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CARINA FIOR POSTINGHER BALZAN
CARL WINTER: UM ALEMÃO EM SANTA FÉ
Dissertação de Mestrado submetida à
Banca Examinadora designada pelo
Programa de Pós-Graduação em Letras e
Cultura Regional da Universidade de
Caxias do Sul. Linha de pesquisa:
Literatura e Cultura Regional.
Orientador: Prof. Dr. Flávio Loureiro Chaves
Caxias do Sul
2008
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DEDICATÓRIA
Ao meu marido Cássio, pelo apoio incondicional.
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AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador Prof. Dr. Flávio Loureiro Chaves, a quem muito admiro, por ter
guiado minhas idéias com sabedoria e paciência.
Aos demais professores do Programa de Mestrado em Letras e Cultura Regional, pela
colaboração e incentivo durante todo o processo de construção da dissertação.
Aos colegas de aula, principalmente à Lisiane Delai, Cinara Fontana Triches, Karina
Lucena e Antonio Evaristo Zanchin de Campos, pelas divertidas conversas nos intervalos e
pela amizade, que será para a vida inteira.
À Ariela, pela dedicação e simpatia com que atende a todos.
À minha família, pela confiança sempre depositada.
3
EPÍGRAFE
Somente aos olhos de outra cultura que a
cultura alheia se manifesta completa e
profundamente.
Mikhail Bakhtin
4
RESUMO
Esta dissertação investiga a representação do imigrante alemão no Rio Grande do Sul
em O Continente (1949), de Erico Verissimo. Para tanto, analisa os recursos narrativos
empregados pelo escritor na construção da personagem imaginária e aborda a importância do
texto literário ao propor uma perspectiva do processo histórico. A pesquisa apresenta uma
discussão interdisciplinar da questão História e Literatura, admitindo contribuições teóricas da
Sociologia e da Antropologia.
PALAVRAS-CHAVE:
Erico Verissimo: O Tempo e o Vento; Carl Winter; personagem imaginária; História e
Literatura; imigração alemã no Rio Grande do Sul
5
ABSTRACT
This study investigates the representation of the German immigrant in Rio Grande do
Sul in O Continente (1949), by Erico Verissimo. For that, analyses the narrative resources
used by the writer in the construction the imaginary personage and approaches the importance
of the literal text to propose a perspective of historical process. The research presents a
interdisciplinary discussion of question History and Literature, admitting theoretician
contributions of Sociology and Anthropology.
KEY-WORDS:
Erico Verissimo: O Tempo e o Vento; Carl Winter; imaginary personage; History and
Literature; German immigration in Rio Grande do Sul
6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 8
1 O IMIGRANTE ALEMÃO NO RIO GRANDE DO SUL 13
1.1 Breve histórico da imigração alemã no Rio Grande do Sul 13
1.2 O perfil do imigrante alemão 25
1.3 Contextualização da personagem Carl Winter no panorama da imigração 37
2 A PERSONAGEM CARL WINTER NA NARRATIVA DE O TEMPO E O VENTO 42
2.1 A personagem 42
2.2 O fundamento histórico 45
2.3 A biografia imaginária 48
2.4 A formação 53
2.5 O estrangeiro cruza a fronteira 76
2.6 Carl Winter no mapa social/humano de Santa Fé 84
2.7 A expressão do pensamento 91
2.7.1 Os diários 92
2.7.2 A correspondência 94
2.7.3 Discurso direto e discurso indireto livre 104
2.8 A questão da verossimilhança 110
3 O OLHAR DO FORASTEIRO 116
3.1 “Uma sociedade tosca e carnívora” 116
3.2 Destruição e preservação 143
3.3 Admiração e rejeição 166
CONSIDERAÇÕES FINAIS: HISTÓRIA E LITERATURA 175
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 185
INTRODUÇÃO
7
Adentrar no âmago de uma personagem literária e tentar desvendar-lhe as minúcias
não constitui uma tarefa simples. Primeiramente porque a personagem é um ser fictício, um
ser criado, baseado ou não em um modelo real. Em seguida, a questão do criador, o
escritor, que concebe a personagem atribuindo-lhe certas características pré-definidas, de
acordo com a função que lhe será estabelecida dentro da estrutura narrativa. Isso significa que
a dimensão das personagens não é ditada unicamente pela capacidade de análise e
interpretação do leitor. Dependendo das intenções e, principalmente, de sua perícia, o escritor
vai manipular o discurso, construindo essas criaturas, que, depois de prontas, fogem ao seu
domínio e permanecem no mundo das palavras à disposição das interpretações que esse
discurso possibilita aos incontáveis leitores. Sendo assim, aventurar-se no mundo de um ser
fictício requer uma cuidadosa interpretação dos recursos utilizados pelo escritor para construir
a personagem de modo que ela cause uma impressão de verdade, atentando para as pistas
fornecidas pelo texto literário, único dado concreto para a análise.
Beth Brait (1999) dizia que, ao lembrarmos de personagens ao longo da tradição
literária, algumas nos tocam de tal forma que temos a impressão de terem existido numa
dimensão que as torna imortais e capazes de falar eternamente das possibilidades da
existência humana. E, quando nos deparamos com essas personagens, reportamo-nos
necessariamente ao poder de caracterização de seus criadores. Através deles, segundo a
autora, chegam-nos personagens cuja consistência aponta para uma escritura que, espelhando
os movimentos da realidade, cria e impõe seus próprios movimentos. Assim, a sensibilidade
do escritor, a sua capacidade de observar o mundo e captar nos seus movimentos a
complexidade dos seres que o habitam realiza-se na articulação verbal.
É mediante o uso da linguagem que o escritor vida ao ser fictício, articulando
seus movimentos e pensamentos, caracterizando seu modo de ser, definindo sua visão do
mundo. A personagem, ser de linguagem, somente realiza a passagem do texto literário à
vida, no momento em que sua existência se concretiza na mente dos leitores. E tanto mais ela
dará a impressão de um ser real quanto maior for a capacidade de caracterização do escritor.
Assim como os seres humanos, as personagens são caracterizadas física e
psicologicamente, são envolvidas pela engrenagem dos acontecimentos, vivenciam as mais
diversas situações, deixando transparecer sentimentos como amor, ódio, compaixão, saudade,
desprezo, vingança, alegria, melancolia.
8
Antonio Candido (1998) explica que as personagens encontram-se integradas num
denso tecido de valores de ordem cognoscitiva, religiosa, moral, político-social e tomam
determinadas atitudes em face desses valores. Muitas vezes precisam decidir-se em face da
colisão de valores, passam por terríveis conflitos e enfrentam situações limites em que se
revelam aspectos essenciais da vida humana: aspectos trágicos, sublimes, demoníacos,
grotescos ou luminosos.
Nesse sentido, a obra literária é o único lugar em que nos defrontamos com seres
humanos de contornos definidos e definitivos, em ampla medida transparentes, vivendo
situações similares as da existência real. Segundo o autor:
A ficção é um lugar ontológico privilegiado: lugar em que o homem pode
viver e contemplar, através de personagens variadas, a plenitude de sua
condição, e em que se torna transparente a si mesmo; lugar em que,
transformando-se imaginariamente no outro, vivendo outros papéis e
destacando-se de si mesmo, verifica, realiza e vive a sua condição
fundamental de ser autoconsciente e livre, capaz de desdobrar-se,
distanciar-se de si mesmo e de objetivar a sua própria situação.
(CANDIDO, 1998, p.48).
Por meio das personagens o leitor contempla e ao mesmo tempo vive as
possibilidades humanas que a sua vida pessoal dificilmente lhe permitiria viver. Ele envolve-
se com a personagem, comove-se com ela, chora com seu sofrimento e se alegra com seu
triunfo, projeta nela suas expectativas e desejos mais recônditos.
Ao lembrarmos de personagens que marcaram a literatura rio-grandense, algumas
configuram-se em nossa imaginação como se realmente tivessem existido; é o caso de Ana
Terra, de um certo Cap. Rodrigo Cambará, de Bibiana, Rodrigo Terra Cambará, Floriano,
protagonistas da trilogia O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo. Tamanha é a força de
caracterização dessas personagens que a obra do escritor gaúcho tornou-se um campo
profícuo tanto para os estudos literários quanto para os estudos sobre cultura regional.
O Tempo e o Vento, por ser um romance histórico, representa a formação e o
povoamento do Rio Grande do Sul num período compreendido entre 1745 e 1945. Nessa
obra, a história individual das personagens, cada uma em sua época, se desenrola ao mesmo
tempo em que é narrada a História do Rio Grande do Sul, com suas guerras e revoluções.
Assim, ficção e realidade se entrelaçam para compor o projeto de Erico Verissimo de
interpretar a História da Província de São Pedro, na tentativa de desmistificá-la.
9
Nesse processo, o escritor denuncia a decadência e a falência do sistema oligárquico
e patriarcal da sociedade gaúcha, baseado no binômio: grandes latifundiários e estancieiros
versus escravos, peões e assalariados, sucessivamente. Através de uma multiplicidade de
vozes narrativas e da justaposição de grupos dominantes e setores marginalizados, Erico
Verissimo cria uma tensão entre elementos contrastantes: masculino/feminino; poder/rebeldia;
ricos/pobres. Esses contrastes, que ocorrem tanto no nível de conflitos individuais quanto no
nível histórico através das gerações, servem para desmistificar a “grandeza” no conjunto
sócio-econômico rio-grandense que perdurou até meados do século XX. Assim, a presença de
personagens mais humildes na narrativa subverte, pela miséria permanente da sua condição,
os momentos de suposta grandeza das camadas hegemônicas.
Dentro do grupo de personagens que contrastam com os representantes do
patriarcalismo rio-grandense estão os imigrantes açorianos, alemães e italianos, cuja trajetória
na narrativa reflete sua importância para a formação e constituição da sociedade gaúcha.
Nesse sentido, surge a necessidade de se realizar um estudo mais aprofundado sobre essas
personagens, que não são classificadas como protagonistas da narrativa, mas sem as quais não
seria possível a análise crítica do Rio Grande do Sul, proposta por Erico Verissimo.
Visto que a maioria dos estudos sobre a obra do escritor gaúcho se detém na análise
dos protagonistas, pretendemos, nesta dissertação, analisar o processo de construção da
personagem Carl Winter, um elemento crucial entre os imigrantes alemães, presente no
romance O Continente, primeira parte da trilogia. Dessa forma, evitamos abordar questões
bastante esmiuçadas, o que tornaria o trabalho redundante, e direcionamos nosso olhar para
uma temática até então pouco explorada dentro dos estudos sobre O Tempo e o Vento.
Dentre a galeria de personagens criadas por Erico Verissimo, o Dr. Carl Winter
merece uma atenção especial. Através dos comentários dessa personagem, um estrangeiro de
cultura européia, Erico Verissimo encontra uma forma de comentar o âmbito cultural dos
moradores de Santa e, freqüentemente, criticar os mitos mantidos pelas forças dominantes
da sociedade gaúcha.
Atendendo aos requisitos do Programa de Mestrado em Letras e Cultura Regional, da
Universidade de Caxias do Sul, nossa pesquisa segue a linha dos estudos literários e necessita
de um quadro teórico baseado na Teoria da Literatura. No entanto, a questão que analisamos
torna-se um pouco mais complexa: Carl Winter é representante de uma temática histórica, a
imigração alemã no Rio Grande do Sul, e observa a sociedade gaúcha com base em outra
cultura, a européia, o que nos incita a buscar auxílio teórico em disciplinas como a História, a
Antropologia e a Sociologia, configurando o caráter interdisciplinar desta investigação.
10
Assim, pela ausência de uma teoria norteadora única, a dissertação em forma de
ensaio crítico permite um diálogo entre as diversas disciplinas que contribuíram para a análise
da construção da personagem em questão. Além do mais, pela análise da personagem Carl
Winter, evidencia-se o poder do texto literário de iluminar os estudos culturais, já que também
trabalha com representações da humanidade. Para uma melhor organização de nosso estudo,
dividimos o trabalho em três grandes capítulos, subdivididos em itens.
Intentamos, primeiramente, esboçar um panorama da imigração alemã no Rio
Grande Sul, a fim de entender suas causas e conseqüências para o Estado, bem como traçar o
perfil dos imigrantes que deixaram a terra natal para iniciar uma nova vida no Brasil. Dessa
maneira, entendendo o fato histórico pudemos relacionar a personagem Carl Winter a essa
temática, verificando em que medida ela corresponde ao perfil dos imigrantes alemães que se
estabeleceram no Rio Grande do Sul. Nessa primeira parte, a História ofereceu-nos os
subsídios teóricos, principalmente através dos estudos de Jean Roche (1969).
O segundo capítulo é destinado à análise dos recursos narrativos empregados por
Erico Verissimo na construção da personagem Carl Winter. Nessa parte, com base na Teoria
da Literatura, verificamos como o escritor caracteriza a personagem através de dados
biográficos, perfil físico, formação intelectual e cultural, participação no enredo de O
Continente, relação com as demais personagens e meios empregados para expressar seus
pensamentos, como diários, correspondências, discursos direto e indireto livre, atentando à
contribuição desses recursos para a questão da verossimilhança da personagem e da narrativa.
Sendo Carl Winter representante de uma temática histórica e proveniente de uma outra
cultura, neste capítulo contamos com a contribuição de teóricos da Antropologia e da
Sociologia.
No terceiro capítulo dedicamo-nos à analise das observações que a personagem,
munida de uma formação intelectual e cultural, realiza da sociedade rio-grandense. Carl
Winter observa a sociedade rio-grandense de “fora para dentro” e revela aspectos da cultura
local impossíveis de serem percebidos por alguém que está no interior dela. Ele analisa de
forma crítica o papel dos homens e das mulheres na formação do Rio Grande do Sul, a
questão das guerras, do analfabetismo, do isolamento em que se encontrava a região sul em
relação ao centro do país. Mais uma vez, aqui, recorremos à complementação teórica das
disciplinas auxiliares.
A parte final destina-se a uma reflexão, baseada na personagem analisada, sobre a
relação entre História e Literatura, apontando a diferença entre as duas, mas ressaltando a
contribuição que ambas podem prestar aos estudos culturais. Apontamos a importância da
11
História para a Literatura, como fonte de inspiração para a criação literária, e a relevância do
texto literário como forma de interpretação do evento histórico, podendo apresentar uma nova
versão para o fato ou até mesmo desconstruir a versão do relato historiográfico.
A partir deste estudo, enfim, pudemos perceber que o interessante de um bom texto
literário é que ele nunca está esgotado em sua plurissignificação. Mesmo adotando como
objeto de análise uma das obras mais estudadas da literatura rio-grandense, O Tempo e o
Vento, enfrentamos o desafio de lançar um novo olhar sobre suas personagens, revelando o
Dr. Carl Winter como um elemento crucial dentro da estrutura narrativa, tirando-o do segundo
plano e elevando-o à categoria de personagem principal, ao lado de Ana Terra, Capitão
Rodrigo, Bibiana e Floriano Terra Cambará. Dessa forma, contribuímos para a fortuna crítica
de Erico Verissimo bem como para os estudos culturais, que relacionamos a personagem à
formação histórica do Rio Grande do Sul.
12
1 O IMIGRANTE ALEMÃO NO RIO GRANDE DO SUL
1.1 Breve histórico da imigração alemã no Rio Grande do Sul
Na trilogia O Tempo e o Vento, Erico Verissimo cria um grupo de personagens que
servem para contrastar com a classe patriarcal gaúcha, composta pelos grandes estancieiros,
detentores do poder econômico, político e social do Rio Grande do Sul. Dentre essas
personagens encontra-se aquela que é objeto de estudo da presente dissertação de mestrado: o
doutor Carl Winter, um imigrante alemão, que passa a residir em Santa Fé, território
imaginário que constitui o cenário da narrativa de Erico Verissimo. Dessa forma, antes de
iniciarmos a análise da personagem, faz-se necessário realizar um breve estudo sobre a
imigração alemã no Rio Grande do Sul, a fim de facilitar a compreensão da organização
social e da cultura que abriga Carl Winter.
o pretendemos, contudo, realizar uma análise aprofundada sobre um tema tão
complexo como o da imigração alemã, limitando este estudo a um breve histórico da
imigração, suas causas e conseqüências para o Rio Grande do Sul, além de algumas
referências a respeito da organização econômica e social das primeiras colônias formadas
pelos cidadãos de origem germânica em nosso Estado.
A história da imigração de europeus para o Brasil inicia-se somente em princípios do
século XIX. Até então, o povoamento brasileiro havia se realizado através da vinda
espontânea de colonos brancos, em sua maioria portugueses, da importação de escravos e da
incorporação de indígenas. Não havia, portanto, correntes imigratórias organizadas por uma
política intencional do governo. Os poucos casos de imigração provocada por uma política
oficial, ocorridos antes do século XIX, tiveram como objetivo povoar e ocupar regiões de
valor estratégico, refutadas pela imigração espontânea, já que não eram propícias à produção
de gêneros tropicais de grande valor comercial na época, como o açúcar e o café.
Esse povoamento aconteceu, por exemplo, nas zonas fronteiriças que estavam
expostas à concorrência espanhola Santa Catarina e Rio Grande do Sul cuja posse a
Metrópole pretendia assegurar. Essa região era muito disputada entre Portugal e Espanha,
sobretudo porque a linha de Tordesilhas fixava como limite do domínio português Laguna,
em Santa Catarina, ficando o sul praticamente sob o domínio espanhol. Mesmo depois da
revogação deste Tratado, as hostilidades entre os dois países continuaram pela posse da terra.
13
A essa disputa acrescia-se o fato de estar o sul do país distante do núcleo político
colonial e nacional, constituído por Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. Distância que
propiciava o isolamento dos grupos que viviam, fazendo com que tivessem uma vida
política, social e econômica própria e relativamente estável, compartilhando inclusive seus
interesses com os da vizinha região do Prata.
Para amenizar a independência do sul em relação ao centro do país, através da
iniciativa do governo brasileiro, foram recrutados povoadores entre as camadas mais pobres
da população portuguesa, facilitando-lhes a vinda através da concessão de grandes vantagens:
pagamento do transporte, demarcação prévia das terras e fornecimento gratuito de
instrumentos agrícolas, sementes, animais, etc.
Por outro lado, a organização social brasileira de princípios do século XIX quase não
oferecia oportunidades à instalação de imigrantes europeus, os quais se defrontariam com a
concorrência da mão-de-obra servil, com a inexistência de mercados internos e de
equipamento industrial, com a ausência de meios de comunicação, com a penúria das terras
devolutas. Dessa forma, como apontam Aldair Marli Lando e Eliane Cruxên Barros (1996,
p.11), a questão da imigração européia para o Brasil está intimamente ligada ao problema da
escravidão. O sistema escravista vigente no país consistia num sério obstáculo à expansão
capitalista inglesa, que nessa forma de trabalho o escravo era privado de poder aquisitivo,
limitando a expansão do mercado. Sendo assim, tornava-se necessária a abolição da
escravatura.
Defendendo seus interesses, a Inglaterra pressionou Portugal a comprometer-se em
abolir o sistema de produção baseado na mão-de-obra escrava. Além do mais, a existência do
regime de escravidão tornava-se um empecilho ao fluxo imigratório, o que se verifica nas leis
do Governo Central ou das Províncias, onde havia certas medidas proibindo a coexistência de
escravos e estrangeiros numa mesma colônia: A cada uma das Províncias do Império ficam
concedidas no mesmo, ou em diferentes lugares de seu território, seis léguas de terras
devolutas, as quais serão exclusivamente destinadas à colonização e não poderão ser roteadas
por braços escravos”
1
.
A necessidade de intensificação do povoamento nas zonas fronteiriças do sul do país,
a estrutura montada pelo sistema de colonização oficial, concedendo vantagens à imigração
estrangeira, ao lado da elaboração de leis favoráveis a este processo, a inexistência de
concorrência entre a atividade que se desenvolvia no latifúndio e a que seria desenvolvida na
1
Lei nº 514 de 28/10/1848, art.16. In: Coleção das Leis do Império. Tipografia Nacional, 1949, tomo 10, parte 1.
In: DACANAL, José Hildebrando (org.).RS: Imigração e Colonização. 3. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1996, p.11.
14
pequena propriedade e a exigência de consumo dos centros urbanos, constituíram fortes
fatores que impulsionaram o processo de imigração européia ao Rio Grande do Sul,
favorecida também pelo número reduzido de mão-de-obra escrava que ali se encontrava.
Dessa maneira, os imigrantes que se dirigiram ao Rio Grande do Sul foram atraídos
por uma política governamental que pretendia, fixando-os a terra, formar colônias que
produzissem gêneros necessários ao consumo interno. Além disso, localizadas próximas de
um centro urbano, mas suficientemente distantes dos grandes latifúndios, as pequenas
propriedades rurais não representariam uma ameaça à hegemonia política e econômica do
patriarcalismo rio-grandense.
No entanto, Loraine Slomp Giron (2004, p.58), aponta ainda outro motivo, defendido
pelos eugenistas, para o incentivo das correntes imigratórias ao Brasil. De acordo com ela, “a
vinda da mão-de-obra européia branca e livre deveria, em algumas dezenas de anos,
branquear a população pela própria superioridade racial, ou seja, por meio da seleção natural”.
A compra de escravos africanos que serviu aos interesses da Inglaterra nos séculos
XVI e XVII, bem como aos dos grandes latifundiários e donos de engenhos de açúcar do
Brasil, aumentou o número de não-brancos que, somados aos indígenas, deixaram a raça
branca em minoria. Dessa forma, a política de imigração e colonização adotada pelo Império,
teria também a intenção de branquear progressivamente a população, formada pela intensa
miscigenação de brancos, índios e negros, acreditando melhorar, assim, as condições da
civilização nacional.
na Europa, conforme apontam Sílvio Aloysio Rockenbach e Hilda Agnes Hübner
Flores (2004, p.11-12), vários acontecimentos no século XIX também favoreceram a
emigração para o Brasil, como as guerras napoleônicas, os movimentos socialistas de 1848 e
as guerras de unificação da Alemanha, em 1871, que causaram mortes, devastação de
plantações e fome. Além disso, o serviço militar durava três anos ou mais, os impostos eram
elevados, as famílias numerosas não mais sobreviviam com a agricultura, pois sucessivas
divisões hereditárias transformaram as propriedades em frações de terras muito reduzidas, que
também eram improdutivas pela contínua exploração. Ao mesmo tempo, o processo de
industrialização, iniciado na Inglaterra no século XVIII e estendido ao centro da Europa,
provocou profundas alterações na estrutura sócio-econômica, fazendo o camponês transferir-
se para a cidade, onde passou à condição simples de operário, obrigado a trabalhar muitas
horas por dia por um salário medíocre, vivendo em péssimas condições de saneamento.
Nesse contexto, a falta de empregos gerada pela criação de máquinas que substituíam
o trabalho de dezenas de operários e a superpopulação tornaram-se fatores de grande
15
apreensão e fome, fazendo milhares de europeus deixarem a pátria em busca de uma vida
melhor.
O ano de 1824 marca o início da imigração ale no Rio Grande do Sul, com a
chegada e instalação de trinta e oito imigrantes à Real Feitoria do Linho Cânhamo, atual
cidade de São Leopoldo, terras que eram propriedade da coroa, exploradas até então, sem
sucesso, com mão-de-obra escrava. Sob ordem de D. Leopoldina, de origem germânica,
esposa de D. Pedro I, coube ao major Jorge Antonio Schaeffer, a responsabilidade de recrutar
agricultores alemães para as colônias do Estado, ocultando entre eles soldados para formar os
batalhões estrangeiros contratados desde 1823 para defender a recém-formada Nação
Brasileira das tropas portuguesas que, mesmo depois de proclamada a Independência,
resistiam em retirar-se.
De posse de uma procuração que o nomeava “Agente de afazeres políticos do
Brasil”, Schaeffer encontrou inicialmente grandes dificuldades em contratar soldados na
Alemanha. A exportação de soldados era proibida, desde o Congresso de Viena em 1815, pois
as grandes potências européias (Prússia, Inglaterra, Áustria e Rússia) temiam o surgimento de
um outro “Napoleão” no mundo, e D. Pedro I, com a Independência do Brasil, fora
considerado um usurpador do poder, um rebelde traidor do próprio pai.
Porém, enquanto que em alguns Estados alemães havia a proibição, em outros os
cidadãos tinham direito à emigração, principalmente nos Estados da atual Renânia onde, pela
proximidade com a França, a destruição provocada pela guerra havia sido maior e onde mais
se fizeram sentir os efeitos do fim do feudalismo. Cerca de 50% dos imigrantes que chegaram
ao Brasil eram provenientes dessa região, mais precisamente do Hunsrück, quadrilátero
compreendido entre os rios Reno, Mosela, Nah e Saar.
Segundo Egídio Weissheimer (2007), para não chamar a atenção das autoridades,
eram embarcados soldados disfarçados e imiscuídos entre famílias de camponeses. Para
angariar os emigrantes, Schaeffer havia nomeado diversos subagentes na Alemanha
encarregados de providenciar a documentação dos colonos e o transporte das suas localidades
até o porto de embarque, em Hamburgo, onde eram submetidos à quarentena e ao exame da
documentação, entre eles o “certificado de cidadania brasileira”, contendo a renúncia expressa
da cidadania alemã. Essa medida tomada pelas autoridades alemãs impediria que emigrantes
arrependidos voltassem à terra natal.
Embora o início da viagem significasse para os alemães a despedida definitiva da
família e dos amigos, uma aventura marcada pelo medo de atravessar o Atlântico e aportar em
uma terra desconhecida, por outro lado, representava também o abandono de uma tria com
16
instabilidade institucional, democracia precária, explosão demográfica, recessão econômica e
terras exauridas e improdutivas. Em cada uma das vinte e sete expedições que Schaeffer
organizou entre 1824 e 1829, os imigrantes contavam com um “comandante de transporte” ou
“chefe da expedição”, que zelava pela disciplina, pela higiene a bordo, bem como pelos
direitos e deveres dos passageiros. Em cada navio havia um médico cirurgião, um
farmacêutico e enfermeiros, encarregados de cuidar da saúde e da higiene, evitando a erupção
de epidemias. Evidentemente ocorreram mortes nas viagens, mas estas foram decorrentes de
causas diversas, e não devido à alimentação ou à falta de higiene da embarcação ou dos
passageiros.
De acordo com Jean Roche (1969, p.146)
2
, para atraí-los mais facilmente, Schaeffer
oferecia-lhes condições extremamente favoráveis: os colonos viajariam às custas do Governo
Brasileiro, seriam logo naturalizados, teriam liberdade de culto, receberiam como livre
propriedade 160.000 braças quadradas de terra (77 hectares) por família, e animais como
cavalos, vacas, bois, etc., instrumentos agrícolas e sementes; durante um ano, receberiam uma
ajuda, em moeda corrente, de um franco por cabeça, e de cinqüenta cêntimos durante o
segundo ano; seriam isentos de todo imposto e de toda prestação de serviço pelo espaço de
dez anos. A única condição que lhes seria imposta era a inalienabilidade de suas terras por dez
anos.
No entanto, nem todas as promessas foram cumpridas pelo governo brasileiro. A
própria Constituição do Império opunha-se à concessão imediata e automática da
nacionalidade brasileira e proclamava como religião do Estado a católica. Além disso, a
concessão das terras permaneceu incerta e a ajuda financeira foi suprimida a partir de 1830.
Mesmo com o o cumprimento de todas as promessas feitas aos alemães para
embarcá-los, estima-se em 48.037 o número de alemães ingressos no Brasil entre 1824 e
1914 (ROCHE, 1969, p.146). As dificuldades no novo país, as saudades da terra natal e as
frustrações misturavam-se com alegrias e esperanças. A conquista da terra própria, o pequeno
galpão, os primeiros animais, o galinheiro, o potreiro e o chiqueiro, alimentos no paiol e a
casa melhorada, configuravam um sonho que lentamente se concretizava, anunciando o tão
desejado futuro melhor.
Conforme Jean Roche (1969, p.94), a História administrativa da imigração e
colonização alemã sofreu a influência da história política do Brasil e divide-se em duas fases:
2
A fundamentação teórica desse fato histórico baseia-se principalmente na obra canônica de Jean Roche, A
colonização alemã e o Rio Grande do Sul (1969). Devido ao fato dos demais estudiosos da imigração alemã
também buscarem subsídios nessa obra pioneira, optou-se por pesquisar diretamente na fonte, justificando-se,
assim, o constante emprego de citações de Jean Roche.
17
uma vai do começo da colonização até a queda do Império, outra corresponde à República.
Contudo, cada uma dessas fases abrange diversos períodos, conforme as correntes da opinião
pública e os projetos dos governos da Alemanha.
No primeiro período (1824-1847), o governo Imperial organizou e dirigiu a
imigração; as colônias estavam baseadas em uma economia de subsistência, com a instalação
e organização da produção, na qual havia a importação de manufaturados mínimos exigíveis e
o recebimento de subsídios do governo para sustentação. No segundo período (1848-1874), a
colonização passou a ser responsabilidade da Província, quando houve a criação de novas
colônias alemãs. Com a distribuição de sementes e instrumentos, a agricultura de subsistência
produziu excedentes comercializáveis em troca de alguns produtos necessários ao consumo
dos colonos. o terceiro período (1874-1890) foi marcado pela frieza do governo local com
respeito à colonização, assumida novamente pelo governo central. Houve uma redução
significativa do fluxo de imigrantes chegados ao Rio Grande do Sul, o que não impediu o
surgimento de uma agricultura comercial especializada e a ampliação do mercado consumidor
dos produtos coloniais que, até a fase anterior, se restringia a Porto Alegre e, a partir de então,
atingiu o centro do país. No quarto período (1890-1914), a competência administrativa, em
matéria de colonização, foi ainda disputada entre os governos central e local, que tinham
concepções diferentes e cujos interesses divergiam. Esse período é caracterizado pelo rápido
desenvolvimento dos núcleos coloniais herdados do Império ou fundados pelo Estado a partir
de 1890. O quinto período (a partir de 1914) marca o fim da imigração européia oficial,
inclusive a de alemães. O Governo Central passou a preocupar-se com a colonização, isto é,
pretendia fixar o elemento humano a terra, aproveitar economicamente a região e elevar o
nível de vida, de saúde, de instrução e de preparação técnica dos habitantes das zonas rurais.
Os imigrantes alemães que no século XIX entraram no Rio Grande do Sul
contribuíram para aumentar o índice populacional, que se instalaram sem intenção de
retorno. O Estado acolheu, sobretudo, alemães originários de zonas rurais diferentes, de
maneira que apresentavam grande variedade de tipos. Física e mentalmente, os imigrantes
rurais apresentavam diferentes traços.
Por outro lado, também chegaram antigos citadinos que possuíam cnicas mais
avançadas ou tinham outra cultura e um mais vivo espírito empreendedor. Essa imigração de
origem urbana reuniu artesãos e burgueses desejosos de deixar a Alemanha por motivos
econômicos ou políticos. Conforme a origem e a data de partida, entre os imigrantes citadinos
houve diversidade de profissões, desigualdade de nível cultural e diferença de mentalidade.
Chegados ao Rio Grande do Sul, a maioria custou a adaptar-se à vida rural, por isso, foram os
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primeiros a desejar estabelecer-se nas cidades, logo após um estágio nas colônias agrícolas ou
mesmo desde o desembarque. Nelas, foram os iniciadores do processo técnico, e sua função
cresceu principalmente no final do século XIX, muito tempo, porém, superada pela dos
camponeses, ainda mais numerosos. De acordo com Jean Roche (1969, p.158-159):
desde a origem da colonização, existiu grande heterogeneidade dos
elementos humanos. Certamente, fundiu-se por vezes, sob a influência dos
grupos majoritários, mas provocou, com muito mais freqüência, aglutinação
dos imigrantes que tinham a mesma religião; contribuiu, ainda, a limitar o
raio de seu horizonte de vida e a conservar as tradições familiares ou
regionais; fortaleceu a tendência à segregação, que a orientação
essencialmente rural da colonização só favoreceu em demasia.
Seguindo essa mesma idéia, Carlos Fouquet (1974, p.69) aponta que se revela uma
lenda dizer que o imigrante, em sua totalidade chegava pobre, só aqui fazendo fortuna. Havia
pobres entre eles, mas também havia pessoas com boas condições financeiras ou até mesmo
ricas. Essas, viajando em camarotes, traziam tudo consigo: implementos agrícolas,
ferramentas para o ofício, louça para a cozinha, instrumentos, livros, dinheiro e móveis; e no
local escolhido, continuavam a trabalhar da maneira como estavam acostumadas. Muitos
desse grupo de imigrantes e seus descendentes com o tempo se tornaram influentes na vida
econômica, políticos de relevo, funcionários públicos, militares, religiosos, cientistas e
profissionais liberais.
Contudo, devido ao fato da maioria dos imigrantes terem se instalado nas zonas
rurais, é que o Rio Grande do Sul deve o ressurgimento de sua agricultura. Os imigrantes
alemães e seus descendentes corresponderam largamente ao desejo e à esperança da
administração brasileira, que encorajara sua imigração para povoar as zonas até então
abandonadas pelos luso-brasileiros, para explorá-las, desbravando-as e cultivando-as depois.
Entre 1824 e 1875, a agricultura foi a atividade característica exclusiva dos
imigrantes alemães, inicialmente de subsistência, evoluindo com o passar dos anos e das
gerações até representar, às vésperas da Segunda Guerra Mundial, dois terços, pelo menos, da
produção agrícola do Rio Grande do Sul. Dentre os produtos agrícolas essencialmente
“alemães”, podemos encontrar aqueles que eram ou haviam sido cultivados no Rio Grande
antes da chegada dos imigrantes, e que estes adotaram, e, depois, os que eles ali introduziram.
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Entre os gêneros alimentícios, as culturas de subsistência foram a batata-inglesa, ao
lado da batata-doce, cujo consumo permaneceu considerável entre os imigrantes e
descendentes, originando-lhes inclusive o apelido de “alemão batata”, mas que não tinha
nenhuma importância antes da vinda desses colonos. O feijão-preto, que era produzido pelos
índios e que os alemães desenvolveram além das necessidades da população, alimentando os
mercados do Rio Grande, do resto do Império e até do Rio do Prata. O milho, outro produto
cultivado pelos índios, que os alemães adotaram e fizeram dele sua principal cultura, servindo
para alimentar o gado, as aves e, moído, fornecia farinha para o pão. Podemos citar ainda
outros produtos secundários como o trigo, o centeio, a cevada (para a fabricação da cerveja), a
abóbora, o amendoim e o aipim.
Como principais produtos agrícolas das colônias alemãs, podemos mencionar as
culturas industriais de cana-de-açúcar, base do açúcar bruto e do melaço, usado no café e na
schmier (espécie de doce consistente composto de frutas e mandioca), na alimentação do
gado, além de fornecer a aguardente; e o fumo, que foi cultivado pelos colonos desde a
chegada destes e muito além de suas próprias necessidades, como atesta o fato de em 1832,
se instalarem pequenas fábricas de charutos em São Leopoldo e Porto Alegre.
Jean Roche (1969, p.357) afirma ainda que a agricultura dos imigrantes alemães teve
caráter essencialmente pioneiro. Após o desmatamento da floresta, o solo ficou empobrecido,
obrigando os descendentes das gerações seguintes a emigrar para novas zonas a desbravar ou,
mais recentemente, para os centros urbanos. Contribuiu ainda para essa migração interna, o
aumento da população devido à alta taxa de natalidade e a partilha da pequena propriedade
rural entre os filhos. O autor explica que desde essa época implantou-se entre os alemães o
hábito de comprar, pelo menos, um lote de terra para cada um dos filhos e, ao mesmo tempo,
o de empregar as economias em aquisições de terras virgens, costume que contribuiu para
manter a vocação agrícola, mas também para rarear o dinheiro líquido e reduzir as outras
formas de investimentos.
Devido a isso, da antiga colônia de São Leopoldo, desmembraram-se mais de trinta
municípios, situados nos vales do Rio Caí, entre eles Novo Hamburgo, Estância Velha,
Sapiranga, Campo Bom, Dois Irmãos, Montenegro, São Sebastião do Caí, Ivoti, Porto
Lucena, Santa Maria do Herval e Feliz. A Colônia Provincial de Nova Petrópolis, fundada em
1858, recebeu numerosos pedidos de concessão de terras, procedentes de filhos de imigrantes,
jovens nascidos em São Leopoldo e desejosos de obter um lote para casarem e formarem suas
famílias.
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O raio das migrações aumentou atingindo também territórios mais distantes da sede,
abandonados pelos luso-brasileiros, dando origem a novos povoamentos: na região litorânea
(São Pedro e Três Forquilhas), na região de São Lourenço (Canguçu e Pelotas), na área do
Rio Taquari (Estrela, Lajeado, Teutônia, Venâncio Aires, Taquari), na área do Rio Pardo
(Santa Cruz), nas áreas do Planalto, nas áreas centrais do Estado (Ijuí, Não-Me-Toque e
Panambi), na área do Alto Jacuí (Cruz Alta, Passo Fundo,Cachoeira do Sul), na área oeste, no
Alto Uruguai (Santa Rosa e Três Passos).
O desenvolvimento das colônias, porém, não transcorreu de forma linear devido às
constantes guerras e revoluções travadas no território rio-grandense. Quando tudo parecia
transcorrer bem nas colônias, os imigrantes produzindo boas colheitas, cuidando da escola
para os filhos, construindo templos, se comunicando em hunsrückisch, alheios à política, pois
nunca tinham votado na Europa, nem tampouco reclamavam cidadania brasileira, jovens
alemães foram surpreendidos pelos exércitos e recrutados a força, muitos sem nunca terem
pegado em arma de fogo antes, as famílias foram obrigadas a entregar a produção agrícola,
moradias e animais em favor de uma causa que nem sequer tinham conhecimento.
Cerca de três mil colonos foram envolvidos na Guerra dos Farrapos (1835-1845), dos
quais poucos retornaram. São Leopoldo parou de produzir, ao menos até 1841, quando as
lutas se deslocaram para a fronteira. Terminado o conflito, em 1846, a colônia de São
Leopoldo foi elevada a município e os imigrantes receberam a cidadania brasileira prometida
por Schaeffer na Europa. A meta, a partir de então, era iniciar a reconstrução, esquecer a
guerra e retomar o ritmo de crescimento.
Durante a Guerra do Paraguai (1865-1870), novamente centenas de alemães e
descendentes integraram o corpo “Voluntários da Pátria”, lutando contra o ditador paraguaio
Solano Lopes, que desejava expandir seu território invadindo o Brasil.
Mais uma vez a riqueza das colônias alemãs chamaria a atenção, durante a
Revolução Federalista (1893-1895), pela quantidade de animais, estoque de alimentos e
homens aptos a lutar. Muitas colônias foram invadidas, tendo as vendas saqueadas, os animais
roubados e os filhos dos imigrantes recrutados à força.
Inevitavelmente essas revoluções exigiram por parte dos imigrantes a reorganização
das colônias, a reconstrução dos bens, a recolocação das colheitas perdidas, agora com menos
homens para trabalhar, e a criação de novos animais, na tentativa de dar continuidade ao
processo de desenvolvimento interrompido.
Com relação à atividade comercial desenvolvida pelos imigrantes, Jean Roche (1969,
p.403) aponta que, desde sua fundação, as colônias alemãs do Rio Grande do Sul constituíram
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grupos rurais com uma estrutura muito mais complexa que a da sociedade luso-brasileira da
campanha, pois, estando espalhada a população rural e não possuindo os peões um poder
aquisitivo significativo, o comércio era reduzido no interior da zona pecuária, havendo mais
dificuldade em comprar do que em vender. Já nas colônias acontecia o contrário: comprava-se
mais facilmente do que se vendia. Contudo, era preciso vender e o comerciante, dono da
venda e único agente das trocas, na ausência de mercados e feiras, tornou-se muito poderoso
na comunidade.
O desenvolvimento do comércio, originado nas colônias, somente foi possível
através das trocas, cuja influência foi decisiva na produção e na economia locais. O sistema
comercial da troca/permuta funcionava da seguinte maneira: da venda, para onde trazia alguns
produtos como batata, feijão, milho, ovos, banha, o imigrante levava sua contrapartida em
artigos fabricados ou em gêneros alimentícios.
A evolução das vendas feitas na zona rural acompanhava a do nível econômico dos
colonos. Assim, os produtos que podiam adquirir aumentavam em quantidade à medida que,
graças ao desenvolvimento dos meios de transportes, podiam vender mais os produtos por
eles cultivados. Dentre os produtos adquiridos pelos colonos, estavam, em ordem de
importância, os gêneros alimentícios (sal, açúcar, café, arroz, charque, vinho, vinagre e, mais
tarde, as farinhas de trigo, de milho e de mandioca), produtos necessários à vida cotidiana
(pólvora, óleo, sabão e o fumo preparado), utensílios elementares e tecidos.
Pouco a pouco, o número dos produtos multiplicava-se para atender à procura dos
fregueses, ao mesmo tempo em que sua qualidade melhorava. Assim, dentro de poucos anos,
podiam ser encontrados produtos como a cerveja, a aguardente, biscoitos, caramelos, latas
de conserva, cigarros, perfumaria, travessas, pratos, talheres, chapéus e roupas feitas, entre
outros.
Desde sua formação, as antigas colônias tiveram como único mercado Porto Alegre,
que veio a ser a principal praça comercial do Rio Grande do Sul, exercendo influência
decisiva sobre a cotação dos produtos da agricultura e da pecuária. Era para Porto Alegre que
convergia toda a produção agrícola das colônias, assim como era dali que saíam as
mercadorias importadas e distribuídas entre as vendas rurais.
A “venda”, como explica Jean Roche (1969, p.574), tornou-se o centro das vendas e
das compras, o ponto de reunião, o abrigo das quermesses, a parada dos viajantes. Para os
colonos que viviam isolados em seus lotes, foi o lugar de descanso e o elemento de coesão, o
fator social por excelência.
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Além da venda, merece destaque também o papel do caixeiro-viajante, surgido nas
colônias alemãs entre 1860 e 1865. A extensão da área agrícola, a dificuldade das
comunicações e a multiplicação das casas comerciais nas picadas secundárias, tornavam o
comércio mais complexo. Por isso, o caixeiro-viajante tornou-se o intermediário
imprescindível entre Porto Alegre e a Serra, entre o atacadista e o varejista. Ele andava pelas
colônias apresentando amostras, fechando negócios e efetuando a cobrança dos fornecimentos
precedentes. Era o portador de novidades, de notícias dos centros urbanos e de outras
colônias, contador de anedotas. Certamente as qualidades de sua conversa garantiam o êxito
de sua missão comercial.
Na sela, inverno e verão, seguidos da mula que carregava as duas pesadas
sacolas de amostras, galgando colinas, atolando-se nos vales, molhados pela
chuva ou pela passagem dos arroios a vau, queimados pelo sol, deviam
chegar flamejantes, animados, de bom humor, com espírito alerta. Era-lhes
necessária a força física para resistir a uma vida esgotante, e a coragem
pessoal para garantir o transporte de consideráveis somas (alguns pereceram
assassinados). (ROCHE,1969, p.432).
Embora recebendo a visita contínua dos caixeiros viajantes e tendo aumentado a
oferta de produtos no comércio, a necessidade de fazer economia de toda espécie impelia os
próprios imigrantes a produzirem a maior parte dos artigos utilizados, comprando apenas o
essencial para a sobrevivência. Cada família fiava e tecia o linho e o algodão, fabricava a
farinha, o óleo de sementes de abóbora, o açúcar mascavo, preparava seu fumo, cabaças
substituíam as louças e, a serra, o machado, a foice e o enxadão bastavam para o arroteamento
ou para a construção dos rústicos casebres, dispensando-se os serviços de pedreiros e
ferreiros.
Passados alguns anos, esse trabalho familiar foi substituído por uma nova
organização econômica, pois assim que os imigrantes venceram as primeiras dificuldades,
surgiu o artesanato. As primeiras atividades artesanais continuaram a suprir as necessidades
essenciais: alimentar, alojar e vestir os homens. Ao lado dos tecelões, que produziam tecidos,
apareceram alguns alfaiates, sapateiros e também seleiros, que o cavalo era indispensável à
locomoção nas colônias.
Decorridos trinta anos da chegada dos primeiros imigrantes, aqueles que se
dedicavam exclusivamente à agricultura, começavam a apelar para outros que se tornaram
ou voltaram a ser artesãos. Ao lado dos ferreiros, apareceram serralheiros, funileiros e
pedreiros. O desenvolvimento das construções trouxe a prosperidade das fábricas de tijolos e
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telhas; as marcenarias fabricavam o mobiliário rudimentar, substituindo os caixotes utilizados
como mesas e cadeiras pelos imigrantes, as tanoarias forneciam tonéis para os líquidos e
outros produtos. Em seguida vieram chapeleiros, relojoeiros, joalheiros.
Assim, os ramos artesanais especializados na transformação dos produtos agrícolas
ocuparam importante lugar na economia das colônias, como os moinhos de farinha e a
produção da banha. Esta última pode ser considerada um dos produtos mais importantes, pois
exigia múltiplas manipulações, e logo, com vistas à exportação, passou aos artesãos, assim
como a charcutaria, os salgados e as primeiras conservas em lata.
Dessa forma, as mais prósperas produções artesanais foram as estimuladas por uma
orientação comercial, as que permitiam exportar os produtos valorizando-os, graças à sua
preparação e transformação.
É interessante notar que foram os artesãos instalados nas cidades desde os primeiros
anos de sua residência no Brasil, não participantes da vida da colônia alemã, e não os artesãos
rurais, que formaram a base do desenvolvimento de pequenas oficinas em manufaturas ou em
fábricas. De certa forma, a fragmentação da pequena propriedade, forçando os filhos dos
imigrantes a buscarem outras alternativas de vida que não a agricultura, favoreceu o
desenvolvimento do artesanato. A atividade artesanal esteve intimamente ligada à falta de
terra e à falta de trocas, fazendo com que o mesmo indivíduo exercesse, muitas vezes, além da
agricultura, dois ou três ofícios simultaneamente.
A indústria rio-grandense também recebeu influência direta dos imigrantes alemães
que trouxeram variados ofícios da Europa. Porém, de acordo com Jean Roche (1969, p.503), é
importante salientar que o foi o artesanato que gerou a indústria. Apenas algumas raras
oficinas de artesanato urbano transformaram-se em fábricas. O empreendimento industrial
esteve ligado a um complexo econômico, no qual ocorreu a diversificação na aplicação e
origem do capital, acompanhado de fusões e associações. Na diversificação de atividades
destaca-se o comércio, cuja atuação favoreceu o surgimento e evolução da indústria.
Com exceção de um estaleiro fundado em 1850 (Só e Cia.), os primeiros
estabelecimentos industriais do Rio Grande do Sul foram criados por alemães, que graças ao
comércio haviam acumulado capital. Mas, enquanto nas colônias a atividade artesanal era
intensa, a indústria esteve, até 1875, fracamente representada. O primeiro estabelecimento
industrial alemão foi uma fundição destinada a construir desde peças para a construção de
navios até peças para máquinas, fundada em 1856 por J. Becker. O segundo foi o de J.C.Lang,
em Pelotas, onde eram utilizados subprodutos das charqueadas para fabricar sabão e velas.
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Em 1874 não havia em todo o Rio Grande do Sul mais de trinta e quatro empresas,
chamadas indústrias, dirigidas por alemães. Entre elas: oito serrarias, três marcenarias, três
fábricas de viaturas, cinco fundições, quatro fábricas de vinagre, uma fábrica de azeite e
quatro fábricas de charutos. No mesmo ano, a fundação da primeira grande fábrica alemã, a
fiação Rheingantz, marcava o início da indústria rio-grandense.
Levando-se em consideração o que foi exposto, é inegável a contribuição dos
imigrantes alemães e seus descendentes para a formação social e para o progresso econômico
do Rio Grande do Sul. O trabalho pioneiro dos imigrantes, que enfrentaram o medo do
desconhecido, desafiando as dificuldades impostas pelo meio em função da própria
sobrevivência, retomou a agricultura com a formação de pequenas propriedades rurais num
território anteriormente explorado apenas pela atividade pecuária, desenvolveu o comércio e
impulsionou a industrialização, lançando as bases para a atual configuração do Estado.
1.2 O perfil do imigrante alemão
O Brasil e os imigrantes alemães não encararam a migração da mesma forma. Os
recém-chegados conservaram intacta a lembrança da pátria distante, com tudo aquilo que
simbolizava sua natureza familiar, parentes e amigos, casas carinhosamente cuidadas, templos
veneráveis nas aldeias e cidades, usos e hábitos típicos, costumes consolidados, agricultura,
artesanato, profissões, comércio, arte e ciência em plena atividade. No Brasil, os imigrantes
desde logo sentiram-se em ambiente estranho, cercados por plantas diferentes, outras espécies
de animais, novas constelações, usos e costumes diferentes dos seus. Ninguém havia a quem
pudessem fazer uma confidência, lugar algum que lhes fizesse recordar o passado, nenhuma
igreja ou escola para os filhos.
Como explica Carlos Fouquet (1974, p.91-92), os imigrantes experimentaram nos
primeiros anos um permanente tatear, procurar, começar da estaca zero tudo o que na Europa
estava ordenado e demarcado. Enquanto , a paisagem podia ser apreciada em sua beleza
cultivada e até bosques eram plantados e cuidados, aqui a natureza exuberante se manifestava
pelas florestas virgens e pelas campinas incultas, povoadas de animais estranhos, bravios e
alguns venenosos. Enquanto na Europa os imigrantes pertenciam a um povo praticamente
uniforme, cuja formação se processara através dos séculos, a população do Brasil era
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constituída de enorme mescla de povos diferentes, falando idiomas oriundos de quatro
continentes e se comunicando por intermédio de um português conquistado a duras penas. Se
lá, era oprimente a falta de espaço vital, forçando os indivíduos a emigrar, havia aqui uma
terra gigantesca que os necessitava e os acolhia prazerosamente.
No Rio Grande do Sul, os imigrantes alemães e seus descendentes transformaram a
antiga sociedade: camponeses constituíram novas classes, citadinos integraram-se nas classes
pré-existentes, modificando a estrutura original e influenciando-a social e economicamente.
Contudo, não foi fácil a esses imigrantes integrarem-se na sociedade gaúcha, o apenas por
causa de sua origem, mas também pelo desprezo com que era tido o trabalho manual no
momento em que forneciam nova mão-de-obra para a agricultura.
Dessa forma, a célula social que protegeu o imigrante alemão foi a família, que
unida, de sol a sol, incansavelmente lutou para vencer as dificuldades impostas pelo meio,
pela fome, pelo cansaço. Os homens, as mulheres, e muitas vezes as crianças eram
absorvidos, da manhã à noite, no desbravamento da floresta, apenas tomando o tempo para
realizar a pobre refeição.
O isolamento em que o imigrante alemão vivia o fez constituir uma classe social
independente. Segundo Jean Roche (1969, p. 571), “em virtude da distribuição geográfica das
colônias, bem como da impermeabilidade das duas zonas pecuária e agricultura os
imigrantes achavam-se livres da influência quase feudal dos grandes proprietários”, assim, no
século XIX, as colônias agrícolas formavam ilhas no meio de regiões ocupadas por grandes
áreas de pecuária e o colono não estava submetido a uma estrutura socioeconômica e política
de dependência.
O fato de serem proprietários da própria terra, assegurando-lhes a independência
econômica e social, conferiu aos imigrantes uma estrutura e mentalidade especiais. As
dificuldades de instalação e o processo da adaptação eram os mesmos para todos os
imigrantes, fossem eles de origem urbana ou rural, aristocrata, burguesa ou popular, que
todos deviam aprender a desbravar a mata e se estabelecer na nova terra. A necessidade de
sobreviver, a pobreza e a dificuldade das tarefas a cumprir, apagavam as antigas distâncias
sociais e aumentavam a solidariedade entre todos, pelo menos nos primeiros anos. Contudo, à
medida que o progresso ou a fortuna marcavam a vitória do vizinho, esses laços de
camaradagem estabelecidos no combate à hostilidade do meio afrouxaram. Foi, então, essa
diferença baseada nos resultados materiais obtidos por alguns colonos que substituiu a antiga
estratificação social do título ou da função que haviam conhecido na Alemanha. A nova
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hierarquia, medida pela fortuna adquirida, que se estabelecia dentro do grupo étnico
homogêneo comparava-se à da sociedade gaúcha pré-existente.
No entanto, a partir de meados do século XIX, os mais ricos habitantes das colônias
eram os comerciantes. A superioridade de seu patrimônio em relação ao dos agricultores
acentuava-se com o passar dos anos. Entre os pequenos proprietários rurais o patrimônio
constituía-se do lote de terra e casa, capital imobiliário cuja renda era mínima. entre os
comerciantes, o patrimônio era composto, na maior parte, pelo capital investido no negócio, o
que assegurava lucros incomparavelmente superiores aos da agricultura.
Devido à sua posição econômica privilegiada, os comerciantes exerciam grande
influência na orientação da produção agrícola, regularizando as trocas e levando os imigrantes
a cultivarem produtos destinados à exportação, como a cana-de-açúcar, fibras têxteis ou
árvores frutíferas. Assim, os comerciantes souberam adaptar-se a situações novas e criar uma
prosperidade estável, não só em suas empresas, como também nas vilas onde residiam.
Por outro lado, os imigrantes que se aventuraram a penetrar nas classes pré-existentes
procuravam-nas nas cidades. Ali existiram operários, empregados, industriais, comerciantes,
advogados, médicos, professores ou funcionários de origem alemã, que se distinguiam por
suas características antropológicas, mas, sobretudo, na medida em que permaneciam fiéis à
cultura germânica. Sua ascensão social somente pôde realizar-se depois da aquisição da
cultura nacional, depois da obtenção de diplomas oficiais, o que não os impedia de serem
bilíngües e estarem, por vezes, imbuídos do sentimento da superioridade racial.
Os imigrantes e seus descendentes, que não possuíam nem as mesmas características
físicas, nem a mesma língua, nem a mesma religião e nem a mesma atividade que os rio-
grandenses, tinham motivos suficientes para formarem uma mentalidade à parte. No entanto,
um mundo novo constituiu-se de uma geração a outra: os hábitos e os costumes dos velhos
rio-grandenses influenciaram os dos descendentes de alemães e inversamente. Certamente, as
aquisições não foram iguais, e os recém-chegados tiveram de fazer mais concessões. Do
vestuário aos hábitos alimentares, foram necessárias adaptações por parte dos imigrantes,
impostas pelo meio e pela sociedade.
Os primeiros imigrantes desembarcavam, às vezes, com seus trajes regionais,
espessas roupas de e roupa interior de linho, duráveis na Europa, mas muito pesadas para
uma região subtropical, assim, a modificação do vestuário foi uma das primeiras necessidades
impostas pelo novo ambiente. O traje de tecido de foi substituído pelo traje de cotim; a
camisa de linho foi trocada pela de algodão; o chapéu de palha substituiu o de feltro, pelo
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menos para o trabalho, e as chinelas de couro substituíram os sapatos, trazidos agora somente
aos domingos e dias de festa.
Na colônia, o vestuário masculino de trabalho foi composto de calça de cotim raiado,
de camisa de algodão e, por vezes, do colete de um velho traje; sem suspensórios, mas com
cinta de couro que segurava a faca do gaúcho na bainha. No vestuário feminino, os pesados
vestidos escuros foram substituídos por fazendas mais leves e mais claras; as mulheres jovens
andavam com a cabeça descoberta, as mais velhas cobriam-na com um lenço; no trabalho
geralmente usavam anáguas, saia e corpete. A roupa de baixo, as meias, os sapatos eram
usados em dias festivos, bem como as únicas jóias que possuíam: uma cruz com corrente e a
aliança, como os homens. A roupa das crianças não sofreu muitas transformações. Contudo, o
mais notável dessa transformação indumentária é a que esteve associada à adoção do cavalo,
principal meio de locomoção e elemento unificador, adotando-se também o equipamento do
cavaleiro gaúcho como a sela, os arreios ornados, as pesadas esporas, a larga cinta.
