Download PDF
ads:
Universidade Federal de Santa Catarina
Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Departamento de Filosofia
Leon Farhi Neto
BIOPOLÍTICA
EM FOUCAULT
Florianópolis
2007
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
Universidade Federal de Santa Catarina
Leon Farhi Neto
BIOPOLÍTICA
EM FOUCAULT
Dissertação submetida ao corpo docente do
Departamento de Filosofia da Universidade
Federal de Santa Catarina, como parte dos
requisitos necessários para a obtenção do
grau de Mestre em Filosofia.
Mestrado em Ética e Filosofia Política
Orientador: Prof. Dr. Selvino José Assmann
Florianópolis
2007
ads:
3
Agradecimentos
Gostaria de mostrar meu reconhecimento, e agradecer sinceramente a todos os que
colaboraram, com sugestões, com críticas, com apoio afetivo ou financeiro, para a realização desta
dissertação: a meus professores; ao estímulo e às indicações de leitura, sempre oportunas, do meu
orientador; aos membros da banca de defesa; às diversas pessoas, colegas, amigos, que discutindo
comigo, ou simplesmente ouvindo-me, ajudaram-me a firmar meu ponto de vista; à paciência da
minha esposa e filhos; à bolsa de estudos do Cnpq.
Dedico este trabalho, em especial, à memória do meu pai.
4
Resumo
Atualmente, o termo ‘biopolítica’ é empregado por inúmeros autores, e não apenas no
domínio da filosofia política. Essa difusão, como era de se esperar, terminou por diluir, quando
não alterou completamente, o uso que o filósofo Michel Foucault fez do termo, nos anos 1970. Por
esse motivo, pareceu-nos interessante fixar, nesta dissertação, o significado ou significados
originalmente atribuídos ao termo ‘biopolítica’, por Foucault, em seus livros, artigos e entrevistas.
A pesquisa identificou cinco formulações, relativas a cinco mecanismos de poder distintos: o
poder medical, o dispositivo de ra, o dispositivo de sexualidade, o dispositivo de segurança e a
governamentalidade neoliberal. Nesta dissertação, reserva-se um capítulo para a análise de cada
um destes mecanismos. Na conclusão, busca-se responder à questão a respeito das diferenças e das
identidades entre essas cinco acepções de ‘biopolítica’.
ABSTRACT
As employed by countless authors, the term 'biopolitics', in present days, does not remain
the domain of political philosophy. The abrangence of the term today dilutes its original usage by
Michel Foucault in the 1970s. For this reason, it seemed interesting to map the meaning (or
significations) originally attributed to the term 'biopolitics' by Foucault in his books, articles and
interviews. This research has identified five formulations, related to five distinct power
mechanisms: medical, race, sexuality, security and neoliberalism. Each chapter analyses one of
these mechanisms separatedly. The conclusion, tries to address the differences between the five
identified meanings of 'biopolitics'.
5
Sumário
Abreviaturas bibliográficas ...........................................................................................................6
Introdução.....................................................................................................................................7
I. A política na sua relação com a medicina..............................................................................11
II. A biopolítica e a guerra.........................................................................................................32
III. A biopolítica e o dispositivo de sexualidade..........................................................................56
IV. A biopolítica e o pacto de segurança .....................................................................................80
V. O governo segundo a racionalidade econômica ...................................................................107
Conclusões e depois..................................................................................................................131
Referências ...............................................................................................................................141
6
Abreviaturas bibliográficas
Lista de abreviaturas utilizadas para referenciar os livros de Michel Foucault; nas notas de pé de
página, depois da abreviatura, é indicada a página do texto referenciado.
MTC: Les mots et les choses. [1966]
LPP: Le pouvoir psychiatrique: Cours au Collège de France, 1973-1974.
SEP: Surveiller et punir: naissance de la prison. [1975]
ANO: Les anormaux: Cours au Collège de France, 1974-1975.
IDS: Il faut défendre la société: Cours au Collège de France, 1975-1976.
VSR: Histoire de la sexualité I: La volonté de savoir. [1976]
STP: Sécurité, territoire, population: Cours au Collège de France, 1977-1978.
NBQ: Naissance de la biopolitique: Cours au Collège de France, 1978-1979.
UDP: História da sexualidade II: L’usage des plaisirs. [1984]
DE1: Dits et écrits. Vol. I. 1954-1975.
DE2: Dits et écrits. Vol. II. 1976-1988.
Entre colchetes, aparecem as datas de publicação.
7
Introdução
O termo ‘biopolítica (biopolitique), utilizado para designar algum tipo de prática
política, interessa à reflexão contemporânea. Ele é empregado por inúmeros autores da filosofia,
das ciências políticas, da sociologia, da economia, da medicina, da psicanálise, muitos dos quais
afirmam ser, em certa medida, seguidores da obra de Foucault. Ele intriga as centenas de milhares
de leitores de Foucault, das mais variadas áreas de atividade, no mundo inteiro, e desencadeia
incontáveis comentários. Na seqüência e desenrolar de sua recepção, o termo biopolítica’ foi
associado a um leque de significados, às vezes opostos entre si. Tem sido empregado, em grandes
linhas, para qualificar as metafísicas dos genocídios, para caracterizar as políticas de exclusão de
grandes parcelas das populações, para designar as forças que formatam nossos corpos, para rotular
os modos alternativos de subjetivação de feministas, de homossexuais, de multidões nas
academias de ginástica, de presidiários, como a face oculta e denunciada do Estado de direito,
como a essência totalitária de toda forma de soberania, como a visão de mundo ocidental que
sacraliza a vida individual, como a política de salvaguarda da dignidade da vida, como o
movimento de resistência dos corpos aos processos de sua sujeição. A freqüência e a difusão do
uso do termo, como era de se esperar, terminou por diluir, pelo menos em parte, quando não
alterou completamente, o uso original que Foucault fez do termo. Entretanto, isso, de modo algum,
representaria, para o próprio Foucault, um abuso. Foucault escreveu sua obra como se produz uma
ferramenta, justamente para ser manipulada, na construção de algo outro, que caminhasse para
além dela. Seu compromisso não era propriamente com a verdade, seja ela absoluta ou relativa,
não importa, mas com os efeitos de verdade, muitas vezes políticos, que as ferramentas, por ele
forjadas, pudessem induzir. Diante dessa oferta, dessa instrumentalidade, dessa abertura para o
novo, o projeto desta dissertação é conservador. Mas, é preciso deixar claro, para não frustrar
expectativas, não faremos aqui, o que seria um caminho possível e intrigante, a listagem, a
reconstituição, a comparação, o inquérito dos usos posteriores, próprios e impróprios, apontando
aqui e ali, os erros, os desvios, as transgressões, as incompatibilidades. Preferimos dedicar nossos
esforços à reconstrução, a mais fiel possível, das formulações que Foucault fez da noção de
8
biopolítica, em suas palestras, entrevistas, artigos, livros e cursos, sem recorrer explicitamente às
inúmeras interpretações feitas por comentadores.
A produção de Foucault a respeito da biopolítica concentrou-se em uns poucos anos
entre 1974 e 1979
1
. Apesar disso, essa concentração e proximidade não diminuíram as
ambigüidades dessa produção. Nossa primeira leitura desses diversos textos e falas pressentiu
algumas diferenças relevantes entre as diversas formulações. Elas não nos pareceram, à primeira
vista, totalmente congruentes e articuláveis, umas com as outras, nem tampouco, absolutamente
estranhas entre si. Resolvemos, então, como projeto de dissertação, marcar, traçar e enfatizar os
contornos dessas formulações, tanto para mostrar o uso próprio que Foucault fez do termo, como
para relevar, no interior desse uso – digamos – autêntico, variações muito importantes
2
.
Ao final da pesquisa, identificamos não mais nem menos do que cinco formulações, cada
uma remetendo a um confronto da política com algum outro domínio, aparentemente, exterior a
ela – saúde, guerra, sexualidade, segurança ou economia. Cada um desses cinco confrontos,
analisados por Foucault, é abordado em um capítulo à parte desta dissertação. (1) Assim, no
primeiro capítulo, em que a biopolítica aparece relacionada ao poder medical, reconstituímos as
interferências entre Estado e medicina, a partir do século XVII, na Europa. (2) No segundo
capítulo, são analisadas algumas modalidades pelas quais foram pensadas, desde o século XVI, as
correlações entre política e guerra e a precedência possível de uma relativamente à outra. A
biopolítica se caracteriza, nessa formulação, pela articulação do discurso e da prática da guerra
com a noção de raça biológica. (3) As conexões entre política e sexualidade são abordadas no
terceiro capítulo, em que a biopolítica se apresenta como dispositivo de sexualidade. A formação
do complexo prático-discursivo da sexualidade e não simplesmente o da repressão sexual
aparece intrinsecamente vinculada aos interesses políticos da burguesia. (4) No quarto capítulo, é
discutida a questão da garantia, assumida pelo Estado, da segurança da população. A biopolítica
aparece como dispositivo de segurança, resultante da absorção, pelo Estado, de certas práticas do
1
Não tivemos acesso às lições inéditas de 1980, proferidas por Michel Foucault, no Collège de France, e intituladas
Du gouvernement des vivants. Porém, se nos atermos ao resumo do curso, disponível em DE2, essas lições, apesar
do que sugere o título, não tratam do tema da biopolítica.
2
Vale frisar, Foucault não foi o primeiro autor a utilizar o termo. Esposito assinala três correntes distintas,
“sucessivas no tempo” e predecessoras de Foucault, nas quais o termo biopolítica’ exerceu um papel central. A
primeira, anterior à Segunda Guerra, corresponde à concepção organicista do Estado, como um só corpo e espírito,
cuja vitalidade varia segundo pulsões naturais, traços culturais e raciais específicos, em oposição à concepção
jurídica do Estado constitucional. A segunda, nos anos 1960, segue uma investigação antropológica, acerca da
natureza humana, e busca relacionar a civilização e a política com o desdobramento de leis biológicas elementares,
destacando entretanto o papel emancipador das forças espirituais. A terceira teve início nos anos 1970, tratava-se
de uma abordagem naturalística da política, segunda a qual a ordem política deve regular-se pelas condições
naturais do homem e da sociedade, e não esforçar-se em superá-las. Cf. ESPOSITO, Roberto. Bíos: Biopolitica e
filosofia. Torino: Einaudi, 2004. Pp. 6-14.
9
poder pastoral. (5) Finalmente, o último capítulo aborda a reflexão liberal e neoliberal sobre a
possibilidade do governo pela economia, da intervenção do Estado na sociedade civil e do governo
da população mediante a manipulação das variáveis do mercado. No quinto capítulo, buscamos
defender, a partir de Foucault, a pertinência da aplicação do termo ‘biopolítica’ às técnicas
neoliberais de governo.
Com a reconstituição e a análise dessas correlações, estabelecidas por Foucault, entre
política e saúde, política e guerra, política e sexualidade, política e segurança, política e economia,
que estão na base de cada formulação, nos encontramos diante do seguinte problema: as cinco
formulações da biopolítica, afinal de contas, o somente abordagens distintas de um mesmo
objeto, ou elas o, representam, designam, coisas diferentes? Quando falamos de biopolítica em
Foucault, falamos de cinco fenômenos alheios entre si, ou haveria entre eles algum tipo de
parentesco? E, se for o caso, qual seria esse parentesco? De que maneira poderíamos reunir as
diferentes formulações como elementos de um mesmo conjunto?
É certo, há inúmeros critérios para estabelecer a pertença de elementos individualizados a
um conjunto, desde a pura arbitrariedade até a suposição, por parte do colecionador, de uma
identidade absoluta entre esses elementos. Entre um extremo e outro, restam uma miríade de
arranjos possíveis, combinando uma dose de idiossincrasia do colecionador com uma dose de
familiaridade dos elementos. Nosso objetivo, então, é duplo: estabelecer as diferenças entre as
cinco formulações, e isolar o seu eventual critério de conjunção. De certo modo, nos colocamos,
diante dos textos de Foucault, com uma pergunta cuja forma se assemelha àquela que Sócrates fez
a Protágoras:
“Sócrates: [...] Explica-me isso agora com mais particularidades, se a virtude é, de
fato, algo completo, vindo a ser partes dela a justiça, a temperança e a santidade [e a
coragem e a sabedoria], ou se essas [cinco] qualidades, como disse pouco, são
apenas nomes diferentes de uma única unidade. É só isso que desejo saber.
Protágoras: A essa pergunta é muito fácil responder. A virtude é um todo, e as
qualidades a que te referiste são partes desse todo.
Sócrates: Da mesma forma em que as partes do rosto são partes: a boca, o nariz, os
olhos, as orelhas, ou como as partes do ouro, que não diferem umas das outras e do
conjunto a não ser pela grandeza e pequenez?”
