escondeu que fez aborto, porque este
nunca foi “um problema” para ela (Débora) e outra que avalia que contou para mais pessoas do que deveria, mas
18
a fazer o aborto e não queriam ser questionadas, não queriam que a opinião das pessoas
pesasse nas suas decisões, como explicita a fala de uma delas abaixo. Esta fala também traz
outras questões, como a dos sentimentos de “orgulho”, “vergonha” e “dor”:
“Eu estava decidida, assim. De uma certa forma, eu não queria que nada
balançasse também um pouco essa decisão – sabe? E era uma coisa que eu tinha...
eu tinha uma certa vergonha de mim mesma! Não de... dessa questão de ‘Ah,
será que eu tirando uma vida? Será que...’, mas também, assim: como é que eu
cheguei nesse ponto entendeu? –, como é que eu deixei isso acontecer, que
agora eu tenha que tomar uma decisão tão... tão radical, que é uma decisão que eu
não gosto e eu não estou a fim de que ninguém me diga que é uma decisão errada
entendeu? [...] Não por... né? por orgulho, também... também por
vergonha... Vergonha. Era uma coisa muito difícil, muito dolorida, eu não queria
mexer [...] No final das contas, por mais que eu tivesse decidida, sempre há uma...
uma coisa dolorida você não sabe [ininteligível] o que você fazendo sabe?
Então, eu não queria muito questionar muito [...]. Eu queria tomar a decisão e
pronto, fazer.” (Tereza)
Todas as entrevistadas disseram que contam sobre seus abortos atualmente nas
seguintes situações, principalmente: “em papo de mulher”, “quando alguém pergunta”, “se
uma amiga minha me conta uma experiência”. Note-se, no entanto, que são situações bem
específicas, como quando o assunto ‘surge’. Rosa, uma das entrevistadas, considera:
“Eu não acho que é uma coisa que deva ficar contando, não! Sabe? Porque as
pessoas julgam [...] e, por outro lado, eu também não quero ficar ouvindo opinião:
eu fiz. Mas hoje em dia, eu conto pra quem fez: se alguém chegar e me
contar, eu falo. [...] Mas pessoas estranhas, não.”
Valéria, ao me dizer sobre as narrativas do aborto, me disse também a forma como
ela conta sobre a sua história: “Por isso eu até falar de forma... Eu às vezes... Claro que eu não
chego e comento: ‘Ah, fiz um aborto, não-sei-o-que’ [sussurrando].” Em outro momento,
disse:
“Então, eu falo assim: se uma amiga minha tá me confidenciando um episódio, eu
falo, mas não costumo falar, e quando falo, falo de uma forma... normal – sabe? –,
com uma certa entonação de respeito à coisa, que é uma coisa séria. Tipo assim
sabe? ‘morreu o meu avô’. Eu não vou falar rindo ‘morreu o meu avô’. Tem que
falar um episódio que eu vou falar ali, tem toda uma atmosfera né? pra falar
daquilo. [...] porque se trata de tirar uma vida sabe? Eu acredito que qualquer
molécula que se una assim já é vida, por mais que é uma vida que eu acho que não
ela não consegue não contar porque é um livro aberto” (Amanda). As outras entrevistadas, em geral, contaram
para poucas pessoas.
19
sofrer com o aborto se ainda não tiver a formação do sistema nervoso e tudo
direitinho – sabe? –, mas já é uma vida.”
Estas considerações mostram o quanto a interrupção da gestação é um tema que pode
envolver muitos silêncios
21
, dependendo de quem seria o ouvinte, de sentimentos como
“vergonha” e “orgulho”, dependendo quem seria o locutor, do julgamento e das opiniões das
pessoas. É um tema que pode envolver também uma performance específica ao narrar a
experiência, como disse Valéria, por levar em conta o respeito à vida.
Desta forma, as negações por parte de algumas mulheres para me conceder a entrevista,
juntamente com a atitude das duas primeiras entrevistadas (que serão narradas abaixo), me
chamaram atenção para o motivo de algumas mulheres terem concordado em me conceder
uma entrevista sobre aborto provocado. Passei, então, a introduzir esta pergunta em meu
questionário: “porque que você concordou em me dar a entrevista?”.
Após entrevistar a primeira pessoa, Tereza, lhe agradeci e, para a minha surpresa, a
entrevistada me agradeceu também. Com a segunda informante, Elisa, percebi um certo
engajamento político ao me conceder a entrevista, pois fez questão de se posicionar
favoravelmente à legalização do aborto e achou que seria bom eu “ajudar a levantar essa
discussão” com as pessoas falando “sem hipocrisia”.
Assim, após estes dois episódios e as várias tentativas de contato fracassadas, passei a
perguntar para as entrevistadas o motivo de terem aceitado me dar a entrevista. Ou seja, passei
a estranhar o fato de mulheres que interromperam a gestação estarem me concedendo uma
narrativa. Desta forma, é importante pensar no motivo pelo qual os informantes atuam como
tal para os próprios antropólogos: por que que aceita-se dar uma entrevista para um
antropólogo (ou um historiador, ou um jornalista, enfim), narrar histórias de suas vidas?
Dividi os motivos das mulheres que entrevistei em três categorias: (a) as mulheres que
aceitaram para me ajudar; (b) as mulheres que aceitaram por engajamento político; (c) e as
mulheres que aceitaram para ‘se conhecer’. Na primeira, acredito que se enquadram todas as
entrevistadas, sendo que uma delas, Sabrina, associado a esta ajuda, disse-me que concordou
porque “não tem problemas” para falar, mas seus critérios de seleção da concessão da
entrevista dependem do “conteúdo ideológico” da pesquisa, não sendo para “qualquer jornal e
21
O silêncio pode envolver, inclusive, cumprimentos a pessoas relacionadas ao episódio, como conta Mônica
sobre quando cruza, na rua, com uma mulher que ela conheceu na clínica quando realizou o seu segundo aborto:
“Nessa segunda vez, [...] encontrei com uma mulher [na clínica] [...]. De vez em quando eu encontro com ela [na
rua] [...] Mas sabe o que que acontece? Nós não... nos falamos, a gente não tem coragem de falar, fica aquele
olhar meio... desconfortável. [Pesquisadora] - Vocês nem se cumprimentam? [Mônica] [acenando que não]
Mas lá nós conversamos à beça, uma apoiou a outra o tempo todo.”
20
revista” que ela falaria. Além disso, Valéria concordou com a entrevista, principalmente, pelo
pedido da ‘pessoa intermediária’, que, neste caso, é uma pessoa próxima a ela, querida.
Na segunda categoria, além de Elisa, considerei que outra entrevistada também teve um
engajamento político, Débora. Perto de me dar a entrevista, um familiar próximo seu faleceu.
Por isso, disse-lhe que se não quisesse mais me dar a entrevista, estaria tudo bem. A
informante me respondeu dizendo que fazia “questão de dar a entrevista porque o assunto é
importante”, o que demonstra seu engajamento. Débora também disse que manda muitas
cartas para jornais, reclamando do que ela não gosta e, sobre a questão do aborto, mandou
várias cartas.
Quanto à primeira categoria em que dividi os motivos, as mulheres que aceitaram para
‘se conhecer’, duas entrevistadas mencionaram explicitamente esse ‘auto-conhecimento’,
sendo que a fala desta primeira transcrição também menciona uma “troca de idéias”:
“Eu acho que a troca de idéias é muito importante. O estudo da antropologia eu
valorizo muito sabe? porque é o nosso desenvolvimento. [...] Eu acho que é
pra isso que a gente estuda sabe? Pra aprender [...] então, eu concordo em dar a
entrevista justamente por isso, por essa troca de idéias, uma maior compreensão.
[...] No momento que eu estou falando, eu estou refletindo de novo sobre essas
questões. E, depois, se eu puder ter acesso ao que você for escrever em cima do
que eu falei, em cima do que as outras pessoas falaram, isso também vai ser
válido pro meu desenvolvimento entendeu? –, pro meu auto-conhecimento
diante de uma outra interpretação.” (Amanda)
Da mesma forma como alguém, na condição de antropólogo pesquisador, tem seus
interesses no trabalho de campo e/ou nas entrevistas, os entrevistados também têm os deles:
“Porque eu acho bom... essas discussões, assim. [...] Pra, de repente, me entender
mais [...] porque eu falo que sou... que é uma vida, mas depois quis tirar; depois
eu falo que não era uma vida e que a vida... sabe? Mas, assim... acho que, talvez,
pra tentar me entender um pouco mais.” (Rosa)
Rosa, quando acabamos a entrevista, me pediu para saber “os resultados” que eu
estava tendo com a pesquisa, demonstrando muito interesse em saber sobre as experiências de
outras pessoas. Além disso, a informante acrescenta ainda, em sua fala anterior: “Mas não
tenho problema nenhum. Não foi uma coisa que não... Se tivesse sido traumática,
provavelmente... provavelmente não, com certeza eu não falaria”.
Esta última fala de Rosa sugere bastante a maneira como estas entrevistadas lidam com
o assunto, o que sugere que outras possibilidades de lidar com o aborto ficaram excluídas
21
desta dissertação, talvez até por algumas das mulheres que se negaram a dar a entrevista.
Apesar de todas as entrevistadas terem mencionado que passaram, em algum momento desde
que fizeram o aborto, por sentimentos de dor, de tristeza, ou mesmo terem dito que a
experiência foi “traumática”, não se pode negar que outras formas de lidar com a questão
tenham ficado excluídas justamente pelas mulheres que não aceitaram participar da entrevista.
b) As Entrevistas
Contar a experiência pessoal de aborto, apesar de envolver muitos silêncios, envolve,
como pudemos ver, várias situações e condições para as narrativas: a quem se narra, como e
quando
22
. Malinowski (1935) considera que as sentenças devam ser entendidas dentro de um
contexto mais amplo, como gestos, expressões faciais, enfim. Para o autor, a fala deve ser
entendida (e pode ser traduzida) dentro de todo um contexto. Desta forma, buscarei, ao
longo da dissertação, transmitir os gestos, entonações e silêncios associados às falas das
entrevistadas.
O intervalo entre a concessão das entrevistas e os episódios de aborto narrados variaram
de menos de um ano à 25 anos. O aborto narrado mais antigo datou de 1982 e o mais recente,
em janeiro de 2007.
As entrevistas foram realizadas no ano de 2007 e foram individuais, sem a presença de
outras pessoas no ambiente. Todas as entrevistas foram gravadas
23
. Aparentemente, as
entrevistadas não pareceram se constranger com o gravador e aceitaram o seu uso
imediatamente ao meu pedido. As entrevistas duraram entre 45 minutos e duas horas e meia,
dependendo da disponibilidade de tempo das entrevistadas e do término das minhas
perguntas.
Padronizei as entrevistas de modo que todas as entrevistadas respondessem as mesmas
questões, mas estive aberta também para questões surgidas individualmente, de modo que
várias informantes tocaram em questões não levantadas por outras. Eu mesma também
introduzi questões dependendo das reflexões trazidas pelas entrevistadas, ou após alguma
entrevista, como foi o caso da pergunta referida acima “por que que você concordou em dar a
entrevista?”.
22
As entrevistas, além de serem uma dessas situações, podem ainda causar outras situações em que se fala de
aborto. Rosa, por exemplo, disse que seu marido já sabia da história, mas, depois de ter consentido em dar a
entrevista, eles começaram a conversar sobre isso.
23
Com uma entrevista (a de Débora), contudo, tive um problema com uma fita, não podendo gravar a parte final
da entrevista. Optei por fazer anotações no momento, em presença da entrevistada.
22
Busquei explorar as concepções sobre “aborto”, “maternidade” e “feto” das
entrevistadas e pedi, a princípio, que narrassem a experiência da interrupção. Visei saber se a
entrevistada fazia uso de algum método contraceptivo, se houve alguma mudança com relação
ao uso de contracepção posteriormente ao ocorrido, se fez algum exame de gravidez e o que
sentiu, para quem contou sobre a gravidez e o aborto, para quem costuma falar hoje em dia, o
que a levou a optar pelo aborto, se em algum momento teve dúvidas quanto a fazê-lo, como
ela avalia os riscos do método utilizado para a saúde, como foi o tratamento dos profissionais
envolvidos, o que ela sentiu, se costuma se lembrar do aborto e em que situações, e como ela
avalia a relação entre a religião dela, caso tenha, e o aborto.
Reservei uma outra parte da entrevista para perguntas mais gerais sobre a legislação,
após expor a situação penal do aborto, visando saber porque que ela acha que é o aborto crime
no Brasil hoje em dia; se acha que o aborto deve ser descriminalizado/legalizado ou
criminalizado; e a quem deve ser atribuída a decisão pelo aborto. Também busquei mostrar os
principais argumentos dos lados centrais da discussão – o direito de vida do feto, por um lado,
e a questão da saúde e da autonomia das mulheres, por outro a fim de saber o que achavam
destes argumentos, e se eles deviam ser levados em conta na discussão.
Esta divisão da entrevista não se deu como eu esperava porque, em vários momentos,
algumas entrevistadas começaram a falar espontaneamente sobre o que achavam da situação
penal do aborto, principalmente quando não concordavam com ela, como foi o caso de Elisa.
Além disso, ao falarem sobre essa situação mais geral da interrupção de gravidez, fizeram
referência, em vários momentos, às suas próprias experiências. Contudo, procurei deixar para
o final da entrevista a exposição e a pergunta sobre o que achavam dos principais argumentos
presentes nessa discussão.
Esta divisão da entrevista não se deu como eu esperava também porque a forma como
foram conduzidas variou bastante de acordo com a disposição das entrevistadas em narrar a
sua história, pela forma como elas narravam, pelo modo como reelaboraram a experiência
vivida, o tempo disponível para isso, e mesmo pelas minhas próprias intervenções. Algumas
vezes achei que uma pergunta mais geral’ cabia em um determinado momento da entrevista,
por exemplo.
Busquei manter-me neutra nas entrevistas, principalmente, por causa do tema polêmico.
Obviamente, diversos fatores influenciam, como as expressões faciais. No entanto, procurei a
imparcialidade. Nesta situação, a inversão entre papéis de pesquisador e pesquisado foi
desconcertante para mim, quando algumas pediram minha opinião com um “né?” ou um “não
23
é?” mais enfático, como em questões como a legalização do aborto (que eu não queria,
durante as entrevistas, concordar nem discordar).
Entendo as entrevistas como um momento de reconstrução da memória do aborto, na
medida em que o aborto vivido pode ser revivido e ressignificado durante as narrativas, bem
como em outros momentos que as informantes se disponham a isso. Com relação a essa
questão, é preciso levar em conta que a memória, como disse Pollak (1992), é seletiva. Rosa,
me respondendo à pergunta sobre se ela pensava em ter filho com o namorado de cuja
gravidez resultou em aborto, demonstra bem este fato da memória ser seletiva
24
:
“Eu tenho uma memória... tenho uma memória péssima, horrorosa. Sempre
tive, pra tudo. Mas acho que, de repente, é porque coisas que eu quero, eu lembro
rapidinho. [...] Eu acho que não. Eu acho que na época, talvez sim, porque quando
você com uma pessoa, você pensa em né? casar, ter filho e... construir uma
vida, é... uma família. Mas, agora, hoje falando, que eu com outra pessoa,
com outros planos, de tudo diferente, eu acho que eu falaria que não. Mas
provavelmente sim.”
Pollak (1992) afirma que a memória, individual ou coletiva, é organizada em função das
preocupações pessoais e políticas do momento, o que mostra o quanto que a memória é um
fenômeno construído
25
. Desta forma, entendo as entrevistas realizadas como um desses
momentos de reconstrução da memória dos episódios de aborto narrados, de modo que as
entrevistas não captaram a situação em si do aborto vivida, mas a reconstrução destas
situações no momento da entrevista, em minha presença, ou seja, em interação com a
entrevistadora.
Pollak (1989: 13) afirma também que as histórias de vida “devem ser consideradas
como instrumentos de reconstrução da identidade, e não apenas como relatos factuais”. Sendo
reconstruída posteriormente, as histórias de vida ordenam “acontecimentos que balizaram
uma existência” (Pollak, 1989: 13). Velho (1994) também faz considerações sobre a memória
e a identidade. O autor considera que, nas sociedades individualistas, a noção de biografia é
fundamental, sendo que as experiências do indivíduo dão significado à sua singularidade.
24
Rosa, tendo feito o aborto mais ou menos cinco anos antes da entrevista, não soube me precisar direito
quando realizou o seu, além de não lembrar de algumas coisas. Ela associa sua confusão dos fatos com não ter
uma memória como pessoas que ficaram muito mal, lembrando do aborto para o resto da vida: “Agora eu
também posso estar confundindo [...] Por isso que eu te falando, eu não... não... não tenho essa me... esse
registro de pessoas que, por exemplo... de depoimentos que eu li de quem fez aborto que realmente fica...
ficou muito mal, que foi... que lembra disso pro resto da vida”.
25
De forma semelhante, Velho (1994) afirma que o fato de a memória ser seletiva pode ser explicado, em parte,
pela dinâmica dos projetos e da construção de identidade, que leva as referências do passado a um processo
permanente de des e reconstrução.
24
Sendo o “projeto” a antecipação da biografia e da memória do sujeito, organizando meios
para se atingir determinados fins, Velho afirma que “o projeto e a memória associam-se e
articulam-se ao dar significado à vida e às ações dos indivíduos, em outros termos, à própria
identidade” (1994: 101).
Percebo as entrevistas igualmente como um momento de reelaboração da experiência
vivida, havendo uma construção de si ao narrar a experiência do aborto, já que as informantes
estiveram trabalhando com as suas memórias. A reconstrução da identidade, ao narrar a
experiência do aborto, ficou bastante evidente quando algumas entrevistadas se narraram
como uma pessoa de classe média, instruída e em condições de fazer um aborto seguro,
contrastando com mulheres que não tiveram “educação” ou “cultura” para saber prevenir a
gravidez, e que não têm condições para pagar um aborto seguro, fazendo o aborto em
“açougueiros” uma identidade, no caso, de classe, construída contrastivamente às classes
menos favorecidas. Também houve, em algumas entrevistas, delimitações de fronteiras entre
o seu ato praticado e outros atos praticados por outras mulheres, como abortos repetitivos,
abortos tardios e o abandono, levando a demarcações sobre o que é considerado moralmente
correto de se fazer com relação à reprodução (como será visto no segundo e no terceiro
capítulos), e, conseqüentemente, demarcações sobre as suas identidades.
c) As Entrevistadas
26
Breve Caracterização Sócio-Econômica
Será feita, abaixo, uma breve caracterização sócio-econômica das entrevistadas como
parte de sua apresentação. Todas as entrevistadas moravam, no momento da entrevista, na
cidade do Rio de Janeiro. As idades delas variaram entre 25 e 58 anos (quatro na faixa dos 20,
uma na faixa dos 30, duas na faixa dos 40 e uma na faixa dos 50 anos), e, na época dos
abortos, entre 17 e 36 anos. Todas elas se declararam pertencentes à classe média nesses dois
momentos (na época da entrevista e do aborto), variando de classe média baixa à alta.
Todas as informantes tiveram condições para levantar recursos para o pagamento de
seus abortos, mesmo que recorrendo à mãe, ao pai, ao sogros, ou mesmo à cunhada. Quatro
das entrevistadas (Rosa, Valéria, Amanda e Sabrina) dividiram as despesas entre seus pais e
os respectivos companheiros.
26
Para uma maior apresentação das histórias individuais das entrevistadas, ver anexo.
25
Todas as entrevistadas passaram por algum curso superior. A maioria terminou o
curso; apenas três não o concluíram ainda: duas ainda estão cursando a faculdade (Valéria e
Amanda) e uma trancou (Rosa), mas pretende voltar aos estudos, mudando de curso. Estas
últimas três estão, atualmente, na faixa dos 20 anos. Além disso, todas elas exercem,
atualmente, algum tipo de atividade remunerada.
Estes dados foram apresentados pela influência que eles têm na literatura sobre o aborto.
Não objetivo, aqui, no entanto, enquadrar as entrevistadas em ‘perfis sócio-econômicos’, mas
expor algumas das caracterizações das entrevistadas que encontram peso na literatura e na
discussão sobre o aborto com o objetivo apenas de apresentá-las. Algumas destas
caracterizações serão referidas ao longo da dissertação, como o fato delas pertencerem à
classe média e a escolaridade delas.
Projetos de Maternidade
As informantes realizaram um (Rosa, Valéria, Amanda, Sabrina) ou dois abortos
(Tereza, Mônica, Débora, Elisa). Apenas uma entrevistada duvidou se queria ser mãe algum
dia (Débora). Todas as outras, ou já tiveram filhos (Elisa e Mônica), ou ainda queriam ter.
Chama atenção também a quantidade de filhos que querem ter ou queriam ter tido. Amanda
disse que queria ter 6, mas agora está “caindo na real”; Rosa quer 3 ou 4 filhos; Sabrina
também falou querer 3 ou 4, depois disse que no mínimo 2; Elisa, que teve 3 filhos, disse que,
desde menina, dizia que queria ter 5; e Mônica, que tem 2, disse que gostaria de ter tido 10
filhos.
Débora foi a única que duvidou se gostaria de ter filhos. Ao longo da entrevista, ela, aos
42 anos, se questionava muito sobre não querer ter filhos, querendo explicar quais seriam os
motivos para isso, buscando explicações na sua geração (com base na sua experiência e na de
seus amigos da mesma idade) e recorrendo à explicações familiares, além de individuais
27
.
Interessante notar que Débora, mesmo em dúvida quanto a se teria filhos ainda, pensou em
ter filho com um casal de homens homossexuais amigo seu e também pensou em adotar
27
“A gente ficou entre duas coisas. Tem aquele modelo das nossas mães - entendeu? - que era... dona de casa?
[...] Mas tinha aquele modelo e a gente veio... e depois tinha as mulé da década de setenta. A gente veio num
modelo muito diferente. [...] Eu fico tentando entender da onde veio isso, d'aonde vem essa relação tão difícil
com o fato de ter filho, sabe? [...] [Pesquisadora] Voacha que foi uma quebra com a geração anterior?
[Débora] De certa forma, eu acho! Sabia? Mas é em busca de algumas outras coisas [...] A gente se deu ao
direito de experimentar muita coisa. A gente chegou aos quarenta e dois, a gente tem uma vida gigantesca. [Em
outro momento, justificando o seu aborto, Débora disse:] Eu não sabia se queria ter um filho. Até hoje, eu não
sei porque... sei [...] a gente sempre fala que o melhor método anti... contraceptivo foi ter uma avó, uma mãe
que fala que a pior experiência do mundo foi ter tido filho [...]. Eu nunca quis ter filho. Nunca foi uma coisa que
tivesse uma... não tinha um romantismo - sabe? - não tinha uma idéia que era preciso me... me... ter filho, não era
uma coisa, assim, que eu queria.”
26
uma menina que ela conhece, o que demonstra que a possibilidade da maternidade não está
longe dos seus planos. Além disso, quando lhe perguntei se costumava pensar nos abortos que
ela fez, ela me respondeu:
“Não, do aborto em si, não! Não, que eu me... A coisa do filho, assim. Hoje em
dia, menos. Tipo, [...] da coisa do questionamento: você vai chegando nos
quarenta, você se pergunta: eu não tive filho porque não quis, ou ainda quero ter –
sabe? Porque você vai ficando velho e você vai começando ver, será que
você quer, será que você não quer? Você começa a pensar essas coisas, assim. Eu
acho que a idade vai trazendo certas questões – entendeu?”
Débora também conta também que teve uma irmã vários anos mais nova do que ela e
que esta experiência supriu um pouco o seu “lado maternal” porque ela cuidava da irmã. Estas
considerações demonstram que o “lado maternal”, mesmo para quem não quer, ou não sabe se
quer ter filho, pode não estar longe da vida das mulheres, o que remete à questão da
importância atribuída socialmente à maternidade.
Religiosidade
Várias das informantes me disseram não ter, atualmente, uma religião definida, sendo
sua religião “individual”. A fala de Mônica demonstra bem esta questão: “Acho que a minha
religião é uma... é muito individual, que eu acabei formando de tantas buscas, de tantas coisas.
Mas eu tenho uma religiosa bem... bem intensa mesmo”. Apesar disso, nenhuma se definiu
atualmente como cética. Chama atenção também o fato de várias entrevistadas serem ou
terem se definido como tendo crenças “espíritas” (Tereza, Elisa, Valéria, Amanda, Débora).
Este fato é importante, que Machado (2006), pesquisando segmentos da classe média e da
elite política do Rio de Janeiro
28
, constatou que uma opinião mais favorável ao aborto foi
observada na seguinte ordem: espíritas, católicos não praticantes, católicos praticantes,
evangélicos
29
. Ou seja, dentre as religiões desta pesquisa de Machado, os espíritas pareceram
os mais “liberais”.
Com relação à religiosidade na época dos abortos, uma das minhas informantes era
“cética”, ceticismo este vinculado a uma militância marxista (Mônica), e a outra tinha
“questionamentos céticos” (Tereza). Duas delas separaram totalmente seu episódio de aborto
da sua religiosidade (Elisa e Débora), me dizendo que não viam relação alguma. As que
28
Seu material de pesquisa utiliza entrevistas com universitários e profissionais nas áreas de saúde, política e
comunicação.
29
O mesmo se deu, nessa pesquisa, com relação ao grau de aceitação relativa à regulamentação civil entre
homossexuais.
27
falaram que não separaram, ou lidaram com a religiosidade com culpa em algum momento de
suas vidas (Tereza, Valéria e Amanda
30
); ou colocaram suas crenças ‘a seu favor’, na forma
de rezas/orações, por exemplo (Valéria, Mônica, Sabrina e Amanda); ou reinterpretaram as
suas crenças religiosas (Tereza)
31
.
Considerar o “subjetivismo” como um dos valores estruturantes da “cosmologia
moderna” (Duarte, Jabor, Gomes e Luna, 2006) pode explicar tanto o processo de escolha da
religião e o fluxo religioso (o que fica evidente quanto a não vinculação das entrevistadas a
uma religião específica), quanto na “gestão da vida privada relativamente independente dos
ditames religiosos”, em que a área da sexualidade e da reprodução encontram-se bastante
sensíveis (Duarte et al., 2006:19). Pensar no subjetivismo como parte integrante da
religiosidade moderna é importante para entender como as entrevistadas procuraram
justificar-se moralmente em seus episódios de aborto, tanto separando totalmente estas duas
esferas das suas vidas, quanto reelaborando as suas crenças.
As entrevistadas demarcaram as fronteiras da sua religião neste campo do aborto com
relação às suas decisões individuais, ou demonstraram formas de articulação entre o aborto e
sua religiosidade, não relacionada apenas à culpa. E, com relação à questão da legislação
fizeram questão de separar completamente estas duas esferas, inclusive Tereza, que não é
favorável que a legalização do aborto seja feita atualmente, e que acredita que mesmo antes
da concepção uma vida, que, para ela, a vida não depende da matéria. Ela disse que
não sabe se a proibição do aborto deveria levar em conta essa vida:
“[...] eu acho que isso é uma questão bem individual. [...] Eu não acho que as
pessoas tenham que pensar assim, ou levar isso em consideração. Eu acho que [...]
a questão legal da criminalização [...] tem que passar mais por uma questão de
consciência social mesmo do que a gente vive aqui, o que são essas conseqüências
pra o indivíduo em si que está passando por isso, e pra sociedade como um
todo[...]”
Desta forma, Tereza afasta o debate sobre o aborto do plano espiritual, assim como
todas as outras acreditam que a regulamentação legal do aborto não deve passar por questões
religiosas o que não quer dizer que o aspecto religioso esteja totalmente separado de suas
30
Embora Amanda problematize essa culpa. A informante, falando sobre as esferas espiritual e material, disse
que está “sempre na dualidade, lidando com uma realidade ou outra” e, no caso do aborto, tendeu para o lado
material”. A sua culpa, no caso, é apenas “espiritual”.
31
Não desenvolverei estas questões aqui por falta de espaço. Sobre a religiosidade das entrevistadas, ver a
apresentação individual delas em anexo.
28
crenças e experiências, de forma que menções à esfera do religioso aparecerão ao longo do
texto, embora, nesta dissertação, este aspecto não receba uma atenção mais aprofundada.
Opinião com Relação à Legalização
Das 8 entrevistadas, 7 delas se posicionaram favoravelmente com relação à legalização
do aborto. Apenas Tereza não é favorável que a legalização do aborto seja feita atualmente,
mas, no entanto, ela acredita que a legalização seria um ideal a ser alcançado. Enquanto esse
ideal não é atingido, o aborto poderia contar, segundo a entrevistada, com os permissivos
legais já existentes e também poderia ser permitido no caso de anencefalia fetal.
Sobre a opinião das pessoas com relação ao aborto, têm-se constatado, em pesquisas,
uma maior favorabilidade à prática no caso de risco de vida para a mulher, gravidez resultado
de estupro e quando o feto não tem viabilidade extra-uterina. Osis et al. (1994), em artigo
sobre a opinião das mulheres sobre as circunstâncias em que os hospitais deveriam fazer
abortos, encontraram que as maiores proporções de opiniões favoráveis foram nas
circunstâncias de risco de vida para a mulher, estupro e -formação fetal. Faúndes et al.
(2004), em pesquisa sobre o conhecimento, a opinião e a conduta de ginecologistas e obstetras
sobre o aborto provocado, encontraram que a maioria dos entrevistados concordou que este
deveria ser permitido nos casos de risco de vida da gestante (79,3%), -formação fetal
(77,0%) e gravidez fruto de estupro (76,6%), sendo que apenas 9,9% concordaram com a
permissão legal ao aborto em qualquer circunstância. Abramovay, Castro e Silva (2004),
tratando da opinião dos atores da comunidade escolar (alunos, pais e professores) sobre o
aborto, constataram uma maior aceitação deste nas justificativas de estupro, risco de vida da
mãe e quando há possibilidades da criança nascer com defeito ou doença em relação às
justificativas de quando a mãe não quer ter o filho ou quando o pai não quer assumi-lo
32
.
Esses dados demonstram uma maior aceitação legal do aborto nos dois permissivos legais
(risco de vida e estupro) e nos casos em que é feita a autorização judicial (má-formação fetal),
exatamente os casos em que Tereza, a única entrevistada contrária à legalização do aborto
(caso seja feita atualmente), apontou como exceções à proibição.
32
As autoras, que tratam de uma pesquisa mais geral sobre juventudes e sexualidade em várias capitais
brasileiras, além do Distrito Federal, atentam ainda para diferenças regionais e de gênero. Quanto a isso, convém
notar, ainda, que, dentre essas três primeiras justificativas apresentadas (risco de vida, estupro e -formação
fetal), o Rio de Janeiro se destaca pela opinião mais favorável entre os jovens. Além disso, pelos dados
apresentados regionalmente pelas autoras, entre os jovens, a opinião feminina se destaca, em geral, pela maior
favorabilidade com relação a essas três primeiras justificativas, e, inversamente, com relação à justificativa de a
mulher não querer o filho, a opinião masculina é, em geral, a mais favorável.
29
De acordo com algumas pesquisas que serão apresentadas abaixo, pode-se constatar que
a opinião das pessoas sobre o aborto tende a variar sensivelmente com relação à escolaridade,
à renda, à religião e aos aspectos da vida reprodutiva (número de filhos, número de abortos,
enfim). Com relação à religião, como foi dito, Machado (2006), pesquisando segmentos da
classe média e da elite política do Rio de Janeiro, constatou uma opinião mais favorável ao
aborto observada na seguinte ordem: espíritas, católicos não praticantes, católicos praticantes,
evangélicos. Ou seja, enquanto os espíritas se mostraram mais ‘liberais’, os evangélicos se
mostraram menos, havendo, portanto, uma variação conforme a religião.
com relação à renda e ao grau de instrução, Mariz (1998), em estudo sobre a opinião
dos evangélicos sobre o aborto, observa que estes fatores se mostraram muito importantes
33
.
Berquó e Lago (2003) em pesquisa sobre o acompanhamento do debate e a opinião sobre o
aborto, não encontraram influência da religião e, assim como Mariz, também constataram a
importância da variável “escolaridade” na opinião mais favorável ao aborto.
Osis et al. (1994) encontraram diversas correlações entre dados sócio-econômicos e da
vida reprodutiva das mulheres entrevistadas e as circunstâncias em que estas achavam que os
hospitais deveriam fazer abortos. Osis et al. encontraram uma gradação na opinião favorável
ao aborto: encontrou-se mais aceitação entre as mulheres que já tinham interrompido a
gravidez, seguidas por aquelas que não declararam terem realizado a interrupção, mas
tomaram chá ou remédio para “descer a menstruação”, e pelas que somente pensaram em
abortar. Opiniões mais favoráveis ao abortamento na maioria das situações apresentadas na
pesquisa de Osis et al. estiveram relacionadas ao estado civil (solteira) e a um grau de
instrução mais alto das entrevistadas
34
.