Nas cidades, os descendentes de imigrantes vestiam-se como os outros habitantes da
mesma classe social. As senhoras e as moças procuravam acompanhar a moda vigente; os
homens, por sua vez, mostravam-se um pouco mais sóbrios. Também nas cidades, nas classes
mais abastadas, propagou-se o hábito germânico de jantar café com leite, pão com manteiga
ou doce, salsichas, frios e bolo. Tratava-se de um retorno às tradições ancestrais, quando as
condições econômicas o permitiam, pois essa refeição custava mais caro que a dos velhos rio-
grandenses. Assim, manifestou-se uma diferença bastante clara entre a alimentação dos
citadinos e a dos camponeses.
As condições geográficas e econômicas não permitiram que os recém-chegados
conservassem a alimentação de origem: o trigo e o centeio, a batata-inglesa, os legumes
verdes e a carne de porco. Eles aprenderam então a cultivar e a consumir o milho, a mandioca,
a batata-doce, legumes locais como a abóbora e o chuchu, o feijão-preto, o arroz seco e o
charque. Apesar da repulsa que sentiam, tiveram que adotar a alimentação local, pois era uma
questão de sobrevivência. A cerveja e o vinho também tiveram de ser substituídos pela água
pura e pela aguardente.
Entretanto, a abundância das colheitas logo possibilitou aos imigrantes um retorno ao
consumo de grande parte de seus alimentos tradicionais, como a batata-inglesa e a carne de
porco, que abastecia a colônia com produtos como a banha e frios defumados (presunto e
salame). As aves apareceram na mesa aos domingos, assadas ou em guisado com arroz. E ao
cabo de alguns anos surgiram a manteiga e o queijo em todas as casas; a cerveja começou a
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ser fabricada nas próprias colônias, bem como alguns doces como a schmier e a Kuchen
(cuca).
Entre os descendentes de imigrantes alemães, todas as refeições eram compostas de
um pouco de porco e pratos de origem local: arroz, feijão-preto, farinha de mandioca, batata-
doce cozida, pão de milho. Nos dias de festa servia-se carne assada, aves com molho, pão de
trigo. Eles também adquiriram dos rio-grandenses o gosto pelos doces, de consumo quase
diário como massa doce, bolos de mandioca ou de amendoim, bombons. O chimarrão tornou-
se hábito e o churrasco foi permitido nas festas oficiais. Jean Roche (1969, p.638) diz a
respeito disso: “É a prova da adoção, por parte dos colonos, de um prato essencialmente
gaúcho; parece aliás, que essa adoção está ligada, como a de elementos do trajar, a um desejo
de imitar o grupo socialmente considerado superior.”.
Cabe referência especial ao papel feminino na colônia. A mulher alemã era
multifacetada: limpava a casa, costurava, remendava, cuidava da cozinha, do jardim, da horta,
do pomar, ordenhava a vaca, tratava das aves e ajudava o marido no trabalho da lavoura, além
de ter a obrigação de educar os filhos. Com todas essas atribuições, trabalhando em igualdade
de condições ao homem, a esposa gozava de certos direitos, como tomar decisões juntamente
com o marido, numa posição mais de igualdade que de dependência. À noite, quando todos
dormiam ou nos fins de semana, ela encontrava tempo para bordar, ponto a ponto e a vivas
cores, panos de parede com dizeres e pensamentos da cultura germânica, que pendurados atrás
do fogão ou pelas paredes da cozinha e da sala, esses dizeres ajudavam a nortear a vida e a
educar os filhos. A imigrante alemã procurava manter a casa limpa e em ordem para mostrá-la
às visitas em sinal de cordialidade. Nas paredes da sala, havia uma galeria de retratos de
família e estampas sacras com temática moralista e educativa. O jardim era muito bem
cuidado, com o cultivo plantas e flores coloridas.
A maneira de viver e a mentalidade dos imigrantes alemães distinguiam-nos, ainda
dos rio-grandenses de outra origem, na medida em que permaneciam fiéis aos seus costumes,
embora estes se tenham transformado de uma geração a outra. Dentro das tradições familiares
encontram-se os rituais que, tradicionalmente, acompanhavam todas as etapas da vida,
constituindo o que de melhor se conservou nas colônias.
O nascimento de uma criança suscitava a curiosidade das vizinhas que a visitavam
trazendo-lhe presentes. O batismo era administrado diante de um padrinho e uma madrinha,
entre os católicos, dois padrinhos e uma madrinha, ou inversamente, um padrinho e duas
madrinhas, entre os protestantes. O laço de amizade entre os compadres e comadres era
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mantido e reafirmado em outras ocasiões como na primeira comunhão ou confirmação e no
casamento, quando era servido um banquete a parentes, amigos e vizinhos.
Quanto ao namoro, a escolha do par entre os alemães, era iniciativa dos jovens. O
namoro começava nos bailes de Kerb e, persistindo o par por dois ou três bailes, constituia-se
compromisso sério, passando o rapaz a freqüentar a casa da moça. O namoro durava em
média dois anos, seguido de meio ano de noivado, no qual a moça preparava o enxoval,
incluindo belos panos de parede bordados.
A endogamia foi preponderante na totalidade das colônias alemãs, pois estas
constituíam ilhas perdidas no meio da população luso-brasileira, cercadas pela floresta. Por
mais longe que pudesse ir o pretendente, encontrava moças da mesma origem, da mesma
profissão, e estas, não podiam esperar outros noivos senão os próprios vizinhos. Assim,
aponta Jean Roche (1969, p.611), “não era a influência de uma tradição étnica, mas de uma
espécie de fatalidade geográfica que circunscrevia o horizonte familiar dos colonos dentro da
endogamia”. Por essa circunstância, a endogamia não pôde diminuir até o momento em que
os indivíduos entraram em contato com elementos de origem étnica diferente, nas vilas, na
periferia de certas colônias, na vizinhança de luso-brasileiros ou outros imigrantes como os de
origem italiana.
O casamento realizava-se na entressafra, quando havia mais tempo disponível para
os preparativos, realizados com a ajuda de parentes e vizinhos. Os homens matavam animais e
preparavam a lingüiça, enquanto as mulheres limpavam a casa e preparavam bolos, cucas e
guloseimas. O número de convidados traduzia a importância das famílias, seu nível
econômico e social. A comida era abundante, englobando almoço, café da tarde, jantar e,
durante a madrugada, uma fatia de bolo da noiva. A dança, que podia durar até o amanhecer,
somente era interrompida por cantos e declamação de versos apropriados à ocasião. Assumido
com compromisso selado na igreja, o casamento gerava uniões duradouras e numerosos
filhos, que garantiam mão-de-obra barata e eficiente para a lavoura.
Quanto ao enterro, realizava-se dentro das vinte e quatro horas que seguiam ao
falecimento, no qual, depois de vigília fúnebre, que contava com a participação de parentes e
amigos, todos os colonos da vizinhança iam, pela última vez, prestar homenagem ao defunto.
O ofício era freqüentemente acompanhado de música ou canto coral. Amigos e parentes
colocavam o caixão no carro fúnebre, carregavam-no ao cemitério e ajudavam a enterrá-lo. Se
era uma criança, seus colegas de escola participavam do cortejo, auxiliando a levar o caixão;
sendo uma menina, eram os rapazes que conduziam; tratando-se de um menino, as moças.
30
Segundo Jean Roche (1969, p.640), “todas essas cerimônias, solenemente celebradas,
permitiam que os colonos manifestassem sua solidariedade ao mesmo tempo que sua
fidelidade aos usos e práticas seculares.”. No entanto, é nas festas religiosas que se nota
claramente a originalidade dos imigrantes alemães em relação ao resto da população do Rio
Grande do Sul, rituais que conquistaram também os meios luso-brasileiros.
O costume de armar uma árvore na época de Natal, tanto na casa como no templo,
foi trazido pelos protestantes alemães no século XIX. Transplantava-se um pinheirinho, ou na
falta deste, uma outra árvore, em um recipiente com areia, cascalho e água, enfeitando-o, em
seguida, com cintilantes bolas de vidro e festões de papel colorido. Nas portas da casa
também era colocada uma coroa de folhagem verde, ornada de fita vermelha, tradição trazida
da Europa setentrional.
O Primeiro de Janeiro era saudado com tiros de espingarda, bombas e sirenes,
quando trocavam-se votos e expressões de afeto. Em algumas comunidades, um grupo de
pessoas percorria os lares declamando poesias do folclore alemão, cantando e recebendo
guloseimas da parte dos moradores e confraternizando com eles. Algumas poesias reportavam
ao folclore medieval, apontando para as raízes seculares do evento.
Na Páscoa, o costume do Coelho da Páscoa fazia as crianças arrumarem, no Sábado
Santo, ninhos dentro de casa ou no jardim, onde eram colocados ovos coloridos e recheados
de amendoim, bombons e doces.
Dentre todas essas festividades, porém, a mais pica das colônias era a festa votiva
da paróquia, o Kerb (abreviatura de Kircheweihfest). Embora tenha perdido progressivamente
seu caráter essencialmente religioso, para tornar-se a festa da povoação, reunindo sempre
protestantes e católicos, é a que menos mudou desde o início da colonização. A homenagem
ao padroeiro da igreja rendia três dias de festa com missa ou culto pela manhã, imensas mesas
fartamente guarnecidas de comida, para comportar toda a família e parentes, uma quermesse à
tarde, com estandes e jogos e, à noite, o esperado baile, quando dançavam-se valsas e
marchas. A sala de festas era ornamentada com ramagens, folhas de palmeira, flores; as
moças traziam vestidos e sapatos novos, os rapazes estreavam o terno.
Todas as festas, celebradas com muita comida, bebidas, cantos e danças, constituíam
uma ocasião para os alemães se reunirem, matarem as saudades de parentes e de amigos
vindos de longe, de esquecer o duro trabalho cotidiano.
Ao lado da família, a igreja, a escola, as associações e a imprensa formaram o
alicerce da cultura alemã e constituíam os instrumentos por meio dos quais os imigrantes
construíram seus valores e os transmitiram aos descendentes. O longo período de isolamento
31
das colônias, até a Segunda Guerra Mundial, permitiu-lhes estruturar em bases sólidas os
valores étnicos e culturais.
Os imigrantes alemães e seus descendentes distinguiam-se do resto da população rio-
grandense também pela devoção e pelo zelo religioso. Essa religiosidade parece ter
aumentado em virtude da coesão familiar e do controle exercido pela comunidade dentro do
relativo isolamento de sua vida pioneira. Sobre isso atesta Jean Roche (1969, p.671): “A
importância da vida religiosa nas colônias assinala-se, pois, pela profunda piedade individual
e até mesmo pelo misticismo, assim como pelo papel das comunidades cultuais do lugar e
pelo vínculo da religião com a consciência étnica.”.
A religião evangélica trazida pelos alemães quebrou o monobloco da igreja católica
existente no país. Diferentemente do índio e do negro, o imigrante alemão não se submeteu ao
catolicismo oficial, pois vinha com a promessa de liberdade religiosa. Embora a religião
oficial do país fosse a católica-romana, as demais religiões eram toleradas. As comunidades
tão prontamente se estabeleciam, começavam a construir seus templos, com a condição de não
possuírem aparência externa de igreja, ou seja, não poderiam ter torre nem sino.
Enquanto a construção do templo não era finalizada, a longa distância entre um
povoado e outro, fazia com que os poucos pastores percorressem, a cavalo, as linhas e picadas
de tempos em tempos, para realizar casamentos e batismos coletivos, ficando hospedados em
casas particulares. No entanto, por muitos anos os registros de nascimentos, casamentos e
óbitos efetuados por pastores foram considerados sem validade. Somente em 1863, D. Pedro
II, concedeu aos pastores evangélicos os mesmos direitos dos padres católicos, embora
mantida a exigência de nos casos de casamentos mistos os filhos devessem ser educados na
religião católica.
Os imigrantes católicos, apesar de estarem sob a religião oficial do país, vieram
desacompanhados de padres e não entendiam os sermões do padre português, situação que
perdurou até 1840, quando chegaram os padres jesuítas. Até que se realizasse a construção do
templo, rezavam missas e cultos nas escolas.
As igrejas também monitoravam a educação em suas paróquias, através do ensino de
religião e canto, considerados importantes para a formação da criança. Nas escolas
comunitárias cultivava-se a germanidade por meio do uso da língua alemã, da comemoração
de datas cívicas, de festas e costumes germânicos.
Apesar do choque psicológico que os imigrantes sofreram quando se instalaram no
Rio Grande do Sul, tiveram imediatamente o cuidado de assegurar o ensino e a educação a
seus filhos e transmitir-lhes seu próprio patrimônio. As primeiras escolas surgiram nas
32
próprias residências dos imigrantes. Confiavam-se as crianças a uma pessoa idosa ou incapaz
de cultivar a terra, um pouco mais capacitada que as outras em leitura, escrita e cálculo,
encarregada de ensinar as primeiras noções. A escolaridade era curta, geralmente um ano,
muitas vezes interrompida pelos trabalhos agrícolas. As crianças mais afastadas iam à escola a
ou a cavalo; as mais velhas traziam a tiracolo uma espingarda, com a qual podiam abater
uma caça pelo caminho.
As escolas protestantes, criadas pelos pastores que eram os responsáveis pelo ensino,
foram as mais antigas. Essas escolas tinham classe única e asseguravam somente o ensino
primário, com um progresso na duração da escolaridade, em média de dois anos em 1903, de
quatro anos em 1924, de cinco às vésperas da Segunda Guerra Mundial. O estudo elementar
dos filhos era completado com o aprendizado de alguma profissão. Católicos e evangélicos
criaram a Associação de Professores, que visava a melhorar a formação e o aperfeiçoamento
dos educadores, além da criação de livros didáticos em alemão. Porém , na ocasião da
Segunda Guerra Mundial todo o acervo foi apreendido.
As comunidades alemãs resolviam problemas de infra-estrutura construindo igrejas,
escolas e abrindo estradas, além de criar centenas de clubes culturais e recreativos. Dessa
forma, o clube garantia a convivência e a recreação em grupo aos domingos. Houve profusão
de sociedades de canto, de leitura, de música, de atiradores, de lanceiros, de tiro-ao-alvo, de
bolão e de clubes femininos.
Dentre essas sociedades, as de canto merecem destaque. Presente nos momentos de
alegria e tristeza, o canto era a ligação do imigrante com seu passado cultural, pois através
dele aliviava a saudade da tria, atenuava privações e renovava suas forças para continuar a
construção de um futuro melhor. A temática das canções visava à formação moral e à
elevação do nível de instrução. Outros temas como disciplina, honra e fidelidade eram
cantados para delinear o modelo a ser vivido nas comunidades em formação.
Conforme aponta Jean Roche (1969, p.643), contrariamente ao que se poderia
pensar, as sociedades alemãs não foram constituídas pelas primeiras levas de imigrantes, visto
que durante os primeiros decênios, os imigrantes haveriam tido apenas preocupações
materiais, teriam lutado somente para assegurar a sobrevivência biológica e os comerciantes
reuniam-se irregularmente, em cafés ou lojas de um deles, apenas para tratarem de negócios.
A primeira sociedade foi criada somente em 1855, em Porto Alegre. Em seguida, quando os
comerciantes adquiriram certa prosperidade, as associações progrediram, proliferando-se nas
colônias.
33
O desenvolvimento da imprensa em língua alemã, no Rio Grande do Sul, conheceu,
sozinho, a importância da clientela de que o podia prescindir, mas constituiu, também, um
dos agentes mais eficazes da manutenção da língua e cultura alemãs. Raros e efêmeros foram
os jornais editados nas próprias colônias, dado que a imprensa constitui-se um fenômeno
eminentemente urbano, porém convém mencionar sua difusão no mundo rural e sua
influência na evolução dos grupos.
Anterior ao rádio, ao cinema e à televisão, o jornal transmitia as novidades e ajudava
a estruturar mentalidades nas comunidades alemãs. Conforme Carlos Fouquet (1974, p.199),
o jornal orientava o leitor de maneira hábil e apropriada a respeito de acontecimentos da
época, suscitando amor e compreensão em relação à nova pátria, à sua gente, ensinando-os a
enfrentar problemas que lhes apresentava a natureza estranha e o clima a que ainda não
estavam habituados, incitando-os a cumprirem com suas obrigações e os esclarecendo em
relação a seus direitos. Assuntos de agricultura, indústria, comércio, ciência, arte, religião ou
literatura, também eram tratados.
Segundo Jean Roche (1969, p.660-661), o primeiro jornal em alemão, Der Kolonist,
que circulou em Porto Alegre entre 1852-1853, ironicamente foi iniciativa de um brasileiro,
José Cândido Gomes, redator do “Mercantil”. Ele esperava assim, conquistar grande
influência sobre os colonos alemães de São Leopoldo, naturalizados em massa em 1846, e
explorar essa influência com vistas às próximas eleições. Gomes redigia os artigos em
português e mandava um colaborador de origem alemã, Lindenberg, traduzi-los.
O Deutsche Zeitung, de Karl von Koseritz, entretanto, foi um dos mais importantes e
duradouros jornais para a defesa da germanidade. O católico Deutsches Volksblatt transmitia
o pensamento do líder Hugo Metzler. O jornal Der Bote era evangélico, bem como o
Deutsche Post, do pastor Wilhelm Rotermund, de conteúdo político. O Lehrerzeitung, dos
católicos, fundado em 1898, e o dos evangélicos, fundado em 1901, eram de orientação
didática e de apoio à escola comunitária e aos professores.
Os Kalender eram almanaques anuais, úteis para o lar, possuindo calendário e
páginas pautadas para anotações, registro de dias santos e feriados. Eram indispensáveis ao
leitor em geral os conselhos para o quotidiano em matéria de saúde, cozinha e jardim, para a
agricultura e o artesanato. Entre eles existiu o Koseritz Deutscher Volkskalender (1873-1891),
o Kalender für Deutscher in Bresilien (1881-1939), o Fahne dês hl. Ignatius. O Musterreiters
Kalender era dos caixeiros viajantes.
A Segunda Guerra Mundial, que determinou a proibição da língua alemã em
território brasileiro, constituiu um golpe fatal na imprensa diária em alemão, pois nenhum
34
jornal reapareceu e a Tipografia do Centro, em Porto Alegre, continuou a publicar uma
edição alemã, semanal, de seu jornal A Nação.
À medida que transcorria o tempo desde a chegada dos primeiros imigrantes, uma
dupla evolução operava-se nos seus costumes e de seus descendentes: o apego às tradições
germânicas lhes permitiu conservar boa parte de seus usos e mesmo transmitir alguns deles
aos rio-grandenses de outra origem, em compensação, a influência do meio acentuou-se com
o tempo e, de certo modo, transformou sua maneira de viver.
É interessante notar, segundo Jean Roche (1969, p.650-651), que o isolamento no
meio da floresta estreitou o horizonte cultural dos colonos. A necessidade de sobreviver e o
desejo de melhorar uma posição social precária, orientaram o imigrante e seus descendentes
para preocupações essencialmente utilitárias, resultando numa mercantilização da vida, uma
espécie de egoísmo materialista. Deploravelmente, ocorreu não o abandono das virtudes
morais individuais, mas também a perda do sentimento de solidariedade étnica, pois a
competição econômica dividiu a comunidade antes de opô-la a outros grupos de origem
diferente.
Essa concepção materialista da vida teria provocado um obscurecimento da
consciência étnica, uma regressão da instrução, uma queda no nível cultural, uma ignorância
sobre as coisas e as pessoas da Alemanha. Imigrantes recém-chegados da Alemanha ficavam
chocados ao se depararem com os colonos vindos anos antes. Encontravam homens da mesma
origem, mas de nacionalidade brasileira, que se comportavam como brasileiros, que falavam
português, que tinham costumes muito diferentes, que lhes pareciam bárbaros. Evidentemente
se diferiam dos outros rio-grandenses, mas já não eram “alemães”. Ao cabo de alguns anos, os
recém-chegados eram adotados pela comunidade, no momento em que eles mesmos se
adaptavam ao Rio Grande. O meio, portanto, exerceu sobre os grupos sociais evidente e
rápida influência.
Outro fenômeno muito complexo foi a evolução da língua falada dentre os
imigrantes alemães. No começo da colonização, eles não praticavam a forma padrão do
alemão (hoch deutsch), mas os dialetos usados em seus Estados ou Províncias e cuja
conservação se explica pelo seu isolamento e seu agrupamento mais ou menos espontâneo,
conforme a região de origem: Pomerânia, Vestfália, Hunsruck, Renânia. Alguns adquiriram o
caráter de língua de comunicação, por exemplo, o renano. Apesar de suas insuficiências, esses
dialetos dominantes tiveram tal força assimiladora que os imigrantes de etnia diferente que,
por ventura, se fixaram numa zona de povoamento essencialmente germânico, adotaram a
língua local, isto é, um falar alemão. Esse falar modificou-se sob dupla influência, a do meio
35
rio-grandense e a do grupo alemão quando este tomou, ou o fizeram tomar, consciência de sua
existência como coletividade.
Ao se formarem as primeiras colônias na borda da Serra, o isolamento condenava os
imigrantes a conservar o uso de sua própria língua. Sem contatos com os elementos luso-
brasileiros, não tinham nem necessidade nem oportunidade de aprender o português. Essa
ignorância do português era, por volta de 1875, quase total nas colônias, prolongando-se o
emprego exclusivo do alemão além do fim do Império.
A influência do meio foi marcada pela adoção de palavras e gírias de origem
brasileira, geralmente relacionadas com a vida cotidiana: noções geográficas, animais, plantas
cultivadas, alimentação, vestuário, casa e utensílios, pesos e medidas, profissão, justiça e
política. Esse aprendizado corresponde à formação de interesses em torno de elementos da
cultura material. Já, a adoção de termos brasileiros de parentesco e amizade, revela nova
função da vida social.
Acredita-se que não foi apenas a necessidade de adaptar sua linguagem aos
elementos do gênero de vida que fez o imigrante manifestar a preocupação em aprender a
língua nacional. Um segundo motivo indica que a língua portuguesa foi adotada
voluntariamente pelos teuto-brasileiros, seduzidos pelo prestígio de um símbolo da civilização
urbana, do poder político pertencente à classe dominante.
Entretanto, os progressos com a ngua portuguesa começaram somente com o
desenvolvimento dos meios de comunicação, com a multiplicação dos contatos entre as
diferentes etnias e com a instalação de novas colônias no Planalto, no meio da zona luso-
brasileira. Continuaram depois com a instauração dos tiros de guerra e, posteriormente, do
serviço militar obrigatório. Por fim, os avanços tornaram-se decisivos com a disseminação das
escolas públicas.
Um dos mais importantes meios de propagação do português, todavia, foi o rádio,
como afirma Jean Roche (1969, p.655):
Sem ter sido pedido, sem aplicar nenhum sistema, sem exercer nenhuma
coação, o rádio tem, talvez, feito mais que a escola pela expansão da língua
nacional nas colônias, não entre as crianças, completando-lhes e
vivificando-lhes as aquisições escolares, mas principalmente entre os
adultos que não podiam ser recambiados à escola.
Assim, passado mais de um século desde a chegada dos primeiros imigrantes
alemães, estes e seus descendentes foram inseridos em menor ou maior grau no contexto
36
social rio-grandense, recebendo influências e influenciando culturalmente a sociedade que os
abrigou. Como foi exposto, chegando ao Rio Grande do Sul imigrantes de diferentes ofícios,
níveis sociais e culturais, alguns se estabeleceram e permaneceram na zona rural,
desenvolvendo a agricultura; outros se estabeleceram ou logo se transferiram para a zona
urbana, onde tornaram-se comerciantes, industriários ou profissionais liberais como médicos,
advogados, engenheiros e professores.
Certamente, essa separação contribuiu para que os dois grupos manifestassem perfis
e modos de vida distintos. Do vestuário à alimentação, passando pelo nível cultural, as
diferenças são evidentes entre os camponeses e os citadinos. No entanto, ambos compartilham
o mesmo passado histórico, a mesma experiência de abandono da terra natal, as constantes e
saudosas lembranças do Velho Mundo, a luta pela adaptação num país povoado por tão
diferentes etnias, características que inevitavelmente os manterão ligados a uma mesma
condição: a de serem imigrantes. E, principalmente, a de enxergarem a terra que os adotou
com olhos de imigrantes.
1.3 Contextualização da personagem Carl Winter no panorama da imigração alemã
Na trilogia O Tempo e o Vento, Erico Verissimo representa a formação do Rio
Grande do Sul num período de tempo compreendido entre 1745 e 1945. É sabido que, para
desenvolver uma narrativa que abarcasse duzentos anos de história, foi necessário, por parte
do autor, um estudo aprofundado, que lhe fornecesse informações sobre fatos sociais,
políticos e econômicos ocorridos no Estado, bem como, que lhe proporcionasse
conhecimentos sobre a constituição do povo e sua cultura.
No entanto, somente a pesquisa sobre a História rio-grandense não constituía recurso
suficiente para realizar o ambicioso projeto literário do escritor. Fez-se fundamental, então, a
apropriação dos fatos históricos para a criação do enredo e personagens, de forma a garantir a
impressão de verdade, a verossimilhança, característica imprescindível de um bom texto
literário.
Essa apropriação de fatos históricos pela Literatura, recurso que Erico Verissimo
desenvolve ao longo de toda a trilogia, também contempla a personagem que é objeto de
estudo desta investigação, o Dr. Carl Winter, presente em O Continente. Representante da
cultura germânica, essa personagem insere-se na História do Rio Grande do Sul ao repercutir
37
o evento da imigração alemã, iniciada em 1824 e estendida até as primeiras décadas do século
XX.
De acordo com os estudos de Jean Roche (1969), desenvolvidos no livro A
colonização alemã e o Rio Grande do Sul, material que serviu de fundamentação teórica para
este primeiro capítulo, a corrente imigratória trouxe ao Estado milhares de alemães
descontentes com o sistema sócio-político-econômico da Europa em vigor na época, na
tentativa de recomeçar a vida na América, atraídos pela distribuição de terras cultiváveis, das
quais seriam eles mesmos os donos, e por um mercado de trabalho pouco competitivo para
aqueles que queriam desenvolver outros ofícios.
Chegados ao Rio Grande do Sul, a grande maioria desses imigrantes, camponeses na
Europa, mantiveram a profissão, desenvolvendo a agricultura nas pequenas propriedades
rurais e dando, assim, origem às colônias. Entretanto, a personagem Carl Winter não está
incluída nesse grupo majoritário de pioneiros desbravadores de florestas, destinados ao
cultivo da terra. Desde o início do romance, o escritor define o perfil de imigrante alemão
representado por Carl Winter: “não era um ‘colono’ como os outros alemães que se haviam
estabelecido às margens do Rio dos Sinos. Não viera à procura do El-Dorado nem da Galinha
dos Ovos de Ouro.” (VERISSIMO, 2002, p.40).
Carl Winter não era um camponês, era um médico, portanto, não viajara ao Brasil
motivado pelos mesmos interesses da maioria dos imigrantes alemães. Definitivamente, não
era um integrante desse grupo de camponeses, que permaneceram isolados em suas colônias
durante décadas, comunicando-se exclusivamente na língua materna e vivendo num ambiente
hostil e miserável, sem qualquer contato com a vida social do Rio Grande do Sul, que Erico
Verissimo precisava para desempenhar a função concebida para a personagem na narrativa.
Era necessário alguém capaz de conviver em meio aos nativos da Província, com certo grau
de instrução, apto a aprender a língua portuguesa e comunicar-se fluentemente com os rio-
grandenses, e dotado de um nível de conhecimento suficiente para observar a realidade tendo
condições de analisá-la criticamente.
Com esse intuito, Carl Winter foi caracterizado pelo escritor como representante de
um pequeno grupo de imigrantes citadinos, chegados ao Rio Grande do Sul juntamente com
os camponeses, mas que possuíam técnicas mais avançadas ou tinham um maior nível de
escolarização, bastante ou algum conhecimento da cultura erudita e um vivo espírito
empreendedor.
Esse grupo de imigrantes alemães, segundo Jean Roche, diferentemente daqueles
provindos da zona rural, custou a adaptar-se à vida nas colônias recém-formadas, tornando-se
38
os primeiros a desejar estabelecer-se nas cidades, dando início à atividade comercial e
industrial ou desempenhando profissões liberais nos centros urbanos mais desenvolvidos do
Estado.
Quanto às causas de sua emigração para o Brasil, Carl Winter foi motivado por uma
desilusão amorosa e conseqüente envolvimento em uma revolução, o que tornou inviável sua
permanência na Alemanha. Essa situação também confirma sua origem não-camponesa e uma
intencionalidade diferente dos demais compatriotas que se aventuraram no Novo Mundo.
Nesse sentido, Carl Winter não viera ao Brasil para fugir dos impostos e melhorar as
condições de vida, mas sim para solucionar problemas de outra ordem, certamente afetivos,
pois nada melhor que a distância e o tempo para curar as mágoas de um amor não
correspondido. Diferentemente também dos demais imigrantes que deixaram a Alemanha sem
esperança de retorno, o médico alemão acreditava em uma permanência temporária no Brasil
e, assim que sentisse vontade, retornaria à sua terra natal.
A procedência urbana da personagem também é acentuada pela caracterização do
vestuário. Erico Verissimo representa Carl Winter como citadino pelo uso, pelo menos
durante os primeiros anos de residência no Rio Grande do Sul, de roupas de veludo em cores
extravagantes, colete e chapéu alto, moda em voga nos grandes centros urbanos da Europa na
época, distinguindo-as das roupas usadas pelos camponeses alemães ao desembarcarem no
Estado, descritas por Jean Roche: espessas roupas de lã, roupa interna de linho e chapéu de
feltro.
Apresentando-se à vila de Santa em 1851, embora o narrador não precise a data
de desembarque no Brasil, Carl Winter não veio com as primeiras levas de imigrantes alemães
que chegaram ao Rio Grande do Sul, mas sim, conforme mostra Jean Roche, sua chegada
corresponde ao segundo período da corrente imigratória , de 1848 a 1874. A própria narrativa
confirma esse período ao mencionar que, à época em que Carl Winter esteve em São
Leopoldo, o núcleo colonial estava constituído e havia alcançado relativo grau de
desenvolvimento econômico, com a produção de boas colheitas e a expansão das
propriedades, o que levava algumas famílias a iniciarem o processo de colonização de terras
mais distantes desse núcleo original.
Em visita à Colônia de São Leopoldo, Carl Winter depara-se, não sem certa
perplexidade, com o processo de assimilação, por parte dos imigrantes alemães, de bitos e
costumes dos rio-grandenses, o que indica que a fase inicial de isolamento das colônias,
progressivamente, dava lugar a um maior contato entre as diferentes culturas.
39
Como afirma Jean Roche, o meio social exerceu enorme influência sobre os
costumes germânicos trazidos pelos imigrantes. A partir do momento em que alemães e rio-
grandenses começam a interagir, opera-se uma transformação cultural, com a aquisição por
parte dos alemães de hábitos da região. O próprio Dr. Carl Winter não permanece neutro a
esse processo. Após certa resistência pela manutenção de características que o definiam como
pertencente à cultura alemã, garantindo-lhe a identidade, ele também se deixa influenciar
pelos costumes da terra, adaptando-se ao vestuário, à alimentação, aos cheiros, à organização
social dos rio-grandenses.
Ainda dentro da temática que origina a personagem Carl Winter, Erico Verissimo
apropriou-se de uma figura real, transformando-a em personagem da narrativa. Trata-se do
também imigrante alemão Carl von Koseritz, apresentado ao leitor como amigo e confidente
de Carl Winter. Os dois conhecem-se já no Brasil, num hospital de Rio Grande, onde Koseritz
estava internado depois de integrar, como soldado, as tropas brasileiras que lutaram contra o
ditador Rosas.
Nesse ponto da narrativa, Erico Verissimo novamente recorre à História, pois
Koseritz fazia parte dos Brumers, um batalhão de mil e oitocentos soldados alemães
contratados em 1851 para combater o ditador argentino que invadiu o Brasil na tentativa de
aumentar seus domínios. Depois da guerra, Koseritz permaneceu no Rio Grande do Sul,
alimentando o sonho abrir uma escola, ensinar e fundar um jornal, o que de fato vem a se
confirmar anos depois, consagrando-o como um dos mais importantes jornalistas e defensores
da germanidade. Um dos primeiros homens cultos entre os imigrantes, Koseritz dominava a
língua portuguesa tanto oralmente quanto por escrito, fazendo do Deutshe Zeitung um dos
mais duradouros jornais, dedicados à cultura alemã, que circularam no Estado.
A amizade entre as duas personagens será demonstrada através das cartas que Carl
Winter envia à Koseritz, narrando-lhe suas impressões sobre o povo da Província de São
Pedro e compartilhando com ele seus pensamentos mais íntimos. Porém, pensando nessa
relação, percebe-se que a presença dessa segunda personagem germânica é fundamental para
o desenvolvimento da narrativa. Ao caracterizá-la como confidente do médico alemão, Erico
Verissimo oportunidade para que o próprio leitor tome conhecimento dos pensamentos de
Carl Winter que, na falta de um amigo suficientemente instruído em meio àquela gente
simples de Santa Fé, escreve a Koseritz, e ninguém melhor e mais apto para compreendê-lo
do que um indivíduo pertencente ao mesmo grupo étnico e com nível intelectual equivalente.
A partir da apropriação pela Literatura de personalidades e espaços reais e,
principalmente, de fatos históricos, Erico Verissimo consegue realizar seu projeto de criação
40
de um romance sobre a formação da sociedade gaúcha num período de dois séculos, formação
na qual, o evento da imigração alemã contribuiu fortemente seja no aspecto econômico,
político ou cultural.
Sendo assim, a contextualização de Carl Winter dentro do panorama da imigração
alemã no Rio Grande do Sul contribui para a posterior análise dos recursos narrativos
empregados por Erico Verissimo na construção de uma personagem que, embora imaginária,
tem a capacidade de representar uma temática histórica. Através das características físicas e
psicológicas atribuídas à personagem, sua relação com as demais personagens da narrativa e a
manifestação de seus pensamentos em relação à sociedade gaúcha, podemos verificar qual era
a visão que Erico Verissimo possuía desses imigrantes e, além disso, através de sua versão da
imigração alemã na Literatura, torna-se possível questionar a versão defendida pela própria
História.
41
2 A PERSONAGEM CARL WINTER NA NARRATIVA DE O TEMPO E O VENTO
2.1 A Personagem
Se na História o ser humano é o sujeito por excelência, aquele que pratica a ação,
agindo sobre o meio e inscrevendo-se no tempo, na Literatura, o elemento indispensável para
o desenvolvimento do enredo de um texto é a personagem, que desencadeia as ações e
dinamismo ao processo narrativo.
A origem etimológica da palavra personagem é persona, derivada do verbo
personare, “soar através de”. Persona era o nome da máscara que os atores gregos usavam,
para dar-lhes a aparência que o papel exigia, amplificando sua voz e permitindo que fosse
ouvida pelos espectadores.
Aristóteles, o primeiro a tocar na questão da personagem, refere-se à semelhança
existente entre personagem e pessoa, conceito centrado na mimesis, traduzido como “imitação
do real”. Segundo o teórico (1996, p.71), “o imitar é congênito no homem (e nisso difere dos
outros viventes, pois de todos, é ele o mais imitador, e, por imitação, apreende as primeiras
noções) e os homens se comprazem no imitado”. Assim, a mimesis se explica como uma
tendência congênita do homem, ao qual apraz tanto produzi-la quanto contemplá-la, pois
envolve uma aprendizagem (conhecimento) e um reconhecimento (identificação com uma
forma original).
No entanto, é preciso entender o conceito de mimesis não no sentido de reprodução
servil da realidade, mas no sentido de construção, por parte do artista, de algo que a ela está
ligado, e de alguma forma a reproduz. Para Lígia Militz da Costa (1992, p.6), a partir de
Aristóteles, de ontológica a arte passa a ter uma concepção estética, não significando mais
“imitação” do mundo exterior, mas fornecendo “possíveis” interpretações do real através de
ações, pensamentos e palavras, de experiências existenciais imaginárias.
Dessa maneira, a preocupação de Aristóteles não se restringia apenas ao que é
“imitado” ou “refletido” num poema, mas atentava para a própria maneira de ser do poema e
com os meios utilizados pelo poeta para a elaboração de sua obra, apontando dois aspectos
principais em relação à mimesis: a) a personagem como reflexo da pessoa humana; b) a
personagem como construção, cuja existência obedece às leis particulares que regem o texto.
42
A personagem, na concepção de Aristóteles, portanto, é tomada como um ser fictício,
um ser que, embora esteja relacionado a um ser real, não tem existência real. O problema da
verossimilhança
3
no romance, segundo Antonio Candido (1998, p.55) depende da
possibilidade de um ser fictício, isto é, uma criação da fantasia, comunicar a impressão da
verdade existencial. Assim, o texto literário estaria baseado numa relação entre o ser vivo e o
ser fictício, manifestada através da personagem, que é a concretização deste.
Conforme o autor, na vida real costumamos formular algumas concepções sobre as
pessoas com quem nos relacionamos e, na tentativa de compreendê-las, atribuir-lhes certas
características. No entanto, nesse ser uno que a visão ou o contato nos apresenta, a
convivência espiritual mostra uma variedade de modos-de-ser, de qualidades às vezes
contraditórias, impedindo-nos de abranger a personalidade do outro com a mesma unidade
com que abrangemos sua configuração externa. Logo, a percepção que um ser tem do outro
ser é limitada e sempre incompleta:
As pessoas reais, assim como todos os objetos reais, são totalmente
determinadas, apresentando-se como unidades concretas, integradas de uma
infinidade de predicados, dos quais somente alguns podem ser “colhidos” e
“retirados” por meio de operações cognoscitivas especiais. Tais operações
são sempre finitas, não podendo por isso nunca esgotar a multiplicidade
infinita das determinações do ser real, individual, que é inefável.
(CANDIDO, 1998, p.32).
Ao elaborar uma personagem, o escritor retoma, no plano da técnica de
caracterização, a maneira incompleta e fragmentária com que elaboramos o conhecimento de
nossos semelhantes. Porém, existe a diferença de que na vida real, a visão fragmentária é
imanente à nossa própria condição e a interpretação que fazemos de cada pessoa se pela
experiência, variando de acordo com o tempo ou com as condições de conduta; no texto
literário, podemos variar apenas relativamente a nossa interpretação da personagem, pois ela
foi criada e dirigida pelo escritor que lhe conferiu uma estrutura elaborada com características
próprias, delimitando sua existência e a natureza do seu modo-de-ser.
Como explica Antonio Candido (1998, p.59), essa estrutura limitada, constituída
pelas orações, é obtida pela escolha e combinação de alguns elementos de caracterização
(cujo número é sempre limitado se comparado com o máximo de traços humanos impressos
no modo-de-ser das pessoas), organizados segundo uma lógica de composição, e não pela
3
O conceito de verossimilhança será explicado detalhadamente no item 2.8 deste capítulo.
43
admissão caótica de inúmeros elementos, criando, assim, a ilusão do imitado. Justamente por
se tratar de orações e não de realidade, o escritor pode realçar aspectos essenciais pela seleção
dos aspectos que apresenta, conferindo às personagens um caráter mais nítido do que a
observação da realidade oferece, conduzindo-as através de situações mais decisivas e
significativas do que costuma ocorrer na vida.
Dessa forma, graças aos elementos que usa para descrever e definir a personagem, de
maneira que ela possa dar impressão de vida, o romancista é capaz de dar a impressão de um
ser ilimitado, contraditório, infinito em sua riqueza. Contudo, o leitor apreende essa riqueza e
toma a personagem como um todo coeso diante de sua imaginação. Conforme o Antonio
Candido (1998, p.59), “a compreensão que nos vem do romance, sendo estabelecida de uma
vez por todas, é muito mais precisa do que a que vem da existência. Daí podermos dizer que a
personagem é mais lógica, embora não mais simples, do que o ser vivo.”.
Assim, sendo o criador da realidade que apresenta, o romancista pode dominá-la,
delimitá-la, mostrá-la de modo coerente, comunicando-a ao leitor como um tipo de
conhecimento que, em conseqüência é mais coeso, completo e satisfatório do que o
conhecimento fragmentário ou a falta de conhecimento real que é oferecido nas relações com
as pessoas. O modo pelo qual o escritor conduz nosso “olhar”, através de aspectos
selecionados de certas situações, da aparência física, do comportamento, da intimidade das
personagens, torna-as até certo ponto, novamente inesgotáveis e insondáveis, refazendo o
mistério do ser humano.
Tomando a perspectiva de Antonio Candido, podemos dizer que no romance O
Continente, a personagem Carl Winter vai sendo esculpida não por imitação de um imigrante
alemão real, mas através de uma seleção de informações fornecidas quer pela experiência,
quer por meio de relatos historiográficos e de viajantes, e pelo trabalho de criação do escritor,
em que entra uma alta dose de imaginação. Na construção dessa personagem fictícia, Erico
Verissimo empenha-se em resgatar, pela linguagem, uma criatura possível, dentre os milhares
de imigrantes que desembarcaram no Brasil durante o século XIX.
A personagem é o elemento mais atuante, mais comunicativo no texto literário,
porém, adquire pleno significado no conjunto da obra, na construção estrutural do texto.
Dessa forma, uma investigação minuciosa da personagem Carl Winter deve contemplar não
apenas os recursos narrativos que o escritor utilizou na sua construção, mas deve levar em
conta o contexto geral da obra, a relação da personagem com os demais elementos
constitutivos do texto literário. Como lembra Antonio Candido (1998, p.75):
44
a vida da personagem depende da economia do livro, da sua situação em
face dos demais elementos que a constituem: outras personagens, ambiente,
duração temporal, idéias. Daí a caracterização depender de uma escolha e
distribuição conveniente de traços limitados e expressivos, que se entrosem
na composição geral e sugiram a totalidade de um modo-de-ser, duma
existência.
Adentrar no universo de uma personagem, isto é, de uma criatura fictícia, constitui
uma tarefa instigante e reveladora, pois reconhecemos nesta, características de pessoas reais
com quem convivemos, nos deparamos com os meandros da alma humana, com sentimentos
de alegria, saudade, tristeza, frustração, solidão, sondamos as profundezas de um ser criado,
na tentativa de desvendar a nossa própria interioridade.
2.2 O fundamento histórico
A crônica histórica da formação do Rio Grande do Sul de 1745 a 1945 configura o
projeto de Erico Verissimo ao escrever O Tempo e o Vento. Sabe-se que as fontes de pesquisa
utilizadas pelo escritor na construção de toda a trilogia forneceram-lhe uma base concreta para
realizar esta interpretação do passado. Além de livros de Geografia e História, esse material
constituiu-se, principalmente, de relatos de viajantes estrangeiros que percorreram o sul do
Brasil durante o século XIX, como Auguste de Saint-Hilaire, Nicolau Dreys e Arsène
Isabelle, os quais deixaram depoimentos providos de objetividade científica, expondo com
clareza os traços primitivos e elementares do meio social em formação. (CHAVES, 1994,
p.53).
Na construção da personagem Carl Winter, como mencionamos anteriormente, Erico
Verissimo buscou referências em um evento histórico ocorrido no Rio Grande do Sul: a
imigração alemã. O fato de ter se apropriado dessa temática e construir uma personagem
representativa do imigrante alemão, contudo, não significa uma tentativa do escritor de relatar
o processo da imigração alemã no Rio Grande do Sul, tarefa esta atribuída ao historiador.
Tratando-se de um texto literário e não de um relato historiográfico, a narrativa de O
Continente não pretende, através da personagem em questão, recontar a saga de camponeses
alemães que, insatisfeitos com os altos impostos, a terra escassa e exaurida, emigraram para o
45
Brasil, encontrando aqui a promessa de uma vida melhor. A apropriação do evento histórico
da imigração alemã pelo texto literário constitui, antes, um recurso estrutural da narrativa, que
utiliza um fato da realidade para contextualizar um enredo ou, nesse caso, uma personagem,
atribuindo-lhe uma origem, uma biografia, traços físicos e uma personalidade, caracterizando-
a como integrante de uma determinada cultura.
Nesse sentido, o elemento histórico é tomado como fator da própria construção
artística, utilizado no nível explicativo e não ilustrativo, tornando-se um elemento entre outros
que interfere na economia da obra literária, juntamente com os lingüísticos, psicológicos,
religiosos, etc. No entanto, é importante salientar que, no caso de Carl Winter, o elemento
histórico não oferece simplesmente material para a construção da personagem, vai além disso,
torna-se fator que atua no que de essencial na obra, ou seja, associa-se à função
desempenhada pela personagem dentro da narrativa.
Assim, o Dr. Carl Winter não é apenas um imigrante alemão caracterizado pelos seus
traços físicos, vestuário e linguagem, é, acima de tudo, um estrangeiro, alguém egresso da
cultura européia, capacitado intelectualmente para analisar de forma crítica a cultura do povo
gaúcho. Daí sua caracterização, realizada por parte do escritor, utilizar o evento histórico
(fator social) em benefício da função da personagem na narrativa.
O fator social, no caso a imigração alemã no Rio Grande do Sul, integra a narrativa
de O Continente como um elemento constituinte de sua própria estrutura interna. Antonio
Candido (2000, p.4), ao falar da integridade da obra literária, afirma que texto e contexto
fundem-se numa interpretação dialeticamente íntegra, combinando-se como momentos
necessários do processo interpretativo. Nesse sentido, o elemento externo (social/histórico)
importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um
certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno.
Entretanto, ao se analisar o fator social como constituinte da obra de ficção, deve-se
ter consciência, segundo Antonio Candido (2000, p.12), da relação arbitrária e deformante
que o fazer literário estabelece com a realidade, mesmo quando pretende observá-la e transpô-
la rigorosamente, pois a mimesis é sempre uma forma de poiesis. O escritor, através da
imaginação, combina e cria ao devolver à realidade, e essa liberdade, própria da criação
literária e artística, pode modificar a ordem do mundo justamente para torná-la mais
expressiva, constituindo-se no leitor a impressão de verdade.
Nessa perspectiva, o recurso utilizado por Erico Verissimo tem maior contribuição
para a verossimilhança da narrativa do que para a crônica histórica da formação do Rio
Grande do Sul, para a qual a imigração alemã contribuiu significativamente. Como diz
46
Moysés Vellinho (2001, p.127), os elementos da formação rio-grandense que despontam no
enredo de O Tempo e o Vento, aparecem menos como argumento histórico do que como
material rigorosamente depurado para efeito romanesco. É na habilidade com que Erico
Verissimo assimila esse material histórico e o incorpora na trama de ficção que se percebe sua
autenticidade de romancista, pois em torno da vida e da ação de suas personagens, ele coloca
o leitor em contato com o desenrolar dos acontecimentos que foram urdindo e sedimentando a
crônica da formação rio-grandense. “Homens e acontecimentos se misturam na mesma
argamassa em que se está construindo, entre rasgos fulgurantes e mudas provações, o destino
de uma província.” (VELLINHO, 2001, p. 127).
O fator social, intrínseco à obra, não está, portanto, radicado na mera transcrição da
realidade, de um evento histórico, mas no mundo das personagens fictícias, na sua dinâmica,
que terá de ser apreendida e interpretada pelo leitor. Como coloca Flávio Loureiro Chaves
(1976, p.85), tudo o que Erico Verissimo capta da dinâmica histórica se assimila à natureza
fictícia da obra que constrói, importando mais o “processo” do que o “fato”, o “mecanismo”
mais do que a “natureza” ou o “conteúdo” dos acontecimentos.
Sendo assim, Erico Verissimo recorre, para a construção da personagem Carl Winter
e de todo o romance, a um processo tradutor do argumento histórico. É por meio desse
recurso tradutor de um fato real recriado pelo escritor que se estabelece um diálogo entre a
História e suas possibilidades. Todas as comparações e imagens que vão dando forma à
personagem, só podem ser decodificadas a partir da imigração alemã recuperada e inventada
pelo escritor, e não por meio da transcrição rigorosamente fiel do evento histórico.
Como explica Antonio Candido (1998, p.75), originada ou não da realidade, baseada
mais ou menos num evento histórico real, a construção da personagem depende da estrutura
da obra literária, da sua situação em face das demais personagens, ambiente, duração temporal
e idéias. Sua caracterização depende de uma convencionalização, ou seja, de uma seleção e
distribuição conveniente de traços limitados e expressivos, que se entrosem na composição
geral e sugiram a totalidade de uma existência.
A impressão de verdade da personagem Carl Winter, portanto, não depende apenas
da relação com modelos reais propostos pela observação, interior ou exterior, direta ou
indireta, presente ou passada; depende, sim, da função que exerce na estrutura do romance,
tornando-se uma questão de organização interna.
47
2.3 A biografia imaginária
Ao contextualizar a personagem Carl Winter dentro da temática da imigração alemã
ocorrida no Rio Grande do Sul, o escritor atribui-lhe uma origem em território europeu e uma
biografia, ambas imaginárias. Esses dados, além de conferirem maior veracidade à
personagem, tornam-se indispensáveis para seu posterior desenvolvimento dentro da narrativa
de O Continente, constituindo informações que fundamentam as ações e pensamentos da
personagem e regem sua visão do mundo.
Tais informações, constituídas pela linguagem escrita, projetam para o leitor a
imagem de um ser com existência real. Como explica Antonio Candido (1998, p.14-15), a
estrutura do texto literário compõe-se de uma série de planos, dos quais o único real,
sensivelmente dado, é o dos sinais tipográficos impressos no papel. Embora essencial à
fixação da obra literária, este plano não tem função específica na sua constituição, estando em
situação de dependência em relação à atividade concretizadora e atualizadora do leitor.
Assim, por meio das orações, são “projetadas”, através de determinadas operações lógicas,
“contextos objectuais”, isto é, relações atribuídas aos objetos e suas qualidades. A partir
desses contextos objectuais, constitui-se um plano intermediário de certos “aspectos
esquematizados” que, quando especialmente preparados, determinam concretizações
específicas do leitor. Esses aspectos esquemáticos, ligados à seleção cuidadosa e precisa das
palavras com suas conotações peculiares, podem referir-se à aparência física ou aos processos
psíquicos de uma personagem, salientando movimentos visuais, táteis, auditivos, etc.
Dessa forma, uma das funções da oração é projetar, como correlato, um contexto
objectual que transcende o mero conteúdo significativo da oração. O correlato da oração pode
referir-se tanto a um ser real, que exista independentemente da oração, como pode permanecer
sem referência nenhuma à realidade. No entanto, segundo Antonio Candido (1998, p.16),
essas objectualidades, puramente intencionais, tendem a se constituírem como “realidade”,
projetando o objeto como um “ser independente”. No prosseguir da narração, a personagem se
emancipa de tal modo das orações, que os contextos objectuais, embora estejam pouco a
pouco constituindo e produzindo a personagem, parecem ao contrário apenas revelar
pormenores de um ser autônomo.
É como um ser autônomo, aparentemente real, que a personagem Carl Winter
desponta do enredo de O Continente, constituindo um elemento estrutural indispensável para
a economia da narrativa. O imigrante alemão é apresentado ao leitor, logo nas primeiras
48
páginas do segundo volume, por meio de uma nota do Almanaque de Santa , jornal
organizado pela personagem Dr. Nepomuceno, juiz de direito da vila. O ano era 1853:
A ciência de Hipócrates es representada entre nós pelo ilustrado Dr.
Carl Winter, natural da Alemanha e formado em Medicina pela
Universidade de Heidelberg e que fixou residência nesta vila em 1851, data
em que apresentou suas credenciais à nossa municipalidade.”
(VERISSIMO, 2002, p.11).
Nesse breve relato constam informações substanciais a respeito da personagem:
uma origem européia, um título de doutor e o adjetivo “ilustrado”. O tempo verbal pretérito,
utilizado nas últimas orações, apesar de em certos casos ter cunho fictício do “era uma vez”,
tem aqui mais força “realizadora” e “individualizadora” do que a voz do presente, sugerindo
que a personagem existia antes da oração assinalar esse fato. A partir deste momento da
narrativa, o imigrante alemão está autorizado por seu narrador a atuar no espaço de Santa Fé,
ao mesmo tempo em que o leitor começa a visualizá-lo em sua imaginação. Essa visualização,
esse efeito de realidade vai ganhando forma a partir da descrição minuciosa de traços que
apontam para a nominalização, para a figura física, para a minúcia dos gestos, para as roupas,
para a linguagem.
No entanto, são necessários mais detalhes sobre a origem dessa personagem de modo
a justificar a função que ela exercerá dentro da narrativa, dados que justifiquem seus
pensamentos e atitudes. O recurso utilizado pelo romancista para que o leitor tome
conhecimento dessas informações, se através da memória da própria personagem. De
maneira nostálgica, deitado em uma cama nada confortável, numa casa cheirando a picumã e
mofo, no interior do Rio Grande do Sul, Carl Winter, à espera do sono, relembra sua cidade
natal e refaz mentalmente o itinerário que o trouxe até Santa Fé.
Seu nascimento ocorre na pequena cidade alemã de Eberbach, na região de Baden-
Württemberg, cuja paisagem é caracterizada pelo Rio Neckar, a Serra de Odenwald e antigos
castelos. O último item indica um espaço povoado por uma civilização historicamente
constituída, característica comum ao continente europeu e, se comparada ao sul do Brasil,
mais avançada em todos os níveis. Em seu livro de memórias Solo de Clarineta, Erico
Verissimo conta como escolheu o lugar de origem para a personagem:
Onde nasceu ele? Pedi a um amigo, o Dr. Herbert Caro, uma lista de nomes
de pequenas cidades alemãs, de preferência de origem medieval, e que
49
tivessem um certo pitoresco. Dos quatro ou cinco que ele sugeriu, escolhi o
de Eberbach. Decidi que essa seria a terra natal do Dr. Winter.
(VERISSIMO, 1994, p.299).
Sobre a procedência familiar e a infância de Carl Winter nenhuma informação é dada
pelo narrador. No entanto, essa omissão de informações não compromete a construção da
personagem, que o escritor opera, como foi mencionado, com uma seleção de dados, dos
quais utiliza somente aqueles que tem relevância para a função da personagem na narrativa. O
que o narrador não deixa de informar, porém, é que a personagem concluiu seus estudos na
cidade de Heidelberg, conhecida por sediar a mais antiga e famosa universidade de medicina
da Alemanha, a Heidelberg Ruprecht Karl. Fundada em 1386, por Ruprecht I, e refundada em
1803, pelo duque Karl-Friedrich de Baden, essa universidade representava um dos centros
culturais mais movimentados da época, conhecida por receber poetas e escritores renomados
como Johann Wolfgang Goethe, Clemens Brentano e Joseph von Eichendorff. Além de ter
convivido em um ambiente impregnado de intelectualidade, Carl Winter ainda percorreu
outras cidades da Alemanha como Munique, Hamburgo, Berlim, e viajou para outros centros
culturais da Europa prestigiados na época como Viena e Paris, citados ao longo da narrativa.
É provavelmente ao longo de sua formação escolar, de seus estudos universitários e
através das viagens que realiza pela Europa, que Carl Winter adquire um vasto conhecimento
da cultura erudita, da música, das artes e da literatura, além de dominar ciências como a
História, a Biologia e a Geografia. Na narrativa, são mencionadas como conhecidas da
personagem: a mitologia grega, as tragédias de Sófocles, as obras dos escritores Heine (seu
preferido), Goethe e Hoffmann, as sonatas de Mozart, Haydn, Beethoven e Schubert.
Caracterizado por uma intensa formação intelectual e cultural, Carl Winter emigra
para o Brasil não pelos mesmos motivos que levaram milhares de alemães a deixarem sua
pátria, mas pelo envolvimento em uma Revolução, o que o impediu de continuar na
Alemanha. Sabe-se, entretanto, que sua adesão à guerra originou-se após uma decepção
amorosa, cuja ferida ainda doía, como a personagem confessa a si mesma:
“Estou aqui principalmente porque Gertrude Weil, a Fräulein que eu
amava, preferiu casar-se com o filho do Burgomestre. Isso me deixou de tal
maneira desnorteado, que me meti numa conspiração, que redundou numa
revolução, a qual por sua vez me atirou numa barricada. Ora, essa
revolução fracassou e eu me vi forçado a emigrar com alguns
companheiros.”. (VERISSIMO, 2002, p. 40).
