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Kátia Cristina Franco de Medeiros Suelotto
Cronotopia e tragicidade em Nenhum olhar,
de José Luís Peixoto
São Paulo
2007
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Kátia Cristina Franco de Medeiros Suelotto
Cronotopia e tragicidade em Nenhum olhar,
de José Luís Peixoto
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-
graduação em Letras da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre em
Literatura Portuguesa.
Orientadora: Profª. Drª. Lílian Lopondo
São Paulo
2007
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Kátia Cristina Franco de Medeiros Suelotto
Cronotopia e tragicidade em Nenhum olhar,
de José Luís Peixoto
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-
graduação em Letras da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre em
Literatura Portuguesa.
Aprovada em 20 de agosto de 2007.
BANCA EXAMINADORA
Profª Drª Lílian Lopondo
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Profª Drª Aurora Gedra Ruiz Alvarez
Universidade Presbiteriana Mackenzie
Profª Drª Maria Aparecida Junqueira
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
3
AGRADECIMENTOS
Agradeço, em primeiro lugar, à Universidade Presbiteriana Mackenzie pela
irrestrita confiança em minha capacidade de dedicação e que, por essa razão, me
concedeu a bolsa-mérito do seu fundo de pesquisas, Mackpesquisa, que custeou meu
mestrado e me possibilitou a tranqüilidade necessária para o desenvolvimento de meu
projeto. Agradeço à Profª Drª Marlise Vaz Bridi pelo exemplo de conduta e de
profissionalismo e, acima de tudo, pela sua amizade. Onde quer que esteja, sempre me
lembrarei dessa mestra e amiga. Agradeço à minha orientadora, Profª Drª Lílian
Lopondo, cuja capacidade de dedicação, compreensão e sensibilidade tornou possível a
realização de minha dissertação. Agradeço a todos os mestres e mestras da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, em especial ao Prof. Dr. Luis Camilo Lafalce, à Profª Drª
Aurora Gedra Ruiz e à Profª Drª Maria Thereza Zambonim, que tornaram inesquecíveis
os anos de minha graduação. Agradeço aos meus amigos Verônica Martins e Carlos
Rogério Duarte, que por sua inteligência, sinceridade e amizade fizeram de mim uma
pessoa melhor. Finalmente, agradeço à minha família: meu marido, Paulo Roberto,
minha filha, Cíntia, minhas irmãs, Nina e Luciana, e irmãos, Gil e Carlos e,
principalmente, aqueles que me ensinaram a mais importante lição – a vida é sonho -, e
ofereceram a mim todas as oportunidades para que eu pudesse realizar os meus sonhos,
minha mãe Míriam e meu pai, Gil.
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A lâmpada do corpo é o olho. Portanto, se o teu olho estiver
são, todo o teu corpo ficará iluminado; mas se o teu olho
estiver doente, todo o teu corpo ficará escuro. Pois se a luz que
há em ti são trevas, quão grandes serão as trevas!
Mateus 6,22
Esse mundo tal como o concebo – quem terá o espírito
bastante lúcido para contemplá-lo sem desejar ser cego?
Nietzsche
Como que guiados por espíritos invisíveis correm os luminosos
corcéis do tempo, conduzindo o leve carro do nosso destino, e a
nós resta, apenas, segurar as rédeas a fim de evitar um
obstáculo de um lado, uma queda de outro lado. Para onde
vai? Quem sabe? Se mal se lembra donde veio!
Goethe
5
RESUMO
O romance Nenhum Olhar, de autoria do português José Luís Peixoto e vencedor do
Prêmio José Saramago 2001, focaliza a trajetória de um pequeno grupo de personagens
de uma comunidade sem nome (Alentejo?). Destacamos, dentre elas, José e sua mulher
- pais de José - , e a cozinheira, casada com Moisés, que geram uma filha que se casa
com Salomão, primo do segundo José. Primeiramente, recortamos os cronotopos que
consideramos cruciais para a compreensão da narrativa. Em seguida, a partir das
reflexões advindas do primeiro capítulo, problematizamos, no capítulo II, a questão do
rebaixamento bakhtiniano e ressaltamos a preponderância do olhar como recurso
dialógico no romance. Notamos, então, que o texto constrói-se mediante o processo de
duplicação, que dá origem ao tempo mítico e permite considerar o paradigma bíblico – a
Sagrada Família – sob novas perspectivas. Os principais mecanismos interdiscursivos
de que lança mão o escritor são responsáveis pela paródia do texto-matriz e pela
concepção de mundo trágica, contextualizada no terceiro capítulo, que percorre a
narrativa. Este trabalho tem como objetivo o estudo dos cronotopos e dos demais
procedimentos dialógicos em Nenhum Olhar, com vistas ao exame da tensão entre a
ideologia a ele subjacente e a do modelo que lhe serve de guia.
Palavras-chave: cronotopo, interdiscursividade, tragicidade, romance atual português.
6
ABSTRACT
The novel Nenhum Olhar, by the Portuguese author José Luís Peixoto and winner of the
2001 Saramago Award, focus on the trajectory of a small group of characters from a
nameless city (Alentejo?). Among them, some characters are emphasized, José and his
wife – José’s parents –, and the cook, married to Moisés, from whom a daughter is born
and she later marries Salomão, cousin of the second José. First of all, we cut out the
chronotopos which we considered crucial to understand the narrative. Then, based on
the reflexions that came from the first chapter, we discuss, on the second one, the topic
of the bakhtinian relegation and point out the importance of the look as a dialogical
source in the novel. Also we notice that the text is built with basis on the duplication
process which questions the mythical universe and permits considering its paradigm
the Holy Family – under new perspectives. The main interdiscursive sources which the
author uses are responsible for the text-matrix parody and for the tragical view of world,
seen in third chapter, which makes presence through the narrative. This project has the
objective of studying the chronotopos and dialogical procedures in Nenhum olhar,
viewing the examination of the tension between its underlying ideology and the one
from the model on which it is based.
Keywords: chronotopo; interdiscoursivity; tragicity; actual Portuguese novel.
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SUMÁRIO
Apresentação.............................................................................................. 09
Capítulo I – Os cronotopos em Nenhum olhar........................................... 17
I.1 - O bar do judas e o encontro........................................................ 17
I.2 – A soleira da porta e o moto-perpétuo......................................... 33
I.3 - A vila e o tempo cíclico.............................................................. 38
I.4 – A capela e o sagrado.................................................................. 43
I.5 – A estrada e o destino.................................................................. 48
I.6 – O quarto e o profano.................................................................. 55
Capítulo II – A subversão do rebaixamento em Nenhum olhar................. 63
Capítulo III – O trágico em Nenhum olhar................................................ 91
Considerações finais ................................................................................ 115
Referências bibliográficas........................................................................ 122
8
APRESENTAÇÃO
O estudo da literatura pressupõe uma preocupação com a profundidade. Os olhos
e a mente do estudioso transformam-se em potentes instrumentos de penetração, assim
como a radiação que desintegra as células, atravessa os tecidos e, além deles, descobre
o que o olho nu jamais poderia adivinhar. O olhar que lançamos ao texto é, em certa
medida, radioativo, por pretender a desintegração das suas células, por investigar as
suas entranhas. No caso da análise literária de um texto em prosa, as entranhas, ou
partes do corpo-obra a serem examinadas são categorias críticas como a ação,
a personagem, o tempo, o espaço e o foco narrativo. Tradicionalmente, portanto,
a análise de um romance, como é o caso de Nenhum olhar, de José Luís Peixoto,
pressupõe a observação desses aspectos como portadores de sentido (ou sentidos).
Muitas vezes, o que é mais comum, o analista delimita sua pesquisa e se detém em uma
das estruturas mencionadas. No nosso caso, optamos por analisar, no romance
português acima mencionado, as categorias temporais e espaciais por acreditarmos
serem elas de importância sine qua non no que diz respeito aos estudos literários
contemporâneos.
Em sua obra O universo fragmentário (1975), Rosenthal afirma:
Hoje, entretanto, as palavras “tempo” e “espaço” têm uma
significação muito mais profunda e exercem estranha fascinação.
O espaço dilata-se cada vez mais, para além de nosso planeta, rumo ao
desconhecido, e a concepção do tempo dilui-se na irrealidade.
O homem moderno estabeleceu-se entre o tempo e o espaço, e a arte
moderna incumbiu-se de analisar essas categorias incertas
(p. 53 Grifo nosso).
Além desse teórico, Spengler, citado na obra Tempo e romance, de Mendilow
(1972), sustenta que “Nós, homens da cultura ocidental, somos, com nosso senso
histórico, uma exceção e não uma regra na série de ciclos culturais da humanidade”
9
e que “nossa cultura visualiza o mundo-como-história distinto do mundo-como-natureza
e, com isso, adquiriu o sentido da lógica do tempo, adicional à lógica do espaço
(p.3 Grifo nosso). Ao estudar obras de nosso próprio tempo, como é o caso de Nenhum
Olhar, nos deparamos com um desafio extra. A distância espaço-temporal que nos
separa da obra é praticamente inexistente e somos forçados a exercitar ao máximo a
nossa objetividade, visto que nos falta a perspectiva histórica. Por isso, como afirma
Spengler, acreditamos que a observação dos aspectos temporais e espaciais contribui
enormemente na superação dessa dificuldade, visto que é por meio deles que se deixa
entrever o senso histórico.
No romance Nenhum olhar, o escritor cria um mundo mítico, em que
personagens como o demônio e o gigante convivem com o resto dos habitantes de uma
vila, que remete ao Alentejo português. Vejamos, no fragmento abaixo, o verbete
referente ao Alentejo, extraído da enciclopédia Larrousse:
O Alentejo é uma antiga província e a mais vasta de Portugal. Sua
capital é Évora. Atualmente, o Alentejo é formado por duas
províncias: Alto-Alentejo, com os concelhos do distrito de Évora e de
Portalegre, cuja população soma 400.374 habitantes, e
Baixo-Alentejo, com os concelhos do distrito de Beja e os seguintes
do distrito de Setúbal: Alcácer do Sal, Grândola, Santiago do Cacém e
Sines, com população de 380.236 habitantes. Produz cereais, gado,
cortiça, lã, queijos, minérios de ferro, cobre e manganês (Vol.I, p.180,
1998. Grifo nosso).
Ora, José, do Livro I, a personagem principal do romance, é um pastor de
ovelhas e é por meio da tosquia desses animais que a lã é produzida. Em segundo lugar,
a cortiça é produzida a partir da casca dos sobreiros, árvores constantemente
mencionadas no romance. Além disso, vejamos o que diz o seguinte texto extraído de
um site que promove o turismo em Portugal:
10
Planícies a perder de vista combinam com sol e calor e impõem
um ritmo lento e compassado. É o Alentejo. No interior, a planura
imensa, searas louras ondulando ao vento; no litoral, praias selvagens,
duma beleza agreste e inexplorada. A amplitude da paisagem é
entrecortada por sobreiros ou oliveiras que resistem ao tempo (...) No
Alentejo, a força da terra marca o tempo (...) (site VISIT
PORTUGAL, 2006).
O lugar privilegiado na narrativa é o monte das oliveiras, local em que vivem as
personagens principais e a expressão que descreve o tempo alentejano, ou seja, como
dotado de “um ritmo lento e compassado”, é válida também para descrever o modo
como o tempo transcorre no romance: “José caminhava sobre a tarde. E o tempo
desfigurou-se, porque o tempo que José levou a fazer aqueles metros era um tempo
maior do que o tempo a correr nas veias ou do que o tempo de silêncio entre as batidas
do coração. Era um tempo parado” (PEIXOTO, 2005, p.52. Grifo nosso). Além disso,
notemos que a expressão “a força da terra marca o tempo” funde as dimensões espacial
e temporal de maneira a descrever o ethos alentejano, do mesmo modo que podemos
notar a fusão do tempo e do espaço na frase “José caminhava sobre a tarde”, visto que o
verbo “caminhar” se refere ao deslocamento no espaço e o substantivo “tarde” é uma
denominação que se refere ao um período temporal. Portanto, podemos afirmar que, em
certa medida, o tempo e o espaço em Nenhum olhar remetem à região conhecida como
Alentejo. Porém, como estudiosos da obra literária, sabemos que os mundos criados nos
textos ficcionais não carecem de rubricas da realidade concreta. Cabe a nós, portanto, a
tarefa de ressaltar no romance não o Alentejo de Portugal, mas o Alentejo de
José Luís Peixoto.
As escolhas do autor e da obra se devem a uma sugestão da Profª. Drª. Lílian
Lopondo que, ciente de nosso interesse pela literatura portuguesa e, em especial, pela
sua produção contemporânea, vislumbrou possibilidades de análise relevantes no
romance Nenhum olhar, de José Luís Peixoto. Nessa obra, o autor inaugura um modo
11
peculiar de representar a realidade, por intermédio do olhar, que percorre todo o texto e
que condiciona as relações entre as personagens. No que diz respeito à escolha do tema,
ou seja, à análise das dimensões espaciais e temporais, podemos afirmar que foi baseada
na importância que assumem dentro do romance. Se, como afirmam alguns estudiosos,
o tempo é o tema da obra de Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, pensamos que
o grande tema da obra de José Luís Peixoto é a relação que as personagens estabelecem
com o tempo e com o espaço. Acreditamos, portanto, que a análise dos cronotopos em
Nenhum olhar concorre para a compreensão do mundo criado pelo escritor português.
A interligação essencial entre tempo e espaço remete aos estudos bakhtinianos,
mais precisamente à sua obra Questões de literatura e de estética (1998). Nesse livro,
no capítulo intitulado “Formas de Tempo e de Cronotopo no Romance (Ensaios de
poética histórica)”, Bakhtin formula o conceito de cronotopo: “a interligação
fundamental das relações temporais e espaciais, artisticamente assimiladas em
literatura” (p.211). Ainda segundo o teórico, “os índices do tempo transparecem no
espaço, e o espaço reverte-se de sentido e é medido com o tempo. Esse cruzamento de
séries e a fusão de sinais caracterizam o cronotopo artístico” (Ibidem. Grifo nosso).
Será, portanto, por meio do enfoque teórico dado por esse filósofo da linguagem a essas
duas dimensões que analisaremos, no primeiro capítulo, denominado “Os cronotopos
em Nenhum olhar”, as relações entre espaço e tempo na obra. No que diz respeito à
denominação dos cronotopos, lembramos que
O nosso senso totalmente integrado de espaço e tempo molda
o nosso senso de realidade. Nós estamos constantemente empenhados
na atividade de re-presentar os sinais que recebemos de nosso
ambiente exterior; moldando-os em um padrão por meio de
cronotopos particulares (CLARK; HOLQUIST, 1998, p.297. Grifo
nosso).
Por essa razão, redenominamos os cronotopos com vistas a caracterizá-los
segundo sua função dentro da narrativa em questão. A sala de visitas, presente, por
12
exemplo, nos romances de Stendhal e Balzac, corresponde, aqui ao bar do judas.
Por outro lado, outros cronotopos, como a capela ou o quarto, somente adquirem
significado se tomados dentro do contexto de Nenhum olhar. Desse modo, chegamos a
seis cronotopos, denominados o bar do judas e o encontro; a soleira da porta e o
moto-perpétuo; a vila e o tempo cíclico; a capela e o sagrado; a estrada e o destino e o
quarto e o profano.
Com base nas conclusões advindas do primeiro capítulo, partiremos para a
interpretação do texto, focalizada no capítulo 2, que se intitula “A subversão do
rebaixamento em Nenhum olhar”. Este capítulo se faz necessário pela recuperação das
Sagradas Escrituras empreendida por José Luís Peixoto, pois tanto os nomes das
personagens quanto o do espaço privilegiado em Nenhum olhar remetem ao universo
bíblico. Neste capítulo, portanto, investigaremos os principais mecanismos
interdiscursivos de que lança mão o escritor - a citação, a alusão e o grotesco,
responsáveis pelo rebaixamento do texto-matriz e pela concepção de mundo trágica que
percorre a narrativa.
No terceiro capítulo, intitulado “O trágico em Nenhum olhar”, partiremos de um
esboço da filosofia do trágico até chegarmos ao sentimento do trágico tal como foi
trabalhado por José Luís Peixoto no romance. Por fim, esperamos mostrar que o
romance Nenhum olhar apóia-se na tensão entre a tradição literária e a sua ruptura, entre
os alicerces do discurso sagrado e do discurso literário, numa dinamicidade que aponta
para os novos rumos da ficção portuguesa contemporânea.
13
José Luís Peixoto nasceu em 1974, em Galveias, concelho de Ponte de Sôr.
Licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas pela Universidade Nova Lisboa. Foi
professor do ensino secundário e é colaborador regular de diversas publicações
nacionais e estrangeiras. Recebeu o Prêmio Jovens Criadores nos anos de 1997, 1998 e
2000; em 2001, seu romance Nenhum Olhar foi agraciado com o Prêmio José
Saramago, atribuído a jovens autores de língua portuguesa. Também escreve poesia e
tem publicados os livros A criança em ruínas (2001) e A casa, a escuridão (2002).
Em 2005 escreveu para o teatro as peças Anathema e À manhã.
Além dessas obras, escreveu, em 2003, o livro de contos Antídoto, inspirado no
CD de mesmo nome da banda de rock portuguesa Moonspell. Mais recentemente,
escreveu o poema O beijo para o novo CD da banda Sebenta. Tem seus romances
traduzidos na França, na Itália, na Bulgária, na Turquia, na Finlândia, na Holanda, na
Espanha, na República Tcheca, na Croácia, na Bielo-Rússia e no Brasil. Estão em
preparação edições no Reino Unido, na Hungria e no Japão.
Em 2006, mais precisamente no dia 03 de agosto, publicou, na revista Visão,
uma novela inédita, intitulada Minto até ao dizer que minto, em que aparecem, pela
primeira vez em sua prosa, elementos irônicos e humorísticos. Em novembro, foi
apresentado, em Cabo Verde, o Prêmio Literário José Luís Peixoto, destinado a autores
de língua portuguesa com menos de 25 anos. Finalmente, no mesmo mês, lançou seu
mais recente romance, intitulado Cemitério de Pianos, cujos direitos já foram vendidos
para a França.
14
O romance Nenhum olhar é dividido em duas partes, denominadas Livro I e
Livro II. José, do Livro I, a personagem principal, é pastor de ovelhas e vive no monte.
Desde que sua mãe morreu, seu pai mora na vila com a outra filha, casada, mãe de um
bebê. No mesmo local mora a mulher que se tornará a esposa de José. Ela é órfã de mãe
e, depois que seu pai morre, é estuprada mais de uma vez pelo gigante. Todos os
habitantes da vila sabem disso, inclusive José, que se casa com ela. As bodas são
celebradas pelo demônio e os padrinhos dos noivos são os gêmeos siameses Moisés e
Elias; as madrinhas, a cozinheira e a louca da rua da palha. Além deles, o velho Gabriel,
que conhece todos os habitantes da vila e do monte, é um dos convidados.
A mulher de José trabalha na casa dos ricos, no monte, e passa o tempo todo
sozinha, pois ali não mora mais ninguém. Quando não está cumprindo suas obrigações,
a mulher de José gosta de ficar ali sentada, ouvindo uma voz fechada dentro duma arca,
no corredor. Moisés se apaixona pela cozinheira. Em pouco tempo eles também se
casam e, ainda que tenham ambos por volta de setenta anos, ela engravida e dá à luz
uma filha. São muito felizes até que um dia, depois de comer cogumelos venenosos,
Moisés adoece e morre. Elias, seu irmão gêmeo, não resiste à perda e morre também.
A cozinheira enlouquece.
No bar do judas, diariamente, o demônio atormenta José, forçando-o a
lembrar-se do estupro de sua mulher pelo gigante. José vive dilacerado por isso e duvida
da paternidade de seu filho. Um dia, cansado, desesperançado, José se enforca numa
azinheira. A cadela de José, aliada a outros cães, vinga-o, matando o gigante.
O Livro II traz adulto o filho de José, que era um bebê quando do suicídio do pai
e que agora tem 30 anos de idade. Também se chama José e vive no monte com a mãe.
É pastor. Segundo o velho Gabriel, é igualzinho ao pai. Seu melhor amigo é Salomão,
seu primo. Passam muito tempo juntos. Salomão trabalha na serraria de mestre Rafael e
15
casa-se com a filha de Moisés e da cozinheira. A mulher de Salomão trabalha agora na
casa dos ricos e também gosta de sentar-se no corredor e ouvir a voz que ali fica
fechada dentro da arca. O demônio tenta Salomão, colocando-o contra o primo ao
sugerir que José tem um caso com a sua mulher. Salomão ama o primo e não quer
duvidar da sua lealdade.
Mestre Rafael herdou do pai a serraria. Não tem nem a perna nem o braço
direitos. É cego de um olho. Numa noite, pede em casamento a prostituta cega, filha e
neta de prostitutas cegas. Casam-se, têm uma menina que também nasce cega e não tem
o braço direito nem as duas pernas. No dia do parto morrem mãe e filha. Mestre Rafael,
desesperado pela dor, vai até a serraria e ateia fogo a tudo, morrendo em meio
às chamas.
O livro termina com a mulher de Salomão descobrindo que está grávida e
dizendo para si mesma que tem a morte dentro de si. Sua mãe, a cozinheira, morre
serenamente. Morre também o velho Gabriel. Então, ela, Salomão e José dirigem-se ao
monte, cada um com a sua solidão, ainda que o velho Gabriel tenha pedido a cada um
deles: “Não vás” (PEIXOTO, 2005, págs. 182, 185 e 188).
16
I - OS CRONOTOPOS EM NENHUM OLHAR
I.1 O bar do judas e o encontro
Na história do romance traçada por Bakhtin em sua obra Questões de literatura e
de estética, o cronotopo da sala de visitas é focalizado nos romances de Stendhal e de
Balzac. Ambos os escritores lançaram olhares sobre um mesmo tempo e um mesmo
espaço, ou seja, a França do século XIX. As duas grandes obras de Stendhal foram
O vermelho e o negro e A cartuxa de Parma. Balzac notabilizou-se pela Comédia
Humana, mas podemos destacar também As ilusões perdidas. Segundo o próprio
Bakhtin, “este lugar (a sala de visita) não apareceu pela primeira vez em seus romances,
mas foi aí que ele adquiriu o seu significado como ponto de intersecção das séries
espaciais e temporais do romance” (BAKHTIN, 1998, p.352). É na sala de visitas,
portanto, que ocorrem os encontros fundamentais. É nesse lugar que se “revelam os
caracteres, as “idéias” e as paixões dos heróis (Ibidem). No caso dos romancistas
franceses, a sala de visitas adquire, ainda, um outro sentido, porque estabelece
“o entrelaçamento do que é histórico, social e público com o que é particular e até
mesmo puramente privado, de alcova” (Ibidem).
Em Nenhum olhar, esse ponto de convergência se dá em outro espaço, que
assume a mesma função que a observada por Bakhtin com respeito à sala de visitas.
No romance de José Luís Peixoto, o lugar que carrega em si os aspectos do cronotopo
da sala de visitas é o bar do judas que, em alguns momentos, também é denominado
venda do judas. É para lá que José, no Livro I, se dirige ao cair da noite, depois de mais
um dia exaustivo de pastoreio. Lá dentro, ele encontra outros homens que não lhe são
estranhos mas com quem, aparentemente, não compartilha uma relação de amizade:
17
“Os poucos homens que o cumprimentaram arrastaram uma sílaba indecifrável, a
esmorecer. Os outros, sem parar de falar ou beber ou jogar cartas, olharam a querer vê-
lo”(PEIXOTO, 2005, p.8). Trata-se de um ponto de encontro social, onde homens estão
agrupados com o objetivo de beber, conversar e jogar cartas.
Além dos homens e de José, uma outra figura está ali presente: o demônio:
“Sorria. Era o único que não trazia a pele escura do sol, trazia camisas e calças passadas
e vincadas, cabelo penteado entre a boina e as saliências dos cornos” (Ibidem. Grifo
nosso ). A sua descrição física se faz em oposição à dos demais freqüentadores do bar,
ou seja, pela descrição do demônio deduzimos a aparência dos homens. Concluímos que
eles não sorriem, têm a pele bronzeada, cabelos desalinhados e usam roupas de trabalho.
Por meio desses dados, podemos inferir o perfil sócio-econômico dessa comunidade,
uma sociedade agrária, conforme veremos com mais profundidade no cronotopo da vila.
A intersecção entre o que é da ordem do público com o que é da ordem do
privado se realiza por meio do diálogo que o demônio estabelece exclusivamente com
José: “O demônio sorria. Sorrindo, perguntou como estás, onde está a tua mulher que
não a tenho visto?” (Idem, p.9). Desse modo, o demônio traz a público um assunto que é
da ordem do privado, de alcova: a relação conjugal. Além disso, sugere que a mulher de
José o está traindo: “Sabes, continuou enquanto sorria, disse-me o gigante que a
conhece mais que tu, que sabe melhor e com mais certeza onde ela anda, onde ela está”
(Ibidem).
Conforme Bakhtin, é nesse cronotopo que ocorrem “os diálogos que adquirem
um significado extraordinário no romance” (1998, p.352) e, de fato, todo o desenrolar
da trajetória de José é determinado por esse diálogo com o demônio porque a suspeita
levantada por ele atormentará José ao longo de sua vida e será responsável pelo seu fim
trágico.
18
Além de José, outra personagem, no Livro II, freqüenta o bar do judas e sofre as
provocações do demônio: Salomão, sobrinho de José do Livro I. Quase de forma
idêntica ao tio, Salomão tem exposta a sua vida íntima e é levado a crer que sua mulher
o está traindo com seu primo José, filho de José: “Sabes, disse o tentador sorrindo,
disse-me o teu primo José que sabe melhor do que tu onde ela está, agora e sempre”
(PEIXOTO, 2005, p.105). A recorrência desse cronotopo no Livro II sugere a existência
do tempo cíclico
1
no romance. De acordo com Bakhtin,
o tempo é privado do curso histórico progressivo, ele se move por
círculos estreitos; os índices deste tempo são simples, grosseiramente
materiais, estão solidamente ligados às particularidades locais: as
casinholas e as saletas da cidadezinha, as ruas sonolentas, a poeira e as
moscas, os clubes, os bilhares, etc. (1998, p.353. Grifo nosso).
Os homens do lugar parecem não ter escolha e se dirigem ao mesmo bar para ,
também, repetir, trinta anos depois, as mesmas conversas, e beber como seus pais
bebiam e jogar como seus pais jogavam: “Os homens, as mesmas caras, responderam
boa noite, Salomão” (Ibidem Grifo nosso). O fato de se tratar das “mesmas caras”
sugere a idéia de que, no Livro II, os freqüentadores são os descendentes daqueles
homens que aparecem no bar no Livro I. O próprio José, no Livro II, afirma,
referindo-se a José, do Livro I: “Sou teu filho e teu reflexo” (PEIXOTO, 2005, p.131).
Além disso, no Livro II, quem serve a bebida aos freqüentadores do bar é o filho do
judas: “O filho do judas, de mangas arregaçadas, andava de um lado para o outro, a
recolher copos e a participar em todas as conversas” (PEIXOTO, 2005, p.104. Grifo
nosso). Desse modo, o aspecto cíclico é reforçado, inclusive, pela idéia de
descendência, do filho que perpetua, no Livro II, o passado, pois assume a atividade que
pertencera ao seu pai, no Livro I, do mesmo modo que José, no Livro II é pastor como
seu pai, no Livro I.
1
Trataremos do tempo cíclico mais pormenorizadamente no cronotopo intitulado “A vila e o tempo
cíclico”.
19
O bar é, portanto, o lugar cuja função social permanece inalterada. E é ali que o
demônio ressurge, no Livro II, para envenenar Salomão. Ora, o cenário fechado, a
presença de vários homens bebendo e jogando e, principalmente, a presença do
demônio, tornam esse espaço bastante concentrado. A partir do momento em que o
demônio provoca José e Salomão, o ambiente parece tornar-se cada vez mais
claustrofóbico. Neste ponto, somos levados a lembrar a distinção estabelecida por
Osman Lins, citado na obra de Antonio Dimas Espaço e romance (1994), entre espaço e
ambiente:
Por ambientação entenderíamos o conjunto de processos
conhecidos ou possíveis, destinados a provocar, na narrativa, a noção
de um determinado ambiente. Para a aferição do espaço, levamos a
nossa experiência de mundo; para ajuizar sobre a ambientação, onde
transparecem os recursos expressivos do autor, impõe-se um certo
conhecimento da arte narrativa (LINS, 1976, p.77 . Apud. DIMAS,
1994, p.20. Grifo nosso).
Segundo essa definição, notamos que o espaço denominado bar do judas é
descrito segundo condições cristalizadas no imaginário do leitor. Em Nenhum olhar, o
bar é espacialmente caracterizado no Livro I pela existência de um balcão e de bebidas:
“No balcão, tirou o saco que trazia preso por um baraço ao ombro, encostou-o,
encostou-se. Um copo de tinto” (PEIXOTO, 2005, p.8 Grifo nosso); e, identicamente,
no Livro II: “Aproximei-me do balcão. Um copo de tinto”(Idem, p.104. Grifo nosso).
A imagem que o leitor faz de um bar coincide com o que é apresentado no romance,
com os elementos que compõem o bar, como “balcão” e “copo de tinto”. Por outro lado,
o ambiente criado pela pena de José Luís Peixoto descreve um determinado bar, em
cujo interior o tempo se transforma num elástico retesado. Nesse ambiente, portanto,
podemos afirmar que o tempo configurado é um tempo de tensão. O real significado
desse tempo é confirmado com o desdobramento dos acontecimentos.
