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PUC-SP
Cícero Robson Coimbra Neves
Omissão do garantidor em face de conduta delitiva de terceiro: concurso,
autoria colateral ou fato penalmente irrelevante?
MESTRADO EM DIREITO
São Paulo
2008
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PUC-SP
Cícero Robson Coimbra Neves
Omissão do garantidor em face de conduta delitiva de terceiro: concurso,
autoria colateral ou fato penalmente irrelevante?
MESTRADO EM DIREITO
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora como exigência parcial para
a obtenção do título de MESTRE em Direito
Penal, área de concentração Direito das
Relações Sociais, pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, sob a
orientação do Prof. Doutor Oswaldo
Henrique Duek Marques.
São Paulo
2008
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Banca Examinadora
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Para Luciana e Carolina (“Cacá”), esteio de minha
vida, razão de meu crescimento e motivo de minha
felicidade.
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Como não poderia de outra forma ser, inicialmente, a nosso
Deus, Todo-Poderoso, por nos ter premiado com o sopro da vida.
Aos meus pais, que me conceberam e forjaram meu caráter
com extrema dignidade.
Ao dileto Doutor Oswaldo Henrique Duek Marques, ilustre
Professor Titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, cujas
lições, verdadeiras fontes inspiradoras, e a firme orientação foram
fundamentais na realização desta obra.
Aos caríssimos amigos e sempre incentivadores André
Vinícius Espírito Santo de Almeida, Gustavo Octaviano Diniz Junqueira,
Jorge César de Assis e Ronaldo João Roth, cuja amizade e as sempre
preciosas lições tornaram menos árdua a jornada enfrentada.
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“(...) Para o adepto das luzes, o termo e o conceito
‘povo’ sempre conservam qualquer traço de arcaico,
inspirador de apreensões, e ele sabe que basta apostrofar
a multidão de ‘povo’ para induzi-la à maldade reacionária.
Quanta coisa não aconteceu diante de nossos olhos, em
nome do povo, e que em nome de Deus, da Humanidade
ou do Direito nunca se deveria ter consumado!”
Thomas Mann, in Doutor Fausto
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Em linhas gerais, a presente pesquisa tem o escopo de estudar amiúde qual a
responsabilidade do garantidor de um bem jurídico, ou seja, aquele que tem o dever
de impedir o resultado típico, quando, em face de um ato delitivo de um terceiro, não
age para obstar a lesão ao objeto de tutela penal. De modo geral, a doutrina tem
assentido na ocorrência de concurso de pessoas, em que o garantidor seria
responsabilizado por participação, sob a forma de cumplicidade, marcando-se a
chamada “participação por omissão”. Essa visão, no entanto, em simples fórmula
como a doutrina pátria tem colocado, não parece estar em sintonia com o princípio
reitor da culpabilidade, exigindo-se um estudo mais acurado, que possa fundamentar
com maior robustez se a omissão do garantidor, primeiro, deve ou não ficar no
espectro do Direito penal e, segundo, em estando abarcada por esse ramo do
Direito, se a adequada responsabilização deve-se dar a título de co-autoria ou da
participação. Mais ainda, o presente estudo tem o objetivo de estudar a realidade
apresentada do enfoque de duas legislações penais vigentes: o Código Penal
comum e o digo Penal Militar, as quais possuem orientações sistêmicas
diferentes. Nesse propósito, serão assentadas, em sede introdutória, as premissas
do trabalho, consignando-se a evolução da teoria do delito desde o sistema
denominado causal (clássico) até os atuais sistemas funcionais, de mote normativo,
em especial na visão de Günther Jakobs e de Claus Roxin. Dada a diversidade
sistêmica, o deslanche da pesquisa seria inviável sem que houvesse a eleição de
um sistema reitor que possa, inclusive, orientar a compreensão dos dogmas da
ciência penal no Direito penal militar, elegendo-se, dessarte, o sistema idealizado
por Hans Welzel: o finalismo. Como se percebe, rico é o caminho a ser perseguido,
sendo o objetivo da presente pesquisa não solapar algumas dúvidas, mas
também indicar que a simplicidade com a qual certos temas são hoje tratados pela
doutrina merece revisão, um giro de idéias que possa, com o foco no princípio do
nullum crimen sine culpa, buscar soluções mais justas.
Palavras-chave: omissão penalmente relevante, participação por omissão,
culpabilidade, garantidor. Direito penal militar.
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This paper aims to examine to what extent a security guarantor or surety should be
deemed responsible in the event that the primary obligor or principal fails to meet an
obligation to which he/she is bound and thus enters default or delinquency. On the
grounds of general legal theory and principles, this should be understood as a case
of concerted action whereby the guarantor’s liability arises from complicity and
participation, and thus engages in the so-called “participation by omission” (i.e. failure
or breach of a duty to act). While on one hand it is found to be applicable as a
normative convention by Brazilian law, on the other hand such understanding
appears to be incompatible with basic principles of culpability. More careful study is
required in order to find out whether a guarantor’s omission should be interpreted
under the principles of criminal law and, if such is the case, whether this should be
understood as concerted action or participation. This paper further aims to focus on
real cases pursuant to two currently applicable criminal codes relying on different
procedural guidelines, namely Ordinary Criminal Law and Military Criminal Law. The
introduction chapter outlines the premises in this paper and describes the criminal
offence theory ranging from a system referred to as causal (i.e. classical) up to
currently functional systems, of normative nature, particularly those as understood by
Günther Jakobs and Claus Roxin. Given the several systems implied, this research
required a guiding principle that could, among other things, help to understand
criminal science dogmas in military criminal law. The system devised by Hans
Welzel, i.e. finalism, was then regarded as the most suitable guiding principle. Since
there is a long way still to go, this research aims not only to resolve some doubts, but
also to point out that some of the issues that are currently covered by legal theory
and principles should be reconsidered with a view to searching for more appropriate
and fairer solutions on the grounds of the nullum crimen sine culpa principle.
Palavras-chave: omissão penalmente relevante, participação por omissão,
culpabilidade, garantidor. Direito penal militar.
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INTRODUÇÃO ..................................................................................... 12
1 DEFINIÇÃO DE PREMISSAS........................................................ 19
1.1 OS SISTEMAS PENAIS .................................................................................19
1.1.1 O causalismo clássico ..................................................................................24
1.1.2 O causalismo neoclássico ............................................................................27
1.1.3 O finalismo....................................................................................................30
1.1.3.1 O finalismo e a culpabilidade como elemento integrante do conceito
analítico de crime .......................................................................................35
1.1.4 O funcionalismo penal ..................................................................................38
1.1.4.1 O funcionalismo penal de Claus Roxin.......................................................39
1.1.4.2 O funcionalismo penal de Günther Jakobs.................................................44
1.1.5 A exaltação da “revolução welzeniana” ........................................................52
1.1.6 O sistema adotado no Código Penal Militar..................................................52
1.1.7 O sistema adotado no Código Penal comum ...............................................54
1.1.8 A negação do Funcionalismo como premissa do trabalho ...........................57
1.1.9 O Direito Penal Militar e a possibilidade de aplicação de uma moldura
finalista .........................................................................................................66
1.2 AS VELOCIDADES DO DIREITO PENAL E O DIREITO PENAL DA PÓS-
MODERNIDADE.............................................................................................67
1.2.1 O afastamento do Direito penal de duas velocidades do âmbito da presente
pesquisa .......................................................................................................69
1.3 PRINCÍPIOS REITORES DO TRABALHO .....................................................70
1.3.1 Princípio da legalidade .................................................................................70
1.3.2 Princípio da culpabilidade.............................................................................72
2 OMISSÃO IMPRÓPRIA ................................................................. 75
2.1 O CRIME OMISSIVO......................................................................................75
2.1.1 Concepções negativas .................................................................................75
2.1.2 Concepções positivas...................................................................................84
2.1.3 Conceito de omissão na doutrina brasileira..................................................87
2.1.4 Tomada de posição ......................................................................................91
2.1.5 Formas de condutas omissivas ....................................................................94
2.1.5.1 Crimes omissivos próprios..........................................................................96
2.1.5.2 Crimes comissivos por omissão ...............................................................101
2.1.5.3 Crimes omissivos por comissão: terceira espécie de crime omissivo? ....116
2.1.6 Nexo causal nos delitos omissivos .............................................................117
2.1.7 Tentativa nos delitos omissivos ..................................................................120
2.1.8 Antijuridicidade e culpabilidade nos delitos omissivos................................121
3 CONCURSO DE PESSOAS E AUTORIA COLATERAL ..............122
3.1 CONCURSO DE PESSOAS.........................................................................122
3.1.1 Conceito de autoria.....................................................................................122
3.1.2 Co-autoria e participação............................................................................133
3.1.2.1 Co-autoria.................................................................................................133
3.1.2.2 Participação..............................................................................................138
3.1.3 Requisitos do concurso de pessoas ...........................................................144
3.1.3.1 Pluralidade de condutas ...........................................................................144
3.1.3.2 Relevância causal das condutas ..............................................................145
3.1.3.3 Liame subjetivo.........................................................................................146
3.1.3.4 Identidade de fato criminoso.....................................................................148
3.1.4 Concurso de pessoas e o crime culposo....................................................149
3.1.5 A “participação” de um dos co-delinqüentes em crime menos grave, com e
sem a previsibilidade do pior resultado.......................................................151
3.1.6 A figura dos “cabeças” no Direito Penal Militar...........................................154
3.1.7 Cooperação sucessiva ...............................................................................154
3.1.8 “Autoria incerta” no concurso de pessoas ..................................................157
3.1.9 Classificação dos delitos com base no concurso de pessoas ....................158
3.1.10 Comunicação das circunstâncias pessoais elementares do tipo penal ......159
3.2 AUTORIA COLATERAL................................................................................160
4 DA “PARTICIPAÇÃO POR OMISSÃO” E SEUS PROBLEMAS
PRÁTICOS..........................................................................................162
4.1 Introdução ao capítulo ..................................................................................162
4.1.1 A retomada de alguns pontos relevantes ...................................................162
4.1.1.1 Conceito de omissão ................................................................................162
4.1.1.2 Estrutura do tipo penal objetivo da omissão imprópria .............................163
4.1.1.3 O tipo subjetivo da omissão imprópria......................................................164
4.1.1.4 Nexo causal nos delitos omissivos impróprios .........................................164
4.1.1.5 Antijuridicidade e culpabilidade na omissão imprópria .............................164
4.1.1.6 Requisitos do concurso de pessoas.........................................................165
4.2 A VISÃO DOMINANTE NA DOUTRINA ACERCA DO TEMA ......................165
4.3 RESPOSTA ÀS INDAGAÇÕES INTRODUTÓRIAS .....................................168
4.4 PROBLEMAS PRÁTICOS RELEVANTES....................................................169
4.5 A CONSEQÜÊNCIA DA ADOÇÃO DAS VERTENTES NOS PROBLEMAS
PRÁTICOS ...................................................................................................170
4.5.1 Omissão do garantidor em ato delituoso de terceiro como co-autoria dos
vários concorrentes (a visão de Cezar Roberto Bitencourt) .......................170
4.5.2 Omissão do garantidor em ato delituoso de terceiro como autoria colateral (a
visão de Juarez Tavares e de Nilo Batista) ................................................171
4.5.3 Omissão do garantidor em ato delituoso de terceiro como participação por
omissão sem especial atenção ao liame subjetivo (a visão de Juarez Cirino
dos Santos e de Guilherme de Souza Nucci).............................................171
4.5.4 Omissão do garantidor em ato delituoso de terceiro como fato irrelevante
penalmente.................................................................................................172
4.5.5 Omissão do garantidor em ato delituoso de terceiro como participação por
omissão com especial atenção ao liame subjetivo (a visão de Nélson
Hungria e de Edgard Magalhães Noronha) ................................................172
4.6 PROPOSTA DE CONFORMAÇÃO EM SINTONIA COM O PRINCÍPIO DA
CULPABILIDADE: TOMADA DE POSIÇÃO.................................................173
CONCLUSÃO .....................................................................................177
BIBLIOGRAFIA ..................................................................................180
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O presente trabalho, como o título sugere, busca explorar a figura da
omissão penalmente relevante nos casos em que o omitente não esteja isolado no
pólo ativo do delito, ou seja, a conduta de terceiro não obstada por aquele que, por
alguma das hipóteses do § do art. 13 do Código Penal, ou do § do art. 29 do
Código Penal Militar, tinha o dever de impedir o resultado.
O tema, de grande importância, pode ser analisado a partir das seguintes
indagações: Em que termos dar-sea responsabilidade penal do garantidor na
omissão penalmente relevante, quando anui em um comportamento delituoso
de terceiro? Há concurso de pessoas, autoria colateral ou fato irrelevante
penalmente? Em havendo concurso de pessoas, estaremos diante de co-
autoria ou de participação? Caso o fato o possa ser responsabilizado
penalmente, qual a fundamentação que arrima tal situação (atipicidade do fato,
exclusão da culpabilidade etc.)?
O desenvolvimento do trabalho compreenderá o estudo detido de dois
pontos do Direito penal (comum e militar), quais sejam, a omissão imprópria e o
concurso de pessoas.
Com efeito, ambos os temas foram esmiuçados pela doutrina pátria e
alienígena, contudo, as abordagens encontradas os tratam de forma isolada ou,
quando muito, posicionam-se em favor de uma participação por omissão, sem que
haja a adequada investigação científica acerca dos requisitos necessários ao
concurso de pessoas
1
.
Anota Mirabete que o concurso de pessoas pode realizar-se por meio da
co-autoria e da participação. Aponta, ainda, como requisitos para o reconhecimento
1
À guisa de exemplo, citemos Cezar Roberto Bitencourt, que em sua obra, sob a rubrica do
“Concurso em crimes omissivos”, não discorre profundamente sobre a temática, limitando-se apenas
a distinguir a participação em crime omissivo da participação por omissão em crime comissivo, Cezar
Roberto BITENCOURT. Manual de Direito Penal – Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 395.
13
do concurso, a pluralidade de condutas, a relevância causal de cada uma das ações,
o liame subjetivo entre os agentes e a identidade do fato
2
.
Os requisitos supracitados não carecem, por ora, de explicação mais
acurada, no entanto, em um deles parece residir o centro da problemática: o liame
subjetivo.
Assente a doutrina no fato de o liame subjetivo prescindir do prévio ajuste,
bastando a consciência ou a vontade de cooperar. Essa consciência, no entanto,
não vem sendo devidamente explorada, a ponto de poder ser delineada como um
vínculo recíproco entre os concorrentes para o delito (bilateral) ou apenas de um
deles para com o outro (unilateral). Em outros termos, a exata definição do liame
subjetivo poderá confirmar o entendimento pela existência de concurso de pessoas
ou, ao contrário, de autoria colateral.
Esse “claro doutrinário” deve ser preenchido pelo estudo freqüente dos
temas em correlação específica, como aqui se propõe.
A relevância do problema indicado é clara quando se compreende que o
concurso de pessoas constitui circunstância a influir na dosimetria da pena,
porquanto importa maior reprovabilidade da conduta apreciada.
Nesse sentido, o Código Penal comum, que, em seu art. 62, dispõe sobre
as circunstâncias agravantes específicas para o concurso de agentes:
Art. 62 - A pena será ainda agravada em relação ao agente que:
I - promove, ou organiza a cooperação no crime ou dirige a atividade dos
demais agentes;
II - coage ou induz outrem à execução material do crime;
III - instiga ou determina a cometer o crime alguém sujeito à sua autoridade
ou não-punível em virtude de condição ou qualidade pessoal;
IV - executa o crime, ou nele participa, mediante paga ou promessa de
recompensa.
A definição da matéria no Estatuto Repressivo em relevo poderá até
mesmo significar causa genérica de diminuição de pena, como no caso da
participação de menor importância grafada no § do art. 29. Nesse caso, para
confirmar-se a possibilidade, dever-se-á inicialmente concluir pela ocorrência de
2
Júlio Fabbrini MIRABETE. Manual de Direito Penal. São Paulo: Atlas, 2003, vol. 1, p. 227 a 231.
14
concurso de pessoas para, então, discutirem-se a co-autoria e a participação (de
menor importância ou não).
Também é preciso considerar a relevância do tema no Direito penal
castrense, mormente porque se aplica aos militares dos Estados, gênero de agentes
públicos em que se encontram os policiais militares e os bombeiros militares,
quotidianamente em serviço de preservação da ordem pública, em alinho ao mister
constitucional grafado no art.144 da Lei Maior.
A sistemática apresentada pelo Código Penal Militar é semelhante à
traçada pelo Código Penal comum. Nesse aspecto, dispõe o art. 53 do Estatuto
Repressivo Castrense:
§ 2° A pena é agravada em relação ao agente que:
I - promove ou organiza a cooperação no crime ou dirige a atividade dos
demais agentes;
II - coage outrem à execução material do crime;
III - instiga ou determina a cometer o crime alguém sujeito à sua autoridade,
ou não punível em virtude de condição ou qualidade pessoal;
IV - executa o crime, ou nele participa, mediante paga ou promessa de
recompensa.
§3º A pena é atenuada com relação ao agente, cuja participação no crime é
de somenos importância.
Há, entretanto, uma diferença muito interessante a ser considerada no
Código Penal Militar, concernente à figura daquele que lidera o movimento criminoso
coletivo ou que seja oficial
3
e concorra para o delito, ressaltando-se que ambas as
circunstâncias devem ser restritas aos crimes de concurso necessário. Trata-se da
figura do “cabeça”, que, na estrutura do Código Penal Militar, possui reprovabilidade
acentuada.
Acerca dos “cabeças”, dispõem os parágrafos e do próprio art. 53,
na seguinte conformidade:
§ Na prática de crime de autoria coletiva necessária, reputam-se cabeças
os que dirigem, provocam, instigam ou excitam a ação.
§ Quando o crime é cometido por inferiores e um ou mais oficiais, são
estes considerados cabeças, assim como os inferiores que exercem função
de oficial.
3
Na distribuição hierárquica das instituições militares, uma grande divisão entre oficiais e praças,
que comporta ainda subdivisões. Os Oficiais são aqueles que possuem posto e patente incluindo, por
exemplo, na Polícia Militar do Estado de São Paulo, o segundo-tenente, o primeiro-tenente, o capitão,
o major, o tenente-coronel e o coronel. Esses postos sofrem disposição diversa nas Forças Armadas
e podem ser alterados com a supressão de um ou mais postos nas milícias estaduais, conforme
permite o Decreto-lei n. 667, de 2 de julho de 1969.
15
A maior reprovabilidade sobre os “cabeças”, entretanto, não se manifesta
na Parte Geral do Código Penal Militar, mas na Parte Especial, mais
especificamente no preceito secundário dos tipos penais plurissubjetivos. Como
exemplo clássico, o art. 149, ao tratar do crime de motim, dispõe:
Art. 149. Reunirem-se militares ou assemelhados:
I - agindo contra a ordem recebida de superior, ou negando-se a cumpri-la;
II - recusando obediência a superior, quando estejam agindo sem ordem ou
praticando violência;
III - assentindo em recusa conjunta de obediência, ou em resistência ou
violência, em comum, contra superior;
IV - ocupando quartel, fortaleza, arsenal, fábrica ou estabelecimento militar,
ou dependência de qualquer deles, hangar, aeródromo ou aeronave, navio
ou viatura militar, ou utilizando-se de qualquer daqueles locais ou meios de
transporte, para ação militar, ou prática de violência, em desobediência a
ordem superior ou em detrimento da ordem ou da disciplina militar:
Pena - reclusão, de quatro a oito anos, com aumento de um terço para os
cabeças (g. n.).
A toda a discussão supra, tanto no Código Penal comum quanto no
militar, acrescente-se a questão da comunicabilidade das circunstâncias de caráter
pessoal, que são, ao mesmo tempo, elementares do tipo penal focado (art. 30, do
Código Penal comum e art. 53, § 1º, segunda parte, do Código Penal Militar).
Em sentido oposto ao concurso de pessoas, a autoria colateral não traz
relevância, no que concerne à pluralidade de pessoas no pólo ativo, para a
reprovação penal. Em outros termos, a perpetração de um delito por duas pessoas,
sem que uma saiba da outra, por exemplo, não significará agravação ou atenuação
da sanção penal. Entretanto, poderá significar que o garantidor responderá por delito
mais grave. Assim, e.g., a enfermeira responsável por um berçário, ao ver a o do
recém-nascido estrangula-lo e ao quedar-se inerte, responderá, se firmada uma
autoria colateral, por homicídio e não por infanticídio, que a ausência do concurso
de pessoas obsta a comunicação de elementares típicas.
Contudo, uma outra possibilidade deve ser avaliada contrariando a
responsabilização penal, qual seja, a possibilidade de a omissão do garantidor não
ingressar no âmbito do fato punível, restando apenas a responsabilização extra-
penal, disciplinar, por exemplo, no caso de um militar do Estado.
Em resumo, portanto, para a correta aplicação da pena, é essencial definir
a exata configuração da omissão imprópria em face da pluralidade de condutas,
16
atendendo-se, assim, ao princípio da culpabilidade, atual “reitor-mor” da
responsabilização penal. Também é necessário, para partir-se em busca de uma
solução adequada, que se avalie a possibilidade de o fato não constituir fato punível
penalmente, merecendo somente a reprovação de outro ramo do Direito.
A linha central deste estudo, como se pode verificar, é esmiuçar,
principalmente com base na doutrina pátria, os dois institutos, quais sejam, a
omissão imprópria e o concurso de pessoas, buscando situar, com isso, como deve
dar-se a responsabilização penal, se é que ela poderá existir, daquele que, ao
portar-se de forma omissiva, possuindo o dever de agir e podendo fazê-lo, colabora
para a prática de um delito por terceiro.
A título de exemplo, imagine-se um grupo de policiais militares que,
presenciando um furto de automóvel, quedam-se inertes e não impedem a ação do
furtador, ainda que a superioridade numérica, o poder de fogo, a distância do fato,
enfim, todas as circunstâncias fossem favoráveis à ação dos militares do Estado. Em
havendo a prisão, a posteriori, do autor do furto, e sendo descoberta nos autos do
processo a omissão dos policiais militares, como deve-se dar a responsabilização
destes?
O objetivo da pesquisa, portanto, concentra-se em definir a
responsabilização do sujeito ativo em face de sua omissão sobre fato de terceiro que
se constitua em delito que lese bem jurídico do qual era garantidor. Em outras
palavras, deve haver a responsabilização penal? Em havendo a responsabilização
pela ultima ratio, deve ela se dar a título de concurso de pessoas, podendo a pena
ser agravada, ou mesmo atenuada, se a participação for de menor importância, ou
deverá responder simplesmente como autor do delito, havendo, pois, nada além de
uma autoria colateral?
Afiguram-se, dessa forma, três hipóteses: apenas a responsabilização
extra-penal, a responsabilização penal em concurso de pessoas ou a
responsabilização penal com base na autoria colateral.
Com o escopo de bem conduzir o trabalho e de chegar-se a uma
conclusão viável, o desenvolvimento do tema se seccionado em capítulos que
17
terão correlação entre si e construirão, paulatinamente, o raciocínio para a devida
exploração.
No primeiro capítulo serão dadas as bases do trabalho no que concerne
às suas premissas. Nesse ponto, buscar-se-á delimitar o campo de raciocínio da
pesquisa centrada no Direito penal tradicional, concebido por Silva Sánchez como
de primeira velocidade afeto ao Direito penal “da prisão”
4
, afastando-se da pesquisa,
portanto, o Direito penal de duas velocidades e o Direito penal do inimigo, fruto das
idéias de Günther Jakobs. Ainda nesse capítulo, sedemonstrada a necessidade
de o trabalho prender-se a postulados de influência “welzeniana”, sendo afastado,
destarte, o funcionalismo penal, ao menos para o que se propõe no trabalho. Em
conclusão, como o trabalho tem a pretensão de abordar o tema do enfoque do
Direito penal comum e do Direito penal militar, será esmiuçada a dicotomia existente
entre esses dois ramos do Direito, verificando-se a possibilidade de o finalismo
influenciar a solução de problemas amesmo em um diploma causalista, como o
Código Penal Castrense
5
. Ainda no capítulo inaugural, far-se-á a incursão pelos
princípios da legalidade e da culpabilidade com suas nuanças, posto terem sido eles
eleitos princípios reitores da responsabilização penal.
No segundo capítulo terá início a incursão pela omissão imprópria, não
sem antes discutir-se o delito omissivo de forma genérica. Nesse ponto, haverá a
explanação sobre os elementos integrantes da omissão penalmente relevante, de
modo a possibilitar a análise mais acurada dos problemas apresentados pela
pesquisa.
A seguir, no capítulo terceiro, o foco de análise será o concurso de
pessoas, com suas espécies da co-autoria e da participação, e a autoria colateral.
Obviamente, o início do raciocínio será nas teorias da autoria, que fornecerão uma
sólida base para compreender as futuras ilações. O ponto central da pesquisa,
apontado, será então detalhado, quando se concluirá se o liame subjetivo deve ser
4
Jesús-María SILVA SÁNCHEZ. A Expansão do Direito Penal: Aspectos da Política Criminal nas
Sociedades Pós-industriais. Tradução para a Língua Portuguesa de Luiz Otavio de Oliveira Rocha.
São Paulo: RT, 2002, p. 148.
5
A palavra castrense” origina-se, como ensina Ronaldo João Roth, pelas palavras de Reynaldo
Moreira Miranda, do vocábulo castra, castrorum do latim, que significa acampamentos (...), isto é, o
incipiente e primitivo direito romano-militar’ o jus castrensis se exercia, de preferência, nos
18
apenas unilateral ou, ao contrário, somente será reconhecido em face da
bilateralidade.
Em última abordagem antes da conclusão, um capítulo específico (quarto
capítulo) buscará compreender exatamente aquilo que a doutrina intitulou
participação por omissão, buscando confirmar ou não a tese de delito em concurso
de pessoas e enumerando os problemas em adotar-se essa visão, ou as outras vias
entendendo a situação em relevo como autoria colateral ou como fato penalmente
irrelevante. À guisa de exemplo, em se entendendo que concurso de pessoas,
como ficará a responsabilidade penal do terceiro (autor) em face das agravantes
específicas do concurso de pessoas? Por outro lado, em se firmando pela autoria
colateral, como será possível responsabilizar o garantidor em determinados delitos
próprios, se não serão comunicáveis as circunstâncias pessoais? È possível que a
situação em foco seja fato penalmente irrelevante?
Em sede conclusiva, pretende-se firmar posição mais adequada, sem que
haja lesão ao princípio da culpabilidade, mas também sem que sejam admitidos
“vácuos” absurdos de punibilidade.
Como se pode notar, o caminho a percorrer é por demais acidentado e,
por isso, de difícil transposição. Contudo, assim se espera, haverá ao final a
saborosa recompensa de, se o dirimida por completo a questão, terem sido, ao
menos, lançadas as bases e idéias que possibilitarão aos sucessores na
investigação do tema uma discussão em um nível além do atualmente encontrado
na doutrina.
acampamentos, em tempo de guerra, em plena luta armada.Ronaldo João ROTH. Justiça Militar e
as Peculiaridades do Juiz Militar na Atuação Jurisdicional. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 91.
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Antes de enfrentar o tema proposto na presente pesquisa, é de vital
importância que sejam lançadas bases lidas para sua edificação, por meio de um
estudo preliminar, sem a pretensão de aprofundamento extremo, que as raias de
condução do estudo em desenvolvimento e, nesse mister, é fundamental explorar
pontos relevantes dos sistemas penais no curso histórico, posicionando os dois
diplomas analisados na pesquisa o Código Penal e o Código Penal Militar – nesse
contexto evolutivo.
Um sistema, genericamente entendido, é uma unidade dos diversos
conhecimentos organizados sob uma idéia central ou, como ilumina Paulo de Barros
Carvalho, em seu significado de base, “aparece como o objeto formado de porções
que se vinculam debaixo de um princípio unitário ou como a composição de partes
orientadas por um vetor comum. Onde houver um conjunto de elementos
relacionados entre si e aglutinados perante uma referência determinada, teremos a
noção fundamental de sistema”
6
.
Assim, os sistemas penais, fruto da construção dogmática, consistem em
postulados organizados a partir de uma idéia reitora, formando uma unidade
sistêmica que possibilitará melhor compreender a realidade jurídica.
A principal preocupação dos sistemas penais foi e é chegar a um
conjunto de postulados concatenados, que possam sintetizar a idéia de delito, ou
seja, investiga-se amiúde o conceito de crime, em sentido genérico (comportando
tanto o crime propriamente dito como a contravenção penal).
6
Paulo de Barros CARVALHO. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 79.
Capítulo
20
Fundamental, em sede preliminar, exaltar a difícil tarefa dogmática em
definir o delito, posto que a legislação penal, em seu todo, não conceitua crime,
tarefa que ficou a cargo da doutrina.
A propósito da indicação supra, é mister definir o que se pode entender
por dogmática, diferenciando-a da política criminal.
“Dogmática” origina-se do vocábulo grego “dogma”, que significa opinião,
disposição, proposição doutrinária, concluindo-se que a dogmática é a ciência dos
dogmas
7
. Nessa esteira, dogmática penal pode ser definida como a disciplina que
cuida da interpretação, sistematização, elaboração e desenvolvimento das
disposições legais e da opinião da doutrina científica no âmbito do Direito penal
8
. É,
em suma, a disciplina que cuida da interpretação da lei penal e de sua compreensão
doutrinária, possibilitando o acesso aos postulados do Direito penal posto, de forma
sistematizada.
O fato de atrelar-se aos dispositivos penais não impõe à dogmática que
se desenvolva de maneira acrítica, mas, ao contrário, exige que a norma seja
acessada, compreendida e, se necessário, criticada, rogando-se por sua alteração.
Para aclarar o exposto, tomem-se as lições de Arthur Kaufmann:
“A dogmática é, segundo Kant, << o procedimento dogmático da razão pura,
sem uma crítica prévia de sua própria capacidade>>. O dogmático parte de
pressupostos que assume como verdadeiros, sem, porém, dispor de provas
dessa veracidade. Ele pensa ex datis. O que é afinal o direito? Em que
circunstâncias, em que medida e de que forma existe conhecimento do
direito? o dogmático do direito não se põe perante estas perguntas. Isto
não significa, necessariamente, que a dogmática jurídica proceda
acriticamente. Contudo, mesmo quando adopta uma postura crítica,
nomeadamente na análise de uma norma legal, o argumento da dogmática
jurídica é sempre imanente ao sistema; o sistema vigente permanece
intocado. No quadro da dogmática jurídica, esta atitude é inteiramente
legítima. Ela se torna perigosa quando recusa o modo de pensar não
dogmático (meta-dogmático) da filosofia do direito por este ser
<<desnecessário>>, <<meramente teórico>> ou, até, <<não científico>>
(...)”
9
.
7
Claus ROXIN. Derecho Penal Parte General. Tradução para o Espanhol e notas de Diego-Manuel
Luzón Pena, Miguel Díaz García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madri: Civitas, 1997, t. I, p.
192.
8
Idem. Ibidem.
9
Arthur KAUFMANN e Winfried HASSEMER. Introdução à Filosofia do Direito e à Teoria do Direito
Contemporâneas. Tradução para a Língua Portuguesa de Marcos Keel e de Manuel Seca de Oliveira.
Revisão Científica e coordenação de António Manuel Hespanha. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2002, p. 26.
21
A política criminal, diversamente, não se prende aos postulados trazidos
pela lei penal positiva, mas busca a melhor forma de solucionar os conflitos surgidos
no âmbito penal, buscando sua perene evolução. Ocupa-se da questão de como
melhor conduzir o Direito penal para que possa ele cumprir sua missão principal de
proteger a sociedade. Nesse mister, postula qual a melhor forma de redigir as
características dos tipos penais para corresponder à realidade dos delitos,
ocupando-se de qual o efeito das sanções penais aplicadas para o Direito criminal e
da definição do limite do poder de criminalização dado ao legislador
10
, constituindo-
se, assim em um programa, mais ou menos severo, conforme as influências vigentes
no momento de sua definição.
Sintetizando a diferenciação, pode-se sustentar que a dogmática é a
disciplina que estuda o Direito penal existente – “Direito penal como é” –, enquanto a
política criminal é a disciplina do Direito penal idealizado de acordo com um fim
proposto “Direito penal que deveria ser”
11
, estando as duas ligadas por um
círculo sem solução de continuidade, em que a política criminal define os principais
postulados dando origem à legislação positivada que será absorvida pela dogmática.
Esta, com base nas realidades existentes (“ocorrência” e “norma”), adequadamente
formulará sua crítica, donde podem surgir novos movimentos de política criminal.
Todo esse movimento somente é possível pela instrumentalização dada pela
Filosofia do direito.
É exatamente desse movimento crítico-racional que surgem as
postulações afetas ao Direito penal, ao que se convencionou chamar de doutrina,
mormente no que concerne à observação e à absorção do conceito do delito, no
bojo do estudo da “teoria geral do crime”, tema central dos sistemas penais. Assim,
a dogmática, fruto de uma política criminal determinada, organiza e sistematiza os
postulados penais, de modo a gerar um sistema que refletirá, sumariamente, uma
época de estudo do Direito penal. Cumpre à doutrina entrelaçar a ambas,
dogmática e política criminal, buscando o melhor desenvolvimento dos postulados
do Direito repressivo.
10
Hans-Heinrich JESCHECK e ThomasWEIGEND. Tratado de Derecho Penal Parte General. 5 ed.
Tradução para a Língua Espanhola de Miguel Ormedo Cardenete. Granada: Comares, 2002, p. 24.
11
Claus ROXIN. Derecho Penal – Parte General, cit., p. 192.
22
Pois bem, voltando ao conceito de crime, costuma-se doutrinariamente
apresentá-lo a partir de três visões distintas: formal, material e analítica.
O conceito formal de crime surge do confronto puro e simples entre a
conduta real e a norma incriminadora, bastando dizer que crime é toda e qualquer
violação, registrada pela lei penal, a que se impõe uma pena. Obviamente, essa
conceituação ignora o critério dicotômico vigente no Brasil, grafado na Lei de
Introdução ao Código Penal, em seu art. 1º, segundo o qual as infrações penais
previstas na legislação penal constituem-se em gênero que comportam duas
espécies: contravenção penal e crime.
conceitos que focam apenas o aspecto externo do delito, seja em
virtude de seu efeito danoso em relação a bens essenciais ao convívio social, de sua
contrariedade com o conjunto ético-moral, ou mesmo em razão do momento
psíquico do autor do fato. Trata-se do conceito de crime sob a visão material ou
substancial.
Os vários exemplos de conceito substancial de crime enfocam
preferencialmente o bem jurídico-penal e, nesse sentido, apontam-se algumas
definições: “... crime é a conduta humana que lesa ou expõe a perigo um bem
jurídico protegido pela lei penal. Sua essência é a ofensa ao bem jurídico, pois toda
norma penal tem por finalidade sua tutela”
12
; “Crime é, assim, numa definição
material, a ação ou omissão que, a juízo do legislador, contrasta violentamente com
valores ou interesses do corpo social, de modo a exigir seja proibida sob ameaça de
pena”
13
; “(...) crime como o ato que ofende ou ameaça um bem jurídico tutelado pela
lei penal. E ao conceituarmos bem jurídico como objeto específico sobre o qual recai
o atuar criminoso, saímos do puro domínio lógico-formal e damos ao conceito do
crime um conteúdo em conjunção com a realidade da vida social, em que têm de
inspirar-se as definições e a aplicação do Direito Penal”
14
etc.
Todavia, como adverte Cezar Roberto Bitencourt, “os conceitos formal e
material são insuficientes para permitir à dogmática penal a realização de uma
12
Edgard Magalhães NORONHA. Direito Penal. 38 ed. São Paulo: Saraiva, 2004, vol. I, p. 97.
13
Heleno Cláudio FRAGOSO. Lições de Direito Penal Parte Geral. 16 ed. Rio de Janeiro: Forense,
2004, p. 176.
14
Aníbal BRUNO. Direito Penal – Parte Geral. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, t.I, p. 175.
23
análise dos elementos estruturais do conceito de crime”
15
, o que exigiu um estudo
essencial do delito, a ponto de fomentar, ainda que didaticamente, sua
decomposição em elementos.
Nasce o conceito analítico de crime, que encontra seu início – apesar de
possuir antecedentes em Deciano (1551) e Bohemero (1732) – com Carmignani, em
1833, para quem a ação delituosa era, em sua essência, a composição de uma força
física e outra moral
16
. Com esse conceito, marcado por elementos organizados sob
uma mesma idéia reitora, evidencia-se, naturalmente, a concepção de um sistema
penal.
A primeira construção de Carmignani conduzia a um modelo bipartido,
composto de elementos objetivos e subjetivos, sendo posteriormente
complementado por Beling, em 1906, ao introduzir o elemento da tipicidade
17
.
Em outro passo evolutivo, a dogmática passou a sistematizar a
conceituação em três elementos básicos o fato típico, a antijuridicidade e a
culpabilidade –, que são o centro de discussão dos sistemas penais surgidos a
meados do século passado, a saber, o causalismo e o finalismo.
Na segunda metade do culo XX, no entanto, inaugurou-se uma “nova”
visão do Direito penal, focada nos fins e funções do próprio Direito, surgindo o
funcionalismo penal, sem dúvida alguma um rompante sobre influência da filosofia
da existência
18
.
15
Cezar Roberto BITENCOURT. Manual de Direito Penal Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2002, p.
142.
16
Idem. Ibidem.
17
Idem. Ibidem.
18
Filosofia da existência, ou Fenomenologia existencial, consiste em um contraponto da metafísica e
resume-se em uma vertente que considera como “realidade fundamental a existência humana,
compreendida segundo sua radical e contingente finitude (e não segundo a essência metafísica da
natureza humana); por oposição à metafísica tradicional, conforme a qual a essência precede a
existência, os existencialistas afirmam o contrário, isto é, que a existência precede a essência”
(Oswaldo Giacoia JUNIOR. Pequeno Dicionário de Filosofia Contemporânea. São Paulo: Publifolha,
2006, p. 79). Em outras palavras, enquanto a metafísica pressupõe uma possibilidade de pureza do
conhecimento, extraindo o homem de seu mundo para poder compreender a essência pura do ser, a
filosofia da existência insere no processo cognitivo a própria existência humana em situação, ou seja,
alocada em um contexto existencial que poderá, é verdade, relativizar, marcar a compreensão do ser,
fazendo isso, contudo, parte do próprio processo de compreensão das coisas. Como resume Dulce
Mára Critelli, para a metafísica, o conhecimento é resultado de uma superação da insegurança do
existir. Para a fenomenologia, é exatamente a aceitação dessa insegurança que permite o
24
Pode-se, em resumo, reconhecer a existência, ou pretensa existência, de
três sistemas penais destacados causalismo, finalismo e funcionalismo,
sendo essencial compreender sua evolução histórica e seus postulados para a
definição de premissas, que se deverá eleger o sistema penal aparentemente
mais adequado (raciocinando do enfoque da política criminal) ou simplesmente
adotado pela legislação vigente (raciocinando do enfoque da dogmática penal)
para a solução dos problemas encontrados na ciência penal, dentre os quais está o
suscitado pelo presente trabalho.
O estudo detalhado de cada sistema penal, no entanto, é tarefa que, por
si , mereceria pesquisa à parte, razão pela qual há que se pedir vênia para
apenas discorrer acerca da idéia central e dos aspectos mais relevantes de cada
sistema para a presente construção, a saber, a concepção de cada orientação
acerca da conduta (ação e omissão) e da culpabilidade.
1.1.1 O causalismo clássico
Embora a designação “causalismo guarde íntima relação com a
concepção de conduta para o Direito penal, o sistema causal deve ser
compreendido em sua totalidade, inclusive com sua compreensão acerca da
culpabilidade. Desse prisma, é possível afirmar que o causalismo possui dois
modelos diversos: um modelo clássico e um modelo neoclássico.
O modelo clássico de delito, conhecido como “modelo Liszt Beling
Radbruch”, foi desenvolvido a partir do final do século XIX, tendo sua origem na
filosofia naturalista que inebriou aquele século, com vertente muito mais
epistemológica
19
, valorizando-se extremamente o experimentalismo, ou seja, o
modo, o método de absorção do conhecimento.
conhecimento” (Dulce Mara CRITELLI. Analítica do Sentido: Uma Aproximação e Interpretação do
Real de Orientação Fenomenológica. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 2006, p. 15).
19
A filosofia possui duas indagações iniciais nucleares, que marcam seu desenvolvimento histórico:
1) Qual a natureza de tudo quanto existe?”; 2) “Como podemos, se podemos, saber?”. Essas duas
questões polarizam a filosofia em dois caminhos, a saber, a ontologia, atrelada à perquirição da
natureza das coisas materiais ou imateriais (primeira questão nuclear), e a epistemologia, ligada à
25
Malgrado sua influência naturalista, sua preocupação central era
encontrar um conceito estrutural do delito, buscando a essência de seus elementos
constitutivos, ou seja, ação, tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade, o que lhe
confere um caráter ôntico em seu propósito principal, embora arrimado em
conhecimentos de outras ciências obtidos com preocupação epistemológica
20
.
Iniciando a compreensão dos pontos interessantes à pesquisa, para o
causalismo clássico a ação era compreendida de modo completamente
naturalístico (naturalismo extremo), firmando-se uma teoria causal-natural, em que
a ação era definida por Liszt “como ‘uma modificação material, por insignificante que
seja, do mundo exterior, perceptível pelos sentidos’, e concebia, por exemplo, a
injúria como uma produção de vibrações do ar e excitações nervosas”
21
, sendo clara
a tentativa de maior “objetivação” de definições, qual se fazia nas ciências naturais,
em uma busca metafísica pela assepsia no conhecimento.
O conceito sobreposto está impregnado pelas ciências naturais,
dominantes nas idéias positivistas do fim do século XIX e, como se percebe
nitidamente, descarta o conteúdo psicológico finalístico da ação. Também não se
preocupou com o isolamento do conceito de omissão, somente mais tarde
repensado pelo próprio Lizst.
Embora o conceito de ação seja um signo muito forte do causalismo
clássico, outros dogmas foram explorados por esse modelo na busca de uma
concepção ontológica do delito, interessando ao escopo proposto a configuração da
culpabilidade.
A culpabilidade foi outro forte signo do modelo clássico, caracterizada
pelo vínculo psicológico entre o autor e o fato punível, por meio do dolo ou da culpa,
tendo a imputabilidade como necessário pressuposto para a capacidade de
culpabilidade.
natureza do conhecimento e de tudo aquilo que podemos saber, se é que o podemos (segunda
questão nuclear). Bryan MAGGE. História da Filosofia. 3 ed. São Paulo: Loyola, 2001. p. 7-8.
20
É preciso assinalar que é impossível, na existência pura de uma forma ou de outra, investigar os
problemas fundamentais da filosofia. Pensar onticamente leva à indagação de se é possível conhecer
de fato a essência das coisas, ou seja, uma preocupação epistemológica.
21
Hans WELZEL. O Novo Sistema Jurídico-penal Uma Introdução à Doutrina da Ação Finalista.
Tradução para a Língua Portuguesa, apresentação e notas de Luiz Regis Prado. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2001, p. 34.
26
Firmava-se a teoria psicológica da culpabilidade, primeira teoria a
explicar esse elemento do crime, a qual assentava que o fato punível encontrava
seus elementos objetivos na antijuridicidade típica, enquanto os elementos
subjetivos eram condensados na culpabilidade.
Em outras palavras, para a teoria psicológica, a culpabilidade “é o liame,
o vínculo ou o nexo psicológico que liga o agente ou pelo dolo ou pela culpa ao seu
fato típico e antijurídico. Ela é vista num plano puramente naturalístico ou
psicológico, desprovido de qualquer valoração e esgota-se na simples constatação
da posição do agente perante sua própria conduta”
22
.
Dessa forma, no modelo apresentado, a culpabilidade comportava duas
avaliações: a da imputabilidade (capacidade de culpabilidade) e a da relação
psicológica propriamente dita.
Obviamente, para se reconhecer o liame psicológico do autor ao seu
injusto típico, exigia-se a capacidade de culpabilidade, como capacidade geral e
abstrata de compreender o valor do fato, o que levava à exclusão ou à redução de
culpabilidade dos casos de imperfeição (imaturidade) ou defecção (doença
mental)
23
. Na exclusão, em verdade, a inimputabilidade significava, para alguns, a
falta de pressuposto para a culpabilidade, enquanto, para outros, uma causa de
isenção de pena
24
. Seja como for, era ela fundamental ao reconhecimento da
culpabilidade.
a relação psicológica traduzia-se pela constatação da consciência e
da vontade de realizar o fato típico. Daí a grande crítica em relação ao conceito
psicológico, por o satisfazer a explicação da culpabilidade nos delitos culposos,
especialmente na culpa inconsciente, que não comporta relação psicológica entre a
conduta e o resultado, estando a relação psicológica entre ambos não na cabeça de
22
Luiz Flávio GOMES. Erro de Tipo e Erro de Proibição. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2001, p. 43.
23
Juarez Cirino dos SANTOS. A Moderna Teoria do Fato Punível. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003,
p. 175.
24
A visão de imputabilidade, pelo conceito psicológico, como pressuposto de culpabilidade, não é
correta, pois o doente mental poderá apresentar capacidade para uma relação psicológica com seu
ato, ou seja, poderá agir com dolo, de sorte que, considerar a inimputabilidade como causa de
isenção de pena alinha-se melhor à teoria psicológica. Vide Eugenio RAÚL ZAFFARONI e José
Henrique PIERANGELI. Manual de Direito Penal Brasileiro Parte Geral. 4 ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2002, p. 603.
27
quem será responsabilizado por esse liame psicológico, mas na cabeça do juiz, que
estabelece que o agente tinha condições de prever o resultado não previsto. Por
essa razão, houve aqueles que postularam que as condutas culposas (na culpa
inconsciente) não poderiam configurar delitos
25
.
Todavia, firmou-se como consenso, na teoria psicológica, a concepção de
que dolo e culpa eram espécies de culpabilidade ou, como afirma Luiz Flávio
Gomes, eram “a” culpabilidade
26
. Portanto, ao estudar a culpabilidade pela teoria
em relevo, o necessário curso investigativo do dolo e da culpa e, como reflexo, a
conduta típica era “esvaziada” de elementos psicológicos, ou seja, a ação, para o
causalismo clássico, prescindia da investigação de dolo ou de culpa, dificultando
extremamente a definição típica no início da análise do fato punível.
1.1.2 O causalismo neoclássico
O modelo clássico, malgrado sua inegável importância histórica, ao tentar
afastar por completo a responsabilidade penal objetiva, alocando dolo e culpa como
elementos do delito, foi insuficiente para responder a uma série de questionamentos
idealizados, buscando solução por meio de uma releitura dos elementos
constitutivos do crime (portanto, também ontológico, embora partisse de conceitos
oriundos do positivismo), capitaneada por Reinhard Frank, iniciando-se, assim, um
novo modelo causal, o neoclássico.
Embora ainda causal, o modelo neoclássico abandona um naturalismo
extremo, que impregnava o primeiro conceito de ação de Liszt, acrescendo-se um
significado valorativo com a agregação da voluntariedade, chegando-se a uma
teoria causal-valorativa de ação. O próprio Liszt
27
reformulou sua visão ao definir
ação como “a causação do resultado por um ato de vontade. Este se apresenta
25
Eugenio RAÚL ZAFFARONI e José Henrique PIERANGELI. Manual de Direito Penal Brasileiro
Parte Geral, cit., p. 518-9.
26
Luiz Flávio GOMES. Erro de Tipo e Erro de Proibição, cit., p. 44.
