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FABIANO ZOLDAN
A DIFERENÇA DE PERCEPÇÃO MUSICAL ENTRE INDIVÍDUOS:
UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE A FORMAÇÃO DO SIGNIFICADO BASEADA NA
TEORIA DE CHARLES SANDERS PEIRCE
TUBARÃO
2007
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FABIANO ZOLDAN
A DIFERENÇA DE PERCEPÇÃO MUSICAL ENTRE INDIVÍDUOS:
UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE A FORMAÇÃO DO SIGNIFICADO BASEADA NA
TEORIA DE CHARLES SANDERS PEIRCE
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado
em Ciências da Linguagem da Universidade do
Sul de Santa Catarina, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre em Ciências da
Linguagem.
Orientador: Prof. Mário Guidarini, Dr.
TUBARÃO
2007
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FABIANO ZOLDAN
A DIFERENÇA DE PERCEPÇÃO MUSICAL ENTRE INDIVÍDUOS:
UMA INVESTIGAÇÃO SOBRE A FORMAÇÃO DO SIGNIFICADO BASEADA NA
TEORIA DE CHARLES SANDERS PEIRCE
Esta dissertação foi julgada adequada à obtenção
do título de Mestre em Ciências da Linguagem e
aprovada em sua forma final pelo Curso de
Mestrado em Ciências da Linguagem da
Universidade do Sul de Santa Catarina.
Tubarão, 05 de outubro de 2007.
______________________________________________________
Orientador Professor Mário Guidarini, Dr.
Universidade do Sul de Santa Catarina
______________________________________________________
Professora Jussara Bittencourt de Sá, Drª.
Universidade do Sul de Santa Catarina
______________________________________________________
Professor Antônio Pereira Fialho, Dr.
Universidade Federal de Santa Catarina
4
Dedico este trabalho acadêmico a minha
mãe Clarice e ao meu pai Alzir, minhas
referências de superação e de amor
incondicional. Dedico também a todos os
anônimos que encontram na música o
locus supremo da incompreensão
compreendida e o do inexprimível
expresso.
5
Agradeço ao meu orientador, Prof. Dr.
Mário Guidarini por sua serenidade que
me fez confiante nesta jornada. Ao amigo
e maestro Patrick A. Cavalheiro por seu
fundamental apoio no desenvolvimento da
pesquisa. Ao amigo e jornalista Willian C.
Máximo e a amiga e psicóloga Raquel S.
Vieira por ouvirem minhas divagações e
por suas contribuições enriquecedoras. Às
professoras Regina G. Ehresperger e
Sônia H. Probst pelo incentivo e por
serem minhas referências no que diz
respeito à paixão pela vida acadêmica.
Ao meu Deus, que me nutre a cada
instante, me fazendo viver e acreditar que,
no palco da vida, nada é por acaso.
6
“O que vem a ser música então? A arte de
Panzéra pode responder: é uma
qualidade da linguagem. Qualidade que
em nada depende das ciências da
linguagem (poética, retórica, semiológica),
pois, ao tornar-se qualidade, promove, na
linguagem, aquilo que não é dito e não é
articulado pela própria linguagem. No
não-dito, vêm se instalar o gozo, a
ternura, a delicadeza, o contentamento e
todos os valores do mais delicado
imaginário. A música é, ao mesmo tempo,
o expresso e o implícito do texto: é o que
é pronunciado (submetida a inflexões),
mas não é articulado. É aquilo que está
simultaneamente fora do sentido e do
sem-sentido.”
(BARTHES, 1984, p. 252).
7
RESUMO
A presente pesquisa tem como objeto de estudo a formação do significado da
música com base na semiótica de Charles Sanders Peirce. Partindo de uma
contextualização do conceito de música e de percepção, adentraremos nas
possíveis relações das categorias de percepção dos fenômenos propostas por
Peirce – primeiridade, secundidade e terceiridade – frente à maneira como as
pessoas experienciam e atribuem significado aos estímulos sonoro-musicais. O
objetivo do trabalho é verificar as formas de interpretação de um evento musical por
diferentes indivíduos, bem como, mensurar a possibilidade de ocorrer um salto
qualitativo (conforme Peirce, se atingir a terceiridade) nas leituras dos ouvintes
submetidos à experiência musical, dividida em dois momentos – antes e após – uma
mediação cognitiva. No tocante ao referencial teórico, a abordagem acerca da
constituição e do conceito de música é baseada no pensamento de Wisnik (1989) e
Iazzetta (2001); a semiótica, à luz da teoria de Peirce, compenetrando aspectos
musicais a partir de Zampronha (1996) e Martinez (1997). Para alcançar os objetivos
propostos, a investigação se desenvolveu com a aplicação de um estudo de caso de
grupo por amostragem, considerando as categorias peircianas, como quadro teórico-
metodológico e a história oral como técnica. A música selecionada para aplicação
aos ouvintes do grupo foi a sinfonia Finlândia Opus 26, do compositor Jean Sibelius.
A partir da observação dos relatos dos ouvintes quanto à significação da música
apresentada foi possível demonstrar de forma sistematizada a quantidade de
ocorrências relacionadas às categorias peircianas.
Palavras-chave: música, semiótica, significado.
8
ABSTRACT
The present research investigated the formation of the meaning of music based on
the Charles Sanders Peirce’s semiotic. From a contextualization perception and
music concept, the possible links between the perception categories phenomenon
proposed by Pierce, that is firstness, secondness and thirdness, the manner in which
people experience and give the meaning to stimulus of sound music, may be
understood. The aim of the research is to examine the manners of interpretation by
different people from concert music, as well as measuring the possibility of a
qualitative leap occurring (if the subject reaching the thirdness according to Peirce).
These will be examined through the reading given to the listeners who were exposed
to the musical experience, divided into two occasions, before and after a cognitive
mediation. The approach to the theoric referential music constitution and concept is
based on Wisnik’s (1989) and Iazzetta’s (2001) ideas; further ideas regarding
Peirce’s semiotic theory were derived from de Zampronha (1996) and Martinez
(1997). In order to achieve the aims proposed, the investigation was developed
through a case study considering Peirce’s categories as a theoric and metodologic
view, as well as technic verbal stories. The Finnish Symphony Opus 26, written by
Jean Sibelius, was the music chosen to be played to the listeners group. Through the
listeners’ description of the meaning of the music presented to them, it was possible
to demonstrate a number of events which were connected to Peirce’s categories.
Keywords: music, semiotic, meaning.
9
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 - Quadro sintético do procedimento técnico.................................................47
10
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1 – Ouvinte Sandra, número de ocorrências das categorias peirceanas na 1ª
audição.......................................................................................................................62
Gráfico 2 – Ouvinte Sandra, número de ocorrências das categorias peirceanas na 2ª
audição.......................................................................................................................62
Gráfico 3 – Ouvinte Tatiana, número de ocorrências das categorias peirceanas na 1ª
audição.......................................................................................................................62
Gráfico 4 – Ouvinte Tatiana, número de ocorrências das categorias peirceanas na 2ª
audição.......................................................................................................................63
Gráfico 5 – Ouvinte Daniela, número de ocorrências das categorias peirceanas na 1ª
audição.......................................................................................................................63
Gráfico 6 – Ouvinte Daniela, número de ocorrências das categorias peirceanas na 2ª
audição.......................................................................................................................63
Gráfico 7 – Ouvinte Cayo, número de ocorrências das categorias peirceanas na 1ª
audição.......................................................................................................................64
Gráfico 8 – Ouvinte Cayo, número de ocorrências das categorias peirceanas na 2ª
audição.......................................................................................................................64
Gráfico 9 – Ouvinte Roggero, número de ocorrências das categorias peirceanas na
1ª audição...................................................................................................................64
Gráfico 10 – Ouvinte Roggero, número de ocorrências das categorias peirceanas na
2ª audição...................................................................................................................65
Gráfico 11 – Ouvinte Felipe, número de ocorrências das categorias peirceanas na 1ª
audição.......................................................................................................................65
Gráfico 12 – Ouvinte Felipe, número de ocorrências das categorias peirceanas na 2ª
audição.......................................................................................................................65
Gráfico 13 – Ouvinte Aline, número de ocorrências das categorias peirceanas na 1ª
audição.......................................................................................................................66
Gráfico 14 – Ouvinte Aline, número de ocorrências das categorias peirceanas na 2ª
audição.......................................................................................................................66
Gráfico 15 – Ouvinte Adriana, número de ocorrências das categorias peirceanas na
1ª audição...................................................................................................................66
Gráfico 16 – Ouvinte Adriana, número de ocorrências das categorias peirceanas na
2ª audição...................................................................................................................67
Gráfico 17 – Ouvinte Alcides, número de ocorrências das categorias peirceanas na
1ª audição...................................................................................................................67
Gráfico 18 – Ouvinte Alcides, número de ocorrências das categorias peirceanas na
2ª audição...................................................................................................................67
Gráfico 19 – Ouvinte Marcos, número de ocorrências das categorias peirceanas na
1ª audição...................................................................................................................68
Gráfico 20 – Ouvinte Marcos, número de ocorrências das categorias peirceanas na
2ª audição...................................................................................................................68
Gráfico 21 – Compilação dos dados do grupo na 1ª e 2ª audição, em
barras.........................................................................................................................68
Gráfico 22 – Compilação dos dados do grupo na 1ª e 2ª audição, em
linhas..........................................................................................................................69
11
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...........................................................................................................12
CAPÍTULO PRIMEIRO – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA.............................18
CAPÍTULO SEGUNDO – PESQUISA DE CAMPO........................................42
CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................71
REFERÊNCIAS..........................................................................................................74
ANEXOS....................................................................................................................77
ANEXO A – ANÁLISE DA PARTITURA FINLÂNDIA OPUS 26...............................78
APÊNDICES...............................................................................................................91
APÊNDICE A – MODELO DA CARTA DE CESSÃO DOS OUVINTES...................92
APÊNDICE B – MODELO DA CARTA DE CESSÃO DO MAESTRO......................93
12
INTRODUÇÃO
Invisível e impalpável, comunicativa e expressiva, a música interage com
o homem. Assim como a palavra, a escrita, a pintura e a dança, a música também é
linguagem. “Tudo é comunicação feita com signos em códigos que, gerando
mensagens, representam a realidade para o homem.” (SANTOS, 1984, p. 14).
Desde tempos remotos, a música é representada pela natureza do som
em durações, alturas, timbres e intensidades nos diferentes níveis rítmicos. As
ondas do mar, o canto dos pássaros, o timbre de tambores, sons humanos corporais
e vocais já expressavam a musicalidade no homem e no universo.
Tão remota quanto o som é a própria linguagem humana, uma vez que os
sons eram usados como uma das primeiras formas de comunicação. A linguagem,
no entanto, não cessou seu processo evolutivo de comunicar.
Atualmente, a comunicação ultrapassa vastamente os limites da pedra,
dos sons primitivos e do papel. A comunicação do século XXI é a comunicação
midiática que atravessa os limites do espaço e do tempo. Neste contexto, a música
se insere com facilidade devido a sua natureza adaptativa e transcedental.
A música, em sua diversidade de estilos, está submetida, em cada
momento que se apresenta, em cada contexto cultural, a determinadas regras ou
padrões de composição e execução e, por isso, passa a fazer parte de comunidades
lingüísticas e sociais, sendo capaz de comunicar e estimular sentidos.
Podemos dizer que a base do conhecimento está na linguagem.
Zampronha diz que o homem “existe” e se relaciona por meio de uma pluralidade de
linguagens. “Nascer, viver, compor, interpretar, escutar música, insere-nos,
logicamente, em estruturas de linguagem.” (ZAMPRONHA, 1996, p. 25).
A música, enquanto linguagem, significa aquilo que ela é, pela força de
sua própria linguagem. Em suas conferências, Webern (1960) chamou atenção com
ênfase para este ponto. Segundo ele, a música teria surgido de uma necessidade
bastante peculiar. “Qual necessidade? A de dizer, de exprimir algo, de exprimir um
pensamento que não pode ser expresso senão em sons.” (WEBERN, 1960, p. 17).
Portanto, a música é linguagem quando alguém quer comunicar pelos sons algo que
não pode ser dito de outro modo.
13
Segundo J. Perrot a própria linguagem “situa-se no conjunto dos sinais
destinados a comunicar, mais ou menos convencionalmente, significados que
interessam a qualquer um dos sentidos.” (Perrot apud SCHAFFER, 1993, p. 260). E
Saussure ajuda a explicar o que é exatamente um sinal lingüístico:
O sinal lingüístico une não uma coisa a um nome, mas um conceito a uma
imagem acústica. Esta última não é o som material, algo puramente físico,
mas a impressão psíquica desse som, a representação que nos é oferecida
pelo testemunho dos nossos sentidos. [...] Nós propomos conservar a
palavra sinal para designar o total, e substituir ‘conceito’ e ‘imagem
acústica’, respectivamente, por significado e significante. (Saussure apud
SCHAFFER, 1993 p. 261).
Logo, uma das ferramentas de estudo das linguagens e suas
significações é a semiótica, uma vez que ela “deve apresentar-se inicialmente como
o que ela é, ou seja, como uma teoria da significação. Sua primeira preocupação
será, pois, explicitar, sob a forma de uma construção conceitual, as condições da
apreensão e da produção do sentido.” (GREIMAS & COURTÉS, 1989, p. 415).
Segundo Winfried Nöth (2005), a semiótica é a ciência dos signos e dos processos
significativos (semiose) na natureza e na cultura.
Há diferentes teorias sobre o que dá à música o seu significado e sobre
que tipos de significações podem devir da música. Cabe compreendermos, a priori, o
que se quer dizer por “significado” e depois, a maneira como a música manifesta
idéias, formas, movimentos ou emoções, para, então, entendermos como os
ouvintes recebem e interpretam os sinais acústicos. A ciência que busca estudar
essas questões é a semiótica da música.
Conforme Martinez (1997), a semiótica da música se interessa pelo
estudo da semiose musical em todas as músicas, em tempo e espaço. Semiose, de
acordo com Peirce, é o processo pelo qual todas as formas de significação ocorrem.
A semiose é realizada por signos, os signos representam um objeto ou grupos de
objetos e são interpretados por algum tipo de mente, dinâmica ou imediata.
Dinâmica, quando interpretados pela mente humana: um intérprete exógeno que
configura a matéria em vivências intencionais em nível de conteúdos, idéias e
pensamentos (noése ilimitada) e imediata, quando interpretada por outro signo
musical, provocando semiose ilimitada (processo ilimitado de produção de
significados).
14
Peirce apresenta uma noção de infinitude para a cadeia semiótica,
alegando que cada percepção corresponde a mais uma conexão, que por sua vez,
dará origem a outra percepção e interpretação e assim ad infinitum.