As minhas informantes, que foram, em geral, favoráveis à legalização do aborto, tinham
um grau de escolaridade alto (todas cursaram, ao menos incompletamente, a graduação), o
que, de acordo com a pesquisa de Osis et al. (1994), Berquó e Lago (2003), e Mariz (1998),
está relacionado uma maior aceitação à prática, e também fizeram, ao menos, um aborto, o
que, de acordo com a pesquisa de Osis et al. (1994), mostra, novamente, uma maior aceitação.
33
Mariz (1998), em estudo sobre a opinião dos evangélicos sobre o aborto, também observa que, apesar de haver
uma maioria que aceita o aborto em apenas alguns casos, os evangélicos são, em geral, contrários ao aborto.
Contudo, a autora diz que a religião não parece ser o aspecto mais importante para a opinião deles, já que fatores
como a renda e o grau de instrução se mostraram muito importantes. No caso de estupro, por exemplo, 77 % dos
evangélicos rejeitaram o aborto, sendo que os entrevistados que aceitaram o aborto em caso de estupro são, em
geral, os que possuem maior instrução e renda. Desta forma, Mariz chama atenção para outras variáveis além da
religião.
34
Com relação à situação apresentada de a mulher não desejar ter o filho, encontrou-se maior favorabilidade no
grupo das entrevistadas com nível educacional superior, no grupo das solteiras e no das mulheres que tinham um
filho (Osis et al., 1994).
30
Além disso, como foi dito, algumas eram espíritas, situação que a pesquisa de Machado
(2006) observou uma maior favorabilidade ao aborto, comparada a outras religiões, e se
declararam como pertencentes à classe média, o que Mariz (1998) mostrou ser uma variável
importante, ao menos entre os evangélicos
35
.
Estes dados quantitativos podem ser relacionados às caracterizações das entrevistadas,
que a maioria delas é favorável à legalização do aborto, e é interessante mostrar
semelhanças das mulheres entrevistadas com relação às pesquisas citadas, contudo, não estou
trabalhando com esta dimensão quantitativa, que esta dissertação visa captar, através de
entrevistas em profundidade, as experiências de aborto reelaboradas pelas mulheres que o
praticaram e suas opiniões sobre a prática. Trabalho, portanto, num plano qualitativo,
buscando as vivências destas mulheres e, através delas, suas respectivas opiniões com relação
à legislação e à moralidade da prática do aborto. Dessa forma, convém lembrar que não viso
generalizar a opinião das mulheres com relação ao aborto provocado, mas fazer uma análise
em profundidade.
35
Berquó e Lago (2003) também constataram um maior acompanhamento do debate sobre o aborto entre as
pessoas com maior renda, além das mulheres e das pessoas com maior escolaridade.
31
CAPÍTULO II
A DECISÃO
2.1) A decisão
Gostaria de chamar atenção, neste capítulo, para a decisão das entrevistadas de
interromper a gestação. No primeiro e no segundo tópicos, focarei no motivo pelo qual estas
mulheres decidiram pela interrupção da gestação, e, no terceiro tópico, tratarei das suas
opiniões sobre quem deve decidir ou não por fazer o aborto.
Moore (1978) afirma que a lei deve ser vista como um processo ativo e não como algo
fixo: existing orders are endlessly vulnerable to being unmade, remade, and transformed,
and that even maintaining and reproducing themselves, staying as they are, should be seen as
a process (1978 :06). A regulamentação formal, para a autora, não controla todos os
comportamentos em uma sociedade. Ainda que as instituições legais possam contar com um
certo monopólio sobre o uso legítimo da força, elas não têm o monopólio sobre outros tipos
de sanções.
Moore trabalha com o conceito de “campos sociais semi-autônomos” para dar conta
dessas questões. Dessa forma, ao mesmo tempo que um corpo social não pode ser
completamente autônomo em uma política moderna (modern polity), encontrar uma
dominação absoluta também seria bastante difícil. Entre o corpo político e o indivíduo
existem vários campos de organização social que os indivíduos fazem parte e que têm suas
próprias regras, costumes e também seus próprios meios de coerção, de modo que, ao legislar,
os governos o fazem sobre esses campos sociais (que já tem regras e costumes). Assim, a lei é
apenas uma parte do todo complexo, existindo dois tipos de regras: rules that were
consciously made by legislatures and courts and other formal agencies to produce certain
intended effects, and rules that could be said to have evolved ‘spontaneously’ out of social
life.” (1978: 80).
Dessa forma, é bom lembrar que a lei que proíbe o aborto convive com outras normas
sociais. Conforme a citação de Ardaillon (1998) já referida anteriormente, se, apesar da
ilegalidade, as mulheres recorrem ao aborto, é porque elas têm alguma razão mais forte para
isso. Assim, normas de comportamento mais fortes do que a lei proibitiva ao aborto que
32
fazem com que cerca de 1 milhão de mulheres recorram a ele anualmente, como apontam as
estimativas.
Obviamente, além da legislação, há também outras normas de comportamento que
impelem as mulheres a não recorrerem ao aborto, como a valorização da vida fetal e da
maternidade. Quanto à maternidade, vários estudos apontam para a sua valorização, e mesmo
para a sua sacralização na sociedade brasileira (Aragão, 1983; Dauster, 1983). Aragão (1983),
ao falar do caráter central da categoria mãe, afirma que, no mundo mediterrâneo e no Brasil,
a idéia de sacralidade da mãe. Dauster (1983), que analisa a representação da “figueira do
inferno” das camadas populares, utilizando-se das narrativas blicas, também aponta em
direção ao caráter sagrado da maternidade.
Estudos apontam ainda para a importância da maternidade na própria constituição de
pessoa da mulher. A mesma autora citada acima, Dauster (1983), também afirma que as
explicações sobre as representações da “figueira do inferno”
1
no grupo pesquisado por ela
(trinta e cinco mulheres moradoras de favelas na Zona Sul do Rio de Janeiro) demonstram “a
construção de uma identidade para a mulher infértil que se ampara em concepções sobre a
natureza que simbolicamente não tem vida, tão ruim que nem fruto dá e que não produz como
pessoa” (1983 :21, grifos da autora)
2
.
Realmente, das 8 mulheres que eu entrevistei, 7 ou já eram mães ou afirmaram
quererem tornar-se mães algum dia. Rosa fala, inclusive, que não “a menor graça em
passar pela vida sem ter filho”, e Tereza ressaltou a importância da maternidade para a mulher
que vai ser mãe:
“[...] é algo muito importante na vida de uma mulher. Não que seja necessário e
tenha que acontecer, mas é uma... uma realização importante pra a mulher que vai
ser mãe [...], uma experiência de vida muito importante, essencial da... da... do ser
mulher, assim.”
Essa valorização da maternidade faz com que a interrupção da gestação possa envolver
questões e sentimentos relacionados à maternidade. Mônica comenta como sua experiência
1
“Esta metáfora refere-se implicitamente a uma ‘natureza’ da mulher e, explicitamente, simboliza a esterilidade
feminina no interior do casamento, constituindo-se como a imagem da mulher não-virgem, casada que tem a
prática sexual e não realiza a reprodução” (Dauster, 1983: 21).
2
Uma das minhas informantes, Débora, analisa o comportamento de uma amiga sua de querer ter filho mesmo
sem ter “o menor saco” (para o filho) refletindo sobre esse ideal da mulher ser “completa” somente com filho:
“Ela acha que toda mulher tem que ter filho. O modelo pra ela de mulher é uma mulher que, se ela não tem filho,
ela... é... não é completa, tá faltando alguma coisa. [...] Ela tinha um ideal de família: o ideal dela era uma família
com um filho. [...] Não que ela gostasse, ela achou que aquilo cabia. [...] Pra ela ser uma mulher séria, ela tinha
que ter um filho. Entendeu? Eu acho que muita mulher se sente nessa obrigação de ter um filho”.
33
foi dolorosa: “Pô, a coisa que eu mais queria na minha vida era s... ficar grávida. Quando eu
fiquei, tive que interromper, foi... foi meio dramático mesmo”.
Além da maternidade, a questão da vida, que também é bastante valorizada, pode trazer
também uma série de dilemas e questionamentos. Tereza, por exemplo, disse que fazer o
aborto foi “traumático” para ela pela dúvida que ficou se estava “matando uma vida” ou não.
Como foi visto, têm-se argumentado contrariamente ao aborto com base na questão da vida.
Dessa forma, essa questão pode tornar a interrupção da gestação “traumática”, como o foi
para Tereza. Pode também exigir uma performance específica ao narrar a experiência, como
foi visto anteriormente no caso de Valéria.
Além disso, Rosa, me contando sobre uma mensagem eletrônica que ela recebeu
algumas vezes sobre uma visão do aborto da perspectiva do feto abortado, diz como ela se
emociona com relação à “vida”:
“Da última vez, eu nem tive coragem de ler porque eu fico bem comovida com
isso. [...] Choro e tudo [quando a mensagem]. [Pesquisadora:] Por causa de
você? [Rosa] Não, pela vida, seja que filho foi, de quem foi. Eu acho triste,
assim – sabe?
Ademais, Amanda, como será visto no último capítulo, fala que o aborto não poderia ser
banalizado porque seria banalizar a vida. Esses casos demonstram como a questão da vida
pode estar presente nas experiências e concepções sobre o aborto.
Mas, se fazer um aborto pode implicar estar num dilema sobre se o ato consiste em
matar uma vida ou não, e pode implicar também estar diante do dilema da própria
maternidade, que, assim como a vida, é bastante valorizada, pode haver motivos maiores que
impelem algumas mulheres à decisão, inclusive considerações sobre a própria maternidade e a
vida. No caso da maternidade, se ela é valorizada, por outro lado, ela também tem um
‘momento certo’ e ‘circunstâncias certas’ para acontecer
3
. Ter rendimentos financeiros
‘suficientes’ para a criação de uma criança, estar dentro de uma estrutura familiar, a
valorização da “vida individual” e ter ‘vontade’ são alguns dos motivos apontados pelas
entrevistadas. Valéria, por exemplo, uma das mulheres que entrevistei, demonstra como ser
mãe, que é uma coisa que ela quer, tem um momento certo para a sua vida: “Eu quero ser mãe
assim – sabe? – uma hora na minha vida. Mas antes disso eu quero ir pra Europa...”.
3
O debate sobre a reprodução assistida, por exemplo, demonstra isso com várias discussões, como a polêmica
sobre a possibilidade de mulheres que entraram na menopausa gestarem filhos e a sobre o risco de "incesto"
com a gestação substituta, com a possibilidade, dentre outras, de a mãe gestar um filho para seu próprio filho e
sua nora (Ver Luna, 2001, por exemplo).
34
Além da maternidade ter um ‘momento certo’ para acontecer, fazer um filho também
envolve considerações sobre ‘trazer uma criança ao mundo’, de forma que fazer um aborto
pode envolver também muitas considerações morais em cima da própria ‘vida’: como criar
um filho em condições ‘irresponsáveis’? Ou: como ‘dar’ um filho tendo desenvolvido por
ele um ‘sentimento materno’?
Ademais, a própria valorização da ideologia individualista, no caso do aborto, é
acionada, de modo que, para haver a reprodução, para ‘ser mãe’, é preciso ter ‘vontade’.
Débora, por exemplo, disse: “Eu acho que [ter filho] é uma coisa que você sente: ah, eu quero
ter um filho. Aí, eu vou e tenho um filho. Agora, se você não quer ter, pra que que você vai
ter? Olhar pr’aquele filho e falar: ‘nossa, pra que que eu te tive?’?”. Neste caso, é importante
considerar que a opção pelo aborto pode resultar não apenas da valorização da ideologia
individualista, mas da negação de uma maternidade involuntária, de modo que optar pelo
aborto não implica negar apenas a maternidade, mas negar um certo tipo de ‘cuidar’ em que a
‘vontade’ não existe.
Assim, a prática do aborto pode envolver uma série de dilemas, que envolvem
concepções sobre a ‘maternidade irresponsável’, a maternidade involuntária, o ‘abandono’ de
crianças e as relações parentais, por exemplo.
Tratarei, nos dois primeiros tópicos deste capítulo, sobre os motivos que estas
entrevistadas acionaram para interromper a gestação. Dividi minha análise em três motivos
básicos acionados pelas entrevistadas: valores individualistas, relações parentais, e um ideal
de maternidade que leve em conta um certo tipo de ‘cuidar’ do filho, envolvendo uma critica
ao ‘abandono’
4
. No entanto, apresentarei, primeiramente, os motivos das entrevistadas
individualmente, que, desta forma, podem envolver as circunstâncias pessoais em que se
encontravam, além de, desta forma, as razões que elas tiveram não ficarem isoladas umas das
outras, mas poderem ser combinadas dentro da mesma história a que pertencem. Por outro
lado, para não ficar muito longo, narrei-os o mais breve possível, correndo o risco, no entanto,
de reduzir as narrativas. Narrativas mais longas das experiências das entrevistadas encontram-
se em anexo.
Tereza, 36 anos. Optou por dois abortos, aos 18 e 19 anos (morando com seus pais),
porque sempre priorizou sua “vida individual” e “profissional”, além de não querer “ser mãe
4
Este ‘abandono’ pode ser tanto o ato de entregar a criança para outra pessoa criar, quanto um ‘não cuidar’ da
criança da forma como a entrevistada acredita que uma criança deve ser criada, como, por exemplo, “largar na
creche” (Mônica).
35
com aquele pai”. O namorado não queria a interrupção e, da segunda vez, contou para os seus
pais. Estes tentaram convencê-la a ter o filho, oferecendo-se para cuidar, mas ela “nunca quis
colocar um filho no mundo numa situação irresponsável” de “não ser responsável por aquele
ser que viria”, o que ela definiu por “ser mãe e não ser mãe”.
Elisa, 58 anos. O motivo do seu primeiro aborto foi que tinha se separado e “seria uma
sacanagem colocar uma criança no mundo nessa situação”. O segundo, como estava brigada
com o namorado (briga que levou, logo depois, ao término do namoro), optou novamente pelo
aborto porque “não iria ter um filho já sem pai”. Ela diz que “tinha que ter feito” o aborto.
Rosa, 25 anos. O motivo de seu aborto, aos 20 anos (morando com seus pais), foi que
“não queria ter filho naquele momento”, não se “sentia preparada” e “não tinha dinheiro”,
além de estar brigada com o namorado: “eu queria alguma coisa com ele, mas não nesse ponto
que... de ter filho e tudo o mais.”
Mônica, 44 anos. O primeiro aborto ocorreu aos 19 anos (morando com seus pais). Ela
trabalhava e fazia curso pré-vestibular e de inglês. O namorado tinha acabado de entrar para a
faculdade e não trabalhava. Disse que “não tinha apoio”. O segundo, aos 29 anos, casada
com outro homem, com quem tinha um filho, não tinham “disponibilidade física” para
terem outro. Os dois tinham um comércio e trabalhavam de 5 horas da manhã às 11 horas da
noite e ela não “sentido” em ter filho e “não ver crescer” – ela quer “curtir” o filho porque
gosta “de ver crescer”. Nos dois episódios, se tivesse alguém que a apoiasse e falasse “eu
seguro”, ela não teria feito o aborto.
Valéria, 28 anos. Engravidou aos 17 anos, namorando (morava com sua mãe, cursava a
última série do ensino médio e estudava para o vestibular). Disse que não teria “estrutura
psicológica” e “financeira”, além de ter optado pelo aborto por “egoísmo” porque quer viajar
e fazer o que gosta para viver (trabalhar com arte). Além disso, se tivesse tido o filho, “ia ser
infeliz” e “ia passar infelicidade para a criança”.
Amanda, 25 anos. Aos 25 anos (morando com sua mãe), teve uma relação “muito ligada
ao tesão”, “ao sexo”, não desenvolvendo “uma amizade” com esse parceiro sexual. Além
disso, quando ela descobriu a gravidez, eles não estavam mais se encontrando. Por isso, ela
disse que não fazia sentido ter um filho com essa pessoa: “não tinha sentido eu gerar uma vida
36
sem amor”. Além disso, Amanda titubeou em um momento, mas sua mãe lhe disse que não
gostaria de ser “vó-mãe” e ela, que iria precisar de seu apoio, disse que não quis atrapalhar o
“momento de autonomia” que sua mãe estava vivendo.
Débora, 42 anos. Disse que, das duas vezes que engravidou, casada, não sabia se queria
ter o filho e não se “sentia preparada”. Além disso, também disse que nunca achou que um
filho a “realizaria”. A informante também conta que sua avó e sua mãe falavam que “a pior
experiência do mundo foi ter tido filho” e que ela nunca quis ter filho. Além disso, por ter
cuidado da sua irmã, que era bem mais nova que ela, acha que isso “supriu um pouco” o seu
“lado maternal”.
Sabrina, 27 anos. Engravidou aos 21 anos, quando cursava a faculdade (morava com seu
pai). Disse que não queria um filho naquele momento e ainda mais um filho com seu
namorado, porque ele não era “o homem da vida” dela: “Eu não penso em casar, eu não penso
em ter nada com ele. Estou namorando, a gente se gosta [...] mas não era o amor da vida, o
era, eu sabia disso, assim... tive outros amores da vida e sabia que aquilo não ia ser nada
que eu realmente quisesse bancar essa história assim: ‘vou ter, estou querendo’”. Em vários
momentos da entrevista ela me falava: “eu não queria”.
A descoberta de uma gravidez não planejada traz uma escolha para a mulher, ou para o
casal: pode-se decidir prosseguir com a gestação quanto interrompê-la. E, para esta decisão,
serão acionados valores e normas de conduta. Como apontado anteriormente, dividi minha
análise em três motivos básicos, no entanto, estes motivos se cruzam: sendo a cultura algo não
monolítico e sujeito a contradições, valores como o individualismo e ‘valores tradicionais’,
como a valorização da maternidade e da maternidade dentro de um projeto familiar, podem se
combinar. Não busco, portanto, uma coerência necessária. A mesma entrevistada que pode
acionar uma ideologia individualista também pode acionar a valorização da maternidade,
inclusive de modo a justificar sua decisão pelo aborto. Portanto, se o valor individualismo, o
valor família e mesmo a valorização da maternidade são acionados de modo a justificar a
escolha, acionar um ou mais destes valores não implica negar os outros. Levando em conta
essas considerações, ao agrupar os motivos das entrevistadas, uma mesma informante pode
ser enquadrada em um ou mais motivos.
37
a) Valores Individualistas
Dumont (1985) afirma que a “ideologia moderna” tem como valor o indivíduo. Segundo
o autor (1992), ao contrário das “sociedades tradicionais”, em que o indivíduo estaria apenas
em função da sociedade, nas “sociedades modernas”, o ‘todo’ passa a ser o próprio homem
individualmente, já que ele passa a ser pensado de forma indivisível. Já pelas histórias
narradas, pode-se perceber que várias das entrevistadas acionaram a ideologia individualista
ao falarem de motivos que levaram em conta a sua ‘vontade individual’: “egoísmo” (Valéria);
“felicidade” (Valéria); priorizar a “vida individual” e “profissional” (Tereza); “não queria”
(Rosa, Sabrina, Débora), não ter “estrutura psicológica” (Valéria) ou “não me sentia
preparada” (Rosa).
Costa et al. (1995), em pesquisa com alunas e funcionárias de uma universidade paulista
que, ou pensaram em realizar aborto, ou o praticaram, afirmam que, das mulheres que
pensaram em abortar, as que acreditavam que não estavam preparadas para criar e educar uma
criança abortaram em maior número das que apontaram outras justificativas para terem
pensado em abortar. Os autores enfatizam que o motivo mais associado à maior possibilidade
de realizar o aborto foi, entre essas mulheres, “não estar preparada para criar um filho”, o que
não incluiria “problemas materiais”, que opções como “dificuldades financeiras” ou
“rejeição do parceiro” também estavam presentes no questionário
5
. Eles afirmam ainda que a
alegação das entrevistadas sobre a falta de preparo estaria correlacionada a “um estado
emocional ou a uma etapa da vida em que outros projetos pessoais tornar-se-iam
incompatíveis com a chegada de um filho” (Costa et al., 1995). Dessa forma, o acionamento
de valores mais subjetivistas ao realizar um aborto também já foi encontrado em outras
pesquisas sobre a questão.
Parte da escolha pela interrupção foi explicada, por algumas das minhas entrevistadas,
como uma prioridade às suas ‘vontades pessoais’ ou uma “estrutura psicológica”. Desta
forma, Rosa, bora e Sabrina chamaram atenção para o fato de “não quererem” ter um filho
naquele momento, o que demonstra como a maternidade passa, para elas, pela vontade
individual:
“[...] não queria ter filho naquele momento. Não me sentia preparada, não tinha
dinheiro, não queria. Eu não queria.” (Rosa)
5
Os autores explicam que o fato das dificuldades financeiras não terem sido a razão mais citada poderia ser
relativizado pelo nível sócio-econômico das entrevistadas.
38
“Nas duas vezes, foi muito claro pra mim: eu achava que não estava preparada pra
ter um filho, eu não sabia se queria ter um filho. Até hoje, eu não sei [...]. Eu
nunca quis ter filho. Nunca foi uma coisa que tivesse uma... não tinha um
romantismo, sabe? Não tinha uma idéia que era preciso me... me... ter filho, não
era uma coisa assim que eu queria. Quando eu fiquei grávida, eu fiquei... pra mim,
não tinha discussão, pra mim, era assim: ‘não vai rolar’ – porque não tinha
espaço, não tinha...” (Débora)
Ardaillon (1998: 373) coloca que, no caso do aborto, está em jogo “a manutenção de um
processo existencial individual daquele momento. Está em questão a própria individualidade e
a experiência dessa individualidade, ou seja, a própria vida das mulheres, que, naquele
momento, se querem ‘simplesmente’ seres humanos, atores sociais [...]”. Esta análise
corrobora com várias das justificativas apontadas que a autora mostra o quanto a
individualidade das mulheres está em jogo com a decisão pelo aborto. Algumas entrevistadas
não justificaram seus atos dizendo que “não quereriam” a gravidez, contudo, mostraram como
um filho mexeria com a “felicidade” e a atribuição de “sentido” para elas. Valéria que, aos 17
anos e terminando ainda o colégio, decidiu interromper a gestação por não ter “estrutura
psicológica” e “financeira”, mostra como a escolha pode estar relacionada à “felicidade”
individual (mas não apenas):
“Não tinha como, cara, criar [ininteligível
6
] uma criança. Tudo bem, ele ia ter
amor, ia ter comida, mas eu ia ser infeliz, eu tenho certeza, cara, e eu ia acabar
passando infelicidade pra criança também, e não ia ter estrutura, sabe?
[Pesquisadora] Estrutura... [Valéria] Ah, psicológica, financeira. Não ia ter
estrutura nenhuma, sabe qual é? Tipo... pô... e um certo egoísmo meu também
sabe? de... pô, gosto de viajar, gosto de ter... de fazer o que eu gosto pra viver
sabe? –, ganhar dinheiro pintando, fazendo arte, entendeu? [...] Com um filho,
com 17 anos, eu não faria isso, sabe? Pela minha cabeça, pelo que eu me conheço,
lembro de mim na época, eu não ia ser uma artista hoje em dia sabe? –, não ia
fazer o que eu gosto pra viver. Ia ter uma criança ali, ia ter feliz, ia amar aquela
criança né? –, ia ser uma coisa inexplicável, mas antes que isso pudesse
acontecer, eu decidi que não teria.” (Valéria)
Sua felicidade individual é articulada aos seus projetos e à própria constituição do que
ela é atualmente: “eu não ia ser uma artista hoje em dia”
7
. Quando perguntei à informante se
houve alguma mudança na sua vida que ela atribua ao aborto, ela me respondeu:
6
Talvez a palavra seja “mal”.
7
A questão da felicidade aparece de várias formas para Valéria. Primeiro, ela, tendo o filho, seria infeliz e, além
disso, passaria infelicidade para a criança. Depois, ela diz que, tendo o filho, ia “ter feliz”, mas decidiu que não
teria. Ela demonstra, portanto, várias esferas de sua vida onde haveria felicidade e infelicidade.
39
“Eu atribuo a eu ser artista, a várias coisas boas que aconteceram na minha vida:
eu poder viajar, conhecer vários lugares que eu conheço, estar morando com um
monte de gente mais ou menos da minha idade sabe? e ter minha
independência, começar a criar independência, fazer aquilo que eu gosto de fazer
– eu acho que eu não faria se eu tivesse tido a criança.”
Mônica, Elisa e Amanda, em sentido semelhante à “felicidade” de Valéria, falaram que
ter um filho nas circunstâncias em que se encontravam não fazia sentido para elas. Mônica,
que mencionou como motivo a falta de “disponibilidade física” porque ela trabalhava muito,
disse que não “sentido” em ter filho e “não ver crescer” ela quer “curtir” o filho porque
gosta de “ver crescer”. Elisa também falou que não via “sentido” em ter o filho nas
circunstâncias em que se encontrava. E Amanda não via “sentido” em ter um filho fruto de
uma relação que era apenas “baseada no sexo”, sem haver um “amor”.
Além disso, apenas Mônica me disse que não queria fazer o aborto e que, caso seus
companheiros quisessem, ela teria tido o filho. Com todas as outras entrevistadas, a iniciativa
pelo abortamento partiu delas próprias, com ou sem concordância dos companheiros, e, no
caso de Elisa, sem mesmo o conhecimento.
Duarte (1995), tratando da “família” no Ocidente moderno, examina combinações entre
hierarquia e individualismo entre classe populares, classes médias e elites, sendo que, entre as
segundas, haveria uma grande exposição da ideologia individualista, o que afetaria as relações
na família. Esta grande exposição das classes médias à ideologia individualista ajuda a
explicar porquê que várias das entrevistadas (que se identificaram como pertencentes às
classes médias) priorizaram suas ‘vontades pessoais’ no sentido de terem apontado o fato de
não quererem ter o filho, e/ou a iniciativa pelos abortos ter partido delas.
Não se pode negar também o papel do pensamento feminista difundido, também
impregnado desta ideologia. Franchetto, Cavalcanti e Heilborn (1981) consideram o
feminismo, em geral, como um desdobramento do individualismo, apontando, para isso,
alguns aspectos daquela ideologia, como a autonomização da sexualidade com relação à
família e as reivindicações de igualdade entre homens e mulheres. Dentre as lutas feministas,
encontra-se a percepção dos corpos das mulheres como de interesse exclusivo destas, relativos
à sua individualidade daí as reivindicações relacionadas à contracepção e ao aborto.
Segundo as autoras, o slogan “livre apropriação do corpo” demonstra que a decisão sobre a
concepção é pensada como de livre arbítrio das mulheres, valorizando a dimensão individual.
Além disso, o princípio de autonomização também relativo ao individualismo: “Focaliza-
40
se agora o corpo feminino, pois é sobre ele que está dada a relação social que conjuga
sexualidade e reprodução, que a contracepção e o aborto propõem-se a separar” (1981: 41).
Dessa forma, conforme apontado pelas autoras, o princípio de autonomização, relativo
ao individualismo, que separa a sexualidade da reprodução é visibilizado com o aborto. E,
além disso, a ênfase na escolha individual da mulher pela interrupção ou manutenção da
gestação e nos seus direitos pode ser pensada, desta forma, conforme as autoras apontaram,
como um desdobramento da ideologia individualista. Considerando ainda que as classes
médias estão bastante expostas a esta ideologia, pode-se pensar nas narrativas das opções das
entrevistadas como bastante impregnadas por essa ideologia individualista.
Assim, entre as entrevistadas, Tereza, Rosa, Valéria, Débora e Sabrina priorizaram suas
‘vontades individuais’ no sentido de afirmarem “não quererem” ser mães naquele momento
e/ou naquelas circunstâncias. Além disso, Valéria alegou seu “egoísmo” e Mônica, Elisa e
Amanda falaram de como ter um filho naquele momento não fazia “sentido” para elas.
Ademais, todas as entrevistadas optaram primeiramente pelo aborto, com exceção de Mônica,
que, caso seus companheiros quisessem, ela teria tido o filho (o que não foi o caso). Observei,
portanto, uma forte tendência a narrarem seus abortos como opções pessoais, baseando suas
escolhas com base no valor indivíduo, de forma semelhante, inclusive, com a ideologia
feminista.
Apesar desta representação de decisão individual, as narrativas das escolhas são
baseadas também em vários fatores, como, por exemplo, não ter ‘condições financeiras’, ou
não haver uma ‘estrutura familiar’ em que gostariam de criar os filhos (o que não impede, no
entanto, a construção das narrativas como opções individuais). Apenas Débora mencionou
somente a sua ‘vontade individual’ (e é interessante como ela analisa essa vontade em relação
à sua geração e à sua família, conforme já foi mencionado no capítulo anterior). Outras
entrevistadas combinaram essa vontade a outros fatores, como a relação parental ou falta de
‘condições financeiras’
8
.
8
Nesta dissertação, não tratarei da justificativa de falta de ‘condições financeiras’ para a realização do aborto,
que essa justificativa não foi explorada nas entrevistas. Rosa, Valéria e Mônica foram as únicas entrevistadas que
mencionaram explicitamente essas questões, enquanto Débora, por exemplo, foi a única que disse explicitamente
que o problema não era dinheiro. Além disso, Sabrina e Tereza disseram que um filho naquele momento
atrapalharia seus projetos pessoais, inclusive os profissionais. É sempre bom lembrar que, em se tratando de
classes médias, a questão financeira, mesmo que não esteja relacionada às ‘necessidades imediatas’, ainda está
relacionada a diversos outros fatores, como a dependência dos pais e a privação de certos projetos pessoais,
como a própria independência financeira de que falou Valéria, ou mesmo os projetos profissionais.
41
b) Relações Parentais
9
Com relação ao aborto induzido, as relações familiares são uma questão essencial. Estar
“solteira”, para a mulher, encontra maior relação com provocação do aborto do que estar
“casada” ou em “união estável”
10
. Dessa forma, Silva (1993), em pesquisa com mulheres em
idade fértil (15 a 49 anos) residentes no sub-distrito de Vila Madalena, em São Paulo,
observou que as mulheres solteiras engravidaram proporcionalmente menos do que as não
solteiras, contudo, quando engravidaram, foram as que mais recorreram ao aborto. Boehs et
al. (1983), em pesquisa com mulheres que foram internadas em uma maternidade em
Florianópolis em decorrência de complicações por aborto provocado, afirmam que 70% das
entrevistadas eram solteiras. Fonseca et al. (1998) também encontraram resultados
semelhantes. Em estudo com mulheres admitidas com diagnóstico de interrupção da gestação
na mesma maternidade pública (Maternidade Carmela Dutra), os autores afirmam que a
proporção de mulheres com aborto “certamente provocado” foi em torno de quatro vezes
maior entre as mulheres solteiras, divorciadas ou viúvas, com relação às casadas ou em união
estável
11
. Costa et al. (1995) também trazem mais dados para se refletir a respeito. Em
pesquisa com alunas e funcionárias de uma universidade paulista, os autores afirmaram que a
mulher casada teria mais dificuldade em aceitar o aborto do que as que não têm
relacionamento com vínculo legal, já que a relação entre as mulheres que pensaram em
interromper a gestação e as que realmente interromperam foi menor entre as mulheres casadas
do que entre as que tinham outro tipo de relacionamento.
Se, como afirma Duarte (1995), a procriação humana, indissociável do processo da
gestação uterina, tem permitido que a penetração do individualismo na família afirme uma
“consangüinidade uterina” e uma “relativa ‘expulsão do homem’ das novas unidades de
reprodução social” (1995 :37), por outro lado, algumas entrevistadas, nesta dissertação,
9
“O termo parentalidade é o neologismo técnico para suprir a falta de uma palavra portuguesa correspondente a
parenthood na língua inglesa. Assim, parentalidade diz respeito ao pai e à mãe.” (Heilborn, 1993: 69, nota de
rodapé número 12)
10
A questão da família não está presente apenas no aspecto de ‘formação’ de família, mas também com relação à
família de origem. Em pesquisa com mulheres que abortaram, já foi constatado, como um dos motivos do aborto,
o medo dessas mulheres de que seus pais descobrissem sua vida sexual ativa e a gravidez, além de haver
preocupações com as sanções que teriam caso seus familiares soubessem da gravidez (Pedrosa e Garcia, 2000).
11
Os casos de aborto deste estudo foram classificados em quatro categorias, de acordo com proposta da
Organização Mundial da Saúde: "(a) certamente provocado
, quando a mulher admitiu ter provocado o aborto ou
quando foram encontrados sinais clínicos de intervenção, tais como laceração cervical e/ou corpo estranho na
vagina ou no útero; (b) provavelmente provocado, quando a mulher não admitiu ter provocado o aborto mas
referiu gravidez não planejada e foram encontrados sinais de sepsis ou peritonite; (c) possivelmente provocado,
quando somente uma das duas condições listadas anteriormente em (b) esteve presente. Todos outros casos de
aborto foram classificados como espontâneos." (Fonseca et al., 1998. Grifo meu.).
