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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Museu Nacional
Programa de Pós-graduação em Antropologia Social
Sexualidade e (Menor)idade:
Estratégias de controle social em diferentes escalas
Laura Lowenkron
2008
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ii
Laura Lowenkron
Sexualidade e (Menor)idade:
Estratégias de controle social em diferentes escalas
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social do Museu
Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do
título de Mestre em Antropologia Social.
Orientadora: Adriana de Resende Barreto Vianna
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2008
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iii
Sexualidade e (Menor)idade:
Estratégias de controle social em diferentes escalas
Dissertação submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de mestre. Aprovada por:
_____________________________________
Profª. Dra. Adriana de Resende Barreto Vianna (Orientadora)
PPGAS/Museu Nacional/UFRJ
_____________________________________
Prof. Dr. Gilberto Velho
PPGAS/Museu Nacional/UFRJ
_____________________________________
Profª. Dra. Maria Luiza Heilborn
Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(IMS/UERJ)
_____________________________________
Prof. Dr. Luiz Fernando Dias Duarte (Suplente)
PPGAS/Museu Nacional/UFRJ
_____________________________________
Prof. Dr. Sérgio Carrara (Suplente)
Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(IMS/UERJ)
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2008
iv
Lowenkron, Laura.
Sexualidade e (Menor)idade: estratégias de
controle social em diferentes escalas / Laura Lowenkron. Rio de
Janeiro: UFRJ/Museu Nacional/PPGAS, 2008.
xii, 109 p.; 31 cm.
Orientadora: Adriana de Resende Barreto Vianna.
Dissertação (mestrado) – UFRJ/ Museu Nacional/ Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social, 2008.
Referências Bibliográficas: pp. 104-109.
1. Sexualidade 2. Menoridade 3. Categorias de idade 4.
Escândalo 5. Controle social. I. Vianna, Adriana de Resende
Barreto. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu
Nacional, Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social. III. Título.
v
RESUMO
O esforço desta dissertação consiste em desnaturalizar um problema que passou a ser
um dos mais importantes focos de atenção, de horror e de regulação na sociedade
ocidental contemporânea: a relação sexual intergeracional envolvendo
'menores'. O intuito da análise não é tanto desconstruir o problema, relativizando-o,
mas sim evidenciar as condições sociais de sua emergência e analisar as suas
diferentes formas de problematização. A pesquisa parte do pressuposto de que um
bom caminho para isso é observar situações de conflito ou de negociação da
realidade, uma vez que a análise destas revela como as fronteiras entre o aceitável e o
inaceitável são permanentemente redefinidas, negociadas e deslocadas. Ao observar,
em situações concretas, a transformação de um fato social em problema, o objetivo é
mostrar como as normas e a ordem social o menos as causas que justificam o
controle do que o efeito do exercício de poder contínuo que constitui e institui
comportamentos e percepções. Sendo assim, a investigação foca-se nas estratégias de
controle social que tomam os cruzamentos entre sexualidade e menoridade como
alvo. A pesquisa é baseada em revisão bibliográfica, análise de documentos e
entrevistas e divide-se em três frentes analíticas. A primeira delas consiste na
apresentação de um panorama histórico sobre os deslocamentos nas concepções sobre
'violência sexual' e seus atores, mostrando como se deu a emergência de um novo tipo
de violência moral que se situa entre o crime e a perversão sexual: a pedofilia. A
segunda concentra-se na análise sobre a construção de um ‘escândalo’ em torno de um
caso que envolve relação sexual entre um professor de futebol de praia ‘adulto’ e sua
aluna ‘adolescente’. Este estudo de caso constitui a parte mais substancial da pesquisa
e é também aquela que é tratada de maneira mais aprofundada. A terceira parte enfoca
o modo jurídico de tratar o tema, introduzindo a problemática da menoridade legal
para a prática sexual, também chamada de leis da idade do consentimento. Além
disso, é analisada uma decisão judicial do Supremo Tribunal Federal que explicita as
controvérsias em torno do tema da menoridade sexual. O objetivo dessa análise
multidimensional é mostrar como o mesmo problema circula por diferentes níveis ou
escalas. A idéia é que as outras duas frentes ou escalas possam iluminar o caso
pesquisado, sem, contudo, pretender englobá-lo.
Palavras-chaves: sexualidade, menoridade, categorias de idade, escândalo, controle
social.
vi
ABSTRACT
The aim of this dissertation is to de-naturalize a problem that has become a major
focus of attention, horror and regulation in contemporary Western society; that of
intergenerational sexual relationships involving `minors´. The purpose of the analysis
is not so much to deconstruct the problem, by means of its relativization, but to
highlight the social conditions in which it arose and to analyse the varying forms of its
problematization. The underlying assumption of the present work is that a fertile way
of doing so is to observe controversies or conflicts, an approach that reveals the way
that the limits of the acceptable are permanently redefined, negotiated and displaced.
By observing in concrete situations how a social fact became a social problem, the
present work tries to show how the social patterns and social order are not so much
causes that justify social control, but the effect of the permanent exercise of power
which establishes behaviours and perceptions. Therefore, the research focuses on
strategies of social control that target the intersection between sexuality and minority.
The research is based on a literature review, documentary analysis and interview and
comprises three analytical fronts. The first of these presents a historical panorama of
the shifts in conceptions about 'sexual violence' and its actors, showing the process by
which a new type of moral violence, situated between crime and sexual perversion i.e.
paedophilia, emerged. The second is an analysis of the construction of 'scandal'
around a case involving a sexual relationship between a `adult´ beach soccer teacher
and his 'adolescent' student. This case study is the most substantial part of the
research. The third part introduces the issue of sexual minority from a legal
perspective, looking at laws governing age of consent. The controversies surrounding
the issue of sexual minority are revealed through the analysis of a judicial decision
taken by the Brazilian Federal Supreme Court. The purpose of this multidimensional
analysis is to show how the same problem operates at different levels or scales. Thus
whilst the case study is illuminated by the other two fronts or scales, neither provides
an encompassing rationale.
Key-words: sexuality, minority, age categories, scandal, social control
vii
Aos meus pais
Ao Thadeu
viii
AGRADECIMENTOS
Agradeço, primeiramente, à minha orientadora Adriana Vianna, pela atenção, rigor,
generosidade e respeito com que me conduziu por este percurso de iniciação à
pesquisa antropológica, oferecendo-me os instrumentos adequados para dar forma aos
meus questionamentos e orientações iluminadoras que me permitiram encontrar os
caminhos para desenvolver minhas idéias.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu
Nacional/UFRJ, pelos ensinamentos. Em especial, ao professor Gilberto Velho, com
quem aprendi as primeiras lições de antropologia no curso que fiz como ouvinte antes
de iniciar o mestrado em Antropologia Social e cujo acolhimento e atenção fizeram-
me acreditar na possibilidade e na capacidade de ser aluna oficial deste Programa.
Agradeço a ele também pelos comentários e pelas sugestões a este trabalho.
Ao CNPq, pela bolsa durante todo o curso de mestrado, o que me permitiu dedicação
exclusiva aos estudos e à pesquisa durante os últimos dois anos.
Agradeço também aos colegas e amigos do PPGAS, pelas trocas estimulantes e pelos
momentos de descontração dentro e fora da sala de aula, e aos funcionários da
biblioteca, da secretaria e do xerox, pela assistência e prestatividade.
Aos entrevistados, que prefiro não identificar, pela disponibilidade, atenção e
importantes contribuições.
À Cizinha e à Julinha, pela ajuda e apoio que viabilizaram parte importante desta
pesquisa.
Aos meus pais, pelo exemplo, apoio, incentivo e confiança. Ao meu pai, pelo
investimento e modelo de perseverança. À minha mãe, pelos diálogos e reflexões
sempre ricas e pela eterna disponibilidade e interesse em ler meus textos com atenção,
carinho e cuidado. A ela devo também os meus primeiros interesses pela disciplina e
pelo tema desta pesquisa.
ix
Ao meu irmão, Alexandre, pelo exemplo de dedicação e de competência nos estudos
e na pesquisa. À minha irmã, Marina, pela doçura e companheirismo nas tardes de
estudo e pela assessoria em assuntos jurídicos.
Ao Thadeu, pela assessoria em assuntos jurídicos, pela revisão de texto e,
principalmente, pela companhia que preencheu a minha vida no último ano com amor
e alegria.
x
De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse
apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa
maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele
que conhece?
Michel Foucault, “História da Sexualidade II: o uso dos
prazeres”, p 13.
xi
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................ 1
Capítulo I: Deslocamentos históricos no emaranhado da ‘violência sexual’ e seus
atores: a emergência da pedofilia .............................................................................. 9
Passagem da violência física à violência moral .................................................10
Da ameaça à honra das famílias à violência contra a pessoa ..............................14
Da ênfase no gênero à ênfase na geração...........................................................16
Dos atos criminosos aos indivíduos perigosos...................................................19
Capítulo II: Notas sobre um escândalo...................................................................24
2.1 O encontro na farmácia e a construção da denúncia pública ........................30
2.2 O ‘efeito-jornal’ nas avaliações morais e nas reputações sociais..................33
Capítulo III: A construção do problema .................................................................41
Fator 1: relação entre professor e aluna.............................................................41
Fator 2: idade....................................................................................................44
Fator 3: menoridade legal .................................................................................48
Fator 4: Traição aos pais...................................................................................49
Fator 5: amor ....................................................................................................50
Outros fatores: virgindade, traição, padrões de normalidade e bebida................54
Capítulo IV: Estratégias de controle social ............................................................56
4.1 A culpa é de quem?.....................................................................................56
4.2 Justificativas baseadas na verdade da situação e na verdade dos sujeitos ....59
4.3 Os perigos de contágio da poluição moral ...................................................68
4.4 Estratégias de normalização da conduta sexual ...........................................69
Capítulo V: Menoridade sexual...............................................................................77
5.1 As leis da idade do consentimento na legislação penal brasileira.................82
5.2 Menina ou moça: (des)construção social da idade do consentimento em uma
decisão judicial do STF.....................................................................................85
xii
5.3 (Menor)idade e consentimento sexual .........................................................91
CONEXÕES FINAIS ..............................................................................................95
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................104
1
Introdução
Existe um sentimento generalizado de verdadeiro horror a qualquer coisa que
conecte sexo e criança ou, mais especificamente, que conecte sexualmente o adulto à
criança. Trata-se de uma repulsa entendida como ‘natural’, portanto, inquestionável.
No entanto, como ensina a antropologia, as diferenças ‘naturais’ são construções
culturais e históricas, o que não invalida a efetividade social das categorias de
diferença, como ‘idade’ e ‘sexo’. Sendo assim, mesmo compartilhando esse
sentimento de repulsa, resolvi problematizá-lo nesta dissertação.
Pensar a natureza tal qual concebida pela ciência moderna como construção
cultural talvez tenha sido o ensinamento mais difícil de assimilar ao longo do curso de
mestrado em antropologia, pois era uma idéia que colocava em questão as minhas
verdades mais “duras” - aquelas que, teoricamente, não dependiam decrença” ou de
“cultura”, mas sim de “conhecimento” e “desconhecimento” do real. Seria fácil
reconhecer que as noções sobre a natureza variam histórica e culturalmente. No
entanto, pensar que aquilo que eu sempre entendi como natureza e, portanto, como
verdade universal, é socialmente construído como natureza e como verdade universal
era, para mim, um movimento muito mais radical e, sendo assim, mais difícil de
realizar.
Se, por um lado, essa proposta desestabilizadora da antropologia parecia-me
desafiadora e estimulante, por outro, inquietava-me a postura “desconstrucionista”
que muitos antropólogos tinham diante das verdades hegemônicas ou “centrais” de
sua própria sociedade em oposição à simpatia que mantinham em relação às crenças
da “periferia”. Interessada em pesquisar as instituições centrais de minha própria
sociedade, causava-me certo desconforto pensar que eu poderia estudar algo que,
de alguma maneira, quisesse destruir. Por que aqueles que identificamos como
“outros” devem ser estudados com mais respeito do que aqueles que identificamos
como “nós”? Ou, por que estudamos os “outros” para valorizar as suas crenças e
estudamos a nós mesmos para desvalorizar nossas verdades?
Percebi que isso era menos um problema da intenção do antropólogo do que um
efeito da noção de verdade da ciência moderna, baseada na idéia de uma natureza que
pré-existe à realidade social e se opõe a ela, na medida em que a primeira é dada e a
segunda é construída ou, nos termos de Latour (2002), uma é entendida como fato e a
outra como feito. Decidi, então, levar a sério a idéia de que a verdadeo se
enfraquece quando dela se faz uma construção ou um relato (Latour & Woolgar,
2
1997)
1
e estudar os processos de construção social de uma verdade com a qual eu
concordo e não gostaria de derrubar.
Resolvi procurar uma problemática que pudesse se chocar com as minhas
verdades mais profundas e, para mim, nada era tão difícil de desnaturalizar quanto a
infância. A questão que coloquei como desafio aos meus próprios valores e aos
valores (fundamentais) do meu universo social foi: por que a relação sexual entre
‘adultos’ e ‘crianças’ produz tamanha repulsa no mundo ocidental moderno? Minha
hipótese é que se trata de uma fronteira que não se restringe ao domínio do proibido
ou do contra a lei, mas do ininteligível ou do contra a natureza, por isso, ultrapassá-la
produz um efeito de monstruosidade, nos termos de Foucault (2001).
O objetivo da pesquisa não é tanto questionar essa repulsa, mas sim investigar
como ela é socialmente construída e como as fronteiras entre o aceitável e o
inaceitável são permanentemente redefinidas, negociadas e deslocadas. A pesquisa
parte da premissa de que as categorias de idade são relacionais e socialmente
construídas e manipuladas. Dizer que a ‘idade’ o é um dado da natureza não quer
dizer que ela não tenha efetividade, uma vez que serve de instrumento fundamental de
ordenação social no chamado mundo ocidental moderno, assim como as diferenças
entre os ‘sexos’, por exemplo. Nos termos de Bourdieu (1983: 112), “as classificações
por idade (mas também por sexo, ou, é claro, por classe...) acabam sempre por impor
limites e produzir uma ordem onde cada um deve se manter (...) em seu lugar”.
Dentre as diversas categorias de idade - que envolvem um conjunto de noções e
um léxico amplo e variado, como será possível verificar ao longo do trabalho -
‘criança’ e ‘adulto’ constituem-se como dois pólos extremos de sentido que servem de
base para avaliações morais sobre condutas sexuais. A categoria ‘adolescente’ aparece
na análise enquanto elemento que borra as fronteiras entre esses dois pólos, de modo
que serve de suporte privilegiado para controvérsias e para negociação da realidade,
nos termos de Velho (1999).
O ponto de partida teórico para a construção do meu problema de pesquisa foi o
campo de discussão político e conceitual que se desenvolveu a partir da segunda
metade do século XX, em torno da desessencialização de categorias que descrevem,
produzem e legitimam relações de desigualdade - como os debates que questionam as
desigualdades de raça, etnia, gênero e sexo. Segundo Stolcke (1993), as sociedades
1
“A acusação de relativismo ou de autocontradição só é pesada para aqueles que acham que a verdade
se enfraquece quando dela se faz uma construção ou um relato” (Latour & Woolgar, 1997: 30).
3
industriais do ocidente tendem a legitimar suas desigualdades sociais
conceitualizando-as como se fossem baseadas em diferenças naturais imutáveis -
como nas doutrinas racistas e sexistas. A autora argumenta que, nas sociedades
ocidentais modernas, a ‘natureza’ sempre funcionou como um dos principais
instrumentos de essencialização das diferenças e de reprodução das desigualdades.
Essa formulação foi uma das principais contribuições de uma das correntes da
antropologia feminista que, a partir dos anos 70, se debruçou sobre o questionamento
das bases naturais das desigualdades de gênero
2
. Yanagisako e Colier (1987) que
estão entre as precursoras dessa perspectiva analítica - destacam que, apesar das
diversas concepções de corpo e de sexo que revelam os trabalhos antropológicos e
históricos, os estudos de gênero e parentesco nas ciências sociais, em geral, falharam
em libertar-se de um conjunto de pressuposições sobre diferenças naturais entre
pessoas. Segundo elas, o modelo nativo da ciência ocidental contemporânea, com suas
pressuposições culturais sobre as bases naturais da reprodução humana, está
incrustado nas categorias analíticas de gênero e parentesco e, por isso, a maior parte
das análises antropológicas acaba tomando como dadas diferenças que deveriam ser
explicadas.
Mas não se pode tomar como dadas e garantidas as nossas categorias de diferença
nem a nossa lógica (hierárquica) que organiza a diferença. A forma valorativa que a
diferença assume na nossa cultura deve ser explicada, bem como deve ser explicado
por que algumas características e atributos das pessoas são culturalmente
reconhecidos e diferencialmente avaliados enquanto outros não, como sugerem
Yanagisako e Collier (1987).
Um dos dramas centrais dessas discussões levantadas pela antropologia feminista
e pelos estudos de gênero em geral, a partir dos anos 70, foi a questão das relações
assimétricas. Sendo assim, o princípio hierárquico que servia de base ao modelo
tradicional de família e para as relações entre os sexos no seu interior foi substituído
pelo ideal igualitário, “que institui a o demarcação de fronteira entre os neros,
uma vez que, percebidos como iguais, os indivíduos de ambos os sexos são portadores
de direitos” (Heilborn, 1994:184/185). A igualdade entre homens e mulheres passou a
2
Para um panorama dos debates nas ciências sociais, a partir dos anos 70, em torno da definição de
uma perspectiva analítica adequada para pensar as relações entre homens e mulheres, sexo e gênero e
natureza e cultura, ver MOORE, Henrietta L. “Understanding Sex and Gender”. In: Companion
Encyclopedia of Anthropology/ edited by Tim Ingold. London: Routledge, 1994.
4
ser entendida, então, como um direito e como um valor, algo a ser assegurado e a ser
perseguido, simultaneamente (Vianna & Lacerda, 2004: 21).
Enquanto as bases naturais que serviam de justificativa para a dominação dos
homens sobre as mulheres foram fervorosamente questionadas e estremecidas por um
verdadeiro “terremoto” conceitual e político que é inseparável da trajetória do
movimento feminista, outras assimetrias permaneceram bastante naturalizadas, como
é o caso da pressuposição de vulnerabilidade essencial de crianças e de adolescentes.
Uma das estratégias de sedimentação de mudanças políticas é a construção de uma
arquitetura legal. Vale salientar que no contexto social e político atual, com o
enfraquecimento do Estado, o Judiciário fortaleceu-se enquanto peça administrativa e,
assim, as leis e os discursos de aquisição e proteção de direitos adquiriram uma
centralidade enquanto estratégia política de transformação da realidade social
(Schuch, 2005).
No plano legislativo nacional, a coexistência de questionamentos às assimetrias de
gênero com o fortalecimento da vulnerabilidade essencial de crianças e de
adolescentes pode ser percebida na Constituição Federal
3
(CF) de 1988 e nas
legislações infraconstitucionais que foram criadas ou reformuladas a partir dela. A CF
estabelece o princípio de eqüidade entre homens e mulheres (inciso I do art. 5
o
)
4
. As
desigualdades de gênero são contestadas também a partir do novo Código Civil
5
(2002), inspirada nos princípios constitucionais de 1988. As desigualdades de idade,
por sua vez, são essencializadas tanto pela Constituição como pelo Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA, 1990), que é a legislação infraconstitucional
desenvolvida a partir do artigo 227
6
da CF de 1988. Se, por um lado, a CF (1988) e o
ECA (1990) transformam as crianças e os adolescentes em sujeitos de direitos
especiais e questionam sua subordinação absoluta em relação às famílias ao dispersar
e descentralizar o diagrama de responsabilidades (Vianna, 2002), por outro, ao
3
Foi através da Constituição Federal de 1988 que o Estado brasileiro implementou em sua ordem
jurídica as recomendações e compromissos firmados nos tratados internacionais sobre direitos
humanos.
4
“Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição” (Inciso I, art.
5
o
da CF/88).
5
A reforma do Código Penal de 1940 não foi concluída. No entanto, foram revogados alguns artigos do
Título “Dos crimes contra os costumes” que iam de encontro aos princípios constitucionais que
estabelecem a eqüidade de gênero.
6
“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura,
à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo
de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (Art 227 da
CF/88).
5
postular uma infância universal (e ideal) que deve ser tutelada e protegida por todos
em nome de seu melhor interesse, essas legislações tratam a condição de
vulnerabilidade das crianças e dos jovens de maneira essencializada. Assim, cria-se
um dilema entre os direitos de liberdade e de proteção dos novos ‘sujeitos de direitos’.
Uma vez que outras assimetrias (como a de gênero e a de raça) foram objetos de
lutas políticas por desessencialização, a ‘criança tem o seu lugar sacralizado
fortalecido, devido a uma pressuposição de vulnerabilidade ‘natural’. Sendo assim,
dentre as diversas formas de relações assimétricas, o tema da ‘violência contra
crianças’
7
adquire uma gravidade específica e alarmante a partir do final do culo
XX. Esse tema, por sua vez, se desmembrado em diferentes modalidades ou
categorias, como “negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão” (art. 227 da CF/88). Dentre essas diversas categorias de ‘violência contra
criança’, parece-me que o tema do ‘abuso sexual’ (que é configurado em qualquer
relação sexual envolvendo ‘criança’ com ‘adulto’, mesmo que não haja coerção física)
é considerado o caso mais dramático.
O esforço deste trabalho consiste, assim, em evitar uma leitura naturalizada sobre
essas relações que passaram a ser um dos mais importantes focos de atenção, de
horror e de regulação na sociedade ocidental contemporânea: a relação sexual entre
‘adultos’ e crianças’. Por isso, ao invés de tratá-la nesses termos o essencializados,
proponho problematizá-la como “relação sexual intergeracional envolvendo
menores”, de modo que os termos ‘adulto’ e ‘criança sejam pensados como
categorias que são manipuladas e inter-relacionadas a outras categorias para construir
uma avaliação moral e/ou legal de uma determinada conduta.
Um bom caminho para desnaturalizar o problema é observar como ele é
manipulado em situações de conflito ou de negociação da realidade (Velho, 1999).
Ao recuperar as controvérsias, essas situações configuram processos que
desestabilizam as definições socialmente aceitas, explicitando seu caráter fabricado e
provisório. Em relação ao problema da relação sexual intergeracional envolvendo
‘menores’, pode-se dizer que as noções difundidas pela psicanálise um discurso
decisivo nesse cenário
8
- de que as pessoas são, desde os primeiros anos de vida,
7
Refiro-me à ‘violência’ e à ‘criança’ enquanto tipos ideais. Em casos concretos, a avaliação de uma
determinada situação enquanto violenta ou não e se a vítima é criança ou não varia em função de um
conjunto de elementos e contextos, como é possível observar nos casos analisados por Vianna (2002) e
como veremos ao longo desta dissertação.
8
Ver Foucault, 1988.
6
sujeitos desejantes e de que o desejo passa a ter uma "forma" admitida socialmente
enquanto sexual (nos termos freudianos: subordinação das zonas erógenas ao primado
da zona genital) no período da puberdade o razoavelmente aceitas socialmente. No
entanto, é difícil definir quando o sujeito passa a ter responsabilidade pelo seu desejo
e quando e por quem o corpo pode começar a ser desejado sexualmente. É, portanto,
nas disputas em torno dessas definições controversas e na negociação das fronteiras
entre o moralmente aceitável e o inaceitável que a análise vai se concentrar.
Meu questionamento leva-me, assim, a investigar o modo como é socialmente e
culturalmente organizado o desenvolvimento da sexualidade e da racionalidade no
curso da vida de uma pessoa, como a idade enquanto categoria diferenciadora orienta
as relações sexuais e, principalmente, leva-me a atentar para os processos pelos
quais se constituem ou se privilegiam as classes de idade, inter-relacionadas (nem
sempre de modo tão explícito) a outras categorias (gênero, classe, etnicidade
etc), enquanto categorias privilegiadas para analisar, regular e condenar certas
modalidades de relações sexuais.
O universo social no qual a pesquisa se baseia que, por vezes, denomino, de modo
frouxo, “nossa cultura”, pode ser definido a partir de três escalas diferenciadas e
interconectadas, a saber: uma escala dos macro-processos históricos; uma escala mais
micro, dos dramas sociais ou, como denomino, de um ‘escândalo’ local; e uma escala
intermediária, das leis e processos judiciais. Assim, a investigação toma por objeto
diferentes estratégias de controle que regulam a vida social do mundo ocidental
contemporâneo, em geral; da sociedade brasileira, em particular; e, em especial e de
maneira mais aprofundada, de um determinado segmento de camadas médias e altas
urbanas da zona sul carioca.
Como sugere Foucault (1984), mais interessante do que analisar se hoje somos
mais repressivos ou mais liberais do que fomos em outros tempos é atentar para as
atuais formas de problematização moral e de controle social da sexualidade na
‘infância e na ‘adolescência’. Estas envolvem, como veremos, estratégias de
regulação diferenciadas - judicialização, patologização, espetacularização e jogos
morais acusatórios - que, por sua vez, produzem efeitos distintos.
Seguindo a sugestão foucaultiana (1988), pretendo enfatizar as tecnologias
positivas de poder para perceber como a ‘sexualidade’ e a ‘menoridade’ estão sendo
constituídas nos dias atuais, no emaranhado de novas redes de saber-poder. Observar
as prescrições e as controvérsias em torno da relação sexual intergeracional
7
envolvendo ‘menores’, seja no nível mais macro dos processos históricos, seja no
nível mais micro dos dramas pessoais com seus jogos morais, seja no vel
intermediário das leis e dos processos judiciais, seja, como pretendo realizar,
estabelecendo as conexões entre os diferentes níveis ou escalas, é, a meu ver, um bom
caminho para analisar essas problematizações.
É importante destacar que a análise das diferentes escalas tem por objetivo
complexificar o problema sem, no entanto, pretender esgotar as suas diversas
possibilidades analíticas. Vale ressaltar ainda que meu investimento - tanto empírico
quanto analítico - em cada uma dessas escalas é diferenciado, de modo que a escala
mais micro constitui a parte mais substancial da pesquisa e é também aquela que é
tratada de maneira mais aprofundada. A idéia é que as outras duas escalas possam
iluminar o caso pesquisado, sem, contudo, pretender englobá-lo.
Sobre a divisão de capítulos
No primeiro capítulo, baseando-me em pesquisa bibliográfica, procurei traçar um
panorama histórico sobre as mudanças nas concepções sobre violência sexual no
ocidente, em geral, e como essas mudanças repercutem no contexto brasileiro, em
particular. Apresento os principais deslocamentos nos discursos sobre a ‘violência
sexual’ e seus atores (agressor e vítima), mostrando como se deu a emergência de um
novo tipo de violência moral que se situa entre o crime e a perversão sexual: a
pedofilia.
Os capítulos 2, 3 e 4
reúnem a parte mais significativa do material empírico desta
pesquisa. Trata-se de um estudo de caso em torno de um ‘escândalo’ que envolve
relação sexual entre um professor de futebol de praia ‘adulto’ e uma aluna
‘adolescente’. Uma matéria de jornal serviu de ponto de partida para a pesquisa, que
consistiu em um trabalho de campo baseado em entrevistas com pessoas que, direta
ou indiretamente, participaram da construção do ‘escândalo’. Destaco que minha
própria rede de relações pessoais abriu portas para a entrada em campo, como se
apresentado no segundo capítulo. Além disso, algumas das minhas características
sociológicas provavelmente também facilitaram a interação com os entrevistados.
Uma primeira característica que deve ser destacada é a minha ‘idade’ (ou seja, ser
identificada pelos entrevistados como ‘jovem’), o que provavelmente facilitou que os
‘adolescentes’ falassem sem muito constrangimento sobre os seus padrões morais e de
conduta sexuais. Outro fator que pode ter facilitado a interação com as pessoas é o
8
fato de eu, de algum modo, fazer parte do universo social pesquisado – praia, zona sul
carioca - e, assim, estar familiarizada com os códigos locais e ser, de algum modo, um
‘tipo’ familiar para os entrevistados.
No capítulo 5, apresento o modo jurídico de tratar o tema, introduzindo a
problemática da menoridade legal para a prática sexual, também chamada de leis da
idade do consentimento. Introduzo noções gerais sobre as chamadas leis da idade do
consentimento no Código Penal brasileiro. Além disso, analiso uma decisão judicial
do Supremo Tribunal Federal que explicita as controvérsias em torno do tema da
menoridade sexual.
Por fim, vale destacar que os diferentes níveis analíticos que esta dissertação reúne
não são apenas diferentes abordagens isoladas de um mesmo tema os
entrecruzamentos entre ‘sexualidade’ e ‘idade’ - a partir da análise de diferentes tipos
de fontes (pesquisa bibliográfica, trabalho de campo e análise de documentos), mas,
sim, diferentes escalas de um mesmo problema: i) um nível dos macro-processos
históricos; ii) um nível mais micro dos dramas pessoais; iii) um nível intermediário
das leis e dos processos judiciais. A conclusão consiste, portanto, em um esforço de
articular esses diferentes níveis ou escalas.
Convenções
Itálico será usado para expressões conceituais. Aspas simples para categorias
nativas. Negrito para dar destaque, de modo que os grifos, mesmo nas falas dos
entrevistados, são sempre meus.
9
Capítulo I
Deslocamentos históricos no emaranhado da ‘violência sexual’ e seus atores: a
emergência da pedofilia
A sexualidade articula dois eixos em torno dos quais se desenvolveu, a partir do
século XIX, a tecnologia política da vida: as disciplinas dos corpos e a regulação das
populações. Por isso, ela se tornou um campo cuja importância estratégica foi capital,
como sugere Foucault (2005)
9
. Sendo assim, a sexualidade foi constituída enquanto
um domínio a conhecer e, ao mesmo tempo, enquanto um foco privilegiado de
intervenção e controle. Segundo Foucault (1988), o poder, como exercício constituído
a partir de cnicas polimorfas e de mecanismos capilares, atua sobre as condutas
individuais, atinge as formas de desejo e controla o prazer cotidiano. Uma das
principais estratégias históricas de poder que tomou o sexo como alvo é a definição de
certas modalidades de exercício da sexualidade como violentas.
A violência não deve ser pensada como um dado em si, que se possa analisar
apenas a partir de critérios estatísticos, mas sim como uma noção que está articulada a
sistemas de classificações históricos. “Os rótulos estabilizam o fluxo da vida social e
até mesmo criam, até certo ponto, as realidades a que eles se aplicam” (Douglas,
1998:105). Ou, como propõe Hacking (1992: 182), “the worlds have been made, or at
any rate como into being, by kind-making”. Nesse sentido, ao constatar uma explosão
no número de queixas de ‘violência sexual’, especialmente contra crianças, na última
década do século XX, Vigarello (1998) considera que não houve apenas um aumento
repentino de atos sexuais violentos, mas, sim, uma mudança nos padrões de
sensibilidade. Por isso, optei por tratar a ‘violência sexual’ como um emaranhado, ou
seja, como um complexo de atos e classificações, um território dinâmico de
sobreposições e deslizamentos contextuais e históricos.
“Uma classificação de estilos classificatórios seria um primeiro passo positivo
para se pensar sistematicamente sobre os distintos estilos de raciocínio” (Douglas,
1998: 113). Vale destacar que as classificações que constituem o emaranhado da
‘violência sexual’ não são governadas exclusivamente pelo saber-poder judicial.
9
“Por que a sexualidade se tornou, a partir do século XIX, um campo cuja importância estratégica foi
capital? Eu creio que, se a sexualidade foi importante, foi por uma porção de razões, mas em especial
houve estas: de um lado, a sexualidade, enquanto comportamento exatamente corporal, depende de um
controle disciplinar, individualizante, em forma de vigilância permanente (...); e depois, por outro lado,
a sexualidade se insere e adquire efeito, por seus efeitos procriadores, em processos biológicos amplos
que concernem não mais ao corpo do indivíduo mas a esse elemento, a essa unidade múltipla
constituída pela população”. (FOUCAULT, 2005: 300).
10
Apesar de este ocupar um lugar central no processo de produção e regulação desse
emaranhado, outros saberes, como a psiquiatria, e instituições sociais, como os meios
de comunicação de massa, desempenham também um papel fundamental na
produção, reprodução, transformação e divulgação dessas classificações e, portanto,
na constituição do emaranhado da ‘violência sexual’.
Neste capítulo, proponho uma sistematização dividida em quatro eixos de
mudança nas lógicas dos sistemas classificatórios utilizados para reconhecer e
organizar os atos categorizados como ‘violência sexual’ e as pessoas envolvidas
nesses comportamentos: agressor e vítima. Construo esses quatro eixos a partir da
identificação dos seguintes deslocamentos históricos nas formas de entender a
‘violência sexual’: i) da violência física à violência moral; ii) da ameaça à honra das
famílias (linguagem patriarcal) à violência contra a pessoa (linguagem do sujeito de
direitos); iii) da ênfase no nero à ênfase na geração; iv) dos atos criminosos aos
indivíduos perigosos.
Proponho que esses quatro deslocamentos articulados fazem aparecer uma nova
idéia de violência que se situa entre o crime e a perversão sexual (a pedofilia), uma
nova vítima privilegiada (a criança abusada), um novo efeito (o trauma e a
desestabilização psíquica) e um novo personagem ou um novo nome para aquele que
protagoniza esse tipo de ‘ataque’ (o pedófilo).
Passagem da violência física à violência moral
Ao analisar processos de estupro no Ancien Régime (do século XVI ao XVIII), na
França, Vigarello (1998) observa que somente se considerava prova para condenação
do crime atos visíveis ou ouvidos: se o tumulto e o ruído da luta fossem percebidos e
narrados por testemunhas, se fossem ouvidos gritos de socorro, ou seja, se houvesse
indícios que comprovassem que a vítima o parou de resistir. “O não-consentimento
da mulher, as formas manifestas da sua vontade existem em seus vestígios
materiais e em seus indícios corporais” (Vigarello, 1998: 08). O juiz não se
aventurava na interioridade pessoal da vítima, suas fraquezas e coações subjetivas.
O olhar sobre os crimes sexuais focalizava-se antes na luxúria e no impudor do
que na violência. A ‘violência sexual’ não era particularizada na cultura clássica, a
própria palavra ´estuprador´ não existia. A categoria de crime que recebia maior
atenção da opinião pública, a mais estigmatizada, era a lesão física. Assim como o
11
maior perigo na hierarquia dos criminosos até o século XIX era o assassino, o
criminoso de sangue, o homem das armas, e menos o homem das perversões.