Um signo ‘representa’ algo para a idéia que provoca ou modifica. Ou seja, é
um veículo que comunica à mente algo do exterior. O ‘representado’ é seu
objeto; o comunicado, a significação; a idéia que provoca, o seu
interpretante. O objeto da representação é uma representação que a
primeira representação interpreta. Pode conceber-se que uma série sem fim
de representações, cada uma delas representando algo anterior, encontre
um objeto absoluto como limite. A significação de uma representação é
outra representação. Consiste, de fato, na representação despida de
roupagens irrelevantes; mas nunca se conseguirá despi-la por completo;
muda-se apenas a roupa mais diáfama. Lidamos apenas, então, como uma
regressão infinita. Finalmente, o interpretante é outra representação a cujas
mãos passa o facho da verdade; e como representação também possui
interpretante. Aí está nova série infinita. (Peirce, 1974, p. 99 apud PLAZA,
2001, p.17).
Peirce afirma que não há nada mais aberto à observação do que os
fenômenos, e que estes se apresentam à consciência por meio de três categorias,
designadas pelas expressões primeiridade, secundidade e terceiridade. Estas
dimensões nos remetem à idéia de relações comunicacionais do signo consigo
mesmo, do signo com o objeto e do signo com seu interpretante.
Na presente pesquisa, analisaremos a experiência musical sob o ponto de
vista de Peirce, em sua teoria triádica do signo. Relacionar as categorias com as
experiências musicais significa, então, verificar como acontece a apreensão do
fenômeno musical na consciência. “As questões centrais da semiótica da música são
o que e como a música significa [...].” (Martinez, 1997 apud RISM, 2006).
Barbosa (2007) coloca que, embora irredutíveis uns aos outros, os
pensamentos musicais e os pensamentos verbais estão sob o mesmo princípio
pragmático universal. “A apreensibilidade está para os pensamentos musicais como
uma espécie de a priori: ela é a condição quase-transcendental da possibilidade de
uma comunicação bem sucedida e, como tal, um universal pragmático da
experiência estética.” (Barbosa apud DUARTE, 2007, p. 19). Webern (1960) define
que “o princípio supremo de toda apresentação de um pensamento é a lei da
apreensibilidade. É claro que isso tem de ser lei suprema.” WEBERN (1960, p.18).
Quanto às categorias peircianas, em síntese, a primeira categoria
(primeiridade) é a qualidade rara de ver o que está diante dos olhos, como se
apresenta, sem nenhuma interpretação. No caso da música é o contato inicial do
15
indivíduo com o acontecimento sonoro, ou seja, a percepção primária (sensório-
motora). “É a experiência global da materialidade sonora, é vivência oceânica do
som como significante puro, apreendido por todo o nosso organismo como se
fôssemos um único órgão sensorial.” (ZAMPRONHA, 1996, p. 26). A experiência
musical nessa primeiridade é aberta a muitas possibilidades.
A segunda categoria (secundidade) é uma espécie de discriminação, ou
seja, uma reação diante da característica que nos é apresentada. Em relação à
música, essa categoria é de natureza indicial (relaciona-se com outras experiências)
e envolve um juízo de valor sobre a música que nos é apresentada, envolvendo, por
exemplo, o gosto ou não por aquela obra, “[...] envolve um gostar ou não gostar,
com a conseqüente classificação do acontecimento experienciado como belo, feio,
agradável, desagradável.” (ZAMPRONHA, 1996, p. 27).
A terceira categoria de Peirce (terceiridade) compreende o significado
essencial da característica em estudo. Na música, diz respeito às leis dos sistemas
musicais, leis convencionalizadas para a música produzida por cada cultura,
objetivando a formatação estética de toda obra de arte, caracterizada pela natureza
intelectual. “É percepção da elaboração cognitiva do discurso, é ouvir
intelectualmente, é apercebermo-nos de que o discurso musical tem como base
estrutura e forma.” (ZAMPRONHA, 1996, p. 27).
Logo, temos na terceiridade a percepção dos elementos que formam o
arcabouço estrutural da música – elementos melódicos, rítmicos e harmônicos –,
capazes de agregar valor artístico à obra, além dos elementos que reportam a
mensagem da obra à intencionalidade do autor no momento da composição.
Portanto, a experiência da materialidade musical é seguida por uma
reação e, em nível de racionalidade, por uma elaboração cognitiva. Dessa forma, as
categorias e as formas de apreensão da experiência musical, sua significação e
produção de significados são objetos desta investigação.
Mais especificamente, o problema levantado no presente trabalho está
relacionado à forma de apreensão de um fenômeno musical por um grupo de
ouvintes/interpretantes, ou seja, quais as leituras possíveis de serem produzidas em
nível de sensação (sensório), interpretação (afetivo) e significação (intelectual).
Com isso, o objetivo é verificarmos as possibilidades de interpretação por
diferentes indivíduos acerca de um mesmo objeto, neste caso, o evento musical a
que estarão sujeitos, mas principalmente, mensurarmos a possibilidade de ocorrer
16
um salto qualitativo (conforme Peirce, se atingir a terceiridade) na leitura dada pelos
ouvintes/interpretantes submetidos à experiência musical, dividida em dois
momentos – antes e após – uma mediação cognitiva. Pretendemos verificar também
como acontecem as leituras/apreensões – sensoriais, interpretativas e cognitivas –
de um trecho musical pelas mentes interpretantes, ainda de acordo com Peirce.
Para atingirmos o objetivo proposto, o trabalho se desdobrará em duas
partes. Primeiramente, o referencial teórico, que contextualizará a música sob um
ponto de vista contemporâneo, a exemplo da conceituação de Wisnik. Em seguida
adentraremos na semiótica de Charles Sanders Peirce, em suas categorias, e
relacionaremos com as formas de como pode acontecer a apreensão do fenômeno
musical na consciência. Também faremos uma abordagem sobre percepção,
relacionada com nossa pesquisa.
Posto isto, partiremos para a análise dos dados oriundos da aplicação da
pesquisa de campo que se constitui num estudo de caso de grupo, pela aplicação de
uma audição musical para dez indivíduos, em dois momentos (antes e após o
pesquisador situar o ouvinte na concepção teórica da música, no contexto
histórico/social da obra e da intencionalidade do autor), seguindo-se dos relatos –
utilizando a história oral como técnica – dos ouvintes acerca da leitura e do
significado atribuído às audições da obra musical apresentada.
Jorge D’Urbano Ribas (1957 apud Zampronha, 1996, p. 28) já afirmava
que a apreciação musical, longe de ser um presente da natureza, é um prêmio da
inteligência musical. Portanto, nessa pesquisa pretendemos contribuir com reflexões
sobre educação musical e aspectos referentes ao atual cenário da cultura musical
brasileira; a questão da massificação da música – muitas vezes limitada em
estruturas rítmicas e harmônicas empobrecidas do ponto de vista teórico.
Poderemos, ainda, contribuir com reflexões relacionadas ao estudo da linguagem
musical, em especial da semiótica da música.
Por outro lado, poderemos provocar reflexão nos estudos de
musicoterapia, como por exemplo, se é favorável ou não que o paciente assimile
uma compreensão mais “qualitativa” da música em um processo terapêutico, uma
vez que a musicoterapia busca considerar a música como um canal de comunicação
próprio de cada indivíduo, conforme seu estado interior, sua história e vivência.
17
Enfim, a partir do presente trabalho pretendemos contribuir com a
comunidade científica nos estudos que relacionam a música com a linguagem,
especialmente aos que buscam analisar a polissemia inerente ao código musical.
18
CAPÍTULO PRIMEIRO
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
No tocante à revisão bibliográfica para o desenvolvimento da presente
pesquisa, iniciaremos com a reflexão acerca da constituição e do conceito de
música. Nessa perspectiva, analisaremos a composição e a heterogeneidade dos
sistemas musicais, passando para a análise desse produto sonoro elaborado na
forma de signo (portador de significados) para a experiência do ser humano.
Adentraremos, então, na semiótica da música à luz da teoria de Charles S. Peirce e
faremos um apanhado introdutório sobre percepção.
CONTEXTUALIZANDO MÚSICA
Ao observarmos a história sob o ponto de vista mitológico, percebemos
que todos os povos têm um deus ou algum tipo de representação divina ligada à
música. Para os egípcios, por exemplo, a música teria sido inventada por Tot ou por
Osíris; para os hindus, por Brama; para os judeus, por Jubal e assim segue. Esse
fato prova que a música é algo intrínseco à experiência do ser humano sobre o
planeta e uma de suas manifestações mais antigas e importantes.
Na história não-mitológica da música são importantes os nomes de
Pitágoras – inventor do monocórdio para determinar matematicamente as relações
entre os sons – e o de Lassus, o mestre de Píndaro, que, perto do ano 540 antes de
Cristo, foi o primeiro pensador a escrever sobre teoria musical. Outro nome é o do
chinês Lin-Len, que escreveu um dos primeiros documentos relacionado à música.
Historicamente, fica evidente a influência da música como elemento de
produção de significados para o homem nas diferentes sociedades. Na Grécia
antiga, por exemplo, a música era tida como elemento mágico e portador de poderes
curativos. Relatos bíblicos registram, em diversas passagens, o “poder” dos sons,
desde o momento do Gênese. Ainda na bíblia, consta um livro todo composto por
19
cânticos, intitulado Salmos. No decorrer da história, a música se faz presente em
todas as culturas como elemento portador de diferentes significados. De acordo com
Barcellos (1992), a música é uma das artes e, como tal, um dos elementos da
cultura. “É um elemento ‘temporal’, isto é, que acontece no tempo, e vem
acompanhando o homem através dos tempos. Com ele evolui como agente e, ao
mesmo tempo, como resultado de uma relação dialética ‘homem-mundo’.”
(BARCELLOS, 1992, p. 36).
A organização e o encadeamento sonoro (som/ruído/som) serviu como
uma das primeiras formas de comunicação. Desde o início da civilização a
expressão sonora não verbal foi de vital importância na comunicação entre os
homens. Determinados sons, elaborados (ou mesmo da própria natureza), foram
revestidos de significados correspondentes, transformando-se assim em signos -
"algo que, sob certo aspecto ou de algum modo, representa alguma coisa para
alguém." (PEIRCE, 2003, p. 94). Como Clarice Moura Costa bem coloca, “para
poder agir e sobreviver, o Homem precisou dotar de sentido as informações
recebidas, transformando o Caos em Cosmos. E o Homem criou a linguagem.”
(COSTA, 1989, p. 59).
A música, segundo a teoria musical, é formada de três elementos
principais: o ritmo, a harmonia e a melodia. O que resulta da junção desses
elementos são as consonâncias e as dissonâncias sonoras.
A música, em sua história, é uma longa conversa entre o som (enquanto
recorrência periódica, produção de constância) e o ruído (enquanto
perturbação relativa da estabilidade, superposição de pulsos complexos,
irracionais, defasados). (WISNIK, 1989, p. 30).
No entanto, as definições de dissonâncias e consonâncias variam nas
diferentes culturas. Na Idade Média, por exemplo, eram considerados dissonantes
certos acordes que parecem perfeitamente consonantes na música contemporânea.
Essas diferenças são ainda maiores quando se compara a música
ocidental com a oriental (a indiana ou a chinesa). Podemos dizer que os povos têm
consonâncias e dissonâncias próprias, pois elas representam as suas
subjetividades, as suas idiossincrasias, o gosto e o costume de cada grupo e de
cada cultura.
20
A música seria, nesse caso, a capacidade que consiste em saber expressar
sentimentos através de sons artisticamente combinados ou a ciência que
pertence aos domínios da acústica, modificando-se esteticamente de cultura
para cultura. (ROSCHEL, 2007).
Estudos especializados da música e dos elementos sonoros vêm sendo
realizados cientificamente em áreas como a psicologia, a medicina, a musicoterapia,
a musicologia, a filosofia, a linguagem, a comunicação e a semiótica.
Ouvir é um processo fisiologicamente compreensível. O homem – ser
pensante e racional, dotado de uma estrutura cerebral ainda mais complexa que a
fisiologia auditiva (isolada) – por meio dos sons significa e é significado, identifica e é
identificado, elabora e é elaborado. O cérebro (em toda sua complexidade e
opacidade) interpreta as ondas sonoras, dando configurações e sentidos. “O som é
um objeto subjetivo, que está dentro e fora, não pode ser tocado diretamente, mas
nos toca com uma enorme precisão.” (WISNIK, 1989, p. 28).
Nesse sentido, José Miguel Wisnik se refere também à polissemia gerada
pela mensagem musical que “toca em pontos de ligação efetivos do mental e do
corporal, do intelecto e do afetivo. Por isso mesmo é capaz de provocar as mais
apaixonadas adesões e as mais violentas recusas.” (WISNIK, 1989, p. 28).
O som é um traço entre silêncio e ruído, a relação entre som e ruído
constitui a música. O ruído, principalmente no século XXI, tem se tornando cada vez
mais uma categoria relacional. Um grito, por exemplo, pode significar um gol de
vitória esportiva ou a dor de um mal físico. Um sampler de um computador pode
construir uma música partindo de uma seqüência ordenada (rítmica e/ou melódica)
de ruídos de uma metrópole ou, até mesmo, da fragmentação e reconstrução
seqüencial de gritos em diferentes tonalidades. “Tanto o ruído como o silêncio
mostram-se plenos de possibilidade, flexibilidade e relatividade, e o que quer que
venha a ser considerado ruído ou silêncio em alguma circunstância, em outra pode
não sê-lo.” (MARANHÃO, 2002, p. 32).
O som do mundo é constituído por ruídos diversos. Uma das formas como
percebemos o mundo é através de freqüências sonoras, na maior parte das vezes
irregulares. A música, por sua vez, busca emoldurar essas freqüências, obtendo
certa ordenação. Podemos caracterizar a forma que rege essa ordenação sonora de
sistemas ou estruturas musicais.
21
Se você tem um barulho qualquer percutido e ele começa a se repetir e a
mostrar uma certa periodicidade, abre-se um horizonte de expectativa e a
virtualidade de uma ordem subjacente ao pulso sonoro em suas
regularidades e irregularidades. (WISNIK, 1989, p. 33).
Por exemplo, podemos dizer que desse ordenamento do pulso sonoro
emergirá uma composição musical. Isso pressupõe que adotaremos uma
determinada ordem na estruturação dos sons capaz de estabelecer de forma
sistemática o comportamento desses sons. Logo, a composição musical é relativa e
regida por sistemas adotados em determinada cultura. Wisnik (1989, p. 71)
considera que “assim como a língua compõe suas muitas palavras [...] a música
também constrói sua grande e interminável frase com um repertório limitado de sons
melódicos.”
Diante dessa mensagem sonora organizada, de acordo com as
características de cada cultura e em cada época, está o ouvinte que recebe esse
signo em ação.
Iazzetta (2001) diz que o século XX representa um contexto bastante
particular no que se refere à significação da música. “Durante esse período
ocorreram uma série de modificações em diversos níveis que vão da própria sintaxe
do discurso musical ao papel que ela desempenha dentro da sociedade.”
(IAZZETTA, 2001, p. 6).
As pessoas começam a ouvir muita música, em diferentes lugares, de
diferentes estilos e épocas. Têm a impressão de conhecerem muitas músicas, no
entanto, este é um conhecimento superficial. A música acaba, então, se
desagregando da eminência de uma dada cultura. “A escuta está polarizada pela
repetição do mercado, mas outros modos de escuta estão latentes nela como
ressonância harmônica.” (WISNIK, 1989, p. 56).