42
colocaram o homem, o parceiro sexual, como um elemento central na decisão, na medida em
que não haveria reprodução sem essa figura elementar
12
.
A relação com o parceiro sexual naquele momento específico apareceu, ao menos como
um dos motivos, em cinco das entrevistas (Sabrina, Tereza, Rosa, Elisa, Amanda)
13
. Ramírez-
Gálvez (1999), em estudo com homens e mulheres com nível universitário, que realizaram
aborto, percebeu que não apenas os homens fazem distinções nos seus comportamentos
reprodutivos de acordo com o tipo de relacionamento. Entre as pessoas que ela entrevistou,
além do projeto profissional e a estabilidade econômica, o tipo de relacionamento foi também
uma das razões mais freqüentes para se justificar o aborto, inclusive entre as mulheres.
Desta forma, o aborto pode ser uma oportunidade para se pensar em com quem se
reproduz, além de quando e em que circunstâncias. E, além disso, no quanto a relação com o
companheiro pode ser importante numa escolha como esta. A reprodução e as relações
familiares vem sendo pensadas juntas. Fato que ilustra isso é que questões relacionadas à
sexualidade e à reprodução vinham sido tratadas, até a década de 1990, pelo direito brasileiro,
em legislação relativa à família (Barsted, 1999).
Como dito anteriormente, para as entrevistadas, a relação com o parceiro sexual naquele
momento específico apareceu, ao menos como um dos motivos, em cinco das entrevistas. Se,
por um lado, a sexualidade foi tornada autônoma em relação à esfera da família para as
entrevistadas, a reprodução não atingiu o mesmo grau de autonomia, dado que, para algumas
delas, a manutenção de relações sexuais fora da esfera da união conjugal não poderia resultar
em reprodução. Na fala de uma das entrevistadas:
“Era uma coisa ainda eventual, ainda... E que não estava bem. Então, eu não via
futuro nenhum pra aquilo. Então, não era uma situação de constituir família [...]
Se houvesse uma coisa até engrenada com a possibilidade de constituir família, eu
talvez até pensasse em ter, porque desde menina eu dizia pra mim que queria ter 5
filhos [...]” (Elisa)
Elisa (que foi uma entrevistada que não falou em nenhum momento que “não queria” ter
o filho) concentrou, em sua narrativa, sua justificativa pelo seu segundo aborto dizendo que
“não podia” ter aquele filho, já que o relacionamento afetivo-sexual em que estava no
12
No entanto, como será visto no último tópico deste capítulo, essas mesmas diferenças corporais acabam por
reforçar o papel da mãe e a sua relação com os filhos.
13
Além destas cinco entrevistadas, Mônica não colocou como motivo o fato de estar em “crise” com o marido,
mas falou o seguinte: “Se a nossa relação estivesse melhor - na época nós estávamos em crise - se ele tivesse
falado 'Vamo segurar a barra, de qualquer maneira' e mostrasse alguma felicidade com a notícia, com certeza eu
teria encarado, mas...”.
43
momento não estava indo bem. No seu primeiro aborto, o motivo foi o mesmo: ela estava
separada do marido e “já estava tendo problemas” com seus três filhos “pela ausência do pai”,
não concebendo, portanto, “botar uma criança no mundo no meio dessa situação”, o que seria,
para ela, uma “sacanagem”. Elisa, desta forma, não desvincula a reprodução da constituição
de uma família em que há a presença, além da mãe com os filhos, do pai.
Ela contou também que seu ex-marido “não fazia porra nenhuma pros filhos”, mas
“fazia presença”, o que, para ela, “também é bom, melhor do que não ter ninguém”,
demonstrando, com isso, como é importante a participação do marido/pai na vida dos filhos,
mesmo que este, além de “presença”, não faça “porra nenhuma pros filhos”
14
.
A reprodução e as relações familiares em que as figuras do pai, da mãe e dos filhos
podem estar intimamente relacionadas. Outra entrevistada, Rosa, escolheu interromper a
gestação aos 20 anos porque não queria, naquele momento, ter filho, não se sentia preparada e
não tinha dinheiro, mas, além disso, disse estar, na época, brigada com o namorado: “Nessa
época eu não queria, ainda mais a gente brigado assim – né? –, eu não queria nada... Eu queria
alguma coisa com ele, mas não nesse ponto que... de ter filho e tudo o mais”. Esta mesma
informante, mais adiante na entrevista, disse que hoje em dia, por mais que ela também não
queira ainda engravidar, acha que teria o filho porque
“[...] acho que por estar com a pessoa que você gosta, sabe? Eu vou casar,
morando com ele, é uma outra conjuntura sabe? do que você com o
namorado... Eu não conheço uma pessoa que teve filho assim [pessoa jovem,
ainda dependendo dos pais] que ficou sabe? por muito tempo [o casal ter
ficado junto]. Aí eu acho que eu não seria muito feliz nesse sentido não.”
Rosa demonstra como a sua “felicidade” está relacionada a seus projetos familiares,
além de demonstrar como esta “outra conjuntura” que ela está vivendo agora está relacionada
a uma perspectiva de ficar por muito tempo com o pai de seu filho, ao “casar” e ao “morar
junto”, o que já permitiria, para ela, a reprodução.
Dauster (1988), analisando a experiência de “mães solteiras” nos segmentos médios,
não deixa de notar a discriminação a estas mulheres, mostrando ainda que a própria categoria
“mãe solteira”, ao colocar o adjetivo “solteira”, define um grupo de mulheres em oposição a
outro, simplesmente ‘mães’. Essa distinção, segundo a autora, revelaria que “a coletividade
vincula a maternidade aos laços do casamento” (1988: 31). Esta vinculação da maternidade às
14
"[...] o meu [ex-]marido chegava em casa... ficava... recebia, brincava, 'Ah, papai, ah!', mas não fazia porra
nenhuma pros filhos. Entendeu? fazia presença, que também é bom, melhor do que não ter ninguém [...]"
(Elisa).
44
relações de casamento também apareceram entre as minhas informantes, como vimos entre
Rosa e Elisa. Outras entrevistadas, no entanto, não vincularam a maternidade necessariamente
ao casamento, da mesma forma como as entrevistadas de Dauster (1988), que optaram por
terem filho sem estarem casadas, que queriam um filho e não um casamento, no sentido de
haver uma união legal. No entanto, apesar da não necessidade de união legal para a
reprodução, algumas das minhas informantes, nas suas escolhas, vincularam a maternidade ao
tipo de relação com o parceiro sexual, de forma semelhante, ainda, com as entrevistadas de
Dauster, que diz que apesar das “mães solteiras” por ela entrevistadas quererem um filho e
não um casamento, “é recorrente a questão da solidão e nela está implícita a nostalgia pelo
casal, pelo par, e o desejo de não ter o filho só” (1988: 13).
Strathern (1995) mostra como a definição de mãe pode estar relacionada a presença de
um pai. Buscando explicar a polêmica decorrente de mulheres que queriam engravidar
buscando serviços de tratamento de infertilidade na Grã-Bretanha, mas não queriam manter
relações sexuais, Strathern pensa na definição de mãe como intimamente relacionada ao ato
sexual e a um pai. A autora percebeu que, para os euro-americanos, a relação sexual é
importante para a própria definição de mãe, mesmo que a concepção não resulte de um ato
sexual. Este, o ato sexual, também pode simbolizar a necessidade de mostrar que os filhos
nascem de relacionamentos. Desta forma, se dispondo ao intercurso sexual, a mulher deve
mostrar que a procriação é um fato natural, dar a possibilidade de seu filho ter um pai e
mostrar que os filhos nascem de relacionamentos.
Assim, a figura da maternidade pode estar, como mostrou Strathern, intimamente
relacionada à figura da paternidade. Entre algumas das entrevistadas, ficou bastante evidente a
escolha da paternidade para o exercimento da maternidade: a reprodução pode estar
intimamente relacionada às figuras dos pais entre si. Desta forma, várias das minhas
informantes mostraram como esta relação é importante para a reprodução – outras três
entrevistadas, que não vincularam a reprodução necessariamente ao ‘casamento’, vincularam
a maternidade necessariamente à pessoa com quem, na fala de Sabrina, se vai “ter um vínculo
de pai e mãe”.
Sabrina, tendo engravidado aos 21 anos, disse que não queria um filho, e ainda mais um
filho com seu namorado, porque ele não era “o homem da vida” dela:
“[...] eu não queria nada com aquela pessoa pra ter um vínculo de pai e mãe, assim
sabe? que fosse eterno. De repente, com vinte e um anos, se fosse uma outra
pessoa, eu acho que essas coisas são muito... não pra pensar, mas poderia ter
sido diferente, assim de querer mesmo! Porque, pra mim, o importante é com
45
quem você está, no sentido assim: não com quem você quer projetar a vida eterna,
mas com quem você projeta ‘esse é um pai’.”
Tereza, que não tinha filhos no momento da entrevista, ao me responder se sentia
vontade de ter, parece compartilhar uma lógica semelhante à de Sabrina. Tereza chamou
atenção para a “estrutura familiar” mas não vinculou necessariamente a relação entre os pais
ao “casamento”, ou, nas palavras de Sabrina, à “vida eterna”.
“Tenho, tenho, mas, assim, não casei até hoje, não achei que eu tinha uma
estrutura... pessoal, familiar também pra ter filho, não chegou o momento, assim.
[...] Sempre achei que eu tinha... podia ter uma relação... não precisava estar
casada e tudo, mas ter uma relação pessoal-afetiva mais estável na hora em que eu
quisesse ter filho e tal, uma estrutura familiar... querer construir uma estrutura
familiar e até agora não... não... aconteceu, assim. Foi mais namoros e tudo, mas
não... não cheguei a querer formar uma família, então...”
Se fazer a pergunta sobre com quem que se reproduz e com quem que se exerce a
maternidade não é vincular, necessariamente, a reprodução e a maternidade à formação de
uma ‘família tradicional’ ou à criação de ‘casamentos eternos’, no entanto, este fato não
descarta a vinculação da reprodução, em muitos casos, à criação de vínculos entre a figura da
“mãe” e a figura do “pai”.
Ao optarem pelos abortos por não quererem ser mães com os respectivos companheiros,
estas entrevistadas desvincularam a sexualidade da reprodução. Desta forma, a relação sexual
entre, pelo menos, algumas das entrevistadas, pode não ser o bastante para a vontade de
criação de vínculos entre pai e mãe. Amanda, ao dizer o motivo do seu aborto, logo falou
sobre o seu relacionamento:
“E foi uma relação muito assim... ligada ao tesão mesmo entendeu? –, ao
sexo. [...] A gente não desenvolveu muito uma amizade e tal, e isso que contou
muito de eu ter tomado a decisão [...] Não fazia sentido eu ter filho com uma
pessoa que eu não tinha uma relação, não tinha um amor [...]”
Mais adiante, considera que se eles tivessem “desenvolvido um relacionamento mais
forte” ela acha que talvez não tivesse abortado, mesmo que eles não estivessem mais juntos. E
completa: “Essa coisa de eu não ter vivido algo mais... assim... [...] foi uma [...] coisa tão
baseada no sexo – sabe? – que eu falei: ‘Cara, um filho daí? Só daí?’”.
Schneider (1968) mostra como o símbolo do amor é importante no parentesco
americano. Existem dois tipos de amor, o amor conjugal; e o amor entre irmãos e entre pais e
46
filhos. O amor conjugal representa a união dos opostos, e tem o ato sexual como seu
embodiment concreto, enquanto os filhos do casal simbolizam a união dos opostos, o amor
conjugal: os esposos se amam e a criança é produto do seu amor e o objeto do seu amor.
Segundo o autor, o intercurso sexual é um ato no qual e através do qual o amor conjugal é
expressado. It is the symbol of love which links conjugal and cognatic love together and
relates them both to and through the symbol of sexual intercourse.” (1968: 39). Embora
Schneider estivesse tratando do parentesco norte-americano na década de 1960, este símbolo
do amor de que fala o autor ajuda a pensar como um filho vindo de uma relação sexual sem
amor não faça sentido para Amanda. Outra entrevistada, Sabrina, referida acima, colocou a
situação em termos parecidos, dizendo que o namorado não era o “amor da sua vida” e que
ela teve “outros amores da vida”
15
. Dessa forma, se as relações sexuais e os filhos são tidos
como um símbolo do amor conjugal (Schneider, 1968), a desvinculação da sexualidade da
esfera da família não impele, necessariamente, a desvinculação da reprodução com relação à
esfera da família e do amor.
Se as entrevistadas desvincularam sexualidade de reprodução, ao manterem relações
sexuais com pessoas e/ou em circunstâncias que elas não queriam ter filhos, a grande maioria
das entrevistadas não desvinculou também reprodução da esfera das relações familiares e da
sexualidade, no sentido em que, para elas, para haver reprodução, deveria haver um
relacionamento afetivo-sexual entre os genitores, demonstrando o quanto a relação sexual
pode ser necessária para a definição de “pai” e “mãe”, ou seja, para a criação de vínculos de
parentesco, como mostrou Strathern (1995). Além disso, Amanda demonstrou também como
a desvinculação da reprodução em relação à esfera do amor foi, no momento, inviável para
ela.
c) O ‘cuidar’
Ribeiro (1994), em pesquisa com mulheres de CEBs no Rio de Janeiro, afirma que a
posição de suas entrevistadas era, a princípio, contrária ao aborto, mas que, em casos
concretos, o abortamento pode se transformar, para elas, em uma solução “menos má”,
havendo uma atitude de compreensão com as justificativas, principalmente as econômicas.
15
Luna (2004), também comentando sobre a concepção dos filhos como a materialidade do amor do casal, assim
transcreve a motivação de uma usuária de serviço público de reprodução assistida: "Eu gostaria de ter porque eu
não tenho filhos do meu marido e eu gostaria, porque eu gosto dele
, eu gostaria de ter um filho dele. Eu só tenho
um filho e o filho não é dele, é adotivo. Entendeu? É filho meu, não é dele. Então eu gostaria de fazer essa
oportunidade. Engravidar dele porque eu gosto dele, né?" (Luna, 2004: 77, grifo meu).
47
Com relação à contracepção (a Igreja Católica é contrária aos métodos artificiais), as
informantes de Ribeiro acreditam que “pecado” seria fazer um filho sem condições de criá-lo.
A autora mostra que, com isso, uma reformulação do conceito de pecado: este “não se
situaria tanto na desobediência em nível das normas de comportamento, mas na negação dos
valores mais profundos aos quais elas se referem”, que seriam a própria vida (1994: 168).
Dessa forma, a autora chama atenção para o quanto o cuidado para não fazer um filho sem
condições de criá-lo justifica, para essas mulheres, a própria contracepção e pode, ainda,
tornar a solução do aborto uma solução “menos má”, o que demonstra o poder da idéia de
‘maternidade responsável’ referida no início deste capítulo.
Costa et al. (1995), em pesquisa já mencionada anteriormente com alunas e funcionárias
de uma universidade paulista que, ou pensaram em realizar aborto, ou já o praticaram,
afirmaram que, das mulheres que apenas pensaram em abortar, as que acreditavam que não
estavam preparadas para criar e educar uma criança abortaram em maior número do que as
que apontaram outras justificativas. Esses dados dos autores são interessantes porque o
motivo mais associado à possibilidade de realizar o aborto foi “não estar preparada para criar
um filho”, em detrimento de outras justificativas presentes no questionário, como “problemas
materiais”, “dificuldades financeiras” e “rejeição do parceiro” (Costa et al., 1995). Isso
mostra, mais uma vez, o quanto essa idéia da ‘responsabilidade’ no cuidado com os filhos
pode estar presente na decisão pelo aborto.
Algumas das minhas entrevistadas chamaram atenção para essa ‘responsabilidade’ no
cuidado com os filhos. Como foi visto, Elisa, por exemplo, disse que “tinha que ter feito” o
aborto, que o filho não teria pai. Além disso, Débora e Rosa disseram que não se sentiam
preparadas para terem o filho e Valéria não teria “estrutura psicológica”, o que pode se referir
a um cuidado na criação das crianças. Utilizarei, no entanto, o caso de Mônica para discutir
esse ‘cuidado’, que ele ainda não foi discutido e também porque a informante acionou,
como motivo principal para o seu segundo aborto, justamente esse ‘cuidado’.
Retomando a decisão de Mônica, a informante, no seu primeiro aborto, disse que, aos
19 anos, trabalhava e fazia curso pré-vestibular e de inglês, enquanto seu namorado tinha
acabado de entrar para a faculdade e não trabalhava. Mônica diz que “não tinha apoio”, tanto
do namorado, no caso de ter o filho, quanto de seus pais, a quem ela nem contou sobre esta
gestação. Em seu segundo aborto, casada, Mônica também diz que não tinha “apoio”. A
informante disse que não queria fazer o aborto, mas “não dava” para ter o filho porque não
havia “disponibilidade física”:
48
“Criança precisa muito de tempo, tem que ter disponibilidade física. Não é que
nem grama, que você molha e vai crescendo. Pra mim, pelo menos, não é né?
[...] O tempo fica apertado né? –, você quer dar atenção direito. E é isso. Pra
mim, é um complicador eu gosto de dar mamá até o fim da vida, eu gosto de
fazer chantala todo dia, eu gosto de fazer comidinha, eu gosto de ver crescer. Eu
tenho filho pra ver crescer! Pra mim, não tem a menor graça deixar o filho o dia
inteiro numa creche, pegar à noite, não ver crescer. Não faz o menor sentido. Eu
quero curtir mesmo, eu gosto da coisa.”
Mônica acha que, com apoio, a maioria das mulheres não faz o aborto e diz: “Se eu
tivesse alguém louco em algum desses momentos do meu lado e dissesse assim ‘vamos
encarar qualquer coisa que vier’, eu teria topado na hora”.
Além disso, a informante, em sua definição de maternidade, diz que ser mãe é “[...] uma
responsabilidade absoluta cuidar da... da formação da cabeça de uma outra pessoa, uma
responsabilidade absoluta, absoluta. [...] Mas é paciência extrema, é disponibilidade acima de
tudo.”
Estas colocações de Mônica demonstram que o ideal da maternidade pode ser um
projeto que não se pode levar adiante em um determinado momento específico, mesmo que
este projeto englobe os outros. Se o ato do aborto não representa necessariamente uma recusa
pela maternidade pura e simplesmente, mas uma recusa pela maternidade em determinadas
circunstâncias, mesmo sendo, em alguns casos, a maternidade involuntária, no caso de
Mônica fica bastante claro uma recusa por um certo tipo de maternidade em que o cuidar do
filho encontra-se comprometido, limitado pelo tempo, pela “disponibilidade física”, e não
pela vontade.
As entrevistadas acionaram, na decisão pela interrupção da gestação, de um modo geral,
ideais de maternidade uma maternidade com ‘estrutura’ (psicológica, financeira, familiar),
e com ‘vontade’, além de algumas das entrevistadas colocarem também como um dos pontos
chave para os seus abortos a questão do ‘cuidar’ do filho, como Mônica. Outras entrevistadas
não enfocaram como o motivo principal do aborto a questão do cuidar do filho como Mônica
enfocou
16
, no entanto, em três delas, houve pessoas em suas redes familiar ou de amizade que
introduziram a possibilidade de outra pessoa, que não elas (as mães), cuidar do seu filho,
16
Débora disse que não se sentia preparada”, mas enfocou como motivo principal o fato de ‘não querer’. Rosa,
que também não se “sentia preparada”, teve outros motivos de bastante peso em sua decisão, como ‘não querer
“ter filho naquele momento”, não ter “dinheiro” e a sua relação com o namorado. E Valéria também disse que
não teria “estrutura psicológica” para ter o filho.
49
sendo que esta possibilidade foi negada por essas informantes, que optaram pelo aborto.
Analiso mais enfaticamente estas questões no próximo tópico.
2.2) “Ser mãe e não ser mãe”?
Entre várias das mulheres entrevistadas, a demarcação de fronteiras entre o aborto,
ato que optaram, e o abandono, sendo o primeiro preferível para elas, em detrimento do
segundo. Quatro delas chegaram, inclusive, a fazer uma distinção entre ‘não cuidar’ de seus
filhos, caso não abortassem, e fazer o aborto, ao falarem, na entrevista, que não quiseram o
primeiro ato. Neste tópico busco analisar essa relação entre o aborto e o abandono entre as
entrevistadas.
A partir de narrativas de três entrevistadas (Mônica, Sabrina e Tereza), em que houve
sugestões/ oferecimentos por parte de terceiros de que a criação de seus ‘filhos’ não fosse
feita por elas (as mães), será discutido a seguir a questão do “sentimento” materno e da
“responsabilidade”, valores acionados para justificar a recusa do abandono e a opção pelo
aborto. Será discutido também o quanto a questão da “responsabilidade” no cuidado com os
filhos está relacionada, para algumas entrevistadas, com uma opinião mais favorável à
legalização do aborto.
Sabrina contou da gravidez à sua mãe para lhe pedir dinheiro para a interrupção e esta
insistiu para que Sabrina tivesse o filho para ela “ganhar vida”, recebendo a seguinte resposta:
“Não, eu nunca vou ter um filho pra você cuidar! Que maluquice! Como é que eu vou... Não é
assim sabe? –, a coisa, pra mim, tem sentimento, assim: se é pra ter, é pra ter, pra ser mãe,
pra ser família”
17
.
Mônica, a entrevistada do tópico anterior que enfatizou sua escolha pelo aborto por falta
de “disponibilidade física” para ter o filho porque ela queria “curtir” o filho, também se
deparou com uma situação semelhante. Ao contar para uma amiga que iria fazer o aborto, esta
amiga “foi contra” e quis arrumar uma família para o filho dela, o que Mônica avalia como
uma “loucura”, mostrando os limites do ‘pensável’ para ela:
“Imagina, que loucura! [...] Imagina: eu vou ter um filho e ela vai arrumar uma
família pra criar meu filho [risos]. É ninhada? É ninhada de bicho? Arruma
alguém pra criar? Não dá, né? Pra mim, não deu. Pra mim, não deu.
17
Além disso, Sabrina também colocou para a sua mãe que não queria ter um filho com o seu namorado e
também um filho naquele momento atrapalharia seus “projetos de vida”.
50
[Pesquisadora] Qual o problema você nisso? [Mônica] Nossa! Não! [...]
depois de uma integração total eu vou dar pra outro criar? [Pesquisadora] A
integração ao longo da gestação? [Mônica] É, seria um absurdo, um sei o
quê... Tão viol... nem sei. Impossível, não nem pra pensar nisso, não nem
pra pensar nisso. Por isso que eu estava te falando, que, racionalmente, seria
menos violento do que a interrupção né? –, se a gente conseguisse ser racional
só o tempo todo. No dia que a gente for cyborg, pensa assim – né?”
Mônica atribui o gesto da doação do filho (visando a evitação do aborto) à uma
racionalidade não-humana, ao dizer: “se a gente conseguisse ser racional o tempo todo”;
“no dia que a gente for cyborg
18
. Com isso, ela coloca a gestação envolta dos sentimentos,
falando que, depois da “integração” ao longo da gestação, ela não poderia dar o filho para
outra pessoa criar. Em outro momento, Mônica me explica o que considera esta “integração”.
Me falou que, no caso dela, se essa “integração” tivesse existido, ela não teria feito o aborto
porque ela não teria “suportado”, e continuou:
“[...] pra mim, não dá. Quem sentimentaliza as coisas não pode pensar assim, não
tem como, não teria chance. [Pesquisadora] A integração passa pelo
sentimento? [Mônica] Totalmente. [Pesquisadora] O que que é essa
integração? [Mônica] É essa aceitação de uma nova vida que você está gerando,
é aceitação da maternidade mesmo. Não é uma incubadora de filho, de gente – né?
–, é diferente.”
Ou seja, a informante não concebe o fato de gestar um filho para depois doá-lo
justificando-se com o sentimento e optou pelo aborto, assim como Sabrina, que disse: “a
coisa, pra mim, tem sentimento”.
Mais adiante, Mônica me contou um caso de uma “pessoa humilde” que ia fazer um
aborto, mas, por sugestão de outra amiga sua, não fez e entregou para esta pessoa cuidar; e
outro caso, visto na imprensa, de uma mãe que gerou um filho para a sua própria filha, com
acesso às tecnologias reprodutivas. Disse-me que acha “admirável” esse “desprendimento” e
que se alguma filha dela precisar e ela “puder fazer um gesto como esse e tiver condições
para”, ela faria, mas dar o filho para outra pessoa, não. Apesar disso, continua achando
“louvável” o gesto da mulher do primeiro caso. Perguntei a ela se ela tivesse esse
“desprendimento” também seria louvável:
18
Mônica atribui o ato de entregar o filho para outra pessoa criar como um ato que pode não estar relacionado à
esfera da humanidade: "É ninhada? É ninhada de bicho?". Fonseca (2002), ao analisar contextos diferentes em
que as mulheres de uma vila popular pesquisada por ela podem doar seus filhos, assim transcreve a fala de uma
informante: "[...] Não sou cadela para dar meus filhos. [...]" (Fonseca, 2002: 91). A fala desta informante de
Fonseca encontra bastante similaridade com a de nica, minha entrevistada. Nessas duas situações, a entrega
de um filho para outra pessoa criar é colocada fora da esfera da humanidade.
51
“Não, não, não. É admirável a pessoa ter um desprendimento desse. Não, achei
louvável também essa que... Ela o ia fazer [o aborto]? Ela desistiu de fazer. Ela
foi mais corajosa que eu. É admirável sim. Ela não ia abrir mão? Abre mão
depois. Mas ela tem cabeça pra isso, eu não. Eu não.”
Apesar de achar “louvável” uma mulher desistir do aborto para doar seu filho, no seu
caso não seria “louvável” porque ela “não tem cabeça” para isso, ou seja, embora Mônica
tenha pensado na doação de uma criança pela mãe gestacional como um gesto “admirável”,
ela não cogitou esta possibilidade para ela.
Como se sabe, as novas tecnologias reprodutivas colocam a possibilidade de haver
várias maternidades: a maternidade genética, a maternidade substituta e a maternidade social.
No entanto, nenhuma destas duas entrevistadas pensou na possibilidade de separar a gestação
da maternidade social, no caso delas próprias. A forma como Mônica e Sabrina negam a
possibilidade de outra pessoa criar os seus filhos mostra como este ato pode ser classificado
na ordem do insano: “Imagina, que loucura!”; “Que maluquice!”. Mônica, além de mostrar,
ao me conceder uma entrevista, que o aborto pode ser, mesmo com lágrimas, algo narrável
para ela, demonstra também o quanto dar o filho pra outro cuidar é algo impensável,
considerando, inclusive, as fronteiras da humanidade: “É ninhada de bicho?”. Estas duas
informantes negaram o ato de não criar seu filho com base no “sentimento” que teriam ao ter
o filho.
a Amanda, ninguém se ofereceu para criar seu filho, mas ela trouxe algumas
considerações sobre as possibilidades de “abandono” ou, em outras palavras, “doação” de seu
filho. Me contou que pensa em, talvez, adotar uma criança porque ela “cometeu” uma coisa
que, às vezes, as pessoas que já tiveram filho “cometem”:
“Porque eu cometi uma coisa... que pessoas depois que tiveram, às vezes,
cometem é a mesma coisa que fazer um aborto quando você abandona...
Abandona não... assim... não quero colocar num sentido pejorativo não, mas
quando você não tem condições de ter aquele filho, de criar aquele filho, você vai
e doa pra uma instituição. Eu não tenho condições de ter aquele filho, de criar
aquele filho, eu fiz o aborto. Entendeu? que um é antes da criança nascer
[rindo] e a outra é depois que já nasceu.”
52
Amanda equiparou o aborto ao ato de “doar” o filho
19
à uma instituição, e seguiu
justificando sua opção por aquele, dizendo que se ela tivesse o filho, ela não conseguiria fazer
o aborto: “Claro! Porque se eu tivesse, eu nu... eu jamais ia conseguir! [risos] Não ia mesmo –
entendeu? Se for pra ter, é pra criar, sabe?”.
Além da recusa destas três informantes em dar o filho para outra pessoa criar, este
mesmo ato de entregar o filho foi considerado como muito difícil por algumas das
entrevistadas: Amanda e Valéria colocaram que, caso a mulher queira o aborto e o homem
não queira, seria “muito difícil”, caso a mulher decidisse não abortar, ela entregar o filho para
ele. “Se for pra ter, é pra criar”: ao negar a maternidade, abortando, as informantes acabaram
reafirmando um ideal de maternidade – a mãe que cuida dos seus próprios filhos.
Nas entrevistas, a doação do filho é contraposta ao aborto, já que as informantes
optaram pelo segundo ato. A doação é contraposta ao aborto no sentido de que, deixando o
filho nascer, haveria um sentimento mais forte, ao contrário do aborto, em que a gestação foi
interrompida, como falaram Sabrina e Mônica. Amanda também imagina esse “sentimento”
que a gestação completa propicia, contrastando com a sua própria gestação, interrompida em
seus estágios iniciais:
“A [nome da amiga], uma amiga minha que teve filho agora pouco tempo, ela
pode falar dessa sensação [passa a mão na barriga] de ter filho dentro e tal, porque
ela ficou a gestação toda, teve filho. Dois meses [tempo que Amanda permaneceu
grávida] é muito pouco, eu acho, pra sentir.”
Luna (2002), dizendo que, no Brasil, enquanto é comum a doação de óvulos em grandes
clínicas de reprodução humana, a maternidade substituta não é comum, afirma que, no
contexto brasileiro, a gestação tem um peso grande para definir a maternidade. Segundo a
autora, “valores enraizados sobre a sacralidade da mãe, mbolo de amor pelos filhos,
abnegada, sacrificial” estariam presentes tanto na condenação do aborto quanto da
maternidade substituta. Esta última encontraria aceitação, no Brasil, apenas dentro dos valores
estabelecidos de família e parentesco, com representações de altruísmo. De forma
condizente com estes valores, algumas das minhas informantes não conceberam a hipótese de
entregar o filho para outra pessoa cuidar (mesmo a sua própria mãe, a avó do filho), se
19
Fonseca (1997, 2002) mostrou como a “circulação de crianças” pode ser entendida como doação pelas
genetrizes. Vianna (2002 b) também apontou o quanto que o primeiro responsável pela criança, em casos de
acordos de guarda, pode impor condições para a guarda “como quem cede um bem, e não como quem pede
salvação” (2002 b: 290). Interessante perceber como a entrevistada, Amanda, primeiramente chamou o ato de
“abandono”, mas depois disse que não queria colocar num sentido pejorativo, optando por chamar o mesmo ato
de “doação”.
53
baseando no “sentimento” que teriam ao passar pela gestação completa, como foi visto, ou
na idéia de responsabilidade, como será visto mais à frente. Ou seja, apesar da condenação do
aborto levar em conta, entre outros aspectos, valores como a sacralidade da mãe, a escolha
pelo aborto negou a possibilidade do abandono, este sim, para essas entrevistadas, contrário
aos valores da maternidade.
Desta forma, se, como acredita Luna (2002), a censura à mulher que aborta, no Brasil,
chega a ser semelhante às críticas feitas em casos em que bebês recém-nascidos são
abandonados no lixo, que, segundo a autora, a desaprovação social do aborto implicaria
num ideal de maternidade sacralizado, por outro lado, as minhas informantes traçaram uma
série de diferenciações em que a prática do abandono permanece rejeitada, enquanto que a do
aborto aparece como uma opção melhor do que a primeira.
A diferenciação entre “aborto” e “abandono” implica uma diferenciação entre o nascido
e o não-nascido, entre “fetos” e “crianças nascidas”. Esta diferenciação envolve esse
“sentimento” que a gestação completa propiciaria à gestante e a idéia de “responsabilidade”
com o nascidos, como veremos abaixo com a história de Tereza.
Tereza, ao descobrir a segunda gravidez, contou a seu namorado que iria fazer outro
aborto. Este, discordando da opção de Tereza, contou a seus pais, que tentaram convencê-la a
ter o filho, oferecendo-se para cuidar, opção que foi descartada por Tereza, dizendo que
“nunca quis colocar um filho no mundo numa situação irresponsável” de “não ser responsável
por aquele ser que viria”, o que ela definiu por “ser mãe e não ser mãe”. Seus pais foram com
ela até à clínica tentando convencê-la a mudar de idéia, mas, quando viram que não
conseguiriam, foram embora, somente entrando com ela na clínica o seu namorado.