27
Anuindo que o próprio Franz Von Liszt reviu a teoria do delito, vide Teresa Serra que assim postula:
“As primeiras revisões do sistema clássico do crime partiram do próprio V. Liszt e tiveram na sua raiz
a descoberta de que a natureza da omissão não podia compaginar-se com uma idéia de acção
28
como movimento corpóreo voluntário, isto é, com tensão (contração) dos músculos,
determinada o por coação mecânica ou psicofísica, mas por idéias ou
representações, e efetuada por inervação dos nervos motores. O movimento
corpóreo e o resultado constituem, pois, os dois elementos igualmente importantes
da idéia de ação como comissão”
28
. Pode-se então sintetizar que, agora, a ação
passava a ser definida como um comportamento humano voluntário
29
.
Apenas como notícia preliminar, porquanto o tema será mais bem
esmiuçado no próximo capítulo, no contexto apresentado para o causalismo
clássico, obviamente, a omissão será nitidamente desconsiderada, ou ao menos
relegada a um plano inferior, do enfoque conceitual. Assim, pode-se afirmar com
Fábio André Guaragni que, inicialmente, “a conduta como movimento corpóreo
causador de modificação no mundo exterior não é conceitualmente adequada ao
comportamento omissivo, pois omitir, diante de uma concepção meramente
lingüística (a latere do direito), é deixar de movimentar-se numa direção, é um non
facere relativo a algo”
30
. Essa incongruência foi notada pelos próprios causalistas
inaugurais
31
, levando a uma evolução de postulados, de modo a conceituar também
a omissão. Nesse sentido, o próprio Liszt postula que a omissão é “o o
empreendimento de uma ação determinada e esperada. Omitir é verbo transitivo:
não significa deixar de fazer de um modo absoluto, mas deixar de fazer alguma
coisa, e, na verdade, o que era esperado”
32
.
No plano da culpabilidade, até então puramente psicológica, assume-se
também um significado valorativo (normativo), caracterizado pela reprovabilidade
da ação do autor pela formação contrária ao dever
33
, originando-se a da teoria
normativa (ou psicológico-normativa ou, ainda, teoria complexa) da
culpabilidade, idealizada, em 1907, por Reinhard Frank, para quem a constatação da
culpabilidade também deveria conter um juízo de valor, concebendo-a como
entendida como movimento corpóreo”. Teresa SERRA. Problema do Erro sobre a Ilicitude. Coimbra:
Almedina, 1991, p. 22.
28
Franz Von LISZT. Tratado de Direito Penal Alemão. Tradução para a Língua Portuguesa de José
Higino Duarte Pereira. Rio de Janeiro: Russell, 2003, t. I, p. 229.
29
Juarez Cirino SANTOS. A Moderna Teoria do Fato Punível, cit., p. 5.
30
Fábio André GUARAGNI. As Teorias da Conduta em Direito Penal. São Paulo: RT, 2005, p. 77.
31
Idem, p. 79.
32
Franz Von LISZT. Tratado de Direito Penal Alemão, cit., p. 229.
33
Juarez Cirino SANTOS. A Moderna Teoria do Fato Punível, cit., p. 6.
29
reprovabilidade
34
, com forte influência, portanto, do estudo dos valores inerentes às
normas jurídicas (teoria axiológica do Direito).
Por essa nova concepção, “deixa a culpabilidade de ser considerada
como aspecto subjetivo do crime (psicológica), que liga o agente ao seu fato, para
transformar-se em juízo de reprovação, de censura, que se faz ao agente em razão
de sua atuação contrária ao direito ou, mais precisamente, em razão de sua
‘formação da vontade contrária ao dever’”
35
. Mantém ainda a culpabilidade, os
elementos psicológicos, o se caracterizando como um conceito puramente
normativo, mas um conceito misto, grafado por elementos psíquicos e normativos. O
dolo e a culpa, ainda que permaneçam na culpabilidade, passam a ser formas,
graus, requisitos ou elementos da culpabilidade, não mais os únicos elementos da
culpabilidade (“as” espécies de culpabilidade).
Importante consignar que, para os expoentes dessa visão, o elemento
comum era a complexidade da culpabilidade (elementos psicológicos e elementos
normativos), havendo, no entanto, divergências quanto ao funcionamento desses
elementos. Assim, para “Frank, podia haver dolo sem culpabilidade, enquanto para
Goldsschmidt, o dolo, como dado psicológico, era um pressuposto da culpabilidade,
e Mezger afirmava que o dolo requeria a consciência da antijuridicidade, isto é, que
o dolo sempre era culpável”
36
.
Outro ponto fundamental reside em continuar a considerar a
imputabilidade como elemento importante na aferição da culpabilidade,
permanecendo ela, assim como na teoria psicológica, como causa de eliminação de
pressuposto para o reconhecimento da culpabilidade ou como causa de isenção de
pena.
Em síntese, a culpabilidade, até então puramente psicológica, passa a
congregar outros requisitos, podendo ser resumida em três elementos: 1)
imputabilidade; 2) dolo e culpa; 3) exigibilidade de conduta conforme ao Direito.
34
Luiz Flávio GOMES. Erro de Tipo e Erro de Proibição, cit., p. 59 e 60.
35
Idem, p. 61. Melhor seria dizer reprovabilidade em vez de juízo de reprovação.
36
Eugenio RAÚZ ZAFFARONI e José Henrique PIERANGELI. Manual de Direito Penal Brasileiro
Parte Geral, cit., p. 604.
30
Cabe registrar, ainda, uma fundamental alteração sistêmica no que
concerne à relação entre dolo e consciência da ilicitude. Por influência da teoria
teleológica do Direito, que levou à culpabilidade normativa, em um sentido
axiológico, passou-se “a aceitar a consciência da ilicitude como requisito da
culpabilidade, mais precisamente como dado que se agrega ao dolo e assim acolhe-
se o denominado dolus malus (dolo normativo ou dolo jurídico), isto é, dolo mais
consciência da ilicitude”
37
.
1.1.3 O finalismo
Na primeira metade do século XX, especificamente na década de 30,
Hans Welzel iniciou uma verdadeira redefinição dogmática do delito, ainda com o
escopo de encontrar sua estrutura essencial (vertente ontológica), com sua teoria
finalista da ação.
Essa teoria, que como o próprio Welzel advertiu nada criou, mas apenas
posicionou corretamente elementos existentes
38
, é fruto da influência de uma
emergente psicologia alemã, que rompeu, entre 1920 e 1930, com a reinante
psicologia mecanicista que exaltava a forma causal-mecânica de realização dos atos
anímicos. Dentre suas orientações recentes, Welzel indicou ter sido influenciado
pela Psicologia do Pensamento de Richard Hönigswald, bem como de Karl hler,
Theodor Erismann, Erich Jansch, P. F. Linke, dentre outros
39
.
Muito embora tenha o mesmo propósito que os sistemas anteriores, o
finalismo partiu de uma compreensão do direito, em que se reconheciam estruturas
lógico-objetivas a limitar os conceitos explorados pela norma, chegando, assim, a
uma estruturação do delito.
A teoria das estruturas lógico-objetivas pode ser compreendida como
uma vertente que buscou a limitação do legislador com base na natureza das coisas,
ou seja, o objeto a ser desvalorado pelo Direito penal não é criado pela
37
Luiz Flávio GOMES. Erro de Tipo e Erro de Proibição, cit. p. 65.
38
Hans WELZEL. O Novo Sistema Jurídico-penal – Uma Introdução à Doutrina da Ação Finalista, cit.,
p. 92.
31
desvaloração, mas existe antes de um desvalor jurídico, como no caso da conduta,
princípio da avaliação do fato punível. Ademais, a desvaloração deve respeitar a
estrutura do ente desvalorado, sob pena de recair sobre outro objeto ou nada
atingir
40
.
Com base nessas premissas, pode-se sintetizar que as estruturas
lógico-objetivas “(sachlogische Strukturen) são estruturas da matéria de regulação
jurídica destacadas pela lógica concreta (Sachlogik), que se orienta diretamente na
realidade, objeto do conhecimento
41
, ou, em outros termos mais próximos ao Direito
penal, “são estruturas que vinculam o legislador ao ser do que ele desvalora, que
está relacionado com ele, mas que não pode ser alterado”
42
.
Logicamente que, partindo-se de uma concepção como a exposta, de
cunho ontológico muito evidente, os elementos genéricos do crime devem seguir
essa conformação, concluindo-se que toda norma penal incriminadora que parta de
uma ação meramente causal e a ação como conceito central do fato punível é o
princípio metodológico do modelo finalista – não poderia ser considerada uma
norma adequada. Conseqüentemente, um sistema que privilegiasse essa
configuração, como o foi o causalismo (clássico ou neoclássico), também não estaria
em sintonia com a melhor compreensão do delito, afinal, as “normas do Direito não
podem ordenar ou proibir meros processos causais”
43
, como se fosse possível, v.g.,
ao direito proibir os organismos humanos de possibilitar a obstrução de artérias,
levando ao enfarto.
Nesse contexto, a ação humana, primeiro elemento da investigação do
delito, não pode ser compreendida sem uma estrutura final, devendo ser definida
como exercício de uma atividade final, um acontecimento final e não puramente
causal. A finalidade é o caráter final da ação e é baseada no fato de que “o homem,
graças ao seu saber causal, pode prever, dentro de certos limites, as possíveis
39
Idem, p. 11-2.
40
Eugenio RAÚL ZAFFARONI e José Henrique PIERANGELI. Manual de Direito Penal Brasileiro, cit.,
p. 348.
41
José CEREZO MIR apud Hans WELZEL. O Novo Sistema Jurídico-penal Uma Introdução à
Doutrina da Ação Finalista, cit., p. 14 (nota n. 2).
42
Eugenio RAÚL ZAFFARONI e José Henrique PIERANGELI. Manual de Direito Penal Brasileiro, cit.,
p. 348.
43
Hans WELZEL. O Novo Sistema Jurídico-penal – Uma Introdução à Doutrina da Ação Finalista, cit.,
p. 14 (nota n. 2).
32
conseqüências de sua conduta, designar-lhe fins diversos e dirigir sua atividade,
conforme um plano, à consecução desses fins. Graças ao seu saber causal prévio
pode dirigir seus diversos atos de modo que oriente o suceder causal externo a um
fim e o domine finalisticamente. A atividade final é uma atividade dirigida
conscientemente em razão de um fim, enquanto o acontecer causal não está dirigido
em razão de um fim, mas é a resultante causal da constelação de causas existente
em cada momento. A finalidade é, por isso dito de forma gráfica ‘vidente’, e a
causalidade, ‘cega’”
44
.
Como se percebe muito bem, uma sagaz crítica à estrutura delineada
para a ação nos modelos causais, exaltando-se a idéia de direcionamento final,
condicionada pela vontade que decorre, por sua vez, de um prévio conhecimento
dos cursos causais, levando à opção pelo atingimento de um resultado e, com base
nessa opção, à seleção dos meios para tal mister. Dessa forma, poder-se-ia
fracionar a conduta final em fases: na órbita do pensamento, haveria a
representação antecipada do fim desejado, com a conseqüente seleção do caminho
para obter esse fim e considerando seus efeitos decorrentes dessa seleção; na
segunda, levada a efeito fisicamente, no mundo real, o autor colocaria em prática a
ação, seguindo o plano traçado na primeira fase.
Com essa visão, pode-se verificar claramente que o fato de antecipar o
fim e persegui-lo, bem como de considerar os efeitos colaterais ao fim pretendido
decorrentes do meio selecionado fundamentam as espécies de dolo que hoje se
discutem; não só o dolo direto e eventual, mas o dolo direto de segundo grau.
É preciso exaltar, para que não se confunda o conceito de ação com
aquele postulado pelo causalismo neoclássico (teoria causal-valorativa), que a
finalidade não se confunde com a voluntariedade. Esta “significa que um movimento
corporal e suas conseqüências podem ser conduzidos a algum ato voluntário, sendo
indiferente quais conseqüências queria produzir o autor”
45
. Naquela, uma
perseguição de um fim desejado, um resultado querido que condiciona a ação que
lhe precede. O exemplo dado por Welzel é bem esclarecedor: “A enfermeira que,
sem suspeitar de nada, aplica uma injeção de morfina demasiadamente forte, de
44
Idem, p. 27.
45
Idem, p. 30.
33
conseqüências mortais, realiza, sem dúvida, uma ação final de injetar, mas não uma
ação final de matar”
46
. A morte nesse caso foi produzida por um processo causal
cego, sem que houvesse a finalidade exigida nos termos welzenianos.
A ação final, portanto, presume uma ação voluntária, mas exige uma
qualidade a mais, a saber, o conhecimento da situação fática e o desejo de alcançar
determinado resultado típico, ainda que não haja, pelo agente, exata compreensão
da ilicitude, ou seja, não existem “ações finais em si, ou ‘em absoluto’, mas apenas
em relação às conseqüências compreendidas pela vontade de realização”.
Obviamente, essa nova concepção de ação importava em uma visão
também inovadora da estrutura do próprio tipo penal que, agora, alojando o dolo ou
a culpa no conceito de conduta, sedimentava-se em uma visão complexa, sendo
possível afirmar a existência de uma tipicidade objetiva e outra subjetiva,
destacando-se das visões até então postuladas e compondo uma nova fase de
compreensão da tipicidade
47
. Agora, além da possibilidade de os elementos
objetivados no tipo penal poderem ter caráter subjetivo ou normativo além de
meramente descritivo –, o tipo penal para indicar sua qualidade ao fato – tipicidade –
deveria ser preenchido objetiva e subjetivamente.
A propósito do dolo não mais alocado na culpabilidade e sim na
conduta, frise-se –, deve ele ser reconhecido como um conceito jurídico-penal, como
dolo de tipo, consistindo unicamente na vontade de realizar o tipo objetivo de
determinado delito
48
. Assim, o dolo deve ter dois elementos: um cognitivo (ou
intelectual) e outro volitivo.
Para que haja a intenção de realizar o tipo, devem-se, primeiro, conhecer
os elementos fáticos que compõem a descrição típica, para somente então desejar
realizar o tipo. O defeito na cognição dos elementos fáticos que compõem o tipo
46
Hans WELZEL. O Novo Sistema Jurídico-penal – Uma Introdução à Doutrina da Ação Finalista, cit.,
p. 30.
47
Nesse sentido vide, por todos, Bitencourt para quem com o surgimento do finalismo, pode-se até
falar em uma quinta fase, na qual se admitem tipos dolosos e tipos culposos com dolo e culpa
integrantes destes. O tipo, na visão finalista, passa a ser uma realidade complexa, formada por uma
parte objetiva tipo objetivo –, composta pela descrição legal, e outra parte subjetiva tipo subjetivo
–, constituída pela vontade reitora, com dolo ou culpa, acompanhados de quaisquer outras
características subjetivas”. Cezar Roberto BITENCOURT. Erro de Tipo e Erro de Proibição, cit., p. 8.
48
Hans WELZEL. Derecho Penal Aleman, cit., p. 77.
34
penal significa errar em elementos que constituem o tipo objetivo, ou seja, erro de
tipo, com suas conseqüências trazidas pela lei penal.
Note-se que, no elemento cognitivo, não se exige a consciência da
ilicitude, como se exigia no causalismo neoclássico, construindo-se, dessarte, uma
visão puramente psicológica do dolo, ou seja, bastando existir a compreensão fática
de circunstâncias que são elementares do tipo penal dolo natural, desprovido de
uma valoração da ilicitude.
No que diz respeito à conduta omissiva, mais uma vez de forma precária
pois no próximo capítulo será esmiuçada a visão finalista de omissão –, em um
primeiro momento, identificou-se o conceito welzeniano com a ação
49
, mas, em face
das ácidas críticas, esse conceito sofreu alterações em sua concepção, de modo a
abarcar também o conceito de omissão. Pode-se afirmar, em síntese, que a omissão
finalista, vista da concepção ontológica, consiste em uma abstenção de ação
determinada, desde que seja possível ao sujeito atuar concretamente para evitar o
resultado, exigindo-se, para essa aferição, o conhecimento do agente da direção
final da ação correlata à omissão, estando ele em condições de reconhecer e de
poder selecionar os meios aptos para levar a efeito o objetivo (capacidade de
planejamento).
Quanto à culpabilidade, ela é esvaziada de elementos psíquicos,
tornando-se unicamente normativa, firmando-se a teoria normativa pura da
culpabilidade.
Para essa teoria, os elementos essenciais à existência de culpabilidade
são a capacidade de culpabilidade (imputabilidade), o conhecimento, ao menos
potencial, da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa, elementos que dispensam
comentários profundos, porque fugiria ao foco do raciocínio em desenvolvimento.
Pode-se resumir o finalismo, seguindo Juarez Cirino dos Santos, em um
sistema que teve como inovação central a introdução do dolo e outros elementos
subjetivos no tipo subjetivo dos crimes dolosos, o que resultou nas seguintes
conseqüências sistemáticas: “a) separação entre dolo, como vontade da realização
do fato, e consciência da antijuridicidade, como elemento central da culpabilidade,
35
que fundamenta a reprovação do autor pela formação defeituosa da vontade; b)
disciplina do erro em correspondência com essas mudanças sistemáticas: erro de
tipo excludente do dolo e, por extensão, do tipo; erro de proibição, com exclusão da
reprovação da culpabilidade (se inevitável), ou redução da reprovação de
culpabilidade (se evitável); c) subjetivação da antijuridicidade, constituída pelo
desvalor da ação, como injusto pessoal representado pelo dolo e outros elementos
subjetivos, e pelo desvalor de resultado, como lesão do objeto da ação expressivo
do dano social produzido; d) normativização integral da culpabilidade, como
reprovação de um sujeito capaz de culpabilidade, pela realização não justificada de
um tipo de crime, com consciência da antijuridicidade (real ou possível) e em
situação de exigibilidade de comportamento diverso”
50
.
Por fim, deve-se advertir, com Hirsch, que o finalismo o pregou e não
prega uma vertente puramente ontológica, com a separação estanque do mundo
do ser e o mundo do Direito, mas postula que a dogmática, a legislação e a justiça
respeitem “as estruturas e as demais elementares essenciais pré-jurídicas ou pré-
jurídico-penais dos respectivos objetos das regulamentações do direito penal”
51
.
1.1.3.1 O finalismo e a culpabilidade como elemento integrante do conceito
analítico de crime
Inegavelmente, a culpabilidade compõe o conceito de delito para o
modelo causalista, tanto clássico como neoclássico. Chega-se a essa conclusão
quando se percebe que, tanto em um como em outro modelo, o dolo e a culpa são
alocados na culpabilidade e, por esse motivo, levam à compreensão de que não
crime sem culpabilidade, posto não haver crime sem dolo ou, no mínimo, culpa.
Essa realidade, todavia, não está bem assentada no modelo finalista, vez
que alguns doutrinadores entendem-no como sinônimo de estrutura analítica
bipartida de crime, compreendendo nesse conceito o fato típico e a antijuridicidade,
49
Fábio André GUARAGNI. As Teorias da Conduta em Direito Penal, cit., p. 159.
50
Juarez Cirino dos SANTOS. A Moderna Teoria do Fato Punível, cit., p. 6-7.
36
grafando-se à culpabilidade como mero pressuposto de pena. Nesse sentido, dentre
outros, Damásio Evangelista de Jesus e Julio Fabbrini Mirabete
52
.
Por sua vez, existe setor doutrinário que, mesmo assumindo a acepção
finalista do delito, entende que a estrutura tripartite persiste como exemplos vide
Francisco de Assis Toledo, Cezar Roberto Bitencourt e Cláudio Heleno Fragoso
53
.
Os adeptos da teoria bipartida costumam buscar robustez a sua
argumentação em alguns pontos interessantes, in exemplis:
a) culpabilidade é um juízo de valor e, por essa razão, não está atrelada
ao fato em si, mas na cabeça daqueles que o apreciam;
b) por não pertencer ao fato em si, a culpabilidade não pode integrar seu
conceito, o que lhe confere o rótulo de mero pressuposto de aplicação de pena;
c) o digo Penal possui indícios de que a estrutura do crime está
apartada da culpabilidade; um dos indícios mais nítidos está na previsão do § do
art. 180 do referido diploma, atinente ao delito de receptação, que permite a
existência do crime, ainda que o autor do fato de que proveio a coisa seja
desconhecido ou isento de pena; seguindo esse raciocínio, se a receptação
depende de um fato delituoso anterior e, pelo dispositivo em comento, tal crime pode
ser praticado por alguém isento de pena, adota-se a possibilidade de crime sem
culpabilidade.
Mais acertado, no entanto com a devida reverência àqueles que
postulam em sentido contrário –, sustentar uma teoria tripartida de delito, sendo
todos os argumentos apresentados pelos adeptos de uma estrutura bipartida de fácil
contraposição.
Como muito bem assinala Cezar Roberto Bitencourt, o próprio Welzel
manteve a culpabilidade na estrutura do delito e o fez, primeiramente, afastando
uma confusão semântica. O idealizador do finalismo “frisou que ‘a essência da
51
Hans Joachim HIRSCH. Sobre o Estado Atual da Dogmática Jurídico-penal na Alemanha. In
Revista Brasileira de Ciências Criminais. n. 58. Tradução para a Língua Portuguesa de Luís Greco.
São Paulo: RT, 2006, p. 75.
52
André ESTEFAM. Temas de direito penal e processo penal para concursos. São Paulo: Ed.
Paloma, 2001, p. 27.
53
Idem. Ibidem.
37
culpabilidade é a reprovabilidade’. Destacou, ainda, que, muitas vezes, também se
denomina ‘a reprovabilidade reprovação da culpabilidade e a culpabilidade juízo de
culpabilidade’(...) ‘Isto não é nocivo prossegue Welzel se sempre se tiver
presente o caráter metafórico destas expressões e se lembrar que a culpabilidade é
qualidade negativa da própria ação do autor e não está localizada na cabeça das
outras pessoas que julgam a ação’ (...)”
54
.
Em outras palavras, que se diferenciar “culpabilidade de “juízo de
culpabilidade”. A culpabilidade em si é qualidade da conduta, intrínseca, portanto, ao
fato-crime. A operação ocorrida fora do agente, ou seja, por aquele que aprecia o
fato praticado, e.g., o juiz, não se confunde com a reprovabilidade, configurando-se,
em verdade, em um juízo de reprovação para a aplicação da pena. Nesse sentido,
irretocável a lição de Cezar Roberto Bitencourt:
“É preciso destacar que censurável é a conduta do agente, e significa
‘característica negativa’ da sua ação perante a ordem jurídica. E
‘juízo de censura’ estritamente falando é a avaliação que se faz
da conduta do agente, concebendo-a como censurável ou
incensurável. Essa avaliação, sim juízo de censura –, é feita pelo
aplicador da lei, pelo julgador da ação, por essa razão diz-se que
está na cabeça do juiz. Por tudo isso, deve-se evitar o uso metafórico
de juízo de censura como se fosse sinônimo de censurabilidade, que,
constituindo a essência da culpabilidade, continua um atributo do
crime. O juízo de censura está para a culpabilidade assim como o
juízo de antijuridicidade está para a antijuridicidade”
55
.
Afirmar que a culpabilidade é mero pressuposto de aplicação de pena,
também não leva a uma segura distinção entre a culpabilidade e crime, de modo a
destaca-la do conceito deste. Em não havendo o injusto pico, igualmente não será
possível a aplicação de pena, o que leva à conclusão de que não a culpabilidade
é pressuposto de pena, mas também o fato típico e a antijuridicidade
56
.
Por fim, quanto à possibilidade de crime sem culpabilidade supostamente
atestada pelo § 4º do art. 180 do Código Penal, basta dizer que tal dispositivo não foi
uma inovação trazida pelas recentes alterações do Código Penal, vigendo, portanto,
desde 1942. Não se pode, dessarte, afirmar ser esse um indício da adoção da teoria
bipartida pelo Código Penal, vez que as idéias de Welzel ainda não tinham ganhado
54
Cezar Roberto BITENCOURT. Erro de Tipo e Erro de Proibição, cit., p. 48-9.
55
Cezar Roberto BITENCOURT. Erro de Tipo e Erro de Proibição, cit., p. 48-9.
56
Idem, p. 48.
38
eco na legislação penal, o que somente ocorreu em 1984, pela reforma da Parte
Geral do Código Penal
57
.
A composição trazida pelo dispositivo em análise, pode-se concluir com
Cezar Roberto Bitencourt, funda-se em questão de política criminal representando a
adoção dos postulados da teoria da acessoriedade limitada, bem como a
consagração de um pensamento corrente de que “pior que ladrão é o receptador,
posto que a ausência deste enfraquece o estímulo daquele”
58
.
Pelos argumentos expostos, elege-se como premissa de trabalho que o
conceito analítico de crime, também para o finalismo, condensa os três elementos
genéricos: conduta típica, antijuridicidade e culpabilidade.
1.1.4 O funcionalismo penal
O finalismo idealizado por Welzel o ficou imune a ataques, havendo
críticas que podem ser condensadas primeiramente em Claus Roxin, que desde o
início dos anos 60 mostrou-se implacável crítico do finalismo.
Essa visão crítica encerrava a tentativa de criar um novo sistema de
Direito penal, o sistema funcionalista, ou como o chama o próprio Roxin, o “sistema
racional-final”
59
, desenvolvido a partir dos anos 70
60
.
Essa origem do funcionalismo, todavia, o é pacífica, havendo os que
defendam que o funcionalismo, como sistema, origina-se, em verdade, em 1983,
quando nther Jakobs, por ironia o mais importante dos discípulos de Welzel,
publica a primeira edição de seu tratado de Direito penal, evidenciando no prólogo
57
Idem, p. 50.
58
Idem, Ibidem.
59
Entende-se “final”, aqui, não como expressão ligada à ação direcionada a um fim, mas com o intuito
de demonstrar o caráter teleológico, valorativo, a guiar o Direito penal.
60
Lúcio Antônio Chamon JUNIOR. Do Giro Finalista ao Funcionalismo Penal. Porto Alegre: Sérgio
Antônio Fabris Editor, 2004, p. 45.
39
da obra uma crítica ao sistema finalista que marcou o início do funcionalismo
penal
61
.
De qualquer forma, deve-se firmar que o funcionalismo penal encontra em
Claus Roxin, penalista de Munique, e em nther Jakobs, penalista de Bonn, seus
dois maiores expoentes, muito embora não apresentem esses dois autores
coincidente postulação de dogmas funcionais.
Em largas palavras, critica-se no finalismo e nos sistemas antecedentes a
sedimentação do Direito penal em um conceito de delito construído sobre estruturas
lógico-objetivas (ou lógico-reais) preexistentes, uma vertente ontológica do Direito
que limita o legislador.
Deve-se, em vez disso, buscar a definição das categorias essenciais do
delito, partindo-se dos fins e funções do próprio Direito, portanto, de conceitos
normativos que garantem ao legislador uma autonomia, não mais estando vinculado
no momento de idealizar a norma penal, a estruturas preexistentes a serem
exploradas pelo Direito penal
62
.
Abandona-se uma vertente ontológica e passa-se a perseguir uma
concepção deontológica do Direito penal
63
, colorida pelas vertentes contrapostas de
Roxin e Jakobs, que serão adiante sucintamente explanadas.
1.1.4.1 O funcionalismo penal de Claus Roxin
Claus Roxin, naquilo que denomina sistema racional-final, propõe uma
estruturação do delito de acordo com os fins da pena
64
, cujos vetores estão na
61
Por todos, vide Eduardo MONTEALEGRE LYNETT. Introdução à Obra de Günther Jakobs, in
Direito Penal e Funcionalismo. Tradução para a Língua Portuguesa de André Luís Callegari. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 11.
62
Eduardo MONTEALEGRE LYNETT. Introdução à Obra de Günther Jakobs, in Direito Penal e
Funcionalismo, cit., p. 11.
63
Nesse sentido, vide Lúcio Chamon, para quem, enquanto a teoria finalista e a teoria social são
antes teoria da ação que pretendiam, sobretudo aquela, transformar a Dogmática penal em razão de
um ponto de partida ontológico que seria chave, as demais teorias não partem desta necessidade do
estabelecimento a priori de um conceito de ação. Está o funcionalismo mais preocupado com a
operacionalização do Direito a partir do conjunto de normas oferecidas, v.g. mediante uma
40
política criminal
65
, em uma perfeita unidade sistemática entre política criminal e
Direito penal
66
, onde as estruturas que compõem o delito devem refletir a finalidade
da pena
67
. Abandona-se uma tentativa de definição de bases do delito com visão
ontologicista, para impulsionar um sistema de orientação funcionalista, posto que o
correto estudo deve partir da tese de um moderno sistema estruturado
teleologicamente, ou seja, construído com atenção às finalidades valorativas
68
. Essa
visão importa em um retorno ao neokantismo da década de 30
69
, inebriando várias
construções no Direito penal alemão.
Partindo desse pressuposto, a substância principal de sua teoria repousa
em uma redefinição das estruturas componentes do delito, tudo conforme o “novo
sistema axiológico”, com ênfase principal em dois pontos: a imputação objetiva e a
reformulação da culpabilidade que se transforma em responsabilidade
70
.
Na ação, embora a tenha considerado dotada de mero valor estético em
construção inicial de 1962
71
, evolui seu raciocínio para descrevê-la como uma
conseqüência de uma valoração, valoração esta que dirá em quais hipóteses deve
alguém deixar-se imputar por um comportamento
72
. Nega a preexistência da
conduta como dado ôntico, ao afirmar que a “unidade da ação não é definível por um
dado prévio empírico (nem a causalidade, tampouco um comportamento voluntário
ou a finalidade) que se encontra na base de todas as formas de manifestação do
comportamento punível. Esta unidade se constitui, isso sim, através de um mesmo
interpretação política (Roxin)”. Lúcio Antônio Chamon JUNIOR. Do Giro Finalista ao Funcionalismo
Penal, cit., p. 16.
64
Vale consignar que a pena, por ser um instrumento por excelência do direito penal, contém no
estudo de sua função o melhor critério para identificar as razões da punição, orientando toda a
atividade regulatória e interpretativa do direito criminal. Nesse sentido, vide Gustavo Octaviano Diniz
JUNQUEIRA. Finalidades da Pena. São Paulo: Manole, 2004, p. XII. Essa possibilidade, por óbvio,
não é exclusiva do funcionalismo, mas pode, e deve, tomar corpo no Estado Democrático de Direito,
qualquer que seja a orientação sistêmica de seu direito penal.
65
Eugenio RAÚL ZAFFARONI e José Henrique PIERANGELI. Manual de Direito Penal Brasileiro, cit.,
p.401.
66
Enrique BACIGALUPO. Direito Penal Parte Geral. Tradução da 2 ed. espanhola para a Língua
Portuguesa de André Estefam. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 183-4.
67
Lúcio Antônio Chamon JUNIOR. Do Giro Finalista ao Funcionalismo Penal, cit., p. 47.
68
Claus ROXIN. Derecho Penal – Parte General, cit., p. 217.
69
Eugenio RAÚL ZAFFARONI e José Henrique PIERANGELI. Manual de Direito Penal Brasileiro, cit.,
p.401.
70
Lúcio Antônio Chamon JUNIOR. Do Giro Finalista ao Funcionalismo Penal, cit., p. 47.
71
Idem, p. 54-5.
72
Luís GRECO. Imputação Objetiva: Uma Introdução, in Claus ROXIN. Funcionalismo e Imputação
Objetiva no Direito Penal. Tradução para a Língua Portuguesa e Introdução de Luís Greco. Rio de
Janeiro: Renovar, 2002. p. 232.
41
aspecto valorativo: alguém agiu, quando um determinado efeito dele decorrente ou
não decorrente lhe possa ser atribuído enquanto pessoa, isto é, enquanto centro
anímico de atividade, de modo que se possa falar em um ‘agir’ ou ‘omitir e, com isso,
numa ‘exteriorização da personalidade’(...)”
73
.
Percebe-se nitidamente que a concepção com base nas estruturas lógico-
reais é descartada, firmando-se a concepção de que, primeiro, tomam-se os efeitos
que somente poderão ser imputados a alguém, reconhecendo-se que esse alguém
“agiu” ou “omitiu-se”, em face de alguns critérios, definidos na imputação objetiva. A
teoria da ação em Roxin, portanto, não é propriamente uma teoria da ação, mas uma
teoria da imputação, unificando sob esse signo tanto a comissão quanto a omissão.
A culpabilidade ganha a conotação de responsabilidade, ou seja, a
possibilidade de pena se e unicamente se houver o merecimento de pena.
Embora parta-se da culpabilidade, seu pressuposto, a responsabilidade adiciona à
investigação um elemento a mais, a necessidade de punição que deve ser
perquirida não em relação ao fato, mas ao autor, ou seja, não se pergunta se o fato
necessita da sanção penal, mas se o autor dela carece
74
.
Como dito acima, além de redefinir as categorias integrantes do delito,
principalmente da culpabilidade que se torna responsabilidade, o sistema de Claus
Roxin centra-se muito na imputação objetiva, que a imputação do resultado é
muito importante para a caracterização de elementos.
Para a imputação objetiva de Roxin, deve-se esquecer a causalidade ou
a finalidade dos sistemas precedentes, buscando-se a imputação ao sujeito de
acordo com o fim do Direito penal, ou melhor, de acordo com o fim de proteção da
própria norma
75
. Nesse mister, o autor identifica requisitos necessários para a
imputação do delito ao seu autor, identificando falhas na tradicional abordagem, em
especial em três grupos de casos que identifica nos seguintes exemplos:
“1. Consideremos, agora, que A deseje provocar a morte de B! A o
aconselha a fazer uma viagem à Flórida, pois leu que lá, ultimamente, vários
turistas têm sido assassinados; A planeja que também B tenha esse
destino. B, que nada ouviu nos casos de assassinato na Flórida, faz a
viagem de férias, e de fato é vítima de um delito de homicídio. Deve A ser
73
Claus ROXIN. Funcionalismo e Imputação Objetiva no Direito Penal, cit., p. 232-3.
74
Idem, p. 241-2.
75
Lúcio Antônio Chamon JUNIOR. Do Giro Finalista ao Funcionalismo Penal, cit., p. 47-8.
42
punido por homicídio doloso? Se reduzirmos o tipo objetivo ao nexo de
causalidade, esta seria a conclusão. Afinal, A causou, através de seu
conselho, a morte de B, e almejava esse resultado.
Ou pensemos no caso do homem de aparência suspeita que vai comprar
um punhal afiado em uma loja! O vendedor (V) pensa consigo: ‘Talvez ele
queira matar alguém com o punhal. Mas isto deve ser-me indiferente’. Tem
V de ser punido por homicídio praticado com dolo eventual, na hipótese de
o comprador, realmente, apunhalar alguém? Objetivamente, V constituiu
uma causa para a morte da vítima, e subjetivamente assumiu o risco de que
tal resultado ocorresse.
2. Problemas similares ocorrem nas hipóteses de grande relevância prática
que são as de desvio na causalidade. Limito-me ao conhecido exemplo
escolar, em que A atira em B com intenção de matá-lo, mas somente o fere.
O ferido é levado por uma ambulância a uma clínica; mas ocorre um
acidente de trânsito, vindo B a falecer. Cometeu A um delito consumado de
homicídio? Ele certamente causou a morte de B no sentido da teoria da
equivalência, e também a almejou. Se ainda assim não deve haver um
delito consumado de homicídio, isto é difícil de fundamentar do ponto de
vista de uma compreensão causal do tipo objetivo.
3. Como exemplo do terceiro grupo de casos quero lembrar a hipótese
extraordinariamente comum da entrega de tóxicos. Imaginemos que A
venda heroína a B! Os dois sabem que a injeção de certa quantidade de
tóxico gera perigo de vida, mas assumem o risco de que a morte ocorra; A o
faz, porque o que lhe interessa é principalmente o dinheiro, e B, por
considerar a sua vida já estragada e suportável sob o estado de
entorpecimento. Deve A ser punido por homicídio cometido com dolo
eventual, na hipótese de B realmente injetar em si o tóxico e, em
decorrência disso morrer? A causalidade de A para a morte de B, bem como
seu dolo eventual, encontram-se fora de dúvida. Se considerarmos a
causalidade suficiente para a realização do tipo objetivo, termos que
concluir pela punição”
76
.
Para solucionar os problemas da abordagem tradicional, Roxin propõe
que a imputação só exista quando houver a constatação de três elementos: a
criação de um risco o permitido, a realização do risco gerado e que o resultado
esteja abrangido pelo alcance do tipo penal, conjugando-se com o princípio da auto-
responsabilidade.
A geração do risco não permitido verifica-se pela criação de uma situação
de afetação de um bem jurídico, ao arrepio da norma legal. Quando, ao contrário, a
pessoa gera sim um risco, mas esse risco está abarcado pela norma legal, como no
caso do vendedor do punhal, de afastar-se a imputação do resultado. Deve-se
prestigiar, na visão do autor, o princípio da confiança, entendendo-se que se alguém
gera um risco que a lei lhe permite, as demais pessoas, os que com ele interagem,
cumprirão seu papel dentro da prescrição da lei. Assim, por exemplo, ocorre no
tráfego de veículos, que, por si , representa risco em potencial. Porém, quando
76
Claus ROXIN. Estudos de Direito Penal. Tradução para a Língua Portuguesa de Luís Greco. Rio de
Janeiro:Renovar, 2006. p. 102-3.
43
alguém liga seu carro e o coloca em movimento, apesar de estar gerando um risco
para os transeuntes e demais motoristas, pode deslocar-se sem o medo da
responsabilização penal, partindo-se do pressuposto de que os demais também
observarão as regras (o pedestre atravessará na faixa, o outro motorista parará o
deslocamento em sinal semafórico vermelho etc.)
77
.
Ademais, para a imputação do resultado, é preciso que o risco gerado se
concretize, seja realizado no caso em análise. No caso, por exemplo, de um
indivíduo baleado que morre em conseqüência de um acidente com a ambulância
que fazia sua remoção para atendimento hospitalar, o risco gerado foi pelo disparo
da arma de fogo, porém, não foi esse risco que gerou a morte, portanto, a morte não
pode ser imputada ao autor do disparo
78
.
Por fim, é preciso que o resultado verificado esteja abarcado pelo âmbito
de proteção do tipo penal, o que excluiria a imputação no exemplo 3, anteriormente
citado. O ato de entregar a droga constitui um risco proibido e o resultado morte
atesta que esse risco realizou-se, concretizou-se no mundo real. Isso, no entanto,
não bastaria para a imputação. É preciso confirmar que o resultado está na linha
protetiva do tipo penal e que não houve a autocolocação de risco da vítima. Essa
construção afastaria a imputação no caso exemplificado, não podendo ser punível a
participação em uma autocolocação em perigo da vítima, “quando houver por parte
da tima uma completa visão do risco, como no nosso caso, em que existe um
suicídio praticado com dolo eventual. O alcance do tipo (Reichweite dês
Tatbestands) não abrange esta hipótese; pois, como demonstra a impunidade de
participação em suicídio, o defeito protetivo da norma encontra seu limite na auto-
responsabilidade da vítima”
79
.
77
Claus ROXIN. Estudos de Direito Penal, cit., p. 104-5.
78
Idem, p. 106.
79
Idem, p. 108.
44
1.1.4.2 O funcionalismo penal de Günther Jakobs
Jakobs foi mais radical em seu giro do que Roxin
80
, e sua base de
trabalho para o desenvolvimento da concepção do delito a partir de um enfoque
funcional (atendendo aos fins e as funções do Direito) é a estrutura social e a função
da pena.
A estrutura social influencia sua teoria em três aspectos, a saber
81
:
a) nos fundamentos da responsabilização através da competência por
organização e a competência institucional;
b) no desenvolvimento do conceito de imputação objetiva, particularmente
na concepção de ação como um ato comunicativo de relevância;
c) em um novo conceito de bem jurídico, desvencilhando-se de uma
estrutura preexistente e fixando-se no reforço de vigência da norma jurídica.
Aos propósitos da pesquisa, interessam particularmente os aspectos
plasmados nas letras “a” e “b”.
A fundamentação da responsabilidade penal, com base na competência
por organização e na competência institucional (letra “a” suso indicada), parte do
princípio de que a organização social moderna é extremamente complexa,
caracterizando-se por um mundo onde tudo é possível
82
, sendo necessário, para a
orientação dos indivíduos, estabelecer “mecanismos que reduzam a complexidade, e
80
Eugenio RAÚL ZAFFARONI e José Henrique PIERANGELI. Manual de Direito Penal Brasileiro, cit.,
p.402.
81
Eduardo MONTEALEGRE LYNETT. Introdução à Obra de Günther Jakobs, in Direito Penal e
Funcionalismo, cit., p. 12.
82
“O homem vive em um mundo constituído sensorialmente, cuja relevância não é inequivocamente
definida através de seu organismo. Desta forma o mundo apresenta ao homem uma multiplicidade de
possíveis experiências e ações, em contraposição ao seu limitado potencial em termos de percepção,
assimilação de informação, e ação atual e consciente. Cada experiência concreta apresenta um
conteúdo evidente que remete a outras possibilidades que são ao mesmo tempo complexas e
contingentes. Com complexidade queremos dizer que sempre existem mais possibilidades do que se
pode realizar. Por contingência entendemos o fato de que as possibilidades apontadas para as
demais experiências poderiam ser diferentes das esperadas; ou seja, que essa indicação pode ser
enganosa por referir-se a algo inexistente, inatingível, ou algo que após tomadas as medidas
necessárias para a experiência concreta (por exemplo, indo-se ao ponto determinado) não mais
está. Em termos práticos, complexidade significa seleção forçada, e contingência significa perigo de
45
um deles é a criação de sistemas sociais, dentro dos quais o direito marca os limites
da configuração que se dá a si mesma a sociedade e que a caracteriza de uma
determinada maneira (v.g., como um Estado de Direito). Nessa tarefa de redução da
complexidade há uma estrutura muito importante que é a da expectativa. Para
favorecer a orientação social, criam-se expectativas, no sentido de que eu posso
esperar algo de alguém e, por sua vez, essa pessoa pode esperar algo de mim”
83
.
A geração de expectativas, portanto, consubstancia-se em “espinha
dorsal” da estrutura social, funcionando como regra de sua manutenção. A essa
expectativa, contrapondo-se àquelas surgidas da relação do homem com a natureza
(“expectativas cognitivas”), dá-se o nome de “expectativa normativa”, posto surgir da
inter-relação dos indivíduos no grupo social, regrada por norma de conduta.
Contudo, a expectativa pode ser frustrada, significando que alguém não
se conformou com o regramento dele exigido pela sociedade, o que, nem por isso,
transforma a expectativa normativa em estrutura inerte (“não se desiste da
expectativa de um caminho sólido e viável por se ter escorregado uma vez!”
84
),
desde que seja emitido um impulso comunicativo no sentido de que a conformação
pessoal do indivíduo destoante não se sobreponha à conformação coletiva, trazida,
in exemplis, pela norma penal.
Dessa forma, a função do Direito penal seria a de comunicar, pela
imposição da pena, que não será aceita a conformação de mundo destoante do
agente de um fato criminoso, negando-se sua compreensão de mundo. É dizer, por
outras palavras, que Jakobs centra na finalidade da pena a razão do Direito penal e,
para ele, a pena deve ter a finalidade de prevenção geral positiva
85
, segundo a qual
desapontamento e necessidade de assumir-se riscos”. Niklas LUHMANN. Sociologia do Direito I.
Tradução para a Língua Portuguesa de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983, p. 45.
83
Eduardo MONTEALEGRE LYNETT. Introdução à Obra de Günther Jakobs, in Direito Penal e
Funcionalismo, cit., p. 13-4.
84
Niklas LUHMANN. Sociologia do Direito II. Tradução para a Língua Portuguesa de Gustavo Bayer.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985, p. 67.
85
A prevenção geral positiva consiste em uma das teorias acerca dos fins da pena, que se contrapõe
à prevenção geral negativa que se calca, por sua vez, na tentativa de intimidação genérica, frustrando
a ão de futuros e incógnitos delinqüentes. Como muito bem assenta Duek Marques, essa “nova
teoria não na pena uma ameaça destinada a intimidar possíveis delinqüentes, nos termos
preconizados pelos defensores da chamada ‘coação psicológica’, ou segundo os teóricos do
absolutismo, que propõem a reafirmação do poder soberano por meio do exemplo do castigo.
Pretende a teoria da prevenção geral positiva reafirmar a consciência social na norma ou confirmar
sua vigência, por meio da imposição de sanções penais”. Oswaldo Henrique Duek MARQUES.
Fundamentos da Pena, São Paulo: Juarez de Oliveira, 2000, p. 104. Prossegue ensinando o dileto
46
seu fim restringe-se à manutenção de vigência da norma como modelo de regulação
do contato social, ou seja, o escopo principal da aplicação de uma pena seria
ratificar a vigência da norma, em uma concepção dialética hegeliana, em que a
conduta destoante do comando normativo seria a negação da norma jurídica posta e
a aplicação da pena significaria a negação dessa conduta desviante, o que leva à
reafirmação da própria norma transgredida. A negação da negação da norma é sua
reiteração de vigência.
Outro vetor do sistema funcional de Jakobs está centrado na imputação
objetiva (letra “b” acima consignada), partindo-se também de uma premissa de
expectativa social e resvalando na redefinição de elementos genéricos do crime, em
especial da ação.
A função da imputação objetiva no contexto de sua teoria é a de
“determinar os pressupostos que fazem de uma causação qualquer, de um dado
naturalista, um complexo significativo, cujo sentido comunicativo é o questionamento
da norma, um ‘esboço de um mundo’ no qual a norma não vige. Incumbe à teoria da
imputação objetiva fornecer o instrumentário conceitual com base no qual a
sociedade interpreta o comportamento de determinada pessoa e o entende como
um comportamento delitivo, questionador da norma. ‘A imputação objetiva traça os
limites entre o que é socialmente normal e possivelmente tem sentido delitivo”
86
.
Se em Roxin a imputação objetiva tem por pergunta central “quando” o
fato pode ser imputado, parece aqui ser a questão fundamental perquirir “o que”,
com base na expectativa social, pode ser imputado.
Essa teoria de imputação tem reflexo direto na concepção de ação típica,
que será unificada em um supraconceito, abarcando tanto a concepção de ação
autor que a teoria da prevenção geral positiva subdivide-se em fundamentadora e limitadora. Na
fundamentadora, na qual se encaixa a visão de Jakobs, a missão da pena é apenas a de “reafirmar o
reconhecimento da validade da norma” em uma verdadeira função educativa na formação da
consciência ética dos cidadãos. Como se percebe, com o escopo de educar o corpo social no que se
refere ao reconhecimento de validade da norma, a vertente fundamentadora poderia ampliar muito o
espectro de incidência do direito penal, o que deporia contra uma visão de intervenção mínima,
surgindo dessa crítica uma nova vertente para a prevenção geral positiva, a vertente limitadora que,
embora reconheça o efeito comunicativo de reforço da norma na aplicação da pena, exige critérios
que limitem a intervenção penal, calcados na culpabilidade (Claus Roxin), na proporcionalidade
obtida da relação dialética entre necessidade de prevenção e respeito à humanidade e à
ressocialização do delinqüente (Silva Sánchez) etc. Idem, p.105-8.
86
Luís GRECO. Imputação Objetiva: Uma Introdução, cit. p. 122.
47
como de omissão, desde que o autor defraude a expectativa social, alargando-se,
portanto, a visão de garantidor no Direito penal. Pode-se afirmar, portanto, que para
Jakobs será objetivamente típica a ação que, de um ponto de vista objetivo, isto
é, com independência do que pense ou deseje o autor, viole um papel; este papel
traduz-se, dogmaticamente, através da figura da posição de garantidor, adotada pela
dogmática tradicionalmente somente para delimitar o âmbito do delito omissivo
impróprio. Ao autor somente serão imputados aqueles riscos cuja evitação cumpra a
ele garantir, aqueles riscos em face dos quais ele desempenhe uma posição de
garantidor pouco importando se o autor provoca o resultado por ação ou por
omissão”
87
.
A imputação objetiva de Jakobs apresenta apenas dois requisitos: a
criação do risco juridicamente desaprovado e a realização do risco gerado.