Fernando Iazzeta pondera sobre esta perda de referência espaço-
conceitual da música: “Nossa escuta aos poucos vai perdendo a referência de que
cada música é produto de uma determinada época, de um determinado
conhecimento, de um determinado contexto.” (IAZZETTA, 2001, p. 11). Diante do
imenso universo sonoro gerado, a música do tempo atual passa a integrar todo e
qualquer som, que, antes visto como ruído, agora, trabalhado esteticamente, passa
a ter espaço na composição. Podemos dizer que se trata de uma nova estrutura de
22
composição musical, talvez uma desestruturação como vem sugerir o pós-
modernismo.
Nesse infinito espaço sonoro, enriquecido com detalhes e nuanças,
estruturado e arranjado em diferentes formas e sistemas, e com todas as diferenças
de gostos, de estilos, de tempos, de culturas e de personalidades, está o elemento
música com todas suas faces e significados. Podemos, sim, buscar compreender os
significados que a música carrega ou desperta, as interpretações a ela atribuídas e
os estímulos por ela desencadeados nos indivíduos. No entanto, não pretendemos
definir o que “é a música”, mas compreendermos como “as músicas” acontecem e
são percebidas pela consciência humana.
23
A PERCEPÇÃO
Os seres humanos, dotados de sentidos, percebem os sons e a música
por meio da audição. O fenômeno sonoro se dá pela propagação de ondas que, em
contato com o sistema auditivo, por meio de vibração, possibilita a escuta do código
sonoro. A forma como a mensagem sonora será percebida e os componentes que
possam influenciar nesta percepção serão tratados neste capítulo.
Em psicologia, neurociência e ciências cognitivas, a percepção é vista
como a função cerebral que atribui significado aos estímulos sensoriais,
principalmente partindo do histórico de vivências passadas. Os estímulos podem ser
percebidos pelos sentidos humanos, no caso em questão, como já dito, a música é
percebida pela audição.
A percepção consiste na aquisição, interpretação, seleção e organização
das informações obtidas pelos sentidos. “Através da percepção um indivíduo
organiza e interpreta as suas impressões sensoriais para atribuir significado ao seu
meio.” (WIKIPÉDIA, 2007). É justamente nesse ponto, na verificação da formação do
significado atribuído pela percepção do fenômeno sonoro-musical que se debruça a
presente pesquisa.
A acústica e a psicoacústica estudam a forma como percebemos os
fenômenos sonoros. A música é uma importante aplicação da percepção auditiva
uma vez que timbre, altura (freqüências), intensidade e ritmo estão presentes em
sua constituição.
Linda Davidof define a percepção “como processo de organizar e
interpretar dados sensoriais recebidos para desenvolver a consciência do ambiente
que nos cerca e de nós mesmos.” (DAVIDOF, 2007). No caso da percepção musical,
observaremos o processo de organização e interpretação dos dados sensoriais
recebidos, mais precisamente a atribuição do significado, expresso pelos dez
ouvintes na forma de depoimentos, enquadrando o texto que se originou desses
depoimentos em três categorias, conforme a semiótica apresentada por Peirce.
Uma pessoa adulta adquire sua capacidade perceptiva ao longo do
processo de maturação e desenvolvimento. A expectativa que as pessoas têm para
perceberem algo específico, em função da situação onde se encontram, também
causa um efeito imediato sobre a percepção.
24
No entanto, nem todas as modificações que acontecem na capacidade
perceptiva são diretamente associadas a modificações neurais ou à situação onde o
indivíduo se encontra. A capacidade perceptiva, pode ser ampliada, por exemplo,
quando se desenvolve melhores estratégias para a discriminação dos sons, no caso
auditivo. Por esta ótica, nosso estudo pretende mensurar, com base nas categorias
(Peirce), as ocorrências de significações em nível primeiridade, secundidade e
terceiridade), antes e após os ouvintes de uma mesma música receberem uma
mediação verbal cognitiva relacionada aos aspectos da obra, ou seja, poderemos
dizer se houve ou não o desenvolvimento de melhores estratégias para a
discriminação da música a partir do momento em que fornecemos instruções
referentes à obra.
Simões (1985) refere-se à interferência da instrução em relação ao
desenvolvimento das estratégias de discriminação do fenômeno apresentado à
consciência. “A predisposição para perceber uma determinada coisa, pode, muitas
vezes, ser induzida por uma simples instrução ou alguns poucos treinos [...]. Poucos
segundos de inspeção prévia são suficientes para formar a predisposição.”
(SIMÕES, 1985, p.75).
A experiência prévia, que acontece instantes antes da observação, ou há
muito tempo, também predispõe o observador, criando uma expectativa. As
diferenças individuais que se relacionam com a personalidade do observador é outro
fator que pode determinar o nível da observação.
A predisposição prévia por uma adaptação poderia modificar o modo de
perceber os fenômenos, ou então, do modo de interpretá-los. No entanto, a
interpretação seria posterior à percepção em si, por isso, a concepção do fenômeno
é muito mais uma questão de percepção do que de interpretação. Estudos
demonstram que indivíduos orientados a observar determinados detalhes, de uma
música por exemplo, ouviram as próximas execuções desta música sempre
percebendo estes detalhes que foram explicitados. O mesmo acontece se fizermos
um simples experimento com uma figura visual, por exemplo. “Temos bons
argumentos para acreditar que o que se modificou é a percepção em si e não
apenas a interpretação.” (SIMÕES, 1985, p. 76).
Poderíamos dizer que a interpretação procede da percepção. No olhar da
semiótica de Peirce, poderíamos, a priori, enquadrar a percepção, pura, por si só,
categoricamente como primeiridade; a interpretação relacionada a associações com
25
outras experiências (pessoais, diversas, internas e externas) como secundidade; e,
quanto mais esta interpretação se aproximar da intencionalidade primária da obra,
mais ela se aproxima da terceiridade. Logo, com base no exposto anteriormente,
supomos que a terceiridade – e também a secundidade – quando manifestadas em
sua totalidade, não tratam mais apenas de interpretações, mas sim, efetivam-se
como percepções do objeto.
Experiências científicas e também cotidianas verificam que algumas
pessoas, após perceberem um mesmo fenômeno de forma diferente, não
conseguem mais voltar a vê-lo como na primeira forma, fato que deduz que é a
percepção que se altera e não a interpretação. “É informação eferente que provém
do córtex associativo (cognição) que atua sobre o sistema visual ou auditivo (córtex
visual ou auditivo) e faz o percepto se tornar outro.” (SIMÕES, 1985, p. 76).
No entanto, também acreditamos que pessoas orientadas sobre a
intencionalidade primária de uma composição musical poderão “perceber” a música
em nível de terceiridade, porém, poderão também percebê-la em outro nível e, em
seguida, racionalizar – com referência na orientação fornecida – interpretando-a
então em nível de terceiridade.
Logo, a percepção se constrói e se desconstrói de acordo com a
intensidade e o espaço ocupado pelas habilidades desenvolvidas em relação aos
fenômenos observados, mas também oscila pelos caminhos da experiência imediata
(seja ela qual for), da experiência passada e longíqua.
Esta questão se evidencia no presente estudo quando observamos nos
relatos de que a música apresentada remeteu alguns ouvintes à vivências da
infância, outros a filmes assistidos recentemente e, principalmente na segunda
audição, relatos da observação de detalhes, explicitados em virtude da experiência
proporcionada a poucos instantes pela intervenção cognitiva, ou seja, uma
habilidade desenvolvida.
Em um experimento do psicólogo alemão Gottschaldt, realizado no início
do século XX, ficou claro que a aprendizagem pode atuar sobre a percepção, porém
somente em situações específicas. No experimento com determinado grupo, a
tendência de perceber uma gestalt, isto é, uma configuração unitária, não pode ser
rompida por treino prévio que induzia a observação de fragmentos. No trabalho
desenvolvido, também percebemos nos relatos obtidos após a segunda audição da
música, que embora muitos ouvintes passaram a perceber fragmentos da obra
26
(toques de metais, rufar de tambores, detalhes rítmicos, dentre outros), em nenhum
caso se perdeu a noção da configuração unitária da música, ou seja, o que ela fez
sentir em sua totalidade – a mensagem transmitida por seu todo.
Em casos especiais de percepção sonora, há um efeito que Eleanor
Gibson (apud Simões, 1985, p. 80) definiu como um treino de discriminação. Trata-
se de uma observação treinada, aguçada e detalhista em determinados aspectos do
fenômeno.
O observador que se depara muitas vezes com uma mesma classe
(categoria) de estímulo aprende a prestar atenção a detalhes que outras
pessoas não levam em conta. Assim, o ornitólogo sabe diferenciar os
pássaros simplesmente pelo canto, pois ele presta atenção a características
de cadência (ritmo) que um observador normal não percebe. (SIMÕES,
1985, p. 80).
O próprio ambiente em que vivemos permite desenvolver capacidades
perceptivas específicas, ou seja, aprendemos a identificar certas características de
determinados estímulos. Por exemplo, quem vive no mundo ocidental tem certa
dificuldade em diferenciar as músicas orientais, parecem ser todas iguais. O mesmo
acontece com o oposto. É como se o cérebro fizesse uma seleção daquilo que ele
aprendeu, ou se condicionou, a perceber. “Reconhecemos a surdez de uma
civilização em relação a outra, quando os objetos de uma não são ouvidos pelos
cidadãos da outra.” (SCHAEFFER, 1993, p. 259).
Outros fatores que influenciam de modo decisivo na percepção de uma
pessoa são a motivação e o estado emocional. Estes, podem ser sutis e
diversificados, tornando difícil mensurar a modificação na percepção. Porém, de
alguma forma, a modificam. Tendo em vista este aspecto, na presente pesquisa
procuramos equilibrar ao máximo estes fatores, primeiramente buscando um grupo
homogêneo de estudantes universitários (de uma mesma universidade) inseridos
cotidianamente em um meio cultural semelhante, que demonstraram interesse por
música (pelo fato de participarem de um coral amador) mas que não tenham
estudado música em seu aspecto teórico.
[...] o experimentador interessado em estudar percepção tenta eliminar as
diferenças individuais entre os sujeitos, em especial as decorrentes da
motivação e emoção, procurando trabalhar com grupos homogêneos, aos
quais fornece instruções altamente padronizadas. (SIMÕES, 1985, p. 82).
27
Dificilmente um observador fica imune a distorções perceptivas. É comum
verificarmos fatos únicos descritos de forma tão diferentes em mídias de tendências
políticas ou ideológicas divergentes. Há exemplos de que a motivação torna a
percepção seletiva. Nem sempre esta diversidade surge de interpretações
conscientes; muitas vezes, surge de manipulações não conscientes. Por exemplo,
estados motivacionais mais elementares como a fome e a sede também podem
influenciar a percepção, variável esta desconsiderada no grupo em questão.
A cultura, o ambiente geográfico, diferenças biológicas e fisiológicas de
grupos étnicos também influenciam nas funções perceptivas e podem ter várias
origens e motivos. Neste ponto, cabe verificarmos se existe uma diferença na função
perceptiva propriamente dita, na interpretação dos estímulos ou em aspectos
lingüísticos.
[...] se a diferença está na interpretação dos estímulos, que na verdade são
percebidos igualmente, ou ainda se trata apenas de um problema
semântico, isto é, lingüístico, pois, como é sabido, em algumas línguas não
tem termos apropriados, por exemplo, para todas as cores. (SIMÕES, 1985,
p. 85).
Na percepção musical os indivíduos podem usar diferentes palavras ou
expressões para um mesmo sentimento ou sensação. A presente pesquisa não
classifica as palavras proferidas pelos ouvintes do ponto de vista de sua construção
estrutural, mas em relação a sua intencionalidade. Por exemplo, a
percepção/interpretação de um mesmo som pode ser expresso por diferentes
ouvintes como “som de vitória de um povo”, “som de conquista de uma nação” ou
“som triunfal de uma pátria”. No entanto, o que interessará é em qual categoria se
enquadra aquilo que se “quis dizer”, ou seja, o conceito da idéia.
Diferenças nas funções perceptivas podem também existir entre
pequenos grupos culturais e profissionais. Por exemplo, músicos de rock, por
ouvirem o som em alto volume, têm gradativamente uma redução na capacidade
auditiva. Ainda, músicos de uma orquestra sinfônica desenvolvem uma maior
percepção para os sons polifônicos e detalhes orquestrais. Muitos profissionais de
diversas áreas aprendem a prestar maior atenção a certos detalhes que passam
despercebidos por leigos.
Enfim, podemos dizer que, mesmo com limitações, os sistemas
perceptivos são plásticos, podem se adaptar, de certa forma, ao habitat e às funções
28
exercidas pelas pessoas e grupos nas diferentes culturas, posições, contextos e
situações. Fato este, que vem provocar positivamente a realização deste estudo que
busca também verificar e/ou mensurar esta dita “plasticidade” da percepção auditiva
de um grupo, alicerçado metodologicamente pelas categorias da semiótica de
Charles Sanders Peirce, que, mais que um cientista, foi um filósofo, pensador dos
fenômenos, da lógica e dos processos de significação. Um homem temperamental e
dotado de uma inteligência capaz de transitar por diferentes áreas, conforme
veremos a seguir em um breve olhar sobre aspectos de sua vida.
29
PEIRCE: UM OLHAR SOBRE SUA VIDA E OBRA
Um breve enfoque acerca da vida pessoal de Charles Sanders Peirce,
nos oferecerá uma contextualização interessante para compreendermos melhor
suas idéias. Situaremos nosso estudo científico com o desenrolar desta
fragmentação ora apresentada.
Peirce nasceu em 1839, sendo o segundo de cinco filhos de uma família
tradicional de cientistas e intelectuais da região de Massachusetts, nos EUA. Seu pai
era um matemático respeitado e professor da Universidade de Harvard. Desde
jovem demonstrou ser dotado de grande talento para a lógica, a matemática, o
método científico e o conceito das ciências, o que o levou a estudar as idéias de
grandes filósofos. Peirce licenciou-se em ciências e doutorou-se em química pela
Universidade de Harvard.
Trabalhou por trinta anos com pesquisa empírica para um instituto
governamental especializado em metrologia, realizando principalmente medições
sobre a gravidade e o movimento de pêndulos. Desenhou instrumentos de medição
mais precisos do que os existentes em sua época. Este emprego o possibilitou
participar de eventos em diversos lugares no mundo.
Nos seus anos de vida em sociedade, era um homem às vezes
excêntrico, outras vezes violento, amante da bebida e das mulheres. Pretendia fazer
fortuna com suas idéias e criações.
Na década de 1860 surgem suas primeiras contribuições filosóficas
importantes em artigos que criticam o cartesianismo e o determinismo dominantes
na época e propõem uma nova lógica para o método científico, capaz de incorporar
o acaso e a formulação de hipóteses. No final de 1870, publica seu primeiro artigo
sobre pragmatismo. Sua influência em outros filósofos norte americanos provocou a
primeira onda do movimento pragmatista (método para clarear idéias, produzir
inferências sustentadas pela realidade e basear as ações no resultado dessas
inferências).
