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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
MESTRADO EM FILOSOFIA
Dissertação de Mestrado
RACIONALIDADE E MÉTODO CIENTÍFICO:
NOVAS PERSPECTIVAS
Autor: Jorge Alberto Silva Bucksdricker
Professor Orientador: Dr. Alberto Oscar Cupani
Florianópolis, Dezembro de 2004.
1
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“A literatura de um país pobre
não pode ser pobre de idéias.
Pobre da arte de um país
pobre de idéias.
Pobre da ciência de um país
pobre de idéias.
Num país pobre,
não se pode desprezar
nenhum repertório.
Muito menos
os repertórios mais sofisticados.
Os mais complexos.
Os mais difíceis de aceitar à primeira vista.
Lembrem-se de Santos Dumont.
Sempre haverá quem diga
que num país pobre
não se pode ter energia nuclear
antes de resolver o problema
da merenda escolar.
Errado.
Num país pobre,
movido a carro de boi,
é preciso por o carro na frente dos bois.”
(Paulo Leminski)
2
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Agradecimentos
Agradeço especialmente ao orientador desse trabalho, professor Alberto Oscar
Cupani, pela contribuição inestimável para que o mesmo se concretizasse.
Agradeço à Universidade Federal de Santa Catarina, de um modo geral,
especialmente aos seus professores e funcionários.
Agradeço à professora Anna Carolina Regner, pela paixão com que sempre nos
ensinou.
Agradeço à Camila, pelo Abstract e pelas parcerias em tempos de manifestação.
Agradeço à Júlia e à minha família, pela paciência e pelo carinho nesses tempos
de redação.
3
RESUMO
Nas últimas décadas, o tema da racionalidade científica vem sendo
profundamente explorado na filosofia da ciência. Diferentes autores, a partir
de abordagens distintas, vêm contribuindo decisivamente para a reformulação
de antigas teses a respeito do mesmo. O objetivo dessa dissertação é
identificar e analisar alguns caminhos que a discussão sobre esse tema vem
tomando desde a publicação dos trabalhos da chamada “nova filosofia da
ciência”. Com esse intuito, será analisada, com algum cuidado, a contribuição
de três importantes autores: Larry Laudan, Marcello Pera e Harold Brown.
Também serão brevemente analisados alguns aspectos do positivismo lógico e
do racionalismo crítico, assim como os trabalhos de Thomas Kuhn e de Paul
Feyerabend. Será dada particular atenção ao papel de um possível método
geral de pesquisa na caracterização da racionalidade científica.
Palavras-chave: Racionalidade científica metodologia Thomas Kuhn, Paul
K. Feyerabend – Larry Laudan – Marcello Pera – Harold Brown
ABSTRACT
In the last decades, the subject of scientific rationality has been deeply
investigated in the philosophy of science. Different authors, from distinct
perspectives, have contributed to the reformulation of ancient thesis on the
field. The aim of this dissertation is to identify and analyze some of the
directions the subject has taken since the publication of works corresponding
to the so-called “new philosophy of science”. To that purpose, the
contribution of three main authors will be carefully analyzed: Larry Laudan,
Marcello Pera and Harold Brown. Some aspects of logical positivism and
critical rationalism will also be briefly discussed, as well as the works of
Thomas Kuhn and Paul Feyerabend. Special attention will be given to the role
of a possible general method of research in the characterization of scientific
rationality.
Keywords: Scientific rationality methodology Thomas Kuhn Paul K.
Feyerabend – Larry Laudan – Marcello Pera – Harold Brown
4
ÍNDICE
I Introdução............................................................................................................2
Cap.1 – A compreensão metodológica da ciência......................................................5
1.1 – A concepção herdada das teorias e algumas interpretações...............................5
1.2 Karl Popper......................................................................................................14
1.3 Mário Bunge....................................................................................................20
Cap.2 A crítica historicista e a reivindicação de uma nova noção de racionalidade
...............................................................................................................................23
2.1 Thomas Kuhn...................................................................................................23
2.2 – Paul Feyerabend.........................….............................................................….31
Cap.3Larry Laudan e um novo modelo para a racionalidade em ciência............41
3.1 – A ciência como solução de problemas.............................................................42
3.2O debate científico e o desenvolvimento metodológico..................................55
Cap.4 Marcello Pera e racionalidade dos discursos (ou, a racionalidade sem
regras) ..................................................................................................................67
4.1 Os modos do modelo metodológico................................................................70
4.2 A dialética científica........................................................................................80
4.3 – A racionalidade da ciência...............................................................................85
Cap.5 – Harold Brown e a racionalidade dos juízos................................................89
5.1 A crítica à perspectiva algorítmica..................................................................89
5.2 – As decisões científicas e o papel dos juízos.....................................................97
5.3 – O fundamento social da racionalidade e o papel da perícia...........................101
5.4 – A racionalidade do desenvolvimento científico.............................................103
Cap.6 Racionalidade científica: novas perspectivas...........................................108
6.1 – A relação entre racionalidade e método.........................................................108
6.2 – A plataforma arquimediana............................................................................115
6.3A dimensão prática e a dimensão social da ciência.......................................122
6.4 Considerações finais: é possível uma racionalidade não algorítmica?..........130
II Bibliografia.....................................................................................................135
.
5
- Introdução -
“Os filósofos durante um longo tempo fizeram da ciência uma
múmia. Quando eles finalmente desembrulharam o cadáver e viram o
que sobrou de um processo histórico de transformações e descobertas,
eles criaram para eles mesmos uma crise de racionalidade. Isso
aconteceu por volta de 1960”(Hacking 1983:1)
A questão da racionalidade científica vem sendo profundamente explorada
nas últimas décadas. Após a crise originada pelos trabalhos da chamada nova
filosofia da ciência, “a racionalidade tem sido um dos dois assuntos a obcecar os
filósofos da ciência.”(Hacking 1983:1). Autores distintos a partir de diferentes
abordagens vêm se debruçando continuamente sobre os diversos elementos que
estão envolvidos nessa questão. O que antes se tinha como evidente passou a
ocupar um lugar de destaque na agenda de problemas da filosofia da ciência
1
.
A preocupação principal dessa dissertação é compreender os caminhos que a
discussão sobre a racionalidade científica tomou desde a crise que Hacking refere.
Em conformidade com o título, a idéia é analisar novas perspectivas na análise da
racionalidade científica. Como seria impraticável abarcar todas as diferentes
posições que estão envolvidas nesse debate (algumas posições estão, por exemplo,
bem próximas daquela tida por tradicional), a dissertação procurará se deter
naqueles trabalhos que, por um lado, reconhecem a existência de uma crise da
racionalidade e que, por outro lado, buscam contribuir para a sua superação.
Para melhor compreender esses trabalhos é preciso, porém, entender um
pouco mais sobre essa importante crise da racionalidade. Com esse intuito, os
primeiros capítulos dessa dissertação serão dedicados a tal fenômeno. No primeiro
capítulo serão analisadas algumas teses do positivismo lógico, com especial
ênfase à sua tese da redução teórica e à sua tese da redutibilidade dos termos
teóricos a enunciados empíricos, assim como também alguns elementos da
concepção metódica de ciência do racionalismo crítico e de Mário Bunge.
1
Uma análise dessa mudança de perspectiva pode ser encontrada em Cupani (2000).
6
No segundo capítulo serão analisadas duas obras cruciais para a referida
crise da racionalidade: The Structure of Scientific Revolutions, de Thomas Kuhn, e
Contra o Método, de Paul Feyerabend. Duros críticos das concepções de ciência
do positivismo lógico e do racionalismo crítico, Kuhn e Feyerabend contribuíram
decisivamente para a reformulação da agenda de problemas da filosofia da
ciência. Seus trabalhos apontam para questões de fundamental importância para o
debate que nos interessa. Embora tenham sido repetidamente considerados
irracionalistas, na obra desses dois autores elementos que aludem claramente à
necessidade de se repensar o que seja a racionalidade científica. Numa célebre
passagem Kuhn não poderia ser mais explícito a esse respeito. Segundo ele, tanto
o seu trabalho quanto o de Feyerabend consistem em
“(..) uma tentativa para mostrar que as teorias existentes de racionalidade não são
totalmente corretas e que precisamos reajustá-las ou modificá-las para explicar por que a
ciência opera como opera.”(1974: 326)
Os capítulos subseqüentes serão dedicados a três diferentes autores: Larry
Laudan, Marcello Pera e Harold Brown. De modos diUYTU•rcello Pera e Harold Brown. De modos diUYTU•rcello Pera e Harold Brown. De modos diUYTU•rcello Pera e Harold Brown. De modos diUYTU•rcello Pera e Harold Brown. De modos diUYTU•rcello Pera e Harold Brown. De modos diUYTU•rcello Pera e Harold Brown. De modos diUYTU•rcello Pera e Harold Brown. De modos diUYTU•rcello Pera e Harold Brown. De modos diubsMI2?TUJ1VÐo•)TNJÐnos l m
Preocupado em resgatar um papel para os argumentos retóricos em ciência,
Marcello Pera é um autor igualmente importante na tarefa a que referimos. Leitor
cuidadoso da obra de Thomas Kuhn, Pera, no seu The Discourses of Science,
procura demonstrar as vantagens de se compreender a racionalidade científica
como função não de um método particular, mas da qualidade dos argumentos. O
seu modelo dialético é, sem dúvida, uma importante contribuição para os debates
sobre a racionalidade científica.
A última contribuição que consideraremos é aquela oferecida por Harold
Brown. Descontente como o que considera ser uma abordagem algorítmica ao
problema da racionalidade científica, Brown traz à tona mais um elemento
importante para a compreensão da mesma: o juízo. Indispensável às decisões
científicas, o juízo, para Brown, não pode estar ausente das discussões sobre a
racionalidade científica.
O último capítulo, finalmente, procurará oferecer uma análise crítica
daqueles elementos que se sobressaem nos debates contemporâneos sobre a
racionalidade científica. A relação entre o método e a racionalidade, o caráter das
regras metodológicas assim como as dimensões prático e social da ciência são
exemplos de tópicos analisados nesse último capítulo.
8
Cap. 1 – A compreensão metodológica da ciência.
Os modelos de racionalidade desenvolvidos por Pera, Brown e Laudan
pretendem contemplar aspectos da atividade científica que foram negligenciados
pelo modelo metodológico tradicional. Nesse primeiro capítulo, apresentaremos
algumas leituras deste modelo, para compreendermos em que sentido se deram as
críticas feitas a ele.
Devido à sua importância histórica, na primeira parte, apresentaremos
elementos das doutrinas do positivismo lógico e as respectivas interpretações que
os vinculam ao modelo metodológico de racionalidade. Na segunda e última,
apresentaremos algumas teses de Mario Bunge e Karl Popper, autores influentes
que de forma explícita defendem esse modelo.
1.1 – A concepção herdada das teorias e algumas interpretações.
As doutrinas do positivismo lógico ou empirismo lógico
2
receberam
diversas interpretações de filósofos das mais diversas tendências (exemplos são
Kuhn 2000, Laudan 1984, Tianji 1985, Stegmüller 1977 e Shapere 1984). Entre
essas interpretações, chama a atenção a que Frederick Suppe apresenta no livro
The Structure of Scientific Theories. Desde o seu ponto de vista, a ‘Visão
Recebida’
3
é um projeto filosófico
4
que sofreu consideráveis alterações no
percurso que vai desde a primeira publicação, em 1923, até sua última versão, que
dataria entre o fim da década de 50 e o início da década de 60.
Embora as mudanças levadas a cabo nesse espaço de tempo sejam
importantes e muitas vezes profundas, para Suppe, o problema central da visão
2
A distinção entre “positivismo lógico” e “empirismo lógico” não parece ser consensual. Brown
(1977) identifica o nascimento do empirismo lógico com o surgimento de Testability and Meaning
de Carnap. Suppe (1977) fala apenas de positivismo lógico independente das modificações, mas
reconhece que a visão recebida sobreviveu ao fim do positivismo. Enquanto Salmon (2000)
identifica o positivismo lógico com o círculo de Viena e o empirismo lógico com o grupo de
Berlim. No que segue tomaremos a posição de Suppe.
3
A ‘concepção herdada’ /received view/ é identificada neste trabalho com as doutrinas do
positivismo lógico (independentemente das suas modificações). Pois, como Suppe coloca: “[a
concepção herdada] é o produto do positivismo lógico e não pode ser compreendida divorciada das
expressões desse movimento.” (1977: 6)
4
O conceito ‘projeto filosófico’ não está presente na obra de Suppe. A idéia é utilizá-lo para
destacar a continuidade de alguns elementos importantes, que Shapere descreve da seguinte forma:
“É importante reconhecer que o positivismo lógico era antes um movimento do que uma doutrina
unificada, um movimento dentro do qual havia muito espaço para desacordos em questões de
detalhes, ênfase e princípio. Um movimento, no entanto, no qual seus aderentes vinham com
bastante freqüência a concordar (...)”(1984:156)
9
recebida permaneceu intocado: oferecer uma explicação adequada e precisa da
natureza e estrutura das teorias científicas. De modo geral, a “concepção herdada”
buscava fazê-lo especificando uma formulação canônica em termos de um cálculo
axiomático e regras de correspondência.
Assim como o problema, a estrutura básica da resposta também permaneceu
inalterada. As explicações que os positivistas lógicos ofereceram através dos
tempos utilizavam, invariavelmente, as ferramentas da lógica matemática
conjuntamente com os princípios do empirismo. E, embora modificações fossem
feitas em muitas questões específicas, como, por exemplo, na exigência de que as
regras de correspondência fossem definições explícitas e na exigência de que as
teorias fossem formuladas numa lógica de primeira ordem com igualdade, estes
dois pilares permaneceram de pé.
Na sua leitura do surgimento e desenvolvimento da visão recebida, Suppe
reserva uma seção inteira de um capítulo para responder a uma questão de
fundamental importância: Qual o status epistemológico da visão recebida? O
que veio contemplar a sua análise? Como o próprio autor salienta, dizer
simplesmente que o status da visão recebida é o de uma explicação do conceito de
teoria científica, o basta. Uma vez que a idéia de explicação é ainda bastante
equívoca, se faz necessário precisar o que significava para os positivistas oferecer
uma explicação. Somente tendo claro esse significado torna-se possível
reconhecer o status referido.
Com o intuito justamente de tornar mais preciso o significado do conceito de
explicação, Suppe recorre ao que, segundo ele, é a mais explícita descrição que
um positivista ofereceu desse conceito. Nas palavras de Carnap:
“A tarefa da explicação consiste em transformar um dado conceito mais ou menos exato
num conceito exato, ou antes, em substituir o primeiro pelo segundo. Nós chamamos o
conceito dado (ou o termo usado) de explicandum, e o conceito exato proposto para tomar o
lugar do primeiro (ou o termo proposto) de explicatum... O explicatum deve ser dado por
regras explícitas de uso, por exemplo, através de uma definição que o incorpore num
sistema bem construído de conceitos científicos, lógico-matemáticos ou empíricos.”
CARNAP citado por SUPPE (1977:57-8)
10
Carnap acrescenta ainda que o explicatum deve satisfazer algumas condições
específicas. O explicatum deve ser semelhante ao explicandum. As regras para o
seu uso devem ser especificadas de maneira precisa. O explicatum deve ser útil
para a formulação de muitas sentenças universais. E, por fim, o explicatum deve
ser tão simples quanto as três primeiras exigências permitirem.
Não satisfeito com a descrição, Suppe chama a atenção para o fato de
Carnap ter afirmado que sua noção de explicação inclui como caso especial a
noção de análise de C. H. Langford. Suppe descreve a noção de análise de
Langford da seguinte forma:
“O analisandum e o analisans devem ter a mesma denotação ou extensão, mas devem ter
diferentes intensões ou sentidos. Além disso, o analisans deve ser tal que ele seja entendido
melhor e de forma mais precisa que o analisandum.” (SUPPE: 1977: 59)
A análise é somente um caso especial, no entanto, porque muitas vezes o
explicatum não coincide inteiramente com o explicandum. Isso acontece, segundo
Carnap, porque quando uma explicação é realmente necessária o explicandum é
vago o suficiente para não ser possível determinar com precisão se inteira
coincidência de extensão entre esse e o explicatum.
Como Carnap não se preocupou em descrever até que ponto numa
explicação adequada o explicandum e o explicatum podem diferir, Suppe recorre
a uma formulação de Chomsky para fazê-lo. Segundo ele, Carnap aceitaria de
bom grado que numa explicação adequada se exigisse que o explicatum denotasse
todas as claras instâncias do explicandum e nenhuma das claraso-instâncias do
mesmo, deixando os casos vagos para que o próprio explicatum definisse.
A caracterização de explicação que resulta dessa discussão é a que se segue:
“Uma explicação adequada consiste numa sentença explicandum junto com uma sentença
explicatum que satisfaçam as seguintes exigências: (1) Restrito às instâncias e não instâncias
claras do explicandum, o explicandum e o explicatum devem ter a mesma denotação
(extensão). (2) O explicandum e o explicatum devem ter sentidos diferentes, com o último
sendo melhor e mais precisamente compreendido que o segundo. (3) o explicatum deve ser
11
‘útil’ em relação ao propósito da explicação, levando a conseqüências e resultados úteis. (4)
O explicatum deviÑ))TU ão, levando a conseqüências e resultados úteis. (4)
O explicatum deviÑ))TU ão, levando a conseqüências e resultados úteis. (4)
O explicatum deviÑ))TU ão, levando a conseqüências e resultados úteis. (4)
O explicatum deviÑ))TU ão, levando a conseqüências e resultados úteis. (4)
O explicatum deviÑ))TU ão, levando a conseqüências e
Ya
“... na medida que a filosofia da ciência, assim concebida [pelos positivistas lógicos], não
lida com teorias científicas particulares, ela é imune às vicissitudes da ciência – o ir e vir das
teorias particulares, - pois aquelas mudanças dizem respeito ao conteúdo da ciência, ao
passo que os filósofos da ciência estão preocupados com a sua estrutura; não com teorias
mortais específicas, mas com as características de qualquer teoria possível, com o
significado da palavra ‘teoria’ em si mesma. ” (SHAPERE 1966: 59)
Outros filósofos, entretanto, parecem nitidamente ignorá-lo quando atribuem à
visão recebida a crença num método científico que seria responsável pela
racionalidade e pelo progresso da ciência. Quando Tianji [1985], por exemplo,
escreve que:
Os positivistas lógicos e os popperianos acreditavam que a ciência procedia seguindo um
método distintivo, o método científico, e que racionalidade nada mais era do que agir em
conformidade com as normas deste método.” (TIANJI 1985: 410)
Ele parece, de fato, ignorar o status a que nos referíamos, pois a idéia de uma
metodologia pressupõe uma preocupação mínima para com o desenvolvimento da
ciência, preocupação essa que não está necessariamente contemplada numa
explicação de teoria científica.
(O que sobressai é que Tianji não está desacompanhado nessa leitura.
Muitos outros autores identificam no positivismo lógico a crença num método
científico. Do que se deduz que, se algum erro de interpretação aqui, esse
erro se difundiu consideravelmente. Kuhn [2000], Laudan [1984] e Brown
[1977] são apenas mais alguns exemplos de leituras nas quais é possível destacar
referências literais a essa crença.)
5
nessas leituras, porém, alguns elementos que nos ajudam a entender
porque se deu esse aparente desvio do sentido original da visão recebida. Um
5
Brown parece identificar a idéia de cumulatividade com a idéia de um método quando afirma
que: “(...) os empiristas lógicos não se preocupavam com a natureza do progresso científico,
embora tendessem a aceitar a visão tradicional de que a ciência moderna surgiu nos séculos
dezesseis e dezessete com o descobrimento do ‘método empírico’, registrando uma história de
constante acumulação de conhecimento.” (BROWN 1977: 9)
13
desses elementos está na indicação de uma tese que, como Suppe observa, embora
estritamente falando não seja parte da visão recebida, está intimamente ligada a
ela: a tese da redução teórica. Defendida por muitos proponentes da visão
recebida, por exemplo, Nagel [1961], essa tese afirma que o desenvolvimento
científico se principalmente de duas maneiras: na primeira delas, uma teoria
que desfruta de um alto grau de confirmação no seu escopo original é estendida
com a finalidade de englobar um escopo mais amplo de fenômenos; na segunda,
várias teorias distintas são incluídas ou reduzidas a uma teoria mais inclusiva.
Mesmo quando lida como uma explicação, nos termos acima descritos, do
processo de desenvolvimento científico, essa tese está comprometida com uma
série de outras teses. Há, por exemplo, a suposição de que teorias que desfrutam
de um alto grau de confirmação no seu escopo original são relativamente imunes a
subseqüentes desconfirmações nesse mesmo escopo. Há, também, a suposição de
que a redução teórica o afeta o significado dos termos teóricos e que então as
reduções preservam as teorias reduzidas como casos especiais. Há, por fim, a
suposição mais ampla de que o desenvolvimento científico se de forma
estritamente cumulativa.
Acontece que para que a tese da redução teórica positivista seja de fato
uma explicação adequada do processo de desenvolvimento científico, o
desenvolvimento real da ciência tem que ser tal que a tese da redução teórica
revele a sua natureza estrutural e conceitual de forma mais clara e precisa. Mas, se
assim realmente o for e os autores citados interpretam as teses positivistas como
se elas afirmassem que assim é , torna-se, então, possível vislumbrar um padrão
de conduta por detrás do padrão de desenvolvimento científico. Esse padrão de
conduta seria o que tornaria atual o padrão cumulativo de desenvolvimento
indicado na tese da redução teórica. Pois, segundo a leitura que os autores
anteriormente citados fazem da visão recebida, os positivistas acreditavam na
existência desse padrão e o creditavam à obediência, por parte dos cientistas, ao
assim chamado método científico. Laudan, por exemplo, afirma que:
“Era comum afirmar [entre os empiristas lógicos], por exemplo, que uma das principais
regras do método científico determinava que novas teorias para serem aceitas deveriam estar
14
aptas a explicar todo o sucesso das suas predecessoras e alguns novos fatos também. A
ciência, na verdade, era pensada como sendo estritamente cumulativa. (...) Afinal de contas,
se emergia uma nova teoria que conseguia explicar tudo o que a sua predecessora conseguia,
e algumas outras coisas ao lado, então pareceria que nenhuma pessoa sensível poderia
resistir ao apelo da nova teoria.” (LAUDAN 1984: 8)
Claro está que, para a ciência se desenvolver de forma cumulativa, os
cientistas envolvidos têm de agir de acordo com a tese da redução teórica
6
ou
seja, os cientistas têm de se propor a estender as teorias aceitas para além do seu
escopo original e a reduzir as teorias antigas a teorias mais inclusivas Mas se os
cientistas de fato o fazem, e o seu comportamento é de alguma forma tido como
racional, deve haver algum elemento que permita identificar a correção desse
comportamento. Na interpretação que autores pós-positivistas fazem da visão
recebida, os positivistas acreditavam que os cientistas agiam de acordo com o
padrão cumulativo de desenvolvimento porque havia princípios de aceitação
teórica que uma vez aceitos e pensava-se que eles eram aceitos privilegiavam
esse padrão de desenvolvimento, impelindo os cientistas a fazerem escolhas
coerentes com ele. Em Laudan [1984] essa leitura é bastante clara. Segundo ele,
os positivistas concordavam quanto à existência e à aceitação ao menos
implícita por parte dos cientistas, de um conjunto de princípios desse tipo.
Segundo ele:
Durante os anos 40 e 50 a maiorias dos filósofos da ciência concordavam em que a ciência
se caracterizava, cognitivamente, principalmente pelo seu alto grau de acordo e também
concordavam em atribuir esse grau de consenso à disposição dos cientistas em submeter
suas opiniões à arbitragem de uma lógica imparcial de apreciação teórica.”(LAUDAN 1984:
7)
Para Tianji [1985] os positivistas não concordavam quanto à existência
desse método como pretendiam revelá-lo. Segundo ele, “O positivismo lógico
6
Essa interpretação pode ser facilmente contestada com a afirmação de que a preocupação
positivista era com a análise do produto da atividade científica e não com a atividade em si mesma.
Para os pensadores pós-positivistas essa separação é, no entanto, questionável, pois não ciência
propriamente dita sem processo produtor do conhecimento. (no que se percebe a mudança de
perspectiva em filosofia da ciência).
15
tentou empreender uma formulação geral e explícita dos princípios de aceitação
racional.” (TIANJI 1985: 411)
Outro aspecto da visão recebida que conjuntamente com a tese da redução
teórica é continuamente citado quando alusões à referida crença numa
metodologia, diz respeito ao caráter exclusivamente empírico que a ciência
assumia nas primeiras versões da visão recebida. Dado que os termos teóricos
eram pensados pelos positivistas como simples abreviações de enunciados
empíricos, toda a ciência se reduzia, em última instância, a enunciados empíricos.
Uma vez que esses enunciados empíricos eram considerados o problemáticos
quanto à aferição do seu valor de verdade, toda e qualquer disputa teórica era
pensada como passível de ser resolvida de forma relativamente simples, direta e
racional. Laudan [1984] refere-se a esse fato como se ele especificasse uma crença
numa metodologia, crença essa que ele denomina de “ideal Leibniziano”
7
. Cito
Laudan [1984]:
“Se otimistas ou pessimistas, racionalistas ou empiristas, a maioria dos lógicos e
filósofos da ciência de 1930 até 1950 acreditava, ao menos em princípio, no ideal
leibniziano. Que eles o fizessem tinha relevância imediata para suas visões sobre consenso
em ciência, pois a ciência era considerada como consistindo inteiramente de afirmações
sobre questões de fato. (...) Em suma, os filósofos pregavam que a ciência era uma atividade
consensual porque os cientistas (na medida que eram racionais) moldavam suas crenças,
implicitamente se não explicitamente, de acordo com os cânones de uma ‘metodologia
científica’ compartilhada ou ‘lógica indutiva’, e esses cânones eram pensados como sendo
mais do que suficientes para resolver qualquer desacordo genuíno sobre questões de fato.”
(LAUDAN 1984: 5-6)
Kuhn, num tom semelhante ao de Laudan, também aproxima a idéia de uma
metodologia à idéia de que os fatos observados bastariam, na concepção
tradicional, para decidir entre teorias distintas. Kuhn maior ênfase, contudo, a
um outro aspecto da visão recebida. A idéia de que seria possível determinar até
que ponto a evidência confirmaria ou refutaria uma dada hipótese aparece,
7
Cito Laudan [1984] “(...) o ideal Leibniziano sustenta que todas as disputas sobre questões de
fato podem ser imparcialmente resolvidas através da invocação das regras de evidência
apropriadas.” (1984: 5)
16
segundo o autor, como mais um elemento constitutivo dessa metodologia. Cito
Kuhn:
“(...) de novo, os fatos observados eram tidos [pelos positivistas lógicos] como constituindo
uma corte final de apelação. Dois conjuntos de leis e teorias ordinariamente não têm as
mesmas conseqüências, e testes designados para ver qual conjunto de conseqüências é
observado eliminarão ao menos um deles.
Construídos de diversas formas, esses processos constituíam algo chamado de
método científico. Algumas vezes pensado como tendo sido inventado no século dezessete,
esse era o método a partir do qual os cientistas descobriam generalizações verdadeiras e
explicações sobre os fenômenos naturais. Ou se não exatamente verdadeiras, ao menos
próximas da verdade. E se não próximas, ao menos altamente prováveis.” (KUHN 1991:
107)
Desde que nesse capítulo não estamos preocupados em analisar em detalhe
pontos específicos das teses positivistas, evitaremos julgar até que ponto as
leituras apresentadas são boas leituras das doutrinas positivistas. O que realmente
nos interessa aqui é que, independentemente da sua qualidade, essas leituras foram
levadas a cabo e que isso trouxe conseqüências para a questão abordada nesta
dissertação. Para muitos autores pós-positivistas, os positivistas lógicos
acreditavam na existência de uma metodologia e, mais do que isso, acreditavam
na sua vinculação irrestrita com a racionalidade e o progresso da ciência.
De qualquer forma, nos parece inegável que a visão recebida se enquadra
naquilo que Shapere denomina de: visões “pressuposicionistas”
8
da ciência.
Com o termo pressuposicionista Shapere pretende nomear aquelas visões da
ciência que afirmam haver: “... algo que é pressuposto pelo empreendimento de
aquisição de conhecimento, mas que é em si mesmo imune à revisão ou à rejeição
à luz de qualquer novo conhecimento ou crença adquirida.”(SHAPERE 1980:
205) Seja esse ‘algo’ certas afirmações sobre o mundo, um certo método
científico, certas regras de raciocínio ou certos conceitos que são utilizados na
ciência ou para se falar dela. Uma vez que esse ponto é concedido, o que em
princípio parecia um erro de interpretação soa mais como uma confusão de termos
8
De fato, Shapere afirma que as doutrinas dos empiristas lógicos assim como as de Platão, Kant e
do primeiro Wittgenstein se enquadram nessa definição. Shapere [1984, 205]
17
e a referida ‘qualidade’ das leituras fica preservada. Pois, em todos os casos
referidos um elemento que, dada a sua natureza invariante, precisa ser
contemplado para que o processo de aquisição de conhecimento se dê, seja esse
elemento um método, certos enunciados ontológicos, certas regras de raciocínio
ou certos conceitos fundamentais. Segundo a visão recebida, tanto a linguagem
observacional quanto as relações formais entre os enunciados dessa linguagem e
aqueles pertencentes à linguagem teórica seriam não variantes.
1.2 – Karl Popper.
Um importante autor que defende um modelo metodológico para a ciência é
Karl Popper. E, uma fonte importante para compreender esse modelo é a sua
Lógica da Pesquisa Científica Nos primeiros capítulos desse livro, Popper
apresenta sucintamente as suas principais idéias sobre a noção de método
científico. Antes de fazê-lo, porém, para marcar as devidas diferenças, o autor
expõe algumas críticas importantes às teses positivistas.
A primeira dessas críticas dirige-se ao que Popper denomina “abordagem
naturalista da teoria do método”. Segundo o autor, essa abordagem afirma a
seguinte tese: Se a metodologia não é lógica (...) deve ser um ramo de alguma
ciência empírica.” (1975, 54). Ou ainda, se todas as sentenças significativas são
tautologias lógicas ou enunciados empíricos, toda metodologia tem de ser uma
descrição de como os cientistas agem ou de como a “Ciência” procede
9
.
Popper critica essa abordagem porque, desde o seu ponto de vista, ela é
demasiadamente limitada. Muito embora reconheça que diversos elementos
possam ser aprendidos em uma análise do comportamento dos cientistas, para o
autor, questões importantes para a compreensão da ciência não são contempladas
nela. Se a aceitarmos, questões como, por exemplo, a de saber se o princípio da
indução implica ou não incongruências, não poderão ser resolvidas.
Em outra de suas críticas, Popper afirma a insuficiência de uma análise
puramente lógica das teorias e dos enunciados científicos para a compreensão da
especificidade do desenvolvimento científico e da “maneira peculiar de decidir,
9
Segundo Popper, os positivistas acreditavam que a ciência procedia indutivamente.
18
em casos cruciais, entre sistemas teóricos conflitantes” (1975, 52) Uma vez que
sempre é possível estabelecer uma teoria como absolutamente incontestável, uma
análise exclusivamente lógica das teorias não é suficiente para compreender a
natureza do desenvolvimento da ciência. Cito Popper:
Estou pronto a admitir que se impõe uma análise puramente lógica das teorias, análise que
não leve em conta a maneira como essas teorias se alteram e se desenvolvem. Contudo, esse
tipo de análiseo elucida aqueles aspectos das ciências empíricas que eu prezo muito [seu
desenvolvimento crítico]. (...) Conseqüentemente, se caracterizarmos a ciência empírica tão
somente pela estrutura lógica ou formal de seus enunciados, não teremos como excluir dela
aquela forma de Metafísica proveniente de se elevar uma teoria científica obsoleta ao nível
de verdade incontestável.” (POPPER 1975: 52)
Em contraste com essas teses, para Popper a metodologia constitui-se de
dois componentes distintos e complementares: o componente lógico e o
componente normativo. O componente lógico toma forma no seu texto
principalmente na crítica à indução e na afirmação do modelo hipotético-dedutivo
enquanto o componente normativo vem à tona na forma de regras convencionais
de conduta.
No que diz respeito ao componente lógico, Popper articula em diversas
sessões da Lógica uma dura crítica à compreensão indutivista da ciência. Segundo
ele, o princípio de indução leva, necessariamente, a incoerências lógicas, o que faz
com que qualquer modelo de desenvolvimento científico baseado nele também o
faça.
Em detrimento desse modelo, Popper reivindica que compreendamos a
ciência a partir do modelo dedutivo de prova. Fundamentado exclusivamente na
lógica dedutiva, o modelo dedutivo de prova está, segundo o autor, livre das
incoerências lógicas do princípio de indução. O autor descreve esse modelo da
seguinte forma:
“A partir de uma idéia nova, formulada conjecturalmente e ainda não justificada de algum
modo antecipação, hipótese, sistema teórico ou algo análogo pode-se tirar conclusões
por meio de dedução lógica. Essas conclusões são em seguida comparadas entre si e com
19
outros enunciados pertinentes, de modo a descobrir-se que relações lógicas (equivalência,
dedutibilidade, compatibilidade ou incompatibilidade) existem no caso.” (POPPER 1975:
33)
Ainda no terreno lógico, Popper propõe que em substituição ao critério
indutivista de verificabilidade, a demarcação entre os sistemas científicos e os
sistemas não-científicos seja compreendida através da idéia de falseabilidade: são
científicas aquelas teorias que de alguma forma são passíveis de serem falseadas.
Segundo o autor, esse critério se beneficia de uma assimetria existente entre a
verificabilidade e falseabilidade, pois muito embora um número finito de
enunciados singulares não verifique um enunciado universal, basta um enunciado
que o contradiga para que ele seja falseado.
Quanto ao componente normativo, ele vem se somar ao componente
lógico por que, embora o modelo dedutivo de prova e o critério falseacionista
estejam livres de incoerências lógicas, “caso alguém insista em prova estrita (ou
estrita refutação) em ciências empíricas, esse alguém jamais se beneficiará da
experiência e jamais saberá como está errado.”[1975, 52]. É preciso, portanto,
suplementar o componente lógico, segundo Popper, com um elemento normativo
para que, dessa forma, a assimetria sublinhada entre a verificabilidade e a
falseabilidade não se veja obscurecida por estratagemas convencionalistas.
Com a finalidade de o permitir que as teorias sejam protegidas do
falseamento, Popper articula uma série de regras metodológicas. Na seção 11 do
capítulo II Popper apresenta dois exemplos dessas regras. São eles:
“(1) O jogo da ciência é, em princípio, interminável. Quem decida, um dia, que os
enunciados científicos não mais exigem prova, e podem ser vistos como definitivamente
verificados, retira-se do jogo.