A revisão do Código Penal francês, em 1832, levou em conta esta outra violência,
ao tentar definir uma ofensa sexual cuja coação não recorre à brutalidade e à força
física direta. Criou-se a diferença entre violência física e moral e uma nova unidade
criminal foi constituída. Foi inventado um novo título no Código para agrupar, pela
primeira vez, o conjunto dos atos de ofensa e de violência sexuais, sob um único
capítulo: ´os atentados contra os costumes´. Versão moderna dos antigos crimes de
luxúria, o novo título revela que a gravidade não estava mais no pecado, mas na
ameaça à segurança e à ordem social.
A primeira brutalidade invisível a ser especificada no Código Penal francês pós-
revolução foi o estabelecimento de um critério de idade (11 anos) para presunção de
violência nos casos de atentado ao pudor. Em 1863, uma lei elevou a idade para 13
anos e passou a condenar também atentados contra menores mesmo acima desse
limite de idade, mas o emancipados pelo casamento, quando este é cometido por
alguém que ocupa em relação ao menor uma posição de autoridade: se é possível
supor uma vontade inteligente e livre numa criança com mais de 13 anos, essa
vontade não é mais certa se a solicitação lhe chega de um de seus ascendentes, isto é,
de uma pessoa que exerce sobre ela uma autoridade natural” (Vigarello, 1998: 138).
A partir de 1850, a jurisprudência reconhece e designa, pela primeira vez, de
modo explícito, a existência de uma violência moral fora dos casos de crianças. O
novo crime consiste no fato de abusar de uma pessoa contra a sua vontade, seja que a
falta de consentimento resulte em uma violência física ou moral. Emerge, assim, um
sujeito de direito obrigando que se modifique o pensamento sobre o estupro: o
estupro todas as vezes que o livre-arbítrio da vítima é abolido. A análise do o-
consentimento torna-se, assim, um projeto jurídico.
Ao mostrar como o conjunto da relação entre violência e o-consentimento é
pouco a pouco repensado na segunda metade do século XIX, o caso francês, analisado
detalhadamente por Vigarello e que procurei re-construir aqui resumidamente, serve
enquanto paradigma de como o ocidente reformulou a concepção de ‘violência
sexual’.
Uma nova técnica de exame do comportamento humano é fundamental para o
aparecimento-reconhecimento desse novo tipo de violência que, “atingindo o corpo,
atinge a parte mais incorporal da pessoa” (Vigarello, 1998:09). O processo de
12
diferenciação da ‘violência sexual’ em relação à ‘violência física’, de modo que a
primeira pudesse emergir como uma modalidade específica de violência, é paralelo ao
processo de dissolução de uma ligação imediata entre a pessoa e seus atos, que levou
a um lento reconhecimento de que um sujeito pode estar ‘ausente’ dos gestos que é
condenado a sofrer ou a efetuar, o que supõe a existência de uma consciência distinta
daquilo que a pessoa faz. Sendo assim, segundo Vigarello (1998), a história da
‘violência sexual’ encontra-se com a história do nascimento do sujeito
contemporâneo, dotado de uma interioridade.
Além disso, proponho que a história da ‘violência sexual’ encontra-se também
com a história de uma concepção individualista de sociedade, que se pode definir
como era moderna”. Sua premissa é a de que cabe aos indivíduos um conjunto de
direitos inalienáveis, centrados, sobretudo, na sua liberdade individual” (Vianna &
Lacerda, 2004: 15). Sendo assim, a presença ou ausência do consentimento’ passa a
ser o elemento central na definição da licitude da relação sexual.
No Brasil, assim como na França, a primeira modalidade de ofensa sexual
invisível pode ser caracterizada pela presunção de violência por menoridade. “A
primeira legislação a prever a presunção de violência foi o Código de 1890,
disciplinando no artigo 272 que a violência era ficta, quando o ato sexual fosse
perpetrado contra menor de dezesseis anos” (Prado, 1006: 244). Com isso, qualquer
relação sexual com alguém abaixo da idade delimitada por esta lei passou a ser
classificada como ‘estupro’ (se o ato for cópula heterossexual vaginal e a vítima for
do sexo feminino) ou ‘atentado violento ao pudor’ (se for qualquer outra forma de
‘ato libidinoso’ diverso da conjunção carnal, seja a vítima do sexo masculino ou
feminino). O Código Penal (CP) de 1940 manteve o critério da presunção da violência
para caracterizar delito de ‘estupro’ ou ‘atentado violento ao pudor’, diminuindo,
porém, a idade para quatorze anos e acrescentou a hipótese em que a vítima é alienada
ou débil mental ou não pode, por qualquer motivo, oferecer resistência.
A razão da tutela do menor de 14 anos, pelo que se depreende da própria
Exposição de Motivos do Código Penal, reside na ‘innocentia consilli’ do sujeito
passivo, ou seja, à sua completa insciência em relação aos fatos sexuais de modo
que não se pode dar valor algum ao seu consentimento.(Prado, 2006: 244)
.
13
Além dos casos de menores, no sentido proposto por Vianna (2002)
10
, a mudança
de paradigma de um olhar centrado na materialidade da ofensa a uma visão jurídica
que passa a priorizar os elementos invisíveis e morais do delito pode ser percebida, na
legislação brasileira, a partir da comparação dos textos do Código Penal de 1890 e do
Código Penal
11
de 1940, que vigora até hoje, com algumas alterações. No Código de
1890, o delito de estupro
12
era definido pelo artigo 269 como “ato pelo qual o homem
abusa com violência de uma mulher, seja virgem ou não”
13
. No Código de 1940, por
sua vez, ‘estupro’
14
é entendido como “cópula sexual (...) do homem com a mulher,
mediante o emprego por aquele de violência física (vis corporalis) ou moral (vis
compulsiva), com a intromissão do pênis na cavidade vaginal” (Prado, 2006:195).
Observa-se, então, que o CP de 1940 passa a diferenciar violência física de violência
moral, considerando também a segunda na tipificação do delito de estupro.
Além disso, o CP de 1940 substituiu o antigo crime de ´defloramento´, do CP de
1890, pelo crime de ´sedução de menore
15
, de modo que o hímen deixou de ser um
atestado exclusivo de pureza, que passou a ser avaliada a partir da totalidade da
conduta da mulher. O bem jurídico tutelado, a partir do CP de 1940, deslocou-se da
virgindade física para a virgindade moral.
Tratou-se de um novo enfoque (em relação ao Código Penal de 1890), um
realinhamento na hierarquia dos fatores tidos pelos profissionais do direito como
possíveis de comprovarem a ´honestidade feminina´, com os aspectos
sociológicos e psicológicos, comportamentais e morais, ganhando precedência
sobre os ´elementos anatômicos´ (Duarte, 2000: 159).
Ou seja, o código de 1890 salientava a ‘menoridade’ e a ‘virgindade’ da vítima. O
código posterior, por sua vez, salienta a ‘inexperiência’ ou ‘justificável confiança’, de
modo que para obter o título de vítima não bastará a moça provar que era virgem
10
Segundo a autora, a menoridade não se refere, obrigatoriamente, à idade, mas, sim, a qualquer
incapacidade legal de auto-gestão. “Menores podem ser mulheres, escravos, filhos não casados,
agregados, loucos, índios, enfim, todos aqueles que, em uma configuração social específica, sejam
compreendidos como incapazes (ou relativamente incapazes) de responderem de forma integral por
seus atos” (Vianna, 2002: 07).
11
Opto por comparar os Códigos Penais e não outros diplomas legais, como os Códigos de Menores
(1927 e 1979) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) porque nesta parte foco minha análise
na problemática das ofensas sexuais e estas são disciplinadas pelos primeiros.
12
“Art. 268/1980. Estuprar mulher vigem ou não, mas honesta. Pena de prisão celular de um a seis
anos. Parágrafo 1
o
: Se a estuprada for mulher pública ou prostituta. Pena de prisão celular por seis
meses a dois anos” (Trechos do código Penal de 1980. In: VIEIRA, 2007: 22).
13
Trechos do código Penal de 1980. In: VIEIRA, 2007: 22
14
Art. 213 do Código Penal de 1940: “Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou
grave ameaça: Pena – reclusão, de 6 a 10 anos”.
15
Art. 217 do Código Penal de 1940: “Seduzir mulher virgem, menor de dezoito anos e maior de
catorze, e ter com ela conjunção carnal, aproveitando-se de sua inexperiência ou justificável confiança.
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos”.
14
(...), ela precisará inspirar no juiz a convicção de ser ´moça de vida honesta´,
comprovando uma conduta condizente com aquela condição”. (Duarte, 2000: 159). A
inexperiência significava que a moça era inocente e, assim sendo, seria presa fácil
para um sedutor habilidoso. A sedução por ‘justificável confiança podia ser
configurada, por exemplo, através de uma promessa falsa de casamento. Segundo
Duarte (2000), em ambos os casos a liberdade sexual estaria sendo violada, pois a
decisão de copular teria sido tomada mediante condições que turvaram a razão, a
capacidade de discernimento e o controle das emoções.
A lei 11.106, de 28 de março de 2005, revogou o delito de ‘sedução de menores’,
no qual a virgindade ainda permanecia como uma exigência para tipificação do crime.
Manteve-se, no entanto, no Código Penal, o delito de ‘corrupção de menores’
16
, que
consiste em praticar ato de libidinagem com menor entre 14 e 18 anos ainda não
depravado, não corrompido moralmente
17
. “É corrupto quem conhece os prazeres
da carne, quem já perdeu a ingenuidade sexual” (Fragoso, HC, p. 26, op cit, in: Prado,
2006: 235, nota 8). Desse modo, a virgindade física desapareceu do texto da lei
enquanto elemento de tipificação do crime e permanece apenas a exigência de
virgindade moral. Claro que a virgindade física era protegida nas leis anteriores como
signo de pureza das moças e claro que o desvirginamento ainda pode ser hoje um
dado utilizado pelos operadores e intérpretes das leis para a caracterização da
‘corrupção moral’ da vítima, mas a ênfase foi deslocada, ao menos no texto legal, dos
sinais físicos para o exame do ‘estado moral’ da pessoa ofendida.
Da ameaça à honra das famílias à violência contra a pessoa
O percurso esboçado acima, sobre o processo de constituição da noção de uma
‘violência sexual’ propriamente dita, diferenciada da ‘violência física’, está articulado
e ajuda a entender um outro deslocamento no entendimento sobre a ‘violência sexual’,
16
Art. 218 do Código Penal de 1940. “Corromper ou facilitar a corrupção de pessoa maior de 14 e
menor de 18 anos, com ela praticando ato de libidinagem, ou induzindo-a a praticá-lo ou presencia-lo.
Pena reclusão de 1 a 4 anos”. Destaca-se que a Lei 2.252/54, que dispõe sobre a ‘corrupção de
menores’, não revoga o artigo 218 do CP/40. Nesse último, “a lei pune a contaminação do menor
inexperiente nos prazeres da carne (...). O crime é contra os costumes. a Lei 2.252, suprindo lacuna
no ordenamento vigente, veio reprimir outras formas de corrupção, quando o menor é levado ou
induzido à prática de qualquer infração penal” (TJSP - AC - Rel. Carlos Bueno - RT 658/269 e RJTJSP
26/462).
17
Outra diferença importante do delito de ‘sedução em relação ao de ‘corrupção’ de menores é o
critério de gênero: somente pessoa do sexo feminino poderia ser sujeito passivo do delito de sedução,
enquanto que as vítimas do delito de corrupçãode menores podem ser tanto moças quanto rapazes,
desde que sejam maior de 14 e menor que 18 anos e que não sejam ainda ‘corrompidos’ sexualmente.
15
que será analisado a partir de agora: do crime de honra ao atentado contra a liberdade
da pessoa.
A lei criminal tal qual foi desenvolvida durante muitos séculos e como se
consolidou no século XIX endereçava-se ao comportamento sexual no interior de uma
estrutura fundada em pressuposições patriarcais sobre a legitimidade da autoridade
masculina sobre mulheres e crianças no interior da família (Waites, 2005: 66). No
Código Penal brasileiro de 1890, as ofensas sexuais, organizadas segundo esse
modelo patriarcal hierárquico, eram reunidas no título ‘dos crimes contra a segurança
da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor’.
De acordo com a linguagem patriarcal, entendia-se que a ofensa sexual que
atingisse a mulher atingiria infalivelmente o seu tutor pai ou marido. No caso de
mulher casada, é de adultério cometido à força que é acusado o agressor, pois o
prejuízo causado ao marido e à família era o principal a ser levado em conta. No caso
de moça virgem, o crime era de ´defloramento´, ou seja, o que determinava a
gravidade do ato era o roubo da castidade, que era visto como fundamental para
manutenção da honra das famílias.
Uma vez que a ofensa sexual ameaçava antes à moral pública do que a
subjetividade da pessoa ofendida, o status social da vítima podia aumentar ou
diminuir a gravidade do crime de acordo com a vergonha e o prejuízo social
produzidos. O estupro contra uma mulher pública ou uma prostituta, por exemplo, era
considerado menos grave do que atentar contra uma ‘mulher honesta’.
No Código Penal brasileiro de 1940, os delitos sexuais passaram a ser agrupados
sob o título ‘dos crimes contra os costumes’, no capítulo ‘dos crimes contra a
liberdade sexual’. O bem jurídico protegido não é mais a ‘honra das famílias’, mas,
sim, a ‘liberdade sexual’, definida como “a capacidade do sujeito (...) de dispor
livremente de seu próprio corpo à prática sexual, ou seja, a faculdade de se comportar
no plano sexual segundo seus próprios desejos” (Prado, 2006: 194). Nesse contexto, a
questão do ‘consentimento’ passa a ter uma importância maior do que o status social
da pessoa ofendida.
No novo modelo fundado nos direitos de ‘liberdade individual’, o estupro deixa de
ser um roubo ou um ultraje e passa a ser uma ameaça contra o corpo íntimo e privado.
Mas, como destaca Vigarello (1998), a inovação mais visível no primeiro momento é
a dos textos. A vergonha continua presente e as queixas não aumentam
repentinamente com a mudança do código. Por isso, a apreciação das transformações
16
históricas das desigualdades de gênero é vital para a análise dos debates em torno do
significado da noção de ‘consentimento’ no contexto do comportamento sexual.
Nos anos 70, “a luta contra o estupro toma um sentido novo: o de uma libertação”
(Vigarello, 1998: 210). As queixosas querem ir além dos atos incriminados, a fim de
iniciar um debate sobre os costumes, reivindicando mudanças nas relações entre
homens e mulheres, logo, na sociedade
18
. “É porque a ‘violência sexual’ confronta
definitivamente dois sujeitos que ela pode hoje mudar de sentido” (Vigarello, 1998:
218).
O feminismo foi um dos primeiros movimentos sociais a enfocar o campo jurídico
como estratégia política para a promoção de mudanças na desigualdade de gênero
(Vieira, 2007: 33). A autora destaca que a partir do final da década de 1980, entidades
feministas “iniciaram uma luta (...) para a inclusão dos crimes sexuais no capítulo
‘dos crimes contra a pessoa’, demarcando, assim, um espaço discursivo em defesa dos
direitos individuais das mulheres” (Vieira, 2007: 20). Como destacam Vianna &
Lacerda, traçando conexões entre a luta política e social mais ampla do feminismo e o
contexto legal brasileiro:
A compreensão dos crimes de natureza sexual como algo que ofende a
moralidade pública presente na idéia de costumes’ e não voltado diretamente
à pessoa vem sendo alvo longo tempo de críticas por parte de militantes
feministas. Na proposta ainda não efetivada de revisão do Código Penal, esta
crítica foi contemplada e tais crimes devem passar a ser incluídos em uma parte
designada como ‘crimes contra a dignidade sexual’. Além disso, termos relativos
à virgindade ou à condição de ‘mulher honesta’ também foram retirados
(Vianna
& Lacerda, 2004: 76).
As autoras mencionam também que desapareceu o crime de ‘rapto’ que
resguardava a honra familiar, e projetos de lei m sendo apresentados, visando a
eliminar do Código Penal a possibilidade de anulação da pena por crimes sexuais, no
caso de o criminoso se casar com a vítima.
Da ênfase no gênero à ênfase na geração
A passagem de uma linguagem patriarcal a uma linguagem dos sujeitos de direitos
é acompanhada de um outro deslocamento nos discursos sobre ‘violência sexual’: do
18
Vieira (2007) menciona que a segunda onda do movimento feminista foi marcada por duas
estratégias políticas. A primeira é centrada na libertação das mulheres, o que incluía, claro, a denúncia
da violência, o combate à relação sexual obtida à força e a reivindicação do direito de dispor de si,
prevalecendo o slogan ‘nosso corpo nos pertence’ (politização do privado). Uma segunda estratégia
enfatizava o direito de sobrevivência, a partir da denúncia de homicídios, prevalecendo o slogan ‘quem
ama não mata’ (ver VIERA, 2007, p. 41).
17
enfoque de gênero para o de geração, de modo que o abuso sexual de ‘menores’
passou a ter uma especificidade inédita e uma gravidade alarmante. Ou seja, “se antes
a violência era entendida como um problema relacionado à desigualdade entre
homens e mulheres, no final do século XX ela passou a ser vista muito mais como
uma questão relacionada à desigualdade entre crianças e adultos” (Landini, 2006:
251).
Perceber essa mudança de enfoque que fez com que a ‘violência contra criança’
ganhasse contornos específicos parece-me um caminho interessante para fins de
sistematização. No entanto, é importante destacar que não desaparece o cruzamento
diferenciado de acordo com o gênero
19
. Sendo assim, para uma análise mais
complexa, mais interessante do que falar de uma substituição de enfoque é pensar
sobre os entrecruzamentos de vulnerabilidades, o que permite compreender porque as
‘meninas’ figura que combina elementos de gênero feminino e da idade infantil
retratam as vítimas privilegias do ‘abuso’ e da ‘exploração’ sexual.
É importante observar que, ao final do século XX, o estupro contra crianças e
adolescentes não era julgado específico ou ligado a alguma criminalidade particular.
Apesar de grande parte das denúncias sobre ‘violência sexual’ tratarem de casos nos
quais as vítimas são meninas e moças, nenhum nome especial era reservado à ofensa
contra menores, no máximo, ‘violência contra uma menina impúbere’. A partir do
final dos anos 1980 então, “houve uma mudança profunda na forma de entender a
‘violência sexual’ cometida contra menores de idade a ênfase, antes colocada na
questão de gênero, passou a ser posta na idade” (Landini, 2006: 15).
A criança é menos percebida como algum equivalente ‘normal’ da vítima adulta.
O ato que a atinge sexualmente se torna específico, não-substituível, revelando
uma ruptura, um deslocamento de horizonte: uma violência que um
irremediável desvio, se não uma anormalidade, poderiam explicar (Vigarello,
1998:172).
Como apresentei na introdução, a partir do final do século XX, crianças e
adolescentes tiveram o seu lugar sacralizado fortalecido, devido a uma pressuposição
de vulnerabilidade ‘natural’. Sendo assim, eles passam a ocupar nas agendas políticas
um lugar de destaque nas lutas por direitos especiais, especialmente de proteção
contra as diversas formas de exploração. A aprovação da Convenção Universal de
19
Apesar de serem cada vez mais denunciados também casos que envolvem meninos, como destaca
Landini (2006). Ao analisar jornais do início do século e do fim do século XX, a autora afirma que “se
nas primeiras décadas do século as reportagens referiam-se, praticamente, apenas às meninas, no final
do período, muitos textos enfatizam que os meninos também sãotimas” (Landini, 2006: 252).
18
Direitos da Criança pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1989, deu
suporte para a promulgação de uma legislação centrada na concepção de crianças e
adolescentes como ‘sujeitos de direitos especiais’ (Vianna, 2002:18). No Brasil, essa
virada é marcada pela passagem do Código de Menores de 1979 para o Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, que significou a substituição da doutrina
da ‘situação irregular’ - voltada para as infâncias consideradas ‘erradas’ (infratoras,
abandonadas etc) - pela doutrina da ‘proteção integral’ e do ‘melhor interesse’ da
criança e do adolescente (Vianna, 2002; Schuch, 2005).
Os aparatos estatais de proteção e controle de populações infanto-juvenis existem
desde o início do século XX, a partir da consolidação de um processo mais
abrangente, na modernidade, de formação de uma noção de infância como uma fase
específica da vida, como retratou Áries (1981). Mas, nas últimas décadas, seu modo
de entendimento e significação foi consideravelmente transformado (Schuch, 2005).
Com a transformação de crianças e adolescentes em ‘sujeitos de direitos’, a crítica à
violência contra eles ganha força, transformando o crime cometido contra a criança no
principal modelo de atrocidade. “In our present system of values, genocide is the
worst thing that one group can do to another, and to abuse a child is the worst thing
that one person can do to another” (Hacking, 1992: 194).
Segundo Vianna & Lacerda (2004), no plano internacional, observa-se uma maior
visibilidade da prostituição infantil e adolescente.
Embora as regulações internacionais sobre tráfico de mulheres e crianças
venham de longa data, foi somente a partir dos anos 1990 que a exploração
sexual infantil e adolescente ganhou destaque como um problema com contornos
próprios, incluindo também a pornografia (Vianna & Lacerda, 2004: 66).
Essa maior visibilidade e sensibilidade foram convertidas, rapidamente, em
estratégias de ações políticas. Segundo Vianna & Lacerda (2004: 68), “os últimos
anos foram marcados por uma concentração de iniciativas voltadas para o combate à
exploração sexual de crianças e de adolescentes”. Foram realizados vários encontros
internacionais para elaborar diretrizes para o combate à exploração sexual de menores
(Estocolmo, 1996; Viena, 1999; Japão, 2001). A UNESCO lançou em 1997 a página
“Inocência em Perigo”, visando a combater a propagação da pedofilia
20
. As autoras
20
Ver Vianna & Lacerda, 2004: 66/67.
19
destacam também uma série de iniciativas no âmbito nacional
21
. Além da presunção
de violência, estabelecida no artigo 224 do Código Penal (1940), no caso de sexo com
menores de 14 anos, a promulgação do ECA (1990) e algumas modificações
posteriores incluíram outras modalidades de ‘violência sexual’, associadas à
pornografia e à exploração sexual comercial.
Ao passar de uma ofensa à honra das famílias a uma ofensa ao sujeito dotado de
uma interioridade, os efeitos do crime sexual também sofreram um deslocamento
importante que confere uma dimensão nova e particular ao estupro contra crianças:
O resultado do crime não é mais a imoralidade, mas a morte psíquica, a questão
não é mais a depravação, mas a quebra de identidade, irremediável ferida à qual
a vítima parece condenada, o que concede um lugar inteiramente novo ao
estupro contra crianças (Vigarello, 1998: 248).
A partir da noção de que todo o desenvolvimento psíquico pode ser afetado por
uma experiência de ‘abuso sexual’ na infância (que pode ser configurada mesmo em
uma relação sem coerção física, porém ‘precoce’ e assimétrica), uma nova
engrenagem que articula a prática jurídica ao saber psi constitui-se enquanto instância
privilegiada para a compreensão e a gestão desse tipo de violência. Psicólogos e
assistentes sociais são indicados por juízes o apenas para administrar e atenuar o
sofrimento psíquico das vítimas, mas também para evitar que elas se transformem em
futuros agressores.
Dos atos criminosos aos indivíduos perigosos
No final do tópico anterior, apontou-se um processo de psicologização das vítimas
de crimes sexuais, portanto, de uma patologização de seus efeitos: o trauma, dano de
longo prazo, a dor interior, as conseqüências disruptivas para o desenvolvimento da
criança. A patologização da figura do criminoso sexual, portanto, a psicologização das
causas do crime, é o tema que será desenvolvido na análise deste último deslocamento
no emaranhado da ‘violência sexual’. Mostro como as noções de ‘perigo’ e de
21
Em 1993, foi criada uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) dedicada ao tema da prostituição
infantil. Agências de turismo junto à Embratur elaboraram campanhas contra a exploração e o turismo
sexual infanto-juvenis.
A partir da aprovação da Lei 9.970, foi criado, em 2000, o dia internacional de
combate ao abuso e à exploração sexual infanto-juvenil: dia 18 de maio. No mesmo ano, foi formulado
o Plano Nacional de enfrentamento da Violência Sexual Infanto-juvenil, elaborado por organizações
governamentais e não-governamentais, dentre outras medidas de políticas públicas (Vianna & Lacerda,
2004).
20
‘perversão’ foram fundamentais nesse processo de fusão do criminoso e do
patológico.
Foucault reconhece que emerge na segunda metade do século XX um novo
sistema penal e legislativo em torno da sexualidade, centrado menos na punição de
ofensas contra decência e mais na proteção de populações vistas como vulneráveis.
Segundo Focault, “we're going to have a society of dangers, with, on the one side,
those who are in danger, and on the other, those who are dangerous”
22
. Observa-se,
então, uma substituição de um tribunal de combate ao crime e à ofensa aos costumes,
por um tribunal da perversidade e do perigo.
In other words, the legislator will not justify the measures that he is
proposing by saying: the universal decency of mankind must be defended.
What he will say is: there are people for whom other’s sexuality may
become a permanent danger. In this category, of course, are children
(Foucault)
23
Sendo assim, se antes a justiça penal ocupava-se dos atos criminosos e condenava
formas de comportamentos, agora o que está sendo definido e suscetível à intervenção
da lei, do juiz, do médico, são os indivíduos perigosos. Para traçar a genealogia dessa
nova visão sobre o criminoso, Foucault (2001) descreve as transformações das
relações entre o saber-poder médico-psiquiátrico e o Judiciário, a partir da
comparação de duas técnicas de exames médico-legais da consciência, utilizadas pela
justiça penal no século XIX e no século XX, respectivamente.
No exame ‘clássico’, o perito só era “chamado para saber se o indivíduo imputado
estava em estado de demência, quando cometeu a ação. Porque, se estava, não pode
mais, por causa disso, ser considerado responsável pelo que fez” (Foucault, 2001: 23).
No novo exame, “trata-se de reconstituir a série do que poderíamos chamar de faltas
sem infração, ou também de defeitos sem ilegalidade. Em outras palavras, mostrar
como o individuo se parecia com seu crime antes de o ter cometido” (Foucault:
2001: 24).
Em suma, ao se deslocar da problemática da ‘responsabilidade’ e da
‘imputabilidade’ para a avaliação da ‘periculosidade’ e da ‘perversidade’, o novo
exame psiquiátrico permite constituir um ‘duplo psicológico-ético de delito’. Ou, em
22
Trecho do texto “The Danger of Child Sexuality", diálogo de Michel Foucault com Guy
Hocquenghem e Jean Danet, 1978, p. 10. In: KRITZMAN, Lawrence D. (Ed.). In: Michel Foucault:
politics, philosophy, culture: interviews and other writings..Tradução de Alan Sheridan. New York:
Routledge, 1988.
23
Idem. P. 5.
21
outros termos, o crime passa a ser o duplo prático da deficiência psicológica, pois é
esta que serve para explicar a origem, a causa do delito. Inverte-se, assim, a relação
entre monstruosidade e criminalidade: antes era possível reconhecer o criminoso em
potencial em qualquer indivíduo monstruoso
24
. A partir de então, passa-se a suspeitar
de uma monstruosidade no fundo de qualquer criminalidade.
A transformação do criminoso sexual em anormal não é um fenômeno recente,
mas sofreu algumas modificações, produzindo novas modalidades de anomalia. Desde
que a reflexão do direito penal passou a se dar em torno da noção de ‘risco’, com
atenção à reincidência e à periculosidade, unida a uma psicologização dos atos
criminosos, verifica-se uma crescente proliferação de classificações dos agressores
sexuais para melhor analisar os comportamentos e melhor detectar os perigos. Nesse
contexto, emerge não apenas um novo tipo de criminoso, mas de monstro humano: o
pedófilo.
A primeira reflexão psicológica do estuprador de crianças, segundo Vigarello
(1998), aparece no fim do século XIX, a partir da surpresa e do interesse provocados
por processos contra clérigos ou professores. Como explicar a violência desses
homens cultos? Passa a haver, então, o reconhecimento de um desejo particular
direcionado a crianças. Mas a palavra pedofilia ainda o aparece em 1880, longe
disso. Essa perversidade moral distinta aparece ligada ao alcoolismo, à
degenerescência, ao descontrole sexual ou à loucura. Apenas em 1925 é que a
psiquiatria do século XX adota a designação ‘pedófilo’. No entanto, o termo será
popularizado e vulgarizado pelo uso comum somente a partir da última cada do
século XX.
Segundo Landini (2006), que analisou reportagens sobre ‘violência sexual’ contra
crianças em um jornal brasileiro de grande circulação o Estado de São Paulo –, ao
longo do século XX, a categoria ‘pedofilia’ ganha maior visibilidade na mídia a partir
da segunda metade da década de 1990. A autora observa que o termo é utilizado,
principalmente, para retratar casos associados a redes de pornografia infantil na
internet e para justificar, por meio da doença’, crimes de famosos ou pessoas cultas
que, de outro modo, não poderiam ser pensadas como criminosas. De acordo com
Velho (1994: 57), “na sociedade complexa moderna a categoria doente mental tem
24
Segundo Foucault (2001:101), até o século XVII-XVIII, o indivíduo monstruoso – o ‘contra-
natureza’, aquele que transgride os limites não da lei, mas da classificação era sempre referido a
uma criminalidade possível.
22
sido das mais acionadas enquanto categoria de acusação, legitimando visões de
mundo e ‘explicando o inexplicável’”.
O estuprador inculto, o degenerado da periferia social, cede lugar ao pervertido
sexual, ainda mais perigoso porque sabe como não levantar suspeitas. “O temor
durante muito tempo focalizado no inimigo público se desloca para o homem comum,
o vizinho de quem se deve desconfiar” (Vigarello, 1998: 239). O pedófilo é difícil de
ser identificado porque se parece conosco de maneira inquietante e, por isso mesmo,
ele se torna uma ameaça permanente.
Nota-se que a palavra ‘pedofilia’ não é uma categoria jurídica
25
, mas uma
categoria clínica. De acordo com DSM IV
26
, a ‘pedofilia’ é classificada - ao lado do
fetichismo, voyerismo, exibicionismo, masoquismo, sadismo e travestismo - como
uma modalidade de ‘parafilia’
27
, que faz parte do capítulo ‘Transtornos sexuais e da
identidade de gênero’. Segundo o manual, a pedofilia é caracterizada pelo foco do
interesse sexual em crianças pré-púberes (geralmente, com 13 anos ou menos) por
parte de indivíduos com 16 anos ou mais e que sejam ao menos cinco anos mais velho
que a criança, ao longo de um período mínimo de seis meses. O diagnóstico de
pedofilia pode ser feito, segundo o manual, se a pessoa realizou esses desejos ou se os
desejos ou fantasias sexuais causaram acentuado sofrimento ou dificuldades
interpessoais.
Ou seja, o estuprador é, no máximo, um reincidente e é definido pelos seus atos. O
pedófilo é uma espécie e é definido pelos seus desejos. No entanto, como destaca
Vigarello (1998), a opinião comum, diferente da visão médica, borra com maior
facilidade as fronteiras entre pedófilos, pais incestuosos e ‘abusadores sexuais’
28
de
menores em geral. Landini destaca também que, ao relatar casos de pornografia,
25
O diagnóstico de pedofilia pode estar associado a crimes de estupro (art. 213/CP) ou atentado
violento ao pudor (art.214/CP) de menores (art.224/CP), corrupção de menores (art. 218/CP),
prostituição (Art 244/ECA) e pornografia infanto-juvenil (art. 240 e 241/ECA).
26
Diagnostic and Statistical Manual of Mental Desorders, fouth edition. American Psychiatric
Association.
27
As chamadas ‘parafilias’ recobrem a antiga categoria ´Desvios Sexuais´do DSM II, que são as
antigas ´perversões’, entendidas agora como ‘disfunções’ (RUSSO, 2004). Elas são definidas, no DSM
IV, pela presença de fantasias, anseios sexuais ou comportamentos recorrentes, intensos e sexualmente
excitantes envolvendo objetos não-humanos; sofrimento ou humilhação, próprios ou do parceiro; ou
crianças ou outras pessoas sem o seu consentimento, ocorrendo durante um período mínimo de seis
meses (DSM IV, 2002).
28
Destaca-se que a expressão ‘abuso sexual’ pode ser usada, dependendo do contexto, para classificar
relações sexuais não-coercivas. A idéia de abuso’, portanto, não precisa estar associada,
necessariamente, à noção de ausência de consentimento, nem tampouco de dano psicológico, desde que
se reconheça a natureza assimétrica da relação.
23
dificilmente a mídia impressa traça distinções claras entre pornografia de crianças e
adolescentes, englobando as duas numa mesma categoria a ‘pedofilia’. (LANDINI,
2004: 339).
Sendo assim, entendo que se enquanto categoria analítica clínica, a pedofilia
refere-se, principalmente, a fantasias e desejos que podem ou não se atualizar na
forma de crimes sexuais, por outro lado, enquanto categoria social de acusação, ela
pode ser acionada nas diversas modalidades de práticas sexuais envolvendo menores,
de modo que o que passa a ser condenado não é apenas o ato, mas a pessoa total do
criminoso.
24
Capítulo II
Notas sobre um escândalo
Para analisar como a relação sexual intergeracional envolvendo ‘menor’ é
socialmente problematizada, optei por investigar uma situação concreta que
publicizasse e explicitasse posições conflituosas em torno de um caso que envolvesse
sexo entre um ‘adulto’ e uma ‘adolescente’. Como destaca Velho (1994: 131), o
estudo de conflitos, disputas, acusações e momentos de descontinuidade em geral, por
focalizarem situações de drama social, é particularmente útil para enxergar a realidade
familiar de modo mais complexo.
A fim de “passar de um problema social a um problema sociológico (Duarte,
2006: 22), investigar uma situação que fosse apresentada como um ‘escândalo’ me
pareceu um bom ponto de partida metodológico, por provocar uma proliferação de
discursos morais sobre temas considerados socialmente tabus. É importante destacar
que optei pela categoria ‘escândalo’ para indicar um fenômeno que assume
propriedades sociológicas particulares, como será analisado neste capítulo, ao se
situar na interface e articular, de maneira específica, dois níveis discursivos
diferenciados: a denúncia pública, caracterizada pela formalização e pela publicização
de caráter acusatório, e a fofoca, caracterizada pela fluidez e pelo polimorfismo da
informação e pela circulação em rede de boca a boca. Destaca-se ainda que o recorte
de gênero escolhido não é trivial e traz especificidades para a construção social do
problema.