20
Desse modo, o bar do judas é o cronotopo em que os aspectos espacial e
temporal se entrelaçam com o objetivo de criar tensão. Essa tensão é promovida por
meio dos encontros com o demônio. Nos confrontos entre José e o demônio, no Livro I
e Salomão e o demônio, no Livro II, notamos que a intersecção daquilo que é da ordem
do público – o divertimento dos homens- com aquilo que é da ordem do privado – a
relação conjugal – convergem para criar um ambiente carregado de significação. O bar
do judas e o motivo do encontro estão em íntima ligação no que diz respeito ao
desenrolar dos acontecimentos no romance e, por essa razão, decidimos focalizar os
demais encontros que ocorrem no romance dentro desse mesmo cronotopo.
José entra no bar do judas e encontra o demônio. De acordo com Bakhtin,
A unidade indissolúvel (mas não a fusão) das definições
temporais e espaciais traz ao cronotopo do encontro caráter elementar,
preciso, formal e quase matemático. Mas, naturalmente, esse é um
caráter abstrato. Pois o motivo do encontro é impossível isoladamente:
ele sempre entra como elemento constituinte da composição do enredo
e da unidade concreta de toda a obra e, por conseguinte, inclui-se no
cronotopo concreto que o engloba, no nosso caso, no tempo de
aventuras, em um país estrangeiro”(1998, p.222).
No entanto, em Nenhum olhar, não se trata de um tempo de aventuras num país
estrangeiro, mas, como previa Bakhtin, “Em diversas obras o motivo do encontro
recebe matizes diferentes e concretos, inclusive emocionais e de valor (o encontro pode
ser desejado ou indesejável, alegre ou triste, às vezes terrível e também ambivalente)”
(Ibidem Grifo nosso). Além disso, o encontro com o demônio não é desejado por José.
Eles estavam num mesmo tempo e num mesmo espaço e, conseqüentemente, se
encontraram, mas o resultado desse encontro para José é triste e terrível; ele fica
emocionalmente abalado. Como explica Bakhtin, “ele (o cronotopo do encontro)
distingue-se por um forte grau de intensidade do valor emocional” (1998, p.349).
21
O encontro de José com o demônio é diretamente responsável por outro
encontro: o de José com o gigante: “Vem a direito, com passos de máquina. O seu
corpo, maior do que o dos homens, é como o de uma árvore que andasse, é como o de
um homem que fosse do tamanho de três homens (...) À minha frente está parado.
Olhamo-nos” (PEIXOTO, 2005, p.11). Eles estão frente a frente e a desvantagem física
de José pesa contra ele, que leva uma surra do outro: “O gigante abriu bem as mãos
enormes e lançou-o ao chão” (Idem, p.12). Ainda que não seja explicitado na obra, esse
encontro era desejado por José, que pretendia defender a sua honra e a de sua mulher.
Incitado pelo demônio, ele encarna o papel do herói grego, cuja vida é refém do destino:
É bem verdade que ele é totalmente passivo em sua vida – o
“destino” conduz o jogo -, mas ele sofre esse jogo do destino. E não
apenas sofre, ele se resguarda e, inalterado, retira desse jogo, de
todos os reveses do destino e do acaso, uma absoluta identidade
consigo mesmo (BAKHTIN, 1998, p.229. Grifo nosso).
Diferentemente do herói grego, José não permanece inalterado porque esse
primeiro encontro com o gigante dá origem ao seu sofrimento, uma vez que, não
somente seu corpo fica em frangalhos, mas também o seu espírito:
Não a dor, não as pernas trôpegas de nódoas negras, não as
costelas partidas a colar entre o sangue pisado, não a cabeça a rachar-
se em tentáculos como raios, não a pele das paixões acabadas a abrir
rasgões fundos na carne como vergastadas de uma impotência
absoluta; mas o sofrimento, permanente e constante, como todos os
ossos expostos a furar os músculos e a pele. Dói-me o corpo e é sem o
sentir que sofro (PEIXOTO, 2005, p.25. Grifo nosso).
Do mesmo modo que ocorre no romance grego, aqui, José passa por provações
que testam sua dignidade e sua coragem. Todavia, em oposição ao herói grego, que
sempre consegue sair com honra das situações de perigo, José é humilhado pelo gigante
e, além do mais, toda a comunidade toma ciência dessa humilhação e é por ela
transformada. Os amigos, como Moisés, procuram minimizar o sofrimento de José e
22
evitam tocar no assunto; mas, na verdade, todos estão a par da surra que ele levou :
“Moisés aproximou-se de José. Não lhe disse nada sobre o que sabia das sovas do
gigante, nem lhe perguntou nada sobre isso, nem mencionou nada que pudesse levar a
esse assunto” (PEIXOTO, 2005, p.73). Ademais, os reveses do destino – os encontros
com o demônio e com o gigante – não fortalecem José, que, em oposição ao herói
grego, sai cada vez mais fragilizado, física e mentalmente, dos encontros com
os seus antagonistas.
Podemos afirmar que José não é feito da massa sólida e invulnerável do herói do
romance grego e, por essa razão, deixa-se levar novamente pelas provocações do
demônio: “E o tentador, sorrindo, disse se não acreditas em mim, vai agora ao monte; a
janela do teu quarto tem as portadas abertas, há uma nesga de cortinas aberta, espreita
por aí” (PEIXOTO, 2005, p.91. Grifo nosso). José cai na armadilha e age como o
demônio sugere: “E a mulher estava debaixo do gigante. José sentiu-se morrer estando
morto, e sentiu-se morrer e morrer, e a mulher estava debaixo do gigante” (Idem, p.93).
Apesar de enfraquecido moralmente pelas palavras do demônio e, fisicamente, pela
surra do gigante, até esse momento José podia contar com o benefício da dúvida, que
desaparece no instante em que ele vê com os próprios olhos a sua mulher e o gigante
mantendo relações sexuais. O fio de esperança que sustenta José, que o mantém de pé, é
subitamente partido. Se para ele, é difícil conviver com a dúvida, com o “ouvir dizer”,
com a certeza advinda do “ter visto” será impossível.
A importância do sentido da visão em detrimento dos outros é aspecto
preponderante em Nenhum olhar. Observamos que as personagens se relacionam
fundamentalmente por meio do olhar, como podemos demonstrar nos seguintes excertos
extraídos do romance: “E, apesar do sangue e do pó na pele, o olhar de José era o
mesmo. O gigante quis bater-lhe mais e apagar-lhe aquele olhar, bater-lhe tanto”
23
(Idem, p.12. Grifo nosso); “Na subida, sem que o pudesse evitar, a mulher dele olhou-
me longamente e leu-me o olhar” (Idem, p.14. Grifo nosso); “A mãe de José era um
nevoeiro muito fundo, muito frio e muito espesso; era uma mulher morta, um respirar
de morto, pele de morto, sem rosto, sem olhar, com noite no olhar (Idem, p.112. Grifo
nosso).
José, no Livro I, é levado ao desespero que culmina no seu último ato, aquele em
que dá cabo da própria vida porque a sua mulher com o gigante. Ao longo de todo o
romance a importância do olhar é ressaltada e, por esse motivo, podemos pensar que a
própria ação é determinada pelas conclusões a que as personagens chegam por
intermédio do sentido da visão e pelas decisões que tomam a partir dessas conclusões.
Outro aspecto do romance grego observado por Bakhtin é o do final feliz que
coroa a vida dos dois amantes: “O ponto de partida da ação do enredo é o primeiro
encontro do herói com a heroína e a repentina explosão de paixão entre eles; e o ponto
de chegada da ação do enredo é a feliz união dos dois em matrimônio” (1998, p.215.
Grifo nosso). Em Nenhum olhar, não existe entre José e a sua mulher, no Livro I, a
“explosão de paixão” a que o teórico russo se refere. O que há é a contenção de
sentimentos, que vale para todas as personagens. Na verdade, ele conhecia sua mulher
há muito tempo e ambos trabalhavam no monte das oliveiras. Foi por meio do demônio
que algo foi despertado em José:
José bebeu o fundo de vinho que tinha no copo e, quando se
virava para sair, o tentador sorriu-lhe e perguntou-lhe por aquela que
viria a ser sua mulher, disse então a rapariga do telheiro como tem
passado? ... No começo da manhã seguinte, José bateu à porta da casa
dos ricos e deu mais atenção ao rosto triste e apagado que lha abriu. E
enquanto passava pela cozinha, carregando braçadas de lenha de
azinho e estevas, olhava, reparando finalmente nela, nos seus braços,
na fragilidade, na pele branca (PEIXOTO, 2005, p.29. Grifo nosso).
24
Analogamente ao que acontece no romance Dom Casmurro, no qual Bentinho
descobre por outra personagem que ama Capitu - no caso do romance machadiano cabe
a José Dias esse papel -, aqui, quem promove o despertar do amor em José é o demônio.
Em certa medida, tanto Bento quanto José não haviam tomado consciência, no sentido
amoroso, das respectivas mulheres e são alertados sobre tal sentimento por outrem.
Depois de casados, tanto José quanto Bentinho são levados a duvidar da fidelidade de
suas esposas e a suspeita é levantada justamente por aqueles que haviam motivado a
união dos casais, ou seja, o demônio e José Dias, respectivamente. Este último,
inclusive, está em íntima conexão com a personagem Iago, da tragédia shakespeariana
Otelo. Em Dom Casmurro há um capítulo intitulado “Uma ponta de Iago”, em que a
aproximação entre José Dias e a personagem da obra inglesa é explicitada.
Em Dom Casmurro e em Otelo, José Dias e Iago são personagens ambíguas. O
primeiro é um agregado da casa de Bentinho; o segundo é alferes de Otelo. Agem,
portanto, amparados pelo pretexto da lealdade aos seus patrões. Em Nenhum olhar, o
demônio é também uma personagem ambígua. Ele bebe com os outros homens no bar
do judas e celebra os casamentos na capela. Mas não pode usar o pretexto de lealdade,
como nos exemplos anteriores, porque nem José nem Salomão são seus amos/senhores.
Só podemos atribuir ao demônio o puro desejo de maldade, associado universalmente
à sua figura.
Na narrativa em pauta, “demônio” e “diabo” são usados como substantivos
sinônimos e, por isso, para o que nos interessa demonstrar, utilizaremos a definição de
“diabo” que consta na Enciclopédia Einaudi (1987): “O diabo é uma criatura inteligente
e incorpórea cuja vontade é essencialmente má, ou seja, comandada inteiramente pelo
desejo de fazer mal” (p.243. Grifo nosso). Portanto, em Nenhum olhar, o demônio age
25
conforme a sua natureza, ou seja, deseja simplesmente fazer o mal. Ademais, com o
desenrolar dos acontecimentos, essa idéia se confirma.
José e sua mulher, então, se casam, mas não há qualquer descrição desse
relacionamento que se aproxime de um idílio. Os devaneios amorosos referem-se
somente a José:
José andava a padecer por ela. Ainda de madrugada, ao
acordar, a primeira coisa em que pensava era nela. Quando ia guardar
o gado, pensava nela e, às vezes, não lhe conseguia ver o rosto,
gastava-se-lhe de tanto a imaginar. Nessas alturas, fechava os olhos
com muita força e construía-a peça por peça: lembrava-se dos lábios,
do nariz, dos cabelos, dos olhos e depois juntava tudo na idéia. Ao
adormecer pensava nela. Quando a espreitava, sentia o coração
rápido nas têmporas (PEIXOTO, 2005, p.30. Grifo nosso).
À mulher coube ser observada e admirada. E ela tem ciência de ambas as coisas:
“Mas ela sabia que ele a vigiava, sabia exactamente o sentimento que o consumia, não
por alguma vez o ter surpreendido, não por ter em si alguma qualidade sobrenatural,
mas por ser mulher e todas as mulheres saberem mais do que vêem...” (PEIXOTO,
2005, p.31. Grifo nosso). E é ela quem age, dirigindo-se à casa de José e oferecendo-se
a ele:
Um dia, ao fim da tarde, ela atravessou o pátio, passou pela nora
e pelo jardim pequeno que a senhora tinha gosto em que se
mantivesse, e bateu à porta da casa de José. Quando ele chegou, ela
olhava-o nos olhos, e o rosto dele tornou-se profundo num momento.
E foi ela quem rompeu esse momento, atravessando as fitas em
silêncio, José seguiu-a. E entraram no quarto, e fizeram amor
(PEIXOTO, 2005, p.31. Grifo nosso).
No dia seguinte a esse encontro, José comunica a sua família que irá se casar e a
notícia é recebida, aparentemente, com indiferença:
26
No quintal da irmã, o pai ainda estava na mesma cadeira, como
uma estátua de mármore a envelhecer. José sentou-se e, ao fim de uma
hora, disse vou casar-me. Nenhuma modificação ocorreu no rosto dos
dois homens (PEIXOTO, 2005, p.31. Grifo nosso).
Essa mesma indiferença é percebida no próprio casal, um dia depois do
casamento: “No domingo, o José teve de ir tratar das ovelhas. A jovem noiva, com a
indiferença de uma casada de bodas de prata, fez o café e foi lavar a roupa para o
tanque da casa dos ricos. José não a foi espreitar” (PEIXOTO, 2005, p.32. Grifo nosso).
A expressão “indiferença de uma casada de bodas de prata” sintetiza o que acabamos de
observar. Podemos creditar a indiferença das personagens a uma mundivisão baseada
em contenção. No mundo em que vivem o essencial é valorizado em detrimento do
excessivo
2
. E o mesmo se dá em relação à demonstração dos afetos. Não existem
explosões de qualquer espécie, seja de alegria, de tristeza ou de paixão. Tudo se resume
ao necessário.
Subvertendo as regras do romance grego, em que o herói e a heroína se
conhecem, “via de regra, numa festa solene”, “apaixonam-se repentina e
instantaneamente” e “são excepcionalmente castos” (BAKHTIN, 1998, p.214), José
Luís Peixoto cria um herói que se apaixona por uma mulher estuprada por um gigante:
“Antes de me casar, os homens na rua chamavam-lhe galdéria. Então, como é que está a
galdéria? Chamavam-lhe puta” (PEIXOTO, 2005, p.72). Ou seja, ela não é casta; assim
como ele, que costumava freqüentar a casa da prostituta cega e assim continuou a fazer,
mesmo depois de casado: “Na última noite de verão, como fazia sempre nas últimas
noites de cada estação desde os dezoito anos, José foi à casa da prostituta cega”
(PEIXOTO, 2005, p.45).
2
Dissertaremos mais sobre esse tema no cronotopo intitulado “O quarto e o profano”.
27
Para Bakhtin, “deve-se sobretudo notar a estreita ligação do motivo do encontro
com motivos como a separação, a fuga, o reencontro, a perda, o casamento, etc., que
são semelhantes pela unidade das definições espaço-temporais ao motivo do encontro”
( 1998, p.223. Grifo nosso). No Livro I, além do casamento de José, há o casamento de
Moisés com a cozinheira; no Livro II, Salomão se casa com a filha da cozinheira e
mestre Rafael se casa com a filha da prostituta cega. Isto quer dizer que cada um desses
casais estava “num mesmo tempo” e “num mesmo lugar”. Moisés, o irmão siamês de
Elias, durante o casamento de José, encontra a cozinheira e se apaixona por ela:
Continuava o demônio nestas andanças, e ela chegou. Surgiu na
entrada da capela iluminada por trás e, de início, aquela silhueta
encandeou-me. Já sabia que ela se tinha mudado para a vila, mas
ainda não a tinha visto. Nos cinqüenta anos em que serviu no monte
das oliveiras, nunca a vi, pois, sempre que me deslocava para o monte,
ela estava ocupada; e, sempre que ela vinha à vila, nunca calhamos a
cruzar-nos (PEIXOTO, 2005, p.36. Grifo nosso).
Notamos, em primeiro lugar, que o motivo do encontro é mencionado na
modalidade positiva: “aquela silhueta encandeou-me” e, depois, na negativa: “ainda não
a tinha visto” e “nunca calhamos a cruzar-nos”. De acordo com a ordem não-linear da
narrativa, o encontro acontece primeiro, “aquela silhueta encandeou-me”, mas pela
ordem cronológica, o não-encontro acontece antes “ainda não a tinha visto” e “nunca
calhamos a cruzar-nos”. Mesmo no motivo negativo, segundo Bakhtin, “a
cronotopicidade é mantida, mas um ou outro membro do cronotopo é dado como um
signo negativo: não se encontraram porque não estavam em dado lugar ao mesmo
tempo” (1998, p.222).
Finalmente, no dia do casamento de José, as categorias espaço-temporais
convergem para que o encontro se realize. Podemos pensar em acaso, porque nenhum
dos dois sabia que encontraria o outro naquela hora e naquele lugar. A ocasião é festiva
28
e, conforme mencionamos acima, esta é a ocasião ideal para que ocorra o encontro
amoroso. Outro elemento apontado por Bakhtin é o seguinte: “Um par de jovens em
idade de casamento... “(1998, p.214. Grifo nosso). Entretanto, aqui, tanto Moisés quanto
a cozinheira já passam dos setenta anos.
No Livro II, Salomão e a filha da cozinheira não se encontram por acaso, como
no caso de Moisés e da cozinheira. O encontro dos dois é promovido pelo velho
Gabriel: “depois, o velho Gabriel bateu-me à porta e, antes de se instalar ao pé da minha
mãe no quintal, disse trago aqui uma pessoa que quer te conhecer. E o rosto assustado
do Salomão apareceu muito sumido na soleira da porta” (PEIXOTO, 2005, p.136. Grifo
nosso). No dia seguinte, a própria mãe de Salomão vai à casa da moça e acerta o
casamento entre os dois. Desse modo, observamos que o romance entre Salomão e a sua
futura mulher não acontece por acaso e o casamento de ambos atende mais ao desejo de
outrem do que deles próprios.
O último casamento do romance é o de mestre Rafael com a filha da prostituta
cega, também ela prostituta e cega. A dinâmica do encontro é a mesma observada nos
casamentos anteriores, ou seja, eles não se apaixonam repentinamente. Mestre Rafael já
freqüentava a casa da prostituta cega há algum tempo e o casamento foi decidido
quando ele descobriu que ela estava grávida:
E, quando ela levou a mão do mestre Rafael e a assentou, sobre a
roupa, no seu ventre, os lábios dele desfizeram-se num sorriso, talvez
um sorriso, e o seu olhar imenso procurou-a. Ela não sorria. E só
quando ele, numa voz de criança, disse vamos casar, a sua expressão
grave, mas serena, se dissipou num ligeiro aceno de alegria singela e
sincera (PEIXOTO, 2005, p.126. Grifo nosso).
Mais uma vez, o encontro que leva ao casamento está destituído dos valores
idealizados do amor que caracterizam o romance grego, seja pelo fato de o encontro não
ser obra do acaso, seja por não resultar numa paixão repentina ou, até mesmo, pelo fato
29
de o casal ser formado por um aleijado e uma prostituta cega. Além disso, como
veremos no cronotopo do quarto, nenhum dos casais sequer se aproxima do final feliz
que é alcançado no cronotopo grego.
Para finalizar o cronotopo do encontro, ainda é preciso mencionar um amor não
concretizado, no Livro II. Trata-se do sentimento que une José e a mulher de Salomão.
Antes de ser apresentada a Salomão, a filha da cozinheira trabalhava no monte das
oliveiras e, lá, conhece José:
Nessa tarde, conheci o José. Tinha acabado de prender as ovelhas
no redil e vinha na minha direcção. O seu olhar era firme, quase feroz;
meigo, como o de um filho; envergonhado por ser o olhar de um
pastor todo o dia entre as ovelhas e longe dos homens; nítido. E ao
dizer boa tarde, já sabia quem eu era. Esperei talvez um instante,
respondi boa tarde, e também eu, também eu sabia quem ele era
(PEIXOTO, 2005, p.118).
Eles se apaixonam e o leitor se dá conta desse fato por meio de algumas frases:
tudo era aquela voz a dizer boa tarde e a olhar-me, tudo era o seu rosto” (Ibidem);
“E, antes de adormecer, para lá das palavras intermináveis que a minha mãe moldava no
silêncio, só via o José a chegar do campo e a olhar-me, a olhar para mim, a ver que eu o
via, a olharmo-nos”(PEIXOTO, 2005, p.119. Grifo nosso). Mas antes que os dois
tenham a oportunidade de concretizar esse sentimento, o velho Gabriel apresenta
Salomão a ela, que, então, se casa com o primo de José. O sentido de fatum que permeia
toda a obra é predominante e, incapazes de lutar por seu amor, José e a filha da
cozinheira se tornam vítimas do destino. Por um momento, entretanto, eles cogitam a
hipótese de fugir juntos, mas isso acontece depois do casamento com Salomão. Sobre
esse momento em que os dois combinam a fuga, é interessante destacar os elementos
que compõem a cena:
Dentro do céu, sobre nós, passou uma cegonha muito lenta, de
asas muito abertas, a voar, levando um ramo seco na ponta do bico
30
muito comprido. E esse momento foi nosso e enorme. Olhando-me
sempre, disse espera por mim, vou hoje buscar-te (PEIXOTO, 2005,
p.132. Grifo nosso).
No cronotopo do encontro, de acordo com Bakhtin, as definições espaciais e
temporais têm um caráter indissolúvel. Aqui, por outro lado, a ênfase está no caráter
temporal: “esse momento foi nosso e enorme”. Segundo Michel Zéraffa, citado na obra
O tempo na narrativa (1995), de Benedito Nunes, “negado enquanto fragmento
cronológico, valorizado enquanto meio de acesso ao ser, o momento toma no romanesco
uma importância psicológica, filosófica e estética fundamental” (p.63. Grifo nosso). O
tempo está carregado de promessa. O espaço é aberto, como concluímos pela presença
da cegonha voando acima deles. Essa amplidão espacial reforça o aspecto temporal,
pois ambos concorrem para a idéia de liberdade e de futuro. Desse modo, podemos
pensar que o encontro, no tempo presente, está intensamente carregado de tempo futuro.
Por isso, a imagem da cegonha: ela ilustra a suspensão desse encontro – um tempo
esvaziado de espaço. O jovem e a moça estão suspensos no tempo assim como a
cegonha está suspensa no ar. Além disso, sabemos que essa ave é “uma ave de bom
agouro” e “acredita-se, em certas regiões, que ela traga os bebês no bico; o que pode ter
alguma relação com o fato de ser migradora, voltando quando a natureza acorda”
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2006, p.218. Grifo nosso).
No entanto, a cegonha, aqui, carrega um ramo seco, ou seja, sem vida, na ponta
do bico. Por essa razão, o aspecto positivo da cegonha que é o de anunciar uma nova
vida, representado pelo bebê no bico, é substituído pelo negativo, simbolizado pelo
ramo seco. Notamos, portanto, que até mesmo o único casal que encarna todos os
valores presentes no cronotopo bakhtiniano do encontro - é jovem, apaixona-se
irremediavelmente e está disposto à aventura da fuga para honrar esse amor - não
alcança o final feliz como no romance grego. O ramo seco que a cegonha traz no bico é
31
um sinal de mau agouro, em oposição à sua representação tradicional. José Luís
Peixoto, no romance, coloca em xeque a imagem já consagrada da origem da vida – que
é a cegonha -, o que remete às reflexões de Roger Bastide, em sua obra intitulada Arte e
Sociedade (1971), que argumenta que “existem duas maneiras de inventar” (p.72). Na
primeira, o artista tem o desejo consciente de inovação e promove a ruptura com a
tradição por meio de uma “imitação às avessas” (Idem). Para Bastide, essa vontade
consciente “supõe uma reflexão sobre a tradição, com o fim de criticá-la” (Idem). A
segunda maneira sugere uma “sensibilidade original”, que faz com que o artista
interprete “sem querer essa tradição através de seu gênio especial” (Idem). Seja qual for
o caso de José Luís Peixoto, por ora interessa saber que identificamos em seu romance
uma tensão que resulta em soluções diferentes daquelas encontradas na tradição
literária
3
.
Em Nenhum olhar, a filha da cozinheira segue adiante com o plano da fuga, mas
José é levado a desistir dele, pois sente culpa e atende a um pedido da mãe, feito
somente com o olhar: “Como te entendi na noite em que me preparava para ir ter com
ela à vila, e me olhaste, com o corpo morto e a sombra, me olhaste, sem palavras,
dizendo não vás” (PEIXOTO, 2005, p.131). Sua consciência o impede de seguir adiante
e ele abre mão da sua oportunidade de felicidade.
Não vás. E não fui. Ainda que todo o dia, toda a vida, tivesse
esperado aquele instante, único entre todos os instantes, ainda que
tivesse imaginado o mundo ao pormenor depois da fronteira pequena
daquele instante, não fui (PEIXOTO, 2005, p.134. Grifo nosso).
3
No próximo capítulo recuperaremos a questão da tensão.
32
No exato instante em que José decide não fugir com a filha da cozinheira, com a
esposa de seu primo, identificamos o momento de crise. A palavra fronteira nos remete
ao cronotopo da soleira da porta e a ele nos dedicaremos a seguir.
I..2 A soleira da porta e o moto-perpétuo
Mikhail Bakhtin define o cronotopo da soleira como “o cronotopo da crise e da
mudança de vida” (1998, p.354). O sentido da soleira, em literatura, é simbólico e
metafórico. Em seu romance, José Luís Peixoto cria várias “soleiras” e em cada uma o
tempo e o espaço estão carregados de intensidade. “São os lugares onde se realizam os
acontecimentos das crises, das quedas, das ressurreições, dos renascimentos, das
clarividências, das decisões que determinam toda uma vida” (Ibidem. Grifo nosso).
Como vimos, José, no Livro II, não vai ao encontro da filha da cozinheira e
ressaltamos a presença da palavra “fronteira” em seu discurso. Ora, fronteira e soleira
descrevem um espaço-limite. Entretanto, é necessário que façamos a fusão desse
espaço-limite com um tempo-limite. Para José, a fronteira, ou seja, o espaço-limite, se
funde com o tempo-limite e essa fusão determina sua incapacidade de seguir adiante. O
momento de crise se dá quando o encontro com a mulher amada deixa de ser uma
possibilidade: “ainda que tivesse imaginado o mundo ao pormenor depois da fronteira
pequena daquele instante” e se torna uma impossibilidade: “não fui”.
Segundo Marc Augé, em sua obra Não-lugares, Hermes é o deus do umbral e da
porta, e “representa o movimento e a relação com o outro” (2005, p.56). Ora, o que
realmente está em jogo nesse movimento de atravessar ou não a soleira em Nenhum
olhar é a relação com o outro e, subliminarmente, a relação consigo mesmo, ou seja,
33
trata-se de uma questão identitária. Sabemos que a identidade é construída sobre várias
bases, mas que uma delas lhe é inalienável: a alteridade, o outro.
A soleira da porta separa dois espaços e dois tempos. Para ilustrar com maior
clareza esta afirmação, pensemos na imagem de um indivíduo prestes a atravessar a
soleira: em primeiro lugar, ele deve estar posicionado, inevitavelmente, em um dos seus
lados. Ao lado onde ele já se encontra chamaremos Lado 1. Em segundo lugar, ao
atravessar a soleira, ele realiza um movimento no espaço e, conseqüentemente, no
tempo. Ao lado que ele alcança depois do movimento realizado, chamaremos Lado 2.
Do ponto de vista do indivíduo, portanto, o Lado 1 corresponde ao tempo presente e o
Lado 2, ao tempo futuro. O primeiro é da ordem do tempo que já é e o segundo é da
ordem do tempo que ainda não é. A crise se verifica, portanto, no intervalo entre essas
duas dimensões espaço-temporais. É nesse intervalo que surge a ambivalência; se, por
um lado, José deseja ir ao encontro da mulher amada, por outro, não quer causar
nenhum desgosto à mãe ou a Salomão, o que seria impossível se ele insistisse na fuga.
Diferentes tipos de amor estão em jogo e José não consegue privilegiar aquele que o une
à mulher de Salomão.
Portanto, José, no Livro II, não realiza o movimento, ou seja, não atravessa a
soleira em direção ao futuro, mas escolhe permanecer no tempo e no espaço originais,
no Lado 1 da soleira. Ele só pôde imaginar o mundo depois daquela fronteira. De
acordo com Bakhtin,
A própria palavra “soleira” já adquiriu, na vida da linguagem
(juntamente com seu sentido real), um significado metafórico; uniu-se
ao momento da mudança de vida, da crise, da decisão que muda a
existência (ou da indecisão, do medo de ultrapassar o limiar (1998,
p.354. Grifo nosso).
34
Vejamos como essa questão do medo se desenvolve em outro fragmento do
romance, em que José, no Livro I, afirma: “Um olhar que me disse custar-te-á
atravessar a ombreira da porta de casa...” (PEIXOTO, 2005, p.48. Grifo nosso).
Novamente, a hesitação, presentificada pelo verbo “custar”, utilizado aqui no sentido de
“ser penoso”, difícil. Atravessar a soleira implica experimentar o desconforto que está
ligado ao enfrentamento da mulher e do filho, desconforto esse causado pelas
insinuações do demônio. Encarar a mulher é, ao mesmo tempo, amá-la e duvidar dela;
encarar o filho é, simultaneamente, amá-lo e duvidar de sua paternidade. Essa
ambivalência de sentimentos tortura José, no Livro I, a ponto de ser-lhe custoso
atravessar o umbral da porta de casa e paralisa José, no Livro II, que não é capaz de dar
o passo em direção ao futuro.
O cronotopo da soleira é representado na narrativa de diversas maneiras. Muitas
vezes é explícito; em outras, é velado. O corredor da casa dos ricos é uma das formas
sob a qual ele aparece de modo bastante metafórico. É nesse lugar que a mulher de José,
no Livro I, e a filha da cozinheira, no Livro II, passam horas a ouvir a voz aprisionada
numa arca. O corredor é, na sua modalidade concreta, um local de passagem, onde as
pessoas não se detêm. Sua função é ligar um lugar a outro. É, em certa medida, um
não-lugar porque, conforme Augé: “O não-lugar nunca se realiza totalmente” ( 2005,
p.74). E, visto que estamos nos concentrando na observação de um cronotopo, um não-
lugar implica em um não-tempo. Porém, naquele corredor as duas mulheres
permanecem horas sentadas e ele se torna, para elas, portanto, um lugar e um tempo
carregados de significação:
Existem, por exemplo, locais privilegiados qualitativamente
diferentes dos outros: a paisagem natal ou o sítio dos primeiros
amores, ou certos lugares na primeira cidade estrangeira visitada na
juventude. Todos esses locais guardam, mesmo para o homem mais
francamente não-religioso, uma qualidade excepcional “única”: são os
“lugares sagrados” do seu universo privado, como se neles um ser
35
não-religioso tivesse tido a revelação de uma outra realidade,
diferente daquela de que participa em sua existência cotidiana
(ELIADE, 2001, p.28. Grifo nosso).
