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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
SERGIO NERY
A DISCIPLINA NAS ORGANIZAÇÕES EMPRESARIAIS
- Um estudo à luz do pensamento de Michel Foucault -
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
São Paulo – 2008
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
SERGIO NERY
A DISCIPLINA NAS ORGANIZAÇÕES EMPRESARIAIS
- Um estudo à luz do pensamento de Michel Foucault -
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para a obtenção do título de
mestre em Filosofia, sob orientação da
Professora Doutora Salma Tannus
Muchail.
Dissertação de Mestrado
São Paulo – 2008
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AGRADECIMENTOS
Primeiramente, o incentivo e apoio de duas extraordinárias
professoras – e hoje estimadas amigas – que me motivaram a
transformar uma idéia em um trabalho de mestrado, Marisa Pereira
Eboli e Maristela Guimarães André.
Especial agradecimento a minha orientadora Professora Doutora
Salma Tannus Muchail, pela cuidadosa atenção, dedicação e valiosas
recomendações ao longo deste percurso.
Aos demais professores e, particularmente, ao Professor Doutor
Márcio Alves da Fonseca que muito contribuiu com seu conhecimento
e importantes sugestões.
Aos diletos amigos que direta e indiretamente contribuíram para a
realização deste trabalho, em especial, Susana Vasconcelos e
Guilherme Carneiro Longo.
Dedico este trabalho a meus
queridos pais, que infelizmente já se foram.
Acredito, porém, que, de onde estão, torcem por mim.
BANCA EXAMINADORA
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RESUMO
Nery, Sérgio. A DISCIPLINA NAS ORGANIZAÇÕES EMPRESARIAIS:
um estudo à luz do pensamento de Michel Foucault. São Paulo, 2008.
(Dissertação de Mestrado em Filosofia) Programa de Estudos Pós-
graduados em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
O presente trabalho procura abordar e estabelecer certa conexão entre as
investigações de Michel Foucault, sobre a questão do poder e suas relações
de força na sociedade disciplinar, e as práticas de gestão administrativas
utilizadas nas organizações empresariais. Com o intuito de melhor
compreendermos esta abordagem, focaremos o emprego da disciplina no
cotidiano dos trabalhadores, como dispositivo de controle e de vigilância. Ao
longo deste trabalho, utilizaremos também do pensamento de outros
autores, especialmente, de outras áreas e, em particular, da área da
Administração, para demonstrar que a disciplina nas organizações
empresariais é utilizada, por meio das hierarquias, para a maximização da
eficiência (e conseqüentemente da produção), para a otimização de tempo e
minimização de custos, além do controle social, mas, funcionando,
principalmente, como regulamentação das práticas punitivas.
Palavras-chave: controle, vigilância, organizações empresariais, poder
disciplinar, panoptismo.
ABSTRACT
Nery, Sérgio.THE DISCIPLINE IN BUSINESS ORGANIZATIONS: a
study under Michel Foucault’s thoughts. São Paulo, 2008. (Masters
Dissertation in Philosophy) Graduate Studies Program in Philosophy of
the Pontifícia Universidade Católica of São Paulo.
This work aims at approaching and establishing a certain connection
between Michel Foucault’s investigations on the issue of power and its force
relations on the disciplinary society and the administrative management
practices and behaviors used in business organizations. In order to better
understand this approach, we will focus on the employment of discipline on
the workers’ everyday life as a control and surveillance device. Along this
work, we will also use the thoughts of other authors, especially from other
areas and, specifically from Business Administration, to demonstrate that
discipline in business organizations is used by means of hierarchy to
maximize efficiency (and consequently production), to optimize time and
minimize costs, besides the social control, working mainly as a regulation of
punishing practices.
Keys Words: control, surveillance, business organizations, disciplinary
power, panoptism.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...........................................................................................................1
1. A SOCIEDADE DISCIPLINAR............................................................................6
1.1. Saber e poder na constituição da sociedade moderna ...............................6
1.2. Surgimento e características do poder disciplinar.....................................11
1.3. Os Dispositivos Disciplinares.....................................................................17
1.3.1. As funções disciplinares.....................................................................17
1.3.2. Os instrumentos disciplinares.............................................................21
1. 3. 3. O Panóptico e as instituições disciplinares.........................................24
2. AS ORGANIZAÇÕES EMPRESARIAIS...........................................................32
2.1. Das primeiras manufaturas às modernas empresas: uma visão geral
e introdutória.................................................................................................32
2. 2. Modelos administrativos das organizações empresariais:
breve reconstituição histórica......................................................................42
3. A DISCIPLINA COMO DISPOSITIVO DO PODER NAS
ORGANIZAÇÕES EMPRESARIAIS........................................................................57
3.1. As organizações e o poder ...........................................................................57
3.1. A disciplina nas atuais organizações empresariais.......................................64
3. 2. 1. Retomando Foucault............................................................................64
3. 2. 2. A disciplina e as novas tecnologias ....................................................67
3. 2. 3. A disciplina e auto-regulação..............................................................70
3. 2. 4. Algumas reflexões................................................................................73
4. DA SOCIEDADE DISCIPLINAR À SOCIEDADE DE CONTROLE..................75
BIBLIOGRAFIA........................................................................................................87
ANEXO – Notas sobre alguns autores citados........................................................91
1
INTRODUÇÃO
Estudar e querer conferir alguma sistematização à vasta obra
de Michel Foucault (1926-1984) é tarefa complexa, não só porque este
pensador francês dedicou-se à abordagem de temas múltiplos e
diversificados, mas também porque diversificado é o legado que ele nos
deixou, incluindo aulas, textos, lectures, entrevistas, livros etc. Para buscar
uma compreensão de seu pensamento, tem sido usual organizar sua obra
por categorias de assuntos, por fases ou por ênfases metodológicas. Desse
modo, vários estudiosos de Foucault agrupam seus escritos em torno de três
eixos temáticos, a partir da descrição que o próprio Foucault faz sobre ‘três
eixos de experiência’: o eixo da experiência da verdade (ou do saber), o eixo
da experiência do poder e o eixo da experiência do sujeito
1
.
Estes três eixos se entrecruzam, mas permitem também uma
demarcação dos escritos de Foucault do ponto de vista de suas ‘fases’.
Assim, o eixo da verdade foi preponderante nos anos 60, o do poder nos
anos 70, e o eixo do sujeito ético, nos anos 80. De modo correlato, também
encontramos uma forma de sistematização da obra do pensador francês,
distribuindo-a segundo três diferentes ênfases metodológicas, denominadas
arqueologia, genealogia e ética. Estes eixos, fases e ênfases metodológicas
da obra de Michel Foucault, são movimentos de segmentação e constructos
que se revelam na seqüência do amadurecimento intelectual que não
supõem uma ruptura propriamente, mas um continuum a partir de alguns
deslocamentos.
1
FOUCAULT M. Verité, pouvoir et soi. (entretien avec R. Martain, Université du Vermont, 25
de octobre 1982). In: Dits et écrits. 2001, vol. II, p. 1602; ORTEGA, F. Amizade e Estética
da Existência em Foucault. 1999, p. 36. ; MUCHAIL, S. T. Foucault, Simplesmente. 2004, p.
9-10.
2
O método arqueológico procura estabelecer a constituição dos
saberes, sejam eles científicos ou não, pois o que interessa é estabelecer as
condições de sua existência, e não de sua validade, considerando a verdade
uma produção histórica, buscando situar as chamadas ciências humanas na
inter-relação de saberes que se constituíram em nossa modernidade
(entendendo-se aqui os séculos XIX e XX). Os seguintes livros são produção
dessa metodologia arqueológica:
1961 História da Loucura na Idade Clássica;
1963 O Nascimento da Clínica: uma arqueologia da
percepção médica;
1966 As Palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciências
humanas;
1969 A Arqueologia do Saber.
A genealogia utilizada por Foucault (2002) como um
instrumento metodológico é um conjunto de pesquisas que busca “o
acoplamento dos conhecimentos eruditos e das memórias locais,
acoplamento que permite a constituição de um saber histórico das lutas e a
utilização desse saber nas táticas atuais.”
2
É com o método genealógico que
Foucault vai questionar “a instituição e os efeitos de saber e de poder do
discurso científico,”
3
pois, para ele “o que está em jogo é determinar quais
são, em seus mecanismos, em seus efeitos, em suas relações,
esses diferentes dispositivos de poder que se exercem, em níveis diferentes
da sociedade, em campos e com extensões tão variadas”.
4
Os seguintes
livros formam a produção da metodologia genealógica:
1970 A Ordem do Discurso;
1975 Vigiar e Punir: nascimento das prisões;
2
FOUCAULT, M. Em Defesa da Sociedade. 2002, p. 13. Il Faut Défendre la Société. Cours
au College de France,1997, p. 9.
3
Idem, ibid, p. 19; Idem, ibid, p. 13.
4
FOUCAULT, M. Em Defesa da Sociedade. 2002, p. 19. Il Faut Défendre la Société.
Cours au College de France,1997, p. 13.
3
1976 História da Sexualidade – vol. 1 – A vontade de saber.
No final de sua vida, a questão que Foucault problematiza é,
prioritariamente, aquela que diz respeito à ética ou à conduta individual e à
relação com o outro. Mais precisamente em seus livros O uso dos prazeres
– vol. 2, e O cuidado de si, - vol. 3, da série História da Sexualidade (1984),
aparecerá a preocupação com o indivíduo, enquanto sujeito ético e ‘sujeito
do desejo’.
As três questões problematizadas por Foucault– verdade,
poder e ética – não se excluem, mas se complementam. Quanto à relação
poder – saber, “temos antes que admitir que o poder produz saber (e não
simplesmente favorecendo-o porque o serve ou aplicando-o porque é útil);
que poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação de
poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não
suponha e não constitua, ao mesmo tempo, relações de poder.”
5
É principalmente no livro Vigiar e Punir: nascimento das prisões
(1975), que Foucault problematiza a questão do poder e de seus
dispositivos, assunto deste trabalho, que versa sobre a disciplina utilizada
na sociedade moderna para o controle da atividade e da composição das
forças, para a maximização da eficiência (e conseqüentemente da
produção), para a minimização de tempo e de custos, além do controle
social como regulamentação das práticas punitivas, analisados na direção
de a compreendermos de modo particular no interior das organizações
empresariais.
No capítulo 1, trataremos, de modo geral e sintético, as
correlações entre saber e poder que constituem a sociedade disciplinar. A
disciplina e o rigor de sua aplicação, como um dos modos de se manifestar o
saber, na forma do controle instrumental, serão aqui investigados, buscando-
5
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir, 2003, p. 27. Surveiller et punir. 2006, p. 36.
4
se compreender como Foucault (1975) analisou o poder na sociedade
disciplinar e suas relações de força.
No capítulo 2, veremos as transformações ocorridas no mundo
do trabalho, traçando um trajeto, desde as manufaturas até as modernas
empresas, por meio dos modelos de administração das organizações
empresariais.
Com o intuito de estabelecer uma certa conexão entre as
investigações de Foucault, no seu eixo do poder, e as práticas de gestão
administrativas, focaremos o emprego da disciplina como dispositivo de
controle e de vigilância sobre os empregados das organizações
empresariais, usando, ao longo da dissertação, o recurso a outros
autores, especialmente de outras áreas e, em particular, da área da
administração. Este é o objetivo do capítulo 3.
Como considerações finais, faremos um paralelo entre a
sociedade disciplinar e a sociedade de controle, com o objetivo de tentarmos
entender como funcionam as novas formas de vigilância e controle em nossa
sociedade atual.
Convém acrescentar que, após Foucault, mas a partir de seus
postulados, podemos compreender novas transformações acarretadas pela
Tecnologia de Informação. O uso de computadores pelos funcionários, o
acesso à Internet e as contas de e-mail geraram a necessidade de novas
formas de controle e vigilância, tais como o monitoramento das
correspondências eletrônicas e o bloqueio ao acesso da Internet, entre
outras coisas. O avanço tecnológico, particularmente no que se refere aos
aparelhos de captação de voz ou imagem (câmeras, gravadores e outros
tipos de sensores) e da informática, potencializou formas de vigilância, com
a particularidade de permitir que ela se faça, quase sempre, sem a
autorização e, muitas vezes, sem o conhecimento por parte do indivíduo
observado.
5
Pensamos que diante dessas variáveis que o poder disciplinar
dispõe, muitas questões poderão aqui ser levantadas, com o intuito de
entendermos as relações de poder através das práticas disciplinares nas
organizações empresariais. Conhecer estas disciplinas e seus dispositivos
talvez nos permitirá também compreender por que tantos trabalhadores se
submetem as normas disciplinares. Seria a força do poder e o olhar vigilante
expresso através das hierarquias capazes de provocar por si só, o
comportamento dócil e útil do trabalhador ou haverá então uma razão de
ordem econômica, política ou social por trás desse comportamento
disciplinado?
6
1. A SOCIEDADE DISCIPLINAR
1.1. Saber e poder na constituição da sociedade moderna
“O modo de ser do homem, tal como se constituiu no
pensamento moderno, permite-lhe desempenhar dois
papéis: está, ao mesmo tempo, no fundamento de
todas as positividades, e presente, de uma forma que
não se pode dizer sequer privilegiada, no elemento
das coisas empíricas. Esse fato – e não se trata aí da
essência em geral do homem, mas pura e
simplesmente desse a priori histórico que, desde o
século XIX, serve de solo quase evidente ao nosso
pensamento – esse fato é, sem dúvida, decisivo para o
estatuto a ser dado às “ciências humanas”, a esse
corpo de conhecimentos (...), a esse conjunto de
discursos que toma por objeto o homem no que ele
tem de empírico”.
6
É assim que Foucault inicia o capítulo intitulado “As Ciências
Humanas”, em As Palavras e as Coisas, de 1966. Neste livro, Foucault
percorre o caminho histórico de formações discursivas que constituíram
saberes reconhecidos como verdadeiros, a partir do Renascimento (século
XVI), na Idade Clássica (séc. XVII e XVIII), até a Modernidade (séc. XIX e
6
FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 2002,
p. 475 ; Les mots et les choses. Une archéologie des sciences humaines. 2004, p. 355.
7
XX). Este caminho conduz à compreensão da constituição dos saberes
sobre o homem – isto é, as ciências humanas – em nossa Modernidade.
É a partir do século XIX que uma mudança radical na ordem do
saber, resultando numa “redistribuição geral da epistémê,”
7
torna possível
o surgimento do homem como objeto empírico de conhecimento, abrindo,
assim, a possibilidade para a constituição das ciências humanas, pois
“... elas não apareceram quando, sob o efeito de
algum racionalismo premente, de algum problema
científico não resolvido, de algum interesse prático,
decidiu-se fazer passar o homem (...) para o campo
dos objetos científicos (...), elas apareceram no dia em
que o homem se constituiu na cultura ocidental, ao
mesmo tempo como o que é necessário pensar e o
que se deve saber.”
8
A partir do espaço tornado possível pelas ciências
empíricas da modernidade, que são a biologia, a economia, a filologia, as
ciências humanas puderam surgir enquanto representação do homem, como
um ser que vive, trabalha e fala, e que se torna, então, ao mesmo tempo,
objeto e sujeito do conhecimento. Assim escreve Foucault:
“as ciências humanas, com efeito, endereçam-se ao
homem, na medida em que ele vive, em que fala, em
que produz. É como ser vivo que ele cresce, que tem
funções e necessidades, que vê abrir-se um espaço
cujas coordenadas móveis ele articula em si mesmo,
de um modo geral, sua existência corporal fá-lo
entrecruzar-se, de parte a parte, com o ser vivo,
produzindo objetos e utensílios, trocando aquilo de
que tem necessidade, organizando toda uma rede de
circulação ao longo do qual perpassa o que ele pode
consumir e em que ele próprio se acha definido como
elemento de troca, aparece ele em sua existência
7
FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 2002,
p. 477 ; Les mots et les choses. Une archéologie des sciences humaines. 2004, p. 356.
8
Idem, ibid, p. 476.; idem, ibid, p. 356.
8
imediatamente imbricado com os outros; enfim,
porque tem uma linguagem, pode constituir para si
um universo simbólico, em cujo interior se relaciona
com seu passado, com coisas, com outrem, a partir do
qual, pode imediatamente construir alguma coisa com
um saber (particularmente esse saber que tem de si
mesmo e do qual as ciências humanas desenham uma
das formas possíveis).”
9
Ora, se do ponto de vista do saber, o sujeito moderno é
tornado objeto para o conhecimento das ciências humanas, do ponto de
vista do poder ele é também objetivado pelo poder disciplinar que
caracteriza a sociedade moderna. Os saberes das ciências humanas são
“normalizadores” e têm como correlato o poder disciplinar. O sujeito
moderno precisa ser normalizado para ser produtivo. Seu corpo precisa ser
disciplinado para que seja dócil e suas ações úteis.
A relação poder – saber está, desta forma, articulada: é o
“poder de extrair dos indivíduos um saber, e de extrair um saber sobre esses
indivíduos submetidos ao olhar e já controlados.”
10
Para Foucault, as
relações entre poder e saber estão intimamente conectadas: “não há relação
de poder sem constituição de um campo de saber, como também,
reciprocamente, todo saber constitui novas relações de poder.”
11
Segundo Foucault, o poder não existe. O que existe são
práticas ou relações de poder. Em nossa sociedade, as relações de poder
estão em todos os lugares. O poder disciplinar, característico da sociedade
moderna,
12
está microfisicamente difundido em diversas formas, por meio de
uma rede de relações de forças que atuam em toda parte: de baixo para
cima, de cima para baixo, de fora para dentro, de dentro para fora; enfim, o
9
FOUCAULT, M. As Palavras e as Coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 2002,
p. 477 ; Les mots et les choses. Une archéologie des sciences humaines. 2004, p. 485-
486.; idem, ibid, p. 362.
10
______________. A Verdade e as Formas Jurídicas. 2003, p. 121.
11
MACHADO, R. “Por uma genealogia do poder”. In: FOUCAULT, M. Microfísica do Poder.
2001, p. XXI.
12
Refere-se ao período histórico da Modernidade (séculos XIX e XX) cujas origens estão
ligadas aos adventos da Revolução Industrial, e do Iluminismo.
9
poder ramifica-se impregnando todas as relações sociais. Para o autor, “o
poder está em toda parte; não porque englobe tudo e sim porque provém de
todos os lugares. E ‘o’ poder, no que tem de permanente, de repetitivo, de
inerte, de auto-reprodutor, é apenas efeito de conjunto, esboçado a partir
de todas as mobilidades, encadeamento que se apóia em cada uma delas
e, em troca, procura fixá-las. Sem dúvida, deve ser nominalista: o poder
não é uma instituição e nem uma estrutura, não é uma certa potência de que
alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação estratégica complexa
numa sociedade determinada.
13
Para Foucault, não existe somente o aspecto ‘negativo’ do
poder, que reprime, que exclui, que censura, mas, principalmente, um
aspecto ‘positivo’ do poder, que é produtivo, o que quer dizer que ele possui
uma potencialidade criadora. “O poder possui uma eficácia produtiva, uma
riqueza estratégica, uma positividade. E é justamente esse aspecto que
explica o fato de que tem como alvo o corpo humano, não para supliciá-lo,
mutilá-lo, mas para aprimorá-lo, adestrá-lo.”
14
Segundo Machado, uma das principais teses da genealogia de
Foucault é a de que “o poder é produtor de individualidade”.
15
A disciplina,
como mecanismo de poder, é uma técnica de individualização. “A disciplina
‘fabrica’ indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os
indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu
exercício.”
16
A partir de sua ação sobre o corpo, ela regula, adestra, controla
e normaliza o indivíduo, separando, avaliando, comparando e
hierarquizando-o.
O poder disciplinar é, portanto, produtor do indivíduo moderno
que, por sua vez, é produto das relações de saber e de poder.
13
FOUCAULT, M. História da Sexualidade: a vontade de saber. 2003, p. 89; Histoire de la
Sexualité I. La Volonté de Savoir. 1976, p. 122-123.