Comecei a atentar para notícias de jornal sobre casos desse tipo. Foi, então, que,
no final de dezembro de 2006, tomei conhecimento de um episódio
29
sobre um
professor de futebol de praia de 33 anos, Ricardo, que se relacionou sexualmente com
sua aluna de 14, Raquel. A história culminou em um encontro dramático em uma
farmácia na zona sul do Rio no qual o pai da menina e uma multidão tentaram linchar
o professor. A notícia foi publicada em um jornal de grande circulação no Rio de
Janeiro, voltado para camadas médias e altas
30
. A manchete dizia: “Guardas evitam
29
Mudei os nomes de entrevistados e personagens e substituí as referências que pudessem, de algum
modo, ajudar a identificar os protagonistas e local exato do ´escândalo´. Substituí por referenciais que
não prejudicassem a construção do contexto social da história.
30
Lacerda (2006: 32) destaca que existe uma multiplicidade de categorias classificatórias para definir o
perfil do jornal, relativas à classe social, a posição no mercado editorial etc. O critério de “classe
social” é privilegiado pela autora por ser como as empresas jornalísticas se auto-definem. No entanto,
ela destaca que, no caso de jornais que publicam estatísticas sobre o perfil de seus consumidores,
enquanto a porcentagem de leitores segundo classe social” oferece resultados bastante diferenciados
para um jornal definido como “popular” e outro definido como “camadas médias”, os dados sobre
25
linchamento: professor de futebol acusado de seduzir menor escapa de agressão na
zona sul”.
Dia 23 de dezembro, em um almoço de Natal na casa de familiares, Janaína, uma
menina de 14 anos, comenta sobre o caso relatado na matéria que eu havia lido dias
antes e arquivado, sem saber ainda os rumos que minha pesquisa tomaria. Ela havia
sido aluna desse mesmo professor e conhecia de vista, da praia, a menina com quem
ele se relacionou. Ela estava bastante mobilizada com a história. A partir do meu
interesse, todos os presentes acabaram aderindo à discussão sobre o caso.
Janaína e a mãe, as quais conheciam melhor o professor, defendiam-no, dizendo
que ele havia sido ‘seduzido’ pela garota, que não era mais nenhuma ‘menininha’ e
que todos da praia comentavam que ela ‘dava muito em cima dele’. Não que elas não
reprovassem a atitude do professor, diziam que ele ´pisou na bola´, mas defendiam
que ele não era um ‘pedófilo’, pois ele sempre trabalhara com crianças e adolescentes
e não costumava dar em cima das ‘menininhas’ para as quais ele dava aula.
A e de Janaína conta que, além de excelente professor, Ricardo era muito
brincalhão e atencioso com alunos e alunas da escolinha e querido por todos. Disse
que tinha tanta confiança no professor que era ele quem levava Janaína para casa
depois das aulas de futebol. Por isso, quando soube do ‘escândalo’, a mãe de Janaína
telefonou para a gerente da escolinha e disse que, se fosse preciso, ela testemunharia
em favor da ‘pessoa de Ricardo, relatando a conduta responsável, respeitosa e
carinhosa dele, como professor de sua filha durante muitos anos. Segundo a
perspectiva de Janaína e de sua mãe, Ricardo de fato cometera um erro, por ser
‘professor’, mas não porque fosse um ‘perverso’ ou um ‘doente’, e sim por não ter
tido forças suficientes para resistir ao ‘jogo de sedução’ de uma ‘aluna’, ‘adolescente’
– uma ‘loiraça´, segundo elas.
Os demais presentes no almoço familiar (pai de Janaína, irmã, tios, primos e o
cunhado com sua família) acusavam o professor com menos tolerância, argumentando
que cabia a ele, como ‘adulto’ e ‘professor’, a responsabilidade sobre a ‘menina’ e
“renda familiar” são bastante semelhantes. As tabelas não informam o significado de “classes A”, “B”,
“C”, “D” e “E” ou sobre quais são os critérios utilizados na geração da categoria “classe social”.
“Imaginamos que o potencial de consumo dos leitores seja o ponto de apoio nas delimitações de
“classe”, fato que, sociologicamente falando, implica na caracterização de “estrato social” (Lacerda,
2006: 35). Ou seja, os responsáveis pela elaboração editorial do jornal baseiam-se antes nas
representações culturais sobre os interesses de classe do que em critérios sócio-econômicos para definir
a seleção de assuntos e os modos de apresentar a notícia.
26
que se tratava, sim, de um caso de ‘pedofilia’, pela ‘diferença de idade’ entre o
‘professor’ (33 anos) e a ‘aluna’ (14 anos). Defendiam que, mesmo a iniciativa sendo
dela, ele não poderia ter ido em frente, pois é comum que meninas adolescentes
apaixonem-se por professor, mas cabe a este perceber a ‘assimetria’ da relação e dizer
não. Outro argumento que foi levantado sobre a questão da relação sexual entre
‘adulto’ e ‘adolescente’ é que, se o contexto fosse outro, como uma boate, por
exemplo, não teria tanto problema, pois ambos estariam na mesma condição’. O que
era considerado mais grave era ter sido com um ‘professor’, alguém que ocupava uma
posição de ‘responsável’ em relação à ‘menor’.
A polêmica e calorosa discussão, no evento natalino, sobre o ‘escândalo’ traz um
conjunto de elementos que ajuda a complexificar minha investigação sobre como a
relação entre um ‘adulto’ e uma adolescente’ é problematizada e como ela pode
constituir-se como problema social. Primeiramente, eu não poderia tomar como dadas
as categorias ‘adolescente’ e ‘adulto’ (nem os seus significados) para construção do
problema. Notei que minha questão inicial seria apenas uma generalização de um
fenômeno que pode tomar formas diversas e que eu estaria reduzindo-o a uma única
fórmula. Como enfatiza Moore (1994), é preciso investigar quais o as diferenças
privilegiadas e culturalmente avaliadas em diferentes contextos. Uma de minhas
tarefas deveria ser, então, reformular e complexificar minha questão ao longo da
pesquisa.
Percebi que mais interessante do que partir de categorias dadas e de um problema
previamente construído seria observar o conjunto de categorias utilizadas e como elas
são manipuladas pelas pessoas para entender o que elas construíam como problema.
Nesse debate, por exemplo, além de ‘adulto’ e adolescente’, uma série de categorias
e relações foram apontadas: ‘menininha’, ‘menina’, ‘aluna’, ‘loiraça’, ‘menor’ (para
se referir à ‘adolescente’); ‘pedófilo’, ‘perverso’, ‘doente’, ‘professor’, ‘responsável’
(para se referir ao ‘adulto’) e ‘sedução’, ‘diferença de idade’, ‘assimetria’ e ‘diferença
de condição’ (para se referir à relação).
O primeiro ponto de problematização gira em torno de se Raquel seria ou não uma
‘menininha’, que é uma categoria que combina elementos do nero feminino com
atributos de idade (infantilização, inocência). Vale destacar que as categorias
identitárias, como o gênero e a idade, o devem ser entendidas como “algo que ‘se
é’, ou algo que ‘se tem’, senão algo que ‘se faz’; um efeito performativo e uma
performance (Blazquez, 2004: 7). Ou seja, gênero e idade não são propriedades
27
essenciais de determinados sujeitos, mas, sim, algo que estes devem se tornar
continuamente a partir da estilização repetida de atos (Butler, 2003).
Nesse sentido, não sendo Raquel considerada uma ‘menininha’ por Janaína e sua
mãe - seja por seus atributos físicos ‘atraentes’ (‘loiraça’), seja por suas atitudes
insinuantes -, a sua agência o é apenas reconhecida por ambas, como é também
enfatizada. Enquanto Janaína e sua mãe que defendiam Ricardo, com quem elas
tinham uma relação de proximidade - privilegiam uma perspectiva de gênero marcada
por um ‘descontrole’ sexual masculino diante da ‘sedução’ feminina, os demais
privilegiam a perspectiva da menoridade
31
que leva em conta as ‘assimetrias’ da
relação: a ‘diferença de idade(e não apenas a ‘idade’ em si da jovem), a posição de
‘professor’ e de ‘responsável’. Sendo assim, para as primeiras, o erro de Ricardo
consistiu em não resistir à sedução feminina, o que parece razoavelmente aceitável ou,
ao menos, tolerável, na opinião delas. Para os demais participantes da discussão, por
sua vez, o erro foi ele não ter agido
de acordo com sua ‘posição’ de ‘autoridade’, o
que era absolutamente condenável para eles.
Essa diferença nos leva a um outro ponto importante das problematizações morais
sobre o caso: Ricardo seria ou não um ‘pedófilo’, por ter transado com a ‘menor’? É
importante destacar que não procuro problematizar o termo ‘pedofilia’ enquanto
categoria analítica clínica, mas sim como categoria nativa de acusação. Para Janaína e
sua e, que têm uma perspectiva de longo prazo da conduta de Ricardo e uma
relação de afeto com ele por conhecerem-no pessoalmente alguns anos (como ex-
professor querido por Janaína), ele não era um ‘pedofilo’. Segundo elas, o caso foi um
incidente, uma ‘pisada na bola’, uma exceção na trajetória de Ricardo enquanto
professor (que nunca teria dado em cima de ‘menininhas’), que elas explicam a partir
da ênfase na postura e aparência ‘sedutoras’ de Raquel. Para os demais, que não
conheciam nenhum dos dois protagonistas da história e que construíram a avaliação
sobre Ricardo a partir do ‘escândalo’, a sua conduta é vista como uma transgressão a
uma norma genérica de que um professor não pode se relacionar sexualmente com
uma aluna ‘menor’. Somente uma patologia, uma ‘tara’, poderia, então, explicar a
31
Vianna (2002) destaca o caráter relacional da menoridade, enfatizando a dimensão de assimetria.
Segundo a autora,
“ser
menor é, sobretudo, encontrar-se em posição de autonomia parcial, por
quaisquer motivos que sejam considerados operantes em um dado momento e em uma dada
configuração social. É, nesse sentido, ser compreendido como estando em situação de ter alguém que
responda por si, que seja seu responsável, permanecendo incluído em um conjunto de relações de
interdependência, mas, sobretudo, de assimetria” (VIANNA, 2002:7).
28
conduta, de modo que esta contamina, na visão dessas pessoas, a identidade de
Ricardo: ele é classificado como ‘pedófilo’.
Achei que o caso poderia render mais e ser um bom ponto de partida para minha
investigação, já que minha própria rede de relacionamentos poderia abrir portas para a
pesquisa e me colocar em contato com pessoas que, de alguma maneira, estavam em
torno do episódio e conheciam os seus protagonistas. Então, meses depois (julho de
2007), resolvi procurar Janaína para que ela me ajudasse a entrar em campo. Eu
queria entrevistar pessoas que conhecessem o caso e que já houvessem discutido entre
si sobre ele, de modo que eu não estaria impondo, como pesquisadora, uma questão
externa como reflexão abstrata, apesar de estar incitando, como entrevistadora, a
retomada de uma polêmica que havia relativamente cessado com o tempo.
Pensei, a princípio, que seria muito difícil e delicado conseguir as entrevistas com
pessoas mais próximas dos protagonistas do ‘escândalo’. Então, comecei
entrevistando a própria Janaína e suas amigas (Lu, 14 anos, e Cela, 13), na casa dela.
Algumas semanas depois, a mãe de Janaína me colocou em contato com a gerente da
escolinha de futebol, Rosângela, que foi bastante acolhedora e abriu muitas portas
para a pesquisa. Além de conversar comigo sobre o caso, foi ela quem mediou todos
os contatos para realização das demais entrevistas. Enquanto entrevistava Rosângela,
tive a oportunidade de ter também uma breve conversa com uma aluna que fazia aula
com Raquel quando esta freqüentou a turma de adultos (Valmira, 59 anos). Em outra
ocasião, conversei com uma professora (Amanda, 19 anos) e dois professores (Cauã,
21 anos; e Paulinho, 24) da escolinha que eram amigos do ex-instrutor (Ricardo teve
que sair da escolinha depois do ‘escândalo’). Depois, conversei com o próprio
Ricardo, professor que se envolveu com a aluna. Por fim, falei com o dono (João), um
aluno (Mário, 14 anos) e duas alunas da escolinha (Claudinha e Karen, ambas com 14
anos). Os últimos três eram amigos próximos da menina que protagonizou o
‘escândalo’. Com exceção da entrevista com Ricardo, que foi realizada em uma sala
de aula vazia em sua faculdade
32
, as conversas com as pessoas da escolinha se deram
no espaço e no horário (ou nos intervalos) das aulas de futebol de praia.
Cheguei a conseguir, através de uma das amigas de Raquel que entrevistei, o
telefone da protagonista do ‘escândalo’. Essa amiga me disse que Raquel teria
32
Ele é formado em educação sica, mas está fazendo graduação em Direito. Ele cursava a
faculdade antes do ‘escândalo’, mas, a partir de então, abandonou a atividade de professor de educação
física para se dedicar exclusivamente aos estudos. Segundo Ricardo, o acontecimento apenas antecipou
os planos de mudança de carreira, o que já era o seu projeto.
29
concordado em dar entrevista e que talvez a mãe dela também aceitasse conversar
comigo. No entanto, depois de algumas tentativas frustradas de contato por telefone,
supus que ela pudesse ter mudado de idéia e achei melhor desistir, por receio de
pressioná-la ou de me tornar inconveniente. Sendo assim, é importante destacar que
tive acesso direto a um dos protagonistas da história, Ricardo, mas o consegui
entrevistar nem Raquel, nem seus pais.
Essa dificuldade de acesso à menina (que não sei se foi desistência dela ou
orientação dos pais) abre brechas para diferentes tentativas de entendimento ou
especulações. Por um lado, claro que qualquer um pode decidir não falar, mas, por
outro, essa desistência em dar entrevista pode ser interpretada como um reforço do
caráter infantil (infans, sem fala) associado a ela, talvez por não ser considerada capaz
de falar sobre sua própria experiência ou ser vista como o lado mais vulnerável da
história, ou seja, como aquela que deve ser protegida da exposição e das lembranças
que uma situação de entrevista atualizaria. Mesmo assim, eu já havia conseguido
chegar muito mais próximo do centro do ‘escândalo’ do que havia imaginado que
seria possível.
Com as entrevistas, meu interesse não era exatamente saber a posição das pessoas
sobre o caso - se elas achavam certa ou errada a atitude dos protagonistas da história
ou quem consideravam que seria o culpado. O meu objetivo era observar o modo pelo
qual as pessoas defendiam suas posições, como construiriam seus argumentos, como
narravam a história e a partir de que categorias e referências construíam suas
avaliações sobre a relação e a conduta dos protagonistas e sobre todo o
acontecimento.
A fim de desnaturalizar o problema, tracei um roteiro de investigação: i)
identificar as categorias utilizadas e verificar qual conduta está sendo avaliada pelos
sujeitos e se ela é julgada 'errada' ou não; ii) investigar a partir de que padrão de
normalidade a conduta está sendo julgada; iii) quando a conduta for entendida como
‘problemática’, pesquisar que ‘regra’ ou ‘conjunto de regras' ela está transgredindo;
iv) observar, ainda, para quem e em que contexto a transgressão é
considerada aceitável ou absolutamente condenável, o que depende não apenas do
valor da(s) regra(s) transgredida(s) em determinado meio social e para determinada
pessoa socialmente posicionada, mas também das estratégias de acusação utilizadas
(judicialização, patologização, espetacularização, fofoca etc); v) identificar a quem é
atribuída a responsabilidade/culpa pelo ‘erro’; vi) investigar se a conduta ‘errada’ é
30
vista com uma transgressão casual ou associada a uma personalidade desviante; vi)
por fim, observar quais são as estratégias de controle social privilegiadas para lidar
com o problema (técnicas punitivas, técnicas pedagógicas,cnicas terapêuticas etc).
O plano de pesquisa esboçado acima não foi construído para ser seguido de acordo
com uma ordem rígida e nem preenchido com conteúdos fixos e pré-determinados,
mas sim para funcionar como um princípio norteador no mapeamento do conjunto de
variações nas problematizações morais sobre o caso.
Passo, agora, a analisar cada etapa da pesquisa a partir dos pontos que apareceram
nas falas das pessoas como mais relevantes para a construção do problema. Vale
salientar que o objetivo da análise não é tanto desconstruir o problema, relativizando-
o, mas sim evidenciar as condições sociais de sua emergência (Heilborn, 2006: 30).
Optei, então, por começar com a matéria de jornal que, por sua vez, me leva a analisar
a construção do ‘escândalo’ e seus efeitos.
2.1 O encontro na farmácia e a construção da denúncia pública
No corpo da matéria, o seguinte texto relata o episódio e seus antecedentes:
Guardas municipais salvaram de linchamento, na tarde de ontem, o professor de
futebol de praia Ricardo Almeida, de 33 anos, acusado de seduzir uma de suas
alunas, uma menor de 14 anos. A agressão ocorreu numa drogaria da zona sul, e
começou quando o pai da menina, que estava na companhia da mulher e da
própria menor, viu o professor entrar no estabelecimento. Descontrolado, ele
partiu para cima de Ricardo, mas logo foi contido pelos seguranças da farmácia.
Contudo, aos berros, o pai contou o que se passava, o que levou um grupo de
clientes e transeuntes a tentar agredir o professor. (...). Todos foram levados
para delegacia, onde Ricardo foi indiciado por sedução de menor. Os pais da
menina contaram que ela freqüentava a escolinha de futebol dois anos.
cerca de um mês, a menor (...) começou a ir às aulas duas vezes por dia.
“Suspeitei que algo estava acontecendo (...) até que neste fim de semana ela
disse que iria fazer compras e chegou tarde da noite. Comecei a pressioná-la,
depois cobrei dele e soube de tudo” disse a mãe da adolescente. A menina
contou aos pais que o professor a levou para sair na quinta-feira à tarde e que,
depois de fazer com que se embebedasse, a levou para um motel na Barra da
Tijuca. eles teriam mantido relações sexuais. Os pais registraram o fato na
delegacia. Orientados pelos policiais, eles ontem levaram a jovem ao Instituto
Médico Legal (IML), que constatou, ainda segundo os pais, que a menina havia
perdido a virgindade dias antes. “Eles disseram que ela ainda estava
sangrando”, disse o pai transtornado. Ao saírem do IML, a família acabou
encontrando o acusado na rua. “Não sei se eu que dei sorte ou ele que deu muito
azar, mas sei que perdi a cabeça quando o vi na rua. Parti para dentro dele. Mas
qual pai faria diferente?”, argumentou o pai. Segundo a mãe da jovem, o
professor, que é casado, disse à menina que estava se separando da mulher e que
se apaixonara por ela. De acordo com os pais, a adolescente estranstornada,
confusa e arrependida, e tem chorado muito.
31
Como se pode observar, a relação sexual do professor com a aluna menor, ao ser
descoberta pelos pais, transformou-se rapidamente de drama familiar em escândalo
público na farmácia, caso de polícia e manchete de jornal. O sucesso da denúncia,
garantido através da mobilização do interesse público e o engajamento de outras
pessoas na acusação (Boltanski, 1984), deve-se a estratégias discursivas empregadas
pelo denunciador e a características do próprio ato denunciado.
O denunciador não fala apenas em nome próprio, ele fala enquanto ‘pai’,
produzindo na audiência um efeito de identificação e de empatia em relação a suas
motivações e sofrimento: “qual pai faria diferente?”. Além disso, a causa que a
denúncia apresenta não aparece como uma questão de interesse singular, mas, sim, é
tipificada pelos demais presentes na cena, bem como pelos policiais (que registraram
a acusação classificando-a como ‘sedução de menores’ art. 217 do CP) e pelos
leitores da notícia (como eu mesmo o fiz), como ligada a uma causa
33
o ‘abuso
sexual de menores’, ou ‘um caso de pedofilia - reconhecida como coletiva
(Boltanski, 1984).
Como comenta Ricardo, “do jeito que saiu no jornal parecia que eu era o
estuprador do bairro”. A menina, por sua vez, é apresentada como vítima de
‘sedução de menor’
34
, definido no artigo 217 do Código Penal de 1940 como “seduzir
mulher virgem, menor de dezoito anos e maior de catorze, e ter com ela conjunção
carnal, aproveitando-se de sua inexperiência ou justificável confiança”. A
‘inexperiência’ refere-se não apenas à ‘virgindade física’, mas também a inocência ou
‘virgindade moral’ da jovem. A ‘justificável confiança’, por sua vez, caracteriza-se
por um consentimento sexual mediante juras falsas de amor ou de casamento (Duarte,
2000).
33
Não foi a mesma causa que levou o jornalista até o caso. A matéria foi pautada pelo chefe de
reportagem enquanto ‘tentativa de linchamento de um professor em um bairro da zona sul carioca’. O
jornalista não sabia que o caso envolvia sexo com menor, quando foi para a delegacia fazer o trabalho
de apuração. Segundo ele, a ‘pauta’ interessou a editoria de ‘cidades’ por ser um caso de violência
envolvendo um professor na zona sul. O jornalista disse que o caso chegou ao conhecimento do jornal a
partir de uma ‘rede local de informação factual’ que informa a editoria de cidades sobre aquilo que
é entendido como os 'principais acontecimentos cotidianos locais'. E disse que, no caso, a delegacia de
polícia deve ter sido a fonte de informação.
34
Vale salientar que esse delito foi revogado pela Lei 11.106, de 28 de março de 2005, de modo que
Ricardo não poderia ser processado como ‘sedutor’. Os pais da menina poderiam processá-lo por
‘corrupção de menor’, previsto no art. 218 do CP de 1940 (corromper ou facilitar a corrupção de pessoa
maior de 14 e menor de 18 anos, com ela praticando ato de libidinagem, ou induzindo-a a praticá-lo ou
presenciá-lo). No entanto, é menos relevante observar o erro legal cometido (seja pelo jornalista, seja
pelos policiais) do que perceber as concepções culturais e valores morais acionados para a construção
do problema.
32
Como se pode perceber, a imprensa exerce um papel importante no processo de
institucionalização do problema, ou seja, na homogeneização do seu modo de
tratamento: o episódio é enquadrado a priori em concepções generalizantes e,
sobretudo, antecipadamente dramatizadas (Heilborn, 2006: 33). Sendo assim, é
importante atentar também para as estratégias discursivas utilizadas para a construção
da denúncia na notícia.
O texto jornalístico, simultaneamente, particulariza e generaliza o acontecimento
narrado. Por um lado, o relato é construído de modo a apresentar as especificidades do
drama e a comover o leitor; por outro, a escolha das categorias utilizadas e do tom da
narrativa é baseada em sistemas classificatórios previamente institucionalizados e re-
afirmados na matéria jornalística. Assim, a notícia não apenas relata o que aconteceu,
mas também prescreve modos institucionalizados e esperados de interpretar e reagir.
Os elementos utilizados na matéria que participam da construção do
acontecimento não apenas como transgressivo, mas ‘escandaloso’ (ou seja, algo que
desencadeia falatório”, indignação, emoções e reações intensas e que tem
repercussão.) são: i) a diferença de idade entre Raquel e Ricardo e a ‘menoridadede
Raquel; ii) o fato de ser uma relação entre professor e aluna; iii) a virgindade de
Raquel (comprovada pela presença do sangramento’ e atestada pelo exame do IML);
iv) o fato de ela ter consentido a relação sexual em uma condição inebriante que teria
lhe turvado os sentidos, seja pela inexperiência e pela pouca idade, seja pela bebida ou
pela promessa de que Ricardo iria se separar da mulher para ficar com ela; v) por fim,
o desfecho dramático acaba por articular e sintetizar todos esses elementos através da
reação de indignação moral dos pais e dos transeuntes, que culminou na tentativa de
linchamento do professor, por um lado, e da intervenção do Estado, representado pela
instituição policial, por outro.
Como afirma Boltanki (1984: 35), uma denúncia pode gerar diferentes formas de
atuação - vingança em segredo, compensação sobre um outro terreno, esquecimento -
e de reparação, dentre as quais a judicialização é apenas um dos caminhos possíveis.
A existência de um delito na legislação penal no qual o caso pudesse ser tipificado e,
portanto, a virtualidade de um processo judicial foi, certamente, um elemento
importante nos jogos sociais que sucederam a revelação
35
do segredo (Simmel, 1964),
35
Segundo Simmel (1964: 333), “the secrecy contains a tension that is dissolved in the moment of its
revelation. This moment constitutes the acme in the development of the secrecy; all of its charms are
once more gathered in it and brought to a climax”.
33
que teve como clímax o ‘escândalo’ na farmácia, o registro de ocorrência na delegacia
e, principalmente, a notícia no jornal. Se, por um lado, o processo não foi levado
adiante pelos pais da menina, por outro, as punições morais decorrentes da denúncia
pública produziram efeitos significativos sobre a reputação, a vida e as relações
sociais dos protagonistas da história: o professor e a aluna.
A denúncia protagonizada pelo pai da jovem pode ser, assim, dividida em três
camadas, que apresentam densidades diferentes: i) a denúncia na farmácia, cujos
destinatários são os transeuntes e o efeito é a tentativa de agressão física coletiva
(linchamento); ii) a queixa na delegacia, cujos destinatários são os policiais e o efeito
é o inquérito e, em última instância, a possibilidade de um processo judicial; iii) a
denúncia veiculada no jornal, cujos destinatários são indeterminados e o efeito
produzido é o ‘escândalo’ na comunidade local.
Vale destacar que o fato de o ‘escândalo’ ter constituído-se a partir de uma
denúncia pública veiculada em um jornal não apenas de grande circulação, mas
também de circulação local, traz especificidades para o caso em análise, pois muitos
leitores puderam identificar as pessoas envolvidas. Sendo assim, a notícia também
produziu efeitos na vida dos protagonistas da história e repercutiu nas redes de fofoca
da comunidade local. Proponho, portanto, que o ‘escândalo’ está situado na interface
da denúncia pública com as fofocas locais ou, em outros termos, que o ‘escândalo’ é o
efeito local da denúncia pública. São, justamente, esses efeitos que analiso a seguir.
2.2 O ‘efeito-jornal’ nas avaliações morais e nas reputações sociais
Ricardo também me relatou sua própria versão dos acontecimentos. Ele contou
que no dia seguinte ao encontro com Raquel, a mãe dela ligou dizendo que já sabia de
tudo e disse que era um absurdo. “Eu ouvi, ouvi. Ali eu acordei que eu tinha feito
merda” conta o ex-professor. Segundo ele, nesse mesmo dia, os pais da menina
levaram-na no Instituto Médico-Legal, como relata a matéria. No outro dia, à tarde,
ele estava indo dar aula e encontrou com os três: a e, a menina e o pai. “Eu nem vi
direito, eu passei, daqui a pouco o pai veio: ‘você estuprou a minha filha!’ E começou
a me bater. Eu me protegi, não bati nele, ninguém se machucou” diz Ricardo. Foi,
então, que o pai de Raquel começou a chamar as pessoas e a gritar: “ele é um
estuprador!”. E começou a juntar gente para linchar Ricardo, até que chegaram uns
guardas para intervir. Ele diz que ficou desnorteado com a confusão e que lembra
34
que foi levado para a delegacia, mas que não estava presente na sala quando o repórter
chegou:
Eu entrei numa Kombi, me senti um bandido, fomos pra delegacia, eu fiquei
com raiva dele (do pai da menina) e ainda tentei partir pra cima dele. fomos
separados. Um policial que eu conhecia me colocou numa sala e disse: fica
tranqüilo, você vai ficar aqui comigo, isso cansa de acontecer aqui... Fica
tranqüilo, fica na tua. E foi a parte que eu me ferrei, porque ele (o pai)
chamou o jornal e como eu tava dentro eu não vi o jornal, então eu não tive
como me defender.
O ex-professor afirma que o efeito moral da denúncia pública foi muito mais
destrutivo do que qualquer outro, pois lhe traz uma ‘vergonha’ enorme, interna e
externa, nos termos dele. A primeira pode ser entendida como culpa, perturbação e a
segunda como constrangimento diante dos outros. Além disso, ele vive um dilema de
como manipular a informação sobre seu estigma: “exibi-lo ou ocultá-lo; contá-lo ou
não contá-lo; revelá-lo ou escondê-lo; mentir ou não mentir; e, em cada caso, pra
quem, como, quando e onde” (Goffman, 1978: 50). Nas palavras de Ricardo: “como é
que eu vou contar isso para as pessoas que eu for me relacionar agora? Ou amanhã,
em um novo trabalho, uma pessoa vira: você é aquele professor! Eu virei ‘aquele’.
Então, isso pra mim é um fantasma e me incomoda declara. Segundo Goffman
(1978), esse sentimento é comum entre os estigmatizados:
Mesmo quando alguém pode manter em segredo um estigma, ele descobrirá que
as relações íntimas com outras pessoas, ratificadas em nossa sociedade pela
confissão mútua de defeitos invisíveis, levá-lo-ão ou a admitir a sua situação
perante a pessoa íntima, ou a se sentir culpado por não fazê-lo. De qualquer
maneira, quase todas as questões muito secretas são, mesmo assim, conhecidas
por alguém, e, portanto, lançam sombras sobre o indivíduo. (Goffman, 1978:85)
A proporção do ‘escândalo’ amplia e transforma seus efeitos. Ricardo comenta
que, se o tivesse saído no jornal, o teria envergonhado tanto os seus pais, não
teria envergonhado tanto a menina e, conseqüentemente, não teria envergonhado tanto
a ele também. “Uma coisa que sai na mídia, você fica sem noção de quantas pessoas
leram”, comenta o ex-professor. Segundo ele, é um ‘ciclo enorme’ e a qualquer
momento pode chegar uma pessoa e perguntar sobre ‘aquela parada’. Ricardo relata
dois episódios um quando foi conversar com uma moça numa boate e outro quando
andava de bicicleta na orla nos quais ele foi reconhecido e identificado como o
‘professor que comeu a aluninha’. Eu virei ‘aquele’ e o que eu fiz virou ‘aquela
parada’. O jornal fez a coisa ganhar uma proporção que eu não sei qual é” – diz ele.
35
Logo na minha primeira conversa com Janaína e suas amigas, o ‘jornal’ apareceu
como o principal responsável pela difamação do ex-professor. Lu, uma das amigas de
Janaína, que só conhecia a menina e o professor de vista, dizia: “a galera que conhece
ele sabe que ele não é pedófilo. Mas qualquer um que lê a matéria no jornal pensa: pô,
que pedófilo!”. A outra amiga, Cela, que não conhece pessoalmente Ricardo, mas que
tem amigos em comum com Raquel, completa:
Eu acredito que ele não seja pedófilo. Mas o Brasil inteiro que leu essa
matéria no jornal vai achar. O jornal botou toda a culpa nele! Eu sei que
não é assim, eu sei que a Raquel tem muita culpa nessa história, mas é
porque a gente conhece: eu conheço ela, você (Janaína) conhece ele...
Mas o resto do mundo inteiro que leu isso vai achar ele um escroto.
Rosângela, gerente da escolinha, também contrasta a visão de quem conhece
pessoalmente as pessoas envolvidas com aquela de quem fica sabendo a história pelo
jornal. Para ela, quem é ‘próximo’, como ela, tende a minimizar o erro: “você sabe
que errado, que é uma coisa séria, mas você fala assim: pô, foi um vacilo, o cara
deu mole”. Enquanto que quem lê uma notícia ‘como essa’ acha que o professor é um
‘monstro’: “quando você no jornal, na televisão, que você fica sabendo por
alguém, você acha que um cara desse tem que ser morto, castrado, tem que ir preso e
na prisão fazerem com ele horrores” – diz Rosângela.
Segundo a gerente da escolinha, a reação das pessoas foi muito variada: “algumas
pessoas disseram: ele foi professor da minha filha, minha filha adora ele, ele pode
estar errado, mas o que ele precisar eu estou a favor dele. Também tinham pessoas
que se ele passasse pelo calçadão iam tirar a filha daqui”. Segundo ela, essas pessoas
reprovam não apenas a ‘ação em si’, mas a ‘pessoa’ dele. Ricardo conta que ahoje
algumas pessoas viram a cara para ele na rua.
Apesar de não ter sido processado, pois os pais de Raquel desistiram de levar o
caso adiante na justiça, Ricardo sofreu outras punições morais além da discriminação.
Uma dimensão bem prática dessas punições foi que ele teve que deixar de trabalhar na
escolinha onde dava aula de futebol. Segundo João, dono da escolinha, a decisão
sobre a saída de Ricardo não foi tomada a partir de uma posição pessoal ou moral
dele, mas sim foi uma ‘estratégia de gestão’ do negócio, uma decisão de ‘mercado’,
baseada na lei, na ‘opinião pública’ e na moralidade dos pais de alunos. Nas palavras
dele:
A gente definiu a coisa assim: eu tenho uma responsabilidade de mercado e
uma responsabilidade de opinião pública. Muitas vezes o que eu acho
36
particularmente não é o que o público em geral vai achar. Imagina as mães das
outras meninas. Então, a gente teve que tomar uma postura de olha, Ricardo,
sinto muito, mas perdeu! Perdeu porque você infringiu uma regra... Porque é lei,
cara. O comportamento de mercado tem que estar embasado em lei e em respeito
a essas coisas. Por mais que pessoalmente eu possa discordar da lei (...). Aqui o
comando, a opinião publica gira muito em torno dos pais, do que eles acham.
o pai da outra vai virar assim: eu não vou colocar minha filha num lugar onde o
professor come a aluna. O cara generaliza o comportamento. E você tem que
proteger a instituição, porque eu vivo disso.
Os efeitos da notícia não incidiram apenas sobre a reputação e a vida do professor,
mas também sobre a menina: nesse universo machista que a gente vive, ele sai meio
como garanhão e meio como filho-da-puta. E ela sai meio como uma putinha e meio
como coitadinha” – sintetiza o dono da escolinha. Vale destacar que, depois do
‘escândalo’, Raquel também saiu da escolinha de futebol. No caso de Ricardo, é
principalmente a diferença de idade e a condição de ‘professor’ que servem de base
para a avaliação negativa de sua conduta. no caso da menina, além da
‘menoridade’, o recorte de gênero o fato de ela ser ‘menina’ - é particularmente
importante, pois, como revela a Pesquisa Gravad (Heilborn, 2006), existe na
sociedade brasileira (e no meu universo de pesquisa) uma dupla moral sexual para
homens e para mulheres: enquanto os homens m que afirmar sua virilidade, as
mulheres devem garantir a ‘honestidade’. No meu universo de pesquisa pude perceber
que quanto menor a idade (até um certo limite mínimo a partir do qual a atividade
sexual com parceiro passa a ser aceita), maior é a diferença entre a moralidade sexual
para homens e mulheres, especialmente quando é a ‘primeira vez’, como se
analisado mais adiante.
Mário, amigo de Raquel da escolinha de futebol, conta que “quando aconteceu
isso com ela, de ter transado com ele, parecia que não tinha acontecido nada no dia
seguinte. Mas depois que saiu no jornal, todo mundo a viu chorando na rua com a mãe
e ela ficou sem atender telefone”. Ele acha que os efeitos da notícia foram piores para
ela do que o fato de ela ter transado com o professor. A visão sobre os efeitos
negativos do ‘escândalo público’ e da matéria no jornal é compartilhada por quase
todos os entrevistados: os amigos de Raquel, os outros professores, a gerente da
escolinha e o próprio Ricardo. Na opinião do ex-professor:
O pior de tudo foi a publicidade que a coisa teve, foi uma burrice que fizeram.