Da arca sai uma voz masculina que diz coisas enigmáticas que, por algum
motivo, fazem sentido para essas duas mulheres e somente para elas, visto que as outras
personagens que trabalham na casa não dão maior importância nem ao local e nem à
arca: “Primeiro, pensei que fosse uma pessoa que ali estivesse fechada, mas, e nessa
tarde falou-me, a cozinheira disse-me não faças caso, é só uma voz” (PEIXOTO, 2005,
p.23. Grifo nosso). Tanto a mulher de José, no Livro I, como a filha da cozinheira, no
Livro II, são personagens marcadas pelo sofrimento; ambas são órfãs de pai e de mãe,
inclusive a filha da cozinheira, porque seu pai, Moisés, morreu no Livro I e, desde a
morte dele, sua mãe vive num mundo alheio à realidade. Uma foi estuprada pelo gigante
e, por isso, é marginalizada pelos habitantes da vila; a outra, desde pequena, assumiu o
controle da casa e cuidou da própria sobrevivência. Nada está para acontecer nem nada
é decidido, de fato, naquele lugar. Ali, naquele tempo e naquele espaço, cada mulher é
somente alguém sentado em um banco ouvindo uma voz presa dentro de uma arca. Não
há passado, presente e futuro, ou nas palavras de Virginia Woolf, “nenhum passado,
nenhum futuro; meramente o momento em seu anel de luz” (Apud MENDILOW, 1972,
p.246). Podemos pensar que o corredor é uma brecha espaço-temporal, como um portal
que se abre para outra realidade em determinadas horas e que, depois, se fecha. O
fragmento abaixo descreve o dia em que a mulher de José, no Livro I, toma
conhecimento da arca:
E foi por essa altura que, estando eu a limpar o pó, comecei a
escutar a voz que está fechada numa arca. Uma arca como as outras,
antiga e encerada, como tudo é antigo e encerado na casa dos ricos;
uma arca no corredor maior, sob um quadro de bigodes retorcidos; e
dentro da arca, uma voz. Primeiro, pensei que fosse uma pessoa que
ali estivesse fechada, mas, e nessa tarde falou-me, a cozinheira disse-
me não faça caso, é só uma voz. Essa voz abafada falava solene como
36
se estivesse a ler uma epopéia de um livro, disse: talvez os homens
existam e sejam, e talvez para isso não haja qualquer explicação;
talvez os homens sejam pedaços de caos sobre a desordem que
encerram, e talvez seja isso que os explique. Não conseguia ignorar a
voz que está fechada dentro de uma arca. Era uma voz de homem. Na
semana que se seguiu a essa descoberta, fingi tarefas só para estar no
corredor maior a escutar a voz (PEIXOTO, 2005, p.23. Grifo nosso).
O fato de a mulher de José passar horas no corredor ouvindo a voz na arca não
provoca mudanças em sua vida nem na vida das outras personagens. Mas isso não
impede que ela continue a apreciar aqueles momentos: “E, com as portas fechadas por
dentro e com as chaves no bolso, sentava-se tardes inteiras a ouvir a voz que está
fechada numa arca. E nesses momentos, quase se deixava sorrir” (PEIXOTO, 2005,
p.45. Grifo nosso). Aparentemente, trata-se do único período em que ela é retirada de
sua condição de mulher pobre, limitada por obrigações e afazeres, marginalizada e
infeliz. Confirmando aquilo que a própria voz anuncia, ela, simplesmente, é. Porém, ela
precisa voltar a exercer o papel que lhe cabe na comunidade e a frase “quase se deixava
sorrir” é emblemática pela presença do advérbio. Ela quase sorriu porque quase é capaz
de ser feliz naquele breve espaço-tempo. Experimenta, em certa medida, uma quase
transcendência porque, do mesmo modo que o corredor liga dois lugares, se tomado em
sua forma denotativa, cronotopicamente trabalhado por José Luís Peixoto transforma-se
num espaço-tempo de ligação, mas uma ligação que se estabelece entre duas
subjetividades, a mulher e a voz que está fechada dentro da arca.
No Livro II, a filha da cozinheira, trinta anos depois, vai trabalhar na casa dos
ricos, para substituir a mulher de José e ouve a voz dentro da arca:
Com o lenço da cabeça atado à volta da cara, a tapar-me a boca e
o nariz, parei por diversas vezes a escutar a voz que está fechada
dentro de uma arca e percebi um pouco porque é que a mãe do José
tinha querido passar ali tanto tempo. Numa dessas vezes, ouvi-a
dizer: talvez haja uma luz dentro dos homens, talvez uma claridade,
talvez os homens não sejam feitos de escuridão, talvez as certezas
37
sejam uma aragem dentro dos homens e talvez os homens sejam as
certezas que possuem (PEIXOTO, 2005, p.118. Grifo nosso).
Após trinta anos, a mesma arca encontra-se no mesmo corredor e de dentro dela
sai a mesma voz. E, ainda que tenham mudado as mulheres, a relação que elas mantêm
com esse cronotopo é a mesma, porque ambas são empregadas da casa dos ricos e
ambas se refugiam no corredor para ouvir a voz que sai da arca. Podemos, inclusive,
estabelecer uma relação de identificação entre cada mulher e a voz, na medida em que
tanto as mulheres como a voz encontram-se fechadas, presas. Ambas as mulheres estão
atadas a condições psíquicas e sociais que limitam suas vidas.
Em Nenhum olhar, portanto, o cronotopo da soleira é subvertido porque o
aspecto referente à mudança de vida é apagado. José não ultrapassa os limites e sua vida
permanece igual, ou seja, ele fica sozinho, sem a mulher que ama. Ainda que seja
verificável o momento de crise, este não resulta em mudança. José quase atravessa a
soleira, mas volta atrás na sua decisão de fuga. No corredor, em contrapartida, não
observamos nem a crise nem a mudança. Por isso, podemos pensar que, aqui, o
cronotopo da soleira da porta, em oposição à definição bakhtiniana, é o cronotopo da
perpetuação. Ele é um tempo-espaço limite que jamais é ultrapassado e, por essa razão,
é o cronotopo do moto-perpétuo, do tempo sisífico.
Frente ao exposto, concluímos que o cronotopo da soleira da porta aponta para a
incapacidade de mudança a que as personagens estão sujeitas em virtude de estarem
presas a comportamentos herdados, o que conduz ao estudo do próximo cronotopo.
I.3 A vila e o tempo cíclico
De acordo com Bakhtin, a “ cidadezinha provinciana e pequeno-burguesa, com
seus costumes bolorentos, é um lugar muito utilizado para a realização das peripécias
38
romanescas do século XIX” (1998, p.353). Em Nenhum olhar, a cidadezinha é
ressucitada por José Luís Peixoto.
A vila é uma comunidade que vive, basicamente, do cultivo de azeitonas e do
pastoreio. Não por acaso, as personagens principais moram no monte das oliveiras e,
freqüentemente, se encontram no lagar
4
. José, no Livro I, tal qual seu pai, é pastor de
ovelhas e, no Livro II, seu filho, também José, continua a exercer a profissão do pai e do
avô. Trata-se, portanto, de uma comunidade agrícola-pastoril, basicamente. Outras
profissões são mencionadas: o pai da mulher de José é oleiro, o marido de sua irmã é
ferreiro e mestre Rafael e Salomão são marceneiros. Seja como for, o trabalho é
invariavelmente braçal.
Essa comunidade é dividida em duas classes sociais: os ricos e o resto da
comunidade. Os ricos são uma família cujo único membro mencionado é o doutor
Mateus. Sua casa está localizada no monte das oliveiras: “A casa de José, caiada e com
barras amarelas, ficava a uns metros da casa dos ricos, ao fundo do pátio, atrás da nora
e de um jardim pequeno que a senhora tinha gosto em que se mantivesse” (PEIXOTO,
2005, p.10. Grifo nosso). A casa de José é caiada, ou seja, é precariamente revestida e
fica aos fundos da casa dos ricos e a esposa do doutor Mateus, apesar de não possuir
nome, é tratada pelo pronome “senhora”, o que lhe confere distinção em relação às
outras personagens femininas.
Em alguns momentos, somos capazes de ouvir ecos do discurso marxista sobre a
luta de classes:
O meu pai, que era a única pessoa, a gastar as últimas forças
para dizer contem-me lá como está o telheiro? A morrer lentamente e
a perguntar pelos fornos e pelo poço. O telheiro que nunca foi dele e
que foi mais dele do que do doutor Mateus, que nunca acartou um
balde de barro, que nunca tocou em barro com as mãos, com os pés,
4
Oficina em cujos aparelhos as azeitonas são espremidas até serem reduzidas a líquido.
39
que nunca viu barro. Vai entregar a renda ao doutor Mateus, filha
(PEIXOTO, 2005, p.19. Grifo nosso).
Todavia, a tematização desse discurso no romance não tem caráter doutrinário
ou panfletário. O que temos são discursos individuais que deixam entrever a percepção
de que o mundo é regido por leis que perpetuam a segregação social, como no
fragmento acima. Trata-se de um discurso de constatação, em que a voz marxista, uma
dentre tantas que compõem a obra, reforça a idéia de opressão em que vivem as
personagens na medida em que traz à tona o senso de impossibilidade de mudança que
permeia toda a obra e que é verificável no seguinte trecho:
Não precisava de contratar as pessoas para a cortiça ou para a
azeitona, não precisava de escolher os ratinhos para a ceifa, pois
trinta anos que eram os mesmos, com a mesma força, com o mesmo
trabalho esmarrido em suor; e, se por acaso algum morria, era
substituído pelo filho na temporada seguinte. Não precisava também
de fazer contas ao dinheiro, porque há trinta anos que os mesmos
homens vinham nos mesmos dias certos, compravam as mesmas
arrobas de cortiça, o mesmo peso de trigo e de azeitona, pagavam o
mesmo que nos anos anteriores e, mais tarde, entregavam a mesma
porção de farinha e os mesmos alqueires de azeite que eram
guardados na despensa com vista à possibilidade de os filhos do
doutor mateus quererem aparecer no monte. E todos os anos se
despejavam as talhas de azeite velho e se enchiam de azeite novo, e
todos os anos as sacas de farinha nova ocupavam o lugar das sacas
ainda fechadas de farinha velha (Idem, p.147. Grifo nosso).
O aspecto relevante que concerne a esse cronotopo é o do tempo cíclico.
Segundo Bakhtin, “essa cidadezinha é o lugar do tempo cíclico dos costumes. Nela não
há acontecimentos, há apenas o “ordinário” que se repete (1998, p.353. Grifo nosso).
De fato, esse é um dos pontos cruciais a levarmos em conta. Observamos que a
comunidade em questão vive essencialmente da agricultura e da pecuária. Podemos
afirmar que se trata de uma comunidade primitiva, que vive de uma economia de
subsistência. A escassez de novidades desse ambiente se traduz num desassossego,
numa exasperação, que atinge, em alguns momentos, as personagens e, em certa
40
medida, o próprio leitor, pois José Luís Peixoto cria períodos exaustivamente longos e
repetitivos e, com esse recurso, mimetiza os efeitos do tempo cíclico:
Dois verões a seguir, a cozinheira, saturada de fazer bifes de
vaca e ensopados de borrego e bifes de vaca e ensopados de borrego,
saturada de ver os bifes de vaca e os ensopados de borrego a
arrefecer na mesa e o senhor doutor Mateus sem afastar a sua pesada
cadeira de madeira escura e de cabedal e o senhor doutor mateus sem
se sentar e encher o copo de vinho e cheirá-lo e mirá-lo à contra-luz e
só depois talvez bebê-lo, saturada de ver os bifes de vaca e os
ensopados de borrego a arrefecer na mesa e a senhora sem pousar o
guardanapo no colo com o bordado do brasão voltado para cima e a
senhora sem se sentar ou chegar sequer do quarto vazio onde não
dormiu, saturada de ver as travessas de bifes de vaca e de ensopados
de borrego despejadas na gamela dos cães, decidiu sair do monte e ir
morar para uma casa caiada da vila (PEIXOTO, 2005, p.26. Grifo
nosso).
Dessa maneira, mais do que ser informado, por exemplo, de que o cardápio na
casa do doutor Mateus é reduzido a duas especialidades culinárias, o leitor é levado a
compreender a sensação de exasperação à qual as personagens estão submetidas pela
repetição dos termos e pelo excesso de orações aditivas. Em outro exemplo, uma das
personagens explicita seus sentimentos a respeito dessa vida repetitiva, desse tempo que
se desdobra sobre si mesmo:
E tudo era cruel por ser igual a todos os dias, por ser igual,
por não haver nada que se compadecesse, por o tempo passar pelo
mundo ou o mundo passar pelo tempo e eu, resto, ser um pouco do
mundo, não o poder evitar (PEIXOTO, 2005, p.135. Grifo nosso).
Em outro fragmento, o efeito do tempo cíclico é evidenciado por meio de uma
metáfora: “Sou o maratonista que deu a volta ao mundo para levar uma carta a si
próprio” (Idem, p.85). Mais uma vez, a impossibilidade permeia a vida das personagens.
Ademais, essa circularidade resulta num atordoamento dos sentidos:
Passam por mim as carroças com os homens do campo. Vêm
cansados e trazem um pouco desta planície no rosto. Consideram-me,
e roubam ao corpo um esforço para me cumprimentarem enquanto
passam. Cumprimento-os, agradecido. Amanhã, quando for muito de
41
manhã, farão outra vez esta viagem, e fá-la-ão tantas vezes, tantas
vezes, que um dia não saberão se regressar é para casa, ao fim da
tarde, ou para o campo, de madrugada (Idem, p.65-66. Grifo nosso).
O fato de o universo retratado ser o rural justifica outro modo de mostrar a
passagem do tempo utilizado pelo escritor. Daí, as estações do ano ou as atividades
agrícolas serem utilizadas com esse objetivo. Vejamos alguns exemplos: “Quando
chegou o tempo da azeitona e a mulher do José se empregou na casa dos ricos, o seu
corpo era o de uma criança cansada” (PEIXOTO, 2005, p.25. Grifo nosso); “Até ao fim
do verão, os irmãos passaram muitas vezes diante da casa da cozinheira” (Idem, p.42
Grifo nosso); “No dia seguinte, ao acordar, no primeiro dia do outono, José quis ver os
olhos da sua mulher e quis vê-la vestir-se” (Idem, p.46. Grifo nosso). Segundo Bakhtin,
o tempo cíclico “se move por círculos estreitos: o círculo do dia, da semana, do mês, de
toda a vida” (1998, p. 353. Grifo nosso). Mesmo aqueles acontecimentos que escapam
do cotidiano ordinário, são lembrados apenas por meio dessas indicações. O casamento
de José, no Livro I, por exemplo, foi “num sábado de julho” (PEIXOTO, 2005, p.34).
Ressaltamos que a marcação temporal baseada nos ciclos agrícolas e nas
estações do ano remete ao “estágio agrícola primitivo do desenvolvimento da sociedade
humana” (BAKHTIN, 1998, p.317). O tempo é coletivo, “ele se diferencia e é medido
apenas pelos acontecimentos da vida coletiva” (Ibidem). Portanto, aqui, o tempo cíclico
se inscreve dentro de um tempo histórico. “Este tempo é profundamente espacial e
concreto. Ele não se separa da terra e da natureza” (Idem, p.318). Conforme Bakhtin, “o
sentimento do tempo e da sucessão das estações que lhes é próprio, amplia-se,
aprofunda-se e abarca os fenômenos sociais e históricos; seu caráter cíclico é superado
e eleva-se à concepção histórica do tempo” (1987, p.22. Grifo nosso).
Há, portanto, uma conexão entre o tempo cíclico dos costumes e o tempo que
Bakhtin denomina “laborioso”, porque aqui “a vida cotidiana e o consumo não estão
42
separados do processo de trabalho e de produção”(BAKHTIN, 1998, p.317). Entretanto,
em oposição à definição bakhtiniana do tempo laborioso como sendo o tempo de
fecundidade e de multiplicação, observamos em Nenhum olhar o apagamento desses
aspectos positivos, pois o tempo cíclico-laborioso termina com o final da narrativa, que
culmina com a destruição total.
Concluímos que ao cronotopo da vila corresponde um tempo cíclico ligado ao
processo de trabalho e que, por essa razão, adquire uma dimensão histórica. A repetição
verificável nesse cronotopo se opõe à imagem circular espaço-temporal que concerne ao
tempo sagrado, ao qual nos dedicaremos a seguir.
I..4 A capela e o sagrado
Na obra bakhtiniana, somos apresentados a numerosos exemplos de fusões
espaço-temporais. No romance Nenhum Olhar, todavia, muitos outros exemplos
somam-se àqueles mostrados pelo pensador russo. Um deles é o que convencionamos
chamar de cronotopo da capela. Trata-se, sem dúvida, de um cronotopo porque
corresponde à idéia que Bakhtin formulou sobre as dimensões do tempo e do espaço
trabalhadas artisticamente. Na capela ocorre “a fusão dos indícios espaciais e temporais
num todo compreensivo e concreto” (BAKHTIN, 1998, p.211).
Em primeiro lugar, observamos que todos os casamentos que se realizam no
romance são celebrados na capela: o de José com a sua mulher, o de Moisés com a
cozinheira, o de Salomão com a filha da cozinheira, o de mestre Rafael com a prostituta
cega. Desse modo, somos induzidos a crer que para a comunidade em questão a capela é
um lugar que se distingue dos demais. Em sua obra O Sagrado e o Profano (2001),
Mircea Eliade esclarece que “para o homem religioso, o espaço não é homogêneo: o
espaço apresenta roturas, quebras; há porções de espaço qualitativamente diferentes das
43
outras” (p.25. Grifo nosso). Ora, se todos os casais dirigem-se à capela para celebrar a
sua união, podemos pensar que aquele local é substancialmente diferente dos outros,
pelo menos no que se refere à oficialização das uniões conjugais. Desse modo, esse
espaço que se opõe aos demais por uma função específica, pode ser pensado como
sendo um espaço sagrado porque a comunidade atribui a ele esse valor.
A capela configura-se, portanto, como um “ponto fixo” para o qual convergem
as personagens em dados momentos da narrativa. Segundo Eliade, “a revelação de um
espaço sagrado permite que se obtenha um ‘ponto fixo’, possibilitando, portanto, a
orientação na homogeneidade caótica, a ‘fundação do mundo’, o viver real” (2001,
p.27). A capela é um templo, ou seja, um espaço privilegiado na ordem da vida
cotidiana daquela comunidade. A descrição física desse lugar corrobora a idéia de
sacralidade que buscamos demonstrar. Vejamos um exemplo:
As paredes da capela eram toscas, ainda que as camadas
sobrepostas de cal lhe alisassem o rugoso. Tinha um santo de cada
lado, que eram apenas considerados santos por ali estarem, e não por
serem realmente santos, pois ninguém sabia quem eram realmente
(PEIXOTO, 2005, p.38. Grifo nosso).
Portanto, somente por estarem ali, naquele espaço denominado “capela”, as
estátuas são consideradas santas. Notemos que estamos nos referindo aos aspectos
concretos da capela a fim de encontrar os índices que ratifiquem a idéia de que se trata,
de fato, de um espaço sagrado e, para isso, daremos mais alguns exemplos: “Com um
sorriso fixo, o demônio andava pelo altar a preparar tudo” (PEIXOTO, 2005, p.36.
Grifo nosso). Em primeiro lugar, “o rito diz respeito ao altar, o ponto central do lugar
sagrado” (Enciclopédia Einaudi, 1987, p.191. Grifo nosso). No espaço do romance
denominado “capela” notamos, portanto, a presença de elementos que remetem ao
44
espaço sagrado. Vejamos outro fragmento: “e tudo víamos, uma vez que a capela não
tem sacristia” (PEIXOTO, 2005, p.36. Grifo nosso). Ora,
O aparecimento da sacristia na organização do edifício acusa a
importância crescente da liturgia no ofício divino. A liturgia,
tornando-se numa linguagem desenvolvida, fixa a ordem
arquitectónica, influencia o comportamento dos fiéis em relação a
Deus, enriquece o seu arsenal de meios materiais. Na sacristia devem
estar guardados os objectos de culto: cálices, patenas, aspersores,
paramentos e vestes. Na sacristia podem também ocorrer certas
cerimônias que precedem o ofício e que são reservadas aos clérigos.
Assim, a sacristia, a partir do século VII, parece acentuar a divisão
entre clérigos e leigos (Enciclopédia Einaudi, 1987, p.189. Grifo
nosso).
A não-presença da sacristia, ainda que sua importância seja grande, como atesta
o trecho acima, não impede que o ritual sagrado, no romance, seja realizado. O mesmo
se dá em relação a outros elementos, como podemos ver no trecho a seguir: “Passou em
frente do altar e não fez o sinal da cruz ao sacrário, não só porque ninguém sabia fazer o
sinal da cruz, mas também porque a capela não tinha sacrário” (PEIXOTO, 2005, p.37.
Grifo nosso).
Em outra passagem, a mulher de José afirma: “O José que está deitado entre os
lençóis que lavei ontem, partido, enrolado numa ligadura à volta do peito, a olhar, como
os anjos nos altares das capelas, de olhos muito abertos” (Idem, p.20. Grifo nosso). De
fato, em nenhum outro momento somos levados a crer que naquela capela existam anjos
no altar, eles não são sequer presentificados pela ausência, como os elementos que
recortamos anteriormente. Contudo, isso não impede que a mulher de José saiba que
existem anjos nos altares das capelas e que, inclusive, reconheça no marido o olhar
angelical. Ademais, ainda que seu conhecimento não seja empírico, isto é, mesmo que
jamais ela tenha visitado outra capela, pois o romance não permite que façamos essa
afirmação, ela sabe que os anjos enfeitam todas as capelas que existem e sabe, inclusive,
que tipo de olhar eles têm. O fato de a frase estar no plural “os anjos nos altares das
45
capelas” reforça a idéia de que determinados elementos que compõem o espaço sagrado
fazem parte do imaginário coletivo.
Portanto, podemos deduzir que os índices que caracterizam o espaço sagrado
estão de tal modo impregnados no imaginário das personagens que, mesmo quando
ausentes, são presentificados pela memória ou pela imaginação, ou seja, pensar nos
objetos é o mesmo que torná-los presentes. Essa idéia é, inclusive, trazida à tona no
próprio romance pelo narrador no seguinte fragmento:
Como se os ombros fossem olhos que vissem; como se os
olhos condensados numa orelha mal definida e de largos traços
enevoados pudessem ver uma mulher à distância de ver uma mulher
andar e vê-la passar e vê-la passar por nós e afastar-se e pensarmos
nela, que é vê-la também (PEIXOTO, 2005, p.39. Grifo nosso).
Verficamos, também, a presença do celebrante, dos padrinhos e da troca de
alianças. Além disso, o celebrante “, provou uma hóstia cheia de bolor, vestiu uma opa
que se lhe descoseu nas costas” (PEIXOTO, 2005, p.36. Grifo nosso). Ora, a hóstia
embolorada e a opa puída são critérios decisivos para julgarmos as condições nas quais
o ofício é realizado. Eles revelam o decorrer do tempo profano, que a tudo degenera, do
mesmo modo que no trecho “os santos com notas gastas de civilizações remotas presas
por alfinetes de ama às túnicas comidas pela traça” (Idem, p.40 Grifo nosso). Há uma
dicotomia entre o espaço sagrado e o tempo profano/histórico, pois, se por um lado, os
objetos litúrgicos compõem o espaço sagrado, por outro eles sofrem a ação do tempo
profano, histórico.
Ainda com respeito ao ofício, sabemos que o celebrante é o demônio: “Vestido à
civil, o demônio entrou no altar e, sorrindo, começou a ler de um livro negro” (Idem,
p.32. Grifo nosso) e também “lia frases entoadas, como um cântico” (Idem, p.38 Grifo
nosso). Ora, nos ofícios tradicionais, cabe ao padre “recitar em voz baixa o Cânone, é
para seu uso que se elabora o conjunto das preces em livros litúrgicos especiais”
46
(Enciclopédia Einaudi, 1987, p.191. Grifo nosso). Em Nenhum olhar, esse poder é
atribuído ao demônio.
Com base no exposto, podemos pensar que a presença do sagrado é verificável,
ainda que subvertidamente, por meio da observação do espaço. Não podemos esquecer,
todavia, de que se trata do cronotopo da capela, ou seja, o elemento espacial está
essencialmente carregado do elemento temporal. No fragmento a seguir, é este último
que transparece no espaço: “Chegou o momento de enfiarem os anéis e os noivos não
tinham anéis. Sem reparar nesse pormenor, fizeram o gesto e enfiaram anéis
imaginários nos dedos um do outro” (Idem, p.39). A expressão “fizeram o gesto” é
potencialmente simbólica e está inexoravelmente banhada do tempo sagrado pois,
quando “chegou o momento”, os noivos, mesmo não possuindo as alianças, repetiram o
gesto primordial. Os noivos, nas palavras de Mircea Eliade, reatualizaram um mito: “O
tempo sagrado é por sua própria natureza reversível, no sentido em que é,
propriamente falando, um Tempo mítico primordial tornado presente (2001, p.63. Grifo
do autor). Percebemos que o fato de o celebrante ser o demônio, de a hóstia estar
embolorada e a opa, puída, não diminuem a carga sagrada das cerimônias, do mesmo
modo que a ausência das alianças não impede que José e a sua mulher “façam o gesto” e
troquem anéis imaginários.
Por essa razão, a capela reúne os aspectos que concernem ao sagrado, pois
tempo e espaço se fundem com o objetivo de criar um ambiente distinto dos outros,
propício à realização dos rituais. A própria etimologia, convém lembrar, aproxima as
palavras templum e tempus. De acordo com Eliade:
Cabe Hermann Usener o mérito de ter sido o primeiro a explicar o
parentesco etimológico entre templum e tempus ... Investigações
ulteriores afirmaram ainda mais esta descoberta: “Templum exprime o
espacial, tempus o temporal. O conjunto desses dois elementos
constitui uma imagem circular espaço-temporal” (2001, p.68).
47
I.5 A estrada e o destino
Para Bakhtin, “rara é a obra que passa sem variantes do motivo da estrada, e
muitas obras estão francamente construídas sobre o cronotopo da estrada” (1998,
p.223. Grifo nosso). Em Nenhum olhar, o cronotopo da estrada assume uma dupla
significação.
A estrada aparece pela primeira vez no Livro I : “Sob o céu, quando José deixou
a vila e entrou na estrada de areia do monte das oliveiras, a noite ficou mais escura,
negra” (PEIXOTO, 2005, p.10. Grifo nosso). Ao leitor são dadas, portanto, duas
informações essenciais: ela é feita de areia e liga a vila ao monte das oliveiras. A par
desses dados, o leitor pode deduzir que a estrada faz parte de um universo rural. Em
outro trecho, novas informações ampliam o conhecimento do leitor a respeito da
estrada: “E, entre as searas, sob os sobreiros, fazia o caminho de areia e de sol até à
vila” (Idem, p.23. Grifo nosso). Nesse trecho, o leitor é informado de que as searas e os
sobreiros emolduram a estrada. Tais esclarecimentos dizem respeito à estrada,
substantivo concreto, que liga um lugar a outro. Além disso, ela é necessariamente
histórica, visto que é uma realização humana.
Bakhtin chama a estrada de “a grande estrada” e com isso quer referir-se ao
sentido metafórico desse cronotopo. Toma a estrada na acepção de vida; trajetória do
homem no tempo e no espaço; caminho; destino. No Livro I, José afirma “Não escolhi
este destino. Escolhi estradas desconfiando que todas eram a mesma. E todas eram a
mesma. Não escolhi estradas, como não escolhi esta” (PEIXOTO, 2005, p.55. Grifo
nosso). Notamos que, nesse caso, há a conexão entre “estrada” e “destino”; em segundo
lugar, há a presença do plural que universaliza a estrada e, por isso, deduzimos que ele
não está se referindo somente àquela estrada de areia que liga a vila ao monte das
48
oliveiras. Por meio da ligação observada entre estrada e destino, podemos pensar que as
“estradas” às quais ele se refere têm intima relação com a sua própria existência.
Segundo o estudioso russo,
Esse tipo de conscientização autobiográfica do homem está ligado
às formas rígidas de metamorfose mitológica, em cuja base encontra-
se o cronotopo “o caminho da vida do indivíduo que busca o
verdadeiro conhecimento” (1998, p.250. Grifo nosso).
Prosseguindo em nosso raciocínio, notamos na afirmação de José a consciência
de que ao homem não é dada a oportunidade de escolher o seu destino “não escolhi
estradas, como não escolhi esta”. A estrada assume, portanto, duas funções distintas na
obra: uma, fundamentada na substancialidade, que é a de ligação entre dois espaços – a
vila e o monte das oliveiras - e outra, enraizada na subjetividade de José. Desse modo,
José revela ao leitor a sua concepção de mundo e essa particularidade permite que
relacionemos a estrada ao tempo biográfico, mais exatamente ao
tempo biográfico estóico[...] onde ocorrem conversas solitárias
do eu consigo mesmo, que não podem, sem dano para a integridade do
discurso, ser imediatamente traduzidas para o diálogo com outros.
