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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Cristina Aparecida Reis Figueira
A trajetória de José Oiticica: o professor, o autor,
o jornalista e o militante anarquista
na educação brasileira
DOUTORADO EM EDUCAÇÃO: HISTÓRIA, POLÍTICA, SOCIEDADE
SÃO PAULO
2008
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Cristina Aparecida Reis Figueira
A trajetória de José Oiticica: o professor, o autor,
o jornalista e o militante anarquista
na educação brasileira
DOUTORADO EM EDUCAÇÃO: HISTÓRIA, POLÍTICA, SOCIEDADE
SÃO PAULO
2008
Tese de Doutorado apresentada à banca
examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo – PUC-SP - como
exigência parcial para a obtenção do título
de DOUTOR em Educação: História,
Política, Sociedade, sob a orientação do
Prof. Dr. Kazumi Munakata
.
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José Rodrigues Leite e Oiticica (22/07/1882 – 30/06/1957), foto cedida pela família em outubro de 2006
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Kazumi Munakata – Orientador
Prof. Dr. Bruno Bontempi Júnior
Profa. Dra. Heloísa de Faria Cruz
Prof. Dr. Luiz Carlos Barreira
Profa. Dra. Márcia de Paula Gregório Razzini
II
Ofereço este trabalho:
a Sônia Oiticica in memorian,
aos meus pais, Luiz Bruno Figueira e Luzia Nonato Figueira, aos meus sobrinhos e sobrinhas
ao meu amor Luiz Fernando e a todos que colaboraram direta e indiretamente nesta pesquisa
III
Agradecimentos
Aos meus orientadores do Mestrado Prof. Dr.Luiz Carlos Barreira e do Doutorado
Prof. Dr. Kazumi Munakata agradeço por terem ensinado o ofício do historiador, pelas
orientações precisas, pelos livros solidariamente emprestados, pela confiança em mim
depositada e principalmente pela amizade, o carinho e a paciência. Sou muito grata, muito
obrigada.
Aos professores. Dr. Luiz Carlos Barreira e Dr. Bruno Bontempi Júnior pelas
sugestões e críticas no exame de qualificação que contribuíram decisivamente para a
finalização desta pesquisa.
Às professoras Dra. Heloisa de Faria Cruz que esteve comigo no Mestrado e muito me
honra com a leitura da pesquisa do Doutorado e à Dra Márcia de Paula Gregório Razzini por
ter aceitado o convite para a leitura e avaliação deste trabalho.
A Maria Thereza Vargas, pesquisadora do teatro, agradeço a sabedoria, a sua
generosidade e parceria no trabalho com as fontes dessa pesquisa. Muito obrigada.
A Edgar Rodrigues o meu profundo reconhecimento ao seu importante trabalho de
décadas com a imprensa operária. Agradeço pelos livros, pelas solidárias cartas e pelo
estímulo que fizeram toda a diferença no processo de realização dessa pesquisa.
A Eleonora Oiticica Canero Canaes pela consulta ao material de pesquisa, por receber-
me tantas vezes em sua casa. Agradeço a confiança e o estímulo a esta pesquisa.
Ao professor Geraldo Vieira Pinto por receber-me no Núcleo de Memória do Colégio
Pedro II. Obrigada pelas orientações, entrevistas, pelos livros, a sua hospitalidade e atenção
foram de fundamental importância.
Aos professores amigos e equipe da EMEF Lourenço Filho.
Aos professores, funcionários e amigos do Programa de Estudos Pós-Graduados em
Educação: História, Política, Sociedade, em especial a Secretária Elisabete Adania (Betinha).
A Luiz Fernando Costa de Lourdes pelo apoio incondicional nas horas finais desta
pesquisa, pela leitura, críticas e sugestões que fizeram engrandecer este trabalho.
A Célia Cristina Figueiredo Cassiano e Vera Lúcia Gomes Jardim agradeço pela
leitura cuidadosa e solidária dos últimos momentos.
À Juliana Miranda Filgueiras, Ana Luzia Magalhães Carneiro, Luciana Calissi pelas
idéias, sugestões compartilhadas, pela leitura final do trabalho que contribuíram e muito para
esta pesquisa, amizade, solidariedade e respeito. Muito obrigada.
Agradeço a Ana Maria e Maria Lúcia pela revisão desse trabalho.
IV
Aos funcionários das diversas instituições consultadas durante a pesquisa, em
particular do Arquivo Edgar Leuenrouth – AEL, UNICAMP.
Aos meus pais Luiz Bruno Figueira e Luzia Nonato Figueira.
À Viviane Maria Reis Figueira, agradeço pelo suporte técnico nos últimos dias de
realização deste trabalho.
Na impossibilidade de nomear todas as pessoas que contribuíram direta e
indiretamente em todo caminho trilhado até este momento, meus sinceros agradecimentos
À CAPES, cujo investimento em minha formação acadêmica tornou possível a
realização dessa pesquisa.
V
Resumo
Este é um estudo historiográfico de reconstituição da trajetória e do itinerário de formação do
catedrático do Colégio Pedro II e militante anarquista José Rodrigues de Leite e Oiticica
(1882-1957), educador envolvido tanto nas ações da propaganda social libertária em jornais,
em conferências do livre pensamento, no teatro social, quanto nos projetos educacionais que
circularam em padrões diferenciados na História da Educação Brasileira. Autor de uma
profícua produção intelectual relacionada aos estudos da lingüística, da literatura, da música,
da poesia, do teatro e do ideário anarquista, cuja expressividade pode ser encontrada em
numerosos artigos para a imprensa anarquista e grande imprensa carioca, em seus manuais
didáticos, em suas peças teatrais, em seus sonetos e em seus ensaios sociológicos. A pesquisa
reuniu elementos da produção intelectual de José Oiticica e de sua trajetória de vida e teve
como eixo mapear as suas críticas e prescrições de práticas das ações da propaganda social
para a reconstituição de seu projeto para a educação libertária, da propaganda social e de sua
atuação como professor de Português do Colégio Pedro II, por meio do exame de seus artigos
jornalísticos, livros, opúsculos e manuscritos de aulas, correspondência ativa e passiva e
incursões nas historiografias da classe operária e da educação brasileira, nos projetos
educacionais que circularam em seus diferentes modelos, sobretudo entre os anos de 1905 e
1950. Na construção da pesquisa, procurou-se explicitar as suas redes de sociabilidade e
relacionamentos, procedimento que evidencia um dos principais pressupostos de pesquisa,
qual seja a de que os sujeitos se constituem no âmbito das práticas sociais, considerando-se as
relações a que se vêm atados, as ações que promovem, as que são herdadas, todas elas
dinâmicas e contraditórias. A partir da evidência interrogada e tratada por E. P Thompson,
procurou-se construir a pesquisa, em observação à lógica adequada aos materiais reunidos em
observação à seqüência de conteúdos detectada pelo exame das fontes primárias, por meio da
reconstituição de documentos e do diálogo com as fontes, seguindo os seus indícios, pistas e
sinais sob inspiração de Carlo Ginzburg. Além do tratamento das fontes primárias, a pesquisa
realizou entrevistas orais e trabalhou também com textos memorialistas de seus ex-alunos e
com a memória de militantes preservada na historiografia da classe operária brasileira. A
reconstituição do projeto educacional de José Oiticica justifica-se pelo fato de trazer para o
debate alguns princípios que orientaram a experiência do vivido nos projetos da educação
libertária, que, na contramão do pessimismo reacionário e do otimismo ingênuo, tinha o
princípio da reflexão, das ações direcionadas a projetos educacionais individuais, de pequenos
grupos e quiçá coletivos, e, principalmente, pelo fato de a pesquisa ser uma contribuição para
o debate educacional sobre os padrões de educação considerados vencidos, particularmente os
relacionados aos projetos da educação anarquista.
Palavras-chave: José Oiticica - Propaganda Social Anarquista – Imprensa Libertária – Colégio
Pedro II – Educação
VI
Abstract
This is a study of the trajectory and formation path of the cathedratic from Colégio Pedro II
and anarchist militant José Rodrigues de Leite e Oiticica (1882-1957), educator involved in
actions of social libertarian propaganda in newspapers, in free thought conferences, in the
social theater as well as in educational projects that circulated in differentiated patterns in the
history of Brazilian education. Author of useful intellectual production related to the studies
of linguistics, literature, music, poetry, theater and also the anarchist ideology, whose
expressiveness can be found in numerous articles for the anarchist press as well as for the
great carioca press, in his didactic manuals, his plays, his sonnets and in his sociological
essays. The research gathered elements José de Oiticica the intellectual production and his life
path and had as objective to map his critics and prescriptions of the practices of the social
propaganda for the rebuilding of his project for the libertarian education, of the social
propaganda and his performance as a Portuguese teacher at the Colégio Pedro II, through the
exam of his journalistic articles, books, booklets as well as classes manuscripts, active and
passive correspondence and incursions in the historiographies of the working class and
Brazilian education, in educational projects that circulated in different models above all in the
period between the years 1905 and 1950. In the construction of the research was sought his
sociability nets and relationships, a procedure that evidences one of the main purpose of the
research, which is the one that subjects are constituted in the extent of the social practices,
considering the relationships that they are involved in, of the actions that they promote which
are inherited, all of them dynamics and contradictory. Starting from the interrogated evidence
treated by E. P Thompson, we tried to build the research in observation the appropriate logic
to the materials gathered in the research, in observation of the content sequence detected by
the exam of primary sources, through the reconstitution of documents and the dialogue with
the sources following their indication, tracks and signs under the inspiration of Carlo
Ginzburg. Besides the treatment with the primary sources, the research accomplished oral
interviews and also worked with his former student’s texts and also with the militant’s
memory preserved in the historiography of the Brazilian working class. The rebuilding of the
José Oiticica educational project is justified for the fact of bringing for the debate some of the
principles that guided the experiences of the lived in the projects of the libertarian education,
that in the wrong way of the reactionary pessimism and the naïve optimism, had the beginning
of reflection, of the actions addressed to individual education projects, of small groups and
maybe collective, and mainly for the fact of the research to be a contribution to the
educational debate on the patterns of education considered won, particularly the related to
projects of the anarchist education.
Key words: José de Oiticica – Social Anarchist Propaganda – Libertarian Press – Colégio
Pedro II – Education
VII
Sumário
Introdução .............................................................................. Erro! Indicador não definido.
Capítulo I – A trajetória e o itinerário de formação de José Oiticica .... Erro! Indicador não
definido.
1. A família e as primeiras letras ........................................... Erro! Indicador não definido.
1.1 Duas cenas no Engenho Riachão: a casa paterna e o exílio ....... Erro! Indicador não
definido.
A casa paterna ........................................................................ Erro! Indicador não definido.
O exílio .................................................................................. Erro! Indicador não definido.
1.1.2 Da escola unitária do professor José Estevão à Faculdade de Ciências Jurídicas e
Sociais do Rio de Janeiro ...................................................... Erro! Indicador não definido.
1.1.3 A educação e a família: tal pai, tal filho? ..................... Erro! Indicador não definido.
1.1.4 Jurista não: anarquista! ................................................. Erro! Indicador não definido.
1.2 A Trajetória do professor José Oiticica ........................... Erro! Indicador não definido.
1.2.1 O cronista social da imprensa ilustrada e do novo jornalismo ..... Erro! Indicador não
definido.
1.2.2 Oiticica no mapa das rodas literárias da cidade das letras ......... Erro! Indicador não
definido.
1.3 O Colégio Latino-Americano .......................................... Erro! Indicador não definido.
1.3.1 A experiência da École La Roche: uma inspiração para o Colégio Latino-Americano,
de José Oiticica ...................................................................... Erro! Indicador não definido.
1.3.2 O Colégio Latino-Americano rememorado por José Oiticica ...... Erro! Indicador não
definido.
1.3.3 A interlocução escolanovista por meio dos jornais e revistas ...... Erro! Indicador não
definido.
1.4 A Escola de Arte Dramática do Rio de Janeiro ............... Erro! Indicador não definido.
1.5 A iniciativa da Universidade Popular de Ensino Livre ... Erro! Indicador não definido.
1.6 O Curso Oiticica .............................................................. Erro! Indicador não definido.
1.7 O Colégio Pedro II ........................................................... Erro! Indicador não definido.
1.7.1 O ingresso de José Oiticica no Colégio Pedro II .......... Erro! Indicador não definido.
1.7.2 O professor substituto foi nomeado catedrático e professor da Escola Normal .... Erro!
Indicador não definido.
1.7.3 A batalha memorável .................................................... Erro! Indicador não definido.
1.8 Ensino Superior ............................................................... Erro! Indicador não definido.
1.8.1 A universidade de Hamburgo e a proposta da Academia Brasileira de Filologia . Erro!
Indicador não definido.
1.8.2 Universidade do Distrito Federal - UDF ...................... Erro! Indicador não definido.
Capítulo II A presença de José Oiticica na propaganda social libertária: os jornais, as
conferências e o teatro social ...................................................... Erro! Indicador não definido.
VIII
2.1 As ações da propaganda social e o significado do termo Erro! Indicador não definido.
2.1.2 A mania de conferências e as conferências sociais ...... Erro! Indicador não definido.
2.1.3 As conferências sociais ................................................. Erro! Indicador não definido.
2.1.4 As conferências sociais do professor José Oiticica ...... Erro! Indicador não definido.
2.2 O jornal como catalisador das práticas de propaganda social libertária . Erro! Indicador
não definido.
2.3 O teatro social ................................................................. Erro! Indicador não definido.
2.3.1 O teatro social de José Oiticica .................................... Erro! Indicador não definido.
2.2 As atividades do professor José Oiticica na Escola Dramática Municipal............... Erro!
Indicador não definido.
2.3 As peças libertárias de José Oiticica nos espaços da propaganda social e na docência
institucional ........................................................................... Erro! Indicador não definido.
Capítulo III José Oiticica e o seu combate pela palavra .......... Erro! Indicador não definido.
3. Os grupos anticlericais ...................................................... Erro! Indicador não definido.
3.1 O anticlericalismo do professor Oiticica ......................... Erro! Indicador não definido.
3.1.2 Os temas anticlericais de José Oiticica ......................... Erro! Indicador não definido.
A caridade é uma infâmia ...................................................... Erro! Indicador não definido.
A resignação é a destruição da vontade ................................. Erro! Indicador não definido.
3.2 A educação religiosa rouba a consciência ....................... Erro! Indicador não definido.
3.3 polêmica com o padre Leonel Franca .............................. Erro! Indicador não definido.
As palavras são a munição para o combate ........................... Erro! Indicador não definido.
3.4 A revista A Vida ............................................................... Erro! Indicador não definido.
3.4.1 O ensaio de José Oiticica em A Vida ............................ Erro! Indicador não definido.
3.4.2 A mulher: companheira livre do homem livre.............. Erro! Indicador não definido.
3.5 Rebeldia x repressão: as prisões do professor José Oiticica ............ Erro! Indicador não
definido.
3.5.2 A prisão em 1924 .......................................................... Erro! Indicador não definido.
3.6 O jornal Spartacus e a proposta de ensino para a sociedade nova .. Erro! Indicador não
definido.
3.6.1 A nossa educação ou a instrução popular deles ........... Erro! Indicador não definido.
Capítulo IV - O método de ensino do professor José Oiticica . Erro! Indicador não definido.
4. No Brasil ainda hoje se ensina, sem ter aprendido a ensinar ........... Erro! Indicador não
definido.
4.1 Aos novos professores: um método ................................. Erro! Indicador não definido.
4.1.2 O anarquismo como método de educação .................... Erro! Indicador não definido.
4.2 Oiticica e os seus manuais: uma proposta “simplíssima” Erro! Indicador não definido.
4.2.1 O Manual de análise (léxica e sintática) ...................... Erro! Indicador não definido.
4.2.2 O Manual de estilo ....................................................... Erro! Indicador não definido.
4. 3 Polêmicas em torno da língua portuguesa ..................... Erro! Indicador não definido.
IX
4.4 O perfil pedagógico de Oiticica na memória de seus ex-alunos ..... Erro! Indicador não
definido.
Fontes .................................................................................... Erro! Indicador não definido.
Referências bibliográficas: ........................................................ Erro! Indicador não definido.
Anexos 1 – correspondências de Oiticica ................................... Erro! Indicador não definido.
Anexo 2 – Cronologia de José Oiticica ...................................... Erro! Indicador não definido.
Anexo 3 - entrevistas ................................................................... Erro! Indicador não definido.
Anexo 4 – Manuscritos ................................................................ Erro! Indicador não definido.
Anexo 5 – Retratos de uma época .............................................. Erro! Indicador não definido.
X
Nem todos os gostos são iguais, nem todas
as concepções são as mesmas, ainda quando idêntica ou
análoga é a finalidade. Por isso, demos livre curso as
iniciativas, sem imitações, mas também sem as críticas
inoportunas ou inoperantes, desde que todos caminhemos
para o mesmo fim revolucionário.
José Oiticica.
1
Introdução
O presente trabalho buscou reconstituir parte da trajetória do professor José Oiticica
(1882-1957), um proeminente intelectual nos projetos da educação anarquista, que adquiriu
expressividade por meio de variadas instâncias de atuação: como catedrático, na imprensa,
nas conferências sociais, no teatro libertário, entre outras. Como catedrático de Português no
Colégio Pedro II, professor de Prosódia na Escola Dramática e de Português na Escola
Normal do Distrito Federal, teve uma profícua produção na área de estudos filológicos, de
peças teatrais, de ensaios sociológicos, além de ter produzido, também, manuais didáticos,
manuais estes que ficaram conhecidos nas escolas secundárias do Brasil.
É em vista da atuação do professor José Oiticica em espaços tão distintos, como
intelectual catedrático filólogo e militante libertário que, ao longo da sua carreira, operou-se a
cisão dessas figuras como “um intelectual que desceu do seu pedestal para as tribunas das
associações de classe! Brilhantes foram as suas conferências ao longo de uma vida dedicada à
questão social”(RODRIGUES, 1976, p.25). É dessa forma que ficou construída a memória de
José Oiticica na produção militante das correntes anarquistas.
Nos discursos de homenagem da Academia Brasileira de Letras, em razão de sua
morte em 30 de junho de 1957, a figura do militante anarquista praticamente desaparece,
provavelmente por ter sido considerada incomum a associação de sua presença em espaços
distintos. Outra posição observada em seus panegíricos manifestou-se de modo a tratar a sua
militância anarquista como uma espécie de excentricidade, sem desdobramentos que
“arranhassem” a imagem do austero catedrático do Colégio Pedro II, poeta parnasiano e
crítico dos modernistas.
Portanto, a partir da trajetória educacional de José Oiticica, pretendemos
esquadrinhar a sua experiência, processando o encontro dessas figuras na premissa do sujeito
único, que se constrói no âmbito das práticas sociais. Perspectiva esta amparada no modo
como Edward Palmer Thompson tratou o diálogo da consciência com o ser social.
A construção desta pesquisa resultou de um desdobramentos de meus interesses sobre
a imprensa libertária, considerada como prática da experiência social, um espaço propício
para a reconstituição dos projetos da educação anarquista em circulação nas primeiras décadas
do século XX. Assim, as leituras tanto de artigos sobre educação insertos nesse tipo de
imprensa, como de trabalhos de pesquisa sobre essa temática, me levaram a interessar-me por
projetos educacionais considerados vencidos na História da Educação Brasileira.
2
No processo de elaboração de meu mestrado
1
pesquisei, nos jornais libertários A
Lanterna e A Plebe, as prescrições de práticas e as críticas relacionadas ao cinema da
perspectiva libertária. O principal resultado desse estudo foi a reconstituição do debate
educacional relativo a linguagem cinematográfica, nesses periódicos, com destaque sobre o
projeto do cinema do povo, ou seja, do uso do cinema como um dispositivo para a propaganda
social anarquista, focalizado em um debate anterior daquele realizado pelos escolanovistas, na
década de 1920, e que ainda não havia sido tratado pela historiografia da educação.
Posteriormente, já no decorrer desta pesquisa, o exame de outros periódicos da
imprensa do Rio de Janeiro, como A Voz do Trabalhador, A Vida, Spartacus e Ação Direta,
periódicos estes sob direção de José Oiticica, demonstrou que a trajetória e itinerário de
formação desse intelectual foram espaços sociais de encontros importantes, sendo possível
analisá-los e compreender suas atuações à luz do momento histórico vivido, ou seja, na sua
experiência, bem ao modo que nos indica Thompson.
O acompanhamento dos espaços sociais em que Oiticica circulou nos ajudou a
reconstituir tanto os diálogos, como as idéias e as ações que se manifestaram ao longo de sua
trajetória, nos dando indícios de suas escolhas com uma grande margem de segurança. Isto
é,as relações estabelecidas a partir de sua rede de sociabilidade, de certa forma, nos levaram
ao reconhecimento de suas idéias. Por esta razão, foi importante reconhecer os pares de
Oiticica nos seus diferentes espaços de atuação, bem como as ações em conjunto, ou
opositivas no Colégio Pedro II e na propaganda social.
Parte-se do pressuposto de que o sujeito se constitui no âmbito das práticas sociais, e,
no caso de Oiticica, na esfera de suas dinâmicas e contraditórias relações - “herdadas” do
ambiente familiar, da formação acadêmica e profissional, da militância, ou seja, tanto das
relações em que se viu atado, como das relações que ele mesmo promoveu no decorrer de sua
vida.
Oiticica estabeleceu vínculos com diversos sujeitos nos espaços de sua atuação, por
exemplo, com Coelho Netto, companheiro de redação em jornais da grande imprensa carioca;
com Hermes Fontes e Martins Fontes, companheiros de poesia; com Fábio Luz, nas atividades
do teatro social; com Astrojildo Pereira fundou jornais e com Antenor Nascentes, também
catedrático do Pedro II, publicou livros. Além disso, Oiticica organizou cursos nos sindicatos,
centros de estudos, preparando professores pelo ensino racionalista da pedagogia de Francisco
1
O cinema do povo: um projeto da educação anarquista (1900-1920) apresentada em 2003, no Programa de
Estudos Pós-Graduados em Educação: História, Política, Sociedade da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo – PUC-SP, sob orientação do Prof. Dr. Luiz Carlos Barreira.
3
Ferrer. Essas ações, em conjunto, podem ser compreendidas como a continuidade do Projeto
da Universidade Popular de Ensino Livre. O autor também permeou ações nas correntes
anticlericais, no livre pensamento, no teatro social, nas conferências sociais, nas rodas
literárias e na educação institucional. Todas essas atuações nos permitem refletir sobre as
diferentes idéias que circularam naquele período assim como no próprio percurso de Oiticica,
que ora contribuiu com novas idéias e ora propagou as idéias dos grupos aos quais pertencia.
A participação de Oiticica na imprensa integrava-o a uma rede de relações com
articulistas, simpatizantes e militantes dos jornais anarquistas; sendo que, também, mantinha
contato com discussões que envolviam concepções de líderes das correntes anarquistas
preocupados com a educação, como, por exemplo, os russos Mikhail Bakunin e Pietr
Kropotkin, o inglês William Godwin, o alemão Max Stirner, os franceses Pierre-Joseph
Proudhon e Paul Robin, o italiano Errico Malatesta. Além desses filósofos anarquistas, havia
um intenso debate sobre o racionalismo de Francisco Ferrer y Guardía.
A experiência “única” do professor Oiticica na propaganda libertária, tratada no
contexto social do acontecimento, possibilita conhecer, também, a experiência do projeto
libertário de educação.
Os sujeitos envolvidos com a educação libertária investiam em ações direcionadas ao
jornal como espaço educativo, ao teatro, ao cinema; sendo que também confluíam as
atividades de entretenimento, das festas, como lugares para a consecução da propaganda
social, que grosso modo se aproxima ao que hoje poderia ser compreendido como ato
educativo, em seu sentido pleno direcionado à formação do ser social.
José Oiticica tem um lugar relevante nos movimentos da classe operária brasileira.
Não é raro encontrar referências sobre a sua presença no cenário das lutas sindicais,
principalmente até os anos 1920, quando as correntes anarquistas influenciavam os rumos do
movimento operário. Sua presença é marcante, principalmente, como articulista em periódicos
libertários do Rio de Janeiro e de São Paulo e, também, da grande imprensa carioca, em uma
trajetória que se estendeu ao longo de toda a primeira metade do século XX.
Batalha (1998, p.145-158) mapeou as pesquisas sobre a classe operária no Brasil, da
década de 1950 até o final dos anos 1990, e categorizou-as da seguinte forma: as produções
militantes, constituídas por escritos historiográficos não acadêmicos; as grandes sínteses
sociológicas, que estabeleciam teorias explicativas sobre o movimento operário e suas opções
ideológicas; os estudos de brasilianistas e de autores que recorreram à literatura secundária,
mas que inauguraram, nos estudos brasileiros, a utilização de procedimentos de pesquisa
próprios do historiador de ofício e os estudos das décadas 1980 e 1990, que, de acordo com o
4
autor, são caracterizados por uma ampliação de cronologia do movimento operário brasileiro
e por focalizarem temas antes considerados secundários. Dos trabalhos de pesquisa listados
por Batalha (1998, p.145-158), é possível afirmar que, excetuando o de Edgar Rodrigues,
nenhum outro focalizou José Oiticica como personagem central.
Na historiografia sobre a classe operária brasileira, a produção militante cumpriu a
função de legitimar a memória de José Oiticica como um destacado ativista da propaganda
social anarquista. A partir dessa produção da militância, garantiu-se um debate sobre as
histórias ácratas, em que os acontecimentos da cena operária foram utilizados como matéria
de reflexão para se construir a memória das ações anarquistas no movimento operário. Foi
com tal finalidade que se empreendeu por parte desses historiadores militantes a seleção de
artigos da imprensa operária junto a vários arquivos particulares.
Dessa produção, destacam-se os trabalhos de Edgar Rodrigues e de Roberto das
Neves. Esses dois autores foram os primeiros a recolher artigos de jornais operários e a
elaborar a biografia de Oiticica, inclusive na posição de atores da história que escrevem, visto
que eles mesmos compartilharam muitas experiências com esse intelectual, o que possibilitou-
lhes descrever com sensibilidade particularidades desse intelectual militante anarquista. As
menções apresentadas pela memória anarquista, nas atividades referentes à cátedra no Colégio
Pedro II, buscaram marcar a vitória libertária pelo fato de o militante imiscuir, no seio da
educação oficial, um ponto de resistência e referência na luta para a transformação da
sociedade .
Edgar Rodrigues é historiador autodidata, militante anarquista, organizador de um rico
arquivo pessoal da imprensa operária e autor de uma extensa produção
2
tanto sobre os rumos
do movimento operário, como também de suas principais idéias e sobre o tema da educação
anarquista. Ele chama a atenção para a importância da propaganda social anarquista na
formação dos trabalhadores e de suas famílias, por meio de seus principais dispositivos: o
jornal, o teatro operário e as conferências, com destaque para José Oiticica e suas “brilhantes
conferências”, em que o autor “furtou-se a ficar no pedestal e ocupou-se da educação do
trabalhador e de seus filhos, descendo às tribunas das associações de classe”, principalmente
por compreender “a necessidade do proletariado em instruir-se, adquirir cultura sociológica,
2
Para referenciar alguns destes trabalhos: 1969: Socialismo e sindicalismo no Brasil (1675-1913); 1976: Novos
rumos: Pesquisa social (1922-1946); 1977: Trabalho e conflito (As greves operárias no Brasil — 1900-1935);
1984: Os anarquistas: trabalhadores italianos no Brasil; 1979: Alvorada operária (Os congressos operários);
1993: Os libertários; 1993: Entre ditaduras (1948-1962); 1993: O anarquismo no banco dos réus (1969-1972);
1994/1995: Os companheiros; 2003: Rebeldias. Da produção militante e também da historiografia da classe
operária brasileira, Edgar Rodrigues muito provavelmente foi o único autor que procurou acompanhar a
trajetória das ações anarquistas, estendendo-lhe a cronologia até os dias atuais.
5
literária e filosófica para não se deixar influenciar nem ser dirigido ou auxiliado por políticos
de nenhuma coloração” (RODRIGUES, 1976, p. 95).
No livro Os libertários, de 1993, escreveu as biografias de José Oiticica, Maria
Lacerda de Moura, Neno Vasco e Fabio Luz, todos militantes anarquistas, cuja atuação
vigorosa se deu, principalmente, nas duas primeiras décadas do século XX. No texto referente
a Oiticica, Rodrigues (1993) faz uso tanto da experiência de um convívio pessoal, como de
artigos, poesias e cartas escritas em seus vários períodos passados no cárcere. Essas cartas, e
muitas das informações utilizadas pelo autor, foram-me disponibilizadas pela filha do
biografado, Sônia Oiticica
3
.
Roberto das Neves organizou, com ajuda de Petrônio da Mota, o livro Curso de
literatura (publicado pela Germinal, editora desse autor, em 1960), que trata das lições de
literatura que Oiticica usou em suas aulas no Colégio Pedro II, e que também foram
publicadas como folhetim em seu jornal, o Ação Direta, entre os anos de 1947 e 1953
(material digitalizado no processo desta pesquisa), ou seja, um material submetido tanto à sua
rede de relações no Colégio Pedro II, como à sua outra rede de sociabilidade nas ações da
propaganda social.
Na historiografia das classes trabalhadoras existem várias histórias sobre as correntes
anarquistas que, ao fazer uso da imprensa operária como fonte de pesquisa, registram a
militância do professor José Oiticica em suas várias atuações: no jornal, nas conferências e no
teatro operário. Não só nessa imprensa, como também na de grande circulação, existem
inúmeros artigos desse intelectual, que versavam sobre os direcionamentos e as ocorrências da
organização operária, a importância das ciências sociais para o entendimento da questão
social, ou, ainda, sobre a necessidade de se conhecer a língua nacional, inclusive para
possibilitar a leitura dos jornais libertários, entre outros temas.
Nas pesquisas da historiografia da educação, em particular as relacionadas com o tema
da educação anarquista, inexistem estudos que focalizem, em especial, a prática pedagógica
do educador José Oiticica. No entanto, aquelas que abordam o tema da educação anarquista e
que fizeram uso do jornal como fonte de pesquisa, dificilmente escaparam de encontrar um
artigo seu sobre a educação do trabalhador. São, portanto, vários os estudos acadêmicos que
abordam a educação operária, assim como são várias as perspectivas intrínsecas ao contexto
em que tais estudos foram produzidos a partir dos anos 1980.
3
Em 2004, o encontro com Edgar Rodrigues, numa conferência realizada na Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC SP), proporcionou-me a oportunidade de conversar sobre a presente pesquisa e, a partir daí,
encetar uma troca de correspondência, que resultaria no contato direto com a própria Sônia Oiticica. Desde
então, às memórias do convívio veio se somar a narrativa que Rodrigues (1993) construiu em seu livro.
6
Alguns estudos sobre a experiência anarquista, analisados na fase do mestrado foram
aqui retomados, com o objetivo de contextualizar a atuação pedagógica de José Oiticica nas
ações da propaganda social anarquista. Estes estudos são: de Flavio Venâncio Luizetto
(1984), Presença do anarquismo no Brasil: um estudo dos episódios literário e educacional –
1900/1920; Uma educação para a solidariedade: contribuição ao estudo das concepções e
realizações educacionais dos anarquistas na República Velha, de Regina Célia Jomini
(1990); A Voz do Trabalhador: sementes para uma nova sociedade, de Célia Maria Benedicto
Giglio (1995).
O trabalho de Luizetto (1984) é centrado na reflexão sobre a cultura anarquista,
evidenciando a atuação de uma corrente do pensamento libertário pouco lembrada na
literatura, o anarco-comunismo (o comunismo libertário), indicando quais eram as suas
práticas educativas. Sua pesquisa dá a conhecer a atuação de algumas personalidades, do
movimento anarquista, até então pouco estudadas (Antônio Avelino Foscolo, Fábio Luz,
Manuel Curvello de Mendonça, Domingos Ribeiro Filho e João Penteado). De acordo com
Luizetto (1984), as fontes documentais, necessárias para a reconstrução do modo como se
desenvolviam as práticas educativas do movimento anarquista, no início do século, são
escassas, ao contrário daquelas utilizadas para sua fundamentação teórica e metodológica.
Para esse autor, o que acarretou essa dificuldade foi o fato de essas práticas terem se realizado
na “semiclandestinidade”. Assim, por meio da literatura que os anarquistas consideravam útil
é que Luizetto (1984) problematiza essa educação libertária.
Jomini (1990) centrou seu estudo nas concepções educacionais dos anarquistas,
enfatizando as experiências das Escolas Modernas. Mesmo contando com poucas fontes
primárias, sua pesquisa contribui sobremaneira para indicar muitas das experiências
educacionais anarquistas que foram silenciadas no processo de institucionalização dessa
escola no Brasil. Nesse sentido, é possível dizer que Luizetto (1984) e Jomini (1990)
contribuíram para elucidar a trajetória da educação anarquista na Primeira República.
O trabalho realizado por Giglio (1995), que toma o jornal A Voz do Trabalhador como
fonte e objeto de estudo, privilegia as práticas educativas do movimento operário
referenciadas no periódico estudado. Giglio (1995, p. 165) afirma que:
A educação racional não confere privilégio absoluto às escolas, entendidas aqui como
espaço específico de relações que estão se institucionalizando; estende seus valores à
ação dos centros de estudos, sindicatos, bibliotecas, ao jornal e a outras formas de
relação como saberes que não pensam uma formação restrita ou naturalizada do
sujeito, em suma, torna-se visível e percorre toda a rede de práticas educativas.
7
A rede de relações educativas construídas pelas correntes anarquistas não privilegiava
somente a escola como local de conhecimento. De acordo com Giglio (1995), entre as práticas
educativas anarquistas estavam as leituras coletivas nos centros de estudos, os jornais, a
participação no movimento operário, a organização de biblioteca etc. Portanto, uma educação
emancipatória intimamente ligada ao saber científico. Desse modo, ela seria “uma educação
sem peias, que não esconde as verdades provisórias fornecidas pela ciência” (p. 165). Os
trabalhos de Jomini (1990) e Giglio (1995), que privilegiam a cultura escolar anarquista,
podem ser reconhecidos como indicativos de um crescente interesse acadêmico em
reconstituir essas experiências educativas da educação operária.
O tratamento dado ao tema da cultura escolar, em pesquisas mais recentes da
historiografia da educação, leva em consideração não apenas a existência de vários projetos
pedagógicos construídos no processo de institucionalização da escola na sociedade brasileira,
mas também considera que as práticas escolares resultam de saberes em circulação,
produzidos socialmente dentro e fora do que denominamos por escola
4
.
Outra importante pesquisa sobre a educação libertária é a de Gonçalves (2002), que
em estudo sobre o projeto educacional de intelectuais anarquistas ligados ao jornal anarquista
A Plebe, analisou as representações do conceito de “povo”, de “homem velho” e de “homem
novo”, por meio das práticas educacionais que esses intelectuais julgavam fundamentais para
a formação dos anarquistas.
A sua hipótese inicial era que os projetos da educação anarquista representavam uma
oposição aos projetos das elites brasileiras e que havia um território de disputas para a
formação do homem novo. Os anarquistas utilizavam o jornal, a escola, o sindicato, o centro
de estudos sociais e as suas bibliotecas para essa formação; já os escolanovistas atrelavam o
sucesso da educação, sobretudo a escolar, ao progresso da nação e também tinham a
perspectiva de formar o homem novo (p.10). Gonçalves investigou sobre qual era o homem
novo da perspectiva anarquista e, ao final de sua pesquisa, constatou que:
[...] muitas idéias eram partilhadas entre esses indivíduos intelectuais dos projetos
anarquistas e escolanovistas, como a da necessidade de regeneração popular, de um
povo ignorante que precisava ser educado, da condenação das práticas carnavalescas,
futebolísticas [...]
Nesse sentido, ainda se está por fazer uma pesquisa que verse sobre a comparação dos
diversos projetos em curso na Primeira República, que permita a compreensão dos
4
Julia (2001) afirma que o tema da cultura escolar deve ser tratado como objeto histórico, admitindo-se que os
saberes estão em constante movimento. Esse autor indaga sobre os problemas das trocas e transferências
culturais que se operam por meio da escola (p. 10).
8
sucessos e fracassos dos diferentes grupos, enfatizando a adesão popular por um ou
por outro projeto (p.135).
As pesquisas sobre as práticas educativas dirigidas à educação popular ainda têm sido
pouco privilegiadas pela historiografia educacional, que tem centrado o seu interesse no que
envolve a educação no interior da escola. Os meios utilizados nas práticas educacionais do
movimento anarquista podem ser apreendidos em sentido mais amplo, se for considerado que
tais práticas não ficaram circunscritas somente à instituição escolar, ou às pautas de um
jornal, ou mesmo isoladas em um centro de estudo; havia circulação de saberes. José Oiticica
exercia suas atividades pedagógicas dentro e fora da instituição escolar. Muitos de seus
artigos da imprensa anarquista são destinados à educação do trabalhador.
Além dessas atividades pedagógicas, o professor José Oiticica também tinha presença
nos circuitos letrados do Rio de Janeiro, e é por isso que, nesta pesquisa, também foi
considerado o estudo de Brito Broca (2004), A vida literária nos 1900, lançado em 1956, e
que tornou-se referência na historiografia da literatura. O interesse desse autor foi iluminar as
atividades dos agrupamentos de literatos; colaboradores, especialmente os da grande imprensa
e dos rápidos comentários sobre a imprensa operária, pois a sua discussão foi tratar da boemia
dourada do Rio de Janeiro. Muito provavelmente, em decorrência disso é que houve poucas
referências a José Oiticica. Esse trabalho contribuiu para apreender, de certo modo, a
movimentação das rodas de intelectuais do Rio de Janeiro no início do século passado.
Entre as recentes pesquisas que tomaram esse estudo como referência, destacam-se a
Literatura como missão: tensões sociais e criação na Primeira República, de Nicolau
Sevcenko (2003) que, nesse livro, acompanha os chamados escritores-cidadãos, partidários
do engajamento político dos homens de letras, em sintonia com a modernidade européia e
com uma produção de caráter reformista voltada, principalmente, para a afirmação da
nacionalidade brasileira.
A pesquisa de Eliana de Freitas Dutra (2005), Rebeldes literários da República:
história e identidade nacional no Almanaque Brasileiro Garnier (1903-1914), que focalizou,
especificamente, o Almanaque Garnier. Essa autora, ao tratar sobre o ciclo de vida desse
almanaque, forneceu importantes informações que ajudaram a situar os lugares sociais de José
Oiticica, apesar de não mencioná-lo, dado que nesse estudo há referências sobre as editoras do
período e sobre os grupos de intelectuais.
A dissertação intitulada O Anarquismo literário: uma utopia na contramão da
modernização do Rio de Janeiro (1900-1920), de José Adriano Fenerick (1997), tratou da
9
singularidade do discurso da literatura anarquista e procurou transcender as várias histórias da
literatura brasileira que ofereceram luzes apenas para autores “consagrados”. Entre os
escritores focalizados por esse pesquisador, que tiveram proximidade com Oiticica, destacam-
se Santos Barbosa, colaborador de A Voz do Trabalhador, Renovação e tesoureiro do
Spartacus; Manuel Moscoso, editor de O amigo do povo, A terra livre e Liberdade; Araújo
Pereira e Gomes Leal, colaboradores de A terra livre; Silvio Figueiredo, colaborador de
Spartacus e da Voz do Povo e Astrojildo Pereira e Otávio, integrantes do anarquismo até a
década de vinte, que participavam de projetos semelhantes. José Oiticica, nessa pesquisa de
Fenerick (1997, p.8), é citado como um colaborador da imprensa ácrata, professor do Colégio
Pedro II e “favorável ao anarquismo”.
No Colégio Pedro II, José Oiticica conquistou status e respeitabilidade,
independentemente das (in)tolerâncias por sua adesão confessa ao anarquismo. Sua posição
foi conquistada não só pela cátedra de Português, mas também por sua produção como
filólogo e gramático. Esse estabelecimento escolar, desde o Império, mais precisamente após
o Ato Adicional de 1834, passou a ser um estabelecimento da instrução secundária. Segundo
Haiddar (1972, p. 255), a partir dessa mudança, essa instituição de ensino, a exemplo do que
ocorreu com os liceus da Bahia e de Pernambuco, passou a seguir o modelo francês, adotando
o sistema de estudos seriados em cursos de duração regular e acabando por ser escolhida, pelo
governo imperial, como um estabelecimento modelo para o ensino secundário brasileiro.
Gasparello (2002, p. 6), ao investigar, entre outras questões, a temática nacional no
ensino de história em livros didáticos adotados no Colégio Pedro II, informa que, tanto no
Império como na República, esse abrigou professores “pertencentes à elite intelectual e
política, que, em sua maioria, foram autores de obras didáticas adotadas por anos a fio no [
currículo do] colégio”. É o que também considera Razzini (2000) em seu trabalho sobre a
Antologia Nacional.
Razzini (2000, p.13) discutiu os conteúdos programáticos do Colégio Pedro II,
trabalhados a partir dos textos publicados na Antologia Nacional, obra de Fausto Barreto e
Carlos de Laet. Que foi editada de 1895 até 1969. Ou seja, essas publicações consistiam em
uma seleta escolar e foram usadas por mais de setenta anos no Colégio Pedro II. A construção
de sua pesquisa deu-se a partir da elaboração de um histórico “sucinto” sobre o ensino de
português e de literatura, da seleção dos Programas de ensino do Colégio Pedro II e da
legislação vigente, possibilitando compreender o sucesso e o desaparecimento desse livro
didático. Em sua pesquisa, é possível encontrar informações importantes sobre a conformação
das disciplinas: Português e Literatura no ensino secundário brasileiro do final do século XIX
10
até a segunda metade do século XX, possibilitando conhecer alguns dos posicionamentos de
Fausto Barreto e Carlos de Laet, sujeitos estes que atuaram na organização dos programas de
Ensino do Colégio Pedro II, mais especificamente, organizadores da Antologia Nacional em
suas várias edições.
Nesse estudo, a autora apresentou os programas de português e de literatura do
Colégio Pedro II de 1850 a 1951, as tabelas com os horários das aulas, com os nomes dos
responsáveis pelas disciplinas (Português e Literatura), constando também as suas
preferências literárias para o ensino de Português.
À medida que a autora apresenta o material selecionado, tanto dos currículos do
Colégio Pedro II como dos textos analisados na Antologia Nacional, Os programas de ensino
indicavam os autores mais lidos e as leituras importantes. O livro Manual de análise (léxica e
sintática) de José Oiticica aparece nessas listas dos Programas de Ensino do Colégio Pedro II,
do período que vai de 1926 até 1952.
A Organização do Corpus documental da pesquisa:
Durante o processo de construção desta pesquisa foi reunida uma diversidade de fontes
cuja organização é apresentada a seguir:
Primeiro grupo: é constituído pela produção didática, artigos jornalísticos, ensaios
sociológicos e peças teatrais - foi divido em 3 subgrupos:
a) Livros e opúsculos:
Constituem-se pelos livros e opúsculos de autoria de José Oiticica. Trata-se de
produções relacionadas ao ensino em geral, e, em particular ao ensino de português; os livros
sociológicos com os princípios do anarquismo:
Foram privilegiados, o Manual de análise (léxica e sintaxe), de 1919, e o Manual de
estilo, de 1926, por serem, os dois, livros adotados no Colégio Pedro II. Desses livros a
pesquisa buscou trabalhar com as cartas de advertências
5
de todas as edições, com o objetivo
de organizar as prescrições de práticas apresentadas pelo professor Oiticica aos seus leitores,
os “professores novos”, e aos interessados em língua portuguesa, assim como para inferir as
suas críticas, ou seja, identificar as práticas didáticas negadas em sua proposta pedagógica.
O opúsculo Um programa heterodoxo de português nas escolas, de 1948, recebeu
destaque em razão de conter a rememoração da experiência pedagógica no seu Colégio
5
As cartas de advertência dos manuais didáticos de José Oiticica eram textos introdutórios direcionados aos
professores com apresentação da proposta do livro, de algumas orientações de usos, de críticas a procedimentos
de ensino ruins do ponto de vista do autor, de prescrições de práticas e de orientações da relação professor –
aluno.
11
Latino-Americano, em 1905, e a sua proposta de sistematização do ensino, denominada como
método de ensino, na década de 1940.
Para a organização e análise do material recolhido, optamos, como já se disse, por
privilegiar as cartas de advertência que abrem essas publicações. Nessa análise, observamos
como o professor Oiticica orientava os seus leitores - os professores novos - sobre os
procedimentos de avaliação que deveriam adotar, assim como aqueles que não deveriam usar
como práticas de avaliação; as relações de sociabilidade entre o professor e o aluno por meio
do texto escrito; em relação às propostas de atividades e de orientações de conduta no ensino
para este ou aquele conteúdo; à forma como esse educador construía a relação entre o
professor e o aluno, entre sua posição de autor e o leitor professor; na observação sobre
excertos, textos, autores que foram escolhidos para compor as lições propostas em seus livros,
opúsculos e folhetins; a observação sobre mensagens éticas e morais.
b) Imprensa libertária:
Corresponde ao conjunto de artigos jornalísticos relacionados com a questão social, a
educação e as ciências sociais:
Buscou-se conhecer as prescrições de José Oiticica para a educação na sociedade
nova, as suas críticas à sociedade e ao ensino vigente. A pesquisa percorreu o jornal A
Lanterna – anticlerical e de combate de São Paulo, A Voz do trabalhador, Crônica
Subversiva e Liberdade no Rio de Janeiro no período entre 1912 e 1918. Desses jornais foram
recolhidos os registros dos temas e os comentários sobre as conferências sociais proferidas
por José Oiticica nos centros de estudos e da Liga Anticlerical.
Dos periódicos que estiveram sobre a direção de José Oiticica a pesquisa focalizou A
Vida, em circulação entre 1914 e 1915, procurando apresentar sua conformação, as suas
características mais específicas, e o exame de um ensaio sociológico de autoria de Oiticica
intitulado “O desperdício da energia feminina”, publicado em 5 de seus 7 números.
Do Jornal Spartacus, dirigido por José Oiticica, cuja circulação deu-se entre 1919 e
1920, apresentamos a sua descrição geral e selecionamos artigos nos quais José Oiticica
apresenta ao leitor as suas concepções a propósito da situação do ensino. Assim, nos valemos
no artigo intitulado “Não há meio”, publicado nesse jornal em 1919, e também dos
documentos “Princípios e fins” e “Previsões e Práticas”, desse mesmo jornal, em que Oiticica
nos apresenta a conformação da sociedade nova do comunismo libertário de sua idealização.
Desses dois documentos procurou-se destacar a suas prescrições em relação à educação e à
organização do ensino.
Do jornal Ação Direta, foram selecionados artigos sobre as concepções de Oiticica
12
relacionadas às matizes do seu pensamento em relação ao seu modo de ser anarquista. Em seu
primeiro ciclo, 1928-1929, esteve sob a direção de José Oiticica e José Simões e foram
publicados seis exemplares. Em seu segundo ciclo, iniciado em 10/04/1946, dirigiu esse
jornal, ao lado de Manuel Peres até o falecimento de Oiticica em 1957 Nesse segundo ciclo, o
jornal publicou 137 números, tendo diversas periodicidades, ou seja, foi semanal, quinzenal e
mensal.
Na leitura dos artigos de José Oiticica e de outros articulistas, seus pares, nos jornais
libertários em circulação nas décadas iniciais do século XX, frases como “a nossa obra”, “a
nossa educação” e “a nossa propaganda” se repetiam. Estas e outras palavras, nos discursos
desses articulistas, indicavam um lugar de pertencimento e de fala comuns. Assim como a
observação sobre os sentidos atribuídos a algumas outras frases, tais como o “combate por
meio da palavra”, a “questão social”, a “ação direta”, a “revolução social” e “a sociedade
futura”, serviram-nos como chaves para a apreensão dos sentidos atribuídos às ações da
propaganda social.
Estes termos não apareciam somente nos jornais libertários, também apareciam nas
conferências. Não eram estranhos ao público leitor dos jornais, nem tão pouco da audiência
das conferências sociais. Ao percorrer os discursos, percebemos que a maior parte dos
articulistas desses periódicos libertários exercitavam a experiência das discussões nos
sindicatos, associações, e ligas, organismo a que os jornais se achavam vinculados. Isso
explica, em parte, o uso corrente dos termos, e também a iniciativa de alguns articulistas em
explicá-los para marcar qual era o significado que eles pretendiam atribuir a tais palavras.
c) Peças teatrais:
Este terceiro subgrupo é constituído pelas peças teatrais e pelos manuscritos de aulas e
de artigos do professor Oiticica. O exame desse material propiciou que relacionássemos as
atividades de aulas da docência institucional na Escola de Arte Moderna e as atividades com o
teatro social.
A partir desse material apresentamos as conexões entre as ações da propaganda social
(nos espaço do jornal, das conferências e do teatro) com as ações e idéias da atuação de José
Oiticica na docência institucional.
A imprensa considerada como prática social constitui-se em um importante viés para
conhecer as múltiplas faces de José Oiticica, para recolher pistas e evidências sobre os
modelos educacionais dos quais ele foi participante ou, ainda, que pode ter influenciado no
processo de elaboração de sua produção intelectual destinada ao ensino.
Segundo grupo: constitui-se dos registros sobre a vida profissional de José Oiticica
13
Neste segundo grupo organizamos os documentos com registros sobre a vida
profissional de José Oiticica, que nos levaram a conhecer os vínculos institucionais em que
exerceu a docência. Esse material foi encontrado na Biblioteca da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo – USP; no Núcleo de Documentação e Memória do Colégio Pedro
II - NUDON; no Instituto de Estudos Brasileiros da Faculdade de Educação da USP- IEB e na
Biblioteca Nacional.
a)Anuários do Colégio Pedro II (entre 1916 e 1952). Nestes documentos obtivemos as
seguintes informações: a composição do corpo docente dessa instituição; a participação de
José Oiticica em bancas examinadoras de concurso para docentes e banca de avaliação de
exame de admissão; as suas ausências em comissões constituídas por docentes em varias
festas comemorativas do Colégio Pedro II e algumas traduções feitas por Oiticica.
b) Atas da Congregação do Colégio Pedro II (dos anos 1917 e 1925; 1937). Obtivemos, nestes
documentos, informações sobre o período em que Oiticica atuou como professor substituto
(entre 1917 e 1924) e quando assumiu a cadeira de Português, em 1924. Investigou-se,
também, nestas atas, registros existentes a propósito de suas ausências decorrentes dos
períodos de encarceramentos mais longos: 1918/19; 1924/25 e 1937.
c) Almanack do pessoal Docente e Administrativo do Collegio Pedro II (até junho de 1924, nº
11).
d) Relatório concernente aos anos lectivos de 1925 e 1928 - Relatório de 1928 com a
nomeação de José Oiticica para a Cátedra de Português.
e) Recortes de jornal (IEB) do Arquivo Fernando de Azevedo, com informações sobre
composição do quadro docente, programas e condições de funcionamento da Escola
Dramática Municipal.
As informações obtidas através da leitura desse material foram entrecruzadas com as
pesquisas de Haidar (1972); de Souza (1999); de Razzini (2000); de Vechia & Lorenz (1998)
e de Gasparello (2004), particularmente sobre assuntos como a legislação educacional e o
ensino secundário.
Terceiro grupo: a correspondência passiva e ativa do professor José Oiticica
a) Correspondência ativa que o professor José Oiticica escreveu ao professor Coelho
Netto.
b-) Cartas e cartões da correspondência passiva.
Quarto grupo: Prontuários do DEOPS SP/RJ e estudos sobre as correntes anarquistas: reúne
registros sobre a militância de José Oiticica nas correntes anarquistas, desdobradas em vários
encarceramentos, cujos períodos entrecortaram a sua trajetória como professor e como autor.
14
a) Os prontuários DEOPS- SP e RJ; as cartas escritas por José Oiticica na prisão, que foram
publicadas em dois livros de Edgar Rodrigues, em 1993: Entre ditaduras e Os Libertários;
b) Cartas da prisão (1919, 1924, 1925) doadas por Sônia Oiticica a Edgar Rodrigues e
publicadas nos livros Os libertários e Entre ditaduras (1948-1962).
c) Carta aberta ao chefe de polícia Dr. Aurelino Leal (A rua, 1918);.
d-) Memórias dos militantes na historiografia militante, principalmente nos livros de Edgar
Rodrigues e Roberto das Neves e em artigos da imprensa ácrata.
Valemo-nos do levantamento bibliográfico realizado sobre a historiografia da classe
operária brasileira com o objetivo de estabelecer balizas da militância anarquista de Oiticica,
e, a partir disso, relacioná-las aos contextos social e cultural que abrigaram a produção de seus
livros, artigos e opúsculos. O principal objetivo foi situar José Oiticica nas cenas do
anarquismo no Rio de Janeiro.
Quinto grupo: constitui-se de textos memorialistas, entrevistas e documentos sobre a vida
familiar de José Oiticica.
a) Textos memorialistas de ex-alunos do Colégio Pedro II:
Mario Lago: Na rolança do tempo e Bagaço de beira-estrada; Pedro Nava: Balão cativo e
Chão de Ferro e Fernando Segismundo: Colégio Pedro II: Tradição e modernidade (italic
em “e modernidade”) e Memória de estudante.
b)Textos transcritos a partir de quatro entrevistas com a filha de José Oiticica, Sônia Oiticica,
realizadas e transcritas pela pesquisadora.
c) Textos transcritos a partir de duas entrevistas, a primeira com um ex-aluno do Colégio
Pedro II, que foi avaliado por Oiticica no exame de admissão; e a segunda advinda da
memória de sua filha Sônia Oiticica, da genealogia da família Leite e Oiticica.
d) Pesquisa sobre a genealogia da família Leite e Oiticica, elaborada por um primo de Sônia
Oiticica, Jarbas Elias da Rosa e Oiticica, intitulada Riachão – a história de um engenho e das
famílias que nos últimos trezentos anos transformaram-no em um complexo industrial sucro-
alcooleiro. Vale ressaltar que as informações desse texto foram corrigidas por Sônia,
particularmente as que envolvem o desterro de seu pai, nessa fazenda de Alagoas, em 1918,
por ocasião de sua primeira prisão.
Sexto grupo: é constituído por artigos em respostas às proposições de personagens que foram
participantes da rede de relações e de idéias de Oiticica.
a) Artigos em resposta a intelectuais de sua rede de relações e a pessoas públicas:
15
“Carta-Aberta ao Sr. Rui Barbosa” (Correio da Manhã, 1918: sobre o papel que tem o
advogado na sociedade capitalista; a concepção de pátria; a idéia de lei e as idéias
anarquistas).
b) Resposta de Silvio Romero (1910) a José Oiticica a propósito da sociologia de Frederick
Le Play e da pedagogia de Edmond Demolins.
c) O pronome Se Indefinido – réplica ao Dr. José Oiticica – Opúsculo de Pedro de Mello
(1926).
d) Conferência de Afrânio Peixoto, em 18 de junho de 1918, inserta em seu livro Ensinar a
ensinar.
e) Opúsculo Relíquias de uma polêmica – artigos do Sr. José Oiticica apostilados pelo padre
Leonel Franca (1926).
Sétimo grupo: Manuscritos recolhidos do espólio de José Oiticica: correspondências
pragmáticas e sonetos manuscritos, sempre escritos em um quarto de folha de papel, aliás, um
hábito de toda sua vida: anotações à moda Oiticica. Alguns sonetos, motivados pela natureza;
outros, enaltecendo a língua portuguesa, bem ao estilo parnasiano; outros, ainda, tendo em
perspectiva a sociedade nova. No verso de alguns desses sonetos manuscritos encontramos
impressos do Colégio Latino-Americano, cartas de oferta de curso e recibo de subscrição
voluntária do jornal Ação Direta.
No Rio de Janeiro, no Núcleo de Documentação e Memória do Colégio Pedro II
(NUDOM) e na Biblioteca Nacional (BN), coletamos artigos, opúsculos, livros e cartas
escritas pelo professor José Oiticica e que foram enviadas ao professor Coelho Netto.
Em São Paulo, na biblioteca da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
(USP), consultamos os Anuários do Colégio Pedro II; no Arquivo Multimeios da Divisão de
Pesquisas do Centro Cultural São Paulo encontramos as peças teatrais escritas por José
Oiticica e encenadas no teatro social; no Instituto de Estudos Brasileiro (IEB) na USP, no
Arquivo Fernando de Azevedo, valemo-nos dos recortes dos jornais A Esquerda, Jornal do
Brasil e O Globo, que apresentaram informações sobre a Escola Dramática Municipal do Rio
de Janeiro.
No Arquivo do Estado de São Paulo, na coleção Dossiês DEOPS/SP: Radiografias do
Autoritarismo Republicano Brasileiro, foram consultados os prontuários de José Oiticica e de
Edgar Leuenrouth, por ocasião de suas prisões em São Paulo.
Em Campinas, no Arquivo Edgar Leuenroth – (AEL), na Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP), foram e continuam sendo recolhidos artigos dos jornais Ação Direta,
Spartacus e da revista A Vida.
16
Além da coleta dos documentos já mencionados, realizamos, também, entrevistas
abertas com dois colaboradores: o professor Geraldo Pinto Vieira, por ter sido avaliado por
Oiticica no exame de admissão ao então ensino ginasial
6
, ou seja, de quinta a oitava série;, e
com Sônia Oiticica, a sétima dos oito filhos de José Oiticica. Tais entrevistas foram realizadas
e transcritas pela própria pesquisadora, sendo que com o primeiro colaborador foram feitas
duas entrevistas com gravação de uma hora. Já a segunda colaboradora foi entrevistada em
quatro sessões, sendo as três últimas gravadas em, aproximadamente, sete horas. Essas
entrevistas encontram-se apresentadas na íntegra nos anexos desta tese.
O tratamento das fontes de pesquisa:
O tratamento das fontes de pesquisa foi realizado a partir dos procedimentos adotados
por Ginzburg (2001), que se vale de rastrear as pistas, os indícios e o sinais para o diálogo
historiográfico com as fontes de pesquisa; e de Thompson (1981), com o procedimento da
construção da evidência interrogada pela lógica histórica, uma lógica adequada ao material
do historiador em seu trabalho de construção do objeto de estudo, nesse movimento, a partir
da formulação de questões em contextos particulares na ordem ou na desordem do diálogo
historiográfico, em que a lógica não é dada por si mesma, mas construída a partir de perguntas
feitas à evidência.
Para Thompson (1981), a evidência interrogada é um procedimento historiográfico,
um método lógico instaurador da investigação intrínseco ao material selecionado no processo
de investigação e interrogado pela lógica histórica. Sobre esta lógica, diz o autor:
Por “lógica histórica” entendo um método lógico de investigação adequado a materiais
históricos, destinado, na medida do possível, a testar hipóteses quanto à estrutura,
causação etc. e a eliminar procedimentos auto-confirmadores (“instâncias”,
“ilustrações”). O discurso histórico disciplinado da prova consiste no diálogo entre o
conceito e evidência, um diálogo conduzido por hipóteses sucessivas de um lado, e a
pesquisa empírica, do outro. O interrogador é a lógica histórica; o conteúdo da
interrogação é uma hipótese (por exemplo, quanto à maneira pela qual os diferentes
fenômenos agiram uns sobre os outros); o interrogado é a evidência, com suas
propriedades determinadas. [...] (p.49).
As pistas e os indícios evidenciados no processo de investigação conduzem a
diferentes direcionamentos, tal como propõe Ginzburg (2001, p.170) acerca dos
procedimentos que ajudam compor o desenho de uma pesquisa - este é resultado de uma entre
outras histórias que podem ser construídas, pois:
[...] os fios que compõem uma pesquisa são os fios de um tapete; compõem uma trama
que aumenta a densidade e homogeneidade à medida que vai sendo desvendada. Para
entender a coerência dos desenhos inscritos no tapete é necessário percorrê-lo com os
6
Atualmente (em 2008) esse nível de ensino constitui parte do “ensino fundamental”.
17
olhos a partir de múltiplas direções, percebendo que as possibilidades são
inesgotáveis. A leitura em sentido vertical produz uma gama de resultados que variam
se ela for feita em sentido horizontal ou diagonal
As informações sobre a vida familiar e sobre a formação acadêmica de José Oiticica
partem da seleção de ocorrências crivadas pelo próprio Oiticica, sendo que a análise sobre o
seu itinerário de formação amplia-se no diálogo com os outros documentos encontrados no
decorrer da pesquisa, em interseções com ocorrências relativas à vida política e educacional,
explicitadas ou não em seu resumo biográfico. Entre as coisas ditas e aquelas silenciadas,
comparecem outras fontes para compor o diálogo historiográfico. Á leitura do memorial da
família Oiticica, abstraindo-se o panegírico - costumeiramente observado neste tipo de texto -
foi possível somar informações sobre a sua ambiência familiar. O entrecruzamento entre
esSas informações com os dados coletados sobre a sua experiência profissional, em
conformidade com as determinações da evidência e com os limites e condições da pesquisa,
constróem o lugar educacional ocupado por José Oiticica em contextos sociais determinados,
para além daqueles circunscritos a sua vida pessoal.
Adentrar ao quadro cultural em que se deu a formação intelectual desse intelectual
impulsionou-nos a investigar, também, a formação de seus pais e de seus irmãos, por ser a sua
família o seu primeiro lugar social e, na seqüência, foram localizadas as instituições escolares
que o receberam em sua formação escolar. Esses dois movimentos, embora como incursões de
superfície, forneceram-nos pistas para a construção desta pesquisa, à luz da proposta de
construção da evidência interrogada, orientada pelo objetivo de traçar o perfil intelectual de
José Oiticica.
Organização do trabalho
No capítulo I, intitulado “A trajetória e o itinerário de formação de José Oiticica” são
identificados os seus primeiros lugares sociais, o seu ambiente familiar, as instituições por
onde passou o aluno até a sua formação como bacharel em Direito. Em seguida, são situadas
as instituições de sua atuação profissional, em que procuramos identificar os seus diferentes
espaços de atuação pedagógica na docência institucional, na grande imprensa e na imprensa
libertária. As suas idéias e as suas ações são apresentadas, neste capítulo, de maneira
introdutória, e preparam o terreno para que, nos três capítulos seguintes, sejam elucidadas as
ações que o caracterizaram como um intelectual de seu tempo, esquadrinhando as suas
inovações, as suas contradições e as oposições que repercutiram para o seu reconhecimento
social como um intelectual do seu tempo.
Além disso, neste capítulo também são feitas incursões sobre a vida literária do Rio
18
de Janeiro das primeiras décadas do século XX, em que são situadas as rodas literárias dos
homens de letras e a sua movimentação na sociedade carioca, acompanhando a configuração
da imprensa como prática social, mais especificamente na militância anarquista. “A presença
de José Oiticica na propaganda social libertária: os jornais, as conferências e o teatro social” é
o título do capítulo II. Nele, apresentamos os registros das atividades relacionadas às
conferências sociais, ao teatro e ao jornal como os espaços e as ações da propaganda social.
A reflexão é construída a partir do mapeamento dos temas das conferências proferidas por
Oiticica e que foram registradas nos jornais libertários. Ainda, os registros recolhidos dos
jornais das iniciativas individuais de Oiticica possibilitam-nos pensar sobre o seu significado
no coletivo e no projeto educacional e cultural libertário. As ações da militância libertária são
analisadas a luz do ideal de efetivação da Revolução Social e do ideal de construção da
sociedade futura. As diferenças entre “educar” e “instruir” são apresentadas a partir da
discussão sobre o significado do termo propaganda social. A partir dos registros das aulas de
José Oiticica na Escola de Arte Dramática Municipal, das peças teatrais de Aristófanes, e do
debate sobre as peças teatrais de autoria de José Oiticica, neste capítulo evidenciamos a
conexão entre a docência institucional e as atividades para o teatro social.
No capítulo III situamos José Oiticica nas correntes anticlericais e do livre
pensamento, assim como apresentamos o seu combate pela palavra , que, inclusive, serve
como título a este capítulo. Tal combate (eu colocaria em italic) é exemplificado por uma
polêmica anticlerical travada entre o professor e o padre Leonel Franca. São focalizados dois
periódicos fundados por José Oiticica, a revista A Vida e o jornal Spartacus. Do primeiro, o
ensaio intitulado “O desperdício da energia feminina” serve para demonstrar alguns dos
princípios e idéias que conformavam as criticas e as prescrições de práticas defendidas, pelo
professor militante, para a mulher na sociedade nova; “Princípios e fins” e “Previsões e
práticas”, publicados no Spartacus, mostram a plataforma do comunismo libertário pensado
por Oiticica, com destaque ao tema do ensino na sociedade nova. Ainda, neste capítulo, a
produção de José Oiticica, na imprensa, é balizada pela narrativa sobre as condições que
sucederam os seus sucessivos encarceramentos.
No IV capítulo apresentamos a discussão sobre o método de ensino defendido pelo
professor Oiticica, discutindo dois manuscritos do autor, no primeiro, “O anarquismo como
método de educação”, Oiticica apresenta as suas idéias sobre como o professor deve ensinar,
tendo como referência a Didática Magna de Comenius, e no segundo, “O feito e o por fazer”,
ele faz um balanço sobre a sua produção para a língua portuguesa. Neste capítulo são
analisadas, também, as cartas de advertências dos manuais didáticos de Oiticica adotados no
19
Colégio Pedro II, o Manual de análise (léxica e sintática), de 1919, e o Manual de estilo, de
1926. Por fim, apresentamos nas considerações finais, uma reflexão sobre o modo de ser
anarquista de José Oiticica.
20
Figura 1 – Manuscrito biográfico de José Oiticica por José Oiticica
Manuscrito pertencente ao acervo pessoal de José
Oiticica
21
Este manuscrito foi reconstituído no processo de organização do espólio de José
Oiticica. Fragmentado, as suas partes foram reunidas em momentos diferentes do trabalho de
organização dos documentos. Trata-se de um texto biográfico de José Oiticica escrito por ele
mesmo na terceira pessoa do singular. Apesar de não ter sido datado por seu autor, duas
evidências permitem supor o período de sua elaboração: o registro de sua prisão em 1937 e a
citação dos seus livros didáticos até 1948. Assim, é possível supor que a sua elaboração tenha
ocorrido neste intervalo de tempo.
Nasceu em Oliveira (Minas Gerais) aos 22 de junho de 1882, de onde saiu aos três
anos para Maceió. Aí esteve até 1890, vindo para o Rio por ter sido o seu pai, o
notável financista Francisco de Paula Leite e Oiticica, eleito deputado para a
Constituinte. Aprendeu a ler com a sua mãe, Ana Adélia Leite e Oiticica e cursou em
Maceió a escola primária do professor José Estevão. No Rio continuou com seu pai o
estudo de português, francês e latim. Foi depois internado no Colégio São Luiz
Gonzaga, em Petrópolis, dirigido pelo padre Ernest Ledue. Com o levante da esquadra
em 1894, desceu de Petrópolis, por ser impossível o trajecto por barca. Entrou interno
para o Seminário Arquidiocesano de São José (curso ginasial). Ali permaneceu cerca
de três anos. Passou depois para o Colégio Paula de Freitas onde aos quinze anos
terminou os preparatórios. Estudou no Curso Anexo da Escola Politécnica e chegou a
prestar exame de desenho; mas levado por leituras sociais, enveredou pelo Direito
freqüentando a Faculdade de Recife e depois a Faculdade de Ciências Jurídicas e
Sociais do Rio. No quarto ano, o estudo da Medicina Legal mostrou-lhe a necessidade
de conhecer ciências naturais e, com grande pendor para esses estudos resolveu
matricular-se na Faculdade de Medicina [a qual] cursou com grandes interrupções, até
o fim do 3º ano. Formado em Direito e já decepcionado com a organização social do
mundo, não quis seguir nenhum ramo dessa carreira e fez-se professor de história.
Lecionou no Paula de Freitas; mas, tendo-se casado, em 1905, com sua prima
Francisca Bulhões, fundou, por conselho e auxílio de seu pai o Colégio Latino-
Americano, no Leme. Aí procurou aplicar os processos pedagógicos da École des
Roches, de Demolins; mas após brilhante êxito teve de fechá-lo por dificuldades
financeiras. Aceitou então o convite para dirigir o Colégio Municipal de Laguna
(Santa Catarina). Aí esteve cerca de três anos. Fundou o jornal Correio do Sul.
Sobreveio desavença com os dirigentes. Resolveu deixar Laguna e voltar para o Rio.
Lecionou então no Colégio Batista e por vários anos tentou concurso, mas apesar das
ótimas classificações nunca foi aproveitado, [sendo] aceito no último, o de Português
para o Colégio Pedro II em 1916. Foi, em 1914 convidado por Coelho Netto para
substituir João Ribeiro na Escola Dramática, onde regeu a cadeira de prosódia. Já
então iniciara a propaganda de suas idéias revolucionárias antiestatistas. Na greve
geral de 1918, durante a célebre espanhola foi preso e deportado para Alagoas,
prosseguindo, depois, na mesma campanha pelo jornal e pela palavra. No governo
Arthur Bernardes, foi encarcerado por mais um ano e, em 1937, por seis meses. Em
1929, foi contratado para lecionar na Universidade de Hamburgo e na Faculdade de
Filosofia e Letras [do Distrito Federal]. Essa atividade explica o número avultadíssimo
de artigos seus dispersos em jornais e revistas. Em 1911 publicou a série de Sonetos,
em 19... sua Ode ao Sol,
em 1919 a segunda série dos Sonetos (a terceira está inédita).
Escreveu para Concurso ao Pedro II a tese Estudos de Fonologia. Como professor
publicou o Manual de análise e depois o Manual de estilo. Tem inéditos: Modelos de
análise. Curso de latim. Curso de grego. O pronome se apassivante. Guia para
correção de texto. Etc. Seleta dos contemporâneos. São numerosos seus estudos de
prosódia. Dicionário popular.
22
Capítulo I – A trajetória e o itinerário de formação de José Oiticica
Neste capítulo, inicia-se a reconstituição da trajetória e do itinerário de formação de
José Oiticica. O manuscrito biográfico de José Oiticica serviu a esta narrativa como uma
espécie de script, mas sem seguir o traçado estritamente cronológico para, com isso, dialogar
com outras fontes primárias e secundárias com fluidez. Esta perspectiva foi inspirada na
construção da “evidência interrogada” pela lógica histórica, de que tratou Thompson (1981),
segundo a qual a partir do próprio material encontrado no processo de pesquisa se constrói a
ordem ou a desordem do diálogo historiográfico.
Dos materiais utilizados na construção deste capítulo, destacam-se sonetos e artigos
jornalísticos de autoria de Oiticica, o memorial de família
7
. Alguns de seus artigos
jornalísticos foram selecionados da grande imprensa e da imprensa operária. Utilizamo-nos
também de cartas de suas correspondências ativa e passiva, além das entrevistas realizadas
com sua filha Sônia Oiticica. Foram feitas incursões na pesquisa historiográfica e da crítica
literária jornalística
8
com o objetivo de reunir informações sobre o ambiente letrado do Rio de
Janeiro nos inícios do século XX. Por fim, algumas narrativas, em especial as elaboradas por
sujeitos que foram pares de trabalho de José Oiticica na imprensa anarquista também foram
valorosas fontes.
Assim, esta pesquisa é resultante da análise dessa diversidade de fontes primárias e
secundárias; constituídas por temporalidades; e lugares e distintos discursos.
Questões que buscaram traçar o primeiro lugar social de Oiticica, assim como os seus
outros lugares sociais, em que podem-se constatar as bases gerais de sua formação, deram as
diretrizes para o primeiro capítulo. Desse modo, nessa parte da pesquisa foram identificados
elementos do ambiente familiar do autor, e as instituições escolares que o abrigaram como
aluno. Além disso, nesse capítulo também é apresentada a inserção de José Oiticica nos
principais estabelecimentos escolares onde exerceu a docência e as suas outras práticas
educacionais. Nesse sentido, o texto apresenta algumas pessoas que foram importantes na
vida de Oiticica, e, com isso, procura situar o trajeto de suas escolhas.
Com esta apresentação preliminar pretende-se lançar, ainda que de maneira
7
Trata-se da pesquisa elaborada por Jarbas Elias da Rosa Oiticica, sem data, intitulada Riachão: A história de
um Engenho e das famílias que nos últimos trezentos anos transformaram-no em um completo sucro-alcooleiro.
8
Serviram como referências os trabalhos de Broca (2004); Sevcenko (2001); Dutra(2005); Fenerick (1997) e
Luizetto (1984).
23
introdutória, as particularidades da experiência investigada, importantes para compor a noção
fluída sobre o que foi a trajetória docente desse intelectual da educação brasileira.
1. A família e as primeiras letras
1.1 Duas cenas no Engenho Riachão: a casa paterna e o exílio
A CASA PATERNA
José Rodrigues Leite e Oiticica era o quarto dos sete filhos de Francisco de Paula
Leite e Oiticica e de Ana Adélia Leite Pitanga. Ele nasceu em Oliveira, Minas Gerais, em 22
de julho de 1882, na fase em que o seu pai ocupava o cargo público de juiz daquela cidade.
Ao completar três anos, deixou a cidade mineira e mudou-se com sua família para o
Engenho Riachão, a herança que o seu avô paterno, o Coronel Manoel Rodrigues Leite da
Costa
9
, deixou ao seu pai. Essa grande propriedade rural localizava-se em Rio Largo, Alagoas
e, desde a metade do século XIX, era o local de moradia da família, onde Oiticica viveu a
maior parte de sua infância.
As terras, antes denominadas Mundaú, fizeram parte de sua memória e aparecem em
sua produção poética. Dois de seus sonetos referem-se às lembranças daquele lugar, e
apresentam uma descrição do cotidiano e do funcionamento do Engenho, representando o
cenário de sua infância:
As lembranças
Riachão! Avisto o engenho hoje parado
E a Casa Grande junto à capelinha
O alambique, o ingazeiro, a água, o cercado
Quase tudo o que outrora me entretinha.
Quase tudo! Não vejo mais o gado
O bambuzal, a casa de farinha
Não sinto agora o cheiro do melado;
A bica d’ água em vão corre sozinha.
Foram-se cambiteiros, fôrmas, cana...
Cresce o capim na antiga bagaceira
9
O sobrenome Costa foi substituído por Oiticica, (nome de uma árvore da flora brasileira) em 07 de abril de
1831. Com esta denominação Manoel Rodrigues Leite e Oiticica deu inicio a genealogia Oiticica. De acordo
com o memorial que conta uma história sobre as famílias do Riachão, o avô de José Oiticica era formado em
Humanidades, em Maceió, e em Medicina, no Rio de Janeiro. Era conhecido da população local por ser médico e
Senhor de Engenho na região (OITICICA, J.B, s/d: p.111).
Figura 2 Capela e casa grande do Engenho
Riachão, sem data, acervo pessoal José
Oiticica
24
E o gongo mal nas pernas espadana
Ouço o rumor soturno da banheira
E sinto a minha vida, a vida humana,
A fugir-me, a fugir-me sem que eu queira
Rio 1-1-1918, José Oiticica.
Mundaú
Mundaú. Eis a ponte de madeira
E os pés de cana fístula na estrada
O rio tardo, os mulungus á beira;
Sob a ponte morcegos em revoada.
Toda a várzea, ao cair da tarde, cheira.
Chiam carros ao longe
A casa amada espera e a igrejinha sobranceira
Surge branca na luz que se degrada.
O cavalo vai sôfrego e eu sonhando
A arapuca, os sanhaços, a almanjarra.
Coisas de um tempo que nem sei mais quando.
Afora o pé de oiti, meu velho amigo,
Chorando junto à usina a que se agarra
10
As horas idas que vivem comigo.
Rio 1-1-1918, José Oiticica.
Os sonetos evocam sons, cheiros e a paisagem que ambientaram a sua infância. O
cotidiano da vida no engenho emerge das memórias de Oiticica que transitam nos sonetos
com temporalidades distintas. Os versos suscitam certo lamento motivado pela observação da
inoperância do engenho. As suas atividades diárias ficam subentendidas na descrição das
partes constitutivas do Engenho Riachão. A nostalgia sobre o tempo lá vivido traz a marca do
seu momento presente, o primeiro dia do ano de 1918.
No momento da escrita dos sonetos, Oiticica era um adulto, com trinta e seis anos e
10
A “usina”, citada pelo autor, em Mundaú na verdade são os vestígios dos alicerces de algumas paredes de uma
usina que nunca chegou a ser erguida (OITICICA, R.B, s/data, p. 49).
25
sensibilizado com lembranças dos tempos da infância e juventude no Riachão. Além disso, já
era um Catedrático de Português no Colégio Pedro II, militante anarquista, cronista das
questões sociais e pai de sete filhos.
Aquelas terras abrigavam a terceira geração da família Oiticica. Para o autor, o
Riachão motivava muitas lembranças, pois alguns acontecimentos marcantes de sua vida
ocorreram ali, entre elas, o aprendizado da leitura com a sua mãe. Na escola do professor
Estevão logo desenvolveu as primeiras letras. Foi no engenho que, no ano de 1905, casou-se
com Francisca Aurora da Silva Bulhões.
11
O EXÍLIO
O Engenho Riachão, lugar da casa paterna e da infância, também foi para José
Oiticica, em novembro de 1918, o seu cárcere. Esse episódio foi relatado por Oiticica e
também foi narrado por sua filha Sônia Oiticica
12
:
Nascemos por um acaso ou somos guiados pelos astros? Se for assim, eu deveria ter
nascido no Rio de Janeiro, os astros me levaram até Alagoas. Por quê? Meu pai,
anarquista, preso, acusado de ter sido o cabeça da grande greve de 1918, ia ser
“deportado” para uma ilha qualquer da Guanabara; mas em atenção ao meu avô, então
Senador da República, consentiram que ficasse preso no engenho da família em Rio
Largo, Alagoas, onde nasci. Meu pai aceitou, contanto que fosse com minha mãe e os
filhos. Mamãe, então já no fim da gravidez, entregou a casa, pegou a filharada e
embarcou num naviozinho, que devia ser do Lloyd ou da Costeira, junto com meu pai
preso. Éramos, então, já seis filhos: José, o mais velho, e as minhas irmãs: Clara,
Vanda, Laura, Vera e Dulce. Nasci três dias depois da chegada ao engenho! Assim,
era mais uma menina, e meu pai para consolar minha mãe foi dizendo “Zinha, é uma
menina linda!” Sou, então, a sexta filha, e depois chegou mais uma, Selma.
Completou-se a família
13
com um único filho e sete filhas; mas minha mãe e meu pai
ficaram muito contentes (OITICICA, Sônia, apud VARGAS, 2005, p.15-16).
A cena trazida por Sônia exibe a viagem forçada da família ao Engenho Riachão, uma
decorrência da participação de José Oiticica na greve de novembro de 1918, no Rio de
Janeiro, a insurreição anarquista.
14
O seu relato deixa ver, as condições em que se deu o
11
O casal teve oito filhos: José Oiticica Filho, Clara Isadora, Selma, Vanda, Vera, Sônia, Dulce e Laura Leite e
Oiticica. No espólio de José Oiticica há um soneto de pedido de casamento e a foto de sua família datada em
1923. Esses dois documentos encontram-se nos anexos I e II, respectivamente.
12
Depoimento de Sônia Oiticica à sua biógrafa Maria Thereza Vargas (2005, p.15-16).
13
Ver o anexo I - fotografia José Oiticica e família, 1923.
14
Para Edgar Rodrigues (1992, p. 241-242), “o movimento revolucionário” de 1918, conhecido por insurreição
anarquista, concentrou-se no Campo de São Cristóvão e pretendia invadir a Intendência da Guerra, depósito de
material bélico e a delegação de polícia. Para isso foi constituído o comitê, e Oiticica era um dos seus membros.
A polícia relacionou os participantes da revolta na seguinte ordem: José Oiticica, Agripino Nazaré, Álvaro
Palmeira, Ricardo Corrêa Perpétuo, Astrogildo Pereira, Carlos Dias, Manuel Campo Joaquim Morais, como
dirigentes do plano, e como colaboradores 49 elementos, todos considerados subversivos. Edgar Rodrigues
(1992, p.243) argumenta que o objetivo dos insurgentes não era tomar o Governo e colocar operários no poder,
mas de rendê-los após apoderarem-se dos depósitos de armas, de São Cristóvão, e procederem em seguida à
instauração do trabalho para a transformação social. Boris Fausto (1983, p.212) discute que a greve de novembro
26
embarque de José Oiticica: preso, com a sua mulher em final de gravidez e “acompanhada da
filharada” a caminho da casa paterna.
Pode-se supor que, pelas condições da viagem, o lugar de lembranças da infância
adquirira outros significados, provavelmente bem diferentes daqueles que podem ser captados
pela leitura de seus sonetos que homenageiam aquele lugar ao estilo parnasiano, característico
da geração de poetas do período.
1.1.2 Da escola unitária do professor José Estevão à Faculdade de Ciências Jurídicas e
Sociais do Rio de Janeiro
José Oiticica e os seus irmãos aprenderam a ler com a sua mãe, dona Ana Adélia Leite
Pitanga. No ano de 1888, freqüentou a escola unitária do professor José Estevão. Nessa época
havia poucas escolas públicas. O quadro educacional do período de formação acadêmica de
Oiticica, na última década do século XIX e nas duas primeiras décadas do século XX, estava
em incipiente conformação, bem como o processo de escolarização para todos ainda estava
longe de acontecer.
Era comum que as famílias contratassem um professor para a alfabetização dos seus
filhos, ou que procurassem os estabelecimentos da educação religiosa. Além dessas
alternativas, havia professores que organizavam um curso oferecendo-o às famílias que
tinham condições financeiras e que estavam interessadas em investir na educação dos filhos.
Não há informações sobre a escola do professor José Estevão, mas é possível supor que essa
escola se enquadrasse nesta última modalidade.
15
José Oiticica deixou a escola unitária do professor José Estevão em 1890, com oito
anos de idade, e continuou os seus estudos no Rio de Janeiro. A mudança de sua família de
Maceió para o Distrito Federal deu-se em decorrência de um convite que o seu pai recebeu do
de 1918, no Rio de Janeiro, preparada principalmente pelos anarquistas (estes estavam na direção do sindicato
têxtil renovada de seis em seis meses) deveria servir de base a uma insurreição revolucionária combinada com a
revolta dos escalões das Forças Armadas. No plano da insurreição, os operários após a tomada de decisão pela
greve deveriam descer de Botafogo e tomar o Palácio Presidencial do Catete com uma bandeira vermelha. A
outra parte dos trabalhadores deveria se reunir no Campo São Cristóvão para atacar a Intendência da Guerra. Os
conspiradores foram convencidos em Assembléia a concentrar-se apenas no Campo de São Cristóvão.
Denunciados, eles foram presos na tarde de 18 de novembro de 1918. A narrativa de Boris Fausto baseou-se no
relato de Moniz Bandeira (1967). As versões apresentadas são controvertidas entre estes autores, e também o são
em vários estudos da historiografia das classes operárias. Ver o trabalho Carlos Augusto Addor (2002), que trata
com centralidade da Insurreição anarquista de 1918.
15
A escolarização em massa, cujo signo foi o Grupo Escolar, uma inovação de ensino surgida pela primeira vez
em São Paulo, em 1893, e o seu processo de implantação levaram três décadas para se organizar e disseminar: a
sua forma escolar com organização por graus, o método de ensino simultâneo, classificação homogênea dos
alunos, com várias salas de aula e com vários professores. Foi um longo processo que levou o método tradicional
a ceder lugar ao método intuitivo e tornar professores e professoras profissionais da educação (SOUZA, 1998, p.
20-21). Esse processo só foi conhecido por José Oiticica na condição de professor.
27
novo Governo Republicano para compor a Assembléia Constituinte, uma vez que ele
ocupava, nesse período, a função de deputado por Alagoas.
Em 1891, José Oiticica, inicialmente, teve aulas de português, francês e latim com o
seu pai. Posteriormente, foi matriculado no internato do Colégio São Luís de Gonzaga em
Petrópolis, um estabelecimento católico dirigido pelo padre Ernest Ledue. Depois ele foi
matriculado no Seminário Arquidiocesano de São José.
16
No entanto, não foi nessa instituição
que José Oiticica terminou o ginasial.
17
Três anos depois ele foi matriculado no Colégio Paula
de Freitas, que oferecia aos alunos também os cursos preparatórios.
18
Com quinze anos José Oiticica saiu do Colégio Paula de Freitas e se matriculou no
Anexo à Escola Politécnica, onde fez o curso de desenho. Durante esse curso, Oiticica
ingressou na Faculdade de Ciências Jurídicas do Recife em Direito e o concluiu na Faculdade
de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro. Essa opção deu-se no quadro de
possibilidades oferecidas pelo ensino superior brasileiro naquele período.
No decorrer do século XIX, os cursos superiores se organizavam nos núcleos
urbanos.
19
Aqueles que se encaminhavam à formação superior no Brasil podiam escolher um
dos três tipos oferecidos no século XIX: os cursos das carreiras liberais
20
, os seminários
episcopais, destinados aos que optavam por seguir a carreira eclesiástica; e os militares, da
Marinha e do Exército, estes últimos decorrem da “modernização” do Exército como um
desdobramento da Guerra do Paraguai (RAZZINI, 2000, p.23).
16
O Seminário São José localizava-se no Morro do Castelo (fundos da atual Biblioteca Nacional e da Justiça
Federal no centro do Rio de Janeiro).
17
A razão da transferência de um estabelecimento escolar religioso para um laico é relatada pela historiografia
militante anarquista como uma espécie de marco inicial das atitudes libertárias de Oiticica. Neves (1970, p. 8) e
Rodrigues (1993, p. 35) explicam que Oiticica se rebelou contra os bolos de um padre-mestre e que essa atitude
marcou o seu primeiro posicionamento libertário.
18
Até o início da República o Secundário ainda não tinha se institucionalizado como um curso de estudos
seriados em todo o país. Por essa razão, os exames preparatórios eram um canal para o ingresso oficial no ensino
superior. Entre as alternativas para o acesso aos cursos superiores: realizar os estudos secundários no Colégio
Pedro II, uma instituição padrão para o ensino secundário desde o Império, em razão de ter organizado os
estudos em um sistema regular, seriado, que concedia ao final do curso o título de bacharel em Letras, garantindo
aos alunos o acesso direto ao nível superior; obter aprovação nos preparatórios era alternativa para aqueles que
tinham pressa em chegar ao curso superior. Aqueles que conseguiam aprovação nesses exames recebiam um
certificado de aprovação e poderiam ingressar nas academias brasileiras. Esta era uma exigência legal para a
matrícula nos cursos jurídicos. Sobre esse assunto, consultar: Silva (1956) e (1969); Haidar (1972).
19
Em Recife e São Paulo havia as Academias Jurídicas, fundadas em 1827; no Rio de Janeiro, Academia Militar,
criada em 1811 e o Curso de Medicina em 1813; que também foi estabelecido na Bahia no mesmo ano; e a
Escola de Minas, em Ouro Preto no ano de 1875.
20
Segundo Edmundo Campos Coelho (2004) em As profissões imperiais: medicina, engenharia e advocacia no
Rio de Janeiro, 1822-1930 diz: “[...] profissão liberal seria a atividade especializada que requer preparo através
de treinamento formal de nível superior, que encerra prestígio social ou intelectual ou ambos, que é praticada de
forma autônoma e cuja base de conhecimentos é de natureza predominantemente técnica ou intelectual.” (p.24),
vale ressaltar que este conceito se aplicava ao período destas atividades supracitadas, sendo que esse autor
confronta este mesmo conceito as profissões que se destacam nas décadas posteriores a 1930.
28
Em geral, os cursos das “carreiras liberais” mais procurados eram Medicina, Direito e
Engenharia; sendo que com a escassa oferta de cursos superiores existentes no Brasil, é
possível afirmar que ingressar em uma dessas academias fazia parte do roteiro ideal para a
formação dos filhos das famílias abastadas, cujos cursos oferecidos eram os que “davam
anel”, ou seja, que proporcionavam a formação “bacharelesca”, porém era incerta a atuação
na mesma área de formação
21
. Os homens da família Oiticica escolheram cursar as faculdades
de Recife e do Rio de Janeiro.
Após concluir o curso de Direito, José Oiticica resolveu cursar Medicina. O seu
contato com a área médica aconteceu dentro do mesmo curso, pois as cadeiras de Medicina
Legal e de Higiene Pública faziam parte do ensino jurídico e só foram unidas mais tarde no
curso de Medicina Pública.
A conformação do ensino superior na última década do século XIX ajuda a
compreender a dedicação “multidisciplinar” de José Oiticica. À medida que se percorre os
seus artigos, ensaios jornalísticos e os seus livros, nota-se que ele se dedicou ao estudo de
temas relacionados às áreas das ciências naturais e das ciências sociais. Em seu manuscrito
biográfico, Oiticica declara que no “quarto ano, o estudo de Medicina Legal [mostrou-lhe] a
necessidade de conhecer as ciências naturais levando-o a matricular-se na Faculdade de
Medicina, que cursou com grandes interrupções até o final do 3º ano”.
22
Este curso não despertou nele qualquer desejo em continuar os estudos em medicina,
algumas características que se pode verificar dessa experiência é o desdobramento de certas
atitudes de Oiticica em relação ao vegetarianismo, a sua reprovação ao alcoolismo e ao
tabagismo. Esse era um comportamento comum e aparecia nos discursos de muitos
intelectuais do período
23
, quando as teorias do higienismo se manifestavam na atmosfera da
21
Ainda segundo Coelho (2004) uma porcentagem alta de egressos do curso de medicina dependiam de outras
atividades para o seu sustento, os estudantes egressos do curso de direito, dificilmente se dedicavam à advocacia
strictu sensu, se encaminhavam “[...] em diferentes momentos de sua carreira passagens pela magistratura,
ministérios, presidência de província, Conselho do Estado, Senado ou Câmara [...]” (p. 92) e os engenheiros que
“evitando a identificação de seu ofício com qualquer tipo de atividade ‘mecânica’. Não eram de trabalhar nos
canteiros de obras [...] Examinavam contratos, escreviam pareceres, fiscalizavam obras [...] desfrutavam de
depauperado prestígio social[...]” (p. 95).
22
Manuscrito biográfico pertencente ao acervo pessoal de José Oiticica.
23
As adesões de José Oiticica ao vegetarianismo, pela medicina natural e pela homeopatia se consumaram no
decorrer da vida. Nos encarceramentos a partir de 1918, a sua alimentação era baseada em frutas, especialmente
bananas e vegetais, além disso, eram campanhas da imprensa libertária que combatia os vícios presente no
capitalismo, como o tabagismo, alcoolismo, jogos de azar etc. Nos anos 1930, quando Oiticica começou a
freqüentar a Fraternidade Rosa Cruz, os estudos decorrentes dessa inserção ocuparam maior espaço em seu
cotidiano fortalecendo essas adesões e, também, a sua disciplina com exercícios de concentração e meditação.
Esses hábitos aliaram-se as críticas políticas ao trabalho dos laboratórios farmacêuticos aos interesses
econômicos, que ao seu juízo estavam comprometidos com o lucro e pouco interessados na cura dos pacientes.
Essas concepções se expressaram na educação dos filhos, todos tratados com a medicina homeopática, e também
em sua produção literária.
29
regeneração social
24
, que marcou os inícios do século XX.
O médico e professor da Faculdade de Medicina Floriano de Lemos foi quem mais
estimulou José Oiticica na adesão ao vegetarianismo. Trabalharam juntos no jornal O Correio
da Manhã e criaram, no final da década de 1920, o Boletim Científico. Mais tarde, este
impresso ficou somente aos cuidados do professor Floriano, ganhando a sua nova
denominação Crônica Científica. Tais impressos tinham como principal objetivo a
sustentação de uma campanha de regeneração pelo vegetarianismo.
1.1.3 A educação e a família: tal pai, tal filho?
No decorrer da formação de José Oiticica percebem-se intercessões de seu pai em suas
escolhas de atividades profissionais, destacando-se a opção pelo curso de Direito e depois a
docência em História e Português. A sua inclinação ao estudo dos idiomas, o seu gosto
literário pela poesia, pelo teatro, a sua colaboração na imprensa foram também estimulados
pelo ambiente familiar. Pode-se aferir em seu manuscrito biográfico, “aprendeu a ler com a
sua mãe”, “estudou idiomas com o seu pai” e fundou o Colégio Latino Americano “por
conselho e auxílio de seu pai”.
Essas observações não devem ser compreendidas como linearidades de causa e efeito,
pois uma escolha supostamente individual traz em si os conteúdos de seu tempo e dos lugares
sociais encarnados em seus pertencimentos. Além disso, há incontáveis aspectos que fazem
cada indivíduo e, ainda, cada escolha terem caráter único e contraditório, seja em sua
essência, seja mesmo em sua aparência. Mais do que questionar, mensurar ou julgar as
preferências de José Oiticica, o objetivo aqui perseguido é apresentar o contexto em que se
deram as suas escolhas. Parte-se do pressuposto de que a família de José Oiticica foi o seu
primeiro lugar social. Por isso a pesquisa pautou-se na importância da contraposição e/ou
apresentação de alguns elementos que concorreram para as tomadas de decisões de José
Oiticica em sua trajetória e itinerário de formação.
Era recorrente a perspectiva da elite em tornar os seus filhos homens de letras, o que
se intensificou significativamente a partir do final do período imperial, quando os ares do
liberalismo tentavam oxigenar o projeto de organização do Estado nacional brasileiro. O
pertencimento à categoria dos homens letrados, diplomados era um signo de poder e forjava
as condições necessárias para a construção de um lugar de destaque na hierarquia social.
24
Ver: José Murilo de Carvalho (1998) e (2004) pesquisas que tratam do cenário do Rio de Janeiro em seus
aspectos culturais, econômicos, sociais e políticos.
30
Lançar-se aos estudos bacharelescos, e assim compor essa categoria, era, portanto, uma
posição de poder na sociedade da cidade das letras.
25
Os itinerários daqueles que passavam pelos estudos das chamadas profissões liberais
26
conduziam, em geral, aos cursos cujas carreiras possibilitavam pleitear a ocupação de cargos
públicos, de se tornarem políticos, ou então juristas, médicos e professores. Essas trajetórias
são confirmadas pelo exame das carreiras profissionais do avô, do pai e dos irmãos de José
Oiticica.
27
O avô de José Oiticica, o Coronel Manoel Rodrigues Leite da Costa, foi o iniciador da
família, adotando o sobrenome Oiticica. Formou-se em Humanidades, em Maceió, e em
Medicina, no Rio de Janeiro. Era conhecido da população local por ser médico e senhor de
engenho na região. Mais tarde tornou-se comendador da ordem de Cristo. Não era o seu
desejo que o seu único filho se dedicasse somente às questões rurais, por isso encaminhou o
pai de José Oiticica ao curso de Direito. Esse comportamento era considerado uma espécie de
padrão para as famílias das elites agrárias.
O Dr. Francisco de Paula Leite e Oiticica, pai de José Oiticica, titulou-se como
Bacharel, em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito de Recife, no ano de
1872 e dedicou-se ao estudo de línguas. Ele lecionou História no Liceu de Artes e Ofícios de
Maceió e Alemão no Liceu Alagoano. A carreira pública foi a vereda optada pelo patriarca.
Ele ocupou os cargos de promotor público, no interior alagoano, de juiz municipal, em Minas
Gerais, e de chefe de polícia no Governo Republicano de Alagoas. Na política, ele foi
deputado provincial, na legislatura de 1874; e senador da República, em 1891, voltando
depois a ser chefe de polícia em Alagoas.
O jornalismo também foi uma área de atuação do senador Francisco. Ainda no período
em que era aluno do curso de Direito, ele participou da imprensa acadêmica e, tal como
consta no memorial de família, ao longo de sua vida profissional nas carreiras jurídica e
25
A modernização e urbanização da cidade do Rio de Janeiro são compreendidas tal como Angel Rama (1985)
pensou esse processo nas cidades latino-americanas, ou seja, no contexto da internacionalização do capitalismo e
do avanço da divisão social do trabalho. Na obra A cidade das letras (1985), discute a origem, a formação e o
desenvolvimento das cidades latino-americanas no quadro da modernidade capitalista, tendo em vista a relação
entre a cultura letrada e as culturas populares; analisa o lugar ocupado pelas elites letradas no exercício das
linguagens simbólicas da cultura na formação das cidades latino-americanas que ajudam a compreender a crença
nas profissões que davam anel como signo de poder; questiona o papel do intelectual, no que diz respeito a sua
interpretação e a sua intervenção nas análises e ações políticas do processo de objetivação do capitalismo na
América Latina.
26
Termo empregado por Edmundo Campos Coelho (2004, p.24) em seu estudo As profissões imperiais no Rio
de Janeiro 1822-1930.