50
Se consultarmos a historiografia, veremos que o ano de 1848 foi marcado por uma
série de revoluções na Europa central e ocidental, que eclodiram em função de regimes
governamentais autocráticos, de crises econômicas, de falta de representação política das
classes médias e do sentimento de nacionalismo, despertado na maioria dos países. Esse
conjunto de revoluções foi iniciado por membros da burguesia e da nobreza que exigiam
governos constitucionais, e por trabalhadores e camponeses que se rebelaram contra os
excessos das práticas capitalistas.
Em grande parte dos Estados alemães ocorreram revoltas populares exigindo um
parlamento nacional eleito que projetasse uma Constituição em defesa de uma Alemanha
unificada. As manifestações e os comícios tornaram-se diários, houve choques entre soldados
e manifestantes e logo surgiram barricadas, onde lutavam unidos membros da burguesia,
pequenos burgueses e operários. Levando-se em consideração a época aproximada em que
Carl Winter chega ao Brasil, provavelmente é a essas revoluções que ele se refere na
narrativa.
Dessa forma, ao contrário da maioria de imigrantes alemães que deixaram a
Alemanha em busca de uma vida melhor no Brasil, onde trabalhariam a terra da qual seriam
eles próprios os donos, conscientes de que jamais voltariam à pátria, Carl Winter, saindo de
Berlim, chega ao Brasil, desembarcando no Rio de Janeiro com seu diploma, sua caixa de
instrumentos cirúrgicos e algum dinheiro, decidido a estabelecer-se na capital do Império,
montar sua clínica e logo que juntasse alguma fortuna e esquecesse Gertrude Weil, retornar à
Alemanha.
Porém, não se adaptando ao ambiente carioca, incomodado pelo calor, pelo “excesso
de mosquitos e mulatos”, o médico embarca num patacho com destino à Província de São
Pedro, animado por conselhos de encontrar um clima similar ao do sul da Europa. Chegando
em Rio Grande, oferece-se para trabalhar no hospital da cidade, ocasião em que encontra o
compatriota Carl Von Koseritz, que viria a ser seu amigo e confidente.
Mantendo contato com o amigo através de correspondências, Koseritz aconselha
Winter a transferir-se para Porto Alegre, onde ficaria próximo da colônia alemã de São
Leopoldo e, assim, perto de seu povo. Hostilizado pelos médicos locais e decepcionado com
seus conterrâneos de São Leopoldo, que começavam a assimilar os hábitos da terra, o Dr.
Winter resolve então procurar a zona rural do Rio Grande do Sul, onde não havia núcleos
coloniais alemães. Seu objetivo inicial era conhecer as ruínas das reduções jesuíticas, mais a
oeste da Província, cujas lendas o haviam encantado. Nesse percurso, antes de atingir a zona
missioneira, de povoado em povoado, aperfeiçoando seu português, Carl Winter chega ao
51
vilarejo de Santa Fé, num entardecer de maio, onde haveria de permanecer a o fim de sua
vida.
Inexplicavelmente, Carl Winter sentia-se atraído por aquele vilarejo pobre e rude:
“Por uma razão misteriosa Santa Fé lhe parecera uma vila familiar, que ele conhecia dum
sonho ou duma outra vida: tinha a impressão de haver cruzado aquelas ruas num passado
muito remoto e agora descobria que sempre desejara voltar ali.” (VERISSIMO, 2002,
p.43).
Passavam-se semanas, meses, anos, e Carl Winter ia se deixando ficar em Santa Fé,
como se a vila possuísse uma espécie de poderoso sortilégio, que o impedia de seguir viagem,
de tomar outros rumos. Por mais que pensasse, Carl Winter não conseguia apontar algum
motivo razoável que o fizesse ficar:
Ficar era absurdo, não havia nenhuma razão ponderável para isso. Podia ir
para Buenos Aires, ou voltar para qualquer capital européia onde houvesse
teatro, música (que falta sentia de teatro e de música) e museus onde de
quando em quando pudesse encher os olhos e o espírito com a beleza das
obras dos grandes mestres. Queria um lugar que lhe oferecesse conforto e
oportunidades de agradável convívio humano. (VERISSIMO, 2002, p.44).
Santa Fé não lhe oferecia nem uma coisa nem outra. A vila era totalmente diferente
dos ambientes que Carl Winter costumava freqüentar na Europa. A carência de conforto e,
principalmente, a carência cultural na nova terra era o que mais o alemão lamentava. No
entanto, nada o prendia ali. Não tinha mulher nem filhos, não tinha sequer uma clínica onde
trabalhar, atendia os pacientes em suas próprias casas. Mas desanimava-se com a idéia de
percorrer longas distâncias a cavalo ou sacolejando dentro de uma “diligência desconjuntada
para chegar a Porto Alegre e tomar um navio. Às vezes, ficava à espera de um acontecimento
para o qual havia sido convidado: um casamento, um batizado, uma festividade, cavalhadas,
etc. “Mas a verdade era que ia ficando por pura inércia.” (VERISSIMO, 2002, p.44).
No entanto, o que Carl Winter apreciava em Santa Fé e contribuía para prolongar sua
permanência, ele encontrava na natureza exuberante, na beleza das pequenas coisas, na
tranqüilidade da vida e nos hábitos daquela gente simples. Eram as laranjas e bergamotas que
as geadas faziam amadurecer, o leite morno saído direto do úbere da vaca, os churrascos com
farinha que Gregória, sua escrava, lhe preparava, o pinhão cozido, bolo de polvilho, a
conversa depois do almoço na loja do Alvarenga, as partidas de xadrez e as discussões com o
52
juiz ou com o vigário, os serões no Sobrado, os longos passeios a pelo campo de manhã, a
paisagem, o pôr-do-sol.
Na paisagem ele descobrira então o mais poderoso motivo de sua
permanência em Santa . É que ela lhe dava uma vertiginosa sensação de
ser livre, de não ter peias nem limites. De certo modo naquela vila ele
realizava pela primeira vez seu velho ideal de não assumir compromissos
definitivos com ninguém nem com coisa alguma. Não ter amo nem mestre,
e poder ah! Principalmente isso - poder de vez em quando dar-se o luxo
da solidão, da mais absoluta e hermética solidão, eram positivamente coisas
voluptuosas! (VERISSIMO, 2002, p.45).
Esse apreço pela solidão e pela liberdade, caracterizando uma personalidade
individualista, são na verdade qualidades selecionadas intencionalmente pelo escritor na
construção da personagem. Uma pessoa erudita, solitária e sem família para sustentar, poderia
dedicar-se quase que exclusivamente à análise da vida alheia.
São nesses momentos de solidão que Carl Winter fará reflexões sobre Santa Fé, para
si mesmo ou através de cartas para Koseritz. Esses momentos de silêncio em que Carl Winter
é colocado, contudo, não prejudicam o andamento da narrativa, pois o narrador conta de
seus pensamentos, transmitindo-os ao leitor. De acordo com Antonio Candido (1998, p.32),
em um romance, a personagem pode permanecer calada durante bastante tempo, porque as
palavras ou imagens do narrador se encarregam de comunicar ao leitor os seus pensamentos,
ou simplesmente, os seus afazeres, o seu passeio solitário.
Dessa forma, caminhando pelo campo, admirando a paisagem, ou no interior de sua
tosca casa, Carl Winter refletirá sobre si mesmo, sobre seu destino, e analisará a peculiar
sociedade com a qual está convivendo, tirando suas próprias conclusões.
2.4 A formação
Carl Winter chega ao Brasil como um refugiado político, porém, mais do que fugir
de sua pátria após uma revolução perdida, ele procura escapar de uma desilusão amorosa, de
um amor fracassado, que o lança para o desconhecido, para a aventura na América, para um
53
exílio voluntário. E nada melhor que um lugar exótico, ainda pouco explorado pelos europeus,
de gente estranha e natureza praticamente intocada, para reorganizar os sentimentos e a vida.
A insatisfação perante os acontecimentos e a tentativa de fugir à realidade que o
perturba na Alemanha, fazem da viagem de Carl Winter ao Brasil uma forma de evasão no
espaço. Esses e outros comportamentos manifestados pela personagem já em terras
brasileiras, como a procura por lugares remotos, a busca da solidão, a contemplação da
natureza, o apreço pela liberdade, as privações materiais, podem ser interpretados como
atitudes românticas, manifestadas na vida e na obra de grandes poetas, prosadores e músicos
alemães do século XIX, e, não por mera coincidência, os artistas preferidos da personagem,
como consta na narrativa de O Continente.
Levando-se em consideração a época em que se deu a formação intelectual da
personagem na Europa, certas atitudes de Carl Winter, nessa perspectiva, parecem estar sob a
influência do Romantismo, que surgiu na Alemanha e Inglaterra, entre a segunda metade do
século XVIII e a primeira metade do século XIX e se constituiu não apenas em um
movimento literário, mas também histórico, político, religioso, social e estético. O movimento
romântico estendeu-se para além de sua datação histórica, mesclando-se a uma série de outros
movimentos, inclusive na literatura das ciências sociais.
Karin Volobuef (1999, p.12), amparada pelos principais críticos literários do assunto,
afirma que a contribuição do Romantismo não se restringiu somente ao campo das letras, mas
alcançou todo o pensamento humano, pois significou a rebeldia contra a autoridade do
passado, contra o convencionalismo fossilizado, contra a manutenção incontestada das
tradições. Embora abarcasse também tendências conservadoras, o fenômeno do romantismo
europeu, como um todo, foi impulsionado pela Revolução Francesa e representou a liberdade,
o espírito de renovação, a busca de caminhos inexplorados, constituindo-se num movimento
crítico, rebelde, inquisitivo, revelador. Como explica a autora: “Houve as lágrimas, sem
dúvida, mas também o grito por justiça; houve o gesto retrógrado, mas também a diligência
inovadora; houve o espírito voltado para o passado, mas também o olhar em busca do
futuro.”.
Nossa preocupação aqui se restringe ao romantismo alemão enquanto movimento
artístico-literário, voltando um olhar sobre o pré-romantismo, que o antecedeu. Pretende-se
refletir sobre as características que perpassaram o espírito romântico manifestado na literatura
e na música, representadas por nomes como Goethe, Schiller, Heine, Hoffman, Mozart,
Haydn, Beethoven e Schubert, e suas influências na personalidade de Carl Winter, apreciador
desses poetas, prosadores e músicos, aos quais se refere ao longo da narrativa.
54
Otto Maria Carpeaux (1961), em estudo canônico sobre a literatura ocidental, afirma
que o Romantismo foi preparado, durante a segunda metade do século XVIII, por meio de
uma renovação da sensibilidade, principalmente na Inglaterra e na Alemanha, propagando-se
fortemente na França, com a figura de Rousseau. Segundo o autor:
Verificou-se a coerência dessas correntes na Europa inteira: o
sentimentalismo de Richardson e Rousseau, o novo senso da natureza, a
descoberta das montanhas e do encanto dos mundos exóticos, o entusiasmo
pela poesia popular, Ossian e as baladas inglesas, a descoberta da poesia na
Bíblia, o gosto pelo maravilhoso em Milton e na literatura medieval.
(CARPEAUX, 1961, p.1184).
Essas novas correntes de pensamento, marcadas pelo desenvolvimento de novas
capacidades psíquicas, da sensibilidade para descobrir aspectos até então ignorados do mundo
exterior, da natureza e das relações sociais, constituíram um estilo literário bem definido: o
Pré-romantismo. A transformação do Pré-romantismo em Romantismo, assim como o
conhecemos, mal teria sido possível, na opinião de Carpeaux (1961, p.1370), sem as
influências rousseauianas, provenientes da França.
O século XVIII foi marcado pela imensa ampliação da matéria em todas as ciências.
O conhecimento dos mundos árabe, indiano e chinês, a revelação da pré-história dos povos
germânicos e célticos, a exploração científica da América Ibérica pelas expedições dos
cientistas, a descoberta do Pacífico e das suas ilhas pelas viagens de Cook, a ampliação do
universo pelos astrônomos, tudo isso aumentou os limites do saber humano no tempo e no
espaço. E para assimilar esses novos mundos, não se precisava da cultura aristocrática nem do
conhecimento das antigas línguas. Nesse sentido, como afirma Otto Maria Carpeaux (1961,
p.1462), o Pré-romantismo constituiu o primeiro grande movimento literário da história
européia que não se inspirou na Antiguidade greco-romana, tendo como um dos primeiros
aspectos dessa revolução a noção de exotismo. Enquanto os racionalistas apreciavam a
sabedoria da velhice, das civilizações maduras dos orientais, os pré-românticos preferiram
outro aspecto do longínquo: a mocidade, a ingenuidade, os instintos não degenerados, a
virgindade intacta da natureza. Se até meados do culo XVIII as montanhas e paisagens
agrestes inspiravam terror, apreciando-se, sobretudo, a natureza domesticada, os jardins da
França, as planícies bem cultivadas da Holanda; com o Pré-romantismo outro sentimento da
natureza se anuncia, e sua primeira expressão pode ser encontrada em Rousseau.
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Jean-Baptiste Rousseau (1671-1741) foi o mais acadêmico de todos os poetas
franceses, e encarou o espírito de resistência do antigo regime, político e literário. Embora
filho do Iluminismo, Rousseau criticou o racionalismo, criando uma nova acepção da
natureza. Segundo Gerd Bornheim (2002, p.80), o ponto de partida da filosofia de Rousseau é
a interioridade, um voltar-se sobre si mesmo. O sentimento passa a ser considerado o fator
básico da vida individual, pois somente nele se traduz a autêntica interioridade do homem. A
razão adquire uma função inferior e de dependência em relação ao sentimento. Como explica
o autor:
através dos sentimentos é que as idéias e o mundo racional podem
adquirir sentido, podem de fato ser apreciados, porque o sentimento é a
medida da interioridade do homem. No sentir, no viver-se, o homem é de
fato ele mesmo desde as suas raízes, espontânea e livremente.
O sinônimo desse sentimento interior, para Rousseau, é natureza. No entanto essa
natureza se opõe à natureza cartesiana e enciclopedista, concepção racional, fria, mecânica,
uma natureza vista através dos olhos da ciência, produto, portanto, da cultura. Em Rousseau,
natureza e cultura são mundos que se opõem, mundos antitéticos que se excluem
reciprocamente, e nesse sentido, ele rejeitou a cultura do racionalismo clássico, que tendia a
aprisionar o homem em convencionalismos estéreis.
Em Os sonhos de um andarilho solitário (1777), Rousseau entrega-se a devaneios
solitários em longos passeios pelo campo, a uma atitude bucólica, numa tendência a fundir-se
misticamente com a natureza. Assim, natureza e espírito confundem-se, e essa interiorização
da natureza permite um mergulho na interioridade humana.
As idéias de Rousseau encontraram forte repercussão no espírito dos jovens do
movimento pré-romântico Sturm und Drang (1770), que levaram a sério a oposição
estabelecida entre natureza e cultura, exagerando-a a ponto de se entregarem a uma rebelião
frenética a todos os valores estabelecidos. Os Stuermer eram jovens que entraram em choque
com a realidade feudal da sociedade alemã, e o instrumento com o qual pretendiam derrubar a
literatura e a sociedade do antigo regime foi o conceito de gênio. A identificação entre nio
poético e gênio popular foi interpretada de maneira revolucionária. O gênio seria
conseqüência de uma inspiração, sem levar em consideração as diferenças sociais. Na
concepção de Anatol Rosenfed e J. Guinsburg (2002, p.267), tratava-se de um verdadeiro
demiurgo, de uma força cósmica, inata, independente da cultura. Sua criação seria, portanto,
56
fruto de pura inspiração, espontaneidade, não podendo ser retocada por critérios artesanais de
perfectibilidade. Assim, o valor da obra passava a residir em algo que não estava nela objetiva
e formalmente, e sim subjetivamente no seu autor.
Como explica Aguiar e Silva (2002, p.533), o conceito de pré-romantismo abrange as
tendências estéticas e as manifestações de sensibilidade que a partir da segunda metade do
século XVIII, se afastam dos cânones neoclássicos, anunciando o Romantismo. O pré-
romantismo não possuiu verdadeiramente a homogeneidade de uma escola literária, mas nem
por isso se apresentou como um movimento desprovido de características próprias. A
valorização do sentimento passa a ser o traço fundamental da literatura pré-romântica,
transformando a sensibilidade na fonte por excelência dos valores humanos. A literatura
começa a desvendar os segredos da interioridade humana e volta-se para uma temática que
aborda os sonhos, a solidão, a morte. A natureza e a paisagem passam a ser vistas sob uma
nova perspectiva, mas não se trata apenas de uma maior capacidade descritiva do mundo
exterior; estabelecem-se relações afetivas entre a natureza e o eu, ou seja, os elementos da
natureza passam a associar-se intimamente aos estados de alma do escritor. Ocorre a
descoberta da beleza do Outono, tempo de folhas caídas e crepúsculos magoados, o mistério
das paisagens montanhosas, contrastadas e selvagens.
Essa nova sensibilidade, segundo o autor, pode apresentar um caráter terno e
tranqüilo, como a emoção diante de uma paisagem ou como as lágrimas melancólicas
suscitadas por uma lembrança, mas pode também manifestar-se num sentimento de desespero
e angústia, intensificado por visões lúgubres, paisagens agrestes, noturnas e solitárias, por
dolorosos presságios, por sonhos ruins e pela morte.
O Pré-romantismo, portanto, antecipou e lançou as bases para o Romantismo que se
espalhou por toda a Europa. Conforme Anatol Rosenfeld e J. Guinsburg (2002, p.268), o
Romantismo é, antes de tudo, um movimento de oposição violenta ao Classicismo e ao
Iluminismo. Se antes prevalecia a serenidade, a ordem, o equilíbrio, a harmonia, a disciplina,
a objetividade, no Romantismo predominará a efusão violenta das paixões, a desarmonia, as
dissonâncias, o subjetivismo. O ímpeto irracional, o gênio original e a exaltação dionisíaca
irão sobrepor-se à contenção, à disciplina apolínea do Classicismo. Será valorizado o
elemento noturno, algo selvagem e também patológico, haverá uma inclinação profunda pelo
mórbido e não mais prevalecerão os elementos de uma linha clara, lúcida, solar, diurna,
transparente.
Na Alemanha, o Romantismo teve seu terreno preparado inicialmente pela Reforma
de Martinho Lutero, com o surgimento do pietismo, corrente religiosa que advogava uma
57
postura intimista e a intensificação da fé. A filosofia de Kant, por sua vez, lançou os
fundamentos do Idealismo com um novo conceito de indivíduo. O movimento literário pré-
romântico Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto), encabeçado por Goethe e Schiller,
trouxe um conjunto de concepções inovadoras, posteriormente absorvidas e levadas às últimas
conseqüências pelos românticos. Por último, a Revolução Americana (1770-1783) e a
Revolução Francesa (1789) representaram uma chance, pela primeira vez na história, de o
homem tentar realizar seus ideais de liberdade e igualdade, de recusar a tirania política, social
e cultural ancorada em premissas remanescentes do sistema feudal.
Esses fatores, segundo Karin Volobuef (1999, p.27), contribuíram para impelir o
poeta alemão a desprender-se dos valores estéticos ditados pelo Classicismo francês e,
inspirando-se em seu próprio poder criativo, buscar uma renovação de sua literatura. Além
disso, o sentimento de resistência aos exércitos de Napoleão fez com que os artistas
buscassem os traços tipicamente nacionais e se voltassem para a história de seu país, seu
povo, sua língua. Assim, embora política e economicamente, a Alemanha não fosse um país
unificado, mas um território subdividido em reinos, principados e ducados, o empenho dos
poetas e prosadores dessa época consistiu em delinear uma literatura nacional com
características próprias e afins ao contexto sócio-cultural.
A eclosão do Romantismo alemão nos anos 1796-1797 demarca seu pioneirismo
diante dos outros romantismos, que, com exceção do inglês, foram surgindo sucessivamente
ao longo das primeiras décadas do século XIX e apresentam traços por vezes bastante
próximos à Ilustração. Na Alemanha, o Romantismo costuma ser subdividido em grupos, com
características próprias e denominados de acordo com o centro universitário que os abrigava.
O primeiro grupo surgiu em 1799 e vigorou até 1801, na cidade universitária de Jena.
Seus integrantes dedicaram-se ao estudo da história e da crítica literárias e à reflexão
filosófica. Participaram deste primeiro grupo nomes como Ludwig Tieck, Novalis, os irmãos
August Wilhelm Schegel e Friedrich Schegel, o filósofo Friedrich Wilhelm Joseph Schelling
e o teólogo Daniel Friedrich Schleiermacher.
Tendo no Idealismo de J. G. Fichte (1762-1814) seu ponto de partida, o grupo de
Jena acreditava no “Eu” como uma força ou elemento universal, absoluto, infinito, enfim,
como a própria origem do mundo e integração de todas as coisas. Esse grupo lançou propostas
inovadoras e revolucionárias no âmbito da estética literária. Dessa forma, o romântico não
intentava satisfazer o leitor comum, disposto apenas a servir-se da literatura como
entretenimento. Ele desejava, ao contrário, produzir um leitor intelectualmente ativo que se
dispusesse a aceitar o desafio de abordar o texto de modo crítico e independente. Isso conferiu
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ao Romantismo um caráter profundamente intelectualizado e racional, como aponta Karin
Volobuef (1999, p.72):
A par de quanto se afirmou, e ainda se afirma, acerca do propalado
irracionalismo dos românticos, eles em verdade deram grande valor à Razão
e à reflexão, não podendo, portanto, ter sido inimigos declarados do
Iluminismo ou do Racionalismo, tal como amiúde são pintados.
Esse pendor à intelectualidade, além disso, levou os românticos a concentrarem-se na
esfera do abstrato e intelectualmente mais elevado, distanciando-se da vida cotidiana e dos
problemas banais do dia-a-dia, que seriam a principal, senão a única, preocupação do cidadão
comum. Para eles, arte e ciência constituíam a essência do mundo e por meio delas cada
indivíduo poderia tornar-se pessoa, artista e deus. Essa elevação acima da vida prosaica,
contudo, seria alcançada por poucos, ou seja, ficaria restrita ao diminuto círculo de artistas e
intelectuais românticos.
Após a dissolução do grupo de Jena, o movimento passou a espalhar-se pelo
território alemão, manifestando-se no início do século XIX em diversos centros. O mais
significativo foi o círculo radicado em Heidelberg entre 1806 e 1808. Seus integrantes foram:
Clemens Brentano, Achim von Arnim, Bettine von Arnim, Joseph Görres e Joseph von
Eichendorff, os irmãos Jacob e Wilhelm Grimm e Ludwig Vhland. Essa geração, segundo
Karin Volobuef (1999, p.38), presenciou a invasão da Prússia pelos exércitos de Napoleão e,
experimentando a dominação estrangeira, abandonou a postura cosmopolita dos anteriores.
Também se desiludiu quanto à capacidade de atuação do Eu”, e conseqüentemente
desenvolveu uma ótica menos vinculada aos aspectos subjetivos. Surgiu daí o sentimento
nacionalista e um interesse pelo passado histórico, pela cultura popular e pela mitologia. Além
da coleta de contos de fadas, lendas e canções, o grupo elaborou ainda importantes estudos
filológicos.
O nacionalismo alemão adotaria o conceito de Volk (Povo), a comunidade popular,
tendo Herder como precursor, devido aos seus estudos realizados no campo da lingüística e da
literatura, por influência das idéias rousseaunianas sobre a importância das etapas primitivas e
pré-civilizadas da evolução humana. Nessa concepção, como aponta Nachman Falbel (2002,
p.43), angua é tida como repositório cultural de um povo, fruto de um acúmulo de tradições
e criatividade durante séculos de história, e é através dela que o conhecimento se torna
possível, assim como as diferenças lingüísticas refletem diferentes experiências dos povos.
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Dessa forma, a teoria estética de Herder liga-se à idéia de que a poesia constitui um produto
de condições naturais e históricas captadas por intermédio de uma experiência do sentir”
(Gefühl). A linguagem poética, portanto, pertenceria a todos, seria a língua-mãe da
humanidade e apareceria, pura e original, nos períodos primitivos de cada nação, revelando-
lhe a imensa riqueza lingüística, como no Velho Testamento e em Homero.
Berlim foi o centro de outro expressivo círculo romântico que deu continuidade aos
ideais dos grupos anteriores, mantendo o de universalidade dos poetas de Jena e o interesse
pelas raízes nacionais e populares dos de Heidelberg. A nova universidade de Berlim, fundada
em 1810, foi a primeira a ter como programa a unidade indissolúvel do ensino superior e da
pesquisa científica, caracterizando o altíssimo vel intelectual desse grupo e a exclusão da
burguesia culta e dos intelectuais de toda atividade na vida pública.
Embora cada um desses centros românticos apresentasse um perfil próprio, as
características de um grupo não negava as dos outros, visto que os artistas transitavam em
mais de um grupo, freqüentavam as academias de várias cidades universitárias, estavam em
permanente contato com diferentes formas de pensamento.
Dessa forma, não se pode atribuir à personagem Carl Winter influências de um ou de
outro grupo. Embora tenha estudado na universidade de Heidelberg, que havia sediado a
segunda geração do Romantismo alemão, Carl Winter manifesta características do
Romantismo como um todo, atitudes e pensamentos que marcaram o espírito europeu nas
primeiras décadas do século XIX, características estas que podem ser encontradas na vida e na
obra de seus escritores preferidos.
Deve ficar claro também que, ao se tentar abordar as influências do Romantismo
alemão sobre a personagem em questão, não a estamos interpretando como um indivíduo
alheio à realidade circundante, perdido num mundo de sonhos e devaneios, incapaz de
raciocinar. Pelo contrário, Carl Winter, munido de sensibilidade romântica, procura refletir
sobre a sociedade que o cerca, lançando mão de sua formação intelectual para analisá-la
criticamente.
Conforme Karin Volobuef (1999, p.80), para Fichte (1762-1814), cuja teoria
influenciou diretamente os românticos da primeira geração, a origem de todas as coisas está
no “Eu”, uma entidade distinta do sujeito empírico, que realiza a estruturação e ordenação do
mundo através do ato do pensamento, um ato criativo e organizador. Dessa maneira, o “Eu”
conteria duas dimensões: a espiritual, que corresponde à verdadeira realidade e através da
qual se pode evoluir, e a material, que se resume no corpo físico visível e em suas
60
necessidades. Essa valorização da dimensão espiritual, essa ênfase à subjetividade, porém,
não implica a negação do mundo ou a perda de contato com ele. Conforme a autora:
O mundo é entendido como uma parte do eu, o que significa que os
românticos não desprezavam o ambiente concreto, apenas não lhe
reconheciam uma existência autônoma em relação ao sujeito. O texto
romântico, assim, salienta a importância do sujeito na conformação do
mundo: a realidade é um elemento que não está pronto, nem é evidente ou
inequívoco, mas sim um material sempre possível de transformação.
(VOLOBUEF, 1999, p.90).
Segundo Aguiar e Silva (2002, p.544), interpretando erroneamente o pensamento de
Fichte, os românticos identificaram o Eu puro como o eu do indivíduo, com o gênio
individual, e transferiram para este a dinâmica daquele. Dessa forma, para eles, o espírito
humano constitui uma entidade dotada de uma atividade que tende para o infinito, que aspira
a romper os limites que o constringem, numa busca incessante do absoluto, embora este
permaneça sempre como um alvo inatingível.
Energia infinita do eu e anseio do absoluto, por um lado; impossibilidade de
transcender de modo total o finito e o contingente, por outra banda eis os
grandes pólos entre os quais se desdobra a aventura do eu romântico.
(AGUIAR E SILVA, 2002, p.544).
Advém daí a permanente insatisfação do romântico perante a vida, a sensação de
incompletude, de quem nunca consegue atingir o desejado. Nesse sentido, os românticos
desenvolveram ainda uma sensibilidade para a oposição entre a atividade intelectual pura e a
atividade prática no mundo concreto. Como explica Karin Volobuef (1999, p.99), enquanto
aquele que se dedica à atividade intelectual na medida em que o faz lança-se em busca da
plenitude, o cidadão comum permanece preso às amarras do dinheiro, do conforto material,
do trabalho com fins “úteis” e práticos, retido no âmbito banal e limitado das necessidades
materiais. Este último, encontra-se representado em todas as camadas sociais, principalmente
na burguesia da época, denominada pejorativamente de “filisteus”, contrastando com o
romântico na medida em que é alguém perfeitamente integrado a um estilo de vida fundado
nos hábitos regrados e repetitivos, na recorrência do conhecido e usual e no suporte da
segurança e tranqüilidade materiais.
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Assim, em resposta a uma sociedade constituída por filisteus, o romântico
desenvolveu o sentimento de ser um outsider, alguém que está à margem da coletividade, o
que o fez, muitas vezes, se entregar a uma vida boêmia, desafiando os padrões morais
dominantes entre os cidadãos comuns da classe média.
Na narrativa de O Continente, o envolvimento da personagem Carl Winter em uma
revolução na Alemanha implica um desafio aos padrões de sua classe, além de sugerir uma
forma de escapismo da realidade. A insatisfação com a sociedade e a desilusão amorosa
podem ter sido os motivos que o levaram a escolher um caminho em que a própria vida seria
desafiada, um ambiente bélico onde seriam testados todos os seus limites, onde a morte seria
uma companhia constante. Terminada a revolução, Winter resolve embarcar para o Brasil,
numa nova tentativa de evasão, aproximando-se muito da atitude romântica, como explica
Aguiar e Silva (2002, p.549):
Profundamente desgostado da realidade circundante - encarnação do
efêmero, do finito e do imperfeito-, em conflito latente ou declarado com a
sociedade, lacerado pelos seus demônios íntimos, o romântico procura
ansiosamente a evasão: evasão no sonho e no fantástico, na orgia e na
dissipação, ou evasão no espaço e no tempo.
A resolução de Carl Winter de fugir do ambiente que o oprimia, lançando-se ao
desconhecido, pode sugerir uma forma de evasão no espaço, entretanto, também pode ser
entendida como uma tentativa de encontrar em um lugar distante, no Brasil, um novo sentido
para sua vida. A viagem assumiria assim um sentido simbólico. Para Chevalier (2006, p.952),
a viagem exprime um desejo profundo de mudança interior, mais do que um deslocamento
físico, exprime uma necessidade de experiências novas. Indica uma insatisfação que leva à
busca e à descoberta de novos horizontes:
Em todas as literaturas, a viagem simboliza, portanto, uma aventura e uma
procura, quer se trate de um tesouro ou de um simples conhecimento,
concreto ou espiritual. Mas essa procura, no fundo, não passa de uma busca
e na maioria dos casos uma fuga de si mesmo.
Ana Maria Moraes Belluzzo (2003, p.12), em estudo sobre os cientistas e artistas
europeus que vieram ao Brasil no século XVIII e XIX, diz que a viagem mostra-se um
método capaz de tirar o sujeito do âmbito cotidiano e da esfera do “mesmo”; é capaz de levar
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o viajante a experimentar a alteridade e propiciar-lhe uma outra visão, revelando a diversidade
do mundo ou colocando em confronto o universo interior e o universo exterior. Através da
viagem, deixa-se a identidade e a rotina para trás, para redescobri-las muito longe, na relação
com o país estranho, que promove ainda o estranhamento da própria cultura.
O viajante aprecia a experiência de partir, de dividir, de alternar, a qual se
submete sucessivamente em detrimento da vivência do contínuo e do
permanente. A viagem “romântica” não leva somente à prática da visão do
outro, propicia e tira proveito da emoção das rupturas, do se perder e do se
encontrar. (BELLUZZO, 2003, p.12).
O tema da viagem torna-se freqüente na literatura do Romantismo. Mas a viagem
representa muito mais do que um recomeço em uma terra distante, representa uma
redescoberta interior do próprio indivíduo na relação com o diferente:
Outra forma de evocar a renovação e o revigoramento do mundo manifesta-
se nos românticos pelo anseio por terras distantes, pouco conhecidas e
exploradas até então. Além de abrigarem a possibilidade do novo, incomum
e inesperado, outros países continham, aos olhos dos românticos, a
qualidade de ser diferentes, muitas vezes até exóticos. Em conseqüência,
um dos motivos mais recorrentes na literatura romântica na Alemanha é o
da viagem, o do personagem que abandona seu torrão natal em busca de
novas terras, inebriado pelo desejo da alcançar o horizonte distante.
(VOLOBUEF, 1999, p.113-114).
Depois de chegar ao Brasil, outras atitudes excêntricas de Carl Winter desafiam os
padrões da classe social a qual pertencia. O fato de se estabelecer em uma vila no interior da
Província de São Pedro, em um ambiente rural, portanto, contrasta com os grandes centros
urbanos europeus pelos quais circulava; a elegância e o conforto da vida na Alemanha dão
lugar à pobreza do lugar e à rusticidade dos hábitos dos gaúchos; o convívio com intelectuais
nos centros acadêmicos é substituído pelas conversas com pessoas praticamente analfabetas,
formadas, como elas próprias diziam, pela escola da vida. Veja-se a seguinte passagem:
Que contraste aquele ambiente oferecia quando Winter o comparava com os
aposentos que tivera na Alemanha! Mas aquela rusticidade, aquela pobreza
davam-lhe um absurdo prazer como o que uma pessoa sente ao se infligir
certos castigos sem propósito: tomar banhos frios no inverno, dormir em
camas duras. (VERISSIMO, 2002, p.38).
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Percebe-se nesse trecho, que Carl Winter buscava novas sensações, até certo ponto
masoquistas, criava situações que contrastavam com as que estava habituado até então. Na
verdade, ele não precisava passar por essas privações materiais, afinal, era médico, podia estar
em qualquer centro urbano com melhores condições de trabalho, clinicar e manter uma vida
confortável: “Por que era que ele insistia em continuar naquela casa? Extravagância?
Autoflagelação? Ou simples preguiça? Talvez fosse preguiça. A verdade era que costumava
divertir-se imaginando o que diriam seus amigos de Berlim se o vissem naquele ambiente.”
(VERISSIMO, 2002, p.39). O médico alemão desafiava, assim, os padrões de sua classe
social, numa atitude provocativa em relação aos amigos, refletindo a insatisfação com a
sociedade alemã em geral.
Se a viagem para lugares remotos torna-se um tema freqüente na literatura do
Romantismo, o refúgio em meio à natureza numa frenética busca pela solidão, torna-se a
marca definitiva do herói romântico. Esse comportamento pode ser percebido também na
personagem Carl Winter. Ao se isolar do mundo em meio às coxilhas de Santa Fé, seu espírito
era tomado por uma inebriante sensação de liberdade:
Gostava de dar pela manhã longos passeios a pelo campo, sentindo no
rosto a brisa fresca que cheirava a sereno batido de sol. Nessas ocasiões
deixava os olhos passearem pelas coxilhas verdes onde as macegas
pareciam as cabeleiras de milhares de Fräulein soltas ao vento. (Trude!
Trude! Ich liebe dich, aber das ist ja unmöglich
4
...) Numa carta que dirigira
a Von Koseritz, descrevendo-lhe a vida que levava, dissera: Ich berausche
mich na der Weites Horizontes tomo bebedeiras de horizontes. Nunca
em toda a sua vida vira céus mais largos nem sentira tamanha impressão de
liberdade. (VERISSIMO, 2002, p.45).
Carl Winter gostava de ficar sozinho, caminhando ou admirando a paisagem. Nesses
momentos, refletia sobre sua vida e sobre a nova sociedade que se lhe apresentava. Além
disso, essa solidão dava-lhe a sensação de plena liberdade, deo ter ligações com nada nem
ninguém. Ele estava em meio à gente estranha, longe de sua pátria, de seus amigos, de
Gertrude, não devia satisfações a nenhum deles, e pretendia continuar assim. Carl Winter
desejava manter uma certa distância das pessoas, não se evolvendo sentimentalmente com
elas nem com seus problemas, não pretendia se casar, não criaria vínculo nenhum com a terra,
de modo que pudesse partir de um momento para outro, assim que quisesse.
4
Eu te amo, mas isso é impossível...
64
Esse afã de liberdade, de eterna busca por algo que transcende o prosaico e o comum,
de acordo com Karin Volobuef (1999, p.105), inscreve-se também na atitude romântica de
recuar ante a instituição do casamento (ao contrário do Romantismo brasileiro). O matrimônio
representa, para o romântico alemão, mais um aspecto da vida social impregnada pelo
convencionalismo e pela regularidade burguesa. O caráter estático, perene, imutável do
casamento é contrário ao espírito dinâmico e volátil do romântico.
Dessa forma, era em meio à paisagem, no contato com a natureza, que Carl Winter
vivia com maior intensidade seu desejo de liberdade. A contemplação do pôr-do-sol e os
campos a perder de vista davam-lhe uma sensação de horizontes infinitos. A visualização da
paisagem correspondia, para Winter, à contemplação de uma obra de arte, onde as cores da
natureza tingiam os seres com várias tonalidades, envolvendo-os numa aura de mistério:
O pôr-do-sol de Santa também o deixava exaltado. Em certos dias de
outono subia à coxilha do cemitério para ver os crepúsculos vespertinos,
que eram longos e fantasticamente coloridos. Em certas horas o céu do
poente tomava uma tonalidade esverdeada e transparente: era como se a cor
dos campos refletisse no vidro do horizonte. E sobre toda a paisagem em
torno pairava uma vaga neblina violeta que acentuava as sombras, tingia as
pessoas, os animais e as coisas, parecendo aumentar a quietude do ar e da
hora. (VERISSIMO, 2002, p.45).
Para Karin Volobuef (1999, p.120), natureza e arte são vistas como duas formas de
expressão do absoluto, no que reflete uma tendência própria dos românticos que é a de ver
uma profunda conexão entre o homem e a natureza, a qual deixa de ser concebida como um
simples objeto exterior ao indivíduo. Nesse sentido, com o auxílio da sensibilidade e da
capacidade imaginativa, o homem pode ter acesso à natureza e compreender seu significado
mais profundo, entrando assim em comunhão com o absoluto.
A Natureza, portanto, extrapola o simples âmbito de paisagem e ambiente
físico, tornando-se, aos olhos dos românticos, uma esfera superior em que
se expressa o absoluto e, por extensão, o sujeito. Assim, em vez de algo
inerte e insensível, a natureza torna-se mutável e criadora como o
indivíduo, de quem é um prolongamento. (VOLOBUEF,1999, p.122).
Nesse sentido, a natureza desempenha papel importante na configuração da
religiosidade no Romantismo. Segundo Aguiar e Silva (2002, p.559), os românticos
descobriram e cultuaram Deus nos astros e nas águas do mar, nas montanhas e nos prados, no
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vento, nas árvores e nos animais, em tudo o que existe no universo. Sendo assim, o panteísmo
representou, com efeito, a forma de religiosidade mais freqüente entre os românticos.
A personagem Carl Winter é caracterizada por não seguir nenhum dogma religioso,
estando desvinculada de qualquer crença ou instituição religiosa, como mostra a seguinte
passagem, numa de suas cartas a Koseritz: O Pe. Otero, que parecia tão meu amigo,
ultimamente deu para reprovar a vida que levo, pois não vou à missa, não contribuo com
dinheiro para as obras da igreja e de vez em quando externo minhas idéias heréticas.”
(VERISSIMO, 2002, p.120).
Como explica Aguiar e Silva (2002, p.559), visceralmente individualista e egoísta, o
romântico dificilmente aceita uma ortodoxia baseada num corpo de dogmas e garantida pela
autoridade de uma hierarquia. A sua religiosidade é preponderantemente de natureza
sentimental e intuitiva, e o seu diálogo com a divindade tende a dispensar a mediação do
sacerdote e o formalismo dos ritos, desenrolando-se na intimidade da consciência. De fato,
Carl Winter acredita existir uma entidade superior que cria e rege o universo, representada por
Deus ou quem quer que seja, podendo estar manifestada na própria natureza:
A paisagem daquela província perdida nos confins do continente americano
era doce e amiga, supinamente civilizada, um cenário digno de abrigar a
gema da raça humana. Parecia que ao criá-la Deus tivera em mente povoá-la
de figuras como Platão, Sócrates, Goethe e Shakespeare. No entanto
andavam por ali homens rudes como Bento Amaral ou então aberrações
humanas como aquele gnomo que se chamava Aguinaldo Silva.
(VERISSIMO, 2002, p.45).
A contemplação da paisagem natural despertava uma fina sensibilidade em Carl
Winter e, como conseqüência, seu romantismo chegava ao auge nesses momentos, quando
recordava e recitava poemas de consagrados escritores alemães, tomado de emoção, como
denota a seguinte passagem:
Mas quando não havia nuvens os crepúsculos eram doces azul desbotado,
malva e rosa e a paisagem adquiria uma pureza e uma simplicidade tão
grandes que Carl Winter ficava com lágrimas nos olhos e começava a
murmurar versos de Heine, e ao mesmo tempo a achar-se muito piegas e
muito romântico por estar naquela atitude, fazendo e sentindo aquelas
coisas. E desse modo através de seu eu nico e de seu eu sentimental
ele gozava duplamente da situação. (VERISSIMO, 2002, p.46).
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Nesse trecho pode-se perceber que a personalidade da personagem é atormentada por
uma contradição: “eu cínico” versus “eu romântico”. Duas forças opostas estão em confronto,
a primeira representaria a razão, a segunda, o sentimentalismo. No entanto, o excesso de
sensibilidade é controlado por Carl Winter. Ele percebe o momento em que está se deixando
levar pelo sentimentalismo e logo busca a razão:
Um dia seu eu romântico lhe perguntara: “Carl, quando voltas para casa?”
Com casa ele queria dizer a tria, a cidade natal, Eberbach. Ach!”
respondera o seu eu cínico. “Quando a Alemanha for unificada e eu não
correr o perigo de ser preso. E quando Trude Weil estiver tão gorda e feia
que meu coração não possa mais bater de amor por ela.”(VERISSIMO,
2002, p.46).
De um lado a lembrança do amor não correspondido, a saudade da terra natal; de
outro, a razão buscando uma resposta objetiva, funcionando como um freio para os
sentimentos nostálgicos. A contradição permeando constantemente o espírito romântico.
Percebe-se também nesse trecho da narrativa, que a condição para que Carl Winter
deixe de amar Trude é que ele a veja “gorda e feia”. Essa adjetivação, contudo, contrapõe-se à
imagem da amada que Winter guarda na lembrança. A descrição de Gertrude Weil, revelada
no texto, corresponde à imagem da mulher preconizada no Romantismo: uma mulher
idealizada, divina, cultuada e pura. Winter lembrava o dia em que “a vira entrar na igreja de
Eberbach, toda de branco, com pequenas flores azuis nos cabelos dourados” (VERISSIMO,
2002, p.72). E em contraste com a aparência dos homens de “caras rudes e barbudas” e das
mulheres “tristes e bisonhas” de Santa Fé, para Winter, Trude parecia “uma imagem de
cromo, toda feita de leite, ouro, mel e lápis-lazúli” (VERISSIMO, 2002, p.85), algo
inalcançável, inacessível, assemelhando-se mais a uma obra de arte que a um ser humano.
Assim, a beleza da mulher idealizada serve de contraponto à feiúra dos nativos e do próprio
Winter, que não tinha ilusões quanto à sua aparência. Era “magro e desengonçado”, tinha um
“corpo anguloso e feio”, “olhos dum cinzento frio e feio”, “pele branca e oleosa”.
(VERISSIMO, 2002, p.46).
Depois de algum tempo residindo no Rio Grande do Sul, Carl Winter começa a
sentir-se entediado com a vida ali. A rusticidade do lugar e os hábitos das pessoas começam a
irritá-lo. A monotonia toma conta de seu cotidiano, os casos clínicos raramente mudavam,
sentia falta de conversar com pessoas de mesmo nível intelectual, lamentava a falta de livros,
67
música, teatro. A viagem para o Brasil o cumpre mais seu papel de renovação do mundo
da personagem.
Segundo Karin Volobuef (1999, p.115), as terras longínquas mantêm seu encanto
e poder de atração enquanto estiverem distantes. Uma vez alcançadas e conhecidas, tornam-se
igualmente monótonas, previsíveis e comuns, ou seja, igualam-se ao cotidiano burguês que o
viajante deixou para trás. Com seu espírito irrequieto, sempre à procura daquilo que é novo,
diferente e único, o romântico encara o cotidiano previsível, uniforme, estagnado, como algo
sufocante e insuportável. A impressão de ordem, limitação, a total inexistência de algo
extraordinário e excitante conduzem ao desprazer e à insatisfação.
Se o romântico se sente sufocado pela monotonia do cotidiano é porque não
consegue deixar de viver esse cotidiano; se ele deseja escapar às amarras e
limitações da vida burguesa é porque esta o circunda como um cárcere
onipresente. Além disso, o indivíduo melancólico muitas vezes se compraz,
de forma mórbida, em seu estado taciturno e sombrio o romântico, ao
contrário, tem horror à sensação de aperto e opressão que caracteriza seu
tédio, desejando, a todo custo, libertar-se e alcançar o infinito.
(VOLOBUEF, 1999, p.105).
O desejo de que algo de extraordinário acontecesse em sua vida, fica claro na
passagem em que Carl Winter visita as ruínas das Missões Jesuíticas, e tenta reconstituir
mentalmente como era a vida naquele local, a organização daquela antiga sociedade em que
índios conviviam pacificamente com padres jesuítas, aprendendo, entre outras coisas, o
artesanato e a música:
O mundo da realidade, mein lieber Heine, é muito prosaico! Como eu
gostaria de ver surgir daquele cemitério abandonado ali ao lado da igreja o
fantasma de algum defunto padre ou índio. Seria uma revelação, uma
novidade, uma quebra de rotina, o princípio de alguma coisa nova em
minha vida. (VERISSIMO, 2002, p.89).
Novamente o sentimento de insatisfação perante a vida toma conta da personagem.
Sentindo-se preso a Santa Fé, como que por obra de um sortilégio, a volta à Alemanha
começa a tornar-se uma possibilidade muito remota. Assim, a pátria, que agora existe apenas
na imaginação, torna-se a inalcançável terra dos sonhos:
68
No outono, meu caro barão, fico em permanente estado de poesia. É
quando me lembro mais de Eberbach e de Trude. Mas tanto a aldeia como
a moça me parecem agora ficções, elementos dum conto de fadas tão
distante como a história de Hänsel und Gretel que ouvíamos no tempo de
meninos. Se coisa que lamento é não saber pintar. Tenho visto
crepúsculos incrivelmente belos, tão belos que é uma pena que se percam.
Alguém devia prendê-los numa tela. (VERISSIMO, 2002, 119).
A sensibilidade romântica manifestada pela personagem Carl Winter caracteriza-se
pela irresolução, pela ambivalência, pela nostalgia de uma felicidade possuída e perdida, por
um desejo eternamente insatisfeito. Conforme Karin Volobuef (1999, p.129), em oposição à
harmonia e à serenidade clássicas, o Romantismo está marcado pela turbulência e pelo
desassossego, pois sente a insatisfação de quem nunca alcança o que procura.
O romântico é constantemente açoitado pelas recordações do passado e pelo
anseio e pressentimento do futuro é alguém que sempre busca o que não
está a sua disposição, sempre deseja o que no momento não pode atingir. É,
enfim, alguém que não consegue simplesmente usufruir o momento
presente, pois continuamente tem o espírito voltado, ou para frente ou para
trás. A alma do romântico é constituída pelo movimento daquilo que se
transforma, não o repouso e permanência daquilo que está pronto.
(VOLOBUEF, 1999, p.132).
Se percorrer terras novas e longínquas é uma forma de escapar ao fastio e buscar a
inebriante sensação do novo e diferente, de acordo com Karin Volobuef (1999, p.115), os
românticos desenvolveram ainda outra maneira de viajar e alcançar o mesmo fim: trata-se da
exploração não do espaço exterior, mas do interior, o que significa aventurar-se pelas
profundezas do ser humano.
E essa aventura no espaço interior das pessoas, Carl Winter a realiza com muita
propriedade. Todas as personagens da narrativa que convivem mais intimamente com o
médico são alvo de seu “raio-X”. A todo instante Carl Winter tenta desvendar-lhes a
personalidade, interpretar-lhes os sentimentos através de seus gestos e palavras, e, nessa
tentativa de entender o outro, volta-se para o seu próprio interior, numa profunda reflexão
sobre sua própria vida:
Mas que era “ver claro”? perguntou ele a si mesmo [...]. Seria coisa sábia
procurar a gente viver sempre com lógica e lucidez? Às vezes lhe parecia
que o melhor era participar de todas as paixões, enlamear-se nelas, não ficar
69
à margem da vida, preocupado com examinar todos os lados das pessoas e
das questões, querendo dizer sempre a palavra mais justa e serena, que no
fim era quase sempre a mais cínica e a menos humana. (VERISSIMO,
2002, p.301).
Nessa passagem, Carl Winter repensa a eterna contradição entre razão e sentimento.
Ele questiona se a razão deve prevalecer nas decisões de um homem, dotando-o de sensatez
para analisar as situações e resolver os entraves da vida, ou se a verdadeira felicidade estaria
em viver ao sabor dos sentimentos e, sem pensar duas vezes, deixar-se arrastar pelo turbilhão
das paixões. O que de fato faria parte da condição humana, ser racional ou passional?
Como conclui Karin Volobuef (1999, p.140), percorrendo as páginas dos românticos,
percebe-se quão simplificadora e mesmo errônea seria a afirmação de que pregavam uma
ingênua volta ao passado, um simples retorno a estruturas arcaicas. Igualmente infundada
seria a concepção de que eles pretendiam um vão escapismo ou defendiam a dócil submissão
a doutrinas desta ou daquela Igreja. Sua nostalgia originou-se do espírito crítico com que
questionaram a sociedade à sua volta; foi uma forma de vasculhar o mundo à procura de
valores mais humanos, um modo de encontrar um contrapeso ao materialismo de seus dias.
Se podemos reconhecer algumas características românticas na personalidade de Carl
Winter, confirma-se então a hipótese de que o médico alemão pode ter sido influenciado pela
leitura que realizou das obras de autores românticos do século XIX. No entanto, basta uma
breve análise da biografia desses artistas para encontrar também neles uma ou outra
característica semelhante às que compõem a personalidade da personagem.
Nesse sentido, admite-se o Romantismo como um estado de espírito que move o ser
humano, que se reflete em seus pensamentos e rege seu comportamento. Todos os poetas,
prosadores e músicos referidos por Carl Winter na narrativa de O Continente foram
indivíduos insatisfeitos com a realidade circundante, personalidades inquietas e, muitas vezes,
contraditórias. Não é difícil perceber que as experiências pessoais desses artistas,
freqüentemente, foram transpostas e reveladas em suas obras, dando origem a poemas,
romances, canções e sinfonias marcadas pelo surgimento de uma nova sensibilidade,
caracterizando um estilo que se espalharia por todo mundo ocidental.
Em sua revolta radical contra as regras impostas pela sociedade e contra a tradição
do Classicismo, os românticos o se deixaram guiar por modelo nenhum, criando livre e
espontaneamente. Eles criaram suas obras com base numa explosão, num surto irracional de
sua emocionalidade profunda. Dessa forma, afirma Bruno Kiefer (2002, p.268), a criação
70
desses escritores e músicos, por mais imperfeita que seja, na perspectiva das regras clássicas,
será sempre grandiosa, pois exprime o estado de exaltação do criador com toda sinceridade,
fato que constitui o valor máximo do Romantismo.
Assim, transladando-se a importância da obra para seu criador, coloca-se em
primeiro plano tudo o que se refere ao artista e sua vida. Daí o relevo que o aspecto biográfico
adquire no Romantismo. Para Bruno Kiefer (2002, p.268), a história pessoal, as paixões e os
traços da personalidade do artista passam a responder pela natureza e caráter da criação de
arte. A obra tende a ser confundida com o autor, num movimento inverso ao Classicismo, que
procurava obliterar o autor por trás da obra.
Baseados nessa perspectiva, passamos a apontar alguns dados biográficos referentes
aos artistas mencionados pela personagem Carl Winter, identificando características em
comum entre esses românticos e a personagem.
Um dos nomes mais importantes da literatura alemã, citado várias vezes pela
personagem, é Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832). Assim como Carl Winter, Goethe
sofreu desilusões amorosas. E cada um dos amores proibidos vivenciados pelo escritor serviu
de inspiração para suas obras mais importantes, como explica Otto Maria Carpeaux (1961,
p.1613). A paixão pela filha do vigário da aldeia de Sesenheim, Friederike Brion, abandonada
por Goethe, resultou em seus mais belos poemas em tom popular. O sentimento de culpa pelo
abandono da amada jamais é esquecido por Goethe e no primeiro esboço de Fausto, Urfaust, a
tragédia de Gretchen, da moça abandonada, é a transformação da experiência pessoal no
assunto social da infanticida. A mesma experiência deu intensidade ao romance sentimental,
considerado o maior documento da melancolia ossiânica dos pré-românticos, Os Sofrimentos
do Jovem Werther, no qual o amor pela noiva de um amigo, Charlotte, leva o protagonista ao
suicídio.
Juntamente com Goethe, Friedrich Schiller (1759-1805), foi um dos grandes homens
de letras da Alemanha: poeta, dramaturgo, filósofo e historiador. Salvo a amizade entre os
dois, Goethe e Schiller apresentam diferenças de estilo e linguagem, apontadas por Otto Maria
Carpeaux (1961, p.1636). Segundo esse crítico, Schiller é na Alemanha, incomparavelmente
mais popular que Goethe. Forneceu à língua corrente um tesouro enorme de expressões,
citações, frases feitas, e sua importância para a cultura alemã é muito maior do que a dos
valores literários que ele criou. Schiller insuflou de heroísmo suas tragédias, dando ao
burguês alemão, em situação social muito precária, a consciência da superioridade pela
cultura, pela Bildung. Na vida pessoal, Schiller foi um homem inconformado com as situações
que lhe eram impostas. Não conseguiu freqüentar a faculdade de Direito, para a qual foi
71
destinado contra sua vontade, voltou-se à Medicina, que também não o deixou satisfeito.
Aventurando-se pelas cidades alemãs, com dificuldades financeiras e problemas de saúde,
Schiller dedicou a maior parte de sua vida à literatura, por meio da qual educou o pequeno-
burguês para a ação histórica, ensinando-lhe a agir em harmonia com ideais ou alegar ideais
como motivos da sua ação. Carl Winter, assim como Schiller, também acreditava no poder da
educação e das artes para modificar o destino de um povo, desde as relações sociais até à
economia.
A identificação de Carl Winter com Henrich Heine (1797-1856), por sua vez, recai
na questão da marginalidade. Winter é um estrangeiro no Brasil e com o passar dos anos
sente-se cada vez mais distante da cultura alemã e não completamente inserido na cultura
gaúcha. Heine nasce na Alemanha, mas é filho de judeus, e cresce num ambiente
completamente amorfo, espiritual e socialmente instável; não foi educado nos rígidos padrões
do gueto e também não se integrou no mundo ocidental. Sendo assim, Heine não manifestou
sentimento de pertença a nenhuma nação, não conseguiu identificar-se como judeu, tampouco
conseguiu considerar-se alemão. E esse fato influenciou sua personalidade, como explica
Anatol Rosenfeld (1993), no artigo Henrich Heine e o judeu marginal. Heine foi um
indivíduo sem raízes, caracterizado pelo desassossego e inquietação profundos, atormentado
por múltiplas impressões desencontradas, por conflitos mentais e de lealdade e pela labilidade
de sua situação psíquica e social de um ser marginal.
Expressão dessa inquietude é o fato de que Heine passou boa parte de sua vida em
viagem pela Europa, um dos ideais dos românticos. A solidão foi sua companheira constante,
pois Heine o se casou e não teve amizades profundas e duradouras. O fato de não manter
laços afetivos com nada nem ninguém, o isolamento de Heine, característica presente também
na personalidade de Carl Winter, é, na análise de Anatol Rosenfeld (1993, p.71), a expressão
externa da atribulada existência de um viajante e exilado físico e espiritual, de sua existência
de estranho, de indivíduo marginal. Assim, a obra de Heine distingue-se pela mistura de
emoção e frio raciocínio, refinamento virtuoso e sentimentalismo, singeleza popular e
escárnio, ligando sentimentos, emoções, atmosferas e idéias completamente antagônicas.
A ambigüidade também marca a personalidade de E.T.A. Hoffmann (1776-1822).