Elas fornecem os primeiros vislumbres do indivíduo autenticamente
solitário cuja aparição se dá primeiro na Idade Média. São igualmente
os precursores necessários daquele self complexo que é o sujeito das
narrações romanescas plenamente desenvolvidas no período moderno
(CLARK;HOLQUIST, 1998, p.303. Grifo nosso).
Segundo Rosenthal (1975), desenvolve-se
uma espécie de espaço existencial interno, que resulta das
reflexões dos protagonistas sobre suas diversas situações e abrange
progressivamente todo o mundo representado na obra. Essa técnica
pode ser denominada de “monólogo interior”, permitindo a
representação de um jogo espontâneo de idéias que, embora
ocasionalmente provocado por determinadas situações, não se vê
subordinado às suas imposições (p.60. Grifo nosso).
Considerando que o monólogo interior é “um espaço existencial interno”,
podemos relacionar as reflexões de José à estrada como existência e, mesmo àquele
49
outro espaço, o externo, ou seja, à estrada de areia, porque revela as imagens do mundo
representado e contribui para que a travessia de José seja tão penosa quanto a sua vida é.
Em outra ocasião, ele afirma:
E, nesse caminho longo de léguas em cada metro, de léguas
em que a tarde não quis morrer, como não querem os homens mesmo
quando o cansaço os vence, os homens depois da derrota inevitável da
vida, a nunca quererem aceitar a noite, a nunca quererem anoitecer e
tornarem-se ontem, amanhã, memória, os homens depois da vitória da
terra sobre o corpo, a nunca aceitarem o seu corpo inacessível aos seus
gestos, as suas mãos sem préstimo no espaço que lhes resta num
sonho negro, as suas pernas a recusarem passos nas paredes negras e
frias da solidão sem fim (PEIXOTO, 2005, p.51. Grifo nosso).
Nesse fragmento, notamos a relativização do tempo em relação ao espaço, em
que a expressão “léguas a cada metro” revela que, para José, a duração da caminhada –
tempo interior ou psicológico - é maior do que o espaço percorrido exigiria no tempo
cronológico. Para Mendilow (1972), “o Tempo, de acordo com a teoria da relatividade,
assume significados diferentes, em sistemas diferentes e varia de um plano de referência
a outro” (p.69. Grifo nosso). Ou, de acordo com Massaud Moisés, em sua obra A
criação literária (1968),
o tempo psicológico, por isso mesmo, varia de indivíduo para
indivíduo. Também sabemos, por experiência própria, que duas
pessoas sentem de modo diverso o mesmo objeto, e por isso guardam
dele sensações por vezes opostas. Uma delas tem reação pronta,
imediata, prática, quase como se não fosse dotada de maior
sensibilidade, enquanto a outra contempla e “sofre”, quem sabe sem
perceber o alcance do fato que está vivendo. A “marca” será diferente
para cada uma, porque seu tempo interior obedece a ritmos
específicos (p. 165-166. Grifo nosso).
Aqui, o tempo é distendido e permite observar a opressão a que José está sujeito
e a qual nos deixa entrever enquanto caminha. Ele usa o substantivo “homem” no plural
e, com isso, estabelece uma distância entre ele e os outros homens. Mesmo assim,
notamos no depoimento de José acerca dos “homens” o seu próprio sofrimento. O que
50
ele dá a saber ao leitor é que “as mãos não têm préstimo” e a vida é uma “solidão sem
fim”. A incapacidade de José para derrotar o gigante, metonimicamente representada
pela expressão “as mãos não têm préstimo”, transforma sua vida em martírio e o
empurra para a “solidão sem fim”. José vê a vida como purgatório, como confirma o
seguinte excerto: “Penso: um castigo é a vida, um castigo sem falta ou pecado, um
castigo sem salvação; a vida é um castigo que não se impede e não se consente” (Idem,
p.55. Grifo nosso). José promove um questionamento de ordem filosófica e a sua
concepção de vida é a de um sofrimento passivo – “não se impede e não se consente”.
Essa idéia de fatalismo que permeia toda a narrativa e observada também no
cronotopo da estrada conduz nossas reflexões à esfera mitológica. A consciência que
José, no Livro I, adquire ao longo da estrada é a de que nenhum homem foge ao seu
destino. Jaa Torrano, analisando a Teogonia, de Hesíodo, afirma que
A Fatalidade se deu à visão grega como uma partilha ou lote;
sua coerção sobre os entes se deu como a impossibilidade de cada ente
(divino ou humano) ultrapassar a esfera que constituía os privilégios
(timé) de outro Deus. A força dessa Fatalidade é a da facticidade da
partilha (TORRANO, 2001, p.53. Grifo nosso).
É oportuno incluir aqui um fragmento retirado do romance e cujo conteúdo,
atribuído ora à voz que está fechada dentro da arca, ora ao próprio José, no Livro I,
reflete justamente essa mundivisão baseada menos em moralismo do que em fatalismo:
“Penso: talvez o sofrimento seja lançado às multidões em punhados e talvez o grosso
caia em cima de uns e pouco ou nada em cima de outros” (PEIXOTO, 2005, p.25. Grifo
nosso). Podemos, portanto, pensar que, tanto na Teogonia como em Nenhum olhar, a
mesma noção de partilha fatalística determina o destino dos homens. Para José, o
sofrimento é lançado aos punhados e, por obra do acaso, atinge mais a uns do que a
outros. Estamos diante de uma concepção apoiada na perigosa intersecção entre o
destino e o acaso. Não existem julgamentos de ordem moral, não se trata da luta entre o
51
bem e o mal. Tais julgamentos cabem a outra entidade – a Justiça, universalmente
representada com uma venda nos olhos como símbolo de seu princípio moral de
imparcialidade no julgamento do que está em conformidade com o que é direito. Aqui, a
existência é regida pelas leis do Destino. Além do mais, o Destino, “filho do Caos e da
Noite, é um deus cego. Tem debaixo dos pés o globo terráqueo e nas mãos a urna fatal
que encerra a sorte dos mortais. As Parcas, filhas de Têmis, são as encarregadas de
executar suas ordens (VICTORIA, 2000, p.36. Grifo nosso). O Destino distribui suas
graças ou os seus infortúnios ao acaso, sem levar em conta o que é direito ou justo.
Em Nenhum olhar, portanto, a idéia de justiça é substituída pelas idéias de
destino e acaso. E o que surge é um “sentimento trágico da existência, que nos faz tomar
caminhos que em parte já estavam traçados e dos quais não somos autores”
(MAFFESOLI, 2003, p.15). Por isso, podemos pensar que o cronotopo da estrada
encerra uma mundividência fundada no fatalismo e, ao mesmo tempo, revela a
resistência a esse modus vivendi, pois, como lembra José,
[...] os homens depois da vitória da terra sobre o corpo, a
nunca aceitarem o seu corpo inacessível aos seus gestos, as suas mãos
sem préstimo no espaço que lhes resta num sonho negro, as suas
pernas a recusarem passos nas paredes negras e frias da solidão sem
fim (PEIXOTO, 2005, p.51. Grifo nosso).
Não obstante, desconfiamos de José. A estrada que ele mostra ao leitor, aquela
de “léguas a cada metro” é a estrada dele; a que ele vivencia. Conforme Rosenthal,
Mas, entrementes, o antigo Cronos perdeu o cetro, e a estrutura
linear foi destruída pelas descobertas dos estados de consciência;
assim, a realidade apresentada atualmente já não corresponde à
aparência exterior nem tampouco à percepção objetiva, e sim à
realidade “flutuante”, na qual há muito reconhecemos o nosso
verdadeiro meio ambiente existencial (1975, p.69. Grifo nosso).
José enxerga a estrada, isto é, a vida, com olhos corrompidos, envenenados pela
desonra e pela infâmia. Como afirma Rosenthal, “indivíduo e realidade se
52
interpenetram” (Idem, p.57). O desmoronamento das ilusões de José e a substância de
que é feita a estrada – areia – sugerem a fragilidade da existência. Além disso, podemos
pensar que o sol inclemente contribui para o raciocínio vicioso de José.
José Saramago, no livro Viagem a Portugal (1997), narra as suas impressões a
respeito de Lisboa até ao Alentejo, passando pelo Algarve e Trás-os-Montes. No
capítulo dedicado ao Alentejo, “A grande e ardente terra do Alentejo”, ele descreve o
desconforto causado pelo persistente calor solar: “Não picasse o Sol tanto, e talvez o
viajante se deixasse ficar horas no Largo das Portas de Moura” (p.346. Grifo nosso).
Concluímos, pois, que os estados de consciência de José e sua perplexidade perante a
miséria da existência são intensificados pelo cansaço físico e pelo sol abrasador.
É relevante considerar que todas as personagens se deslocam através da estrada
de areia e, invariavelmente, a pé. No Livro II, surpreendemos, por exemplo, Salomão
fazendo o mesmo caminho que fazia José no Livro I:
Salomão caminhava no carreiro que ia do monte ao serrado onde
José guardava as ovelhas. Atrás de si, a estrada da vila ao monte, o
cansaço, o sol. Consigo, a memória da noite anterior, o medo, o
cansaço, o sol. Salomão caminhava e, no seu rosto, outro rosto se
contorcia; no seu medo, outro terror; em si, outro (PEIXOTO, 2005,
p.105. Grifo nosso).
A estrada é, por excelência, o cronotopo em que as personagens entram em
contato consigo mesmas e, como em nenhum outro lugar no romance, fazem saber ao
leitor aquilo que se passa em suas mentes. Podemos, então, afirmar, que é na estrada
que as personagens mais se aproximam de si mesmas e do leitor. O interessante
paradoxo que se estabelece diz respeito ao fato de que a estrada, para Marc Augé, é um
não-lugar:
Os não-lugares, contudo, são a medida da época; medida
quantificável e que se poderia tomar somando, mediante algumas
conversões entre superfície, volume e distância, as vias aéreas,
53
ferroviárias, rodoviárias e os domicílios móveis considerados “meios
de transporte” (aviões, trens, ônibus), os aeroportos, as estações e as
estações aeroespaciais, as grandes cadeias de hotéis, os parques de
lazer, e as grandes superfícies da distribuição, a meada complexa,
enfim, redes a cabo ou sem fio, que mobilizam o espaço extraterrestre
para uma comunicação tão estranha que muitas vezes só põe o
indivíduo em contato com uma outra imagem de si mesmo (2005,
p.75. Grifo nosso).
Uma das peculiaridades do não-lugar, no contexto da pós-modernidade, é o
panculturalismo, a mistura de indivíduos que promove o esvaziamento identitário
exatamente pela concentração desordenada e passageira, constantemente variável,
desses indivíduos. Em Nenhum olhar, contudo, estamos diante de uma comunidade que
vive sob o signo do arcaico, do monismo cultural. A estrada passa a ser, por essa razão,
um espaço significativo dentro daquele mundo e permite às personagens o
enfrentamento de questões que dizem respeito a cada indivíduo, embora inserido num
contexto fechado e repetitivo.
A estrada está, portanto, em intima conexão com as questões que determinam a
visão de mundo das personagens. O caminho que leva da vila ao monte das oliveiras – e
vice-versa – encerra os limites espaço-temporais das personagens e, em última
instância, os limites de sua própria existência. Como afirma José, no Livro I:
Caminho e quem me veja imagina-me a vontade. A minha
maneira de andar é exactamente a minha maneira de andar. Não
escolhi, não quero, mas não vou contrariado. Sei que é impossível não
ir. È impossível não ir. Impossível não ir. Impossível (Idem, p.55.
Grifo nosso).
O sentido de impossibilidade que permeia todo o romance se deixa entrever no
depoimento de José. O percurso monte-vila, realizado exaustivamente pelas
personagens e do qual não podem fugir por ser, em certa medida, essencial para a sua
subsistência, visto que as relações sociais e comerciais dependem desse caminho, é
54
metáfora da incapacidade, da impraticabilidade de progresso verificável ao longo de
toda a obra. Podemos pensar, inclusive, que o cronotopo da estrada é responsável pelos
questionamentos ontológicos das personagens por ser, justamente, símbolo da
possibilidade de liberdade que, no caso em questão, jamais se concretiza.
Na angústia o ser que somos se revela naquilo que ele é em sua
originalidade: nada, pura possibilidade. Estas palavras exprimem
nosso liame com o ser. Dizem que nosso laço de união não é
necessário, mas apenas possível. Isso equivale a dizer que a existência
humana é trágica porque todas as suas possibilidades, além de serem
possibilidades-de-sim, são também possibilidades-de-não. Elas nos
envolvem na ameaça do nada (BUZZI, 2003, p.170. Grifo nosso).
A contradição fundamental que o cronotopo da estrada encerra é a de ser o meio
que leva as personagens de um lugar a outro e que, em contrapartida, as faz lembrar de
quão imóveis e imutáveis estão fadadas a ser as suas existências.
I.6 O quarto e o profano
Em Nenhum olhar, o quarto é o cronotopo dos eventos que são da ordem do
humano, ou seja, no quarto têm lugar os atos sexuais, os nascimentos e as mortes. É, em
certa medida, berço e túmulo das personagens do romance; ali, os bebês nascem
enquanto suas mães agonizam e morrem. Por isso, podemos afirmar que nesse
cronotopo o tempo se revela em sua dimensão histórica. Estamos diante dos fatos
irreversíveis do tempo profano”, da “duração temporal ordinária” (ELIADE, 2001,
p.63). Diferentemente da soleira, que é o cronotopo do moto-perpétuo, e da capela, onde
prevalece o tempo sagrado, o quarto é palco dos acontecimentos que determinam
historicamente o destino das personagens.
É no quarto que tem início a dissolução das certezas de José, no Livro I. Incitado
pelo demônio, José vai para casa e flagra sua mulher na cama com o gigante. A cena é
55
construída de maneira a estabelecer a oposição vida e morte, como atesta o fragmento
abaixo:
E a mulher de José estava debaixo do gigante. José sentiu-se
morrer estando morto, e sentiu-se morrer e morrer, e a mulher estava
debaixo do gigante. O menino dormia no berço. E havia uma noite
muito escura, que era uma caixa ou um saco, onde José estava
fechado, e onde lhe faltava o ar, onde já tinha morrido e só esperava
perder o último sopro frágil de vontade. Olhou o menino, a sua face
serena, os olhos, as suas mãozinhas fechadas e erguidas ao lado da
cabeça, o seu sono (PEIXOTO, 2005, p.94. Grifo nosso).
Enquanto o menino dorme no berço, José está fechado numa caixa, ou num
saco, “onde já tinha morrido”, o que nos faz pensar num túmulo. É evidente, portanto, a
presença do tempo histórico na oposição vida-morte no cronotopo do quarto.
É no quarto de seus pais que Moisés e Elias, os gêmeos siameses, vêm ao
mundo, no Livro I:
Já tinham passado muito mais de setenta anos da manhã de puro
agosto em que, ao mesmo tempo, nasceram, rasgando a mãe por
dentro à sua passagem. Contavam os mais velhos, que tinham ouvido
dos seus pais, que, assim que lhes cortaram s cordões umbilicais, a
mãe os olhou e viu ainda que eram siameses. Morreu alguns minutos
depois, sem dizer uma palavra (PEIXOTO, 2005, p.15. Grifo nosso).
Vida e morte separadas por alguns minutos. “Mas, no momento em que a mãe
era enterrada, os meninos dormiam sobre três cobertores dobrados, no quarto do pai,
ao lado da cama onde a mãe se esvaíra em sangue” (Ibidem. Grifo nosso). Igualmente,
o pai da mulher de José, no Livro I, morre no quarto: “Ainda o pai dela não tinha sido
enterrado, tossia carvão e cinza, sobre a cama, sobre os lençóis, quando o lá fomos ver”
(Idem, p.17. Grifo nosso). E no mesmo quarto, na mesma cama, no dia seguinte ao
falecimento desse homem, sua filha é estuprada pelo gigante:
E sobre os lençóis, o meu corpo rasgado, dilacerado pelos dentes
caninos de lobos, o meu corpo rasgado a abrir-se num jorro de sangue
que não brotou. Sobre os lençóis frios da cama do meu pai, os lençóis
como mármore, sobre o frio, a ausência dos meus sangues. E o
56
gigante, em cima de mim, a dizer-me puta (PEIXOTO, 2005, p.21.
Grifo nosso).
Ainda no Livro I, no mesmo quarto e na mesma cama em que Moisés e Elias
dormiam com a cozinheira, os corpos dos gêmeos são velados:
Era um quarto singelo. Sem um retrato nas paredes, sem um
calendário, um espelho. Era um quarto de paredes brancas. Antes de
os irmãos terem sido trazidos do lagar, mulheres, a serpentearem entre
a dor da cozinheira viúva, tiraram o berço do quarto, fizeram a cama
de lavado e dispuseram todas as cadeiras que conseguiram juntar, e
que couberam no quarto, de roda da cama (Idem, p.86. Grifo nosso).
A singeleza do quarto, sua simplicidade que se resume ao necessário, em que
não cabem adornos de qualquer espécie, não deixa dúvidas sobre os seus ocupantes. Os
gêmeos e a cozinheira, assim como as outras personagens, vivem num universo
destituído de luxo. A cama ali está porque ampara alguém cansado depois de um dia de
trabalho ou recebe o casal para o ato sexual. Finalmente, é sobre ela que repousam os
corpos sem vida dos irmãos. Existe porque é indispensável. Nesse universo marcado
pela fatalidade, não há espaço para contingências. Tudo o que existe ali está porque
cumpre uma função. Esbarramos novamente nas bases do pensamento marxista, que
denuncia, por exemplo, que os direitos dos sans-cullotes, se resumiam a “vestiário,
alimentação e reprodução da sua espécie” (WAGNER, 2002, p.121). Aqui, não há
denúncia ou contestação; há constatação: às classes inferiores, como é o caso de todas
as personagens – em oposição à família de doutor Mateus –, cabe somente o
insuprimível. Ao longo do romance, encontramos inúmeras passagens em que a idéia de
escassez se manifesta, como atestam os seguintes fragmentos: “A mulher de José era
uma rapariguita magra, de uns dezesseis anos de fome e de pouco” (PEIXOTO, 2005,
p.17. Grifo nosso); “A cozinheira viúva era muito velha e sem nada” (Idem, p.89. Grifo
nosso).
57
No Livro II, mestre Rafael e a prostituta cega usam o quarto desta última para
seus encontros:
Primeiro ela, depois ele, sentaram-se na cama. A única luz era a
que chegava da cozinha. O mestre Rafael não precisou de vê-la para
perceber que havia novidades. Ela apontava a direção numa direcção
de cega, para um lugar onde não estava nada nem ninguém. O quarto
cheirava a fechado, a vergonha (PEIXOTO, 2005, p.126. Grifo
nosso).
Nesse quarto, a mãe da prostituta cega, que também era prostituta e cega,
morreu: “Havia dez anos, a mãe da prostituta cega tinha morrido, naquela cama, fria,
branca, sem um resto de sangue no corpo” (Ibidem). O quarto parcamente iluminado,
cheirando a vergonha, justifica a sua principal função, que é a de receber homens que
pagam para dormir com essas mulheres. Depois da descoberta da gravidez, mestre
Rafael decide se casar com ela. Além disso, inicia a reforma da casa da prostituta com o
objetivo de torná-la o lar de ambos após as núpcias: “Há três sábados que a casa andava
em obras” (PEIXOTO, 2005, p.139). E mais: “No terceiro sábado, que era aquele em
que estavam, iam abrir duas janelas. Uma janela na parede do quarto para o quintal e
outra na parede da cozinha para a rua” (Idem, p.140. Grifo nosso). A abertura das
janelas promove mudanças físicas na estrutura da casa, trazendo luz natural para dentro
dela, o que, anteriormente, não existia:
Bateu muito levemente na porta. Deixou apenas o som dos
punhos a tocar na porta. Não se ouviram os passos da prostituta cega.
A porta abriu-se. Ele procurou-lhe o rosto, mas ela entrava já pela
penumbra da cozinha. O seu corpo, fino, era uma sombra debaixo da
luz do candeeiro que tinha acendido para ele (Idem, p.125. Grifo
nosso).
Podemos pensar que mestre Rafael inaugura janelas como a querer inaugurar
uma nova história para aquela casa, para a sua moradora, para si mesmo. Pretende que o
cheiro de vergonha se dissipe, escape pela janela. Segundo o Dicionário de Símbolos
58
(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2006), “enquanto abertura para o ar e para a luz, a
janela simboliza receptividade” (p.512. Grifo nosso). Ambos – mestre Rafael e a
prostituta cega – estão receptivos à felicidade, ambos desejam viver juntos, constituir
uma família e, quem sabe, enganar o próprio destino. Um homem aleijado e uma mulher
cega e, além disso, prostituta, a buscarem uma saída, a quererem transgredir as regras
daquele mundo baseado no fatalismo e no imperioso. A abertura das janelas prenuncia
uma nova vida: “Apesar de a cama estar tapada com um panão e do pó, o quarto parecia
pela primeira vez um lugar alegre, perdera o aspecto lúgubre de muitas gerações e a
luz descobria-lhe cada recanto” (PEIXOTO, 2005, p.140. Grifo nosso). Entretanto,
nesse universo fechado do romance tudo está decidido. O tempo histórico está a serviço
da aniquilação, pois sabemos desde o princípio da narrativa que algo ominoso está para
acontecer: “Há de ser um instante em que não se veja um pardal, em que não se ouça
senão o silêncio que fazem todas as coisas a observar-nos. Chegará” (PEIXOTO, 2005,
p.7. Grifo nosso).
Por isso, na noite em que a prostituta cega começa a sentir as dores do parto,
indiferente aos esforços de ambos para superar as dificuldades provenientes do
determinismo e implacável como é da sua natureza, o destino age e tem início a
destruição do casal:
A prostituta cega sentia um corpo como uma lâmina, que a
rasgava, que a dividia, que a esgarnava, como se o seu tronco e o seu
pescoço e a sua cabeça se fossem abrir ao meio e assim
permanecessem: feridos, em carne viva. E fazia força com toda a força
que tinha, como se quisesse arrancar uma árvore pela raiz ou mover o
mundo um palmo. A sua pele era roxa e enrugada. O seu rosto era o
sofrimento. Romperam-se as águas sobre o lençol enrodilhado da
cama, pois o mestre Rafael não teve tempo de estender o alguidar. E a
criança começou a nascer exactamente em que o dia desceu sobre a
terra e em que a noite ainda era o céu. Saiu a cabeça. O mestre Rafael,
porque sabia que era assim, com dois dedos, puxou-a pelo céu da
boca. Nasceu. A agitação passou como algo de que já ninguém se
lembra. Com a criança na mão, ainda suja de sangue, o mestre Rafael
olhava-a. Era uma menina. A sua filha. Era cega dos dois olhos. Não
59
tinha o braço direito. Não tinha as duas pernas. Não chorava. Não se
mexia. Estava morta (PEIXOTO, 2005, p.163. Grifo nosso).
O fatalismo que determina que mestre Rafael seja aleijado e a prostituta, cega,
cai sobre a filha de ambos com força redobrada. Ela carrega os aspectos distintivos
daquela família geneticamente concentrados no seu pequeno corpo. E, ao caminhar em
direção ao desfecho da narrativa, o leitor percebe o afunilamento aniquilador. No Livro
II, tempo e espaço se fundem de modo a criar uma atmosfera de urgência e desespero. E
a luz diminui na mesma proporção que as esperanças. No lugar das janelas abertas para
a luz, a escuridão “E uma escuridão imensa era o mestre Rafael. Trespassado de
escuridão e de luto” (Ibidem. Grifo nosso). E mestre Rafael, que “nascera no dia em que
a mãe morrera” (Idem, p.109) vai em direção à mulher e o que ele encontra é mais
escuridão e desespero:
O mestre Rafael acomodou a menina sobre a cama. Avançou
para a prostituta cega. Pousou-lha a mão aberta no peito. A pele
cansada, quente. O sangue cobriu-lhe os dedos. Pousou-lha a mão na
cara. A pele. E sentiu-lhe a imagem do rosto, como ela tinha há muito
tempo sentido a imagem do rosto dele. E os dedos deslizavam sobre o
suor, deixando um rasto de suor e sangue. Ergueu o braço e esperou
que a forma do rosto se lhe dissolvesse na mão. A dor: um silêncio de
sentido sobre todos os gestos, um abismo a calar o significado de
todas as palavras, um véu a tornar o tempo inútil. A mulher que amara
mesmo, que amara mesmo, e que não era mais nada no mundo. E a
solidão era um céu maior que a noite e onde não havia mais que noite
e frio, era um lugar negro que o olhar via (Idem, p.163-164. Grifo
nosso).
Para além do quarto, a ausência de luz persiste. Mestre Rafael se dirige à
serraria, e as ruas e casas mimetizam o seu luto:
Os passos do mestre Rafael, indistintos do negro, não se
ouviam. As casas, de janelas e portas fechadas, sem luz, desertas,
eram figuras mudas de pedra que o acompanhavam por um instante e
que, depois, ficavam para trás, como perdidas, como abandonadas
(Idem, p.164. Grifo nosso).
60
Ao chegar à serraria, o sofrimento de mestre Rafael pela perda da mulher e da
filha torna-se insuportável. Então, num gesto que surpreende o leitor, ao pensar na filha
morta, mestre Rafael serra sua única perna e iguala-se a ela; identicamente à filha, ele
fica sem as duas pernas. Seu ato final, extremo, é o suicídio: “O mestre Rafael esticou o
braço, segurou o candeeiro e lançou-o ao chão. As chamas subiram pelas paredes. E
nessa noite, as chamas chegaram ao céu” (Idem, p.166).
Verificamos, portanto, o mesmo padrão de vida e morte que o cronotopo do
quarto encerra e compreendemos que a esse cronotopo corresponde o tempo profano,
que a tudo arruína. Ademais, o cronotopo do quarto abriga um topos recuperado por
Curtius em sua obra intitulada Literatura européia e Idade Média latina (1957): o do
menino e o ancião, porque a antítese vida/morte que evidenciamos no cronotopo do
quarto engloba esse topos que opõe juventude/velhice. Nos estudos relacionados ao
grotesco, mais precisamente na obra A cultura popular na Idade Média e no
Renascimento (1987), Bakhtin efetua, também, a conexão entre vida e morte por meio
da imagem das “velhas grávidas”(p.22). Segundo o estudioso, “trata-se de um tipo de
grotesco muito característico e expressivo, um grotesco ambivalente: é a morte prenhe,
a morte que dá à luz
5
(Idem, p.23).
Por fim, precisamos mencionar o homem que está fechado num quarto sem
janelas a escrever. A presença do escritor é verificável ao longo de todo o romance. Ele
aparece pela primeira vez no Livro I:
Até ao fim do verão, os irmãos passaram muitas vezes diante
da casa da cozinheira. Já tarde, à hora das noites de agosto chegarem,
sentavam-se no poial da casa do homem que está num quarto sem
janelas a escrever, e ficavam ali todo o serão. No começo da rua, num
recanto, havia uma fonte com uma bica e desde aí até ao outro
extremo, todas as portas estavam abertas e, em cada uma, estavam
sentados os que lá moravam. O homem que está num quarto sem
5
Voltaremos a esse tema no próximo capítulo.
61
janelas a escrever era a única excepção, nunca saía de casa, por isso,
Moisés aproveitou (Idem, p.42. Grifo nosso).
O fato de o escritor estar num quarto justificaria sua inclusão nesse cronotopo.
Todavia, a questão implícita na existência dessa personagem remete a um outro
conceito bakhtiniano, o rebaixamento, e a ele nos dedicaremos no próximo capítulo.
O estudo dos cronotopos no romance é, portanto, o fio de Ariadne que nos
conduz em direção à saída. Em literatura, entretanto, nenhuma análise é definitiva.
O que podemos afirmar é que a análise cronotópica permite entrever uma concepção de
homem numa dada época e num dado espaço. Afinal,
ao longo de todo o texto, Bakhtin deixa claro que deseja saber,
em cada época histórica do romance, como o problema do tempo é
tratado ou qual é a concepção de tempo que vigora. A concepção de
tempo traz consigo uma concepção de homem e, assim, a cada nova
temporalidade, corresponde um novo homem. Parte, portanto, do
tempo para identificar o ponto em que este se articula com o espaço e
forma com ele uma unidade (BRAIT, 2006, p. 102. Grifo nosso).
Cada um dos cronotopos revela um aspecto desse indivíduo – momentos de
crise, de introspecção, de limites. “Em todos os casos estamos diante de uma análise que
põe em relevo a relação alteração-identidade” (Ibidem).
Desse modo, pensamos que o conteúdo formal, ou seja, as escolhas cronotópicas
em Nenhum olhar concorrem para a criação de um mundo peculiar, onde as
personagens também se deixam revelar por meio do olhar e por sua atuação no espaço.
62
II - A SUBVERSÃO DO REBAIXAMENTO EM NENHUM OLHAR
Em Nenhum olhar, a presença do escritor, ou seja, do artista, problematiza a
questão da arte. Em primeiro lugar, o homem que está num quarto sem janelas a
escrever remete aos poetas simbolistas, presencistas e, em certa medida, aos poetas da
Arcádia lusitana, que
desejam testemunhar seu repúdio às “coisas inúteis” que
adornavam pesadamente a poesia barroca. Julgando que esta
correspondera ao desequilíbrio e à decadência dos valores clássicos,
querem restaurar o governo da autêntica poesia clássica. Para
consegui-lo, empreendem uma espécie de viagem no tempo, em busca
das fontes originárias do Classicismo. Desprezando o Barroco, detêm-
se no século XVI e dele aceitam o pastoralismo e a poesia camoniana,
visto coincidirem com o ideal que eles, árcades, pretendem realizar.
Saltando por sobre os séculos medievais, que ao seu ver tinham
lançado ao esquecimento a literatura clássica, chegam à Antigüidade
greco-latina, fim da viagem: na ideal, mitológica Arcádia, região
grega de pastores e poetas vivendo em meio a uma natureza sempre
idílica, localizam seus sonhos de plenitude poética [...] O mais vem
por meio dessa idéia-matriz: elogio da vida simples, sobretudo em
face da natureza, no culto permanente das virtudes do espírito; fuga da
cidade para o campo (fugere urbem), pois a primeira é considerada
foco de mal-estar e corrupção (MOISÉS, 1977, p.119-120. Grifo
nosso).