(2) Uma vez proposta e submetida à prova a hipótese e tendo ela comprovado suas
qualidades, não se pode permitir seu afastamento sem uma ‘boa razão’. Uma ‘boa razão’
será, por exemplo, sua substituição por outra hipótese, que resista melhor às provas, ou o
falseamento de uma conseqüência da primeira hipótese.” (POPPER 1975: 56)
20
No capítulo X, ao discutir o sentido aparentemente indutivo da ciência,
Popper refere-se a outra importante regra metodológica. Segundo essa regra, toda
nova teoria para ser aceita deve estar apta a explicar o sucesso da teoria que a
antecedeu. Nas palavras do autor:
“(...) uma teoria que mereceu ampla corroboração pode ceder passo a uma teoria de mais
alto grau de universalidade, ou seja, a uma teoria passível de submeter-se a melhores testes e
que, além disso, abranja a teoria anterior bem corroborada ou pelo menos algo que se lhe
aproxime muito.” (POPPER 1975: 303 grifo no original.)
A idéia de desenvolvimento cumulativo, anteriormente citada na apreciação das
teses positivistas, aparece em Popper como o produto de uma máxima
metodológica. O desenvolvimento científico tem caráter cumulativo porque
existem ximas que exigem que aceitemos somente aquelas teorias
comprovadamente mais abrangentes; aquelas teorias de alguma forma preservam
o sucesso das teorias anteriores e que, além disso, antecipam fatos novos
10
(se
expondo mais ao falseamento).
Cabe ressaltar, também, que, para Popper, o método dedutivo de prova ou
método das conjecturas e refutações não se limita ao campo das ciências
naturais. Como o autor deixa claro no seu livro A Lógica das ciências Sociais,
esse também é o método das ciências sociais. Cito Popper:
“a) O método das ciências sociais, como aquele das ciências naturais, consiste em
experimentar possíveis soluções para certos problemas; os problemas com os quais iniciam-
se nossas investigações e aqueles que surgem durante a investigação.
As soluções são propostas e criticadas. Se uma solução proposta não está aberta a uma
crítica pertinente, então é excluída como o científica, embora, talvez, apenas
temporariamente.
b) Se a solução tentada está aberta a críticas pertinentes, então tentamos refutá-la; pois toda
crítica consiste em tentativas de refutação.
c) Se uma solução tentada é refutada através do nosso criticismo, fazemos outra tentativa.
10
Segundo Dutra (1998: 92) enquanto para Carnap o acumulo diz respeito aos problemas e as
respostas, para Popper o acumulo diz respeito somente aos problemas.
21
d) Se ela resiste à crítica aceitamo-la temporariamente; e aceitamos, acima de tudo, como
digna de ser discutida e criticada mais além.
e) Portanto, o método da ciência consiste em tentativas experimentais para resolver nossos
problemas por conjecturas que são controladas por severa crítica. É um desenvolvimento
crítico consciente do método de ‘ensaio e erro’.
f) A assim chamada objetividade da ciência repousa na objetividade do método crítico. Isso
significa, acima de tudo, que nenhuma teoria está isenta do ataque da crítica; e, mais ainda,
que o instrumento principal da crítica lógica – a contradição lógica – é objetivo.”. (POPPER
1978: 16)
Em um artigo posterior, Verdade, Racionalidade e a Expansão do
Conhecimento Científico, preparado para um congresso em 1960, Popper reafirma
algumas teses da sua Lógica e acrescenta a elas algumas importantes idéias novas.
Ele afirma, por exemplo, que na ciência existem critérios precisos para determinar
o progresso de uma teoria em relação à outra, que sabemos quais critérios são
esses e que é justamente o conhecimento desses critérios que nos permite fazer
escolhas racionais.
“No campo da ciência, (...), possuímos um critério de progresso: mesmo antes de submeter
uma teoria a testes empíricos podemos dizer que, corroborada por esses testes, ela
representará um avanço sobre outras teorias. Em outras palavras, afirmo que sabemos como
deve ser uma boa teoria científica; e, mesmo antes de testá-la, que tipo de teoria seria ainda
melhor, desde que corroborada por alguns testes cruciais. É este conhecimento meta-
científico que torna possível falar sobre o progresso científico, e praticar uma escolha
racional entre teorias competitivas.” (POPPER 1963: 217)
Diferente das atividades nas quais não existem critérios conhecidos de progressão,
nas quais por isso se pode falar de alterações e de mudanças, nas ciências é
possível falar de progresso por que temos conhecimento de um critério válido para
o mesmo. Esse critério nos diz que são preferíveis no sentido de representarem
progresso as teorias que informam mais, que dizem mais sobre o mundo, que
apresentam um maior conteúdo empírico e que, portanto, podem ser testadas de
forma mais rigorosa.
22
Na posse desse critério, podemos fazer escolhas racionais em casos, por
exemplo, nos quais teorias distintas pretendem dar conta de uma gama muito
ampla de fenômenos. Uma vez determinado o conteúdo empírico de cada teoria e
os seus respectivos graus de testabilidade, torna-se tarefa simples decidir quais
teorias devemos privilegiar: devemos privilegiar as teorias que fazem conjecturas
mais audazes, que se expõem mais ao falseamento, que informam mais e que
obviamente não tenham sido refutadas pelos testes empíricos.
Quanto à confirmação das teorias ou, como Popper coloca, à corroboração
das teorias, essa lhes fornece apoio apenas provisório. Uma teoria bem
corroborada no passado não está de forma alguma livre de uma futura refutação.
A corroboração nos diz apenas que a teoria submetida a testes resistiu bem a eles
ao não ser refutada. Outros testes podem, no entanto, vir futuramente a refutá-la.
Cabe lembrar que o grau de corroboração não depende exclusivamente do número
de testes a que uma teoria foi submetida. Hipóteses triviais normalmente são bem
testadas quantitativamente, mas seus testes são, no mais das vezes, pouco severos.
Hipóteses ousadas, por sua vez, muitas vezes não são quantitativamente tão bem
testadas, mas os poucos testes a que são submetidas se revelam de extrema
severidade. Apesar de quantitativamente menor, a testabilidade relativa dessa
segunda hipótese é, segundo Popper, consideravelmente maior e, por isso,
devemos sempre privilegiá-la em detrimento de hipóteses triviais. O grau de
corroboração deve, portanto, levar sempre em conta a severidade dos testes.
*
A partir das observações feitas, percebemos que nas teses popperianas
uma profunda preocupação com a maneira pela qual escolhemos entre sistemas
teóricos distintos. Insatisfeito com o que considera ser a doutrina positivista,
Popper busca outros critérios lógicos para demarcar a ciência das outras atividades
humanas. Ciente das limitações de uma caracterização exclusivamente lógica da
ciência, Popper procura, também, por um elemento normativo que permita que os
seus critérios lógicos possam ser aplicados com maior precisão. Por fim, frente à
questão da escolha teórica, Popper propõe uma nova forma de compreendê-la: se
23
entre duas teorias competidoras, nenhuma foi refutada, escolhamos a teoria de
maior conteúdo empírico.
1.3 – Mario Bunge.
Mario Bunge provavelmente é um dos autores que mais enfatiza o caráter
metódico da pesquisa científica. A compreensão de ciência exposta nos seus livros
sublinha sobremaneira esse aspecto da ciência. Em Bunge [1969], por exemplo, o
elemento metodológico é o que define propriamente a ciência enquanto tal,
diferenciando essa das demais atividades não científicas. Como diz Bunge: “O
método científico é um traço característico da ciência, tanto pura como aplicada:
onde não há método científico não ciência.”(BUNGE 1969: 29). Muito embora
as técnicas específicas possam variar muito de ciência para ciência, para Bunge, o
método científico é universal na sua abrangência. As técnicas empregadas por um
historiador e por um sico, por exemplo, podem diferir enormemente; ambos, no
entanto, enquanto cientistas necessariamente compartem do método científico. Na
medida em que buscam identificar estruturas gerais e que o fazem conjeturando
hipóteses e contrastando-as com a realidade, não diferença significativa entre
eles.
“(...) não diferença de estratégia entre as ciências: as ciências especiais diferem
pelas técnicas que usam para solucionar seus problemas particulares; mas todas compartem
o método científico. Isto, mais que uma comprovação empírica, se segue da seguinte
Definição: uma ciência é uma disciplina que utiliza o método científico com a finalidade de
achar estruturas gerais (leis).”(BUNGE 1969: 32)
Em outro livro importante, Epistemologia [1980], Bunge apresenta
pormenorizadamente o que entende por método científico. Antes de fazê-lo, no
entanto, Bunge menciona de passagem uma crítica aos modelos epistemológicos
apresentados por Carnap e Popper. Segundo o autor, esses modelos são
excessivamente simples, sendo incapazes de dar conta dos desenvolvimentos da
ciência contemporânea. O modelo metodológico de Bunge constitui-se das
seguintes regras:
24
“(1) Descobrimento do problema ou lacuna num conjunto de conhecimentos. (...).
(2) Colocação precisa do problema, dentro do possível em termos maÐe
Muito embora houvesse considerável disputa em relação às especificidades
do modelo metodológico, a sua aceitação, em linhas gerais, era bastante ampla. As
próprias críticas que os autores faziam uns aos outros demonstra isso: a idéia geral
de uma metodologia, enquanto lógica de justificação, não era em momento algum
questionada, sendo, antes, pressuposta. O que se discutia, não era a adequação da
concepção metódica de ciência, e, sim as características que essa concepção
deveria assumir.
Esse traço marcante das discussões em filosofia da ciência passa, todavia, a
ser duramente desafiado. Insatisfeitos com os pressupostos e as conclusões dessas
discussões, autores de formações distintas, em meados do século XX, articulam
vigorosas críticas ao modelo metodológico de racionalidade.
Nesse capítulo, analisaremos duas obras bastante importantes nesse
contexto: The Structure of Scientific Revolutions, de Thomas Kuhn, e Contra o
Método, de Paul Feyerabend. Embora outras obras sejam também relevantes,
essas duas serão objeto de análise por possuírem, excluindo as críticas
mencionadas, o que poderia ser chamado de embrião para uma nova forma de
compreensão do desenvolvimento científico e da sua racionalidade.
2.1 – Thomas Kuhn
The Structure of Scientific Revolutions (1962), de Thomas Kuhn, tem um
caráter bastante curioso. Por um lado, o livro é uma grande síntese de teses de
outros autores. Por outro, é uma ruptura radical com um modelo tradicional de
compreensão do desenvolvimento científico. Essa aparente contradição é,
contudo, facilmente explicável. Kuhn não era de origem um filósofo, mas um
físico e posteriormente um historiador da ciência. Kuhn aprendeu, portanto, a ver
a ciência de forma distinta daquela em que os filósofos de língua inglesa o
fizeram. As suas fontes divergem da do filósofo de formação. As grandes
influências do seu trabalho mesmo as filosóficas vêm de obras de pouca
influência na tradição filosófica de língua inglesa: Polany, Fleck, Hanson e Koyré.
Assim, mesmo as suas teses não sendo absolutamente novas, para o modelo até
então dominante em filosofia da ciência a sua teoria representou uma
problematização ímpar. No seu livro, enquanto uma nova forma de compreensão
26
da ciência emerge, diversas críticas são dirigidas a esse modelo tradicional de
compreensão da racionalidade e desenvolvimento científico. Ainda que traga
diversas teses enunciadas em outros contextos, o seu livro não deixa de
representar uma ruptura com a tradição. A capacidade de Kuhn de articular essas
teses numa leitura histórica e crítica da ciência empresta ao seu livro uma
condição verdadeiramente inovadora.
A importância capital da experiência de Kuhn como historiador pode ser
reconhecida no prefácio do seu livro, no qual Kuhn descreve como foi o seu
primeiro contato com a História da Ciência. Sucintamente, ele relata que as suas
concepções mais básicas sobre a natureza da ciência retiradas do treino
científico e de um interesse recreativo pela filosofia da ciência foram
completamente minadas naquela ocasião. Posteriormente, relatando o trajeto
percorrido por ele até a primeira publicação do livro em questão, Kuhn mostra
como aquele primeiro estranhamento o levou a estudar a História da Ciência e
como essa o levou a escrever The Structure of Scientific Revolutions.
Ainda que Kuhn não tivesse escrito o referido prefácio ou que a presença
desse no livro tivesse sido reconsiderada pelo autor, a idéia a que ele remete
nessas frases não deixaria de transparecer. A História da Ciência tem um papel
fundamental no livro de Kuhn e a sua importância, embora implícita algumas
vezes, é repetidamente reiterada em diversas passagens do livro. na introdução,
que leva o nome sugestivo de “Um Papel para a História”, Kuhn afirma que: “Se a
história fosse vista como um repositório para algo mais que anedotas e
cronologias, poderia produzir uma transformação decisiva na imagem de ciência
que atualmente nos domina.”(KUHN 1970: 1).
Kuhn abertamente reivindica um papel para a história da ciência na
composição da imagem de ciência que temos. Desde o seu ponto de vista, um
olhar cuidadoso para essa disciplina poderia transformar essa imagem
radicalmente. Não é, contudo, qualquer historiografia que possui tal poder de
transformação, mas somente uma nova forma de encarar a atividade histórica.
Uma forma que não procura “as contribuições permanentes de uma ciência mais
antiga para nossa perspectiva privilegiada”, mas que procura “apresentar a
27
integridade histórica daquela ciência, a partir de sua própria época”(KUHN 1970:
3). É para essa e somente essa historiografia que Kuhn reivindica um papel. A
definição precisa de como seu ensaio se insere nesse contexto surge, no
entanto, páginas depois. Cito Kuhn:
“Pelo menos implicitamente, esses estudos historiográficos sugerem a possibilidade de uma
nova imagem da ciência. Este ensaio visa delinear essa imagem ao tornar explícitas algumas
das implicações da nova historiografia.”.(KUHN 1970: 3)
Como Hoyningen-Huene afirma, o texto de Kuhn é essencialmente meta-
histórico. “Essa [a história], mobília sua teoria com os casos particulares.”(1993:
8)
Dito isso, e um primeiro contraste em relação aos filósofos analisados no
capítulo anterior se torna flagrante. O principal instrumento de análise kuhniana
é a história da ciência e não mais a lógica matemática. Em substituição aos termos
da lógica, o texto de Kuhn encontra-se repleto de metáforas políticas, religiosas e
psicológicas. São muitas as referências a “revoluções”, “conversões” e “mudanças
de Gestaltenquanto as conhecidas fórmulas do cálculo de predicados quase não
são vistas.
Outro contraste marcante com a filosofia da ciência dos seus antecessores,
que tem suas raízes na sua preocupação histórica, diz respeito ao alto valor que
Kuhn empresta ao conceito de comunidade científica. O foco de análise do autor é
preponderantemente a comunidade de cientistas e raramente o cientista individual.
Como o autor enfatiza no posfácio de 1969:
“O conhecimento científico, como a linguagem, é intrinsecamente a propriedade comum de
um grupo ou então não é nada. Para entendê-lo, precisamos conhecer as características
essenciais dos grupos que o criam e o utilizam.” (KUHN 1970: 210)
Esse aspecto, aparentemente sociológico da sua teoria, quebra com uma tradição
que enfatizava sobremaneira o cientista individual que se utiliza do método
28
científico para tomar decisões. A comunidade, no livro de Kuhn, assume esse
lugar outrora concedido ao investigador individual.
Quanto às críticas feitas pela abordagem kuhniana, o tema mais relevante
para esse capítulo surge exatamente de uma delas: a questão do método científico
e sua vinculação com a racionalidade em ciência. The Structure of Scientific
Revolutions chama a atenção justamente por não possuir uma formulação explícita
de proposta metodológica. Diferente dos autores analisados no capítulo anterior,
Kuhn, na sua análise da ciência, não estipula nada que se assemelhe a um método
enquanto conjunto de regras para proceder ‘cientificamente’. Em oposição a essa
idéia, na introdução do livro, o autor afirma que uma das revelações da nova
historiografia é a “insuficiência das diretrizes metodológicas para ditarem, por si
só, uma única conclusão substantiva para várias espécies de questões
científicas.”(KUHN 1970: 3). Alguns parágrafos adiante e o autor acrescenta
ainda que:
“A observação e a experiência podem e devem restringir drasticamente a extensão das
crenças admissíveis, porque de outro modo o haveria ciência. Mas não podem, por si só,
determinar um conjunto específico de semelhantes crenças. Um elemento aparentemente
arbitrário, composto de acidentes pessoais e históricos, é sempre um ingrediente formador
das crenças esposadas por uma comunidade científica numa determinada época.” (KUHN
1970: 4)
Kuhn desacredita a idéia de que a ciência se desenvolva em função da
obediência por parte dos cientistas ao método científico. Desde o seu ponto de
vista, não são os métodos que orientam os cientistas, mas sim os paradigmas.
Esses não constituem-se de regras ou imperativos, e são, na verdade, “anteriores,
mais cogentes e mais completos que qualquer conjunto de regras para pesquisa
que deles possam ser abstraídos”(KUHN 1970: 46). Os paradigmas são
realizações exemplares, realizações compartilhadas que incluem lei, teoria,
experimento e aplicação
11
. A partir de uma educação centrada no estudo dessas
11
O que Kuhn entende por realização “exemplar” fica bastante claro quando ele contrasta a
explicação que Franklin ofereceu da garrafa de Leyden o paradigma com a teoria do fluído
elétrico. Segundo Kuhn: “Aquilo que a teoria do fluído elétrico fez pelo subgrupo que a defendeu,
o paradigma de Franklin fez mais tarde por todo o grupo de eletricistas. (...) Entretanto, o
29
realizações, os estudantes absorvem os compromissos que os membros mais
antigos assumiram. (Entre esses compromissos está, por exemplo, a relação das
entidades que compõe o universo, as interações a que elas estão submetidas, as
questões que podem ser legitimamente feitas a respeito delas e as técnicas que
devem ser empregadas para obtenção de respostas.) Uma vez absorvidos esses
compromissos, o estudante está pronto para reconhecer situações semelhantes nas
quais pode utilizá-los para solucionar outros problemas
12
. Esse processo não se dá,
contudo, de forma compartimentada: com a apreensão das generalizações teóricas
sendo condição de possibilidade para a compreensão das aplicações. Segundo
Kuhn, é antes através do “estudo das aplicações, incluindo-se a prática na
resolução de problemas, seja com lápis e papel, seja com instrumentos no
laboratório”(KUHN 1970:47) que o estudante chega a compreender como as
generalizações teóricas podem ser utilizadas em outros contextos.
Os paradigmas têm a sua eficácia restrita, contudo, àqueles períodos do
empreendimento científico que Kuhn denomina ciência normal. Nesses períodos
que se caracterizam justamente pela aceitação mais ou menos incondicional de um
paradigma, este último orienta com precisão a tarefa de resolução de problemas:
informando aos cientistas que caminhos devem ser seguidos e que caminhos
devem ser evitados. Quando o que está em jogo é, porém, a própria autoridade dos
paradigmas para orientar a pesquisa, os procedimentos paradigmáticos não são
suficientes. Durante uma crise, quando a comunidade precisa escolher entre
paradigmas competidores, algo como uma instância superparadigmática teria que
existir para orientar os cientistas. Como essa, segundo a teoria kuhniana, não
existe, as decisões recaem inevitavelmente no julgamento informado dos
cientistas. Nas palavras do autor: “Na escolha de um paradigma, como nas
paradigma realizou essa tarefa bem mais eficientemente que a teoria do fluído
elétrico(...).”(KUHN 1970: 18)
12
“O estudante descobre, com ou sem assistência do seu instrutor, uma maneira de encarar seu
problema como se fosse um problema que encontrou antes. Uma vez percebida a semelhança e
apreendida a analogia entre dois ou mais problemas distintos, o estudante pode estabelecer
relações entre os símbolos e aplicá-los à natureza segundo maneiras que tenham demonstrado
sua eficácia anteriormente.” (KUHN, 1970: 189)
30
revoluções políticas não existe critério superior ao consentimento da
comunidade relevante.” (KUHN, 1970: 94)
A solução oferecida pelo modelo popperiano para essa questão é para Kuhn
inadequada. Segundo ele:
“Nenhum processo descoberto até agora pelo estudo histórico do desenvolvimento
científico assemelha-se ao estereótipo metodológico da falsificação por meio da comparação
direta com a natureza.” (KUHN 1970: 77)
Além disso, historicamente as teorias estão sempre enfrentando contra-
exemplos, o que faz com que a idéia de falsificação seja de pouca utilidade. Até
mesmo os expedientes ad hoc tão duramente criticados por Popper são, segundo
Kuhn, importantes no desenvolvimento científico. Pois são eles que impedem que
o paradigma seja descartado frente às primeiras dificuldades, permitindo, dessa
forma, que as teorias tenham tempo suficiente para se desenvolver plenamente.
A solução positivista também é rechaçada por Kuhn. A distinção
fundamental entre enunciados teóricos e enunciados observacionais é, segundo o
autor, por demais problemática. Segundo ele, “teoria e fato científicos o são
categoricamente separáveis, exceto talvez no interior de uma única tradição de
prática científica normal.”(KUHN 1970: 7) A idéia de desenvolvimento
cumulativo é igualmente criticada pelo autor. Segundo ele, essa idéia pressupõe
uma definição de teoria científica historicamente equivocada e logicamente
defeituosa. Para o autor:
“(...) Uma nova teoria, por mais particular que seja seu âmbito de aplicação, nunca ou quase
nunca é um mero incremento ao que é conhecido. Sua assimilação requer a reconstrução
da teoria precedente e a reavaliação dos fatos anteriores.” (KUHN 1970: 7)
Desde o seu ponto de vista, o processo de escolha teórica é
consideravelmente mais complexo do que a imagem que esses modelos deixam
transparecer. Dois paradigmas distintos freqüentemente implicam em suposições
ontológicas e definições de ciência distintas, não havendo, dessa forma, base
31
suficiente entre eles para que os argumentos se tornem impositivos. Muitas vezes,
não consenso nem mesmo sobre que problemas são dignos de ser resolvidos, o
que faz com que os diálogos lembrem freqüentemente conversa de surdos, com
cada parte enfatizando aqueles problemas que sua teoria é capaz de resolver. Dado
que não existe uma instância superior que determine quais problemas são
realmente relevantes resolver, os argumentos que são produzidos nesse debate
apresentam caráter exclusivamente persuasivo. Nada parecido como uma prova,
no sentido lógico, pode ser apresentado nessas ocasiões. Afora isso, há, segundo
Kuhn, outro fator que problematiza sobremaneira esse processo. Uma vez
descartada a distinção entre termos teóricos e termos observacionais, parece não
haver razões para se supor que a percepção de cientistas que abraçam paradigmas
diferentes seja a mesma. Antes, eles parecem definitivamente viver em mundos
diferentes. “Os defensores de teorias diferentes são como membros de
comunidades de cultura e linguagem diferentes”(KUHN 1970: 205) Assim, o
processo de escolha de paradigmas se vê fortemente comprometido, pois a própria
idéia de um mundo fenomênico comum não mais resiste. Em um trecho
particularmente revelador, Kuhn aponta para a complexidade inerente ao processo
de escolha teórica. Cito o autor:
“Se houvesse apenas um conjunto de problemas científicos, um único mundo no qual
ocupar-se dele e um único conjunto de padrões científicos para sua solução, a competição
entre paradigmas poderia ser resolvida de uma forma mais ou menos rotineira, empregando-
se algum processo como o de contar o número de problemas resolvidos por cada um deles.
Mas na realidade, tais condições nunca são completamente satisfeitas. Aqueles que propõem
os paradigmas em competição estão sempre em desentendimento, mesmo que em pequena
escala.” (KUHN 1970: 147-8)
Mesmo os conhecidos critérios de escolha teórica tal como simplicidade,
coerência, precisão, alcance e fecundidade que possuem uma abrangência para
além dos paradigmas específicos
13
, são pensados por Kuhn não como regras de
13
“O terceiro grupo de elementos da matriz disciplinar que descreverei é constituído por valores.
Em geral são mais amplamente partilhados por diferentes comunidades do que as generalizações
simbólicas ou modelos.” (KUHN, 1970: 184)
32
escolha, mas como valores que são aprendidos através dos próprios paradigmas.
Esses valores têm um papel fundamental no desenvolvimento da ciência, mas não
ditam, por si só, respostas precisas nos casos de escolha teórica. Dois cientistas
educados a partir dos mesmos paradigmas podem partilhar valores e mesmo assim
aplicá-los de forma distinta, atingindo, dessa forma, soluções díspares. Além
disso, quando utilizados em conjunto, os diferentes valores muitas vezes ditam
soluções contraditórias. Uma teoria pode, por exemplo, ser mais precisa que outra
sem ser, no entanto, mais ampla que a mesma.
Por fim, cabe dizer que a imagem do empreendimento científico que emerge
dessas considerações sobre a complexidade do processo de escolha teórica, rendeu
a Kuhn diversas críticas. Muitos autores consideraram que as suas teses
transformavam a ciência numa atividade irracional na qual as razões não mais
participavam. A teoria kuhniana foi também repetidamente descrita como
relativista. Segundo essa descrição, para Kuhn não seria possível nem mesmo
comparar duas teorias rivais quanto mais avaliá-las. Um exemplo emblemático de
crítica às suas teses é a que Imre Lakatos articula no seu artigo O Falseamento e a
Metodologia dos Programas de Pesquisas . Cito Lakatos:
No entender de Kuhn não pode haver lógica, mas apenas psicologia da descoberta. Na
concepção de Kuhn, por exemplo, as anomalias e incoerências sempre abundam na ciência,
mas em períodos ‘normais’ o paradigma dominante assegura um padrão de crescimento
finalmente derrubado por uma crise’. Não existe nenhuma causa racional determinada para
o aparecimento de uma crise kuhniana, crise’ é um conceito psicológico; é um pânico
contagioso. Emerge então um novo ‘paradigma’, incomensurável com o seu predecessor.
Não existem padrões racionais para a sua comparação. Cada paradigma contém seus
próprios padrões. A crise leva embora não as velhas teorias e regras, mas também os
padrões que nos fizeram respeitá-las. O novo paradigma traz uma racionalidade totalmente
nova. Não padrões superparadigmáticos. A mudança é um efeito da adesão de última
hora. Assim sendo, de acordo com a concepção de Kuhn, a revolução científica é
irracional, uma questão de psicologia das multidões.” (LAKATOS 1974: 220-1, itálico no
original.)
33
Kuhn, no entanto, nunca aceitou essas críticas. Para o autor, a ciência
permanece racional apesar dos diversos aspectos que ele acentua. O problema
está, segundo ele, no conceito de racionalidade dos seus críticos que é por demais
estreito para compreender como a racionalidade realmente opera em ciência. Essa
não pode se definir em função de um algoritmo. Pois esse, se existisse, faria cessar
uma característica essencial da ciência: a variabilidade dos seus julgamentos.
Uma vez que na escolha teórica sempre riscos envolvidos, a possibilidade de
uma variedade de julgamentos talvez seja ‘a maneira que a comunidade encontra
para distribuir os riscos e assegurar o sucesso do seu empreendimento a longo
prazo.’(KUHN 1970: 186). A racionalidade da ciência diz respeito muito mais ao
tipo de julgamento informado que a comunidade relevante faz. Esse, apesar de
não ser completamente determinado por procedimentos algorítmicos, não é de
forma alguma arbitrário. A atividade científica, historicamente, construiu valores
e condutas que permeiam todo julgamento científico. O desenvolvimento
científico está irrevogavelmente atrelado a essas questões e à sua racionalidade
não pode, por isso, ser compreendida independente delas.
2.2 – Paul Feyerabend.
Contra o Método (1975)
14
, de Paul Feyerabend, é um livro de notável
complexidade. Concebido inicialmente como uma carta para Imre Lakatos, o livro
ficou sem a réplica que lhe fora prometida, sendo publicado, pelo autor, em
testemunho da influência exercida pelo colega. Pela sua natureza
15
, o livro foi
considerado “truncado” pelo próprio Feyerabend que, ao longo do tempo, fez
diversas revisões no corpo do texto. Embora frases inteiras e amesmo capítulos
tenham sido reescritos e suprimidos, é possível afirmar que as teses principais do
livro permaneceram praticamente intocadas.
O contexto no qual Contra o Método vem à tona é bastante curioso. Antes
de escrevê-lo, Paul Feyerabend trabalhou durante longo tempo sob considerável
14
A edição brasileira foi utilizada pelo fato da mesma corresponder à primeira edição em língua
inglesa.
15
Na sua autobiografia Feyerabend define o livro como sendo uma colagem de escritos anteriores.
34
influência da escola popperiana. Seus trabalhos anteriores ao livro atestam um
significativo compromisso para com os conceitos e pressupostos dessa escola.
Segundo John Preston, basicamente duas teses principais se destacam nos seus
escritos desse período: a tese do realismo científico e uma teoria contextual do
significado. A teoria do significado ainda segundo Preston provinha da sua
leitura da obra de Wittgenstein enquanto seu principal argumento em defesa do
realismo era metodológico: “o realismo é desejável porque exige a proliferação de
teorias novas e incompatíveis. Esta proliferação conduz ao progresso científico
porque aumenta o conteúdo empírico das teorias individuais, já que a testabilidade
de uma teoria é proporcional ao número de falseadores potenciais que ela tem, e a
produção de teorias alternativas é a única forma de assegurar a existência de
falseadores potenciais.”(PRESTON 2000: 144)
Contra o Método, sob esse ponto de vista, é essencialmente uma insurreição.
Uma documentação inequívoca da revolta de um discípulo para com seu mestre.
No livro é possível identificar uma imensidade de críticas e ataques aos
pressupostos popperianos. Em diversas passagens, Feyerabend faz questão de
deixar clara a sua insatisfação para com o que considera ser a doutrina do
racionalismo crítico.
As críticas de Feyerabend em Contra o Método não se restringem, contudo,
ao modelo popperiano de desenvolvimento científico. Muito embora esse seja seu
alvo favorito, as suas críticas estendem-se também às teses do empirismo lógico e
às teses de Imre Lakatos. Segundo o autor:
“(...) para onde quer que olhemos, sejam quais forem os exemplos por nós considerados,
verificamos que os princípios do racionalismo crítico (levar os falseamentos a sério;
aumentar o conteúdo; evitar hipótese ad hoc; ‘ser honesto’ – signifique isso o que significar;
e assim por diante) e a fortiori, e os princípios do empirismo lógico (ser preciso; apoiar as
teorias em medições; evitar idéias vagas e imprecisas; e assim por diante) proporcionam
inadequada explicação do passado desenvolvimento da ciência e são suscetíveis de
prejudicar-lhe o desenvolvimento futuro. Proporcionam inadequada versão da ciência,
porque essa é muito mais ‘fugidia’ e ‘irracional’ do que sua imagem metodológica. E são
suscetíveis de prejudicar a ciência, porque a tentativa de torná-la mais racional e mais
precisa pode (...) destruí-la. (...) Também não escapa a essa conclusão a engenhosa tentativa
35
de Lakatos, feita no sentido de erigir metodologia que (a) não emite ordens, mas (b) coloca
restrições a nossas atividades ampliadoras de conhecimento.” (FEYERABEND 1975: 278)
Talvez não seja apenas acidente, então, o fato do livro ser reconhecido como
exclusivamente crítico. (Para muitos filósofos da ciência entre eles Laudan,
Shapere e Newton-Smith Contra o todo é uma vigorosa tentativa de destituir
o caráter racional da atividade científica.) As críticas, sem dúvida nenhuma,
ocupam a maior parte do livro de Feyerabend. Auto-intitulado anarquista
teorético, o autor lança mão de poderosas críticas a toda espécie de tentativa de
reduzir o processo de desenvolvimento científico e a sua racionalidade à
obediência a um conjunto específico de regras metodológicas. De um modo geral,
o autor rejeita todas as perspectivas que de uma forma ou de outra se enquadram
naquilo que viemos até aqui denominando de modelo metodológico de
racionalidade científica.
Seu argumento principal, para este fim, se divide em dois argumentos
distintos e complementares. De uma parte, um argumento essencialmente
histórico. Neste argumento, Feyerabend relaciona uma série de casos históricos
16
nos quais, segundo ele, a desobediência a regras bem estabelecidas foi essencial
para o progresso científico.
“A idéia de conduzir os negócios da ciência com o auxílio de um método que encerre
princípios firmes, imutáveis e incondicionalmente obrigatórios vê-se diante de considerável
dificuldade, quando posta em confronto com os resultados da pesquisa histórica.
Verificamos, fazendo um confronto, que não uma regra, embora plausível e bem
fundada na epistemologia que deixe de ser violada em algum momento. Torna-se claro que
tais violações não são eventos acidentais, o são o resultado de conhecimento insuficiente
ou de desatenção que poderia ter sido evitada. Percebemos, ao contrário, que as violações
são necessárias para o progresso.” (FEYERABEND 1975: 29)
O exemplo paradigmático, no qual o autor se detém por diversos capítulos, é o de
Galileu. Desde o ponto de vista de Feyerabend, Galileu só foi cientificamente bem
16
Feyerabend (1975: 29) cita, por exemplo, a invenção do atomismo na Antigüidade, a revolução
copernicana, o surgimento do moderno atomismo e o aparecimento gradual da teoria ondulatória
da luz.
36
sucedido porque não se conteve diante das regras metodológicas e se utilizou de
todo tipo de recurso retórico e propagandístico para fazer com que suas idéias
fossem aceitas. Se Galileu tivesse acatado essas regras e respeitado as sua
prescrições teria inevitavelmente abandonado a teoria copernicana. Em sua época,
a teoria aristotélica possuía invejável articulação e grande parte da evidência
empírica parecia lhe favorecer. A teoria copernicana, em contra partida,
contradizia fatos bem estabelecidos e recebia apoio de fatores tão desarrazoados,
para a época, quanto ela própria, tais como observações ao telescópio e princípios
como o da relatividade de todo movimento.
De outra parte, em Contra o Método, um argumento normativo
17
no qual
Feyerabend acentua o caráter não acidental desses fatos históricos. Segundo esse
argumento, todas as metodologias têm limitações e devem ser postas de lado
quando as circunstâncias assim o exigirem. circunstâncias, por exemplo, nas
quais é ‘razoável’ agir contra-indutivamente. Nas quais é
“(...) aconselhável introduzir, elaborar e defender hipóteses ad hoc, ou hipóteses que se
colocam em contradição com resultados experimentais bem estabelecidos e aceitos, ou
hipóteses de conteúdo mais reduzido que o da existente empiricamente adequada alternativa,
ou hipótese autocontraditórias e assim por diante.” (FEYERABEND 1975: 30)
As razões para esse fato são simples. Teorias incompatíveis com teorias bem
estabelecidas, por exemplo, são necessárias por que freqüentemente fatos
refutadores destas são desvelados com a ajuda daquelas
18
. De outra parte, é o
contraste, e não a análise, o responsável pela manifestação de grande parte das
propriedades de uma teoria.
17
O próprio autor enfatiza que o “argumento, que aconselha ao permitir que a razão predomine
sobre nossas inclinações e ocasionalmente aconselha a afastar por completo a razão, não depende,
é claro, dos elementos históricos por mim [Feyerabend] apresentados.” (FEYERABEND 1975:
240)
18
Feyerabend deixa claro que as metodologias tradicionais pressupõem o que ele denomina de
princípio de autonomia relativa dos fatos. Segundo esse princípio os fatos podem ser descobertos
independentemente de se ter ou não em conta alternativas da teoria a ser submetida a
teste”(FEYERABEND 1975: 50). Feyerabend rejeita esse princípio.
37
“O cientista que deseja ampliar ao máximo o conteúdo empírico das concepções que
sustenta e que deseja entender aquelas concepções tão claramente quanto possível deve,
portanto, introduzir concepções novas. Em outras palavras, o cientista deve adotar
metodologia pluralista.” (FEYERABEND 1975: 40)
A condição de coerência, ao impedir a introdução dessas teorias, conduz à
preservação do que é antigo não em função de alguma qualidade que lhe seja
peculiar, mas em função apenas da sua idade.