3
Dispomos de cinco formulações, em princípio, como de cinco partes da biopolítica. Mas
são essas cinco partes realmente distintas entre si, mesmo permanecendo complementares e
3
PLATÃO. Protágoras, 329e. Cf. também 349b. Protágoras - Górgias – Fedão. Trad. Carlos Alberto Nunes. 2 ed.
Belém: Edufpa, 2002 [1973].
10
indissociáveis ou, pelo contrário, são apenas formulações diferentes da mesma coisa, cinco
aspectos da mesma substância?
No contorno e na descrição dos confrontos da política com cinco outros domínios, tal
qual aparecem em Foucault, adotamos uma abordagem genética, isto é, ao longo dos cinco
capítulos que compõem esta dissertação, perseguiremos as formulações feitas por Foucault
segundo a série de sua emergência, na disposição cronológica dos textos. Apesar de convencional,
essa metodologia apresenta algumas vantagens. Permite ilustrar a expansão da noção de
biopolítica, a partir de uma aplicação quase local, o poder medical, para domínios cada vez mais
abrangentes: a segurança, a economia. Permite acompanhar, no desdobramento do pensamento de
Foucault, o local de emergência e o deslizamento dos significados de diversas noções importantes,
como: biopoder, dispositivo, governamentalidade. Paralelamente, mas de modo vinculado ao
processo de elaboração das diferentes formulações e ao deslizamento correspondente da noção de
biopolítica, a abordagem genética nos possibilita observar alguns deslocamentos importantes no
pensamento de Foucault a respeito do poder, principalmente: a mudança de enfoque dos micro
para os macropoderes; a variação de perspectiva do nível das instituições para o nível do Estado; o
reforço da abordagem nominalista; a importante passagem da compreensão da relação de poder
como relação de força para a compreensão da relação de poder como relação de governo.
Veremos, no depois das conclusões desta dissertação, como essa última passagem é fundamental
para articular a biopolítica, ou sua superação, à possibilidade da ética enquanto auto-produção de
subjetividade.
11
I. A política na sua relação com a medicina
A primeira formulação da biopolítica gira em torno da interseção, da interferência mútua,
entre política e medicina. A primeira formulação da biopolítica tem como ponto de partida a
problematização da medicina. O termo ‘biopolítica’ surge publicamente, pela primeira vez, a
nosso saber, numa rie de conferências proferidas por Foucault sobre medicina social, em 1974,
no Rio de Janeiro. Essas conferências, das quais temos acesso a três, foram retomadas na grande
compilação de seus ditos e escritos; elas constituem o principal material deste primeiro capítulo
4
.
O cruzamento entre política e medicina pode ser analisado a partir de duas perspectivas:
seja como incorporação da medicina na política, isto é, como absorção das funções da medicina
pelo Estado – e então poderíamos falar de uma estatização da medicina –, seja, no sentido inverso,
como processo de formação da autoridade medical, mediante o qual o médico adquire, nas
relações de poder que atravessam o tecido social, uma posição de destaque, uma autoridade
política. Esses dois sentidos possíveis da leitura das relações que se estabelecem entre política e
medicina correspondem a duas mobilizações diferentes, em Foucault, do significado da palavra
‘política’.
A primeira mobilização refere a política ao conjunto das instituições e das práticas que
formam o aparelho de Estado aparelho que encerra as funções e os cargos de execução de
políticas públicas, os processos de constituição, aplicação e coação de comandos e leis, de
estabelecimento dos vínculos de representação – e concernem à administração e ao governo de um
país ou nação. Nessa primeira acepção, remete ao Estado, ao aparelho de Estado, tudo o que é
político, enquanto se lhe opõe, como não política, a sociedade civil. De acordo com esse
significado do político, entende-se o poder como algo central e divisível, fala-se da divisão de
poderes na própria unidade do Estado. Essa primeira acepção de política é aquela, tradicional, que
4
Em 1994, a maioria dos artigos, capítulos de livros e entrevistas de Michel Foucault foi agrupada e publicada, em
quatro volumes, com o título Dits et écrits I-IV, sob direção de Daniel Defert e François Ewald. Em 2001, os
mesmos textos foram reimpressos em apenas dois volumes, DE1 e DE2. Nós faremos, nesta dissertação, referência
a essa segunda apresentação. Quatro fórmulas permitem encontrar, facilmente, a partir do número de página da
segunda apresentação (2001), a paginação correspondente na primeira apresentação (1994):
DEI = DE1-28; DEII = DE1-868; DEIII = DE2; DEIV = DE2-819.
12
associa poder e Estado, limitando, assim, o exercício do poder às práticas e às instituições que
constituem o Estado. Em certos momentos, e de acordo com uma estratégia determinada, Foucault
vai apenas estender esse significado, para considerar política toda atividade que de algum modo
remete ao Estado. Como exemplo disso, podemos mencionar uma entrevista de 1973, em que
Foucault caracteriza a forma da ação política, como aquela cujo alvo é o poder central, e como
aquela em que os agentes não atuam isoladamente, mas constituem um grupo, um coletivo. Assim,
a respeito dos presidiários, quando, ao fazerem “reivindicações que são do domínio de seu
interesse imediato, [eles] as colocam de maneira coletiva, apoiando-se sobre a opinião pública,
dirigindo-se não a seus superiores imediatos, aos diretores de prisão, mas ao próprio poder, ao
governo, ao partido no poder. A partir desse momento, sua ação tem uma forma política”
5
. As
condições determinantes de uma ão política são o seu caráter coletivo e a sua remissão à opinião
pública e ao Estado. Não importa tanto o conteúdo da reivindicação. Esse conteúdo não concerne
necessariamente à sociedade como um todo, nem se trata necessariamente de ações que visam a
um objetivo geral e abrangente, mas pode, muito bem, tratar-se de interesses menores, imediatos e
restritos a um grupo. É somente a forma coletiva como essa reivindicação é feita, e a quem ela é
dirigida, que a caracteriza como política.
Em uma segunda forma de mobilização da palavra, mais típica de Foucault, o político se
refere a toda relação de força presente entre grupos sociais e entre indivíduos em sociedade. Desse
modo, em resposta a um interlocutor que lhe questiona a respeito de sua acepção de ‘político’,
Foucault responde “que o conjunto das relações de força em uma da sociedade constitui o domínio
da política, e que uma política é uma estratégia mais ou menos global que procura coordenar e
finalizar essas relações de força. [...] Dizer que ‘tudo é político’ quer dizer essa onipresença das
relações de força; mas é dar-se a tarefa ainda apenas esboçada de desembaraçar esse nó”
6
. Estamos
aqui diante de um uso particular da palavra ‘política’, em que ‘política’ significa toda organização
estratégica, mais ou menos refletida e orientada para objetivos, de relações de força. A essa
mobilização da política’ corresponde um modo específico de inteligibilidade do poder, tal qual
Foucault expressa em Vigiar e punir. O poder político não é o poder central do Estado, não remete
exclusivamente ao Estado, como super-estrutura da dominação da classe burguesa sobre a
proletária. Para Foucault, o poder não se localiza em um único ponto, nem se polariza segundo
5
FOUCAULT, Michel. Prisons et révoltes dans les prisons. Texto 125 [1973]. In: DE1, 1296.
Importante: ao longo desta dissertação, quando os tradutores não são explicitamente mencionados, as versões
portuguesas de textos originais são de nossa autoria. Por questões práticas, optamos por omitir os textos originais,
apresentando apenas o texto traduzido. Ao final deste estudo, nas referências, indicamos ao leitor interessado a
lista de obras de Foucault já traduzidas para o português.
6
FOUCAULT, Michel. Les rapports de pouvoir passent à l’intérieur des corps. Texto 197 [1977]. In: DE2, 233.
13
uma única forma de tensão social. Sobretudo, o poder é absolutamente relacional e presente em
toda a espessura do corpo social; “o poder é uma rede de relações sempre tensas, sempre em
atividade”
7
, não sendo, portanto, propriedade, essência ou privilégio de ninguém, de nenhuma
classe. Foucault procura analisar o poder não como o produto de um contrato entre iguais, nem
mesmo como a resultante de uma conquista, de uma vitória, mas como uma “batalha contínua” e
difusa, que ocorre em múltiplos pontos, atravessando indistintamente Estado e sociedade civil. As
relações de poder se configuram em rede de “micropoderes”, que não atinge jamais uma
configuração definitiva, e permanece aberta às inversões nos seus nós. As inversões das relações
de poder se efetuam localmente, nos múltiplos campos de batalha, e “[...] nenhum episódio
localizado [dessas inversões] pode se inscrever na história a o ser mediante os efeitos que induz
em toda a rede, na qual espreso”
8
. Não existe apenas uma relação de poder, uma única relação
de dominação, mas cada uma dessas grandes formas de poder, como o Estado, como a relação
entre classes, é constituída por uma miríade de pontos de confronto interligados, reconduzindo de
um ponto a outro as tensões, de tal forma que essas grandes integrações, o poder do Estado, o
poder do capital, são determinados pelos múltiplos pontos de confronto, e não o contrário. A rede
de micropoderes, a microfísica do poder, que ordena os gestos, os comportamentos, o desenho dos
corpos, nas sociedades ocidentais, não deriva do poder do Estado, não é efeito da dominação
burguesa, mas, por contra, o poder do Estado e a dominação burguesa se tornam possíveis,
historicamente, porque tomam apoio sobre ela. Essa trama de poderes é constituída de múltiplos
enfrentamentos, do múltiplo combate de forças contra forças, de corpos contra corpos; não é
efeito, não se determina pela forma de controle do Estado, não tem a forma da lei, não deriva de
uma troca de direitos resultante de um contrato, não reflete uma Constituição. Essa trama de
poderes que se exercem entre os corpos, modelando-os politicamente, seria o objeto de estudo de
uma “anátomo-política” (anatomo-politique), que não é o estudo do Estado ordenado como um
corpo, nem do corpo ordenado como um Estado, mas o estudo da forma como os corpos dos
homens são investidos politicamente, o estudo das tecnologias de poder que, a um tempo,
modelam esses corpos e fazem deles o suporte de seu exercício. A anátomo-política revela as
7
SEP, 35.
8
SEP, 36. Essas inversões não se adquirem, nem se estabilizam, apenas mediante uma nova forma de controle do
Estado. Por isso, para Foucault, tomar o controle do Estado não significa necessariamente alterar a forma como o
poder é exercido, porque o poder não se focaliza no Estado, mas penetra a espessura da sociedade”. Assim, de
nada adianta o proletariado tomar o Estado, sem uma mudança efetiva no modo como o poder é exercido, sem
mudaas nos mecanismos microfísicos de poder. Essa concepção vai de encontro à proposição do jovem Marx:
“[...] toda classe que aspira à dominação [...] deve primeiro conquistar o poder político
8
. MARX, Karl; ENGELS,
Friedrich. L’idéologie Allemande. (1845-1846) Première partie. Trad. Hans Hildebrand. Paris: Nathan, 2003
[1846]. P. 56 (grifo nosso).
14
técnicas pela quais a rede de micropoderes faz dos corpos dos homens o ponto de apoio que a
torna possível. Revela como o poder político faz dos corpos o local de seu exercício, revela como
a política se ancora nos corpos individuais. A partir dessa relação estreita entre política e corpo,
pode-se entender a importância do papel que a medicina vai passar a exercer, na determinação das
formas e das normas, pelas quais o corpo humano politizado será constituído.
Foucault, em suas entrevistas, artigos e livros vai oscilar entre essas duas mobilizações da
palavra ‘política’. O que pode ser entendido seja como uma falta de rigor, seja como um artifício,
uma oscilação permitida, que visa a introduzir uma ambigüidade proposital na significação da
palavra. Problematizar o político é fazer com que o campo de atuação do propriamente político se
amplie, e passe a incorporar lugares e atividades, lutas e reivindicações, antes considerados
apolíticos, isto é, com um interesse local, isolado do todo da sociedade. Problematizar o político é
abordar o campo social, permeado por relações de força, sem uma pré-concepção dada da
política; é tentar reinventar a grade de inteligibilidade da política, é flexibilizar os seus
significados, é introduzir ambigüidades onde o seu sentido parece claro, para criar um conjunto de
noções articuladas entre si que permita pensar a política de uma outra forma.
Problematizar a medicina quer dizer analisá-la a partir das relações de poder. As relações
estabelecidas entre seres humanos saudáveis, pacientes, médicos e instituições dos mais diversos
tipos, que constituem o poder medical, formam uma trama que se intercala, que atravessa, que
muitas vezes coincide com a trama de poderes que cobrem a sociedade. No poder medical,
aparecem entrelaçadas as duas mobilizações da política’. O poder medical possui dois vieses.