Por ainda quase dez anos Peirce se destacou e brilhou com suas
conferências e artigos sobre lógica e também obteve fama internacional nas áreas
da matemática e da física. Foi nesta época que desenvolveu sua concepção triádica
da fenomenologia, mostrando que as categorias universais podiam ser reduzidas a
três, que denominou primeiridade, secundidade e terceiridade – aqui se situa a parte
30
de sua obra que se estabelece como o eixo principal, enquanto método, de nosso
trabalho científico ora apresentado.
Com a morte de seu pai e do divórcio de sua primeira esposa, em meados
da década de 1880, sua carreira entra em declínio. Seus traços difíceis parecem
dominá-lo. Deprimido, Peirce decide retirar-se da vida social. Em 1886 muda-se para
Nova York e passa a viver em hotéis e quartos alugados junto com sua segunda
esposa. No ano seguinte, muda-se para a Pensilvânia, onde comprou uma chácara
com a herança que havia recebido pela morte de sua mãe.
Então, o pensador mergulha profundamente em suas pesquisas em
semiótica, lógica e fundamentos do pragmatismo. As dificuldades financeiras e de
saúde, porém, eram muitas. Nos últimos anos, sua situação piora com o
aparecimento de um câncer que o levaria a morte.
Mesmo diante de extremas dificuldades, Peirce lança-se num grande
esforço de amarrar suas doutrinas e teorias num corpo coerente, na esperança de
que fossem publicadas. Foi justamente na década final de sua vida que ele
trabalhou com maior afinco na semiótica e no sistema lógico dos Grafos Existenciais
(GE), um método de representação diagramática que deveria ser uma espécie de
“imagem em movimento do pensamento”.
Sem filhos e sem conseguir publicar nenhuma obra, com a morte se
aproximando, esse homem doente continuava a escrever intensa e
compulsivamente, como se estivesse cumprindo uma grande missão.
Hoje é sabido que Peirce foi o criador, simultaneamente, mas
independente do suíço Ferdinand de Saussure, de uma teoria formal dos signos.
Provavelmente, os dois pensadores foram influenciados pelo positivismo do início do
século XX, que procurava fundar e classificar as ciências isolando seus objetos e
submetendo-os ao método experimental de estudo. A grande diferença das
propostas era que “Peirce viu sua semiótica como ciência sinônima à Lógica,
enquanto Saussure colocava sua semiologia como uma disciplina vinculada à
lingüística.” (LIZSKA, 1996, p. 15).
Com certeza, as idéias de Peirce são um importante marco na história da
filosofia, da lógica e da linguagem. Embora tenha escrito milhares de conferências e
ensaios, a maior parte ainda não foi publicada. Isso nos faz imaginar o quanto os
estudos deste pensador ainda iluminarão mentes com o passar do tempo.
31
No entanto, sabe-se que a obra de Peirce já inspirou numerosos
pesquisadores, tanto na América como na Europa, a exemplo de Charles Morris,
Roman Jakobson, Umberto Eco, John Dewey, William James, dentre outros.
Em relação à semiótica da música, a teoria geral do signo concebida por
Peirce tem sido utilizada desde a década de 1970.
De acordo com Peirce, um signo deve manter uma relação triádica:
Um Signo, ou Representámen, é um primeiro que se coloca numa relação
triádica genuína tal com um Segundo, denominado seu Objeto, o que é capaz
de determinar um Terceiro, denominado Interpretante, que assuma a mesma
relação triádica com seu Objeto na qual ele próprio está em relação com o
mesmo Objeto. (PEIRCE, 2003, p. 63).
Logo, o signo compõe-se de um representamem (meio), de um objeto e
de um interpretamen. Estes três componentes da natureza do signo possuem uma
dimensão semiótica imediata, responsável pela semiose ilimitada – entre signos
vazios de conteúdos – e uma dimensão noética dinâmica, atrelada às idéias no
processo de noése ilimitada.
Os signos da linguagem musical incorporam as duas dimensões, a da
semiose imediata na escrita musical (partituras) e a da noése dinâmica que acontece
com a sonorização da escrita musical por meio da voz e/ou de instrumentos
musicais, conforme abordaremos a seguir na semiótica da música.
Contudo, a ciência dos signos apresentada por Peirce, se mostra útil em
diversos campos de investigação, justamente pela abertura e amplitude como se
apresenta, fato que faz desta uma ciência rica em possibilidades.
32
A SEMIÓTICA DA MÚSICA
A investigação semiótica abrange virtualmente todas as áreas do
conhecimento envolvidas com as linguagens ou sistemas de significação, tais como
a lingüística (linguagem verbal), a matemática (linguagem dos números), a biologia
(linguagem da vida), o direito (linguagem das leis) e as artes (linguagem estética),
dentre outras. Para Lúcia Santaella, semiótica "é a ciência que tem por objeto de
investigação todas as linguagens possíveis." (SANTAELLA, 1986, p. 15).
Questões de significação da música são tão antigas quanto a própria
música. A semiótica da música tem sido desenvolvida com bases em diversas
teorias dos signos. A lingüística, a teoria da comunicação, o estruturalismo e a
narratologia têm sido empregadas para entender melhor a música. A teoria geral do
signo, tal como concebida por Charles Sanders Peirce tem sido utilizada como base
de estudos de significação musical, a partir de 1970.
A semiose, como dito por Peirce, é o processo pelo qual todas as formas
de significação acontecem. A semiose musical, em termos gerais, é um composto de
significações e sua efetivação depende necessariamente da interpretação dos
signos por um interpretante imediato: outro signo musical capaz de produzir
ilimitados significados; ou um interpretante dinâmico: a mente humana que
caracteriza-se como um interpretante exógeno que configura o fenômeno em
vivências intencionais, também ilimitadas.
A semiose é realizada por signos, os quais representam um objeto ou
grupos de objetos, e é interpretada por algum tipo de mente. Música é um
signo de si mesma, isto é, o significado musical pode ser tão imediato como
os sons tais como eles se apresentam ao ouvido; e as várias maneiras de
se organizar o material musical podem ser vistas como formas de semiose.
(MARTINEZ, 1997 apud RISM, 2006).
Portanto, a música é o signo imediato dela mesma, haja visto que o
significado se dá a partir do ordenamento, arranjo e disposição dos elementos
sonoros que emergem da execução de uma partitura (forma de música que se
apresentará ao ouvinte interpretante). O interpretante, por sua vez, será então um
interpretante dinâmico.
A música quando apresentada aos sentidos humanos, a priori, será um
estímulo sensorial, seguido de uma resposta a esse estímulo – um juízo de valor
33
arbitrário ao signo apresentado. Em seguida poderá ser revestida de significado(s)
pela mente interpretante (exógena).
Na presente pesquisa podemos observar este processo. Em muitos
depoimentos, podemos constatar que nos primeiros instantes a música “despertou”,
ou “chamou-os” para ser observada. Relatos de sensações de “expectativa” ou
“medo” podem ser notados nos textos oriundos deste estudo de caso de grupo. Em
seguida, veio então a leitura da obra, o juízo de valor, a relação com a infância, com
filmes ou com situações diversas. A atribuição de significados então ocorreu de
diversas formas, os quais classificamos de acordo com as categorias peircianas que
aprofundaremos a seguir em suas relações com a música.
34
AS CATEGORIAS DE PEIRCE E SUAS RELAÇÕES COM A MÚSICA
Fique entendido que o que temos a fazer enquanto estudantes de
fenomenologia é simplesmente abrir os olhos do espírito e olhar bem os
fenômenos e dizer quais suas características, quer o fenômeno seja
externo, quer pertença a um sonho, ou uma idéia geral e abstrata da
ciência. (PEIRCE, 1980, p. 17).
Charles Peirce concebeu as três categorias da experiência humana a
partir do pensamento aristotélico.
Para Aristóteles, todo conhecimento é adquirido.
A mente é uma tábula rasa onde todo conhecimento é inscrito, por isso, sua máxima:
“nada está no intelecto que não tenha passado antes pelos sentidos físicos”. Isso o
colocava em oposição ao que Platão pleiteara: o mundo das idéias pré-existe ao dos
fenômenos naturais e das mentes humanas. Platão contrapunha o mundo material
(físico, sensível) ao mundo das idéias, dizia que as construções materiais nada mais
eram que imagens imprecisas de um molde perfeito, o mundo das idéias.
Todas as contribuições de Peirce foram feitas dentro do rigoroso espírito
científico. Partindo da observação dos fenômenos, no tocante às categorias da
experiência humana, Peirce classificou em três as formas dos fenômenos que se
apresentam à consciência: primeiridade, secundidade e terceiridade. Existem ainda
duas dimensões das três categorias, bem como dos três elementos anatômicos do
signo: a da semiose (linguagem) e a da noese (pensamento).
A teoria do signo desenvolvida por Peirce é ampla e complexa,
envolvendo particularmente uma lógica matemática e simbólica, da qual ele foi um
dos pioneiros. Signos lógicos matemáticos implicam semiose ilimitada de relações
entre si (processo ilimitado de produção de significados) – signos imediatos. As
idéias ou pensamentos implicam um objeto dinâmico para a interpretação, um
intérprete dinâmico do objeto e a interpretação dinâmica propriamente dita que se
caracterizam como noéticos na noése ilimitada (interpretados por uma mente
humana – exógena e pensante) – signos dinâmicos.
Na escrita musical apresentada por meio da partitura acontece a semiose
ilimitada de notas musicais, alturas, durações e intensidades na versão de signos
imediatos. Os sons melódicos e harmônicos executados ritmicamente formam a
noese ilimitada dos fenômenos dinâmicos.
Logo, a semiótica interessa ao mundo da música no sentido de permitir
que elaboremos o universo de signos musicais como linguagem com a intenção de
35
lhe agregarmos fundamentos científicos. “Conceituar as categorias como
manifestações psicológicas da experiência musical significa, assim, examinarmos os
modos mais gerais segundo os quais se dá a apreensão desses fenômenos na
consciência.” (ZAMPRONHA, 1996, p. 26).
Primeiridade – monádica, categoria do imediato
Esta categoria se apresenta no tempo presente e imediato, independente
de algo mais, é o que é, não é determinado pelo passado nem pelo futuro. É tal qual,
ignorando totalmente qualquer relação lógica com outra coisa.
[...] Em suma, qualquer qualidade de sensação, simples e positiva,
preenche a nossa descrição daquilo que é tal como é, absolutamente sem
relação com nenhuma outra coisa. ‘Qualidade de sensação’ é a verdadeira
representante psíquica da primeira categoria do imediato em sua
imediaticidade, do presente em sua presentidade. (PEIRCE, 1980, p. 18).
A palavra mônoda é usada metaforicamente como exemplo metafísico
para a primeiridade. Seria a pureza por natureza da referida qualidade de sensação,
ou a qualidade em si liberta. O ser de uma modalidade monádica é mera
potencialidade sígnica.
No caso da música é o som pelo som, a música pela música. Um sentir
anterior ao pensar “experiência desprovida da significação que os símbolos dão.”
(ZAMPRONHA, 1996, p. 26). Aquilo que a música apresenta aos nossos sentidos ao
excitá-los, sem compromisso com qualquer objeto, sentimento ou significação.
A entoação de uma nota musical isolada, por exemplo, no tempo
presente, sem qualquer relação com o passado/antes (secundidade) e nem com o
futuro/depois (terceiridade) é um fenômeno sonoro-musical de primeiridade. Este
som desperta a atenção dos ouvintes, toca os sentidos, pode criar uma expectativa,
talvez amedontrar ou chocar, no entanto, a ele não se atribui nenhuma relação,
trata-se de um acontecimento monádico.
36
Secundidade – diádica, categoria das relações do agora com o passado
A segunda categoria universal designa conflito entre presente/agora e
passado/antes. De acordo com Peirce, o fenômeno do conflito se dá quando alguma
coisa atinge os sentidos. “A excitação produz seu efeito, e nós causamos-lhe de
volta um efeito indiscernível; e passamos a chamar à excitação agente, e vemo-nos
como o paciente.” (PEIRCE, 1980, p. 19). Segue-se daí que conflito não é uma
sensação isolada ou algo primário, e sim, o índice oriundo da soma de esforços
dessa consciência dupla.
É através de surpresas, ou de conflitos, que a experiência nos ensina
tudo aquilo que condescende a ensinar-nos. “[...] A consciência dupla de um ego e
um não-ego agindo diretamente um no outro.” (PEIRCE, 1980, p. 21).
Todas essas operações de choque, conflito e surpresa se encontram fora
do nosso controle e se processam sem nos consultar. “Por conflito explico que
entendo a ação mútua de duas coisas sem relação com um terceiro, ou medium, e
sem levar em conta qualquer lei da ação.” (PEIRCE, 1980, p. 90). Nessa categoria
da secundidade existe uma relação diádica de estímulo-resposta.
No caso da música, é o instante em que sons musicais atingem os
sentidos de um ouvinte podendo produzir uma infinidade de sentimentos neste
ouvinte. É o sentimento que emerge do íntimo deste ouvinte como um índice do
conflito da música apresentada (presente/agora) em relação aos conteúdos de sua
memória (passado/antes). Envolve a questão da opção de gostos e sentimentos
emergentes da surpresa, geralmente afetivos, desencadeados pelo encontro da
música com a consciência.
Numa melodia, por exemplo, as relações semióticas – num processo
endógeno – no nível de secundidade acontecem na relação entre as notas
presentes e as notas anteriores da partitura, a exemplo do que acontece em uma
frase com sujeito e verbo lingüísticos.
Terceiridade – categoria das relações triádicas voltadas para o futuro
A terceiridade pode ser dita como o mediador entre o segundo e o
primeiro, a representação como elemento do fenômeno. “Se houver um processo
37
entre o ato causal e o efeito, constituirá ele um termo médio, um terceiro.
Terceiridade no sentido categorial é o mesmo que mediação” (PEIRCE, 1980, p. 94).
Para Peirce, a idéia mais simples de terceiridade de interesse filosófico é
a idéia de um signo, ou representação. O representado é o seu objeto, o
comunicado é a significação e a idéia que provoca é o seu interpretante. A
significação de uma representação é outra representação. Podemos conceber,
assim, uma série sem fim de representações.
Idéias de grande importância para a ciência e a filosofia onde a
terceiridade predomina são: generalidade, infinidade, continuidade, difusão,
crescimento e inteligência. Essa é a categoria que concede uma qualidade às
reações de futuro, ou seja, a significação a longo prazo tenderá moldar as reações à
sua imagem e semelhança.
Terceiridade é a característica de um objeto que encarna em si o ser-entre
ou mediação em sua forma mais simples e rudimentar (....). Pode-se dizer
que um princípio geral operatório no mundo real tem natureza de
Representação e Símbolo porque o seu modo operandi é o mesmo pelo
qual as palavras produzem efeitos físicos. (PEIRCE, 1980, p. 31).