14
MACHADO, R. “Por uma Genealogia do Poder.” In: FOUCAULT, M. Microfísica do
Poder. 2001, p. XVI.
15
Idem, ibid. p. XIX.
16
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. 2003, p. 143. Surveiller et punir. 2006, p. 200.
10
“As relações de forças que agiriam por meio de
mecanismos estratégicos sutis, culminando com a
produção de um tipo específico de indivíduo, referem-
se a um poder característico de uma época e de uma
sociedade: a sociedade ocidental. Esse novo tipo de
poder aparece vinculado à sociedade burguesa, a
partir do século XIX, como um instrumento da
constituição do capitalismo industrial e do tipo de
sociedade que lhe correspondia. Foucault o denomina
poder disciplinar e o coloca como produtor das
sociedades modernas.
17
No próximo item, veremos o contexto histórico em que se deu o
surgimento da sociedade disciplinar.
17
FONSECA, M. A. Michel Foucault e a Constituição do Sujeito. 2003, p. 37.
11
1.2. Surgimento e características do poder disciplinar
Foucault começou a formular a questão do poder, ao dar
prosseguimento a uma pesquisa sobre a história da penalidade. Foi então
que se deparou com um tipo específico de poder que incidia sobre os corpos
dos enclausurados, por meio de uma tecnologia que não era exclusiva das
prisões, mas que se encontrava, também, em outras instituições. Foi
esse tipo de tecnologia que Foucault chamou de disciplina ou poder
disciplinar:
18
“Trata-se de uma forma de poder, de um tipo de
sociedade que classifico de sociedade disciplinar por
oposição às sociedades propriamente penais que
conhecíamos anteriormente. É a idade de controle
social.”
19
Historicamente, as disciplinas existiam há muito tempo, na
Idade Média e mesmo na Antiguidade, mas existiam em estado isolado,
fragmentado, como no caso dos mosteiros, da legião romana ou da
escravidão.
20
Somente no século XVIII, quando o poder disciplinar foi
aperfeiçoado como uma nova técnica de gestão dos homens, é que
18
cf. MACHADO, R. “Por uma genealogia do poder.” In: FOUCAULT, M. Microfísica do
Poder. 2001, p. XVII.
19
FOUCAULT, M. A Verdade e as Formas Jurídicas. 2003, p. 86.
20
__________. “O Nascimento do Hospital.” In: Microfísica do Poder. 2001, p. 105.
12
registramos o seu surgimento, de modo, por assim dizer, sistematizado e
concentrado.
As técnicas disciplinares surgiram, a princípio, em instituições
como os conventos, as escolas, os hospitais, as grandes oficinas e,
posteriormente, nos exércitos e nas prisões, mas
“... a ‘disciplina’ não pode se identificar com uma
instituição nem com um aparelho; ela é um tipo de
poder, uma modalidade para exercê-lo, que comporta
todo um conjunto de instrumentos, de técnicas, de
procedimentos, de níveis de aplicação, de alvos; ela é
uma ‘física’ ou uma ‘anatomia’ do poder, uma
tecnologia”.
21
Originariamente, cabia às disciplinas fixar populações, resolver
confusões e neutralizar resistências, regulamentar os movimentos e as
aglutinações, com o propósito de aumentar a utilidade dos indivíduos. Nos
quartéis, a utilização da disciplina serviu não só para evitar a desobediência
das tropas como também para formar a base dos exércitos, preparando
soldados hábeis, ágeis e resistentes para o combate. Nas oficinas, a
disciplina, além de servir de regulamento que incitava o respeito à
autoridade e impedia roubos, servia como meio de incremento de
desempenho, rendimentos e, portanto, dos lucros. Nas escolas, o objetivo
era não só formar crianças obedientes, fortes e capazes de se tornar mão de
obra no futuro, mas também vigiar os pais e se informar sobre seu modo de
vida, seus recursos e seus costumes. Também os hospitais não só acolhiam
e cuidavam dos enfermos como se informavam sobre os moradores para um
controle sanitário. Estas diversas instituições da sociedade moderna – a
prisão, o quartel, a oficina, a fábrica, a escola, os hospitais, etc. – sofrem
transformações, mas mantêm características que permitem denominá-las de
“instituições disciplinares.” Dessa forma, as disciplinas com seus dispositivos
vão, cada vez, mais moralizando condutas, modelando comportamentos,
21
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. 2003, p. 177. Surveiller et punir. 2006, p. 251.
13
exercitando e controlando os corpos para se tornarem cada vez mais dóceis
e úteis.
Como escreveu Foucault: “a primeira das grandes operações
da disciplina é, então, a constituição de ‘quadros vivos’ que transformam as
multidões confusas, inúteis ou perigosas em multiplicidades organizadas”
22
.
As disciplinas, “são técnicas para assegurar a ordenação das multiplicidades
humanas”.
23
E é por meio de três critérios que essa tática se materializa:
diminuindo o custo do exercício do poder, maximizando seus efeitos e,
finalmente, estabelecendo uma relação de poder e produção.
Essa tecnologia ou ‘dispositivo’ disciplinar opera pelo detalhe,
pelo controle das minúcias, esquadrinhando o corpo, submetendo-o a
exercícios e atividades para que o corpo tornado dócil possa ser utilizado,
transformado e aperfeiçoado, para que dele, então, se extraia, com a
máxima eficácia, o resultado pretendido.
“Esses métodos que permitem o controle minucioso
das operações do corpo, que realizam a sujeição
constante de suas forças e lhes impõem uma relação
de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as
‘disciplinas’. Muitos processos disciplinares existiam
há muito tempo: nos conventos, nos exércitos, nas
oficinas também. Mas as disciplinas se tornaram no
decorrer dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais de
dominação”.
24
Segundo Foucault,
“o momento histórico das disciplinas é o momento em
que nasce uma arte do corpo humano, que visa não
unicamente ao aumento de suas habilidades, nem
tampouco aprofundar sua sujeição, mas à formação
de uma relação que no mesmo mecanismo o torna
22
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. 2003, p. 126-127. Surveiller et punir. 2006, p. 174.
23
Idem, ibid, p. 179. ; idem, ibid, p. 254.
24
Idem, ibid, p. 118. ; idem, ibid, p. 161.
14
tanto mais obediente quanto é mais útil, e
inversamente”.
25
A disciplina surge, então, para conhecer, dominar,
utilizar o corpo, tornando-o útil e dócil. Foucault, ao desenvolver a noção de
‘corpo dócil’, assim o define: “é dócil um corpo que pode ser submetido, que
pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado”.
26
E
continua ele:
“a disciplina fabrica assim corpos submissos e
exercitados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as
forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e
diminui essas mesmas forças (em termos políticos de
obediência)”
27
Portanto, por meio do trabalho com o corpo, treinando-o,
modelando-o e exercitando-o, é que se consegue multiplicar suas forças
para serem usadas no aumento da produção. A disciplina incide um controle
sobre o corpo e obtém a força de seu trabalho porque o tem preso a um
sistema de sujeição. Assim,
“este investimento político do corpo está ligado,
segundo relações complexas e recíprocas, à sua
utilização econômica; é numa boa proporção como
força de produção que o corpo é investido por relações
de poder e de dominação; mas em compensação sua
constituição como força de trabalho só é possível se
ele está preso num sistema de sujeição”.
28
Dessa forma, vemos que o poder disciplinar vem, ao mesmo
tempo, tornar os homens politicamente dóceis e economicamente úteis, e,
25
Idem, ibid, p. 119. ; idem, ibid, p. 162.
26
Idem, ibid, p. 118. ; idem, ibid, p. 160.
27
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. 2003, p. 119. Surveiller et punir. 2006, p. 162.
28
Idem, ibid, p. 25-26.; idem, ibid, p. 34.
15
“portanto, aumentar a utilidade econômica e diminuir os inconvenientes, os
perigos políticos; aumentar a força econômica e diminuir a força política.”
29
É devido a esta ambigüidade político-econômica do poder
disciplinar que Foucault traça um paralelo entre os processos de
acumulação do capital, próprios do capitalismo e o processo de acumulação
de indivíduos. Um não poderia ter se estabelecido sem o outro. Ou seja, a
acumulação de bens não poderia ter surgido sem a produção dos indivíduos
e estes, por sua vez, não se aglutinariam e se manteriam sem que houvesse
um aparelho de produção. E como resumiu Fonseca, “chega-se, assim, à
constatação de um apelo mútuo entre o crescimento de uma economia
capitalista e um mecanismo de poder disciplinar.”
30
Durante a Idade Clássica, a soberania era o regime em que o
rei exercia o direito de morte e o poder sobre a vida. No final da Idade
Clássica, esse regime deu lugar a outro regime de poder que gerenciava a
vida de modo a valorizá-la e multiplicá-la, ao mesmo tempo em que exerce
um controle sobre ela. Esse poder sobre a vida surgiu concretamente a partir
do final do século XVII, e se desenvolveu de dois modos: o primeiro, foi o
controle sobre o corpo, por meio de técnicas disciplinares, com o intuito de
utilizar suas forças para a produção econômica; o segundo, que se
desenvolveu mais tarde, em meados do século XVIII, foi o do controle da
população, por meio de processos biológicos e reguladores da bio-política.
31
Uma tecnologia de poder que não exclui a primeira,
que não exclui a técnica disciplinar, mas que a
embute, que a integra, que a modifica parcialmente e
que, sobretudo, vai utilizá-la implantando-se de certo
modo nela, e incrustando-se efetivamente graças a
essa técnica disciplinar prévia. Essa nova técnica não
suprime a técnica disciplinar simplesmente porque é
29
MACHADO, R. “Por uma genealogia do poder. In: FOUCAULT, M. Microfísica do Poder.
2001, p. XVI.
30
FONSECA, M. A. Michel Foucault e a Constituição do Sujeito. 2003, p. 50.
31
FOUCAULT, M. História da Sexualidade vol. 1 – A Vontade de Saber. 2003. Histoire de la
Sexualité I. La Volonté de Savoir. 1976.
16
de outro nível, está noutra escala, tem outra superfície
de suporte e é auxiliada por instrumentos totalmente
diferentes”
32
A biopolítica lida com a população e vai tratar, sobretudo, de
diminuir a mortalidade, aumentar a estimativa de vida, estimular a
natalidade, controlar as doenças e epidemias, por meio de previsões,
estatísticas e medições globais.
Assim, a vida das pessoas passa a ser um bem precioso que
deve ser preservado e potencializado com o objetivo de se obter resultados
sociais, econômicos e políticos. Esse tipo de poder – disciplinar e
controlador – vai se tornando, cada vez menos, o espaço da lei e cada vez
mais o da norma, pois “uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de
uma tecnologia de poder centrada na vida.”
33
Para Foucault, “a sociedade de normalização é uma sociedade
em que se cruzam, conforme uma articulação ortogonal, a norma da
disciplina e a norma da regulamentação.”
34
No âmbito do presente estudo, focalizaremos, especialmente,
as disciplinas e não propriamente, ainda, a biopolítica. Assim,
descreveremos, a seguir, as funções e os instrumentos do dispositivo
disciplinar, que entre outras coisas, tem a capacidade de reduzir a multidão
caótica a uma unidade homogênea.
32
_____________. Em Defesa da Sociedade. Cursos no Collège de France (1975-1976).
2002, p. 288-289.
33
FOUCAULT, M. História da Sexualidade – Vol. 1 – A vontade de saber. 2003, p. 135.
Histoire de la Sexualité I. La Volonté de Savoir. 1976, p. 190.
34
_____________. Em Defesa da Sociedade. Cursos no Collège de France (1975-1976).
2002, p. 302.
17
1.3. Os Dispositivos Disciplinares
1.3.1. As funções disciplinares
A disciplina utiliza um sistema de aperfeiçoamento gradual e
contínuo das capacidades dos indivíduos, por meio de diversas técnicas que
têm funções específicas.
A primeira função é a distribuição dos indivíduos em um
espaço pré-determinado. “A disciplina é, antes de tudo, a análise do espaço.
É a individualização pelo espaço, a inserção dos corpos em um espaço
individualizado, classificatório, combinatório.”
35
A distribuição dos indivíduos no espaço deve seguir o princípio
do quadriculamento, ou seja, “cada indivíduo no seu lugar; e em cada lugar,
um indivíduo”,
36
para que seja possível uma perfeita vigilância e o controle
total das atividades.
Mas além de possibilitar a vigilância e o controle, é preciso que
o espaço seja útil, permitindo uma ocupação racional. Para isso, esta
distribuição precisa ser também serial, isto é, colocar os indivíduos em uma
série, separá-los em fila. Esta disposição vai permitir que os indivíduos
possam realizar um trabalho simultâneo. Desse modo, a disciplina organiza
um espaço analítico, celular e serial.
35
FOUCAULT, M. “O Nascimento do Hospital.” In: Microfísica do Poder. 2001, p. 106.
36
______________ Vigiar e Punir. 2003, p. 123. Surveiller et punir. 2006, p. 168.
18
Em Vigiar e Punir, Foucault mostra como esta distribuição
espacial se deu em várias instituições como os quartéis, os conventos, as
escolas e as fábricas. No caso das fábricas o autor conta que, a princípio,
elas eram fechadas como uma fortaleza “porque à medida que se
concentram as forças de produção, o importante é tirar delas o máximo de
vantagens e neutralizar seus inconvenientes (roubos, interrupção do
trabalho, agitações); de proteger os materiais e ferramentas e de dominar as
forças de trabalho.”
37
A segunda função disciplinar está relacionada ao controle das
atividades, que, por sua vez, está relacionado ao tempo, vinculado ao corpo
e ao objeto de sua atividade. A disciplina determina uma submissão do
corpo ao tempo, com o intuito de garantir a qualidade do tempo empregado
para produzir com maior rapidez e maior eficácia possível sem distração
nem desperdício. Nesse sentido, a exatidão e a aplicação são, com a
regularidade, as virtudes fundamentais do tempo disciplinar.
Para assegurar o desempenho dessa função, é preciso que
haja uma elaboração temporal do ato que, por meio da previsão, irá
determinar o período de tempo para que ele ocorra. Esta elaboração do ato
no tempo deverá permitir, também, uma perfeita correlação do corpo com o
gesto. Isto significa que não basta ensinar ou impor um gesto, mas que é
necessária uma relação precisa entre os dois para facilitar o controle e
aumentar a eficiência do ato. Dessa forma, a relação que o corpo deve
manter com o objeto que manipula deve ser semelhante a uma engrenagem
em que cada gesto, cada movimento, deve ser sincronizado de tal forma
que, para cada ação sobre o objeto, exista um gesto capacitado a realizá-la.
Podemos ver aqui que a disciplina exerce um controle, não só sobre o
resultado da ação, mas sobre todo o seu desenvolvimento.
A terceira função disciplinar é, como denominou Foucault, a
organização das gêneses ou, em outras palavras, a capitalização do tempo.
37
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. 2003, p. 122. Surveiller et punir. 2006, p. 167.
19
Trata-se de um processo para articular, de modo útil e rentável, as
elaborações de cada ato no tempo disciplinar, colocando as atividades em
séries sucessivas.
Este processo de colocar as atividades em séries sucessivas
tem quatro estágios, obtidos, como exemplo, das organizações militares: o
primeiro é a divisão da duração do exercício em séries sucessivas ou
paralelas, isto é, decompondo-o em seqüências separadas; o segundo é a
organização destas seqüências de exercício, de acordo com uma lógica que
vai do mais simples ao mais complexo; o terceiro é a realização de uma
prova para verificar o aproveitamento do aprendizado, após se completar a
série; e, por último, a prescrição de exercícios estabelecidos por séries, de
em concordância com o nível, idade, função e capacidade de cada um.
Vemos hoje todos esses estágios nos processos de aprendizagem nas
escolas, nos treinamentos dos atletas, dos operários e de funcionários das
organizações empresariais.
E em relação às três funções até agora relacionadas, Foucault
apresenta a seguinte equação: o exercício está para a seriação do tempo,
assim como o enquadramento está para a distribuição espacial dos
indivíduos, e a manobra para o controle das atividades, definindo o exercício
como “a técnica pela qual se impõe aos corpos tarefas ao mesmo tempo
repetitivas e diferentes, mas sempre graduadas”.
38
Estes procedimentos disciplinares utilizados desde o século
XVIII se tornaram patentes nas sociedades atuais, e representam formas
correlatas de poder, ou como escreveu Foucault, “uma nova maneira de
gerir o tempo e torná-lo útil, por recorte segmentar, por seriação, por síntese
e totalização”.
39
A quarta e última função disciplinar é a composição das forças.
A disciplina também é a arte de compor forças para se obter um aparelho
38
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. 2003, p. 136. ; Surveiller et punir. 2006, p. 189.
39
Idem, ibid, p. 136.; idem, ibid, p. 188.
20
eficiente. Portanto é preciso “constituir uma força produtiva cujo efeito deve
ser superior à soma das forças elementares que a compõem”.
40
Para isso, é preciso que cada indivíduo se articule com o
conjunto do qual faz parte de modo diferenciado e combinado no tempo e no
espaço. Cada indivíduo vai se constituir como uma peça de uma máquina
‘multisegmentar’ que, para ter seu funcionamento otimizado, com a máxima
eficiência, precisa da articulação perfeita de uma peça com as outras e de
todas as peças com a máquina. Dessa forma, é possível obter resultados
das forças de cada indivíduo isolado, assim como do total das forças de
todos os indivíduos juntos, pois o resultado de cada um reflete sobre todos
e, portanto, a insuficiência de uma parte compromete todo o sistema.
Finalmente, para que essa combinação das forças possa
funcionar de ótima maneira, faz-se necessário um sistema de comando claro
e preciso e que não deixe dúvidas. A ordem não tem que ser explicada, nem
mesmo formulada; é necessário e suficiente que provoque o comportamento
desejado.
Em suma, a disciplina produz, a partir do controle dos corpos,
quatro tipos de individualidades ou uma individualidade dotada de quatro
características: celular, pelo recorte e distribuição no espaço; orgânica, pela
economia e controle das atividades; genética, pela combinação do tempo; e
combinatória, pela composição das forças.
“E, para tanto, utiliza quatro grandes técnicas: constrói
quadros; prescreve manobras; impõe exercícios;
enfim, para realizar a combinação das forças, organiza
‘táticas’. A tática, arte de construir, com os corpos
localizados, atividades codificadas e as aptidões
formadas, aparelhos em que o produto das diferentes
forças se encontra majorado por sua combinação
calculada, é sem dúvida, a forma mais elevada da
prática disciplinar”.
41
40
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. 2003, p. 138. Surveiller et punir. 2006, p. 192.
41
Idem, ibid, p. 141.; idem, ibid, p.196.
21
1.3.2. Os instrumentos disciplinares
O poder é sistêmico e estrutural, sustentado não só por
relações de forças discursivas, mas por instrumentos normalizadores do
comportamento. Para que o poder disciplinar possa funcionar
adequadamente é necessária a utilização de algumas técnicas ou
instrumentos, descritos por Foucault. São eles: a ‘vigilância hierárquica’, a
‘sanção normalizadora’ e o ‘exame’.
42
Como a disciplina incide, não somente sobre a ação do
indivíduo, mas, principalmente, sobre o desenvolvimento dessa ação, é
preciso lançar mão de uma técnica que torne possível o exercício de seu
poder. A vigilância é um instrumento que permite uma observação constante
dos indivíduos e de suas ações.
A distribuição espacial dos indivíduos nas escolas, nos
hospitais, nas fábricas, permite que se exerça uma vigilância individual e
global sobre suas ações. No caso das fábricas, à medida que cresce o
aparelho de produção e aumenta o número de operários, vai se tornando
necessária uma vigilância cada vez mais especializada. Aparece, então, o
pessoal de controle, como os vigias, supervisores, inspetores, etc.