Significa tanto o processo de sedimentação social da autoridade medical, como a estatização da
medicina. Politizado, o poder medical exerce um papel crucial na anátomo-política, nos diversos
processos de configurão disciplinar dos corpos individuais, enquanto, em seu outro viés, o poder
medical estatizado participa da biopolítica, do modo pelo qual o Estado se encarrega da saúde das
populações.
As três conferências do Rio, de outubro de 1974, marcam um momento em que o ponto
de vista analítico de Foucault começa a se deslocar em relação a Vigiar e punir, saindo do plano
estrito de uma microfísica, próprio à análise de instituições como a prisão, o asilo ou o hospital, e
a interessar-se pelo plano da macrofísica do poder, em que a palavra ‘política’ faz uma referência
ao modo pelo qual o Estado procura orientar as relações de poder
9
. Como veremos a seguir, nas
9
Quando Foucault profere as suas conferências no Rio de Janeiro, em outubro de 1974, e introduz a noção de
biopolítica, o texto de Vigiar e punir estava pronto, em suas grandes linhas, apesar de ter sido publicado em
março de 1975. Segundo a cronologia estabelecida por Daniel Defert, Foucault havia terminado “o livro sobre
os suplícios” em agosto de 1974. DEFERT, Daniel. Chronologie [1994]. In: DE1, 61.
15
duas primeiras conferências, Foucault opta por uma visada mais próxima à primeira mobilização
da palavra ‘política’, e considera as relações entre medicina e Estado: (1) a primeira conferência
trata de uma questão contemporânea, a crise do modelo europeu de medicina social; (2) a segunda
conferência, do surgimento e da transformação da biopolítica, desde o século XVII; (3) na terceira,
porém, a análise volta a perseguir a trama fina da anátomo-política, nos moldes de Vigiar e punir,
e trata da disciplinarização do hospital. A série de conferências sobre a medicina social acontece
no Rio de Janeiro, e se dirige a uma platéia provavelmente constituída por médicos e outras
pessoas interessadas no “funcionamento atual das instituições do saber e do poder medical”
10
, no
assunto das políticas públicas de saúde. Uma platéia supõe-se tomada pelo interesse reflexivo
a respeito da aplicabilidade, no Brasil, do modelo de saúde pública em vigor nos países europeus.
(1) Segundo Foucault, a formatação do modelo europeu atual de políticas públicas da
saúde remonta à época das discussões levantadas pelo lançamento do Plano Beveridge, em 1942,
na Inglaterra, cujas propostas foram, em boa parte, transformadas em lei e aplicadas nos anos
seguintes
11
. Elas tiveram grande inflncia em vários países do pós-guerra europeu, na formação
do que ficou sendo conhecido como o Estado de bem-estar, o Estado-providência etc. Com as
discussões provocadas pelas propostas de Beveridge, não apenas na Inglaterra, mas na totalidade
dos países desenvolvidos ocidentais, a saúde passa a ser uma das reivindicações políticas presentes
nos programas eleitorais das mais variadas tendências. É certo que o Estado, na Europa, ocupou-se
da saúde física dos cidadãos desde o século XVIII, mas antes de 1942, o fim último dessa
ocupação era o próprio Estado, e a preservação da força física nacional só valia enquanto força de
produção ou força militar própria a um Estado. Com o Plano Beveridge, -se uma inversão: não é
mais o indivíduo que está a serviço do Estado, como trabalhador ou soldado, mas é o Estado que
se coloca a serviço dos indivíduos. Garantir a saúde dos indivíduos, ou o seu direito à saúde,
torna-se uma das principais funções do Estado. “Em 1942 em plena guerra mundial que mata
quarenta milhões de pessoas –, se consolidou não o direito à vida, mas um direito diferente, mais
importante e mais complexo, que é o direito à saúde”
12
. As exortações morais à higiene,
características da moral do corpo no século XIX, vão dar lugar a uma nova moral que determina a
relação dos indivíduos com seus corpos, mais voltada para o direito a estar doente e a interromper
o trabalho por motivos de saúde. Se a saúde e a higiene pessoal, no século XIX, representam para
10
FOUCAULT, Michel. Crise de la médecine ou crise de l’antimédicine. Texto 170 [1974]. In: DE2, 40.
11
William Henry Beveridge (1879-1963) foi um economista inglês. O plano que leva seu nome associa propostas
keynesianas de pleno emprego a um sistema administrado pelo Estado de cobertura de riscos à saúde.
12
FOUCAULT, Michel. Ibidem, p. 40.
16
o indivíduo, na sua relação com seu próprio corpo, uma obrigação moral em relação à sociedade e
ao Estado, o direito à interrupção das atividades em caso de doença passa a ser pensado, em
meados do século XX, como possibilidade moralmente justificada e até mesmo como obrigação
do Estado em relação ao indivíduo. A assistência à saúde efetuada pelo Estado passa a ser
entendida como forma de correção das desigualdades sociais devidas às diferenças de renda. O
fato de que o Estado tome em mãos a saúde de todos, como sua obrigação, viabilizada pelos
impostos, é entendido como instrumento de correção das desigualdades sociais.
Quando se fala em crise da medicina, nos anos setenta, fala-se da estagnação dos
resultados obtidos com a estatização da medicina. Mas essa crise, como acontece, segundo
Foucault, com qualquer crise, é apenas o paroxismo de um processo histórico que precisa ser
reconstituído. Para Foucault, a crise da medicina e o fracasso das políticas de saúde, nos anos
setenta, têm sua gênese histórica naquele momento em que a saúde se torna preocupação do
Estado. Para entendermos a crise atual, é necessário conhecer e desvendar o processo histórico que
culmina nela. Devemos nos interrogar sobre o modelo com que a medicina se desenvolveu na
Europa durante os séculos XIX e XX, para sabermos em que medida ele deve e pode ser corrigido,
pode e deve ser aplicado, em outros lugares, além da Europa e dos Estados Unidos. Preocupado
com essas questões, Foucault ressalta três aspectos da crise atual: o risco medical, a sociedade da
norma e o consumo da saúde.
O que está em jogo no risco medical, para Foucault, não é a eventual ignorância dos
médicos, mas exatamente aquilo que deriva, ou que pode derivar, do saber medical. Foucault se
interessa por aquilo que ele chama deiatrogenia positiva”
13
(iatrogénie positive), isto é, as
doenças decorrentes de práticas medicais regulares, não de erros ou negligências dos médicos.
Doenças e males cuja causa é justamente a eficácia da medicina científica, o a sua ineficácia. As
atividades humanas, principalmente com o desenvolvimento do capitalismo industrial, têm
conseqüências diretas e decisivas sobre a vida e a evolução das espécies vivas do planeta. O que
interessa Foucault, nesse momento da conferência do Rio, quando isola o objeto para uma possível
bio-história, não concerne os efeitos da atividade humana sobre o todo da vida biológica, mas se
limita ao risco medical, resultante dos efeitos do progresso científico da medicina sobre a própria
espécie humana. Exemplos como a intoxicação farmacêutica, os efeitos colaterais desconhecidos
das intervenções medicais, o tratamento por antibióticos das doenças infecciosas, que reduzem a
imunidade, ou os resultados da manipulação genética, cujo desenrolar é imprevisível, senão fora
de controle, permitem afirmar que a ação medical passa a afetar não apenas as vidas individuais,
13
FOUCAULT, Michel. Ibidem, p. 46.
17
mas a vida da espécie humana como um todo. A bio-história, para Foucault, seria o estudo dos
efeitos da ão medical sobre a vida da espécie humana. Esses efeitos são tanto mais relevantes
quanto mais abrangente se torna a ação medical.
É justamente a enorme abrangência da ação medical, a medicalização sem limites de
nossas sociedades normalizadas, que constitui o segundo aspecto da crise atual da medicina.
Podemos falar em um domínio próprio da ação medical? Em princípio, a medicina se limitaria às
doenças e às solicitações do paciente doente, às suas dores, a seu mal-estar. A doença e a demanda
do paciente deveriam constituir o domínio da medicina. Para Foucault, porém, “não nenhuma
dúvida, a medicina foi muito além”
14
. Para além da solicitação do doente, é a medicina que se
impõe a ele, em “ato de autoridade”
15
. A medicina judiciária, os exames medicais no campo do
trabalho, os check-ups aconselháveis ou obrigatórios são alguns exemplos do poder medical, cujas
funções normalizadoras debordam a demanda do paciente. Para além da doença, a própria saúde
se constitui como campo para a intervenção medical. As políticas de prevenção de doenças e de
controle da saúde, o acompanhamento médico constante não remetem diretamente à patologia,
mas significam a abertura da saúde como domínio medical. Definir as normas da saúde e dos
comportamentos saudáveis e obrigar os indivíduos a agir em conivência com essas normas tornou-
se, para além da simples função terapêutica, uma das grandes atribuições do poder medical. A
sociedade passa a se regular, a se ordenar, a se condicionar, de acordo com normas físicas e
mentais que são determinadas por processos medicais. Mais do que uma sociedade regida pela lei,
para Foucault, a nossa sociedade é regida pela norma e pelos mecanismos, em grande parte
medicais, que em seu seio distinguem o normal do anormal. A medicina, segundo Foucault,
“começa a não ter domínio que lhe seja exterior
16
. A medicina atual, por assim dizer, está em
todo lugar, tem sempre uma palavra a dizer. A medicina está presente não apenas no hospital, mas
em todos os outros aparelhos disciplinares que compõem nossas sociedades e que, por princípio,
não são, ou não eram, diretamente do domínio medical: a prisão, a escola, a empresa. Nossas
sociedades são sociedades da norma, nas quais critérios não jurídicos, associados principalmente a
performances de base fisiológica, estabelecem a repartição entre o normal e o anormal. No
domínio medical, que praticamente coincide com todo o domínio do social, tais normas
prescrevem comportamentos individuais e os métodos terapêuticos para que os indivíduos se
mantenham dentro das normas. Nesse sistema, o poder medical é responsável, por um lado, por
estipular as normas, e por outro, por aplicá-las aos indivíduos.
14
FOUCAULT, Michel. Ibidem, p. 49.
15
FOUCAULT, Michel. Ibidem.
16
FOUCAULT, Michel. Ibidem, p. 51.
18
A terceira característica marcante da medicina moderna está relacionada ao fato de que
a saúde tornou-se um objeto de consumo. No culo XX, organiza-se um enorme mercado da
saúde medicamentos, terapias, centros de recondicionamento físico e mental tornaram-se
mercadorias, como quaisquer outras. Mercado para o qual a medicina é o agente e o intermediário
mais importante. Passa pelas mãos dos médicos, ou é dirigida por médicos, a aplicação dos
volumosos recursos que os orçamentos dos Estado e das famílias dedicam à saúde. Desde
muito, o corpo humano está presente no mercado como força de trabalho adaptada ao aparelho
produtivo, mas o corpo humano entra no mercado também de uma outra forma, como consumidor
da saúde. Esses dois tipos de inclusão mercadológica do corpo, como força de trabalho que se
vende e como consumidor de uma saúde que se compra, estão relacionados justamente na forma
de governo assistencial que deriva do plano Beveridge. Em um outro lugar, Foucault afirma: “o
mundo está evoluindo na direção de um modelo hospitalar, e o governo adquire uma função
terapêutica”
17
. Se, por um lado, a função do governo é a de capacitar os indivíduos, pelo
aprimoramento disciplinar das sociedades, e fazer deles os instrumentos do desenvolvimento
econômico, por outro, o governo tem a função de corrigir os efeitos negativos causados, por esse
mesmo desenvolvimento, sobre a vida e a saúde dos indivíduos.
Outras distorções são produzidas por essa medicalização das sociedades, as quais
traduzem o fracasso das políticas disciplinares e terapêuticas assumidas pelos programas de saúde
pública dos países desenvolvidos. Se podemos dizer que o aumento do consumo implica um
incremento proporcional do nível de vida, o mesmo não se passa com os investimentos em saúde.
A melhoria dos indicativos de saúde da população não se faz na mesma medida do aumento do
consumo de saúde. Foucault cita, como exemplo dessa tendência truncada, um estudo de Charles
Levinson, feito em 1964, indicando que “o aumento de 1% no consumo de serviços médicos
resulta numa baixa de apenas 0,1% da taxa de mortalidade”
18
, enquanto investimentos realizados
em outros campos no consumo alimentar, na educação, no aumento da renda familiar
apresentam melhores rendimentos. Apresentam-se também distorções no tocante a uma das
principais justificativas dos programas de saúde: a redução das desigualdades sociais. Na França,
segundo Foucault, os ricos tiram mais proveito do sistema social de saúde do que os pobres; dessa
forma: os pequenos consumidores, que também são os mais pobres, pagam com suas cotizações o
sobre-consumo dos mais ricos
19
. Foucault assinala ainda que a rede de saúde privada atende aos
casos em que uma intervenção menos importante é necessária. Casos em que a lucratividade é
17
FOUCAULT, Michel. Le monde est un grand asile. Texte 126 [1973]. In: DE1, 1301.