Para Peirce, uma coisa é “ser” e outra coisa é “ser representado”. As leis
da natureza, por exemplo, pertencem à ordem da representação, de modo que as
leis não possuem “ser real”, no entanto, representam uma ordem na qual os
fenômenos acontecem em determinadas circunstâncias.
Na música, a terceiridade diz respeito às leis dos sistemas musicais, às
formas de composição e de arranjo das músicas, às regras de interpretação pelo
canto ou instrumentos musicais e às leis convencionalizadas às músicas nas
diferentes culturas e aceitas pelos indivíduos dessas comunidades. Diz respeito
também à mensagem intencionada pelo autor da obra no momento de sua
composição.
É percepção da elaboração cognitiva do discurso, é o se ouvir
intelectualmente, é apercebermo-nos de que o discurso musical tem como
base estrutura e forma. É consciência do procedimento de vozes, do canto,
contracanto, sujeito, resposta, ligações harmônicas, melódicas, rítmicas,
fraseológicas, é consciência do vetor tonal, da direcionalidade harmônica, é
gozo da percepção da forma, da estrutura, da disposição dos elementos
constitutivos do todo. (ZAMPRONHA, 1996, p. 27).
38
Importante salientar que as categorias peircianas são universais, ou seja,
não substituem nem excluem a variedade infinita de outras categorias mais
específicas e materiais que podem ser encontradas em todos os fenômenos. E
ainda, as categorias não são dissociadas umas das outras, como o próprio PEIRCE
(1980, p. 97) coloca, “talvez nem se devesse chamar as categorias de concepções;
são tão intangíveis que mais parecem timbres ou matizes dos conceitos.”
O mesmo acontece na recepção sonoro-musical, tendo por base essas
categorias. “Assim, a experiência da materialidade musical sonora constitui um
primeiro (primeiridade), enquanto o som desta peça musical à qual reajo é um
segundo (secundidade), e sua elaboração cognitiva, um terceiro (terceiridade).”
(ZAMPRONHA, 1996, p. 28).
É impossível decidir os nossos pensamentos entre estes dois elementos
(primeiridade e segundidade). O núcleo do atualmente realizado consiste
em secundidade, ou melhor, ela é característica predominante do realizado.
O presente imediato – caso pudéssemos detê-lo – veríamos que é
Primeiridade. (....) A significação a longo prazo tenderá a moldar as reações
à sua imagem e semelhança. Por este motivo é que eu chamo este
elemento fenômeno ou objeto de pensamento Terceiridade. A sua natureza
consiste em conceder uma qualidade às reações do futuro. (PEIRCE, 1980,
p. 94).
39
UM OLHAR SOBRE TRÊS TEORIAS DE SIGNIFICAÇÃO NA MÚSICA
Com a finalidade de contextualizar nosso estudo, lançaremos um breve
olhar sobre as teorias que tratam da significação na música, abordadas por Kenneth
Bruscia, musicoterapeuta e pesquisador. Elegemos este estudo por ele tratar de três
teorias sobre a significação da música que, de alguma forma, tangem aspectos de
nossa pesquisa e ampliam a visão sobre o assunto que estamos discorrendo.
As teorias abarcadas por Bruscia (2000) são: a) o formalismo absoluto, b)
o referencialismo e c) o expressionismo absoluto. Estudos estes, introduzidos por
Reimer (1870).
No Brasil, há também a teoria proposta por Martinez (1997), estudioso da
semiótica da música com bases peircianas que trata de três campos inter-
relacionados de investigação: a) semiose musical intrínseca ou estudo do signo
musical consigo mesmo, b) referência musical ou estudo dos signos musicais
relacionados aos seus possíveis objetos e c) interpretação musical ou o estudo dos
signos musicais relacionados aos seus interpretantes. A teoria de Martinez (1997)
está aqui citada, porém, não será abordada em nosso estudo.
Formalismo Absoluto
De acordo com Reimer (2000), a “significação de um trabalho artístico é
diferente da significação de todas as outras experiências humanas” (Reimer apud
BRUSCIA, 2000, p. 104). Nesse sentido, o formalismo absoluto considera que todos
os significados encontrados na música são inerentes à música e somente à música,
e como tais são inteiramente independentes e diferentes de todas as significações
encontradas em outras artes ou no universo fora dela. “Os eventos estéticos, como
os sons, na música só significam a si próprios” (Reimer apud BRUSCIA, 2000, p.
105). Os formalistas chamam de emoção – geralmente a “emoção estética” - este
reconhecimento e apreciação musical por parte do ouvinte, confirmando que esta
“emoção” é única e hermeticamente fechada. “(...) ela não tem contraparte em outra
experiência emocional” (Reimer apud BRUSCIA, 2000, p. 105).
Esta posição nega a importância de qualquer relação que possa existir
entre a música e o universo, e ainda, entre a música e a condição humana ou os
sentimentos e idéias individuais. Os formalistas acreditam que a maioria das
40
pessoas não são capazes de alcançar uma verdadeira experiência estética da
música a não ser que tenham talento ou que tenham tido um treinamento musical.
Portanto, para as massas a música serviria fundamentalmente como entretenimento.
Entendemos que os absolutistas estariam tratando do absolutismo da
composição musical encontrado somente na própria composição – em sua essência
primária, imune da interpretação relacionada com antes/depois, do juízo arbitrário,
ou da produção de significados emergentes da mente do ouvinte interpretante
dinâmico.
Referencialismo
Os referencialistas, contrastando com os formalistas, acreditam que os
significados centrais da música e da experiência musical encontram-se fora do
trabalho musical propriamente dito – nos fenômenos, eventos, idéias, sentimentos
não artísticos ou extra-musicais comunicados através da música. “Para eles, a
música comporta significados por referir, representar, simbolizar ou por expressar o
universo (não musical) da experiência humana.” (BRUSCIA, 2000, p. 106).
Os referencialistas acreditam que música é uma linguagem que os
indivíduos podem usar para expressar a condição humana, assim como suas
próprias idéias, sentimentos e identidades. A música, as formas de interpretá-la e de
escutá-la, nos dariam oportunidades de vivenciarmos vários aspectos da condição
humana. “Para eles, a experiência musical facilita e conduz à experiências não
musicais de todos os tipos.” (BRUSCIA, 2000, p. 106).
Entendemos que esta teoria trata da qualidade que a música desperta
nos ouvintes ao referir o universo fora dela, ou ainda, a relação que o ouvinte
constrói diante do fenômeno musical apresentado à sua consciência. A relação
poderá se dar com objetos externos, sentimentos, eventos ou qualidades
manifestadas pelo ouvinte em relação à referida música.
Expressionismo Absoluto
A terceira posição é adotada pelos expressionistas e consiste em uma
espécie de integração do formalismo absoluto com o referencialismo, onde os
41
componentes estéticos em um trabalho artístico têm qualidade semelhante à
qualidade inerente a toda experiência humana.
“Quando alguém partilha as qualidades do conteúdo estético de um
trabalho artístico também estará partilhando as qualidades com as quais se fazem
todas as experiências humanas.” (Reimer apud BRUSCIA, 2000, p. 107). A
significação da experiência será convincente e penetrante na medida em que as
qualidades da obra podem ser experimentadas pelo ouvinte. “Se a experiência da
arte deve ser significativa para a vida, a experiência da arte tem que ser uma
experiência estética.” (Reimer apud BRUSCIA, 2000, p. 107).
Trata-se da formação de significados por uma mente interpretante, que
experiencia a obra e partilha das qualidades trazidas por este código que é
apresentado.
Por fim, é importante salientar que esses três campos de investigação a
respeito da significação na música, trazidos por Bruscia (2000), não são estanques,
pelo contrário, eles se interpenetram de acordo com a lógica da significação.
Após este apanhado reflexivo, adentraremos então à pesquisa de campo.
42
CAPÍTULO SEGUNDO
PESQUISA DE CAMPO
UM ESTUDO DE CASO DE GRUPO
Rauen (2006) define estudo de caso como “uma análise profunda e
exaustiva de um ou de poucos objetos, de modo a permitir o seu amplo e detalhado
conhecimento.” (RAUEN, 2006, p. 178). Portanto, quando nos debruçamos na
verificação de um caso e buscamos o aprofundamento dos conteúdos que este caso
tem a nos oferecer, amparados por métodos científicos e fundamentação teórica,
estamos efetivamente realizando pesquisa científica.
No caso da presente pesquisa, desenvolvemos um estudo de caso de
grupo por amostragem. Tivemos como objeto de estudo um grupo de 10 (dez)
voluntários, alunos da Universidade do Sul de Santa Catarina e integrantes do Coral
desta Instituição.
A realização do estudo de caso de grupo enquanto meio de aplicação
para este trabalho se justifica pela oportunidade em experimentarmos na prática a
aplicação do que discorremos no campo teórico sobre a formação do significado. Em
suma, com a pesquisa de campo temos a oportunidade de observar as formas como
acontece a apreensão de dada experiência musical na consciência dos indivíduos
que compõem o grupo de amostragem em estudo. Podemos assim, mergulhar nos
conteúdos oriundos da pesquisa de campo e melhor compreender a formação do
significado, à luz da semiótica de Charles Peirce.
43
O COMPOSITOR E A OBRA
a) Jean Sibelius – O compositor da obra musical em análise
Johan Julius Christian Sibelius (nome de batismo), nasceu em 08 de
dezembro de 1865 e faleceu em 20 de setembro de 1957, foi o compositor finlandês
que mais obteve destaque no final do Século XIX e início do Século XX e que teve
importante papel na formação da identidade nacional finlandesa.
Nasceu duma família que falava sueco e residia na cidade de
Hämeenlinna, no Grão-Ducado da Finlândia, então pertencente ao Império Russo.
Devido ao grande envolvimento com o proeminente movimento Fennoman e suas
expressões do nacionalismo romântico, sua família decidiu que ele fosse para um
importante colégio de língua finlandesa, o qual freqüentou entre 1876 a 1885.
A produção artística de Sibelius e sua visão política tiveram forte
influência do nacionalismo romântico.
Sibelius compôs sete sinfonias usando cada uma delas para trabalhar
uma idéia musical e desenvolver seu próprio estilo. Teve como principais obras:
Finlândia, Valsa Triste, Karelia Suite, O Cisne de Tuonela, peças inspiradas no
poema épico Kalevala, cerca de 100 canções para piano e voz, uma ópera (A
Senhora na Torre), peças para piano, 21 publicações separadas para coral e
músicas para rituais maçônicos. Nos últimos 30 anos de vida, no entanto, teve
apenas obras inacabadas. Sua Quarta Sinfonia e a obra Luonnotar sofreram
influência da fase em que Sibelius se submeteu a uma séria cirurgia por suspeita de
câncer na garganta, em 1911.
Sibelius amava a natureza, e o estilo "natural" aparece em sua música.
Por exemplo, sobre sua Sexta Sinfonia, Sibelius comentava que ela o fazia lembrar a
queda dos primeiros flocos de neve.
Admirou por muito tempo as obras de Wagner, usando-as para o esboço
de sua ópera “A construção do Barco” (inacabada).
Abandonou as diretrizes de composição da forma-sonata e, ao invés de
múltiplos contrastes de temas, ele ficou na idéia de envolver continuamente células e
fragmentos culminando em um grande e único tema. (WIKEPÉDIA, 2007)
44
b) A Obra – Finlândia Opus 26
A obra em questão é classificada como Poema Sinfônico e foi composta
em 1889 e revisada em 1900, teve sua estréia em 2 de julho de 1900, e obteve
versão para piano em novembro de 1900, para banda militar em 1909 e para coral
em 1925 (em inglês).
Muitas pessoas confundem os primeiros acordes com o apito de uma
locomotiva, porém Sibelius pensou para estes acordes o caráter de um chamado de
um povo oprimido pela fome, sede, frio extremo da Finlândia e ignorado pelo poderio
da época.
Esta obra se divide nas seguintes partes: A – A1 – B – retorno de B –
desenvolvimento de A – desenvolvimento de B e final.
Para melhor entendimento do texto que segue a respeito da obra musical,
indicamos a visualização do anexo A do presente trabalho (p. 77). Este anexo traz a
análise da partitura Finlândia Opus 26, com as devidas marcações e apontamentos
pertinentes.
A referida análise da partitura que abordamos neste trabalho partiu do
seminário apresentado pelo músico e acadêmico Patrick A. Cavalheiro, aluno do
Curso de Bacharelado em Música da Universidade do Estado de Santa Catarina, na
disciplina Laboratório de Análise Musical I, orientado pelo Prof. Dr. Acácio Piedade,
no primeiro semestre do ano de 2007. Registramos que Patrick A. Cavalheiro foi o
músico convidado que realizou a mediação cognitiva ao grupo de ouvintes
participantes do estudo de caso na presente pesquisa.
Análise descritiva da partitura da música Finlândia
Na parte A (compasso 1) – Andante Sostenuto – a música inicia com um
acorde de fá menor finalizando em . Tem um caráter solene e sombrio, expressos
pela utilização do timbre dos trombones.
A parte A1 (compasso 24) inicia mais suave no timbre das flautas,
passando para as cordas no compasso 30, na forma de resposta ao tema exposto
pelo sopro.
Ao compasso 74, o andamento acelera com a mudança de Andante para
Allegro Moderato. Esta parte é classificada como a ponte que levará para a parte B e
45
apresenta motivos que foram utilizados na parte A e células que serão trabalhadas
na parte B.
A tonalidade da ponte inicia em dó menor e finaliza (compasso 94) para
mi bemol (dominante de lá bemol maior que será utilizado na parte B).
Na parte B (compasso 95) o andamento passa a ser Allegro, e o caráter
totalmente diferente da parte A, sendo este mais rítmico, alegre e carregado de
elementos novos, tornando-se mais vivo através de muitos motivos. A tonalidade
desta parte é lá bemol maior, modulando para mi bemol no compasso 116.
No compasso 125 há um retorno que leva ao compasso 99, por isso é
classificado como retorno de B.
No compasso 125 há uma ponte que leva da parte B para o
desenvolvimento da parte A, sendo este desenvolvimento na tonalidade de lá bemol
maior, de caráter coral, com exposição do desenvolvimento no sopro agudo e
acompanhamento das cordas em trêmulo. Nesta parte foi incluso uma letra (em
inglês) no ano de 1925 pelo próprio Sibelius, para coral, e tem duração até o
compasso 179, retornando posteriormente nos cinco últimos compassos.
Há uma tradução da letra para português (tradutor desconhecido):
“Estamos aqui, cantando com os povos
Clamando a paz em todas as nações
Com esperança unidas nossas almas
Uma só voz e muitos corações
Compartilhando o sonho destemido
De um mundo em paz sem dor sem divisões
Todas nações Desejam liberdade
Aos filhos seus Que querem aprender
A compreensão Amor, fraternidade
É este o mundo Que queremos ter
Povos irmãos Unidos neste canto
Numa só voz Todas num só querer
Todos os povos Buscam liberdade
Palavras justas Contra a opressão
46
O amor trazendo Paz a humanidade
O mal vencido Pela compreensão
A união No amor a liberdade
Numa só voz Em uma só canção
Justiça e Paz”.