No decorrer dos séculos XVIII e XIX, são desenvolvidos novos
modelos arquitetônicos para as construções cujo objetivo é agora não mais
um controle do espaço externo, mas sim do espaço interno, tornando
visíveis os indivíduos ali distribuídos, seja nos quartéis, nos hospitais, nas
escolas, nas fábricas ou nas prisões.
42
Expressões utilizadas por Foucault em Vigiar e Punir. 2003, no capítulo “Disciplina”, p.
117-187.
FOUCAULT, M. Surveiller et punir. 2006, Chapitre III “Discipline”, p. 159-264.
22
O modelo arquitetônico do Panóptico, cujo funcionamento será
descrito, em detalhes, mais adiante, possuía um sistema ótico que permitia
ver sem ser visto – efeito importante, capaz de induzir no ‘vigiado’ um estado
consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento
automático do poder.
A vigilância é, desse modo, o instrumento da disciplina que
possibilita não tornar necessário o uso da força e da violência para o
exercício do poder, pois o indivíduo, tendo consciência de que é vigiado,
torna-se ele mesmo um vigia de sua sujeição.
Outro instrumento do dispositivo disciplinar é a sanção que
Foucault qualifica de ‘normalizadora’, entendida como um conjunto de
procedimentos punitivos ou ‘infrapenalidades’, que tem por função coibir
pequenos comportamentos e atitudes que estão fora do controle dos
grandes sistemas de punição.
A ‘sanção normalizadora’ opera por meio de uma
micropenalidade do tempo, das atividades, dos discursos, do modo de ser,
do corpo e da sexualidade. Frações ínfimas da conduta podem ser
penalizadas por meio de castigos, de privações, de humilhações, etc.
Essas pequenas formas de punição são usadas com o objetivo
de corrigir as falhas e as inobservâncias, ou seja, tudo que se afasta da
regra, da norma. O castigo disciplinar tem um caráter essencialmente
corretivo, isto é, ao mesmo tempo em que serve como castigo tem a função
de exercitar a prática correta da norma. Assim ‘castigar é exercitar’.
Dessa forma, a sanção para o dispositivo disciplinar tem
característica dupla: recompensa e reprimenda. É essa característica que vai
propiciar a adequação de comportamentos desviantes. Na escola, o
professor pode recompensar com uma boa nota o aluno pelo seu
desempenho ou pode repreendê-lo com uma nota baixa. O chefe, na
empresa, pode promover um funcionário pelo seu bom desempenho ou
23
rebaixá-lo e, até mesmo, demiti-lo pelo mau desempenho ou mau
comportamento.
A disciplina tem um sistema próprio de classificação que vale
como recompensa e punição. Por meio da ‘sanção normalizadora’, ela
relaciona os atos e comportamentos comparando e classificando-os de
acordo com a norma. A normalização, portanto, é a regra básica para o
enquadramento dos indivíduos no dispositivo disciplinar.
O exame, instrumento da disciplina, combinado à vigilância
hierárquica e à sanção normalizadora, é a técnica essencial para que o
poder disciplinar se efetue de forma completa sobre os indivíduos. É no
exame que “vêm se reunir a cerimônia do poder e a forma da experiência, a
demonstração da força e o estabelecimento da verdade”.
43
É pelo exame,
instrumento ímpar da disciplina, que se pode obter e constituir um saber
sobre o indivíduo.
Encontramos o instrumento do exame sob a forma de testes,
de entrevistas, de interrogatórios e de consultas na medicina, na psicologia,
na pedagogia e na contratação de mão de obra.
Foucault relaciona três procedimentos da técnica do exame.
São eles: a inversão da visibilidade no exercício do poder; a produção de um
arquivo-documento e a constituição de um caso.
Em primeiro lugar, o poder, antes visível – como no caso da soberania
– incidido sobre o indivíduo, torna-se oculto, fazendo com que apareça,
agora, com toda a sua transparência o indivíduo examinado. É, portanto, o
fato de ser visto e vigiado que mantém a sujeição do indivíduo.
Em segundo, o exame permite que seja produzido um
documento sobre esse indivíduo, por meio do registro de seus atos, hábitos,
43
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. 2003, p. 154. Surveiller et punir. 2006, p. 217.
24
e reações, e que possa ser arquivado como um caso, constituindo, assim,
todo um campo de saber sobre as individualidades.
Em terceiro lugar, o indivíduo examinado e documentado em
sua história é transformado em um caso e, com esse saber, a disciplina tem
em mãos todas as manifestações das individualidades para que possam ser
analisadas, catalogadas, classificadas e comparadas nas suas
singularidades.
“A disciplina é o conjunto de técnicas pelas quais os
sistemas de poder vão ter por alvo e resultado os
indivíduos em sua singularidade. É o poder de
individualização que tem o exame como instrumento
fundamental. O exame é a vigilância permanente,
classificatória, que permite distribuir os indivíduos,
julgá-los, medi-los, localizá-los e, por conseguinte,
utilizá-los ao máximo”.
44
Vimos, portanto, as funções e os instrumentos que permitiram
que o ‘poder disciplinar’ fosse exercido de forma total. Mas, estas funções e
estes instrumentos só puderam ser bem sucedidos na medida em que se
exerciam em instituições sociais adequadas a eles. Trata-se das ‘instituições
disciplinares’, cujo modelo emblemático é o Panóptico, que descreveremos a
seguir.
1. 3. 3. O Panóptico e as instituições disciplinares
Michel Foucault relata que, quando pesquisava as origens da
medicina clínica, pensando em fazer um estudo sobre a arquitetura
hospitalar da segunda metade do século XVIII, tomou conhecimento do
44
FOUCAULT, M. O Nascimento do Hospital. In: Microfísica do Poder. 2001, p. 107.
25
Panóptico, um projeto arquitetônico essencial para o entendimento da
formação e do funcionamento das sociedades disciplinares.
45
Na seqüência,
quando pesquisava a questão da penalidade, deu-se conta de que todos os
projetos de reorganização das prisões também apresentavam como temas
principais evitar o contágio, garantir a ventilação, a circulação de ar,
assegurar que a vigilância fosse ao mesmo tempo global e individualizante,
separando cuidadosamente os indivíduos que deviam ser vigiados.
Foi, precisamente, em instituições como as prisões que
Foucault viu a utilização de uma arquitetura semelhante ao Panóptico de
Jeremy Bentham, jurista inglês do século XVIII, idealizador deste projeto
arquitetônico. Bentham desenvolveu uma ‘tecnologia de poder’
46
, própria
para resolver a questão da vigilância na prisão, na escola ou nos hospitais.
Para ele, “seu sistema ótico era a grande inovação que permitia exercer bem
e facilmente o poder”
47
.
O princípio do Panóptico de Bentham é o seguinte:
“na periferia uma construção em anel; no centro, uma
torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem
sobre a face interna do anel; a construção periférica é
dividida em celas, cada uma atravessando toda a
espessura da construção; elas têm duas janelas, uma
para o interior, correspondendo às janelas da torre;
outra, que dá para o exterior, permite que a luz
atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar
um vigia na torre central, e em cada cela trancar um
louco, um doente, um condenado, um operário ou um
escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber
da torre, recortando-se exatamente sobre a
claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da
periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em
que cada ator está sozinho, perfeitamente
individualizado e constantemente visível. O dispositivo
panóptico organiza unidades espaciais que permitem
ver sem parar e reconhecer imediatamente. Em
suma, o princípio da masmorra é invertido; ou antes,
45
FOUCAULT, M. “O Olho do Poder”. In: Microfísica do Poder. 2001, p. 209.
46
Idem, ibid, p. 211.
47
Idem, ibid, p. 211.
26
de suas três funções – trancar, privar de luz e
esconder – só se conserva a primeira e suprimem-se
as outras duas. A plena luz e o olhar de um vigia
captam melhor que a sombra, que finalmente protegia.
A visibilidade é uma armadilha.
48
A partir do princípio do ‘olhar’, o Panóptico podia ser utilizado
como um mecanismo de poder que tornava possível uma vigilância mais
rápida, de coerção mais sutil e economicamente mais viável. O fato de que
apenas um vigia colocado na torre central era suficiente para observar todos
os indivíduos nas ‘células’ prova isso.
Segundo Foucault, Bentham colocou a questão de que o poder
podia ser “visível e inverificável”.
49
O que significava que o “ver sem ser
visto” induzia no vigiado – fosse um prisioneiro, um doente, um escolar
ou um operário – um estado consciente e permanente de
visibilidade, garantindo, assim, o funcionamento automático do poder,
pois o simples fato de se saber vigiado, mesmo se não o fosse, efetiva e
constantemente, provocava o cumprimento do dever. Desse modo, cada
um tornava-se vigia de si mesmo.
No Panóptico o poder é ‘polivalente’: permite observar os
loucos e garantir a calma; os prisioneiros e garantir o bom comportamento;
os doentes e garantir a observância das receitas; os alunos e garantir a
aplicação; os operários e garantir o trabalho. Assim “cada vez que se tratar
de uma multiplicidade de indivíduos a que se deve impor uma tarefa ou um
comportamento, o esquema panóptico poderá ser utilizado”.
50
“O panoptismo é um dos traços característicos da
nossa sociedade. É uma forma de poder que se
exerce sobre os indivíduos em forma de vigilância
individual e contínua, em forma de controle de punição
e recompensa e em forma de correção, isto é, de
48
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. 2003, p. 165-166. Surveiller et punir. 2006, p. 233-234.
49
Idem, ibid, p. 167.; idem, ibid, p. 234.
50
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. 2003, p. 170. Surveiller et punir. 2006, p. 240.
27
formação e transformação dos indivíduos em função
de certas normas. Este tríplice aspecto do panoptismo
– vigilância, controle e correção – parece ser uma
dimensão fundamental e característica das relações
de poder que existem em nossa sociedade.
51
De acordo com Foucault “há duas espécies de utopia: as
utopias proletárias socialistas que têm a propriedade de nunca se
realizarem, e as utopias capitalistas que têm a má tendência de se
realizarem freqüentemente.”
52
Esta utopia de que fala Foucault, o
Panopticon industrial’, existiu em larga escala no início do século XIX. É a
utopia da fábrica-prisão, que não só foi realizada nas fábricas mas também
em outras instituições como escolas, hospitais psiquiátricos, orfanatos,
prisões, etc.
Em uma passagem da série de conferências que compõem A
Verdade e as Formas Jurídicas (1973), Foucault propõe um jogo
apresentando o regulamento de uma instituição que realmente existiu em
meados do século XIX, na França, sugerindo que se ‘adivinhasse’ de que
tipo de instituição se tratava. Embora longo, reproduzimos, aqui, este
regulamento, apresentado a seguir.
“Era uma instituição onde havia 400 pessoas que não
eram casadas e que deviam levantar-se todas as
manhãs às cinco horas; às cinco e cinqüenta deveriam
ter terminado de fazer a toillete, a cama e ter tomado
café; às seis horas começava o trabalho obrigatório,
que terminava às oito e quinze da noite, com uma hora
de intervalo para o almoço; às oito e quinze, jantar,
oração coletiva; o recolhimento aos dormitórios era às
nove horas em ponto. O domingo era um dia especial;
o artigo cinco do regulamento desta instituição dizia:
“queremos guardar o espírito que o domingo deve ter,
isto é, dedicá-lo ao cumprimento do dever religioso e
ao repouso. Entretanto, como o tédio não demoraria a
tornar o domingo mais cansativo do que os outros dias
51
FOUCAULT, M. A Verdade e as Formas Jurídicas. 2003, p. 103.
52
Idem, ibid, p. 110.
28
da semana, deverão ser feitos exercícios diferentes,
de modo a passar este dia cristã e alegremente”; de
manhã, exercícios religiosos, em seguida exercícios
de leitura e de escrita e finalmente recreação às
ultimas horas da manhã; à tarde, catecismo, as
vésperas, e passeio depois das quatro horas, se não
fizesse frio. Caso fizesse frio, leitura em comum. Os
exercícios religiosos e a missa não eram assistidos na
igreja próxima porque isto permitia aos pensionistas
deste estabelecimento terem contato com o mundo
exterior; assim, para que nem mesmo a igreja fosse o
lugar ou o pretexto de um contato com o mundo
exterior, os serviços religiosos tinham lugar em uma
capela construída no interior do estabelecimento. “A
igreja paroquial, diz ainda este regulamento, poderia
ser um ponto de contato com o mundo e por isso uma
capela foi consagrada no interior do estabelecimento”.
Os fiéis de fora não eram sequer admitidos. Os
pensionistas só podiam sair do estabelecimento
durante os passeios de domingo, mas sempre sob a
vigilância do pessoal religioso. Este pessoal vigiava os
passeios, os dormitórios e assegurava a vigilância e a
exploração das oficinas. O pessoal religioso garantia,
portanto, não só o controle do trabalho e da
moralidade, mas também o controle econômico. Estes
pensionistas não recebiam salários, mas um prêmio –
uma soma global estipulada entre 40 e 80 francos por
ano – que somente lhes era dado no momento em que
saíam. No caso de uma pessoa de outro sexo precisar
entrar no estabelecimento por razões materiais,
econômicas, etc., deveria ser escolhida com o maior
cuidado e permanecer por muito pouco tempo. O
silêncio lhes era imposto sob pena de expulsão. De
um modo geral, os dois princípios de organização,
segundo o regulamento, eram: os pensionistas nunca
deveriam estar sozinhos no dormitório, no refeitório, na
oficina, ou no pátio, e deveria ser evitada qualquer
mistura com o mundo exterior, devendo reinar no
estabelecimento um único espírito.
53
Após a descrição do regulamento, Foucault diz tratar-se de
uma fábrica que existia na região do Ródano onde trabalhavam 400
mulheres operárias.
53
FOUCAULT, M. A Verdade e as Formas Jurídicas. 2003, p. 108.
29
Essas instituições que Foucault chamou de ‘instituições de
seqüestro’,
54
outro nome, pode-se dizer, para as ‘instituições disciplinares’
como as fábricas-prisões ou fábricas-conventos, resultam da técnica
francesa do confinamento e do procedimento de controle moral e social do
tipo inglês, que tinham o objetivo de fixar a classe operária ao corpo do
aparelho de produção. Este tipo de instituição industrial realmente existiu.
Porém, logo viria a desaparecer, pois mostrou ser economicamente inviável.
Mas mesmo assim, foram tomadas medidas como a da criação de cidades
operárias, de caixas econômicas, de caixas de assistência, etc., de uma
série de meios pelos quais se tentou fixar a população operária ao aparelho
de produção. De todo modo, são as instituições industriais que serão
aperfeiçoadas e visadas pelo capitalismo.
Foucault traça, ainda, um paralelo em três momentos entre a
sociedade feudal e a sociedade moderna, do ponto de vista do controle. Na
sociedade feudal, o controle é espacial, isto é, se dá por meio da inserção
geográfica: o poder é exercido na medida em que o homem pertence a um
determinado lugar. Na sociedade moderna, o controle é temporal – não
importa a localização do indivíduo e sim o seu tempo disponível para a
produção – e ainda, espacial, não no sentido físico – porque o mercado é um
espaço delimitado – mas num sentido virtual.
Portanto, segundo Foucault, do ponto de vista do controle do
tempo, são necessárias duas coisas para que se forme a sociedade
industrial: “por um lado, é preciso que o tempo dos homens seja colocado no
mercado, oferecido aos que o querem comprar, e comprá-lo em troca de um
salário; e é preciso, por outro lado, que este tempo dos homens seja
transformado em tempo de trabalho”.
55
Este é, portanto, o primeiro traço das
‘instituições de seqüestro’: fazer com que o tempo de vida dos homens
transforme-se em tempo de trabalho.
54
Idem, ibid. p. 114.
55
FOUCAULT, M. A Verdade e as Formas Jurídicas. 2003, p. 116.
30
O segundo traço é que, além de controlar o tempo dos
indivíduos, também controla os seus corpos. Diferentemente da sociedade
feudal, não mais sob a forma de suplícios, mas sob a forma da disciplina, da
correção, os corpos devem ser aperfeiçoados, devem adquirir aptidões para
serem qualificados para a produção. A força do corpo deve se transformar
em força de trabalho.
O terceiro e novo traço é que o poder é multifacetado e se
aplica a diferentes instituições disciplinares. “O poder que se instala nestas
instituições é um poder ‘polimorfo’ e ‘polivalente’, pois se desdobra em
múltiplos caracteres que, esquematicamente, podemos designar de
econômicos, políticos, judiciários e epistemológicos”.
56
Cada instituição tem
uma função específica: o exército prepara soldados; as escolas ensinam; os
hospitais curam; as prisões punem e as fábricas produzem. Mas todas elas
têm a função de disciplinar.
Embora haja predominância de um ou outro destes ângulos,
todos eles envolvem aspectos econômico, político e judiciário. No caso de
uma fábrica, oficina, ou empresa, por exemplo, predomina o poder
econômico que oferece um salário em troca de um tempo de trabalho; mas
há o poder político que delega o direito a quem dirige, de dar ordens, de
estabelecer regulamentos, de vigiar, etc., e há o poder judiciário que dá o
direito de recompensar e de punir.
Em síntese, a função do panoptismo social é precisamente a
transformação da vida dos homens, em força produtiva para um sistema
político, econômico e social, e essa transformação não se dá sem a
operação de um poder polimorfo que se articula em poderes econômico,
político e judiciário.
56
MUCHAIL, S. T. Foucault, Simplesmente. 2004, p. 68.
31
No próximo capítulo, trataremos das organizações
empresariais, fazendo um breve trajeto das relações de trabalho desde as
primeiras manufaturas até as empresas modernas.
32
2. AS ORGANIZAÇÕES EMPRESARIAIS
2.1. Das primeiras manufaturas às modernas empresas: uma
visão geral e introdutória
Foucault, em A Verdade e as Formas Jurídicas, mostra que a
relação moderna do homem com o trabalho é operada pelo poder. Um
‘poder político, microscópico, capilar’, que liga os homens ao aparelho de
produção, e que se disseminou nas organizações empresariais:
“O que eu gostaria de mostrar é que de fato o trabalho
não é absolutamente a essência concreta do homem,
ou a existência do homem em sua forma concreta.
Para que os homens sejam efetivamente colocados no
trabalho, ligados ao trabalho, é preciso uma operação,
ou uma série de operações complexas pelas quais os
homens se encontram efetivamente, não de uma
maneira analítica, mas sintética, ligados ao aparelho
de produção para o qual trabalham. É preciso a
operação ou a síntese operada por um poder político
para que a essência do homem possa aparecer como
sendo a do trabalho.
57
57
FOUCAULT, M. A Verdade e as Formas Jurídicas. 2003, p. 124.
33
As organizações de trabalho são os meios pelos quais o
homem exerce a atividade laboral, tão importante para sua existência e a
sobrevivência da espécie. A relação do homem com o trabalho decorre de
muito tempo. Podemos pensar, também, o trabalho como um sistema
complexo operado por poderes político, econômico e social.
Do ponto de vista da tecnologia, o trabalho evoluiu do
artesanato para a fábrica e daí para a indústria. O trabalho dos artesãos nas
oficinas medievais era realizado, cumprindo-se todas as etapas de
produção. As primeiras manufaturas surgiram por volta do século XIV, em
algumas cidades da Itália, França e Inglaterra, mas atingiram o apogeu no
final do século XVII e início do século XVIII, preparando o advento da
Revolução Industrial.
A manufatura sucedeu ao artesanato, conservando os seus
processos e ferramentas individuais para a realização das operações de
transformação da matéria-prima. No sistema artesanal, o trabalhador
controlava todo o processo de produção, não havia divisão de trabalho
expressão usada por Adam Smith (1723-1790) importante economista do
século XVIII –, assim, um mesmo artesão se dedicava à confecção de uma
mercadoria do princípio ao fim, e era, ele mesmo, quem determinava sua
jornada de trabalho.
Do ponto de vista das instalações, as manufaturas consistiam
em enormes galpões onde eram reunidos vários artesãos, com o objetivo de
realizar o trabalho de modo integrado e sincrônico. Essa forma de trabalho
iria aumentar incrivelmente a capacidade de produção, a produtividade e o
volume das trocas, apenas pelo fato de reunir, dividir e sincronizar o
movimento conjunto dos artesãos.