27
José Oiticica tinha quatro irmãos: Francisco de Paula Leite Oiticica Filho, Luiz Leite Oiticica, Manoel
Rodrigues Leite Oiticica e Álvaro Leite Oiticica, que se tornaram bacharéis em Direito e em Medicina. Sobre as
duas irmãs Francisca Leite Oiticica e Celsa Leite Oiticica, não há informações no memorial de família, mas a
pesquisa supõe que eram letradas, pois a mãe de José Oiticica teve a incumbência de ensinar os filhos a ler.
31
política, ele foi colaborador do jornalismo da grande imprensa, publicando crônicas, artigos,
sonetos e também duas peças de teatro.
28
A formação de José Oiticica coincidiu, em alguns aspectos, com a de seu pai. Tal
como ele, ao longo de sua formação, empenhou-se no estudo de idiomas, escreveu peças
teatrais e atuou no jornalismo. Ainda ambos ministraram aulas de História.
A convivência familiar teve peso fundamental na sua formação. Quando observamos
aspectos como a criação musical, a literatura, o estudo de idiomas, a produção jornalística, o
teatro e a docência, percebemos as recorrências das trajetórias de pai e de filho. No entanto,
mais que as similitudes, foram as diferenças entre os caminhos de formação e de atuação
profissional de um e de outro que elucidam a compreensão sobre o seu itinerário de formação.
O pai optou a partir da formação em Direito se encaminhar a magistratura, a câmara
como deputado do Império, senador da República e chefe de polícia. O filho recusou-se a
seguir qualquer ramo do Direito, investiu no magistério, nos estudos de Filologia, na autoria
de livros didáticos, opúsculos e ensaios sociológicos. Tornou-se professor, autor, jornalista e
militante da propaganda social anarquista.
1.1.4 Jurista não: anarquista!
29
Os rumos tomados por José Oiticica em sua trajetória social foram constituídos por
debates, pelas discussões, entraves e ações na militância anarquista, pelos estudos na área da
língua portuguesa, pela sua produção literária e por sua incursão no jornalismo. Atividades
estas feitas por escolhas próprias, que o distanciaram de “qualquer ramo do Direito”. Para ele
o enfrentamento das questões sociais era incompatível com as atividades de um jurista.
O ano de 1918 foi para José Oiticica um ano de afirmação na militância anarquista, de
debates com figuras de destaque do cenário político e intelectual brasileiro, marcando a sua
trajetória como cronista da imprensa social. Nesse ano, José Oiticica escreveu uma carta
contra Rui Barbosa com investidas provocativas que deixavam ver a sua aversão ao Direito e
as atividades decorrentes desse curso.
A carta foi publicada na primeira página do jornal Correio da Manhã, de 26 de
fevereiro de 1918, e foi redigida em protesto ao apoio que Rui Barbosa deu à candidatura de
Evaristo de Morais, declarado em artigo anterior para o mesmo jornal.
28
O Senador Dr. Francisco de Paula Leite e Oiticica publicou antes do nascimento de José Oiticica duas peças
teatrais intituladas: uma Dona Clara Camarão, em 1877, e outra com o título Pai (s/d). No memorial de sua
família consta que ele era colaborador da imprensa de Alagoas e do Rio de Janeiro. (ROSA E OITICICA, s/data,
p. 118-119).
29
Na carta a Rui Barbosa de 1918, José Oiticica opõe-se a seu interlocutor como jurista em contrapartida a ele
como anarquista, dessa forma o subtítulo faz uso das palavras do discurso jornalístico dele.
32
A seguir alguns trechos comentados mostram a posição de Oiticica em relação ao
Direito:
V. Exª dá mão-forte ao Sr. Evaristo de Morais, e faz bem. Os operários vêem nisso o
apoio justo de um legista ao colega recém-formado.
Desgraçadamente, é quase certo que os operários brasileiros, analfabetos quase todos,
se apalermem diante dos conselhos mansos de V. Exª e votem no Sr. Evaristo de
Morais. Pagam assim com habeas-corpus e mais serviços grátis. (OITICICA, Correio
da Manhã, 26-02-1918, p.1, apud NEVES, 1970, p.52, grifos nossos).
O candidato apoiado por Rui Barbosa posicionava-se no meio operário como um
socialista disposto a ser o porta-voz dos trabalhadores. Essa posição não agradou as lideranças
dos grupos libertários das quais José Oiticica era integrante. A disputa com os socialistas
intensificou-se com as reverberações nas lutas sindicais do movimento operário brasileiro,
dado pelo avanço do bolchevismo no pós-Revolução Russa de 1917.
Rui Barbosa era uma figura destacada, como intelectual, como político, como literato
e jurista. Ter o seu apoio potencializava as chances de eleição de Evaristo de Morais. Oiticica
já demonstrara antes a sua decepção com o Direito e com as atividades do jurista, a carta foi
mais uma oportunidade de ele externar suas idéias e lançar as suas críticas a este intelectual:
(...) a religião e o Direito. São eles os responsáveis que mantêm a organização social
ótima para V. Exª e para os de cima, e horrorosa para os de baixo, os trabalhadores.
Essa organização permite que V. Ex exija cem, duzentos, trezentos contos por uma
causa para mostrar aos tribunais, que os dois mil contos que Fulano tem pertencem a
Sicrano. Esse extraordinário trabalho de V. Exª (podia referir, por exemplo, ao
engenhoso parecer de V. Exª sobre os bens da mão morta) merece o prêmio de um
quinhão farto de riqueza humana. Muito bem, mestre ilustre! Agora respondo eu: Em
primeiro lugar, nem todos os advogados são ricos como V. Exª Há muitos cujo capital-
talento é reduzido como rabo de cotia. O argumento que poderia valer para V. Exª não
vale para a maioria deles, vadios quase na totalidade, chicanistas a pedir basta,
trapaceiros à vontade do corpo. (OITICICA, Correio da Manhã, 26-02-1918, p.1,
apud NEVES, 1970, p.48).
Nesta carta Oiticica deixa evidente todo o seu conhecimento sobre as obras de Rui
Barbosa e se posiciona em um terreno oposto. Avesso às práticas profissionais do Direito, ele
ironiza a figura do jurista:
Extraordinário mestre!
Desde os quinze anos, habituei-me a ler tudo quanto V. Exª escreve ou diz, livros,
discursos, conferências, pareceres, artigos, acompanhando o pensamento de V. Exª da
campanha abolicionista à civilista, das Lições de calkins às finanças da República, do
prefácio de Guliver às Cartas de Inglaterra, de O papa e o concílio ao parecer sobre o
ensino, do célebre artigo Pornéa à série de liquidação final, à famosa Réplica, a
conferência de Buenos Aires, etc, etc (...) em tudo o mais, diametralmente opostos: V.
Exª apesar do prefácio ao livro de Jânus, é católico, apostólico e romano, não sei ainda
porque não conde papal; eu, herege e, não sei por que, ainda não excomungado. V. Exª
33
sempre foi, é e será político, e eu sempre detestei, detesto e detestarei política; V. Exª
é homem do Direito, das leis, advogado incomparável, eu antijurista, sujeito para
quem a fonte das desgraças é o direito, e um dos malfeitores da sociedade o
advogado; V. Exª resumamos, é republicano ou monarquista (não sabemos bem, nem
eu nem V. Exª), em todo caso conservador, amigo do Estado, defensor da ordem legal,
anti-socialista; eu nem republicano, nem monarquista, nem democrata, vendo como
vejo na ordem legal a compreensão legal, na democracia a seleção das
incompetências. (OITICICA, Correio da Manhã, 26-02-1918, p. 1, apud NEVES,
1970, p.46).
Desse confronto emerge a representação da figura do anarquista para o jurista e os
seus “amigos”; em contraposição, outra representação, a do anarquista propagandista da
sociedade nova, para isso faz uma alusão indireta aos dez mandamentos bíblicos, uma ironia
desdobrada de sua participação nas correntes do anticlericalismo e do livre pensamento
30
:
“Anarquista”! Gritará V. Exª e, em torno dos amigos de V. Exª, padres e juristas,
generais, condes, políticos e comerciantes, ouvirão trons de dinamites, sentirão o fedor
de pólvora, verão punhais erguidos. O Sr. Arcoverde benzerá V. Exª, o sr. Chefe de
polícia alarmará secretas, o Sr. Modesto Leal reforçará a burra ou as burras.
Peço a todos calma. Nunca surrei ninguém, nunca matei ninguém, honro pai e mãe,
não cobiço a mulher do próximo, dou pão a quem tem fome, visto os nus, não cobro a
ninguém, obedeço fielmente às leis do meu país, cumpro os meus deveres
meticulosamente, não faço operação por quatro contos, não exijo vinte por cento dos
inventários, não prorrogo sessões da Câmara remuneradas, não ganho mil réis de cada
firma reconhecida, não faço contrabandos, não especulo, não fumo, não bebo, não
conheci Bolo-Paxá. Creio-me modéstia à parte, um sujeito sofrível, nem ótimo para
santo (tenho bom gosto), nem ruim para o xadrez. [...] (OITICICA, Correio da
Manhã, 26-02-1918, p.1, apud NEVES, 1970, p.47)
Oiticica procura dissipar o estigma dos trons de dinamite
31
que pairava sobre a sua
imagem como militante anarquista e, ao mesmo tempo, diminuir a imagem de confiabilidade
do jurista. Um de seus objetivos era mostrar que Rui Barbosa não estava, nunca esteve, em
nenhuma medida, a favor da questão social:
30
As inserções de José Oiticica nas correntes do livre pensamento e do anticlericalismo serão abordadas no
próximo capítulo.
31
A expressão trons de dinamite utilizada por Oiticica deve-se ao fato de a militância anarquista em geral ser
associada por alguns à corrente conhecida como anarcoterrorismo. Esta era a faceta reconhecidamente mais feroz
e brutal do anarquismo na Europa. Nesta corrente, cuja expressividade maior se deu no final do século XIX.
Pequenos grupos em situação de isolamento e ilegalidade faziam uso da radicalização da idéias de propaganda
pela ação. Para exemplificar as ações desses grupos, um artigo do jornal francês intitulado Produtos
antiburgueses divulgava a necessidade de todos conhecerem as ciências técnicas e químicas e ensinava aos
leitores como fabricar bombas: Nós colocamos sob os olhos dos nossos amigos os materiais inflamáveis e
explosivos mais conhecidos, os mais fáceis de manipular e de preparar, e, em uma palavra, os mais úteis. É
necessário que, para a luta que se aproxima, cada um seja, um pouco mais químico. As ações de matar membros
do governo, políticos burgueses, autoridades eclesiásticas eram vistas como atos ideológicos e havia chamados
de luta Viva a dinamite. Viva a Revolução Social. Viva a anarquia. Chegará, chegará. Cada burguês sua bomba
receberá. Em resposta a essas táticas, jornais libertários publicavam artigos censurando a dinamite, as ações
individuais e defendendo as ações coletivas dos trabalhadores como impulsionadoras da Revolução Social
(VALADARES, 2000, p.28-29).
34
[...] ouso inquirir de V. Exª o seguinte: “Quem sustentava V. Exª enquanto estudava
no colégio e na academia?” Meu pai! dirá V. Exª e eu contesto: “Não. O pai de V. Exª
pagava o colégio, a academia, Vestia V. Exª, comprava livros, gastava dinheiro.
Dinheiro é riqueza, representação social da riqueza produzida pelos trabalhadores.
Enquanto V. Exª, felizardo, estudava e desenvolvia o seu espírito, milhares de crianças
sem pai rico não podia estudar, e não podiam estudar por que a sociedade os obrigava
a trabalhar, para viver nas oficinas, nas fazendas, nas senzalas. É verdade no tempo de
V. Exª estudante e acadêmico, era senzala, o negro escravo, os molequinhos que não
tiveram a fortuna de nascer brancos com V. Exª e filhos de homem rico e influente. V.
Exª se educou com as mortificações desses desgraçados, com o sangue do proletariado
negro que sustentava os senhores déspotas. Conheço toda a campanha de V. Exª pela
abolição. Confesso que me dá a impressão de uma defesa apenas de jurista que se
envergonha de ver a escravidão porque os juristas a condenaram, as leis burguesas a
repelem, os Estados a repudiam. Não vejo o homem que sente e se revolta.
Exatamente como agora V. Exª reconhece certas reivindicações porque os tratadistas
as proclamaram, depois da ameaça coletiva dos trabalhadores, os parlamentos as
aceitaram por não ter remédio, os capitalistas as toleram para evitar maior mal. Pois os
trabalhadores de hoje são os escravos de ontem.[...]
Sou de V. Exª admirador sincero e perigoso, José Oiticica.
(OITICICA, Correio da Manhã, 26-02-1918, p.1, apud NEVES, 1970, p.52)
Seus argumentos sobre a questão social revelaram uma leitura avançada e marcada
pela literatura militante inserida no país
32
. Os conflitos do capital x trabalho, as injustiças
sociais remontando ao passado escravista brasileiro são argumentos de Oiticica para marcar
de maneira contundente a distância entre Rui Barbosa e ele. O primeiro distante das questões
sociais, e o segundo distante do Direito, da Igreja e comprometido com as causas operárias.
Artigos como os citados anteriormente foram elaborados na fase de maior
efervescência do movimento operário, quando os grupos anarquistas estavam na condução das
greves que continuaram a ser deflagradas até o episódio de 1918, a insurreição anarquista que
ocasionou a sua primeira prisão. O seu interesse pela questão social estava centrado no
trabalho de militância, tal como foi verificado pela pesquisa nos registros de suas conferências
sociais e nos artigos para a imprensa libertária.
33
32
Essa literatura foi introduzida principalmente pelas levas de imigrantes que constituíram as nossas classes
operárias e, entre os quais líderes desses segmentos embrenhados no sindicalismo desenvolvido no período.
Entre eles os articulistas, simpatizantes e militantes nos jornais anarquistas, estavam em contato com discussões
que envolviam concepções de líderes das correntes anarquistas preocupados com a educação, como, por
exemplo, os russos Mikhail Bakunin e Pietr Kropotkin, o inglês William Godwin, o alemão Max Stirner, os
franceses Pierre-Joseph Proudhon e Paul Robin, o italiano Errico Malatesta. Além desses filósofos anarquistas,
havia um intenso debate sobre o racionalismo de Francisco Ferrer y Guardía.
33
A imprensa operária começou a ser criada no Brasil no final do século XIX, atingindo consistente organização
nas duas primeiras décadas do século XX. Para o seu desenvolvimento contou com a forte presença da militância
anarquista (entre outras correntes de esquerda), e também com a participação de um elemento imprescindível à
sua organização, o profissional gráfico. Segundo Maria Nazareth Ferreira, em seu estudo A imprensa operária
no Brasil “estes profissionais, pela exigência de sua atividade, eram alfabetizados, de forma que desenvolveram
e utilizaram o jornal com infinitos resultados positivos" (FERREIRA, 1978, p.14). Sobre a imprensa libertária
ver: Hardman (1983); Khoury (1988); Giglio (1995); Dutra (2002); Gonçalves (2002), Figueira (2003).
35
A fala de José Oiticica denota a sua visão sobre o trabalho do profissional bacharel em
Direito e mostra as suas adesões ao anarquismo. Emergem do seu discurso, argumentos
retirados do terreno do adversário. Do qual antes ele, José Oiticica foi um integrante. Essa
carta a Rui Barbosa pode ser compreendida como ratificação de sua decisão, do início dos
anos 1900 em não seguir o Direito.
Nessa carta a Rui Barbosa, Oiticica criticou o caminho do bacharel recém-formado
Evaristo de Morais, por sua opção de aceitar o caráter “amistoso” do jurista Rui Barbosa em
troca de futuras concessões possíveis na “utilidade” de porta-voz dos trabalhadores.
Como se verificou até este momento da narrativa, José Oiticica optou por romper com
a perspectiva mais confortável da carreira da política institucional, do trabalho nas repartições
públicas e das estratégias de construção de relações passíveis de abrirem portas ao êxito
profissional. Em lugar disso, a sua trajetória foi construída no magistério carioca e por uma
vida voltada à militância anarquista, o que implicava dedicar-se às práticas da educação
anarquista, opondo-se a três grandes inimigos: Estado, Capital e Religião.
1.2 A Trajetória do professor José Oiticica
1.2.1 O cronista social da imprensa ilustrada e do novo jornalismo
Desde o final do século XIX, as academias de Direito possuíam um ambiente extra-
ensino que reunia a literatura, as leituras sociológicas, a militância política e as práticas do
jornalismo. As experiências dessa ambiência, segundo a pesquisa de Sérgio Adorno (1988)
permitiam a formação de um tipo específico de intelectual caracterizada por não seguirem os
rigores acadêmicos
34
, também segundo Coelho (2004) um mercado insipiente, cuja formação
em Direito, não era garantia de exercer a advocacia, tal como prescrita nos tramites judiciários
da época, ocupados em sua maioria por “solicitadores ou rábulas” no exercício jurídico
cotidiano (p. 91). A imprensa acadêmica atraía a atenção dos alunos e provocava na maioria
34
No estudo de Sérgio Adorno (1988): Os aprendizes do poder: o bacharelismo liberal na política brasileira,
mais especificamente o capítulo 3 trata sobre a formação do bacharel na Academia de Direito em São Paulo com
objetivo principal de traçar o perfil do profissional egresso dessa instituição. O autor mostra um hiato entre o que
era ensinado em sala de aula e o que era aprendido com as práticas jornalísticas na imprensa acadêmica, esta
articulada à militância política. Em sua pesquisa, o autor investigou os aspectos da estrutura curricular, as
práticas das aulas, as teses, os concursos de admissão às vagas dos substitutos, a indicação e elaboração de
manuais e de compêndios, os documentos e as manifestações da militância política, durante o século XIX.
Considerando o tipo de fontes utilizadas pelo autor, é possível supor que alguns dos traços de um tipo específico
de intelectual atribuído ao bacharel em Direito sejam também característicos do processo de aprendizagem do
aluno dos cursos de Direito do Rio de Janeiro e de Recife, pelo menos no que diz respeito à funcionalidade da
imprensa acadêmica na formação do bacharel.
36
deles uma inclinação para dedicar-se ao jornalismo que se desenvolveu como uma inclinação
entre os estudantes de Direito do Rio de Janeiro, de São Paulo e de Recife.
A atividade do jornalismo era, portanto, uma prática recorrente dos homens das letras.
Eles trabalhavam como cronistas literários, realizavam conferências, alguns conseguiam
publicar os seus livros no restrito mercado editorial. Tais práticas se deram principalmente a
partir dos anos 1900, quando as folhas jornalísticas se multiplicavam e essas atividades
literárias estampavam os espaços da recente imprensa ilustrada na modernidade na cidade das
letras.
O início das atividades jornalísticas de José Oiticica deu-se no quadro de
desenvolvimento dessa nova imprensa, que caracterizou numa nova maneira de se fazer
jornalismo.
35
Os jornais substituíram os processos artesanais e ampliaram o parque gráfico,
diversificando-o em setores na sua produção. Com isso, o seu preço tornou-se mais acessível
à população. Essas transformações tornaram o jornal um objeto de consumo cotidiano embora
ainda para uma parcela minoritária da população. Juarez Bahia (1990), em seu estudo Jornal,
história e técnica: história da imprensa brasileira, nos conta que nessa nova fase da
imprensa:
[...] a tipografia do jornal mantém uma seção de obras para encomendas de terceiros.
As dependências da redação e da oficina abrangem setores de gravuras, desenho,
zincografia, galvanoplastia. As caixas são as francesas. Máquinas rotativas Marinoni
dominam o sistema de impressão, que conjuga o molde e o chumbo quente de
estereotipia. Imprimem, cortam e dobram os exemplares que saem aos milheiros. A
distribuição tornou-se mais complexa, reunindo assinantes e venda avulsa, leitores
locais, nacionais e do exterior (...). O jornal se divide se setoriza, quer ser o paladino
das queixas populares. (BAHIA, 1990, p. 108-109).
Essas mudanças provocaram repercussões sobre o grupo intelectual dos anos 1900.
Entre os fatores diretamente ligados às transformações dessa imprensa, cabe mencionar a
transição da tipografia artesanal para a industrial.
Foi esse desenvolvimento técnico que contribuiu para a expansão da imprensa de
entretenimento e da operária e que fez emergir um “novo jornalismo”. O texto literário passou
a ser apresentado em linguagem mais simples. Os periódicos passaram a usar o recurso das
charges e das chamadas com jargões, e o jornal tornou-se porta voz das reivindicações
populares.
Surgiram inúmeros periódicos operários, quebrando o monopólio da grande imprensa.
35
Sobre o desenvolvimento da imprensa ilustrada em São Paulo e Rio de Janeiro, ver, Bahia (1990), Broca
(2004); Cruz (2000); Dutra (2005); e Sevcenko (2003).
37
A imprensa operária, aos poucos, marcava o seu lugar na cultura letrada das cidades, como
nos explica Heloísa de Faria Cruz (2000, p. 128):
Buscando adequar-se às características plurinacionais da nascente classe operária, as
folhas tipográficas vêm à luz em diversos idiomas [...] encontra-se uma profusão de
artigos doutrinários dos teóricos internacionais do anarquismo e do
anarcosindicalismo, de denúncias das condições de vida e trabalho na cidade, nas
fábricas e oficinas, de convocação de assembléias e atividades culturais dos centros e
sindicatos, de orientação dos movimentos grevistas, de combate à religião, de crítica
às versões da imprensa burguesa para os mais variados acontecimentos, à ação da
polícia ou dos políticos burgueses.
Particularmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, as transformações advindas da
cidade das letras fizeram crescer tanto os órgãos jornalísticos, como os da educação,
configurando-se um campo que não podia mais ser tão controlado pelas esferas
governamentais. A ampliação do circuito letrado da cidade, decorrente da dinâmica das
transformações sociais, políticas, permitiu a circulação de idéias e desnudou pelo
desenvolvimento da imprensa os embates entre vários segmentos sociais que se juntavam em
razão de suas afinidades e dos seus interesses.
José Oiticica, egresso dessa formação, colaborava em jornais, tanto da imprensa
acadêmica como de periódicos da grande imprensa. A julgar pelos conteúdos de seus artigos,
demonstrava que os seus interesses intelectuais estavam direcionados às leituras sociológicas
para o exame das questões sociais.
O sobrenome Oiticica era conhecido no meio jornalístico, em parte pela vida política
de seu pai, com seus artigos e peças teatrais publicados, e, por outro lado, pelo fato de seu
irmão Francisco ser colaborador da imprensa carioca.
Na grande imprensa, Oiticica foi colaborador dos jornais: Cidade do Rio, O Mundo,
Correio da Manhã, Jornal do Brasil, A Pátria. Participou ativamente da imprensa libertária,
e foi diretor de redação dos seguintes periódicos:
A revista A vida, foi fundada em 30 de novembro de 1914 sob a direção de
José Oiticica, em parceria com o médico Francisco Viotti, e de um grupo
formado por Fábio Luz, Astrogildo Pereira, Orlando Correia Lopes, Hermes
Fontes, Primitivo Soares, Efrem Lima, que compunham a sua redação. Além
desses sujeitos contou com a colaboração de João Penteado e Adelino Pinho,
entre outros. Todos esses militantes e simpatizantes colaboravam em outros
periódicos libertários que circulavam no período. O último, dos sete números,
foi publicado em 31 de maio de 1915.
Oiticica fundou o jornal Spartacus, ao lado de Astrogildo Pereira. O primeiro
38
número desse jornal foi publicado em 02 de agosto de 1919 e o último dos
vinte e quatro números saiu em 10 de janeiro de 1920.
O jornal Ação Direta foi outra iniciativa de José Oiticica, teve seis
exemplares publicados em 1929. As atividades desse periódico foram logo
encerradas em razão da mudança do professor José Oiticica para a Alemanha,
quando ele foi ministrar aulas de língua portuguesa na Universidade de
Hamburgo. Mas, em 10 de abril de 1946, o periódico ressurgiu como uma
iniciativa da resistência da militância anarquista. Era um dos poucos
periódicos libertários que persistiam na imprensa do Rio de Janeiro, talvez o
único. Após a morte de José Oiticica em 30 de junho de 1957, esse periódico
ainda continuou a circular até o número 137.
Ainda Oiticica foi colaborador de vários jornais libertários que circularam no Rio de
Janeiro, São Paulo e em outros estados do Brasil. Muitas vezes, os seus artigos em jornais do
Rio de Janeiro eram também publicados em A Lanterna e em A Plebe, periódicos de São
Paulo que foram, provavelmente, os jornais da imprensa libertária de maior circulação, em
diferentes fases no Brasil.
Entre os sujeitos participantes da imprensa libertária estabeleciam-se vínculos que os
uniam pelas atividades da militância sindical, das atividades de produção e circulação dos
periódicos, pela realização constante das conferências sociais anticlericais e de livre
pensamento, pela organização do teatro social e do cinema libertário nas festas libertárias e da
organização de escolas de ensino racionalista. Tudo isso compunha as ações constitutivas da
propaganda social. Guardadas as diferenças entre os vários grupos participantes da imprensa
libertária, pode-se afirmar que prevalecia, pelo menos até o inicio dos anos 1920, a prática do
apoio mútuo
36
.
1.2.2 Oiticica no mapa das rodas literárias da cidade das letras
Os literatos de Rio de Janeiro nos inícios do século XX, organizavam-se em
agrupamentos nomeados na pesquisa de Brito Broca (2004) como rodas literárias, um
conceito cunhado por esse jornalista e crítico literário, no final da década de 1950, em seu
livro A vida literária no Brasil-1900, para se referir às estratégias de conformação,
36
Com a criação do partido comunista, alguns sujeitos que antes estavam muito próximos a Oiticica, se
distanciaram em animosidade significativa, como, por exemplo, ocorreu com Astrogildo Pereira, que depois de
parceiro na direção de Spartacus, se tornou inimigo político de José Oiticica.
39
organização e circulação de grupos de poetas, escritores, jornalistas, conferencistas, cuja
movimentação se dava pela dinâmica de uma rede de contatos que possibilitava aos
participantes dessas rodas exercerem suas atividades literárias. Algumas delas eram
remuneradas, outras eram desencadeadoras de oportunidades da vida intelectual carioca no
período.
Broca (2004) construiu a sua pesquisa a partir das crônicas dos jornais da grande
imprensa do Rio de Janeiro com o diálogo com fontes, como as crônicas dos jornais Cidade
do Rio, A Gazeta de Notícias, Correio da Manhã, Jornal do Commércio, Almanaque Garnier,
O País e as revistas O Pirralho, A Cigarra, as obras de memorialistas, e, também pela
experiência do próprio pesquisador, pela sua atuação na imprensa de São Paulo entre os anos
1924 e 1960, o que lhe trouxe legitimidade para lidar com esse tipo de fonte.
Por estas características, a pesquisa de Broca (2004) foi tomada como fonte de
pesquisa em outros trabalhos da historiografia mais recente que tratam da vida literária e dos
impressos que circularam no período.
O trabalho de Broca (2004) consistiu na elaboração de uma espécie de mapa dos
grupos de intelectuais que movimentaram a vida literária do Rio de Janeiro na virada para o
século XX. O segmento focalizado e privilegiado pelo crítico literário foi principalmente o
constituído pelos homens letrados que se achavam na órbita da Academia Brasileira de Letras
e que freqüentavam as livrarias, as editoras, os cafés, as confeitarias e os salões da sociedade
carioca.
Dessa forma, sua pesquisa fez uma espécie de mapeamento das rodas literárias dos
inícios do século XX, com importantes informações. No entanto, como o autor privilegiou os
jornais da grande imprensa, esse mapeamento apresentou a movimentação de algumas rodas
em detrimento de outras, como, por exemplo, o circuito cujas informações só poderiam ser
obtidas nos jornais operários.
As rodas literárias, distantes do circuito da Academia Brasileira de Letras e pouco
presentes nos jornais priorizados na pesquisa de Brito Broca, embora mencionadas ocupam
um lugar de “semi-sombra”, ou “meia luz”. Entre os literatos mais destacados estão Machado
de Assis, Coelho Netto, Olavo Bilac, Silvio Romero, Euclides da Cunha e outros que tiveram
“sucesso” editorial, ou que estavam na órbita desses intelectuais.
37
37
Um literato como Lima Barreto na pesquisa de Broca (2004) foi caracterizado pelo destaque à percepção do
ressentimento que Barreto trazia consigo por não fazer parte da ABL nos tempos da liderança de Machado de
Assis. Apesar de situa-lo em seu mapa de rodas literárias, as suas atuações na imprensa libertária quase não são
mencionadas. Isto se deve ao interesse da narrativa de Brito Broca na reconstituição da chamada boemia
dourada da chamada Belle Époque. O seu trabalho contribui sobremaneira nessa perspectiva. Assim, ciente das
40
José Oiticica é situado por Broca (2004, p.87-88) como integrante da roda dos literatos
adeptos de Kropotkin, entre os autores que produziam textos “pregando uma ação
francamente revolucionária e militante”. A menção a Oiticica é reduzida a esse comentário e
como integrante da lista de convocados, em 1911, para a eleição de outra Academia Brasileira
de Letras, que deveria concorrer ou substituir com outros literatos àquela já eleita e que era
“liderada” por Machado de Assis nos estudos de Broca (2004, p.87-88). Nos estudos de Broca
(2004, p. 172) o nome de José Oiticica aparece junto ao do professor Vicente de Sousa, de
Mota Assunção e de Joel de Oliveira fundando periódicos no Rio de Janeiro. Nenhum dos
livros ou artigos de Oiticica é citado.
Na avaliação de Broca (2004, p.172) esse segmento da produção escrita anarquista só
produziu “bulícios” de literatura e foi categorizada como “literatura menor”, “obras que no
terreno da ficção não produziram fruto apreciável”. Este tipo de avaliação reverberou,
também, em pesquisas da historiografia da literatura. Quem ficou à margem do circuito de
sucesso e da grande imprensa no passado, permaneceu à sombra também em pesquisas
recentes.
Assim, as informações sobre literatura e textos disponibilizados no mapa das rodas
literárias delineadas por Broca (2004) foram contribuições a que nos detivemos, sobretudo,
nos escritos de José Oiticica, bem como nas evidências investigadas de acordo com os
interesses desta pesquisa.
Embora presença de Oiticica não tenha sido mencionada pelo autor Brito Broca, na
roda literária da casa de Coelho Netto, as fontes levantadas nesta pesquisa indicam o
contrário, de fato Oiticica era presença constante na casa de Coelho Netto. Os dois se
aproximaram pelo trabalho no jornal Correio da Manhã. Muitos encontros eram celebrados
em saraus, ora realizados na casa de Oiticica, ora na casa de Coelho Netto em companhia de
outros poetas, como por exemplo, Hermes Fontes, Martins Fontes, Afonso Schimdt, Olavo
Bilac, Ângela Vargas e outros. Tanto Oiticica, como Coelho Netto não participavam dos
encontros em livrarias e cafés do Rio de Janeiro.
No mapa das rodas literárias, Broca (2004) mencionou os saraus promovidos por
Coelho Netto, quase todos os sábados em sua casa. Esses encontros levaram o amigo e poeta
Martins Fontes, em seu livro Terra de fantasia, a apelidar a residência desse intelectual de
“Santa Casa de Coelho Netto”. A razão disso era a receptividade do anfitrião ao abrir as
características de sua pesquisa, o uso de suas informações foi empreendido considerando-se as particularidades
que procuramos demonstrar com o exemplo apresentado.
41
portas de sua casa não apenas para literatos renomados, mas também àqueles que buscavam
uma oportunidade para participar do mundo das letras. Nessa fala do poeta apropriada por
Broca (2004) fica claro que eram freqüentadores assíduos dos saraus da casa Rozo, no mapa
de Broca (2004), Olavo Bilac, os irmãos Hermes Fontes e Martins Fontes, Annibal Theophilo,
Gilberto Amado, Afrânio Peixoto, acrescentando-se José Oiticica:
O famoso salão de Coelho Netto, na rua Rozo, não possuía o mesmo cunho de alto
mundanismo, esse tom afetado esnobe. Ali predominavam a literatura, a cordialidade,
e até mesmo uma certa sem-cerimônia. A casa [...] estava sempre aberta a todo
mundo, aos plumitivos que vinham dos pontos mais distantes da província, com um
manuscrito e uma carta de apresentação para o escritor, cuja fama corria o Brasil
inteiro [...].
[...] As reuniões se davam geralmente aos sábados. Pelos corredores, nas salas e no
jardim cruzavam-se figuras da nova e da velha geração [...]. Não eram só escritores:
pianistas, violinistas, cantores moços e velhos, pintores, escultores, mestres e alunos
da Escola de Belas Artes, iam também à rua Rozo, onde surgia por vezes, um grupo
como o da Flor de abacate, entre cantigas e reco-recos, numa ruidosa embaixada, para
trazer a Coelho Netto o diploma de sócio benemérito. Eleito “príncipe dos poetas”,
Bilac foi coroado numa noite festiva em que Ângela Vargas recitou “O caçador de
esmeraldas”, Gustavo Barroso leu páginas da Terra do sol de Alcides Maia - que
possuía grande admiração por Coelho Netto e dele sofreu influência - leu capítulos do
romance Ruínas vivas, Rosalina Coelho Lisboa, irradiante de mocidade e beleza,
declamou versos de seu primeiro livro, Rito pagão. (BROCA, 2004, p.62-63),
As informações sobre os saraus na casa de José Oiticica apareceram nas entrevistas
colhidas por Sônia Oiticica e o seu relato deixa ver a proximidade entre o seu pai e Coelho
Netto:
[...] foi Coelho Netto quem batizou Vera e Viriato Correia era padrinho de Selma.
Agora, papai e mamãe iam muito à casa de Coelho Netto. Eles faziam saraus, papai
também fazia esses saraus em casa. [Neles compareciam] Ana Amélia, Rosalina
Lisboa, Coelho Netto. Naquela época as poetisas eram muito consideradas, não eram
poetisas, eram poetas. [...]. Tanta gente ia, o Hermes Fontes, Martins Fontes. Os
[irmãos] Fontes eram próximos. Coelho Netto, a Dona Gabi. Ela não ia muito, ela
ficava com os filhos em casa, eram danados. Manoel Peres era próximo. Ele adorava
papai, eram amigos mesmo. Esses saraus eram de 1920 e pouco ou 1930 e pouco. Tem
uma história engraçada. Aconteceu lá na Rua Guanabara, 49. Nesta casa tinha uma
escada e havia um quarto entre o quarto em que mamãe costurava e a sala de visitas,
era um quarto escuro. E as meninas, minhas irmãs, eram terríveis. Elas se escondiam e
ficavam ouvindo. Aí o Hermes Fontes começou a recitar: “Sim, meu amor, não, meu
amor, sim, meu amor”, no terceiro sim, meu amor e não, meu amor elas deram aquela
gargalhada. Meu pai ficou por conta e mandou todo o mundo dormir. (OITICICA, S.,
entrevista nº 1, 18-08-2006).
Os irmãos Fontes, conforme relatou Sônia eram também próximos ao seu pai,
inclusive nos trabalhos com a imprensa libertária. Hermes Fontes publicava os seus sonetos
em periódicos em que José Oiticica esteve à frente, como foi o caso de A Vida, de 1914. Do
42
acervo de Oiticica, um cartão de aniversário enviado a Oiticica por Hermes Fontes mostram
os vínculos de amizade entre os dois poetas:
Chego atrasado. Esse atraso não vem ao caso.
Porque mais vale um atraso involuntário, sem mal
Do que muito adiantado fingimento, como os da regra geral
Poeta de ouro, poeta de aço!
Ganso de altos horizontes!
Pega ahi este abraço
Do Hermes Fontes
(FONTES, Hermes, 22-04-1913, correspondência passiva, acervo pessoal de José
Oiticica)
As relações de amizade eram acompanhadas de admiração profissional, pois como
pudemos observar nas obras de Oiticica, como, por exemplo, no Manual de Estilo de 1925,
grande parte dos excertos de romances, contos e sonetos são de Coelho Netto, de Hermes,
utilizados como exemplos da “arte do bem escrever”, ao lado de material recolhidos de outros
literatos contemporâneos ou não a Oiticica. Além disso, o exame da correspondência de José
Oiticica, como podem ser conferidas as suas cartas a Coelho Netto, atestam a estreita amizade
entre ambos.
Outras rodas literárias mais presentes na imprensa operária tiveram como
características ressaltadas o fato de seus integrantes, segundo Broca (2004), terem sido
influenciados pelas leituras das obras de Nietzsche, Oscar Wilde, Tolstoi, Émile Zola,
Máximo Gorki e Kropotkin, conforme as modas literárias. Nesse segmento, estavam José
Oiticica, Elísio de Carvalho, João do Rio, Fábio Luz, Hermes Fontes, Martins Fontes, Afonso
Schmidt, Manuel Curvelo e outros.
Por toda a sua trajetória, Oiticica estreitou laços com importantes sujeitos de sua época
ligados à educação e à imprensa tais como: Afrânio Peixoto, Antenor Nascentes, Coelho
Netto, Hermes Fontes, Fábio Luz, Maria Lacerda Moura, Edgard Leuenrouth e muitos outros
que no decorrer desta reconstituição historiográfica emergem na narrativa.
Com Afrânio Peixoto, Coelho Netto e Antenor Nascentes, debateu e discutiu
questões relacionadas ao sistema de ensino, literatura e língua portuguesa. Com Fábio Luz,
Manuel Curvelo, articulou intenso debate na imprensa e participou das atividades do teatro
social, um trabalho em conjunto nas atividades da propaganda social.
38
38
A propaganda social abarcava as atividades como conferências sociais do livre pensamento, a produção, a
distribuição e a circulação do jornal, as atividades do teatro operário, as festas, os bailes, as quermesses usados
43
Vale ressaltar que, apesar dos vínculos da militância caracterizados pelas reuniões e
publicações em conjunto, esses sujeitos faziam parte da imprensa, com a qual Oiticica
compartilhou diversas de suas idéias. Alguns deles eram militantes do livre pensamento,
outros foram companheiros de trabalho na educação institucional.
O amigo Edgard Leuenrouth, editor de A Plebe
39
, a partir de 1912 com o ingresso de
José Oiticica na Liga Anticlerical do Rio de Janeiro, passou a ter intensa interlocução com
Oiticica, ocorrendo o mesmo com muitos dos sujeitos envolvidos com o grupo redator e
colaborador desse periódico, principalmente pela função do jornal que, por sua dinâmica, era
um espaço privilegiado. Por conta desse veículo, a militância convergia os interesses e
alimentava a sociabilidade que se estendia a vários estados brasileiros.
O contato estreito com Maria Lacerda de Moura
40
ocorreu quando Oiticica
intensificou a sua militância anticlerical na segunda década do século XX, quando essa
militante iniciou a sua colaboração no jornal A Lanterna, em 1912. Entre 1908 e 1921, ela fez
parte da Liga contra o analfabetismo, publicou o seu primeiro livro em 1918, com o título Em
torno da educação, cujo conteúdo foi conhecido de Oiticica em 1919, na ocasião em que
estava foragido na casa da autora, em Barbacena, Minas Gerais, logo depois de sua saída
furtiva do Riachão (Rodrigues, 1976, p.50). Ao percorrer os jornais libertários, encontram-se
na programação das sessões de propaganda social, em São Paulo e no Rio de Janeiro diversas
sessões em que os dois conferencistas compartilharam temáticas na mesma sessão de
propaganda.
Oiticica teve, ao longo da sua vida, intensa interlocução e realizou um leque de
atividades conjuntas, como o trabalho com as conferências de livre pensamento, os ensaios
jornalísticos. A partir da rede de suas relações, construída pelo seu trabalho na grande
tanto para o entretenimento, para a construção de vínculos de solidariedade e propaganda, como para mobilizar
recursos financeiros para manter outras atividades realizadas pelo movimento, tais como a imprensa operária, as
escolas modernas , os fundos de greve, etc. Empreender a propaganda era o mesmo que dizer desenvolver a
militância. O sentido era amplo, era o ato de formação de conhecimentos, ato educativo. Ver: Figueira (2003);
Gonçalves (2002); Giglio (1995) e Jomini (1990).
39
A Plebe foi um dos periódicos de maior circulação da imprensa anarquista. Iniciou a sua publicação em 1917 e
atravessou várias fases pelos sucessivos empastelamentos. Ocuparam a sua direção Edgad Leuenrouth,
Florentino de Carvalho, Rodolfo Felipe, Manuel Campos, Pedro Mota.
40
Maria Lacerda de Moura mudou-se para São Paulo, em 1921 e freqüentava a casa de Oiticica periodicamente.
Segundo depoimentos de Sônia Oiticica e pelas inúmeras referências nos livros de Edgar Rodrigues havia
profunda identidade com as idéias de José Oiticica, principalmente no que diz respeito ao interesse pelo tema
referente ao lugar da mulher na sociedade. Esta intelectual militante foi autora de uma profícua produção,
destacando-se as obras: A fraternidade e a escola, 1922; A mulher hodierna e o seu papel na sociedade, 1923;
Lições de pedagogia, 1925; A mulher é uma degenerada?1924 (réplica científica a Miguel Bombarda);
Civilização, tronco de escravos, 1931; A religião do amor e da beleza, 1926; De Amundseu a Del Prete, (1928);
Han Ryner e o amor plural, 1933; Ferrer e o clero romano, 1934; Educação laica, 1934; Clero e Estado, 1931;
Amai-vos e não vos multipliqueis, 1931; Serviço militar obrigatório para a mulherrecuso-me denunciar, 1937;
Português para os cursos comerciais, 1940; O silêncio, 1944.
44
imprensa e na imprensa operária, Oiticica conquistou o seu reconhecimento social pelos
numerosos artigos que exibiam a sua crítica social fundamentados por textos sociológicos. As
suas peças teatrais também tiveram de maneira marcante o traço distintivo da militância
anarquista como finalidade, tal como pretendemos demonstrar com maiores detalhes no
capítulo seguinte do presente estudo.
José Oiticica iniciou as suas atividades como professor no ano de 1903 ao assumir as
aulas de História no Colégio Paula Freitas, a mesma instituição na qual havia cursado os
preparatórios. O trabalho no magistério direcionou o seu interesse pelas questões
educacionais. A docência estava no leque das atividades que não eram estranhas em sua
família. A julgar pelo seu manuscrito biográfico, o seu pai foi seu parceiro de idéias e de
recursos materiais para a organização do projeto de fundação de seu próprio colégio.
1.3 O Colégio Latino-Americano
1.3.1 A experiência da École La Roche: uma inspiração para o Colégio Latino-
Americano, de José Oiticica
A organização e administração do Colégio Latino-Americano, de José Oiticica, em
1905 foram baseadas nas leituras que esse autor teve das obras de Edmond Demolins,
discípulo de Fréderic Le Play, mais especificamente de suas apropriações da obra L’
education nouvelle: L’ École des Roches. Portanto, os processos pedagógicos implantados por
José Oiticica em seu colégio do Leme foram decorrências da metodologia da referida escola.
A experiência da École des Roches chamou a atenção de José Oiticica no início do
século XX, quando os vários projetos de Escola Nova estavam se difundindo em diversos
países. Nesse período, os seus interesses sociológicos o encaminharam a participar do debate
promovido pela revista La Science Socialle, fundada por Edmond Demolins, em 1886.
Em torno desse periódico francês, criou-se uma rede de trocas de informações na qual
intelectuais de vários países e Oiticica enviavam-lhe as suas colaborações conformando
debates sociológicos sobre apropriações do método de Le Play e a escola nova. Essas
discussões foram acompanhadas por alguns intelectuais brasileiros, entre os quais José
Oiticica. Este era o principal canal para realização de debates pedagógicos de esfera
internacional, com a participação de José Oiticica nos inícios do século XX.
Edmond Demolins era geógrafo de formação. No ano de 1897, anunciava em sua
referida revista um estudo sobre várias regiões da França, no qual discutia a superioridade dos
45
Anglos Saxões
41
nos negócios internacionais, para com isso problematizar sobre a questão da
educação.
Silvio Romero e Arthur Guimarães tinham um grupo de estudos no Rio de Janeiro
ocupado com os estudos sociológicos de Le Play de Edmond Demolins, do qual Oiticica não
participava. Havia, segundo as informações de Romero (1810), outro grupo em São Paulo que
estudava Le Play e Demolins. Sobre esse grupo, Romero registra pouca expressividade, se
comparado ao grupo por ele dirigido e se posiciona como o primeiro entre todos os
intelectuais brasileiros a dedicar-se a esses estudos. Provavelmente, esse posicionamento
tenha sido a razão que o levou a publicar a carta-resposta a Oiticica, datada de 1906, em seu
livro Provocações e debates, publicado em Portugal, em 1910 e que enfeixava todos os
ensaios com comentários e interpretações dos escritos de Le Play de Demolins.
A resposta de Silvio Romero foi a propósito de duas cartas enviadas por José Oiticica,
uma a Edmond Demolins e outra a Silvio Romero, no final de 1905. Na carta a Demolins,
Oiticica informou-lhe sobre a adoção dos processos pedagógicos de sua École des Roches em
seu Colégio Latino-Americano e na carta enviada a Silvio Romero, Oiticica sugere a ele um
estudo sobre a região de Sergipe à luz da metodologia de Le Play em colaboração ao inquérito
empreendido por Demolins em sua revista La Science Socialle e para o qual ele havia
solicitado ajuda de seus colaboradores. A carta que Oiticica enviou a Demolins foi publicada
e por ele respondida na citada revista, deixando ver os interesses comuns entre esses
intelectuais, em 1905.
42
De acordo com Romero (1910) para Demolins a educação era um elemento de
projeção que deveria ser privilegiado na competição econômica entre as nações. Em seu
trabalho sobre a superioridade dos saxões, Demolins ocupou-se em mostrar os pontos
positivos e os negativos da instituição escolar vigente na França e defendia a necessidade de
41
Esta discussão encontra-se no livro de Edmon Demolins, publicado em 1898, com o títutlo À quoi tient la
supériorité des Anglo-Saxons?, cuja referência quem faz é Silvio Romero (1810).
42
Silvio Romero publicou a carta-resposta dele a José Oiticica, em seu livro Provocações e debates, no ano de
1910, em Portugal. Neste livro, ele reuniu os seus artigos e ensaios com as suas interpretações acerca da
sociologia de Le Play e dos escritos de Demolins. É a partir desse material que a interlocução ente Demolins e
Oiticica foi abordada, ou seja, a partir das informações extraídas dos escritos de Silvio Romero. Esta pesquisa
entrou em contato com a Sociéte d’économie et science sociales onde se pode encontrar documentos relativos a
Edmond Demolins, porém não foi possível saber se a correspondência de Oiticica a Demolins consta ou não em
seu acervo. Assim, a interlocução de Silvio Romero com Oiticica, na carta enviada em 1906, foi a fonte
privilegiada para reconstituir as conexões de Oiticica com o projeto da École des Roches, a base de inspiração de
seu Colégio Latino-Americano. A carta de Silvio Romero foi transcrita da revista Provocações e Debates em
Romero (1910, p 189-194). Pode ser encontrada no livro Brasil social e outros estudos sociológicos, de Silvio
Romero, disponibilizado na seção, Textos literários em meio eletrônico, sob o mesmo título do livro. Disponível
em: <http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/arquivos/texto/0006-0763.html#ftn7>, acesso em 14 de outubro de 2007.
46
criar uma nova realidade escolar que se adequasse às necessidades da sociedade e da
economia nacional francesa.
As preocupações de Demolins com a nova educação, segundo Romero, eram
desdobramentos de seus estudos sobre os efeitos que as estradas de diversas regiões da França
provocavam na organização da agricultura e na “criação e transformação de diversos tipos
sociais”. A apresentação dos resultados empíricos de seus estudos levou Demolins a formular
uma metodologia estabelecendo uma nomenclatura ou classificação dos fatos sociais. Com
esse procedimento, o pesquisador expressava as suas concepções a respeito das formas de
vida comunitária e particularista, e também o modo como estas organizações sociais adotam a
técnica e alcançam os resultados de acordo com a educação empregada. O procedimento de
classificação dos fatos sociais, seu encadeamento com a nomenclatura de reconhecimento
fácil de que inspiraram os processos pedagógicos adotados pela École des Roches, em 1899, e
foram tomados como padrão inspirador da pedagogia do Colégio Latin-Americano de José
Oiticica.
Em seu ensaio a propósito da morte de Edmond Demolins, Romero (1910) afirma que
a inspiração desse pedagogo para criar a sua École des Roches é proveniente da escola
inglesa, e explica que a idéia do “colégio instalado em um grande casarão com aparência de
caserna, hospício, quartel ou hospital” deveria ser substituído por outro tipo de escola,
segundo Demolins. Ao argumentar que as idéias de Demolins influenciaram a pedagogia
francesa, Romero (1910) apresenta as características da escola inglesa (onde Demolins
matriculou seu filho) e que foram decisivas para a consecução de sua escola:
A escola inglesa é colocada no campo, em sítio adrede, em trechos do país, com as
sua verduras, suas várzeas, suas árvores, suas águas correntes ou em aprazíveis lagos.
O fim é pôr a criança em contato com a natureza e suas cenas mais aptas e lhe
fortalecer a saúde, despertando, ao mesmo tempo, o interesse pelas cousas práticas.
Por isso as excursões, ou passeios e brincos ao ar livre, os exercícios de natação, de
remar e outros congêneres entram em larga escala na educação física. Os estudantes
são distribuídos, aos quinze ou vinte no máximo, por edifícios dispostos
separadamente e habitam neles com as famílias do diretor e dos professores. Facilita-
lhes, destarte, o convívio em sociedade, como se estivessem no centro de suas próprias
famílias. A educação moral é assim ressalvada. As classes são organizadas com o fim
de evitar as enormes aglomerações em que o ensino se torna improdutível. Este é
dirigido com o plano de interessar o mais possível a iniciativa individual do aluno.
Desenvolve-lhe principalmente o espírito de observação, a prática de aparelhos
científicos, a verificação pessoal dos fatos, a descoberta da verdade, como se fosse
uma aquisição nova, devida ao esforço direto do estudante. Conhecido em França esse
estupendo sistema de organização escolar, muitas famílias enviaram seus filhos para a
Inglaterra. Demolins dera o exemplo, mandando o seu. Mais tarde fundou a École des
Roches, escrita em livro especial. O plano de estudos é o mesmo dos moldes ingleses.
47
A educação física e a educação do caráter combinam-se de modo a ajudar a boa
cultura espiritual. (ROMERO, 1910).
43
Após a fundação desse estabelecimento escolar, Demolins continuou a publicar os
seus estudos sobre as regiões francesas e as suas proposições pedagógicas da nova escola.
Com essas publicações e os ensaios que recebia de intelectuais de todo o mundo, o debate se
movimentava e atingia os interesses de Oiticica, que acompanhava essas publicações, e
participava do debate como correspondente e colaborador da revista de Demolins.
Feitas essas considerações cabe discutir alguns trechos da carta de Romero (1906). A
carta de Oiticica a Demolins chamou a atenção de Silvio Romero por duas razões: o uso da
pedagogia de Demolins no Colégio Latino-Americano e pelo fato de Oiticica sugerir-lhe que
realizasse um estudo sobre Sergipe como contribuição para Enquête Sociale aberta por aquele
periódico. De chofre Romero adverte Oiticica sobre a necessidade de aprofundar as suas
leituras a respeito da pedagogia da L’Éducation Nouvelle:
Se é verdade, porém, que causa prazer ver que o meu nobre patrício se vai deixando
influir pelas idéias da severa escola, de que sou adepto fervoroso, não menos verdade
é que o distinto confrade ainda, ao que parece, não está assaz inteirado das doutrinas,
dos processos, dos métodos da escola e da valorosa literatura, já existente, por ela
inspirada. [...] me refiro a estudos rigorosamente científicos, como alguns que têm
aparecido nas páginas de La Science. Supor o contrário é andar alheio à disciplina e à
severidade de método da escola. E é o caso geral no Brasil. (ROMERO, 1810).
A carta de Silvio Romero destinada a Oiticica visava atingir outros leitores da revista
La Science Socialle, inclusive intelectuais brasileiros ligados à educação. As assertivas de
Silvio Romero sobre a metodologia de Le Play aplicada à educação, que tinha em Edmond
Demolins seu maior representante, não foram apenas endereçadas ao jovem doutor e professor
Oiticica, mas também foi uma crítica “aos que vivem de se entreter, com as cousas do ensino”
pelo modo com que superficialmente se amoldavam a “teorias, como é hábito fazer com o que
a Europa nos exporta”.
Além de fornecer as indicações das obras de Demolins, Romero (1906) num primeiro
momento apresenta em sua carta um breve resumo sobre os métodos e conceitos utilizados
por Le Play. O missivista justifica a Oiticica a sua impossibilidade de aceitar a sugestão do
amigo referente ao estudo sobre a região de Sergipe, em decorrência do descompasso entre o
seu tempo e a complexidade demandada pelo estudo proposto. Responder a Oiticica era a
43
O ensaio intitulado Edmond Demolins foi transcrito de Provocações e Debates (1907,p.75-101) e integra o
livro O Brasil Social e outros ensaios, disponível em: <http://alecrim.inf.ufsc.br/bdnupill/arquivos/texto/0006-
01763.html#ftn7>. Acesso em 14 de outubro de 2007.
48
razão da carta, mas foi também o mote que Silvio Romero precisava ter para dar o seu recado
a alguns intelectuais brasileiros, pois:
[...] Por muito mais de vinte anos a doutrina floresceu, produzindo os trabalhos mais
belos e profundos, sem que lhe prestassem, entre nós, a mais leve atenção. Foi preciso
que Ed. Demolins escrevesse o seu vibrante livro – À quoi tient la supériorité des
Anglo-saxons? para que os nossos descuidosos lhe dessem escassos ouvidos. Mas o
tomaram, evidentemente, por uma espécie de touriste, que tivesse estado na Inglaterra
e houvesse ali encontrado algumas cousas dignas de ser imitadas. Não quiseram ver
que atrás de tudo aquilo estava toda uma doutrina que importava conhecer. Mais tarde
o mesmo preclaro Ed. Demolins escreveu o belo volume L’Éducation Nouvelle
(L’École des Roches) e, desta vez, muitos dos que entre nós vivem de se entreter com
as cousas do ensino, que é um ramo de negócios como qualquer outro, vieram a pensar
que podiam contar com mais um pedagogo, a ser imitado superficialmente, como é
hábito fazer com muitos outros que a Europa nos exporta. O grande discípulo de Le
Play passou a ser considerado um pedagogo, adicionado a um touriste. Era e é a
crença geral. (ROMERO, 1810).
Outra preocupação de Romero (1906) era pontuar que a educação na École des
Roches era a “[...] conseqüência de uma especial doutrina de filosofia e de ciência social [...].
No entanto, as apropriações dessa doutrina não parecem ter coincidido com aquela realizada
por Oiticica no Colégio Latino-Americano, ou eram muito diferentes do entendimento do
missivista, pois Oiticica foi repreendido e acusado de incorrer “no mesmo erro geral corrente
no Brasil” ao dissociar a nova educação da ciência social, “sem a qual perde seu caráter
original”. O aviso veio das conclusões a que Romero (1906) chegou sobre a resposta
comentada por Demolins em artigo para a revista La Science socialle.
[...] O meu caro confrade, desculpe a franqueza indispensável entre homens sérios, já
pelos anúncios de seu Colégio Latino-Americano, já pela carta que dirigiu ao Ilustre
Ed. Demolins, inserta na revista de setembro do ano passado, vê-se claro que laborava
ainda no erro geral, corrente no Brasil. O nosso grande mestre, com sua natural
perspicácia, foi dos primeiros a reconhecê-lo, tanto que na resposta que lhe dirigiu não
perdeu o ensejo de dizer-lhe que a nova educação é um resultado da Ciência Social,
sem a qual perde seu caráter original – “Je vous engage à faire partie de notre Société
de Science Sociale et à recevoir, à ce titre, notre Revue mensuelle – La Science
Sociale, afin de vous tenir au courant de nos travaux. Vous savez en effet que l’École
des Roches est un produit de la Science Sociale q’uelle est soutenue par elle. Si nous
perdions cette base le caractére original de notre École disparaitrait peu à peu”.[...]
(ROMERO, 1910).
Como advertência, Romero (1906), após citar todos os seus escritos de Demolins
sobre a metodologia de Le Play e os trabalhos de seu discípulo Artur Guimarães, demarcou
tais escritos como a sua temática de estudos:
[...] julguei ser de meu dever fazer-lhe as confissões que aí ficam; porque neste país,
onde é costume inveterado desprezar os esforços dos que estudam e trabalham,
confissões tais são indispensáveis. Pelo que toque à enquête, digo-lhe em conclusão,
que, abarbado como ando com o Brasil Social não ponderei concorrer para ela por
49
modo direto. Limitar-me-ei a enviar a Sociedade um esboço de classificação das
zonas sociais do Brasil (ROMERO, 1910) (grifos nossos).
Nesse momento do debate na revista La Science Socialle, Oiticica tinha vinte e quatro
anos, era recém-egresso do curso de Direito, já atuava na docência e no jornalismo carioca.
Silvio Romero tinha três décadas de docência na cadeira de Filosofia do então Colégio
Imperial Pedro II e uma produção intelectual
44
que chamou a atenção de Oiticica, pelos
estudos que aquele intelectual vinha desenvolvendo sobre o “novo processo de educação e a
ciência social”, particularmente a experiência da École des Roches tomada como referência no
projeto de seu colégio do Leme. Silvio Romero tinha um grupo, do qual José Oiticica não era
membro
45
, porém era um intelectual conhecido e colaborador do mesmo periódico francês no
qual Romero publicava os seus escritos.
As aproximações com a educação nova da perspectiva de José Oiticica se manifestou
de forma mais clara em seus artigos para a imprensa libertária, quando veicula nos jornais a
abertura de escolas da educação libertária e passa a difundir também os princípios da
educação de Francisco Ferrer e a prescrever a leitura de obras de estudos anarquistas.
Os comentários de José Oiticica sobre os processos pedagógicos usados em seu
colégio, a julgar pela recorrência com que são mencionados, mostram que esta experiência foi
marcante na sua vida educacional. Acrescentaram-se as experiências na Escola de Arte
Dramática do Rio de Janeiro, no Colégio Pedro II, nas docências na Universidade de
Hamburgo, na Faculdade de Ciências e Letras do Distrito Federal e, concomitante a essas
atividades da educação institucional as experiências das atividades da propaganda social
anarquista que incluíam as conferências sociais libertárias do livre pensamento, a educação
por meio do jornal e o teatro social. O Colégio acabou, mas a sua certeza em relação às
práticas pedagógicas nele utilizadas, continuou por ele lembradas, como baliza para as suas
44
Da produção de Silvio Romero até 1906, destacam-se: (1873) Etnologia selvagem; (1878) Cantos do fim do
século: poesias e A filosofia no Brasil; (1880) tese para o Colégio Imperial Pedro II - Da interpretação filosófica
na evolução dos fatos históricos; (1882) Introdução à história da literatura brasileira; (1884) Introdução à
literatura contemporânea; (1887) Uma esperteza; (1888) História da literatura brasileira; (1889) Manifesto aos
eleitores da Província de Sergipe; Mensagens aos homens de letras; (1890) Doutrina contra Doutrina; (1895)
Ensaios de filosofia do direito; (1904) Discursos pronunciados na Câmara Federal; (1891) artigos sobre o ensino
no jornal carioca Diário de Notícias, dirigido por Ruy Barbosa (1906) Compêndio de literatura brasileira, em
parceria com seu amigo João Ribeiro.
45
José Oiticica era conhecido de Silvio Romero antes mesmo de sua participação nesse debate educacional.
Romero e o pai de Oiticica estudaram juntos na Faculdade de Ciências Jurídicas de Recife. Ele obteve o título de
Bacharel em Direito em 1873, um ano depois que o pai de José Oiticica também obteve a sua titulação; ele foi
deputado federal por Recife, em 1898, o mesmo período em que o pai de Oiticica também era deputado por
Alagoas. O pai de Oiticica publicava artigos sobre o ensino, desde 1891, no Diário de Notícias dirigido por Ruy
Barbosa. Além disso, Romero era amigo particular de Euclydes da Cunha, cujos filhos eram alunos de José
Oiticica no Colégio Latino-Americano.
50
práticas pedagógicas.
1.3.2 O Colégio Latino-Americano rememorado por José Oiticica
Em 1905, um ano após o seu casamento, Oiticica fundou, com a sua esposa, o Colégio
Latino-Americano localizado no bairro do Leme. Os recursos materiais necessários para a
fundação do Colégio foram obtidos com o seu pai. No seu curto funcionamento, até o ano de
1908, o professor Oiticica empreendeu um programa de ensino baseado na École des Roches
de Edmond Demolins, discípulo da Sociologia de Frederic Le Play.
Essa experiência que lhe serviu como padrão de ensino para o seu Colégio do Leme e
foi uma manifestação da escola nova que também inspirou, na década seguinte, outras
iniciativas de escolas livres, libertárias, como, por exemplo, as escolas modernas nº 1 e nº 2
46
,
sob inspiração do pedagogo Francisco Ferrer, que de certa forma tiveram em suas origens o
projeto de uma nova escola para a constituição do homem novo.
As informações que se seguem sobre os processos pedagógicos
47
adotados no Colégio
Latino-Americano são resultantes do exame de um opúsculo, intitulado Um programa
heterodoxo de português nas escolas
48
, no qual José Oiticica nos apresenta a descrição de
algumas das aulas, as disciplinas e as estratégias didáticas de aprendizagem adotadas em seu
colégio.
A fala de Oiticica no transcurso da conferência radiofônica foi direcionada
principalmente aos professores e àqueles que se interessavam pela questão educacional
46
Giglio (1995) e Jomini (1990) esclarecem sobre a existência de Escolas Modernas anarquistas em várias
cidades de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Estas escolas foram organizadas sob a inspiração dos
pedagogos Francisco Ferrer, Paul Robin, Sebastian Faure e outros. Em 1912, foram fundadas pelo movimento
anarquista em São Paulo duas escolas, a Escola Moderna nº 1 e a Escola Moderna nº 2, inspiradas no
pensamento do educador espanhol Francisco Ferrer y Guardía. Conforme o Boletim da Escola Moderna, nota-se
que tais escolas eram voltadas ao trabalhador. A manutenção financeira dessas instituições escolares era
responsabilidade dos alunos, pais e comunidade em geral. Além da participação na manutenção das escolas, e
em outras organizações sociais, a educação do homem para a liberdade implicava a adoção do método que
levasse em conta as características de cada aluno, sem prazos a cumprir, segundo Jomini (1990, p.90-108). Em
São Paulo nas Escolas Modernas 1 e 2 destacam-se os trabalhos de Florentino de Carvalho e Adelino Pinho.
47
Os termos: processos pedagógicos e método de ensino foram utilizados por José Oiticica de maneira análoga
em artigos jornalísticos, opúsculos, e em seus manuais didáticos para designar as ações do professor em aula, a
seleção, organização e distribuição de conteúdos; a avaliação.
48
As informações sobre o Colégio Latino-Americano fundado por José Oiticica foram reunidas na consulta ao
opúsculo Um programa heterodoxo de português nas escolas, editado em 1948, pela Escola Técnica de Campos,
no Rio de Janeiro e encontrado no Núcleo de Documentação e Memória do Colégio Pedro II (NUDOM). Trata-
se da transcrição de uma conferência, da última conferência de uma série de 15 proferidas pelo professor José
Oiticica no programa A hora do livro sob o comandado de Cid Franco. Tavares (1999), pesquisador das histórias
do rádio no Brasil, informou-me em entrevista, em 12 de setembro de 2006, que provavelmente esta conferência
foi apresentada na Rádio Cruzeiro do Sul. Esta emissora foi criada em São Paulo pelo núcleo experimental
Sociedade Rádio Cruzeiro do Sul- PRB-6, juntamente com outra emissora no Rio de Janeiro com o mesmo
nome. Outros registros foram encontrados sobre o colégio: dois formulários usados no colégio, um de recibo de
pagamento, outro requerimento de aluno que se encontram no anexo II (no verso desses formulários há poesias
de José Oiticica datadas de 1915, fato que explica a conservação de tais formulários).
51
brasileira. A sua argumentação transitou em duas temporalidades, a sua experiência no
Colégio Latino - Americano (1905 -1908) e o momento da conferência, o ano de 1948, com o
peso da experiência da docência no Colégio Pedro II desde o ano de 1917, quando ingressou
nesta instituição.
A experiência educacional no Colégio foi avaliada como prática bem-sucedida. Nessa
avaliação, Oiticica não incluiu a curta duração no funcionamento do colégio e deixou claro
que o seu encerramento se deu pelas dificuldades financeiras que o impediram de dar
seqüência ao empreendimento. Ficou subentendida em sua explanação que, se não fosse esta
razão, o seu colégio teria perseverado na formação dos alunos. Portanto, a razão determinante
do brilhante êxito dessa experiência deveu-se, sobretudo, à adoção do método de ensino da
École des Roches tomada como padrão por José Oiticica.
O Colégio Latino-Americano localizava-se na Rua Tonelero, 31, no bairro Leme, na
cidade do Rio de Janeiro. Era um dos estabelecimentos escolares da iniciativa particular que
funcionava sob os regimes de internato e de externato e atendia crianças a partir dos sete anos
de idade.
As disciplinas oferecidas eram “Matemática, Geografia, História, Francês, Inglês,
Química, Física, Botânica, Zoologia e Fotografia, que iam do primeiro ao último ano,
variando somente os programas, rigorosamente sistematizados e curtos, tal como o professor
Oiticica relatou em seu opúsculo.
A sua argumentação foi construída pela descrição da forma pela qual os alunos
aprendiam e os professores ensinavam no colégio. Essa forma se baseava na sistematização
dos processos pedagógicos do Colégio do Leme. Consistia em trabalhar cada conteúdo
dispondo-os do mais simples aos mais complexos, partindo sempre da experiência prática à
teoria, estabelecendo paulatinamente os conceitos, a nomenclatura de cada etapa. Essas
práticas privilegiavam a observação e a realização de experiências. O desfecho de cada uma
delas era encaminhada para que os alunos deduzissem por si mesmos a construção do
conceito:
Do primeiro ano ao último, as disciplinas eram as mesmas, variando somente os
programas, rigorosamente sistematizados e curtos. Lições duas vezes ou uma só por
semana, ao ar livre ou em laboratórios, e todo o ensino; não digo prático, senão
objetivo. A teoria saía sempre da prática como conseqüência natural, quase sempre
induzida ou deduzida pelo próprio estudante. (OITICICA, 1948, p. 5).
Para tornar clara a exposição do método de ensino do Colégio Latino-Americano, José
Oiticica apresentou aos professores e ouvintes de seu programa radiofônico alguns exemplos
52
das aulas ministradas em seu Colégio. Desses exemplos, dois valem a pena serem conhecidos.
Trata-se das primeiras aulas de Geometria e de Química:
A primeira aula de geometria era dada no campo com um goniômetro e era o professor
nada menos que o atual general, suponho de cavalaria, José Octaviano da Silva, então
cadete da Escola Militar, que poderá atestar o fato. Com a medida de terrenos, iam
estudando os alunos paralelas, perpendiculares, ângulos, paralelogramas, todas as
noções fundamentais da geometria.
Nas aulas de química, iniciavam-se na técnica mais elementar: lavagem de vidros,
curvamento de tubos, furamento de rolhas, lutamento de tubuladuras, construção de
alambiques, destilação de água para os reagentes e, depois, reconhecimento dos sais,
etc. No preparo dos reagentes lá vinham um sem número de noções sobre ácido
clorídrico, sulfúrico, azoto, cloreto de bário, etc. (OITICICA, 1948, p. 5)
Nas duas aulas exemplificadas, a teoria estava vinculada à prática em laboratórios
improvisados pelas ações didáticas do professor. Os alunos aprendiam juntos. Os mais
adiantados ensinavam os novos e não havia castigos, punições ou coerções. O professor
buscava estimular o gosto e a curiosidade dos alunos com atividades, experiências e depois
propunha a elaboração de um relatório. Os alunos tinham que escrever sobre as experiências
com a aprendizagem:
Os alunos novos iam sendo incorporados aos antigos e começavam a receber lições
não do professor, mas dos companheiros que os mandavam fazer o que tinham feito,
até, pouco a pouco, se irem enfronhando na prática de laboratório. Ao mesmo passo
uma vez por semana, o professor fazia experiências divertidas com explicações
complementares: preparo de um voltâmetro, verificação experimental da fórmula
H2O, recomposição da água pela combinação explosiva dos dois elementos por eles
mesmos decompostos, etc. Os alunos tinham que depois escrever um relatório que era
corrigido na redação, no estilo, nas observações consignadas.[...] tudo isso era obtido
sem bulha nem matinada, sem um castigo, brincando pode-se dizer; [...](OITICICA,
1948, p. 6)
O esporte estava no rol das práticas do Colégio Latino Americano.
49
O advento do
futebol nos anos 1900 levou Oiticica a organizar a Associação Sportiva do Collegio Latino
Americano, um desdobramento da intensificação da prática desse esporte naquele período.
Nessa fase, as práticas esportivas se “literalizavam”, nos jornais da época, como afirmou
Broca (2004, p.155). Nos periódicos da imprensa libertária, as opiniões sobre o novo esporte
estavam cindidas entre aqueles que o aprovavam e o associavam ao helenismo grego, e
aqueles que o reprovavam sob vários argumentos, entre os quais o fato de ser uma prática
49
O registro jornalístico da participação do time “Colégio Latino Americano” em um campeonato de futebol
ocorrido em 1906, no Rio de Janeiro mostra que este esporte estava entre as atividades do Colégio Latino-
Americano. < http:///www.paginas.terra.com.br/esportes/esssil/tables/rj1906
>, acesso em 17de setembro de
2007.
53
introduzida pela burguesia estimuladora de discórdias. Pode-se afirmar que José Oiticica, pelo
incentivo à organização do time de seu colégio do Leme, enquadrava-se no primeiro grupo.
A experiência de Oiticica em seu Colégio serviu como parâmetro de comparação em
relação ao seu trabalho pedagógico no Colégio Pedro II, o padrão de ensino secundário no
Brasil. Segundo os seus argumentos, ele não conseguiu comprovar no Colégio Pedro II a
eficácia de seu método de ensino, porque nunca lhe ofereceram condições organizacionais
para implementar a sistematização por ele defendida, e argumenta que:
Por mais que pareça impossível, absurdo, incrível o que vos vou dizer é a puríssima
verdade: jamais consegui no Colégio Pedro II, colégio padrão do Brasil, acompanhar
uma turma da primeira à quinta série e isso apesar de meus contínuos protestos e
súplicas. A organização dos horários, respondem, não permite. O mais que obtive foi
acompanhar uma turma nos dois primeiros anos. De modo que toda a minha
sistematização vai por água abaixo com professores outros, com métodos diversos ou
sem métodos, assíduos ou não. (OITICICA, 1948, p. 23).
Após este desabafo que potencializou sobremaneira a positividade da organização de
seu colégio do Leme e que desmistificou o adjetivo “padrão do Brasil” atribuído ao Colégio
Pedro II, Oiticica justifica as dificuldades que teve em fazer com que as suas propostas
fossem comprovadas e diz:
Sendo assim, nunca me foi dado mostrar de público e perante as autoridades
pedagógicas do Brasil a que resultados poderia eu chegar aplicando as idéias que vos
deixo tosca e apressadamente expostas. (OITICICA, 1948, p. 23).
A organização dos conteúdos a serem ministrados em seu colégio era um dos pontos
mais importantes de sua metodologia experimentada em seu Colégio Latino-Americano. A
sua experiência com a “sistematização” dos conteúdos das disciplinas nos “processos de
ensino” adotados em seu colégio do Leme levou-o a propor e a defender a sistematização do
ensino de Português nas escolas. Ao seu juízo, a ausência de sistematização foi a maior causa
do insucesso educacional do Brasil. Mas o que era essa sistematização? Ela consistia em
alguns procedimentos, como, por exemplo, “respeitar o tempo de aprendizagem de cada
aluno, escalonar o mais simples e depois o mais complexo, à parte e depois o todo, o estímulo
da observação para a dedução e a apresentação de certezas” Essa experiência adquire clareza
quando remetida ao debate mais amplo em que as concepções que alimentaram esta iniciativa
escolar estavam sendo discutidas também no projeto da escola nova, entretanto era uma
discussão mais amiúde nos projetos da educação libertária.
54
1.3.3 A interlocução escolanovista por meio dos jornais e revistas
A articulação do debate escolanovista por intelectuais brasileiros também se
manifestava em Portugal, dada à recorrência com a qual obras de brasileiros eram publicadas
em Portugal. O livro de Silvio Romero, intitulado Provocações e debates, em que o autor
introduzia a idéias da escola nova, de Edmond Demolins, por exemplo, foi publicado na
cidade do Porto, em Portugal. Nesse livro, há uma carta em que Silvio Romero enviou a José
Oiticica informações sobre o método sociológico de Le Play, a pedagogia de Demolins em
atenção, principalmente, à experiência do Colégio Latino-Americano fundado por Oiticica no
ano de 1905, cuja metodologia de funcionamento se inspirava na experiência da École des
Roches, fundada por Demolins em 1899.
Como Silvio Romero, outros intelectuais brasileiros participavam do debate sobre a
escola nova, colaboravam em diversas revistas européias. Esse intelectual e José Oiticica
orquestraram o debate educacional sobre a nova educação proposta pelo pedagogo Edmond
Demolins em sua revista La Science Socialle, fundada em 1886 na França. Essas ocorrências
de chofre sinalizam que o espaço do debate entre educadores brasileiros, portugueses,
franceses e outros era amplo e que havia conexões entre diferentes sujeitos, inseridos em
grupos distintos, quase todos interessados nessa proposta de uma educação nova, que deveria
substituir o ensino enciclopédico, em consonância com as várias lentes disponibilizadas pelos
debates sociológicos desde o final do século XIX.
O interesse de Oiticica em fundar o Colégio Latino-Americano em 1905 manifestou-se
nessa ambiência quando se disseminava por toda a Europa um debate focalizado no tema da
renovação educacional. Essa troca de idéias, embates e lutas veiculavam-se por meio da
circulação de livros, revistas, jornais em que os intelectuais, professores publicavam os seus
ensaios, relatavam as suas experiências, confrontavam e construíam suas práticas discursivas
acompanhando os vieses das ciências naturais e sociais. Era comum a publicação de cartas-
resposta, livros como resposta a oposições e composições em questões relativas aos diferentes
projetos para a educação nova.
Essa articulação de idéias estava em aberto diálogo com a sociologia, a maior parte
deles, por meio das vertentes da biologia evolucionista de Darwin, do racionalismo e do
materialismo histórico. Com a psicologia, ao lado da Biologia buscava-se apreender a
dinâmica e os processos como se dava a aprendizagem dos alunos. Nos discursos dos sujeitos
que escreviam em jornais da imprensa libertária, tanto os periódicos dirigidos por José
Oiticica, como outros dos anos iniciais do século XX, como, por exemplo, A Lanterna, a
55
partir de 1901, A Voz do Trabalhador, desde 1908, A Vida em 1914, entre outros, apresentam
diversos artigos em que se podem ver comprovadamente essas articulações do discurso que
versavam sobre o projeto de uma escola nova.
A pesquisa de Barreira (2005 e 2006), que examinou as revistas de educação e ensino
que circularam em Portugal no início do século XX, detectou a existência de inúmeros artigos
de intelectuais portugueses que sinalizam uma clara associação do movimento de renovação
nacional nas práticas discursivas de portugueses das mais diferentes colorações ideológicas,
entre as quais liberais, maçons, socialistas e libertários.
O seu estudo, numa dimensão mais ampla, demonstra que havia uma luta contra o
velho ensino cuja superação encetava para diferentes propostas do novo ensino, este
concebido de maneira particular nos diversos grupos que participavam do debate educacional
nos periódicos de ensino e de educação. Na luta, pela nova educação, conforme afirmou
Barreira (2006, p.1):
Cada grupo concebia o “novo” de determinada maneira e, conseqüentemente, as
estratégias que propunham para a consecução dos objetivos que postulavam nem
sempre coincidiam, com exceção talvez de uma delas: o papel relevante que atribuíam
à educação escolar, no processo de construção da “nova” sociedade.
A ênfase da sua investigação incidiu no exame das proposições de Adolfo Lima, um
renomado escolanovista português, difusor e praticante das idéias libertárias, que foi diretor
pedagógico e professor de Sociologia na Escola Oficina nº 1 de Lisboa e professor na Escola
Normal Primária de Lisboa.
Esta escola foi fundada em 1905, o mesmo ano da fundação do Colégio Latino-
Americano de José Oiticica, e “a partir de 1907 quando Adolfo Lima e outros professores
anarcosindicalistas portugueses passaram a compor o seu corpo docente, outra forma de
educação começou a ser nela experimentada” [...]. A instituição pertencia a uma organização
maçônica e republicana denominada inicialmente Sociedade Promotora de Asilos, Creches e
Escolas e depois, em 1913, chamada Sociedade Promotora de Escolas (BARREIRA, 2005,
p.1).
Na fase de funcionamento do Colégio Latino-Americano, até o ano de 1908, além das
referências no debate com Silvio Romero, a respeito dos posicionamentos e da interlocução
de José Oiticica próximos à experiência da École des Roches de Demolins, não encontramos
outros indícios que demonstrassem de forma mais precisa a inserção de Oiticica no debate
escolanovista.
A partir de 1912, a presença de José Oiticica se faz notada nos jornais anticlericais e
56
libertários, sobretudo nas conferências proferidas na Liga Anticlerical do Rio de Janeiro e nos
artigos, momento em que participa ativamente da criação de escolas de ensino racionalista,
inspiradas no modelo racionalista de Francisco Ferrer y Guardía. Essa campanha acontecia
por toda a imprensa libertária. O fuzilamento desse pedagogo libertário, morto no dia 13 de
outubro de 1909, era rememorado como uma forma de fortalecer a luta em prol das escolas
modernas, cujo modelo já havia sido experimentado em São Paulo.
Nos periódicos fundados por José Oiticica, A Vida, em 1914 e depois, Spartacus, em
1919, figuram sempre nas páginas finais uma lista com livros, folhetos e jornais como leituras
recomendadas, aquelas que todos deveriam ler. Entre os livros recomendados estavam os de
Adolfo Lima, o Diretor da Escola Oficina nº 1 de Lisboa, cujos títulos são apresentados
abaixo:
Leitura que recomendamos
O que todos devem ler
Livros
(...)
Adolfo Lima – O contrato de trabalho .......................................4.000
Adolfo Lima – O ensino da História (1 vol. de 63 pags)...............700
Adolfo Lima – O teatro na escola (1 vol. de 32 pags)....................300
Adolfo Lima – Educação e Ensino (Educação integral)...............2.000
(...)
Os livros indicados nesta página serão remetidos para qualquer lugar do Brasil, ao
preço aqui indicado e sem aumento do porte do correio, si o pedido vier acompanhado
da respectiva importância do vale postal, dinheiro em carta registrada com valor
declarado, ou com selos do correio do valor de 10 ou 20 reis. Esta administração
satisfaz também com prontidão qualquer encomenda de livros, nacionais ou
estrangeiros, de propaganda social, que venham acompanhados da importância
correspondente, bem como se encarrega de tomar assinaturas para todas as
publicações periódicas da Europa e da América. (A Vida, ano I, nº 2, p. 18, 31-12-
1914).
A maior parte dos livros era procedente de Portugal. A parceria na veiculação dessas
publicações, divulgadas como leituras recomendadas para a educação nova em periódicos,
como, por exemplo, A Vida, deixa ver a clara conexão entre a militância dos professores
militantes libertários de Portugal e os do Brasil. Na militância anarquista o dispositivo de criar
e alimentar uma rede solidária de divulgação das idéias fazia parte da estratégia do combate
pela palavra. No caso da militância do professor José Oiticica, esta evidência se fortalece ao
examinarem-se as idéias que apresenta para a educação nova, como será demonstrado no
capítulo que se segue.
57
1.4 A Escola de Arte Dramática do Rio de Janeiro
Após o fechamento de seu colégio do Leme, Oiticica trabalhou durante três anos como
diretor de um Colégio Municipal de Laguna, em Santa Catarina. Nessa fase, ele fundou o
jornal Correio do Sul, porém sobreveio desavença com os dirigentes [do jornal] e ele deixou a
redação. Em 1910, Oiticica retornou de Laguna para o Rio de Janeiro. Nessa época, ele tinha
três filhos e precisava conseguir emprego para o sustento de sua família.
50
Era um recomeço
de vida no Rio de Janeiro e dona Francisca ajudava com seu trabalho a compor o orçamento
doméstico.
51
José Oiticica ingressou como professor de História no Colégio Batista e procurou
manter a sua colaboração em jornais da imprensa do Rio de Janeiro.
52
Pelas condições
enfrentadas por Oiticica naquele momento, a melhor opção era conseguir trabalho com
vencimentos fixos, pois as remunerações obtidas com a colaboração na grande imprensa e as
aulas no colégio católico eram insuficientes.
Nesse período, os jornais da capital federal remuneravam por colaboração literária.
Assim o trabalho na imprensa jornalística oferecia, na maioria dos casos, melhor remuneração
se comparada àquela proveniente da publicação de livros, pois o processo de
profissionalização do autor ainda era incipiente nas décadas iniciais do século XX, e poucos
autores conseguiam publicar os seus livros no Brasil. Quando um escritor estava inserido em
uma das rodas literárias, tinha maiores condições de atuar como conferencista, colaborar em
jornais e revistas e publicar seus livros (BROCA, 2004, p. 285). Com isso, para muitos
homens de letras almejavam conseguir uma ocupação com vencimentos fixos, as escolas e as
repartições públicas estavam entre as alternativas possíveis.
Até 1914, José Oiticica prestou vários concursos públicos, um concorrendo a vaga de
redator na Câmara dos Deputados e outro à cadeira de professor do Instituto Benjamin
50
As informações sobre essa fase da vida de José Oiticica foram consultadas em Neves (1970, p.11). O ensaísta
narrou esse episódio na introdução da Antologia de artigos jornalísticos de José Oiticica, publicação intitulada
Ação Direta a partir de entrevistas realizadas com Dona Francisca, a esposa de Oiticica e, também, de sua
memória militante do trabalho com José Oiticica, a partir do final dos anos 1940.
51
O cotidiano da família de José Oiticica era movimentado pelo trabalho do casal, de acordo com as informações
das entrevistas realizadas com Sônia Oiticica. A mãe sempre participou do orçamento da casa: trabalhou com seu
pai no Colégio Latino-Americano, costurava, tecia renda de bilro e fazia biscoitos que eram vendidos aos amigos
e à Confeitaria Colombo, mas, como a família era grande e as despesas também, mudavam sempre por causa dos
altos aluguéis das casas no Rio de Janeiro.
52
Os principais periódicos em que José Oiticica trabalhou ao longo de sua carreira como colaborador da grande
imprensa foram os jornais: Cidade do Rio, O Mundo, Correio da Manhã, Jornal do Brasil, e A Pátria.
58
Constant, mas como ele mesmo relatou, “apesar das ótimas classificações nunca foi
aproveitado, aceito no último, o de português para o Colégio Pedro II em 1916”.
53
Antes de assumir a cátedra no Colégio Pedro II, no ano de 1914 José Oiticica foi
convidado por Coelho Netto
54
para substituir João Ribeiro, ministrando aulas de prosódia na
Escola de Arte Dramática do Rio de Janeiro. Oiticica, então agradeceu a Coelho Netto por
essa oportunidade de trabalho, como pode ser observado na seguinte carta:
Rio de janeiro, 04 de maio de 1914.
Illmo Director da Escola Dramática
Profundamente penhorado com o honroso convite que me fez V. S. para assumir a
regência da cadeira de prosódia da Escola Dramática em substituição ao provecto
Professor João Ribeiro, respondo a V.S. agradecendo a confiança que em mim
deposita e prontificando-me a secundar o nobre esforço de V. S. fazendo quanto em
mim couber por não desmerecer de tão alta incumbência.
Aguardando as ordens de V. S.
Subscrevo-me
Admirado e obrigado
José Oiticica (Correspondência passiva de Coelho Netto,
Biblioteca Nacional, R.N: 2/1937)
O seu trabalho como docente na Escola de Arte Dramática atravessou quatro décadas,
tendo vivenciado inúmeras transformações dessa escola, da cidade e da ambiência política. O
jornal do Brasil de 10 de abril de 1928 discutia sobre as condições precárias da Escola de
Arte Dramática, destacando o descaso governamental com os salários dos professores e
informava sobre o quadro docente dessa instituição:
Ora, quando consideramos que o Rio possui uma escola dramática, e que essa escola
arrasta uma vida imensamente precária, explicamos que não possa existir theatro no
Brasil, ou pelo menos, comprehendemos como um resultado da inexistência do theatro
em nossa terra a precariedade da existência dessa escola...Sabe-se que o Sr. Coelho
Netto é o director do estabelecimento. E sabe-se também que alli são professores os
srs. João Ribeiro, Alberto de Oliveira, Fernando Magalhães, José Oiticica e sra.
Ângela Vargas. [...] A Escola Dramatica é uma causa esquecida pelos poderes
públicos. Até agora, allias, os seus professores ganhavam menos do que os seus
contínuos, os quaes tinham tido os vencimentos equiparados dos contínuos da
prefeitura...O recente augmento do funccionalismo municipal é que veio corrigir tão
pitoresco escândalo. (O Globo, 09-04-1928, Arquivo Fernando de Azevedo, Instituto
53
Manuscrito biográfico de José Oiticica; Neves (1970, p.11).
54
Coelho Netto ocupou vários cargos públicos: em 1890, foi secretário de governo do Rio de Janeiro; 1892 –
professor de História da Arte na Escola Nacional de Belas Artes; nos anos de 1909 e 1917- eleito e reeleito
deputado federal pelo Maranhão; 1909: Catedrático de Literatura no Colégio Pedro II; 1910: foi nomeado
professor de História do Teatro, Literatura Dramática e depois assumiu a direção da Escola de Arte Dramática. A
sua posição nas rodas literárias do Rio de Janeiro, na política e na educação proporcionou-lhe condições para, em
situações diversas, colaborar na vida profissional de José Oiticica.
59
de Estudos Brasileiros - IEB, Universidade de São Paulo USP: Localização: FA
A3/143).
A Escola de Arte Dramática, desde o ingresso de Oiticica atravessou dificuldades que
levaram a apelidarem-na, na imprensa, como “pardieiro”, por causa das condições do prédio e
da falta de materiais nesse período. Em contrapartida, a escola chamou atenção de uma parte
da imprensa por ser o seu diretor um dos autores mais lidos do Rio de Janeiro, com presença
marcante nas conferências literárias que eram moda no inicio do século XX. Outro aspecto
compensatório da escola, exibido nos jornais, era o fato de José Oiticica integrar o corpo
docente dessa instituição.
Ele estava ao lado de Coelho Netto e tinha reconhecimento social pelo seu trabalho
com a disciplina de Prosódia como mostraram os periódicos
55
, Jornal do Brasil, o Globo, e A
Esquerda, no ano de 1928, ao apresentarem comentários sobre a instituição. Para exemplificar
um comentário análogo nas três folhas mencionadas, o excerto de A esquerda mostra certo
destaque ao programa elaborado por José Oiticica e ao seu trabalho naquela instituição,
enquanto os programas das outras disciplinas ministradas nessa escola receberam críticas:
Programmas, pode-se affirmar que os há mas, não na escola. Lá existiam , em 1916 ou
17, umas copias datylographadas, que os alumnos passavam de mão em mão.[...] Hoje
quem os quizer tem de pagar 60$000 pelos 3 volumes da “consolidação das leis
municipaes” [...] Pela leitura de seus três únicos artigos tem-se a impressão de que a
escola não existia antes. Pois o art. 1 fala em dar-lhe “intallação e organização de
maneira a servir para ministrar a instucção aos que destinem a carreira do theatro” [...]
programma só os há de portuguez, Prosódia, Arte de dizer e representar e Pysiologia
das paixões. Os dois primeiros da lavra do Sr. José Oiticica, o 4 de Coelho Netto e o
ultimo do Prof. Fernando de Magalhães são optimos. Os outros são de uma
mediocridade enervante. [...] Praticamente, si admittirmos que o Sr. Oiticica com o seu
methodo, com o seu tirocínio, com os seus hábitos de trabalho, lecione mesmo tudo o
que se propõe, não haverá boa vontade que supponha o mesmo do Sr. Coelho Netto ou
do Sr. Fernando Magalhães . E a prova está em que, às vezes, os jornaes noticiam
aulas publicas de ambos. [...]. (A Esquerda – 29-11-1928, Arquivo Fernando de
Azevedo IEB,Instituto de Estudos Brasileiros, USP, Localização: FA A3/143)
A docência de José Oiticica na Escola Dramática Municipal se enleava com as
atividades dos vários grupos do teatro social em decorrência de muitos dos atores e atrizes
deste teatro terem sido os seus alunos.
55
No Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) na Universidade de São Paulo - Arquivo Fernando de Azevedo
encontrei três artigos sobre o funcionamento da Escola de Arte Moderna: O Globo – 09-04-1928: O Theatro,
índice da cultura de um povo: deplorável o estado da Escola Dramática Municipal: Está instalada em um
verdadeiro pardieiro; Jornal do Brasil – 10-04-1928: Escola Dramática; A Esquerda – 29-11-1928: O que é,
hoje, nos programmas e na realidade o ensino dramático entre nós - Theoricamente, é um ‘imbroghio’[...]
retirados do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), Universidade de São Paulo (USP), Arquivo Fernando de
Azevedo.
60
A partir de seu ingresso na Escola Dramática, o seu trabalho com grupos de teatro
social, como no Grupo Dramático Anticlerical, estreitou laços com literatos, autores e
organizadores dos espetáculos teatrais libertários. Entre os intelectuais mais próximos de José
Oiticica na fase inicial da docência na Escola Dramática, destacaram-se Elísio de Carvalho e
Fábio Luz. Esse movimento ocorreu concomitante a sua inserção na imprensa libertária e no
intenso trabalho com as conferências, tal como será aprofundado no capítulo seguinte.
1.5 A iniciativa da Universidade Popular de Ensino Livre
Elísio de Carvalho, em 1904, implementou o seu projeto de Universidade Popular de
Ensino Livre com intelectuais libertários e outros sujeitos de formações diferenciadas. Os
envolvidos na universidade livre eram Fábio Luz, ministrando a disciplina Higiene; Felisberto
Freire, História do Brasil; Rocha Pombo, História Geral; Pedro Couto, Filosofia; Sinésio de
Faria, Matemática; José Veríssimo, Pedro do Couto, Araújo Vianna e outros.
Fenerick (1997), com o seu estudo sobre a literatura anarquista, focalizou a produção
de um dos envolvidos com a organização da Universidade Popular, o médico e escritor Fábio
Luz. Para situar os sujeitos de sua pesquisa, o ponto de partida deste pesquisador foi trilhar o
itinerário das rodas literárias apreendidas por Brito Broca (2004), em suas investidas nos
periódicos da grande imprensa carioca dos inícios do século XX.
Ocorre que o reconhecimento e o acompanhamento do projeto da Universidade
popular foram tratados em profundidade pela imprensa operária e não pela grande imprensa.
Como a pesquisa de Broca, datada de 1957, foi assumida como fonte para Fenerick (1997), os
comentários de avaliação dos dois pesquisadores coincidiram ao atestarem o fracasso desse
empreendimento por sua curta duração, e, ainda, por justificarem a sua fundação pelo fato de
seus participantes pertencerem “pelo menos em algumas agremiações secundárias e de rodas
literárias”. Vejamos o que relata Fenerick (1997, p.10):
Neste sentido não causa surpresa alguma o fato de um dos projetos mais citados pela
bibliografia sobre o anarquismo no Brasil, a criação de uma Universidade Popular de
Ensino Livre, em 1904, ter sido levado a termo por alguns desses escritores [...]
Apesar de “fracassado” (esse projeto durou apenas alguns meses), este projeto é mais
um indicativo das “amizades” e da variada formação intelectual desses escritores que,
como podemos ler em seus romances, não dispensam citações de um Nietzsche, de um
Zola, de um Tolstói, de um Ruskin, mas também, vez ou outra, “escorregam” para um
Darwin, um Comte ou Spencer, resultando, dessa combinação, um certo “anarquismo
positivista evolucionista” que se desdobrará, de certo modo, em suas utopias narradas
em suas obras literárias.
O estudo de Fenerick (1997) não focalizou a Universidade Popular de Ensino Livre.
61
Na abordagem da literatura classificada como menor no estudo de Broca (2004), a sua
pesquisa tira da penumbra a parte da produção que ficou de fora das várias Histórias da
Literatura Brasileira, pois analisa os textos desses autores. No entanto, concordou com a
explicação dada por Broca (2004), quando este atribuiu o citado empreendimento às
“amizades” que tinham os envolvidos nas rodas literárias, do itinerário construído pela fonte
que elegeu. Fosse outra a sua fonte, fossem os jornais operários os materiais, outras
evidências o fariam, provavelmente, questionar a avaliação de Broca (2004) sobre o sucesso
ou o insucesso da Universidade Popular de Ensino Livre.
Quando acompanhamos as práticas educacionais contidas nos diversos jornais
libertários que circularam ao longo das duas décadas iniciais do século XX, percebemos as
permanências dos objetivos fundamentais do projeto da Universidade Popular de Ensino
Livre. Essas permanências podem ser percebidas nas ações e campanhas em prol da
organização das bibliotecas populares; na criação e manutenção dos centros de estudos; nas
práticas educativas do jornal manifestadas nos inúmeros artigos que discutiam idéias de
pensadores que, ao juízo dos articulistas, eram indicados para a formação de livres-
pensadores; nas obras inteiras, desdobradas em folhetins e publicadas no decorrer de vários
números do jornal. Verificamos também, a proposta dos libertários de criarem uma
Universidade Popular pelas listas de prescrições de leitura e das freqüentes conferências
sociais do livre pensamento proferidas, inclusive pelos sujeitos participantes do projeto da
referida universidade.
Dessa forma, pode-se dizer que o projeto da Universidade Livre prosseguiu
manifestando-se de formas variadas como exemplificadas anteriormente. Suas práticas foram
plenamente incorporadas por José Oiticica e, também, por alguns de seus iniciadores, como,
por exemplo, Elísio de Carvalho e Fábio Luz, participantes das conferências sociais, do teatro
libertário, da elaboração das listas com recomendações de leituras, com ensaios sociológicos,
incentivando e negando práticas educativas para a formação do trabalhador.
Esses dois intelectuais tiveram intensa interlocução com o professor José Oiticica, por
meio de atividades conjuntas afinadas com a perspectiva dos projetos das escolas livres, da
universidade e fazendo o uso dos dispositivos das linguagens do jornal, do teatro, das
conferências e do cinema. Além disso, esses intelectuais e outros também faziam traduções de
obras para o português, consideradas importantes para a educação libertária. Essas obras eram
publicadas em forma de fascículos ou em folhetins nos jornais anarquistas.
Assim, a iniciativa de fundação da Universidade Popular teve curta duração, mas o seu
projeto era anterior a ela e continuou se manifestando após o encerramento da iniciativa de
62
1904. Tal universidade como instituição funcionando em um prédio teve curta duração,
fechou no ano em que José Oiticica abria o seu Colégio no Leme. Mas o seu empreendimento
persistiu nas ações militantes da propaganda social, como já foi argumentado.
A maior parte dos envolvidos no projeto da Universidade Livre eram colaboradores da
grande imprensa e da imprensa libertária, e estavam em contato com José Oiticica. Além das
leituras mencionadas por Fenerick (1997), do universo libertário, havia algumas concepções e
idéias pedagógicas européias como, por exemplo, as experiências do ensino racionalista a
partir dos livros de Francisco Ferrer y Guardía, na Espanha.
O debate sobre as concepções e práticas educacionais para a nova educação fervilhava
pelos periódicos libertários. No que diz respeito ao projeto da Universidade Popular, este se
pautava pelos seguintes objetivos:
Fundar um ensino superior metódico para o povo, organizar conferências, periódicas
sobre todos os assuntos suscetíveis de interessar aos trabalhadores, fundar um museu
social e uma biblioteca, realizar representações de arte social, saraus musicais, festas
literárias, excursões científicas, artísticas e expansivas, publicar um boletim que seja o
órgão da associação, estabelecer, enfim, um centro popular tendo por fim às vezes o
prazer e a instrução – a união moral entre os cooperadores. (nota da revista Kultur,
1904, apud KASSIK, 1996, p.88).