Segundo Otto Maria Carpeaux (1994), pianista e desenhista, Hoffmann foi o mais completo
temperamento de artista de toda a história da literatura alemã, inclusive no que diz respeito à
boêmia, às bebedeiras intermináveis que alegava necessárias para obter alucinações,
transformadas depois em histórias de espectros. A embriaguez entra na vida de Hoffmann
72
como uma forma de escapismo da realidade opressora, o mesmo recurso é usado por Carl
Winter quando sua insatisfação com a vida em Santa Fé torna-se insuportável.
Ao lado do boêmio, no entanto, estava o burocrata pontualíssimo do serviço público
prussiano e depois o juiz íntegro, e essa ambigüidade, segundo Capeaux (1994, p.131), é a
fonte de sua inspiração poética: o humorismo do terrível baseia-se no realismo quase sóbrio e
exato com que Hoffmann soube descrever as alucinações mais loucas e horríveis. Para ele, o
sobrenatural torna-se enfim natural e comum, enquanto a realidade da vida cotidiana se torna
sinistra e assombrosa. A influência de Hoffmann na literatura européia foi imensa, basta citar
Nerval, Balzac, Poe, Baudelaire, Puchkin, Gogol, Dostoievski e Kafka, porém maior foi sua
influência na música, em Schumann, Berlioz, Brahms, Mahler, Wagner e Busoni.
Como se pode perceber, o Romantismo envolveu as artes como um todo, estendendo
suas influências também à música. Se os compositores clássicos objetivavam atingir o
equilíbrio entre a estrutura formal e a expressividade, os românticos desequilibraram tudo.
Eles buscaram maior liberdade formal, maior intensidade na expressão das emoções,
revelando seus pensamentos mais profundos, inclusive suas dores. Muitos compositores eram
ávidos leitores e tinham grande interesse pelas outras artes, relacionando-se estreitamente com
escritores e pintores. Dessa forma, não raro uma composição tinha como fonte de inspiração
um quadro visto ou um livro lido pelo músico. Temas desenvolvidos na literatura romântica
como as terras exóticas e o passado distante, os sonhos, a noite e o luar, os rios, os lagos e as
florestas, as tristezas do amor, lendas e contos de fadas, o mistério, a magia e o sobrenatural,
exerceram enorme fascínio entre os compositores, o que resultou em melodias mais
apaixonadas, as harmonias tornaram-se mais ricas, houve o florescimento do Lied (canção)
para piano e canto. O caráter subjetivo da poesia desse período, manifestado, em grande parte,
através do lied poético, às vezes em formas populares, torna-se fecundo na criação do lied
musical romântico. Poesias de Goethe, Schiller, Heine foram musicadas por Beethoven,
Schubert, Schumann, entre outros.
Entre o fim do século XVIII e o início do século XIX, com o declínio do rígido
formalismo clássico, Mozart (1756-1791) já havia sugerido novas concepções de composição,
mas com a morte prematura, não chegou a enquadrá-las numa tendência definitiva. Restaria
então a Beethoven (1770-1827) estabelecer a transição para o Romantismo, rejeitando os
moldes clássicos de composição numa desafiadora imposição de sua individualidade. Bruno
Kiefer (2002, p.212) salienta que:
73
O culto ao nio, as exigências de liberdade de sentimentos e intuições, a
auto-afirmação violenta dos criadores, a revolta contra as regras e os
ditames da razão, a busca da espontaneidade e simplicidade, prefiguradas na
poesia e na música do povo, a busca das raízes históricas nacionais, todos
esses elementos, instaurados no Sturm und Drang, repercutiram ao longo do
século XIX, ressoando ainda na centúria atual.
Como conseqüência dessa valorização da subjetividade, a fantasia criadora assume,
no Romantismo, uma importância maior do que a capacidade combinatória e arquitetônica:
Essa descida ao reino nebuloso dos afetos e dos impulsos, das intuições e
das fantasias, foi acompanhada de um labor analítico sem precedentes. As
mais sutis inflexões emocionais, a complexidade dos “contrapontos”
sentimentais, as criações aparentemente sem sentido da fantasia, as tensões
por vezes violentas entre sentimentos opostos, tudo isso passou a encontrar
a sua expressão na música romântica. (KIEFER, 2002, p.215).
A partir de Beethoven a música nunca mais seria a mesma. Suas composições eram
criadas sem a preocupação em respeitar as regras que, a então, eram seguidas. Considerado
um poeta-músico, foi o primeiro romântico apaixonado pelo lirismo dramático e pela
liberdade de expressão. Foi sempre condicionado pelo equilíbrio, pelo amor à natureza e pelos
ideais humanitários, inaugurando a tradição de compositor livre, que escreve música para si,
sem estar vinculado a um membro da nobreza. Ele estabeleceu a comunhão entre literatura e
música através de um gênero destinado a ilustrar peças teatrais, criado para a tragédia
Egmont, de Goethe. Na Sinfonia 9 em menor Op.125 (1824), considerada sua obra-
prima, o texto feito pelo próprio Beethoven é uma adaptação do poema de Schiller , An die
Freude (Ode à Alegria), em que pela primeira vez na história da música é inserido um coral
numa sinfonia, inserida a voz humana como exaltação dionisíaca da fraternidade universal,
com apelo à aliança entre as artes irmãs: a poesia e a música.
Essa liberdade na composição, contudo, traz a marca de sua vida particular. Após
vários relacionamentos amorosos terminados de maneira dolorosa, que deixaram marcas
profundas em seu espírito, Beethoven tornou-se um solitário, não tendo vínculos com
ninguém senão consigo mesmo.
A desilusão amorosa também está presente na vida e reflete-se na obra de Schubert
(1797-1828). Afeito à boemia, Shubert nunca se casou, e a única aventura amorosa que teve
transmitiu-lhe sífilis, assim, sua vida, transcorrida toda em Viena, foi simples, despretensiosa,
74
sem amores fulminantes nem triunfos memoráveis. Vivia nas casas dos amigos, tocando
esporadicamente em algum lugar, mas compondo freneticamente, sendo algumas dessas peças
por encomenda. Sua ligação com a literatura, à maneira de Beethoven, também é estreita.
Shubert escreveu cerca de 600 lieder sobre textos dos mais diversos autores, desde
Shakespeare e Goethe a alguns obscuros poetas austríacos.
Com o Romantismo, enfim, surgiram novos conceitos em relação às artes em geral,
objetivou-se eliminar a arte de salão feita para uma elite aristocrática e direcioná-la para o
povo através de uma linguagem simples. Assim, pouco a pouco, a música deixava os salões
aristocráticos, pondo-se ao alcance do povo, passando a ser apresentada nas casas de concerto.
Os compositores começaram a incluir em suas peças produtos da cultura popular, como
haviam feito os românticos da literatura. As primeiras manifestações dessa nova música eram
geralmente obras de exaltação revolucionária em que se celebravam os acontecimentos
nacionais e as liberdades conquistadas. Perante os novos conceitos, a música deveria
dramatizar-se, tornar-se sentimental, exprimir sentimentos interiores, ser mais livre e, para
isso, precisava de formas mais livres que favorecessem, entre outros aspectos, a improvisação.
Após uma breve exposição sobre as linhas gerais que constituíram o Romantismo
como um movimento não literário e estético, mas que estendeu seus valores a outros
domínios do pensamento humano, como às artes, às ciências e à religião, tentou-se estabelecer
uma relação entre as características do Romantismo na Alemanha, reveladas na vida e obra de
seus artistas, e a personalidade da personagem Carl Winter, criada por Erico Verissimo. A
partir do que foi exposto, admite-se que as semelhanças apresentadas entre a postura
romântica que marcou a mentalidade da época e o fictício médico alemão Carl Winter, não
são fruto de uma simples coincidência, mas constituem também um recurso estrutural na
composição da personagem. Sem a sensibilidade de Carl Winter, herdada do Romantismo,
seria impossível a ele realizar, da forma como fez, a análise da sociedade rio-grandense.
Através da fina sensibilidade, o médico alemão consegue ir além da simples
descrição física da paisagem e da população, ele adentra na alma dessa sociedade, analisa de
forma mais profunda os habitantes, interpretando seus comportamentos, seus códigos de
honra, seus interesses e desejos proibidos. Erico Verissimo dota sua personagem
primeiramente de sensibilidade, fazendo-a captar os sinais que particularizam uma sociedade,
para depois dotá-la de senso crítico, fazendo-a interpretar racionalmente os dados coletados, e
dessa forma, consegue atingir seu objetivo de fornecer uma interpretação da própria História
do Rio Grande do Sul.
75
2.5 O estrangeiro cruza a fronteira
O enredo da trilogia O Tempo e o Vento se passa na fictícia vila de Santa Fé, aonde
Carl Winter chega em 1851. Esse território imaginário corresponde a um espaço real que é a
região missioneira do Rio Grande do Sul, localizada na parte noroeste do Estado, onde estão
situadas cidades como Cruz Alta e Santo Ângelo, e reflete a organização social e econômica
da época, baseada no patriarcalismo e na pecuária. Neste cenário, aparecem estâncias a perder
de vista, povoações distantes umas das outras, entrecortando os vastos campos onde se criava
o gado. O poder estava concentrado nas mãos dos estancieiros, que contavam com o trabalho
de peões e negros, configurando um território de gente simples, rude, marcada pelos
constantes e sangrentos conflitos bélicos, que assistia também à chegada contínua dos
imigrantes europeus e a lenta implantação da agricultura familiar.
Ao criar o Dr. Winter, o escritor atribuiu-lhe uma função especial dentro da
narrativa: analisar a cultura gaúcha com base em outra cultura, no caso, a cultura alemã da
qual a personagem faz parte. Sendo assim, temos na narrativa as impressões de um
estrangeiro, médico de profissão, com um nível intelectual elevado, vivendo no extremo sul
do Brasil, num espaço totalmente diferente de sua terra natal, a longínqua Alemanha, e se
relacionando com pessoas de uma cultura da mesma forma diversa.
Neste ponto da dissertação, antes de prosseguirmos com a análise da personagem,
cabe-nos explicitar os conceitos de cultura e região, os quais serão freqüentemente
empregados ao longo do trabalho e que caracterizam sua interdisciplinaridade, que as
explicações são buscadas nas ciências sociais como a Sociologia e a Antropologia, disciplinas
auxiliares que contribuem para a análise literária.
Para a finalidade desta investigação, tomamos a definição de Cliford Geertz (1989) e
entendemos a cultura como um conceito semiológico, ou seja, como um conjunto de sinais
com um significado. Para Geertz, o comportamento humano é visto como ação simbólica, e é
através dele, ou mais precisamente, através da ação social, que as formas culturais encontram
articulação. Segundo o autor:
76
Como sistemas entrelaçados de signos interpretáveis [...], a cultura não é um
poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos
sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos; ela é um
contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível –
isto é, descritos com densidade. (GEERTZ, 1989, p.10).
Baseando seu pensamento em Geertz, Pozenato (2003, p.36) também acredita que a
cultura não é apenas a soma de comportamentos e objetos de um povo, mas contém alguma
coisa que é dita através desses elementos. Segundo ele, a cultura de determinado grupo é
construída historicamente, sendo reelaborada constantemente, o que implica dizer que dentro
de uma determinada cultura, um significado pode ser desenvolvido, pode ser modificado.
Dessa forma, a cultura seria “um conjunto de textos que têm que ser lidos e interpretados”.
Nessa mesma perspectiva, Jayme Paviani (2004) acredita que a cultura não é apenas
o conjunto de obras, costumes, organizações, instituições, mas, principalmente, o sentido que
por trás delas. De acordo com o autor, esse sentido permite que cada indivíduo possa
situar-se no mundo, entendendo-o, transformando-o. Assim, cultura é entendida como ação
humana, efetivada no espaço social e na História, tornando-se também reflexão sobre essa
ação.
Sendo, portanto, uma construção coletiva, situada no tempo e no espaço de cada
grupo ou comunidade e no conjunto da sociedade”, a cultura pode ser critério de definição do
grupo, da comunidade e da sociedade, identificando o indivíduo com determinado grupo e
diferenciando-o em relação aos outros, pois “o modo de agir, de fazer e de pensar de um
grupo torna-se um modo entre outros possíveis” (PAVIANI, 2004, p.75).
Ao entrar em contato com os habitantes de uma determinada região do Brasil, a
personagem Carl Winter depara-se com um modo de vida próprio daquele lugar. O jeito de
ser, de falar, de se vestir, de se alimentar, de pensar, de sentir, de se relacionar com os outros,
pode diferir conforme as diferentes regiões do país ou mesmo dentro do próprio Estado. Isso
mostra, segundo Bourdieu (1988, p.109), que as regiões delimitadas em função de diferentes
critérios concebíveis (língua, habitat, maneiras culturais) podem não coincidir com a
delimitação geográfica dessa região. Assim, no Rio Grande do Sul, a região da missioneira,
representada na narrativa, difere culturalmente da região da fronteira, por exemplo, ou da
região da serra, embora todas pertençam a um mesmo Estado.
Carl Winter, antes de se instalar em Santa Fé, percorre outras cidades da Província:
Rio Grande, Porto Alegre, São Leopoldo. Em cada um desses espaços, ele se depara com uma
paisagem diferente, uma forma de organização social própria, com tipos humanos peculiares,
o que Pozenato (2003, p.151) chama de regionalidade, isto é, a dimensão espacial de um
determinado fenômeno, tomada como objeto de observação. Segundo esse autor, a existência
77
de uma rede de relações de tipo regional, num determinado espaço ou acontecimento, não as
reduz a espaços ou acontecimentos puramente regionais. Serão regionais enquanto vistas em
sua regionalidade. Assim, a regionalidade está na representação de um universo regional, feita
segundo um modo de ser regional. Ela repousa sobre uma temática e um modo de fazer
regionais, entendido como uma forma de se posicionar frente ao mundo, uma visão do
mundo, portanto.
Em uma das cartas que envia ao amigo Koseritz, a personagem Carl Winter comenta
as diferenças existentes entre os moradores de Santa e os que povoam outras regiões do
Rio Grande do Sul:
E sabes, meu caro barão, o que me impressiona nesta gente? É o ar
natural, terra-a-terra com que dizem e fazem as coisas mais dramáticas.
Estou começando a descobrir diferenças entre os habitantes das várias
regiões desta Província. Os da fronteira são mais dramáticos e pitorescos
que os desta região missioneira. Gostam de lenços de cores vivas, falam
mais alto, contam bravatas e amam os gestos e frases teatrais.
(VERISSIMO, 2002, p.121).
Percebe-se, dessa maneira, que a delimitação de uma determinada região é, na
verdade, uma construção, ou seja, é uma representação simbólica e não a própria realidade.
Pozenato (2003, p.150), novamente baseado em Bourdieu, afirma que a região é uma divisão
do mundo social, estabelecida por um ato de vontade. Sem deixar de ser um espaço natural,
com fronteiras naturais, a região é construída por decisão política ou de representação. Dessa
forma, a região torna-se uma rede de relações a partir da qual se estabelecem outras relações,
tanto de proximidade quanto de distância, dependendo de variáveis como os meios de
comunicação. Nessa perspectiva, o espaço físico passa para o segundo plano, de modo a
privilegiar variáveis e relações de tipo humano ou social.
Seguindo essa idéia, Paviani (2004, p.84) admite que se apresentando a região como
um espaço, ela se torna um espaço definido por uma história diferente da do espaço vizinho e
externo. Assim, a região torna-se a ligação entre as diferentes experiências individuais, de
cada lugar, e as manifestações da cultura universal. É, portanto, a multiplicidade das
experiências que constituirá a unidade da cultura: “A tarefa da região é instituir, a partir das
experiências individuais, na particularidade de seu modo de ser, a experiência espaço-
temporal dos indivíduos no horizonte da universalidade.”.
78
Ao adentrar numa região culturalmente pré-estabelecida, Carl Winter, pelas suas
características físicas, roupas, modo de falar e atitudes, torna-se objeto de análise da
população de Santa Fé, como atesta a seguinte descrição feita pela personagem Florêncio
Terra, morador do vilarejo:
O médico alemão era inconfundível. Ninguém mais em Santa se vestia
daquele jeito engraçado. Ninguém ali usava chapéu alto como chaminé nem
aquelas roupas estapafúrdias. [...] Ali em Santa só ele fumava aqueles
charutos do tamanho dum cigarro. O Dr. Winter era um homem fora do
comum, que vestia roupas de veludo nas cores mais extravagantes, com uns
esquisitos coletes de fantasia. [...] tinha um sotaque muito forte, era
verdade, carregava nos erres, mas quanto ao resto falava fluentemente como
um brasileiro educado, quase o bem como o juiz de direito ou o padre. E
diziam que sabia também o seu latim e que em sua casa tinha muitos livros
escritos em línguas estrangeiras. (VERISSIMO, 2002, p.33-35).
Nesse trecho, a personagem Florêncio Terra percebe que Carl Winter era “um
homem fora do comum”, ou seja, pelas suas características e hábitos o médico não pertencia
àquela terra nem àquela cultura. Tratava-se de um estrangeiro, de um forasteiro, de alguém
diferente que havia cruzado a fronteira, ou seja, havia invadido os limites de seu território e de
seu grupo.
Da mesma forma que a região, o estabelecimento de fronteiras, também pode ser
entendido como uma construção simbólica. De acordo com Bourdieu (1988, p.109), regeres
fines: “traçar fronteiras em linhas retas” é um ato religioso, realizado pela personagem de
autoridade, o rex, encarregado de fixar regras que fazem existir aquilo por elas prescrito.
Constitui-se um ato de autoridade que afirma uma verdade que tem força de lei, tornando-se
um ato de conhecimento. A fronteira seria, então, um ato jurídico de delimitação, capaz de
produzir a diferença cultural do mesmo modo que é produto desta.
Ao ultrapassar o conceito no sentido geográfico, como encerramento de um espaço,
delimitação de um território, fixação de uma superfície, Sandra Pesavento (1997) entende a
fronteira como um marco que limita e separa, apontando sentidos socializados de
reconhecimento. Para a autora, a fronteira é uma margem em permanente contato; uma
passagem a proporcionar mescla, interpenetração, troca e diálogo, que se traduzem em
produtos culturais. Assim, a fronteira remeteria à vivência, às formas de pensar, aos valores,
aos significados contidos nas coisas, palavras, gestos, ritos, comportamentos e idéias.
Na narrativa de O Continente, a partir do momento em que os moradores de Santa
e o estrangeiro Carl Winter entram em contato, percebem as características que os
diferenciam ao mesmo tempo em que o médico alemão toma consciência de sua própria
79
etnicidade. Segundo Poutignat e Streiff-Fernart (1998, p.141), a etnicidade é uma forma de
organização social, baseada na atribuição categorial que classifica os indivíduos em função de
sua origem suposta, que é validada na interação social pela ativação de signos culturais
socialmente diferenciadores.
As diferenças referentes às características físicas, vestuário e linguagem são as
primeiras a serem percebidas tanto pelos gaúchos, quanto pelo alemão, por serem mais
visíveis e de fácil identificação. Devido a isso, o escritor posicionou-as no início da narrativa,
momento em que ainda está apresentando as personagens ao leitor.
Deteremo-nos na forma com que o narrador mostra ao leitor os elementos que
constituem a etnicidade de Carl Winter, como os traços fenotípicos. Isso se através dos
pensamentos da própria personagem, em momentos de solidão em seu quarto, propícios para
uma reflexão sobre a vida, enquanto espera o sono:
Estava agora completamente nu. Tinha um corpo muito esguio e ossudo,
dum branco de marfim, pintalgado de sardas e recoberto duma penugem
fulva. [...] Quando se olhava no espelho Winter compreendia por que
Gertrude o tinha esquecido em favor do filho do Burgomestre. Seus olhos
eram dum cinzento frio e feio; seus cabelos, dum louro avermelhado como
o das barbas de milho das roças de Santa Fé; sua pele, branca e oleosa, com
manchas rosadas, lembrava salsichas cruas. (VERISSIMO, 2002, p.39; 46).
Evidentemente Carl Winter nota as características de seu corpo, justamente por
diferirem do tipo físico do gaúcho: estatura mais baixa, pele morena, cabelos e olhos escuros.
Ele não tinha ilusões quanto à sua aparência física, e o fato de ter um corpo “angulosos e feio”
não o aborrecia, pelo contrário, sentia até certo orgulho de ser assim. Dessa forma, Carl
Winter faz questão de manter as características que o diferenciava dos nativos do Rio Grande
do Sul, de modo a marcar sua etnicidade e garantir sua identidade, não sem um certo ar de
superioridade:
Sabia que suas roupas davam muito que falar. Os colonos alemães em sua
generalidade haviam abandonado seus trajos regionais e adotado os dos
naturais da província. Mas ele, Winter, preferia conservar-se fiel à
indumentária européia e citadina, e continuava a vestir-se bem como se
ainda vivesse em Berlim ou Munique. Por outro lado, no que dizia respeito
às coisas do espírito, também continuava a usar as modas européias; eo
queria mudar, pois sabia que no dia em que se adaptasse e começasse a
comer e vestir como os nativos, mais da metade do encanto de viver
naquela terra remota estaria perdida. Winter sempre amara sua
80
independência: era um individualista. Não via, pois, melhor maneira de se
afirmar como um indivíduo, e de defender sua independência do que a de
andar vestido daquele modo inconfundível. (VERISSIMO, 2002, p.37-38).
A resistência de Carl Winter em manter sua indumentária “européia e citadina”
mesmo estando em pleno ambiente rural, pode refletir a representação que o médico alemão
tinha da sociedade rio-grandense em geral. Como europeu do século XIX, Carl Winter via a
América como um lugar primitivo, habitado por “selvagens” e “bárbaros”, atrasado na escala
da civilização se comparado com a Europa, e ainda, via o ambiente rural do Rio Grande do
Sul como um espaço tosco, associado ao atraso cultural e tecnológico. Mantendo suas
vestimentas, que o caracterizavam como um europeu proveniente da zona urbana, manteria
também sua superioridade em relação aos demais habitantes de Santa Fé.
Outra forma de marcar sua identidade, Carl Winter encontra na preservação da língua
materna. Contudo, como ali em Santa ninguém mais falava alemão, além do Schultz, dono
da venda, o doutor conversava sozinho, em voz alta, não se importando com a opinião dos
santa-fezenses. A atitude intrigava os nativos; alguns chegavam a a pensar que o médico
alemão era “louco da cabeça”:
Adquirira o hábito de falar consigo mesmo em voz alta. Fazia-o em alemão,
em geral quando caminhava pelas ruas da vila ou saía em seus passeios
solitários pelos arredores. Os caboclos miravam-no intrigados Winter
percebia com o rabo dos olhos. Mas mesmo quando encontrava estranhos
continuava em seu solilóquio, pois tinha a impressão de que, como falava
alemão, a coisa toda perdia seu caráter absurdo. (VERISSIMO, 2002, p.46).
Segundo Flávio Loureiro Chaves (2006, p.66), o cruzamento da fronteira de Santa Fé
pelo estrangeiro Carl Winter, no romance O Continente, constitui um hábil recurso estrutural
da narrativa, pois é através dos relatos do médico alemão que temos a percepção da Província
de São Pedro e de seus habitantes, como também obtemos uma visão crítica de sua cultura,
impossível de ser realizada pelos que se encontram no interior dela e a constituem.
Flávio Loureiro Chaves caracteriza a fronteira como um lugar de encontro, “um
espaço na frente de outro espaço”. Nesse sentido, ao estar diante do espaço do outro,
estabelece-se a alteridade, ou seja, é no reconhecimento do outro e do espaço do outro, dado
pela diferença ou pela identificação, que o indivíduo reconhece-se a si próprio.
81
É relacionando-se com o outro, com o diferente, que Carl Winter estabelece a
alteridade. Isso se dá, sobretudo, pelo uso da linguagem. É através do uso imprescindível da
linguagem que Carl Winter se comunica e conhece o povo gaúcho, ao mesmo tempo em que
se reconhece a si próprio, agora imerso num outro ambiente cultural. É também através da
linguagem, no momento em que o Dr.Winter envia cartas ao amigo Carl Von Koseritz,
relatando sobre a sociedade que analisa, que o leitor toma conhecimento sobre a cultura
gaúcha. Porém, essa visão apresentada ao leitor parte da ótica de um estrangeiro, ou seja, um
olhar de “fora para dentro”, revelador de aspectos que um rio-grandense provavelmente não
teria percebido.
Nesse sentido, a linguagem é representação, mas não apenas de pensamentos; ela é
expressão e comunicação. Segundo Luiz Paulo da Moita Lopes (2003, p.19), todo uso da
linguagem envolve alteridade e situacionalidade. Assim, a linguagem é concebida como
discurso, enfatizando-se que todo uso da linguagem envolve ação humana em relação a
alguém em um contexto interacional específico. Isto quer dizer que
é impossível pensar o discurso sem focalizar os sujeitos envolvidos em um
contexto de produção: todo discurso provém de alguém que tem suas
marcas identitárias específicas que o localizam na vida social e que o
posicionam no discurso de modo singular assim como seus interlocutores.
(LOPES, 2003, p.19).
A comunicação entre Carl Winter e as demais personagens com quem ele convive
mais intimamente como os moradores do Sobrado: Bibiana, Bolívar, Luzia, Licurgo e outros
que freqüentavam a casa dos Terra-Cambará, ao mesmo tempo em que constitui práticas
discursivas, é reveladora das várias identidades sociais assumidas pelas personagens. É
através das relações interétnicas entre essas personagens, que nos são reveladas suas
personalidades, seus desejos, interesses, medos e frustrações.
Nesse sentido, conforme Luiz Paulo da Moita Lopes (2003, p.25), quando se
envolvem na construção do significado, as pessoas estão agindo no mundo por meio do
discurso em relação aos seus interlocutores e, assim, se constroem e constroem os outros.
Desse modo, o discurso deve ser entendido também por sua força constitutiva e, portanto,
como ação. O discurso pode tanto representar a vida social como também realizar atos sociais.
A identidade social, construída por meio de práticas discursivas, é, portanto, um
construto de natureza social e política, que ao conhecer os outros, conhecemos a nós
82
mesmos. Segundo Kathryn Woodward (2000, p.8-12), as identidades adquirem sentido por
meio da linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais são representadas. É por meio dos
significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo
que somos. A representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por
meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeitos.
Assim, por ser a identidade marcada através de símbolos, sua construção é tanto
simbólica quanto social. É também relacional, isto é, para poder existir, uma identidade
depende de algo fora dela, de outra identidade. É a diferença, portanto, que estabelece a
identidade.
Por mais tempo que Carl Winter permaneça em Santa e mesmo que suas relações
com os nativos se intensifiquem, ele continuará sendo o outro, o forasteiro diante dos olhos
dos rio-grandenses. Da mesma forma, o próprio alemão, mesmo que adquira alguns hábitos da
cultura local, dificilmente se sentirá um gaúcho, ele sempre terá a impressão de ser um
estranho em terra alheia. Nesse sentido, a produção da identidade do “forasteiro” tem como
referência a identidade do habitante do local”, confirmando que uma identidade é sempre
produzida em relação a uma outra. Assim explica Kathryn Woodward (2000, p.40):
A marcação da diferença, que ocorre tanto por meio de sistemas de
representação quanto por meio de formas de exclusão, é estabelecida por
um sistema classificatório. Esse sistema aplica um princípio de diferença a
uma população de forma a dividi-la (e a todas as suas características) em ao
menos dois grupos opostos: eu/outro, dando, assim, ordem à vida social.
No entanto, sujeitas à historicização, as identidadeso são consideradas algo fixo e
imutável, estão sempre em processo de mudança e transformação. A imagem de forasteiro em
Carl Winter permanece, porém sua identidade original começa a se transformar assim que
iniciam as relações com os gaúchos.
Ao chegar ao Rio Grande do Sul, Carl Winter teve que aprender uma língua, adaptar
seu vestuário ao clima da região, aprender a apreciar a culinária, aprender a conviver com os
hábitos dos nativos, e tudo isso provocou uma transformação em sua identidade originária,
que trazia marcas da cultura alemã. Em carta remetida ao amigo Koseritz, o médico confessa:
Faz quatro anos que estou em Santa Fé. não uso mais chapéu alto,
minhas roupas européias se acabam e eu desgraçadamente me vou
83
adaptando. Isso me uma sensação de decadência, de dissolução, de
despersonalização. Sinto que aos poucos, como um pobre camaleão, vou
tomando a cor do lugar onde me encontro. aprendi a tomar chimarrão,
apesar de continuar detestando essa amarga beberagem. (VERISSIMO,
2002, p.114).
Segundo Maura Penna (1998, p.109), toda migração implica um processo de
(re)construção de referenciais de vida, acarretando mudanças radicais no modo de vida, no
nível do trabalho, na inserção comunitária, no caso de Carl Winter a passagem do urbano para
o rural, no acesso a bens materiais e simbólicos. Tais mudanças refletem-se sobre os
processos relativos à identidade. A migração, portanto, é um processo dinâmico de
transformação, destruição e recriação tanto do modo de vida e das relações com o espaço,
quanto dos referenciais simbólicos (as representações de identidade) que marcavam a
experiência social. É, pois, a experiência social que engendra os esquemas de apreensão do
mundo através dos quais a materialidade é interpretada.
A experiência social de um estrangeiro intelectualizado que cruza as fronteiras de um
território no interior do Rio Grande do Sul, habitado por um grupo portador de uma cultura
peculiar, afeta sobremaneira a identidade do Dr. Carl Winter, como também influencia sua
visão do mundo, tornando-se relevante como elemento da construção dessa personagem.
2.6 Carl Winter no mapa humano/social de Santa Fé
É com certo estranhamento que Carl Winter é recebido pelo povoado de Santa Fé,
seja pelo tipo físico, pelas vestimentas, pela linguagem, ou simplesmente por ser alguém de
“fora”, um estrangeiro. No entanto, esse estranhamento inicial logo se transforma numa
respeitosa admiração. Seu título de “doutor” confere-lhe certa superioridade intelectual frente
àquele povo em sua maioria analfabeto. Seu porte grave, os óculos e a barba contribuem para
dar-lhe uma aparência mais velha e respeitável, como mostra a seguinte passagem:
Winter afastou-se na direção de sua residência. Morava numa meia-água
atrás da igreja, ao lado da casa do padre. Por alguns instantes Florêncio
acompanhou-o com os olhos. Gostava do Dr. Winter. Sentia por ele uma
espécie de respeitosa confiança, como a que a gente sente por uma pessoa
84
séria e idosa. No entanto o médico alemão não teria muito mais de trinta
anos. Deveria ser aquela barba e aqueles óculos que lhe davam um ar assim
tão respeitável. (VERISSIMO, 2002, p.35).
Assim, prestigiado por sua profissão, o Dr. Winter logo conquista a simpatia e a
confiança das duas famílias mais poderosas de Santa Fé: a do chefe político Bento Amaral e a
de Bibiana Terra Cambará, futuros moradores do Sobrado. O bom relacionamento com a
classe dominante da sociedade santa-fezense concede-lhe uma série de privilégios, permitindo
ao doutor incluir-se em todas as comemorações familiares, jantares festivos, discussões
políticas, participando ativamente da vida social do povoado. O Dr. Winter, o juiz de direito
Dr. Nepomuceno e o Pe. Otero formam a tríade intelectual do povoado nessa época,
alimentando extensas discussões sobre os mais variados assuntos. Nota-se que, apresentando
diferentes pontos-de-vista, devido à formação intelectual de cada um, os representantes da
Medicina, da Lei e da Igreja, dificilmente convergiam em suas opiniões.
Essa íntima relação com as personagens que protagonizam o enredo de O Continente é
um recurso que Erico Verissimo emprega para que se torne possível ao médico alemão
desempenhar a função que lhe foi destinada na narrativa. É convivendo com Bibiana, Bolívar,
Luzia, Licurgo, Juvenal e Florêncio, que a personagem Carl Winter mostra ao leitor como se
organizava a sociedade rio-grandense. Essas personagens, por um processo metonímico,
reúnem as características que representam a sociedade gaúcha da época focalizada.
Além disso, Carl Winter é caracterizado pelo narrador como uma pessoa de grande
inteligência, capaz de aprender facilmente a língua portuguesa, as gírias e expressões do
dialeto gauchesco; um observador dotado de senso crítico para refletir sobre as atitudes
daquela gente, e com curiosidade suficiente para procurar entender aquela organização social,
conhecendo mais sobre o povo, seus costumes, suas lendas e sua História.
Essa seleção de informações, como a inteligência e a erudição, também constitui um
recurso do escritor, que procura criar um ser confiável não para as demais personagens da
narrativa, mas para o próprio leitor, de modo que este acredite na visão oferecida pelo doutor.
Florêncio Terra assim descreve a esperteza de Carl Winter: “Esse homem parece que não olha
para nada mas enxerga tudo com o rabo dos olhos.” (VERISSIMO, 2002, p.36).
Além de desempenhar o papel de médico da família Terra-Cambará, a personagem
Carl Winter participa de modo especial da vida dos membros desse clã. Todas as
comemorações importantes contam com a presença do médico. Sua ponderação e
confiabilidade permitem que ele intervenha em momentos cruciais da narrativa, auxiliando na
85
resolução de conflitos internos, entre os membros da família ou externos, com a família rival,
os Amarais. Apesar de conviver mais com os moradores do Sobrado, Carl Winter opta pela
neutralidade, evitando envolver-se nas disputas de poder entre as duas famílias.
Carl Winter torna-se uma espécie de conselheiro, capaz de arrancar confissões dos
Terras, caracterizados como gente de poucas palavras, teimosos e introvertidos. As confissões
que ouve espontaneamente de Bibiana, Bolívar, seu filho, e Juvenal, seu irmão, revelam-se
uma verdadeira façanha. “Vou le contar porque vosmecê é um doutor, um homem de bem e
de saber”(VERISSIMO, 2002, p. 96), diz Juvenal Terra ao lhe segredar seus pensamentos.
Dessa forma, Carl Winter é caracterizado como a única personagem para quem as outras
conseguem confidenciar seus pensamentos, e, nesse processo, o leitor também as ouve e toma
conhecimento sobre suas idéias e medos.
O médico alemão gostava particularmente do Sobrado, não propriamente das pessoas
que o habitavam: “Gostava, porém, do Sobrado como um velho amigo calado e acolhedor,
que tudo e nada pede. Era a única coisa daquela vila que lhe dava uma impressão de
conforto, de abrigo. Gostava dos serões do casarão, que cheiravam a açúcar queimado e
defumação de alfazema.” (VERISSIMO, 2002, p.91). Freqüentemente ele era convidado a
sentar-se à mesa com os moradores, tornado-se uma dessas pessoas tão comuns à família, que
ora fazia de confessor, ora de psicólogo.
Com o passar dos anos essa relação se estreita e Carl Winter, inevitavelmente,
começa a envolver-se com as pessoas e acontecimentos de Santa Fé, com o que ele chamava
de “comédia provinciana”:
Comparava o mundo em que nascera e vivera até os trinta anos com o
mundinho de Santa Fé. Ali naquela vila perdida na extremidade sul do
Brasil representava-se também uma comédia humana, que era uma paródia
da que Winter vira na Europa. Os atores seriam menos consumados, o
cenário mais pobre. Mas os eternos elementos do drama lá estavam: o amor,
o ódio, a cobiça, a inveja, o desejo de poder e de riqueza, a sensualidade, a
vingança... e o mistério. (VERISSIMO, 2002, p.83).
Atraído por aquele sistema de vida precário e rude, Carl Winter acompanha o
desenvolvimento da rústica comédia provinciana, em parte como ator e em parte como
espectador. Embora procurando não se envolver emocionalmente nas intrigas domésticas de
seus amigos, suas opiniões a respeito de qualquer assunto eram sempre solicitadas, e
mostravam-se sensatas e lúcidas. Era importante para os moradores de Santa Fé, ouvir as
86
opiniões de uma pessoa viajada e instruída, conhecedora de outras realidades além dos limites
do vilarejo.
Maria da Glória Bordini (1995, p.222) faz a seguinte descrição a respeito do médico
alemão:
Homem a quem a experiência dos assuntos humanos tornou compreensivo,
mantém-se numa posição de não-interferência ante os conflitos familiares e
políticos que a cidade vive, sentindo que está perdendo sua independência e
superioridade européia entre as paixões primitivas e brutalmente expostas que
o cercam. A vila de Santa o considera um excêntrico de bom coração, um
livre-pensador inócuo, porque não entra nas polêmicas locais, e um sábio mal-
humorado, a quem se busca nas horas em que a sabedoria empírica não é
suficiente para entender-se o destino ou a conduta radical de algum cidadão.
O doutor tentava manter-se informado sobre os acontecimentos do Brasil e da
Europa apesar da dificuldade de obter jornais e revistas. Através da correspondência que
mantinha com Koseritz, pedia ao amigo que lhe enviasse algo para ler, mesmo que fossem
jornais velhos. Os volumes que trouxera da Alemanha haviam sido relidos centenas de
vezes, e a carência de bons livros é o que Carl Winter mais lamentava.
Em 1855 estabelece-se uma colônia alemã a três léguas de Santa Fé, por iniciativa do
chefe político Bento Amaral. De tempos em tempos Carl Winter visitava Nova Pomerânia
para atender algum doente ou simplesmente ver como andava o trabalho. Winter achava seus
conterrâneos ignorantes e pouco simpáticos, porém acreditava no poder de seu trabalho para
mudar os rumos da Província que, até então, se limitava à criação de gado e, com as guerras,
decaía economicamente. Nessas visitas periódicas, ficava surpeendido com a transformação
que, dia após dia, os imigrantes operavam na região: formavam-se roçados e lavouras,
construíam-se cercas, pontes e moinhos. Era estranho para o Dr. Winter ver aquelas caras e
ouvir aquelas vozes tão familiares ali, em Santa Fé.
Com o passar do tempo, Carl Winter vai assimilando alguns costumes da terra. O
churrasco e o chimarrão tornam-se hábitos. Os charutinhos, depois de muita relutância,
acabam sendo substituídos pelos cigarros crioulos, feitos com fumo em corda e palha de
milho. As roupas européias e citadinas, depois de gastas, também dão lugar às vestimentas
dos gaúchos. De forma irreversível, Carl Winter começa a ser influenciado pelo ambiente em
que está inserido, e até coisas que julgava impossíveis de fazer, como dormir com índias e
mulatas, acabam acontecendo por obra das circunstâncias. Questionado certa vez por Bolívar
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se havia começado a fumar os cigarros crioulos, Carl Winter responde: “A gente se habitua a
tudo.” (VERISSIMO, 2002, p.138).
Também com o passar dos anos, o contato com a literatura médica vai se
extinguindo. Embora tenha se formado em uma das melhores faculdades de medicina da
Europa, ali em Santa Fé, operando com instrumentos de trabalho rudimentares e desatualizado
quanto aos avanços da medicina, é com certa frustração que Carl Winter desempenha sua
profissão, chegando a comparar-se com os curandeiros locais. Refletindo sobre suas
condições de trabalho e de vida, a velha indagação voltava-lhe à mente: Por que permanecia
ali em Santa Fé? Por que não ia embora para qualquer outro lugar do mundo onde pudesse
levar uma vida mais confortável e interessante? As respostas não vinham, e nessas horas, para
fugir dos pensamentos e da frustração, muitas vezes Carl Winter recorria à bebida, que pouco
a pouco tornava-se um vício, como mostra a seguinte passagem em que a personagem volta
para casa após ter amputado a perna de um alemão na colônia de Nova Pomerânia:
O remédio era embebedar-se. Podia ser indigno, podia ser brutal, podia ser
sórdido. Mas era um narcótico. Bêbado, esqueceria a perna de Otto
Spielvogel, que ele vira cair pesadamente num balde com um ruído
medonho; esqueceria aquele tempo horrível, esqueceria principalmente que
ele, Carl Winter, um homem de trinta e cinco anos, formado em Medicina
pela Universidade de Heidelberg estava preso, irremediavelmente preso a
Santa Fé, sem coragem de abandonar aquele vilarejo marasmento e sair em
busca duma vida melhor... Por quê? Por quê? Por quê? (VERISSIMO,
2002, p.122-123).
Após a morte de Bolívar, filho de Bibiana, as visitas ao Sobrado tornam-se menos
freqüentes e Carl Winter perde o contato assíduo com sua melhor amiga. Bibiana tenta a todo
custo controlar a educação de Licurgo, seu neto e filho de Luzia, refugiando-se com ele para o
Angico, a estância da família. Ficavam por lá todo o verão, retornando apenas no inverno para
o menino estudar. Winter era seu professor de Ciências. Ensinava-lhe sobre as plantas, sobre
os animais, sobre os astros. Ensinamentos muitas vezes preteridos pelo menino, que
aproveitava mais os conhecimentos de Fandango, velho capataz da estância, formado pela
“escola da vida”, como ele mesmo dizia.
Em 1869, Carl Winter contava por volta de cinqüenta anos e havia mudado de
residência. Morava agora na Rua dos Farrapos, perto da Praça da Matriz. Sem Bibiana para
conversar, sem freqüentar o Sobrado como antigamente, sem um interlocutor à altura, pois
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nas cartas que enviava a Koseritz não era o mesmo que uma conversa presencial, sem mulher,
sem filhos, a sensação de solidão começava a tomar conta do alemão e Carl Winter sentia-se
um pouco enfastiado e impaciente com os outros e até mesmo consigo.
Numa visita que Florêncio Terra faz ao médico devido a um ferimento na perna,
contraído na guerra, o leitor percebe uma mudança comportamental de Carl Winter. Um tanto
excêntrico, não se importando em receber visitas nu, ou ter um escravo o qual chamava
Heinrich Heine, cujo nome de batismo era Sebastião, Florêncio chega a pensar que “o homem
não estava muito bom do juízo” (VERISSIMO, 2002, p.179).
A própria convivência com a gente de Santa faz Winter perder a delicadeza dos
primeiros anos, torna-o um pouco ríspido, sem preocupação em medir as palavras. O Dr.
Nepomuceno e o Pe. Otero, seus melhores interlocutores, agora envelhecidos, mostravam-se
apáticos, desestimulando as antigas discussões:
Ali em Santa Fé, Winter se ressentia da falta de bons interlocutores.
Discutia com o padre, e para exasperá-lo exagerava seus pontos de vista
ateus. O Dr. Nepomuceno envelhecia e estava envolto numa tão espessa
carapaça de estupidez, que suas farpas irônicas nem lhe chagavam a
arranhar a pele. O Dr. Viegas, o pobre Dr. Viegas, que fora trazido a Santa
para combater o cólera-morbo e acabara estabelecendo-se na cidade, era
duma burrice dolorosa: desperdiçar ironias com ele seria, para usar uma
expressão da Província, ‘gastar pólvora em chimango’. Winter sentia agora
uma necessidade permanente de agredir, e sua arma de agressão mais
contundente era a franqueza, a verdade. (VERISSIMO, 2002, p.185).
E assim, Carl Winter percebia o tempo passar, assistia Licurgo crescendo e se
tornando homem, acompanhava a doença de Luzia, seu sofrimento ocasionado por um tumor
maligno no estômago, sem chances de cura, e aguardava o fim de mais uma guerra, a Guerra
do Paraguai, que havia consumido a vida de mais milhares de homens da Província.
Em 1884, a vila de Santa eleva-se à condição de município. Carl Winter, nessa
época, com mais de sessenta anos, participa dos festejos com a apresentação da Banda de
Música Santa Cecília, sob sua organização e orientação. Essa habilidade de reger uma banda
lhe foi possível pois, ainda na Alemanha, o dico fazia parte de um quarteto musical como
violinista. O grupo de amigos reunia-se nas noites de sábado para tocar obras de compositores
famosos como Beethoven e Mozart.
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Ao passar pelas ruas de Santa Fé, a banda alegrava os moradores da cidade e Carl
Winter finalmente conseguia levar um pouco de arte àquela gente. No prosseguimento dos
festejos ocorreu a cavalhada onde foi representada a batalha entre mouros (Licurgo e seus
companheiros) e cristãos (os Amarais). A encenação termina em briga, na qual Licurgo é
ferido sem gravidade por Alvarino Amaral, necessitando do atendimento do médico da
família. Um jantar no Sobrado encerrou as comemorações do dia, ocasião em que Licurgo
entregou carta de manumissão aos seus escravos, conferindo-lhes a liberdade.
Em meio ao numeroso grupo de pessoas que falavam alto, dançavam, comiam e
bebiam desmesuradamente, Carl Winter podia observar todos aqueles tipos que formavam a
sociedade rio-grandense e que naquele momento se divertiam. Sua mente então voltava a
refletir sobre os anos que haviam passado e a vida que tivera desde o dia em que colocara
seus pés em Santa Fé:
Tornou a encher o copo de vinho e bebeu-o todo dum sorvo só. O melhor
que tinha a fazer era embriagar-se para poder participar da alegria geral,
para esquecer que a vida para ele não prometia mais nada. não lhe
restavam esperanças de sair de Santa Fé. A distância em quilômetros que o
separava da Alemanha era enorme. Mas a distância em tempo, essa era
ainda mais aterradora. Sentia-se solto no tempo e no espaço, sem ligação
com ninguém e com coisa alguma. (VERISSIMO, 2002, p.347).
Assim, o imigrante, longe de sua terra natal, apartado de seu grupo étnico,
presenciava o desaparecimento de seus hábitos e costumes, sem contudo, apreciar os novos
que adquiria. Sem participação efetiva na nova sociedade em que estava inserido, Carl Winter
sentia-se um deslocado, geográfica e temporalmente. Ele não pertencia à cultura alemã,
mas também não conseguia se sentir um rio-grandense. A bebida, dessa forma, tornava-se
uma forma de evasão para o conflito de identidade enfrentado pela personagem.
Os velhos ideais de independência e individualismo do médico alemão começavam a
ser questionados. A velhice se aproximava e Carl Winter decepcionava-se ao pensar no rumo
que sua vida tomara, como mostra a seguinte passagem:
Mas não fora sempre esse o seu ideal? Não ter compromissos, nem esposa
nem família nem propriedade nem contratos. Ser física e espiritualmente um
viajante sem bagagem. Estar sempre em disponibilidade, poder, dum
minuto para outro, sem ter de dar satisfações a ninguém, mover-se dentro da
geografia, mudar de paisagem, de ambiente, de hábitos... Pois bem.
Conseguira tudo isso. Mantivera-se livre, disponível, sentimentalmente
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intocado. Mas que uso fizera de sua liberdade? Guardara-a apenas como
algumas daquelas famílias de Santa entesouravam jóias antigas dentro
dum escrínio, no fundo duma gaveta, o as usando nunca, nunca se
desfazendo delas nem mesmo nos momentos de mais necessidade. Um luxo
inútil, enfim! (VERISSIMO, 2002, p.347).
A última aparição da personagem Carl Winter na narrativa de O Continente ocorre
em junho de 1895, data que marca o fim da Revolução Federalista. O Sobrado estava cercado
pelos maragatos durante vários dias e Carl Winter, no peso dos seus setenta e quatro anos, é
chamado para atender Alice, prima e esposa de Licurgo, que dera à luz a uma criança morta e
ardia em febre. Dr. Winter é recebido por Licurgo que lhe pede desesperadamente para que
salve sua mulher, ao mesmo tempo em que sente o cheiro de cachaça que emanava do
médico. Enquanto o Dr.Winter subia penosamente as escadas para medicá-la, perguntando-se
em pensamento: “Salvar pra quê?”, ouve dos filhos de Licurgo, Rodrigo e Toríbio, a alcunha
de “alemão batata ”.
E assim encerra-se a participação dessa peculiar figura na história da sociedade
santa-fezense. No enredo de O Continente, Carl Winter assistiu monotonamente sua própria
vida passar enquanto entretinha-se em acompanhar o desenvolvimento daquela “comédia
provinciana”. Em seu sobrenome, Winter, inverno em alemão, pode ser traduzida a
personalidade do estrangeiro.
A escolha do nome da personagem pelo escritor também pode constituir um recurso
estrutural da narrativa. Segundo Aguiar e Silva (2002, p.704) o nome é um elemento
importante na caracterização da personagem, assim como na vida civil em relação a cada
indivíduo. O nome da personagem pode funcionar como um indício, como se a relação entre o
significante (nome) e o significado (conteúdo psicológico, ideológico) da personagem fosse
motivada intrinsecamente. Nesse sentido, o Dr. Winter é caracterizado como uma pessoa fria,
que não se permitia envolver por sentimentos nem por ninguém. O calor humano não chegou
a transpassar o frio coração de Winter, um homem que controlou suas paixões e viu a vida
passar sem grandes realizações.
No entanto, se a vida de Carl Winter transcorreu sem grandes feitos, essa
personagem nos interessa enquanto ponto-de-vista particular sobre a realidade circundante.
Sua importância na narrativa de O Continente está justamente na profunda análise que faz da
sociedade rio-grandense.
91
2.7 A expressão do pensamento
Assim como um ser humano, a personagem imaginária é dotada de voz, através da
qual se relaciona com as demais personagens da narrativa, expressa seu pensamento e
comunica ao leitor suas experiências e sentimentos. Ao criar uma personagem, o escritor
decide os meios que possibilitarão a ela expressar seus pensamentos e opiniões a respeito das
situações que vivencia.
A personagem Carl Winter, imersa numa cultura totalmente diferente da sua, sente
inevitável necessidade de compartilhar suas impressões sobre o novo ambiente, no qual
convivia com pessoas estranhas de hábitos estranhos. Não tendo, porém, a disponibilidade de
muitos interlocutores compatíveis com seu nível intelectual, que também não falavam sua
língua de origem, o alemão, Carl Winter é freqüentemente obrigado a conversar consigo
mesmo ou com o amigo Koseritz, através de cartas. Analisaremos a seguir, os recursos
narrativos empregados por Erico Verissimo para dar voz à sua personagem, fazendo-a
manifestar seus pensamentos e impressões sobre a sociedade gaúcha.
2.7.1 Os diários
Ao analisar a sociedade rio-grandense, o Dr. Carl Winter não deixa de representar, de
certa forma, a curiosidade européia diante das sociedades “primitivas” do Novo Mundo,
manifestada pelos muitos viajantes que se aventuraram no Brasil, no século XIX, com o
intuito de conhecer em detalhes aspectos da natureza e do povo.
Por meio dos registros feitos nos diários desses viajantes, tem-se hoje um retrato do
Brasil e do Rio Grande do Sul no início de sua colonização. Relatos sobre o relevo, rios,
clima, espécies de animais e plantas, além da análise minuciosa dos grupos humanos nativos,
sua organização social, aspectos físicos e culturais.
Assim, o Dr. Winter representa o estrangeiro culto, maravilhado diante de uma
realidade que em nada se iguala ao seu mundo de origem, atento a cada detalhe da paisagem e
das gentes, cujas impressões deveriam ser registradas. Sem a pretensão e o rigor de um
trabalho científico, o alemão pensava em anotar suas reflexões a respeito da Província do Rio
92
Grande do Sul a fim de comentar essa inusitada experiência com seus amigos no dia em que
voltasse à Alemanha.
No entanto, a mesma preguiça que o impedia de deixar Santa Fé, também o
desmotivava a fazer tais anotações, como mostra a seguinte passagem: “(Winter sempre
prometia a si mesmo tomar nota daquelas reflexões num caderno, mas nunca chegava a fazê-
lo. Ach, és um vadio, Carl!)” (VERISSIMO, 2002, p.47). Dessa forma, as impressões a
respeito de sua aventura numa remota vila do interior do Rio Grande do Sul, que deveriam ser
anotadas e eternizadas num diário de viagem, permaneceram apenas na mente da personagem,
cabendo ao narrador transmiti-las ao leitor. As reflexões sobre os homens e seus códigos de
honra, sobre as guerras, sobre as mulheres, restringem-se aos pensamentos do doutor, sem
jamais serem exteriorizadas por escrito, exceto em alguns comentários que faz ao amigo
Koseritz através de cartas.
Porém, se atentarmos para o seguinte período da narrativa, que corresponde à voz do
narrador: “Winter ficou a pensar no que haveria de contar daquela província a seus amigos, se
um dia voltasse para casa.”, percebemos que a oração iniciada pela conjunção condicional se
um dia voltasse para casa”, um forte indício de que essa ação poderia não acontecer. Na
verdade, o narrador sabia desde o início da história que o Dr. Winter jamais voltaria para a
terra natal, o que tornaria inútil a manutenção de um diário de viagem, cujo intuito era
relembrar com os amigos alemães as experiências de sua estada no sul do Brasil. Assim, esse
diário que nunca existiu, mas cujas anotações que ali seriam escritas tornam-se conhecidas
para o leitor através dos pensamentos da personagem revelados pelo narrador, através do
discurso indireto e indireto livre, não deixa de ser um recurso que contribui para exteriorizar
as reflexões de Carl Winter sobre a cultura rio-grandense.
Há, contudo, uma ocasião em que o Dr. Winter escreve um diário de viagem,
ocorrida na sua visita às Missões. O antigo desejo de conhecer as ruínas da civilização
comandada pelos jesuítas ressurge algum tempo depois de a personagem ter se instalado em
Santa Fé.
Nessa viagem, guiado por um vaqueano, que também lhe preparava as refeições
(arroz com charque, chimarrão), Carl Winter deslumbra-se diante das ruínas dos templos de
Santo Ângelo e São Miguel, que em tempos remotos abrigaram uma organização social
peculiar, formada por padres jesuítas e índios.
93
Continuou a andar dum lado para outro, à frente das ruínas, enquanto o guia
lhe preparava o almoço e de quando em quando lhe lançava olhares furtivos
e desconfiados. Pensa que ando procurando tesouros refletiu Winter, que
tinha agora nas mãos um lápis e um caderno de notas no qual procurava
reproduzir o desenho das cabeças de leão esculpidas em pedra e que
encimavam os capitéis das colunas, nos ângulos da torre principal.
(VERISSIMO, 2002, p.88).
Carl Winter analisava cuidadosamente as ruínas, reconstruindo no papel os templos a
partir do conhecimento que possuía, adquirido provavelmente em livros ou histórias que
ouvira, e completando-os com a imaginação. As anotações, nesse caso, podem ser justificadas
por se tratarem de informações que somente a memória não seria capaz de apreender
completamente, além do mais, sendo as ruínas construções históricas, despertavam muito o
interesse dos europeus.
O silêncio, a solidão e o crepúsculo propiciavam ao doutor momentos únicos de
reflexão, ocasião em que aproveitava também para ler poemas de Heine, valorizados pela
singular paisagem. E assim, o médico tentava reconstruir mentalmente a antiga civilização
que ali habitara:
E à noite ao deitar-se pensou em todas as criaturas que no passado tinham
pisado aquele chão índios, missionários, bandeirantes, aventureiros,
cientistas, viajantes... Aquelas pedras – refletiu ele – haviam sido
envolvidas por melodias inventadas por compositores europeus e
reproduzidas pelos jesuítas e indígenas em instrumentos fabricados na
própria redução. Onde estavam agora as melodias do passado?
(VERISSIMO, 2002, p.89).
Sabe-se, dessa forma, que a personagem fez anotações sobre a excursão às ruínas
dos templos jesuíticos, reproduzindo alguns por meio de desenho. No entanto, o narrador não
fornece ao leitor maiores detalhes, preocupando-se novamente com as reflexões da
personagem, ou seja, prefere revelar o que se passava nos pensamentos de Carl Winter.
2.7.2 A correspondência
94
A falta de bons interlocutores em Santa Fé, pessoas instruídas com quem o Dr. Carl
Winter pudesse sustentar conversas interessantes, agradáveis e condizentes com seu vel de
intelectualidade, é amenizada pelo contato, através de correspondência, com o também
alemão Carl Von Koseritz.
De acordo com a narrativa, os dois alemães de mesmo nome conheceram-se em Rio
Grande, em 1851, onde Koseritz estava hospitalizado, como já foi mencionado anteriormente,
única ocasião em que conversaram pessoalmente. Depois deste dia, nunca mais tiveram um
encontro presencial e a correspondência trocada foi que permitiu a continuidade da amizade
entre eles por longos anos.
Carlos Júlio Cristiano Adalberto von Koseritz, o “ilustre barão”, como Carl Winter
carinhosa e ironicamente o chamava, é uma personagem que Erico Verissimo recupera da
historiografia. As informações apresentadas na narrativa de O Continente sobre Koseritz
condizem com os dados biográficos da figura real, como o nome, o ano de nascimento, a
origem familiar nobre, a participação na guerra contra Rosas fazendo parte dos Brumers, a
vontade de ser jornalista e integrar-se definitivamente à nova pátria
5
.