Além disso, o isolamento do escritor, no romance, corresponde ao exílio
voluntário dos poetas árcades, que empreendem
uma forma de exílio voluntário, uma vida em “torre-de-
marfim”, ideologicamente reacionária, idêntica à de outros homens
em condições semelhantes, no século XVI e na Antigüidade, ao
fugirem para as “vilas” nos arredores das grandes cidades (Idem,
p.120. Grifo nosso).
Entretanto, se para os árcades o retorno a uma vida pastoril significava uma
escolha que valorava o mundo rural e próximo à natureza como positivo em oposição ao
universo urbano, segundo eles, “foco de mal-estar e corrupção” (Ibidem), aqui o escritor
se volta para o mundo dos camponeses, arcaico, em via de extinção, mas não projeta
63
nesse olhar nenhum idealismo. Não há qualquer espécie de justificativa para a presença
do escritor naquela comunidade, a não ser o desejo de incluí-lo no sem-sentido da
existência que envolve a narrativa como um todo. Esse movimento de inclusão produz,
paradoxalmente, uma reflexão que sugere que a “humilde grandeza da vida ordinária”
(MAFFESOLI, 2003, p.15), que se aparta do mundo idealizado da arte, ao mesmo
tempo, contamina e inspira o artista. E a arte, então, equivale àquele ars vivendi fundado
no esforço de compreender uma vida baseada no precário e no breve.
Aparentemente, o homem que está num quarto sem janelas a escrever, e que
jamais sai da sua casa, se distingue de outros moradores da vila por sua atividade.
Inspirada em Locke, Arendt diferencia aquelas duas atividades
a partir da distinção entre o corpo que “labora” e as mãos que
“trabalham”. O labor, que é o metabolismo do homem com a
natureza, é uma atividade associada ao processo natural da vida. Ele é
a atividade que está voltada para a manutenção da vida e
sobrevivência da espécie e está associada ao corpo – ao processo
biológico do corpo -, pelo movimento que realiza para tirar da
natureza os meios de subsistência, pelo consumo desses meios e pela
reprodução da espécie. Nesse sentido, a expressão animal laborans é,
segundo Arendt, a mais adequada para apontar aquele que se dedica a
essa atividade. O trabalho, por sua vez, é a atividade associada às
mãos, pela produção de objetos que estão destinados a ocupar um
lugar no mundo, emprestando a este permanência e familiaridade. O
homo faber, aquele que se dedica a essa atividade, usando a natureza
como material da fabricação, produz o artefato humano – os objetos
que, pela sua durabilidade, constroem o mundo como morada do
homem: as obras de arte e os objetos de uso (WAGNER, 2002, p.63.
Grifo nosso).
A partir da distinção acima exposta, podemos afirmar que o escritor é um homo
faber, na medida em que produz arte. Em oposição a ele, por exemplo, estão José, no
Livro I e seu filho, no Livro II, pois ambos são pastores. Portanto, a profissão de pastor
está em íntima conexão com a expressão animal laborans utilizada por Arendt. O
escritor, de modo semelhante aos poetas árcades, se isola do resto da comunidade e sua
64
torre-de-marfim é o quarto sem janelas. O leitor não é informado sobre o que escreve
esse homem, e nem mesmo as outras personagens parecem saber:
O quarto negro e, do outro lado, quase indistinguíveis de uma
aragem, os ruídos silenciosos do homem que está fechado num quaro
sem janelas a escrever: a caneta de aparo a voltear-se no papel, a
espetar-se subitamente ou a riscá-lo num instinto; sopros frágeis sobre
a tinta; folhas que pousava devagar sobre outras folhas, folhas que
amassava e que faziam no chão o ruído de cascas de ovo vazias
(PEIXOTO, 2005, p.153-154. Grifo nosso).
Notamos, contudo, que o escritor é contaminado pelo pathos trágico para o qual
a narrativa converge.
Através da parede, ouvia-se o som da caneta de aparo do
homem que está fechado num quarto sem janelas a escrever. Era o
som de movimentos impensados, impulsivos, de raiva. Para quem não
conhecesse, poderia parecer o som de riscar. Mas não, era o som de
escrever (Idem, p.167. Grifo nosso).
Por outro lado, a cozinheira produz esculturas comestíveis, que coloca sobre a
mesa para ela, Moisés e Elias degustarem, no Livro I. A utilização da comida como
matéria-prima de sua arte remete ao sistema de imagens de Rabelais, onde “a
aniquilação do objeto é sobretudo a sua permutação no espaço, o seu remanejamento
(BAKHTIN, 1987, p.361.Grifo nosso). Aqui, a aniquilação dos alimentos é
transformada em aniquilação e perecimento da própria obra de arte, que é mastigada,
digerida e, seguindo as leis da vida natural e biológica no último estágio desse ciclo, é
evacuada. Há, portanto, um remanejamento da função última da comida, que é a de
alimentar o corpo, pois a essa função é agregado o valor de obra de arte, cuja função,
em última instância, é a de alimentar o espírito. Notamos também que há uma estreita
ligação entre os acontecimentos que são narrados e os temas das esculturas criadas pela
cozinheira, em especial os fatos materiais e corporais da vida como o sexo, por
exemplo:
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Passado em mês, fazia esculturas, de couves e batatas, que
suspiravam como mulheres apaixonadas e pareciam enviar beijos de
lábios grossos de folhas de couve, lábios verdes a escorrer azeite pelo
canto da boca: Elias assustado, Moisés festivo, sentavam-se e
comiam; numa noite, ao jantar, a cozinheira depôs a travessa ao centro
da mesa, e da travessa ofereciam-se umas pernas elegantes de batata e
uma vagina fumegante, que, por artes da cozinheira, diante dos
irmãos, minguou, até ser uma vagina de couve irremediavelmente
fechada, seca, com um fiozinho de azeite: Elias, perplexo, Moisés,
perturbado, sentaram-se e comeram (Idem, p.43. Grifo nosso).
Na travessa, uma mulher pequena, com olhos de ervilha e cabelos
de pão, aconchegava um menino num berço de migas. Moisés comeu
a pequena mulher, esculpida de um peito de frango, e Elias comeu o
berço e o menino, esculpido de uma perna de frango. Nessa noite,
adormeceram os três, a cozinheira fez cara de caso e disse vais ser pai.
Lentamente, do rosto inexpressivo de Moisés nasceu um sorriso. Do
rosto severo da cozinheira nasceu um sorriso. E nem por um momento
se lembraram de que ambos passavam já dos setenta anos (Idem, p.47.
Grifo nosso).
Se, por um lado, o homem que está num quarto sem janelas a escrever produz
literatura, por outro, a cozinheira cria esculturas. Essas duas formas de arte citadas no
romance nos levam a pensar que há, em Nenhum olhar, um diálogo auto-reflexivo com
a arte, sendo que o mais explícito é aquele que diz respeito à literatura. A conhecida
metáfora “tecer o texto”, utilizada para descrever o trabalho do escritor, revela uma
íntima conexão entre literatura e artesanato. É interessante notar que a questão do
“artesanal” é marcadamente representativa na comunidade em questão. Os ofícios que
movem essa sociedade que é, em certa medida, arcaica - como mencionamos
anteriormente – são notadamente manuais. No Livro I, a mulher de José menciona a
profissão de seu pai – oleiro; no Livro II, Salomão e mestre Rafael são marceneiros; o
principal meio de subsistência da comunidade é a produção de azeite, processo que
depende de mãos humanas para a sua realização.
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Há, portanto, uma estreita ligação entre o ofício do escritor e os outros ofícios
em Nenhum olhar. Lembramos que esse escritor não utiliza computador ou máquina
para escrever, mas uma caneta de aparo, outra denominação para a caneta-tinteiro. A
relação que estabelecemos entre esse escritor e os poetas árcades é reforçada por esse
pormenor, pois remete a um dos pressupostos do arcadismo, que é a valorização da
tradição.
Por isso, podemos pensar que a aparente distância que o escritor mantém do
resto da comunidade não impede que ocorra uma espécie de intuição que faz com que
ele seja afetado pelo que se passa fora de seu quarto, do mesmo modo que a cozinheira,
no Livro II, já louca, tem a percepção intuitiva do que se passa ao seu redor. O exílio
voluntário do escritor e o exílio, em certa medida, da cozinheira, provocado pela
loucura, não impedem que eles entrem em contato com a vida do resto da comunidade.
Se no Livro I, antes da morte de Moisés, a cozinheira era uma mulher sã que fazia
esculturas de comida, no Livro II, ela é uma mulher louca que continua a fazer
esculturas. Motivada pela filha, ela substitui os alimentos por terra e pedras como
matéria-prima de sua arte.
Aproximei-me da minha mãe, aproximei-me do seu corpo
mole de mulher velha. Estava encolhida sobre uma figura que
moldara. Aproximei-me mais, para ver. Era eu. Era meu aquele rosto
feito de terra e de pedrinhas e de ervas miúdas, como se tivesse sido
feito de pele. Era eu (PEIXOTO, 2005, p.180. Grifo nosso).
Compreendemos, então, que a torre-de-marfim dos poetas árcades é
transformada, na narrativa, num quarto que, como vimos anteriormente, no cronotopo
do quarto, encerra tudo que é da ordem do humano, do corporal. A cozinheira, não por
acaso, produz uma arte absolutamente orgânica tanto na forma quanto no conteúdo.
Verificamos que o escritor e a cozinheira, produtores de arte, são colocados lado a lado
do restante dos moradores da vila. Por essa razão, podemos pensar que, em Nenhum
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olhar, há um rebaixamento da arte, no sentido bakhtiniano do termo, que é retirada de
seu locus ideal, o campo das idéias, e é trazida para o terreno. De acordo com Bakhtin,
“o traço marcante do realismo grotesco é o rebaixamento, isto é, a transferência ao
plano material e corporal, o da terra e do corpo na sua indissolúvel unidade, de tudo que
é elevado, espiritual, ideal e abstrato (BAKHTIN, 1987, p.17). Além disso, para o
estudioso russo
a degradação do sublime não tem um caráter formal ou
relativo. O “alto” e o “baixo” possuem aí um sentido absoluta e
rigorosamente topográfico. O “alto” é o céu; o “baixo” é a terra; a
terra é o princípio de absorção (o túmulo e o ventre) e, ao mesmo
tempo, de nascimento e ressurreição (o seio materno) (Idem, p.18.
Grifo nosso).
Em Nenhum olhar, a indissolubilidade nascimento/ressurreição é rompida e o
rebaixamento, dessa forma, promove somente a aniquilação dos habitantes da vila. Ao
final, nada nem ninguém sobrevive: “Todos desapareceram e não deixaram nada, e não
deixaram sequer o pequeno nada que existe dentro do nada que existe dentro do nada”
(PEIXOTO, 2005, p.191. Grifo nosso). A expressão “não deixaram nada” evidencia que
nem mesmo a arte sobreviveu ao artista, afirmação que é reiterada mais adiante:
O homem que está fechado dentro de um quarto sem janelas a
escrever parou de repente a meio de uma frase e o fim, para ele, foi a
tinta que desapareceu das páginas que tinha vivido, foram as folhas
de papel que fugiram de si próprias e se tornaram o mais absoluto
vazio de tudo, foi a memória que se transformou nem sequer em ar,
nem sequer em vento (Ibidem. Grifo nosso).
Em segundo lugar, porque o próprio sentido topográfico de alto e baixo é
invertido:
Talvez o céu seja um mar grande de água doce e talvez a gente
não ande debaixo do céu mas em cima dele; talvez a gente veja as
coisas ao contrário e a terra seja como um céu e quando a gente
morre, quando a gente morre, talvez a gente caia e se afunde no céu
(PEIXOTO, 2005, p.48).
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Conforme Bakhtin,
O rebaixamento é enfim o princípio essencial do realismo
grotesco: todas as coisas sagradas e elevadas aí são reinterpretadas no
plano material e corporal. Já falamos da gangorra grotesca que funde o
céu e a terra no seu vertiginoso movimento; a ênfase contudo se
coloca menos na subida que na queda, é o céu que desce à terra e não
o inverso (BAKHTIN, 1987, p.325. Grifo nosso).
Além do rebaixamento da arte, notamos que há no romance a recuperação das
Sagradas Escrituras, pois tanto os nomes das personagens quanto o do espaço
privilegiado remetem ao universo bíblico. O escritor lança mão de mecanismos
interdiscursivos - a citação, a alusão e o grotesco, que são responsáveis pelo
rebaixamento do texto-matriz e pela concepção de mundo trágica que percorre a
narrativa. Erich Auerbach, em Mimesis (2004) afirma que as Sagradas Escrituras
inauguram uma nova espécie de sublime:
Ao mesmo tempo, porém, esta crítica abriu os olhos para a
verdadeira e peculiar grandeza das Sagradas Escrituras: o fato de
terem criado uma espécie totalmente nova do sublime, da qual nem o
quotidiano nem o humilde ficavam excluídos, de tal forma que no seu
estilo, assim como no seu conteúdo, realizou-se uma combinação
imediata do mais baixo com o mais elevado (p.134. Grifo nosso).
Esse estudioso utiliza o adjetivo “alto” para descrever o que é da ordem do
sublime e, em oposição, o “baixo” para representar o quotidiano ordinário. Segundo ele,
é possível que haja o casamento entre sublime e ordinário e a maior prova disso é o
texto cristão. Afirma, inclusive, que “o realista-quotidiano é, pois, um elemento
essencial da arte cristã-medieval e, especialmente, da arte dramática cristã” (p.138). Em
Nenhum olhar, a aproximação do alto e do baixo provoca uma tensão entre a ideologia a
ele subjacente e a do modelo que lhe serve de guia – as Sagradas Escrituras. Segundo
Auerbach, essa harmonia é fundamental, pois
uma verdadeira secularização só tem lugar quando a moldura é
destruída, quando a ação mundana se torna independente; isto é,
69
quando são representadas de maneira séria ações humanas, afora
aquelas determinadas pelo pecado original, pela Paixão e pelo Juízo
Final na história universal cristã; quando há outras possibilidades de
compreensão e de representação dos acontecimentos humanos ao
lado desta, que reinvindica ser a única verdadeira e válida. Também a
transferência dos acontecimentos para um contexto contemporâneo,
que, aos nossos olhos, é anacrônica, está perfeitamente em ordem
(AUERBACH, 2004, p.139. Grifo nosso).
No caso do romance, a harmonia é substituída pela tensão entre a concepção de
mundo do paradigma e a do hipertexto – a primeira, é centrada na possibilidade de
existência de outra vida, ou seja, de renascimento, enquanto que a segunda
fundamenta-se na desesperança, na ausência de saída para as personagens. Estas
afirmações comprovam-se mediante a utilização, pelo escritor, da citação, ou seja, a
retomada de um fragmento do prototexto, no caso a Bíblia Sagrada, no hipertexto: “A
intertextualidade é o processo de incorporação de um texto em outro, seja para
reproduzir o sentido incorporado, seja para transformá-lo. O primeiro processo – a
citação – pode confirmar ou alterar o sentido do texto citado” (BARROS; FIORIN,
2003, p.30).
Em Nenhum Olhar, isso ocorre numerosas vezes, desde o aproveitamento dos
nomes das personagens que, sem exceção, remetem a figuras de grande importância nas
Sagradas Escrituras: José, esposo de Maria e suposto pai de Jesus; Moisés e Elias, dois
dos mais importantes profetas; Gabriel e Rafael, anjos do Senhor; Salomão, o rei,
conhecido por sua extraordinária sabedoria, autor do Cântico dos Cânticos e, por fim,
Judas, o delator de Jesus Cristo. Também as personagens secundárias do romance têm
nomes de figuras bíblicas: Mateus, Marcos, Pedro, Paulo e Tiago. Há, ainda, duas
figuras emblemáticas: uma personagem denominada simplesmente “o gigante” que, em
certa medida, desempenha o papel designado ao Espírito Santo no texto-matriz, como
veremos adiante e o demônio, que aparece em ambas as obras como o tentador.
70
Além dos nomes de personagens, o monte das oliveiras é o espaço privilegiado
no romance, o local em que se passa grande parte dos acontecimentos, da mesma
maneira em que na Bíblia esse monte é citado freqüentemente, ora como um lugar de
repouso para Jesus, ora como local de importantes decisões que ele toma ao lado de seus
apóstolos.
Dessa forma, tanto os nomes das personagens quanto o espaço citados em
Nenhum Olhar fazem parte de uma episteme imediatamente reconhecível, as Sagradas
Escrituras, freqüentemente citada em outras semióticas além da literatura, seja na
pintura, como a A Última Ceia, de Leonardo da Vinci ou na escultura, como a Pietá de
Michelangelo.
No romance em questão, o diálogo que se estabelece com o texto-fonte rompe a
barreira que protege o sagrado por meio do grotesco. Percebemos que esse
estilhaçamento que vulnerabiliza o alto e potencializa o baixo é responsável pela
inversão de valores do modelo e sustenta-se sobre a sua própria lógica: o trágico, ou
seja, o homem como refém de um universo fragmentário, que ele não consegue
compreender. Além disso: “Deve haver algo no homem que possibilite a vivência
trágica. Poderíamos chamar de finitude, de contingência, de imperfeição ou ainda de
limitação o elemento possibilitador do trágico (BORNHEIM, 1969, p.72. Grifo nosso).
A relação entre essas dimensões deixa de ser baseada na verticalidade e instaura a
horizontalidade: “O traço marcante do realismo grotesco é o rebaixamento, isto é, a
transferência ao plano material e corporal, o da terra e do corpo, na sua indissolúvel
unidade, de tudo que é elevado, espiritual, ideal e abstrato” (BAKHTIN,1987, p.17). Por
isso, a lógica do trágico contribui para o rebaixamento segundo Bakhtin por evidenciar
o lado corporal e material do homem, ou seja, suas imperfeições, suas limitações e sua
finitude.
71
Em Nenhum olhar, as personagens são marcadas pela imperfeição e pela
limitação. No Livro I, José revela sua fraqueza ao ceder às provocações do demônio, ao
ser massacrado pelo gigante e, finalmente, ao cometer o suicídio, incapaz que é de
suportar o sofrimento; sua mulher, em contrapartida, deixa entrever sua fragilidade ao
permitir que o gigante a estupre seguidas vezes, sem resistência de sua parte e, depois,
ao se esgueirar pelas paredes, com vergonha dos demais moradores da vila; Elias não
aceita a morte do irmão, Moisés, e morre com ele; a cozinheira, por sua vez,
enlouquece. No Livro II, José ama a mulher do primo, mas não é capaz de assumir esse
amor; mestre Rafael comete o suicídio, ao se deparar com as mortes da esposa e da filha
recém-nascida.
Além disso, algumas personagens apresentam imperfeições corporais. No Livro
I, Moisés e Elias são gêmeos siameses, ligados pelo dedo mindinho e suas vidas são
limitadas por essa condição de perpétua união. No Livro II, mestre Rafael “tinha a perna
direita cortada pelo risco da virilha, o braço direito era apenas um pequeno coto onde
encaixava o extremo da muleta, não tinha a orelha direita e era cego do olho direito”
(PEIXOTO, 2005, p.109). Além disso, ele se casa com uma prostituta cega e a filha de
ambos carrega em seu corpo as imperfeições dos pais. O aspecto grotesco se deixa
revelar, também, por meio dessa estética baseada em deformidades corporais: “O
aspecto essencial do grotesco é a deformidade. A estética do grotesco é em grande parte
a estética do disforme (BAKHTIN, 1987, p.38. Grifo nosso). A finitude, por sua vez,
concerne a todas as personagens, visto que nenhuma delas sobrevive ao final da
narrativa.
Observamos, no Livro I, uma família completa, isto é, constituída por José, sua
mulher e seu filho em diálogo com a Sagrada Família, composta por José, Maria e seu
filho Jesus. No Livro II, porém, José, filho de José, é solteiro e sua família é formada
72
pela mãe e pelo primo Salomão. No Livro I, José desempenha o papel de pai e no Livro
II ele é tão somente o filho. Nota-se, porém, que no Livro I o pai de José é
absolutamente ausente:
O pai de José não voltou ao monte. Deixou de falar e só comia
a sopa que lhe davam na boca. A irmã de José vivia na vila, era casada
com o ferrador, e foi ela que recolheu o pai. Vejam-me só esta
miséria, dizia ela às vizinhas. O pai ficava todo o dia sentado num
banco no quintal, diante da capoeira, a olhar para lado nenhum,
como um cego (PEIXOTO, 2005, p.28. Grifo nosso).
No Livro II, o pai de José é ausente porque se suicidou quando ele era bebê:
José era filho de José. Tinha o mesmo nome do pai, e dele
sabia as poucas respostas que lhe tinham dado às poucas perguntas
que fizera, sabia que era igual a ele, porque era o que o velho Gabriel
sempre lhe dissera desde criança. És igualzinho ao teu pai. Nunca
ninguém tivera coragem de contar a José a forma como o pai
morrera, mas José tinha aprendido com o luto carregado da mãe que
esse não era um assunto do qual se falasse (PEIXOTO, 2005, p.102.
Grifo nosso).
Ora, concluímos, com base na incompletude familiar e na incapacidade de
proteger os seus filhos que os pais revelam, que a figura paterna é rebaixada em
Nenhum Olhar, em oposição à Bíblia, em que José, figura paterna na Sagrada Família, é
presente e protetor assim como Deus é onipotente e onipresente.
Em primeiro lugar, cria-se uma tensão entre o José do Livro I e o filho sagrado
da Bíblia. Em Lucas 23, 28 o filho sagrado, a caminho do calvário, afirma:
Filhas de Jerusalém, não choreis por mim; chorai, antes, por
vós mesmas e por vossos filhos! Pois, eis que virão dias em que se
dirá: felizes as estéreis, as entranhas que não conceberam e os seios
que não amamentaram!
Em Nenhum olhar, José, momentos antes de se enforcar, anuncia:
73
Mulher, filho, pai, mãe, irmã, não chorem por mim. Ainda há
as searas para as crianças. Ainda há as crianças. Guardem as lágrimas
para um dia de mais alta nomeada. Guardem as lágrimas para o dia em
que morrerem as searas nos olhos das crianças, para o dia em que
morrerem as crianças (PEIXOTO, 2005, p.97).
Notamos que o fragmento extraído da narrativa incorpora temas e figuras
bíblicas. Como afirma Fiorin: “a alusão ocorre quando se incorporam temas e/ou figuras
de um discurso que vai servir de contexto para a compreensão do que foi incorporado”
(BARROS; FIORIN, 2003, p.34). Em ambos, ou seja, tanto no modelo quanto no
hipertexto trata-se de um pedido e de um aviso. O pedido: não chorar por aquele que
narra; o aviso: chegará a hora em que terão outros motivos para chorar. Nesse sentido
dialogam em convergência. Por outro lado, a polêmica se estabelece entre as
mundividências que estão em jogo. O trecho bíblico menciona a esterilidade como valor
positivo em vista do que se prevê para o futuro; o da narrativa menciona a morte da
esperança figurativizada na morte das searas nos olhos das crianças e na sua própria
morte .
Além disso, a morte do filho sagrado foi prevista: “Eis, porém, que a mão do
que me trai está comigo, sobre a mesa. O Filho do Homem vai, segundo o que foi
determinado, mas ai daquele homem por quem ele for entregue”(Lucas 22,21. Grifo
nosso) e tem um propósito de salvação: “É agora o julgamento deste mundo, agora o
príncipe deste mundo será lançado abaixo; e, quando eu for elevado da terra, atrairei
todos a mim”(João 12, 31), em oposição ao suicídio de José que, no romance, não
significa nada, não modifica a ordem do mundo: “Hoje, morro eu. E eu morrer não é
nada na ordem implacável do mundo”(PEIXOTO, 2005, p.97. Grifo nosso). Decide
matar-se, vai até uma árvore e se enforca. Não há nada de grandioso nisso, nada de
heróico. Sua morte não tem um propósito ulterior nem ninguém a presencia. O que se
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descreve é justamente a fragilidade humana, a morte solitária, sem nenhuma ligação
com forças superiores.
José, no Livro I, é, em certa medida, um anti-herói, ou, como afirma Bornheim:
E por que dizer que o herói absurdo (logo ele, que é um anti-
herói) é trágico? Mais do que inspirar a sensação de grandeza humana
ou da dimensão cósmica ou telúrica à qual pertence o homem, ele
transmite o sem-sentido da existência (1969, p.89).
Notemos, também, que, em João 14, 2, Jesus dirige a palavra aos seus discípulos
e anuncia que um dia eles estarão ao seu lado, ou seja, terão a vida eterna:
Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se não fosse assim, eu
vos teria dito, pois vou preparar-vos um lugar, e quando for e vos tiver
preparado o lugar, virei novamente e vos levarei comigo, a fim de que,
onde eu estiver, estejais vós também (Grifo nosso).
No hipertexto, em contrapartida, o tom é o oposto:
E, onde estiver, não poderei tocar-te, como nunca pude. E essa
angústia será maior, porque nunca mais poderei ver-te, nunca mais
poderei ouvir o teu silêncio e toda a esperança que um dia tive será
nula. Morto, assistirei ao negro absoluto que nenhum homem pode
suportar em vida. Nenhuma luz, nenhuma luz. E é para isto que tenho
de caminhar. E poucos metros me separam da lonjura imensa desse
sítio. Sofrer será a continuação de sofrer. A vontade que nunca tive,
não terei. E os meus passos já não são meus, nunca foram. Tudo é
último. Os campos resistiram um dia mais, e amanhã não existe
(PEIXOTO, 2005, p.96. Grifo nosso).
O hipertexto aparta-se da vida espiritual e limita a vida humana à sua existência
material. À idéia de futuro expressa no excerto bíblico opõe-se a idéia do presente como
única dimensão temporal. O processo de duplicação que se verifica na ressurreição do
filho sagrado é subvertido e rebaixado e a volta de José, no Livro II, na figura de seu
filho, reitera essa idéia da finitude humana:
75
José e a sua mãe, Salomão e a sua mulher, o demônio, a
cozinheira viúva, todos morreram, no meio de todos os homens e
mulheres que morreram, como pontinhos de uma multidão gigante a
morrer no mesmo instante sem poder entender que morria e que
morria tudo. Todos desapareceram e não deixaram nada, e não
deixaram sequer o pequeno nada que existe dentro do nada que existe
dentro do nada (PEIXOTO, 2005, p.191. Grifo nosso).
No lugar da transcendência salvadora que permeia o discurso bíblico, há a
imanência destruidora pós-moderna, a realidade material, com tudo o que ela tem de
provisório, pois, na pós-modernidade, “sempre se está irrecuperavelmente no mundo,
que é organizado, se o é, em estruturas locais e temporais que operam sem referência a
causas secretas ou últimas” (CONNOR, 1993, p. 98) ou, em outras palavras: “São o
local, o limitado, o temporário, o provisório que definem a verdade pós-moderna”
(HUTCHEON, 1991, p.68).
Percebemos também que o suicídio de José no Livro I e o fim do mundo no
Livro II, com o desaparecimento de José e de todo e qualquer resquício de vida “E não
ficou nada” (Idem, p.191) promovem uma ligação com o sem-sentido da existência:
A experiência ‘trágica’ do século XX é que a tragédia se
transfere da esfera humana, ou da hybris do herói, para o sentido
último da realidade, confundindo-se, assim, com uma objetividade
ontológica esvaziada de sentido – qualquer coisa como uma ontologia
do nada (BORNHEIM, 1969, p.89.Grifo nosso).
Além disso, a presença de um demônio sorridente remete a um caráter
afirmativo do grotesco, que é o próprio riso. Todavia, aqui, não se trata do riso popular,
alegre e festivo, mas um riso que mascara a crueldade:
E José pousou o copo vazio no balcão, e junto à sua pele, sob a
luz, sob as palavras, instantâneo, materializou-se o sorriso vadio do
demônio. Sorria. Era o único que não trazia a pele escura do sol, trazia
camisa e calças passadas e vincadas, cabelo penteado entre a boina e
76
as saliências dos cornos. Era o único que sorria (PEIXOTO, 2005,
p.8. Grifo nosso).
A presença do demônio no romance é de suma importância no que se refere ao
rebaixamento. O poder dessa personagem se deixa entrever em diversas passagens e
aponta para uma visão rebaixada daquilo que é da ordem do sagrado. Como
demonstramos no cronotopo da capela, o demônio assume a função de celebrante do
sacramento do casamento e toma para si essa responsabilidade, o que sugere a
degradação de um ato elevadamente espiritual, além do destronamento da imagem do
celebrante. De fato, ele quer ocupar um espaço do qual foi expulso, como atesta o
seguinte excerto bíblico: “Foi expulso o grande Dragão, a antiga Serpente, o chamado
Diabo ou Satanás, sedutor de toda a terra habitada – foi expulso para a terra, e seus
Anjos foram expulsos com ele (Apocalipse, 12,9. Grifo nosso). Em outro fragmento
extraído das Sagradas Escrituras, notamos a menção aos cornos, que são utilizados
universalmente, inclusive aqui, para representar a figura do diabo ou demônio : “Vi
depois outra Besta sair da terra: tinha dois chifres como um Cordeiro, mas falava como
um dragão. Toda a autoridade da primeira Besta, ela a exerce diante desta (Apocalipse,
13,1). Em Nenhum olhar, portanto, notamos que o demônio é a autoridade máxima
religiosa. Não há nada nem ninguém acima dele e os outros habitantes da vila o
reconhecem como portador dessa autoridade, visto que em nenhum momento
questionam ou recusam sua legitimidade.