No debate educacional esses sujeitos envolvidos com a iniciativa da Universidade
Popular de Ensino Livre acompanhavam as propostas da pedagogia nova. A título de exemplo
cabe mencionar que José Veríssimo foi alvo de críticas de Silvio Romero que o acusava de
pouco conhecimento de causa para discutir a pedagogia da École des Roches, tal como consta
em seu ensaio sobre Edmond Demolins (1907).
56
José Veríssimo era um intelectual das
relações de José Oiticica e mantinham trabalho conjunto na imprensa libertária.
1.6 O Curso Oiticica
No início de 1915, José Oiticica organizou um curso primário para meninos, cuja
perspectiva era ser orientado pela “pedagogia moderna” e organizado para atender a
solicitações de amigos, como pode ser conferido no panfleto de propaganda com a sua
proposta:
Curso Oiticica
Ilm.Snr
Para satisfazer ao desejo de vários amigos, que sentem, como eu, a falta de um curso
primário modelar para o sexo masculino, resolvi fundar um que corresponda aos
56
Como foi apresentado anteriormente, Edmond Demolins foi o fundador da Écoles des Roches, cujo método de
ensino foi baseado na sociologia de Frederic Le Play.
63
progressos da pedagogia moderna e possa ministrar, a um grupo reduzido de crianças
a verdadeira educação physica, intellectual, moral e social. Para isso, preciso contar,
pelo menos, com 20 alumnos externos que contribuam com a mensalidade de 50$000
adiantados e uma joia de 10$000. O curso funccionará entre os bairros do Cattete e
Botafogo, pretendendo eu começar em meados de fevereiro próximo. Contando com o
apoio de V. S. e de seus amigos aguardo suas ordens em minha residência a rua Nery
Ferreira, n. 72 (Botafogo) De V. S. Cr. Obg.
José Oiticica, Rio – 8-1-1915.
O folheto de propaganda do Curso Oiticica
57
foi elaborado com o mesmo estilo das
cartas publicadas nos jornais solicitando as subscrições voluntárias, como eram feitos os
convites para as conferências do livre-pensamento, para as festas e para outras atividades e
ações que conformavam a propaganda social anarquista.
O chamado, “Curso Oiticica” pode levar a supor que nesse início de carreira docente,
o seu nome como professor era bem conhecido, em decorrência das inúmeras conferências
sociais proferidas nas sessões de propaganda social e de suas publicações jornalísticas, além
disso, ele já havia publicado dois de seus livros de sonetos. Se o seu nome ainda não era bem
conhecido, estas ações logo contribuíram para isso. Muito provavelmente, “o desejo de vários
amigos”, uma das razões por ele apresentadas para justificar a proposta do curso, era a
audiência que ele esperava se interessar pelo curso.
O Curso Oiticica derivava, pelo menos de três razões: em atendimento à necessidade
de criar esse tipo de curso, tal como ele explicou no folheto de propaganda, pois nessa época
havia poucas escolas; foi uma oportunidade para implementar as suas práticas pedagógicas; e
era uma alternativa de trabalho para os professores daquele período.
No momento de lançamento desse curso, José Oiticica estava à frente das aulas de
Prosódia, na Escola de Arte Dramática; na direção do periódico A Vida; colaborava com
vários jornais libertários e proferia conferências sociais na Liga Anticlerical. Por essas
inserções, o professor Oiticica dialogava e divulgava suas idéias em intensa interlocução com
intelectuais das correntes libertárias, sendo a maior parte deles, adeptos da “pedagogia
moderna”, ou seja, defensores da “verdadeira educação”.
No entanto, esses termos eram usados por vários expoentes do discurso educacional do
período, não estavam restritos aos discursos da educação libertária. No caso do professor José
Oiticica, eles referiam-se à educação racionalista do pedagogo espanhol Francisco Ferrer Y
57
Esse folheto foi encontrado no acervo pessoal de José Oiticica, tal como o manuscrito que abriu este capítulo,
dividido em duas partes. No verso, há um soneto de José Oiticica, intitulado: A porta de ouro. Em uma das partes foi
escrito a lápis, e na outra parte a cópia corrigida a tinta. Portanto, a sua preservação não se deu em razão do seu conteúdo
original, mas pela escrita do referido soneto, datado de 22 de agosto de 1915, seis meses após o início do curso.
64
Guardía com a experiência das Escolas Modernas, e também aos métodos já experimentados
no Colégio Latino-Americano empregados na École des Roches, a experiência do pedagogo
francês Edmond Demolins. Assim, os “progressos da pedagogia moderna” do curso do
professor Oiticica advinham dessas fontes.
O professor Oiticica defendia e atuava em prol da fundação de cursos orientados por
essa pedagogia cujos princípios eram em muitos aspectos análogos àqueles adotados em seu
Colégio Latino-Americano. Essa defesa intensificou-se a partir da segunda década do século
XX, com a publicação de seus artigos na imprensa libertária e de seu ingresso na Liga
Anticlerical. As conferências sociais e os vários artigos para a imprensa libertária sinalizam o
seu interesse pelas escolas livres do projeto da educação libertária, cuja maior expressão foi a
proposta de ensino racionalista do pedagogo espanhol Francisco Ferrer y Guardía.
58
Em 1912 Oiticica publicou no jornal A Lanterna um artigo em favor do ensino
racionalista, com o título Francisco Ferrer e a humanidade nova. Um ano depois, em A Voz
do Trabalhador, noticiava uma conferência sobre o mesmo tema do citado artigo, por ocasião
do aniversário da morte desse educador espanhol. As propostas de Oiticica apareceram
resumidas no relato da sessão de propaganda da Liga Anticlerical:
[...] o dr. Oiticica que prendendo atenção do auditório com uma bela dissertação sobre
o papel de Francisco Ferrer enquanto vivo, as conseqüências de sua abnegação, e por
fim que a melhor forma de comemorar, de conservar a memória do grande mestre era
continuar a sua obra racionalista. Então fez um minucioso estudo sobre a fundação de
escolas e demonstra que o que a princípio parece difícil se torna o mais prático que dar
se pode. Há facilidade de fazer iniciar, adquirindo-se salões gratuitos para o
funcionamento de escolas diurnas, cita o salão da Federação Operária, que de dia não
teem movimento e lhe parece que os seus componentes não negariam esse concurso.
Cita outros mais salões. Refere-se ao professorado, declarando que desde já se pode
contar pelo menos com trez senhoritas que se prontificam a lecionar, conhecem o
racionalismo, além de terem o curso da Escola Normal. Ele se prontifica a preparar
alguns companheiros para esse mister. Finalmente concita um pouco mais de esforços
da parte dos admiradores de Ferrer, que devem deixar de o admirar passando a imital-
o, praticando a sua obra humanitária. Concluindo a sua brilhante peroração, apela para
os prezentes para que desde já iniciem este tentamen [...].
(A Voz do Trabalhador, Rio de Janeiro, ano VI, nº41, 15-10-1913, p.2).
58
O método racionalista do espanhol Francisco Ferrer y Guardía inspirou a fundação das Escolas Modernas
pelas correntes anarquistas nas duas primeiras décadas do século XX. Jomini (1990, p. 90-108), ao analisar o
Boletim da Escola Moderna, afirma que esses estabelecimentos escolares eram destinados aos filhos dos
trabalhadores, e mantidos financeiramente, tal como os jornais, centros de estudos, bibliotecas com recursos
angariados pelas ações da organização operária. Os valores da liberdade, solidariedade, autonomia eram
norteadores para as práticas educativas dessas escolas. Essas práticas implicavam respeitar as características de
cada aluno, seus ritmos na aprendizagem, a ausência de castigos físicos e que os alunos mais adiantados
ajudassem os iniciantes.
65
Francisco Ferrer y Guardía fundou a Escola Moderna e criou um método de ensino
racionalista. A sua pedagogia foi apropriada por educadores como Adelino Pinho, Florentino
de Carvalho, João Penteado, que fundaram algumas escolas modernas com o padrão proposto
pelo pedagogo espanhol.
A proposta do curso do professor José Oiticica não estava vinculada às atividades da
Liga Anticlerical. O que justificou a sua iniciativa foi a demanda por cursos modelares
primários e por ser uma atividade remunerada. O curso foi oferecido, provavelmente, aos
ouvintes de suas conferências na Liga Anticlerical e pode ser compreendido como mais uma
oportunidade para ministrar as suas aulas utilizando os processos pedagógicos que outrora
foram adotados em seu colégio do Leme.
1.7 O Colégio Pedro II
Em 1916, José Oiticica foi aprovado no concurso do Colégio Pedro II, ingressando
nesta instituição em 1917. O pertencimento ao quadro de catedráticos desse estabelecimento,
modelo para a educação secundária de todo o Brasil, significou um marco importante na
carreira docente de José Oiticica, principalmente pelos desdobramentos profissionais,
políticos e intelectuais decorrentes desse acontecimento. Qual era a importância e a dimensão
de ser um catedrático dessa instituição? Isso requer uma exposição sumária sobre o lugar
desta instituição no ensino brasileiro e o significado de pertencer a ela. Além disso, vale
considerar que a análise desses elementos nos dá suporte para a discussão sobre aspectos da
produção didática, do autor, que serão devidamente apresentados no quarto capítulo.
O Colégio Pedro II, desde o Império, mais precisamente após o Ato Adicional de
1834, passou a ser um estabelecimento da instrução secundária. A exemplo do que ocorreu
também com os Liceus da Bahia e de Pernambuco, seguiu o modelo francês, adotando o
sistema de estudos seriados em cursos de regular duração e foi escolhido pelo Governo
Imperial como um estabelecimento modelo para o ensino secundário brasileiro. (HAIDDAR,
1972, p.255).
Desde os primórdios de sua fundação no Rio de Janeiro, em 1838, o colégio teve
posição de destaque por ser o padrão a ser seguido por todos os estabelecimentos de ensino do
secundário do Brasil
59
, a posição de “padrão” de ensino secundário brasileiro imprimia
algumas diferenças importantes de serem mencionadas para a compreensão do seu
significado. Tal posição colocou-o em uma situação distinta em relação aos outros colégios e
59 Entre os trabalhos de pesquisa que trataram do Colégio Pedro II, Ensino Secundário Brasileiro ver: Andrade
(1999); Gasparello (2004); Haiddar (1972); Silva (1969).
66
liceus do país. Os alunos egressos dessa instituição recebiam um diploma de “Bacharel em
Letras” quando cursavam os sete anos do curso, garantindo-lhes o acesso direto aos cursos
superiores. Aquele que realizava os estudos em qualquer outra instituição particular deveria se
submeter aos Exames Preparatórios se quisesse ter acesso aos cursos superiores.
As atribuições do Colégio Pedro II eram a definição dos programas de ensino, a
indicação dos compêndios escolares e a elaboração dos Exames Preparatórios. A oficialização
dos regulamentos e dos programas do Colégio Pedro II foi estratégia para a uniformização dos
preparatórios. Para tal tarefa, os colégios e os liceus públicos tinham que disponibilizar toda a
infra-estrutura para a realização desses exames. As tarefas incluíam desde a definição do lugar
de realização das provas, até a arregimentação de profissionais para a consecução desses
exames.
Os catedráticos do Pedro II determinavam os programas e indicavam os compêndios,
dos quais, em sua maioria, eram eles os próprios autores. Por conseguinte, os conteúdos dos
Exames Preparatórios eram advindos desses programas. Assim, as escolas e os seus
programas curriculares deveriam seguir a essas determinações, uma vez que os alunos dessas
escolas, como foi dito anteriormente, eram obrigados a realizar os exames para garantir o
acesso aos cursos superiores. A característica preponderante desse ensino direcionado aos
preparatórios para o curso superior lhe deu o caráter de intermediário e propedêutico.
As escolas secundárias, no decorrer do Império e nos inícios da República, se
equiparavam ao conceito de colégio no sentido francês do termo, ou seja, o lugar em que se
ensinavam as humanidades.
60
O termo secundário deve-se ao fato desse ensino intermediar os
estudos maiores. Tal como o modelo francês, possuía alunos internos e meios pensionistas,
contava no corpo docente com vários professores de diversas matérias como Português.
Retórica, Latim, Matemática, História Natural, Física e Química. A autoridade maior era o
Reitor, um posto de responsabilidade administrativa da instituição.
O Colégio Pedro II, ao longo do Império, e em grande parte da fase republicana, teve
a função de formar as classes dirigentes do país. Com essa perspectiva, essa instituição
escolar, ao longo de sua história abrigou professores pertencentes, em maioria, à elite
intelectual e política. A instituição foi um signo do Império e com a República, essa
60
Para saber sobre o histórico e os sentidos atribuídos aos termos humanidades e secundário ver: Chervel (1992)
Quando surgiu o ensino secundário?e Chervel & Compere, (1997) Lês humanités dans l’ historie de l’
enseignement français . Para conhecer a conformação do secundário do ensino de humanidades no Brasil,
consultar Gasparello (2004) Construtores de identidades: a pedagogia da nação nos livros didáticos da escola
secundária. Os trabalhos de Andrade (1999) e de Razzini oferecem informações sobre a dinâmica de
funcionamento do Colégio Pedro II e sobre a conformação do Colégio Pedro II ao longo do Império e da
República brasileira.
67
representação potencializou-se, principalmente por sua atribuição de continuar determinando
os programas de cursos para o ensino secundário do Brasil.
A carreira de José Oiticica no Colégio Pedro II foi iniciada em 1917, como já foi
citado, e terminou em 1952 pela aposentadoria compulsória. O trabalho nessa instituição
potencializou outras inserções de sua vida intelectual. A sua produção didática na área de
língua portuguesa, os seus estudos filológicos que o levaram aos cursos superiores dentro e
fora do país. Sem sombra de dúvidas o seu ingresso na instituição modelar do Império e da
República foi de especial importância para compreender as dimensões de seu reconhecimento
intelectual.
Para ingressar como catedrático no quadro do magistério oficial do Colégio Pedro II
era necessário obter aprovação em concurso após a apresentação de uma tese. A tese naquele
período não apresentava similitudes com os significados a ela atribuídos no presente.
Após examinar quatro teses de professores, submetidas a concurso para ingresso à
cátedra do Colégio Pedro II, no final do século XIX e no início do século XX, Souza (1999,
p.42) nos apresenta o seguinte comentário do catedrático de Português Antenor Nascentes,
amigo de José Oiticica: “em geral, estas teses eram curtas em extensão e em idéias [...] são
trabalhos sem espontaneidade, com assunto indicado pela congregação, continham em geral
poucas páginas [e] pouco valor apresentavam, salvo uma ou outra”.
Souza (1999, p.44) observa que o sentido atribuído a uma tese naquele período, não
tem equivalência ao significado que lhe é atribuído na atualidade, levando-o a interrogar-se se
esta observação procede, ou se certos “arranjos institucionais’ hoje bem conhecidos têm
história mais longa do que parece. Além disso, fica a impressão de um descompasso flagrante
entre teses modestas e um ensino pretensioso e denso a julgar pelos programas examinados”.
Na busca de informações sobre as atribuições de José Oiticica na cátedra do Colégio
Pedro II, encontramos uma situação interessante que compõe com as insinuações de Souza
sobre os possíveis arranjos daqueles concursos
61
. A ocorrência se deu logo após Oiticica
deixar o seu cargo de substituto de Português e tornar-se catedrático. Possivelmente, esta foi
uma das primeiras bancas após a sua inserção na Congregação dessa instituição.
Quintino do Vale, que ocupava o posto de Vice-Diretor do Pedro II, era um dos
candidatos e por essa condição alguns contavam que ele fosse o candidato vencedor. Os
professores José Oiticica e Antenor Nascentes eram membros que obrigatoriamente faziam
61
Almanack do pessoal docente e administrativo, um documento que foi organizado pelo secretário do Colégio
Pedro II Octacílio A. Pereira, em que apresentou informações sobre o pessoal docente e administrativo até 30 de
junho de 1924, v. II, p. 14-19.
68
parte da comissão julgadora. Carlos de Laet declinou a sua participação alegando ser uma
tarefa muito penosa. Com isso, o professor José Accioli, Lente do Colégio Pedro II, ofereceu-
se para compor a comissão e o seu nome foi aprovado com 12 votos da Congregação, ou seja,
a metade dela desejava que fosse admitido um Lente de fora do Colégio Pedro II.
Essa alternativa não foi aceita porque o Diretor-Geral do Departamento Nacional de
ensino, sob a alegação de que uma pessoa estranha ao Corpo Docente só pode ser admitida
desde que não haja nenhum professor, além dos catedráticos da disciplina em concurso, que
aceite fazer parte de tal comissão, mas que o voto que esse membro da comissão, estranho ao
corpo docente, atribuir ao candidato, apenas servirá para orientar os membros da comissão; e
só nessas condições, também poderão fazer parte das comissões examinadoras os professores
interinos de outras cadeiras que não a posta em concurso.
Os critérios adotados para a condução do concurso foram os seguintes, de acordo com
o relatado pelo secretário do Colégio Pedro II Octacílio A. Pereira:
Na direcção dos trabalhos adoptei não só no concurso de portuguez, mas nos de
História e Chimica, o seguinte critério: durante a meia hora do examinador, este era
dono da palavra, só admitindo que o candidato falasse quando para isso lhe dava o
examinador consentimento expresso; situações inversas eram estabelecidas durante o
quarto de hora do candidato. Verificou-se de um modo geral que os candidatos mais
fortes não procuravam interromper a argüição e occupavam-se, durante esta, em
assentar imperturbavelmente as objecções que lhe eram feitas e em procurar nos livros
trazidos, documentação para resposta. Os candidatos fracos ou medíocres, ao contrário
tentavam a todo o instante interromper a argüição, talvez para perturbar a attenção dos
juízes e cortar o fio das idéias do argüidor. Quando lhes era dada a palavra respondiam
frouxamente uma ou outra objeção, esquecendo ou fingindo esquecer o mais
importante, pois não haviam tomado nota [...] Move-me (...) o desejo de mostrar
apenas o desejo de mostrar ao Governo que é de toda a conveniência evitar bate-boca
livre nas argüições de these, pois no meio do alarido que quase sempre se estabelece
não é possível aos juízes acompanhar com segurança o raciocínio dos altercantes, nem
saber siquer qual dos dois está com a razão. Accrescente-se, a bem da verdade que
alguns daquelles professores que em Congregação defenderam o diálogo, como
“imprescindível ao brilho dos concursos”, apellaram muitas vezes para o presidente da
commissão, no sentido de lhes fazer calar o candidato. (PEREIRA, 1928, p.17-18).
Na seqüência havia a prova prática, que no ano seguinte passou a ser orientada e
fiscalizada pela mesma comissão de argüição de teses.
As notas atribuídas por José Oiticica ao candidato vencedor, o vice-presidente do
Colégio e professor de Português interino do internato do mesmo Colégio, foram as mais
baixas em relação aos outros vinte e três membros da Congregação. Na 1ª tese, atribuiu ao
candidato a nota zero, deixando ver que entre os três candidatos, ao seu juízo o melhor
candidato era Jacques Raymundo Ferreira da Silva, professor da Escola Normal. Informa
Pereira (1928, p.22) que esse candidato apresentou ao Governo um recurso contra o resultado
69
do concurso, mas não obteve provimento: “por acto do Sr. Diretor Geral do Departamento
Nacional de Ensino [Jacques Raymundo Ferreira da Silva e Clovis do Rego Monteiro] foram
nomeados docentes livres de Português do Collegio Pedro II, pelo espaço de dez annos”.
1.7.1 O ingresso de José Oiticica no Colégio Pedro II
A tese de José Oiticica
62
apresentada e aprovada pela Congregação, presidida pelo
Diretor do Colégio Pedro II, Carlos de Laet, intitulava-se Estudos de fonologia, 1ª série: tese
de concurso ao Colégio Pedro II, tinha 79 páginas e na sua página de abertura consta a
explicação de José Oiticica que:
A tese destinada ao concurso de português no Colégio Pedro II era a minha gramática
dos Lusíadas. Tudo fiz para levar a termo o longo trabalho. A curteza do prazo não me
permitiu realizar meu desejo. Escrevi por isso, em quinze dias, esta primeira série de
estudos de Fonologia.
Este aviso é tão somente para justificar as falhas inevitáveis, pois a pressa é inimiga da
perfeição.
J.O.
(OITICICA, 1916, p. 1)
O texto apresenta-se dividido em duas partes. Na primeira parte da tese, nomeada
como “Classificação dos fonemas segundo a prosódia brasileira”, Oiticica apresenta 31 itens
listados numericamente, dos quais autores de gramáticas, como Soares Barbosa, Júlio Ribeiro,
Mathias Duval, Alfredo Gomes, Adolfo Francisco Coelho, Maximino Maciel, Eduardo Carlos
Pereira, Gonçalves Viana, Fernão D’ Oliveira, João de Barros, Duarte Nunes, Madureira Feijó
são citados. Em cada um desses itens comparecem julgamentos de valor acerca da forma de
tratamento fonético empreendido por um autor e outro. Os erros e acertos evidenciados são
apresentados seguidos da opinião ou correção de Oiticica. A forma de apresentação do texto
de Oiticica é exemplificada no trecho abaixo:
3- JÚLIO RIBEIRO critica a distinção entre vozes e consonância, achando que
provém da “observação imperfeita que dos fenômenos de vocalização tem feito os
gramáticos” ele mesmo, todavia, confirma a distinção ensinando que as vogais são
sons laríngeos ressoados nas cavidades faríngea e bucal, e as consonâncias, os ruídos,
isto é vibrações irregulares, mistas e confusas. Erra, porém, quando afirma que “tanto
vozes como consonâncias não passam de sons laríngeos de vozes propriamente ditas,
que se modificam diversamente, ao atravessarem a parte superior do tubo vocal”. [...]
62
A tese de José Oiticica abre um volume coligido por Almir Câmara de Matos Peixoto com todos os trabalhos
do autor, impressos ou não sobre classificação fisiológica de fonemas e o sistema fonético brasileiro, encontros
vocálicos, técnica do verso e dicção. O seu editor explica que, no caso da tese do concurso, a publicação foi
integral de acordo com a sua única publicação em 1916: Estudos de fonologia (1ª série): tese de Concurso ao
Colégio Pedro II. Rio de Janeiro: Oficinas Tipográficas Apolo, Rua da Alfândega, 182. (PEIXOTO, 1955, p.6).
70
4- Essas noções, tomadas de MATHIAS DUVAL, foram mais ou menos reproduzidas
por outros gramáticos.
O Dr. ALFREDO GOMES, por exemplo, que ensina “sons ou vozes são os elementos
materiais dos vocábulos”. Confunde, assim os sons com as vozes, sem perceber que
em certas/articulações/, há, concomitantemente, som laríngeo sem haver voz, do
mesmo modo que no chamado canto com bôca fechada (a boca chiusa). É também,
muito difícil perceber que vêem a ser elementos materiais dos vocábulos.
Divide as vozes em puras e articuladas. Chama tubo vocal “o conjunto dos órgãos em
que se produz o som”. Ora o som se produz exclusivamente na laringe (o sne.GOMES
escreve como JÚLIO RIBEIRO; o laringe) e não modifica em parte alguma: reforça e
ressoa. A voz é que se modifica. [...] Tudo isso provém de supor o snr GOMES
copiando JÚLIO RIBEIRO, que só há vozes, que as consonâncias se limitam a
modificações das vozes. [...]. (OITICICA, 1955, 23-24).
A segunda parte da tese é intitulada Teoria dos encontros vocálicos, organiza-se com
24 itens, nos quais Oiticica discute algumas das divergências entre os gramáticos no que diz
respeito ao número de ditongos e tritongos; apresenta os exercícios a partir de versos de
Bocage, de Camões e de alguns de sua própria autoria, sendo que ele justifica esta última
escolha da seguinte forma: “os versos sem menção de autor foram compostos por mim, por
não ter achado ainda, sendo eles raríssimos, exemplos nos poetas”.
1.7.2 O professor substituto foi nomeado catedrático e professor da Escola Normal
Após a sua aprovação no concurso, em 1916, Oiticica assumiu o cargo de professor
substituto na cadeira de Português, em 28 de junho de 1917, e no ano seguinte foi equiparado
aos substitutos das Faculdades Superiores. No almanaque de docentes e de funcionários
administrativos do Colégio Pedro II, elaborado em 1928, pelo secretário da instituição, essa
ocorrência aparece registrada, acompanhada de informações sobre as outras atribuições de
Oiticica:
JOSÉ RODRIGUES LEITE E OITICICA. Bacharel em Sciencias jurídicas, Professor
substituto de portuguez do. Col. Pedro II em 28-6-1917. Posse e exercício em
03.07.1917. Prestou concurso de acordo com o art. 25 da lei nº 3.454 de 6-1-1918,
ficou integralmente equiparado aos substitutos das Faculdades Superiores. É docente
da E. Normal do D. Federal e prof. Da Escola Dramática. Collabora em vários jornaes
desta Capital, sendo também autor de várias publicações didacticas. Tem servido em
varias comissões examinadoras nos gymnasios do interior, por nomeação do Cons.
Sup. Do Ensino.
(PEREIRA, Octacílio. 1928. Almanack do pessoal docente e administrativo do
Colégio Pedro II, até 30 de 07 de 1924, nº 2º, 30-06-1924, coluna 34 de nomes e
cargos).
Após oito anos no cargo de substituto, Oiticica foi admitido na Congregação, passando
a ocupar a cátedra de Português, assim como se pode ver no relatório da Congregação do
71
Colégio Pedro II:
Apresentando ao EXMº SNR Director Geral do Departamento Nacional de Ensino
pelo professor Euclides de Medeiros Guimarães Roxo, Director do mesmo
externato.[...]
[...] Registram-se os seguintes actos:
Decretos de nomeações
[...] do Dr. José Rodrigues Leite e Oiticica para professor Cathedratico de Portuguez
(19 de julho de 1925).
(Relatório concernente aos annos lectivo de 1925 e 1926, do Collégio Pedro II –
Externato).
O cargo de catedrático de Português foi criado com a Reforma Rocha Vaz, em 1925,
por meio do Decreto 16.782-A, desdobrando em duas as cadeiras de Latim e de Português do
externato e do internato, criando as vagas para essas duas cátedras.
63
O nome de José Oiticica
aparece pela primeira vez na lista de convocados para as reuniões ordinárias da Congregação,
em 28 de agosto de 1925. Nesta reunião, Oiticica não assinou a sua presença, e, embora não
haja nenhuma observação a respeito de sua ausência, ela se deu em razão de ainda estar preso
por conta de seu segundo encarceramento, ocorrido em 1924 e durando até 1925. A sua
participação nas reuniões ordinárias da Congregação deu-se a partir de 17 de outubro de 1925,
em uma reunião cuja finalidade foi para tratar sobre o um concurso para livres-docentes.
64
Pertencer ao corpo docente do Colégio Pedro II era uma posição de destaque dada,
principalmente, pela dinâmica de funcionamento do curso secundário, pois, como argumenta
Razzini (2000, p. 26) o poder dos professores do Colégio Pedro II era hegemônico, se
considerarmos que eram eles que decidiam, cada um em sua cátedra, o programa curricular e
os compêndios adotados no Pedro II e, por conseguinte, nos preparatórios”.
Além disso, como se pode ver, o secretário do Colégio Pedro II, ao informar sobre o
cargo de substituto em 1917 de Oiticica no Almanaque do pessoal docente e administrativo,
datado de 1928, quando ele já era catedrático desde 1925, informou sobre as suas publicações
em jornais, os seus livros didáticos e sobre a sua participação em várias comissões
examinadoras nos ginásios do interior, por nomeação do Conselho Superior do Ensino. Esse
currículo era, na realidade, para o restrito segmento de intelectuais da época.
Oiticica foi docente da Escola Normal de Artes e Ofícios do Distrito Federal, a única
escola normal pública que formou professores habilitados a lecionarem nas escolas de
63 Cf. Relatório do Colégio Pedro II concernente aos annos lectivos de 1925 e 1926, sob direção interina do
Prof. Euclides de Medeiros Guimarães Roxo, 1928, p.7 e DORIA, 1997, p.226.
64
Cf. Livro nº 4, Atas da Congregação do Colégio Pedro II, Núcleo de Documentação e Memória (NUDOM) do
Colégio Pedro II
.
72
aprendizes e artífices
65
. Afrânio Peixoto, entre 1916 e 1917 esteve a frente da direção dessa
instituição. Mais tarde, em 1936 ele convidaria Oiticica para ministrar aulas de grego na
Universidade do Distrito Federal.
Oiticica esteve por diversas vezes às voltas com os debates sobre as questões
educacionais, e o pertencimento à cátedra desse colégio modelar lhe dava “autoridade” para
tal, porém, seu outro lugar de atuação, ou seja, a militância anarquista dava-lhe o sentido e
destaque do sujeito articulado com a educação libertária. A contradição criada por estar nesses
dois lugares díspares, ao mesmo tempo em que lhe dava legitimidade para representá-los,
também lhe causava o estranhamento. O pertencimento a esses dois lugares provoca-lhe
estranhamento, pois, segundo o que conta Segismundo (1987, p.74) em seu livros de
memórias, Colégio Pedro II: tradição e modernidade, Oiticica “era e queria ser independente
dos grupos afeiçoados à alta administração e com isso tinha inimigos, com os quais adotava a
seguinte posição: “Nem os combatia nem os desprezava. Simplesmente ignorava-os”. Era o
catedrático que ministrava conferências sobre o anarquismo e era o anarquista que estava
ocupando uma cátedra no Colégio Pedro II. Sua circulação entre esses dois espaços, deu-lhe
notoriedade, uma vez que suas idéias e concepções eram neles difundidas.
1.7.3 A batalha memorável
Na historiografia militante de Rodrigues (1993) e de Neves (1970), o ingresso do
professor José Oiticica é narrado como uma batalha em que o anarquista vence a Congregação
do Colégio Pedro II. A apresentação da tese é qualificada como uma batalha memorável, um
episódio narrado para marcar uma vitória da educação libertária, por ter infiltrado um de seus
expoentes na educação deles, ou seja, na educação burguesa.
No terreno em que se deram os embates entre os projetos educacionais para a
formação do homem novo, na narrativa desses historiadores militantes que conviveram com
José Oiticica no final de sua carreira no Colégio Pedro II, emerge a figura do anarquista que
eles, “os professores burgueses”, tiveram que aceitar, marcando assim a presença do membro
da educação anarquista. Esta educação foi tomada na narrativa de Roberto das Neves e de
Edgar Rodrigues, como a nossa educação.
Dessa forma, na historiografia produzida por esses historiadores-militantes
anarquistas, a construção da memória de Oiticica se deu nos terrenos em que circularam as
65
A Escola Normal de Artes e Ofícios Wenceslau Braz pelo Decreto 1059, de 14 de fevereiro de 1916,
promulgado pelo prefeito do Distrito Federal Rivadávia da Cunha Côrrea, regulamenta o curso da Escola Normal
e cria a categoria dos docentes, professores encarregados da regência das turmas, após habilitados perante uma
comissão de catedráticos (Cf. ACCÁCIO,1993).
73
ações da figura do militante no Colégio, e a do catedrático nos lugares da educação
anarquista, ou seja, onde Oiticica exercia a “nossa obra”, que era compreendida por esses
pesquisadores como as atividades da militância da qual eles também foram participantes.
É nessa ótica desse lugar que Neves (1970) apresentou a sua narrativa sobre o
“episódio” da conquista da cátedra de Português por José Oiticica no Pedro II. Ele reuniu as
informações julgadas como necessárias nos textos necrológicos de José Oiticica por ele
coligidos dez anos antes da elaboração de seu ensaio biográfico que abriu a antologia dos
artigos publicados por José Oiticica na grande imprensa e na imprensa libertária. Da fala de
Teófilo Andrade, Neves (1970, p. 12) conta como foi a apresentação da tese de Oiticica no
Colégio Pedro II:
Quando se candidatou ao sétimo [concurso], desta vez para professor de Português do
Colégio Pedro 2º, em 1916, José Oiticica, receando ser, mais uma vez vítima do
favoritismo e da perseguição de invejosos e medíocres, sobretudo porque na tese que
ia defender denunciava os erros contidos nos livros dos que o examinariam, resolveu
convidar a assistir às provas o ministro da Justiça do governo Wenceslau Brás, Carlos
Maximiliano, a cuja pasta estavam afetos, na época, os problemas do ensino. As
provas, na opinião dos que a elas assistiram (e foram muitos, pois o prestígio, já então
grande, do candidato, e as circunstâncias do concurso haviam atraído numerosas
pessoas, entre as quais o próprio ministro da Justiça, que enchiam literalmente o
recinto), foram “uma batalha memorável”. Assim as classificou Teófilo de Andrade,
diretor de “O Jornal” e da revista “O Cruzeiro”, em artigo necrológico sobre José
Oiticica, no nº 2 de novembro daquele diário. No final das provas reunidos os
examinadores para proferirem o veridicto, a maioria deles, feridos na sua vaidade
pelas zargunchadas do candidato e argumentando com o perigo que para o ensino
representaria a aprovação de José Oiticica, já então conhecido como adversário da
Igreja Católica e partidário das idéias anarquistas, que divulgava, com brilho e
destemor na Imprensa e no seio dos poderosos sindicatos da época, inclinavam-se para
a reprovação. Carlos de Laet, uma das mais notáveis figuras da Congregação do
Colégio Pedro 2º, teve então um dos seus gestos nobres. Apesar de católico militante,
adversário das idéias anarquistas e um dos mais atacados na tese do examinado,
ergueu-se de sua cadeira e protestou: “não é possível que num país, como o Brasil,
onde raros são os homens de valor, se pretende reprovar um homem como este, que
acaba de demonstrar profundos conhecimentos gramaticais e filológicas, apenas
porque processa pontos-de-vistas divergentes dos nossos! Que têm a ver o anarquismo
e o ateísmo do candidato com o assunto que aqui nos congrega? Não somos policiais
nem membros do Santo Ofício para persegui-lo e julga-lo, mas professores
examinadores, e devo frisar que embora discordando de vários de seus conceitos sobre
a gramática e a filologia, me satisfizeram plenamente as prova a que esse rapaz acaba
de prestar e que revelam um talento e uma cultura invulgares na sua idade e repito, no
nosso país! É, não há dúvida, um jovem de grande talento e de grande cultura, de
quem há muito a esperar!”.
A narrativa de Neves (1970) é construída em um lugar determinado: a produção da
memória anarquista, da sua militância no jornal Ação Direta, no qual José Oiticica esteve à
frente até a sua morte em 1957. Trata-se de um texto post mortem, a abertura do livro de
mesmo nome do jornal: Ação Direta: antologia dos melhores artigos publicados na imprensa
74
brasileira – meio século de pregação libertária, direcionada a um público determinado: os
militantes, simpatizantes e aos leitores interessados na memória anarquista.
O seu objetivo principal com a narrativa é a construção da memória do personagem
militante anarquista no Colégio Pedro II, cuja imagem é a do rebelde que a congregação do
Colégio Pedro II teve que aceitar, ou, então, evidencia a força com que o rebelde ocupou seu
lugar naquele espaço.
As observações de Teófilo Andrade sobre a tese de Oiticica não procedem ao ocorrido,
pelo menos no que diz respeito aos “ataques” (críticas) de José Oiticica aos seus
examinadores. No texto publicado de sua tese, não há nenhuma referência que pudesse “ferir”
os presentes em “sua vaidade pelas zargunchadas do candidato”.
Em relação aos presentes na defesa de sua tese, houve, tal como apresentou, pessoas
importantes da rede de relações de José Oiticica e da rede de relações de Coelho Netto que, a
essa altura, tinha laços estreitos de amizade com o candidato. A tese foi aberta com a
dedicatória: “Á Coelho Netto, amizade e gratidão”.
Muito provavelmente a referência de Teófilo Andrade sobre as “zargunchadas do
candidato” eram advindas da forma pela qual se davam os debates em torno das questões da
língua portuguesa, muito freqüentes a partir do final do século XIX, e mais intensamente nas
décadas iniciais do século XX. Faziam parte da cultura no Rio de Janeiro e São Paulo, como
cidades das letras os debates fervorosos em torno de questões relativas à língua, às questões
gramaticais, às questões da ciência. Nessas discussões, eram comuns as polêmicas por meio
de artigos publicados nos jornais da época. Freqüentemente, o objeto da crítica não estampava
apenas produção do autor, mas também a pessoa do autor. Não raras eram as publicações da
crítica, seguidas de outra em resposta a ela.
O que provavelmente Teófilo Andrade classificou como “zargunchadas do candidato”
quatro décadas após a tese de concurso de Oiticica deve ser compreendido na ambiência do
início do século XX, quando era comum na apresentação das discordâncias gramaticais nas
teses, ou nos artigos, a crítica aos erros gramaticais entre os literatos do período.
1.8 Ensino Superior
1.8.1 A universidade de Hamburgo e a proposta da Academia Brasileira de Filologia
Com a sua posição de catedrático da instituição modelo do Brasil e os seus interesses
75
de pesquisa relativos à língua portuguesa e a outros idiomas
66
, empenhava-se em participar de
eventos e congressos científicos. É importante mencionarmos um específico, dada a
repercussão que teve em sua experiência docente. Trata-se de sua participação no 24º
Congresso Internacional de Americanistas, em 1929, em Hamburgo na Alemanha. Dessa
participação, veio o convite para desenvolver atividades na Universidade de Hamburgo.
Dentre as atividades planejadas, estava a apresentação de sua tese: Método no estudo das
línguas sul-americanas.
67
Além do mencionado pertencimento ao Pedro II, esse convite para Universidade de
Hamburgo decorreu de sua produção intelectual, da imersão considerável nas questões
relativas à Língua Portuguesa e outros estudos específicos da Filologia, e também a inclinação
intelectual alimentada pelos seus contatos e interlocução sobre os seus estudos.
Distanciar-se do Brasil após duas prisões, dedicar-se a uma experiência educacional
em outra cultura e ainda aproveitar esta estada para proporcionar estudos de piano a sua filha
Dulce foram razões que o animaram a aceitar o convite. Foi importante a intervenção e o
apoio de Coelho Netto para que Oiticica conseguisse a permissão de viagem e a licença das
atividades do Colégio Pedro II sem prejuízo dos seus vencimentos.
Oiticica lecionou Português na Universidade de Hamburgo – Alemanha, entre 1929 e
1930:
Fui para a Alemanha em 1929, com um contrato de 5 anos. Em 30 veio a Revolução
(uma revolução como todas as outras: não resolveu coisa nenhuma). Criou-se o
Ministério da Educação, e o ministro Chico Ciência mandou-me voltar. Os alemães e
os diplomatas brasileiros tudo tentaram para que eu ficasse. O Ministro, porém, foi
intransigente: Apresente-se! Quando me apresentei, perguntou-me: “Então, Professor,
que é que o Senhor fazia em Hamburgo?”. Dei-lhe conta do que fizera no Congresso
dos americanistas de 1929 e das conferências que realizara, além dos cursos regulares
que dera na Universidade. “Ora, então o Senhor devia ter ficado!...” conclui o
excelente Ministro. (OITICICA, apud NEVES, 1970, p.13).
O apelido “Chico Ciência” dado ao ministro da educação na gestão Getúlio Vargas
mostrou o desprezo intelectual que Oiticica dispensou a Francisco Campos. Oiticica dependia
de seus vencimentos, e a sua condição de catedrático do Pedro II o obrigava a apresentar-se ao
seu posto se solicitado. Ademais, o preço que pagava por causa de suas adesões ao
anarquismo era alto, pois até então, ele havia encarado duas prisões de 1918-9 e 1924-1925. A
primeira, com o exílio no Riachão, e as detenções nas Ilhas Rasa e das Flores
68
, sem contar as
66
Vale lembrar que José Oiticica iniciou os seus estudos de idioma com o seu pai e, ao longo da vida, dominou
com fluência o latim, francês, alemão, grego e esperanto.
67
Este trabalho foi publicado no volume 9º do Boletim do Museu Nacional em 1933.
68
Prontuário 9897, Arquivo do Estado.
76
detenções mais curtas. Essa militância anarquista teve um preço alto e provavelmente parte
dessa conta foi cobrada por esse descaso tácito em relação às solicitações feitas para que
pudesse terminar do contrato de cinco anos do acordo selado com o governo alemão. Oiticica
atribuiu a rescisão do contrato de cinco anos com a Universidade de Hamburgo como um
desdobramento da Revolução de 1930.
Sobre a docência de José Oiticica na Universidade de Hamburgo, encontramos no
acervo da Biblioteca Nacional quatro cartas enviadas a Coelho Netto em que José Oiticica
descreve as suas condições e objetivos de trabalho.
Nas cartas recebidas por Coelho Netto, José Oiticica o coloca a par de suas estratégias
para ensinar os alemães a falarem o português. Também tece uma série de elogios à língua
portuguesa que, segundo ele, é dotada de especial musicalidade. Conta sobre como foi a sua
primeira aula na Universidade de Hamburgo:
Minha primeira aula na Universidade aos alunos do preliminar que falam português,
foi sobre sua obra. Lemos um trecho do Rei Negro, expliquei o vocabulário, expus o
assunto e terminamos as duas horas de trabalho com um apanhado do Rajá [professor
de Português do Colégio Pedro II] cujo tema serviu para falar nas três raças caldeadas
no Brasil. Houve enorme interesse por essas cousas novas e o desejo de conhecer sua
obra. Não pude, entretanto adotar como base de estudo, o Rei Negro, ou outro
qualquer romance seu por não haver exemplares no mercado. Para o semestre de verão
vou mandar buscar em Portugal Os Sertões, tendo em vista a tradução já feita que
pode auxiliar os ainda pouco treinados, isto é, a maioria. [...] (Correspondência passiva
de Coelho Netto, Hamburgo: 01/12/1929-Acervo Biblioteca Nacional).
Além da amizade por Coelho Netto, José Oiticica tinha especial reconhecimento pelo
seu trabalho. Essa admiração aparece de várias formas nas publicações de José Oiticica.
Desde a escolha de contos e de poesias para exemplificar a arte do bem escrever, no Manual
de Estilo (1926), como na publicação anterior em seu Manual de Análise - léxica e sintaxe
(1919), no uso de excertos para demonstrar exercícios. As produções de Coelho Netto o
acompanharam em situações diversas como em sua prisão de 1924, quando em bilhete a sua
esposa ele solicitou o envio de uma gramática de autoria desse intelectual.
No caso da experiência da Universidade de Hamburgo, ele compartilhou com o amigo
o uso de seus romances em sua primeira aula, e mostra-lhe sua disposição em usar em suas
aulas e conferências outros livros do amigo. Nota-se também que uma de suas preocupações
foi discutir com os seus alunos sobre o que era o Brasil a partir do encontro das três raças
caldeadas: o branco, o negro e o índio.
77
Teófilo Andrade relata que conheceu Oiticica na Universidade de Hamburgo e
compartilha algumas de suas impressões sobre as práticas pedagógicas de Oiticica no ensino
da língua portuguesa aos seus alunos alemães:
Conheci-o na Alemanha, quando ele dava cursos de português na Universidade de
Hamburgo. Realizou ali em poucos meses, um trabalho formidável. Lembro até hoje
de tê-lo visto demonstrar musicalmente, que a portuguesa é a mais sonora das grandes
línguas ocidentais, mais sonora que o francês, o italiano e mesmo o espanhol. [...] Os
professores e filólogos alemães tratavam-no com consideração e respeito. Pouco
depois, contudo, veio a revolução de 1930. E uma das primeiras coisas que esta fez, no
Ministério do Exterior, foi liquidar a obra de penetração cultural iniciada por Otávio
Mangabeira. José Oiticica carregado de filhos teve de abandonar às pressas o posto, e
regressar ao Rio, onde reassumiu a cátedra no Pedro 2º. (ANDRADE, Teófilo, O
Jornal, Rio de Janeiro, 3-11-1957, apud NEVES, 1960, p. 18).
Mesmo abreviada a experiência de José Oiticica na Universidade de Hamburgo, esta
rendeu-lhe frutos. Além disso, foi José Oiticica quem sugeriu a criação de um Instituto
Brasileiro de Filologia
69
para o qual o Colégio Pedro II deveria conseguir dos poderes
públicos os recursos para a sua fundação, de acordo com Dória (1997, p.247) iniciativas como
essas mostram que Oiticica utilizava as suas habilidades intelectuais para arregimentar pares
para suas idéias, muitas delas com resultado prático, como se pode constatar pela criação do
referido instituto. Essas habilidades foram registradas também no relato de Teófilo Andrade
quando mencionou as relações construídas com os filólogos alemães.
70
1.8.2 Universidade do Distrito Federal - UDF
Em 1935, José Oiticica foi convidado, pelo então reitor Afrânio Peixoto, para lecionar
grego na Escola de Filosofia e Letras da Universidade do Distrito Federal
71
.
Tratava-se de uma fase de dificuldades políticas, em decorrência da intentona
69
Essa academia foi fundada no Rio de Janeiro em 26 de agosto de 1944. Os quarenta membros fundadores da
Academia Brasileira de Filologia: Afrânio Peixoto, Altamiro Nunes Pereira, Alcides da Fonseca, Álvaro
Ferdinando Souza da Silveira, Antenor de Veras Nascentes, Altamiro Nunes, Arthur de Almeida Torres, Pe
Augusto Magne, Basílio de Magalhães, Beni Carvalho, Charles Fredsen, Cândido Jucá(filho), Clóvis do Rego
Monteiro, David José Perez, Eduardo José Carlos, Ernesto Faria, Renato Almeida, Jarbas Cavalcânti de Aragão,
Jacques Raimundo, João Guimarães, José Luís de Campos, José Rodrigues Leite e Oiticica, José Sá Nunes,
Júlio Nogueira, Julio de Matos Ibiapina, Jonas de Moraes Corrêa, Joaquim Mattoso Câmara Júnior, Ismael Lima
Coutinho, Padberg Dreekpel, Ragy Basile, Otelo de Souza Reis, Oswaldo Serpa, Quintino do Vale, Renato
Almeida, Rodolfo Augusto de Amorim, Nelson Romero, Manuel Said Ali Ida, Miguel Daltro Santos, Modesto
de Abreu, Saul Borges Carneiro, Sylvio Edmundo Elia.
Disponível < http://www.filologia.com.br/fundadores.htm
>, acesso em 04 de fevereiro de 2008.
70
Cf. Necrológicos compilados por Neves (1960, p. 27):
71
A Universidade do Distrito Federal (UDF), foi criada em abril de 1935, pelo decreto municipal n° 5.513, era
composta de cinco escolas: Ciências, Educação, Economia e Direito, Filosofia, e Instituto de Artes.
78
comunista
72
, organizada pelo partido comunista sob a liderança de Luís Calos Prestes. Um
ano depois Afrânio Peixoto e outros professores foram demitidos da Universidade. A
radicalização ideológica do Governo Getúlio Vargas desdobrou-se na instauração do Estado
Novo, em 1937. Nessa fase, pelo dispositivo da Lei de Segurança Nacional, desencadeou-se
uma série de prisões. Muitos professores desistiram de lecionar na UDF, quando Alceu
Amoroso Lima, o líder católico secular da época, assumiu o cargo de Reitor (VICENZI, 1986,
p. 56).
Foram presos com José Oiticica outros anarquistas, comunistas, integralistas e outras
pessoas que inspiraram suspeitas. A sua casa foi invadida, a sua correspondência foi
apreendida, e ele ficou preso durante seis meses.
73
No entanto, as aulas de grego na UDF não foram suspensas, pois o professor José
Oiticica cuidou para que a sua filha Sônia o substituísse e a incumbiu de levar as apostilas de
grego para serem corrigidas na prisão. Este episódio foi narrado por sua filha em entrevista,
além de também encontrar-se no livro de depoimentos de Carlos Lacerda (1977, p.40).
Da Casa de Detenção, dias depois, fui para a casa de Correção, onde estava também
todo mundo; o Darrê, que tinha sido da Revolução de 32 e que depois foi do golpe de
38, integralista; o Triunfo Correia, comunista, o José Oiticica, que era um dos últimos
anarquistas do Brasil... Foi uma época muito curiosa: nós ficamos em uma galeria da
Correção e à noite nos trancavam a chave nos cubículos, mas de dia a gente andava
pelo corredor...E o Oiticica, professor de grego da então Universidade do Distrito
Federal, vivendo uma dificuldade até curiosa, porque a sua filha a atriz Sônia Oiticica,
para não pararem as aulas, mandava as apostilas dos alunos de grego para ele corrigir.
Imaginem os censores da Casa de Correção para fazer uma censura numa apostila em
grego e ainda por cima em papel mimeografado! Viveram um problema sério. [...] ele
foi interrogado pela Polícia: “ Mas o senhor está envolvido nesse movimento
comunista?” Diz ele assim: “Não. Eu tenho horror aos comunistas”. “Mas como o
senhor tem horror aos comunistas?” “Porque sou um anarquista”. “O que os senhores
fazem como anarquistas?” “Bom recolhemos fundos para socorrer os perseguidos, os
presos políticos” “Mas como recolhem fundos?” “Nós promovemos piqueniques na
Ilha de Paquetá e vendemos entradas. [...].
José Oiticica foi solto da prisão em 31 de dezembro de 1937, mas obrigado a
permanecer em prisão domiciliar por longo período. A relativa abertura política do pós-1945
imprimiu condições para a retomada do jornal Ação Direta. Até o início da década de 1950,
trabalhou no Colégio Pedro II e na Escola Dramática.
Os investimentos de Oiticica ao longo das décadas 1940 e 1950 incidiram na
reorganização, reedição e elaboração de seus estudos de língua portuguesa. Oiticica dedicou-
72
Entre 23 e 27 de novembro de 1935, algumas guarnições militares sediadas em Natal (RN), Recife (PE) e no
Rio de Janeiro rebelaram-se em nome da Aliança Nacional Libertadora contra o governo de Getúlio Vargas. A
insurreição foi organizada pelo partido comunista, sob a liderança de Luís Carlos Prestes. Como desdobramentos
os insurgentes e muitos outros foram presos no curso da ditadura Vargas.
73
Cf. Prontuário 9897, Arquivo do Estado/Prontuários.
79
se também às conferências radiofônicas. Trabalhou no programa de Cid Franco, na rádio
Cruzeiro do Sul no Rio de Janeiro e de São Paulo, no final dos anos de1940, e, em 1952,
iniciou um curso de português no programa Colégio do Ar, na Radio Ministério da
Educação.
74
Já não era mais o tempo das modas das conferências literárias que marcaram os inícios
dos anos de 1900. As conferências sociais dos centros de estudos anarquistas tampouco
tinham a mesma audiência na vida das classes populares. Em lugar disso, outros dispositivos
da modernidade eram acionados. A era do rádio, instaurada desde os anos de 1930, impunha
as novas condições da propaganda pela palavra. No entanto, se a prática de suas conferências
foi alterada, subsistiam aquelas relacionadas com a elaboração do jornal, pois Oiticica
retomou o Ação Direta. A “resistência” em prol da nossa educação, o combate pela palavra
continuava a acontecer. As aulas/conferências radiofônicas de Oiticica foram anunciadas em
seu jornal Ação Direta:
Colégio do Ar
Rádio Ministério da Educação
Aulas de português ministradas pelo nosso companheiro o Prof. José Oiticica
Horários:
2ª e 6ª das 7:30 as 8:00
3ª e 6ª das 19:00 as 19:30
(Ação Direta,Rio de Janeiro, ano IV, nº 80, julho e agosto de 1952. p.4).
Oiticica recebeu aposentadoria compulsória do Colégio Pedro II em 1952, aos setenta
anos de idade. Liberado das aulas, passou à dedicar-se na reedição de alguns de seus livros
didáticos. Da seleção de suas lições e anotações de aulas, surgiram outras publicações,
algumas delas com a organização de Almir Câmara de Matos Peixoto. Tal como consta no seu
manuscrito biográfico, a listagem destas publicações
75
estão reunidas nos anexos desta
pesquisa.
74
Do material reunido nesta pesquisa foi possível localizar as anotações de José Oiticica de uma dessas
conferências, para o programa Língua Falada, provavelmente uma das partes do projeto Colégio do Ar, cujo
exame terá lugar no capítulo IV.
75
Um número considerável de artigos, crônicas e contos literários foram publicados na grande imprensa e na imprensa
libertária está fora desta lista. Nos
capítulos três e quatro do presente estudo encontra-se o exame de algumas delas.
80
Capítulo II A presença de José Oiticica na propaganda social libertária: os
jornais, as conferências e o teatro social
As ações empreendidas por José Oiticica na chamada propaganda social libertária, os
seus lugares de realização, e os seus objetivos constituem-se o escopo deste capítulo.
Inicialmente o texto ocupa-se em construir o conceito de propaganda social, e discorre sobre
os sentidos atribuídos às conferências e ao teatro social no contexto da educação libertária.
Em seguida, a partir do exame das peças teatrais de autoria de Oiticica, procura-se estabelecer
conexões entre o argumento de cada uma de suas peças e o ideário libertário, para com isso
explicar como se desenvolveram as suas práticas educativas em circulação em seus diferentes
espaços atuação pedagógica.
2.1 As ações da propaganda social e o significado do termo
A propaganda social anarquista consistiam em ações da militância em diferentes
espaços sociais, tais como as escolas libertárias, a imprensa, os centros de estudos, as
bibliotecas sociais e as diversas associações fundadas pelo movimento operário. As principais
ações de propaganda eram a produção e a circulação de jornais, revistas, folhetos, a realização
de conferências sociais sobre os temas e os valores libertários, a organização de festas,
denominadas como “sessões de propaganda”, com apresentação de peças do teatro social e
filmes do cinema do povo.
Essas atividades da militância envolviam objetivos como: estreitar os laços de
pertencimento de todos os indivíduos ao movimento; realizar a crítica constante ao Estado, a
Igreja e ao capital; estimular a organização de grupos e a fundação de jornais para a obra da
propaganda dos valores libertários. Por meio da ação direta, cada individuo deveria realizar
segundo as suas possibilidades ações direcionadas a formação do ser social, da consciência
individual no livre pensamento. A finalidade das ações era fazer a crítica à desigualdade
capitalista e defender a necessidade da construção de uma nova sociedade por meio da
educação libertária. Esta educação deveria criar a humanidade nova e por meio da ação direta
realizar a revolução social. Esses argumentos eram usados pela maior parte dos articulistas
dos jornais libertários e as suas falas circulavam, como se todos dessa imprensa libertária,
compreendessem da mesma forma os significados das palavras relativas ao termo propaganda
social.
Os lugares, as ações e os objetivos da propaganda social aparecem registrados nos
discursos dos jornais libertários onde todas essas práticas sociais são noticiadas, discutidas e
estimuladas em campanhas direcionadas aos militantes, simpatizantes e leitores dos diversos
81
jornais das correntes libertárias que circularam nas décadas iniciais do século XX. Os jornais
acompanhavam as atividades de todos os diferentes grupos participantes da militância
anarquista.
As sessões de propaganda eram conhecidas em algumas localidades do Brasil, como
São Paulo e Rio de Janeiro como veladas
76
. Consistiam numa seqüência de ações, como
apresentação de peça(s) teatral (is), uma conferência social seguida de um baile, ou às vezes
de uma quermesse. Os cartões dessas festas libertárias eram anunciados e vendidos nos
jornais do movimento anarquista e, quase sempre, a arrecadação dos valores dessas sessões de
propaganda era revertida em fundos para apoiar os jornais, as escolas, as greves, as famílias
de presos políticos, de deportados.
A velada anticlerical, comentada a seguir por um articulista do jornal A Lanterna,
informa que a sua arrecadação se deu em apoio à Liga Anticlerical. Pode-se observar que a
conferência dessa velada entremeando as exibições do teatro social esteve a cargo de José
Oiticica e tratou sobre a moral da Igreja Católica e o “baile familiar” encerrou da festa.
VELADA ANTICLERICAL NO RIO
Como fora anunciado, realizou-se sábado passado, no Centro Galego, o festival que o
Grupo Dramático Anticlerical promovera em benefício da Liga Anticlerical do Rio de
Janeiro.
Apezar do tempo pouco convidativo, pois desde a tarde fortes aguaceiros não
deixaram de cair sobre a cidade, foi numerosissima a concorrência, atestando o
crescente interesse que vão despertando estas reuniões de propaganda e de
incontestável utilidade social.
Estava anunciada para as 8 horas o início da festa, porém só as 9 esta começou com a
representação da peça Amor Louco, - pungente drama social em que Antonio
Augusto da Silva mostra como na atual organização social , toda cheia de
precipícios, existências que só poderiam ser felizes se fosse outro o meio em que
vivem, tornam-se desgraçadas vitimas, umas na flor da idade, quando tudo lhe devia
sorrir, outras no fim da vida quando tudo lhe devia ser paz, quando já nenhuma
esperança lhes resta de melhores dias como este pai que vê a filha morrer,
escapando pelo veneno ás torturas que lhe infinge o sedutor debochado e sem
entranhas, e á loucura daquele rapaz meigo e trabalhador que a quer ainda
socorrer e que acaba estrangulando em um acesso de loucura o algoz cínico
causador daquele quadro sombrio.
Em outra peça – A Escola – é uma fina sátira, de Ed. Norés, aos preconceitos sociais.
Faz rir, deste riso sadio que serve de corretivo ás nossas extravagâncias de
superioridade vaidosa diante de um título nobiliário, de uma posição que
conquistamos, de um cargo por mais ínfimo que este seja, até mesmo no estado de
76
A velada era uma festa tradicional da cultura operária. Normalmente, iniciava-se na noite do sábado,
terminando às 4 ou 5 horas da manhã de domingo. Entre as atividades da velada programava-se a encenação de
drama, e/ou de comédia de fôlego, às vezes com cinco atos, seguida de baile familiar. A velada permaneceu com
significativa freqüência durante no mínimo trinta anos, sem sofrer muitas modificações na sua forma de
organização. (LIMA e VARGAS, 1986, p.177-178).
82
mendigo que acaba achando no cachorro que ele escorraça um ser mais abaixo ainda
do que ele próprio na escala social.
A interpretação de ambas as peças foi boa por parte dos camaradas que as
representaram, tendo-se todos esforçado em bem caracterizar os personagens que o
autor da peça ideou.
No intervalo das duas peças o dr. José Oiticica fez uma bela conferência sobre a Moral
da Igreja Romana. O esforçado camarada fez cerrada crítica da Igreja Católica,
suposta detentora da Verdade revelada, criadora de uma moral manca, como mancos
são os princípios em que ela se apóia.
Terminadas estas partes do programa, seguiu-se logo animado baile familiar e também
uma quermesse, prolongando-se as danças até meia madrugada.
C. L. (A Lanterna, nº 217, 15-11-1913, p.2, grifos nossos).
Este evento também foi noticiado em A voz do Trabalhador, um periódico vinculado à
Confederação Operária Brasileira. Cobrir todas as atividades realizadas pelos grupos
operários era uma forma dessa imprensa estreitar laços entre os grupos. Assim, quando se
percorre a leitura de um dos jornais é possível obterem-se informações de outros jornais,
outros grupos, e também mapear as atividades dos envolvidos pelo esforço dessa imprensa em
divulgar as suas ações, fazer correr entre os leitores dos jornais, participantes das conferências
e do teatro, as ocorrências da vida operária. Oiticica teve a sua presença fortemente marcada
nas sessões de propaganda social.
Nas sessões de propaganda social, com as atividades com música, literatura, poesia e
teatro, de acordo com Lima e Vargas (1986, p.177), havia o esforço em unir o útil ao
agradável, estabelecendo a síntese entre o lazer da música e a utilidade de uma conferência
anticlerical e de livre pensamento, seguida de um ato cômico depois de um drama
excessivamente trágico. Finalizando a noite, seguia-se um baile familiar. O adjetivo familiar
servia para marcar a diferença entre os valores da classe operária e o da classe burguesa, pois
era necessário preservar os valores de classe, assim essas sessões de propaganda eram o
espaço para o canto, a declamação de poesias, as conferências anticlericais e de livre
pensamento e também do baile familiar e do teatro social.
O drama encenado na “velada anticlerical”, de acordo com as temáticas anunciadas no
artigo citado de A Lanterna, mostra que um de seus objetivos foi levar os atores e o público
que a ele assistiam a refletir sobre as injustiças sociais e sobre a possibilidade de construção
da felicidade em outra sociedade, “em outro meio” oposto à “atual organização” social, pois
como argumenta o comentarista da peça Amor louco, os personagens só poderiam ser felizes,
se a realidade a que estavam submetidos fosse outra. Nas entrelinhas desse discurso pode ser
encontrada a base do discurso libertário, ou seja, o ideal de “felicidade” é atrelado à idéia da
83
nova sociedade.
Essa sociedade nova, no discurso libertário, só poderia ser conquistada pela
humanidade nova, esta, por sua vez, tinha que ser forjada pela “obra da propaganda social”.
Esta obra, entretanto pautava-se por uma educação elaborada por projetos e práticas culturais
compatíveis com os valores sociais necessários a uma sociedade nova. Para isso era
necessário criar novos costumes, novos hábitos sociais dentro de uma moral que condenava
algumas formas de entretenimento
77
, como os vícios do alcoolismo, do jogo, dar importância
à posição social, condenando, em geral, toda a sorte de desigualdades.
Por essa razão é que a educação para a qual se direcionava a “obra da propaganda
social” estava vinculada à luta mais geral pela liberdade, contra o capitalismo, em favor da
transformação radical da sociedade. Embora houvesse consenso sobre os dispositivos
empregados na propaganda social, havia o debate educacional com posições diferenciadas
sobre o ideal dessa nova sociedade.
Na comédia A escola, o comentarista da “velada anticlerical no rio” salientou os
benefícios dessa peça pelo fato de tratar sobre os preconceitos sociais, e ao mesmo tempo
oferecer ao público o “riso sadio”, ou seja, uma diversão incapaz de fazer esmorecer a crítica
à sociedade burguesa, e, ainda estimuladora da reflexão acerca do valor da igualdade, crítica
“que serve de corretivo ás nossas extravagâncias de superioridade vaidosa diante de um título
nobiliário”, um comportamento que podia também proceder de um “mendigo que acaba
achando no cachorro que ele escorraça um ser mais abaixo ainda do que ele próprio na escala
social”. Subjacente a esse comentário está o valor da igualdade, um dos princípios mais
importantes defendidos pelos libertários.
O engajamento da arte dos libertários visando à divulgação de seus valores e
princípios era uma constante, podendo ser observados inúmeros registros como esse que
noticiou a “velada anticlerical”, segundo os quais as festas libertárias tinham atividades, cujos
objetivos eram de chamar atenção sobre a questão social, sobre a necessidade de denunciar
injustiças, de conhecer os perigos do capital, da Igreja para saber reconhecer os grilhões que
impediam a felicidade, para que cada um por si, no livre pensamento, pudesse participar do
que os libertários denominavam como “a nossa obra de propaganda”.
As proposições, sobre a propaganda social que aqui foram apresentadas a partir de um
discurso jornalístico libertário expressa o funcionamento mais geral das sessões de
77
Nos jornais libertários havia um intenso debate sobre os malefícios de certo tipo de cinema, sobre a
perversidade do futebol e sobre outras práticas burguesas, não havendo consenso entre os articulistas, que
expressavam diferentes posicionamentos.
84
propaganda e são recorrentes em diversos artigos dessa imprensa, visando trabalhar a
consciência para a construção da sociedade nova.
Por meio da encenação de peças que despertassem a reflexão ou que provocassem no
público a identificação, uma sensibilização social e o aprendizado sobre os valores e idéias
defendidas pelas correntes libertárias se articulavam às ações da propaganda social,
somando-se a elas as outras atividades, com semelhante importância a imprensa, nessa mesma
direção, era vista a fundação de escolas, de centros de estudos, de bibliotecas, de sindicatos,
etc. Além disso, estimulavam a construção de vínculos de solidariedade, por meio de
entretenimento que angariava fundos para greves, manutenção dos jornais e das outras
atividades de propaganda, bem como à ajuda à família de presos, deportados etc.
Durante as sessões de propaganda havia também a barreira com a língua falada e
escrita, pois entre os operários havia um contingente significativo de imigrantes. Os italianos,
espanhóis e portugueses conformavam a maioria. Por essa razão, havia muitos periódicos em
outras línguas, além do português
78
. Foi também essa característica peculiar da formação da
classe operária que definia os recursos das mensagens faladas, encenadas e, por causa de sua
eficácia, as linguagens do teatro e das conferências eram muito utilizadas e era nessa
ambiência cultural que José Oiticica estava inserido.
José Oiticica, como um articulista do discurso libertário, ao lado de outros sujeitos,
criticava as práticas educativas desenvolvidas por instituições ligadas à Igreja, ao Estado e a
burguesia, e, em contrapartida, defendia e estimulava a organização desses mesmos
dispositivos, mas voltados para as práticas educativas na perspectiva libertária. Embora
ocupasse lugar de destaque no Colégio Pedro II e nas outras instituições em que era docente,
ele compartilhava a idéia da propaganda social empenhar-se na fundação de escolas de
orientação libertária, a exemplo do que havia sido a experiência de seu Colégio Latino-
Americano, segundo o padrão instituído pelas escolas modernas.
Jomini (1990, p. 102) ao tratar das escolas modernas de São Paulo, criadas pelos
libertários mostra como se procediam as práticas educativas nessas instituições e como as
crianças eram encaminhadas à propaganda social:
78
Maria Nazareth Ferreira (1978, p. 89-91) informa que dos mais de trezentos jornais existentes até as duas
primeiras décadas do século XX, 60 eram editados em idioma estrangeiro, sendo um alemão, quatro espanhóis e
cinqüenta e cinco em italiano. Esta evidência mostra a marca da participação dos imigrantes europeus na
imprensa operária e destaca a particularidade da constituição da classe operária brasileira que teve no processo
de sua experiência de formação a constituição do imigrante europeu e de suas várias histórias sindicais. Cabe
ressaltar que na história construída no Brasil, os libertários, em seus vários grupos, expressavam na imprensa
operária brasileira a multiplicidade das apropriações das idéias e ações decorrentes do passado em suas terras de
origem.
85
[...] a prática educativa libertária procurava ainda ser coerente com os objetivos de
transformação social [por meio] do envolvimento das crianças no trabalho de
propaganda. Com efeito, a propaganda ocupava um lugar importante na caminhada
para a sociedade igualitária, na medida em que a vulgarização dos ideais perseguidos e
a sensibilização dos homens para a necessidade de mudança social eram requisitos
indispensáveis à concretização da sociedade do futuro. O trabalho de propaganda das
crianças efetivou-se no jornalzinho O Início [...] Mais tarde, o jornal dos alunos foi
substituído pelo Boletim da Escola Moderna.
Nas escolas modernas, professores, alunos, pais de alunos trabalhavam juntos nesse
funcionamento da propaganda social. Essa não era a realidade das instituições em que
Oiticica era professor. No Colégio Pedro II, ele era uma presença incomum. Por essa razão,
em seus discursos ele se manifesta favorável à fundação dessas escolas. Para exemplificar os
seus argumentos, em uma conferência rememorativa de Francisco Ferrer y Guardía, defendeu
um projeto de fundação de escolas libertárias, como foi citado no artigo Na Liga Anticlerical
do Rio de Janeiro, publicado no jornal A Voz do Trabalhador, de 15 de outubro de 1913,
mencionado no capítulo anterior.
Essa perspectiva desencadeou vários projetos, como este empreendido por Oiticica,
para a “obra da propaganda social”: o desenvolvimento do teatro social, do cinema do povo,
das escolas e a imprensa libertária. Era corrente nos discursos dos jornais libertários o
argumento de que para a construção da sociedade nova era necessário formar o homem novo
e, para isso, era fundamental formar uma nova consciência. Nesse sentido diferentes projetos
educacionais ligados à Igreja, ao Estado, à burguesia e aos libertários circulavam na
República Velha com tal propósito.
Nos discursos dos sujeitos envolvidos com a propaganda social libertária, as suas
ações tinham um sentido diferente daquele disseminado pela educação religiosa e pelas
iniciativas da burguesia e do Estado. Não era qualquer educação, mas propunha-se a
revolução social e a construção da sociedade nova. Essa perspectiva foi discutida pela
imprensa operária, de maneira mais intensa nas duas décadas iniciais do século XX. Os
jornais libertários defendiam então a prática da propaganda.
A propaganda
A propaganda é como sempre foi o meio mais efficaz para a divulgação das idéas. Da
propaganda é que vem a união é que nasce a força educativa, é com esta que se
consegue realizar o ideal que se propaga. O ideal libertário avoluma-se e avança em
toda parte ganhando cada vez mais adeptos sympatizantes. Pois só não é conhecido
nosso ideal, onde não é propagado [...]. (A Plebe, ano 6I, nº 236, p. 4, grifos nossos).
O “ideal que se propaga” pode ser compreendido como um “rumo à revolução social”.
Com expressões como estas, o discurso libertário se construía atrelando significados comuns a
diferentes expressões.
86
No entanto, embora esses termos apareçam associados, seguramente os seus sentidos
eram apropriados de diferentes maneiras, tanto pelos articulistas que construíam o discurso
nos jornais, como pelos seus leitores, que lhes atribuíam significados diversos. Mesmo assim,
é possível dizer que os participantes do discurso libertário - os articulistas dos jornais e os
seus leitores - compreendiam que a propaganda social era o meio pelo qual se praticava a
educação nos espaços do jornal, centros de estudos, sindicatos, bibliotecas, nas exibições do
teatro e cinema - pautada pelas críticas às injustiças sociais, a defesa da igualdade, do livre
pensamento, e que os seus objetivos estavam direcionados para a construção de outra
sociedade, idealizada de diferentes formas e conquistada por meio da “revolução social”.
Para José Oiticica, a “revolução social” era um projeto de transformação radical da
sociedade não representando apenas a luta pela tomada do poder. Como eles se negavam a ser
o poder, contrariando a proposta dos comunistas que almejavam a tomada do poder para a
continuação de uma sociedade socialista, idéia essa compartilhada pela maioria dos
articulistas da imprensa libertária.
Na concepção de Oiticica, a sociedade nova tinha que ser de responsabilidade de cada
indivíduo. Portanto, era tarefa da propaganda social cuidar para que todos pudessem alcançar
a emancipação do pensamento e das ações, sem a qual nenhum indivíduo teria condições para
construir a sociedade nova. A “revolução social”, na ideação de Oiticica, representava a
destruição da ordem vigente e a construção da “sociedade nova”. Porém, essa passagem de
uma realidade para a outra deveria coincidir com o instante de constituição da humanidade
nova, não podendo existir uma fase de transição entre estes dois momentos.
A emancipação social, para Oiticica, provinha do esforço de todos e, portanto, não
poderia ser tomada por um grupo em nome do coletivo. Cada indivíduo deveria perseguir a
condição de livre pensador desvencilhando-se de qualquer “limitação às faculdades
intelectuais ou emotivas”, pois somente o “indivíduo tem o direito de dirigir o seu raciocínio,
regular a sua linguagem, enfrentar o seu estilo, moderar o seu juízo, orientar a sua ação”.
79
Tal
posicionamento coincidia com os discursos de outros articulistas da imprensa libertária, pares
de Oiticica. A tônica de todos sobre o caminho para alcançar a sociedade nova e a
humanidade nova era o exercício da liberdade para a consecução das ações da propaganda
social. Todas essas tarefas se colocavam na perspectiva de Oiticica, como finalidades a serem
atingidas para a constituição da “humanidade nova”.
Para Oiticica, a via de formação do indivíduo se dava pela propaganda social
79
Estas são frases selecionadas de discursos de José Oiticica dos periódicos A Vida (1914-1915); Spartacus
(1919-1920) e Ação Direta (1928-1929 e 1946- 1957).
87
libertária como uma obra de todos e de cada indivíduo. Nessa direção, cada indivíduo deveria
fazer a sua parte, dedicando-se a uma tarefa no espírito da “ação direta”, em cada indivíduo,
participante de cada grupo. Em um artigo datado de 1929, intitulado O espírito da acção
directa, Oiticica defendia que os “muitos modos de ver a questão social sob o aspecto ácrata”
podiam ser harmonizados em uma fórmula, de consenso entre os anarquistas, por ele
defendida e que era decorrente de suas apropriações das idéias de Émile Armand
80
, tal como
menciona ao final do seu artigo “O espírito da ação direta”, para demonstrar o “traço
distintivo do anarquismo” e o conceito de ação direta por Oiticica:
1-) A fórmula do consenso anarquista é o respeito que cada indivíduo tem pelo ritmo
da marcha de cada um e as opiniões do vizinho:
Eis a fórmula: Não caminhar obrigatoriamente, a passo igual, nem regular,
constrangidamente o teu passo pelo passo do isolado que corre adiante de ti ou da
associação que segue atrás de ti. A cada qual [em] seu rytimo, [em] suas afinidades; a
cada qual segundo os termos do contracto de marcha que tenha livremente assentada.
Não se envolver com a cadência do vizinho! Não intervir no andamento do grupo ao
lado, não resmungar contra as evolluções daqueles que preferem os margeamentos a
estrada larga, os sombreados as clareiras e vice e versa. Caminho livre a todos os
gêneros de marcha: passo de corrida, passo acelerado, passo de passeio, passo sem
destino. E esse o espírito do consenso anarquista. [...] Esse espírito de independência,
alliado ao espírito de retraimento, independência de sua opinião e dos seus actos,
retraimento ante a opinião e os actos do vizinho. (Ação Direta, Rio de Janeiro, ano 2,
nº 04, 15-02-1929).
2-) Os anarquistas recusam um programa único:
eis a força real do anarchismo, o seu traço distinctivo, o aspecto que separa
fundamentalmente dos outros credos revolucionários calcado na idéia da disciplina, do
programa único, nos batalhões de ferro, no passo de soldado, em quanto o figurino
despersonalizante, o vício burguês inventa e propõem ás massas descontentes. [...].
(Ação Direta, Rio de Janeiro, ano 2, nº 04, 15-02-1929).
3-) O individuo oferece a sua contribuição na obra da propaganda social de acordo
com as suas condições e características:
Um compraz-se no combate ao clero; outro prefere a edição de panphletos, folhetos,
revistas, outro deseja dedicar-se ao antimilitarismo; este revela-se naturista
apaixonado, aquelles sentem-se organizador de syndicatos e grupos; e outros
consagram-se na educação racionalista, etc. etc. (Ação Direta, Rio de Janeiro, ano 2,
nº 04, 15-02-1929).
80
Émile Arman, poeta, pensador e redator do jornal L’ En Dehors, órgão do pensamento livre, individualista, e
combate o ciúme, o exclusivismo e o instinto de propriedade sexual. De seus textos destacam-se O pequeno
manual do anarquismo inndividualista: 1911. Desse autor, no final dos anos 1920, Oiticica compartilhava
leituras das obras desse poeta com a amiga e militante Maria Lacerda Moura.
88
4-) Em lugar do padrão: um método que permita as diferenças!
E em cada um desses departamentos da actividade acrática, nem todos sentem a luta
do mesmo modo: um é de natureza persuasivo, discutidor; o outro é violento,
arrebatado, mais acção que palavras, mais factos que discursos.Como tentar reger
esses temperamentos diversíssimos pelos mesmos compassos? Como querer julgar os
nossos vizinhos por nós mesmos? Como sonhar um padrão, um meio, um código para
essa espontânea manifestação da revolta e esse fremente treinamento rumo à
emancipação? Devemos, pois, na avaliação do trabalho de cada qual examinar os
resultados e concluir, se elles são parcos ou nullos, não pela condenação ou
menosprezo do camarada, mas pela defficiência dos seus méthodos. A experiência de
uns será vantajosa para os outros evitar-se-ão essas estreitas dissidências frutos
constantes da intolerância, restos de um autoritarismo secular que a tradição mau-
graudo nosso, do meio capitalista, infudem ainda ou conservam em nosso
subconsciente. [...]
(Ação Direta, Rio de Janeiro, ano 2, nº 04, 15-02-1929).
Estas idéias são recorrentes nos artigos produzidos por José Oiticica em quase toda a
duração de sua militância, podendo ser consideradas como reiterativas em seus discursos.
Manifestam-se mais acentuadamente a partir de meados da segunda década do século XX, o
período da sua primeira prisão, em 1918, coincidindo com outros de seus discursos ao longo
dos anos 1920 - nos debates posteriores à fase de criação do partido comunista estendendo-se
até a segunda fase de seu jornal Ação Direta em 1946.
As incursões feitas no nosso trajeto de pesquisa aos jornais da imprensa libertária, nos
quais José Oiticica atuou, levam a pesquisa à inferência de que a idéia de “revolução social”
era tratada como uma singularidade do discurso libertário. Essa idéia ganha sustentação pela
sua repetição que no seu entendimento, ajuda a formar consciências.
O termo propaganda social, nos jornais, portanto, era empregado para designar a
educação, mas educação em sentido mais amplo referia-se à formação integral para a
liberdade. Significava pôr em funcionamento as práticas educativas portadoras das idéias e
valores libertários por meio dos centros de estudos, dos sindicatos, dos jornais, das linguagens
do teatro e do cinema, da fundação das escolas modernas, das bibliotecas. O termo
“propaganda social” estava vinculado aos termos: “educação”, “revolução social” e
“sociedade nova”, cuja repetição é visível quando se percorre os discursos dos jornais
libertários das décadas iniciais do século XX.
A partir das sessões de propaganda social os participantes, na condição de militantes,
arregimentavam adeptos, simpatizantes e criavam redes de solidariedade que proporcionavam
a inter-relação dos diferentes grupos das correntes anarquistas. Esses grupos se uniam em
ações comuns por causa da identidade entre os militantes proporcionada pela força como eram
construídos os discursos, denominando e caracterizando o espaço de pertencimento de todos
na propaganda social.
89
Nos periódicos, os usos das expressões: “a nossa obra”; “os nossos jornais”, “as
nossas idéias”, “a nossa educação”, “o nosso cinema”, “o nosso teatro” contrapunham-se às
críticas aos jornais, à educação, ao cinema e às escolas deles
81
·, ou seja, dos burgueses, da
Igreja, do Estado. Assim, a educação deles deveria ser combatida e substituída pela nossa
educação, à educação dos libertários. Surgiram vários projetos para a construção do que os
libertários articulistas dos jornais denominavam como as nossas escolas, as nossas
bibliotecas, a nossa imprensa, os nossos teatros e os nossos cinemas.
A educação libertária visava à formação do ser social, autônomo, crítico, capaz de
fazer as suas escolhas e o seu sentido se efetivava na propaganda social. A educação tinha
que transcender ir além do que ofereciam as escolas burguesas, as escolas religiosas, as
escolas do Estado, devendo criar as condições para a transformação das consciências.
Falar em educação no meio anarquista era falar em propaganda social, pelo menos
para grande parte da militância que lhe atribuía o sentido do que hoje podemos entender como
ato educativo, comprometido com a formação da consciência crítica.
2.1.2 A mania de conferências e as conferências sociais
A “mania de fazer conferências”, de acordo com Broca (2004), desenvolveu-se entre
os segmentos médios e letrados da população do Rio de Janeiro nas duas décadas iniciais do
século XX. Essa afirmação do autor deve-se à sua pesquisa às crônicas jornalísticas da grande
imprensa. Duas dessas crônicas citadas por esse crítico literário ajudam a compreender o
hábito de proferir e de freqüentar as conferências literárias daquele período. A primeira foi
publicada no jornal Gazeta de Notícias em 29 de agosto de 1905 e o cronista que assinava
como Jorge d’ Odemira afirmou que esse costume foi inventado no final do século XIX na
Europa e trazido ao Brasil, argumentava também sobre a necessidade de substituir as
conferências literárias pelas conferências populares. Frente a esses protestos do cronista
articulista da Gazeta de Notícias, Broca (2004) tece os seguintes comentários:
Não tivemos ainda conferências populares, o que tem havido são conferências
literárias [...]. Mas por que reclama o folhetinista conferências populares? Muito
simples: porque eram de caráter filosófico e social as primeiras pronunciadas em Paris
[...] Compreendemos perfeitamente o protesto, quando logo adiante vemos o
folhetinista dizer que a idéia de conferências foi a de pôr o povo a caminho de resolver
81
Para analisar os discursos dos articulistas dos periódicos libertários emprestamos o olhar de Richard Hoggart
(1973) em seu livro Utilizações da cultura no uso empreendido de “o nosso”, “o nós” em contraposição, ou em
relação “ao deles”, e “a ele”, como categorias para designar aquilo que era admitido como pertencimentos e ao
que era considerado extrínseco à ambiência das classes proletárias inglesas na década de 1950. Por meio dessas
designações, Hoggart buscou compreender a produção e a reprodução do modo de ser e de se relacionar com
outros, próprios desses sujeitos, indicando as lutas, resistências, permanências, tolerâncias, acomodações em seu
processo de “ir sendo”.
90
os “problemas sociais”. Do que deviam tratar é, sem dúvida, do aperfeiçoamento
moral do povo e da sua felicidade. E citava a França, a propósito: assim é que lá se
fazia. (BROCA, 2004, p. 193).
Muito provavelmente o folhetinista citado por Broca (2004) tivesse em mente a
comparação do modelo das conferências libertárias como parâmetro a sua crítica às
conferências literárias.
A segunda crônica comentada por Broca (2004) para explicar a “mania das
conferências” foi escrita pelo poeta Olavo Bilac, publicada na revista Kosmos, em 1907. Na
crônica Bilac emprega o termo “epidemia“ [de conferências] e satiriza o contexto da capital
federal que obrigava a alguns a inovarem ações para atrair público para essa atividade,
demonstrando também a finalidade do entretenimento que desencadeava o costume. Do
costume das conferências literárias, o poeta destaca peripécias e exagera com a descrição
dessas conferências:
Tivemos conferência com música, conferência com música e canto, conferência com
dança, conferências com projeções de lanterna mágica, conferências com ilustrações
crayon. E parecia que nenhuma outra novidade poderia ser inventada quando se
espalhou uma comovedora notícia: o sr. X ia fazer uma conferência em verso, uma
conferência toda em verso ritmada do princípio ao fim, sem uma linha de prosa. Falar
em verso durante uma hora sem descanso é positivamente o recorde da facúndia
poética. Pois o conferente levou a cabo essa proeza! Que inventará de novo em
matéria de conferência? Como se trata agora de bater o recorde e de vencer as
dificuldades cada vez maiores, é possível que em breve, leiamos nos jornais anúncios
como este: o conferente falará uma hora sobre um pé ou com a cabeça para baixo, sem
mudar de posição [...] Qual será a mania predominante de 1908? Talvez seja a dança
do ventre, ou o faquirismo, ou os balões cativos, ou os duelos, ou os divórcios, ou os
suicídios em massa. (BILAC, 1907, revista Kosmos, apud BROCA, 2004, p.195-196).
Seguramente, as conferências libertárias não se enquadravam em nenhuma das
modalidades satiricamente apresentadas por Olavo Bilac. As conferências sociais da
propaganda libertária se aproximavam mais do modelo das conferências francesa referidas
pelo folhetinista do jornal Gazeta de Notícias.
2.1.3 As conferências sociais
As conferências sociais aconteciam com freqüência nas associações, ligas, centros de
estudo. Nesses encontros, o conferencista, em geral discorria sobre um tema de interesse
libertário, seja para fazer a “crítica anticlerical”, seja para informar sobre “as teses do livre
pensamento”. Criticavam as instituições burguesas, o Estado, o capital e o clero. O principal
objetivo era “convencer pela palavra”. O trabalho com essa ação da propaganda social
91
objetivava a discussão sobre os princípios anarquistas, visava formar as “consciências livres
para a construção da nova sociedade”
82
, como estratégia direcionada à formação do ser
social.
A expressão conferência social foi utilizada pela militância anarquista para denominar
as aulas/palestras proferidas nos centros de estudos das associações, agrupamentos e ligas das
correntes do movimento anarquista. A título de exemplo, Rodrigues (1972) nos apresenta
algumas das conferências proferidas e noticiadas pelo Boletim da Aliança Anarquista, no Rio
de Janeiro:
“Conferências” – Multiplicam-se, agora, as conferências de propaganda um ótimo
sintoma da atividade remanescente. E o que é melhor, é que nas organizações
operárias, são as próprias organizações que as promovem e convidam os
conferencistas. Assim na segunda quinzena de fevereiro, realizaram-se as seguintes: A
solução russa, por José Oiticica, na União Operária em Fábricas de Tecidos, no dia
16; A Educação Operária por Carlos Dias, na União Geral dos Operários em
calçados, no dia 20; A situação universal, por José Elias da Silva também na União
dos Operários em Fábricas de Tecidos, no dia 23.
Este mês de março, elas se vão fazendo ainda mais freqüentes, tendo o camarada
Álvaro Palmeira, iniciado um curso de sociologia, no dia 1º, devendo continuá-lo,
semanalmente, na sede, e por iniciativa da União Geral da Construção Civil.
(BOLETIM DA ALIANÇA DO RIO DE JANEIRO, apud RODRIGUES, 1972,
p.195).
O termo conferência também foi empregado para denominar os encontros de âmbito
e decisões limitadas. Esses encontros, em geral antecediam aos congressos anarquistas e
tinham como objetivos abrir o caminho às organizações regionais ou nacionais, estudar,
debater e preparar teses de importância no âmbito local, regional e nacional. Serviam como
instâncias deliberativas às questões que demandavam soluções em curto prazo. Os seus
participantes eram representantes de agrupamentos, associações ou sindicatos e as suas
incumbências eram preparar estudos preliminares a serem debatidos e depois aprovados nos
Congressos pelos delegados presentes. Entre as questões que eram tratadas em conferências,
podem ser listadas as moções de protesto contra a violência dos patrões e da polícia, a
organização de comitês de solidariedade, as resoluções de greves gerais, os atos de
sabotagem, as passeatas públicas, os comícios etc. (RODRIGUES, 1979, p. 95).
Tanto o formato de aulas/palestras, como o formato de instância deliberativa, as
conferências eram ações constitutivas da propaganda social anarquista.
De certa forma, é possível afirmar que as conferências associadas às outras ações da
82
Estas considerações são feitas a partir da observação e do registro dos inúmeros artigos jornalísticos que
noticiavam as conferências sociais como pode ser observado em alguns excertos esta pesquisa selecionou para o
presente capítulo.
92
propaganda social, como as práticas educativas que circulavam nos jornais, bem como as
listas de livros e de folhetos apresentadas na maior parte dos jornais libertários que
aconselhavam leituras, algumas com a chamada: “o que todos devem ler”, as publicações de
obras em formato de folhetins nos jornais, a constituição de uma rede de distribuição de obras
vendidas pelos jornais, a organização de bibliotecas, tudo isso eram ações que em seu
conjunto contemplavam os objetivos voltados para o curto funcionamento da Universidade
Popular de Ensino Livre de 1904, mencionada no capitulo anterior. As conferências sociais -
aulas/palestras – eram proferidas com freqüências nas ligas, associações e centros de estudos.
José Oiticica aderiu a essa proposta e suas conferências sociais eram freqüentes.
2.1.4 As conferências sociais do professor José Oiticica
As conferências libertárias de José Oiticica foram fartamente registradas nos jornais da
imprensa anarquista, o que faz ver que o seu público-alvo era, principalmente, os leitores
desses jornais. Nessas conferências Oiticica apresentava estudos sobre a moral religiosa, a
questão social e a educação para a sociedade nova, na perspectiva do anticlericalismo e do
livre pensamento.
Ao longo dos anos 1910, os jornais noticiavam os resultados atingidos pelas
conferências:
“Grupo Dramático anticlerical: realizou-se hontem este grupo um esplendido
espetáculo de propaganda social. Fez uma brilhante conferência sob o tema o
trabalho livre, o camarada José Oiticica”; [...]
.(Voz do Trabalhador, nº 30, ano 6, 01-05-1913, p. 6, grifos nossos).
[...] “o Dr. Oiticica prendendo [a] atenção do auditório com uma bela
dissertação sobre o papel de Francisco Ferrer enquanto vivo, as
conseqüências de sua abnegação, e por fim disse que a melhor forma de
conservar a memória do grande mestre, era continuar a sua obra
racionalista .[...]
.(Voz do Trabalhador, Rio de Janeiro, nº 41, ano 6, 15-10-1913, p.2, grifos nossos)
“Na Sociedade Cultural do Meyer, sita a Rua Dias da Cruz. 335. Fará nosso
companheiro José Oiticica uma conferência sobre a reorganização social,
problemas e doutrina. Entrada franca”.
.(Ação Direta, nº 17, ano 1, 20-08-1946, p.4, grifos nossos).
Geralmente a conferência do professor Oiticica, nessas festas, sucedia à encenação de
um drama social, ou então de comédias que criticavam a vida burguesa e instigavam a
reflexão sobre a necessidade de construção da sociedade nova, tal como já mencionado. As
93
suas conferências
83
, em 1913 eram semanais e aconteciam na Liga Anticlerical do Rio de
Janeiro e, por vezes, antecediam ou sucediam às atividades planejadas pelo Grupo Dramático
Anticlerical, responsável pela organização do teatro social. Pode-se dizer que o mais
importante objetivo dessas atividades era a formação dos valores libertários, por meio da
crítica às instituições burguesas e religiosas:
Liga Anticlerical
A Liga Anticlerical lavrou mais um tento. É o caso que ela não deixou passar a
semana santa passar sem um soleníssimo protesto. Para esse fim foram organizadas
sessões de propaganda especiais para os três dias últimos da semana – quinta, sexta e
sábado.
Na quinta-feira falaram C. A. de Lacerda e Astrogildo Pereira, estes sobre os
processos da educação e costumes dum internato de Jesuítas, do qual em tempos foi
aluno.
Na sexta-feira o Dr.José Oiticica fez substanciosa e brilhante conferência discorrendo
sobre a farsa a semana santa, a mentira cristã, o perigo das religiões e a falsidade
dos deuses. Falou ainda Leal Júnior fazendo considerações gerais sobre a
emancipação religiosa da mulher, etc. Ambos muito aplaudidos.
A conferência de sábado foi feita por Mota Assunção em torno do tema – Origem das
religiões, uma excelente preleção, cheia de ensinamentos e verdades. Três dias estes,
enfim, de proveitosíssima propaganda do livre pensamento.
A concorrência relativamente numerosa bem demonstrou que há no Rio de Janeiro
uma multidão de infelizes fanatizadores, e, em plena solenidade dos três dias mais
sagrados da Igreja cristã, vir lançar o seu protesto contra o embuste religioso e semear
a boa semente das verdades provadas, que só a ciência pode oferecer. (A Voz do
Trabalhador, Rio de Janeiro: ano 6, nº 28, 01-04-1913, p. 3, grifos nossos).
Além dos temas mais ligados ao ideário anarquista, outros assuntos compunham o
leque de interesses de Oiticica, como a língua portuguesa, a música, o teatro e a literatura.
Estes temas foram tratados em cursos ministrados pelo professor tanto em estabelecimentos
escolares, do Rio de Janeiro, de São Paulo e de Minas Gerais, como nos centros de estudos,
associações culturais e outras agremiações com pessoas que compartilhavam as suas idéias
anarquistas. O anticlericalismo, ou seja, a crítica sistemática aos perigos das religiões em
geral e do clero católico em particular, associada à defesa “das verdades provadas, que só a
ciência pode oferecer”, e também as teses libertárias eram a tônica na formação das
consciências do livre pensamento.
2.2 O jornal como catalisador das práticas de propaganda social libertária
A presença de José Oiticica foi marcante, dada à intensidade e à freqüência com que
83
Essas conferências eram semanais com o dia e o horário definidos de modo a disseminar entre os participantes
a incorporação do hábito e de vínculos com essa atividade.
94
os seus artigos foram publicados, nos periódicos de São Paulo, como A Lanterna e A Plebe
84
e
A Voz do Trabalhador – órgão da Confederação Operária Brasileira
85
, do jornal Liberdade,
sob a direção de Pedro Matera, fundado em 1909 ambos do Rio de Janeiro e de A Lanterna
em São Paulo, que a partir de 1909 esteve sob a direção de Edgard Leuenrouth. Além desses
periódicos, outros jornais da imprensa operária informavam sobre as atividades de Oiticica.
O jornal foi um dos espaços privilegiados de atuação de José Oiticica e era também o
principal lugar da educação libertária, pois servia como material de formação do leitor podia
acompanhar a publicação integral de obras em folhetins. Os seus articulistas preocupados com
a formação de uma comunidade de leitores apresentavam em coluna, geralmente intitulada “O
que todos devem ler”, listas de livros, outros jornais, revistas, folhetos que serviam para
prescrições de leitura e, também, eram uma forma de distribuir o material que era vendido por
meio do jornal. De acordo com Giglio (1995):
[...] o jornal operário era um produto cultural particular capaz de formar uma
comunidade de leitores ouvintes que se alimentavam das idéias e debates surgidos
naqueles círculos, provavelmente alterando as formas de relacionamento que
provocavam a distribuição de pensamentos novos. Mais que uma comunidade de
leitores, os impressos operários, por suas características doutrinárias, possibilitaram a
formação de uma rede de distribuidores daqueles discursos, tornaram-se detentores de
um poder combatido explicitamente por uma malha de instituições (a polícia, a escola,
a Igreja), especialmente a polícia, nos episódio de fechamento dos jornais e na
destruição de bibliotecas de sindicatos. (GIGLIO, 1995, p.52, grifos nossos).
Além disso, todos os jornais operários faziam campanhas de apoio a outros jornais e
que circulavam concomitantemente, portanto, em lugar da concorrência, havia apoio mútuo
baseado na diversidade de ações para arregimentar leitores.
Os jornais da imprensa operária apresentavam diferentes vozes dos grupos do
movimento operário. Havia várias correntes militantes, dentre as quais os grupos anarquistas.
84
Em sua primeira fase, A Lanterna- Anticlerical e de Combate começou a ser publicada em 1901, parou em
1902, sendo sua publicação retomada entre 1903 e 1904, sob a direção do advogado maçom Benjamim da Mota.
Sua distribuição era gratuita e o número 1, de 07 de março de 1901, anunciava 10.000 exemplares de tiragem,
atingindo no número 8 do mesmo ano 26.000 exemplares. Entre 1904 e 1909, a sua publicação foi interrompida
e até 1916, a sua segunda fase, a folha circulou com certa regularidade, mantendo expressiva tiragem. Sua
circulação foi interrompida em 1917, quando Edgar Leuenrouth lançou o periódico A Plebe, sob o argumento de
ser o jornal uma continuação de A Lanterna, provavelmente uma estratégia para cooptar o seu publico leitor. A
sua terceira fase deu-se em 1933-1935. Os primeiros artigos de José Oiticica nesse periódico datam de 1912.
Esse periódico e o Livre Pensador também foram investigados por Silva (1995), com o objetivo de apreender as
manifestações das tendências do anticlericalismo, do livre pensamento e da maçonaria brasileira.
85
O jornal A Voz do Trabalhador se definiu como porta voz dos trabalhadores, um desdobramento do primeiro
Congresso Operário Brasileiro acorrido no Rio de Janeiro. O periódico foi criado em 1908 e na sua primeira
fase, que durou até 1909, foram publicados 21 números. Em 1913, em sua segunda fase, com a impressão de três
mil cópias de seu número 22, a folha operária passou a ser publicada quinzenalmente com uma tiragem de quatro
mil exemplares, e circulou até 1915, com a publicação do número 71. A consulta desse jornal foi possível graça
a edição da coleção fac-similar do jornal da Confederação Operária Brasileira 1908-1915.
95
Nas duas décadas iniciais do século XX, os anarquistas, mais precisamente a tendência
anarcosindicalista, despontaram com expressividade no movimento operário brasileiro
(HARDMAN & LEONARDI,1991, p. 330).
Esses grupos foram identificados pela historiografia do movimento operário com
diferentes denominações: os anarquistas, os anarcosindicalistas ou sindicalistas
revolucionários, os anarcocomunistas ou adeptos do comunismo libertário
86
. Havia aqueles
que se tinham apenas como anticlericais e livres pensadores. Em face dos estudos que se
ocuparam com o movimento operário brasileiro, como a historiografia militante de Edgar
Rodrigues, cuja voz vem de dentro da imprensa anarquista, adotamos a classificação atribuída
por José Oiticica a ele mesmo, ao se denominar como anarquista.
Os jornais constituíam-se em um elo entre as várias práticas da propaganda social. No
espaço do jornal, os militantes do movimento apoiavam as greves, alavancavam as iniciativas
dos grupos operários e também impulsionavam os outros dispositivos como o teatro, o
cinema, as festas, as conferências anticlericais e de livre pensamento.
Havia também o esforço em noticiar as atividades dos grupos libertários de outros
estados brasileiros e de outros países. Tal estratégia explica-se pelo fato de ser o jornal o meio
mais eficaz para a construção das redes de solidariedade em apoio a outras práticas da
propaganda social, e por fidelidade ao princípio libertário do internacionalismo.
O compromisso de cada indivíduo para organizar a educação do povo era a condição
imprescindível para a formação do homem novo
87
e o jornal era um dos principais veículos
onde os seus articulistas apresentavam as suas críticas e os ditames de práticas para a
educação nova.