Para melhor compreensão, é necessário observar como
Foucault descreve, em Vigiar e Punir, o trabalho em uma fábrica do século
XVIII, (manufatura de Oberkampf em Jouy):
34
“O edifício, construído em 1791, tem 110 metros de
comprimento e três andares. O térreo é reservado,
especialmente à impressão em bloco; contém 132
mesas dispostas em duas fileiras ao longo da sala
com 88 janelas: cada impressor trabalha em uma
mesa, com seu ‘puxador’, encarregado de preparar e
espalhar as tintas. Ao todo 264 pessoas. Na
extremidade de cada mesa, uma espécie de cabide
sobre o qual o operário coloca para secar a tela que
acabou de imprimir. Percorrendo-se o corredor central
da oficina, é possível realizar a vigilância ao mesmo
tempo geral e individual; constatar a presença, a
aplicação do operário, a qualidade de seu trabalho;
comparar os operários entre si, classificá-los segundo
sua habilidade e rapidez; acompanhar os sucessivos
estágios da fabricação”.
58
Nas fábricas havia, além dos operários, apenas máquinas e os
administradores. Nelas, foram criadas hierarquias inexistentes no sistema
artesanal, com o objetivo de poder exercer um maior controle sobre o
desempenho dos trabalhadores. Assim, a partir de meados do século XVIII,
já existia, nas fábricas, um operário disciplinado e assalariado. Encontramos
outro exemplo, citado por um autor norte-americano, que ilustra como os
empregados eram submetidos ao regime de regras e regulamentos, na
Tecelagem Amasa Whitney, sediada em Winchendon, Massachusetts, EUA,
no ano de 1830:
59
“PRIMEIRO: a fábrica entrará em operação dez
minutos antes do nascer do sol em todas as estações
do ano. O portão será fechado dez minutos após o
pôr-do-sol de 20 de março a 20 de setembro, e 30
minutos depois das 8 horas da noite de 20 de
setembro a 20 de março. E nos sábados ao pôr-do-sol.
SEGUNDO: será solicitado a cada pessoa contratada
que esteja no local para o qual foi designada, na hora
mencionada para que a fábrica comece a funcionar.
TERCEIRO: as mãos não têm permissão para deixar a
fábrica nas horas de trabalho sem consentimento do
58
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. 2003, p. 124. Surveiller et punir. 2006, p. 170.
59
ADAMS, S. H. Sunrise to sunset. 1950, Fig. 2.
35
seu capataz. Caso façam isso, ficam passíveis de ter
sua jornada prorrogada.
QUARTO: qualquer pessoa que, por negligência ou
má conduta, causar dano ao maquinário, ou impedir o
progresso do trabalho, fica passível de reparar o dano
causado.
QUINTO: qualquer empregado contratado, não
importando por quanto tempo, deve repor eventuais
folgas para fazer jus ao salário estabelecido.
SEXTO: qualquer pessoa empregada por tempo
indeterminado será solicitada a dar pelo menos, 4
semanas de aviso prévio de sua intenção de sair
(exceto em caso de doença). Ou então pagará multa
de 4 semanas de salário, salvo casos de acordo
mútuo.
SÉTIMO: qualquer pessoa que se ausente por
qualquer período de tempo deve obter permissão do
capataz.
OITAVO: espera-se que todos aqueles que tiverem
que sair para ausência de qualquer duração voltem no
período de tempo previsto; no caso de não voltarem e
não derem uma razão satisfatória, deverão pagar
multa de 1 semana de trabalho ou menos, caso
recomecem o trabalho. Caso não o façam, serão
despedidos por justa causa.
NONO: nada pode impedir o progresso da fabricação
durante as horas de trabalho, tais como conversas
desnecessárias, leituras, comer frutas, devem ser
evitado.
DÉCIMO: como temos sempre um capataz sensato,
casos de dúvida seguirão sempre sua orientação.
DÉCIMO PRIMEIRO: não se permitirá fumar na
fábrica, pois isso é considerado muito inseguro e está
particularmente mencionado nas cláusulas de seguro.
DÉCIMO SEGUNDO: para conseguir avançar no
trabalho, as mãos trabalhadoras seguirão os
regulamentos acima, da mesma maneira como todos
os demais empregados.
DÉCIMO TERCEIRO: fica entendido que o sino tocará
cinco minutos antes que o portão seja levantado, para
que todas as pessoas possam estar prontas a iniciar
suas máquinas precisamente no tempo mencionado.
DÉCIMO QUARTO: todas as pessoas que causarem
danos à maquinaria, quebrarem os vidros das janelas,
deverão imediatamente informar o ocorrido ao
capataz.
36
DÉCIMO QUINTO: as mãos tomarão café da manhã
do primeiro dia de novembro até o último dia de
março, antes de irem para o trabalho. Eles jantarão, de
primeiro de maio até o fim de agosto, às cinco e meia
da tarde; de 20 de setembro a 20 de março, entre o
pôr-do-sol e a noite. Serão permitidos 25 minutos para
o café da manhã, 30 minutos para o almoço e 25
minutos para o jantar. O portão será fechado até o
novo reinício de trabalho.
DÉCIMO SEXTO: As mãos deixarão a fábrica, para
que as portas possam ser fechadas, dentro de 10
minutos após o horário da saída”.
Quarenta anos separam os dois exemplos descritos. No
primeiro exemplo, citado por Foucault, podemos observar as várias
características do sistema disciplinar das fábricas: espaços amplos para
acomodar centenas de operários; a distribuição no espaço, por série e por
filas; o trabalho sincronizado e o controle da vigilância sobre o operário e a
produção. Quase dois séculos separam a Tecelagem Amasa Whitney das
atuais organizações empresariais, e o que percebemos é que, não obstante,
algumas regras disciplinares caíram em desuso, outras ainda como a
vigilância, a sanção e o controle do tempo e das atividades continuam
vigentes e novas normas e regulamentos foram incluídos.
Seguem-se então, algumas mudanças ocorridas no processo
do trabalho, do ponto de vista de alguns autores que se vinculam à própria
área da Administração.
Edgar de Decca, professor do Departamento de História da
UNICAMP, aponta que a passagem do sistema de trabalho das manufaturas
para o sistema de fábrica “parece ter sido ditado por uma necessidade muito
mais organizativa do que técnica, e essa nova organização teve como
resultado, para o trabalhador, toda uma nova ordem de disciplina durante
todo o transcorrer do processo de trabalho”.
60
60
DECCA, E. S. O Nascimento das Fábricas, 2004, p. 25.
37
Analisando o surgimento das fábricas, Thompson
61
aponta um
“aprofundamento maior do controle do tempo de
trabalho por parte dos patrões, e a introdução de uma
rígida disciplina no processo de trabalho...
62
. In all
these ways – by the division of labour; the supervision
of labour; fines; bells and clocks; money incentives;
preachings and schooling; the supression of fairs and
sports – new labour habits were formed, and a new
time-discipline was imposed.”
63
A passagem para o sistema fabril é concomitante ao
nascimento do capitalismo, e as mudanças advindas disto tiveram um forte
impacto nas relações de trabalho. Assim, De Decca, indaga em O
Nascimento das Fábricas: “por que uma determinada forma de expressão do
sistema de fábrica – aquela que se deu a partir da concentração de
trabalhadores despossuidos e assalariados – se tornou vitoriosa ante a
quaisquer outras?” e conclui que a resposta está “no desenvolvimento
acelerado das bases técnicas que organizaram o processo de trabalho”,
64
mas enfatiza que “tais bases técnicas se tornaram importantes muito mais
em função das necessidades de disciplina e controle do trabalho do que pela
sua eficácia”,
65
porque “a tecnologia, embora apareça como índice de
aumento de produtividade e como base material da acumulação capitalista,
ela responde também aos imperativos de disciplinar, controlar
hierarquicamente e não permitir ao trabalhador o controle do próprio
processo de trabalho”.
66
A fim de ampliar idéias e informações sobre estas mudanças,
recorramos aos estudos de Robert Srour, professor e sociólogo brasileiro.
Para ele,
61
THOMPSON, E. P. Time, Work-Discipline, and Industrial Capitalism. 1967
62
DECCA, E. S. O Nascimento das Fábricas, 2004, p. 73.
63
THOMPSON, E. P. Time, Work-Discipline, and Industrial Capitalism. 1967, p. 90.
64
DECCA, E. S. O Nascimento das Fábricas, 2004, p. 67.
65
Idem, ibid, p. 67.
66
Idem, ibid, p. 68.
38
“a Revolução Industrial foi, antes de mais nada, uma
revolução capitalista. Não foram as inovações
técnicas que criaram o capitalismo, mas o capital,
investido nas manufaturas da Idade Moderna, que
levou à introdução da máquina-ferramenta,
desenvolveu o sistema fabril, a aplicou a força motriz
não-animal à produção.”
67
O sistema capitalista como modo de produção baseado no
capital produtivo industrial se apóia em alguns princípios: a presença de
capital em mãos de empresários dispostos a investir para produzir bens; a
propriedade privada sobre os meios de produção; trabalhadores dispostos a
vender sua força de trabalho, mediante o pagamento de um salário, para
garantir sua subsistência; e a presença do Estado para garantir as leis do
trabalho.
A acumulação do capital comercial em mãos dos burgueses
que o converteram em capital produtivo só foi possível graças a vários
processos que antecederam a Revolução Industrial: a espoliação das
riquezas coloniais; o tráfico negreiro; o confisco dos bens da Igreja Católica;
a expropriação dos camponeses que migraram para os grandes centros
urbanos e a transformação da propriedade feudal em propriedade
latifundiária.
Além do capital e dos desenvolvimentos técnicos, as
transformações culturais conhecidas por Iluminismo – movimento filosófico
que caracterizou o pensamento europeu do século XVIII e que valorizava a
ciência e a crença no compromisso de transformação, levando à concepção
da história como progresso, ou seja, como possibilidade de melhoria do
ponto de vista do saber e dos modos de vida do homem – trouxe grandes
contribuições para o advento da Revolução Industrial.
A Revolução Industrial, caracterizada pela substituição do uso
da mão-de-obra por máquinas, foi o marco de uma nova era na história da
67
SROUR, Robert H. Poder, Cultura e Ética nas Organizações. 1998, p. 13.
39
humanidade. Com início na Inglaterra, aos poucos, foi se disseminando por
toda a Europa e outros continentes. Possibilitou o surgimento das indústrias,
resultando no aumento da capacidade de produção, principalmente, nas
indústrias metalúrgica, química e têxtil; no estímulo à concentração urbana
da população, transformando o artesão em operário e o comerciante em
empresário capitalista. Além disso, introduziu a operação complexa e a
divisão qualitativa do trabalho, aperfeiçoou as ferramentas e economizou
meios de produção por unidade de produto.
Assim como a Revolução Industrial transformou as relações de
trabalho no final do século XVIII, a Revolução Digital – conhecida como a
Terceira Revolução Industrial –
68
e caracterizada pelas inovações da ciência
e da tecnologia, pelo processo da globalização econômica e pelo novo modo
de produção capitalista social, transformou as relações de trabalho do século
XX.
Na Revolução Industrial, o trabalho é desqualificado ou semi-
qualificado, dividido em tarefas, e o trabalhador é pago por tempo de serviço.
A produção em massa de produtos padronizados absorve mão-de-obra do
setor secundário. O controle central nas mãos dos gestores indica a
tendência à verticalização das organizações e a prevalência do poder.
69
Na Revolução Digital, o trabalho é qualificado, polivalente e
pago por resultados. A produção de produtos personalizados é flexível,
absorvendo mão-de-obra dos setores terciário e quaternário. O controle
partilhado entre gestores e trabalhadores indica a tendência à
horizontalização das organizações com prevalência do saber.
70
Para Srour,
“nos processos de produção industrial prevalece, no
geral, o trabalho braçal, repetitivo, fragmentado,
alienante e desqualificado, tão bem representado
68
SROUR, Robert H. Poder, Cultura e Ética nas Organizações. 1998, p. 5.
69
Idem, ibid, p. 22.
70
idem, ibid, p. 18.
40
pelas linhas de montagem. Em contrapartida, nos
processos de produção digital, o tipo
predominante de trabalho é mental e polivalente.”
71
É, então, na Revolução Digital que o trabalhador, por meio do
trabalho mental, re-inverte a ação sofrida com a revolução industrial: “os
trabalhadores, responsáveis pela execução das atividades produtivas,
retomam a ‘posse’ de seus instrumentos de trabalho, ou seja, recuperam a
‘apropriação real’, na linguagem de Marx.”
72
Entretanto, mais do que essa dicotomia entre trabalho braçal e
trabalho intelectual, o que se vê nas relações de trabalho é a divisão entre a
administração e a execução do trabalho.
“Os trabalhadores recebem ordens para realizar
funções que consistem em manejar instrumentos de
trabalho e em processar matérias-primas. Os gestores,
por sua vez, concebem e controlam o processo
técnico, planejam e organizam atividades, definem
cronogramas e comandam grupos de operadores”.
73
Outro autor, Peter Drucker (1909-2005), administrador
austríaco, radicado nos Estados Unidos, considerado o ‘pai da administração
moderna’, organiza esse período histórico de transição em três fases. Na
primeira fase, o conhecimento foi aplicado a ferramentas, processos e
produtos: isso levou à Revolução Industrial. Na segunda fase, o
conhecimento passou a ser aplicado ao trabalho: isso levou à Revolução da
Produtividade, e; na última fase, que começou após a Segunda Guerra
Mundial, o conhecimento é aplicado ao conhecimento em si: é a
Revolução da Administração:
“Agora o conhecimento está se tornando rapidamente
o único fator de produção, deixando de lado tanto o
capital quanto a mão-de-obra. Pode ser prematuro (e
71
Idem, ibid, p. 6.
72
SROUR, Robert H. Poder, Cultura e Ética nas Organizações. 1998, p. 6
73
Idem, ibid, p. 110.
41
certamente seria presunçoso) chamar nossa
sociedade de ‘sociedade do conhecimento’; até hoje
temos apenas uma economia do conhecimento. Mas
nossa sociedade certamente é pós-capitalista.
74
Atualmente, vê-se crescer a importância dada ao
conhecimento, à informação, ou seja, ao trabalho intelectual e ao trabalhador
de conhecimento, como o maior bem da empresa. Segundo Drucker, “todas
as organizações agora costumam dizer ‘as pessoas são nosso maior
ativo’
75
.” E é justamente pensando na importância das pessoas nas
organizações e nas relações entre trabalhadores e gestores dentro de uma
organização de trabalho, que abordaremos, no próximo item, os modelos
administrativos das organizações empresariais.
74
DRUCKER, P. F. O Melhor de Peter Drucker: O Homem. 2001, p. 26.
75
Idem, ibid, p. 48.
42
2. 2. Modelos administrativos das organizações empresariais:
breve reconstituição histórica
As condições de trabalho do século XVIII não eram as
melhores. Em geral, o ambiente das fábricas era péssimo: abafado, úmido,
sujo e com pouca iluminação. As jornadas de trabalho eram de até 18 horas
por dia, em ritmo constante e sem descanso, com salários irrisórios. O
recrutamento dos trabalhadores era feito de modo coercitivo e violento.
Mulheres e crianças também eram empregadas. Os trabalhadores, em sua
maioria, viviam em moradias escuras, insalubres e superlotadas. O controle
dos operários era feito num regime severo e autoritário e, em certos casos,
maus-tratos e punição de toda espécie.
76
Medidas para enfrentar estas
situações foram tomadas somente a partir do início do século XIX com a
criação dos primeiros sindicatos, e, apenas no fim desse mesmo século, é
que tais sindicatos foram legalizados, na Inglaterra, em 1871, e na França,
em 1884.
Algumas décadas antes, em 1844, em Rochdale, um bairro da
cidade de Manchester, na Inglaterra, foi criada, por tecelões, a primeira
cooperativa chamada “Sociedade dos Probos Pioneiros de Rochdale.”
Os tecelões de Rochdale buscavam uma alternativa econômica
para atuarem no mercado frente ao sistema capitalista que os submetiam a
preços abusivos, exploração da jornada de trabalho de mulheres e crianças
e do desemprego crescente advindo da Revolução Industrial. Mas foi a
própria Revolução Industrial que facilitou a organização dos operários,
76
DECCA, E. S. e MENEGUELLO, C. Fábricas e Homens. A revolução industrial e o
cotidiano dos trabalhadores. 1999, p. 38-39.
43
capacitando-os a usar o poder da ação coletiva para obter salários mais
altos e melhoria das condições de trabalho. Essa cooperativa foi o marco
inicial de uma nova forma de pensar o homem, o trabalho e o
desenvolvimento social.
No início do século XIX, Robert Owen, co-proprietário e gerente
de um cotonifício onde trabalhavam 2000 operários, em New Lanark, na
Escócia, foi autor de uma série de práticas que beneficiaram a vida de seus
operários. Entre elas, podemos citar: a idade mínima para o trabalho foi
ampliada de cinco para dez anos; a jornada de trabalho foi reduzida de 14
para 10 horas; construiu casas para os operários; hortas comunitárias;
escolas gratuitas para os filhos dos trabalhadores, onde as crianças
recebiam além da educação formal, aulas de música e de dança;
77
implantou algumas práticas de caráter disciplinar, como a limpeza obrigatória
do bairro residencial dos operários; multas para embriaguez em público e
toque de recolher durante o inverno. Owen foi considerado o pai do
movimento cooperativo, por esta experiência de administração humanista.
No mesmo período, a Fundição Soho, uma empresa construída
na Inglaterra, para fabricar a máquina a vapor de James Watt, já
apresentava os princípios administrativos que se tornariam universais até
os dias de hoje: procedimentos padronizados de trabalho; especificações
de peças e ferramentas; previsão de vendas e planejamento da produção;
salários de incentivo; tempos padronizados; sociedade de socorros mútuos
para os empregados; festas e bonificações de natal; contabilidade e
auditoria.
Com a construção de ambientes específicos de trabalho, como
as fábricas, surgiram também as primeiras idéias sobre como administrá-las.
Mas de modo geral, nessa época, a administração não tinha, ainda, uma
noção clara das suas funções e responsabilidades. A administração das
77
DECCA, E. S. e MENEGUELLO, C. Fábricas e Homens. A revolução industrial e o
cotidiano dos trabalhadores. 1999, p. 44-45.
44
fábricas era composta por capatazes ou supervisores, que tinham por função
a vigilância dos operários, cuidando para que eles cumprissem a jornada de
trabalho, não interrompessem a produção, não danificassem os
equipamentos ou desviassem matéria-prima. Funções próprias da
administração, como planejamento, organização e coordenação das
operações, ainda não existiam.
No decorrer do processo, a preocupação com a eficiência da
produção foi despertando o interesse pela administração das fábricas. A
primeira escola de administração de empresas foi fundada em Paris, em
1820, por Perier, Laffitte, Pernaux e outros.
Abordemos, sinteticamente, algumas das principais teorias
administrativas modernas.
As primeiras teorias administrativas modernas surgiram no
início do século XX, com os trabalhos de Taylor e de Fayol. Frederick
Winslow Taylor (1856-1915) foi um dos principais criadores e participantes
do Movimento da Administração Científica que fez parte da escola clássica
de administração. A escola clássica de administração das organizações, que
inclui a teoria de administração científica, era baseada, principalmente, no
método quantitativo; na resolução de problemas administrativos, de
planejamento, previsão, no cumprimento de metas, na execução precisa das
tarefas e no controle sobre o comportamento dos funcionários, considerados
como extensões do maquinário da empresa. Os princípios da administração
científica ofereceram a base para o modo de se trabalhar, durante a primeira
metade do século XX e, em muitas organizações, podemos encontrá-los até
os dias atuais.