Porque eu tava no fundo do poço, eu tava destruído, tinha vindo à tona,
independente do jornal, eu fui pra delegacia, eu ia ser processado. Eu tava
quase no fundo do poço, o jornal me afundou, tudo bem. Mas quando o jornal
me afundou, afundou ela ali. Porque todo mundo na rua sabe que é ela. Então,
37
todo mundo na rua quer ficar com ela, porque já sabe que ela transa, que ela deu
pro professor... Então, aquilo ali prejudicou e ela sabe que aquilo ali não foi
culpa minha, ela sabe que foi uma burrice que o pai num momento sem pensar
fez aquilo ali.
“Eu jamais exporia minha filha assim se uma coisa dessas acontecesse” afirma
Rosângela, gerente da escolinha. Mário, amigo de Raquel, conta que “começaram a
falar dela, que ela transava com o professor... Pessoas conhecidas e desconhecidas.
Falando mal, chamando de piranha e tudo, que não é legal”. Para ele, o pai dela foi
um ‘idiota’, porque se ele não tivesse feito o escândalo público, não teria acontecido
nada disso: “as pessoas não ficariam sabendo e ela não teria ficado com essa fama de
‘fez com o professor’, sabe? Não é legal nem pra ela e nem pra ele, muito menos pra
ele” – diz Mário.
Karen, outra colega da escolinha, diz que “tinha gente que dizia: ela é uma puta,
ela fica dando muito mole pro professor e nisso. Bem feito! Tem gente que falava:
imagina se tivesse um professor te seduzindo e você caísse na dele. Tinha gente que
defendia muito ela e tinha gente que falava que ela era um lixo”. Segundo ela, Raquel
agora é conhecida como ´aquela da história do professor de futebol´ e acha que ela vai
sofrer muito, porque ninguém nunca vai esquecer dessa história. Claudinha, uma das
melhores amigas de Raquel do colégio e do futebol, diz que mesmo que não fosse
público, ela sofreria pela desilusão amorosa. Mas, considera que “sendo público é pior
ainda, porque ainda tem a opinião de todo mundo pra influenciar a cabeça dela. E é
muito pior pra sair na rua”. Sendo assim, ela também condena a postura do pai da
amiga:
Uma coisa que eu realmente achei errada foi que os pais dela deram um
escândalo, acho que o precisava disso. Porque agora todo mundo sabe. Na
época ela sofreu pra caramba com isso. Porque todo mundo sabia e começou a ir
falar com ela por causa disso, no orkut
36
e tudo. Foi a cidade inteira
!
Amanda, professora da escolinha, concorda que “o pior lance não foi o escândalo
na farmácia, foi o jornal. Porque poucas pessoas viram o lance da farmácia: pais e
alguns alunos. Mas no jornal foi uma parada muito forte e ficou todo mundo
sabendo”diz ela. Paulinho, amigo de Ricardo e professor da escolinha acha que “se
não tivesse saído no jornal, não tivesse o escarcéu, ia acabar ninguém sabendo e teria
36
Site de relacionamentos na internet muito popular, principalmente, entre os jovens. A peculiaridade
desta comunidade virtual’ é que ela é destinada, principalmente, a encontrar e conectar pessoas que já
se conhecem e se relacionam também no ‘mundo físico’.
38
sido uma coisa normal como qualquer outra. Agora, como todo mundo soube, aí entra
aquele negócio, a idade, essas coisas...”.
Ricardo e Amanda mencionam ainda que o relacionamento entre ‘menores’ e
‘maiores’ é comum em boates e praias da zona sul do Rio de Janeiro, e casos como o
que aconteceu com ele passam cotidianamente despercebidos pela ‘opinião pública’.
Amanda diz que não achou nada demais, porque é a ‘realidade’: sinceramente, eu
achei normal, pelo fato de eu estar convivendo com isso direto. E por conhecer a
menina, saber que ele não fez nada forçado. A menina tava afim também”. Ricardo
enfatiza que ele acha errado o que fez e que se condena, mas diz que outros casos
como esse vêm acontecendo em função da maior ‘liberdade’ que os jovens têm hoje e
que é o ‘preço a se pagar’ por eles estarem freqüentando lugares de adulto. Diz ele:
Hoje, a maioria dos lugares que eu freqüento é um absurdo a quantidade de
adolescentes de 15, 16, 17 anos. Qualquer boate que a gente freqüenta, qualquer
show... Se hoje isso está acontecendo, se estão dando liberdade cada vez mais
cedo ou se eles estão mentindo, e se hoje é interessante pra eles entrarem nesse
tipo de ambiente, vai ter um preço a se pagar: eles vão se embebedar mais cedo,
se drogar mais cedo, transar mais cedo, vão se relacionar com pessoas mais
velhas, vão se relacionar com diversos tipos de pessoas.(Ricardo)
Os depoimentos sugerem que, se não tivesse acontecido o ‘escândalo’ e a notícia
sobre o caso não tivesse sido veiculada no jornal, talvez ninguém soubesse da relação
entre Raquel e Ricardo até hoje ou talvez ela ficasse restrita a murmúrios e fofocas
entre conhecidos: “se não tivesse saído no jornal uma ou outra pessoa poderia ficar
sabendo por ela, aí ia ficar aquele tititi, mas não ia chegar a público, aí seria diferente”
– afirma Rosângela, gerente da escolinha.
No entanto, o fato de o segredo ter sido revelado através da denúncia pública no
jornal e não por outros meios (fofocas, confissão etc) não teve apenas o papel de
ampliar as fronteiras de circulação dessa história, criando a virtualidade de acusação
em situações sociais inesperadas. O efeito-notícia afeta de modo particular as
avaliações morais das pessoas e os comentários que circularam na rede de fofocas
local. Os rumores, por sua vez, incidem diretamente sobre a reputação daqueles que
são objeto da fofoca, consolidando ou prejudicando a imagem pública de quem é
falado, mas também servem como estratégia de controle social na comunidade em que
circulam, na medida em que funcionam como meio de divulgação dos princípios
morais daqueles que falam (Fonseca, 2000: 42).
39
O relato de Malinowski, em Crime and Custom in Savage Society, ajuda a
iluminar o caso em análise. Ele conta sobre um rapaz que se suicidou porque quebrou
a regra de exogamia nas Ilhas Trobriand. Segundo o autor, apesar de este ser um fato
extremamente reprovável pela opinião pública, o desvio desse ideal não é incomum.
O rapaz foi condenado quando a parte interessada - o noivo da moça - tornou
pública a acusação do ato. Nas palavras de Malinowski:
If the affair is carried on 'sub rosa' with certain amount of decorum, and if no one
in particular stirs up trouble - 'public opinion' will gossip, but not demand any
harsh punishment. If, on the contrary, scandals breaks out - every one turns
against the guilty pair and by ostracism and insults one or the other may be
driven to suicide (Malinowski, 1970: 80).
É claro que é preciso relativizar o exemplo citado por Malinowski, pois sua
pesquisa foi realizada em uma sociedade tradicional, razoavelmente homogênea e
fechada. Na sociedade trobriandesa, é possível identificar uma norma única (ainda que
esta seja flexibilizada na vida social) que serve de base para a avaliação das condutas.
no caso em análise, o que está em jogo é a combinação e a disputa entre códigos
diferenciados e valores contraditórios e em constante transformação. Trata-se,
portanto, de um caso exemplar de negociação da realidade em sociedades complexas
contemporâneas (Velho, 1999). Os dois protagonistas do ‘escândalo’ tiveram, sem
dúvida, suas vidas e reputações abaladas, foram alvos de acusações e objetos de
polêmica. Contudo, como o evento aconteceu em uma sociedade complexa,
caracterizada por um universo sociologicamente heterogêneo no qual coexistem
diferentes estilos de vida e visões de mundo, espaço para ambigüidades e para
margem de manobra (Velho, 1999).
Como ensinou Becker (1973), as mesmas ações podem ser julgadas e rotuladas de
diferentes maneiras. Sendo assim, desvio pode ou não ser um ato que foge a regra,
bem como o ato que foge a uma regra pode ou não ser rotulado desviante. Segundo o
autor, transgressão e desvio não estão necessariamente associados. A primeira noção
está ligada a um determinado tipo de comportamento que contraria um conjunto de
regras aceitas em uma determinada situação social. Desvio, por sua vez, está ligado a
um processo social de acusação, portanto, está ligado a estratégias de controle social
através da manipulação das representações e das identidades. Além disso, a rotulação
dos desviantes o depende só de seus atos, nem somente da existência das regras,
mas da ação dos impositores de regras, ou seja, é preciso que alguém interessado tome
a iniciativa de tornar pública a acusação, como fez, no caso, o pai de Raquel.
40
Muitas das falas citadas acima explicitam o caráter relacional do desvio ao apontar
justamente a importância da acusação pública na condenação moral do caso. Isso nos
permite compreender o aspecto político do fenômeno, mostrando como a acusação e,
conseqüentemente, a reputação, não dependem de uma característica intrínseca dos
comportamentos ou dos sujeitos rotulados. Segundo Becker (1973), o desvio é
resultado de uma ação coletiva, ou seja, de um conjunto de interações entre pessoas
que cooperam para produzir a ação e pessoas que cooperam para identificar, reprimir
e condenar a ão considerada desviante e reafirmar um conjunto de regras e valores
morais (Becker, 1973).
Segundo Paulinho, se o tivesse acontecido o ‘escarcéu’ provocado pela
denúncia pública, o fato poderia ter passado como algo ‘normal’. Mas, como diz
Rosângela, quando “um caso que vem a público, você pára pra pensar, no que você
acha que é certo, no que você acha que é errado”. São essas problematizações morais
que vou analisar no próximo capítulo, a fim de investigar como cada uma das pessoas
entrevistadas constitui a relação entre Raquel e Ricardo enquanto problema. Procuro
situar também como essas perspectivas são socialmente posicionadas.
41
Capítulo III
A construção do
problema
A tarefa de sistematizar aquilo que foi apontado, na fala dos entrevistados, como
transgressivo na relação entre Raquel e Ricardo consiste muito menos em encontrar
um conjunto de regras claras do que em estabelecer uma série de relações entre
múltiplos fatores. Observei, a partir das entrevistas, que as condutas dos protagonistas
da história não são julgadas a partir de critérios absolutos. A avaliação dos
entrevistados sobre o caso e sobre cada um dos atores é resultado de uma combinação
complexa entre leis, princípios éticos, padrões de normalidade e uma série de fatores
agravantes e atenuantes, poluidores e purificadores.
Além de mapear a variedade de fatores que fazem com que a relação entre
Ricardo e Raquel seja considerada problemática pelos entrevistados, revelo, a partir
do material analisado, que o mesmo fator pode aparecer em diferentes discursos ora
como critério central para condenação do ato, ora como apenas um agravante
combinado a um fator central e/ou a um conjunto de agravantes. Um mesmo fator
pode também ser destacado por diferentes pessoas a partir de lógicas distintas. Além
disso, o reconhecimento do problema ou da transgressão pode se limitar à censura da
relação ou pode estar direcionado para a atribuição de culpa a alguma das partes. É
importante destacar também que a perspectiva e a avaliação de cada entrevistado não
estão dissociadas da posição social que cada um ocupa e da relação que mantém com
cada um dos protagonistas.
Fator 1: Relação entre professor e aluna
Janaína, ex-aluna de Ricardo, afirma que achou errado por ser uma relação entre
professor e aluna. Para ela, que tem 14 anos, uma menina dessa idade sabe o que
quer, não é mais inocente: “uma menina de 14, 15 anos sabe muito bem o que quer!
Não é mais uma menininha”. Não que ela considere ‘correto’ uma menina de sua
idade ter relações sexuais com um homem muito mais velho, pois acha que ‘cada
coisa tem seu tempo’. No entanto, ela acha que a menina é a principal culpada, no
caso, por ter dado muito ‘mole’ para ele, sabendo as conseqüências que isso teria
(segundo ela e as amigas, toda menina sabe que uma relação com um homem dessa
idade inclui sexo). Então, é em relação à conduta de Ricardo que ela (que foi
orientada por uma amiga da mãe sobre esse princípio) considera que o problema
42
principal da relação entre ele e a aluna ‘menor’ é que o professor transgrediu um
princípio ético e faltou com uma responsabilidade relativa à sua posição social.
Se ele não fosse professor, eu não veria problema. A menina quis e ele quis, ele
não está fazendo nada na lei de errado,tá? Tanto que ela não pôde processar
ele... Mas o que ele fez de errado é que ele era o professor, ele nunca poderia ter
se metido numa relação de aluno e professor, tem que ter uma ética aí. Foi uma
coisa que uma amiga da minha mãe disse que ficou na minha cabeça, o professor
tem que ter responsabilidade.
Lu, amiga de Janaína, acha que “professor de futebol é diferente de professor de
colégio. Tem muito menos responsabilidade pela aluna”. Janaína discorda: “acho que
é tão responsável quanto um professor de matemática! Acho até que ele era mais
responsável por mim que um professor de matemática! Cara, ele me deixava em
casa!”. No entanto, Lu afirma que se uma amiga ficasse com um professor de
matemática seria muito mais chocante que se ficasse com um professor de futebol.
Essa perspectiva está relacionada às representações sobre o tipo de atividade (esporte)
e ao ambiente (praia) que Ricardo lecionava, geralmente associados a uma menor
formalidade e uma maior exibição e cuidado estético com o corpo. Nas palavras de
Lu: “eu imagino um professor de futebol um cara bonitão, fortão.... Imagina um
professor de escola, velhinho....”. João, dono da escolinha, analisando o caso em
particular, também faz referência à exibição do corpo como algo que pode ter
contribuído para reduzir o distanciamento entre professor e aluna: “eu sempre falava
pro Ricardo dar aula de short e camiseta. Ele sempre ia de sunga. Um calor danado,
mas tudo bem. Pô, aula de short e camiseta, pra você se proteger, pra dar um ar
menos intimista” – alertava ele.
Valmira, 59 anos, era colega de Raquel na escolinha de futebol, pois a menina, às
vezes, fazia aula com a turma de adultos, de manhã, em função de seu horário escolar.
Para ela, Ricardo ‘pisou na bola’, mas ela o considera uma boa pessoa, diferente de
muitas de suas colegas. Ela diz que todas as suas colegas de futebol ficaram
horrorizadas com o que aconteceu, pois quase todas m filhas e avaliaram a situação
enquanto mães. Além disso, elas se sentiram traídas pelo professor, que era uma
pessoa na qual todas confiavam. Valmira, que não tem filhos, considera que Ricardo
falhou como educador. Mas não veria tanto problema se a jovem não fosse aluna,
porque acha que os costumes das meninas de hoje mudaram.
43
Se ainda fosse uma pessoa que não fosse aluna dele, como o mundo hoje tão
diferente, essas meninas não tão fáceis mesmo, né? Mas mesmo com esse mundo
tão diferente, isso acontece, de a aluna se apaixonar pelo professor. Então, a
gente aqui achou meio... não podia. Ele pisou na bola nesse sentido, ele tinha
que ter uma postura de educador, por mais que a aluna quisesse dar pra ele...
São certas profissões que reprimem mesmo, até no sentido de libertinagem, você
tem que ter outra postura.
Amanda, 19 anos, professora da escolinha e amiga de Ricardo, o problema
na diferença de idade, pois esse tipo de assimetria é ‘normal’ em seu meio social, nos
relacionamentos entre pessoas de sua geração. Ela comenta sobre o pessoal que
freqüentava a praia com Ricardo: “os amigos todos têm 24, e as namoradas, 16. Isso é
normal aqui. menininha nova, com 15, 16, 17 anos, no colégio ainda, com cara
mais velho. Os caras já formados na faculdade e elas fazendo primeiro, segundo ano”.
Desse modo, Amanda, ao mesmo tempo, reconhece e atenua o problema: “Eu
acho que, no caso, ser professor é a única coisa que eu vi de errado” diz ela.
Paulinho, 24, também colega de trabalho e amigo do ex-professor, considera um ‘erro
de conduta’ profissional. João, um homem um pouco mais velho que Ricardo (33),
dono da escolinha de futebol, acha que “um professor, eticamente o deveria se
relacionar com aluna. Uma questão ética e um erro estratégico na relação, que deve
ser evitado”. Por fim, Cauã, 21, outro professor da escolinha, que entrou no lugar de
Ricardo, acha que “o fato grave é ser aluna, né!?”. Ele acha que, por ‘ser professor’, é
um erro de conduta, e ‘trabalhar com criança’ é um agravante.
Até aqui, apresentei argumentos que apresentam o fator ‘ser professor’ como
elemento central para caracterização do problema. Ele serve para condenar não
apenas a relação, mas, especialmente, a conduta de Ricardo. No entanto, os
argumentos acima apontam esse fator não só como central, mas, em geral, como o
único problema. Assim, se, por um lado, esse tipo de problematização condena o ‘erro
de conduta do professor, de acordo com um ‘ética profissional’, por outro, o
argumento funciona como atenuante do ‘erro’, servindo como contraponto para outras
censuras mais ‘pesadas’, como veremos. Não é à toa que quase todos os entrevistados
que se dizem amigos de Ricardo (colegas de trabalho, o dono da escolinha e alunas
que gostavam muito dele) enfatizam esse fator. É importante destacar ainda que o
argumento, quando utilizado por profissionais do ramo, tem também uma função
estratégica de construir uma apresentação de si que possa produzir a impressão
desejada nos destinatários, como propõe Goffman (1985). No caso, o objetivo é
44
resguardar a confiança do público ao expor os princípios morais que os norteiam, de
modo a deixar claro que, ao menos enquanto profissionais, não fariam o mesmo.
Outras pessoas também apontam o fator ‘ser professor’ não como elemento único
ou central do problema, mas como agravante em relação ao fator ‘diferença de idade’
(que, por sua vez, é construído como problema, por se associar a outros dois fatores
que, como aponta Vianna (2002), se constituem mutuamente: a ‘menoridade’ de
Raquel e a ‘maioridade’ de Ricardo). É o caso de uma das amigas de Janaína com
quem conversei, Cela, 13 anos, que possui alguns amigos em comum com Raquel. Ela
diz que “por ser professor tem um peso maior. Foi um baque a mais. Mas seria, de
todo modo, um escândalo dizer que um cara de 30 anos comeu a Raquel”.
Rosângela, uma mulher de meia-idade, gerente da escolinha, também acha que
‘ser professor’ é um agravante: “Na minha concepção, o maior problema é a idade.
Neste caso aqui, além da idade, ser aluna complica mais ainda. Porque você parte do
seguinte princípio: deixei minha filha aqui, pra fazer aula, com uma pessoa que eu
confio e acontece isso!”. O próprio Ricardo aponta este como um fator que aumenta a
gravidade de sua conduta: “se eu não fosse professor dela e achasse ela na boate,
ficasse com ela e transasse, poderia até não ser tão anormal. Mas eu era o professor
dela”.
O ‘peso’ dado a esse fator transforma a própria natureza do problema. Quando se
enfatiza o fato de ele ser professor, o problema é construído como uma transgressão a
um código de conduta e a um conjunto de expectativas sociais construídas sobre uma
determinada posição social de autoridade e responsabilidade. É um problema
‘ético’. Aqueles que enfatizam a categoria ‘idade’como o fator principal para a
constituição do problema podem fazê-lo de diferentes modos: a transgressão pode ser
entendida em referência às leis da sociedade ou da natureza, como veremos a seguir.
Fator 2: Idade
Lu, 14 anos, amiga de Janaína, diferencia dois tipos do que ela chama de ‘motivo
de idade’ para avaliar determinada conduta: “tem idade cabeça-idade e idade-coisas
que você faz com uma certa idade. A partir dos 18, você faz o que quiser da sua vida,
você pode dirigir, beber... Mas antes dos 18, tem pai, tem coisa de justiça...”.
A
primeira pode ser entendida a partir da noção de estágios de maturidade, definida
45
como o reconhecimento da capacidade de realizar tarefas (Debert
37
, 1998). Ou seja,
trata-se de uma concepção ‘natural’ de idade, associada às capacidades cognitivas e
emocionais da pessoa. No entanto, “a validação cultural desses estágios o significa
apenas o reconhecimento de níveis de maturidade, mas uma autorização para a
realização de práticas (Debert, 1998: 56), o que nos leva à segunda definição de
‘idade’, apresentada por Lu. Ela se refere a uma noção de idade cronológica (baseada
em um sistema de datação) que, por sua vez, é o modo pelo qual se realiza a regulação
estatal do curso da vida. Trata-se, portanto, de uma concepção legal de idade,
caracterizada por um impedimento legal de auto-gestão, que pode ser substituída pelo
termo ‘menoridade’.
Vale destacar ainda que, na maioria dos argumentos, o problema da idade o é
construído em termos absolutos, mas relacionais: soma-se ao elemento ‘idade’ o fator
‘diferença de idade’ entre Ricardo e Raquel, seja no sentido ‘natural’ (‘fases
diferentes da vida’) ou no sentido ‘legal’ (maioridade/menoridade). Como aponta
Bourdieu (1983: 113), somos sempre o jovem ou velho de alguém. É por isto que os
cortes, sejam em classes de idade ou em gerações, variam inteiramente e são objeto de
manipulações”.
A fim de destacar a heterogeneidade entre o sentido ‘natural’ e o sentido legal do
termo, os argumentos que enfatizam a categoria ‘idade’ de acordo com a segunda
definição serão incluídos no próximo tópico ‘menoridade legal’. Apresento neste
tópico apenas os discursos que privilegiam o primeiro sentido. Apesar de as duas
noções estarem intimamente articuladas o impedimento legal se justifica a partir de
uma pressuposição de uma incapacidade ‘natural–, elas não se confundem nas falas
dos entrevistados.
Claudinha, amiga de Raquel, diz que achou “errado por causa da diferença de
idade, um absurdo”. Observa-se que, na fala, a conduta o é apenas moralmente
condenada, mas vista como ‘absurda’. O que ocorre é que, quando o fator ‘idade’ está
associado a uma concepção naturalizada do termo, a conduta é entendida como um
atentado, simultaneamente, às leis da sociedade e da natureza, portanto, como algo
que extrapola os limites não da lei e/ou da moral, mas das classificações e da
inteligibilidade humana. Sendo assim, Ricardo pode ser considerado não apenas um
37
A tipologia utilizada pela autora para denominar as diferentes formas de periodização da vida é
baseada nas formulações de Fortes, M, em “Age Generation and social structure”. In: Kertzer, D. &
Keith, J. (eds). Age and anthropological theory. Ithaca, Cornell University Press, 1984.
46
desviante, mas um anormal, no sentido Foucaultiano
38
(2001), como se pode verificar
pela alternância de categorias extremas de acusação utilizadas para definir o ex-
professor ora como ‘estuprador’ (criminoso), ora como ‘pedófilo’ (doente).
Karen, outra colega que jogava bola com a menina, diz que o normal seria até
uns 18, 20 anos, seria tranqüilo. Mas ele podia ser pai dela. acho meio forçação
de barra!” Essa opinião é compartilhada por Mário, outro amigo de Raquel, do
futebol: “se tivesse acontecido isso com uma pessoa da idade dela, eu acho que não
teria problema. Ou até cinco anos mais velho, tranqüilo. Pô, mas 20 anos mais velho,
né!? (risos)”. Paulinho, professor da escolinha, diz que não acha ‘errado’. Nos termos
dele: “eu acho mais estranho do que errado”, afirma, referindo-se à diferença de
idade. Perguntei qual era o problema e ele me respondeu: “muito mais velho, podia
ser pai”.
Emerge, portanto, nos argumentos que enfatizam que Ricardo poderia ser pai de
Raquel, um terceiro modo de cronologização da vida: a geração. “A noção de
geração seria construída relacionalmente, por oposição, mais que por aproximação”
(Castro, 2005: 22). A ênfase é, portanto, nas distinções das posições e das
experiências de cada um. Segundo Debert (1998: 60), a noção de idade geracional é o
princípio organizador fundamental das relações de família e de parentesco, mas não se
restringem a elas. A autora afirma que geração refere-se às pessoas que vivenciaram
determinados eventos que definem trajetórias passadas e futuras (Debert, 1998: 60).
Para Rosângela, gerente da escolinha, o principal fator é a ‘idade’, “porque mesmo
se ele tivesse conhecido uma menina na noite, ainda assim, seria mais nova que ele”.
Segunda ela, a idade está associada a uma noção de ‘responsabilidade’: “você chega
numa idade em que a razão tem que pesar um pouco mais”. Rosângela considera que
a constituição da responsabilidade está associada ao desenvolvimento da capacidade
de ‘auto-controle’, que têm uma dimensão ‘orgânica’ que se transforma de acordo
com a ‘idade’:
É uma idade em que você está acabando sua formação, você tem todo um
metabolismo, uma parte física, orgânica atuando nisso. Aos 30 anos você não
tem mais. Lógico que você tem desejo, mas existe uma diferença sim. É provado
isso. Então, acho que é muito mais difícil de dois jovens de 16 anos se segurarem
do que uma menina de 15 e um cara de 30. O cara tem que pensar duas vezes!
38
Segundo Foucault (2001: 71), o “anormal é no fundo um monstro cotidiano, um monstro banalizado
(...), algo como um monstro pálido”. O mostro’ é a figura que condensa as modalidades mais extremas
de anomalia. Diferentemente do desviante, que está previsto na lei, o monstro não está, é infração fora
da lei. Está inserido em um domínio jurídico-biológico. É um fenômeno extremo e raro. O monstro
combina o impossível e o proibido, transgredindo os limites não só da lei, mas da classificação.
47
Nesse sentido, Rosângela acha que eles estão em ‘fases muito diferentes’: você
acha que pode um monte de coisa aos 13, 15 anos, mas não tem preparo para aquilo.
Quando acontecem as coisas, a tua cabeça não está preparada para aquilo, pra um
namoro com um cara muito mais velho” afirma ela, baseada na sua experiência
pessoal de vida (diz que sabe como é porque já teve essa idade) e de mãe de uma
menina com a mesma idade que Raquel.
Além da ‘responsabilidade’, a idade é associada também a idéia de ‘experiência’.
Nos termos de Mário: “o homem vai ter toda uma experiência e ela não conhece nada,
sabe?”. E diz que isso, inclusive, compromete a reputação de Raquel.
Mário: Por ser garoto mais velho, acaba todo mundo achando que a garota é
piranha.
Eu: Mas por que as pessoas acham que com mais velho seria mais piranha?
Mário: Que sempre o cara tem mais experiência... E acabam achando que faz
mais coisa do que faz com um garoto da mesma idade, que não tem experiência e
nem a garota tem experiência também. acaba todo mundo achando que faz
mais coisa do que o normal.
Por fim, a idade é associada à idéia de ‘maturidade’ que interfere na personalidade
como um todo. A ‘adolescência’, enquanto ‘fase da vida’, é definida, por um lado, por
suas especificidades, como as ‘transformações orgânicas’ destacadas por Rosângela -
que são identificadas no discurso científico como causas biológicas para
características de temperamento como rebeldia, descontrole etc e, por outro, como
um período de borramento de fronteiras e de transição, marcado por contradições e
incoerências entre aparência, conduta, discurso etc, como define Ricardo:
É adolescente, vai ter atitudes de adulto e vai ter atitudes de criança. Adolescente
pra mim é aquele que tem atitudes de criança e adulto misturadas, vira
adolescente. Fala como um adulto, mas age como criança, muitas vezes. Tem o
discurso do adulto, um discurso bonito, que faz e acontece, mas na hora das
atitudes, no fundo, é uma criança. Foi o que aconteceu com ela.
Sendo assim, o ‘adolescente’ não é visto nem como criança, mas também não é
considerado sujeito pleno, ou seja, dotado de capacidade de discernimento, livre
escolha e pleno exercício da racionalidade (Vianna, 2002: 8). Esse borramento de
fronteiras, talvez, explique também o dilema ilustrado na fala de Janaína:
Se a aluna tivesse mais ou menos a mesma idade, ela saberia muito bem o que
estava fazendo, mas a menina é muito mais nova... Mas eu não sei, eu to meio
confusa sobre isso... Da mesma forma que ela era muito mais nova e não sabia
direito o que ela tava fazendo, eu acho que ela sabia, sim, o que ela tava fazendo!
Ela tem 15 anos, uma menina de 15 anos não é inocente...
48
Claudinha, amiga de Raquel, diz: eu acho que não é comum as pessoas mais
velhas saírem com as mais novas porque são diferentes, se comportam diferente”. É
justamente por essa expectativa de que exista uma ‘diferença de personalidade’ entre
o‘adulto’ e o ‘adolescente’ que Ricardo se considera antes um ‘doente’ do que um
‘transgressor’:
Minha parte doentia o é nem eu ter ficado, mas é a minha personalidade ter
encaixado com a personalidade dela. Isso pra mim é que eu acho errado. Como
é que ela se diverte comigo e eu me divirto com ela? Como é que eu sento e
converso com ela e ela senta e conversa comigo? Como é que é bom isso, por que
é que se encaixa? Por que é que eu não traí com uma mulher de 30 anos de
idade? Era muito mais natural que a minha personalidade se encaixasse com a
personalidade de uma pessoa de 30. Ou, eu sou um cara muito bobo, muito
criança, então eu acho que a minha personalidade até se encaixa com pessoas
um pouco mais novas do que eu, mas o tanto (risos). Então, essa foi a parte
que eu acho que eu transgredi: por que eu com 33 anos de idade, por que a
minha personalidade foi encaixar com aquela menina? Era o meio de trabalho
que eu vivia? Era porque a maioria das pessoas que estava ao meu lado tinha
essa idade, era isso? Não sei.
Fator 3: Menoridade legal
Menores são aquelas pessoas compreendidas como incapazes (ou relativamente
incapazes) de responderem legalmente por seus atos de forma integral. Como destaca
Vianna (2002), enquanto os termos ‘criança’ e ‘adolescente’ remetem a
representações referidas a indivíduos (ou semi-indivíduos) compreendidos em uma
certa faixa etária, o termo ‘menor’ enfatiza a posição desses indivíduos em termos
legais ou de autoridade. Nos termos da autora: menoridade imediatamente evoca
uma relação com a maioridade, seu contraponto e com um tipo específico de
regulação social, vindo do universo jurídico” (Vianna, 2002: 6).
Cela, amiga de Janaína, destaca uma das dimensões cruciais da diferença entre
‘maioridade’ e ‘menoridade’, que é a questão da ‘imputabilidade’, que pode ser
definida pela capacidade de uma pessoa responder legalmente (ou, no caso,
moralmente) por seus atos. Segundo ela:
o fato de você ser maior de idade, saber que você... Porque ele sabia que a
culpa ia ser toda dele... Porque iam falar o que dessa menina? Ah não, porque a
garota de 15 anos que quis dar pra ele, ela que abriu as pernas pra ele... Não!
Ele tinha consciência que ele que ia ser linchado, ele que ia ser acusado, ele que
ia ser tomado como o cara que deu bebida...
A ‘idade é um dos critérios mais eficazes para justificar a tutela legal de
‘menores’, uma vez que é uma categoria fortemente naturalizada, como vimos no
tópico acima. No entanto, a definição de uma idade específica que vai estar associada
49
a algum tipo de ‘menoridade (no sentido de incapacidade legal) é objeto de
controvérsias, especialmente quando se reconhece uma mudança de costumes.
Segundo Rosângela:
Você pode achar que na sociedade de hoje, uma menina de 15 anos que sai pra
boate e volta às 6 horas da manhã pra casa, você fala, passa a ser normal que
isso aconteça com ela. Mas existe uma lei. Se essa lei certa ou errada, aí
são outras implicações. Agora, a gente vive numa sociedade onde existem
convenções, existem regras.
A partir disso, pode aparecer uma divergência entre as normas legais (teoria) e os
costumes (prática), de modos que as moralidades podem estar situadas ora de um
lado, ora de outro e ora na interface. É nesse sentido que Cauã pode afirmar que acha
que é errado na lei, no ‘contexto teórico’, diz ele, mas não na prática:
no papel... Diante da lei é errado. Mas, na prática, não sei qual o erro dele...
Pela lei, como tem o negócio da maioridade, é que se torna mais grave. Porque a
lei diz que a maioridade é completada com 18. Por isso que ficou esse alarde
todo. E do cara ser professor dela.
Fator 4. Traição aos pais
Para os ‘maiores de idade’, como vimos acima, a lei é uma referência importante
para avaliação e regulação da conduta (a pelas conseqüências práticas que eles
podem sofrer ao infringir uma norma legal). Para os ‘menores’, por sua vez, a
principal instância reguladora é a família, os pais. Na fala dos três amigos de Raquel
que entrevistei (todos com 14 anos), o principal problema destacado foi o casal ter
escondido o relacionamento dos pais (em especial, da mãe) da ‘menor’.
Eu: A seu ver, o que foi mais errado na situação?
Karen: Esconder dos pais. Se você for menor, os seus pais têm que concordar...
Eu: Por que?
Karen: Porque você é sustentada. Qualquer coisa que eu faça eu acho que eu
tenho que falar com a minha mãe. Não qualquer coisa pequena, mas eu devo
satisfação à minha mãe. Ela tem que saber com quem eu estou namorando
porque ela paga minhas contas, ela faz tudo, ela é minha mãe. O mínimo de
gratidão que você tem que ter por ela ter te criado a vida inteira é contar as
coisas pra ela. Se ela tivesse contado para os pais não teria tido tanta polêmica.
Ao estudar o processo de iniciação sexual e afetiva entre jovens, Brandão (2004:
63) afirma que, com o prolongamento dos estudos e o adiamento do início da vida
profissional, é possível identificar cada vez mais um “descompasso entre duas
dimensões fundamentais do processo de individualização: a autonomia, compreendida
como autodeterminação pessoal, e a independência, concebida como auto-suficiência
econômica”. Segundo a autora, nesse contexto, a sexualidade é um território
50
privilegiado para a demarcação de uma esfera privada e, portanto, para o exercício da
autonomia juvenil na relação com os pais. No entanto, nas falas dos jovens
entrevistados, esse exercício da autonomia parece ficar comprometido quando se trata
de uma relação fora dos padrões de normalidade socialmente aceitos.
Os padrões morais vigentes no meio social em que o escândalo aconteceu podem
ser identificados na fala de João, dono da escolinha: “acho que a sociedade da zona
sul vai sempre condenar. Nosso meio é muito conservador. Não sei se um dia a
diferença de idade vai quebrar essa barreira e conquistar esse espaço ético-moral”.