Teorias incompatíveis com fatos bem estabelecidos também cumprem um
papel importante no desenvolvimento do nosso conhecimento. A sua introdução
nos permite reconhecer pressupostos teóricos que estão arraigados na nossa
própria linguagem observacional
19
. Aqui novamente a análise não poderia suprir
essa tarefa. Uma vez que esses pressupostos estão profundamente enraizados na
linguagem, não é possível identificá-los enquanto estivermos nos utilizando deles.
Uma referência externa uma teoria nesse caso pode, no entanto, por contraste,
tornar claro que pressupostos são esses. Como o garantia da veracidade
desses pressupostos, tal procedimento, ao nos permitir identificá-los, permite que
os avaliemos quanto à sua adequação. De qualquer forma, nenhuma teoria
cientificamente interessante está em pleno acordo com todos os fatos do seu
domínio, o que faz com que a exigência de acordo absoluto com os fatos, elimine
a totalidade das nossas teorias.
Feyerabend acentua também o caráter peculiar do processo de ensino-
aprendizagem seja em crianças seja em adultos e suas implicações para o
desenvolvimento científico. Segundo o autor, ação e idéia são partes de um único
e mesmo processo, não se sustentando, na prática, a separação estabelecida entre
elas. A utilização de um conceito é condição de possibilidade da sua própria
compreensão. Somente através da aplicação de um conceito se torna possível
apreender o seu significado. Exigir, portanto, uma exata compreensão de um
conceito antes de permitir sua aplicação ao mundo significa o mesmo que
19
Feyerabend rejeita veementemente a idéia de que possa haver uma linguagem observacional
teoricamente neutra. Para o autor, os relatos de observação, os resultados experimentais, os
enunciados ‘factuais’ ou encerram pressupostos teoréticos ou os afirmam, por força da maneira
como são usados.” (FEYERABEND 1975 : 41)
38
desmontar os fundamentos próprios do processo que permite a compreensão. E da
mesma forma que as crianças e os adultos se apropriam dos significados
através da ação, “as teorias”, em geral, “só se tornam claras e ‘razoáveis’ depois
de terem sido usadas, por longo tempo, várias partes incoerentes que as
compõem.”(FEYERABEND 1975: 33). A teoria copernicana é um exemplo disso:
adquiriu força e articulação porque suas partes incoerentes foram
repetidamente utilizadas.
As metodologias não têm, no entanto, senso histórico e julgam as teorias
independentemente da sua origem e desenvolvimento. Concepções radicalmente
novas são postas lado a lado com concepções antigas e são desde julgadas sob
os mesmos critérios. Para Feyerabend, esse procedimento equivale a propor um
embate entre um homem adulto e um menino, para posteriormente declarar o
óbvio: a derrota do menino. Se procedimentos como esses fossem realmente
aplicados em ciência, teorias como a copernicana não teriam se desenvolvido, pois
seriam condenadas já no seu nascedouro.
Um último aspecto da crítica feyerabendiana que cabe ressaltar diz respeito
ao fenômeno da incomensurabilidade. Para Feyerabend, assim como existem
esquemas de pensamento, de ação e de percepção incomensuráveis entre si,
existem também teorias científicas que o são. Essas teorias mesmo que
apresentem semelhanças estruturais e mesmo que permitam
intercomunicabilidade
20
, possuem princípios universais que simplesmente sustam
os princípios alheios, fazendo com que uma comparação completa não seja
possível. Recorrer, nesses casos, a um sistema lógico formal para efetuar a
comparação é, para Feyerabend, medida absurda, pois ao recorrer a um
vocabulário que não lhes pertence, já não estamos falando das mesmas teorias.
“Procedimento dessa ordem presume (sem perceber que um pressuposto envolvido) que
se completou um estudo antropológico, em condições de familiarizar-nos com as
classificações explícitas ou não da ciência e que esse estudo inclinou-se em favor da
20
Feyerabend enfatiza que comunicabilidade não significa comensurabilidade, já que a
incomensurabilidade diz respeito a impossibilidade de tradução e o de comunicação. Segundo
ele, a discussão possível não pode se dar, contudo, em termos de relações lógicas entre os
elementos teóricos.
39
abordagem axiomática (etc., etc.) Estudo dessa espécie jamais se realizou. Os fragmentários
elementos resultantes do trabalho de campo, hoje existentes, e devidos principalmente aos
esforços de Hanson, Kuhn, Lakatos e outros, mostram que a abordagem do lógico não
remove apenas algumas partes irrelevantes da ciência, mas aqueles traços que fazem o
progresso científico e tornam, portanto, possível a ciência.” (FEYERABEND 1975: 381)
Algo parecido também pode ser dito quanto ao apelo a uma linguagem
observacional independente ou a uma teoria mais antiga. Segundo Feyerabend:
“Esse procedimento, cuja aplicação pode envolver um aparato lógico formidável e que, por
isso mesmo, é freqüentemente encarado como o dernier cri de uma filosofia
verdadeiramente científica, mostra-se ainda pior do que a exigência (que foi comum) de
que se esclarecessem pontos duvidosos vertendo-os para o latim. Com efeito, o latim era
escolhido em virtude da sua precisão e clareza e pelo fato de ser conceitualmente mais rico
do que os idiomas vulgares que se desenvolviam lentamente; era, pois, escolhido por uma
razão teórica, enquanto que a escolha de uma linguagem de observação ou de uma teoria
anterior se deve ao fato de que são ‘previamente entendidas’: deve-ser ao fato da sua
popularidade.” (FEYERABEND 1975: 408, grifo do autor.)
*
Se as críticas feyerabendianas são reconhecidamente múltiplas, o mesmo
não pode ser dito quanto aos aspectos construtivos do seu livro. Em verdade,
diversos autores (Gellner, Laudan, Bunge) não reconhecem nem mesmo a
existência desses aspectos na sua obra. Para eles, Contra o Método é
exclusivamente destrutivo e nada procura propor. A própria retórica do autor, que
nos convida a não levar a sério as suas afirmações e que se coloca como
anarquista (e “dadaísta”), parece evidência inequívoca a esse respeito. Cito o
autor:
“Como o dadaísta, a quem se assemelha muito mais do que se assemelha ao anarquista
político, o anarquista epistemológico ‘não apenas não tem programa [como é] contra todos
os programas’, embora, por vezes, se mostre o mais exaltado defensor do status quo ou de
seus opositores: ‘para ser um verdadeiro dadaísta que ser também um antidadaísta’. Seus
objetivos mantêm-se os mesmos ou se alteram na dependência do argumento, do tédio, de
uma experiência de conversão, do desejo de impressionar a amante ou de outros fatores
40
dessa ordem. (...) Não concepção ‘absurda’ ou ‘imoral’ que ele se recuse a examinar ou
acompanhar e método algum é visto como indispensável.” (FEYERABEND 1975: 293)
Alguns elementos no seu livro permitem, no entanto, uma leitura algo
diferente dessa. Essa opinião é sustentada, por exemplo, por Bernstein (1983) que
identifica no livro de Feyerabend uma tentativa de superar as discussões dualistas
entre razão e relativismo, entre método e desrazão.
Entre esses elementos chama a atenção, por exemplo, o fato de a crítica
feyerabendiana se dirigir ao racionalismo enquanto doutrina representada
paradigmaticamente por Karl Popper e pela tentativa de reduzir a racionalidade da
ciência à obediência a um conjunto de critérios universais e não a toda tentativa
de compreender racionalmente a ciência
21
. Isso fica manifesto quando Feyerabend
diz, por exemplo, que:
“Defrontamo-nos com uma situação que temos que analisar e compreender, se, em face do
debate entre razão e ‘irracionalidade’, quisermos adotar atitude mais razoável que as
assumida pelas escolas filosóficas do nosso tempo.” (FEYERABEND 1975: 239)
Para Feyerabend o racionalismo é por si mesmo desarrazoado. Sendo essa
irrazoabilidade exemplarmente demonstrada pelo fato de que: “a idéia de razão,
aceita pela maioria dos racionalistas, é suscetível de impedir o progresso, tal como
esse progresso é definido por essa própria maioria.”(FEYERABEND 1975: 240).
Para o autor, a mesma ciência que é excessivamente idolatrada pelos racionalistas
se tornou possível porque em diversas situações a “razão”, tal como eles
mesmos a compreendem, foi deixada de lado. Deixada de lado em detrimento da
paixão, da fé, do preconceito e de coisas do gênero.
De sua parte, Feyerabend advoga uma concepção de conhecimento que
diverge da imagem tradicional de um progressivo aproximar-se da verdade e que
compreende a multiplicidade teórica como um fenômeno fundamental para o
21
Na sua autobiografia Feyerabend afirma que: A ciência não é, portanto, ‘irracional’ cada
passo seu pode ser explicado (e o está sendo atualmente, por historiadores como Shapin e Schaffer,
Galison, Pickering, Rudwick, Gould, Hacking, Buchwald, Latour, Biagioli, Pera e outros).
Contudo, os passos, tomados em conjunto, apenas raramente formam um padrão abrangente que
concorda com os princípios universais e os casos que não apóiam esses princípios não são mais
fundamentais que os outros.” (FEYERABEND 1996: 98).
41
desenvolvimento da consciência. No lugar do dogmatismo da ciência normal
kuhniana que acentua a importância do trabalho exotérico-dogmático
Feyerabend sublinha a importância da diversidade teórica e cultural para o
desenvolvimento do conhecimento
22
.
“Unidade de opinião pode ser adequada para uma igreja, para as vítimas temerosas ou
ambiciosas de algum mito (antigo ou moderno) ou para os fracos e conformados seguidores
de algum tirano. A variedade de opinião é necessária para o conhecimento objetivo.”
(FEYERABEND 1975: 57)
Em ciência, especificamente, os movimentos que são tradicionalmente vistos
pelos racionalistas como propaganda, retórica e irracionalidade de todo tipo
precisam, desde o seu ponto de vista, ser repensados e revistos. Pois, do contrário,
não estaremos adotando atitude razoável em face do debate entre razão e
irracionalidade. Em face à informação histórica, não é mais possível ignorar a
importância de tais fatores, nem relegá-los ao plano do contexto de descoberta. A
importância histórica deles é legítima e inegável e toda metodologia que não os
contemple pode, portanto, impedir o progresso futuro da ciência
23
.
Claro que pode chegar a hora “em que se faça necessário conceder à razão
uma vantagem temporária e em que será avisado defender suas regras, afastando
tudo o mais”(FEYERABEND 1975: 23). Esse fato, no entanto, apenas corrobora a
idéia de que nenhum princípio ou regra é definitivo e que mesmo “o mais absurdo
pensamento” pode contribuir para o desenvolvimento do nosso conhecimento.
Um último elemento que cabe citar quanto aos aspectos construtivos da obra
feyerabendiana diz respeito à sua compreensão da atividade filosófica. Como
deixa claro no artigo Farewell to Reason, Feyerabend não pretende erigir um
sistema filosófico nos moldes de Carnap e Popper. Para o autor, congelar o poder
especulativo em um sistema significa o mesmo que pôr um fim nas ciências. “O
conhecimento que nós necessitamos para entender e desenvolver as ciências não
22
Para Preston, Feyerabend idealiza uma ciência eternamente pré-paradigmática. (PRESTON
2000: 144-5).
23
Segundo Feyerabend, um racionalista amante dos princípios e que leva a rio a história da
ciência é forçado a aceitar o princípio: “tudo funciona /anything goes/ [para o progresso do
conhecimento]”.
42
provém de teorias, provém da participação.”(1987: 284) Dessa forma, os
exemplos representados pelos estudos de casos não possuem, na sua obra, um
valor apenas ilustrativo que pode ser desconsiderado uma vez que a explicação
genuína seja alcançada. Esses exemplos são, nas palavras do autor, “a verdadeira
explicação”
24
.
Cap. 3 – Larry Laudan e um novo modelo para a racionalidade em ciência.
Em uma passagem do artigo Farewell to Reason, Paul Feyerabend afirma
que Imre Lakatos foi o único filósofo da ciência a aceitar o desafio kuhniano. Nas
palavras de Feyerabend, Lakatos
“(...) combateu Kuhn no seu próprio terreno e com as suas próprias armas. Ele [Lakatos]
admitia que o positivismo (verificacionismo, falseacionismo) não iluminava os cientistas
nem os ajudava em suas pesquisas. Ele negava, contudo, que caminhar próximo à história
nos forçava a relativizar todos os padrões. Esta pode ser a reação de um racionalista confuso
24
O papel dos exemplos na obra de Feyerabend (FEYERABEND 1982) tem forte influência da
obra de Wittgenstein e pode ser reconhecida na seguinte exposição quanto ao conceito de
incomensurabilidade: “Como a incomensurabilidade depende de classificações implícitas e
envolve importantes alterações conceituais, muito dificilmente se torna possível oferecer dela uma
definição explícita. Nem as ‘reconstruções’ costumeiras conseguem esclarecê-la. O fenômeno
de ser apresentado, o leitor deve ser levado até ele por meio de uma confrontação com grande
variedade de exemplos e, então, julgará por si mesmo.” (FEYERABEND 1975: 351, grifo meu.)
43
que pela primeira vez se depara com a história em todo seu esplendor, mas, assim Lakatos
dizia, um estudo mais minucioso do mesmo material mostra que os processos científicos
compartilham uma estrutura e obedecem a regras gerais. Nós podemos ter uma teoria da
ciência e, de forma mais geral, uma teoria da racionalidade porque o pensamento entra na
história de uma forma legal.” (1987: 282, grifo meu)
Embora a descrição que Feyerabend faz das idéias e do contexto de Lakatos
seja aparentemente correta, uma falta em um aspecto importante para o qual
uma das principais teses desse capítulo vem justamente apontar. Se bem, é
verdade, que Lakatos combateu Kuhn e porque não dizer Feyerabend no seu
próprio terreno e se também é verdade que a história da ciência foi sua principal
arma nessa luta, o mesmo não pode ser dito quanto à sua condição solitária na
linha de frente desse embate. pelo menos mais um filósofo da ciência que
embora partilhasse com Kuhn diversas premissas combateu suas pretensas
conclusões
25
com tanta veemência quanto Lakatos o fez, a saber, Larry Laudan.
Assim como Lakatos, Laudan também rejeitou a idéia de que uma abordagem
histórica implique necessariamente na rejeição de todos os padrões. Para ele, uma
teoria da racionalidade é perfeitamente possível e desenvolvê-la é a resposta mais
importante que pode ser dada àqueles que disso discordam.
O objetivo desse capítulo é apresentar o modelo de racionalidade científica
que Laudan desenvolve. Uma vez que esse modelo é construído tendo como pano
de fundo uma inegável influência de Kuhn e Feyerabend, mas também duras
críticas aos seus trabalhos, será importante apresentá-lo nesse contexto, indicando
sempre que possível as semelhanças e diferenças que os aproximam.
O trabalho de Laudan é significativamente marcado pela idéia, advinda
daqueles autores, de que os modelos tradicionais de racionalidade são pouco
satisfatórios. grandes discordâncias, contudo, quando se trata de compreender
como a racionalidade realmente opera em ciência. Nesse ponto, Laudan condena o
que ele toma como sendo o irracionalismo de Kuhn e Feyerabend. A seu ver:
“Uma das funções centrais de qualquer filosofia ou metodologia da ciência é
25
O ‘pretensas’ está aqui porque a interpretação que Laudan faz das idéias de Kuhn está longe de
ser unânime. Como veremos adiante, para muitos autores Kuhn não tornou o desenvolvimento
científico um processo irracional.
44
especificar os objetivos [da atividade científica] e os meios mais efetivos para
alcançá-los.”(1977: 58) E isso, para Laudan, a filosofia desses autores deixou de
fazer.
Para melhor apresentar suas idéias, o capítulo será dividido em duas partes
distintas. A primeira parte será dedicada exclusivamente ao livro Progress and its
problems (1977) e à tentativa de Laudan de erigir um novo conceito de
metodologia, enquanto a segunda parte tentará dar conta dos desenvolvimentos
posteriores a esse trabalho contidos essencialmente em Science and Values (1984)
e trabalhos afins.
3.1 – A ciência como solução de problemas.
No prólogo do livro Progress and its Problems, antes de propor qualquer
questão, Laudan apresenta um breve resumo da situação da filosofia da ciência em
seu tempo (1977). Nesse resumo, o autor começa afirmando a condição de
obviedade de que a racionalidade da ciência historicamente desfrutou. No
transcorrer do mesmo, o autor chama a atenção, contudo, para o fato dessa
obviedade ter sido seriamente desafiada por diversos “desenvolvimentos” recentes
no estudo da ciência. Entre esses desenvolvimentos, cinco são enfatizados por ele.
São eles: a falência dos modelos tradicionais de racionalidade que o
encontram exemplos no processo de desenvolvimento científico; as falhas nas
tentativas de se demonstrar que os métodos da ciência garantem conhecimento
verdadeiro, provável, progressivo ou altamente confirmado; alguns trabalhos
sociológicos que apontam para fatores aparentemente não racionais no processo
de decisão científica; alguns trabalhos em história e filosofia da ciência que
rejeitam a própria possibilidade da escolha entre teorias se dar de forma racional
e, por fim, o relativismo cultural.
Ainda na composição do resumo, Laudan apresenta uma série de caminhos
que, segundo ele, estariam abertos ao filósofo da ciência que escreve nesse
contexto específico. De um lado afirma o autor pode-se esperar que algum
pequeno ajuste na análise tradicional possa clarear e justificar nossas intuições
sobre a boa fundamentação cognitiva da ciência. De outro lado, pode-se desistir
45
da busca por um modelo de racionalidade, aceitando que, até onde nos é dado
saber, a ciência é claramente irracional. Por fim, pode-se começar a analisar a
racionalidade da ciência novamente tentando evitar aquelas pressuposições que
vitimaram o modelo tradicional de racionalidade.
O caminho que Laudan assume e no qual se dará a sua contribuição é, então,
por exclusão, logo indicado. Para o autor, por motivos diferentes, os dois
primeiros caminhos são flagrantemente inadequados. As tentativas feitas no
sentido de aperfeiçoar os modelos de Carnap, Popper e Reichenbach, por
exemplo, não trouxeram, segundo ele, os resultados esperados e boa parte das
dificuldades que se detectavam nos trabalhos desses filósofos permanecem nas
tentativas de superá-las. Deduzir, porém, da falência desses modelos a
irracionalidade da ciência é, para Laudan, por demais apressado, pois a ciência
pode permanecer racional muito embora esses modelos estejam
irremediavelmente equivocados. Assim, se por um lado os trabalhos de autores
como Salmon, Lakatos e Hintikka
26
não são muito promissores, são bastante
prematuras, segundo Laudan, as conclusões irracionalistas extraídas desse
fracasso por Kuhn e Feyerabend
27
.
A via restante, portanto, é unicamente a terceira e para ela deve se dirigir a
atenção de filósofos e historiadores da ciência. Desde o ponto de vista de Laudan,
é preciso repensar a racionalidade da ciência deixando deliberadamente de lado
conceitos tradicionais como os de confirmação e corroboração, evitando cair,
contudo, no irracionalismo em que autores como Kuhn e Feyerabend incorreram.
É preciso responder as questões colocadas pela abordagem histórica desses
autores num modelo que não sonegue ao desenvolvimento científico o caráter
racional que intuitivamente imaginamos inerente a ele.
O primeiro passo que Laudan vai dar no sentido de desenvolver tal modelo
diz respeito à determinação dos fins da atividade científica. Segundo o autor:
26
Os exemplos estão em Laudan (1977:4).
27
Para Laudan: “Alguns historiadores e filósofos da ciência (Kuhn e Feyerabend) argumentam (...)
que as escolhas entre teorias competidoras, pela natureza do caso, devem ser irracionais.”(1977:3)
e “Kuhn e Feyerabend concluem que o processo de decisão científica é basicamente uma questão
política e de propaganda, na qual prestígio, poder, idade e polêmica determinam decisivamente o
resultado da luta entre teorias e teóricos competidores.”(1977:4)
46
“A ciência tem tantos objetivos quanto os cientistas têm motivações: a ciência procura
explicar e controlar o mundo natural; os cientistas procuram (entre outras coisas) a verdade,
influência, utilidade social e prestígio. Cada um desses objetivos poderia ser (e tem sido)
usado para fornecer uma estrutura dentro da qual alguém poderia explicar o
desenvolvimento e a natureza da ciência. Minha abordagem, no entanto, afirma que uma
visão da ciência enquanto sistema para solução de problemas tem mais esperança de
capturar o que é mais característico sobre a ciência do que qualquer outra estrutura
alternativa tem.”(1977:12)
Para Laudan, o “objetivo cognitivo mais geral da ciência”, é solucionar problemas
cognitivos e não alcançar a verdade ou a probabilidade. Desde o seu ponto de
vista, tanto a verdade quanto a probabilidade são fins utópicos já que
aparentemente não temos como saber se estamos alcançando, ou se viremos a
alcançar, qualquer um deles
28
. A idéia popperiana de um progressivo aproximar-se
da verdade é, para o autor, igualmente inviável, uma vez que também não temos
critério satisfatório para determinar como poderíamos avaliar tal proximidade.
Como enfatiza Laudan: “Se o progresso científico consiste em uma série de
teorias que representam um progressivo aproximar-se da verdade, então não se
pode demonstrar que a ciência é progressiva.”(1977: 126).
A solução de problemas, de sua parte, não apresenta as mesmas
características e uma vez que fica estabelecido que o fim da atividade científica é
a solução de problemas e não a busca pela verdade, algumas dessas diferenças
começam a surgir. Em primeiro lugar, a noção de resolução de problema revela-se
bastante relativa quando comparada, por exemplo, com a noção tradicional de
explicação factual. Como o autor enfatiza, problemas podem ser reconhecidos
como tais num período histórico determinado e deixarem de o ser em um período
subseqüente, enquanto os fatos são sempre fatos independentemente do seu
contexto. A explicação de um fato tem, além disso, um caráter definitivo no
sentido de que a teoria explicativa deve implicar um enunciado exato do fato a ser
28
Cito Laudan: Se a racionalidade consiste em acreditar apenas naquilo que nós podemos
racionalmente presumir ser verdadeiro, e se nós definirmos verdade no seu sentido clássico,o-
pragmático, então a ciência é (e permanecerá para sempre) irracional.”(1977:125)
47
explicado e deve ser verdadeira ou altamente provável enquanto a resolução de
um problema não necessita tê-lo. Nas palavras do autor:
“Um problema empírico está resolvido quando, dentro de um particular contexto de
investigação, os cientistas não mais o consideram uma questão em aberto, isto é, quando
eles acreditam que entenderam porque a situação colocada pelo problema é do jeito que
é.”(1977:22)
Esses aspectos divergentes dos conceitos constituem uma importante
resposta para questões trazidas pela abordagem histórica de Kuhn e Feyerabend.
Nas suas críticas à idéia de desenvolvimento por acúmulo, esses autores chamam
a atenção para o fato de historicamente alguns problemas outrora considerados
genuínos por alguma teoria específica terem sido abandonados por teorias
posteriores como pseudoproblemas ou terem sido simplesmente deixados de lado
na nova configuração teórica
29
. Em diversas passagens, Kuhn e Feyerabend
também enfatizam que muitas soluções tidas como genuínas em contextos
determinados simplesmente deixaram de ser vistas como tais em contextos
diferentes
30
. No modelo de Laudan, ambas questões são abarcadas.
Essas semelhanças aparentes não podem ocultar, contudo, as discordâncias
que existem. Embora reconheça a pertinência dessas questões e busque
contemplá-las no seu modelo, Laudan diverge radicalmente da interpretação que
especialmente Kuhn oferece na Estrutura para esses fenômenos históricos. Para
começar, o próprio conceito de paradigma central para a compreensão kuhniana
dessas questões é rejeitado por Laudan que o substitui pelo conceito de tradição
de pesquisa. Embora a tradição de pesquisa guarde consideráveis semelhanças
com o paradigma kuhniano
31
, existem pelo menos duas diferenças cruciais.
Diferente do paradigma, as tradições de pesquisa não têm relação com as
realizações exemplares compartilhadas. Além disso, as tradições de pesquisa não
29
Um exemplo marcante nesse sentido diz respeito ao problema relativo às semelhanças entre os
metais, que foi abandonado pela química de Lavoisier.
30
A solução que os escolásticos ofereciam para a queda dos corpos foi completamente
desconsiderada pela “ciência nova”.
31
A tradição de pesquisa é uma maxi teoria: “um conjunto de suposições gerais sobre as entidades
e processos num domínio de estudo, e sobre os métodos apropriados para investigar os problemas
e construir as teorias neste domínio.”(1977: 81)
48
são tão rígidas quanto os paradigmas, comportando mudanças inclusive no que
Lakatos denomina de núcleo duro /hard core/.
Quanto às mudanças nos padrões de solução
32
, enquanto para Kuhn não
podemos supor que essas modificações representem a passagem de um nível
metodológico inferior para um nível metodológico superior – já que, por exemplo,
certos padrões de soluções foram muitas vezes abandonados para serem
posteriormente recuperados
33
para Laudan o que há, na verdade, é um
desenvolvimento através dos tempos dos padrões de exigência para algo contar
como uma solução para um problema. Desde o seu ponto de vista: “A menos que
nós reconheçamos que o critério para uma solução aceitável de problema evolui, a
história do pensamento permanecerá um enigma.”(LAUDAN 1977: 26). Já, no
que diz respeito às mudanças nos tipos de problemas considerados legítimos pela
comunidade científica, enquanto Kuhn afirma que não existe um padrão exterior
que determine que problemas são realmente importantes resolver
34
, Laudan se
propõe a construir toda uma maquinaria analítica para determinar o peso relativo
desses problemas. Dentro dessa maquinaria, os problemas assumem uma
relevância diferenciada conforme um certo número de critérios estipulados pelo
autor.
No terreno dos problemas empíricos, por exemplo, os problemas não
resolvidos apenas indicam linhas para pesquisa futura, uma vez que não é claro se
eles realmente constituem problemas genuínos e nem que disciplina específica
deveria resolvê-los. os problemas resolvidos, constituem evidência favorável
àquelas teorias que os resolveram enquanto os problemas anômalos contam contra
as teorias que falharam em solucioná-los.
Laudan enfatiza, entretanto, que o que ele entende por anomalia não
coincide com o conceito que ele tem por tradicional. Do seu ponto de vista, esse
32
Para Kuhn as mudanças nos padrões de soluções e nos tipos de problemas legítimos estão
intimamente vinculadas. Isso fica claro quando Kuhn afirma, por exemplo, que: “À medida que os
problemas mudam, mudam também, seguidamente, os padrões que distinguem uma verdadeira
solução científica de uma simples especulação metafísica (...).” (1970: 103) A separação destes
dois componentes é feita aqui para tornar mais clara a exposição das idéias de Laudan.
33
Vide o caso das explicações essencialistas que foram amplamente utilizadas na Idade dia,
abandonadas no século XVII e recuperadas por Newton no caso da gravitação.
34
Aqui Kuhn chama atenção para o fato do problema da explicação da natureza da gravidade ter
sido abandonado no século XVIII e ter sido recuperado no século XX por Einstein.
49
conceito não se esgota nas instâncias inconsistentes com a teoria em questão. A
anomalia diz respeito a todos aqueles problemas empíricos que alguma teoria rival
resolve, mas que a teoria sob apreço falha em resolver. Dessa forma, muitos
problemas anômalos podem ser consistentes com uma teoria, desde que exista
uma rival capaz de resolvê-lo. De outra parte, para Laudan a anomalia não obriga
a descartar a teoria que a produz, embora lance sérias dúvidas sobre a adequação
empírica da mesma.
Outros critérios, além desses, são também desenvolvidos pelo autor ao longo
do corpo do livro. Segundo ele, a importância de um problema é inflacionada
quando, por exemplo, a ele é dado um caráter arquetípico. Problemas mais gerais,
de sua parte, pesam mais que aqueles comprovadamente mais específicos,
enquanto uma anomalia, sempre que é resolvida, empresta à teoria responsável,
importantes argumentos. Em oposição, deflação na importância de um
problema sempre que as mudanças de crenças implicam na dissolução do mesmo
ou na sua transferência para outra área. Quando uma teoria é abandonada, os seus
problemas arquetípicos perdem consideravelmente o valor. As anomalias, por fim,
variam de importância proporcionalmente ao seu grau de discrepância e ao tempo
que perduram.
Afora os problemas empíricos, Laudan também propõe critérios para
determinar o peso do que ele denomina de problemas conceituais que são
basicamente questões sobre os fundamentos das teorias. Segundo o autor, o papel
desses problemas no desenvolvimento científico foi terrivelmente mal
compreendido pelos filósofos da ciência, o que contribuiu decisivamente para a
falência dos seus modelos. Tradicionalmente, sempre se lamentou a intromissão
de fatores não empíricos na apreciação científica, que se viam esses fatores
como sendo essencialmente irracionais. E mesmo a abordagem histórica de Kuhn
e Feyerabend não prestou a devida atenção a eles. Para o autor, a atividade de
solução desses problemas “tem sido ao menos tão importante no desenvolvimento
da ciência quanto a atividade de solução de problemas empíricos.”(1977:45) e
precisa, por isso, ser contemplada num modelo de racionalidade científica.
50
Laudan distingue basicamente duas grandes classes de problemas
conceituais: os problemas internos e os problemas externos. Os problemas
internos, dizem respeito a inconsistências internas e a ambigüidades e vaguidades
nas categorias de análise. os problemas externos, dizem respeito às relações
lógicas entre teorias que podem variar da inconsistência até o suporte mútuo; à
incompatibilidade entre teorias e regras metodológicas bem aceitas e à
incompatibilidade entre teorias e visões de mundo consagradas. Embora os
problemas conceituais sejam, em geral, mais sérios que as anomalias, o seu peso
específico, segundo Laudan, é bastante relativo. No caso do problema se dar na
relação lógica entre teorias, quanto maior for a tensão maior será o problema.
no caso específico de conflito entre duas teorias T1 e T2 o peso do problema
para T1 será proporcional à nossa confiança quanto à aceitabilidade de T2. No
caso de conflito com regras metodológicas ou visões de mundo, se todas as teorias
do domínio estiverem em conflito, o problema não será de grande importância,
mas se apenas alguma ou algumas delas estiverem, a significação do problema
terá um incremento considerável. Por fim, no que diz respeito aos problemas
internos, é bastante relevante o tempo de sua existência. É aceitável que uma
teoria nova tenha certas inconsistências internas e apresente um certo grau de
ambigüidade; passado algum tempo esses problemas deixam, no entanto, de ser
menores para assumir um peso relevante.
Uma vez que os fins da atividade científica e os meios necessários para
apreciá-los foram definidos, Laudan passa a descrever a forma como eles se
articulam no seu modelo de racionalidade. Desde o seu ponto de vista, assim
como devemos rejeitar a noção de busca pela verdade como objetivo geral para a
ciência, devemos também rejeitar a compreensão tradicional do eixo racionalidade
progresso. Segundo o autor, enquanto sustentarmos a posição tradicional, que
submete a progressividade à racionalidade e faz das escolhas progressivas um
subproduto das escolhas racionais, o estaremos aptos a compreender o
desenvolvimento científico a partir de um vetor progressivo, já que, na medida em
que somos incapazes de distinguir as crenças quanto à sua proximidade da
51
verdade como argumentamos antes nos tornamos também incapazes de
determinar quando há ocorrência de progresso.
De sua parte, Laudan propõe “virar a visão usual de ponta cabeça, fazendo
assim a racionalidade parasitária da progressividade”(1977: 125). O autor acredita
que o modelo que nós possuímos para o progresso é muito mais claro do que o
que possuímos para a racionalidade e que a natureza própria da racionalidade é
significativamente esclarecida a partir da inversão dessa relação. Fazer escolhas
racionais, dessa forma, passa a significar fazer escolhas que representem
progresso o que, nos termos específicos do seu trabalho, equivale a aceitar teorias
que solucionam um maior número de problemas empíricos importantes e que
geram um menor número de anomalias e problemas conceituais ou, de forma mais
simples, que o mais efetivas na solução de problemas. A unidade básica de
progresso, dentro desse ponto de vista, é o problema resolvido e o objetivo da
ciência é: “maximizar o escopo de problemas empíricos resolvidos e minimizar o
escopo de problemas anômalos e conceituais.”(1977: 66). O progresso, por sua
vez, pode se dar de várias formas.
“Pode se dar pela simples expansão do domínio de problemas empíricos resolvidos, com os
outros vetores de apreciação permanecendo fixos. (...) Progresso pode também resultar de
uma modificação da teoria, na qual se elimina algumas incômodas anomalias ou na qual se
resolve alguns problemas conceituais. Mais freqüentemente, obviamente, progresso ocorre
como resultado de uma sutil modificação em todas as variáveis.”(1977:68)
Essa simples inversão, junto com a respectiva modificação na compreensão
dos fins da atividade científica, nos permite, segundo o autor, evitar as
conseqüências do modelo tradicional a que nos referimos anteriormente. Segundo
ele, é possível a partir desse novo modelo decidir com uma certa precisão se o
desenvolvimento científico se de forma progressiva e racional. Aparentemente,
o preço para esse ganho pode parecer alto, que nesses termos nada nos é dito
sobre a verdade ou falsidade das teorias que sustentamos. Mas
52
“Se nós tivermos que enfraquecer nossa noção de racionalidade e progresso para que elas
sejam úteis, ao menos nós podemos agora decidir se a ciência é racional e progressiva, coisa
que o modelo clássico não permitia.”
35
(1977:127)
Outros aspectos do desenvolvimento científico também passam a receber
nova luz sob o ponto de vista da solução de problemas e da inversão do eixo
racionalidade - progresso. Exemplo disso são aqueles casos nos quais duas teorias
são suportadas pelos dados de forma idêntica. Esses casos têm agora a
possibilidade de serem decididos a partir de uma análise dos problemas
conceituais que as teorias envolvidas geram e da progressividade que elas
representam. Do ponto de vista histórico, movimentos usuais na história da
ciência como invocar instâncias não refutadoras, invocar argumentos
metodológicos e metafísicos, aceitar teorias que apresentam muitas anomalias,
aceitar teorias que não resolvam todos os problemas da sua antecessora e, por fim,
a dedicação à clarificação de conceitos e à redução de problemas conceituais
também podem agora ser compreendidos e explicados desde um ponto de vista
racional.
O conhecido dilema entre anacronismo e relativismo
36
não é exceção e
também recebe uma resposta no modelo de Laudan. Para falar normativamente
das escolhas científicas do passado, é necessário postular algum elemento de
continuidade que seja independente das transformações da ciência. Esse elemento,
dentro do modelo do autor, diz respeito ao fim da ciência que toma forma na
solução de problemas. De outro lado, para que o modelo não cometa
anacronismos grosseiros, julgando teorias do passado a partir de problemas que
elas não buscavam resolver, é preciso que os parâmetros não sejam de todo fixos.