Os cinco princípios básicos da teoria da administração
científica são: a transferência de toda a responsabilidade, da organização do
trabalho, do trabalhador para o gerente (é a divisão entre a administração e
a execução do trabalho); a utilização de métodos científicos de planejamento
para determinar a forma mais eficiente de se fazer o trabalho; a seleção da
45
melhor pessoa para desempenhar o cargo especificado; o treinamento do
trabalhador, para que ele faça o trabalho eficientemente; e, finalmente, a
fiscalização do desempenho do trabalhador para assegurar que a tarefa seja
executada por meio de procedimentos apropriados e que atinja os resultados
adequados.
78
A teoria da administração científica se desenvolveu em três
momentos. Na primeira fase: ataque ao problema dos salários; estudo
sistemático do tempo; definição de tempos-padrão e sistema de
administração de tarefas. Na segunda fase: ampliação de escopo da tarefa
para a administração e definição de princípios de administração do trabalho.
E na terceira fase: consolidação dos princípios; proposição de divisão de
autoridade e responsabilidades dentro da empresa; distinção entre técnicas
e princípios.
Em 1895, Taylor apresentou o que é considerado o primeiro
trabalho da administração científica: A piece–rate system (um sistema de
pagamento por peça). Neste trabalho, Taylor propõe um “estudo sistemático
e científico do tempo”, com o objetivo de resolver o problema dos salários.
Este estudo consistia em dividir cada tarefa em seus elementos básicos e,
com a ajuda dos trabalhadores, cronometrá-las e registrá-las, para se
descobrir, de maneira exata e científica, qual a velocidade máxima em que o
trabalho poderia ser feito. Com o resultado deste estudo, foram, então,
definidos tempos-padrão. Todo este procedimento era a base do sistema de
administração de tarefas (task-management), que compreendia, ainda, a
seleção dos trabalhadores e o pagamento de incentivos.
Mais tarde, este sistema de administração de tarefas formou a
base do Estudo de tempos e movimentos, que consiste numa racionalização
de tempos e movimentos para a execução das tarefas. Um dos exemplos
dos métodos de Taylor foi a experiência, na qual demonstrou que a
produtividade mais elevada resulta da minimização do esforço muscular, ou
78
cf. MORGAN, G. Imagens da Organização. 1996, p. 32.
46
seja, a produtividade resulta da eficiência do trabalho e não da maximização
do esforço. Esta é uma das idéias fundamentais da administração científica.
O enfoque do planejamento de trabalho da administração
científica é encontrado na linha de montagem de fábricas, empresas e
escritórios. Podemos ver, como exemplo, as cadeias de fast-food, onde o
trabalho é organizado nos mínimos detalhes, a partir do planejamento e da
análise do processo de produção, utilizando-se dos procedimentos mais
eficientes, com tarefas especializadas e funcionários treinados para
desempenhá-las de maneira precisa.
Henry Fayol (1841-1925), considerado um importante teórico
da escola clássica de administração, publicou em 1916 o livro General and
industrial management. Segundo Fayol, a administração é a atividade mais
importante em uma empresa, compreendendo cinco funções: planejamento,
organização, comando, coordenação e controle. Seus princípios foram
amplamente difundidos e são aplicados até hoje nas organizações
empresariais.
Assim como Taylor, Fayol propõe um modelo de administração
hierarquizada, com concentração de poder, centralização das decisões,
controle rígido da produção, ordem e disciplina para os empregados e um
sistema de recompensa monetária.
Os princípios da administração de Fayol são: a especialização
do trabalho; autoridade e responsabilidade; disciplina; unidade de comando;
unidade de direção; subordinação do interesse individual ao interesse geral;
remuneração do pessoal; centralização; hierarquia; ordem; eqüidade;
estabilidade do pessoal; iniciativa e união do pessoal.
No princípio – especialização do trabalho – “a divisão do
trabalho tem por finalidade produzir mais e melhor, com o mesmo esforço. O
operário que faz, todos os dias, a mesma peça, e o chefe que trata,
constantemente, dos mesmos negócios adquirem mais habilidade, mais
47
segurança e mais precisão e, conseqüentemente, aumentam de
rendimento.”
79
Quanto à Autoridade e Responsabilidade, o autor considera
que “a autoridade consiste no direito de mandar e no poder de se fazer
obedecer. Não se concebe autoridade sem responsabilidade, isto é, sem a
sanção que acompanha o exercício do poder”.
80
A disciplina, por sua vez, “consiste, essencialmente, na
obediência, na assiduidade, na atividade, na presença e nos sinais
exteriores de respeito demonstrados segundo as convenções estabelecidas
entre a empresa e seus agentes.”
81
Na unidade de comando temos que “para a execução de um
ato qualquer, um agente deve receber ordens somente de um chefe.”
82
Na
unidade de direção, tem-se “um só chefe e um só programa para um
conjunto de operações que visam o mesmo objetivo”.
83
A subordinação do interesse individual ao interesse geral, por
sua vez, é um princípio que “lembra que o interesse de um agente ou de um
grupo de agentes não deve prevalecer sobre o interesse da empresa”.
84
A Remuneração do pessoal
“é o prêmio pelo serviço prestado. Deve ser eqüitativa
e, tanto quanto possível, satisfazer, ao mesmo tempo,
ao pessoal e à empresa, ao empregador e ao
empregado. O patrão, no próprio interesse do negócio,
deve cuidar da saúde, do vigor físico, da instrução, da
moralidade e da estabilidade do seu pessoal.”
85
79
FAYOL, H. Administração Industrial e Geral. 1990, p. 44.
80
Idem, ibid, p. 45.
81
Idem, ibid, p. 46.
82
Idem, ibid, p. 48.
83
Idem, ibid, p. 49.
84
Idem, ibid, p. 49.
85
Idem, ibid, p. 50.
48
Já a centralização da autoridade deve estar, “até certo ponto,
sempre presente, devendo variar para permitir a máxima utilização das
capacidades do pessoal”.
86
Sobre a Hierarquia, observa-se que ela é constituída pela
“série dos chefes, que vai da autoridade superior, aos agentes inferiores.”
87
Em relação à ordem,
“um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar
(ordem material), e um lugar para cada pessoa e cada
pessoa em seu lugar (ordem social). Para que impere
a ordem material é preciso que um lugar tenha sido
reservado para cada objeto e que todo objeto esteja
no lugar que foi designado, para a ordem social, que
um lugar seja reservado a cada agente e que cada
agente esteja no lugar que lhe foi destinado.”
88
Sobre a eqüidade observa-se que
“para que o pessoal seja estimulado a empregar no
exercício de suas funções toda a boa vontade e
devotamento de que é capaz, é preciso que sejam
tratados com benevolência; e eqüidade resulta da
combinação da benevolência com a justiça. A
eqüidade exige em sua aplicação, muito bom senso,
muita experiência e muita vontade.”
89
No que se refere à estabilidade do pessoal, Fayol considera
que
“um agente precisa de tempo para iniciar em uma
nova função e chegar a desempenhá-la bem. Se ele
for deslocado antes que sua iniciação termine, não
terá tido tempo de prestar serviço apreciável e, se a
mesma coisa se repetir indefinidamente, a função
jamais será bem desempenhada.”
90
86
MORGAN, G. Imagens da Organização. 1996, p. 28.
87
FAYOL, H. Administração Industrial e Geral. 1990, p. 57.
88
Idem, ibid, p. 61.
89
Idem, ibid, p. 61.
90
Idem, ibid, p. 61.
49
Quanto à iniciativa, observa-se que
“conceber um plano e assegurar-lhe o sucesso é uma
das mais vivas satisfações que o homem inteligente
pode experimentar; é também um dos mais fortes
estimuladores da atividade humana. Essa
possibilidade de conceber e de executar é o que se
chama de iniciativa. A liberdade de propor e de
executar são, também, cada uma por si, elementos de
iniciativa.”
91
Quanto à união do pessoal, temos que “a harmonia e a união
do pessoal de uma empresa são grande fonte de vitalidade para ela. É
necessário, pois, realizar esforços para estabelecê-la.”
92
Os princípios acima descritos fazem parte do tipo de
organização representada pelo organograma empresarial, com um padrão
de cargos definidos e organizados hierarquicamente, por meio de linhas de
comando e comunicação precisamente definidos. “Estes princípios são
básicos, tanto à burocracia centralizada, quanto à forma modificada,
encontrada na organização departamentalizada, e na qual as várias
unidades são autorizadas a operar de maneira semi-autônoma, sob uma
supervisão e controle mais gerais do que específicos, por parte daqueles
que, em última análise, detêm a autoridade final.”
93
Henry Ford (1863-1947), industrial norte-americano, é outro
nome associado à teoria e à prática da administração. Em 1903, criou a Ford
Motor Company, e, em 1913, introduziu em sua fábrica a linha de montagem
móvel para produção em massa, que é a fabricação de produtos
indiferenciados em grande quantidade, resultando em peças padronizadas e
intercambiáveis, produzidas por trabalhador especializado. Outra inovação
de Ford foi a redução da jornada de trabalho e o aumento do salário de seus
funcionários.
91
FAYOL, H. Administração Industrial e Geral. 1990, p. 62.
92
Idem, ibid, p. 62.
93
MORGAN, G. Imagens da Organização. 1996, p. 29.
50
A linha de montagem móvel é o processo no qual o produto se
desloca ao longo de um percurso, enquanto os operadores ficam parados.
Em 1914, a Ford adotou a linha de montagem móvel e mecanizada para a
montagem do chassi, que passou a consumir 1 hora e 33 minutos de
trabalho, em contraste com as 12 horas e 28 minutos gastas na montagem
artesanal. O tempo médio do ciclo de produção foi reduzido para 1,19
minutos devido à imobilidade do trabalhador. A nova tecnologia também
reduziu a necessidade de investimento de capital, aumentou a velocidade da
produção e reduziu os custos. Como resultado, o aumento da produção
reduziu o preço dos carros.
A divisão do trabalho gerou o trabalhador especializado, que se
tornou o principal elemento das linhas de montagens móveis. Cargos como o
de engenheiro industrial para o planejamento e controle da montagem; o de
engenheiro de produção para o planejamento do processo de fabricação; o
de supervisor para vigiar e controlar a produção; o de reparador para
consertar os erros, e o de faxineiros para a limpeza do local, foram criados
nas fábricas da Ford.
Além da linha de montagem para a produção em massa, da
intercambialidade das peças e dos funcionários, da padronização de
produtos e ferramentas, Ford também foi o criador de relações trabalhistas
associadas à integração vertical e à centralização do poder.
O sistema de produção fordista que reduzia as tarefas
realizadas por cada operário ao mínimo possível criou o funcionário
intercambiável, isto é, facilmente substituível. Qualquer pessoa podia ser
transformada em operário com poucos minutos de treinamento. Isso fez com
que o quadro de funcionários aumentasse de forma não muito criteriosa, o
que acabou causando alguns problemas como interrupções na produção,
deterioração da qualidade, absenteísmo, doenças, etc. Dessa forma,
pressionado por manifestações sociais e sindicatos, Ford criou diversas
formas de incentivo para os seus funcionários como a redução da jornada
de trabalho para 8 horas e o aumento do salário para 5 dólares por dia.
51
A atuação de Ford nas relações trabalhistas se deu por meio
de dois sistemas: o da recompensa por vários incentivos como programas
de educação e bem-estar, e o da repressão através das pressões que
exercia sobre os sindicatos, com o intuito de manter os trabalhadores sob
controle.
Um retrato claro do fordismo – termo que se generalizou na
linguagem sociológica a partir da concepção de Antonio Gramsci em
Americanismo e Fordismo
94
, e suas implicações na vida do trabalhador
‘moderno’, assim como, das relações trabalhistas dessa época – pode ser
visto no filme Modern Times (1936) de Charles Chaplin (1889-1977).
Este diretor faz naquele filme uma crítica ao sistema de
produção em massa e ao capitalismo; aborda os problemas advindos do
episódio da grande depressão nos EUA, como o fechamento das fábricas, o
desemprego, a fome, a atuação dos sindicatos, as passeatas, as greves, etc.
No filme, podemos ver, também, o controle totalitário do sistema capitalista
nos comandos dados pelo chefe, por meio da tela virtual e na figura do
capataz musculoso que maneja as alavancas do sistema das máquinas e
impunha uma vigilância rígida sobre os operários-massa.
Em Modern Times, podemos ver as características tayloristas
utilizadas por Henry Ford, como a separação entre trabalho de concepção e
trabalho de execução e as inovações do sistema fordista: a linha de
montagem móvel e produção em massa de produtos padronizados, além do
típico operário sem muita formação e com pouco treinamento, como é o
caso do personagem de Chaplin, The tramp.
Em sua análise sobre organizações, Gareth Morgan, utilizando-
se de metáforas, vê as organizações da administração científica e da escola
clássica de administração planejadas e operadas de maneira mecânica,
94
ALVES, G. Tempos Modernos – Uma Análise do Filme, In Trabalho e Cinema
O Mundo do Trabalho Através do Cinema. São Paulo: Praxis, 2006
52
eficiente, confiável e previsível como uma máquina.
95
Essas organizações
são chamadas de burocracia – termo ligado ao sociólogo Max Weber – cujo
estudo concluiu que a burocracia rotiniza os processos de administração,
exatamente, como uma máquina.
No século XX, a partir da década de 50, houve uma ruptura
com o fordismo e com a visão mecanicista das organizações empresariais.
A idéia que possibilitou essa ruptura foi o toyotismo, termo cuja origem vem
da Toyota Motor, empresa fundada em 1933, no Japão. O termo toyotismo
está relacionado à automação, informatização, alta qualificação técnica dos
operários, responsabilização da equipe de execução pelo controle da
qualidade da produção e preocupação com as necessidades do consumidor.
Foi essa revolução da qualidade que projetou o Japão como um exemplo
mundial, a partir da década 80.
Após a segunda metade do século XX, houve a preocupação
com o ambiente e o comportamento humano na organização, que começou
a ser vista como um sistema complexo. A abordagem das relações
humanas, no pensamento gerencial, nasceu a partir do debate sobre a
importância da satisfação humana e do desenvolvimento pessoal no
trabalho.
A partir da década de 60, o reconhecimento da importância do
ambiente permitiu que as organizações começassem a ser vistas como
sistemas abertos. A Teoria Contingencial define que as “organizações são
sistemas abertos que necessitam de cuidadosa administração para
satisfazer e equilibrar necessidades internas, assim como adaptar-se a
circunstâncias ambientais”; Para ela,
“a administração deve estar preocupada acima de
tudo em atingir ‘boas’ medidas. Assim, diferentes
enfoques em administração devem ser necessários
para desempenhar diferentes atividades dentro da
95
cf. MORGAN, G. Imagens da Organização. 1996, p. 29.
53
mesma organização e, tipos bem diferentes ou
‘espécies’ de organização são necessários em
diferentes tipos de ambientes.”
96
Para estas abordagens, acima descritas, que enfocam a
adaptação da organização ao ambiente, Gareth Morgan, usa a metáfora do
organismo para a organização, comparando-a a um organismo vivo “na qual
as distinções e relações entre moléculas, células, organismos complexos,
espécies e ecologia são colocadas em paralelo com aquelas entre
indivíduos, grupos, organizações, populações de organizações e a sua
ecologia social.”
97
A partir daí, surgiram teorias estruturalistas com enfoque
comportamental e pensamento sistêmico, além da administração estratégica
e participativa que, hoje, fazem parte dos novos paradigmas da
administração. A palavra-chave da estrutura estratégica é a qualidade total
e, para tanto, ela exige uma potência ilimitada da empresa e indivíduos que
sejam grandes decisores, grandes comunicadores e grandes persuasores,
além da participação ativa de todos.
O planejamento foi substituído pela estratégia. Esta é, pois, a
nova concepção administrativa. Segundo o professor e escritor Eugene
Enriquez, “a estrutura estratégica é uma mistura sutil do modelo japonês,
que privilegia os esforços coletivos e não reconhece o indivíduo senão como
membro de um grupo do qual aceita as normas, (...) e do modelo americano,
que privilegia o esforço individual e o sucesso pessoal.”
98
As palavras-chave do novo paradigma da administração são:
crise; instabilidade; competição mundial; participação horizontal,
descentralizada, formadora e orientadora; responsabilidade de todos;
processos integrados; flexibilidade; polivalência; equipe; autocontrole;
96
MORGAN, G. Imagens da Organização. 1996, p. 53.
97
MORGAN, G. Imagens da Organização. 1996, p. 43.
98
ENRIQUEZ, E. “O indivíduo preso na armadilha da estrutura estratégica”. In MOTTA,
Fernando P. (org). Vida Psíquica e Organização. 2002, p. 28.
54
competência; iniciativa; ação, pró-ação; raciocínio; atenção total ao cliente;
aprendizagem; formação contínua; comunicação e coletivismo.
Atualmente, o processo de globalização exige uma nova
estrutura organizacional, pois o ambiente empresarial é totalmente diferente
do que foi no passado. Diante da internacionalização dos mercados, da curta
durabilidade dos produtos, da crescente importância do marketing e da
natureza mutável do trabalho, coloca-se uma série de exigências
inteiramente novas para o administrador.
José Pastore, sociólogo, especialista em relações do trabalho e
desenvolvimento institucional, expõe, da seguinte maneira, a questão
examinada no 12º. Congresso Mundial de Relações do Trabalho:
“para onde vai o mundo do trabalho? A conclusão é
que o mundo organizacional também passa por uma
transformação sem volta. Aponta que as novas
tecnologias e os novos métodos de produzir e vender
provocaram mudanças profundas nos velhos
paradigmas do emprego fixo, da proteção social e das
relações de trabalho.”
99
Este é o cenário da nova sociedade. A crise nas instituições, a
utilização de novas tecnologias de informação, a globalização do mercado, a
terceirização dos serviços e o aumento do trabalho informal. Segundo
Pastore, o modelo tradicional de empresa, com um diretor no topo, gerentes
e supervisores no meio e trabalhadores braçais na base, está saindo de
moda. Agora “as relações de trabalho ficaram mais livres, menos coletivas,
mais erráticas e menos controláveis”
100
Pastore ainda observa que
“os seres humanos acostumados à estabilidade do
emprego fixo, em uma só empresa, onde construíam
as suas carreiras até se aposentarem, estão sendo
99
PASTORE J. Mudanças no Modo de Trabalhar. In: A Evolução do Trabalho Humano.
2001, p. 87-88.
100
Idem, ibid, p. 88.
55
desafiados a fazer profunda reformulação mental para
poder viver num mundo onde o trabalho é realizado
nos mais variados nichos, em organizações que se
unem e desunem a cada momento, que seguem
ventos incontroláveis e sem destino certo.”
101
Em outro artigo, José Pastore comenta que “no passado, o
desenvolvimento dependeu dos ativos físicos – prédios, fábricas e
máquinas. Atualmente, depende dos ativos humanos – conhecimento,
relacionamento e instituições
102
.” Por conta disso, cita o livro The Fourth
Awakening, de autoria de Robert W. Fogel, que explica porque os países
desenvolvidos se desenvolveram. O motivo: investimento no ativo humano.
Esse tipo de investimento leva tempo, pois implica formação e educação,
além de disciplina, de estudo, zelo pelo trabalho e curiosidade para continuar
aprendendo sempre. E diz, ainda, que, não basta apenas o preparo
intelectual e a formação específica, é preciso que o trabalhador faça seu
trabalho com gosto e não apenas por obrigação.
103
Segundo Marisa Eboli, doutora em Administração pela FEA /
USP,
“exige-se cada vez mais das pessoas, em todos os
níveis hierárquicos, uma postura voltada ao auto
desenvolvimento e à aprendizagem contínua. Para
criar esse novo perfil as empresas precisarão
implantar sistemas educacionais que privilegiem o
desenvolvimento de atitudes, posturas e habilidades, e
não apenas a aquisição de conhecimento técnico e
instrumental”.
104
Em face dos novos eventos que estão acontecendo com
incrível velocidade, com o encolhimento do mundo do emprego e da
expansão do mundo do trabalho, urge que se façam mudanças nas
101
PASTORE, J. Mudanças no Modo de Trabalhar. In: A Evolução do Trabalho Humano.