A criação do risco desaprovado pelo ordenamento, para Jakobs, coincide
exatamente com a violação de dever contrário às expectativas sociais e pode ser
afastado em quatro situações
88
:
1) risco permitido: aquele que pratica algo compreendido pela expectativa
social não a viola, não podendo ser responsabilizado; por exemplo, em um acidente
de trânsito em que A e B colidem, e A está em velocidade permitida e B em
velocidade superior ao limite, perdendo o controle do automóvel, A, apesar de estar
conduzindo o veículo, gerando risco de colisão, como aliás ocorreu, não responde
pelo fato, pois sua conduta pautou-se na geração permitida de risco;
2) princípio da confiança: como “nem tudo incumbe a todos”
89
, cada qual
poderá confiar que os demais integrantes do corpo social comportar-se-ão de forma
balizada pela norma, não respondendo o autor se se mantiver no âmbito de sua
esfera de atribuições e outra pessoa transgredir a expectativa, envolvendo-o no fato;
por exemplo, estaria excluída a responsabilidade do vendedor de punhal, acima
citado como exemplo de Roxin, que sua conduta partia do princípio de que o
comprador do punhal iria também portar-se conforme a norma;
87
Idem, p. 125.
88
Luís GRECO. Imputação Objetiva: Uma Introdução, cit. p. 126-8.
89
Günther JAKOBS, apud Luís Greco. Imputação Objetiva: Uma Introdução, cit. p. 126.
48
3) proibição de regresso: ainda que o comportamento do agente seja
neutro, ou seja, não haja reprovação nem aprovação da conduta, o agente não
poderá responder se alguém dele valer-se para finalidade criminosa; assim, e.g., se
alguém compra uma passagem para uma pessoa, o que socialmente sequer pode
ser considerado um risco não controlado, portanto de certa neutralidade, e essa
pessoa, no lugar de destino é morta, a responsabilidade pelo fato não deve recair
sobre aquele que comprou a passagem;
4) competência da vítima: quando o risco estiver no âmbito de
competência da vítima, como no caso do traficante citado por Roxin, que vende
heroína, não há que se falar em responsabilidade penal para quem praticou a
conduta inicial.
Como se percebe, o terceiro elemento da imputação objetiva de Roxin
exigência de que o resultado realizado esteja no âmbito de proteção da norma
inexiste na estrutura de Jakobs, sendo abrangido pelo critério de geração do risco
desaprovado.
Como último elemento, para a imputação objetiva, na visão do autor
estudado, é necessário que o risco gerado se realize. Nessa investigação, o se
nega a necessidade de haver nexo causal como ponto de partida, ao menos nos
delitos de resultado encontra-se aqui mais uma diferença da concepção de Roxin,
que não trabalha com a idéia de causalidade física –, depois passa-se a verificar
qual dos riscos concorrentes para o resultado é necessário para explicá-lo, ou seja,
averigua-se se o resultado foi gerado pelo risco desaprovado gerado pelo autor, ou
se ele decorreu de “complexos fatores ou outros riscos, inclusive criados pelo próprio
autor, desde que permitidos”
90
.
No que concerne à estrutura do crime, não pode ela partir da aceitação de
estruturas lógico-objetivas, mas sim perseguir um caminho inverso, iniciado na
definição dos fins do Direito penal, que condicionarão os elementos estruturais do
delito.
90
Luís GRECO. Imputação Objetiva: Uma Introdução, cit. p. 128.
49
Segundo seu raciocínio, conforme exaltado, deve-se partir do princípio
de que o fim do Direito penal é reforçar as expectativas normativas. Em decorrência,
os elementos do delito devem ser compreendidos a partir dessa estrutura.
Já referiu-se à ação como um supraconceito, abarcando a ação e a
omissão sob o signo da defraudação de expectativas, negando-se um conceito
ontológico e partindo para um conceito normativo da ação: não importa a ação em
sua essência, mas a ação típica descrita pela norma penal, que condensa a
defraudação de expectativa social.
No que se refere à culpabilidade, pode-se sacramentar que, para
Jakobs, os fins da pena e, portanto, do Direito penal, condicionam seu conteúdo. “Se
a função da pena determina o conteúdo das categorias dogmáticas, e, portanto, da
culpabilidade, essa perspectiva rompe com esse limite material, porque apesar de
que um sujeito não possa atuar de outra maneira pode ser culpável, quando as
necessidades de prevenção geral assim o indiquem. O eixo central deixa de ser o
poder comportar-se conforme a norma, e o constitui o dever fazê-lo, que é uma
perspectiva distinta. Esse dever se estrutura de acordo às necessidades de
prevenção geral
91
.
Montealegre Lynett, para demonstrar a visão de Jakobs, traz o exemplo
de Roxin:
“Duas pessoas se encontram numa granja e um incêndio no bosque, de
imensas proporções, rodeia o lugar. A única forma de salvar a vida é fugir
num cavalo que se encontra no estábulo. Entretanto, esta somente permite
que uma pessoa escape. Uma delas foge a galope, e a outra morre por
asfixia quando o fogo recrudesce. Por que essa pessoa não é culpável? A
concepção finalista diria: porque não podia atuar de outra maneira, porque
se diminuíram consideravelmente suas possibilidades de eleição. Mas que
acontece no mesmo exemplo se a pessoa que abandonou apressadamente
a granja é um membro do corpo de bombeiros? Aqui a pessoa, em virtude
de uma cláusula de exigibilidade, tinha o dever de assumir um perigo maior
que o da generalidade das pessoas, salvo se fosse seguro a perda de sua
vida. Por que então, se não podia atuar de outra maneira, é culpável?
Porque as necessidades de prevenção lhe impõem o dever de assumir uma
conduta distinta. Com efeito, impõem-se uma pena para que a sociedade
possa seguir confiando em certas instituições, pois a pessoa não toma
precauções especiais para controlar um incêndio sobre a base de uma
confiança legítima de que em caso de fogo contará com o apoio de
determinados organismos”
92
.
91
Eduardo MONTEALEGRE LYNETT. Introdução à Obra de Günther Jakobs. In Direito Penal e
Funcionalismo, cit. p. 17.
92
Idem, p. 17.
50
Essa afirmação leva a uma crítica forte de Jakobs ao conteúdo normativo
puro da culpabilidade idealizado no finalismo. Welzel “ao transladar o dolo natural ao
tipo penal, sob o entendimento de que o conhecimento dos fatos não joga nenhum
papel no juízo de reprovação, leva até suas últimas conseqüências a concepção
normativa. Welzel encontrou que o não poder atuar de outra maneira era estrutura
lógico-objetiva sobre a qual se edificava a culpabilidade. Sobre esta base, este
elemento se converte num limite material à intervenção punitiva do Estado e às
necessidades de prevenção”
93
, o que afronta diretamente a visão de Jakobs para o
Direito penal.
1.1.4.2.1 Günther Jakobs e o Direito penal do inimigo
No sistema funcional idealizado por Jakobs, o radicalismo acentua-se no
chamado “Direito penal do inimigo”, que leva os fins do Direito penal, na visão do
autor, a justificar os meios.
Embora indique a correlação de um com o outro, Jakobs secciona sua
doutrina em duas vertentes: uma aplicada ao cidadão e outra aplicada ao inimigo
daquele grupo social.
Ao arrimar sua doutrina em bases filosóficas respeitáveis, o autor parte do
contrato social e constata como premissa que um tipo de criminalidade em que
seu autor infringe dito contrato, de maneira a não mais usufruir de seus benefícios:
“a partir desse momento, não vive com os demais dentro de uma relação
jurídica”
94
. Em conseqüência, como malfeitor que ataca o corpo social, não integra
mais o Estado, encontrando-se em situação de guerra com ele, perdendo o status
de cidadão em uma verdadeira morte civil
95
.
93
Idem, p. 16.
94
Günther JAKOBS. Direito Penal do Cidadão e Direito Penal do Inimigo, in Direito Penal do Inimigo:
Noções e Críticas. Tradução para a Língua Portuguesa e organização de André Luís Callegari e
Nereu José Giacomolli. São Paulo: Livraria do Advogado, 2005, p. 25.
95
Idem. Ibidem.
51
Logicamente, o sistema vigente não pode aplicar essa conformação a
todos os criminosos, mas apenas àqueles que não aceitem o retorno à sociedade e
o cumprimento dos deveres que ela lhes impõe, ou seja, quem não aceita participar
da um “<<estado comunitário legal>>, deve retirar-se, o que significa que é expelido
(ou impelido à custódia de segurança); em todo caso, não que ser tratado como
pessoa, mas pode ser <<tratado>>, como anota expressamente Kant, <<como um
inimigo>>”
96
. Para esse inimigo, conforme a constatação do autor em fatos recentes
como o ataque ao World Trade Center, em 11 de setembro de 2001 –, pode haver
uma antecipação de tutela penal pela aplicação da pena, de modo a garantir o
Estado
97
.
Em resumo, portanto, pode-se fundar que o “Direito penal conhece dois
pólos ou duas tendências em suas regulações. Por um lado, o tratamento com o
cidadão, esperando-se até que se exteriorize sua conduta para reagir, com o fim de
continuar a estrutura normativa da sociedade, e por outro, o tratamento com o
inimigo, que é interceptado no estado prévio, a quem se combate por
periculosidade”
98
, em nítida antecipação de tutela penal, ou melhor, uma “custódia
de segurança antecipada que se denomina pena”
99
, como prefere o autor.
Há também o reflexo processual penal dessa cisão, como, por exemplo, a
possibilidade de prisão preventiva para o inimigo como mera medida de coação, a
retirada compulsória de sangue, intervenções nas comunicações, intervenção de
agentes infiltrados, incomunicabilidade do preso, inclusive com seu advogado, e
outras investigações secretas. Assim como no “Direito penal do inimigo substantivo,
também neste âmbito o que ocorre é que estas medidas não têm lugar fora do
Direito; porém, os imputados, na medida em que se intervém em seu âmbito, o
excluídos de seu direito: o Estado elimina direitos de modo juridicamente
ordenado”
100
.
Por fim, pode-se dizer que o Direito penal do inimigo é uma exacerbação
da visão funcional do Direito penal, que extrema a finalidade da pena de acordo com
96
Idem, p. 28-9.
97
Günther JAKOBS. Direito Penal do Cidadão e Direito Penal do Inimigo, cit., p. 36.
98
Idem, p. 37.
99
Idem, p. 38.
100
Idem, p. 40.
52
uma divisão entre o cidadão e o inimigo. O inimigo, que não mais é tratado como
pessoa, por estar em guerra com o Estado, possuirá uma conformação diferente
para o Direto penal substantivo, em que haverá uma custódia antecipada, tendo a
privação de liberdade como pena por excelência, e para o Direito penal adjetivo, em
que as garantias processuais serão mitigadas ao mesmo passo que medidas de
coação inaceitáveis no Direito processual penal do cidadão tomarão lugar.
1.1.5 A exaltação da “revolução welzeniana”
Consignados o desenvolvimento e as características dos sistemas penais
causalista (clássico e neoclássico), finalista e funcionalista que interessam à
pesquisa, urge, agora, eleger o sistema principal que norteará o raciocínio.
Em primeiro plano, no entanto, deve-se averiguar quais sistemas os
Códigos Penais analisados adotaram, para então eleger a premissa de trabalho.
Nessa construção, conforme será visto, pode-se falar em Direitos Penais
Brasileiros, porquanto é possível reconhecer a existência, ao menos legal, de dois
sistemas concomitantes.
1.1.6 O sistema adotado no Código Penal Militar
provas, irrefutáveis, de que o Código Penal Castrense o Decreto-lei
n. 1.001, de 21 de outubro de 1969 – adotou um esquema causalista neoclássico.
Em primeiro plano, o conteúdo histórico já indica essa vertente, porquanto
o finalismo de Hans Welzel apenas aportou no Brasil em 1984, por meio da reforma
penal trazida pela Lei n. 7.209, de 11 de julho daquele ano. Essa reforma, no
entanto, apenas alcançou a Parte Geral do Código Penal comum, esquecendo-se do
Código Castrense, datado da década de 60, mais precisamente de 1969.
Mas outros indícios, agora legais, de adoção do causalismo no Código
Penal Militar, a saber:
53
1) conceito de ação: a ação no Código Penal Castrense prescinde do
elemento subjetivo, o que fica bem claro na definição legal da culpabilidade, que
abarca os conceitos de dolo e de culpa. Com efeito, o art. 33 do Código Penal em
análise, sob a rubrica da culpabilidade, traz as definições para o dolo e a culpa,
transmitindo nitidamente que o elemento subjetivo do crime não está alocado na
conduta, no fato típico, mas na culpabilidade; por essa previsão, portanto, pode-se
afirmar que a ação no Código Penal Militar é causal;
2) não-separação de coação moral e física: corolário de um conceito
causal de ação, a conduta prescinde de elemento subjetivo, portanto, não importa se
foi ela praticada sob coação moral ou física, ainda assim ela existirá, prosseguindo-
se na análise do delito. A coação moral elimina a possibilidade de ação conforme o
direito, enquanto a coação física elimina o elemento subjetivo do crime. Ocorre que
ambos, na estrutura causal, estão alocados na culpabilidade, sendo sua
conseqüência a isenção de pena; por essa razão, o § 2º, do art. 38 e o art. 40,
ambos do Código Penal Militar, não fazem distinção dos efeitos da coação moral ou
física;
3) conceito psicológico-normativo da culpabilidade: a revelação de que a
culpabilidade é recheada por dolo ou culpa leva a um conceito psicológico da
culpabilidade e a presença de outros elementos, como a inexigibilidade de conduta
diversa pela coação (moral ou física) ou pela obediência hierárquica (art. 38 do
CPM) e pelo estado de necessidade exculpante (art. 39 do CPM), indicam que a
culpabilidade também prende-se a elementos normativos, configurando-se, portanto,
como uma teoria psicológico-normativa da culpabilidade;
4) adoção do dolus malus: embora a definição de dolo, no inciso I do art.
33 do Código Penal Militar, não diga isso expressamente, o Código adotou um
conceito de dolo normativo (dolus malus), em que a consciência da ilicitude está nele
embutida; como prova, basta a análise do art. 36, caput, do Código Castrense, que
trata do erro de fato. Referido dispositivo consagra duas possibilidades do instituto,
sendo uma delas, grafada na segunda parte do artigo, a que trata das
descriminantes putativas, com conseqüência de isenção de pena. Ora, se nas
descriminantes putativas o agente ignora a ilicitude do fato, por pensar existir uma
real exclusão da ilicitude que o existe, e essa não-consciência é equiparada no
54
erro de fato ao desconhecimento de elemento que constitui o crime, portanto,
exclusão de dolo (primeira parte do caput, do art. 36), tendo por conseqüência a
isenção de pena, é porque dolo e consciência da ilicitude confundem-se, sendo este
elemento daquele.
Como conseqüência da estrutura causal, frise-se, o Código Penal
Castrense adota, embora não diga expressamente na exclusão de crime (art. 42 do
CPM), um conceito tripartido de delito, em que a culpabilidade está nele inserido. Em
uma frase: para o Código Penal Militar, crime é fato típico, antijurídico e culpável.
1.1.7 O sistema adotado no Código Penal comum
O Código Penal comum (Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940,
com a reformulação da Parte Geral trazida pela Lei n. 7.209, de 11 de julho de
1984), por outro bordo, adotou o finalismo por sistema reitor, o que também
pretenderá demonstrar-se pelos mesmos critérios vistos para o Código Penal Militar.
No conteúdo histórico, a Lei n. 7.209/84, acima citada, reformou
exatamente a Parte Geral do Código Penal comum, isso sob a influência de
Francisco de Assis Toledo, um de seus idealizadores e discípulo do conceito final de
ação
101
.
Quanto aos indícios legais, pode-se assentar:
1) conceito final de ação: a ação no CP exige o elemento subjetivo, prova
disso é a definição de dolo e culpa não mais sob a rubrica da culpabilidade (art. 18
do CP);
2) separação de coação moral e física: conforme se denota do art. 22,
apenas a coação moral isenta o agente de pena; a coação física é excludente de
conduta, portanto de fato típico;
3) conceito normativo puro da culpabilidade: a adoção da sistemática do
erro, em que a ignorância da ilicitude isenta de pena enquanto o erro de tipo afasta o
55
dolo, transmite a clara separação entre dolo e consciência da ilicitude, avaliados em
degraus diversos: o dolo na conduta e a consciência da ilicitude na culpabilidade
(isento de pena, comanda o art. 21 do CP); adota-se o dolo natural. Ao lado da
consciência da ilicitude estão ainda a imputabilidade (art. 28) e a exigibilidade de
conduta diversa (art. 22).
Deve-se indicar, no entanto, que tais indícios o relativizados por alguns
autores, que entendem que o Código Penal comum o acatou os postulados de
Welzel. Por todos, vide Magalhães Noronha:
“Não se nega seja a ação finalista; ela é atividade dirigida a um fim.
Entretanto dita teoria desloca apenas o problema: considera o fim no estudo
da ação, tirando-o da culpabilidade e tornando vazio o dolo.
Acreditamos não ser de seguir-se o ensinamento de Welzel: ele leva ao
juízo valorativo da ação em momento não-oportuno; na análise do elemento
subjetivo do delito é que é seu lugar adequado.
Ocorre que o vigente Código Penal, em razão da modificação introduzida
quanto à estrutura do erro e somente por tal motivo, tornou polêmica a
questão sobre se adotada a teoria da ação finalista. Em sentido afirmativo,
isto é, houve modificação para a adoção da teoria finalista, manifestaram-se
os ilustres Professores Damásio E. de Jesus, Manuel Pedro Pimentel e
Heleno Fragoso.
A nós parece que não ocorreu tal inovação, continuando a legislação a
trilhar seu caminho tradicional.
Com relação ao erro, a modificação introduzida constitui apenas na adoção
de uma solução que em absoluto se restringe ao finalismo, tanto que
compatível com a teoria social da ação. Tal fato, isto é, a nova estrutura do
erro, não obriga necessariamente a aceitação de uma nova estrutura do
crime. Saliente-se que os nobres autores e mestres citados adotavam
como fixação doutrinária a teoria da ação finalista, seguidores de Hans
Welzel, o que também os teria levado a concluir pela modificação,
aplaudindo o princípio por eles prestigiado.
O juiz e jurista Ricardo Andreucci, um dos autores do Anteprojeto do vigente
Código, portanto, em interpretação autêntica, afirmou que na verdade não
surgiu um novo Código, mas apenas uma lei de reforma, conservando a
filosofia do anterior”
102
.
Com todo respeito ao autor, não foi só a sistemática do erro que indicou o
giro finalista no Código Penal comum, mas outros dispositivos e fatos históricos
enumerados. O próprio reconhecimento de uma ação final indica esse giro. A
alegação de possibilidade de aplicação da teoria da ação social não nega o
finalismo, mas como indicado nas palavras de Cerezo Mir
103
, evolui sobre ele,
101
Vide item 6 da Exposição de Motivos da nova Parte Geral do Código Penal.
102
Edgard Magalhães NORONHA. Direito Penal, cit., p. 98-9.
103
(...) Welzel volta agora à concepção da adequação social como causa de exclusão da tipicidade
que havia mantido na edição de seu Manual e na primeira edição desse livro. Essa mudança é
lógica, pois, ao conceber Welzel a adequação social como causa de justificação, incorria em uma
contradição com seu conceito de tipo...Se a conduta socialmente adequada esconforme a ordem
56
como permitiu o próprio Welzel. Mais fraca ainda a alegação de interpretação
autêntica de Ricardo Andreucci, porquanto também a profere Francisco de Assis
Toledo, que acerca da teoria normativa pura da culpabilidade, signo do finalismo,
dispôs:
“A experiência do direito penal, por vezes dramática, tem revelado que
juízes e tribunais, na grande maioria dos casos, dentro de uma concepção
tradicional, esquecem-se da própria culpabilidade, o mais importante
elemento do crime, ao confundi-la com o dolo e a culpa. Verificando que o
agente atuou com dolo, encerram o julgamento e aplicam a pena criminal.
Não pesquisam a evitabilidade do fato e, pois, sua censurabilidade. Com a
nova construção, ver-se-ão os julgadores, necessariamente e sempre,
diante do problema da culpabilidade. De uma culpabilidade concreta do aqui
e agora. De uma culpabilidade deste homem nesta situação, não do homo
medius, abstrato, inexistente, de triste memória.
Ao decidir, num instante derradeiro, pela aplicação da pena criminal, antes
de proferir seu julgamento final, haverá o juiz que defrontar-se com esta
advertência de Welzel: ‘A censura de culpabilidade pressupõe tenha podido
o autor formar sua resolução de ação antijurídica mais corretamente, ou
seja, de acordo com a norma. E isto não em um sentido abstrato de algum
homem no lugar do autor, mas no mais concreto sentido de que este
homem, nesta situação, tenha podido formar sua resolução de vontade de
acordo com a norma’”
104
.
Deve-se frisar que Ricardo Antunes Andreucci passou a integrar o cenário
da reforma do Código Penal na terceira Comissão para a elaboração do anteprojeto
de reforma do Código Penal, nomeada pelo então Ministro da Justiça, Ibrahim Abi-
Ackel, pela Portaria n. 1.043, de 27 de novembro de 1980. Essa comissão, que
contava também com a presença de Francisco Serrano Neves, Miguel Reale Júnior,
Rogério Lauria Tucci, René Ariel Dotti e de Hélio Fonseca, foi presidida por
Francisco de Assis Toledo, que aliás já integrava as Comissões anteriores.
Quanto à adoção de um conceito tripartido de crime, bastam os
argumentos expostos acima, no subitem 1.1.3.1, para assentar a correção desse
conceito.
ético-social normal, histórica, da comunidade, não pode ser ao mesmo tempo típica, ou seja (segundo
o conceito de tipo de Welzel), relevante para o Direito Penal. O tipo penal não é para Welzel uma
descrição avalorada (vide as p. 49 e ss. desse livro), mas uma seleção das condutas que supõem
uma infração grave, insuportável, da ordem ético-social da comunidade”. José CEREZO MIR apud
Hans WELZEL. O Novo Sistema Jurídico-penal – Uma Introdução à Doutrina da Ação Finalista, cit., p.
58, nota 12.
104
Francisco de Assis TOLEDO. Princípios Básicos de Direito Penal, cit., p. 232.
57
1.1.8 A negação do Funcionalismo como premissa do trabalho
É possível iniciar a presente argumentação, firmando-se que, como
lembra Bacigalupo acerca do funcionalismo penal, “nenhum dos sistemas tem
validade absoluta. Na medida em que nenhuma das teorias da pena a tem,
tampouco poderiam ter os sistemas dogmáticos conectados com elas”
105
.
De fato, orientar um sistema pela finalidade da pena, em que pese seu
mérito por entender a finalidade da pena como a própria finalidade do Direito penal
por demais arriscado, dada a incerteza da concepção da pena ao longo dos
tempos. Jakobs, por exemplo, busca em Hegel e em Kant sua fundamentação;
Roxin, por seu turno, sustenta uma visão unificadora dialética que pretensamente
visa a reduzir os exageros unilaterais
106
.
As críticas ao funcionalismo penal, no entanto, não se encerram na falta
de critério único para a finalidade orientadora do sistema, mas passa por outros
setores. A iniciar, com Hirsch, a teoria de Günther Jakobs, demonstra um retorno
desmedido ao normativismo ao qual o finalismo fez oposição. Diz o Professor da
Universidade de Colônia, na Alemanha:
“(...) A concepção de Jakobs, por sua vez, encontrou repúdio maciço.
Critica-se que o normativismo radical por ela defendido, segundo o qual
todos os conceitos da lei devem ser entendidos como produtos do
legislador, renuncia toda e qualquer ligação entre direito e realidade pré-
jurídica. Também a proposta de analisar o conteúdo do injusto do delito
unicamente a partir da perspectiva da quebra da norma, e não do bem
jurídico por ela protegido, é recusada como excessivamente formal. Da
mesma forma, consideram-se os conceitos que Jakobs continuamente
utiliza em sua argumentação, como ‘competência’ e ‘estabilização da
norma’, impróprios para a dogmática, por serem demasiado extensos e
indeterminados. Duvida-se, com razão, até mesmo da possibilidade de
derivar deles um sistema dogmático com distinções mais exatas. Aponta-se
neste contexto para o fato de que quase todas as conclusões a que chega
Jakobs são idênticas às que havia desenvolvido a dogmática tradicional.
Além disso, a tese de que a culpabilidade seria um derivado da prevenção
geral é decididamente criticada. Uma tal postura significa uma
desindividualização do conceito de culpabilidade e desconhece que a
culpabilidade serve de conceito contraposto à prevenção geral, que deve
proteger o autor de punições excessivas na prevenção geral”
107
.
105
Enrique BACIGALUPO. Direito Penal – Parte Geral, cit., p. 185.
106
Claus ROXIN. Problemas Fundamentais de Direito Penal. Tradução para a Língua Portuguesa de
Ana Paula dos Santos Luís Natscheradetz. 3 ed. Lisboa: Veja, 1998, p. 44.
107
Hans Joachim HIRSCH. Sobre o Estado Atual da Dogmática Jurídico-penal na Alemanha, cit., p.
74.
58
Com efeito, ao contrapor-se a Welzel com seu modelo funcional, Jakobs
distancia-se muito de uma realidade pré-jurídica, levando a uma total insegurança
em relação aos conceitos e, em conseqüência, em relação ao próprio Direito penal.
O normativismo extremo ampla liberdade à norma e ao legislador,
levando sim a uma situação de inconstância, em que novos legisladores podem
simplesmente apagar tudo o que se pensou em Direito penal, com a edição de leis,
não raramente toscas e com mero efeito simbólico.
A crítica de Jakobs à teoria normativa pura da culpabilidade mostra-se
infundada. Para ele, era irrelevante o deslocamento do dolo para a conduta,
esvaziando a culpabilidade de elemento psicológico (vide subitem 1.1.4.2, in fine).
Sobre essa crítica a Welzel, deve-se consignar que, primeiro, nunca foi idealizada
uma culpabilidade totalmente desprovida de valoração, ao contrário, o juízo sobre a
culpabilidade é sim um juízo de reprovação, porém, feito sobre premissas
necessárias para que esse juízo seja correto. Essas premissas são trazidas pela lei
penal, de acordo com a orientação de política criminal vigente, constituindo assim
um conteúdo normativo mínimo para a reprovação, o que configuraria o conteúdo da
culpabilidade trazido pela norma.
Isso não obsta, no entanto, que a culpabilidade, além de elemento do
delito, mesmo em uma concepção normativa pura, assuma outros papéis na teoria
do fato punível, assim como um princípio a afastar a responsabilidade penal objetiva
e, principalmente ao que agora nos interessa, como medida de definição de pena.
Nesse critério, a culpabilidade, não-estrutural ao crime, ganha conotação valorativa,
atendendo ao clamor por prevenção: quanto maior a culpabilidade, maior a
reprovação e, conseqüentemente, maior o quantum da pena. Aliás, a própria
concepção de Welzel da reprovabilidade como pressuposto de pena deixa claro que
sim um campo valorativo atrelado à culpabilidade. Para o dileto autor, se
“concorrem os elementos intelectuais e volitivos da culpabilidade o fato antijurídico é
reprovável e em princípio punível salvo quando é exigida a concorrência de uma
condição objetiva de punibilidade ou a ausência de uma causa pessoal de exclusão
de pena. Quando a reprovabilidade for menor (por exemplo, no caso de
59
imputabilidade diminuída ou de erro de proibição vencível), isso sedevidamente
levado em conto na medida da pena (...)”
108
.
Claramente, Welzel estabeleceu três campos em que se pode reconhecer
a culpabilidade: no tipo penal, ao idealizar a tipicidade complexa, exigindo-se dolo
ou, no mínimo, culpa para o reconhecimento de uma conduta relevante penalmente,
fundamentando, assim, a aplicação de uma pena; na culpabilidade como elemento
do crime, pressuposto necessário para que seja feito o juízo de reprovação sobre a
conduta do autor do fato; e na medida de pena, calcada no grau de culpabilidade
verificado. Essa constatação já nos deu há muito Cezar Roberto Bitencourt ao
sustentar:
“Em primeiro lugar, a culpabilidade como fundamento da pena refere-
se ao fato de ser possível ou não a aplicação de uma pena ao autor de um
fato típico e antijurídico, isto é, proibido pela lei penal. Para isso, exige-se a
presença de uma série de requisitos capacidade de culpabilidade,
consciência da ilicitude e exigibilidade da conduta que constituem os
elementos positivos específicos do conceito dogmático de culpabilidade. A
ausência de qualquer desses elementos é suficiente para impedir a
aplicação de uma sanção penal.
Em segundo lugar, a culpabilidade como elemento da determinação ou
medição da pena. Nessa acepção, a culpabilidade funciona não como
fundamento da pena, mas como limite desta, impedindo que a pena seja
imposta aquém ou além da medida prevista pela própria idéia de
culpabilidade, aliada, é claro, a outros critérios, como importância do bem
jurídico, fins preventivos etc.
E, finalmente, em terceiro lugar, a culpabilidade como conceito contrário
à responsabilidade objetiva. Nessa acepção, o princípio de culpabilidade
impede a atribuição de responsabilidade objetiva. Ninguém responderá por
um resultado absolutamente imprevisível, se não houver obrado com dolo
ou culpa.
Resumindo, pelo princípio em exame, não pena sem culpabilidade
(...)”
109
.
A concepção de Jakobs, ao definir a estrutura do delito, a partir do fim
prevalente da prevenção pela aplicação da pena, permite a responsabilização penal,
por exemplo, sem que haja dolo ou culpa embora adote posteriormente outros
critérios limitadores e, pior, permite até alcançar o inimputável, aplicando, sob o
signo da necessidade de prevenção, uma pena àquele que não tem capacidade de
conduzir-se na retidão exigida por uma falha de formação biológica. Note-se que
essa possibilidade aplicação de pena ao inimputável nega a própria teoria da
108
Hans WELZEL. O Novo Sistema Jurídico-penal Uma Introdução à Doutrina da Ação Finalista,
cit., p. 143.
109
Cezar Roberto BITENCOURT. Manual de Direito Penal: Parte Geral. São Paulo: Saraiva, 2002. p.
275-6.
60
prevenção geral adotada por Jakobs, porquanto a pena aplicada ao autor do fato
não terá o significado comunicativo aos demais indivíduos da sociedade que
também o possam dirigir seu comportamento de acordo com a compreensão do
certo e do errado.
Em outras palavras, para o portador de desenvolvimento mental
retardado, por exemplo, saber que uma outra pessoa portadora de sua mesma
deficiência foi submetida a uma pena significará um fato qualquer, sem nenhuma
significação lógica de reprovação sobre uma conduta frustradora de expectativas
normativas. Aliás, deve-se trabalhar até com a hipótese de que o inimputável em
exemplo sequer é capaz de conhecer os impulsos comunicativos exteriores ao seu
ser.
O exemplo de Roxin, trazido por Montealegre Lynett, das duas pessoas
que estavam na granja durante um incêndio no bosque (subitem 1.1.4.2), com a
devida vênia, não convence que Welzel errou em seu sistema.
Primeiramente, no caso da pessoa o-pertencente ao corpo de
bombeiros, que foge, a discussão acerca da responsabilização no sistema
welzeniano dar-se-ia no campo da antijuridicidade e não da culpabilidade, ou seja,
não haveria injusto típico pela exclusão da antijuridicidade pelo estado de
necessidade, trazido expressamente na legislação penal comum brasileira. Para os
adeptos da teoria dos elementos negativos do tipo, sequer haveria um fato típico.
Mesmo que se considere o caso de a pessoa que abandonou a granja
pertencer ao corpo de bombeiros, o Código Penal comum exige que ele se porte de
modo diverso e, no exemplo dado, ele poderia fazê-lo ou, de outra forma, não o
consignaria, salvo se fosse seguro a perda de sua vida”, ou seja, somente lhe seria
inexigível conduta diversa se a morte do bombeiro, ao tentar salvar a outra pessoa
significasse sua morte certa.
No contexto apresentado, a solução welzeniana seria perfeita, ao menos
com a configuração apresentada no digo Penal brasileiro, com a reforma finalista
de 1984, para ambos os casos. O Código Penal comum, em seu art. 24, dispõe que
se considera em estado de necessidade “quem pratica o fato para salvar de perigo
atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito
61
próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se” e
completa em seu § que não pode alegar estado de necessidade quem estava
obrigado a arrostar o perigo, como o caso do integrante do corpo de bombeiros. Em
arremate, dispõe no § que se era exigível o sacrifício do bem jurídico protegido, a
pena será aplicada de forma reduzida na proporção de um a dois terços.
Em outro sentido, mesmo que o injusto típico esteja intacto (configurado),
o agente pode ter sua culpabilidade afastada pela inexigibilidade de conduta diversa,
elemento que passou a ser aferido com o surgimento da teoria psicológico-normativa
da culpabilidade, idealizada principalmente por Frank, como acima se demonstrou. O
Código Penal expõe duas espécies legais de circunstâncias em que a
inexigibilidade, por força da norma, é reconhecida: a coação irresistível e a
obediência hierárquica de ordem não manifestamente ilegal (art. 22). Contudo,
aceita-se pacificamente a exclusão da culpabilidade pos causas supralegais de
inexigibilidade de conduta diversa.
Por tudo o que se expôs, a solução para os casos dos exemplos seria na
seguinte conformidade:
a) Para o cidadão comum: estaria ele em estado de necessidade se a
situação fosse tal que importasse na perda de sua vida; caso houvesse outro modo
de evitar o perigo para sua vida, no entanto, o injusto típico estaria intacto
excluindo-se aqui a possibilidade de ser-lhe exigível o sacrifício da vida –,
resolvendo-se a questão no âmbito da culpabilidade com a aplicação de pena
diminuída. Note-se que, na primeira opção reconhecimento do estado de
necessidade –, nem se chegaria à avaliação sistemática da culpabilidade.
b) Para o integrante do corpo de bombeiros: antes de enfrentar a
questão, deve-se lembrar que o integrante dos corpos de bombeiros do Brasil são
militares dos Estados, sujeitos, portanto, ao digo Penal Militar, que possui
estrutura diversa daquela constante do Código Penal comum; porém, apenas para
levar aos argumentos interessantes, trabalhe-se com a hipótese de aplicação do
Código Penal comum a essa categoria de agentes públicos. Para o exemplo em
relevo, por expressa determinação legal, o estado de necessidade estaria afastado,
porquanto teria ele o dever de arrostar o perigo (art. 24, § 1º, do Código Penal). No
entanto, isso, por si só, não leva à confirmação de que sua conduta é reprovável;
62
como indicado, o próprio exemplo exclui a possibilidade de morte certa do agente
público, o que leva à conclusão de que lhe era exigível conduta diversa. Em outras
palavras, caso houvesse certeza de sua morte, nem mesmo o bombeiro estaria
obrigado a suicidar-se, o que tornaria inexigível outro proceder de sua parte
(também causa supralegal). O exemplo indicado, entretanto, não trabalha com essa
hipótese, ou seja, era exigível conduta diversa, pois não era certo que o bombeiro,
se tentasse salvar a outra pessoa, morreria, devendo haver a condenação,
atendendo-se contudo, à correta dosimetria da pena, em uma das acepções da
culpabilidade, conforme impõe o art. 59 do Codex em análise.
Mesmo no sistema causal do digo Penal Militar, o bombeiro não seria
condenado, pois estaria em estado de necessidade exculpante, nos termos do art.
39 do referido diploma que, ressalte-se, sequer menciona a exclusão daquele que
tem o dever de arrostar o perigo.
Derradeiramente, admitir que o Direito penal seria instrumento de
manutenção na expectativa de confiança na instituição “corpo de bombeiros” seria
anuir em uma expansão tal do Direito penal que qualquer expectativa seria capaz de
fundamentar a existência de uma norma penal. Espera-se também que as
prefeituras mantenham as cidades limpas e, nem por isso, mesmo diante de uma
proliferação de roedores, o funcionário da limpeza que deixa de recolher um
invólucro deve ser condenado por crime. Parece que o Direito administrativo deve ter
e tem seus instrumentos próprios para a manutenção da credibilidade ou das
expectativas que se depositam sobre seus órgãos. Volta-se, por essa vertente, a
uma coisificação do indivíduo, tendo-o como um exemplo para que outros de sua
profissão não o sigam. Mais ainda, rompe-se com o princípio da intervenção mínima,
negando-se o caráter fragmentário e subsidiário do Direito penal, transformando-o
em prima ratio e não mais em ultima ratio, como deveria ser.
Quanto ao Direito penal do inimigo, tem-se apenas como uma vertente
simbólica da pena, ou seja, impõe-se um mal concreto a pena –, para a obtenção
de um efeito simbólico, simplesmente demonstrando a “impressão tranqüilizadora de
63
um legislador atento e decidido”
110
, que, em verdade, não resolverá o problema pela
geração de leis que distingam o cidadão do inimigo.
Ademais, o Direito penal do inimigo, simbólico por natureza, não identifica
fatos de extrema agressão à sociedade, mas pessoas potencialmente lesivas,
chegando-se a uma definição social adequada àqueles que conduzem o sistema, de
modo a dizer que “inimigos” são os outros, que não se enquadram em determinada
identidade
111
.
Não é preciso mencionar os riscos que a sociedade suportaria na adoção
de um Direito penal de inimigo. Muito dele foi experimentado durante os regimes
de exceção, que rotulavam pessoas como inimigas do status quo imperante e, por
essa razão, suprimiam-lhes os bens, a liberdade e até a vida.
Menos radical, a visão de Claus Roxin encontrou maior eco na doutrina.
Contudo, não parece que a imputação objetiva e, por conseqüência, seu sistema
funcional-racional tragam novas soluções para problemas antigos.
Para essa demonstração, tomem-se seus exemplos (subitem 1.1.4.1), que
também são solucionados por um sistema ontológico, como o é o finalista. No
sistema finalista, obviamente, as interpretações das estruturas podem e devem ser
permeadas por um grau de normatividade, principalmente no que concerne aos
princípios da ciência penal. Deve-se, em outras palavras, buscar limites
interpretativos, com o fito de reduzir o espectro do Direito Penal, com base no
princípio da razoabilidade e, sobretudo, da culpabilidade, sendo, com a devida vênia,
despicienda a imputação objetiva.
No caso do aconselhamento de A para que B à Flórida, sendo
morto, não haverá, obviamente, responsabilização no sistema finalista, porque não
o elemento subjetivo, ou seja, A vislumbrou a possibilidade de que B morresse,
mas isso, nem de longe, significa dolo (muito menos culpa). Destaca-se esse
exemplo para que se verifique o absurdo que se propõe quanto à responsabilização
de A, aplicando-se a moldura finalista ao genro que, sabendo que sua sogra vai de
110
Manuel CANCIO MELIÁ. <<Direito Penal>> do Inimigo? in Direito Penal do Inimigo: Noções e
Críticas. Tradução para a Língua Portuguesa e organização de André Luís Callegari e Nereu José
Giacomolli. São Paulo: Livraria do Advogado, 2005, p. 59.
64
carro ao supermercado, entrega-lhe a chave do veículo, torcendo para que ela sofra
um acidente automobilístico ou para que morra em um assalto ao local onde fazia
compras.
Obviamente que, dentro de uma aplicação razoável do sistema finalista,
os dois casos configurar-se-iam fatos atípicos, assim como o do vendedor do punhal,
que não pode responder pelo fato praticado por um terceiro que comprou o punhal,
salvo se souber, com certeza, que iria ele matar alguém. O dolo eventual no último
caso, ressalte-se, também passa ao largo, pois não assumiu o risco de produzir um
resultado em face de uma conduta ilícita praticada, pois vender um punhal,
observando-se as regras legais, não se configura uma conduta ilícita, admitindo-se
somente o dolo direto, com a absoluta certeza de que o resultado irá operar-se.
No exemplo da ambulância, obviamente, a causalidade do fato foi
interrompida. Essa regra, no Direito Penal Brasileiro, encontra clara solução, pois a
causa superveniente, relativamente independente, que produziu por si o
resultado, impede que o autor do farto antecedente responda pelo resultado
decorrente do segundo evento, respondendo apenas por homicídio tentado. Essa
regra está expressa não só no Código Penal comum (art. 13, § 1º), de matriz
finalista, mas também no Código Penal Militar, orientado pelo causalismo
neoclássico (art. 29, § 1º). No mesmo sentido do aqui proposto, Guilherme Nucci,
tomando o tradicional exemplo da morte do paciente internado em hospital em razão
de um tiro, morte esta provocada pelo incêndio em todo o nosocômio, grafa que a
causa relativamente independente “tem força para cortar o nexo causal, fazendo
com que o agente responda somente pelo que praticou. No exemplo
supramencionado do fogo no hospital, trata-se de evento imprevisível pelo agente,
de modo que, mesmo tendo produzido o motivo que levou a vítima ao nosocômio
(dando-lhe um tiro), não deve responder pelo resultado mais grave, fora do alcance
de sua previsibilidade. O incêndio não se encontra, nas palavras de De Marsico, na
‘linha evolutiva do perigo’, razão por que serve para cortar o nexo causal”
112
.
Na entrega de tóxicos, obviamente, o traficante o deve responder pelo
homicídio. Em primeiro lugar, cabe lembrar que a conduta foi praticada pelo usuário
111
Manuel CANCIO MELIÁ. <<Direito Penal>> do Inimigo? in Direito Penal do Inimigo: Noções e
Críticas, cit., p. 65.
65
da droga, sem nenhuma causa que lhe torne inimputável no exemplo versado, o que
afasta a existência de homicídio e sim de suicídio. Também o está claro se o
usuário não agüentava mais sua vida e decidiu dela dar cabo ou se houve uma
overdose acidental, donde devem ser aventadas as duas hipóteses: a) caso tenha
havido a conduta intencional de suicídio, não poderá haver a participação do
traficante em homicídio, que o existiu o fato principal de homicídio e sim de
suicídio; o traficante, portanto, se estiver dentro de sua previsibilidade a overdose
voluntária, deverá responder por tipo penal específico, atrelado ao suicídio (art. 122
do CP ou art. 207 do CPM); b) caso haja a overdose acidental, afasta-se a
possibilidade de suicídio e duas conseqüências podem ocorrer: b1) se o traficante
sabia da excessiva e letal quantidade a ser consumida, tendo certeza do evento
morte futuro, sem que o usuário tivesse essa consciência, a hipótese é, sim, de
homicídio; b2) caso a morte do usuário, que também não sabia que a dose era letal,
não estivesse compreendida como linha evolutiva do perigo, como acima escrito,
haveria, em relação à sua morte, fato atípico para o traficante, mesmo porque seu
dolo e sua venda de droga foi dolosa não compreendia o resultado morte, não
podendo ele, em face do princípio da culpabilidade, responder pelo resultado.
Em conclusão, portanto, o funcionalismo penal, principalmente nas
conformações de Roxin e Jakobs, não pode ser acolhido como uma base sólida da
presente pesquisa, dada sua fluidez conceitual enfeixada com a concepção de
finalidade da pena de cada pessoa. Uma pesquisa centrada nesse sistema correria
o risco de, no dia seguinte à sua conclusão, perder a atualidade em face da
mudança de concepção dos fins do Direito penal pela aplicação da pena. Elege-se,
portanto, a estrutura finalista da ação, com suas implicações, como sistema reitor do
presente trabalho, restando apenas verificar se esse sistema pode, também, reger o
Direito penal militar.
112
Guilherme de Souza NUCCI. Código Penal Comentado. 6 ed. São Paulo: RT, 2006, p. 147.
66
1.1.9 O Direito Penal Militar e a possibilidade de aplicação de uma
moldura finalista
Tanto o modelo finalista, adotado pelo digo Penal comum, como o
causalista, adotado pelo Código Penal Militar, repousam em bases ontológicas.
Embora com diferentes motes, sempre se busca em ambos os sistemas uma
compreensão estrutural do delito, variando-se de acordo com a orientação filosófica
reinante.
Agora, tomando por premissa que o modelo mais acertado, embora não
perfeito, é o modelo finalista, seria possível impor a um Direito penal orientado por
um Código causalista os dogmas trazidos pelo finalismo?
A resposta é em sentido afirmativo e, embora as dificuldades não sejam
poucas, pode ser formulada de maneira bastante simples, tendo por premissa o fato
de a legislação penal não definir crime. Em outros termos, o conceito analítico de
crime o está atado à legislação penal, que pode surgir sob influência desse ou
daquele modelo. É fruto, isso sim, de construção dogmática, transcendente à letra
da lei, que deve esforçar-se para solucionar o maior número de casos possíveis, sob
a orientação de determinada política criminal.
Por óbvio, o ius positum, no que concerne ao conceito analítico de crime,
pode até tornear certos dispositivos, indicando, no Código Penal comum ou no
Código Penal Militar, determinadas direções a serem seguidas, como acima
apontado. Todavia, há grande gama de conceitos jurídicos indeterminados, que
admitem a compreensão ajustada aos novos dogmas trazidos pela doutrina.
In exemplis, o Código Penal Militar, ao definir a infração penal dolosa e
culposa, nos incisos I e II de seu art. 33, o faz sob a rubrica “Culpabilidade”,
indicando claramente, como visto, que do enfoque por ele adotado, a ação é causal,
enquanto a culpabilidade é psicológico-normativa. Isso, entretanto, não obsta a
análise de uma ação, em face de um episódio em tese configurador de crime militar,
com os contornos que hoje a caracterizam. Entenda-se, a ação (conduta), para
possibilitar o início da investigação do delito pelo fato típico, deve ser considerada
67
com seu conteúdo subjetivo (dolo ou culpa), mesmo porque não no Código Penal
Militar um conceito legal de ação (ou mesmo de conduta).
Dessa forma, sustenta-se que é perfeitamente possível a aplicação de
dogmas finalistas, ou de qualquer outro modelo que venha a ser mais bem
considerado o que não é o caso do funcionalismo, como demonstrado –, em uma
moldura causalista, sob pena de responsabilização penal descompassada com a
moderna teoria do fato punível, divorciada, em vários pontos, do heróico princípio da
culpabilidade.
Na medida do possível, entretanto, o presente trabalho buscará enumerar
a concepção específica do Código Penal Militar, buscando uma fidelidade sistêmica
conveniente ao estudo.
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Com a modernidade, principalmente após o fenômeno da globalização,
houve uma alteração muito profunda no cenário estudado pelo Direito penal, onde
os conceitos ontológicos tão sustentados pelo finalismo pareciam não dar guarida
aos problemas emergentes. Detectam-se, por inúmeros fatores, novos bens
jurídicos, surgem novas formas de conduta, enfim, as estruturas lógico-objetivas são
abundantes, surgindo, pois, uma tendência de alargamento, de expansão do Direito
penal.
Essa nova realidade, com efeito, marca a “antinomia entre o princípio da
intervenção mínima e as crescentes necessidades de tutela de uma sociedade cada
vez mais complexa”
113
, havendo a necessidade, para alguns, de uma reformulação
do Direito penal, a ponto de considerar essa nova realidade.
113
Jesús-María SILVA SÁNCHEZ. A Expansão do Direito Penal: Aspectos da Política Criminal nas
Sociedades Pós-industriais. Tradução para a Língua Portuguesa de Luiz Otávio de Oliveira Rocha.
São Paulo: RT, 2002, p. 22.
68
Nessa esteira, Silva Sánchez postula a existência de velocidades do
Direito penal, in verbis:
“No capítulo anterior ficaram caracterizadas que, a meu juízo, seriam as
‘duas velocidades’ do Direito Penal. Uma primeira velocidade representada
pelo Direito Penal ‘da prisão’, na qual haver-se-iam de manter rigidamente
os princípios político-criminais clássicos, as regras de imputação e os
princípios processuais; e uma segunda velocidade, para os casos em que,
por não tratar-se da prisão, senão da pena de privação de direitos ou
pecuniárias, aqueles princípios e regras poderiam experimentar uma
flexibilização proporcional a menor intensidade da sanção”
114
.
Dessa forma, pode-se resumir a questão, da ótica de Silva Sánchez,
firmando que o Direito penal da pós-modernidade fraciona-se em duas velocidades.