86
Cristina H. Campos (1998, p.15) classificou os libertários em duas correntes que nem sempre são fáceis de
distinguir: “[Entre os] libertários englobo: os anarquistas, que viam a transformação da sociedade capitalista para
a Anarquia através da ação direta dos despossuídos derrubando o Estado e erigindo a nova sociedade, formada
por produtores independentes ou por cooperativas; e o sindicalismo revolucionário que tinha no sindicato a sua
arma de luta para a também almejada Anarquia. Os primeiros organizavam-se em ligas, comitês, alianças, grupos
teatrais, grupos editoriais, escolas, jornais, etc., tendo a propaganda, a palavra, como instrumentos. Os segundos
tinham na estrutura federativa a base da organização sindical.[...] Na prática há grupos que adotam elementos das
duas tradições segundo suas necessidades e com uma certa indiferença às distinções que prevaleciam em vários
países da Europa”.
87
Ody Furtado Gonçalves (2002) percorreu os discursos dos intelectuais articulistas de A Plebe, um periódico
anarquista de São Paulo, sob a direção de Edgard Leuenrouth, provavelmente o jornal com maior tiragem e
circulação a partir de 1917. Em sua pesquisa, intitulada A constituição do homem novo anarquista no ideário
dos intelectuais do jornal A Plebe, analisou as representações do conceito de “povo”, de “homem velho” e de
“homem novo”, por meio das práticas educacionais que esses intelectuais julgavam fundamentais para a
formação dos anarquistas. A sua hipótese inicial era que os projetos da educação anarquista representavam uma
oposição aos projetos das elites brasileiras e que havia um território de disputas para a formação do homem
novo. A sua pesquisa, além das reconstituições das práticas da educação libertária como singularidades,
evidenciou pontos de contato com outros projetos educacionais escolanovistas em circulação no período,
demonstrando que em algumas idéias coincidiam e outras idéias eram próprias da educação libertária.
96
Eram muitos os meios usados para tornar os jornais acessíveis a todos. A leitura em
voz alta para os analfabetos e a solicitação para obter novas assinaturas eram algumas das
táticas da militância libertária. Essas normas de conduta voltadas para o jornal eram
direcionadas a “todos” (leitores dos jornais), para a consecução da “nossa obra” (dos
libertários), afirmando que o jornal e os objetivos que o impulsionavam pertenciam a um
coletivo. Isso pode ser observado no artigo de um dos jornais de maior circulação do qual José
Oiticica era colaborador, desde os princípios da segunda década do século XX:
SEMEAR PARA COLHER
A todos os amigos de “A LANTERNA” lembramos que, depois de a lerem é da
máxima utilidade não a DESTRUIREM. Os que não a GUARDAREM, para
colecionar, devem dá-la a outra pessoa. Lê-la aos que não sabem ler, DEIXÁ-LA nas
fabricas, nas obras, nas oficinas, nos barbeiros, nos cafés, nos restaurantes, nos jardins,
nos carros, nos trens enfim, onde possa ser lida por outros. Espalhar é semear, é torná-
la conhecida, é fazer dela a propaganda, é conquistar novos adeptos para a nossa obra.
Também todos devem arranjar NOVOS ASSINANTES E DEVOLVER a venda
avulsa, afim de que possa propagar mais largamente a obra em que todos andamos
empenhados. (A Lanterna, São Paulo, ano, XIII, nº 183, 22-03-1913, p.2).
Dessa forma, o jornal era uma prática social movimentando-se ao receber e fornecer
um fluxo de atividades realizadas pelas diversas associações e agremiações mantidas pelas
correntes libertárias. O jornal impulsionava o conjunto de práticas características da
propaganda social. A sua elaboração se dava por militantes brasileiros e estrangeiros
pertencentes às classes operárias, das levas de imigrantes europeus, entre eles italianos,
espanhóis, alemães e portugueses e ao restrito segmento dos homens letrados e intelectuais.
A imprensa operária era portadora de interesses e projetos das classes trabalhadoras.
Como prática social, o jornal era um instrumento importante para o enfrentamento do conflito
capital x trabalho, na organização das greves, denúncias, debates de temas ligados a vida
cotidiana dos trabalhadores e sindicatos, era também portador das práticas culturais da classe
operária brasileira em formação.
88
88
O processo de constituição da classe operária brasileira é aqui compreendido na perspectiva da experiência
vivida no cotidiano das relações de produção e das relações sociais, na elaboração de uma cultura própria, sob
inspiração de E. P. Thompson (1978, p. 37), ao operar com a noção ampliada do conceito de classe e enfatizar o
caráter histórico da constituição das classes sociais, ou seja, o seu fazer-se. A noção de classe está vinculada
diretamente à experiência concreta de seus membros, ao modo de vida de suas relações sociais, econômicas,
culturais e políticas, pois: “As classes não existem como entidades separadas que olham ao redor, encontram
uma classe inimiga e começam logo a luta. Pelo contrário, as pessoas se encontram em uma sociedade
estruturada em modos determinados [...] experimentam a exploração (ou a necessidade de manter o poder sobre
os explorados) identificam pontos de interesses antagônicos, começam a lutar por estas questões e no processo
de luta se descobrem como classe. A classe e a consciência de classe são sempre as últimas, não as primeiras
fases do processo real histórico”. A classe operária brasileira tem a sua égide nas transformações sociais,
econômicas, políticas e culturais decorrentes da expansão cafeeira, da transição da mão-de-obra escrava para o
trabalho livre, configurando-se com a inserção massiva dos imigrantes europeus.
97
Oiticica publicou algumas de suas obras nos periódicos em formato de folhetins. Essa
foi uma maneira que os participantes da propaganda social usavam para disponibilizar
material de estudo no uso do jornal como um espaço educativo, uma prática, realizada
também em toda a imprensa ilustrada, principalmente nas décadas iniciais do século XX.
Oiticica persistiu com esse costume, no jornal Ação Direta. A partir de 1946, ele
publicou em vários números desse jornal o seu manual anarquista, intitulado A doutrina
anarquista ao alcance de todos.
89
Dando seqüência a esse trabalho, publicou em folhetins as
suas lições de literatura. Tratava-se das mesmas lições que ele utilizava em suas aulas no
Colégio Pedro II
90
. Iniciativas como essas exemplificam a maneira particular como as práticas
pedagógicas de José Oiticica em seus diferentes espaços de circulação estavam em interseção.
2.3 O teatro social
O teatro social era mais uma das atividades da propaganda social anarquista. Como
forma de entretenimento estreitava os laços de solidariedade entre os operários. O teatro
social desenvolvido nos meios operários era um importante recurso de educação “para
instruir, educar, formar mentalidades humanistas, angariar fundos que sustentaram famílias de
presos, de deportados, que socorreu doentes, desempregados [...] incluindo-se a solidariedade
social” Lima e Vargas (1986, p. 163) e Rodrigues (1972, p.81).
Era uma forma de exercer as práticas de apoio mútuo, uma vez que a renda obtida com
os espetáculos teatrais era revertida para fundos de greve, manutenção dos jornais e das outras
atividades educativas libertárias, destinava-se a ajudar as famílias de presos políticos,
deportados, doentes e desempregados.
Na organização do teatro social e na imprensa operária havia a presença de
intelectuais, às vezes exilados políticos, que entendiam muito bem a importância da
solidariedade do militante entre aqueles que estavam na mesma situação: a de viver e
trabalhar em outro país.
O teatro social era considerado como uma espécie de escola aos não letrados e era
desenvolvido principalmente pela corrente dos anarcosindicalistas como um:
89
Esta obra foi escrita por José Oiticica em 1925, quando estava preso na Ilha de Bom Jesus. Foi publicada no
jornal Ação Direta em formato de folhetim no nº 4, de 07-05-1946 ao nº 34, de 01-05-1947. Em 08-08-1947, os
folhetins com A doutrina anarquista ao alcance de todos voltam a ser publicados. No nº 43 de 22-10-1947 é
anunciada a publicação em formato de livro. A citação apresentada foi retirada da reedição da obra como uma
iniciativa de Edgar Rodrigues e Robson Achiamé. Essa obra segue a disposição de conteúdos semelhante àquele
que José Oiticica adotou em seus manuais didáticos utilizados no Colégio Pedro II: Manual de análise - léxica e
sintaxe - (1919) e Manual de estilo (1926).
90
O curso se literatura foi publicado por Roberto das Neves (1960) que coligiu estas lições, utilizando como
abertura os artigos necrológicos de José Oiticica.
98
[...] veículo de propaganda, meio recreativo de praticar o apoio mútuo da solidariedade
humana [...]. E em certos casos foi meio selecionador de talentos para o teatro
profissional [...] modestos trabalhadores grevistas, anarquistas evoluíam do teatro
popular [...] para o teatro nacional. Alguns conseguiram, mais tarde se diplomar
pela Escola Dramática Municipal. Eram operários gráficos, marmoristas, costureiras
[...]. (RODRIGUES, 1972, p.78, grifos nossos).
As tarefas dos envolvidos nesta empreitada — a propaganda social — incluíam
estratégias para alfabetização, sempre criando condições para a reflexão crítica sobre as
condições de vida e de trabalho. As atividades operárias — fossem elas com o teatro, a
música, a organização de quermesses e bailes, com a arte de maneira geral — tinham na
imprensa operária seu principal veículo. Os vínculos sociais que se formavam nas idas ao
teatro, nas leituras coletivas dos jornais, opúsculos e livros, nas festas em benefício deste ou
daquele grupo ou jornal, nas atividades das escolas mantidas pelo movimento, enfim, todas as
práticas culturais constituíam a propaganda social.
Rodrigues (1992, p. 197) em seu estudo sobre o teatro libertário por meio do cotejo
dos jornais anarquistas e de entrevistas com velhos militantes libertários, apresenta os seus
principais objetivos:
A divulgação de idéias anarquistas numa linguagem ao alcance de todos;
Combater os poderosos e o Estado responsáveis pela desigualdade social;
Divulgar os métodos revolucionários de educação e instrução em todos os níveis;
Desenvolver o diálogo, o debate, capacidades e talentos operários;
Motivar a confraternização da grande família proletária e o congraçamento da família
libertária, nos níveis sociais, ideológicos e humanos;
Usar os espetáculos como fonte geradora de recursos para custear as publicações de
jornais, revistas operárias e anarquistas, sustentar as escolas livres para os
trabalhadores e os seus filhos;
Prestar solidariedade humana, a níveis locais, nacionais e internacional, auxiliando as
famílias dos trabalhadores, doentes, perseguidos e por isso desempregados,
acidentados (ao tempo não existia seguro), de companheiros presos, deportados e
expulsos.
O teatro amador desenvolvido pelos operários anarcosindicalistas das décadas iniciais
do século XX era sem dúvida um dos importantes veículos da propaganda social libertária,
pois constituíam uma forma eficaz de comunicação das mensagens de formação ideológica e
de sensibilização social. As mensagens libertárias intrínsecas aos conteúdos das peças teatrais,
ao lado das mensagens imagéticas do cinema, eram estratégias importantes para atingirem a
massa de analfabetos que conformavam as classes trabalhadoras brasileiras.
99
As sessões de propaganda sob responsabilidade da Liga Anticlerical inseriam peças
teatrais de grupos dramáticos, que contavam com a atuação de seus alunos da Escola de Arte
Dramática Municipal do Rio de Janeiro. A atuação de Oiticica se deu entre 1912 e 1937, e seu
trabalho pedagógico institucional relacionava-se com o trabalho da propaganda social.
As peças para o teatro operário encenadas no Rio de Janeiro e em São Paulo vinham
da Itália e de Portugal, e depois passaram a ser publicadas no Brasil. Algumas peças teatrais
foram traduzidas por Oiticica e outras escritas por autores brasileiros, como o próprio José
Oiticica, Fábio Luz, Santos Barbosa, Zenon de Almeida, Avelino Foscolo, Affonso Schimdt,
Souza Passos, Mota Assunção, Marcelo da Gama, Lino Brasil, G. Soler e Pedro Catallo, que
foram alguns dos autores mais produtivos (RODRIGUES, 1992, p.112).
As encenações do teatro social, em determinados períodos celebravam diferentes datas
consideradas importantes ao movimento operário. Era hábito comemorar o 11 de fevereiro, o
protesto em razão da assinatura do Tratado de Latrão
91
; o 23 de fevereiro, a morte de
Giordano Bruno
92
; o 18 de março, a Comuna de Paris; 1º de maio, marcando a execução dos
mártires de Chicago, 14 de julho, a tomada da Bastilha; o 23 de agosto, as mortes de Sacco e
Vanzetti, e o 13 de outubro, o fuzilamento de Francisco Ferrer y Guardía.
93
A marcação desses episódios era parte do trabalho de construção da memória na
perspectiva histórica dos anarquistas pela definição de referenciais próprios sobre a sua
presença no tempo. Assim, ao rememorar as datas significativas segundo o seu ideário, os
anarquistas participantes das correntes do movimento criavam um calendário peculiar,
próprio. Funcionamentos como estes contribuíam para a construção de uma identidade que se
91
Eduardo Valladares, (2005, p. 92) informa sobre o Concílio de Latrão: “[...] com o canone 21 do Concílio de
Latrão de 1215, instituiu-se o sistema de confissões regulares, pelo menos uma vez por ano, juntamente com o
caráter essencial do papel do interrogatório religioso”. No discurso dos articulistas dos jornais anarquistas há
forte campanha contra o hábito instituído e reafirmado em 1903 das confissões auriculares. Essa obrigação
católica, segundo os libertários, era um dos principais fundamentos do poder clerical (p.72).
92
O discurso anarquista adotava a tática de reportar-se à história de religiosos que romperam com a Igreja. Os
anticlericais faziam campanhas para descobrir falcatruas e escândalos religiosos e enalteciam os religiosos que
romperam ou que foram perseguidos pela Igreja. Por essa razão, rememorar e contar a história de Giordano
Bruno (1548-1600), um teólogo e filósofo italiano condenado por heresia pela Igreja Católica por duvidar da
Santíssima Trindade e que defendia o infinito cósmico e uma visão de homem humanista era uma forma de
demonstrar, com a propaganda social, os moldes da resistência empreendidos historicamente contra a Igreja.
Estimulado por essas táticas, José Oiticica traduzia textos dos religiosos rebeldes que eram transformados em
folhetos, que eram distribuídos em suas conferências anticlericais. Essas ações e outras similares serviam para
mostrar quanto a Igreja não era digna de confiança e representava um perigo que devia ser combatido. Como a
história de Giordano Bruno era exemplar para tais finalidades, foi incorporada no calendário anarquista.
93
Eram datas marcantes para a luta em prol da resistência ao poder e à violência na perspectiva libertária. Por
essa razão, os anarquistas lhes davam maior visibilidade nos jornais por serem consideradas mais significativas
para a “obra da propaganda social” em relação às outras datas que serviam para marcar a luta anticlerical.
100
contrapunha às comemorações cívicas nacionais e às celebrações religiosas.
94
As categorias construídas por Richard Hoggart (1973) em seu livro Utilizações da
cultura, já mencionadas, as categorias de “o nosso”, “o nós” em contraposição, ou em relação
“ao deles”, e “a eles”, ajudam a compreender o fato de os libertários terem construído em sua
imprensa o seu próprio calendário em oposição ao calendário deles (da Igreja, do Estado).
No percurso da continuidade da imprensa libertária com José Oiticica em seu Jornal
Ação Direta, no final dos anos 1940, como poderemos verificar no capítulo seguinte, foi
empreendida uma espécie de revitalização dos vínculos das permanências e continuidades
dessa imprensa com o passado, ao adotar as mesmas estratégias e táticas com a rememoração
dos episódios sucedidos com o movimento operário brasileiro do início do século XX. Uma
forma de resistência do princípio impulsionador do anarquismo brasileiro, ao menos ao que
diz respeito à ação de veiculação da propaganda social por meio do jornal, pois das
atividades com o teatro social, não foi detectada a mesma continuidade nas ações
empreendidas por José Oiticica, ao contrário do que ocorreu com a prática das conferências
sociais cuja incidência, embora pequena, ainda aparecem anunciadas no Ação Direta.
Com as apresentações das peças sociais nessas datas significativas eram também
publicados artigos jornalísticos que esclareciam sobre o significado e a importância de cada
uma. Para a grande maioria que não era leitora, as encenações cênicas eram uma das
maneiras de facilitar a transmissão dos valores libertários. A maioria das peças era
apresentada nessas datas comemorativas, seguidas de conferência social, como foi relatado
anteriormente.
2.3.1 O teatro social de José Oiticica
Entre as inclinações intelectuais do professor José Oiticica, o teatro ocupou um lugar
significativo não apenas pela autoria de peças usadas no teatro social libertário, mas também
pelo seu importante trabalho com a formação de profissionais na Escola de Arte Dramática do
Rio de Janeiro, onde lecionou durante décadas, como já mencionado no capítulo anterior.
A visibilidade desse trabalho de sua docência aparecia nos destaques sobre a vida
cultural do Rio de Janeiro, nos periódicos libertários, assim como em um ou outro jornal da
grande imprensa, A Pátria. Era um jornal, para qual Oiticica colaborou, que costumava
noticiar a programação do teatro social libertário, tanto que no ano de 1923 destacou os
94
Cabe mencionar o livro de Raquel Azevedo (2002, p.45) A resistência anarquista: uma questão de identidade
(1927-1937) que chamou a atenção da demarcação das datas comemorativas do movimento como ação de
preservação de uma identidade na perspectiva anarquista.
101
nomes de alguns artistas amadores
95
que movimentavam suas atuações em peças exibidas nos
teatro da cidade. O que chama atenção na notícia é o fato de que todos aqueles artistas, com
os seus nomes publicados eram operários que foram diplomados na Escola Dramática
Municipal, e, portanto, havia recebido a marca da formação de professor Oiticica, em suas
aulas de Prosódia, uma disciplina por ele ministrada durante décadas.
Com o trabalho na Escola Dramática, o professor Oiticica tinha condições de
extravasar os aspectos mais diletos do rol de atividades que ocupavam os seus interesses
docentes. Trabalhava com a língua optando por trabalhar com os textos clássicos, cujo
repertório era vasto por causa de sua formação cultural, como pode ser verificado no capítulo
anterior. Além da poesia, da música, ainda utilizava como material de trabalho as suas peças.
O professor Oiticica operava de maneira interessante na escolha do material de
trabalho para as suas aulas de Prosódia. Escolhia peças do teatro grego clássico - marca de sua
erudição -, desde que os roteiros dessas peças propiciassem a reflexão de seus alunos sobre as
idéias e os valores de conduta dos personagens. Possivelmente, foi essa a razão de sua escolha
em trabalhar com os textos de Aristófanes (446-380 a. C), que em seus roteiros de comédias e
alegorias ridicularizava, entre outras coisas, as arbitrariedades da guerra, a corrupção dos
políticos. Essas peças chamaram a atenção de outros militantes, como Maria Lacerda de
Moura, com quem Oiticica tinha grande interlocução (LEITE, 2005, p.25).
2.2 As atividades do professor José Oiticica na Escola Dramática Municipal
Nas aulas de teatro da Escola Dramática, Oiticica selecionou roteiros clássicos para
exemplificar e potencializar seus argumentos sobre a causa libertária. Utilizou o drama e as
falas dos personagens relativas às situações cotidianas para tacitamente instigar a reflexão dos
alunos sobre os valores capitalistas em contraposição aos libertários.
Nos roteiros de suas conferências radiofônicas manuscritas encontradas em seu acervo
pessoal, Oiticica sinalizava as pausas, as modulações sonoras, adotando essas táticas e
artifícios da prosódia para simulações de situações dramatizadas nos diálogos. Essas
estratégias eram também adotadas nos programas de rádio, nas novelas radiofônicas, porém
em Oiticica essas práticas eram procedentes do teatro, uma forma também usada nos seus
manuais didáticos, como, por exemplo, o recurso das onomatopéias e mimologias.
95
Os alunos do professor José Oiticica que aparecem citados no jornal A Pátria eram: Augusto Aníbal, Arduino
Burline, Davina Fraga, Romualdo de Figueiredo, Mariano Ferrer, Ulysses Martins, Antônio Monteiro Dias
(RODRIGUES, 1993, p.36).
102
Prado (2004) selecionou uma parte da produção dramática do professor Oiticica e
examinou um bloco de fichas com apontamentos de suas aulas de teatro na Escola Dramática
Municipal.
96
A julgar pela descrição que apresenta, Prado (2004, p.152) pôde examinar esse
material, e seus comentários subseqüentes deixam ver que as escolhas empreendidas por
Oiticica na produção teatral encetavam objetivos claros com o conteúdo de cada uma, pois a
disposição seqüencial das peças conformava uma lógica de construção de seu argumento não
sendo, portanto, escolhas aleatórias. Pode-se considerar que os objetivos que antecediam essa
seleção de materiais, visavam estimular a reflexão dos alunos e focalizar as teses anarquistas
relativas às críticas ao Estado, à religião e ao capital. Tais evidências levam a supor que o
professor Oiticica construía o seu programa de conteúdos sem recorrer a outro que lhe
servisse como modelo.
97
Esse encadeamento das peças teatrais de Aristófanes foi cuidadosamente pensado
como sua principal estratégia que se construía mediante uma reflexão sobre as situações
vividas pelos personagens, para com esse mote provocar em seus alunos a tomada de posições
frente o problema apresentado pelos personagens. A seqüência de situações denota que o
professor Oiticica estimulava os seus alunos a tirarem as suas próprias conclusões a respeito
do conflito central vivido pelos personagens.
A sobreposição do assunto tratado em cada uma das peças era o que parecia ser caro a
ele, pois, com a sobreposição desses assuntos, Oiticica construía um arcabouço de valores que
eram de fato o cerne da sua reflexão. Dessa forma, as apropriações de Prado (2004) ajudam a
96
José Oiticica ingressou em 1914 na Escola de Arte Dramática do Rio de Janeiro. A docência nesta instituição
se estendeu concomitante ao período de seu exercício na cátedra de Português no Colégio Pedro II, iniciada em
1916 até o ano de1952. O bloco de notas pode ter sido usado nesse período de tempo e a impossibilidade de
datá-los não prejudicou o seu uso nesta pesquisa. Cabe observar que Oiticica fez uso da linguagem do teatro ao
longo de quatro décadas em suas produções didáticas. Essa característica de funcionamento pedagógico também
pode ser observada ao examinarmos as suas conferências radiofônicas. Duas delas transcritas em forma de
opúsculos e outra manuscrita indicada na listagem de fontes usadas nesta pesquisa. Oiticica fazia uso do diálogo
teatral, de maneia recorrente, na interlocução com os seus leitores e ouvintes. Essa estratégia pode ser vista em
sua produção didática, produzida até o ano de 1955. No roteiro de sua aula radiofônica, Língua falada,
provavelmente elaborado entre os anos de 1948 e 1952, a estratégia da narrativa de diálogos entre personagens é
acionada em suas explicações didáticas. Os excertos citados por Prado (2004) e as suas respectivas apropriações
para esta narrativa foram de grande valia, notadamente, sobretudo no conjunto das outras fontes datadas
recolhidas e selecionadas nesta pesquisa. Assim, os apontamentos de Oiticica apresentados por seu examinador
deixaram as estratégias de aprendizagem acionadas pelo professor Oiticica no uso do teatro. Uma dessas fichas
de aula do bloco examinado por Antonio Arnoni Prado pode ser conferido em fac-simile no artigo publicado na
página Scielo Brasil (Scientific Eletronic Library online).
97
No capítulo I, apresentamos uma matéria jornalística com referências sobre os programas de ensino da Escola
de Arte Dramática Municipal em 1928. Nela o articulista anônimo reclamava da quase inexistência de
programas de ensino, havia apenas os programas elaborados pelo professor José Oiticica. De alguma forma a
atuação de Oiticica, no que diz respeito aos conteúdos que ministrava chamou a atenção, pois: “[...] admitirmos
que o Sr. Oiticica com o seu methodo, com o seu tirocínio, com os seus hábitos de trabalho, lecione mesmo tudo
o que se propõe (A Esquerda – 29-11-1928, Arquivo Fernando de Azevedo IEB,Instituto de Estudos Brasileiros,
USP, Localização: FA A3/143).
103
detectar quais foram as estratégias e os objetivos de aprendizagem visados pelo professor
Oiticica em suas aulas de teatro.
Nas peças de Aristófanes
98
, que para Oiticica foi o primeiro anarquista do teatro
ocidental, havia a possibilidade de dialogar com os princípios libertários. O primeiro roteiro
utilizado do bloco de notas de Oiticica foi assim resumido e comentado, por Prado (2004, p.
150):
O roteiro era implacável: mais talvez que aura solene da biografia do século de
Péricles, ou mesmo que a demonstração analítica da estrutura dramática da comédia
enquanto gênero (os cuidados com o prólogo, o párodo, o agón e a parábase), o que as
aulas de Oiticica perseguiam era a expansão ideológica de um conceito que
empolgasse os alunos em torno da libertação da consciência dos homens. Sob este
aspecto suas preleções eram verdadeiros laboratórios para a discussão e a
revolta. Em vários momentos da leitura de Pluto, em que o pobre e honesto Crêmulo,
aconselhado por um horáculo, persegue e se apodera de um velho cego que vem a ser
ninguém menos que Pluto, o deus da abundância e da riqueza, os tópicos escolhidos
para a preleção não escondem o desejo de convencer os alunos de que numa
sociedade de competição animada pelo dinheiro ninguém ganha em ser honesto.
Na demonstração de sua tese, Oiticica transcreve algumas falas de Crêmulo e Cárion:
o primeiro lamentando-se de que, enquanto se manteve piedoso e honesto, dirigiu mal
os negócios e acabou como miserável, ele – Crêmulo – que cansou de ver “os maus
gozando dos bens adquiridos pela injustiça, enquanto as pessoas de bem viviam
em geral na miséria e morriam de fome”. Cárion, em resposta - que o professor
grifou de vermelho- , apenas confirma a tese, ao dizer que até um cego era capaz
de ver que a honestidade e o dinheiro eram coisas incompatíveis (grifos nossos)
No encadeamento das peças de Aristófanes – o trecho citado acima é da peça Pluto
(388 a.C) – Oiticica, segundo a interpretação de Prado (2004), tinha a intenção de por meio do
diálogo dos personagens criar possibilidades para que os seus alunos percebessem que o
governo não deve interessar a um povo instruído e honesto, servindo apenas aos “ignorantes e
aos marotos”. Com isso, ao que parece, Oiticica pretendia motivar a discussão sobre a
sociedade livre do Estado, uma das teses do anarquismo.
98
O interesse de José Oiticica pelos textos clássicos grego decorre de sua formação cultural, [vide capítulo I].
Além disso, ele estudava grego e foi professor desta língua na Universidade Federal do Distrito Federal, em
1936. As peças de Aristófanes, tal como informou Prado, foram parte de seu material de aula, sendo referidas as
onze que são mais conhecidas: Os acarnianos (425 a.C) ridiculariza os partidários da guerra com Esparta; Os
cavaleiros (424 a.C) é uma crítica desenfreada a Cleon, um dos homens mais importante de Atenas; As Nuvens
(423 a.C) compara Sócrates aos sofistas, mestres da retórica e acusa o filósofo grego de exercer uma influência
nefasta sobre a sociedade; As Vespas (422 a.C) discute a importância da verdade e os seus benefícios revelando a
sua preocupação com a ética; A paz (421 a.C), obra antibelicista; As Aves (414 a.C) descreve o fantástico reino
dos pássaros que dois atenienses dirigem e que na forma como agem conseguem suplantar os deuses; Lisístrata
(411 a. C), as mulheres fazem greve de sexo para forçar atenienses e espartanos a estabelecerem a paz. As
tesmoforiantes (411 a C) paródia das obras de Eurípedes; As Rãs (405 a. C) é o ataque a Eurípedes; Assembléia
das mulheres (396 a. C), uma revolta feminina em que as mulheres ocupam a cidadela de Atenas, a acrópole e
passam a propor uma nova ordem marcada pela socialização da riqueza, da propriedade e do sexo, e Pluto (388
a. C), fábula mitológica da riqueza.
104
Outro texto de Aristófanes, Os cavaleiros, do mesmo bloco de notas examinado por
Prado (2004, p.151), provavelmente o fez por perceber a escolha cuidadosa de Oiticica na
seleção de material de aula, pois a sucessão dos textos permitia a ele ressaltar a relação entre
governados e governantes, o alvo de sua crítica:
Todo mundo te tem como a um senhor, mas tu és maleável e te deixas governar de
bom grado por aduladores e subornantes... . O próprio tripeiro põe fogo nessa briga
quando acusa Cleon de, demagogo, de fazer tudo para que o povo não se aperceba das
ladroagens, e mais: que, apertado pela carestia e pela necessidade de garantir um
salário, fique obrigado a esperar exclusivamente dele, Cleon, as decisões sobre a sua
própria sobrevivência. (grifos nossos)
O trecho mostra o papel do personagem de Aristófanes como um libertário (em quem
os alunos podiam se espelhar), que denunciava os desmandos de Cleon e a fraqueza com a
qual o povo se deixava levar por suas demagogias e enganações. Com isso Oiticica tinha a
oportunidade de tratar indiretamente sobre o sentido que tinha a obra da propaganda social,
ou seja, o teatro possibilitava-lhe fazer a crítica ao poder que governa e àqueles que se deixam
governar.
Da última parte da aula de Oiticica, Prado (2004, p. 152) apresenta outro trecho da
peça Os cavaleiros, em que o personagem Demóstenes, um adulador mau-caráter procura
saber como Agorácito - o tripeiro também mau-caráter - poderia chegar ao poder e tornar-se
um grande homem:
Serás grande porque és um patife sem-vergonha, um filho dos açougues” [...]
“tudo conspira para a tua grandeza”. [...] Nada mais simples. Continua no teu ofício e
mistura e amassa bem todos os negócios do Estado como quando fazes lingüiça. Para
cativares o povo, cozinha-lhes sempre algum prato que lhe agrade. Tem, aliás,
tudo a que vale a um demagogo: voz terrível, natureza perversa e linguajar dos
açougues. (grifos nossos).
Com esse diálogo o professor Oiticica poderia, por exemplo, tratar sobre o
comportamento dos políticos, que, aliás, era combatido em seus artigos jornalísticos para a
imprensa libertaria, assim como era também uma oportunidade para ele pôr em discussão o
desinteresse do governo em formar consciências críticas.
Prado (2004, p. 52-153) ao dar seqüência ao exame do maço com as anotações de aula
do professor Oiticica constata que ele discutia com os alunos “uma boa coleção de tópicos
básicos da filosofia anarquista” que pode ser resumida a seguir:
Em As vespas: o professor Oiticica serve-se do personagem Aristófanes para repudiar
a volubilidade da justiça e a arbitrariedade dos impostos, que entram na aula para
demonstrar que o mal de todos os governos é que eles têm a faca e o queijo na mão
para assaltar a economia do povo e proteger os poderosos;
105
No embalo da sátira que faz Aristófanes do excesso de litigância dos atenienses nas
figuras do velho Filocleon e seu filho Bdelicleon que consegue para o pai o privilégio
de manter um tribunal em sua própria casa, Oiticica leva os alunos as mazelas da
justiça. [...]; O antimilitarismo é outro tema de que o mestre se vale para, através de
Aristófanes, mostrar aos alunos a inutilidade da burocracia das armas. Na
comédia Os acarnianos ninguém melhor do que Dicépolis – o fazendeiro herói que
mantém um tratado de paz em separado com os lacedônios – para resolver os
bastidores da guerra, em que o confisco, o contrabando, o banimento de gente
honesta, o oportunismo dos mercenários, o heroísmo dos individualistas e o
patriotismo dispontam como algo corriqueiro na diluição das diferenças entre o
dever e o crime [...] de As Nuvens, Oiticica aproveita para destacar a iniqüidade
absurda dos agiotas, valendo-se da discussão em que o Primeiro Credor, tentando
explicar a Estrepsíase que ele igualmente circula em vermelho: “Se o mar por onde
correm todos os rios não é maior hoje que outrora, como ousas dizer, patife, que teu
dinheiro aumenta por si mesmo? Some-te daqui”. [...] no desabafo de Crêmulo, no
Pluto, “o dinheiro é a causa única de todos os males e de todos os bens; [...] A
ridicularização dos advinhos como impostores e parasitas e a expulsão dos
legisladores em As aves; o argumento em As Nuvens em favor do adultério e dos
conflitos entre a religião e a moral social; [...]; A queixa de Xanias, em As vespas,
sobre a indignidade da condição de escravos [...] A revolta feminina na Assembléia
de mulheres, que ocupam a cidadela (a Acrópole) e assumem o poder e a direção do
Tesouro, propondo uma nova ordem marcada pela socialização da riqueza, da
propriedade e do sexo (grifos nossos).
Para Oiticica, o teatro era um importante instrumento para provocar a reflexão de
quem encenava e de quem a ele assistia, principalmente porque as peças que ele selecionava,
versavam sobre os temas que tratavam da injustiça, da desigualdade social, da superação da
sociedade tal como ela se encontrava, da construção da nova sociedade etc.
A sua estratégia com os alunos no trabalho com as peças teatrais, comentadas por
Prado (2004), era demonstrar que o Estado não garantia a segurança de todos. Ao contrário,
ocupava-se apenas em garantir a segurança dos proprietários e colocar sob ameaça de
constante expropriação as camadas dos despossuídos. O sistema capitalista e o dinheiro eram
o principal alvo da crítica. Seu esforço era demonstrar os artifícios que levavam o capitalista a
usurpar o trabalho de todos.
Oiticica trabalhava com as peças teatrais nas suas aulas, tanto na Escola Dramática,
como no Colégio Pedro II, nos discurso jornalístico e junto aos grupos de militância
anarquista, visando à propaganda social libertária. Seu discurso, portanto, atingia alunos do
Pedro II, da Escola Dramática, da Escola Normal, o público do teatro social, os militantes
anarquistas e os leitores dos jornais.
Esta discussão terá seqüência no capítulo quatro, quando as incursões às cartas de
advertências que abriam as suas publicações didáticas, assim os diversos trechos de exercícios
106
de gramática, demonstram que a disseminação dessas idéias anarquistas ocorria em todos os
seus diferentes espaços de atuação profissional.
2.3 As peças libertárias de José Oiticica nos espaços da propaganda social e na docência
institucional
De sua produção para o teatro
99
, destacam-se cinco peças teatrais, todas encenadas no
Rio de Janeiro e algumas também apresentadas em São Paulo, entre os anos de 1919 e 1923.
Criou quatro peças que foram: Azalan!
100
; Pedra que rola; Quem os salva?; Não é crime
101
, e
em 1936 produziu a peça Pó de Pirlimpimpim
102
, uma comédia em três atos, representada no
Rio de Janeiro. Foi escrita em 1936.
As quatro peças de sua autoria e produzidas no auge de sua militância, na segunda
década do século passado, foram escritas quando Oiticica vivia uma situação delicada de sua
vida. Ele ainda cumpria pena por sua primeira prisão no Engenho Riachão. Nessa fase, ele
dirigiu com Astrojildo Pereira o jornal Spartacus, quando estava afastado da docência por
causa do cárcere. As suas atenções estavam voltadas para o trabalho com a propaganda
social, mas somente com as atividades com o jornal e com o teatro (na autoria das peças).
A prisão em 1918 reverberou principalmente na escrita de Azalan!, provavelmente por
lhes estimularem a situação real do cárcere, embora as peças Não é Crime e Pedra que rola,
em 1919 e 1920 e Quem os salva? de 1923, apresentem também conteúdos implicados com as
causas da militância libertária. Esse contexto, ainda que sumário ajuda a compreender o
argumento do roteiro e a caracterização mais geral dos personagens por ele criados com
99
Na coluna “outras obras do autor”, de seus manuais didáticos, as três peças mencionadas são as comédias
Pedra que rola; Quem os salva? ; Pó de pirlimpimpim. Os dramas Azalan! e Não é Crime. Não aparecem na
lista, provavelmente pelo fato da construção dos “personagens-espelhos”, um exemplo a ser imitado pelos
militantes na luta libertária.
100
Encontramos a peça Azalan no Centro Cultural São Paulo, no Arquivo Multimeios, na documentação de
pesquisa sobre o teatro operário em São Paulo, desenvolvida pelas pesquisadoras Maria Thereza Vargas e
Mariangela Alves Lima, sendo possível a leitura integral do texto. A peça foi publicada com a capa Cadernos de
latim.
101
As informações sobre os argumentos das peças Quem os Salva?, Pedra que rola e Não é crime foram
organizadas a partir da pesquisa de Antonio Arnoni Prado (2004). José Oiticica como dramaturgo anarquista foi
o foco de sua pesquisa de livre-docência, cujos resultados foram organizados no livro Trincheira, palco e letras:
crítica, literatura e utopia no Brasil, publicado em 2004. O autor analisou algumas peças teatrais produzidas por
intelectuais anarquistas, dedicando a José Oiticica uma seção intitulada Elucubrações dramáticas do professor
Oiticica. Nessa parte de seu livro, esse autor oferece ao leitor, além das suas observações da crítica literária,
alguns trechos das peças de Aristófanes (446-380 a. C) utilizadas pelo professor Oiticica em suas aulas de teatro.
Assim, esses trechos colaboram com esta pesquisa. Os estudos empreendidos por esse autor têm lastro nas
pesquisas de Mariângela Alves Lima e Maria Thereza Vargas. O teatro operário, publicado em Libertários no
Brasil — memórias, lutas e cultura, livro organizado por Antonio Arnoni Prado em 1986 e inspiram-se também
no trabalho de Foot Hardman (1983), mais especificamente em Nem pátria e nem patrão-vida operária e cultura
anarquista no Brasil.
102
O título da peça Pó de Pirlipimpim foi emprestado por José Oiticica da fábula de Monteiro Lobato, publicada
em 1930. A cópia datilografada dessa peça foi encontrada no acervo pessoal de José Oiticica.
107
objetivo de propagar algumas idéias do anarquismo manifestas em suas peças e demonstrar as
conexões entre o trabalho pedagógico na propaganda social com o trabalho desenvolvido na
docência institucional.
Quando Oiticica escreveu a peça Pó de pirlimpimpim, estava sob a dura vigilância da
polícia política, tal como mostram os seus prontuários do Departamento Estadual de Ordem
Política e Social – DEOPS.
103
Nesse período, as associações e os jornais operários estavam
desmantelados, o movimento operário trazia mais de uma década de repressão aos jornais e
sindicatos.
Foi nessa época que Oiticica passou a freqüentar a Fraternidade Rosa Cruz
104
, onde se
manteve participante até o final de sua vida. Essa ordem não se apresentava como uma
religião, com a proposta de transcender aos sectarismos religioso, filosófico, ou político. Ao
contrário da maçonaria aceitava mulheres e tinha como condição de ingresso ter irrestrita
tolerância. Esse movimento eclodiu no século XVII e teve na sua história entrecruzamentos
com a maçonaria, adotando os graus maçônicos, em que somente os maçons podem atingir.
José Oiticica era Grão-Mestre.
Essas considerações acerca da vigilância policial a que estava submetido e a sua
entrada na Fraternidade ajudam a compreender quais eram as condições vivenciadas por
103
Prontuário de nº 860 do DEOPS em São Paulo mostra os relatórios que eram encaminhados ao Gabinete de
Investigação de São Paulo, com o registro das atividades de José Oiticica a partir de 1933. Como exemplos dessa
vigilância podemos referir a carta em que o subchefe dos inspetores Antonio Benvenga, em 07-12-1933
informava que: “[...] é esperado por estes dias o Dr. Oiticica do Rio; o trabalho é para perturbação da ordem [...].
No prontuário nº 58 de seu amigo editor do jornal A Plebe há uma carta que registra uma fala de Oiticica sobre
as condições de perseguição da polícia carioca que em 1936 impedia ações militantes naquele estado: [...] com o
fim de organizar-se um COMITÊ ANTI-FASCISTA, tendo á sua frente os anarchistas de São Paulo. Aberta a
sessão, falou o presidente da mesa, dizendo da necessidade de tal organização para combater o governo e o clero.
Em seguida, usou a palavra o prof. JOSÉ OITICICA, vindo especialmente do Rio para esse fim, o “qual, após ter
falado sobre o operariado do Rio, que, segundo ele, não pode mais ter organização, em virtude da acção da
polícia, disse que lançava o seu olhar para São Paulo, única cidade do Brasil onde existem elementos capazes de
fazer balauartes na próxima jornada da Revolução proletária” .Toda essa atmosfera de insegurança, pelo
momento político de perseguição a todos, obrigou cautela nas suas produções. Assim, Pó de Pirlimpimpim é uma
comédia que apresenta as suas críticas à religião, ao Estado de maneira velada, porque a situação de vigilância
determinava o procedimento de cautela.
104
A hipótese desta pesquisa é que José Oiticica teve o seu interesse despertado pelos estudos rosacruceanos na
primeira década do século XX, quando conheceu Afrânio Peixoto, em sua fase próxima da poesia simbolista.
Este autor escreveu Rosa Mística em 1911, assinando a obra com o pseudônimo de Júlio Afrânio após uma
viagem ao Egito sob efeito do contato com questões do Ocultismo. Mais tarde, esse poeta negou sua obra como
nos conta Brito Broca (2004, p.184-186). Afrânio Peixoto era próximo de Oiticica, tendo ocupado a direção da
Escola Normal, em 1917, quando Oiticica lá ingressou. Além disso, havia no Correio da Manhã, onde Oiticica
trabalhava sujeitos que participava da revista Rosa Cruz que circulou no período. Em A Lanterna, onde Oiticica
colabora sistematicamente também havia maçons ligados a Rosa Cruz. Essas evidências ajudam pensar sobre a
sua inserção rosacruceana. A Fraternidade Rosa Cruz provinha de uma sociedade secreta do século XVII, que
procurava uma reforma das relações do mundo por uma aproximação geral dos povos, fundamentada na religião
egípcia dos tratados herméticos, transcendendo as diferenças religiosas pelo amor e pela magia, utilizando uma
nova visão da natureza obtida através de exercícios contemplativos. Em vários momentos a rosacrucianos
estiveram ligados à Maçonaria. (FRANCES A. YATES, El Iluminismo Rosacruz, 2001).
108
Oiticica na fase de elaboração de suas peças teatrais, com vistas a fornecerem elementos que
proporcionassem decodificar as características mais emblemáticas dos personagens dessas
peças e quiçá possibilitassem detectar pontos na penumbra que marcam o autor no
personagem e/ou entre as idéias com as quais ele se identificava no anarquismo, mais
especificamente relacionada às práticas da propaganda social.
Do conjunto dessas cinco peças, a opção foi apresentar excertos de Azalan!, cuja ação
se passa em 1915, no presídio de Fernando de Noronha, e de Pó de Pirlimpimpim , cuja
história ocorre na ambiência do governo Vargas. A razão desta escolha explica-se por serem
as obras que iniciam e finalizam a sua produção para o teatro.
A primeira peça Azalan!, é um drama que teve como destaque Sérgio, um
personagem-espelho
105
, uma espécie de herói, um exemplo a ser seguido pela militância
expectadora e participante do teatro social. O contexto que envolve a trama está visceralmente
relacionado com o que Oiticica acabara de viver no final de 1918, um pouco antes de partir
para o Riachão, e sua posterior clandestinidade.
A sua última peça, Pó de Pirlimpimpim, é uma comédia em que ele conta a história de
seu Calu, um comerciante buscando obter vantagens, for isso foi enganado por trapaceiros que
lhe venderam um pó mágico, para todos os males. A propaganda capitalista, as instituições do
Estado, a polícia, a crença nos santos e nos milagres são os alvos da crítica velada e travestida
de humor, constituindo-se no argumento da peça.
A apresentação das outras peças de José Oiticica, Não é crime, Pedra que rola e Quem
os salva?, é tratada neste texto a partir do diálogo com a pesquisa de Prado (2004),
especificamente pelo uso de excertos que este pesquisador disponibilizou em seu texto, dados
que os interesses de investigação não coincidem com os que direcionam esta pesquisa.
As peças teatrais de José Oiticica foram produzidas para o teatro social e para a Escola
de Arte Dramática Municipal, portanto trata-se de um material usado tanto na docência
institucional, como pelos grupos anticlericais e libertários da propaganda social. Essa
peculiaridade desse material foi observada como duplamente interessante, pois se trata de
textos de funcionalidade pedagógica utilizados nos dois espaços de atuação pedagógica de
José Oiticica, a saber a docência institucional e a propaganda social.
105
Este conceito é retirado por Antonio Arnoni Prado da pesquisa de Eva Golluscio de Montoya, intitulada
Pactos de representación em um teatro militante: el problema del destinatário. Washington: jun.mimeo: A
personagem-espelho é aquela que sofre no palco o processo de aprendizagem necessária e que o autor da peça
quer transferir para o espectador militante, levando-o à libertação intelectual e moral. (MONTOYA, 1990, apud
PRADO, 2004, p.160).
109
De acordo com Lima e Vargas (1986, p.169), o teatro operário se caracterizava por
apresentar roteiros com textos curtos, incidência exagerada de monólogos de personagens
arquétipos, com apelos evocativos ideológicos. Nos roteiros de Oiticica, embora tenham sido
produções destinadas também à propaganda social, essas características não aparecem, de
maneira integral na sua produção de José Oiticica. As suas peças não são curtas, são
elaboradas e os personagens exibem algumas características da dramaturgia clássica. Esses
aspectos podem ser observados mais especificamente no drama de Azalan!. Por outro,
evidencia-se o personagem-espelho, que as pesquisadoras acima referidas explicam como de
“natureza ideológica procurando criar uma consciência de classe”. De acordo com Prado
(2004, p. 162), Azalan!, apesar de apresentar algumas das características do teatro libertário
militante, destoa em aspectos como:
(...) brevidade do episódio, simplicidade da trama (com destaque para o ato único), a
clareza da mensagem e a repetição dos motivos dramáticos na articulação dos temas,
das moralidades e dos esboços ideológicos próprios do teatro didático
propagandístico, em que as rubricas quase não têm função cênica ou caracterização de
personagens, o monólogo entra como modalidade básica e as falas exigem do ator uma
atitude recitante próxima da declamação, de que são exemplos clássicos os apartes do
estrangeiro no Primeiro de Maio, de Pietro Gori.
Algumas características assimiladas do itinerário de formação de Oiticica, como os
estudos das humanidades - marca de sua formação - que incluíam, por exemplo, leituras das
obras clássicas, do latim etc, e, tal como mostraram as anotações de aulas examinadas pela
pesquisa de Prado (2004) e também aquelas que este analisou, indiciam que as peças de José
Oiticica, ainda que criadas para o teatro libertário militante, dificilmente deixariam de
apresentar os elementos dramáticos oriundos do tipo de formação que ele recebeu ao longo de
sua trajetória nos estudos clássicos.
No entanto, a opção de Prado (2004) em tentar comparar o teatro libertário com as
peças de Oiticica, ou escolher o caminho inverso, como buscar os elementos clássicos que
Oiticica levou ao teatro libertário, demonstraria que entre tais instâncias havia a circulação de
diferentes padrões. Provavelmente, admitida e trabalhada esta hipótese da circulação de
saberes e práticas nas várias instâncias de sua atuação pedagógica encontraríamos a
conformação particular de sua contribuição para o teatro social; no diálogo de sua erudição
clássica com os elementos da cultura popular, essas instâncias nunca estiveram apartadas.
Azalan!
Azalan! É uma peça de três atos. A sua história se passa em 1915, na Ilha de
Fernando de Noronha. Na trama, Sérgio, o arquétipo do herói revolucionário, foi preso por
110
atuar em prol da causa da Revolução Social. Ele é um militante anarquista que cumpre pena
sob acusação de ter produzido dinheiro falso para financiar a obra da revolução.
No desenvolvimento do roteiro da peça, Oiticica faz Sérgio mostrar como a sua prisão
foi injusta. Ele e os seus vinte e sete companheiros resolveram falsificar dinheiro para
financiar a obra da revolução social, como uma ação diretamente ligada à felicidade de todos,
afinal era o meio para a suplantação da velha ordem social e para a construção da nova. O
uso e a produção do dinheiro falso tinha um fim justo, pois serviria à obra da revolução social.
Para além dessa justificativa plausível, o dinheiro já é falso por natureza, engana o trabalhador
sobre o valor de seu trabalho. Portanto, por essas razões não havia crime algum, nenhuma
razão, além da injustiça do sistema, que justificasse o seu encarceramento.
No transcorrer do roteiro da peça, o perfil do herói revolucionário adquire contornos
que permitem a todos compreender a importância de sua missão de criar condições para a
revolução social rumo à sociedade nova reservada à felicidade de todos os despossuídos.
Esse personagem contracena com o velho Dionísio, um ex-escravo, prisioneiro, preso
desde os tempos do Império com duas características marcantes, espera a volta do Regime
Imperial e vive obcecado com a palavra Azalan! Na imaginação de Dionísio, esta palavra lhe
foi revelada por uma princesa, chamada Magalona, que em razão de uma maldição, vivia no
fundo do mar. Para libertá-la, Dionísio acreditava que teria de atirar uma donzela ao mar e
gritar três vezes a palavra Azalan! Feita essa obrigação, Dionísio receberia informações sobre
um tesouro enterrado na ilha e ficaria rico.
Oiticica dá a cada personagem contornos que mostram suas diferentes características.
Clotilde, filha donzela do diretor do presídio, apaixonada pelo herói revolucionário; Generino,
um pobre coitado, preso por ter furtado um cavalo. Nas falas desses três personagens,
percebe-se o uso cuidadoso da língua em oposição à fala de Dionísio, preso por ter matado o
dono da senzala, por este ter tentado seduzir a filha daquele. Para este último personagem,
usou a linguagem da gente simples do povo. No desenvolvimento da peça aparecem
mensuradas as definições dos crimes de cada um e todos os seus “crimes” são justificados por
serem todos em decorrência da miséria, do alcoolismo, da perseguição dos patrões, das
crendices e fanatismo religiosos. Para demonstrar como se construía a aula por meio do teatro,
vejamos do enredo da peça uma fala de Sérgio e Clotilde, quando o herói lhe explica a causa
de sua prisão, em seguida, defende os presos da ilha:
Sérgio: [...]Temos a fábrica [de dinheiro] em S. Paulo, mas meus companheiros estão
espalhados pelo Brasil inteiro. Já fomos presos, três, mas somos vinte e sete. É
impossível apanhar todos porque se revezam, mudam de lugar e fabricam notas de
111
todas as estampas ao mesmo tempo com rara perfeição...Quer saber para que fazemos
não é?
Clotilde: Sim
Sérgio: Para uma grande, uma extraordinária obra: a libertação dos brasileiros.
[...]
Sérgio: Será mau aquele Generino?
Clotilde: Generino não parece.]
Sérgio: Separado da família, encarcerado longos anos por ter furtado alguns
cavalos...e note-se tendo furtado por doença, por mania...
[...]
Sergio: D. Clotilde, como eu e como este são os demais. Mataram ou furtaram porque
a isso os impeliu a fome, o álcool, a doença, as perseguições aos superiores, a
politicagem dos seus amos, a supertição, a ignorância, todas as misérias que os
dirigentes do mundo inteiro vão mantendo porque lhes convém...[...]
(OITICICA, 1920, p.17, Azalan!, Cadernos de Latim)
Cada um dos personagens de Azalan! recebeu de seu autor uma caracterização
denotando o lastro da cultura popular e/ou a ligação ao temas caros ao anarquismo. Um
exemplo, a ser destacado sobre essa peculiaridade com relação ao personagem espelho
(modelo a ser seguido), de Oiticica, nessa peça aparece em uma das falas do personagem
Dionísio, em que se manifesta o antimilitarismo defendido no discurso libertário:
[...] Foi o guvêrnu mesmo que mando mata [na Guerra do Paraguai] e o depois ainda
me deu condecoração, três medaia. E depois, como eu matei um home ruim que queria
desonra minha filha, eles me condenaru cumo criminoso (OITICICA, 1920, p.17,
Azalan!, Cadernos de Latim)
Ao examinarm-se as falas dos personagens de Azalan!, observam-se os usos que
Oiticica faz de visões de mundo manifestadas também nos discursos jornalísticos, como, por
exemplo, a descrença na ordem jurídica e a crença na revolução como a única possibilidade
de resolver os problemas da terra vista como um “vasto presídio”. Outra fala do personagem
revolucionário clarifica esta última idéia:
Sérgio: [...] Não é só esta ilha que é um presídio; toda a Terra é um grande, um
vastíssimo presídio onde se torturam muitos milhões de vítimas para nutrir, fartar uma
pequena porção de homens insaciáveis. Veja, a população da ilha divide-se em duas
porções muito desiguais: a dos sentenciados, grande maioria, que trabalham como
escravos e a dos vivandeiros, meia dúzia de funcionários que exploram, por meio do
dinheiro, o trabalho dos sentenciados. É um miniatura da humanidade.
Clotilde: É mesmo.
Sérgio: Ás vezes ponho-me a pensar. Parece-me ver uma daquelas hidras que lhe
mostrei ontem no livrinho de mitologia; mas uma hidra invisível e presente em toda a
parte a esticar suas inúmeras cabeças e a tragar os seres humanos. Aqui em Fernando
112
de Noronha somos nós as vítimas; no Brasil inteiro são milhares e milhões de
desgraçados que trabalham de sol a sol, no eito e nas usinas, em seringais e estâncias,
no café, no algodão, no cacau, no fumo, na farinha, nos trapiches, nos navios, a criar
riquezas e riquezas e a morrer de fome, de fome e de doenças, d. Clotilde,
desprezados, caluniados, morando em casas de sapé ao passo que os cavalos de seus
amos tem estribaria assoalhada e de tijolo...Comem bacalhau e farinha seca uma vez
por dia e dão rações fartas aos animais de seus patrões.[...].(OITICICA, 1920, p.17,
Azalan!, Cadernos de Latim).
O herói libertário da peça consegue escapar do presídio e dar continuidade à obra da
revolução. Ele simboliza um homem forte que está a serviço da humanidade, acima do bem e
do mal. Clotilde ajuda-o em sua fuga, mas não se converte ao anarquismo, e também não tem
o seu amor correspondido por Sérgio que é noivo de Clara e recebe do herói um tratamento
fraterno.
A pedra que rola
Das análises feitas por Prado (2004, p.164-166), informamo-nos de que A pedra que
rola é uma comédia satírica com três atos em que Oiticica trata dos valores burgueses na
relação entre os seus personagens. Bernardo, um comerciante português, mesquinho, católico,
fanático, admirador da monarquia, rico o bastante para ter encaminhado na vida o seu
sobrinho Jorge. Este lhe é subserviente pela dívida de gratidão que tem com o seu tio e oculta
uma paixão secreta por Corina, a esposa muito jovem de seu tio benfeitor, uma mulher infeliz
no casamento, pelo fato de ser tratada como uma espécie de objeto adquirido pelo marido a
peso de ouro. A relação tranqüila da tríade é tencionada com a chegada de Inácio, irmão de
Jorge, sem qualquer disposição em respeitar as instituições e convenções burguesas. Seduz
Corina com um beijo testemunhado por Jorge. Para se livrar da delação de Jorge, ela o
incrimina ante ao marido sob a acusação de tentar seduzí-la. A frieza de Corina ao negar o
romance com Inácio e incriminar Jorge, o “bobo da família”, encerra o espetáculo.
Nessa peça, Oiticica levou para o palco, nas palavras de um dos personagens, Inácio,
“as mazelas da sociedade burguesa e as deformações humilhantes a que leva o dinheiro a que
ela patrocina”. Conforme Prado (2004, p. 165) afirma, nessa peça não há personagens-
espelhos que distingam a conduta revolucionária daquela conduta das mazelas e mostra a
todos quais são os erros a serem evitados.
Em A pedra que rola, a julgar por algumas falas dos personagens apresentadas por
Prado (2004) e por sua descrição sobre a peça, é possível perceber que, no foco da crítica de
Oiticica estão as relações do universo da sociedade burguesa. Isto parece claro, quando o
examinador da peça oferece a descrição de cada um dos personagens cuja súmula foi
apresentada. A peça mostra que as instituições -família, casamento – instituições burguesas e
113
as relações nas condutas de dependência estabelecidas em nome da “gratidão”, a compra e
venda da “proteção” são os grilhões no palco crítico de Oiticica.
Dessa peça de Oiticica, Prado (2004) destaca uma fala do personagem Inácio (o primo
de Jorge e sedutor de Corina), que exibe uma performance de livre pensador, na posição de
quem não dá a menor importância ao fato do tio (Bernardo) ter ajudado na educação de seu
primo Jorge:
O senhor é católico fervoroso e monarquista, começa a pregar as suas idéias aqui
dentro e não deixa ao rapaz a liberdade de aspirar às idéias republicanas de nossa
terra.Qual o resultado? Dá- nos um fanático do papa e da realeza. Sucede que mal a
gente assevera que a confissão é uma imoralidade e que Pedro II era um banana, o
rapaz se enfuria, manda os livre pensadores para o inferno e chama os republicanos de
bandidos. Está aí o que o senhor faz. (OITICICA, 1920, apud Prado, 2004, p. 165).
Na fala do personagem libertário, Inácio defende a República como o “novo” que
suplanta o “velho” representado pela Monarquia. Tanto o imperador Pedro II, como o papa
estão na mira crítica do autor, e a imoralidade da confissão era uma crítica recorrente do
discurso anticlerical, pois no início do século XX, em decorrência do esforço do papa Pio X, o
clero passou a aconselhar a prática da confissão freqüente. O objetivo era fazer o fiel em
pecado confessar para com isso obter o perdão divino. Essa obrigação de confissão era anual
de acordo com o Concílio de Latrão IV, de 1.215. Segundo Valladares (2000, p. 73) os
anticlericalistas, os livre-pensadores, libertários, anarquistas hostilizavam com veemência tal
costume:
[...] a hostilidade contra a confissão cresceu durante o século XIX. Ela era acusada de
ser uma intromissão dos padres na vida íntima das pessoas, de promover a cizânia
entre homens e mulheres, de ser um espaço utilizado por padres libidinosos para
seduzir moçoilas ingênuas ou mesmo mulheres casadas, de ser uma espionagem
clerical em favor dos patrões, de constranger o desenvolvimento dos indivíduos, de
representar uma forma de manipulação política que procurava favorecer o Antigo
Regime, de ser utilizada para combater a escola leiga em favor da escola confessional,
e de ser contrária ao progresso do ideal republicano. Em suma, era denunciada como
um evidente abuso de poder que deveria ter fim. A questão da confissão foi
constantemente usada pelos anticlericais para reforçar as suas campanhas.
Dessa forma, Oiticica por meio do seu personagem Inácio expressava a sua crítica à
confissão religiosa, tal como faziam os intelectuais que partilhavam com ele das idéias e ações
anticlericais. Para Oiticica, a religião é:
[...] o processo de subjugar o povo fazendo-o crer num ser onipotente, invisível, dono
do universo, castigador dos maus, premiador dos bons. Os maus, naturalmente são os
que se desviam das normas ditadas pelos sacerdotes e atribuídas à divindade. Os bons
são os que a elas se conformam sem nenhum protesto. No ocidente europeu e
americano, a religião dominante é a cristã, quer romana, quer protestante, quer
114
ortodoxa. Ensina que um só deus verdadeiro existe [...] Os sacerdotes romanos,
chefiados pelo papa de Roma, têm a seu cargo salvar as almas humanas, separadas do
corpo pela morte, dos castigos infligidos eternamente, num lugar de suplícios, o
inferno. Para furtar-se a tais torturas, devem os homens, acima de tudo, observar os
mandamentos da lei de Deus e os dogmas da Igreja. Esses mandamentos e dogmas
encaminham os homens ao respeito à propriedade e à obediência aos superiores,
considerados representantes de Deus na Terra. [...] Tal religião é inimiga dos
trabalhadores porque lhes peia a mentalidade, lhes ensina absurdos e mentiras
mediante as quais lhes vai sugando uma porção dos seus já minguados recursos.
(OITICICA, 2006, p.55).
Quem os salva? e Não é crime: a questão feminina vista por Oiticica
Quem os salva é, segundo Prado (2004, 167-170), um drama de costumes em três atos,
uma peça que conforme este pesquisador, se enquadra nas características do teatro libertário
militante. A peça mostra uma família burguesa, com todos os vícios que lhe são
característicos, como: a “carolice” da mãe (Gabriela), o filho (Geraldo) que desrespeita a mãe
e defende o alcoolismo, a mãe que adota uma menina para viver como filha (Paulina) e que,
na verdade, a trata como a sua empregada, o pai (Martins) acusado de trazer álcool para
dentro de casa.
De acordo com Prado (2004, p. 168), o ponto alto do argumento desta peça gira em
torno do personagem Geraldo:
O ritmo do humor é quase farsesco nas cenas em que Geraldo responsabiliza o pai, o
governo e a sociedade pelo vício da bebida. O pai por ter trazido o álcool para
dentro de casa; o governo por permitir o fabrico e a livre propaganda da bebida;
e a sociedade por marginalizar os fracos de espírito, que, como ele, vão na
conversa e compram a bebida. Aqui a nota de humor é a inclusão dos frades
bebedores de licor. Os bêbados, os frades e os fabricantes, diz Geraldo ao pai, “qual
deles é o maior culpado?”(...) “Eu acabo entrando...Acha o senhor que eu sou
culpado de ter vontade fraca?” Diz cinicamente a Martins. “Contra a propaganda
intermitente, só pode haver uma saída”, diz Geraldo ao pai: “sabendo-me incapaz de
resistir à tentação, tomo um alvitre louco: saio pela porta fora, invado a primeira
fábrica de bebidas que topar, agarro de um cacete e ponho-me a quebrar filtros,
retortas, alambiques e garrafas a destruir tudo”....O pai adverte que ele seria preso.
Ele responde: “Por certo, no xadrez, ou no hospício, culpado pela sociedade, pelo
direito de ter reagido ao único modo eficaz contra os miseráveis que exploram minha
cabeça fraca... sim contra os miseráveis que depois de me convidarem, incitarem e
provocarem a comprar-lhes as bebidas, me apontam a mim e aos outros como
viciosos, como perdidos, como ébrios [...].
A tese de Oiticica é que a vontade fraca não tem como resistir aos fortes apelos da
propaganda capitalista. Além da vontade fraca, o pai e o governo estão na mira da sua crítica
pela a responsabilidade da disseminação do alcoolismo. Essa reprovação ao álcool circulava
na literatura internacional que adentrou no Brasil. Destacava-se na lista das leituras prescritas
115
como necessárias a todos a leitura do romance de Émile Zola, O Germinal, que entre outras
questões apresenta em sua dimensão crítica as razões que levavam os operários a usar o
álcool. Em A doutrina anarquista ao alcance de todos
106
, Oiticica (2006, p. 70) refere-se a
este romancista da seguinte forma:
O célebre romancista Émile Zola frisou bem esse ponto [a miséria do trabalhador,
habitação promíscua, desânimo, aviltamentos morais] no seu admirável romance
Germinal. Aí vemos o proletário induzido ao jogo por miséria, ao álcool por não ter
carvão suficiente, à exploração sexual de moças para equilibrar o orçamento, a
depravação da linguagem, condição social imposta pela miséria.
Oiticica, provavelmente também motivado pelo debate libertário da moral anarquista
e pelas idéias que pregavam a regeneração social
107
, levou o tema do alcoolismo para o
personagem Geraldo, que problematizava com o pai sobre quais os culpados de seu vício de
alcoolismo. Este era um tema bastante debatido na imprensa libertária, mas que também
constava na ordem do debate dos outros projetos educacionais que circulavam nesse período,
a maior parte deles com inspiração escolanovista.
No ambiente intelectual de Oiticica, na imprensa libertária, nas atividades das sessões
de propaganda, manifestava-se uma espécie de moral que defendia padrões de comportamento
éticos quase que semelhantes àquelas prescrições de conduta encontradas nos discursos dos
religiosos. O combate aos vícios em geral, e ao alcoolismo em particular, por exemplo, faziam
parte da pauta de atividades da militância. Além das campanhas de abstinência ao álcool,
Oiticica condenava também o jogo, o fumo, defendia que as atividades de cada sujeito não
poderiam se tornar um desperdício de energia. Essas considerações ajudam a compreender a
alma do seu personagem Geraldo. Por meio do desabafo deste personagem, Oiticica
reprovava os arruinadores dos que têm “vontade fraca”. Neste caso, a sociedade capitalista
que fabrica o álcool. Assim, procurava exercer a atividade educativa prescrita na moral dos
libertários de seu tempo.
106
Esta obra foi escrita por José Oiticica em 1925, quando estava preso na Ilha de Bom Jesus. Foi publicada no
jornal Ação Direta em formato de folhetim no nº 4, de 07-05-1946, ao nº 34, em 01-05-1947. Em 08-08-1947, os
folhetins com A doutrina anarquista ao alcance de todos voltam a ser publicados. No nº 43, de 22-10-1947 é
anunciada a publicação em formato de livro. A citação apresentada foi retirada da reedição da obra como uma
iniciativa de Edgar Rodrigues e Robson Achiamé.
107
Os trabalhos de pesquisa historiográfica de José Murilo de Carvalho (2004) Os bestializados: o Rio de
Janeiro e a República que não foi e (1998) A formação das almas: o imaginário da República no Brasil e as
pesquisas da área da historiografia da educação brasileira, como, por exemplo, a de Marta M. C. de Carvalho
(1989), A escola e a República, ajudam a ver a circulação e embates de vários projetos educacionais nas décadas
finais do século XIX e iniciais do século XX e situa o contexto da perspectiva de regeneração social que se
manifestava em todos eles. Porém vale ressaltar que a degeneração do trabalhador, a partir das concepções de
Oiticica, é fruto do capitalismo, representado pela Igreja, Estado e instituições burguesas, diferentes das visões
escolanovistas que estigmatizaram o trabalhador como o degenerado, representado pelo personagem Jeca tatu.
116
Os argumentos sobre a necessidade de ações direcionadas à “regeneração popular” por
meio da educação do povo, circulava nos vários projetos educacionais, para Oiticica, o povo
sofria com a ignorância e os vícios, em decorrência das mazelas gestadas pelo capitalismo, e,
por essa razão precisava alcançar o estágio de dignidade. Nesse sentido, nos discursos
libertários havia a condenação das práticas carnavalescas e futebolísticas, que eram
reprovadas dentro e fora dos projetos educacionais libertários. Esses discursos não eram
unívocos, Oiticica, por exemplo, não reprovava o futebol.
Muitas idéias dos intelectuais envolvidos com a educação libertária eram partilhadas
entre intelectuais de projetos educacionais adeptos das diferentes idéias escolanovistas com a
proposta de formar o homem novo.
108
Enquanto os anarquistas utilizavam o jornal, a escola, o
sindicato, o centro de estudos sociais, as suas bibliotecas e o teatro social para essa formação,
os escolanovistas atrelavam o sucesso da educação, sobretudo a escolar, ao progresso da
nação e para o qual também tinham a perspectiva de formar um homem novo.
(GONÇALVES, 2002).
Oiticica participava desse debate na propaganda social anarquista e na educação
institucional e nesses dois lugares pedagógicos ele se manifestava com propostas e ações. As
suas peças teatrais, de certa forma, podem ser compreendidas como uma de suas ações para a
educação dos trabalhadores, isso porque eram direcionadas justamente aos participantes e
espectadores do teatro social. Educar o povo com novos hábitos era também a sua proposta no
projeto da nova educação que incluía a crítica às instituições burguesas, além do combate ao
alcoolismo.
A peça Quem os Salva, que, como já foi mencionado fazia a crítica às instituições
burguesas. Em seu desfecho, há um elemento propiciador da reflexão sobre o tema do amor
livre, uma das teses anarquistas, cujo alvo é justamente o casamento burguês e a educação dos
filhos. Geraldo se apaixona por Paulina e, desafiando os pais, comunicam-lhes que resolveram
108
Marta Maria Chagas de Carvalho (1998), em seu livro Molde nacional e fôrma cívica, trabalhando com o
discurso cívico da Associação Brasileira de Educação ABE, nos anos 1920, chama a atenção para as imagens de
realidade que “opositivamente se interqualificavam”, em que o futuro aludido com freqüência dependia de uma
política educacional: “[...] futuro de glórias ou de pesadelos, na dependência da ação condutora de uma elite”que
direcionaria, por meio da educação, a transformação do país, para a superação do passado “condenado e
lastimado”. Esse passado aparecia representado pela figura de um brasileiro doente e indolente, apático e
degenerado, perdido na imensidão do território nacional na figura alegórica do personagem Jeca Tatu, de
Monteiro Lobato (p.141-142). Com os projetos educacionais esperava-se superar o Jeca Tatu e construir o
homem novo da perspectiva dos sujeitos articuladores do discurso cívico com o qual essa pesquisadora trabalhou.
Gonçalves (2002), ao tratar dos discursos dos intelectuais de A Plebe, no homem novo da perspectiva libertária
também estava presente a idéia de regeneração social, porém tal ideal era viável numa sociedade igualitária,
como sonhava o ideário anarquista.
117
viver juntos a felicidade do amor livre, e, então, munidos dos chavões libertários, dizem,
segundo Prado (2004, p.169):
[...] desgraçados os inferiores que põem sua salvação nas mãos dos superiores; “os
inferiores são fracos individualmente, mas centuplicarão suas forças, unidos”;
“não me sacrificarei mais aos preconceitos burgueses, ricos com fumos de nobreza;
não lhes imolarei o meu coração... só admito para o amor uma lei: o afeto mútuo, o
desejo livre dos que amam”. [...]
“brida nos queixos, como a dos burros, os filhos são como bons escravos” que
obedecem e trabalham sem reagir a opressão de que são vítimas.
A idéia de que a família burguesa transformava os filhos em escravos foi alvo de
reflexão de José Oiticica, que sustentava a tese de que a obediência às normas da família
burguesa transformava os filhos em vítimas de uma tirania. Além disso, em suas peças ele
trabalhava a dimensão feminina na família.
As personagens femininas Clotilde de Azalan! e Corina de A Pedra que Rola exibem
certas dimensões libertárias, embora nenhuma delas se enquadrasse na condição de heroínas
ácratas. Clotilde compreendeu rapidamente que Sílvio não era um prisioneiro comum e o
ajudou em sua fuga da prisão de Fernando de Noronha. Corina, quando advertida por Jorge
sobre a sua condição de “inexperiente no mundo” e que “não [podia] sozinha resistir às
tentações e as maldades dos homens”, respondeu-lhe: “Não preciso de defensores de minha
dignidade [...] Procedo como entendo, bem ou mal, mas como entendo. Nunca precisei de
confessores nem guardas de honra. Essa agora...”. (OITICICA, José, 1920, apud PRADO,
2004, p.165).
Além das críticas á religião Oiticica se dedicava a escrever sobre o papel da mulher na
sociedade. Na revista A Vida
109
, no seu artigo publicado em formato de folhetim, O
desperdício da energia feminina, faz a defesa da emancipação da mulher, principalmente pela
função de educar os filhos libertários:
[...] A mulher sobretudo se tem conservado numa ignorância sistemática. Só
modernamente ela vai se revoltando contra a opressão do homem. Vede porém que
tenaz resistência ela suporta da parte dos graúdos. Ainda hoje é mal vista a moça que
se atira aos estudos superiores. Quer-se o cérebro feminino um crânio bem vazio de
tudo o que não seja a frivolidade das cançonetas ou dos ensinamentos retrógrados de
Sion. A mulher é para casa, dizem os burgueses, e para cuidar dos filhos. Mas o
burguês que assim fala quer um guarda-livros hábil para o seu negócio e um
veterinário experto para o seu cavalo.É bem de ver que o burguês coloca o negócio e o
cavalo acima do filho. Basta considerar a educação do filho para medir o alcance da
educação intelectual da mulher. Criar um filho, educar um filho é um problema que
exige uma instrução vasta e variada. Toda mãe de família deveria ser uma pedagoga;
109
O capítulo seguinte reserva um espaço para a explicação do projeto de criação da revista A Vida, com
comentários mais detalhados sobre as publicações de Oiticica nesse periódico.
118
mas a pedagogia se baseia na psicologia e na fisiologia que supõem o preparo em
ciências correlatas, digamos melhor todas as ciências. Ninguém deveria ser mais
enciclopédico do que a mãe de família e portanto do que a mulher. Uma sociedade
bem constituída seria aquela em que todas as mulheres podessem ser amplamente
instruídas. (A VIDA, ano 1, nº 2, 31-12-1914, p.7).
Não é crime é um drama de um ato em que Oiticica focalizou o tema do amor livre,
uma das perspectivas libertárias a ser atingida na sociedade futura. De acordo com a análise
de Prado (2004, p. 170), esta peça pode ser enquadrada na “retórica do teatro militante,
impulsionada pela brevidade do texto, pela fluidez de um diálogo cênico”.
A trama se passa entre no triângulo de personagens. Sara procura o seu antigo amor
Celso e quer saber se ele ainda a ama. Ele responde que sim, assim como ama a sua esposa
Lina. Ela informa-lhe que não quer nada dele a não ser saber sobre os seus sentimentos por
ela. Ele conta de seu amor por Lina, uma mulher libertária autêntica que o fascinara. Lia
escuta a conversa e os convida a se beijarem. Com este enredo a perspectiva libertária
apresenta-se nas falas selecionadas por Prado (2004). No excerto abaixo, podemos observar
qual era a dimensão do amor livre para Oiticica:
Cena I
Celso fala a Sara sobre a esposa:
“asseguro-te [...] que se conhecesses de perto Lina, se tratasses com ela, se
penetrasses nas profundezas daquela alma rica, esplendente, onde se desabrochavam
dia a dia novas surpresas...” [...]
Sara reage com ciúmes. [...] Celso explica a Sara que via em Lina a reprodução fiel da
alma de Sara:
“Não pode haver duas naturezas semelhantes, duas criaturas tão igualmente
prendadas” e conclui: “Eis porque amei Lina, porque loucamente, perdidamente a amo
[...] é que amando as duas criaturas, amo um só tipo de mulher...Serei culpado?
Sara:
“Tua mulher ama-te, não tem culpa do meu destino. Seria abominável que eu viesse a
toldar a felicidade dela” [...]
Celso:
“Não sairas daqui, promete-me...eu não consinto” “Agora quero-te junto e não
permito que me fujas [...] “Serei fiel sempre, a minha mulher, porque ela é digna
disso...e serei fiel a teu amor, porque ele é digno disso”.
CenaII
Lina surge na cena II, apresenta-se e diz:
Há muito a bendizer [...]
“Sou testemunha da tortura dessa mulher que te ama e me comovo e choro com ela
porque te amo muito e calculo o que seria do meu coração se estivesse na posição
dela”
Sara não consegue entender. Lina insiste que não esta fingindo e diz:
119
“Não faça de mim este juízo hediondo” “minha grande verdadeira e consubstancial
irmã”
Sara chora e Lina procura consolar:
“Não chores mais...seremos muito amigas...” “Quero-lhe o bem de irmã...deixe ver
nesses lindos olhos o retrato de minha alma”
Lina convida Celso e Sara a se beijarem e explica:
“Ele não ama nossos corpos” “ama nossas almas...o corpo nada vale...Meu corpo
poderia ter ciúme do seu...Meu espírito não tem...” “vamos beijem-se
apaixonadamente...” “eu suplico, beijem-se com todas as forças da carne e do
espírito...quero sentir em mim a vibração desse misterioso amor”
Celso e Sara hesitam. Lina os faz abraçarem-se, agarrando as mãos de um nas mãos de
outro. E eles se beijam. “longa e transubstancialmente” “Seremos amigas, muito
irmãs, quero vê-la sempre, ter notícias suas...serei a confidente de suas amarguras...”
diz Lina a Sara.
Sara perplexa, parece horrorisada ante as promessas da utopia: “Preciso morrer,
preciso morrer...”
(OITICICA, 1920, apud PRADO, 2004, p.170-172)
Para Oiticica, o amor livre deveria ser efetivado sem a interferência de qualquer fator,
fosse religioso, econômico ou moral. No discurso anarquista corrente nos jornais,
desqualificava-se o matrimônio convencional, tido como uma espécie de prostituição, tal
como ficou subentendido na situação do casamento da peça A Pedra que Rola, em que Corina
é tratada pelo do marido Bernardo como um “objeto adquirido a peso de ouro”,
Valladares (2000, p. 175) em seu livro Anarquismo e clericalismo, argumentando de
dentro do discurso anarquista, explica os cuidados que os redatores tinham que ter com a tese
do amor livre, em razão das leituras que poderiam ser feitas a propósito do discurso dos
religiosos sobre essa tese:
Talvez a maior preocupação dos defensores do amor livre fosse distingui-lo da
degeneração moral, procurando desfazer qualquer identificação entre o amor livre e a
prostituição. Pelo contrário, a expansão do amor livre seria uma forma de se evitar o
perigo da propagação da prostituição. De tempos em tempos, os redatores libertários
eram obrigados a escrever artigos para melhor explicitar a proposta, refutar calunias
dos religiosos. Os padres não perdiam nenhuma oportunidade para, distorcendo a
proposta anarquista, afirmar que por detrás da propaganda do amor livre encontrava-se
a intenção de fazer da sociedade um grande bordel.
Oiticica, em seu manual A doutrina anarquista ao alcance de todos esclarece o seu
leitor o sentido que atribui à prostituição:
Chamamos prostituição ao ato sexual em troca da vantagem econômica. Se uma
mulher se entrega a um ou mais homens por simples desejo físico, sem remuneração,
pode ser depravada e viciosa, não é prostituta. Não consideramos igualmente
prostituta aquela que incidentalmente se humilha e cai para salvar um filho ou um ente
caro. Isso ao contrário pode ser um sacrifício heróico. [...] A mulher que se dá por
120
dinheiro, para ter de viver ou para luxar, ou por ambição de domínio, essa é prostituta.
[...] Ora, a prostituição só se concebe em sociedade capitalista. É uma conseqüência
fatal do regime de propriedade particular, em que tudo se obtém com dinheiro. As
mulheres pobres precisam de dinheiro e arrancam-no da bolsa do rico excitando-lhe a
libidinagem. A prostituta não se entrega por simpatia, por afeto, por desejo. Logo em
sociedade anárquica, onde nada se compra nem vende, onde não há dinheiro, nem
ricos, nem pobres, a mulher só aceita homem por livre e espontânea vontade. Demais,
em Sociedade anárquica, as uniões fazem-se com a máxima facilidade, pois a vida dos
filhos é assegurada pela comuna. Desaparece, destarte, a causa principal da
prostituição na sociedade vigente: a necessidade sexual dos solteiros. Não querendo ou
não podendo casar-se para fugir da carga da prole, os solteiros procuram mulheres que
os aceitem. Vendo muitas pobres curvadas no trabalho, torturadas de penúria,
oferecem-lhe dinheiro, e elas, pouco a pouco seduzidas entregam-se, 10 e 100 vezes.
A história é repetidíssima em centenas de romances e dramas; é a história da maioria
das horizontais (OITICICA, 2006, p. 71-72).
Em Princípios e fins do comunismo, de 16 de agosto de 1919, publicado no jornal
Spartacus, período em que Oiticica vivia em clandestinidade, a direção deste periódico, é
também o ano em que escreveu a peça Não é Crime. No ponto nº XXXVIII dos princípios e
fins do comunismo, Oiticica prescreve em seu documento como deverá ser o amor livre na
sociedade futura;
[...]
O amor deve ser livre como o pensamento e o trabalho, de qualquer tirania ou
preconceito. Amor livre não quer dizer licencioso, mas libertado, não é promiscuidade
de sexo, mas liberdade de se unirem os sexos por afeição recíproca, sem medo de
constituir família, pois a sociedade comunista garante a manutenção de todas as
crianças. (Spartacus, Rio de Janeiro, ano I, nº 03, 16-08-1919, p.1).
Em 1919, José Oiticica trocava intensa correspondência com Maria Lacerda de
Moura
110
, cuja produção é expressiva principalmente em suas teses feministas. Sobre essa
aproximação em sua autobiografia de dezembro de 1928, ela diz:
Conheci-o através de larga correspondência. Veio para mim com as mãos cheias de
literatura revolucionária. Sorvi tudo aquilo e muito mais e dei um salto em minha
evolução. A família alarmou-se. Novas lutas. Perdi o dogmatismo religioso espírita. Já
era uma anticlerical (Reproduzido de MOURA, Maria Lacerda de. Autobiografia. O
Combate, São Paulo, 03-08-1929. n.5 110, p.3, apud LEITE, 2005, p.39).
Ao acompanhar a trajetória dessa militante pelo livro de Miriam Lifchitz Moreira
Leite (2005, p. 23) percebe-se que a interlocução entre os dois intelectuais coincidia na
apreciação de autores e obras e também nas idéias. A título de exemplo, destacam-se alguns
autores e leituras que envolviam essa libertária e Oiticica, como as idéias do poeta, pensador e
110
Além das conferências anticlericais e de livre pensamento que realizaram em conjunto nas sessões de
propaganda social, destaca-se também o período que essa militante freqüentou a Fraternidade Rosa Cruz.
121
redator de jornal Émile Armand, redator do jornal L’ Em Dehors, órgão do pensamento livre
individualista, para combater o ciúme, o exclusivismo e o extinto de propriedade sexual, que
propunha o companheirismo amoroso, e outro autor, o novelista Han Ryner, que escreveu
entre outras obras O drama de ser dois, o Amor plural.
111
Os chavões libertários selecionados por Prado (2004) ensinavam pelo exercício das
atividades da propaganda social as relações que deveriam ser modificadas para a construção
da nova sociedade. O encadeamento desses chavões se dava por meio de práticas educativas
que Oiticica acreditava. Esta evidência é reforçada na investigação de seu material didático.
As peças podem, em certa medida, ser consideradas como material pedagógico, tal como o
jornal. Essa idéia ganha sustentação quando se leva em consideração que os jornais, assim
como as peças circulavam entre os grupos de teatro. Os participantes assistiam e ouviam às
suas mensagens. Os temas das peças apareciam comentados nas matérias jornalísticas quando
as suas apresentações eram noticiadas.
Pó de pirlimpimpim
A peça Pó de pirlimpimpim de 1936
112
, é uma comédia com três atos ambientada em
uma modesta casa da cidade de Catumbi. Sua trama gira em torno de elementos da cultura
popular, seus personagens são movidos pelo desejo do lucro, pelas superstições religiosas, são
vitimados pela alienação que o fazem acreditar em propagandas enganosas, comumente
articuladas por empresários capitalistas. Os alvos da crítica de Oiticica são os envolvidos com
a indústria farmacêutica, mas também as pessoas do povo, que, pelo desejo de enriquecer, se
111
A propósito dessa obra, Miriam Lifchitz Moreira Leite (2005, p.22-23), na introdução de seu livro Maria
Lacerda de Moura-uma feminista utópica, que apresenta excertos de sua biografada, mostra que Émile Armand e
de Han Ryner são autores que chamaram a atenção de sua biografada. Deste último, destaca duas obras: Drama
de ser dois, que: “[...] mostra as diferenças entre o amor para cada um dos sexos, pois a solução é individual,
com a sinceridade recíproca como condição absoluta de equilíbrio. Maria Lacerda reproduz suas parábolas e
fragmentos adjetivando as situações apresentadas em um grau superlativo” [...] O amor plural é outra novela
desse autor: “[...] em torno dela são feitas comparações com outras concepções de amor e recriadas as condições
de harmonização do mistério de almas que se procuram e se conhecem. Esse amor profundo só ocorre dentro dos
mesmos sonhos de redenção humana, por meio do individualismo livre e generoso. Como cada ser tem as suas
preferências peculiares e uma só criatura não reúne o complexo afetivo de todos os seres, duas pessoas
dificilmente se completam. Somente o amor plural pode ensinar a conhecer o ser ideal através dos dois corações
a quem ama. A vida foi feita só para amar, e para aprender a amar. É preciso amar quantas vezes sejam
necessárias para atingir a finalidade mais alta, o que exige aperfeiçoamento interior de cada um e atenção para
não fazer sofrer o outro”. De E. Armand destaca que a: [...] sua concepção escravizava a mulher e matava o
verdadeiro amor. Seria a volta da promiscuidade, do comunismo sexual degradante no qual a mulher continua a
ser objeto de prazer, eleita quase nunca com direito a escolher”. Essas considerações sobre as obras que
marcaram a produção dessa militante libertária fazem todo o sentido de serem apresentadas dada a interlocução
que Maria Lacerda mantinha com José Oiticica e as referências que aparecem em seus artigos de José Oiticica
sobre os mesmos autores, como, por exemplo, no artigo o Espírito da ação direta, publicado no jornal Ação
Direta, Rio de Janeiro, Ano 2, nº 4, de 15-02-1929, p.3, em que Oiticica declara: “[...] a fórmula de E. Armand
deve gravar-se na memória de todos os anarchistas e ser a lição constante para o entendimento mútuo e harmonia
entre militante”.
112
A peça Pó de Pirlimpimpim é uma cópia datilografada encontrada no acervo pessoal de José Oiticica.
122
imbecilizam e se tornam presas de trapaceiros. É o que acontece com seu Calu.
Este personagem investe todo o seu dinheiro na fabricação de um pó mágico que teria
o poder para resolver qualquer enfermidade. O tal produto lhe foi oferecido por um trapaceiro
enviado pela indústria farmacêutica e cosmética com o objetivo de produzir e comercializar
um remédio com o tal pó mágico. A “lábia” da propaganda capitalista é alvo da crítica nos
diálogos dos personagens por ela arruinados e enganados. Outros elementos negativos
comparecem nas falas dos personagens, como a falta de conhecimentos e a “ingenuidade”
daqueles que se deixam enganar pela propaganda capitalista e por milagres de santos etc.
A história se passa na vigência do Governo Vargas e as referências ao cenário político
são indiretas, enredadas pelos artifícios da comédia, como se pode ver no diálogo entre dois
personagens, Calú e Fanfan, na passagem abaixo:
[...]
Calú: (entra pela direita em mangas de camisa ceroulão e chinelos de trança.)- Atchin!
Valha-me Santo Ermelando. (assoa-se num lenço de alcobaça.)
Fanfan: (entrando) – Santo que? Seu Calu?
Calú: Santo Ermelando
Fanfan: Ora essa, seu Calú, e existe esse Santo?
Calú: Sim senhora! É tão santo como qualquer outro.
Fanfan: Agora! Há tanto santo conhecido e o senhor vai chamar por um santo que
ninguém nunca ouviu falar.
Calú: Agá i pitu assu! Por isso mesmo! Chamar por um santo conhecido é besteira.
Fanfan: O que? Seu Calú! Pois então não é melhor chamar logo por nossa Senhora ou
por S. José?
Calú: Não Senhora!
Fanfan: Oxentes! Que heresia é essa, seu Calú!
Calú: Eu explico. É uma teoria simples e você vai ver se eu tenho razão ou não. Lá no
céu é mais ou menos como cá na terra. Nós fomos feitos à imagem de Deus não
fomos?
Fanfan: Pois de certo.
Calú: E a terra foi feita a semelhança do céu! É evidente.
Fanfan: Pode ser.
Calú: Ora, Deus é como Getúlio, tem seu ministério e seus funcionários. Ele não
decide tudo por si, senão não acabava nunca. Confia o despacho dos nossos pedidos a
uma porção de archanjos e estes atendem aos nossos rogos feitos ao santos e santas.
Ora, há certos santos muito conhecidos, relativamente poucos, e há uma quantidade
enorme de outros que ninguém conhece. Os que são conhecidos não têm mãos a medir
e devem andar furibundos com tanta reza e tantas promessas. Olhe o coitado do Santo
Antônio.
Fanfan: Rindo – Ih! Pobrezinho dele!
123
Calú: [...] deve andar numa roda viva [...] Não tem tempo de estudar os pedidos, vai
pondo os nomes numa lista de cambulhada e esquece com certeza uma porção deles.
[...]. (OITICICA, 1936, p.1-2)
Oiticica compara a “burocracia do céu” com a “burocracia da terra”, exemplifica-as
com a lista de pedidos aos santos que, sem atendê-los, ficam na pilha esquecida da “lista
cambulhada”. O personagem Calu, ao comparar a terra com o céu, “lá no céu é mais ou
menos como cá na terra”, procede tal como o personagem Sérgio da peça Azalan! ao explicar
a Clotilde que “a terra [era tal qual] um grande presídio”. O esforço do autor parece ter sido
oportunizar aos participantes, - em suas posições de quem faz e de quem assiste ao teatro-, a
reflexão sobre as suas idéias libertárias e anticlericais apresentadas, nas analogias por meio
das falas dos personagens. A partir de uma situação concreta simples de fácil compreensão,
articulava formas para estimular as deduções e reflexões sobre situações mais complexas que
demandavam abstrações maiores.
Esse funcionamento metodológico de Oiticica em tratar dos conteúdos que deseja
ensinar lançando mensagens que almejava que fossem alvos de reflexão por parte dos
envolvidos com o teatro e dos seus alunos foi recorrente em seu modo de ser professor, pois
essas características de suas práticas pedagógicas foram observadas em outros materiais
investigados nessa pesquisa. Oiticica apresentava uma situação concreta e por estratégia de
comparação com outra situação sugerida operava com analogias e provocações, para com
isso, estimular aos seus alunos possíveis deduções, ou conclusões sobre o que havia sido
apresentado.
Essa forma de ensinar apareceu em sua conferência radiofônica de 1948, quando
Oiticica apresentou a “sistematização do ensino de seu Colégio Latino-Americano”, ele
argumentou naquela conferência que procurava fazer com que “a teoria [saísse] sempre da
prática como conseqüência natural, quase sempre induzida ou deduzida pelo próprio
estudante”. Em suas peças teatrais e em suas anotações de aula esta forma de ensinar é
recorrente.
A religião, que é considerada nas teses anarquistas como um elemento de sustentação
da propriedade privada e das relações sociais de dominação, foi alvo de combate de Oiticica.
Na sua peça Pó de pirlimpimpim, por meio das críticas veladas, sob o efeito da situação de
perseguição a que estava submetido no momento de sua escrita. A crítica anticlerical aparece
na peça pelo exame sobre as conseqüências de que sofrem os seus personagens pelo fato de
acreditarem nos adivinhos, na propaganda capitalista e em outros fanatismos. Com a
linguagem da comédia, Oiticica combate também o apego ao dinheiro, a desigualdade e a
124
ética burguesa. Estas características de sua forma de ensinar aparecem também em seus
artigos jornalísticos e em seus manuais didáticos, como serão tratados nos capítulos seguintes.
As conferências sociais e as peças teatrais de José Oiticica, Azalan! (1919) e Pó de
Pirlimpimpim (1936) marcaram dois momentos emblemáticos de sua militância na
propaganda social anarquista.
Em 1919, na eclosão das grandes greves gerais e da organização do terceiro congresso
operário com orientação anarquista, em 1920 de expressão nacional, ainda com a
predominância dos sindicatos de resistência. A efervescência da militância de Oiticica
apareceu representada na trama do seu personagem-espelho Sérgio no presídio de Fernando
de Noronha, em 1915. Esta peça foi publicada com o título Cadernos de latim e não aparece
relacionada na lista de “obras publicadas do autor” que abriram suas publicações posteriores,
possivelmente pelo fato do personagem Sérgio “espelhar” os ímpetos revolucionários de seu
autor.
Em 1936, na fase da ingerência do Estado nas associações sindicais do governo de
Getúlio Vargas, com o refluxo da orientação anarquista iniciada em 1922 e com a fundação
do Partido Comunista do Brasil, a peça Pó de Pirlimpimpim, expressou outra forma do
professor Oiticica continuar com a sua propaganda social, em outro estilo mais cauteloso, sob
efeito da disciplina Rosacruceana.
As suas anotações de aulas com as peças de teatro de Aristófanes revelaram o
conteúdo libertário de suas aulas, que pudemos observar por meio dos excertos apresentados
por Antonio Arnoni Prado. Com isso, procuramos apreender evidências como circulação de
práticas pedagógicas e de materiais comuns usados tanto em sua docência institucional como
no teatro ácrata, esse como uma das atividades mais importantes da propaganda social
libertária. Dessa forma foram estabelecidas conexões entre as suas peças de teatro, anotações
de aula com as teses anarquistas que impulsionaram as suas práticas educativas nos seus
diferentes espaços de atuação pedagógica. Esta circulação de práticas é observada também
nos periódicos que esse intelectual da educação brasileira dirigiu e constitui-se no assunto do
próximo capítulo.
125
Capítulo III José Oiticica e o seu combate pela palavra
Este capítulo apresenta resultados de incursões de pesquisa na revista A Vida, 1914-
1915, e nos jornais Spartacus, os dois periódicos que foram dirigidos por José Oiticica. Na
vigência dessas produções sucederam os episódios de seus encarceramentos decorrentes de
sua militância anarquista nos grupos do anticlericalismo, do livre pensamento e do
anarquismo brasileiro. Essas prisões marcaram a sua vida profissional e pessoal, e são tratadas
neste texto como balizas que ajudam a contextualizar o funcionamento dos referidos
periódicos para deles selecionar artigos que ajudem a apreender qual foi o projeto educacional
defendido por Oiticica, para a sociedade e humanidade novas.
Na primeira parte, o texto situa José Oiticica nas correntes do anticlericalismo e do
livre pensamento, destacando algumas de suas ações de combate ao clero e em defesa das
teses ácratas que costumavam se manifestar na imprensa libertária. Para tanto a pesquisa
também recorreu a consulta a outros jornais, como A Lanterna, A Voz do Trabalhador nos
quais Oiticica foi colaborador. O texto exemplifica uma das formas de “combate pela
palavra”, empreendida por Oiticica no exercício de seu anticlericalismo, por meio de uma
polêmica travada com o padre Leonel Franca, em 1926, a partir de artigos publicados por
Oiticica e apostilados por esse religioso.
Na segunda parte, o “combate pela palavra”, aparece, novamente, na voz de Oiticica,
recortada de seus artigos selecionados nos periódicos que estiveram sob sua direção. O
principal objetivo consiste em apreender as suas idéias, propostas e práticas relativas à
educação, situando em sua vida profissional e pessoal as prisões sofridas em sua militância.
3. Os grupos anticlericais
Na virada para o século XX, os novos ares liberais da modernização capitalista, as
iniciativas das organizações de associações, ligas, sindicatos operários conformaram um
ambiente que impulsionou o desenvolvimento da imprensa libertária.
Os participantes dessa imprensa eram procedentes de diferentes lugares sociais.
Muitos eram da maçonaria brasileira, que se diziam liberais, outros militavam no sindicalismo
da classe operária, diziam-se livres pensadores, libertários, anarquistas. Alguns imigrantes
traziam experiências nas artes gráficas e nas ações de organização operária, outros eram
intelectuais brasileiros, que, como José Oiticica, se identificaram com os discursos de
anticlericais e libertários. Esses sujeitos fundaram jornais e revista constituindo grupos que
interagiam entre si ocupados com essas ações de elaborar, produzir e veicular tais periódicos.
Em torno de jornais operários, como, por exemplo, A Lanterna, periódico anticlerical
126
de São Paulo, dirigido pelo advogado maçom Benjamim Mota, formava-se uma rede de
sujeitos que faziam circular listas de subscrições em apoio ao jornal cuja contribuição mais
substancial procedia da arrecadação em lojas maçônicas da cidade. Situação semelhante
acontecia com o jornal A Voz do Trabalhador Órgão da Confederação Operária brasileira
(COB), que recebia apoio substancial da Liga Anticlerical do Rio de Janeiro, essa associação
abarcava a participação de maçons, convencidos sobre a necessidade de empreender a crítica
anticlerical e criar condições para a propagação das idéias libertárias, do livre pensamento,
entre eles José Oiticica.
Nos diversos periódicos fundados, sobretudo no final do século XIX e inícios do XX
registraram-se práticas sociais da cultura operária, incluindo-se as questões do sindicalismo
emergente no período. Parte dos intelectuais envolvidos com a organização dos jornais
anticlericais e do livre pensamento, libertários eram membros da Maçonaria e constituíam
redes para a fundação de periódicos, manutenção daqueles que estavam em circulação, defesa
da laicização completa do ensino e partidários da necessidade em estudar as teses católicas
para combatê-las dentro do seu próprio terreno. Maurício de Lacerda, Álvaro Pimenta,
Francisco Viotti, Fábio Luz, Edgar Leuenrouth, Astojildo Pereira, Maria Lacerda de Moura
entre outros, foram alguns dos sujeitos participantes das correntes anticlerical, livre
pensadora, libertárias em seus diferentes grupos que mantinham interlocução com José
Oiticica na imprensa ácrata.