35
Em outra passagem Laudan afirma que “Se nós aceitarmos a proposta desenvolvida nesse ensaio
e aceitarmos a perspectiva de que a ciência é um sistema de investigação para a solução de
problemas, se nós tomarmos a visão de que o progresso científico consiste na solução de um
crescente número de problemas importantes, se nós aceitarmos a proposta de que a racionalidade
consiste em fazer escolhas que maximizem o progresso da ciência, então nós podemos estar aptos
para mostrar se, e em que extensão, a ciência em geral, e as ciências específicas em particular,
constituem um sistema racional e progressivo.”(1977: 126)
36
Laudan define esse dilema da seguinte forma: “Como nós podemos, junto com os filósofos,
continuar a falar normativamente sobre a racionalidade (e a irracionalidade) das escolhas teóricas
do passado enquanto evitamos, ao mesmo tempo, enxertar critérios anacrônicos de racionalidade
nesses episódios?”(1977: 130)
53
Para Laudan, os problemas têm justamente esse caráter. Sua natureza é
essencialmente flutuante com cada contexto teórico imprimindo suas próprias
definições e medidas. O autor rechaça, assim, ambos os extremos da questão.
Embora continue falando normativamente das escolhas, ele se preocupa,
sobremaneira, em não impor parâmetros exteriores ao contexto em questão. Os
problemas têm a sua natureza especifica necessariamente vinculadas às
vicissitudes das transformações científicas embora o caráter geral da busca pela
solução de problemas, que é o que propriamente define a ciência, seja
independente delas.
Há, ainda, pelo menos mais dois pontos que Laudan enfatiza no seu texto e
que cabe ressaltar nessa breve exposição. De um lado, o fenômeno da
incomensurabilidade que, como foi dito no capítulo anterior, foi levantado tanto
por Kuhn quanto por Feyerabend. Embora as concepções desses autores sejam
distintas, ambos reconhecem nesse fenômeno uma limitação séria para as
metodologias vigentes. Grosso modo, o fenômeno implicaria numa
impossibilidade de tradução entre teorias o que, por sua parte, problematizaria a
comparação entre elas. Ciente da grandeza dessa questão, Laudan procura
articular uma resposta em consonância com o seu modelo. Segundo o autor, não é
condição de possibilidade de uma escolha racional o fato de uma tradução
intrateórica ou uma tradução para uma linguagem neutra serem possíveis. Desde o
seu ponto de vista, dois argumentos demonstram isso. Em primeiro lugar, existem
muitos problemas que são teoricamente independentes das suposições que as
teorias que se debruçam sobre eles fazem
37
. Esses problemas podem, assim, servir
de base para uma avaliação racional, independentemente de qualquer tradução.
Além disso, é possível determinar aproximadamente a efetividade de uma tradição
de pesquisa a partir de perguntas que o se referem a outra tradição existente.
Nós perguntamos, por exemplo:
“se a tradição de pesquisa resolveu os problemas que ela propôs para si mesma; nós
perguntamos se, nesse processo, ela gerou alguma anomalia ou problema conceitual. Nós
37
O problema da queda livre dos corpos e o problema da razão do movimento dos planetas na
mesma direção em torno do sol eram, segundo Laudan, independentes das teorias newtoniana e
cartesiana.
54
perguntamos se, no curso do tempo, ela conseguiu expandir o domínio de problemas
explicados e minimizar o número e a importância dos problemas conceituais e anomalias
restantes.”(1977: 146)
De outra parte, outro fenômeno que Laudan enfatiza para o qual
principalmente Feyerabend chama a atenção. Embora não haja um nome
específico para ele, a sua caracterização é bastante conhecida: muitas teorias
novas nascem incompletas e desarticuladas. Efetuar uma comparação entre essas
teorias e teorias mais antigas, significaria, então, o mesmo que descartá-las, já que
as condições do embate seriam bastante desiguais. A pergunta que surge é: como
é possível evitar essa injustiça sem, ao mesmo tempo, abdicar de toda e qualquer
metodologia?
Para Laudan, não uma resposta simples para essa pergunta. Antes de
tudo, é preciso distinguir duas questões diferentes que estão subentendidas nesse
problema. Uma coisa, segundo Laudan, é a aceitação de uma teoria; outra é a
ocupação /pursuit/ com ela. Os parâmetros que determinam a aceitabilidade de
uma teoria são sincrônicos e dizem respeito à efetividade de uma teoria quando
comparada com a efetividade de suas competidoras. A ocupação, por sua vez,
evoca outros parâmetros. Nesse contexto, o importante é o que Laudan denomina
de taxa de progressão. Essa taxa determina o quanto uma tradição específica
progrediu em um período de tempo dado. Uma teoria nova e ainda desarticulada
pode não ser suficientemente efetiva para ser aceita, mas pode apresentar uma
taxa de progressão bastante alta, comparativamente a suas competidoras, a ponto
de valer a pena ocupar-se com ela. Nas palavras do autor:
“É sempre racional se ocupar com qualquer tradição de pesquisa que tenha uma taxa de
progressão maior que suas rivais (mesmo que ela tenha uma baixa efetividade na solução de
problemas).” (1977: 104)
A idéia do autor é dividir em dois níveis o que tradicionalmente foi
concebido como estando em apenas um, para, dessa forma, escapar aos problemas
que assolam a situação de escolha teórica. Nessa nova configuração, a injustiça
55
comparativa a que Feyerabend se refere simplesmente não se dá, pois os
parâmetros de ocupação e aceitação não coincidem. Uma teoria nova e
progressiva não precisa ser descartada por não ser ainda suficientemente efetiva
para ser aceita. Nem é necessário abdicar de todo e qualquer julgamento em
relação a ela. Uma teoria progressiva deve, sim, ser retida e desenvolvida, mas em
função de critérios outros que os de aceitação.
A partir desse seu tratamento da questão da escolha, é possível perceber que
o autor preserva uma clara estrutura metodológica; um conjunto de critérios que
inequivocamente determinam as escolhas a serem feitas. A diferença é que esse
método age agora em dois planos. Mas uma vez que tanto a efetividade quanto a
progressividade podem, desde o seu ponto de vista, ser estipuladas com precisão,
não é preciso recorrer a outros instrumentos para fazer as escolhas científicas, e a
racionalidade do agente consiste justamente em harmonizar suas decisões com as
prescrições desses critérios.
Esse conceito de racionalidade fica particularmente claro na argumentação
que o autor expõe com relação à sociologia da ciência. Para Laudan, essa
disciplina precisa atentar para o que ele denomina de “suposição de
arracionalidade”. Segundo essa suposição, as escolhas que são racionalmente
explicáveis não necessitam explicação ulterior, sendo suficiente a referência à sua
condição de escolha racional. as escolhas aparentemente não racionais, essas
sim devem ser explicadas em função de variáveis sociológicas.
O problema é como definir o que seja uma escolha racional, que sem essa
definição não como delimitar o campo sociológico. Como vimos
anteriormente, Laudan tem uma proposta clara para tal: é racional aceitar aquelas
teorias que são mais efetivas na solução de problemas, e é racional ocupar-se com
teorias que apresentam alta taxa de progressão. Existem, contudo, uma série do
outras definições de racionalidade e conforme cada uma delas o trabalho
sociológico terá seu escopo significativamente alterado. O problema passa a ser,
então, como escolher uma dentre tantas definições de racionalidade.
Para Laudan, a solução desse problema reside num teste. É preciso testar os
modelos de racionalidade existentes contra o que ele denomina de intuições pré-
56
analíticas de racionalidade. Segundo o autor, toda pessoa cientificamente educada
tem intuições semelhantes sobre a racionalidade de certos episódios da história da
ciência. Entre essas intuições estão, por exemplo, a intuição de que era racional
aceitar a mecânica de Newton e rejeitar a de Aristóteles por volta de 1800, a
intuição de que era racional aceitar a teoria geral da relatividade após 1925 e a
intuição de que era irracional após 1750 aceitar que a luz fosse infinitamente
rápida. Desde o ponto de vista de Laudan, nossas convicções sobre tais casos são
“mais claras e bem enraizadas do que qualquer teoria explícita da racionalidade
em abstrato”(1977:160). É possível, por isso, verificar o grau de adequação de
cada modelo a partir da quantidade de intuições pré-analíticas que o modelo é
capaz de justificar. O modelo que justifica um maior número dessas intuições se
mostra mais adequado e deve, dessa forma, delimitar o trabalho sociológico.
Assim, quando as escolhas são feitas em harmonia com o que esse modelo de
racionalidade prescreve, não necessidade de buscar causas outras para a sua
realização; quando, no entanto, não essa harmonia, outras causas devem ser
buscadas. Quando os cientistas falham em seguir as restrições que o modelo
impõe, a sociologia deve atuar. Se, especificamente, o modelo de solução de
problemas for melhor dentre os existentes, esses casos serão justamente aqueles
em que os cientistas não respeitaram o que os critérios de aceitação e ocupação
ditavam.
3.2 – O debate científico e o desenvolvimento metodológico.
Muitas das questões discutidas em Progress and Its Problems e analisadas
nas páginas acima vão reaparecer no texto de Science and Values. Escrito ao
longo dos anos oitenta e editado no ano de 1984 o livro recupera, por exemplo,
questões sobre a verdade enquanto fim da atividade científica e questões sobre a
racionalidade das escolhas teóricas. Outra semelhança para com o trabalho
anterior, diz respeito ao contexto no qual as teses do autor se movem. Esse, em
diversos aspectos, não difere do de Progress and its Problems. A fonte
57
inspiradora
38
e a teoria a ser derrubada
39
, por exemplo, permanecem sendo a
mesma: Thomas Kuhn. No prefácio do livro, ao expor suas idéias e objetivos,
Laudan reafirma o papel central ocupado pela obra desse autor nos estudos sobre a
ciência. Segundo Laudan
“Não pode haver atividade hoje em filosofia, história, ou sociologia da ciência cuja
abordagem aos problemas da racionalidade científica não tenham sido moldadas pela
mudança de Gestalt que Kuhn efetuou na nossa perspectiva sobre a ciência.” (1984:xii)
Apesar desse pioneirismo, e talvez principalmente em função dele, Laudan
acredita que não sejam mais aceitáveis as respostas que Kuhn ofereceu para uma
série de questões sobre o desenvolvimento científico. Embora o próprio Kuhn
tenha ajudado a formular boa parte dessas questões, para Laudan é chegada a hora
de desenvolver respostas mais convincentes para elas, já que:
“De fato, nós estamos agora em posição de afirmar inequivocamente que o modelo
kuhniano de mudança científica, como desenvolvido na Estrutura e elaborado na Tensão
Essencial, é profundamente defeituoso não apenas nas suas suposições específicas, mas
também nas suas suposições estruturais centrais.” (1984:xiii)
Mesmo que as semelhanças entre os trabalhos sejam inegáveis, Science and
Values definitivamente não consiste de um prolongamento do trabalho anterior.
mudanças consideráveis tanto em relação aos problemas tratados quanto em
relação às teses que o autor assume. Conquanto a racionalidade científica seja
ainda o foco central do autor, uma mudança de perspectiva relevante na
abordagem do assunto. Enquanto Progress and its problems procura construir um
modelo de racionalidade científica fundamentado na idéia de solução de
problemas e de progresso, Science and Values busca compreender a dinâmica
própria do debate científico. Nas palavras do autor:
38
Nas palavras de Laudan: “Esse livro se propõe a fornecer melhores respostas do que aquelas que
Kuhn ofereceu para questões que ele próprio formulou (...)” (1984: xiii)
39
A expressão teoria a ser derrubada pode parecer exagerada, mas o próprio Laudan a ratifica
quando afirma que: “A decanonização do santo patrono de uma disciplina é sempre uma tarefa
árdua e lenta (...). Este livro é uma contribuição para esse esforço.”(1984:xiii)
58
“Minha preocupação central ao escrever esse ensaio tem sido desde o princípio oferecer
uma explicação do debate científico e do processo de decisão científica que faça tanta
justiça quanto eu puder ao que nós estamos aprendendo sobre como a ciência trabalha.”
(1984:xiii)
Para Laudan, os problemas concernentes ao debate científico e ao processo
de decisão científica não foram satisfatoriamente resolvidos, seja por Kuhn ou por
quem for. Isso fica particularmente claro no primeiro capítulo do seu livro que é
dedicado à apresentação de um breve esboço da história recente destes problemas.
Nesse esboço, que se divide basicamente em dois momentos, o autor aborda por
um lado a filosofia e a sociologia da ciência dos anos 30, 40 e 50. Por outro, essas
mesmas disciplinas nas décadas de 60 e 70.
Segundo Laudan, sociólogos e filósofos da ciência pertencentes ao primeiro
período compartilhavam de uma premissa e de um problema. A premissa
reconhecia a ciência como uma atividade cognitiva única, totalmente distinta das
demais, enquanto o problema dizia respeito à explicação do elevado grau de
acordo existente na ciência. Desde o ponto de vista de Laudan, embora existissem
pequenas variações de ênfase, de modo geral os filósofos da ciência da época
buscavam solucionar o referido problema postulando a existência de um método
científico, e a sua obediência por parte dos cientistas. Esse método garantiria o
consenso porque asseguraria a objetividade dos julgamentos feitos sob sua tutela.
Uma vez que a ciência era concebida como consistindo inteiramente de
afirmações sobre questões de fato e que pensava-se que a verdade desse tipo de
afirmação podia ser objetivamente decidida através da pesquisa metódica, não
poderia haver muito espaço para o dissenso em ciência
40
. Por sua vez, os
sociólogos, segundo Laudan, acreditavam que um conjunto de normas ou padrões
governava a vida profissional da comunidade científica. Esse conjunto de normas
40
Cito Laudan: “Filósofos pregavam que a ciência era uma atividade consensual porque os
cientistas (na medida em que eram racionais) moldavam suas crenças implicitamente, se não
explicitamente, de acordo com os cânones de uma metodologia científica compartilhada ou lógica
indutiva, e estes cânones eram considerados mais do que suficientes para resolver qualquer
desacordo genuíno sobre questões de fato.”(1984: 6)
59
compartilhado pelos cientistas seria o responsável pela extensão dos acordos em
ciência
41
.
Quanto aos desacordos, segundo o autor, esses eram explicados pelos
sociólogos como um desvio do padrão de normalidade. Uma vez que nem todos
os cientistas internalizavam as normas com a mesma eficiência, podia por vezes
haver disputas. Bastava, contudo, reafirmar as ditas normas para que aquelas
chegassem ao fim. De sua parte, os filósofos acreditavam que muitas vezes os
cientistas falhavam em reconhecer a equivalência das suas teorias e acabavam,
dessa forma, brigando apenas por palavras. Outras vezes, a evidência decisiva
simplesmente não estava disponível e por isso a disputa perdurava. Em último
caso, atribuía-se a causa do dissenso à falha humana dos cientistas que nem
sempre eram tão racionais quanto se esperava. De qualquer forma, segundo o
autor, era ponto pacífico entre os filósofos que no mais das vezes, quando de um
desacordo científico, bastava recorrer às regras relevantes e procurar a evidência
necessária para dar fim à controvérsia.
Nas décadas de 60 e 70 o problema principal a ser explicado deixa, porém,
de ser o elevado grau de acordo em ciência e passa a ser “as periódicas explosões
de desacordo”. A atenção de filósofos e sociólogos da ciência, antes voltada para a
estabilidade dos acordos, volta-se nesse período para as especificidades do
dissenso em ciência. Segundo Laudan, quatro linhas argumentativas são decisivas
para minar a preocupação tradicional para com o consenso. São elas: a
compreensão de que as controvérsias científicas são teoricamente carregadas e
são, além disso, mais numerosas do que o modelo tradicional levaria a acreditar
que fossem
42
; o fenômeno do êxito do comportamento contranormal; a tese da
incomensurabilidade entre teorias; e a tese da subdeterminação das teorias pelos
dados. Como exemplo, consideraremos a última delas: a subdeterminação das
teorias pelos dados. Desde o ponto de vista de Laudan, essa tese afirma que as
regras ou critérios avaliativos da ciência não têm condições de determinar a
41
O exemplo de Laudan aqui é Merton.
42
Alguns exemplos de Laudan são: as controvérsias Ptolomeu-Copérnico, Einstein-Bohr,
Lavoisier-Priestley, ótica ondulatória versus ótica das partículas, teoria energética versus teoria
atomista, mecânica newtoniana versus mecânica cartesiana, geologia uniformitarista versus
catastrofista, teoria elétrica de um fluído versus dois fluídos, creacionismo versus evolucionismo...
60
escolha de uma teoria em detrimento das restantes. Segundo o autor, diversas vias
levam a essa conclusão. De um lado, há a conhecida tese Duhem-Quine de acordo
com a qual nenhuma teoria pode ser conclusivamente provada ou refutada em face
de qualquer corpo de evidência. De outra parte, a afirmação associada com o
trabalho de Wittgenstein e de Goodman de que as regras de inferência científicas,
sejam indutivas ou dedutivas, são ambíguas o suficiente a ponto de poderem ser
seguidas de muitas maneiras inconsistentes. Por fim, a tese kuhniana,
destacada no capítulo anterior, referente à vaguidade dos critérios científicos tais
como simplicidade, amplitude e precisão.
Para Laudan, no que diz respeito às questões do debate científico e do
processo de decisão científica, embora as duas abordagens possuam os seus
méritos, o resultado final dos seus trabalhos é bastante decepcionante. De modo
geral, nenhuma das tradições tem se mostrado capaz de lidar com ambos aspectos
constitutivos da atividade científica: o consenso e o dissenso. Por um lado,
“os modelos sociológicos e filosóficos dos anos 40 e 50 adotaram suposições tão fortes
quanto aos mecanismos de formação de consenso que eles postulam para explicar o acordo,
que fica difícil compreender a variedade e o caráter das controvérsias e dos desacordos
científicos.”(1984:2)
Por outro lado, os modelos filosóficos e sociológicos dos anos 60 e 70 postularam
tantas divergências e incomensurabilidades para explicar o dissenso que se torna
difícil compreender como os cientistas podem alguma vez vir a concordar. O
modelo kuhniano, por exemplo, o consegue explicar como a ciência normal
chega a principiar. Afora a manipulação política e a pura e simples exaustão,
Kuhn não oferece razões para acreditarmos que a ciência extraordinária deva
findar em algum momento. As divergências reconhecidas entre as escolas são
tamanhas que o acordo parece algo estritamente fora de alcance.
Mas, se de um lado sociólogos e filósofos do primeiro período não
apresentam explicações convincentes sobre a natureza dos desacordos em ciência
e se, de outro lado, sociólogos e filósofos do segundo período não conseguem
explicar como os acordos chegam a se dar, para Laudan, a conclusão óbvia a que
61
se chega é que o problema do debate científico permanece em aberto. Uma vez
que o debate é constituído por esses dois momentos, não pode haver solução até
que ambos sejam abarcados num mesmo modelo
43
. De forma mais precisa: “Nós
necessitamos de uma teoria da racionalidade científica única e unificada que
prometa estar apta a explicar esses dois traços notáveis sobre a ciência.”(1984:3)
Segundo Laudan, para que essa tarefa seja cumprida é preciso, entretanto,
repensar o papel que alguns elementos têm tido na compreensão do debate
científico. É preciso repensar, por exemplo, o papel do tradicional modelo
hierárquico de justificação
44
. (Conforme esse modelo, os desacordos factuais são
resolvidos no plano metodológico, enquanto os desacordos metodológicos são
resolvidos no plano axiológico.) Desde o ponto de vista de Laudan, a concepção
tripartida de justificação oriunda desse modelo afirmações factuais, regras
metodológicas e valores – ainda é a melhor solução para a questão da formação do
consenso em ciência, e embora tenha sido justamente criticado em alguns
aspectos, foi, segundo o autor, prematuramente desacreditado na sua totalidade.
Um exemplo de crítica que aparentemente teria desacreditado esse modelo e
que, segundo Laudan, foi mal dimensionada é a da tese da subdeterminação das
teorias. Para o autor, essa tese não poderia refutar o modelo em questão por uma
razão simples: a força da referida tese está na sua consideração em abstrato no
caso hipotético de uma escolha entre todas as teorias possíveis. Como, contudo, a
escolha teórica em ciência é uma questão essencialmente comparativa e limitada,
a força da subdeterminação em abstrato não pode ser decisiva. Nas palavras do
autor:
“Uma vez que se admite que a apreciação teórica é uma matéria comparativa, que os
cientistas estão de forma geral fazendo julgamentos comparativos de adequação entre rivais
disponíveis e não julgamentos absolutos sobre a melhor teoria possível, então se torna claro
que as preferências comparativas podem estar justificadas mesmo quando a seleção da
melhor teoria possível está para além dos nossos recursos justificatórios.”(1984: 29)
43
“Nós mal podemos reivindicar ter movido-nos significativamente para além dos trabalhos dos
anos 40 e 50, a menos que nós possamos compreender os fatos notáveis que os estudiosos dessa
geração de forma correta consideravam como a característica básica da ciência.”(1984:22)
44
Segundo Laudan, esse modelo foi defendido por autores como Karl Popper, Hempel e
Reichenbach.
62
Claro que ainda permanece a possibilidade de surgir casos em que as regras se
mostrem insuficientes para resolver a controvérsia. Mas, de qualquer forma, a
existência desses casos não pode, por si só, apagar o grande número de casos em
que as regras metodológicas possibilitaram decisões conclusivas
45
. O mesmo
também pode ser dito para a alegada ambigüidade dos critérios avaliativos.
Conquanto seja verdade que os critérios não determinam a única teoria passível de
satisfazê-los, no âmbito comparativo, eles determinam diversas escolhas com
bastante precisão. No fim do século XVII, por exemplo, independentemente de
qualquer ambigüidade, era incontestável a maior acuidade da física newtoniana
em relação à aristotélica. Da mesma forma, a astronomia planetária newtoniana
era incontestavelmente mais ampla que a de Kepler.
Outro exemplo de crítica ao modelo hierárquico que foi exageradamente
dimensionada, segundo Laudan, diz respeito à subdeterminação das regras pelos
valores. Segundo essa crítica, os valores seriam insuficientes para a resolver as
controvérsias metodológicas. Da mesma forma que os dados subdeterminam as
teorias, os valores subdeterminariam as regras, fazendo com que toda e qualquer
disputa nessa área não fosse racionalmente decidível. Do ponto de vista de
Laudan, a fraqueza dessa crítica assemelha-se muito à da crítica anterior. Embora
seja inegável a insuficiência dos valores quando se trata de determinar a melhor
regra ou a única regra possível para se alcançar determinado fim, essa
insuficiência, por si só, não permite deduzir a falência irrestrita dos valores nos
casos de escolha concreta entre regras. Em muitos casos, é possível, por exemplo,
excluir certas regras com base na sua ineficácia para conduzir a certos fins
46
. Em
outros, é possível mostrar que certas regras são eficazes ou são mais eficazes que
suas rivais sob apreço. Nesses contextos, a utilidade das regras é bastante clara e o
seu papel está plenamente justificado.
*
45
“Por exemplo, as regras e a evidência biológica, emborao indicassem a única teoria evolutiva
correta, excluíam numerosas hipóteses creacionistas (...) do reino permissível e assim forneciam
uma justificativa para a preferência racional da biologia evolutiva sobre a creacionista.”(1984:29)
46
Segundo Laudan, Popper teria demonstrado a incompatibilidade entre a regra que exige teorias
altamente prováveis e o valor da generalidade no sentido da regra não conduzir a esse valor.
(1984: 36-7).
63
A crença de Laudan de que muitas críticas feitas ao modelo hierárquico não
têm a força devastadora que se imaginava que tivessem não deve, contudo, ser
confundida com uma defesa intransigente do modelo por parte do autor. Como foi
referido acima, Laudan rejeita a solução desse modelo para o problema do debate
científico. Para o autor, em muitos aspectos o modelo é claramente inadequado e
precisa ser seriamente reformulado. Desde o seu ponto de vista, a própria estrutura
hierarquizada tem de ser abandonada.
A proposta do autor, nesse sentido, constitui-se do que ele chama de modelo
reticulado de justificação. Segundo esse modelo, a justificação em ciência não se
limita aos caminhos ascendentes estipulados pelo modelo hierárquico, havendo
“um complexo processo de ajuste e justificação mútuo”(1984: 62) entre todos os
níveis
47
. Pode ser perfeitamente racional, segundo essa formulação, recorrer, por
exemplo, às teorias compartilhadas para resolver desacordos metodológicos. Nas
palavras do autor:
“A informação factual tem um papel na avaliação das regras metodológicas precisamente
porque nós estamos continuamente aprendendo novas coisas sobre o mundo e sobre nós
mesmos como observadores desse mundo.”(1984: 38)
Nesse processo contínuo, certas exigências metodológicas podem perder
completamente o sentido enquanto outras podem revelar-se de extrema relevância.
Um exemplo esclarecedor a que Laudan faz referência, diz respeito ao efeito
placebo. Antes da descoberta desse fenômeno, se consideravam suficientes, para
fim de testes terapêuticos, experimentos controlados simples. Após essa
descoberta houve uma crescente compreensão de que esses testes não eram
suficientes e que havia necessidade de testes mais severos. A informação factual
nesse caso foi decisiva para a crítica metodológica.
Outra diferença importante da sua proposta reside na possibilidade da crítica
aos valores. Para o autor, a idéia, costumeiramente associada a Popper e a
Reichenbach, de que disputas sobre valores não são passíveis de solução racional
47
Os objetivos justificam os métodos e esses exibem o caráter realizável daqueles. As teorias
constrangem os métodos e são justificadas por eles. Teorias e objetivos, por fim, devem se
harmonizar.
64
é errônea e deve ser abandonada. Historicamente, em ciência, defensores da parte
perdedora com freqüência passaram entusiasmadamente a assumir as visões e os
objetivos da parte vencedora, o que não poderia ser esperado “se a ‘conversão’
fosse forçada ou tensa”. Laudan vislumbra duas estratégias gerais segundo as
quais os valores podem ser criticados. A primeira dessas estratégias que o
próprio autor utiliza na argumentação do seu primeiro livro diz respeito à
possibilidade de se demonstrar a condição utópica de certos valores. Segundo
Laudan:
“Adotar um objetivo com a característica de que nós não podemos conceber ação alguma
que estaria apta a promovê-lo, ou um objetivo cuja realização nós não reconheceríamos
mesmo se o tivéssemos alcançado, é certamente uma marca da irrazoabilidade e da
irracionalidade.”(1984:51)
Demonstrar essa condição é, por isso, um forte argumento contra aqueles que os
defendem.
A estratégia utópica, por sua parte, compreende três subestratégias
específicas. São elas: utopia demonstrável, utopia semântica e utopia epistêmica.
A utopia demonstrável talvez seja a mais devastadora delas toda, uma vez que o
seu emprego deixa pouco espaço para réplica. Um valor é comprovadamente
utópico quando se demonstra a impossibilidade da sua realização. Exemplo disso,
é o caso da busca por conhecimento infalível. Segundo Laudan, no século XIX
esse objetivo foi desacreditado com base na impossibilidade de comprovação das
afirmações universais; leis, por exemplo. O conhecimento infalível seria utópico
porque as afirmações universais que constituem o corpo do conhecimento seriam
demosntradamente não comprováveis. Já a utopia semântica diz respeito à
demonstração de que certos valores são excessivamente ambíguos e imprecisos.
Valores nessa condição, não seriam passíveis de definição em abstrato nem de
identificação em casos concretos e, por conseguinte, não permitiriam o próprio
reconhecimento da sua realização. Exemplos seriam valores como simplicidade e
elegância. A utopia epistêmica, por fim, abrange aqueles casos nos quais não é
possível formular um critério que especifique quando o valor está satisfeito.
65
Segundo Laudan é o caso típico do realismo
48
que embora seja semanticamente
preciso prescinde, até hoje, de um critério satisfatório que determine a sua
realização.
A outra estratégia que Laudan expõe vincula-se ao que o autor chama de
arquétipos compartilhados. Segundo essa estratégia, é possível criticar certos
valores demonstrando que as próprias escolhas teóricas que os defensores desses
valores fazem falham em exemplificá-los. É o caso, segundo Laudan, do objetivo
empirista de que as teorias deveriam restringir-se a entidades observáveis.
Amplamente defendido pelos cientistas no início do século XVIII, esse objetivo
foi lentamente desacreditado com base na crítica de diversos autores
49
. Segundo
esses autores, os próprios defensores da referida restrição acabavam por violá-la
ao aceitarem teorias que postulavam essas entidades. Uma vez que até mesmo
Newton teria utilizado esse expediente, para que o objetivo fosse realizado seria
necessário abandonar grande parte das teorias vigentes. Incapazes de fazê-lo, daí
pra frente o que ocorre é uma gradual compreensão do papel das entidades não
observáveis em ciência junto com uma também gradual articulação de um método
capaz de justificar esse papel.
Uma pequena variação dessa mesma estratégia aparece naqueles casos nos
quais é possível demonstrar que, apesar dos repetidos esforços, os defensores de
determinados valores não conseguem formular teorias que os exemplifiquem. É o
caso, segundo Laudan, do princípio de inteligibilidade. A exigência de que o
menos inteligível deve ser explicado pelo mais inteligível foi amplamente
utilizado pelos cartesianos para criticar a idéia newtoniana de gravitação. Os
próprios cartesianos não conseguiram, contudo, forjar conceitos que satisfizessem
aquela exigência. Segundo autores como Locke e Maupertuis, os conceitos
cartesianos como o de ação por contato eram tão ininteligíveis quanto o de
gravitação. O resultado é que por volta de 1740 não somente deixou de ser
convincente argumentar que a física cartesiana era mais inteligível que a
newtoniana como a própria idéia de inteligibilidade caiu em desuso.
48
Realismo no sentido de se buscar teorias verdadeiras.
49
Laudan cita entre os críticos George Lesage, David Hartley e Roger Boscovich.
66
Feitas essas observações e o modelo reticulado está pronto. A solução de
Laudan para a questão do debate científico, no entanto, ainda não está. Desde o
ponto de vista do autor, antes de encerrar o caso é preciso mostrar que as objeções
de Kuhn ao modelo tradicional o são decisivas para um modelo como o seu.
Mais do que isso, é preciso mostrar que as teses kuhnianas são definitivamente
errôneas e precisam ser abandonadas.
O primeiro ponto que Laudan vai se ocupar, nesse sentido, é o que ele toma
como sendo a compreensão holística da mudança. Segundo essa compreensão, as
mudanças científicas se dão apenas entre paradigmas e não dentro dos
paradigmas. Dado que os paradigmas envolvem os três níveis considerados
factual, metodológico, axiológico essas mudanças, por sua vez, são sempre
globais e significam grandes rupturas. Para Laudan essa tese, que se verdadeira
significaria a falência do seu modelo
50
, é historicamente equivocada. Segundo ele,
a mudança científica é bem mais gradual do que esse modelo sugere, residindo o
erro numa má leitura dos fatos históricos já que:
“Uma seqüência de mudanças de crenças que, descritas num nível micro, aparentam ser
uma seqüência racional de eventos pode parecer, quando apresentada em amplas pinceladas
que drasticamente comprimem a dimensão temporal, uma mudança de visão de mundo
fundamental e ininteligível.”(1984: 78)
As grandes mudanças escondem, na verdade, uma série de pequenas mudanças
racionais que são levadas a cabo por movimentos críticos do tipo relacionado pelo
modelo reticulado. A imagem das grandes rupturas é uma grande ilusão gerada
por uma abordagem histórica falha.
O outro ponto que Laudan trata diz respeito às críticas de Kuhn aos critérios
metodológicos. Segundo Laudan, a primeira dessas críticas, que vincula-se à idéia
da ambigüidade dos critérios, foi apressadamente generalizada por Kuhn. Embora
seja verdade que alguns critérios são ambíguos como simplicidade não é
verdade que todos os critérios o sejam. O critério de consistência, por exemplo,
50
Significaria a falência do modelo porque não haveria um ponto de apoio para que a crítica se
desse.
67
não o é. Como o próprio Kuhn chega a afirmar, esse critério – na época de Galileu
claramente favorecia a tradição geocêntrica que a tradição heliocêntrica
contradizia diversas crenças bem aceitas. Para justificar sua crítica:
“Kuhn deve mostrar, já que ele afirma isso, que algo na própria natureza das regras
metodológicas que vêm a ser compartilhadas entre os cientistas, que faz a sua aplicação ser
invariavelmente inconclusiva. Ele [contudo] não estabeleceu esse resultado, e uma boa
razão para isso: o resultado é falso.”(1984:91)
A crítica da inconsistência coletiva dos valores, segundo a qual diferentes
valores ditam escolhas contraditórias, recebe uma resposta semelhante por parte
do autor. É verdade, segundo Laudan, que alguns cientistas por vezes defendem
valores coletivamente inconsistentes; a generalização, contudo, não se justifica.
As regras de Mill, por exemplo, refutam essa generalização. Afora isso, a própria
compreensão da inconsistência constitui estímulo para a reavaliação dessas regras.
Quanto à crítica referente aos problemas considerados legítimos pela
comunidade científica
51
, há, segundo Laudan, um erro de concepção na sua
origem. Desde o seu ponto de vista, é necessário distinguir entre a importância
subjetiva de um problema e a importância objetiva do mesmo. Enquanto a
importância subjetiva é determinada, por exemplo, por preferências pessoais, a
importância objetiva é determinada pelo significado que esse problema assume no
contexto de teste teórico. Um problema importante, nesse sentido, não precisa ter
um grande valor prático ou heurístico. Na verdade: “As instâncias de grande peso
cognitivo na história da ciência geralmente não foram instâncias centrais na
agenda teórica.”(1984:100) Uma teoria é severamente testada justamente por
aquilo que ela não busca num primeiro momento resolver e um problema não
adquire importância simplesmente porque os advogados das teorias gostariam de
resolvê-los.
Laudan, assim, finaliza a sua análise do debate científico. Diferente de
Progress and Its Problems, nessa análise Laudan não propõe um conjunto
excludente de critérios para determinar a racionalidade das escolhas. De modo
51
Laudan já havia respondido essa crítica no seu primeiro livro.
68
geral, o que autor faz é desenvolver uma série de ferramentas a partir das quais a
crítica pode ser feita. Embora sem dúvida alguma o autor as conceba como
racionais, a racionalidade não se restringe exclusivamente a elas. A racionalidade
encontra-se, antes, nas próprias interações críticas que dão forma ao modelo
reticulado. E essas, embora estejam paradigmaticamente ilustradas nos exemplos
que o autor apresenta, de forma alguma se esgotam neles.
Cap.4 – Marcello Pera e a racionalidade dos discursos (ou, a
racionalidade sem regras).
Outro autor que busca repensar a questão da racionalidade científica e a sua
relação com um método científico é Marcello Pera. No seu livro The Discourses
of Science (1994), Pera empreende uma cuidadosa análise das diferentes
metodologias, procurando apontar para os problemas dos modelos que se
fundamentam nelas e para uma nova forma de compreender a racionalidade em
ciência. O objetivo desse capítulo é apresentar os principais pontos dessa sua
contribuição.
*
Assim como Laudan, Pera inicia o seu livro fazendo uma rápida leitura da
história recente da filosofia da ciência. Essa leitura, como o próprio autor ressalta,
69
tem o caráter de uma “história filosófica” construída a partir de “técnicas
expressionistas” e “personagens típicos” não constituindo-se de um detalhado
estudo histórico do desenvolvimento dessa disciplina. Apesar disso, segundo o
autor, os personagens dessa história guardam uma grande semelhança com os
personagens da história oficial, servindo ela perfeitamente bem para apresentar o
ambiente em que se encontra a disciplina.