18
FOUCAULT, Michel. Crise de la médecine ou crise de l’antimédicine. Texto 170 [1974]. In: DE1, 55.
19
FOUCAULT, Michel. Ibidem, p. 56.
19
maior. Os casos de intervenção medical com aparelhos mais custosos ficam nas mãos do Estado.
Assim, “o direito a uma saúde igual para todos é tomado numa engrenagem que o transforma em
uma desigualdade”
20
. Outra distorção do sistema geral de saúde refere-se à lucratividade do setor
da indústria farmacêutica, a grande beneficiária do sistema, ao qual os próprios médicos estão
submetidos. Os médicos passam a seguir as indicações, os estudos, as tecnologias desenvolvidos
pela indústria, tornando-se, finalmente, conselheiros, representantes, distribuidores dos seus
produtos. Perdem sua capacidade de diagnosticar diretamente seus pacientes e tornam-se
dependentes de exames ligados a tecnologias sofisticadas e caras. Dessa forma, os médicos
mostram-se, por sua vez, submetidos a um sistema que os instrumentaliza e apresenta, através
deles, o modelo de saúde a ser seguido, enquanto drena, ao mesmo tempo, pelos mesmos canais,
os recursos econômicos da população. O grande beneficiário da economia política da saúde é a
indústria farmacêutica. “Com efeito constata Foucault –, a indústria farmacêutica é sustentada
pelo financiamento coletivo da saúde e da doença”
21
.
É preciso fazer aqui uma breve menção ao livro de Ivan Illich, mesis da medicina
22
,
citado por Foucault logo no início de sua primeira conferência e que, apesar de suas ressalvas, lhe
serve de referência. Afora o tom panfletário e proselitista da antimedicina, os argumentos
presentes no texto de Illich, em muitos pontos, coincidem com os de Foucault. Illich procura
demonstrar que, paradoxalmente, quanto maior o investimento social em saúde, público e privado,
maior o grau de morbidade de uma sociedade; quanto mais se investe na saúde, mais o sistema
médico se torna contraprodutivo. O sistema médico, isto é, o amplo conjunto das atividades
profissionais e administrativas cujo financiamento é motivado por uma razão de saúde, além de ser
criador de doenças derivadas do próprio sistema, paralisa as iniciativas não medicalizadas de cura,
e reduz a autonomia dos indivíduos. Essa contraprodutividade nociva é a resposta estrutural,
inerente à própria sociedade, à tendência moderna de ir além de qualquer limite. A medicalização
excessiva de nossas sociedades industriais, o aprofundamento da abordagem técnico-medical da
dor, da doença e da morte é uma desmedida, com conseqüências mórbidas estruturais
indissociáveis essas seriam a Nêmesis
23
. A perda de autonomia do cidadão, frente ao sistema
médico, é o que Illich chama de “iatrogênese social”. Segundo Illich, o sistema médico retira
progressivamente o cidadão do seu meio social saudável, debilita sua autonomia pessoal e
20
FOUCAULT, Michel. Ibidem.
21
FOUCAULT, Michel. Ibidem.
22
ILLICH, Ivan. A expropriação da saúde: Nêmesis da medicina. Trad. José Kosinski de Cavalcanti. 3 ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira [1975].
23
A Nêmesis, “o rancor do Olimpo”, se apresenta nos termos não apenas de uma improdutividade, mas de uma
“contraprodutividade global” do sistema médico: a iatrogênese clínica e social. ILLICH, Ivan. Ibidem, p. 86.
20
compromete sua adaptabilidade a esse meio. As propostas de Illich para a superação de nossa
dependência frente à instituição medical tomam o sentido amplo de uma exortação à resistência e
à superação da dominação industrial, do fortalecimento da autonomia individual, do fazer
comunitário, em detrimento do consumo de terapias alienantes. A intenção de Foucault, nas
conferências do Rio, não é colocar a questão, como o faz Illich, em termos de “medicina ou
antimedicina, devemos ou não conservar a medicina?”
24
, mas de analisar o processo histórico de
formação do sistema público de saúde na Europa, que conduziu à crise atual, de nos perguntar em
que medida ele pode ser corrigido, e se ele deve ser retomado em sociedades como a brasileira. A
esse respeito, Foucault não chega a conclusões, apenas procura traçar os vínculos históricos da
medicina com a política, para um aprofundamento da questão.
(2) Ao que se tem notícia, as frases seguintes marcam a primeira ocorrência pública da
palavra ‘biopolítica’, na fala de Foucault:
O controle da sociedade sobre os indivíduos não se efetua somente pela conscncia
ou pela ideologia, mas também no corpo e pelo corpo. Para a sociedade capitalista é o
biopolítico que importava acima de tudo, o biológico, o somático, o corporal. O corpo
é uma realidade biopolítica; a medicina é uma estratégia biopolítica.
25
A biopolítica aparece como a prática política de apreensão social dos corpos dos
indivíduos, no capitalismo; e a medicina, como instrumento desse controle político. Ao invés do
que se poderia crer, a prática burguesa da medicina não é tipicamente aquela do atendimento
médico individual, feito em consultórios e clínicas privados. Nesta segunda conferência, Foucault
procura defender a tese de que, com a afirmação definitiva da burguesia durante o século XVIII, a
medicina se torna coletiva e não individualista. O processo histórico de socialização do corpo
passa por diferentes etapas. O corpo humano não é imediatamente socializado, incluído no jogo
das práticas sociais, como força de trabalho; isso ocorre distintamente no culo XIX. A
socialização da saúde do corpo, intermediada pela medicina social, teria percorrido, na transição
do classicismo para a era moderna, três etapas, cada uma delas ligada a uma forma específica de
interseção entre política e medicina (i) a medicina de Estado, (ii) a medicina urbana e,
finalmente, (iii) a medicina da força de trabalho.
(i) A primeira prática social que toma o corpo humano como objeto, a medicina de
Estado, surge, na Alemanha, no início do século XVIII. Ela é um dos elementos constituintes de
uma forma específica de saber, a ciência do Estado, a Staatswissenschaft. Ciência que comporta o
24
FOUCAULT, Michel. Crise de la médecine ou crise de l’antimédicine. Texto 170 [1974]. In: DE1, 45.
25
FOUCAULT, Michel. La naissance de la médecine social. Texto 196 [1974]. In: DE2, 209.
21
conhecimento dos recursos naturais, das condições de vida e do funcionamento geral da máquina
do Estado e, ao mesmo tempo, dos meios que possibilitam a aquisição e a conservação desse
conhecimento pelo Estado. Duas razões parecem ter contribuído para o surgimento, na Alemanha
do final do século XVII, de uma ciência nesses moldes: a existência de uma multiplicidade de
pequenos Estados alemães e a estagnão econômica resultante da Guerra dos Trinta Anos (1618-
1648). A configuração da Alemanha em pequenos Estados, que conviviam uns com os outros, em
constante conflito ou aliança, segundo relações de força variantes, favorece a comparação entre
Estados e a “consciência discursiva do funcionamento da sociedade”
26
. Por outro lado, com a
devastadora e longa guerra do culo XVII, a burguesia alemã, surgida anteriormente com o
primeiro desenvolvimento comercial ainda na Idade dia, viu as possibilidades de sua expansão
bloqueadas pela estagnação econômica, que se prolongou durante o século XVIII. Segundo
Foucault, a burguesia alemã “busca refúgio junto aos soberanos e forma um corpo de funcionários
disponíveis para a máquina estatal, que os príncipes queriam construir a fim de modificar as
relações de forças com seus vizinhos”
27
. É gras a esse corpo de funcionários, composto por uma
burguesia pouco ativa economicamente, que o conceito moderno de Estado, dotado de uma
administração capaz de conhecer e administrar os recursos estatais, se desenvolve na Alemanha
antes do que em Estados mais fortes, politicamente ou economicamente, como a França e a
Inglaterra. O cameralismo ao mesmo tempo um saber e uma instituição adjunta ao príncipe
alemão – situa-se no contexto geral do mercantilismo europeu, o qual, segundo Foucault, não é
uma teoria econômica, mas também uma prática política. Põem-se em prática na Europa diversas
medidas a fim de aumentar o número de habitantes, considerados a principal força dos Estados.
Assim, segundo Foucault, no início do culo XVII, todas “as nações da Europa se
preocupavam da saúde de sua populão”
28
. Porém, é somente nos Estados alemães, que essa
preocupação toma a forma de uma prática medical, conduzida pelo Estado, a Medizinschepolizei,
“consagrada à melhoria da saúde pública”
29
.
A tradução literal do termo Medizinschepolizei seria ‘polícia medical(police médicale).
No termo alemão, porém, ‘polícia’ (police) não se refere ao significado atual da palavra. Polizei
não significa o aparelho estatal de força, responsável pela ordem e segurança pública interiores,
mas uma série de instrumentos responsáveis por estabelecer e implementar uma determinada
política pública, relativa a um setor específico da atividade social, nesse caso, a medicina ou a
26
FOUCAULT, Michel. Ibidem, p. 211.
27
FOUCAULT, Michel. Ibidem.
28
FOUCAULT, Michel. Ibidem, p. 212.
29
FOUCAULT, Michel. Ibidem.
22
saúde da população. A Medizinschepolizei seria a primeira biopolítica. Nos diversos Estados
alemães, a polícia da medicina, programada em meados do século XVII, e implementada a partir
do final do mesmo século, consistia em: mecanismos de compilação e registro de dados a respeito
das doenças que afligiam a população; mecanismos de normalização e controle do saber medical
pelo Estado, o que antes estava nas mãos das corporações e das universidades; estabelecimento de
um aparelho administrativo estatal para controle das atividades dos médicos, o que representa, de
fato, a subordinação do poder medical ao poder público; e a criação de um corpo de médicos
integrado ao próprio aparelho do Estado. A saúde da população importa aqui o só como força de
trabalho, mas como elemento constituinte da força do Estado, dado importante na condução dos
conflitos do Estado com seus vizinhos.
(ii) Na França do século XVIII, é o forte crescimento da população urbana, e não a
preocupação com a força de Estado, que se configura como motivo para o aparecimento da
medicina social. Nas cidades francesas, até o final daquele século, o poder não é exercido por uma
instância única, as cidades são atravessadas por pluralidade de poderes monárquico, senhoriais,
eclesiásticos, poderes das corporações relativamente independentes uns dos outros e com
legislações próprias. Na segunda metade do século, torna-se premente a necessidade de unificar o
poder urbano. Razões econômicas e políticas contribuíram para tanto. A cidade era um lugar de
comércio e também um lugar de produção. Tanto as atividades mercantis, quanto as industriais
nascentes, eram atravancadas pelas múltiplas regras e imposições, provenientes dos diferentes
focos de poder, que se cobriam umas às outras. O impulso comercial e industrial necessitava, para
desbloquear-se, de uma homogeneização das regulamentações, de uma unificação do poder
urbano. Por outro lado, as tensões e conflitos que, na cidade medieval, ocorriam, em relativo
equilíbrio entre os múltiplos grupos rivais, começaram, com o crescimento das atividades
econômicas, a se polarizar entre ricos e pobres. Além das revoltas e da amea constante de
revoltas da plebe, em via de proletarização, o crescimento da população nas cidades, implicava
uma degradação das condições sanitárias, o que fomentava um clima geral de insegurança, e
requisitava “um verdadeiro poder político capaz de lidar com o problema dessa população
urbana”
30
. A medicina urbana francesa, da segunda metade do final do século XVIII, será uma
espécie de poder público, político-sanitário, constituído na cidade para responder àquelas ameaças
e inquietações, e se insere no processo de unificação do poder urbano. Suas principais atribuições
eram: fazer o levantamento dos locais de acúmulo e depósito dos diversos dejetos urbanos, desde
o lixo aos cadáveres; controlar e melhorar os circuitos de água e ar; organizar as distribuições e
30
FOUCAULT, Michel. Ibidem, p. 216.
23
seqüências dos pontos de entrada e saída desses fluxos, pontos de escoamento de esgoto, dutos e
fontes de água limpa.