Ou, nos termos de Karen, ex-colega de Raquel na escolinha: é uma visão que a
sociedade implanta na gente mesmo. Eu acho que eu não teria tanto problema assim,
mas acho que todo mundo olha meio de rabo. Acho que eles iriam sofrer preconceito,
bastante”.
Os jovens não se mostram tão rígidos em relação a esses padrões, mas
reconhecem critérios de legitimidade e de autonomia diferenciados quando a relação
se entre pares e quando se trata de uma relação com tanta assimetria de idade
quanto à de Ricardo e Raquel. Claudinha diz que “não é errado, é raro. É difícil a
sociedade aceitar a diferença. Pros pais seria difícil se realmente tivesse, digamos
assim, acontecido do jeito certo”. Segundo Mário, poderia ‘ter rolado’, mas desde que
com o consentimento da mãe e com uma intenção de compromisso: “se fosse da
mesma idade não teria problema, mas sendo mais velho, deveria ter conversado com a
mãe: tô afim da sua filha, queria que a gente namorasse” – diz ele. A fala de
Claudinha também sugere essa mesma idéia e considera que ter feito tudo às
escondidas só aumenta a desconfiança de que as ‘intenções não eram boas’:
Eu acho que se ele tivesse uma intenção boa, ele teria, pelo menos, que tentar
falar com a mãe dela. Mas o fazer tudo às escondidas, como ela me disse que
ele fazia. (...) Se ele quisesse alguma coisa, antes de ter acontecido, ele teria ido
falar com a mãe dela. Foi tão escondido que, pro lado deles, só piorou por causa
disso, quando descobriram. (...) Tem que fazer uma coisa direita e não assim,
escondido, porque todo mundo vai achar estranho... Ué, tem que assumir!
Fator 5: Amor
Segundo Douglas (1976: 21), “o que é limpo em relação a uma coisa pode ser sujo
em relação à outra e vice-versa. O idioma de poluição adequa-se a uma álgebra
complexa que leva em consideração as variáveis de cada contexto”. Sendo assim, do
mesmo modo que existem alguns fatores agravantes no processo de construção e de
avaliação de uma transgressão moral e/ou legal, existem também elementos
51
atenuantes, que diminuem a gravidade do problema, e elementos purificadores, que
até mesmo anulam quaisquer efeitos poluidores que uma conduta possa ter. No caso
em análise, o ‘amor’ (que pode ser percebido a partir da existência ou da intenção de
um relacionamento estável) aparece ora como um fator central para construção do
problema pelas meninas, em oposição ao ‘interesse exclusivamente sexual’; ora como
elemento atenuante ou purificador do problema da ‘diferença de idade’.
Como destaca Fonseca (1995: 69), “os sentimentos não o forças naturais, mas,
sim, categorias culturais”. A autora sublinha que nossa maneira de sentir e de amar
está ligada à nossa maneira historicamente determinada de pensar o sujeito e construir
a noção de pessoa. É importante notar, então, que, na fala dos entrevistados, vigora
um ideal de conjugalidade baseado na ética do ‘amor romântico’, segundo a qual as
escolhas e os desejos dos indivíduos devem ser soberanos na definição do parceiro
afetivo-sexual. Nos termos de Castro e Araújo (1977: 132), as relações sociais em que
predomina o componente afetivo ou emocional estão associadas à idéia de escolha ou
opção individual, em oposição às relações marcadas pela obrigatoriedade, sancionadas
por códigos exteriores ao indivíduo. Além disso, observa-se que a relação amorosa
estável (definida como uma estilística da existência a dois que é marcada por afeição,
apego e reciprocidade) é entendida pelos entrevistados como o lócus privilegiado para
o exercício da sexualidade, principalmente, para as meninas. Nos termos de Foucault
(1985), o mesmo movimento deve levar ao acoplamento da existência e a junção dos
corpos.
Para as amigas de Raquel, o ‘amor’ é justamente a questão central do drama. E a
reciprocidade aparece, portanto, como elemento crucial
39
. “A dúvida cruel é que até
hoje ninguém sabe se ele realmente gostava dela” sintetiza Paulinha. Para outra
amiga, Karen, esse também é um fator muito importante: “eu acho que a Raquel
gostava dele. O Ricardo eu não sei, porque uma hora ele falava que amava ela, outra
hora ele não falava”. Possivelmente, a mesmo para Raquel esse era o problema
fundamental, pois segundo uma de suas melhores amigas, Paulinha, “ela o amava e
ficou mal porque se sentiu enganada. A mãe dela falou que ele tava enganando ela,
todo mundo começou a falar isso... Que ele é um idiota, um pedófilo, que fez de
propósito, que ia só comer ela e ir embora... Ela ficou arrasada!”.
39
Referindo-se às formulações de Simmel, Heilborn afirma que “o objetivo do amor moderno é sua
reciprocidade, em relação a que tudo o mais parece ser secundário” (Heilborn, 1992: 96/97).
52
Paulinha problematiza a relação entre Raquel e Ricardo como qualquer outro
romance que tenha terminado em uma desilusão amorosa:
Eu não sei se ele gostava dela, eu acho que não. Mas ela me disse que
depois de tudo ele ainda correu atrás dela. Ainda tentou ligar pra ela, ela
não atendia... Foi muito difícil pra ela, porque ela ainda gostava muito
dele. Ela era apaixonada por ele (...).Sei lá, é uma coisa estranha. Eu fico
muito na dúvida porque ele era um cara muito gente boa, não entra na
minha cabeça que ele tenha feito isso de propósito só pra comer ela...
Se este é claramente um fator central para as meninas, ele não é objeto de
questionamento exclusivo delas. Para Mário, também amigo de Raquel, a presença ou
ausência de uma relação afetiva e de compromisso estável funciona como elemento
purificador ou poluidor na relação sexual. “Eu acho que você faz com quem você
gosta, independente da idade. Mas eles o estavam nem namorando, nem ficando
sério... Acho que pega mal pela situação que aconteceu, de eles não estarem nem
namorando... Pô, ele levou ela pro motel, é estranho...” – diz ele.
Em quase todos os discursos no qual aparece, o ‘amor’ purifica o problema da
‘diferença de idade’. “Acho que se gosta, tudo bem, não tem essa coisa de idade”
afirma Mário. Claudinha também acha que “não tem certo e nem errado se a pessoa
gosta mesmo”. Essa visão romântica dominante pode ser sintetizada na seguinte
declaração de Karen: “se você gosta da pessoa, seja feliz! Não sei se foi o caso dele,
mas se ele gostasse dela de verdade e quisesse namorar, eu acho que não teria nenhum
impedimento. Claro que é uma outra fase da vida, mas, cara, é amor!”.
Como destacam Castro e Araújo (1977: 131), “o amor é visto como uma relação
entre indivíduos, no sentido de seres despidos de qualquer referência ao mundo
social”. Segundo os autores, trata-se de uma oposição clássica na antropologia entre
“eu individual” (sede de sentimentos e emoções) e o “eu social” (feixe de direitos e
deveres). Apesar de as relações de afeto, como se pode verificar na análise, não
serem marcadas por uma ausência absoluta de regras; no campo do comportamento
sexual, quando o ‘amor’ está presente, as regras sociais parecem ser afrouxadas e o
valor que predomina é o das emoções e o das escolhas individuais. No entanto, vale
lembrar que mesmo os desejos e as emoções individuais o se opõem ao poder, mas
sim estão inscritos e são constituídos no interior de um feixe de relações de força e
servem de ponto de apoio às mais variadas estratégias de poder, como enfatiza
Foucault (1988).
53
Observou-se que os jovens e, em especial, as meninas, dão uma ênfase especial ao
fator ‘amor’. No entanto, essa visão parece ser compartilhada por quase todos e
apareceu em diferentes discursos. Rosângela, por exemplo, considera o ‘amor’ como
um fator atenuante: quando você coloca o rótulo de que está namorando, você parte
do princípio que existe uma relação afetiva também. Então as coisas eu acho que
passam, elas ficam menos... não é que afronte menos, mas passa...” – diz ela.
Paulinho, professor da escolinha, considera o ‘namoro sério’ um elemento
purificador não apenas do problema da ‘diferença de idade’, mas também do fator ‘ser
aluna’, ao comentar sobre a ex-namorada de Ricardo. Segundo Paulinho, ela também
era muito mais nova (atualmente, ela tem 21, mas, quando começaram a namorar, ela
tinha em torno de 15) e também tinha sido aluna.
Aquela que ele tava namorando foi aluna dele. Mas, apesar de ter sido aluna, foi
um relacionamento que durou cinco, seis anos. Tem gente que julga a atitude de
ele ter ficado com ela quando ela era mais nova, mas ele teve um
relacionamento, ele gostou da menina, ele conhecia a família dela. Acho que isso
não é errado. Eu não vejo nada de errado nisso.
Ricardo também diferencia seu caso com Raquel da relação que teve com a ex-
namorada:
A minha namorada era dez anos mais nova do que eu. Mas foi uma pessoa que eu
namorei durante seis anos. Quando a gente começou, ela tinha uns 15 pra 16
anos e eu uns 26, 27, 28, 29, por aí. Quando a gente começou, ela era menor,
também me assustei. Mas como eu fiquei com ela durante seis anos, eu falei,
cara, tranqüilo... E eu também nunca reparei isso, porque ela era uma pessoa
que morava sozinha tempos, porque os pais não moravam aqui. Então era
uma pessoa que com 16 anos trabalhava pra pagar o celular, a boate, o almoço...
Não foi uma aventura. A gente até se conheceu eu trabalhando, mas não foi nesse
meio que a gente começou nada. Foi muito tempo depois, a gente se encontrando
numa boate, a gente acabou ficando e acabou virando uma relação maravilhosa,
foi a maior relação da minha vida, infelizmente destruída por um erro.
Observa-se que ele não utiliza apenas o ‘amor’ e a ‘estabilidade da relação’ como
elementos purificadores, como também apresenta outros fatores que justificam seu
sentimento pela ex-namorada, de modo que este não pareça ser fruto de um interesse
doentio por meninas mais novas. Nesse sentido, Ricardo acrescenta ainda que a ex-
namorada estava no seu ambiente: “Ela tava freqüentando os lugares que eu
freqüentava com meus amigos da minha idade, as amigas dela estavam se
relacionando com as pessoas que eu me relacionava... Então, foi mais sutil,
não achei
que eu estava transgredindo”.
54
Outros fatores: virgindade, traição, padrões de normalidade e bebida
Apresento aqui outros fatores que, apesar de terem sido mencionados com menos
freqüência e ênfase do que os demais, também apareceram como atenuantes ou
agravantes nas falas dos entrevistados. O primeiro deles é a ‘virgindade’ de Raquel,
que é considerada um agravante do problema para as meninas. De acordo com os
resultados da Pesquisa Gravad, no Brasil, “enquanto 86% das mulheres vivem sua
primeira experiência com um namorado e 4% com seu marido, apenas 45% dos
homens a conhecem com uma namorada” (Heilborn, 2006: 177). Essa dupla moral
sexual que atribui um valor especial à virgindade feminina também aparece no meu
universo de pesquisa: “a menina acabou perdendo a virgindade e não era o momento,
não era a hora, não era a pessoa certa... Se não fosse mais virgem, se soubesse
como é, pra mim não teria tanto problema ser um cara de 30 anos” – afirma Lu, amiga
de Janaína. As amigas de Raquel também fizeram referência a esse fator. “Imagina:
perder a virgindade com o professor, que bizarro!” diz Karen, que acrescenta ainda
que, no meio delas, “garota de 14, 15 anos, se for transar, é com namorado”. Segundo
Claudinha, “primeira vez tinha que ser uma coisa, assim, especial”.
Outro fator que aparece como agravante, no caso, é a ‘traição’ (infidelidade), uma
vez que Ricardo tinha uma namorada, com quem ele morava junto. “Ele também tava
namorando muito tempo, casado... Acho que foi sacanagem dele com a mulher” –
afirma rio, amigo de Raquel e ex-aluno de Ricardo. Por vezes, esse fator aparece
como o principal problema. Amanda, professora da escolinha, acha que o errado foi
mais o ‘chifre’ (‘traição’). Essa visão que considera a ‘traição’ como o cerne do
problema está associada a um ‘padrão de normalidade’ que serve como atenuante do
problema da ‘diferença de idade’, como destaca Paulinho, professor da escolinha:
“como hoje em dia tá tão normal isso, você vê cada dia que passa pessoas mais velhas
com pessoas mais novas, dentro disso, eu acho que o foi uma coisa pra ter essa
repercussão toda que teve”.
O consumo de bebida alcoólica, que aparece no jornal como um agravante do
problema - o professor teria embebedado a ‘menor’ -, para Ricardo, teria sido um
atenuante, uma vez que o álcool serviria como desculpa para a perda do ‘auto-
controle’. Segundo o ex-professor, o fato de terem feito tudo em estado de ‘plena
consciência’ torna o problema ainda mais grave. Ele diz que agiu com ‘tesão’, mas
que nem ele e nem ela estavam bêbados.
55
Pior de tudo é que tava todo mundo em consciência do que tava fazendo,
principalmente eu. Isso pra mim é péssimo. Antes eu tivesse me embebedado, eu
poderia falar: eu fiz merda, eu exagerei na bebida, eu fiz aquilo fora de mim.
Pelo menos as pessoas não poderiam dizer que eu tinha consciência do que eu
tava fazendo. Mas, infelizmente, eu e ela tínhamos plena consciência do que
estávamos fazendo.
Nesse capítulo, dediquei-me ao mapeamento e à análise dos fatores que são
acionados e combinados para construção do problema: ser professor, diferença de
idade, menoridade, traição aos pais, não estar namorando, virgindade, infidelidade,
padrões de normalidade e bebida. No próximo capítulo, apresento as diferentes
maneiras de lidar com o problema ou as diversas estratégias de controle social
identificadas no caso: manipulação de culpa, justificativas, estigmas e reputações e
jogos morais acusatórios em geral.
56
Capítulo IV
Estratégias de controle social
4.1 A culpa é de quem?
Para que um indivíduo seja considerado culpado em uma transgressão legal ou
moral, não basta que seja reconhecida a sua participação em um ato considerado
condenável (que pode ser construído de diferentes modos, como vimos acima). A
culpabilidade fundamenta-se também no reconhecimento de que o agente tinha (ou
deveria ter) conhecimento da natureza transgressora do gesto, controle sobre sua
própria conduta e livre determinação da vontade em uma situação específica. Em
termos jurídicos, diz-se que o princípio da culpabilidade proíbe punir pessoas que não
preenchem os requisitos do ‘juízo de reprovação’, a saber: aqueles considerados
incapazes de saber o que fazem (inimputáveis), aqueles que não têm conhecimento do
que fizeram (ausência de consciência da antijuricidade), aqueles que não têm poder
concreto de não fazer o que fizeram (inexigibilidade de comportamento diverso)
(Santos, 2006: 24). Sendo assim, o processo de culpabilização inclui, além da
condenação de determinado ato, a avaliação das pessoas que o praticaram e do
contexto social no qual aconteceu.
O diálogo entre Janaína e sua amiga Cela é um bom ponto de partida para analisar
como se deu, no caso, os jogos de atribuição de culpa:
JANAÍNA
:
Por que sempre se diz que um cara de 30 anos comeu a Raquel?
Ninguém fala que uma menina de 15 anos deu pra um professor de 30! Ninguém
fala isso!
CELA
:
Porque é muito mais impacto dizer assim...
O que dá mais marketing pro
jornal? O jornal passou que a menina é injustiçada e o cara pedófilo. A mídia
prefere usar a imagem vitimizada da menininha inocente que foi assediada.
JANAÍNA
:
Mas se você pensar bem na história, quem tem mais culpa no
cartório é ela... A menina quis, provocou, ela volta pra casa chorando e quem
paga o pato é ele! Ela também quis! Quando um não quer, dois o fazem... Se
ela não quisesse, se ele tivesse feito a força, eu ficaria chocada, seria um filho da
puta. Mas ela quis, ela foi pra Barra porque ela quis, bebeu porque quis, deu em
cima dele porque quis.
CELA: Acho que os dois foram filhos da puta!
JANAÍNA: Eu acho que ela foi uma filha de uma puta a partir do momento em
que ela virou pro pai e disse: foi aquele cara ali que me comeu! Que me comeu?
Pô, que eu dei, né!?
O primeiro passo para a culpabilização, como se pode notar na fala de Janaína, é o
reconhecimento da capacidade de agência e de vontade. A fala de Cela, por sua vez,
faz referência às estratégias para o sucesso da denúncia pública. Como foi discutido
57
anteriormente, a denúncia tem mais chances de ser bem sucedida quando é associada
a uma causa pré-existente reconhecida como coletiva (Boltanski, 1984). Além disso,
observa-se que o processo de culpabilização, de um lado, é, em geral, concomitante,
paralelo e complementar a um processo de vitimização, do outro. Se, como afirma
Cela, para a construção midiática da notícia, a menina é a vítima privilegiada na
história, para aqueles que conhecem pessoalmente Ricardo, ele foi considerado o mais
abalado. Segundo Douglas (1976: 164), é característico das transgressões morais que
o próprio transgressor seja considerado vítima de seu ato ou que alguma vítima
inocente sofra o ataque do perigo.
A noção ‘vítima’ aparece nos diferentes discursos dos entrevistados como a
pessoa que sofre um dano pessoal devido à ação de outrem. Sendo assim, Ricardo é,
por vezes, considerado ‘vítima’ da menina que o teria ‘provocado’ e, depois,
denunciado aos pais, como argumenta Janaína. A gerente da escolinha comenta
também que muitas pessoas defendiam o ex-professor, dizendo: “ah, essas meninas
não são fáceis, elas o mole demais, elas correm atrás mesmo, elas se oferecem”.
Segundo Rosângela, alguns, que gostavam muito dele, não dão muito papo pra ela
porque acham que ela vacilou, que quem fez mal pra ele foi ela, que acabou com a
vida dele”. No entanto, em outras falas ele aparece como o principal responsável por
seus próprios danos, como Ricardo mesmo coloca:
Você esconversando com uma pessoa extremamente perturbada em relação a
isso. Até hoje eu faço análise, estou procurando algum tipo de terapia um pouco
mais forte, não sei se psiquiatria... Porque eu sou muito desmotivado, muito
deprimido em relação a isso. Porque quando isso veio à tona, eu destruí a minha
vida.
Como se pode notar, ao fazer referência a uma autodestruição, o ex-professor
atribui a si a responsabilidade pela conduta. Ele conta ainda que “amigos vieram falar
que qualquer um faria o que eu fiz, se tivesse acontecido o que aconteceu comigo, da
maneira que aconteceu. Eu ainda acho que a responsabilidade é toda minha, que eu
que deveria ter tido o freio pra evitar o que aconteceu”. Ricardo utiliza também outros
termos para a atribuição de culpa a si, como: “cometi uma burrice, um erro enorme,
uma coisa absurda. Eu acho, às vezes, que eu mereço ser massacrado”. Por fim, ele
afirma: “o erro é meu, o freio é meu. Ela pode ter dado mole para dez professores, o
que vai é o que tá errado, não pode”.
Assim como no discurso de Ricardo, é possível observar em outras diferentes falas
que, apesar de a vontade recíproca ser amplamente reconhecida, o elemento que
58
predomina no processo de atribuição de culpa é a relação legal entre ‘maior’ e
‘menor’. “Por mais que eu ache que a menina deu mole, que a menina queria isso, eu
não consigo justificar o que ele fez” – afirma Rosângela. “Eu acho que a culpa não foi
só dele, foi dela também. Mas como ele era mais velho, acabou sobrando mais pra ele.
E ela ficou de vítima” diz Mário. Quem de fora acha que a culpa é dele, ela
ficou mais de vítima. Até porque ele é maior de idade, ela é menor. O maior sempre
leva a culpa, né!?” argumenta Claudinha. “É o que eu falo, o bicho tem que ser
burro pra ir numa empreitada dessas, porque normalmente vai dar merda e ele vai se
foder” – conclui João, dono da escolinha.
Ou seja, Ricardo, enquanto ‘professor’ e ‘maior’, é considerado alguém que ocupa
uma posição de autoridade e de responsabilidade em relação à ‘aluna’ ‘menor’, de
modo que, ainda que a ‘iniciativa’ tenha sido dela, o ‘freio’ deveria ser dele. Segundo
Karen, amiga de Raquel da escolinha, “é aquela parada, todo mundo fica falando que
ela era menor de idade, novinha, não sabia o que tava fazendo, que foi seduzida. E ele
não. Ele é o homem de 33 anos que seduziu a aluna e queria se aproveitar da
garotinha mais nova e inocente”. Lu, amiga de Janaína, afirma que “o adulto tem
mais responsabilidade”. Janaína concorda que ele tinha a responsabilidade de não
aceitar, de dar um chega pra lá nela”.
É interessante perceber que esses discursos morais que enfatizam a culpa do
‘maior’ com muita clareza são antes baseados em um dever ser do que numa análise
da situação concreta. Quando se voltam para o caso específico, as avaliações são
muito mais fluidas e a definição de um culpado é menos precisa. Essa imprecisão no
processo de atribuição de culpa pode ser percebida, por exemplo, na fala de Karen:
Todo mundo ficava falando que sei quem foi errado. Ou o Ricardo que tava
errado, que ele é um pedófilo, seduziu a Raquel... Ou a Raquel é uma puta que
ficava dando mole pro professor. Todo mundo ficava vendo quem era o culpado,
mas eu não via quem era o culpado. Eu via como... aconteceu! Rolou! Quando
eles quiseram ficar juntos, com certeza não pensaram: ah, porque eu posso ser
preso ou a minha mãe vai me matar.
Paulinho, professor da escolinha, também acha que “aconteceu naturalmente uma
aproximação dos dois, que não foi nada forçado”. Assim, parece que Paulinho e
Karen não reconhecem, no caso, uma transgressão, que é um dos fundamentos para a
atribuição de culpa. Mário, amigo de Raquel e ex-aluno de Ricardo, reconhece a
agência e a vontade da amiga e, por isso, não concorda que a culpa possa ser atribuída
apenas a Ricardo: “a culpa não foi só dele. Parece até que ela não quis. Parece que foi
59
obrigada! Todo mundo sabe que ela quis” – afirma. Apesar de reconhecer uma
transgressão, ele não vê uma vítima, de um lado, e um culpado, de outro, de modo que
ele utiliza o termo ‘culpa’ para co-responsabilizar os dois lados pelo que aconteceu.
Paulinha, outra amiga de Raquel da escolinha, compartilha com rio a visão de
que os dois são co-responsáveis pela relação. No entanto, ela parece mais dividida
sobre o reconhecimento ou o da transgressão, o que está associado às suas dúvidas
sobre as intenções de Ricardo.
Tinha gente que pensava que a culpa era dela que deixou. Tinha gente que
pensava que ele que era o monstro. Aqui na escolinha, a gente tá até hoje
dividido. A gente não sabe direito o que aconteceu. Mas eu acho que teve
participação dos dois lados, que os dois lados queriam. Mas eu não consigo me
decidir se ela é a vitima ou ele realmente planejou tudo e ele é realmente um
criminoso. Ela (Raquel) muda de opinião, que nem eu. Porque chega alguém: e
se ele fosse legal mesmo? chega a mãe dela: não, ele tava te enganando...
Então, ela também muda de opinião até hoje.
Ou seja, para Paulinha e Raquel (segundo a amiga), a dúvida é se Ricardo estava
afetivamente envolvido, de modo que elas reconheceriam entre eles uma relação de
reciprocidade; ou se ele tinha apenas um interesse sexual na menina, o que a
transformaria em ‘vítima’ e ele em ‘culpado’ pela desilusão amorosa produzida
intencionalmente pelo professor na jovem apaixonada.
4.2 Justificativas baseadas na verdade da situação e na verdade dos sujeitos
Uma das primeiras atitudes que as pessoas têm diante do ‘escândalo’, além de
procurar identificar um culpado pela transgressão, é procurar uma justificativa para o
‘erro’. A maior parte das falas recorre a explicações inspiradas em teorias psicológicas
para justificar a relação entre Ricardo e Raquel. Como destaca Figueira (1985: 7), o
boom das psicologias e em particular da psicanálise no Brasil teve como um de
seus efeitos a constituição de uma cultura psicanalítica (que pode ser definida como
ideologia, visão de mundo, sistema de representações etc) e a decorrente
psicologização de vários setores da vida social. Observa-se, assim, a força do idioma
psi, (traduzido nas falas dos entrevistados como uma certa vulgata psi
40
) enquanto
saber que detém a verdade do sexo e, no sexo, a verdade dos sujeitos (Foucault,
1988).
40
Figueira (1985: 9) afirma que a psicanálise, enquanto teoria, não se confunde com psicologismo, e,
enquanto clínica, não é psicologização, apesar de o psicologismo também produzir efeitos sobre o
próprio campo psicanalítico (teoria, prática e instituições), influenciando a produção de conhecimento
de modo sutil.
60
As justificativas oscilam entre apontar um estado emocional que justifica um ato
isolado (justificativas baseadas na verdade da situação) e um caráter da personalidade
da pessoa que justifica esse desejo particular (justificativas baseadas na verdade dos
sujeitos). Quando se referem a Ricardo, as justificativas baseadas no contexto
situacional estão relacionadas à carência e ao tesão e as justificativas centradas na
estrutura do desejo e da personalidade estão relacionadas a suspeitas de que ele seja
um ‘pedófilo’
41
. Quando se referem a Raquel, as justificativas baseadas na verdade da
situação estão relacionadas à paixão e as justificativas baseadas na verdade dos
sujeitos fazem referência à ‘perturbação mentale à ‘precocidadeda jovem e aos
seus ‘problemas familiares’.
O diálogo abaixo, no qual Janaína e Cela discutem se Ricardo seria ou não um
‘pedófilo’, é útil para pensar a passagem da situação à estrutura do desejo e da
personalidade. Observa-se que elas se apropriam de uma tecnologia de exame do
comportamento que “permite passar do delito à maneira de ser, e de se fazer a
maneira de ser se mostrar como não sendo outra coisa que o próprio delito” (Foucault,
2001: 20).
JANAINA: A gente sabe quem é o Ricardo, a gente sabe que ele não fez isso de
má fé... Ele não é um pedófilo, ele não gosta de criancinha.
CELA: Talvez ele passasse uma idéia do que ele não fosse!
JANAÍNA: Do que ele não foi, e não do que ele é.
CELA: E aí, se pode fazer uma vez pode fazer duas...
JANAÍNA: É verdade, se pode fazer uma vez pode fazer duas...
CELA: Eu acho que ele passou uma idéia muito diferente...
EU: Como assim, que idéia que ele passou?
CELA: Pô, ele passou uma idéia de... de pedófilo! Não tô dizendo que ele é um
pedófilo, mas foi a idéia que ele passou,
ele comeu uma garota de 15 anos
...
EU: Mas o que faria ele ser pedófilo e o que faz ele não ser?
CELA: Um pedófilo faria isso com qualquer uma...
JANAÍNA: Eu acho que pedófilo tem que ter tesão por menininha... Eu acho
muito mais grave, por exemplo, um cara que fica num site de internet falando
com menininha do que ele... Eu sei que ele não é assim!
Ao ‘comer uma garota de 15 anos’, Ricardo não é acusado apenas de ter cometido
um determinado ato reprovável, mas sim passa a ser uma pessoa com personalidade
suspeita. Como destaca Velho (1994: 60), “há acusações que são parciais, porque
ficam no nível de segmentos ou aspectos particulares do comportamento, enquanto
41
Ao longo das problematizações morais sobre o caso que foram apresentadas até aqui, foi possível
observar que o tema da ‘pedofilia’ aparece por diversas vezes na fala dos entrevistados, revelando a
forte influência do saber e do idioma psi na classificação dos comportamentos desviantes e, em
especial, dos desvios sexuais. Nesta parte me dedicarei, finalmente, à análise da construção dessa
categoria em diferentes contextos de utilização.
61
existem outras que contaminam toda a vida dos indivíduos acusados, estigmatizando-
os de forma, talvez, definitiva”. A ‘pedofilia’, enquanto categoria de acusação, está
associada a uma operação epistemológica nativa que possibilita passar dos atos
transgressivos às identidades desviantes, nos termos de Becker (1973), ou dos atos
criminosos aos indivíduos perigosos ou anormais, nos termos de Foucault (2001).
Assim, o que passa a ser objeto de exame e avaliação não é apenas um determinado
tipo conduta, mas uma determinada espécie de pessoa que é fabricada por meio dessa
operação que produz “um duplo psicológico-ético de delito” (Foucault, 2001: 21).
A partir do ‘escândalo’ que fez com que muitas pessoas passassem a ver Ricardo
como ‘pedófilo’, ele mesmo re-significou sua relação com a ex-namorada, também
muito mais nova (atualmente, 21 anos. Tinha aproximadamente 15 quando
começaram), que ele nunca havia entendido como uma conduta ‘transgressora’, como
foi mencionado. Segundo o ex-professor, “quando estourou essa última história
com a minha aluna, eu me assustei: cara, alguma coisa tá errada, porque já é a
segunda vez que eu me relaciono com uma pessoa mais nova, não pode ser normal”.
Esse foi o comentário mais comum entre os entrevistados que conheciam relações
passadas de Ricardo. Rosângela, gerente da escolinha, diz: desse tempo todo que eu
o conheço, ele teve uma namorada que era de idade mais próxima a ele. Todas as
outras eram bem mais novas que ele, diferença de uns dez anos. Na época, ele morava
junto com uma menina que também é mais nova que ele”. Segundo Amanda, amiga e
ex-colega de trabalho de Ricardo, “passou a ser uma coisao normal com o Ricardo,
porque eu conhecia a ex-namorada dele, quando ela tinha 14 anos e ele vinte e
tanto”. João, dono da escolinha, afirma: “o Ricardo tem uma parada com menina mais
nova. Ele tem essa questão que eu não sei se é patológica e que o me cabe julgar
porque eu não sou um profissional de psicologia
42
”. Claudinha, ex-aluna de Ricardo e
amiga de Raquel, comenta que muitas pessoas da escolinha sabiam que era uma
conduta reincidente, o que, por sua vez, produz suspeitas sobre a virtualidade de
repetição contínua:
Ele tinha namorada... E todo mundo ficou sabendo que ele conheceu ela no
futebol quando ela tinha 15 anos. Então, não era a primeira. Então, eu penso: ele
tava acostumado a fazer isso? E, se ele fez isso, será que ele vai querer fazer
alguma coisa comigo? Minha mãe falou que sabia que ele era assim, que olhou
42
Ao apontar aquele que pode delimitar a fronteira entre o normal e o patológico, nota-se, na fala de
João, que mais uma vez a psicologia é reconhecida como o saber que tem a verdade do sexo e dos
sujeitos.
62
pra ele e sabia que não era uma boa pessoa. E meu pai ficou preocupado, quis
saber se ele não tava mais aqui.
Sendo assim, proponho que esses entrevistados tendem a pensar a ‘pedofilia’
como uma carreira desviante, nos termos de Becker (1973). Daí a importância de
enfatizar a reincidência para a construção de Ricardo como ‘pedófilo’. E, no sentido
contrário, o argumento que aponta a excepcionalidade da conduta também pode ser
utilizado para desconstruir o estigma de ‘pedófilo’, como defende Karen, ex-aluna de
Ricardo: “não acho que ele era pedófilo. Porque, senão, ele já teria pegado
43
dez da
escolinha. E pegou só a Raquel”.
Vale destacar que, segundo Becker (1973), um dos passos mais importantes para a
construção de uma carreira desviante - ou seja, para a transformação do desvio em
um padrão estável de comportamento - é a experiência de ser apanhado e
publicamente rotulado como desviante. A mudança mais importante que daí decorre,
de acordo com o autor, é a formação da identidade pública do desviante.
É importante notar também que o valor e o significado das acusações variam
conforme o contexto. Uma acusação pública no jornal ou uma suspeita de um pai ou
uma mãe de alunos da escolinha é muito diferente da maneira que o rótulo aparece
numa brincadeira entre amigos, como revelam os relatos de Ricardo, Amanda e
Paulinho. Segundo Ricardo, quando vêem meninas mais novas na noite, os amigos
ainda mexem com ele. No entanto, ele afirma não se interessar por elas e não se
importar com as brincadeiras: “quando eu entro nessas boates e vejo menina de 15, 16
anos de idade eu não fico assim: isso aqui é um paraíso. Meus amigos brincam
comigo ahoje, me zoam, bem! Mas não me dá nenhuma vontade”. Amanda, que
antes de ser professora da escolinha treinou com Ricardo, também lembra de situações
em que amigos da equipe do futebol tratavam a questão com humor e não como algo
que fosse moralmente censurado pelo grupo: “eu lembro que a gente zoava: aquela ali
tem 17, ta muito velha pra você”. Por fim, Paulinho diferencia o rótulo quando
utilizado em piadas de amigos para se referir a alguém que se relacionou
ocasionalmente com menina mais nova daquilo que ele entende como o ‘verdadeiro’
sentido do termo, que define aquele que ‘realmente’ é ‘pedófilo’:
43
‘Pegar’ é uma gíria utilizada entre os jovens que tem um significado análogo ao ‘ficar’, ou seja,
refere-se a uma relação afetiva e/ou sexual casual, em oposição ao ‘namoro’, que é uma relação estável
e de compromisso.
63
Tem gente que brinca quando um rapaz pega uma menina mais nova: seu
pedófilo! Papa anjo! Mas acho que hoje em dia essa palavra não faz sentido...
Aquele cara que quer saber daquilo, que aceita se for novinha, é um
problema sério. Mas uma coisa que acontece, de repente, pelo momento, não tem
a ver ser chamado de pedófilo. Se não for pessoa vidrada nisso.