Do mesmo modo, a figura do gigante, que simboliza “as forças saídas da terra
por seu gigantismo material e indigência espiritual” (CHEVALIER; GHEERBRANT,
2006, p.470) rebaixa a figura bíblica do Espírito Santo. De acordo com Bakhtin, “as
figuras dos gigantes e as suas lendas são estreitamente ligadas à concepção grotesca do
corpo” (1987, p.287. Grifo nosso) e “o gigante é por definição a imagem grotesca do
77
corpo” (Idem, p.299. Grifo nosso). Bakhtin lembra que a época medieval contribuiu
para a evolução da noção de corpo grotesco, na medida em que partes do corpo dos
santos eram consideradas relíquias:
As relíquias, que tinham um papel tão grande no mundo
medieval, exerceram também a sua influência sobre a evolução das
noções de corpo grotesco. Pode-se afirmar que várias partes dos
corpos dos santos estavam espalhadas por toda a França (até mesmo
por todo o mundo cristão). Mesmo a igreja ou mosteiro mais
modestos tinham que ter essas relíquias, isto é, uma parte ou parcela,
às vezes das mais extraordinárias (por exemplo, uma gota de leite do
seio da Virgem; o suor de santos, de que fala Rabelais); braços,
pernas, cabeças, dentes, cabelos, dedos, etc., poderíamos assim
entregar-nos uma interminável enumeração de estilo puramente
grotesco! (1987, p.306. Grifo nosso).
Como mencionamos anteriormente, o cronotopo da capela integra elementos que
compõem o espaço sagrado. Diante do exposto na citação acima, observamos que as
relíquias eram consideradas, no mundo medieval, essenciais na composição espacial das
igrejas ou mosteiros. Em Nenhum olhar, a capela também abriga uma relíquia:
A um canto, dentro de uma caixa de vidro salpicada de
porcaria das moscas e a escorrer gotas paradas e secas de cera, estava
uma mão enorme, arrancada pelo pulso, segura por arames, com os
dedos parados no gesto de querer agarrar algo. Estava ali há muitos
anos. Logo no dia em que desenterraram o caixão para tratar dos ossos
e deram com a mão intacta, o demônio mandou fazer a caixa de vidro
e começou a espalhar a notícia de que tinham encontrado um santo. A
terra tinha abatido sobre o caixão e, entre os ossos que estavam
embrulhados na trouxa feita com um lençol, estava a mão incólume.
Era a mão do gigante (PEIXOTO, 2005, p.151. Grifo nosso).
Desse modo, na mesma proporção que o Espírito Santo é rebaixado e
destronado, o gigante é elevado e coroado. Nesse mundo às avessas, pois, o mesmo
gigante que, no Livro I, estraçalha o corpo de José e estupra a sua mulher, no Livro II
tem sua mão transformada em relíquia e ele é comparado a um santo.
Na Bíblia, Maria, que nunca havia conhecido antes um homem, concebe seu
filho sagrado por uma intervenção divina, através do Espírito Santo:
78
‘Não temas, Maria! Encontraste graça junto de Deus. Eis que
conceberás no teu seio e darás à luz um filho, e o chamarás com o
nome de Jesus. Ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo, e o
senhor lhe dará o trono de Davi, seu pai; ele reinará na casa de Jacó
para sempre, e o seu reinado não terá fim’. Maria, porém, disse ao
anjo: ‘Como é que vai ser isso, se eu não conheço homem algum? O
Anjo lhe respondeu: ‘O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do
Altíssimo vai te cobrir com a sua sombra; por isso, o santo que nascer
será chamado Filho de Deus (Lucas 1, 30. Grifo nosso).
Em Nenhum Olhar, a mulher de José, que também era virgem, é estuprada pelo
gigante:
E o gigante em cima de mim, a dizer-me puta. Ao ouvido, puta. E
o tecto do quarto a liquefazer-se em lágrimas, a ser um céu de noite na
noite. Eu que nunca tinha conhecido um homem ou nada daquilo, a
ouvir, de cada vez que o hálito vulcânico do gigante me aquecia a orelha,
puta, em suspiros ciciados pelo vento, puta (PEIXOTO, 2005, p.21. Grifo
nosso).
O fato de o estupro ocorrer no quarto e, além disso, no mesmo quarto que
pertencia ao pai da mulher de José, potencializa o aspecto grotesco da cena. Visto que o
cronotopo do quarto encerra aquilo que é da ordem do humano e do corporal, podemos
pensar que o ato sexual somente poderia se dar ali. Entretanto, não se trata de um ato
consentido, mas forçado pelo gigante. Daí que o aspecto positivo e afirmativo do
rebaixamento é subvertido e dá lugar somente à degradação da mulher que é chamada
de “puta”. Ademais, aqui, a degradação não traz consigo a leveza do cômico, mas tão
somente o sentido de aviltamento e depravação.
Além disso, se o fruto da gestação de Maria é o Filho de Deus, esperado e
celebrado, no romance, a mulher de José engravida do gigante, mas o bebê é um
natimorto e o parto é descrito de maneira grotesca, na medida em que “esse corpo aberto
e incompleto (agonizante-nascente ou prestes a nascer) não está nitidamente delimitado
79
do mundo: está misturado ao mundo, confundido com os animais e as coisas
(BAKHTIN, 1987, p.24. Grifo nosso):
Sei que a velha das mãos ásperas e dos dentes postiços tinha um
avental de plástico; sei que me estenderam numa cama dura, como as
bancas das matanças; sei que esticaram o alguidar debaixo de mim
para recolher o sangue, como o sangue fresco dos porcos, a ser mexido
com uma colher de pau para não coalhar; mas não vi, não ouvi, não
senti. Surda, cega, não imaginei sequer a criança que me arrancaram
como se arranca um tumor ou um bruxedo (Idem, p.22 Grifo nosso).
O sentido de vida e morte relacionado ao cronotopo do quarto é preponderante
no rebaixamento bakhtiniano: “O motivo da morte-renovação-fertilidade foi o primeiro
motivo de Rabelais, colocado no início da sua imortal obra-prima” (BAKHTIN, 1987,
p.286. Grifo nosso) e, mais adiante, quando o pensador afirma: “A imagem da morte
prenhe está sempre, sob uma ou outra forma topográfica, na base de toda expressão
injuriosa. Nossa análise de Pantagruel mostrou que um dos principais motivos do livro é
o da morte que dá vida” (Idem, p.308). Aqui ocorre o inverso; o fruto do estupro não
sobrevive, é um natimorto. Inversamente ao que Bakhtin observa em Rabelais, a morte
não gera vida, ao contrário, gera mais morte. O fim da infância da mulher coincide com
o aparecimento do gigante: “no dia seguinte ao fim da minha infância, o gigante
bateu-me à porta” (PEIXOTO, 2005, p.20). Portanto, é a juventude que gera a morte,
em oposição à imagem rabelaisiana, que “é bicorporal: ele diz “minha antigüidade
encanecida reflorir na tua juventude. Ela traduz na língua retórica próxima do espírito
do original, a imagem grotesca e popular, da velhice prenhe ou da morte dando à luz
(BAKHTIN, 1987, p.355. Grifo nosso).
Notemos que a alusão ao tema da virgindade de ambas se dá pelo emprego do
verbo “conhecer”. Desse modo, uma mulher que não “conhece” um homem é uma
mulher que não manteve ainda sua primeira relação conjugal. Nesse ponto, a situação
das duas mulheres dialoga em convergência. Por outro lado, a concepção do filho de
80
Maria é cercada pela aura de mistério própria do sagrado, enquanto que a concepção do
filho, no romance, é tratada com a bestialidade própria do grotesco, visto que “o ato
elevadamente espiritual é degradado e destronado através de uma transposição para o
plano material e corporal do parto (representado de maneira realista)” (Idem, p.269). Se
na Bíblia o Espírito Santo traz consigo a promessa de salvação, por meio do nascimento
do Filho de Deus, em Nenhum Olhar, o gigante é uma figura que encerra em si mesma
os aspectos mais negativos das forças terrenas e o seu filho não sobrevive.
Concluímos, então, que o texto bíblico se duplica voltado para o futuro. Além
disso, a própria divisão dos testamentos em “antigo” e “novo” remete à idéia de
renovação. Em Nenhum Olhar, a idéia de futuro não existe: “Sou pouco, sou
insignificante, sou um passado de desencontros e enganos, sou o gesto de olhar este céu,
sou futuro nenhum e esta certeza” (PEIXOTO, 2005, p.187. Grifo nosso). Há um
retorno cíclico que se verifica não só pela duplicação de José no Livro II como, por
exemplo, na repetição de discursos do Livro I no Livro II.
José afirma, no Livro I: “Penso: se o castigo que me condena se fechar em mim,
se aceitar o castigo que chega e o guardar, se o conseguir segurar cá dentro, talvez não
tenha de suportar novos julgamentos, talvez possa descansar” (Idem, p.11). E, de forma
idêntica, no Livro II: “Penso: se o castigo que me condena se fechar em mim, se aceitar
o castigo que chega e o guardar, se o conseguir segurar cá dentro, talvez não tenha de
suportar novos julgamentos, talvez possa descansar” (PEIXOTO, 2005, p.142).
Observamos que os trinta anos que separam os dois Josés não impedem que ambos
sofram e pensem da mesma maneira e expressem esse sofrimento identicamente,
palavra por palavra.
81
Como demonstramos no cronotopo da vila, o tempo cíclico, aqui, assume um
caráter de impossibilidade e de negação de progresso. Os ciclos repetitivos da vida
dessa comunidade estão em intima conexão com a idéia do eterno retorno em Nietzsche:
Que acharias de um demônio que te seguisse um dia na mais
solitária das tuas solidões e te dissesse: “Esta vida tal qual a estás
vivendo e tal a viveste, é preciso que a tornes a viver ainda uma vez, e
mais um número incalculável de vezes; nada haverá nela de novo, ao
contrário. É preciso que cada dor e cada alegria, cada pensamento e
cada suspiro, todo o infinitamente grande e o infinitamente pequeno
de tua vida voltem para ti e tudo dentro da mesma seqüência e dentro
da mesma ordem – e também essa aranha, e esse luar entre as árvores,
e também esse instante e também eu mesmo. A eterna ampulheta da
existência será virada sempre e sempre, e tu com ela, poeira das
poeiras!” (NIETZSCHE, p.123, s.d.).
Trata-se, por essa razão, de uma duplicação insuportável, prometeica, na medida
em que promove uma regeneração ilusória, visto que se degenera no instante mesmo em
que surge.
Ademais, se, por um lado, nas Sagradas Escrituras, o processo de duplicação
(Antigo Testamento e Novo Testamento) se dá por meio da coordenação, em Nenhum
Olhar a duplicação (Livro I e Livro II) ocorre mediante a subordinação. No texto
bíblico o recurso implica a idéia de independência porque, ainda que as profecias do
Antigo Testamento até certo ponto se realizem no Novo Testamento, ambos podem ser
tomados separadamente. Na narrativa, os Livros I e II são interdependentes. À idéia de
liberdade expressa nas duas partes das Sagradas Escrituras opõe-se a de ligação
contratual essencial entre as duas partes do romance.
Portanto, os mecanismos interdiscursivos da citação, da alusão e do grotesco
contribuem para o rebaixamento do texto-matriz. O alto, que é do plano espiritual, do
divino, é transferido para o baixo material, do humano. Na Bíblia, Jesus Cristo, Filho de
Deus, morre na cruz e ressuscita, o que confirma sua ligação com o sagrado; na
narrativa, José, pai de José, morre enforcado no Livro I e sua ressurreição ocorre na
82
esfera do humano, ou seja, ele revive na figura do filho, no Livro II. O final de Nenhum
olhar, não deixa margem para uma “vida nova”, uma “ressurreição”. Diferentemente da
mensagem de salvação expressa nas Sagradas Escrituras, o romance encerra uma visão
pessimista de mundo: “O mundo acabou” (PEIXOTO, 2005, p.191). No lugar da
descendência que se torna perene, a interrupção da vida.
Subverte-se, dessa maneira, o fenômeno do rebaixamento como transformação
renovadora, fecundadora:
O porta-voz do princípio material e corporal não é aqui nem o
ser biológico isolado nem o egoísta indivíduo burguês, mas (o povo),
um povo que na sua evolução cresce e se renova constantemente. Por
isso, o elemento corporal é tão magnífico, exagerado e infinito. Esse
exagero tem um caráter positivo e afirmativo. O centro capital de
todas essas imagens da vida corporal e material são a fertilidade, o
crescimento e a superabundância (BAKHTIN, 1987, p.17. Grifo
nosso).
O antigo e o novo, tal qual o que morre e o que renasce, sob o qual se sustenta o
texto-matriz é substituído pelo perecimento absoluto no hipertexto. É a partir do
choque, da crise entre duas concepções de mundo, uma religiosa, aberta, e outra
puramente humana, fechada, que surge o trágico:
Assim, o florescimento da tragédia, considerado de um
ponto de vista histórico, se move entre essas coordenadas, e se
situa no choque, na crise, no momento de encontro de duas
concepções de vida; se a religiosidade continua viva, sub-
reptíciamente tende a ganhar terreno uma concepção puramente
humana das coisas. O fato histórico é que a tragédia só se
verifica na tensão entre estes dois extremos, no seu momento de
incidência (BORNHEIM, 1969, p.81. Grifo nosso).
Concluímos, portanto, que as escolhas cronotópicas efetuadas pelo escritor
contribuem para o rebaixamento, na medida em que promovem a integração de opostos.
Em Nenhum Olhar, José Luís Peixoto problematiza o caráter afirmativo do
rebaixamento via grotesco e cria a tensão entre o paradigma e o seu romance por meio
83
de uma mundividência trágica, fundamentada no tempo histórico, com alterações que
sugerem um sentido de fatum notadamente negativo: no lugar da fertilidade, a aridez; no
lugar da renovação, “não ficou nada” (PEIXOTO, 2005, p.191).
Finalmente, tratemos com mais profundidade da questão do olhar e observemos
que importância ele adquire no romance.
Lucas 1,26 narra a visita que o Anjo Gabriel, enviado por Deus, faz a Maria.
Trata-se, sem dúvida, de um encontro, cuja particularidade reside no fato de que Maria
foi surpreendida pela visita e pela notícia que o anjo trazia: a de que daria à luz ao filho
de Deus. Incrédula a princípio, por ser virgem, Maria fica confusa. Não foi um encontro
desejado por ela, mas, ao final do episódio, ela acata as instruções do anjo e,
passivamente, assume o papel que Deus lhe havia determinado , ou seja, o de mãe do
filho sagrado: “Eu sou a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a sua palavra”
(Bíblia de Jerusalém, 2004, p.1787). Desse modo, podemos pensar que, de acordo com
as Sagradas Escrituras, o encontro foi planejado por Deus, cujo objetivo era instruir
Maria sobre o que viria a seguir. Em Nenhum olhar, no Livro I, a personagem
denominada velho Gabriel vai até a casa de José fazer-lhe uma visita. Depois de ter sido
surrado pelo gigante, José encontra-se despedaçado, física e mentalmente. O encontro
entre o velho Gabriel e José traz à luz elementos que permitem uma associação com a
passagem bíblica citada acima. O fato de o velho e o anjo possuírem o mesmo nome –
Gabriel – é um desses elementos. Mas há uma referência explícita à visita do anjo
Gabriel a Maria no fragmento que descreve a visita do velho Gabriel a José.
O próprio José narra o episódio e é justamente ele quem demarca a faceta
sobre-humana do velho Gabriel:
Sei que passou uma manhã ou uma tarde ou um dia, e que o
velho Gabriel me veio visitar. Disse palavras que não distingui duma
música, uma música de harpas, e descobri que o velho Gabriel não é
um homem. Nenhum homem pode resistir mais de cem anos e nem o
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corpo se cansar, e nem a influência por viver se consumir (PEIXOTO,
2005, p.68. Grifo nosso).
Mais adiante, José enfatiza a natureza angelical do velho amigo chamado
Gabriel:
Dizia palavras que não pude decifrar porque, ao saírem da sua
boca, se transformavam numa música. Uma música como nunca
escutei, uma música de instrumentos que não reconheci, mas que
presumo serem harpas, pois as harpas são os instrumentos dos anjos
(Idem. Grifo nosso).
Entretanto, em oposição ao episódio bíblico, em que Maria compreende
perfeitamente as palavras do anjo, aqui José é incapaz de definir o que o velho Gabriel
lhe diz. Curiosamente, contudo, da mesma maneira que Maria, José assume uma atitude
reverencial frente ao sagrado ou ao que ele, José, credita ao sagrado: “Dizia palavras
que não decifrei, porque não eram para ser decifradas, ainda que o olhar do velho
Gabriel tentasse tudo” (Ibidem. Grifo nosso). Concluímos que tanto em Lucas quanto
em José Luís Peixoto os encontros são tratados de modo a manifestarem a presença
simultânea do acaso e do destino, na medida em que o acaso está representado pela
surpresa de Maria e de José ao receberem as respectivas visitas e o sagrado é construído,
em ambos os casos, por notícias aparentemente inacreditáveis ou ininteligíveis. Desse
modo, aquilo que é da ordem do sagrado se insere numa esfera que se encaixa em
valores sobre-humanos e que, em contrapartida, não são passíveis de discussão ou
questionamento.
Uma última observação se faz necessária com respeito à visita do velho Gabriel
a José, quando este último afirma: “ainda que o olhar do velho Gabriel tentasse tudo”
(Grifo nosso). A partir dessa informação que José nos dá, somos capazes de introduzir
um problema que permeia toda a obra e que se refere à questão do conceito de diálogo
bakhtiniano.
85
Como afirmamos no primeiro capítulo, a questão do olhar é preponderante no
romance. Podemos afirmar que o diálogo entre as personagens se estabelece, de fato,
por meio do olhar. Em sua obra Problemas da poética de Dostoiévski (1997), Bakhtin
afirma que “a personagem interessa a Dostoiévski enquanto ponto de vista específico
sobre o mundo e sobre si mesma, enquanto posição racional e valorativa do homem em
relação a si mesmo e à realidade circundante” (p.46. Grifo do autor). E mais, “para
Dostoiévski não importa o que a sua personagem é no mundo mas, acima de tudo, o que
o mundo é para a personagem e o que ela é para si mesma” (Idem. Grifo nosso). Em
Nenhum olhar, as personagens adquirem autoconsciência por meio do diálogo com o
outro e, neste ponto, a teoria bakhtiniana explica como se dá essa relação dialógica:
A palavra diálogo, ao contrário, é bem entendida, no contexto
bakhtiniano, como reação do eu ao outro, como “reação da palavra à
palavra de outrem”, como ponto de tensão entre o eu e o outro, entre
círculos de valores, entre forças reais (BRAIT, 2006, p.123. Grifo
nosso).
No romance, a relação com o outro se dá menos por meio da palavra do que por
meio do olhar. José, ao afirmar, no Livro I, “ainda que o olhar do velho Gabriel tentasse
tudo” revela, em última instância, que é por meio do olhar que o velho Gabriel procura
realmente se fazer entender. Se, por um lado, as palavras do velho soam
incompreensíveis para José, por outro, é por meio do olhar que o ancião julga poder ser
entendido. Em numerosas outras passagens do romance verificamos que a comunicação
entre as personagens ocorre por meio do olhar, como atestam os fragmentos a seguir:
“Na subida, sem que o pudesse evitar, a mulher dele olhou-me longamente e leu-me o
olhar” (PEIXOTO, 2005, p.14. Grifo nosso); “Quando chegava ao telheiro, lá estava o
meu pai a olhar-me, como me olhou antes de morrer, fechado num silêncio de não
poder dizer o que sentia e a dizê-lo num olhar mudo” (Idem, p.19. Grifo nosso).
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Além de ser o veículo da comunicação entre as personagens, o olhar é tratado
de modo a descrever o ethos das personagens, ou seja, por meio do olhar das
personagens não somente o leitor como também as outras personagens tomam
conhecimento de um modo de ser que é descrito por meio do olhar. Os trechos abaixo
servem como exemplo dessa afirmação:
A mãe do José era um lugar negro, era o lugar vazio de um gesto
nas mãos, de uma expressão nos lábios, de um olhar nos olhos. A mãe
de José era um nevoeiro muito fundo, muito frio e muito espesso, era
uma mulher morta, um respirar de morto, pele de morto, sem rosto,
sem olhar, com noite no olhar (Ibidem, p.112. Grifo nosso).
O parágrafo acima descreve o sentimento de desligamento da mãe de José em
relação ao mundo circundante; seus gestos, sua expressão nos lábios são índices de sua
ausência, de sua indiferença, de seu sofrimento. Mas, acima de tudo, ela é uma mulher
“sem rosto, sem olhar” e, por isso, sem vida. Em Nenhum olhar, a vida, ou antes, a
intensidade de vida é mensurada por meio do olhar das personagens. Um olhar ausente é
um olhar que se apagou; é um não-olhar que significa uma não-vida. Por essa razão, no
Livro I, notamos que o gigante deseja matar José e, para isso, precisa apagar o seu
olhar: “E, apesar do sangue e do pó na pele, o olhar de José era o mesmo. O gigante
quis bater-lhe mais e apagar-lhe aquele olhar, bater-lhe tanto” (Idem, p.12. Grifo
nosso). Ao permanecer vivo, apesar da surra que leva do gigante, José mantém aceso
seu olhar e isso é o mesmo que afirmar sua individualidade. O gigante sabe que
triunfará somente se conseguir “apagar-lhe aquele olhar”.
Ainda com relação à manifestação do ethos das personagens, recortamos um
outro fragmento:
Nessa tarde, conheci o José. Tinha acabado de prender as
ovelhas no redil e vinha na minha direção. O seu olhar era firme,
quase feroz; meigo, como o de um filho; envergonhado, por ser o
olhar de um pastor todo dia entre as ovelhas e longe dos homens
(Ibidem, p.118. Grifo nosso).
87
Podemos notar, então, que o olhar assume, no romance, a mesma importância da
palavra no contexto bakhtiniano, na medida em que promove o diálogo entre as
personagens. Essa relação dialógica se dá entre as personagens e entre elas e o mundo.
De acordo com Bakhtin, a personagem em Dostoiévski é caracterizada de maneira a
revelar não só a sua concepção de mundo como também a si mesma. Para tanto,
o que deve ser revelado e caracterizado não é o ser
determinado da personagem, não é a sua imagem rígida, mas o
resultado definitivo de sua consciência e autoconsciência, em suma, a
última palavra da personagem sobre si mesma e sobre seu mundo
(BAKHTIN, 1997, p.46-47. Grifo do autor).
Há, em suma, um reconhecimento do mundo, do outro e de si mesmo que ocorre
por intermédio do olhar, como no exemplo abaixo:
Olhou a mulher, e a mulher olhava-o agora de frente. Pela
primeira vez desde há muito tempo, deitada debaixo do gigante, a
mulher olhava-o de frente. E era o seu olhar de uma mágoa sincera,
de um sofrimento. E era o olhar de José. Luto. Negro. Morrer.
Olharam-se e conheceram-se então (PEIXOTO, 2005, p.94. Grifo
nosso).
Conforme Bakhtin, “nós não vemos quem a personagem é, mas de que modo ela
toma consciência de si mesma” (1997, p.48. Grifo do autor); na narrativa em questão
esse modo não é audível, mas visível. No lugar da palavra falada, o silêncio. Em última
instância, podemos pensar que em Nenhum olhar, olhar é dizer. Vejamos um exemplo
extraído do romance que explicita o que acabamos de afirmar: “O velho Gabriel está a
aparecer ali na subida, avança. Boa tarde, diz-me. Olho para ele, e isto é responder-lhe
(Idem, p. 64. Grifo nosso).
A obra intitulada O reverso do teatro (RYSNER, 2004) trata da questão do
silêncio, ou antes, da dramaturgia do silêncio. Longe de pretendermos um
aprofundamento que nos afastaria da análise à qual nos propusemos inicialmente e
recair em conceitos que concernem à estética da recepção, não podemos, entretanto, nos
88
furtar a incluir em nossa reflexão a premissa que permeia a obra de Rysner e diz
respeito ao que ele denomina “a poética do silêncio” (p.329). Ao traçar um panorama
histórico da dramaturgia do silêncio, esse autor recorta fragmentos de obras surgidas
desde a Idade Clássica até Maeterlinck e nos mostra as estratégias utilizadas pelos
dramaturgos com o objetivo de representar sem palavras, ou seja, mediante os silêncios,
sensações que, de outra forma, dificilmente teriam a mesma carga emotiva, pois,
segundo ele, “o verbo condensa significados que o silêncio deixa em aberto” (p.338).
Em certa passagem, Rysner utiliza a peça de Emile Zola, intitulada Renée, como
exemplo e afirma que nela “abundam indicações tais como ‘após um silêncio’,
‘silenciosamente’, ‘silêncio’, etc. Os silêncios são aí constitutivos do diálogo no mesmo
nível que a palavra” (RYSNER, 2004, p.288. Grifo do autor). Do mesmo modo que
ocorre em Nenhum olhar, “existe um momento em que as almas se tocam e sabem tudo
sem que precisem de mexer os lábios” (Idem, p.348). No romance, esse instante se
verifica na troca de olhares entre as personagens. Olhar para o outro é simultaneamente
conhecer o outro e a si mesmo. Vale lembrar que
a frontalidade dos olhos no rosto humano remete à centralidade
do cérebro. O ato de olhar significa um dirigir à mente para um “ato
de in-tencionalidade”, um ato de significação que, para Husserl, define
a essência dos atos humanos (BOSI . Apud NOVAES, 2003, p.65
Grifo nosso).
O sentido da visão, representado pelo olhar, é um sentido mudo “que deseja
sempre mais do que lhe é dado ver” (NOVAES, 2003, p.9). Ou, em outras palavras,
“existe, sob o diálogo escutado, um diálogo subjacente que é necessário tornar sensível”
(RYSNER, 2004, p.369). E foi esse diálogo mudo que contemplamos em Nenhum
olhar.
89
É significativo, portanto, que o encontro consigo mesmo se dê de forma mais
contundente no cronotopo da estrada, como observamos no capítulo I. É na solidão da
estrada que as personagens deliberam consigo mesmas. Como afirma Rysner,
o homem moderno (o homem tal como o concebe a
modernidade), privado do controlo da palavra que constituía seu
fundamento clássico, inventa para si uma outra moldura em que
investir: já que a sua acção sobre o mundo é ilusória, já que os poderes
obscuros – que chama, por agora, “ambiente”, “hereditariedade”,
“destino”, e que virá a chamar, mais tarde, inconsciente ou pré-
consciente – esvaziam a sua palavra de todo e qualquer carácter
operatório, vai transformar tudo em obra, para se apropriar e fazer
ressoar o silêncio que constitui o seu último refúgio (RYSNER, 2004,
p.360).
Além disso, em cada um dos cronotopos estudados no capítulo I e nas reflexões
realizadas no capítulo II divisamos a dimensão trágica que se delineia ao longo do
romance e a ela nos dedicaremos no próximo capítulo.
90
CAPÍTULO III – O TRÁGICO EM NENHUM OLHAR
Nos capítulos anteriores, destacamos os cronotopos que consideramos
significativos para a compreensão do romance de José Luís Peixoto e refletimos sobre
outros dois conceitos bakhtinianos – o rebaixamento e o diálogo – problematizados em
Nenhum olhar.
Uma última questão acerca do romance peixotiano nos intriga e, por essa razão,
levantaremos, neste capítulo, hipóteses de interpretação embasadas na filosofia do
trágico. Notamos que, ao longo de todo o romance, as personagens são desenhadas de
modo a enfatizarem o sem-sentido da existência. Os fados, ou seja, os destinos que se
descortinam nas páginas de Nenhum olhar, assim como o seu final, não deixam dúvidas
sobre a mundivisão representada nessa obra. As inúmeras vozes ecoam em uníssono e,
em nenhum momento, há uma delas à qual pudéssemos creditar a função de porta-voz
da esperança.
No romance em questão, é criado um universo fechado para o além. Não há
espaço para utopias. O tempo é o presente. O futuro e o passado – esvaziados de
sentido - estão ali somente para lembrar às personagens que não há saída. Podemos
pensar que a idéia de “além” presente no romance é vislumbrada somente na hipótese
que levantamos no início de nosso trabalho: trata-se de um Alentejo, aquele criado por
José Luís Peixoto. Nesse nome, surgido da localização geográfica para além do rio Tejo,
existem, contudo, índices que revelam um aspecto relevante para a interpretação de
Nenhum olhar e que dizem respeito à solidão e à opressão a que as personagens
freqüentemente fazem alusão ao longo da obra. De acordo com José Mattoso, “Toda a
gente sabe que uma das características mais salientes do Alentejo é o seu isolamento
(MATTOSO, 1998, p.15 Grifo nosso). Desse modo, o “além”, implícito na toponímia
91
dessa região lusitana, remete a um “além” que se origina de sua localização
marcadamente isolada. Mattoso explica, ainda, que o determinante “além” indica que o
sujeito está distante do objeto. Segundo ele, “enquanto o ‘eu’ implica o ‘aqui’, o ‘além’
indica que foram estranhos que deram nome ao além-Tejo”. Esse nome tem, portanto,
uma significação que compreende aspectos como exploração, colonização e isolamento.
Frente ao exposto, podemos pensar que a opressão e a solidão - das quais as
personagens são vítimas – são, em certa medida, determinantes histórico-geográficos.
A comunidade em questão é condicionada, pois, por aspectos que escapam ao
seu controle, ou seja, nesse mundo fechado, acaso e destino convergem para um final
aniquilador. Aqui, não há espaço para utopias e, cabe lembrar que a palavra utopia, de
origem latina, surge do termo outopos, formado do advérbio grego de negação ou mais
topos, ou “lugar” (HOUAISS, 2001, p.2.817), resultando em “lugar algum”. Sendo
assim, o Alentejo presente em Nenhum olhar diz mais sobre um outopos do que sobre
uma utopia, se pensarmos no lugar ideal criado por Thomas Morus. Esse “lugar algum”,
esvaziado de um sentido último desde as primeiras linhas do romance é, pois, o palco de
numerosas tragédias, protagonizadas por personagens que representam o homem
anônimo e ordinário.