Tereza operou com uma lógica de responsabilidade totalmente diversa da analisada por
Fonseca (2002), sobre a circulação de crianças em grupos populares, em que as decisões
envolvendo crianças (“como criá-las, escolarizá-las, seu destino após o divórcio ou morte dos
pais e até mesmo o número considerado desejável”, 2002: 32) não são restringidas ao casal,
de forma que há uma “coletivização” da responsabilidade sobre as crianças. Segundo a autora,
a responsabilidade da mãe seria de garantir bons cuidados ao filho, mas outros também
poderiam propiciar estes cuidados: “As noções do bem-estar da criança e da responsabilidade
materna não implicam a necessidade de co-residência entre genetriz e filho.” (2002: 127).
Tereza, ao contrário, não concebeu, nas suas palavras, “ser mãe e não ser mãe”, ou seja, ser
mãe e não participar integralmente da criação de seu filho, mesmo que co-residisse com ele, já
que morava com os seus pais.
54
A questão da “responsabilidade” também levou Débora a pensar que talvez ela não
tenha querido ter filhos até agora por causa da “responsabilidade” e do “trabalho” que os estes
dão:
“Aí tem esse bando de filho e não tem tempo pra criar. fica aquele bando de
monstro. Acho que por isso também que eu acho que eu não quis ter filho: deve
dar um trabalho, cara! A responsabilidade... não sei, talvez eu queira ser criança o
resto da vida, ser adolescente – sabe assim?”
Também pode-se perceber a questão da responsabilidade no cuidado dos filhos nas
decisões pelos abortos narradas nos depoimentos de Rosa e Mônica. Rosa, como um dos
motivos, alegou que não se “sentia preparada”, e Mônica alegou que “criança precisa muito
de tempo, tem que ter disponibilidade física; não é que nem grama, que você molha e vai
crescendo”. Ou seja, as duas estão pensando que os filhos exigem uma “preparação”, uma
“disponibilidade” que elas não teriam no momento. Além disso, Amanda também afirmou
que, depois de nascido, “é natural você assumir e ter o filho”, o que demonstra que ela
também não concebe ter um filho e entregar para outra pessoa criar e baseia sua argumentação
com base na noção de responsabilidade: “A mãe, ela vai depois assumir... ela vai ter que
assumir responsabilidades sobre aquela vida [...]”.
Ao decidirem pelo aborto, Amanda, Tereza, Mônica e Sabrina (que falaram, na
entrevista, que o doariam um filho) questionam uma norma de comportamento relacionada
à maternidade, ao mesmo tempo que acionam uma outra norma de comportamento também
relacionada à maternidade em suas justificativas: criar os filhos biológicos; não ter filhos sem
condições para elas próprias criá-los. O aborto é uma decisão que, apesar de negar a
maternidade, pode ser motivada pela delimitação da maternidade a certos valores, como o não
abandono, já que ‘ser mãe’ envolve tanto o “sentimento”, quanto a “responsabilidade”.
Assim, em todas as definições das entrevistadas, a maternidade permaneceu com uma
idéia do ‘cuidado’, do ‘cuidar’ do filho, envolvendo outras categorias, como a
“responsabilidade”, a “disponibilidade”, a “educação”, mas sempre num sentido de presença
da mãe junto a seus filhos, criando-os. Essas definições sobre maternidade, apesar das
variações, passaram por certas fronteiras, exatamente as fronteiras traçadas por Badinter
(1985) em torno do sacrifício materno e do cuidado que as mães devem ter com os filhos. De
acordo com Badinter, vemos sempre com uma aberração uma mãe que não ame seu próprio
filho. Situando a imagem e o papel da mãe atuais, a autora afirma que, no último terço do
século XVIII, estes mudaram, de modo que a mulher aceitou “sacrificar-se” em função de seu
55
filho, havendo uma ampliação das responsabilidades maternas (como o cuidado com os
próprios filhos, por exemplo, e a amamentação) e uma exaltação do amor materno como um
valor. Desta forma, segundo a autora, “enclausurada em seu papel de mãe, a mulher não mais
poderá evitá-lo sob pena de condenação moral.” (195: 238). Assim, quando pedi para me
definirem o que era a maternidade, as entrevistadas utilizaram as categorias “cuidar”,
“dedicação”, “educar” e “responsabilidade”, principalmente, sendo que, em alguns casos, esse
cuidado é integral, de modo que a “responsabilidade” é “absoluta” e a “dedicação” é “total”,
evocando essa imagem sacrificial da mãe, além das suas responsabilidades com o cuidado
constante com os filhos. Vejamos os trechos das definições de Mônica e Tereza, como
exemplos (trechos das definições das outras entrevistadas se encontram em anexo):
“É uma coisa meio mágica, é uma responsabilidade absoluta cuidar da... da
formação da cabeça de uma outra pessoa, uma responsabilidade absoluta,
absoluta. [...] Mas é paciência extrema, é disponibilidade acima de tudo. É você
estar disponível pra uma outra pessoa, que é um outro universo. Respeitar esse
outro universo, sem querer o tempo todo moldá-lo né? à... à sua forma, à sua
perfeição. [...]” (Mônica)
“É uma forma de... de amparo e de... de... de educar esse ser que vem realizar
suas potencialidades e tal – né? –, o ser que vem realizar sua individualidade na
Terra. Então [...] é um amparo muito importante, algo assim muito... também
essencial pra esse ser que vindo, que é a primeira forma de... da criança se
colocar e dela aprender é com a mãe, com a maternidade. [...] É uma
responsabilidade muito grande, inclusive, ser mãe. É essencial e é muito... um
comprometimento, uma responsabilidade extremamente grande você vai ajudar
a formar um ser que, daqui alguns anos, vai realizar uma coisa no mundo, seja
o que for, né? E... e se você não se der conta dessa responsabilidade e não atuar
de acordo [...], esse tipo de -formação pode influenciar no que ele vai fazer
depois, futuramente, né? Então, é uma responsabilidade muito grande.” (Tereza)
Desta forma, a maternidade caracterizou-se, na fala das entrevistadas, como uma forma
de ‘cuidar’, limitando-se a esta fronteira. Daí que, “ser mãe e não ser mãe”, como colocou
Tereza, ou ser mãe e não ‘cuidar’, não parece algo que faça sentido para, pelo menos, essas
quatro mulheres (Amanda, Tereza, Mônica e Sabrina, que falaram que não doariam um filho).
Como colocou Mônica: “Eu tenho filho pra ver crescer! Pra mim, não tem a menor graça
deixar o filho o dia inteiro numa creche, pegar à noite, não ver crescer. Não faz o menor
sentido. Eu quero curtir mesmo, eu gosto da coisa”.
Pode-se contrastar as representações de maternidade encontradas entre as minhas
informantes (em que a maternidade supõe justamente um cuidado constante, a própria criação
56
do filho e uma aversão ao ato de doá-lo) às representações de maternidade encontradas nos
estudos de Fonseca (2002) e de Vianna (2002), em que a mãe que ‘abandonaseu filho pode
pensar seu ato como o melhor para a criança, ou mesmo como quem cede um bem. Apesar
disso, ambos os conjuntos de mulheres, tanto as que abortaram, quanto as que ‘doaram’ seus
filhos, ao mesmo tempo em que podem ser ‘condenadas socialmente’, pensaram nos seus atos
como a melhor solução. Assim, Fonseca (2002) e Vianna (2002) demonstram como a
circulação de crianças
20
pode ser concebida, pelas mulheres que o praticam, como uma
doação e pensado em termos do melhor para a criança
21
. De forma semelhante, o aborto, que,
como o ‘abandono’ também pode ser considerado um ato reprovável socialmente, foi visto
por algumas das entrevistadas como uma “solução” (Amanda
22
), algo “justo” (Débora
23
), ou
mesmo como uma alternativa não apenas pensada na situação em que se encontravam elas
próprias, mas na situação em que colocariam a “criança”
24
:
“Eu estava tendo problemas com meus três filhos pela ausência do pai, e ainda
ia botar um novo no meio da parada? Eu disse: ‘Não... não condição. E essa
criança não tem condições de nascer vai ser uma sacanagem eu botar uma
criança no mundo no meio dessa situação, que está problemática com os três
que existem, e eu ainda vou botar mais um na parada?’ Então, quer dizer, foi uma
decisão consciente. [Mais adiante:] Eu não vejo outra alternativa pra mim na
época. Eu tinha que ter feito. Não me arrependo de ter feito.” (Elisa)
20
A circulação de crianças se refere ao grande número de crianças que passa parte da infância ou juventude em
casas que não a de seus genitores” (Fonseca, 2002: 14).
21
Fonseca (2002), analisando a circulação de crianças em grupos populares, revela que as mães que “doam” seus
filhos podem se sentir fazendo um bem tanto para o filho quanto para a mãe adotiva, podendo esperar, inclusive,
uma retribuição desta última. Desta forma, o ato de entregar uma criança para outro criar pode estar associado a
uma idéia de sacrifício materno, sendo interpretado como uma dádiva. Vianna (2002), analisando processos de
guarda e adoção, também encontrou resultados que vão de encontro a estas interpretações. A negociação da
guarda de um filho pode ser construída, nos relatos e depoimentos, segundo a autora, como ato de preocupação
com a criança ou mesmo como ato de diva, podendo haver uma tentativa de qualificar moralmente o tipo de
abandono, inclusive por parte de assistentes sociais e dos guardiãos da criança. “Abandonar”, em alguns casos,
pode aparecer como uma estratégia de “salvar” a criança . Desta forma, pode haver, por parte dos doadores, uma
separação do ato da doação da imagem do abandono, ou seja, a doação desvinculada de um “não se importar”
com a criança que a figura do “abandono” remete.
22
“[...] hoje eu compreendo que o aborto pode ser uma solução. A irresponsabilidade é você deixar acontecer pra
que a solução seja o aborto [...]. Essa é a irresponsabilidade, é anterior ao aborto. O aborto é uma solução.”
23
Débora disse que, com relação ao seu aborto realizado no Brasil, na clandestinidade (ela fez um aborto legal
em um país em que o aborto é legalizado), ela teve “um sentimento estranho de você estar fazendo uma coisa
ilegal”, mas que, ao mesmo tempo, ela fez “porque é uma coisa justa”.
24
Além de algumas pensarem na situação em que colocariam seus filhos no mundo, Mônica também pensou na
situação em que colocaria a sua filha já nascida e Amanda pensou também na situação em que colocaria a sua
própria mãe (que lhe disse que não gostaria de ser “vó-mãe”), que reconheceu que sua ajuda seria
fundamental: “Isso foi muito importante, sabe? Ela foi muito... assim... honesta comigo, entendeu? Foi uma coisa
do momento dela, egocêntrico dela também, sabe? Ela foi muito honesta e eu... e eu acatei porque eu sabia que
eu ia depender dela e... - sabe? - eu não queria atrapalhar a vida dela [...] Eu não quero causar problema pra
ninguém, pra ninguém, entendeu? Essa história já não fazia sentido... tanto sentido pra mim, e ainda atrapalhar a
vida dos outros? Sabe? Coloquei bem assim mesmo: atrapalhar a vida dos outros... e tal? Sabe?”
57
“Não tinha como, cara, criar [ininteligível] uma criança. Tudo bem, ele ia ter
amor, ia ter comida, mas eu ia ser infeliz, eu tenho certeza, cara, e eu ia acabar
passando infelicidade pra criança também, e não ia ter estrutura – sabe?” (Valéria)
As passagens de Elisa e Valéria sugerem ainda que a colocação da questão do aborto
como um presumível conflito de interesses entre mãe e feto pode não se sustentar na fala de
algumas mulheres que praticaram a interrupção. Ou seja, o aborto, assim como o abandono de
que falam Vianna (2002) e Fonseca (2002), pode ser para algumas mulheres, pelo menos em
parte, pensado também na situação em que estas mulheres colocariam seus filhos caso
nascessem.
Assim como algumas mulheres pensaram em que situação em que colocariam seus
filhos caso nascessem, algumas entrevistadas consideraram com críticas a questão das
crianças abandonadas ou ‘não cuidadas’ da forma como uma criança ‘deve ser’ cuidada.
Débora, inclusive, se referia com muita crítica a esse ‘mal-cuidado’ que os pais podem ter
com os filhos, principalmente as mulheres de classe alta. Ela com muita crítica o fato de
algumas mulheres utilizarem o filho como um “tapa buraco” e, se referindo a uma mulher
(que foi sua amiga, que achava que toda mulher tinha que ter filho, se não, não seria
“completa”), disse:
“Ela teve um filho. O filho dela é absolutamente louco. Ela é uma péssima mãe
porque o filho virou basicamente um... é um enfeite pra dizer como bem sucedida
ela era. [...] Ela nem amamentou porque ela não conseguiu [...]. óbvio que o
garoto é despirocado das idéias. Ela tratava aquele menino assim como um bibelô
[...]. Mas ela não tinha o menor saco! O garoto foi crescendo, foi se
transformando num monstro, querendo atenção, quebrando... ele quebrava tudo
que ’tava em volta dela [...].”
Aqui, há uma condenação de uma ‘maternidade egoísta’, da atitude de usar o filho como
um “tapa buraco”, ou seja, uma crítica a uma maternidade construída de modo oposto à
idéia de maternidade altruísta. Além disso, o comentário de Débora também evoca aquela
idéia de responsabilidade utilizada por Tereza: “se você não se der conta dessa
responsabilidade e não atuar de acordo [...], esse tipo de -formação pode influenciar no que
ele vai fazer depois, futuramente”. Débora se preocupa com os “monstros” que são criados
por essa falta de atenção dos pais e também reclama da “terceirização” do cuidado com os
filhos:
58
“Eu acho que tem muita mulher que se sente nessa obrigação de ter um filho. [...]
Eu vejo o Leblon [bairro nobre do Rio de Janeiro] muito assim: aquela... o pai
perfeito, a mãe perfeita, o filho perfeito, com uma negrinha do lado vestido de
branco, entendeu? E a mãe nem toca na criança. [...] Outro dia, eu vi uma coisa
assim tipo: [...] a criança caiu, sujou a boca. Assim: ’tava do lado da mãe. A mãe
virou pra babá e falou assim: ‘Sujou a boca da neném. Limpa’. Sabe? A mulher
podia ter pego o guardanapo e feito assim [limpando a boca], mas não: tinha que
ser terceirizado. [...] eu acho escroto pra caralho, meu! criando um bando de
monstro.”
A consideração crítica de Débora com relação à “terceirização” desse cuidado com os
próprios filhos entre as classes mais favorecidas, lembra também as críticas de Mônica:
“[...] largar na creche
25
, que a creche eduque e no fim de semana tem que passear
porque trabalhou a semana inteira né? –, larga com o avô ou com a avó pra
aproveitar o final de semana. Então teve filho pra quê? Você não convive com teu
filho! Pra que teve filho? Sabe? Que loucura! Isso a gente vê muito – né? –, classe
mais abastada então, é demais. É... Eu acho um absurdo: a mulher vai pro
shopping e a babá vai passear com o neném. Burra! Não vai aproveitar o neném
[...]. Mas é opção né? Eu... é... isso eu não... não acho legal, não acho que seja...
não acrescenta – né? –, não faz o ser humano mais feliz, mais... pleno.”
O cuidar, o cuidar com uma certa ‘estrutura’, ou mesmo conviver com o filho, parecem
ser constituintes das fronteiras da maternidade traçadas por algumas das entrevistadas, sendo
que o seu oposto, o ‘não cuidar’, ou o ‘mal-cuidar’, é alvo de muitas críticas, principalmente à
mulher, à mãe
26
, o que nos remete novamente à análise de Badinter (1985), quando fala da
condenação moral da mãe que não cuida de seus filhos. Esta falta de ‘cuidado’ com os filhos é
uma crítica com relação aos pais e, principalmente, à mãe, e é também uma preocupação com
as crianças: “tá criando um bando de monstro” (Débora); “não faz o ser humano mais feliz,
mais... pleno” (Mônica).
E esta preocupação com ‘as crianças’ levou algumas das entrevistadas a justificarem sua
defesa pela legalização do aborto:
25
Rosemberg (1995), afirma que, no século XX, mesmo com uma expansão da educação compartilhada da
criança pequena, a educação e o cuidado com esta fora do contexto familiar, significa, com raras exceções, uma
solução apenas optativa e complementar (sendo diferente da escolaridade elementar): “Ao mesmo tempo em que
se expande uma educação compartilhada da criança pequena, reforça-se a crítica às instituições totais, aos
internatos e orfanatos, recomendando-se, por exemplo, a adoção como prática alternativa ao internamento.”
(1995: 172-3). Tendo em vista estas observações da autora com relação às críticas às instituições totais, pode-se
compreender melhor a crítica de Mônica com relação ao “largar na creche”.
26
Convém observar que as críticas destas entrevistadas se referiram a um certo abandono das crianças na “rua”
(Valéria e Elisa) e a um não conviver com o filho por falta de tempo (Débora) ou vontade (Mônica). Não houve
críticas à mulher que, por ‘necessidade financeira’, doa seu filho à uma instituição ou a outra pessoa. Quanto a
isso, houve uma certa tolerância, como nas falas de Amanda e Mônica, já citadas.
59
“[...] eu continuo achando que isso [o aborto] tem que ser uma opção da mulher.
Não pode ser proibido por lei. Quem é a lei? A gente tem muito mais problema a
resolver, às vezes você... E tem n pessoas que botam o filho aí no mundo, nasce e
fica aí jogado pela rua! Que?... Que isso? Pra quê?” (Elisa)
“Mas, pelo menos [com a legalização do aborto], não vai ter tanta mulher
morrendo por causa disso sabe? –, ou então tendo filhos pra criar que nem
bicho sabe? e, pô, sendo pessoas infelizes, psicóticas sabe? –,
simplesmente... [Pesquisadora] Os filhos ou as mulheres? [Valéria] É.
[Pesquisadora] Os dois? [Valéria] Os dois [risos]. Com certeza. Às vezes
nem tanto pra mulher né? –: pare e joga na rua! Que nem... gato. É isso o que
acontece muito, que a gente vê: pare e joga na rua. E, pô, em vez de se tornar [...]
um ser humano, vira quase bicho, cara, come resto de comida entendeu? –, não
sabe nem falar direito...” (Valéria)
Uma opinião mais favorável com relação à legalização do aborto também apareceu
ligada à idéia da responsabilidade. Amanda, que também utilizou a noção de
responsabilidade, defendeu o direito ao aborto com base nessa idéia, que, ao ter o filho, a
mãe “vai ter que assumir responsabilidades sobre aquela vida”:
“A mãe, ela vai depois assumir... ela vai ter que assumir responsabilidades sobre
aquela vida e eu acho que aí que implica o direito dela de querer ter ou não aquele
filho. Entendeu? Essa relação, ela é institucionalizada – sabe? –, tipo é a família, a
questão da família que a sociedade desenvolveu, de responsabilidade né?
diante daquela coisa que você vai gerar. Você não gera e joga pro mundo. [Em
outro momento:] Pro ser sair, ele vai ter que passar pelo corpo dela! Então, a
mulher tem o direito sim. As pessoas que vão dar origem àquela vida tem um
certo direito. E o direito maior é de você ter ou não ter. A partir do momento que
você teve, eu acho que é natural você assumir e ter o filho.” (Amanda)
Rosado-Nunes (2006), integrante da organização não-governamental “Católicas pelo
Direito de Decidir”, organização de católicas e feministas, ao considerar que a reprodução
deveria ser uma escolha, uma decisão livre, baseia sua argumentação também no
“reconhecimento da dignidade e da ‘sacralidade da vida’”. Segundo a autora (2006: 32),
“As características específicas do poder reprodutivo humano associam-no,
imediatamente, à anticoncepção e à possibilidade de interrupção da gravidez, do
aborto. Esses termos têm sido conotados, historicamente, de forma negativa.
Parecem indicar a negação do desejo de conceber novas vidas humanas. Mas
podemos entendê-los, ao contrário, como referidos à afirmação do valor da vida,
do respeito a ela, de tal forma que a continuidade de uma gravidez não signifique
apenas a aceitação de uma contingência biológica, mas a gestação amorosa de
uma nova pessoa.”
60
De forma semelhante à exposição da autora, o aborto pode ser pensado, não apenas por
militantes de sua legalização, mas pelas próprias mulheres que o praticam, como uma
afirmação do valor da vida, de uma vida nascida, que não mereceria, na fala de Valéria, se
tornar uma pessoa “infeliz”, “psicótica”, “quase bicho” e que “come resto de comida”. Como
vimos, uma perspectiva do não cuidado com as crianças pode ser justificativa, para algumas
mulheres, para a legalização do aborto. O contrário também pode ser considerado, conforme o
pensamento de Amanda: a atribuição de responsabilidades em cima dos pais pode ser
justificativa para o direito deles de recorrer ao aborto.
Como foi dito anteriormente, acredito que a diferenciação entre aborto e ‘abandono’ foi
feita através da diferenciação entre estes dois entes: fetos e crianças nascidas. Esta
diferenciação envolveu, nas narrativas pessoais, um “sentimento” que a gestação completa
propiciaria à gestante e a idéia de “responsabilidade”. nas narrativas abstratas, falar de
abandono envolveu uma crítica às mães ‘irresponsáveis’, que, ou não criam seus filhos, ou
criam-nos, mas não da forma como crianças e seres humanos deveriam ser tratados.
A partir de uma situação crítica da opção pelo aborto, pode-se perceber limites do
tolerável com relação à maternidade: optou-se pelo aborto ao invés do abandono. A
indignação com relação ao ‘abandono’, ou ao ‘não cuidar’, demonstra o quanto que, ao falar
em interrupção da gestação, pode estar em jogo definições, ou mesmo delimitações da
maternidade. Ao falarem de interrupção da gestação, algumas das informantes trouxeram para
a entrevista seus valores de como devem ser as relações sociais entre mães e filhos e,
conseqüentemente, como devem ser constituídos estes sujeitos (mães e filhos). Ou seja, ao
legitimar moralmente o ato do aborto, relações (ou não relações) maternais baseadas no
‘abandono’ são desqualificadas.
2.3) Cabe ao homem ou à mulher decidir sobre o aborto?
Na antropologia, foram feitos trabalhos visando explicar a desigualdade sexual. Ortner
(1996), por exemplo, considerou que, em qualquer cultura conhecida, a mulher é considerada
inferior ao homem em algum grau
27
. A autora atribuiu essa “condição subordinada universal”
da mulher em relação ao homem à consideração cultural desta como mais próxima à natureza,
enquanto o homem seria considerado mais próximo à cultura; considerando-se que a cultura
27
women are considered in some degree inferior to men” (Ortner, 1996:23).
61
recebe valor maior do que a natureza. Essa associação da mulher à natureza se deveria ao
próprio corpo feminino e às funções reprodutoras diferentes entre os sexos.
Com relação à dicotomia empregada por Ortner entre natureza e cultura, MacCormack
(1980), em texto em que dialoga com essa autora e também com Lévi-Strauss, critica a
oposição natureza e cultura, pensando nos modelos de natureza, cultura e gênero como
modelos folk, conscientemente expressados em sociedades particulares. Criticando
diretamente Ortner, que aponta que em qualquer cultura conhecida “women are considered in
some degree inferior to men(1996:23), se pergunta por quem
28
que a mulher é considerada
inferior. MacCormack (1980) coloca que as mulheres podem ser consideradas inferiores aos
homens de alguma forma, enquanto que os homens também podem ser considerados
inferiores às mulheres de outra forma, como, por exemplo, nas tarefas produtivas da divisão
sexual do trabalho.
Seguindo esta linha de compreensão da autora entre as relações de gênero, esta
dissertação não assumirá uma postura de pensar que as mulheres são consideradas ‘inferiores’
com relação aos homens, ou ‘dominadas’. Ao contrário, buscar-se-á captar a dinâmica destas
relações nas narrativas das entrevistadas, considerando que o aborto, quanto feito por
‘vontade individual’ da mulher, demonstra o quanto essa relação entre os gêneros pode ser
‘invertida’ por parte das mulheres.
Ao mesmo tempo que não se pode negar que exista uma relação desigual entre os
gêneros na sociedade brasileira, e que essa relação, em geral, tende a ‘favorecer’ os homens, a
questão da reprodução se passar no corpo da mulher pode trazer certo poder a esta, assim
como afirma Ramírez-Gálvez (1999). Dessa forma, todas as entrevistadas acham que a
escolha por fazer ou não um aborto é, pelo menos a decisão final, da mulher. As justificativas
passaram, pela categoria “corpo”, já que os processos fisiológicos de gestação e amamentação
se passam no corpo da mulher. Esta categoria “corpo” é o que daria o poder de decisão à
mulher, segundo as minhas entrevistadas, segundo as feministas e segundo outros defensores
da legalização do aborto. Antes de prosseguir a análise sobre a quem, segundo as mulheres
entrevistadas, deve ser atribuída a decisão pelo aborto, serão feitas algumas considerações
sobre as representações dos corpos femininos e masculinos.
MacCormack entende que não haveria nada de mais natural na fisiologia da mulher do
que na do homem. Muitas sociedades consideram o papel masculino na reprodução tão
essencial para a continuidade dos grupos sociais quanto o da mulher. Fertilidade e nascimento
28
By men? By women? By how many?” (1980: 17).
62
não podem ser considerados como características únicas para definir a mulher como “natural”
(MacCormack, 1996).
Outras antropólogas feministas, também apontando essas dicotomias como parte das
concepções dos próprios antropólogos, questionaram as próprias diferenças sexuais como
base para diferenciações culturais (Moore, 1993; Yanagisako e Collier, 1987). Yanagisako e
Collier (1987) não negam que existam diferenças biológicas entre homem e mulher, mas
questionam essas diferenças como bases universais para as categorias culturais “fêmea” e
“macho”. Dessa forma, não pretendem tratar nenhum “fato” material ou biológico
29
, como o
intercurso sexual, a gestação e o parto, como fatos pré-culturais, como determinantes para a
cultura. Moore (1993) percebe o próprio sexo como uma concepção cultural. A autora
também não nega que existam diferenças reprodutivas entre os sexos e que outras culturas a
percebam, mas afirma que o reconhecimento dessas diferenças não conduz necessariamente a
uma categorização binária do sexo da mesma forma como se entende no ocidente.
Assim como Moore percebe os sexos como uma concepção cultural, Laqueur (2001)
também o percebe assim, demonstrando historicamente a construção cultural tanto do
“gênero”, quanto do “sexo” (que, antes de chegar ao “modelo dos dois sexos”, passou antes
pelo “modelo de sexo único”).
Seguindo estas análises, quando, nesta dissertação, houverem referências aos corpos
masculinos e femininos, estes estarão sendo pensados não como fatos pré-culturais,
determinantes para a cultura, mas como construções culturais. Neste tópico, busco mostrar
como, a partir das representações sobre os corpos masculinos e femininos e suas fronteiras,
são traçados, pelas entrevistadas, relações de poder com relação aos direitos de decisão
reprodutiva, dada uma gravidez não planejada, além de deveres morais de compartilhamento
desta decisão.
Como já foi dito acima, todas as entrevistadas acham que a escolha por fazer ou não um
aborto é, pelo menos a decisão final, da mulher. As justificativas passaram pela categoria
“corpo”: “É ela que vai ter que estar disponível, inclusive, corporalmente né?” (Mônica). E
algumas justificaram sua resposta por ser a mulher quem “carrega” e “se doa mais”, como,
por exemplo:
29
Aspas das autoras: “[...] there are no ‘facts’, biological or material [...]” (Yanagisako e Collier, 1987:39).
63
[...] eu acho que a decisão é da mulher, que é quem carrega no corpo, e quem
carrega depois, e quem segura depois [risos]. Não é carregar, é quem segura a
barra – é a mulher.” (Elisa)
30
“É ela que carrega, é ela que ‘abre mais mão’ da... ‘Abre mais mão’ não né? –,
horrível. Se doa mais. Aquela coisa ‘mãe é mãe’, sabe? [...] A responsabilidade eu
acho que é maior da mãe. [...] eu acho que, normalmente, é assim que é [...] A
mãe que amamenta, não tem como outra pessoa fazer por você.” (Rosa)
Nestes dois casos, a decisão ser atribuída à mulher deve-se não apenas a gestação ser no
corpo delas, mas também à maior responsabilidade atribuída a elas no cuidado com os filhos,
responsabilidade que passa, a princípio (mas não apenas), pela gestação e amamentação. Essa
responsabilidade pode ser sentida pelos dados da PNAD (Pesquisas Nacional por Amostra de
Domicílios) de 1985, que afirmam que 93,6% das “crianças pequenas” (menores de 7 anos),
em Regiões Metropolitanas, vivem em companhia das suas mães (Rosemberg, 1995)
31
.
Scavone e Côrtes (2000), narram duas trajetória de mulheres que abortaram em que a
decisão do aborto, segundo as autoras, não foi resultado de uma decisão comum entre os dois
parceiros da relação, mas foi marcada pela ausência dos companheiros masculinos. Além
disso, Scavone e Côrtes apontam como os fatores sociais da escolha pela não-maternidade as
relações sociais de sexo e gênero, que impelem às mulheres a responsabilidade principal pelos
filhos (Scavone e Côrtes, 2000). No caso de algumas das mulheres que entrevistei, essa maior
responsabilização não é sentida, mas é base para que o poder de escolha esteja com a
mulher.
Interessante ainda notar a formulação, acima, de Rosa “abre mais mão”, depois
consertada por ser “horrível”. Outra entrevistada também colocou a “doação” maternal com
um sentido de “pagar o pato”: “Porque o homem fala, mas ele não... não fica grávido, ele
não... No final, quem ‘paga o pato’ é a mulher, né?” (Débora). Estas colocações demonstram
que a “doação materna” nem sempre é encarada com conotações positivas: a mulher acaba
“pagando o pato” e o homem não. A relação desigual entre os gêneros, em que um deles “abre
mais mão”, ou “se doa mais”, é base para que algumas mulheres (todas as entrevistadas)
inverta essa relação momentaneamente, passando a ter o poder de escolha de quando optará
30
De acordo com Elisa, na sua experiência, comentada anteriormente, seu ex-marido, pai de seus três filhos
“chegava em casa... ficava... recebia, brincava, ‘Ah, papai, ah!’ [afinando a voz], mas não fazia porra nenhuma
pros filhos. Entendeu? Só fazia presença, que também é bom, melhor do que não ter ninguém [...]”.
31
Heilborn (1995), pesquisando o perfil moderno” das camadas médias, que tem a igualdade como um dos
princípios éticos, também observa que entre os casais heterossexuais, cabe às mulheres uma parcela maior da
administração doméstica, apesar da identificação deste universo com a ideologia do feminismo (ao contrário da
divisão de tarefas entre os casais homossexuais estudados pela autora), o que demonstra que mesmo entre “casais
igualitários” heterossexuais, pode ser atribuída à mulher a maior parcela da administração doméstica.
64
pela maternidade. Desta forma, o direito de decisão foi baseado no individualismo, na
individualização, no sentido de que a decisão cabe à mulher, mas também na divisão de
tarefas impostas não apenas pelas diferenças corporais, mas pelas relações familiares, que
fazem, muitas vezes, com que a mulher “abra mais mão”.
Amanda, que também considerou que a decisão final é da mulher, trouxe, no entanto,
outros elementos para se pensar esse poder de decisão da mulher sobre a reprodução, baseado
também na maternidade, mas centrando no corpo de uma outra forma:
“A gente é que a luz né? –, que a vida. Então, a consciência, o canal ali é
muito mais forte, sabe? [...] O cara vai ter que respeitar isso, entendeu? Porque...
porque simplesmente é assim que acontece, gente [rindo]! [...] A coisa tá ali
dentro de você, entendeu? A relação ali den... você e aquela coisa ali gerando,
sabe? Eu não sei, eu fiquei muito pouco tempo grávida, mas as pessoas que eu
conheço e que engravidaram é uma... [passa a mão pela barriga em movimentos
circulares] é uma sensação muito doida que contam [...] que você sente mesmo
uma outra vida dentro de você, sabe? Então não tem como você não respeitar a
decisão da mulher – entendeu?”
Amanda pensou o direito de decisão final da mulher a partir do “canal muito mais forte”
desta com relação à “vida”
32
. Sua visão coincide com a análise de Strathern (1991), que
afirma que os euro-americanos pensam a criança como um ser formado pelas contribuições
tanto do pai, quanto da mãe, sendo, no entanto, maior a contribuição da mãe por causa da
gestação, de forma que a mãe acaba por ser mais mãe do que o pai é pai
33
. Assim, segundo
Strathern, o gênero dos pais é percebido como diferentes, o que leva à questão de quem tem
mais ou menos envolvimento do que o outro, sendo, por isso, um mais parente do que o outro
(Strathern, 1991). O envolvimento da mãe, portanto, é concebido como maior ao do pai,
que a gestação ocorre no corpo dela: “o canal ali é muito mais forte” porque “simplesmente é
assim que acontece” (Amanda).