A história tem seu início – “primeiro ato” – com a hegemonia da imagem de
ciência como demonstração. Segundo Pera, essa imagem que se caracteriza pela
infalibilidade, objetividade, universalidade e certeza constitui-se de dois
componentes fundamentais que são como pilares que a sustentam: o componente
epistêmico e o componente metodológico. O componente epistêmico assegura que
a ciência é baseada em certos dados especiais sejam esses dados experimentais
ou intelectuais a partir dos quais nós adquirimos conhecimento da realidade.
Enquanto o componente metodológico garante que os dados apreendidos serão
processados de forma correta: uma vez que a informação contida nos dados for
verdadeira, a informação contida na conclusão também o será.
A hegemonia da ciência como demonstração não se estende, porém, por
muito tempo. no princípio do “segundo ato” as coisas começam a mudar
consideravelmente de figura quando dita hegemonia passa a ser seriamente
ameaçada. Após uma série de impressionantes êxitos, o primeiro pilar da imagem
da ciência como demonstração, o componente epistêmico, começa a ruir sob o
peso da sua própria construção.
“O surgimento das geometrias não-euclideanas, a crise nos fundamentos da matemática, a
rejeição da psicologia associativa, assim como grandes inovações intelectuais como as
teorias da relatividade e quântica tudo isso mostra que nem mesmo os conceitos mais
claros e distintos (espaço, tempo, causa, substância e número, por exemplo) estão para além
da revisão, e que nem mesmo as mais puras percepções (digamos, figura e movimento)
estão livres de distorções. (PERA 1994: 3)
A imagem não desaba, contudo, em função de um providencial reforço ao
segundo pilar. Embora reconheçam a fragilidade do componente epistêmico, e
70
modifiquem a posição do método do contexto de descoberta para o contexto de
justificação, os filósofos permanecem fiéis a algumas idéias picas do
componente metodológico, procurando sustentar a referida imagem a partir das
mesmas. Segundo Pera, quanto a essas idéias, poucas diferenças entre autores
como Bacon, Descartes, Leibniz, Newton, Whewell e Mill e entre Popper,
Lakatos e Laudan. Mesmo que, as suas metodologias sejam diferentes no que diz
respeito aos seus objetivos e às suas regras, todos sustentam as seguintes teses:
Primeira tese. Existe um método preciso e universal que demarca a ciência de qualquer
outra disciplina intelectual.
Segunda tese. A rigorosa aplicação desse método garante a realização do objetivo da
ciência.
Terceira tese. Se a ciência não possuísse método, ela não seria um empreendimento
cognitivo racional.” (PERA 1994: 4)
(Um vez que, segundo Pera, Descartes pode ser considerado o grande herói dessa
história, qualquer programa em filosofia da ciência baseado nessas teses pode
denominar-se projeto cartesiano. E a terceira tese, em particular, é denominada
pelo autor de dilema cartesiano ou síndrome cartesiana.)
Pois, mal o referido reforço ao componente metodológico fora
providenciado e um poderoso ataque da “nova filosofia da ciência” ao pilar
restante inaugura o terceiro e último ato dessa história. De um lado, a pesquisa
histórica é cuidadosamente utilizada para minar a confiança na existência de um
método universal. Enquanto, de outro lado, a própria desobediência a esse suposto
método é apontada como causa de progresso em ciência. O resultado do ataque é a
rejeição das duas primeiras teses do projeto cartesiano. Ambas as teses são
definitivamente deixadas de lado por uma série de estudiosos da ciência, que
não vêem razão para sustentá-las. A terceira tese, contudo, resiste ao ataque e
permanece de apesar de todo o estrago. Mais do que isso, alguns expoentes da
nova filosofia da ciência se apropriam dessa tese e a transformam de um
condicional contrafactual numa sentença afirmativa.
71
O terceiro ato termina, assim, com o que Pera denomina de síndrome
cartesiana. Livres das duas primeiras teses do projeto cartesiano, uma série de
estudiosos da ciência não consegue se libertar da última dessas teses que passa a
afetá-los como uma séria síndrome. Contaminados por ela, esses filósofos,
historiadores e sociólogos da ciência passam a ver a ciência como um
empreendimento tão racional, ou irracional, como qualquer outro: uma vez que
não existe um método que assegure o caráter racional da ciência, não distinção
importante entre essa atividade e outra atividade cognitiva qualquer
52
. A ciência é,
para muitos, patentemente irracional.
A história, no entanto, não termina aqui. Se bem, é verdade, que autores
como Feyerabend, Rorty e Bloor foram afetados por essa síndrome, resta dizer
que ao menos um autor escapou ileso a ela: Thomas Kuhn. Embora tenha sido
tentado por ela e tenha encorajado muitos a considerá-lo irremediavelmente
afetado
53
, Kuhn, na verdade, nunca sustentou que a única alternativa ao método
fosse a irracionalidade. Segundo Pera, o que Kuhn procurou na sua obra foi
apontar para uma nova forma de compreender a racionalidade em ciência, uma
forma que a vinculasse não a um método, mas sim ao argumento persuasivo.
Kuhn, dessa forma, termina a história como sobrevivente à síndrome que
atingiu os seus colegas. E uma vez finalizada a história e contabilizados os
doentes, Pera passa a descrever em que condições o seu trabalho vai se inserir
nesse contexto. Nas palavras do autor:
“Meu objetivo final nesse livro não é recuperar o modelo metodológico, mas sim encontrar
um caminho fora do dilema cartesiano. Dialética e não sociologia, psicologia ou
hermenêutica será meu candidato para substituir o método. Eu assim, tomo a posição
sugerida por Kuhn, mas não completamente desenvolvida por ele, e tentarei esboçar e
elaborar uma imagem diferente de ciência que eu chamarei de modelo dialético.” (PERA
1994: 10-1)
52
Os modelos que não vêem alternativa entre o método ou a irracionalidade e negam a existência
de um método são denominados por Pera de modelos contra-metodológicos.
53
Pera se refere aqui ao caráter ambíguo da Estrutura que pode, segundo ele, ser interpretada
como tendo sido escrita por um “pato irracionalista” ou um “coelho racionalista”.
72
Embora algumas características da sua proposta já se tornem claras nessa
passagem, como a sua filiação a Kuhn e a rejeição, de sua parte, dos modelos
metodológico e contra-metodológico, Pera não a desenvolve antes de proceder a
uma minuciosa análise do modelo metodológico de aquisição do conhecimento.
Uma vez que esse modelo tem muitas variações e que a sua influência é
reconhecidamente vasta, o autor procura levá-lo às últimas conseqüências para ver
quais são realmente as suas fraquezas. Somente após essa análise e principalmente
a partir dessa análise é que o autor vai expor a sua contribuição ao tema.
4.1 – Os modos do modelo metodológico
Pera inicia a sua análise distinguindo três diferentes modos do modelo
metodológico. São eles: a metodologia enquanto procedimento, enquanto regras e
enquanto técnicas. Quanto à avaliação desses modos, Pera insiste em dois
requisitos básicos: a adequação a metodologia precisa salvar casos
reconhecidamente exemplares da prática científica e a precisão a metodologia
deve permitir a discriminação, sem ambigüidade, entre aquelas investigações que
a satisfazem e aquelas que não a satisfazem.
A primeira dimensão da metodologia de que ele se ocupa é a metodologia
enquanto procedimento. Essa se define, segundo o autor, como “uma estratégia
global que indica uma série ordenada de movimentos (ou estágios, ou passos, ou
operações) que um cientista deve realizar para alcançar os objetivos da
ciência.”(PERA 1994:14). São exemplos desse modo, o método hipotético-
dedutivo, o método indutivo e o método das conjecturas e refutações. O primeiro
identificado com Galileu, o segundo com Bacon e o terceiro com Popper.
Segundo o autor, na medida em que existe mais de um exemplo desse tipo
de metodologia, torna-se necessário eleger aquele que melhor satisfaz os
requisitos definidos, pois do contrário não teríamos apenas um método. No que
diz respeito à adequação, parece, contudo, não haver uma resposta simples para
essa questão. Como Pera chama a atenção:
73
“Mudanças científicas significativas andam sempre de mão dadas com inovações
metodológicas, e, desde que os procedimentos o dirigidos para fins específicos, uma
mudança de objetivo pode bem alterar o procedimento.”(PERA 1994:17)
Uma vez que diferentes épocas e diferentes disciplinas têm diferentes
métodos, em princípio nenhuma metodologia tem condições de salvar todos os
casos relevantes da prática científica. E, dessa forma, o critério de adequação não
pode ser satisfeito por nenhum método particular que se pretenda de uso geral.
Mesmo ignorando esse fato e fazendo a suposição otimista de que uma
metodologia específica a de conjecturas e refutações, por exemplo tenha
condições de dar conta de todos os casos relevantes da prática científica, resta
ainda o critério da precisão para ser satisfeito. E quanto a esse critério a situação
em nada melhora. Segundo Pera, investigações como a psicanálise e até mesmo a
alquimia e a astrologia podem, com justiça, reivindicar o fato de seguir esse
procedimento, já que em função da sua excessiva generalidade essas investigações
podem ser acomodadas sob a sua estrutura. A precisão é, assim, claramente não
satisfeita.
Pera conclui, dessa breve análise, que o método enquanto procedimento não
pode ser um critério de demarcação satisfatório entre a ciência e a não-ciência,
pois por um lado ele não é suficientemente adequado e por outro ele não é
suficientemente preciso. Segundo o autor, essa conclusão origem ao seguinte
paradoxo:
Dado um procedimento científico adequado, é possível encontrar investigações
consideradas pseudocientíficas que satisfazem esse procedimento.”(PERA 1994:19, grifo
no original)
Após ocupar-se com método enquanto procedimento, a segunda dimensão
que vai ocupar Pera, diz respeito ao método enquanto técnicas. Segundo esse
ponto de vista, o método constitui-se de um conjunto de técnicas para efetuar os
movimentos exigidos pelo procedimento. São exemplos as técnicas de
observação, classificação, condução de experimentos e outras do gênero.
74
Segundo Pera, dois problemas importantes assolam essa perspectiva. Em
primeiro lugar, definir a cientificidade de uma disciplina a partir de técnicas
específicas significa, para o autor, o mesmo que amarrá-la. Durante o
desenvolvimento de uma disciplina, muitas técnicas são abandonadas em função
de outras tidas como melhores. Na medida em que se define o caráter científico de
uma disciplina a partir de certas técnicas, esse movimento deixa, contudo, de ser
permitido. Mesmo no que diz respeito àquelas técnicas mais gerais, como as
técnicas matemáticas, por exemplo, segundo o autor, é apenas arrogância
metodológica prescrever uma em detrimento de outras, que existem muitas
maneiras de se alcançar a cientificidade.
Em segundo lugar, muitas técnicas ditas científicas são também adotadas por
disciplinas consideradas não-científicas
54
. Exemplo disso é a astrologia: em
muitos dos seus textos mais gráficos e fórmulas que em livros de física.
Generalizando o ponto chega-se a um segundo paradoxo:
Uma disciplina científica pode legitimamente adotar as mesmas técnicas adotadas por
disciplinas não cientificas.”(PERA: 1994:22, grifo no original.)
A terceira e última dimensão que é objeto de análise pelo autor é a
metodologia enquanto regras. De acordo com Pera, a metodologia, nesse sentido,
é compreendida como “um conjunto de regras, ou normas, ou prescrições que
governam cada passo do procedimento
55
.”(PERA 1994:15). Essas regras, grosso
modo, podem ser reduzidas a três tipos fundamentais, são elas: regras de
aceitação, segundo as quais certos requisitos devem ser satisfeitos para uma
afirmação ser aceita no corpo do conhecimento científico; regras de rejeição,
segundo as quais uma afirmação deve ser rejeitada à luz de certas razões; e regras
de preferência, segundo as quais uma afirmação deve ser preferida à outra se ela
satisfizer certas condições.
54
Segundo o autor, a questão importante nesse contexto não é tanto as cnicas como o modo de
empregá-las.
55
Os exemplos aqui são Descartes e Bacon – no contexto de descobertae Popper e Lakatos – no
contexto de justificação.
75
Segundo Pera, as certas razões, os certos requisitos e as certas condições
indicados nas regras o distintamente preenchidos segundo diferentes pontos de
vista. Interpretadas a partir dos escritos de Galileu, por exemplo, essas regras
transformam-se respectivamente nas seguintes regras: apenas hipóteses testáveis
por dados observacionais são aceitáveis; qualquer hipótese cujas conseqüências
são contraditas pelos fatos empíricos deve ser rejeitada; e, se duas hipóteses
colidem, a que explica mais fatos deve ser preferida.
Desde o ponto de vista de Pera, o problema com esse conjunto de regras, que
o autor toma como paradigmático, é a sua vaguidade. Termos como testável” e
“dado observacional” não são muito precisos, dando margem para uma série de
diferentes interpretações. Voltando a recorrer aos escritos de Galileu, é possível,
contudo, precisar um pouco mais essas regras. A regra de rejeição, por exemplo,
pode ser aperfeiçoada no seguinte sentido: “Qualquer hipótese cujas
conseqüências são contraditas por dados observacionais consolidados deve ser
rejeitada.”. Conforme Pera, essa parece ser a regra que Galileu tem em mente
quando ele afirma que um simples experimento ou prova conclusiva do
contrário” seria suficiente para derrubar a teoria copernicana.
Embora inegavelmente mais precisa, a nova regra também não deixa de
apresentar problemas. Se levarmos em conta a investigação do próprio Galileu, a
sua adequação, particularmente, torna-se bastante discutível. É sabido que
algumas conseqüências observacionais da teoria copernicana eram contraditas por
fatos “consolidados”, como, por exemplo, a sua predição do apogeu de Vênus.
Essa contradição, contudo, o foi interpretada por Galileu como razão suficiente
para abandonar a teoria, sendo considerada na sua carta para Francesco Ingoli
como um problema menor. À luz dessa carta pode-se, então, buscar uma versão
mais adequada para essa regra, como, por exemplo: “Qualquer hipótese cujas
conseqüências observacionais são contraditas por dados observacionais
estabelecidos deve ser rejeitada, a menos que eles constituam anomalia local ou
secundária.”. Essa versão, embora coerente com a investigação de Galileu, peca,
entretanto, novamente pela vaguidade. O significado de termos como “anomalia
76
local e secundária” o são precisos, havendo necessidade de defini-los caso a
caso.
Pera conclui, assim, que as regras são ou excessivamente vagas ou
inadequadas, e que a sua sofisticação pode ir para além de um certo limite, às
custas da paralisação da investigação numa espécie de “camisa de força”. Galileu,
especificamente, seguiu adiante porque embora pregasse que um
experimento era suficiente para derrubar a teoria copernicana, adotou a regra mais
vaga e tolerante segundo a qual anomalias secundárias eram aceitáveis. Tido
como oportunista por alguns autores, esse tipo de comportamento dá origem, a um
terceiro paradoxo:
Dada qualquer regra metodológica, existem sempre investigações científicas que a
violam.”(PERA 1994:28, itálico no original.)
Esse terceiro paradoxo, junto com os dois anteriores, completa a primeira
parte da análise dos modos do modelo metodológico. Para Pera, duas lições
importantes podem ser depreendidas daí. Em primeiro lugar, sempre que a
precisão do método aumenta, a sua adequação é reduzida e vice-versa. Em
segundo lugar, cientistas trabalham com regras vagas e se vêem no direito de fazê-
lo. Um último paradoxo é, então, anunciado pelo o autor, o paradoxo do método
científico. Segundo esse paradoxo: “a ciência é caracterizada pelo método
científico, mas uma caracterização precisa do método científico destrói a ciência.”
Desse paradoxo Pera deduz, ainda, uma limitação inerente a todo código
científico. Segundo o autor:
“Adequação e precisão são duas propriedades do método científico cujo produto não pode ir
além de um certo limite.”(PERA 1994:28)
Embora não justifiquem a conclusão de que o método científico não existe,
segundo o autor, o paradoxo do método científico conjuntamente com o princípio
de indeterminação metodológica lançam sérias dúvidas sobre a viabilidade do
77
projeto cartesiano. As duas primeiras teses (ver acima, página 58), sobretudo,
parecem inaceitáveis frente a esses resultados.
Os modos do modelo metodológico que procedem a priori não esgotam,
contudo, o modelo em questão. Segundo Pera, existem pelo menos mais dois
modos a posteriori desse modelo.
O primeiro desses modos corresponde aos trabalhos de Lakatos e aos
primeiros trabalhos de Laudan. Segundo Pera, nesses textos os autores advogam
que as formulações metodológicas devem encontrar apoio indutivo na história da
ciência. Uma vez que “toda metodologia funciona também como teoria
historiográfica” e que a metodologia “pode ser criticada pela reconstrução
racional que ela conduz”, devemos nos ater à história da ciência para determinar a
efetividade dos métodos.
Conquanto represente uma sensível mudança de perspectiva, esse modo
apresenta praticamente os mesmos problemas que os seus colegas. Segundo Pera,
para que a história da ciência sirva de base de teste para os métodos, é preciso
pressupor que o seu curso é altamente homogêneo, o que leva a crer que essa
acepção de “metodologia” incorre numa circularidade semelhante às outras.
“O primeiro [o modo a posteriori] encontra na história os métodos que lhe favorecem,
enquanto o último [o conjunto dos modos a priori] encontra na mente (ou na atual prática)
aquelas regras que consideram mais desejáveis.”(PERA: 1994: 33)
Afora isso, outras questões também assolam essa perspectiva. Por um lado, os
próprios julgamentos históricos, a partir dos quais o teste deve ser feito, são
dependentes de valores, o que mostra mais uma circularidade. Por outro lado, um
mesmo valor pode dar origem a julgamentos distintos
56
, o que mostra uma
indeterminação. E, por fim, julgamentos idênticos podem ser baseados em valores
diferentes, o que aponta para a subdeterminação. Assim, se diferentes valores
podem dar origem ao mesmo julgamento, razão para crer que diferentes
métodos resistirão ao teste enquanto que, se um mesmo valor pode ser
56
Isso pode ocorrer porque o julgamento depende também de uma análise do status da teoria em
questão.
78
interpretado de formas distintas, razão para crer que a vaguidade também não
será diminuída
57
.
O paradoxo do método científico e o princípio de indeterminação
metodológica permanecem, dessa forma, ameaçando o empreendimento
metodológico. O produto entre a adequação e a precisão continua limitado,
enquanto o número de possíveis métodos segue, em princípio, bastante grande.
A segunda alternativa a posteriori que Pera analisa toma o mesmo caminho
que o modo indutivo: a história da ciência. Mas o faz de forma diferente. A
indução é substituída pelo modelo hipotético-dedutivo e a primeira tese do projeto
cartesiano, sobretudo, é abandonada
58
. A defesa do modo hipotético dedutivo
reconhece que pressupor que a ciência persegue somente um objetivo a partir de
um único conjunto de regras é violentar a história da ciência. Mas insiste,
contudo, que é possível, a partir dessa mesma história, identificar qual método é
mais efetivo para cada fim que se impõe.
Para Pera, esse modo pode ser denominado neo-cartesiano, que embora
ele rejeite a primeira tese do projeto cartesiano, ele ainda vincula a ciência com o
método. O autor aponta para três dificuldades importantes quanto a ele. De um
lado, é difícil selecionar quais os casos históricos relevantes para se testar as
regras. Se o objetivo de certas regras é, por exemplo, obter teorias verdadeiras,
quais são os casos históricos pertinentes para se testá-las? De outro lado, o
intervalo de tempo considerado também é um complicador. Determinadas regras
podem, a curto prazo, ser mais eficientes que suas rivais, mas deixar de sê-lo
quando o intervalo de tempo considerado for maior. Por fim, a questão que
afeta também o modelo indutivo do grau de justificabilidade que uma amostra
da história da ciência pode fornecer às regras metodológicas. Como Pera enfatiza,
uma regra comprovadamente mais efetiva numa dada circunstância não
necessariamente o será em outra situação. Embora seja inegável que os cientistas
aprendem com as realizações passadas, esse aprendizado não precisa se dar de
uma única forma. Nas palavras do autor:
57
Segundo Pera, essas conclusões são válidas tanto para as “intuições pré-analíticas” de Laudan
quanto para os “julgamentos básicos da vanguarda científica” de Lakatos.
58
Essa variação é identificada por Pera com os trabalhos de Laudan dos anos 80, como Science
and Values.
79
“Usualmente, se nós desejamos alcançar um certo fim, é racional utilizar aqueles métodos
que provaram sua eficiência no passado; mas, ocasionalmente, pode ser racional trocar de
método. Isso freqüentemente acontece na vida, nos negócios, e mesmo no amor com
resultados surpreendentemente novos e melhores. Da mesma forma para as regras. Se
Galileu tivesse usado apenas as regras mais eficientes do seu tempo, a ciência moderna
nunca teria nascido. Se Darwin tivesse seguido os padrões de Bacon, considerado os mais
eficientes daquele tempo, nós ainda acreditaríamos na versão bíblica da Criação.” (PERA
1994:45)
Conforme Pera, isso prova que o modo dedutivo não nos deixa em melhor
situação no que diz respeito à caracterização precisa de uma metodologia.
Particularmente, o número de métodos passíveis de nos conduzir a certos fins
permanece excessivo. E dado que essa variação esgota os possíveis modos de
metodologia que o autor vislumbra, ele passa a propor uma série de conclusões.
Duas, em particular, são importantes.
Em primeiro lugar, segundo o autor, mesmo as regras mais precisas têm o
que ele denomina “textura aberta”. Uma vez que as regras podem ser utilizadas
numa grande quantidade de circunstâncias e aplicações, que não estão e não
podem estar definidas de antemão, as regras sempre apresentam lacunas que
somente uma análise caso a caso pode preencher.
Em segundo lugar, a falha na tentativa de reduzir a variedade de possíveis
métodos da ciência não é condição suficiente para afirmar a ausência de todo e
qualquer constrangimento /constraint/ em ciência. Essa falha significa, antes, que
um código científico adequado e preciso numa dada circunstânciao pode sê-lo
em todas (1994:46).
Essas duas conclusões, de sua parte, desacreditam definitivamente as duas
primeiras teses do projeto cartesiano. Segundo Pera, a primeira tese não resiste em
função da impossibilidade de um único método dar conta de todas os casos
significativos da prática científica. Enquanto a segunda não resiste devido a
vaguidade implicada pela textura aberta existente nas regras.
Quanto à terceira tese (“Se a ciência não possuísse método, ela não seria um
empreendimento cognitivo racional”), é justamente nesse ponto que Pera vai
80
introduzir a sua principal contribuição. Desde o seu ponto de vista, é preciso
rejeitar a terceira tese assim como todo o projeto cartesiano. Acima de tudo, é
necessário libertar a racionalidade do domínio das regras metodológicas, tornando
possível compreendê-la a partir de outros fatores.
A idéia de Pera, nesse sentido, é transferir a ciência “do reino da
demonstração para o reino da argumentação”, procurando “focar e compreender o
discurso científico e, através dele, o valor da ciência como empreendimento
cognitivo.”. Segundo o autor, esse é o caminho iniciado por Kuhn e assumido,
mesmo que de forma insatisfatória, por Rorty. O primeiro em diversas passagens
da Estrutura refere-se às técnicas de persuasão e às técnicas de argumentação
persuasiva que norteiam as conversões científicas. Enquanto o segundo afirma que
o único constrangimento à investigação é dado pela própria conversação. Rorty,
no entanto, nunca definiu as diferenças substantivas que existem entre uma
conversa política e uma conversa científica, enquanto Kuhn nunca desenvolveu
plenamente o que ele concebia como técnicas persuasivas.
Desde o ponto de vista de Pera, tanto “argumentação” quanto “raciocínio
argumentativo” equivalem a argumento retórico e m por objetivo fundamental
alterar o sistema de crenças de um opositor. Segundo o autor, um papel para esses
argumentos em ciência pode ser encontrado em Aristóteles, quem concebe a
retórica como um instrumento importante para se alcançar os princípios universais
a partir dos quais o silogismo se forma
59
. Embora essa concepção de ciência não
mais vigore, ainda resta, segundo Pera, espaço para a retórica em ciência.
Três circunstâncias específicas reclamam a presença de argumentos
retóricos. A primeira delas diz respeito à aplicação do código científico. Segundo
Pera, as inferências dedutivas e indutivas são úteis aos cientistas depois de
tomadas certas decisões preliminares
60
. No caso de uma regra de aceitação teórica
do tipo: “Teorias confirmadas por observações experimentais O são aceitáveis”, é
preciso decidir, por exemplo, se o caso em questão realmente recai sob a
59
O papel que Aristóteles teria reconhecido para a retórica em ciência é discutido com mais
detalhe no artigo de Pera The Role and Value of Rhetoric in Science (1991).
60
Segundo Pera, essas decisões foram negligenciadas pelos metodologistas em função da “idéia de
que as teorias são inventadas, não inferidas” e em função do “dogma empirista de que os fatos
podem ser obtidos sem distúrbios graças à observação e aos experimentos”(1994: 53).
81
legislação dessa regra. Afora isso, é preciso decidir também se as observações
experimentais são realmente do tipo O e se o seu número e sua severidade são
suficientes. Como, segundo o autor, essas decisões dependem de um debate no
qual cada parte envolvida procura convencer a outra, os argumentos empregados
são inevitavelmente retóricos.
Uma segunda circunstância diz respeito à interpretação do código científico.
Segundo Pera, um código científico, assim como um código legal, é
inevitavelmente vago as suas fronteiras não são bem definidas; incompleto
nem todos os possíveis casos estão previstos; e antinômico um mesmo caso
pode recair sob diferentes regras. Para se chegar a uma decisão se faz necessário,
portanto, interpretar o código em questão. Segundo Pera, essa interpretação toma
forma justamente em um debate no qual os argumentos retóricos são elementos
imprescindíveis.
A terceira e última circunstância diz respeito à escolha do código. Diferente
do juiz de direito que somente interpreta e aplica a lei, o cientista também se vê no
direito de legislar sobre a ciência.
“Mudanças teóricas são freqüentemente associadas com mudanças de regras. E mudanças
de regras não são nunca justificadas por outras regras, mas pelo fato dos defensores da
mudança conseguirem usar argumentos mais fortes e convincentes que aqueles dos seus
adversários.” (PERA 1994: 57)
Nessa troca de argumentos, a retórica também é parte importante.
4.2 – A dialética científica
Conquanto reconheça a existência de espaço para a retórica nas
metodologias, Pera procura não vinculá-la diretamente a elas. A sua proposta de
transferir a ciência do reino da demonstração para o reino da argumentação não
consiste em suplementar as metodologias existentes com uma nova ferramenta: a
argumentação retórica
61
. Sua idéia é, antes, empreender um novo modelo para
61
A contribuição de Pera inscreve-se num movimento filosófico mais amplo de recuperação da
função cognitiva da retórica. Ver Cupani (1996: 55-6).
82
ciência fundamentado não no método, mas sim na argumentação retórica e no
debate científico.
A atividade científica, para Pera, não é um jogo com dois jogadores como o
modelo metodológico afirma: o cientista de um lado, a natureza de outro e o
método como árbitro imparcial entre eles. A ciência constitui-se para ele de três
jogadores: um grupo de cientistas de um lado, a natureza de outro e um segundo
grupo de cientistas a seguir. A seu ver, não existe um árbitro imparcial que decide
o que a natureza revela; o que existe são dois grupos de cientistas que, a partir de
um debate, procuram interpretar a natureza da melhor maneira possível.
A lógica que rege esse debate também não coincide com as lógicas que
regem as metodologias tradicionais: a lógica indutiva e a lógica dedutiva.
Conforme o autor:
“Para entender a natureza dos argumentos retóricos nós temos que ampliar nossa idéia de
racionalidade e estar preparados para encontrar uma lógica própria para eles ao invés de
rejeitá-los porque eles não se adequam a uma lógica pronta.”(PERA 1994: 106)
Segundo Pera, uma lógica adequada aos argumentos retóricos precisa levar em
conta o contexto no qual eles estão inseridos. Tanto a indução quanto a dedução
não fazem isso, já que elas consideram os argumentos em si mesmos,
independente da circunstância na qual eles estão colocados. Para o autor, a lógica
requerida é a dialética
62
. Esta, diferente da indução e da dedução, considera os
argumentos como partes de um contexto específico, o debate, e, dentro desse
contexto, os avalia conforme a audiência e o fim a que eles se propõem: rebater
uma crítica, tornar uma hipótese plausível, etc. Como, segundo Pera, num sentido
amplo, “Todos os argumentos são retóricos se eles são utilizados retoricamente.
63
a dialética não é somente a lógica desses argumentos, mas é também a lógica do
debate
64
.
62
Não se trata, todavia, da dialética hegeliana, como se verá a seguir.
63
Essa é a definição ampla que Pera apresenta. A definição estreita é a seguinte: retórica é o
conjunto de argumentos retóricos, isto é, aqueles argumentos que não podem ser apreciados pelas
ferramentas da lógica formal.”(1994: 107)
64
Na sua definição estreita a dialética é “a lógica dos argumentos retóricos”(1994: 107).
83
As diferenças entre as duas abordagens lógicas são marcantes. No campo da
argumentação, argumentos tidos como válidos segundo a dialética podem,
segundo a lógica dedutiva, revelar-se falaciosos e vice-versa. Argumentos do tipo
“X sustenta p, X pratica q, p e q são incompatíveis, por isso –p”(PERA 1994: 105)
são inválidos do ponto de vista da lógica dedutiva. Do ponto de vista da dialética,
não necessariamente. Quando Darwin, por exemplo, o utiliza para rebater uma
crítica de W. Hopkins quanto à inobservabilidade da seleção natural, esse é um
argumento válido. Uma vez que Hopkins aceitava teorias que continham entidades
não observáveis, essa não poderia ser uma crítica procedente. Por outro lado,
argumentos do tipo p ou q, não q; então p” (PERA 1994: 104) que são
dedutivamente válidos, revelam-se dialeticamente falaciosos quando p e q não
esgotam as possibilidades da situação em questão.
No que concerne ao debate, segundo a dialética, o seu curso é governado
pela “base substantiva” da dialética científica. Essa, por sua vez, se divide em dois
elementos distintos: os fatores substantivos e os fatores de procedimento. Os
fatores substantivos são “aquelas noções substantivas ao redor das quais a forma
de vida e cultura que nós chamamos de ciência se organiza, e para as quais se
apela como premissas-ponte /bridge-premisses/ no debate científico.” (PERA
1994: 112). Os fatores de procedimento são as regras que regem os debates
científicos.
Fazem parte dos fatores substantivos os seguintes elementos: os fatos; as
teorias; as suposições, os valores, os lugares comuns de preferência e as
pressuposições, sendo a sua configuração relativa a cada disciplina e a cada
situação dialética. Para Pera, os fatos são um dos principais elementos em um
debate e embora o seu peso, assim com o critério do que o constitui, varie, a sua
força é inegável. No que diz respeito às teorias, um argumento que consegue
mostrar que uma certa afirmação se segue de uma teoria bem aceita revela-se
bastante efetivo; essa efetividade varia, no entanto, conforme o tipo de relação que
existe: derivação, compatibilidade, inspiração. Quanto às suposições
/assumptions/, essas são, segundo Pera, visões metafísicas que funcionam, nas
palavras de Kant, como “máximas de julgamento que nós dependemos a priori na
84
investigação da natureza”. Equivalem ao núcleo do programa de pesquisa de
Lakatos e ao componente taxonômico do paradigma de Kuhn. Um argumento que
demonstra a contradição de uma suposição bem aceita por um opositor mostra-se
particularmente efetivo. Quando não acordo quanto às suposições recorre-se,
no mais das vezes, aos valores. Estes dividem-se em duas classes. O valor
constitutivo da ciência é o acordo com os fatos. E os valores regulativos são:
simplicidade, coerência, falseabilidade, economia e assim por diante. A
efetividade dos argumentos que apelam para valores depende de haver acordo em
três níveis: a sua interpretação, a sua exemplificação, e o seu peso em relação aos
demais. Quanto aos lugares comuns de preferência
65
, segundo Pera, esses são
como “estoques de opiniões e argumentos aceitos a disposição de um
interlocutor”(PERA 1994: 115). Funcionam, freqüentemente, como imperativos
de preferência entre diversos valores. Da mesma forma que os valores, a sua
eficiência depende de acordo quanto à interpretação, exemplificação e peso. As
pressuposições /presumptions/, por fim, são como as suposições. A diferença é
que o peso da provao fica com quem as utiliza, mas sim com que as contradiz.
Dividem-se em substantivas, quando se referem a fatos e teorias, e regulativas,
quando se referem a suposições. Um exemplo de pressuposição substantiva é: “Se
uma lei L ou uma teoria T é bem confirmada, então ela tem fundamentos firmes (e
não pode ser violada)”. Um exemplo de pressuposição regulativa é: “Se a natureza
tem uma estrutura matemática, então teorias matematizadas são preferíveis a
outras.”(1994: 116-7).
Os fatores de procedimento, de sua parte, comportam dois tipos de regras: as
regras para condução do debate e as regras para julgar o debate. As regras para
condução do debate determinam os movimentos e contra-movimentos que são
permitidos em um debate. Segundo Pera, em muitos aspectos, um debate
científico não é diferente de um debate normal. Alguns movimentos, contudo, são
típicos de um debate científico. A retirada de uma tese enfraquecida em
detrimento de outra tese é um exemplo desse tipo de movimento. As regras para
julgar um debate definem o resultado do debate. Tradicionalmente, um debate
65
Equivalem aos “tópicos” da Retórica clássica.
85
termina quando uma das partes consegue refutar a opositora. Do ponto de vista
pragmático, outras circunstâncias também sinalizam para o fim do debate.
Segundo Pera, as mais importantes são as seguintes:
“(C1) B não oferece razões que pertencem a base substantiva admitida para suportar as suas
teses.
(C2) B, que tem o peso da prova, a transfere para A.
(C3) B não responde aos problemas que ele reconhece como relevante durante o debate.
(C4) B contradiz uma tese previamente admitida, pressuposta ou derivada por uma ou outra
das suas concessões e não consegue resolver a contradição.
(C5) B nega um ou outro dos fatores substantivos na configuração compartilhada da base da
dialética científica.
(C6) B nega uma suposição que ele mesmo aceitou.
(C7) B é levado a afirmar uma tese contrária a uma pressuposição aceita.
(C8) A prova sua própria tese partindo das concessões de B.” (PERA 1994: 124)
Segundo Pera, um debate científico pode envolver muitos fatores
substantivos simultaneamente e um desacordo em relação a um deles pode ser
resolvido através de qualquer outro fator. Para o autor, não há um ponto de partida
privilegiado assim como também não um ponto de chegada determinado. O
debate pode principiar a partir de qualquer fator e, uma vez principiado, o seu
destino é definido em meio ao próprio debate. De acordo com Pera, desde esse
ponto de vista, essa posição:
“(...) assemelha-se àquela que Laudan chama de ‘modelo reticulado de justificação,’ na qual
‘axiologia, metodologia e afirmações factuais estão inevitavelmente interligadas em relações
de mútua dependência.’O que está faltando aqui [no seu modelo], obviamente, é a
metodologia.” (PERA 1994: 117)
No modelo de Pera, a metodologia, num sentido amplo, é substituída pelos fatores
substantivos e pelos fatores de procedimento, enquanto as regras dão lugar aos
valores
66
.