Não se trata, é óbvio, da tragédia no sentido aristotélico. São tragédias porque
trazem à tona a idéia do trágico. Estamos preocupados com o adjetivo “trágico”, que
descreve um determinado tipo de situação a que o ser humano está sujeito e que pode
ser, nesse caso, simultaneamente, obra do acaso e do destino. Na obra , é impossível
defini-los separadamente, visto que a tênue linha que os delimita oscila, ora
privilegiando um, ora o outro. Acaso e destino assumem, em Nenhum olhar, funções
idênticas e cujo objetivo é o mesmo: a aniquilação das personagens.
Segundo Bornheim (1969),
92
não é apenas a obra de arte que dá a si própria a sua tragicidade.
Deve-se dizer, pelo contrário, que o trágico é possível na obra de arte
porque ele é inerente à própria realidade humana, pertence, de um
modo precípuo, ao real. A partir dessa inerência é que a dimensão
trágica se torna possível numa determinada obra de arte (p.72. Grifo
nosso).
A partir do que foi exposto no fragmento acima, cabe perguntarmos: como o
fenômeno trágico se manifesta em Nenhum olhar ? Sabemos que “o homem é um dos
pressupostos fundamentais do trágico” (BORNHEIM, 1969, p.73) e que o outro
pressuposto “é constituído pela ordem ou pelo sentido que forma o horizonte existencial
do homem” (Idem. Grifo nosso). Concluímos que o conflito que caracteriza a ação
trágica é desencadeado, pois, por situações que escapam ao controle do homem. Aqui
nos interessa, em primeiro lugar, descobrir qual é o “horizonte existencial” das
personagens de Nenhum olhar para, em seguida, levantarmos hipóteses de sentido que
permitam a associação entre esse horizonte e o fenômeno trágico.
Ora, se opressão e solidão são substantivos que explicam, em certa medida, um
nome – Alentejo -, oprimidos e solitários são adjetivos que descrevem o ethos dessa
comunidade . Tanto no Livro I quanto no Livro II somos apresentados a indivíduos
marcados por limitações, sejam elas sociais, físicas ou psicológicas, e cujos destinos
culminam em tragédias. Se as personagens explicitam no cronotopo da estrada o
sentimento de solidão que as envolve, esse mesmo sentimento é verificável ao longo de
todo o romance. Por outro lado, na observação do processo dialógico realizado pelas
personagens podemos vislumbrar a carga de opressão a que elas são submetidas, a
ponto de elegerem o olhar em detrimento da palavra como meio de expressão por
excelência.
Em Nenhum olhar, as personagens são reféns do acaso e do destino. Paira sobre
elas, desde as primeiras linhas, uma ameaça. Ao leitor são dadas pistas inequívocas: “Há
93
de ser um instante em que não se veja um pardal, em que não se ouça senão o silêncio
que fazem todas as coisas a observar-nos. Chegará” (PEIXOTO, 2005, p.7. Grifo
nosso). Ressaltamos nesse trecho as expressões “a observar-nos” e “chegará” porque
somente elas são suficientes para introduzir aquilo que chamamos de essência do
trágico. Peter Szondi, em sua obra Ensaio sobre o trágico (2004), menciona, a uma
certa altura, a obra de Schelling intitulada Cartas filosóficas sobre dogmatismo e
criticismo, escrita pelo filósofo em 1795. Numa dessas cartas, Shelling afirma que
“ainda resta uma coisa: saber que há um poder objetivo que ameaça aniquilar a nossa
liberdade” (SHELLING, Apud SZONDI, 2004, p.28. Grifo nosso). Ao recortarmos as
expressões “observar-nos” e “chegará” acreditamos que podemos relacioná-las a outras
duas presentes no texto de Shelling: “poder” e “ameaça aniquilar”. Ora, o fato de ser
observado remete à pergunta “por quem?” e a certeza explicitada em “chegará” dialoga
com a ameaça de aniquilação. Por outro lado, se em Schelling se trata de uma ameaça
de aniquilação, em Nenhum olhar trata-se de uma certeza: “chegará”. Para Shelling o
trágico reside no conflito entre “a liberdade no sujeito e a necessidade, como
necessidade objetiva” (Idem, p.31).
Em certa medida, a idéia que Schelling tem sobre o trágico e a mundivisão
representada na obra de José Luís Peixoto convergem para o mesmo ponto: liberdade e
necessidade são elementos conflitantes. Para o filósofo, entretanto, “esse conflito não
termina com a derrota de uma ou de outra, mas pelo fato de ambas aparecerem
indiferentemente como vencedoras e vencidas” (Ibidem) e essa posição intermediária se
confronta com a mundividência no romance em pauta, pois, aqui, não existem
vencedores, pois todos, ao final, são derrotados. O “ser observado” em José Luís
Peixoto remete a um poder objetivo que oscila entre o sagrado e o profano, um poder
que ora emerge de forças sobre humanas, como no caso do gigante e do demônio e ora
94
provém de condicionantes físicos, como as deficiências de mestre Rafael, da prostituta
cega e dos gêmeos siameses; sociais, na alusão ao discurso marxista; ou psicológicos,
no caso da loucura da cozinheira. Além disso, as condições climáticas, como o sol
abrasador, e geográficas, que perpetuam o isolamento, reforçam a idéia da existência
desse poder que a tudo observa e ameaça aniquilar.
Desse modo, em Nenhum olhar, o conflito liberdade/necessidade resulta em
situações trágicas na medida em que a necessidade prevalece em detrimento da
liberdade. Notamos que qualquer movimento que almeje a independência é
sumariamente cerceado e às personagens não é oferecida a possibilidade de
transformação. Se José, no Livro I, decide enfrentar o gigante, ou seja, exerce a sua
liberdade de escolha, o resultado que ele alcança é o suicídio. Ao tomar consciência de
sua fragilidade, de sua insignificância frente a um poder superior, ele sucumbe. Do
mesmo modo, José, no Livro II, cogita fugir com a mulher amada e é paralisado por
forças invisíveis, ou seja, forças que provêm de sua própria consciência.
Segundo Lílian Lopondo, em sua obra Bernardo Santareno – a tradição
contemporânea e a tradição aristotélica (2000), “o conflito não oferece solução por
apresentar-se como dilema” (p.35). Prestes a abandonar a mãe e trair o primo, motivado
pelo amor da filha da cozinheira, ao fim e ao cabo, José não consegue dar o passo em
direção ao futuro, não atravessa a soleira e não vai ao encontro da mulher amada. De
maneira semelhante ao que ocorre em Bernardo Santareno, onde “o levantamento das
funções dramatúrgicas desvenda o beco sem-saída próprio da situação trágica, erigido
em dilema: Ângelo não pode ceder aos apelos de Manuela sem que lhe venha à
lembrança a infelicidade da mãe” (LOPONDO, 2000, p.46. Grifo nosso), José cede aos
apelos maternos:
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Ainda que se tivesse levantado uma cegonha a planar como um
abraço que nunca demos, mas que julgamos possível, ainda que todo
eu a tenha olhado, ainda que lhe tenha dito espera por mim, hoje vou
buscar-te, ainda que o crepúsculo nos tenha visto onde só vão os mais
sinceros, entrei neste quarto, e deitei-me nesta cama, e deixei que o
instante único passasse indistinto e que toda a minha vida se tornasse
um lugar penoso de instantes desperdiçados, instantes desperdiçados
antes do tempo, durante o fastidioso do seu tempo, depois da memória
má do seu tempo, no tédio de não ter e de não esperar nada. Não vás.
E não fui. Não me perdeste, mãe” (PEIXOTO, 2005, p.134. Grifo
nosso).
José, no Livro II, sucumbe às imposições sociais, ao reconhecer como um valor
o respeito à mulher alheia e, principalmente, por se tratar da mulher de seu primo.
Sucumbe aos apelos da mãe, que representa, em certa medida, a sua própria
consciência. “Furtando-se a concretizar a paixão pela mulher amada, Ângelo acolhe as
expectativas da comunidade sobre si e que tão bem introjetou [...] É sob este prisma que
se concebe a tragédia como a oposição “eu/outro” dentro do indivíduo (LOPONDO,
2000, p.47. Grifo nosso). Nas palavras de Peter Szondi, “apenas no instante em que não
pertencia mais a ele, era possível admitir que lhe pertencia” (SZONDI, 2004, p.62), ou
seja, apenas no momento da crise é que José, no Livro I, toma consciência de si mesmo
e de seu destino e decide se suicidar e José, no Livro II, pela mesma razão, renuncia à
felicidade: “Perdi-me eu de mim próprio, desencontrei-me de mim onde nunca estive,
onde nunca estarei. E não te culpo de nada, como não culpo a lua que nasce todas as
noites, o sol, a terra que me puxa” (PEIXOTO, 2005, p.134. Grifo nosso). Esse
sentimento de submissão é descrito por Solger - citado por Szondi - como uma cisão
interna – “o fato de que ele participa do mais elevado e no entanto precisa existir, o que
segundo Solger, produz o autêntico sentimento trágico” (SOLGER, Apud SZONDI,
2004, p.47. Grifo nosso).
Estamos, pois, pensando no trágico em função de novos problemas,
visceralmente distantes da tragédia aristotélica:
96
É exatamente por isso que, segundo Szondi, é apenas com
Schelling que nasce uma filosofia do trágico, sobre as determinações
do trágico, sobre o sentido do fenômeno trágico, sobre a tragicidade.
Construção eminentemente moderna, a originalidade dessa reflexão
filosófica, com relação ao que foi pensado até então, se encontra
justamente no fato de o trágico aparecer como uma categoria capaz
de apresentar a situação do homem no mundo, a essência da condição
humana, a dimensão fundamental da existência (MACHADO, 2006,
p.42. Grifo nosso).
Aqui, “o conjunto de instrumentos verbais e intelectuais, categorias de
pensamento, tipos de raciocínios, sistemas de representações, de crenças, de valores,
formas de sensibilidade, modalidade de ação e do agente” (VERNANT; NAQUET,
1972, p.18) concorrem para criar um horizonte diverso daquele do herói grego. De
acordo com George Steiner, na obra intitulada Gramáticas da criação (2003),
O século XX pôs em xeque a garantia teológica filosófica e
político-material da esperança. É um século que tem questionado a
plausibilidade e a credibilidade dos tempos futuros e que tem tornado
mais justificável a afirmação de Franz Kafka de que “existe uma
abundância de esperança, mas não para nós” [...] O fator determinante
de nossa situação atual é mais abrangente. Eu o definiria como o
“eclipse do messiânico”. Nos sistemas religiosos ocidentais, seja em
sua forma personalizada ou metafórica, o messiânico sempre implicou
a renovação, o fim da temporalidade histórica e o surgimento
glorioso de um mundo extraterreno (STEINER, 2003, p.17. Grifo
nosso).
Estamos diante, pois, de um horizonte esvaziado de esperança e de sentido. Por
isso, aqui, o sentimento trágico se configura diametralmente oposto àquele
experimentado pelo homem grego, àquela espécie de fervor que o mantinha ligado “a
velhos ídolos” (VERNANT;NAQUET, 1972, p.25). Dessa forma, a ausência de um
sistema religioso que explique a existência humana e que, acima de tudo, redima o
homem ao final, acaba por tornar tudo ao redor efêmero e o horizonte que se apresenta
às personagens de Peixoto é, no mínimo, desolador; a observação dos cronotopos e suas
funções dentro do romance evidenciam esta idéia, do mesmo modo que o processo
97
dialógico que se realiza por meio do olhar e a espécie de rebaixamento que verificamos
anteriormente.
Em dado momento, as personagens são levadas a encarar seus medos: José, no
Livro I, teme a traição da esposa; Moisés e Elias temem a separação. No Livro II, José
teme atravessar a soleira e ir de encontro à felicidade e mestre Rafael é incapaz de
enfrentar a morte de sua mulher e de sua filha. Cada uma dessas personagens vivencia
situações trágicas, em graus distintos e, indistintamente, enfrentam a si mesmas e
reconhecem as suas fraquezas nos momentos derradeiros de suas existências.
Entretanto, “reconhecer o húmus de que somos feitos não é uma demonstração de
otimismo, mas de lucidez. Lucidez que concede lugar ao trágico no todo social”
(MAFFESOLI, 2003, p.116. Grifo nosso). Aqui, essa lucidez vem acompanhada do
pessimismo, que se revela nas vozes das personagens:
O teu olhar ficará no meu quando morrer e, morto, contemplar as
planícies que serão o teu olhar a anoitecer lento. O teu olhar ficará
nas minhas mãos esquecidas e ninguém se lembrará de o procurar aí.
Penso: nunca ninguém se lembra de procurar as coisas onde elas
estão, porque nunca ninguém sabe o que pensa o fumo, ou as nuvens,
ou um olhar. E tu. Continuarás perdendo o silêncio por mãos
esquecidas, irá a enterrar o teu silêncio dentro do meu peito. Mulher
tantas vezes. Mulher repetida na respiração de um lugar passado ou
morto. Tempo e vida. Mulher, não sei o que fomos. Sei que, hoje, te
possuo. Hoje conheço-te. É meu o teu olhar e o teu silêncio. E de nada
me serve já, porque avanço para onde os homens deixam de ser
homens. Faço o caminho solitário por entre as ruínas da vida
(PEIXOTO, 2005, p.94-95 Grifo nosso).
Na observação das palavras e expressões destacadas, notamos uma concepção de
mundo pessimista: morrer, morto, anoitecer, ninguém, de nada me serve, ruínas. E
enquanto “fala”, José, no Livro I, caminha em direção à auto-extinção porque o
crescente desespero revelado por meio de suas palavras culmina no suicídio. É
significativo que a expressão “hoje conheço-te” esteja localizada no meio do discurso,
98
no meio do “caminho”, pois o reconhecimento, tal como o analisamos anteriormente,
conduz à aniquilação, na medida em que torna insuportável a existência. No Livro II, a
poucas páginas do final da narrativa, Salomão experimenta a mesma sensação epifânica,
que ocorre justamente quando do seu sofrimento pela morte de mestre Rafael, ou seja, é
por meio de uma vivência trágica que Salomão “acorda”: “Só na rua, já a mais de meio
do caminho, o frio repentino de acordar e ser real me afligiu. O súbito reconhecimento
de mim em mim. Como se me apercebesse do mundo” (Idem, p.167. Grifo nosso). A
“lucidez que concede lugar ao trágico social”, à qual Maffesoli se refere, se revela nesse
depoimento silencioso, nesse monólogo interior. E a expressão “me afligiu” permite
uma interpretação baseada, mais uma vez, em pessimismo, pois trata-se de um
aperceber-se do mundo que é relacionado à aflição, ou seja, à ânsia, à angústia, a um
profundo sofrimento. Mais adiante, esse sentimento é exacerbado e Salomão afirma:
E sei que estamos agora fechados num tempo imóvel. Não existe
já a manhã, ou o dia, ou a vida para lá deste quarto sombrio. Só a
pouca luz que atravessa a porta da rua, a cozinha e, finalmente, a porta
do quarto, nos faz saber que existimos aqui. Somos o lugar onde a
morte está. Sou o lugar onde a morte está (Idem, p.171. Grifo nosso).
Podemos pensar que Salomão, já consciente de si e do mundo que o rodeia,
finalmente supera a incerteza aflitiva e admite a derradeira certeza; primeiramente, de
forma genérica: “somos o lugar onde a morte está” para, em seguida, testemunhar “sou
o lugar onde a morte está”. O percurso que observamos é aquele que parte do social
para o individual e que mimetiza o afunilamento próprio do trágico. Trata-se, portanto,
de uma “lucidez que concede lugar ao trágico no todo social” e em cada indivíduo. A
comunidade, com seu ethos embasado numa localização historicamente opressiva e
isolada, fragmenta-se em partes representadas pelas personagens e cada uma dessas
partes torna-se, ao final, um todo oprimido e solitário, como metonímias daquele
Alentejo.
99
Há, pois, um todo – a vila -, trágico por sua natureza histórica, que envolve e
contamina os seus habitantes e, ao mesmo tempo, amplia o seu poder e conforma cada
personagem a uma situação-limite, a um beco sem-saída que é próprio do trágico.
Podemos pensar que o grande cronotopo que é o mundo criado por José Luís Peixoto
conduz as personagens, desde o início, ao final aniquilador. Tudo é delineado e
desenvolvido para tal, na medida em que as tragédias individuais compõem, em última
instância, a grande tragédia que o romance encerra: tudo termina, nada nem ninguém
sobrevive. A ruína de cada personagem é responsável pela ruína do grupo social ou
vice-versa. O conflito liberdade/necessidade, aqui representado em outro conflito,
indivíduo/sociedade, é levado ao extremo e a resolução última, única possível nesse
universo, é o desaparecimento.
No Livro II, a mulher de Salomão, grávida, sentencia: “Pousei as mãos sobre o
pequeno volume da minha barriga e pensei que era a morte dentro de mim. Tenho
a morte dentro de mim” (Idem, p.179. Grifo nosso). Tal como foi exposto no capítulo
dedicado ao rebaixamento, aqui o ventre não é fecundador, pois carrega morte ao invés
de vida. Depois, esse discurso carregado de pessimismo é enfatizado e ela acrescenta:
Aproxima-se o fim e o desespero. E, sei agora, o fim e o desespero
são a serenidade de uma solidão eterna e irremediável, são uma
mágoa que é um sofrimento eterno e irremediável, tudo eterno e tudo
irremediável, são o silêncio de quem chora sozinho numa noite
infinita (Idem, p.182. Grifo nosso).
Podemos observar nas palavras acima uma serenidade que se opõe àquela
“serenojovialidade” a que Nietzsche se refere em sua obra O nascimento da tragédia
(2005). Segundo o filósofo, na serenojovialidade grega, ocorre um fenômeno
semelhante àquele de
100
quando, numa tentativa enérgica de fitar de frente o Sol, nos
desviamos ofuscados, surgem diante dos olhos, como uma espécie de
remédio, manchas escuras: inversamente, as luminosas aparições dos
heróis de Sófocles, em suma, o apolíneo da máscara, são produtos
necessários de um olhar no que há de mais íntimo e horroroso na
natureza, como que manchas luminosas para curar a vista ferida pela
noite medonha (NIETZSCHE, 2005, p.63. Grifo nosso).
Aqui, como vimos, não há remédio algum, tudo é “irremediável”; além disso, a
luz que existe enfraquece gradativamente e o que resta é “uma noite infinita”. Desse
modo, ainda que a serenojovialidade grega contenha um elemento ameaçador, permite a
coexistência de uma “transfiguração infinita” (Idem, p.64). O herói, “em seu
comportamento puramente passivo, alcança a sua suprema atividade, que se estende
muito além de sua vida” (Ibidem. Grifo nosso). A passividade do herói é recompensada
ao final, enquanto que, aqui, a passividade é, como todo o resto, gratuita, na medida em
que seu resultado é o nada. Salomão traz à tona essa idéia no seguinte fragmento:
“E continuei. Continuava. O meu corpo a levar-me. As ruas, uma ânsia e um
desconforto. A minha vida a cumprir-se, alheia a mim, sem que eu mandasse nela, sem
que eu existisse. Eu sem mim. Eu sem eu” (PEIXOTO, 2005, p.184. Grifo nosso).
As bases do pensamento marxista, tal como as observamos anteriormente,
surgem na afirmação “sem que eu mandasse nela”. Nesse universo existe somente a
consciência das personagens de que nada lhes pertence, nem mesmo a suas vidas, que
não são uma propriedade, mas um bem que lhes é dado usar para, ao final, lhes ser
tomado sem explicação. Como afirma José, no Livro I, “são estas as poucas coisas que
nos dão a saber. O resto, filho, são mistérios sem explicação” (Idem, p.96. Grifo nosso).
E mais: “O resto são punhais apontados dentro de um nevoeiro. O resto são punhais que
vemos aproximarem-se do nosso peito, e estamos atados, filho (Ibidem. Grifo nosso).
101
Ao utilizar a expressão “estamos atados”, José resume a sua situação e a das
demais personagens frente aos desmandos do acaso e do destino, além de aludir mais
uma vez ao discurso marxista e ao sentido de impossibilidade que norteia o romance. O
“estar atado” descreve tanto a relação que se estabelece entre as personagens, ou seja, o
destino de cada uma delas está atado ao da outra, como traz à tona a limitação
individual à qual estão sujeitos, seja por condicionantes sociais, físicas ou psicológicas,
como mencionamos anteriormente. Além disso, este “estar atado” conduz também para
uma interpretação marcadamente marxista, na medida em que as personagens estão
limitadas por condicionantes histórico-sociais.
Desse modo, observamos a dialética entre o que é da ordem do particular e o que
é da ordem do geral, entre o que diz respeito ao indivíduo e o que diz respeito à
comunidade. O desenvolvimento dessa dialética caminha para a aniquilação de toda e
qualquer espécie de vida; notamos que a lógica interna é, pois, respeitada, na medida em
que, no lugar da purgação ou da purificação por meio do sofrimento, as personagens
têm suas vidas interrompidas sem que se resolva o conflito liberdade/necessidade.
Podemos pensar que a resolução da crise se dá justamente na aniquilação, pois é este o
único modo de libertação vislumbrado nesse universo em que a realidade vai se
tornando gradativamente mais pesada.
As ausências são, em Nenhum olhar, portadoras do sentido. É, a partir delas que
é presentificada a mundivisão representada obra, constituída sob a lógica do trágico. O
diálogo que se estabelece nos silêncios, ou seja, por meio do olhar, e o sem-sentido da
existência, ou seja, a ausência de um sistema religioso que promova a transcendência,
aliados a um rebaixamento em que a fecundação é substituída pelo aniquilamento da
vida constroem um horizonte propício ao trágico. De fato, o sentido do trágico se
102
manifesta pela exacerbação das ausências. Há um pouco que se transforma em nada.
Poucas palavras; sentimentos contidos; a luz que diminui gradativamente; a vida
reduzida ao essencial para a sobrevivência e, ao final, nem isso, pois nada subsiste.
A noção de pátria, por exemplo, tão cara ao herói grego e que, em certa medida,
motiva a sua ação, é inexistente em Nenhum olhar. A relação das personagens com o
espaço, ou seja, com a paisagem, é conflitante e o espaço constitui-se, numerosas vezes,
num obstáculo a ser ultrapassado por não haver outra alternativa. A estrada, como
vimos anteriormente, condensa os sentimentos contraditórios que as personagens
vivenciam ao percorrê-la: possibilidade de sim e de não simultaneamente. Ir em direção
à vila ou em direção ao monte são movimentos necessários à sobrevivência, que não
representam a volta a um lugar seguro, visto que não existem, nesse universo, lugares
seguros. Paralelamente à ausência da noção de pátria, a de lar é igualmente estranha à
comunidade, pelo menos no que diz respeito ao conceito de lar como espaço de refúgio
e de conforto físico e emocional. De acordo com o exposto no cronotopo do quarto, a
casa é um lugar destituído de luxo e, acima de tudo, de passado. Diferentemente da casa
dos ricos, cujos móveis antigos trazem à tona marca da história e, conseqüentemente, a
noção de passado, as casas das demais personagens reproduzem, na escassez da mobília,
o vazio em que vivem os seus moradores. Desse modo, a ausência de um modelo, de
índices que conectem o presente ao passado, perpetua a os sentimentos de solidão e
desamparo e reforça a idéia do sem-sentido da existência.
O sentimento de abandono, próprio do trágico moderno, explica a sua ação. O
suicídio de José é fruto, segundo Maffesoli, da “insignificância das ações humanas, da
precariedade e da brevidade da vida” (2003, p.23). Ainda nas palavras de Maffesoli,
103
há aí uma espécie de sabedoria em uso pelas jovens gerações que,
para parafrasear Ésquilo, sabem inclinar-se frente ao destino. Essa
nova sabedoria trágica, que pode chegar até o suicídio, em todo caso
favorecendo muito os excessos, é uma forma de heroísmo (Idem, p.25.
Grifo nosso).
É interessante notarmos as ambigüidades do sentimento do trágico. No Livro I,
José valora menos a sua relação com a família do que sua angústia pela traição da
esposa. Decide matar-se e deseja, com isso, fazer desaparecer o seu sofrimento, mas
ignora, em certa medida, as conseqüências advindas de seu ato, ao abandonar à própria
sorte sua esposa e seu filho. Em contrapartida, no Livro II, José desiste de fugir com a
mulher amada no momento em que se dá conta do enorme sofrimento que causaria à
mãe e ao primo Salomão. Desse modo, privilegia o amor à família em detrimento da
felicidade pessoal. Podemos creditar a ambos, a José, no Livro I e a José, no Livro II,
um certo grau de covardia. Contudo, a covardia de José, no Livro I, diz respeito ao seu
próprio sofrimento, ao passo que José, no Livro I, toma para si a responsabilidade pela
felicidade de outrem. Verificamos, pois, a existência de duas potências inversas atuando
ora no primeiro José, ora no segundo. O mundo dos valores e os conflitos individuais
gera uma tensão que somente se resolve por meio da ruptura. No Livro I, José rompe
com a própria vida enquanto existência biológica e, no Livro II, José rompe com a
mulher amada, ou seja, abre mão de sua vida enquanto existência emocional.
Segundo Vernant e Naquet (1977),
Na perspectiva trágica, portanto, agir tem um duplo caráter: de
um lado é deliberar consigo mesmo, pesar o pró e o contra, prever o
melhor possível a ordem dos meios e dos fins; de outro, é contar com
o desconhecido e incompreensível, aventurar num terreno que nos é
inacessível, entrar num jogo de forças sobrenaturais sobre as quais
não sabemos se, colaborando conosco, preparam nosso sucesso ou
nossa perda (p. 28. Grifo nosso).
104
No Livro I, José, a caminho do ato derradeiro, pondera consigo próprio:
Sofrer será a continuação de sofrer. A vontade que nunca tive, não
terei. E os meus passos já não são meus, nunca foram. Tudo é último.
Os campos resistiram um dia mais, e amanhã não existe. O céu
vermelho será para sempre vermelho, e o outro céu que conheci será
sempre uma recordação do que conheci um dia (PEIXOTO, 2005,
p.96-97. Grifo nosso).
E, do mesmo modo, José, no Livro II, depois de abandonar a idéia de fugir com
a mulher amada: “Não me perdeste, mãe. Perdi-me eu de mim próprio, desencontrei-me
de mim onde nunca estive, onde nunca estarei” (Idem, p.134. Grifo nosso). Ao
observarmos os dois fragmentos, notamos que em ambos há uma amargura que se
manifesta em relação ao passado: “nunca foram”; “nunca estive”. José, no Livro I,
constata que seus próprios passos nunca foram seus e José, no Livro II, afirma que
perdeu-se de si mesmo onde nunca esteve. O “nunca” carrega em si uma carga de
certeza, mas também de negação. Há, pois, uma negatividade sem concessões em
relação ao passado, ao já vivido, que se manifesta na forma de amargura. Ao mesmo
tempo, ambos revelam uma mundivisão pessimista em relação ao futuro: “amanhã não
existe” e “nunca estarei”. Se, por um lado, José, no Livro I, sabe que não existe amanhã
para ele, visto que caminha em direção ao suicídio, por outro, José, no Livro II, decreta
que jamais estará no lugar em que gostaria de estar, ou seja, onde simplesmente é.
Concluímos que tanto o passado quanto o futuro são, para ambos, modelos
negativos, na medida em que representam sofrimento. O passado é conhecido por meio
da memória e o futuro por meio da imaginação e, em ambos os casos, há a noção
trágica de impossibilidade. De acordo com Vernant e Naquet, “o homem trágico já não
tem que ‘escolher’ entre duas possibilidades; ele ‘verifica’ que uma única via se abre
diante dele” (1977, p.37), porque “sua ação se inscreve numa ordem temporal sobre a
qual ele não tem atuação e, porque tudo sofre passivamente, seus atos escapam a ele, o
105
ultrapassam” (Idem, p.57). No entanto, a passividade à qual Naquet e Vernant aludem
diz respeito à realidade trágica grega, em que a vida humana é governada pelos deuses,
enquanto que em Nenhum olhar, trata-se de uma passividade que resulta do crepúsculo
da esperança, da aniquilação desse sentimento. Além disso, o demônio e o gigante,
ainda que remetam àquilo que é da ordem do não-humano, são personagens cuja função
inequívoca no romance é a de contribuir para o desagregamento das personagens.
Testemunhas do “eclipse do messiânico”, as personagens parecem despedir-se
simultaneamente do passado, do presente e do futuro. Para Geroge Steiner, “quando se
anulam a expectativa revigorante e o imperativo luminoso da espera, os tempos futuros
deixam de existir” (2001, p.18). Steiner lembra, ainda, que “a filosofia grega primitiva e
a cosmologia abominavam o nada” (Idem, p.35. Grifo nosso). Num mundo, entretanto,
em que não se projeta um futuro visível, resta somente o nada e, visto que aqui as
personagens estão à mercê do acaso e do destino, “é isso mesmo o que se expressa, de
maneiras diversas nas tragédias: é-se mais atuado do que, na realidade, se atua por si
mesmo. O destino está aí, todo-poderoso, impiedoso, e, apesar da vontade do sujeito,
orienta em direção ao que está escrito” (MAFFESOLI, 2003, p.31. Grifo nosso).
Bornheim afirma:
Os estudiosos são unânimes em admitir que a tragédia alcançou o
seu máximo esplendor, a sua forma mais perfeita, na Grécia clássica.
Sua influência permaneceu soberana: toda aquela parte da dramaturgia
ocidental que se subordina ao gênero tragédia foi elaborada à sombra
dos gregos. Eles nos deram, assim, os marcos que determinariam a
evolução da tragédia. A tal ponto isto é verdade que mesmo os temas
da tragédia, ainda em nossos dias, continuam sendo, freqüentemente,
os velhos mitos do drama ático. E, no entanto, há uma evolução do
fenômeno trágico, uma mudança de seu sentido profundo
(BORNHEIM, 1969, p.69. Grifo nosso).