As justificativas apontadas pelas entrevistadas acima atribuíram a decisão à mulher pela
sua maior doação e responsabilidade (que passa, em princípio, pela gestação e amamentação)
e uma relação afetiva com a “vida” que está sendo gerada. Como foi visto no tópico anterior,
essas mesmas concepções, a idéia de responsabilidade e a relação afetiva com o feto, podem
impedir, para algumas entrevistadas, a “doação” de seu filho, fazendo-as optar pelo aborto.
32
Em outro momento da entrevista, me falando da maternidade, Amanda disse: “é uma ligação muito forte da
mãe com a vida: ela que gera, ela que continua. E ela tem oportunidade de dar aquilo pra um serzinho ali, ou
alguns [...]”.
33
Cabe lembrar aqui a frase de Rosa: “Aquela coisa 'mãe é mãe', sabe?”.
65
Ao atribuírem à categoria “corpo” a maior doação e responsabilidade da mulher e uma
relação afetiva desta com a “vida”, as entrevistadas utilizaram-na para legitimar o poder de
decisão da mulher.
Ramírez-Gálvez (1999), entre seus entrevistados, percebeu que estes atribuíam a
decisão pelo aborto, em caso de conflito, à mulher, sendo que seus argumentos estavam
permeados pela questão do corpo. Segundo a autora (1999: 129), “A gravidez, como
concebida numa perspectiva ocidental é um fato inscrito (exclusivamente?) na corporalidade
das mulheres, o que lhes concebe preeminências e domínios, ao menos neste grupo”. Com
relação às mulheres que eu entrevistei, pode-se perceber, a partir do aborto, e, principalmente,
da decisão final pelo aborto, as construções e manutenções das fronteiras dos corpos
femininos e masculinos
34
é a mulher “quem carrega no corpo”, “o canal ali é muito mais
forte”, é a “impossibilidade do homem transferir a gestação pro próprio corpo”. Essas
fronteiras
35
, tão ‘nítidas’ e ‘óbvias’, são, inclusive motivos de riso, quando violadas, para uma
das entrevistadas:
“Agora, o cara embargar a mulher de tirar, é complicado. ‘Então, carrega aí!’ Ah,
não dá, né? O poder com a mulher com relação a isso. [Pausa] ‘Carrega aí!
[rindo] Você quer ter? Então toma! Carrega aí.’[rindo].” (Valéria)
Essa divisão entre os sexos pode ser justificativa, inclusive, para que a opinião
masculina seja desconsiderada quanto à legalização, como coloca Débora: “Eu acho que o
homem, primeiro, não tinha que optar. Minha mãe que falava isso: ‘quem é o homem pra
optar se a mulher pode ou não ter aborto? O homem não...’”.
As relações de gênero vem suscitando discussões acerca do poder dos homens e das
mulheres e, com relação à reprodução, estas discussões ficam mais evidentes. Strathern
(1991), com relação às novas tecnologias reprodutivas, chama atenção para as confusões
decorrentes da legislação entender como a mãe verdadeira a mãe que pare, sendo o doador
do esperma considerado pai, embora a mãe doadora do óvulo fique de fora; enquanto Stolcke
(1998) afirma que parlamentares europeus visavam assegurar o direito do marido de não
registrar um filho que a mulher fizesse por inseminação artificial com o sêmen de outro
34
Estas diferenças corporais acabam realmente por reforçar o papel da mãe e a sua relação com os filhos. Desta
forma, Duarte (1995) fala que a penetração do individualismo na família vem afirmando uma “consangüinidade
uterina” e uma “relativa ‘expulsão do homem’ das novas unidades de reprodução social” (1995 :37).
35
Mônica, uma das entrevistadas, demonstra bem essa fronteira corporal: "Tem um momentinho ali que é uma
merda - que é você e você mesmo e acabou - que é na hora que você vai subir na porra da maca pra fazer o
negócio. Ali, acabou. Ali, por mais que você tenha o apoio de todo o mundo, é você e você mesmo, não adianta,
o bicho pegou e é contigo. Você tá no olho do furacão sozinho mesmo e não vai ter jeito."
66
homem, caracterizando, inclusive, a situação como uma espécie de adultério, ou seja,
tentavam resguardar os direitos dos maridos com relação à possibilidade das esposas terem
um filho sem o seu consentimento.
A questão do aborto, assim como as novas tecnologias reprodutivas, é igualmente
polêmica. No caso do aborto, a gestação se passar exclusivamente no corpo de um dos
genitores pode gerar conflitos na medida em que a interrupção de gestação pode ser querida
por um deles e não querida pelo outro. Débora coloca em questão, inclusive, o fato de homens
legislarem em questões relativas às mulheres, como seria, para ela, o aborto. A informante
também considera que a lei contrária ao abortamento foi feita por homens, e “quem se fode
são as mulheres”: “Ah, cara, isso é tudo hipócrita! Isso é lei que foi feita por homem!”
36
.
Dessa forma, são a partir das fronteiras corporais que são traçados direitos de decisão.
Contudo, em algumas narrativas são traçados também deveres de compartilhamento desta
decisão.
Apesar de atribuírem o poder de decisão à mulher, todas, com exceção de Elisa,
colocaram que o ideal seria “o pai” e “a mãe” decidirem juntos. Algumas enfatizaram a
preferência pela mulher por causa do “corpo”, como foi visto acima, sendo que uma delas
considerou a “crueldade” desta situação com os homens:
“É uma decisão em parceria né? mas, nos fins das contas, o ‘sim’ e o ‘não’
final têm que ser da mulher né? É ela que vai ter que estar disponível inclusive
corporalmente – né? Então, não tem muita saída. Isso é aum pouco cruel com o
homem, eu acho, que eu conheci vários que não concordavam e tiveram que
aceitar por impossibilidade de transferir a gravidez pro próprio corpo – né? Então,
acaba sendo uma decisão muito mais da mulher mesmo.”
Apesar de serem a partir destas fronteiras que são traçados direitos de decisão, também
são traçados, em algumas narrativas, tanto a convocação da “comunidade masculina” a
participar, como fala Mônica, quanto deveres de compartilhamento da decisão por parte da
mulher, como falam Amanda e Débora. Ou seja, as três informantes, apesar de atribuírem o
direito final à mulher, acham que tanto a mulher quanto o homem devem participar da
decisão. Segundo Mônica,
36
A informante considera que a lei contrária ao abortamento foi feita por homens, e “quem se fode são as
mulheres”, mas considera também que tem muita mulher contrária ao abortamento: “Mas eu acho que o Brasil
fica com umas [ininteligível] - sabe? - que não diz respeito à nada. É uma perda de tempo por causa daquele
bando de homem conservador que tem no congresso? Aí quem se fode são as mulheres, cara. E tem um monte de
mulher que é contra!”.
67
“E acho que o homem deveria começar a se posicionar de uma forma mais clara a
respeito. Por que o que a gente é que o cara, quando não... não concorda, ele,
de certa forma, fica meio revoltado, se sentindo injustiçado né? Mas, por outro
lado, ele também... há... não há muita mobilização masculina nesse sentido, como
se fosse uma responsabilidade e uma decisão única e exclusiva da mulher. [...] Na
hora que o bicho pega, é mais fácil que eles não tenham que tomar a decisão final
também, né? Acho que tem um pouco de nebulosidade ainda nessa questão. A
comunidade masculina tem que começar a pensar melhor nisso, como uma
realidade dela também. Que o aborto é colocado como uma realidade só da
mulher. Não, não é. A mulher não gera filho sozinha, pô.”
Mônica analisa de outra forma esse poder de decisão da mulher. Ao mesmo tempo que
considera que o homem fica “se sentindo injustiçado” caso não concorde com a escolha da
mulher, por outro, parece atribuir a sua postura de ausência uma forma de lidar com a questão
que seria “mais fácil”, por não ter que carregar o peso da decisão. Em outro momento,
Mônica, me dizendo que, com a sua experiência, percebeu que, no homem, a sensação de
alívio, com o aborto, é a mais importante, reclama que a gravidez fica apenas na mulher, tanto
com relação à interrupção quanto com relação à anticoncepção:
“Isso vai mudar quando essa integração
37
for outra, quando houver uma
discussão diferente. Por enquanto, é isso mesmo né? –, continua sendo assim:
uma responsabilidade da mulher, do universo feminino, uma coisa...
[Pesquisadora] Você não concorda com isso? [Mônica] o, porque não é
né? Deveria ser dos dois mesmo né? Mas... é... nossa sociedade é muito física
né? –, muito estética e... a gravidez fica muito na mulher né? Até a
anticoncepção – né? Não é nem a interrupção: a anticoncepção continua
ficando muito em cima da mulher – né? É fogo isso.”
Assim como as responsabilidades com o cuidado com os filhos são atribuídas mais às
mulheres do que aos homens, Mônica também considera a maior responsabilidade atribuída a
estas com relação à reprodução em geral, o que ela acha que deveria ser dos dois, e lamenta:
“É fogo isso”.
Assim como Mônica, também Amanda e Débora, mesmo considerando que é a mulher
quem decide no final, pensaram que a decisão deve ser tomada junta, e atribuíram um sentido
moral a isso. A primeira, Débora, acha que a decisão é mútua, mas por fim, quem decide é a
mulher porque “o corpo” é dela, considerando que:
37
Mônica utiliza seu conceito de integração para falar da relação entre a mãe e o filho (ver o tópico anterior).
Com essa fala, portanto, ela amplia este conceito para o envolver também homem.
68
“É complicado. Eu acho que essas coisas são muito difíceis. Eu acho que é uma
questão de negociação – entendeu? Eu acho que num... eu acho que num casal [...]
pô, tem que... sei lá, cara, tem que ter uma maneira. Não é possível são pessoas
adultas, pessoas que pensam, entendeu?”
Amanda disse: “É óbvio que, assim, ela [a mulher] sempre vai ter maior controle
sobre o corpo dela, entendeu? que essa questão envolve mais do que isso porque você não
faz um filho sozinho também. [...] Então, eu acho que... é... é di... dentro do meu... da minha
consciência, eu acho que é di... é mais digno, ou mais certo, assim... você... acho que faz
sentido você comunicar àquela pessoa e a decisão ser tomada junta”.
A mesma informante também, ao pensar na situação da mulher querer fazer o aborto e o
homem não, disse ainda: “Eu não sei como é que ia ser isso, ia ser muito difícil porque um vai
ter que convencer o outro [...]”. Ou seja, estas duas últimas entrevistadas, Débora e Amanda,
consideraram mais ‘correto’ que a decisão seja tomada em conjunto. Mesmo que a mulher e o
homem não partilhassem da mesma ‘vontade’, seria “uma questão de negociação”, “um vai
ter que convencer o outro”, o que demonstra o quanto a mulher, para elas, deveria
compartilhar essa decisão que não envolve somente ela, mas também seu parceiro. Dessa
forma, elas mostram um ‘modo correto’ de agir com relação à tomada de decisão.
Débora falou ainda de dois casos que ela conhece que a mulher quis ter o filho sabendo
que seus parceiros não iriam querer, e disse:
“Eu acho isso sacanagem porque ninguém é obrigado a ser pai. [...] Eu fiquei
pensando depois: qual seria a opção? A opção seria ter o filho e não falar pro cara!
Sei lá! [...] Eu não sei, cara, ainda bem que eu nunca tive nessa situação e nem
quero ter sabia? porque deve ser horrível, deve ser horrível você não querer...
Igual eu... Imagina eu não querer ter filho, vem o meu marido e tem um filho?
[...] Mas eu acho que quem faz isso meio despirocado da cabeça sabia? [...]
Acho que ninguém pode ser obrigado a ser pai ou mãe não é? Que tipo de filho
você vai criar? Sabe? Não é maneiro. Acho que se uma criança que nasce de uma
coisa dessa já nasce meio... ferrada – né? Não acha não?”
As mulheres entrevistadas nesta pesquisa colocaram que a decisão pelo aborto deve
pertencer à mulher, no entanto, algumas colocaram o dever moral desta de compartilhar a
decisão com o parceiro e, no caso de conflito, deveria haver uma espécie de “negociação”. O
caso narrado acima por Débora mostra o quanto ela atribui responsabilidade à mulher por ter
decidido ter o filho sabendo que o parceiro sexual não gostaria de ter filhos, achando
“sacanagem” por parte da mulher e colocando-a como “despirocada”. Ela não apenas acha
que a mulher não deve ser obrigada a ser mãe, quanto acha que o homem não deve ser
69
obrigado a ser pai. A solução que ela pensou para o caso foi que a mulher poderia ter o filho
(ou seja, ser mãe, não ser obrigada a abortar), mas não falar para o parceiro, de modo que este
não se tornaria pai.
Além de colocar a decisão arbitrária por parte de um dos dois em um casal como
“despirocada”, ou seja, está fora dos padrões de normalidade, Débora se preocupa com o
próprio filho do casal, com o seu sofrimento: “Eu não condeno não, eu acho que cada um faz
o que quer entendeu? –, o que sua cabeça mandar. Se você acha que você fazendo certo,
você faz. Agora, não pode deixar as pessoas sofrerem, principalmente o filho, porque eu acho
que o filho não tem nada a ver com isso – né?”. A entrevistada atenta, com isso, para a noção
de responsabilidade.
O debate sobre o aborto tem sido feito, principalmente, com base nos direitos da mulher
versus os direitos da criança, sendo que o direito da criança seria o de nascer. Débora insere
na discussão a responsabilidade que os pais têm com relação ao sofrimento das pessoas (dos
pais entre si) e, ainda mais, de seus filhos. Débora, na fala acima, se preocupa com o
sofrimento do filho gerado em uma situação em que o pai não gostaria de ser pai.
Como foi dito anteriormente, Débora considera que ter filho “é uma coisa que você
sente: ah, eu quero ter um filho” e problematiza quem tem filho sem essa vontade: “Agora, se
você não quer ter, pra que que você vai ter? Olhar pr’aquele filho e falar: ‘nossa, pra que que
eu te tive?’?”. Estas colocações remetem à discussão do tópico anterior sobre a preocupação
com as pessoas que são geradas, colocando, no aborto, certa aura de legitimidade quando
utilizada esta justificativa. Tanto a ‘vontade individual’ arbitrária de ter o filho sem a
‘vontade’ da parte do pai levaria, segundo Débora, ao sofrimento alheio, quanto a não
‘vontade individual’ de ter o filho também seria uma situação ruim caso este filho realmente
nascesse.
Como foi visto, considerações sobre a prática do ‘abandono’, condenada pelas
entrevistadas, e a tomada da decisão em parceria com o genitor, o que demonstra que o aborto
é uma prática que envolve muitas considerações morais. Sobre as moralidades, Vianna (2002)
enfatiza a necessidade de pensá-las recuperadas na sua dimensão de ação social,
evidenciando, com isso, o caráter dinâmico da moral. Assim, tenho buscado pensar, neste
capítulo, nas representações do aborto em sua forma dinâmica, produzidas e reapropriadas
pelos atores sociais.
70
A prática do aborto é bastante colocada, idealmente, como algo que não se deseja
38
.
Mas a prática do aborto não está pré-definida como algo nocivo. Muitas vezes pode-se buscar
o ‘mal menor’. Há, por exemplo, representações do aborto dicotomizadas entre a regra do
“fez, tem que assumir”, recusando o aborto como um “assassinato de uma pessoa”, e a
estratégia “assume-se quando dá”, vinculada a uma tolerância ao aborto (Leal e Lewgoy,
1995)
39
.
As entrevistadas referiram achar a contracepção melhor do que o aborto, aparecendo
este, portanto, como uma segunda alternativa. O aborto em si não é considerado algo bom,
conforme foi visto no primeiro capítulo, mas pode ser visto como um ‘mal menor’, ou, como
considerou Amanda, como uma “solução” frente à “irresponsabilidade” anterior. A
moralidade em torno desta prática depende, então, das experiências concretas dos atores
sociais. No caso das mulheres entrevistadas, como foi dito acima, há a demarcação de
fronteiras entre o aborto, ato que optaram, e o abandono, sendo o primeiro preferível para
elas, em detrimento do segundo.
Além de considerações morais sobre os motivos de se fazer um aborto, houve
considerações também sobre a quem deve ser atribuída à decisão por este ato. Apesar de a
decisão final ser atribuída à mulher, a esta caberia, para algumas entrevistadas, o dever moral
de compartilhamento desta escolha (porque “você não faz um filho sozinho” ou porque
“ninguém pode ser obrigado a ser pai ou mãe”) e, além disso, esta decisão deve ser feita
levando em consideração, segundo Débora, o “sofrimento” das pessoas, principalmente do
“filho”. Assim, a decisão de ter ou não ter o filho deveria, para algumas entrevistadas, levar
em conta outros fatores, como a “responsabilidade” no cuidado com os filhos e a tomada da
decisão em parceria com o genitor.
Como será visto no próximo capítulo, apesar das entrevistadas, em geral, serem
favoráveis à legalização do aborto, elas apontaram uma série de ‘regras’ para esta prática,
38
Como colocado no capítulo 1, apesar de haver uma opinião favorável com relação à legalização do aborto,
esse não costuma ser colocado como a primeira opção em termos de controle da natalidade e da fecundidade,
sendo a contracepção considerada a melhor opção.
39
Leal e Lewgoy (1995), em pesquisa com homens e mulheres sobre práticas reprodutivas e contraceptivas em
vilas populares de Porto Alegre, falam de uma dicotomia entre a regra e a estratégia, utilizando a distinção feita
por Bourdieu sobre estas. Os autores mostram como um mesmo informante se declarava contrário ao aborto em
um plano normativo e discursivo, mas, no nível da prática, percebia o aborto como uma possibilidade virtual,
podendo ser realizado em determinadas circunstâncias. A regra gira em torno do “fez, tem que assumir”,
recusando o aborto como um “assassinato de uma pessoa”; enquanto que a estratégia “assume-se quando dá”
está vinculada a uma tolerância ao aborto, subordinando este à viabilização de um projeto. Desta forma, segundo
os autores, haveria um período liminar em que o corpo apresenta alterações, como o atraso da menstruação,
sendo a gravidez encarada como uma das possibilidades. Neste período, a percepção de estar gestando uma
“pessoa” dependeria da avaliação das possibilidades de concretização de um projeto.
71
fazendo, com isso, mais considerações morais: o aborto “consciente”, não “banalizado” e não
feito com a gestação avançada.
72
CAPÍTULO III
MORALIDADES E LEGALIDADES
3.1 As entrevistadas e a regulamentação legal
Este capítulo visa mostrar que as entrevistadas, que foram, em geral, favoráveis à
legalização do aborto, não deixaram de traçar algumas situações em que a prática do aborto
pode ser encarada como moralmente incorreta. No primeiro tópico, mostro alguns dos
argumentos destas mulheres com relação à legislação e faço também uma exposição da
questão e, no segundo e no terceiro tópicos, discuto duas situações em que o aborto foi objeto
de condenação moral por parte das informantes: a “banalização” e o tempo limite para a sua
realização.
No capítulo anterior, foi visto que as informantes tiveram todo um trabalho de
construção da legitimidade das suas justificativas para realizar o aborto, ou seja, apesar de
violarem uma norma de comportamento da proibição moral e legal do aborto, elas acionaram
outras normas de comportamento, como o valor do individualismo e a linguagem em torno da
maternidade e da família, de modo a justificar a interrupção da gestação
1
. Assim, ao
abortarem, as entrevistadas optaram por agir na ilegalidade, violando uma norma social, mas,
por outro lado, elas justificaram suas atitudes por meio de outras normas sociais. Elisa, por
exemplo, perguntada sobre o que ela sentiu com relação à ilegalidade da clínica, justificou sua
atitude de realizar o aborto na ilegalidade apontando para a importância que o fato de fazer o
aborto tinha para ela, ou seja, vendo um verdadeiro imperativo moral em realizá-lo:
“Eu não me preocupei com isso não, que se era proibido, se não era proibido. Eu
não ’tava nem um pouco preocupada. Eu queria fazer, achava importante fazer,
consegui quem fizesse e ponto final. Não me preocupei nem um pouco de estar
fazendo uma coisa errada, legalmente falando.”
1
Como foi visto, segundo Moore (1978), os indivíduos fazem parte de vários campos de organização social, que
têm suas próprias regras, costumes e meios de coerção, de modo que a regulamentação formal não controla todos
os comportamentos em uma sociedade, já que elas não têm o monopólio sobre outros tipos de sanções (Moore,
1978). Utilizando a análise da autora, o caso do aborto também pode ser pensado como inserido tanto em normas
legais, quanto em outros tipos de normas.
73
Elisa, ao dizer que o seu segundo aborto foi por “erro” dela de ter arriscado engravidar,
diz com convicção: “Eu não vejo outra alternativa pra mim na época. Eu tinha que ter feito.
Não me arrependo de ter feito”. Fazer o aborto, para Elisa, não encontrava apenas uma
legitimação moral: foi um imperativo.
Além da construção da moralidade dos seus atos pessoais, algumas informantes fizeram
um trabalho de construção da própria legitimidade do aborto em geral. Mônica considerou
que a proibição do aborto é “injusta” e Débora disse que, apesar do “sentimento estranho” de
estar “fazendo uma coisa ilegal”, ela recorreu ao aborto “porque é uma coisa justa”
2
.
Também, a maioria das entrevistadas se posicionou favorável à legalização do aborto.
Em verdade, a única que foi contra foi Tereza
3
. As demais utilizaram, em geral, a linguagem
dos direitos, colocando que a mulher deve der o direito de recorrer ao aborto, de modo
semelhante ao princípio de autonomia da mulher sobre o próprio corpo, sendo colocado ainda
que o caso do aborto é uma questão íntima, pessoal: “Eu era a favor da legalização porque eu
acho que isso é uma questão pessoal” (Amanda).
Além disso, várias entrevistadas se referiram à laicidade do Estado brasileiro,
considerando que a lei proibitiva do aborto está baseada numa crença religiosa, e que, por
isso, este não deveria ser proibido. A questão da laicidade do Estado, como foi visto, também
é um dos argumentos bastante utilizados para a reivindicação da legalização do aborto.
Outra noção utilizada foi a questão da saúde pública, que é outro argumento bastante
utilizado para a defesa do aborto. Dessa forma, as entrevistadas também consideraram a
situação das mulheres que fazem o aborto inseguro, apontando que há índices altos em relação
às seqüelas decorrentes dessa prática, do risco de vida que as mulheres correm e Débora,
2
bora contrasta essa noção de justiça a aspectos relacionados ao preço cobrado pelo aborto e à situação de
ilegalidade em que este se encontra: "[...] é um sentimento estranho de você estar fazendo uma coisa ilegal. Mas,
ao mesmo tempo [...] eu fiz porque é uma coisa justa. Então, eu, na minha percepção sabe? , eu acho errado
você ter que pagar mil reais pra fazer um aborto! [...] Eu acho errado você ter que ligar... não pode falar o nome
do negócio [...], tem todo um lance que você aprende ali.". Portanto, a observação de Débora quanto à noção de
justiça relativa à interrupção da gestação parece ser de caráter geral, ou seja, o aborto em si é colocado como
algo "justo" ("é uma coisa justa"), contrastado à situação de ilegalidade e do preço cobrado por ele ("eu acho
errado").
3
A entrevistada se posicionou contrariamente à legalização, se feita atualmente, porque acredita que a proibição
do aborto "presta um serviço à sociedade", pois, segundo ela, "a gente tem que ter um pouco mais de consciência
com o que a gente faz" e a "sociedade como um todo" não teria porque "tem muita gente que não tem condições
de arcar com as próprias decisões, com as próprias conseqüências". A proibição da prática provocaria "essas
discussões [sobre o aborto]" e muitas pessoas acabariam tendo acesso a elas, o que as faria refletir sobre a
questão. Apesar de ser contrária à legalização do aborto, se feita atualmente, Tereza acha que é "a sociedade"
quem deve decidir sobre isso e não apenas "os intelectuais, "os políticos", ou "a Igreja". Além disso, a
entrevistada pensou que, no futuro, quando as pessoas estivessem "com mais cultura, com mais educação, com
mais responsabilidade pra poderem tomar suas decisões realmente conscientes do que estão fazendo", o aborto
poderia ser legalizado.
74
inclusive, desvinculou o aborto da esfera da “política” para colocá-lo na esfera da “saúde
pública”:
“Agora, o que não pode é a situação que hoje em dia – né? –: a mulherada fica
tomando chá de não-sei-o-que, um monte morre, e acaba todo o mundo pagando,
porque vai todo o mundo parar no SUS! Custa uma puta grana e fora as vidas que
custam: é um risco! Sabe? É ridículo isso. [...] É uma questão que não devia ser
política: é uma questão de saúde pública.” (Débora)
A questão da “vida”, considerada por Débora neste trecho acima, também foi
considerada por outras entrevistadas. Como foi visto, a “vida” ocupa um papel central no
debate, não sendo questionada por nenhum dos lados envolvidos na discussão. Ela faz parte,
portanto, de uma linguagem moral comum a ambos os lados, recebendo também atenção entre
as entrevistadas para a justificativa da legalização do aborto.
É dentro deste quadro de referências, feitas pelas entrevistadas, com relação à situação
do aborto no Brasil que elas narraram suas experiências. Algumas das narrativas de aborto
mereceram não apenas um trabalho de justificativa com relação à própria situação em que se
encontravam, mas demandaram considerações sobre à própria ‘imoralidadeda penalização
da prática.
Dessa forma, o aborto foi até mesmo considerado algo não criminoso, mesmo em sua
dimensão de ilegalidade. Quando perguntei a Sabrina porque que ela achava que o aborto é
crime no Brasil, ela me disse que o aborto não é crime:
“Eu não acho. Não, pra mim, não é crime. Eu não acho que eu cometi um delito,
uma... uma ação ilícita. [...] Eu não acho porque é ilegal, é crime. Eu não acho.
Crime, pra mim, são outras coisas.”
Sabrina busca retirar seu ato da esfera do “crime” e, com isso, demonstra como a
categoria “crime” pode ser relativizada. Débora, que me falou que fez o aborto porque “é
uma coisa justa”, também disse, espontaneamente e com tom de indignação, que o aborto
deveria ser legalizado no país, que é “uma irresponsabilidade do governo brasileiro” não
legalizar o aborto, e, além disso, inverteu a situação do “crime”, falando que a situação da
ilegalidade do aborto é “criminosa”:
“Eu acho assim, cara: é uma situação escrota você estar grávida sem querer, e
você ainda tem que encarar uma situação horrível, que é a situação do aborto em
si eu acho que é irresponsabilidade do governo brasileiro não legalizar essa
75
merda entendeu? [...] Quem que morre? É pobre e preto! Você acha que a
patricinha ali do Leblon vai morrer de aborto? Não vai! Entendeu? Mas, de
repente, eles até gostam, porque diminui a quantidade de pobre e preto no Brasil,
né? Então, é uma política quase que racista! Entendeu? Você fingir que não
vendo uma coisa que na cara?! Eu acho criminosa isso, eu acho crime. [Mais
adiante:] Então, eu acho que é ilegal por irresponsabilidade! [...] Eu acho
criminoso o aborto ser ilegal no Brasil. Eu acho racista, criminoso, ’tá
entendendo?” (Débora)
Assim, algumas entrevistadas mostraram um trabalho de legitimação moral do ato do
aborto ilegal. Elisa não se importou com a ilegalidade porque ela achava importante fazer o
aborto; Sabrina não considerou seu ato um “crime”; Mônica disse que a proibição do aborto é
“injusta”; e Débora disse que o aborto é “justo” e que “crime” é a ilegalidade do aborto. Com
relação à Sabrina e Débora, percebe-se ainda que a categoria “crime” não se aplica apenas aos
textos legais, mas, baseada em avaliações morais, é objeto de disputa por seus significados e,
inclusive, pode servir como categoria de acusação ao próprio governo brasileiro, como
explicita a entrevistada acima.
Contudo, apesar da opinião, em geral, favorável com relação à legalização do aborto,
todas as informantes falaram que a contracepção é melhor do que a interrupção da gestação e,
além disso, algumas delas pensaram em limites para esta prática e/ou para a legislação: foi
colocada a questão do tempo limite para se realizar um aborto e uma preocupação com a
“banalização” da prática. Estas considerações demonstram não apenas uma disjunção entre
moralidade e a legalidade, mas também nuanças em torno das moralidades envolvidas no
aborto.
As entrevistadas foram, em maioria, favoráveis à legalização do aborto, o que não quer
dizer, no entanto, que, em algumas situações, elas não o considerem moralmente errado.
pesquisas que também apontam para uma disjunção entre moralidade e legalidade no caso do
aborto, mostrando que pode-se considerar que este não deve ser punido legalmente, mas
havendo, mesmo assim, considerações sobre a imoralidade da prática. Assim, Scott (1989)
trata de uma pesquisa visando captar a opinião do público sobre a relação entre a aprovação
legal do aborto e a sua preocupação moral. Ela afirma que quase 40% dos respondentes
favoráveis à legalidade da interrupção da gestação tinham alguma condenação moral à prática.
Dados de uma outra pesquisa sobre a legalidade e a moralidade do aborto, em que foram
entrevistadas mulheres americanas (Henshaw e Martire, 1982), mostrou que a maioria das
mulheres dessa pesquisa concordou com a legalidade, mas 60% dos respondentes,
aproximadamente, disse que o aborto é errado (embora justificado em algumas
76
circunstâncias). Desta forma, mesmo quem é favorável à legalidade da interrupção da
gestação pode recriminá-la moralmente, o que aponta para um descolamento entre as
legalidades e as moralidades.
Além disso, pesquisas também têm apontado o quanto o aborto pode ser condenado,
embora aceito em determinadas situações (Leal e Lewgoy, 1995; Ribeiro, 1994)
4
, o que
evidencia uma dinâmica em torno das representações da prática do aborto. Retomando a
reflexão de Vianna (2002) sobre a moral, a autora afirma que esta não pode ser entendida
como um conjunto de comportamentos e valores claramente definidos, pois falar em moral
implica em falar “na produção, veiculação e embate de significados; implica retraçar
dinâmicas entre representações, bem como entre os agentes sociais nos quais elas são postas
em ação” (2002: 194), devendo ser encarada, portanto, como “uma linguagem em uso”, como
um “objeto de luta”, recuperada na sua dimensão de ão social (2002: 197). Para isso, a
autora pensa em “moralidades”, focado a dimensão dinâmica tanto da construção, quanto a
veiculação das representações morais, ou seja, entendendo-as, portanto, como dependentes da
ação social.
Tendo em vista estas considerações sobre as moralidades com as quais Vianna trabalha,
este capítulo, visando pensar o quanto que o aborto, mesmo se aceito, pode ter várias
situações em que pode ser condenado, busca captar as representações em torno dele como
“uma linguagem em uso”, pensando a moral dentro da sua dinâmica de ação social. As
moralidades em torno do aborto não são pré-definidas e dependem dos contextos nos quais
são produzidas. Nesse sentido, a contracepção foi vista como algo melhor do que o aborto,
mas, ao mesmo tempo, dada uma gestação não planejada ou indesejada, a maioria das
entrevistadas tendeu a aceitá-lo. Por outro lado, a “banalização” do aborto e a sua realização
em uma ‘gestação avançada’ foram condenados por algumas das entrevistadas, o que
demonstra o quanto a aceitação do aborto pode depender das circunstâncias em que este é
realizado. Além disso, uma das entrevistadas, Valéria, considerou que a interrupção de uma
‘gestação avançada’ é “péssimo”, mas ela considera melhor “matar” o “neném” do que deixar
que ele seja ‘abandonado’, enfatizando o quanto ocorre todo um conjunto de possibilidades
morais dependendo da conjuntura em que a pessoa se acha inserida.
4
A pesquisa referida acima de Henshaw e Martire (1982) também mostrou que 60% dos respondentes,
aproximadamente, disse que o aborto é errado, mas somente uma minoria do público disse que o aborto é imoral
em todas as circunstâncias. Dessa forma, muitas mulheres que consideram o aborto moralmente errado não o
consideram em termos absolutos, de forma que o aborto pode ser visto como uma solução difícil, embora
aceitável em muitas situações (Henshaw e Martire, 1982). Assim, essa pesquisa constatou que, mesmo entre as
entrevistadas contrárias à legalidade do aborto, dois terços não o considera moralmente errado em caso de risco
para a saúde da mulher, estupro, incesto, ou defeito genético grave do feto. Dessa forma, situações, mesmo
entre os contrários à legalidade do aborto, em que este não é considerado como moralmente errado.
77
Os próximos tópicos, que trabalham com duas dessas reprovações em torno do aborto, a
“banalização” e a interrupção de uma ‘gestação avançada’, visam explorar os motivos pelos
quais se dão essas reprovações entre as entrevistadas.