O Direito penal de primeira velocidade, reservado às clássicas questões de Direito
penal e à tutela de bens jurídicos tradicionais, caracteriza-se por um Direito penal
mais severo no que concerne à sanção resultante a privação de liberdade por
excelência , porém, as garantias substantivas e adjetivas seriam preservadas em
nível máximo, focando-se a individualidade em vertente garantística.
De outro bordo, o Direito penal de segunda velocidade (ou de duas
velocidades), destinado à tutela de bens jurídicos reinantes na era da globalização
(ambiental, patrimônio virtual etc.), constituir-se-ia em um Direito penal menos
garantístico, em que as premissas processuais em favor do acusado poderiam ser
relativizadas, tendo, entretanto, como contrapartida, a impossibilidade de resultar em
privação de liberdade, orbitando apenas entre as sanções restritivas de direitos e
pecuniárias.
aqueles, como Alberto Silva Franco
115
, que reconhecem no Direito
penal do inimigo uma terceira velocidade do Direito penal, marcado por um sistema
que é severo nas sanções resultantes e nada garantístico nos limites processuais à
persecução criminal.
114
Idem, p. 148.
115
Alberto Silva FRANCO. Prefácio. In Alice BIANCHINI. Pressupostos materiais mínimos da tutela
penal. São Paulo: RT, 2002, p. 14.
69
1.2.1 O afastamento do Direito penal de duas velocidades do
âmbito da presente pesquisa
O Direito penal de duas velocidades não servirá de base para a presente
pesquisa.
Em primeiro lugar, não convence a existência de um Direito penal
diferente para diferentes criminalidades, sob pena de desvirtuamento dos conceitos
assentados. Muito mais eficaz seria a trasladação desses casos de “nova
criminalidade” para o campo do Direito administrativo sancionador, onde não haveria
a restrição de liberdade e as sanções dele decorrentes passariam ao largo da
privação de liberdade.
um grande risco em aceitar um Direito penal sem garantias
processuais, a pretexto de uma não-privação de liberdade, e esse risco está
exatamente na desenfreada produção legiferante. Em outros termos, o legislador
poderia não cumprir o “pacto” de não apenar as novas formas de criminalidade com
a privação de liberdade, como aliás ocorre com certas leis criminalizadoras, como
a Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 (“Lei dos Crimes Ambientais”), na qual a
pena de reclusão é abundante.
Ademais, como o foco do presente trabalho está na omissão,
pressupondo sua distinção de ação, e no concurso de pessoas, não há possibilidade
de construir no Direito penal duas velocidades, porquanto nele uma tendência à
prevalência de formas estruturais típicas que o distinguem ação de omissão
116
e
nem autoria de participação
117
. Nesse sentido, vide o art. 54 da Lei dos Crimes
Ambientais, cujo preceito primário assim dispõe: “Causar poluição de qualquer
natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana,
ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora”.
Ora, “causar” é termo genérico que pode muito bem compreender a omissão, muito
embora alguns defendam que a causalidade é indiferente nessa espécie delitiva,
marcando a incerteza típica dessa nova vertente.
70
Em conclusão, além da eleição já demonstrada do finalismo como sistema
reitor, será abandonada na presente pesquisa a possibilidade de um “Direito penal
de duas velocidades”, pelas razões supra.
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Em derradeira construção de premissas, devem-se apontar os princípios
norteadores da pesquisa, que serão, com mais constância e em pontos mais
relevantes, citados para a explicação de determinados pontos. São eles o princípio
da legalidade e o da culpabilidade.
1.3.1 Princípio da legalidade
Muitos entendem esse princípio como sinônimo do princípio da reserva
legal. Outros entendem este contendo aquele, sendo acompanhado pela
irretroatividade da lei penal. Melhor explicando, para muitos, reserva legal confunde-
se com legalidade; para outros tantos, a reserva legal é um princípio maior,
composto da legalidade e da impossibilidade de retroação da lei penal.
Tomem-se, inicialmente, as lições de Cezar Roberto Bitencourt, que
afirma que o “princípio da legalidade ou da reserva legal constitui uma verdadeira
limitação do poder punitivo estatal”
118
, consagrado por Feuerbach, no início do
século XIX, pela fórmula latina nullum crimen, nulla poena sine lege. Nitidamente,
para o autor, a distinção entre legalidade e irretroatividade é desnecessária,
podendo ambos os princípios ser condensados no disposto no inciso XXXIX do art.
da Constituição Cidadã, com idêntica redação nos art. 1º do Código Penal e do
Código Penal Militar.
116
Jesús-María SILVA SÁNCHEZ. A Expansão do Direito Penal: Aspectos da Política Criminal nas
Sociedades Pós-industriais, cit., p. 90-1.
117
Idem, cit., p. 92.
118
Cezar Roberto BITENCOURT. Manual de Direito Penal: Parte Geral, cit., p. 10.
71
A origem desse princípio, no entanto, é muito anterior a Feuerbach. Em
impagável evolução histórica, embora aponte o dissenso sobre a questão, André
Vinicius de Almeida consigna que o princípio em estudo “teve origem iluminista,
recebendo formulação em sua inteireza pelas palavras de John Locke (Segundo
Tratado sobre o Governo Civil) e, sobretudo, de Cesare Bonessana, o Marquês de
Beccaria (Dos delitos e das Penas)”
119
, e ainda que tal princípio restou positivado em
vários diplomas legais, a exemplo do Bill of Rights, da Constituição Americana, e da
declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
120
.
Prefere-se, no entanto, a compreensão dada por Luiz Luisi, para quem o
prin¬cípio da legalidade, em vertente contemporânea, desdobra-se em três
postulados, a saber: reserva legal, determinação taxativa e irretroatividade
121
.
De fato, o princípio da legalidade parece merecer o deslinde apresentado,
de importância indiscutível e de compreensão simples.
Inicialmente, comanda a reserva legal, ou seja, o fato de que só a lei pode
comportar condutas puníveis em âmbito penal, lei aqui compreendida como vontade
do legislador, representante legítimo que é do povo, para descobrir os bens jurídico-
penais a serem tutelados.
Sua aplicação importa, de outro enfoque, a vedação de o Poder Executivo
ou o Poder Judiciário imiscuírem-se na função criminalizadora, ao mesmo tempo em
que obsta a utilização de outros nascedouros além da lei (reserva absoluta), a
exemplo dos costumes e da analogia, apenas admitida in bonam partem.
A taxatividade, ou determinação taxativa, por seu turno, exige uma técnica
toda especial do legislador, ao consagrar os tipos penais. Essa técnica evidencia-se
pela construção de tipos abstratos dotados de clareza, certeza e precisão, evitando-
se, pois, expressões e palavras vagas e ambíguas.
Por fim, a irretroatividade é, sem dúvida, como assinala Luiz Luisi,
complemento da reserva legal, porquanto exige a atualidade da lei para que possa
119
André Vinicius Espírito Santo de ALMEIDA. O Erro de Tipo no Direito Penal Econômico. Porto
Alegre: SAFE, 2005, p. 23.
120
Idem. Ibidem.
121
Luiz LUISI. Os Princípios Constitucionais Penais. Porto Alegre: SAFE, 2003, p. 17-30
72
surtir conseqüências. Em outras palavras, a lei penal, em regra, pode alcançar tão-
só fatos a ela supervenientes
122
.
Como se sabe, exceções para a irretroatividade, como a retroação da
lex mitior e a abolitio criminis, que não se considera importante abordar neste
trabalho.
Cumpre assinalar que a questão concernente ao princípio da legalidade
comporta outras abordagens, conforme ensina Francisco de Assis Toledo, ao
desdobrá-lo na exigência de uma lex praevia, lex scripta, lex stricta e lex certa
123
. É
de notar que a abordagem esboçada comporta o desdobramento de Francisco de
Assis, na medida em que lex stricta e lex certa afeiçoam-se à taxatividade, ao passo
que lex praevia encontra morada na irretroatividade e lex scripta compõe a reserva
legal, vedando-se o Direito costumeiro.
1.3.2 Princípio da culpabilidade
Outro princípio de grandeza inquestionável e importante para a discussão
que se seguirá é o da culpabilidade, que o contém precisa previsão na
Constituição Federal
124
.
Em sede inicial, deve-se ter que o vocábulo “culpabilidade”, como acima
anotado nas palavras de Cezar Roberto Bitencourt, comporta três acepções: como
fundamento da pena (elemento do crime), como medida de pena, e como vedação à
responsabilidade penal objetiva.
A confirmar essa tripla acepção, tomem-se as lições de Rogério Greco, na
seguinte conformidade:
“O princípio da culpabilidade possui três sentidos fundamentais:
Culpabilidade como elemento integrante do conceito analítico de
crime A culpabilidade é a terceira característica ou elemento integrante do
conceito analítico de crime, sendo estudada, segundo o magistral
ensinamento de Welzel, após a análise do fato típico e da ilicitude, ou seja,
122
Luiz LUISI. Os Princípios Constitucionais Penais, cit., p. 26.
123
Francisco de Assis TOLEDO. Princípios básicos de direito penal, cit., p. 22.
124
Pode-se inferir tal princípio, por exemplo, do disposto nos incisos XVII e XLVI do art. 5º da CF.
73
após concluir-se que o agente praticou injusto penal. Uma vez chegada a
essa conclusão, vale dizer, que a conduta do agente é típica e antijurídica,
inicia-se um novo estudo, que agora terá seu foco dirigido à possibilidade ou
não de censura sobre o fato praticado.
(...)
Culpabilidade como princípio medidor da pena Uma vez concluído
que o fato praticado pelo agente é típico, ilícito e culpável, podemos afirmar
a existência da infração penal. O agente estará, em tese, condenado.
Deverá o julgador, após a condenação, encontrar a pena correspondente à
infração penal praticada, tendo sua atenção voltada para a culpabilidade do
agente como critério regulador. Nesse sentido o posicionamento de Juan
Córdoba Roda, quando assevera:
‘Uma segunda exigência que se deriva do princípio da culpabilidade é a
correspondente ao critério regulador da pena, conforme o juízo de que a
pena não deve ultrapassar o marco fixado pela culpabilidade da respectiva
conduta’.
Deverá o julgador observar, agora, as regras do critério trifásico de
aplicação da pena previstas pelo art. 68 do Código Penal.
(...)
Culpabilidade como princípio impedidor da responsabilidade penal
objetiva, ou seja, o da responsabilidade penal sem culpa Na precisa lição
de Nilo Batista, o princípio da culpabilidade ‘impõe a subjetividade da
responsabilidade penal. Não cabe, em direito penal, uma responsabilidade
objetiva, derivada tão de uma associação causal entre a conduta e um
resultado de lesão ou perigo para um bem jurídico’”
125
.
Frise-se que, ainda que a palavra apresente três acepções, a que mais
ganha relevância como princípio limitador é aquela afeta à vedação da
responsabilidade penal objetiva, transfigurando-se em vetor do Direito Penal sob o
brocardo nullum crimen sine culpa.
Acerca do assunto, muito bem versa André Vinicius de Almeida:
“Em atenção aos seus postulados, repudia-se qualquer manifestação do
versari in re illicita, consistente na hipótese daquele que, fazendo algo não
permitido, por puro acidente causa um resultado antijurídico, sem que este
possa ser considerado com o causado ao menos culposamente
(responsabilidade objetiva). Afasta-se igualmente a responsabilidade pelo
fato de outrem.
Nesse aspecto, é possível relacionar o nullum crimen sine culpa com o
princípio da legalidade, pois o juízo de tipicidade que nele é fundado
pressupões exatamente a verificação do dolo ou, excepcionalmente, da
culpa. Inexistentes um e outro, atípico é o comportamento“
126
.
Com razão, pode-se entender a culpabilidade como idéia fulcral de crime,
integrando, pois, seu conceito analítico e compondo uma estrutura tripartida. A essa
acepção, versada como fundamento da pena, já se fez menção acima.
125
Rogério GRECO. Curso de Direito Penal – Parte Geral. 6 ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2006, p. 94-
5.
126
André Vinicius Espírito Santo de ALMEIDA. Erro e Concurso de Pessoas no Direito Penal, cit. São
Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006 (Dissertação de Mestrado em Direito
Penal, área de concentração Direito das Relações Sociais), p. 21.
74
Pode-se ainda entender a culpabilidade como medida da reprimenda
penal, que orienta a dosimetria da pena, inferindo uma medida retributiva justa ao
delito. A propósito dessa acepção, convém lembrar o art. 29 do Código Penal e o art.
69 do Código Penal Militar, que expressamente comandam que a culpabilidade seja
aferida para a aplicação da pena.
É como vedação à responsabilidade penal objetiva, no entanto, que a
expressão ganha o status maior. Por ele princípio da culpabilidade como vedação
da responsabilidade penal , ninguém pode sofrer reprimenda penal se não houver
atuado com culpa, na acepção ampla da palavra. A responsabilização de um agente
pela mera causação de um resultado é característica de um Direito Penal primitivo,
configurando a responsabilidade penal objetiva, uma forma de tipicidade, que se
configuraria independentemente da verificação de dolo ou culpa
127
.
A responsabilidade objetiva, entretanto, não se verifica apenas quando
recai sobre o agente um gravame sem que tenha ele agido com dolo ou culpa, mas
também quando a pena é agravada somente pela produção de um resultado
128
ou
quando culpa na conduta e, a despeito de haver somente a modalidade dolosa
para aquele delito, o agente sofre conseqüências penais.
127
Eugenio RAÚZ ZAFFARONI e José Henrique PIERANGELI. Manual de Direito Penal Brasileiro
Parte Geral, cit., p. 522 e 523.
128
Eugenio RAÚZ ZAFFARONI e José Henrique PIERANGELI. Manual de Direito Penal Brasileiro
Parte Geral, cit., p. 522 e 523.
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No contexto da proposta apresentada na introdução desta pesquisa,
deve-se, agora, buscar a exata compreensão da omissão imprópria, o que requer,
por óbvio, uma explanação em linhas gerais acerca do crime omissivo.
Em uma discussão centrada no conceito analítico de crime, mormente do
enfoque dos sistemas penais eleitos para o estudo, o causalismo neoclássico do
Código Penal Militar e o finalismo do Código Penal comum, conforme já discutido no
capítulo precedente, a ação exerce papel fundamental, firmando-se como base
inicial para o desenvolvimento da constatação de um delito, o que leva naturalmente
ao questionamento sobre a omissão e sua compreensão no fato punível. Como pode
ela ser conceituada? Apresenta os mesmos elementos da ação? Enfim, qual a
compreensão exata da omissão em uma busca ontológica dos elementos genéricos
do crime?
As respostas às perguntas acima indicadas não comportam possibilidade
única, sendo possível afirmar que, na tentativa de conceber exatamente a essência,
surgiram “concepções” de omissão, as quais podem ser polarizadas, como o faz
Silva Sánhez
129
, em negativas e positivas, o que doravante buscar-se-á delinear.
2.1.1 Concepções negativas
Em uma primeira abordagem, é possível afirmar que a omissão fora
compreendida do enfoque de uma teoria naturalística, segundo a qual significava
um “não fazer nada”, ou seja, uma concepção totalmente negativa de omissão.
Capítulo
76
Havendo a tentativa de sistematização do conceito de delito, chegando-se
ao conceito analítico centrado na caracterização da ação, naturalmente houve
grande dificuldade em classificar a omissão como uma forma típica estruturalmente
impulsionadora do delito.
O ponto de vista inaugurado por Liszt, inebriado pelo positivismo do
século XIX, caracterizou-se pelo abandono de uma compreensão moral, própria do
idealismo da escola hegeliana, a qual, ao o se preocupar com o aspecto externo
da conduta, não encontrava óbices para punir a omissão. Com o conceito causal, no
entanto, o delito passa a ser centrado na compreensão de ação, entendida, do
enfoque natural de Liszt, como um movimento corporal volitivo que produz uma
alteração no mundo exterior ao agente, isso conforme a aferição pela lei da
causalidade.
Obviamente, em se entendendo a ação como centro de um sistema e
compreendendo-a como necessária alteração física, do ponto de vista naturalístico,
a omissão era um nada e, portanto, dela nada poderia restar (ex nihilo nihil fit)
130
.
Não passava de uma realidade psíquica.
Contudo, mesmo não se enquadrando no conceito de ação, algumas
condutas omissivas como comandava a observação da época –, careciam sim de
repressão penal, dada a lesividade de suas conseqüências, não podendo apenas
figurar como simples infrações de polícia (contravencionais)
131
, marcando-se, dessa
forma, um dilema quase intransponível, qual seja, como punir o comportamento
omissivo extremamente lesivo se a omissão não é efetivamente uma ação?
Com o fito de solucionar o problema apresentado, alguns conceitos de
omissão foram idealizados, ainda que com o mote naturalístico reinante, como por
exemplo o de Beling
132
que, ainda que negasse a ação na omissão, as equiparava
129
Jesús-María SILVA SÁNCHEZ. El Delito de Omisión: Concepto y Sistema. 2 ed. Montevidéu: Júlio
César Faira Editor, 2003, 504 p.
130
Idem, p. 7.
131
Idem, p. 8.
132
Para Silva Sánchez o conceito de Beling é um conceito negativo-intransitivo, pois trata-se de uma
ausência querida de movimento corporal. Ainda para o mesmo autor, mais recentemente, Baumann
defende um conceito de omissão próximo ao de Beling, sustentando ser ela “uma forma de conduta
que se inclui no conceito, mais amplo, de ação entendida como ‘comportamento humano regido pela
vontade’. A omissão não fazer nada também o é. Nem o conteúdo da omissão (o que se omite),
nem a possibilidade, nem o ser esperado são elementos do conceito de omissão, afetando apenas a
77
sob o signo da “vontade” fundamentadora da responsabilização penal. Para o
referido autor, a omissão era uma inatividade corporal voluntária, uma contenção
dos nervos dominada pela vontade. A vontade humana, nesse conceito, distinguiria
o comportamento humano punível do mero acaso e a partir dessa compreensão,
ainda que negativa, a omissão poderia muito bem dar ensejo à responsabilização
penal
133
. O conceito exposto, no entanto, apresenta problemas a serem avaliados,
resumindo-se na extrema dificuldade em localizar uma absoluta omissão voluntária
no comportamento humano e, principalmente, no fato de possibilitar qualquer
construção omissiva apenas com o tipo penal. Nesse sentido dispõe Silva Sánchez:
“O conceito fundamental da dogmática da omissão em Beling é
a ‘omissão de algo’ (Unterlassung bestimmten Inhalts), cujo
lugar sistemático é o tipo que pode predicar-se tanto da
ausência de movimento corporal voluntário como do movimento
corporal voluntário: também a ação em sentido estrito pode ver-
se como omissão de algo e ser castigada por isso (...)”
134
.
Percebe-se, portanto, que o conceito de Beling não distingue ação de
omissão, mas apenas as equipara sob a sombra da “voluntariedade”, esta sim
elemento central do conceito de delito.
Ainda sob influência do naturalismo, surge um outro conceito negativo da
omissão, capitaneado por Radbruch. Trata-se de um conceito em que a omissão não
pode simplesmente ser conceituada como um “não fazer nada”, mas um “não fazer
algo” determinado pela norma, e esse “algo” há de ser “possível”
135
.
Amplamente aceito, inclusive na atualidade, esse conceito tem como
elemento central, ao lado da conduta negativa, a capacidade de realizar a ação
tipicidade ou a antijuridicidade”. Jesús-María SILVA SÁNCHEZ. El Delito de Omisión: Concepto y
Sistema, cit., p. 26 a 28.
133
Jesús-María SILVA SÁNCHEZ. El Delito de Omisión: Concepto y Sistema, cit., p. 25.
134
Idem, p. 27.
135
Silva Sánchez, calcando-se na primeira edição do Tratado de Liszt, denomina esse conceito de
“conceito negativo-transitivo”, querendo significar no primeiro elemento que a omissão é negativa, ou
seja, um “não fazer”, e, com o segundo, que não se trata de um não fazer em absoluto, mas de um
não fazer algo que é uma ação determinada. Jesús-María SILVA SÁNCHEZ. El Delito de Omisión:
Concepto y Sistema, cit., p. 28. Com efeito, para Liszt a omissão é “o não empreendimento de uma
ação determinada e esperada. Omitir é verbo transitivo: não significa deixar de fazer de um modo
absoluto, mas deixar de fazer alguma coisa, e, na verdade, o que era esperado”. Franz Von LISZT.
Tratado de Direito Penal Alemão Tradução para a Língua Portuguesa de José Higino Duarte Pereira.
Rio de Janeiro: Russell, 2003, t. I. p. 229.
78
esperada, surgindo com força a idéia de possibilidade de fazercomo elemento
indissociável do conceito de omissão.
Incluir esse novo elemento possibilidade de açãono conceito de
omissão, todavia, conduz à discussão de outros problemas, como por exemplo:
a) Essa possibilidade de ação deve ser mensurada em relação ao ser
humano de forma genérica (possibilidade físico-objetiva) ou deve atrelar-se ao
omitente em sua concreta individualidade (possibilidade subjetiva)?
b) Elegendo-se a “possibilidade subjetiva” – tendo-se em mente que é fato
que a “possibilidade subjetiva” não é verificada sem a “possibilidade físico-objetiva”,
não sendo a recíproca verdadeira –, surge um novo problema resumido em duas
vertentes: 1) Deve ela ser mensurada apenas em relação ao conhecimento
potencial dos meios existentes? 2) Deve ela, em outra linha, ser mensurada pelo
conhecimento real e atual desses meios?
c) Como separar a questão do conhecimento como elemento do conceito
de omissão da discussão acerca da culpabilidade?
Obviamente, também não respostas uníssonas às questões
sobrepostas, porém, pode-se apontar a vertente majoritária.
É importante, em qualquer vertente que se eleja para a primeira questão,
firmar que a discussão sobre a capacidade física de ação é fundamental, vez que
sem ela não se pode reconhecer uma capacidade subjetiva.
Aceitando como necessária a exigência da “possibilidade físico-objetiva”,
Armin Kaufmann a conforma na seguinte proporção:
“Com ela se alude, por uma parte, às faculdades físicas, às habilidades
manuais, etc., de uma pessoa. Mas também se incluem aqui os dados
externos, sem os quais não se pode levar a cabo determinada ação: não
ação de salvamento sem alguém a quem salvar, não há ação de matar sem
alguém a quem matar. Assim, pois, deve existir o objeto sobre o qual deve
recair a ão, como também devem existir e estar disponíveis os meios de
auxílio necessários para realizar a ação. O míope necessita dos óculos para
ver adequadamente; quem não sabe nadar, se não tem à sua disposição
um salva-vidas, não pode socorrer ao que se afoga”
136
.
136
Armin KAUFMANN. Dogmática de los Delitos de Omisión. Tradução para o Espanhol de Joaquín
Cuello Contreras e José Luis Serrano González de Murillo. Madri: Marcial Pons, 2006. p. 550.
79
Claro está, como lugar comum, que condições físicas devem ser
objetivamente verificadas. Adicionando algo mais aos exemplos de Kaufmann, não
poderia responder pela omissão o exímio nadador que deixa de salvar aquele que
se afoga em razão de estar com seus membros superiores impossibilitados de
praticar um movimento corporal (imobilizados por engessamento, algemados etc.).
Note-se que não há possibilidade objetiva de ação, por limitação física.
Vencido esse ponto, resta saber se a vertente dominante enxerga a
omissão punível em face de uma possibilidade de ação apenas físico-objetiva ou
subjetiva. A resposta a essa questão não é ponto comum e dependerá do conceito
de ação ao qual o intérprete está vinculado, a exemplo do conceito final de ação-
omissão. É possível apontar, entretanto, uma preponderância para uma
concepção subjetiva de possibilidade, ou seja, essa possibilidade deve ser
verificada em face do omitente em sua concreta individualidade, e não apenas de
modo genérico, em referência objetiva a qualquer pessoa.
Em relação à segunda indagação suso indicada, há certo assentimento
no sentido de que basta o conhecimento potencial das circunstâncias externas,
apenas ao alcance do sujeito, não sendo necessário que haja o efetivo
conhecimento, o conhecimento real dos elementos externos
137
. Com efeito, o se
exige na configuração da omissão que o agente conheça efetivamente a
possibilidade de ação, conforme o exigido pela norma, bastando que ele, dentro de
suas características pessoais (posicionamento em relação ao objeto, capacidade
física de ação etc.), conheça ou possa conhecer sua capacidade de agir.
Finalmente, na terceira indagação, devem ser excluídas todas as
considerações afetas à culpabilidade. Ainda que se possa resumir a culpabilidade
como “possibilidade de comportamento diverso”, à conceituação da omissão
interessam apenas os fatores externos (e seu conhecimento) da possibilidade de
ação. “Não se têm em conta, neste ponto, a configuração psíquica do sujeito nem os
fatores de sua motivação”
138
. É dizer, por outro modo, que o se avalia na
conceituação da omissão se uma força psíquica irresistível, por exemplo, havia sido
imposta sobre o agente ao ponto de torná-lo inerte e, em conseqüência, omitir-se da
137
Jesús-María SILVA SÁNCHEZ. El Delito de Omisión: Concepto y Sistema, cit., p. 34-5.
138
Idem, p. 35.
80
ação esperada, sob pena de haver o inapropriado ingresso acerca da exigibilidade
de conduta diversa, cuja análise deve ficar relegada ao estudo da culpabilidade.
Como o poderia ser de outra forma, o conceito negativo-transitivo da
omissão não foi suficiente para, puramente, aplacar a discussão acerca do conteúdo
do delito omissivo, havendo variações como aquela trazida pelo novo sistema
jurídico-penal de Hans Welzel.
O conceito finalista de omissão, marcado por uma obsessão ontológica
própria de seu sistema, também se baseou em uma concepção negativo-
transitiva, com o acréscimo do elemento final necessário à sua conformação.
Na busca de definirem-se estruturas lógico-objetivas
139
para a
compreensão do delito, a omissão foi também avaliada do prisma ontológico,
anuindo-se ao conceito negativo – a omissão era um não fazer –, transitivo –
exigindo a vinculação a uma ação determinada pela norma – e ligado à possibilidade
subjetiva de ação, acrescendo-se, no entanto, que a ação adstrita à omissão deveria
ser compreendida finalisticamente
140
.
Por essa nova compreensão, a estudada possibilidade ou capacidade
de ação abrange uma série de elementos, como assinala Silva Sánchez:
“a) Uma possibilidade física de atuar, externa e objetiva (forças físicas,
habilidades, condições externas de realização da ação) que se refere ao
fato de que uma decisão de atuar de forma determinada ‘possa ser
realizada’. Até aqui, pois, nos encontraríamos ante um requisito comum às
concepções antes examinadas. b) Uma capacidade de condução final. Esta
abarca dois grupos de questões: por um lado, a adoção da decisão; por
outro, o controle do processo que foi colocado em movimento. Para todos
eles são necessários uma série de conhecimentos que, na terminologia de
Kaufmann, constituem os ‘requisitos intelectuais da capacidade de ação’. Se
trata, em primeiro lugar, dos conhecimentos teóricos de que disponha o
sujeito. Ademais, a ‘base cognoscitiva’: conhecer ou ter por possível o fim
ou meta da ação, é dizer, a situação em que se pode intervir, a ‘situação
típica’ nas omissões típicas. Por último, o conhecimento ou a possibilidade
de conhecer e eleger os meios da realização da decisão. Frente ao caso
139
Frise-se que a teoria das estruturas lógico-objetivas pode ser compreendida como uma vertente
que buscou a limitação do legislador com base na natureza das coisas, ou seja, o objeto a ser
desvalorado pelo direito penal não é criado pela desvaloração, mas existe antes de um desvalor
jurídico, como no caso da conduta, princípio da avaliação do fato punível. Ademais, a desvaloração
deve respeitar a estrutura do ente desvalorado, sob pena de recair sobre outro objeto ou nada atingir.
Eugenio RAÚL ZAFFARONI e José Henrique PIERANGELI. Manual de Direito Penal Brasileiro
Parte Geral. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 348.
140
Jesús-María SILVA SÁNCHEZ. El Delito de Omisión: Concepto y Sistema, cit., p. 42-3.
81
anterior, aqui basta a mera possibilidade de conhecimento, posto que a
eleição de meios é já parte da própria condução final (Planungsfähigkeit)”
141
.
De fato, ao analisar o conceito de omissão de Welzel, fundador do
conceito final de ação, poderemos reconhecer os elementos apontados por Silva
Sánchez. Nos dizeres de Welzel:
“A omissão, isso sim, está referida necessariamente a uma ação: não existe
uma omissão ‘em si’, senão somente a omissão de uma ação determinada.
Portanto, a omissão não é um mero conceito negativo, mas um ‘limitativo’: é
a omissão de uma ação possível do autor, que está subordinada então ao
poder final do fato finalidade potencial da pessoa). Omissão é a não
produção da finalidade potencial (possível) de um homem em relação a uma
determinada ação. aquela ação que está subordinada ao poder final do
fato (domínio do fato) de uma pessoa, pode ser omitida. Os habitantes de
Berlin não podem ‘omitir’ a salvação de uma pessoa que se afoga no Rio
Rin. Omissão não significa um mero fazer nada, mas um não fazer uma
ação possível subordinada ao poder final do fato de uma pessoa
concreta”
142
.
Em resumo, portanto, para o finalismo, a omissão há de ser
compreendida ontologicamente, sendo na verdade uma abstenção de ação
(conceito negativo), mas o uma absoluta inação e sim uma abstenção de algo,
de uma ação determinada (conceito transitivo), desde que haja possibilidade de
ação pelo sujeito (possibilidade de ação). Essa capacidade de ação deve ser
avaliada em concreto, com os elementos circundantes ao agente (marcando o
conceito de possibilidade subjetiva) e não simplesmente de forma abstrata
(possibilidade físico-objetiva)
143
. Ademais, sob o signo do finalismo, exige-se o
conhecimento do agente da direção final da ação correlata à omissão, a qual tem
por “base cognitiva” uma captação, ao menos potencial, do objetivo da ação, do
objeto da intervenção, da situação típica
144
, devendo estar em condições de
reconhecer e de poder selecionar os meios aptos para levar a efeito o objetivo
(capacidade de planejamento)
145
.
Exemplificando, para que se possa dizer que um sujeito A, que não sabe
nadar, omite-se em um salvamento no mar será preciso: 1) que haja alguém
afogando-se, que haja um barco e que esse barco esteja em condições físicas de
141
Jesús-María SILVA SÁNCHEZ. El Delito de Omisión: Concepto y Sistema, cit., p. 44.
142
Hans WELZEL. Derecho Penal Aleman. Tradução de para o Espanhol Juan Bustos Ramírez e
Sérgio Yáñez Pérez. .4 ed. Santiago: Editorial Juridica de Chile, 2002. p. 238.
143
Idem. Ibidem.
144
Armin KAUFMANN. Dogmática de los Delitos de Omisión, cit., p. 65.
145
Hans WELZEL. Derecho Penal Aleman, cit., p. 238.
82
ser utilizado no salvamento; 2) que ele saiba operar o motor do barco e que possa
conduzi-lo; que saiba seguramente que um sujeito afogando-se; que saiba ou
possa saber que tem à sua disposição o barco supracitado
146
.
O conceito finalista de omissão, no entanto, o esgota as concepções
negativas e, mais ainda, apresenta em sua formulação alguns problemas, a exemplo
da essência do conteúdo da ação final, não podendo enquadrar-se na essência da
omissão. Como a ação no finalismo tem por espinha dorsal uma ação dotada de
uma finalidade atual, exige naturalmente um exercício de atividade, o que não pode,
evidentemente, marcar a omissão caracterizada pela ausência desse exercício. Mas
a própria finalidade atual da ação tem sido questionada ao ponto de reconhecer-se
sua inexistência em alguns tipos de ação, a exemplo das reações explosivas e
automáticas.
Com efeito, certas ações que, embora enquadradas no conceito de
conduta humana, aptas, portanto, à responsabilização penal, não são constituídas
nitidamente por um exercício intencionalmente direcionado a um fim, o que leva à
busca de novos critérios de distinção entre a conduta humana relevante e os meros
processos causais, chegando-se a teorias que fazem referência a uma condução
cibernética, a uma possível dominação do fato, a uma condutibilidade do fato ou,
finalmente a uma evitabilidade do fato
147
.
A última vertente é a que aproveita à presente argumentação, surgindo
um novo conceito de ação, o conceito negativo de ação, que abarcaria a omissão.
Para alguns, o conceito de ação deve ser compreendido sob o signo da “não-
evitação” de um resultado típico. O conceito negativo de ação situa-se em posição
oposta àquela inaugurada pelo causalismo, sob o impulso do naturalismo, que, em
suma, buscou reconhecer na omissão os elementos da ação, já que esta era a base
do desenvolvimento do conceito estrutural de delito. Essa visão renuncia o problema
da causalidade do naturalismo e busca na ação um “não-evitar”. Ademais, no que
diz respeito à omissão, busca encontrar elementos de uma conduta ativa, a saber, a
não-evitação de um resultado, conforme encontrado na ação, e a existência de
uma posição específica do sujeito em relação ao bem jurídico, a posição de
146
Jesús-María SILVA SÁNCHEZ. El Delito de Omisión: Concepto y Sistema, cit., p. 44.
147
Jesús-María SILVA SÁNCHEZ. El Delito de Omisión: Concepto y Sistema, cit., p. 70-1.
83
garantidor
148
. A posição de garantidor, portanto, seria comum tanto à ação como à
omissão.
Um dos defensores do conceito negativo de ão foi Herzberg, o qual,
tomando como base de raciocínio a omissão imprópria, busca uma equiparação, um
supraconceito entre esta e a ação nos delitos de resultado. Surge um enfoque
lógico-abstrato, em que o supraconceito cinge-se a uma evitável não-evitação de
um resultado em face de um dever de garantidor, este entendido como uma
posição surgida do dever de controle de uma fonte de perigo. Por centrar a
análise no resultado abrangido pelo tipo penal, consubstancia-se em um conceito
normativo, jurídico de conduta, já que o resultado sucede o tipo penal que o define.
Como se percebe, o conceito acima pode muito bem abarcar modalidades
delitivas omissivas e comissivas, vencendo algumas limitações encontradas em
outras concepções, mormente aquelas afetas à omissão no finalismo, porquanto a
fonte do perigo não evitado pode ser externa ao agente quando a omissão
enquadrar-se-ia no conceito ou o próprio corpo do indivíduo quando a
comissão seria abarcada pelo conceito
149
.
Outra vertente do conceito negativo de ação está na fundamentação
empírica de Behrendt. Agora de uma perspectiva material, desde a ótica da
psicanálise, Behrendt reconhece a ocorrência de duas forças psicológicas
existentes: as “manifestações instintivas destrutivas” e uma “capacitação
psicogenética do homem para bloquear através da contracondução as formas mais
graves de destrutividade”. Pode-se falar, dessarte, em impulso destrutivo quando o
sujeito não evita o perigo, apesar de ter essa possibilidade. Nesse contexto, para o
reconhecimento da existência da omissão basta o conhecimento e a evitabilidade da
situação de perigo, que não é evitada pelo sujeito. Trata-se de um conceito que
pode preceder o tipo penal, posto não prender-se ao resultado, porém é jurídico,
pois busca atender aos interesses do Direito Penal
150
.
Em suma, poder-se-iam resumir as concepções negativas em duas
vertentes principais. A primeira, que tem início em uma concepção causalista e
148
Idem, p. 73.
149
Idem, p. 73-6.
150
Idem, p. 76-7.
84
culmina com o finalismo, segundo a qual a omissão opõe-se ontologicamente à
ação, porquanto é compreendida como uma realidade ontológica negativa, um não-
fazer. A outra concepção, vista por último na exposição acima, caracteriza-se pela
busca de um supraconceito em que a ação e a omissão possam ser enquadradas,
chegando-se a um conceito negativo de ação, segundo o qual a ação-omissão seria
a evitável não-evitação de um perigo, tendo o sujeito a posição de garantidor.
Obviamente, as concepções negativas não estavam imunes a críticas, o
que possibilitou o surgimento de outras teorias, agora focadas em uma concepção
positiva da omissão.
2.1.2 Concepções positivas
As concepções positivas possibilitam, a exemplo da busca do conceito
negativo de ação, um supraconceito de ação e de omissão focado no aspecto
positivo, ou seja, transcendem o mero “não fazer algo”, e centram-se no “fazer algo
diverso”
151
.
Podem as concepções positivas ser separadas em dois grandes grupos.
O primeiro grupo entende a positividade da omissão como situada no
mesmo plano da ação e caracteriza-se não por uma construção negativa, mas sobre
um “ser de outro modo”. Por essa visão, o agente, ao omitir-se, manifesta sua forma
diferente de ser, independentemente da expectativa, dos juízos de terceiros. A
positividade é identificada, portanto, na exteriorização de vontade, da mesma
forma que na ação. Essa vertente é conhecida como positividade ontológica
152
.
Na positividade ontológica, dada sua concepção estrutural de discussão
da essência da omissão, compreende-se a conduta omissiva como uma realidade
pré-jurídica, ontológica, que deve ser observada pelo legislador, ponto coincidente
com as concepções negativas da omissão. A conduta é, em verdade, uma
manifestação de vontade, que se materializa pela exteriorização de um
151
Jesús-María SILVA SÁNCHEZ. El Delito de Omisión: Concepto y Sistema, cit., p. 99.
152
Idem, p. 103.
85
comportamento que pode ser ativo ou negativo. Ambos, porém, o
ontologicamente positivos, porquanto manifestações da vontade. “Fazer ou
omitir são os modos fundamentais de comportamento humano como tomada de
posição em relação a uma possibilidade de intervenção em determinada situação.
Na omissão tal tomada de posição consiste na não aplicação de energia em
determinada direção”
153
.
Como se percebe, a positividade ontológica é uma visão centrada no
exercício de vontade – e, por haver exercício de algo, ganhou designação positiva –,
em um fenômeno interno que, ao exteriorizar-se como omissão, ganha motes
negativos. Em outros termos, a positividade ontológica é, em verdade, uma visão
negativa, ao menos do enfoque externo da conduta.
O outro grande grupo das concepções positivas defende uma positividade
da omissão calcada na “teoria da expectativa
154
.
Abandona-se, agora, a tentativa de uma definição ontológica, ressaltando-
se uma concepção normativa, centrada na defraudação de expectativas. O
fundamento da expectativa é a existência de uma regularidade, ou seja, espera-
se que aconteça o que normalmente acontece. Essa regularidade, no entanto, pode
ter como força motriz realidades totalmente distintas, a saber, uma realidade
empírica (“regularidade empírica”), uma realidade dedutiva (“regularidade
dedutiva”) ou uma realidade normativa (“expectativa normativa”).
É dizer, a teoria da expectativa tem como suporte a crença em uma
regularidade de conduta, regularidade essa que pode ser edificada sobre critérios
empíricos, ou seja, baseados em uma concepção experimental quase sempre
calcada em uma lei de necessidade físico-natural, sobre critérios de índole
dedutiva com base na natureza do homem como ser capaz de autodeterminar-se
em um sentido, ou, finalmente, sobre um conjunto normativo, um sistema
normativo (de caráter ético, religioso, jurídico, social etc.), que motes de
condutas, surgindo, pois, uma expectativa de que tais orientações sejam
observadas. A contrariedade fática a esse sistema o significa sua falência, mas,
antes, sua reafirmação de necessidade, ou seja, quando alguém não atende à
153
Jesús-María SILVA SÁNCHEZ. El Delito de Omisión: Concepto y Sistema, cit., p. 105-6.
86
expectativa normativa ao adotar um comportamento, não está colocando em xeque
o conteúdo normativo, mas, sim, ressaltando a necessidade de sua existência para
nortear demais condutas
155
.
Por óbvio, a omissão como defraudação de uma expectativa normativa é
a que ganha relevo para esse setor doutrinário, restando apenas verificar quais
expectativas normativas merecem tutela penal e quais não a merecem, chegando-se
a uma delimitação de omissão jurídico-penal.
A primeira discussão travada em busca da omissão jurídico-penal é
acerca da preexistência da omissão a um sistema jurídico-penal, havendo, em
resumo, aqueles que postulam ser a essência da omissão pré-jurídica, ou seja,
definida por padrões sociais anteriores ao Direito e, principalmente, ao Direito Penal.
Dessas omissões, algumas ganham relevância jurídico-penal.
Ao contrário, outros entendem que a omissão deve ter por contraponto
uma norma de conduta dentro do sistema penal, em si, ou seja, a expectativa
defraudada geradora de uma omissão punível deve ter sua fonte no sistema penal,
que, portanto, as cria, as define.
Outro ponto central na busca de definir-se uma omissão relevante
penalmente seria verificar a natureza da base que informa a expectativa normativa,
ou seja, se é ela de caráter ético, social, jurídico etc., questão que se desenvolve de
forma paralela à primeira indagação suscitada.
Com efeito, encontram maior eco as visões que defendem a omissão
calcada em uma expectativa social ou em uma expectativa jurídica. Por óbvio,
uma intrínseca aproximação entre a concepção de omissão pré-jurídica e a visão da
expectativa social, porquanto, se não houver lastro em um sistema jurídico (já que
pré-jurídica), a omissão deve encontrar amarras em outro sistema de conduta, como
o social. De outro enfoque, a visão de defraudação de expectativa jurídica de
partir de um pressuposto de existência de um sistema jurídico originador das
omissões
156
.
154
Jesús-María SILVA SÁNCHEZ. El Delito de Omisión: Concepto y Sistema, cit., p. 111.
155
Idem, p. 111-3.
156
Jesús-María SILVA SÁNCHEZ. El Delito de Omisión: Concepto y Sistema, cit., p. 117.
87
Para os defensores da omissão com defraudação de expectativa social, o
tipo penal não é o único fundamento possível de uma expectativa de ação, podendo
esta também surgir de normas da ética social. Uma vez estabelecido esse universo,
não necessariamente todo ele teria a relevância penal, mas apenas aquelas
omissões selecionadas pela norma penal. A omissão social poderá o
necessariamente será – jurídico-penalmente relevante
157
.
os que preferem a omissão como defraudação de uma expectativa
jurídica podem postular que a base da natureza jurídica da expectativa defraudada
está em um universo prévio à tipicidade ou posterior ao estabelecimento da
tipicidade
158
, ou seja, alguns sustentam que a omissão surge primeiro de um
universo jurídico não-penal, civil, por exemplo, para então haver a seleção típica
penal, enquanto outros sustentam que a omissão penalmente relevante surge
exatamente da previsão típica, portanto posteriormente à opção legislativa.
2.1.3 Conceito de omissão na doutrina brasileira
Feito o breve escorço doutrinário da compreensão da omissão, resta,
agora, verificar qual o conceito mais aceito na doutrina brasileira, ou seja, se se
adota no País uma concepção negativa ou positiva de omissão e, mais, ao eleger
uma das vertentes, qual o mote principal a impulsionar nossos autores.
Preliminarmente, cumpre consignar que as correntes positivas são as que
mais sofrem ataques, mormente por não se reconhecer uma autêntica construção
positiva da omissão. Natural, portanto, a predileção, embora não uníssona, pelas
concepções negativas da omissão. Por esse motivo, na construção desenvolvida no
subitem anterior, optou-se por o defender uma ou outra posição dentro das
concepções positivas, porquanto o trabalho seria infrutífero.
Questionando a autenticidade de uma “positividade” na omissão, embora
não se posicione puramente a favor das concepções negativas, por todos, vide Silva
Sánchez que, ao discorrer sobre as concepções positivas, dispõe:
157
Idem. Ibidem.
88
“Para o primeiro grupo de teorias a suposta positividade da omissão radica
em ser ela a exteriorização da vontade, objetivação da personalidade do
sujeito, como é também a ão. Sem embargo, estas expressões resultam
totalmente ambíguas, pois, em absoluto se indica em que consiste a forma
especificamente omissiva de exteriorização da vontade. Enquanto ao
segundo grupo, efetivamente se considera que a positividade da omissão se
revela em sua relevância social, é dizer, em que constitui um fenômeno com
sentido na realidade social. Sem embargo, tal significado positivo não se
pode produzir senão mediante a defraudação de expectativa de diferente
signo, com dependência de que isso apareça expressamente formulado ou
não nos postulados dos autores. Deste modo, a suposta ‘positividade’
mostra uma evidente similitude com a ‘negatividade’ do conceito negativo de
ação. Daí o cabimento em expor, enfim, se algum sentido a diferença
apontada no plano normativo. A resposta, como se verá, é que,
provavelmente, não”
159
.
Nesse contexto, como suscitado, a inequívoca predominância das
concepções negativas, o que não se opera de forma diferente na doutrina brasileira,
muito embora não haja, aqui no Brasil, um firme consenso.
Para Fragoso, por exemplo, os crimes omissivos podem ser conceituados
como aqueles “em que se viola uma norma que impõe comportamento ativo, com
abstenção da atividade devida. Consistem em não fazer o que a lei manda”
160
. É, em
síntese, uma abstenção de ação que tem relevância para o Direito penal, sendo
fundamental, portanto, compreender sua estrutura, o que, ressalte-se, não é tarefa
fácil, mormente em uma tradição jurídico-penal que concentra a base de estudo no
conceito de ação. Nitidamente, o reconhecido doutrinador adota um conceito
ontológico de omissão, o qual se opõe ao conceito de ação, ou seja, um conceito
negativo transitivo de omissão.
Na mesma linha de Fragoso (conceito negativo transitivo de omissão),
Mirabete, sob o signo da “conduta”, unifica tanto a ação como a omissão. Para o
doutrinador, a conduta “é, em regra, consubstanciada em uma ação em sentido
estrito ou comissão, que é um movimento corpóreo, um fazer, um comportamento
ativo (atirar, subtrair, ofender etc.). Poderá, entretanto, constituir-se numa omissão,
que, segundo a teoria normativa, é a inatividade, a abstenção de movimento, é o
‘não fazer alguma coisa que é devida’. O fundamento de todo crime omissivo
158
Idem, p. 127.
159
Jesús-María SILVA SÁNCHEZ. El Delito de Omisión: Concepto y Sistema, cit., p. 100.
160
Heleno Cláudio FRAGOSO. Lições de Direito Penal Parte Geral. 16 ed. Rio de Janeiro: Forense,
2004, p. 281.
89
constitui-se em uma ação esperada e na não realização de um comportamento
exigido do sujeito”
161
.
Cezar Roberto Bitencourt também adota um conceito negativo
transitivo, porém acresce a discussão acerca da possibilidade de ação. Para o
autor em foco, o crime omissivo configura-se quando “o agente não faz o que pode e
deve fazer, que lhe é juridicamente ordenado. Portanto, o crime omissivo consiste
sempre na omissão de uma determinada ação que o sujeito tinha obrigação de
realizar e que podia fazê-lo”
162
.
Francisco de Assis Toledo unifica a omissão e a ação, sob o signo de
uma “ação” em sentido lato (ou conduta), que compreende “qualquer comportamento
humano, comissivo ou omissivo, abrangendo, pois, a ação propriamente dita, isto é,
a atividade que intervém no mundo exterior, como também a omissão, ou seja, a
pura inatividade
163
. Acrescenta, no entanto, que tal conduta deve desenvolver-se
sob o domínio da vontade, que o conteúdo finalístico de toda a ação relevante
para o Direito penal.
Nesse mesmo sentido, Guilherme de Souza Nucci postula que a
“omissão, embora tenha regramento particularizado e uma existência diferenciada
da ação, não é inviável considerá-la, para efeito de estudo da conduta humana,
como ação negativa, pois tanto a ação propriamente dita (positiva) quanto a omissão
(negativa) são frutos finalísticos da atuação do ser humano”
164
(g.n.).
Embora comece sua construção com motes puramente naturalísticos e
suscite a defraudação de expectativa, Juarez Cirino dos Santos adota claramente
um conceito negativo transitivo, ao postular que “omitir uma ação não significa,
simplesmente, não fazer nada, mas não fazer algo determinado pelo direito”
165
.