De acordo com Guilhermino César (1971, p.250), Carlos Júlio Adalberto Henrique
Fernando von Koseritz, segundo barão desse título, nasceu em Dessau, capital do ducado de
Anhalt, Alemanha, a 7 de junho de 1830 e faleceu em Porto Alegre, a 30 de maio de 1890.
Freqüentou cursos superiores, ingressou na marinha e após no exército, tendo feito a
campanha da Dinamarca. Veio para o Brasil engajado na força estrangeira contratada para
auxiliar o exército contra o ditador argentino, os Brumers. Em Pelotas desertou para criar um
colégio (1851), iniciando também sua carreira de jornalista. Tempos depois, na cidade de Rio
Grande, exerceu o magistério e o jornalismo, transferindo-se afinal para Porto Alegre em
1864. Colaborou nos jornais do Comércio, no Rio-Grandense e em A Reforma; fundou a
Kosertiz Deutsche Zeitung, a Gazeta de Porto Alegre e um almanaque em alemão, o Koseritz
Deutsche - Kalender. Figura de prestígio na maçonaria, Koseritz fundou e redigiu o jornal
maçom A Acácia, onde combateu veemente a Igreja. Pertenceu ao grupo Partenon Literário e
organizou a exposição Brasileira-Alemã de 1881. Como deputado provincial, exerceu o
mandato de 1883 a 1885 e de 1887 a 1888. Após proclamada a República, foi preso sob o
pretexto de estorvar a consolidação do regime, em Pedras Brancas, atual Guaíba, onde se
refugiara. Posto em liberdade a 22 de maio de 1890, a 30 faleceu de uma síncope cardíaca.
5
O único dado expresso na narrativa que não condiz com a historiografia é o fato de Carl Winter ter encontrado
Carl von Kosertiz internado em um hospital de Rio Grande em 1851. Como consta na historiografia, Koseritz
havia sido internado em Pelotas e não em Rio Grande. Contudo, essa informação não interfere para a
verossimilhança da narrativa de Erico Verissimo.
95
Sem sombra de dúvida, Koseritz teve participação especial no desenvolvimento da
imprensa nacional, atuando como jornalista e até como crítico literário, que era conhecedor
dos clássicos da literatura universal. Com a mesma vontade que manifestava em aprender a
língua da terra, investigou a natureza e tentou compreender o homem brasileiro, divulgando
informações sobre o nosso país em publicações européias. Sobre isso Guilhermino César
(1971, p.254) comenta: “Tendo adotado a cidadania brasileira, tudo fez, inicialmente, por
conhecer a literatura, estudar os costumes e as tradições locais. Interessou-se em divulgar por
a nossa desordem tropical, o exotismo e o pitoresco da sociedade em que passara a viver e
constituiu família.”.
Na narrativa de O Continente, foi a personagem Carl von Koseritz quem aconselhou
o Dr. Winter a conhecer a cidade de Porto Alegre e a colônia de São Leopoldo. Lugares que
não agradaram o médico, fazendo-o percorrer o Rio Grande do Sul até chegar ao povoado de
Santa Fé. Em uma das primeiras cartas, Koseritz assim o aconselhava: “A única vantagem que
um homem solteiro tem sobre o casado é a da mobilidade. Pois se não gosta de Porto Alegre,
mude-se. O meu caro doutor é um homem livre. Por que não tenta as colônias?visitá-las a
título de experiência. Talvez goste delas e fique por lá.” (VERISSIMO, 2002, p.42).
Koseritz era quem conectava Carl Winter com o restante da Província, do Brasil e da
Europa, pois em Santa o médico sentia-se num outro mundo, onde o acesso à informação
era artigo de luxo. Dessa forma, Koseritz diminuía-lhe a sensação de isolamento, contando-
lhe as novidades da Província e enviando-lhe jornais e livros, que permitiam ao doutor
manter-se atualizado, dentro do possível.
No entanto, a principal função dessa personagem na narrativa é ser uma espécie de
confessor da personagem Carl Winter. Exceto nos momentos em que o Dr.Winter conversava
com seus próprios pensamentos, Koseritz revela-se a única pessoa com quem o médico
alemão conseguia discutir as observações que fazia sobre a gente da Província, representada
pelos moradores de Santa Fé.
Possuindo a mesma nacionalidade, o mesmo nível intelectual e pertencendo à mesma
cultura, Koseritz constitui-se o interlocutor ideal para a personagem Carl Winter. Somente
Koseritz poderá entender o médico alemão quando, nas cartas, ele fala das suas saudades da
terra natal, poderá compreender as referências às personagens da tragédia grega e as citações
de poetas famosos como Goethe e Heine e, principalmente, compartilhará as observações que
Carl Winter faz sobre a sociedade rio-grandense, impossíveis de serem confidenciadas a um
nativo da Província.
96
Nas cartas enviadas ao amigo, Winter perguntava-lhe sobre suas realizações como
jornalista, sobre seus projetos de montar uma escola, e falava-lhe de suas condições de vida
naquele vilarejo perdido no interior do Rio Grande do Sul, da sensação de deslocamento, de
despersonalização, da dificuldade de adaptar-se à sociedade. Nota-se, nessas confissões, que a
própria personagem não conseguia desvincular-se da imagem de forasteiro, como se na
seguinte passagem:
Tu ao menos tens como desabafar: és jornalista, escreve os teus artigos e
de certo modo pertences a esta pátria. Quanto a mim, continuo a ser
apenas o Dr. Carl Winter, um exilado, um imigrante, um intruso; e tenho
de calar a boca mesmo quando sinto vontade de sacudir esta gente de sua
apatia exasperante. (VERISSIMO, 2002, p.79)
6
.
Como entusiasta da imigração alemã no Rio Grande do Sul, Koseritz relatava com
satisfação a Carl Winter os progressos de seus conterrâneos nas colônias, onde a agricultura
desenvolvia-se fortemente, onde surgiam pequenas fábricas como curtumes, moinhos, olarias,
cervejarias.
Carl Winter, por sua vez, observava a Koseritz a despreocupação dos nativos com o
futuro da Província. Segundo ele, não havia interesse em melhorar os rebanhos, que a
pecuária era a maior atividade econômica. Muito menos interesse havia em investir na
agricultura, o que mostrava a apatia do povo em relação ao trabalho. No entanto, estavam
sempre dispostos para a batalha, a guerra realmente excitava os homens da Província,
devolvia-lhes a vitalidade:
“Parece que a regra geral aqui é a guerra, sendo a paz apenas uma
exceção; pode-se dizer que esta gente vive guerreando e nos intervalos
cuida um pouco da atividade agrícola e pastoril e do resto; mas um pouco,
só um pouco, porque parece que tudo é feito com o pensamento na próxima
guerra ou na próxima revolução. nos olhos destas mulheres uma
permanente expressão de susto.”. (VERISSIMO, 2002, p.105).
Nas cartas que se seguiram ao longo dos anos, Carl Winter falava-lhe de sua lenta
adaptação à cultura gaúcha, na qual ia mudando seus antigos hábitos e adquirindo os da terra.
Confidenciava-lhe sua carência afetiva e sexual, sua monótona rotina. Apesar da insistência
6
No texto de O Continente, as cartas enviadas pela personagem Carl Winter a Koseritz estão transcritas em
itálico, padrão que manteremos nas citações.
97
de Koseritz para que ele voltasse ao litoral e se instalasse em Pelotas, o médico tentava
explicar-lhe, sem ao menos saber a resposta, sua incapacidade de deixar Santa Fé: A inércia,
Carl, tem muita força. A rotina é uma balada insípida de rimas obvias.” (VERISSIMO, 2002,
p.114). A monotonia estendia-se também à profissão, em que os casos clínicos atendidos
raramente diferiam, como mostra o trecho da seguinte carta, datada de 25 de setembro de
1855:
A vida aqui é monótona. Nunca acontece nada. De vez em quando sou
chamado a atender um homem que foi estripado por outro num duelo por
causa de pontos de honra, discussões em carreiras, jogos de osso, cartas
ou chanteira. Mas mesmo isso se transforma em rotina, porque um
intestino é igual a outro intestino; as reações das pessoas em tais ocasiões
são mais ou menos as mesmas. (VERISSIMO, 2002, p.114).
Carl Winter também lamentava a carência de material para leitura no vilarejo, a
distância entre os povoados, a demora dos correios para chegar até Santa Fé, os assuntos das
conversas entres as pessoas, limitados a gado, cavalos, tropas, comidas, histórias de guerras e
revoluções passadas e futuras. Relatava a Koseritz sobre a paisagem, sobre o clima, os
rigorosos invernos, o gosto que começava a tomar pela cachaça, numa mistura com mel e
limão. Pedia-lhe ainda que enviasse livros e jornais, mesmo que antigos.
Contudo, o assunto preferido do doutor era a vida dos moradores de Santa Fé. Carl
Winter mantinha o amigo informado sobre o desenvolvimento da rústica “comédia
provinciana”, relatando-lhe os principais acontecimentos envolvendo as famílias Terra-
Cambará e Amaral.
A intimidade dos moradores do Sobrado, dessa maneira, torna-se assunto freqüente
nas cartas. É interessante notar que nesses episódios, o narrador de O Continente outorga a
Carl Winter a tarefa de comunicar ao leitor acontecimentos importantes que marcam a vida da
família Terra-Cambará. A personagem realiza essa tarefa narrando detalhadamente a Kosertiz,
em discurso direto, fatos como o nascimento de Licurgo, neto de Bibiana, o conflituoso
relacionamento entre sogra e nora e a viagem de Bolívar e Luzia para Porto Alegre, sugerida
pelo próprio Dr. Winter. Após narrar-lhe as novidades, porém, Carl Winter pede desculpas ao
jornalista, lamentando a pouca relevância de seus assuntos, restritos ao âmbito de suas
relações sociais, e explica:Pedoa-me estas minúcias. Quando vivemos por muito tempo num
mundo tão limitado e pobre como este, acabamos conferindo às suas intriguinhas, às suas
pessoinhas e às suas coisinhas uma importância universal (VERISSIMO, 2002, p.121).
98
Nota-se o emprego do grau diminutivo nos vocábulos “intriguinhas”, “pessoinhas” e
“coisinhas” no sentido pejorativo, de importância diminuída.
Carl Winter tinha consciência que ele e seu amigo Koseritz o pertenciam mais
ao mesmo mundo. Enquanto Koseritz se projetava na imprensa nacional, dentro do círculo de
intelectuais, políticos e personalidades ilustres da Província e do país, ele, Carl Winter, vivia
num mundo restrito, desempenhando de forma rústica e decadente sua profissão de dico e
convivendo com pessoas de muito limitada ou inexistente intelectualidade.
O assunto de uma das cartas seguintes foi a volta de Bolívar e Luzia de Porto Alegre,
que na década de 1850, fora infestada por uma epidemia de cólera-morbo, o que determinou,
por ordem de Bento Amaral, um período de quarentena ao Sobrado, em que foi
expressamente proibida a saída de qualquer morador. Nessa ocasião, Carl Winter demonstra,
angustiado, a incapacidade de resolver a situação, tendo que se contentar com o privilégio de
ter passe livre para entrar no casarão e tratar de seus moradores, física e psicologicamente. O
médico comunica ao amigo a irritação de Bolívar, que se considerava vítima de uma intriga
política, e a recusa do juiz e do padre em interceder para o desfecho daquele drama. Drama
que isolava o Sobrado do restante de Santa Fé, mas, principalmente, que mantinha cada
morador isolado dos outros e preso em seus próprios pensamentos:
Este pequeno arquipélago de Santa não está propriamente no Mar
Tenebroso, mas sob sua aparência de quietude e rotina tem também seus
dramas. E eu, como médico, faço o curioso papel de lançadeira, indo e
vindo a conduzir a frágil linha que costura esse tecido dramático. Creio
que estou ficando literato, tão literato que não se admire o meu bom amigo
se um dia eu lhe mandar sonetos ou pensamentos filosóficos para seu
jornal. Pois dramas não faltam por aqui, meu caro. Eu os vejo, eu os
cheiro, eu os ouço, eu os apalpo. Há dramas no casarão do velho Amaral.
Dramas nas casas dos colonos da Nova Pomerânia. Drama até no quintal
do vigário, meu vizinho e inimigo. Drama também no peito
encatarroado do Dr. Nepomuceno. Mas o maior drama de todos está no
Sobrado. (VERISSIMO, 2002, p.147).
Somente dois dias depois é que Carl Winter terminou essa carta, contando a Koseritz
sobre a morte de Bolívar, assassinado pelos capangas de Bento Amaral ao desobedecer à
ordem de não sair do Sobrado. Falou-lhe sobre o enterro do amigo e sobre as impressões que
lhe causou a viúva Luzia. Porém, esse trecho da carta, Winter acabou não enviando a
Koseritz, pois continha confissões muito íntimas. Nele, Winter relatava as sensações que
tivera ao observar Luzia no momento em que ela se despedia pela última vez do marido,
99
quando desejou possuí-la violentamente ali mesmo, no cemitério, e rapidamente retirou-se do
local, tomado de náuseas. Ao reler o que havia escrito, Carl Winter rasgou o papel e afirmou
que uma confissão daquelas não deveria ser feita nem a si mesmo.
Os acontecimentos da Europa também eram do interesse de Carl Winter, que se
tratava de seu antigo mundo, e dos quais ele tomava conhecimento através dos jornais que
Koseritz lhe enviava. Em algumas passagens das correspondências fica claro o desprezo da
personagem por duas figuras centrais que protagonizavam a História européia na época.
Numa das cartas enviadas a Koseritz, Carl Winter assim se despede:
Um dia ainda nos havemos de encontrar para uma longa palestra.
Falaremos de tuas realizações, Carl, de teus projetos. Falaremos um pouco
também sobre o passado. Diremos mal de Napoleão III, da Inglaterra e
principalmente dessa augusta vaca, a Rainha Vitória. (VERISSIMO, 2002,
p.147).
Segundo a historiografia, as grandes potências européias no século XIX, eram a
Inglaterra, a França e a Alemanha, envolvidas constantemente em conflitos bélicos pela
disputa de território e poder. Assim, parece natural que Dr. Winter não prestigie muito os
líderes políticos das potências que freqüentemente ameaçavam seu reino de origem: Napoelão
III (1848-1870), da França, e a Rainha Vitória (1819-1901), da Inglaterra.
A última carta que Carl Winter enviou a Koseritz na narrativa de O Continente, diz
respeito à Guerra dos Muckers, fato histórico ocorrido nos arredores de São Leopoldo no ano
de 1874. Os Muckers, falsos santos, foram um grupo de imigrantes alemães envolvidos em
um movimento messiânico liderado por Jacobina Mentz Maurer, que se apresentava como a
própria encarnação de Cristo e prometia estabelecer na Terra a Cidade de Deus.
Cada vez mais crentes no caráter messiânico de Jacobina, os muckers passaram a
atacar aqueles que se opunham ao movimento, incendiando-lhes as casas ou executando-os.
Além disso, acirrados pela profecia de que quem acreditasse em Jacobina seria imune à morte,
os muckers entraram em confronto com as forças do Exército local, gerando um quadro de
violência e muitas mortes. Carl Winter explica o fato da seguinte forma:
[...] esse lamentável episódio vem confirmar a opinião que tenho de meus
compatriotas: individualmente são excelentes, sensatas pessoas, mas
quando reunidos em grupos acabam sempre fazendo alguma asneira
brutal. Creio, porém, que Goethe já disse isso antes de mim e em muito
100
melhor alemão. Seja como for, às vezes chego a achar que a unificação da
Alemanha foi um erro. Temo que depois da vitória de Sedan, embriagados
de orgulho nacional, os alemães tomem gosto pelas guerras (Há um ditado
gaúcho que conheces: ‘Cachorro que come ovelha uma vez’...) e não
possam mais passar sem elas. (VERISSIMO, 2002, p.363).
Nessa passagem, Winter expressa preocupação com relação ao fanatismo
religioso/político de seus compatriotas, referindo-se com isso também à Batalha de Sedan,
conflito decisivo no processo de unificação da Alemanha. Sem o propósito de comparar a
realidade com a ficção, recorremos à historiografia a fim de fazer uma breve exposição sobre
o processo de unificação alemã, mencionada pela personagem Carl Winter, evento
responsável pelo surgimento do sentimento de nacionalismo, o qual se transformou em
fanatismo e chegou ao extremo durante a Segunda Guerra Mundial.
Segundo Divalte Garcia Figueira (2005, p.247), durante as guerras napoleônicas,
Bonaparte dissolveu o antigo Império Romano-Germânico e criou, em seu lugar, a
Confederação do Reno. Com a derrota do imperador francês, o Congresso de Viena (ocorrido
de outubro de 1814 a junho de 1815) determinou a formação da Confederação Germânica, um
aglomerado de 39 Estados soberanos. Na liderança estava o Império Austríaco, absolutista e
de economia agrária, cuja supremacia foi garantida pelo número de Estados que tinha na
Confederação. Contra a Áustria estava a Prússia que, mais desenvolvida comercial e
industrialmente, buscava a edificação de um grande Estado germânico, que forjasse seu
espaço internacionalmente.
O passo fundamental para a unificação foi dado, conforme Cláudio Vicentino (2006,
p.319), em 1834, com a criação do Zollverein, uma união alfandegária que derrubou as
barreiras aduaneiras entre os Estados alemães, proporcionando uma efetiva união econômica
que dinamizaria o capitalismo alemão. Deixada de fora do Zollverein pela diplomacia
prussiana, a Áustria reagiu, ameaçando a Prússia de guerra e obrigando-a a recuar. Assim, o
Império Austríaco recuperava sua supremacia na Confederação Germânica, impondo seus
interesses, que eram contrários à unificação.
A Prússia, por sua vez, iniciou a partir de 1860 a aplicação de um programa de
modernização militar sustentado pela aliança da alta burguesia com os grandes proprietários e
aristocratas os junkers. Tendo à frente o chanceler Otto von Bismarck, reiniciaram-se as
lutas pela unificação alemã com uma estratégia que visava à exaltação do espírito nacionalista
alemão por meio de sua participação em guerras.
101
Ao assumir o cargo, Bismarck adotou medidas para acelerar o desenvolvimento
industrial, ampliando o sistema ferroviário e estimulando a siderurgia e a indústria
metalúrgica. Ao mesmo tempo, modernizou o exército, pois sabia que a unificação do país
passaria necessariamente por uma guerra.
No plano externo, Bismarck procurou explorar as disputas entre as potências
européias, firmando alianças ora com uma, ora com outra, conforme os interesses do Estado
prussiano e do processo de unificação alemã. Assim, em 1864, Bismarck aliou-se à Áustria
contra a Dinamarca, com o objetivo de conquistar dois ducados: Holstein (que ficou para a
Áustria) e Schleswig (que ficou para a Prússia). Em 1866, o quadro mudou e ele se lançou
contra a Áustria, obtendo a neutralidade da França para enfraquecer o inimigo. Vencida a
Áustria, a Prússia impôs sua hegemonia em toda a região, criando em 1867 a Confederação
Germânica do Norte, liderada por Guilherme I e Bismarck. Em seguida, Bismarck lançou-se
contra a França.
Durante a guerra franco-prussiana (1870-1871), o exercito francês foi derrotado nas
batalhas de Metz e Sedan e o próprio imperador Napoleão III foi feito prisioneiro, obrigando
o governo republicando da França a assinar a rendição. Assim, em 18 de janeiro de 1871,
representantes dos Estados germânicos proclamaram em Versalhes, perto de Paris, a criação
do Segundo Reich (Segundo Império) alemão, sob o governo de Guilherme I e com a
humilhação imposta à França, consumou-se, finalmente, a unificação da Alemanha.
Segundo Cláudio Vicentino (2006, p.321), a guerra franco-prussiana mobilizou
sentimentos nacionalistas de ambos os lados. Além disso, com a unificação, a Alemanha
cresceu vertiginosamente, a ponto de, em 1890, superar a Inglaterra na produção de aço, o que
contribuiu para aumentar a rivalidade entre os dois países. A exigência alemã de uma
redivisão colonial que a favorecesse, somada às alianças político-militares, levaram o mundo
à Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
De certa forma, o comentário realizado pela personagem Carl Winter na narrativa
ficcional, citado anteriormente, parece constituir uma previsão da ocorrência da Primeira e
Segunda Guerras mundiais, nas quais a Alemanha, motivada pelo sentimento de
nacionalismo, teve ativa participação. Essa previsão pode ser justificada pelo fato de o
romance O Continente ter sido publicado em 1949, e o escritor ter sido contemporâneo desses
acontecimentos, referindo-os implicitamente no texto.
Em seguida, Carl Winter observa que o ambiente bélico é incapaz de promover a
intelectualidade, transferindo essa idéia ao povo gaúcho. Nesse sentido, compreende-se que o
povo do Rio Grande do Sul, imbuído pelo sentimento bélico, continuamente envolvido pelas
102
várias revoluções e guerras, causadoras de destruição e morte, torna-se incapaz de
desenvolver a intelectualidade, ou seja, não consegue reverter suas forças e objetivos para a
produção de bens culturais que promovam um conhecimento científico ou artístico. Segundo
Carl Winter: Parece-me que homens como Mozart e Heine podem ser produzidos por
nações que não perdem tempo nem energia em arquitetar guerras e muito menos em levá-las
a cabo.” (VERISSIMO, 2002, p.363).
Analisando a correspondência enviada pelo Dr. Winter, nota-se a presença
intercalada de relatos da história que se desenvolve no universo fictício de Santa Fé com fatos
pertencentes à História do Rio Grande do Sul, do Brasil e da Europa. Embora nem todas as
cartas apresentem uma data explícita, podemos inferir a época que retratam através das
referências a acontecimentos históricos datados. Novamente, o escritor, com habilidade,
utilizou-se de fatos da realidade misturando-os à ficção, de forma a proporcionar ao leitor a
impressão de verdade. Assim, a presença na narrativa de fatos ocorridos (históricos), livres de
suspeita de serem impossíveis, contribui para o poder de persuasão dos fatos não ocorridos
(ficcionais), mas possíveis de ocorrer, caracterizando a verossimilhança dos relatos da
personagem.
A correspondência remetida por Carl Winter para a personagem Carl von Koseritz
constitui, portanto, mais um recurso estrutural empregado por Erico Verissimo na construção
de O Continente, por meio do qual a organização social gaúcha vai sendo revelada ao leitor
sob a ótica de um estrangeiro. Na opinião de Flávio Loureiro Chaves (2006, p.66):
A seqüência de escritos de Carl Winter, incluindo as longas cartas que ele
remete ao amigo Carl von Koseritz, torna-se indispensável à percepção do
Continente e de seus habitantes e, bem assim, para que se possa ler, na
síntese geográfica operada pelo narrador, o embate das grandes linhas em
que se movimenta a engrenagem da História.
Além disso, esse recurso funciona para atualizar o leitor sobre episódios anteriores ao
momento da narrativa, omitidos pelo narrador, mas que sendo fundamentais para o
prosseguimento do enredo, são revelados pela personagem Carl Winter através de suas cartas.
Segundo Beth Brait (1999, p.62), a narrativa epistolar tem um receptor em mira,
mesmo que esse destinatário não esteja implicado nos acontecimentos. Por meio desse
recurso, a caracterização da personagem num tempo passado que é recuperado pela narrativa
103
funciona como uma maneira sutil, um pretexto para mostrar o presente e as nuances da
interioridade.
De fato, Koseritz não tem participação efetiva no enredo, limitando-se a ser um
receptor, no entanto, ao lhe serem narrados pelo Dr. Winter episódios vivenciados
anteriormente ao tempo em que são narrados, por exemplo, a viagem de Luzia e o marido
para Porto Alegre e o enterro de Bolívar, o leitor se mantém atualizado e informado sobre o
tempo presente da narrativa, ao mesmo tempo em que entra em contato com a intimidade de
Carl Winter.
2.7.3 Discurso direto e discurso indireto livre
Como mencionamos, o texto é o único dado concreto capaz de mostrar os
elementos utilizados pelo escritor para atribuir consistência às suas personagens e estimular as
reações do leitor. Desse modo, é possível analisar em uma narrativa as formas encontradas
pelo escritor para caracterizar as personagens, sejam elas inspiradas em figuras reais ou
totalmente imaginárias, como explica Beth Brait (1999, p.52):
Como um bruxo que vai dosando poções que se misturam num mágico
caldeirão, o escritor recorre aos artifícios oferecidos por um código a fim de
engendrar suas criaturas. Quer elas sejam tiradas de sua vivência real ou
imaginária, dos sonhos, dos pesadelos ou das mesquinharias do cotidiano, a
materialidade desses seres pode ser atingida através de um jogo de
linguagem que torne tangível a sua presença e sensíveis seus movimentos.
Assim, a narração em primeira ou terceira pessoa, a descrição minuciosa ou sintética
de traços, o discurso direto, indireto ou indireto livre, os diálogos e os monólogos são técnicas
escolhidas e combinadas pelo escritor a fim de possibilitar a existência de suas criaturas de
papel, constituindo recursos narrativos relevantes para a análise da obra literária.
Qualquer tentativa de sintetizar as maneiras possíveis de caracterização de
personagens, segundo Beth Brait (1999, p.52), esbarra necessariamente na questão do
narrador, esta instância narrativa que conduz o leitor por um mundo que parece estar se
104
criando à sua frente. De acordo com a postura do narrador, ou seja, do lugar em que ele se
posiciona para contar a história, teremos um ponto de vista capaz de caracterizar as
personagens.
No enredo de O Continente, o narrador em terceira pessoa, apresenta-se como um
elemento não envolvido na história, como uma câmera, para utilizar a definição de Beth Brait,
que tudo e tudo sabe sobre suas personagens, até mesmo seus pensamentos mais íntimos.
O leitor, por sua vez, guiado por essa câmera, vive a curiosa experiência de conhecer uma
personagem, o espaço habitado por ela e as relações que estabelece com esse espaço e com os
demais seres que nele habitam.
No entanto, essa câmera não é neutra. alguém por trás dela, selecionando e
combinando as imagens a serem mostradas, controlando os registros. O narrador domina todo
um saber sobre a vida da personagem e seu destino. Sabe de onde parte e para onde se dirige,
o que pensa, faz ou diz, como uma espécie de Deus que lhe tolhe a liberdade.
Dessa forma, a personagem vai surgindo do desconhecido graças aos recursos de um
narrador privilegiado, onisciente, que na sua posição de observador não personificado, pode
não apenas mostrar os movimentos que a delineiam, mas também revelar seus sentimentos e
pensamentos.
De acordo com Beth Brait (1999, p.55), a apresentação da personagem por um
narrador em terceira pessoa é um recurso muito antigo e eficaz, dependendo da habilidade do
escritor que o utiliza, constituindo uma tentativa de criar uma história capaz de ganhar a
credibilidade do leitor: “No Antigo Testamento, assim como nas epopéias clássicas ou nos
contos de fada, a personagem não é posta em cena por ela mesma, mas por suas aventuras,
pelo relato de suas ações. E nem por isso deixa de ter consistência e ganhar credibilidade”.
Em O Continente, o narrador em terceira pessoa simula um registro contínuo,
focalizando as personagens nos momentos precisos que interessam ao andamento da história e
à materialização dos seres que as vivem. Ele vai construindo por meio de pistas fornecidas
pela narração, pela descrição e pelo diálogo o perfil das personagens que transitam pela
intriga e constituem o mundo a ser representado. Beth Brait (1999, p.58) afirma que:
A descrição, a narração e o diálogo funcionam como os movimentos de uma
câmera capaz de acumular signos e combiná-los de maneira a focalizar os
traços que, construindo essas instâncias narrativas, concretizando essa
existência com palavras, remetem a um extratexto, a um mundo referencial
e, portanto, reconhecido pelo leitor.
105
Nesse sentido, a caracterização física da personagem, a utilização do discurso direto
para mostrar sua relação com as demais personagens, e discurso indireto livre para expressar
seus pensamentos e emoções, a composição do espaço e o desenho do ambiente devem
combinar-se de forma harmônica para construir progressivamente o saber da personagem e do
leitor, constituindo um recurso que aponta para a verossimilhança interna da obra.
Embora participando de todo o enredo de O Continente, a personagem Carl Winter
aparece com maior freqüência no capítulo intitulado A Teiniaguá, no qual ocorre sua
caracterização por parte do narrador, e onde está localizada a maioria dos diálogos e discursos
envolvendo a personagem.
O discurso direto é empregado nos momentos em que o Dr. Winter interage com
outras personagens através de diálogos. Pode-se perceber a utilização desse tipo de discurso
na seguinte passagem em que Carl Winter conversa com Aguinaldo Silva e sua filha Luzia, no
dia do noivado da moça com Bolívar, filho de Bibiana. A conversa transcorre no Sobrado, de
onde os convidados da festa dentro de pouco observariam, na praça em frente, o enforcamento
do negro Severino, acusado de duplo homicídio:
Winter cruzou as pernas e disse ao dono da casa:
- Mas o senhor parece que não teve nenhuma piedade do negro. Me diga
então uma coisa: quando um branco batendo num escravo, vosmecê não
fica também revoltado?
Aguinaldo coçou a pêra e estava para responder quando ouviu a voz de
Luzia.
- Negro não é gente – disse ela. [...]
O Dr. Winter tirou os óculos e começou a limpá-los lentamente com o
lenço.
- Mein liebes Fräulein exclamou ele, com sua voz aflautada. O que
vosmecê acaba de dizer é uma inverdade científica. (VERISSIMO, 2002,
p.65).
Nesse diálogo, as falas das personagens são reproduzidas integral e literalmente.
Notam-se as marcas do discurso direto pelo emprego dos verbos de elocução (dicendi) como
“disse” e “exclamou”, que identificam a maneira como a fala foi exprimida. Além disso, os
sinais de pontuação: dois pontos e travessão, também são indicativos de deste tipo de
discurso.
A presença do narrador, também se faz sentir, porém não interferindo no diálogo,
apenas conduzindo o leitor, preparando-o para as falas das personagens. Para Aguiar e Silva
106
(2002, p.759), todo o texto narrativo implica a mediação de um narrador. A voz do narrador
fala sempre no texto narrativo, apresentando características diferenciadas em conformidade
com o estatuto da persona responsável pela enunciação narrativa, e é ela quem produz as
outras vozes existentes no texto literário.
A voz da personagem, de acordo com esse autor, faz-se ouvir tanto no discurso
direto, nos diálogos e nos monólogos, como no discurso indireto. Em todos esses casos, essa
voz diferencia-se claramente da voz do narrador, quer pela sua introdução com verbos
dicendi, quer pela sua caracterização com traços idioletais, socioletais e dialetais que não
podem ser atribuídos ao narrador. (AGUIAR E SILVA, 2002, p.764).
No diálogo transcrito anteriormente, percebe-se uma marca da linguagem
característica da personagem Carl Winter: as sentenças na língua alemã, como Mein liebes
Fräulein
7
. Esse recurso utilizado pelo escritor, contribui para a caracterização da personagem
e freqüentemente é empregado em seu discurso ao longo da narrativa.
Durante o discurso direto, conforme Wolfgang Kayser (1985, p.228-229), o narrador
não tem o privilégio de impor o seu “tempo”, mas é obrigado a seguir uma ordem temporal
mais objetiva. O discurso direto mais vivacidade e tensão à narrativa, pois o leitor pode
ouvir, ocasionalmente, a voz de uma outra personagem diferente da do narrador, residindo
nisso uma variedade que agrada e que impede toda a monotonia.
O autor salienta ainda, que na vida quotidiana, por mais pormenorizados que sejam
os relatos dos nossos melhores amigos sobre determinada pessoa, nos vale mais um encontro
pessoal com ela para chegar a uma idéia clara sobre seu caráter. O mesmo ocorre na narrativa,
quando determinada personagem fala diretamente aos leitores, proporcionando-lhes assim a
possibilidade de a conhecer, aparentemente, melhor do que pelas descrições das outras
personagens e do narrador. O leitor, apesar de ter consciência do caráter fictício da narrativa,
ainda exige a credibilidade do que lhe é contado. Dessa forma, o discurso direto satisfaz tais
exigências, pois se existem palavras que não são do narrador, mas sim de um outro, então não
há dúvida de que este de fato existe e que está confirmado na sua existência.
Seguindo essa mesma perspectiva, Cunha e Cintra (1985, p.73) também afirmam
que a força da narração em discurso direto provém essencialmente de sua capacidade de
atualizar o episódio, fazendo emergir da situação as personagens, tornando-as vivas para o
leitor. As falas, na reprodução direta, ganham naturalidade e vivacidade, enriquecidas por
elementos lingüísticos tais como as exclamações, interrogações, interjeições, vocativos e
imperativos, que impregnam de emotividade a expressão oral transcrita.
7
“Minha querida senhorita”.
107
O discurso indireto livre, por sua vez, caracteriza-se por ser um discurso misto, em
que se associam as características do discurso direto e do discurso indireto. Nesse caso, o
narrador insere a fala da personagem em seu discurso sem as marcas do discurso direto:
verbos de elocução e sinais de pontuação, mas com toda a sua vivacidade. Seu uso ressalta o
pensamento, a essência significativa do enunciado reproduzido, deixando em segundo plano
as circunstâncias e os detalhes acessórios que o envolvem.
Segundo Beth Brait (1999, p.56), a utilização do discurso indireto livre é um
artifício lingüístico que dissipa a separação rígida entre a câmera e a personagem, uma vez
que lhe confere autonomia para revelar uma interioridade que não poderia ser captada pela
observação externa. Vejamos o seguinte trecho em que o narrador fala sobre a personagem
Carl Winter:
Adquirira o hábito de falar consigo mesmo em voz alta. Fazia-o em alemão,
em geral quando caminhava pelas ruas da vila ou saía em seus passeios
solitários pelos arredores. [...] Ouvira um dia uma das velhotas da vila dizer:
“O alemão é louco da cabeça”. Mein Gott! Louco da cabeça. Lúcido
demais, isso sim. E era essa lucidez que às vezes o impedia de gozar melhor
a vida. (VERÍSSIMO, 2002, p.46).
Nesse parágrafo percebe-se que discurso direto e discurso indireto livre se
intercalam com a voz do narrador. Na sentença: “Ouvira um dia uma das velhotas da vila
dizer: ‘O alemão é louco da cabeça’”, temos o discurso direto introduzido, como lhe é
característico, pelo verbo de elocução “dizer”, seguido dos dois pontos. A fala da “velhota”
transcrita literalmente aparece entre aspas, já que ocorreu num tempo anterior ao do momento
narrado, e faz parte da memória do doutor Winter, revelada pelo narrador em terceira pessoa.
No entanto, logo a seguir aparece o discurso indireto livre, no qual, sem nenhum anúncio
prévio, surge uma exclamação da própria personagem em sua língua materna, seguida por
outras considerações: “Mein Gott
8
! Louco da cabeça. Lúcido demais, isso sim.” E finalizando,
volta a manifestar-se a voz do narrador, transmitindo um juízo de valor sobre a personagem, a
qual conhece inteiramente, como narrador onisciente que é: “E era essa lucidez que às vezes o
impedia de gozar melhor a vida.”.
Em outras ocasiões, o discurso indireto livre aparece entre parênteses, expressando
as recordações ou pensamentos da personagem, como no exemplo a seguir:
8
“Meu Deus!”
108
Infelizmente em Santa Winter tinha de contentar-se com as peças que
Luzia dedilhava na cítara ou então com a música que ele próprio produzia.
Na Alemanha fizera parte de um quarteto de cordas de amadores, como
violonista. (Hans, Hugo, Joseph, onde estais a estas horas?) Reuniam-se nas
noites de sábado para tocar Mozart, Beethoven e Schubert, beber cerveja e
fumar cachimbo nos intervalos entre um e outro quarteto. (VERISSIMO,
2002, p.49).
O discurso indireto livre, empregado por Erico Verissimo na narrativa de O
Continente, torna-se um recurso eficiente para revelar ao leitor os pensamentos e indagações
de Carl Winter, que analisa minuciosamente as demais personagens com quem convive,
tentando desvendar-lhes a personalidade. Citamos um último trecho para exemplificar, no
qual o leitor entra em contato com as reflexões de Carl Winter ao mesmo tempo em que
compartilha suas indagações sobre a personagem Luzia Silva Cambará:
Winter voltara para sua cadeira e agora observava Luzia. Que haveria
naquela alma? Ele ainda não sabia, mas começava a adivinhar, através
duma névoa, e o que entrevia lhe dava um aperto no coração, um frio
horror. Como era que naquele fim de mundo, naquele lugarejo perdido nos
confins do continente americano, entre gente rude e primária, existia uma
mulher assim? Podia estar numa tragédia de Sófocles ou de Schiller, num
conto de Hoffmann ou num ... Mein Gott! Contanto ninguém acreditaria. E
por um instante se imaginou num Biergarten de Berlim, dali a muitos anos,
sentado ao redor duma mesa a tomar cerveja com amigos e a falar-lhes de
seu passado de Santa Fé. (VERISSIMO, 2002, p.67).
Nota-se, nesse parágrafo, que as indagações de Carl Winter a respeito de Luzia se
realizam através de sua própria voz, misturada à voz do narrador onisciente: “Que haveria
naquela alma?” “Como era que naquele fim de mundo, naquele lugarejo perdido nos confins
do continente americano, entre gente rude e primária, existia uma mulher assim?” Mein
Gott!”. Nesse caso, os pensamentos são reproduzidos a partir da perspectiva da própria
personagem, mas a manutenção da terceira pessoa e do pretérito imperfeito “finge” o relato
impessoal do narrador.
Por meio da narração e pela recorrência ao discurso direto e ao discurso indireto
livre, que permitem recuperar a fala, a linguagem, enfim, a dicção da personagem, a
construção vai se operando gradativamente, até circunscrever a totalidade pretendida pelo
escritor.
109
2.8 A questão da verossimilhança
Embora sabendo que a personagem Carl Winter é puramente imaginária, a temos em
nossa mente como se fosse um ser real. Acreditamos na verdade de sua existência. A verdade
da ficção ou da Literatura, na visão de Flávio Loureiro Chaves (2004, p.9), reside na sua
possibilidade de convicção, ou seja, se uma obra nos convence, passa a ser verdadeira e
participa de nossa visão do mundo como se fosse real; se não nos convence, a abandonamos
assim como a suas personagens, relegando-as ao esquecimento.
Nesse sentido, não é o fato de uma personagem representar uma pessoa real que a
dota de credibilidade, mas sim a verossimilhança que preside a sua criação, responsável pela
elaboração de seu aspecto sico, de seus gestos, palavras e pensamentos de forma lógica e
coerente. E é essa característica que determina também a ficcionalidade de uma obra literária.
O conceito de verossimilhança surge com Aristóteles, definido como o critério
fundamental que preside a mimesis, no sentido de que na obra literária a ação se organiza
como se organizaria na realidade, isto é, segundo uma coerência relativa, semelhante à que
preside os eventos da vida diária. Na concepção de Aristóteles (1996, p.78), “não é ofício do
poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o
que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade.” O campo da mimesis, assim, não
se circunscreve ao da verdade, mas ao do possível, não se restringindo a uma única visão
possível do objeto a ser representado.
De acordo com Lígia Militz da Costa (1998, p.12), desvinculando a arte literária da
verdade (tomada aqui no sentido de realidade), Aristóteles concedeu-lhe autonomia ao
relacioná-la ao princípio da verossimilhança, que significa, em primeiro lugar, que a obra
artística tem como objeto de representação o possível e não o historicamente verdadeiro,
constituindo a verossimilhança externa; e, em segundo lugar e com maior importância, o
110
verossímil significa o princípio interno ordenador da construção mimética, baseado nas
relações de causa, lógica e necessidade, o qual faz da obra um todo coeso, uno e exclusivo,
constituindo a verossimilhança interna.
9
Verossímil, portanto, não é necessariamente o verdadeiro, mas o que parece sê-lo,
graças à coerência da representação fictícia. E nem sempre o verdadeiro, na ficção é
verossímil. Um enredo e personagens podem ser verdadeiros, contudo podem não convencer
o leitor, exatamente porque sua construção desrespeitou as convenções necessárias ao
conjunto autônomo da obra.
O Dr. Carl Winter, natural de Eberbach, Alemanha, formado na Universidade de
Heidelberg, não possui nenhum registro na História que comprove sua existência real. Trata-
se, portanto, de uma criatura inventada, de uma personagem de ficção, um ser de linguagem.
Carl Winter é construído por palavras e só existe na mente de seu criador e na dos leitores que
o imaginam cada um a sua maneira, guiados pelos dados fornecidos pelo texto. No entanto, o
fato de ser verossímil, isto é, de dar a impressão de ter existido, garante seu poder de
convicção perante o leitor, que passa a acreditar na sua participação na trama da narrativa.
O teórico Tzvetan Todorov (2003, p.113), recuperando o conceito de
verossimilhança de Aristóteles, acredita que é através do uso da linguagem que um autor
atribuirá verossimilhança a uma obra literária: não se trata mais de estabelecer uma verdade
(o que é impossível), mas de se aproximar dela, de dar uma impressão de verdade; e essa
impressão será tanto mais forte quanto mais hábil for o relato.”.
Ao introduzir a personagem Carl Winter na vida de Santa Fé, o escritor atribuiu-lhe
um passado e características capazes de justificar seu comportamento, atitudes e pensamentos
posteriores, tudo isso relacionado, principalmente, à função destinada à personagem na
narrativa de O Continente. Assim, a decepção amorosa motiva a saída de Carl Winter da
Alemanha, trazendo-o ao Brasil e, conseqüentemente, ao Rio Grande do Sul; a profissão de
médico o coloca em convivência íntima com a família protagonista, os Terra-Cambará; sua
sabedoria permite-lhe aconselhar os membros dessa família, tornando-o uma espécie de
confessor; sua sensibilidade torna-se indispensável para as reflexões que elabora sobre a
sociedade que observa na condição de estrangeiro; e seu envolvimento com a trama da
história o distancia cada vez mais de sua terra natal e de sua cultura, impedindo-o de voltar às
suas origens.
9
O desdobramento do critério da verossimilhança em externa e interna, não está explícito na Poética, sendo,
entretanto uma forma operatória adequada para avaliar a teoria mimético-estrutural que Aristóteles propõe para a
arte literária. Segundo a autora, essa distinção é referida por Luiz Costa Lima no ensaio intitulado A estética
aristotélica da suspensão do juízo. In: Estruturalismo e teoria da literatura. Petrópolis: Vozes, 1973.
111
Nesse sentido, o encadeamento causal que estrutura todas essas ações, segundo o
critério do verossímil (possível) e do necessário (lógico), opera para uma finalidade
específica: permitir à personagem ser porta voz de uma análise crítica da sociedade rio-
grandense, realizada mediante uma ótica externa. Todos os elementos que o romancista
escolhe para apresentar a personagem, física e psicologicamente funcionam como índices.
Cada elemento adquire sentido em função de outro, de tal modo que a verossimilhança
depende, sob este aspecto, da unificação do fragmentário pela organização do contexto. Esta
organização é o elemento decisivo na verdade dos seres fictícios, o princípio que lhes infunde
vida, calor e os faz parecer mais coesos, mais apreensíveis e atuantes do que os próprios seres
vivos.
De acordo com Antonio Candido (1998, p.20), graças ao vigor dos detalhes, à
“veracidade” de dados insignificantes, à coerência interna, à lógica das motivações, à
causalidade dos eventos, tende a constituir-se a verossimilhança do mundo imaginário. No
entanto, a aparência da realidade não renega o seu caráter de aparência. Cabe ao escritor
convidar o leitor a permanecer na camada imaginária que se sobrepõe e encobre a realidade
histórica, a entrar no jogo e participar do mundo do “faz-de-conta” criado pelo texto.
A personagem, segundo esse teórico, é o elemento do texto literário que com mais
nitidez torna patente a ficção, e através dela a camada imaginária se adensa e cristaliza. Um
romance pode iniciar com a descrição de um ambiente ou paisagem, mas é geralmente com o
surgimento de um ser humano que se declara o caráter fictício ou não-fictício do texto, por
resultar daí a totalidade de uma situação concreta em que o acréscimo de qualquer detalhe
pode revelar a elaboração imaginária. Vejamos a seguinte passagem do capítulo A Teiniaguá:
Naquele mesmo instante o Dr. Carl Winter que atravessava a praça com
suas passadas lentas e largas olhava para a casa de Aguinaldo Silva e
também pensava em Luzia. Tinha-a na mente tal como a vira no Sobrado na
festa de seu aniversário, toda vestida de preto, junto duma mesa, a tocar
cítara com seus dedos finos e brancos. Nessa noite ficara fascinado a
observá-la, e houve um minuto em que uma voz a sua própria a sussurrar-
lhe em pensamento – ficara a repetir: Melpômene, Melpômene... Sim, Luzia
lhe evocava a musa da tragédia. (VERISSIMO, 2002, p.36).
Notamos nesse trecho, talvez sem reconhecer as causas, que o “Dr. Carl Winter” não
é uma pessoa e sim uma personagem. Certas palavras e frases sem importância aparente nos
colocam dentro da consciência de Carl Winter, fazem-nos participar de sua intimidade:
112
“tinha-a na mente”; “ficara fascinado a observá-la”; “sussurrar-lhe em pensamento”; “Luzia
lhe evocava”. Tais orações indicam que se verificou uma espécie de identificação com a
personagem, de modo que o leitor é levado, sutilmente, a viver a experiência dela, a sentir
juntamente com ela suas sensações, a penetrar em seus pensamentos. Ou seja, somente com o
surgir da personagem tornam-se possíveis esses tipos de orações categoricamente diversas de
qualquer enunciado em situações reais ou em textos não-fictícios.
Nesse sentido, pode-se dizer que a verdade ficcional é construída pela linguagem e
depende muito, segundo Antonio Candido (1998), da escolha da palavra certa, insubstituível,
da sonoridade específica dos fonemas, das conotações das palavras, da carga semântica, do
jogo metafórico, do estilo, ou seja, da organização dos contextos de unidades significativas, e
outros elementos de caráter estético. “A criação de um vigoroso mundo imaginário, de
personagens ‘vivas’ e de situações ‘verdadeiras’ exige em geral a mobilização de todos os
recursos da língua, assim como de muitos outros elementos da composição literária.”
(CANDIDO, 1998, p.36-37).
Na ficção, ainda de acordo com esse teórico, o raio de intenção se dirige à camada
imaginária sem passar diretamente às realidades empíricas possivelmente representadas,
detendo-se, assim, no plano das personagens, situações ou estados, fazendo o leitor viver
imaginariamente os destinos e aventuras das personagens. A maioria dos leitores, porém, põe
o mundo imaginário quase imediatamente em referência com a realidade exterior à obra,
que as objectualidades puramente intencionais, embora tendam a prender a intenção, são
tomadas na sua função mimética, como reflexo do mundo empírico.
Na medida em que se acentua o valor estético da obra ficcional, o mundo imaginário
se enriquece e aprofunda, perdendo o raio de intenção dentro da obra e tornando-se por sua
vez, transparente a planos mais profundos, imanente à própria obra. Dessa forma, a riqueza e
profundidade da camada imaginária e dos planos por ela revelados pressupõe imaginação,
capacidade de observação, intuição psicológica por parte do escritor. No entanto, conforme
Antonio Candido (1998, p.43):
Tudo isso adquire relevância estética somente na medida em que o autor
consegue projetar este mundo imaginário à base de orações, isto é, através
da precisão da palavra, do ritmo e do estilo, dos aspectos esquemáticos
especialmente preparados, sobretudo no que se refere ao comportamento e à
vida íntima das personagens; aspectos estes cujo preparo, por sua vez, se
relaciona intimamente à composição estilística e à camada sonora dos
fonemas.
113
A respeito da composição da personagem Carl Winter, Erico Verissimo declara em
seu livro de memórias Solo de Clarineta (1994, p.300), que esta não se parece
psicologicamente com ninguém que ele tenha conhecido, ou seja, a personagem não foi
inspirada em nenhum modelo real. No entanto, isso não descarta a possibilidade de que sua
composição tenha se formado a partir de um mosaico de características de pessoas reais com
as quais tenha convivido, que a construção de uma narrativa ficcional muitas vezes se
processa com resquícios de experiências vividas pelo escritor, ou até mesmo, com a
recuperação, realizada de forma inconsciente, de fragmentos de pessoas conhecidas. Nesse
mesmo livro, Erico Verissimo fala da importância do inconsciente para a criação literária,
comparando-o com um “computador”, cuja memória vai sendo programada com imagens,
conhecimentos, idéias, impressões de leitura, dados que ficam armazenados e, às vezes,
esquecidos por muitos anos. Mas, quando o escritor se prepara para escrever um romance e
pensa nas personagens,
o “computador”, sensível sempre às nossas necessidades, rompe a mandar-
nos “mensagens”, algumas boas “pedaços” físicos ou psicológicos de
pessoas que conhecemos outras traiçoeiras recordações de livros lidos e
“esquecidos” que nos podem levar ao plágio. Cabe ao consciente fazer a
seleção, repelir ou aceitar as mensagens do “computador”. Nada do que nos
vem à mente é gratuito. Não é possível nem creio que seja aconselhável
tentar criar do nada, esquecer as nossas vivências, obliterar a memória.
(VERISSIMO, 1994, p.293).
Segundo o romancista, a construção da personagem foi elaborada a partir da leitura de
uma monografia sobre a cidade e o município de Cruz Alta, na qual descobriu que no ano de
1852, um médico natural da Alemanha havia apresentado suas credenciais à Câmara
Municipal, e isso magicamente conjurou em sua mente a figura do Dr. Carl Winter.
Mesmo quando toma um modelo da vida real, na perspectiva de Antonio Candido
(1998, p.65), o escritor sempre acrescenta a ele, no plano psicológico, a sua incógnita pessoal,
graças à qual procura revelar a incógnita da pessoa copiada. Assim, o escritor é obrigado a
construir uma explicação que não corresponde ao mistério da pessoa viva, mas que é uma
interpretação desse mistério. E essa interpretação ele elabora com sua capacidade de
clarividência e com a onisciência do criador, soberanamente exercida.
114
Dessa maneira, a impressão de verdade que envolve a personagem Carl Winter na
narrativa de O Continente é devida a fatores diferentes da mera adesão ao real, embora este
possa ser, e efetivamente é, um dos seus elementos. A personagem nos parece real quando “o
romancista sabe tudo a seu respeito”, ou esta impressão, mesmo que não o diga. É como se
a personagem fosse inteiramente explicável; e isto lhe uma originalidade maior que a da
vida, onde todo conhecimento do outro é fragmentário e relativo. Como afirma Antonio
Candido (1998, p.66):
Enquanto na existência quotidiana nós quase nunca sabemos as causas, os
motivos profundos da ação dos seres, no romance estes nos são
desvendados pelo romancista, cuja função básica é, justamente, estabelecer
e ilustrar o jogo das causas, descendo a profundidades reveladoras do
espírito.
Sendo a personagem, portanto, uma composição verbal, uma síntese de palavras que
sugere certo tipo de realidade, ela está sujeita, antes de qualquer coisa, às leis de composição
das palavras, à sua expansão em imagens, à sua articulação em sistemas expressivos
coerentes, que permitem estabelecer uma estrutura narrativa. A verossimilhança propriamente
dita, que depende em princípio da possibilidade de comparar o mundo do romance com o
mundo real, acaba dependendo da organização estética do material, que apenas graças a ela se
torna verossímil. Dessa forma, acredita-se que o aspecto mais importante para o estudo do
romance é o que resulta da análise da sua composição, não da sua comparação com o mundo.
Mesmo que a personagem seja cópia fiel da realidade, ela parecerá tal na medida em que
obedecer a um critério estético de organização interna.
115
3 O OLHAR DO FORASTEIRO
3.1 “Uma sociedade tosca e carnívora”
No capítulo anterior analisamos os recursos narrativos empregados por Erico
Verissimo na construção da personagem Carl Winter em O Continente, primeira parte da
trilogia O Tempo e o Vento. Mostramos que, ao criar essa personagem, o escritor atribuiu-lhe
uma biografia, uma formação intelectual, um perfil físico e psicológico, uma cultura,
características estas, voltadas para o papel que lhe seria destinado na narrativa. Neste capítulo,
portanto, nossa preocupação está em analisar a função que a personagem exerce na estrutura
da obra literária, ou seja, atentar para o olhar de um forasteiro que revela as peculiaridades de
uma sociedade no extremo sul do Brasil, na segunda metade do século XIX.
Cabe aqui lembrar que incontáveis são os estudos que se dedicam às personagens
protagonistas de O Tempo e o Vento, no entanto, poucos críticos literários mencionaram a
importância da personagem Carl Winter dentro da trilogia. E mesmo os que lhe deram alguma
atenção, não aprofundaram suficientemente a análise.
Dentre os críticos que contemplam em seus estudos a personagem em questão,
podemos citar Moysés Vellinho (2001, p.127), que atribui a Carl Winter uma função
semelhante à do coro da tragédia antiga, uma voz impessoal, alheia à sorte dos homens.
Segundo o autor: “O simpático dico alemão, furtando-se de participar ativamente do novo
meio, fica de fora a observar a gente e as coisas de Santa Fé, a traduzir em solilóquios as
saborosas sensações que vai colecionando como se fossem besouros ou borboletas.”.
Quem confirma essa função é Regina Zilberman (2004, p.96). Para a autora, o
médico desempenha uma função similar ao coro da tragédia clássica, preparando a reação do
espectador à entrada do protagonista. Porém, diferentemente da tragédia, Erico Verissimo não
116
restringe o emprego dessa técnica à situação de índole coletiva; ele introduz um olhar
individual, que percebe as ações das personagens quando elas adentram o palco,
interpretando-as de acordo com seu conhecimento do ser humano. Carl Winter, portanto,
exerceria o papel de corifeu, interagindo com as personagens, mas não se deixando envolver
por elas.
Maria da Glória Bordini (1995, p.222) também acredita que a atuação de Carl
Winter na narrativa, um dos principais intelectuais de toda a trilogia, está mais em ser uma
testemunha ilustrada do início do processo civilizatório de Santa do que na de alguém que
modifica o meio em que se encontra.
Podemos ainda relacionar a personagem Carl Winter com o que Antônio Candido
(1972, p.44) chama de “personagem contraponto”. Segundo o crítico, na maioria dos livros de
Erico Verissimo uma personagem raisonneur, um indivíduo que funciona como
“consciência esclarecida”, geralmente representado por um escritor ou intelectual com
capacidade para debater. Por essa caracterização, a visão do mundo da personagem Carl
Winter serviria para confrontar a posição defendida pela sociedade patriarcal gaúcha ou pela
Igreja.
Para Flávio Loureiro Chaves (2006, p.66), cabe ao Dr.Winter a função de observador
arguto da geografia regional, nos sentidos fisiográfico e humano e, a partir dessa observação
se daria a revelação do “mundo do outro”. Sem a “nomeação do outro” realizada pela
personagem, portanto, o haveria a perspectiva crítica sobre a sociedade rio-grandense
idealizada por Erico Verissimo.
Sabemos, dessa forma, qual a função atribuída pelos críticos literários à personagem
Carl Winter. No entanto, nosso interesse nos leva a analisar essa questão mais a fundo.
Concordamos que a ótica de um estrangeiro europeu e intelectualizado foi um recurso
imprescindível para o romancista realizar seu projeto de desmistificar a História do Rio
Grande do Sul. No entanto, o que rege a ótica do Dr. Winter, o que está por trás das
concepções formuladas pelo médico alemão a respeito da sociedade gaúcha, são pontos que
merecem uma maior atenção, pois podem nos ajudar a entender a visão crítica dessa
personagem. Iniciamos retomando a gênese de Carl Winter, expressa pelo próprio romancista
em Solo de Clarineta, seu livro de memórias:
A certa altura de O Continente comecei a sentir necessidade de criar uma
personagem que pudesse fazer o papel de “coro” daquela comédia
provinciana. Devia ser uma pessoa não alfabetizada, mas também lida e
117
com pontos de referência geográficos e culturais que a tornassem capaz de
comparar aquela agreste e incipiente civilização sul-americana com a
européia, comentar consigo mesma ou com outras aquela gente, a vida de
Santa , em particular, e a da Província de São Pedro do Rio Grande do
Sul, em geral. Dessa necessidade nasceu o Dr. Carl Winter. (VERISSIMO,
1994, p.299).