3.2 O tempo limite
Para o aborto, o tempo gestacional é uma questão elementar que inclusive a sua
definição passa pela noção de tempo. O abortamento é considerado como a interrupção da
gestação até a 20ª ou 22ª semana (a contagem das semanas é feita a partir da última
menstruação), pesando o produto da concepção menos do que 500 gramas (Brasil, Ministério
da Saúde, 2005). A própria definição de aborto passa, portanto por critérios de tempo de
gestação, além do peso do feto
5
.
Todas as entrevistadas tiveram, de acordo com a visão delas, uma preocupação com
realizar a interrupção rapidamente. Elas realizaram o aborto dentre cinco semanas a três
meses de gestação
6
e basearam suas respostas sobre buscarem realizar o aborto o mais rápido
possível falando, além da preocupação com a sua própria saúde, da preocupação com ter um
envolvimento afetivo com o feto e da preocupação com o que se aborta.
A preocupação com a própria saúde está relacionada às técnicas médicas de interrupção
da gestação, que considera-se que interromper uma gestação inicial causaria menos danos à
saúde da gestante, e não será aprofundada nesta dissertação. Já com relação à preocupação
afetiva com o feto, algumas entrevistadas falaram que queriam fazer logo o aborto para não
ficarem “imaginando”, “fantasiando” com relação a uma gravidez que seria interrompida.
Concentrarei minha análise, no entanto, no último motivo apontado, ou seja, na construção
social do feto, que, dependendo do que seja o ‘feto’, o ato pode ser caracterizado como
aborto, parto prematuro ou mesmo assassinato, além do material obtido com as entrevistas ser
mais rico nesta questão do que nas outras.
5
O digo Penal brasileiro, contudo, não especifica o que seja o aborto, mas o classifica como crime contra a
“pessoa” e contra a “vida”.
6
A única que realizou com três meses, Sabrina, tentou o aborto, anteriormente, com o medicamento “Cytotec”,
achando que havia conseguido o seu objetivo. Um mês depois descobriu que ainda estava grávida, realizando o
aborto em clínica (sobre o “Cytotec”, ver nota 8 deste capítulo).
78
A maioria das entrevistadas fez o aborto logo que descobriu a gestação. Débora, por
exemplo, disse que contava 4 ou 5 semanas de gestação, enquanto Rosa, pouco mais de um
mês. Quanto ao feto, estas duas entrevistadas me falaram que não era “nada” ainda
7
:
“O que que tem em cinco semanas? Não tem nada, um sanguezinho com umas
moléculas lá, sei lá o que que é... célula, sei lá.” (Débora)
“[Rosa, contando da dor que sentiu ao utilizar “Cytotec”
8
, disse que sua mãe]
falava que a dor que eu estava sentindo era igual quando você vai ter filho. [...] Só
que, na verdade, não tem nada né? pra sair. É uma expulsão do próprio
organismo com o feto. Mas uma dor insuportável, insuportável.” (Rosa)
Esta fala de Rosa de que “não tem nada pra sair”, que é “uma expulsão do próprio
organismo com o feto” coincide com a análise de alguns autores, como Leal e Lewgoy
(1995), sobre a concepção de mulheres de classes populares com relação à gravidez no seu
estado inicial. Estes autores, em pesquisa, citada, com homens e mulheres sobre práticas
reprodutivas e contraceptivas em vilas populares de Porto Alegre, afirmam que há um período
liminar em que o corpo apresenta alterações (como o atraso da menstruação) em que a
gravidez é apenas uma possibilidade. Neste período, a percepção de estar gestando uma
“pessoa” dependeria da avaliação das possibilidades de concretização de um projeto
9
.
Apesar de Rosa pertencer à classe média do Rio de Janeiro, e da entrevistada ter
constatado que claramente estava grávida, que realizou exame de sangue, ela também
mostra como a percepção de estar gestando uma “pessoa” pode depender da avaliação das
possibilidades de concretização de um projeto. A entrevistada disse que não se sentiu grávida,
com “alguém dentro” dela, e, quando lhe perguntei o que era um feto, ela me respondeu: “Se
7
Pedrosa e Garcia (2000), em pesquisa com mulheres que abortaram, tamm constataram que algumas destas,
por terem abortado em uma “idade gestacional precoce”, também consideraram que ainda não havia uma
criança”.
8
Segundo Barbosa e Arilha (1993), “Cytotec” é o nome comercial do misoprostol, análogo sintético da
prostaglandina E1. As prostaglandinas, de acordo com as autoras, possuem ão estimulante sobre a musculatura
do útero, fazendo com que ele se contraia, o que explica a sua utilização para o abortamento. O remédio, que é
útil no tratamento de úlceras gastroduodenais, é bastante utilizado, no Brasil, como um abortivo (Barbosa e
Arilha, 1993). Em 1991, o Ministério da Saúde alterou a regulamentação do “Cytotec” para tentar restringir o
seu uso na interrupção da gestação (Barbosa e Arilha, 1993).
9
Outra autora que fala sobre isso é Motta (1991). Ela explica que, em pesquisa realizada por ela com
freqüentadoras de um grupo de convivência para idosos da LBA, em Porto Alegre, nos relatos de aborto das
mulheres, não um tom de culpa, vergonha, ou de acusação, “mas de excitação ou desgosto diante de
acontecimentos corporais” (1991 :19). Ela entende que, para essas mulheres, a fase inicial da gestação “parece
ser concebida mais em termos da própria mulher, de seu corpo, do que em termos de um outro ser o bebê”
(Motta, 1991: 19).
79
eu quisesse ter filho, eu falaria que é uma vida: ‘Ah... uma vida... e tudo o mais... um ser
humano...’. Mas eu não pensei nisso”
10
.
Por outro lado, ao mesmo tempo em que algumas justificaram dizendo que o feto que
estavam gestando não era “nada” ainda, houve preocupações com realizar a intervenção
rápido para que o feto não adquirisse uma “forma humana”, o que causaria um desconforto
maior com relação ao aborto. Assim, ao mesmo tempo que a interrupção de uma gestação em
que não “nada” ainda foi defendida como um direito, a interrupção de uma gestação em
que um “neném” seria um incômodo para algumas entrevistadas e, ainda, objeto de
reprovação moral. Desta forma, estas duas entrevistadas que disseram que o feto que estavam
gestando não era “nada” ainda (Rosa e Débora) pensaram que se vissem numa ultra-
sonografia um feto com ‘forma humana’, teriam receio de fazer um aborto:
“Mas eu acho que aborto lá [no país em que viveu, onde o aborto não é crime] é...
pode ser até quatro, cinco meses. É bem... longo. [...] Não é dois, três meses,
não; acho que é mais. Acho que quatro [meses]. Eu me lembro que eu fiquei até
meio chocada. Eu falei: ‘nossa, mas tem um bebezinho ali!’. Acho que isso
também é uma relação... da visuali... de visualizar entendeu? –, d’eu saber:
cinco semanas não tinha quase nada ali – sabe? Mas se fosse um bebezinho, assim
enroladinho, eu acho que eu ia falar: ‘então, deixa mesmo que eu crio’. [...]
Acho que se eu tivesse grávida de... sei lá... quatro meses, e a mulher fizesse um
ultra-som e eu visse um nenenzinho, eu não ia abortar aquilo, porque tem uma
coisa de forma, de... Entendeu? Que existe essa relação do... do... né? da... da
imaterialidade da coisa entendeu? [...] Cinco semanas. O que que tem em cinco
semanas? Não tem nada, um sanguezinho com umas moléculas lá, sei lá o que
que é... célula, sei lá. Pelo menos essa é a minha... Não me fale que tem um
bebezinho de cinco... de cinco semanas ali que eu não ia nem...” (Débora)
“Se é uma vida... Eu penso que sim, eu penso que é, mas também penso que não
porque não... de repente não tomou uma forma. Porque eu acho que se, de repente,
eu visse na ultra-som uma criança assim, ou, então, o coraçãozinho batendo,
alguma coisa, eu acho que talvez me tocasse mais, eu acho que talvez surgiria
uma dúvida. Ainda mais, como eu fui bem rápida [...] [Pesquisadora] Você
quis fazer rápido por causa do feto? [Rosa] – Por causa do feto, é [...] eu acho que
10
Outra entrevistada, nica, também mostra o quanto a qualidade do feto é relacional para ela, se tornando
“filho” quando é aceito. A entrevistada, que tem dois filhos, deixou claro que não considera o feto abortado um
filho quando perguntei a ela se quando vai fazer o aborto já é filho: “Não é nada ainda, é um feto - né? - você vai
abrir mão dele. É piração - né? -que você vai abrir mão, vai pensar que é filho? [Pesquisadora] - Não é filho,
então? [Mônica] - Não, não é, não foi aceito, não é.” Além disso, a própria definição de vida passa, para Mônica,
pela aceitação por parte da mulher: “Eu acho que a vida começa quando integração, quando ela é aceita,
quando... É, quando integração mesmo, porque, quando você fica grávida, a sensação... o teu estar é
totalmente diferente - sabe? - a sensação é... é muito emocional, o emocional fica muito exagerado. Acho que é
hormônio - né? - tem a ver.” (Mônica)
80
agrediria mais né? –, aí tomaria essa tal forma de uma criança, aí talvez mexeria
mais comigo, talvez assim, mas como eu não vi.” (Rosa)
11
Como foi visto no capítulo 1, anti-abortistas têm utilizado, principalmente, o argumento
de que o não-nascido, desde a concepção, constituiria uma vida humana e uma pessoa.
Várias entrevistadas, ao contrário, pensaram mais em termos de um contínuo, numa gradação
em que o feto se tornaria uma pessoa, como foi o caso de Rosa e Débora, narrados acima.
Estas duas últimas entrevistadas pensaram ainda na possibilidade de não fazerem o aborto se
o feto já tivesse adquirido uma forma humana. Além disso, Valéria também considerou que
vê uma diferença entre fazer o aborto “no início” e com “quatro, cinco meses” (depois
baixando para três ou quatro meses), e pensou no limite da legislação para este tempo de
gestação:
“[...] não é mais um conjunto de células sabe? não... Cada uma tem a sua
função, tem um sistema nervoso todo definidinho sabe? [E, mais adiante,
disse:] Olha, eu não entendo muito de biologia não, mas eu acho que com três...
três meses já estão os dedos formados, assim, já ’tá começando a separar os
dedinhos, sabe? Então, aí já pega! Três, quatro meses.”
Deste modo, a ‘forma humana’ fetal pode ser justificativa para que Valéria pense em
limitações no tempo para que um aborto seja feito legalmente: a entrevistada baseia sua
crença no ‘tempo limite’ nesta forma humana: “três meses já estão os dedos formados”.
Chazan (2005), em seu trabalho sobre clínicas de ultra-sonografia fetais, aponta três
momentos no continnuum do processo de transformação do feto em pessoa
12
. O primeiro seria
entre a sexta e a oitava semana de gestação, em que o embrião, dentro do saco gestacional,
pode ser visibilizado pela ultra-sonografia. O segundo seria entre a décima primeira e a
décima terceira semana, em que o embrião deixa de ser chamado de “feijãozinho” ou “uma
massinha branca ali no canto do saco gestacional”, para ser descrito como “seu bebezinho,
com braços e pernas”. E o terceiro momento, em que, a partir da décima quinta semana, após
a descoberta do sexo fetal, ele passa a ganhar um nome e, em torno da vigésima semana, ao
atingir meio quilo, pode ser chamado de “meio quilo de gente!” (Chazan, 2005).
11
Rosa, que utilizou “Cytotec” para abortar, relata ainda sua preocupação em ver "formas de bebê": "Toda hora
eu olhava lá. [...] Eu queria ver! Eu ia no banheiro toda hora, que eu faço xixi o tempo inteiro, e ia toda hora.
que eu não dava descarga não, eu queria olhar - sabe? - pra ver o que que [...], sei lá, tinha saído. Imagina se
tivesse um bebezinho micro? [...] Pô, eu acho que eu ia ficar bem... bem, bem abalada, assim. Meio que uma
curiosidade e meio que assim: quero ver mas não quero? Mas achava que não ia ter nada mesmo, nunca achei
que fosse ter... Queria ver pra saber, mas nunca achei que ia ter um bebê! Formas de bebê, entendeu?"
12
A autora analisa a construção social do feto como pessoa dentro de um processo mais amplo de vigilância,
monitoramento e medicalização da gravidez.
81
A distinção entre o primeiro e o segundo momentos do continnuum do processo de
transformação do feto em pessoa, narrados por Chazan, é importante para a compreensão
desta distinção feita pelas minhas informantes. Nas palavras da autora, “o feto é tornado
‘humano’ ao serem visibilizados ‘braços e pernas’” (2005: 313). E é exatamente uma alusão à
‘forma humana’ que algumas entrevistadas fizeram, como vimos anteriormente. Débora e
Rosa disseram que não havia “nada” quando abortaram, sendo que Débora também disse que
era “só um sanguezinho com umas moléculas lá”, o que remete ao “feijãozinho” ou à
“massinha branca ali no canto do saco gestacional”, pronunciados pelos informantes de
Chazan. Apesar disso, Débora disse que se visse “um nenenzinho”, não abortaria “porque
tem uma coisa de forma”. Semelhantemente, Rosa duvidou se abortaria se visse “essa tal
forma de uma criança”. E, além das considerações de Rosa e de Débora, Valéria apontou três
ou quatro meses como limite para a legalidade do aborto, dizendo que com três meses os
dedos” do feto estão formados, o que é exatamente o que Chazan (2005) coleta em seu
trabalho de campo para a transformação do feto em “humano”: quando braços e pernas podem
ser visibilizados.
A ‘forma humana’ do feto pode ser crucial na decisão de se fazer o aborto, o que
demonstra uma preocupação moral com o que se aborta: a “forma de uma criança” ou “um
sanguezinho com umas moléculas”? Mas, além da ‘forma humana’, a “consciência”, o
sistema nervoso central” e a viabilidade fetal receberam atenção por parte das entrevistadas,
além de poderem ser cruciais para que elas, mesmo favoráveis à legalização, coloquem limites
morais para a prática do aborto.
Da mesma forma como Débora se preocupou com a “forma”, com haver um
“nenenzinho”, Valéria também se preocupa com a possibilidade de haver algo mais que uma
“célula”, com a possibilidades de haver “dedos” no feto. Mas no seu caso, as preocupações
com tempo estiveram mais relacionadas a sua religiosidade e a uma “consciência” do feto:
[Pesquisadora] Quanto tempo tava quando você fez?] [Valéria] [...] Tinha
uns dois meses. Eu não deixei sabe? Logo depois porque na minha
consciência também, tipo dessa parada de espiritismo, eu não ia deixar
desenvolver uma vida a ponto de... – sabe? de não ser mais uma cel... sabe?
de ter formação tipo... biológica pra ser um ser humano ali. Eu não ia deixar ficar
muito tempo também, sabe? Eu ia fazer um negócio desse o mais sem consciência
pro ser possível [
13
], e eu acho que no início... né?”
13
“sem consciência pro ser”, ou seja: sem que o feto tenha consciência.
82
No debate sobre a condição de pessoa, segundo Salem (1997), alguns autores têm
destacado a importância de critérios como “razão”, “autoconsciência” e “capacidade de fazer
escolhas”. Dessa forma, Valéria parece operar com critérios semelhantes, que se preocupa
com a “consciência” do feto
14
. A entrevistada dicotomiza a “formação tipo biológica pra ser
um ser humano” de uma “célula”, e associa esta “formação” com a “consciência” do “ser”,
relacionando ainda essa preocupação com suas crenças espíritas. Sua preocupação constante é
com a “consciência”, com a “dor” do “ser”.
Em um outro momento da entrevista, Valéria me disse que acredita que neném escuta
quando está na barriga, mas completou: “Agora, um neném na barriga eu acho diferente de
um feto na barriga”. Perguntei a ela o que gerava esta diferença e ela me respondeu: “Até o
sistema nervoso central já estar todo desenvolvido e tal, já estar desenvolvido – né?
biologicamente. [...] Não entendo muito de biologia [...] Mas eu acredito que até o feto estar
todo pronto, já é menos doloroso pro ser ser morto.” A essa consciência, portanto, Valéria
associou a formação do sistema nervoso central.
Mônica também fez considerações sobre o “sistema neural”, relacionando a sua
presença a um limite de tempo na legalização do aborto. Ela acredita que o tempo limite para
a interrupção da gestação deveria ser pelos quatro meses de gestação porque, além do
“sistema neural” estar formado, é por volta deste tempo que “começa a mexer”,
combinando, dessa forma, uma construção do feto mais relacional a uma construção baseada
na linguagem da ciência:
“Bom, pelo... pelo que a ciência descobriu até agora, o sistema neural, acho que é
com quatro meses que começa a formar né? –, que é o que daria dor, é o que
daria... sensação física mais forte, né? É... Acho que até quatro meses já está legal
demais. [...] Até porque o seguinte: pelos quatro meses começa a mexer,
sabe? é foda, né? [Pesquisadora] Você acha que quando mexe faz
diferença? [Mônica] Ah, total, né? Marca presença, né? [...] ‘Tô aqui,’ né?
‘me movimento e tal’. Acho que é bem cruel.”
A formação do rebro e a capacidade neurológica de sentir dor ou prazer são algumas
das questões essenciais presentes da discussão sobre a pessoa fetal (Salem, 1997), de modo
que não é de se estranhar que o desenvolvimento do “sistema nervoso central”, na fala de
14
A importância da “consciência” fetal é considerada, por Amanda, com relação ao direito da mulher optar pelo
aborto: “O feto não é nada ainda. O feto não pode responder por ele, nem criança responde porque tá
começando a responder por si, aprendendo a falar ainda! Sabe? A consciência que tem é muito pouca ainda
entendeu? diante de todas essas questões. Você é que tem, que deu origem àquilo.”
83
Valéria, ou o “sistema neural”, na fala de Mônica, foram linhas fronteiriças traçadas pelas
duas entrevistadas com relação a limites morais, ou mesmo legais, para o tempo do aborto.
A presença do sistema nervoso central é um dos componentes de uma individualidade,
da constituição de pessoa, que entende-se que “o ser” passa, a partir daí, a ter consciência.
A questão da anencefalia é bastante ilustrativa a respeito disso, na medida em que o feto, não
tendo o córtex cerebral, o que lhe permitiria ter consciência e experimentar sensações (Penna,
2005), pode ser considerado um feto morto, uma não pessoa.
Além das considerações com relação à ‘forma humana’ e à “consciência”, também
houve considerações com relação à viabilidade do feto, ou seja, a capacidade de sobreviver
fora do útero. O feto já estar “formado”, “pronto pra nascer”, já configura, na fala de Mônica,
um “assassinato”
15
:
“Eu acho que colocar como assassinato [o aborto], não. Depende [pensou na
possibilidade da pessoa fazer com 8 meses], está apto a nascer, ’per’aí. Aí, não,
está formado, pronto pra nascer. é assassinato mesmo, não tem outro
nome. Ou você vai fazer um parto, ou você vai matar o feto né? porque está
formado. é assassinato, é diferente. [Pesquisadora] Assassinato é quando
está formado? [Mônica] É, pronto pra nascer, né? pronto. Tem um ser
pronto pra nascer. Aí, é, não tem jeito. [...] Pois é, eu não sei se é ou se não é, eu
estou dizendo que nesse caso específico, fica muito claro de que é. Acho que não
tem muito o que duvidar, né? Com 3 meses, eu não vou conseguir criar ninguém
na incubadora, se tiver como sair, tipo com 3 meses, da barriga, e que ainda não
tem nada pronto. Ainda não conseguiram fazer isso. Mas com 8?! pronto! Vai
nascer! Com 7, tá pronto! Vai nascer.” (Mônica)
A questão da viabilidade fetal, como colocada por Mônica, também é bastante
importante para a questão do aborto
16
. Nesse sentido, algumas das legislações vigentes sobre
o aborto restringem os direitos da mulher, justamente, a partir da viabilidade fetal, fazendo
com que os direitos do feto sejam afirmados (Salem, 1997)
17
.
15
Valéria, que não utilizou a palavra “assassinato”, talvez tenha tido uma idéia parecida, ao dizer que abortar um
“neném já desenvolvido [...] parece que é assim: nasceu, matou”, e considerando isso “sinistro”.
16
O caso do aborto nos EUA é ilustrativo desta situação. A suprema Corte Americana, em 1973, no caso Roe X
Wade, declarou inconstitucional uma lei do Estado do Texas que criminalizava a prática do aborto (exceto em
casos de risco de vida da gestante). Estabeleceu que, no primeiro trimestre, o aborto deveria ser livre, por decisão
da gestante, com aconselhamento médico; no segundo trimestre de gestação, o aborto também seria permitido,
mas o Estado poderia regulamentá-lo para proteger a saúde da gestante; no terceiro trimestre da gestação, os
Estados poderiam proibir a realização do aborto, visando a proteção da vida potencial do nascituro, salvo quando
o aborto fosse necessário para saúde ou a vida da mãe (Sarmento, 2006). No entanto, em decisões posteriores, a
Suprema Corte passou a admitir, comprovada a viabilidade fetal extra-uterina, proibições ao aborto anteriores ao
terceiro trimestre da gestação (Sarmento, 2006).
17
Fyfe (1991), examinando as legislações britânicas sobre o aborto (entre 1803 e 1967), demonstra o
desaparecimento do termo quickening, que se refere ao momento em que a mãe passa a sentir os movimentos
84
Autores têm demonstrado o quanto as representações sobre a condição de pessoa
humana do embrião e do feto vão de encontro com a categoria de indivíduo. Luna (2001),
analisando representações das novas tecnologias reprodutivas, a partir de matérias publicadas
na grande imprensa brasileira entre os anos de 1994 e 2000, afirma que é conferido ao
embrião subjetividade e identidade individual. Chazan (2005), em trabalho de campo em
clínicas de ultra-sonografia fetais, também mostra que uma “busca de uma
individualização precoce do feto” (2005 :300) através da ultra-sonografia, que permite a
visibilização deste antes do nascimento, possibilitando percebê-lo como um ser destacado da
gestante.
Salem (1997) também considera a questão. A autora comenta as três posições que ficam
ressaltadas nos debates internacionais sobre o embrião. Em uma primeira, a alegação de
que o embrião seria, desde sua concepção, um ser moral com “direito à vida”, e que, por isso,
não se poderia ser utilizado para experimentos e nem para criação em laboratório
18
. Por outro
lado, uma outra vertente que não identifica nenhuma diferença significativa entre o
embrião e outros tecidos humanos, e que, por isso, sua manipulação seria legítima e que, além
disso, impor limites à pesquisa comprometeria o progresso da ciência. E, por último, haveria
também uma posição intermediária que não atribui ao embrião o mesmo estatuto de uma
criança ou um adulto, mas, apesar disso, o embrião extracorporal seria merecedor de respeito,
que seria uma “pessoa humana potencial”. Contudo, esse respeito deveria ser avaliado
visando os benefícios, para os outros seres humanos, da pesquisa com embriões (Salem,
1997).
Salem sustenta que, apesar da discordância em torno da questão, premissas culturais
comuns entre essas posições. Com exceção à posição que estabelece a concepção como o
marco para a pessoa, a noção de pessoa para as outras posições é gradualista. Outra premissa
seria com relação aos critérios que fundam a pessoa: quase todas as características que a
fundam pressupõe a “posse” de certas qualidades ou marcos que distinguem o embrião, sendo
privilegiados tanto atributos biológicos quanto morais, mas há, entre eles, uma idéia de que
essa distinção é intrínseca ao embrião, o que demonstraria que a noção de pessoa subjacente a
essa questão seria a de “indivíduo” o embrião é entendido como um ente que antecede às
relações sociais e como um ser único, irredutível (Salem, 1997).
fetais, e o surgimento do termo “viabilidade” como um aumento do poder da ciência médica na definição da
questão do aborto.
18
Dentro dessa vertente, haveria uma posição que defenderia a fertilização in vitro se todos os ovos fertilizados
forem transferidos para o útero (Salem, 1997).
85
Em algumas alegações para que a mulher não faça um aborto mais ‘tardio’, ou mesmo
alegações para a não permissão do aborto nesse período, encontradas nas entrevistas, vão de
encontro a estas representações que entendem o feto como um ente que antecede às relações
sociais. Apesar de, num período inicial, o feto poder ser considerado simplesmente “nada”,
em um período posterior, ele passa “a formar características de um serzinho”, como fala Elisa:
“Eu não vejo o feto ainda como vida, eu não acho assim. Eu... eu... eu acho que
isso aí... Não... não me bate como a vida pronta entendeu? Eu acho que a
partir do momento que está mais formado, quer di... Existe um período de 3
meses – né? –, que a partir de 3 meses, qua... quando é o aborto autorizado [...] Eu
acho que é porque, a partir dali, o feto começa a formar características de um
serzinho. Então, eu... eu... eu... eu não sei se também vejo assim pra me apaziguar
[rindo] entendeu? Mas eu realmente não vejo o início da... da formação do feto
como a vida, o direito à vida. Eu não... não vejo assim, não... não... não sinto
assim.”
A ênfase nas características da ‘forma humana’, da “consciência” e da aptidão para
nascer, narradas pelas outras entrevistadas acima, também demonstram essa questão sobre a
“posse” de certas qualidades ou marcos que distinguem o embrião, de que fala Salem (1997).
Aqui, “autonomia”, “razão” e “capacidade de escolha” podem ser entendidas pela aptidão a
nascer e pela “consciência” ou o “sistema neural” (ou o “sistema nervoso central”). Desta
forma, o feto, a partir de um determinado estágio, também é entendido como um ente que
antecede às relações sociais
19
. Além disso, a viabilidade extra-uterina (como limite para o
aborto), que foi evocada por Mônica, mostra a ênfase na capacidade do feto de sobrevier
independentemente da mãe, como um indivíduo separado (Franklin, 1991), atentando,
novamente, para a categoria de indivíduo. Dessa forma, os argumentos para os limites do
aborto tardio trazidos pelas entrevistadas pareceram se basear, principalmente, em termos de
uma gradação em que o feto se tornaria uma pessoa, utilizando-se da idéia de indivíduo.
Dessa forma, a viabilidade fetal, a ‘forma humana’ e o “sistema nervoso central” foram
percebidos como essenciais na qualificação do ato da interrupção da gestação por conduzirem,
entre as entrevistadas, a uma percepção do feto como mais próximo da condição de pessoa, ou
mesmo como constituinte desta condição, fazendo com que o aborto em que havia “um
sanguezinho com umas moléculas”, passe a ser um aborto de um “neném”, podendo se
19
Apenas algumas entrevistadas enfatizaram critérios mais baseados na relação social. Mônica chamou atenção
para o mexer (que seria sentido pela gestante), mas, ao mesmo tempo, focou sua atenção também para a questão
do feto já estar formado, apto a nascer”; e Amanda, que não entrou em considerações sobre diferenças na
qualidade do feto conforme o período gestacional, mesmo instigada a isso, disse que quanto mais tarde o aborto,
mais a pessoa sente o “feto se desenvolvendo” e pior é para a espiritualidade.
86
caracterizar, inclusive, como “assassinato”, sendo, portanto, bastante reprovado entre estas
entrevistadas.
Um outro aspecto que também pode ser considerado na contribuição da construção fetal
entre as entrevistadas é a linguagem médica. Realmente, para o aborto, a ciência médica
encontra um papel de destaque
20
, que ele é considerado um procedimento médico. No
Brasil, Projetos de Lei de ambos os lados do debate se utilizam de argumentações baseadas na
ciência. É bom lembrar que as reivindicações para a legalização do aborto levam em conta o
atendimento médico às mulheres e que um dos argumentos utilizados no debate é a questão de
saúde pública, além, é claro, da questão da anencefalia (com as considerações sobre a
ausência do “córtex cerebral” e com a necessidade do laudo médico para a autorização do
aborto), o que demonstra, novamente, a influência da ciência no debate. Ademais, a ciência é
bastante utilizada como legitimadora de opiniões contrárias ao aborto, como foi constatado
por alguns autores, como Heriot
21
(1996) e Franklin (1991), e, principalmente, com
considerações de que o embrião, desde a concepção, já possui uma carga genética única. Essa
argumentação que utiliza a linguagem da ciência vem sendo utilizada, mais recentemente,
inclusive, pela Igreja Católica, conforme apontado por Luna (2002).
Tendo em vista estas considerações, convém notar que as construções fetais das
entrevistadas utilizam bastante a linguagem da ciência. Assim, algumas das informantes se
utilizaram bastante dos termos “célula”, “molécula”, “sistema nervoso central” e “sistema
neural”. O depoimento de Valéria é bastante esclarecedor com relação à impossibilidade dela
definir um limite para a prática do aborto, que ela ‘não entende muito de biologia’: “Até o
sistema nervoso central já estar todo desenvolvido e tal, já estar desenvolvido – né?
biologicamente. [...] Não entendo muito de biologia [...] Mas eu acredito que até o feto estar
todo pronto, já é menos doloroso pro ser [o feto] ser morto”. Dessa forma, os critérios
estabelecidos pela ciência são considerados como legítimos para a definição do tempo limite
ao aborto, como mostrou Valéria.
20
Feministas têm apontado e questionado o poder dos médicos sobre os corpos das mulheres, principalmente,
com relação à reprodução. Quanto à questão da interrupção da gestação, Fyfe (1991), examinando o processo de
aumento do poder da ciência médica na definição da questão do aborto a partir das legislações britânicas entre
1803 e 1967, afirma que, a partir do Infant Life (Preservation) Act, de 1929, quem passou a definir o debate
sobre o aborto foi o conhecimento médico: o aborto se tornou uma questão médico-biológica, podendo ser algo
‘objetivo’ e separado das relações sociais. A autora mostra que, inclusive com o aborto legal (Inglaterra),
introduzido com legislação de 1967, são os médicos que têm o poder de decidir quais as mulheres grávidas
podem ou não fazer abortos (Fyfe, 1991).
21
Heriot (1996), tratando do debate sobre a construção de pessoa do feto com relação à mãe na legislação do
Estado o Mississipi (EUA), em 1990 e 1991, afirma que os legisladores que buscavam restringir a permissão ao
aborto embasavam suas opiniões nas definições médicas e científicas de “pessoa”, que são construídas como
objetivas.
87
Os critérios estabelecidos pela ciência podem ser considerados como legítimos também
para uma ‘tranqüilização’, no caso de Débora, de que o feto não era “nada”, que era apenas
“células” ou “moléculas”. Ou, pelo contrário, quando o “sistema nervoso central”, ou o
“sistema neural”, estão mais desenvolvidos, a preocupação com o feto pode aumentar, como o
foi para Valéria e para Mônica. Dessa forma, as entrevistadas também recorreram às noções e
aos termos médicos ao apontarem limites morais para a prática do aborto tardio.
Além disso, é importante ressaltar ainda a importância da ultra-sonografia nesta
construção social do feto. Chazan (2005), que realizou trabalho de campo em clínicas de
ultra-sonografia fetais, mostra o quanto estas imagens podem antecipar as vivências da
gestante, que pode perceber o feto mesmo antes de sentir seus movimentos: a visibilização do
embrião faz com que o feto se torne real. Esta tecnologia também contribui com a
constituição do indivíduo fetal, separado da gestante. A autora pesquisou um universo
diferente do que estou trabalhando, contudo, gostaria de aproveitar sua análise no sentido da
importância destas tecnologias de imagens para a construção social da gravidez e do feto,
como se pode perceber na fala de Rosa: [Pesquisadora] Você acha que a ultra-som
mais proximidade? [Rosa] [...] eu acho que sim. dentro, tá dentro de você né? –, não
tem como você: ‘Ah, isso não me pertence!’ Sabe?”. Assim, as imagens fetais, além de
contribuírem nos sentimentos das gestantes
22
, podem contribuir, inclusive, nas possibilidades
de realização do aborto, como vimos acima nos caso de Rosa e Débora. Enquanto Rosa talvez
tivesse uma dúvida se visse o feto na ultra-sonografia, Débora disse que “se fosse um
bebezinho, assim, enroladinho”, ela ia falar: “então, deixa aí mesmo que eu crio”.
Dessa forma, a ‘forma humana’, a “consciência”, o “sistema nervoso central” (ou
“neural”), a viabilidade fetal, a linguagem da ciência e a ultra-sonografia pré-natal
contribuíram, entre as entrevistadas, na construção da pessoa fetal, e, então, na imposição de
limites morais para o aborto tardio. No entanto, apesar dessas construções fetais, algumas
entrevistadas se mostraram na dúvida quanto à proibição do aborto tardio, ao contrário de
Mônica.