2001, p. 89.
102
Idem, ibid., 2001, p. 171.
103
Idem, ibid., 2001, p. 171.
104
EBOLI, M.Educação Corporativa no Brasil – Mitos e Verdades.2004, p. 37.
56
organizações do trabalho. “O novo trabalho está requerendo novas
instituições”
105
.
Assim nota-se que as organizações de trabalho estão
buscando novos modelos administrativos que satisfaçam as necessidades
atuais, originadas pelas mudanças no mundo dos negócios e na sociedade.
No próximo capítulo, trataremos da disciplina nas atuais
organizações empresariais, abordando os modelos de práticas
administrativas de gestão de pessoas e as relações de força que a
compõem.
105
PASTORE, J. O Novo Mundo do Trabalho. In: A Evolução do Trabalho Humano. 2001,
p. 16.
57
3. A DISCIPLINA COMO DISPOSITIVO DO PODER NAS
ORGANIZAÇÕES EMPRESARIAIS.
3.1. As organizações e o poder
As organizações exercem uma forte influência em nossas
vidas. Transitamos por vários tipos de organizações, desde o nascimento até
a morte. Nas múltiplas situações – a maternidade, a escola, o trabalho, a
saúde, o lazer, as finanças – há sempre uma instituição ou uma organização
em nossas vidas.
As organizações são formadas por um grupo ou conjunto de
pessoas que se unem com um objetivo comum. As organizações
empresariais agrupam pessoas com o objetivo comum do trabalho. As
organizações de trabalho, como meio de realizar o trabalho produtivo e a
criação de valores econômicos, e estão entre as instituições atuais mais
importantes da sociedade e, ao contrário das comunidades, sociedades ou
famílias, são, propositalmente, concebidas e sempre especializadas. As
organizações de trabalho dependem da observância a normas e
procedimentos, por parte de seus funcionários, para que possam existir.
A palavra organização tem suas raízes etimológicas no grego,
organon, que significa ferramenta ou instrumento para o pensamento
58
correto.
106
Para Drucker, autor de vários livros sobre administração e
análises da economia e da sociedade, “uma organização é definida por sua
tarefa. [...] Uma organização é uma ferramenta. E como qualquer outra,
quanto mais especializada for, maior sua capacidade de desempenhar sua
tarefa.”
107
O termo ‘organização’, no sentido de organização empresarial ou
empresa, é recente:
“ninguém nos Estados Unidos – ou em qualquer outro
lugar – falou de ‘organizações’ até depois da Segunda
Guerra Mundial. The Concise Oxford Dictionary nem
mesmo listava o termo ‘organization’ em seu
significado atual na edição de 1950. Foi o surgimento
da administração, desde a Segunda Guerra mundial, o
que eu chamo de ‘Revolução da Administração’, que
nos permitiu ver que a organização é separada e
distinta das outras instituições da sociedade”.
108
Richard Daft, professor de Administração, da Vanderbilty
University, e consultor na área de administração estratégica, define
organizações como “entidades sociais que são dirigidas por metas,
desenhadas como sistemas de atividades deliberadamente estruturados,
coordenados e ligadas ao ambiente externo.”
109
Segundo Daft, o principal
elemento das organizações são as pessoas e seus relacionamentos. “Uma
organização existe quando as pessoas interagem para realizar funções
essenciais que auxiliam a alcançar metas”.
110
Para Robert Henry Srour,
-“as organizações podem ser definidas como
coletividades especializadas na produção de um
determinado bem ou serviço [...] e formam assim um
espaço em que agentes sociais, munidos de
instrumentos de trabalho, processam matérias-primas
e as transformam em produtos finais”.
111
106
Cf Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.2001,p.2079
107
DRUCKER, P. F. O Melhor de Peter Drucker: O Homem. 2001, p. 47
108
Idem, ibid.
109
DAFT, R. L. Organizações: Teoria e Projetos. 2002, p. 11.
110
Idem, ibid.
111
SROUR, Robert H. Poder, Cultura e Ética nas Organizações. 1998, p. 107-109.
59
Gareth Morgan, conhecido por suas contribuições em pesquisa
social, professor de Ciência da Administração na Universidade de York, em
Toronto, autor conceituado da área organizacional, analisa as organizações
empresariais, usando a noção de metáfora, comparando as organizações
com máquinas, organismos vivos, cérebros, culturas, sistemas políticos,
prisões psíquicas, fluxos e transformações e finalmente, como instrumentos
de dominação.
112
Morgan, em suas análises sobre as organizações, muito
contribuiu para uma melhor compreensão da vida das organizações e das
teorias administrativas a elas aplicadas. A metáfora do cérebro para a
organização corresponde à idéia de que a organização precisa de gestores
que desempenhem o papel de um cérebro na organização, que sejam a
inteligência organizacional, capazes de pensar, refletir, tomar decisões,
planejar, processar informações, controlar e integrar a atividade
organizacional.
A organização vista como cultura é outra metáfora de Morgan.
Para ele, “a organização é em si mesma um fenômeno cultural que varia de
acordo com o estágio de desenvolvimento da sociedade.”
113
A cultura é o
conjunto de valores, crenças, ritos e normas, ou seja, idéias, símbolos e
conhecimentos encontrados em toda sociedade. A metáfora da organização
como cultura “ajuda a reinterpretar a natureza e o significado das relações
da organização com o ambiente”,
114
facilitando a mudança organizacional.
Para Morgan, as mudanças organizacionais ocorrem paralelas às mudanças
da sociedade. Nesta metáfora, as organizações são vistas como fluxo e
transformação da vida social.
112
Cf. MORGAN, G. Imagens da Organização. 1996. 16-20
113
Idem, ibid, p. 116.
114
Idem, ibid, p. 141.
60
Para Morgan, é possível compreender as organizações como
sistemas de governo baseados em vários princípios políticos que legitimam
regras e normas que dirigem a vida organizacional.
“Ao reconhecer que a organização é intrinsecamente
política, no sentido de que devem ser encontradas
formas de criar ordem e direção entre as pessoas com
interesses potencialmente diversos e conflitantes,
muito pode ser aprendido sobre os problemas e a
legitimidade da administração como um processo de
governo e sobre a relação entre organização e
sociedade.”
115
É, sob este último aspecto, isto é, segundo as relações
políticas de interesses, conflitos e poder nas organizações empresariais, que
iremos tratar da questão do poder, e nela, a das relações de forças à luz do
pensamento de Michel Foucault. De modo geral, de acordo com Foucault,
“para analisar as relações de poder, só dispomos de dois modelos: o que o
Direito nos propõe (poder como lei, proibição, instituição) e o modelo
guerreiro ou estratégico em termos de relações de forças”.
116
Depois de
dizer que o modelo é ‘inadequado’ e que o estratégico ‘fica nas palavras’,
afirma: “penso que seria necessário tentar aprimorar esta análise das
relações de forças”.
117
Na direção de tentar aprimorar a análise do poder como
relações de forças, recorreremos, previa e inicialmente, a estudos de alguns
autores que – no campo da administração empresarial – têm procurado
compreender o significado do poder nas organizações empresariais, fora da
esfera do modelo jurídico.
Gareth Morgan aponta para o fato de que
“a maior parte dos teóricos em organização tende a
assumir como ponto de partida, a definição de poder,
dada pelo cientista político americano Robert Dahl,
115
MORGAN, G. Imagens da Organização. 1996, p. 146.
116
FOUCAULT, M. “Não ao Sexo Rei” In: Microfísica do Poder. 2001, p. 241.
117
Idem, ibid. p. 241.
61
sugerindo que o poder envolva habilidade para
conseguir que outra pessoa faça alguma coisa que, de
outra forma, não seria feita”.
118
É ainda Morgan quem, usando a metáfora da dominação, diz:
“as organizações têm sido associadas a processos de dominação social nos
quais indivíduos ou grupos encontram formas de impor a respectiva vontade
sobre os outros”.
119
Morgan também faz ver que a questão do poder nas
organizações e, portanto, da dominação, foi foco de estudo de Max Weber,
que identificou três tipos de dominação social que podem se tornar formas
de autoridade ou de poder: dominação carismática, dominação tradicional e
dominação racional-legal. A dominação carismática é exercida pela
influência de um líder carismático que possui qualidades e virtudes e
legitimada pela confiança que o liderado deposita no líder. A dominação
tradicional é aquela que se exerce pela tradição, pelo costume, pelo status
adquirido. A dominação racional-legal é o poder legitimado por leis, regras,
regulamentos e procedimentos.
120
Para Stephen Robbins, professor da Universidade do Arizona,
EUA, o poder exercido nas organizações se classifica em cinco categorias:
legitimidade, coerção, recompensa, talento e referência.
121
O poder legítimo
é assim chamado, porque aquele que o detém está situado numa hierarquia
que o legitima. O poder coercitivo é o controle dos outros, baseado no medo:
o empregado acata as ordens do superior que detém o poder porque tem
medo das conseqüências negativas, como perder o emprego, o status
adquirido, os benefícios indiretos etc. A ameaça de processo, por parte de
um empregado que sofreu uma injustiça, funciona como uma restrição ao
poder legítimo e é referida como poder subordinado. O poder de
recompensa é oposto ao poder coercitivo; com ele, as ordens são cumpridas
118
MORGAN, G. Imagens da Organização. 1996, p. 163.
119
Idem, ibid, p. 281.
120
Cf. MORGAN, G. Imagens da Organização. 1996, p. 283.
121
Cf. ROBBINS, S. P. Comportamento Organizacional. 2004, p. 343.
62
porque se espera uma recompensa, ou seja, algo em troca. Para que o
poder coercitivo seja eficaz, o empregado deve temer a punição e dar
importância ao fato de ser um membro da empresa. O poder do talento, ou
poder de perícia, é a capacidade de influenciar os outros em decorrência
da habilidade ou conhecimento específico de quem o detém. E, por fim, o
poder de referência é a habilidade de influenciar os outros, originado dos
traços e características pessoais desejáveis, é a admiração pelo outro e do
desejo de se parecer com ele. O poder de referência é um ponto de partida
para que alguém seja reconhecido como uma pessoa carismática. Este
poder é baseado no desejo que as pessoas têm de serem guiadas por um
indivíduo carismático ou de se identificar com ele. Temos como exemplo os
grandes líderes humanitários ou mesmo ainda os tiranos.
Na definição de Andrew Dubrin, o poder nas organizações “é o
potencial, ou a habilidade, de influenciar decisões e controlar recursos”.
122
Podemos ver, portanto, que, enquanto alguns teóricos das
organizações empresariais vêem o poder como um recurso, como algo que
se possuem, outros vêem o poder como uma relação social baseada na
influência sobre alguma coisa ou alguém. Mas, em meio a essas diferenças
de pontos de vista, eles têm em comum uma visão do poder que não cabe
na compreensão do poder estritamente em concordância com o modelo
jurídico. Sem pretender igualar os ângulos de análise ou descaracterizar as
diferenças de perspectivas, podemos dizer, contudo, que, também em
Foucault, o modelo jurídico não é o mais adequado para a descrição do
poder.
Para Foucault, o poder é uma relação de forças que se dá em
cadeia, em circulação e em todas as relações humanas.
“Devemos tomar o poder como um fenômeno de
dominação maciço e homogêneo – dominação de uns
indivíduos sobre os outros, de um grupo sobre os
outros, de uma classe sobre as outras -; (devemos) ter
122
DUBRIN, A. J., Fundamentos do Comportamento Organizacional. 2003, p. 302.
63
bem em mente que o poder ‘não é algo que se partilhe
entre aqueles que o têm e que o detêm
exclusivamente, e aqueles que não o têm e que são
submetidos a ele. O poder, acho eu, deve ser
analisado como uma coisa que circula, ou melhor,
como uma coisa que só funciona em cadeia.’”
123
Assim, em cadeia, em circulação e em todas as relações
humanas, o poder, como relações de forças, também se dá e pode ser
descrito nas organizações empresariais.
123
FOUCAULT, M. Em defesa da Sociedade. 2002, p. 34-35. Il Faut Défendre la société.
Cours au Collège de France, 1976. 1997, p. 27.
64
3.1. A disciplina nas atuais organizações empresariais
3. 2. 1. Retomando Foucault
Pretendemos, aqui, analisar como o pensamento de Foucault
sobre o poder e as disciplinas ajuda a entender os mecanismos de controle
existentes nas atuais organizações empresariais.
Para analisarmos a disciplina nas organizações empresariais,
lembremo-nos de que o poder que atua nas relações de forças é exercido
mediante vários dispositivos disciplinares que se compõem de técnicas com
suas respectivas funções e de instrumentos específicos. Resumidamente, as
técnicas, com suas funções, são as seguintes: distribuição dos indivíduos no
espaço, controle do tempo e das atividades, organização das gêneses e
composição das forças. E os instrumentos: vigilância hierárquica, sanção
normalizadora e exame.
124
Com a disciplina e seus dispositivos, aparece o poder da
norma, poder que ‘padroniza’, mas também introduz uma ‘diferenciação’
entre os indivíduos, atestada nas empresas por meio dos inúmeros cargos,
funções, posições e níveis.
Sem pretendermos abordar separadamente cada uma
daquelas técnicas e daqueles instrumentos já descritos, que compõem os
dispositivos disciplinares, mostraremos que eles podem ser identificados ou
reconhecidos nas atuais organizações empresariais.
124
Veja-se a descrição destas técnicas e funções em nosso item 1.3.1., p. 17-20. E a
descrição destes instrumentos em nosso item 1.3.2., p. 21-24.
65
O controle do espaço, por exemplo, é feito por meio do
enclausuramento e do quadriculamento. Os espaços fechados comportam
“cada indivíduo no seu lugar; e em cada lugar um indivíduo.”
125
O espaço
recortado pela tática da disciplina tende a se dividir em tantas partes quantos
são os indivíduos, os corpos. A disciplina procede, assim, para conhecer,
vigiar, utilizar. Este procedimento visa controlar presenças e ausências,
rigorosamente, e vigiar os comportamentos de cada um, a todo instante.
Nas grandes empresas, um fato determinante para esta
vigilância foi a mudança no layout interno. No início da década de 90, com o
boom do que foi denominado de reengenharia
126
, já se havia pensado que
uma maior produtividade e, conseqüentemente, um maior controle, poderia
ocorrer se todos trabalhassem juntos em um mesmo espaço, dividido por
áreas ou setores. Houve, portanto, o que ficou conhecido como a ‘queda das
paredes’. Este modelo foi seguido por várias empresas durante um curto
período, mas, em muitas corporações, foi um fracasso. Optou-se, então,
pelo ‘rebaixamento das baias’ e por salas envidraçadas para os cargos mais
elevados, de onde seus ocupantes pudessem vigiar seus subalternos. O
modelo arquitetural deste dispositivo é, de certa maneira, uma modalidade
do Panóptico de Bentham. Procedimentos arquiteturais fazem parte das
táticas disciplinares. Dois elementos, aqui, se entrecruzam: vigilância e
utilidade.
O controle do tempo e das atividades é feito por métodos de
vigilância, tais como: o cartão de ponto (atualmente substituído pelo ponto
eletrônico, mas que tem a mesma conotação, com eficácia superior); os
crachás de identificação (diferenciados, demarcando o ‘nível’ de cada um);
os uniformes distintos para cada setor; nas câmeras em pontos estratégicos
(dependendo do estabelecimento, com múltiplas funções, controlar visitantes
125
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. 2003, p. 123. Surveiller et punir, 2006, p. 168.
126
Mudança que envolve um repensar radical da forma como a organização gere o seu
negócio, incluindo a pertinência ou não de algumas das suas atividades. Michael Hammer,
ex-professor do MIT, é considerado o autor desta teoria inovadora e radical. Referiu-se pela
primeira vez ao tema no artigo publicado em 1990 pela Harvard Business Review.
66
e clientes, e vigiar o empregado); e o olhar vigilante dos patrões, chefes,
subchefes, supervisores e colegas.
A vigilância contínua é garantida pelo uso de métodos que
permitem a automática mensuração e classificação dos indivíduos. Além
disso, são utilizadas técnicas de exame, instrumento de saber da disciplina,
que permite conhecer o funcionário: seus dados pessoais, sua formação,
suas competências e habilidades, sua personalidade, sua saúde. O exame é
utilizado nas empresas, inicialmente, sob a forma de entrevistas de
contratação, testes de personalidade, testes psicológicos, na auto-avaliação
por meio de depoimentos pessoais e na avaliação de desempenho.
Nas empresas, antes mesmo do funcionário ser contratado, ele
é examinado por meio do curriculum vitae (enviado por uma consultoria
especializada ou pelo próprio candidato); da pesquisa realizada em
empregadores anteriores; das entrevistas individuais; dos testes
psicotécnicos e de personalidade; dos exames médicos, por meio da
observação do candidato em seu cotidiano e seu comportamento social;
através da entrevista com a família e buscando outras conexões que este
candidato possa ter em algumas comunidades virtuais e sites de
relacionamento.
Após o processo seletivo ser concluído e o candidato ser
contratado, o processo do exame continua por meio das avaliações
seqüenciais. Em algumas grandes empresas, uma nova prática vem sendo
utilizada para cargos de liderança, denominada ‘avaliação 360 graus’, pelo
fato de ser feita por pares, colegas, subordinados, superiores, clientes
internos e, em alguns casos, por clientes externos. Para determinadas
funções, há, também, avaliações mensais. Para cargos mais altos, existem
avaliações semestrais e anuais, que podem ser feitas pelo superior imediato,
paralelamente à auto-avaliação,sendo que, normalmente, será soberana a
avaliação do superior imediato.
67
Durante todo esse processo, desde sua candidatura, e daí por
diante, o funcionário é vigiado pelos superiores, por seus colegas, pelas
câmeras. Caso infrinja alguma regra, sofre alguma sanção. Toda essa
forma de vigilância disciplinar é feita por meio do controle do espaço (o
confinamento), do tempo (os horários, as rígidas metas a serem cumpridas,
as normas a serem obedecidas), e das atividades (a produção).
3. 2. 2. A disciplina e as novas tecnologias
A tecnologia utilizada nas organizações empresariais modernas
também tem servido como instrumento de poder, mediante ao aumento das
habilidades do homem em controlar e impor-se sobre o ambiente
corporativo. Um dos exemplos disso é o uso dos recursos da Tecnologia de
Informação, que se transformou, nos últimos anos, em uma das premissas
básicas da qualidade e eficiência da gestão, pois no mundo contemporâneo
a celeridade se materializa em produtividade e lucro. Fundamentadas
nessas premissas, com o objetivo de agilizar processos e flexibilizar a
comunicação, as empresas oferecem ferramentas eletrônicas aos seus
empregados, tais como computadores, acesso à Internet e contas de e-mail.
Mas, segundo alguns estudos
127
, a utilização de tais recursos
é freqüentemente desvirtuada, expondo o empregador a inúmeros riscos
legais, tais como o envio, pelo empregado, de mensagens
pornográficas, violentas, caluniosas, contendo vírus e capazes de
127
Estudos divulgados nos EUA mostram que, no ambiente de trabalho com acesso a
Internet, 87% das pessoas usam o correio eletrônico para assuntos não relacionados ao seu
trabalho, 21% dos empregados divertem-se com jogos e piadas, 16% planejam viagens,
10% mandam dados pessoais e procuram outros empregos, 3% conversam em sites de
bate-papo, 2% visitam sites pornográficos. Fonte: Revista Management 2000.
68
fundamentar processos por danos morais ao denegrir a imagem do
empregador, além do conseqüente prejuízo causado pela perda da
produtividade e pela lentidão da rede.
A adoção de uma política de monitoramento do e-mail
corporativo e de fiscalização da Internet encontra, inclusive, suporte legal no
princípio da proteção da propriedade privada, previsto na Constituição
Federal Brasileira, e no poder diretivo do empregador, apontado no artigo 2º
da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Além disso, o novo Código
Civil, em seu artigo 932, inciso III, não deixa dúvidas quanto à
responsabilidade objetiva do empregador de reparar os danos que o
empregado venha a causar no exercício de suas atividades profissionais, o
que reforça a necessidade que a empresa tem de controlar o uso que seus
empregados fazem dos meios de produção.