Observamos em Nenhum olhar a evolução do fenômeno trágico, conforme notou
Bornheim. Há uma coexistência tão polêmica quanto coerente entre as mundivisões
106
clássica e contemporânea, visto que o romance traz à luz elementos de tragédias
construídas sobre as bases clássicas. Esse confronto resulta num novo sentido que não
perde em intensidade trágica, ao contrário, ilumina a realidade atual a ponto de torná-la,
em certa medida, hiper-real. Tomemos como exemplo a obra de Almeida Garrett, Frei
Luis de Souza e observemos o diálogo que se estabelece entre essa obra e Nenhum olhar
no que diz respeito à capacidade de vaticínio que determinadas personagens apresentam
em ambas as obras. Antonio Soares Amora, apresentando uma das edições do drama de
Garrett, ressalta que
quanto às qualidades, tem a crítica acordado que em que são
ímpares, e que consistem sobretudo na simplicidade do enredo, na
concentração dos efeitos dramáticos, na economia e propriedade dos
recursos expressivos, na verossimilhança e força dos caracteres e no
achado de uma essência trágica, isto é, de uma situação catastrófica e
portanto sem solução, essência essa intuída em profundidade e tratada
com perfeição (GARRETT, 2002, p.7. Grifo nosso).
Ora, um dos achados de Garrett é justamente conferir à personagem Madalena a
capacidade de vaticinar o futuro. Logo na primeira cena, encontramos essa mulher
sozinha com seus pensamentos e, num dado momento, vêmo-la repetir os seguintes
versos d’Os Lusíadas: “Naquele engano d’alma ledo e cego/que a fortuna não deixa
durar muito...” (Idem, p.30. Grifo nosso). Observamos que, desde o início do drama,
Madalena demonstra um desassossego em relação ao futuro. Grande parte da essência
trágica do Frei Luis de Souza reside nessa personagem em razão das numerosas “pistas”
que ela deixa e que vão se enraizando na mente do leitor/espectador. Em Nenhum olhar,
encontramos igualmente as “pistas” de que algo ominoso irá acontecer. Em Garrett,
Madalena teme pela volta de seu suposto finado marido, o que acarretaria na desgraça
de sua família, visto que ela se casou novamente. Trata-se, portanto, de um temor
baseado em fatos concretos, embora o corpo do ex-esposo jamais houvesse sido
107
encontrado. No romance de José Luis Peixoto, as personagens revelam possuir um
temor em relação ao futuro, mas esse temor não se apóia em dados da narrativa. Elas
simplesmente têm conhecimento de que algo terrível está para acontecer:
Ainda que caminhe pela noite ao meio da tarde, ainda que no pico
do sol seja o mais negro da noite e dentro da noite seja noite também,
por tudo ser noite aos meus olhos, tenho de me levantar dessa cama.
Mesmo que seja para sofrer sofrer, tenho de ir ao encontro àquilo que
serei, por ter sido isto e não poder fugir, não poder fugir de me tornar
alguma coisa (PEIXOTO, 2005, p.33. Grifo nosso).
E mais: “Tudo o que deixavam, as manhãs de sol brando, o caminho do lagar;
tudo se lhes apressava na memória, porque se aproximava o que os separaria: muito
mais terrível do que o homem de arrancar dentes com um alicate, mais terrível que uma
faca amolada a separá-los, mais terrível que uma tesoura (Idem, p.78. Grifo nosso);
“Um ardor no lugar do coração afiança-me que vem aí” (Idem, p.102); “Eu, com a tarde
moribunda numa limpidez clara e quase nocturna, serei o tormento que sou, serei o
desalinho das minhas dores e esperanças. E, aqui, sob este céu a tocar-me com o seu
incêndio, agora, sei que assim será” (Ibidem. Grifo nosso); “Para quem sabe conhecer,
este verão é negro. Para quem sabe conhecer, este calor é soturno” (Idem, p.120); “Há
de chegar, vem a caminho e há de chegar” (Idem, p.133); “Sob a manhã, sob a claridade
a enganar-me de propósito, a morte pareceu-me um sofrimento igual ao de viver,
olhando um novo dia, sabendo tudo o que sei” (Idem, p.177. Grifo nosso);
“Aproxima-se o fim e o desespero” (Idem, p.182). O próprio dia derradeiro é
pressentido, aquele em que tudo desaparecerá: “A venda do judas seria fresca se aquela
fosse uma manhã normal” (Idem, p.184. Grifo nosso). Até mesmo a cadela de José, no
Livro II, é capaz de compreender o que acontecerá: “A cadela saiu do meio das ovelhas,
como se fosse uma ovelha e chegasse com a barriga cheia de restolho para me olhar. Os
seus olhos, grandes de sinceridade, diziam-me uma ternura e um conforto. Também ela
108
sabia” (Idem, p.186. Grifo nosso). Finalmente, no Livro II, a caminho do final da
narrativa, José anuncia:
Penso: chega devagar, mas vem; aproxima-se e será um dia
infinito, uma noite eterna, um instante parado que não será um
instante; e os assuntos grandes serão menores que os mais ridículos, e
os assuntos maiores serão ainda maiores porque serão únicos. Penso:
é hoje (Ibidem. Grifo nosso).
Há a presença do sentido de fatum em todos os cronotopos, ou seja, tempo
espaço estão a serviço do trágico. A separação pressentida por todas as personagens se
refere a uma ruptura espaço-temporal que não apresenta alternativa. No recorte dos
cronotopos realizado no primeiro capítulo, notamos que o afunilamento claustrofóbico
se verifica em cada um deles, como se os próprios cronotopos se constituíssem em
personagens do romance, porque por meio da sua observação encontramos os índices
que mais tarde confirmarão a certeza de aniquilação a que as personagens fazem
referência ao longo de todo o romance. O bar do judas, sendo o primeiro dos cronotopos
analisado, carrega em si mesmo aquele tempo que convencionamos chamar de tempo de
tensão, pois é a partir desse cronotopo que tem início o desmoronamento de José, no
Livro I e de todas as demais personagens daí por diante. A seguir, os cronotopos da
capela, da soleira, do quarto e da estrada somente exacerbam o que o cada personagem
demonstra saber, ou seja, intensificam a tensão inaugurada no bar do judas. São, em
certa medida, cada um dos cronotopos, um ato da tragédia implícita no romance. E cada
ato, ou seja, cada cronotopo, leva as personagens a chegar cada vez mais perto do fim.
São, pois, no romance, os elementos possibilitadores do trágico.
O horizonte das personagens, em Nenhum olhar, é, pois, diverso daquele do
homem grego e podemos verificar que o fenômeno trágico se delineia, inclusive, a partir
da observação espaço-temporal na medida em que os cronotopos trazem à luz os valores
109
que demarcam a comunidade em questão e promovem, acima de tudo, a
autocosncientização das personagens. Se destino e acaso trabalham em conjunto para a
aniquilação, eles somente podem ser compreendidos à luz da análise cronotópica. Da
mesma maneira, o trágico se revela por meio da ausência de transcendência. No capítulo
dedicado ao rebaixamento e ao dialogismo e no cronotopo da capela, que traz o
demônio como o celebrante dos ritos, notamos que a ruptura com a tradição, ao invés de
ser fundadora de uma nova vida, resulta em morte absoluta, sem concessões ao místico
ou ao religioso como canais para a redenção. O beco sem-saída próprio do trágico surge
na incapacidade de transformação e renovação observada no capítulo segundo.
O tempo em Nenhum olhar é contado de forma regressiva. O saber atribuído às
personagens e que confere a elas o poder de vaticinar o futuro só confirma esse processo
temporal negativo, que progride, paradoxalmente, para o zero absoluto, para o nada. E,
aliado ao tempo, o espaço conforma as personagens a situações-limite, como
observamos, por exemplo, nos cronotopos da soleira e da estrada. O horizonte do
homem é, aqui, considerado como o sentido último da realidade que, confrontado com a
sua subjetividade, constitui o conflito necessário para o surgimento do trágico. Trata-se,
pois, de um horizonte “que permite o próprio advento do herói trágico” (BORNEIM,
1969, p.73). Notamos que as personagens se conectam com o futuro por meio dessa
qualidade essencial que é o poder de vaticínio e, com isso, transmutam as contingências
em destino, em fatalismo. E as peripécias pelas quais passam as personagens não as
levam um degrau acima, visto que o progresso está ausente, mas tão somente as
empurra para o mais profundo. Trata-se, assim, de um movimento entrópico, circular e
absurdo que remete, como vimos anteriormente, ao mito de Sísifo. Em cada cronotopo,
percebemos um foco de inquietação. E, quando tomados em conjunto, os cronotopos
revelam o caráter trágico de cada uma das existências apresentadas em Nenhum olhar.
110
O romance constitui-se, pois, num modelo que, ao engendrar aspectos
fundamentais do fenômeno trágico, redimensionados a partir de uma perspectiva
contemporânea, confere ao todo uma tragicidade fundada nos conceitos bakhtinianos de
cronotopo, dialogismo e rebaixamento. Notamos que a ausência de redenção ao final, ou
seja, o não-restabelecimento da ordem, provoca, paradoxalmente, uma restauração do
espírito trágico. Diferentemente do hedonismo atribuído às sociedades ditas pós-
modernas, nas quais, segundo Maffesoli, “há uma alegria demoníaca de viver” (2003,
p.88), constatamos que, aqui, a vida corrente e sem qualidades é mostrada de maneira a
enfatizar somente o desespero intrínseco a essa vida repetitiva, onde “o acontecimento
vivido pontualmente não é mais que o eco de um advento sempre e de novo ocorrido”
(Idem, p.75). E a saturação da repetição é levada ao extremo em Nenhum olhar porque,
ao final, tudo desaparece. O próprio movimento cíclico e repetitivo finalmente cessa,
dando lugar à aniqulação.
Mortas enquanto vivas, as personagens vão ao encontro de outra morte, essa sim,
definitiva. José, no Livro II, por exemplo, afirma: “Penso: não existir, ser o
esquecimento de alguém esquecido para sempre, morrer muitas vezes morto
(PEIXOTO, 2005, p.188. Grifo nosso). Conforme observa João Barrento, em sua obra A
espiral vertiginosa: ensaios sobre a cultura contemporânea (2001), “a nossa
pós-modernidade literária e artística cria espaços em que a dor é, não excluída, não
travestizada nem espectralizada, mas serenamente convocada: e a arte mostra então
como ela é uma parcela inalienável da condição humana” (BARRENTO, 2001, p.81.
Grifo nosso). E, ao nos depararmos com as personagens de José Luis Peixoto
caminhando serenamente para a extinção, lúcidas e silenciosas, concluímos que essa
serenidade é resultado da contenção de sentimentos, contenção essa forjada numa vida
destituída de luxo e de esperança.Os diálogos que se realizam predominantemente por
111
meio do olhar são, em certa medida, resultado desse mesmo modus vivendi fundado na
escassez. De fato, de acordo com Barrento “não é verdade que ao princípio era o Verbo
(O Verbo do Gênesis faz nascer sem dor). Ao princípio era (é) a dor: as cosmogonias
mais antigas (e ainda Ovídio) fazem nascer o mundo num parto doloroso em que a
forma surge a partir de uma placenta informe” (Idem, p.72-73). Revela-se, pois, nessa
forma de diálogo baseada no olhar, uma sabedoria para lidar com a dor. Sobre isso,
Barrento esclarece que
Desde os Gregos que a dor é, ou evitada, ou sublimada, ou
barbarizada (vulgarizada). No mundo de paixões que era o da tragédia
antiga, a dor – tal como a beleza e a alegria, o canto e o êxtase -, é
matéria-prima da vida ritualizada. Depois, a vida foi-se
dessacralizando [...]. Ficamos sós porque fomos amputados de alguma
coisa que era parte de nós. O homem civilizado olha para o mundo, o
mundo esta em estado de dor quase permanente, e em vez de
responder com um lamento (como terá feito nas origens a natureza,
antes de perder a fala), fica em silêncio (Idem, p.70. Grifo nosso).
Lembra, ainda, que “esta relação entre a dor e a linguagem do indizível não é de
hoje. A literatura sempre soube que a dor é muda e faz emudecer” (Idem, p.71. Grifo
nosso). Em Nenhum olhar, a relação com o sofrimento se dá, pois, de forma silenciosa
e, em certa medida, estóica, mas não impede que as personagens alcancem uma
autoconsciência que beira, em certos momentos, a uma autocrítica repleta de amargura:
Só a minha morte é minha. Sou angustiantemente pequeno dentro de
mim. E eu, dentro de mim, sou tudo o que sou. Sou pouco,
insignificante, sou um passado de desencontros e enganos, sou o gesto
de olhar este céu, sou futuro nenhum e esta certeza. No calor,
encontro o cheiro da terra e sorrio nos meus lábios e no meu olhar.
Nunca mais. O meu sorriso é triste. Sempre foi. Sorrindo, rio-me de
mim e choro-me. Ninguém me chora se o meu olhar é assim negro. Eu
choro-me. Lágrima a lágrima, os meus olhos secos vêem inutilmente o
céu, a minha face seca arde nesta hora do calor, os meus lábios secos
sorriem e choram de desdém por mim próprio (Idem, p.187. Grifo
nosso).
112
O fragmento acima revela, a restauração do espírito trágico a que já nos
referimos. Cada sentença é carregada de um sentimento trágico da existência que já não
é possível ignorar ou disfarçar. Há, nas palavras de José, uma sensibilidade trágica que
sabe discernir entre o que lhe pertence e o que lhe escapa. Conclui que somente sua
morte lhe pertence e todo o resto é engano e desencontro. A secura de seus olhos, de sua
face e de seus lábios remete, mais uma vez, à ausência de vida, como observamos
naquele momento em que a cegonha trazia o ramo seco no bico. O desdém que José
sente em relação a si mesmo é fruto do recrudescimento de sua lucidez, pois, como
observamos, a narrativa caminha lenta, mas ininterruptamente, para a aniquilação e,
durante esse percurso, as personagens crescem na medida em que se amplia a sua
mundividência. Ao constatar “Sou pouco, insignificante”, José reconhece a sua
condição ou, nas palavras de Bornheim, descobre a verdade:
O desenvolvimento da ação trágica consistiria na progressiva
descoberta da verdade – verdade no sentido de aletheia: manifestar-
se, descobrir-se, “desconder-se”. Não é a essência do herói, restrita a
sua individualidade que vem à tona, mas a aparência na qual está
submerso: a aparência é descoberta e nela mostra-se a própria physis
do herói. Se se tratasse pura e simplesmente da essência do herói, ele
seria totalmente negatividade, e em si mesmo, enquanto pseudos. O
problema não reside, porém, no seu ser, mas no seu modo de ser – um
modo de ser que pode por em jogo inclusive o seu ser. A partir dos
equívocos da situação mundana do herói revela-se a verdade
(BORNHEIM, 1969, p.79. Grifo nosso).
Não por acaso, a última personagem a se manifestar pouco antes do final da
narrativa, momentos antes da aniquilação, é José. Ao descobrir a verdade, ao se dar
conta do húmus de que é feito, de que nada lhe pertence, ao não ser a sua morte, José
passa a ter pressa. E o ritmo da narrativa se acelera:
Tenho pressa. Tudo me espera onde não existo. Nada existe onde
não estou e não estou em nenhum lado. Tudo me espera para me
destruir mais ainda. Tenho pressa de resolver-me. Tenho pressa de
desaparecer. Tenho pressa. Ao fundo, o monte das oliveiras, o sol.
113
Avanço, continuo, prossigo. Sou a solidão (PEIXOTO, 2005, p.189.
Grifo nosso).
No Livro I, José anuncia que “há de ser um instante em que não se veja um
pardal, em que não se ouça senão o silêncio que fazem todas as coisas a observar-nos.
Chegará” (Idem, p.7. Grifo nosso), ou seja, José é a primeira personagem a se
manifestar dentro da narrativa e vaticina o futuro. No Livro II, a última personagem a
“falar” é José, filho de José. Desse modo, a circularidade construída ao longo de toda a
narrativa alcança a perfeição e as duas pontas, passado e presente, se atam no Livro II,
no discurso de José. A dimensão temporal, pois, se completa na alusão ao futuro: “A
terra nunca mais”. De modo a concretizar a profecia do pai, José se despede,
anunciando “sou a solidão”. A situação trágica alcança o seu limite e o beco sem-saída,
finalmente, aparece. A tragédia desemboca, pois, no sem-sentido da existência.
O mundo acabou. E não ficou nada. Nem as certezas. Nem as
sombras. Nem as cinzas. Nem os gestos. Nem as palavras. Nem o
amor. Nem o lume. Nem o céu. Nem os caminhos. Nem o passado.
Nem as idéias. Nem o fumo. O mundo acabou. E não ficou nada.
Nenhum sorriso. Nenhum pensamento. Nenhuma esperança. Nenhum
consolo. Nenhum olhar (Idem, p.191).
114
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao nos deparamos com uma obra concebida em nosso próprio tempo,
enfrentamos um problema que se refere à falta de distância necessária para a observação
do senso histórico. Nenhum olhar, de José Luís Peixoto, publicada no ano de 2005, se
inscreve no tipo de obra cuja ausência de uma perspectiva histórica, ao mesmo tempo
em que incita o pesquisador a enfrentar o desafio extra, provoca uma preocupação com
a profundidade de sua análise. Por essa razão, a utilização do conceito bakhtiniano de
cronotopo pareceu-nos adequada à análise do romance português, na medida em que as
dimensões temporal e espacial estão, aqui, carregadas de sentido.
Dedicamos, pois, o primeiro capítulo, à observação de seis cronotopos,
considerados e elencados levando-se me conta a sua importância dentro do romance.
Além disso, os cronotopos apresentados contribuem, cada um deles, para a
compreensão de um aspecto relevante da narrativa. O primeiro cronotopo, denominado
“bar do judas”, além de configurar-se como um ponto de encontro social, apresenta ao
leitor o demônio, personagem cuja importância se deve ao seu poder desestabilizador e
desagregador que leva José, no Livro I, a cometer o suicídio. Esse cronotopo reaparece
no Livro II, assim como o demônio e a recorrência tanto do bar como da figura
demoníaca trazem à tona o tempo cíclico, observado, inclusive, em outros cronotopos.
Notamos que esse tempo que se repete e se curva sobre si mesmo adquire, dentro do
romance, uma intensa significação. Ele é, também, causador da fragmentação das
personagens, na medida em que traz, intrinsecamente, o senso de impossibilidade a que
as personagens estão sujeitas. Visto que tudo se resume a uma roda perpétua e
sem-sentido, as personagens se encontram, a cada página, mergulhadas numa angústia
cada vez mais opressora e sem solução. Inserido no bar do judas, o motivo do encontro
115
revela as funções que o destino e o acaso assumem aqui. Desse modo, os casais que
surgem em Nenhum olhar tornam-se reféns ora do acaso ora do destino e iniciam sua
jornada de autoconhecimento tendo como pano de fundo um universo marcado pelos
desmandos de um e de outro.
A seguir, no cronotopo intitulado “a soleira da porta e o moto-perpétuo”,
identificamos o momento de crise que ocorre quando José, no Livro II, se vê diante da
possibilidade de transformação, ou seja, está prestes a fugir com a mulher amada e que
vem a ser a esposa de seu primo. Nesse cronotopo, frisamos a existência da soleira
como metáfora da crise, na medida em que separa dois tempos e dois espaços, um
tempo do que já é e um tempo do que ainda não é; um espaço do aqui e um do . Além
disso, ressaltamos que dois tipos de amor estão em jogo: aquele que José nutre pela
família e aquele que o liga à mulher de seu primo. Compreendemos que José é incapaz
de dar o passo em direção à felicidade pessoal porque a possibilidade de fuga com a
mulher que ama confronta valores que ele traz profundamente arraigados em sua
consciência. Desiste, pois, do seu plano inicial e decide permanecer com a mãe,
abandonando simultaneamente a mulher amada e sua oportunidade de felicidade.
O corredor aparece, em seguida, como uma metáfora da soleira e revela, por sua
vez, um outro aspecto do sentido de impossibilidade. Na sua modalidade concreta, o
corredor é um elo de ligação entre dois lugares. Aqui, entretanto, observamos que ele se
presta a conectar duas subjetividades, em dois momentos distintos. No Livro I, a mulher
de José estabelece uma ligação com a arca que está localizada no corredor, dedicando
horas e horas a ouvir a voz que está presa dentro dela; trinta anos depois, a filha da
cozinheira, esposa de Salomão, reproduz o mesmo comportamento da mulher de José,
no Livro I. O comportamento da segunda mulher, em certa medida, herdado e
invariável, revela um aspecto fundamental para a compreensão das idiossincrasias do
116
romance e concluímos que o corredor, ao constituir-se como uma brecha no espaço-
tempo daquele universo, instaura um momento de fuga no qual as mulheres quase se
esquecem de suas limitações psíquicas e sociais. Contudo, notamos que a permanência
no corredor não desencadeia nem a crise, nem a mudança, mas, tão somente, a
perpetuação. Por conta desse fenômeno que a soleira da porta encerra, ou seja, a
incapacidade de mudança, convencionamos chamá-lo de cronotopo do moto-perpétuo.
No cronotopo seguinte, “a vila e o tempo cíclico”, recortamos aspectos que
dizem respeito às personagens menos como individualidades do que como partes de um
todo que é a vila em questão. É nesse cronotopo que vimos surgir, pela primeira vez,
referências ao discurso marxista, que interpreta a perpetuação da segregação social
como um modo de opressão. Por essa razão, aprofundamos nossas observações a
respeito do tempo cíclico e o confrontamos com um outro tempo a que Bakhtin chama
de tempo laborioso e verificamos os efeitos que a vida fundada no trabalho braçal e
repetitivo causa nas personagens. Concluímos que, diferentemente do que a teoria
bakhtiniana revela, aqui, o tempo cíclico-laborioso não é fecundador e leva tão somente
à aniquilação.
Outro cronotopo fundamental que destacamos, “a capela e o sagrado”, traz à luz
as noções de lugar e de não-lugar, na perspectiva de Mircea Eliade. Enquanto espaço em
que ocorrem os ritos referentes ao casamento, a capela carrega em si elementos que
dizem respeito ao sagrado. Todavia, ao observarmos que o celebrante dos casamentos
no romance é o demônio, descobrimos que a presença do sagrado é subvertida por José
Luis Peixoto, que cria um ambiente que remete ao sagrado e que, simultanemente,
abriga o seu oposto, que é o aspecto profano, representado pela deterioração das
imagens santas e pela presença do demônio.
117
Chegamos ao cronotopo denominado “a estrada e o destino” e nele encontramos
os primeiros vislumbres do “indivíduo autenticamente solitário” (CLARK;HOLQUIST,
1998, p.303). A estrada surge fundamentada na substancialidade, como ligação entre
dois espaços e na subjetividade, ao revelar a concepção de mundo das personagens. É,
pois, na estrada, que as personagens entram em contato consigo mesmas e, por meio de
suas reflexões, chegam à autoconsciência. Notamos que a concepção de mundo que a
estrada revela se apóia na perigosa intersecção entre o destino e o acaso. A estrada, por
ser o caminho que leva as personagens da vila ao monte e vice-versa, encerra os limites
espaciais das personagens e, além disso, demarca os limites de suas próprias existências.
Os questionamentos ontológicos ali surgem por ser a estrada o símbolo de liberdade que
jamais se concretiza. A estrada abriga, pois, uma contradição fundamental: é o meio que
leva as personagens de um lugar a outro e, em contrapartida, as faz lembrar quão
imóveis e imutáveis estão fadadas a ser as suas existências.
O último cronotopo analisado, não por acaso, é o quarto. É ali que ocorrem os
eventos que são da ordem do humano, como os nascimentos, os atos sexuais e a morte
das personagens. Por essa razão, convencionamos chamá-lo de “o quarto e o profano”.
É nesse cronotopo que a dimensão histórica do tempo se revela com mais clareza. No
quarto, observamos a presença de um topos que opõe vida e morte e que foi recuperado
por Curtius, em sua obra Literatura européia e Idade Média latina (1957), e por
Bakhtin (1987), em seus estudos sobre o grotesco. Notamos que o tempo
histórico/profano, aqui, está a serviço da aniquilação. Além disso, verificamos que a
escassez dos móveis retoma as bases do pensamento marxista e reforça a idéia de que às
classes inferiores cabe somente o insuprimível. No cronotopo do quarto, à medida em
que a luz gradativamente diminui, aumentam a angústia e o desespero das personagens,
que caminham para o desfecho da narrativa e para o afunilamento aniquilador.
118
Levamos adiante as observações referentes às dimensões temporal e espacial e
desenvolvemos o segundo capítulo tendo em mente as reflexões advindas do primeiro
capítulo. Prosseguimos nossa investigação sobre os mecanismos dialógicos dentro do
romance e relacionamos a questão do rebaixamento em Bakhtin à obra peixotiana.
Nesta empreitada, notamos que em Nenhum olhar é observável o fenômeno do
rebaixamento, mas embasado em novos problemas que, por sua essência marcadamente
negativa, apagam o caráter de renovação, ou seja, positivo do rebaixamento na
perspectiva bakhtiniana. Verificamos que o próprio artista é relegado à posição de mero
mortal, assim como a sua obra é efêmera e limitada ao tempo e ao espaço em que se
passa a narrativa. Ressaltamos o diálogo que se estabelece entre o romance e Bíblia
Sagrada e notamos que essa relação, dialógica, caminha para desfechos diametralmente
opostos. No lugar da redenção para a qual converge o discurso religioso, nos deparamos
com uma mundivisão fundada no desamparo e na desesperança absoluta. Ao tempo
mítico sobrepõe-se o tempo histórico e profano, que a tudo arruína.
Enfim, com vistas a explicar essa lógica sobre a qual se assenta o romance e que
impede qualquer traço de utopia, desenvolvemos no terceiro e último capítulo uma
análise que descreve a filosofia do trágico e relacionamos a lógica da narrativa à própria
lógica do trágico. Neste capítulo, nos deparamos, finalmente, com os becos sem-saída
próprios do fenômeno trágico e compreendemos que a restauração do espírito trágico se
dá em Nenhum olhar justamente na impossibilidade que permeia cada uma das
existências apresentadas em suas páginas e concluímos que a narrativa, se tratada
metaforicamente como um imenso cronotopo, caminha inexoravelmente para a extinção
de toda e qualquer espécie de vida.
Podemos pensar que alcançamos nossos objetivos, que consistiam em percorrer
uma trajetória analítica que partia do mais “visível”, que são os cronotopos, passando
119
gradativamente para o mais velado, até chegar ao beco sem-saída próprio do trágico
para, com isso, mimetizarmos a própria trajetória da narrativa. Entendemos que o
romance de José Luís Peixoto, ao inserir-se, inevitavelmente, no período que
convencionamos chamar de pós-modernidade, carrega em si mesmo aspectos que
concernem a essa época notadamente marcada pela fragmentação e pela perda das
utopias.
O conceito de pós-modernidade e aquele do qual ele deriva, o de modernidade,
são conceitos que têm nos causado uma certa preocupação. Parece que à nossa angústia
ontológica, essa outra, epistemológica, se une para confundir-nos ainda mais. A
chamada “era da incerteza”, como não poderia deixar de ser, é cercada de dúvidas por
todos os lados. O problema da nomeação de uma dada época gera polêmica em alguns
círculos e, até mesmo desconforto, em outros. Especialmente o termo “pós-moderno” -
e suas variações, como pós-modernidade e pós-modernismo -, tem sido objeto de
estudos que se propõem, de um lado, a contextualizá-lo, julgando-o inquestionável e, de
outro, a criticá-lo, julgando-o inadequado. Seja como for, pós-modernidade descreve o
espírito de uma época, a nossa época. Detratá-lo ou defendê-lo não muda o fato de que
tal termo já se cristalizou e descreve um dado momento histórico que, apesar de
prescindir de datas exatas para marcar seu início, nem por isso pode deixar de ser
observável.
Ousamos, pois, situar a obra de José Luís Peixoto na chamada pós-modernidade
pelo fato de termos encontrado nela aspectos que dizem respeito a essa época em que
vivemos, além do fato óbvio de ela ter surgido hic et nunc. Evidenciamos a presença do
silêncio no lugar do logos; a antítese no lugar da síntese; a imanência no lugar da
transcendência. A marca sombria do descrédito se revela, inclusive, na observação
espaço-temporal. Segundo Spanos:
120
A literatura pós-moderna não somente tematiza o tempo no
colapso da metafísica que se seguiu à “morte de Deus” (ou de todo
mundo, à morte de Deus como Ômega), como também faz do próprio
“meio” a “mensagem” no sentido de que a sua função é realizar uma
“destruição” heideggeriana do quadro metafísico de referência
tradicional, ou seja, para concretizar a redução fenomenológica da
perspectiva espacial mediante a violência formal, e assim, como
Kierkegaard, deixar o leitor inter esse – um ser-no-mundo despido e
não acomodado, um Dasein no lugar da origem, no qual o tempo é
ontológicamente precedente ao ser (SPANOS Apud CONNOR, 1993,
p.100).
Estamos cientes de que a nossa análise não é definitiva e nem poderia ser, na
medida em que toda forma de fixidez é rejeitada na pós-modernidade: “O texto literário
pós-moderno [...] é um objeto ideal de análise para uma teoria da leitura que suspeita de
toda forma de identidade ou de fixidez, mas ainda exige algum objeto sobre o qual
praticar” (CONNOR, 1993, p.107. Grifo nosso). Além disso, pretendemos que nosso
estudo sobre o romance Nenhum olhar seja apenas o início de uma série de
investigações que tenham por objeto não somente esta obra, mas também toda a
produção deste escritor que, em nossa opinião, merece a atenção de todo aquele que
dedica à literatura todo o respeito e toda a paixão.
121
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