A medicina urbana desempenhou um papel relevante para o implemento do nível de
cientificidade da medicina moderna. Movida pelas necessidades de análises da água, do corpo, dos
processo de fermentação e de decomposição, a medicina urbana aproximou-se da química,
incorporando seus procedimentos que, na época, eram mais científicos do que os da medicina. É
também pela medicina urbana que o conceito biológico de meio ambiente penetra na medicina. A
relação entre a saúde dos indivíduos e meio ambiente urbano é estudada pela medicina urbana, e
representou mais uma ponte entre a metodologia científica e a medicina. A salubridade tornou-se a
noção de maior importância para a higiene pública. A salubridade não se refere ao indivíduo, mas
ao meio com o qual os indivíduos estão em contato. Por isso, a medicina urbana é muito mais uma
medicina das coisas que constituem o meio ambiente, do que uma medicina do indivíduo.
Em acordo com seus objetivos, apoiada pelo sentimento de insegurança que dominava as
cidades, a medicina urbana passa a exercer um certo poder de remanejamento do espaço urbano:
desloca para a periferia da cidade cemitérios e abatedouros; faz abrir grandes avenidas para
melhor favorecer as correntes de ar; estabelece, em 1742, o “primeiro plano hidrográfico de
Paris”
31
. Dessa maneira, sendo o meio o principal objeto de intervenção da medicina urbana; e a
higiene pública, o feixe das suas tarefas, Foucault vai afirmar que “a higiene pública é o controle
científico-político desse meio”
32
. Como o plano de intervenção da medicina urbana era
principalmente uma interferência sobre a disposição dos elementos na superfície urbana, o
princípio do direito à propriedade privada foi uma barreira, que impediu que a medicina urbana
fosse dotada de um poder mais forte. A Staatsmedizin alemã pôde ter disposto de mais poder do
que ela, mas, segundo Foucault, a medicina urbana teve maior acuidade na observação e
cientificidade superior.
(iii) Somente na sua terceira fase, a medicina social passa se concentrar nos pobres e nos
trabalhadores. Depois do Estado e da cidade como objetos da medicina, depois da Staatsmedizin e
da medicina urbana, vai desenvolver-se, na Inglaterra, a medicina dos pobres. Somente “a partir da
segunda terça parte do século XIX, o problema da pobreza se coloca em termos de ameaça, de
perigo”
33
. No culo XVIII, segundo Foucault, os pobres não eram tão numerosos e estavam
integrados ao sistema urbano, prestando diversos serviços, entre outros, serviços postais,
recolhimento do lixo, distribuição de água. Essas funções são assumidas, no século XIX, por
31
FOUCAULT, Michel. Ibidem, p. 221.
32
FOUCAULT, Michel. Ibidem, p. 223.
33
FOUCAULT, Michel. Ibidem, p. 224.
24
outras instituições, empresas de correios, de transporte etc., o que deixa muitos pobres sem sequer
esse escassos meios de subsistência. Além desse, outros fatores vão contribuir para que os pobres
se tornem uma ameaça: o rápido crescimento da população urbana, com o crescimento do número
de pobres, formando uma força política passível de levantes e revoltas; as epidemias de cólera que,
a partir de Paris, em 1832, se espalham nos anos seguintes pela Europa. Devido à insalubridade
em que viviam as camadas mais pobres, formadas pelo proletariado ou pela plebe, essas camadas
se tornam o centro de uma preocupação político-sanitária. Essa nova situação dos pobres motiva a
promulgação, na Inglaterra, de uma série de leis e ações políticas de assistência social – a “lei dos
pobres” (1834), a criação do Health Service (1875) que procuram garantir a segurança político-
sanitária da burguesia. Uma série de medidas que coloca em mãos do poder público a assistência
aos pobres, e submete a força de trabalho a uma intervenção medical autoritária. O serviço de
saúde inglês tem em vista não o controle individual dos doentes, mas a saúde da população como
um todo. A intervenção medical conduz programas coletivos de vacinação, registro compulsório
das doenças, localização e eventual destruição dos focos de insalubridade. Esse controle medical
sobre as classes mais necessitadas visa a torná-las menos perigosas para os ricos e mais aptas ao
trabalho.
Essas medidas não deixam de provocar uma série de resistências populares e pequenas
insurreições antimedicais. Se a saúde se torna um objeto da política e um modo de intervenção do
Estado, em nome das classes dominantes, sobre o proletariado e a plebe, ela também será, por
outro lado, o objeto e o tema de reivindicações de diferentes lutas políticas. Se “a medicina é uma
estratégia biopolítica”, a resistência ao controle medical é também a bandeira de diversas lutas
políticas contra a forma de sujeição, pela sua saúde, das classes trabalhadoras. Os mesmos pontos
que apóiam uma sujeição política são reutilizados, pelos sujeitados, em sua tentativa de reversão
das relações de poder.
Se a medicina de Estado alemã, envolvendo um aparelho de funcionários públicos, era
custosa, e, na França, a medicina urbana não dispunha de um instrumento preciso de poder, no
sistema inglês, esses dois empecilhos, o econômico e o político, são contornados. O programa de
saúde pública inglês que se desenvolve desde o início do século XIX, e chega a uma
configuração elaborada no final do século superpõe três sistemas, com formas de poder e
soluções econômicas diferentes: a medicina de assistência aos pobres; a medicina administrativa,
encarregada dos problemas gerais, como vacinas e epidemias; e a medicina privada, para os ricos.
25
Para Foucault, com o Plano Beveridge e os sistemas de saúde dos países europeus, “trata-se ainda
de fazer funcionar esses três setores da medicina, embora articulados de maneira diferente”
34
.
Ao fazer a análise histórica da medicina social, em suas três etapas, Foucault procura um
ponto de recuo em relação à idéia corrente, mais imediata, de que a socialização da medicina é um
fenômeno oposto aos interesses da burguesia; pelo contrário, procura mostrar que ela acompanha
passo a passo a consolidação do capitalismo. O Plano Beveridge e a formação do Estado de bem-
estar social inserem-se em uma linha de acontecimentos que remontam ao século XVII, segundo a
qual, cada vez mais, a saúde das populações se torna encargo dos Estados. O Plano Beveridge
marca, porém, uma inversão importante: a saúde das populações não é mais simplesmente um
meio de fortalecimento do Estado, mas torna-se um fim em si mesma. O fato de que o Estado se
coloque a serviço da população, e não use simplesmente a população a seu serviço, faz parte de
um outro processo – de governamentalização – que estudaremos em detalhe em outros capítulos.
(3) Na sua terceira intervenção, Foucault descreve a transformação do hospital,
mediante a incorporação das tecnologias de poder disciplinares desenvolvidas e aplicadas em
outros setores da sociedade. Até meados do século XVIII, o hospital era uma instituição terminal,
operante em um mecanismo de exclusão; era um local de assistência aos pobres, aos doentes e, até
mesmo, de encerramento indiscriminado de toda sorte de excluídos e desajustados sociais,
mendigos, loucos, prostitutas, libertinos, recolhidos à força. A assistência hospitalar não tinha
uma função terapêutica, mas caritativa; não se ocupava com o tratamento do corpo, mas com o
apoio à alma no caminho para o julgamento final. Nessa configuração, medicina e hospital eram
dois domínios estranhos um ao outro. O hospital era conduzido por ordens religiosas; era um local
aonde os médicos acorriam raramente, em intervenções pontuais, individuais e sempre submetidos
às autoridades hospitalares religiosas. A experiência hospitalar não fazia parte da prática medical.
A aproximação entre medicina e política, na forma da medicina urbana, contribuiu para
que essa visão não terapêutica do hospital se alterasse. O hospital passou a ser visto como “um
foco perpétuo de desordem econômica e social”, desordem que, a partir dos hospitais, se espalhava
pelas cidades. Segundo Foucault, é porque o efeito desordem’ do hospital precisou ser
neutralizado, que o hospital tornou-se um instrumento de cura. A disciplinarização do hospital não
ocorreu para estabelecer sua função terapêutica, esse seria apenas um efeito secundário. O
primeiro efeito visado pela medicalização do hospital era eliminar a desordem econômica e social
que ele produzia. “O fator principal da transformação não foi a busca de uma ação positiva do
34
FOUCAULT, Michel. Ibidem, p. 228.
26
hospital sobre o doente ou a doença, mas simplesmente a ação negativa do hospital”
35
. Quando o
hospital penetra na esfera das preocupações políticas, ele se torna, atravessando os poderes das
ordens religiosas, objeto do saber e do poder medical.
Outro fator favoreceu a medicalização do hospital – a valorização do indivíduo. No
decorrer do século XVIII, “a formação do indivíduo, sua capacidade, suas aptidões, começavam a
ter um preço para a sociedade”
36
. Com o desenvolvimento de novas técnicas militares e de novos
aparelhos de produção, o indivíduo capacitado torna-se valioso. O indivíduo se torna o lugar de
acúmulo de um aprendizado demorado e custoso, e como tal torna-se objeto de um cuidado e de
uma vigilância especiais. As mortes causadas por doença representavam uma perda social
importante. É no exército, e com a introdução do fuzil, no fim do século XVII, que Foucault
localiza a emergência da necessidade de formação do modelo paradigmático do hospital
medicalizado. O manejo do fuzil e as táticas das linhas de tiro requisitavam aprendizado e treino
demorados. Os soldados doentes não podiam ser perdidos. As principais funções do hospital
militar eram, então, vigiar os soldados doentes, para evitar a deserção, curá-los e, uma vez
restabelecidos, fazer com que voltassem aos batalhões. A disciplina (discipline) foi a tecnologia de
poder desenvolvida para satisfazer estas funções do hospital militar. A disciplina é “essa nova
maneira de governar o homem, de controlar seus múltiplos aspectos, de utilizá-los ao máximo e de
melhorar o produto útil de seu trabalho, de suas atividades graças a um sistema de poder que
permite controlá-los”
37
. Depois dos exércitos, as escolas, as fábricas, os hospitais, os asilos, as
prisões, os reformatórios serão pontos de aplicação dessa mesma técnica de poder.
O mecanismo disciplinar, como tecnologia geral de poder aplicável a diferentes
instituições, resume-se a algumas táticas principais: a repartição sistemática do espaço até a
unidade celular, a decomposição e a recomposição analítica no tempo das gestualidades, a
articulação das atividades, a visibilidade e a avaliação contínuas, associadas a uma dinâmica de
correção dos desvios. A disciplina é basicamente um mecanismo de poder que permite ordenar,
com respeito a fins determinados, uma massa humana, mediante a configuração de uma hierarquia
funcional baseada no indivíduo. Posicionados em células individuais, articulados funcionalmente
uns aos outros, os indivíduos são acompanhados e observados ao longo de suas atividades; seus
gestos, decompostos e reorganizados para o benefício da eficacidade e da produtividade das
diferentes máquinas disciplinares. A disciplina não exerce seu controle sobre o resultado final de
uma ação; não zonas de invisibilidade na gestão disciplinar: todo o desenrolar da atividade é
35
FOUCAULT, Michel. L’incorporation de l’hôpital dans la technologie moderne. Texto 229 [1974]. In: DE2, 512.
36
FOUCAULT, Michel. Ibidem, p. 514.
37
FOUCAULT, Michel. Ibidem, p. 515.
27
vigiado em seus mínimos detalhes. Os indivíduos, conectados uns aos outros, segundo uma malha
hierarquizada de relações, tornam-se os suportes pelos quais transitam os diferentes fluxos
disciplinares: os fluxos de vigilância, de controle, de ordem e obediência, de informação, de
regulamentação, de normalização. O indivíduo vigiado, por sua vez, vigia; o indivíduo obediente,
por sua vez, ordena etc. A malha de funções, que cobre a totalidade do aparelho disciplinar,
permite a implementação de um registro permanente sobre os indivíduos e os eventos, e a
comunicação das informações para os níveis superiores, de tal forma que nenhum detalhe escape
ao cume da hierarquia
38
. O exame é o principal instrumento do “poder de individualização” da
disciplina. O indivíduo disciplinar é diferenciado e específico em relação aos outros indivíduos da
rede disciplinar, e é o mecanismo de exame que possibilita essa singularização. O exame confere e
avalia a performance individual das diferentes funções disciplinares, formaliza a vigilância
contínua, verifica o acúmulo das capacidades dos indivíduos, releva as informações para a
constituição de normas, estabelece os critérios que permitem reconhecer os desvios, corrigir as
atividades desviantes e efetuar o sistema de micropunições corretivas.