161
Júlio Fabbrini MIRABETE. Manual de Direito Penal. 23 ed. São Paulo: Atlas, 2006, vol. I, p. 92.
162
Cezar Roberto BITENCOURT. Tratado de Direito Penal Parte Geral. 10 ed. São Paulo: Saraiva,
2006, p. 293.
163
Francisco de Assis TOLEDO. Princípios Básicos de Direito Penal. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2000,
p. 82-3.
164
Guilherme de Souza NUCCI. Manual de Direito Penal Parte Geral e Parte Especial. 2 ed. São
Paulo: RT, 2006, p. 189.
165
Juarez Cirino dos SANTOS. A Moderna Teoria do Fato Punível. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan,
2002, p. 112.
90
Destoando levemente das concepções negativas, temos Magalhães
Noronha, que tangencia uma concepção positiva ontológica (positividade
ontológica), que enfoca uma externalização de vontade de não agir. Para o
renomado doutrinador, a “ação negativa ou omissão entra no conceito de ação
(genus) de que é espécie. É também um comportamento ou conduta e,
consequentemente, manifestação externa, que, embora não se concretize na
materialidade de um movimento corpóreo antes é abstenção desse movimento
por nós é percebida como realidade, como sucedido ou realizado
166
.
Por fim, vale a pena consignar a visão de Aníbal Bruno, um dos poucos
que se preocupou em esmiuçar as várias concepções sobre a omissão
167
. É possível
reconhecer na postura do autor a mescla de elementos de concepções negativas e
positivas, conseguindo nessa mescla invejável harmonia. “A omissão”, postula,
“admite um conceito que sustente sua posição dentro da fórmula geral da ação em
sentido amplo, gênero do qual é espécie. Como a ação em sentido estrito, ela é um
comportamento voluntário, manifestação exterior da vontade do omitente, que,
embora o se realize com a materialidade de um movimento corpóreo, não deixa
de ser uma realidade, que percebemos com a evidência de um acontecer
objetivamente realizado. Esse é o elemento naturalista da omissão”
168
. Até aqui, é
possível reconhecer uma tendência em conceituar a omissão como algo positivo,
ou seja, como manifestação exterior de uma conformação interna do indivíduo, “um
ser de outro modo”. Contudo, na seqüência, identifica-se com uma concepção
negativa transitiva, ao dispor que “esse comportamento, que consiste em um não
fazer, não revela espontaneamente o seu conteúdo. Este é o não cumprimento da
ação devida, isto é, da ação que teremos de caracterizar, não como uma ação
qualquer, mas como a ação determinada que, nas circunstâncias, era de esperar do
agente. Assim, o elemento naturalista de voluntário comportamento negativo do
agente se completa pelo elemento normativo da ação que era de se esperar, da
ação devida (...)”
169
.
Importante ressaltar que, se o conceito se esgotasse nesse ponto, o
próprio autor teria ressalvas à sua credibilidade, pois poder-se-ia ter como foco de
166
Edgard Magalhães NORONHA. Direito Penal. 38 ed. São Paulo: Saraiva, 2004, vol. I, p. 98.
167
Aníbal BRUNO. Direito Penal. Parte Geral. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, t. I, p. 191-2.
168
Idem, p. 193.
91
expectativa a ação esperada por alguém, fora do comportamento do agente, o que
naturalmente desconstituiria o conceito de omissão como comportamento do
sujeito
170
, razão pela qual Aníbal Bruno adverte que a verificação da ação devida
“importa, não no juízo de alguém, mas no contraste real e efetivo entre esse
comportamento e uma norma; normativo em sentido muito geral, como vimos, não
estritamente jurídico”
171
.
2.1.4 Tomada de posição
Vistas as várias correntes e verificada a conformação de boa parte da
doutrina brasileira, cumpre agora tomar posição, com o fito de que o presente
trabalho seja desenvolvido a partir de uma concepção que parece melhor informar
os postulados do Direito penal, tarefa deveras complicada, por inúmeras razões.
Em primeiro plano, como se verificou, a doutrina brasileira pouco se
ocupa dessa discussão.
Em adição, a tomada de posição pura é praticamente inviável, porquanto
todas as construções apresentam pontos sensíveis suscetíveis a críticas muito
coerentes, a ponto de Silva nchez abandonar, com severas críticas, as
concepções apresentadas e propor um conceito material de omissão, calcado em
uma justificação político-criminal. Por essa concepção, o conceito de omissão posta-
se como um conceito material em que não se considera a omissão como a não-
realização de conduta indicada no tipo penal, mas sim como uma o-prestação
positiva de salvaguarda de um bem jurídico.
Essa visão material, calcada na tutela de um bem jurídico, é a única, na
visão do autor, consentânea com o atual Estado liberal, de ideologia liberal-
individualista, que parte do princípio da liberdade de ação dos cidadãos, que
somente esta limitada pela obrigação de não atacar posições de interesses dos
169
Aníbal BRUNO. Direito Penal. Parte Geral, cit., p. 193.
170
Idem. Ibidem.
171
Idem. Ibidem.
92
demais, A omissão, portanto, deve ser a exceção em nome do princípio liberal de
não-ingerência do Estado e proteção negativa
172
.
Outro ponto que dificulta a tomada de posição no presente trabalho está
na dualidade de sistemas em que ele se propõe a trabalhar, ou seja, como o objetivo
é discutir a omissão penalmente relevante e o concurso de pessoas no Código
Penal comum de orientação finalista e no Código Penal Militar de orientação
causalista neoclássica –, o conceito dogmático, em primeira análise, não poderia ser
o mesmo.
Malgrado as dificuldades apontadas, abandonando-se a pureza de uma
ou outra concepção, bem como reconhecendo-se a impossibilidade de uma
concepção estritamente causalista, fiel ao naturalismo, conceber ontologicamente a
omissão, optar-se-á por compreender a omissão em um enfoque negativo transitivo,
exigindo-se a possibilidade subjetiva de ação, bem como o domínio final do fato,
tudo isso tendo como pano de fundo a imposição de um Direito penal menos
interventivo, clamado no Estado liberal.
Assim, omissão deve ser compreendida ontologicamente,
redundando em uma abstenção (conceito negativo) de ão determinada
(conceito transitivo), desde que haja não a possibilidade física de atuação,
mas uma possibilidade subjetiva, ou seja, avaliando-se a capacidade em
concreto, com os elementos circundantes ao agente. Some-se a essa
necessidade a exigência de o agente conhecer a direção final da ação correlata
à omissão, a qual tem por “base cognitiva” uma capitação, ao menos
potencial, do objetivo da ação, do objeto da intervenção, da situação típica
173
,
devendo estar em condições de reconhecer e de poder selecionar os meios
aptos para levar a efeito o objetivo (capacidade de planejamento)
174
.
A ação esperada, marcando a mescla de definições, deve ser
compreendida como uma expectativa arrimada em um sistema normativo
empresta-se, aqui, a construção da concepção positiva de omissão pela
expectativa jurídica. Esse sistema normativo não deve ser compreendido de
172
Jesús-María SILVA SÁNCHEZ. El Delito de Omisión: Concepto y Sistema, cit., p. 181.
173
Armin KAUFMANN. Dogmática de los Delitos de Omisión, cit., p. 65.
174
Hans WELZEL. Derecho Penal Aleman, cit., p. 238.
93
forma ampla, mas apenas centrado na tipicidade penal – um sistema normativo
jurídico-penal –, de modo a evitar a desnecessária intervenção estatal na
liberdade de ão do cidadão, muito bem detectada por Silva Sánchez,
transformando a omissão em exceção no Estado Democrático de Direito.
O conceito acima deve nortear a análise da omissão tanto no Código
Penal comum como no castrense. Essa equiparação pode causar estranheza,
mormente em razão de exigir o domínio final do fato para delimitar a omissão no
Código Penal Militar, que dolo e culpa são elementos estranhos à ação (em
sentido lato), verificados na culpabilidade. Entende-se, porém, que o conceito
analítico de crime, nele incluído o de ação em sentido lato (conduta), está afeto à
doutrina, não sendo previsto hermeticamente na legislação penal, comum ou militar.
O ius positum, no que concerne ao conceito analítico de crime, pode até tornear
certos dispositivos, indicando, no Código Penal comum ou no Código Penal Militar,
determinadas direções a serem seguidas. Todavia, grande gama de conceitos
jurídicos indeterminados, que admitem a compreensão ajustada aos novos dogmas
trazidos pela doutrina. Ademais, nenhum dos sistemas”, como lembra Bacigalupo,
tem validade absoluta. Na medida em que nenhuma das teorias da pena a tem,
tampouco poderiam ter os sistemas dogmáticos conectados com elas”
175
.
Dessarte, o Código Penal Militar, ao definir a infração penal dolosa e
culposa, nos incisos I e II de seu art. 33, o faz sob a rubrica “Culpabilidade”,
indicando claramente que, do enfoque por ele adotado, a ação é causal, enquanto a
culpabilidade é normativa (não normativa pura). Isso, entretanto, não obsta a análise
de uma ação (em sentido lato), em face de um episódio em tese configurador de
crime militar, com os contornos que hoje a caracterizam pelo sistema finalista.
Entenda-se, a conduta, para possibilitar o início da investigação do delito pelo fato
típico, deve ser considerada com seu conteúdo subjetivo (dolo ou culpa), mesmo
porque não há no Código Penal Militar um conceito legal de ação (conduta).
Em conclusão, sustenta-se ser perfeitamente possível a aplicação de
dogmas finalistas, ou de qualquer outro modelo que venha a ser considerado
melhor, em uma “moldura causalista”, naqueles pontos em que a lei penal militar não
175
Enrique BACIGALUPO. Direito Penal Parte Geral. Tradução da 2 ed. espanhola para a Língua
Portuguesa de André Estefam. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 185.
94
trouxer amarra expressa, sob pena de responsabilização penal descompassada com
a moderna teoria do fato punível, divorciada, em vários pontos, do princípio da
culpabilidade
176
.
2.1.5 Formas de condutas omissivas
Como bem se sabe, o Direito penal, assim como o Direito como um todo,
apresenta seus postulados por meio de normas proibitivas, que vedam determinada
ação, ou de normas preceptivas, que indicam determinada ação. A infração jurídica
surge, pois, da prática da ação proibida nas normas proibitivas ou da abstenção da
ação determinada nas normas preceptivas. Os delitos omissivos referem-se, pois, à
infração de normas preceptivas
177
.
Os delitos omissivos, no entanto, podem ser divididos em uma
classificação bipartida, em espécies que apresentam nuanças próprias, que devem
ser bem compreendidas. Majoritariamente, a doutrina tem assentido na divisão
idealizada por Luden, segundo a qual os delitos omissivos podem ser divididos em
próprios (delicta omissiva) ou impróprios (delicta commissiva per omissionem).
Fundamental ao intento de esmiuçar as formas de condutas omissivas, no
entanto, é eleger previamente um “porto seguro” para distinguir a ação da omissão,
pela linha adotada no conceito de omissão – um conceito ontológico, negativo-
transitivo, partindo-se do pressuposto de possibilidade subjetiva de ação e com a
contribuição do elemento final, sempre com a necessidade de previsão típica.
Malgrado existam aqueles que não enxerguem a diferença entre conduta
comissiva e omissiva e.g., os adeptos do conceito negativo de ação –, ação e
omissão, em um primeiro aporte, são conceitos substancialmente opostos,
significando um fazer (ação) e um não fazer algo esperado (não fazer). Essa inicial
distinção, entretanto, não possibilita a distinção de pronto entre as duas formas de
176
Essa postura já foi defendida em obra específica para o Direito Penal Militar. Cícero Robson
Coimbra NEVES e Marcello STREIFINGER. Apontamentos de Direito Penal Militar. São Paulo: 2005,
vol. 1, p. 83-4.
177
Hans-Heinrich JESCHECK e Thomas WEIGEND. Tratado de Derecho Penal Parte General. 5
ed. Tradução para o Espanhol de Miguel Olmedo Cardenete. Granada: Comares, 2002, p. 648.
95
conduta, o que levou a doutrina a buscar novos elementos que distinguissem a ação
da omissão. Dentre as várias tentativas, mostra-se uma das mais adequadas à
distinção de acordo com o critério do risco, que objetiva um pouco mais a
separação pretendida. Segundo esse critério, “haverá ação se há a criação ou
elevação de risco para o bem jurídico, e existe omissão de ação se o criação
ou elevação de risco para o bem jurídico”
178
. Em outros termos, quando o sujeito, em
si, é uma fonte geradora ou incrementadora de perigo para determinado bem
jurídico, ter-se-á a ação, ao passo que quando o sujeito não gerar ou aumentar o
risco para o bem jurídico estar-se-á em face de uma omissão.
Essa não-geração ou elevação, no entanto, não significa dizer que a
inação é tolerada pelo Direito, porquanto circunstâncias em que a norma exige a
evitação do risco ao bem jurídico, ainda que gerado por outrem. Surgem, pois, as
formas típicas omissivas.
Frise-se, ademais, que a análise acerca da geração do risco deve
verificar-se no exato momento em que o sujeito depara-se com a situação de
iminente ou atual lesão ao bem jurídico e não em momento anterior, em que o risco
poderia até mesmo ter sido gerado por esse sujeito. Assim, v.g., o taberneiro que
serve, desmedidamente, bebida alcoólica a um cliente e, em seguida, o abandona
na rua à própria sorte, ocorrendo sua morte por atropelamento, gerou, é verdade, um
risco em momento anterior. Contudo, a análise deverá dar-se no momento do
atropelamento, quando, então, chegar-se-á à conclusão de que, em si, a conduta do
taberneiro não gerou, naquele momento, o risco à vida do cliente. Sua conduta foi,
portanto, omissiva.
Essa exigência de ação a evitar o risco pode ser indistinta, geral, a
alcançar todos aqueles sujeitos à norma penal, com ou sem especialização
específica, e expressa no tipo penal, configurando-se a omissão própria. Pode
ainda ser configurada por meio de uma tipicidade indireta, quando uma cláusula
genérica ou uma construção jurisprudencial ou doutrinária equipararão a omissão de
algumas pessoas por um vínculo jurídico específico a uma atuação positiva,
gerando ou incrementando o risco para o bem jurídico, quando se configura a
omissão imprópria.
178
Juarez Cirino dos SANTOS. A Moderna Teoria do Fato Punível, cit., p.112.
96
Dessa forma, têm-se as duas espécies omissivas sicas no Direito
penal, marcadas pelos delitos omissivos próprios (omissivos puros ou,
simplesmente, omissivos) e os omissivos impróprios (omissivos impuros ou
comissivos por omissão)
179
.
2.1.5.1 Crimes omissivos próprios
O crime omissivo puro, como muito bem sintetiza Cezar Roberto
Bitencourt, “consiste em uma desobediência a uma norma mandamental, norma esta
que determina a prática de uma conduta, que não é realizada. Há, portanto, a
omissão de um dever de agir imposto normativamente”
180
.
Como toda análise delitiva, a aferição do crime omissivo próprio deve ter
início no estudo de seu tipo penal e, como sói acontecer em todos os delitos, a
tipicidade deve ser esmiuçada do prisma objetivo (tipo objetivo) e do prisma
subjetivo (tipo subjetivo).
2.1.5.1.1 Tipo objetivo dos crimes omissivos próprios
O tipo objetivo da omissão própria contém uma situação de perigo para
o bem jurídico, a capacidade de agir e a omissão da ação mandada
181
. Tais
elementos também são exigidos na omissão imprópria, como ver-se-á abaixo, razão
pela qual merecem análise mais detida.
A situação de perigo para o bem jurídico, ou situação típica, é evidente,
expressa no tipo penal de omissão própria, caracterizada pelo verbo nuclear a
indicar que o agente deveria ter atuado de maneira determinada (deixar, omitir etc.).
179
Outra possível designação é a de crimes omissivos simples ou crimes omissivos qualificados.
Nesse sentido, Hans- Heinrich JESCHECK e Thomas WEIGEND. Tratado de Derecho Penal Parte
General, cit., p. 653.
180
Cezar Roberto BITENCOURT. Tratado de Direito Penal – Parte Geral, cit., p. 294.
181
Juarez Cirino dos SANTOS. A Moderna Teoria do Fato Punível, cit., p. 116-122. Ainda nessa
mesma linha, vide Santiago MIR PUIG. Derecho Penal Parte General. 7 ed. Buenos Aires: Julio
97
Cabe assinalar que, para o preenchimento da tipicidade objetiva de tais verbos,
bastará, em regra, a mera abstenção de ação, configurando-se, pois, em sua grande
maioria, em delitos de mera conduta, em que o resultado da inação é estranho ao
tipo penal, podendo, quando muito, majorar ou qualificar o delito
182
. Na omissão de
socorro (art. 135 do Código Penal comum), por exemplo, a situação de perigo vem
muito clara no tipo penal: “.criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida
ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo (...)”.
No Código Penal Militar há também a regra de crimes omissivos em que a
mera atividade basta para o preenchimento típico, como no caso da omissão de
oficial (art. 194 do CPM), que assim dispõe: “Deixar o oficial de proceder contra
desertor, sabendo, ou devendo saber encontrar-se entre os seus comandados”.
Contudo, estranhamente, alguns crimes omissivos próprios exigem para sua
consumação a produção de um resultado físico, naturalístico, o que os transforma
em crimes de resultado. Nesse sentido, vide o art. 324 do referido Codex, com a
seguinte descrição típica: “Deixar, no exercício de função, de observar lei,
regulamento ou instrução, dando causa direta à prática de ato prejudicial à
administração militar”. Parece claro que o delito em foco somente estará consumado
com a prática de ato prejudicial à Administração Militar, prática essa que pode
mesmo ser desencadeada por um terceiro que se aproveitou da omissão típica do
sujeito ativo.
Bacigalupo, é bom acrescentar, entende estar englobada na situação
típica “a circunstância de que a prestação do auxílio não decorra, por sua vez, um
perigo ao omitente”
183
. O perigo, note-se, também poderá afetar a terceiro, estando
desconstituída a situação típica. Com efeito, o tipo penal objetivo da omissão poderá
excluir sua incidência em face da inação por geração de risco ao omitente ou a
terceira pessoa, como o faz a citada omissão de socorro no Código Penal comum
(“quando possível fazê-lo sem risco pessoal”). Contudo, ainda que não haja a
previsão típica dessa exclusão, a responsabilização penal será impossível, pela
inexigibilidade de conduta diversa, mesmo que compreendida como causa
supralegal de exclusão da culpabilidade.
César Faira Editor, 2005, p. 315. Vide ainda Enrique BACIGALUPO. Direito Penal Parte Geral, cit.,
p. 489.
98
O segundo elemento da omissão própria é a capacidade concreta de
agir. Significa dizer que somente será a omissão relevante penalmente se o agente
era, ao tempo da conduta, capaz de atuar conforme a ação exigida. Como visto
acima, essa capacidade concreta deve centrar-se no agente, de modo a configurar
não só a mera capacidade físico-objetiva, mas subjetiva, ou seja, deve ser verificada
em face do omitente em sua concreta individualidade, e o apenas de modo
genérico, em referência objetiva a qualquer pessoa.
Obviamente, a avaliação da capacidade concreta de agir passará pela
verificação do domínio final da ação correlata à omissão. Dessa forma, como
consignado, para que se possa dizer que um sujeito A omitiu-se, de forma
penalmente relevante, no salvamento de alguém que se afoga, serão possíveis duas
construções: 1) é preciso que ele saiba nadar, a ponto de fisicamente poder salvar o
necessitado; 2) caso não seja um exímio nadador, é necessário que haja à sua
disposição um meio apto para a execução do salvamento, como, por exemplo, um
barco que esteja em condições físicas de ser utilizado no salvamento; também é
necessário que o omitente saiba operar o motor do barco e que possa conduzi-lo;
que saiba seguramente que um sujeito afogando-se; que saiba ou possa saber
que tem à sua disposição o barco supracitado
184
. Como é possível perceber, as
exigências finais, ligadas ao conhecimento da situação típica de perigo, darão a
conformação do elemento subjetivo.
Finalmente, como último elemento da omissão própria tem-se a efetiva
omissão da ação mandada, que se caracteriza pela não-realização da ação de
proteção do bem jurídico em situação de perigo. Essa ação mandada está,
obviamente, delimitada pelo tipo penal omissivo, podendo-se afirmar que a
comprovação desse requisito dar-se-á pela comparação entre a postura do obrigado
e a ação descrita ou inferida do tipo penal.
Importante frisar que, para muitos, a omissão nesse tópico seria
constatada por uma ação diferente daquela mandada pelo tipo, o que levaria a uma
similitude entre ação e omissão. Assim, o obrigado estaria omitindo a ação
determinada quando, por exemplo, em vez de salvar a pessoa necessitada,
182
Cezar Roberto BITENCOURT. Tratado de Direito Penal – Parte Geral, cit., p. 294.
183
Enrique BACIGALUPO. Direito Penal – Parte Geral, cit., p. 490.
99
deixasse o local de um sinistro. Essa visão, todavia, não parece adequada,
porquanto o obrigado poderia, em vez de deixar o local, simplesmente cruzar os
braços e assistir ao infortúnio alheio. Dessa forma, a omissão configurar-se-á com a
inação daquilo que se espera no tipo penal omissivo, pouco importando se houve
pura inação ou ação em sentido diverso daquele configurado no tipo penal.
2.1.5.1.2 Tipo subjetivo dos crimes omissivos próprios
No que concerne à tipicidade subjetiva da omissão própria, há, pela
dominante doutrina, a necessidade de abstenção dolosa, sendo impossível o
preenchimento da tipicidade subjetiva pela culpa. Esse dolo, no entanto, conforme
bem explana Juarez Cirino dos Santos, “não precisa ser constituído de consciência e
vontade como nos tipos de ação: basta deixar as coisas correrem com conhecimento
da situação típica de perigo para o bem jurídico e da capacidade de agir (na omissão
de ação própria) (...), porque dolo como vontade consciente de omitir a ação
mandada constitui exceção rara (o dico decide recusar paciente em estado grave
sob o argumento de inexistência de leito livre)”
185
.
Aproveitem-se, aqui, as lições trazidas de Welzel, ao comentar o
domínio final da omissão, o que conforma o dolo dessa conduta, pedindo-se vênia
para repeti-las: Omissão é a não produção da finalidade potencial (possível) de um
homem em relação a uma determinada ação. aquela ação que está subordinada
ao poder final do fato (domínio do fato) de uma pessoa, pode ser omitida. Os
habitantes de Berlin não podem ‘omitir’ a salvação de uma pessoa que se afoga no
Rio Rin. Omissão o significa um mero fazer nada, mas um não fazer uma ação
possível subordinada ao poder final do fato de uma pessoa concreta”
186
.
A doutrina acima citada, no entanto, filia-se ao Direito Penal comum, em
que os tipos penais omissivos são dolosos. No caso do Direito Penal Militar,
entretanto, é relevante discutir acerca da omissão própria culposa, o que alguns
doutrinadores fazem com proficiência. Nesse sentido, Armin Kaufmann expõe que
184
Jesús-María SILVA SÁNCHEZ. El Delito de Omisión: Concepto y Sistema, cit., p. 44.
185
Juarez Cirino dos SANTOS . A Moderna Teoria do Fato Punível, cit., p. 115.
100
“quando é punível a imprudência nos delitos menos graves de omissão e em
contravenções de mandados, essa punibilidade será regida pelos princípios gerais: a
lei de ordenar ou permitir expressamente a punibilidade do comportamento
imprudente”
187
, ou seja, é perfeitamente possível punir a omissão própria culposa
desde que expressa no tipo penal essa possibilidade.
Com efeito, a lei poderá punir a omissão própria culposa, e no Código
Penal Militar os exemplos são fartos. Apenas à guisa de exemplo, vinculando-se à
fidelidade sistêmica do Código Penal Castrense, o instituto do erro de direito (art. 35
do referido Codex
188
) permite a responsabilização penal em delitos culposos, ainda
que seja ignorada a ilicitude do fato. Ora, se no causalismo neoclássico, que inebria
a legislação penal militar, a consciência da ilicitude compõe o dolo
189
, é correto
afirmar que o fato perpetrado sem essa consciência não será doloso e, uma vez
havendo a aplicação do instituto a qualquer tipo penal, ainda que omissivos – exceto
nos tipos penais dos crimes contra o dever militar por expressa vedação do instituto
–, é possível, ao menos em tese, que um tipo penal omissivo próprio possa ser
responsabilizado a título de culpa, quando o agente desconhece sua ilicitude.
Assim, e.g., no crime de omissão de lealdade art. 151 do Código Penal
Militar: “Deixar o militar ou assemelhado de levar ao conhecimento do superior o
motim ou revolta de cuja preparação teve notícia, ou, estando presente ao ato
criminoso, não usar de todos os meios ao seu alcance para impedi-lo”, – se o agente
abster-se em razão de uma errônea interpretação da lei penal militar que o levou a
supor lícita sua omissão, poderá haver, em tese, a condenação, desde que com
pena mais branda ou substituída por outra de menor gravidade.
Mas a possibilidade de omissão pura culposa no digo Penal Militar não
requer a acurada construção acima, pois tipos omissivos em que a negligência
preenche a tipicidade subjetiva. Assim ocorre, por exemplo, nos crimes de
186
Hans WELZEL. Derecho Penal Aleman, cit., p. 238.
187
Armin KAUFMANN. Dogmática de los Delitos de Omisión, cit., p. 55.
188
“A pena pode ser atenuada ou substituída por outra menos grave quando o agente, salvo em se
tratando de crime que atente contra o dever militar, supõe lícito o fato, por ignorância ou erro de
interpretação da lei, se escusáveis”.
189
Deve-se lembrar que, no caso específico do Código Penal Militar, por uma imposição sistêmica
que, ressalte-se, foi acima abandonada –, o dolo possui a conformação de dolus malus (dolo
normativo ou dolo jurídico), isto é, aquele que não possui consciência do injusto no momento da ação
101
condescendência criminosa (art. 322 do CPM
190
), de não-inclusão de nome em lista
(art. 323 do CPM
191
) e de inobservância de lei, regulamento ou instrução (art. 324 do
CPM
192
) e outros. Frise-se, por fim, que essas condutas omissivas somente
possuem relevância penal em nome do princípio da excepcionalidade do crime
culposo, também adotado no Código Penal Militar, no parágrafo único do art. 33.
2.1.5.2 Crimes comissivos por omissão
Uma outra espécie de delito omissivo está na chamada omissão
imprópria, não prevista tipicamente como omissão, mas que se atrela a uma norma
proibitiva, em que o elemento central é uma ação. É, como bem assenta Bacigalupo,
“a contrapartida dos crimes comissivos de resultado e de lesão: sua problemática
substancial consiste em estabelecer quando o não evitar o resultado torna-se
punível, pois equivale à produção ativa do mesmo”. Essa equivalência surge com a
idealização de um dever jurídico de ação, marcado pela posição de garantidor.
A exemplo dos crimes omissivos próprios, os crimes omissivos impuros
devem ter como ponto inicial de análise a tipicidade, ponto fundamental de distinção
das formas de delitos omissivos.
portanto exigia-se uma consciência atual e não apenas potencial da ilicitude não poderá
responder pelo delito de forma dolosa.
190
“Deixar de responsabilizar subordinado que comete infração no exercício do cargo, ou, quando lhe
falte competência, não levar o fato ao conhecimento da autoridade competente”. A possibilidade
culposa está no preceito secundário que dispõe: “Pena - se o fato foi praticado por indulgência,
detenção até seis meses; se por negligência, detenção até três meses”. Frise-se que essa previsão
diverge daquela prevista no Código Penal comum, no art. 320, que prevê apenas a modalidade
dolosa.
191
Deixar, no exercício de função, de incluir, por negligência, qualquer nome em relação ou lista para
o efeito de alistamento ou de convocação militar”.
192
“Deixar, no exercício de função, de observar lei, regulamento ou instrução, dando causa direta à
prática de ato prejudicial à administração militar”. A possibilidade culposa está no preceito secundário,
que dispõe: “Pena - se o fato foi praticado por tolerância, detenção até seis meses; se por
negligência, suspensão do exercício do posto, graduação, cargo ou função, de três meses a um ano”.
102
2.1.5.2.1 Tipo objetivo dos crimes comissivos por omissão
Os três elementos típicos estudados para a omissão própria situação
de perigo para o bem jurídico, capacidade de agir e omissão da ão mandada
também devem ser encontrados na omissão imprópria, desde que feitas algumas
considerações específicas.
A situação de perigo para o bem jurídico não vem expressa no tipo
penal, mas deve ser constatada em contrapartida, por um raciocínio oposto àquele
empregado no tipo penal comissivo. A leitura feita, hipoteticamente, deve ter em
mente uma leitura específica dos crimes materiais, de modo a considerar que o
resultado típico pode ser alcançado simultaneamente por ação ou por omissão de
ação. Desse modo, o tipo de homicídio, e. g., deve ser compreendido como “matar
alguém, por ação proibida ou por omissão de ação mandada, na posição de
garantidor do bem jurídico”
193
. É essa constatação que, para alguns doutrinadores,
leva a concluir que a omissão imprópria é constitucional, discussão a ser novamente
enfrentada quando da abordagem da figura do garantidor.
Resta verificar se todos os delitos comissivos comportam a possibilidade
de equiparar a omissão como causadora do resultado, ou apenas os delitos
materiais, cujo resultado demonstra-se naturalisticamente. Em regra, apenas os
tipos penais de resultado naturalístico comportam a omissão imprópria e, nesse
universo, assim acena a doutrina majoritária: apenas os delitos protetores de bens
jurídicos mais relevantes devem comportar tal possibilidade.
No entanto, a possibilidade típica hipotética centra-se em uma
equiparação entre a ação e a omissão como causadoras de um resultado, que pode
ser tanto jurídico como material.
Chega-se a essa conclusão simplesmente da análise dos dispositivos dos
Códigos Penais em análise.
O Código Penal comum, em seu art. 13, e o Código Penal Militar, em seu
art. 29, dispõem: “O resultado, de que depende a existência do crime, somente é
193
Juarez Cirino dos SANTOS. A Moderna Teoria do Fato Punível, cit., p. 115.
103
imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual
o resultado não teria ocorrido”.
Claramente, a omissão pode ser equiparada à ação, se concluir-se que
ela causou o resultado, o qual os diplomas analisados o limitam a um resultado
físico, natural, podendo muito bem ser um resultado jurídico.
Nessa imputação, todavia, dois problemas são detectados, a saber: 1) a
impossibilidade de considerar a omissão, naturalisticamente, como causação de um
resultado; e 2) a impossibilidade de os crimes de mera conduta e formais, pela
constituição dos verbos nucleares, terem o momento consumativo protraído no
tempo, ao ponto de o sujeito decidir agir ou omitir.
No que concerne ao primeiro problema, a resposta está na investigação
do nexo causal dos crimes omissivos, abaixo delimitado, bastando por agora
sintetizar que o nexo causal nos delitos omissivos é puramente normativo, definido
pela lei, pois a constatação física é impossível, já que, do nada, nada pode surgir (ex
nihilo nihil fit). Ademais, uma das formas de normatizar a omissão como causadora
do resultado é restringir as situações em que isso ocorrerá, na omissão imprópria
afeta à discussão acerca da condição de garantidor.
O segundo problema, de fato, parece em primeira análise intransponível,
mas, visto amiúde, uma possibilidade de configuração de omissão imprópria em
crimes de mera conduta ou formais.
Busque-se a explanação pelo exemplo do delito de concussão (art. 305
do CPM e art. 316 do CP). Em ambos os Códigos Penais (comum e militar), a
conduta nuclear é “exigir vantagem indevida”, o que transforma o delito em espécie
em um crime formal. Nesse sentido, muito bem leciona Jorge César de Assis ao
dispor que a concussão “é crime essencialmente formal e consuma-se com o
simples fato da exigência da vantagem indevida, pouco importando se esta vem a
ser devolvida ao particular posteriormente”
194
.
Como delito formal, em princípio, não é possível a omissão imprópria,
porquanto o sujeito ou exige ouo exige a vantagem indevida e, neste último caso,
194
Jorge César de ASSIS. Comentários ao Código Penal Militar. 6 ed. Curitiba: Juruá, 2007, p. 668.
104
a tipicidade não estará preenchida. Contudo, considerando-se a possibilidade de
concurso de pessoas, pela visão majoritária, seria possível a participação por
omissão, por exemplo, no caso de um militar do Estado anunciar ao seu superior
que fará a exigência da vantagem indevida e este, sabendo do intento criminoso,
apenas assiste à prática do verbo nuclear por seu subordinado. Na visão majoritária,
frise-se, o superior hierárquico deveria responder por concussão, pois sua omissão
foi relevante penalmente ao ponto de ser compreendida como causa do resultado
jurídico.
Em conclusão, portanto, a situação típica (ou situação de perigo para o
bem jurídico) pode estar presente tanto em crimes comissivos materiais, como
acena a doutrina majoritária, como em crimes comissivos de mera conduta, ou
formais, particularmente sob a forma, também aceita pela doutrina dominante, de
participação por omissão. Sobre essa possibilidade, aliás, muito bem dispõe
Jescheck: “A jurisprudência e a doutrina aceitam de comum acordo que a maioria
dos delitos de comissão a cujo tipo pertence um resultado de lesão ou de perigo,
podem ser também cometidos por meio da não evitação de ditos resultados na
medida em que exista um dever jurídico de intervir. Mas, todavia, se encontra a
opinião de que também nos delitos de simples atividade entra em consideração uma
comissão omissiva”
195
.
Por derradeiro, também o é exigida ação quando risco ao sujeito
obrigado ou a terceiro. Contudo, a constatação do risco para o omitente ou para
terceiro o afastará a tipicidade, como ocorre em alguns tipos omissivos próprios,
mas agirá como excludente de culpabilidade, tornando inexigível conduta diversa.
Essa exclusão, todavia, ocorrerá apenas em casos extremados, posto que, na
maioria dos casos, o garantidor tem o dever de arrostar o perigo.
Deve-se também verificar, na omissão imprópria, se o omitente tinha
capacidade concreta de agir. Aproveitam-se aqui os mesmos comentários feitos
para a omissão própria, ou seja, para que haja a omissão penalmente relevante, é
195
Hans- Heinrich JESCHECK e Thomas WEIGEND. Tratado de Derecho Penal – Parte General, cit.,
p. 649.
105
preciso ficar caracterizado que o omitente possuía capacidade subjetiva de ação,
que obviamente pressupõe a capacidade físico-objetiva
196
.
A efetiva omissão da ação mandada, da mesma forma, deve ser
constatada na omissão imprópria, e ganha relevância em face da posição de
garantidor. Cabe novamente ressaltar que essa omissão dar-se-á tanto pela
completa inércia, como pela atuação de forma diversa. Assim, a babá responsável
pelo filho de seu empregador, ao vê-lo a caminho de um precipício, estará em
omissão da conduta esperada se nada fizer ou deixar o local do infortúnio.
A tipicidade objetiva do delito comissivo por omissão, todavia, requer
ainda dois outros elementos para sua constatação: o resultado típico (natural ou
jurídico) e a posição de garantidor.
O resultado típico deve ser verificado para a constatação da tipicidade
objetiva do delito omissivo impuro. Excepciona-se essa regra na modalidade
tentada, que será abaixo abordada. Firme-se, então, que o tipo objetivo da omissão
imprópria exige que o resultado típico, natural ou jurídico, concretize-se em razão da
omissão verificada. A causalidade aqui, como suscitado, não é real, mas
hipoté¬tica, uma probabilidade próxima da certeza. Assim, aproveitando os
exemplos citados, para que a ba responda pelo homicídio do filho de seu
empregador, é necessário que a criança caia no precipício e morra. Da mesma
forma, para que o superior responda como partícipe na concussão, é preciso que
seu subordinado, em sua presença, exija vantagem indevida, consumando a
concussão.
Por fim, a constatação da tipicidade objetiva dos delitos omissivos
impróprios estará completa com a verificação da posição de garantidor.
Como se disse, para compreender o delito omissivo é necessário haver
uma equiparação entre o agir e o omitir na causação do resultado (material ou
jurídico) do delito, causação essa que será apenas hipotética e não natural. Some-
se a essa premissa que “desde Feuerbach se aceita que, basicamente, o
ordenamento jurídico impõe ao cidadão o dever de omitir comportamentos ativos
196
Expressamente, no Brasil, os art. 13 do Código Penal e 29 do Código Penal Militar, no § 2º,
colocam como condição de reconhecimento de omissão penalmente relevante a capacidade de ação.
106
através dos quais podem ser menoscabados bens jurídicos de terceiros”
197
. Nessa
linha de raciocínio, a omissão imprópria, que impõe um dever de ação (norma
preceptiva), deve também ser verificada diante de um fundamento jurídico
especial, que, primeiro, equipare ação a omissão no desencadeamento do resultado
típico e, segundo, restrinja as hipóteses penalmente relevantes à exceção apenas
quando bens jurídicos de terceiros, sob tutela especial do omitente, estejam
ameaçados.
Surge, então, a necessidade de uma construção jurídica acerca de quem
teria esse dever especial: o garantidor. Como muito bem assenta Jescheck, “todos
os deveres de impedir o resultado descansam sobre a idéia básica de que uma
pessoa determinada está chamada de um modo especial à proteção do objeto do
bem jurídico posto em perigo, e que todo o resto dos co-partícipes confiam e podem
confiar na intervenção ativa dessa pessoa”
198
. Sem o dever especial e, portanto,
sem a figura do garantidor, não haverá delito omissivo impróprio, de onde se conclui
que todos os delitos comissivos por omissão são delitos de sujeição ativa restrita a
certas pessoas, portanto, delitos próprios.
O grande problema, no entanto, enfrenta-se ao buscar a delimitação da
figura do garantidor, uma vez que surgem basicamente duas teorias principais: a
teoria formal do dever jurídico e a teoria das funções.
A teoria formal do dever jurídico busca determinar o dever especial de
acordo com a causa de sua origem. Segundo essa teoria, originada no raciocínio de
Feuerbach, a omissão para impedir um resultado deve ser equiparada à sua
causação, quando a obrigação de impedir o resultado proviesse de uma lei, de um
contrato, ou então quando o perigo para o bem jurídico fosse decorrente de um fato
anterior provocado pelo omitente (os chamados casos de ingerência). Como
exemplos, os casos do bombeiro militar que, na condição de garantidor, assim
colocada pela lei, com dever especial de ação, vê, durante sua folga, uma vítima
carecendo de primeiro atendimento. Do mesmo modo estaria obrigada a atuar a
babá, como acima exemplificado, para salvar a vida do filho de seu empregador,
em razão do contrato celebrado. Por fim, o exemplo da pessoa que, ao adentrar um
197
Hans- Heinrich JESCHECK e Thomas WEIGEND. Tratado de Derecho Penal – Parte General, cit.,
p. 668.
107
compartimento cheio de palha e feno fumando um cachimbo, tropeça em um arame
e provoca um incêndio. Tem ela o dever de impedir o incêndio que realmente
ocorreu e consumiu todo o edifício
199
.
A teoria em comento, no entanto, sofre várias críticas, principalmente por
ser, na visão de alguns, extremamente restritiva. Nesse sentido dispõe Enrique
Bacigalupo:
A teoria formal das fontes de dever não restou convincente, pois se
mostrava demasiadamente estrita. Por exemplo: se por um lado permitia
explicar os deveres de proteção que existiam no núcleo familiar mais
estreito entre pais e filhos, chocava-se com o sentimento de justiça quando
se comprovava que, por exemplo, o sobrinho órfão, criado por sua tia, e que
havia crescido na casa desta, não teria para com ela, por força de lei, os
deveres que lhe incumbiam com relação a seus pais. Nesse sentido, torna-
se paradigmática a decisão do OGH (Tribunal Supremo austríaco) de 1934
na qual rejeitou a condenação por homicídio do noivo que não impediu o
suicídio de sua noiva, pois um dever semelhante entre noivos não surge de
lei ou contrato. O OGH retificou esse ponto de vista em 1960. O mesmo
ocorria em relação ao negócio jurídico (especialmente o contrato): a
nulidade deste eliminava a fonte do dever de agir (...)”
200
.
Buscando combater essas deficiências, a doutrina, principalmente a
alemã, idealizou teoria funcional das fontes de dever
201
.
Por essa nova visão, a posição de garantidor não deve estar atrelada à
origem do dever, mas arrimada em uma visão material, em um sentido social em que
o dever especial do omitente seria considerado de acordo com sua posição no corpo
social. Surgem, assim, duas espécies de deveres: deveres de custódia de bens
jurídicos e deveres de domínio de fontes de perigo.
Os deveres de custódia estão vinculados a uma função de proteção de
determinado bem jurídico e podem surgir de uma vinculação natural com o titular do
bem jurídico ameaçado, de estreitas relações de uma determinada comunidade ou
da assunção voluntária de uma custódia.
O vínculo natural, obviamente, é a mais forte das origens dos deveres de
custódia e está adstrito aos membros mais próximos da família, muito embora não
haja uma definição exata do grau de parentesco limite, por afinidade ou
198
Idem. Ibidem.
199
Exemplo de Aníbal BRUNO. Direito Penal. Parte Geral, cit., p. 194.
200
Enrique BACIGALUPO. Direito Penal – Parte Geral, cit., p. 495.
108
consangüinidade, para a geração desse dever. Não basta, por outro lado, a mera
relação amorosa (namorados, por exemplo) ou a simples amizade. Para alguns
doutrinadores, a obrigação gerada alcança apenas a custódia sobre a vida e o
corpo, enquanto para outros chegaria a outros bens jurídicos como, por exemplo, o
patrimônio. Assim, v.g., os pais têm dever de custódia sobre a vida ou a integridade
dos filhos dependentes, bem como o sobrinho órfão em relação à tia que o criou,
solucionando o problema apontado acima por Bacigalupo.
Estreitas relações de uma determinada comunidade também podem
gerar o dever de custódia, dever esse muitas vezes considerado reciprocamente,
desde que haja um vínculo de dependência e confiança de custódia. Como exemplo,
tome-se o guia de excursão que está obrigado a prover os alimentos básicos de
subsistência para os que excursionam, devendo ser assistido, porém, pelos
freqüentadores da excursão, caso sofra um ferimento grave
202
.
A última fonte geradora dos deveres de custódia é a assunção
voluntária da custódia em face de uma pessoa que sofre perigo. Fundamental ao
reconhecimento dessa fonte de dever é constatar que o afetado, confiando na
disponibilidade de intervenção do garantidor, exponha-se a um risco maior do que
naturalmente se exporia ou que, confiando ainda na possível intervenção do
garantidor, renuncie a uma outra proteção
203
. O médico, v.g., assume esse dever de
custódia em relação aos seus pacientes.
Por fim, cumpre consignar que, para Jescheck, o dever de atuação de
certos funcionários públicos surge dos deveres de custódia, em especial dos
deveres originados de estreitas relações com a comunidade. Entretanto, Jescheck
nota um exagero na jurisprudência alemã, que considerou responsável policial, a
título de co-autoria ou participação, por todos os delitos praticados em seu âmbito de
atuação (circunscrição), quando, em verdade, para o autor, apenas aqueles casos
em que o bem jurídico ameaçado lhe está confiado diretamente suporta uma
responsabilização penal (ex.: cuidado de presos ou de pessoas internadas),
201
Designação utilizada por Bacigalupo para a teoria das funções. Enrique BACIGALUPO. Direito
Penal – Parte Geral, cit., p. 496-7.
202
Exemplo aproximado ao trazido por Hans-Heinrich JESCHECK e Thomas WEIGEND. Tratado de
Derecho Penal – Parte General, cit., p. 671.
203
Hans-Heinrich JESCHECK e Thomas WEIGEND. Tratado de Derecho Penal Parte General, cit.,
p. 671.
109
devendo haver, nos demais casos, apenas a responsabilização disciplinar
204
. O
citado exemplo, embora adote-se no Brasil a teoria formal das fontes de dever, como
demonstrar-se-á mais à frente, será futuramente explorado sob uma nova roupagem.
A outra forma de deveres admitidos para a configuração da figura de
garantidor pela teoria funcional são os deveres de domínio de uma fonte de
perigo. Se nos deveres de custódia focava-se a relação entre garantidor e o
menoscabo a um bem jurídico, nos deveres de domínio interessa a relação imposta
ou esperada entre o garantidor e o controle de determinada fonte de perigo.
Apontam-se três subgrupos de garantidores vinculados ao controle de
fontes de perigo: os que atuam precedentemente de forma perigosa, os que devem
controlar determinadas fontes de perigo e os responsáveis pelo atuar de terceiros.
O atuar precedente perigoso aqui também chamado de casos de
ingerência, como na teoria formal das fontes de dever – gera o dever de controlar a
fonte de perigo gerada, com fundamente no princípio geral do Direito de vedação à
lesão de direitos alheios. Quem provoca um perigo de dano a alguém, dolosa ou
culposamente, deve atuar para impedir que o dano se concretize, sob pena de
responsabilização penal. Essa provocação pode-se verificar não pela atuação
que faça surgir novas fontes de perigo como no exemplo do fumante de cachimbo
que ingressa em um celeiro cheio de palha e feno –, mas também que neutralize
uma proteção anterior existente como o visitante em um berçário que inutilize a
incubadora neonatal onde repousa o recém-nascido –, ou outra pessoa que se
dispõe a proteger o bem jurídico como o supervisor de segurança que,
inadvertidamente, libera o vigia antes de sua substituição.
O atuar precedente gerador do dever de controlar a fonte de perigo, no
entanto, deve obedecer a certos critérios.
Primeiramente, o perigo provocado deve ser adequado à provocação do
dano. Dessa forma, o taberneiro que serve grande quantidade de bebida alcoólica a
um cliente obriga-se a zelar por sua integridade física e vida, sendo responsabilizado
penalmente se o colocar para fora da taberna sem os cuidados necessários à sua
proteção. Em sentido oposto, o caçador que abate um animal e o deixa em uma
204
Idem, p. 672.
110
movimentada estrada não estará obrigado a cuidar da sinalização da via de
rolamento chamando a atenção para um perigoso buraco existente na pista, um
quilômetro antes do local onde abandonou a caça.
Em segundo plano, o atuar perigoso precedente deve estar atrelado à
contrariedade de um dever, afastando-se da responsabilidade penal, logicamente, a
geração permitida de perigo. Não estará obrigado a controlar a fonte de perigo, por
exemplo, o vendedor de uma arma regular, ou aquele que habilita uma pessoa à
condução de veículos de emergência. Note-se que, nesses casos, a geração de
risco é admitida pelo Direito, não podendo, pois, importar em dever de controle de
fonte de perigo.
Exige-se também que a contrariedade do dever consista em infringir a
norma que serve para a proteção do bem jurídico afetado. Rechaça-se, pois, o dever
de evitar, por exemplo, o falso testemunho no bojo de um processo de divórcio
baseado na conduta adúltera de um dos cônjuges
205
. Tome-se ainda como exemplo
o apostador inveterado que, convencido por um amigo a efetuar uma aposta que
colocará em risco seu patrimônio, a caminho do ambiente de jogo é atingido por um
objeto contundente que coloca em risco sua vida; o amigo que o convenceu a
apostar, embora esteja obrigado a atuar por uma previsão genérica contida em um
tipo penal omissivo puro (omissão de socorro), não estará obrigado a controlar a
fonte de perigo, não sendo esta, portanto, a fundamentação de sua
responsabilização penal.
Cabe frisar, finalmente, que a geração de perigo por uma conduta
praticada sob a exclusão da antijuridicidade ou da culpabilidade não desobriga o
controle da fonte de perigo. In exemplis, aquele que em legítima defesa de sua vida
neutraliza, sob amparo da legítima defesa, a agressão injusta, estará sim gerando
uma fonte de perigo, devendo, pois, adotar providências para a prestação de socorro
de seu agressor. Caso assista, passivamente, sua agonia até a morte, responderá
pelo resultado alcançado. Basta, no entanto, que atue no sentido de neutralizar a
fonte de perigo gerada, não respondendo pelo delito se prestar o pronto socorro.