66
Da mesma forma que Kuhn, Pera substitui as prescrições metodológicas por imperativos que
dependem de valores epistêmicos.
86
Dentro desse quadro, a avaliação dos argumentos baseia-se em quatro
parâmetros. Um argumento é considerado pertinente se as razões que
fundamentam as suas conclusões pertencem aos fatores substantivos da dialética
científica aceitos naquele campo e para aquela função. Dado que, segundo a
definição do autor, uma estratégia dialética:
“(...) em favor de uma tese científica T é vencedora para um lado P em oposição a um lado
Q se, na base das regras que fundamentam o debate científico, P, partindo das premissas
admitidas por Q e dos fatores da dialética científica, força Q ou a aceitar T, ou a ficar em
silêncio, ou a se retirar do debate”(PERA: 1994: 121)
Um argumento é considerado válido num certo campo e para uma certa função se
existe uma estratégia dialética vencedora baseada nos fatores substantivos
suportando as suas conclusões. Por outro lado, um argumento num certo campo e
para uma certa função é considerado forte em uma dada situação dialética se, em
favor das suas conclusões, existe uma estratégia dialética vencedora baseada nas
premissas concedidas e na configuração dos fatores substantivos
67
em voga
naquela situação dialética. Por fim, um argumento numa dada situação é
considerado eficiente para uma audiência se as razões que suportam as suas
conclusões pertencem à configuração dos fatores substantivos que a audiência
considera ótima nessa situação (PERA 1994: 120).
4.3 – Racionalidade científica
Uma vez delineado os principais traços do modelo dialético, a questão da
racionalidade científica pode, enfim, ser atacada. Segundo o autor, esse conceito,
tradicionalmente, é associado à obediência a certas regras. Essas regras, de modo
geral, destacam alguma propriedade substantiva das teorias para a qual deve-se
atentar: é racional aceitar as teorias mais prováveis, as teorias que sejam mais
simples, as teorias de maior conteúdo empírico e assim por diante. Para Pera, esse
67
Conforme a dialética a configuração de fatores substantivos não é fixa. Essa pode variar em
relação à disciplina em questão ou em relação ao estágio da mesma disciplina. Numa certa
disciplina, por exemplo, o acordo para com teorias existentes em campos afins pode ser
considerado imprescindível, enquanto em outra disciplina esse acordo pode ser considerado
desejável, mas não necessário.
87
tipo de explicação não escapa ao referido paradoxo do método científico. Dado
que “é possível violar uma regra sem ser irracional (no sentido que essa violação
leva algumas vezes a teorias consideradas melhores que suas rivais)”(PERA
1994: 142), a obediência às regras não pode ser considerada uma definição
satisfatória da racionalidade. A solução do modelo contra-metodológico, de sua
parte, também não é adequada. Pois esse, simplesmente, esvazia a questão da
racionalidade, equivalendo ser racional a aceitar as teorias que prevalecem,
independente do modo como isso ocorre.
Para Pera, a melhor solução para essa questão ainda é aquela indicada pela
expressão kuhniana de conversão. Esse conceito, embora acertado, necessita,
contudo, ser precisado. Três pontos são fundamentais, segundo Pera. Por um lado
é preciso determinar a natureza específica da conversão, que conversões
ocorrem também em outros domínios que não o científico. Por outro lado, é
preciso determinar a qualidade dessa conversão, o modo com ela se estrutura. Por
fim, é preciso distinguir aquelas conversões consideradas críticas daquelas que
não o são.
Segundo Pera, o modelo dialético cumpre com todas essas tarefas.
“Diferente do modelo contra-metodológico, ele conserva uma noção normativa de
racionalidade; mas, diferente do modelo metodológico, ele vincula a racionalidade
não a certas propriedades de teorias fixadas por regras, mas à qualidade dos
argumentos que suportam as teorias.” (PERA 1994: 144) Segundo o modelo
dialético, uma teoria é racionalmente aceitável somente se ela é suportada por
argumentos válidos ou por argumentos mais fortes que os das suas rivais. Uma
vez que tanto a validade quanto a força são conceitos próprios da ciência, a
diferença para com outros tipos de conversões é clara. Por se tratar de um domínio
argumentativo, a qualidade da conversão também é evidente. E, na medida em que
limita a racionalidade a certas circunstâncias específicas, a demarcação também
fica estabelecida.
As vantagens dessa perspectiva em relação à perspectiva metodológica, para
Pera, são muitas. Do ponto de vista ético, a racionalidade dialética é mais
tolerante, pois não está vinculada a alguma propriedade teórica específica e sim a
88
um debate amplo sobre diferentes propriedades e requisitos. Do ponto de vista
filosófico, ela é também mais atraente, pois depende apenas da força dos
argumentos e não de fatores alheios ao discurso. Comparada à racionalidade da
regra respeite boas maneiras epistêmicas”, a racionalidade dialética é mais
precisa, pois existem fatores objetivos que determinam quais são essas maneiras e
fatores de procedimento que determinam como elas devem ser respeitadas. Por
fim, comparada com a racionalidade do “tudo vale”, ela é mais adequada, já que
não depende de fatores sociais externos ou do poder das autoridades, refletindo,
segundo Pera, “a prática científica real, na qual uma comunidade científica pode
preferir uma teoria T em detrimento de uma teoria T mesmo quando T’não
explica mais fatos, antecipa ‘fatos novos’, resolve mais problemas, etc., mas na
qual nunca acontece de T’ser preferida se ela não é suportada por argumentos
mais fortes que aqueles que suportam T.” (PERA 1994: 144)
A noção de racionalidade do modelo dialético apresenta, além disso, uma
outra vantagem: sem ser anacrônica, ela consegue escapar ao relativismo.
Coerente com os registros históricos, o modelo dialético não define a
racionalidade em função de uma única propriedade teórica ou nos termos do
modelo dialético – em função de uma única configuração dos fatores substantivos.
Segundo o modelo dialético, tanto os fatores quanto a sua configuração se
modificam. Esse fato não implica, no entanto, nas conseqüências que o modelo
contra-metodológico supõe que ele o faça. Embora exista a possibilidade de haver
uma situação dialética na qual duas teorias competidoras se baseiem em
configurações completamente distintas, uma solução racional para o conflito ainda
é possível. Dado que, segundo o modelo dialético, a ciência é um jogo com três
jogadores e não apenas dois, os cientistas não tem necessidade de permanecer
reafirmando insistentemente as suas convicções. Eles “podem tentar sair dessa
situação e usualmente eles o farão. Uma vez que eles são membros da mesma
tradição
68
e por isso compartilham muitos dos mesmos fatores, se eles tiverem a
vontade e o desejo de conversar, eles começarão a construir uma área
“coincidente” entre as duas configurações.”(PERA 1994: 140). Essa construção
68
A tradição científica se define, segundo Pera, pelos fatores substantivos da dialética científica. E,
para o autor, ela é a mesma da Grécia antiga até os dias de hoje.
89
pode começar, por exemplo, pela procura de outros valores ou pela busca de
suposições comuns. Mesmo nos casos mais drásticos, argumentos ad hominem e
argumentos por réplica ainda podem ser utilizados para adentrar o campo do
oponente.
Afora a possibilidade sempre aberta do diálogo, outra característica do
modelo dialético evita que o relativismo se . Estritamente vinculada com a
questão da racionalidade, essa característica diz respeito à noção de objetividade.
Segundo o modelo metodológico, a disputa entre duas teorias é resolvida
objetivamente quando as regras indicam inequivocamente qual das teorias
envolvidas é superior. Do ponto de vista do modelo dialético, entretanto,
“(...) resolver ‘de uma forma objetiva’ o significa estabelecer de forma impessoal (ou do
ponto de vista do olho de Deus) que um lado está definitivamente certo e outro lado
definitivamente errado; significa, antes, estabelecer um contato dialógico entre os dois lados
até a mudança de consenso se dar através de um debate ao fim do qual uma parte se rende à
outra.” (PERA 1994: 141)
Dessa forma, muitas disputas podem ser objetivamente resolvidas segundo a
dialética, mesmo quando, do ponto de vista da metodologia, não parece haver
solução possível para o caso. É interessante notar que esse modo de compreensão
da objetividade se beneficia de duas visões aparentemente contraditórias em
relação ao tema. Por um lado, a insistência para com padrões impessoais não é de
todo desconsiderada em função do papel regulador exercido pelos fatores
substantivos. Por outro lado, o papel do indivíduo e a idéia de que “a ciência é um
empreendimento menos impessoal que os cientistas gostariam que nós
acreditássemos” (PERA 1988: 259) também está presente, que a formulação
dos argumentos é de competência exclusivamente pessoal dos cientistas.
Por fim, cabe citar que o conjunto de escolhas, levados a cabo
dialeticamente, compreende uma forma de progressão não-cumulativa. De forma
semelhante a Kuhn, Pera concebe o progresso da ciência a partir de um certo
ponto e não em função de um certo objetivo. O modelo paradigmático é também o
de uma árvore evolutiva, no qual uma origem, mas não um caminho nem
90
um fim determinado. Nessa árvore, cada nó representa uma dificuldade
encontrada por uma teoria numa situação dialética específica. E cada galho
representa uma tentativa de responder a essa dificuldade. Embora muitas vezes,
por razões diferentes, cada passo na linha evolutiva represente um progresso em
relação ao passo anterior.
Cap.5 – Harold Brown e a racionalidade dos juízos.
Outro nome importante, nas discussões recentes sobre racionalidade
científica, é Harold Brown. Fortemente influenciado pela filosofia da ciência de
Thomas Kuhn, Brown, assim como Pera e Laudan, também procura construir um
modelo alternativo para a racionalidade em ciência. Nesse capítulo, serão objetos
de análise dois trabalhos importantes desse autor: Perception, Theory and
Commitment: The New Philosophy of Science (1977) e Rationality (1988)
69
.
Todavia, esse capítulo não será dividido em função dessas obras, que as
diferenças entre os trabalhos não são tão profundas como eram no caso de Laudan.
69
Em Rationality Brown procura desenvolver um modelo para a racionalidade de um modo geral.
No presente capítulo, nos ocuparemos apenas com as suas propostas para a racionalidade científica.
91
5.1 – A crítica à perspectiva algorítmica.
Antes de apresentar a leitura e as críticas que Brown faz ao empirismo lógico
e ao racionalismo crítico, é importante sublinhar a forma geral como ele
compreende a pesquisa em filosofia da ciência. Para Brown, “a imagem da
pesquisa controlada por um corpo de pressuposições aplica-se tanto à filosofia da
ciência como à ciência.”. Desde o seu ponto de vista, o filósofo da ciência opera,
necessariamente, com um conjunto de pressuposições sobre o caráter do
conhecimento científico. E são essas pressuposições, que determinam quais os
aspectos do conhecimento científico devem ser estudados, quais os problemas que
devem ser solucionados no transcorrer da pesquisa e que forma devem tomar as
possíveis soluções.
Dessa forma, para Brown:
“(...) o empirismo lógico é mais frutiferamente visto não como sendo um corpo de
doutrinas, mas antes como um programa de pesquisa. Os filósofos que estão engajados
nesse programa partem de um conjunto comum de ferramentas intelectuais e técnicas, e
usam essas ferramentas e técnicas como meios para analisar a natureza do conhecimento
científico.” (BROWN 1977: 26)
No plano especificamente filosófico, o pano de fundo do programa de
pesquisa do empirismo lógico inclui a versão humeana do empirismo clássico e a
lógica simbólica moderna. Segundo o autor, são esses pressupostos que
fundamentam a análise dos empiristas lógicos em relação à natureza e à estrutura
do conhecimento científico.
O papel fundamental que tais pressuposições tiveram na determinação dos
problemas e na determinação da aceitabilidade das soluções empiristas são
explicitadas por Brown no livro The New Philosophy of Science. Nesse livro, o
autor analisa três importantes questões que ocuparam o empirismo lógico. A
primeira dessas questões diz respeito à confirmação. Segundo Brown, os
empiristas lógicos buscaram estabelecer critérios puramente formais para a
confirmação em um sentido análogo ao que a lógica dedutiva estabelecia para a
validade das inferências dedutivas. Tendo a realização do Principia Mathematica
92
como seu modelo, os empiristas lógicos buscaram analisar as relações de
confirmação a partir das ferramentas fornecidas por esse modelo
70
.
Como uma extensa bibliografia testemunha, esse projeto esbarrou nos
chamados paradoxos da confirmação; e para resolver essas dificuldades, diversas
soluções foram propostas
71
. Segundo Brown, entre as diferentes propostas a mais
interessante era a de Carl Hempel. Para esse autor, as dificuldades referidas
simplesmente não constituíam paradoxos genuínos, sendo a aparência paradoxal
uma “ilusão psicológica” fruto de uma compreensão equivocada da questão. Por
um lado, não era levado em conta o fato de uma proposição do tipo ‘todos os
corvos são pretos’ não se limitar a corvos, mas se estender a todo o espaço-tempo.
Por outro lado, informações adicionais eram erradamente incluídas na análise em
questão. Uma vez que, do ponto de vista da lógica da confirmação, interessa
apenas a relação entre uma hipótese e um corpo de evidências, um objeto preto
que confirma a proposição ‘todos os objetos são pretos’ também confirma a
proposição mais fraca ‘todos os corvos são pretos’. A informação adicional de que
esse objeto é um casaco e não um corvo não tem relevância para uma análise
exclusivamente formal e deve ser metodologicamente abstraída.
O papel que as pressuposições do empirismo lógico tiveram no
desenvolvimento dessa problemática, para Brown, é bastante claro. Para o autor,
os paradoxos da confirmação não surgiriam pelo menos não de tantas formas
70
Uma primeira formulação devida a Nicod estabelecia que para toda a lei ou hipótese da forma (x)
(Px Qx), (Pa . Qa) era uma instância confirmadora e (Pa . ~Qa) era uma instância
desconfirmadora. Hempel, contudo, se opôs a essa formulação. Segundo ele, o problema com essa
formulação, é que ela torna a confirmação dependente da formulação da hipótese e não apenas do
seu conteúdo. Uma proposição do tipo (x) (~Qx ~Px), que é logicamente equivalente a (x) (Px
Qx) tem, segundo essa formulação, instâncias confirmadoras distintas daquelas de (x) (Px
Qx). Embora elas presumivelmente digam a mesma coisa, elas não se vêem confirmadas pelas
mesmas proposições. Hempel propôs, então, um critério suplementar. Segundo esse critério,
qualquer instância confirmadora de uma sentença confirmaria também as sentenças logicamente
equivalentes a ela. Todavia, como o próprio Hempel percebeu, conquanto o problema original
fosse resolvido, novas dificuldades surgiam em razão desse novo critério. Especificamente ele dava
origem ao que ficou conhecido como sendo “os paradoxos da confirmação”. Pois se, por exemplo,
a proposição (x) (Px Qx) for interpretada como sendo ‘todos os corvos são pretos’, a descoberta
de qualquer objeto que não for corvo e não for preto (~Q . ~P) confirmará essa proposição. Além
disso, como (x) (Px Qx) é também logicamente equivalente a (x) [(Px v ~Px) » (~Px v Qx)],
qualquer objeto que for preto ou que não for corvo (~Px v Qx) igualmente confirmará (x) (Px
Qx).
71
Dentre essas propostas, algumas contestavam, por exemplo, a adequação da proposição (x) (Px
Qx) como formulação para as leis científicas. Outras rejeitavam a condição de equivalência.
Enquanto um último grupo rejeitava o próprio critério de Nicod.
93
se a lógica utilizada fosse, por exemplo, a lógica aristotélica. No entanto, uma vez
que “os empiristas lógicos aceitaram a lógica dos Principia Mathematica como
sua principal ferramenta de análise da ciência, são as formas proposicionais do
Principia e as suas manipulações que se tornam a principal matéria de
discussão”.(1977:30) A idéia de que a análise das relações de confirmação de
generalizações simples do tipo ‘todos os corvos são pretos’ de alguma forma
elucidaria as relações de confirmação em ciência é fruto, também, dessas
pressuposições. Segundo as primeiras versões do empirismo lógico, todo o
conhecimento consistiria em generalizações experimentais. Assim, o corpo
científico seria em última instância reduzível a essas generalizações. Uma análise
de generalizações simples elucidaria, portanto, as formas mais complexas de
conhecimento, não havendo necessidade de uma análise específica dessas
proposições.
Outro elemento importante no desenvolvimento dessa problemática, para
Brown, diz respeito à própria compreensão que os empiristas lógicos tinham das
soluções apresentadas. Segundo ele:
“(...) A falha continuada dos empiristas lógicos em alcançar acordo sobre a resolução dos
paradoxos da confirmação um problema que eles mesmos consideravam importante, a
julgar pela quantidade de literatura gerada fornecia uma importante razão para procurar
seriamente por abordagens alternativas em filosofia da ciência.”(BROWN 1977: 31)
Uma vez que os empiristas lógicos não reconheciam como solucionados os
problemas que eles mesmos tinham como importantes, essa falta passava a ser
considerada, por outros filósofos, como razão para que novas abordagens fossem
aventadas.
As mesmas considerações se aplicam, segundo Brown, aos dois outros
problemas em que os empiristas se detiveram. Tanto no caso das explicações
científicas, quanto no caso da definição dos termos teóricos a partir de
observáveis, as pressuposições do empirismo lógico tiveram um papel
fundamental na determinação da forma das questões e das possíveis soluções. A
dificuldade em se alcançar consenso quanto às soluções e as constantes
94
reformulações desses problemas foram igualmente decisivos na reconsideração do
programa empirista.
No que concerne à definição dos termos teóricos, após descrever o
desenvolvimento dessa questão das definições explícitas de Russell até o diagrama
de Feigl, Brown afirma que:
“Nós trilhamos um longo caminho desde a formulação Russelliana do programa empirista e
vimos em algum detalhe como a tentativa de realizar esse programa trouxe uma contínua
liberalização e levou os empiristas lógicos progressivamente a reconhecer o quanto é
complexa e indireta a conexão entre a observação e os termos teóricos de um nível mais
alto. Os Empiristas podem replicar aqui que o desenvolvimento que nós examinamos ilustra
a flexibilidade e a mente aberta da filosofia empirista, mas a mente aberta parece ter
resultado na transformação para além do reconhecimento de ao menos esse aspecto do
programa empirista.”(1977: 48)
Quanto à explicação científica, Brown procura assinalar, para além do papel
que as pressuposições exerceram na constituição dessa problemática, uma certa
inconsistência entre a análise empirista da explicação e a sua compreensão do
desenvolvimento histórico da ciência. Mesmo restringindo as explicações ao que
ficou conhecido como modelo nomológico-dedutivo, os empiristas interpretaram a
relação histórica entre as teorias como sendo uma relação explicativa. O problema,
segundo Brown, é que muitas teorias ou leis simplesmente não são dedutíveis de
teorias posteriores. De fato, o próprio Hempel chega a afirmar que, estritamente
falando, as leis de Newton, por exemplo, contradizem as leis de Galileu. Hempel
acrescenta, entretanto, que a teoria newtoniana fornece uma explicação dedutiva-
nomológica aproximada da lei de Galileu. Para Brown, esse acréscimo é, todavia,
inaceitável. Em lugar algum, Hempel empreendeu uma análise desse tipo de
explicação e embora Brown reconheça que exista um sentido intuitivo no qual
diríamos que as leis de Newton explicam porque a lei de Galileu fornece
resultados aproximadamente corretos, esse sentido claramente não é o dedutivo.
Brown rejeita, dessa forma, o que nos referimos anteriormente como a tese da
redução teórica. Segundo o autor, a história da ciência não corrobora essa tese,
havendo necessidade de repensar a qualidade das relações entre as teorias.
95
Embora reconheça importantes problemas pontuais, as críticas de Brown não
se limitam a questões específicas do programa do empirismo lógico. As principais
críticas do autor dirigem-se, antes, a uma questão de caráter bem mais geral. Afora
o empirismo humeano e a lógica simbólica moderna, para Brown, o empirismo
lógico encerra também um pressuposto mais amplo. Segundo ele:
“Há um importante aspecto no qual um dos principais objetivos da filosofia da ciência
tradicional tem sido remover os cientistas do processo de decisão e substitui-los por um
conjunto de algoritmos.”(1970: 146)
Para o autor, é um traço comum ao empirismo lógico e ao racionalismo crítico,
assim como também à filosofia da ciência moderna, a busca por um algoritmo – ou
um conjunto de algoritmos que possa ser aplicado no contexto de escolha
teórica. No caso específico do empirismo lógico e do racionalismo crítico, o
modelo para esses algoritmos é novamente fornecido pela lógica dedutiva. A idéia
é desenvolver um procedimento que permita soluções inequívocas no contexto de
escolha teórica da mesma forma que a lógica simbólica o faz no caso da validade
das inferências dedutivas. Desenvolvido esse procedimento e o processo de
escolha teórica consistiria na simples aplicação de regras, não havendo
necessidade de utilização de outros recursos.
Em Rationality, Brown apresenta uma série de críticas a esse projeto,
considerando, nessas críticas, tanto aspectos lógicos como aspectos históricos do
mesmo. Em relação à perspectiva indutivista, Brown começa lembrando as razões
pelas quais a indução foi tradicionalmente considerada problemática. Em linhas
gerais, essas razões dizem respeito à determinação das “circunstâncias sob as quais
as premissas fornecem razões adequadas para aceitar a conclusão.”(1988: 24) Uma
vez que um conjunto de observações pode, em princípio, suportar diferentes
generalizações, torna-se problemático selecionar uma única generalização como
sendo a mais adequada. Nesse sentido, a comparação com a dedução é
esclarecedora:
96
“Em um argumento dedutivo válido existe um vínculo necessário entre as premissas e a
conclusão: é impossível que as premissas sejam verdadeiras e a conclusão falsa, e existe um
algoritmo para determinar se a conclusão em questão de fato se segue das premissas. No
caso indutivo é sempre possível que as premissas sejam verdadeiras e que a conclusão seja
falsa. Não um vínculo necessário entre as premissas e a conclusão, e isso obscurece a
questão se nós alguma vez estamos racionalmente justificados a aceitar uma conclusão
indutivamente suportada. (1988: 26-7)
Diferente da dedução, nós não temos, no caso da indução, um conjunto de regras
que determine quais generalizações devem ser aceitas e quais devem ser rejeitadas
à luz de certas premissas. Quando providas essas regras, como no caso das teorias
probabilísticas, surge o problema da coleta de premissas: como estabelecer uma
relação probabilística entre leis universais e sentenças observacionais?
72
Além das questões lógicas, Brown também enfatiza questões de cunho
histórico. Os problemas lógicos seriam consideravelmente mitigados se o
raciocínio indutivo historicamente se mostrasse confiável. Segundo Brown, esse,
todavia, não é o caso. A teoria indutivamente melhor suportada na história da
ciência, a mecânica de Newton, terminou sendo rejeitada em detrimento da teoria
da relatividade. Apesar de toda evidência a seu favor, ela foi considerada superada
pela sua competidora.
No plano dedutivo, as principais críticas de Brown são dirigidas à teoria
Popperiana. Apesar de reconhecê-la como um rompimento considerável em
relação ao que o autor denomina de modelo clássico
73
, para Brown, Popper ainda
aceita o pressuposto mais geral a que nos referimos. Segundo ele, Popper também
está procurando por um conjunto de regras que determine inequivocamente a
racionalidade da aceitação teórica. A diferença relevante é que Popper rejeita a
compreensão indutivista. Segundo Brown, “Sua idéia chave é que o Modus
72
As críticas de Brown à aplicação da teoria da probabilidade ao problema da escolha teórica são
consideravelmente mais complexas. É possível dizer, no entanto, que o seu ponto principal diz
respeito às dificuldades em se tratar as teorias e os dados probabilisticamente, que originalmente
eles não são formulados desse modo.
73
O modelo de Popper representa um rompimento para com o modelo clássico por não ser um
modelo fundacionalista. Para Brown, o modelo clássico é fundacionalista e estritamente
dependente de regras universais.
97
Tollens nos fornece um algoritmo que nos permite determinar quando uma
hipótese deve ser rejeitada.”(1988: 63)
Apesar das suas pretensões, segundo Brown, Popper nos deixa sem
quaisquer regras em três circunstâncias cruciais. Por um lado, Popper não
apresenta regras que definam, quando de uma refutação, qual componente teórico
deve ser considerado refutado. Uma vez que não é possível testar uma teoria
isoladamente, recorre-se, freqüentemente, a um conjunto de hipóteses auxiliares. O
problema que Popper não resolve é o da identificação das hipóteses que foram
refutadas, quando esse é o caso. Por outro lado, Popper falha em fornecer regras
que determinem a aceitabilidade das sentenças básicas. Com o intuito de escapar
ao psicologismo, Popper define a aceitação das sentenças básicas como sendo de
natureza convencional. Dessa forma, toda a refutação se apóia em decisões que,
em última análise, não podem ser consideradas racionais. Por fim, como para
Popper a aceitação do método também é convencional, não existem regras que
permitam decidir entre diferentes métodos. Segundo Brown, não teríamos, assim,
justificação para aceitar o seu método em detrimento de formas metodológicas
distintas. A escolha seria, portanto, arbitrária.
Do ponto de vista histórico, Brown procura assinalar as diferentes respostas
que aparentes refutações suscitaram na história da ciência. Segundo ele, certas
refutações aparentes foram consideradas problemas de pesquisa, e enquanto
algumas permitiram novas descobertas, outras permaneceram sem solução. Um
outro grupo de refutações aparentes levou à rejeição das teorias, sendo que parte
dessas teorias permaneceu esquecida enquanto outra parte foi recuperada e a
aparente refutação resolvida. Até mesmo a inconsistência lógica foi ora
considerada definitiva, ora resolvida através da revisão de princípios até então
tidos como fundamentais. Historicamente, não um único procedimento bem
sucedido: Os mesmos procedimentos em contextos distintos levaram a resultados
igualmente diferentes. De um modo geral:
“A história da ciência não nos fornece fundamento claro para acreditarmos que a ciência
tem mais possibilidade de progredir se nós adotarmos uma política de rápida eliminação de
hipóteses em face de evidência contrária do que se nós seguirmos uma política de proteção
98
tenaz das nossas teorias aparentemente refutadas, enquanto procuramos por hipóteses
suplementares que nos permitam proteger essas teorias.”(1988: 93)
A redução da racionalidade às regras tem ainda outros problemas para
Brown. Segundo ele, é possível ser irracional mesmo seguindo um algoritmo. O
exemplo que o autor cita tanto em Rationality como em The New Philosophy of
Science, é o do cientista que procura deduzir conseqüências interessantes da sua
teoria adicionando, continuamente, disjuntivos. Embora o cientista inegavelmente
esteja seguindo regras, nós não diríamos que ele está sendo racional. O ponto
crucial aqui é que:
“(...) proceder de acordo com uma regra, mesmo uma regra de aritmética ou lógica, não é
suficiente para a racionalidade. Para ser racional nós devemos proceder de acordo com
regras apropriadas, e nós devemos estar aptos a escolher essas regras de um modo
racional.”(1988: 71)
Outra questão importante diz respeito à aplicação das regras. Mesmo estando
na posse das regras apropriadas, ainda é possível que alguém aplique erradamente
essas regras. Uma correção apropriada poderia, então, ser fornecida através de uma
meta-regra que ensinasse a aplicação correta dessa primeira regra. Todavia, essa
mesma meta-regra pode ser mal compreendida e exigir, dessa forma, uma meta-
meta-regra e assim sucessivamente. Obviamente, o problema não surgiria se
existissem regras auto-evidentes que não pudessem ser mal aplicadas. O nosso
conhecimento sobre o assunto sugere, contudo, que essas regras o existem, pois
até mesmo as regras lógicas mais básicas foram abandonadas em certos contextos
específicos. É o caso, por exemplo, do princípio do terceiro excluído na lógica
intuicionista.
5.2 – As decisões científicas e o papel dos juízos.
Após tecer suas críticas ao modelo clássico de racionalidade, Brown passa a
definir em que termos se dará a sua contribuição ao tema. Antes de fazê-lo, porém,
o autor apresenta uma série de abordagens que estariam disponíveis ao filósofo da
ciência contemporâneo. Cito o autor:
99
“Nós podemos concluir que a ciência o é racional, e um pequeno número de filósofos
aceitou essa conclusão. Ou, nós podemos continuar procurando pelas regras que permitirão
manter o modelo clássico e a racionalidade da ciência – afinal de contas, nós não provamos,
para além de qualquer sombra de dúvida, que essas regras não serão encontradas. Muitos
filósofos da ciência optaram por prosseguir nessa procura. Ou nós podemos concluir que o
modelo clássico de racionalidade deve ser substituído. Eu argumentarei no capítulo V que
essa é a conclusão que Kuhn chegou, e essa é a opção que eu desenvolverei aqui.”(1988:
112)
Como fica claro nessa passagem, Brown rejeita a tese da irracionalidade, e
também rejeita os pressupostos do modelo clássico. O seu projeto é desenvolver
um novo modelo para a racionalidade em ciência e o seu paradigma para tanto é
fornecido pelo trabalho de Thomas Kuhn.
Um primeiro ponto importante, na empreitada que Brown se propõe a
cumprir, diz respeito ao papel dos juízos nas decisões científicas. Na sua análise
do empirismo lógico e do racionalismo crítico, Brown reitera continuamente a
limitação das regras existentes e a limitação das regras, de um modo geral. Seu
argumento principal divide-se basicamente em duas partes: de um lado, sob pena
de um regresso ao infinito, a totalidade das decisõeso pode depender de regras;
de outro lado, as regras por si mesmas não podem ser consideradas suficientes para
a racionalidade, já que é possível ser irracional mesmo seguindo uma regra. Diante
desse quadro, a idéia de Brown é romper com o vínculo existente entre a
racionalidade e as regras, para abordar a primeira a partir de uma perspectiva
distinta. Para Brown, as situações nas quais seguimos regras não exigem o uso da
razão. É justamente quando não dispomos de regras para tomar decisões que um
juízo informado e razoável se faz necessário. Nas palavras do autor:
“A tentativa do empirismo lógico de identificar racionalidade com computabilidade
algorítmica é algo estranha, que julga racional apenas aqueles atos humanos que
poderiam, em princípio, ser levados a cabo sem a presença de um ser humano. (...) Na
medida em que as decisões podem ser tomadas por meio de algoritmos, a intervenção
humana não é necessária; é exatamente quando não temos procedimento efetivo para nos
100
guiar que devemos nos voltar para um juízo humano informado e racional.” (1977: 147-8)
Desde o ponto de vista de Brown, três situações específicas reclamam a
presença de juízos: situações nas quais estamos desenvolvendo novas regras,
situações nas quais precisamos decidir entre regras distintas e situações nas quais
as regras familiares se mostram inconfiáveis. Segundo o autor, o contexto de
escolha teórica em ciência freqüentemente se enquadra nesses dois últimos perfis.
Nesse contexto, não dispomos de um conjunto de regras para decidir entre as
diferentes teorias envolvidas. Uma vez que as próprias regras para se fazer ciência
estão em jogo, somente um juízo informado pode decidir racionalmente a questão.
É importante ressaltar que, embora não seja definido por regras, o juízo, para
Brown, está longe de ser arbitrário. Esse consiste, antes: “(...) de uma habilidade
para avaliar situações, avaliar evidências e alcançar uma decisão razoável sem
seguir regras.”(1988: 137) Uma habilidade análoga a uma habilidade física, que se
adquire a partir da prática do próprio juízo e não a partir da obediência a regras
74
.
Para Brown, essa habilidade é, em muitos aspectos, idêntica àquela que
Aristóteles atribui ao homem de sabedoria prática. Esse, em situações nas quais
não existem regras disponíveis e nas quais não se pode alcançar certeza, deve
decidir como agir considerando apenas as informações relevantes e a sua
experiência passada. Quanto maior a sua experiência e a sua perícia, menor será a
possibilidade de erro. O procedimento é, no entanto, inevitavelmente falível,
embora a falibilidade não implique em ilegitimidade.
Há, no entanto, algumas diferenças entre essas noções. Para Brown:
“A diferença chave entre o juízo e a sabedoria prática é que o juízo é um conceito mais
amplo, e a sabedoria prática é um exemplo do exercício do juízo. As habilidades que
Aristóteles atribui aqueles que exercitam a sabedoria prática são exatamente as mesmas que
estão envolvidas em qualquer exercício do juízo, mas o juízo é exigido numa variedade de
campos que Aristóteles isenta do alcance da deliberação.”(1988: 153)
74
Segundo Brown, os cientistas dependem de habilidades quando, por exemplo: “um
experimentador imediatamente apreende o significado físico da leitura de um instrumento ou de
uma trajetória numa foto; e naquelas tarefas intelectuais como decidir quanto à aplicação de uma
teoria matemática precisa a uma situação específica.”(1988: 158)
101
Para Aristóteles, não se delibera, por exemplo, sobre questões científicas, que
em ciência alcançamos conhecimento certo a partir de demonstrações. Desde o
ponto de vista de Brown, a ciência é, antes, o exemplo paradigmático de contexto
no qual o juízo é necessário
75
.
A noção de juízo também guarda semelhanças com o conceito de equidade.
Segundo Aristóteles, as leis universais muitas vezes contemplam
inapropriadamente ou simplesmente deixam de contemplar certos casos
particulares. O exercício da equidade consiste justamente na correção da lei geral
no caso particular, quando a aplicação direta da lei parece injusta. Esse, segundo
Brown, é um notável exemplo do exercício do juízo. Uma reconsideração local da
lei a partir de uma compreensão da sua limitação.
O papel que a habilidade para ajuizar assume no modelo de Brown é de uma
importância fundamental. Nele, o juízo vem brecar a regressão ao infinito que
referimos no caso das regras, mas que ameaça principalmente a perspectiva
fundacionalista, que procura uma base indubitável sobre a qual o conhecimento
possa ser construído. Para Brown:
“Se nós abandonarmos essa exigência [de indubitabilidade], o conceito de juízo fornece a
base para uma nova abordagem ao problema dos fundamentos, pois nós, de fato, brecamos o
regresso epistêmico, mesmo que não o façamos em função de termos alcançado um
fundamento firme. Antes, nós paramos ou porque julgamos que não precisamos ir além ou
porque alcançamos o ponto a que fomos treinados a parar mas o fato que nós fomos
treinados a parar nesse exato ponto usualmente depende de juízos feitos anteriormente na
história da sociedade ou da disciplina em questão. Isso nos deixa com um ponto de partida,
mas um ponto falível e tentativo que está aberto à reconsideração sob as circunstâncias
apropriadas.”(1988: 144-5)
A decisão quanto à adequação das premissas e das regras que utilizamos – ou seja,
das teorias e dos dados que aceitamos é definida, no modelo de Brown, a partir
de um juízo. Devido à falibilidade desse expediente, a decisão pode futuramente se
mostrar equivocada. Essa decisão não é, todavia, irrevogável. As pessoas
75
Para Aristóteles também o se delibera sobre questões que estão para além do nosso poder de
ação, o que não o caso em relação ao juízo.