Nesse jornalismo, organizaram-se as correntes do anticlericalismo e do livre
pensamento como movimentos específicos com características particulares, articulando-se em
primeiro lugar com o anarquismo e o socialismo, e, em seguida, com a maçonaria e com as
correntes espiritualistas. Entre os fatores que explicam essa difusão podem ser destacados: a
crise das religiões cristãs tradicionais e a expansão da maçonaria, os avanços do pensamento
materialista, racionalista e científico, e o movimento de idéias sobre as novas formas políticas
de pensar o poder.
A conjunção desses fatores conformou um ambiente propício a expoentes do segmento
letrado, a maioria procedente do Rio de Janeiro, de São Paulo, mas também de outros estados,
a despenderem as suas energias para a construção e/ou incorporação de discursos
modernizadores, e assim manifestaram as suas idéias e ações em torno de projetos
direcionados a reorganização da sociedade brasileira (SILVA, 1995, p.1-7).
Eliane Moura Silva (1995), na sua pesquisa intitulada Maçonaria, anticlericalismo e
127
livre pensamento no Brasil (1901-1909),
113
ao examinar os jornais A Lanterna e O Livre
Pensador, afirma que a expansão da maçonaria, por suas características que lhe proibiam o
cerceamento da liberdade de seus membros, propiciou o desenvolvimento das mentalidades
conservadora e liberal, uma vez que as lojas maçônicas funcionaram como uma espécie de
abrigo para livres pensadores, anticlericais e libertários.
Os maçons eram estimulados a evitar tomar partido político ou religioso de forma
sectária e radical e lhes eram asseguradas condições para que pudessem desenvolver as suas
crenças individuais. Dessa maneira, a maçonaria funcionava como um terreno seguro àqueles
que se identificavam com as correntes de idéias políticas filosóficas e espiritualistas bem
diversificadas. Oiticica integrou-se ao grupo maçom ligado à imprensa libertária.
Além dos maçons liberais e dos intelectuais ligados ao anarquismo, a imprensa
libertária teve participação de um contingente significativo de imigrantes europeus que
integravam a classes operária. José Oiticica, participante dessa imprensa, passou a interagir
com esses sujeitos e a lidar com questões relativas às correntes do movimento operário,
freqüentando sindicatos, ligas, associações e participando dos congressos operários.
114
Alguns desses militantes da imprensa libertária eram autodidatas, como, por exemplo,
foi o caso de Edgar Leuenrouth, editor dos periódicos A Lanterna – Anticlerical e de Combate
e, depois de A Plebe, os dois periódicos de maior circulação pelo país e, provavelmente, os
que atingiram as mais expressivas tiragens. Outros sujeitos eram egressos de cursos superiores
como Francisco Viotti, Fabio Luz etc. Todos eles compartilhavam as idéias anticlericais e do
livre pensamento e acreditavam que por meio da militância não somente jornalística, mas
também no uso dos outros dispositivos da propaganda social, nas linguagens do teatro, do
cinema, seria possível criar as bases para a construção de uma nova sociedade.
Em seus países de origem, os imigrantes operários lidavam com o jornal como um
113
Entre as pesquisa que tratam sobre as relações entre a maçonaria e as correntes do anticlericalismo e do livre
pensamento no Brasil, destacam-se: o trabalho de Eliane Moura Silva (1995), intitulado Maçonaria,
anticlericalismo e livre pensamento no Brasil (1901-1909), que aborda os periódicos A Lanterna e O Livre
Pensador. O seu estudo compõe o projeto: Livre pensamento e anticlericalismo no Brasil (1900-1930),
desenvolvido no departamento de História – IFCH – Unicamp, disponível em: <www.unicamp.br/elmoura>,
acesso em: 02 de janeiro de 2008; o estudo de Carlos Alberto de Freitas Balhana (1981), Idéias em confronto na
abordagem das relações entre anticlericalismo e livre pensamento com a maçonaria”; e a pesquisa de Eduardo
Valladares (2000), Anarquismo e anticlericalismo, que, tal como Silva (1995), tratou sobre o anticlericalismo em
A Lanterna: anticlerical e de combate.
114
Houve três congressos nacionais operários: o primeiro em 1906, sem hegemonia libertária, no entanto as suas
teses de ação direta tiveram expressividade; o Congresso de 1913, com hegemonia anarquista e consenso sobre a
reivindicação pelas 8 horas de trabalho, culminando com as greves gerais de 1917, em São Paulo e Rio de
Janeiro; em 1919, com novas greves gerais, e, apesar da intensa repressão policial aos libertários, conseguiram
organizar um outro congresso nacional em 1920. Oiticica participou do Congresso de 1913 e escreveu Princípios
e fins do comunismo para este terceiro congresso. (AZEVEDO, 2002, p.20). Houve um segundo congresso,
promovido por Hermes da Fonseca que os anarquistas classificavam como amarelos e por essa razão não
reconheceram.
128
importante dispositivo da luta de classes via sindicatos. Além da bagagem farta de suas
experiências com as práticas da imprensa e do sindicalismo de seus países, esses anarquistas
trouxeram também as suas apropriações de leituras dos teóricos que os haviam inspirado nas
lutas operárias na Europa.
O anticlericalismo surgiu no século XIX e foi responsável por um campo de debates e
ações políticas cujos principais objetivos eram denunciar os abusos do clero, em geral,
incriminar a corrupção dos políticos e estimular a reflexão sobre temas assumidos como
“naturais”, problematizando-os com argumentos retirados das ciências sociais e das ciências
naturais. Essa corrente pode ser compreendida como procedente do caráter laico social
propagado com as inserções do liberalismo, do positivismo, do cientificismo e com a
expansão da maçonaria (SILVA, 1995, p.2). Seus adeptos empreendiam campanhas nos
jornais contra padres acusados de aproveitar das consciências ingênuas das crianças, das
mulheres e dos fiéis de uma maneira geral.
O discurso não era unívoco, uma gama de formas de anticlericalismos se
manifestavam, algumas vozes não contestavam a moral cristã, mas combatiam a posição
incoerente da Igreja em face dessa moral. Um articulista anônimo de A Lanterna no artigo
intitulado “Regeneração Social”, esclarece que o alvo a ser atingido é o clero e não a fé:
Diversas versões correm sobre a índole d'este jornal, quando é bem fácil de acertar
com a causa que lhe deu origem. Não foi fundado para combater a crença dos
verdadeiros christãos, dos que sentem no coração os impulsos da generosidade e da
honra, - veio à luz para desmantelar a denegrida barreira do jesuitismo, para combater
a pérfida mentira religiosa, e para levar ao pelourinho do castigo os roubadores das
famílias e do lar. [...]. (A Lanterna- anticlerical e de combate, São Paulo, ano I, nº 03,
06-04-1901, p. 2).
Alguns discursos eram radicais e desaprovavam quaisquer crenças, outros procuravam
conciliar a crítica à instituição Igreja e afinar argumentos com os “verdadeiros cristãos”,
outros atacavam “apenas” o jesuitismo, outros ainda tentavam combinar elementos
contraditórios e inconciliáveis, sendo possível admitir os vários anticlericalismos e livres
pensamentos na particularidade de suas vulgarizações no Brasil.
Outras tendências reconheciam os ensinamentos evangélicos, mas se posicionam
contra os princípios antinaturais propostos pela Igreja, como, por exemplo, eram contrários ao
celibato e apresentavam várias teses em defesa do “amor livre”.
A postura libertária, - de recusa à imposição de qualquer forma de coibição moral
exterior, de coerções de qualquer natureza, da busca individual do conhecimento e da
proposta de valorização das relações sociais em sua diversidade -, também constituiu
129
argumentos defendidos pelos adeptos do livre pensamento.
]As propostas da “irreligião”, a defesa da liberdade de cultos, do ensino científico e
não religioso eram recorrentemente apresentadas ao lado de propostas de fortalecimento dos
jornais. Essas eram as posturas assumidas por José Oiticica em seus discursos.
Um exemplo sobre uma das formas de manifestação dessas campanhas pode ser
observado nos periódicos publicados A Lanterna, La Battaglia, como o caso “Onde está
Idalina?”, entre 1910 e 1912, que denunciavam o estupro da menor interna de um orfanato da
Igreja pelo padre Stefani, em junho de 1907 e o seu assassinato pelo padre Faustino Consoni.
Eduardo Valladares (2000, p.68) em Anarquismo e anticlericalismo, que apresenta
informações sobre os desdobramentos do “caso Idalina”, que demonstram as táticas
empreendidas no combate anticlerical na imprensa da qual Oiticica foi participante:
Os jornais que denunciaram o estupro e a ocultação do cadáver, publicaram vários
números especiais sobre o caso. Cartas de ex-alunos da escola foram enviadas às
redações, denunciando os novos crimes cometidos do orfanato-escola e em outras
instituições religiosas. Os redatores nas suas manchetes insistiam: “Onde está
Idalina?” Os grupos anticlericais convocavam uma série de manifestações e comícios
de protesto, exigindo o fechamento do estabelecimento e a punição dos envolvidos. Os
responsáveis pelo inquérito policial foram acusados de conivência com os envolvidos
e de não procurarem apurar com afinco o episódio. A Igreja reagiu chamando a polícia
para reprimir as manifestações e recebendo apoio da imprensa diária. Os denunciantes
foram acusados de difamadores, procurando com as suas ideologias exóticas de
denegrir a Santa Madre Igreja.Vários padres, procurando resguardar a reputação da
Igreja e absolver os implicados no caso, partiram para o ataque. Artigos nos jornais e
panfletos foram publicados procurando desmoralizar os “hereges anarquistas” [...].
Maçons advogados, médicos participantes da imprensa libertária ofereciam seus
serviços sem custos aos operários perseguidos pela repressão policial, por causa da luta
sindical e das atividades com a propaganda social, como foi o caso de Benjamim Mota, editor
de A Lanterna, no início dos anos 1900.
Os discursos veiculados nos jornais traziam sempre esses tipos de denúncias sobre “o
perigo religioso”. As principais acusações direcionadas a essa instituição eram: “defender a
propriedade privada”, estimular o comportamento resignado e passivo em seus seguidores por
meio de “falsos ensinamentos” para com isso impedir o livre pensamento e impedir a revolta
contra a opressão. Ao chamar a atenção para o perigo dos argumentos religiosos, era
importante desmontar, enfraquecer, atacar a Igreja e as suas vozes, por essa razão, essa era
tática de combate dos libertários.
130
3.1 O anticlericalismo do professor Oiticica
Oiticica passou grande parte de sua vida profissional proferindo conferências, como
uma das atividades da propaganda social, tal como foi discutido no capítulo anterior. Entre os
temas registrados nos jornais consultados nesta pesquisa, o seu maior interesse foi discorrer
sobre a história da Igreja, a moral religiosa, atacar os “doutores do catolicismo” e da educação
clerical.
José Oiticica, por suas convicções anticlericais, pesquisava os textos bíblicos, fazia
traduções de outros textos religiosos e, a partir dessas leituras, buscava argumentos que
pudessem sustentar suas polêmicas e posições nos debates das correntes anticlericais e de
livre pensamento. Em suas conferências, o professor Oiticica procurava reconstituir a história
da Igreja, focalizando o Santo Ofício e as perseguições inquisitoriais para denunciar os crimes
da Igreja:
[...] o orador [José Oiticica], debaixo de argumentação cerrada, demonstrou qual tem
sido o papel da Igreja católica ante a civilização, frisando claramente o contraste do
que fazem os doutores do Catolicismo. Cita, desde os mais antigos aos mais
modernos sacerdotes da Igreja, provando que tem sido eles sempre os maiores
obstáculos da emancipação dos trabalhadores e que, por diversas formas, desde os
mais remotos tempos até a presente geração, tem procurado manter o predomínio
do homem rico sobre o homem pobre. Salienta que em nenhuma outra espécie
zoológica se observa a luta de interesses tão acentuada e tão mesquinha. Aconselha os
trabalhadores a se unirem, emancipados de quaisquer preconceito, a fim de
libertarem-se do jugo capitalista, nada confiando dos poderes que constituem a
sociedade atual. (A Voz do Trabalhador, Rio de Janeiro, ano VII, nº 50, 01-03-1914,
grifos nossos).
Ao discorrer sobre o “papel da Igreja ante a civilização”, na sua audiência, - aos
trabalhadores freqüentadores das conferências, leitores dos jornais ou não -, reforçava a
importância em conhecer as teses libertárias para combater a Igreja.
No período em que José Oiticica proferiu a conferência comentada no jornal A Voz do
Trabalhador do dia 01-03-1914, era editor da revista A Vida e participante do “Grupo Editor
Novos Horizontes”. O conteúdo da conferência narrado pelo articulista desse jornal é tratado
em seu ensaio “O desperdício da energia feminina” na aula/conferência.
Os temas de suas conferências proferidas ao longo de 1913 e 1914, versavam sobre o
trabalho livre, a energia feminina e outros temas relacionados à Igreja. Com “os passos
tratadistas” que costumava atribuir ao seu modo de ensinar, conforme argumentos que
expunha em seus escritos, Oiticica apresentava na sua audiência a história da Igreja e
processualmente buscava a acareação entre a história da Igreja no passado e no presente.
131
O costume das confissões auriculares comuns nos rituais católicos era considerado por
Oiticica e outros adeptos das campanhas anticlericais uma prática abusiva dos padres por
adentrarem na intimidade dos fiéis. Como instrumento para o combate a essa prática,
acusavam os padres de libidinosos, empreendiam campanhas para que os leitores enviassem
aos jornais notícias escandalosas que ferissem a moral dos “clericanalhas”, dos “padrecos”,
dos “come e dorme de saias”
115
. Em 1947, período em que não existiam mais campanhas
anticlericais, o jornal Ação Direta dirigido por Oiticica ainda denunciava as mazelas da Igreja.
Tal como o discurso de outros libertários, Oiticica considerava que as maiores vítimas
da Igreja eram principalmente as mulheres e as crianças. Classificava a mulher como “vítima
funcional”, argumentava que os padres aproveitavam de sua condição de dominação, por isso
em seus estudos ocupou-se em pesquisar e escreveu sobre a condição feminina no sistema
capitalista. Uma das suas teses mais defendidas era que todas as mulheres deveriam ter
condições de ter acesso a uma formação em todas as ciências, todas mulheres deveriam
conhecer as ferramentas da psicologia, da fisiologia e da pedagogia, para com essa formação
educar os filhos libertários e se defenderem “dos perigos do clero”.
Por essa razão, ele participava da campanha libertária pela emancipação feminina e
defendia que um dos procedimentos para essa emancipação era não dar ouvidos aos padres
em confissões, não freqüentar Igrejas e conhecer a história dessa instituição secular para
afastar-se dela e combatê-la. Como adepto do livre pensamento e de atitudes, aceitou, em
função do desejo de sua esposa, o batismo de seus filhos conforme relato de sua filha Sônia
Oiticica, que foi batizada por Coelho Netto e uma de suas irmãs por Viriato Correia.
3.1.2 Os temas anticlericais de José Oiticica
A caridade é uma infâmia
De maneira recorrente encontramos em seus discursos a reprovação da caridade como
virtude defendida pela Igreja. Esse discurso de deseducação constituíam a moral burguesa.
Uma das passagens de seu artigo “O desperdício da energia feminina”, Oiticica combate a
“caridade”:
Qual a maior virtude para a moral burguesa? Todos os livros, todos os padres,
todos os professores responderão: a caridade. Podemos, entretanto, demonstrar que a
caridade é a maior vergonha humana. Numa sociedade justa onde a verdadeira
moral se cultivasse, onde existisse a solidariedade, as irmãs Paulas seriam monstros. A
caridade é a infâmia pela qual o patrão que roubou as energias do seu operário, o
agiota que especulou sobre as necessidades alheias, o jornalista que vendeu a pena a
115
Termos utilizados no jornal A Lanterna-Anticlerical e de Combate. Além dos termos,publicavam charges.
132
trapaceiros, o politiqueiro que enganou os eleitores com as falsas promessas
socialistas para ser deputado ou ministro, o padre que vendeu rosários, horas
marianas e missas, todos esses sugadores sem escrúpulos abafam os reclamos da
consciência restituindo aos mendigos e proletários a título de esmolas, de
sacrifícios recompensável no outro mundo, uma partícula das sobras dos seus
prazeres satisfeitos. Pela caridade podeis avaliar o resto da caridade burguesa.
[...]. (A vida, Rio de Janeiro, ano I, nº 2, 31-12-1914, p. 7- 8, grifos nossos).
Oiticica atacava a “caridade burguesa” esclarecendo que se tratava da hipocrisia
reinante na sociedade. Em A doutrina anarquista ao alcance de todos, por vezes se reportou
ao romance Germinal, de Émile Zola, para exemplificar as mazelas da cultura burguesa. Esta
evidência faz supor que muito provavelmente, em uma de suas conferências, ao tratar
especificamente do tema da caridade burguesa, ele tenha se reportado a uma passagem desse
romance de Zola, em que o operário enlouquecido pelo peso do trabalho, pela perda de
familiares, pela derrota da greve estrangula a jovem burguesa bondosa que lhe levava ao lar a
“caridade”, o alimento que sobrou da mesa.
A resignação é a destruição da vontade
Em seu ensaio “O desperdício da energia feminina”, Oiticica se reporta aos dez
mandamentos e critica o ensino das escolas públicas:
E a moral dos dez mandamentos da lei de Deus e dos cinco da Igreja, Moral que diz
num mandamento: não matarás e ensina nas escolas públicas, como virtude o
patriotismo e nos quartéis a arte de matar homens. Moral que prega o amor do
próximo e na economia política justifica a lei da concorrência, isto, é do mais
desgraçado desamor humano. O resultado dessa moral é um desperdício
extraordinário das energias morais eficazes. É a destruição da vontade. É o cultivo
da subserviência. É a lição diária das humilhações mais soezes. Não ensina ela a
resignação? E a resignação que é se não a incondicional inércia do escravo sob o
látego do amo? Qual a posição da mulher nessa moral? A de uma entidade psicológica
autonomata. A mulher burguesa, freira ou proletaria não se dirige. É dirigida. (A
Vida, Rio de Janeiro, ano I, nº 2, 31-12-1914, p. 7- 8, grifos nossos).
A resignação, tão estimulada pelas vozes da Igreja em nome da culpa pelo pecado
original, é combatida nos discursos de Oiticica. Resignação e subserviência eram obstáculos
para as atividades sindicais, principalmente pelo papel que tinha a imprensa na propaganda
social. O combate à apatia era condição imprescindível para eliminar seus efeitos nocivos que
não permitiam enfrentar a repressão sobre as atividades sindicais.
A questão da emancipação feminina para Oiticica era de fundamental importância,
pois ao longo de sua produção foi possível observar tal temática, como em suas peças teatrais,
escritas para as suas aulas e para o teatro social, as personagens femininas refletiam os
133
desígnios e o papel da mulher libertária.
O anticlericalismo combatia principalmente o poder papal e da Igreja, tanto no plano
religioso como no temporal, sobretudo no seu aspecto ideológico e religioso, observando
neles um forte caráter e instrumento de dominação, consolidação de poder e enriquecimento.
A Igreja era tomada, pelos articulistas dos jornais da imprensa libertária, como uma
instituição autônoma, apartada da sociedade, uma ameaça ao país, a cada consciência
individual e a família.
Além disso, era praxe recuperar algumas histórias de religiosos rebeldes à Igreja,
focalizando personagens como, por exemplo, Giordano Bruno que fazia parte do calendário
de lutas libertárias tal como já mencionado no capítulo anterior
4
.
Liga Anticlerical
Realizou-se a 17 de fevereiro e promovido pela Liga Anticlerical a comemoração do
suplício de Giordano Bruno. Fez-se uma bela oração, historiando a vida de
Giordano Bruno, o camarada José Oiticica. Falaram outros camaradas. (A Voz do
Trabalhador, Rio de Janeiro, ano VI, nº 26, 01-03-1913, p.2, grifos nossos).
José Oiticica também traduzia textos sobre essas histórias dos rebeldes da Igreja,
examinava as traduções de textos sacros do latim para o grego e do grego para o latim
traduzido pelos padres, e, com isso, apontava-lhes as incorreções que cometiam, buscando
abalar a confiabilidade das palavras dos religiosos, repetidas em suas prescrições ritualísticas.
Essas cominações eram por ele tratadas como obstáculos à formação do livre pensamento.
O costume de desmontar discursos apontando os erros do outro e se posicionando em
fileira de combate era um comportamento recorrente dos homens de letras de seu tempo. Uma
de suas traduções que exemplificam seu interesse pela história da Igreja Católica foi noticiada
nos Jornais A Lanterna, de São Paulo e, em A Voz do Trabalhador, do Rio de Janeiro, tal
como pode ser observado a seguir:
História da Inquisição na Idade Média
Obra do grande historiador americano H, Charles Lea, traduzida em português pelo
Dr. José Oiticica
Aos livres pensadores do Brasil
Os que estudam a história da Igreja, mormente com intuito de combatê-la como um
dos grandes males da humanidade, precisam conhecer os seus crimes, o seu papel
na sociedade moderna, pois somente pela análise do seu passado poderão bem
compreender o seu mecanismo, os seus intuitos, os seus atos de hoje. A Liga
Anticlerical inicia, por isso, a publicação em português de obras de reconhecido
valor, de reputação universal, pondo ao alcance de todos os que não podem ler o
original ou traduções em outras línguas.
134
Resolveu começar pela obra notabilíssima de Lea, hoje tida por todos os especialistas
como o manual clássico, repertório de fatos indiscutíveis, escritos com ciência
completa e notável imparcialidade. [...]
[...]
Não tendo a Liga o necessário para adianta-lo, na publicação do primeiro fascículo,
apela para os que desejarem possuir a obra, pedindo-lhes que enviem desde já as
quantias correspondentes aos números que assinarem.
N.B. A assinatura dos 10 primeiros fascículos custará apenas 2$ e, querendo poderá
assinar um só fascículo ao preço de 200 réis.
(A Voz do Trabalhador, Rio de Janeiro, ano VII, nº 51-52, 01-04-1914, p.4).
Com estas investidas intelectuais, Oiticica fortalecia o seu arsenal de “combate pelas
palavras” para criticar os representantes do clero. Ampliava o seu repertório temático e
propagava os resultados de sua leitura proferindo-os em suas conferências sociais
patrocinadas pela Liga Anticlerical. O programa de suas atividades, como as traduções e as
conferências, era divulgado em todos os jornais da imprensa libertárias, tal como no exemplo
a seguir:
Liga Anticlerical
A Liga Anticlerical lavrou mais um tento. É o caso que ela não deixou passar em
branco a semana santa sem realizar soleníssimo protesto. Para este fim foram
organizadas sessões especiais para os três dias últimos da semana quinta, sexta e
sábado.
[...]
Na sexta-feira o Dr. José Oiticica fez uma substanciosa e brilhante conferência,
discorrendo sobre a farsa da semana santa, a mentira cristã, o perigo das religiões, e a
falsidade dos deuses [...]
(A Voz do Trabalhador, Rio de Janeiro, ano VI, nº 28, 01-03-1913, p.2).
Meses após a sua libertação da prisão na Ilha das Flores, ainda no início de 1926, José
Oiticica, muito atento aos artigos de religiosos veiculados pela grande imprensa e pelos
jornais católicos, mantinha disposição para questionar a erudição dos autores clérigos.
Adentrava no terreno teológico das produções religiosas e contra-argumentava com
contundência a esses intelectuais religiosos, vasculhava as más traduções dos textos
teológicos, fosse do grego para o latim, como do latim para o português, analisava as
interpretações e, feita a seleção e organização desses elementos, apontava os erros dos
ensaístas da Igreja.
135
3.2 A educação religiosa rouba a consciência
Os articulistas dos jornais libertários lançavam críticas severas às escolas religiosas,
em contrapartida cuidavam para que a propaganda social criasse o mesmo dispositivo na
perspectiva libertária. Oiticica expressava principalmente por meio do jornal a crítica à
educação escolar religiosa.
Figura 3 O método de ensino clerical
116
(A Lanterna, ano VI, nº 186, 12-04-1913, p. 01)
A expressão de “canastrão” estampada no religioso e a cabeça de “burro” do fiel servia
para comunicar a mensagem tanto aos letrados, como aos iletrados. O padre, depois de
arrebatar a consciência do fiel, esvaziava-lhes os bolsos do casaco e obrigava-o ao ato
116
Ver: Figueira (2003, p.82). A dimensão da figura não é a mesma da figura original. O ano de circulação dessa
imagem marcou a morte do papa Leão XIII e o novo papa foi saudado nos jornais anticlericais como a cabeça da
serpente. E a serpente era a Igreja, “[...] um réptil que dá volta ao mundo/e em cujas espirais ébrias de raiva
insana/um laconte imortal a consciência humana/há séculos se estorce em convulsão atroz/Os elos desse monstro
implacável sois vós, sacristãs/A cabeça é o papa/Ora as serpentes/tem a força na cauda e o veneno nos dentes”.
(VALADARES, 2000, p.90).
136
confessionário. A “vítima do padre” é estilizada como um personagem cuja inteligência foi
subtraída pelo método de ensino religioso e por essa razão foi reduzido ao fiel que escuta o
padre. A charge de A Lanterna como crítica ao método de ensino religioso fazia chacota,
atacando as escolas religiosas, os padres professores e toda sorte de pregações religiosas.
É possível verificar as faces do combate aos “perigos das escolas da Igreja” em
diversos artigos publicados na época, década de 1920, como, por exemplo, o artigo do
periódico Crônica Subversiva, que circulou no Rio de Janeiro, em 1918, sob direção de
Astrojildo Pereira, que contava com colaboração de José Oiticica:
Os grandes educadores
O acaso pois me entre mãos um programa da sessão cinematográfica havida no Salão
de Atos do Colégio Salesiano Santa Rosa (Niterói), em benefício do Santuário de
Nossa (deles) Senhora Auxiliadora. Eis os títulos de alguns dos filmes exibidos: Lord
Kitchener e o homem de mascara cinzenta, drama policial. Assim procedem os
“grandes educadores” de batina, aproveitam-se de todos os meios para encher as
cabecinhas em formação das crianças com as caraminholas mais estúpidas e
embrutecedoras. Nada mais estúpido e embrutecedor que uma fita policial: pois os
frades salesianos fazem a fita policial matéria de educação. Mais e mais se me arraiga
a cada hora, diante de fatos tais, a alta necessidade do furacão revolucionário.
(Crônica Subversiva, Rio de Janeiro, ano I, nº 8, 20-07-1918, apud FIGUEIRA, 2003,
p.60).
A crítica desencadeou-se da observação sobre “a má escolha” ou “a escolha perigosa”
dos filmes selecionados pelos padres-professores. O argumento: as conseqüências que
poderiam ser acarretadas “nas cabecinhas em formação das crianças”, em razão das
“caraminholas mais estúpidas” do “perigoso cinema da Igreja”.
Contra as escolas, os jornais, o teatro e o cinema da Igreja colocava-se a tarefa da
militância anticlerical. Era nesse contexto que José Oiticica estava inserido.
3.3 polêmica com o padre Leonel Franca
As palavras são a munição para o combate
Os meses que José Oiticica passou na prisão, de acordo com os depoimentos de sua
filha Sônia, sempre serviam para colocar as suas leituras em dia. No cárcere, ele concentrava-
se na produção de poemas, artigos, até mesmo um livro. Ele próprio se referia à prisão como
as suas “férias”, um momento em que era forçado a interromper as suas aulas e que usava
para atualizar os seus estudos. Produzir na prisão era uma forma de resistência, de continuar o
combate.
Assim, até mesmo os livros religiosos eram levados para a prisão e os seus estudos
137
demandavam-lhe tempo e disciplina, pois para combater com profundidade as teses clericais,
por dentro, e quebrar-lhes as “incoerências”, traduzindo-as de maneira clara para que todos a
pudessem conhecê-las, utilizava seu tempo de reclusão para reforçar seu arsenal para o
combate por meio das palavras. As campanhas anticlericais ganharam tal proporção que a
Igreja combatia os livre pensadores em seus jornais.
Por essa razão, dificilmente passava desapercebida uma proposição de um jesuíta nos
jornais, sem que um estudioso adepto do anticlericalismo e do livre pensamento entrasse em
controvérsia com esse jesuíta. Afinal, a palavra era a arma de combate dos dois lados na
conquista de corações e mentes. Provavelmente, as leituras que Oiticica realizou em suas
“férias” na Ilha Raza e depois na Ilha das Flores, atualizou munição para o combate
anticlerical, pois já no início de 1926, seis meses após a sua libertação, ele sustentou um
debate
117
com o padre Leonel Edgard da Silveira Franca.
A “troca” de argumentos ocorreu por meio de artigos publicados no jornal O Correio
da Manhã, onde Oiticica era cronista social. No entanto, as suas investidas anticlericais
acabaram ganhando status de coluna ou sessão em vários periódicos libertários, pelo fato de
conformarem uma série nomeada como “Resposta a um jesuíta”. O padre Leonel Franca
(1926, p.8) refere-se a estas publicações da seguinte maneira:
Percorram-se os artigos do Snr. Oiticica. Desde a fábula do incêndio em Alexandria
pelos Christãos até as declamações balofas contra o despotismo romano, lá se
encontram quase todas as estafadíssimas objecções, mil vezes refutadas, eternos
logares communs explorados pelos libellistas profissionaes. Custa pouco copiar
excertos dos mil e um pasquins escritos contra a Igreja por adversários sem
consciência; custa pouco folhear os annaes inglórios das heresias, com os farrapos de
erros já vencidos, alinhavar uma túnica de ignomínia, que mal dissimule aos olhos de
leitores ingênuos a nudez vergonhosa de uma polêmica sem escrúpulos. É fácil, não é
nobre.
Do “debate”: padre versus “o professor bellicoso anarquista”, as respostas, réplicas e
tréplicas foram reunidas, apostiladas e publicadas pelo padre Leonel Franca no ano de 1926
em formato de um opúsculo, intitulado Relíquias de uma polêmica. Esta publicação reuniu
todos os artigos elaborados pelo padre Leonel Franca, e alguns dos artigos, na íntegra, do
professor José Oiticica submetidos ao exame e comentários de seu organizador.
A discussão iniciou-se pelas provocações de José Oiticica a propósito de um artigo
que o padre Leonel Franca escreveu, intitulado Catholicismo e modernismo. Os comentários
do professor Oiticica apresentados no artigo Modernismo cathólico irritaram por demais o
117
José Oiticica travou também debate com outros representantes do clero, como o Monsenhor Rosalvo Costa
Rego, e o bispo D. Alberto Gonçalves.
138
religioso.
A interlocução provocativa de Oiticica foi desdobrada em cinco artigos, todos com o
mesmo título: Resposta a um jesuíta. Três deles foram enfeixados no opúsculo mencionado;
os dois outros que ficaram de fora continham argumentos que, segundo Oiticica, não foram
respondidos pelo padre.
Na introdução, o padre Leonel Franca justificou a sua iniciativa de publicação do
opúsculo da seguinte maneira:
[...] Coherencia lógica é uma outra condição essencial de qualquer discussão honrada.
O professor do collegio Pedro II não sabe conservar-se na firmeza de uma
posição tomada. Aqui defende Tyrrell com calor apaixonado de um modernista dos
primeiros tempos, ali aggride a S. Justino com violência de um pagão desabusado,
acolá fala de religião com a indifferença leviana de um sceptico vulgar. Multiplicar
assim os campos de batalha pode parecer valentia e é fraqueza. Não se
desampara uma praça forte que se pode, com vantagem, defender. É fácil, não é
nobre. Com quem, portanto, esgrime só por gosto de esgrimir e toma as alforrias
dialecticas que dessa atitude derivam, não é possível uma polêmica séria e honesta.
Não me arrependi e nem me arrependo do meu primeiro silêncio. Continuo a negar a
minha cooperação aos exercícios desportivos do Snr. Oiticica no seu
funambulismo infatigável. Pareceu-me, porém, no interesse da verdade, pôr ainda
uma vez em relevo os processos de combate do bellicoso professor.
Para isso bastaria reunir em opúsculo os seus artigos e submetê-los ao exame
demorado e comparativo dos leitores. O jornal é essencialmente ephemero. Entre os
que lhe percorrem diariamente as columnas haverá, talvez, um entre mil que tenha
paciência de conferir um artigo com o procedente, acarear uma accusação com uma
resposta. Reuni, portanto, aos outros artigos relativos á questão todos os números da
“Resposta a um jesuíta” do Snr. Oiticica, e, no intuito de facilitar a crítica pessoal dos
leitores, apostillei-os com ligeiras observações.
Não pretendem essas notas salientar todos os erros e incoherências do professor;
visam chamar atenção sobre os mais importantes e de mais conseqüências no curso
das idéias discutidas. [...]Ante os olhos de todos ficam, na sua íntegra, os artigos do
Snr. Oiticica e a brevidade de minhas apostillas, convidativas de ulterior meditação.
[...].
Leonel Franca S. J.,
Nova Friburgo, 10 de abril de 1926.
(FRANCA, 1926, p.8-9- grifos nossos).
O padre Leonel Franca (1926, p. 6-7), ao reportar-se ao professor José Oiticica no
prefácio de seu opúsculo, ora trata-o como “o professor de português do Colégio Pedro II”,
ora como o “bellicoso professor”, aquele que “discute por discutir”, ou que “esgrime só por
gosto de esgrimir”. Coloca-se na posição de quem foi atacado, e após silêncio resignado, e
movido pela a responsabilidade de “não desamparar uma praça forte que se pode, com
vantagem, defender”, justifica seus motivos para se colocar frente à Oiticica como adversário.
Seu esforço é deixar claro que fora forçado a lançar sua publicação, uma vez que, segundo a
139
sua opinião, o professor Oiticica teria transgredido a “regra de uma controvérsia séria” e diz:
“não uma mas muitas vezes”.
No lado adversário, Oiticica (1926, p. 41) percorreu a literatura citada pelo padre
Leonel Franca, e, a partir dos autores por ele mencionados, aproximou-se dessas leituras com
o objetivo de criar para os leitores uma oportunidade de se informarem sobre as lutas
religiosas, mostrando, com isso, que a “praça forte” vivia no início do século conflitos em
razão da rebeldia de alguns religiosos. Ao mostrar tais conflitos, o leitor se inteiraria dâ
inexistência do consenso obediente e poderia ver a força da rebeldia, no interior da “praça
forte”.
Embora não seja intenção da pesquisa reconstituir todo o debate, nem mergulhar nas
teses anticlericais defendidas por José Oiticica, nem mesmo acompanhar pelos jornais o peso
que tiveram os argumentos trocados entre os dois debatedores, faz-se necessário apresentar o
mote central desse debate, com o objetivo de, a partir dele, exemplificar uma das formas de
manifestação das idéias anticlericais e de livre pensamento de José Oiticica, apreendida na
ambiência dos costumes da militância da qual ele era participante.
O mote central da argumentação do padre Leonel Franca é a sua oposição à idéia da
“volatilização progressiva dos dogmas cristãos tradicionais” da Igreja, que segundo sua
interpretação, era obra de “modernistas influenciados pela tendência do ‘protestantismo
liberal’, [que] dela bebiam as suas doutrinas subversivas”. Os “modernistas” faziam oposição
à ortodoxia tradicional dos dogmas cristãos defendida pelo padre Leonel Franca em
concordância com as orientações do papa (p.11-16).
Entre os autores apresentados e criticados por Leonel Franca estão alguns ex-membros
da Igreja e algumas expressões filosóficas, agnósticos, como, por exemplo Kant e Spencer e
“modernistas”, segundo ele, influenciados pelo protestantismo liberal e por Nietzsche. Entre
os modernistas mais criticados estão: na Alemanha Gerbert; na Itália, o senador Fogazzaro e o
padre R. Murri; na França, E. le Roy e na Inglaterra, o ex-jesuíta J. Tyrrell. Este último, nos
dois lados do debate ganhou maior destaque em função da discussão sobre a Encíclica
Pascendi de 1907.
Para o padre Leonel Franca (1926, p.16), a Encíclica Pascendi de 1907 diz:, “[...] nos
ambientes católicos foi acolhida com a submissão devida à palavra do supremo pastor a quem
Christo confiou a missão de confirmar na fé a seus irmãos, mas ainda com o seu elevado valor
doutrinal”. O documento de intervenção enérgica do papa Pio X condenando “[...] as
diminuições injustificáveis de todos os agnosticismos, subjectivismos e relativismos [...] e
defendendo a verdade absoluta dos grandes e immutaveis princípios que consttituem a alma
140
insubstituível da nossa vida intellectual” (IDEM, p.26).
Para José Oiticica, em seu artigo de resposta ao padre Leonel Franca, publicado no
jornal Correio da Manhã com o título de Modernismo catholico, a reação frente à Encíclica
de Pio X, Pascendi Dominici gregis, de 8 de setembro de 1907, foi de rebeldia do
“pensamento modernista”, por ser esse um documento de defesa dos “dogmas tradicionais
católicos. A encíclica é assim interpretada por José Oiticica:
[...] ora a encyclica é o coroamento de um trabalho multisecular de centralização da
Igreja até o despotismo religioso mais ferrenho. Em vão se procurará, nos evangelhos,
uma indicação política, um preceito de suzerania theologica, um esboço de hierarchia
administrativa ou pedagogica. Todos ali são irmãos; Jesus era Mestre, mas não amo;
seus discípulos eram discípulos e não servos. Seria monstruoso imaginar Christo
dando a si mesmo o título de Bispo dos Bispos. Na primitiva organização eclesiástica
o bispo era o pastor na sua diocese, não dependia de ninguém e ensinava a
communidade sem theologia, transmitia os preceitos evangélicos, consubstanciados
pela tradição dos primeiros séculos de vida religiosa. Seria absurdo ouvir um Bispo
declarar ser elle a tradição christã, como o declarou, alto e bom som, o papa Pio X, la
tradizione sono io. Nos primeiros séculos da Igreja, o bispo de Roma não é superior
em coisa alguma aos demais; é primeiro entre os irmãos (p.31).
Os “modernistas” criticados por Leonel Franca são defendidos por José Oiticica, como
pode ser observado pelas suas impressões sobre o ex- jesuíta irlandez Geoge Tyrrel , que para
ele é “[...] o mais denodado campeão [da] batalha anti-romana [...], o mais vigoroso escripto
seu foi justamente a resposta à Carta Pastoral do Cardeal Mercier, endereçada, pela quaresma
de 1908, aos fiéis da sua diocese” (p.29).
Sobre as expectativas dos modernistas criticados por Leonel Franca, Oiticica diz:
O que o modernismo quer, antes de tudo, é unidade espiritual, tudo é constante
experiência, isto é conformação de crenças espontaneamente provinda do sereno
estudo e constante experiência religiosa, alicerçada nos ensinamentos mesmos do
Christo. A uniformidade imposta não é conformidade, é regimen de centralização
feroz que tira, tanto aos sacerdotes, quanto aos fiéis, a menor iniciativa pessoal ou
conjuncta na pesquisa das verdades espirituaes [...] (p.30).
Para o padre Leonel Franca o modernismo era:
[...] uma tentativa frustrada de invasão do protestantismo liberal na vida e na doutrina
catholica. Caracteriza-o uma tendência fundamentalmente anti-intellectualista, que se
manifesta na inclinação a supervalorizar os elementos affetctivos e pragmáticos.
A “popularidade” de José Oiticica, provavelmente tenha servido como chamariz aos
leitores letrados e interessados nas teses clericais, próximas ao tradicionalismo dogmático,
como também deve ter despertado algum interesse nos leitores que acompanhavam de alguma
forma as manifestações libertárias do professor Oiticica. No entanto, a ação do padre Leonel
Franca (1926), ao somar os seus artigos e comentários com algumas das respostas do
professor José Oiticica em seu opúsculo, abriu-lhe maiores possibilidades para capturar,
provavelmente, um número maior de leitores, como, por exemplo, pode ter se dado com
141
aqueles que acompanhavam o debate, tanto na leitura dos jornais da grande imprensa, como
pelos inúmeros “pasquins” mencionados pelo padre Leonel Franca.
O alcance das ações de José Oiticica em seu combate pela palavra fica logo
demonstrado no caso de Relíquias de uma polêmica, pelo fato de ter provocado no
“adversário” a iniciativa de sua publicação. A preocupação em reunir os artigos de Oiticica
no opúsculo, sob o argumento de que estes estavam espalhados na efemeridade do jornal,
oculta possíveis preocupações que inquietavam o padre Leonel. O jornal tinha alcance a um
número de leitores bem maior em relação aos leitores dos livros; quem escrevia esses artigos
era um intelectual catedrático do Colégio Pedro II, conhecido também pelo público leitor dos
jornais, tanto os da grande imprensa, como o jornal carioca o Correio da Manhã, quanto dos
jornais da imprensa operária, destacando-se o jornal libertário A Plebe, de São Paulo.
Os procedimentos críticos de José Oiticica com relação aos textos publicados pelos
representantes do clero católico não se enquadram nas constatações feitas nas pesquisas que
trataram do tema da literatura e dos homens de letras no Rio de Janeiro dos inícios do século
passado. Oiticica empreendia a crítica como uma das tarefas da militância libertária,
anticlerical, do livre pensamento. Os grupos nela envolvidos posicionavam-se em um campo
de lutas, e o arsenal de armas era detonado por meio da palavra, por meio da educação. Nessa
direção, as várias correntes, com seus diferentes grupos, concordavam que o trabalho de
militância demandava ampliar os espaços da educação da perspectiva libertária em
contrapartida à educação da outra perspectiva. A nossa educação versus a outra educação. A
nossa, o nosso referiam-se á nossa imprensa, às nossas escolas, à nossa educação, ao nosso
teatro, o nosso cinema, em contraposição à educação deles, a imprensa deles etc.
Em 1914, Oiticica participava ativamente de dois grupos ligados à imprensa ácrata, o
Grupo Novo Horizonte e o Grupo Pró-Congresso Anarquista. Parte dos sujeitos participantes
destes grupos, com os quais Oiticica mantinha interlocução de idéias e com os quais
trabalhava nas sessões de propaganda social, eram maçons, intelectuais formados em Direito,
como Benjamim da Mota, em Medicina, como Francisco Viotti. Outros eram militantes
sindicais, anarquistas estrangeiros, outros brasileiros. Alguns autodidatas, como por exemplo
foi o caso de Edgar Leuenrouth, conhecido anarquista, editor de A Lanterna e depois de A
Plebe, os dois periódicos, possivelmente mais expressivos em circulação e atuação no
anarquismo brasileiro.
118
Com esse jornalista, Oiticica manteve interlocução até a sua morte.
118
Em São Paulo, as idéias anticlericais e do livre pensamento circulavam em jornais como A Lanterna –
Anticlerical e de Combate, antes assinado pela Liga Anticlerical, e depois passou a ser propriedade de uma
sociedade anônima até 1903. Sua distribuição era gratuita. O número 1, de 07 de março de 1901, anunciava
142
3.4 A revista A Vida
A revista A vida, foi fundada em 30 de novembro de 1914 sob a direção de José
Oiticica, em parceria com o médico Francisco Viotti. O último, dos sete números foi
publicado em 31 de maio de 1915. Entre os colaboradores dessa revista, destacaram-se Fábio
Luz, Astrojildo Pereira, Orlando Correia Lopes, Hermes Fontes, Primitivo Soares, Efrem
Lima, João Penteado, Adelino Pinho. Todos eles publicavam artigos nos jornais libertários e
mantinham estreita interlocução com José Oiticica.
A iniciativa da fundação de A Vida partiu do Grupo Editor Novos Horizontes, que
junto ao Comitê Pró-Congresso havia recolhido contribuições em dinheiro para a realização
de um congresso internacional anarquista no Brasil que deveria reunir expoentes anarquistas
de outros países. A arrecadação que havia sido feita por meio de listas de subscrições foi
insuficiente e os membros dos referidos grupos resolveram fundar a revista A Vida.
O jornal A Lanterna
119
, que no período estava sob a direção de Edgar Leuenrouth,
publicou uma circular datada de 05 de dezembro de 1914, comunicando aos leitores sobre a
iniciativa da publicação de A vida. O argumento inicial apresentado na circular foi que o
dinheiro utilizado estava parado e se fosse conservado paralisado seus responsáveis estariam
cometendo um crime de “lesa propaganda”. O segundo argumento defendia a iniciativa da
publicação como a melhor forma de aplicação desse dinheiro, pois a revista nascia com a
função de servir de “elo um traço de união entre os anarquistas, por intermédio da qual os
anarquistas do Brasil” se conheceriam e se corresponderiam.
Na página de expediente de A vida, seu editor apresentava o periódico, convidava os
leitores a enviarem suas colaborações, informando-lhes sobre as normas de funcionamento:
EXPEDIENTE
[...]
10.000 exemplares de tiragem, atingido no número 8 do mesmo ano 26.000, o que demonstra a sua
expressividade. Em 06 de junho desse ano até 1909, esteve sob a direção de Benjamim da Mota, que assinava
como o seu redator-chefe. Teve sessenta números publicados; a partir do número 01 do ano 2, em seu cabeçalho
constava o seguinte: "No A Lanterna não apparecem nomes, mas não é um jornal anonymo porque na Câmara
Municipal está devidamente assignado o termo de responsabilidade". Entre 1904 e 1909, a sua publicação foi
interrompida de 1909 a 1916. A segunda fase do jornal conseguiu circular com regularidade. Em 1917, sua
circulação foi interrompida. Nesse ano, em meio às greves que denunciavam a grande efervescência da crise do
período, Edgard Leuenrouth fundou A Plebe, que nasceu declarando ser a continuidade de A Lanterna. A
Lanterna voltou a circular em 1933 a 35, a sua terceira fase. Tanto Benjamim Mota com Edgar Leuenroth, os
redatores de A Lanterna e A Plebe, eram amigos de José Oiticica e mantiveram estreito contato, principalmente a
partir de 1912, quando José Oiticica ingressou na Liga Anticlerical do Rio de Janeiro, passando a colaborar com
artigos e com a sua participação em conferências da propaganda social. O estudo de Silva (1995) focalizou os
periódicos A Lanterna e o Livre Pensador para engendrar a sua discussão sobre as manifestações do
anticlericalismo e da maçonaria brasileira.
119
A Lanterna - Anticlerical e de Combate, São Paulo, ano XIV, nº 269, 05-12-1914, p.4.
143
VARIAS: A Vida, obra de idéias e não de comércio conta apenas para se manter com a
venda de seus números. De todos aqueles a quem possa interessar-se espera pois que a
divulguem o mais possível confiando a iniciativa de cada um o emprego dos meios
mais adequados a semelhante desideratum. Aos que desejem conhecer a nossa revista,
enviaremos um exemplar desde que nos solicitem; também responderemos a todas as
informações que nos sejam pedidas referentes aos fins que esta revista persegue.
[
...]
DA COLABORAÇÃO
: Todos os leitores de A Vida são seus colaboradores pelo que
podem mandar os trabalhos que desejarem com a certeza de que serão publicados
desde que estejam dentro da orientação que preside a revista. Os trabalhos recebidos
que não sejam publicados serão devolvidos se forem reclamados dentro de um prazo
de três meses. Trabalhos anônimos não se publicam. Os originais radicalíssimos no
vocabulário e vulgarissimos na forma não publicaremos, bem como não daremos
acolhida a questões particulares ou pessoais. Todo os artigos publicados nesta revista
que não levem a indicação de tradução ou de sua procedência, se são transcritos, são
garantidamente inéditos.
[
...]
A NOSSA MEZA DE LEITURA
: Os jornais e revista que conosco queiram permutar,
e os folhetos e livros que nos sejam oferecidos serão, muito em breve, postos a leitura
livre de toda a gente. Pedimos portanto, a todos os grupos editores que enviem os seu
folhetos e periódicos á nossa meza de leitura.
(A Vida, Rio de Janeiro, ano I, nº1, 30-11-1914).
Além da correspondência dos anarquistas brasileiros, A Vida, tal como constou na
circular, deveria receber a colaboração de autores anarquistas estrangeiros. A destinação de A
Vida não era o grande público, tal como o anunciado na circular. Destinava-se aos grupos de
estudiosos da questão social e visava à constituição de quadros do movimento operário dentro
e fora do Brasil:
Por ela os camaradas espalhados por toda esta enorme região terão conhecimento de
todos as ações de propaganda que se realizem em qualquer ponto do país, das
iniciativas que surgirem dos novos elementos que chegam a engrossar a nossa falange
revolucionária, terão, enfim, conhecimento de toda a nossa vida anarquista.
Analisando e comentando em resenha, os factos capitais da vida social e política
brasileira, inserindo uma crônica do movimento social internacional, apreciando e
resumindo as obras de sociologia que se forem publicando em língua portuguesa,
inserindo colaboração do anarquismo no Brasil, permitindo controvérsias e
promovendo inquéritos para o conhecimento do problema econômico e social da
região brasileira, a nova revista constituirá, além de uma preciosa fonte de
informações e documentos, um não menos apreciável meio de educação anarquista. (A
Lanterna - Anticlerical e de Combate, São Paulo, ano XIV, nº 269, 05-12-1914, p.4).
A circular aos leitores de A Lanterna esclarecia sobre a funcionalidade de A Vida,
assim como apresentava as normas de participação dos interessados:
Além disso, anunciando sempre livros, folhetos e jornais de propaganda libertária e
satisfazendo todos os pedidos com prontidão; possuindo sempre à venda dos últimos
trabalhos editados na Europa, mantendo uma larga permuta com os jornais e revistas
de todo o mundo, respondendo a todos os esclarecimentos solicitados pelos seus
144
leitores – a nova revista será vamos dizer um bureau de informações e um centro de
difusão da nossa literatura, ou seja, das nossas idéias. (A Lanterna - anticlerical e de
combate, São Paulo, ano XIV, nº 269, 05-12-1914, p.4).
É importante destacar que, nesse período, o Brasil não possuía um mercado editorial
constituído, sendo costume dos homens de letras publicarem seus livros em Portugal. Além
disso, nem sempre era fácil conseguir uma obra. Assim, a iniciativa de fundação de A Vida
atendia ao objetivo de estabelecer ou intensificar o contato com a produção libertária de
outros países, como, por exemplo, Portugal, ampliando as conexões extrapolando os limites
do país. No primeiro capítulo fizemos referências às conexões, estabelecidas entre os editores
e os colaboradores de A Vida com os professores anarcosindicalistas portugueses, destacando
as obras do professor português Adolfo Lima Diretor da Escola Oficina nº 1 de Lisboa. Suas
obras estavam entre as que eram oferecidas aos leitores como os livros que todos deveriam
ler.
Na revista A Vida, o empenho em disponibilizar informações sobre as produções em
torno da questão social brasileira é uma constante em todos os seus números. Cabe ressaltar a
coluna Leitura que recomendamos, dividida em três sessões, apresentando a indicação de
livros, folhetos e jornais. Além de cumprir a função de divulgar e prescrever leituras,
funcionava também como distribuidora. Ao lado do título e de seus autores, era apresentado o
valor de custo de cada um. O grupo editor cobrava o selo do correio e se disponibilizava a
enviar qualquer encomenda de publicações estrangeiras. Na sessão “jornais” dessa coluna, A
Vida anunciava a venda de assinaturas de quatro jornais dos quais recebia apoio, como A
Lanterna, A Voz do Trabalhador, La Propaganda Libertária, A Aurora, Tierra Y Liberdad
Na folha expediente anunciava:
VENDA DE LIVROS: Na nossa administração encontram-se á venda folhetos,
livros, revistas e jornais em vários idiomas de propaganda anarquista, e encarregamo-
nos de satisfazer pelo correio, com prontidão todas as encomendas de livros que
venham acompanhadas da importância correspondente, bem como de tomar
assinaturas que recebemos de permuta, a vir a nossa sede nos dias e horas indicados.
[
...]. (A Vida, Rio de Janeiro, ano I, nº1, 30-11-1914).
Muito provavelmente a iniciativa de A Vida tenha sido espelhada nos exemplos das
revistas internacionais européias. Oiticica, o seu editor era colaborador de revistas européias
desde o início da década anterior tal como já foi mencionado, ele colaborava na revista
francesa La Science Socialle. O alcance almejado para A Vida, no entanto, não era ambicioso
do ponto de vista da tiragem.
Não espera o grupo editor uma grande tiragem para a nova revista, nem sonha com
larga leitura entre o que se usa chamar o “grande público”. Nada disso. O seu desejo
145
reduz-se a que ela circule pouco mais além do circulo, mais vasto do que se julga, da
nossa família anarquista e dos que simpatizam ou se interessam pelas nossas
doutrinas, a que, através de todas as eventualidades, ela possa, infalivelmente visitar
uma vez por mês todos os camaradas desta região quaisquer que sejam os confins em
que se encontrem isolados, - embora no seu caminho e ao seu lado outros e muitos
variados periódicos anarquistas surjam, susceptíveis de vida efêmera que nem por isso
deixam de ser muito úteis a nossa idéia. (A Lanterna - Anticlerical e de Combate, São
Paulo, ano XIV, nº 269, 05-12-1914, p.4, grifos nossos).
O Grupo Editor Novos Horizontes anunciava o preço da revista, o número de páginas
e conclamava todos os leitores dos periódicos anarquistas que se empenhassem para
prosseguir com essa iniciativa:
Tendo pois como principal preocupação, assegurar uma vida longa a nossa revista o
grupo editor resolveu estipular-lhe o preço de 200 réis avulso e de 5$000 réis por
assinatura anual. Nestas condições de preço, o Grupo confia que o seu desejo se
cumprirá desde que todos os camaradas a adquiram e se esforcem por conseguir
entre os seus amigos e conhecidos, um assinante ou um leitor a mais. Como vedes,
é bem pouco o que se pede para uma obra de indiscutíveis e proveitosos resultados
para a propaganda anarquista no Brazil.
(A Lanterna - Anticlerical e de Combate, São Paulo, ano XIV, nº 269, 05-12-1914,
p.4, grifos nossos).
Em A Lanterna, de 05 de dezembro de 1914, outra circular comunicava os leitores
sobre o aparecimento de A Vida destacando que:
Queremos apenas acusar o recebimento do seu primeiro número [de A Vida] – que está
mesmo bom, com bom cuidado de feitura do material tendo na capa expressiva
gravura e trazendo nas suas 16 páginas colaboração escolhida e suculenta. É uma
publicação que merece o mais decidido apoio dos militantes da propaganda
avançada no Brasil e que todos os estudiosos devem ler. (A Lanterna - Anticlerical
e de Combate, São Paulo, ano XIV, nº 269, 05-12-1914, p.3, grifos nossos).
O articulista de A Lanterna chamou a atenção do leitor para a “expressiva gravura”
que abre a revista A Vida. O punho fechado do trabalhador mostra a coragem do libertário
para a consecução da luta pela emancipação humana. Encoraja a mulher a entrar na luta em
prol da libertação, reagir à resignação e olhar para os “novos horizontes” da sociedade futura:
Figura 4 - Capa da revista A Vida
146
(A Vida , ano I, nº 1, 30-11-1914)
O grupo editor Novos Horizontes e os articulistas dos jornais anticlericais e libertários,
como, por exemplo, A Lanterna, chamavam a atenção dos leitores e leitoras sobre a força que
a Igreja empreendia em semear o comportamento da apatia por meio da conquista dos
corações e das mentes femininas e infantis.
No número 02 de A Vida, publicado em 31 de dezembro de 1914, há um artigo
intitulado Aos companheiros e grupos anarquistas de língua portuguesa, que indicia as
críticas que o periódico parece ter recebido, às quais seu grupo editor responde da seguinte
maneira:
Um pouco experimentados nesta árdua tarefa de editar jornais, não esmorecemos com
palavras desdenhosas dos que “não gostam”. Sabendo muito bem que o que para uns é
defeito, para outros torna-se título de recomendação. [...]Mas para os descontentes ou
insatisfeitos bem intencionados, o fato de a revista não lhes ter agradado não deve
ser o motivo para o seu desaparecimento; muito pelo contrário deve ser motivo para
se empenharem em melhora-la, por preencher as suas deficiências, fazendo-nos
os seus reparos, apresentando-nos os seus alvitres e trazendo-nos, com a sua
solidariedade, o auxílio do seu esforço material e intelectual. Não deveria ter
faltado, por certo o mau agouro dos nossos infelizes camaradas que se deixaram
vencer por um pessimismo doentio e que sentindo-se incapazes de qualquer esforço,
julgam tudo impossível porque dizem eles falta-nos dinheiro e elementos. Ora a
verdade é que elementos que conheçam a questão social e que saibam dizer o que
pensam e expor o que sentem não faltam. Escritores de talento possui já o
anarquismo no Brasil. O que realmente nos faltava era uma revista onde pudessem
dizer de sua justiça. E o passado e o presente de A Vida estão a confirmar. Quanto a
147
falta de dinheiro respondemos como Kropotkin, que esse grande obstáculo com
que nos vemos forçados a lutar pode ser vencido pela força de vontade[...]Para
que A Vida preencha os fins a que se destina é necessário como condição
indispensável, a sua longa e regular existência porque só a seqüência ininterrupta da
sua publicidade e os anos de sua publicação lhe garantirão as boas e vastas
relações internacionais, tornando-a universalmente conhecida e a todos
inspirando confiança. Ora a sua existência acha-se dependente só da difusão, isto é
da maior ou menor venda de cada m de seus números [...]. (A Vida, Rio de Janeiro,
ano I, nº 2, 31-12-1914, grifos nossos).
Oiticica e o grupo editor na defesa de A Vida apresentavam o desafiador projeto
editorial que era tornar o periódico conhecido universalmente. Deixavam claro que o objetivo
da revista era servir como veículo para os debates em torno do projeto educacional
internacional dos anarquistas.
Os editores da revista, em vez de rechaçar as críticas recebidas sobre a revista,
buscavam agregá-las, incitando dos críticos a solidariedade de enviarem contribuições, quer
fossem textos, quer fosse outro tipo de provimento para que a revista pudesse ter um alcance
maior, pois somente a partir da regular periodicidade e qualidade dos argumentos, obteria
confiabilidade e reconhecimento do público leitor de outros países. De fato era um projeto
ambicioso, mas, apesar da dificuldade, sintomática, financeira para a publicação dos
periódicos ácratas, estimulavam a militância, pela “força de vontade”, a contribuírem para a
“árdua tarefa de editar jornais” e revistas em prol da “obra da propaganda social”.
3.4.1 O ensaio de José Oiticica em A Vida
Na vigência de circulação de A Vida, em cinco números, José Oiticica publicou um
ensaio sociológico intitulado O desperdício da energia feminina.
120
Oiticica cuidou em
destrinchar os termos “vida”, “trabalho”, “lucro”, “energia” como categorias construídas a
partir de conexões com as áreas da biologia e da psicologia, da sociologia e da economia
política, em “uma série lógica”, ou seja, a semelhança da sistematização que defendia para
disposição dos conteúdos e conceitos, destrinchando-os, concatenando-os, apresentando-os
gradativamente, dos conceitos mais simples para os mais complexos.
Os conceitos “vida” e “trabalho” foram resultantes de apropriações de leitura de
Willian Thomson e de Adam Smith, deste último, mais especificamente, a proposição sobre a
multiplicação da força produtiva pela divisão do trabalho. Oiticica se opunha à visão
hobessiana de sociedade, em sua concepção a humanidade não estava sob estado de guerra,
admitindo a idéia de que a divisão de trabalho trazia a solidariedade entre os trabalhadores.
120
Alguns excertos desse ensaio de José Oiticica foram comentados no primeiro capítulo.
148
No entanto, esta idéia que era admitida em diversos discursos libertários do período se
torna crítica quando acrescentadas às suas apropriações e suas adesões teóricas do
anarquismo, especialmente as questões sobre o poder, a autoridade, e, principalmente, sobre
as razões da desigualdade social.
Oiticica se propõe no ensaio a explicar “a ação da mulher no trabalho humano”, a
partir de um balançodo quanto concorre ela para o saldo e do quanto desperdiça” de energia,
e também de “verificar se a sociedade atual [oferecia a mulher]os meios [para] desenvolver a
sua capacidade transformadora de energias” ou então se a sociedade atual “lhe [tolhia] a
expansão de ser, lhe [comprimia] a atividade pessoal”.
121
Para responder a essas questões ao
longo do seu ensaio, Oiticica empreendeu críticas e combate ao Estado, ao capital e à Igreja,
explicando a função de cada um, discorrendo sobre os conceitos de energia, de autoridade e
sobre o papel que cada uma das instâncias tinham na sociedade atual para todos, e
especificamente para a mulher.
O Estado tinha o papel de destruidor da vontade livre, e causador da expropriação da
“massa de trabalhadores” por uma “minoria de não trabalhadores”, ao assegurar para uns
poucos toda a riqueza e privilégios, e os desperdícios das energias humanas dos que realizam
a produção de tudo que é necessário para a vida, mas que não tinham acesso aos bens que
produziam. A Igreja é tida como a responsável pela apatia, resignação dos que produzem, e
como proprietária da riqueza apóia a propriedade individual da minoria exploradora.
Neste ensaio sociológico, desperdício da energia feminina, Oiticica, ao se contrapor ao
Estado e à Igreja, como instâncias de poder, confrontava-se também com qualquer outra
forma de autoridade, defendendo a “livre vontade”. A livre vontade era apresentada como o
modo de ser mais favorável para a sociedade pela proposta da “solidariedade humana” que
trazia em si, uma vez que, segundo ele, o homem é solidário por natureza. Para ele a luta pela
existência não era, como já foi dito, o estado de guerra do homem contra o homem:
[...] ora na luta pela vida, que não significa, notai bem, a luta do homem contra o
homem, mas a luta do homem contra as energias naturais oponentes, na luta pela
vida, digo eu, o homem representa o centro de transformações de energias.
Todas as energias naturais apropriadas pelo homem para a satisfação completa das
necessidades chamam-se energias utilizáveis. (A Vida, Rio de Janeiro, ano I, nº 1, 30-
11-1914, p.7, grifos nossos).
A energia humana é definida como: o conjunto de energias físicas (derivadas do
corpo), intelectuais (do grau de ideação capaz de inventar e imitar) morais (da determinação e
121
A Vida, Rio de Janeiro, ano I, nº 1, 30-11-1914, p.7.
149
orientação da vontade), práticas (hábito profissional) e sociais (provenientes da
solidariedade). Essa última noção é apropriada de Adam Smith:
Desde Adam Smith se conhece a teoria da multiplicação da força produtiva pela
divisão do trabalho. A divisão do trabalho é o modo de ser mais favorável da
solidariedade humana. Se um homem produz um. Dez homens produzirão, não dez,
mas cem. Esse excesso representa a energia de solidariedade, ou energia social
propriamente dita. (A Vida, Rio de Janeiro, ano I, nº 1, 30-11-1914, p.7).
A noção de desperdício de energia apresentada no ensaio por Oiticica é apropriado de
Willian Thomson em sua proposição sobre a lei da degradação da energia. Embora citada a
fonte, Oiticica informa que não tem o propósito de discorrer sobre a apreciação dos princípios
que revolucionaram a ciência moderna. O desperdício, diz Oiticica, pode ocorrer de três
formas: por não aproveitamento, por mau aproveitamento, ou por destruição e explica-o como
um problema da humanidade que decorre da exploração do “trabalho humano”:
Qual é portanto o problema geral da humanidade? É este transformar com o menor
gasto possível, a maior quantidade possível de energias universais dispersas em
energias utilizáveis. Decorre daí, a noção bem clara, a noção de desperdício. (A Vida,
Rio de Janeiro, ano I, nº 1, 30-11-1914, p.7).
Ao informar seus leitores sobre a exploração do trabalho feminino, demonstrando que
a exploração do trabalho feminino é maior ainda que a do trabalho masculino, Oiticica
informa ao seu o leitor sobre a situação de depauperamento do trabalho feminino no campo:
Todos sabemos que a mulher tem muita menos resistência física que o homem. Pois
na sociedade moderna a mulher esta sujeita aos mesmos trabalhos físicos [...] quem
percorre as lavouras pode ver o estado de depauperamento precoce das mulheres do
povo [...] nos engenhos do Norte paga-se a um trabalhador do campo 1$000, 8000rs,
ou 600 rs, mesmo a seco; a uma mulher 500 rs no máximo, a uma criança meia pataca.
Dez tostões por dia, a um homem que trabalha ao sol no cabo da enxada, durante 12
horas; 10 tostões para comer, vestir-se e claro criar os filhos. Qual pode ser a
alimentação desses homens, dessas mulheres, dessas crianças? [...] Nas fábricas as
mulheres se acham expostas a toda sorte de envenenamentos [...] Doentes sem
dinheiro, recorrem ás mezinhas, aos curandeiros, ao espiritismo explorador, aos
hospitais infeccionados, porque o médico é burguês e exige sempre o pagamento da
consulta ou a compra do remédio na farmácia preferida [...].(A Vida, Rio de Janeiro,
ano I, nº 1, 30-11-1914, p.7, grifos nossos).
Com esse procedimento Oiticica quer explicar aos seus leitores que:
A-) as condições aviltadas do trabalho feminino afetavam as gerações seguintes, pois
“[...] o desperdício das energias físicas femininas [estendiam-se] nos seus estragos
irreparáveis, às gerações futuras, por que a hereditariedade não perdoa”.
B-) a mulher precisava ser emancipada para poder oferecer aos filhos uma educação
libertária, só se assim ocorresse, seria possível criar a humanidade nova, para a construção da
150
sociedade nova, por meio da revolução social e a partir da ação direta, das ações espontâneas.
C-) a emancipação intelectual ofereceria-lhes condições para que a mulher pudesse se
defender dos perigos dos fanatismos.
Em seu ensaio Oiticica reprovava a hierarquia entre “os dirigentes” (que tudo possuem
e nada produzem) e a “massa de produtores” (que tudo produzem e quase nada possuem).
Com todo o poder dos dirigentes, aos trabalhadores era oferecida uma educação repleta de
preconceitos, ainda assim à minoria, pois grandes contingentes da população permaneciam
analfabetos, ou seja, a “base” da sociedade. A educação fica a cargo dos “dirigidos ambíguos”
daqueles que “se dizem como os mais instruídos”, por exemplo, os funcionários públicos,
professores, sacerdotes, os jornalistas, etc. De acordo com ele, melhor dizendo:
A comunicação dos dirigentes com os dirigidos se faz por intermédio de camadas
ambíguas, isto é, indivíduos dirigentes e dirigidos ao mesmo tempo. No topo se acham
os que se dizem mais instruídos, médicos, engenheiros, advogados, capitalistas,
diplomatas, padres, generais; na base a multidão analfabeta. A educação dessa massa
se faz pelos dirigentes através dos ambíguos, quer dizer dos funcionários públicos que
se encarregam de ministrar aos trabalhadores as idéias, ou antes, os preconceitos
favoráveis á supremacia deles dirigentes. Esses preconceitos são o freio com que se
contem a besta. As leis, a polícia, o exército e a armada são a espora e o chicote com
que se domam os ímpetos de revolta. [...].(A Vida, Rio de Janeiro, ano I, nº 2, 30-11-
1914, p.7, grifos nossos).
O antídoto a essa educação de preconceitos que “doma a rebeldia”, argumenta
Oiticica, são as greves, estas representam “o abrir de olhos da massa trabalhadora”. Com as
greves os trabalhadores podem se opor à “organização parasitária” e combater a “educação
cívica, a educação clerical e a não educação”, que são as produtoras da massa de ignorantes,
defendia Oiticica.
Outro tema tratado em seu ensaio, “O desperdício da energia feminina”, era sobre a
idéia do livre trabalho, um tema que foi título de uma de suas conferências em 1914. A
abordagem do tema é feita por Oiticica em forma do diálogo com o seu leitor. Essa estratégia,
com variações aparecem utilizadas pelo professor em outros de seus materiais pedagógicos.
Pode-se dizer que com essa estratégia o professor Oiticica pretendia provocar a reflexão, um
procedimento do “método socrático”, cujo objetivo era interagir com o seu leitor para que ele
se voltasse ao próprio pensamento, mas com variação, pois a conclusão neste caso que se
segue foi apresentada pelo mestre:
Permite a sociedade atual [o] desenvolvimento livre das aptidões? Não. Faça cada qual
o exame de sua vida e pergunte a si mesmo: pude eu cultivar devidamente as minhas
aptidões? Posso responder por mim e por todos: Não. Por que não? Por que não sendo
a formação intelectual livre, nem livre a vontade, livres não podem ser os atos e muito
menos livre a escolha do trabalho. A ação individual é comprimida por todos os lados.
151
O operário em geral segue a profissão do pai, ou a profissão do primeiro mestre a
quem serve de aprendiz, ao acaso da necessidade, conforme os apertos da fome.
[...].(A Vida, Rio de Janeiro, ano I, nº 3, 31-01-1915, p.4).
A idéia da “formação intelectual livre” é recorrente nos escritos de José Oiticica e
lembra a sua explanação sobre a sistematização de seu método de ensino usado no Colégio
Latino-Americano e defendido como adequado para o ensino de português na escola, tal como
foi comentado no primeiro capítulo a propósito de sua conferência radiofônica de 1948. Na
passagem recortada de seu ensaio para a revista A Vida, a formação intelectual livre é a
condição imprescindível para as escolhas livres. Esta afirmação é precedida no artigo de uma
importante condicionante: a necessidade de estar fora da sociedade capitalista que tira de
todos a possibilidade de efetivar escolhas.
Oiticica faz referências, na seqüência de seu ensaio, às escolas profissionais, às escolas
técnicas, aos liceus de artes e ofícios, como as poucas iniciativas tomadas pelo poder não em
prol das aptidões, mas assevera que a intenção de tais instituições visavam atender às
necessidades da indústria moderna, ou seja, são meros interesses dos capitalistas, não se
tratando de ações voltadas à “formação do homem livre”.
3.4.2 A mulher: companheira livre do homem livre
A Igreja, com os seus rituais, com os seus ensinamentos, atrapalhava a emancipação
feminina e representava um perigo que deveria ser afastado. A principal razão apresentada
por Oiticica na explicação sobre a eficácia da Igreja no roubo das consciências era a
ignorância intelectual da mulher, da massa analfabeta, e daqueles vitimados pela educação
cívica e a clerical. Assim, defendia Oiticica a importância de que todas as mulheres
recebessem formação baseada na psicologia, fisiologia e todas as ciências correlatas e afirma
que ninguém deveria ser mais enciclopédico do que a mãe de família e, portanto, do que a
mulher. Todas as mulheres deveriam ser pedagoga para estar aptas a formar a consciência
livre, pois este era o papel que deveria ter o pedagogo libertário, ao menos na concepção de
Oiticica.
Contra a dominação da Igreja Católica sobre as consciências, Oiticica propunha a
energia moral pela “vontade livre”, que era o antônimo da autoridade/dominação religiosa.
Portanto, todas as formas de autoridade deveriam ser combatidas em favor dessa “vontade
livre” que possibilitava as escolhas livres e convidava a mulher para a sociedade de homens
152
solidários:
Há na humanidade, uma corrente surda de opinião revoltada. Revoltada contra as
iniqüidades tradicionais, econômicas, políticas, religiosas, esse amontoado de
preconceitos e crendices, esse domínio da fé e do canhão, esse regime de exploração
do fraco pelo forte, da minoria parasita sobre a maioria produtora. Esse movimento
tem por programa instituir na terra uma sociedade de homens solidários em
substituição á nossa sociedade de homens lobos [...].(A Vida, Rio de Janeiro, ano I,
nº 5 31-03-1915, p.18, grifos nossos).
Oiticica finaliza o seu artigo sobre o desperdício da energia feminina dimensionando o
lugar que a mulher deveria ocupar na luta pela sociedade solidária, mostrando que o programa
se alimentava da rebeldia e apresentava propostas a serem encaminhadas por todos, a mulher
livre ao lado do homem livre:
Nesse programa entra a mulher como ser autônomo, companheira livre do homem
livre, cooperadora consciente de maximização da energia humana, guiada pela mesma
ciência, pelos mesmos direitos, isenta da religião, da miséria, da falsa moral de
castidade, do autoritarismo da moda, do casamento e da prostituição. Que resta fazer a
mulher? Entrar no movimento. O primeiro passo nesse rumo é abandonar a Igreja,
libertar a razão, começar a emancipação intelectual. Conseguido isso o espírito está
aberto a compreender o problema social de luta para a consecução dessa humanidade
futura, consecução que é o sonho mais fecundo, a mais bela utopia, a concepção mais
alentadora que já formulou no mundo: a ANARQUIA. [...].(A Vida, Rio de Janeiro,
ano I, nº 5, 31-03-1915, p.18, grifos nossos).
Com o convite à anarquia, Oiticica encerrou o seu artigo. Na mesma revista outro
artigo, intitulado “O catecismo anarquista”, ocupou alguns números e, embora não assinalado
pelo estilo de escrita, parece ter sido de autoria de José Oiticica, embora não assinado por ele.
Após o encerramento das publicações de A Vida, em 31 de maio de 1915, o professor
Oiticica continuou a colaborar nos jornais A Voz do Trabalhador, A Lanterna, O Debate
fundado este em 1917, por Astrojildo Pereira e Adolpho Porto e, em 1918, passou a colaborar
também com o jornal Liberdade, sob direção de Pedro Matera.
3.5 Rebeldia x repressão: as prisões do professor José Oiticica
As atividades militantes do professor Oiticica na imprensa libertária, nas conferências
anticlericais de livre pensamento, proferidas quase que semanalmente nas associações, ligas,
sindicatos, fizeram parte do conjunto das ações de resistência das classes trabalhadoras do Rio
de Janeiro e, também, de São Paulo. Por essa razão, faz-se necessário abrir um breve
parêntese apresentando alguns elementos do ambiente no qual que Oiticica estava inserido
como ator na cena política do período. O objetivo reside apenas em contextualizar a sua
primeira prisão.
153
São Paulo e Rio de Janeiro foram palco de grandes greves operárias
122
. As greves
classificadas mais importantes do ponto de vista da adesão e da organização foram as de
1913, 1917 e 1919, que conseguiram mobilizar a maior parte dos trabalhadores de Rio de
Janeiro e de São Paulo. Na greve de 1926, houve adesão total dos gráficos paulistas, e na de
1928 de todos os operários têxteis do Rio de Janeiro.
123
Essas movimentações de resistência, conseqüências do conflito capital x trabalho, se
manifestavam orquestradas por diversos grupos, associações, confederações e outros grupos
de orientação operária
124
, os quais empreendiam por meio da imprensa anarquista uma batalha
contra o Estado, a Igreja e a Burguesia.
A insuficiência de direitos trabalhistas permitia a dispensa do trabalhador sem
qualquer tipo de indenização. Tanto a contratação como a dispensa do operário eram feitas
sem quaisquer registros. Além disso, a instabilidade gerada pelas dispensas nas crises no setor
fabril propiciava aos patrões o pagamento de salários ainda menores e o desemprego. Entre o
Estado oligárquico e os empresários havia total conivência com relação a essa realidade.
Munakata (1981, p.14) chamou atenção para o texto constitucional de 1891 que: “[...] era um
instrumento teórico institucional perfeitamente adequado à dominação burguesa: garantia o
domínio absoluto do patrão dentro da empresa [...] e assegurava a intervenção policial quando
esse domínio fosse perturbado pelas agitações operárias”.
As poucas leis de trabalho eram confusas e poucos direitos eram assegurados aos
enfermos ou para as famílias que perdiam um de seus integrantes em acidentes de trabalho. A
122
Hardman e Leonardi (1991, p.332), no livro História do trabalho e da indústria no Brasil, reuniram dados do
levantamento do historiador Edgar Rodrigues, em Nacionalismo e cultura social sobre as greves operárias
realizadas no Brasil: entre 1900-1910 = 111 greves, e entre 1910-1920 = 258, um levantamento excluiu o
período de 1917-1918; e os resultados da pesquisa de Boris Fausto, em Trabalho urbano e conflito social, no
período entre 1917 e 1920 = 200 greves. Esses registros foram feitos a partir do exame de documentação esparsa
e por isso apresentam informações imprecisas, principalmente quanto ao número de grevista, tal como os autores
esclarecem na nota número 210 da p. 379. No entanto, é pertinente lembrar que os dados disponibilizados
evidenciam alto grau de resistência da incipiente classe trabalhadora do período.
123
Cf. Pinheiro e Hall (1979)
124
O historiador Edgard Rodrigues (1972), como lembram Hardman e Leonardi (1991, p.332-333), relacionou
para o período anterior a 1922 a criação pela classe operária de 99 uniões operárias, 4 alianças operárias, 70
cooperativas e associações de auxílio mútuo, 29 grupos anarquistas específicos, 59 ligas operárias, 40
associações e sociedades operárias, 13 clubes, círculos e movimentos operários, 16 bibliotecas, 21 grupos de
teatro social, 26 escolas livres, 40 sindicatos; além da realização de 110 conferências de cunho social e a
formação de 26 Federações Regionais Operárias e da Confederação Operária Brasileira (COB, de âmbito
nacional, criada em 1908, sob a égide direta dos anarcosindicalistas). Sobre outras atividades de propaganda
social, Edgar Rodrigues (1972, p.446- 451) registrou a ocorrência de 33 festivais operários de solidariedade a
jornais, escolas e pró-presos e deportados, além de informar sobre as seguintes manifestações públicas: 22
passeatas, 119 comícios e protestos públicos, 27 assembléias e 80 comemorações (incluindo as de Primeiro de
Maio). Com este levantamento de Edgar Rodrigues, os autores chamam a atenção para as formas pelas quais as
classes trabalhadoras fizeram enfrentamentos ao Estado Oligárquico republicano e apresentam do levantamento
de Rodrigues (1972, 451-2) as marcas dessa resistência: 50 repressões e fechamento de organizações operárias,
14 mortes de trabalhadores, 657 prisões em razão de greves, 31 deportações e 128 expulsões do território
nacional.
154
legislação trabalhista anterior à “Revolução de 1930” levantada por algumas pesquisas
mostram que essas leis eram esparsas e visavam estabelecer a amplitude das manifestações
operárias e registrar as associações de trabalhadores
125
.
A repressão às manifestações operárias era de extrema violência durante toda a
República Velha. Seguia-se a prática estabelecida e caracterizada pela afirmação de
Washington Luís: “A questão social é um caso de polícia”. Os agentes da polícia e os
soldados da Força Pública uniam-se aos capangas contratados pelos donos das fábricas para
reprimir as manifestações, promovendo espancamentos, assassinatos de trabalhadores,
perseguiam os líderes trabalhistas.
Quando os militantes do movimento operário eram imigrantes, a ameaça de expulsão
do país era uma constante, e, a partir de 1907, quando foi criada a Lei Adolfo Gordo
126
, todos
aqueles que estivessem sob suspeita e acusação de atentar contra a segurança nacional
poderiam ser expulsos do país. O objetivo era impedir a participação de operários estrangeiros
nas diretorias sindicais. A lei atingia todos os não-naturalizados que estivessem no Brasil a
menos de cinco anos, e coagia especialmente este segmento da militância operária que vivia
sob a constante ameaça da deportação.
A imprensa libertária dava cobertura às iniciativas operárias de rebeldia nesse cenário,
funcionando como um dispositivo organizador de ações. A orientação sindical teve, segundo
Boris Fausto (1981, p.174), entre os anos 1917 – 1920, o apogeu e a falência do anarquismo e
justifica essa “falência” como “incapacidade de assumir um verdadeiro papel dirigente”.
Francisco Hardman (1989, p. 320) considera também que esse foi um período em que
a corrente anarcossindicalista esteve à frente como força revolucionária das greves gerais que
eclodiram no período, e argumenta, em sua avaliação sociológica, que, nas poucas conquistas
atingidas pelos trabalhadores, pesou a recusa dos anarquistas em organizar a classe em um
partido e na superestimação do papel do sindicato e da luta econômica, além da exaltação de
formas espontâneas de lutas voluntaristas e individualistas.
Sheldon Maran (1979, p.89) responsabilizou o voluntarismo dos trabalhadores nas
manifestações como um dos motivos “geradores da fraqueza do movimento”. A
espontaneidade das formas de organização trabalhadora foi tomada como negatividade.
Azevedo (2002, p.42), reportando-se a E. P. Thompson, lembra de seu questionamento sobre
“o reducionismo econômico inerente às análises dos motins do século XVIII, quando não se
125
Dentre as pesquisas que trataram do tema da legislação anterior a 1930, destacam-se os trabalhos de GOMES,
Ângela Maria de Castro(1979), Burguesia e trabalho política e legislação social no Brasil 1917-1937;
MUNAKATA, Kazumi (1981) A legislação trabalhista no Brasil.
126
Decreto nº 1.641, de 07 de janeiro de 1907.
155
leva em conta, diante das motivações de fome e miséria, a mediação exercida pelo costume,
pela cultura e pela razão de uma comunidade”.
Essa perspectiva da cultura operária é um ponto interessante para a compreensão da
forma pela qual José Oiticica atuou e escreveu sobre o quadro no qual estava inserido como
participante das reuniões da Federação Operária: assistindo ao seu fechamento, reagindo ao
entusiasmo provocado pela suposta possibilidade da Revolução Social que reverberava em
razão da Revolução Russa. Essas considerações foram apresentadas para situar o grau de
efervescência do movimento operária e a inserção de Oiticica, encerrando o parêntese e dando
seqüência à narrativa sobre a sua prisão em 1918.
José Oiticica freqüentava as reuniões da Federação operária. Reagiu ao seu
fechamento, em 1916, e acompanhava com entusiasmo as atividades da União Geral dos
Trabalhadores em 1918, participava dos debates que encaminhavam o movimento operário,
freqüentando as reuniões sindicais. Tal posicionamento chamou a atenção dos órgãos
repressores, pois a sua colaboração no Correio da Manhã e nos jornais libertários, alguns
clandestinos como o Liberdade, dirigido por Pedro Matera, era marcada por sua postura
combativa e favorável ao sindicalismo operário. Reagiu, combatendo pela palavra os
episódios das prisões do editor de Liberdade, e também as prisões de Maximino de Macedo,
Primitivo Soares, José Gaiazzi, todos pares militantes libertários da imprensa ácrata.
127
Além disso, a partir de seu ingresso como Catedrático de Português do Colégio Pedro
II, em 1917, quando tomou posse do cargo, a sua participação na imprensa libertária passou a
chamar maior atenção ainda, por parte da polícia. Aí. Seu posicionamento destoava
completamente do comportamento do quadro de intelectuais docentes daquela instituição.
Nenhum outro professor dessa instituição, considerada o modelo da educação secundária
brasileira, a não ser Oiticica era participante do debate educacional libertário. Portanto, a
conjunção dessas atividades intelectuais era incomum, sendo, dessa forma, alvo de atenções,
principalmente quando se manifestava o viés sindical de sua militância.
Os artigos jornalísticos de José Oiticica começaram a ser recusados no jornal Correio
da Manhã, em razão da censura policial. As prisões dos seus companheiros, todos
participantes da imprensa anarquista, em 1916, o fechamento da Federação Operária e a sua
reabertura em 1917, provocaram Oiticica a publicar um artigo, no jornal A Rua, antes
recusado pelo Correio da Manhã, em que defendia a Federação Operária e protestava contra a
127
Essas informações foram recolhidas em Carta aberta a Aurelino Leal: em defesa da Federação Operária,
que foi publicada em 19-04-1918 no jornal A Rua e que consta da antologia com os artigos de José Oiticica
coligidos por Roberto das Neves (1970, p.52-57).
156
perseguição aos anarquistas. Esse artigo intitulado, Carta aberta ao Chefe de Polícia Dr.
Aurelino Leal – em defesa da Federação Operária foi escrito dois meses após a Carta aberta
a Rui Barbosa
128
, mencionada no primeiro capítulo desta pesquisa. Oiticica reagia à censura
dos seus artigos pelo chefe Aurelino Leal e apresenta os seguintes argumentos sobre a
Federação Operária Brasileira:
Diz V. Exª, que “a Federação Operária é um antro de anarquistas e velhacoito
ostensivo e audacioso da vasa internacional atirada as nossas praias, aqui vivendo em
perene abuso da nossa índole hospitaleira e da liberdade das nossas leis” ano passado.
Quem lê isso põe as mãos a orar, agradecendo ao Ser Supremo a dadivosa prenda feita
à praia dos Tupiniquins. [...]. V. Exª denuncia e ataca os anarquistas do Brasil, um
ladrão, um incendiário, um desordeiro, um adulador, um vagabundo, um
mendigo, um delator, um vigarista... Desafio! E desafio porque tenho certeza, e os
fatos o têm provado, de que se algum trabalhador tido por anarquista cair na
malandragem ou se apegar a bajulação eleitoral, será literalmente arredado dos
meios libertários. Para moralizar este Brasil querido e maltratado V. Exª devia fazer o
que não tem feito. Para me servir da expressão de V. Exª, lembrarei que, se há uma
vasa internacional de proletários, há outra vasa internacional burguesa. E se é
justo perseguir os maus elementos do andar térreo, a justiça impõe creolina policial no
sexto andar, onde proliferam a sol vivo, canalhas de primeira.[...] A Federação
Operária era uma agremiação frágil, hesitante, com cinco mil sócios, mais ou
menos entre as sociedades componentes.V. Exª diz que nessa Federação se pregou a
dissolução da família. Posso asseverar a V. Exª que isso é absolutamente falso, pois o
anarquismo não prega semelhante cousa. Os anarquista são também pais, têm muitos
deles, numerosa prole. Não podiam por isso, pregar a dissolução da família. O que eles
acham e eu também acho, e que para amar a companheira e os filhos, não há mister de
benzedura do batismo ou aquela comédia com que o Código Civil meio anarquista
nesse ponto, acabou serenamente.[...] O ato arbitrário de V. Exª fechando-a, foi o laço
forte para a união dos trabalhadores. [...] Posso informar que a atual União Geral
dos Trabalhadores é a mesma antiga Federal Operária com os antigos elementos
e outros muito novos. Os cinco mil trabalhadores de ontem, graças a V. Exª , são
hoje trinta mil solidamente arregimentados. [...] Eu porém, interessado nos
problemas sociais do mundo, desejo intimamente que V. Exª leve avante uma
perseguição tenaz contra a União Geral dos Trabalhadores. Peço, imploro, rogo a
V. Exª este serviço extraordinário [...] V. Exª elevara o número a cem mil. Cem
mil aqui, outros cem mil em São Paulo!Que beleza! (OITICICA, A Rua, 19-04-
1918, p.1, apud NEVES, 1970, p.52-57, grifos nossos).
O tom desafiante de Oiticica não deixa dúvidas sobre a sua inserção nas questões
relativas à cena do movimento operário no período. Dessa participação e das ações que
envolveram a insurreição anarquista de novembro de 1918 decorreu a sua primeira prisão, que
abriu uma série de outras prisões. O relato que se segue embora sucinto, tem o objetivo de
reconstituir, por meio de excertos da correspondência trocada entre Oiticica e familiares, a
situação a que esteve sujeito nesses episódios. Os seus encarceramentos aparecem registrados
na documentação do Arquivo do Estado do Rio de Janeiro, especificamente no prontuário
128
A Carta aberta ao Sr. Dr. Rui Barbosa faz parte da antologia dos artigos jornalísticos Ação Direta organizada
por Roberto das Neves (1970, p.46-52).
157
9897: “[...] em 18 de novembro de 1918 José Oiticica foi preso como envolvido num
movimento anárquico e recolhido ao quartel da brigada policial. Posteriormente foi posto em
liberdade”.
3.5.1 Fim do exílio em 1919
Como mencionado no primeiro capítulo, na prisão de 18 de novembro de 1918, José
Oiticica foi deportado para o Engenho Riachão. Rodrigues (1972, p.229) destacou do jornal
uma nota sobre as manifestações dos alunos do Colégio Pedro II e da Escola de Medicina em
prol da libertação do professor José Oiticica. Em maio de 1919, Oiticica foi posto em
liberdade. Sobre a sua libertação, Rodrigues (1972, p.233) destacou uma notícia do jornal A
Rua de 02 de maio de 1919, sobre o seu desembarque no Rio de Janeiro:
Está no Rio o Dr. José Oiticica. Veio no “Itatinga” e o Dr.Aurelino Leal deixou-o
desembarcar. Um agente da polícia marítima, quando hoje, ao fundear no porto o
paquete Itatinga, da Costeira, vindo de Macau e escalas se constatou a presença do Dr.
José Oiticica, sentado no convés, conversando com o seu filho. Retido por algum
tempo, foi autorizado o seu desembarque, pelo Dr. Aurelino Leal. Assediado pelos
repórteres e pelos curiosos que queriam saber das bombas, o Dr. Oiticica declara: isso
é mais uma das invenções do Sr. Aurelino Leal (A Rua, 02-05-1919, apud
RODRIGUES,1972, p.233).
O encalço da polícia obrigou Oiticica em dezembro de 1919 a hospedar-se na casa de
amigos em Minas Gerais, como podemos ver acompanhando uma das cartas enviadas à sua
esposa Francisca (Zinha), em que ele compartilha o seu itinerário de viagem e o seu encontro
com Maria Lacerda de Moura.
Nessa carta, datada em 22 de dezembro de 1919, a sua anfitriã ficou sabendo sobre a
realidade a que estava sujeita a sua família. Na carta relata que estava disposto a voltar ao
Riachão com a família:
Barbacena, 22.12.1919.
Zinha
Escrevo-te da casa de Maria Lacerda de Moura. Não te assustes, nem te zangues. É
uma senhora distintíssima, corretíssima e diametralmente o oposto do que se poderia
esperar pelo estilo. É muito circunspeta, sisuda, de poucas palavras, bonita, mas
estrábica. O marido é um rapaz muito distinto e amável. Hás de supor que parei aqui
para fazer esta visita, mas enganas-te. Fui forçado a isto por vários motivos, entre eles
a necessidade de dormir, porque não consegui no trem. Cheguei a Entre Rios as 08 e
20, jantei por 2#500 num frege, lá chamado hotel
, mas o jantar foi ótimo. Tomei o
noturno do Rio às 11.50 da noite e pelo horário calculei que não poderia alcançar
Curvelo se não à tarde eu ainda poderei ser reconhecido. Seguirei hoje mesmo a
General Carneiro (suponho que este é o nome). Ali pernoitarei e tomarei o trem
amanhã para Pirapora. Há navegação regular e diária no São Francisco[...] Dona Maria
ficou com os olhos cheio d’água e com muita pena de ti. Disse que talvez siga quarta-
feira para o Rio, a passeio, e irá imediatamente procurar-te. Hás de gostar dela, tenho
certeza. Calculo quanto hás de ter chorado. Coitadinha! Sofrendo por minha culpa!
158
Mas fica certa que este sofrimento ainda mais aumentará o nosso grande amor! E os
nossos filhinhos? Beija a todos muito e muito. Diga-lhes que o papai não se esquece
deles um momento. Recomendo especialmente a José que seja, neste passo, um
homem
, evitando, sobretudo dar-te algum desgosto, por menor que seja. Lembra as
duas maiores que te devem ajudar muito e evitar igualmente a aborrecer-te mais.
Procura liquidar tudo aí o mais breve possível e embarcar o quanto antes. Pensarei
sempre em ti. Como sei que pensas continuamente em mim. Adeus meu amor! Perdoa
os grandes sofrimentos que te causo sim? Um dia havemos de ter saudade deles. Não
crês. Beijo-te muito e muito e aos filhinhos. Lembranças aos bons e incomparáveis
amigos. Mais um beijo do teu Cajusa. (RODRIGUES, 1993
a., p.103-6).
Mas a decisão de retornar ao Riachão não estava firmemente resolvida por Oiticica.
Ele vivia um impasse, uma vez que outras duas possibilidades pareciam vislumbrar em seus
pensamentos: recomeçar a vida no Rio de Janeiro, na situação dura da perseguição da polícia;
ou, então, se deixar prender.
A primeira possibilidade implicava recomeçar a vida, o que eram bem difícil. No
cárcere, apesar de penosa a situação, os seus filhos continuariam a estudar no Rio de Janeiro,
e ele teria melhores chances de publicar lições (como ele denominava as publicações
didáticas) uma atividade cuja remuneração era importante para o sustento de sua família.
Retornar ao exílio significava prejudicar a educação dos filhos e distanciar-se da militância no
Spartacus.
Esse impasse é compartilhado pelo casal, na manhã seguinte quando Oiticica, ainda na
casa de Maria Lacerda de Moura, enviou outra carta à dona Francisca deixando em suspense a
sua decisão sobre o projeto de retorno ao Riachão. A transcrição de um trecho desta carta
deixa ver a sua angústia por esse impasse:
Zinha aqui estou desde hontem.
Compreendes que não me devo aventurar a uma longa e dispendiosa viagem sem
segurança de resultados. Ademais, tenho pensado muito no caso e estou quase
convencido de que o melhor seria mesmo voltar para o Rio e deixar-me prender. Tive
ímpeto várias vezes de voltar, mas percebi que eram as saudades de ti e dos filhinhos e
prossigo a todo transe. Todavia não me devo arriscar numa travessia longa e caso sinta
dificuldades voltarei e aguardarei em qualquer lugar notícias seguras d’aí. A prisão
embora me fosse penosa, seria mais fácil de suportar, pois me poderias visitar e eu
trabalharia ativamente em livros para manter a família, ou mesmo em lições se me
permitissem. Acho muito ou tão penosa a reclusão num engenho, além de que iria
prejudicar enormemente a educação dos filhos. No Rio não podendo morar numa casa
de 300#00 moraríamos em casa de 150#00 e iríamos atamancando de qualquer jeito.
Começar a vida nova é que é duro. Demais eu aí seria possível talvez se conseguir
anistia para o ano, desde que o processo é uma indignidade. Em todo caso suspende a
desarrumação da casa e espera a decisão final. No mais, beija muito os filhinhos e
recebe o coração muito e muito saudoso do teu marido. (RODRIGUES, 1993b, p.137).
José Oiticica decidiu ficar no Rio de Janeiro. Ele conseguiu anistia e pôde voltar para
159
as suas atividades no Colégio Pedro II, na Escola Dramática do Rio de Janeiro e dar seqüência
ao trabalho no jornal Spartacus.
Foi nessa fase que José Oiticica estreitou laços com Maria Lacerda de Moura, com
quem nutriu correspondência principalmente nas questões relativas ao anticlericalismo, às
atividades com a educação e como simpatizante pelas idéias sobre a libertação da mulher.
Oiticica foi colaborador da formação de Maria Lacerda
129
, em idéias e ações libertárias
compartilhadas ao longo de três décadas, além de freqüentarem a Fraternidade Rosa Cruz,
unindo suas filosofias espiritualistas com as idéias e a perspectiva libertária.
Ela relata em sua autobiografia que para a sua formação libertária, sua aproximação
com Oiticica foi um “alto salto de sua evolução” e diz:
Já havia publicado “Em torno da Educação” (que horror! livro patriótico, exaltado,
burguesíssimo, cheio de preconceitos e dogmatismos. Não o reconheço mais. Foi
muito bem recebido pela crítica (pudera!). José Oiticica viu nele algo que lhe
interessava sob o ponto de vista de uma futura rebelde. Conheci-o através de larga
correspondência. Veio para mim com as mãos cheias de literatura revolucionária.
Sorvi tudo aquilo e muito mais e dei um salto em minha evolução. A família alarmou-
se. Novas lutas. Perdi o dogmatismo religioso espírita. Já era anticlerical [...]
(MOURA, Maria Lacerda de, apud LEITE, 2005, p.40).
3.5.2 A prisão em 1924
O ano de 1921 foi marcado por intensa coibição ao anarquismo.
130
Sucederam-se uma
fase de forte repressão, violências, degredos e deportações que imprimiram dificuldades para
a consecução das atividades de José Oiticica e de outros militantes. Esse quadro de
acirramento das perseguições agravadas pela criação do Departamento de Ordem Política e
Social – DOPS, em São Paulo, aprimorou a vigilância sobre as manifestações relacionadas ao
universo operário, avivada pelo episódio da segunda revolta tenentista em 1924.
129
Miriam Lifchitz Moreira Leite (2005), na antologia Maria Lacerda de Moura: uma feminista utópica, mostra
em sua seleção dos textos desta militante, os interesses de estudos, os escritos sobre a condição feminina,
reconstituindo o percurso dessa intelectual com a sua própria voz. Antes, essa pesquisadora nos apresenta uma
cronologia com registros biográficos legitimamente encadeados, em conformidade à sua imersão em pesquisa
anterior sobre essa educadora. Em seguida, por meio da autobiografia de Maria Lacerda, apresenta a sua
compilação de excertos de sua personagem. O seu objetivo foi dar a conhecer as concepções, escolhas que
marcaram a sua presença na imprensa libertária, com ênfase na questão feminina. No itinerário de formação
dessa feminista, Leite (2005, p.16-18) afirma que o seu pai era um livre pensador e espírita, era membro da
maçonaria em Barbacena. Ela estudou desde cedo filosofia e logo percebeu que os meios de intervir na
sociedade proviriam da pedagogia e da liberdade. O seu pioneirismo foi na área de estudos sobre a condição
feminina.