Assim surge a figura do médico alemão, formado em uma das mais bem
conceituadas universidades da Europa, conhecedor da literatura, das artes e da ciência, viajado
por cidades históricas como Berlim, Paris e Viena, com domínio do latim, a língua de maior
prestígio na época. Toda essa erudição depara-se, de repente, com um rústico povoado do
interior do Rio Grande do Sul, habitado por pessoas simples, criadores de gado e peões:
soldados em potencial, e donas de casa: mães e guardiãs dos lares, em sua maioria
analfabetos, inseridos num universo de relações sociais muito restrito.
Nesse contexto, cresce a curiosidade no Dr. Winter em conhecer e tentar
compreender aquele “exótico” povo, tão diferente física e culturalmente dos alemães, tão
distante geográfica e temporalmente da civilização européia. Essa curiosidade é alimentada
pela observação minuciosa dos hábitos e comportamentos das pessoas, das conversas com
elas, dos causos e lendas próprios da região, contados pelos nativos em sua linguagem
peculiar, tudo isso promovendo reflexões, nas quais a personagem analisa a sociedade rio-
grandense, representada pelos moradores de Santa Fé. Essa análise, por sua vez, é feita sob a
ótica de um estrangeiro, de alguém pertencente a outro continente, a outro mundo cultural, um
outsider que observa no sentido de “fora para dentro”, revelando detalhes que passariam
despercebidos para um indivíduo pertencente a essa sociedade.
Entretanto, é preciso entender que a motivação de Carl Winter em conhecer esse
novo mundo, sua curiosidade diante das diferenças culturais entre os povos, tem raízes na
mentalidade da época em que se deu sua formação, ou seja, no Romantismo. Como já
explicamos no capítulo anterior, a nova atitude mental do final do século XVIII europeu e o
princípio do XIX foi marcada pela desacomodação, pela desestabilização da cultura clássica,
por uma prática de negação de valores até então praticados. Como explica Ana Maria de
Moraes Beluzzo (2003, p.12):
em oposição aos valores da sociedade européia e da cultura clássica
assume a função afirmativa dos valores das “sociedades primitivas”. em
oposição às cidades, os valores da vida simples do campo. em oposição
118
ao presente, os valores do passado medieval. A contradição é subjacente às
escolhas românticas.
Essa nova mentalidade fez com que os românticos encarassem o mundo a sua volta
como algo imperfeito, desajustado, remetendo-os a formas escapistas. A evasão no espaço,
por sua vez, conduziu ao exotismo, ao gosto pelos costumes e paisagens de países novos e
estranhos, e, também, ao gosto pelo bárbaro e primitivo. Segundo Aguiar e Silva (2002,
p.549), o exotismo havia se revelado ainda na literatura pré-romântica, mas desenvolveu-se
grandemente com os românticos, satisfazendo ao mesmo tempo seus anseios de evasão e a
exigência da verdade na pintura do homem e dos seus costumes. Dessa forma, a “cor local”,
ou seja, a reprodução fiel e pitoresca dos aspectos característicos de um país, uma região, uma
época, constituiu um dos recursos mais usados na arte romântica.
E esse interesse romântico pelo exótico, cabe lembrar, originou-se em Rousseau.
Segundo Anatol Rosenfeld e J. Guinsburg (2002, p.267), o que transforma esse pensador e
literato em fonte inspiradora da escola romântica é o seu profundo pessimismo em relação à
sociedade e à civilização. Rousseau estabelece o postulado de uma natureza humana
primitiva, originalmente pura e inocente, que vai sendo corrompida pela cultura e pela
propriedade, fonte de desigualdade entre os homens. Vem daí a exaltação da simplicidade da
criação, a imagem do “bom selvagem”, o ser íntegro e primitivo, que deve figurar como ideal
para o homem corrompido pela sociedade. Estando, pois, o romântico à procura do homem
em estado “natural”, começa a procurá-lo na América e em outras regiões que se distinguiam
ainda pela presença do assim chamado “selvagem” ou “indígena”, ou pela diferença
acentuada de seu modo de vida “bárbaro” e “bizarro” em relação aos padrões europeus
ocidentais.
No colorido exótico do índio americano, por exemplo, o olhar romântico
enxerga o viço e a completude da natureza. situa-se o verdadeiro
Eldorado para o Romantismo, que se lança, sobretudo pela imaginação, à
aventura geográfica e histórica, explorando estas terras do maravilhoso e do
ignoto, na procura da primitividade elementar e inconsciente, porque nele
não existiria ainda a cisão, o fracionamento que os românticos encontram na
cultura do seu tempo. (GUINSBURG, 2002, p.281).
Começa-se, a partir de então, a valorizar o indivíduo naquilo que o distingue de
outro: sua situação social, sua sensibilidade desenvolvida num certo âmbito nacional e em
119
outros momentos particularizantes. Leitor de Montaigne (1533-1592) que, defendendo a
diversidade cultural, atacava vigorosamente o desdém com o qual os europeus de sua época
viam os diferentes costumes dos indígenas do Novo Mundo, incitando-os a destruí-los,
Rousseau compreendia o papel que as condições históricas e ambientais assumiam ao
diferenciar os agrupamentos humanos e criar as individualidades nacionais.
O ensaio Dos Canibais de Michael Montaigne, segundo Eduardo Bueno (2003,
p.24), foi escrito a partir da experiência do pensador com índios brasileiros e está na origem
do mito do bom selvagem. Nele, Montaigne traçou um painel idílico e vigoroso da vida
selvagem, da qual se serve para atacar os “malefícios da civilização”. As influências de
Montaigne encontraram repercussão em Montesquieu, que redigiu em 1748 o Espírito das
Leis, louvando o amor à liberdade e o igualitarismo entre os índios, como também em Diderot
que, no verbete “Selvagens” (1751), presente na Enciclopédia, apresenta uma versão idealista
e altamente elogiosa dos povos indígenas. Entretanto, em nenhum dos filósofos a influência
de Montaigne foi tão profunda como em Rousseau, que defendeu apaixonadamente a idéia da
bondade natural do homem e de sua corrupção pela civilização; idéias estas que estimularam
os protagonistas da Revolução Francesa em 1789.
Um dos fundadores da Antropologia moderna, Levi-Strauss (1993, p.41), chega a
afirmar que Rousseau não foi somente um profundo observador da vida campestre, um leitor
apaixonado dos livros de viagem, um analista atento dos costumes e das crenças exóticas; ele
concebeu e anunciou a antropologia, mais especificamente a etnologia, um século antes que
ela surgisse, colocando-a entre as ciências naturais e humanas constituídas. Em seu
Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1746), pode-se
ver o primeiro tratado de etnologia geral, onde se apresenta o problema das relações entre a
natureza e a cultura. Para Levi-Strauss, Rousseau pôde preconizar o estudo dos homens mais
distantes, dedicando-se, simultaneamente, ao estudo do homem particular que parece o mais
próximo: ele mesmo. E esse é, segundo o autor, o fundamento primeiro para o etnógrafo:
Na experiência etnográfica, por conseguinte, o observador coloca-se como
seu próprio instrumento de observação. Evidentemente, precisa aprender a
conhecer-se, a obter de um si-mesmo, que se revela como outro ao eu que o
utiliza, uma avaliação que se tornará parte integrante da observação de
outras individualidades. (LEVI-STRAUSS, 1993, p.44).
120
No entanto, a idéia preconizada por Rousseau de que para conseguir aceitar-se nos
outros (objetivo que o etnólogo consigna ao conhecimento do homem), é necessário,
primeiro, recusar-se em si mesmo, único princípio sobre o qual podem fundar-se as ciências
humanas, de acordo com Levi-Strauss, ficaria inacessível e incompreensível enquanto
reinasse a filosofia do Iluminismo, em que Descartes acreditava passar diretamente da
interioridade de um homem à exterioridade do mundo, sem perceber que entre esses dois
extremos estavam as sociedades, as civilizações.
Assim, como explica J. Guinsburg (2002, p.269), no Romantismo, com o destaque
dado ao característico, àquilo que distingue o indivíduo dentro do quadro da sociedade, da
nação, da classe que se encontra, ou o que individualiza estes “meios” de vida coletiva, abre-
se caminho para a ciência social, mas a sua preocupação básica não é ainda científica; o que
se procura é configurar o homem dentro de um ambiente, daí o constante interesse pela “cor
local”.
A busca pelo diferente, exótico e novo, idéia propagada pelo Romantismo, no
entanto, não ficou restrita apenas às artes, mas invadiu também a mentalidade científica da
época. Assim, o imenso território brasileiro ainda mal desbravado pelos europeus torna-se o
destino de milhares de viajantes e o espaço de incontáveis expedições científicas no século
XIX. A descoberta de novas espécies da flora e fauna, povos primitivos e a busca pelo
“pitoresco”, noção surgida no século anterior, marcada pelo primado dos valores pictóricos
sobre a natureza observada, operam uma simbiose entre a arte e a paisagem natural,
agregando médicos e botânicos, poetas e pintores, jardineiros e arquitetos, especialistas e
diletantes.
Muitos buscaram o que o continente americano poderia oferecer de peculiar e
diferente do continente europeu. Para Ana Maria Moraes Belluzzo (2003, p.12), o interesse
europeu pelo conhecimento científico da natureza tropical coincidiu com a prática da viagem
como forma de tomar contato com esse cenário, de vivenciá-lo pela sensação, de experimentá-
lo diretamente, avistá-lo ou desbravá-lo. Assim, paralelamente às expedições científicas,
formadas por médicos, botânicos, físicos, vieram artistas, profissionais e amadores,
comportando-se como analistas meticulosos, observadores das peculiaridades do novo
mundo, fossem elas físicas, étnicas, sociais ou políticas.
Temos, na historiografia brasileira, registros de intelectuais europeus que vieram ao
Rio Grande do Sul no século XIX e nos deixaram relatos minuciosos sobre a flora e a fauna
das regiões que visitaram, relatos sobre a geologia, a hidrografia, o clima, e, principalmente,
sobre aspectos da vida dos nativos. Cidadãos instruídos, formados nas melhores universidades
121
européias, membros de círculos de pesquisas, exímios desenhistas, cujas análises descrevem
os povoados, os tipos físicos, as habitações, os hábitos alimentares, o vestuário, o
comportamento, enfim, o modo de ser dos habitantes da Província, englobando as diferentes
classes sociais e etnias: ricos e pobres, homens livres e escravos, brancos, negros e índios.
Sabemos que Erico Verissimo teve acesso aos escritos desses viajantes para a elaboração da
narrativa de O Tempo e o Vento.
Dentre os relatos mais completos e interessantes es o de Auguste de Saint-Hilaire
(1779-1859), que chegou ao Brasil em 1816 e aqui permaneceu por seis anos. Nascido em
Orléans, na França, esse viajante estrangeiro, interessado pelas ciências naturais,
especialmente pela Botânica, prestou muita contribuição não à geografia física e humana,
mas também à História de nosso país. Saint-Hilaire esteve no Rio Grande do Sul no ano de
1820, tendo aqui permanecido durante um ano aproximadamente, considerando o período de
três meses em que visitou a Banda Oriental do Uruguai, então território pertencente ao Brasil.
Partindo de Torres, em junho de 1820, o viajante conheceu Porto Alegre, foi à Cisplatina,
percorreu as Missões, desceu o Jacuí, somente regressando ao Rio de Janeiro em maio de
1821, embarcando no porto de Rio Grande. Nesse trajeto, parando de povoado em povoado,
recebendo a hospitalidade de estancieiros e capatazes, Saint-Hilaire pôde conviver com os
habitantes da Província, procurando compreender a “exótica” sociedade que ali se formava.
(SAINT-HILAIRE, 1987).
O francês Nicolau Dreys (1781-1843) publicou no Rio de Janeiro, em 1839, a obra
Notícia Descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul, narrando suas
experiências e vivências como comerciante no extremo sul do Brasil. Natural de Nancy,
Dreys serviu como militar e funcionário público. Em 1815, a denominada Santa Aliança
provocou o exílio dos bonapartistas, forçando-os a procurarem abrigo em outros países,
assim, Dreys chega ao Brasil em 1817, estabelecendo-se no comércio do Rio de Janeiro. Em
dezembro do mesmo ano, viajou por Santa Catarina e Rio Grande do Sul, com destino a
Buenos Aires. Estabeleceu-se com comércio em Porto Alegre no período de 1817 a 1825,
após seguiu para Rio Grande, viajou por Santa Catarina e São Paulo, e no ano 1837, mudou-
se para o Rio de Janeiro, onde ficou até o fim de sua vida. Dreys descreveu a cidade de Porto
Alegre do início do século XIX onde fixou comércio, e observou os costumes dos gaúchos do
interior da Província, seus hábitos alimentares, habitações, vestimentas, seu código de honra.
(DREYS, 1990).
Da mesma forma que Saint-Hilaire e Nicolau Dreys, outro viajante francês que
esteve em contato com o povo rio-grandense, foi Arsène Isabelle (1807-1888), que chegou em
122
Uruguaiana no ano de 1833, passou por Porto Alegre e embarcou em Rio Grande, em 1834.
Atentando aos modos de vida de cada pequeno povoado e vila por onde passava, como São
Borja, Alegrete, Santa Maria, Cachoeira, Cruz Alta, Rio Pardo, Viamão, São Leopoldo,
Pelotas, Arsène Isalelle também forneceu relatos valiosos para os estudiosos comporem a
historiografia do Rio Grande do Sul da época descrita. (ISABELLE, 1983).
Cabe ainda mencionar a figura de Joseph Hörmeyer (1824-1873), nascido na Baixa
Áustria, que chegou ao Brasil em 1851, data bem próxima, portanto, daquela em que Erico
Verissimo insere a personagem Carl Winter no contexto rio-grandense. Hörmeyer vem ao Rio
Grande do Sul como membro da Legião Alemã, contratada pelo governo imperial para
integrar as tropas luso-brasileiras na campanha contra Rosas, os Brummers, mesmo grupo ao
qual pertencia Carl von Kosertiz. Hörmeyer não era cientista, mas sim capitão da Segunda
Companhia do batalhão dos Brummers, quando, na dissolução do corpo após a batalha
decisiva de Monte Caseros (1852), permaneceu ainda alguns anos no Brasil e ao voltar à
Europa, publicou em 1854, em Coblenz, na Alemanha, a Descrição da Província do Rio
Grande do Sul. Esse livro apresenta relatos sobre a geografia, hidrografia, clima, flora, fauna
e população do Rio Grande do Sul, porém, o que se destaca é um estudo sobre o processo de
colonização alemã que se desenvolvia na Província, atenção especial motivada pelas origens
comuns. (HÖRMEYER, 1986).
Entretanto, para compreender a análise realizada pelos viajantes estrangeiros sobre a
sociedade rio-grandense, é necessário verificar o contexto histórico/social em que se deu a
formação desses médicos, botânicos e militares, ou seja, entender com que olhar um europeu
do século XIX observava os povos que habitavam os territórios colonizados do Novo Mundo.
Esse mesmo olhar não deixará de influenciar também a análise que a personagem Carl Winter
realiza sobre a sociedade com a qual convive, na narrativa de O Continente.
É sabido que a Europa do século XIX constituía o centro do emergente sistema
capitalista que, com o advento da Revolução Industrial, a partir da segunda metade do século
anterior, compôs um cenário de grandes transformações em todos os veis da sociedade.
Tendo-se originado na Inglaterra, a Revolução Industrial logo alcançou o continente e o resto
do mundo, atingindo a Bélgica, a França, e posteriormente a Itália, a Alemanha, a Rússia, os
Estados Unidos e o Japão. A expansão industrial estimulou o colonialismo e o imperialismo
das nações ricas a lugares remotos do mundo. Havia a necessidade de novas fontes de
matérias-primas (ferro, cobre, petróleo, manganês, trigo, algodão) e de outros mercados
consumidores para a crescente produção industrial. O crescimento demográfico europeu criou
a necessidade de novas regiões para receber o excedente populacional das metrópoles
123
superpopulosas. Além disso, precisava-se aplicar os capitais excedentes da economia
industrial, bem como obter bases estratégicas visando à segurança do comércio marítimo
nacional.
Nesse sistema de expansão colonialista, de acordo com Héctor Bruit (1986, p.9), as
relações de força e poder envolveram países e regiões subjugados direta ou indiretamente pelo
capitalismo, como boa parte das culturas africanas, asiáticas, indianas e latino-americanas. No
entanto, a dominação baseada na força estava travestida de ideais que a justificavam. Segundo
a ideologia da época, os colonos europeus eram portadores de uma “missão” civilizadora,
humanitária, filantrópica e cultural e estavam investidos de altruísmo, que abandonavam o
torrão natal e até o conforto da metrópole para “melhorar” as condições de vida das regiões
para onde se dirigiam. A missão civilizadora era considerada o “fardo do homem branco
10
”,
uma nova versão do pretexto ideológico do colonialismo do século XVI, “levar a cristã aos
infiéis da América”. Assim, o novo colonialismo do século XIX, permeado pelo ideal de
supremacia econômica e cultural, formulou o mito da superioridade racial, incluindo
concepções pseudocientíficas que enalteciam os brancos e promoviam a exploração
imperialista.
Como lembra Rafael José dos Santos (2005, p.22), as Ciências da Natureza,
especialmente a Biologia, exerciam grande influência no meio intelectual europeu do culo
XIX, em particular as teorias evolucionistas de Pierre Lamarck (1744-1829), que defendia que
as adaptações dos organismos ao meio ambiente provocavam mudanças evolutivas; e Charles
Darwin (1809-1882), para quem a evolução das espécies baseava-se em um processo de
seleção natural. Nessas teorias, a idéia principal de que os seres vivos evoluíam dos mais
“simples” para os mais “complexos”, como explicação para a origem das espécies animais,
representou um grande avanço frente às explicações religiosas da época.
A ideologia do evolucionismo, como explicam Richard C. Lewontin e Richard Levins
(Einaudi, 1985, p.234), permeou as ciências naturais e sociais, incluindo a Antropologia, a
Biologia, a Cosmologia, a Lingüística, a Sociologia e a Termodinâmica. Constituiu-se em
uma concepção universal que incluiu em si os conceitos, relacionados hierarquicamente, de
“mudança”, “ordem”, “progresso” e “perfectibilidade”. Dessa forma, para os evolucionistas, a
evolução significava progresso, a mudança de pior para melhor, de inferior para superior. No
entanto, segundo esses autores, para compreender o desenvolvimento da moderna teoria da
evolução orgânica, é necessário, em primeiro lugar, ter em mente que Darwin foi o ponto
10
Idéia criada pelo literato Rudyard Kipling (1865-1936), que no poema The white man’s burden destaca o dever
à filantropia da ação colonizadora inglesa.
124
culminante e não a origem do evolucionismo do século XIX. Quando apareceu A Origem das
Espécies, em 1859, a visão do mundo evolutivo já permeava as ciências naturais e sociais.
Reiterando essa afirmação, Everardo Rocha (2004, p.27) diz que o compromisso da
idéia de evolução com o crescimento e a formação dos organismos tem no livro A Origem das
Espécies, de Darwin, em plena metade do século XIX, sua formulação clássica. Porém, a esta
noção orgânica, biológica de evolução se juntavam os pensamentos e discussões filosóficas
dos iluministas do século XVIII.
Na definição de Nicola Abbagnano (2000, p.534), o Iluminismo, conhecido também
como o século das “Luzes”, ocorrido na Europa no final do século XVII e prolongando-se até
os últimos decênios do século XVIII, foi uma linha filosófica caracterizada pelo empenho em
estender a razão como crítica e guia a todos os campos da experiência humana. Princípio de
toda a verdade, a razão iluminista se posicionava contra tudo que era irracional e se ocultava
sob denominações vagas de “autoridade”, “tradição” e “revelação”.
Segundo Francisco J.C. Falcon (1994), o movimento mental do Iluminismo baseava-
se no pressuposto do avanço constante, historicamente necessário, de uma racionalidade que
aos poucos “iluminava” as sombras do erro e da ignorância. Assim, partindo do primado
absoluto da razão, princípio e garantia do progresso da humanidade, a ideologia iluminista
produzia e articulava as principais categorias da sensibilidade intelectual da época: cultura e
civilização, progresso e liberdade, educação e humanidade.
Entretanto, se voltarmos um pouco mais no tempo, nos séculos XVI e XVII, veremos
que a idéia de progresso era manifestada pelos pensadores da Revolução Científica, como
Copérnico, Galileu, Bacon, Descartes e Newton. Conforme P. M. Harman (1995), esse
período caracterizou-se por um otimismo sem precedentes sobre a potencialidade do
progresso humano através do aperfeiçoamento tecnológico e a compreensão do mundo
natural. O impulso principal do movimento científico, no séc. XVII, visava afirmar a
independência e a integridade dos métodos e das teorias da ciência, insistindo ao mesmo
tempo em que o exame da natureza pela razão humana permitiria ao homem compreender de
forma mais plena as intenções divinas. Assim, na cultura européia a ciência simbolizava a
racionalidade, o aperfeiçoamento, o progresso e a promoção do bem-estar da humanidade, que
formaram a base para os ideais do Iluminismo.
Palavras do século XVIII, “civilização”, dos vocabulários francês e inglês, e
“cultura”, do alemão Kultur, para os iluministas, estas eram uma realidade e um ideal, tendo
como substrato a noção de progresso. De acordo com Norbert Elias (1994, p.24), o conceito
francês e inglês de civilização pode referir-se a fatos políticos ou econômicos, religiosos ou
125
técnicos, morais ou sociais; pode dizer respeito a realizações, mas também pode referir-se a
atitudes ou comportamentos das pessoas, pouco importando se realizaram algo ou não. O
conceito alemão de Kultur, por sua vez, refere-se basicamente a fatos intelectuais, artísticos e
religiosos e tende a separar fatos desse tipo de fatos políticos, econômicos e sociais. Nesse
conceito, a referência a “comportamentos”, o valor que a pessoa tem em virtude de sua mera
existência e conduta, sem nenhuma realização, é muito secundário, privilegiando-se as obras
de arte, livros, sistemas religiosos ou filosóficos, nos quais se expressa a individualidade de
um povo.
No espaço mental das “Luzes”, como explica Falcon (1994, p.60), a palavra
civilização assumia uma dupla conotação: a) ela era um valor em si, espécie de qualidade que
faz ou deve fazer parte do próprio modo de ser do homem em sociedade seu estado natural;
b) ela era uma tomada de consciência da realidade da existência do homem na sua dimensão
horizontal a apreensão e valoração da diferença no tempo e no espaço entre as sociedades
humanas. Tratava-se de uma arqueologia humana, na qual as diferenças apenas demonstravam
um caminho ao longo do qual os homens progrediam, do selvagerismo à civilização, ou seja,
do estado de natureza ao estado de cultura.
Essa apreensão da noção de diferença entre as sociedades humanas, no entanto,
colocava a Europa no podium da escala do progresso, de onde poderia observar as outras
sociedades de “cima para baixo”. Nos dizeres do autor:
Uma Europa que se afirma unida, civilizada, culta, iluminada, e que pode
definir, detentora que é das “Luzes”, a diferença. É ela quem nomeia os
mundos e os povos “exóticos”, e os faz motivo de curiosidade, não raro
simpatia e até de admiração, mas nem por isso menos estranhos”. Mais
“avançada” na senda do “progresso”, essa Europa pode ao mesmo tempo,
exaltar suas próprias realizações e debruçar-se curiosa sobre aquelas
culturas que “ficaram para trás” na marcha da História. (FALCON, 1994,
p.23).
Nesse sentido, a idéia de progresso no Iluminismo implicava uma dissociação entre a
ordem natural e a ordem da cultura, implicava a negação da repetição cíclica, associando-se à
consciência do caráter progressivo da civilização. “O caminho da barbárie à civilização é o
próprio caminho do ser humano da animalidade à humanidade. Tal progresso é linear e
ilimitado.” (FALCON, 1994, p.62). A tomada de consciência que a noção de progresso
126
implicava, portanto, expressava-se numa hierarquização da humanidade, no tempo e no
espaço, sustentada pela tese da perfectibilidade infinita da espécie humana.
Segundo Everardo Rocha (2004, p.27), para o evolucionismo antropológico a noção
de progresso torna-se fundamental, pois é no seu rumo que a história do homem se faz.
Acredita-se na unidade básica da espécie humana e o fator tempo passa a ser bastante
importante. O progresso, a evolução, o avanço no tempo, conduzem o homem na direção de
um estágio superior de civilização:
Saindo de estádios mais primitivos numa trajetória de permanente progresso
onde o tempo é a teia onde se tece a evolução. Assim, a origem da
humanidade tem de ser num passado longínquo para que as etapas se
sucedam na direção de uma civilização mais e mais avançada, mais e mais
absoluta em suas conquistas. (ROCHA, 2004, p.28).
Sendo assim, as teorias evolucionistas influenciaram antropólogos que adaptaram o
modelo, construído para entender a natureza, ao estudo das sociedades. O antropólogo norte-
americano Henry Lewis Morgan (1818-1881) elaborou um modelo de desenvolvimento da
humanidade em três estágios: selvageria, barbárie e civilização. Na Inglaterra, o escocês
James Frazer (1854-1941) elaborou um modelo evolutivo do pensamento, também dividido
em três fases: magia, religião e ciência, que estariam numa relação de complexidade
crescente, sendo que a ciência, assim como a civilização para Morgan, seria o estágio mais
avançado. (SANTOS, 2005, p.23).
No século XIX, portanto, o evolucionismo representava o discurso das metrópoles
sobre as colônias; todavia, tratava-se de um discurso de poder, no qual o mais forte se
colocava no pólo mais avançado, civilizado e científico. Dessa maneira, a visão do mundo dos
viajantes europeus e, por conseguinte, da personagem Carl Winter não deixa de estar sob as
influências dessas idéias dominantes e do contexto social, econômico e cultural no qual estava
inserido antes de emigrar para o Brasil.
Ao chegar ao Rio Grande do Sul, em 1851, o imigrante alemão parece observar a
sociedade gaúcha através das lentes do evolucionismo, baseado na noção de progresso da
humanidade, herança do Iluminismo. Carl Winter reconhecia que naquele território no
extremo sul do Brasil se desenvolvia também uma cultura, porém, não no mesmo estágio de
civilização que a européia, como mostra a seguinte passagem:
127
A paisagem era civilizada, mas os homens não. Tinham rudes almas sem
complexidade, e eram movidos por paixões primárias. A lida dos campos e
das fazendas tornava-os ásperos e agressivos. Lidar com potros bravos,
curar bicheiras, sangrar e carnear o gado, laçar, fazer tropas eram
atividades violentas que exigiam fortaleza não só de corpo como também de
espírito. [...] Depois havia as guerras. Era raro passar uma geração que não
visse pelo menos uma guerra ou uma revolução. E como eram primitivas
aquelas guerras em que brasileiros e castelhanos se engalfinhavam
primitivas na estratégia e nos armamentos. Mas nem por isso eram menos
brutais e cruéis que as guerras européias. (VERISSIMO, 2002, p.47).
Carl Winter acredita, de acordo com essa análise, que o ambiente no qual os gaúchos
viviam contribuía para determinar seu modo de ser. O trabalho rude nas estâncias, as guerras,
as povoações esparsas, faziam com que as pessoas se tornassem brutas, sendo que, às vezes,
conviviam em maior harmonia com os animais do que com os outros humanos.
Assim como a personagem da ficção, Nicolau Dreys (1990, p.115) também faz uma
observação sobre o constante estado de guerra em que viviam os rio-grandenses e o reflexo
disso na formação de suas personalidades:
A posição topográfica do rio-grandense tem-se de contínuo conservado com
as armas na mão desde o princípio da colonização, e o tem constituído em
estado de guerra quase permanente, pois que até hoje a paz não tem sido
para ele, em tempo algum, senão um armistício mais ou menos duradouro.
[...] A coragem do rio-grandense é fria e perseverante: acostumado desde a
infância a ver correr o sangue, a morte, com suas formas hediondas e a cada
passo reproduzindo-se a seus olhos, lhe não pode causar espanto, assim
como também a vida parece ter perdido alguma coisa de seu preço.
Para Rafael José dos Santos (2005, p.29), a idéia propagada pelo determinismo, de
que o homem é um “produto do meio” foi, durante algum tempo, outra explicação que alguns
geógrafos e antropólogos utilizavam, não para explicar a variedade de culturas, mas
também para hierarquizá-las, isto é, classificá-las em mais ou menos desenvolvidas. A
tentativa de estabelecer uma ligação entre a “raça” e o nível de desenvolvimento alcançado
pelo grupo social, o chamado determinismo biológico, serviu para justificar uma suposta
superioridade racial como, por exemplo, a dos “arianos” durante o período de Hitler na
Alemanha. Estes dominavam o saber, a arte, a técnica, as grandes invenções, enquanto latinos,
judeus, comunistas e ciganos, as raças “inferiores”, não possuíam tal qualidade.
128
O conceito de “raça” estabelecido a partir das teorias evolucionistas, baseava-se nas
peculiaridades de determinada “espécie” de homens. A espécie constituía uma subdivisão dos
seres humanos classificados em gênero, espécie e família, como as outras espécies de animais.
As raças, portanto, seriam espécies de indivíduos e se distinguiriam umas das outras por
algumas diferenças, como a cor da pele, tipo de cabelo, altura, língua, dotes morais e éticos, e
domínio de tecnologia (BOSCH; CASTILLO, 1963, p.87-88). Assim, o critério da diferença
racial também servia para justificar a dominação da civilização européia sobre as culturas
consideradas inferiores.
Gobineau (1816-1882) e Chamberlain (1855-1927), importantes cientistas do século
XIX, afirmavam a inferioridade das raças não-brancas em relação à européia. O primeiro,
tornou-se célebre por seu Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas (1855), um dos
primeiros trabalhos sobre eugenia e racismo publicados no século XIX. Em uma expedição ao
Brasil em 1869, por ordem de Napoleão III, Gobineau travou amizade com D. Pedro II,
porém não viu com bons olhos a sociedade brasileira. Para ele, o Brasil não tinha futuro, pois
era marcado pela presença de raças que ele julgava inferiores. A mistura racial daria origem a
mestiços degenerados e estéreis e essa degeneração levaria ao desaparecimento da população.
Dessa forma, a única saída seria o incentivo à imigração de “raças” européias, consideradas
superiores. Chamberlain, por sua vez, sustentou que a raça superior ariana, descrita por
Gobineau, era ancestral de todas as classes superiores européias e da Ásia, afirmando que ela
não havia sido extinta, subsistindo em estado puro na Alemanha. Seus escritos exerceram
enorme influência na ideologia de Adolf Hitler. Assim, como lembra Loraine Slomp Giron
(2004, p.54), foi a medida da superioridade européia que justificou o neocolonialismo do
século XIX. Diferentemente do antigo colonialismo, no qual negros e indígenas não eram
considerados homens, pois não teriam alma, no novo colonialismo passam a ser considerados
humanos, porém de raça inferior.
É nítido, na narrativa de O Continente, o desprezo da personagem Carl Winter por
negros e índios, o que poderia sugerir a crença, por parte da personagem, nos ideais de
superioridade racial. Citaremos apenas duas passagens em que essa característica se
evidencia. Primeiro, na visita que Carl Winter faz à vila de São Leopoldo, onde se
concentrava um grande número de imigrantes alemães na época:
Winter encontrara compatriotas que haviam assimilado todos os maus
hábitos da terra, e vira até colonos alemães que viviam amasiados com
mulatas e negras, das quais tinham filhos. Moravam em ranchos
129
miseráveis, andavam descalços e estavam roídos de vermes e sífilis.
(VERISSIMO, 2002, p.42).
Dentre os maus bitos da terra”, o fato de alemães, representantes da “raça
branca”, se relacionarem com mulatas e negras, não era bem aceito pelo Dr. Winter, que
estas pertenciam a “raças inferiores”, o que podia tornar-se prejudicial para a própria
manutenção e progresso do grupo étnico.
A segunda passagem relata a volta do Dr. Winter a Santa Fé, após uma excursão às
Missões, quando a personagem percebe que sua saúde estava fragilizada e lembra ter mantido
relações sexuais com uma índia, o que lhe causa repugnância:
Naquela excursão comera muito charque de qualidade duvidosa e várias
vezes, depois de tomar chuva, bebera cachaça. E o pior de tudo lembrou-
se ele foi que uma noite em que suas resistências morais estavam
enfraquecidas e seu desejo exacerbado, dormira com uma índia. Ach!
(VERISSIMO, 2002, p.91).
O sentimento de desprezo pelos negros/escravos na narrativa de O Continente não é
exclusivo do Dr. Carl Winter, mas é manifestado também pelas famílias poderosas de Santa
Fé, como pelos Terra-Cambará, por Aguinaldo Silva e, principlamente, por Luzia Silva
Cambará, que chega a afirmar que “negro não é gente”(VERISSIMO, 2002, p.75), posição
que Carl Winter cientificamente contesta. Entretanto, apesar de desprezar os negros, logo que
chega a Santa Fé, Carl Winter compra uma negra para servir-lhe de empregada doméstica e
lhe alforria imediatamente, o que revela sua recusa à escravidão, que na época
representada na narrativa esta ainda não havia sido abolida no Brasil. Dentre os casos mais
relevantes de preconceito racial, aparecem o julgamento do negro Severino, condenado à
forca mesmo sem a certeza da autoria do crime; o grupo de escravos libertados por Licurgo
num gesto puramente político; e o tratamento dado aos membros da família Caré.
Mencionamos, no capítulo anterior, a série de correspondências remetidas pela
personagem Carl Winter a seu conterrâneo e amigo Carl von Koseritz. Pelo que se pode
perceber nessas cartas, os dois alemães compartilhavam das mesmas idéias sobre a sociedade
rio-grandense e sobre a superioridade do povo alemão, ou seja, Koseritz também parecia ser
adepto das doutrinas evolucionistas e deterministas. Koseritz acreditava firmemente que a sua
“raça” traria inestimáveis progressos ao Rio Grande do Sul. Veja-se a seguinte passagem que
expõe o conteúdo de cartas enviadas a Carl Winter por Koseritz:
130
Von Kosertitz escrevera-lhe, havia pouco, cartas cheias de entusiasmo pelo
futuro da colonização germânica. Contava-lhe, com orgulho, o que seus
compatriotas haviam feito. Existiam nas colônias alemãs da Província
mais de trinta engenhos para a fabricação de aguardente,rios teares para
linho (linho que eles próprios, colonos, plantavam), curtumes, engenhos
para mandioca, serrarias movidas a água, olarias, cervejarias e até uma
oficina para lapidar pedras finas. (VERISSIMO, 2002, p.104).
Como atesta Guilhermino César (1971, p.253), Koseritz não foi apenas um jornalista
político; ao lado do planfetário coexistiu um homem de ciência, um curioso de tudo que
dissesse respeito ao progresso das ciências naturais, cujas opiniões e doutrinas, ele,
“darwinista convencido” passou a cultivar e divulgar neste país, desde quando ingressou no
jornalismo ainda na cidade de Pelotas.
Como era Koseritz quem mantinha Carl Winter informado sobre as novidades do
Velho Mundo, por meio das cartas, jornais e livros que lhe enviava, muito provavelmente, o
Dr. Winter tinha acesso às novas teorias científicas e avanços tecnológicos em vigor na época.
Veja-se a seguinte passagem, quando a personagem Carl Winter discute com o Pe. Romano,
já na década de 1880, sobre as teorias evolucionistas:
- Nada disso é novidade pra mim, doutor disse ele. todos esses autores
ateus seus amigos são também meus conhecidos. Tenho seus livros à minha
cabeceira e isso é um sinal de que não os temo. [...]
- E não acha que eles têm razão?
- Toda. [...]
- Mas se acha que eles têm razão, como é que continua a exercer o
sacerdócio duma religião baseada num mito pueril?
- A razão não tem nada a ver com a fé! sentenciou ele, metendo o pastel
na boca e empurrando-o com os dedos.
- Vosmecê leu Darwin e Lamarck, não leu?
- Li. E talvez melhor que o doutor.
- Aceita as leis da evolução e da seleção?
- Aceito.
- Então?
- Então o quê?
- Como pode reconhecer ao mesmo tempo a autoridade da Bíblia?
- Mas a Bíblia fala uma linguagem simbólica, belo!
-Isso é um sofisma.
- A hipótese evolucionista não exclui necessariamente Deus. Ela é antes
uma prova da suprema, da incomparável, da sutil e imaginosa inteligência
do Todo-Poderoso. (VERISSIMO, 2002, p.344).
131
O trecho acima comprova que Carl Winter tinha conhecimento da obra A origem
das espécies, de Charles Darwin, ponto culminante das teorias evolucionistas. No entanto, o
livro fora publicado na Europa em 1859, quando Carl Winter estava estabelecido no Rio
Grande do Sul pelo menos oito anos. Levando-se em consideração a demora com que as
idéias propagadas na Europa repercutiam no Brasil em meados do século XIX, infere-se que
Carl Winter foi ler A origem das espécies alguns anos depois de sua publicação,
provavelmente adquirindo o livro por intermédio de Koseritz. Contudo, como mencionamos
pouco, as noções de progresso e evolução da humanidade eram difundidas no meio
intelectual europeu anteriormente ao surgimento da teoria darwiniana, e, por conseguinte,
antes da saída da personagem da Alemanha. Daí pode-se afirmar que, mesmo tomando
conhecimento da teoria de Darwin anos depois de sua publicação e no Brasil, Carl Winter,
durante sua formação intelectual estava impregnado da concepção evolucionista da
humanidade.
Imbuído, portanto, pelas idéias de progresso e evolução, Carl Winter toma como
referência a sua cultura, a européia, para analisar a cultura dos rio-grandenses, ou seja,
aspectos da vida na Alemanha são comparados com os de Santa e colocados em vel de
desigualdade, sendo que a primeira é tida como superior em relação à segunda. Citaremos, em
seguida, algumas passagens da narrativa nas quais se verifica a análise da personagem sobre
aspectos importantes na constituição de uma cultura: alimentação, habitação, vestuário, arte,
música.
Para o Dr. Winter, os habitantes do Rio Grande do Sul pouco se distanciavam do
estado de natureza, ou seja, não possuíam um domínio de técnicas mais avançadas para
controlar os elementos naturais e transformá-los de modo a promover o bem-estar da
sociedade, como se verifica na seguinte passagem:
Os lavradores daquela província agora começavam a conhecer e a usar o
arado bíblico. E ninguém ali suprema medida de uma civilização! sabia
fazer bom pão e bom vinho. [...] Tratava-se positivamente de uma sociedade
tosca e carnívora, que cheirava a sebo frio, suor de cavalo e cigarro de
palha. (VERISSIMO, 2002, p.49).
Ao relacionar o pão e o vinho como alimentos de um povo civilizado, Carl Winter
parece reportar-se à Antiguidade, aos mundos grego e romano. Mássimo Montanari (1998)
diz que nas civilizações grega e romana, o pão e o vinho são exemplos absolutos de artifício,
132
de produtos totalmente “culturais” em todas as fases de sua preparação, tornando-se, assim,
símbolos da civilização, da distinção entre o homem e o animal, entre o civilizado, que fabrica
seus alimentos através de um processo de domesticação da natureza, e o “bárbaro”, que se
satisfaz em coletar o que encontra no meio natural e em caçar:
O pão e é preciso acrescentar a ele também o vinho e o óleo é o sinal
que distingue uma sociedade que não repousa sobre recursos ‘naturais’, mas
que é capaz de fabricar, ela própria, seus recursos, de criar – com a
agricultura e a criação de animais suas próprias plantas e seus próprios
animais. (MONTANARI, 1998, p.111).
A alimentação torna-se, assim, um elemento constitutivo da identidade de um povo.
Para as sociedades civilizadas, aqueles que não se dedicavam à agricultura, que não comiam
pão e não bebiam vinho, eram classificados como selvagens e bárbaros: seu alimento era a
carne, sua bebida, o leite.
Não por mera coincidência, Carl Winter menciona a alimentação dos nativos da
Província, composta basicamente de carne. Para a maior parte da população, os peões, essa
carne, sem nenhum preparo especial, era colocada para assar e devorada logo em seguida.
Salienta-se que na época representada na narrativa, muitos rebanhos ainda criavam-se soltos
nas pastagens, cabendo ao indivíduo apenas “caçar” o animal entre o gado para a obtenção do
alimento.
Uma observação semelhante à da personagem Carl Winter pode ser encontrada nas
anotações de Auguste de Saint-Hilaire, datada do dia 21 de junho de 1820:
Desde que me encontro nesta Capitania, tive oportunidade de presenciar
os hábitos carnívoros de seus habitantes; em redor das estâncias encontram-
se espalhados muitos ossos de animais; e, logo que se entra nessas fazendas,
sente-se logo cheiro de carne e de sebo. [...] Em toda parte onde
parávamos pelo caminho, meu guia perguntava se lhe podiam vender
alguma manta. Ela é um pedaço comprido de carne seca; e sempre lhe era
oferecida. Ele e meus companheiros dividiam pedaços de pau para fazer
espetos; cortavam nacos de manta, colocados alguns instantes ao fogo e
logo os devoravam. (SAINT-HILAIRE, 1997, p.29).
Nesse caso, a sentença citada anteriormente: “Tratava-se positivamente de uma
sociedade tosca e carnívora, que cheirava a sebo frio, suor de cavalo e cigarro de palha.” é,
sem dúvida, uma das mais expressivas manifestações da personagem sobre o Rio Grande do
Sul, pois emite um juízo de valor e sintetiza sua opinião sobre a sociedade gaúcha. Através
133
dessa passagem é revelado ao leitor que a visão de Carl Winter contemplava uma paisagem
cultural rústica e rude, “atrasada” na escala da evolução, onde a natureza imperava quase que
absolutamente, onde homens eram dominados pelos instintos, pouco se diferenciando dos
animais.
A rusticidade e o desconforto das habitações, a falta de delicadeza no comportamento
das pessoas e a pobreza de suas músicas também são elementos analisados pela personagem,
no seguinte trecho:
As casas eram pobres, primitivas, sem gosto nem conforto, quase vazias de
móveis; em suas paredes caiadas não se via um quadro, uma nota de cor que
lhes desse um pouco de graça. No inverno o minuano entrava pelas
frinchas, cortante como uma navalha. Nos dias de chuva os homens traziam
barro para dentro de casa nas suas botas ou nos s descalços. Havia em
tudo uma rusticidade e uma aspereza que estavam longe de ter o encanto
antigo e a madureza das coisas e das gentes camponesas da Baviera, da
Pomerânia ou do Tirol onde existia uma tradição no que dizia respeito a
móveis, roupas, comidas, danças, lendas e canções. [...] Como era escassa a
música daquela gente! Não passava duma cantilena que tinha o ritmo do
trote do cavalo, um lamento prolongado, pobre de melodia. (VERISSIMO,
2002, p.49).
Tomando como referência a cultura alemã, na qual se destacam o cuidado com as
casas e jardins, a limpeza e a arrumação dos interiores das moradias, a imensa variedade de
canções e lendas, Carl Winter compara as aldeias da Alemanha com a zona rural do Rio
Grande do Sul, revelando nitidamente a classificação que faz da sociedade gaúcha,
colocando-a num estágio de civilização inferior à européia.
Segundo a personagem, na Alemanha havia uma tradição que regia a maneira de
morar, de se vestir, de comer, de ser, que ele não encontrava nos nativos da Província. A
tradição configura-se, assim, num elemento indispensável da cultura de uma sociedade.
Roberto Da Matta (1987) estabelece uma diferença entre sociedade e cultura, passando
pela noção de tradição. Segundo ele, uma sociedade pode ser definida como uma totalidade de
indivíduos que atuam como coletividade, onde uma divisão de trabalho, de sexos e idades,
podendo haver uma direção coletiva e uma orientação especial em caso de acidentes e
perigos. Nesse sentido, uma sociedade pode ser formada por animais, que vivem em grupos, a
exemplo das formigas. Porém, para existir uma cultura, é necessário que haja uma “tradição
viva”, conscientemente elaborada que passe de geração para geração, que permita
individualizar ou tornar singular e única uma dada comunidade relativamente às outras,
constituídas de pessoas da mesma espécie.
134
Sem uma tradição, uma coletividade pode viver ordenadamente, mas não
tem consciência do seu estilo de vida. [...] A consciência de regras e normas
é, pois, uma forma de presença social, sempre dada num dialogar com
posições bem marcadas pelo grupo. (DA MATTA, 1987, p.48).
Nessa perspectiva, a tradição torna as regras possíveis de serem vivenciadas,
abrigadas e possuídas pelo grupo que as inventou e adotou, de tal modo que, em uma
sociedade humana seus membros percebem sua tradição como algo que lhes pertence.
Na discussão da realidade humana, conforme Da Matta (1987, p.56), o conceito de
sociedade deve ser sempre complementado pela sua outra face, a noção de cultura, que remete
ao texto e aos valores que dão sentido ao sistema concreto de ões sociais visíveis e
percebidos pelo outro. Sociedades sem tradição são sistemas coletivos sem cultura. E não
pode existir uma sociedade sem cultura.
Nesse sentido, a tradição manifesta-se de forma diferente nas diferentes culturas. Na
narrativa de O Continente, Carl Winter não nega que na Província de São Pedro do Rio
Grande exista também uma cultura, mas nota que as tradições dali são diferentes das que
possui a cultura alemã.
A personagem observa com indignação a falta de cuidado dos nativos para com suas
propriedades. Da mesma forma, Arsène Isabelle, em passagem pela vila de São Leopoldo em
1834, percebe o cuidado dos imigrantes alemães com suas casas, jardins e estradas,
contrapondo-o com o desleixo com que os nativos da Província deixavam as suas:
Pensamos estar na Alemanha. Não pude evitar, à vista desta povoação
européia, um sentimento de admiração, porque, em primeiro lugar, fui
surpreendido pelo contraste que ofereciam estes lugares, cultivados com
cuidado, estes caminhos abertos penosamente através das colinas, morros e
matos, estas pequenas propriedades rodeadas de fossos profundos ou sebes
vivas, esta atividade de agricultores e artesões, rivalizando no desejo da
prosperidade comum... com o abandono absoluto em que os brasileiros
deixam suas terras, o mau estado de suas estradas, suas choupanas
estragadas, enfim essa falta de atividade, esse espírito de desperdício e
destruição que os caracteriza tão bem quanto os argentinos. (ISABELLE,
1983, p.72).
Nessa passagem, Arsène Isabelle menciona ainda o desejo dos alemães em prosperar,
em enriquecer na nova pátria, o que origina competições entre eles por maior fortuna. Essa
135
rivalidade, contudo, não nasce em terras brasileiras, mas vem na bagagem dos imigrantes, que
na Europa nutriam esse sentimento. Carl Winter faz um comentário semelhante sobre os
imigrantes que se estabeleceram na colônia de São Leopoldo:
Em sua maioria, porém, prosperavam, moravam bem, ganhavam dinheiro,
aumentavam as propriedades. Desprezavam o caboclo e eram por sua vez
desprezados pelos estancieiros, dos quais não gostavam, embora
parecessem temê-los. Era triste ver como em seus baús e sacos, junto com
roupas e tarecos, haviam trazido para o Brasil todos os prejuízos,
rivalidades e mesquinhezas de suas aldeias natais. Não compreendiam os
insensatos! que lhes seria possível passar a vida a limpo naquela pátria
nova. (VERISSIMO, 2002, p.42-43).
Podemos nos basear em Norbert Elias (1994, p.39), para explicar essa rivalidade
como conseqüência do processo histórico de formação da Alemanha. Segundo esse autor, a
França e a Inglaterra expandiram e colonizaram terras mais cedo em comparação com a
Alemanha, cuja expansão mais vigorosa ocorreu somente na Idade Média. Depois disso, o
reino alemão diminuiu lenta, mas de forma ininterrupta. Seus territórios foram confinados de
todos os lados e pressionadas suas fronteiras externas, mesmo depois da Guerra dos Trinta
Anos (1618-1648). Assim, as lutas dentro da Alemanha entre os vários grupos sociais que
competiam por oportunidades de sobrevivência e, por conseguinte, as tendências para
distinções e exclusões mútuas em geral foram mais intensas que nos outros países ocidentais.
A fragmentação do território em numerosos Estados soberanos e o isolamento extremo de
grandes segmentos da nobreza face à classe média alemã dificultou a formação de uma
sociedade unificada, central, que estabelecesse um modelo, o que foi fundamental em outros
países, pelo menos como fase no caminho da nacionalidade, pondo sua marca na língua, nas
artes, nas maneiras, e na estrutura das emoções.
Ao visitar São Leopoldo, aconselhado por Koseritz, Carl Winter demonstra certo
desprezo pelos imigrantes, seus compatriotas, justamente pelas características de rivalidade
acima mencionadas. Carl Winter não concordava com certas atitudes e pensamentos dos
alemães, achava-os mesquinhos e ignorantes, tanto é que desistiu de fixar residência nos
arredores da colônia e acabou viajando para o interior da Província:
Concluiu que seus compatriotas o irritavam tanto ou mais que os nativos .
Muitos deles eram estúpidos e cheios de preconceitos. Havia-os de toda a
natureza e de todas as origens, inclusive os que se envergonhavam do título
136
de “colonos” e declaravam não terem vindo para o Brasil trazidos pela
fome, pelo desejo de fugir aos impostos ou de enriquecer: eram, isso sim,
exilados políticos. Alguns chegavam a insinuar até vagos antepassados de
sangue azul. Em sua maioria ficavam indignados quando alguém os julgava
mecklenburgueses, pois contava-se que as primeiras levas de colonos
vindas de Mecklenburgo eram formadas de mendigos e presidiários.
(VERISSIMO, 2002, p.42).
A mesma observação sobre a rivalidade existente entre os alemães e a ignorância
com que eram caracterizados, é feita por Joseph Hörmeyer, que esteve no Rio Grande do Sul
em 1853:
O operário alemão é devido a sua diligência e sua habilidade muito
apreciado pelos brasileiros; contudo, para dizer a verdade, deve-se confessar
que o alemão é pouco estimado por causa de sua pouca instrução, sua
ganância e sua inclinação à bebida. A razão disso é aparente: os alemães
aqui, com poucas exceções, foram tirados da classe alemã, embora a mais
trabalhadora, mas também menos instruída, dos camponeses, e por isso, a
intelectualidade alemã ainda está pouco representada; acresce a isso que, em
todo o mundo, um alemão não se dá em absoluto com seus patrícios, e aqui,
como em sua querida pátria, ele é invejoso e malicioso para com quem, em
algum sentido, lhe seja superior. (HÖRMEYER, 1986, p.74).
Percebe-se que todas estas caracterizações por parte dos viajantes e da personagem
Carl Winter, tanto as que dizem respeito aos nativos da Província, quanto as que se referem
aos imigrantes alemães, camponeses e artesãos, foram realizadas por indivíduos com um nível
de instrução superior, pessoas eruditas que tiveram acesso ao conhecimento acumulado pela
humanidade através dos tempos, que tiveram contato com as novas teorias científicas, e que
habitavam a zona urbana de importantes cidades européias, o que lhes permitiu fazer
comparações entre as diferentes culturas.
A respeito dessa tendência de comparar culturas diferentes, Rafael José dos Santos
(2005, p.23) explica:
O sucesso da visão evolucionista da sociedade pode ser explicado pela idéia
que os europeus tinham de sua própria sociedade. Esta seria “civilizada” e
“complexa” por haver atingido um grau de industrialização, ciência e
tecnologia, enquanto as culturas das colônias seriam “primitivas” e
“atrasadas”. Em outras palavras, a sociedade européia tomava a si mesma
como medida de civilização, atribuindo às sociedades tribais um perfil
“inferior”.
137
A atitude do Dr. Carl Winter, de tomar a sua cultura como medida para analisar uma
outra recebe o nome, em Antropologia, de etnocentrismo. Segundo Rafael José dos Santos
(2005, p.35), o etnocentrismo consiste em uma postura na qual tomamos a nossa sociedade e a
nossa cultura, nossos valores, práticas, crenças, como medida para julgar valores, práticas,
crenças, enfim, tudo que constitui culturas diferentes da nossa. Centrados em nossa etnia. Em
termos metodológicos as nossas próprias referências culturais atrapalham a compreensão de
outras realidades. Isso acontece porque fomos criados, educados, socializados de tal maneira
que interiorizamos valores, normas, posturas e até “formas de sentir, pensar e agir”.
Everardo Rocha (2004, p.9) coloca que, pela visão etnocêntrica, a sociedade do “eu”
é considerada a melhor, a superior, sendo representada como o espaço da cultura e da
civilização por excelência. É onde existe o saber, o trabalho, o progresso, enquanto a
sociedade do outro é atrasada, é o espaço da natureza, habitado por selvagens, bárbaros. E o
barbarismo evoca a confusão, a desarticulação, a desordem.
Citaremos ainda uma última passagem em que o Dr. Winter, em conversa com o Pe.
Otero e o juiz de direito Dr. Nepomuceno, tenta convencê-los da falta que faz a instrução
pública, da necessidade de melhorar os rebanhos, de cultivar as terras do Rio Grande do Sul,
implantando a agricultura, incentivando os nativos a casarem com imigrantes alemães em vez
de negros e índios:
- O meu caro doutor acha então que somos uma nação inferior?
Winter tirou um acorde dissonante da cítara, e olhou para o juiz.
- Eu não afirmei propriamente isso. Mas se vosmecê conhecesse a
Alemanha teria uma boa idéia do que é capaz o povo alemão. [...]
Finalmente o juiz conseguiu formar uma frase que lhe pareceu à altura do
assunto, do momento e do interlocutor.
- Pois digam o que quiserem, eu acho que um povo latino como o nosso
deve...
O médico soltou uma risada e avançou para o juiz:
- Latinos os homens desta província? exclamou. Ach mein lieber Gott!
Acha então o doutor que os gaúchos descendem dos romanos?
- Ora! fez o Dr. Nepomuceno, que estava muito vermelho e agitado.
Ora!
- Preste atenção, Sr. Juiz. Quem foram os primeiros povoadores destes
campos? Paulistas descendentes de portugueses. Pois bem. Os portugueses
têm uma boa dose de sangue mouro. Mais tarde chegaram aqui os casais
açorianos, muitos dos quais eram de origem flamenga. Nesta província
houve novas misturas com sangue índio e negro. Jáque de latinos tendes
muito pouco.
- Digam o que disserem. Somos latinos pela civilização!
Carl Winter sentou-se de repente, como se o peso da palavra civilização
fosse demasiadamente grande para ele suportá-lo de pé.
De que feitos espirituais se podia gabar aquela áspera sociedade pastoril que
florescia se é que se podia no caso usar este verbo no tão gabado
138
“Continente” de D. Bibiana? Onde estavam seus artistas, seus cientistas,
seus pensadores? Até aquela data Winter não vira um único livro impresso
na Província. Poderiam os continentinos alegar que as guerras o lhe
davam tempo para as atividades de espírito, e talvez tivessem alguma
razão. Mas quem não tinha razão era o Dr. Nepomuceno quando enchia a
boca com a palavra civilização. Ele e o padre pareciam estar convencidos
não somente de que eram descendentes dos romanos como também de que,
por isso, representavam a essência da sabedoria, da espiritualidade e do
progresso. (VERISSIMO, 2002, p.81-82).
Nesse trecho da narrativa, fica evidente que a idéia que Carl Winter fazia de uma
nação civilizada era a de uma sociedade que, além de ter domínio sobre a tecnologia e a
ciência, fosse letrada, conhecesse a Literatura, a Filosofia, a História, tivesse gosto pela arte,
pela música, e principalmente, que produzisse alguma obra de valor dentro dessas áreas.
Nesse sentido, o que legitima a sua visão do mundo, o que alicerça a sua auto-imagem e
orgulho, o que conduz sua crítica a respeito da cultura gaúcha, situa-se além da economia e da
política. Reside no que é chamado de das rein Geistige (o puramente espiritual), em livros,
trabalhos de erudição, arte, filosofia, no enriquecimento interno, na Bildung (formação
intelectual), ou seja, no conceito de Kultur desenvolvido pela intelectualidade alemã (ELIAS,
1994, p.43), da qual o Dr. Winter é representante.