Por razões de ordem econômica e sanitária, devido ao novo valor atribuído ao indivíduo
capacitado, os mecanismos disciplinares foram aplicados também aos hospitais. Nesse processo, o
médico penetrou no ambiente hospitalar com funções específicas. Mas a necessidade de
disciplinarização do hospital não foi a única explicação de sua medicalização. A medicalização do
hospital foi possível graças a um estágio anterior de transformação do saber medical. De fato,
segundo Foucault, a medicina medieval, e ainda aquela dos séculos XVII e XVIII, operava com o
conceito de crise. “A crise representava o instante em que se afrontavam, no doente, a sua natureza
saudável e o mal que o atingia. [Ao médico cabia... ] observar os sinais, prever a evolução e
favorecer, na medida do possível, o triunfo da saúde e da natureza sobre a doença”
39
. Como o
papel do médico era o de favorecer a posição da natureza, nessa luta com a doença, a intervenção
medical só podia ocorrer durante a crise, no momento em que a natureza do doente lutava pela sua
saúde. No século XVIII, mudou o modelo de inteligibilidade das doenças, a botânica forneceu o
modelo segundo o qual as doenças passaram a ser classificadas em gêneros e espécies, em relação
com o ambiente natural. Isso “implica a necessidade de pensar as doenças como um fenômeno
natural. [...] A doença é natureza, mas uma natureza devida à ação particular do meio sobre o
38
FOUCAULT, Michel. Ibidem, p. 516.
39
FOUCAULT, Michel. Ibidem, p. 512.
28
indivíduo”
40
. O indivíduo sadio é submetido às influências do meio, qualidade da água, do ar, ao
tipo de alimentos. É a degradação dessas condições ambientais que possibilita que o indivíduo
sirva de apoio à doença. Dessa forma, a intervenção medical não busca atingir diretamente a
doença, como na medicina medieval da crise, mas as condições ambientais nocivas que favorecem
a apreensão da pessoa sadia pela doença. A relação entre doença e ambiente obedece a “leis
naturais”. A medicina da crise transformou-se, na segunda metade do século XVIII, em medicina
do meio.
Foi essa transformação do saber medical, conjugada à disciplinarização do hospital,
que permitiu sua medicalização, a transformação do hospital, de depósito humano, em máquina de
curar. A disciplina, ao fragmentar e individualizar a massa humana hospitalar indistinta,
possibilitou a construção de meios ambientes singularizados e controláveis, pequenos ambientes
propícios ao tratamento de doenças específicas. Para cada tipo de doença, identificava-se um tipo
de iluminação, de temperatura, de circulação de ar, de alimentação, de vizinhança, próprios para o
seu tratamento. A transformação do saber medical tornou possível a medicalização do hospital, e
permitiu ao médico tornar-se um personagem indispensável para que o hospital pudesse cumprir
suas novas funções. Tanto a localização urbanística como o plano arquitetônico do novo hospital
deviam seguir as orientações do saber medical transformado; a eficácia do hospital, como
instrumento terapêutico, dependia dele. Isso teve influência direta sobre o sistema de poder no
hospital: o médico assumiu a responsabilidade principal da organização hospitalar, em detrimento
das ordens religiosas.
Se, por um lado, como vimos, a organização disciplinar do hospital decorreu de uma
exigência da medicina urbana, por outro, ela teve conseqüências sobre a medicina social. Com
efeito, o hospital disciplinar permite a “organização de um sistema de registros permanente e
completo”
41
, o que viabiliza o controle dos tratamentos, a verificação de sua eficacidade, o registro
dos sucessos e dos fracassos, a comparação dos casos e das curas, o acúmulo da memória
hospitalar e a adoção, pela medicina, das técnicas empíricas. O hospital tornou-se o lugar de
formação do saber medical. Isso que Foucault vai chamar de clínica (clinique) é “a organização do
hospital como lugar de formação e de transmissão do saber”
42
. O saber medical hospitalar é
individualizante, e a clínica é esse saber que se forma e se transmite, entre médicos, à cabeceira do
40
FOUCAULT, Michel. Ibidem, p. 517. Lineu (1707- 1778) é considerado o fundador da história natural. Cuvier
(1769-1832) estuda as relações entre o ambiente natural e a anatomia do animal. Cf. FOUCAULT, Michel. La
situation de Cuvier dans l’histoire de la biologie. Texto 77 [1969]. In: DE1.
41
FOUCAULT, Michel. L’incorporation de l’hôpital dans la technologie moderne. Texto 229 [1974]. In: DE2, 520.
42
FOUCAULT, Michel. Ibidem, p. 521.
29
leito individual do doente. Além disso, o sistema disciplinar de registro e convergência de
informações permite a comparação entre os dados oriundos de diferentes hospitais, e assim, sua
projeção sobre o todo da população. “Graças à tecnologia hospitalar, o indivíduo e a população se
apresentam simultaneamente como objetos do saber e da intervenção medical”
43
. A clínica é essa
medicina disciplinar, essa prática e esse saber hospitalar, que se formam ao longo do século
XVIII, e se firmam no XIX, dos quais o indivíduo doente é o objeto. A partir da clínica, com os
dados da clínica, a prática da medicina social se transforma; transforma-se, por conseguinte, o
objeto sobre o qual seu poder se exerce, em torno do qual seu saber se constitui, a população.
***
Na primeira formulação da biopolítica, Foucault analisa a sua relação com o poder
medical, com a medicalização da política e a politização da medicina. O poder medical é pensado
como uma estratégia biopolítica, como instrumento do controle político da saúde da população.
Nesse contexto, o médico assume uma posição privilegiada na teia de relações de poder que
determinam a configuração social. O poder medical não pertence ao médico, ao contrário, ele o
agencia, o põe em jogo, o instrumentaliza. O poder medical é um aspecto da configuração política
geral, resultante do jogo das diferentes forças ativas e em relação umas com as outras, numa dada
sociedade. Compõem o poder medical, além dos médicos e dos seus pacientes, os serviços e
departamentos de saúde dos Estados, os departamentos de obras públicas, as empreiteiras
privadas, as diferentes classes econômicas e seus interesses, os hospitais, as universidades, os
centros de formação técnico-medical, a indústria do diagnóstico, a indústria farmacêutica. O
médico é instrumentalizado pelo Estado, passa a integrar seus quadros, é politizado. Ele serve a
diferentes fins: à força do Estado, no caso da Staatsmedizin; à ordem da cidade, no caso da
medicina urbana; à produtividade fabril, no caso da medicina da força de trabalho. Para tanto, ao
médico é atribuída a força política para configurar o meio natural, modificar o plano urbanístico,
abrir avenidas, derrubar as construções nas encostas, estabelecer os planos de abastecimento de
água, controlar e determinar a localização de acúmulo de dejetos, dos miasmas, dos eflúvios
insalubres; o controle funcional e administrativo dos hospitais torna-se sua incumbência; ao
médico cabe traçar as políticas de saúde do Estado, que envolvem de modo geral a política de
alimentos, a política de natalidade, a vigilância da morbidade; o médico passa a dispor da força
43
FOUCAULT, Michel. Ibidem.
30
política necessária para exercer sobre a população uma série de intervenções compulsórias, que
visam a fortalecer a sua saúde.
Destacam-se, no mecanismo biopolítico, dois elementos: um objeto correlato às suas
práticas e um meio de inserção desse objeto. Nesta primeira formulação, o objeto biopolítico é a
saúde da população, a saúde da multiplicidade dos corpos que compõem a população do Estado, a
população urbana ou a força de trabalho. Esse objeto é o correlato de uma prática discursiva
específica, a medicina social, e as diversas instituições correspondentes, os departamentos de
saúde dos Estados, os planos de governo, as leis de saúde pública, os programas de partidos, os
hospitais etc. Em segundo lugar, o mecanismo biopolítico é composto pela representação do
suporte de inserção material do seu objeto: o meio. O objeto correlativo à biopolítica está sempre
inserido em um meio, que é representado, no mecanismo de poder-saber biopolítico, como uma
espécie de natureza. À naturalidade do meio corresponde uma série de leis naturais que
condicionam o objeto nele inserido, de tal forma que o estado do objeto é determinado não apenas
pelas propriedades internas do objeto, mas pelas propriedades do meio ambiente e pela forma de
relação que o meio estabelece com o objeto. A relação entre meio e objeto é representada como
uma relação natural, isto é, ela é concebida como uma relação causal, em que a situação do objeto
é efeito de uma certa disposição do meio. O meio é analisado em variáveis controláveis, cuja
alternância acarreta uma modificação correspondente sobre o objeto. No caso do hospital, o
paciente está inserido numa célula individualizada, cujas variantes condicionam a sua saúde. No
caso da cidade, o meio urbano é decomposto em variáveis controláveis, por exemplo, a qualidade
e a circulação da água, do ar, a concentração de dejetos, a proximidade de locais insalubres, que
condicionam a saúde da população. O saber biopolítico, a medicina social, trata de estabelecer as
leis naturais, os vínculos naturais supostamente necessários, que regem essas relações entre
variáveis do meio e o objeto visado pelo poder, a saúde da população. O poder medical, no seu
viés propriamente biopolítico, é exercido sobre esse meio ambiente, e não diretamente sobre o
objeto biopolítico. Ou seja, o poder medical biopolítico não se exerce diretamente sobre os
indivíduos que compõem a população, mas sobre o meio, que condiciona causalmente, mediante
leis naturais cientificamente determináveis, os indivíduos de uma população.
A medicina hospitalar não é constitutiva da medicina social, mas se articula com ela. Da
mesma forma, o poder disciplinar não é constitutivo do poder biopolítico; eles aparecem
coordenados um ao outro no poder medical. O poder medical põe em jogo, ao mesmo tempo,
mecanismos de poder biopolíticos e disciplinares. Como assinalam Fontana e Bertani: “Esses dois
poderes não constituiriam, como se disse às vezes, duas ‘teorias’ no pensamento de Foucault, uma
31
exclusiva da outra, uma independente da outra, uma sucessiva à outra, mas antes dois modos
conjuntos de funcionamento do saber/poder [...]”
44
. Uma de nossas tarefas é avaliar essa
complementaridade, verificar até que ponto esses dois poderes são realmente indissociáveis, e
isolar o que é próprio da biopolítica e o que é próprio da disciplina. Dessa forma, nas conferências
que acabamos de analisar, o propriamente biopolíticas a medicina de Estado, a urbana e a da
força de trabalho. A medicina hospitalar, o poder que perfaz a medicalização do hospital e as
tecnologias que garantem essa medicalização são disciplinares e não biopolíticas, embora estejam
em relação com as tecnologias e com os objetivos biopolíticos, e possam até ser consideradas
como fazendo parte dessas tecnologias e objetivos.
44
FONTANA, Alessandro; BERTANI, Mauro. Situation du cours [1997]. In: IDS, 252.
32
II. A biopolítica e a guerra
Na segunda formulação da biopolítica, feita por Foucault em suas lições de 1976, no
Collège de France, o elemento importante, em torno do qual a formulação se articula, não é mais a
medicina, mas a guerra. No curso Em defesa da sociedade, a biopolítica não é mais pensada
apenas a partir das relações entre política e medicina, do poder medical, mas são as relações, os
cruzamentos, as conjunções, a um só tempo, teóricas e práticas, entre política e guerra, que vão lhe
servir de núcleo. O que está em jogo no pensamento de Foucault, nesse momento? Ele mesmo
responde: “o que é este poder, cuja irrupção, a força, o absurdo apareceram concretamente no
curso desses últimos quarenta anos, ao mesmo tempo, na linha de queda do nazismo e na linha de
recuo do stalinismo?”
45
. Como pensar o direito de matar, de fazer a guerra, de exterminar a vida de
milhões de pessoas, que se outorgaram esses regimes políticos, dentro e fora dos limites de seus
territórios? Justamente esses regimes que se constituíram a partir da preocupação com a vida das
populações? Como explicar o acontecimento do nazismo e do stalinismo, e finalmente como
explicar as paradoxais democracias ocidentais armadas até os dentes, as quais, de algum modo,
desde os anos 60, também eram pensadas como formas de governo totalitárias? Afinal, qual era a
linha comum que permitiria apontar, como para pontos de uma mesma série, para os diferentes
regimes políticos do século XX? E desde onde provinha essa linha? Como ela se articulou na
história? Enfim, que genealogia pode ser feita dessas formas de governo?
Duas categorias de respostas estavam disponíveis, ambas insatisfatórias para Foucault. A
resposta da direita seguia o caminho da teoria da soberania, do exercício do poder legítimo e dos
desvios ilegítimos, o voluntarismo, o abuso de poder. Para essa perspectiva, tratava-se de
estabelecer e promover os mecanismos tipicamente liberais de salvaguarda dos direitos
individuais, dos direitos humanos. De outra parte, a resposta da esquerda marxista, buscava
caracterizar o excesso de poder como radicalização das forças reacionárias capitalistas ou como
resposta radical a essas forças. Apesar das diferenças entre esses duas categorias, a concepção
liberal jurídica e a concepção marxista, Foucault reconhece nelas uma semelhança, tanto uma
45
IDS, 13.