130
Lei de Repressão ao Anarquismo de 17 de Janeiro de 1921Decreto nº 4.269, de 17 de janeiro de 1921.
160
De 1923 a 1926, Arthur Bernardes, governando o tempo todo em estado de sítio,
fechou as associações operárias, Centros de Cultura Social e a imprensa anarquista. Deportou
para o campo de concentração no Oiapoque, na Clevelândia, os mais destacados idealistas, e
os que não conseguiram fugir, morreram (RODRIGUES, 1992, p.72).
Nesse quadro de ocorrências é que se deu a segunda prisão de José Oiticica, que
aparece registrada no prontuário 9897: em 11 de setembro de 1924, foi “desterrado para Ilha
Rasa, removido no dia 26 de março de 1925 para a Ilha das Flores; em 26 de maio de 1925
“defendeu o ‘hábeas corpus’ que impetrou junto ao Supremo Tribunal Federal, onde declarou
sua qualidade de anarquista fazendo sua profissão de fé. Posteriormente foi posto em
liberdade”.
Na prisão a troca de correspondência entre José Oiticica e dona Francisca Bulhões
serve para reconstituir a difícil fase vivida e mostra o ambiente de produção de duas de suas
obras: A doutrina anarquista ao alcance de todos e Manual de estilo. O professor Oiticica
avisa sua esposa sobre a sua prisão e solicita alguns livros:
“Zinha”
Fui preso ao sair do Colégio Pedro II, sem saber dos motivos da prisão. Só depois
tive notícia da revolução em São Paulo. Estou na Casa de Correção, onde sou muito
bem tratado. Não tenhas cuidado. Mande-me roupa e juntamente as gramáticas que
estão na saleta contígua à sala de visitas com os papéis do artigo que estou escrevendo.
Não é preciso mandar o que está impresso e colado nas folhas de papel. Embrulha
tudo, juntamente com os Protocolos dos sábios de Sion que está na mesa de cabeceira
e a Miragem de Coelho Netto, que deve estar em cima da conversadeira. Manda
avisar a Miss Southvel, explicando-lhe minha falta hoje à aula. Ela é inglesa e
exige essas atenções.
No mais, beijos muitos saudosos a ti e aos filhos.
Não sei até quando.
“Cajusa”
(RODRIGUES, 1993
a, p. 60, grifos nossos).
Neste bilhete, o professor José Oiticica solicitou a Zinha livros para leitura na prisão,
que, forçado a ficar longe do trabalho, dedicava-se à leitura e à escrita de livros. Além dos
livros, pediu que justificasse a Miss Southvel sua ausência no Colégio Pedro II. De acordo
com relatos de sua filha Sônia Oiticica, o pai só se ausentava das aulas do Colégio Pedro II
quando estava preso.
Quando era possível, Oiticica solicitava outros livros, como neste trecho de outro
bilhete: “Zinha traze-me hoje o 1º volume das obras de Bakounine, que esta na estante do ex-
quarto de Costa Leite, junto a porta contígua ao piano, na prateleira de cima [...] vão os
161
volume do Fagundes Varella. Guarda-os”(RODRIGUES, 1993 b, p. 136). A atenção em suas
leituras ganham sentido por estar relacionada às produções de A doutrina anarquista ao
alcance de todos e do Manual de estilo, quase que integralmente elaborados na prisão. Como
primeiro livro em que Oiticica apresenta a sua cartilha do anarquismo, tem do começo ao fim
a inspiração nas proposições de Mikhail Bakunin.
Nessa fase da prisão, José Oiticica teve os seus vencimentos cortados e a sua família
amargou dificuldades financeiras. Os trechos transcritos dessas cartas
131
mostram como ele e
a sua família atravessaram tal período:
Cajusa: não há conforto nenhum que me tente. Se por qualquer circunstância tiveres
que ficar preso por muitos mais meses, eu saberei me arranjar mesmo por aqui desde
que me deixem só com os nossos filhos em nossa casa. Me conheces bastante e sabes
do que sou capaz de fazer por ti. Agora quem te dá coragem sou eu. Não desanima,
tem fé e confie sempre na tua companheira de tantos anos. Farei tudo para ter seguro o
aluguel da casa e o mais se arranjará. (Zinha, 3-8-1924). (RODRIGUES, 1993
a, p.60).
Em carta enviada por seu pai, em 1925, na Ilha Rasa, mostra como o senador Oiticica
foi um de seus interlocutores nas questões relativas à política econômica do país. Compartilha
sobre as suas colaborações para o jornal Gazeta da Bahia. Dessa carta, um trecho transcrito a
seguir, deixa ver que pai e filho compartilhavam suas produções para o jornalismo. Essa
interlocução acontece com Oiticica aos 43 anos:
[...] Tenho continuado a escrever para a Gazeta da Bahia que, em todos os números
publica um artigo meu, alguns de primeira página. Tenho encarado a situação
financeira tal como ela se desenha e nos últimos artigos ataquei o imposto de renda,
como foi decretado. Acredito que os artigos têm sido muito bem recebidos porque até
de São Paulo recebi um cartão de felicitações de muitos membros da Associação
Comercial pelo brilhante artigo de 06 de janeiro. De São Paulo, igualmente recebi um
volumoso livro de anarchia, montaria e suas conseqüências com uma dedicatória
honrosa do autor o S. Carlos Inglês de Souza. É a história da moeda no Brasil [...] do
tempo da metrópole é um verdadeiro libello accusatório contra o curso forçado,
demonstrando a ruína que ele trouxe ao país e crescente por muitos annos. O livro está
perfeitamente de accordo com as muitas opiniões, já o citado e comecei a escrever um
artigo comentando-o para a Gazeta da Bahia. [...].
Muitas benções lhe mando, como todos os seus.
Abraço-o.
Pai amigo
Leite e Oiticica
(OITICICA, Francisco Leite, 22-03-1925, apud RODRIGUES, 1993 a, p. 109-110).
131
As cartas de prisão foram doadas por Sônia Oiticica a Edgar Rodrigues, que as publicou em seus livros: em
Rodrigues (1993 a) Os libertários; e Rodrigues (1993b) Entre ditaduras: 1948-1962 . Algumas delas continham
mensagens com suco de limão ou urina nas entrelinhas.
162
Mais tarde, em abril de 1946, com a repressão policial amenizada, o seu jornal Ação
Direta voltou a circular no Rio de Janeiro, e esteve sob a sua direção, em quase todo o seu
ciclo de existência, interrompido em 30 de junho de 1957, por ocasião de seu falecimento,
mas mesmo assim ainda continuou a circular até o início da década de 1960.
3.5.3 A prisão em 1937
Os anos de 1927 e 1937 foram marcados pelos episódios da Lei Celerada, assinada em
agosto de 1927
132
. No ano seguinte, Oiticica fundou o jornal Ação Direta, publicou apenas
seis números, tendo a sua edição interrompida em maio de 1929, mesma ocasião da saída de
Oiticica do Brasil para Alemanha, contratado para lecionar Português na Universidade de
Hamburgo. Como foi mencionado no capítulo anterior, o seu contrato teria a duração de cinco
anos, mas, em 1930, ele foi forçado a retornar ao Brasil.
Nos anos 1930, após seu retorno da Alemanha, José Oiticica encontrou um ambiente
pouco propício para a retomada dos seus trabalhos no jornal Ação Direta, ainda bem próximo
aos grupos de São Paulo, concentrou a sua colaboração junto ao jornal A Plebe
133
. Tanto
Oiticica, como outros militantes anarquistas estavam sob o encalço dos “secretas”, a
vigilância policial que não dava trégua aos envolvidos com a imprensa anarquista, e como a
sua inserção no movimento era de uma atividade constante, acabou sofrendo mais duas
prisões, uma 1933 e outra em 1937
134
.
[...] em 01 de fevereiro de 1933 foi “preso quando presidia a uma reunião anarquista, a
rua Teófilo Otoni, 148, 2º andar, sendo posteriormente, posto em liberdade;
- em 06 de fevereiro de1933, o ofício nº 204 na 5/2 ao Sr. Ministro da Educação,
comunica a prisão do prontuariado (sic), professor do Colégio Pedro II; em 14 de
outubro de 1937” busca procedida na residência do prontuariado, onde foi arrecadada
grande quantidade de correspondência que o mesmo mantinha com elementos
anarquistas da Espanha; em 15 de outubro de 1937 “nesta data, na 5/2, prestou as
declarações relativas as suas atividades e aos motivos determinantes de sua prisão;
- em 18 de outubro de 1937 “foi encaminhado ao cartório afim de ser processado
como incurso na lei de Segurança Nacional, sendo, logo após, com ofício nº 550-5/2
recolhido á Casa de correção, á disposição do Sr. Chefe de polícia; i-) Por ordem do
Sr. Chefe de polícia, foi retirado da casa de correção, ficando preso, sob palavra, em
sua residência. (PRONTUÁRIO, 9897- Arquivo do Estado do Rio de Janeiro)
132
Decreto 5.221, de 12 de agosto de 1927.
133
Essa afirmação procede da observação sobre a incidência de artigos e de conferências realizadas por José
Oiticica junto ao grupo de A Plebe. Além disso, alguns registros que levam a mesma constatação se devem à
observação de seu prontuário do DEOPS, o antigo Departamento Estadual de Ordem Política e Social (1924-
1983), no prontuário 860.
134
Em 01 de fevereiro de 1933, foi “preso quando presidia a uma reunião anarquista, a rua Teófilo Otoni, 148, 2º
andar, sendo posteriormente, posto em liberdade. Em 06 de fevereiro de1933, o ofício nº 204 na 5/2 ao Sr.
Ministro da Educação, comunicando a prisão do prontuariado (sic), professor do Colégio Pedro II. Em 14 de
outubro de 1937 há o registro da” busca procedida na residência do prontuariado.
163
3.6 O jornal Spartacus e a proposta de ensino para a sociedade nova
Três meses de volta do exílio no Riachão, em 02 de agosto de 1919, apesar da
vigilância policial, José Oiticica fundou o jornal Spartacus com as parcerias de Astrojildo
Pereira
135
, Santos Barbosa, I. d’Avila, Izauro Peixoto, Adolfo Busse, Salvador Alacid e Cruz
Júnior.
O jornal Spartacus, lançado em 02 de agosto de1919, finalizou suas publicações em
10 de janeiro de 1920, totalizando 24 números. O primeiro exemplar desse jornal mostrava,
em sua primeira página o seu principal objetivo, anunciava-se como Spartacus: Modesto, mas
irreductível, todo ele consagrará á obra imensa da revolução social dos nossos dias. Apesar
de a pesquisa não ter investigado sobre a sua tiragem em todo o seu ciclo de vida, o número 4,
de 23 de agosto de 1919, anuncia que:
“Spartacus”
4.000. 6.000. 8000 exemplares... Aqui estamos no 4º n. de Spártacus, com promissora
tiragem de 8.000 exemplares. Isso prova que Spartacus, embora modestamente, sabe
exprimir os etos de revolta e os anseios de esperança das massas proletárias. Mas há
muito ainda a fazer pela difusão do jornal, camarada. Imensa é a obra que temos a
realizar, e imenso necessita ser o orgam dessa obra.
(Spartacus, Rio de Janeiro, ano I, nº 4, 23-08-1919, p.1, grifos nossos)
A referência à tiragem seguida do comentário, “sabe exprimir os etos de revolta e os
anseios de esperança das massas proletárias”, exprime no discurso a sua publicação como
ação de resistência desencadeada contra a dura repressão policial do período e também indica
para quem se direcionavam as suas publicações: o proletariado, um público diferente de A
Vida. Os “anseios de esperança” mencionados no artigo não eram somente das massas, mas
exprimiam também o desejo de seus editores, recém-saídos do exílio e da prisão.
O título do jornal faz menção ao escravo Spartacus. No artigo que leva o nome do
jornal, Oiticica explica as razões que levaram o grupo de editores a denominar o jornal de
Spartacus, discorre sobre os registros da história de sua época e protesta sobre a semi-
escuridão do personagem, declarando que com os libertários se processava o “resgate” do
rebelde romano:
SPÁRTACUS
A maior figura da história romana é SPARTACUS. Nossa educação
aristocrática, de opressores favorável sempre aos dominantes e aos governos
constituídos, deixa na sombra essa alma extraordinária. CARLYLE, em sua
135
Mais tarde, com a fundação do Partido Comunista do Brasil em 1922, quando são notadas
divergências entre comunistas e anarquistas que se complicariam nos anos seguintes, Oiticica rompeu relações
com Astrojildo Pereira, Octávio Brandão e outros.
164
galeria heróica, se esqueceu do herói como revolucionário e não viu na biografia
desse revolucionário revelações do mais desabalado heroísmo. A história
parcialíssima, guardou minuciosamente os feitos do ambicioso e futílíssimo
POMPEU, deu-lhe o triunfo sobre SPARTACUS, e deste homem registrou frases
suspeitas e largos movimentos de campanha. PLUTARCO, não nos biografa o
gladiador, fala nele biografando CRASSUS. Não importa para o símbolo, vale muito
a semi-obscuridão histórica. Ele apaga as circunstâncias para focalizar o tipo em sua
significação ideal. Tira dele o muito humano que o desagradaria e lhe infunde algo
divino que sugere e nos seduz. Seja como for SPARTACUS avulta cada vez mais
na história antiga. Esquecido sistematicamente sua efígie começa a iluminar-se no
passado, desde que entre os homens repontou a sede de justiça, o pruído da
emancipação. [...] SPARTACUS foi um clamor humano, o angustiado grito de
milhões de mártires, um protesto sangrentíssimo contra os amos da República,
reclamação erguida em lei, a igualdade em rebelião. [....]
(Spartacus, Rio de Janeiro, ano I, nº 1, 02-08-1919, p.9).
Ao reclamar sobre o apagamento do “herói revolucionário” esquecido nas biografias
que lhe atribuíram o lugar da “semi-obscuridão histórica”, Oiticica apresenta aos leitores a
proposta do periódico Spartacus em seu objetivo de ser a voz que não “apaga as
circunstâncias”, traçando um paralelo entre a vida do personagem “mal representado” e as
colunas deste jornal:
Nos gemidos dos famintos, no exterior dos soldados europeus assassinados, nos
cantos da rebeldia proletária, no ranger das penas reivindicatórias, nas vozes dos
tribunos libertários, no tumultuar dos comícios de protestos, em toda a parte onde
bradar uma alma constrangida e chorarem olhos de oprimidos o espírito de
SPÁRTACUS vibrará e cintilará uma faixa de sua irradiação, ele viverá com impulso
de revolta, como gênio de renovação. E ele que nos brada, nestas colunas suas.
Impregnadas de seu sangue, do seu martírio do seu exemplo convocando os
descontentes de toda a Terra para realizarem de uma vez a obra antiga da
Harmonia humana. (Spartacus, Rio de Janeiro, ano I, nº 1, 02-08-1919, p.9, grifos
nossos).
Esse jornal acionou estratégias e táticas para a sua manutenção similares as que podem
ser verificadas em outros jornais da imprensa operária. Destacavam-se a venda de assinaturas,
a circulação de listas de subscrição voluntárias e uma fortalecida rede de solidariedade
expressa nas propagandas de apoio aos outros periódicos libertários. Formavam uma rede de
“apoio mútuo” e, constantemente, recomendavam a leitura de outros periódicos, circulavam
rifas para custear a produção e a circulação das folhas libertárias, promoviam-se festas nas
sessões de propaganda social e realizavam campanhas.
A-)
A Plebe diária
Com uma tiragem sem exemplo na nossa imprensa super burguesa á de muitos
jornalistas burgueses, e largamente difundida por todo o Brasil, A Plebe constitue hoje
um exemplo valiosíssimo, é indispensável obra de transformação social que também
nesta parte do mundo vai se realizando. Mas essa obra avulta e intensifica-se cada dia,
165
e o semanário, por vulto que se faça se torna insuficiente. A necessidade reclama
jornais cotidianos. A Plebe estará pois diária dentro em pouco multiplicando
consideravelmente a suficiência revolucionária. Aos camaradas de São Paulo a nossa
mais calorosa saudação de entusiasmo pela grande iniciativa.
(Spartacus, Rio de Janeiro, ano I, nº 1, 02-08-1919, p.9).
B-)
Listas Pró “Spártacus”
Pede-se aos camaradas que têm listas de subscrição “pró-Spartacus” queiram entregá-
las com urgência. O administrador do jornal se encontra diariamente na sede dos
sapateiros, das 8 as 9 horas da noite.
(Spartacus, Rio de Janeiro ano I, nº 24, 10-01-1920, p.1).
Os exemplos “A” e “B” foram retirados do primeiro e do último números de jornal
Spartacus e aqui servem para exemplificar uma ação de funcionamento da rede de apoio
mútuo, uma das principais estratégias de manutenção dos jornais libertários desde os inícios
do século XX, assim como uma frente de propagação das idéias libertárias.
O formato de Spartacus era semelhante a de outros jornais da época, na forma de
tablóide, todos os espaços eram ocupados. Havia o recurso dos jargões, acompanhando as
tendências da linguagem da imprensa ilustrada. O jornal explorava o recurso da charge,
publicava letras de músicas, poesias e fábulas. Essas linguagens do jornal serviam para
conquistar o público leitor e não passar desapercebido aos iletrados. Os recursos eram de um
humor comprometido com as causas da militância libertária, seja no que diz respeito ao
clericalismo, seja para chamar a atenção para as questões das desigualdades e do imperativo
da greve como a principal reação de rebeldia.
Para exemplificar, o [...] humor comprometido e expressar de forma bem humorada a
luta contra as adesões aos santos e à religião católica, vale a pena ler uma fábula de Oiticica
de 1919, que provocava a reflexão sobre a crença feminina no Santo Antonio. Na fábula,
Oiticica mostra que os cultos e as promessas das moças solteiras ao santo casamenteiro foram
inúteis e tiveram de ser substituídas pela decisão de buscarem o marido por conta própria:
Santo Antônio e as Moças – (Fábula)
Cinco moças solteiras
(Porque há solteiras velhas), como a sorte custasse muito a dar-lhes companhia e não
tivessem jeito para freiras. Temendo mais o barricão que a morte. Combinaram reunir-
se em confraria. Elas sós: a irmandade era secreta. E o fim era pedir a Santo Antônio.
Um marido qualquer, mesmo coxo ou pateta. Todas elas por uma e uma por todas. Iam
forçar o santo a lhes dar matrimônio. Já se viam de véu nas festanças de bodas.
Beijando o maridinho. Muito anchas, a enfrentar as moças tias! Dito e feito.
Arranjaram o oratório. Trocaram por dinheiro um santo bem feitinho. Compraram
velas, incensório. Panos de renda, azeite e outras mercadorias. E rezaram! Nunca
houve santo mais querido. Mais chaleirado, mais acesamente servido por um olhos
166
mendigantes. De virgens doidas por marido. Mas o droga do santo era cepo ou
dormente. Àqueles seios palpitantes vazaram por três anos, ais de fogo. E queimaram
no ais, as esperanças. O santo ficou surdo a tão seguido rogo. E aquelas almas fieis e
mansas. Como recurso aflito, por proposta. Da mais velha das cinco. Resolveram
tornar o culto mais pomposo. Rezar com mais afinco. Pois a gente do céu do que mais
gosta. A julgar pelo culto adotado na Igreja. É de arame, pomada e histórias do
Trancoso. Aumentemos a cola. Concordaram as cinco...
Um ano mais de idade. Na ladeira dos séculos rolou... E o santo, na habitual
ociosidade. A nenhuma das cinco apaziguou!!! Ora, em plena sessão do quinto ano de
espera. Ao fixarem as colas trimestrais. A mais moça das três mais que indignada já
ia.Na trigésima quarta primavera. Disse: - Caras irmãs isso é demais! O santo, como
prova esta crua experiência. Não livra moça alguma de ser tia. É um bolas! Vamos
pois, cuidar de um meio sério. Confiadas tão somente em nossa diligência. Discutida a
proposta com critério. Aprovaram primeiro empregar a quantia. Novamente votada em
pó de arroz carmim. Creme Simon. Loções, carvão, coisas enfim que as pudesse tornar
mais novas e bonitas:
Segundo: freqüentar as rodas dos califas. Que, partindo do flirt, vão dar no
matrimônio. Cavar marido, em suma; e finalmente. Com um desfoço, justo e
conseqüente, jogar no lixo o Santo Antonio.
José Oiticica.
(Spartacus, Rio de Janeiro, ano I, nº 4, 23-08-1919, p.3)
O uso da charge é exemplificado a seguir no exemplar nº 3. A imagem é de crítica ao
regime burguês que permite o “parasitismo da Igreja, e a exploração dos trabalhadores”:
Figura 5 Charge todos por um e um por todos – (Spartácus, Ano I, nº 3, 16.08.1919, p.1)
3.6.1 A nossa educação ou a instrução popular deles
Ao percorrer os jornais libertários, percebe-se o sentido atribuído à educar é diferente
167
de instruir. A obra da educação pela propaganda social tinha na concepção de José Oiticica o
sentido de formação do ser social. Ela deveria estar em consonância com a luta mais geral em
prol de si mesmo e de todos. Ao passo que a instrução não vinculada aos compromissos da
transformação social era um fim que se encerrava a si mesma e, portanto, não servia à
formação de consciências autônomas. Educar não era a mesma coisa que instruir, e a
educação não era sinônimo de instrução.
Essa distinção aparece em um artigo de José Oiticica, intitulado “Não há meio”,
publicado, no final da segunda década do século XX, no jornal Spartacus, a propósito de uma
conferência proferida pelo professor Manoel Bonfim, em sessão de propaganda comemorativa
do assassinato de Francisco Ferrer:
Deseja o professor Bonfim que os trabalhadores conscientes incluam no seu programa
de reivindicações a intrucção popular. Não basta exigir do Estado e dos patrões a
diminuição das horas de trabalho, o aumento do salário, legislação sobre acidentes,
pensões aos velhos etc. Cumpre exigir também, neste Brasil de analfabetos, a
instrucção popular extensa e intensa. [...] Essa instrucção desenvolvida pondera o
conferencista, é utilíssima ao trabalhador sob duplo aspecto: 1ª é vantajosa na luta de
reclamações para orientar melhor as massas, congrega-las aos mesmos fins, dar-lhes
um ideal humano sem o qual não pode haver Victória; 2ª é indispensável na
organização de um regimen social novo em que o productor deve dirigir, ele próprio a
produção, hoje dirigida injusta e desastrosamente pelo capitalista. [...] A conclusão
portanto é que os trabalhadores militantes hoje devem reclamar antes de tudo
instrucção. (Spartacus, ano I, nº 12, 18-10-1919, p.1).
Frente aos argumentos do conferencista, Oiticica conclui que não há o que opor ao
conferencista, sobre a urgência em preparar tecnicamente os trabalhadores na constituição de
uma sociedade nova e reitera seu argumento afirmando que em todos os meios anarquistas
esse assunto é discutido e a sua importância reconhecida.
Nessa solenidade de comemoração à memória de Francisco Ferrer, o pedagogo
responsável pelo modelo das escolas modernas de ensino racionalista, o conferencista
defendeu a inserção na pauta de reivindicações dos trabalhadores, ao Estado e aos patrões, a
organização de uma “instrução popular” destinada aos trabalhadores e aos seus filhos. Essa
seria mais uma reivindicação a compor com outras trabalhistas que exigiam a diminuição de
horas de trabalho, o aumento de salários, uma legislação sobre acidentes e pensão aos velhos.
Oiticica primeiro mostra aos leitores de Spartacus os argumentos apresentados pelo
conferencista em prol da luta pela “instrução popular”:
Oiticica, no auge da militância libertária, no ano 1919, concluía que de nada
adiantaria, por exemplo, que os trabalhadores inserissem em seu programa de reivindicações a
instrução popular a ser implementada pelo Estado burguês. Para ele, a educação do
168
trabalhador não estava na instrução a ser oferecida pelo Estado e pelos capitalistas, ao
trabalhador deveria ser reservada uma outra educação em uma outra sociedade:
A instrução pública e profissional é monopólio do burguês. Ele arranca do trabalhador
o dinheiro necessário a manutenção da escola, mas declara peremptoriamente: Quem
te ensina sou eu. Terás a educação e a instrução que me convier. Preciso de oficiais,
peritos, por isso tenho escolas profissionais. Preciso de engenheiros, médicos e
professores e por isso tenho escolas superiores para os meus filhos ou para os teus
filhos que se quiserem aburguesar, defender os nossos interesses, ser dos nossos. Esta
última concessão eu faço porque me forças a isso com várias revoluções; entre elas a
Revolução Francesa, mas estou disposto a não ceder mais nada. Aprenderás na minha
escola a obedecer aos seus superiores, a respeitar como dogma, a propriedade
particular, a reconhecer o meu capital como intangível, embora eu tenha obtido
roubando, jogando. Para refrear os seus assomos de revolta e impedir que abras os
olhos muito abertos mantenho o patrocínio da educação religiosa. Por ela aprenderás a
reconhecer Deus e os mandamentos em que é pecado, punível com o inferno tocar de
leve no meu capital e desobedecer as minhas ordens. Mantenho ainda, nas minhas
escolas, a instrução moral e cívica para te fazer bom cidadão, cumpridor dos seus
deveres, resignado e observador das leis que eu mesmo faço em meu proveito para te
explorar a gosto. Si tugires e mugires, toco o telefone e logo movimento milhares de
irmãos teus inconscientes como tu, armados de chanfalho e mosquetão e prontos a te
assassinar em praça pública a te encarcerar na detenção e a te expulsar se fores
estrangeiro. Serve-te assim? Si não serve é a mesma coisa. A canalha só tem uma
função submeter-se. E o meio de sair disso?
Que valerá para o amanhã sonhado, essa educação capitalista que não passa de ofício,
do catecismo e dos livrecos de moral burguesa?
Os trabalhadores querem a instrução técnica superior, porque a técnica inferior eles a
tem. Mas a burguesia não permite ascensão do obreiro á técnica superior, sinão
emburguesando-o, absorvendo-o, assimilando-o a sua casta.
O remédio é o que propomos ao inverso do professor Bonfim. Só teremos
trabalhadores técnicos, engenheiros, médicos, professores, quando a direção geral da
produção e da distribuição das riquezas estiver nas mãos do produtor, quando a
sociedade em que vivemos deixar de ser capitalista para ser comunista. Não há outro
meio. (Spartacus, Rio de Janeiro, ano I, nº 12, 18-10-1919, p.1, grifos nossos).
As objeções de Oiticica ao conferencista mostram algumas concepções de fundo. Em
primeiro lugar, a distinção entre instrução e educação. A instrução, para Oiticica “de nada
adiantaria ao trabalhador para a sua emancipação”, em contrapartida, a educação, como parte
da propaganda social, deveria ser obra dos sujeitos que a empreendiam. Na perspectiva de
Oiticica a educação deveria estar livre de vínculos com o Estado, com a Igreja e com os
patrões capitalistas, e ser obra dos próprios trabalhadores.
As vantagens da instrução popular, segundo os argumentos do professor Bonfim, e que
proporcionavam à massa “um ideal humano”, com a instrução as massas poderiam ser
congregadas aos mesmos fins. Essa fala, embora não tenha sido diretamente retrucada, é
combatida por José Oiticica que exibe uma perspectiva completamente oposta. Quando
Oiticica concorda com o fato de os trabalhadores desejarem a educação superior, ele afirma
169
que isso corre porque os trabalhadores já são detentores da educação técnica interior.
Esses direcionamentos já haviam se expressado largamente nas campanhas
movimentadas pelos discursos no jornal libertário em prol da organização das “nossas
escolas”. Só essa educação talhada no terreno do próprio trabalhador teria condições de
proporcionar uma educação para autonomia.
Essas convicções são reafirmadas, no relançamento do seu jornal Ação Direta em
1946, quando as atenções libertárias estão direcionadas para o cenário internacional, pois, no
final da década de 1940, ações da propaganda social e as cenas da militância anarquista
sobrevivem na celebração da memória libertária dos anos 1920.
Oiticica (1948, p.1) constata que a ação dos reformadores dâ instrução pública dos
anos 1930 e 1940 produziu uma “catástrofe” em lugar de instaurar um ensino sistematizado,
que proporcionasse aos alunos a aprender com método, pois para ele “aprender a estudar, é
muito mais importante para a vida do que propriamente estudar”.
Feitas essas considerações, Oiticica comenta a contundência das reivindicações, mas
esclarece que de nada adiantará ter uma escola sob a direção do governo capitalista, dos
burgueses, que formará trabalhadores com uma instrução voltada para a sua perspectiva, e diz:
Não. A instrucção pública e profissional é monopólio do burguês. Ele arranca do
trabalhador o dinheiro necessário á manutenção da escola, mas declara
peremptoriamente: quem te ensina sou eu. Terás a educação e a instrucção que me
convier. [...] Aprenderá na minha escola a obedecer aos seus superiores, a respeitar,
como dogma à propriedade particular, a reconhecer o meu capital como intangível,
embora eu tenha obtido roubando, jogando. Para refrear os seus assomos de revolta e
impedir que abra os olhos muito abertos mantenho ou patrocino a educação
religiosa.[...] Mantenho ainda nas minhas escolas a instrucção moral e cívica para te
fazer bom cidadão, cumpridor dos teus deveres, resignado, observador das leis que eu
mesmo faço em meu proveito para te explorar a gosto. [...](Spartacus, Rio de Janeiro,
ano I, nº 12, 18-10-1919, p.1, grifos nossos).
Após argumentar que a educação burguesa não servirá para formar o livre
pensador, mas nada mais será que uma escola para o adestramento do trabalhador que silencia
a revolta. Oiticica afirma que a educação da perspectiva dos trabalhadores é a comunista:
Que valerá para o amanhã sonhado essa educação capitalista que não passa do ofício
do catecismo, e dos livrecos de moral burguesa?
O remédio é o que propomos ao inverso do professor Bonfin. Só teremos
trabalhadores técnicos, engenheiros, médicos, professores, quando a distribuição geral
das riquezas estiver nas mãos do produtor, quando a sociedade em que vivemos deixar
de ser capitalista para ser comunista. Não há meio! José Oiticica.
(Spartacus, Rio de Janeiro, ano I, nº 12, 18-10-1919, p.1)
170
3.7 Princípios e fins: a carta abecê do catecismo anarquista de Oiticica
José Oiticica elaborou e apresentou no Congresso Comunista, realizado em junho de
1919, um documento intitulado Princípios e fins do comunismo, já que pois havia a
necessidade de organizar diretrizes que serviriam como ponto de partida para um projeto de
uma nova sociedade. Nesse período, circulava no movimento operário a idéia de fundar o
Partido Comunista Libertário.
Nesse congresso ficou decidido que uma comissão estudaria a redação final do
referido documento, introduzindo-lhe as alterações e inserções de propostas. No entanto, a
repressão policial impediu a realização da segunda reunião que daria seqüência a esse
trabalho. Uma nova reunião, em local diferente foi marcada sem que Oiticica pudesse
participar, e o documento foi refeito integralmente pelo seu proponente. Segundo o seu relato
no jornal Spartacus, na nova redação do referido documento procurou suprimir e acrescentar
as observações que haviam sido formuladas pelos presentes na ocasião de apresentação do
documento:
[...] eu refiz os cânones incriminados pondo-os de acordo com os pensamentos
discrepantes, acho que estão virtualmente referendados pelo congresso essas
declarações teóricas. Evidente me parece [necessária] a sua publicação [...] [pois]
muitas pessoas bem intensionadas lutam contra nós, conosco antipatizam por mal
informados. Um resumo claro, metódico em formulas sucintas, facilmente
mostrará o que pensamos e queremos e, estou certo, levará muitos a lerem os
nossos livros. Estes Princípios e fins serão a carta abecê introdutória do meu
Catecismo anarquista que pretendo editar em livro. (Spartacus, Rio de Janeiro, ano
I, nº 03, 16-08-1919, p.1).
Os acréscimos e as supressões acertadas no Congresso Operário, de junho de 1919,
não foram realçados por Oiticica em sua redação final, porém o documento exibe as idéias
que já eram apresentadas na revista A Vida, principalmente na coluna “Catecismo anarquista”
que, embora sem assinatura, não oferece dúvidas de que o texto foi produzido por José
Oiticica.
As idéias apresentadas em Princípios e fins do comunismo foram mantidas,
possivelmente sem alterações significativas, em outro documento elaborado no cárcere entre
1924 e 1925, A doutrina anarquista ao alcance de todos, publicada pela primeira vez em
1926 como folheto, e posteriormente em forma de folhetins no jornal Ação Direta. A sua
publicação se repete ao longo de seus 34 números entre 10 de abril de 1946 a 01 de maio de
1947, até ser lançado como livro em outubro do mesmo ano. Essas evidências indiciam, em
certa medida, que as idéias de Oiticica formuladas, naquele congresso de 1919, se mantiveram
sem revisões significativas por corresponderem às suas convicções durante três décadas.
A publicação desse projeto de comunismo libertário foi dividida em duas partes: a
171
primeira, com a denominação Princípios e fins, com 43 tópicos de teorias e concepções das
bases da sociedade nova, e a segunda parte, Previsões práticas, com 33 ações que deveriam
organizar e direcionar a luta revolucionária em prol da transformação social.
De seu conteúdo, alguns itens foram selecionados com o objetivo de delinear como
deveria se organizar a sociedade nova almejada por Oiticica, após a consecução da revolução
social. O documento, historicamente datado, traz as reverberações do período pós-Revolução
Russa, das greves deflagradas no Rio de Janeiro nesse período. Além disso, nos anos da
elaboração da carta magna do comunismo libertário, Oiticica ainda estava sob impacto moral,
psicológico, político de sua primeira prisão, e tratava-se do mesmo período em que escreveu a
sua peça Azalan!, já discutida no capítulo anterior.
Os conceitos direcionadores do documento Princípios e fins do comunismo são
apropriações das idéias dos russos Mikhail Bakunin e Pietro Kropotkin e do comunismo
libertário de Errico Malatesta. De seus 76 itens, destacaremos os subsídios da conformação da
sociedade nova e algumas noções sobre a educação para com isso reunirmos evidências sobre
como deveria se organizar a educação na sociedade da perspectiva de Oiticica:
Para Oiticica, a nova ordem social deveria suplantar a sociedade capitalista. Pelos
argumentos apresentados nos três primeiros pontos do documento, o projeto dessa sociedade
aparece intrinsecamente ligado ao ideal da felicidade de todos e por todos:
I - Os homens se associam para garantir a sua existência e reprodução, obter o máximo
de felicidade, melhorar a espécie, física, mental e moralmente.
II - O máximo de felicidade de um depende do máximo de felicidade de todos.
III - Não correspondendo o regime social vigente a tais fins, achamos indispensável
uma reorganização completa da sociedade. (Spartacus, Rio de Janeiro, ano I, nº 03,
16-08-1919, p.1).
Oiticica mostra os moldes da sociedade sob a ação de energias que ele classifica por
meio da ciência, como base da construção do Comunismo Anárquico ou da Anarquia, sem a
propriedade privada, livre para os pensamentos, as crenças, as ações, sem agiotagem e nem
vícios:
IV - Só pela ciência se pode organizar a sociedade e manter-se com proveito.
V - Sociedade é a união instintiva dos homens para o aproveitamento máximo das
energias cósmicas e desenvolvimento máximo das energias humanas, com o mínimo
de desperdício total.
VI - As energias humanas são de cinco espécies: físicas (corpo são). Mental
(inteligência), moral (vontade), prática (habilidade), social (solidariedade).
VII - É bem tudo quanto concorre para aumentar a energia útil ou evitar seu
desperdício, e mal tudo quanto concorre para aumentar o seu desperdício de energias
ou evitar o seu aproveitamento.
172
VIII - Um ato que acarrete desperdícios de energias cósmicas, será bom desde que
aumente as energias humanas, principalmente a solidariedade.
IX - As energias cósmicas devem ser todas gratuitas como o sol e o ar. A terra, energia
cósmica deve ser gratuita; condenamos, por isso sua repartição em lotes passíveis de
compra e venda.
X - O aproveitamento da energias cósmicas se faz pelo trabalho.
XI - Todo indivíduo tem direito á porção de energia cósmica suficiente para manter-
se com o maior conforto possível, enquanto viver, sem prejuízo do conforto alheio.
Para isso deve concorrer com o máximo do trabalho útil exigido pela sociedade. [...]
XIV - A propriedade particular nasceu do roubo e da mão armada e se mantém pela
violência dos possuidores e pelo roubo dos possuidores sobre os pequenos. [...]
XVI - Sendo a concorrência econômica a luta entre o homem para a apropriação do
gozo individual do máximo de energias úteis, produz extraordinários desperdícios de
energias, criando serviços supérfluos ou prejudiciais (reclamos, agentes, processos,
tribunais, polícia, exércitos, esquadras, funcionários, diplomatas e comerciantes).
XVII - Para manter esse regimem os possuidores garantem a sua posse por meio do
Estado.
(Spartacus, Rio de Janeiro, ano I, nº 03, 16-08-1919, p.1).
Os conceitos de “trabalho”, “energia” e de “desperdício de energia” foram antes
tratados no artigo “O desperdício da energia feminina”, publicado entre 1914 e 1915 na
revista A Vida, já mencionado neste capítulo. Tais considerações partiam da mistura dos
conceitos de Adam Smith e as proposições dos teóricos do anarquismo. Além disso,
combinavam as idéias de uma sociedade sem o poder do Estado, sem o dinheiro e com a
propriedade coletiva da terra. Os juízos sobre bem e mal são balizados pelo fim da
propriedade privada e o surgimento do coletivismo solidário:
XXIV - Comunismo anárquico ou Anarquia é o regimen social sem agiotagem,
XXV - Sendo a moeda o instrumento da concorrência não pode subsistir numa
sociedade comunista,
XXVI - Todos os vícios humanos (fumo, alcoolismo, morfinismo, jogo, prostituição,
cafetinismo, etc.) origina-se da concorrência econômica e são por ela mantidos e
garantidos pelo Estado.
XXVII - Todo indivíduo tem direito de expor seus pensamentos e crenças, associar-se
para fins recreativos, científicos, artísticos ou religiosos, desde que evite a agiotagem.
[...]
(Spartacus, Rio de Janeiro, ano I, nº 03, 16-08-1919, p.1).
A “associação para fins recreativos, científicos, artísticos ou religiosos” era a
perspectiva com que os libertários pensavam a educação como obra permanente da
propaganda social. O combate aos “vícios humanos” fazia parte do projeto anarquista
defensor da transformação radical da sociedade, mas não foram os anarquistas os únicos a
173
defenderem a “regeneração social”, como já foi argumentado no primeiro capítulo. A
expectativa de formar o homem novo para a sociedade nova também fazia parte de outros
projetos que circularam no Brasil nas décadas iniciais do século XX. Pudemos observar, a
partir do que foi caracterizado pelos personagens das peças produzidas por Oiticica, que os
seus procedimentos também eram de reprovação e combate a todas as formas de vícios, ao
dinheiro e a todas as formas de desigualdade.
Na sociedade nova projetada por José Oiticica, a julgar pelo seu documento
prescritivo, a educação deveria estar organizada e orientada pelas ciências, e as faixas etárias
deveriam obedecer à gradação semelhante ao que era aconselhado pela psicologia em
consonância com o escolanovismo de todas as cores ideológicas que circulavam naquele
período:
XXVIII - A educação deve obedecer a seguinte orientação psicológica: até os sete
anos em geral a criança educa as percepções; dos sete aos quatorze aprende as noções;
dos quatorze aos vinte e um desenvolve o raciocínio. Deve haver depois três graus:
elementar, primário e secundário.
XXIV - A educação profissional (energia de habilidade) acompanhara gradativamente
a educação mental.
XXX - O ensino deve ser integral até os vinte anos e garantido para todos. Os
indivíduos que revelarem vocações especiais deveram se especializar em curso
superior (medicina, engenharia, pedagogia e ciências puras , etc.
XXXI - A educação comunista visa desenvolver o mais possível a energia de todos.
(Spartacus, Rio de Janeiro, ano I, nº 03, 16-08-1919, p.1).
José Oiticica, como um leitor de Errico Malatesta
136
, se opunha à moral da
sociedade burguesa, no entanto, como seu inspirador, a negação da “cultura burguesa”
não significava em hipótese alguma a ausência da moral ácrata. Ao contrário, na
sociedade nova exigia-se um comportamento, cujos códigos de conduta são os
seguintes:
XXXII - A sociedade comunista visa extinguir os prazeres prejudiciais, facultando a
todos os prazeres físicos, espirituais e morais verdadeiramente proveitosos.
XXXIII - A sociedade comunista por meio de seus congressos científicos visa dar
ordem as pesquisas científicas, feitas hoje sem orientação geral. [...]
XXXVII - Toda mulher deve ter o curso completo de pedagogia e definir-se ser ou
não professora.
XXXVIII - O amor deve ser livre como o pensamento e o trabalho, de qualquer tirania
ou preconceito. Amor livre não quer dizer licencioso, mas libertado, não é
promiscuidade de sexo, mas liberdade de se unirem os sexos por afeição recíproca,
136
Errico Malatesta, em sua obra A solução anarquista para a questão social, assim se pronunciou sobre a moral
burguesa: [...] nós achamos péssima a moral burguesa; mas não se pode conceber uma sociedade sem moral [...]
( A vida, Rio de Janeiro, ano I, nº4 , 28-02-1915).
174
sem medo de constituir família, pois a sociedade comunista garante a manutenção de
todas as crianças.
XXXIX - Reconhecemos necessária e moral a prática da eugenia, para melhorar a
espécie humana e evitar maior degenerescência.
XL - Proclamamos como ideal humano a monogamia e aceitamos como princípio
moral a fidelidade dos esposos.[...]. Eis os princípios teóricos. No próximo número
virão as previsões práticas. (Spartacus, Rio de Janeiro, ano I, nº 03, 16-08-1919, p.1).
Previsões práticas, constituiam a continuidade do documento Princípios e fins do
comunismo de Oiticica. Ao apresentar o documento aos leitores do jornal Spartacus, expunha-
lhes a dificuldade de prever como se daria a organização comunista, mas para além dessas
dificuldades ele considerava importante propor uma organização ideal e transformá-la em um
objetivo a ser alcançado. Por essa razão, o documento se ocupava principalmente de projetar
as formas de organização da nova sociedade.
No comunismo anárquico, idealizado por Oiticica cada país deveria ser dividido em
zonas federadas, cada zona em município, e cada município em comunas. Cada classe
comunal deveria escolher um conselho comunal; cada conselho comunal o municipal; cada
conselho municipal, o federal; e cada conselho federal escolheria um delegado para o
conselho internacional. Os sujeitos responsáveis para cada uma dessas instâncias não
poderiam gozar de quaisquer privilégios, e nem deveriam ser dispensados de suas ocupações
profissionais, caso essas atividades não ocupassem todo o tempo, à semelhança do que
propunham as suas referências teóricas do comunismo já mencionadas.
Nessa parte do documento, vale ressaltar as normas práticas de organização da
educação, nas quais o recorte realizado pela pesquisa se referem ao trato com os professores e
as suas pesquisas:
XII - Além dos conselhos, haverá congressos municipais, federais e internacionais de
classes onde os representantes de cada classe discutirão os assuntos especiais de cada
serviço. Por exemplo, o congresso de professores de cada comuna no município, ou
de cada município na federação, ou de cada federação no congresso internacional,
discutirá as questões de educação e de ensino.
XIII - Nesses congressos serão apresentados as invenções, os processos novos, os
métodos, que, expostos pelos autores e discutidos, serão enviados ás comissões
técnicas para estudos e experiência até a adoção ou rejeição final.
XIV - O ensino superior e profissional ministrado em universidades constituídas em
comunas, onde se instalarão laboratórios, usinas, hospitais, escolas, etc, modelares.
XV - Os professores universitários de cada especialidade constituir-se-ão em comissão
técnica para o exame das novas invenções, processos científicos, métodos de ensino,
exame de livros didáticos. [...]
XXIII - Nenhuma casa poderá ser habitada, nem nenhuma escola, fábrica, teatro, etc.
instalados sem consentimento da comissão técnica de higiene. [...]
175
(Spartacus, Rio de Janeiro, ano I, nº 04, 23-08-1919, p.1, grifos nossos)
Oiticica, professor do Colégio Pedro II, participante de bancas examinadoras e de
congressos, colaborador de revistas científicas, editor de periódicos anarquistas, autor de
livros didáticos, participante das reuniões e congressos operários, ativista da propaganda
social em suas diversas modalidades, ao projetar a forma de organização do ensino na
sociedade nova parecia estar a posto para pôr em prática aquela obra. Para as tarefas de
organização do ensino apresentou como o exemplo as ocupações que ficariam sob a
responsabilidade dos professores universitários. Ao que parece, no momento da redação do
documento, Oiticica por suas características de ser um “homem de ação”, muito
provavelmente já estivesse a postos para cuidar, com o maior empenho possível, dos
congressos deliberativos, do método de ensino e dos livros didáticos.
Há indícios sobre sua pró-atividade
137
, dadas as suas convicções sobre a ação direta na
propaganda social, seu combate à “apatia” promovida pela ideologia da Igreja, pelo
envolvimento visceral com as causas libertárias, dadas as evidências apresentadas ao longo de
sua trajetória social, defendendo a possibilidade de “tudo ser possível”, com força de vontade.
Oiticica finaliza o documento asseverando que: “[...] o esboço de uma constituição
comunista, há de ser forçosamente incompleta. Peço aos camaradas que em torno desse
esboço travem discussões e surjam outras idéias essenciais”. O projeto do Partido Comunista
Libertário não vingou, mas as ações de sua militância libertária se estenderam no trabalho no
jornal Ação Direta, que, como mencionado, foi lançado pela primeira vez em 1928,
relançado em 1946 e esteve sob a sua direção até 1957, ano de sua morte. Esse jornal, durante
o seu período de circulação, ocupou-se em acompanhar o anarquismo internacional, e manter
o trabalho de rememoração dos episódios pregressos do anarquismo brasileiro em suas ações
de propaganda e sobre a resistência de manutenção de sua continuidade.
137
Oiticica, em diferentes momentos de sua atividade intelectual, posicionava-se de maneira que as críticas
recebidas servissem de aprimoramento do objeto alvo dessas argüições, buscando dar o sentido de “movimento
para diante” e conclamava os seus críticos a contribuírem para esse refinamento em lugar do “pessimismo
doentio [dos que se sentem incapazes] de qualquer esforço”. (A Vida, Rio de Janeiro, ano I, nº 2, 31-12-1914, p.
13).
177
Capítulo IV - O método de ensino do professor José Oiticica
O presente capítulo discute aspectos do método de ensino do professor José Oiticica a
partir dos livros didáticos por ele produzidos e relacionados à sua prática da docência
institucional pública frente às práticas educacionais com a propaganda social, o seu outro
espaço de educação. Para essa discussão foram privilegiadas as cartas de advertência
publicadas nas várias edições de dois de seus manuais didáticos adotados no Colégio Pedro II,
o Manual de análise (1919) e o Manual de estilo (1926), e, também, dois manuscritos de seu
acervo pessoal: “O feito e o por fazer” e “O anarquismo como método de educação”.
Em seguida, a didática que caracterizou o trabalho pedagógico do professor Oiticica
emerge dos registros de memória de alguns de seus ex-alunos, das entrevistas colhidas para
esta pesquisa e de alguns textos necrológicos. Este capítulo se encerra com uma síntese de seu
modo de ser anarquista e, sobretudo, seu modo de ser um professor militante anarquista no
tradicional Colégio Pedro II.
4. No Brasil ainda hoje se ensina, sem ter aprendido a ensinar
A frase que nomeia esta parte do capítulo é de Afrânio Peixoto, diretor da Escola
Normal do Rio de Janeiro, em 1917, ano em que José Oiticica ingressou como docente nessa
instituição. Entre esses dois intelectuais algumas opiniões foram consensuais, pelo menos no
que diz respeito à formação dos professores e com relação à situação da língua portuguesa.
Tanto um, como outro, consideravam que os novos professores ensinavam sem ter aprendido
a ensinar, e partilhavam da opinião de que a língua portuguesa estava sujeita a um verdadeiro
“caos gramatical”.
Naquele período, ainda não havia uma regulamentação ortográfica. O “caos
gramatical”, ou seja, a inexistência de normas ortográficas chamava a atenção dos
intelectuais, mais intensamente quando se perquiriam a analisar as gramáticas e os
compêndios que circulavam entre os professores do período. Essa percepção dos literatos
despertou-lhes a necessidade de se fazer uma reforma ortográfica, dado o desacordo entre as
gramáticas utilizadas pelos professores, o que foi um objeto de reflexão dos filólogos do
período e que incomodava sobremaneira José Oiticica, Afrânio Peixoto, e outros expoentes da
intelectualidade letrada.
Os livros didáticos que chegavam às mãos dos despreparados professores brasileiros
expressavam o “caos gramatical” a que estava submersa a língua portuguesa. Tais livros, ao
invés de ajudarem o trabalho pedagógico dos “professores despreparados”, terminavam por
178
atrapalhá-los. Essa era uma certeza partilhada por José Oiticica, Afrânio Peixoto e outros
expoentes dos envolvidos com a educação. Cabe mencionar que as faculdades de filosofia
criadas especificamente com o objetivo de formar professores datam dos anos 1930.
Sobre os livros didáticos em circulação no final do século XIX e início do século XX,
Bittencourt (2004, p.483)
138
nos apresenta uma análise que ajuda a clarear a conformação da
situação a qual Oiticica e Afrânio Peixoto chamavam de “caos gramatical”. Essa pesquisadora
afirma que dada a formação incipiente dos professores, e também dos poucos
intelectuais/autores, os livros didáticos resultavam das anotações de aulas dos
professores/autores. Por sua vez, para o professor que não tinham uma formação específica, o
livro didático representava em seu trabalho pedagógico um método de ensino, pelo fato de ser
extraído desse livro o conteúdo específico da disciplina. A conjugação desses dois aspectos
resultava em livros que não atendiam às necessidades dos professores.
Segundo Bittencourt (2004, p.482), a formação do professor, ao ser constituída na
prática do ‘aprender fazendo’, exigia uma produção didática específica, e argumenta que,
embora preocupados com o conhecimento científico ou literário, mas sem a vivência de sala
de aula, os intelectuais/autores eram incapazes de produzir com sucesso um material que
desse o suporte necessário à prática do professor.
139
A situação dos professores que ensinam sem ter aprendido a ensinar foi tratado em
uma conferência proferida por Afrânio Peixoto (1923, p.5-6), na Biblioteca Nacional, em 18
de junho de 1918, iniciando “[...] uma série pedagógica promovida pelos inspetores escolares
do Rio de Janeiro, sob a direção de Éster Pedreira de Melo”. Essa e outras conferências foram
enfeixadas no livro Ensinar a ensinar: ensaios de pedagogia aplicada a educação
nacional
140
, lançado em 1923. Um exemplar desse livro foi dado por Afrânio Peixoto com
138
Circe Maria F. Bittencourt (2004), em seu artigo “Autores e editores de compêndios e livros de leitura (1810-
1910)”, trata do perfil dos primeiros autores brasileiros de livro didático no período de 1810 –1910, com o
objetivo de caracterizar o processo de intervenção de diferentes sujeitos nessa produção.
139
Esse quadro de conformação do ensino brasileiro aparece tratado em vários trabalhos da história da educação
brasileira, como os estudos de: Magda Soares (1996) Português na escola: história de uma disciplina escolar;
Márcia de Paula Gregório Razzini (1992), Antologia Nacional (1895-1964): museu literário ou doutrina? e
(2000) O espelho da nação: a Antologia Nacional e o ensino de Português e de Literatura (1838-1971); Circe
Maria Bittencout (1993), Livro didático e conhecimento histórico: uma história do saber escolar; (2004)
Autores e editores de compêndios e livros de leitura (1810-1910); Arlette Medeiros Gasparello (2004),
Construtores de identidade:a pedagogia da nação nos livros didáticos da escola secundária brasileira.
140
Algumas considerações sobre essa fonte: no livro Ensinar a ensinar: ensaios de pedagogia aplicada à
educação nacional, Afrânio Peixoto (1923) abre com uma conferência de 20 de novembro de 1917, solicitada
por Olavo Bilac sobre: “A educação física, intelectual e cívica - sobre a educação masculina”; a segunda
conferência foi proferida em 16 de setembro de 1920 e versa sobre “A educação feminina”; a terceira
conferência foi datada de 18 de junho de 1918, sendo o seu tema “O ensino da linguagem”. Nessa conferência o
autor citou José Oiticica como um dos membros da comissão que se encarregaria da reforma ortográfica; a
última parte do livro foi intitulada “Literatura infantil” e trata-se de um relatório de pesquisa elaborado para o 3º
Congresso Americano da Criança, em agosto e setembro de 1922, na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Ao
179
uma dedicatória a José Oiticica e, a julgar pelas marcas de leitura nesse livro, havia discussões
intensas entre esses dois intelectuais, sendo que as anotações de Oiticica nesse livro sugerem
que eles tinham um posicionamento consensual sobre a necessidade de implementar uma
sistematização para o ensino da língua portuguesa.
Tanto o trabalho conjunto na Escola Normal, quanto a troca de opiniões sobre o
despreparo e sobre a situação de desamparo dos professores levaram Afrânio Peixoto a
sugerir, na já referida conferência de 1918, que Oiticica, Carlos de Laet e Mario Barreto
empreendessem uma reforma ortográfica no Brasil, que pudesse vigorar nos livros didáticos e
obrigasse os autores das gramáticas que circulavam a obedecer às normas estabelecidas por
essa comissão.
As atenções de Oiticica, no período dessa interlocução com Afrânio Peixoto, se
dividiam entre muitas atividades as ações sindicais operárias, com a imprensa libertária; as
conferências da propaganda social; as atividades da docência institucional na Escola Normal
e, também, como professor substituto de Português no Colégio Pedro II. Além disso, Oiticica
cuidava da elaboração do Manual de análise (léxica e sintática), prestes a suceder os seus
Estudos de fonologia, 1ª série – tese de concurso ao Colégio Pedro II, publicado em 1916.
Afrânio Peixoto iniciou o seu livro Ensinar a ensinar, tratando sobre a sobre a
condição a que estavam sujeitos aqueles que “ensinavam sem ter aprendido” e, pelas marcas
de leitura deixadas no livro, os seus grifos indiciam que alguns posicionamentos sobre a
condição da Escola Normal e sobre a formação dos professores coincidiram entre esses dois
intelectuais:
[...] a Escola Normal está da seguinte forma: “monstruosa anomalia” de uma escola
normal noturna, apenas [de] assistência a moças pobres, cansadas, de dia, em
ensinarem em escolas primárias o que não sabiam, e á noite a aprender o que não
conseguiriam bem saber [...]
No Brasil ainda hoje se ensina sem se ter aprendido a ensinar, por isso se ensina e se
aprende tão mal... Professores de ensino superior, de ensino secundário e de ensino
primário em muito lugar, ainda quando sabem, não sabem ensinar, porque não
aprenderam e desdenham aprender... Esse é o maior mal da educação nacional – esse
bem pode ser a divisa de uma propaganda. (PEIXOTO, 1923, p.5-6, grifos de
Oiticica).
O grifo no trecho foi feito por Oiticica no livro Ensinar a ensinar. Essa fala de Afrânio
Peixoto sobre o despreparo geral dos professores é também recorrente em vários discursos de
José Oiticica, como, por exemplo, nas cartas de advertência de suas publicações. No entanto,
longo do livro há comentários de Oiticica, marcas de leitura que exibem mais consenso de opiniões do que
discordâncias.
180
a atuação de Afrânio Peixoto era a Instrução Pública e o professor Oiticica intercalava as
atividades da propaganda social libertária com as aulas na Escola Normal e no Colégio Pedro
II.
Nessas cartas de advertência dos seus livros, ele usava de ironia para reportar-se aos
“colegas tarimbados”, aos “sábios colegas”, para referir-se àqueles a quem ele percebia ter
total desinteresse em aprender e discutir sobre as novas formas de ensinar, ou seja, os
gramáticos que ele considerava de postura pedante, que em uma posição supostamente
superior não se colocavam no debate, não aceitavam críticas, nem contribuíam com sugestões
e que sem saber de fato sobre os assuntos que escreviam, escreviam em seus livros as
maiores “bobagens” prejudicando, com isso, os jovens professores. Por essa razão, Oiticica
considerava de vital importância fornecer aos jovens professores sugestões nas cartas de
advertência, de modo a ajudá-los a saber escolher o melhor livro didático.
Em torno da idéia do “caos gramatical”, ocorriam verdadeiros duelos entre os
intelectuais que discordavam entre si sobre as questões gramaticais, e, por meio de publicação
de artigos jornalísticos, opúsculos, travavam “batalhas” que se desdobravam em réplicas,
tréplicas. Desses duelos gramaticais ocorriam rupturas das relações profissionais e pessoais
entre os gramáticos participantes. Incomodava a José Oiticica a forma como se davam as
críticas. A sua posição era de investir nos estudos e apresentar os argumentos que realmente
convencessem. De questões mais estruturais a discordâncias sobre a repetição das letras “F”,
“G”, “L”, “M” nas palavras, compunha-se o repertório de discussão entre os gramáticos do
período. Oiticica estava entre os que se opunham com a repetição das letras e era partidário da
“simplificação da nomenclatura das palavras”, questionava a forma como se ensinavam às
crianças a análise lógica e defendia que “aprender a estudar era mais importante do que
propriamente estudar”.
Pata tentar resolver o “caos gramatical”, Afrânio Peixoto (1923), na citada
conferência de 1918, dos inspetores da instrução pública, apresentou a sua idéia de
constituição da comissão da qual Oiticica faria parte, caso a Diretoria Geral de Instrução
Pública, o órgão que poderia cuidar dessa questão, o ouvisse. A sua estratégia foi apresentar a
circular da reforma ortográfica francesa, pois se na França a reforma tinha sido feita, por que
não fazê-la no Brasil:
Apresento-vos a circular ministerial de 28 de setembro de 1910, o aviso de 25 de julho
do mesmo ano, assinado pelo ministro Gaston Doumergue; aqui tendes outros avisos e
circulares Leygues. Tratam uns de nomenclatura gramatical, simplificada e
uniformemente imposta a gramáticos e professores em toda a França, tratam outros da
simplificação do ensino da sintática francesa, para a utilidade geral de todos os
interessados nesses assuntos de educação, exame e concursos, etc. Não estaremos
181
sozinhos pois, numa decisão dessa natureza. Está nos poderes do Conselho Superior
de Ensino e da Diretoria Geral da Instrução Pública tornar pedagógicas as gramáticas
elementares e nestas como nas gramáticas secundárias, simplificar a nomenclatura
convencionada. Para evitar prejuízos de livros impressos e edições, feitas ao prazo de
dois, três anos seria concedido antes de entrar em execução. Para faze-la, para instruir
o poder público, necessariamente devem ser evitados os gramáticos, autores de
gramáticas, talvez sem isenção para julgamento dos próprios sistemas, que teriam
indulgência de crer superiores aos outros confrades. Aqui entre nós, a comissão está
nomeada, pela competência e pela conformidade a essas condições: ela seria composta
dos professores Carlos de Laet, Mário Barreto e José Oiticica, filólogos, sábios da
língua, que honram por igual o magistério e a literatura nacional. Bastaria ao poder
público a ratificação dessa escolha, feita e imposta apenas pelo mérito, e a obra estaria
realizada. (PEIXOTO, 1923, p.143-144, grifos nossos).
O convite de Afrânio Peixoto a José Oiticica para compor a comissão que aprovaria a
reforma gramatical demonstra o alcance do reconhecimento intelectual de Oiticica por sua
condição de estudioso da língua portuguesa, pesando também a sua posição de pertencimento
a uma instituição modelar do ensino secundário do Brasil. Como professor substituto e depois
catedrático da cadeira de português do Colégio Pedro II, podia opinar criticamente sobre os
livros didáticos, embora não participasse de nenhuma comissão de avaliação de livros. Na
capa de seu Manual de análise (léxica e sintática), de 1919, além de sua autoria, registrava-se,
também, acima do título da obra, o seu nome como diretor da Enciclopédia Didática
Brasileira.
A experiência de José Oiticica anterior ao Colégio Pedro II, na fase de funcionamento
de seu Colégio Latino-Americano, a sua participação em periódicos franceses como, por
exemplo, em La Science Socialle, dirigida por Demolins, e a imersão de Oiticica nos estudos
relativos à língua portuguesa mostravam a todos a sua posição. Essa condição obrigava
muitos a tolerarem a sua militância anarquista, e, assim, o nome de Oiticica ao lado de outros
filólogos do período como Carlos de Laet e Mario Barreto, era referido por Afrânio Peixoto
(1923, p. 143-144), na reunião dos Inspetores Escolares como “[...] filólogos, sábios da
língua, que honram por igual o magistério e a literatura nacional”.
Nesse período, em 1918, Oiticica compôs o soneto que expressava a sua forma de
enaltecer a língua, manifestação recorrente dos literatos do período:
Língua em que falo a minha gente
Ó tu, formosa língua portuguesa,
Branda, sonora, enérgica, imponente,
Irmã gêmea da nossa natureza!
Patrimônio do povo que presente
As glórias de um futuro a que estás presa,
Vais ser a língua deste Continente...
Teus poetas vão cantar sua grandeza.
182
Sim, vão buscar, no teu vocabulário,
Todas as expressões de assombro e encanto
Que suscita este solo extraordinário.
E amplo na prosa e sem rival no verso,
Hão de os homens sagrar-te, ó idioma santo,
Como língua mais bela do Universo!
(OITICICA, 1918, apud RODRIGUES, 1993 a., p.34).
O argumento de Afrânio Peixoto (1923), na conferência de 1918, tinha sustentação no
exemplo da reforma realizada na França que havia simplificado a nomenclatura gramatical.
Essa atenção ao que era feito na Europa era recorrente entre os intelectuais na busca por saber
como se resolviam as questões do ensino. A preocupação de Afrânio Peixoto, partilhada por
Oiticica, incidia principalmente sobre o que ocorria com os manuais didáticos que circulavam
nas escolas, que chegavam às mãos dos professores que o tomavam como o programa de
conteúdos a serem ministrados em suas aulas.
Alguns, como Afrânio Peixoto e José Oiticica, acreditavam que por meio de uma
reforma ortográfica, com normas estabelecidas, seria possível fazer com que “os gramáticos
autores das gramáticas” tornassem “pedagógicas” as gramáticas elementares e
“simplificassem a nomenclatura” das gramáticas secundárias. Esses objetivos aparecem
contemplados nas cartas de advertência dos livros de José Oiticica, portanto, o era um
discurso compartilhado por integrantes dos diferentes grupos de gramáticos do período.
Nesse sentido, as experiências educacionais européias chamavam a atenção de muitos, e, no
caso de Oiticica, notadamente as experiências da pedagogia de Edmond Demolins, de
Francisco Ferrer y Guardía, Sebastien Faure, entre outros.
Naquele período já era praxe das editoras dar preferência aos livros de autoria de
professores do Colégio Pedro II e da Academia Militar, tanto para atestar a credibilidade dos
livros, como para obter junto aos Conselhos educacionais a aprovação das obras. Como José
Oiticica, Carlos de Laet e Mario Barreto tinham expressividade e legitimidade reconhecidas,
foram os nomes cogitados por Afrânio Peixoto, que por sua vez, não deixou de pensar
também nas editoras dos livros didáticos. Dessa forma, em um prazo de dois ou três anos, esse
novo material com as regras da reforma seria oferecido para que os envolvidos com o livro
didático pudessem se adaptar a tais modificações propostas e que assim pudessem “evitar
prejuízos dos livros já impressos”.
Afrânio Peixoto (1923, p.143-144) deixou claro que os autores dos livros didáticos
teriam de acatar as deliberações da comissão nomeada, e que deveriam ter a “indulgência de
crer superiores [os] outros confrades”. Como regra, seria vetado aos autores de gramáticas
183
participar das comissões para que, com isso, fossem garantidas isenções nos julgamentos.
Em Portugal, a reforma ortográfica oficial tinha acorrido em 1911, e, no Brasil, só iria
acontecer em 1931, pois, tal como apontou Razzini (2000, p.42)
141
, “ a falta de
regulamentação ortográfica oficial transferia para os livros didáticos (sobretudo dicionários,
gramáticas, manuais de retóricas e seletas literárias) a função extra de definir a ortografia
portuguesa”. Essa evidência ajuda a compreender o incômodo de Oiticica e de Afrânio
Peixoto sobre o “caos gramatical” e o porquê deles acreditarem que melhorariam a qualidade
dos livros se estes seguissem normas gramaticais preestabelecidas.
4.1 Aos novos professores: um método
O trabalho de José Oiticica na formação de professores na Escola Normal do Distrito
Federal iniciou-se a partir de 1917, um ano após seu ingresso no Colégio Pedro II. Porém,
suas experiências pedagógicas são anteriores ao seu trabalho nessa instituição, dando-lhe a
dimensão sobre o que consistia o trabalho docente. Assim, pode-se dizer que, além da sua
erudição sobre questões da língua portuguesa, as suas experiências com as atividades relativas
ao ensino lhe ofereciam clareza acerca dos problemas que os professores novos enfrentavam
em sala de aula.
Oiticica compreendia a necessidade e a urgência em lidar com o problema da
formação dos professores. Para isso, entendia contribuir para essa questão com as suas aulas e
compartilhando, sempre que possível, suas idéias por meio da publicação de seus manuais,
que eram apresentados como guias práticos para as escolas. Além da autoria dos manuais,
preparar professores à luz do método racionalista para trabalhar nas escolas fundadas pelas
correntes libertárias em 1913 e 1914 também foi uma iniciativa registrada do autor. Esses
cursos aconteciam na sede da Federação Operária, e foram amplamente divulgados pela
imprensa libertária do Rio de Janeiro. Além dessas considerações, cabe mencionar o seu apoio
às Escolas Modernas, como mostram seus artigos jornalísticos em A Voz do Trabalhador, em
A Lanterna.
Essas são evidências percebidas no exame de seus artigos jornalísticos, e que, de certa
141
O estudo de Márcia de Paula Gregório Razzini (2000), intitulado O espelho da nação: a Antologia Nacional e
o ensino de Português e de Literatura (1838-1971), ao acompanhar a trajetória da literatura brasileira no
currículo secundário e focalizar a Antologia Nacional, de Fausto Barreto e Carlos de Laet, reuniu um conjunto de
informações relevantes para situar a produção de José Oiticica. Os Programas de Ensino de Português e de
Literatura e a cronologia do Ensino de Português e de Literatura, apresentados no referido estudo serviram como
atalho importante no processo inicial de coleta de fontes na reconstituição da trajetória de José Oiticica,
especificamente sobre a docência desse intelectual no Colégio Pedro II. Esse estudo foi desdobramento de sua
dissertação de 1992, Antologia Nacional (1895-1964): museu literário ou doutrina?
184
forma, são preocupações manifestas em suas cartas de advertência que abriam as suas
publicações. Não raro, na escrita do professor Oiticica, encontram-se comentários a propósito
da necessidade de um “método de ensino”, de uma “sistematização” para o ensino de
português, sobre a urgência de oferecer aos professores “guias seguros” e práticos para as suas
aulas. Todos esses termos são recorrentes em seus ensaios, artigos jornalísticos e livros,
aparecendo desde 1905, quando esta pesquisa observou seu engajamento no debate sobre a
escola nova, mais especificamente em relação à pedagogia da École des Roches.
Na sua experiência em seu Colégio Latino-Americano, em 1905, Oiticica aplicava os
“processos pedagógicos” de Edmond Demolins, de sua Écoles des Roches. As adesões
posteriores de Oiticica, ao longo dos anos de 1910, estavam vinculados à experiência das
Escolas Modernas, inspiradas no ensino racionalista proposto pelo espanhol Francisco Ferrer
y Guardía.
Observamos a recorrência, no discurso de Oiticica, dos termos “sistematização” e
“método de ensino”, sobretudo em escritos do final da década de 1940, no opúsculo Um
programa heterodoxo para o ensino de português nas escolas. Nesse seu opúsculo, de 1948,
“sistematizar o ensino” parecia ser a solução pensada por Oiticica para resolver os problemas
do ensino em geral, e, particularmente, os do ensino de português nas escolas. Oiticica
procurava explicar aos ouvintes de sua conferência proferida na Rádio Cruzeiro do Sul a
necessidade de metodizar os conhecimentos:
Para que sistematizar o ensino? Porque assim tem procedido os maiores sábios e
pesquisadores do mundo. E porque sistematizaram eles todas as ciências? Porque só
assim podem tomar pé no mare magnum dos fenômenos e realidades do mundo.
Calculem os zoólogos sem rígida sistematização, os químicos, os geógrafos, os
próprios comerciantes. Tudo, com a multiplicação atordoante dos conhecimentos há
de ser classificado, metodizado, distribuído em gradativa complexidade a fim de que,
por tais florestas, possa guiar-se o itinerante. Até para os turistas há de estar tudo
indicado segundo tabelas fixas, numeradas, dispostas em sistema de reconhecimento
fácil. (OITICICA,1948, p.3-4):
A exemplo dos procedimentos adotados pelos sábios zoólogos, químicos, geógrafos e
até mesmo os comerciantes na vida cotidiana, os conhecimentos deveriam passar por uma
classificação metodizada, e sua distribuição deveria ser realizada, segundo Oiticica, de acordo
com seu grau de complexidade. As orientações dadas pelo professor aos alunos deveriam ser
disponibilizadas, por meio de “tabelas fixas, numeradas, dispostas em sistemas de
reconhecimento fácil” (p.4), procedimentos metodológicos apropriados, segundo o que ele
afirmava, da pedagogia da escola nova de Edmond Demolins.
185
Nesse opúsculo encontramos registradas as críticas de Oiticica à ausência de
sistematização do ensino, como resultado das malsucedidas tentativas realizadas por parte dos
reformadores da instrução pública que, em lugar de melhorar as condições do ensino, por
incapacidade de ações, criaram o “caos educacional”. Contra esse “caos educacional”,
Oiticica apresentava aos ouvintes, professores e interessados nas questões da língua e do
ensino, as propostas que conformavam a sua sistematização. O termo “sistematização” é
empregado no discurso de Oiticica como sinônimo de método de ensino, à sua maneira, de
acordo com as suas idéias e embasado em sua experiência educacional. O método era o meio
para atingir essa sistematização.
Oiticica (1926, p. 8) defende a idéia de que o ensino de qualquer conhecimento deve
ocorrer de forma gradativa. Esse argumento está presente nas orientações disponibilizadas em
seu Manual de análise e no Manual de estilo, ou seja, o mais simples deve ser explicado
antecedendo o que é considerado como mais complexo, com o objetivo de no aluno “[...]
formar-lhe o gosto, criar nele o sentimento de responsabilidade e o esforço de pesquisa,
caminho de toda arte”.
Para Oiticica (1948, p. 5), o aluno deve aprender primeiro os ritmos mais simples, as
noções básicas de cada tema para depois lidar com questões mais complexas. Os “programas
“adotados nas escolas primárias e secundárias do Brasil” deveriam serrigorosamente
sistematizados e curtos, encadeados logicamente, seguindo uma sistematização sensata e com
fins verdadeiramente educativos”.
Em sua “sistematização” há procedimentos metodológicos que, segundo suas idéias,
são adequados a qualquer conhecimento, a todas as disciplinas escolares, servindo como base
para a elaboração de qualquer programa de ensino, pois segundo ele (1948, p.4):
Aprender a estudar é muito mais importante para a vida do que propriamente estudar.
O que mais ajuda na vida é poder, em dada ocasião, saber como enfronhar-se
rapidamente num estudo qualquer e isso, nas escolas, só se adquire se os mestres o
ensinarem. Que professor, por exemplo, habitua os seus alunos a ficharem suas notas
em vez de as tomarem a trouxemouxe, em cadernos ou papéis avulsos? Que professor
propõe aos alunos um tema de estudo indicando-lhes a bibliografia para que se
acostumem aos processos de pesquisa e a lidar com várias opiniões contrapondo-as e
escolhendo a melhor? Porém, não nos precipitemos. O que vou dizer para o português
é perfeitamente aplicável a qualquer estudo desde que, na sistematização, seja incluída
a coordenação.
Para atingir este objetivo, sugere condutas a serem seguidas pelo professor, como
indicar bibliografia e orientar fichamentos, ou seja, criar condições intelectuais para escolher
temáticas a serem estudadas, aprendendo a lidar com a diversidade temática. Se
186
considerarmos as filiações ácratas de Oiticica, poderíamos inferir que, se essas atitudes do
professor fossem internalizadas pelos alunos, estes estariam, ao fim do processo de ensino
sistematizado, em condições de exercer o “livre pensamento”.
Para demonstrar as bases de sua experiência pedagógica na construção de sua
sistematização, Oiticica lembra os ouvintes de sua conferência que as suas proposições
resultam de uma experiência de longos anos no magistério. Sua referência especial foi a sua
experiência com o trabalho pedagógico desenvolvido em seu Colégio Latino-Americano,
entre os anos de 1905 e 1908, cuja experiência foi mencionada no primeiro capítulo.
Oiticica (1948, p.3) lançou críticas aos reformadores da Instrução Pública que
“produziram o que haviam de fatalmente produzir: uma calamidade”, “o mal precípuo” dos
programas de todas as escolas.
Da pedagogia, das ciências sociais, o professor Oiticica forjava, a seu modo, as suas
ferramentas de compreensão da questão social, da questão educacional numa interlocução que
tanto se dava com intelectuais, como, por exemplo, Afrânio Peixoto, diretor da Escola Normal
e depois diretor da Instrução Pública, como também com outros intelectuais: Adelino Pinho,
Fábio Luz, João Penteado
142
, posicionados na educação ácrata.
José Oiticica, de maneira recorrente, defendia que a pedagogia e as ciências sociais,
em geral, deveriam ser ferramentas para todos lidarem com as questões da família e da
propaganda social. Cabe lembrar, também, a sua defesa de que todas as mulheres deveriam
ser pedagogas, receber uma educação “iluminada” pelas ciências. Essa consideração aparece
em seu ensaio sociológico, O desperdício da energia feminina, e também no documento
Princípios e fins do comunismo, discutidos no capítulo anterior.
4.1.2 O anarquismo como método de educação
No espólio do professor José Oiticica, uma das fontes desta pesquisa, há um fragmento
manuscrito com anotações de uma aula para professores em formação, ou de uma
aula/conferência para livres pensadores, ou, ainda, a escrita inicial de um artigo ou livro, não
sendo possível saber ao certo. Essas anotações iniciam-se com o título “Anarchismo como
método de educação”. Apesar de não ser um documento datado, as grafias de algumas
palavras indiciam que a sua escrita pode ter se dado na segunda década do século XX.
Essa suposição é procedente de uma pista: no número 41 do jornal Voz do
trabalhador, de 15 de outubro de 1913, por ocasião da rememoração do assassinato de
142
Adelino Pinho e João Penteado foram professores e diretores da Escola Moderna de São Paulo.
187
Francisco Ferrer y Guardía, em de 13 de outubro de 1909, o professor Oiticica, articulista
desse jornal, argumentava que a melhor forma de homenagear o educador espanhol seria dar
seqüência à sua obra e se prontificava a preparar professores para iniciar cursos no salão da
Confederação Operária, e em outros salões “facílimos de se conseguir”. Nesse artigo, o
professor Oiticica informava ter em vista três professoras que poderiam iniciar a obra, e ainda
informava que as professoras tinham o curso normal.
Neste fragmento de sua suposta aula, transcrito a seguir, podemos ter a idéia da
abordagem dos conteúdos usada pelo professor Oiticica para explicar em que consistia o
método de ensino anarquista:
Anarchismo como método de educação
Na realidade não é cousa nova se consultarmos qualquer manual de história, de
pedagogia com um certo senso crítico.
De Sócrates ao ativismo, ao personalismo, podemos salientar motivos libertários, mas
onde esses motivos se impõem pela sua clareza e função é nos pensadores que vimos
analizando.
O Comenio rebelava-se contra o formalismo oco da escolástica e contra a parolagem
dos jesuítas, indicando ao contrário o método de observação direta dos quais surgem
as idéias da coisa e não vice-versa.
“Educamos homens e desejamos que sejam utilmente educados o que acontecerá se
todos procederem de comum acordo com as palavras com as cousas e as cousas com
as palavras” (1). Com este proceder das cousas às idéias, ao concreto, ao abstrato, o
Comenio antecipou muitos pedagogistas modernos. Outro princípio básico para
melhor compreender o pensamento pedagógico é a auto-didática. Na verdade quando
se sustem o método da observação direta na qual a criança colocando-se em frente ao
objeto descobre-lhe as propriedades e as qualidades essenciais, a função do mestre
limita-se somente a guiar e estimular a atividade do menino, o qual se formará idéias e
noções próprias. “Os exemplos dos auto-didáticos mostram evidentemente que o
homem por natureza pode por si próprio conquistar qualquer espécie de condição. De
fato alguns adiantaram-se mais dos seus próprios mestres, ou tendo por mestre
aguerridos, progrediram mais dos outros que receberam a instituição operosa dos
predecessores.”
Para pensar o anarquismo como método de educação, o professor Oiticica transitava
entre os textos clássicos, como pudemos observar no capítulo II quando esta pesquisa
discorreu sobre suas atividades na Escola Dramática Municipal e com o teatro social, na qual
destacamos, a partir da análise de Prado (2004), as preferências de Oiticica pelas peças de
Aristófanes, considerado por ele, como um dos primeiros teatrólogos anarquistas.
Além dessas aulas em que fez uso dos excertos de Aristófanes, chama a atenção a
forma usual de Oiticica na construção de seus artigos que, de maneira recorrente, valia-se do
uso do diálogo explicativo, provavelmente de inspiração no método socrático, ou seja, na
maiêutica.
188
Da leitura do manuscrito “Anarquismo como método de educação”, concluímos que a
sua suposta aula partiu da leitura de Jan Amós Comenius, autor da obra Didática magna. Essa
evidência nos obriga a abrir um parêntese com o objetivo de destacar quais os procedimentos
do método de Comenius podem ter interessado ao professor Oiticica quando destacou as
passagens desse pensador.
Para Comenius, a educação escolar deveria ser universal e a aprendizagem se iniciaria
pelos sentidos. Defendia o princípio de que a formação do homem deveria se dar na primeira
infância, desde que o ensino ocorresse por meio da experiência direta, para que pudesse ser
interpretada racionalmente pela criança após sua interiorização. Dessa forma, o seu método
didático estruturou-se em princípios que tinham como objetivos desenvolver qualidades
relacionadas à erudição, à virtude e à formação religiosa (aspecto presente em toda sua
metodologia), seguindo nos processos de ensino, as condições dadas pela própria natureza.
Em sua obra, a questão do método se concretiza no estado da arte de se ensinar tudo a todos,
de forma fácil, alegre e ao mesmo tempo sólida, proporcionando o acesso à cultura, aos bons
costumes e “a uma piedade mais profunda” (p.13).
A natureza se coloca na Didática Magna de Comenius, como a fonte, a raiz, a estrutura
da educação que tem como missão a formação do homem e pode ser desenvolvida seguindo
os seguintes passos:
I. [...] Examinando-se os exemplos da natureza, está claro que a educação dos
jovens se desenvolverá facilmente:
II. Se iniciada cedo, antes que as mentes se corrompam.
III. Se ocorrer com a devida preparação dos espíritos.
IV. Se proceder das coisas mais gerais para as particulares.
V. E das mais fáceis para as mais difíceis.
VI. Se nenhum aluno for sobrecarregado com coisas supérfluas.
VII. Se em tudo se proceder lentamente.
VIII. Se as mentes só forem compelidas para as coisas que naturalmente
desejarem por razões de idade e de método.
IX. Se tudo for ensinado por meio da experiência direta.
X. E para a utilidade imediata.
XI. E com um método imutável, único e assíduo.
Assim , digo que todas as coisas fluirão de modo suave e agradável. Mas
convém seguir novamente as pegadas da natureza. (COMENIUS, 1997,
p.165-166).
Com esses destaques sobre o método de Comenius, encerramos o parêntese e voltamos
a dialogar com o manuscrito de Oiticica em observação aos seus destaques a propósito da
189
pedagogia de Comenius. Dela, Oiticica destaca como princípios libertários a rebeldia do
pedagogo ao formalismo da escolástica e insiste no seu método de observação direta das
coisas.
Oiticica apresenta Comenius à sua audiência como um precursor de métodos
defendidos por pedagogos modernos. Chama a atenção para a possibilidade de encontrar os
princípios do método de Comenius na consulta de qualquer manual de história, de pedagogia,
desde que o leitor “esteja municiado de senso crítico”. Com esse tipo de orientação, Oiticica
possibilitava aos seus alunos condições para encontrar aspectos do método de Comenius em
métodos da pedagogia “supostamente” nova, pois observa aos seus alunos que Comenius se
antecipou a muitos “pedagogistas”.
Outro princípio destacado por ele a propósito da pedagogia de Comenius é a defesa da
autodidatismo, que ele ademais, ressalta a importância da observação para a formação da
noção sobre as coisas e destaca aos seus alunos que o papel do professor deve se limitar “a
guiar e estimular a atividade do menino, o qual se formará idéias e noções próprias”. Nessa
relação entre o professor e o aluno, alerta o professor para considerar os ritmos de
aprendizagem e aceitar a possibilidade de o aluno superar o mestre, aprender com distância ou
aproximação do mestre.
Essas apropriações de Oiticica a propósito da pedagogia de Comenius, de certa forma
apareceram, em essência, na rememoração de Oiticica sobre a sua experiência no Colégio
Latino-Americano, apresentada em seu opúsculo Um programa heterodoxo de português nas
escolas, de 1948, já mencionado. Ao apresentar o processo pedagógico utilizado em seu
colégio, que era inspirado na pedagogia de Edmond Demolins, o diretor da Écoles des Roches
- Oiticica chamava a atenção para o fato de que em seu colégio toda teoria deveria vir sempre
da prática, da observação, para dedução e organização das noções sobre as coisas observadas,
experimentadas.
A conexão entre estes diferentes momentos: a experiência do Colégio Latino-
Americano, a escrita do manuscrito “Anarchismo como método de educação” e a
rememoração da conferência transcrita no opúsculo de 1948 - ajuda a entender o modo de
ensinar e de aprender defendido pelo professor Oiticica.
4.2 Oiticica e os seus manuais: uma proposta “simplíssima
143
A proposta de serem guias seguros para os professores aparece anunciada nas cartas de
143
Com esse termo José Oiticica define a sua classificação das palavras em seu Manual de análise, de 1919.
190
advertência que abriam as publicações de seus livros didáticos, em suas várias edições. Em
fins dos anos de 1910, quando ele iniciou a publicação dos seus manuais didáticos, estava
envolvido com as críticas aos livros didáticos, em circulação no período, considerados
inadequados às demandas do professor, tal como foi argumentado por Afrânio Peixoto (1923),
em seu livro Ensinar a ensinar.
Na sua concepção, os materiais didáticos precisavam estar adequados às necessidades
dos professores, por isso deveriam se tornar “guias práticos” para o professor. Essas idéias,
que também foram defendidas por Afrânio Peixoto, direcionaram o trabalho de Oiticica em
seus dois manuais com o propósito de simplificar as classificações das palavras.
Um guia prático para José Oiticica era um livro com a disposição dos conteúdos
ordenada com a apresentação do seu conceito, da sua funcionalidade com exemplos de seu
uso. Para isso, era necessário apresentar a explicação de cada termo usando vocabulário de
fácil compreensão e apresentando referências sobre possíveis formas de aprofundamento de
leituras e, também, quando necessário, a apresentação de notas explicativas. Oiticica defendia
ser imprescindível o desenvolvimento do gosto. Para tanto, era necessário adentrar em cada
conteúdo por encadeamento lógico das partes do menor para o maior, do fácil para o
complexo. Se fossem apresentados conteúdos considerados complexos, antes de uma escala
ordenada por princípios da lógica, fatalmente os estudantes se desencantariam sem querer
seguir as outras descobertas. Além disso, era de vital importância que os professores
ensinassem os seus alunos a tomar notas de suas leituras, dispondo as suas descobertas num
crescente ordenado pela lógica de cada um dos assuntos examinados. Os seus livros seguiam a
apresentação dos conteúdos em forma de notas numeradas.
Essas considerações decorrem da leitura das cartas de advertências e da leitura do
Manual de análise (léxica e sintática), de 1919, e Manual de estilo, de 1926, apresentados por
Oiticica como guias práticos para as escolas.
A disposição de conteúdos em forma de notas concatenadas dos conceitos e noções
aparece também em seus ensaios publicados concomitantemente por Oiticica na imprensa
libertária. As estratégias de apresentação de conteúdos usadas nos dois referidos manuais
também foram usadas em sua cartilha do comunismo libertário, intitulada A doutrina
anarquista ao alcance de todos, um livro que também pode ser compreendido como uma
estratégia semelhante a empreendida, com relação aos livros didáticos pelo menos na maneira
como José Oiticica dispunha os conteúdos.
Cabe mencionar que os seus dois manuais tiveram as suas redações iniciadas na fase
do cárcere, de 1924/1925. O primeiro, o Manual de análise, praticamente coincidiu com o
191
documento Princípios de fins do comunismo, com as noções e prescrições da sociedade nova
comunista libertária, comentado no capítulo anterior. O segundo foi uma produção do cárcere,
na Ilha das Flores e Ilha Rasa, que coincidiu com a escrita de A doutrina anarquista ao
alcance de todos, que de acordo com a sua fala era o seu “catecismo anarquista”. A sua
atuação profissional alternou de maneira ininterrupta as atividades educacionais da docência
institucional pública na atuação referente à propaganda social, os seus diferentes espaços de
educação e de produção de idéias e práticas.
4.2.1 O Manual de análise (léxica e sintática)
O primeiro livro de José Oiticica foi publicado em 1916, Estudos de fonologia, 1ª série
– tese de concurso ao Colégio Pedro II em 1916.
144
Em 1919, o Manual de análise (léxica e
sintática) e, em 1926, o Manual de Estilo.
145
Oiticica empreendeu parte significativa de sua carreira como intelectual da língua
portuguesa com as publicações de destinação escolar. A julgar pelas observações contidas nas
“cartas de advertência” que abrem as suas publicações, direcionadas a um público classificado
pelo autor como: “sábios colegas”, os gramáticos, àqueles que Oiticica antevia que a sua
proposta não iria agradar, aos jovens professores, que no seu julgamento eram aqueles que
precisavam de seus livros para aprender como ensinar, e, a todos aqueles que se interessavam
pelas questões da língua portuguesa, que ele sabia não ser o grande público em razão da
massa de analfabetos do Brasil.
Essas cartas se repetiram nas sucessivas reedições e reimpressões e algumas vezes
modificaram o seu conteúdo. Acompanhá-las possibilitou conhecer as prescrições de suas
práticas, e também as críticas aos “vícios de aprendizagem”, as práticas negadas para a
compreensão da proposta do autor com tais obras. O exame dessas cartas de advertência, a
atenção à organização dos conteúdos e ao manuscrito “O feito e o por fazer”, em que Oiticica
apresenta uma avaliação sobre a sua produção em cada um de seus manuais foram os
procedimentos adotados para a compreensão da sua perspectiva com relação aos modos de
ensinar e de aprender.
144
No primeiro capítulo apresentamos o conteúdo de Estudos de fonologia, 1ª série – tese de concurso ao
Colégio Pedro II , publicado pela primeira vez em 1916, e posteriormente em 1955.
145
A segunda edição do Manual de análise (léxica e sintática) foi publicada em 1923, com as seguintes
informações na capa: Enciclopédia Didática Brasileira, sob a direção do professor José Oiticica: professor
substituto do Colégio Pedro II, na Typographia Baptista de Souza e na terceira edição, publicada em 1926, foram
apresentadas as seguintes modificações na capa: professor catedrático do Colégio Pedro II, com o acréscimo
Depositário: Livraria Machado. Nesse ano, publicou também o Manual de estilo, embora elaborado no ano
anterior foi publicado em 1926. Esses dois manuais tiveram várias reedições.
192
A apresentação de seus conteúdos didáticos nesses manuscritos organizou-se pela
concatenação de conceitos e noções encadeados em seqüência numerada, ou de listagem por
ordem alfabética. Alguns conceitos, noções e termos, por vezes, apresentam notas, uma
espécie de glossário que esclarece os sentidos considerados ou as referências a outras obras de
consulta do próprio autor ou de outros autores.
A erudição de José Oiticica nas áreas da filologia, da lingüística e da gramática deu-
lhe condições para a escrita de seus manuais, e reconhecimento, pois os seus manuais
transformaram-se em referências para obras de outros estudiosos da língua portuguesa, como,
por exemplo, os autores de gramáticas como Antenor Nascentes e Silvio Elia. A interlocução
entre esses intelectuais se mostra em suas assertivas, como nas oposições que fazem entre si,
algumas vezes transformadas em polêmicas, outras na publicação de trabalhos conjuntos.
146
Para confirmar a sua importância e reconhecimento, cabe mencionar que a 11ª edição
do Manual de Análise (léxica e sintática) de José Oiticica foi publicada em 1955, em edição
refundida com o Método prático de análise gramatical e lógica, de Antenor Nascentes, apesar
de divergirem em algumas questões gramaticais.
Oiticica apresentava os conteúdos de seus dois manuais de forma esquemática.
Discorria sobre os conceitos encadeando-os por etapas evolutivas e com a conclusão de cada
assunto. Os argumentos eram listados numericamente ou alfabeticamente. Apresentava
exemplos para dar sustentação aos seus argumentos, e, como já dito, as notas e referências
corroboravam seus argumentos, concordando ou contrapondo posições com outros autores.
O Manual de análise de 1919 e o Manual de estilo de 1926 aparecem indicados nos
Programas de Ensino do Colégio Pedro II, de 1926 e 1928. Esses livros foram inseridos na
parte “Livros Indicados” desses programas logo após a passagem de José Oiticica do cargo
de professor substituto para o de catedrático de Português:
1926
[...]
Livros indicados
1º ano: Carlos de Laet: Antologia Nacional; Antenor Nascentes: Análise gramatical e
lógica; José Oiticica: Manual de análise; Otelo Reis: Verbos e textos para corrigir;
Said Ali: Gramática elementar.
146
Nos manuais didáticos de Oiticica há diversas referências as concordâncias e críticas às produções de Silvio
Elia, destacando-se o seu trabalho como gramático, e também a de Antenor Nascentes, como pares de trabalho
nos assuntos referentes à fonologia e atividades do Colégio Pedro II. Do diálogo crítico com Silvio Elia,
destacam-se tanto os agradecimentos dispensados por Oiticica pela revisão de seu Manual de análise em 1955,
como a publicação do debate com esse intelectual, enfeixando os artigos jornalísticos com as respostas de
Oiticica em razão de suas discordâncias com o professor Silvio Elia. É importante mencionar que a realização
dessas polêmicas implicavam, para Oiticica, um exercício de reconhecimento intelectual da parte de ambos.
193
2º ano: Os mesmos do 1º ano e mais: Said Ali: Gramática secundária da língua
portuguesa.
3º ano: Os mesmos e mais: Otoniel Mota: O meu idioma; Júlio Nogueira: O exame de
português.
1928
Português
[...]
2º ano [idem a 1926, com acréscimo de mais dois livros]
Antenor Nascente: O idioma nacional –2º volume
José Oiticica: Manual de estilo
[...]
(Programas de Ensino do Colégio Pedro II
147
– Português e Literatura apud RAZZINI,
2000, p.328, grifos nossos).
Quando um livro aparecia na lista de livros indicados do Programas de Ensino do
Colégio Pedro II, essa indicação reverberava nas outras escolas secundárias do país,
acabavam, por extensão, adentrando também em outras escolas do país atingindo um público
amplo, pois, tal como mencionado no primeiro capítulo desta pesquisa, os programas de
ensino do Colégio Pedro II eram o padrão a ser seguido por todas as escolas secundárias do
país.
O Manual de análise é uma publicação avaliada por José Oiticica por estar ao alcance
dos não-técnicos do assunto. Essa avaliação se deu em comparação à sua tese de concurso
sobre a classificação dos fonemas, publicada em 1916.
Na “carta de advertência”, da segunda edição de 1923, do Manual de análise (Léxica
e sintática), Oiticica critica o fato de os exercícios de análise portuguesa se limitarem à
análise taxionômica e sintática, uma prática dos manuais de língua portuguesa do período
reprovada por ele. Oiticica defendia que em lugar de ensinar a taxionomia era melhor ensinar
fonologia e a morfologia e argumentava que são inovações metodológicas por substituir a
“classificação velhíssima nas partes dos discursos analisados, quadro insuficiente para a
caracterização das palavras”.
Em todos os seus livros (entre 1919 e 1955), o professor Oiticica procurava explicar o
que ele considerava ser o mais simples da língua portuguesa para depois apresentar o que
considerava mais complexo. O seu objetivo, era “introduzir o gosto da aprendizagem nos
147
Os Programas de Ensino do Colégio Pedro II, de Português e de Literatura foram consultados do estudo de
Márcia de Paula Gregório Razzini (2000, p. 279-368).
194
alunos”. Para tanto, Oiticica (1923, p.5-6) apresenta os objetivos de seu Manual de análise,
que:
O Manual de análise tenta pôr cobro a isso [introduzir o gosto pela morfologia nas
escolas] alargando os estudos descurados, completando a taxionomia, simplificando a
nomenclatura da análise sintática, desenvolvendo, ao contrário, tudo quanto
logicamente se deve desenvolver, explicando as construções irregulares, tão comuns e
embaraçantes.
Sei que este livrinho é falho em muitos passos. Rogo aos professores o favor de me
assinalarem erros, oporem francamente suas objeções, levantarem dúvidas, fornecerem
quaisquer trechos complicados ou frases indeslindáveis.Tudo ocorrerá para
aperfeiçoamento deste livro, onde agito e delato vícios, certos de que o melhor do
livro é o que mais provoca o exame e discussão.
Cumpre declarar que muito devo à Gramática do Dr. Maximino Maciel. Mesmo onde
mais me afasto do eminente professor do Colégio Militar, pode o leitor ver de quanto
me vali, aproveitando os quadros sinóticos e desenvolvendo-os. Outrossim, reitero
aqui meus agradecimentos ao professor Antenor Nascentes, catedrático de espanhol do
Pedro II, cujas observações tanto concorreram para melhorar esta 2ª edição. (grifos
nossos).
Nessa carta de advertência, Oiticica solicita aos professores, os leitores de seu Manual
de análise, para assinalarem os erros e dúvidas, para com isso melhorar o livro. Essa postura
do professor era recorrente. Como pudemos ver, no capítulo anterior quando os leitores do
periódico A Vida, em 31 de dezembro de 1914, lhe apresentaram críticas, ele em circular
respondia às críticas e argumentava que os erros assinalados não eram razão para o
encerramento da revista, ao contrário, era uma oportunidade para melhorar a sua qualidade.
José Oiticica, a julgar pelas prescrições metodológicas encontradas em suas cartas de
advertência que abriam as suas publicações, afirmava que o seu Manual de análise visava
simplificar a nomenclatura da análise sintática, contrapunha-se a tudo quanto logicamente se
deve desenvolver, com o objetivo de explicar “as construções irregulares, tão comuns e
embaraçantes”. Para exemplificar a forma de apresentação do conteúdo, numa passagem do
seu Manual de análise, em sua 4ª edição que Oiticica (1942, p.29) apresenta “taxionomia”:
33- O universo constitui a existência real; mas o homem cria outra existência
imaginária (mitologia), romances, concepções fantásticas, (abstrações). Essas duas
existências representam-se à consciência sob sete aspectos: cousas, fenômenos,
entidades, ocorrências, ações, instituições, concepções1. Exemplos: 1. lápis, livro,
frasco, tinta; 2. chuva, respirar,medo, oxidação; 3. árvore, flor, cristal, lago, estrela,
gato, orelha, lobisomem, caipora, sereia; 4. encontro, desastre, descarrilamento,
vencer, caber, custar, valor sorte; 5. pulo, saltar, ir, subjulgamento, exercício,
conversar, beijo; 6. parlamento, imprensa, exército, tribunal, dinheiro; 7. gênero,
número, virtude, verdade, pureza, brancura, modo, símbolo, algarismo, círculo, pi, etc.
34- Taxionomia é o estudo da função da palavra.
195
1-Importa definir cada um desses termos para evitar confusão. Fenômeno (inclusive
psíquicos) é qualquer atividade da natureza; entidade é todo produto ou resultado de
uma atividade da natureza; concepção é todo aspecto da atividade mental puro ou
representado; ação é toda atividade resultante da vontade ou atribuída a uma vontade;
instituição é toda a criação social; ocorrência é qualquer aspecto não dependente da
atividade natural ou da vontade; cousa é todo o produto da atividade humana. Dou à
palavra aspecto sentido mais lato possível, sinônimo de modo de ser.