No entanto, mesmo julgando a cultura gaúcha como inferior ou até mesmo
incivilizada, a personagem admitia que o Rio Grande do Sul, assim como o Brasil, estava
apenas iniciando sua caminhada rumo ao progresso, começando seu processo civilizatório, se
comparado aos milhares de anos em que este se desenvolvia na Europa: “Mas era preciso ter
paciência e compreender que aquele era um país novo, ainda na sua primeira infância.”
(VERISSIMO, 2002, p. 48).
De fato, o povoamento do sul do Brasil ainda estava em fase inicial no século XIX,
as condições de vida da população em geral eram precárias, o acesso à escolarização atingia
apenas uma parcela inexpressiva da sociedade. Guilhermino César (1971, p.35), ao falar sobre
a escassa atividade literária em língua portuguesa no Rio Grande do Sul, durante o período
colonial, assim se pronuncia:
No território continentino, os centros mais populosos eram aldeias
inexpressivas, cujas populações viviam do pastoreio e da agricultura. O
gado proliferava nos campos abertos, entregue ao Deus-dará, enquanto a
agricultura praticamente se restringia às exigências do consumo interno. As
únicas mercadorias exportáveis eram o trigo, o charque e subprodutos do
boi couro e graxa. O pastoreio e a agricultura, exercidos empiricamente,
139
não seriam, por certo, favoráveis à elaboração de uma sociedade polida,
exigente, que se fizesse notar por seu padrão intelectual. População esparsa,
atormentada pela guerra, a do Rio Grande conheceu também muito tarde os
benefícios da escola. A instrução era de remota serventia para essa gente: de
guerreiros é que ela nascera; de guerreiros continuava a precisar, e não de
letrados e sonhadores.
Nesse sentido, mesmo apresentando uma visão etnocêntrica sobre a sociedade rio-
grandense, a personagem Carl Winter tentará buscar na origem do povo, na história de sua
formação, a explicação para a cultura que ali se desenvolvia. Pelos estudos antropológicos
realizados nas últimas décadas, sabe-se, desde as pesquisas etnográficas de Franz Boas (1858-
1942), Bronislaw Malinowski (1884-1942) e Claude Lévi-Strauss (1908), que é impossível
comparar sociedades em termos de avanço e atraso, porque cada cultura só pode ser entendida
a partir de seus próprios valores, hábitos, modos de vida e, principalmente, a partir de sua
própria história.
Neste ponto, tocamos em outra questão. Embora pertencentes à mesma cultura, a
européia, o Dr. Carl Winter critica os imigrantes, seus conterrâneos, por serem ignorantes e
preconceituosos, por manterem rivalidades entre si, sendo que no Brasil poderiam iniciar uma
nova vida. Como explicar o fato de que o médico alemão não agia nem pensava de forma
semelhante aos demais imigrantes alemães que chegaram ao Rio Grande do Sul na mesma
época, embora todos tivessem a mesma nacionalidade?
Poderíamos atribuir essa diferença cultural à formação intelectual que o Dr. Winter
recebera durante seus estudos universitários, um nível de escolarização acessível a poucos na
Europa do século XIX. Se Carl Winter fazia parte de uma minoria letrada, que sabia latim, a
língua dos cultos (na época, ser culto era dominar o conhecimento das letras, das artes e das
ciências), nota-se que há uma estratificação social e cultural na Europa dos tempos modernos.
De acordo com Peter Burke (1989, p.50), na maioria dos lugares da Europa no século
XIX, existia uma estratificação cultural e social. Havia uma minoria que sabia ler e escrever,
sendo que parte dessa minoria letrada sabia latim, a língua dos cultos, e uma maioria era
analfabeta. Essa estratificação cultural foi apresentada em 1930, pelo antropólogo social
Robert Redfield. Segundo esse estudioso, em certas sociedades existiam duas tradições
culturais, a “grande tradição”, da minoria culta e a “pequena tradição” dos demais.
Segundo a definição de Carlo Prandi (1977, p.166), a tradição é a passagem de um
conjunto de dados culturais
11
de um antecedente a um conseqüente, que podem configurar-se
11
Cultura no sentido antropológico. Na definição canônica de Edward B. Tylor, “a totalidade dos
conhecimentos, das crenças, das artes, dos valores, leis, costumes e de todas as demais capacidades e hábitos
140
como famílias, grupos, gerações, classes ou sociedades. E ainda, “as tradições estão inscritas
na consciência coletiva dos grupos que delas são portadores, como normas implícitas ou
direitos tidos como adquiridos no tempo e, como tais, inextinguíveis”. Sendo assim, as
tradições configuram-se como programas impostos pela sociedade à conduta dos indivíduos,
regendo sua visão do mundo.
Os conceitos de “grande tradição” e “pequena tradição” podem auxiliar no
entendimento das diferenças entre uma classe social que detém a informação, o conhecimento
acumulado ao longo da História, a qual pertence a personagem Carl Winter, e aquele que é
armazenado na mente da grande maioria analfabeta.
No início da Europa moderna, observa Peter Burke
12
(1989, p.51), a grande tradição
incluía a tradição clássica, tal como era transmitida nas escolas e universidades; a tradição da
filosofia escolástica e teologia medievais, e alguns movimentos intelectuais que
provavelmente afetaram a minoria culta, como a Renascença, a Revolução Científica no
século XVII, o Iluminismo no século XVIII.
Enquanto a grande tradição era cultivada em escolas, universidades ou templos, a
pequena tradição operava sozinha e se mantinha na vida dos iletrados, em suas comunidades.
Estava presente nas canções e contos populares, imagens devotas, peças de teatro, folhetos e
livros de baladas e, principalmente nas festividades, como as festas de santos, o Natal, o Ano
Novo e o Carnaval.
Segundo o autor, o modelo proposto por Redfield precisa ser modificado e
reformulado, pois se existiam duas tradições culturais nos inícios da Europa moderna, elas
não correspondiam simetricamente aos dois principais grupos sociais: a elite e o povo comum.
Na opinião de Peter Burke (1989, p.55), a elite participava da pequena tradição, mas o povo
comum não participava da grande tradição, justamente porque as duas tradições eram
transmitidas de maneiras diferentes. A grande tradição era transmitida formalmente nos liceus
e universidades. Era, portanto, uma tradição fechada, no sentido em que as pessoas que o
freqüentavam essas instituições, que não eram abertas a todos, estavam excluídas. A pequena
tradição, por outro lado, era transmitida informalmente, estando aberta a todos, como a igreja,
a taverna e a praça do mercado, onde ocorriam muitas apresentações.
Dessa forma, conclui Peter Burke, a diferença cultural crucial nos inícios da Europa
Moderna estava entre a maioria, para quem a cultura popular era a única cultura, e a minoria,
adquiridos pelo homem enquanto membro da sociedade.”
12
Na definição de Peter Burke a idade moderna da Europa inicia no século XVI e se estende até o século XIX.
141
que tinha acesso à grande tradição, mas que participava da pequena tradição enquanto uma
segunda cultura.
Enquanto a maioria do povo falava apenas o seu dialeto regional e nada
mais, a elite falava ou escrevia latim, ou uma forma literária do vernáculo, e
continuava a saber falar em dialeto, como segunda ou terceira língua. Para a
elite, mas apenas para ela, as duas tradições tinham funções psicológicas
diferentes: a grande tradição era séria, a pequena tradição era diversão.
(BURKE, 1989, p.55).
Nessa perspectiva, podemos classificar as grandes levas de imigrantes alemães que
chegaram ao Rio Grande do Sul como representantes da pequena tradição, na maioria
iletrados, cujos costumes e tradições eram transmitidos oralmente através de canções
populares, provérbios, festas. Entretanto, podemos transportar essa classificação para nosso
país, onde os moradores da fictícia Santa Fé, que representavam grande parte da sociedade
gaúcha, também podem ser vistos como herdeiros da pequena tradição, por transmitirem sua
cultura de outra forma, que não por meio de escolas, instituições quase inexistentes na
Província no século XIX.
Dessa forma, é imprescindível salientar que é o olhar de um médico alemão, de um
europeu curioso, pertencente à grande tradição, que Erico Verissimo escolhe para fazer a
mediação entre o escritor e o público leitor na narrativa de O Continente. A partir da ótica de
um estrangeiro, regida pela sua formação social e intelectual, a cultura dos rio-grandenses é
revelada em todas as suas particularidades.
A razão pela qual Erico Verissimo utiliza o olhar do Dr. Winter pode ser justificada
pela necessidade, na narrativa, de uma voz ilustrada, representada por alguém que, sem
nenhuma ligação emocional nem com a terra nem com a gente, pudesse emitir opiniões
imparciais, como a própria personagem declara: “Sou um homem sem paixões. [...] Não tenho
partido. Nem sequer nasci neste país. Um dia posso ir-me embora para a Alemanha e não
voltar mais. Limito-me a ler, ouvir, observar e tirar minhas conclusões.” (VERISSIMO, 2002,
p.299).
Mais do que exercer a simples função similar à do coro da tragédia clássica, Carl
Winter é a voz crítica da qual o escritor lança mão para analisar uma sociedade que construía
seus alicerces sobre guerras e solidão, valentia e persistência, morte e espera. Mais do que um
simples estrangeiro, Carl Winter é a opinião diferente, o olhar de fora, que o escritor pede
emprestado para observar uma sociedade construída por incansáveis homens guerreiros e
mulheres de olhos permanentemente tristes. Enfim, mais do que uma personagem
142
“secundária” da narrativa de O Continente, Carl Winter é a chave que Erico Verissimo
disponibiliza ao leitor para interpretar a crônica histórica do Rio Grande do Sul. E podemos
dizer ainda que, sem a presença dessa personagem-chave na primeira parte da trilogia, todo o
projeto de O Tempo e o Vento ficaria seriamente comprometido, a tentativa de desmistificar a
História rio-grandense se tornaria irrealizável.
3.2 Destruição e preservação
Carl Winter, através do olhar de forasteiro, acaba por compreender o povo rio-
grandense como uma “sociedade tosca e carnívora". As guerras, a organização social e
econômica, o machismo e o código de honra dos homens, a aspereza das relações, tudo isso é
observado curiosamente pela personagem que tira suas próprias conclusões sobre a sociedade
que se desenvolvia diante de seus olhos.
Para o médico alemão, as guerras constituíam um fator determinante na configuração
da sociedade rio-grandense. O permanente estado de guerra em que viviam os homens
influenciava suas personalidades, pois tornava-os rudes, agressivos, numa atitude sempre
ofensiva. Como explica Guilherminosar (1971, p.37), o gaúcho “viveu perigosamente” e a
presença do risco e das surpresas deixou-lhe traços profundos no espírito e no caráter. Porém,
se eles viveram entre perigos, os da guerra não eram menores que os do pastoreio rudimentar,
assim, a ação pronta, a energia muscular, os movimentos rápidos, passaram a caracterizar o
tipo clássico do rio-grandense.
Se o trabalho rude nas estâncias e as guerras intermitentes pela posse das terras da
fronteira desempenharam uma função seletiva, moldando o caráter do rio-grandense, na
opinião de Carl Winter, as guerras também prejudicavam o progresso econômico da região,
pois com a diminuição do número de peões, recrutados pelo serviço militar, os rebanhos
ficavam abandonados nas estâncias e os povoados praticamente esvaziavam-se de homens em
condições de trabalhar. Mesmo assim, as constantes guerras e revoluções acabavam por
tornar-se uma tradição entre os homens. Não raras vezes, os peões nem sabiam o verdadeiro
motivo pelo qual lutavam, mas arriscavam a vida bravamente, como Carl Winter comenta
neste trecho:
Em muitos casos os soldados lutavam descalços e armados de lanças de
paus; eram mal alimentados e raramente ou nunca recebiam soldo. Poucos
sabiam ao certo por que lutavam, mas havia na Província a tradição de
143
“pelear com os castelhanos”, e seus homens encaravam as invasões como
uma fatalidade, como um ato de Deus uma espécie de praga periódica tão
inevitável como uma seca ou uma nuvem de gafanhotos. Mercê dessas lutas
haviam surgido verdadeiros senhores feudais na Província. Eram os
estancieiros como o Cel. Amaral, a quem o governo amparava e dava
privilégios, na certeza de que na hora da guerra eles viriam com seus peões,
agregados, amigos e assalariados para engrossar o exército regular.
(VERISSIMO, 2002, p.47).
De acordo com a narrativa, embora correndo o risco de perderem a vida, os soldados
sacrificavam-se nos campos de batalha, onde seus atos de bravura eram enaltecidos. Jamais se
via um rio-grandense desertar por covardia. Podia haver fugas sim, mas um gaúcho nunca
abandonava a guerra por medo de enfrentar o inimigo.
A valorização de qualidades como coragem e bravura encontra sua explicação no
próprio processo de formação da sociedade rio-grandense. Segundo Guilhermino César (1971,
p.29), a colonização das terras do Rio Grande do Sul, obedecendo primeiramente a interesses
políticos da Coroa portuguesa para a conquista de territórios e, mais adiante, interesses
econômicos das capitanias do Centro, pela oferta de carne e animais de tração, se processou
num ambiente carregado de apreensões e entremeado de lutas cruéis, o que contribuiu para
supervalorizar os homens de ação, os soldados e comandantes, enfim, todos aqueles que pela
sua bravura representassem uma garantia de resistência eficaz às pretensões espanholas.
Assim, “a sociedade resultante desse amálgama de bravos habituou-se a admirar e querer o
valor pessoal, a audácia e a pugnacidade.”.
De acordo com Sérgius Gonzaga (1980, p.115), à proporção que os campos iam se
privatizando e o latifúndio avançava rumo à atual fronteira, os gaúchos
13
eram absorvidos,
convertendo-se em peões temporários ou permanentes, de acordo com as necessidades da
estância. A partir daí, usou-se o gaúcho como “bucha-para-canhão” nos destacamentos
militares na fronteira: “As várias guerras vividas pela província exigiam um número
expressivo de soldados, suficientemente pobres e corajosos para arriscar a vida pela mística
do heroísmo e pelo saque nem sempre compensatório.”.
Carl Winter chega à Província de São Pedro alguns anos após o término da Guerra
dos Farrapos (1835-1845), quando findava outra revolução, mais curta, mas nem por isso
menos sangrenta que a primeira, a guerra contra Rosas (1851-1852), ditador da Argentina.
13
Sergius Gonzaga caracteriza os gaúchos ou gaudérios como cavaleiros errantes que vagavam solitários pelos
campos à procura do couro. Sua origem estava tanto na dispersão das Missões quando no estupro das índias,
prática corriqueira entre bandeirantes e soldados. Eram tipos indiáticos, mestiços, raros os brancos, que haviam
herdado dos guaranis a habilidade para a lide pastoril e a capacidade para montar, mas acabaram perdendo sua
identidade tornando-se marginais. Somente a partir de 1800 que o termo gaúcho se generalizou, tornando-se
gentílico do século XX, designando o natural do Rio Grande do Sul. Durante o século XIX dizia-se continentino
e rio-grandense para o natural da província do Rio Grande do Sul.
144
Nessa ocasião, reverenciava-se a coragem e a bravura dos soldados que voltavam do combate,
elogio digno de nota no Almanaque de Santa Fé, organizado pelo doutor Nepomuceno e
datado do mês de janeiro de 1853:
Rosas, o tirano argentino, ameaçava a integridade de nosso Brasil, e era
necessário fazer frente à ameaça. E assim mais uma vez os santa-fezenses
formaram os seus batalhões voluntários e nessa luta que nem por ser
relativamente curta foi menos cruenta, muitos foram os filhos desta vila
que tiveram atuação destacada. Entre eles é justiça salientar o jovem
Bolívar Terra Cambará, filho dum intrépido soldado, o Cap. Rodrigo
Severo Cambará, morto heroicamente num combate que se feriu nesta
mesma vila em princípios de 1836. Bolívar, esse denodado jovem, cujo
nome parece trazer em si uma destinação gloriosa, guiou os seus
cavalarianos numa carga de lança, destruindo um quadrado inimigo e
arrancando, ele próprio, das mãos dum adversário a bandeira argentina!
Esse ato de bravura valeu-lhe a promoção ao posto de primeiro-tenente, e
uma citação especial na ordem do dia. (VERISSIMO, 2002, p.11-12).
Durante sua participação na narrativa, até as últimas páginas de O Continente, Carl
Winter acompanhou o desenrolar de outros momentos decisivos na História política e social
do Rio Grande do Sul. Regina Zilberman (2004, p.30) apresenta a seguinte cronologia de
batalhas, paralelas ao desenrolar dos fatos de O Tempo e o Vento, da qual selecionamos
somente o período de nosso interesse para a caracterização da personagem. São elas: os
conflitos com os países vizinhos do Prata até 1864; a Guerra do Paraguai (1865-1870); a
guerra dos Muckers (1874); as campanhas abolicionista e republicana (1888-1889); a
ascensão de Júlio de Castilhos (1891), a Revolução Federalista (1893-1895) e a vitória do
partido de Júlio de Castilhos. Nesse contexto, muitas vezes Carl Winter observava pessoas
conhecidas partindo, voltando ou morrendo em mais uma guerra. Constantemente também,
ele ouvia os homens de Santa contarem causos de guerras passadas, de combates
sangrentos, de atos heróicos e de covardias, enquanto que as mulheres falavam dos longos
períodos de espera e lembravam de seus mortos.
Por meio dessas conversas, Carl Winter percebia a repercussão que as guerras tinham
na organização social dos continentinos, influenciando a economia e comprometendo o
próprio futuro da Província. O médico lamentava o fato dos rio-grandenses terem abandonado
a cultura do trigo desde 1823, quando as lavouras foram atacadas pela ferrugem”, para
dedicarem-se exclusivamente à pecuária. No entender de Carl Winter, a Província não poderia
depender do charque e do couro para sempre. Além disso, durante as guerras, os rebanhos
145
eram reduzidos consideravelmente, já que a carne era o principal, senão o único alimento para
as tropas do exército:
Ora, as guerras periódicas dizimavam a cavalhada e o gado, ao passo que a
agricultura continuava decadente ou quando muito estacionária. Os campos
se achavam despovoados e ele [Winter] tinha a impressão de que ninguém
tinha plano, ninguém pensava no futuro; os continentinos vivam ao acaso
das improvisações, confiando sempre na sorte. Por que o tentavam
alguma coisa? – impacientava-se ele. (VERISSIMO, 2002, p.78).
Era inadmissível, na opinião do médico, o fato dos continentinos terem de importar
os cereais e até a farinha da mandioca que consumiam, mesmo disponibilizando de grandes
extensões de terra fértil para o plantio. Conforme Carl Winter, os rio-grandenses deveriam
investir na agricultura, melhorar os rebanhos importando reprodutores estrangeiros, cuidar
melhor da terra, e para isso, seriam beneficiados se casassem os homens e mulheres com os
imigrantes alemães em vez de negros e índios. Como foi dito, Winter acreditava que o
trabalho de seus conterrâneos traria o progresso para a Província.
Outro problema levantado por Carl Winter era o da instrução pública. Segundo suas
observações, existiam poucas escolas, todas de primeiras letras e uma escassez de professores
ainda maior. Além disso, era assustador o isolamento em que se encontravam as estâncias, os
povoados, as vilas e cidades da Província. As estradas eram poucas e péssimas. Winter
acreditava que o próprio governo era responsável pela situação de abandono em que viviam
os moradores do Rio Grande do Sul, como mostra a seguinte passagem:
Havia anos que os santa-fezenses tinham pedido ao governo o provimento
de escolas públicas para as paróquias do município, a abertura de mais
estradas e o estabelecimento de colônias. A indiferença da Assembléia
Provincial ante aqueles pedidos era simplesmente pasmosa. Não era, pois,
de admirar que as pessoas em Santa Fé crescessem e morressem
analfabetas... Às vezes refletiu Winter parecia que a única função dos
homens da Província do Rio Grande do Sul era a de servirem
periodicamente como soldados a fim de manterem as fronteiras do país com
a Banda Oriental e a Argentina. (VERISSIMO, 2002, p.104).
Segundo Moacyr Flores (1988, p.60), depois de dez anos de guerra civil, a Guerra
dos Farrapos, a Província estava arrasada economicamente, com a administração paralisada e
146
a Assembléia Legislativa em recesso oito anos, voltando a ter sua primeira sessão somente
em 1846. Nessas condições, a instrução pública encontrava-se em situação precária, pois
os professores não possuíam preparação para o magistério, qualquer pessoa
que se considerasse com competência podia ensinar, na base da palmatória.
A instrução secundária era com aulas isoladas de filosofia, latim, francês e
geometria, localizadas separadamente em Porto Alegre, Rio Grande e Rio
Pardo. O aluno estudava o dia inteiro e trocava de professor depois de
concluir o estudo de determinada matéria.
Conforme Aidê Campello Dill (1997, p.108), a Lei 771, de 4 de maio de 1871, e
os Regulamentos de 1872 e 1876 estabeleceram o ensino obrigatório nas cidades, vilas e
freguesias da Província para as crianças de sexo masculino entre 7 e 15 anos incompletos e de
6 a 12 anos incompletos para as meninas. Entretanto, a execução desses regulamentos foi
impraticável pela falta de professores, acrescido das grandes distâncias entre as escolas e as
residências.
Décadas depois, em 1893, continua Moacyr Flores (1988, p.98), o Rio Grande do
Sul possuía 63 municípios, com o total de 897.000 habitantes, sendo que a maioria da
população ainda vivia em área rural. E mesmo o governo estadual exercendo uma “ditadura
científica” para ter ordem e alcançar o progresso, 74% da população o sabia ler nem
escrever. O jovem que conseguisse concluir o ginásio (ensino fundamental) estava apto para
trabalhar na função pública e no comércio.
Essa dificuldade de acesso às instituições de ensino, de acordo com Carl Winter, era
responsável também pela falta de artistas, homens de letras e cientistas no Rio Grande do Sul.
Maria da Glória Bordini (1995, p.223), em estudo sobre a trilogia de Erico Verissimo, faz o
seguinte comentário sobre essa observação da personagem:
Winter lamenta a ausência de educação sistemática, responsável pela
inexistência de artistas, cientistas e pensadores na província. que a falta
de livros impede as idéias de circularem, deixando o povo à mercê dos ditos
dos pais da pátria, que alguém ouviu numa campanha eleitoral ou durante
uma visita de passagem. Todavia, reconhece a relatividade desse saber
formal, quando pondera para Juvenal que a melhor escola que é a da
vida”.
147
Nesse sentido, a falta de escolarização e a situação de isolamento afetavam
sobremaneira o modo de vida dos rio-grandenses. Raramente eles tinham contato com pessoas
vindas de outros povoados, ignoravam acontecimentos importantes ocorridos no país e até
mesmo na própria Província ou ficavam sabendo dos fatos muito tempo depois deles terem
ocorrido. Viviam, por assim dizer, num mundo muito limitado de informações, onde caras,
fatos e assuntos eram os mesmos de sempre, como mostra o seguinte trecho de uma carta
enviada a Kosertiz por Carl Winter:
Raramente aparece uma cara nova na vila. Um dia é igual a outro dia. O
correio chega uma vez por semana, quando chega. Uma carroça leva uma
eternidade para ir ao Rio Pardo e voltar. As pessoas em geral são boas,
mas duma bondade meio seca e áspera. Os assuntos, limitados. Fala-se em
gado, em cavalos, em tropas, invernadas, comidas, campos ou então em
histórias de brigas, guerras e revoluções passadas ou guerras e revoluções
que estão para vir. (VERISSIMO, 2002, p.115).
Ao observar os homens da Província de São Pedro, Carl Winter nota que no geral
eles possuíam as mesmas características, em maior ou menor intensidade. Além do gosto
pelas guerras, eram ásperos e agressivos, dados a aventuras amorosas com as chinocas,
escravas ou concubinas, com as quais tinham filhos, embora sua esposas legítimas devessem
manter-se fiéis. Se alguém ousasse olhar mais demoradamente para suas mulheres, certamente
teria que “dar uma satisfação”, em outras palavras, seria desafiado para um duelo. Segundo
Winter:
O código de honra daqueles homens possuía em nítido sabor espanhol .
Falavam muito em honra. No fim de contas o que realmente importava para
eles era “ser macho”. Outra preocupação dominante era o de “não ser
corno”. Não levar desaforo para casa, saber montar bem e ter tomado parte
pelo menos numa guerra eram as glórias supremas daquela gente meio
bárbara que ainda bebia água em guampas de boi. (VERISSIMO, 2002,
p.48).
Mesmo não existindo na forma escrita, os artigos desse código de honra se
propagavam entre os homens da Província através de exemplos e causos que corriam de boca
em boca. Segundo esse código, um homem para ser bem macho, devia ter “barba e vergonha
148
na cara”, além de nunca faltar à palavra empenhada, custasse o que custasse. Caso contrário, a
honra manchada seria lavada com sangue:
Honra e vergonha... pensou Winter. Como os homens do Rio Grande
falavam em honra e vergonha! Honra manchada lavava-se com sangue.
Havia uma lei que proibia os duelos, mas os duelos se realizavam assim
mesmo, a tiros, a espada, a adaga. O Dr. Nepomuceno falava com
solenidade em Justiça, mas aqueles homens realistas não confiavam em
juízes e tribunais. Resolviam suas pendências pelas armas: faziam justiça
pelas próprias mãos. (VERISSIMO, 2002, p.140).
Se o que importava para o rio-grandense era saber montar, ter participado de uma
guerra e garantir a honra, certamente não sobrava espaço para obras do espírito. As formas
artísticas não possuíam qualquer valor em meio àquela gente prática, preocupada em resolver
questões concretas do cotidiano. Pior que isso, as manifestações artísticas poderiam colocar
em dúvida a própria masculinidade dos homens da Província. Winter observava que:
Os “homens machos” da Província de São Pedro pareciam achar que toda a
preocupação artística era, além de inútil, efeminada e por isso olhavam com
repugnada desconfiança para os que se preocupavam com poesia, pintura ou
certo tipo de música que não fossem as toadas monótonas de seus gaiteiros
e violeiros. (VERISSIMO, 2002, p.49).
Em compensação à desvalorização das artes, o jogo era levado muito a sério,
podendo-se apostar até mesmo a vida. Muitas vezes, os jogos tornavam-se perigosos e
violentos. De acordo com Paixão Côrtes (1985, p.22), as diversões naqueles agrupamentos
humanos constituídos quase exclusivamente por homens, se limitavam à corrida de cavalos,
ao jogo de cartas, e, quando muito à utilização de arma branca para jogos de destreza.
observava Nicolau Dreys (1990, p.122-123) o “vício” dos rio-grandenses pelo
jogo:
entregues ao jogo com furor, esse vício, que parecem praticar como um
meio de encher o vácuo de seus dias, é a fonte dos roubos e às vezes das
mortes que cometem. Joga o gaúcho tudo o que possui, dinheiro, cavalo,
armas, vestidos, e sai às vezes do jogo inteiramente ou quase nu [...].
Geralmente, jogar cartas e fumar o cigarro são os gostos dominantes do
gaúcho; para jogar, no primeiro lugar que se encontra, mesmo no meio do
campo, o gaúcho estende no chão o seu chiripá, o qual serve para receber as
149
cartas, enquanto que a faca resta fincada em terra do lado direito de cada um
dos concorrentes, para estarem prontos a qualquer acontecimento ou dúvida
que possa ocorrer.
Carl Winter também presencia a violência que envolvia os jogos entre os homens:
Havia nas gentes da Província em certo acanhamento desconfiado que nos
homens se transformava num ar agressivo. Falavam alto, com jeito
dominador, de cabeça erguida. Entre fascinado e assustado, Winter assistira
a várias carreiras em cancha reta, e mais de uma vez o haviam chamado
para atender algum homem que fora estripado num duelo por causa duma
“diferença de pescoço” ou de qualquer outra dúvida quanto à decisão do
juiz. Gostava de ver certo tipo de gaúcho que se sentava no chão para jogar
cartas e antes de começar o jogo cravava sua adaga na terra, entre as pernas
abertas, numa advertência muda ao adversário. (VERISSIMO, 2002, p. 48-
49).
Se a relação entre os homens freqüentemente assumia uma forma violenta, por outro
lado, a relação entre os homens e seus cavalos manifestava-se de forma afetiva. Mais do que
um meio de transporte, o rio-grandense via no cavalo um companheiro, uma força
indispensável no pastoreio e na guerra. Sendo assim, tratava-o bem, enfeitava ricamente seu
fiel amigo com aparatos de prata, e normalmente, dava-lhe mais valor que à mulher. Carl
Winter assinala:
E a importância que o cavalo tinha na vida da Província! Para os
“continentinos” o cavalo era um instrumento de trabalho e ao mesmo tempo
uma arma de guerra, um companheiro, um meio de transporte; para alguns
gaúchos solitários as éguas serviam eventualmente de esposa. Winter
conhecia ali homens que à força de lidar com cavalos começavam a ter
no rosto traços eqüinos. (VERISSIMO, 2002, p.48).
De acordo com Carlos Reverbel (1996, p.31), tendo-se formado no Rio Grande do
Sul uma sociedade de pastores e cavaleiros, nada mais natural que o culto do gaúcho ao
cavalo. E a função desse animal foi primordial em todos os momentos: nos períodos de guerra
e paz, nos entreveros e cargas de lança, nas arreadas e nas tropeadas. Sem a utilização do
cavalo, o laço e as boleadeiras, instrumentos indispensáveis no trabalho e no domínio sobre o
gado, teriam sua utilidade muito limitada. Segundo esse autor:
150
Os estancieiros antigos, mesmo os muito ricos, tinham quase sempre um
viver agreste, morando em casas que primavam pela falta de conforto e não
apresentavam qualquer adorno. Era a regra geral, com as exceções de praxe,
naturalmente. Esta rusticidade, entretanto, desaparecia por completo,
cedendo lugar a verdadeira ostentação, quando se tratava de artigos de
montaria ou de uso de cavaleiro – as esporas de prata, os cabos do rebenque
lavrados até a ouro, as guaiacas recamadas de enfeites, as facas finamente
ajaezadas, os aperos de prata trançada, os palas de pura seda, os ponchos de
vicunha franjada. (REVERBEL, 1996, p.35).
Todas estas características que Winter percebe nos homens da Província, como o
código de honra baseado no machismo, o gosto pelo jogo, o tratamento dispensado ao cavalo,
são traços herdados do tipo social do gaúcho antigo, que na caracterização de Antônio
Hohlfeldt (1998, p.23-24), é anterior à Revolução Farroupilha, e deixou marcas nas gerações
que o sucederam:
O que se pode dizer, em síntese, é que o gaúcho, enquanto tipo social,
surgira e se consolidara nestes horizontes sem-fim da paisagem, nos campos
sem fronteira, cuja propriedade frouxa e pouco utilizada permitia a longa
cavalgada em linha reta, tal como faz o Capitão Rodrigo logo depois do
nascimento de seu primeiro filho. [...] Esse gaúcho andejo, pobre porque
sem qualquer propriedade, leal e valoroso, quando muito possuía e
defendia, como seu, o cavalo, os aperos, suas roupas e armas. Dormia ao
relento, trabalhava quando lhe dava gana, negava-se ao comando de
qualquer um que não reconhecesse de livre e espontânea vontade, coragem
e valentia superiores ou ao menos semelhantes às suas. Gostava do jogo,
não levava desaforo de ninguém e seu código de honra incluía a vingança.
A mulher servia-lhe em geral apenas como fêmea, podendo ser
eventualmente substituída por algum animal. Não desrespeitava a mulher,
mas não a valorizava. Entre a mulher e um cavalo, certamente ficava com
esse último, conforme se lê em diferentes textos.
Essas características também são manifestadas pelas personagens masculinas com as
quais o Dr. Winter mantém maior contato: os descendentes do Capitão Rodrigo Cambará,
protótipo do gaúcho, Bolívar e seu filho Licurgo, e em menor intensidade, nos descendentes
da família Terra, Juvenal e seu filho Florêncio. Entretanto, Carl Winter percebe que os
representantes dessas duas famílias apresentam certas diferenças em termos de
comportamento. Enquanto os machos Cambará, por terem o sangue do Capitão Rodrigo, que
segundo a descrição de uma das personagens era “chineiro, jogador, gostava de empinar o seu
copo, vivia metido em fandangos e não era amigo do trabalho”(VERISSIMO, 2002, p.96),
possuem os gestos mais teatrais, são impetuosos e predispostos à guerra, os homens Terra,
151
portadores do sangue de Ana Terra e Pedro Missioneiro, são mais inibidos, pacíficos e de
poucas palavras.
Um exemplo dessa diferença podemos observar na seguinte passagem, que relata a
forma com que os primos, Bolívar e Florêncio, reagiram quando da chegada de Luzia Silva à
vila de Santa Fé:
[…] desde o momento em que a rapariga chegara, Bolívar Cambará e
Florêncio Terra ficaram fascinados por ela, cercaram-na de atenções e não
perdiam pretexto para visitar o Sobrado. Faziam isso, porém, de maneira
diferente. Bolívar não escondia seus sentimentos: mostrava-se como era
sôfrego, apaixonado, explosivo. Florêncio, entretanto, mantinha-se
reservado, silencioso, mas duma fidelidade canina; portava-se, em suma,
como um cachorro triste que temendo ou sabendo não ser querido pela
dona limitava-se a ficar de longe a contemplá-la com olhos cálidos e
compridos, cheio dum amor dedicado mas que não tem coragem de se
exprimir. (VERISSIMO, 2002, p.18).
Dessa forma, Carl Winter não faz a caracterização geral do homem rio-grandense,
mas também percebe que vários tipos de gaúchos, identificando suas particularidades.
Entretanto, quando são requisitados para defender a Província, todos, apesar das diferenças,
gostando ou não, assumem seu posto na batalha e o abandonarão quando a guerra terminar
ou quando a morte os assaltar.
Pode-se dizer, portanto, que a partir da ótica de Carl Winter, que observa os homens
da Província de São Pedro e reflete sobre seu código de honra, baseado no machismo e na
violência, Erico Verissimo consegue concretizar sua intenção de desconstruir a imagem
idealizada da sociedade gaúcha. Como lembra Theodore R. Young (1997, p.7), em vez de
glorificar as guerras e seus generais, os grandes coronéis estancieiros, a estrutura social
patriarcalista, a obra de Erico Verissimo os critica. E ele faz isso ao destacar o papel não
celebrado do povo humilde no passado da região, ao ressaltar a função dos peões que
constituíram a força de guerra na defesa das fronteiras da Província.
Enquanto os homens possuíam uma vida agitada, sempre às voltas com o trabalho
nas estâncias, fazendo rodeios, laçando e carneando o gado, curando bicheiras, fazendo
tropas, divertindo-se com jogos e fandangos e, inevitavelmente, servindo de soldados nas
guerras, Carl Winter nota que as mulheres, pelo contrário, pouco destaque tinham na vida
social da Província:
152
O destino das mulheres naquele fim de mundo era bem melancólico. Não
tinham muitos direitos e arcavam com quase todas as responsabilidades.
Sua missão era ter filhos, criá-los, tomar conta da casa, cozinhar, lavar,
coser e esperar. Dificilmente ou nunca falavam com estranhos e Winter
sabia que um forasteiro que dirigisse a palavra a uma senhora corria o risco
de incorrer na ira do marido, do pai ou do irmão dessa senhora, que lhe viria
imediatamente “tirar uma satisfação”. (VERISSIMO, 2002, p.48).
O campo de atuação das mulheres, portanto, situava-se dentro dos limites da própria
casa e do quintal. Possuíam pouca ou nenhuma escolaridade e, eventualmente, saíam de casa
para visitar alguma comadre ou ir à missa. A principal função das mulheres era cuidar do
marido e criar os filhos para depois vê-los partirem para a guerra, na esperança de que
voltassem um dia. Não havia na Província, mulher que durante sua vida não tivesse esperado
pelo fim de uma guerra para rever o pai, os irmãos, o marido ou os filhos, e não raro, esse
reencontro jamais se concretizava. Na observação de Carl Winter:
Eram estas em sua maioria analfabetas ou de pouquíssimas letras e tinham
uma assustadora tendência para a obesidade. (Trude! Trude! Toma
cuidado.) Eram tristes e bisonhas, e as contínuas guerras quase não lhes
permitiam tirar o luto do corpo; por isso traziam nos olhos o permanente
espanto de quem es sempre a esperar uma notícia trágica. (VERISSIMO,
2002, p.48).
A aparência das mulheres rio-grandenses chamava a atenção de Carl Winter pela
tendência à obesidade. Limitadas ao âmbito doméstico, com pouca atividade física e afeitas a
uma alimentação abundante, era natural que engordassem. O Dr. Winter, freqüentador do
Sobrado, ficava surpreendido com a quantidade de pratos que havia nas refeições das famílias
com boas condições financeiras da Província: “Nunca menos de seis, e às vezes até dez. Não
raro numa refeição serviam-se quatro ou cinco variedades de carne, e nenhuma verdura.”
(VERISSIMO, 2002, p.101). No entanto, o médico entendia que os continentinos preferiam as
mulheres desse tipo, mais encorpadas, pois possivelmente comparavam-nas com o gado:
A tendência que as mulheres daquela província tinham para engordar! Com
exceção das filhas de Florêncio, as outras moças eram rechonchudas,
tinham ancas largas e seios fartos. Os gaúchos pareciam gostar desse tipo,
pois talvez as julgassem como julgavam as vacas leiteiras: quanto maior o
úbere, mais leite. Depois que casavam, então, aquelas fêmeas botavam
153
corpo e ficavam como a esposa do Veiga da Casa Sol, que ali estava junto
do vigário, apertada num vestido de cetim azul-marinho, com sua cara de
bolo de milho abatumado, o seu duplo queixo duma moleza e duma
brancura de requeijão, a mirar o declamador com seus olhinhos
empapuçados em que havia uma vaga luz de espanto... Mein Gott!
(VERISSIMO, 2002, p.350-351).
Dentre as mulheres que aparecem em O Continente, convém destacar as impressões
do Dr. Winter a respeito de duas personagens principais: D. Bibiana Terra Cambará e Luzia
Silva Cambará. A maior parte da caracterização dessas figuras femininas na narrativa é
realizada pela ótica do médico alemão. Winter observa, com riqueza de detalhes, essas duas
personagens que, cada qual à sua maneira, não correspondiam ao perfil das mulheres rio-
grandenses.
Comecemos pela neta de Ana Terra. Na opinião do Dr. Winter, “com umas duzentas
matronas como aquela estaria garantido o futuro da Província.” (VERISSIMO, 2002, p.48). É
evidente o sentimento de respeito e admiração que Carl Winter nutre por D. Bibiana.
Considera-a dona de uma personalidade forte e persistente, uma mulher prática, que resolve
os problemas sem muitos rodeios e não mede esforços para defender o que é seu.
Como residia em Santa alguns anos e freqüentava assiduamente o Sobrado,
Carl Winter adquire a confiança de Bibiana, não por ser o médico da família, mas por
causa de suas opiniões lúcidas e conselhos sensatos, o que origina uma sólida e sincera
amizade entre eles.
Winter acompanha de perto o plano secreto de Bibiana em reconquistar as terras de
seu pai, Pedro Terra, tomadas por Aguinaldo Silva e sobre as quais o pernambucano havia
mandado construir o mais imponente casarão da vila, o Sobrado. Estimulando o casamento de
seu filho Bolívar com Luzia, neta de Aguinaldo, Bibana conseguiria retomar as terras de seu
pai, e, mais que isso, com a morte do pernambucano, seu filho seria dono de tudo: do
Sobrado, das fazendas e das milhares cabeças de gado do sogro. E então ela, Bibiana, voltaria
para a terra que sempre pertencera a sua família.
Todos os planos de Bibiana realmente se efetivam, mas não tarda muito e o preço
pela conquista é cobrado: a difícil convivência com a nora. A personalidade doentia de Luzia
transforma a vida de Bolívar em um pesadelo, que ia de ofensas verbais até agressões físicas
e, pela primeira vez, Bibiana fala francamente com o Dr. Winter sobre a possibilidade de
livrar-se de Luzia, internando-a num hospício:
154
Winter teve uma repentina sensação de frio interior. E refletiu
imediatamente: “Com Luzia no hospício, D. Bibiana completa a sua
conquista do Sobrado”. Mau grado seu, sentiu-se chocado. Costumava
considerar-se um realista e encarar as criaturas humanas com cinismo, sem
nunca esperar delas nobreza de sentimentos e altruísmo. [...] A sugestão de
Bibiana deixara-o quase escandalizado. Habituara-se a ver nela uma mulher
de caráter e oh, as frases feitas, os sentimentos feitos! de coração bem
formado. Via-a agora como sob uma nova luz fria, crua e reveladora: tinha a
medida exata de sua capacidade de ódio. Mas... por que não virar a coisa do
lado avesso e dizer de sua capacidade de amor? Não estaria Bibiana a
sugerir aquelas coisas pelo muito que amava o filho e o Sobrado? E aquela
atitude não revelaria, em última análise, o espírito prático de uma mulher
realista que, no dizer do povo da Província, costumava dar nomes aos bois?
[...] Para a sogra refletiu Winter Luzia não passava duma erva daninha
que vicejava maleficamente no jardim do Sobrado e que era preciso extirpar
antes que ela sufocasse as plantas úteis e belas. (VERISSIMO, 2002,
p.111).
Embora surpreso com a revelação da personalidade de Bibiana, Carl Winter não a
recrimina. Pelo contrário, admira sua coragem em meio a uma sociedade na qual as mulheres
não tinham voz e muito menos atitude. Bibiana realmente demonstrava ser uma mulher
prática, persistente, que não mediria esforços para preservar sua família.
Com o nascimento de Licurgo, filho de Bolívar e Luzia, a relação entre sogra e nora
fica ainda mais complicada, pois além de disputarem o filho (Bolívar), agora disputavam o
neto. Bibiana queria criar Licurgo do seu jeito, porque “aquele menino que tinha o sangue do
Cap. Rodrigo Cambará, ia ser o dono do Sobrado, dos campos do Angico e de milhares de
cabeças de gado.” (VERISSIMO, 2002, p.125). O maior desejo de Bibiana era ver o neto
crescer, tornar-se homem e encher a casa de mais descendentes do sangue Terra-Cambará.
No entanto, após a morte de Bolívar pelos capangas de Bento Amaral, Bibiana vive
tempos de apreensão. Além dos conflitos com a nora, tem medo de que Luzia resolva ir
embora de Santa Fé e leve o filho consigo. Sendo assim, Bibiana se encarrega de afastar, à sua
maneira, todos os pretendentes que se aproximavam de Luzia, que embora viúva, ainda era
jovem e bonita. Enquanto isso, os anos passam e Licurgo vai se tornando um rapaz. Sua
educação escolar fica a cargo do Dr. Nepomuceno, do Pe. Otero e do Dr. Winter. as coisas
da vida, que para Licurgo constituíam a lição mais importante, eram-lhe ensinadas por
Fandango, o peão da estância.
Em conversa com Florêncio Terra, certa vez, o médico alemão explica
metaforicamente a desgastante relação entre sogra e nora, utilizando a linguagem da região:
155
- Como é que elas vivem naquela casa, doutor?
- Odiando-se.
- Mas como é que duas pessoas que se odeiam assim podem viver debaixo
do mesmo teto?
- Estão jogando uma carreira.
- Como?
- Sim, uma carreira. Não em cancha reta, mas numa cancha cheia de curvas.
A raia da chegada é a morte. que nessa carreira quem chegar primeiro
perde...
- Perde?
- O Sobrado e o menino. (VERISSIMO, 2002, p.183).
Evidentemente havia uma disputa acirrada entre as mulheres do Sobrado, e seria
vencedora aquela que vivesse por mais tempo. Bibiana estava em desvantagem pela idade,
tinha muitos anos a mais que Luzia, poderia morrer primeiro, entretanto, Luzia estava doente,
um tumor maligno crescia em seu corpo, o que poderia encurtar-lhe o tempo de vida. E nem
uma nem outra pretendia abandonar seu posto tão facilmente.
O Dr. Winter sempre falava de forma franca com Bibiana, e esta não lhe guardava
mais segredos. Com os anos de convivência, a intimidade entre os dois era tamanha que
podiam entender-se apenas pelo olhar. Bibiana, sendo uma mulher reservada, que o
demonstrava seus sentimentos, encontrou no médico alemão um amigo leal, discreto, para
quem podia contar até seus pensamentos mais íntimos. “Vosmecê é a única pessoa que me
entende direito.” (VERISSIMO, 2002, p.237). Em suas longas conversas, falavam sobre
Luzia, sobre Licurgo, sobre o futuro, sobre as guerras... e Carl Winter entrevia, nas histórias
contadas por Bibiana, o destino solitário das mulheres da Província de São Pedro, fadadas à
eterna espera:
- De vez em quando penso na minha mãe – prosseguiu Bibiana com sua voz
calma e seca, - no meu pai, na minha avó e no que eles fizeram e sofreram,
e nos trabalhos que passaram. De que serviu tudo isso? Me diga, de que
serviu? Aqui estamos nós sofrendo, considerando, trabalhando, esperando.
Primeiro esperei o meu marido que foi pra guerra; e no dia que voltou
tive ele por uns minutos, e logo em seguida foi morto pelos bandidos dos
Amarais. Esperei que o Boli nascesse, que ele crescesse e tivesse um filho.
Agora Boli está morto, o filho está crescendo e eu esperando que ele fique
homem. Minha avó esperou muitas vezes o filho que tinha ido pra guerra.
Uma vez fiquei na minha cadeira me balançando dum lado pra outro e
esperando o Boli que tinha ido brigar com os castelhanos. Agora está aí essa
outra guerra braba que não acaba mais. Minha Nossa Senhora!
(VERISSIMO, 2002, p.233).
156
Winter aconselhava Bibiana no relacionamento com Luzia e na criação de Licurgo.
Desde que Bibiana fora morar no Sobrado por ocasião do casamento do filho, haviam se
passado dezessete anos. E durante esse tempo, dia após dia, sogra e nora suportavam a
presença uma da outra e custosamente conviviam sob o mesmo teto. Elas representavam duas
forças da mesma forma intensas, mas posicionadas em lados opostos. E Carl Winter
reconhecia, que em sua curiosa neutralidade, pendia em favor de Bibiana:
- Quase dezessete anos, não, D. Bibiana?
Ela sacudiu a cabeça, devagarinho.
- É verdade. Um tempão. Nenhuma guerra, que eu saiba, durou tanto.
Winter pensou na sua curiosa situação de neutro; e reconheceu que naquele
conflito ele mantinha uma neutralidade benevolente para com a sogra em
detrimento da nora. (VERISSIMO, 2002, p.236).
Winter constatava que também ali, no interior do Sobrado, travava-se uma guerra.
Mas não era uma guerra que se resolvia num duelo a adaga ou pistola, como costumavam
fazer os homens. Para enfrentar essa guerra era necessário ter ainda mais coragem, pois
acontecia dia a dia, hora a hora. Era uma guerra, na opinião de Bibiana, cuja principal arma
era a paciência.
Mais do que a paciência refletiu Winter as mulheres tinham uma
constância feroz no ódio. Não era um ódio que se concentrasse todo num
ímpeto para produzir um gesto de selvagem violência. Diferente do ódio
dos homens, que se fazia labareda devastadora, mas se extinguia logo, o
ódio das mulheres era uma brasa lenta que ardia, às vezes escondida sob
cinzas, e que durava anos, anos e anos... (VERISSIMO, 2002, p.240).
Flávio Loureiro Chaves (1972, p.81) chega a afirmar que dentre todas as guerras que
envolveram os homens ao longo da narrativa, “o verdadeiro combate de O Continente e o
mais cruel de todos – não foi travado nas coxilhas, mas no interior do sobrado, entre Bibiana e
Luzia”. Na luta decisiva entre as duas mulheres, estavam em jogo os próprios fundamentos
regentes de O Continente: a posse do espaço físico, simbolizado pelo Sobrado, e a posse de
uma criança, Licurgo, a garantia da descendência de Terras e Cambarás. Tratava-se, segundo
o autor, de uma luta entre a vida e a morte, transferida dos campos de batalha para o conflito
de dois caracteres e, o triunfo de Bibiana asseguraria a restauração e a permanência da vida.
157
Muitos anos depois da morte de Luzia, quando o neto era homem feito, durante
uma festa no Sobrado, ocasião em que Licurgo daria alforria a seus escravos, Bibiana
conversa com Carl Winter e este percebe que havia algo preocupando a amiga:
De novo se fez silêncio entre os dois amigos. O médico reclinou a cabeça
contra o respaldo da cadeira e cerrou os olhos. Alguma coisa havia
acontecido, e ele sabia que Bibiana acabaria por contar-lhe tudo: era
questão apenas de tempo. Podia esperar. A velha era assim. Quando estava
doente o que era raro fazia mil rodeios antes de admitir que sentia
alguma coisa; depois é que, aos poucos, ia contando suas dores, mas
achando que não tinham importância, iam passar ou podiam ser aliviadas
com seus chás caseiros. (VERISSIMO, 2002, p.359).
O que preocupava Bibiana era o fato de que Licurgo, mesmo de casamento marcado
com a prima Alice, mantinha uma amásia e não pretendia se livrar dela. Bibiana não sabia
bem o motivo pelo qual não gostava de Ismália, mas depois descobriu e revelou-o a Winter:
- Nunca me agradei da cara dessa china, a Ismália. No princípio eu não
sabia por quê. Agora sei...
Ficou esperando que o Dr. Winter perguntasse: “Por quê?”. Mas ele
permaneceu calado, os olhos fitos na amiga. [...] Bibiana inclinou-se para o
médico e esclareceu:
- O diabo da menina tem na cara, nos olhos, no jeito, qualquer coisa que
lembra a mãe do Curgo.
Winter encarou por alguns instantes a interlocutora e depois, levantando-se
também, disse:
- É verdade. A Luzia não está tão morta como muita gente pensa.
Lado a lado e silenciosos, os dois amigos voltaram a passo lento para a
festa. (VERISSIMO, 2002, p.366).
De fato, Luzia continuava viva na lembrança de Bibiana, povoava seus sonhos, e
agora, transfigurava-se em Ismália, a amante do neto. De forma especial, a imagem de Luzia
também permanecia na lembrança de Carl Winter.
Desde a primeira vez que o Dr. Winter vira a neta de Aguinaldo Silva, percebeu que
estava diante de uma mulher diferente, misteriosa. Uma mulher perturbadora, que ele chega a
comparar com Melpômene
14
, a musa da tragédia grega:
14
Segundo Luiz A. P. Victória (2000, p.96), na mitologia grega, Melpômene aparece com uma fisionomia grave
e olhar severo. Ricamente vestida, numa das mãos empunha um cetro ou uma máscara, por vezes algumas coroas
ou um punhal ensangüentado.
158
Havia naquela mulher de dezenove anos qualquer coisa de perturbador: uma
aura de drama, uma atmosfera abafada de perigo. Winter sentira isso desde
o momento em que pusera os olhos nela e por isso ficara, com relação à
neta de Aguinaldo, numa permanente atitude defensiva. Numa terra de
gente simples, sem mistérios, Luzia se lhe revelara uma criatura complexa,
uma alma cheia de resfolhos, uma pessoa enfim para usar da expressão
das gentes do lugar “que tinha outra por dentro”. (VERISSIMO, 2002,
p.36).
É justamente ao Dr. Winter que cabe grande parte da narração do capítulo dedicado à
Luzia Silva. O médico alemão sente algo de trágico na figura de Luzia Silva e nos
acontecimentos que se desenrolam perante seus olhos, no entanto, segundo Regina Zilbermam
(2004, p. 92), o trágico não se localiza apenas no destino previsível das personagens, como o
médico quer, mas também no andamento do drama. Carl Winter percebe as ações de Luzia e
interpreta-as à luz do seu conhecimento da espécie humana e da cultura local.
Luzia fascinava todos os homens de Santa Fé, mas não somente por sua beleza. Ela
tinha vindo da cidade, possuía roupas elegantes e gestos delicados, sabia falar bonito, recitar
versos, era rica, e ainda por cima, tocava tara. Luzia contrastava com o ambiente e com as
pessoas de Santa Fé, era como uma personagem deslocada de seu cenário habitual.
Ao conhecê-la, Winter ficara todo alvoroçado como um colecionador de
borboletas que descobre um espécime raro no lugar mais inesperado do
mundo. Ao contrário, porém, do que sentiria um colecionador, não desejou
apanhar aquela borboleta em sua rede: ficou, antes, encantado pela idéia de
seguir-lhe o vôo, de observá-la de longe, viva e alegre. Que mistérios
haveria dentro daquela cabeça bonita? (VERISSIMO, 2002, p.36).
O que mais chamava a atenção do Dr. Winter eram os olhos de Luzia. O médico não
conseguia definir-lhes a cor; parecia que mudavam de cor conforme o dia. Às vezes eram
esverdeados, outras vezes estavam cinzentos, mas tinham “uma fixidez e um lustro de vidro e
pareciam completamente vazios de emoção”, por isso, Winter julgou-a incapaz de amor por
alguém, pois olhava pessoas e objetos com a mesma indiferença. O médico gostaria de saber
o que se passava nos pensamentos daquela estranha mulher. Aos poucos descobriria, mas o
que pressentia dava-lhe um frio horror.
mais adiante é que Carl Winter pôde concretizar em sua mente a imagem da neta
do pernambucano com maior clareza, e a musa da tragédia deu lugar à teiniaguá:
159
A vasta sala de visitas estava muito clara de sol e Carl notou que o reflexo
tricolor da bandeirola duma das janelas tingia a face e o pescoço de Luzia.
Uma estigmatizada fantasiou ele. Achou-a perversamente linda. Estava
ela sentada no sofá ao lado do noivo, vestida de crinolina verde, de saia
muito rodada com aplicações de renda; tinha cravado nos cabelos dum
castanho profundo grande pente em forma de leque, no centro do qual
faiscava um brilhante.Winter pensou imediatamente na bela e jovem bruxa
moura que o diabo, segundo a lenda que corria pela Província, transformara
numa lagartixa cuja cabeça consistia numa pedra preciosa de brilho
ofuscante. Como era mesmo o nome do animal? Ah! Teiniaguá. A sua
Musa da Tragédia havia agora virado teiniaguá. (VERISSIMO, 2002, p.57).
A combinação de elementos: a luz refletindo no rosto da moça, a roupa de coloração
verde e a pedra brilhante na cabeça, levou Carl Winter a associar Luzia à Teiniaguá,
personagem da lenda que corria pela região missioneira.
Segundo Flávio Loureiro Chaves (1972, p.81), Simões Lopes Neto conheceu a lenda
que muito tempo fazia parte do folclore rio-grandense, a princesa moura transformada em
lagartixa para partilhar os segredos do demônio, cuja cabeça consistia numa pedra fulgurante
que cegava e destruía os homens que dela se aproximassem. Em A Salamanca do Jarau,
Simões Lopes transpôs a fonte popular em linguagem literária e Erico Verissimo recolheu-a
para construir a personagem de Luzia Silva, que deveria aparecer como reverso do eixo moral
característico das descendentes de Ana Terra.
Regina Zilbermam (2004, p.91) confirma esta hipótese em estudo que compara o
texto de Simões Lopes Neto com o de Erico Verissimo, e diz que o escritor de O Continente,
ao intitular “A Teiniaguá” o episódio em que se narram as desventuras da
segunda geração dos Cambará, apropriou-se dos fatores constituintes da
lenda sulina. Seu modelo, porém, não proveio da tradição popular, mas do
texto elaborado por Simões Lopes, pois corroborou as alterações
incorporadas ao relato folclórico, a começar pelo emprego, no título, da
forma feminina.
Assim, em oposição às características de integridade moral e preservação da vida,
próprias das mulheres descendentes de Ana Terra, Luzia representa a força de destruição, a
própria imagem da morte. Nas palavras de Flávio Loureiro Chaves (1972, p.81), Luzia se
revela “uma fêmea devoradora onde se misturam o sexo e a violência, que atrai o macho
como a Teiniaguá lendária e o aniquila, pois sua força é força de destruição.”.