Para as empresas, o e-mail corporativo, utilizado pelo
empregado, deve ser entendido como uma ferramenta de trabalho adquirida
para a consecução dos negócios da empresa, e não um instrumento para a
comunicação privada. Quem realiza a comunicação pelo e-mail corporativo
é, em qualquer circunstância, a empresa e não o empregado. Portanto, o
monitoramento do uso do e-mail corporativo não difere dos demais controles
realizados pela empresa, e tem a finalidade de assegurar o uso adequado
deste recurso.
128
“As organizações conseguem atingir suas finalidades e
manter a disciplina e a coesão internas através de
controles variados e concomitantes – as contribuições
materiais, as coerções físicas e as sanções morais”.
129
128
Uma notícia publicada em O Estado de São Paulo, 13 de novembro de 1999, pág. B-11,
comprova que nos EUA é comum as empresas contratarem profissionais especializados
para “monitorar o uso da Internet e o correio eletrônico de todos os funcionários, do
almoxarifado aos escritórios dos executivos.” O software utilizado por esses espiões alerta
com precisão quando o empregado visita todo tipo de site: de compras, classificados,
negociação de ações, pornografia e jogos.
129
SROUR, Robert H. Poder, Cultura e Ética nas Organizações. 1998, p. 142.
69
O objetivo do poder disciplinar subentende, portanto, adestrar,
treinar, examinar, vigiar, normalizar, sancionar, coibir e, conseqüentemente,
punir ou recompensar. Esse exercício constitui um elemento de duplo
processo: mérito e punição. Metas atingidas, melhores desempenhos, bom
comportamento e bons relacionamentos nas empresas, significam
funcionários laureados, enquanto metas não cumpridas significam punição,
perseguição, rebaixamento e, muitas vezes, demissão.
“Na organização taylorista, a mera repetição do
trabalho e a reprodução do conhecimento eram
suficientes para um bom resultado nos negócios. A
relativa estabilidade do ambiente externo permitia a
separação entre concepção do trabalho e sua
realização. À cúpula administrativa cabia a
responsabilidade de analisar, interpretar e prospectar
o ambiente dos negócios e criar normas, manuais e
regras que deveriam ser seguidos por todos na
empresa.”
130
A abordagem de controle usada até hoje nas organizações é
baseada no poder da hierarquia, também chamada de ‘comando e controle’.
Ou seja, a fórmula para o controle é o incentivo para estimular o
cumprimento das normas e a punição para desestimular o não cumprimento
delas. Esses incentivos, assim como as punições, ajudam a moldar o
comportamento do funcionário na empresa.
Em muitas empresas, porém, onde o trabalho é produto da
atividade mental e do raciocínio, as formas de controle e disciplina não
incidem mais sobre o corpo do trabalhador, ou sobre a sua capacidade de
realizar gestos com regularidade e rapidez, mas sobre a sua estrutura
psíquica, ou seja, sobre sua mente, suas emoções e sentimentos.
Podemos ver, portanto, que as políticas de gestão
administrativas instrumentalizam métodos de poder disciplinar que são
incorporados por práticas de gestão de pessoas, como recrutamento e
130
EBOLI, M. Educação Corporativa no Brasil: Mitos e Verdades. 2004, p. 37.
70
seleção, descrição de cargos e salários, promoção por tempo de serviço,
esquemas de classificação e premiação, sistemas de avaliação de
desempenho, escalas de mensuração de atitudes, e outros esquemas de
avaliação, baseados em fatores de compensação material ou psicológica.
3. 2. 3. A disciplina e auto-regulação
Em função do aprimoramento da disciplina e da estratégia,
para conquistar a adesão às normas e a interiorização das regras de uma
empresa pelos seus funcionários, dois pesquisadores, Steven Blader,
professor do Departamento de Administração de Empresas da NYU Stern, e
Tom Tyler,
professor do Departamento de Psicologia da New York
University, formularam a abordagem da chamada auto-regulação (conforme
artigo publicado sobre sua pesquisa).
131
Neste artigo, os autores falam desta abordagem, com base em
pesquisas psicossociais, defendendo que a auto-regulação pode ser o
melhor meio para se obter, não só a colaboração dos funcionários, mas
também o compromisso para com a empresa. Desse modo, em vez de
utilizar incentivos ou punições, o segredo para esse compromisso está na
criação de empresas capazes de fazer com que seus funcionários desejem
seguir as regras. Trata-se de ativar um desejo intrínseco de agir deste modo.
Nas avaliações das pesquisas acima citadas, encontra-se que,
quando os funcionários percebem uma congruência entre seus valores e
os valores da empresa, há uma motivação natural para seguir as suas
131
HSM Management. Ano 9. no.53 Vol. 6 - novembro-dezembro 2005.
71
regras, e reconhecem a competência e a legitimidade do poder atribuído às
pessoas que ocupam cargos acima na hierarquia da empresa.
A conclusão da pesquisa confirma que, com a abordagem da
auto-regulação, as pessoas acatam mais as normas e a desobediência é
desestimulada. Além do que, prova ser mais eficaz e mais eficiente do que
os mecanismos de ‘comando e controle’, porque os funcionários assumem a
responsabilidade de seguir as regras por conta própria. Assim, a disciplina
deixa de ser coercitiva ‘de fora para dentro’ e passa a ser ‘auto-induzida’,
pois, como controlar o incontrolável como a criatividade, a autonomia e a
iniciativa alheias senão por meio de uma indução ao auto-controle?
A idéia de que é preciso fomentar no indivíduo a auto-
regulação parece ter duas preocupações; por um lado, a preocupação com a
liberdade, pois o maior valor das organizações está nas idéias e nas
pessoas e, por isso, ressurge a preocupação com uma liberdade mais ampla
para os funcionários; e, por outro lado, a necessidade da empresa ter um
controle sobre como o funcionário pode lhe ser útil, a fim de que possa
efetivamente se engajar na organização, porque a auto-regulação só é
possível quando
“reflete a crença do empregado na missão e objetivos
da empresa, sua vontade de despender esforço para a
respectiva consecução e intenções de continuar nela
trabalhando. [...] Funcionários identificados com a
organização apresentam, de hábito, bons índices de
comparecimento ao trabalho, atitudes favoráveis em
relação às políticas organizacionais e baixas taxas de
rotatividade.”
132
Dessa forma, a lógica disciplinar pode aparecer como uma
concepção estrategista da organização, por meio do desempenho e da
excelência, ou mobilizando forças dos indivíduos, suscitando a idealização
do seu ser e de suas práticas, para, dessa forma, favorecer o surgimento de
132
DAVIS, K. Comportamento Humano no Trabalho. 1998, p. 126.
72
condutas performáticas.
133
Nesse sentido, podemos inferir que a empresa,
pela sua visão pragmática do mundo, acaba transferindo aos seus
funcionários o seu sistema de crenças, valores e normas.
Já Max Pagès, quando professor de psicologia na Universidade
de Paris III, juntamente com seus colaboradores, desenvolvera uma
pesquisa em uma grande organização multinacional sediada na França. Os
resultados desta pesquisa, que mostram a importância da identificação
afetiva e intelectual dos indivíduos em relação à organização, revelam o
caráter sutil do poder disciplinar. A hipótese de Pagès é de que a empresa
propõe aos seus membros um ideal coletivo que capta o seu ideal de ego. A
conseqüência disso é “a introjeção pelos indivíduos das exigências fixadas
pela organização”.
134
E isso vai permitir que a empresa canalize, ao máximo,
a energia de seus funcionários, obtendo, dessa forma, resultados
satisfatórios, sem precisar recorrer ao sistema de incentivos ou punição.
Para tanto, a organização exige dos indivíduos idealização e
identificação, estabelecendo um processo de psico-banalização dos
problemas[...] colocando o indivíduo no centro do universo, “[...] onde tanto o
sucesso quanto o fracasso jamais são imputados à estrutura da
organização, mas à atitude do indivíduo, que deve, a cada momento,
superar todas as novas provas que tem a enfrentar.”
135
É, portanto, por
meio desta identificação despersonalizante que o trabalhador das atuais
organizações empresariais é facilmente transformado, como considera
Foucault, em corpo dócil, ou melhor, corpo dócil e útil – essência do poder
disciplinar.
133
cf. ENRIQUEZ, E. “Vida Psíquica e Organização”. In: MOTTA, F. (org) Vida Psíquica e
Organização. 2002, p. 19.
134
PAGÈS, Max et al. O Poder das Organizações. 1987, p. 158.
135
ENRIQUEZ, E. “Vida Psíquica e OrganizaçãoIn: MOTTA, F. (org) Vida Psíquica e
Organização. 2002, p. 20.
73
3. 2. 4. Algumas reflexões
As organizações empresariais e os modelos administrativos,
sem dúvida, vêm se transformando ao longo do tempo, mas, pode-se dizer
que certo pano de fundo permanece o mesmo. Hoje, por exemplo, a jornada
de trabalho não é tão longa quanto no passado, e benefícios são
adicionados ao salário, mas o controle do tempo trabalhado é, praticamente,
o mesmo, com a única diferença de que a tecnologia tornou mais fácil o
trabalho do vigilante, e por meio deste, o da empresa. A punição em forma
de multa é a mesma, e consta das leis trabalhistas. O indivíduo continua
sendo despersonalizado, ou melhor, representado (personalizado) por mãos
que laboram; máquinas de produzir.
Isso significa que, embora a tecnologia e os modelos
administrativos tenham se transformado nestes quase dois últimos séculos,
permanece ainda, por meio das relações de forças, a disciplina com todos os
seus dispositivos de controle, como o controle do tempo e das atividades, a
vigilância das hierarquias, a sanção normalizadora e o binômio estímulo –
recompensa. O que mudou foi, apenas, a forma de se utilizar estes
mecanismos.
Refletindo sobre o que foi exposto até aqui, podemos levantar
alguns questionamentos. É preciso saber se o olhar vigilante da empresa
continua, cada vez mais, moralizando condutas, modelando
comportamentos, fazendo os corpos entrarem numa máquina e as forças
numa economia. Também é necessário saber se as novas técnicas de
gestão administrativa mascaram o poder disciplinar, procurando cada vez
mais abarcar todo o universo do indivíduo, sua vida física, mental,
emocional. Além disso, é válido pensar se os benefícios como bônus, planos
de saúde, assistência dentária, vale-transporte, cesta básica, entre outros,
seriam mecanismos de estímulo atuando como controle. Por fim faz-se
necessário saber se os programas de treinamento poderiam ser
74
classificados como ‘adestramento’ para enquadrar os empregados nas
regras e normas disciplinares.
Com base nesses questionamentos poderíamos, então,
concluir que o poder que é exercido através do controle da disciplina pelas
hierarquias nas organizações empresariais provoca a submissão nos
trabalhadores? Se assim for, por que os trabalhadores se submetem a esse
exercício? Seria uma questão de ordem econômica para a sobrevivência
aliada a uma pseudo-segurança do empregado? Ou é resultado político e
econômico do poder mantido pelas relações de força que operam por meio
de hierarquias? Porque...
“[...] na base, no ponto em que terminam as redes de
poder, o que se forma, não acho que sejam ideologias.
É muito menos e, acho eu, muito mais. São
instrumentos efetivos de formação e de acúmulo de
saber, são métodos de observação, técnicas de
registro, procedimentos de investigação e de pesquisa,
são aparelhos de verificação. Isso quer dizer que o
poder, quando se exerce em seus mecanismos finos,
não pode fazê-lo sem a formação, sem a organização
e sem pôr em circulação um saber, ou melhor,
aparelhos de saber que não são acompanhamentos
ou edifícios ideológicos.”
136
No próximo capítulo, pautados nos escritos de Foucault, e
relacionando esta dissertação a Deleuze,
137
faremos um breve paralelo
entre a sociedade disciplinar e a atual sociedade de controle, sob o ponto de
vista do poder.
136
FOUCAULT, M.. “Aula de 14 de Janeiro de 1976, no College de France” In: Em Defesa
da Sociedade. 2002, p. 40. Il Faut Défendre la société. Cours au College de France, 1976.
1997, p. 30.
137
Gilles Deleuze, filósofo contemporâneo de Foucault, autor de inúmeros livros, muitos dos
quais foram escritos com a parceria com Félix Guattari.
75
4. DA SOCIEDADE DISCIPLINAR À SOCIEDADE DE
CONTROLE
Foucault descreve, em Vigiar e Punir (1975), o nascimento da
sociedade disciplinar, na qual se fabrica indivíduos para serem “submissos e
exercitados corpos dóceis”.
138
O aparecimento das disciplinas corresponde
a uma mudança histórica que marca a transição entre o poder da monarquia
– corpo do rei, e a sociedade disciplinar – corpo do indivíduo.
“Em suma, substituir um poder que se manifesta pelo
brilho dos que o exercem, por um poder que objetiva
insidiosamente aqueles aos quais é aplicado; formar
um saber a respeito destes, mais que patentear os
sinais faustosos da soberania. Em uma palavra, as
disciplinas são o conjunto das minúsculas invenções
técnicas que permitiram fazer crescer a extensão útil
das multiplicidades, fazendo diminuir os
inconvenientes do poder que, justamente para torná-
las úteis, deve regê-las.”
139
A sociedade disciplinar está atrelada a processos históricos,
econômicos, jurídicos, políticos e científicos. Se, no início, o papel das
disciplinas era neutralizar os perigos, fixar as populações inúteis ou agitadas
e corrigir os que se desviavam da norma, na Idade Moderna seu papel
passou a ser o de fabricar ‘corpos dóceis e úteis’, isto é, preparar indivíduos
para a produção manufatureira e a transmissão de conhecimentos,
garantindo, ainda, que se encaixassem na ‘norma’. Dessa forma, as
disciplinas deixam de ser essencialmente repressoras para se tornarem
também, produtoras.
138
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. 2003, p. 119. Surveiller et punir. 2006, p. 162.
139
Idem ibid, p. 181.; idem, ibid, p. 256.
76
Entre os processos históricos constitutivos ao surgimento da
disciplina estão: o econômico, pois a disciplina fabrica indivíduos úteis e
produtivos; o jurídico, pois agora o condenado é confinado numa prisão; o
político, pois se constitui o indivíduo submisso e dócil para ser governado; e,
finalmente, o científico, pois o indivíduo se transforma em ‘caso’ para ser
examinado, classificado e qualificado dentro da norma. Os que se desviam
dela são separados, isolados e confinados, para, posteriormente, serem
corrigidos, vigiados e punidos.
Segundo Foucault, quando a burguesia tomou o poder político,
houve a necessidade de adaptar as estruturas do exercício do poder aos
seus interesses econômicos. Assim, a forma para controlar a população
plebéia, popular, operária e camponesa foi a de colocá-la sob uma vigilância
generalizada.
140
A sociedade disciplinar governa por meio do poder
disciplinar, com seus mecanismos e dispositivos próprios, para vigiar, punir e
examinar através da ‘máquina panóptica’.
As disciplinas se tornaram fórmulas gerais de dominação, no
decorrer dos séculos XVII e XVIII, devido à sua forma de incidir o poder.
“No final do século XVIII, a sociedade instaurou um
modo de poder que não se fundamentava sobre a
exclusão – é ainda o termo que se emprega – mas,
sobre a inclusão no interior de um sistema no qual
cada um devia ser localizado, vigiado, observado noite
e dia, no qual cada um devia ser acorrentado à sua
própria identidade.”
141
Foucault se refere, aqui, ao Panóptico de Bentham. “O
panoptismo é o princípio geral de uma nova ‘anatomia política’, cujo objetivo
e fim não são a relação da soberania, mas as relações da disciplina.”
142
140
FOUCAULT, M. “Sobre o Internamento Penitenciário”. In: Estratégia Poder-saber.
Coleção Ditos e Escritos IV. 2003, p. 70. “À propôs de l´entermement penitentiaire’’. In: Dits
et Écrits II. 2001, p. 1304.
141
FOUCAULT, M. Diálogo sobre o Poder . In: Estratégia Poder-saber. Coleção Ditos e
Escritos IV. 2003, p. 255. Dialogue Sur Le Pouvoir . In: Dits et Écrits. 2001, p. 466.
142
______________. Vigiar e Punir. 2003, p. 172. Surveiller et punir. 2006, p. 243.
77
O modelo perfeito do poder disciplinar está proposto no projeto
benthaminiano do Panóptico, ao qual o poder se relaciona, embora não de
forma dependente, com as estruturas político-jurídicas da sociedade, pois
corresponde ao processo técnico da coerção.
“Com o panoptismo, temos a disciplina-mecanismo:
um dispositivo funcional que deve melhorar o exercício
do poder tornando-o mais rápido, mais leve, mais
eficaz, um desenho das coerções sutis para uma
sociedade que está por vir. O movimento que vai de
um projeto ao outro, de um esquema da disciplina
de exceção ao de uma vigilância generalizada,
repousa sobre uma transformação histórica: a
extensão progressiva dos dispositivos de disciplina ao
longo dos séculos XVII e XVIII, sua multiplicação
através de todo o corpo social, a formação do que se
poderia chamar grosso modo sociedade disciplinar”.
143
Essa ‘tecnologia’ foi sendo desenvolvida e aplicada cada vez
mais no decorrer dos séculos XVIII e XIX. Podemos vê-la, primeiramente,
nos colégios, conventos, hospitais, exércitos, fábricas e prisões. Assim,
estas instituições foram se tornando instituições disciplinares, com o objetivo
comum de instruir, treinar, separar, classificar, tornar o indivíduo útil e
produtivo.
“A pirâmide disciplinar constituiu a pequena célula de
poder no interior da qual a separação, a coordenação
e o controle das tarefas foram impostos e tornaram-se
eficazes; e o quadriculamento analítico do tempo, dos
gestos, das forças dos corpos, constituiu um esquema
operatório que pôde facilmente ser transferido dos
grupos a submeter para os mecanismos de produção;
a projeção maciça dos métodos militares sobre a
organização industrial foi um exemplo dessa
modelação da divisão do trabalho a partir de
esquemas de poder”.
144
143
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. 2003, p. 173. Surveiller et punir. 2006, p. 244.
78
A disciplina é um tipo de poder, uma tecnologia que utiliza,
como vimos nos capítulos anteriores, um conjunto de instrumentos, técnicas
e procedimentos para exercê-lo. E, como destacou Foucault, ela não pode
ser confundida com uma instituição, nem com um aparelho. “Geralmente se
chama instituição todo comportamento mais ou menos coercitivo, aprendido.
Tudo que em uma sociedade funciona como sistema de coerção, sem ser
enunciado, ou seja, todo o social não discursivo é a instituição.”
145
As instituições são o grande locus do exercício da disciplina.
Nelas, a arquitetura vigilante do Panóptico, já descrita anteriormente, não
cessou de fazer crescer a arte da disciplina. O Panóptico foi um dos
mecanismos que permitiu ao poder disciplinar exercer-se com sucesso,
nestes locais institucionais que Foucault chamou também de ‘instituições de
seqüestro’.
As instituições, com seus mecanismos de controle, são
“parte de uma espécie de grande forma social de
poder que foi estabelecido no início do século XIX, e
que, sem dúvida, foi uma das condições de
funcionamento da sociedade industrial. [...] Para que o
homem transformasse seu corpo, sua existência e seu
tempo em força de trabalho, e a pusesse à disposição
do aparelho de produção que o capitalismo buscava
fazer funcionar, foi preciso todo um aparelho de
coações; e me parece que todas essas coações que
atingem o homem desde a creche e a escola o
conduzem ao asilo de velhos, passando pela caserna
[...] à prisão ou ao hospital psiquiátrico. Todas essas
coações estão referidas a um mesmo sistema de
poder. Na maioria dos outros domínios, essas
instituições se abrandaram, mas sua função
permaneceu a mesma. Hoje, as pessoas não são
mais enquadradas pela miséria, mas pelo consumo.