102
competentes podem reconsiderá-la sempre que houver razão para tal. Como afirma
Brown:“(...)não incompatibilidade entre aceitar um conjunto de afirmações por
períodos substanciais de tempo, e estar preparado a reconsiderá-las quando houver
razões relevantes para isso”(1988: 146)
uma crítica explícita aqui, à idéia de que: “apenas o melhor é bom o
suficiente”. Em diversas passagens, Brown critica o movimento natural que alguns
filósofos fazem da falibilidade para a total e completa inconfiabilidade. Segundo o
autor, esse movimento é possível a partir de alguma premissa adicional, que no
caso da epistemologia clássica, parece ser a seguinte: “somente métodos infalíveis
têm significado cognitivo.”. Uma vez, contudo, que se compreende o caráter
utópico dessa consideração, a simples possibilidade lógica do erro não pode ser
considerada razão suficiente para a rejeição de um determinado procedimento ou
de uma determinada teoria. Como afirma o autor:
“Nós não julgamos um ponto de partida aceitável somente porque ele é logicamente
possível, mas como resultado de considerações que são especificamente relevantes à matéria
em questão, e uma vez que nós encontramos um conjunto de princípios úteis e frutíferos,
nós precisamos de razões específicas para duvidar deles.”(1988: 145)
5.3 – O fundamento social da racionalidade e o papel da perícia.
Embora a noção de juízo seja central para o modelo de Brown, ela, de forma
alguma, o esgota. Para o autor, a racionalidade científica é um fenômeno
essencialmente social que não pode ser compreendido dentro de uma perspectiva
exclusivamente individual. Segundo um exemplo do próprio autor, Robson Crusoé
isolado na sua ilha poderia exercer o juízo sobre diversas questões que lhe
afligissem. O mesmo Robson Crus não poderia, no entanto, ser racional. Cito o
autor:
“No modelo que eu estou propondo, a racionalidade exige outras pessoas e o apenas
quaisquer pessoas, mas outras pessoas que tenham a habilidade necessária para exercer o
juízo no caso em questão.”(1988: 187)
103
Dessa forma, chegamos a uma segunda questão importante na empreitada
que Brown se propõe a cumprir: a questão social. Segundo o autor, uma crença
se torna racional quando submetida à avaliação da comunidade de especialistas.
Dito de outra forma, o julgamento adentra o domínio da racionalidade na medida
em que é criticado e avaliado pelas pessoas competentes. De forma semelhante a
Kuhn, Brown reconhece na comunidade uma instância fundamental para a
compreensão da racionalidade. Para o autor, o caráter dessa última não pode ser
compreendido independentemente da natureza da primeira. A racionalidade não é,
porém, uma qualidade das proposições ou das comunidades. Embora seja
socialmente constituída, a racionalidade é, para Brown, uma qualidade das
decisões e das crenças dos indivíduos. “Uma comunidade de indivíduos com a
perícia apropriada é necessária para um indivíduo chegar a uma decisão racional,
mas é a crença do indivíduo que é racional, não a comunidade.”(1988: 193)
Uma importante conseqüência do modelo de Brown é que diferentes
indivíduos podem sustentar crenças distintas e ainda assim serem racionais
76
. Os
desacordos não o obrigatoriamente irracionais dentro do seu modelo. Como
enfatizamos anteriormente, não existe, para o autor, um procedimento algorítmico
que determine a racionalidade das crenças. As diversas avaliações e os diversos
juízos individuais empreendidos podem conduzir a conclusões distintas e o exame
informado da comunidade relevante pode, por sua vez, reconhecer méritos nas
diferentes conclusões. Nesse caso, o desacordo é plenamente racional e não
razão para supor que alguém cometeu um erro no seu juízo.
Como o próprio Brown ressalta, a noção de racionalidade que emerge do seu
modelo é consideravelmente mais fraca que a noção tradicional. Compreendida
desde o ponto de vista do seu modelo, a história em geral e a história da ciência
especificamente apresentam crenças e decisões racionais em um número
consideravelmente maior do que quando encaradas a partir do modelo clássico. A
teoria do flogisto e a astronomia geocêntrica, para citar dois exemplos, foram,
segundo o seu modelo, sustentadas em bases racionais, que os seus defensores
76
Brown cita a controvérsia Einstein-Bohr como exemplo de desacordo racional.
104
preenchiam os requisitos necessários para assim serem consideradas as suas
crenças.
Esse enfraquecimento tem a sua origem na preponderância que há, no
modelo de Brown, da noção de agente racional sobre a noção de crença racional.
No modelo clássico, o conceito de crença racional é prioritariamente definido para
que então o conceito de agente racional seja definido. Um agente é considerado
racional quando suas crenças satisfazem os requisitos de racionalidade. No modelo
de Brown, é a noção de agente racional que é primitiva, sendo a noção de crença
racional a noção derivada: uma crença é considerada racional quando seu agente
satisfaz os requisitos de racionalidade. E, para que um agente seja considerado
racional, basta que ele domine o assunto sobre o qual ajuíza e que submeta esse
juízo à avaliação dos seus pares.
Outro aspecto desse enfraquecimento diz respeito ao contexto de
racionalidade. O modelo clássico restringe esse contexto ao comportamento
regrado, enquanto o modelo de Brown o restringe àquelas situações em que
ajuizamos. Ora, quando seguimos regras temos nosso comportamento
consideravelmente mais determinado do que quando ajuizamos. Duas pessoas
igualmente informadas podem ajuizar distintamente uma questão sem que
nenhuma delas esteja errada, mas duas pessoas não podem aplicar uma mesma
regra lógica e atingir conclusões distintas sem que alguma delas tenha cometido
um erro.
Um último ponto importante que cabe ressaltar e que esteve implícito até
aqui diz respeito à noção de perícia. Afora a questão social e a questão do juízo, o
modelo de Brown também se apóia na idéia de perícia. Para Brown, “nem todos
podem exercer o juízo em todos os tópicos.”(1988: 146), que o exercício do
juízo pressupõe o domínio de uma série de informações relevantes ao tema em
pauta. Da mesma forma, para que uma crença seja considerada racional não basta
que ela seja avaliada por um grupo de pessoas qualquer, é necessário que a
avaliação seja feita pelas pessoas que dominam o conhecimento de fundo e o
conhecimento específico à questão. A perícia é, portanto, condição de
105
possibilidade para o juízo e para a racionalidade. Não pode haver juízo sem a
perícia individual, nem racionalidade sem perícia coletiva.
5.4 – A racionalidade do desenvolvimento científico.
Antes de encerrar a análise do modelo de racionalidade científica que Brown
propõe, é importante chamar a atenção para mais um ponto do seu trabalho. Até
aqui apresentamos em linhas gerais as principais idéias que estão por de trás do
seu modelo: a noção de juízo, de perícia e de comunidade. Nada foi dito, contudo,
sobre como Brown compreende o desenvolvimento histórico da ciência. Nessa
seção, buscaremos expor o modo como Brown concebe esse desenvolvimento, seja
no contexto de descoberta, seja no contexto de justificação.
Em primeiro lugar, é importante ressaltar que para Brown o contexto de
descoberta é um contexto racional. Segundo o autor, os cientistas empenhados nas
pesquisas científicas partem de uma série de pressupostos sobre o mundo que os
cerca. Esses pressupostos indicam, por exemplo, quais fenômenos devem ser
estudados, quais questões devem ser respondidas e que forma as soluções devem
assumir. Quando algum fenômeno, aparentemente, não se enquadra naquilo que os
pressupostos informam ao cientista, são esses mesmos pressupostos que vão
indicar quais caminhos devem ser buscados e quais soluções devem ser
perseguidas. Brown utiliza como exemplo desse desenvolvimento o caso da
predição aparentemente equivocada que a teoria newtoniana oferecia para a órbita
de Urano. Frente a essa reconhecida anomalia, os cientistas buscaram uma causa
para tal desvio dentro dos pressupostos da teoria newtoniana. Uma das hipóteses
consideradas postulava que algum planeta desconhecido estaria exercendo uma
força suficiente para desviar Urano da órbita esperada. Quando essa hipótese
finalmente foi testada, Netuno foi, então, descoberto e o problema original
resolvido. Segundo Brown, esse é um desenvolvimento plenamente racional e em
nada se assemelha à imagem do cientista que formula hipóteses ao acaso. Os
cientistas, em questão, buscavam resolver um problema específico a partir de
pressupostos que até então se mostravam confiáveis. A descoberta de Netuno
106
mostrou ser sábia essa opção, embora ela de forma alguma fosse a única
disponível
77
.
Outras vezes, os cientistas não conseguem resolver os problemas a que se
dedicam a partir dos pressupostos estabelecidos. Esses pressupostos podem, então,
ser abandonados em detrimento de novos pressupostos. Nesse caso, uma
revolução científica, uma substituição de um conjunto específico de pressupostos
por um conjunto distinto. Brown utiliza como exemplo pra esse desenvolvimento a
rejeição do princípio dos movimentos circulares dos corpos celestes. Esse
princípio foi, por muito tempo, um pressuposto fundamental para a astronomia.
Quando Kepler não conseguiu encontrar uma órbita circular que se adequasse aos
dados conhecidos do movimento de Marte, ele imaginou que o problema estivesse
nos métodos de computação e não no princípio. Só posteriormente, Kepler rejeitou
esse princípio e passou a conjeturar formas distintas para as órbitas, embora as
primeiras formas testadas fossem ainda muito próximas do círculo. Esse tipo de
desenvolvimento, segundo Brown, também é plenamente racional. Frente à
limitação da abordagem tradicional, Kepler procurou por uma nova abordagem
que lhe permitisse resolver o problema em questão. Novamente a sua opção se
mostrou sábia, embora ela não fosse a única disponível e muito poucos tivessem
dispostos a aceitá-la
78
.
É importante ressaltar, também, que para Brown uma revolução científica
não significa uma ruptura total e completa com a tradição existente. Segundo o
autor, embora haja rupturas consideráveis, existem também elementos de
continuidade e são esses elementos que possibilitam um diálogo significativo e
uma decisão racional entre a nova abordagem e a abordagem antiga. Perceba,
contudo, que esses elementos de continuidade não são, para Brown, princípios e
dados universais que podem ser utilizados para resolver toda e qualquer disputa.
Segundo o autor:
77
Um procedimento semelhante foi utilizado no caso do movimento do periélio de Mercúrio e o
planeta Vulcano, postulado na época, nunca foi encontrado. Note que segundo Brown o
procedimento foi racional, muito embora ele não tenha dado o resultado esperado.
78
Segundo Brown, o próprio Newton não considerou os seus resultados.
107
“(...) o desacordo racional requer alguma pedra de toque que seja comum às partes em
disputa. Diferentes indivíduos engajados em diferentes disputas podem concordar sobre
coisas diferentes, e esses pontos de acordo fornecerão a base para a discussão racional, e
freqüentemente para a resolução racional da disputa.”(1988: 209)
Desde o ponto de vista de Brown, a ciência é uma estrutura com diversos níveis
que inclui, por exemplo, observações, formas de instrumentação, generalizações
empíricas, teorias de diferentes graus de generalidade, técnicas matemáticas
distintas, assim como, uma variedade de princípios metodológicos e metafísicos.
Um desacordo em um nível específico pode ser resolvido através de outro nível
existente não “havendo necessidade de se postular princípios eternos e trans-
científicos para explicar a racionalidade das disputas científicas.”(1988:
210).Como afirma Brown:
“Desacordos racionais requerem um corpo suficiente de crenças partilhadas para fornecer
base para a discussão; essas crenças não precisam ser verdadeiras nem precisam ser as
nossas crenças.”(1988: 219)
Brown procura mostrar a força dessas idéias analisando exemplos
emblemáticos de discussões racionais entre cientistas que sustentavam teorias
radicalmente distintas. O seu principal exemplo refere-se às discussões entre
Galileu e os aristotélicos quanto à astronomia copernicana. Segundo o autor,
existiam desacordos entre essas duas partes em um número considerável de níveis.
Havia desacordos metodológicos sobre o papel da causalidade, da experimentação
e da matemática em física; sobre a estrutura geral do mundo físico; sobre questões
relativamente específicas, como se um corpo em queda estava engajado em um ou
dois movimentos e sobre o que poderia ser observado, como no caso das
observações ao telescópio. Havia, contudo, uma grande área de acordo. Havia
acordo sobre as diferentes predições implicadas pelas teorias ambas as partes
aceitavam, por exemplo, que uma Terra em movimento exigia um parallaxe
estelar; sobre observações relativamente simples, como a ausência de um vento
constante do leste para o oeste e o local onde uma pedra jogada do topo de uma
torre aterrissaria; sobre a relevância dessas observações para a disputa em questão
108
e sobre a necessidade das teorias se adequarem às observações disponíveis. Galileu
e os aristotélicos concordavam, também, que os objetos físicos tinham
movimentos naturais que não exigiam uma força que os sustentasse; que a queda
de um objeto pesado era um exemplo de movimento natural
79
e que as
características fundamentais do universo deveriam ser explicadas a partir de um
pequeno número de elementos que pudessem ser distinguidos pelas suas
propriedades dinâmicas
80
.
Esses acordos, embora restritos, eram suficientes, segundo Brown, para que
um debate racional se constituísse. Numa passagem particularmente esclarecedora
Brown afirma que:
“Galileu desafiou as visões existentes em quase todos os níveis da estrutura da ciência, de
questões sobre o que conta como uma observação aceitável a questões amplas sobre a
metodologia científica; mas, nós também estamos lidando com indivíduos que estavam
preocupados com um conjunto comum de problemas, e que compartilhavam muitas idéias
sobre como tais problemas deveriam ser abordados. Suas estruturas eram suficientemente
diferentes para que falhas de comunicação completa acontecessem, mas também havia
pontos em comum suficientes para permitir discussão substancial e para permitir que os
indivíduos envolvidos trabalhassem em função de um entendimento comum, mesmo que ele
não implicasse em total acordo.”(1988: 219)
79
Para Galileu o local natural de um objeto terrestre era o planeta terra e para os aristotélicos era o
centro do universo – que eles pensavam ser ocupado pela terra.
80
Galileu efetuou, todavia, significantes alterações nas propriedades dinâmicas relevantes e, além
disso, excluiu o fogo da lista tradicional de elementos.
109
Cap.6 – Racionalidade Científica: Novas Perspectivas.
6.1 - A relação entre a racionalidade e o método científico.
Do que foi dito até aqui, cabe enfatizar certos pontos que caracterizam, de
forma particularmente clara, alguns caminhos que os debates sobre a
racionalidade científica tomaram desde as primeiras publicações da nova filosofia
da ciência.
Um primeiro ponto, que cabe destacar, diz respeito à preocupação comum
entre os autores em determinar o papel que a metodologia deve assumir no novo
modelo de racionalidade. Os autores dos quais nos ocupamos assim como
também autores como Newton Smith e Harvey Siegel se mostram preocupados,
frente às questões que a nova filosofia da ciência trouxe à tona, em repensar, de
alguma forma, o papel fundamental que outrora fora concedido para as
metodologias. Embora as posições assumidas divirjam consideravelmente, é
sintomático o alcance que esse debate atingiu.
110
Para os três autores que trabalhamos em algum pormenor, a situação em que
se encontra a filosofia da ciência é substancialmente semelhante. Para eles, três
caminhos estão disponíveis ao filósofo da ciência contemporâneo. Por um lado,
pode-se continuar procurando pelas regras ou pelo método que justifiquem a
concepção tradicional de racionalidade científica. Por outro lado, pode-se aceitar a
falência desse modelo e concluir pela irracionalidade da ciência. Por fim, pode-se
rejeitar o modelo tradicional sem, contudo, afirmar a irracionalidade da ciência.
Aceitando, antes, a tarefa de desenvolver um novo modelo para a racionalidade em
ciência. Laudan, por exemplo, apresenta a seguinte descrição dessa situação:
“Frente à reconhecida falha da análise tradicional, três alternativas parecem abertas para nós
[estudiosos da ciência]:
1 Podemos continuar esperando que alguma variação menor na análise tradicional possa
finalmente clarear e justificar nossas intuições sobre a boa fundamentação cognitiva da
ciência.
2 – Podemos, alternativamente, abandonar como uma causa perdida a busca por um modelo
de racionalidade, aceitando, dessa forma, a tese de que a ciência é, até onde sabemos,
claramente irracional.
3 Finalmente, nós podemos começar a analisar novamente a racionalidade da ciência
tentando evitar deliberadamente algumas das pressuposições chaves que produziram o
colapso da análise tradicional.” (1977: 3)
Harold Brown, por sua vez, o faz da seguinte forma:
“Nós podemos concluir que a ciência o é racional, e um pequeno número de filósofos
aceitou essa conclusão. Ou, nós podemos continuar procurando pelas regras que permitirão
manter o modelo clássico e a racionalidade da ciência – afinal de contas, nós não provamos,
para além de qualquer sombra de dúvida, que essas regras não serão encontradas. Muitos
filósofos da ciência optaram por prosseguir nessa procura. Ou nós podemos concluir que o
modelo clássico de racionalidade deve ser substituído.”(1988: 112)
(Embora não a formule explicitamente, para Pera a situação não é diferente. O
dilema cartesiano que o autor enfatiza é constituído pelas duas primeiras vias
111
referidas nas palavras de Pera, o modelo metodológico e o modelo contra-
metodológico – enquanto a terceira via consiste justamente na rejeição do dilema.)
As posições que os autores assumem frente a esses diagnósticos
aparentemente também se assemelham. De modo geral, eles procuram tomar a
terceira via referida; rejeitando o modelo tradicional sem, contudo, aceitar a tese
da irracionalidade da ciência. Procurando, antes, desenvolver um novo modelo
para a mesma.
Essa semelhança, sob uma detida análise, revela-se, no entanto, apenas
aparente. Enquanto autores como Harold Brown e Marcello Pera não vislumbram
espaço para a metodologia no modelo a ser desenvolvido, um autor como Larry
Laudan se mantém fiel à tradição metodológica, retendo o vínculo clássico entre
razão e método. Embora os autores vislumbrem três caminhos no horizonte
filosófico, esses caminhos não coincidem inteiramente nas suas especificidades. A
terceira via, sobretudo, assume contornos distintos quando vista sob as diferentes
perspectivas.
Ainda dentro desse tema, um segundo ponto que cabe destacar em relação às
discussões recentes sobre a racionalidade científica concerne ao debate existente
sobre as limitações das regras metodológicas. Embora retenha o vínculo entre
racionalidade e método e procure minimizar as críticas feitas às metodologias,
Laudan, ao longo dos seus trabalhos, vai progressivamente reconhecendo as
limitações das regras metodológicas. Mesmo em Progress and Its Problems
onde, de um modo geral, o autor busca desenvolver um novo modelo de
metodologia um indício dessa compreensão é perceptível na contextualização
que o autor promove da noção de problema científico. Os critérios e as regras da
sua metodologia adquirem significado dentro de uma definição contextualizada
de problema científico. Se essas regras são manifestamente universais e assim
foram compreendidas por Pera, por exemplo essa universalidade faz sentido –
assume contato com a realidade quando submetida à compreensão que os
cientistas têm do caráter dos problemas científicos. E essa compreensão,
historicamente, tem se mostrado fundamentalmente flutuante.
112
Em Science and Values, é a própria idéia de um método universal que vai
desaparecer para dar lugar a uma pluralidade de métodos cada qual apto a
realizar um certo fim. No transcorrer da história da ciência, diferentes fins teriam
sido perseguidos e métodos distintos teriam sido utilizados. O projeto de explicitar
o único e verdadeiro método da ciência estaria condenado ao fracasso, portanto, na
sua origem, já que tal método simplesmente não existiria.
Nesse mesmo livro, os desacordos em ciência o explicados pelo autor em
função de uma limitação das regras frente a algumas contendas. Conquanto rejeite
grande parte das críticas de Kuhn e de Feyerabend às metodologias, Laudan
concede que existem limites para as regras metodológicas. Essas, segundo o autor,
em boa parte das ocasiões o suficientes para resolver as disputas. casos, no
entanto, em que elas se mostram insuficientes para tal fim. Como foi dito,
Laudan procura se afastar do que ele mesmo denomina de ideal leibniziano. A seu
ver, a ciência não consiste apenas de afirmações cujo valor de verdade poderia ser
mecanicamente decidível. Se assim o fosse, seria difícil explicar a grande
quantidade de desacordos existentes. A questão é que os consensos são igualmente
uma realidade, havendo também necessidade de explicar os mecanismos
responsáveis pela sua formação
81
. Para Laudan, se as regras metodológicas fossem
de uma total inoperância como, segundo ele, alguns autores sustentam de um
ponto de vista epistemológico os acordos factuais deixariam de ser
compreensíveis, que não haveria uma base comum a partir da qual o consenso
pudesse ser construído. Daí a necessidade em se repensar o papel das regras e
noções como as de incomensurabilidade e de revolução científica.
Desde uma perspectiva um pouco diferente, Marcello Pera, no seu
Discourses of Science, empreende uma cuidadosa análise do estatuto das regras
metodológicas. Alicerçada nos critérios de adequação e precisão, essa análise
passa em revista uma série de regras tradicionalmente formuladas. Entre as
conclusões a que Pera chega, duas delas são particularmente reveladoras dos
caminhos que as discussões sobre a racionalidade científica vem tomando. Como
vimos, desde o ponto de vista de Pera, a precisão e a adequação das regras estão
81
Segundo Laudan, Kuhn e Feyerabend descuidaram dessa questão.
113
em relação inversa uma com a outra. Para o autor, as regras metodológicas
apresentam ainda lacunas que somente um debate entre as partes competentes
pode suprir. As diferentes circunstâncias nas quais as regras podem ser utilizadas
exigem que a sua aplicação seja considerada caso a caso, dentro do contexto que
lhes é própria. Como diz Pera:
“Mesmo as regras metodológicas mais precisas têm uma “textura aberta”, já que elas podem
ser utilizadas numa variedade de possíveis aplicações que não estão e nem poderiam estar
completamente definidas.” (1994: 37)
A partir de uma comparação com os códigos legais, o autor procura apontar
também para o caráter vago, impreciso e antinômico dos códigos científicos.
Caráter esse que exige que os cientistas constantemente reinterpretem os códigos
82
,
sendo eles de pouca utilidade fora dessa condição.
Afora isso, ainda o sentido criativo da atividade científica, que não se
limita a utilizar as ferramentas historicamente consagradas pela ciência. De tempos
em tempos, novos meios são desenvolvidos para alcançar os fins científicos e
novas ferramentas vêm substituir as conhecidas. Até as regras mais bem
sucedidas são abandonadas quando os cientistas não vêem mais razão para
sustentá-las.
Resta enfatizar que a vaguidade, desde o ponto de vista de Pera, não
constitui um defeito seja das regras, seja dos códigos científicos. Para Pera, um
código demasiadamente detalhado em muitas ocasiões é de pouca utilidade “e uma
interpretação literal de uma regra muito detalhada é freqüentemente um
defeito”(1994: 54). Segundo o autor, os cientistas utilizam regras vagas e se vêem
no direito de fazê-lo. Cabe ao cientista criteriosamente definir como as texturas
abertas do código científico devem ser preenchidas, decisões essas inevitavelmente
locais. Essa posição se assemelha bastante àquela defendida por Kuhn em relação
às escolhas científicas
83
. Para esse autor, a vaguidade dos valores e a conseqüente
82
Esse processo de reinterpretação se justamente em um debate, fora do qual o método não tem
contornos claros.
83
É interessante notar que a variabilidade dos julgamentos é fruto da vaguidade dos valores.
114
variabilidade das escolhas antes de ser um defeito é uma virtude da ciência, que
assim ela vê diminuídas as possibilidades de erro.
Embora Pera não cite o nome de Wittgenstein quando se refere à vaguidade
das regras e dos códigos científicos, é interessante aproximar a sua análise daquela
levada a cabo por esse autor nas suas Investigações Filosóficas
84
. Ainda que a
preocupação de Wittgenstein não seja exclusivamente com as regras e os códigos,
mas sim com a questão mais ampla da significação, chama a atenção a sua
compreensão da vaguidade dos conceitos. Cito o autor:
71. Pode-se dizer que o conceito ‘jogo’ é um conceito com contornos imprecisos Mas,
um conceito impreciso é realmente um conceito?” Uma fotografia pouco nítida é
realmente a imagem de uma pessoa? Sim, pode-se substituir com vantagem uma imagem
pouco nítida por umatida? Não é a imagem pouco nítida justamente aquela de que, com
freqüência, precisamos?”(1996: 54)
Segundo Wittgenstein, o conceito jogo é significativamente utilizado muito
embora não haja contornos claros que o delimitem. Para o autor, esse caráter
impreciso não pode nem mesmo ser considerado um defeito, que apenas retrata
o modo como operamos com tal conceito. É possível, obviamente, precisar os seus
limites, mas o que se ganharia com isso? Para algum fim bastante específico talvez
ganhássemos algo, mas para muitas outras finalidades é o conceito vago que nos é
útil. Cito novamente o autor.
“69. Como explicaríamos a alguém o que é um jogo? Creio que lhe descreveríamos jogos, e
poderíamos acrescentar à descrição: “isto e outras coisas semelhantes chamamos de
‘jogos’”. E nós próprios sabemos mais? Será que apenas a outrem não podemos dizer
exatamente o que é um jogo? Mas isto não é ignorância. Não conhecemos os limites,
porque nenhum está traçado. Como disse, podemos – para uma finalidade particular – traçar
um limite. É somente a partir daí que tornamos o conceito útil? De forma alguma! A não ser
para essa finalidade particular.”(1996: 53)
84
Não se está afirmando aqui que a análise de Wittgenstein tenha influenciado diretamente a
análise de Pera. A idéia é, antes, mostrar as semelhanças que existem na compreensão da questão.
115
Voltando a Pera, se precisarmos em demasia as nossas regras, amarramos a
pesquisa científica em uma camisa de força, coisa que não desejamos fazer. Como
Feyerabend(1975) antecipara, se a pesquisa científica não tivesse quebrado boa
parte das regras que os racionalistas formularam, a ciência não teria progredido
como progrediu. A vaguidade das regras não é, portanto, um defeito que deva ser
corrigido, mas uma característica das mesmas que concede aos cientistas espaço
para se moverem. De forma semelhante, utilizamos um conceito impreciso de
‘jogo’ não porque não nos é possível precisá-lo
85
, mas sim, porque a imprecisão
nos permite utilizá-lo eficientemente em diferentes circunstâncias. As práticas que
devem ser consideradas jogos são decididas circunstancialmente não estão
definidas numa essência atemporal de jogo
86
assim como as decisões quanto a
como preencher as lacunas existentes nas regras metodológicas. Essas decisões
são, além disso, fundamentalmente sociais. Em ambos os casos, não uma
instância superior a qual apelar, são as pessoas competentes – os falantes num caso
e os cientistas no outro que tomam as decisões. Como o diz Feyerabend: “Nem
sequer os critério e regras mais perfeitos são independentes do material sobre o
qual atuam (...) e dificilmente os compreenderíamos ou saberíamos como utilizá-
los se não fossem partes perfeitamente integradas de uma prática ou tradição
(...)”(1978: 24). Segundo Feyerabend, se compreendermos os conceitos científicos
dentro da ambigüidade que lhes é própria, até mesmo a questão da
incomensurabilidade desaparece. Cito o autor:
“Eu penso que a incomensurabilidade surge quando nós clareamos nossos conceitos da
maneira exigida pelos positivistas lógicos e seus herdeiros e que ela mina as suas idéias
sobre explicação, redução e progresso. A incomensurabilidade desaparece quando nós
usamos os conceitos como os cientistas o fazem, de uma forma aberta, ambígua e
85
Para Wittgenstein, o conceito de precisão ou de exatidão também é relativo ao jogo de linguagem
no qual está inserido. “Tampouco tornaria útil a medida de comprimento “um passo” aquele que
desse a definição: um passo = 75cm. E se você me disser: “Mas antes o havia nenhuma medida
de comprimento exata”, retrucarei : “Muito bem, então era uma medida inexata”. Se bem que
você ainda me deva a definição de exatidão.”
86
Para Wittgenstein o que existe entre as diferentes atividades que denominamos de jogos é uma
“semelhança de família”, “uma rede complicada de semelhanças que se envolvem e se cruzam
mutuamente.”(1996: 52)
116
freqüentemente contra-intuitiva. Incomensurabilidade é um problema para filósofos, não
para cientistas (...).”(1993: 211)
Harold Brown, por fim, também procura apontar para o que ele acredita
serem limitações das regras metodológicas. Para o autor, o ato de seguir uma regra
não pode ser considerado condição suficiente para a racionalidade, que é
possível ser irracional mesmo seguindo uma regra. Para que um comportamento
regrado seja considerado racional é preciso que a regra em pauta seja apropriada
ao contexto em questão. Em outras palavras, é preciso que a regra seguida esteja
em harmonia com os fins do autor. Sob pena de uma regressão ao infinito
87
, a
escolha dessa regra deve, no entanto, se dar a partir de outro processo que não o de
seguir uma regra.
A escolha da regra correta, embora imprescindível, também não é suficiente
para a racionalidade. Uma vez que uma regra apropriada pode ainda ser mal
aplicada, é preciso saber aplicar adequadamente a regra. Todavia, sob pena de
mais uma vez recairmos numa regressão ao infinito, essa aplicação deve ser
aprendida a partir de outro processo que não o de aplicação de uma regra.
Segundo Brown, o comportamento regrado não pode, em última instância,
fundamentar uma cadeia de escolhas. Em algum ponto necessitamos de um juízo:
seja quando desenvolvemos novas regras, seja quando as regras tradicionais se
mostram falhas, seja quando precisamos escolher entre regras distintas. A partir de
um juízo, podemos definir, então, quais regras devem ser seguidas e em quais
circunstâncias. O juízo mesmo é, no entanto, independente dessas regras. Quando
de um juízo a partir das mesmas informações, duas pessoas distintas podem
alcançar resultados diferentes. Não uma necessidade entre as informações
disponíveis e os resultados possíveis, como o seria esperado no caso das regras.
6.2 – Plataforma Arquimediana
Outra questão importante nas discussões recentes sobre a racionalidade
científica diz respeito ao modo como são efetuadas as comparações e as avaliações
87
Uma regra para escolher uma regra para escolher outra regra e etc...
117
entre as diferentes teorias científicas. (Como se dão as escolhas científicas se não
há método, ou se há diversos métodos?)
Como os outros capítulos deixaram claro, a idéia de um desenvolvimento
estritamente cumulativo perdeu muito da sua força nas discussões contemporâneas
sobre a racionalidade científica. Entre os autores estudados, a tese da redução
teórica e a idéia popperiana de uma universalidade crescente não figuram mais
entre as possíveis soluções para o problema do desenvolvimento científico. A idéia
de uma comparação completa entre as teorias a partir da tradução das
conseqüências das mesmas para uma linguagem observacional, também não
resistiu a dura crítica da nova filosofia da ciência
88
. E, de uma forma geral, todos
os modelos que postulavam padrões a priori e trans-científicos de medida foram
rechaçados.
Em substituição a essas antigas fórmulas, uma idéia aparentemente simples
tem se mostrado de ampla aceitação. Segundo essa idéia, os padrões de
comparação não são exteriores à ciência. Os padrões são, antes, fruto do próprio
desenvolvimento científico, não sendo nem universais, nem necessários. Um
posterior desenvolvimento da ciência pode levar a sua reconsideração, assim como
pode ratificá-los de alguma forma. A comparação entre as teorias também não
depende de uma linguagem observacional neutra. Essa comparação se a partir
daqueles aspectos em que continuidades entre as teorias. Aspectos esses, que
não são necessariamente os mesmos nos diferentes contextos. Uma descrição
particularmente clara dessa mudança de perspectiva é apresentada por Brown em
Rationality. Cito o autor:
“(...) se dois indivíduos discordam sobre alguma matéria, uma condição necessária para o
debate racional é que eles concordem sobre algo relevante a disputa: alguns princípios ou
algum corpo de informação que eles possam apelar como base para a discussão. Os
empiristas lógicos exageraram essa exigência buscando um conjunto de princípios
genuinamente universais, e um corpo de dados universalmente aceitáveis, que pudessem ser
invocados para resolver qualquer disputa científica. Mas, essa é uma exigência excessiva
que pode ser abandonada e substituída pela tese que afirma que o desacordo racional requer
88
É importante enfatizar que anteriormente Popper havia criticado a idéia de uma linguagem
observacional neutra.
118
alguma pedra de toque comum a ambas as partes da disputa. Indivíduos diferentes engajados
em diferentes disputas podem concordar sobre coisas diferentes, e esses pontos de acordo
fornecerão a base para a discussão racional, e freqüentemente para a resolução racional da
disputa.”(1988: 209)
Feyerabend, em 1978, sublinhava o fato das teorias científicas não só
fornecerem fundamento para explicar o mundo físico, como também para julgar
outras teorias. Cito o autor:
“Em física, as teorias são empregadas como descrições dos fatos e como critérios da
especulação e da precisão objetiva. Os instrumentos de medição são construídos de acordo
com certas leis e as suas leituras se contrastam sob o pressuposto de que essas leis são
corretas. De forma semelhante, as teorias que dão lugar a princípios físicos ministram
critérios para julgar outras teorias: as teorias que são invariantes desde um ponto de vista
relativista são melhores que as que não são. Tais critérios não são intocáveis e podem ser
eliminados. O critério de invariância relativista pode, por exemplo, ser eliminado quando se
descobre que a teoria da relatividade apresenta sérias deficiências.”(1978: 33-4)
Desde o ponto de vista de Feyerabend, os critérios que utilizamos não são
independentes de pressupostos cosmológicos. A exigência de aumento de
conteúdo, por exemplo, faz sentido em um mundo infinitamente rico, tanto
qualitativamente quanto quantitativamente. Em um mundo finito, essa exigência
deixa de fazer sentido. Da mesma forma, os critérios que as teorias estipulam
fazem sentido num mundo coerente com elas.
Thomas Kuhn, num dos seus últimos trabalhos, The Trouble With The
Historical Philosophy of Science (1991), chama a atenção para o papel
fundamental exercido pelas crenças partilhadas nas escolhas científicas. Segundo
Kuhn, as observações independentes das teorias, das crenças e idênticas para todos
os observadores provaram ser muito poucas. Felizmente, elas não são
imprescindíveis para que as escolhas teóricas sejam racionais. Segundo ele:
“O amplo corpo de crenças não afetado pela mudança fornece a base sobre a qual a
discussão sobre a desejabilidade da mudança pode se apoiar. É simplesmente irrelevante que
algumas ou todas essas crenças possam ser deixadas de lado num tempo futuro. Para
119
fornecer uma base para a discussão racional, elas, como as observações que a discussão
invoca, precisam apenas ser partilhadas pelas partes envolvidas. Não existe critério de
racionalidade de discussão superior a esse. ”(1991: 113)
Kuhn refere-se às crenças partilhadas como constituindo uma “plataforma
arquimediana” sobre a qual o debate pode se apoiar. Porém, a seu ver, essa
plataforma não é imóvel como o seria caso existisse uma linguagem observacional
neutra. Essa plataforma se move com o tempo e se modifica de comunidade para
comunidade e de cultura para cultura. Esse seu aspecto mutante não impede,
contudo, que ela cumpra perfeitamente a sua tarefa.
Uma análise pormenorizada do caráter dessas continuidades em ciência pode
ser encontrada nos três autores com os quais nos ocupamos. Para todos eles, a
ciência é constituída por uma série de diferentes níveis e os desacordos existentes
em parte deles podem ser resolvidos a partir dos acordos existentes nos demais.