160
Da mesma forma que a feiticeira moura seduz o sacristão da lenda de Simões Lopes
Neto, Luzia enfeitiça Bolívar na narrativa de Erico. Bolívar sucumbe à atração exercida pela
estrangeira, que seduz e conquista quem dela se aproxima. Além do mais, seria através de
Luzia/teiniaguá, que Bolívar conquistaria riqueza, a mesma pretensão do sacristão da lenda ao
capturar a lagartixa, prendendo-a dentro de uma guampa.
É, contudo, no dia do noivado entre Luzia e Bolívar, acontecimento simultâneo ao
enforcamento do negro Severino, que o Dr.Winter comprovaria o verdadeiro caráter da
teiniaguá, testemunhando o prazer que lhe proporcionava o sofrimento alheio:
O carrasco experimentou o corredio e depois colocou a corda em torno
do pescoço do escravo. Havia agora na praça um silêncio de cemitério. De
repente um galo cantou atrás da igreja. O Dr. Winter voltou a cabeça para
Luzia. E foi no semblante da teiniaguá que ele viu o resto da cena macabra.
Primeiro o rosto dela se contorceu num puxão nervoso, como se ela tivesse
sentido uma súbita dor aguda. Depois se fixou numa expressão de profundo
interesse que aos poucos se foi transformando numa máscara de gozo que
pareceu chegar quase ao orgasmo. (VERISSIMO, 2002, p.71-72).
O médico diagnostica, perplexo, a doença mental de Luzia durante o enforcamento
do negro. Tempos depois, teria a confirmação do sadismo de Luzia, quando da morte de
Aguinaldo Silva, o avô da moça:
Winter olhava para Luzia e via que ela estava gozando naquele momento.
Tinha a respiração ofegante e um brilho meio embaciado nos olhos claros.
Agora, à luz das velas, Winter via-lhes melhor a cor: eram verdes, não havia
a menor dúvida, dum tom que o mar assume em certos dias de sol fraco.
(VERISSIMO, 2002, p.84).
Outros acontecimentos também comprovam a personalidade doentia de Luzia, a
relação entre o sadismo e o prazer sexual: os depoimentos de Bibiana sobre os castigos
corporais que Luzia infligia em Bolívar, a ocasião em que o casal viaja para Porto Alegre e
Bolívar presencia a satisfação da mulher ao contemplar os cadáveres, vítimas da epidemia de
cólera-morbo.
Dessa forma, à medida que avança a ação da narrativa, aumentam os sinais da
doença mental de Luzia, e a isso vêm somar-se as dores provocadas por um tumor maligno no
estômago, diagnosticado pelo Dr. Winter. O médico aliviava com remédios as dores de sua
161
paciente e via, sem nada poder fazer para salvá-la, que Luzia definhava aos poucos. Nem ao
menos podia confortá-la com palavras, pois conhecia seu caráter e ela não as aceitaria. Luzia
sentia prazer com o próprio sofrimento, numa atitude masoquista, como revela o seguinte
trecho:
De resto ela gostava de falar da morte que se aproximava; era com gozo
que, numa antecipação, descrevia-se a si mesma metida numa mortalha
negra, dentro dum esquife, ladeada por quatro círios. Era sorrindo que
antevia o velório, descrevia as pessoas que chegavam e mencionava as
coisas que iriam dizer ou pensar da defunta. Em pensamentos acompanhava
o próprio enterro a o cemitério, via quando desciam o caixão ao fundo da
cova, ouvia o ruído cavo da terra a cair na tampa do esquife. Winter estava
presente quando um dia ela repetiu essa estúpida história diante do filho
com tanta riqueza de detalhes mórbidos, que o rapaz rompeu a chorar e
acabou fugindo da sala. (VERISSIMO, 2002, p.217).
Nos últimos tempos, Luzia estava emagrecida e lida. A voz veludosa de viola de
antes, agora estava cansada e gasta. Mas mesmo agonizante, a teiniaguá não perdia o seu
feitiço, como revela Carl Winter na seguinte passagem:
não sabia mais ao certo o que sentia por aquela mulher. Logo que a
conhecera, desejara-a fisicamente duma forma mórbida que o assustava um
pouco. Depois fugira dela com certo horror. Agora o que sentia era pena
mesclada de curiosidade. Sempre que a via pensava naquele tumor que lhe
crescia no estômago com o viço maligno duma flor que se alimenta de
carne. Era-lhe inconcebível a idéia de desejar carnalmente uma mulher em
tais condições, pois isso seria quase uma inclinação necrófila...
(VERISSIMO, 2002, p.220).
O sentimento que Carl Winter nutria por Luzia, desde que a conhecera, era confuso e
perturbador. Sentia uma atração irresistível que o impelia a olhar para a moça. Ele próprio
reconhecia que se sentia atraído fisicamente por Luzia, mas era um desejo sem ternura, um
desejo frio e perverso”. Mais uma vez a teiniaguá exercia seu poder de sedução e nem mesmo
o Dr. Winter escapava desse feitiço:
Tinha uma voz grave e musical, uma voz achava Winter cujo registro
correspondia ao da viola. Era quente, úmida, profunda, veludosa tão
excitante que parecia vir-lhe do sexo e não da boca refletiu ainda o
médico. (VERISSIMO, 2002, p.58).
162
Mesmo sendo o médico da família, não foi o Dr. Winter que acompanhou o parto de
Luzia. Realizou-o, para alívio do médico, uma parteira da região, desobrigando Winter a ver
sua musa da tragédia numa “conjuntura tragigrotesca”. Em uma carta enviada a Koseritz, Carl
parece revelar, por um momento, o sentimento secreto que nutria por Luzia:
Vi-a poucas horas depois que a criança nasceu. Estava mais bela do que
nunca e seu rosto parecia irradiar luz e bondade. Sim, bondade, Carl.
Depois de tudo que tenho te contado dela, isso parece absurdo. Mas estou
te dizendo exatamente o que senti. Nesta hora, mein lieber Baron, eu a
amei. Ameia-a com ternura pela primeira vez, e esse amor durou
precisamente o tempo que passei naquele quarto que cheirava a incenso.
(VERISSIMO, 2002, p.115).
Numa mistura de atração física e amor proibido, afinal Luzia era esposa de Bolívar,
Carl Winter prefere não se comprometer. Se algum sentimento mais forte ele nutria pela
teiniaguá, prefere guardá-lo para si. No entanto, em algumas ocasiões esse desejo reprimido
acaba por revelar-se de forma intensa. No enterro de Bolívar, por exemplo, Winter sente uma
atração demoníaca por Luzia, que narra numa carta a Koseritz, para em seguida rasgá-la,
julgando ser uma confissão muito forte:
Naquele momento, meu caro, tive um vislumbre da besta que dorme dentro
de cada um de nós, e o que senti me assustou, e até agora no momento em
que te escrevo ainda me perturba. É que me surpreendi a desejar violenta e
carnalmente Luzia Cambará, ali no cemitério, naquele momento mesmo em
que ela contemplava pela última vez o rosto do marido defunto. E de
mistura com esse desejo eu senti náusea, como se meu sexo se tivesse
transferido para a boca do estômago. (VERISSIMO, 2002, p.152).
De certa forma, Carl Winter e Luzia Silva apresentam algumas características
semelhantes na narrativa, o que também pode justificar a atração que o médico sentia pela
neta do pernambucano. Os dois são forasteiros, cuja verdadeira origem é desconhecida: Carl
Winter aparece ao Rio Grande do Sul como refugiado político da Alemanha; quanto à Luzia,
sabe-se que seu avô Aguinaldo Silva confessa ao padre que a adotou de pais desconhecidos
num colégio do Rio de Janeiro. Ambos são pessoas instruídas, com um nível de escolarização
163
superior às pessoas nascidas em Santa Fé. Tanto Carl Winter como Luzia apreciam as artes:
música, teatro, museus, e igualmente sentem a falta dessas coisas em Santa Fé, queixando-se
da vida que levavam ali, do isolamento, da escassez de informação, da distância entre os
povoados, da falta de convívio social com pessoas do mesmo nível intelectual. Além disso, os
dois envolvem-se em discussões políticas com os outros representantes da intelectualidade, o
Dr. Nepomuceno e o Pe. Otero, sendo que Luzia é recriminada pelos moradores de Santa Fé,
por se meter em conversas com homens e divulgar a convivência igualitária entre os sexos.
Ambos são ateus e manifestam seus pontos-de-vista heréticos e, por fim, os dois são artistas:
Winter toca violino, Luzia toca cítara, mas enquanto a mulher elabora canções, o médico
apenas reproduz melodias de autores consagrados: Mozart, Schubert, Haydn.
De acordo com Maria da Glória Bordini (1995, p.222):
Luzia Silva Cambará é a contrapartida feminina de Winter, num sentido
similar quanto ao fato de ser a única mulher culta do lugar, mas divergente
no que diz respeito ao comportamento social. Luzia é vista pela vila como
mulher “assanhada”, porque conversa sobre política, guerra e morte sem
nenhuma delicadeza feminina, seduzindo os homens que a ouvem mais por
sua beleza e fluência retórica do que pelas idéias que expressa e que os
chocam profundamente.
Por fim, devemos ainda mencionar as primeiras impressões a respeito de outra figura
feminina relevante na narrativa, a personagem Maria Valéria, realizadas também pelo Dr.
Winter. A sobrinha de Bibiana, que seria sua substituta a partir de O Retrato, quando
mocinha, tem contato com o médico alemão, principalmente durante as festas e jantares
realizados no Sobrado. Em uma dessas ocasiões, Carl Winter a observa mais demoradamente:
Tinha uma simpatia particular por aquela rapariga que toda a gente achava
feia, mas na qual ele descobria um encanto secreto e meio áspero, muito
mais atraente para seu gosto do que a “boniteza” comum de Alice. Sempre
que a via, muito alta, tesa e esbelta, o rosto alongado, os grandes olhos
negros um pouco saltados, o nariz longo e fino, a boca rasgada de expressão
um tanto sardônica ele não podia deixar de fazer uma comparação:
“comprida e aguda como uma lança”. (VERISSIMO, 2002, p.305).
Winter percebia que diante dele se encontrava uma criatura complexa, uma
“personalidade de pederneira”, comparada à tia Bibiana, o que vem a se confirmar na parte
164
final de O Continente. Durante o cerco ao Sobrado, Maria Valéria enfrenta Licurgo,
defendendo a vida da irmã Alice e dos sobrinhos Rodrigo e Toríbio. A partir desse fato, ela
assume a missão de Bibiana na preservação da vida: manter a continuidade dos Terra
Cambará.
Nesse sentido, a visão de Carl Winter já previa o papel das mulheres do Sobrado para
a trama de O Tempo e o Vento. Ao observar Bibiana e Maria Valéria, o médico alemão
percebe a personalidade forte das mulheres Terra, que defendem a família e as posses a
qualquer preço, seja enfrentando uma teiniaguá ou a ira de um homem macho.
Para Flávio Loureiro Chaves (2001, p.94), enquanto os guerreiros e caudilhos se
destruíam na coxilha, manchando de sangue os campos, a continuidade da existência ficava
assegurada pelas personalidades verdadeiramente fortes das mulheres que defendiam o
Sobrado e escutavam o passar do vento na longa espera de que a paz voltasse a se estabelecer.
Na opinião do autor (1976, p.87), “é nas mulheres, sempre moralmente mais fortes do que os
seus homens, que se estabelece o sustentáculo do mundo que ameaça desabar” .
Sob essa perspectiva, portanto, os homens tornam-se personagens do presente, heróis
e guerreiros; as mulheres tornam-se força de preservação, cabe a elas assegurar a continuidade
de um mundo que se volta sempre para o futuro. Assim, em O Tempo e o Vento, como explica
Flávio Loureiro Chaves, enquanto a seqüência cronológica avançava mediante lutas
fratricidas de Cambarás e Amarais, gestos heróicos de Capitão Rodrigo e Licurgo, a visão do
mundo de Erico Verissimo, sua crença nos valores permanentes da vida, está expressa na saga
de Ana Terra, de Bibiana, de Maria Valéria:
Há um contraste explícito entre o masculino e o feminino, entre destruição e
preservação, como se aí residissem os dois pólos fundamentais da existência
na visão do mundo configurada pelo escritor. Por estranho que pareça, a
vida não se resolve nos combates e guerras que engolfam os homens, mas,
por assim dizer, no interior do Sobrado, onde a resistência das mulheres
assegura a continuidade dos dias e das coisas. (CHAVES, 1994, p.58).
Pode-se dizer, portanto, que é na preservação da vida, garantida pelas mulheres, e
não na destruição causada pelos homens mediante as guerras, que se expressa a ideologia
humanista do escritor de O Tempo e o Vento. A personagem Carl Winter, nesse sentido,
reflete a ideologia de Erico Verissimo ao entrever as forças de destruição e preservação que se
165
manifestavam no Sobrado, ao perceber o papel dos homens e das mulheres na configuração da
Província de São Pedro.
3.3 Admiração e rejeição
Como um europeu citadino do século XIX, Carl Winter via o Brasil como um lugar
pouco civilizado, habitado por selvagens” e “bárbaros”, atrasado na escala do progresso se
comparado com a Europa, e ainda, via o ambiente rural do Rio Grande do Sul como um
espaço tosco, associado ao atraso cultural e tecnológico. Entretanto, sentia-se
inexplicavelmente atraído pelo primitivismo do lugar e das gentes da Província, curioso por
descobrir suas particularidades.
Cabe lembrar que essa idéia sobre a sociedade brasileira/rio-grandense não povoava,
unicamente, os pensamentos de nosso ilustre doutor, ou seja, essa representação não pertencia
a um indivíduo isolado, mas fazia parte de toda a mentalidade da época, estando cristalizada
no imaginário da sociedade européia.
Como mencionamos anteriormente, a Europa do século XIX julgava-se civilizada
e culta, digna, portanto, de nomear e explorar os exóticos países do Novo Mundo. Para João
Cláudio Arendt e Cinara Pavani (2006, p.31), com base nos estudos de Baczko e Maffesoli, a
sociedade elabora representações que o dão múltiplos significados à realidade, como
também definem a própria ação que nela se concretiza. Essas noções, por sua vez, são
incorporadas ao acervo simbólico que compõe o imaginário social das coletividades e que
serve como referência para a atuação dos indivíduos.
Para Bronislaw Baczko (1986, p.311), o imaginário é responsável pelas
representações coletivas de uma determinada sociedade, contribuindo para a organização da
própria vida social. O imaginário tem a capacidade de regular a vida coletiva, designando
identidades, estabelecendo e distribuindo papéis sociais, exprimindo mitos que orientam as
crenças de um povo, e construindo códigos de comportamento. De acordo com esse autor,
através do imaginário social, uma sociedade consegue organizar-se de tal modo que cada
indivíduo encontra nela seu papel, sua identidade. A construção da identidade, por sua vez,
está relacionada à delimitação de um território e à definição de imagens acerca dos que
pertencem ao grupo ou não, dos amigos e inimigos, dos aliados e rivais.
Na definição de Michel Maffesoli (2001, p.4), o imaginário pode ser entendido como
uma construção mental, uma aura ou uma atmosfera, que envolve e ultrapassa os elementos
166
materiais da cultura, constituindo o estado de espírito de um povo. Nesse sentido, o
imaginário é sempre coletivo, pois é composto por um conjunto de imagens armazenadas pela
experiência coletiva, capaz tanto de orientar a ão dos indivíduos, como determinar a
produção de novas imagens.
Baseados nas definições desses autores, João Cláudio Arendt e Cinara Pavani (2006),
afirmam que é dentro desse processo de representações coletivas que se elaboram também os
imaginários da cidade e do campo:
Eles são responsáveis pela organização da vida social, atribuindo sentido às
identidades construídas dentro de cada um desses espaços, estabelecendo
limites, construindo referências, modelando comportamentos e
impulsionando a ação dos indivíduos. Em outros termos, os imaginários
determinam a construção de significados para os diversos espaços em que
se inscrevem as ações humanas. (ARENDT; PAVANI, 2006, p.31).
Assim, para o imaginário urbano, o campo tanto pode figurar como um espaço
bucólico, onde se idealiza o contato com a terra, a harmonia entre o ser humano e a natureza,
num esforço de resgate de raízes telúricas e primitivas relacionadas à origem da humanidade,
como também pode figurar como espaço canhestro e atrasado, estando associado ao atraso
cultural e tecnológico, à subordinação mental e à vida precária.
De fato, no imaginário de Carl Winter cabem as duas representações. Num primeiro
momento, insatisfeito com os acontecimentos na Alemanha, ele vem ao Brasil para recomeçar
a vida, para esquecer um amor fracassado no contato com o diferente, num ambiente
paradisíaco, acolhido pela natureza exuberante. A simplicidade da vida no campo deixava-o
fascinado e o prendia irresistivelmente a Santa Fé, como se lê nesse trecho:
A luz da tarde era doce, e andavam por toda a paisagem uns lilases rosados
positivamente fantásticos. Winter achava um grande encanto naqueles
quintais quietos ao anoitecer. Um porco fossando na lama, uma galinha
bicando o chão, um passarinho piando numa árvore, uma criança nua a
brincar com um osso, um cão vadio dormitando num vão de porta tudo
isso eram coisas que o deixavam inexplicavelmente enternecido.
(VERISSIMO, 2002, p.83).
A contemplação da natureza quase intocada, a rusticidade das coisas e o ser humano
em um estado mais primitivo conduzem Carl Winter, de certa forma, a uma volta ao paraíso
167
perdido, onde homem e natureza formavam um amálgama indissolúvel, idéia originada com
Rousseau e propagada pelo Romantismo, como já demonstramos anteriormente.
A busca pelas sociedades remotas manifesta-se explicitamente na vontade de Carl
Winter em conhecer as ruínas das Missões jesuíticas. Diante dos templos abandonados, semi-
destruídos e, em certas partes, cobertos pela vegetação, o médico alemão começa a fazer
considerações sobre o tempo e a História:
De certo modo o tempo histórico dependia muito do espaço geográfico. Na
Europa agora a humanidade se achava em pleno século XIX. Mas em que
idade estariam vivendo os habitantes de Santa e da maioria das vilas,
cidades e estâncias da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul?
Existiam vastas regiões do globo que ainda se encontravam no terceiro dia
da Criação. E o viajante que em meados do culo XVIII visitasse os Sete
Povos das Missões, haveria de encontrar ali uma esquisita mistura de Idade
Média e Renascimento, ao passo que se se afastasse depois na direção do
nascente ele como que iria recuando no tempo à medida que avançasse no
espaço, até chegar ao Continente de São Pedro do Rio Grande, onde entraria
numa época mais atrasada em que homens vindos do século XVIII com
suas roupas, armas, utensílios, hábitos e crenças se haviam estabelecido
numa terra de tribos pré-históricas, onde ficaram a viver numa idade
híbrida. (VERISSIMO, 2002, p.88).
O mesmo sentimento de fascinação perante o ambiente rural, ainda não corrompido
pelos centros urbanos, e alheio às transformações impostas pela industrialização, pode ser
visto nesta outra passagem, que corresponde a uma carta enviada por Carl Winter a Koseritz:
Se te contarem, Carlos, que morri embriagado numa sarjeta em Santa Fé,
podes acreditar na história, apenas com uma restrição: é que em Santa
não tem sarjetas pela simples razão de que não tem calçadas, como não
tem também lampiões nas ruas, e como, em última análise, não tem nada.
Talvez seja essa carência de tudo que me fascina e prende. (VERISSIMO,
2002, p.116).
Entretanto, não demora muito para o encantamento inicial diante do primitivismo de
Santa ceder lugar a um sentimento de repugnância. E o que antes despertava curiosidade
em Carl Winter, em um segundo momento, o deixa aborrecido e entediado. A partir daí, o
médico alemão passa a criticar o povo rio-grandense pela carência cultural, pelo descaso em
relação ao futuro, e associa o ambiente rural do Rio Grande do Sul, representado na narrativa
168
pelo povoado de Santa Fé, a um espaço atrasado, ligado à subordinação mental e à vida
precária.
Porém, da mesma forma com que Carl Winter rejeitava a vida no campo, alguns
moradores de Santa também rejeitavam o espaço urbano. Para o imaginário rural,
conforme João Cláudio Arendt e Cinara Pavani (2006, p.32), o centro urbano é visto como o
espaço que centraliza o comércio, as novidades tecnológicas, as decisões políticas; é sinônimo
de progresso, de futuro, de emancipação mental e de vida sofisticada. Mas a cidade também
pode figurar como um lugar demoníaco, de perdição, como nos tempos bíblicos da Babilônia,
onde os indivíduos caem em desgraça perdendo seus valores religiosos, familiares e morais.
Assim, desde os tempos remotos, as cidades estão associadas ao vício e ao pecado, e colocam-
se como referência negativa para a construção da identidade por parte dos habitantes do meio
rural.
E é dessa forma que os moradores de Santa vêem as pessoas ou coisas vindas da
cidade, como sinais de perdição e pecado. Um exemplo dessa representação, podemos
observar na apresentação da personagem Luzia Silva, a contrapartida feminina de Carl
Winter, também uma forasteira e representante da cultura erudita. Os seus “modos de cidade”
causam pavor entre a gente do povoado, como mostra a seguinte passagem:
As mulheres reparavam nos seus vestidos, nos seus penteados, nos seus
“modos de cidade”, mas, bisonhas, não tinham coragem de se aproximar da
recém-chegada, tomadas duma grande timidez e duma sensação de
inferioridade. Em muitas esse acanhamento se transformava em hostilidade;
noutras tomava a forma de maledicência. Luzia era rica, era bonita, tocava
cítara – instrumento que pouca gente ou ninguém ali na vila jamais ouvira, -
sabia recitar versos, tinha bela caligrafia, e lia até livros. [...] Para alguns
severos pais de família tudo aquilo que a forasteira era e tinha constituía
uma extravagância ostensiva que os deixava até meio afrontados. E quando
viam Luzia metida nos seus vestidos de renda, de cintura muito fina e saia
rodada; quando aspiravam o perfume que emanava dela, não podiam fugir à
impressão de que a neta do pernambucano era uma “mulher perdida” e
portanto um exemplo perigoso para as moças do lugar. (VERISSIMO,
2002, p.17).
Bibiana, a matriarca da família Terra Cambará, diversas vezes manifesta seu repúdio
às novidades vindas da cidade, mesmo que fossem coisas que trariam um maior conforto ou
melhorariam as condições de vida em Santa Fé. Ela expressa essa opinião durante um almoço
no Sobrado, ocasião em que estavam presentes Luzia, Bolívar e o Dr. Winter. Quando a nora
169
queixa-se pela falta de teatros, concertos e bailes em Santa Fé, Bibiana secamente responde:
“- pessoas que passam muito bem sem festas.”(VERISSIMO, 2002, p.101). Quando, em
seguida, o Dr. Winter fala na possibilidade de organizar uma banda de música, a neta de Ana
Terra retruca: “- Temos vivido muito bem até agora sem banda de música”(p.102). A
conversa entre as personagens continua a respeito dos progressos que estavam sendo
implantados no Brasil, como a estrada de ferro e a iluminação a gás, inventos que trariam
muito conforto às populações e que, com o tempo, beneficiariam também Santa . Para
indignação dos que estavam à mesa, a dona da casa intervém:
-Minha avó morava num rancho perdido no meio do campo disse Bibiana
alumiado de noite por uma lamparina de óleo de peixe feita duma
guampa. Não acho que mais luz ou menos luz possa fazer uma pessoa mais
feliz ou infeliz. [...] quando Santa Fé ficar mais grande vai haver muito mais
maldade, muito mais bandalheiras que agora. [...] Às vezes acho que é até
melhor uma pessoa não ser instruída, não saber ler. Os livros estão cheios
de porcarias e perversidades. (VERISSIMO, 2002, p.105).
De forma alguma Carl Winter concordava com a posição radical de Dona Bibiana ao
repudiar os benefícios que as invenções da humanidade poderiam trazer também para os
moradores da zona rural. Muito menos concordava com a manutenção do analfabetismo na
Província, porém, como conhecia bem a amiga, entendia e respeitava sua opinião.
Na narrativa de O Continente, portanto, o Dr.Winter representa o citadino, a pessoa
instruída e viajada que não se satisfaz com a vida monótona, rústica e desprovida de eventos
culturais de Santa Fé. Nesses momentos em que o médico alemão exterioriza seus
pensamentos e analisa de forma crítica a sociedade rio-grandense, parece que a voz da
personagem confunde-se com a voz do narrador.
Como se sabe, o narrador de O Tempo e o Vento é Floriano, filho de Rodrigo Terra
Cambará, primeiro da estirpe Cambará que possui curso superior, com diploma de médico.
Quem é Floriano senão o moço que abandona o interior do Rio Grande do Sul para estudar
em Porto Alegre, viaja para capital do Brasil, o Rio de Janeiro, mora nos Estados Unidos por
alguns anos e, ao voltar, rejeita o modo de vida rural e rudimentar, baseado no machismo, na
violência e na inaptidão ao progresso, que apesar dos anos decorridos ainda caracterizava
Santa Fé?
Cabe a ele, último descendente da família Cambará, protagonista de O Arquipélago,
fazer a retrospectiva, analisando a história de seus ancestrais, para escrever um romance que
170
representasse a formação da Província de São Pedro, desde 1745 até o momento da escritura.
E a primeira frase de seu livro é justamente aquela que dá início à trilogia de Erico Verissimo:
“Era uma noite fria de lua nova. As estrelas cintilavam sobre a cidade de Santa Fé, que de tão
quieta e deserta parecia um cemitério abandonado”. Assim, confirma-se a estrutura cíclica de
O Tempo e o Vento e se comprova que a personagem Floriano é um alter-ego do próprio
escritor. Dessa forma, ao adotar o ângulo do personagem/narrador, Erico Verissimo
manifesta-se contra a violência e ao fazê-lo, questiona o código ético do espaço retratado.
No entanto, para escrever a trilogia sobre a formação do Rio Grande do Sul, Erico
Verissimo precisou, primeiramente, superar certas resistências interiores que o faziam aderir
ao cosmopolitismo, repudiando a vida campeira, da qual sua família era representante. Em seu
livro de memórias, assim ele declara:
Apesar de ser descendente de campeiros, sempre detestei a vida rural, nunca
passei mais de cinco dias numa estância, não sabia e não sei ainda andar a
cavalo para escândalo e vergonha de meu a Aníbal desconhecia e
ainda desconheço o jargão gauchesco. (VERISSIMO, 1994, p.288).
No início de sua carreira como escritor, Erico Verissimo rejeitava a vida rural do Rio
Grande do Sul. Causava-lhe repugnância o trabalho no campo, o contato com os animais cujo
cheiro ficava impregnado nos homens somando-se ao odor dos cigarros de palha, a aspereza
das relações, o machismo, as guerras, a falta de erudição. Erico sentia isso quando observava
os integrantes de sua própria família.
Em certa ocasião, estando na casa do avô materno, Erico recebe a visita de seu tio
Tancredo Lopes, que entra na sala com a roupa molhada de chuva, de botas embarradas e
fumando seu cigarro de palha. Sentando-se no sofá, sem querer, quebra um disco de
Beethoven pertencente a Erico. Esse fato deixa o escritor profundamente desgostoso e está
registrado em Solo de Clarineta:
E naquele momento senti, mais que nunca, que jamais poderia escrever o
que quer que fosse sobre a gente da campanha. Faltava aos nossos
“guascas” densidade psicológica, esse tipo de conflito capaz de produzir
drama. Sobre homens assim vazios concluí então, levianamente - era
impossível escrever um romance que tivesse caráter e nervo. (VERISSIMO,
1994, p.290).
171
A ocasião tragicômica fica registrada na memória do escritor e, passados mais de
quinze anos,com o projeto da trilogia em mente, Erico lembrava-se daquele fato e percebia
que, enquanto ele vivia num mundo de ficções, alimentado por livros, discos, revistas,
pinturas e fantasias”, seu tio Tancredo Lopes, com aquelas mãos rudes e fortes, era um
homem que produzia coisas concretas, criava gado, fazia tropas, plantava, colhia, enfim, tinha
muito mais utilidade social. Era também um ser humano, que tinha seu código de honra, sua
integridade. A partir disso, Erico Verissimo viu que era possível sim escrever um romance
sobre o povo rio-grandense:
Cabia, pois, ao romancista descobrir como eram “por dentro” os homens da
campanha do Rio Grande. Era com aquela humanidade batida pela
intempérie, suada, sofrida, embarrada, terra-a-terra, que eu tinha de lidar
quando escrevesse o romance do antigo Continente. Talvez o drama de
nosso povo estivesse exatamente nessa ilusória aparência de falta de drama.
(VERISSIMO, 2002, p.291).
Erico se deu conta então da riqueza e da profundidade do conteúdo que tinha em suas
mãos, pronto para ser transformado no que seria a maior saga do povo rio-grandense: “Idiota!
Como era que eu não tinha visto antes toda essa riqueza? [...] Era o meu povo. Era o meu
sangue. Eram as minhas vivências, diretas ou indiretas, que por tanto tempo eu renegara.”
(VERISSIMO, 1994, p.292). E, assim, tio Tancredo forneceu a Erico a chave com que ele
abriu as portas do Sobrado dos Terra Cambará e as personagens foram surgindo de sua
memória, de suas vivências. Durante os três anos que Erico viveu na casa de seu avô materno,
ele foi aprendendo a observar e a admirar a gente da Província: Assim, o velho Aníbal foi,
sem querer nem saber, uma espécie de intérprete, de ponte entre este seu neto citadino e a
terra e a gente do Rio Grande.” (VERISSIMO, 1994, p.295).
Transformando-se, depois, em personagem de sua narrativa, colocando-se na pele do
“outro”, Erico Verissimo foi capaz de compreender aquela sociedade que durante tanto tempo
havia renegado, e fazendo isso, passou a aceitar a si próprio e a suas origens, ficando em paz
com seu povo. Entretanto, não foi louvando as guerras e os “heróis” ou reproduzindo
literariamente seus mitos que o romancista interpretou a História do Rio Grande do Sul, mas
revelando o papel das mulheres que, em sua solidão e perseverança, representaram a
resistência, a força de preservação. Assim, em O Tempo e o Vento, a celebração da saga dos
172
grandes estancieiros cedeu lugar a uma corrosiva visão da decadência de um mundo,
destruído pela dispersão familiar, pela perda da grandeza e pela corrupção dos valores éticos.
Da mesma forma que a personagem Floriano, Carl Winter tinha sua visão do mundo
baseada no pacificismo e rejeitava a violência das guerras que perseguiam os rio-grandenses
como uma maldição. Ambos manifestam a mesma indignação perante o descaso dos rio-
grandenses em relação às formas artísticas: literatura, música, teatro, o que configurava uma
sociedade vazia de cultura. Tanto um como outro tiveram experiências que lhes permitiram
conhecer outros lugares, pessoas de outras culturas, realidades diversas, e por causa disso,
sentiam-se, por assim dizer, deslocados no ambiente em que viviam, “peças soltas” no mundo
restrito de Santa Fé. Os dois expressam seus pensamentos de forma escrita, Carl Winter nas
cartas enviadas a Koseritz; Floriano através das anotações no Caderno de pauta simples. Além
disso, ambos permanecem solteiros e encerram em seus corações um amor interdito, Floriano
por Sílvia, mulher de seu irmão, e Carl Winter pela Teiniaguá.
Nesse sentido, se em certos momentos a voz da personagem Carl Winter se confunde
com a do narrador de O Tempo e o Vento, a figura do médico alemão serve, então, de porta-
voz de Erico Verissimo em uma etapa em que Floriano, alter-ego do romancista, ainda não
podia aparecer no enredo, que em O Continente, se estava contado a história de sua trisavó
Bibiana, de seu avô Licurgo. Assim, até que não chegasse o momento de se incluir Floriano
na narrativa, a função de analisar criticamente a sociedade rio-grandense cabe ao Dr. Winter,
que ambos apresentam uma visão do mundo similar. Dessa forma, não é errado dizer que a
personagem Carl Winter também seja um alter-ego de Erico Verissimo, representando o
erudito, o viajado, o citadino, o intelectual que apresenta um olhar diferenciado sobre a antiga
Província do Rio Grande de São Pedro e sua gente, ora admirando-a ora rejeitando-a.
Se prestarmos atenção na biografia de Erico Verissimo, veremos que algumas de
suas características são transferidas para a personagem Carl Winter: a erudição; o gosto pela
literatura dos românticos alemães; a música de compositores como Mozart e Beethoven, que
se faziam ouvir enquanto o escritor trabalhava; a experiência da viagem internacional (Erico
publica a primeira parte da trilogia em 1949, após voltar dos Estados Unidos).
A declaração de Erico Verissimo a respeito da personagem pode confirmar a
hipótese de Carl Winter ser, juntamente com Floriano, um alter-ego do romancista: “Quanto
às suas idéias e reações ao ambiente, não seria ele o porta-voz de minha antiga relutância em
aceitar o Rio Grande e o seu povo? Não representaria o estrangeiro, o exótico, o civilizado, o
erudito?” (VERISSIMO, 1994, p.300).
173
É nesse sentido, portanto, que a personagem Carl Winter adquire uma importância tal
na estrutura narrativa de O Continente, que nos impede de classificá-la como secundária. Sem
a participação do médico alemão no enredo da trilogia, não se realizaria a configuração do
painel físico e social de Santa e, por conseguinte, do Rio Grande do Sul. Erico Verissimo
analisou a sua terra e a sua gente, concedendo a Carl Winter a missão de comentá-las, a fim
de proporcionar ao leitor uma interpretação da História do Rio Grande do Sul.
174
CONSIDERAÇÕES FINAIS: HISTÓRIA E LITERATURA
Como vimos, a personagem Carl Winter é representativa de um evento realmente
ocorrido em nosso Estado: a imigração alemã. Isso porque, na trilogia O Tempo e o Vento,
Erico Verissimo procurou representar intencionalmente a formação do Rio Grande do Sul
num período de tempo de duzentos anos, compreendido entre 1745 e 1945. Tem-se, nesse
caso, a inserção do histórico na obra de ficção, já que a narrativa pode ser lida como a crônica
histórica da formação da sociedade gaúcha.
Na escritura desse romance histórico, o autor apropriou-se de figuras e fatos da
realidade para construir enredo e personagens capazes de conferir verossimilhança à narrativa,
visando convencer o leitor de que os fatos narrados tivessem realmente ocorrido, de que os
seres apresentados tivessem de fato existido. No entanto, trata-se de um texto literário, em que
a ficção conduz o destino das personagens, sejam elas totalmente imaginadas ou inspiradas
em modelos historicamente reais.
É nesse sentido que História e Literatura não podem ser confundidas, que a
primeira opera com dados da realidade a fim de produzir conhecimentos objetivos, e a
segunda, sendo produto da imaginação do escritor, não possui nenhum compromisso com o
real, tampouco com o rigor científico, adquirindo plena liberdade para misturar fatos e figuras
históricas com acontecimentos e personagens fictícias, estando, dessa forma, mais ligada à
subjetividade.
Aristóteles, na Poética, afirmava que literatos e historiadores deveriam possuir
finalidades diferentes em seus respectivos trabalhos:
Não é ofício de poeta narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que
poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e
a necessidade. Com efeito, não diferem o historiador e o poeta, por
escreverem verso ou prosa, diferem sim, em que um diz as coisas que
sucederam, e outro as que poderiam suceder. (ARISTOTELES, 1996, p.78).
Em outro momento, Aristóteles acrescenta que a poesia (tomada aqui no sentido de
texto literário), é algo mais filosófico e mais sério que a História, pois a primeira refere
principalmente o universal e a segunda o particular. Por “referir-se ao universal” entende-se a
coerência, a íntima conexão dos fatos e das ações, as próprias ações ligadas entre si por
175
relações de verossimilhança e necessidade. A oposição entre texto literário e História,
exprime-se, assim, pela oposição entre o acontecido e disperso no tempo (História) e o
acontecível, ligado por conexão causal (texto literário). “Acontecido” e “acontecível” são
ambos verossímeis, mas só os elementos ligados por conexão causal, são necessários. Ou seja,
pelo dado da verossimilhança, haveria um ponto de contato entre História e Literatura;
contudo, a última ultrapassaria a primeira, na medida em que o âmbito do acontecível excede
o do acontecido.
No entanto, ao se repensar essa antiga relação, percebe-se que ambos, tanto o relato
historiográfico quanto o texto literário são produzidos sob a forma de narrativa, abrindo-se
caminho para novas discussões sobre seus tênues limites. Hayden White (1994), ao discutir a
construção do relato histórico afirma que a História é acessível por meio da linguagem,
pois a experiência da história não pode ser dissociada do discurso sobre ela. Assim, “apenas
ao serem transformados em assunto do discurso histórico que nossa informação e nosso
conhecimento sobre o passado podem ser considerados históricos.”.
Entretanto, segundo o autor, o discurso histórico não produz informações novas
sobre o passado, ele produz interpretações sobre a informação ou o conhecimento do passado
que o historiador possui, e completa:
A história é antes de mais nada um artefato verbal, produto de um tipo
especial de uso da linguagem, devendo ser analisado como uma estrutura de
linguagem, que como a fala metafórica, a linguagem simbólica e a
representação alegórica, sempre significa mais do que literalmente diz, diz
algo diferente do que parece significar, e revela algumas coisas sobre o
mundo ao preço de esconder outras tantas. (WHITE, 1994, p.26).
Nessa perspectiva, se por um lado não podemos confundir História e Literatura, visto
que a possibilidade de produzir conhecimentos científicos é característica exclusiva da
primeira, por outro lado, as duas são construídas como textos narrativos, pressupondo um
narrador inserido num contexto social, político, econômico e cultural, recebendo a influência
desse contexto e possuindo uma intencionalidade.
Essa relação aprofunda-se pelo fato de o texto literário, surgido em uma dada
circunstância, implicar sempre uma referência à História. Ou seja, é produzido por um sujeito
também histórico, o escritor, que contextualizado em determinada época e sociedade, é
176
sensível ao que ocorre a sua volta, reproduzindo suas vivências, sentimentos e impressões
acerca da realidade na forma de narrativa literária.
Dessa forma, tanto a História quanto a Literatura operam com representações da
realidade e não com o real propriamente dito. Indiscutível e concreto é o evento histórico tal
como aconteceu num tempo e espaço determinados, mas tanto historiadores quanto literatos
fazem uma leitura desse evento, representando-o através do uso da linguagem. Como lembra
Sandra Pesavento (1997, p.249), “toda experiência passada nos chega sob a forma de discurso
ou de imagem, ou seja, como representação de algo que já foi”.
Dado o pressuposto de que as representações da realidade realizadas pelos indivíduos
sofrem influências do contexto social, político, econômico e cultural, pode-se pensar em
diferentes leituras de um mesmo evento histórico, diferentes perspectivas de apreensão do
real. Assim, não é impossível que ocorram divergências entre a representação criada por um
historiador e a representação criada por um escritor sobre o mesmo evento.
Nesse sentido, a Literatura como forma de representação da realidade, mesmo sendo
ficção, pode funcionar como um instrumento para reavaliar o texto historiográfico,
convencionalmente tido como verdade, lançando-lhe novos olhares, questionando-o ou
revelando aspectos por ele omitidos. Para Maria Teresa Freitas (1991, p.172), “uma obra não
se reduz àquilo que a condiciona: ela se inscreve num meio e num contexto, mas esse meio
ela o preenche à sua maneira; esse contexto, ela o elabora segundo modalidades que lhe são
próprias.”.
A trilogia O Tempo e o Vento apresenta a desmistificação da História rio-grandense
mostrada na decadência e falência moral do sistema patriarcal da sociedade gaúcha através
das gerações, destacando o papel das mulheres e personagens secundárias como imigrantes e
negros, como elementos importantes na constituição social, econômica e cultural rio-
grandense. O depoimento de Erico Verissimo sobre sua intenção de escrever um romance
histórico que proporcionasse uma revisão da História do Rio Grande do Sul está contido em
seu livro de memórias, Solo de Clarineta (1994, p.289): “concluí então que a verdade sobre o
passado do Rio Grande do Sul devia ser mais viva e bela que sua mitologia. E quanto mais
examinava a nossa História, mais convencido ficava da necessidade de desmistificá-la”.
Essa decisão, segundo Regina Zilbermam (2004), pode estar associada a um quadro
histórico literário mais abrangente: desde o século XIX, o passado rio-grandense constituía
assunto de ficção local, sendo a Revolução Farroupilha o episódio preferido dos escritores que
o engrandeciam e elevavam-no segundo uma ótica que, para Erico Verissimo, provavelmente
pareceu mitificadora e falsa. A década de 1930, na qual se deu a formação do escritor e
177
quando a Revolução Farroupilha completava seu centenário, foi pródiga em livros de ficção
cujo pano de fundo foi fornecido pela História do Rio Grande do Sul, obras que podem ter
influenciado Erico Verissimo, a exemplo de Romance Antigo, de Darcy Azambuja, e Tiaraju,
de Manoelito de Ornellas, apenas para citar dois.
Podemos dizer, então, que um dos recursos utilizados por Erico Verissimo para
desmistificar a História do Rio Grande do Sul foi a apropriação do evento da imigração
européia ao Estado. Os imigrantes açorianos, germânicos e italianos presentes na narrativa de
O Tempo e o Vento refletem o desenvolvimento desses grupos na formação da sociedade
gaúcha. O escritor destaca o contraste entre a sociedade patriarcal e os imigrantes sobretudo
pelas atividades de sustento de cada grupo: os gaúchos picos dedicavam-se à criação de
gado, já os imigrantes concentravam-se no trabalho agrícola.
Enquanto os imigrantes e seus descendentes prosperavam economicamente
ampliando as plantações, diversificando as culturas agrícolas, abrindo estabelecimentos
comerciais e iniciando a industrialização de produtos, o sistema quase feudal da antiga
estrutura sócio-política gaúcha entrava em declínio. Aos poucos, os colonos, depois de
vencerem todos os desafios impostos pela adaptação à nova terra, foram reclamando seu lugar
também na sociedade rio-grandense. Penetraram na zona urbana, conquistaram espaço
comercial, social e político, fizeram-se membros do Clube do Comércio e venceram
resistências e preconceitos de toda sorte à medida que sua prosperidade econômica se refletia
na maneira como andavam vestidos, em suas casas e automóveis.
Dentro da imigração alemã representada na narrativa, as famílias Spievogel, Schultz
e Kern são exemplos da ascensão dos imigrantes na hierarquia social rio-grandense. Com essa
ascensão veio também a contribuição cultural dos imigrantes para o povo gaúcho, a
disseminação dos bailes de Kerb, da culinária, das festividades, o gosto pela música com a
difusão das vitrolas, operando uma lenta e irreversível transformação na sociedade.
Nesse contexto, Erico Verissimo cria personagens que representam a grande massa
de imigrantes alemães chegados ao Rio Grande do Sul, formada por camponeses e artesãos
que, primeiramente dedicaram-se à agricultura, vivendo isolados em suas colônias, alheios à
sociedade gaúcha e que, pouco a pouco, deixaram para trás as roças e foram ganhando espaço
nas cidades. No entanto, a habilidade do escritor de interpretar o evento histórico vai além da
mera incorporação de personagens representantes da imigração alemã. Através deles, Erico
Verissimo revela o desprezo com que a classe patriarcal rio-grandense via os estrangeiros,
aquela “alemoada do diabo” que dia após dia ameaçava seu poder econômico e político,
178
reproduzindo também o mal-estar que se originou devido às diferenças culturais, fatos que a
historiografia na maioria das vezes omite.
Nesse sentido, a História pode fornecer dados que são utilizados pelo escritor de
forma a conferir maior verossimilhança à obra literária. Esses dados podem ser eventos, datas,
pessoas, lugares, que, misturados a elementos fictícios configuram um romance histórico, a
exemplo de O Tempo e o Vento. Nesse caso, o romance toma emprestado da historiografia as
representações que ela produziu sobre o passado, interpretando-as e atribuindo-lhes novos
sentidos.
Como lembra Mário Maestri (2004, p.18), a produção de um romance histórico exige
que o escritor realize uma investigação sistemática sobre a época que pretende abordar, pois a
obediência à verossimilhança constitui respeito ao espírito e às tendências profundas da época
representada. Num trabalho de cientista social, o escritor irá selecionar nos documentos, nas
biografias, nos relatos de viajantes, na historiografia e nos seus conhecimentos e idéias sobre
o passado, o material com o qual construirá seus enredos, personagens, paisagens e cenários.
Contudo, diferentemente do cientista social, que arrola, descreve, disseca,
hierarquiza e generaliza os fatos históricos, fugindo da individualização, para alcançar o geral,
o escritor seleciona e anima ficcionalmente fatos e personagens, em profunda conformidade
com a experiência histórica real, para alcançar, através do individual, o mesmo universal. A
Literatura, através da transfiguração essencial da realidade, serve-se de personagens que
recriam, na singularidade de suas ações, as tendências gerais dos indivíduos de sua classe.
Isso não significa dizer, no entanto, que tanto mais histórico será o romance quanto
mais fiel for à realidade, ou quanto mais elementos da História contiver em sua estrutura.
Como aponta Flávio Loureiro Chaves (1999, p.21):
não é histórica aquela literatura que compete com a crônica pura e simples
dos fatos ou inclui em sua matéria eventos e figuras decalcadas diretamente
sobre a existência real. Entretanto poderá sê-lo (e com mais força de
convicção) aquela que, embora totalmente fictícia, assuma como
preocupação central a História e a expressão de uma visão histórica.
Além de representar o processo de imigração e colonização do Rio Grande do Sul na
trilogia O Tempo e o Vento, dentre o grupo de imigrantes alemães Erico Verissimo escolhe
um em especial, o Dr. Carl Winter, a quem voz e destaque na primeira parte da narrativa.
Nessa personagem se concentra o ponto máximo de interpretação do evento histórico pelo
179
escritor, que não se apropria da temática da imigração alemã transpondo-a ao texto
literário, como é capaz de conferir-lhe uma nova versão.
Mencionamos, ao longo da dissertação, que Carl Winter não corresponde ao perfil de
imigrante alemão descrito pela historiografia, ou seja, não era camponês nem artesão, não
emigrara para o Brasil expulso pela miséria e pela fome, não tinha intenção de fixar raízes em
solo brasileiro. Dessa forma, não representava ameaça nenhuma à classe patriarcal gaúcha,
que não concorria economicamente com ela a exemplo de seus conterrâneos, sendo poupado
do desprezo por parte dos rio-grandenses, do qual os colonos eram vítimas. Carl Winter era
médico, culto e inteligente, solteiro e sem filhos, o que facilitava sua aceitação no povoado de
Santa Fé.
Dessa forma, Carl Winter assim como seu amigo Carl Von Koseritz integram um
grupo de imigrantes que abandonaram a pátria por motivos de outra ordem, geralmente de
foro íntimo, e, dotados de uma visão do mundo mais abrangente, proporcionada por uma
intensa formação intelectual, mostraram-se pessoas insatisfeitas com a realidade circundante,
recorrendo à viagem como forma de mudar de vida, encontrar novas realidades, tomar contato
com novas culturas.
A insuportável insatisfação perante a vida, própria do período romântico, fez Carl
Winter emigrar ao Brasil imiscuído nas grandes levas de colonos. No entanto, o logo
desembarcou, dispersou-se do grande grupo, preferindo viver em meio aos nativos. Tratava-se
de um espírito curioso, não apegado a bens materiais, que entre o atendimento aos pacientes e
as leituras, ocupava seu tempo em desvendar os meandros da alma humana, analisando
profundamente o povo que o acolhia. E é exatamente essa versão da imigração, não abordada
pela historiografia, que Erico Verissimo escolhe para a gênese da personagem.
Nessa perspectiva, Carl Winter transita entre o imigrante alemão e o nativo rio-
grandense. Ele é um estrangeiro, mas não se identifica com seus conterrâneos das colônias e,
mesmo depois de anos de convivência, não se sente completamente adaptado à população de
Santa Fé. É essa posição intermediária que Erico Verissimo explorou com maestria. Sem
efetiva identificação com nenhum dos dois grupos, Carl Winter é a voz imparcial capaz de
analisar criticamente tanto os imigrantes alemães quanto a sociedade gaúcha. É o olhar de
estrangeiro de Carl Winter que Erico Verissimo toma emprestado para manifestar sua própria
visão do mundo sobre a sociedade na qual se sentia como uma “peça solta”.
Em função disso, justifica-se, na narrativa, a opinião de uma personagem instruída,
viajada, sensível para captar as peculiaridades do ser humano e crítica o suficiente para
interpretá-las. Daí, a observação do povo rio-grandense como uma sociedade “tosca e
180
carnívora”, formada por gente rude e primária, por homens machos, cuja honra maior
consistia em pelear numa batalha, e por mulheres melancólicas que não tiravam o luto do
corpo. Daí a crítica a um povo marcado pela violência e pela morte, onde as guerras
regulavam o passado e o futuro, atravancando o progresso da região, destinando-a ao
isolamento e à carência cultural.
Sendo assim, Erico Verissimo ultrapassa o dado histórico para oferecer uma visão do
mundo. O olhar de estrangeiro de Carl Winter é, em última análise, o ponto-de-vista do
próprio escritor, que revela seus valores humanistas ao criticar a destruição física e espiritual
causada pelas guerras, ao acreditar na preservação da vida a qualquer preço. É ainda nesse
processo que se faz a desmistificação da própria História do Rio Grande do Sul.
Em síntese, podemos dizer que na construção da personagem Carl Winter, Erico
Verissimo apropriou-se da temática histórica da imigração alemã, desconstruindo a imagem
criada pela historiografia na medida em que a personagem não corresponde ao perfil do
imigrante camponês, para finalmente explorar a visão de fora, própria do estrangeiro, sobre a
sociedade rio-grandense. Assim, ao inserir na narrativa a personagem Carl Winter,
caracterizada como um imigrante alemão, dando-lhe voz e assumindo o seu ponto de vista,
Erico Verissimo adota o “olhar do outro”. Transformando-se no outro, ele consegue o
distanciamento necessário para analisar sua própria sociedade.
Segundo Flávio Loureiro Chaves (2004), valendo-se de dados historiográficos, a
Literatura tem a capacidade de lançar um novo olhar sobre a História, confirmando ou não a
sua versão sobre os fatos, e, dessa forma, pode ultrapassar a circunstância histórica datada
para representar uma visão do mundo. Nessa perspectiva, ao analisar um romance histórico,
não devemos buscar na Literatura a História, mas sim sua historicidade, ou seja, o texto
literário não interessa à História enquanto transcrição, mas enquanto instauração de seu
significado.
A historicidade refere-se à visão do mundo que o texto contém e assegura sua
vigência na experiência de leitores em diferentes momentos, os quais, respondendo às
sugestões emitidas pelo texto, atualizam constantemente sua consciência e seu mundo na
decifração do imaginário.
Todos os dados que Erico Verissimo capta da dinâmica histórica são assimilados
pela natureza fictícia da obra, importando mais o processo” que o próprio “fato”. Na
estrutura temporal de O Tempo e o Vento, o passado é reconstruído como uma possibilidade
de esclarecer o presente. Assim, a crônica histórica torna-se secundária enquanto conteúdo,
mas indispensável enquanto “arcabouço” episódico (CHAVES, 1976, p.87). O elemento que
181
move a História está mais na representação das personagens fictícias e menos na cronologia
dos fatos.
Para Moysés Vellinho (2001), ao fazer a revisão da História passada, e, nesse
processo, incluir a crítica social, o texto literário se configura na oposição dialética entre os
valores da coletividade retratada e os valores que o narrador toma por autênticos,
transferindo-os para a vida das personagens no mundo imaginário da ficção.
O texto literário não pode, portanto, ser considerado um simples reflexo, emanação
ou produto das circunstâncias históricas, nem pode ser reduzido a um sistema de formas sem
relação com o movimento histórico e social. A Literatura exerce uma função social, é uma
modalidade do imaginário, que não reproduz a realidade exterior, mas a transforma,
exprimindo o que nela está reprimido ou latente.
Sendo assim, muitos historiadores têm se voltado para o texto literário para buscar
conhecimentos que os auxiliem a interpretar o mundo social. A História Cultural, atualmente,
pressupõe uma abertura à interdisciplinaridade e à comunicabilidade entre os diferentes
discursos que falam do real.
Ao voltar seu olhar para a Literatura, Sandra Pesavento (1997) afirma que o
historiador traz consigo toda uma bagagem de conhecimentos específicos, impulsionando-o a
traçar um contexto para o tempo da narrativa e para o tempo da escritura. Dessa forma, o
historiador contextualiza o texto no tempo e no espaço, social e institucionalmente, pois quer
ver na narrativa literária uma verossimilhança com o contexto ao qual se refere. Assim, ele
passa a aceitar o texto literário como sintoma de uma época, como representação, ou como um
discurso que se constrói a partir da experiência do vivido.
No entanto, na opinião da historiadora, a maior contribuição da Literatura para a
História está na possibilidade que ela oferece para o resgate das sensibilidades. A Literatura,
através de seus enredos e personagens, revela sentimentos, desejos, frustrações, valores,
inerentes aos indivíduos, que escapam ao alcance do relato historiográfico.
Nesse sentido, o historiador precisa da Literatura, na intenção de recuperar outras
dimensões da vida, que não a História, mas também a Literatura guardam a memória
coletiva de um povo, a qual também traz consigo relações sociais de poder. Como argumenta
Sandra Pesavento (1997, p.250):
É neste ponto que a História-conhecimento, dotada de um método
científico, deve buscar outras formas para fazer inteligível o passado,
recuperando-o por uma estrutura alternativa que não aquela trazida pelos
182
documentos oficiais ou os métodos tradicionais. É a Literatura que lhe a
sensibilidade, a sintonia fina que permite “captar” o passado de outra forma.
Como lembram também João Cláudio Arendt e Marilia Conforto (2004, p.66), por
pertencer ao âmbito das artes, voltada ao entretenimento, a Literatura produz livremente
discursos que, no campo político e religioso, com certeza seriam condenados. Essa liberdade
de mostrar a sociedade de forma mais crítica, característica do texto literário, pode ser
aproveitada pelo pesquisador na construção do conhecimento histórico. Conforme os autores:
“Na Literatura, podemos ler as fissuras, as contradições, as ambivalências e a crueldade, que,
muitas vezes, o texto historiográfico, como discurso ‘científico’ unifica.”.
Pode-se dizer, então, que a análise da ficção, como um espaço onde a História
acontece, contribui para a construção do conhecimento histórico, já que cria a possibilidade de
uma nova interpretação ou uma reavaliação do evento histórico, enriquecida por aquilo que
o ser humano, enquanto sujeito da História, pode demonstrar: desejos, frustrações, anseios,
medos que regem suas ações e que são vivenciados pelas personagens imaginárias da
narrativa literária.
Na trilogia O Tempo e o Vento,o justamente as personagens, através de seus atos
e sentimentos, regulados pela visão do mundo do escritor, que vão dar a dimensão exata de
como os seres humanos são envolvidos pela engrenagem do tempo e dos fatos, atuando na
formação da sociedade, às vezes capazes, outras não, de dominar seus próprios destinos. As
cenas apresentadas da vida privada e pública da família Terra-Cambará, na região missioneira
do Rio Grande do Sul, não são apenas verossímeis. Mais do que isso, na forma e no conteúdo,
sintetizam as práticas sociais gerais, essenciais e necessárias de toda a sociedade gaúcha da
época representada.
O romance histórico, nesse sentido, descreve, sintetiza, explica e apreende
singularidades essenciais do passado, constituindo um poderoso registro do mundo que o
engendrou. Contudo, não devemos ver na Literatura uma substituta da História. Ambas
registram e expressam as experiências humanas, mas cada uma na sua linguagem, cada uma
com seu programa, complementando-se e tornando-se aliadas na interpretação do mundo.
Por fim, ao encerrarmos esta investigação, percebemos a amplitude dos estudos que
envolvem a relação entre História e Literatura, demonstrando que esta questão está longe de
ser esgotada. Da mesma forma com que analisamos a personagem Carl Winter na narrativa de
O Tempo e o Vento, poderíamos fazer com outras incontáveis personagens que povoam o
183
mundo da ficção, pois são elas que nos dão a dimensão exata da complexidade do ser
humano, inscrito em um tempo e espaço, representativo de uma época, de uma cultura, de
uma visão do mundo. O ser histórico transfigura-se em ser fictício e se imortaliza na mente
das várias gerações de leitores que se sucedem, eis a magia da Literatura, a sua força de
renovação.
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