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Valéria, ou o “sistema neural”, na fala de Mônica, foram linhas fronteiriças traçadas pelas
duas entrevistadas com relação a limites morais, ou mesmo legais, para o tempo do aborto.
A presença do sistema nervoso central é um dos componentes de uma individualidade,
da constituição de pessoa, já que entende-se que “o ser” passa, a partir daí, a ter consciência.
A questão da anencefalia é bastante ilustrativa a respeito disso, na medida em que o feto, não
tendo o córtex cerebral, o que lhe permitiria ter consciência e experimentar sensações (Penna,
2005), pode ser considerado um feto morto, uma não pessoa.
Além das considerações com relação à ‘forma humana’ e à “consciência”, também
houve considerações com relação à viabilidade do feto, ou seja, a capacidade de sobreviver
fora do útero. O feto já estar “formado”, “pronto pra nascer”, já configura, na fala de Mônica,
um “assassinato”
15
:
“Eu acho que colocar como assassinato [o aborto], não. Depende [pensou na
possibilidade da pessoa fazer com 8 meses], já está apto a nascer, ’per’aí. Aí, não,
já está formado, tá pronto pra nascer. Aí é assassinato mesmo, não tem outro
nome. Ou você vai fazer um parto, ou você vai matar o feto – né? – porque está
formado. Aí é assassinato, é diferente. [Pesquisadora] – Assassinato é quando já
está formado? [Mônica] – É, pronto pra nascer, né? Tá pronto. Tem um ser
pronto pra nascer. Aí, é, não tem jeito. [...] Pois é, eu não sei se é ou se não é, eu
estou dizendo que nesse caso específico, fica muito claro de que é. Acho que não
tem muito o que duvidar, né? Com 3 meses, eu não vou conseguir criar ninguém
na incubadora, se tiver como sair, tipo com 3 meses, da barriga, e que ainda não
tem nada pronto. Ainda não conseguiram fazer isso. Mas com 8?! Tá pronto! Vai
nascer! Com 7, tá pronto! Vai nascer.” (Mônica)
A questão da viabilidade fetal, como colocada por Mônica, também é bastante
importante para a questão do aborto
16
. Nesse sentido, algumas das legislações vigentes sobre
o aborto restringem os direitos da mulher, justamente, a partir da viabilidade fetal, fazendo
com que os direitos do feto sejam afirmados (Salem, 1997)
17
.
15
Valéria, que não utilizou a palavra “assassinato”, talvez tenha tido uma idéia parecida, ao dizer que abortar um
“neném já desenvolvido [...] parece que é assim: nasceu, matou”, e considerando isso “sinistro”.
16
O caso do aborto nos EUA é ilustrativo desta situação. A suprema Corte Americana, em 1973, no caso Roe X
Wade, declarou inconstitucional uma lei do Estado do Texas que criminalizava a prática do aborto (exceto em
casos de risco de vida da gestante). Estabeleceu que, no primeiro trimestre, o aborto deveria ser livre, por decisão
da gestante, com aconselhamento médico; no segundo trimestre de gestação, o aborto também seria permitido,
mas o Estado poderia regulamentá-lo para proteger a saúde da gestante; já no terceiro trimestre da gestação, os
Estados poderiam proibir a realização do aborto, visando a proteção da vida potencial do nascituro, salvo quando
o aborto fosse necessário para saúde ou a vida da mãe (Sarmento, 2006). No entanto, em decisões posteriores, a
Suprema Corte passou a admitir, comprovada a viabilidade fetal extra-uterina, proibições ao aborto anteriores ao
terceiro trimestre da gestação (Sarmento, 2006).
17
Fyfe (1991), examinando as legislações britânicas sobre o aborto (entre 1803 e 1967), demonstra o
desaparecimento do termo quickening, que se refere ao momento em que a mãe passa a sentir os movimentos