A fala de Paulinho ilumina outro aspecto importante do fenômeno de manipulação
dos rótulos acusatórios: a tendência de se produzir novas hierarquias no interior do
próprio estigma. Segundo Goffman (1978: 117/118), “o indivíduo estigmatizado tem
uma tendência a estratificar seus ‘pares’ (...). Ele pode, então, tomar em relação
àqueles que são mais evidentemente estigmatizados (...) as atitudes que os normais
tomam em relação a ele”. O autor descreve uma das formas que esse mecanismo pode
assumir para um recém estigmatizado:
Quando o indivíduo compreende pela primeira vez quem são aqueles que de
agora em diante ele deve aceitar como seus iguais, ele sentirá, pelo menos, uma
certa ambivalência porque estes não só serão pessoas nitidamente estigmatizadas
e, portanto, diferentes da pessoa normal que ele acredita ser, mas também
poderão ter outros atributos que, segundo a sua opinião, dificilmente podem ser
associados ao seu caso. (Goffman, 1978: 46)
É justamente o que faz Ricardo, ao definir a categoria ‘pedófilo’, procurando
diferenciar-se daqueles que ele acredita que o rótulo deva ser aplicado de maneira
legítima. Assim como Paulinho, ele enfatiza a oposição entre o que fez (conduta
excepcional ou ocasional) e o que é (conduta resultante de uma estrutura do desejo
e/ou da personalidade): “tem gente que sabe se relacionar com pessoas 10, 15, 20
anos mais novas. O cara não consegue ver uma menina da idade dele e... Ou o cara
não consegue nem freqüentar lugares que têm pessoas da idade dele. O que não é,
graças a deus, o meu casoafirma Ricardo. Além disso, ele procura diferenciar-se
pelo argumento de que transar com ‘adolescente’ é diferente do que transar com
‘criança’, porque esta não completou o processo de formação da personalidade e não
se comporta como sujeito em uma relação, diferentemente de um ‘adolescente’, que
‘responde’ e ‘toma iniciativas’:
Pra mim, o pedófilo, o doente é aquele que se interessa por criança de 6, 7, 8, 9,
10 anos de idade, porque elas ainda não têm nem personalidade. Então, se ela
no meu meio, se ela fazendo o que faço também, eu não acho que é uma
coisa o doentia. Por exemplo, essa menina, parecia uma pessoa muito
experiente. Ela tomava iniciativa de muitas coisas. Então, eu fico pensando:
uma garota de cinco, dez anos de idade não toma iniciativa de nada, não te
responde. Nem a uma gracinha... Vamos supor que eu achasse bonito azarar
adolescentes. Ela te responde. Uma criança não. Então, eu acho que isso seria
doença.
Uma criança é de uma inocência completa. Eu não acho que, hoje,
64
uma menina de 14, 15 anos de idade seja completamente inocente. Algumas
podem até ser, mas a maioria não é. Então, não acho que isso seja uma coisa tão
doente.... Mas isso demorou a sair da minha cabeça e o que me ajudou foi a
faculdade. Por aqui eu vi, porque são pessoas de 20, 30 anos. Aqui eu vi que eu
não sou um doente, vi que tem pessoas que eu posso me relacionar, achar bonita,
azarar. E eu o tive mais nenhum interesse meu por meninas de 14 anos. Mas
isso, na verdade, eu nunca tive, eu não dava aula pensando nisso, foi uma coisa
que aconteceu. Na hora que acontece, você pensa no pior. Mas isso não foi muito
difícil de tirar da minha cabeça não. Eu sou muito deprimido com o que
aconteceu, mas não com a minha personalidade.
Ricardo introduz no trecho acima o segundo modo de tratar o problema: um ato
que constitui antes um lapso na trajetória do ex-professor do que uma marca que
define a sua estrutura de desejo e de personalidade. Nos termos de Ricardo: com o
tempo eu vendo que eu não sou um doente, que eu não sou um cara interessado
nisso. Sou um cara que se interessou por uma e aconteceu aquele momento ali, aquele
deslize momentâneo”.
O cerne dos argumentos que vão nessa direção não está, portanto, na
problematização do desejo, mas sim do prazer e da estética de seu uso, nos termos de
Foucault (1984). Sendo assim, eles não se fundamentam em justificativas para o ‘erro’
baseadas na verdade dos sujeitos, mas sim naquelas baseadas na verdade da situação:
“eu diria que foi uma exceção, uma menina que surgiu num momento único, que eu
tava na hora errada, no momento errado e aconteceu” – afirma Ricardo. Paulinho, ex-
colega e amigo de Ricardo, enfatiza o ‘impulso sexual masculino’ e a ‘carência’
afetiva de Ricardo naquele momento particular de sua vida:
De repente, pegou o cara num momento que ele precisava de um carinho, ,
fazer o que? Acabou rolando... Na hora, na vontade ali, a gente acaba não
pensando muito nisso, né!? Se ele tivesse pensado um pouco mais não teria feito
não. Homem, carne é fraca... Ele foi muito no impulso mesmo. Às vezes, você
carente, precisando de um carinho e vem uma pessoa que preenchendo a tua
carência, fica difícil, !? você o pensa, às vezes, nem na idade, nem
nada.
Esse mesmo argumento também é utilizado por Ricardo em diversos momentos de
sua fala, como: “foi um erro que eu cometi, num momento da minha vida chato,
atribulado, em relação a amor. Eu tava tendo alguns problemas conjugais e acabei
cometendo esse erro de me relacionar com uma menina de 14 anos, que hoje é uma
coisa que me envergonha”. Em outro momento, ele diz: eu baixei a guarda. Em
virtude do momento que eu tava vivendo na minha relação pessoal. Ela não fez nada
65
diferente do que outras meninas tenham feito. Foi uma coisa assim: sozinho, solidão,
carência, carência, caiu no meu colo.
Além de destacar o seu estado de ‘carência’, o ex-professor também justifica o
‘erro’ fazendo referência a atitudes ‘sedutoras’ da aluna, de modo a argumentar que a
relação foi reciprocamente construída ou, até mesmo, que ela teria exercido um papel
mais ativo. Assim, ao invés de enfatizar as relações de idade, ele destaca as relações
de gênero e o faz de modo que constrói para si uma condição de ‘vulnerabilidade’
(seja por sua condição emocional de ‘carência’; seja porque, como enfatizou Paulinho,
‘homem tem carne fraca’). Ricardo afirma que “foi uma decisão tomada com tesão” e
que não foi nada previamente planejado. Esses elementos podem ser percebidos a
partir da maneira que ele narra o processo que culminou na relação sexual: “tô
sozinho em casa, de bobeira ali na internet, minha namorada saindo de uma maneira
que eu não tava gostando, meio de semana e eu meio desconfiado. E começou uma
brincadeira, você é bonito e tal... Era brincadeira, brincadeira, até que um dia rolou”.
Ele menciona ainda outras atitudes provocadoras de Raquel:
Fiquei uma, fiquei duas, fiquei quatro, fiquei cinco. Um dia falou que não era
mais virgem, um dia entrou no meu carro e teve atitudes que eu não esperava
que teria e a gente acabou transando. Dois dias depois, todo mundo descobriu e
a casa caiu. Foi pá-pum. Não foi planejado, não pensei, se eu tivesse pensado
meio segundo antes eu não teria feito um monte de coisas. Mas agora tá feito.
Enquanto a ‘carência’, o ‘momento’ e o ‘tesão’ são os fundamentos para justificar
a conduta de Ricardo; o ‘amor’, a ‘paixão’ e o ‘sentimento’ explicam e justificam as
atitudes de Raquel, segundo suas amigas: “acho que ela realmente quis na hora. Ela
tava gostando” afirma Paulinha. “Eu acho que ela tava apaixonada por ele. Ela era
meio ingênua, mas ela sabia o que ela tava fazendo. Mas acho que foi por amor
44
supõe Karen. Segundo a Pesquisa Gravad
45
(Heilborn, 2006), essa diferença de
justificativa está relacionada a uma dupla moral sexual, que orienta as condutas
sexuais femininas e masculinas.
44
O ‘amor’ também aparece em outros estudos com jovens urbanos de camadas médias como
justificava para ultrapassar fronteiras sociais. Enquanto, no caso em análise, os termos ‘amor’ e a
‘paixão’ são utilizados em algumas falas para justificar o rompimento de barreiras etárias; na pesquisa
de Silveira (2007), os mesmos termos aparecem para se referir às jovens de classe-média que
ultrapassam fronteiras geográficas e socioeconômicas e estabelecem relações afetivo-sexuais com
rapazes de favelas (traficantes ou não), denominadas na mídia de “amor bandido”.
45
De acordo com os dados da pesquisa, cujo foco é o processo de iniciação sexual, quando
“interrogados sobre a principal razão que os levou a ter essa [primeira] relação (com resposta
estimulada: ‘curiosidade, tesão, amor, medo de perder o companheiro, vontade de perder logo a
virgindade’), homens e mulheres fazem declarações opostas (...). O amor é a motivação dominante para
as mulheres (...) e o tesão para os homens” (HEILBORN, 2006: 183).
66
A fala de Mário, amigo de Raquel, ilustra a oposição que está em jogo na
avaliação moral sobre a menina: “acho que ela gostava dele, ela me falava. E ele
gostava dela. Não sei por que ela falou que a culpa era dele, deve ser pra não ficar
com a fama que quis também”. Ou seja, as duas justificativas possíveis (socialmente
aceitas) para ter transado com o professor bem mais velho, sem estar namorando, são:
estava ‘apaixonada’ (verdade da situação) ou era uma ‘vagabunda’ (verdade do
sujeito).
Enquanto os amigos enfatizam a primeira justificativa, outras pessoas julgam a
pessoa total de Raquel a partir de sua conduta, como também fizeram com Ricardo,
re-significando atitudes passadas em sua trajetória para dar coerência ao novo
estigma. Ela saía à noite, bebia, ela tinha a maior fama de piranha, louca” diz
Janaína. “Na verdade, ele não foi a primeira pessoa a sair com ela. Porque ela ia pra
noite, ela bebia” – comenta Rosângela. Segundo Amanda:
Ela tirava uma onda de que bebia e chegava aqui, falava que tava com
garrafinha de sei o quê. Dizia que tinha enchido a cara e chegado em casa
trêbada... Isso, aquilo... Não teve nada daquela história do jornal, de que ele
estuprou, ele embebedou a garota. Ela mesma falou depois que não tinha perdido
a virgindade com ele. Acho ela meio maluquinha das idéias... Todo mundo fala
que ela é meio maluca, que fala isso, depois fala outra coisa, inventa várias
histórias... Todo mundo percebeu que ela não era muito certa da cabeça.
Ricardo, por sua vez, diferencia a apresentação que a menina fazia de si daquilo
que ela ‘realmente’ era. E diz que acabou sendo enganado e levado por uma
representação ‘falsa’, que, segundo ele, é uma estratégia comum de auto-afirmação de
‘adolescentes’:
RICARDO: Era uma pessoa que dizia não ser mais virgem, dizia freqüentar
determinados locais, como eu te falei, que eu acho que são locais pra pessoas
maiores de idade. De repente, era uma menina que já tinha, em relação a
meninas da idade dela, um pensamento um pouquinho acima, como outras. Sei
também que tinham outras meninas da idade transando, sei que tinha uma amiga
falando que tinha ficado com um professor do colégio dela.
EU: E ela era virgem mesmo, como dizia o jornal?
RICARDO: Era. Embora tivesse dito que não era, era. E ela chegou uma vez e
disse, justificando: eu tinha um namorado que eu achei que a gente tinha
transado... Eu li aquilo e interpretei o seguinte: ela não tinha nem chegado perto
de fazer nada, sabia, mas devia saber que se ela me falasse aquilo, eu não ia
transar com ela. Devia estar muito afim de transar e falou aquilo sem noção da
conseqüência que aquilo ia ter. Na hora eu fui descobrir que era. E ela não
devia ter noção do que ela tava fazendo falando aquilo. Mas não culpo a garota,
criança. Mas o personagem que ela montou pra mim em relação a isso era uma
coisa de louco. Era uma pessoa... E o babaca aqui tinha que ter... 14 anos de
experiência dando aula, já tinha que ter noção que não era isso, que tava
tirando onda.
Sabe, aquele que bebe um gole de cerveja e diz que tá bêbado,
67
tirando onda? Acontece aos montes com adolescente. É a mesma coisa. Não
tinha bebido nada, não tinha transado nada, não tinha feito nada. Eu, que,
imbecil, cego, ali naquele momento, acreditei.
Outros argumentos de amigos e do próprio Ricardo procuram desconstruir o
estigma de ‘vagabunda’ que, para muitos (principalmente, para quem é menos
próximo dela), passou a definir Raquel depois do ‘escândalo’. Para isso, eles
enfatizam que o comportamento sexual da menina o é desenfreado, mas sim se
enquadra em um determinado ‘padrão de normalidade’ socialmente esperado. “Ela
não era vagabunda nada, ela era um amor de menina, uma menina tranqüila, tinha um
pensamento um pouquinho à frente do que deveria ter, tudo bem. Mas ela não era
nenhuma vagabunda, uma transgressora, nada disso. Era uma adolescente comum
defende Ricardo. Segundo Mário, ela é muito tranqüila. Tipo, ela não tem fama.
Pelo contrário, ela até fica com poucos”.
Por fim, é importante destacar as justificativas inspiradas em teorias psicológicas
para explicar a personalidade e desejo desviantes de Raquel. Nesse sentido, os seus
‘problemas familiares’ foram constantemente apontados como motivo para uma
carência, vontade de chamar atenção ou mesmo pelo seu interesse por um homem
mais velho. “Ela queria chamar atenção” – afirma Lu, amiga de Janaína. Esta, por sua
vez, acrescenta: “acho que também devia ter um problema com os pais, acho que os
pais dela estavam se separando. que não foi um drama com os pais que ela
conseguiu”. Paulinho comenta que “parece que o pai da menina também nunca deu
bola pra ela e tentou tirar proveito da situação pra fazer um escarcéu. Isso é o que rola
na boca do povo”. Rosângela afirma: “a gente já sabia da vida dela, do
relacionamento dos pais. Os pais se separaram... Mesmo assim, é o que ele diz, nada
justifica o que ele fez. Aí é que ele podia menos ainda ter feito”.
As justificativas procuram explicar não apenas a conduta de Raquel, mas sim
realizar uma hermenêutica do desejo, ou seja, uma operação que permite encontrar no
desejo a verdade do ser (Foucault, 1984). Ricardo - com a ‘ajuda do analista’ -
também utiliza esse tipo de argumento para compreender o que levou a aluna
interessar-se por ele:
É óbvio, se ela buscou um cara mais velho, se ela viu em mim uma pessoa legal,
uma pessoa interessante que ela queria dar uns beijos, essas coisas, ter um outro
tipo de relação isso meu analista me ajudou a ver e eu aconcordo em
parte com o ponto dele é que em algum ponto ela tem alguma insegurança, em
algum ponto que a família deveria dar uma segurança pra ela, ela não tem.
68
4.3 Os perigos de contágio da poluição moral
Aqueles que se relacionam intimamente com uma pessoa estigmatizada “estão
obrigados a compartilhar um pouco o descrédito do estigmatizado com o qual eles se
relacionam” (Goffman, 1978: 39). Sendo assim, o controle social é exercido também
sobre pessoas que não transgrediram a regra, mas que têm relação com os desviantes.
Nas palavras da gerente da escolinha:
Você fica sendo julgada por um erro de uma outra pessoa. Então,
especificamente nesse caso, você julga várias pessoas que não erraram, elas são
cobradas, como se elas tivessem errado também: o pai, a mãe, a família. Eu
também, porque se eu tiver falando com ele é que dando força. Então, é uma
gama tão grande de reações e de cobranças.
A fim de evitar o contágio do estigma, as pessoas que estão em torno dos
estigmatizados precisam tomar alguns cuidados e desenvolver estratégias particulares.
No caso, ‘falar pouco’ pareceu a melhor opção, em um primeiro momento, para
Rosângela. Mas ela também não podia se abster de se posicionar:
Pensei que a única coisa que eu podia fazer era falar o mínimo. Dizer que ainda
ia conversar pra saber direitinho o que aconteceu, porque no jornal nem sempre
sai as coisas de uma maneira correta. Aí eu já falava assim: eu não estou
desculpando, não compactuo com o que ele fez, acho que tá errado.
Entre os gregos, que criaram o termo, a palavra ‘estigma’ era utilizada para
designar a “pessoa marcada, ritualmente poluída, que devia ser evitada; especialmente
em lugares públicos” (Goffman, 1978: 11). No caso, o afastamento foi uma das
estratégias observadas como modo de evitar o contágio da poluição moral, como
afirma Rosangela: “eu não podia ficar me ficar me encontrando muito com ele,
mesmo que fosse pra ajudar, pra conversar, porque, de repente, alguns podiam pensar:
olha lá, dando o maior apoio! O cara fez o que fez...”. Segundo Goffman (1978:
40), “a tendência para a difusão de um estigma do indivíduo marcado para as suas
relações mais próximas explica por que tais relações tendem a ser evitadas ou a
terminar, caso já existam”. Amanda, ex-colega e amiga de Ricardo, conta que
também precisou se afastar dele para continuar dando aula na escolinha:
Eu me afastei um pouco dele... Assim, no começo eu fiquei muito mal. Mas depois
eu me afastei um pouco dele por causa aqui da escolinha, né!? Ele se afastou da
escolinha porque o pessoal ia passar e dizer: olha lá, aquele professor é o do
jornal. vou ficar pra cima e pra baixo com ele, pessoal vai falar: olha lá,
ela é da mesma laiazinha que ele.
69
A crença em contágio perigoso reforça valores morais e regras sociais (Douglas,
1976: 14). Sendo assim, as pessoas que ocupavam um cargo de gerência na escolinha
na qual Ricardo trabalhava foram cobradas não apenas em relação à distância que
manteriam dele, mas também em relação às punições que ele deveria sofrer, a fim de
reafirmar a regra ameaçada por sua conduta. Segundo João, dono da escolinha:
Cobraram de mim também. Perguntaram qual seria minha posição, minha
postura. A maioria das pessoas não acha legal isso. É meio impeditivo a
continuidade do trabalho do cara aqui. Eu, particularmente, como administrador
da escola, eu fui sincero com o Ricardo. Eu falei: Ricardo, erro básico. Não
pode. E ele aceitou na boa.
Rosângela, gerente da escolinha, conta que “pessoas conhecidas queriam saber
que atitude a gente ia tomar: tem que matar, botar ele preso... Outras dando apoio a
ele: vamos tentar resolver da melhor maneira, oferecendo ajuda. Então, a situação é
muito complicada” - afirma. Observa-se, então, que, no caso, não havia uma
unanimidade entre os pais de alunos da escolinha na avaliação moral sobre Ricardo, o
que coloca os administradores em uma posição delicada, exigindo cuidados
particulares, como relata Rosângela:
No trabalho, eu tenho os dois lados: as pessoas que adoram ele e aquelas que
têm ojeriza a ele
.
Eu tinha que tomar muito cuidado com tudo que eu falasse
aqui ou até fora, pra pessoas que tivessem filhos conhecidos aqui. Porque eu
também não podia malhar, porque eu sabia que isso chegaria até ele. As pessoas
que gostam dele iam pensar: poxa, trabalhou tanto tempo com você e agora está
arrasando com o cara... E não podia falar que eu entendo ou que eu desculpava
porque as pessoas que têm ojeriza a ele iam falar: pô, vou tirar minha filha,
porque uma pessoa que desculpa isso, daqui a pouco ele de volta e ele pode
pegar minha filha ou ele vai cantar sei lá quem.
Por fim, a punição de Ricardo serviu de exemplo para os outros professores da
escolinha, foi uma espécie de vacina contra o contágio. Nos termos de João: “eu falei
com todos eles [outros professores]. Disse que esse tipo de coisa aqui não rola. A
saída do Ricardo foi um alerta, um aviso. Não pode rolar isso. Os riscos são muito
grandes pela lei, eticamente, pelo grupo. E não é isso que a gente quer aqui”.
4.4 Estratégias de normalização da conduta sexual
Como formulou Foucault (1988), a sexualidade o é um ímpeto rebelde que se
opõe ao poder, mas sim um dispositivo histórico que serve de ponto de apoio às mais
variadas estratégias de poder. No caso em análise, observou-se que a relação sexual
entre Raquel e Ricardo serviu de suporte para diferentes formas de controle social:
70
denúncia pública, construção do escândalo’, manipulação das reputações, produção
de estigmas, classificações etárias, delimitação de posições sociais etc. A arte de
governar privilegiada em todas essas modalidades de controle social é a
normalização.
A norma deve ser entendida como um princípio, ao mesmo tempo, de qualificação
e de correção e como “um elemento a partir do qual certo exercício de poder se acha
fundado e legitimado” (Foucault, 2001: 62). Trata-se, portanto, de uma tecnologia
positiva de poder
46
que é exercida por meio de mecanismos capilares e de estratégias
polimorfas que envolvem policiamento minucioso, análise sutil e delicada, observação
próxima e meticulosa.
Segundo Foucault (1988: 89), “o poder está em toda parte; não porque englobe
tudo e sim porque provém de todos os lugares”. Sendo assim, não se deve procurar na
lei ou em qualquer outra instância particular um ponto central ou foco único de
soberania, do qual partiriam formas derivadas. Passo, pois, a analisar, no caso, as
principais instâncias ou estratégias de normalização que tomam as condutas sexuais
como objeto de controle, de coerção, de exame, de julgamento e de intervenção. É
importante destacar que essas tecnologias de controle social não devem ser pensadas
como instâncias repressoras, mas sim como forças e saberes constitutivos do
dispositivo da sexualidade (Foucault, 1988).
A primeira instância de controle social que pode ser identificada é o ‘escândalo’,
entendido como uma engrenagem complexa e dinâmica que articula a denúncia
pública às redes de fofocas locais. Stewart & Strathern (2004) procuram delimitar as
sutis distinções entre fofoca, rumor e escândalo e, ao mesmo tempo, traçar as suas
possíveis conexões:
Gossip takes place mutually among people in networks or groups. Rumor is
unsubstantiated information, true or untrue, that passes by word of mouth, often
in wider networks than gossip. Scandal is news that is unambiguously deleterious
to those it is directed against, whereas gossip and rumor need not to be so
(although they often are). Gossip may proceed into circuits of rumor, and rumor
may get into gossip networks. Scandal may penetrate both and also become more
publicy and overtly known or referred to. Gossip may be the term used more
frequently for local forms (…), while rumor is perharps used more frquently for
the extension of this process into wider areas (Stewart & Strathern, 2004: 39)
46
A reflexão sobre aquilo que Foucault denominou ‘tecnologias positivas de poder’ atravessa
diferentes textos da obra do autor, como Vigiar e Punir (1975), Os anormais (1975) e História da
Sexualidade I (1976).
71
No caso em análise, o ‘escândalo’ teve como ponto de partida a denúncia pública
veiculada no jornal, que, por sua vez, produziu efeitos na vida e na reputação dos
protagonistas da história e nas redes de fofocas e rumores locais. Pode-se dizer que
conforme os discursos vão se distanciando do centro do ‘escândalo’ e as informações
vão se afastando das fontes diretas e se tornando mais imprecisas (no estilo “ouvir
dizer que...” ou “é o que rola na boca do povo”), as fofocas transformam-se em
rumores. O processo de produção da denúncia pública, bem como os seus efeitos
locais, foram analisados na última parte do segundo capítulo, mostrando o papel da
imprensa na institucionalização e homogeneização do problema e das formas de
reagir e falar sobre ele. Cabe, agora, analisar o processo de circulação de fofocas e
controle das reputações enquanto estratégia de normalização.
A fofoca pode ser definida como “relato de hechos reales o imaginarios sobre el
comportamiento ajeno, percibido desde el sentido común como informaciones
despreciativas sobre terceros y/o perjudiciales hacia éstos, transmitidas entre dos o
más personas unas a otras” (JONES, 2007: 02). Segundo Elias e Scotson (2000), as
fofocas circulam com maior facilidade e seus efeitos normalizadores são tanto mais
eficientes quanto mais coeso for o meio no qual ela circula. No caso analisado, apesar
de ter sido verificado que o problema é construído de diferentes maneiras e que as
avaliações sobre os protagonistas da história o o homogêneas, o universo social
parece coeso em termos de um interesse comum e generalizado sobre o assunto, o que
garantiu um bom meio de circulação para as fofocas. Desse modo, esse universo
social pode ser definido como uma “comunidade” não no sentido de um grupo
homogêneo, mas sim como um conjunto de pessoas que compartilham interesses
comuns. Nos termos de Epstein (1969: 125), “the exchange of gossip (...) denotes a
certain comunity of interest”. Além disso, o conflito de opinião foi estabelecido entre
pessoas que compartilham princípios mínimos de definição da realidade e no interior
de um quadro de consistência cultural, entendido como “símbolos compartilhados,
linguagem básica comum, gramaticalidade no processo de interação e negociação da
realidade, expectativas e desempenhos de papéis congruentes” (Velho, 1999: 17). Isso
viabilizou a comunicação e a inteligibilidade mútua entre as pessoas envolvidas na
rede de fofocas e acusações.
72
Para pensar a fofoca como estratégia de controle social, no caso em análise, vale
destacar algumas de suas principais funções
47
: difundir, manter ou re-definir
48
os
valores do universo social, manipular as reputações, reafirmar as normas e padronizar
os comportamentos. Vale destacar que a análise das redes de fofocas pode indicar
também a coexistência e a rivalidade de códigos heterogêneos e diferencialmente
manipulados por diferentes indivíduos ou pelos mesmos indivíduos em diferentes
momentos, de acordo com seus interesses e suas posições sociais. No caso em análise,
observou-se que os comentários e as avaliações sobre Raquel ou Ricardo tendem a
variar também de acordo com a posição que aqueles que o sujeitos das fofocas
ocupam em relação àqueles que são objetos das fofocas, como sintetiza Rosângela em
sua fala:
Eu não desculpo, eu entendo, mas continuo como amiga achando que ele errou,
que ele pisou na bola ferrada e que ele jamais poderia ter feito isso.O fato de eu
ser amiga e conhecer outro lado dele faz com que eu não enxergue, como se fosse
uma pessoa indiferente a mim, como um monstro. Porque eu conheço as duas
pessoas envolvidas. Eu não enxergo como monstro por esse lado. Mas eu acho
que se eu conhecesse pouco, eu acho que ele seria um monstro pra mim.
A censura daqueles que infringiram uma norma, através de fofocas depreciativas e
da estigmatização, servem como estratégia de reafirmação da norma ameaçada pela
transgressão (Elias & Scotson, 2000), como é possível perceber na fala de Paulinha,
amiga de Raquel: “ela ficou como a garota que aconteceu e não sigam o exemplo”.
Elias & Scotson (2000) apontam também o caráter seletivo das fofocas. O recorte e a
generalização de uma parcela ruim da conduta dos acusados funcionam como prova
da veracidade da acusação e, portanto, do estigma associado a ela, como se pode
verificar na afirmação de Rosângela, gerente da escolinha:
Eu acho que, se ele não se tratar, amanhã ou depois ele vai acabar saindo com
outra garota mais nova, não precisa ser necessariamente uma menor de idade,
47
Fonseca (2000) e Elias & Scotson (2000) apontam outras diferentes funções da fofoca: reforçar o
sentimento de identidade comunitária, criar uma história social do grupo, delimitar fronteiras, além de
funções educativas, comunicativas e de entretenimento. Enquanto antropólogos como Gluckman
(1963), enfatizam a função das fofocas de delimitar fronteiras e de manter a unidade do grupo, análises
mais recentes sobre fofocas e rumores concentram-se principalmente nos indivíduos e redes de relações
competitivas, marcadas por tensão, desconfiança e ambigüidade. Para um panorama sobre a crítica à
visão funcionalista e a apresentação da discussão sobre fofoca mais recente na antropologia, ver
Stewart & Strathern (2004), p. 29-58.
48
Fazendo referência a Christopher Boehm (Blood Revenge: the enactement and management of
conflict in Montenegro and other Tribal Societies. Philadelphia: University of Oennsylvania Press,
1984), Stewart & Strathern comentam que a fofoca serve também como um meio para a negociação
constante dos valores morais do grupo: “gossip functions as a system through which the group’s idea of
what should be morally acceptable or unacceptable is continuously rehashed and refreshed(Stewart &
Strathern, 2004: 40)
73
mas ele vai estar sempre com alguém mais novo. Porque as meninas que ele
namorou todas eram bem mais novas e menores. Essa que ele cinco anos
com ela, quando ele começou a namorar, era menor de idade.
Os exemplos citados pelos entrevistados sobre a ex-namorada e outras relações de
Ricardo com meninas bem mais novas contribuem para a identificação dele como
‘pedófilo’, assim como as falas que enfatizam que a menina ‘vivia na noite’ e bebia
servem para caracterizar a precocidade e/ou construir a má fama de Raquel.
Além disso, a opinião interna do grupo influencia intensamente seus membros,
não apenas no sentido de regulamentar as condutas individuais, mas também os
sentimentos. Sendo assim, a reputação ruim, produzida a partir da fofoca depreciativa,
mancha não somente a imagem perante a comunidade, mas pode também afetar a
auto-imagem daquele que é objeto dos rumores, (Elias & Scotson, 2000), como
aconteceu com Ricardo:
A minha ex-namorada, hoje, mal fala comigo. Qualquer outra manifestação
externa: pessoas que me olham, me olharam torto ou se afastaram...
Independente disso, a vergonha interna. Porque eu sempre fui perfecionista,
eu dei aula durante 14 anos, eu sempre tive uma conduta legal.
Esse sentimento de vergonha, auto-censura e sofrimento produzido no sujeito que
se identifica com o estigma que lhe foi atribuído ajuda a entender o movimento que
leva a próxima estratégia de normalização que pode ser identificada no caso: a
utilização de técnicas terapêuticas. Ricardo conta que passou de uma postura punitiva
e auto-destrutiva, num primeiro momento, para uma demanda por terapias que
pudessem ajudá-lo na correção de si:
Eu tentei quase me suicidar. Eu peguei um lexotan e comecei a tomar aquilo
compulsivamente pra apagar. Eu falei: eu fiz merda, pra mim é pena de morte!
Não tenho mais esse tipo de pensamento tão forte, mas até hoje me deprime
extremamente. Até hoje eu busco terapias.
No entanto, a cnica de confissão psicanalítica “não tende mais a tratar somente
aquilo que o sujeito gostaria de esconder, porém daquilo que se esconde ao próprio
sujeito” (Foucault, 1988: 65). Sendo assim, ao realizar uma hermenêutica do desejo, o
que o terapeuta do ex-professor fez não foi corrigi-lo enquanto sujeito, mas sim
ofereceu ao paciente uma outra verdade de si: ele descobriu que não era um ‘doente’.
Nas palavras de Ricardo:
Hoje eu vejo que eu não sou tão doente quanto eu achava que eu era. Porque
hoje eu vejo que eu não sinto falta disso. Eu não sinto falta de dar aula e eu não
sinto falta de adolescente à minha volta. O único ponto que, com a ajuda da
74
análise pra não dizer que análise não me ajudou em nada –, que ela
conseguiu me abrir o olho, foi esse. Ele (o terapeuta) um dia chegou pra mim e
disse: olha pra trás, tem um tempo, uns seis meses que você aqui. Você
sentiu falta de azarar uma adolescente de 14 anos de idade? Eu realmente não,
eu nunca senti falta disso, nem quando eu dava aula eu sentia falta disso e hoje
eu não sinto falta. Então, pra mim isso foi um bom sinal.
Uma terceira estratégia de normalização da sexualidade, que se apóia em técnicas
pedagógicas, aparece no depoimento do ex-professor. Como destaca Heilborn (2004:
11), a sexualidade, como qualquer outro domínio da vida social, “depende de
socialização, de aprendizagem de determinadas regras, de roteiros e cenários
culturais”. Apesar de os padrões e os valores que orientam a conduta sexual dos
jovens serem moldados, em grande medida, em meio aos próprios pares e a partir de
uma série de experiências, a responsabilidade pela formação é atribuída,
principalmente, à escola e à família, como se pode verificar no discurso de Ricardo:
A gente não pode reclamar da educação colegial, mas acho que a gente pode
reclamar da educação familiar. Eu acho que uma abertura tem que ser
acompanhada de educação. O que eu vejo, o que acontecendo com o
adolescente que freqüentando cada vez mais lugares dos mais velhos, é que
não está acompanhada de educação, é uma abertura até às vezes não
concedida... .
Segundo ele, os pais educam os seus filhos de maneira errada. Ricardo sugere,
então, que se substitua a ‘pedagogia do bicho-papão’, pautada nos perigos externos,
por uma educação que ensine as normas que devem orientar as relações com aqueles
que são próximos e familiares:
Se você vai liberar a filha de 15 anos pra ir à boate, isso tem que estar
acompanhado de educação: olha aqui, você quer ir, você vai. Mas só que lembra
que você tem 16 anos de idade e tem cara lá de 25, 30. Vai chegar, tem carro, vai
te colocar dentro do carro. Todo mundo tem medo, todo mundo fala pra filha:
não entra em carro de gente desconhecida, pode te levar pro mato, pode te
seqüestrar... Não! Pode simplesmente ficar com você e te levar pra um lugar
super maneiro, um cara super maneiro, educadíssimo... Uma pessoa que
freqüenta a mesma praia que a gente, o mesmo restaurante que a gente, que vai
se interessar por você e vai transar com você.
que você não na idade de
fazer isso. Acabou! As pessoas assustam com o monstro, querem te educar para
o bicho papão. A pessoa tem que educar pra pessoa da esquina, uma pessoa
normal, sou eu, é você... Eu acho.
Ao destacar que os pais devem alertar as ‘filhas’ ‘menores para não se
envolverem sexualmente com caras mais velhos’, o trecho acima nos leva a analisar
uma última (e a mais sutil) estratégia de normalização identificada no caso: a
75
produção e manipulação de categorias de idade e de nero enquanto principais eixos
a partir dos quais as condutas sexuais são organizadas socialmente.
Em geral, as pesquisas sobre sexualidade
49
no campo das ciências sociais dão
mais ênfase ao estudo das relações entre os sexos e da construção social das
categorias de gênero e acabam, muitas vezes, negligenciando ou substancializando as
categorias de idade (como ‘crianças’, ‘jovens’, ‘adultos’, ‘velhos’ etc), ao tratar
grupos etários como segmentos populacionais pré-determinados, auto-evidentes e
auto-explicativos. No entanto, ao comparar as formas de organização social em
diferentes épocas e culturas, as pesquisas antropológicas e históricas revelam que,
assim como o gênero, “a idade não é um dado da natureza, nem um princípio
naturalmente constitutivo de grupos sociais, nem ainda um fator explicativo dos
comportamentos humanos” (Debert, 1998: 51).
Dizer que as categorias são construídas não quer dizer que elas não tenham
efetividade, uma vez que elas funcionam como instrumentos fundamentais de
conhecimento, de comunicação humana e de organização social (Oliveira, 1993).
Segundo Debert (1993), a cronologização da vida serve de base para delimitação de
fronteiras, estabelecimento de direitos e deveres diferenciados, definição de relações
entre gerações e distribuição de poder e privilégios.
Observa-se, no caso, que a idade cronológica aparece como critério privilegiado
para identificar e situar socialmente os atores na relação sexual, tanto do ponto de
vista moral, como legal. Os estágios de maturidade, ou seja, o reconhecimento da
capacidade e a autorização para realizar certas tarefas (no caso, o intercurso sexual),
parecem subordinados ao primeiro critério. Segundo Debert (1998, 56), nas
sociedades ocidentais a idade cronológica funciona como mecanismo básico de
atribuição de status, definição de papéis ocupacionais, formulação de demandas
sociais etc.