(OITICICA,1940, p.29).
Essa passagem do Manual de análise é comentada no manuscrito “O feito e o por
fazer” em que ele destaca ser: “
[...] uma concepção arrojada, de alcance filosófico: os sete aspectos nominais, isto é os
sete modos por que se representam à consciência a existência real, o universo, e a
existência fictícia, a criada por nossa imaginação. Classifiquei-os em causas,
fenômenos, entidades, ocorrências, ações, instituições e concepções, dando-lhes, em
definições precisas, o significado exato.[...] (manuscrito – O feito e o por fazer - ,
pertencente ao acervo pessoal de José Oiticica, provavelmente no início da década de
1940).
O conteúdo do Manual de análise apresenta-se disposto como o que foi
exemplificado. Os itens são numerados, e alguns deles apresentam uma nota explicativa.
Oiticica, na “carta de advertência” da quarta edição do Manual de análise, realizou
algumas modificações e solicita aos professores cotejá-las:
Cerca de vinte anos decorreram da impressão estereotipada, e por isso irrefundível,
deste Manual. Erros numerosos, outras opiniões, novas doutrinas ou não se
corrigiram, ou não vieram figurando nessas duas décadas.
Tempo era, pois, de quebrar as pedras e refazer o livro por já não condizer, em grande
parte, com os ensinos e métodos do autor.
Não me sobra espaço para assinalar aqui o renovado e o novo. Deixo, aos professores
que me honrarem com a leitura ou preferência, o cotejo das edições e o assinalo das
mudanças.
Fora-me gratíssimo apontarem-me eles suas discordâncias.
Meu fito único é aclarar quanto possível a análise portuguesa; tanto vale elucidar
nossa riquíssima sintática, acender lâmpadas nesse tesouro, a fim de os ostentar aos
cegos, no ímprobo labor de ressalvá-lo do desbarato contemporâneo, calculadamente
por francelhos confessos e escritores bota-abaixo.
E apresso-me em consignar aqui meu profundo reconhecimento aos jovens professores
Almir Câmara de Matos Peixoto, Antonio Houaiss, Sílvio Elia, Rocha Lima, por
muitas preciosas sugestões, levando-me a emendas sérias, modificações de quadros e
acuramento na disposição geral.
[...] Rio – 11 de janeiro de 1939. José Oiticica (1939, p. 5-6).
Oiticica critica duas categorias de escritores, “os francelhos confessos”, os “escritores
196
abaixo”. Os primeiros eram aqueles que escreviam no estilo rebuscado, o segundos eram o
representantes e adeptos do modernismo. Na fronteira, das reminiscências da retórica e da
poética de que o ensino de português era legatário, não é possível dizer se Oiticica se
posicionava frente ao “novo”, em razão da dificuldade de mensurar novo e velho. No entanto,
em um dos manuscritos pertencentes ao acervo pessoal de Oiticica, intitulado “O feito e o por
fazer”, ele apresenta um balanço sobre as suas inovações no terreno da língua portuguesa, a
partir de suas obras didáticas. No balanço, provavelmente do início da década de 1940,
esclarece a razão do ensaio:
A professora fluminense, sra. Jacira Faria Peres de Mello, do Instituto de Educação do
Rio de Janeiro, escreveu, para o próximo concurso de português nesse Estado, uma
tese sobre a Evolução da análise sintática portuguesa. Está publicava em folheto
impresso na Gráfica Dias Vasconcelos, com data de 1941.
Dando conta do trabalho, alega a professora o seguinte: “Meu escopo, nesse estudo, é
mostrar a que ponto chegamos na constituição de uma doutrina analítica
adiantadíssima, muito superior ao que se faz na Europa, e, em seguida, explana o
melhor processo pedagógico entre nós exposto e atualmente já iniciado pela moderna
geração de professores brasileiros” Isso na página nove, assinala as três fases por que
passou a análise sintática em português: 1ª de Jerônimo Soares Barbosa a Júlio
Ribeiro; 2ª de Júlio Ribeiro à publicação de meu Manual de análise; 3ª do meu
Manual de análise até hoje. Assim, dois pontos estão bem claros: a ilustre professora
reconhece a modificação radical operada pelo Manual de análise na teoria e prática da
análise sintática e opina ser essa transformação o grande progresso, por se haver aqui
elaborado cousa muito superior ao que se fez até hoje na Europa e alhures.[...]
(manuscrito – O feito e o por fazer - , pertencente ao acervo pessoal de José Oiticica,
provavelmente no início da década de 1940).
A exposição de Oiticica sobre as suas realizações em matéria de gramática da língua
portuguesa principia por informar ao leitor que ele foi o primeiro a “refundir a fonética,
propondo uma classificação dos fonemas segundo o sistema normal brasileiro”
148
. Essa
classificação foi a sua tese de concurso para ingresso no Colégio Pedro II, em 1916.
Nessa tese, Oiticica examinou quatro pontos: a classificação dos fonemas, a teoria dos
encontros vocálicos, a evolução dos ditongos e tritongos, os vícios de pronúncia e o estudo
básico de califasia. Sobre a sua classificação de fonemas, ele argumenta que:
Minha classificação de fonemas difere mito da unanimemente aceita pelos foneticistas
atuais. Meu dissídio decorre dos princípios mesmos por eles assentados, e, quanto
mais lhes estudo os fundamentos, menos razão lhes acho. Publicada a mais de trinta
anos, sobre ela jamais se manifestou um só professor brasileiro, conquanto alguns
persistam em seus compêndios, a repetir os mesmos erros estrangeiros. (manuscrito –
O feito e o por fazer -, pertencente ao acervo pessoal de José Oiticica, provavelmente
no início da década de 1940).
Os comentários de Oiticica sobre as suas teses de concurso deixam ver a cultura das
148
Manuscrito pertencente ao acervo pessoal de José Oiticica.
197
polêmicas em torno das questões gramaticais e mostra que com Antenor Nascentes, também
catedrático do Colégio Pedro II, havia discordâncias. Com Matos Peixoto, o professor Oiticica
publicou Exercícios para corrigir, sendo Peixoto “discípulo” de José Oiticica e o organizador
de algumas das obras que foram relançadas. Foi Matos Peixoto quem realizou a revisão das
obras de Oiticica.
No artigo a preocupação de Oiticica é mostrar a sua primazia sobre a teoria dos
encontros vocálicos de sua tese de concurso, e assim discorre sobre ela:
Em minha tese de 1916, assentei uma teoria dos encontros vocálicos, a meu ver
importante, nunca entrevista por nenhum foneticista e na qual firmo três leis relativas
à emissão de vozes em colisão. Com efeito os lingüistas tratam sempre as tais vozes
sem atender a tonicidade. Para eles parece um só encontro... (manuscrito – O feito e o
por fazer -, pertencente ao acervo pessoal de José Oiticica, provavelmente no início da
década de 1940).
No artigo “O feito e o por fazer”, Oiticica após destacar a originalidade de sua tese
observa não ter recebido qualquer confirmação ou refutação, ou sequer, referência a ela nos
compêndios onde o assunto deveria tratar. A balança de Oiticica sobre a 5ª edição do seu
manual de análise encerra-se com as informações sobre os seus últimos estudos, destacando-
se um:
sobre a palavra tal, [...] uma classificação nova dos pronomes,[...] a criação de duas
classes de advérbios, de freqüência e de intenção, [...] deles tirei numerosas palavras
que passei para a classe das denotativas, por mim instituídas desde a primeira edição
do Manual e de que não há sequer menção em gramáticas nacionais ou estrangeiras,
antigas ou modernas, que eu saiba. Ora esses denotativos são de suma importância.
Indicam acidentes possíveis no discurso e pasma não terem jamais entrado nas
cogitações de tantos pesquisadores e sistematizadores da gramática. Estudo
inteiramente novo, não dou por findo, embora, creio eu, pouco se haja de acrescer ao
já fixado. Basta que essa classe esteja subdividida em dezesseis espécies para logo ter-
se a idéia da flagrante excelência. O número de palavras e expressões até agora nela
incluída é deveras imponente. E dizer que nunca mereceram a mais leve referência dos
nossos gramáticos!!! Tal a força do preconceito! Criadas antigamente as categorias
gramaticais ninguém ousou tocar no tabu. (manuscrito – O feito e o por fazer -,
pertencente ao acervo pessoal de José Oiticica, provavelmente no início da década de
1940).
4.2.2 O Manual de estilo
O manual de estilo, publicado no Rio de Janeiro, em 1926, foi organizado em duas
partes. Em sua primeira parte, intitulada Teoria do estilo José Oiticica define os gêneros de
estilo – conceitos de descrição, narração e dissertação -, discute e nomeia alguns vícios
adquiridos pelos alunos que resultam na “má escrita” e prescreve vários exercícios para a
habilidade de “escrever bem”. Modelos e trechos para exercícios compõem a segunda parte
198
deste livro, em que José Oiticica apresenta uma seleção de textos de variados tipos literários
(cartas, diálogos, fábulas, apólogos, sermões, discursos e contos), para a utilização didática do
professor e do aluno em sala de aula.
Esses conteúdos tratados no Manual de estilo foram organizados por José Oiticica
(1926, p.11) obedecendo a uma seqüência numérica de 01 a 72, em forma de notas. Essas
notas, por vezes, aparecem subdividas em itens alfabéticos, como no exemplo abaixo:
6-A correção consiste em observar a tradição gramatical dos mestres da língua.
A concisão consiste no expressar os aspectos, factos ou opiniões com menor número
de frases ou palavras. Podemos defini-la: o dispêndio mínimo de esfôrço com o
máximo efeito de expressão. Naturalmente, só se considera qualidade se não
prejudicar as demais qualidades; o excesso de concisão redunda em obscuridade e
desarmonia. [...]
8- Para obter correção, importa: Iº evitar os solecismos; 2º evitar cacografias; 3º evitar
deformação; 4º evitar cruzamento; 5º evitar os barbarismos; 6º evitar o arcaísmo inútil
ou chocante; 7º evitar o neologismo mal formado, feio ou pretensioso.
Alguns desses itens numéricos foram realçados com negrito para indicar os diferentes
assuntos tratados no livro e são indicados no índice apresentado nas últimas páginas do livro.
Ao todo o livro tem 219 páginas.
No processo de pesquisa encontramos algumas notas manuscritas que apresentam
conceitos tratados no livro - provavelmente anotações de aula. Eram feitas a lápis por Oiticica
em pequenas tiras de papel numeradas tal como são apresentadas no Manual de estilo. Essa
forma de organização é similar ao Manual de análise, de 1919, e na obra sociológica: A
doutrina anarquista ao alcance de todos de 1922. O recurso dessa organização se repete nas
várias edições desses manuais e, também, em outras publicações dos anos 1940 e 1950. Em
todas essas publicações não há utilização de ilustrações.
Os conceitos, as regras, os textos para exercícios foram organizados em uma seqüência
numérica em que José Oiticica apresenta tanto prescrições para a composição de bons textos,
como repreende alguns vícios de escrita que resultam em textos mal escritos.
Trechos dos textos do Manual de estilo selecionados são comentados por ele,
classificando-os em estilos conciso e prolixo. A nota abaixo exemplifica como Oiticica
desaconselha o professor a usar textos de Herculano e Taunay e indica outros autores como
textos perfeitos ou quase perfeitos:
25- Da concisão. É mau processo querer adquirir imediatamente ou conjuntamente, as
seis qualidades de estilo. Muito mais fácil e pedagógico é evitar, desde o princípio, os
defeitos. Em regra geral, o professor consciencioso, ao iniciar um aluno na arte de
escrever, deve levá-lo de modo que não contraia vícios. É cousa aliás facílima,
crianças de dez e doze anos conseguem redigir com muita concisão e clareza. Os maus
hábitos dificilmente se corrigem, sobretudo nos adultos.
199
O primeiro cuidado, pois, do professor é não consentir na leitura de autores
prolixos como Herculano e Taunay. Cumpre-lhe, ao contrário, ministrar ao discípulo
modelos impecáveis, o que é mais difícil, mormente em português. Em todo caso, há
muitas descrições, narrações ou dissertações perfeitas, ou quase, em Camilo Castello
Branco, Eça de Queiroz, Machado de Assis, Coelho Netto e outros podendo recorrer-
se a autores estrangeiros com Fromentin, Flaubert, Taine, Loti, etc.
O aluno deverá fazer numerosos exercícios visantes exclusivamente a concisão, base
de tudo. Só mais tarde depois de estudada a metrificação, deve cuidar especialmente
da harmonia. Quanto a originalidade virá no fim, convindo até que o professor deixe
surgir espontaneamente, das qualidades nativas dos alunos. A originalidade procurada
é sempre visível e de mau efeito. (OITICICA, 1926, p.36, grifos nossos).
Os textos disponibilizados por José Oiticica na segunda parte do Manual de estilo são
de sua autoria e de Machado de Assis, Aluísio de Azevedo, Xavier Marques, Raul Pompéia,
Monteiro Lobato, Hermes Fontes, Coelho Netto, Afrânio Peixoto. Estes três últimos autores
eram pessoas do convívio de José Oiticica. O discurso retórico nomeado como estilo floreado
a Herculano não é somente criticado em seus livros didáticos, mas também no debate
educacional nos jornais.
Em seus artigos jornalísticos José Oiticica chamava a atenção para o problema do
despreparo dos professores em sala de aula. Suas publicações didáticas refletem a sua
preocupação em contribuir para o trabalho pedagógico e são indícios do terreno de suas lutas
em torno do currículo no que diz respeito aos conteúdos a serem ensinados e, também, ao
método de ensino a ser adotado.
Na carta de advertência do Manual de estilo, Oiticica anuncia que o seu objetivo é que
o livro sirva como um guia para o ensino e a prática da arte de escrever, sem a proposta de
fabricar escritores, mas com a preocupação em metodizar regras práticas, fundamentais para
quem quer escrever satisfatoriamente. A problemática inicial anunciada para justificar a
organização do livro é assim apresentada:
Podemos afirmar que no Brasil, a generalidade dos homens públicos, jornalistas,
advogados, engenheiros, funcionários, historiadores, geógrafos, escrevem mal.
Relatórios, conferências, livros didáticos ou de polêmicas, entre nós, surpreendem
pelo desmanchado, pela incorreção, pelo excesso, prolixidez ou amontoamento. Qual
o motivo desse desalinho no estilo? Minha observação no magistério, sobretudo
nas bancas de preparatórios, me confirma numa causa única: desorientação geral
dos professores primários e secundários. Sem terem aprendido nunca a técnica
de escrever, cada qual corrige a esmo as composições de seus alunos, emendando
e aconselhando conforme o seu gosto pessoal, muitas vezes mal formado. [...].
(OITICICA, 1926, p.7, grifos nossos).
As críticas de Oiticica sobre o ensino que nos anos de 1920 pareciam ser o habitual, as
suas sugestões para a substituição do “estilo floreado” pela “simplicidade, concisão e
elegância” levam a supor que suas propostas inovavam o ensino de língua portuguesa. Em sua
200
proposta metodológica, a má formação dos professores é uma questão debatida por ele, um
problema que pretende ser amenizado pela inserção e uso de seu manual nas escolas. O estilo
floreado ensinado pelos professores, bem como as suas correções são procedimentos
criticados por José Oiticica. Um exemplo que ele denomina como “um caso eloqüente”,
esclarece a sua perspectiva com o Manual de estilo:
Tendo assumido a regência de uma turma na Escola Normal, determinei, para avaliar
o adiantamento das alunas, uma composição com elementos descritivos de paisagem e
tipo. Em todos os trabalhos, observei um sem número de velhas chapas, estilo
alambicado e meloso dos falsos românticos, perífrases contínuas e o vago e
inexpressivo jeito arcádico, diluído em lirismo à Herculano. [escrevia a aluna];
Eram os mimosos cantores da floresta saltitando de galho em galho; eram dentes
comparados a um colar de finas perólas, ou o orvalho semelhante a lágrimas da
noite. Tomei uma das composições e fiz-lhe a crítica em aula mostrando os vícios de
tal estilo. A autora, vaidosa de ter sido no ano anterior, uma das primeiras, declarou-
me escrever assim, por assim lhe haver aconselhado o professor. Disse-me
textualmente: - Meu professor me dizia que era necessário florear o estilo. Ao que
retruquei ser um mau conselho e consistir a virtude exatamente no oposto, em fugir,
por todos os meios, do estilo floreado. Essa mesma aluna, meses depois fazia
composições ótimas, algumas admiráveis de precisão, cor e originalidade. Era um
notável comportamento artístico desaproveitado e transviado pelo mau gosto do
professor. Nas bancas examinadoras tenho lidado com sábios colegas, os quais louvam
composições palavrosas e nenhum valor dão a algumas excelentes pela simplicidade,
concisão e elegância. (OITICICA, 1926, p.7, grifos nossos).
A proposta de simplificar, dispor o mais simples para depois apresentar aos alunos o
mais complexo é uma orientação que aparece no Manual de estilo, assim como em outros
livros didáticos de José Oiticica. Essa forma de organização de conteúdos é anunciada quando
Oiticica (1926, p.8) informa a adoção de passos de tratadistas para a composição dos
conteúdos de seu Manual de estilo, que consistiam em uma “condensação de regras práticas,
muito simples, o essencial do que ensinam os mestres da matéria [...] um guia seguro nas
escolas”.
As sugestões da substituição do “estilo floreado”, pela “simplicidade, concisão e
elegância” se contrapunha com as práticas de alguns professores que “louvam composições
insulsas e palavrosas”. Oiticica demonstra pelos seus comentários que sua experiência com as
bancas examinadoras dos preparatórios lhe revelavam que os alunos escreviam mal porque
aprendiam mal. Reporta-se aos professores que ensinam o “estilo floreado” como “os sábios
colegas”.
O Manual de estilo era destinado ao uso de professores em sala de aula. Sugeria
atividades, definia formas de correção e de avaliação. Os professores são estimulados a
buscar leituras. Ainda nessa carta, Oiticica (1926, p.8) reporta-se aos professores novos e aos
colegas “tarimbados” no ofício de escrever:
201
Aos professores novos advirto não se limitarem ao indispensável deste Manual, mas
versem as obras dos especialistas até se familiarizarem com todas as variedades de
estilo e conseguirem discriminar o bom do mau. Demais, importa, ao corrigirem uma
frase ou período, que expliquem ao aluno o motivo, o porquê da correcção, dando-lhe
a oportunidade de aceitar ou não a emenda. Só assim lograrão formar-lhe o gosto, criar
nele o sentimento de responsabilidade e o esforço de pesquisa, caminho de toda arte.
Aos meus colegas, tarimbados no ofício, rogo o favor de me apontarem falhas,
omissões, descuidos. De tudo me valerei para melhorar este Manual e torna-lo, se
possível, guia seguro nas escolas. (OITICICA, 1926, p.11, grifos nossos).
Tanto o Manual de estilo, como a sua publicação anterior, o Manual de análise (léxica
e sintática), de 1919, foram adotados no Colégio Pedro II e conhecidos de outros colégios.
Assim, as suas orientações para que os professores explicassem aos alunos quais foram os
seus erros de escrita deveriam propiciar a oportunidade para que seus alunos aceitassem ou
não as sugestões dadas pelo professor. Essa parece ser uma atitude de valorização de todas as
áreas do conhecimento, ou seja, todos deveriam dominar todas as competências compatível
com as idéias anarquistas do livre pensamento, e levam a indagar sobre os possíveis ecos
dessa postura metodológica para o ensino da época, uma vez que os seus livros parecem ter
sido conhecidos de muitos professores e alunos.
A carta de advertência que abre o Manual de estilo é datada de 16 de novembro, de
1926. Foi escrita dois meses após a sua libertação da Ilha das Flores, sendo possível investigar
sobre a existência ou não de relações entre as suas preocupações de militante e de professor
de Português.
As orientações de Oiticica observadas pelo exame da “carta de advertência” do
Manual de estilo, tanto aquelas que dizem respeito à formação que os professores devem
buscar em suas leituras, como aquelas que orientam suas condutas no processo de ensino e de
avaliação dos textos de seus alunos, são aspectos que estão detalhados na pesquisa
empreendida por nós na reconstituição da trajetória intelectual e militante de José Oiticica.
A advertência, para que os professores novos procurassem ler os especialistas da
língua portuguesa, para adquirir conhecimentos e se tornarem capazes de escolher entre o
bom e o mau estilo de escrita, é uma atitude pedagógica que pode ser aqui compreendida
como um de seus objetivos educacionais para a formação de professores. Apesar de não
anunciada, revela-se como uma estratégia metodológica que se mostra na proposição e não na
imposição de procedimentos que poderiam ser adotados por aqueles professores.
O diálogo entre José Oiticica e os professores em seu manual visando orientar os
professores para explicar aos seus alunos sobre os erros detectados em suas composições
literárias, salientando a necessidade de discutir suas possíveis sugestões de escrita, sinaliza a
forma como Oiticica pensa a avaliação: um diálogo aberto com os alunos. Argumenta ser essa
202
a atitude pedagógica para desenvolver no aluno “[...] o gosto, criar nele o sentimento de
responsabilidade e o esforço de pesquisa, caminho de toda arte”. Este parece ser outro
objetivo educacional defendido por ele.
Oiticica (1926, p.8) defende a idéia de que o ensino de qualquer conhecimento deve
ocorrer de forma gradativa. Esse argumento, presente nas orientações disponibilizadas em seu
Manual de estilo, ou seja, que o mais simples deve ser explicado antes do mais complexo, tem
o objetivo de formar o gosto do aluno, “criar nele o sentimento de responsabilidade e o
esforço de pesquisa, caminho de toda arte”, tal como foi comentado no Manual de estilo.
A produção didática e os artigos jornalísticos permitem conhecer aspectos de sua
prática como intelectual, escritor, professor de Português e Prosódia, tanto no que diz respeito
à educação escolar do Colégio Pedro II, como também às práticas realizadas nos centros de
estudos e nas atividades da propaganda social - a educação que está fora dos muros da
instituição escolar.
Em razão de sua militância anarquista os encarceramentos periódicos interromperam
as suas aulas, mas não a elaboração de seus livros, uma vez que alguns deles foram escritos na
prisão. É o caso do Manual de análise (léxica e sintática), que começou a ser escrito na prisão
em 1919, e do livro A doutrina anarquista ao alcance de todos, em1924.
No cotidiano de trabalho de José Oiticica, o seu tempo era dividido entre as atividades
de ministrar aulas, a escrita de seus livros e as ações da propaganda social anarquista.
Algumas das lições utilizadas em suas aulas no Colégio Pedro II, publicadas em seus livros e
nos jornais ácratas, muito provavelmente eram também utilizadas em suas conferências sobre
o estudo da língua portuguesa nos centros de estudos anarquistas.
Essas evidências atestam que os saberes produzidos e organizados por Oiticica
circulavam entre um público leitor de dentro e de fora da instituição escolar. Diferentes
leitores para uma mesma destinação didática: o ensino da língua portuguesa.
O trabalho docente de José Oiticica na Escola Normal, e no Colégio Pedro II, bem
como suas experiências de participação em bancas examinadoras, fazia com que cada vez
mais se inteirasse das dificuldades dos professores no trabalho da docência. Além da sua
erudição para pensar o ensino de gramática, também contava em suas experiências com as
atividades da propaganda social.
O trabalho como examinador nas bancas lhe possibilitava conhecer os erros mais
freqüentes e interagir com pessoas de diferentes lugares. Porém, as atividades voltadas à
propaganda social libertária, tanto as conferências, como a escrita de artigos para a imprensa
libertária, obrigavam-no a pôr em prática os seus conhecimentos. A sua perspectiva de
203
educação libertária incluía a opção para na maior parte das vezes ficar junto aos trabalhadores
e aos seus filhos.
Tornar a mensagem clara, simples metodizá-la para que todos a compreendessem era o
principal objetivo pretendido por esse intelectual em suas conferências, artigos e falas. Afinal,
na sua perspectiva educacional, como pudemos acompanhar nos capítulos anteriores, esteve
empenhando na formação de consciências livres e, para que isso acontecesse, todos deveriam
conhecer a língua portuguesa. Tal evidência é de fundamental importância para compreender
o José Oiticica autor. Além disso, possibilita conhecer aspectos da conformação do estudo da
língua portuguesa.
A disciplina Português até os anos de 1940, segundo Magda Soares (1996, p. 8),
manteve-se na tradição da gramática da língua portuguesa, na análise de autores consagrados
persistindo aspectos da Retórica e Poética, com nova roupagem:
[...] à medida que a oratória foi perdendo seu lugar de destaque tanto no contexto
eclesiástico quanto no contexto social, a retórica e a poética foram assumindo o caráter
de estudos estilísticos, tal como hoje os conhecemos, e foram-se afastando dos
preceitos sobre o falar bem, que já não era exigência social, para substituí-los por
preceitos sobre o escrever bem, já então como exigência social. Assim, embora a
disciplina curricular se denominasse Português, persistiram embutidas nela as
disciplinas anteriores, até mesmo com individualidade e autonomia, o que se
comprova pela convivência na escola, nas cinco primeiras décadas deste século, de
dois diferentes e independentes manuais didáticos: as gramáticas e as coletâneas de
textos.
Até os anos de 1950, de acordo com Soares (1996, p. 9), persistiram as gramáticas de
conteúdo autônomo e as coletâneas de textos limitavam-se a eles. Havia a apresentação de
trechos de autores consagrados, sem comentários ou exercícios ou questionários. A julgar
pelas características dessas gramáticas e dessas coletâneas, essa pesquisadora supõe que a
concepção que o professor daquele período nutria sobre o que deveriam ser as aulas de
Português implicava o uso de um manual com o texto, cabendo a ele comentá-lo, discuti-lo,
analisá-lo e propor questões aos alunos. Como as faculdades de filosofia destinadas à
formação do professor só foram criadas nos anos de 1930, em geral os professores eram
estudiosos da língua e de sua literatura, embora se dedicassem ao ensino da gramática e da
literatura.
Em seu outro espaço de atuação pedagógica em suas ações da propaganda social
cuidava em preparar professores para os cursos do método racionalista, tal como o
mencionado no capítulo II. Nesse espaço, as suas ações se posicionavam em várias frentes da
educação: pelo jornal, pelo teatro, pelo projeto da universidade livre com as freqüentes
204
conferências sociais. Em lugar dos livros didáticos, o seu material de trabalho eram os artigos,
ensaios, as conferências sociais, acompanhadas das atividades com o teatro que reuniam as
finalidades do entretenimento e de formação.
Toda essa problemática é importante para compreender a proposta de trabalho
pedagógico de Oiticica em seus manuais, ainda que não seja nossa proposta destrinchá-los
com a descrição exaustiva dos conteúdos de seus livros. Interessa-nos, no entanto, conhecer a
sua proposta com os livros, com os professores, e, principalmente, interessa-nos apreender
quais procedimentos libertários pesaram para a sistematização de suas idéias inovadoras,
manifestas em seus discursos para, com isso, apresentar aspecto fundamentais do intelectual
preocupado em melhorar a formação do professor, para o ensino da língua portuguesa. Esse
lado de seu perfil compõe a face do militante para a construção de uma sociedade mais justa,
fraterna, solidária, privilegiando o livre pensamento.
4. 3 Polêmicas em torno da língua portuguesa
O universo letrado do Rio de Janeiro, nos anos 20 do século passado, ainda vivia sob o
acalorado debate em torno das questões filológicas, etimológicas e de método, que se
manifestavam no meio intelectual desde a virada do Império para a República, e diferentes
projetos objetivaram a pôr “ordem” no caos gramatical que vigorava no ensino no país. Nesse
debate, emergiam posicionamentos diferenciados: alguns enalteciam a língua; outros, também
apaixonados, cuidavam de estudá-la, defendendo a sua autonomia frente a Portugal e
reconheciam a necessidade de colocar ordem no caos ortográfico por meio da normalização
da gramática. Oiticica estava no grupo favorável a simplificações da sintaxe.
O costume das polêmicas e os debates em torno do chamado “caos gramatical” são
aspectos importantes para compreender as diversas polêmicas nas quais Oiticica envolveu-se
e foi envolvido. Aparece de forma recorrente em seus discursos “me honrou com uma
polêmica”, ou o costume das cartas-resposta. No caso do Padre Leonel Franca, desdobrou-se
até em uma coluna jornalística denominada “Resposta a um jesuíta”. Algumas de suas
polêmicas foram enfeixadas e publicadas como opúsculos.
José Oiticica era conhecido de muitos professores por causa de sua participação em
bancas dos exames preparatórios na década de 1920. Além disso, o seu Manual de análise
circulava pelas escolas do país desde 1919, quando foi lançado. Provavelmente conheceu o
professor Pedro de Mello, na ocasião em que foi avaliar uma turma na Escola Normal de
Piracicaba. Além do uso do pronome “se” indefinido, Oiticica discordava das repetições do
“F”, “L” e “M”.
205
Pedro de Mello defendia “a propaganda da nova doutrina grammatical”, com a qual
Oiticica não concordava e declarava, em seu Manual de análise (1919, p. 8), ser contra o
hábito de dobrar as letras nas palavras e reclamava sobre o “árduo trabalho de corrigir
excessos contemporâneos promovidos por francesismos e por escritores destruidores da
língua”.
O opúsculo de autoria de Pedro Mello, intitulado O pronome “se” indefinido – réplica
ao Dr. José Oiticica, publicado em 1926, serve para exemplificar o debate e a troca de farpas
entre os dois professores. O objetivo de narrar a polêmica é discorrer sobre a forma da crítica,
as suas observações, sem adentrar no conteúdo da discussão sobre o emprego do pronome
“se”.
O professor Pedro Mello (1926), lente de Francês da Escola Normal de Piracicaba,
iniciou o debate sobre o uso do pronome “Se” indefinido. Já no início do texto de Pedro Mello
(1926, p.4) explica a razão de seu opúsculo, uma explicação que mistura a pessoa do autor
com o tema do debate:
O pronome “se” indefinido
Tendo publicado um estudo ou monographia com o título supra, enviei um exemplar
do mesmo, com atenciosa dedicatória, ao sr. Dr. Oiticica. Em editorial do Correio da
Manhã, de 2 do corrente, honrou-me com uma resposta, na qual se revela visivelmente
contrariado e quase irritado, como si eu tivesse commetido o acto reprovável de meter
a mão em seara alheia, fora da minha competência e attribuição.
Entre parenthesis: só tive conhecimento da referida resposta tardiamente e graças a
bondade de um amigo, pois não mereci a gentileza de uma retribuição. Mas não havia
motivo para nervosismos: e lastimo que, com tão pura intenção, fosse eu causar
tamanho dissabor; não podia, porém imaginar, que com simples offerta de meu
enfezado livrinho, fosse produzir tão desastrado effeito. [...] (MELLO, 1926, p.4)
Mello (1926, p.4), após reclamar sobre o fato de não ter recebido a resposta de
Oiticica, compartilha com o leitor de seu opúsculo as suas impressões sobre o tratamento que
lhe fora dispensado por Oiticica em sua resposta a ele, acerca de seu estudo monográfico que
discutiu sobre o pronome “se” indefinido.
O autor da monografia acusa o professor Oiticica de tratar a sua questão filológica
como “velha, bolorenta já relegada a tertúlias provincianas” e que só se prestava a comentar o
estudo “porque o forçava a isso a triste profissão de lente catedrático de português neste
esparramado paizinho de questiúnculas” (p.4).
Em razão dessa resposta, para ele, ofensiva, o autor do opúsculo reagiu dizendo que
não existiam questões antigas para a filologia, e que a questão não era só magna para ele, pois
era “considerada a mais intrincada questão da língua portuguesa por Othoniel Motta, e que
206
“della tem se ocupado os melhores grammaticographos e, ultimamente, em seus livros
didacticos, o dr. Sampaio Dória, Said Ahi para não citar outros” (MELLO, 1926, p.4),
lançando o seguinte desabafo:
Agradeço ao sr.dr. Oiticica a amabilidade dos qualificativos – erudito mestre e douto
professor – com que se dignou de honrar-me para logo em seguida, me mimosear com
attestado de “insciencia”. Recebo os presentes um em cada mão e Deus lhe pague.
Cumpre-me todavia desfazer o equívoco; não sou doutor, como S.S. suppõe, não
passando de um simples professor provinciano e muito obscuro. (MELLO, 1926, p.4)
Após as críticas ao tratamento que o professor Oiticica teria dispensado a ele,
apresenta-lhe o seu estudo, que procura demonstrar as situações de uso em que “o pronome
se” exerce a função de sujeito e que, segundo a sua tese, em português existem dois
pronomes “se”, um reflexivo e outro indefinido. Para chegar a essa conclusão, Pedro Mello
refuta as observações do professor Oiticica sobre a partícula “se” apassivante e apresenta
autores modernos para dar sustentação à sua argumentação e contrapor-se a Oiticica, que
teria dito ser o seu estudo amparado por citações de segunda mão dos autores clássicos com a
seguinte argumentação:
Oiticica: são suspeitos; os modernos não fazem fé (...) e nenhum escriptor que se preze
usa tal synthaxe.[...]
Pedro Mello: Este final é estupelaciente !...Nenhum escriptor que se preze?! O
exemplo citado é de Eça de Queiroz!...e outros da lista ahi vão seus nomes: Castilho,
Afrânio Peixoto, Latino Coelho, Camillo, Theophilo Braga, Ramalho Ortigão,
Gonçalves Dias, João Ribeiro, Jackson de Figueiredo, Pacheco da Silva Júnior e
Machado de Assis! Não fazem fé?...Não são escriptores que se prezem?...Ah! então
queira perdoar-me o sr.dr.Oiticica, não encontrei outros de maior valia...Mas porque
não fazem fé? Si a linguagem antiga se documenta com textos clássicos, a moderna
não se pode documentar senão com citações de autores modernos, dos que bem
versam a língua. Minhas citações, diz o exigente crítico, sempre de segunda mão para
os clássicos, estão inconferíveis, porque não combinam com as edições e as páginas
apontadas, quando se apontam, sendo as mais dellas suspeitíssimas.
As citações de segunda mão são de Ruy Barbosa, de Américo Moura (Lente de
Português na Escola Normal da Praça da República em São Paulo), de Teixeira
Coelho, autor de uma monographia sobre o pronome “se”, de Said Ali e alguns
outros; porém com raríssimas excepções levam as indicações precisas das fontes. [...]
(MELLO, 1926, p.18-19).
Pedro Mello, ao defender-se da crítica de Oiticica, deixa ver quais foram os aspectos
por ele observados, ou melhor, os aspectos que valorizava nos trabalhos acadêmicos. Algumas
possibilidades podem ser levantadas sobre o ocorrido, provavelmente como Oiticica tinha o
hábito de fazer a citação de primeira mão e apresentava notas em seus escritos, esperava
encontrar esse mesmo procedimento nos trabalhos que examinava. Avaliava os trabalhos e
conferia as fontes, ou, encontrando um erro no início do trabalho, deixava de ler o resto. Esse
207
era o seu procedimento crítico.
Pedro Mello finaliza o seu opúsculo com o seguinte ataque à seriedade do professor
Oiticica:
Termina o Sr. Dr. Oiticica o seu artigo com a seguinte pergunta: - “Não seria melhor
dedicar o sr. Professor Pedro de Mello sua operosidade a pesquisas menos ímprobas?
Retribuindo a gentileza eu poderia por minha vez perguntar: não seria melhor que, em
vez de escrever artigos de critica philologica para a imprensa, se dedicasse o sr. Dr.
Oiticica a alguns exercícios mais hygienicos, taes como gymnastica, a natação, o
tennis ou outro qualquer?....Mas não o faço, mesmo porque isto de actividade pessoal
cada um faz da sua aquillo que bem entende, independente de censura ou suggestão de
quem quer que seja.
Finalizando esta, agradeço, a s.s.o ensejo que me proporcionou de ventilar novamente
em público as idéias que defendo, intensificando por esta forma a propaganda da nova
doutrina grammatical.
Piracicaba, 31 de outubro de 1926. Pedro de Mello Lente de francez da Escola Normal
de Piracicaba, E, de S. Paulo. (MELLO, 1926, p.25, grifos nossos).
O opúsculo circulou pelo Rio de Janeiro com distribuição gratuita e com a seguinte
orientação na capa: (Grátis) “Ver a última página da capa”. Na última página da capa o autor
divulgava o seu livro assim:
Do mesmo autor
O PRONOME “SE” INDEFINIDO
E
NOTAS PHILOLOGICAS
Um volume de 156 páginas, encontra-se a venda na LIVRARIA ALVES, no Rio de
Janeiro, e em suas filiaes, em BELO HORIZONTE e em São Paulo; na Casa
GARRAUX e em LIVRARIA TEIXEIRA, em São Paulo, na Casa GENOUD, em
Campinas; e em todas as papelarias de Piracicaba. Preço 6$000.
(MELLO, 1926, capa final)
O opúsculo de Pedro Mello, de distribuição gratuita, serviu a ele como propaganda de
seus dois livros a venda em três estados brasileiros. A posição de autor e de lente de Francês
da Escola Normal de Piracicaba não combinava com a sua performance de “um simples
professor provinciano e muito obscuro”. A “humildade” do criticado, no avesso do discurso
suscitava o “pedantismo” do crítico, e a polêmica foi usada em favor da “propaganda de sua
nova doutrina gramatical” (MELLO, 1926, p.26).
José Oiticica como seu crítico (da sua tese) e criticado (no seu opúsculo) muito
conhecido no Rio de Janeiro, pois além de catedrático do Colégio Pedro II, autor de livros
didáticos era uma figura conhecida por se envolver em polêmicas com Rui Barbosa, Aurelino
Leal, padre Leonel Franca, além do ser um anarquista.
208
A polêmica é um exemplo de um tipo de debate no qual Oiticica esteve envolvido, e
também exemplifica, uma forma de comportamento dos intelectuais daquele período.
O professor Oiticica, em 1955, publicou um opúsculo intitulado Uma gramática
(crítica ao professor Sílvio Elia), enfeixando os seus artigos em resposta ao Compêndio de
língua e literatura desse autor. Antes de apresentar a carta de abertura desse opúsculo é
importante destacar um comportamento de Oiticica que ajuda a compreender o seu
procedimento nessas polêmicas, como, por exemplo, a razão delas.
Na imprensa libertária havia a estratégia de ataques constantes à Igreja, ao clero. Tais
ataques s expressavam de maneiras distintas. Por exemplo, em A Lanterna, da segunda década
do século XX, era comum insultar os padres, os “clericanalhas”, os “come-dorme”, os
“padrecos”. Oiticica não fazia uso desse vocabulário e procedia à sua crítica também de uma
outra forma: estudava as teses da Igreja para combatê-las por dentro, em seu próprio território,
tal como procedeu na polêmica com o padre Leonel Franca.
O rigor de sua crítica se mostrava pela forma como Oiticica recolhia os argumentos
em leituras e pesquisas, uma de suas características marcantes. Na polêmica com o padre
Leonel Franca, que foi tratada no capítulo III, entre os objetivos de Oiticica estava o interesse
pela luta anticlerical. Era importante mostrar que entre os católicos havia discordâncias,
rebeldias, que a Igreja não era assim tão “praça forte” como se colocava aos fiéis.
A crítica aos gramáticos tinha em sua dinâmica alguns protocolos próprios, melhor
explicados com exemplos retirados do discurso de Oiticica em seu manuscrito “O que foi
feito e o por fazer”, que servem como evidência que ajudam nessa reflexão:
[...]
O ilustre professor Antenor Nascentes, criticado por mim, deu-me a honra de
combater meus modos de ver numa resposta inserta em seus Estudos Filológicos.
Minha carta crítica a fonética do seu Idioma Nacional foi publicada nesta revista
[Revista Filológica] em vários números com anotações esclarecedoras de Matos
Peixoto. Não pude até agora, por absoluta falta de tempo, analisar a defesa de
Nascentes. Alias pouco adiantaria; o essencial está dito e ali terão os interessados o
bastante para definirem-se. (manuscrito – O feito e o por fazer -, pertencente ao acervo
pessoal de José Oiticica, provavelmente no início da década de 1940).
Antenor Nascentes era com quem tinha uma série de discordâncias em relação ao
ensino de gramática, mas também com quem trabalhou na década de 1940, recebendo
sugestões para a melhoria de seus livros.
Na carta ao leitor de Uma gramática (crítica ao professor Sílvio Elia), Oiticica
apresenta o opúsculo como uma resposta às discordâncias de Sílvio Elia em relação aos
estudos de fonologia, um de seus focos de interesse. Diz Oiticica (1955, p.1):
209
Este opúsculo enfeixa doze artigos meus, nove deles crítica ao Compêndio de língua e
de literatura do professor Silvio Elia, na parte gramatical, e da professora J. Budin, na
de literatura. A crítica limitou-se a pontos que o prof. Elia descordou de opiniões
minhas citando-me.
Foram os sete primeiros artigos publicados no Diário de Notícias, do Rio de Janeiro
[entre26-10-1952 a 29-03-1953] [...] Antes de haver eu terminado a minha crítica,
publicou o prof. Elia, no Diário de Notícias, quatro artigos em resposta aos meus [...]
Escrevi então mais um, replicando aos quatro desse professor em O jornal de 15-
03.1953. Havendo dificuldade na inserção de artigos em série e de polêmica nos
grandes diários, resolvi sustar a série programada sobre o Compêndio.
Ora, o professor Silvio Elia prometera responder-me a fundo, em livro seu, prestes a
estampar-se e eu avisei de que, dando-se isso, outro livro, o meu, se seguiria ao dele.
O livro apareceu este ano, princípios de 1955. Escrevi imediatamente um artigo (o
penúltimo desse opúsculo), para assinalar e rebater as asserções do prof. Elia e avisar
ao leitor da próxima edição do meu. O artigo, recusado por quatro grandes jornais, foi
finalmente publicado, [em 12-04-1955] , dois meses depois de escrito pelo Diário
Carioca.
Neste opúsculo, figuram todos os meus artigos. Não inseri os de Elia por estarem num
apêndice ao seu livro Orientações da lingüística moderna (1955). O leitor curioso
acompanhará a polêmica nos dois livros.
Estas são referências a serem consideradas para se compreender como um polêmico
professor anarquista, envolvido em tantas prisões, teve os seus livros publicados, licenciados e
indicados, tornando-se intelectual bastante reconhecido no terreno da Filologia, envolvido em
debates nos anos 20 do século passado.
Nos livros de José Oiticica, assim como nas obras didáticas do período, a figura do
autor era realçada, com o seu lugar de pertencimento, e com a listagem de suas outras
produções. Pesaram para a aceitação de suas obras, além da legitimidade dos livros, também
as relações que abriam portas, como, por exemplo, a amizade com Coelho Netto, também
autor de obras de literatura e gramática. No entanto, encontrou resistências para conseguir
publicar os seus livros didáticos, em decorrência das suas adesões ao anarquismo e ao
anticlericalismo, por causa das repercussões de suas prisões. Esses “boicotes” são
mencionados em alguns de seus textos necrológicos, e se deram principalmente quando o
padre Leonel Franca, em 1931, passou a compor o Conselho Nacional de Educação. Como
tratado no capítulo anterior, houve polêmicas acirradas entre esses dois intelectuais.
Depois de publicada a sua tese de concurso, Estudos de fonologia, 1ª série – tese de
concurso ao Colégio Pedro II, José Oiticica lançou, em 1919, o Manual de análise, e o
Manual de Estilo, em 1926. Esses dois livros se tornaram conhecidos em outras escolas do
país, pois logo após ser nomeado catedrático de Português, deixando o cargo de professor
210
substituto em 1925, esses dois livros de Oiticica eram indicados nos Programas de Ensino do
Colégio Pedro II, apresentados a seguir.
4.4 O perfil pedagógico de Oiticica na memória de seus ex-alunos
Fernando Segismundo
149
foi aluno e colega de Oiticica no Colégio Pedro II. Apresenta
suas memórias em três temporalidades distintas (o tempo do aluno, o do professor e do
egresso do Colégio Pedro II). As cenas vividas são narradas com a finalidade de celebrar o
colégio Pedro II como lugar de memória. Tal como o Colégio, alguns professores são
homenageados. As seqüências das cenas aparecem em narrativas que alternam intensidades
sincronizadas com a alternância destas três temporalidades: o menino que lembra as aulas do
Colégio, o professor que encontra o colega que foi seu mestre e a nostalgia do egresso.
E, dessa forma, são tempos distintos que se entrecruzam, mostrando que a lembrança
do menino estudante foi também a do homem professor e tem o sentimento daquele que hoje
está fora do Colégio. O trecho abaixo deixa ver tal perspectiva (1987, p. 1-2):
Fui seu aluno [do Colégio Pedro II] e nele exerci o magistério perto de quatro décadas.
[...] Para mim o Colégio tem sido uma obsessão, se assim posso me exprimir. Eu não
consigo ver-me e compreender-me sem as raízes que a ele me prendem. [...] Sobram-
me razões para me considerar uma parcela da casa, e os que freqüentaram os bancos
escolares hão de entender suficientemente tanto apego e ufania.
O livro de Segismundo (1987) é uma coletânea de seus discursos proferidos por
ocasião de cerimônias realizadas no Colégio Pedro II, como o discurso de paraninfo, que
proferiu por ocasião da formatura de uma das turmas do Colégio, outro escrito, a propósito de
uma aula inaugural e outros elaborados ao longo das décadas de 1970 e 1980 para
homenagear o Colégio, demonstrando os sentimentos por ele declarados: “apego e ufania”.
Aos seus discursos, somam-se pequenas biografias de professores da instituição: José
Oiticica, Fernando Antonio Raja Gabaglia, Joaquim Manuel de Macedo, Corinto da Fonseca,
Isaac Volchan, Carlos Miguel Delgado de Carvalho e Antenor Nascentes.
Nesses livros, as cenas e informações sobre Oiticica organizam-se em dois textos
datados de 1977 e de 1982. O primeiro intitulado Lembrança do professor Oiticica e segundo,
Oiticica: messias e educador. Ambos apresentam informações importantes para compor com
outras em um quadro que permite conhecer a relação intersubjetiva que Oiticica construía
149
Segismundo (1987, p.2) ocupou a cadeira de Ciências Sociais no Colégio Pedro II, após ter sido aprovado
em concurso em 1939. Em suas atividades pedagógicas destaca as orientações de moral e civismo aos alunos.
Conta que sempre teve uma boa relação com Oiticica, apesar de ter sido alertado sobre as conseqüências dessa
proximidade. O seu texto não foi bem aceito por Edgar Rodrigues (1993), que o acusa de não ser digno de falar
sobre José Oiticica
211
com os alunos em suas atividades no Colégio Pedro II.
Por exemplo, Segismundo (1987, p.73) conta que:
Oiticica era professor severo, não cortejava o aluno e dele exigia inteira aplicação. Vez
por outra pilheriava com um de nós, passava rasteiras – que se julgava emérito
capoeira – e discorria sobre os direitos dos cidadãos, enveredando pelas aulas de
Monsenhor Mac Dowel. [...] Dele se desprendia vigor e altivez. Parecia um leão preste
a estraçalhar a sua presa. Misto de cordura e violência, esse Oiticica tão afamado e
temido [...].
Na leitura das memórias de Fernando Segismundo, percebe-se a tentativa de esconder
suas preferências pelos professores que se propôs a biografar. Seus julgamentos frente a essa
ou aquela atitude do professor Oiticica, no entanto, não deixam de se manifestar, mesmo não
abdicando de sua escolha de homenagear o mestre. Ao mesmo tempo em que lamenta ter sido
seu aluno intermitente em decorrência de trocas de turnos por problemas domésticos, não
deixa de reporta-se às ausências do professor por ocasião de suas prisões. Entretanto, o fato é
assim registrado (1987 p.73):
[...] eram freqüentes suas detenções por motivos políticos, os quais, nós os alunos, mal
sabíamos intuir. Ficávamos semanas sem a sua presença marcante. Aguardando-lhe o
retorno, ostentava um ar de orgulho pelo mestre tão importante que a polícia estava
sempre a encarcerar.
Em suas memórias, as aulas do Monsenhor Mac Dowell, responsável pela instrução
moral e cívica, eram invadidas pelo professor Oiticica, quando este falava sobre os direitos do
cidadão e sobre o mundo futuro. Em sua narrativa é perceptível o tom de reprovação do
professor da referida disciplina. Provavelmente, as falas de Oiticica fossem reprovadas por
Segismundo. O trecho abaixo deixa ver que Segismundo (1987, p.75) não se identificava com
as idéias do professor:
Recordo-me que enquanto aluno, encontrei-me uma das poucas vezes entre
condiscípulos, no passeio público, a ouvir dos lábios de Oiticica as mais circunspetas
preleções sobre o mundo do futuro – livre de governantes, fraternalmente unidos os
indivíduos, e o mel a escorrer para as bocas desafogadas [...] Sua prédica não
encontrou eco no meu espírito. Eu o ouvia com respeito, mas sem o menor gosto.
Mario Lago (1981, p.212), em seu livro de memórias Na rolança do tempo, conta um
episódio do jogo da capoeira com o inspetor Manoel que permite conhecer um pouco sobre as
relações de sociabilidade entre o professor Oiticica e os alunos e funcionários do Colégio
Pedro II:
Oiticica, já merecedor de certa desconfiança por sua posição confessadamente
anarquista, escandalizava os outros professores com as intimidades permitidas ao
Manuel, servente que vendia sanduíches na hora do recreio. Iniciado nos segredos da
212
capoeira, várias vezes foi surpreendido em treinamentos com o inferior. Mas havia
outro detalhe enchendo de pasmo o corpo docente mais do que tudo isso. O Manuel
tinha o apelido de Piroca. Todos os professores timbravam em chamá-lo de senhor
Manuel. Só Oiticica encostava-se ao balão e gritava como qualquer um de nós: “Vê
logo esse sanduíche, Piroca”. Isso o identificava demais conosco, para desespero de
Carlos de Laet, ainda diretor do colégio quando ali entrei.
O mesmo episódio é relatado e iniciado por uma percepção de Mario Lago que de
certa forma parece oposta ao que conta Segismundo (1987, p. 61). Esta cena é narrada por
Velloso (1998, p.61) em sua biografia: Mario Lago: boemia e política. Para Mario Lago:
No centro do pátio, Manoel e José Oiticica se encaravam. Gingavam nos calcanhares
e, rápido, lá ia uma perna pro ar, enquanto o braço ficava forte, sustentando o corpo no
chão. Jogo de corpo sutil de resistência, essas coisas é que provavelmente
interessavam ao professor. Para os anarquistas, a cultura era uma área estratégica que
merecia especial atenção. Acreditavam que entrar em contato com as diferentes
expressões culturais, conhecer de perto as pessoas sem considerar hierarquias, era uma
forma de atuação política [...].
Em uma das quatro entrevistas realizadas com Sônia Oiticica, mencionou os treinos de
capoeira: “[...] papai aprendeu capoeira para se distrair quando ele estava na prisão. Eles
faziam concurso de capoeira para se distraírem. Lá não tinha o que fazer. Era uma coisa
horrível! Já pensou!”
150
.
Enquanto Mario Lago (1981) identifica-se com o professor por ser próximo dos alunos
e funcionários, Segismundo (1987) entende as falas de Oiticica sobre os direitos do cidadão
como invasão das aulas do professor Monsenhor Macdowell. Quanto às práticas da capoeira
com o servente Manoel, as cenas não aparecem em sua narrativa. A ausência do comentário
pode significar algo não muito apropriado para aparecer em seu texto de homenagem. Há, no
entanto, uma referência no discurso de Segismundo (1987, p.73) “ele se julgava emérito
capoeira”.
Velloso (1998, p.60-63) relata que Mario Lago preferia ouvir José Oiticica,
principalmente porque em suas aulas sugeria aos alunos que lessem atentamente os noticiários
dos jornais por ser uma maneira de conhecer outros estilos literários, distintos das antologias.
Uma de suas prescrições aos alunos que gostavam de escrever era acostumar-se a prestar
atenção em outros estilos, mais próximos da vida e da fala cotidianas. Dentre as lições dos
professores, preferia ouvir as lições de Oiticica, principalmente porque ele “apontava a
possibilidade de um mundo mais fraterno e democrático” a ponto de considerá-lo como o
professor de maior influência em sua formação. Chama a atenção para a forma como Oiticica
150
Cf. entrevista de Sônia Oiticica em anexo.
213
direcionou o seu olhar para o mundo que transcendia aos muros do Colégio e a possibilidade
de descortinar novas paisagens e ver o mundo de outra maneira. Por isso, seguiu as instruções
de seu professor José Oiticica, passando a ler jornais. Já nas considerações de Segismundo
(1987, p.75) sobre as falas do professor: “[...] ouvia com respeito, mas sem o menor gosto”.
Mario Lago chama a atenção também para a maneira descontraída com que tratava os
alunos e funcionários do colégio como foi demonstrado no exemplo com Manoel, o
funcionário da cantina escolar. Para Mario Lago, a capoeira de Oiticica nas horas vagas das
aulas era uma prática que o colocava em um lugar diferente dos outros professores do
Colégio.
Sônia Oiticica
151
, em uma das entrevistas, contou uma história ocorrida no Colégio
Pedro II, um caso comentado por seu pai sobre suas aulas:
[...] Papai chegava na classe e dava bom dia aos alunos. Os alunos tinham que se
levantar com a chegada dos outros professores, mas nas aulas de papai não. Aí, papai
perguntava a eles qual era a primeira coisa a se fazer. Todos então tiravam o paletó.
Era um calor no Rio!!! O uniforme era caqui e tinha uma gravata. Então, ele dizia:
como é que é? E os alunos tiravam a gravata e o casaco e ficavam todos à vontade, só
de camisa na sala de aula. Aí, um dia, o diretor do Colégio passou uma vez e falou
com ele: “Professor, sua classe fica com todo mundo muito esquisito!”. Aí meu pai
disse: “Na minha classe mando eu!”.
A narrativa de Sônia Oiticica sobre a quebra de protocolos no comportamento de seu
pai no Colégio Pedro II vai ao encontro dos comentários de Mario Lago acerca da
proximidade que o professor Oiticica às vezes estabelecia com seus alunos. Lembra Mario
Lago (1981, p.212) “O Pedro II assustava um pouco conservando quase intata alguma
austeridade dos tempos de sua fundação [...] Três figuras bagunçavam um pouco esse coreto
sisudo, tendo sempre, por isso, uma roda de alunos à sua volta, entre eles José Oiticica e
Mendes de Aguiar”. Na posição de colega integrante do corpo docente, Segismundo (1987,
p.74) conta que:
Chegado ao magistério do Pedro II, fui ser colega de Oiticica. Senti-me envaidecido –
por que não dizer? Andar com ele pelos corredores, saborear cafezinho ao seu lado nos
intervalos das lições, ouvir ele discorrer sobre a situação política, degustar-lhe os
ensinamentos, ser o confidente desse homem intrépido conferia-me um lugar no
estabelecimento que os outros professores e circunstâncias, juntos, não me dariam
nunca. Em pouco tempo, manifestaram-se as desvantagens de tão apreciada
camaradagem. Fui alertado para o perigo da convivência com o anarquista. Houve
quem me contasse hipotéticos horrores do comportamento daquela cultura robusta que
151
Cf. Anexo 3.
214
eu tanto prezava. Péssimo companheiro, exclamavam. Sequer cumprimenta seus
pares. Na Congregação vota contra as decisões da maioria. É soberbo e malcriado! .
Na condição de professor, colega de trabalho, Segismundo chama a atenção para o
“preço” que teria que pagar caso continuasse como amigo de Oiticica. Se, de um lado, releva
a sua “apreciada camaradagem”, reconhecendo que jamais teria tal tratamento por parte de
“outros professores e circunstâncias”, por outro, recorda outra cena lembrando que os outros
colegas o tachavam de “soberbo e malcriado, pelo fato de ele não cumprimentar seus pares.
Nas entrevistas com Sônia Oiticica é perceptível que o professor Oiticica marcava sua
posição quando considerava estar correto nessa ou naquela atitude. O exemplo da reação de
seu pai, frente às observações do diretor da escola reprovando o fato de os alunos não estarem
trajando paletó e gravata em sua aula, pode ser considerado uma mostra da existência de uma
polêmica no Colégio.
Sônia entende que o seu pai expunha as idéias anarquistas em sala de aula em atitudes
como a que tinha com relação aos uniformes: “[...] papai agia, colocava suas idéias em
prática, como no caso que eu contei sobre os alunos tirarem o paletó e a gravata na aula.
Aquilo era uma espécie de rebeldia, de independência”
152
. “Ele ensinava isso aos alunos.”
Segundo Sônia, todos esses comentários a respeito do cotidiano na escola eram
relatados, principalmente à mesa, depois do jantar. Ela conta que o seu pai não fazia mesmo
questão de ser polido com quem não considerava ser seu par.
Alternando as posições de aluno e a de professor no Colégio Pedro II, Segismundo
(1987, p.74) afirma que:
Oiticica revelava procedimento singular. Não era de conventículos ou de
tergiversações. Falava sempre alto e retamente. Pouco se lhe dava a agradar ou não ao
ter que exprimir seu pensamento. Entrava para o Colégio após o memorável concurso,
entendendo nada a dever senão aos seus próprios méritos. Era e queria ser
independente dos grupos afeiçoados à alta administração. Tal propósito angariou-lhe
desafetos e inimigos, com os quais, afirmo-o com absoluta certeza – nunca se
importou. Era como se não existissem. Nem os combatia nem os desprezava.
Simplesmente ignorava-os. Vi Oiticica, muitas vezes, subir e descer a majestosa
escada principal, que dá acesso ao segundo pavimento do Colégio. Passavam por ele
colegas que o cumprimentavam aberta ou cerimoniosamente. Oiticica portava-se como
se privado fosse da vista e dos ouvidos. Com indiferença, seguia o caminho sem
responder às saudações. Seu alheamento – confessou-se - decorria do caráter frouxo
que surpreendera em muito dos companheiros. Avaliando-os bem, preferia poupar-se
tempo com fúteis demonstrações de urbanidade.
A presença de José Oiticica na banca do exame de admissão é lembrada pelo professor
152
Ver anexo 3.
215
Geraldo Pinto Vieira
153
em entrevista para esta pesquisa:
Quando entrei no colégio na década de 40, meu primeiro contato com Oiticica foi no
exame de admissão. O exame naquela época era composto por provas escritas e orais e
ele me examinou na prova oral.
As provas escritas eram de Português e Matemática, e as provas orais eram de
Português, Matemática, Geografia e História. Mais tarde vim a saber quem era o
professor Oiticica. Era uma das figuras mais importantes do Colégio Pedro II e teve
uma grande trajetória como professor, lecionando várias disciplinas.[...] Oiticica era
Catedrático em Língua Portuguesa, portanto essa foi a razão dele estar na banca,
quando me examinou no final da década de 40.
As provas do exame de admissão eram interessantes porque a prova escrita era
composta de uma redação, ou podia ser a descrição de um estampa. Eu me lembro que
no meu caso foi uma redação e algumas questões de gramática. [...] Então havia
redação e a prova oral que era um tanto complicado porque, como eu disse, o
Catedrático no Pedro II estava acima do bem e do mal, mas isso só deu para entender
depois.
[...] a banca era composta pelos catedráticos que me examinaram, em Matemática,
Cecil Thiré, em História foi Mello Souza. Aquilo era solene, aberto ao público,
geralmente as mães acompanhavam os filhos, porque uma criança de 11 anos naquela
época não andava sozinha. Eu me lembro quando fui fazer meu primeiro exame na
banca, vinha da escola primária de apenas uma professora, moça ou velhota, mas tinha
que ser professora, e ali observei que só havia professores.[...]
Em uma mesa comprida, a gente ficava em uma fila e íamos passando pelas provas de
Português, Matemática, Geografia e História. Lia-se um trecho acredito, mas não
tenho certeza, da Antologia de Carlos de Laet, porque a Antologia do Clovis Monteiro
foi adotada depois. Isso eu não posso afirmar, sei que era um trecho qualquer e, em
cima daquele trecho, Oiticica fazia meia dúzia de perguntas. Ele era austero, mas era
também engraçado! A impressão que me passa de Oiticica é que ele era uma figura
austera, mas sem ser antipático.
Eu me lembro que ele fez uma graçola comigo, e eu fiquei com cara de bobo, porque
eu acho que ele, para ser simpático, fez uma brincadeira. Perguntou qual era o meu
nome. Respondi: “Geraldo Pinto Vieira”. Ele então disse: “[...] quando crescer vai ser
promovido a galo”. Na hora não entendi nada, fiz o exame e fui embora.
[...] eu não fui aluno de Oiticica. Ele dava aula na parte da manhã. Naquela época as
turmas eram divididas, na parte da manhã eram meninas, e na parte da tarde meninos.
O Programa de Língua Portuguesa eu acredito que fosse norteado por Oiticica. Ele era
catedrático juntamente com Nascentes. Era uma complicação porque mais tarde vim a
saber, até por outras pessoas, que Oiticica tinha um livro de análise lógica. Soube
depois que havia divergências entre o sistema de Oiticica e o de Nascentes. Nascentes
fez concurso para Cátedra de Espanhol e depois passou para cátedra de Português.
Oiticica já tinha feito concurso de Português e antecedia cronologicamente a
Nascentes. Não fui aluno de Oiticica porque estudei na parte da tarde. Tive um grande
professor chamado Elpídio Pimentel.
O professor Geraldo Pinto Vieira estudou, foi bedel, professor de História e iniciou a
organização do Núcleo de Documentação e Memória do Colégio Pedro II (NUDOM). Hoje,
na condição de professor aposentado, presta serviço voluntário ao receber os pesquisadores na
153
Cf. Anexo 3.
216
instituição. Como colaborador nesta pesquisa, disponibilizou duas sessões de entrevistas em
que compartilha suas lembranças sobre a banca do exame de admissão no início de 1940,
quando ingressou no Pedro II.
Pedro da Silva Nava, conhecido pelos seus livros memorialistas como Baú de ossos,
que foi publicado em 1972, seguindo-se Balão cativo, Chão de ferro, Beira-Mar, Galo-das-
trevas e O círio perfeito. Estudou no externato do Colégio Pedro II e de suas lembranças Nava
(2000, p. 260-278) destacou dois aspectos do professor José Oiticica: a sua presença
aterradora na bancas examinadoras e as suas aulas comício.
O José Oiticica, de Nava (2000), era seu professor em 1926, um ano depois de ter
sofrido o seu terceiro cárcere, quando a militância anarquista ainda tinha alguma
expressividade. O examinador lembrado pelo professor Geraldo é o professor do início da
década de 1940, quando a militância anarquista era reduzida a um número bem menor de
integrantes. Muito provavelmente considerar a distância temporal e contextual da atuação
docente de José Oiticica ajude a compreender por que em Nava (2000) sua presença era
aterradora, já o professor Geraldo o via como austero, mas engraçado.
Essas condutas pedagógicas que caracterizavam os “bons professores”, pelo rigor
como regiam suas aulas e conduziam o processo de avaliação parece ter sido a marca de José
Oiticica no Colégio Pedro II, que coincide com a memória de Pedro Nava (2000), quando
lembrou José Oiticica no rol dos que aterrorizavam os alunos, em contraposição a outro
classificado como “os canjas”, aqueles cuja conquista por notas não demandava estudar
muito.
Ao percorrer as cartas de advertências, os artigos e conferências, os manuscritos e a
didática rememorada pelos ex-alunos do professor Oiticica, foi possível detectar certas
práticas que afirmam o seu modo de ensinar, como o estímulo à reflexão sobre os fatos
apresentados, a análise de situações cotidianas, ou de modelos, sobretudo o esforço de fazer
os alunos compreenderem a realidade, partindo, portanto, da percepção à idéia; do concreto ao
abstrato, de modo a organizarem as noções e conceitos.
Da relação professor – aluno, Oiticica prescrevia práticas de respeito aos ritmos de
aprendizagem de cada aluno, a ausência de castigos, orientava os professores para que
explicassem as correções e que dessem oportunidade ao aluno em acatá-los ou não. Nesse
discurso com os professores, Oiticica manifestava os princípios libertários de que era adepto,
mostrando que tais princípios podiam ser vistos pelo exame dos manuais de pedagogia e em
história se orientados pelo senso crítico.
Essa postura pedagógica não foi e não poderia deixar ser contraditória no mestre
217
Oiticica, que ao mesmo tempo em que criticava os “francelhos confessos da língua
portuguesa”, não admitia os modernistas, tratados como os escritores “bota abaixo”.
As polêmicas eram para Oiticica a forma libertária de manifestação do livre
pensamento e da defesa dos princípios da livre organização de grupos por afinidades, aliando-
se ou afastando-se de acordo com a manifestação do que chamava de vontade livre. Essa
perspectiva que o animava a montar cursos e a perseverar na publicação de seu jornal Ação
Direta, mesmo após a década de 1940, quando as correntes libertárias já não tinham mais a
presença marcante no movimento operário.
A vontade livre é defendida em um de artigo de 1929, em que Oiticica combatia todas
as formas de sectarismos, explicitando como era o modo de ser anarquista, ou como era a sua
visão sobre a dinâmica dos grupos, de composição dos anarquistas.
O espírito anárquico [...] não aceita nenhuma limitação às faculdades intelectuais ou
emotivas, nem reconhece bitolas, cremalheiras, pauta, à exteriorização de idéias ou
sentimentos. Só o indivíduo tem o direito de dirigir seu raciocínio, regular sua
linguagem, enfrentar seu estilo, moderar seu juízo, orientar sua ação. (OITICICA,
Ação Direta, Rio de Janeiro, ano I, nº 3, 10-01-1929, p.1)
Para Oiticica, o anarquismo deveria combater as diversas formas que subjugavam a
vontade do homem, assim ele as equaciona:
O anarquismo combate a todo transe o despotismo de qualquer feição, o feitorismo de
toda casta, tudo quanto lembre mandonismo, chefia, canga, subserviência, dominação
física, mental ou moral. Assim, repelle o regime carcerário do capitalismo, condena as
fábricas de doutores, padres, militares, homens vazados num molde único, manequins
talhados num só modelo, manipanços cujo enchimento é a mesma palha secca. Só o
indivíduo conhece os seus caminhos. Impor, ao que pende para o norte, a marcha para
leste, é roubar-lhe o destino, a vida, a personalidade. Esses princípios, nós,
anarquistas, aplicamo-los rigorosamente na luta pela emancipação dos homens. E,
dizendo "dos homens", firo um ponto essencial do anarquismo. (OITICICA, Ação
Direta, Rio de Janeiro, ano I, nº 3, 10-01-1929, p.1)
Neste artigo ainda apresenta que a emancipação do homem, não é apenas das relações
de empregado e patrão, mas a emancipação de todas as “tiranias” que tolhem a liberdade do
indivíduo:
O anarquismo não visa apenas a emancipar os trabalhadores, pretende emancipar os
homens. [...] Além do trabalho livre, está o pensamento livre e a acção livre. Libertar
os homens do patrão é muito, mas não é tudo. Cumpre arrancá-los à tutela dos guias,
políticos ou religiosos; e à tirania das "morais", criações de opressores para fanatizar
escravos. [...] Como desejar o homem "pôr si", habituando-nos, a nós e aos outros, a
disciplinas vexatórias, censuras obsoletas e punições degradantes? (OITICICA, Ação
Direta, Rio de Janeiro, ano I, nº 3, 10-01-1929, p.1)
De modo peculiar, ou melhor, à sua maneira, apresenta o que seria a princípio a sua
218
concepção de liberdade e de associação, apontando para a inépcia dos companheiros em
compreender o “sentido” amplo de libertação, porém apresenta o que provavelmente seria a
gênese dessa inaptidão de compor os diferentes modos de ser anarquista:
Mal compenetrados dessa concepção de liberdade, vários anarquistas lamentam as
divergências de atuação entre anarquistas. Pior ainda, lêem-se freqüentemente
acusações de anarquistas-individualistas a anarquistas-comunistas, de anarco-
sindicalistas e extra-sindicalistas, etc., etc. Todos esses ataques e lamentações revelam
a tendência sectarista milenarmente entranhada nos homens. Pôr mais que estudemos,
aprendamos, eduquemos o espírito, a pressão tradicional é tão forte, o meio ambiente,
todo dogmático, registra, engaiolante, é tão rígido, que dificilmente conseguimos nos
safar dessas determinantes poderosas. Pessoalmente, ao contrário, vejo nessas várias
tendências anárquicas o melhor sinal de vida do anarquismo. Todos os homens
não podem ver as coisas do mesmo modo, nem resolver os problemas pelo mesmo
processo. A transformação social é um problema com soluções múltiplas. Nós,
anarquistas, apresentamos a nossa. Porém, não a apresentamos do mesmo modo. A
beleza da nossa concepção e a superioridade do nosso método estão positivamente
nessa multiplicidade de meios, todos conducentes a um mesmo fim. Seja, pois, cada
tendência livre na execução do seu modo de entender a solução final. Todas as águas
afluentes irão dar na mesma foz. (OITICICA, Ação Direta, Rio de Janeiro, ano I, nº 3,
10-01-1929, p.1)
No discurso emerge o entusiasmo do militante, que era compatível com a situação do
período, época do afrouxamento das leis de repressão à imprensa anarquista, quadro esse que
possibilitou as condições necessárias para o surgimento do jornal Ação Direta.
Apesar de destacar a multiplicidade do modo de ser anarquista, tacitamente defende
um modelo de militante anarquista, balizado no discurso da idealização do “verdadeiro
anarquista”. E provavelmente, ele tinha sido esse modelo. Autodefende-se das críticas que
recebia por fazer parte da Fraternidade Rosa-Cruz, mas, não obstante essa autodefesa,
apresenta os princípios anarquistas que permitiam a interlocução entres os diferentes grupos,
em busca da transformação da sociedade.
O verdadeiro anarquista, penso eu, aquele que se libertou totalmente do preconceito
sectarista, colabora em todos os grupos, atua em qualquer tendência.
Mais ainda coopera com os não-anarquistas onde quer que a ação deles incremente a
oposição revolucionária. Assim, é anticlerical com os anticlericais; é democrático na
defesa dos princípios liberais contra os reacionários; está com os bolchevistas, sempre
que estes reivindiquem direitos, reforça a ala antimilitarista, ainda que os
antimilitaristas sejam burgueses; colabora com a escola moderna racionalista,
conquanto não seja senão reformista; anima os teósofos na propaganda fraternista, os
vegetarianos na extirpação dos vícios, o próprio Estado Liberal na sua luta contra o
imperialismo vaticanista. Não proceder assim, seria confinar-se ao sectarismo e negar,
nos atos, a doutrina anarquista, essencialmente anti-sectária.
José Oiticica. (OITICICA, Ação Direta, Rio de Janeiro, ano I, nº 3, 10-01-1929, p.1).
Pela multiplicidade de posições e liberdade, eram possíveis conciliar, segundo as suas
palavras, o anarquismo, o espiritualismo e o bom-senso. Oiticica era adepto das alianças que
pudessem contribuir em várias instâncias no combate à Igreja, ao Estado e ao capital,
219
considerados inimigos da emancipação humana.
O artigo de José Oiticica sintetiza as suas idéias com relação à organização de grupos
para a consecução de tarefas direcionadas a uma proposta coletiva, que, segundo ele,
deveriam ser pequenos grupos com autonomia de decisão, mas com responsabilidade com o
coletivo. Estimulava a fundação de grupos, que por meio da ação direta, alavancassem as
práticas da propaganda social. Essa era uma estratégia de driblar as dificuldades para a
continuidade do que ele chamava de obra da educação.
220
Considerações Finais:
A trajetória do professor José Oiticica implicou em reconstituir os lugares sociais de
sua formação acadêmica e profissional, suas atuações nessas instâncias deixaram marcas no
modo de ensinar e de empreender a educação, principalmente, nas esferas diferenciadas da
educação institucional pública e da educação libertária.
Na docência institucional, na posição de catedrático de Português no Colégio Pedro II
e Filólogo com produção reconhecida, ele circulou por grupos com protocolos de
comportamento que lhes eram próprios. Participou do debate pela reforma ortográfica e em
seus manuais didáticos propôs a simplificação da nomenclatura e classificação das palavras,
ações que em seu balanço foram consideradas inovadoras. Com as suas produções José
Oiticica teve sua presença marcada nos debates em torno da língua portuguesa. No entanto,
nas questões relativas ao anarquismo, no Colégio Pedro II, não teve nenhum interlocutor.
Dentro dos grupos que circulavam nessa esfera de trabalho havia espaço de liberdade
de ação que permitia ao sujeito manifestar suas disposições e Oiticica usava muito bem esse
espaço para firmar as suas posições e os seus valores, no entanto não estava desobrigado a
lidar com os protocolos de funcionamento desses grupos, esta peculiaridade tornou ainda mais
intrigante e interessante conhecer a sua trajetória, pois permitiu por suas idéias e ações,
perceber as linhas tênues entre a resistência e as acomodações, entre a permanência e rupturas
nos lugares onde sobrepunha as atividades do catedrático. Assim no espaço da cátedra havia o
militante, bem como no espaço da propaganda social havia o catedrático, presente nos
procedimentos do cuidado com a língua, nos protocolos da ciência.
Entre as ações que são características a face do intelectual da língua portuguesa,
Oiticica escreveu manuais didáticos, participou da fundação da Academia Brasileira de
Filologia, contribuiu com estudos avançados em lingüística e com atuação também na
docência do ensino superior, como ocorreu com a Universidade de Hamburgo e a docência
na Universidade do Distrito Federal com essas ações se firmou como um intelectual de seu
tempo. Concomitantemente, a sua produção para a imprensa libertária, em seus ensaios
sociológicos reuniu a erudição do intelectual atento às questões sociais somando-se a isso a
sua participação nas ações da militância, uma conjugação que o fizeram um intelectual da
militância anarquista.
Na militância libertária, ao seu modo, e em consonância com as dinâmicas de
organização dos grupos libertários Oiticica, também construiu a sua marca não só pela
recorrência de suas ações, mas também por registrar as suas idéias como um teórico do(s)
anarquismo(s) brasileiro, na sua forma de funcionamento, ou ainda nas apropriações e pelo
221
modo particular de manifestação de suas ações.
A sua forma de movimentar as suas idéias e as suas práticas relacionadas com a
educação brasileira impuseram a necessidade desta pesquisa revisitar os diferentes espaços de
suas atuações sendo possível refletir também sobre a circulação de práticas educativas nesses
diferentes espaços e, com isso perceber as acomodações e as resistências de suas
manifestações em seus diferentes espaços.
Nos grupos participantes da imprensa libertária José Oiticica se relacionava com
intelectuais, e com segmentos das classes trabalhadoras brasileira e estrangeira, nesses
espaços e grupos Oiticica contribuiu ao longo da sua vida fazendo uso dos dispositivos da
propaganda social, em consonância com a organização das correntes libertárias, podendo ser
compreendido como uma expressão de certa continuidade da imprensa libertária dada o
alcance de quase duas décadas do seu jornal Ação Direta.
Fundou periódicos, jornais e revistas, colaborou em vários jornais divulgando as suas
proposições e apropriações das idéias do anarquismo europeu. Nas tarefas práticas o professor
Oiticica organizou e ministrou cursos, inclusive para a preparação de professores em acordo
com a perspectiva do ensino racionalista, em interação com leituras como, por exemplo, as
leituras de Comenius, que na sua apropriação foi elemento para a proposição do anarquismo
como método de educação.
Para os empreendimentos dos cursos de formação, da escrita de artigos de opinião
sobre o ensino emergiram dessas práticas as heranças da formação de sua formação e,
principalmente as experiências educacionais, em particular, a do Colégio Latino-Americano
referidos, de maneira recorrente em escritos de diferentes períodos de sua prática docente,
pesando ainda e o intercâmbio de idéias que fervilhavam nos jornais libertários.
Oiticica foi o intelectual catedrático, que na sua função de professor, de jornalista, de
conferencista perseverava em disseminar as suas idéias sobre a questão social, concentrando
investidas na questão libertária, e, para tanto era necessário encetar esforços para formar e
conquistar corações. Como decorrências dessa escolhas teve que arcar com prisões e
perseguições de todas as naturezas sofridas por causa das adesões ao anarquismo, pelas
adesões na perspectiva dos leitores da imprensa libertária, um público leitor que circulava
entre os sindicatos brasileiros.
Todas as práticas da propaganda social libertária de adesão direta de José Oiticica
exibiam sintonia aos costumes da vida intelectual do catedrático, talvez uma de suas
iniciativas de visibilidade mais emblemática tenha se dado, por exemplo, pelo
desenvolvimento do projeto da revista, um periódico com a proposta de disseminar artigos
222
sociológicos sobre as teses libertárias e de movimentação de idéias na esfera internacional
como foi possível ver pela interlocução iniciada com os professores anarcossindicalistas e
militantes de outros países, ou ainda no pressuposto de que suas ações da propaganda social
em continuidade ao projeto da universidade de ensino livre, ou da proposta libertária.
De sua trajetória foi possível, apreender suas concepções sobre a educação, sobretudo
o seu projeto de educação libertária, os modos com os quais lançou mão para circular entres
os grupos que com suas características distintas, o permitiram construir a sua maneira o “jeito
de ser” anarquista. Demonstrando a partir de sua trajetória, que não havia a possibilidade de
se compreender um uníssono movimento anarquista, mas movimentos, ou melhor, correntes
libertárias, que defendiam valores que ora aproximavam, ora distanciavam, os diálogos e as
idéias a respeito do anarquismo.
223
Fontes
1. Imprensa Anarquista
1.1 A Lanterna – Anticlerical e de Combate (direção:Benjamim Mota /
EdgarLeuenroth)
A Lanterna, Anticlerical e de combate, São Paulo, ano I, nº 03, 06.04.1901, p. 2
A Lanterna- Anticlerical e de combate, São Paulo, ano II, nº 1, 06/07.07.1903, p.1
A Lanterna – Anticlerical e de combate, São Paulo, ano XIII, nº 186, 12.04.1913, p.1.
A Lanterna – Anticlerical e de combate, São Paulo, ano XIV, nº 269, 05.12.1914, p.4.
Liberdade periódico de crítica social e noticiozo – (Diretor Fundador Pedro Matera)
Liberdade, Rio de Janeiro, nº 23, primeira quinzena do mez de setembro de 1918, p.1.
1.2 Spartacus (Direção José Oiticica e Astrojildo Pereira)
Spartacus, Rio de Janeiro, ano I, nº 1, 02.08.1919, p.1.
Spartacus, Rio de Janeiro, ano I, nº 3, 16.08.1919, p.1.
Spartacus, Rio de Janeiro, ano I, nº 4, 23.08.1919, p.1.
Spartacus, Rio de Janeiro, ano I, nº 5, 30.08.1919, p.1.
Spartacus, Rio de Janeiro, ano I, nº 6, 06.09.1919, p.1.
Spartacus, Rio de Janeiro, ano I, nº 7, 13.09.1919, p.1.
Spartacus, Rio de Janeiro, ano I, nº 9, 27.09.1919, p.1.
Spartacus, Rio de Janeiro, ano I, nº 11, 11.10.1919, p.1.
Spartacus, Rio de Janeiro, ano I, nº 12, 18.10.1919, p.1.
Spartacus, Rio de Janeiro, ano I, nº 13, 25.10.1919, p.1.
Spartacus, Rio de Janeiro, ano I, nº 15, 08.11.1919, p.1.
Spartacus, Rio de Janeiro, ano I, nº 16, 15.11.1919, p.1.
Spartacus, Rio de Janeiro, ano I, nº 24, 10.01.1920, p.1.
1.3 A Vida – Revista mensal (Direção: José Oiticica e Francisco Viotti)
A vida, Rio de Janeiro, ano I, nº 1, 30 de novembro de 1914.
A vida, Rio de Janeiro, ano I, nº 2, 31 de dezembro de 1914.
A vida, Rio de Janeiro, ano I, nº 3, 31 de janeiro de 1915.
A vida, Rio de Janeiro, ano I, nº4, 28 de fevereiro de 1915.
A vida, Rio de Janeiro, ano I, nº5, 31 de marco de 1915.
A vida, Rio de Janeiro, ano I, nº 6, 30 de abril de 1915.
A vida, Rio de Janeiro, ano I, nº1, 30 de novembro de 1914.
A vida, Rio de Janeiro, ano I, nº7, 31 de maio de 1915.
224
1.4 A Voz do Trabalhador – Orgam da Confederação Operária Brazileira
A Voz do Trabalhador, Rio de Janeiro, ano VI, nº 26, 01-03-1913, p.2.
A Voz do Trabalhador, Rio de Janeiro, ano VI, nº 28, 01-03-1913, p.2
A Voz do Trabalhador, Rio de Janeiro, ano VI, nº41, 15-10-1913, p.2.
A Voz do Trabalhador, Rio de Janeiro, ano VII, nº 50, 01-03-1914, p.2.
A Voz do Trabalhador, Rio de Janeiro, ano VII, nº 51-52, 01-04-1914, p.4
1.5 Crônica Subsversiva (Direção Astrojildo Pereira)
Crônica Subversiva, Rio de Janeiro, ano I, nº 8, 20-07-1918, p.3.
2- Produção do professor José Oiticica
2.1 - Lingüística, filologia, gramática e literatura
1916- Estudos de fonologia, 1ª série – tese de concurso ao Colégio Pedro II
1919- Manual de análise léxica e sintática (1919)
1926- Manual de estilo
1931-1932- Novo dicionário popular da língua portuguesa prosódico e ortográfico
1933- Do método no estudo das Línguas Sul-Americanas
1941- Sistema fonético Brasileiro
1948- Um programa heteredoxo de Português nas escolas – conferência radiofônica;
1952- Português ginasial - 1ª série
1955- O pronome relativo
1955- Português ginasial – 2ª série
1955- Roteiros em fonética fisiológica, técnica de verso e dicção
1955- Teoria da correlação
1955- Uma gramática [crítica ao Prof. Silvio Elia];
1957 – O teatro russo – conferência pronunciada no Rio de Janeiro (póstuma,
opúsculo)
1960 - Curso de Literatura (publicação póstuma coligida por Roberto das Neves Essas
lições de literatura foram antes publicadas no jornal Ação Direta - entre 1948 e 1953).
2.2 – Peças teatrais
1919 - Azalan! (Rio de Janeiro, drama, em 3 atos) Publicada com a capa Cadernos de
Latim
1919 – Não é crime (Rio de Janeiro, drama, em 1 ato)
1920 - Pedra que rola (Rio de Janeiro, comédia, em 3 atos)
1923 – Quem os salva?(Rio de Janeiro, comédia, em 3 atos)
225
1936 - Pó de Pirlipimpim (Rio de Janeiro, comédia em 3 atos)
2.3 – Poesia
1905 e 1911 - Sonetos
1912-1913 - Ode ao sol;,
1919- Sonetos – 2ª série
1954- Fonte Perene – (sonetos)
1954- As 7 preces – (sonetos)
1954- Os 7 instrumentos de suplício
2.4 – Sociologia
1914- O desperdício da energia feminina (ensaio publicado em A Vida –1914-1915)
1924- A Doutrina anarquista ao alcance de todos e publicada em folhetins do jornal
Ação Direta em 1946, e, em 1947 teve a sua primeira publicação no formato em livro
em 1947
1920- Princípios e fins do programa comunista – anarquista;
1922- A trama dum grande crime;
1970 - Ação Direta Antologia dos melhores artigos publicados na imprensa brasileira-
meio século de pregação libertária (Coligidos por Roberto das Neves).
2.5 – Opúsculos Rosa Cruz
1923- Tradução de La Rochefoucauld, Reflexões – (Vauvernargues, Paris, 1923);
1953- Tradução A. Krumm-Heller, Do incenso à Osmoterapia;
1954 - Tradução: Eugén Relgis, História sexual da humanidade;
1955- Tradução: Rafael López Del Palácio, Páginas cínicas;
1958- Os Sete eu sou – José Oiticica (póstuma - opúsculo Rosa Cruz onde assina
também com o codinome Macário Ptókos)
1960 - O Padrenosso (póstuma - opúsculo Rosa Cruz onde assina também com o
codinome Macário Ptókos)
3-) Recortes de Jornal coletados no Arquivo Fernando de Azevedo, no Instituto
de Estudos Brasileiros (IEB ) da Universidade de São Paulo (USP)
a-) A Esquerda – 29-11-1928: “O que é, hoje, nos programmas e na realidade o ensino
dramático entre nós - Theoricamente, é um ‘imbroghio’ praticamente uma ‘blague’” -
Reforma do Ensino e da Educação do Distrito Federal (1927-1930) – Recortes de Jornais e
Revistas de 18-06-1928 - 23-10-1930 – Localização: FA A4/395.
b-) Jornal do Brasil – 10-04-1928: “Escola Dramática” – Reforma do Ensino e da
226
Educação do Distrito Federal (1927-1930) – Recortes de Jornais e Revistas de 18-06-928 -
23-10-1930 - Localização: FA A3/0145.
c-) O Globo – 09-04-1928: “O Theatro, índice da cultura de um povo – Deplorável o
estado da Escola Dramática Municipal: Está instalada em um verdadeiro pardieiro”; -
Reforma do Ensino e da Educação do Distrito Federal (1927-1930) – Recortes de Jornais e
Revistas de 18-06-1928 – 23-10-1930 - Localização: FA A3/143; Coordenação Diana
Gonçalves Vidal; Arquivo Fernando de Azevedo IEB (Instituto de Estudos Brasileiros ), USP
( Universidade de São Paulo).
4-) Manuscritos
4.1) manuscritos de José Oiticica
a-) auto-biografia de José Oiticica
b-) O feito e o por fazer
c-) O anarchismo como método de educação
d-) Sonetos:
As lembranças;
Mundaú;
Pedido;
4.2) – correspondência passiva de Coelho Neto
Oiticica, José.
a-) Carta de José Oiticica a Coelho Neto, protestando contra o ato do governo que
decretara a promoção em massa de todos os alunos matriculados, 20-11-1930, localização: I,
01-04-039, Biblioteca Nacional- RJ.
b-) Carta de José Oiticica a Coelho Neto, agradecendo por tê-lo convidado para ocupar
a cadeira de Prosódia na Escola Dramática Municipal do Distrito Federal, em substituição ao
professor[...] 04-05-1914, localização: I-01,04-035, Biblioteca Nacional – RJ.
c-) Carta de José Oiticica a Coelho Neto, informando sobre a chegada de sua esposa e
filhas em Hamburgo e queixando-se do desinteresse do governo brasileiro em relação à sua
propaganda na Alemanha, 16/08/1930, localização: I 01.04-027, Biblioteca Nacional (BN)-
RJ.
d-) Carta de José Oiticica a Coelho Neto, pedindo-lhe que procurasse o Ministro do
Exterior para ver como ficava a sua situação depois da Revolução de 1930 – se deveria
permanecer na Universidade de Hamburgo na Alemanha ou se deveria retornar ao Brasil, 06-
11-1930, localização: I 04-038, Biblioteca Nacional (BN) - RJ.
5-) Opúsculos em resposta ao professor José Oiticica
227
FRANCA, Leonel. 1926. Relíquias de uma polêmica – artigos do Snr José Oiticica
apostillados pelo P. Leonel Franca S.J., Rio de Janeiro: Tipografia do Annuario do Brasil.
MELLO, Pedro de. 1926. O pronome “SE” Indefinido – Réplica ao Dr.Oiticica,
Piracicaba, São Paulo: Typ. Do Jornal de Piracicaba.
6-) Documentos oficiais do Colégio Pedro II
a-) Almanack do pessoal docente e administrativo- organizado pelo secretário do
Colégio Pedro II Octacílio A. Pereira, em que apresentou informações sobre o pessoal docente
e administrativo até 30 de junho de 1924, v. II, p. 14-19.
b-) Relatório concernente aos annos lectivo de 1925 e 1926, do Collégio Pedro II:
Externato.
c-) Relatório do Colégio Pedro II concernente aos annos lectivos de 1925 e 1926, sob
direção interina do Prof. Euclides de Medeiros Guimarães Roxo, 1928, p.7.
C-) Anuários do Colégio Pedro II, vol. XV (1949-1950), 1954, Rio de Janeiro:
Ministério da educação e cultura
7-) Livros, artigos, textos necrológicos (memória de José Oiticica)
a-) Segismundo, Fernando.1987. Colégio Pedro II: tradição e modernidade. Rio de
Janeiro: Unigraf.
b-) DORIA, Escragnolle. 1997. Memória histórica do Colégio de Pedro Segundo -
1837-1937. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais.
7-) Coletâneas
HALL, Michael e PINHEIRO, Paulo Sérgio. 1979. A classe operária no Brasil: Vol. I
– Documentos (1889 a 1930). São Paulo: Alfa-Omega.
8-) Documentos produzidos – entrevistas
a-) Entrevistas com professor Geraldo Pinto Vieira (duas sessões entrevistas abertas
com gravação de uma hora).
b-) Entrevista com Sônia Oiticica (quatro sessões, de entrevistas gravadas com,
aproximadamente, sete horas).
Acervos:
Campinas:
Arquivo Edgard Leuenrouth, (AEL), Centro de Pesquisa e Documentação Social,
Unicamp.
São Paulo:
Arquivo do Estado de São Paulo
Instituto de Estudos Brasileiros, USP.
228
Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BN)
Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea – (CPDOC),
Fundação Getúlio Vargas.
Núcleo de Documentação e Memória do Colégio Pedro II (NUDOM)
229
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VECHIA, Ariclê e LORENZ, Karl Michael. (orgs.) 1998. Programa de Ensino da Escola
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VELLOSO, Mônica Pimenta. 1996. Modernismo no Rio de Janeiro. São Paulo: Editora
Fundação Getúlio Vargas.
______________________. 1998. Mário Lago- boemia e política, 2ª edição, Rio de Janeiro:
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VICENZI, Lectícia Josephina Braga de. 1986. A fundação da Universidade do Distrito
Federal e seu significado para a educação no Brasil. Forum Educacional. Rio de Janeiro,
v.10, n.3, jul./set.
YATES, Francês A. 2001. El Iluminismo Rosacruz, México: Fondo de Cultura Econômica.
1
Anexos 1 – correspondências de Oiticica
1-) Correspondência Passiva de José Oiticica
Carta a Coelho Netto – Hamburgo 01/12/1929
Dilstrasse, 16 IIIte. L
Hamburgo – 1-12-29
Caro compadre – não sei se tem recebido cartões meus. Aos numerosíssimos cartões enviados
ninguém me responde e hoje recebi uma carta amarga de Sinhazinha queixando-se de não ter
cartas minhas há mais de um mês, quando escrevo todas as semanas registrando as cartas.
Temos aí correio ou casa de crates?
Com as pressas da saída não pude assentar nada quanto ao pedido de seus livros para a
Universidade. Rogo-lhe que escreva ao Lelo solicitando esse presente valioso. Quero aqui
uma Coelhiana completa e autêntica.
Minha primeira aula na universidade aos alunos do Preliminar que falam português, foi sobre
sua obra. Lemos um trecho do Rei Negro, expliquei o vocabulário, expus o assunto e
terminamos a duas horas de trabalho com um apanhado do Rajá, cujo o tema serviu para falar
nas três raças caldeadas no Brasil.
Houve enorme interesse por essas cousas novas e desejo de conhecer sua obra. Não pude
entretanto adotar como base de estudo, o Rei negro, ou outro qualquer romance seu, por não
haver exemplares no mercado. Para o semestre de verão vou mandar buscar em Portugal O
Sertão, tendo em vista a tradução já feita que pode auxiliar os ainda pouco treinados, Isto é, a
maioria.
Recado a minha comadre: se quer descansar o resto da vida podendo soltar o marido sem
receio. Venha para Alemanha. Aqui, o brasileiro, com a fauna tropical no sangue, tem ímpetos
de investir para as louras, embora de pé grande. Sorri para elas. Elas invariavelmente sorriem
derretidas. Ele vai-se chegando e logo percebe irritações pituitárias refreantes. Funga um
pouco, espirra, porém com a pressão de três caldeiras acesas, achegasse e fala. Ela sorri de
perto e mostra uns dentes encardidos, ou postiços ou, em noventa por cento dos casos, um ou
mais de ouro. O desgraçado coça a cabeça, que vastar, mas o empuxo é forte e ele rasca o
alemão convidativo com erros de declinação e pronuncia jequíssima. Ainda mais deslambida
fica a loura, pois o brasileiro é cotado, mas, ao dirier já, a fräulein dá um soluço para dentro,
de apagar o brasileiro tropical, ainda maranhense!
Não há labareda capaz de resistir à ducha desse ignóbil retrosoluço, a coisa mais antiestética,
mais desilusionante, mais desentusiasmadora do mundo!
Reúna agora as três cousas: cheirume, dente de ouro, soluço, e veja se há Netto inferior a
santidade a qualquer São Francisco invulnerável!
Minha comadre que se mude o quanto antes!
Ainda não sentimos frio hoje, por exemplo, apesar da chuva, fui às 11 e ½ do dia a um
concerto sem capote, pois não agüentaria o calor. Estou escrevendo às 12 ½ da noite, de
pijama, só com o quarto das meninas aquecido.
Em geral, nestas alturas, já desce o termômetro abaixo de zero. Estou ansioso por ver neve.
Serviço aqui muito, sobretudo o estudo de alemão, o caso mais sério da vida. Para falar e
escrever corretamente, como pretendo, é um buraco. Mas há de ir.
Tive que mudar toda a programação das conferências. Não tratarei ainda da literatura. Estou
ensinando primeiro o que é o Brasil de que não se tem nenhuma idéia. Felizmente as quatro já
feitas obtiveram êxito completo. O auditório alemão vai aumentando e, quando eu poder
dispor de projecções luminosas, melhor será.
2
Rogo-lhe que me envie os verbetes até hoje prontos do dicionário. Estou as ordens caso
precisem de mim para alguma consulta lexiográfica. Não poderia a Academia mandar um
exemplar da sua revista com a colecção já publicada para a biblioteca do seminário? Poderia
mesmo trocar com a revista do nosso seminário(Volkstum und kultur der romanen-ipache,
diaturg, litte) de que já saíram dois números interessantes, sobretudo pelo estudo do Dr.
Kruger sobre os nomes populares na Espanha e Portugal.
Um apertado abraço na comadre e na filhotada, com saudade do amigo
José Oiticica.
Hamburgo – 01-12-29
Minha comadre
Mandei-lhe um recado por seu marido. E a expressão da verdade. Brasileiro que se presa não
pode piratear aqui. Por isso passo a vida de santo esperando merecer a coroa do céu.
Tenho ouvido muita música supimpa. Há três dias assisti a um concerto de Pablo Casals, mas
foi uma decepção. Não é mesmo. Decadência absoluta. Em compensação ouvi ontem Érika
Morin uma vienense maravilhosa no violino.
Muito trabalho, porém saúde e coragem. As meninas vão otimamente.
Abraço e saudade do compadre.
José Oiticica.
Carta a Coelho Netto – Hamburgo - 20.11.1930
Meu caro Coelho Netto
Consegui saber que o Governo, o admirável Governo de nosso desgraçado país, decretou a
promoção em massa dos alunos matriculados e ouvintes de todos os ginásios do Brasil.
Insultado, caluniado, encarcerado, acusado das mais hediondas intenções, até a de estuprador,
tenho a energia suficiente para protestar, com todas as forças, contra esse vilipendio, essa
vergonha, essa dissolução.
O Governo de meu país vendendo exames a des mil réis!!! Não lhe parece simonia?
E são eles os patriotas e eu eversor da sociedade brasileira. Faze que este meu protesto seja
publicado de qualquer forma, protesto de um exaltado amante da sua terra, que a vê
desmantelada abismada, pela inconsciência e pela irresponsabilidade.
Teu J. Oiticica.
Carta a Coelho Netto
Rio de Janeiro, 04 de maio de 1914.
Ilmo Director da Escola Dramática
Profundamente penhorado com o honroso convite que me fez V. S. para
assumir a regência da cadeira de prosódia da Escola Dramática em substituição ao provecto
Professor João Ribeiro, respondo a V.S. agradecendo a confiança que em mim deposita e
prontificando-me a secundar o nobre esforço de V. S. fazendo quanto em mim couber por não
desmerecer de tão alta incumbência.
Aguardando as ordens de V. S.
Subscrevo-me
Admirado e obrigado
José Oiticica
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Anexo 2 – Cronologia de José Oiticica
Primeira versão de uma Cronologia para José Rodrigues Leite e Oiticica
1882 - Nasceu em 22/07/1882 em Oliveira - Minas Gerais.
1887 - Iniciou seus estudos no Internato do Colégio São Luís Gonzaga em Petrópolis –
RJ – Prosseguiu seus estudos no Seminário Arquidiocesano de São José. Transferiu-se
para o Colégio Paula de Freitas.