Assim, Valéria apesar de demonstrar uma aversão a essa prática, não se baseou apenas
no aspecto da individualidade fetal nas suas considerações relativas à proibição. A
entrevistada considerou que seria melhor fazer um ‘aborto tardio’ “do que deixar [a criança]
22
As imagens fetais podem contribuir nos sentimentos das entrevistadas, como no caso de Amanda, que, antes
de fazer o aborto, teve um sangramento vaginal, o que a levou a pensar na possibilidade de ter havido um aborto
espontâneo, e fez uma ultra-sonografia. Disse que estava se sentindo aliviada com essa possibilidade e que acha
que o ultra-sonografista percebeu esse sentimento pela “pressão psicológica” que fez: “Ele botou o
batimentozinho cardíaco pra ouvir sabe? fez a maior pressão psicológica.. Foi horrível também isso. Pô, o
[nome do companheiro] ficou abaladí... abalado pra caramba sabe?”
88
no mundo ‘ao Deus dará’”, mas, antes desta conclusão, ela demonstrou muita dúvida até
chegar a esse pensamento. Valéria, ao me dizer sobre o que achava da permissividade legal
com relação ao tempo de gestação, ficou em dúvida, pensativa. A princípio disse que poderia
ser feito um aborto com quatro meses de gestação, depois mudou de idéia, dizendo que “matar
um neném na barriga [...] um neném já desenvolvido” seria “sinistro”, e, por final, disse que é
melhor “não existir” do que “sofrer”, demonstrando o quanto pode operar uma tensão entre
moralidade e legalidade na questão do aborto:
“Eu acho uma estupidez a mulher chegar a esse ponto! Entendeu? Eu acho uma
estupidez chegar a 4 meses. [...] Mas, eu, na minha opinião, ainda acho melhor.
[silêncio] Não, tem um prazo, cara, tem um prazo, acho que tem um prazo, cara.
Porque matar um neném na barriga, porra, um neném já desenvolvido pra...
Parece que é assim: nasceu, matou, também. Sinistro isso né, cara? Mas eu
ainda vou por... Eu, pessoalmente, acho errado, cara, mas legalmente [...] Se for
legalizado, fica fácil de você estipular um tempo, tipo até quatro meses. [...] Eu
acho escroto uma mulher fazer um aborto com um feto desenvolvido, um feto
sendo uma criança ali. Eu acho, porra, péssimo. Mas eu não vou ser hipócrita
não, cara, eu acho melhor do que... Não existir sabe qual é? –, matar uma
criança que não tem o direito do que deixar no mundo ‘ao Deus dará’ sabe? –,
sofrendo... uma vida... no Brasil, na rua: Ah! Meu Deus do Céu!” (Valéria)
Da mesma forma como foi visto acima que o aborto ilegal, clandestino, pode ser
moralmente aceito, considerado algo “justo”, por outro lado, também a possibilidade de
condenação moral da sua prática mesmo que esta fosse contemplada pela lei, ou melhor,
mesmo que se acredite que esta deva ser contemplada pela lei, como acredita Valéria. Assim,
a entrevistada opera com uma dinâmica da moralidade do aborto extremamente tensa. Por um
lado, é “péssimo” que a mulher faça um aborto de um “neném na barriga”, por outro, ela
considera melhor que a criança não exista do que seja ‘abandonada’, trazendo de novo a
questão do ‘abandono’ para o debate do aborto.
Segundo Ariès (1981), na sociedade medieval, o “sentimento da infância”
23
não existia,
ou, ao menos, não era expresso, e as crianças passavam logo a viver na sociedade dos adultos.
O autor analisa o processo de formação desse “sentimento da infância” dizendo que surgiu,
primeiramente, um sentimento de “paparicação” e, posteriormente, uma “consciência da
inocência e da fraqueza da infância” e, portanto, de um dever específico dos adultos com
relação a elas (Ariès, 1981). Ao considerar que fazer um aborto tardio é melhor do que deixar
a criança abandonada, Valéria (que atribui um valor diferente à infância do que à vida fetal)
23
Segundo Ariès, o “sentimento da infância” é a “consciência da particularidade infantil, essa particularidade
que distingue essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem” (1981: 156).
89
opera com um “sentimento da infância”, conforme o termo de (Ariès, 1981), parecendo ver a
necessidade de um cuidado específico com as crianças, distintamente dos adultos,
diferenciando estes dois grupos (crianças e adultos).
As moralidades em torno do aborto não são pré-dadas e nem estão claramente definidas.
A sua produção depende de todo um conjunto de condições em que a ‘ação correta’, ou a
‘melhor ação’ vai se construir, ou seja, a ‘melhor ação’ vai se construir em relação a outras
possibilidades de ação que serão desqualificadas. Nesse sentido, se o aborto pode ser
considerado como uma espécie de “solução” (Amanda), ou mesmo um direito, o aborto tardio
pode ser algo bastante reprovável e considerado até “uma estupidez” (Valéria) por o feto
passar a “formar características de um serzinho” (Elisa), ou seja, por ele se aproximar, ou
mesmo ocupar a condição de pessoa. No entanto, dada a possibilidade de abandono, com
todas aquelas considerações vistas no capítulo anterior sobre o ‘cuidado’ com as crianças, o
aborto tardio ainda pode ser considerado, ao menos para Valéria, melhor do que o abandono,
apesar de “péssimo”.
3.3 A “banalização”
Como foi falado, no caso do aborto, as moralidades e as legalidades envolvidas não
estão coladas, ou seja, a pessoa ser contrária à legalização não quer dizer, necessariamente,
que ela é contrária ao aborto em todas as circunstâncias, e a pessoa ser favorável à legalidade
do aborto não implica em ela não considerá-lo algo moralmente condenável. A questão da
banalização do aborto também é bastante ilustrativa de como opera essa disjunção entre
algumas entrevistadas, na medida em que, ao concordarem com a legalização, várias
entrevistadas temeram a “banalização” do aborto, ou seja, consideraram que o aborto não
deve ser feito de modo repetitivo:
“A opção é a pessoa que opta se vai ter ou não vai ter, mas também pra não
banalizar isso porque... sempre tem que tomar cuidado, quando você legaliza, às
vezes, uma coisa, tem que... e ainda mais uma coisa delicada, não pode deixar
também que isso se banalize, que vire... que vire... desde você prevenir a gravidez,
você faz o aborto.” (Sabrina)
Dessa forma, várias entrevistadas consideraram que a contracepção é melhor do que o
aborto. Algumas entrevistadas também consideraram que deveria haver “educação” para que
90
este fosse apenas a “exceção”, e não a “regra”
24
. Além disso, foi colocado, entre várias
entrevistadas, que a mulher que faz aborto deve ter “consciência”, o que foi relacionado, por
vezes, à não banalização da prática: “[...] junto com essa legalização, tem que vir uma maior
conscientização, junto com planejamento familiar. Não é legali... legalizar, pura e
simplesmente, pra que vire uma... prática habitual, não é isso” (Mônica).
Com relação à “consciência”, foi colocado que a mulher que faz aborto deve ter certeza
do que ela realmente quer fazer e também que ela deve saber das conseqüências do seu ato,
tanto com relação a ela própria, quanto com relação à “vida” e à “sociedade”, ou seja, o
aborto não foi considerado um ato qualquer. Isso porque, para as entrevistadas, ele pode ser
considerado uma “agressão” ao corpo da mulher, além de poder estar relacionado à questão da
“vida”, à responsabilidade sexual e reprodutiva e, ainda, poder mexer com os valores de
maternidade e de feminilidade.
Dessa forma, a preocupação com a não-banalização do aborto também esteve, entre as
mulheres entrevistadas, associada a aspectos psicológicos/ emocionais e físicos da mulher
abortante, a implicações com relação à vida fetal e à própria vida, de um modo mais geral, a
uma idéia de responsabilidade, tanto com relação ao ato sexual, quanto em relação à própria
interrupção da gestação.
Como foi falado nesta dissertação, a maternidade é algo valorizado socialmente. Na
discussão sobre o aborto, ela ocupa um lugar de destaque. Um caso sobre a questão do aborto
interessante para pensar a valorização da maternidade na sociedade brasileira é com a
pesquisa de Abramovay, Castro e Silva (2004). As autoras, tratando da opinião de alunos de
ensino médio e fundamental sobre o aborto, em pesquisa referida anteriormente, afirmam
que, dentre os que não concordavam com a interrupção da gestação em caso de risco de vida
da mãe, alguns justificaram essa opinião pela associação da maternidade à abnegação ou ao
amor romântico. Além disso, entre os que concordavam com o aborto em caso de risco de
vida da mãe, havia algumas justificativas que defendiam que a mulher, como mãe, deveria
permanecer viva, ao contrário da defesa da própria vida da mulher (Castro, Abramovay e
Silva, 2004). Ou seja, tanto a defesa como a posição contrária do aborto em caso de risco de
vida da mãe podem se basear nos valores de maternidade.
Também com relação às experiências pessoais, a maternidade pode ocupar um papel
essencial e, como foi visto no capítulo anterior, a sua valorização pode ter um peso nos
24
"Mas eu acho que tem que ter controle. Você não pode ficar todo mês grávida e todo mês fazer aborto -
entendeu? É o que eu falei: eu acho que tem que ser a exceção, não pode ser a regra. E, pra isso, tem que ter
educação! Porque é o que fala - né? -: quer diminuir o número de filho por mulher, no mundo, é dar educação
p'á mulherada! (Débora)
91
sentimentos das mulheres que abortam. Assim, Mônica, dizendo como o aborto é algo que dói
nela, falou: “Eu sou muito mãe. Pra mim, não vai ter jeito”. Ela disse ainda que procura não
se lembrar do aborto porque é uma “memória de dor”, e continuou:
“É o que eu tava te falando, é que é o lodinho né? que fica lá, que a gente às
vezes mexe. Mas fica, o lodinho fica. Por isso é que eu não entendo a mulher
fazer 14 [abortos] e conta né? numa revista pra todo mundo, publica, como se
fosse a coisa mais... Que isso? louca! [risos] Como se fosse um orgulho né?
Muito doido isso.”
Estas considerações são interessantes para pensar nessa importância social da
maternidade. Mônica foi a entrevistada que disse que, se pudesse, teria tido 10 filhos. No
trecho transcrito acima, ela relacionou sua “memória de dor” do aborto à importância que a
maternidade tem na sua vida e diz que não entende que uma mulher possa contar, em uma
revista, que interrompeu a gestação 14 vezes, tornando pública a prática repetitiva do aborto,
como se tivesse “orgulho”. Ou seja, sua crítica ao aborto repetitivo está bastante relacionada à
própria maternidade.
Além disso convém notar as referências à insanidade da mulher que faz 14 abortos e
publica o acontecimento em uma revista: “Tá louca!”. Embora em contextos históricos
diferentes, é possível perceber o quanto essas regulações também tinham lugar no final do
século XIX e no começo do século XX. Segundo Rohden (2003), no final do século XIX e
começo do século XX, o infanticídio era percebido como tão contrário à natureza e ao ideal de
maternidade, que era explicado, em teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, como
uma corrupção pelos avanços da civilização (pela vaidade das mulheres) e pela “loucura
puerperal”, já que não era admitido que uma mãe mentalmente matasse o próprio filho. Ou
seja, em seu estado natural, normal, uma mãe não praticaria infanticídio. Também, segundo a
autora, havia perseguição médica nessas teses aos praticantes de aborto, que seriam
aproveitadores das mulheres – estas, faziam abortos por serem débeis. Assim, as mulheres que
interrompiam a gestação eram vistas mais como vítimas, tendo seus motivos desqualificados
(Rohden, 2003).
A comparação entre a fala de Mônica e essas teses de medicina é interessante pela
utilização de Mônica de termos que remetem à loucura ao se pensar que uma mulher em seu
estado ‘normal’ não abdicaria da maternidade, dada a gestação ou o parto, 14 vezes e ainda se
orgulharia: “Muito doido isso”. Obviamente, são concepções de ‘loucura’ diversas, mas é
92
interessante como opera a inteligibilidade, para Mônica, do aborto repetitivo relacionado à
idéia de maternidade e a sua utilização de referências sobre insanidade mental.
Tereza também foi outra entrevistada que considerou a questão da maternidade. Ela, que
se posicionou contrária à legalização do aborto e também se mostrou preocupada com o
aborto repetitivo pela “institucionalização” da prática, disse que a mulher deve ter
“consciência” do que ela está fazendo e, dentre outras coisas, se preocupou com os
questionamentos que a mulher que aborta pode não ter com relação a “o que é ser mulher, o
que é ser mãe, o que que é ser feminina”, e que possa vir a ter posteriormente, considerando,
portanto, a questão da maternidade e da feminilidade. Ela explica que
“Quando a gente vai e faz um aborto, a gente não tem uma noção, principalmente
quando a gente é muito nova e tal, não tem uma noção de que a gente tá mexendo
com uma feminilidade da gente, de que... pode ser que mais pra frente, que a
gente tenha vários tipos de... de questionamentos e tudo.”
Tereza me contou também que, quando ela virou espírita, ela passou a se sentir muito
culpada pela prática do aborto, e teve medo (o que, hoje em dia, ela não tem mais) de,
quando ela quiser ter filhos, ela não conseguir. A entrevistada contou também que
conversou com outras pessoas que interromperam a gestação e que também tiveram esse
medo. Além disso, Sabrina, que falou que o aborto não pode ser banalizado porque a mulher
pode ter um “prejuízo psicológico” por causa da discussão sobre a “vida” do feto, em outro
momento da entrevista, falou: “Não estou falando nem por mim, mas eu vejo muitas pessoas
entendeu? –, muitos casos que têm um lado forte ‘Oh, Meu Deus, nunca mais vou ter filho’
e tem esses boatos”. Essas considerações estão relacionadas à questão de considerar o feto
uma vida, mas se relacionam também com a maternidade, no sentido em que um medo de
uma conseqüência (ou mesmo uma ‘punição’) que se daria justamente em cima da
possibilidade de ter filhos.
Além disso, no trecho transcrito acima, Tereza mostra que fazer um aborto, para ela,
não é apenas mexer com a maternidade, mas com a própria “feminilidade”. A importância da
maternidade pode estar relacionada à própria constituição de pessoa da mulher, como apontou
o estudo de Dauster (1983) sobre as representações da “figueira do inferno” em camadas
populares, discutido anteriormente e, com relação a isso, a própria entrevistada Tereza
também falou que, embora a maternidade não seja necessária, ela “é algo muito importante na
vida de uma mulher” e que ela é “essencial [...] do ser mulher”, colocando, desta forma, um
papel central da maternidade na constituição de pessoa da mulher. Estas considerações
93
explicam melhor o quanto que, para Tereza, a prática do aborto encontra relação com a
própria “feminilidade” da mulher, o que a leva a ter preocupações com a realização do aborto
pela mulher que não tem “consciência” destas questões.
Além dessas considerações com relação à maternidade e à feminilidade, houve
considerações também com relação ao corpo e à saúde da mulher que aborta. Débora disse
que a prática do aborto deveria ser apenas a “exceção”, e não a “regra” porque ela não é
“saudável”. Sabrina também disse que, junto com a legalização do aborto, deveria haver “uma
campanha muito forte da prevenção da gravidez” porque, além dos prejuízos psicológicos que
o aborto pode trazer, o aborto também pode causar “seqüelas” no organismo.
Mônica e Rosa, que também tiveram uma preocupação com o “corpo” da mulher que
aborta, relacionaram ainda a “consciência” à “violência” e à “agressão” que é o aborto. Dessa
forma, Mônica acredita que a banalização é resultado de “falta de educação básica”, de
“esclarecimento” de que “você interrompendo um processo, de que seu corpo precisa de
tempo pra se recuperar, pra se organizar. [...] O processo [do aborto] é bem violento e isso
tem que ser mais bem esclarecido”. As duas falaram de uma preocupação com o “corpo” da
gestante, pela “agressão” e pela “violência” que implica o aborto. Assim, Rosa diz que, para
ela, o aborto é uma agressão:
“Uma agressão, eu acho. [...] Agora, eu não saberia te dizer se seria com a criança
ou com [...] a pessoa, com a mulher, no caso. [...] Mas eu acho que é uma
agressão, assim, tomar alguma coisa para expelir uma outra coisa [
25
] sabe?”
(Rosa)
E Mônica, como dito acima, definiu o aborto como uma “violência”: “É interrupção
né? de gravidez. Não tem... Eu entendo como uma coisa bem violenta, bem violenta. [...]
Pra quem se submete. É, pra mulher.” Mais adiante na entrevista, Mônica explica porque que
ela considera o aborto algo violento:
“[...] interrompe um ciclo precioso que a natureza faz tudo pra aquilo acontecer.
você vai e interrompe. Você foi contra a natureza, a sua natureza, a natureza
humana. Acho que a violência é muito por isso, pela interrupção do que já
começou a ser programado pelos seus hormônios, pelo seu psicológico, pelo seu
emocional. Já começou a ser programado, não tem jeito. E... fisicamente, é bem
porrada sabe? –, não é tranqüilinho não, como todo o mundo fala. [...] O boom
hormonal que acontece, pro corpo se recuperar, não é assim, sabe, como ir ao
dentista e fazer uma obturação, não.”
25
Rosa utilizou “Cytotec” para abortar.
94
No depoimento de Mônica, percebe-se a ênfase que a informante para a “natureza”:
fazer um aborto, para ela, é ir contra a natureza, daí o seu caráter violento. Rosa, que também
enfatizou o caráter violento do aborto porque esse consistiria em “tomar alguma coisa para
expelir uma outra coisa”, me disse também que o aborto é semelhante a retirar um câncer.
Outra informante, Valéria, também definiu o aborto com base na noção de intervenção
humana sobre a natureza:
“O aborto é você impedir o desenvolvimento de um ser... humano, né? [...] É isso,
você... matar aquela vida, tipo tirar uma planta que você acha... né? Tipo, um
mato, você pf [som de arrancando o mato, ao mesmo tempo que gesticula este
ato], tira o mato porque você quer que a pimenteira cresça, você não quer que o
mato cresça [risos], entendeu?”
Essas definições demonstram o quanto o aborto pode ser visto, pelas informantes, nesse
sentido da intervenção humana sobre a natureza. Luna (2004), em pesquisa sobre as
representações da reprodução assistida e da clonagem, afirma que as mulheres de camadas
populares entrevistadas, que buscavam tratamento para a infertilidade, ouviram, a respeito de
não conseguirem engravidar, comentários que faziam referências à “figueira” e à “árvore
seca”. A autora afirma, ainda, que a esterilidade é comparada à fenômenos naturais, enquanto
que o ato voluntário de não ter filhos é comparado a um processo produtivo artificial, que,
quando a mulher decide, voluntariamente, não ter mais filhos, utiliza-se a expressão “fechar a
fábrica” (Luna, 2004).
Dessa forma, Amanda também considerou o aborto como algo “anti-natural”: “O
aborto é anti-natural sim, mas é uma solução”. Esta entrevistada também colocou a questão da
naturalidade da reprodução quando definiu, na entrevista, a maternidade: “É uma coisa natural
do ser humano. [...] Você gera aquele filho, é uma coisa natural do ser humano, assim, em
termos de natureza mesmo que eu quero dizer, sabe?”. Dessa forma, o aborto pode ser visto
como contrário à natureza, daí a sua agressão ao corpo da mulher, de que falam Rosa e
Mônica.
O “naturalismo”, como colocam Duarte, Jabor, Gomes e Luna (2006), é um dos valores
estruturantes da “cosmologia moderna”
26
. Segundo os autores, “as linhas de força da
26
A “cosmologia moderna”, segundo os autores, é o conjunto das “linhas de força ideológicas supostamente
articuladas em uma íntima solidariedade histórica de estatuto complexo” (Duarte, Jabor, Gomes e Luna,
2006:17-18).
95
'cosmologia moderna' detém grande preeminência na organização do ethos privado
27
por força
da sua alta legitimidade pública e por sua condição propriamente estruturante, não
questionada” (2006 :24), sendo que, enquanto os discursos religiosos se apresentam mais
como um “mercado” à disposição da escolha pessoal, a ideologia moderna, sendo
“vastamente dominante, fluida e não controvertida” pode se apresentar como incontestável.
No caso do aborto, os autores observam que a sua rejeição poderia resultar de um respeito à
“vida” e à “natureza”, como ocorre várias vezes (Duarte, Jabor, Gomes e Luna, 2006).
Assim, o naturalismo, que pode aparecer como incontestável na organização do “ethos
privado” (Duarte, Jabor, Gomes e Luna, 2006), apareceu, nas entrevistas, de modo a explicar
a oposição de algumas entrevistadas à banalização do aborto. Dessa forma, a possibilidade de
mulheres fazerem aborto muitas vezes, como 10 ou 14, causou, inclusive, indignação em
Mônica e Rosa, justamente por esse caráter agressivo e violento que as entrevistadas
explicaram acima. Rosa tenta explicar porque que ela acha que o aborto não pode ser feito
várias vezes:
“É uma agressão, eu acho que o corpo deve sentir entendeu? [...] O meu
sentimento é que eu não acho isso legal. Né? Se uma amiga minha me falasse
assim: [...] ‘Ah, fiz dez [abortos]’, acho que isso ia me gerar assim: pô! Sabe?
[Pesquisadora] E porque que gera? [Rosa] É... eu não sei explicar... Ah, mas
é porque... pela agressão [...]. Uma agressão...? Se não é uma vida? Com o corpo,
com o corpo. [Pesquisadora] Uma agressão com o corpo da mulher? [Rosa]
É.”
Mônica, ao me dizer que uma conhecida fez 14 abortos, também se indigna com a
questão do aborto repetitivo, e explica:
“Eu acho isso uma loucura, cara, eu acho isso uma loucura, eu acho isso auto-
flajelo! Não é possível. Por tudo né? Primeiro, que o corpo não agüenta esse...
esse solavanco hormonal pra e pra né? Uma gravidez é um solavanco
hormonal que não é brincadeira. Só a sua pressão arterial fica aumentada em cem
vezes! É uma parada punk fazer isso 14 vezes e interromper. Porrada mesmo
[batendo os dedos]. E eu não sei como é que o emocional dessas mulheres fica. É
isso que eu tô te falando: aí o que me choca é essa coisa blasé demais [...]”
Dessa forma, a noção de violência com o corpo da mulher, causada pelo aborto,
derivada de seu caráter ‘anti-natural’, causou indignação em Mônica e Rosa ao pensarem que
uma mulher poderia fazer muitos abortos.
27
O “ethos privadoestá relacionado à sexualidade, à reprodução, à moralidade e ao comportamento familiar
(Duarte, Jabor, Gomes e Luna, 2006).
96
Uma questão que também apareceu relacionada à banalização foi a questão da vida,
outra questão bastante valorizada socialmente e que apareceu durante as entrevistas. A
situação da autorização de abortos seletivos é ilustrativa dessa valorização da vida e,
inclusive, da vida fetal. Segundo Diniz (2003), para um processo de autorização de aborto
seletivo ter a possibilidade de deferição, além da inquestionabilidade do laudo médico, é
necessário que tenha-se certeza da sentença de inviabilidade fetal. Os juízes recorrem à idéia
de que os fetos não possuem vida como um dos argumentos para justificar moralmente o ato,
que, para eles, a legislação contrária ao aborto tem o objetivo de preservar a vida humana
(Diniz, 2000). Ou seja, os processos apenas tem a possibilidade de serem autorizados na
medida em que os fetos são considerados seres sem vida, já que não há a possibilidade da vida
extra-uterina. Além disso, esses juízes consideram que a proibição do aborto objetiva a
preservação da vida humana, o que demonstra o quanto a questão do aborto está vinculada à
questão da vida.
Assim, Rosa, além de pensar no caráter “agressivo” do aborto com o corpo da mulher,
também pensou na questão da “vida”. A entrevistada disse que não acha o aborto uma coisa
legal de se fazer porque: “Ah, sei lá, tirando uma vida”. Apesar disso, Rosa também ficou
em dúvida quanto à existência dessa vida. Ela também me disse que não concorda com o
argumento de que o aborto deve ser proibido por causa do direito de vida do feto. Perguntei a
ela se, mesmo não concordando, ela achava que isso tem que ser discutido, e ela respondeu
que sim, porque senão “vira aquela bagunça de todo o mundo querer fazer aborto”, ou seja,
sua preocupação com a banalização do aborto está relacionada à sua preocupação com a
“vida”
28
. A “vida”, como foi falado nesta dissertação, ocupa um papel em destaque na
questão do aborto, tanto com relação à vida das mulheres, quanto com relação à vida fetal. O
caso de Rosa é bastante interessante de como a legalização do aborto pode ser colocada como
um ideal, mas sem que, com isso, deixe de haver um certo incômodo moral com relação à
vida fetal.
Outra entrevistada que pensou na banalização do aborto de forma relacionada à natureza
e à vida foi Amanda. Ela considerou que o ato do aborto repetitivo consistiria numa
banalização da vida. Apesar de pensar que o aborto pode ser uma “solução” frente a uma
“irresponsabilidade” anterior, ele se justificaria, para a entrevistada, se não fosse feito de
forma repetitiva, que, para ela, se a pessoa não tinha “consciência” da possibilidade de
28
Ela me disse também que o fato dela não achar o aborto uma coisa legal está relacionado à vida, mas "como
um todo, com o ser humano [...], mas não do... Uma semana o feto tem direito à vida?! Colocar dessa forma eu
acho que também não... E aí outros fatores influenciam: talvez dinheiro, talvez a pessoa não se sinta preparada".
97
gravidez com a relação sexual, depois de ter feito um aborto a pessoa deveria saber dessa
possibilidade:
“Coloco como banalização assim do sexo mesmo, da relação que, se não existisse
remédio entendeu? –, naturalmente, você tem aquela relação, você gera uma
outra vida [
29
], sabe? Isso, pra mim, tem um significado primordial em relação à
vida mesmo. É daí que surge sabe? a vida, é desse sexo, entendeu? Então,
assim, é uma relação entre dois seres que gera um outro ser, sabe? Você ficar
fazendo a coisa por prazer, sem se prevenir, entendeu? Você não tinha
consciência do que podia acontecer, que podia engravidar? Engravidou. Tirou.
Agora, você sabe. Vai e faz de novo, vai e faz de novo, vai e faz de novo? [...]
Eu, com a minha consciência, eu estaria banalizando essa vida cometendo sempre
a mesma coisa, sabe? Eu acho uma irresponsabilidade, você assumiu, solucionou
com o aborto: não seja irresponsável de novo!”
30
Amanda pensou também numa banalização do sexo, mas pensada através da
banalização da vida, que esta, a vida, surge a partir do ato sexual. Sua experiência pessoal
ilustra bastante seu raciocínio. A entrevistada engravidou de uma relação em que não houve o
desenvolvimento de “uma amizade”. A relação, segundo a informante, era mais “ligada ao
tesão” e não ao “amor” e, por isso, ela optou pelo aborto. Ela disse que eles (ela e seu parceiro
sexual) terem se deparado, nessas circunstâncias, “com uma oportunidade de gerar uma outra
vida” deu “uma reviravolta” nela e a fez “pensar nessa questão de como a gente se relaciona
mesmo [...], a questão do sexo”. Amanda também falou que a maior lição que ela tirou dessa
história esteve relacionada a essa “[banalização de] um momento íntimo que pode gerar uma
outra vida, que abre porta pra uma outra vida sabe? Como que isso se tornou banal
entendeu?”. E pensou numa mudança de atitude em relação a isso quando ela tiver outro
relacionamento.
Heilborn (1999), em pesquisa sobre sexualidade e gênero realizada com homens e
mulheres residentes na cidade do Rio de Janeiro, mostra a importância do amor para as
relações sexuais entre as mulheres de camadas médias pesquisadas. A autora afirma que o
29
Amanda também colocou a questão da naturalidade da reprodução na sua definição de maternidade: “É uma
coisa natural do ser humano. [...] Você gera aquele filho, é uma coisa natural do ser humano, assim, em termos
de natureza mesmo que eu quero dizer, sabe?” Ela também colocou o aborto como anti-natural: “O aborto é anti-
natural sim, mas é uma solução.”
30
Amanda, ao mesmo tempo que coloca como banalização da vida”, também relativiza esta idéia por acreditar
que esta está baseada na sua “consciência espiritual”: “Agora, eu conheço pessoas que fizeram dois, três
abortos, e eu acho que é meio que uma banalização. Mas eu caio no que eu falei antes: na consciência de
cada um. Eu acho que é banalização entendeu? você fazer três abortos, sem ter sido estuprada, sem ter sido
uma coisa mais... sabe? Porque 'pera lá, uma vez, aprende, entendeu? Mas isso também é dentro da minha
consciência... é... de que... eu sou pró-vida, mas de repente tem gente que, cara, não tem consciência espiritual
nenhuma - sabe? -, que acha que é só isso mesmo e vai e faz, e não vai ficar... E quem é que sabe da verdade? Eu
sei das coisas que fazem sentido pra mim entendeu?”
98
“amor”, entre elas, foi colocado como essencial para as relações sexuais. Segundo a autora,
para essas mulheres, “é como se o amor validasse o sexo” (1999: 51). Como foi visto,
Amanda também colocou o “amor” como um ponto em destaque na sua sexualidade. Mas, se
para Amanda, o amor passou a ocupar um lugar também central para as suas relações sexuais,
a geração de uma nova vida não apenas foi concebida como devendo ser o produto do amor
do casal (Schneider, 1968), mas foi pensada como sendo exatamente uma das forças
motivadoras da necessidade do amor para as relações sexuais.
Dessa forma, para Amanda, a banalização do sexo está bastante relacionada à “falta de
relação afetiva e [de] conhecimento” entre os parceiros sexuais pelo sexo “abrir porta” para
“uma outra vida”. As relações sexuais, pelo seu caráter reprodutivo, não deveriam, para
Amanda, serem feitas com uma pessoa em que não houvesse uma relação afetiva, estando
inseridas numa linguagem do amor, de modo que a entrevistada optou vincular sexualidade e
amor através da reprodução. Nesse sentido, a prática habitual do aborto consistiria numa
“banalização do sexo”.
Além da questão das relações sexuais e o aborto estarem relacionadas, para Amanda, ao
grau de envolvimento emotivo e da amizade entre os parceiros sexuais, elas também estão
relacionadas por meio da questão da “responsabilidade”. Ainda para Amanda, ela considerou
o ato sexual que resulte em aborto como uma “irresponsabilidade”:
“a irresponsabilidade é [...] você deixar acontecer pra que a solução seja o aborto
entendeu? Essa é a grande irresponsabilidade, é você não usar camisinha num
momento que você não quer engravidar, você não se prevenir num momento que
você não vai poder assumir”.
A sexualidade, como outros aspectos da vida social, também está inserida dentro de
todo um conjunto de normas. Dessa forma, a gravidez não planejada, relacionada a essa moral
sexual, pode ser objeto social de reprovação moral com relação à idéia da irresponsabilidade
no ato sexual, vinculada, ainda, a uma culpabilização. Dessa forma, Abramovay, Castro e
Silva (2004), em pesquisa referida anteriormente com alunos, pais e professores,
constataram, em depoimentos colhidos em grupos focais, um discurso culpabilizante em
relação à gravidez não planejada, que considerava a não utilização de anticoncepcionais como
“irresponsabilidade”
31
.
31
Segundo as autoras, algumas alunas questionaram esse discurso e enfocaram uma noção de responsabilidade
dos pais, pela informação sobre sexualidade e métodos contraceptivos que estes deixam de transmitir aos filhos
(Abramovay, Castro e Silva, 2004), invertendo, portanto, a atribuição da “irresponsabilidade” entre os atores
sociais.
99
Amanda e Elisa também sentiram essa “culpa” vinda do não uso de contraceptivos
durante o ato sexual que gerou a gravidez que resultou em aborto. Quando perguntei a
Amanda se houve alguma coisa na vida dela que tenha mudado por causa do aborto, ela falou,
dentre outras coisas, sobre “o peso da irresponsabilidade” e disse que isso mexeu muito com
ela. Ela disse ainda que sente “culpa” com relação a essa “irresponsabilidade”. Elisa também
disse que se culpou por causa do aborto. Ela contou que a gravidez que resultou na segunda
vez em que interrompeu a gestação ocorreu porque ela optou por “arriscar”. Por ter sido um
“erro” dela, ao contrário do primeiro aborto, em que utilizava contraceptivo oral, se culpou
muito e tentou, inclusive, se matar tomando vários calmantes, fato que não ocorreu no
primeiro episódio. Dessa forma, a questão da responsabilidade e a do sexo, narradas por estas
entrevistadas, foram relacionadas através de um enunciado de “culpa”.
No caso de Amanda, ela, apesar de pensar na idéia de irresponsabilidade, foi mais
receptiva à idéia de “solucionar” essa irresponsabilidade com a interrupção da gestação, mas
chamou de banalização” a realização de vários abortos porque, para a entrevistada, como foi
visto acima, se a pessoa não tinha “consciência” da possibilidade de gravidez com a relação
sexual, depois de ter interrompido a gestação a pessoa deveria saber dessa possibilidade:
“Eu acho uma irresponsabilidade, você assumiu, solucionou com o aborto: não seja
irresponsável de novo!”. Dessa forma, para Amanda, a irresponsabilidade, que já é atribuída a
uma gravidez que termine em aborto, é revestida de maior reprovação moral, quando repetida
várias vezes, por consistir na banalização da vida e do sexo.