Tal como no século XIX, mesmo se é sob um outro
modelo, elas continuam capturadas em um sistema de
crédito que as obriga (se compraram uma casa,
móveis...) a trabalhar todo o santo dia, a fazer hora
extra, a permanecer ligadas. A televisão oferece suas
145
FOUCAULT, M. “Sobre a história da sexualidade.” In: Microfísica do Poder. 2001, p. 247.
79
imagens como objeto de consumo e impede as
pessoas de fazer o que se temia tanto, já no século
XIX, ou seja, ir aos bistrôs onde se faziam reuniões
políticas, onde os reagrupamentos parciais, locais e
regionais da classe operária corriam o risco de
produzir um movimento político, talvez a possibilidade
de derrubar todo esse sistema.
146
Segundo Deleuze, Foucault analisou muito bem as instituições
e as disciplinas, “[...] mas as disciplinas, por sua vez, também conheceriam
uma crise, em favor de novas forças que se instalavam lentamente e que se
precipitariam depois da Segunda Guerra Mundial: sociedade disciplinar é o
que já não éramos mais, o que deixávamos de ser.”
147
Aliás, é o próprio
Foucault quem também afirma que “a disciplina, que era eficaz para manter
o poder, perdeu uma parte de sua eficácia. Nos países industrializados, as
disciplinas entram em crise.”
148
A partir da segunda metade do século XX, a sociedade
disciplinar entrou num período de declínio, quando a rapidez das mudanças
nas tecnologias de informação, alinhadas a processos econômicos, políticos,
jurídicos e científicos, está construindo uma nova modalidade de poder.
Pode-se falar de um poder que nos empurrou do imperialismo econômico ao
capitalismo globalizado, de nova sociedade – a sociedade de controle. São
as sociedades de controle que estão substituindo as sociedades
disciplinares. ‘Controle’ é o nome que Burroughs
149
propõe para designar o
novo monstro, e que Foucault reconhece como nosso futuro próximo.”
150
Essas novas forças que levariam à crise das disciplinas, às
quais Deleuze se refere, estão relacionadas à crise nas instituições.
146
FOUCAULT, M. “Prisões e Revoltas nas Prisões”. In: Estratégia, poder-saber. Coleção
Ditos e Escritos IV. 2003, p. 67. “Prison et Revoltes dans les Prisons. » In : Dits et Écrits II.
2001, p. 1299.
147
DELEUZE, Gilles. Conversações. 1992, p. 219-226.
148
FOUCAULT, M. “A Sociedade Disciplinar em Crise” In: Estratégia, poder-saber. Coleção
Ditos e Escritos IV. 2003, p. 268. “La Société Disciplinaire en Crise”. In : Dits et Écrits. II.
2001, p. 552
149
Escritor norte-americano da geração beat, cunhou a expressão “Sociedade de Controle”.
150
DELEUZE, G. Conversações: 1972 – 1990. Post-Scriptum, 1992, p. 219-226.
80
“Encontramo-nos numa crise generalizada de todos os
meios de confinamento, prisão, hospital, fábrica,
escola, família. A família é um ‘interior’, em crise como
qualquer outro interior, escolar, profissional, etc.“
151
A crise nas instituições pode ser detectada por meio das novas
modulações dos dispositivos do poder. Para Deleuze, esta crise
generalizada nas instituições coincide com o surgimento da chamada
sociedade de controle, que apresenta, no lugar do confinamento, a abertura
sem fronteira. Nos hospitais, aparecem outras formas assistenciais como o
hospital-dia e o programa de atendimentos em domicílio. Na escola, aparece
o programa de educação à distância mediado pelo computador. Nas prisões,
a adoção de penas alternativas e o uso da coleira eletrônica que possibilita
acompanhar os passos de um detento a qualquer hora e em qualquer lugar,
com sua própria anuência, em troca da atenuação da pena. O espaço
confinado das fábricas substitui o espaço dinâmico da empresa. O
trabalhador pode realizar o seu trabalho não só dentro da empresa, mas na
rua, em casa, em qualquer lugar, pelo celular ou computador.
O poder disciplinar do modelo taylorista/fordista da produção
conseguiu ser eficiente na sociedade disciplinar, mas, na sociedade de
controle o poder aparece disseminado e interpenetrado nas malhas
globalizadas das relações sociais. No século XXI, a eficiência do controle
está atrelada à capacidade tecnológica; o controle é a tecnologia de poder
mais eficiente dos tempos atuais. A vigilância não incide mais sobre um
espaço confinado, agora o espaço é aberto (globalização) e também virtual.
A internet é o modelo Panóptico da sociedade de controle, do mundo pós-
moderno.
Ainda na esteira dessas mudanças, Deleuze aponta que, na
sociedade disciplinar, as informações eram organizadas de forma vertical e
hierárquica; na sociedade de controle, não há mais o par da opacidade do
151
DELEUZE, G. Conversações: 1972 – 1990. Post-Scriptum, 1992, p. 219-226.
81
poder e da transparência do indivíduo. O poder hoje está disseminado em
todos os nós da rede das relações de poder. Ele é horizontal e impessoal.
“O controle é de curto prazo e de rotação rápida, mas também
contínuo e ilimitado, ao passo que a disciplina era de longa duração, infinita
e descontínua”.
152
“O homem da disciplina era um produtor descontínuo de
energia, mas o homem do controle é antes ondulatório, funcionando em
órbita, num feixe contínuo.
153
Nas sociedades disciplinares, “a assinatura indica o indivíduo,
e o número de matrícula indica sua posição numa massa.”
154
Nas
sociedades de controle, ao contrário, o indivíduo não é mais identificável por
uma assinatura, mas sim, por uma senha, um código, uma cifra que marca o
acesso ou não à informação.
“Não é uma evolução tecnológica sem ser, mais
profundamente, uma mutação do capitalismo. É uma
mutação já bem conhecida que pode ser resumida
assim: o capitalismo do século XIX é de concentração,
para a produção, e de propriedade. Por conseguinte,
erige a fábrica como meio de confinamento, o
capitalista sendo o proprietário dos meios de
produção, mas também eventualmente proprietário de
outros espaços concebidos por analogia (a casa
familiar do operário, a escola). Quanto ao mercado, é
conquistado ora por especialização, ora por
colonização, ora por redução dos custos de produção.
Mas, atualmente, o capitalismo não é mais dirigido
para a produção, relegada com freqüência à periferia
do Terceiro Mundo, mesmo sob as formas complexas
do têxtil, da metalurgia ou do petróleo. É um
capitalismo de sobre-produção. Não compra mais
matéria-prima e já não vende produtos acabados:
compra produtos acabados, ou monta peças
destacadas. O que ele quer vender são serviços, e o
que quer comprar são ações. Já não é um capitalismo
dirigido para a produção, mas para o produto, isto é,
152
DELEUZE, G. Conversações: 1972 – 1990. Post-Scriptum, 1992, p. 219-226.
153
Idem, ibid.
154
Idem, ibid.
82
para a venda ou para o mercado. Por isso ele é
essencialmente dispersivo, e a fábrica cedeu lugar à
empresa”.
155
O capitalismo praticado hoje é bem retratado na
empresa, por meio do marketing, que é o dispositivo por excelência da
sociedade de controle, que, criando um mundo onde a motivação de
consumo, aliada à idéia de que para ser é preciso ter, mantém o homem
produzindo para consumir. E é justamente aí que o indivíduo é preso nas
malhas do controle. “O homem não é mais o homem confinado, mas o
homem endividado”.
156
“A velha toupeira monetária é o animal dos meios de
confinamento, mas a serpente o é das sociedades de
controle. Passamos de um animal a outro, da toupeira
à serpente, no regime em que vivemos, mas também
na nossa maneira de viver e nas nossas relações com
outrem. O homem da disciplina era um produtor
descontínuo de energia, mas o homem do controle é
antes ondulatório, funcionando em órbita, num feixe
contínuo.”
157
O mundo já não é mais o mesmo. A economia mudou, mas
continuamos no mesmo sistema, enredados nas teias do poder e nos
discursos do saber. A tese de Foucault, de que o poder é imanente a todas
as relações humanas em toda a sociedade, independentemente do tipo de
governo e dos discursos de verdade que ela produz, é sustentada. O autor
considera que:
“o século XIX nos prometera que no dia em que os
problemas econômicos se resolvessem, todos os
efeitos de poder suplementar excessivo estariam
resolvidos. O século XX descobriu o contrário: podem-
se resolver todos os problemas econômicos que se
quiser, os excessos do poder permanecem.”
158
155
DELEUZE, G. Conversações: 1972 – 1990. Post-Scriptum, 1992, p. 219-226.
156
Idem, ibid.
157
Idem, ibid.
158
FOUCAULT, M. « Poder e Saber ». In: Estratégia, poder-saber. Coleção Ditos e Escritos
IV. 2003, p. 225. « Pouvoir et Savoir » In : Dits et Écrits. II. 2001, p. 401.
83
Hoje, o controle é menos severo e mais refinado sem
ser, contudo, menos aterrorizador. Durante todo o
percurso de nossa vida, todos nós somos capturados
em diversos sistemas autoritários; logo no início, na
escola, depois em nosso trabalho e até em nosso
lazer. Cada indivíduo, considerado separadamente, é
normatizado e até transformado em um caso
controlado por um IBM. Em nossa sociedade, estamos
chegando a refinamentos de poder os quais aqueles
que manipulavam o teatro do terror (nas execuções
penais públicas) sequer haviam sonhado.
159
Foucault arriscou prever a existência de uma sociedade sem
disciplina:
“nestes últimos anos, a sociedade mudou e os
indivíduos também; eles são cada vez mais diversos,
diferentes e independentes. Há cada vez mais
categorias de pessoas que não estão submetidas à
disciplina, de tal forma que somos obrigados a
pensar o desenvolvimento de uma sociedade sem
disciplina.”
160
Mas o poder continua controlando o homem, não só com o
objetivo de obter dele um bem, um produto, mas também um saber. O
homem é vigiado para que dele se possa formar um conhecimento: o que
ele pensa? Qual é o seu nome? Seu endereço? Sua senha? Que relações
econômicas e profissionais ele mantém? O que come? Onde compra? Como
se diverte? Enfim, toda uma variação de dados obtidos – sem que, para isso,
seja preciso manter o indivíduo confinado – com o objetivo de tê-lo sob
controle. Ele paga o preço da comodidade e do conforto, sendo vigiado
ininterruptamente em seus movimentos e suas ações. O poder agora produz
159
FOUCAULT, M.. “M. Foucault.Conversação sem complexos com um filósofo que
analisa as ‘estruturas do poder.” In: Estratégia, poder-saber. Coleção Ditos e Escritos IV.
2003, p. 307. “Conversation sans complexes avec le philosophe qui analyse les ‘structures
du pouvoir”. In : Dits et Écrits II. 2001, p. 670.
160
_____________. “A Sociedade Disciplinar em Crise” In: Estratégia, poder-saber.
Coleção Ditos e Escritos IV. 2003, p. 268. “La Société Disciplinaire en Crise”. In : Dits et
Écrits. II. 2001, p. 532-533.
84
um saber sobre o modo como as informações são processadas pelos
indivíduos.
As formas de poder se modificaram e se ampliaram. Estas
novas formas de controle, por meio da vigilância generalizada nos tornaram
expostos e vulneráveis, pois, em nome de nossa segurança, somos vigiados
o tempo todo em quase todos os lugares e em várias situações.
Desta forma, junto com as mudanças na economia, no
governo, nos sistemas jurídicos de nossas sociedades, continuamos como
sujeitos do poder e no poder, enredados nas relações de força, sendo, ao
mesmo tempo, objeto de saber e objeto de poder.
A vigilância tecnológica, por meio do olho da câmera digital é
semelhante ao Panóptico de Benthan que não utiliza armas, violência ou
coação. Basta saber-se vigiado, [Sorria !, você está sendo filmado] para que
se provoque em nós o mesmo efeito que o Panóptico na prisão: a atitude de
nos tornarmos, nós mesmos, o nosso próprio vigia. Conforme escreveu
Foucault, acerca do Panóptico,
“sem necessitar de armas, violências físicas, coações
materiais. Apenas um olhar. Um olhar que vigia e que
cada um, sentindo-o pesar sobre si, acabará por
interiorizar, a ponto de observar a si mesmo; sendo
assim, cada um exercerá esta vigilância sobre e contra
si mesmo.”
161
Atualmente, somos todos controlados por satélites, câmeras
digitais e softwares. O rastreamento de dados é feito pela internet, cartão de
crédito, telefone celular, movimentação da conta bancária, cartões de
convênio médico privado, códigos de barra e até pelo cruzamento de dados
do Imposto de Renda. São essas algumas das várias possibilidades de
vigilância e controle exercidos por organizações privadas e pelo governo. É
uma vigilância de todos sobre todos.
161
FOUCAULT, M. “O Olho do Poder” In: Microfísica do Poder. 2001, p. 218.
85
“Não há necessidade de ficção científica para se
conceber um mecanismo de controle que dê, a cada
instante, a posição de um elemento em espaço aberto,
animal numa reserva, homem numa empresa (coleira
eletrônica). Félix Guattari imaginou uma cidade onde
cada um pudesse deixar seu apartamento, sua rua,
seu bairro, graças a um cartão eletrônico (dividual) que
abriria as barreiras; mas o cartão poderia também ser
recusado em tal dia, ou entre tal e tal hora; o que
conta não é a barreira, mas o computador que detecta
a posição de cada um, lícita ou ilícita, e opera uma
modulação universal.”
162
Hoje, o monitoramento eletrônico dos indivíduos é feito, na sua
maior parte, por instituições privadas, por câmeras de circuito fechado
(CCTV). Nossas imagens são gravadas em praticamente todos os lugares
que freqüentamos: empresas, bancos, supermercados, lojas de comércio,
shoppings centers, aeroportos, etc.
A vigilância do Estado sobre seus cidadãos é uma realidade há
muito tempo discutida, mas que, agora, o avanço da tecnologia passou a
permitir que os próprios cidadãos se tornem vigilantes da sociedade. A
popularização de filmadoras, celulares com câmeras, máquinas fotográficas
digitais, entre outras tecnologias, faz de cada pessoa uma potencial ameaça
à privacidade dos outros.
163
Vimos assim, que, atualmente, a vigilância é generalizada,
tornou-se sutil e sofisticada e vai muito além dos limites do universo das
corporações e das relações hierarquizadas: estende-se na sociedade como
um todo.
Procuramos, ao longo deste trabalho, fomentar os
questionamentos iniciais sobre vigilância, poder, disciplina e submissão dos
corpos dóceis nas organizações empresariais. Percebemos também que a
disciplina abarca um nível de competência, dificuldade, mas, ao tempo, de
162
DELEUZE, G. Conversações: 1972 – 1990. Post-Scriptum, 1992, p. 219-226.
163
Cf. The Economist [2/12/04].
86
requinte e sutileza, que parece se apartar dos próprios trabalhadores. Em
uma organização empresarial – e não só, mas frequentemente – o poder, a
disciplina, as hierarquias têm vidas próprias. Por meio de um mecanismo
burocrático, e até ideológico, o poder se exerce, impondo e fazendo com que
os indivíduos se submetam a este modelo, e uma grande maioria o aceite de
maneira natural, pois, apesar de o poder parecer invisível, adquire força na
medida em que os muitos trabalhadores (chefes e subordinados)
permanecem numa espécie de engrenagem dinâmica e sustentável.
Mas, ao mesmo tempo, também podemos constatar que
através de tantas mudanças ocorridas nos últimos tempos, os indivíduos
começaram a mudar. Talvez a auto-regulação ou a auto-disciplina venha a
ser uma alternativa mais viável, substituindo o poder explícito das
hierarquias, o que nos leva a pensar em outra categoria de disciplina, ou a
prever, como Foucault, a possibilidade da existência de uma sociedade sem
disciplina.
87
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____________. Ética, Sexualidade, Política. Coleção Ditos e Escritos. Vol.
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_____________. Dits et Écrits II. 1976-1988. Paris: Gallimard, 2001.
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_____________. Em Defesa da Sociedade. Trad. Maria Ermantina Galvão.
São Paulo: Martins Fontes, 2002.
_____________. Il Faut Défendre la société: cours au college de France,
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___________. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Trad. Maria
Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro:
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a
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MOTTA, Fernando P. E; FREITAS, M. E. (orgs). Vida Psíquica e
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90
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Marcondes. Pearson: Prentice Hall, 2004.
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Janeiro: FGV, 2005.
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Janeiro: Campus, 1998.
TAYLOR, F. W. Princípios da Administração Científica. São Paulo: Atlas,
1995.
THOMPSON, E. P. Time Work-Discipline and Capitalism. Past and Present,
nr. 38, 1967.
91
ANEXO – Notas sobre alguns autores citados
RICHARD DAFT, Ph.D. pela Universidade de Chicago, professor de
Administração pela Vanderbilty University, é consultor nas áreas de
liderança, mudança organizacional, comportamento organizacional, teoria
das organizações e administração estratégica.
ANDREW J. DUBRIN, professor de Administração no College of Business
Rochester Institute of Technology.
P. F. DRUCKER (1909-2005), administrador austríaco, é o “pai da
administração moderna”. É, também, presidente honorário da Drucker
Foundation e professor de ciências sociais da Claremont Graduate
University, Califórnia, EUA. Escreveu muitos artigos e mais de 30 livros.
Entre seus livros mais recentes figuram Desafios Gerenciais para o Século
XXI, Administrando em Tempos de Grandes Mudanças e Sociedade Pós-
Capitalista.
MARISA EBOLI, é professora desde 1987 do Departamento de
Administração da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade
da Universidade de São Paulo – FEA/USP, onde obteve os títulos de mestre
e doutora em Administração. Autora de vários artigos e do livro Educação
Corporativa no Brasil: Mitos e Verdades.
EUGENE ENRIQUEZ, escritor, sociólogo, professor de Sociologia da
Universidade de Paris VII.
HENRY FAYOL, juntamente com Taylor e Henry Ford, é pioneiro da
Administração, autor do livro Princípios Gerais da Administração.
92
GARETH MORGAN, conhecido por suas contribuições em pesquisa social,
é considerado pioneiro no desenvolvimento de enfoques criativos dentro do
campo da teoria organizacional. Professor de Administrative Studies na York
University, em Toronto, Canadá. Entre suas obras estão Beyond Method,
Sociological Paradigms and Organizational Analysis e Organizational
Symbolism.
FERNANDO C. P. MOTTA, professor titular do Departamento de
Administração Geral e Recursos Humanos da EAESP/FGV, é considerado
um dos mais importantes acadêmicos de pesquisa do Brasil. Atualmente,
seus interesses de pesquisa circundam as áreas de cultura, simbolismo e
mitologia organizacional
MAX PAGÈS, Autor do livro O Poder nas Organizações), professor de
Psicologia Social na Universidade Paris III, Leuser.
JOSÉ PASTORE, sociólogo, especialista em relações do trabalho e
desenvolvimento institucional, professor (aposentado) da Faculdade de
Economia e Administração e pesquisador da Fundação Instituto de
Pesquisas Econômicas, ambas da Universidade de São Paulo. É membro
efetivo da Academia Paulista de Letras.
ROBERT H. SROUR, professor dos MBAs da FEA/USP, cientista social e
doutor em sociologia pela USP. Além de muitos artigos, escreveu Poder,
Cultura e Ética nas Organizações.
FEDERICK W. TAYLOR, (1856-1915) engenheiro mecânico, considerado o
“Pai da Administração Científica” por propor a utilização de métodos
científicos cartesianos na administração de empresas. Seu foco era a
eficiência e eficácia operacional na administração industrial.Sua orientação
cartesiana extrema é, ao mesmo tempo, sua força e fraqueza. Seu controle
93
inflexível, mecanicista, elevou enormemente o desempenho das indústrias
em que atuou, todavia, igualmente gerou demissões, insatisfação e estresse
para seus subordinados e sindicalistas.
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