É importante salientar ainda que a ‘idade’ “deve ser percebida como categoria de
pensamento, no sentido de construir imagens e percepções sobre determinados
indivíduos; e como categoria social, na medida em que se percebe a sua configuração
com uma identificação que gera coletividades e ações” (Castro, 2005: 31). Nesse
sentido, a dimensão performativa da categoria parece fundamental. Como vimos, no
49
Para um panorama sobre as pesquisas que abordam a temática da sexualidade no Brasil ver CITELI,
Maria Teresa. A pesquisa sobre sexualidade e direitos sexuais no Brasil (1990-2002) – Revisão Crítica.
CLAM-IMS-UERJ. Disponível em: http://www.clam.org.br/pdf/docciteli.pdf
76
caso, não é sempre e nem em todos os contextos que o sistema de datação é suficiente
para a definição da ‘idade’. Em outros termos, não bastar ser ou ter uma certa idade, é
preciso parecer que a tem.
Se, por um lado, a periodização da vida é um modo de institucionalizar as
transições das pessoas, instituindo idades ideais para cada coisa (Souza, 2005), por
outro, para compreender as formas de regulação da conduta sexual, não se pode tomar
a ‘idade’ como critério único e absoluto. Como já foi mencionado e é possível
verificar no caso em análise, a ‘idade’ está associada a moralidades diferenciadas de
acordo com o gênero. Além disso, por vezes, as assimetrias de ‘idade’ são articuladas
ou somadas a outras assimetrias, como aquelas relativas às posições sociais. Vimos
que, no caso, o fato de ele ser professor e ela aluna é considerado um elemento crucial
ou a mais para a condenação de Ricardo e a vitimização de Raquel. Sendo assim, a
análise dos entrecruzamentos de categorias e de outras instâncias de normalização
parece ser o melhor meio para entender a constituição dos saberes e poderes que
orientam e regulam as condutas sexuais e, portanto, para pensar o processo de
produção do dispositivo da sexualidade.
77
Capítulo V
Menoridade sexual
Nos capítulos anteriores, analisei formas mais fluidas de exercício de poder que
tomam os cruzamentos entre sexualidade e menoridade como alvo. Procurei mostrar
como esse controle é exercido na vida social a partir de estratégias polimorfas que
atravessam diferentes escalas com densidades institucionais diferenciadas: denúncia
pública, leis e inquérito policial, jornal, redes de fofoca, terapia psicanalítica etc.
Procurei também analisar cada uma dessas estratégias e apontar os seus efeitos
específicos, bem como os seus entrecruzamentos. Neste capítulo, vou apresentar uma
maneira mais institucionalizada de tratar essa problemática, ao focar o modo jurídico
de regular a conduta sexual de acordo com a idade.
A perspectiva da regulação legal é mais uma abordagem possível e parcial para
pensar o meu problema de pesquisa - a relação sexual intergeracional envolvendo
‘menores’ - ,que, certamente, não esgota as diferentes possibilidades analíticas do
tema (poderia priorizar, por exemplo, a maneira que o campo psi trata o problema).
Optei por pensar a questão a partir do campo judicial por identificar nessa abordagem
uma zona cinzenta de problematização. As controvérsias aparecem, como será
analisado, em função da dificuldade de se definir uma idade específica a partir da qual
o sujeito é considerado legalmente capaz de consentir livremente uma relação sexual,
tomando como modelo uma noção de sujeito racional pleno, com controle absoluto
sobre seus atos.
Essa abordagem pareceu-me interessante também porque, dentre as diferentes
formas de regulação da vida social, as leis apresentam-se como aparato oficial do
Estado moderno para definição e imposição de normas. Apesar de as leis não
determinarem as condutas sexuais, segundo Waites (2005), elas desempenham um
papel significativo, ainda que limitado, na constituição de normas sociais para o
julgamento moral do comportamento sexual na sociedade e, principalmente, facilitam
a intervenção de agências estatais em casos particulares.
O principal modo jurídico de regular a conduta sexual de acordo com a idade é a
criação de normas legais que definem aquilo que optei por denominar menoridade
sexual. Segundo Vianna (2000), trabalhar com a noção de menoridade é interessante,
em termos epistemológicos, pois permite um maior afastamento de categorias muito
naturalizadas, como infância ou crianças, imediatamente associadas a um dado
período de vida ou a um conjunto de representações. Entendo a noção de menoridade
78
de acordo com a definição da autora: “não como um atributo relativo à idade, mas sim
como instrumento hierarquizador de direitos” (Vianna, 1999: 168), como categoria
relacional de subordinação que evoca a ‘maioridade’ enquanto contraponto e enfatiza
a posição desses indivíduos em termos legais ou de autoridade (Vianna, 2002).
Se, por um lado, a menoridade não pode ser identificada exclusivamente com as
idades da vida, por outro, é impossível desconhecer a estreita relação entre as duas
noções. Como aponta Vianna (2002: 8), “a menoridade encontra na infância sua
representação contemporânea mais eficaz”. Isso se dá graças à pressuposição de
incapacidade ‘natural’ de discernimento - concebido como ainda em fase de
(con)formação nesse período da vida (sendo, portanto, uma incapacidade transitória) -
a partir da qual se naturaliza e legitima a dimensão tutelar da menoridade, “seja pela
idéia de que é necessária a demarcação de alguém que responda por esses indivíduos
incompletos, seja pela idéia de que a transição da menoridade à maioridade deve
corresponder a um período de (trans)formação” (Vianna, 2002: 9).
No caso da menoridade sexual, como veremos, as discussões procuram justamente
estabelecer critérios sobre as condições que definem a capacidade de discernimento
necessária para que alguém tenha o reconhecimento de autonomia para consentir, de
maneira considerada válida, em uma relação sexual. A categoria naturalizada de
‘idade’, traduzida em termos de ‘maturidade’ biológica e social, é um critério central
para a definição da capacidade de consentimento.
É importante destacar que meu objetivo neste capítulo não é discutir o tema da
menoridade legal de maneira mais ampla, tampouco sugerir que, no Brasil, a
menoridade sexual seja uma problemática que esteja na pauta de discussão das
agendas políticas atuais, de modo como ocorre com a menoridade penal
50
, por
exemplo. No âmbito legislativo e político nacional, a menoridade sexual não é sequer
uma expressão que costuma ser acionada. Não pretendo também realizar um
mapeamento mais amplo sobre a discussão política internacional sobre o tema, como
fez Waites (2005), ou transplantar o debate que existe em outros países para o
contexto nacional. Meu esforço se limita à análise de normas legais e práticas
judiciais no âmbito nacional que possam iluminar os cruzamentos entre sexualidade e
menoridade.
50
Um projeto de lei para a redução da maioridade penal está em votação no Congresso Nacional, além
de ser uma temática que está na ordem do dia das discussões na mídia, especialmente, a partir de casos
dramáticos que envolvem crimes violentos praticados por menores.
79
No entanto, antes de partir para a análise mais local do tema, é importante mostrar
como as problemáticas são construídas em um cenário mais amplo, que não determina
as manifestações locais do debate, mas, de algum modo, as influenciam. Para isso,
farei uma breve introdução sobre como o tema es situado em uma discussão
internacional mais ampla, sobre aquilo que Waites (2005) denomina de leis da idade
do consentimento - conceito que ele usa para incluir todas as leis que definem uma
idade legal para a participação dos jovens em comportamento sexual. Segundo o
autor, “the phrase is generally absent from the law in many different states, yet is
frequently invoked to describe and constest laws, and is increasingly used to compare
laws between different states with contrasting legal frameworks” (Waites, 2005: 2).
A noção de consentimento é contratual, e menores são aqueles não habilitados
para estabelecer contratos legalmente válidos. Vale destacar que o conceito idade do
consentimento - muitas vezes tomado como um dado nos debates públicos e políticos,
ignorando as transformações históricas e variações culturais - “é em si mesmo
significante como forma de representação que influencia a compreensão da lei”
(Waites, 2005: 1), como será analisado adiante. A comparação internacional e
histórica revela uma enorme diversidade de estruturas legais nas quais as chamadas
leis da idade do consentimento se inserem, a mesmo dificultando a análise
comparativa
51
.
Baseando-se em uma pesquisa comparativa internacional realizada pelo advogado
austríaco Helmut Graupner, Waites (2005: 45) sistematiza as diferentes maneiras de
regular a atividade sexual de acordo com a idade a partir de três principais tipos de
previsões legais: i) leis que estabelecem limite de idade mínima: quando a atividade
sexual envolvendo pessoas abaixo de uma certa idade é considerada crime; ii)
‘previsões de sedução': referem-se a situações nas quais a legalidade do
comportamento sexual em uma dada faixa de idade é definida pela característica de
uma interação e/ou da motivação do participante mais velho; iii) ‘previsões
legais sobre contato sexual em relações de autoridade': envolvem restrições adicionais
sobre o comportamento sexual quando existe uma desigualdade de poder particular,
por exemplo, entre professor e aluno. Além disso, as leis podem variar de acordo com
51
No Irã, por exemplo, a legalidade da atividade sexual é inseparável do status do matrimônio. Ou seja,
não existe idade mínima para atividade sexual em si, visto que a atividade sexual só é legal no interior
de um casamento heterossexual. Para uma perspectiva comparativa global das leis da idade do
consentimento, ver WAITES, 2005, p. 40-59.
80
gênero e orientação sexual (em alguns países, a idade do consentimento para relações
entre pessoas do mesmo sexo é mais alta).
Segundo Waites (2005), nas décadas de 60 e 70, dois movimentos sociais e
políticos tiveram influência especial sobre o debate internacional em torno das leis da
idade do consentimento: o movimento feminista e o movimento gay. O primeiro
incluiu o tema nas agendas de luta contra ‘abuso’ sexual ligado a formas de
dominação masculina, de modo que essas leis eram vistas como parte de uma
estratégia mais ampla de demandas por proteção legal de sujeitos em situação de
vulnerabilidade. Essa perspectiva ganha força, no final do século XX, a partir da
proliferação de campanhas midiáticas de denúncia ao turismo sexual, pedofilia e
prostituição infantil. O movimento gay, por sua vez, incluiu o tema em agendas
liberacionistas que lutavam por direitos de eqüidade, criticando, portanto, leis da
idade do consentimento diferenciadas para a prática homossexual, como acontecia em
legislações de muitos países ocidentais - Portugal, por exemplo.
A partir do movimento gay, surgiram os questionamentos mais radicais sobre as
leis da idade do consentimento. Questões eram colocadas sobre se a lei tinha
aplicação prática, sobre quem teria acesso a ela e sobre seus efeitos nos jovens, a
quem ela supostamente protegeria (WAITES, 2005: 128). A partir dos anos 1970,
surgem organizações, como a associação americana ‘Man-Boy Love’ (NAMBLA) e,
no Reino Unido, a ‘Paedophile Information Exchange (PIE), que demandam por
direitos de aceitabilidade da atividade sexual consensual entre adultos e crianças,
reivindicando a descriminalização desse tipo de prática, a despatologização da
pedofilia e a abolição das leis da idade do consentimento (WAITES, 2005: 25).
Tais grupos propõem uma nova linguagem de ‘direitos da criança e do
adolescente’, reivindicando maior poder e autonomia para os jovens, inclusive, maior
autonomia sexual, de modo que estes possam tomar decisões sobre suas próprias vidas
e corpos. Um dos argumentos da militância é que as leis da idade do consentimento
não protegeriam os jovens homossexuais que se relacionam com adultos, mas sim
fariam parte de um sistema de opressão social das sexualidades periféricas, o qual
seria o real responsável pelo dano psíquico e o sofrimento desses ‘desviantes’ ao
longo da vida, devido ao preconceito e à estigmatização
52
.
52
Ver CALIFA, Pat. “The Aftermath of the Great Kiddy-Porn Panic of ’77”. In: The culture of the Sex,
1994. Disponível em: http://www.ipce.info/ipceweb/Library
81
No entanto, o próprio movimento lésbico e gay batalhou para se distinguir dos
grupos pedófilos através da expulsão do NAMBLA da International Lesbian and Gay
Association (ILGA), a fim de garantir reconhecimento pelas Nações Unidas. Mais
recentemente, em 2006, na Holanda foi criado um partido político, o NDV (caridade,
liberdade e diversidade), cujas principais reivindicaçõeso a redução da menoridade
sexual de 16 para 12 anos e a legalização da pornografia infantil. No entanto, as
reivindicações dessas organizações nunca conquistaram muito espaço ou simpatia de
outros movimentos ou da sociedade mais ampla, por isso eles têm tido pouco sucesso
em cumprir seus objetivos
53
.
Depois de realizar uma breve incursão na discussão internacional sobre as
chamadas leis da idade do consentimento - analisada por Waites (2005) de maneira
muito mais ampla e aprofundada -, passo para a análise mais específica do contexto
legal brasileiro contemporâneo. No entanto, não pretendo pensar os aparatos
legislativo e judicial como um sistema fechado de regras. Procuro, então, tratar as leis
como processo (Moore, 1978), de modo que é preciso atentar para o seu
funcionamento, e o campo jurídico como espaço “de concorrência pelo monopólio do
direito de dizer o direito” (Bourdieu, 1989: 212), o que implica em analisar as
disputas internas a esse campo.
Sendo assim, não quero me concentrar na menoridade sexual ou idade do
consentimento definida pelo texto da lei - relativamente estável, centralizado e
generalizante –, mas, sim, refletir sobre as práticas discursivas - mais flexíveis e
dispersas - que disputam, diante de casos concretos, em torno da definição dos limites
entre o moralmente aceitável e o inaceitável. Para isso, analiso uma decisão judicial
do Supremo Tribunal Federal (STF) que apresenta controvérsias em torno da
definição da menoridade sexual a partir de um caso concreto
54
.
É importante ressaltar ainda que não pretendo realizar uma sociologia da
circulação dos termos menoridade sexual e leis da idade do consentimento, até
porque, como mencionei, esses termos não aparecem diretamente nem nas legislações
53
Ver http://pt.wikipedia.org/wiki/Movimento_pr%C3%B3-pedofilia
.
54
Vale salientar que, apesar de não ter realizado uma pesquisa de jurisprudência suficientemente
extensiva para generalizar o caráter exemplar do caso analisado, na maioria das decisões que observei
sobre o tema, as mesmas controvérsias repetem-se em diversos acórdãos. Observei que as
argumentações e as decisões dos magistrados de outras instâncias aproximam-se a uma ou a outra
tendência de entendimento dos diferentes Ministros do STF. Além disso, é importante destacar que o
caso analisado é considerado no meio jurídico como um leading case, ou seja, como uma decisão
inovadora que funda jurisprudência e que passa a servir de referência para tomadas de decisão
posteriores sobre o mesmo assunto.
82
nem nos debates jurídicos e políticos brasileiros. Utilizo essas noções como vetores
que servem para pensar um uma gama de discussões legais sobre as relações entre
sexualidade e menoridade. Essas discussões são atravessadas por um léxico que inclui
noções como ‘abuso’, ‘violência’, ‘consentimento’, ‘responsabilidade’ etc.
Meu objetivo é menos realizar um mapeamento detalhado desse léxico do que
analisar o fio que os une. Para isso, primeiramente, apresentarei as normas jurídicas
que regulam as condutas sexuais de acordo com idade no nosso contexto legal e, a
seguir, observarei a sua manipulação, a partir da análise de uma decisão na mais alta
instância do Judiciário brasileiro. Por fim, seguindo a sugestão de Moore (1978: 4) de
que é importante identificar os processos sociais que operam para além das regras,
proponho um conjunto de questões que, a meu ver, servem de fio condutor para
examinar os pressupostos centrais que fundamentam a regulação social e jurídica da
sexualidade de acordo com a idade no mundo ocidental contemporâneo: o que sexo
tem a ver com consentimento? Como a capacidade de consentimento sexual pode ser
definida? E quem é considerado capaz para consentir?
5.1 As leis da idade do consentimento na legislação penal brasileira
Na legislação penal brasileira contemporânea, o que poderíamos ver como lei da
idade do consentimento toma forma, de maneira mais restrita, na alínea “ado artigo
224 do Código Penal, que presume a violência se a vítima de estupro ou de atentado
violento ao pudor for menor de 14 anos. Ou seja: qualquer relação sexual com pessoa
abaixo de 14 anos, ainda que consentida, é considerada crime de estupro (se o ato for
‘conjunção carnal’
55
e a vítima for do sexo feminino) ou de atentado violento ao
pudor (se for qualquer outra forma de ‘ato libidinoso’
56
diverso da conjunção carnal,
seja a vítima do sexo masculino ou feminino). De uma maneira mais ampla, pode-se
dizer que o delito de ‘corrupção de menores’
57
(art. 218 do CP de 1940), bem como o
55
Na linguagem jurídica, entende-se por ‘conjunção carnal’ apenas a cópula heterossexual vagínica, ou
seja, a introdução do pênis na cavidade vaginal.
56
“Ato libidinoso,(...) é toda conduta perpetrada pelo sujeito ativo que se consubstancia numa
manifestação de sua concupiscência. Deve restar excluída a conjunção carnal, que é elemento
constitutivo do delito do estupro”. (PRADO,2006, P. 204). Exemplos: sexo oral, masturbação, coito
anal, toques e apalpadelas do pudendo e dos membros inferiores, contemplação lasciva, contatos
voluptuosos etc.
57
Art. 218 Corromper ou facilitar a corrupção de pessoa maior de 14 e menor de 18 anos, com ela
praticando ato de libidinagem, ou induzindo-a a praticá-lo ou presenciá-lo. Pena reclusão de 1 a 4
anos.
83
revogado delito de ‘sedução de menores’
58
(art.217 do CP de 1940) também
constituem leis da idade do consentimento, pois são dispositivos que, apesar de não
proibirem de uma maneira ampla e irrestrita a atividade sexual nessa faixa etária
entre 14 e 18 anos –, regulam a atividade sexual entre jovens e adultos, protegendo a
inocência daqueles considerados sexualmente inexperientes
59
.
Todos esses artigos se inserem no Título VI do Código Penal denominado “Dos
Crimes contra os Costumes”
60
. Além disso, o Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA/1990) acrescentou, em 2003, no capítulo que dispõe sobre crimes praticados
contra a criança e o adolescente, os arts. 240 e 241, que criminalizam a produção e a
divulgação de pornografia infanto-juvenil. Deixarei de lado a análise mais detalhada
dos crimes de pornografia infanto-juvenil e de corrupção de menores e me
concentrarei na análise da doutrina que fundamenta e discute a presunção da violência
por menoridade, prevista no art. 224 do CP de 1940, referente aos delitos de
‘estupro’
61
e de ‘atentado violento ao pudor’
62
, quando a vítima é menor de 14 anos,
pois é aquela que melhor expõe os princípios que fundamentam a tutela legal de
‘menores’ em relação à atividade sexual.
De acordo com o Manual de Direito Penal Brasileiro de autoria do penalista Luiz
Regis Prado, “a presunção da violência nos delitos sexuais, também conhecida por
violência ficta, esprevista na maioria dos Códigos Penais, em face da excepcional
58
Art. 217 - Seduzir mulher virgem, menor de dezoito anos e maior de catorze, e ter com ela conjunção
carnal, aproveitando-se de sua inexperiência ou justificável confiança: Pena reclusão, de 2 (dois) a 4
(quatro) anos (Revogado pela Lei 11.106, de 28 de março de 2005). A punibilidade por este delito
podia ser extinta através do casamento da vítima com o agente ou terceiro (CP, artigo 107, VII e VIII).
59
“Quando a vítima for pessoa corrompida, não se configura o delito de corrupção de menores,
que não se pode corromper quem mantém comportamento totalmente dissoluto (delito impossível).
Contudo, como a corrupção admite graus, é possível a caracterização do delito quando a vítima, apesar
de apresentar alguma corrupção, é levada ao extremo da degradação por obra do agente”
(PRADO,2006: 235). “É corrupto quem já conhece os prazeres da carne, quem perdeu a ingenuidade
sexual. É corrupto inclusive o menor que seja experimentado apenas nos prazeres sexuais normais, eis
que representam corrupção em face da precocidade’ (FRAGOSO, HC, p. 26, op cit, in: PRADO,
2006, P. 235, nota 8).
60
O título ‘Dos Crimes Contra os Costumes’ é subdividido em cinco capítulos e seus respectivos
artigos: 1. crimes contra a liberdade sexual (i. estupro; ii. atentado violento ao pudor; iii. posse sexual
mediante fraude; iv. atentado ao pudor mediante fraude; v. assédio sexual); 2. corrupção de menores; 3.
disposições comuns aos crimes contra a liberdade sexual e corrupção de menores (é aqui que se
incluem as formas qualificadas, presunção de violência e causas do aumento da pena); 4. lenocínio e
tráfico de pessoas (i. mediação para servir a lascívia de outrem; ii. favorecimento da prostituição; iii.
casa de prostituição; iv. rufianismo; v. tráfico internacional de pessoas; vi. tráfico interno de pessoas);
5. Ultrage público ao pudor (i. ato obsceno; ii. escrito ou objeto obsceno).
61
Art. 213 do CP/1940 - Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça.
Pena - reclusão de 6 a 10 anos.
62 Art. 214 do CP/1940 - Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou
permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal. Pena - reclusão de 6 a 10
anos.
84
preocupação do legislador com determinadas pessoas que são incapazes de consentir
ou de manifestar validamente o seu dissenso” (Prado, 2006: 244). Como foi
mencionado no primeiro capítulo, o Código Penal de 1890 foi o primeiro a
estabelecer, no Brasil, o critério de presunção de violência por menoridade.
A razão da tutela do menor de 14 anos, segundo o manual, reside na innocentia
consilli do sujeito passivo, ou seja, a sua completa insciência em relação aos fatos
sexuais, o que invalida o seu consentimento. Em nota de de gina, Prado (2006:
244) acrescenta a seguinte citação para justificar a lei de violência ficta: “É preciso
recordar também que o exercício da sexualidade com o menor ‘pode afetar a evolução
e desenvolvimento de sua personalidade e produzir nela alterações importantes que
incidirão em sua vida ou em seu equilíbrio psíquico no futuro”. Julio Fabbrini
Mirabete, em seu Código Penal Interpretado, destaca que “embora seja certo que
alguns menores, com essa idade, tenham maturidade sexual, na verdade não ocorre
o mesmo com o desenvolvimento psicológico” (Mirabete, 2001: 1511).
No antigo código e no início da vigência do CP de 1940, a maioria dos
doutrinadores entendia que a presunção da violência por menoridade era absoluta. No
entanto, segundo Regis Prado, “passou a entender a melhor doutrina que a presunção
da norma em epígrafe é relativa” (Prado, 2006: 245). Segundo o autor, tal
entendimento é hoje predominante na doutrina, de modo que se a vítima, apesar de
contar com menos de 14 anos, é experiente em assuntos sexuais, ou se atingiu
maturidade suficiente para discernir se lhe é conveniente ou não praticar o ato
libidinoso, descaracteriza-se o delito
63
. Mas, analisando a jurisprudência recente, vê-
se que a relatividade ou não da presunção de violência continua a ser questão
controversa entre os juízes.
63
Contudo, nesses casos, considera o jurista que de se ter maior rigor na avaliação, “pois a infância
e a pré-adolescência são fases da vida em que o ser humano encontra-se vulnerável e suscetível de
abuso, engodo, manipulação e autoritarismos” (PRADO, 2006: 246), de modo que qualquer dissenso
do menor, ainda que não se trate de uma resistência militante é suficiente para configurar o estupro.
85
5.2 Menina ou moça: (des)construção social da idade do consentimento em
uma decisão judicial do STF
Um caso exemplar para ilustrar as controvérsias em torno da idade do
consentimento ou, mais especificamente, em torno do estupro com violência
presumida por menoridade – tanto pela riqueza dos argumentos, quanto pela inovação
da decisão na mais alta instância do Judiciário brasileiro – é um habeas corpus
julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 1996, de relatoria do Ministro
Marco Aurélio de Mello. Trata-se de um processo cujo réu é um homem de 24 anos,
que fora condenado - na primeira e na segunda instâncias do Tribunal de Justiça de
Minas Gerais - por estupro com violência ficta, por manter relações sexuais com uma
menina de 12 anos. No entanto, anos depois da condenação, os juízes do STF
concederam habeas corpus
64
ao rapaz, em decisão histórica e polêmica, vencida por
três votos a dois.
Vale destacar que as decisões do STF servem de referência fundamental para o
entendimento das leis e a conversão destas em tomadas de decisão pelos juízes em
todas as demais instâncias do Judiciário
65
. Se, por um lado, no sistema jurídico
brasileiro (Civil Law, centrado no código) a jurisprudência não possui a mesma
importância decisiva para futuras tomadas de decisão como ocorre no sistema jurídico
da Common Law, baseado nos costumes (como por exemplo, nos EUA e na
Inglaterra), por outro, não se pode menosprezar o papel interpretativo dos operadores
do direito e sua importância crucial para a contínua elaboração, reformulação ou
reiteração da ordem legal
66
. Como enfatiza Moore (1978), a ordem legal deve ser vista
como um processo ativo e não como um sistema fixo. Segundo a autora, as ordens
existentes são continuamente refeitas e transformadas, de modo que, mesmo mantê-
las ou reproduzi-las deve ser visto como processo (Moore, 1978: 6). Sendo assim,
observar as controvérsias e as disputas no âmago de uma decisão do STF ajuda a
perceber as leis como processo, como propõe Moore (1978).
64
Na época, 1996, todo pedido de habeas corpus era julgado pelo STF.
65
A hierarquia do sistema judiciário brasileiro pode ser resumida em: primeira instância, segunda
instância (tribunais de justiça – estaduais), Superior Tribunal de Justiça (STJ) e Supremo Tribunal
Federal (STF).
66
Principalmente, a partir da emenda constitucional n
o
45 (2004), que instituiu a reforma do Judiciário,
a partir da qual foram criadas as chamadas “súmulas vinculantes”, ou seja: as decisões reiteradas do
STF são sumuladas como padrão de entendimento que vincula a apreciação de causas semelhantes por
juízes de hierarquia inferior.
86
O caso em análise foi julgado pela segunda turma do STF, composta pelos
Ministros Marco Aurélio de Mello (Relator do caso), Francisco Rezek, Maurício
Corrêa, Carlos Velloso e ri da Silveira (Presidente da sessão). O STF é composto
por 11 Ministros
67
, sendo um responsável pela Presidência do órgão e os demais
agrupados em duas Turmas, com cinco integrantes cada. Os processos que chegam ao
STF dividem-se entre as duas Turmas para serem julgados. Em casos particulares,
pode ser convocado o Plenário (os 11 Ministros) para o julgamento.
Os documentos nos quais minha análise baseia-se consistem no relatório e nos
votos, com a argumentação de cada um dos cinco Ministros do STF que participaram
do julgamento do habeas corpus e o acórdão desse julgamento, com a decisão final. O
Relator votou pela concessão da ordem de habeas corpus, para a absolvição do
‘paciente’ (denominação equivalente a ‘réu’ em habeas corpus) pela prática do crime
de estupro. Dois Ministros Francisco Rezek e Maurício Corrêa o acompanharam
no voto, e dois – Carlos Velloso e Néri da Silveira - indeferiram o pedido. No entanto,
para minha análise, importa menos o resultado do julgamento do que os modos pelos
quais os discursos dos juízes constroem ou desconstroem a menoridade sexual.
Os argumentos dos Ministros constroem-se e se dividem, basicamente, em torno
da questão de se a presunção de violência a que se refere a alínea ‘a’ do artigo 224 do
Código Penal é relativa ou absoluta e as respectivas razões que fundamentam cada
uma das posições. Portanto, trata-se de uma discussão jurídica. Mas, como em todo e
qualquer embate de idéias, os argumentos o entremeados em visões de mundo.
Sendo assim, neste caso, através da discussão sobre o ‘problema’ da relação sexual
entre um ‘adulto jovem’ e uma ‘menina’, emergem diferentes concepções culturais
sobre: o papel das leis na proteção aos jovens e a extensão dessa proteção, a
construção social da capacidade de discernimento (e da divisão entre ‘capazes’ e
‘incapazes’), portanto, do sujeito racional completo, a relação entre adolescência e
sexualidade no mundo contemporâneo e os critérios que definem os limites da
menoridade, além da idade.
Antes de apresentar os argumentos específicos de cada Ministro que participou do
julgamento do habeas corpus, apresento a seqüência de ‘fatos’, tal qual construída -
através de depoimentos e provas - no processo. Como não tive acesso aos autos, senão
por trechos difusos citados pelos Ministros nos documentos que analisei, o nesses
67
Os juízes do Supremo Tribunal Federal, bem como dos Tribunais Superiores, têm status de Ministro,
por serem representantes da mais alta corte de um dos três Poderes, no caso, o Judiciário.
87
fragmentos que me baseio para relatar aqui, brevemente, os acontecimentos que
servem de base para a avaliação dos juízes.
O relacionamento entre o Paciente - o encanador Márcio Luiz de Carvalho, com
24 anos à época - e a menor - Maria Adelaide Noronha, com, então, 12 anos - teria
ocorrido em novembro de 1991, na cidade de Carmo de Minas, MG. Pela narrativa
nos autos, a menina conheceu o rapaz numa noite, enquanto estava na praça da matriz,
onde costumava ir com as amigas, e ele passou de moto. A menina contou que vinha
saindo de motocicleta com o rapaz, sempre indo a lugar deserto para troca de beijos e
carícias. Declarou que já fizera o mesmo com outros rapazes. Logo no primeiro
encontro, o rapaz e a menina montaram na motocicleta, dirigiram-se à cachoeira da
barra, pararam, passaram a trocar beijos e o rapaz começou a passar a mão no seu
corpo. A menina relata que o parceiro pedira gentilmente para que mantivesse consigo
conjunção carnal e que se recusara de início, mas cedera em face às carícias.
O último encontro aconteceu em 13 de dezembro de 1991, quando também
mantiveram relações sexuais. Na volta, Maria pedira a Márcio que a deixasse longe de
casa, visando fugir à fiscalização do pai que, ‘por falta de sorte’, a viu descer da
motocicleta e, ao que tudo indica, foi quem tomou a iniciativa de entrar com a ação
penal. Em depoimento, a vítima diz que se relacionou sexualmente com o réu por três
vezes e que na última ‘seu pai pegou’; que ela mantivera relações sexuais com o réu
na primeira vez que o encontrou, que tal relação não foi forçada e que assim agiu
porque ‘pintou vontade’.
Os votos dos Ministros que participaram do julgamento o se limitam a definir
uma posição a favor ou contra o habeas corpus. Os argumentos dos magistrados
refletem, problematizam e participam do processo de construção (e desconstrução) de
concepções culturais importantes que estão em jogo nas discussões sobre as leis da
idade do consentimento. Estas incluem noções sobre sexo, idades da vida e sobre os
fundamentos para a tutela legal de menores.
Para desclassificar o estupro, absolvendo o rapaz, diante desses ‘fatos’ que
comprovam a autoria e materialidade do crime pelo qual o jovem fora condenado, o
argumento legal do Relator, Ministro Marco Aurélio de Mello, é que teria ocorrido,
no caso, ‘erro de tipo’, ou seja: dado que a relação fora consentida e que o acusado
não tinha como saber que a menina era menor de 14 anos, portanto não poderia prever
que estava cometendo um crime, então não houve crime. Mas, se o ‘erro de tipo’ é a
razão legal para a concessão do habeas corpus, inocentando o rapaz pelo fato de não
88
ter tido condições de reconhecer que a menina era menor de 14 anos, os argumentos
morais utilizados pelos juízes para fundamentar o ‘erro de tipo’ buscam desconstruir a
menoridade da vítima.
O primeiro tipo de argumentação que inocenta o rapaz, no caso em análise, é o
que defende que este o poderia prever a menoridade da vítima, porque esta tinha
aparência e conduta de pessoa madura, não era mais virgem ou inocente, mas
experiente e promíscua.
A partir do exame da prova coligida, sustenta-se que não houve estupro em si,
que a vítima se passara por pessoa com idade superior à real, quer sob o aspecto
físico, quer sob aspecto mental, tendo confessado em Juízo que mantivera
relação sexual com o Paciente por vontade própria (Marco Aurélio de Mello).
O reconhecimento de ‘precocidadena aparência física e na conduta é seguido de
uma pressuposição de ‘precocidade’ no desenvolvimento psicológico. Trata-se de
uma concepção de que a pessoa se desenvolve de um modo integrado e coerente, em
todos os aspectos. Sob essa óptica, madura fisicamente, experiente sexualmente,
supõe-se que a menina tenha atingido também maturidade intelectual e moral para
consentir. Para os Ministros que validaram o seu consentimento, a aparência e a
conduta da menina foram consideradas mais importantes do que a idade biológica
para descaracterizar a sua menoridade, ao retirar-lhe o direito de tutela legal para
consentir em uma relação sexual.
Outra argumentação que fundamenta a decisão em favor do habeas corpus é a de
que o constrangimento seria o principal elemento para caracterizar o estupro e este
não é reconhecido no caso, em função da experiência anterior da menina e da ausência
de outras assimetrias além da diferença de idade.
Poderia, numa situação diversa desta dos autos, entender que houve algum
constrangimento, e que por isso, em razão da idade da vítima, presumiremos
violência, se qualquer elemento circunstancial contribuísse nesse sentido. Por
exemplo, se não fosse o réu um jovem operário, tão simples quanto a vítima sob
todos os aspectos, exceto a menoridade dela; se houvesse uma relação
hierárquica qualquer; se fosse ele o chefe, o tutor, o parente, o empregador, o
professor, o filho do patrão, o guru, o astro pop, o líder da banda.... (Francisco
Rezek)
Um terceiro fundamento para a relativização da presunção da violência e a
conseqüente defesa da inocência do rapaz é a acelerada mudança dos costumes e a
revolução comportamental no mundo contemporâneo, com o conseqüente
anacronismo do Código Penal na definição da idade que se supõe a ‘innocentia
89
consilii’ para o engajamento na relação sexual. Destacando a influência dos meios de
comunicação na socialização dos jovens, o Ministro Marco Aurélio de Mello afirma
que “nos nossos dias o crianças, mas moças de doze anos. Precocemente
amadurecidas, a maioria delas conta com discernimento bastante para reagir ante
eventuais adversidades”. Articulado a esse argumento está uma concepção de que “a
máquina judiciária não pode se abster de raciocinar”, ou seja, de que cabe aos juízes o
papel de flexibilizar as leis, através da atividade interpretativa, para acompanhar a
mudança dos costumes.