O sentido da letra caracteriza a opressão sentida pelo povo Finlandês e o
clamor pela liberdade, reprimida pelo imperador da Rússia Nicholas II, que em
fevereiro de1889 restringiu o poder do Grão-ducado Finlandês.
Uma das características marcantes desta parte é a ausência de inúmeros
motivos como há na parte B, sendo esta (desenvolvimento da parte A) composta de
frases mais longas e com rítmica menos acentuada, o que deixa esta parte mais
densa.
O tema exposto no compasso 132 (pelo sopro) passa posteriormente para
as cordas no compasso 156 e finaliza no compasso 179, onde inicia o
desenvolvimento da parte B.
No desenvolvimento da parte B percebemos claramente os motivos e
temas abordados na parte B, como um turbilhão de motivos, tendo muitas vezes três
motivos em um só compasso.
O desenvolvimento de B começa em lá bemol maior e finaliza em mi
bemol, repleto de perguntas e respostas entre os sopros e as cordas.
O movimento final é apresentado no compasso 201, iniciando na
tonalidade de mi bemol e passando para lá bemol.
Os últimos cinco compassos, além da presença do coral (letra), há
também um ritmo mais uniforme (em semibreves), fazendo recordar a parte A.
A música termina em fortíssimo e alargado som, com o coral entoando a
letra: “Justiça e paz”. Este é considerado um clamor final à liberdade de todas as
nações.
47
O PROCEDIMENTO, A TÉCNICA E OS RESULTADOS
a) O Procedimento
A aplicação da pesquisa se deu, de forma individual, para um público de
dez jovens, estudantes da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul),
voluntários, integrantes do Coral da Unisul Campus Grande Florianópolis. Esses
estudantes nunca estudaram música em seu aspecto teórico, não costumam ouvir
música erudita com freqüência, mas participam de forma amadora do grupo coral.
A pesquisa de campo aconteceu em três momentos principais: (1) o
registro dos relatos dos ouvintes em relação a primeira audição, (2) a mediação
cognitiva e o (3) registro dos relatos dos ouvintes em relação a segunda audição da
mesma obra.
Inicialmente, após breve relaxamento e adaptação ao ambiente, cada
voluntário para a pesquisa, aqui denominado de ouvinte, foi submetido à primeira
audição do trecho musical. Após a audição, cada ouvinte relatou por meio de história
oral o que sentiu e o que aquela audição significou para ele.
Na semana seguinte, o maestro e acadêmico de música, Patrick Almeida
Cavalheiro, convidado pelo pesquisador, procedeu à mediação no sentido de trazer
para o conhecimento dos ouvintes a explicação teórica sobre os elementos
constitutivos da música tonal, os instrumentos e os naipes de instrumentos utilizados
na composição em questão, forma de arranjo, contextualização sobre a vida do
compositor Jean Sibelius e análise musical da peça Finlândia Op. 26, bem como
referências sobre a intenção primária desta composição.
No terceiro momento, os ouvintes foram outra vez submetidos à audição
do mesmo trecho musical, e então, coletamos novamente os relatos. Os relatos
orais foram registrados por meio de gravação fonográfica.
mediação
música primeira audição segunda audição
relato relato
história oral história oral
Figura 1 - Quadro sintético do procedimento técnico
Fonte: Acervo mestrando.
48
b) A Técnica: História Oral
Embora antiga em seu uso popular, podemos dizer que a história oral é
um procedimento bastante novo em sua oficialização no meio acadêmico, o que
ainda torna provisória qualquer conceituação. Através dos séculos o relato oral tem
sido uma fonte de informações considerável para as ciências em geral. Podemos
dizer que a escrita seria uma forma de cristalização do relato oral.
Conforme explica Daphene Patai, “lembranças, comentários, memórias de
fatos e impressões sobre acontecimentos, desde que motivados para entrevistas,
são a base da história oral.” (Patai apud MEIHY, 2002, p. 14)
Pode-se, no nível material, considerar que a história oral consiste em
gravações premeditadas de narrativas pessoais, feitas diretamente de
pessoa a pessoa, em fitas ou vídeo. Tudo prescrito pela existência de um
projeto. (MEIHY, 2002, p. 13).
Então, conforme Meihy apresenta em seu Manual de História Oral,
podemos dizer que três elementos constituem a relação da história oral: o
entrevistador, o entrevistado e a aparelhagem de gravação. E ainda, a história oral
implica na elaboração de um projeto que prevê planejamento da condução das
gravações, transcrição, conferência da fita com o texto, autorização para o uso,
arquivamento e sempre que possível, publicação dos resultados. Portanto, história
oral é resultado de entrevistas indicadas em projetos previamente existentes.
Ainda de acordo com Meihy (2002), a história oral tem quatro etapas
principais: a elaboração do projeto (que neste caso seria o projeto de pesquisa da
Dissertação), a gravação, a confecção do documento escrito e a análise dos dados.
Como método, e no caso em questão como técnica, a história oral se
estabelece segundo alternativas que privilegiam os depoimentos como atenção
central dos estudos. “Trata-se de focalizar as entrevistas como ponto central das
análises.” (MEIHY, 2002, p. 44). Os resultados das pesquisas devem ser
efetivamente com base nos relatos orais, ou seja, nas entrevistas.
As interferências emocionais e vieses variados comuns no relato oral, ao
contrário do que se pensa, é o que interessa na aplicação da história oral como
método. “Ademais, mora na emoção e mesmo na paixão de quem narra a
subjetividade que interessa à história oral.” (MEIHY, 2002, p. 47). Além da
49
informação, as impressões também se fazem importantes nas entrevistas, pois além
da busca da verdade, há o importante registro da experiência.
Hoje em dia, os projetos de história oral passam a ter importância por
tratarem de impressões, aspectos subjetivos, fantasias e visões de mundo
que implicam interpretações diferentes das possíveis em histórias feitas com
critérios considerados científicos. (MEIHY, 2002, p. 49).
O modo como cada indivíduo constrói sua história oral, os aspectos de
sua percepção e de sua forma de significar deixam seu depoimento ainda mais
eficiente para construção da pesquisa. Embora diferente dos fatos, do sentir em si, a
narrativa é uma forma muito direta de se obter a impressão desses fatos, embora,
naturalmente, possa carregar diferenças do fato em si.
Em termos práticos, devemos atentar às interferências presentes nas
entrevistas por parte do condutor dos trabalhos. Elas podem existir ou não,
dependendo de onde queremos chegar e dos pressupostos do projeto. No caso em
questão, optamos por não interferir no relato do ouvinte, ou dependendo do caso,
interferir o mínimo possível. Atentamos também para o local escolhido para
aplicação prática da pesquisa e para a aparelhagem utilizada, afim de obtermos
pureza do som e boa concentração dos voluntários.
c) Os Resultados
Transcrição dos relatos dos ouvintes, demarcação das categorias peircianas e
mensuração de ocorrências em cada categoria.
XXX – Primeiridade
XXX – Secundidade
XXX – Terceiridade
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Ouvinte 1 - SANDRA
1ª audição
Me deu uma sensação de medo no início, tipo um susto. Depois, um pouco de paz.
Daí tinha uma impressão assim de que tinha uma marcha com alguém correndo e
depois uma coragem como se fosse uma marcha... E, uma hora me deu a impressão
de estar assistindo o desenho do Tom e Jerry. É isso.
Primeiridade: 2 ocorrências – 40%
Secundidade: 3 ocorrências – 60%
Terceiridade: 0 ocorrências – 0%
2ª audição
Para mim mudou um pouco, veio uma revolta. Depois como se tivesse um
sofrimento e vinha uma súplica mesmo, de piedade. Depois mais revolta e tinha uma
sensação mais de apelo, de um pedido pela paz na parte mais tranqüila, um grande
desejo de paz e fraternidade, como se fosse uma súplica, um pedido mesmo.
Primeiridade: 1 ocorrência – 25%
Secundidade: 0 ocorrência – 0%
Terceiridade: 3 ocorrências – 75%
Ouvinte 2 - TATIANA
1ª audição
A primeira impressão que eu tive assim... eu me baseei no fime “O Último Samuray”.
Foi o mesmo sentimento que eu tive quando eu assisti o filme. Aquele momento do
conflito... começou com suspense.... aquele medo anterior que o ator principal tinha
no filme, os conflitos que ele tinha na vida passada, o que ele tinha feito com as
outras pessoas. E no momento do início da música, ele pensando... a meditação. Os
mesmos sentimentos que eu tive no momento em que eu assisti o filme eu vivi na
música agora. Aí depois da meditação veio o momento daquela entrada dos
guerreiros, do combate, da guerra. Logo após o momento da vitória deles, da alegria
51
e da confraternização entre os guerreiros. Foi o mesmo sentimento do filme. No final
alegria como se fosse um baile e naquele momento a gente tivesse confraternizando
a vitória. Como se eu estivesse alegre com o som.
Primeiridade: 1 ocorrência – 16,66%
Secundidade: 5 ocorrências – 83,33%
Terceiridade: 0 ocorrências – 0%
2ª audição
Eu não mudei muito da forma que eu analisei a música da outra vez. Esclareceu
com a aula mais coisas. Mas exatamente o que eu senti foi como a súplica do povo,
todo aquele sentimento de revolta, aquela ansiedade no começo da música, logo
após veio aquela batalha e foi como eu me senti quando assisti o filme que eu tinha
mencionado na outra vez. Aquele mesmo sentimento, eles estavam guerreando
também pelo mesmo ideal desse povo finlandês. No filme que eu tinha mencionado
pela liberdade deles mesmos e dos seus costumes e hoje eu vi na aula que na
primeira vez foi exatamente aquilo que eu tinha sentido, que eles estavam lutando
por algo, teve aquela guerra, depois voltou a mansidão e depois veio como se fosse
o final da música e eles estivessem vitoriosos festejando, eu até mencionei que era
num salão de festas, dançando, com o final da vitória, conseguindo seu objetivo. E,
devido a aula também, eu pude prestar mais atenção nos instrumentos, eu pude
ouvir o trompete, eu pude ouvir o tambor, eu prestei mais atenção nos violinos,
cordas, clarinete. Eu comecei a perceber estes instrumentos na peça, tipo, o tambor
no fundo naquela parte, naquele momento que ele explicou na aula em que o tambor
repete várias vezes o som e eu pude prestar mais atenção.
Primeiridade: 0 ocorrências – 0%
Secundidade: 2 ocorrências – 33,33%
Terceiridade: 4 ocorrências – 66,66%
52
Ouvinte 3 - DANIELA
1ª audição
Em alguns momentos teve alguns elementos que lembram cenas de filmes. Mas no
início, o que eu senti, foi uma sensação de tristeza, uma certa angústia e ao mesmo
tempo um grande ideal. Tipo como se tivesse um grande ideal por trás. Depois, pra
mim ela se torna meio belicosa, dando sinais de belicoso, e ao mesmo tempo lembra
uma grande causa, a belicosidade de uma grande causa. De repente, vem aqueles
elementos que dão uma sensação que você está quase em um filme da broadway.
De repente, tem uma coisa mais jubilosa e ao mesmo tempo frenética que não vai
muito pro espiritual, é mais assim guerreiro, mais broadway, mais sapateado. Tem
momentos em que a belicosidade surge novamente, a belicosidade retorna mas é
muito leve. Mas o que mais marcou foi isso, assim, foi o início triste, parece que
havia uma busca maior por trás.
Primeiridade: 1 ocorrência – 14,28%
Secundidade: 3 ocorrências – 42,85%
Terceiridade: 3 ocorrências – 42,85%
2ª audição
Não mudou muita coisa depois da aula. O que ficou mais claro é que desta vez eu
consegui ouvir melhor alguns trechos que eu não tinha conseguido ouvir. Os trechos
que eu tinha dito que tinha algo de belicoso ficou ainda mais marcante porque eu
consegui ouvir melhor este trecho. E tem aquela coisa que eu falei continuou:
tristeza, uma tristeza muito grande, um grande ideal e depois vem uma luta por esse
ideal. É sempre isso, sempre tem o ideal por trás. Não era uma coisa pessoal, é algo
maior mas eu não sabia direito do que se tratava... agora eu sei, eu acho que
consegui entender. Eu não sabia qual era o ideal, mas que tinha um grito de ideal
por trás tinha. Eu acho agora que o grito seria esta vontade dele de libertação. Para
mim ficou mais claro na segunda audição mas a mensagem viceral do autor eu acho
que consegui captar na primeira e ela permaneceu. Ah, e continuou aquela coisa
dos filmes, em alguns trechos, parecia que estava em um filme da broadway e saia
sapateando, mesmo após a explicação elas continuaram.
53
Primeiridade: 1 ocorrência – 25%
Secundidade: 1 ocorrência – 25%
Terceiridade: 2 ocorrências – 50%
Ouvinte 4 - CAYO
1ª audição
Pra mim, no início me lembrou um pouco minha infância, eu não sei se é porque eu
assistia aqueles desenhos animados, me lembrou um pouco de morte, lembrou
meus avós, porque eles sempre ouviam músicas clássicas e até uma luta entre
povos, uma coisa bem medieval. Depois veio uma calmaria, parecia bem filmes, tipo
“O senhor dos anéis”. Aí depois veio um momento como se fosse a vitória. Assim, no
início foi uma derrota, todos derrotados e depois aquela vitória. Acho que remete
bem ao tempo. Na minha vida mesmo remete as coisas clássicas, eu escutei muito.
Primeiridade: 0 ocorrências – 0%
Secundiade: 8 ocorrências – 100%
Terceiridade: 0 ocorrências – 0%
2ª audição
Pra mim não mudou muita coisa não. Me remeteu muito mais a uma coisa pessoal,
ao passado mesmo, a minha infância, até mesmo a criação.
Primeiridade: 0 ocorrências – 0%
Secundiade: 1 ocorrências – 100%
Terceiridade: 0 ocorrências – 0%
Ouvinte 5 - ROGGERO
1ª audição
Pra mim sempre é bom ouvir música instrumental, relaxo, consigo dormir facilmente.
A música me lembrou muito o colégio, assim, é uma música sentimental a música
54
clássica. É engraçado como o signo remete ao significado das coisas, tipo eu escuto
essa música e me remete ao passado que foi um colégio em que eu estudei. Tipo
pra mim, o sentimento foi de muita alegria, é como seu eu estivesse no século
passado revivendo muitas coisas dessa época, guerreiro, sempre que eu ouço
música de uma qualidade semelhante me remete a esse sentimento. A gente
consegue voltar e é uma coisa que mexe no coração, é como se a gente pegasse
ele com a mão e conseguisse torcer, conseguisse sentir ele, mas é bom! Gostoso
né. Observando a música clássica, aquele vai e volta, buscando uma sincronia, eu
não consigo acompanhar, parece que não se acha o ritmo da música, essa aparente
falta de ritmo é que me faz procurar um padrão.