205
Hans-Heinrich JESCHECK e Thomas WEIGEND. Tratado de Derecho Penal Parte General, cit.,
p. 674.
111
Note-se que a legítima defesa excluirá apenas a antijuridicidade da conduta no
momento da repulsa à agressão, mas não após, durante a omissão.
Aqueles que devem controlar certas fontes de perigo compõem o
segundo grupo dos garantidores pelo dever de domínio de fontes de perigo. A
responsabilização penal desse grupo fundamenta-se no fato de a comunidade
depositar confiança de que aqueles que exercem poder de disposição sobre
determinado âmbito de domínio, ou sobre um espaço delimitado que está aberto aos
demais ou que pode sobre eles influir, dominam os perigos que, nesse âmbito,
podem derivar riscos a bens jurídicos. Como exemplo, cite-se o diretor de uma
estação de produção de energia (elétrica ou nuclear), que tem o dever de controle,
sobre quem gera-se uma expectativa de que haja contenção de perigos
eventualmente surgidos dessa atividade.
Por derradeiro, como último grupo atrelado aos deveres de domínio de
fontes de perigo, encontram-se os responsáveis pelo atuar de terceiros, que serão,
por essa razão, garantidores em face da omissão. Dessarte, o pai que passivamente
assiste seu filho, criança de quatro anos, arremessar um objeto contundente contra
outra criança será, por sua omissão, considerado causador do resultado, pois era
garantidor, por seu dever de controle, da atuação de seu filho.
A discussão acerca de qual teoria é a mais adequada tornou-se muito
profícua na Espanha e na Alemanha, principalmente porque o crime omissivo
impróprio era fruto de uma construção jurisprudencial e doutrinária, sendo natural
que houvesse a tentativa de objetivar a imputação do resultado na omissão
imprópria pela escorreita construção doutrinária. Aliás, o fato de não haver previsão
legal para a omissão imprópria era sua principal fraqueza, porquanto muitos o a
aceitavam, por considerá-la afronta ao princípio da legalidade.
Somente com a inclusão do § 13 no digo Penal alemão, em 1975, e
com o surgimento do novo Código Penal espanhol, em 1995, por seu artigo 11, a lei
passou, nos dois países, a disciplinar expressamente a possibilidade da omissão
imprópria. Mas ainda hoje subsiste a discussão acerca de qual a melhor teoria a
caracterizar a posição de garantidor, mesmo porque não uma tomada de posição
clara pela lei e, mesmo com leve preponderância para a teoria formal, ainda há o
problema de extrema limitação dessa teoria, por vincular-se ao contrato.
112
À guisa de exemplo, analise-se a disposição no Código Penal espanhol, a
Lei Orgânica n. 10, de 23 de novembro de 1995:
“Artículo 11
Los delitos o faltas que consistan en la producción de un resultado sólo se
entenderán cometidos por omisión cuando la no evitación del mismo, al
infringir un especial deber jurídico del autor, equivalga, según el sentido del
texto de la Ley, a su causación. A tal efecto se equiparará la omisión a la
acción
206
:
a) Cuando exista una específica obligación legal o contractual de actuar
207
.
b) Cuando el omitente haya creado una ocasión de riesgo para el bien
jurídicamente protegido mediante una acción u omisión precedente”
208
.
Com efeito, a lei espanhola limita como fonte de dever a obrigação legal
ou contratual de atuar, o que “engessa”, de certa forma, a responsabilização penal
pela omissão imprópria, como no supracitado caso do sobrinho órfão que reside com
a tia.
No Brasil, todavia, a conformação apresenta-se de forma diversa, sendo
possível afirmar que o legislador brasileiro, tanto no digo Penal comum como no
Código Penal Militar, adotaram a teoria formal das fontes de dever, porém sem a
vinculação expressa a um contrato.
O Código Penal comum assim dispõe:
“Art. 13 - O resultado, de que depende a existência do crime, somente é
imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão
sem a qual o resultado não teria ocorrido.
§ 1º (...)
§ - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia
agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:
a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;
b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado;
c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do
resultado”.
Essa construção, deve-se alertar, está em conformidade com a reforma
da Parte Geral do Código Penal comum, trazida pela Lei n. 7.209, de 11 de julho de
1984. O número 13 da Exposição de Motivos da Nova Parte Geral do Código Penal
expõe muito bem a tentativa de disciplinar a omissão imprópria, nos seguintes
206
“Os delitos ou faltas que consistam na produção de um resultado somente serão cometidos por
omissão quando a não evitação do mesmo, ao infringir um especial dever jurídico do autor, equivalha,
segundo o sentido do texto da Lei, à sua causação. Nesse propósito, a omissão se equiparará à
ação:”
207
“a) quando exista uma específica obrigação legal ou contratual de atuar.”
208
“b) quando o omitente haja criado uma situação de risco para o bem juridicamente protegido
mediante uma ação ou omissão precedente.”
113
termos: “No art. 13, § 2º, cuida o projeto dos destinatários, em concreto, das normas
preceptivas, subordinados à prévia existência de um dever de agir. Ao introduzir o
conceito de omissão relevante, e ao extremar, no texto da lei, as hipóteses em que
estará presente o dever de agir, estabelece-se a clara identificação dos sujeitos a
que se destinam as normas preceptivas (...)”.
O legislador de 1984 considerou claramente que concebia um rol
exaustivo de possibilidades de geração da figura de garantidor, podendo, no
máximo, o trabalho dogmático buscar a melhor interpretação para as figuras
expressas.
Engana-se, no entanto, quem pensa que a inovação da omissão
imprópria com cláusula expressa de geração de dever foi inovação da reforma da
Parte Geral do Código Penal em 1984. Em verdade, essa inovação surgiu em 1969,
com a idealização do novo Código Penal, revogado antes de sua entrada em vigor, e
com o novo Código Penal Militar, esse com vigência até os dias atuais.
No natimorto Código Penal comum de 1969, Decreto-lei n. 1.004, de 21
de outubro daquele ano, a previsão das fontes de dever também estava expressa no
§ 2º do art. 13, com a mesma disposição hoje encontrada. Muito mais esclarecedora,
no entanto, é sua Exposição de Motivos, lavrada pelo então Ministro da Justiça Luís
Antônio da Gama e Silva, que em seu número 9 consigna:
“Importante é o que agora aparece com referência aos crimes comissivos
por omissão. Não se encontram especificados na lei vigente, nem nos
Códigos de sua época, os pressupostos da conduta típica, dessa categoria
de delitos, defeito que as legislações penais modernas vêm corrigindo.
Como se demonstrou, amplamente, a ilicitude aqui surge não porque o
agente tenha causado o resultado, mas porque não o impediu violando o
seu dever de garantidor. É indispensável fixar na lei as fontes de tal dever
de atuar.
Manteve-se o projeto nos limites tradicionais proclamados pela doutrina, de
longa data. O dever jurídico de impedir o resultado surge basicamente, com
a lei, com o contrato ou com a anterior atividade causadora do perigo,
mesmo sem culpa. Evitou-se a referência a contrato, que constava no texto
original do projeto, tendo-se em vista que o dever de agir surge também
quando o agente espontaneamente assume função tutelar ou encargo sem
mandato. Não é propriamente do contrato que surge o dever jurídico, mas
de sua projeção social, como espécie do dever de direito público,
exercendo-se não em relação ao outro contratante, mas ao corpo social. Por
isso mesmo, as limitações impostas pelo contrato, e que se fundam no
114
direito privado, não têm relevância. A fórmula adotada no projeto atende a
essas considerações”
209
(g.n.).
Como se percebe, muito mais adequada a visão do legislador brasileiro
que compreendeu as possíveis limitações da adoção da teoria formal, o
mencionando expressamente o contrato, preferindo falar em “outra forma” de
assunção de responsabilidade de impedir o resultado.
Embora o Código Penal de 1969 não tenha entrado em vigor, sua
Exposição de Motivos torna-se fundamental para compreender a evolução histórica,
porquanto o Código Penal Militar (Decreto-lei n. 1.001, de 21 de outubro de 1969),
que permanece em vigor, traz exatamente a mesma previsão, adotando
expressamente a teoria formal das fontes de dever, na seguinte conformidade:
“Art. 29. O resultado de que depende a existência do crime somente é
imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão
sem a qual o resultado não teria ocorrido.
§ 1º (...)
§ A omissão é relevante como causa quando o omitente devia e podia
agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem tenha por lei
obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; a quem, de outra forma,
assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; e a quem, com seu
comportamento anterior, criou o risco de sua superveniência”.
Do exposto, pode-se concluir que, no Brasil, os elementos da tipicidade
objetiva do crime omissivo impróprio são a situação de perigo para o bem jurídico,
a capacidade de agir, a omissão da ação mandada, o resultado típico (natural
ou jurídico) e a posição de garantidor. A definição da posição de garantidor, por
sua vez, tem conformação de acordo com a teoria formal do dever jurídico,
atrelada à origem desse dever, expressamente prevista nos diplomas penais como
decorrente de lei, de outra forma de assunção de obrigação de tutela e aqui o
contrato torna-se apenas um exemplo e não a única forma, o que rompe com a
crítica de ser essa teoria extremamente limitada, como no Direito penal espanhol – e
nos casos em que a atuação anterior tenha significado a produção de um perigo
para determinado bem jurídico (casos de ingerência).
A discussão acerca da teoria formal, todavia, pode ser importante para
orientar a adequada interpretação da própria teoria formal, como se verá no capítulo
209
Trecho retirado de José Henrique PIERANGELI. Códigos Penais do Brasil: Evolução Histórica. 2
ed. São Paulo: RT, 2001, p. 513.
115
que tratará especificamente da assim conhecida majoritariamente participação
por omissão.
2.1.5.2.2 Tipo subjetivo dos crimes comissivos por omissão
No que concerne à tipicidade subjetiva da omissão imprópria, há, agora
sem celeumas, a possibilidade de sua perpetração tanto a título de dolo como a
título de culpa.
Para a forma dolosa, tranquilamente, podem ser aproveitados os
comentários afetos à tipicidade subjetiva nos crimes omissivos puros, sem maiores
dificuldades, apenas ressaltando que a posição de garantidor deve ser conhecida
pelo omitente não o dever em si. Nesse sentido, dispõe Bacigalupo que, nos
crimes omissivos impróprios dolosos, o dolo requer o conhecimento da situação
geradora do dever de agir (o que aqui significa basicamente conhecimento da
ameaça da produção do resultado), das circunstâncias que fundamentam a posição
de garantidor e das que fundamentam a possibilidade de agir”
210
. Assim, a babá que
vê o filho de quatro anos de idade de seu empregador caminhando para o precipício,
ao deixar que a criança caia e morra, tendo a perfeita compreensão e domínio final
da situação, estará em cometimento de homicídio doloso.
Em relação à possibilidade de omissão imprópria culposa, desde que haja
previsão típica do tipo comissivo a esse título (culposo), é perfeitamente possível sua
ocorrência, e nisso assente a doutrina de forma uníssona. Mais uma vez, tome-se a
lição de Bacigalupo: “Nos crimes omissivos culposos, o autor desconhece, ainda que
tenha tido condições de conhecer, as circunstâncias que fundamentam o dever de
agir, sua posição de garantidor ou sua possibilidade de agir no sentido exigido pelo
mandamento da ação”
211
.
Dessarte, o policial rodoviário que, vendo um animal morto no
acostamento de uma rodovia, deixa para providenciar sua remoção no dia seguinte,
supondo não haver risco por não se encontrar na faixa de rolamento, responde
210
Enrique BACIGALUPO. Direito Penal – Parte Geral, cit., p. 512.
116
culposamente pela morte do motociclista que, naquela noite, sofrer acidente em
razão da carcaça deixada no acostamento. Também responderá culposamente pela
morte do filho do empregador, a babá que vê a criança afogando-se em um rio, não
efetuando o salvamento por pensar que o local seja profundo, quando, em verdade,
para ela, não haveria risco em razão de ser parte rasa do curso d’água.
2.1.5.3 Crimes omissivos por comissão: terceira espécie de crime omissivo?
Setor doutrinário reconhece ainda uma terceira categoria de crime
omissivo, a chamada omissão por comissão.
Referida modalidade tomaria corpo em três hipóteses:
a) casos em que o obrigado a agir coloca-se em estado impeditivo de
ação, por sua espontânea vontade (omissio libera in causa). Ex.: o caixa de um
banco que se embriaga para o impedir que um amigo apodere-se do dinheiro que
estava sob sua guarda;
b) casos em que o obrigado a agir inicia o processo, mas em determinado
momento desiste e queda-se inerte. Ex.: alguém que arremesse uma bóia a um
náufrago e, ao arrepender-se, a retira em seguida;
c) casos em que alguém que o esteja obrigado a agir impede que o
obrigado aja. Ex.: o capataz em um sítio que impede que a babá salve o filho do
empregador que se afoga.
Em verdade, não uma autonomia conceitual dessas formas delitivas,
porquanto podem elas muito bem ser encaixadas em condutas comissivas, em
autoria mediata, participação em crime comissivo, ou mesmo omissivas, nas formas
já apresentadas.
Negando essa autonomia, Bacigalupo ensina:
“Por um lado, nega-se à categoria da comissão por omissão qualquer
autonomia conceitual e se afirma categoricamente que ela ‘não existe’, pois,
211
Enrique BACIGALUPO. Direito Penal – Parte Geral, cit., p. 512.
117
nesses casos, trata-se de verdadeiros crimes comissivos realizados em
autoria mediata (quando se impede que um terceiro obrigado haja). A
autoria mediata ativa, não obstante, não está adequada quando o próprio
obrigado se coloca em condições que impeçam cumprir o dever imposto.
Nessas hipóteses, no entanto, tampouco poderá falar-se em uma categoria
específica. Isso se faz claro no caso da desistência: se o autor estava
obrigado a cumprir uma ação e não o fez, o início do cumprimento é
irrelevante para a valoração jurídica do fato, portanto deverá se ter pura e
simplesmente uma omissão. O mesmo pode se afirmar a respeito daquele
que se coloque em condições de não realizar a ação; aqui o obrigado age
com relação a si mesmo como se fosse um terceiro e, portanto, daí deve ser
apreciado um ato positivo sem mais”
212
.
2.1.6 Nexo causal nos delitos omissivos
Acerca do nexo causal, os delitos omissivos puros, por serem, em regra,
de mera conduta, dele prescindem. Em sendo o resultado da abstenção da ação, em
princípio, dado estranho ao tipo penal, o utilidade em averiguar a causalidade
no crime omissivo próprio
213
. Tal irrelevância, prima facie, fez com que Liszt
afirmasse que foi com o século XIX que começou a discussão científica a respeito da
causalidade da omissão, “uma das questões mais infecundas que se tem agitado na
ciência do Direito Penal”
214
.
Todavia, essa aparente irrelevância não se confirma em um olhar mais
detido na legislação penal brasileira. Naqueles delitos omissivos que exigem um
resultado, como no caso do art. 324 do Código Penal Militar (Inobservância de lei,
regulamento ou instrução), deve-se buscar uma forma de equiparar a omissão à
causação do resultado, vez que a omissão – um nada – não pode naturalisticamente
gerar algo.
Pouco explorada é essa possibilidade, porquanto afeta apenas o Direito
Penal Militar, que possui escassa doutrina. Porém, uma das possibilidades de sanar
o problema seria aplicar também a esses casos as cláusulas formais geradoras de
dever. Assim, deveria ser responsabilizado pelo delito de inobservância de lei,
regulamento ou instrução apenas aquele que assumisse o dever de garantidor, por
algumas das formas previstas no § 2º do art. 29 do mesmo Diploma. De se notar que
212
Enrique BACIGALUPO. Direito Penal – Parte Geral, cit., p. 517.
213
Nesse sentido, Francisco de Assis TOLEDO. Princípios básicos de direito penal, cit., p. 116.
214
Franz Von LISZT. Tratado de Direito Penal Alemão, cit., p. 230.
118
a previsão da omissão penalmente relevante não possui restrição apenas para os
crimes em que o verbo nuclear indique uma ação, podendo muito bem ser aplicada,
por mais estranho que possa parecer, em delitos omissivos puros de resultado.
Para melhor esclarecer o que se propõe, tome-se a previsão expressa do
delito em comento: “Deixar, no exercício de função, de observar lei, regulamento ou
instrução, dando causa direta à prática de ato prejudicial à administração militar”.
O resultado – dar causa a prática de ato prejudicial à Administração Militar
–, como se observa, é sim elemento típico, devendo ser verificado para a
consumação do delito. Contudo, somente aqueles obrigados pelos casos expressos
no § do art. 29 poderiam ter sua omissão equiparada a uma ação. O Oficial do
Exército Brasileiro designado para ser encarregado de um inquérito policial militar
(IPM), e.g., deve atuar para que a investigação do delito seja desencadeada; ao
deixar os autos em uma gaveta por seis meses, poderá responder pelo delito
capitulado no art. 324 do Código Penal Militar, pois seu dever de ação decorre da lei,
em especial do Código de Processo Penal Militar, em seu art. 10 e seguintes, que
dispõe acerca das regras do IPM.
Nos delitos omissivos impróprios, por outro bordo, a doutrina vem
discutindo de forma a negar o nexo de causalidade, substituindo-o por outra
averiguação que pode ser a constatação de um “nexo de evitação” ou mesmo a
negação total de uma causalidade física, partindo-se para uma aferição normativa
do nexo entre conduta omissiva imprópria e o resultado.
No primeiro grupo encontram-se Zaffaroni e Pierangeli. Os autores iniciam
a discussão com um profícuo exemplo, afirmando que a e que tricota meias em
vez de alimentar seu filho está em verdade “causandoas meias, e não a morte da
criança por inanição. Com base nesse exemplo, os autores sustentam a
necessidade de averiguar o um “nexo de causalidade”, mas um “nexo de
evitação”, estabelecido este “por uma hipótese mental similar à que empregamos
para estabelecer o nexo de causação na estrutura típica ativa: se imaginamos a
conduta devida e com isso desaparece o resultado típico, haverá um nexo de
evitação; enquanto que se imaginamos a conduta devida e o resultado típico
119
permanece, não existirá um nexo de evitação”
215
. Percebe-se muito bem que a visão
dos autores é calcada em uma investigação física por probabilidade.
No outro grupo de doutrinadores, a questão do nexo de causalidade nos
crimes comissivos por omissão não pode ser constatado fisicamente, mas apenas
de acordo com o disposto na lei penal.
Melhor esclarecendo, por essa posição, majoritária, a averiguação do
nexo de causalidade é conveniente, contudo, também com base na equivalência
entre ação e omissão, concentrada na figura do garantidor. A solução para essa
averiguação, segundo Assis Toledo
216
, é simples e reside na avaliação de um nexo
normativo, estabelecido por opção legislativa naquelas cláusulas genéricas de
fontes de dever (art. 13 do digo Penal e o art. 29 do Código Penal Militar, ambos
no § 2º). Em outras palavras, a atribuição do resultado ao garantidor não pode
basear-se em causalidade real, porquanto será praticamente impossível demonstrar
que a ação do garantidor inequivocamente impediria o resultado típico. Deve, sim,
firmar-se em causalidade hipotética, arrimada sobre juízo de probabilidade
próxima da certeza, ou, como se diz hoje, em uma possibilidade fática
217
.
São três, portanto, os vínculos normativos a estabelecer o nexo de
causalidade, recaindo sobre quem: 1º) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção
ou vigilância; 2º) de outra forma assumiu a responsabilidade de impedir o resultado;
e 3º) com seu comportamento anterior, criou o risco de sua superveniência. Essas
condições conferem a seus sujeitos a condição de garantidor ou de garantidor do
bem jurídico-penal abrangido pelas normas que exigem comissão.
A posição do nexo normativo parece ser a mais adequada, porquanto
mais segura, sem residir em juízo de probabilidade como sustentam Zaffaroni e
Pierangeli –, sendo ela, frise-se, adotada pelo Supremo Tribunal Federal. Este
decidiu que a causalidade nos crimes comissivos por omissão não é fática, mas
jurídica, consistente em não haver atuado o omitente como devia e podia para
impedir o resultado
218
.
215
Eugenio RAÚL ZAFFARONI e José Henrique PIERANGELI., ob. cit., p. 539.
216
Francisco de Assis TOLEDO. Princípios Básicos de Direito Penal, cit., p. 116.
217
Juarez Cirino dos SANTOS. A Moderna Teoria do Fato Punível, cit., p. 116.
218
RTJ, 116:177, apud Francisco de Assis TOLEDO. Princípios Básicos de Direito Penal, cit., p. 117.
120
2.1.7 Tentativa nos delitos omissivos
Justamente por serem, em regra, crimes de mera conduta, torna-se muito
difícil a tentativa nos crimes omissivos próprios, que o fracionamento do delito em
partes de um caminho (iter criminis) é de difícil concepção, posto que a mera inação
consuma o delito, reconhecendo-se um resultado jurídico. Nesse sentido, Cezar
Roberto Bitencourt assevera que o “crime omissivo próprio também não admite
tentativa, pois não exige um resultado naturalístico produzido pela omissão. Se o
agente deixa passar o momento em que devia agir, consumou-se o delito; se ainda
pode agir, não se pode falar em crime. Ex.: omissão de socorro. Até o momento em
que a atividade do agente é eficaz, a ausência desta não constitui crime. Se nesse
momento a atividade devida não ocorrer, consuma-se o crime. Concluindo, o crime
omissivo próprio consuma-se no lugar e no momento em que a atividade devida
tinha de ser realizada”
219
.
Contudo, admitindo-se a possibilidade de crime omissivo próprio de
resultado, como acima demonstrado, a tentativa afigura-se como provável. Assim,
emprestando o exemplo trazido, no caso do Oficial do Exército que deixou o IPM
por meses em uma gaveta, sem a regular condução das apurações, tendo seu
conteúdo sido apurado por outro procedimento e de forma incidental chegado ao
conhecimento do Ministério Público Militar, convertendo-se em processo penal
militar, o prejuízo à Administração Militar não estará concretizado, porquanto o outro
procedimento supriu o desencadeamento das conseqüências (disciplinares e penais,
por exemplo) que deveriam ser desencadeadas pelo IPM deixado na gaveta. Houve,
no entanto, a conduta omissiva, sem que o resultado exigido pelo tipo fosse
produzido portanto, uma tentativa –, que o delito o se consumou por razões
alheias à vontade do agente.
No que se refere aos crimes omissivos impróprios, pacífica é a aceitação
da forma tentada, desde que seja a omissão atrelada a um crime comissivo material.
Nessa linha, também sacramenta Cezar Roberto Bitencourt que os “crimes
219
Cezar Roberto BITENCOURT. Tratado de Direito Penal – Parte Geral, cit. p. 501.
121
omissivos impróprios ou comissivos por omissão, que produzem resultado
naturalístico, admitem a tentativa”
220
.
É muito importante lembrar que, clamando a exceção do crime omissivo
no ordenamento jurídico trio, a firme atuação no intento de praticar a ação
mandada para afastar a omissão, ainda que se produza o resultado, afasta a
omissão em si, não havendo tentativa.
2.1.8 Antijuridicidade e culpabilidade nos delitos omissivos
A antijuridicidade e a culpabilidade nos delitos omissivos, adotando-se ou
não a fidelidade sistêmica do Código Penal comum e do Código Penal Militar, não
apresenta contornos específicos que mereçam destaque.
Assim, pode-se concluir com Bacigalupo:
“A antijuridicidade de um comportamento típico define-se como
a realização do tipo não amparada por causas de justificação:
todo comportamento típico será antijurídico, a não ser que
tenha sido autorizado por uma causa de justificação. Isso se
aplica a crimes comissivos ou omissivos (...).
Também a culpabilidade do crime omissivo coincide
substancialmente com a do crime comissivo (...)”
221
.
220
Idem, p. 502.
221
Enrique BACIGALUPO. Direito Penal – Parte Geral, cit., p. 512.
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3.1.1 Conceito de autoria
É possível que a sujeição ativa de delitos recaia, ao mesmo tempo, sobre
mais de uma pessoa, quando então, diante da presença de alguns requisitos, ter-se-
á o concurso de pessoas.
Antes de compreender a estrutura do concursus delinquentium, no
entanto, faz-se necessário o completo entendimento acerca da figura do autor,
verificando, pois, as teorias explicativas da autoria.
Primorosa, nesse sentido, é a lição de Duek Marques, in verbis: “o
conceito de autoria em Direito Penal é entendido a partir de três teorias: a subjetiva
causal ou extensiva, a formal objetiva ou restritiva ou do domínio do fato. Para a
primeira, todos os agentes que dão causa ao evento são considerados autores,
independentemente de terem ou não praticado a ação descrita no tipo penal. Na
segunda, são autores os que praticam os atos de execução previstos no tipo penal,
enquanto os partícipes concorrem para o resultado do crime sem praticar, no todo ou
em parte, a ação tipificada. A terceira, a teoria do domínio do fato, considera autor o
agente que detém o controle da ação, embora possa o praticar atos executórios
previstos no tipo penal”
222
.
222
Oswaldo Henrique Duek MARQUES. A autoria no Código Penal e a teoria do domínio do fato.
Caderno Jurídico da Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo, abr. 2001, p. 171.
Capítulo
123
Como se percebe, o ponto central de discussão é a existência ou não de
alguma diferença entre autor e partícipe, diferença essa que deve ser analisada
dogmaticamente, ou seja, com foco na disposição legal sobre o assunto,
questionando-se, finalmente, se a legislação penal brasileira distingue, com
relevância, as duas figuras. Resta, pois, saber qual das teorias apresentadas
extensiva, restritiva ou domínio do fato a legislação penal brasileira, comum e
militar, adotou.
O Código Penal comum adotou, em seu art. 29, a teoria extensiva
(“Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este
cominadas, na medida de sua culpabilidade.”).
Essa opção legislativa remonta à década de 40, notando-se, por um
abreviado estudo evolutivo, que o Código Criminal do Império adotava uma teoria
restritiva da autoria, especificamente em seus art. 4º a 6º:
“Art. - São criminosos, como autores, os que commetterem,
constrangerem, ou mandarem alguem commetter crimes.
Art. - São criminosos, como cumplices, todos os mais que directamente
concorrerem para se commetter crimes.
Art. 6º - Serão tambem considerados cumplices:
- Os que receberem, ocultarem ou comprarem cousas obtidas por meios
criminosos, sabendo que o forão ou devendo sabel-o em razão da
qualidade ou condição das pessoas de quem as receberam ou compraram.
- Os que derem asylo ou prestarem sua casa para reunião de assassinos
ou roubadores, tendo conhecimento de que commettem ou pretendem
commetter taes crimes”
223
.
O art. 35 do referido Código tinha a cumplicidade como causa genérica de
diminuição de pena, dosando, assim, a aplicação da sanção penal, de acordo com
uma gradação de colaboração no delito: “Art. 35 A complicidade será punida com
as penas da tentativa; e a complicidade da tentativa com as mesmas penas desta
menos a terça parte, conforme regra estabelecida no artigo antecedente”
224
.
No Código Penal de 1890 (Decreto n. 847, de 11 de outubro de 1890) foi
mantida a teoria restritiva nos art. 17 a 21:
“Art. 17 – Os agentes do crime são autores ou cúmplices:
Art. 18 – São autores:
§ 1º - Os que directamente resolverem e executarem o crime;
223
Trecho retirado de José Henrique PIERANGELI. Códigos Penais do Brasil: Evolução Histórica. 2
ed. São Paulo: RT, 2001. p. 237.
224
Idem, p. 241.
124
§ - Os que, tendo resolvido a execução do crime, provocarem e
determinarem outros a executal-o por meio de dádivas, promessas,
mandato, ameaças, constrangimento, abuso ou influência de superioridade
hierárchica;
§ - Os que, antes e durante a execução, prestarem auxílio sem o qual o
crime não teria sido commettido;
§ 4º - Os que directamente executarem o crime por outro resolvido.
Art. 19 Aquelle que mandar, ou provocar alguém a commetter crime, é
responsável como autor:
§ - Por qualquer outro crime que o executor commetter para executar o
de que se encarregou;
§ 2º - Por qualquer outro crime que daquelle resultar.
Art. 20 Cessará a responsabilidade do mandante, se retirar a tempo a sua
cooperação no crime.
Art. 21 – Serão cúmplices:
§ 1º - Os que, não tendo resolvido, ou provocado de qualquer modo o crime,
fornecerem instrucções para commettel-o, e prestarem auxíllio á sua
execução;
§ - Os que, antes ou durante a execução, prometterem ao criminoso
auxillio para evadir-se, ocultare ou destruir os instrumentos do crime, ou
apagar seus vestigios.
§ - Os que receberem, occultarem, ou comprarem, cousas obtidas por
meios criminosos, sabendo que o foram, ou devendo sabel-o, pela
qualidade ou condições das pessoas de quem as houverem;
§ - Os que derem asylo ou prestarem sua casa para reunião de
assassinos e roubadores, conhecendo-os como taes e o fim para que se
reunem”
225
.
A cumplicidade no diploma em foco configurava-se também em causa
genérica de diminuição de pena, conforme previsão do art. 64: “A cumplicidade será
punida com as penas da tentativa e a cumplicidade da tentativa com as penas desta,
menos a terça parte. Quando, porém, a lei impuzer á tentativa pena especial, será
applicada integralmente essa pena á cumplicidade”
226
.
As disposições do Código Penal de 1890 foram mantidas na
Consolidação das Leis Penais de 1932 (Decreto n. 22.213, de 14 de dezembro de
1932), firmando-se a teoria restritiva da autoria como norma reitora.
Até esse ponto do desenvolvimento histórico, a complexidade das formas
de participação no delito participação aqui empregada em sentido lato,
abrangendo a autoria e a participação propriamente dita, com suas respectivas
formas, a instigação e a cumplicidade – obrigava o estudo detido do assunto,
buscando-se uma cara diferenciação entre as espécies de concurso de pessoas,
diferenciação essa que encontra relevância até nos dias atuais. Por todos, na
atualidade, vide Pierangeli e Zaffaroni, que, após definirem a autoria, atestam que a
225
José Henrique PIERANGELI. Códigos Penais do Brasil: Evolução Histórica, cit., p. 275.
226
José Henrique PIERANGELI. Códigos Penais do Brasil: Evolução Histórica, cit., p. 279.
125
participação “pode ter a forma de instigação (quando se incentiva alguém ao
cometimento de um injusto ou de um delito) ou de cumplicidade (quando se coopera
com alguém em sua conduta delitiva)”
227
.
Contudo, na década de 40, como acima exposto, chegou-se ao
rompimento com a teoria restritiva, especificamente com a vigência do atual digo
Penal (Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940). O número 22 da Exposição
de Motivos original da referida norma assim dispunha:
“O projeto aboliu a distinção entre autores e cúmplices: todos os que tomam
parte no crime são autores. não haverá mais diferença entre participação
principal e participação acessória, entre auxílio necessário e auxílio
secundário, entre a societas criminis e a societas in crimine. Quem emprega
qualquer atividade para a realização do evento criminoso é considerado
responsável pela totalidade dele, no pressuposto de que também as outras
forças concorrentes entraram no âmbito de sua consciência e vontade. Não
nesse critério de decisão do projeto senão um corolário da teoria da
equivalência das causas, adotada no art. 11. O evento, por sua natureza, é
indivisível e todas as condições que cooperam para sua produção se
equivalem. Tudo quanto foi praticado para que o evento se produzisse é
causa indivisível dele. na participação criminosa, uma associação de
causas conscientes, uma convergência de atividades que são, no seu
incindível conjunto, a causa única do evento e, portanto, a cada uma das
forças concorrentes deve ser atribuída, solidariamente, a responsabilidade
pelo todo.
Ficou assim, repudiada a ilógica e insuficiente ficção segundo a qual, no
sistema tradicional, o cúmplice ‘acede’ à criminalidade do autor principal.
Perde sua utilidade a famosa teoria do autor mediato, excogitada para não
deixar impune o cúmplice, quando autor principal é um irresponsável. Por
outro lado, os juízes não ficarão em perplexidade, como atualmente, para
distinguir entre auxiliar necessário e auxiliar dispensável
228
.
Com essa Exposição de Motivos ficou clara a opção do legislador em
adotar uma teoria extensiva da autoria, negando a vertente em curso desde o
Código Criminal do Império, redundando na previsão legal do art. 11 da antiga Parte
Geral (original) do Código Penal, nos seguintes termos:
“Art. 11. O resultado, de que depende a existência do crime,
somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se
causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria
ocorrido.
Parágrafo único. A superveniência de causa independente
exclue a imputação quando, por si só, produziu resultado; os
fatos anteriores, entretanto, imputam-se a quem os praticou”
(SIC).
227
Eugenio RAÚL ZAFFARONI e José Henrique PIERANGELI. Manual de Direito Penal Brasileiro
Parte Geral. 4 ed. São Paulo: RT, 2001, p. 663.
228
José Henrique PIERANGELI. Códigos Penais do Brasil: Evolução Histórica, cit. p. 416.
126
Abandonou-se, portanto, a diferenciação entre autoria e participação e,
principalmente, das formas desta.
A adoção incondicionada da teoria extensiva, contudo, poderia levar a
soluções injustas intoleráveis, razão pela qual a teoria extensiva da autoria,
adotada em 1940, sofreu nova conformação com o natimorto Código Penal comum
de 1969, havendo uma mitigação dessa concepção, com o surgimento de uma
exceção à regra quando a participação for de menor importância. Nesse aspecto, a
Exposição de Motivos do referido Código (Decreto-lei n. 1.004, de 21 de outubro de
1969) assim dispunha em seu número 18:
“É possível que a unificação de todas as formas de participação e autoria
seja, a rigor, incompatível com um Direito Penal da Culpa. São poucas as
legislações que não distinguem entre os diversos graus de participação e as
distintas situações de autoria. Todavia o sistema unitário, que se inspira em
razões de política criminal, visando a mais eficiente repressão, nunca é
adotado em sua inteireza, pois isto conduziria a soluções injustas e
intoleráveis. Estão sempre previstos temperamentos à equiparação dos
diversos partícipes, de forma a assegurar a justa punição de cada um. Ao
contrário do que diz Bockelman (‘Die moderne Entwicklung der Begriffe
Täterschaft und Telnahme’, in Strafrechtliche Untersuchungen, 1957, p. 109)
a concepção unitária da participação não representa necessariamente uma
renúncia do legislador ao tratamento individualizado da personalidade do
agente.
A aplicação da fórmula unitária do Código vigente não pode ser censurada.
Ela tem a seu favor a grande simplicidade no estabelecimento de critérios,
grandemente debatidos, quando se procura distinguir entre autoria e
participação, e entre cumplicidade primária e secundária. Afinal a distinção
entre autor e cúmplice, em termos práticos, significa garantir a mais leve
punição deste, resultado que o sistema de nossa lei assegura.
Proclamou o projeto a regra fundamental em tema de concurso de agentes
que é a de que a punibilidade de cada um dos concorrentes é independente
da dos outros, determinando-se segundo a sua própria culpabilidade. Isso
deve servir como princípio reitor geral para os juízes, na aplicação da pena
em caso de concurso. Foi eliminada a regra inadmissível do art. 48,
parágrafo único, do Código vigente, que representa brutal aceitação de
responsabilidade sem culpa”
229
.
Como limpidamente se verifica, o legislador de 1969 não abandonou por
completo a teoria extensiva, até mesmo aceitando-a como critério de simples
imputação do resultado por questões de política criminal. Todavia, houve sua
mitigação em nome do “Direito Penal da Culpa”, entenda-se, em nome do princípio
da culpabilidade, aqui enxergado como medida de sanção penal imposta. Com
efeito, o é de todo justo, consentâneo com o princípio da culpabilidade, que todos
229
José Henrique PIERANGELI. Códigos Penais do Brasil: Evolução Histórica, cit., p. 516-7.
127
que concorram para o delito, mesmo aqueles em que a participação seja menor,
tenham a mesma pena, e disso cuidou o Código Penal comum de 1969, em seu art.
35, in verbis:
“Art. 35 - Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas
a este cominadas.
§ - A punibilidade de qualquer dos concorrentes é independente da dos
outros, determinando-se segundo a sua própria culpabilidade. Não se
comunicam, outrossim, as condições ou circunstâncias de caráter pessoal,
salvo quando elementares do crime.
§ 2º (...)
§ - A pena é atenuada com relação ao agente, cuja participação no crime
é de somenos importância”
230
.
Como bem se sabe, o Código Penal de 1969, que deveria entrar em vigor
em 1 de janeiro de 1970, jamais vigeu em nosso País, razão pela qual as
disposições do Código Penal de 1940 vigoraram até a reforma da Parte Geral levada
a efeito pela Lei n. 7.209, de 11 de julho de 1984, quando, então, confirmou-se uma
mitigação da teoria extensiva no Direito penal comum, vigendo os dispositivos afetos
ao concurso de pessoas até os dias atuais. No número 25 da Exposição de Motivos
da nova Parte Geral do Código Penal comum em vigor, dispõe-se:
“Ao reformular o Título IV, adotou-se a denominação “Do Concurso de
Pessoas” decerto mais abrangente, que a co-autoria não esgota as
hipóteses do concursus delinquentium. O Código de 1940 rompeu a
tradição originária do Código Criminal do Império, e adotou neste particular
a teoria unitária ou monística do Código Italiano como corolário da teoria da
equivalência das causas (Exposição de Motivos do Ministro Francisco
Campos, item 22). Sem completo retorno à experiência passada, curva-se,
contudo, o Projeto aos críticos dessa teoria, ao optar, na parte final do art.
29, e em seus dois parágrafos, por regras precisas que distinguem a autoria
da participação. Distinção, aliás, reclamada com eloqüência pela doutrina,
em face de decisões reconhecidamente injustas”.
Dessa forma, na atualidade, o Código Penal comum consagra a diferença
entre participação e autoria, mas sem um “completo retorno à experiência passada”,
anterior à adoção da teoria extensiva, plasmando:
“Art. 29 - Quem, de qualquer modo, concorre para o crime
incide nas penas a este cominadas, na medida de sua
culpabilidade.
§ - Se a participação for de menor importância, a pena pode
ser diminuída de um sexto a um terço.
§ 2º - Se algum dos concorrentes quis participar de crime
menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste; essa pena será
230
José Henrique PIERANGELI. Códigos Penais do Brasil: Evolução Histórica, cit., p. 543-4.
128
aumentada até metade, na hipótese de ter sido previsível o
resultado mais grave”.
A evolução do tema no Direito Penal Militar é muito próxima à acima
consignada para o Direito Penal comum. No Direito Penal castrense, a legislação
também consagrou inicialmente a relevância absoluta da distinção entre autor e
partícipe, este sob a forma de cumplicidade, em clara adoção de uma teoria restritiva
do conceito de autor, marcada pela enumeração legal da distinção entre autores e
cúmplices.
Os art. 13 a 17 do antigo Código Penal da Armada, em sua nova
conformação trazida pelo Decreto n. 18, de 7 de março de 1891
231
, assim dispunha:
“Art. 13 – Os agentes do crime são autores ou cúmplices:
Art. 14 – São autores:
§ 1º - Os que diretamente resolverem e executarem o crime;
§ - Os que, tendo resolvido a execução do crime, provocarem e
determinarem outros a executá-lo por meio de dádivas, promessas,
mandato, ameaças, constrangimento, abuso ou influência de superioridade
hierárquica;
§ - Os que, antes e durante a execução, prestarem auxílio sem o qual o
crime não teria sido cometido;
§ 4º - Os que diretamente executarem o crime por outro resolvido.
Art. 15 Aquêle que mandar, ou provocar alguém a cometer um crime é
responsável como autor:
§ - Por qualquer outro crime que o executor cometer para executar o de
que se encarregou;
§ 2º - Por qualquer outro crime que resultar como conseqüência dêle.
Art. 16 Cessa a responsabilidade do mandante se retirar a tempo a sua
cooperação no crime.
Art. 17 – São cúmplices:
§ - Os que, não tendo resolvido, ou provocado, por qualquer modo, o
crime, derem instruções para comete-lo e prestarem auxílio à execução;
§ - Os que, antes, ou durante a execução, prometerem ao criminoso
auxílio para evadir-se, ocultarem, ou destruírem os instrumentos do crime,
ou apagarem seus vestígios”,
Necessariamente, pela vetusta legislação, a pena para a cumplicidade era
menor que a da autoria, o que se verifica claramente da análise do art. 57 do mesmo
Código: “A cumplicidade será punida com as penas da tentativa e a cumplicidade da
231
O Código Penal da Armada foi a primeira legislação penal militar genuinamente brasileira.
Sucedeu os “Artigos de Guerra” idealizados por Wilhelm Lippe, Conde de Schaumbourg, oficial
alemão alistado na Marinha Inglesa, que foi convidado pelo Rei D. José I, de Portugal, para
reformular a Armada Portuguesa na primeira metade do século XVIII. Seus artigos, em verdade, são
fragmentos de um regulamento mais abrangente, encontrando-se os dispositivos especificamente nos
Capítulos 23 e 26. Com o Código Penal Militar republicano de 1890 (Decreto n. 949, de 5 de
novembro daquele ano), encerra-se a vigência da legislação idealizada pelo Conde de Schaumbourg,
passando a nova legislação a viger, sob uma reformulação em 1891, apenas para a Armada
129
tentativa com as penas desta, menos a têrça parte”. De forma clara, o digo Penal
Militar de 1891 (Código Penal da Armada) também considerou a cumplicidade como
causa genérica de diminuição de pena.
Na seqüência, abandonando a teoria restritiva, o Código Penal Militar de
1944 (Decreto-lei n. 6.227, de 24 de janeiro de 1944) adotou um conceito extensivo
de autoria, claramente evidenciado pelo seu art. 33: “Quem, de qualquer modo,
concorre para o crime, incide nas penas a êste cominadas”. Note-se que o giro em
direção à teoria extensiva no Direito Penal Militar ocorreu também na década de 40,
podendo-se concluir que inspiraram o legislador penal militar os mesmos motivos
que impulsionaram o legislador penal comum.
Com isso, a partir de 1944, perdeu-se também no Direito Penal de
Caserna a relevância da distinção entre autores e partícipes e suas espécies. Não
havia, é importante ressaltar, no Código Penal Militar de 1944, sequer a relevância
de uma diminuta participação, de somenos importância, evidenciando-se a pura
adoção da teoria formal da autoria, o que, obviamente, não estava em consonância
com o princípio da culpabilidade, sofrendo vários ataques.
O atual Código Penal Militar (Decreto-lei n. 1.001, de 21 de outubro de
1969), alinhado à teoria da equivalência dos antecedentes e com base no grafado
no art. 53, manteve a adoção da teoria extensiva, dispondo, de forma idêntica ao
Código que o antecedeu, que “quem, de qualquer modo, concorre para o crime
incide nas penas a este cominadas”.
Todavia, assim como no Código Penal comum, em nome do princípio da
culpabilidade, trouxe relevância para uma participação de menor importância,
conforme previsão do § do art. 53: “A pena é atenuada com relação ao agente,
cuja participação no crime é de somenos importância”.
De todo o acima consignado, pode-se concluir que a legislação penal
brasileira, comum e militar, adotou a teoria extensiva da autoria. Contudo, em
consonância com o princípio da culpabilidade, visto como instrumento dosador que
orienta a justa aplicação da pena, mitigou tal teoria, admitindo a possibilidade de
Brasileira, sendo estendida para o Exército Nacional por meio do Decreto n. 612, de 29 de setembro
de 1899, e para a Força Aérea por meio do Decreto-lei n. 2.961, de 20 de janeiro de 1941.
130
distinção entre autoria e participação apenas para configurar uma participação de
menor ou de somenos, como quer o Código Penal Militar importância. É dizer,
para verificar quem se enquadra como autor do delito, deve-se adotar a teoria
extensiva, sendo autor todo aquele que de alguma forma colabora para o fato. Ao
surgir a suspeita de uma participação de menor importância, no entanto, o operador
do Direito deverá considerar a possibilidade de uma diferenciação entre autor e
partícipe, quando então lançará mão de alguns postulados da teoria restritiva.
Essa visão, é preciso consignar, não é uníssona, havendo divergências
no sentido da adoção da teoria extensiva pura, da teoria restritiva e até do domínio
do fato.
Duek Marques enxerga que o Código Penal comum – e poderíamos
estender tal raciocínio ao Código Penal Militar, dada a similitude de dispositivos
adotou puramente a teoria extensiva da autoria. Em suas conclusões, o autor
consigna que a “nova Parte Geral do Código Penal manteve a teoria extensiva ou
subjetiva da autoria, não afastada nem mitigada pelos institutos previstos nos §§ 1º e
2º, de seu art. 29
232
. Rechaça, por outro lado, a teoria do domínio do fato, indicando
sua falibilidade com base no exemplo do mandante de um crime, pois “só se pode
cogitar do domínio real do fato por parte de quem nele atua diretamente. Somente
nesse caso terá o co-autor ou organizador a efetiva possibilidade de prosseguir ou
desistir da execução do crime. Por esse motivo, o chefe de uma organização
criminosa, caso não atue diretamente na execução do delito, não possui o domínio
do fato”
233
.
Não é esse o raciocínio de Juarez Cirino dos Santos, para quem é
perfeitamente possível adotar-se a teoria do domínio do fato com base em nossa
legislação penal. Nesse contexto, dispõe o autor:
“A lei penal brasileira assume, em princípio, um conceito unitário de autor,
mas a adoção legal de critérios de distinção entre autor e partícipe
transforma, na prática judicial, o paradigma monístico em paradigma
diferenciador, admitindo o emprego de teorias modernas sobre autoria e
participação, como, por exemplo, a teoria do domínio do fato, cujos
postulados são inteiramente compatíveis com a disciplina legal de autoria e
participação no Código Penal (...).
232
Oswaldo Henrique Duek MARQUES. A Autoria no Código Penal e a Teoria do Domínio do Fato,
cit. p. 179.
233
Idem, p. 180.
131
Por essa razão, autoria e participação devem ser estudadas segundo os
postulados da teoria do domínio do fato, generalizados na literatura
contemporânea como critérios de definição de autor e de partícipe”
234
.
Guilherme de Souza Nucci, por seu turno, sustenta a adoção legal da
teoria restritiva: “Prevaleceu, pois, o conceito restrito de autor, embora dentro dessa
teoria, que é objetiva, existam dois posicionamentos: a) teoria formal (...); b) teoria
normativa (...). Em nossa visão, melhor é a teoria objetivo-formal, ou seja, co-autor é
aquele que pratica, de algum modo, a figura típica, enquanto partícipe fica reservada
a posição de auxílio material ou suporte moral (onde se inclui o induzimento, a
instigação ou o comando) para a concretização do crime
235
.
Malgrado as construções dos demais autores acima indicados, adequado
é o entendimento de Duek Marques, podendo-se firmar que os Códigos Penais em
estudo (comum e militar) abarcaram a teoria extensiva, que não contempla a
distinção legal entre autor e partícipe ou, como no passado, entre autor e cúmplices.
Não se pode negar, entretanto, que deve cuidar a doutrina dessa distinção,
porquanto relevância na aplicação da pena, unicamente na participação de
diminuta importância.
Nessa distinção, como bem postula Juarez Cirino dos Santos, podem os
operadores lançar mão das teorias à disposição, inclusive a do domínio do fato,
originária da Alemanha, especificamente com Hans Welzel em 1939
236
. Não parece,
porém, que dita teoria seja mais eficaz que a teoria restritiva.
Deve-se lembrar que a discussão agora não mais se refere à teoria
adotada pelos Códigos, mas tão-somente a sobre qual teoria melhor definiria, do
enfoque do princípio da culpabilidade, a distinção entre autor e partícipe.
Damásio de Jesus, defendendo a teoria do domínio do fato, anota que a
“teoria restritiva recebeu críticas, tendo em vista que, o obstante reconhecer a
diferença entre autor e partícipe, não resolve a questão da denominada ‘autoria
mediata ou ‘autoria de escritório’, em que o sujeito serve de outra pessoa, como
instrumento executório, para a prática delituosa. Além disso, sob o aspecto da teoria
234
Juarez Cirino dos SANTOS. A Moderna Teoria do Fato Punível. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan,
2002, p. 242.