33
como outra pensam o poder político desde uma perspectiva econômica. No marxismo, afirma
Foucault, “o poder teria essencialmente o papel, ao mesmo tempo, de manter as relações de
produção e de reconduzir uma dominação de classe, que o desenvolvimento e as modalidades
próprias da apropriação das forças produtivas tornaram possíveis. [...] o poder político encontraria
na economia sua razão de ser histórica”
46
. Na relação de determinação entre o social e o político,
haveria um duplo sentido, em que o social, e essencialmente o sócio-econômico, é o ponto de
partida e o de chegada por um lado, o Estado deriva da forma das relações de produção em jogo
na sociedade civil; por outro, ele é o principal instrumento de reprodução dessa forma em todas as
instituições sociais.
Afirmar que o pensamento marxista encontra seus fundamentos nas relações de ordem
econômica é praticamente um lugar comum; outra coisa é dizer o mesmo da abordagem jurídica
do poder, e isso merece uma atenção maior. Afinal, o que é o poder na teoria clássica filosófico-
jurídica? “O poder é considerado como um direito, do qual seríamos os possessores como de um
bem, e que poderíamos, por conseguinte, transferir ou alienar, de modo total ou parcial, por um ato
jurídico ou um ato fundador de direito [...] que seria da ordem da cessão ou do contrato”
47
. O
poder é esse direito que todo indivíduo naturalmente possui como um bem que se troca, e que,
mediante um contrato, transfere para outrem a fim de fundar o poder político. Tomemos o Leviatã
como paradigma. Ali, Hobbes escreve: “O direito de natureza, que os autores comumente chamam
de jus naturale, é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, como quiser, para
a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua própria vida [...]”
48
. No estado de natureza,
cada um é livre para dispor de seu poder, como bem entender, e o único limite efetivo a esse
direito é o poder dos outros. Mas a esse direito, ou à parte desse direito, pode-se renunciar ou
transferir. Tanto na renúncia quanto na transferência de direitos, outros indivíduos são levados em
46
IDS, 14. Apesar de ser considerada uma interpretação simplificada e empobrecedora, essa é uma forma de
inteligibilidade da política condizente com vários textos de Marx.
Na Ideologia alemã: “O Estado sendo a forma pela qual os indivíduos da classe dominante fazem valer seus
interesses comuns e na qual se concentra toda a sociedade civil de uma época, segue-se que, pela mediação do
Estado, todas as instituições comuns adquirem uma forma política”. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich.
L’idéologie Allemande. (1845-1846) Première partie. Trad. Hans Hildebrand. Paris: Nathan, 2003 [1846]. P. 100.
No Manifesto: “O poder político, para falar propriamente, é o poder organizado de uma classe para opressão de
uma outra” MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifeste du Parti communiste. Trad. Laura Lafargue. Paris:
Librio, 1998 [1847]. P. 53.
E, ainda, no famoso Prefácio: “A totalidade destas relações de produção forma a estrutura econômica da
sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas
sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida
social, político e espiritual”. MARX, Karl. Para a crítica da economia política [1857]. Trad. José Arthur
Giannotti e Edgar Malagodi. Col. Os Pensadores, XXXV. São Paulo: Abril, 1974. Pp. 135 e 136.
47
IDS, 14.
48
HOBBES, Thomas. Leviathan. Indianapolis/Cambridge: Hackett, 1994 [1651]. Cap. XIV, p. 79.
34
consideração. Na renúncia, os beneficiários do direito são indeterminados; na transferência de
direitos, determinados. Quando a transferência de direitos é mútua, fala-se de um “contrato”. A
possibilidade do contrato é anterior ao Estado e à política. No estado de natureza, todo indivíduo,
desde que o julgue adequado, ou vantajoso, ou útil, pode renunciar ou transferir seu direito a
dispor de todas as coisas conforme seu poder. E é justamente aí, nessa espécie de transação
possível com os direitos e os poderes, que se pode ler uma economia dos poderes, anterior à
sociedade política. Vale lembrar que, para Hobbes, o critério de racionalidade desses contratos é o
cálculo utilitário, que tão bem caracteriza a troca de tipo econômico. Se concordarmos que a
relação econômica típica, definida de forma geral, é uma troca consentida e vantajosa de bens
entre parceiros, de tal forma que essa troca vise a suprir as diferentes necessidades de cada uma
das partes envolvidas, então, de acordo com isso, a troca e a circulação de poderes, justificada por
ser vantajosa, entre indivíduos em estado de natureza, na fundação do poder político, pode ser
classificada como uma relação de tipo econômico, como afirma Foucault
49
.
Ao contrário do que asserem essas duas concepções do poder, economicamente
fundadas, haveria na relação de poder, para Foucault, algo de específico. Mesmo se o poder es
intimamente intrincado com a economia, haveria no poder, em relação à economia, sempre um
excesso, um resto, algo de próprio que não se deixa reduzir nem a uma relação jurídica, nem a
uma relação de produção. Se à direita, ele [o problema do poder] era colocado apenas em termos
de Constituição, de soberania, etc., isto é, em termos jurídicos”, e se, à esquerda, “do lado do
marxismo, em termos de aparelhos do Estado” que apenas reforçam e reproduzem uma relação de
exploração de classe, a “maneira como ele [o poder] se exercia concretamente e no detalhe, com
sua especificidade, suas técnicas e suas táticas, não se pesquisava”
50
. E o que Foucault procura
fazer é exatamente satisfazer essa carência, não tanto dizer o que é o poder, mas descrever como o
poder funciona, mediante a análise de seus mecanismos, de suas estratégias e tecnologias. Tanto a
anátomo-política como a biopolítica, tanto a microfísica como a macrofísica do poder, devem ser
entendidas a partir dessa intenção, a de produzir uma grade de inteligibilidade, com seus termos e
significados conjugados uns aos outros, capaz de descrever, do modo mais geral e abrangente
possível, os mecanismos de exercício do poder, com suas estratégias e tecnologias próprias. Assim
49
Obviamente a troca é apenas um dos aspectos da esfera econômica. Marx marca, além da troca (circulação), ainda
a produção, o consumo e a distribuição. Cf. Introdução. Para a crítica da economia política [1857]. Trad. Jo
Arthur Giannotti e Edgar Malagodi. Col. Os Pensadores, XXXV. São Paulo: Abril, 1974. P. 109. Weber, por sua
vez, insiste no caráter pacífico do que define como atividade econômica, e estabelece a utilidade (a vantagem
objetiva ou subjetiva) como critério para a determinação do seu sentido. Cf. Économie et société. T. 1. Les
catégories de la sociologie. Trad. diversos. Paris: Plon, 1995 [1920]. Cap. II, nota preliminar e §1, p. 101.
50
FOUCAULT, Michel. Entretien avec Michel Foucault. Texto 192 [1976]. In: DE2, 145.
35
sendo, não se deve insistir tanto em ressaltar uma “virada” na passagem da micro para a
macrofísica do poder
51
. Como Foucault irá deixar claro mais tarde, seja no estudo das instituições
disciplinares, seja na análise da tecnologia de governo dos Estados, trata-se de aplicar o mesmo
“método de decodificação”
52
posicionar-se no plano das relações de poder, para identificar: os
critérios que codificam as diferenças entre os lados das relações de poder; os objetivos almejados;
os instrumentos e as táticas aplicados; os processos de condensação das múltiplas relações de
poder, pelos quais elas se alinham umas às outras; o tipo de racionalidade e o regime discursivo
postos em prática e compartilhados pelas insistências e pelas resistências
53
. Aquilo que é próprio
ao poder é simplesmente o modo de seu exercício, o mecanismo pelo qual as diferenças entre os
humanos são produzidas e coordenadas entre si, pelo qual as relações entre humanos se orientam
segundo certos fins, sejam eles fins econômicos, comunicativos, terapêuticos ou pedagógicos.
Tanto a teoria jurídica liberal quanto a marxista constroem-se sobre pressupostos
questionados por Foucault. A teoria jurídica da soberania articula-se em torno e a partir da
pressuposição do sujeito, como indivíduo dotado de direitos por natureza, e da centralidade do
poder, ou da passagem de uma multiplicidade de poderes não políticos, naturais dos sujeitos, para
uma unidade central política, o Estado. Por sua vez, o marxismo remete toda relação de poder a
um único critério de diferenciação, a luta de classes. Em seu “projeto geral”, em busca da
especificidade da relação de poder, Foucault opõe à teoria da soberania e à tese do critério
econômico de diferenciação social, o que ele chama de uma “teoria da dominação, das
dominações”
54
(théorie de la domination, des dominations). Trata-se não de partir de um sujeito
previamente constituído, que se sujeita em uma relação de poder, mas de partir da própria relação
de poder e ver como, historicamente e praticamente, esse sujeito se constitui. Trata-se de pensar o
sujeito o como um dado anterior aos mecanismos de poder, mas de associar o sujeito ao modo
de assujeitamento, à tecnologia de poder e ao tipo de racionalidade postos em prática pelos
diversos regimes político-discursivos
55
. Trata-se também de deixar valer a multiplicidade de
51
Fontana e Bertani entendem Em defesa da sociedade como um divisor de águas: “[este curso] é como uma espécie
de pausa, de momento de parada, de virada [...]”, em que as pesquisas de Foucault se desviam das questões da
microfísica do poder e passam a se interessar pelo biopoder e pela governamentalidade. FONTANA, Alessandro;
BERTANI, Mauro. Situation du cours [1997]. In: IDS, 247.
52
NBQ, 192.
53
Cf. Le sujet et le pouvoir. Texto 306 [1982]. In: DE2, 1058.
54
IDS, 38.
55
O sujeito não é instituinte das relações de poder, mas constituído por elas. No curso de 1976, Foucault defende
uma posição semelhante a de Vigiar e punir: “Essas relações de ‘poder-saber’ não devem ser, portanto, analisadas
a partir de um sujeito do conhecimento, que seria livre ou não em relação ao sistema de poder; mas é preciso
considerar, ao contrário, que o sujeito que conhece, os objetos a conhecer e as modalidades de conhecimento são
efeitos dessas implicações fundamentais do poder-saber e de suas transformões históricas”. SEP, 36.
36
poderes, ao invés de reconduzir essa multiplicidade a uma forma única, geral e paradigmática de
dominação.
Duas curiosidades aparecem nessa expressão, “teoria das dominações”. Foucault deixa
escapar a palavra teoria’, quando ele sempre afirma, em vários momentos, que seu plano não é o
de instituir uma teoria do poder. Foucault afirma categoricamente: “eu não quero de modo algum
lhes dar [às genealogias dispersas], lhes sobrepor, uma espécie de coroamento teórico que lhes
unificaria”
56
. Assim, quando Foucault fala de uma “teoria das dominações” é preciso entendê-la
vinculada a uma genealogia particular, a uma análise do modo pelo qual diferentes práticas e
discursos, num momento da história, puderam se articular uns aos outros, na configuração de uma
determinada forma política, de um determinado regime de relações entre poder e saber. Portanto, é
preciso entender essa “teoria” desvinculada de qualquer princípio aistórico e apodítico capaz de
estabelecer o sentido da história. Uma “teoria das dominações” seria apenas uma maneira de
interpretar certos acontecimentos históricos. A segunda curiosidade, encontra-se na palavra
‘dominação’, mesmo se, logo na seqüência, ela é pluralizada. O uso dessa palavra revela que,
nesse momento, ainda, Foucault entende, ou pelo menos acentua, a relação de poder como uma
relação de dominação. Com efeito, enquanto pensa a relação de poder como relação de
dominação, Foucault está próximo de um terceiro e de um quarto modo de se pensar o poder, além
do contratualismo e do marxismo. O terceiro modo é o que pensa o poder como repressão; o
quarto, como relação de força – os quais cunha como a “hipótese de [Wilhelm] Reich” e a
“hipótese de Nietzsche
57
.
A de “Reich” é a hipótese do mecanismo de poder como mecanismo de repressão. De
acordo com essa hipótese, o poder é essencialmente repressivo, aquilo que impede, constrangendo,
cerceando, o vigor próprio de uma natureza, de um instinto, de uma classe. O poder remete, então,
às diversas técnicas de repressão de algo pré-existente que, deixado a si, tenderia naturalmente a
extrapolar os limites aceitáveis, em uma sociedade de tipo burguês
58
. A questão do poder como
repressão, porém, é contestada desde Vigiar e punir, em que Foucault estabelece como regra:
56
IDS, 13. O incômodo que Foucault, em vários momentos, manifesta em relação aos termos ‘teoria’ ou
‘metodologia’ talvez possa ser explicado pelo respeito que ele procura devotar à singularidade dos acontecimentos
históricos. Para Foucault, as singularidades históricas não se deixam reduzir ao plano de uma teoria ou de um
método, a não ser mediante uma ortopedia que lhes desconfigura a própria singularidade.
57
IDS, 17.