Primeiridade: 2 ocorrências – 40%
Secundidade: 2 ocorrências – 40%
Terceiridade: 1 ocorrência – 20%
2ª audição
Agora eu entendi o que o compositor queria passar na música. E pra mim ficou claro
também, depois da aula, até o entendimento de cada pedaço da música, a influência
de certos trechos e do porque que ele fez isso. Mesmo entendendo o que ele queria
passar com a música e o que ele passou, eu ainda gosto deste tipo de música e não
fiquei racionalizando tanto, tentei imaginar que era um pedido de liberdade dele. Isso
aí eu entendi claramente, mas ainda assim, pra mim, remete a um passado distante,
a uma coisa que eu fiquei preso, a um sentido mais pessoal. Percebi novamente a
falta de ritmo, mas pude perceber que ela é rica em harmonia, em melodia. Acho
que foi isso.
Primeiridade: 0 ocorrência – 0%
Secundidade: 2 ocorrências – 50%
Terceiridade: 2 ocorrências – 50%
55
Ouvinte 6 - FELIPE
1ª audição
A música me despertou emoções e também me fez lembrar de coisas concretas. No
começo foi uma sensação de medo, de suspense. E, depois, no decorrer da música,
vai acontecendo diferentes emoções sem se repetir, pelo menos eu senti isso. Então
depois vem a sensação de paz, de paixão, de amor, e aí depois a sensação de
batalha, de guerra medieval e depois vem alegria assim, tipo circo. Depois também
me lembrou paisagens, montanhas, lagos e rios. A música vai andando num
caminho que faz você sentir várias coisas, várias emoções diferentes.
Primeiridade: 4 ocorrências – 50%
Secundiade: 4 ocorrências – 50%
Terceiridade: 0 ocorrências – 0%
2ª audição
Eu acho que pra mim continuou a mesma coisa que eu tinha sentido quando ouvi
pela primeira vez. Os sentimentos mudando no decorrer da música, no meio aquela
calma, depois vem a alegria, paz.
Primeiridade: 1 ocorrência – 50%
Secundidade: 1 ocorrência – 50%
Terceiridade: 0 ocorrência – 0%
Ouvinte 7 - ALINE
1ª audição
Eu fiquei imaginando uma história. Imaginei que no começo tinha uma incerteza,
uma dúvida, o toque estava como se fosse uma dúvida da pessoa. Eu imaginei a
história de uma pessoa, de duas na verdade. Elas estavam numa incerteza, estavam
meio que discutindo e tal. Tava um som mais pesado realmente. E depois foi ficando
mais leve. Foi ficando leve como se fosse uma euforia assim: Ai, pronto! Decidimos!
56
Eu imaginei na minha cabeça assim. Parecia um filme. E no final passou a euforia da
alegria e ficou mais calminho e fechou assim (expressão de grandioso)... terminou.
Primeiridade: 0 ocorrência – 0%
Secundidade: 4 ocorrências – 100%
Terceiridade: 0 ocorrência – 0%
2ª audição
A sensação foi muito engraçada. Quando eu comecei escutar a música eu me
transportei para um cenário que rolou na minha cabeça e eu montei um filme.
Parecia que era uma guerra que teve morte, que teve momentos de alegria,
momentos de tristeza, momentos de tranqüilidade, de tudo certo, de felicidade,
então os sentimentos se misturaram muito durante a música e eu consegui viver
toda essa história. Foi legal. A explicação foi bem importante também, porque tal
instrumento relaciona a tal sentimento e eu consegui perceber algumas coisas.
Primeiridade: 0 ocorrência – 0%
Secundidade: 1 ocorrência – 50%
Terceiridade: 1 ocorrência – 50%
Ouvinte 8 - ADRIANA
1ª audição
Pra mim foi bastante profundo. Eu me deixei envolver muito pela música. Eu logo,
como uma linguagem metafórica, imaginei uma história. Mas a minha história era
profunda. Logo nos primeiros compassos eu me senti como se estivesse na beira de
um caos, a beira de um caos de um mundo sem formas. Um mundo onde não há
nada e não tem forma porque nada se adequa. Não tem forma nenhuma. A segunda
etapa eu senti que as coisas eram meio incertas, era uma espectativa de mudança,
as coisas começando a mudar. Logo depois o tom ficou muito mais ameno, foi como
que no meio de toda essa história quisesse se mostrar a existência do bem, a forma
do bem. E depois ele foi aumentando, ele foi ficando gradativamente mais forte que
seria a existência do bem, a forma do bem. E depois ele aumenta muito mais e eu
57
entendi como a união das forças, para a criação do novo. Então, tudo se uniu para o
novo aparecer. Assim que essa união aconteceu houve uma guerra, a guerra dos
opostos que não se unem. Aí houve uma grande guerra e o bem triunfou. Depois
dessa grande guerra de vários tons diferentes, há um tom que se eleva e que eu
creio que foi o do bem, depois veio a singeleza da paz mostrando o bem em
atuação, depois o equilíbrio, a soma das formas e a festa das formas com o
desfecho.
Primeiridade: 0 ocorrência – 0%
Secundidade: 10 ocorrências – 100%
Terceiridade: 0 ocorrências – 0%
2ª audição
Pra mim foi interessante ouvir a biografia do compositor. Foi engraçado o que eu
falei da primeira vez com relação as cores, eu fiz uma comparação não só com as
cores mas com as formas, como se você fosse relacionar a música com matéria, ela
seria a junção. Eu não fiquei tanto atenta com as variações, com a emoção que a
música transmitia, seja ela tristeza ou o que for. Eu fiquei atenta foi com as
passagens de uma nota para outra. Como na natureza, de repente você tem coisas
formadas por um mesmo elemento que tem uma forma totalmente diferentes mas
quimicamente são formadas pela mesma coisa. É, hoje eu fiquei mais ligada em
como o som se formava e nas mudanças que se estabeleciam. Por exemplo, depois
de ter ouvido a aula, eu pude perceber que você usando o mesmo instrumento, num
ritmo diferente ele vai te dar uma outra sensação. Porém coisas que me vieram na
mente também foram as mesmas, como eu falei de ter o caos e não ter a forma e
depois a forma voltar a surgir. Eu resumi tudo o que eu senti numa frase só: que se
as notas fossem cores, a cada ato se tem a pintura de uma nova sensação. Hoje eu
tive esses atos mais definidos. Hoje foi muito mais racional, na primeira vez a
emoção foi mais profunda.
Primeiridade: 0 ocorrência – 0%
Secundidade: 4 ocorrências – 50%
Terceiridade: 4 ocorrências – 50%
58
Ouvinte 9 - ALCIDES
1ª audição
Então, no início o suspense como se tivesse alguma coisa pra acontecer naquele
momento, como que se alguém estivesse esperando alguma coisa que ainda não
está acontecendo. Depois gera uma parte que é um caos e depois, como se alguém
estivesse fugindo de alguma coisa e não estava conseguindo fugir. Depois veio um
pouco de tranqüilidade, como se alguém tivesse colocado alguma coisa que
tranqüilizou a pessoa. E termina como se estivesse chegando em algum lugar.
Algum lugar que a pessoa queria chegar mas não estava conseguindo chegar. O
que eu senti foi isso.
Primeiridade: 2 ocorrências – 33,33%
Secundidade: 4 ocorrências – 66,66%
Terceiridade: 0 ocorrência – 0%
2ª audição
Agora eu percebi mais as diferenças de agitação com calmaria. Ficou mais claro
hoje. Na primeira vez que eu ouvi eu não tinha esse entendimento, era uma coisa
meio misturada. Depois que a gente teve a análise da música isso ficou mais claro, a
noção de cada momento. A letra que ele passou também fez com que a gente
pudesse ter uma noção melhor da música.
Primeiridade: 0 ocorrência – 0%
Secundidade: 0 ocorrência – 0%
Terceiridade: 3 ocorrências – 100%
Ouvinte 10 - MARCOS
1ª audição
Quando a música começou em sua primeira parte, eu fui me soltando e me sentindo
como se fosse um pássaro, um passarinho que não sabia voar ainda, que tava num
ninho, num galho de árvore muito alto e que tava tentando se lançar de cima do
59
ninho para voar, mas, morrendo de medo. E ai, a minha mãe me empurra do ninho e
eu começo a cair, me sinto caindo, tentando de todas as formas abrir as asas para
sair voando, mas com medo e sem saber, porque eu nunca tinha voado. Quando a
música começa mudar o movimento e fica mais tranqüila aí eu tive a sensação de
que podia abrir as asas bem perto do chão e comecei a flutuar. Aí me deu uma
sensação de paz, de felicidade, alegria e eu fui subindo, bem perto das nuvens
quando, de repente, veio um gavião e, me vendo, começa a me atacar. Eu começo a
querer fugir dele, desesperadamente, mas eu não tinha tanta habilidade porque tava
recém querendo voar, e aí eu só pensei numa coisa: vou voar o mais baixo possível,
me jogar por baixo daquelas árvores e tentar fugir pelo meio daquelas árvores.
Então eu fecho minhas asas e venho em vôo certo para baixo e o gavião atrás de
mim – pega e não pega, pega e não pega –Quando eu chego lá nas árvores eu vejo
um buraco lá no meio da pedra, eu dobro as asas, entro no buraquinho e o gavião
não consegue porque ele é muito grande. Aí vem outro movimento. Então nessa
parte da música eu fico apavorado, nervoso e tenso porque eu acordo e tava com
medo de sair pra voar, desesperado, e a minha mãe não podia fazer nada porque eu
tinha que aprender a me defender. Aí eu fui indo, fui respirando fundo e aí eu olho
pro penhasco, olho lá de cima se não tem um outro gavião, aí eu vou voando e volto
correndo pro ninho. Chego lá, minha mãe me pega. Quando a música começa se
dirigir pro ato final, eu tomo coragem, novamente, aí eu saio por conta própria, eu
vôo em direção ao pôr do sol, faço um passeio bem tranqüilo e volto pro ninho.
Primeiridade: 1 ocorrência – 7,14%
Secundidade: 9 ocorrências – 64,28%
Terceiridade: 4 ocorrências – 28,57%
2ª audição
Pude perceber no início da música os instrumentos bem destacados, as cordas em
volume forte e marcado. Foi um anúncio breve. Logo em seguida os sopros, como
se tivessem anunciando algo. Aí então a música muda de movimento, relaxa, passa
uma certa paz. Os instrumentos dessa parte são mais misturados, porém mais leves.
Ela volta então a se intensificar, crescendo, mostrando sua força, sua
incompreensão como se fosse sua insegurança. Os instrumentos mostram isso, é
outro movimento, parece até que é outra música, parece que os gestos ficam mais
60
largos, tudo é mais expansivo e um tanto cruel. E momentos fracos e fortes, calma e
guerra se misturam e se relacionam. No final, o momento apoteótico, a grande
orquestra se harmoniza para anunciar acordes completos e jubilosos. Parece que a
libertação se anuncia em um longo horizonte cheio de coragem.
Primeiridade: 1 ocorrência – 7,69%
Secundidade: 1 ocorrência – 7,69%
Terceiridade: 11 ocorrências – 84,61%
61
ANÁLISE DESCRITIVA DOS DADOS
A construção da escala para mensuração e visualização dos dados
Para procedermos à análise descritiva dos dados, apresentaremos
primeiramente a forma como se sucedeu a construção da escala para mensuração e
visualização desses dados.
Como já demonstrado, classificamos no texto os relatos dos ouvintes
sobre que tipo de ocorrências (categorias peirceanas: primeiridade, secundidade e
terceiridade) se apresentou em cada uma das falas. Para isso, utilizamos de
marcações em cores para classificar as manifestações de acordo com cada
categoria proposta como quadro teórico-metodológico nesta pesquisa.
Após a soma numérica das ocorrências em cada categoria para cada
audição de cada indivíduo efetuamos a transposição dos respectivos resultados para
percentuais, conforme apresentados por categoria em cada audição.
Obtidos estes percentuais foi possível apresentarmos a primeira
seqüência de círculos gráficos (gráficos 1 a 20), que demonstram, em cada
indivíduo, quanto obtivemos de cada categoria em cada audição.
Em seguida, realizamos a compilação de todos os dados da primeira
audição (somando os percentuais de todos os indivíduos e dividindo por 10),
obtendo-se então a média de ocorrência de cada categoria peirceana no grupo para
a primeira audição. Procedemos a mesma compilação com os dados apresentados
na segunda audição, possibilitando assim, a visualização da tabela com as colunas
(gráfico 21) que comparam a evolução da média do grupo da primeira para a
segunda audição.
Posteriormente, para melhor demonstrar e visualizar o movimento de
cada categoria no decorrer da pesquisa (primeira audição – mediação – segunda
audição) construímos um gráfico (gráfico 22) partindo da média percentual do grupo
para cada categoria, conforme apresentada na primeira audição, evoluindo para a
mesma média apresentada na segunda audição.
62
a) Demonstrativo da ocorrência das categorias peirceanas para cada indivíduo em
cada audição
Ouvinte 1 - SANDRA
40%
60%
0%
Primeiridade
Secundidade
Terceiridade
Gráfico 1 – Ouvinte Sandra, número de ocorrências das categorias peirceanas na 1ª audição.
Fonte: Dados mestrando.
25%
0%
75%
Primeiridade
Secundidade
Terceiridade
Gráfico 2 – Ouvinte Sandra, número de ocorrências das categorias peirceanas na 2ª audição.
Fonte: Dados mestrando.
Ouvinte 2 - TATIANA
17%
83%
0%
Primeiridade
Secundidade
Terceiridade
Gráfico 3 – Ouvinte Tatiana, número de ocorrências das categorias peirceanas na 1ª audição.
Fonte: Dados mestrando.
63
0%
33%
67%
Primeiridade
Secundidade
Terceiridade
Gráfico 4 – Ouvinte Tatiana, número de ocorrências das categorias peirceanas na 2ª audição.
Fonte: Dados mestrando.
Ouvinte 3 - DANIELA
14%
43%
43%
Primeiridade
Secundidade
Terceiridade
Gráfico 5 – Ouvinte Daniela, número de ocorrências das categorias peirceanas na 1ª audição.
Fonte: Dados mestrando.
25%
25%
50%
Primeiridade
Secundidade
Terceiridade
Gráfico 6 – Ouvinte Daniela, número de ocorrências das categorias peirceanas na 2ª audição.
Fonte: Dados mestrando.
64
Ouvinte 4 - CAYO
1
00%
0%
0%
Primeiridade
Secundidade
Terceiridade
Gráfico 7 – Ouvinte Cayo, número de ocorrências das categorias peirceanas na 1ª audição.
Fonte: Dados mestrando.
1
00%
0%
0%
Primeiridade
Secundidade
Terceiridade
Gráfico 8 – Ouvinte Cayo, número de ocorrências das categorias peirceanas na 2ª audição.
Fonte: Dados mestrando.
Ouvinte 5 - ROGGERO
40%
40%
20%
Primeiridade
Secundidade
Terceiridade
Gráfico 9 – Ouvinte Roggero, número de ocorrências das categorias peirceanas na 1ª audição.
Fonte: Dados mestrando.
65
0%
50%50%
Primeiridade
Secundidade
Terceiridade
Gráfico 10 – Ouvinte Roggero, número de ocorrências das categorias peirceanas na 2ª audição.