Seja enfatizando a aparência e a conduta pregressas, seja enfatizando a ausência
de outras assimetrias além da idade, os discursos dos Ministros que votaram pelo
deferimento da ordem de habeas corpus desconstroem a menoridade da menina, ao
descaracterizar, no caso, a pureza, a inocência e a vulnerabilidade associadas à
imagem infantil, lócus privilegiado da menoridade. Os dois votos seguintes, que
indeferem o pedido de habeas corpus, vão, ao contrário, procurar garantir o direito de
proteção legal da menina, reconstruindo a sua menoridade para consentir relação
sexual. Os argumentos procuram fundamentar a invalidação do consentimento da
‘adolescente’, ao enfatizar a sua essencial vulnerabilidade, inocência e imaturidade,
apesar de sua experiência sexual anterior e aparência física precoce.
Os Ministros que votaram pela denegação da ordem de habeas corpus defendem
que o critério de idade para a definição legal da ´menoridade´ é absoluto. Argumenta
o Ministro Carlos Velloso que “o que deve ser considerado é que uma menina de doze
anos não possui suficiente capacidade para consentir livremente na prática do coito”.
O primeiro argumento que fundamenta essa posição é baseado na psicogênese da
criança tal qual concebida pela psicologia do desenvolvimento, ou seja: de que o
amadurecimento cognitivo é um processo biológico, portanto a idade é um fator
determinante para avaliar o desenvolvimento da criança. Citando jurisprudência do
Tribunal de Justiça de São Paulo, Velloso destaca que: não dúvida de que o
legislador, ao fixar o limite de 14 anos, teve em mente a psicogênese da criança (...). É
evidente que um ser que se metamorfoseia dessa forma, até atingir o seu grau normal
de maturidade, não sabe querer”
.
Para justificar a tutela, ou seja, o impedimento legal de auto-gestão da
sexualidade, ele enfatiza dois aspectos que fundamentam a pressuposição de
incapacidade de ‘auto-controle’ em relação a jovens da faixa etária da vítima: a
natureza biológica dos ‘instintos sexuais’, que afloram na adolescência, tornando as
90
meninas púberes mais vulneráveis, e a ignorância sobre as conseqüências dos atos. A
tutela é, portanto, considerada não como uma opressão à vontade, mas como um
governo doce que controla os incontroláveis e/ou incompletos – sejam crianças,
mulheres, índios, escravos etc - para protegê-los. O fenômeno biológico enfatizado
nessa argumentação é a ´puberdade´, que estaria associada a um período de
perturbação psíquica que, somada à pouca experiência, tornaria frágil a vontade do
‘adolescente’.
Assim, emerge o segundo argumento de improcedência do pedido de habeas
corpus: o de que a tutela legal em relação à atividade sexual se justifica pela
vulnerabilidade dos jovens. A condição de menoridade é justificada por serem
considerados os adolescentes’ indivíduos incompletos e de personalidade indefinida,
ou seja: não tendo desenvolvido ainda a capacidade de auto-controle de seus instintos,
os ‘adolescentes’ são considerados incapazes para o exercício pleno da liberdade
sexual.
Exatamente por serem as jovens menores de 14 anos mais sujeitas, por sua
inexperiência, a ceder aos primeiros impactos amorosos, é que a lei maior
proteção. A sua deficiente resistência é característica normal da insegurança de
sua idade, em que o psiquismo se acha alterado ante as razões biológicas que o
impulsionam (...).Nesse estado de metamorfismo, a personalidade está por se
definir, sendo a menor presa fácil, um joguete na mão do adulto (Néri da
Silveira).
Segundo essa visão, a lei deve proteger ‘crianças’ e ‘adolescentes’, independente
de suas condutas. Segundo o Ministro Néri da Silveira, “mesmo que leviana, ainda
que apresente liberdade de costumes, essa menor merece toda a proteção legal”. Nos
termos do Ministro Carlos Velloso: “a afirmativa no sentido de que a menor era
leviana não me parece suficiente para retirar-lhe a proteção da lei penal. Leviana,
talvez seja, porque imatura, não tem, ainda, condições de discernir livremente”. A
abstenção seria, então, o melhor meio para precaver os riscos.
Um terceiro argumento contra a absolvição do rapaz é que o que determina o
estupro o é a inocência, mas a ausência de consentimento e que este, no caso da
menor, é inválido, tanto pelos argumentos já citados, como também por uma visão de
que não cabe ao magistrado substituir o papel do legislador para acompanhar a
mudança dos costumes.
A consideração de que a elaboração da lei penal haja tomado como fundamento
da ficção legal de violência, no caso dos adolescentes a innocentia consilii’ (...)
não autoriza o magistrado a substituir a atividade do legislador, na avaliação
desse pressuposto. Assim é, porque o código fixou, ele próprio, a idade e, de
91
modo algum deixou, ao critério aplicador, a aferição, em cada caso, da
maturidade da menor (ri da Silveira).
5.3 (Menor)idade e consentimento sexual
A noção central que permeia todas os argumentos é a de consentimento. Para
definir se houve ou não estupro o que se discute é a validade ou não do consentimento
da menina ou, em outros termos, a sua condição de menoridade. Retomo, portanto, as
questões apresentadas na introdução deste capítulo: o que sexo tem a ver com
consentimento? Como a capacidade de consentimento sexual pode ser definida? E
quem é considerado capaz para consentir?
A noção de consentimento é fundamental para uma concepção de sexualidade
marcada, simultaneamente, pela polaridade de gênero (masculino/ativo e
feminino/passivo) e por uma “estética dos prazeres compartilhados” (Foucault, 1985).
O consentimento é, portanto, uma noção que permite melhor conceitualizar a
diferença entre agência da alma e do corpo na relação sexual. Apesar da polaridade
atividade/passividade do ato sexual, cada um deve ser sujeito ativo do ponto de vista
do desejo.
Vale destacar que o consentimento nem sempre foi um elemento fundamental ou
suficiente na definição da legalidade da relação sexual. Como vimos no primeiro
capítulo, com o deslocamento de uma linguagem patriarcal para uma linguagem do
sujeito de direitos, a atividade sexual, que antes era definida a partir da polaridade
sujeito/objeto e era considerada legal dentro do casamento, passa a ser vista como
uma relação entre dois sujeitos e o dispositivo da sexualidade torna-se independente
do dispositivo da aliança (Foucault, 1988). A presença ou ausência do consentimento
passa, então, a ser o elemento central na definição da licitude da relação sexual.
Além disso, vimos que as primeiras leis que determinavam limites de idade para a
relação sexual visavam preservar a virgindade das moças e, por meio desta, a honra
das famílias. Nas leis da idade do consentimento atuais, por sua vez, o bem jurídico
tutelado não é mais a virgindade ou a inocência das moças, mas sim a liberdade
sexual das crianças e dos jovens, considerados sujeitos de direitos especiais. Sendo
assim, os conflitos contemporâneos sobre as leis da idade do consentimento são
localizados em debates sobre formas apropriadas de direitos de crianças e
adolescentes em relação à sexualidade. (Waites, 2005: 218).
92
De um estado de total subordinação à família ou aos tutores, as crianças e os
adolescentes passaram, nas últimas décadas do século XX, a ser considerados sujeitos
de direitos - a partir da aprovação da Convenção Universal de Direitos da Criança
pela Organização das Nações Unidas em (1989), no plano internacional; e do Estatuto
da Criança e do Adolescente (1990), no plano nacional. Surge, então, a necessidade de
encontrar formas de conciliar a compreensão de crianças e jovens como sujeitos
especiais, ou seja, tendo que ser protegidos e formados, mas também compreendidos
como indivíduos portadores de direitos. Esse é um dos dilemas que estão em jogo nos
debates em torno das leis da idade do consentimento nos dias atuais. Como resposta a
esse dilema entre os direitos de liberdade e de proteção, entendeu-se que as crianças e
os adolescentes como grupos minoritários devem, por suas características, receber
tratamento desigual em favor da igualdade de condições (Vianna, 2002).
A distribuição social de direitos e liberdades nas sociedades ditas ocidentais,
incluindo direitos de consentimento - nas atividades sexuais ou em outras atividades -,
foram historicamente estruturadas de maneira hierárquica. Desde o Iluminismo,
formas particulares de competência associadas à capacidade intelectual de ‘razão’ e
exercício do livre arbítrio foram valorizadas. Segundo Waites, this context implies
that the characteristics attributed to certain social groups have been systematically
linked to the kind of action which consent has been imagined to be” (Waites, 2005:
19). A noção de consentimento pode ser definida como uma decisão de concordância
voluntária tomada por um sujeito dotado de capacidade de agência e livre arbítrio.
Algumas campanhas feministas enfatizaram a clareza de distinção entre
consentimento e não consentimento, como em alguns usos do slogan anti-estupro ‘yes
means yes’ and ‘no means no’. Outra corrente do feminismo conceitualizou a
existência de um continuum entre o intercurso sexual heterossexual plenamente
consentido e o estupro. “The notion of a continuum more adequatately describes the
experiences of women who may ‘submit’ to sex without giving a more ‘active
consent’, implying greater agency. This is useful in conceptualising forms and degrees
of consent in sexual behavior involving children” (Waites, 2005: 21).
Nas leis da idade do consentimento, a noção de consentimento pode ser entendida
como um tipo particular de competência que é considerada fundamental para o
exercício do direito de liberdade sexual. O julgamento de quem é capaz de dar
consentimento significativo para o ato sexual depende dos tipos de competência que
se considera relevante. A competência considerada relevante para tomada de decisão
93
na atividade sexual é multidimensional, sendo concebida como uma combinação entre
competência intelectual (habilidade para processar informação relevante),
competência moral (capacidade para avaliar o valor social do gesto) e competência
emocional (entendida como habilidade para expressar e manejar emoções). Por vezes,
uma ou outra competência pode ser mais valorizada.
O princípio que fundamenta a menoridade sexual não é qualquer suposição de que
o jovem abaixo da idade definida legalmente não tenha desejo ou prazer sexual, mas
sim que este não desenvolveu ainda as competências consideras relevantes para
consentir uma relação sexual. Supõe-se que a competência para tomada de decisões
vem com o tempo, através de um processo de socialização no qual o sujeito racional
completo é (con)formado. Como se observou nos argumentos dos Ministros que
votaram contra o pedido de habeas corpus no caso analisado, até uma certa idade, o
menor é considerado incompleto, portanto, incapaz ou relativamente incapaz para essa
tomada de decisão. Sendo assim, o exercício de sua vontade deve ser tutelado pela lei
até que ele ou ela tenha se tornado um sujeito pleno para consentir livremente a
relação sexual.
Mas o reconhecimento de que a relação sexual entre ‘adultos’ e ‘adolescentes’
pode ser considerada consentida o implica em abandonar as tentativas de definir
relações não-coercivas como ‘abusivas’, como ficou claro no argumento do Ministro
Francisco Rezek. O Ministro reconheceria o ‘abuso’ se houvesse outros elementos de
desigualdade além da idade que pudessem configurar alguma forma de
constrangimento, ou seja, de contaminação da vontade. Nesse sentido, observa-se que
a noção de ‘abuso sexual’ não tem aqui qualquer relação com o risco de dano
psicológico, mas, sim, com uma relação de assimetria de poder que poderia
contaminar a liberdade de escolha.
A noção de risco é fundamental nos argumentos dos Ministros que consideram
absoluta a presunção de violência, no caso de sexo com menores de 14 anos. A
justificativa para proibir atividade sexual consentida com adolescentes é que estes são
presas fáceis em função da pouca experiência, imaturidade e instabilidade psíquica da
puberdade. De acordo com essa perspectiva, a lei deve desempenhar o papel de
guarda-chuva protetor de grupos vulneráveis, em benefício dos ‘menores’ e da
sociedade, como sugere Waites (2005).
Por fim, proponho, a partir da análise, que as problematizações morais em torno
da menoridade sexual não se resumem a um debate sobre normas que determinam
94
limites fixos de idade para definir a licitude das relações sexuais. Trata-se de um
conjunto de práticas discursivas que participam da construção de uma estética da
existência, nos termos de Foucault (1984)
68
, ou seja: mais do que coibir a existência
de certas práticas, as discussões em torno das leis da idade do consentimento
fornecem elementos a partir dos quais se estabelecem limites morais, que servem de
base para uma estilística de uma existência bela.
Entre as normas oficiais e o inaceitável existe uma rie de gradações e variações
nas práticas sociais cotidianas, que se aproximam e se afastam do ideal de ‘dever ser’.
Por isso, mais interessante do que observar a conformidade ou o a um código com
limites bem fixados, é analisar esse continuum hierárquico no universo das
transgressões legais e morais, mostrando como as práticas podem ser legitimadas,
toleradas, moralmente condenadas, judicializadas ou medicalizadas, de acordo com o
contexto e com a perspectiva de quem as avalia, como foi possível observar no estudo
de caso sobre o ‘escândalo’ em torno da relação sexual entre o professor de futebol e a
aluna ‘menor’.
Vale destacar que essas diferentes estratégias de controle social possuem graus de
institucionalização e efeitos diferenciados. No entanto, mais interessante do que
atentar simplesmente para essas diferenças e pensá-las como domínios separados é
perceber suas interconexões ao investigar os processos de circulação de um mesmo
problema pelos diferentes campos.
68
Deve-se entender com isso uma maneira de viver cujo valor moral não está em sua conformidade a
um código de comportamento nem em um trabalho de purificação, mas depende de certas formas, ou
melhor, certos princípios formais gerais no uso dos prazeres, na distribuição que deles se faz, nos
limites que se observa, na hierarquia que se respeita” (FOUCAULT,1984: 82).
95
Conexões finais
Até aqui, procurei analisar as estratégias de poder que tomam as relações sexuais
intergeracionais envolvendo ‘menores como alvo, a partir de três frentes: um
panorama histórico, um ‘escândalo’ local e uma perspectiva judicial. Meu intuito, ao
apresentar essas três perspectivas analíticas, foi mostrar como um problema circula
por diferentes níveis ou escalas. A parte final deste trabalho consiste menos em uma
“conclusão” ou um conjunto de “considerações finais” do que em um esforço de
estabelecer conexões entre essas diferentes escalas. Mas antes, é preciso explicitar o
que entendo e o que pretendo ao utilizar os termos problema e escala.
No início do segundo capítulo, sugeri que meu objetivo seria “passar de um
problema social a um problema sociológico(Duarte, 2006: 22). Entendo a noção de
problema social como algo que foge às normas estabelecidas e perturba a ordem
social e, por isso, é pensado como algo que deve ser controlado. É justamente o que
acontece com a relação sexual intergeracional envolvendo ‘menor’, como procurei
mostrar ao longo da dissertação.
Os mecanismos de poder utilizados para controlar aquilo que é considerado
problema social podem ser traduzidos a partir de dois modelos de controle históricos
propostos por Foucault (2001): o modelo da exclusão do leproso e o modelo da
inclusão do pestífero. O primeiro é caracterizado por práticas de exclusão,
marginalização e rejeição, marcadas pela divisão rigorosa, distanciamento, regra de
não contato e efeitos de desqualificação (Foucault, 2001: 54). O segundo é
caracterizado pela vigilância constante, observação próxima e meticulosa, análise sutil
e detalhada e policiamento minucioso que, ao invés de expulsar, define presenças
controladas (Foucault, 2001: 56/57).
Proponho que o problema sociológico é caracterizado por um outro mecanismo
que associo ao modelo do problema matemático. Com essa analogia o meu intuito é
sugerir que passar de um problema social a um problema sociológico consiste menos
em “excluir” ou “normalizar” do que desenvolver e “desemaranhar” aquilo que é
considerado problema. Um caminho para isso é traçar as conexões entre as
controvérsias propostas pelos próprios atores sociais, como sugere Latour (2005):
The task of defining and ordering the social should be left to the actors
themselves, not taken up by the analyst. This is why, to regain some sense of
order, the best solution is to trace connections between the controversies
themselves rather than try to decide how to settle any given controversy (Latour,
2005: 23, grifo no original).
96
Sendo assim, tomei as estratégias de controle social que buscam estabilizar as
controvérsias e re-estabelecer a ordem não como saídas ou soluções, mas como
objetos de análise. Ao observar, em situações concretas, a transformação de um fato
social em problema, meu objetivo foi mostrar como as normas e a ordem social são
menos as causas que justificam o controle do que o efeito do exercício de poder
contínuo.
Os efeitos do exercício do poder contínuo, que constitui as normas e a ordem
social, atravessam diferentes escalas e suportes, com níveis institucionais distintos.
Além disso, como destaca Barth (2000: 123), as próprias pessoas participam de
universos de discursos múltiplos, mais ou menos discrepantes; constroem mundos
diferentes, parciais e simultâneos nos quais se movimentam. A construção cultural
que fazem da realidade não surge de uma única fonte e não é monolítica”. A
coexistência desses múltiplos planos que se ligam e se sobrepõem é justamente o que
garante aos atores sociais uma maior possibilidade de trânsito e circulação, não só em
termos sociológicos, mas entre dimensões e esferas simbólicas (Velho, 1999: 27). Por
isso, considerei a perspectiva multidimensional como a estratégia mais apropriada
para desenvolver e desemaranhar o meu problema de pesquisa de modo mais
complexo.
Segundo Revel (1998: 14), a variação de escala é “um recurso de excepcional
fecundidade, porque possibilita que se construam objetos complexos e, portanto, que
se leve em consideração a estrutura folheada do social”. Vale salientar, contudo, que
ao optar por analisar três escalas um nível mais macro dos processos históricos, um
nível mais micro do ‘escândalo’ local e um nível intermediário das leis e dos
processos judiciais - não tenho a pretensão de dar conta da totalidade do fenômeno,
tarefa impossível, em função da natureza parcial de qualquer abordagem (Strathern,
2005)
69
. Tampouco me proponho a realizar uma análise descendente, “no sentido em
que deduziria o poder partindo do Estado e procurando ver aonde ele se prolonga
nos escalões mais baixos da sociedade” (Machado, 1979: XIII).
Meu objetivo ao apresentar três níveis analíticos de um mesmo problema é
contornar a dicotomia entre micro e macro, partindo da premissa de que “nenhuma
escala desfruta de um privilégio especial. Os macrofenômenos não são menos reais,
69
A autora define a alternância de escalas como uma troca de perspectiva, no sentido de “position-
takinge considera que the relativizing effect of knowing other perspectives exist gives the observer a
constant sense that any one approach is only ever partial, that the phenomena could be infinitely
multiplied” (Strathern, 2005: xiv).
97
os microfenômenos não são mais reais (ou inversamente): não hierarquia entre
eles” (Lepetit , 1998: 100). Sendo assim, procuro produzir um redimensionamento das
diferentes escalas, através da análise multidimensional, mostrando que “no places
dominates enough to be global and no place is self contained enough to be local”
(Latour, 2005: 204). Para isso, vou interconectar as escalas não segundo uma lógica
hierárquica de englobamento, mas, sim, a partir de uma nova relação topográfica, na
qual o macro o está acima ou entre as interações locais, mas é apenas mais uma de
suas conexões (Latour, 2005).
Como disse na introdução e foi possível observar ao longo da dissertação, a parte
mais substancial da pesquisa está situada nos três capítulos (II, III e IV) sobre o
‘escândalo’ em torno da relação sexual entre o professor de futebol de praia e sua
aluna ‘menor’, em um bairro da zona sul carioca. Foi nesse nível, que pode ser
entendido como a escala mais micro ou local da análise do problema, que optei por
situar o meu ponto de partida ou de ancoragem para traçar as conexões inter-escalares
nesta última parte da dissertação.
Apesar de concordar com a perspectiva de alguns micro-historiadores que
sugerem que “nenhuma das escalas de análise possíveis é em si detentora de um poder
de análise privilegiado” (Rosental, 1998: 152), era preciso escolher uma frente na qual
eu pudesse me aprofundar e realizar uma observação mais detalhada e, portanto, mais
complexa o que depende menos da escala escolhida do que do investimento
analítico do pesquisador (Strathern, 2005)
70
. Em função dos rumos que a pesquisa
empírica foi tomando (como mencionei no segundo capítulo, acabei aprofundando-me
mais no processo de construção do ‘escândalo’do que imaginei que seria possível), foi
essa frente que me permitiu uma análise mais complexa da construção do meu
problema de pesquisa.
Antes de iniciar as conexões propriamente ditas, é importante fazer uma última
observação sobre a questão das escalas. Se, a partir de uma comparação inter-escalar,
associei o ‘escândalo’ a um vel mais micro, porque mais local, por outro lado, é
possível identificar também estratégias de controle com níveis institucionais
diferenciados no interior de uma mesma escala. Ao analisar o processo de construção
do ‘escândalo’, procurei mostrar como este é atravessado por estratégias de controle
que estariam associadas a diferentes escalas: desde redes de fofocas locais e jogos
70
“What seems to keep the scale of detail constant is the intellectual activity of the observer/actor. A
‘small’ thing can thus be made to say as much as a ‘big’ thing” (Strathern, 2005: xix).
98
morais de acusação, que podem ser entendidos como um exercício de controle social
mais localizado, aestratégias que estariam associadas a um universo mais macro,
como a notícia jornalística, o inquérito policial e as técnicas terapêuticas
psicanalíticas. Procurei mostrar, também, como o campo judicial, que denomino
escala ‘intermediária’, pode ser analisado em diferentes níveis: uma escala mais
macro e estável dos códigos e outra mais micro e fluida das práticas judiciais.
Passo, agora, a traçar as conexões entre as três escalas inicialmente propostas,
tendo como ponto de ancoragem a análise do ‘escândalo’ local. Meu objetivo com os
demais capítulos o histórico e o judicial é, dessa forma, iluminar a análise da
construção do problema no nível mais micro e mostrar como as estratégias de poder
acionadas por uma determinada rede local em uma sociedade complexa não podem
ser pensadas de maneira isolada. As categorias ‘doente’ e ‘criminoso’, que aparecem
nos jogos morais de acusação analisados nos capítulos II, III e IV, por exemplo, não
são exclusivas desse micro-universo social. Como é possível verificar a partir da
apresentação do panorama histórico no primeiro capítulo, classificar uma determinada
conduta sexual como ‘criminosa’ ou ‘patológica’ são as duas principais
estratégias históricas de produção e controle social das ‘sexualidades desviantes’ e,
portanto, de normalização da conduta sexual nas chamadas sociedades ocidentais.
Além disso, a análise revela como diferentes estratégias de controle social
interpenetram-se e se influenciam reciprocamente, sem, contudo, se imiscuir. Vale
lembrar que não entendo as estratégias de controle social como instâncias repressoras,
mas como tecnologias positivas de poder, nos termos de Foucault (1988), ou seja:
como algo que constrói e institui comportamentos e percepções. Observa-se, ao longo
do trabalho, que cada tecnologia de controle apresenta densidade institucional e
efeitos específicos: o ‘escândalo’ é utilizado no controle das reputações sociais e dos
sentimentos individuais, as cnicas terapêuticas influenciam de maneira mais
decisiva as representações de si (Ricardo só parou de se auto-questionar sobre a
identidade de ‘pedófilo’ depois que consultou um psicanalista), o aparato judicial
controla os direitos legais e a liberdade dos indivíduos.
É importante notar ainda que contornar a dicotomia entre micro e macro o
significa negar as diferenças ou mesmo as assimetrias entre as escalas, mas apenas
não tomá-las como um a priori do pesquisador. É preciso explicar, portanto, por que a
decisão judicial do STF e os jogos morais de acusação em uma comunidade local
apresentam níveis institucionais diferenciados sem reificar as estratificações entre as
99
diversas instâncias de poder. Segundo Latour (2005), o que diferencia o micro e o
macro não é o tamanho, mas sim a qualidade e a quantidade de conexões. Nos termos
do autor:
Macro no longer describes a wider or larger site in which the micro would be
embeded like some Russian Matryoshka doll, but another equally micro place,
which is connected to many others through some medium transporting specific
types of traces. No place can be said to be bigger than any other place, but some
can be said to benefit from far safer connections with many more places than
others (Latour, 2005: 176).
Sendo assim, as leis não estão acima das avaliações morais, mas, devido à
abrangência dos seus efeitos através da virtualidade da intervenção das agências
estatais, elas se conectam a diferentes situações locais. Como se pôde observar no
relato sobre o encontro dramático na farmácia, no segundo capítulo, o conflito entre
Ricardo e o pai de Raquel (apoiado e seguido pelos transeuntes), a partir da
intervenção da guarda municipal, passa a ser mediado por dispositivos legais. Na
delegacia, os policiais rapidamente decodificam o discurso moral da denúncia do pai
em tipos legais do Código Penal. Além disso, a lei e a ‘menoridade’ legal de Raquel
foram freqüentemente apontadas pelos entrevistados, direta ou indiretamente, para a
condenação da relação entre Ricardo e Raquel, e também para a culpabilização do
‘maior’ e a vitimização da ‘menor’, como foi possível observar nos capítulos III e IV.
Seguindo a orientação foucaultiana (1979), considero que não se deve nem
minimizar o papel do Estado nas relações de poder existentes, nem tomá-lo como
órgão central e único de poder. Daí a importância de investigar as relações entre os
aparelhos de Estado e uma rede de poderes moleculares que se expande por toda a
sociedade. Foi o que procurei fazer no primeiro capítulo, ao traçar relações entre
mudanças nas leis que definem e regulam o ‘emaranhado da violência sexual’ e
transformações nos padrões culturais de sensibilidade. Indiquei também como as
classificações que constituem o ‘emaranhado da violência sexual’ não são governadas
exclusivamente por agências estatais, através de aparatos legislativos e judiciais.
Outros saberes, como a psiquiatria, e instituições sociais, como os meios de
comunicação de massa, desempenham também um papel fundamental na produção e
regulação desse emaranhado que articula discursos, práticas e sistemas
classificatórios. Como foi possível verificar nos capítulos sobre o ‘escândalo’, a
história da relação sexual entre o professor e a aluna ‘menor’ não se transformou em
causa judicial (por falta de iniciativa dos pais da jovem), mas virou caso psicanalítico.
100
A categoria pedofilia, proveniente dos sistemas de classificações da psiquiatria,
ganha visibilidade na imprensa a partir da segunda metade da década de 90, como
revela Landini (2006), e passa a ser a leitura mais comum no relato de casos que
envolvem crimes sexuais envolvendo vítimas ‘menores’. Do mesmo modo, o idioma
psi apareceu enquanto saber privilegiado para problematizar a relação sexual entre
Ricardo e Raquel e a ‘pedofiliaapareceu diversas vezes como categoria de acusação
para definir o ex-professor.
Observa-se, no entanto, que na decisão judicial do STF em nenhum momento é
problematizada pelos ministros a sexualidade do rapaz, mas tão somente a da menina.
Inclusive, o exame psicológico é realizado para determinar o equilíbrio mental e
emocional da vítima e não do agressor. Um dos magistrados, ri da Silveira, recorre
ao laudo psicológico que consta nos autos para afirmar que, apesar de não apresentar
problemas mentais, a vítima tinha distúrbios psicológicos
71
. Uma hipótese para
justificar essa ausência de preocupação dos magistrados para com o estado mental do
rapaz é que a ‘doença mental’, em geral, e a ‘pedofilia’, em particular, são utilizadas,
principalmente, para explicar crimes cometidos por “homens cultos” (recorte de
classe), como foi mencionado no primeiro capítulo. Na causa julgada pelo STF, tanto
a vítima quanto o paciente
72
o consideradas pessoas ‘simples’ em ‘todos os
aspectos’, como se pode verificar na argumentação do Ministro Franciso Rezek
73
.
Um outro ponto que merece ser destacado é o caráter generificado dos argumentos
tanto dos entrevistados que participaram da construção do ‘escândalo’, quanto dos
Ministros do STF. É latente nesses discursos a questão da ‘honra’ da família a partir
do controle da sexualidade feminina, tanto que foi o ‘pai’ quem protagonizou a
denúncia em ambos os casos. Sendo assim, como comentei brevemente no primeiro
capítulo (na parte que sugiro um deslocamento de enfoque de gênero para geração no
‘emaranhado da violência sexual), ainda que a ‘violência sexual’ contra criança tenha
ganhado contornos específicos e uma gravidade dramática, a figura da ‘menina’ -
duplamente vulnerável, pela idade e pelo gênero - é considerada a principal vítima de
71
Diz o laudo: “seu comportamento é instável, com falta de perseverança nas atividades, reagindo de
forma imatura às estimulações ambientais. Percebe-se também seu narcisismo e exibicionismo, com
fantasias no campo sexual. Encontra-se emocionalmente perturbada, esforçando-se para manter a
integridade do ego”.
72
Denominação eqüivalente a “réu” em hábeas corpus.
73
Poderia, numa situação diversa desta dos autos, entender que houve algum constrangimento (…) se
não fosse o réu um jovem operário, tão simples quanto a vítima sob todos os aspectos, exceto a
menoridade dela” – afirma Rezek.
101
‘abuso sexual’, noção marcada pela idéia de assimetria e não apenas de ausência de
consentimento. Como se pode verificar a partir da análise dos argumentos dos
magistrados, a exigência de ‘honestidade’ feminina para garantia de proteção legal é
transfigurada em exigência de ‘pureza’ infantil, de modo que, uma vez destituída de
‘inocência’, a jovem não é vista como ‘menina’, mas uma ‘moça’ de 12 anos
74
. O
mesmo processo de ‘desvitimização’ é verificado na fala dos entrevistados que não
consideram Raquel uma ‘menininha’.
Essa constatação nos leva a um dos pontos cruciais deste trabalho: a ‘infância’
como uma categoria cultural associada à noção de ‘vulnerabilidade’, ‘inocência’ e
‘incapacidade de auto-controle’ e como categoria social utilizada para classificar
sujeitos específicos. A associação de um determinado sujeito à noção de ‘infância’ faz
com que este seja considerado alguém que precisa ser protegido e controlado em
nome de seu “melhor interesse”, como propõe a doutrina que fundamenta as
legislações modernas voltadas para ‘crianças’ e ‘adolescentes’, representada no Brasil
pelo ECA (1990). Sendo assim, a ‘incapacidade legal’ de auto-gestão que define a
dimensão tutelar da ‘menoridade’ apóia-se na idéia de uma ‘incapacidade natural’ que
define uma ‘fase da vida’. No entanto, diferentes atividades são associadas a
diferentes ‘menoridades’ (no sentido de incapacidade natural e/ou legal de auto-
gestão), de modo que a questão crucial não é tanto saber se determinado sujeito é
considerado ‘criança’ ou não, mas, sim, considerado ‘criança’ para quê.
No que se refere à menoridade sexual, como vimos, a definição de uma idade
específica a partir da qual o sujeito é considerado capaz de consentir livremente uma
relação sexual é objeto de controvérsias, tanto no universo judicial, como na vida
social. No entanto, não é igualmente controversa a idéia de que o sexo entre um
‘adulto’ e uma ‘criançaconfigura uma relação ‘abusiva’
75
, seja qual for o argumento
utilizado para caracterizar esse ‘abuso’ (desigualdade social ou essencial da criança,
risco de trauma psíquico, ameaça à inocência da infância etc).
Como destaca Gluckman (1955: 9), muitas vezes, “difficulties in dispute arise not
over what is the appropriate legal or moral rule, but over how the rule applies in
74
“Nos nossos dias não crianças, mas moças de doze anos. Precocemente amadurecidas, a maioria
delas conta com discernimento bastante para reagir ante eventuais adversidades” (Marco Aurélio de
Mello, Ministro do STF).
75
As reivindicações dos movimentos sociais de ‘pedófilos’, que apresentei brevemente no capítulo V,
parecem ser as únicas que realmente questionam a natureza ‘abusiva’ da relação sexual entre ‘adultos’
e ‘crianças’, propondo uma nova maneira de pensar o sexo em relação à infância e a infância em
relação à fase adulta.
102
particular circumstances”. Por isso, a análise de casos concretos é particularmente útil
para observar o funcionamento das estratégias de controle social para além das regras
aparentemente fixas.
Tal qual se pôde observar ao longo da dissertação, o que é objeto de controvérsias
e negociação - tanto na causa em torno do ‘estupro com violência presumida por
menoridade julgada pelo STF, quanto no ‘escândalo’ em torno da relação sexual
entre o professor e a aluna ‘menor’ - não é a possibilidade de aceitação moral e/ou
legal do sexo entre ‘adulto’ e ‘criança’, mas, sim, a classificação de sujeitos
específicos como ‘criança’. A ‘adolescência’ aparece, então, como uma noção
associada a um período de borramento de fronteiras, que torna mais difícil estabelecer
definições precisas.
Como argumentei anteriormente, mais interessante do que analisar os códigos e
modelos ideais bem fixados é analisar as controvérsias, as negociações e as disputas,
diante de casos concretos, entre o moralmente aceitável e o inaceitável. Nesse sentido,
a menoridade sexual não depende apenas da idade cronológica para ser construída e
descontruída, como procurei mostrar ao longo da dissertação. Como se pôde observar
nos argumentos que constituem o ‘escândalo’ (capítulos II, III e IV), uma
multiplicidade de fatores combinam-se para negociar a menoridade de Raquel, dentre
eles: o exame do comportamento e da personalidade da jovem, a avaliação do tipo de
relação e das distâncias sociais entre a ‘menor’ e o ‘maior’ com o qual ela se
relacionou sexualmente e a análise do contexto no qual a relação aconteceu. Todos
esses elementos, de maneira mais ou menos explícita, também são analisados pelos
Ministros do STF (capítulo V) para avaliar se houve ou não ‘constrangimento’ (que
define o ‘estupro’) e se a menina era ou não capaz de consentir (que define a
presunção de violência por menoridade). No entanto, na decisão final mais
formalizada, os Ministros do STF precisam, de certo modo, simplificar ou traduzir a
complexidade dos argumentos em um único critério - a capacidade de consentimento
da jovem.
As conexões entre as diferentes escalas revelam, portanto, que os níveis mais
macros tendem a se apresentar como simplificações daquilo que aparece em escalas
menores de maneira mais complexa e fluida, como a definição da menoridade sexual.
Isso ocorre justamente para que o macro possa conectar-se às mais diversas situações
particulares e se transforme de maneira mais lenta. Isso não significa que as
definições que nos parecem mais estáveis não estejam também em constante
103
movimento, como procurei mostrar a partir da análise dos processos históricos e das
práticas judiciais.
Ao traçar algumas conexões entre as três escalas analíticas apresentadas nesta
dissertação, meu objetivo foi iluminar os cruzamentos entre sexualidade e
(menor)idade e mostrar como a relação entre os diferentes níveis de um mesmo
problema não é de englobamento, mas sim de continuidade e de descontinuidade.
Vale destacar que, como afirma Strathern (2005), as conexões são sempre parciais. E,
sendo assim, “an answer is another question, a connection a gap, a similarity a
difference, and vice versa” (Strathern, 2005: xxiv). Espero, então, que as conexões e
as respostas construídas neste trabalho encontrem novas rupturas e novas perguntas, e
as perguntas e brechas encontrem respostas e conexões provisórias a cada nova
leitura.
104
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