235
Guilherme de Souza NUCCI. Código Penal Comentado. 6 ed. São Paulo: RT, 2006, p. 268.
132
objetivo-formal, em um delito de estupro, se um sujeito aponta a arma e outro
mantém conjunção carnal com a vítima, o primeiro seria autor e o segundo,
partícipe, uma vez que o verbo típico é ‘constranger’ (art. 213 do CP); o chefe de
uma quadrilha de assaltantes que não participasse materialmente dos roubos seria
considerado mero partícipe. Nesses casos, o senso comum que informa o princípio
da natureza das coisas indica o estuprador e o chefe da quadrilha como verdadeiros
autores e não simples partícipes”
237
.
Com a devida vênia que o renomado autor merece, equivocado e
desnecessário seu entendimento.
Equivocado porque a teoria restritiva, do enfoque objetivo-formal
238
, o
consagra como autor apenas aquele que pratica o verbo nuclear, mas aquele que
realiza diretamente a ação (em sentido lato, abarcando a omissão) típica ou quem a
realiza por meio de outrem, configurando-se a autoria mediata
239
. Realizar a ação
típica, obviamente, não é apenas executar com as próprias energias a conduta
nuclear exposta pelo verbo principal, mas também realizar outras condutas descritas
no tipo penal que colorem o tipo como um todo. Assim, não quem constrange é
autor, mas também quem pratica a conjunção carnal, posto que ambos os elementos
estão descritos no tipo penal.
No que se refere à autoria mediata, cumpre primeiramente destacar que
não se afigura ela simplesmente ao chefe de quadrilha, mas àquele que realiza o
crime por meio de terceiro que age sem culpabilidade, como o caso do dico que,
valendo-se de enfermeira de boa-fé, administra uma dosagem de medicamento letal
ao paciente que desejava matar
240
. Assim, em uma quadrilha de roubadores, se os
236
Rogério GRECO. Curso de Direito Penal Parte Geral. 6 ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2006, p.
465.
237
Damásio Evangelista de JESUS. Teoria do Domínio do Fato no Concurso de Pessoas. São Paulo:
Saraiva, 1999, p. 16.
238
Damásio de Jesus expõe que a teoria restritiva apresenta duas facetas: a teoria objetivo-formal,
que distingue a autoria da participação com base na afirmação de que o autor realiza uma ação ou
omissão enquadrada no verbo central, e a teoria objetivo-material, segundo a qual autor é aquele que
maior contribuição na causação do resultado. Damásio Evangelista de JESUS. Teoria do Domínio
do Fato no Concurso de Pessoas, cit., p. 15-6. Neste trabalho, usar-se-á a expressão “teoria
restritiva” para significar sempre seu conteúdo objetivo-formal.
239
Heleno Cláudio FRAGOSO. Lições de Direito Penal Parte Geral. 16 ed. Rio de Janeiro: Forense,
2004, p. 312.
240
Idem, p. 315.
133
comandados pelo chefe da quadrilha forem culpáveis e não incidirem em erro, não
há que se falar em autoria mediata.
A objeção de Damásio torna-se despicienda, ademais, tomando-se por
base a teoria adotada pelos Códigos Penais. Ora, se as legislações penais, comum
e militar, adotaram a teoria extensiva, para os casos de uma participação decisiva,
como seria a do chefe da quadrilha de roubadores, seria irrelevante a distinção entre
autor e partícipe, mesmo porque o partícipe, se buscar-se a diferenciação, pode
sofrer pena igual ou até superior à dos autores. Nessa linha, Duek Marques
sacramenta que, de qualquer forma, “mesmo se considerada a teoria restritiva, nada
impediria o agravamento da pena em relação ao partícipe, enquanto organizador ou
chefe de uma quadrilha, como previsto no mencionado artigo 61, inciso I, do Código
Penal”.
3.1.2 Co-autoria e participação
Ao concentrarem-se duas ou mais pessoas no pólo ativo do delito, esta
configurado o concurso de pessoas, que deveria levar todos que participassem do
delito à condição de autor. Porém, como os Códigos Penais em foco consagram
como causa genérica de diminuição de pena a participação de menor importância,
deve-se distinguir a autoria (ou co-autoria) da participação, isso em consonância
com a teoria restritiva, conforme já defendido.
3.1.2.1 Co-autoria
Autor será “aquele que pratica, de algum modo, a figura típica”, podendo
fazer diretamente ou por intermédio de pessoa não-culpável, por qualquer veio, seja
por ignorância da ilicitude, pela inimputabilidade etc.
Quando a execução é praticada por duas ou mais pessoas, com
consciência da prática em conjunto, tem-se a co-autoria. Não necessidade de
que todos tenham o mesmo comportamento, podendo existir a divisão de tarefas
134
quanto à execução do delito. Tanto o agente que vigia, como o que rouba e também
aquele que despoja serão co-autores
241
.
Importante consignar que, para um setor doutrinário, por vezes, ainda que
a autoria seja plural e que haja a consciência da prática em conjunto do ato (não
necessariamente da ilicitude), poderão estar afastados os efeitos do concurso de
pessoas, sendo todos autores do delito. Essas possibilidades ocorrem nos crimes de
concurso necessário (plurissubjetivos), nos crimes em que o co-participante não
conhece a ilicitude ou quando ele é sujeito passivo do delito.
Nesse sentido, Magalhães Noronha adverte que “nem sempre a
participação de várias pessoas em um crime importa em co-participação. Assim nos
chamados delitos plurissubjetivos (n. 60) como o de bando, ou quadrilha (art. 288),
em que a pluralidade de agentes é elemento do tipo, não se podendo falar em co-
autoria. Nos crimes bilaterais, ou de encontro (n. 59), também participação física
de duas pessoas, podendo inexistir co-autoria, como na bigamia e no adultério
242
,
em que um dos co-partícipes está insciente da ilicitude do fato, sendo a vítima,
como ocorre no primeiro crime. Outras vezes, apesar de o co-participante ter ciência
da ilicitude do fato e praticá-lo, o é co-autor, mas sujeito passivo ou ofendido, por
tutelá-lo a norma, como sucede no crime de rapto consensual (art. 220)
243
e na
usura
244
.
Com efeito, nos dois últimos exemplos citados por Noronha, os efeitos
punitivos da co-delinqüência não alcançam a pessoa que interage com o bígamo
sem conhecer a ilicitude e nem o consorte que, ainda que conheça a ilicitude, é
tutelado pela norma penal, na condição de sujeito passivo do delito, como na usura
pecuniária, existente em legislação penal comum extravagante (Decreto n. 22.626,
de 7 de abril de 1933, e Lei n. 1.521, de 26 de dezembro de 1951) e no art. 267 do
Código Penal Militar.
241
Edgard Magalhães NORONHA. Direito Penal. 38 ed. São Paulo: Saraiva, 2004, vol. I, p. 212.
242
Em relação ao crime de adultério, houve a abolitio criminis, sendo o art. 240 revogado pela Lei n.
11.106, de 28 de março de 2005.
243
Também em relação ao crime de rapto consensual, operou-se a abolitio criminis por força da Lei n.
11.106, de 28 de março de 2005.
244
Edgard Magalhães NORONHA. Direito Penal, cit., p. 211.
135
Em relação aos crimes plurissubjetivos, no entanto, não parece ser a
melhor interpretação entendê-los como insusceptíveis de configuração de concurso
de pessoas e, portanto, não sujeitos às conseqüências inerentes à co-delinqüência.
A iniciar pelo digo Penal comum, o art. 62 não restringe, à guisa de exemplo, o
reconhecimento das agravantes específicas aos delitos monossubjetivos. Assim
dispõe o artigo mencionado:
“Art. 62 - A pena será ainda agravada em relação ao agente
que:
I - promove, ou organiza a cooperação no crime ou dirige a
atividade dos demais agentes;
II - coage ou induz outrem à execução material do crime;
III - instiga ou determina a cometer o crime alguém sujeito à
sua autoridade ou não-punível em virtude de condição ou
qualidade pessoal;
IV - executa o crime, ou nele participa, mediante paga ou
promessa de recompensa”.
Poder-se-ia dizer que a aplicação dessas agravantes aos crimes
plurissubjetivos consistiria em duplo gravame, afrontando o princípio ne bis in idem,
mas, ao que se extrai do dispositivo transcrito, não agravação simplesmente pela
prática em concurso de pessoas, mas somente por outras circunstâncias, como a
direção da atividade dos demais agentes.
Nem mesmo, cabe notar, têm-se essas agravantes transcritas no tipo
incriminador dos crimes plurissubjetivos, o que, necessariamente afrontaria o
princípio invocado. Exemplificando, no delito de bando ou quadrilha (art. 288 do CP),
não agravação ou qualificadora que contemple a direção da atividade delitiva dos
demais agentes. Assim, perfeitamente possível é a aplicação da agravante do inciso
I, do art. 62, do Código Penal, para aquele que promove, organiza a cooperação ou
dirige a atividade dos demais consortes.
Essa possibilidade configuração de concurso e de aplicação de seus
efeitos nos crimes plurissubjetivos é muito mais evidente no Código Penal Militar,
em razão da existência da figura do “cabeça”, que terá a pena majorada, conforme o
preceito secundário dos delitos de concurso necessário (e.g. art. 149 do CPM).
O art. 53 do Código Penal Militar, sob a equivocada rubrica de “Da co-
autoria”, assim disciplina:
136
“Art. 53. Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas
a este cominadas.
§ A punibilidade de qualquer dos concorrentes é independente da dos
outros, determinando-se segundo a sua própria culpabilidade. Não se
comunicam, outrossim, as condições ou circunstâncias de caráter pessoal,
salvo quando elementares do crime.
§ 2° A pena é agravada em relação ao agente que:
I - promove ou organiza a cooperação no crime ou dirige a atividade dos
demais agentes;
II - coage outrem à execução material do crime;
III - instiga ou determina a cometer o crime alguém sujeito à sua autoridade,
ou não punível em virtude de condição ou qualidade pessoal;
IV - executa o crime, ou nele participa, mediante paga ou promessa de
recompensa.
§ 3º A pena é atenuada com relação ao agente, cuja participação no crime é
de somenos importância.
§ Na prática de crime de autoria coletiva necessária, reputam-se cabeças
os que dirigem, provocam, instigam ou excitam a ação.
§ Quando o crime é cometido por inferiores e um ou mais oficiais, são
estes considerados cabeças, assim como os inferiores que exercem função
de oficial”.
Note-se que os parágrafos e 5º, ao tratar da figura dos “cabeças”,
figura aplicável aos delitos de concurso necessário, estão grafados no mesmo artigo
das agravantes próprias do concurso de pessoas (art. 53, § 2º, do CPM), o que leva
a concluir que tais agravantes aplicam-se a todas as espécies de consciente autoria
coletiva, ou seja, aos crimes monossubjetivos em concurso eventual ou aos delitos
plurissubjetivos.
Obviamente, alguns limites podem ser reconhecidos na construção supra,
como o cuidado que se deve ter em relação ao reconhecimento da agravante do
inciso I, § , do art. 53 e da condição de “cabeça” com base no § do mesmo
artigo. Não é possível, e isso é lógico, reconhecer ao mesmo tempo o gravame de
ser cabeça” por dirigir, provocar, instigar ou excitar a ação (art. 53, § do CPM) e,
ao mesmo tempo, agravar a pena por promover ou organizar a cooperação no crime
ou dirigir a atividade dos demais agentes (art. 53, §, I, do CPM), devendo
prevalecer a disposição acerca do “cabeça”, por ser mais específica.
Em uma frase: as disposições referentes aos “cabeças” aplicam-se
apenas aos crimes plurissubjetivos, mas as demais disposições podem ser aplicadas
aos monossubjetivos e aos plurissubjetivos, se não houver duplo gravame.
137
3.1.2.1.1 Autoria mediata
Como visto acima, a autoria pode ser reconhecida quando praticada de
forma indireta, por intermédio de pessoa não-culpável.
Está-se diante da chamada “autoria mediata”, em que não se terá a
hipótese de concurso de pessoas, posto que somente um dos agentes responderá
pelo crime principal em foco.
Os possíveis casos de autoria mediata são numerosos e multiplicam-se
ainda mais se considerarem-se os dois Códigos Penais em comento.
Exemplificativamente, no Código Penal comum, haveria hipóteses de
autoria mediata: 1) no erro de tipo determinado por terceiro (art. 20, § , do CP),
como no exemplo do médico que se utiliza da enfermeira para administrar o
medicamento letal ao paciente, seu desafeto; 2) no caso do agente que utiliza-se de
inimputável para cometer delito; 3) quando o agente coage moralmente, de forma
irresistível, a outrem praticar o delito (art. 22 do CP); 4) quando alguém ordena ao
subordinado que pratique crime, desde que essa ordem o seja manifestamente
ilegal (art. 22 do CP).
No Código Penal Militar, as hipóteses supracitadas também podem ser
verificadas com algumas peculiaridades. Na provocação do erro, não se estaria
diante de erro de tipo, mas de erro de fato (art. 36, § 2º, do CPM). Na coação moral
irresistível, não é ela cabível nos crimes que importem em violação do dever militar
(art. 40 do CPM). Ademais, pela estrutura causal do Código Penal Militar, a coação
física não importa em exclusão da conduta, mas em exclusão do dolo e da culpa,
alocados na culpabilidade; portanto, a coação física é causa exculpante (art. 38, “a”,
cc art. 33 e com o art. 40, tudo do CPM). Acresça-se, por fim, a exculpação pelo
estado de necessidade, conforme disposto no art. 39 do Código Penal Militar.
Como bem dispõe Fragoso, nesses “casos não concurso de agentes,
pertencendo a ação delituosa integralmente a quem se serve do executor (autor
mediato) não culpável que atua como mero instrumento (...). Num crime doloso não
138
pode haver autoria sem realização dolosa da conduta típica. Na autoria mediata
essa realização é indireta”
245
.
Por derradeiro, importante frisar que alguns crimes não admitem a autoria
mediata, a saber, os crimes de mão própria, que exigem, para sua configuração, a
execução pessoal do agente
246
. Como exemplo, citem-se os crimes de falso
testemunho (art. 342 do CP e art. 346 do CPM) e de deserção (art. 187 do CPM).
3.1.2.2 Participação
A outra modalidade de concurso de pessoas é a participação (em sentido
estrito). Partícipe, pela teoria restritiva, “é todo aquele que, sem realizar a conduta
típica, contribui para a ação típica de outrem”
247
. A conduta do partícipe, “ainda que
não típica, incide nas penas cominadas ao crime por ser acessória ou subordinada à
considerada no tipo. É que, na defesa dos interesses sociais, a lei amplia o âmbito
do delito para compreender não só a ação que integra a figura delitiva como também
outras que a ela se agregam e são necessárias para sua efetivação”
248
.
Cabe destacar, portanto, que a participação será sempre acessória,
pendente a um fato principal que, se não ocorrer, ou pelo menos não tiver sua
execução iniciada, obsta o reconhecimento da participação. Nesse sentido, muito
bem ensina Cezar Roberto Bitencourt que a participação “é uma atividade
secundária, que adere a outra principal. A participação somente se reveste de
tipicidade através da norma de extensão reguladora da co-delinqüência”
249
.
O mesmo autor, no entanto, adverte que essa acessoriedade não
encontra lugar comum no que concerne à conformação do fato principal apto a ter
em si aderida a participação, surgindo, pois, três teorias dispostas a limitar o alcance
245
Heleno Cláudio FRAGOSO. Lições de Direito Penal – Parte Geral, cit., p. 316.
246
Idem. Ibidem.
247
Idem, p. 312.
248
Edgard Magalhães NORONHA. Direito Penal, cit., p. 212.
249
Cezar Roberto BITENCOURT. Manual de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2002, vol. I, p. 392.
139
da participação: teoria da acessoriedade extrema, teoria da acessoriedade limitada e
teoria da acessoriedade mínima
250
.
A teoria da acessoriedade extrema (ou estrita) postula que, para que se
reconheça a participação, de haver o fato principal em que alguém, considerado
autor, pratique ação típica, antijurídica e culpável, sendo prescindíveis no fato
principal apenas as causas pessoais de exclusão da pena e os pressupostos
processuais. Como se verifica, por essa teoria, que dominou na Alemanha até 1943,
se o autor tivesse sua culpabilidade afastada, por qualquer motivo (inimputabilidade,
erro de proibição etc.), não restaria responsabilidade penal ao partícipe do fato
251
.
A teoria da acessoriedade estrita, como se pode deduzir, trazia um claro
de punibilidade para algumas questões, o que fez com que a doutrina idealizasse a
teoria da acessoriedade limitada. Segundo ela, o fato principal, para ter a
capacidade de redundar em responsabilidade para o partícipe, deveria ser, ao
menos, típico e antijurídico.
Por fim, a teoria da acessoriedade mínima postula que o fato principal
há de ser ao menos típico, não necessariamente antijurídico e culpável. Dessa
forma, ainda que a conduta do autor estivesse justificada, o partícipe poderia ser
responsabilizado penalmente.
Domina a doutrina brasileira a teoria da acessoriedade limitada
252
, sendo
essa a que doravante impulsionará o presente estudo.
Embora irrelevante para os Códigos Penais brasileiros (comum e militar),
dada a adoção legal da teoria extensiva, a doutrina busca o detido estudo da
participação e de suas espécies, de modo a contribuir com a identificação da
participação de menor importância e, nesse mister, têm-se como formas de
participação a instigação e a cumplicidade.
Instigar é fazer surgir em outra pessoa a idéia de praticar o delito,
embora a decisão de faticamente praticar o crime seja do instigado
253
. É “determinar
250
Idem. Ibidem.
251
Hans-Heinrich JESCHECK e Thomas WEIGEND. Tratado de Derecho Penal Parte General. 5
ed. Tradução para o espanhol de Miguel Olmedo Cardenete. Quinta Granada: Comares, 2002, p.
705.
252
Nesse sentido, Guilherme de Souza NUCCI. Código Penal Comentado, cit., p. 269.
140
a prática do delito, atuando sobre a vontade do agente”
254
. A instigação, portanto,
condensa-se em uma forma de participação ideal, sem o auxílio material. São
exemplos de instigação o mandato, a ameaça (resistível), a persuasão, o conselho,
o comando etc.
Deve ela dirigir-se a crime determinado, não se aceitando a genérica
instigação que é impunível sob a forma de participação. Não se admite também a
instigação por omissão, requerendo-se sempre um comportamento ativo no sentido
de gerar a idéia no instigado
255
.
Curioso notar que a antiga legislação penal brasileira, comum ou militar,
ao mencionar a instigação, a enumerava nas hipóteses de autoria e não de
participação (e.g. o § , do art. 18 do Código Penal de 1890 e o § 2º, do art. 14 do
Código Penal da Armada). Apenas a cumplicidade, na época, era destacada da
autoria, a exemplo do que hoje ocorre no Código Penal Espanhol, especificamente
em seu art. 14, n. 2
256
.
Cumplicidade, por seu turno, surge quando há o auxílio à ação delituosa,
isso com a consciência da colaboração.
Em regra, esse auxílio presta-se de forma material e por ação, mas
admite-se a possibilidade, excepcional, de ocorrência de cumplicidade por instruções
ou explicações para cometer o crime, e também a forma omissiva, esta última
somente quando houver o dever jurídico de evitar o resultado, naquilo que a doutrina
consagra como participação por omissão, a ser adiante abordada em detalhes. Sem
esse dever de impedir o resultado, a omissão torna-se mera conivência, impunível
em nosso Direito
257
.
Alguns distinguem, embora reconheçam a irrelevância à luz da legislação,
cumplicidade primária e cumplicidade secundária
258
. A primeira se quando o
auxílio prestado é indispensável e a segunda, por oposição, quando o auxílio, sem
253
Francisco MUÑOZ CONDE. Teoria Geral do Delito. Tradução para a Língua Portuguesa de Juarez
Tavarez e Luiz Regis Prado. Porto Alegre: SAFE, 1988, p. 202.
254
Heleno Cláudio FRAGOSO. Lições de Direito Penal – Parte Geral., cit., p. 318.
255
Heleno Cláudio FRAGOSO. Lições de Direito Penal – Parte Geral., cit., p. 318.
256
Francisco MUÑOZ CONDE. Teoria Geral do Delito, cit., p. 202.
257
Heleno Cláudio FRAGOSO. Lições de Direito Penal – Parte Geral, cit., p. 319
258
Idem. Ibidem.
141
ser indispensável, facilita a prática do delito. Obviamente, caso a conduta seja
dispensável e não facilite de forma alguma a prática do crime, não será possível falar
em cumplicidade, como o exemplo, citado por Fragoso, da pessoa que entrega ao
furtador uma chave falsa e este, não obtendo êxito em utilizar o objeto, ingressa no
ambiente do furto pela janela
259
.
3.1.2.2.1 Participação de menor importância
Como até aqui sustentado, a relevância do estudo das formas de co-
delinqüência, sendo eleita a teoria restritiva e afastando-se a do domínio do fato
para tal mister, está na menor reprovação de uma participação de menor importância
ou de somenos importância, como quer o Código Penal castrense, configurando-se
em causa de diminuição de pena grafada na Parte Geral dos Códigos Estudados.
Na legislação penal comum, cuida do assunto o § 1º, do art. 29, do
Código Penal, nos seguintes termos: “Se a participação for de menor importância, a
pena pode ser diminuída de um sexto a um terço”.
A participação de menor importância deve ser reconhecida ao partícipe
(cúmplice ou instigador) que colabore minimamente com o delito, devendo estar
atrelada ao fato em si e não à periculosidade do agente, podendo inclusive, por sua
aplicação, que importará na redução de um sexto até um terço, romper o mínimo
legal cominado para o delito
260
.
Muito difícil é buscar objetivar a conclusão pela participação de menor
importância; contudo, louvável e adequada nesse sentido a lição de Magalhães
Noronha:
“A respeito da participação de somenos por parte de um dos agentes,
devem ser feitas quatro observações:
a) Em primeiro lugar, aplica-se somente ao partícipe, pois incompatível
com a posição do autor. Quem realiza o tipo obviamente não pode agir com
pequena parcela para o crime.
b) Em segundo lugar, por ‘menor importância’, a de leve eficiência
causal.
259
Idem. Ibidem.
260
Guilherme de Souza NUCCI. Código Penal Comentado, cit., p. 271.
142
O entendimento ficará por conta de uma jurisprudência ainda por ser
construída, porém devem ser observados os seguintes requisitos na sua
apreciação: o momento da participação no iter criminis, a intensidade do
elemento subjetivo, a natureza da cooperação diante do resultado final e,
por fim, o grau de reprovabilidade da ação.
No dizer de Damásio E. de Jesus, ‘quanto mais a conduta se aproximar do
núcleo do tipo, maior deve ser a pena: quanto mais distante do núcleo,
menor deverá ser a resposta penal’.
c) Em terceiro, é incompatível com as agravantes contidas no art. 62,
todas elas referentes ao concurso de pessoas. Isto porque ninguém pode
ter uma participação de somenos e ao mesmo tempo promover, coagir etc.
d) Por derradeiro, a redução da reprimenda é facultativa e não
obrigatória. O verbo da forma usada ‘pode ser’ –, indica uma faculdade
judicial a ser usada com prudência e não arbítrio. Ou se desejarem, o
consagrado e tão mencionado ‘prudente arbítrio do juiz’”
261
.
Como se percebe, não critério objetivo para o reconhecimento dessa
causa de diminuição de pena, que, para o citado autor, nem mesmo é obrigatória
262
.
O fato é que o dispositivo em comento sequer mereceria relevo, dada a estrutura do
Código Penal comum, que no caput do art. 29 impõe a observância do princípio da
culpabilidade, aqui enxergado como medida de pena, para o reconhecimento da
responsabilidade penal no concurso de pessoas. O juiz está obrigado, desse modo,
a dosar a sanção penal em correspondência com a gravidade da conduta de cada
integrante do concursus delinquentium, ou seja, de acordo com a posição de co-
autor, partícipe ou partícipe de somenos importância, o que dá à cláusula em
questão apenas um valor aritmético a limitar a fração de redução da pena.
O Código Penal Militar tem dispositivo semelhante, no § 3º, do art. 53,
que, sob a rubrica “atenuação da pena”, dispõe: “A pena é atenuada com relação ao
agente, cuja participação no crime é de somenos importância”.
Note-se que a legislação castrense não delimita o quantum da redução da
pena, obrigando o intérprete a lançar o do art. 73 do Código Penal Militar, que
assim dispõe: “Quando a lei determina a agravação ou atenuação da pena sem
mencionar o quantum, deve o juiz fixá-lo entre um quinto e um terço, guardados os
limites da pena cominada ao crime”.
261
Edgard Magalhães NORONHA. Direito Penal, cit., p. 218.
262
Em sentido oposto, entendendo que a redução, uma vez reconhecida a participação de menor
importância, é obrigatória por configurar-se em direito público subjetivo do réu, vide Celso Delmanto.
Celso DELMANTO et alii. Código Penal Comentado. 6 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 62. Essa
visão, com efeito, é mais consentânea com o princípio da culpabilidade que o dispositivo pretendeu
encerrar.
143
Dessa forma, em sendo reconhecida a participação de somenos
importância, o juiz deverá
263
e aqui não se cogita ser mais uma faculdade do
julgador – reduzir a pena entre um quinto e um terço. Outra diferença, deve-se frisar,
é que, por expressa previsão do art. 73, o limite mínimo deve ser respeitado, não
sendo possível condenação aquém desse limite.
Não diferença entre as expressões “menor importância”, do Código
Penal comum, e de “somenos importância”, do Código Penal Militar. Precisa e clara,
nesse mister, a observação de Jorge César de Assis: “Não nos parece haver
diferença entre os vocábulos somenos e menor, que somenos significa
exatamente ‘de menor valor que outro, inferior’”
264
.
As quatro observações trazidas acima pelas palavras de Magalhães
Noronha, podem, dessa forma, ser aplicadas ao dispositivo do digo Penal Militar,
porém com algumas diferenças:
a) primeira observação: o dispositivo aplica-se somente ao partícipe e não
ao co-autor;
b) segunda observação: por “somenos importância” deve-se também
entender aquela de leve eficiência causal, considerando-se, ademais, o momento da
participação no iter criminis, a intensidade do elemento subjetivo, a natureza da
cooperação diante do resultado final e, por fim, o grau de reprovabilidade da ação;
c) terceira observação: a presente causa de diminuição de pena é
incompatível com as agravantes contidas no § 2º, do art. 53, do Código Penal Militar,
bem como com o reconhecimento da condição de “cabeças”, prevista nos §§ e
do mesmo artigo;
d) quarta observação: a redução da reprimenda é obrigatória.
263
Jorge César de ASSIS. Comentários ao Código Penal Militar. 6 ed. Curitiba: Juruá, 2007, p. 150.
264
Idem, p. 150.
144
3.1.3 Requisitos do concurso de pessoas
A simples pluralidade de pessoas no pólo ativo não basta para
reconhecer o concurso de pessoas, sendo necessária a constatação de certos
requisitos, que devem ser estudados detidamente. Com certas variantes na doutrina,
pode-se garimpar que os requisitos para o reconhecimento do concurso de pessoas
são a pluralidade de condutas, a relevância causal de cada uma das ações, o liame
subjetivo entre os agentes e a identidade do fato
265
.
3.1.3.1 Pluralidade de condutas
Para que haja concurso de pessoas, exigem-se, no mínimo, duas
condutas, perpetradas por distintas pessoas, que a pluralidade de conduta
praticada pela mesma pessoa seria hipótese de concurso de crimes (concursus
delictorum) e não de pessoas (concursus delinquentium).
As condutas plurais, no mínimo duas, podem ser ambas principais,
realizadas pelos autores, ocasião em que haveria a co-autoria, ou uma principal e
outra acessória, praticada, respectivamente, por autor e partícipe, quando
reconhecer-se-ia a participação.
Ressalte-se que esse requisito isolado não basta para o reconhecimento
do concurso de pessoas, podendo haver hipóteses em que a pluralidade de pessoas
significará mera autoria colateral, erro provocado por terceiro ou autoria mediata.
265
Além desses requisitos, Guilherme Nucci acrescenta a necessidade de o fato ser punível.
Guilherme de Souza NUCCI. Código Penal Comentado, cit., p. 270. Para Magalhães Noronha, além
dos três primeiros requisitos apontados, é necessário que haja a “ciência, pelo menos, de um agente
aderir à ação do outro, o que parece estar abrangido pelo liame subjetivo”. Edgard Magalhães
NORONHA. Direito Penal, cit., p. 220.
145
3.1.3.2 Relevância causal das condutas
A adoção da teoria da equivalência dos antecedentes (conditio sine qua
non) nos Códigos Penais marca a grande necessidade, embora não indispensável,
de reconhecer a causação física do resultado para a imputação da responsabilidade
penal.
Tanto o Código Penal comum, em seu art. 13, como o Código Penal
Militar, no art. 29, dispõem que o “resultado, de que depende a existência do crime,
somente é imputável a quem lhe deu causa” e consideram causa “a ação ou
omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido”.
Dessa forma, somente é possível a imputação do resultado se houver a
confirmação da causação, o que não poderia ser diferente na imputação coletiva
resultante do concurso de pessoas. Tal constatação, no entanto, não permite
concluir que o causador será sempre o autor e, em conseqüência, as concausas
redundam em co-delinqüência.
A causação do resultado é relevante nos crimes materiais, havendo
crimes outros que prescindem da causação para a constatação da autoria. É o caso
dos crimes formais e de mera conduta, que prescindem, para sua consumação, de
um resultado naturalístico
266
.
Outro ponto a fragilizar a exigência do nexo causal está na estrutura dos
delitos em que o reconhecimento de um nexo de causalidade normativo e não
físico, como ocorre nos crimes omissivos impróprios. Com efeito, a causação do
resultado nos crimes comissivos por omissão o é detectada sensorialmente, mas
respeita uma imposição legal em face de um dever jurídico de ação grafado no § 2º,
do art. 13, do Código Penal, e no § 2º, do art. 29, do Código Penal Militar.
Pode-se firmar que nos crimes materiais a co-delinqüência exige a
constatação da causação física, sendo possível, todavia, reconhecer o concurso de
agentes nos crimes que prescindem da investigação material da causação do
266
Nesse sentido, vide Nilo BATISTA. Concurso de Agentes: Uma Investigação sobre os Problemas
da Autoria e da Participação no Direito Penal Brasileiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004, p.
40-2.
146
resultado, como os crimes de mera conduta, os crimes formais e os crimes
comissivos por omissão. Assim, acompanhando Mezger, é possível concluir que a
causalidade é o “ponto de arranque científico de toda teoria jurídico-penal da
participação
267
, vista aqui em sentido lato, mas não a encerra.
3.1.3.3 Liame subjetivo
O liame subjetivo entre os co-delinqüentes traduz-se pela simples
consciência ou vontade de cooperação, unindo as condutas dos consortes. É “um
vínculo de natureza psicológica ligando as condutas entre si”
268
.
Essa ligação pode ser reconhecida durante todo o iter criminis, desde que
antes da consumação, não sendo possível reconhecer uma adesão subjetiva após o
momento consumativo do delito.
Questão de extrema importância para o presente trabalho é investigar se
o liame subjetivo deve ser bilateral ou sua existência contenta-se com a
unilateralidade. Urge investigar, em outras palavras, se haverá concurso, mesmo
que somente um dos concorrentes saiba da cooperação.
Em princípio, para a co-autoria, o liame exigido deve ser bilateral,
afastando-se essa forma de concurso quando apenas um dos concorrentes tem a
consciência da cooperação. Nesse sentido, Jescheck e Weigend postulam que o
“componente subjetivo necessário da co-autoria é a resolução delitiva comum. A
imputação recíproca das distintas contribuições está justificada por esse
elemento. Não é suficiente com um acordo unilateral senão que ‘todos devem intervir
mediante uma cooperação consciente e voluntária’(...) No concerto de vontades
deve fixar-se à divisão de funções a serem desenvolvidas através da qual deve ser
267
Edmundo MEZGER. Derecho Penal. Libro de Estúdio. Parte General. Tradução para o Espanhol
de Conrado A. Finzi Buenos Aires: Librería “El Foro”, sem data de publicação aparente, t. I, p. 298-9.
268
Guilherme de Souza NUCCI. Código Penal Comentado , cit., p. 270.
147
alcançado o resultado a projetado que, deste modo, não deve ser senão
conseqüência do esforço comum”
269
(g. n.).
No caso da participação, pela concepção doutrinária majoritária, senão
unânime, a conformação é distinta, admitindo a doutrina que o vínculo subjetivo
caracterize-se de forma unilateral. É exatamente essa concepção, a ser abordada
em capítulo conclusivo, que possibilita a responsabilização da chamada
participação por omissão.
Tomem-se, inicialmente, as lições de Jescheck e Weigend, que, embora
adeptos da teoria do domínio do fato, trazem esclarecedor trecho acerca do
elemento subjetivo da participação sob a forma de cumplicidade: “O cúmplice limita-
se a favorecer um fato alheio; assim como o indutor tampouco toma parte no
domínio do fato; o autor nem sequer necessita saber de sua contribuição convertida
em auxílio (a denominada cumplicidade clandestina). Neste ponto diferencia-se a
cumplicidade da co-autoria pois esta última pressupõe o domínio funcional do fato
sobre a base de uma resolução delitiva comum”
270
(g. n.).
No Brasil, é lugar comum a aceitação do vínculo subjetivo unilateral na
participação. Fragoso, por exemplo, ao tratar do aspecto subjetivo da participação,
postula que ela “requer vontade livre e consciente de cooperar na ação delituosa de
outrem. o se exige aqui também o prévio concerto, bastando que o partícipe
tenha a consciência de contribuir para o crime. Tal consciência pode faltar ao autor,
como no exemplo que deixa aberta a porta para facilitar o ladrão que desconhece o
auxílio (...)”
271
(g. n.). Da mesma forma Magalhães Noronha, ao consignar que “na
co-participação é mister um vínculo psicológico unindo as várias condutas, o que
importa em que elas tenham um objetivo comum, havendo ciência, pelo menos, de
um autor aderir à ação do outro; é necessário que ele tenha vontade livre e
consciente de concorrer à ação de outrem”
272
(g. n.).
Dessa forma, pode-se concluir que o liame subjetivo, ligando as várias
condutas concorrentes, é requisito indispensável da co-delinqüência; porém, na
269
Hans-Heinrich JESCHECK e Thomas WEIGEND. Tratado de Derecho Penal Parte General, cit.,
p. 730.
270
Idem, p. 744.
271
Heleno Cláudio FRAGOSO. Lições de Direito Penal – Parte Geral, cit., p. 317.
272
Edgard Magalhães NORONHA. Direito Penal, cit., p. 215.
148
participação, à luz da doutrina dominante, pode ocorrer de forma unilateral, em
que apenas um dos concorrentes saiba que colabora na ação de outrem.
3.1.3.4 Identidade de fato criminoso
Em relação à conseqüência do concurso de pessoas, três teorias
prestam-se, de forma relevante, a determinar se haverá um ou mais crimes
praticados.
A teoria unitária ou monista sustenta que a existência de várias pessoas
e condutas no pólo ativo deve resultar em um único fato delitivo, havendo a unidade
ou identidade do fato criminoso. A teoria pluralística, de outro enfoque, entende
que cada co-delinqüente deve responder por crime diverso, de forma simultânea,
surgindo o que se intitula “delito de concurso” (vários delitos ligados por uma relação
de causalidade)
273
. Por fim, pela teoria dualista, “havendo pluralidade de agentes,
com diversidade de condutas, causando um resultado, deve-se separar os co-
autores, os co-autores, que praticaram um delito, e os partícipes, que cometeram
outro”
274
.
Nos Códigos Penais brasileiros (comum e militar) é clara a adoção da
teoria unitária como regra. O caput do art. 29 do Código Penal comum, similarmente
ao caput do art. 53 do Código Penal castrense, impõe que aquele que, de qualquer
modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas.
Todavia, exceções nos diplomas em estudo nos quais se adota a
teoria pluralista. São pontos de adoção dessa teoria, por exceção, em que cada um
dos consortes respondepor delito próprio. o exemplos a corrupção ativa (art.
333 do CP e 309 do CPM) e passiva (art. 317 do CP e 308 do CPM), bem como o
aborto praticado por médico com consentimento da gestante, em que a mulher
responderia pelo art. 124 do Código Penal e o médico pelo art. 126 do mesmo
Diploma, crimes que não têm similares no Código Penal Militar.
273
Guilherme de Souza NUCCI. Código Penal Comentado, cit., p. 267.
274
Idem. Ibidem.
149
3.1.4 Concurso de pessoas e o crime culposo
Na estrutura do Código Penal comum, é perfeitamente possível
reconhecer o concurso de pessoas, desde que sob a forma de co-autoria, em delitos
culposos. Afasta-se, por outro bordo, a participação, pois qualquer que seja a
conduta seela considerada, desde que inobserve um dever de cuidado objetivo,
causa culposa do delito. Assim, no exemplo de Magalhães Noronha, se uma pessoa
instiga alguém a conduzir um veículo em velocidade superior à permitida, resultando
em um atropelamento, ambos serão autores, portanto co-autores, do delito de lesão
corporal culposa
275
.
De notar-se que se houver a conduta acessória de forma dolosa, não
haverá o caso de participação em um único crime, mas de autoria de crimes
diversos, pois impossível a participação dolosa em crime culposo ou a participação
culposa em crime doloso. Imagine-se o seguinte exemplo: um policial “A”, em
instrução de tiro em um estande, é recorrente em brincar com os colegas apontando-
lhes a arma descarregada e acionando a tecla do gatilho, de modo a assustá-los,
conduta essa que transgride as normas de segurança expressas para a instrução de
tiro; um outro policial “B”, sabendo dessa prática, resolve carregar a arma utilizada
sem que o incauto policial “A” perceba; ao acionar a tecla do gatilho, “A” desfere o
tiro fatal contra o colega, Nesse exemplo, não haverá concurso de pessoas, mas
autoria (colateral) de homicídio doloso por “B” e culposo por “A”. Caso não houvesse
culpa de “A”, a hipótese seria de autoria mediata.
Nesse sentido, muito bem dispõe Nilo Batista:
“A participação é conduta essencialmente dolosa, e deve dirigir-se à
interferência num delito também doloso. O dolo do partícipe (dolo de
instigador ou dolo de cúmplice) compreende conhecer e querer a
colaboração prestada a um ilícito doloso determinado em suas linhas gerais;
será suficiente, contudo, um dolo eventual. Não é pensável uma
participação culposa: tal via nos conduziria inevitavelmente a hipóteses de
autoria colateral, como já visto.
O crime do qual se participa, por outro lado, deve necessariamente ser
doloso. Como assinala Bockelmann, ‘toda tesis que admita como posible la
instigación a un actuar no doloso, no está en condiciones de diferenciar la
instigación de la autoria mediata’. A participação dolosa dirigida a um delito
culposo estabelece desde logo um quadro de autoria mediata
275
Edgard Magalhães NORONHA. Direito Penal, cit. p. 216.
150
Entre nós, participa do entendimento aqui esposado Heleno Fragoso, para
quem ‘a participação requer vontade livre e consciente de cooperar na ação
delituosa de outrem’, e examina a falta de dolo no partícipe e no autor
direto. A maior parte da doutrina, todavia, apresenta a regra ‘não cabe
participação culposa em crime doloso ou participação dolosa em crime
culposo’ (que é clara conseqüência do conceito de participação) como
subprincípio, derivado do princípio que se pretende chamar de
‘homogeneidade do elemento subjetivo’. Hungria, por exemplo, que define a
participação como vontade consciente e livre de concorrer, com a própria
ação, na ação de outrem’, não precisaria de se socorre de nenhum
‘princípio’, mas tão-só de sua própria definição, para não falar de
participação culposa
276
.
Em resumo, portanto, na estrutura do Código Penal comum, é
perfeitamente possível a co-autoria em delito culposo, mas impossível a participação
culposa, seja em delito culposo ou doloso, bem como a participação dolosa em delito
culposo, já que, em primeiro plano, a própria conceituação de participação conforma-
se apenas ao dolo e, em seguida, a participação dolosa em delito culposo redundará
em crimes diversos, um doloso e outro culposo, afigurando-se, portanto, a uma
autoria colateral e não ao concurso de pessoas.
A construção acima, no entanto, ganha peculiaridade em uma estrutura
causalista, como o Código Penal Militar, e essa conclusão é alcançada pelas
palavras de Fragoso:
“Nos crimes culposos, como vimos, conduta típica é aquela que viola o
dever objetivo de cuidado e é autor todo aquele que, desatendendo a tal
dever, causa o resultado antijurídico, qualquer que seja a contribuição
causal. Nos crimes culposos, como se percebe, apenas autoria ou co-
autoria (execução plural da ação ou omissão típica), e nunca participação,
porque em qualquer caso a conduta será típica. Diversa seria a hipótese se
a tipicidade dos crimes culposos se esgotasse na mera causação do
resultado, como pretendia a doutrina clássica”
277
(g.n.).
Ora, a tipicidade do Código Penal Militar, embora não adstrita a extrema
causalidade, não abarca, dentro da conduta, o elemento subjetivo, que somente
será avaliado quando da análise da culpabilidade. Em sendo a natureza do concurso
de pessoas questão adstrita à tipicidade
278
, no Código Penal Militar indiferente seria
276
Nilo BATISTA. Concurso de Agentes: Uma Investigação sobre os Problemas da Autoria e da
Participação no Direito Penal Brasileiro, cit., p. 158.
277
Heleno Cláudio FRAGOSO. Lições de Direito Penal – Parte Geral, cit., p. 313.
278
Nesse sentido, lembra Nilo Batista que “não tem nenhum sentido situar-se a teoria do autor fora do
injusto, como ‘forma de aparição’ (Mezger) ou ‘forma de realização’ (Aníbal Bruno) do fato punível. É
precisamente, e apenas, o autor que ‘produz’ o injusto; não pode haver injusto sem autor. Por essa
via, afirma Jesceck que a teoria da participação é um pedaço da teoria do tipo (...)”. Nilo BATISTA.
Concurso de Agentes: Uma Investigação sobre os Problemas da Autoria e da Participação no Direito
Penal Brasileiro, cit., p. 29.
151
averiguar se a instigação ou a cumplicidade fora culposa ou dolosa, questão que
apenas resolver-se-ia no plano da culpabilidade.
3.1.5 A “participação” de um dos co-delinqüentes em crime menos
grave, com e sem a previsibilidade do pior resultado
O Código Penal comum prevê, no § 2º do art. 29 (1ª parte), que se “algum
dos concorrentes quis participar de crime menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena
deste”. Trata-se do reconhecimento do concurso em crime menos grave ou
cooperação dolosamente distinta, em que há um excesso qualitativo
279
por parte
de um dos co-delinqüentes. Contudo, prossegue o dispositivo, firmando que a pena
do concorrente “será aumentada até metade, na hipótese de ter sido previsível o
resultado mais grave” (§ 2º do art. 29, 2ª parte), havendo o excesso quantitativo
280
.
Quanto ao alcance do dispositivo nas forma de co-delinqüência,
Guilherme Nucci assenta que o instituto em análise pode ser reconhecido tanto no
caso de co-autoria como no caso de participação, o que se infere da utilização pelo
legislador da expressão “algum dos concorrentes”
281
.
Com efeito, a lei penal, ao grafar a expressão destacada por Guilherme
Nucci, aparenta desejar ir além da aplicação apenas na participação (em sentido
estrito), como postulam Magalhães Noronha
282
e Fragoso
283
, devendo o verbo
“participar”, também constante expressamente do dispositivo sub examine, ser
compreendido em sentido lato, como sinônimo de co-delinqüência.
Com o fito de comprovar o maior acerto da amplitude de aplicação da
cooperação dolosamente distinta, raciocine-se com o seguinte exemplo: “A” e “B”
decidem furtar uma residência, com a plena certeza de que ela está vazia, sem seus
proprietários, deixando inclusive de levar armas de fogo; dividem a tarefa de
subtração dos bens, dada a amplitude do imóvel, por cômodos, uns bem distante
279
Classificação de Edgard Magalhães NORONHA. Direito Penal, cit., p. 219.
280
Idem Ibidem.
281
Guilherme de Souza NUCCI. Código Penal Comentado, cit., p. 271.
282
Edgard Magalhães NORONHA. Direito Penal, cit., p. 216.
152
dos outros. “A” dirige-se para o prédio central e “B” inicia pela edícula, no fundo da
construção principal. Em dado momento, no prédio principal, “A” encontra uma
empregada circulando no interior do imóvel e decide, mediante grave ameaça por
instrumento contundente, estuprá-la; “B”, ouvindo o barulho no prédio principal, para
se dirige e encontra seu comparsa em conjunção carnal com a tima, nada
mais podendo fazer para impedir o desatino de “A”. De certo, apesar de ambos
serem co-autores do furto (imaginando que a empregada não tenha sido ameaçada
para franquear a subtração de bens), “B” não deve responder pelo crime contra a
liberdade sexual.
Nitidamente, portanto, o co-autor que anuiu apenas até determinado
ponto do comportamento criminoso, se não houver previsibilidade do resultado mais
grave, responderá apenas pelo(s) delito(s) até o ponto de sua anuência. Isso ocorre
em função de haver uma deficiência no elemento subjetivo entre os co-delinqüentes,
existindo o desejo de um deles de participar (em sentido lato) de delito dotado de
menor reprovabilidade.
Em outra hipótese, no entanto, se o resultado mais grave era previsível, a
reprovabilidade será maior, porémo a ponto de equipará-la à do executor. A pena
do agente que poderia prever o resultado mais gravoso, afastado o dolo eventual,
obviamente, será a do crime que desejava participar (em sentido lato), aumentada
de até a metade.
Tome-se, para melhor aclarar o que se postula, o exemplo de Fragoso,
que, devido à sua posição já mencionada, refere-se apenas à participação em
sentido estrito: “Tício manda Caio espancar Mévio. Caio, no entanto, encontra
resistência na vítima, com quem se empenha em luta corporal, matando-a. Tício não
pretendia participar de homicídio, mas sim, apenas de lesão corporal. A lei vigente
estabelece que Tício vai responder, de acordo com a sua culpabilidade pelo crime
que quis praticar e não pelo que o autor praticou. Todavia, se o resultado mais grave
era previsível, como sem a menor dúvida seria no exemplo que formulamos, a pena
imposta ao partícipe deve ser aumentada ‘até a metade’”
284
.
283
Heleno Cláudio FRAGOSO. Lições de Direito Penal – Parte Geral, cit., p. 322.
284
Heleno Cláudio FRAGOSO. Lições de Direito Penal – Parte Geral, cit., p. 322.
153
Apesar de o Código Penal Militar dispor, no § do art. 53, que a
“punibilidade de qualquer dos concorrentes é independente da dos outros,
determinando-se segundo a sua própria culpabilidade”, não apresenta ele dispositivo
que consagre a cooperação dolosamente distinta. Essa estrutura é perfeitamente
compreensível quando se compreende que a co-delinqüência, como acima
sustentado, configura-se em um problema de tipicidade, em especial da conduta
típica, que na estrutura do Código Penal Militar prescinde da investigação do dolo e
da culpa (cf. art. 33 do CPM). Em se tratando de cooperação delitiva dolosamente
distinta, no Código Castrense a discussão desloca-se para o plano da culpabilidade,
na mensuração do dolo para o reconhecimento do delito.
Duas alternativas, portanto, seriam possíveis para reparar o descompasso
entre o Código Penal comum e o Código Penal Militar.
Em primeiro plano, abandonando a fidelidade sistêmica do Código
Castrense, poder-se-ia invocar o princípio da culpabilidade, tão exaltado nesta parte
do trabalho, postulando que sua aplicação impediria que os co-delinqüentes
respondessem de forma idêntica se colaborassem causalmente de forma distinta.