Fonte: Dados mestrando.
Ouvinte 6 - FELIPE
50%50%
0%
Primeiridade
Secundidade
Terceiridade
Gráfico 11 – Ouvinte Felipe, número de ocorrências das categorias peirceanas na 1ª audição.
Fonte: Dados mestrando.
50%50%
0%
Primeiridade
Secundidade
Terceiridade
Gráfico 12 – Ouvinte Felipe, número de ocorrências das categorias peirceanas na 2ª audição.
Fonte: Dados mestrando.
66
Ouvinte 7 - ALINE
1
00%
0%
0%
Primeiridade
Secundidade
Terceiridade
Gráfico 13 – Ouvinte Aline, número de ocorrências das categorias peirceanas na 1ª audição.
Fonte: Dados mestrando.
0%
50%50%
Primeiridade
Secundidade
Terceiridade
Gráfico 14 – Ouvinte Aline, número de ocorrências das categorias peirceanas na 2ª audição.
Fonte: Dados mestrando.
Ouvinte 8 - ADRIANA
100%
0%
0%
Primeiridade
Secundidade
Terceiridade
Gráfico 15 – Ouvinte Adriana, número de ocorrências das categorias peirceanas na 1ª audição.
Fonte: Dados mestrando.
67
0%
50%50%
Primeiridade
Secundidade
Terceiridade
Gráfico 16 – Ouvinte Adriana, número de ocorrências das categorias peirceanas na 2ª audição.
Fonte: Dados mestrando.
Ouvinte 9 - ALCIDES
33%
67%
0%
Primeiridade
Secundidade
Terceiridade
Gráfico 17 – Ouvinte Alcides, número de ocorrências das categorias peirceanas na 1ª audição.
Fonte: Dados mestrando.
100%
0%
0%
Primeiridade
Secundidade
Terceiridade
Gráfico 18 – Ouvinte Alcides, número de ocorrências das categorias peirceanas na 2ª audição.
Fonte: Dados mestrando.
68
Ouvinte 10 - MARCOS
7%
64%
29%
Primeiridade
Secundidade
Terceiridade
Gráfico 19 – Ouvinte Marcos, número de ocorrências das categorias peirceanas na 1ª audição.
Fonte: Dados mestrando.
8%
8%
84%
Primeiridade
Secundidade
Terceiridade
Gráfico 20 – Ouvinte Marcos, número de ocorrências das categorias peirceanas na 2ª audição.
Fonte: Dados mestrando.
b) Demonstrativo de ocorrência das categorias peirceanas pelo grupo em cada
audição
20,14%
70,71%
9,14%
10,76%
36,60%
52,62%
0,00%
10,00%
20,00%
30,00%
40,00%
50,00%
60,00%
70,00%
80,00%
1ª audição 2ª audição
Primeiridade
Secundidade
Terceiridade
Gráfico 21 – Compilação dos dados do grupo na 1ª e 2ª audição, em barras.
Fonte: Dados mestrando.
69
c) Gráfico ilustrativo do comportamento do grupo – evolução da primeira para a
segunda audição
10,76%
20,14%
36,60%
70,71%
52,62%
9,14%
0,00%
10,00%
20,00%
30,00%
40,00%
50,00%
60,00%
70,00%
80,00%
1ª audição 2ª audição
Primeiridade
Secundidade
Terceiridade
Gráfico 22 – Compilação dos dados do grupo na 1ª e 2ª audição, em linhas.
Fonte: Dados mestrando.
70
DADOS COMENTADOS
Com a obtenção, a verificação e a contextualização dos dados
apresentados anteriormente na forma de gráficos, entendemos que o objetivo de
nossa pesquisa se cumpriu.
No primeiro conjunto de gráficos (gráficos 1 à 20), apresentados na forma
de pizza, podemos visualizar claramente a categorização (primeiridade, secundidade
e terceiridade) dos relatos ocorridos em relação à apreensão do fenômeno sonoro
na consciência dos ouvintes, no que tange à primeira audição (que antecedeu a
explicação acerca da obra musical) e à segunda audição (que foi realizada logo
após termos introduzido os ouvintes no contexto da obra musical).
Nestes gráficos, podemos visualizar nitidamente e de forma
individualizada como se comportou cada ouvinte em cada audição, os movimentos
das categorias peirceanas e as singularidades de cada momento.
O gráfico que segue (gráfico 21) demonstra, em barras, a compilação dos
dados do grupo – formado pelo total de ouvintes envolvidos na pesquisa – na 1ª e 2ª
audição. Detectamos que a intervenção explicativa acerca da obra musical
influenciou na forma como o grupo percebeu a música. Na segunda audição, os
relatos referentes às categorias peirceanas de primeiridade e secundidade
diminuíram praticamente pela metade, enquanto os relatos referentes à apreensão
em nível de terceiridade aumentaram cinco vezes, em relação à primeira audição.
Maior clareza podemos obter na visualização do último gráfico
demonstrado (gráfico 22) que traz, em linhas, o circuito percorrido por categoria (no
grupo de ouvintes), partindo dos registros da primeira audição até chegar nos
registros da segunda audição. Mais uma vez, evidenciamos o declínio dos índices
referentes à primeiridade e secundidade e a elevação do índice referente à
terceiridade.
Frente aos dados expostos e de acordo com a semiótica de Peirce,
podemos afirmar que por meio de uma intervenção cognitiva obtivemos um maior
número de ocorrências em nível de terceiridade, ou seja, a intervenção provocou o
acontecimento de um salto qualitativo na leitura dada à apreensão do fenômeno
sonoro-musical na consciência dos indivíduos nesta investigação.
71
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao observarmos os dados resultantes desta investigação científica com
base na abordagem teórica proposta no trabalho, verificamos, num primeiro
momento, a diversidade de significados que podem ser atribuídos para um estímulo
sonoro-musical, de acordo com Peirce, em nível de primeiridade, secundidade e
terceiridade. Constatamos que nesta primeira audição todos os ouvintes relataram
manifestações de secundidade, alguns relataram juntamente manifestações em nível
de primeiridade e poucos relataram, conjuntamente, manifestações em nível de
terceiridade.
Isto nos fez perceber que numa primeira audição da música, sem um
conhecimento prévio a respeito da obra, todos os membros do grupo tiveram no
processo de formação do significado alguma relação com elementos externos à
música. Houve emersão de algum sentimento/lembrança/associação do íntimo dos
ouvintes como conseqüência do conflito da música apresentada (presente/agora) em
relação aos conteúdos de suas memórias (passado/antes). Esse processo envolveu
a questão da opção de gostos e sentimentos emergentes da surpresa, geralmente
afetivos, desencadeados pelo encontro da música com a consciência. Aqui
aconteceu o que referimos no presente trabalho de formação de significados em
nível de secundidade.
Conforme demonstrado nos gráficos, considerável parte do grupo de
ouvintes em questão também manifestou experiências em nível de primeiridade.
Portanto, embora a formação do significado não tenha permanecido em nível de
primeiridade, constatamos que alguns voluntários tiveram uma passagem por este
nível de experiência durante a audição da música apresentada. Tal nível diz respeito
ao efeito que a música apresentou aos sentidos dos ouvintes ao excitá-los, sem
compromisso com qualquer objeto, sentimento ou significação. Foi como o “som pelo
som” percebido, ou seja, o sentir que se sucedeu antes do pensar, como
“experiência desprovida da significação que os símbolos dão.” (ZAMPRONHA, 1996,
p. 26).
Ainda de acordo com o constatado, outra pequena parte do grupo já
manifestou experiência em nível de terceiridade durante a primeira audição da
72
música. Trata-se da formação dos significados que dizem respeito às leis do sistema
musical apresentado, à forma de arranjo da música, mesmo que não na linguagem
propriamente técnica, à observação do desenvolvimento da melodia dos
instrumentos e principalmente, na presente pesquisa, à compreensão de traços da
mensagem intencionada pelo autor da obra no momento de sua composição.
Nenhum relato da primeira audição foi constituído em sua totalidade por experiência
em nível de terceiridade, pelo contrário, nos poucos relatos em que esta categoria
apareceu, ela se mostrou sucinta em trechos de falas.
Na seqüência, com a observação da segunda audição da obra musical
pelo grupo dos ouvintes – que aconteceu após o processo de mediação cognitiva
por meio de uma palestra ministrada pelo maestro Patrick A. Cavalheiro a respeito
da obra, da constituição da partitura e da vida do compositor – registramos um
expressivo salto (que aqui chamamos de salto qualitativo) nos relatos obtidos em
relação às experiências em nível de terceiridade. A marcação inicial apresentou um
percentual de 9,14 pontos relacionados à terceira categoria de Peirce (terceiridade),
após a mediação, a marcação ascendeu para 52,63 pontos.
Cumprimos aqui o outro objetivo de nossa pesquisa que consistiu em
mensurar a possibilidade de ocorrer um salto qualitativo (conforme Peirce, se atingir
a terceiridade) na leitura dos ouvintes/interpretantes submetidos à experiência
musical, dividida em dois momentos – antes e após – uma mediação cognitiva.
Conforme citamos na parte inicial deste trabalho, Jorge D’Urbano Ribas
(1957 apud Zampronha, 1996, p. 28) já afirmava que a apreciação musical, longe de
ser um presente da natureza, é um prêmio da inteligência musical. Portanto, esta
pesquisa também nos fez refletir sobre a importância da educação musical para o
desenvolvimento cultural de um povo, através da qual, visualizamos a diferenciação
da forma de experimentação musical que os indivíduos tiveram após passarem por
um processo “educativo”, se assim podemos dizer. O desconhecimento de conceitos
musicais e culturais talvez justifiquem, no Brasil, a questão da massificação da
música – muitas vezes limitada a estruturas rítmicas e harmônicas empobrecidas do
ponto de vista teórico.
Por outro lado, com base na presente pesquisa, podemos refletir sobre
que tipo de experiência musical é a ideal para uma sessão de musicoterapia, por
exemplo. Diante dos dados apresentados, entendemos não ser favorável que o
paciente tenha um direcionamento cognitivo para experienciar a música em nível de
73
terceiridade, uma vez que o processo musicoterapêutico busca considerar a música
como um canal de comunicação próprio de cada indivíduo conforme seu estado
interior, sua própria história e vivência.
Por fim, diante do todo aqui exposto, experienciado e pesquisado,
entendemos que o presente trabalho acadêmico vem contribuir com a comunidade
científica sobre estudos que relacionam a linguagem com a música, ou poderíamos
dizer, a linguagem musical, em especial aos estudos inerentes à semiótica da
música.
Posto isto, nenhum discurso melhor para concluirmos esta etapa de
estudos e pesquisa em ciências da linguagem, do que o do próprio Charles Sanders
Peirce, pensador, químico, filósofo, matemático ou, arriscaríamos dizer: possuidor de
nuances próprias de artista em sua forma de expressar.
A essência do que falo não é toda a alma do homem: é apenas seu âmago,
que carrega consigo toda a informação que constitui o desenvolvimento do
homem, seus ensinamentos totais, intenções, pensamentos. Quando eu,
isto é, meus pensamentos, entro em outro homem, não levo comigo
necessariamente todo meu ser, mas o que levo de fato é a semente da
parte que não estou levando – e se carrego a semente de toda minha
essência, carrego a de todo meu ser concreto e potencial. Posso escrever
sobre papel e, deste modo, nele imprimir uma parte de meu ser; essa parte
de meu ser pode envolver apenas aquilo que tenho em comum com todos
os homens e, neste caso, eu deveria ter levado comigo a alma da raça,
mas não minha alma individual para a palavra ali escrita. Assim, a alma de
todo homem é uma determinação especial da alma genérica da família, da
classe, da nação, da raça a que ele pertence [...] (PEIRCE, 2003, p. 310).
74
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2007.
SANTAELLA, L. O que é semiótica. 4 ed. São Paulo: Brasiliense, 1986.
SANTOS, J. F. dos. O que é pós-moderno. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1984.
SHAEFFER, P. Tratado dos objetos musicais: ensaio interdisciplinar. Traduzido
por Ivo Matinazzo. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1993.
SIBELIUS, J. Finlândia Opus 26. Gravação da Orquestra Filarmônica de Berlim
regida por Karajan, 1984.
SIMÕES, E. A. Q. Psicologia da percepção. v. 2. São Paulo: EPU, 1985.
WEBERN, A. Der Weg zur neuen Musik. Viena: Universal Edition, 1960.
76
WIKIPÉDIA, A enciclopédia livre. Percepção. Disponível em
<http://pt.wikipedia.org/wiki/percepçao>. Acesso em 14 de abril de 2007. Jean
Sibelius. Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Jean_Sibelius>. Acesso em 29
de abril de 2007.
WISNIK, José Miguel. O som e o sentido. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras,
1989.
ZAMPRONHA, Maria de Lourdes Sekeff. Curso e dis-curso do sistema musical
(tonal). São Paulo: Annablume, 1996.
77
ANEXOS
78
ANEXO A – ANÁLISE DA PARTITURA FINLÂNDIA OPUS 26
COMPOSITOR: JEAN SIBELIUS
com
p
. 1
79
com
p
. 24
com
p
. 30
80
81
com
p
. 74
82
com
p
. 94
83
com
p
. 95 com
p
. 99
84
com
p
. 116
85
com
p
. 125
86
com
p
. 132
87
com
p
. 156
88
com
p
. 179
89
com
p
. 201
90
5 últimos com
p
assos
91
APÊNDICES
92
APÊNDICE A
MODELO DA CARTA DE CESSÃO DOS OUVINTES
CARTA DE CESSÃO
Palhoça (SC), 14 de julho de 2007.
Os indivíduos abaixo assinados declaram para os devidos fins que cedem os
direitos de suas entrevistas, gravadas no(s) dia(s) 23 de junho de 2007 e/ou 07 de
julho de 2007 para que o Sr. Fabiano Zoldan possa usá-las integralmente ou em
partes, sem restrições de prazos e limites de citações, desde a presente data.
Dessa forma, autorizam o uso de terceiros para ouvi-las e usar citações,
ficando vinculado o controle à Universidade do Sul de Santa Catarina, que tem sua
guarda.
Abdicando de direitos seus e de seus descendentes, subscrevem a presente
carta de cessão.
Nome Assinatura
93
APÊNDICE B
MODELO DA CARTA DE CESSÃO DO MAESTRO
CARTA DE CESSÃO
Palhoça (SC), 14 de julho de 2007.
Eu, Patrick Almeida Cavalheiro, declaro para os devidos fins que concedo a
análise da Partitura Sibelius Opus 26 – a qual apresentei no seminário da disciplina
Laboratório de Análise Musical I, no Curso de Bacharelado em Música da
Universidade do Estado de Santa Catarina no primeiro semestre do ano de 2007 -
para que o Sr. Fabiano Zoldan possa usá-la integralmente ou em partes, sem
restrições de prazos e limites de citações, desde a presente data.
Dessa forma, autorizo para que terceiros possam usar em citações de
trabalhos acadêmicos.
Abdicando de meus direitos e de meus descendentes, subscrevo a presente
carta de cessão.
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