1897 - Completou os Preparatórios no Colégio Paula de Freitas. Em seguida,
Matriculou-se na Escola Politécnica, onde fez o curso de desenho. Na seqüência,
matricula-se na Faculdade de Ciências Jurídicas do Recife, continuando o curso de
Direito na Faculdade de Ciências Sociais do Rio de janeiro.
1902 - Concluiu o curso e Direito; porém quando cursou a cadeira de medicina legal,
resolveu estudar ciências naturais matriculando-se na Faculdade de Medicina.
Realizou o curso com intervalos até o 4º ano.
1905 - Casou-se com sua prima Francisca Bulhões, com quem viveu até o final de sua
vida. Teve 8 filhos: José – cientista entomólogo do Instituto Oswaldo Cruz; Clara;
Wanda – cantora; Vera e Selma – balilarinas; Dulce – pianista e Sônia – estrela de
teatro e Selma
1905 – Fundou no Leme – Rio de Janeiro o Colégio Latino Americano, adotando
métodos pedagógicos da École des roches de Edmond Demolins. Após dois anos de
funcionamento o colégio foi fechado por questões financeiras. Segundo Neves (1970.
p.11) a maioria dos alunos era pobre e não podia pagar pelo ensino. Segue para
Laguna, em Santa Catarina, onde trabalhou como diretor do Colégio Municipal.
1909 - Regressou ao Rio de janeiro e prestou concurso para Redator da Câmara de
Deputados. Eram 16 candidatos e Oiticica é classificado em 1º lugar, porém não foi
chamado para assumir o cargo. Esse fato se repetiu em mais cinco concursos, um
deles, foi aprovado novamente em 1º lugar para a cadeira de Professor no Instituto
Benjamin Constant.
1911 – Publicou Sonetos (1905-1911), Rio de Janeiro.
1912 – Passou a freqüentar sindicatos operários, a Liga Anticlerical e seus artigos são
freqüentes em jornais libertários do Rio de Janeiro e em São Paulo.
1937. Escrevia contra o clericalismo, o álcool, o fumo e os vícios em geral.
1913 – Publicou Ode ao Sol longo poema com sete capítulos.
1914 – Fundou o Centro de Estudos Sociais na Rua General Câmara, 335. Ao lado de
Francisco Viotti fundaram a Revista A Vida, um periódico da imprensa anarquista.
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Neste periódico, Oiticica escreve - entre novembro de 1914 e março de 1915 – artigos
em uma série denominada o desperdício da energia feminina. Nesses artigos José
Oiticica utiliza-se de noções das ciências físicas da época para examinar a situação da
Mulher:
1915 – José Oiticica participou da organização do Sindicato de ofícios Vários
destinado a filiar trabalhadores manuais e intelectuais assalariados e ou prestadores de
serviços sem vínculos patronais. Faziam parte Fábio Luz, João Gonçalves e outros
intelectuais. Neste Sindicato eram proferidas conferências, palestras e por meio das
representações teatrais libertárias realizadas mensalmente objetiva-se melhorar os
conhecimentos sociológicos e os níveis de instrução.
1916 – Candidatou-se pela sétima vez a outro concurso público. Dessa vez como
Professor de português do Colégio Pedro II. Foi aprovado.
1918 - Escreve uma carta aberta ao Sr: Rui Barbosa “Nela Oiticica acusa-o de não
conhecer a questão social brasileira. Ingressa na Liga Anticlerical para combater o
Fascismo. É preso, acusado de comandar a greve geral insurrecional – deportado e
confinado em Alagoas pelo chefe de polícia Aureliano Leal – no Governo de
Wenceslau Brás. Na prisão escreve os sonetos A prisão, Acusação e A saudação.
1919 – É solto, retorna ao Rio de Janeiro e funda com Astrogildo Pereira o jornal
Spartacus, publicaram nove números. Seguiu-se a esse jornal A Voz do Povo – porta
voz dos anarcossindicalista dirigido por José Oiticica e Astrogildo Pereira e seus
redatores Maurício Lacerda, Álvaro Palmeira e alguns elementos da maçonaria. Nesse
ano funda a Liga Anticlerical que logo em seguida teve que ser fechada em função das
perseguições da polícia do Governo Arthur Bernardes, ressurgindo em 1930. No ano
de 1919, Oiticica publica o Manual de Análise (léxica e Sintática), Sonetos – 2ª série e
Princípios e fins do programa comunista- anarquista.
1920 – Publica a peça de teatro A pedra que rola –comédia satírica em três atos,
apresentada no Rio de Janeiro; e Quem os salva?... comédia em três atos encenada
também em São Paulo.
1923 – Publica em Porto Alegre A trama dum grande crime.
1924 – É novamente preso no Colégio Pedro II, passa por calabouços da Polícia
Central, na Rua da Relação; é confinado na Ilha Rasa onde passa sete meses. Em
seguida, foi transferido para a Ilha das Flores e depois para a de Bom Jesus. Nesse
período escreveu A doutrina anarquista ao alcance de todos; editada vinte anos mais
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tarde da qual se esgotaram três edições em língua portuguesa, uma em castelhano,
publicada também na França.
1926 - José Oiticica publica o Manual de estilo com que o autor trabalha a retórica.
1928 – Sofre um atentado na Rua Frei Caneca, nº 4, sobrado. Segundo Neves (1970), a
missão foi designada a dois pistoleiros do PC Pedro Bastos e Serafim dos Santos
Correia, que dispararam contra Oiticica quando este discursava no Sindicato dos
Gráficos.
1928-1929 – José Oiticica presta um concurso na Universidade e Hamburgo na
Alemanha para Professor de Língua e Literatura Portuguesa e é classificado em
primeiro lugar, sendo nomeado para o cargo pelo Governo alemão. Apresenta a tese
Do método no estudo das línguas sul americanas. Ainda no Brasil funda o jornal Ação
Direta que ora é semanário e ora é semanal e ora é mensal. Interrompeu sua
publicação por motivo da partida de Oiticica para Hamburgo na Alemanha. Reaparece
em 1946 e é publicado até 1958.
1930 - Após 1930 sofre outras prisões. A primeira ocorreu na sede da Liga
Anticlerical na Rua Teófilo Otoni – logo foi restituído à liberdade.
1931/1932 – Publica o Novo dicionário popular da língua portuguesa prosódico e
ortográfico (16 fascículos).
1933 – Publica: Do método no estudo de línguas sul americanas ( tese apresentada ao
Vigésimo quarto Congresso Internacional de Americanistas, reunido em Hamburgo –
Alemanha de 07 a 13 de setembro de 1933. Em A Plebe um artigo: Jornada e
sementeira libertária anunciava a vinda do Professor José Oiticica a São Paulo, a
convite do editor para realizar uma série de conferências, atendendo ao pedido da
Federação Operária e do Centro de Cultura Social, assim como de vários sindicatos –
padeiros, sapateiros e trabalhadores da Light .
1935 – Com o pseudônimo de João Vermelho escrevia sátiras nas gazetas libertárias e
em volantes que circulavam nos sindicatos; os sonetos satirizavam Getúlio Vargas
como pai dos pobres e seu ministro Lindolfo Collor.
1936 – Publica a peça Pó de Pirlimpimpim, comédia em três atos, representada no Rio
de Janeiro.
1937 – Outra prisão quando saia da Faculdade de Letras do Distrito Federal – RJ onde
ensinava grego. No cárcere escreveu O delíquio. Aproveita a prisão para revisar seus
estudos de fonética.
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1948 - É publicado Um programa heterodoxo de português nas escolas. Nos dias 17,
18 3 19 de dezembro participa No Congresso Anarquista em “Nossa Chácara” (
propriedade anarquista no Bairro Itaim em São Paulo desde 1939).
1955 – Roteiros em fonética fisiológica, técnica de verso e dicção; Uma gramática [
crítica ao Prof. Silvio Elia].
1957 Publicou: O teatro russo.
1957 – José Oiticica faleceu em 30 de junho de 1957.
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Anexo 3 - entrevistas
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Anexo – Entrevistas
Entrevista com Sônia Oiticica
Foram realizadas e transcritas três sessões de entrevistas pela pesquisadora, com oito horas e
quinze minutos de gravação na casa da entrevistada.
Sônia Oiticica é filha do professor José Oiticica e nasceu em 19 de dezembro de 1918. Além
da convivência familiar, Sônia acompanhou com proximidade as atividades intelectuais de
seu pai. Quando criança foi alfabetizada por sua mãe Francisca Bulhões, freqüentando uma
instituição de ensino, somente a partir da adolescência.
Cresceu lendo os artigos, livros e as poesias de seu pai, José Oiticica, catedrático do Colégio
Pedro II, que era ao mesmo tempo, um ativista das ações da propaganda social anarquista.
Sônia considera que a leitura dos escritos, em especial as poesias de seu pai, foi o que
contribuiu para compreendê-lo em profundidade.
O envolvimento afetivo com o pai estreitou vínculos em várias dimensões societárias. Sônia
chegou a trabalhar como sua assistente nas aulas de grego na Faculdade de Letras do então
Distrito Federal, em 1937, substituindo seu pai em ocasião de uma de suas prisões. No
entanto, Sônia não seguiu carreira da docência.Tornou-se atriz, uma profissional dos palcos e
da televisão. Na família, além do pai, também o seu avô paterno, escrevia peças teatrais.
Tal como o seu pai, Sônia formou uma diversificada biblioteca contendo obras da literatura
nacional e internacional. Sobressaem os livros ligados à história do teatro, anarquismo, e,
além de alguns livros herdados de seu pai com dedicatórias de seus amigos e pares do
trabalho.
A leitura dessas dedicatórias, no tempo da realização das entrevistas, evocou em sua
memória o tempo vivido com seu pai – ora a menina Sônia, ora a moça e a mulher madura
emergiram na tessitura de suas lembranças.
Sônia tinha trinta e nove anos, quando seu pai faleceu. Somam-se, dessa forma, quase quatro
décadas de lembranças. Delas, alguns elementos ajudam a compor as várias faces do
catedrático anarquista do Colégio Pedro II.
Na primeira entrevista Sônia recebeu a visita de Maria Thereza Vargas, sua amiga e
biógrafa no livro Sônia Oiticica: uma atriz rodrigueana?, publicada em 2005. Maria Thereza
participou da primeira sessão, desta entrevista, fez observações e sugeriu bibliografia em
colaboração com esta pesquisa.
O pesquisador Edgar Rodrigues foi quem disponibilizou o contato com Sônia Oiticica.
Seu trabalho, de muitos anos sobre o anarquismo e o movimento operário, vem sendo
utilizado nesta pesquisa, principalmente por abrigarem a memória de muitos militantes
companheiros de José Oiticica. Particularmente, o texto biográfico intitulado “José Oiticica”
do livro, Os libertários de 1993 oferece dados e o inventário da correspondência de José
Oiticica e de sua esposa Francisca Bulhões cedido a ele por Sônia Oiticica. Além de seu
Arquivo pessoal, só é possível encontrar cartas de José Oiticica nos prontuários policiais.
Nossos encontros aconteceram em 18 e 25 de agosto, 01 de setembro (neste não houve
gravação) e 05 de outubro de 2006. No dia 25 de agosto apresentei as fitas transcritas e
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combinamos que as próximas eu apresentaria junto com o relatório para o exame de
qualificação.
Na transcrição fiz uso das seguintes siglas: SO: Sônia Oiticica; MTV: Maria Thereza
Vargas e CARF: Cristina Aparecida Reis Figueira.
Sonia Oiticica - entrevista nº 1 – 18/08/2006 (das 14h15 às 17h30)
SO: Uma coisa da infância – eu tinha 5 para 6 anos, ou 6 para 7, não lembro qual era minha
idade ao certo. Papai estava preso na Ilha Rasa. Era o ano de 1924 e depois ele foi transferido
para a Ilha das Flores. A mamãe e a gente iam lá visitá-lo. A visita era permitida. Nessa
ocasião, na Ilha Rasa, ele escrevia umas coisas e mandava para gente, mandava beijinho para
as filhas. Ele até resolveu fazer umas poesias para os filhos. Ele ficou lá um ano e tanto. Ele,
então, escreveu poesias para a gente. Eu me lembro muito da minha poesia! Ele escreveu
também para a minha irmã Dulce, para Selma. Eu nunca mais me esqueci. Lembro com
clareza de todos os versos. E agora por ocasião do lançamento de meu livro... Você conhece
meu livro? A capa dele está ali na parede. Está perto de outro pôster de novela. São figurinos
de novela. Foram feitos em minha homenagem, quando trabalhei no teatro com as peças A
Falecida e a uma outra peça que eu não lembro o nome. Mas eu tenho um livro que foi feito
em minha homenagem.E neste livro tem a poesia que papai fez para mim. Papai mandou pela
mamãe uma poesia para cada filho. Eram sete moças e um homem: José, Clara, Vanda, Laura,
Vera, Dulce, Sônia e Selma. Então, se você quiser posso escrever ou ditar a poesia.
CARF – Eu quero muito.
SO: Deixa ver se eu me lembro. Do que eu guardo dele, a primeira coisa é isso. É esta poesia.
A gente adorava o papai, brincávamos muito. Eu lembro de várias coisas interessantes.
CARF: Ontem eu estava lendo fragmentos de uma carta que o Edgar Rodrigues publicou em
seu livro Os Libertários, seu pai falava nesta carta sobre os pesares que ele sentia por não
estar junto com os filhos, sobre o prejuízo que isso provocava na educação dos filhos. Mas
leia para mim a poesia.
SO: Ela começa assim:
Soniazinha, soniazinha,
Eu te quero muito bem, (tomara que eu me lembre)
Há muita criança linda,
Mas como Sônia, ninguém.
Ei! quem é que está berrando nesse mato? (é um diálogo heim, aí responde:)
Eu, bem-te-vi!
Como você berraria,
Se Sônia estivesse aqui. (é grande a poesia viu! aí o Bem-te-vi dizia)
Hem! quem é Sônia, seu moço? (ele respondia:)
Você não sabe quem é?
Bem-te-vi, meu sem-vergonha,
É a sexta irmã do José.
Bem-te-vi! Sônia é de fato.
Nunca foi de informação.
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É uma açucena que fala,
É um cravo que come pão.
Quando ri mostra os dentinhos,
Falta um, mas ninguém nota.
Faz duas covas no rosto
Fica linda com o quê!
Já lê como gente grande
E já começa a escrever
Já sabe tocar escalas
Só se vendo para crer.
Gosta muito de balanço,
Arroz, galinha e tutu,
Nasceu , há quase seis anos,
Na terra do sururu.
Por doce é como formiga,
Por sorvete é como o pai.
Toda a rua se alvoroça.
Quando Sônia, à tarde, sai.(pode ser que tenha um verso trocado)
“Que pequena tão formosa!”
Dizem todos, “benza-a Deus!”
As moças lhe atiram beijos,
Os moços lhe dão adeus.
Gosta da mãe que se pela
E é louca pelo papai.
Faz pagodeira na cama
Mas, às vezes, bumba, cai.
Com as irmãs Selma e Dulce
Pinta o sete no quintal
Mas é tudo brincadeira
Travessura não faz mal! (deixa ver se eu me lembro, tem muito tempo, está um pouco
truncado, tem muito tempo)
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É muito bem criadinha,
De gênio bom, muito bom!
Minha Sônia é uma cocada. (risos)
Um brazulaque (brazulaque é um doce lá do sítio), um bombom.(aí o Bem-te-Vi diz:)
Pois então vou ver esse anjo.
Essa menina sem par,
Vou gritar entre as palmeiras
bem-te-vi! E ela há de olhar (aí ele responde:)
Se a quiser ver, em três tempos
Pode estar lá, hum, fosse eu!....(esse fosse eu é muito bem dito - suspiros)
É na Rua Guanabara,
Quarenta e nove, entendeu?
E o bem-te-vi satisfeito,
Bateu as asas e voou,
Levando beijos e abraços
Que o papaizinho mandou...
SO: Acabou! Aí são versos que a vida inteira guardei.Até hoje estão em minha memória.
Pode ser que alguma coisa tenha ficado esquecida, mas no todo é isso. Aí! Então era assim.
Ele como homem, como pai era muito carinhoso! Com o pouco tempo que ele tinha para estar
em casa, ele era muito carinhoso.
CARF: Você tem lembranças do dia-a-dia dele? O que vem mais forte em sua memória?
SO: O dia-a-dia dele era sair de manhã e voltar à noite. Ele saia e ía para o Colégio Pedro II
dar aulas. Depois ele tinha alunos particulares. Depois dos alunos particulares tinha também
os alunos que não tinham dinheiro. Ele percebia os alunos assim. Para estes alunos, meu pai
comprava livros. Quando ele percebia que o aluno era bom, que estudava, ele comprava o
livro e dava para o aluno. Mas se o aluno era vagabundo, ele não dava bola. Ele era assim.
Ele sempre foi uma pessoa muito dadivosa. Eu sou suspeita para falar dele. Eu sempre tive
muita afinidade com ele, mesmo depois... Eu aprendi a conhecer o meu pai lendo as poesias
dele. Todo mundo acha isso aí engraçado. Eu era criança e pouco estava com ele. Mas quando
eu fui para Alemanha - ele levou a mim e a minha irmã mais velha, a Dulce para Hamburgo.
Nessa ocasião, eu li muitas poesias de papai.
CARF: Somente vocês duas o acompanharam nessa viagem? Sua mãe não foi com ele?
SO: É, porque ele não ia levar todo mundo. Ele foi para a Universidade de Hamburgo, em
1929. Eram cinco anos de contrato. Aí veio o raio da revolução em São Paulo, não sei de quê.
E se ele não fosse para lá, iria perder o cargo. E aí, como é que ele ia se arranjar...
Então, ele levou Dulce, para Dulce poder estudar lá. A Dulce tocava piano e prometia ser uma
pianista muito boa. E como Dulce era irmã de Sônia, carregou Sônia junto. Sônia tem até uma
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fotografia em Hamburgo. Sônia era muito enxerida. (risos...) E lá fui eu a bordo do Cantuária
Guimarães, um navio. (risos)
SO: Eu aprendi a conhecer meu pai na Alemanha. Não exatamente no primeiro momento em
que eu estava deslumbrada com o lugar, com o Colégio e sei lá mais o quê. Mas foi com a
leitura de suas poesias que eu o conheci. Lendo as coisas que meu pai escrevia.
Eu nasci no Rio Largo, no Riachão, lá em Alagoas.
Lembro que ele fez uma poesia sobre o Riachão: Riachão...o meu engenho... Eu sabia tudo!!!
E depois eu li as poesias anarquistas que eram geniais!!! Você tem os livros de poesias dele?
CARF: Eu consegui algumas em um sebo do Rio de janeiro. Tenho o livro Fonte Perene.
Não tenho todos.
SO: Os primeiros poemas são lindos!
SO: Temos que descobrir [em minha biblioteca] onde estão os livros dele. Espero que minha
filha tenha guardado em lugares certos. Depois vemos isso. Então, eu aprendi a conhecê-lo
assim. E eu tinha um respeito enorme por ele. Eu o achava formidável. Quando preso, ele
largava a família. Eu lembro da luta de minha mãe para conseguir visitá-lo, e a frustração de
não ter podido ir visitá-lo. E as outras coisas...Eles tinham um código. Isso aí o Edgar já
contou em seus livros. Quando ele quisesse mandar dizer alguma coisa que fosse censurável,
ele botava Oiticica. Ele escrevia em maiúsculo, tudo bonitinho, como se fosse um endereço.
Aí, nas entrelinhas ele escrevia com limão. Chegava lá, ela passava a ferro e lia o que estava
escrito. Isso era uma coisa que eu achava incrível! escrever com limão.
CARF: O Edgar Rodrigues publicou alguns trechos dessas cartas em seu Livro Os
Libertários.
SO: Eram recados. Tinham umas cartas que eu achava maravilhosas. Eu achava aquilo
formidável. Dei todas as cartas ao Edgar.
CARF: Eu encontrei duas cartas de Hamburgo que seu pai enviou ao Coelho Netto.
Encontrei-as na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Vou trazê-las a você em nosso
próximo encontro. Uma delas é engraçada. Seu pai escreveu para a esposa de Coelho Netto.
Ele a tratava por comadre. Na carta, ele fala sobre as mulheres de Hamburgo. Ele as descreve.
Não diz que eram feias explicitamente, mas da a entender algo assim. Só que faz isso de um
jeito engraçado. Diz que elas tinham um cheiro forte que afastava os homens. Dizia isso de
maneira engraçada. (risos)
SO: Essas cartas eu não tenho.
CARF: Eu vou trazê-las a você em nosso próximo encontro. Eu copiei estas cartas do
Arquivo e Documentos da Biblioteca Nacional.
SO: Eu tenho uma dedicatória do Coelho Netto para ele e do Hermes Fontes. Tenho vontade
de botá-las em um quadro. Deixa ver se eu as tenho. Tem uns livros de papai com umas
dedicatórias interessantes.
CARF: Se você não encontrá-las, podemos ver essas cartas no nosso próximo encontro.
CARF: De ontem para hoje eu fiquei muito ansiosa e feliz com o nosso encontro. Pensei
sobre uma série de assuntos para conversarmos. Cheguei a escrever algumas coisas, com
receio de esquecer o que era importante falar em nosso encontro. Mas a nossa conversa está
fluindo bem assim. É melhor deixar vir as lembranças.
SO: Mas a gente sempre se esquece.... E dá raiva quando isso acontece... e aí vem a
lembrança do que se queria dizer e não disse!
CARF: Ah!! mas se você gostar dessa nossa conversa, eu posso voltar. Nós podemos fazer
esta nossa conversa aos pouquinhos... Assim vamos dando tempo para lembrarmos de tudo
juntas. Lembrarei o que tenho que perguntar e você sobre o que quer dizer.
CARF: Olha: eu achava que o professor Oiticica tinha viajado com toda a família para
Hamburgo.
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SO: Depois mamãe foi. Só um ano depois.
CARF: Vocês viajaram em 1929 e lá ficaram até 1931?
SO: Ficamos até 1931 ou 1932.
CARF: É um papel pequeno o que você está procurando.
SO: É uma fotografia.
CARF: Olha esta fotografia.Parece que vocês estão em Hamburgo.
SO: É em Hamburgo. Esta é a mulher do Consul, esta é minha irmã e esta sou eu.
SO: Minha irmã Dulce quase morreu em Hamburgo. Ela fez uma operação no rosto, por causa
de um dentista barbeiro. Papai tinha tanto cuidado com os dentes da gente! O cara foi quebrou
o dente dela. Ele disse que o dente dela estava cariado, mas ele atingiu um nervo, infeccionou
- e quase que ela morreu por causa disso. Naquela época não tinha penicilina e nem nada.
Papai queria processá-lo, mas os amigos o aconselharam a não fazer o processo, pois era
grande a chance de perder o processo. Isto por estar em outro país, em um país estranho.
CARF: Imagino a aflição dele.
SO: A agonia dele era enorme! Ele ficava pensando como que ia dizer à mamãe que Dulce
tinha morrido.
SO: Quero achar o cartãozinho de Hermes Fontes.
CARF: Eu gostaria que você falasse um pouco sobre os afetos e os desafetos do seu pai no
Colégio Pedro II. Ele não tinha pares para compartilhar suas idéias, não é?
SO: Ninguém. O Coelho Netto era amigo do meu pai e havia um professor que falava
horrores de papai. Até escreveu artigo contra papai. Era o João Ribeiro.
SO: Eu me lembro muito bem que em Hamburgo, papai tinha alugado um quarto grande e um
menor. O menor era para minha irmã e eu. O quarto dele, era a sala dele. Era o quarto maior e
tinha que ter uma mesa grande para ele escrever. Era também lá que ele dava as aulas dele.
Então, ele escreveu um artigo em resposta ao artigo de João Ribeiro. O professor do Colégio
Pedro II. Papai mandou este artigo para que Coelho Netto mandasse publicar no mesmo
jornal. O artigo de João Ribeiro chamava-se: Ódio velho. E o de papai chamava-se Ódio de
velho. Ele publicou no Correio da Manhã ou em outro jornal. Eu não tenho, mas seria
interessante procurá-lo.
CARF: Vou tentar encontrá-lo na Biblioteca Nacional.
SO: Se você encontrar, vai ser uma alegria. Eu achei o artigo, este debate uma coisa
maravilhosa! Papai adorava responder os ataques.
CARF: Há um opúsculo de seu pai chamado Uma gramática- crítica ao professor Silvio Elia.
Ele diz no texto da introdução, que o livro todo é uma resposta ao professor Silvio Elia, que
discorda do seu pai sobre assuntos de gramática. Eu encontrei este livro em um sebo do Rio
de janeiro. Eu também consegui o livro em Silvio Elia que faz referência ao Professor
Oiticica, de um jeito bem irônico. Acho que pode ser interessante entrecruzar a forma de
argumentação de um e de outro, sem, no entanto, discutir as questões de gramática propostas
por um e por outro, mas com o objetivo de mostrar a forma como seu pai procedia nos
debates. Parece que ele adorava um debate.
SO: Sim. Ele adorava debater. Eu tenho esse livro. Tem uma outra coisa que eu não tenho,
mas que está nos jornais lá do Rio. É um artigo em resposta, uma réplica à polêmica contra o
padre Leonel Franca.O último artigo que deveria ser publicado no jornal era justamente um
em favor de meu pai, mas não foi publicado. Era um artigo contra o padre Leonel Franca.
CARF: O Edgar falou disso para mim. Sugeriu que eu procurasse em Campinas. Ele também
não tem. Se eu achar entrego uma cópia a ele e outra a você.
SO: É um debate pelo jornal. Dizem que...
Durante algum tempo procuramos o cartão que Hermes Fontes enviou ao pai de Sônia que
desejava muito ler a dedicatória neste cartão...
SO: Não é possível eu tenho que achar esta dedicatória.....
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CARF: Nesta parte da estante estão os livros sobre o anarquismo. Muitos deles são do Edgar
Rodrigues. E as cartas de seu pai, você ficou com algumas delas?
Por volta das 16h 00....
Sonia recebeu em sua casa uma amiga: Maria Thereza Vargas. Ela é amiga e autora da
biografia de Sônia: Sônia Oiticica: uma atriz rodrigueana?, publicado em 2005 pela Cultura
– Fundação Padre Anchieta e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Ela informou-me
sobre umas fichas de aulas preparadas pelo professor Oiticica, sobre Aristófanes. Quem
menciona essas fichas é o Antonio Arnoni Prado em seu Livro Palcos, trincheira e letras.
Elas, provavelmente, estão em Campinas, no Ael, diz Maria Thereza. Ela indicou também o
livro: Mario Lago – boemia e poética de Mônica Velloso. Neste livro, Mario Lago conta suas
memórias sobre o professor José Oiticica e os seus jogos de capoeira no Colégio Pedro II. Ele
considerava-o com uma personalidade que destoava do contexto do Colégio, principalmente
por se igualar aos alunos e por tratar com igualdade também os funcionários do Colégio.
Trata-se de um depoimento com as impressões de um aluno que podem ser importantes para
esta pesquisa.
SO: Eu dei todas as cartas de meu pai para o Edgar Rodrigues. Umas ele entregou para o
pessoal dos anarquistas e outras que interessaram a ele, ele publicou, inteiras ou em partes.
Tudo está com ele.
CARF: Talvez ele me empreste as cartas para leitura e fotografias. Enriqueceria esta pesquisa
e podem mostrar pistas que destaquem a face do autor e educador. Sobre a militância
anarquista, há os textos do Edgar Rodrigues. Ele já me indicou os livros. Mas sobre as fichas
usadas na pesquisa de Antonio Arnoni Prado só vou conseguir encontrar se tiverem no
arquivo. Até agora só conto com o Edgar.
CARF: Eu li um texto do Segismundo sobre Oiticica que me deram lá no Arquivo Nudon que
fica no Colégio Pedro II. Percebi que ele retirou a maior parte das informações do texto de
introdução do livro Ação Direta, escrito pelo Roberto das Neves. Eles falam que o professor
Oiticica freqüentava o Rosa Cruz. Como é isto Sônia?
SO: Rosa Cruz é uma coisa que toda vida papai cultuou. Ele buscava conhecer a existência
verdadeira da essência do homem. Queria saber o que é o homem é, e o que ele não é. Papai
andou por Secas e Mecas, até que aportou no Rosa Cruz.
CARF: E na Rosa Cruz, ele freqüentava desde quando, você lembra?
SO: Eu não sei. sobre o Rosa Cruz. Ele nunca deu uma palavra sobre isso. Ele só convidava
para as palestras, mas eu calculo que tenha sido por volta, deixe-me de pensar.... Eu digo isso
depois para você.
CARF: Sônia e a Escola Dramática do Rio de Janeiro? Você lembra do trabalho dele nessa
escola?
SO: Na Escola Dramática do Rio de Janeiro, ele foi professor durante muito tempo. Foi o
Coelho Netto que botou ele lá.
CARF: Ele dava aulas de prosódia?
SO: Prosódia, para ensinar a falar. Era um curso para ensinar dicção.
CARF: Estou pensando sobre as cartas de seu pai. Seria importante examiná-las para compor
o perfil do educador nas instituições de ensino e fora delas. Vou pedir ao Edgar para
fotografar e ler estas cartas.
SO: Acho que ele pode.
CARF: Eu vou utilizar os livros dele, lá estão suas memórias. Mas eu acho também
importante ler as cartas, porque deve haver trechos que são importantes para enfoque da
minha pesquisa. Ele tem me ajudado apesar de ter muitos problemas de saúde em casa.
SO: Eu gosto muito do Edgar.
SO: O papel que estou procurando é uma desculpa do Hermes Fontes por não ter ido a um
aniversário. É muito interessante! Queria mostrar.
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CARF: Deve estar guardado. Fique tranqüila. Quem sabe se em nosso próximo encontro você
encontra este cartão e me mostra.
Eu queria que você contasse mais sobre o trabalho de seu pai na Escola Dramática do Rio de
Janeiro.
MTV: Esta escola é a Martins Pena..
CARF: A senhora também é historiadora?
MTV: Eu sou uma pesquisadora. Eu fui pesquisar justamente nesta escola. Que era uma
escola do Distrito Federal. Mas lá é muito complicado. Lá tinha uma secretária que jogou
todos os documentos fora. Ela achava que era lixo. Isto dificulta a pesquisa
SO: Nem sei como você conseguiu falar sobre o Teatro no Brasil. Ela tem vários livros sobre
o teatro no Brasil.Eu não sei como ela conseguiu escrever todos os livros.
MTV: Precisa ver se também no Jornal O Correio da Manhã . Investigar sobre o que Oiticica
escreveu sobre educação.
CARF: Tem a seleção feita por Roberto das Neves no livro Ação
Direta . Tenho cópia de exemplares da revista Crônica Subversiva com artigos de Oiticica.
Consegui levantar boa parte de seus livros. Vou reunir o que eu puder.
CARF: Sônia: o Coelho Netto. Ele era muito próximo de Oiticica? Como era a amizade entre
eles?
SO: Coelho Netto morava na rua do Rozo, que hoje se chama Coelho Netto. Moravam
próximos. Meus pais visitavam a Dona Gabi e o Coelho Netto. Um dia, eu e minhas irmãs
fomos para a janela fazer bagunça. Pegamos um copo cheio de água com jornal dentro, e
assim todo mundo que passava na calçada, elas jogavam os papéis. Quando elas foram
jogando estes papéis, uma delas viu que era papai e mamãe que estavam passando. (risos).
Coelho Netto e Dona Gabi eram padrinhos de minha irmã Vera e o Viriato Coelho padrinho
de Selma.
CARF: Nas cartas que eu encontrei na Biblioteca Nacional. Oiticica pede a Coelho Netto
mandar sua gramática para ele usar em Hamburgo. Parece que os dois trocavam opiniões e
usavam o material um do outro.
SO: Eu já tive vontade de ir ao Rio fuçar na Biblioteca Nacional, mas não dá, agora não é
mais possível.
SO: Papai chegava na classe e dava bom dia aos alunos. Os alunos tinham que se levantar
com a chegada dos outros professores, mas nas aulas de papai não.
Aí, papai perguntava a eles qual era a primeira coisa a se fazer. Aí, todo mundo tirava a
roupa, tirava o paletó. Era um calor no Rio!!! O uniforme era caqui e com uma gravata. Então,
ele dizia: “Como é que é?” E os alunos tiravam a gravata e o casaco e ficavam todos à
vontade, só de camisa na sala de aula. Aí, um dia, o diretor do Colégio passou uma vez e falou
com ele: “professor sua classe fica com todo mundo muito esquisito!”. Aí meu pai disse:”Na
minha classe mando eu!
CARF: Mario Lago foi aluno de Oiticica e ele o cita pitorescamente em vários livros. Ele
conta que Oiticica aprendeu capoeira. Por que ele aprendeu capoeira, Sônia?
SO: Ele aprendeu capoeira para se distrair quando ele estava na prisão. Eles faziam concurso
de capoeira para se distraírem. Lá não tinha o que fazer. Era uma coisa horrível! Já pensou!
MTV: O Mário Lago diz que ele aprendeu com o bedel Manoel. Ele diz que foi o bedel quem
o ensinou a jogar capoeira.
SO: Isso eu não sei.
CARF: Sônia, como o professor Oiticica levava suas idéias anarquistas para a sala de aula?
Ele falava sobre isso em casa? Imagino que ele devia sofrer com a convivência com alguns
professores de lá. É possível que ele buscasse formas para trabalhar suas concepções
educacionais, e ao mesmo tempo ter que interagir com os outros professores que trabalhavam
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com outros valores, penso eu....talvez ele usasse estratégias para lidar com todas as
dificuldades de lá. O que você pensa sobre isso?
SO: Ele agia... Colocava suas idéias em prática. Por exemplo, aquele negócio que eu contei
sobre os alunos tirarem o paletó e a gravata na aula. Aquilo era uma espécie de rebeldia, de
independência que ele ensinava aos alunos.
CARF: Sônia, nas memórias do prof. Geraldo Pinto Vieira, do Colégio Pedro II, ele me deu
uma entrevista. Ele conheceu o professor Oiticica na banca do exame de admissão. O
professor Geraldo foi aluno, bedel e professor de História no Colégio Pedro II. E, hoje,
aposentado, ele vai mesmo assim no Colégio para cuidar do Arquivo do Nudon . Foi ele quem
me recebeu no Colégio Pedro II, agora em julho. Ele me disse que havia uma banca de jornais
e revistas, bem em frente ao Colégio e que o seu pai levava os jornais anarquistas para serem
vendidos nessa banca e assim os alunos podiam conhecer esses jornais. Na certa era uma
forma dos alunos adquirirem o jornal.
SO: Isso eu sei. Ele levava os jornais para a banca.
CARF: Eu tenho um livro do seu pai com o título Uma gramática. Este livro ele publicou em
resposta ao professor Silvio Elia. Ele discordou do seu pai sobre o uso da partícula “SE”,
sobre assuntos de fonética, e outras coisas. É interessante ler o texto da introdução, que
mostra a disposição que o seu pai tinha para o debate. Parece que esta era uma marca de seu
pai. Lá no Pedro II, encontrei um resumo de uns programas de rádio que o seu pai fez em São
Paulo, é muito interessante. Eu fotografei e deixei lá uma cópia digitalizada. O exemplar
estava se desfazendo. Agora está lá, disponível para outras consultas. Vou trazer uma cópia
para você. Você se lembra desse programa?
MTV: Quem foi esse Silvio Elia?
CARF: Silvio Elia foi um gramático, filólogo. Ele tem livros de gramática, lingüística e
filologia. E ao que parece, entre ele e Oiticica havia uma guerra no campo da idéias. Tinham
muitas oposições, parece que em vários assuntos.
SO: Papai adorava estas polêmicas.
MTV: O Oiticica deu um curso nessa rádio. São aulas de português.
SO: primeiro foi na rádio lá do Rio de Janeiro.
MTV: era um programa de Cid Franco, pai do Walter Franco. Ele já morreu.
Nesta altura da entrevista a Maria Thereza Vargas encontrou o livro sobre o Mario Lago e leu
as páginas 60 e 61, O livro tem o título: Mário Lago Boemia e Política, escrito por Mônica
Velloso. Nestas páginas foram registradas as memórias de Mário Lago sobre o Prof. Oiticica.
Ele aconselhava aos alunos lerem com atenção os noticiários de jornais e argumentava que
esta era uma forma de conhecer o mundo fora dos livros escolares. Ela leu o trecho que
transcrevo abaixo:
Mário se atraia pelas atitudes irreverentes de Oiticica. Confessadamente anarquista, o
professor chocava a muitos pela maneira descontraída e amigável com que tratava os
serventes e alunos. Nos intervalos das aulas, costumava se dedicar à capoeira,
ensinada pelo servente Manoel.
Para os padrões de comportamento da época, o fato era simplesmente chocante. Como
um respeitável professor se rebaixava à condição de aluno? E ainda por cima se fazia
aprendiz de um servente! Por esse tempo, a prática de capoeira era duplamente
condenada: como expressão da cultura afro-brasileira e também pelo uso que dela
faziam algumas facções políticas.
Na capoeira o sujeito enfrentava diretamente o adversário; preferia seduzi-lo num
espaço circular, onde ele procurava esquivar-se dos golpes, dançando e saltando
matreiramente .[...]
No centro do pátio, Manoel e José Oiticica se encaravam. Gingavam nos calcanhares
e, rápido, lá ia uma perna pro ar, enquanto o braço ficava forte, sustentando o corpo no
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chão. Para os íntimos, o servente Manoel atendia pelo nome – um apelido que ele pôs
no servente: o “Piroca”.
MTV: Mas eram moldes anarquistas, essas coisas meio safadinhas... (referindo-se ao
apelido).
SO: Meu pai fazia assim, por exemplo: tinha um aluno lá assim bem pretinho que chamava
Napoleão. Então ele dizia assim: “Você não tem cara de Napoleão, você é negrinho, eu lhe
dava outro nome”. Um dia, anos depois ele encontrou esse aluno na cidade que falou: “Oi,
professor, sou eu o Fulano de Tal, dizendo o apelido que papai havia dado a ele. E meu pai
dizia: “Oi, como vai? e dizia o apelido. Meu pai rebatizava os alunos. Ah, ele dizia: De
repente vem um aluno com uma carinha assim e chamado de Napoleão, não combina! E o
garoto achava engraçado e passava o resto da vida com isso na memória.
SO: Encontrei um livro com uma dedicatória a papai da Sociedade dos Artistas Nacionais.
Interessa?
CARF: Interessa sim.
CARF: Quantas vezes o professor Oiticica foi preso? Você lembra, Sônia?
SO: Das prisões maiores sim. Uma foi em 1918, quando ele foi deportado para o Riachão, em
Alagoas, quando eu nasci. Quando ele estava preso, deram essa opção a ele. Ele aceitou com
uma condição: “Só vou se minha mulher e meus filhos forem”. Mamãe estava me esperando.
Três dias depois de terem chegado lá, eu nasci. Aí , eu vim de lá para o Rio de Janeiro, parece
que com cinco ou seis meses. Agora, quando ele foi preso isso eu não sei. Depois, ele foi
preso de vez em quando assim: dois dias, um dia. No governo de Getúlio, em 1937 e também
na revolução comunista [1935]. Numa delas eu morava na Rua Paissandu. A pior de todas foi
a de 1924. Na prisão de 1937, eu lembro de um fato que me faz tremer nas estribeiras quando
eu começo a me lembrar. Eu não esqueço! Eu tinha estudado grego com ele. Papai foi preso e
sabe do que ele me encarregou? Dar as aulas de grego na Faculdade de Letras do Distrito
Federal. Lá fui eu como assistente do papai. Eu morria de medo! Tinha uns caras muito mais
velhos do que eu lá! Lá ia eu com a aulinha de grego feita por ele, é lógico! Isso foi em 1937
ou 1938, não lembro ao certo.
CARF: Isso me faz lembrar das minhas primeiras aulas, que medo!!!
CARF: Sabe, Sônia, uma coisa que quero fazer é verificar nos jornais anarquistas, nas
convocações da propaganda social, os temas discutidos por Oiticica em suas conferências.
Tudo isso que vocês me contaram nesta entrevista - tanto a Maria Thereza, referindo-se às
memórias de Mario Lago, a coisa da capoeira, do tratamento que ele dava aos alunos e
funcionários, como também aquilo que você contou sobre os alunos assistirem à aula dele
sem casaco e gravata. Todas essas informações, mais aquelas que podem ser retiradas de seus
livros e artigos, dão para escrever sobre as ações de educador Oiticica dentro e fora da escola.
Procurar saber sobre os temas privilegiados dentro e fora do Colégio. De certa forma, são
elementos para a reconstituição de sua trajetória como professor tanto nas instituições como
fora delas.
CARF: Eu li na introdução de Roberto das Neves, no livro Ação direta, que o seu pai em
1906, no Leme, Rio de Janeiro, fundou o Colégio Latino-Americano com a sua mãe. Você
ainda não era nascida. Mas fico pensando que podem ter surgido comentários posteriores de
seus pais sobre essa experiência. Você lembra de algum comentário sobre esse colégio?
SO: Sobre isto eu não sei muito bem. Eu sei sobre uma escola em Santa Catarina. Ele tinha
ido ser professor, não sei para o que ele tinha sido chamado para fazer. Mas eu sei muito
pouco sobre isso. Parece que ele foi e ficou lá dois ou três anos e voltou para o Rio de Janeiro.
Antes do Pedro II, ele abriu uma escola dele. Mas ele teve que fechar por causa de uma
modificação do ensino que ele não concordou. Então fechou essa escola. Houve também a
escola do Leme, no Rio de janeiro, chamada Colégio Latino-Americano. Ele contava para
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gente que os alunos, quando chegavam as férias, não queriam voltar para as suas casas não.
Queriam ficar lá na escola, pois lá eles se divertiam. Tinha internato e externato.
MTV: Mas, Sônia, com que dinheiro seu pai abriu um internato. Ele tinha dinheiro ou o seu
avô era rico?
SO: Mas eu não sei se era externato ou só internato, eu não tenho certeza. Eu não sei como a
escola foi aberta. Eu sei que os alunos adoravam a escola e não queriam ir para casa nas
férias. Ele saía com todo o mundo para dar as lições dele. Ia com todo o mundo para estudar e
ver, por exemplo, em loco as plantas. Aí, então, ele mostrava como era isso, como era aquilo.
Então os alunos gostavam, se interessavam pelo assunto. Mas eu não sei muito.
CARF: Dos professores do Colégio Pedro II, de quais, além do João Ribeiro, que você já
falou, o professor Oiticica não gostava?
SO: Havia alguns que ele não gostava porque faltavam à aula, davam as coisas erradas. E ele
ficava por conta! Que tinha, tinha.
(Pausa para o café....)
CARF: Quando você mudou para São Paulo?
SO: Eu vim para São Paulo, pela primeira vez em 1958, depois da morte de papai.
CARF: Eu li na introdução de Roberto das Neves, no livro Ação direta, que quando seu pai
morreu em 1957, você ficou a frente daquele jornal . Como foi o trabalho no jornal?
SO: Aquilo foi uma coisa boba. Eles cismaram e vieram pedir o meu nome para o jornal não
parar. Mas eu não entendia nada de jornal. Eu nunca tinha trabalhado com jornal. Depois
tiraram logo o meu nome. Acho que teve só uns três números.
SO: Lembrei de mais uma coisa sobre o meu pai. Nos feriados prolongados, meu pai alugava
uma casinha de pescador, em uma dessas praias, de Cabo Frio, daquela região de praias
tranqüilas e ficava lá com amigos. Geralmente dona Amélia, gente afim com ele. Aquilo era
sagrado. Minha mãe já sabia e dava graças a Deus de ele ir descansar um pouco. Mas só que
ele descansava escrevendo. O descanso dele era carregando pedra. Engraçado!
CARF: Nos artigos escritos em razão da morte de seu pai, há alguns que comentam que o seu
pai era defensor do parnasianismo e que ele não gostava dos modernistas. Ele falava com
você sobre isso?
SO: Esse negócio que diziam sobre ele defender o parnasianismo era ridículo. Ele dizia: “As
pessoa s cismam que eu sou defensor do parnasianismo, eu não tenho nada a ver com isso”,
ele dizia. O papai era um anarquista que gostava de algumas coisas da natureza. No mais era o
jeito dele. O Manuel Bandeira, quando papai morreu fez foi um desabafo. Antes papai tinha
criticado uma poesia, que papai acho horrível do Ledo Ivo. O Bandeira tomou as dores do
Ledo Ivo, pela crítica de papai. Três dias depois de papai ter morrido escreveu um artigo com
muitas indiretas e veio com essa de dizer que papai era um adepto do parnasianismo, que
papai não tinha veia poética e que os livros de papai iam ficar esquecidos.
CARF: Os livros de seu pai foram adotados e ficaram conhecidos.
SO: Todo mundo, hoje você sabe que este português que ensinam hoje não funciona. Essa
coisa de aprender a linguagem coloquial, para mim é aprender o português errado. Não é
necessário escrever rebuscado. E só escrever direito, certo, expondo idéias de um jeito
simples.
SO: Papai tinha paixão pela língua portuguesa. Ele dizia que não havia língua mais bonita e
mais musical. Ele falava e estudava também outras línguas. Papai era poliglota. Ele tinha
paixão pela nossa língua portuguesa. Ele escreveu e defendia a língua. Não deixavam deturpá-
la.
CARF: Na carta que o seu pai escreveu para o Coelho Netto, que eu vou trazer para você em
nosso próximo encontro, ele ressalta a musicalidade da língua portuguesa e que ele explicou
isso nas aulas. Ele queria usar as obras de Coelho Netto na Universidade de Hamburgo. Mas
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isso não foi possível, pois ele não tinha um número de livros suficiente para os alunos. Ele
também pediu ao Coelho Netto que lhe mandasse sua gramática com urgência.
Então, Sônia e Maria Thereza eu agradeço muito pela entrevista e ficamos com o nosso
próximo encontro para a próxima sexta-feira.
Entrevista nº 2 – 25/08/2006 (das 14:00 às 16:00 h.)
SO: Eu tenho a carteira profissional de papai, mas ela está em algum lugar desta biblioteca,
assim que encontrá-la eu te empresto. Hoje vou te contar sobre a fraternidade Rosa Cruz.
Meu pai fazia análise do Evangelho. Isto é uma história longa.
Olhe, estes documentos foram publicados pela fraternidade Rosa Cruz. Eu vou te contar sobre
isso.
Papai, desde rapazinho sempre teve uma coisa na cabeça: queria saber o que é o homem.
Descobrir os mistérios da existência, conhecer sobre a natureza humana, mas sobre os seus
mistérios. Ele até freqüentou o espiritismo para ver como era. Mas nada daquilo ele aceitava.
Lá em casa ninguém sabia sobre seu trabalho na fraternidade. Mas quando havia palestras ele
me levava. Um dia ele me disse: “Minha filha, todo mundo estranha que eu seja esotérico e
anarquista, mas ninguém sabe que as duas coisas são a mesmíssima coisa: ambas se
combinam completamente. E é verdade! O que uma diz, a outra confirma. Isso pode ser
explicado com esta frase que vou ler para você:”Desejo sinceramente a felicidade perfeita a
todos os meus irmãos”. É uma filosofia muito interessante. Ele adotou esta filosofia para a
vida dele. Para ele isso foi uma grande descoberta.
CARF: Seu pai escreveu sobre o trabalho na Fraternidade Rosa Cruz?
SO: Ele escreveu muita coisa, mas internamente. Tem muita coisa sobre isso.
Vou perguntar a Dulce se ela sabe onde está a carteira profissional de papai. Todas a minhas
irmãs vivem no Rio de Janeiro, restam quatro: Vera, Dulce, Selma e eu.
Estas coisas o meu pai escrevia para conversar com a gente é um triângulo pitagórico com 10
pontos da vida escritos no triângulo pitágorico, gravados - aquele que interpretar os 17
pontos, os 7 pontos matemáticos ocultos [...] encontrará neles as séries ininterruptas das
genealogias desde o primeiro homem celeste ao homem terrestre. [...] esotérico ou mônada
pitagórica, mona é uma unidade no sentido primário. Então aqui tem a explicação dos pontos
pitagóricos. Isso é bem diferente de anarquismo, não é? Um ponto corresponde à unidade;
dois pontos formam a linha; três pontos a superfície; quatro pontos, o solo.; o ponto do vértice
é a mônada primeira, a número três representa a forma, ou melhor a sua origem. Pitágoras
considerava-se autor das causas sublunares. O casamento no mito grego, o ponto é o
sacerdote, símbolo do primeiro logos manifesto, o noivo é filho - o segundo logos manifesto,
a noiva é mãe [...] O espaço é a unidade viva do mundo real. Estas são algumas lições do Rosa
Cruz. Eu vou te emprestar estes livros do meu pai e também as fotos. Você me traz quando
voltar.
Veja estas fotos. Esta foto meu pai está com uma cara meio risonha, porque ele aceitou uma
homenagem da Esso, entregando-lhe uma medalha de honra ao mérito. Ele achou isto uma
coisa estúpida da parte dele. Por isso ele tem este riso irônico no rosto. Mas isto era bobagem.
Vou ler um poema que meu pai fez para os irmãos da fraternidade.
O modelo
Se queres que outros creiam
Crê primeiro
Faze-te boa nova, acende-a em ti
Só terás gestos e áurea de pioneiro
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Se tua alma for surto e frenesi
Quem deseja arrastar ao seu oteiro
Tribo e sem deus precisa ser Davi
Ter uma arpa, ter juntas de guerreiro
Saber cantar e combater por si
Ser mais tu, mais alguém, mais por onde
O sem par, o sozinho, o último, o herói
O que põe no melhor toda virtude
Torna-te exemplo,
o exemplo é que constrói
Finja até que o teu sonho não te ilude
E que a tua amargura não te dói
02/03/1955
Aos irmãos menores nesta data tão linda,
com profundo pensamento de reverência e amor.
José Oiticica.
SO: Olhe só esta e uma outra poesia de meu pai que não foi publicada em lugar nenhum. Vou
ler para você. Cajusinha é como chamava o Cajusa. Essa poesia meu pai fez fazendo graça.
Eu mesmo
Este rapaz bonito é o Cajuzinha
O autor de Ode ao Sol e dos Sonetos.
Cara de ganso com bigodes pretos,
Pai do José, da Clara e da Vandinha
Ama aos pais, aos irmãos e à Sinhazinha
Prefere os versos sérios aos facetos,
Os largo ma non troppo aos alegros
É doido por banana e cocadinha.
Procura fazer tudo com arte e plano
Quer ser sábio e não sabe patavina
Gosta do Ruy, não gosta do Herculano.
Sonha fundar a sociedade nova!
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Nasceu, vive e, segundo a lei divina.
Há de acabar, que espiga, numa cova!
José Oiticica
CARF: Essa letra é sua ou de seu pai?
SO: É minha, todos dizem que eu tenho a letra parecida com a dele.
CARF: O seu pai teve a experiência de perder um filho?
SO: Não. Só mamãe. Papai morreu antes.
Logo após a morte de papai, Clara morreu. Ela tinha muita afinidade com papai. Lecionava
Português, como papai.
Esta estante de livros era de papai. Ele gostava que os livros ficassem arejados para evitar
cupim, mas mesmo assim o cupim vinha!
CARF: Sônia quando o seu pai estava preso, como sua mãe procedia para dar conta de tudo?
Houve um período em que o salário dele foi cortado. Eram muitos filhos, como sua mãe se
arranjava nesta situação?
SO: Minha mãe fazia biscoitos. Todas as pessoas conhecidas compravam não só para ajudar,
mas também porque eram deliciosos. Mamãe vendia-os também para a Confeitaria Colombo.
Coelho Netto ajudava muito. Nós tínhamos muitos amigos. Papai ficou uma vez um ano e três
meses preso. Não foi brincadeira! Primeiro foi a Ilha de Bom Jesus, depois a Ilha das Flores e
depois a Ilha Raza. Quando ia para Trindade, mudaram de idéia, sei lá por que e
conseguiram que ele fosse para Alagoas, isso foi em 1918. Minha mãe estava grávida de mim.
Eu vou, mas com minha mulher e meus filhos. Então eu nasci lá no Riachão. Era uma coisa!
Uma aflição! Mas meus pais se entendiam muito bem. Minha mãe sentia uma falta enorme de
meu pai. Além disso, havia as dificuldades financeiras. Foi muito triste e duro!. Há uma carta
em que eles estavam combinando de sair da prisão. Mas meu pai não achou isso certo. Então
meu pai escreveu para minha mãe e disse que tudo ficaria ao critério dela. Dei esta carta ao
Edgar Rodrigues e ele publicou em um de seus livros. Você deve ler esta carta. Eu não tenho
mais nenhuma carta. Dei todas elas ao Edgar Rodrigues.
Vou lhe emprestar este livro de sonetos do meu pai. São os primeiros sos dele. São todos
assim: a primavera, o inverno, a solidão o mar , a floresta.
CARF: Este opúsculo da Fraternidade: Padre Nosso está com data de 1958, então foi uma
publicação póstuma.
SO: Você pode levar estes dois livros.
CARF: Você tem em sua memória algo sobre as conferências anarquistas? Você acompanhou
seu pai nessas conferências?
SO: Não lembro. Ele ia sozinho. Mas quando tinha festa ou palestra. Minha mãe também
acompanhava. Havia conferências que não eram anarquistas, mas do ponto de vista que ele
falava, todo o mundo percebia que a mensagem era anarquista. Ele dizia o que tinha que dizer.
As vezes o assunto era português, as vezes eram outros assuntos, mas sempre havia algo sobre
o anarquismo. Ele sempre dizia o que tinha que dizer, não escondia nada.
CARF: Olha, Sônia: Um cartão de seu pai para a sua mãe:
SO: Leio para você.
O endereço é rua Guanabara, 49
Zinha,
Escrevi-te ontem. O quanto doido para voltar avaliarás por que.Terminamos hoje a
primeira turma de francês e segunda-feira examinaremos a segunda e liquidaremos o
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latim na terça. Não estou decidido a ir a Oliveira ver onde nasci. Se a saudade for mais
forte que o desejo de ir tocarei para o Rio. De qualquer modo te avisarei por
telegrama. Domingo e amanhã deve ser péssimo. Beije as crianças e o teu recebe no
coração.
Cajusa
SO: Minhas costas...
CARF: Sônia, vamos encerrar a entrevista e em nosso próximo encontro devolverei todo este
material. Obrigada.
Entrevista nº 3 – 05/10/2006 (14h30 às 17h30)
SO: Meu pai escrevia sem letras supérfluas, letras duplas, sem dois F. Isso ele aboliu
completamente, os dois L.Se um aluno entregasse um texto com estas repetições, ele corrigia.
CARF: Seu pai falava em seu avô, do pai dele. Eu gostaria de ouvir um pouco sobre as
histórias de família. Você se lembra dessas histórias.
SO: O meu avô eu não lembro muito bem, eu era pequena. Tenho retratos em seu colo.
Lembro que ele precisou ir ao Rio de Janeiro para fazer uma operação.
CARF: Qual era o nome dele?
SO: Meu avô se chamava Francisco de Paula Leite e Oiticica. Então ele teve que ir ao Rio,
pois lá em Alagoas não havia recursos para aquela operação. Então, ele foi ao Rio, operou-se
e ficou hospedado em casa o tempo em que ele estava doente. Eu achava lindo. Nós tivemos
que fazer uma parede de guarda-roupas, isso para nós era uma festa, uma novidade.
CARF: Sabe, no ensaio do livro que o Roberto das Neves publicou reunindo os artigos de seu
pai, ele só menciona o nome do seu avô, ele não diz o nome de sua avó.
SO: Minha avó era Ana Adélia Bulhões Leite e Oiticica. Tem o Bulhões também, eles eram
primos.
CARF: O Roberto das Neves diz que seu avô tinha quatro filhos. Então, o seu pai tinha
quatro irmãos, eles eram cinco.
SO: Meus tios eram o Tio Manuelito, tio Álvaro, tio Chiquito, tio Luís. Eu tenho um livro
que foi uma pesquisa que meu primo fez que conta a história de toda a família. Tem coisas
que estão erradas, mas eu fiz a correção, eu vou te emprestar. Veja: isto vai te ajudar.
Ninguém que escreveu sobre meu pai leu tudo isso. É um livro da família, fala sobre a família
inteira. Ele omitiu muita coisa, pois ele não consultou a gente no Rio, ele só confiou na
memória de quem estava lá em Alagoas. Então, tem erros, mas o principal está certo.
CARF: Eu agradeço e espero fazer bom uso. O seu pai passou a infância em Alagoas?
SO: Meu pai passou, porque meu pai foi para Alagoas com quatro anos, quando o meu avô
foi transferido de Minas. Meu pai nasceu em Minas Gerais. A infância dele foi toda em
Alagoas. Até ele tem lembranças de lá. Assim como eu também nasci em Alagoas. Mamãe
chegou em Alagoas faltando três dias para eu nascer. Então eu nasci lá. Foi quando meu pai
foi transferido da Ilha Raza para cumprir pena no Riachão. Em lugar de ficar na prisão lá na
Ilha, ele pode ser transferido para Alagoas. Ele só aceitou, pois era possível ir para lá com
toda a família. Mas, quando ele era criança ele voltou para Alagoas. Toda a infância
pequenina dele deve ter sido lá em Alagoas. Ele tem uns sonetos que se chamam: As
lembranças. São três sonetos.
CARF: Então, vai ser importante ler esses sonetos para saber sobre a infância dele, pelo
menos sobre os seus sentimentos.
SO: Pois é, eu lhe disse que conheci melhor o meu pai lendo seus sonetos. Eu sei de cor. Os
três juntos chamam-se Riachão.
As lembranças
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Riachão! Remiro o engenho hoje parado
E a Casa Grande junto à capelinha,
O alambique, o curral, a água, o cercado,
Quase tudo que outrora me entretinha.
Quase tudo! Não vejo mais o gado,
O bambuzal, a casa de farinha...
Não sinto agora o cheiro do melado;
A bica d’ água em vão corre sozinha.
Foram-se os cambiteiros...formas, cana
Cresce o capim na antiga bagaceira,
O Gongo mal nas pedras espadana
Ouço o rumor soturno da banheira
E sinto a minha vida, a vida humana,
A fugir-me, a fugir-me sem que eu queira...
Mundaú! Eis a ponte de madeira
E os pés de na fistula na estrada,
O rio tardo, os mulungus à beira;
Sob a ponte morcegos em revoada.
Toda a várzea, ao cair da tarde, cheira.
Chiam carros ao longe...à casa amada
Espera-me e a igrejinha, sobranceira
Surge branca na luz que degrada.
O cavalo vai sôfrego e eu sonhando:
A arapuca, os sanhaços, a almanjara
Coisas de um tempo de nem sei mais quando
Agora pé do oiti, meu velho amigo,
Chorando, junto à usina a que se agarra
As horas idas que vivem comigo!
CARF: Seus pais comentavam sobre como se conheceram?
SO: Eles não falavam muito disso. Mas eles eram primos. Acho que todo mundo lá era
parente um dos outros.
24
CARF: Sobre a sua infância lá no Rio de Janeiro, você lembra onde moravam, de histórias
desse tempo?
SO: Nós morávamos na Rua Guanabara, 49.
CARF: E depois?
SO: Depois tivemos que sair dessa casa.
CARF: Isso aconteceu mais ou menos quando? Você já era mocinha?
SO: Eu tinha 10 anos e fomos para uma outra casa na Rua Cosme Velho. Aí eu já tinha 10
anos , foi aí que eu, papai e Dulce fomos para Alemanha.
CARF: E a sua mãe e seus irmãos ficaram na casa da Rua Cosme Velho?
SO: Mamãe ficou com os maiores e eu e minha irmã Dulce fomos com papai e depois mamãe
foi com todo o mundo, menos o meu irmão que estava fazendo vestibular.
SO: Que coisa engraçada, olha só, tem o sobrenome da Rosa e Calheiros. Por que eu fui falar
sobre isso? Aqui nos escritos sobre o Riachão tem a história de toda a família, olhe, isso aqui
até agora ninguém teve. Tem a história das primeiras escolas do lugar, veja se te interessa.
CARF: Sônia você sabe algo sobre o Colégio-Latino Americano que o seu pai e sua mãe
fundaram no Leme, no Rio de Janeiro, no ano de 1905. Seus pais eram recém-casados. Será
que o seu avô ajudou nisso? Seus pais falavam sobre isso?
SO: Eles fundaram essa escola juntos. Foi fechada por falta de dinheiro. Meus pais falavam
sobre isso. Sabe por que a escola foi fechada? Por causa que as coisas que ele ensinava era
tudo a moda dele, então ele teve que fechar. Ele dizia sempre que nessa escola os alunos
quando chegavam as férias não queriam voltar para casa. Queriam ficar no Colégio.
CARF: Então a escola era um internato?
SO: Era também internato.
CARF: E no bairro do Leme. O Leme devia ser longe de tudo na época, não é ?
SO: O Leme é o princípio de Copacabana.
CARF: Sonia, seu pai fala muito sobre a experiência que teve em um opúsculo que encontrei
no Colégio Pedro II, no Arquivo de lá. É uma conferência que o seu pai deu em uma radio
chamada Cruzeiro do Sul em São Paulo. Foram 15 conferências, sendo que a última alguém
transcreveu e publicou. Ele falava sobre o curso de português que deveria ser dado nas
escolas. Ele lembra das aulas dessa escola no Leme.
SO: Eu lembro que ele dizia que os alunos gostavam muito. Algumas aulas eram ao ar livre,
eles aprendiam brincando e por isso gostavam de ficar lá e não queriam voltar para casa. Mas
nem todos podiam pagar e os que não podiam pagar, não pagavam. Acho que alguns também
não tinham dinheiro para comprar livros. Papai falou uma vez que o governo proibiu escolas
que não seguissem regras. Não sei bem sobre isso.
CARF: Você lembra sobre esse trabalho que seu pai realizava em programas de rádio?
SO: Lembro. Eu fui assistente dele. Olha, neste livro tem um capítulo aqui: “O Batizado”, é
capaz de você achar coisas interessantes aqui.
CARF: Sônia, vocês foram batizados, todos os filhos?
SO: Nós fomos. Minha mãe era católica. Não era assim dessas católicas que não saem da
Igreja, mas ela era católica e papai achou que ela ficaria contente se os filhos fossem
batizados. Então ele deixou que todos fossem batizados.
CARF: As fotos que eu tirei dos retratos não ficaram boas. Você me empresta essas fotos
para que eu possa escanear? Eu devolvo tudo depois.
SO: Pode levar tudo.
CARF: Deixa eu te perguntar de novo sobre as casas de sua infância.
SO: Na Rua Cosme Velho ficamos muito pouco tempo lá. Papai estava procurando uma
casinha menor, porque ia ficar a família e ele ia embora para Alemanha. Esta casa na Rua
Cosme Velho era uma vila com três casas. Isso foi em 1929, o ano que fomos para a
Alemanha.
25
CARF: Seu pai fala nas cartas que ele enviou a Coelho Netto sobre como eram as suas aulas
na Universidade de Hamburgo. Ele conta que reunia os alunos para que pudessem conversar
em português. Outra coisa, ele ficou bem bravo com a decisão de o governo aprovar todos os
alunos em 1930 e pediu para Coelho Netto colocar os seus protestos em algum jornal.
SO: Deve ser porque com a Revolução de 30 todo mundo passou naquele ano. Foram
suspensas as aulas, então acho que foi por isso que todo mundo passou. Papai era enérgico
com as provas dos alunos. Só era mais tolerante com os alunos que ele via que eram
esforçados. Com esses ele tinha uma paciência enorme, mas com quem ele percebia que era
preguiçoso, ele não gostava. Eu me lembro que o meu pai ficou desesperado porque
mandaram chamar ele de volta para o Brasil. Ele estava fazendo um trabalho interessante lá,
inclusive sobre as línguas sul-americanas, e ele teve que vir embora. Ele ficou triste, porque
tinha um contrato de cinco anos.
CARF: E quando vocês voltaram foram morar onde?
SO: Deixa-me ver... voltando da Alemanha....[...] Nós fomos morar na casa que mamãe tinha
alugado. Antes de voltar, nós fomos a França buscar mamãe. Nesse meio tempo, minha irmã
Dulce quase morreu, porque ela foi num desses dentistas “maravilhosos” que fez um corte
muito fundo nela. Ela tinha acabado de ir ao dentista e estava tudo bem. Papai tinha um
capricho com os nossos dentes. Ele era muito cuidadoso. Então esse dentista diz que tinha que
operar o dente, por estar estragado. Ele fez uma operação mal feita e Dulce quase morreu.
Papai dizia que a coisa que mais dava aflição era pensar como ele ia mandar dizer à mamãe
que Dulce tinha morrido. Foi um horror. Papai sofreu muito. Depois Dulce melhorou, mas a
suas aulas de piano foram prejudicadas. Ela teria sido uma brilhante pianista se tivesse tido a
oportunidade de estudar lá. Isso atrapalhou muito. Papai queria processar o dentista, mas os
amigos disseram que isso não ía adiantar pelo fato de dele ser estrangeiro no país. O rosto
dela ficou inchado durante muito tempo e até hoje ela tem uma cicatriz feia no rosto.
CARF: E como foi a volta para o Brasil?
SO: Ficamos lá quase dois anos. Fomos morar na Rua Cosme Velho. Era uma vila que tinha
três casas e que dava para uma rua. Nós morávamos perto das filhas de Coelho Netto.
CARF: Vocês ficaram muito tempo na casa do Cosme Velho?
SO: Nesse tempo eu entrei para a Escola Alemã e mudamos para a Rua Paissandu. Nós
mudamos duas vezes, porque o contrato do aluguel ficou caro.
CARF: Você lembra como era essa Rua, lembra de coisas dessa época, eram os anos 1930?
SO: Era uma rua linda cheia de palmeiras. No fundo dessa rua ficava o Fluminense Futebol
Clube. Todo o mundo era fluminense, mas meu pai era Botafogo.
CARF: Seu pai era Botafogo, quando todos eram fluminenses, era sempre do contra? (risos)
SO: Ele fazia isso de brincadeira. Ele tomava sempre o bonde para o Pedro II. Ele andava até
a Rua Cosme Velho, lá que parava o bonde. Ele ia de manhã para o Colégio Pedro II e de
tarde ele ia para a Escola Dramática. Na maleta dele sempre tinha bananas. Ele era louco por
bananas. Um dia ele disse: “Sônia: sabe quantas bananas eu já comi hoje?“. Eu disse: “Como
é que eu vou saber pai!” E ele disse: “Doze bananas”.
CARF: Nossa, então ele não almoçava.
SO: Lembrei! Minha avó se chamava Ana Adélia Leite Pitanga., a mãe de meu pai.
CARF: Estou curiosa para saber como era a casa da Rua Paissandu. Você lembra?
SO: Claro, porque foi lá que eu me apaixonei por quem eu me casei. Tinha palmeiras dos dois
lados até a praia. Ficava perto do Palácio Guanabara. Ao final estava a praia. Às vezes quando
dava em sua veneta ele levava as menores à praia. Ele gostava de tomar a brisa da noite.
Durante o dia ele não tinha tempo.
CARF: Você lembra se tinha reuniões em sua casa? Quem freqüentava a sua casa? Você
lembra se as pessoas que escreviam com ele nos jornais, se essas pessoas iam a sua casa?
Você era mocinha nessa época.
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SO: Manoel Peres eu lembro bem. Ele tinha duas filhas e adorava papai. Era um amigo de
verdade. Eu lembro pouco sobre isso.
CARF: Depois dessa casa da Rua Paissandu?
SO: Logo nós mudamos de novo. Era um problema, porque os aluguéis subiam muito, e por
isso, nós estávamos sempre mudando de casa. Na segunda casa da Rua Paissandu é que eu
conheci quem seria meu futuro marido.Tinha um pedacinho de rua, onde ficava minha casa e
a casa do tio do pai do namorado que ia ser meu. Aquele ponto era onde nós tínhamos os
amigos.
CARF: Isso em que ano?
SO: Foi depois que voltamos da Alemanha. Na época em que eu comecei no teatro nós
morávamos na Urca. Eu conheci o Charlie em 1933. Ele morava na Osvaldo Cruz. Depois que
eu me casei e meus pais se mudaram para uma outra casa na Urca. Tem a foto no livro de
Edgar Rodrigues, na Rua Osvaldo de Almeida, n. 67. Antes de me casar eu morava na Av.
São Sebastião. E depois eles alugaram uma casa na Rua Osório de Almeida.
SO: Nós mudávamos muito, ninguém tinha dinheiro para comprar casa. Meu pai foi preso nas
últimas vezes em 1935 com a Intentona e 1937 com Estado Novo.
CARF: Você lembra das visitas a seu pai nessa última prisão?
SO: Eu levava as lições de grego para ele conferir. Eu estava substituindo meu pai na
Universidade com as aulas de grego. Era sempre um alvoroço lá porque não conseguiam saber
que era só lição de grego e ninguém lia grego para saber. Tinha outras pessoas presas. A cela
era um pouco escura. Foi bem triste essa época.
CARF: Seu pai reabriu o Jornal Ação direta em 1946. Há um período em 47 que o seu pai
deixa a direção que é assumida por Serafim Porto. Ele retornou depois. Nesse período as
coisas estavam mais calmas. Você sabe por que seu pai deixou a direção do jornal?
SO: Deve ter tido alguma perseguição. Não havia brigas entre eles. Quando o Dutra entrou
em 47 recomeçou a perseguição aos comunistas. E naquela coisa comunistas/anarquistas,
provavelmente julgaram estratégico não expor papai e para não fechar o jornal.
CARF: Olha o que está neste jornal: “Por motivos expostos na reunião de 22 de junho de
1.947, o companheiro José Oiticica deixou a direção efetiva de Ação Direta, embora continue
para efeitos legais seu diretor responsável. Foi escolhido para substituir Oiticica, o camarada
professor Serafim Porto”.
SO: Telefone para o Edgar que ele sabe sobre isso.
SO: O meu pai foi para o Riachão por influência de meu Avô. Meu avô era senador da
República. Meu pai foi o cabeça da revolta de 1918 e por isso foi deportado para Alagoas.
Minhas irmãs gostaram de ficar lá.
CARF: Em nossas entrevistas anteriores você contou que a sua mãe fazia renda de bilro e
biscoitos para arcar com as despesas.
SO: Bilro tem um cabinho e uma bolota. Mamãe batia em nossa cabeça para fazermos as
lições. Ela nos alfabetizou.
CARF: Eu li em uma das cartas que o seu pai enviou à sua mãe, quando estava na Ilha Raza,
reclamando com a sua mãe que o José não tinha feito os exercícios de aritmética. Parece que
ele acompanhava as lições, mesmo estando na prisão. Você mencionou em uma de nossas
conversas sobre as visitas na prisão. Você lembrou mais alguma coisa que gostaria de falar?
SO: Meu pai gostava de ver as lições. Eu lembro das visitas que fazíamos na Ilha das Flores
em 1924. A gente chegava e ele ficava contente. Às vezes a gente jogava peteca e depois nós
íamos embora. A saída era sempre muito triste. Ele dava adeus e nós também dávamos adeus.
Eu tinha 5 anos, eu era muito pequena. A minha relação com meu pai sempre foi boa.
CARF: Em um tempo mais próximo. Na década de 1950. Você casada, com filhos, e o seu
pai já aposentado do Colégio Pedro II. Em 1952 ele se afastou do colégio Pedro II. Você
lembra esse período?
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SO: Ele ficava um pouco mais em casa, mas tinha muitos alunos particulares. E não dava para
ficar em casa, era muita gente.
CARF: Onde aconteciam essas aulas?
SO: Ele tinha um escritório na Rua 13 de Maio. Ele continuava dando aulas na Escola
Dramática. Ele queria que eu fosse lecionar na Escola Dramática, pois sabia que eu não queria
deixar o teatro, mas eu não me interessei muito por isso.
CARF: Na Escola Dramática quem levou o seu pai para lá foi o Coelho Netto.
SO: Foi Coelho Netto. Ele era muito amigo de papai.
SO: Eu lembro de umas músicas de carnaval que cantávamos, era sobre a política na época.
Veja, eram sátiras:
O ler é preparar o Isidoro vai chegar
Vai chegar o Turussu e livrarmos do Bitu
Corram, corram, venham ver, vamos todo à Central
Receber o glorioso Marechal
Bitu, Bitu desta vez a tua crista vai baixar
Bitu, Bitu,
E não sei que em salmora vai ficar
Breve ir lá com a lata ao rabo
Para o diabo São Luís
E o Brasil sem João Luís e sem outro infeliz
Viverá uma nova e não sei que lá
SO: Esse Bitu era o Arthur Bernades. Meu pai cantava. Nós adorávamos berrar essa música
para o vizinho ouvir.
CARF: Então, Sônia, nessas visitas à prisão vocês repassavam as lições de grego do caderno
que você me emprestou, mas quanto tempo duravam. Você tinha tempo para resolver todas as
suas dúvidas?
SO: Tinha um prazo determinado, mas eu não sei quanto tempo. A impressão que dava é de
que era curta, mas eu não sei ao certo.
CARF: Você me contou coisas muito interessantes. E com a música você me deu algumas
idéias. Eu vou pesquisar um pouco sobre as músicas que o povo cantava na época. Juntando
uma coisa com a outra, aos poucos vamos tecendo a história de seu pai. Você lembrou dos
endereços das casas onde moraram. Contou coisas sobre sua família. Leu os sonetos de seu
pai.
SO: Olha só o que tem escrito aqui no livro do Riachão sobre o Hélio Oiticica, vou ler:
Filho de José Oiticica Filho e neto de José Oiticica, Hélio Oiticica de 37 a 80, seguiu
os passos do pai e do avô, tornando realidade um raro ciclo de três gerações seguidas,
onde a genealidade sempre esteve presente nas carreiras que abraçaram com tanto
sucesso. Sobre a sua criatividade e marcante presença no cenário brasileiro de artes
plásticas, com a quinta geração de descendência direta do Senador da República Leite
e Oiticica, assim se manifestou o crítico Salomão, em seu livro sobre a vida de Hélio
Oiticica.
SO: Aqui no livro tem um outro erro, está escrito Anarquismo ao alcance de todos e o correto
é A doutrina anarquista ao alcance de todos.
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CARF: A doutrina anarquista ao alcance de todos foi publicada duas vezes em forma de
folhetim no jornal Ação direta para só depois ser transformada em livro. O curso de literatura
também. O curso de literatura ele começou a publicar em 1947 e terminou em 1953. Depois o
Roberto das Neves juntou tudo e publicou na Germinal, logo após a morte do seu pai. Ele
reuniu artigos que alguns intelectuais escreveram sobre o seu pai, uma sessão necrológica.
Isso foi uma homenagem anarquista à memória de seu pai. Eu tenho tudo isso. Eu estou
vendo que você não tem este material. Vou te trazer cópia disso e das cartas a Coelho Netto
quando eu voltar.
CARF: O seu irmão José morreu depois de sua mãe?
SO: Morreu minha mãe depois do José. Eu tenho uma irmã, a Clara, que morreu na hora do
parto, com 36 anos. Meu pai era vivo. Meu pai sofreu muito. Ele não falava. Ele dizia não
chore que a morte não é para chorar.
CARF: Essa forma de encarar a morte tem a ver com a Fraternidade Rosa Cruz? Eu encontrei
um artigo de seu pai com o título: “Espiritualidade, anarquismo e bom senso”, você
conhece?”
SO: Eu não conheço.
CARF: Eu trago para você.
SO: Meu pai dizia: Eu sou anarquista porque eu sou Rosa Cruz e eu sou Rosa Cruz porque eu
sou anarquista. SO: Por quê? Se você conhecer as duas coisas verá que elas se combinam
maravilhosamente.
CARF: Por que Sônia? Se conhecer um e outro você vai perceber. Porque o anarquismo é a
liberdade de pensamento e o Rosa Cruz é a mesma coisa! Rosa Cruz não tem dogmas, você é
livre de pensar, de agir, de pesquisar, livre de tudo. Então, nesses pontos tudo é muito
parecido, porque há liberdade de pensamento e de ação.
CARF: Quando seu pai entrou para a Fraternidade Rosa Cruz?
SO: Acho que foi em 1933. A gente já conversou sobre isso.
CARF:Quantas vezes por semana?
SO: Durante a semana ele dava muitas aulas. Ele ia, acho que uma vez na semana, mas ele
estudava muito em casa.
CARF: Eu não sei se é hierarquia que se fala, mas ele chegou a ser mestre? O que significa
isso?
SO: Ele chegou a cavaleiro, mas eu não sei se tem outras coisas.
CARF: Tem um livro de um sujeito que foi aluno e depois colega de seu pai lá no Colégio
Pedro II, ele escreveu uma espécie de biografia sobre o seu pai. Ele diz que era muito próximo
de seu pai, mas não me convenceu em seu discurso, parece montado, não parece situação
ocorrida mesmo. Ele diz que seu pai foi grão mestre. Tenho impressão que o seu pai não devia
gostar muito dele, mas isso é só uma impressão.
CARF: Sônia, o seu pai batizou a filha de Coelho Netto?
SO: Não, foi Coelho Netto quem batizou Vera e Viriato Correia era padrinho de Selma.
Agora, papai e mamãe iam muito à casa de Coelho Netto. Eles faziam saraus, papai também
fazia esses saraus em casa.
CARF: Como é que eram esses saraus?
SO: Eram como ainda acontecem hoje, como a gente faz aqui- com poesia e música.
CARF: Quem ia a esses saraus?
SO: Ana Amélia, Rosalina Lisboa, Coelho Netto. Naquela época as poetisas eram muito
consideradas, não eram poetisas, eram poetas. Como diz o Manoel Bandeira, que raiva que
dá! Da burrice do Manoel Bandeira, machismo total. Tanta gente ia, o Hermes Fontes,
Martins Fontes. Os Fontes eram próximos. Coelho Netto, a Dona Gabi. Ela não ia muito, ela
ficava com os filhos em casa eram danados. Manoel Peres era próximo. Ele adorava papai,
eram amigos mesmo. Esses saraus eram de 1920 e pouco ou 1930 e pouco.
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SO: Tem uma história engraçada. Aconteceu lá na Rua Guanabara. Nesta casa tinha uma
escada e havia um quarto entre o quarto em que mamãe costurava e a sala de visitas, era um
quarto escuro. E as meninas, minhas irmãs, eram terríveis. Elas se escondiam e ficavam
ouvindo. Aí o Hermes Fontes começou a recitar: “Sim, meu amor/ não, meu amor, sim, meu
amor”, no terceiro sim, meu amor e não, meu amor deram aquela gargalhada. Meu pai ficou
por conta e mandou todo o mundo dormir.
CARF: Como eram as broncas de seu pai?
SO: Conosco papai não era bravo, mas dizem que com os alunos do Colégio ele era bravo,
principalmente com os alunos que não faziam a lição. Um dia ele deu uma nota má a um filho
de um político e o diretor do Colégio foi reclamar com papai: “Professor, ele é o filho de
Fulano”. Papai disse: “Se ele é filho de um homem ilustre tem que se fazer jus a esse pai que
ele tem e é mais uma razão para eu fazer com que ele escreva direito”. Papai não ficava
calado não. Os alunos tinham medo em hora de prova, de provas escritas, oral. Agora papai
adorava os alunos que eram estudiosos, que tinham o caderno organizado, a lição feita, mas os
outros...
CARF: Tem uma história como essa na narrativa do Roberto das Neves que conta que essa
história se passou com o filho do presidente Wenceslau Brás.
CARF: Eu vou transcrever as fitas. Agradeço muito e quando eu voltar trarei todo este
material que me emprestou. Muito obrigada! Vou tomar cuidado com tudo. Até o nosso
próximo encontro.
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31
Entrevistas com o professor Geraldo Pinto Vieira
Realizei duas sessões de entrevistas nos dias 18 de maio e 13 de julho de 2006, no Núcleo de
Documentação e Memória do Colégio Pedro II (NUDOM), Rio de Janeiro, com o professor
Geraldo Pinto Vieira.
Na primeira sessão, compartilhei os objetivos desta pesquisa, em uma conversa - sem fazer
uso do gravador - com duração de aproximadamente uma hora.
Na segunda sessão, com duração de uma hora e trinta minutos, conversamos novamente sobre
os objetivos desta entrevista e combinamos que as suas lembranças sobre o professor José
Oiticica no Colégio Pedro II seriam gravadas como depoimento, sem que houvesse perguntas
ou quaisquer outras interferências.
Meu nome é Geraldo Pinto Vieira e fui aluno do Colégio Pedro II no final da década de 40, lá
permaneci até hoje, não deixando o colégio em nenhum momento. Tenho dentro do colégio
mais de 50 anos. Com relação ao pedido da professora nesta entrevista, ela se refere às minhas
memórias com o Colégio Pedro II e, em especial, com o professor Oiticica.
Quando entrei no Colégio na década de 40, meu primeiro contato com Oiticica foi no exame
de admissão. O exame naquela época era composto por provas escritas e orais e ele me
examinou na prova oral. As provas escritas eram de Português e Matemática, e as provas
orais eram de Português, Matemática, Geografia e História. Mais tarde vim a saber quem era
o professor Oiticica! Era uma das figuras mais importantes do Colégio Pedro II e teve uma
grande trajetória como professor, lecionando várias disciplinas. Além disso, ele era poliglota,
jornalista, mas isso tudo nós conhecemos com o decorrer do tempo no Colégio.
Era catedrático em Português. A Cátedra no Colégio Pedro II era considerada um ápice na
carreira de professor. Ele entra para o Colégio em 1916. Nessa época não havia faculdade de
Filosofia, o objetivo específico de preparar professores para o ensino de primeiro e segundo
graus, mas todos os professores tinham uma cultura geral muito grande.
Oiticica era Catedrático em língua portuguesa, portanto essa foi a razão dele estar na banca,
quando me examinou no final da década de 40. As provas do exame de admissão eram
interessantes porque a prova escrita era composta de uma redação, ou podia ser a descrição de
um estampa.
Eu me lembro que no meu caso foi uma redação e algumas questões de gramática. Aliás uma
das tradições de Pedro II é que ele resistiu as provas objetivas durante décadas, - e até hoje
nós não abrimos mão da parte discursivas em todas as provas. Então havia redação e a prova
oral que era um tanto complicado porque como eu disse, o catedrático no Pedro II estava
acima do bem e do mal, mas isso só deu para entender depois.
Então, a banca era composta pelos catedráticos que me examinaram: em Matemática foi
Cecil Thiré, em História foi Mello Souza. Aquilo era solene, aberto ao público, geralmente as
mães acompanhavam os filhos, porque uma criança de 11 anos naquela época não andava
sozinha. Eu me lembro quando fui fazer meu primeiro exame na banca, pois tinha vindo da
escola primária de apenas uma professora, moça ou velhota, mas tinha que ser professora, e
ali só havia professores do sexo masculino.
Em uma mesa comprida, a gente ficava em uma fila e íamos passando pelas provas de
Português, Matemática, Geografia e Historia. Lia-se um trecho, acredito, mas não tenho
certeza, da Antologia de Carlos de Laet, porque a Antologia do Clovis Monteiro foi adotada
depois. Isso eu não posso afirmar, sei que era um trecho qualquer e em cima daquele trecho,
Oiticica fazia meia dúzia de perguntas. Ele era austero, mas era também engraçado! A
impressão que me passa de Oiticica é que ele era uma figura austera, mas sem ser antipático.
Eu me lembro que ele fez uma graçola comigo, e eu fiquei com cara de bobo, porque eu acho
que ele, para ser simpático, fez uma brincadeira. Perguntou qual era o meu nome. Respondi:
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“Geraldo Pinto Vieira”. Ele então disse: “Quando crescer vai ser promovido a galo”. Na hora
não entendi nada, fiz o exame e fui embora.
Lembro-me que se perguntavam verbos - conjugação de verbos. Naquela época se dava muita
importância a isso. Feminino e masculino, plural de palavras, preposições, etc. Eu me lembro
que quando fiz o exame eram 200 candidatos para 80 vagas. O ensino tinha dois ciclos:
ginasial e colegial. Como eu disse anteriormente, eu não fui aluno de Oiticica. Ele dava aula
na parte da manhã. Naquela época as turmas eram divididas, na parte da manhã eram
meninas, e na parte da tarde meninos.
O Programa de Língua Portuguesa eu acredito que fosse norteado por Oiticica. Ele era
catedrático juntamente com Nascentes. Era uma complicação porque mais tarde vim a saber
até por outras pessoas que Oiticica tinha um livro de análise lógica. Soube depois que havia
divergências entre o sistema de Oiticica e o de Nascentes. Nascentes fez concurso para
Cátedra de Espanhol e depois passou para Cátedra de Português. Oiticica já tinha feito
concurso de Português e antecedia cronologicamente a Nascentes. Não fui aluno de Oiticica
porque estudei na parte da tarde. Tive um grande professor chamado Elpídio Pimentel.
Aqui no Colégio dava-se muita importância a análise lógica e àqueles esquemas que eram
feitos para saber onde estava o sujeito, o objeto, etc. Puxavam uma linha objeto direto, puxava
outra linha objeto indireto. Muitas vezes a análise lógica era feita com trechos de Camões, o
que era muito complicado. Todo o mundo sabe que muitas vezes o sujeito estava lá em baixo,
e até você achar o sujeito lá em baixo tinha que percorrer um longo caminho, tanto que até
hoje os alunos não gostam de ler Os Lusíadas, porque teria sido a influência negativa em se
buscar análise lógica em cima dos textos de Camões.
Agora, como eu disse no início, eram 4 anos de ginásio e 3 anos de clássico ou científico.
Havia uma carga horária bem significativa de Língua Portuguesa. Isso eu não posso lembrar
de cabeça, mas eram 5 ou 6 aulas semanais. E uma coisa interessante: é que naquela época se
reprovava mais em Português do que Matemática.
Na minha época os professores eram rigorosos. Os professores de português eram
altamente gabaritados todos com projeção nacional e internacional. Oiticica, o Nascentes,
depois na outra geração o Olmar Gutierrez da Silveira, o Celso Cunha. Todos esses foram
grandes professores de Português. Então a cadeira de Língua Portuguesa tinha uma
importância muito grande dentro do Colégio Pedro II.
Como eu disse, as provas eram discursivas e Oiticica trabalhava no 1º turno com uma
professora que seguia a metodologia dele. Ela era a Albertina Fortuna Barros. Concorreu
depois a Cátedra. Não ganhou o concurso, mas foi aprovada e seguia a corrente metodológica
de Oiticica.
Um aspecto lendário de Oiticica, com relação ao seu problema político era que quando
Oiticica não comparecia às aulas é porque estava preso. Então isso ocorreu com muita
freqüência, historias de uma fase anterior à minha entrada, na era Vargas, e também no
período daqueles movimentos anarquistas, que antecederam a revolução de 30. Quando volta
e meia ele deixava de comparecer, era pelas razões expostas: estava preso. Agora não me
lembro de dizerem que Oiticica fazia política dentro da sala de aula. Quer dizer, todo mundo
sabia que ele era anarquista e que tinha aquelas idéias....Talvez até mesmo o fato de Oiticica
estar preso, isto despertava no aluno a curiosidade de saber por que ele estava preso. Então
isso era uma forma indireta talvez de se divulgar o anarquismo, era provavelmente o que
acaba acontecendo.
Eu me lembro que ainda no início da década de 50 havia uma banca de jornal defronte
ao Colégio Pedro II, e que vendia o jornal Ação Direta. Era um jornal difícil de se achar em
qualquer outra banca. Eu acredito que ali tivesse o dedo de Oiticica. Porque os alunos se
interessavam e queriam saber mais sobre as coisas.
33
O professor naquela época era bem mais distanciado do aluno, do que hoje. Então havia uma
certa barreira, não havia essa intimidade que existe hoje entre o aluno e o professor. Na
minha geração mesmo - já como docente de História no Colégio - havia sempre um
distanciamento entre o professor e o aluno. Isso pelo fato do Colégio ter uma tradição
disciplinar rigorosa. Dentro do Colégio a disciplina era dura! Éramos bagunceiros somente
fora do Colégio. O aluno tinha uma mística - e aquilo funcionava. Eu me lembro que os
professores não tinham problemas disciplinares no Colégio e que quando havia bagunça:
acontecia fora do Colégio. Eu ainda peguei o Colégio com um inspetor para cada turma.
Os cadernos na nossa época tinham que ser um para cada matéria. Um para rascunho - ara ser
passado a limpo. Muitos professores exigiam isso e davam vistos nos cadernos. Depois veio a
época dos fichários. Mas eu peguei só a época dos cadernos isolados. Nós tínhamos um
sistema de duas provas parciais, uma em junho e outra em novembro; mensais em março,
abril e maio; depois provas parciais em agosto, setembro e outubro; e prova oral, estas eram
realizadas independentes da média anual.
Até a década de 70 todos os alunos faziam provas orais. Na banca, sempre dois professores e
às vezes três, com um presidente da banca, quer dizer, o professor da turma examinava, e
outro professor da mesma matéria de outra turma também.
Naquela época o Colégio só tinha dois sistemas: internato e externato. Então, o número de
professores era reduzidos. Todos eles conheciam e sabiam das maluquices uns dos outros, e a
coisa funcionava dessa maneira.
Outro costume nas décadas de 40 e 50 era o caderno de lembranças. Toda aluna tinha um
caderno de recordação. Elas pediam para que os professores e os colegas colocassem
dedicatórias e pensamentos. Para os professores isso era complicado, porque quando chegava
no final de ano era uma montoeira de caderninhos. Alguns professores se davam ao trabalho
de levar para casa. Outros não tinham tempo, geralmente colocavam uma mensagem e
assinavam na hora.
Eu me lembro de uma quadrinha de Oiticica. Uma aluna insistiu para que ele
colocasse alguma coisa em seu caderno. Ele abriu o mesmo e colocou assim:
“Coitado do professor,
Está que não pode mais,
Pois os alunos, que horror!
São todos uns débeis mentais”.
Isso era um aspecto jocoso. Quer dizer: Oiticica não teve nesse momento, penso eu, a
intenção de agredir a aluna. Mas acho que o que aconteceu era aquilo: “Tá me amolando
então deixa eu amolar também”. Essa menina provavelmente deve ter se sentido escaldada, e
não deve ter pedido isso mais a nenhum outro professor.
No Rio de Janeiro tinha um anúncio nos bondes de um remédio chamado Rhum creosatado e
tinha uns versos que todo o mundo sabia:
“Veja ilustre passageiro,
o belo tipo faceiro
que o senhor tem ao seu lado
e por um triz, quem diria
quase morreu de bronquite
salvou-o o Rhum creosotado”
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Aí os alunos fizeram uma quadrinha assim:
“Veja o ilustre passageiro
este estudante faceiro,
de cara alegre e louçã
e por um triz, quem diria,
ia ao pau em Geometria
salvou-o MalbaThan”
Malba Than era professor de Matemática no Pedro II, escritor famoso pelos seus
contos orientais. Então, estas quadrinhas circulavam. Umas ficavam na memória das pessoas!
A vida no Colégio era alegre e a convivência muito fraterna.
A idéia que me ficou de Oiticica é que ele era um dos grandes mitos do Colégio Pedro II.
Além de professor, era homem de uma cultura enorme! Ele foi também poeta. Tem vários
livros de poesias. Era um exímio sonetista. Uma das coisas que marcou muito a minha
geração foi a leitura. Nós tínhamos como distração fundamental a leitura, lia-se muito. Não
havia televisão. As rádios eram para novelas...Tanto que a biblioteca aqui era muito
freqüentada. O que eu li de coisas aqui no Pedro II ! Eu e a minha turma. Quer dizer, havia o
interesse pela literatura. Tanto que o Grêmio chamava-se: Grêmio Científico e Literário do
Colégio Pedro II. Então, havia os jornais estudantis de época, muitos alunos escreviam nos
jornais poesias e contos. Quer dizer o nível cultural dos alunos era muito bom, pois
estudávamos bem mais. Havia menos opções de lazer. Hoje o aluno tem uma dispersão de
situações e de coisas.
Há de se ressaltar no Colégio a ampla tolerância de credos e de raças, e também de
situações econômicas. Quer dizer, nós tínhamos aqui desde o filho do ministro o Afonso
Arinos - que foi aluno do Colégio - uma família aristocrata de Minas Gerais. Nabuco foi aluno
do Colégio, o Nascentes era filho de uma empregada doméstica, uma lavadeira ou coisa
parecida. Então, isso dava ao colégio uma peculiaridade muito grande. Os alunos serviam
como mostruário para o Brasil. Isso foi uma coisa que me marcou muito. Acho que foi muito
importante para os alunos daquela época.
Outra coisa que marcou muito foi o canto orfeônico na época de Getúlio Vargas e do
Villa-Lobos. Villa Lobos era uma figura incrível, só mesmo quem o assistiu imagina. Você
imagina, o estádio do Vasco lotado de garotos, principalmente escolas primárias. E aquilo era
um silêncio absoluto. A figura de Villa Lobos era também um mito.
Oiticica deu também aulas de teatro. Uma de suas filhas seguiu a carreira de atriz
Encontrei com Sonia na cidade de Tiradentes - talvez há uns 4 ou 5 anos.
Voltando ao ensino de música no Colégio Pedro II. Naquela época não se chamava
música, e sim Canto Orfeônico, foi muito voltado para o aspecto político. Getulio ia ao campo
do Vasco em todo dia Primeiro de Maio. Havia grandes concentrações estudantis. O Pedro II
participou da queima das bandeiras estaduais. Quer dizer queimaram as bandeiras na praia do
Russel, para a idéia de centralização do Estado Novo. Então, as músicas eram muito ligadas
ao patriotismo, e temas como o canto do pajé, bem aquelas coisas.
Li que Oiticica gostava de seguir as turmas. Por exemplo, eu dei sorte nesse aspecto, eu tive o
mesmo professor os quatro anos de ginásio. Eu tive um grande professor de Língua
Portuguesa chamado Eupídio Pimentel. Tudo o que eu prendi de português foi com ele.
Nascentes foi professor da minha mulher. Celso Cunha também. O Celso, por exemplo, é um
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dos maiores filólogos brasileiros e também um medievalista. Eles todos foram as primeiras
levas de professores formados pelas Faculdades de Filosofias das décadas de 40 e 50.
Antes da década de 40 eram cinco anos de curso. Depois da década de 40 eram cinco anos
de curso. Essa separação no Pedro II motivou coisas absurdas, porque alguns professores
sentiam-se diminuídos, por achar que o aluno que queria fazer direito, não queira saber de
Matemática e nem da História Natural. Então, o professor chegava e fazia a seguinte
brincadeira, com a turma que ele sabia que não estava interessada. Ele fazia a seguinte
pergunta? Quais são os alunos que não vão precisar de História Natural? Aí todos levantavam
a mão. Ele dizia: Então ótimo: vocês vão estudar muito comigo, porque é a última
oportunidade que você s terão para aprender Historia Natural.
Eu fui aluno de Matemática do Bayard Boiteux um dos maiores professores do Colégio Pedro
II. Os alunos achavam que Bayard puxava mais no do Curso Clássico do que no Científico e
pediam nossos cadernos emprestados. Para mim ele foi um dos melhores professores.
Respondendo à sua pergunta sobre minha vida no Colégio Pedro II - repito que entrei
em 1949, e terminei o curso em 1955. Fiquei como inspetor de alunos. Depois fiquei como
professor horista e depois como efetivo. Depois como coordenador. Fui coordenador de
História e depois chefe de departamento. Agora me divirto “brincado” de pesquisar aqui no
NUDOM (Núcleo se Documentação e História do Colégio Pedro II). Quando eu me
aposentei, senti que o Colégio estava perdendo a sua história.
A história do Colégio Pedro II se confunde com a história da educação nacional. O
Colégio foi criado em 1837, tendo professores com o gabarito de Oiticica e de tantos outros.
Então, a minha preocupação foi preservar esse material e tentar salvá-lo. Porque muitas
coisas tinham se perdido, mas muita coisa conseguiu-se resgatar. O estado do arquivo é
precário, mas mesmo assim temos recebido pesquisadores de todo o Brasil e até do exterior,
mostrando a importância do NUDOM.
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Anexo 4 – Manuscritos
Manuscrito pertencente ao acervo pessoal de José Oiticica, s/data.
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Anexo 5 – Retratos de uma época
A família Oiticica: Francisca Bulhões e José Rodrigues Leite e Oiticica, com os filhos José, Clara, Selma,
Vanda, Vera, Sônia e Laura, 1923. Foto cedida por Maria Thereza Vargas
José Rodrigues Leite e Oiticica – prisão em 1924. Foto cedida por sua filha Sônia Oiticica.
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