Laudan, por exemplo, trabalha com os três níveis estipulados pelo modelo
hierárquico de justificação: valores, regras metodológicas e afirmações factuais. A
justificação, para ele, não se limita, no entanto, aos caminhos ascendentes que o
modelo hierárquico propõe. A seu ver, um desacordo factual pode ser resolvido no
plano metodológico assim como o inverso também pode ocorrer. Mesmo um
desacordo quanto às finalidades (valores) da ciência pode ser resolvido invocando-
se as crenças factuais comuns ou as regras metodológicas partilhadas. No modelo
de Laudan, o existem caminhos privilegiados de justificação, basta que haja
acordo em algum dos níveis para que os desacordos existentes sejam passíveis de
resolução.
No que concerne a esse assunto, tanto Harold Brown quanto Marcello Pera
reconhecem o trabalho pioneiro de Laudan. Esses autores discordam, porém,
quanto ao número de níveis que esse autor assume. Para eles, a ciência não se
resume aos três níveis do modelo reticulado de Laudan. Para Brown, a ciência
inclui pelo menos os seguintes níveis: um corpo de observações, formas de
instrumentação, generalizações empíricas de baixo nível, teorias de diferentes
graus de generalidade, técnicas matemáticas e uma variedade de princípios
metodológicos e metafísicos. Pera, por sua vez, refere-se aos seguintes níveis
120
que correspondem no seu trabalho aos fatores substantivos da dialética científica:
suposições, pressuposições, lugares comuns de preferência, fatos, teorias e valores.
Para ambos os autores, também são múltiplas as possibilidades de justificação, não
havendo caminhos determinados de modo a priori.
É importante ressaltar que a distinção de muitos níveis possibilita a esses
autores compreender um número maior de disputas como racionais, uma vez que
os acordos podem ser consideravelmente estreitos para que a disputa assim o seja.
O compromisso retórico de Pera, por sua vez, lhe permite ir ainda mais longe em
relação à racionalidade das disputas. Mesmo no caso hipotético de um desacordo
radical entre as partes disputantes, segundo Pera, sempre é possível adentrar o
domínio do oponente a partir de certas formas especiais de argumentação retórica.
Pode-se, por exemplo, utilizar argumentos ad hominem com o intuito de apontar
para faltas objetáveis a partir das pressuposições do próprio oponente. Segundo
Pera, esses argumentos são particularmente úteis justamente quando os
protagonistas estão distantes.
“Essa técnica [dos argumentos ad hominem], de fato, não objetiva provar uma tese nem
desaprovar a tese adversária, nem atacar a sua pessoa. Ela objetiva criar uma brecha, sacudir
a confiança das pessoas, enfraquecer a sua resistência. O argumento ‘como você pode
criticar o método das ‘experiências sensoriais’ e então praticá-lo?’ é o mesmo que o
argumento ‘Como você pode se chamar vegetariano e comer galinha todos os dias?’ Uma
vez que a brecha foi aberta, o interlocutor deveria estar pronto para considerar a tese
proposta. Outros argumentos, então, podem ser usados.”(1994: 98)
Como Pera mostra em repetidos exemplos, esse expediente foi continuamente
utilizado nas discussões científicas. Darwin, por exemplo, o utilizava eximiamente
quando respondia a seus críticos.
Afora a amplitude da noção de racionalidade, existem também outras
conseqüências importantes dessa mudança de perspectiva. Como referimos de
passagem, a idéia de uma ruptura radical entre diferentes teorias solaparia o novo
modelo explicativo. Caso não houvesse continuidade alguma entre as teorias
121
mesmo que pequenas a plataforma arquimediana simplesmente desapareceria. É
urgente, por isso, repensar o caráter das revoluções científicas.
Conscientes dessa situação, os nossos autores procuram, de alguma forma,
responder a essa problemática. Laudan, por exemplo, vai criticar a compreensão
que a nova filosofia da ciência tem das mudanças científicas. Segundo ele, o que
se tem por grandes rupturas são, de fato, resultado de pequenas mudanças. Essas
pequenas mudanças, por sua parte, são empreendidas a partir de uma base comum,
seja essa base factual metodológica ou valorativa. Em última instância não há,
portanto, rupturas; essas são, antes, uma espécie de ilusão fruto de uma leitura
equivocada da história da ciência.
O próprio Kuhn parece seguir uma trilha semelhante quando afirma que:
“Da perspectiva histórica as mudanças a serem avaliadas são sempre pequenas.
Retrospectivamente alguma delas parecem gigantescas, e essas regularmente afetam um
corpo considerável de crenças. Mas todas elas foram preparadas gradualmente, passo a
passo, deixando apenas um princípio angular a ser colocada no lugar pelo inovador cujo
nome ele carrega. E esse passo também é pequeno, claramente prefigurado pelos passos que
foram dados antes. Apenas retrospectivamente ele ganha o status de princípio
angular.”(1991: 113)
Embora Kuhn não se comprometa com uma estrutura tripartida, como Laudan o
faz, para ele as grandes mudanças também escondem pequenas modificações. E
são essas pequenas modificações que devem ser explicadas pelo filósofo de
orientação histórica.
Uma solução consideravelmente distinta é oferecida por Marcello Pera.
Segundo Pera, embora o seja absolutamente comum, existem casos em que as
teorias novas nascem associadas a métodos novos. É o caso, por exemplo, da
física de Galileu e da teoria darwiniana. Nesses casos, não não existe uma base
metodológica comum para a escolha, como o método tradicionalmente aceito o
método aristotélico no caso de Galileu e o de Bacon no de Darwin é
incompatível com a nova teoria. Para que a teoria seja aceita, é preciso, portanto,
que o método novo também seja aceito. O problema é que mesmo que haja alguma
comunhão de valores e até mesmo alguma comunhão de regras essa
122
comunhão, por si só, não é suficiente para dar fim a controvérsia. Em virtude da
sua natureza vaga, é preciso que também exista acordo quanto à interpretação e à
aplicação desses valores e regras.
Todavia, essa tarefa pode se concretizar a partir de um debate, no qual as
partes disputantes se comprometam com uma certa interpretação e uma certa
aplicação específica desses valores e regras. Como diz Pera:
“Um debate, então, é sempre necessário, que é através do debate que os compromissos
dos disputantes vem à tona. Fora do debate não existem regras; dentro do debate uma regra
funciona como um valor e é um dos fatores sobre os quais a discussão e a refutação se
dão.”(1994: 185)
Para Pera, é o debate que traz à tona os acordos existentes. A seu ver, existem
mudanças consideravelmente maiores que aquelas permitidas pelo modelo de
Laudan e é justamente a existência de um debate que as torna racionais. Fora de
um debate, as pequenas continuidades existentes talvez não fossem suficientes
para mediar tamanhas mudanças; dentro de um debate essas pequenas
continuidades fornecem apenas as primeiras ferramentas de uma discussão que
pode recorrer a diversos outros fatores. Finalmente, não porque temer que esse
debate revele-se o que Kuhn denominou de debate de surdos. Por serem partes de
uma mesma tradição – que segundo Pera iniciou na Grécia e segue a mesma até os
dias de hoje – sempre haverá algum fator comum ao qual recorrer no transcurso do
debate.
Uma outra conseqüência importante dessa mudança de perspectiva diz
respeito à variedade de critérios que estão envolvidos na avaliação teórica. Embora
o próprio Thomas Kuhn, no posfácio de 1969, tenha chamado a atenção para
diferentes critérios a que estão submetidas as teorias
89
precisão, coerência,
plausibilidade, simplicidade é principalmente a partir do trabalho de Laudan de
1977 que passa a existir uma preocupação em analisar sistematicamente essas
questões. Como ressaltamos, Laudan põe em de igualdade aos problemas
89
A idéia de que existe mais de um critério para determinar a aceitabilidade das teorias é
seguramente anterior a Kuhn. Todavia, os positivistas lógicos e de certa forma também Popper
enfatizaram sobremaneira a adequação empírica como critério de aceitabilidade.
123
empíricos o que ele denomina de problemas conceituais. Esses problemas, que
podem ser intrateóricos, mas que freqüentemente dizem respeito à relação das
teorias com outras teorias, regras ou visões de mundo, segundo Laudan,
constantemente decidem o destino das teorias. Teorias incompatíveis com regras
metodológicas bem aceitas ou com visões de mundo consagradas, por exemplo,
devem ser preteridas àquelas teorias que se mostram em harmonia com essas
regras e visões de mundo.
Em Science and Values, quando um único método lugar a uma série de
diferentes métodos, a diversidade de critérios fica ainda mais patente. Não
somente diferentes critérios convivem sob a égide de um mesmo método, como
também diferentes métodos, com diferentes critérios, legislam diferentes
momentos do desenvolvimento científico.
Seguindo essa mesma trilha, Brown e Pera, quando enfatizam as diferentes
possibilidades de justificação teórica, também se comprometem com uma
multiplicidade de critérios de avaliação. Para Brown, no que concerne à disputa
entre Galileu e os aristotélicos, por exemplo, o critério de precisão quantitativa,
que hoje é tão caro à ciência contemporânea, não era decisivo. Cito o autor:
“(...) hoje, uma das primeiras questões a ser colocadas na comparação entre duas teorias
diria respeito à precisão quantitativa das suas conseqüências; essa questão o poderia ter
um papel comparável no debate do século XVII, porque a quantificação não era aceita ainda
como condição para a física esse era um dos pontos em questão. (...) Por outro lado, a
conformidade para com as Escrituras era um critério mutuamente aceitável para a adequação
de qualquer teoria física, e Galileu tentou mostrar que a visão Copernicana não entrava em
conflito com as Escrituras; nenhum argumento do tipo seria considerado cientificamente
relevante hoje. (1988: 218-9)
A ciência mudou muito desde o século XVII, e com ela mudaram também os
critérios avaliativos. Critérios que hoje podem ser considerados absurdos tiveram
um papel relevante no desenvolvimento passado da ciência. E, da mesma forma,
critérios que hoje parecem definir a atividade científica como tal foram
desconsiderados em outros períodos históricos. Além disso, os critérios não são
necessariamente excludentes. Como apontamos anteriormente, não era apenas a
124
conformidade com as Escrituras que mediava o debate entre Galileu e os
aristotélicos. Havia outros elementos comuns que também cumpriam esse papel.
Por fim, Pera acrescenta que a existência de uma diversidade de critérios é
um elemento positivo para o empreendimento científico. Segundo ele, em função
dessa diversidade, “quando ‘a pressão dos dados empíricos’ não é suficiente para
transferir o consenso de uma teoria para outra, a mudança não” precisa depender
“necessariamente do poder ou de fatores subjetivos.”(1994: 90) Pode haver outras
boas razões para se aceitar uma teoria, que não seja a sua adequação aos fatos.
Embora esse inegavelmente seja um fator importante nas disputas científicas, ele
não é o único relevante.
6.3 – A Dimensão prática e a dimensão social da ciência.
Afora a questão das continuidades teóricas, outros dois fatores
constantemente abordados nas discussões recentes sobre a racionalidade científica
concorrem para a articulação e a coesão do empreendimento científico. Esses
dois fatores constituem, na verdade, duas dimensões desse empreendimento: a sua
dimensão prática e a sua dimensão social.
No que diz respeito à dimensão prática, é importante voltar novamente ao
trabalho de Thomas Kuhn. Uma das principais questões levantadas pela The
Structure of Scientific Revolutions, reconhecidamente vincula-se ao que Kuhn
denomina de paradigma. Mesmo que esse conceito possa ter diferentes sentidos
vinte e dois, segundo o artigo de Margaret Masterman um sentido especial
que empresta à obra de Kuhn um caráter verdadeiramente inovador. Esse sentido é
o de paradigma enquanto realização exemplar.
Segundo Kuhn, nesse sentido, um paradigma é uma realização exemplar que
inclui lei, teoria, experimento e aplicação. A educação científica, como já o
dissemos, se fundamentalmente a partir dessas realizações. O estudante não
aprende isoladamente uma teoria para então aprender as suas aplicações. O
processo é um só. O estudante aprende a teoria a partir das suas aplicações e as
aplicações são ensinadas como parte de um contexto teórico maior. Os conceitos,
as leis e as teorias são, desde o início, encontrados numa unidade histórica e
125
pedagogicamente anterior, onde são apresentados juntamente com suas aplicações
e através delas.”(1970:46)
Dessa forma, quando, no transcorrer da sua educação, os estudantes
adquirem habilidade para utilizar essas realizações como modelo para abordar
outras questões, não necessariamente existe um acordo teórico sobre o que torna
essas realizações exemplares. O que os cientistas partilham é antes uma prática,
uma habilidade intelectual, fundamentada nessas realizações do que uma
interpretação das mesmas. Um acordo anterior sobre o que faz de determinadas
realizações, realizações exemplares, é simplesmente irrelevante para que tal
prática seja compartilhada. A habilidade para a utilização dos paradigmas é
independente de qualquer interpretação específica dos mesmos. Cito Kuhn.
“Cientistas podem concordar que um Newton, um Lavoisier, um Maxwell ou um Einstein
produziram uma solução aparentemente permanente para um grupo de problemas
especialmente importantes e mesmo assim discordar, algumas vezes sem estarem
conscientes disso, a respeito das características abstratas específicas que tornam essas
soluções permanentes. Isto é, podem concordar na identificação de um paradigma, sem,
entretanto entrar num acordo, ou mesmo tentar obtê-lo, quanto a uma interpretação ou
racionalização completa a respeito daquele. A falta de uma interpretação padronizada ou de
uma redução a regras que goze de unanimidade não impede que o paradigma oriente a
pesquisa.”(KUHN 1970: 44)
Segundo Kuhn, o que orienta e mantém coesa uma tradição é o conhecimento
prático alicerçado no paradigma e não um conjunto de regras teóricas sobre como
proceder cientificamente. A supressão do método não implica, portanto,
desarticulação da atividade científica. Não é ao método, seja que método for, que
cabe tal papel. Para compreender a coesão da atividade científica, é preciso atentar
para a dimensão prática da mesma e não para um conjunto de regras
metodológicas.
“Os cientistas trabalham a partir de modelos adquiridos através da educação ou da literatura
a que são expostos posteriormente, muitas vezes sem conhecer ou precisar conhecer quais as
características que proporcionam o status de paradigma comunitário a esses modelos. Por
atuarem assim, os cientistas não necessitam de um conjunto completo de regras. A coerência
126
da tradição de pesquisa da qual participam não precisa nem mesmo implicar a existência de
um corpo subjacente de regras e pressupostos, que poderia ser revelado por investigações
históricas ou filosóficas adicionais. (...) Os paradigmas podem ser anteriores, mais cogentes
e mais completos do que qualquer conjunto de regras para a pesquisa que deles possa ser
claramente abstraídos.”(KUHN 1970: 46)
A interpretação das realizações exemplares se torna relevante em tempos
de crise, quando o conhecimento prático, estruturado nessas realizações, deixa de
satisfazer as expectativas da comunidade científica. Quando o que está em jogo, é
a capacidade dos paradigmas para orientar a pesquisa, as suas respectivas
interpretações passam, então, a merecer análise. O que chama a atenção é que,
para Kuhn, também uma dimensão prática no processo de escolha entre
paradigmas. Como Bernstein salienta, “não é acidental o seu uso da linguagem do
discurso prático para clarificar disputas sobre teorias e paradigmas rivais”(1983:
54). Kuhn refere-se a esse processo através de uma linguagem muita próxima da
linguagem do discurso prático aristotélico. O autor fala de valores e não de regras
e fala de questões que exigem deliberação, interpretação e julgamento. O tipo de
racionalidade envolvida nesse processo também guarda consideráveis semelhanças
com a racionalidade prática (phronesis) aristotélica. Em casos nos quais não
regras disponíveis e nos quais diferentes opiniões estão colocadas é preciso definir
uma escolha tendo como base a experiência passada e o conhecimento das
circunstâncias dessa situação particular.
Como vimos, o conceito de racionalidade prática também é central para o
trabalho de Harold Brown. No seu livro, o autor acentua, sobretudo, as
proximidades existentes entre o juízo e as habilidades práticas. Segundo Brown,
exercita-se o juízo da mesma forma que exercita-se uma habilidade prática como,
por exemplo, andar de bicicleta. Não se aprende a andar de bicicleta seguindo
regras e a maioria das pessoas nem mesmo saberia descrever os procedimentos
responsáveis por tal ação, (quanto mais os princípios físicos relativos à sustentação
em equilíbrio). E, apesar disso, as pessoas mais diversas continuam a andar de
bicicleta. De forma semelhante, não se aprende a ‘ler’ uma fotografia de raios-X
seguindo regras, mas sim trabalhando com modelos, exemplos e observando o que
127
os mais experientes fazem. Para Brown, o mesmo vale para os juízos quanto a que
hipótese perseguir e a que soluções buscar frente aos problemas científicos. Não se
aprende a ajuizar a partir de regras abstratas, mas sim através da própria vivência e
do próprio exercício do juízo.
É importante ressaltar que não nada de misterioso nessa capacidade.
Como afirma o autor, ela simplesmente indica que “nós temos uma habilidade de
pensar e raciocinar que vai além do que é capturado pela nossa habilidade de
seguir regras.”(1988: 156) Seguindo Putnam, Brown sustenta que nós temos
conhecimentos incorporados em habilidades e que esses conhecimentos não são
necessariamente explicitáveis
90
. Não se trata, portanto, de uma intuição
sobrenatural ou de uma faculdade metafísica, e sim de uma habilidade
naturalmente explicável.
Um último elemento, da dimensão prática da ciência, pode ser destacado a
partir de uma leitura do trabalho de Larry Laudan embora boa parte dessa
argumentação não possa ser atribuída a ele. Para Laudan, um fator importante na
crítica às metodologias concerne à informação factual com a qual operamos.
Estamos continuamente aprendendo coisas novas sobre o mundo, e frente a esse
conhecimento muitas regras metodológicas podem se mostrar irrelevantes e até
mesmo perniciosas. Nesses casos, torna-se urgente repensar a desejabilidade de
tais regras
91
. De qualquer forma, o que importa aqui, é a compreensão de que o
conhecimento factual pode ser anterior ao conhecimento metodológico. Isto é,
podemos vir a conhecer características do mundo que vão de encontro à nossa
própria metodologia. As pesquisas não estão completamente pré-determinadas
teoricamente. No transcorrer das mesmas, situações ímpares podem exigir
mudanças de rumo. Como afirma Laudan: “a metodologia científica é ela mesma
uma disciplina empírica queo pode dispensar os mesmos métodos cuja validade
ela investiga.”(1984: 40) Além disso, essas mudanças não necessitam ser
completamente conscientes. Como o dissemos, estamos lidando com
conhecimentos que também estão incorporados em habilidades; um cientista pode,
90
Como o Putnam e Brown reconhecem, Polany foi o primeiro autor a chamar a atenção para a
importância de questões como essa.
91
Repensar a desejabilidade das regras ou a solidez desse conhecimento.
128
a partir dessas habilidades, buscar respostas que posteriormente ele reconhecerá
como distantes da sua metodologia
92
. E só, então, ele talvez reconheça a
necessidade de reformulá-la. Dito de outra forma, o cientista não necessariamente
consulta a metodologia a cada passo do seu trabalho. O seu trabalho fundamenta-
se também numa prática e essa prática pode levá-lo a questionar a sua
metodologia. Há uma interação contínua entre esses dois aspectos.
*
A segunda dimensão da qual falamos, a dimensão social, tem um papel
igualmente fundamental na articulação do desenvolvimento científico. E o trabalho
de Kuhn novamente é uma fonte importante para compreendê-la. Na ausência de
um algoritmo que determine inequivocamente as escolhas a serem tomadas, é à
comunidade científica que cabe tomar as decisões. Como Kuhn sublinha, isso não
equivale a dizer, todavia, que não existem procedimentos e condutas próprios da
atividade científica ou que a comunidade pode decidir da forma que lhe convier.
Isso significa, apenas, que é a comunidade de especialistas que decide o futuro das
teorias e que uma compreensão da estrutura dessa comunidade é condição de
possibilidade para a compreensão do processo de escolha teórica. Em um trecho
particularmente citado das Reflexões sobre Meus Críticos Kuhn é claro a esse
respeito. Cito o autor.
“Alguns dos princípios desenvolvidos em minha explicação da ciência são irredutivelmente
sociológicos, pelo menos por enquanto. Em particular, confrontada com o problema da
escolha da teoria, a estrutura da minha resposta é aproximadamente a seguinte: toma-se um
grupo das pessoas mais capazes com a motivação mais apropriada; adestrem-se essas
pessoas em alguma ciência e nas especialidades pertinentes à escolha em perspectiva;
incuta-se-lhes o sistema de valores e a ideologia vigentes em sua disciplina (e numa grande
extensão em outros campos científicos também); e, finalmente, permita-se-lhes fazerem a
escolha. Se essa técnica não explicar o desenvolvimento científico como nós conhecemos,
nenhuma outra o fará. Não pode haver um conjunto de regras adequadas de escolha que se
possam impor ao desejado comportamento individual nos casos concretos que os cientistas
encontrarão no decorrer de suas carreiras. Seja o que for o processo científico, temos de
92
Embora Laudan reconheça a possibilidade da crítica factual, ele em lugar algum trabalha em
termos de habilidade e prática.
129
explicá-lo examinado a natureza do grupo científico, descobrindo o que ele valoriza, o que
ele tolera e o que ele desdenha.”(1977: 293-4)
Diferente do que essa passagem poderia sugerir, para Kuhn, a relevância da
dimensão social da ciência não se esgota com os períodos de crise. Nas recorrentes
discussões sobre a ciência normal e os paradigmas, Kuhn insiste muito no papel
que a educação científica tem para o desenvolvimento científico. Para ele, essa
educação é um fenômeno essencialmente social, fundamentada principalmente nos
manuais científicos que descrevem as realizações exemplares: os paradigmas.
(Como o termo deixa transparecer, a própria idéia de realização exemplar
pressupõe uma comunidade para a qual essa realização seja exemplar
93
.) Os
estudantes novatos, quando expostos a essas realizações, absorvem as técnicas e os
compromissos teóricos que essa comunidade assumiu, passando a fazer parte dela.
Uma tentativa frustrada de resolver um problema de ciência normal por parte de
um cientista individual não acarreta uma crise justamente em função do caráter
comunitário dos paradigmas. Como Kuhn sublinha, numa situação dessas o
cientista que culpa os paradigmas é como um carpinteiro que se queixa das suas
ferramentas: ninguém o leva a sério. Considerações lógicas e empíricas isoladas
não são suficientes para abalar a confiança da comunidade científica nos seus
paradigmas embora elas sejam necessárias. É preciso mais. Somente uma série
de decepções e a promessa de uma teoria nova podem fazê-lo. De qualquer forma,
um cientista isolado não tem essa capacidade, por mais importantes que possam
ser os seus argumentos.
Afora Kuhn, a importância dessa dimensão da ciência também é reconhecida
por autores como Pera e como Brown. O projeto de Pera a esse respeito é bastante
claro. Segundo o autor, “nós não deveríamos tentar eliminar os desejos subjetivos
e as convenções sociais da ciência; antes, nós deveríamos tentar incorporá-los à
ciência sem sacrificar a sua inegável natureza de conhecimento rigoroso e
objetivo.”(1994: 47) Por todo o seu Discourses of Science, Pera procura mostrar
como o caráter rigoroso e objetivo da ciência não é incompatível com a sua
93
Uma realização pode ser considerada exemplar em função de alguma definição e não de uma
comunidade. Todavia, esse não é o sentido que Kuhn empresta ao termo.
130
natureza fundamentalmente social. Após as suas duras críticas às metodologias, ele
chega a afirmar ainda mais: esses elementos não apenas são compatíveis como
também estão intimamente vinculados. A ciência é capaz de produzir a espécie
de conhecimento que produz em função da sua estrutura comunitária. Na ausência
de um método que oriente as suas decisões, somente um debate dentro dessa
comunidade pode estabelecer quais são as visões mais adequadas. O debate não é
simplesmente um adereço que vem ilustrar os procedimentos verdadeiramente
científicos. É justamente em um debate que as teorias mostram a sua força; é nele
que a evidência empírica é apresentada e interpretada, que as relações intrateóricas
são discutidas e que o futuro da pesquisa pode ser vislumbrado. Fora de um
debate, a crítica é pálida porque feita dentro de pressupostos questionáveis. Dentro
de um debate, esses pressupostos podem ser trazidos à tona e discutidos
seriamente. Valores e critérios aparentemente vagos podem ser precisados e novas
questões podem ser colocadas. Não existe, obviamente, a certeza de que o debate
será conclusivo. No final, pode acontecer das partes permanecerem irredutíveis.
De qualquer forma, novas evidências terão sido esclarecidas e questões insuspeitas
terão sido reveladas. Mesmo que as partes específicas não cheguem a um acordo, o
debate empreendido fornecerá subsídio suficiente para que futuramente a
comunidade decida. A decisão é por certo falível, mas as garantias certamente são
maiores do que no caso hipotético de uma decisão individual.
O projeto de Brown em muitos aspectos é bastante semelhante ao de Pera.
Embora atribua um papel decisivo aos juízos nas decisões científicas, Brown
concede que, em última instância, o que torna esses juízos racionais é a sua
submissão à avaliação competente. A racionalidade é um fenômeno social, essa é a
questão. Como afirmamos, para Brown, pode haver juízo, mas não pode haver
racionalidade fora de um contexto social. A crítica empreendida e o debate
constituído na comunidade são condições necessárias para que uma crença seja
racional. Todavia, isso não implica precisar haver acordo no final do processo. Ao
cabo do debate, as partes podem continuar em desacordo, afinal de contas a
ciência é rica em desacordos racionais. Além disso, a exigência intransigente de
131
um acordo nos conduziria de volta ao modelo algorítmico que Brown
obstinadamente procura superar.
Por fim, cabe ressaltar algumas diferenças importantes que existem entre os
modelos de Brown e Popper. Para definir melhor a sua proposta, Brown aproxima
– e diferencia – sua posição com relação à desse autor. Cito Brown:
(...) O nosso novo modelo de racionalidade é consistente com o espírito do racionalismo
crítico, particularmente com sua demanda de que as afirmações aceitáveis devam ser
submetidas a avaliação crítica, mas as razões pelas quais esta avaliação é exigida, e o
modo como é realizada, são diferentes nas duas concepções. Para Popper, a avaliação crítica
é tudo quanto na racionalidade, e tal avaliação é uma questão de lógica no mais estrito
sentido do termo: (...) e não envolve os sujeitos cognitivos humanos em nenhum sentido
significativo. Um dos principais objetivos de Popper ...é minimizar o papel epistêmico dos
agentes cognitivos.(...) Por contraste, o nosso modelo alternativo de racionalidade torna os
agentes humanos que exercem o juízo centrais aos procedimentos racionais, e é a
falibilidade do juízo que conduz à exigência de avaliação crítica" (Brown 1988: 193-94)
Essa diferença pode ser claramente percebida no tratamento distinto dos autores ao
problema dos enunciados básicos. Enquanto para Popper a natureza da aceitação
desses enunciados é convencional, para Brown, na medida em que ela é fruto de
um juízo e de uma avaliação crítica, ela é genuinamente racional. Em Popper a
racionalidade opera depois que esses enunciados foram aceitos, enquanto em
Brown ela já opera na própria aceitação.
“A diferença entre as convenções popperianas e esses juízos pode parecer pequena, mas
lembre que, para Popper, as convenções estão fora do reino da racionalidade. Popper
continuamente sustenta que nós não podemos fornecer fundamento racional para aceitar
uma convenção no lugar de outra, e que é apenas após as convenções terem sido
estabelecidas que a noção de racionalidade passa a operar.”(1988: 194)
Além disso, a crítica para Brown é necessariamente social; para Popper, não
necessariamente. A crítica pode consistir simplesmente no desenvolvimento de
testes mais severos ou na eliminação de hipótese ad hoc.
132
6.4 – É possível uma racionalidade não algorítmica? (considerações finais)
“‘A história, de modo geral, e a história das revoluções, em
particular, é sempre de conteúdo mais rico, mais variada, mais
multiforme, mais viva e sutil do que’o melhor historiador e o melhor
metodologista poderiam imaginar. A história está repleta de ‘acidentes e
conjunturas e curiosas justaposições de eventos’ e patenteia a nossos
olhos ‘a complexidade das mudanças humanas e o caráter imprevisível
das conseqüências últimas de qualquer ato ou decisão do
homem.”(Butterfield citado por Feyerabend 1975: 19)
Nessas considerações finais, resta-nos oferecer uma resposta à pergunta que
de alguma forma orientou esse trabalho: Será possível uma racionalidade não
algorítmica? Embora essa resposta não possa ser definitiva, cabe aqui esboçar
alguns comentários a esse respeito.
Em primeiro lugar, parece correto afirmar que os dizeres de Butterfield,
entrepostos aos de Feyerabend em Contra o Método, estão plenamente
justificados. A ciência é extraordinariamente complexa para ser explicada a partir
de modelos inteiramente a priori ou de dicotomias simples. Oposições gerais
como, por exemplo, entre metodologia e psicologia social, racionalidade e
manipulação política, objetividade e relativismo; definitivamente são pouco
esclarecedoras a respeito do que se passa na atividade científica. Nas páginas
anteriores, falamos de problemas conceituais, retórica, debate, juízo, habilidades
intelectuais, valores e de muitos outros tópicos. Apesar disso, tocamos em apenas
uma pequena parte das questões envolvidas no empreendimento científico. E mais,
o fizemos apenas superficialmente. Resta um sem número de questões a ser
esclarecidas e uma quantidade considerável de elementos a ser explicitados. Os
estudos de caso surgem cada vez em maior número, problematizando antigas
crenças e surpreendendo pela riqueza encontrada no desenvolvimento científico.
Subvertendo uma expressão de Kuhn, podemos dizer que é provável que hoje
saibamos menos sobre a ciência do que cadas atrás. Ao menos, estamos mais
conscientes dessa ignorância.
133
Frente a essa constatação, é absolutamente claro que um modelo de
racionalidade excessivamente restritivo, como o seria um modelo algorítmico,
relegaria boa parte do empreendimento científico ao reino da irracionalidade. Se a
ciência e o comportamento dos cientistas mostram-se complexos, um modelo
restritivo ou os tornaria irracionais ou seria vago o suficiente para pouco esclarecer
as suas especificidades. Aparentemente, é preciso decidir, então, entre a
reformulação da noção de racionalidade e a desconsideração da mesma para
assuntos científicos. A primeira opção, como argumentamos, foi adotada por Kuhn
e por aqueles autores dos quais nos ocupamos; a segunda opção foi adotada, por
exemplo, por Hacking. Para Hacking, a palavra ‘racionalidade’ não é relevante
para a nossa compreensão da ciência por não se tratar de uma palavra
propriamente avaliativa. O conceito racional é um conceito geral que apenas alude
à nossa capacidade de raciocinar
94
. Desde o seu ponto de vista, simplesmente
existem questões mais importantes a ser trabalhadas.
Para aqueles que discordam da posição de Hacking e acreditam na
importância da reformulação, os textos que trabalhamos indicam alguns caminhos
importantes. O principal deles diz respeito à contextualização da racionalidade.
Segundo as concepções, com as quais viemos trabalhando, a noção de
racionalidade não se resume a alguma regra geral ou à observância de alguma
propriedade teórica específica. Até mesmo os valores, que Kuhn reconhece como
universais, são diferentemente aplicados e interpretados conforme os diferentes
contextos. Mais do que isso, alguns desses valores, como demonstra Brown, nem
sempre foram parte da ciência
95
. Apesar disso, a aceitação dos mesmos, assim
como a das respectivas interpretações, não é, de modo algum, arbitrária. Ela é
fruto de um debate, como acentua Pera, mediado pelos fatores próprios daquele
período do desenvolvimento científico e pelos juízos dos cientistas individuais.
Esse debate, por sua vez, se apóia nas continuidades teóricas existentes que
também não são nem necessárias, nem universais enquanto os juízos se fundam
na habilidade intelectual dos cientistas.
94
Não se quer dizer aqui que Hacking defende um modelo algorítmico.
95
Enquanto alguns valores foram incorporados à ciência, outros foram abandonados.
134
A fraqueza dessa reformulação, para muitos, talvez resida na falibilidade que
ela comporta. Ser racional não equivale a estar certo, segundo a noção de
racionalidade que emerge da obra desses autores. É possível ser racional e estar
errado. Essa fraqueza talvez se dilua, entretanto, se nos perguntarmos o que
realmente queremos dizer com expressões como certo e errado. Se, por certo e
errado queremos significar verdadeiro e falso num sentido forte, de
correspondência com as coisas, então, essa questão talvez não seja
necessariamente relevante. Pois, como aponta Laudan
96
, em última instância não
temos critérios para determinar a verdade das teorias. A teoria mais bem
corroborada da história, a mecânica de Newton, foi abandonada
97
, para citar um
exemplo. Abandonada em função de um debate que se apoiou em múltiplos juízos
e em diversos fatores da ciência. De qualquer forma, a relação desse novo modelo
com a questão da verdade é apenas um exemplo de questão que precisa ser
trabalhada. Como Feyerabend coerentemente aponta, em função de um
desenvolvimento desigual, novas idéias muitas vezes colidem com idéias
cristalizadas em áreas afins. Mais uma razão para discutir essas idéias, não para
abandoná-las.
Algumas das possíveis vantagens que esse novo modelo comporta também
precisam ser mais bem exploradas. Como vimos, a ciência, segundo esse modelo,
não é uma atividade inteiramente desligada das outras atividades humanas. Os
problemas conceituais que Laudan enfatiza aludem para um aspecto dessa
interação. Joseph Rouse, no seu brilhante ensaio Science and Power(1987), chama
a atenção para a necessidade de repensarmos a concepção tradicional de poder.
Conquanto a nossa compreensão do que seja a ciência tenha se transformado
bastante nas últimas décadas, o mesmo não se deu com a nossa compreensão do
poder. Boa parte dos estudos sobre ciência ainda considera o poder num sentido
extremo de dominação e manipulação, quando existem muitas elementos
importantes desse conceito que podem ser fundamentais para a compreensão da
atividade científica
98
.
96
E já apontara Popper.
97
Essa questão também não e tão simples, pois para fins de construção civil, por exemplo, ela ainda
é utilizada.
98
O trabalho de Hugh Lacey é uma contribuição importante ao assunto.
135
O papel histórico exercido pelo conceito de racionalidade, assim como as
diferentes transformações que ele sofreu, também precisam ser analisados com
mais cuidado. Até que ponto é interessante operar com um conceito de
racionalidade completamente desligado da concepção que os autores têm do
mesmo? Até que ponto a concepção dos autores influencia no comportamento dos
mesmos? Até que ponto Hacking não tem razão quanto à irrelevância relativa
dessa noção? Tradicionalmente, a filosofia da ciência assumia a racionalidade da
atividade científica por definição. Cabia ao filósofo, simplesmente, mostrar como
ela realmente operava. Hoje em dia, essa relação não é clara. Qual é o papel do
filósofo da ciência contemporâneo? Defender a racionalidade da ciência?
Explicitar os diferentes elementos envolvidos nela? A resposta a essas e outras
questões, que não tem espaço nesse trabalho, certamente enriquecerão a nossa
compreensão da ciência e da própria filosofia da ciência.
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