A questão da “responsabilidade” com relação ao comportamento sexual também foi
mencionada por Tereza. Para a entrevistada, essa questão da responsabilidade foi um dos
aspectos apontados para que ela se manifestasse como contrária à legalização do aborto,
apesar de achar que o ideal seria “a liberdade do ser, do indivíduo”, e que as pessoas não
“abusem” dessa liberdade, fazendo o aborto em qualquer situação. Ela disse que, através da
responsabilidade, o ideal seria que, ao invés de abortar, a pessoa não engravide:
“o ideal é que, através dessa responsabilidade que a pessoa possa ter... maior, não
que ela abuse, e faça tudo em qualquer... faça... em qualquer situação faça um
aborto, mas o ideal seria que ela fosse chegando a um ideal de saber da
responsabilidade de engravidar, e do que é ser mãe, e do que que é colocar uma
criança no mundo e tal, e, ao invés de abortar, não engravidar. E... então, assim:
eu acho que o ideal seria legalizar pra que as pessoas... e que as pessoas tivessem
essa responsabilidade sobre os seus atos, sobre as suas decisões.”
100
Na argumentação contrária ao aborto, a questão da responsabilidade com relação ao ato
sexual está implícita, principalmente quando uma favorabilidade ao abortamento em caso
de estupro. Dessa forma, Blay (1993) coloca que, com o permissivo legal por gravidez
resultante estupro, acaba havendo a noção de “culpa sexual” quando a gravidez resulta de ato
consentido pela mulher. O caso de Elisa, narrado acima, é ilustrativo de como pode ocorrer
essa “culpa” com relação a um ‘comportamento sexual irresponsável’ por parte das mulheres
que abortam, que ela, em um caso de aborto, tentou se matar por sentir culpa frente a seu
“erro”, enquanto que, em outro caso de aborto, em que houve, segundo ela, uma falha de
método contraceptivo, ela não se sentiu culpada.
No depoimento de Tereza acima, além responsabilidade com relação ao ato sexual, ela
também chama atenção para a “responsabilidade do próprio ato do aborto: “não que ela
abuse, e [...] em qualquer situação faça um aborto”. Segundo ela, “se você legaliza, você
aumenta a responsabilidade sobre cada mulher que vai ou não tomar essa decisão de abortar”.
Por considerar que “a gente não tá nesse nível” de responsabilidade, a entrevistada considerou
também que, por isso, se o aborto fosse legalizado, iria “virar um ‘samba do crioulo doido’ e
todo o mundo [iria] abortar ‘a torto e a direito’”, preocupando-se, portanto, com a banalização
do aborto
32
. Assim, da mesma forma que as entrevistadas falaram da responsabilidade
reprodutiva com relação à criação dos filhos (capítulo 2), também foi colocada a categoria de
“responsabilidade” relacionada, agora, tanto ao ato sexual, quanto ao do aborto.
Com relação à responsabilidade reprodutiva, é bom chamar atenção para o fato de que
algumas Convenções e Conferências Internacionais conferidas no âmbito da Organização das
Nações Unidas tratam, justamente, da decisão “livre e responsável” sobre o número de filhos
desejados (como foi falado no capítulo 1). Ou seja, ao mesmo tempo em que a decisão sobre o
número de filhos que a pessoa deseja ter é colocada como uma decisão que deveria ser
“livre”, isso não impede a criação de normatizações em cima desta decisão, já que ela também
deveria ser “responsável”.
Assim, segundo Vianna e Lacerda (2004), a noção de responsabilidade aparece como
um único critério que possibilita a manutenção do valor de livre escolha do indivíduo dentro
da preocupação com a gestão das populações. Tratando especificamente da Conferência do
Cairo, que tem como preocupação específica a relação da população com o desenvolvimento,
as autoras afirmam que a adequação da reprodução à esfera dos direitos humanos está
32
Ela acredita que as pessoas teriam essa atitude porque muita gente, segundo Tereza, não tem "acesso à
informação e à educação" e nem "consciência" para isso, remetendo a um outro aspecto relacionado à questão do
aborto para as entrevistadas, que já foi visto no início deste tópico: a educação e a consciência.
101
intrincada à capacidade de fazer a reprodução “compor-se com a idéia da liberdade individual,
entendida como a possibilidade de que os indivíduos não apenas façam escolhas, mas as
façam de acordo com um ideário de responsabilidade para consigo mesmos e para com os
demais” (Vianna e Lacerda, 2004: 33).
É interessante como a liberdade individual é pensada dentro desse conjunto de normas
da responsabilidade. Assim, algumas entrevistadas, imediatamente após me falarem que
gostariam que o aborto fosse legalizado, colocaram a questão da banalização, atentando para
essas noções de responsabilidade e consciência. Já Tereza, que também traz uma idéia de
“liberdade individual”, optou por apoiar a lei proibitiva por achar exatamente que as pessoas
não teriam “responsabilidade” e “consciência” para decidirem com relação ao aborto. Dessa
forma, assim como outras entrevistadas, houve uma combinação entre a noção de direitos e a
preocupação com a banalização da interrupção da gravidez, que resultou em uma opinião
diferente com relação à legalização, ou seja, se todas as entrevistadas foram, em certo sentido,
favoráveis a uma noção de direito individual ao aborto, várias delas acionaram essa noção de
responsabilidade e consciência que as mulheres deveriam ter ao fazerem escolhas
relacionadas à reprodução, tanto com relação a ‘colocar uma criança no mundo’, quanto com
relação à interrupção da gestação.
102
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo desta dissertação foi revelar um pouco mais a experiência e as opiniões de
mulheres que interromperam a gestação. Ao tratar do tema do aborto, procurou-se refletir um
pouco sobre em que condições o aborto pode ser moralmente ou legalmente aceito ou
rejeitado por parte destas mulheres.
Tendo em vista a moralidade como “uma linguagem em uso”, recuperada na sua
dimensão de ação social (Vianna, 2002: 197), esta dissertação procurou trabalhar sob essa
perspectiva das moralidades. No primeiro capítulo, além da caracterização das entrevistadas,
buscou-se, ao fazer uma breve apresentação da discussão sobre o aborto, traçar algumas
questões referentes aos valores presentes nesse debate. Já no segundo capítulo, o enfoque foi a
justificativa das mulheres por terem optado pela prática, atentando para as normas de conduta
relativas às suas escolhas. E no terceiro capítulo, buscou-se traçar algumas moralidades
envolvidas na questão da realização do ato do aborto em si.
Apesar da ilegalidade, estimativas têm apontado altos índices de abortos praticados no
Brasil. Como afirma Moore (1978), a regulamentação formal não controla todos os
comportamentos em uma sociedade, que, ainda que as instituições legais possam contar
com um certo monopólio sobre o uso legítimo da força, elas não contam com o monopólio
sobre outros tipos de sanções. Dessa forma, entre as mulheres entrevistadas por mim, é
interessante perceber como, na decisão pelo aborto, as relações familiares, longe de serem
desprezadas pelas entrevistadas, foram bastante valorizadas. Outro dado importante é a
valorização da maternidade entre elas, dado que 7 dessas 8 mulheres querem ser ou são
mães. A maternidade e, mais precisamente, um certo tipo de representação de maternidade
também foi acionado na escolha pelo aborto, de modo que as informantes se recusaram a
gestar um filho sem criá-lo depois ou, em outros termos, a serem mães biológicas/
gestacionais e não serem mães sociais.
É interessante como a questão do abandono foi bastante levantada por parte das
informantes numa entrevista sobre aborto provocado, de forma que uma demarcação de
fronteiras, por parte das entrevistadas, entre os dois atos. Ou seja, em uma entrevista em que
as informantes falariam sobre a sua negação pela maternidade, com a interrupção da gestação,
elas precisaram deslegitimar o ato de outras mulheres com relação à maternidade. Isso
103
demonstra como a maternidade é um conjunto tão forte de valores que faz com que, ao se
falar em aborto, pode não haver a sua negação, mas a sua reafirmação.
A prática do aborto também não encontra necessariamente um acoplamento entre as
legalidades e as moralidades, de modo que este pode ser legal mas considerado imoral e vice-
e-versa. Aliás, a própria ilegalidade do aborto pode ser considerada como um fato criminoso,
como foi visto no caso de Débora, uma das entrevistadas. Por outro lado, da mesma forma que
o aborto ilegal pode ser moralmente aceito, considerado “justo” (Débora), pode-se condenar
moralmente a prática do aborto mesmo que esta seja contemplada pela lei.
Conforme visto ao longo desta dissertação, além do aborto poder estar relacionado a
normas como as relações familiares, o individualismo e o ‘não-abandono’ das crianças, ele
também esteve entrelaçado a uma série de normas de conduta na sua realização. Assim,
algumas das entrevistadas falaram que o aborto não deve ser “banalizado” e, caso seja feito,
deve ser feito com “consciência” e dentro dos períodos iniciais da gestação, mostrando como
o aborto, caso seja a escolha da mulher, ‘deve ser feito’. Além disso, algumas das
entrevistadas apontaram para deveres morais da mulher de compartilhamento da decisão com
o companheiro. Dessa forma, além da diferenciação do aborto de outras práticas relacionadas
de algum modo à maternidade, como o abandono, houve também uma demarcação de
fronteiras dentro do mesmo ato do aborto: aborto consciente/ não consciente; aborto tardio/ no
começo; aborto banalizado/ não banalizado; aborto com compartilhamento da decisão/ aborto
sem compartilhamento da decisão.
Conforme visto nesta dissertação, a maioria das entrevistadas foi favorável à legalização
do aborto. No entanto, isso não impediu que elas tivessem uma série de reprovações à sua
realização. Isso porque várias entrevistadas conferiram atribuições morais negativas à
interrupção da gravidez. Nesse sentido, foram traçadas várias condições em que o aborto, ora
apareceu como uma possibilidade aceita, ora apareceu como uma prática bastante reprovável,
como se procurou mostrar nos capítulos 2 e 3. Assim, a contracepção foi considerada, entre as
entrevistadas, como a primeira opção, mas o aborto apareceu, entre a maioria, ainda como
uma possibilidade aceita. No entanto, dependendo das circunstâncias, houve críticas à sua
realização.
Assim, minha intenção foi contribuir para o estudo sobre a vivência e as opiniões das
mulheres com relação ao aborto. Para isso, foram ressaltadas normas de comportamento
acionadas pelas entrevistadas na decisão pela interrupção da gravidez e as preocupações que
elas tiveram com relação à “banalização” do aborto e o tempo gestacional limite para a
realização da prática.
104
É importante ressaltar que não se pretendeu dar conta da opinião e das experiências das
mulheres em geral com relação à interrupção da gestação, mas fazer uma análise, através de
entrevistas em profundidade, de possibilidades dessas vivências e das moralidades envolvidas
na questão.
105
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113
ANEXOS
Anexo 1 – O aborto no Código Penal
Atualmente, o aborto é crime no Brasil, não sendo punido se a gestação for resultado de
estupro ou se a gestante correr risco de vida. A lei que pune o aborto, datando 1940, se
encontra no Código Penal, no Título “Dos crimes contra a pessoa”, no capítulo “Dos crimes
contra a vida”, o mesmo que o homicídio e o infanticídio, e diz:
Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento
Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:
Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos.
Aborto provocado por terceiro
Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante:
Pena - reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos.
Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.
Parágrafo único - Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de 14
(quatorze) anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante
fraude, grave ameaça ou violência.
Forma qualificada
Art. 127 - As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço,
se, em conseqüência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre
lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe
sobrevém a morte.
Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico:
Aborto necessário
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
114
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante
ou, quando incapaz, de seu representante legal.”
115
Anexo 2 – As Entrevistadas
Tereza
36 anos, noiva, graduação na área de humanas, trabalha como terapeuta, se definiu
como classe média alta. Quanto à sua religiosidade, é “bem cristã”, “cristã meio
espiritualista”.
Aos 18 anos, morava com seus pais, namorava e cursava o ano do grau quando
engravidou pela primeira vez. A forma de contracepção que utilizava era tabelinha combinada
com coito interrompido, mas “não era super bem feito”. Optou pelo aborto porque sempre
priorizou sua “vida individual” e “profissional”, além de não querer “ser mãe com aquele
pai”. O namorado não queria o aborto, mas aceitou e foi junto na clínica. Ela mesma pagou
com o dinheiro de suas economias.
Passado um tempo, os pais descobriram e ficaram um pouco magoados, e ela se sentiu
invadida. Foi, por isso, “traumático nesse ponto”. Também foi “traumático” pela dúvida que
ficou se ela estava “matando uma vida”, apesar de estar se sentindo aliviada porque tomou a
decisão e fez o que achava que era o “ideal” para ela naquele momento.
Um ano depois, quando já estava na faculdade e já tendo terminado com esse namorado,
retomado o namoro, e terminado novamente, descobriu uma segunda gravidez, optando mais
uma vez pelo aborto. Desta vez, o namorado contou para os seus pais, e ficou “aquele drama”
pois estes tentaram convencê-la a ter o filho, oferecendo-se para cuidar. Mas ela “nunca quis
colocar um filho no mundo numa situação irresponsável” de “não ser responsável por aquele
ser que viria”.
Na época, não contou para amigos por uma mistura de vergonha, orgulho, por não
querer ser questionada e por não querer que nada balançasse sua decisão. Quanto à sua
religiosidade, tinha “questionamentos ticos” e não pensava em religião, não se questionava
se havia um Deus; pensava somente em termos do feto.
Aos 23 anos virou espírita e teve “dor de culpa”, mas, hoje em dia, a culpa não é tão
grande e acha que o aborto deve ter tido uma razão de ser, como o aprendizado do ser que
viria (ter tido sua vida “ceifada” naquele momento) e dela mesma. Por isso, entende que hoje
ela tem uma “compreensão um pouco mais madura” e diz: “pode ser que eu tenha tomado
uma decisão errada e que talvez eu não tomasse hoje em dia, mas que... de uma certa forma é
a... é a vida – né? –, quer dizer, a gente toma decisões certas, decisões erradas”.
116
Tereza é a única entrevistada que se colocou contrária à legalização do aborto, se feita
atualmente. Apesar disso, concorda com os permissivos legais (caso de risco de vida da
mulher ou de estupro) e também no caso de anencefalia.
Elisa
58 anos, graduação da área de humanas, trabalha como bibliotecária, casada, 3 filhos, se
definiu como classe média média.
Seu primeiro aborto, aos 33 anos, foi, segundo ela, “altamente consciente”. Ela estava se
separando e “seria uma sacanagem colocar uma criança no mundo nessa situação”. Não
consultou o ex-marido porque acha que a decisão é da mulher.
a gravidez que resultou no seu segundo aborto ocorreu porque, quando foi sair com o
namorado, lembrando-se que estava sem diafragma, optou por arriscar. Por ter sido um “erro”
dela, ao contrário do primeiro, em que utilizava contraceptivo oral, se culpou muito e tentou
se matar. Quando fez o aborto, estava brigada com o namorado, briga que levou ao término do
namoro. Ela disse que “não iria ter um filho já sem pai” e ele não ficou sabendo do aborto.
Já contou sobre seus abortos a diversas pessoas em “papo de mulher”. Perguntada
quanto a sua religião, se definiu como “basicamente espírita” e disse que essa não influenciou
na sua história de aborto. Fez questão de se posicionar favoravelmente à legalização da
interrupção da gestação e achou que seria bom eu “ajudar a levantar essa discussão” com as
pessoas falando “sem hipocrisia”.
Rosa
25 anos, casada, faculdade na área de humanas trancada, trabalha na área comercial, se
definiu como classe média baixa.
Na época do aborto, tinha 20 anos, morava com os seus pais e namorava, mas o namoro
não estava bem. Quando descobriu a gravidez, procurou o namorado como um motivo de
reconciliação, não para ter o filho, mas para interromper a gestação. Contou também para sua
tia, antes de contar para a sua mãe, porque não queria dar problemas para esta.
117
Rosa tomava pílula anticoncepcional, mas havia dias em que esquecia de tomar. Disse
que o se sentiu grávida, com alguém dentro dela. O motivo do aborto foi que o se sentia
preparada para ter filho naquele momento, não tinha dinheiro e “não queria”, além de estar
brigada com o namorado. Hoje, quer ter filho “com casa, com tudo direitinho, aquela família
feliz, planejei”. Não queria ter na casa da mãe, com ela cuidando sozinha, que quer que o
filho seja “um projeto de duas pessoas”.
Optou pelo uso do “Cytotec” ao invés de clínica porque “queria resolver” sem ter tempo
para refletir e pelo que ela tinha ouvido falar de clínicas de aborto: “vai entrando, ninguém
fala com ninguém, me o dinheiro agora”. Sentiu muita dor com o uso do medicamento.
Considera o aborto uma agressão, mas não sabe se com a mulher ou com a criança: “tomar
alguma coisa para expelir uma outra coisa”.
Não acha que deva ficar contando sobre o aborto “porque as pessoas julgam”. Conta
quando alguém diz que já fez, mas não para pessoas estranhas. Concordou em dar a entrevista
porque achou legal meu interesse pelo assunto e para se entender mais, porém, se tivesse sido
algo traumático, “com certeza” não falaria.
Mônica
44 anos, casada, 2 filhos, graduação na área de humanas, se definiu como classe média
A primeira gestação ocorreu aos 19 anos por um “furo de tabela” ou de diafragma (a
informante não lembra ao certo). Ela morava com os pais, trabalhava e fazia curso pré-
vestibular e de inglês. O namorado tinha acabado de entrar para a faculdade e não trabalhava.
Aos 29 anos, casada com outro homem, com quem tinha um filho, engravidou
novamente, desta vez, por alguma falha do diafragma. Os dois tinham um comércio e
trabalhavam de 5 horas da manhã às 11 horas da noite, e não tinham “disponibilidade física”
para terem outro filho: ela não sentido em ter filho e “não ver crescer” – ela quer “curtir” o
filho porque gosta “de ver crescer”. Como ela e o marido não tinham dinheiro para pagar o
aborto, a cunhada pagou.
Mônica frisou que o ambiente em clínica é “horrível” e “escroto” porque o aborto é uma
coisa muito “violenta” e, apesar disso, as pessoas o muito arrumadas, com uma cara muito
blasé. Não costuma conversar sobre os abortos porque é uma coisa pessoal e porque não se
orgulha do que fez; só conta quando surge o assunto.
118
Nos dois episódios, se tivesse alguém que a apoiasse e falasse “eu seguro”, ela teria tido
o filho. Diz ainda que não se arrepende, mas se tivesse a experiência de vida que tem hoje,
teria “mandado o mundo no cú” e teria tido os filhos em qualquer circunstância.
Quanto a sua religiosidade, no primeiro aborto, era cética, o que facilitou um pouco. Já
no segundo, procurou amparo espiritual por estar fazendo algo contra a sua natureza ela
disse que “nasceu para ser mãe” e, se pudesse, teria 10 filhos.
Valéria
28 anos, solteira, cursando faculdade na área de artes, artista plástica, se definiu como
classe média baixa
Aos 17 anos, morava com os pais, cursava o ano do segundo grau, namorava e, no
“afobamento”, engravidou. Disse que não utilizavam métodos contraceptivos, “só tirar”.
Antes de fazer o exame de gravidez, tomou um remédio para “fazer descer a menstruação”.
Não cogitou ter o filho pois estava fazendo pré-vestibular e não teria estrutura
psicológica e financeira. O namorado disse que o que ela decidisse estaria bom. As clínicas
que ela teve acesso pediam autorização de ambos os pais para realizar o aborto porque na
época ela era menor de idade. Por isso, e por causa do dinheiro, eles tiveram que contar para
os pais dos dois, que dividiram o pagamento do aborto.
Valéria, que não tem religião, mas acredita no espiritismo, na umbanda e em
reencarnação, optou por fazer o aborto logo que descobriu a gravidez porque, por acreditar no
“espiritismo”, ela não queria “deixar desenvolver uma vida a ponto de [...] ter formação [...]
biológica pra ser um ser humano”, além de acreditar que se o aborto for feito logo, menos
“consciência” e dor o “ser” teria.
Dois dias após ter feito o aborto na clínica, quando foi ao banheiro, Valéria viu “um
sangue coagulado num formato de um feto”, o que a deixou desesperada e sentindo “uma
angústia que nunca teve”. O namorado também sofreu muito, ficando muito triste.
Ela jurou para si mesma que nunca mais faria isso, independente de quem seja o pai,
porque, segundo ela, o aborto não é algo que se faça mais de uma vez na vida. Disse que não
se arrependeu, que não costuma fazer coisas que a façam se sentir arrependida depois.
Agora, costuma se lembrar menos do aborto, mas antes rezava. Ela não costuma
comentar que fez aborto, mas quando fala, fala de uma “forma natural”. Ao mesmo tempo,
119
disse que a narração sobre o fato merece uma entonação de respeito, porque o aborto é uma
coisa séria já que se trata de tirar uma vida.
Espontaneamente, se colocou favorável à legalização do aborto, mas considerou que,
com a “burocracia brasileira”, as pessoas acabariam fazendo com 4 meses. Acredita que nada
deve vir por obrigação ou culpa, e que o aborto é melhor do que as mulheres morrerem, ou
criarem os filhos “que nem bicho”. Com relação à mulher, por conta própria, optar fazer
apenas com 4 meses, ela considera “escroto” e “uma estupidez” porque é melhor fazer no
início da gestação, já que as “células” ainda estão “em formação”, e ressaltou que, com 3 ou 4
meses, o feto já tem dedos.
Amanda
25 anos, solteira, cursa faculdade na área de artes, artista plástica, se definiu como
classe média, mas com relação ao convívio pessoal e à formação, e não à renda
Menos de um ano antes de me conceder a entrevista, ainda morando com a sua mãe,
Amanda teve uma relação com Y “muito ligada ao tesão”, não desenvolvendo uma “amizade”
e engravidou. Houve uma vez que não utilizaram a camisinha e ela tomou a pílula do dia
seguinte. Quando não estavam se encontrando mais, descobriu a gravidez. Imediatamente
após descobrir o resultado positivo do exame de sangue, ligou para Y, que foi à sua casa para
conversarem. Ela colocou para ele que não fazia sentido para ela ter um filho nessas
condições. Ele foi “super solícito” e “fechou junto”.
Antes de fazer o aborto, Amanda teve um sangramento vaginal e foi fazer uma
ecografia para ver se havia tido um aborto espontâneo, e Y a acompanhou. Ela acha que o
médico que realizou o exame percebeu seu sentimento de alívio com essa possibilidade,
porque a colocou para escutar “o batimentozinho cardíaco [...], fez a maior pressão
psicológica”.
Houve um momento em que ela pensou em ter o filho, mas sua mãe lhe disse que não
queria ser “vó-mãe”. Então, Amanda pensou que não queria atrapalhar a vida de ninguém,
ainda mais com uma questão que “já não fazia muito sentido” para ela.
O casal dividiu a despesa, sendo que a mãe de Amanda pagou a parte dela. No dia de
realizar a cirurgia, sua mãe e Y a acompanharam. Após o aborto, contou que ficou meio
apática e reflexiva.
120
Considera o aborto como o pior momento de sua vida, mas diz que não se arrepende de
ter feito: o seu arrependimento vem da “irresponsabilidade de não ter usado a camisinha”. Na
sua concepção, a irresponsabilidade é na contracepção, sendo anterior ao aborto.
Ela costuma orar pelo “ser que estava reencarnando”, por ela e por Y. Diz que sua
culpa está ligada à espiritualidade, a esse “ser”; mas, com relação a “questões materialistas”,
não tem culpa por causa dos motivos que teve para interromper a gravidez.
Concordou em dar a entrevista porque acha muito importante “a troca de idéias”.
Débora
42 anos, graduação na área de humanas, pós-graduada e designer gráfica, se definiu
como classe média pelos seus valores e “por exclusão”, porque não se considera classe baixa
nem alta. Sua família de origem é classe média baixa. Disse que não pensa muito nessas
coisas de religião, mas, recentemente, tem se aproximado da umbanda.
Aos 26 anos, quando era casada e morava em um país em que o aborto é despenalizado
legalmente, engravidou. Decidiu pelo aborto e seu marido concordou. Assim, Débora não
realizou o aborto na ilegalidade.
Aos 32 anos, no seu segundo casamento, quando veio passar as férias no Brasil, Débora
descobriu outra gravidez, optando novamente pelo aborto. Seu marido também concordou.
Desta vez, fez o aborto no Brasil e, portanto, na ilegalidade.
A entrevistada disse que teria condições financeiras para ter o filho, mas que nunca
achou que um filho a realizaria e que “não queria” ter filho.
Comparando as duas experiências, disse que, com o aborto que realizou na legalidade,
ela tomou anestesia local e ouviu tudo, o que foi “horrível”. no Brasil, com a anestesia
geral, foi “mais relax”. Ao mesmo tempo, no Brasil, havia a sensação de estar fazendo algo
ilegal, porém, ela sentia como “uma coisa justa”.
Espontaneamente, me falou que o aborto deveria ser legalizado no país. Mencionou que
o aborto é um “problema de saúde pública”; disse que custa dinheiro para o SUS as mulheres
que passam mal em decorrência de terem feito abortos ilegais, além de custar vidas; considera
a proibição do aborto “uma política quase que racista”; que é “uma irresponsabilidade do
governo brasileiro” não legalizar a prática e que essa situação é “criminosa”. Ao mesmo
121
tempo, considera que o aborto não pode ser usado como um método contraceptivo porque não
é saudável, e que tem que haver “educação”.
Sabrina
27 anos, solteira, graduação e mestrado na área de humanas, antropóloga pesquisadora,
se definiu como classe média
Aos 21 anos, morando apenas com o seu pai, seu método contraceptivo com o
namorado era a tabela, mas um dia “furo[u] com consciência”. Como ela não queria ter um
filho com esse namorado, optou pelo aborto.
Procurou o remédio “Cytotec” em várias farmácias, mas não conseguiu, até que um
amigo de seu namorado, que morava em outro Estado, conseguiu e o enviou pelo correio. Ela
utilizou o medicamento e sentiu “uma cólica horrorosa”, sangrando muito. Achou que estes
eram os sintomas do aborto e “relaxou”.
Um mês depois, passou mal. Com isso, foi ao ginecologista, que lhe pediu para fazer
uma ultra-sonografia. Durante o exame, viu que “tava com o neném ainda”. Disse que achou
lindo ver as imagens, mas que sua posição era muito fria.
Seu namorado estava indeciso com relação a realizar a interrupção. Como ela não tinha
dinheiro para fazer o aborto, contou para a sua mãe. Esta queria que ela tivesse o filho para
ela cuidar. A informante lhe respondeu que não queria ter um filho para a sua mãe cuidar e
nem queria ter um filho com o seu namorado.
Apesar de não quererem o aborto, seu namorado e sua mãe a acompanharam na clínica.
Além disso, seu pai ficou sabendo porque sua mãe contou-lhe para pedir dinheiro; sendo que
o namorado pagou a metade.
Após o aborto, permaneceu de repouso por uma semana e ficou muito eufórica porque
estava muito feliz. Um mês depois, “deu uma baixa, uma deprê”. Segundo ela, o corpo dela
sentiu a ausência daquele outro corpo que fazia parte dela. Disse que a sua experiência foi
boa para ela como um aprendizado, um reencontro com ela mesma. Depois disso, passou a se
cuidar mais.
Antes de fazer o aborto, não contou para os amigos porque ela não queria que os
argumentos deles pesassem na sua decisão. Mas depois de ter feito, contou para eles e acabou
descobrindo muitas pessoas que também já tinham feito.
122
Espontaneamente, se colocou favoravelmente à legalização do aborto, mas não como
um método contraceptivo porque o aborto não poderia ser algo banalizado. Além disso, me
disse que o aborto não é crime, assim como fumar maconha: não é “porque é ilegal [que] é
crime”.
123
Anexo 3 – As definições sobre maternidade
As definições sobre maternidade, nas entrevistas, apesar das variações, passaram por
certas fronteiras em torno de categorias como “cuidar”, “dedicação”, “educar” e
“responsabilidade”, principalmente, sendo que, em alguns casos, esse cuidado é integral, de
modo que a “responsabilidade” é “absoluta” e a “dedicação” é “total”. Os trechos das
definições em que as entrevistadas invocam estas categorias são apresentados abaixo:
“É uma coisa meio mágica, é uma responsabilidade absoluta cuidar da... da formação da
cabeça de uma outra pessoa, uma responsabilidade absoluta, absoluta. [...] Mas é paciência
extrema, é disponibilidade acima de tudo. É você estar disponível pra uma outra pessoa, que é
um outro universo. Respeitar esse outro universo, sem querer o tempo todo moldá-lo né?
à... à sua forma, à sua perfeição. [...]” (Mônica)
“É uma forma de... de amparo e de... de... de educar esse ser que vem realizar suas
potencialidades e tal – né? –, o ser que vem aí realizar sua individualidade na Terra. Então [...]
é um amparo muito importante, algo assim muito... também essencial pra esse ser que
vindo, que é a primeira forma de... da criança se colocar e dela aprender – é com a mãe, com a
maternidade. [...] É uma responsabilidade muito grande, inclusive, ser mãe. É essencial e é
muito... um comprometimento, uma responsabilidade extremamente grande você vai ajudar
a formar um ser que, daqui há alguns anos, vai realizar uma coisa no mundo, seja lá o que for,
né? E... e se você não se der conta dessa responsabilidade e não atuar de acordo [...], esse tipo
de -formação pode influenciar no que ele vai fazer depois, futuramente, né? Então, é uma
responsabilidade muito grande.” (Tereza)
“Ah, ser mãe é você colocar realmente um filho no mundo e assumindo as
responsabilidades sobre a criação e a formação daquele filho como ser humano.” (Elisa)
“Ah, é cuidar muito, uma dedicação total. [...] E tem uma coisa é pra o seu filho...
entendeu? É tudo em função dele, mas pro resto da vida, não quando é criança. [...] Acho
que é uma continuidade de você também, mas é mais uma... seria uma dedicação, assim.”
(Rosa)
124
“Pô, imagina: é você passar... orientar valores, conhecimentos a outro ser humano, cara,
gratuitamente, assim, só... Gratuitamente, não, em troca de amor, sabe? Tipo... Pô?... E cuidar
do ser humano. [...] A galera já diz que eu sou meio mãe dessa galera aí porque [rindo] eu fico
cuidando deles [...] tossindo aí, vou deixar morrer?! ‘Toma o remédio!’ [risos] Eu curto
essa coisa de zelar pelas pessoas. [...] Eu fico preocupada com o outro; eu fico querendo que
todo mundo fique feliz a minha volta, sabe? Confortável, feliz, bem alimentado. Eu curto.”
(Valéria)
“[estranhando] Sei lá... É querer cuidar de alguém. É cuidar, desejar cuidar de alguém.
Eu já cuido de tanta gente!” (Débora)
“É o ser mãe, mas que envolve uma mudança, disposição [ininteligível] perante tudo,
perante a sua própria visão de vida mesmo assim [...] E é muito difícil também: um amor... –
né? um amor incondicional, diferente. Mas eu acho bonito, acho lindo. Acho que todo
mundo tem que... quem não pode ser mãe, tem que tentar trazer isso pra você, porque, às
vezes, você tem um lado maternal [...], não é mãe, mas tem um lado maternal com a vida, de
tratar as pessoas não é? –, de carinho [ininteligível], gente que traz pra si, acolhe, junto
[...]” (Sabrina)
“[...] é sempre uma coisa que ligada à educação, não é o colégio e tal, mas tipo
essa coisa do respeito entendeu? –, do respeito à vida. Maternidade tem muito a ver com
isso porque não adianta você ter um filho se você não respeita ele como um ser antes,
independente dele ser teu filho, entendeu? [...] Você assim os professores são meio mães
também [...], eles estão ali te orientando – né? – cuidando do seu desenvolvimento [...]. Assim
como você perguntou: ‘Você tem filho?’. ‘Não, mas eu tenho um cachorro’. É um filho
sabe? – nesse sentido.” (Amanda)
A maternidade foi pensada também como um “lado maternal de tratar as pessoas”,
baseada no gesto do “acolher” (Sabrina) e do “cuidar” (Valéria), e também foi estendida aos
alunos (Amanda), que os professores tem a tarefa de “educar”, “cuidar”, e aos animais, ao
colocar o cachorro como “filho” (Amanda). Desta forma, mesmo com essa ‘ampliação’ dos
limites da maternidade, esta caracterizou-se, na fala das entrevistadas, como uma forma de
‘cuidar’.
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