Para solucionar a omissão, a lacuna da lei penal militar, lançar-se-ia mão da
analogia in bonam partem, aplicando-se a regra do Código Penal comum.
Outra alternativa, atendo-se agora à fidelidade sistêmica, seria não
reconhecer o delito mais grave apenas por não haver dolo ou culpa do co-
delinqüente. Caso haja a previsibilidade, sem o dolo eventual, poder-se-ia aplicar a
pena do crime, dosando-se porém de acordo com a culpabilidade, conforme orienta
o § 1º, do art. 53 do Código focado – “A punibilidade de qualquer dos concorrentes é
independente da dos outros, determinando-se segundo a sua própria culpabilidade”.
Assim, aproveitando-se os dois exemplos supracitados, no caso dos co-autores do
furto, pelo Código Penal Militar, “B” também não responderia pelo estupro, por não
ter obrado conjuntamente com “A” com dolo ou com culpa. No caso do mandante da
lesão corporal, havendo o resultado homicídio, em sendo previsível tal resultado, o
mandante por ele responde, a título de dolo eventual ou de culpa, havendo nessa
última hipótese a autoria co-lateral (um responde por homicídio doloso o executor
– e o outro por culposo – o mandante).
154
A primeira alternativa, aplicando-se a analogia in bonam partem, parece
ser a mais adequada, a que melhor atende ao princípio da culpabilidade.
3.1.6 A figura dos “cabeças” no Direito Penal Militar
Nos delitos de concurso necessário (plurissubjetivos), o Código Penal
Militar traz disposição sui generis ao definir os “cabeças” do delito.
O assunto está disciplinado nos §§ 4º e do art. 53, segundo os quais
“cabeças” são aqueles que provocam ou instigam a ação delituosa em um crime de
autoria coletiva. Quando esse crime é praticado por oficiais, em concurso com
inferiores, são eles, mesmo que não insuflem, “cabeças” do crime.
A conseqüência penal é o aumento de pena, de acordo com o preceito
secundário do tipo pena. À guisa de exemplo, tome-se a pena cominada para o
crime de motim, art. 149 do Código Penal Militar, com a majoração para os
“cabeças” (“Pena - reclusão, de quatro a oito anos, com aumento de um terço para
os cabeças”).
Ressalte-se neste ponto a afirmação, consignada acima, de que os
crimes de concurso necessário podem sim ter o efeito do concurso de pessoas,
como a aplicação das agravantes do § 2º, do art. 53, combinando-as, inclusive com
a figura dos “cabeças”, desde que não representem duplo gravame, como na
hipótese do inciso I do referido dispositivo.
3.1.7 Cooperação sucessiva
Questão também muito relevante em matéria de co-delinqüência é a
discussão acerca da possibilidade de haver a cooperação sucessiva para o delito,
ou seja, a investigação do momento limite para que determinada conduta possa unir-
se a outra, de modo que possa haver a responsabilização em sede de concurso de
pessoas.
155
Nilo Batista admite as seguintes hipóteses:
“Como vimos anteriormente (supra, 38), o acordo (expresso ou tácito) de
vontades pode ocorrer mesmo durante a realização do fato; quando isto se
dá, depois do início da execução, fala-se em co-autoria sucessiva.
Passando casualmente diante de uma residência, cujos moradores estão
viajando, A percebe que B está furtando objetos de seu interior, levando-os
para um carro, e entre ambos se estabelece um acordo de vontades para
que juntos prossigam na execução, o que acontece. Sem o acordo (ainda
que tácito), não haveria co-autoria sucessiva, à mingua da comum
resolução para o fato. Assim, no exemplo proposto, se A houvesse se
limitado a observar a atividade de B, e quando este fosse embora,
percebendo que ele não fechara a porta, também ingressasse na residência
e subtraísse algum objeto remanescente, não se estabeleceria qualquer
relação de co-autoria. A conclusão adquiriria relevância quando interviesse
alguma qualificativa na conduta de B (por exemplo, a chave falsa no abrir a
porta), uma vez que A só responderia por furto simples, embora
aproveitando-se da porta aberta.
Pode ocorrer a co-autoria sucessiva não só até a simples consumação do
delito, e sim até o seu exaurimento, que Maurach chama de punto final’.
Dessa forma, o agente que aderisse à empresa delituosa de extorsão
mediante seqüestro (art. 159 CP) por ocasião da obtenção do preço do
resgate (que es situada após a consumação, configurando mero
exaurimento) seria co-autor sucessivo (desde, é claro, pudesse ser co-autor,
pela presença dos requisitos já examinados)”
285
.
Não merece, com a devida admiração pelo autor, prosperar o raciocínio
trazido por Nilo Batista.
O momento de adesão de uma conduta à outra para o reconhecimento do
concurso de pessoas pode ser até a consumação do delito. Após essa, o que se terá
será apenas um crime diverso ou, como se verá no próximo subitem, hipótese de
crime impossível.
No exemplo em que B enxerga A cometendo furto, caso apenas assista e
não tenha o dever de ação, haverá o que se intitula mera conivência, fato não-
punível em nosso Direito. Caso B ajude A na subtração, aderindo de forma subjetiva
ao furto em andamento, o caso será de simples co-delinqüência, e não de uma co-
autoria sucessiva, porquanto haveria a formação do liame subjetivo ainda antes da
consumação.
No caso da extorsão mediante seqüestro, se alguém comparecer
simplesmente para recolher o dinheiro do resgate, poderiam ocorrer duas situações,
não exploradas pelo exemplo de Nilo Batista: a) como regra, nenhum grupo que
285
Nilo BATISTA. Concurso de Agentes: Uma Investigação sobre os Problemas da Autoria e da
Participação no Direito Penal Brasileiro, cit., p. 116-7.
156
pratique extorsão mediante seqüestro libera a vítima que tem sua liberdade
cerceada antes de receber o valor pago pelo resgate; dessa forma, tomando por
primeira hipótese que alguém fora receber o dinheiro exigido durante a manutenção
do seqüestro, em sendo um crime permanente, a situação seria de adesão durante a
consumação do delito, portanto, caso claro de co-delinqüência; b) imagine-se, por
hipótese diversa, que a pessoa que busca o valor do resgate apenas tenha aderido
a essa função após a libertação da vítima seqüestrada, ou seja, tendo os
financiadores do resgate deixado o dinheiro em lugar combinado, longe das vistas
da polícia, e essa pessoa, sabendo posteriormente que houve a extorsão mediante
seqüestro, mas que a vítima havia sido libertada, decidisse apenas recolher o
montante em dinheiro; haveria nesse caso hipótese de crime diverso para o coletor
do montante, pois se “o agente ajuda a assegurar o proveito do crime, intervindo
após a consumação, praticará o crime de favorecimento real (artigo 349, CP)”
286
e
não será concorrente para o delito de extorsão mediante seqüestro
287
.
Bem verdade, ressalte-se, por fim, que a possibilidade de co-autoria
sucessiva existiu nas legislações penais passadas, a exemplo do que dispunham
o § 1º, do art. 6º, do Código Criminal do Império (“Os que receberem, ocultarem ou
comprarem cousas obtidas por meios criminosos, sabendo que o forão ou devendo
sabel-o em razão da qualidade ou condição das pessoas de quem as receberam ou
compraram”) e o § 3º, do art. 19, do Código Penal de 1890 (“Os que receberem,
occultarem, ou comprarem, cousas obtidas por meios criminosos, sabendo que o
foram, ou devendo sabel-o, pela qualidade ou condições das pessoas de quem as
houverem”). Na atualidade, no entanto, com a definição de delitos sucessivos à
delinqüência principal, com o citado favorecimento real (art. 349 do CP e 351 do
CPM), o favorecimento pessoal (art. 348 do CP e 350 do CPM) e a receptação (art.
180 do CP e 254 do CPM), em nome mesmo do princípio da especialidade, não
que se reconhecer a co-delinqüência.
286
Heleno Cláudio FRAGOSO. Lições de Direito Penal – Parte Geral, cit., p. 317.
287
Também no sentido aqui postulado, vide Guilherme de Souza NUCCI. Código Penal Comentado,
cit., p. 274.
157
3.1.8 “Autoria incerta” no concurso de pessoas
A autoria incerta ocorre quando existirem vários executores e não se
souber a qual deles atribuir o resultado.
A adoção da teoria monista, conforme exposto acima (subitem 3.1.3.4),
resolve o problema de forma adequada, que todos os co-delinqüentes
responderão pelo mesmo fato criminoso. Desde que “haja convergência de vontades
para um fim comum, aderindo um dos agentes à ação do outro, a não identificação
do resultado não importa em autoria incerta, pois ambos responderão pelo
resultado”
288
. Pode-se mesmo afirmar que não poderá haver autoria incerta no caso
de concurso de pessoas, que os co-delinqüentes, não importando seu grau de
contribuição o que será apenas relevante para a dosimetria da pena –, serão
autores do delito, sendo hipótese de autoria certa.
Dessa forma, se A e B decidem, em união de propósitos, praticar
homicídio contra C, havendo a execução do plano em sua integralidade com
disparos de arma de fogo por ambos os executores, poder-se-ão vislumbrar duas
hipóteses:
a) em não havendo a identificação de quem efetuou o(s) disparo(s)
letal(ais) (projéteis o recuperados, projéteis extremamente deformados etc.),
ambos responderão pelo delito, conforme o resultado produzido, em face da teoria
unitária adotada pelos Códigos Penais (comum e militar);
b) havendo a identificação de quem efetuou o(s) disparo(s) letal(ais),
ainda que de somente uma das armas, ambos responderão pelo delito, conforme o
resultado produzido, em face da teoria unitária adotada pelos Códigos Penais
(comum e militar);
Ressalte-se que, se a adesão de B à conduta de A, pelo liame subjetivo,
não for anterior à execução, afastando-se a instigação, havendo a constatação de
que B disparou contra C quando este estava morto, a hipótese se de crime
288
Edgard Magalhães NORONHA. Direito Penal, cit., p. 223.
158
impossível para B, o sendo possível, como acima sustentado, a co-autoria
sucessiva.
Caso haja a autoria co-lateral, conforme abordado abaixo, as hipóteses
serão diversa.
3.1.9 Classificação dos delitos com base no concurso de pessoas
No que tange ainda ao concurso, deve-se entender que existem crimes
unissubjetivos (monossubjetivos ou unilaterais), que se traduzem como aqueles que
podem ser praticados por uma pessoa, embora nada impeça a co-autoria ou a
participação. Nesses casos, o concurso de pessoas será eventual, tal qual ocorre no
homicídio (art. 121 do CP e art. 205 do CPM).
Por outro lado, há delitos que, por sua conceituação típica, exigem dois
ou mais agentes para a prática da conduta criminosa, sendo necessário, portanto, o
concurso de pessoas. São os delitos plurissubjetivos ou de concurso necessário,
que podem, na visão de Mirabete
289
, ser destacados em três categorias:
a) delitos plurissubjetivos de condutas paralelas: em que os co-autores
praticam a conduta em um mesmo propósito, porém sem que um direcione sua
conduta para o outro. Como exemplos têm-se o delito de quadrilha ou bando (art.
288 do CP) e o crime de motim (art. 149 do CPM);
b) delitos plurissubjetivos de condutas convergentes: em que os co-
autores praticam a conduta em um mesmo propósito, porém um direcionando sua
conduta para o outro, sem que seja uma agressão, uma oposição. Como exemplos
têm-se o delito de bigamia (art. 235 do CP) e o crime de pederastia ou outro ato de
libidinagem (art. 235 do CPM); nesses crimes, é possível que um dos concorrentes
não seja culpável (por exemplo, por ser inimputável), quando se afastada a
hipótese de concurso, remanescendo a autoria de um dos consortes;
289
Julio Fabbrini MIRABETE. Manual de Direito Penal – Parte Geral. 23 ed. São Paulo: Atlas, 2006, p.
120.
159
c) delitos plurissubjetivos de condutas divergentes: nesse caso, os co-
autores dirigem suas ações uns contra os outros. Tome-se como exemplo o crime de
rixa (art. 211 do CPM e 137 do CP).
ainda uma espécie de crimes que somente pode ser perpetrada pelo
autor em pessoa, como no caso do crime de deserção (art. 187 do CPM) e do falso
testemunho (art. 346 do CPM). Tais crimes, denominados crimes de o-própria,
somente admitem a participação.
3.1.10 Comunicação das circunstâncias pessoais elementares do
tipo penal
O Código Penal comum e o Código Penal Militar possuem a regra de que
as circunstâncias e condições de caráter pessoal não se comunicam, salvo se
elementares do tipo penal (art.30 do CP e a 2ª parte, do § 1º, do art. 53 do CPM).
Para Guilherme Nucci, condição pessoal é o modo de ser ou qualidade
inerente à pessoa, a exemplo da menoridade, enquanto a circunstância pessoal é
uma situação ou particularidade que envolve o agente sem constituir elemento
essencial de sua pessoa, como o motivo fútil
290
.
Há, em verdade, uma tendência à compreensão única dos vocábulos,
tendo-os por sinônimos, como o faz Fragoso, para quem as circunstâncias podem
ser subjetivas (de caráter pessoal) ou objetivas (de caráter real). “As circunstâncias
subjetivas são as que se referem aos motivos determinantes, à qualidade ou
condição pessoal do agente, às suas relações com a vítima ou com os demais
partícipes ou co-autores. São circunstâncias objetivas as que se referem aos meios
e momentos de execução, à condição ou qualidade da vítima, ao tempo, lugar e
ocasião do crime, bem como à natureza do objeto material”
291
.
Os Códigos Penais em exame são silentes em relação às circunstâncias
objetivas, referindo-se apenas às de caráter subjetivo, pessoal, donde conclui-se
290
Guilherme de Souza NUCCI. Código Penal Comentado, cit., p. 276-7.
291
Heleno Cláudio FRAGOSO. Lições de Direito Penal – Parte Geral, cit., p. 324.
160
que apenas estas são comunicáveis entre os consortes quando exigidas como
elemento típico. Essa previsão leva à conclusão de que tais circunstâncias somente
seriam comunicáveis se o autor, ao menos, pudesse prevê-las
292
.
Elementar do tipo, é preciso que seja relembrado, constitui todo e
qualquer elemento grafado no tipo penal, de modo que o crime não será verificado
sem sua presença. Como exemplo, cite-se a condição de ser funcionário público
para o delito de concussão (art. 316 do CP) ou de ser militar da ativa para o delito de
deserção (art. 187 cc art. 22, ambos do CPM).
Questão muito discutida refere-se à aceitação de condições ou
circunstâncias personalíssimas, que não poderiam ser comunicadas entre os
consortes. É o caso, no Código Penal comum, do estado puerperal para o delito de
infanticídio (art. 123 do CP).
Ora, o tipo citado dispõe ser crime “matar, sob a influência do estado
puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após”, ficando clara a situação de
que o “estado puerperal” é uma circunstância pessoal que se configura em elemento
típico, sendo perfeitamente possível sua comunicação entre os consortes. Ademais,
é estranha à lei penal a construção de uma “circunstância personalíssima”, incapaz
de ser comunicada, já que os dispositivos em análise (art.30 do CP e a 2ª parte do §
1º, do art. 53, do CPM) não abrem exceção
293
.
3
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.
.
2
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Como se disse, nem sempre a pluralidade de pessoas no lo ativo de
um delito significará o concurso de pessoas, podendo ocorrer, dentre outras
hipóteses, a autoria colateral.
292
Nesse sentido, Guilherme de Souza NUCCI. Código Penal Comentado, cit., p. 277. No sentido de
que tais circunstâncias não se comunicam, Edgard Magalhães NORONHA. Direito Penal, cit., p. 221-
2.
293
Nesse sentido, Guilherme de Souza NUCCI. Código Penal Comentado, cit., p. 277-8. Também
Edgard Magalhães NORONHA. Direito Penal, cit., p. 221.
161
A autoria colateral ocorre quando mais de um agente esteja praticando a
conduta, um sem saber que o outro também a pratica. Os agentes desconhecem
que estão praticando a mesma conduta simultaneamente. Não unidade de
objetivos (um liame subjetivo entre os agentes), respondendo cada agente pela
conduta praticada.
Como exemplo, tome-se o caso em que dois atiradores pretendem
praticar um homicídio contra terceiro inocente, simultaneamente, mas um não
sabendo da existência do outro. Como o tinham unidade de propósitos, cada um
responde pelo crime que cometeu, podendo, consoante as lições de Fragoso
294
,
haver as seguintes hipóteses:
a) se a vítima morreu em razão dos disparos efetuados por ambos, os
dois responderão por homicídio consumado;
b) se a vítima morreu em razão do disparo efetuado por apenas um dos
autores, apenas este responderá por homicídio consumado, enquanto o outro por
homicídio tentado;
c) finalmente, se a vítima falecer em razão de um disparo, do qual o se
pode detectar a autoria, ambos responderão, em nome do princípio in dubio pro reo,
por homicídio tentado, reconhecendo-se aqui a autoria incerta, impossível no caso
de concurso de pessoas.
Derradeiramente, deve-se lembrar também que há a possibilidade de
crime impossível por um dos atiradores. Como exemplo, A e B querem matar C, isso
sem haver o liame subjetivo de cooperação (autoria colateral). A decide executar seu
plano por envenenamento e B por arma de fogo. Em um modo, A administra a
dose letal de modo que C cai sobre a cama, morrendo em segundos. B, sem saber
que C se encontra morto, pouco após, entra no quarto e desfere seis tiros sobre o
cadáver. Haverá crime impossível por impropriedade absoluta do objeto.
294
Heleno Cláudio FRAGOSO. Lições de Direito Penal – Parte Geral, cit., p. 315.
4
4
D
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A
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Nesta parte do trabalho buscar-se-á atacar ao tema proposto diretamente,
verificando qual a dimensão exata que se deve dar à assim chamada “participação
por omissão”.
Antes, porém, faz-se necessário retomar alguns pontos já vistos.
4.1.1 A retomada de alguns pontos relevantes
4.1.1.1 Conceito de omissão
Como assentado no subitem 2.1.4, deve-se compreender a omissão de
forma ontológica, em um conceito negativo transitivo, segundo o qual se configura
em uma abstenção de ação determinada, exigindo-se, entretanto, uma possibilidade
subjetiva (que pressupõe a capacidade física de ação) em que será avaliada a
capacidade em concreto do omitente, com foco nos elementos a ele circundantes.
Deve-se ainda somar, para o reconhecimento da ação, o conhecimento
do omitente da direção finalística que a ação exigida – da qual se absteve –
comporta, isso arrimado em uma base de conhecimento ao menos potencial do
objetivo da ação, do objeto da intervenção, da situação típica, de modo que o
omitente tenha condições de reconhecer e de selecionar os meios aptos para levar a
efeito o objetivo.
Capítulo
163
A ação esperada, por fim, deve ser compreendida como uma expectativa
arrimada em um sistema normativo, o qual o deve ser compreendido de forma
ampla, mas apenas centrado na tipicidade penal um sistema normativo jurídico-
penal. Evita-se, assim, a desnecessária intervenção estatal na liberdade de ação do
cidadão, de modo que a criminalização da omissão constitui exceção no Estado
Democrático de Direito.
4.1.1.2 Estrutura do tipo penal objetivo da omissão imprópria
O preenchimento do tipo objetivo da omissão imprópria (subitem
2.1.5.2.1) requer os seguintes elementos:
a) uma situação de perigo para o bem jurídico;
b) a capacidade subjetiva de agir do omitente;
c) a omissão efetiva da ação mandada;
d) a produção do resultado típico (natural ou jurídico);
e) a existência da figura do garantidor.
Para a delimitação da figura do garantidor, existem duas teorias que
dividem prestígio, a saber, a teoria formal do dever jurídico e a teoria das funções.
No Brasil, como visto, a legislação vigente, tanto comum como militar,
adotou a teoria formal das fontes de dever, sem a vinculação expressa a um
contrato, considerando garantidor do bem jurídico aquele que tenha por lei obrigação
de cuidado, proteção ou vigilância sobre o bem jurídico, que de outra forma assumiu
a responsabilidade de impedir o resultado ou que, com seu comportamento anterior,
criou o risco da ocorrência do resultado.
164
4.1.1.3 O tipo subjetivo da omissão imprópria
No que concerne à tipicidade subjetiva da omissão imprópria (subitem
2.1.5.2.2), basta dizer que é perfeitamente possível perpetrar essa espécie de delito
sob as formas dolosa ou culposa.
4.1.1.4 Nexo causal nos delitos omissivos impróprios
Nos delitos omissivos impróprios deve-se, sim, investigar o nexo causal
(subitem 2.1.6); contudo, tal averiguação não passa pela causalidade física, mas sim
normativa, com base na figura do garantidor.
Em outras palavras, deve-se averiguar a causalidade de acordo com a
norma que considera a omissão como causa, quando a) alguém tem por lei
obrigação de cuidado, proteção ou vigilância, b) de outra forma assumiu a
responsabilidade de impedir o resultado, ou, com seu comportamento anterior, c)
criou o risco da superveniência do resultado.
4.1.1.5 Antijuridicidade e culpabilidade na omissão imprópria
A antijuridicidade e a culpabilidade nos delitos omissivos, conforme visto
no subitem 2.1.8, não apresenta disposição específica, devendo ser avaliada de
acordo com o sistema adotado, preferindo-se, no caso da culpabilidade, a adoção da
teoria normativa pura, que o finalismo foi o sistema eleito como orientador da
pesquisa.
165
4.1.1.6 Requisitos do concurso de pessoas
Ingressando no tema do concurso de pessoas, muito importante é
rememorar os requisitos para seu reconhecimento, conforme disposto no subitem
3.1.3.
Inicialmente, deve-se verificar a existência de, no mínimo, duas condutas,
perpetradas por distintas pessoas, podendo muito bem haver uma comissiva e outra
omissiva.
É preciso que tais condutas tenham relevância causal para o resultado,
considerando-se que a causalidade física não é a única visão, podendo haver a
causalidade normativa do crime omissivo impróprio, verificada pela constatação da
existência da figura do garantidor que se omitiu (omissão no conceito acima
resumido, com capacidade concreta de ação, possibilidade de compreensão de que
a ação de que se absteve poderia obstar o resultado etc.).
Necessário também que haja o liame subjetivo, traduzido como a
consciência ou a vontade de cooperação, unindo as condutas dos consortes. Esse
liame, que prescinde do ajuste prévio, mas deve desenvolver-se antes da
consumação, pode ser bilateral ou, na exceção, conforme reconhece a doutrina
apontada, unilateral.
Finalmente, para a perfeição do concurso de pessoas, em regra, deve a
pluralidade de condutas atrelar-se a fato delitivo único (teoria unitária ou monista),
embora existam exceções devidamente apontadas.
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Como já suscitado várias vezes, a doutrina pátria – e a ela deve ser fixado
o estudo dada a peculiaridade da legislação vigente não esmiúça
convenientemente a omissão do garantidor em face de fato de terceiro, limitando-se,
166
tão-somente, a reconhecer, de forma majoritária mas não unânime, como se verá,
que há omissão penalmente relevante e em concurso de pessoas, sob a forma de
participação (“participação por omissão”).
Cezar Roberto Bitencourt, por exemplo, como já citado na introdução
desta pesquisa, o detalha a matéria, mas coloca nela visão isolada, segundo a
qual a omissão do garantidor, o coloca na condição de autor do fato, ou de co-autor,
se a resolução da omissão for conjunta, reconhecendo a participação na omissão
imprópria apenas quando não houver o dever de ação, ou seja, quando o omitente
não é garantidor. Exemplifica no fato do terceiro que instiga o garantidor a não
impedir o resultado, sendo aquele partícipe do crime omissivo deste
295
.
Curiosa acerca do assunto é a visão de Juarez Tavares, que faz uma
construção única acerca do concurso nos crimes omissivos, entendendo que tanto
os omissivos próprios como impróprios, por terem a mesma natureza de uma
inobservância de dever, importam em uma imputação individual, independente da
dos outros que concorrem para o resultado. Assim, postula que “podemos afirmar
que nos crimes omissivos não concurso de pessoas, isto é, não há co-autoria
nem participação. Cada qual responde pela omissão individualmente, com base no
dever que lhe é imposto, diante da situação típica de perigo ou diante de sua
posição de garantidor.Trata-se, na verdade, como expõe Armin Kaufmann, de uma
forma especial de autoria colateral. São estas suas palavras: Se 50 nadadores
assistem impassíveis ao afogamento de uma criança, todos ter-se-ão omitido de
prestar-lhe salvamento, mas não comunitariamente. Cada um será autor do fato
omissivo, ou melhor, autor colateral de omissão
296
.
Nessa mesma esteira está Nilo Batista, para quem se deve estabelecer
que “onde exista o dever jurídico de impedir o resultado o haverá cumplicidade
por omissão, mas poderá haver autoria pelo crime omissivo (autoria esta colateral à
autoria daquele que por ação produz o resultado)”
297
.
295
Cezar Roberto BITENCOURT. Tratado de Direito Penal Parte Geral. 10 ed. São Paulo: Saraiva,
2006, p. 530-1.
296
Juarez TAVAREZ. As Controvérsias em torno dos Crimes Omissivos. Rio de Janeiro: Instituto
Latino-americano de Cooperação Penal, 1996, p. 86.
297
Nilo BATISTA. Concurso de Agentes: Uma Investigação sobre os Problemas da Autoria e da
Participação no Direito Penal Brasileiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004, p. 173.
167
A visão dominante, no entanto, não é em favor de co-autoria ou de autoria
colateral, mas de participação por omissão, conforme já indicado.
Nesse sentido, Juarez Cirino dos Santos postula que as “hipóteses de um
co-autor, enquanto o outro, de modo contrário ao dever, omite a ação de impedir a
atuação positiva do primeiro, não seriam casos de co-autoria, mas de autoria e de
participação, pela posição subordinada do omitente em relação ao autor”
298
.
Guilherme Nucci, por sua vez, dispõe que a participação por omissão
pode ocorrer desde que o omitente tenha o dever de evitar o resultado, e exemplifica
mencionando o bombeiro que se omite deliberadamente de combater o fogo, e
deverá responder pelo crime de incêndio
299
.
As considerações dominantes acima, como se observou, são
demasiadamente genéricas, não possibilitando a abordagem amiúde do tema. Em
melhor posição de detalhamento, porém admitindo a possibilidade de participação
por omissão, está Magalhães Noronha, in verbis:
“Pode o concurso dar-se mediante omissão, quando o dever jurídico de
evitar o evento, pois em tal caso a conduta omissiva é causal (n. 65).
Faltando esse dever, não haverá co-participação, a menos tenha sido
assegurada a inércia ao executor material. Há, então, um plano entre os
agentes, cabendo a um atividade e a outro, omissão.
Ocorrendo o dever jurídico de obstar o evento, é mister atentar ao elemento
subjetivo do obrigado. Faltando a vontade de colaborar ou cooperar no fato,
não pode este ser-lhe imputado; responderá a pessoa por falta disciplinar
ou por outro delito. Hungria exemplifica com o caso do banhista que
alguém atirar às ondas uma criança e por indiferença não intervém,
praticando, então, o delito do art. 135; e do soldado que, por covardia,
assiste a um assalto sem tomar qualquer providência, incorrendo dessarte,
em falta disciplinar”
300
.
Com efeito, Hungria é dessa posição, postulando que, “mesmo no caso
de existência do dever jurídico de impedir, não se pode reconhecer a participação,
se não há, da parte do omitente, a vontade de aderir à prática do crime. Não basta a
eficácia causal (sob o prisma lógico-jurídico) da omissão: é necessário, também
298
Juarez Cirino dos SANTOS. A Moderna Teoria do Fato Punível. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan,
2002, p. 252.
299
Guilherme de Souza NUCCI. Código Penal Comentado. 6 ed. São Paulo: RT, 2006, p. 273.
300
Edgard Magalhães NORONHA. Direito Penal. 38 ed. São Paulo: Saraiva, 2004, vol. 1, p. 217.
168
aqui, o vínculo psicológico que faz inserir a vontade individual na vontade
coletiva”
301
.
Feita a navegação por visões doutrinárias pátrias, cumpre agora a tomada
de posição, para o que se pede vênia no sentido de resgatar as perguntas e as
hipóteses formuladas em sede de introdução.
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No início do presente trabalho, algumas questões foram lançadas acerca
do tema, a saber:
1) Em que termos dar-se-á a responsabilidade penal do garantidor, na
omissão penalmente relevante, quando anui em um comportamento delituoso de
terceiro?
2) concurso de pessoas, autoria colateral ou fato irrelevante
penalmente?
3) Em havendo concurso de pessoas, estaremos diante de co-autoria ou
de participação?
4) Caso o fato não possa ser responsabilizado penalmente, qual a
fundamentação que arrima tal situação (atipicidade do fato, exclusão da
culpabilidade etc.)?
Desde o princípio, foram lançadas três hipóteses, as quais,
aparentemente, foram confirmadas pelos posicionamentos doutrinários acima
apontados:
1) haverá apenas a responsabilização extrapenal;
2) haverá a responsabilização penal a tulo de concurso de pessoas (co-
autoria ou participação); e
301
Nélson HUNGRIA. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1958, vol. 1, t. I, p.
423.
169
3) haverá responsabilização penal a título de autoria colateral.
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Para chegar à conclusão mais abalizada, tomem-se os exemplos
seguintes, que ajudarão a enxergar os reflexos de uma ou outra posição.
Exemplo 1: um policial rodoviário, responsável pela preservação da
ordem pública em determinada rodovia, embora veja um animal morto no
acostamento, deixa de providenciar a remoção da carcaça do animal,
negligenciando em seu dever. Durante a noite, um veículo que trafegava na rodovia
precisa parar no acostamento, decidindo fazê-lo justamente onde a carcaça
repousa. Ao ver o obstáculo, o motorista retoma o curso da faixa de rolamento e
atinge uma pessoa que conduzia uma motocicleta, vindo esta a falecer;
Exemplo 2: um policial militar, no seu período de ronda, encontra um
grupo de furtadores, os quais não o vêem, decidindo o militar do Estado continuar
sua ronda normalmente, sem intervir para impedir o resultado do delito patrimonial;
Exemplo 3: uma enfermeira, durante seu plantão noturno em um
berçário, observa passivamente a e estrangular seu filho, recém-nascido, até a
morte, sob o estado puerperal;
Exemplo 4: um policial (A) faz patrulhamento durante seu turno de
serviço e seu companheiro de guarnição (B), ao ver uma mulher muito bonita, decide
estuprá-la dentro da viatura, quedando-se (A) inerte, embora não tenha agido na
execução do estupro;
Exemplo 5: um policial militar assiste passivamente seu companheiro de
guarnição executar um desafeto durante o turno de serviço.
Imagine-se que, em todos os casos enumerados, havia concreta
possibilidade de atuação dos garantidores, que também conheciam a direção da
ação que omitiram no sentido de impedir o resultado.
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4.5.1 Omissão do garantidor em ato delituoso de terceiro como co-
autoria dos vários concorrentes (a visão de Cezar Roberto
Bitencourt)
Na adoção pura de Cezar Roberto Bitencourt, partindo-se do pressuposto
de que a participação, pela eleição do finalismo como sistema reitor, sempre de
ser dolosa (vide subitem 3.1.4), e compreendendo-se que a co-autoria exigiria o
liame subjetivo, aqui não presente, não existiria concurso no primeiro exemplo, mas
a autoria colateral em delito culposo.
No segundo exemplo, como todos causaram o resultado, o policial por
omissão lesando seu dever jurídico, e o grupo por ação, ao furtar, haveria co-autoria
no delito patrimonial.
A mesma compreensão deveria ser dada ao terceiro exemplo, que a
enfermeira omitiu-se, contrariamente ao seu dever, enquanto a mãe agiu para
asfixiar o recém-nascido. Ambas responderiam por infanticídio, em co-autoria, dada
a comunicação das elementares (“mãe”, em contraposição à expressão “próprio
filho”, e “estado puerperal”) do tipo penal.
Também haveria co-autoria no caso do policial estuprador (exemplo 4) e
do outro que passivamente assistiu ao companheiro de guarnição executar alguém
(exemplo 5), pelas mesmas razões que as consignadas para os exemplos 2 e 3.
171
4.5.2 Omissão do garantidor em ato delituoso de terceiro como
autoria colateral (a visão de Juarez Tavares e de Nilo Batista)
Pelo viés da impossibilidade de concurso de pessoas em crime omissivo,
a situação seria diversa.
Nos exemplos 1, 2, 4 e 5, haveria a autoria colateral, cada um
respondendo autonomamente. Uns estariam diretamente na linha de
responsabilização por ação. Outros, os garantidores, responderiam em função da
omissão penalmente relevante, mas sem a conjugação do concurso de pessoas.
A maior complicação, no entanto, dar-se-ia no caso do exemplo 3. Aqui,
também, haveria autoria colateral; todavia, a enfermeira não responderia pelo
infanticídio, mas pelo homicídio, já que a ausência do concurso de pessoas impediria
a comunicação das elementares típicas capazes de torná-la (a enfermeira) possível
sujeito ativo do delito capitulado no art. 123 do Código Penal.
4.5.3 Omissão do garantidor em ato delituoso de terceiro como
participação por omissão sem especial atenção ao liame
subjetivo (a visão de Juarez Cirino dos Santos e de
Guilherme de Souza Nucci)
Tomando-se por acertada a visão de participação por omissão, sem o
detalhamento do liame subjetivo, no exemplo 1, pelas mesmas razões indicadas no
subitem 4.5.1 suso, a hipótese seria de autoria co-lateral.
Nos demais exemplos, ter-se-iam hipóteses de participação, em que o
garantidor, por sua omissão lesadora do dever de ação, concorre de forma
adjacente para o fato principal, configurando-se, assim, a participação.
172
4.5.4 Omissão do garantidor em ato delituoso de terceiro como
fato irrelevante penalmente
Caso entenda-se que a omissão do garantidor será sempre fato
irrelevante penalmente, o que o encontra guarida em nenhuma das legislações
avaliadas, os exemplos 1, 2, 4 e 5 importariam em responsabilização autônoma
(autoria colateral), mas não com a responsabilização do garantidor pelo fato
principal, em razão da regra da omissão penalmente relevante, e sim por delito
autônomo, como a prevaricação (art. 319 do CP e do CPM), isso se demonstrado o
elemento subjetivo do injusto (para satisfazer “interesse ou sentimento pessoal”).
No exemplo 3, não restaria responsabilidade penal para a enfermeira,
equiparando-se sua conduta à mera conivência.
4.5.5 Omissão do garantidor em ato delituoso de terceiro como
participação por omissão com especial atenção ao liame
subjetivo (a visão de Nélson Hungria e de Edgard Magalhães
Noronha)
Por fim, pela visão que privilegia o estudo do liame subjetivo, as soluções
poderiam ser diversas.
O exemplo 1, assim como nos casos acima, o poderia redundar em
conclusão pela co-delinqüência, porquanto ausente a consciência de cooperar, de
colaborar, no fato principal. A solução seria a autoria co-lateral, respondendo o
motorista por homicídio culposo em comissão culposa (se demonstrada sua culpa,
obviamente), enquanto o policial rodoviário responderia por homicídio culposo, tendo
em foco a omissão penalmente relevante que, legalmente, não escolhe se a
omissão deve ser dolosa ou culposa.
No exemplo 2, não que se falar em concurso de pessoas, porquanto
ausente o liame subjetivo necessário. Não houve, nas acima citadas palavras de
173
Hungria, “a vontade de aderir à prática do crime”, “o vínculo psicológico que faz
inserir a vontade individual na vontade coletiva”. A hipótese seria de autoria colateral
ou de irresponsabilidade penal do garantidor. Autoria colateral se demonstrado, por
exemplo, o sentimento (ou interesse) pessoal almejado pelo garantidor, havendo
hipótese de delito diverso (prevaricação). Caso não demonstrado esse elemento
subjetivo (ou qualquer outro que preencha tipo penal específico), haveria a simples
responsabilização disciplinar.
Do mesmo modo, no exemplo da enfermeira também estaria ausente o
liame subjetivo, sendo impossível o concurso. No caso em espécie, deveria ela
responder por homicídio, dada sua omissão penalmente relevante.
Nos exemplos 4 e 5, parece claro que a presença física do garantidor, no
ato praticado pelo autor, transforma a vontade de omissão individual em vontade
coletiva, no sentido de atingir o resultado (estupro e homicídio). Haverá o concurso e
os garantidores serão partícipes dos delitos executados.
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Como se viu, as várias vertentes acima possuem soluções que destoam
de uma linha coerente de raciocínio, havendo a mesmo a dificuldade de
enquadramento de casos concretos.
que se buscar, portanto, construção mais segura, que propicie a justa
solução para as questões, sem que se olvide do princípio da culpabilidade,
principalmente em sua vertente que combate a responsabilidade penal objetiva.
Providencial, neste ponto, resgatar a lição de André Vinicius de Almeida,
que muito bem consignou em seu trabalho de conclusão de mestrado que, em
atenção aos postulados do princípio da culpabilidade, “repudia-se qualquer
manifestação do versari in re illicita, consistente na hipótese daquele que, fazendo
174
algo não permitido, por puro acidente causa um resultado antijurídico, sem que este
possa ser considerado com o causado ao menos culposamente (responsabilidade
objetiva). Afasta-se igualmente a responsabilidade pelo fato de outrem”
302
.
A propósito do versari in re illicita, Zaffaroni e Pierangeli assentam que
sempre “que se pretende violar o princípio do nullum crimen sine culpa, apela-se ao
malfadado versari in re illicita’. Segundo o princípio versari in re illicita, ‘é
conceituado autor aquele que fazendo algo o permitido, por puro acidente causa
um resultado antijurídico’ (Kollmann). Conforme o princípio versari in re illicita, o
autor de um furto deveria ser responsabilizado pela morte do dono do negócio,
ocorrida em conseqüência de uma parada cardíaca sofrida ao tomar conhecimento
do fato delituoso em seu estabelecimento; o marido que abandona o lar deveria ser
responsabilizado pelo suicídio da mulher; aquele que furta um extintor, pelo dano
causado por um incêndio que sobrevém um ano depois; aquele que se apodera do
combustível de um veículo, pelo roubo de que é vítima o seu dono quando procura
abastecimento. Deduz-se destes exemplos a flagrante violação ao nullum crimen
sine culpa, isto é, que o versari in re illicita é a mais corrente manifestação de
responsabilidade penal objetiva”
303
.
As objeções de Zaffaroni e Pierangeli, nada mais são do que a busca da
imputação razoável, proporcional, ligada ao injusto pessoal e não por uma simples
previsão legal funcionalista, que, em nome dos fins colimados para o Direito penal,
tem na norma o vetor máximo, senão único, de interpretação. Não como afastar-
se essa mesma compreensão da análise da omissão do garantidor em ato praticado
por terceiro.
Não se pode, em conclusão, responsabilizar alguém apenas pela
constatação da causalidade (física ou normativa), sem a íntima investigação da
conformação subjetiva do fato.
Dessarte, propõe-se um giro na interpretação da omissão do garantidor
em ato delituoso de terceiro, que terá por eixo o liame subjetivo, o qual deverá
302
André Vinicius Espírito Santo de ALMEIDA. Erro e Concurso de Pessoas no Direito Penal. São
Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006 (Dissertação de Mestrado em Direito
Penal, área de concentração Direito das Relações Sociais), p. 21.
303
Eugenio RAÚL ZAFFARONI e José Henrique PIERANGELI. Manual de Direito Penal Brasileiro
Parte Geral. 4 ed. São Paulo: RT, 2001, p. 526.
175
ganhar a concepção, mesmo na participação, de liame subjetivo bilateral, em
perfeita sintonia com o princípio da culpabilidade.
A visão de Hungria, partilhada por Magalhães Noronha, embora tenha
uma busca maior no sentido de atender ao princípio da culpabilidade, peca pela falta
de objetividade na investigação, bem como por olvidar-se, por vezes, do sentido do
nullum crimen sine culpa. Em outros termos, como saber, de forma mais segura, se
houve a vontade de cooperar no fato principal, como verificar se a vontade individual
aderiu a uma vontade coletiva?
A resposta a essa indagação parece encontrar sua melhor conformação
na exigência de um liame subjetivo bilateral, em que o autor do fato principal, mesmo
sabendo que o garantidor pode impedir sua ação delituosa, a desencadeia
tranquilamente, por permissibilidade do omitente. O autor, enxerga no garantidor
quase um cúmplice a dar-lhe a tranqüilidade de execução por um apoio presencial.
É essa a essência que deve ser alcançada ou, de outra forma, com uma omissão do
garantidor a distância, sem interferência psicológica no autor, não se pode
reconhecer a hipótese de concurso de pessoas.
Com a visão que se propõe, as hipóteses enumeradas na introdução
podem coexistir, ou seja, na omissão do garantidor em ato delituoso de terceiro,
pode ocorre hipótese de concurso de pessoas, pela participação, pode ocorrer
autoria colateral e pode haver situação de irrelevância penal, ficando apenas a
repressão a cargo do Direito disciplinar.
As soluções para os casos enumerados seriam muito próximas àquelas
com base na visão de Hungria, porém com mais segurança.
O exemplo 1, pela interferência do princípio da culpabilidade, deveria
levar a uma investigação de elementos outros para a responsabilização do policial
rodoviário. Assim, se a carcaça do animal quedou-se por três dias, inviável e
desproporcional imputar o fato conseqüente ao garantidor, resolvendo-se a questão
apenas no plano do Direito disciplinar, em atenção ao caráter subsidiário do Direito
Penal. Claro que ainda muita fluidez na concepção de responsabilização por fato
recente, imediatamente verificado após a omissão do garantidor, e o
176
responsabilização por evento mediato, mas a construção que aqui se faz é um
passo a mais no sentido de rechaçar a responsabilidade penal objetiva.
No exemplo 2, não cabe falar em concurso de pessoas, porquanto
ausente o liame subjetivo bilateral necessário. O atuar dos furtadores não
compreendeu a omissão do garantidor, não havendo a reciprocidade aqui proposta
como elemento identificador do liame entre consortes. A solução, semelhante à de
Hungria, porém mais objetiva, seria o reconhecimento de autoria colateral ou de
irresponsabilidade penal do garantidor, resolvendo-se no âmbito disciplinar.
No exemplo da enfermeira, também pela falta de liame subjetivo bilateral,
afastar-se-ia a hipótese de concurso (não havendo, portanto, a comunicação das
elementares), respondendo a mãe pelo infanticídio e, em primeira análise, a
enfermeira por homicídio. Essa solução, no entanto, é extremamente desmedida
quando comparada à possibilidade de a enfermeira estar presente e ser vista pela
mãe no momento da ação, dando-lhe conforto para atuar. Nessa situação,
aplicando-se a fórmula pura, ambas, mãe e enfermeira, responderiam pelo
infanticídio. Assim, muito menos grave seria a enfermeira assistir e ser vista, anuindo
ao delito, que esconder-se sorrateiramente sem incentivá-lo. Obviamente, aqui a
fórmula deve ser temperada pela proporcionalidade em plena conjugação com a
culpabilidade, resolvendo-se o problema, para a enfermeira e apenas na segunda
hipótese, no campo disciplinar.
Nos exemplos 4 e 5, a presença física do garantidor no momento da ação
do autor conecta as vontades de ambos, gerando o vínculo subjetivo recíproco que
aqui se propõe. Haveria o caso. Haverá o concurso e os garantidores serão
partícipes dos delitos executados (estupro e homicídio).
As construções acima consignadas, embora possam não ser
hermeticamente perfeitas, posto estarem suscetíveis de ataques, parecem as mais
adequadas na busca da justa responsabilização penal, em conformidade com os
princípios reitores do Direito penal no Estado Democrático de Direito.
C
C
O
O
N
N
C
C
L
L
U
U
S
S
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Ã
O
O
O Direito penal vive uma constante relação dialética entre a prevenção
geral, marcada pelos novos desafios da pós-modernidade, e a necessidade de
assegurar garantias aos cidadãos.
Essa dialeticidade, enxergada por alguns como uma crise, constitui-se
exatamente na mola propulsora do desenvolvimento do Direito penal,
desenvolvimento esse que encontra no conceito analítico de crime sua acepção
máxima.
Várias idéias a esse respeito surgiram ao longo dos tempos, sendo
condensadas em uma regra reitora única, de modo a configurar um sistema. Os
sistemas, inicialmente, buscaram sob o signo da causalidade, influenciados por uma
corrente naturalista vigente à época, compreender a essência do delito, em um
notável esforço ontológico. Essa vertente ontológica encontrou seu ápice pelo
estudo da ação finalista que, partindo da aceitação de estruturas lógico-objetivas,
tinha na ação o centro do fato punível.
Na metade do século XX, no entanto, surge na Alemanha uma retomada
normativista que gira a compreensão do delito no sentido de que não existem
estruturas pré-jurídicas a serem consideradas no estudo do delito, mas este deve ser
formatado de acordo com os fins do Direito penal, surgindo, assim, as visões
funcionalistas.
O funcionalismo, malgrado sua reconhecida utilidade pontual na
discussão de alguns tópicos do Direito penal, como a necessidade de um esquema
objetivo de imputação, que não seja apenas guiado pela causalidade física, não
pode ser eleito para a discussão de problemas fulcrais do Direito penal, dada sua
instabilidade em razão do subjetivismo que órbita a conclusão acerca das finalidades
da pena e do Direito penal em si.
No Brasil, embora eleito o finalismo como sistema reitor do estudo
contemporâneo, uma dicotomia de sistemas, sobrevivendo, além da teoria da
ação final, o causalismo no Código Penal Militar, não atingido pela reforma penal de
178
1984. Apesar disso, firma-se ser perfeitamente possível aplicar dogmas finalistas em
um sistema causalista, em esforço necessário para atender-se ao princípio reitor da
culpabilidade, de motes constitucionais inarredável no Estado Democrático de
Direito.
Nesse contexto, a discussão da responsabilização penal ou não de uma
pessoa dotada de dever especial de ação (garantidor) que se omite em face de uma
ação delitiva de terceiro ganha relevo, devendo-se averiguar, primeiro, se deve
haver responsabilização penal e, segundo, em que moldes esta ocorrerá se for
existente.
Resume-se, então, investigar se aquele que se abstém de uma ação
determinada, tendo a capacidade concreta de atuação, e conhecendo os meios e a
possibilidade de impedir o resultado de um ato praticado por um terceiro, deve sofrer
o peso da responsabilização criminal.
Observando-se os requisitos do concurso de pessoas, a grande maioria
da doutrina pátria postula em favor de uma participação por omissão, com suas
conseqüências correlatas. Nesses elementos, deve-se dar destaque ao liame
subjetivo, que majoritariamente pode instalar-se de forma unilateral.
Contudo, parece que a solução não pode afigurar-se em abstrato, mas
apenas no caso concreto, averiguando-se exatamente qual a posição do garantidor
e, principalmente, qual a conotação do liame subjetivo instalado.
Em consonância com o princípio da culpabilidade e propondo-se uma
nova compreensão dos elementos do concursus delinquentium, segundo a qual o
liame entre os consortes deve ser recíproco, conclui-se que três possibilidades
podem ocorrer na responsabilização do garantidor.
Haverá casos, devidamente exemplificados, em que se impossível
reconhecer o concurso pela inexistência de liame subjetivo bilateral, restando uma
responsabilização penal por autoria colateral. Outros casos existirão em que sequer
a responsabilização autônoma se possível, pela ausência de elementos que
indiquem um crime diverso do fato principal ou pela proporcional aplicação do Direito
penal. Por fim, será sim possível uma participação por omissão, mas apenas quando
179
o liame subjetivo verificado tiver correspondência entre os consortes, ou seja, torne-
se bilateral, recíproco.
As soluções aduzidas fora da estrutura proposta mostrar-se-ão muito
subjetivas e de difícil demonstração prática, muitas vezes atentando contra o
princípio nullum crimen sine culpa.
B
B
I
I
B
B
L
L
I
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O
O
G
G
R
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A
F
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