58
Um trecho de Marcuse, por exemplo, deixa claro o que Foucault classifica como hipótese repressiva do poder:
“Séculos de repressão dos instintos recobriram esse elemento político de Eros: a concentração da energia erótica
na sensualidade genital barra a transcendência do Eros para outras ‘zonas’ do corpo e para o seu meio ambiente,
ela barra a sua força social revolucionária e formadora”. MARCUSE, Herbert. Preface à l’édition française. In:
L’homme unidimensionnel: essai sur l’idéologie de la société industrielle avancée. Trad. Monique Wittig e
Herbert Marcuse. Paris: Minuit, 1968 [1964]. P. 9.
37
“Não centrar o estudo dos mecanismos punitivos sobre seus efeitos ‘repressivos’, [...] mas
recolocá-los em toda a série de efeitos positivos que eles podem induzir, mesmo se eles são
marginais à primeira vista”
59
. O poder não apenas reprime, o poder principalmente produz; não
reprime o sujeito, mas assujeita o indivíduo, o torna sujeito; o poder não é o que, na sua essência,
reprime a pujança de algum elemento da natureza humana ou de alguma classe, mas o que, de
certa forma, a cria, ao lhe dar uma forma, ao agenciá-la, para fazer dessa pujança o seu suporte
material. Trata-se, nas análises de Foucault, sobretudo, de acentuar essa positivação, essa
objetivação, relativa ao exercício do poder.
A “hipótese Nietzsche”, por sua vez, pensa o poder de forma belicosa, como
enfrentamento belicoso de forças, de guerra
60
. O paradigma da relação de força permite explicar o
comportamento moderno e o seu conflito moral característico. Na formação da sociedade política,
para Nietzsche, não haveria ocorrido interrupção das relações de guerra, mas transformação da
forma do conflito. De algo manifesto e objetivamente perseguido, as relações de força teriam
penetrado os sujeitos, se interiorizado, se moralizado. A reflexão política de Foucault até então,
basicamente, se desenvolveu dentro dessa perspectiva hipotética. A anátomo-política, o corpo-a-
corpo, o real composto de forças, em Foucault, tem sua base teórica nessa “hipótese Nietzsche”,
da forma do mundo como campo de forças
61
.
De certo modo, as hipóteses de Reich e Nietzsche são conciliáveis. Afinal, assinala
Foucault, “a repressão não é a conseqüência política da guerra [...]?”. E um pouco adiante, ele
esclarece: “A repressão não seria outra coisa que a operação, no interior dessa pseudo-paz [social],
trabalhada por uma guerra contínua, de uma relação de força perpétua”
62
. Mas se o poder não deve
ser pensado como repressivo, podemos salvaguardar, ao menos, o aspecto belicoso desse esquema
luta-repressão, e pensar as relações de poder segundo a dinâmica da luta, da guerra? Devemos
pensar o poder político não como condição da paz social, mas como envelope que mascara um
fundo permanente de guerra? As relações de poder podem e devem ser pensadas em termos de
59
SEP, 31.
60
Nietzsche: “E sabeis o que é, para mim, o mundo? [...] um monstro de força sem começo nem fim [...]. Força por
todos os lados, ele é jogo de forças e onda de forças, ao mesmo tempo, um e ltiplo, se acumulando aqui,
enquanto se reduz ali, um mar de forças agitadas, do qual ele é a própria tempestade [...]”. NIETZSCHE,
Friedrich. Fragmento póstumo, VP1 385, citado pela tradutora. In: Ainsi parlait Zarathoustra. Trad. Geneviève
Bianquis. Paris: Flammarion, 1996 [1885]. P. 437. E o relaxamento do espírito guerreiro, nas sociedades
modernas, para Nietzsche, não é um sinal de corrupção social, mas de que “a antiga energia e paixão popular, que
alcançava esplêndida evidência com a guerra e os torneios, transformou-se eno em inumeráveis paixões privadas
e apenas se tornou menos evidente”. NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Trad. Paulo César Lima de Souza.
São Paulo: Companhia das Letras, 2002 [1882]. Seção 23, p. 74.
61
Deleuze sintetiza o materialismo foucauldiano, muito claramente, ao afirmar que “o princípio geral de Foucault é:
toda forma é um composto de relações de força”. DELEUZE, Gilles. Foucault. Paris: Minuit, 2004 [1986]. P. 131.
62
IDS, 16.
38
estratégia global, táticas locais, confrontos, batalhas, enfim, como derivadas de uma arte da
guerra? Os esquemas de dominação, que marcam as relações políticas em nossas sociedades,
resultam de um enfrentamento bélico, de relações de força entre inimigos? A guerra serve como
grade de inteligibilidade da política? “Sob a paz, a ordem, a riqueza, a autoridade, sob a ordem
calma das subordinações, sob o Estado, sob os aparelhos de Estado, sob as leis, etc., deve-se ouvir
e redescobrir uma espécie de guerra primitiva e permanente?”
63
.
Contra a hipótese da guerra, da batalha, como principal decodificador da política,
Foucault assinala duas proposições opostas. A primeira é a de Hobbes. Hobbes é geralmente
conhecido como aquele que afirma que a condição natural dos seres humanos é aquela de uma
guerra de todos contra todos, guerra que o Leviatã é capaz de fazer cessar. Mas, segundo
Hobbes e é isso que releva Foucault –, “a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na
conhecida disposição para tal, durante todo o tempo em que não garantia do contrário”
64
. Na
análise que faz do estado de natureza, tal qual ela aparece, no Leviatã, Foucault procura
demonstrar que “não batalhas no estado de guerra primitiva de Hobbes, não sangue, não
cadáveres
65
. O estado de natureza, em Hobbes, não é uma guerra deflagrada, mas uma situação
em que os homens demonstram com clareza a sua disposição para guerrear, caso fosse preciso;
uma situação em que os homens contam com a possibilidade da guerra, do conflito com os outros
homens, para a orientação de suas condutas; um estado em que os homens continuamente se
intimidam uns aos outros. E, o que é ainda mais importante, a disposição para a guerra permanece,
mesmo após a fundação do Estado. Por isso, os homens andam armados, trancam suas portas,
desconfiam uns dos outros. A guerra, a guerra real, portanto, não está nem antes nem depois do
contrato, nem antes nem depois do Estado. A política é indiferente à guerra, não se funda na
batalha, nem se faz para a guerra
66
.
63
IDS, 40. É verdade, as páginas de Vigiar e punir terminam com uma resposta positiva a essas questões, a qual
devemos considerar, contudo, transitória: “Nessa humanidade central e centralizada, efeito e instrumento de
relações de poder complexas, corpos e forças sujeitados por dispositivos de ‘encarceramento’ múltiplos, objetos
para discursos, que são eles mesmos elementos dessa estratégia, deve-se ouvir o ruído da batalha”. SEP, 360.
64
HOBBES. Op. cit. Cap. XIII, p. 76.
65
IDS, 79.
66
Sequer a soberania por aquisição, que se exerce pela aquisição de um território, e que pressupõe, de algum modo,
a guerra, sequer essa forma de soberania se funda na guerra. O fundamento último da soberania, seja ela instituída
pelo acordo ou pela batalha, não é a guerra, mas a vontade de viver e o medo de morrer dos sujeitos. A soberania
por aquisição “difere da soberania por instituição apenas nisso esclarece Hobbes que os homens que escolhem
seu soberano fazem-no por medo uns dos outros, e não daquele a quem instituem, enquanto neste caso [o da
soberania por aquisição], submetem-se àquele de quem m medo”. HOBBES. Op. cit. Cap. XX, p. 127. No
fundamento da soberania, do poder político, em Hobbes, está sempre, em última instância, a vontade do sujeito.
Cf. IDS, 83.
39
A segunda proposição é a de Carl Von Clausewitz: “A guerra não é nada mais do que a
continuação da política por outros meios; [... ela] não é somente um ato político, mas um
verdadeiro instrumento da política, sua condução por outros meios”
67
. Para Clausewitz, a guerra é
um instrumento da sabedoria política, e como tal é decorrente dela.
A afirmação de Clausewitz, de que a guerra é a continuação, por outros meios, da
política, e a de Hobbes, da irrelevância da guerra real para a política, são as duas antíteses, as duas
formas de contra-argumentação daquela concepção do poder própria à “hipótese Nietzsche”. Os
textos de Hobbes e Clausewitz posicionam-se, cada um, em uma das bordas que,
aproximadamente, cercam os séculos XVII e XVIII, período do qual Foucault, nas lições de 1976,
resgata vários discursos que se valem, uns contra os outros, de uma mesma grade de
inteligibilidade. Foucault retoma esses discursos historicistas para fazer a genealogia do
“mecanismo repressão-guerra”, para retrar a linha de formação dessas noções, que explicam a
história a partir da guerra, e fazem da história um instrumento político. Pergunta-se Foucault:
“Quem buscou no ruído e na confusão da guerra, na lama das batalhas o princípio de
inteligibilidade da ordem das instituições e da história? Quem pensou primeiro que a política era a
guerra continuada por outros meios?”
68
. E Foucault vai mostrar que a “hipótese Nietzsche” não
começa com Nietzsche, mas com os discursos histórico-políticos que, em diferentes épocas e
situações, encontraram, na invasão de um determinado território, por um exército ou horda,
composto por uma raça, superior ou inferior, dependendo do ponto de vista, e na guerra, a chave, o
pivô, para explicar a forma como suas sociedades se organizaram historicamente. No período em
questão, o discurso da “luta de raças”, da clivagem binária da sociedade, em que duas raças
distintas e inimigas, a partir de uma invasão originária, se enfrentam ao longo da história, “foi
dotado de um grande poder de circulação, de uma grande aptidão à metamorfose, de uma espécie
de polivalência estratégica”
69
. O discurso da “luta de raças” circula, de um lado a outro das
relações de poder, como instrumento de um ou de outro grupo em conflito. Diferentes serão os
sujeitos dessa história: monarcas, aristocratas, burgueses moderados e radicais. Diferentes serão
também os modos como a história será contada, variando segundo a perspectiva, deixando
transparecer o ponto de vista daquele que narra a história.
Ao final da Idade Média, com o fortalecimento do Estado e a concentração das
práticas e das instituições de guerra nas mãos de um poder central, a guerra deixa de fazer parte
67
CLAUSEWITZ, Carl von. De la guerre. Paris: Minuit, 1955 [1832]. Apud: FONTANA, Alessandro; BERTANI,
Mauro. Nota 9. In: IDS, 20.
68
IDS, 240.
69
IDS, 67.
40
“da relação de homem a homem, de grupo a grupo [...]. [...] a uma sociedade inteiramente
atravessada pelas relações guerreiras, pouco a pouco, se substituiu um Estado dotado de
instituições militares”
70
. E, justamente, no final desse processo de pacificação, forma-se um
discurso histórico-político que, a contrapelo do discurso filosófico-jurídico da soberania, procura
ressaltar as relações entre guerra e sociedade, um discurso que “faz da guerra o fundo permanente
de todas as instituições de poder
71
. Se a teoria da soberania, o discurso filosófico-jurídico, se
baseia na igualdade última dos sujeitos, o discurso histórico-político da luta de raças, por sua vez,
se baseia na diferença fundamental entre as raças em guerra. Nas lições de 1976, Foucault analisa
(1) a emergência desse discurso da luta de ras ou nações, em três ou quatro épocas diferentes: na
Inglaterra revolucionária do século XVII
72
, na França aristocrata do final desse mesmo século
73
, na
França pré-revolucionária do século XVIII
74
; analisa (2) a sua dissolução, na França revolu-
cionária e pós-revolucionária
75
, quando, em Sieyès, por exemplo, retoma-se o tema da nação, mas
como nação universal; e, também, finalmente, (3) as duas transfigurações que esse tipo de
discurso vai sofrer, ao longo do século XIX, nas sociedades burguesas.
(1) O exemplo do que aconteceu na Inglaterra revolucionária do século XVII deve
bastar para que compreendamos a dimica desses discursos. Antes e durante a revolução
burguesa do século XVII, na Inglaterra, o fato histórico da conquista normanda da Inglaterra
saxônica, ocorrida no culo XI, será elaborado e utilizado, de modo diferente, por três grupos em
conflito. Um primeiro grupo, constituído por monarquistas e aristocratas, utiliza-se do fato da
conquista, para construir argumentos que justifiquem o domínio do rei e dos nobres sobre as
terras. Como houve conquista, a posse das terras é o usufruto legítimo de um direito de conquista,
um direito estabelecido pela conquista e para os conquistadores “[...] a Inglaterra havia sido
tomada como possessão, e assim todas as terras inglesas pertenciam aos normandos e ao chefe dos
normandos, quer dizer, o rei”
76
. Um segundo grupo, os parlamentaristas, formado por nobres
interessados em instituir uma forma de direito menos favorável ao rei, contavam a conquista a seu
modo. “A análise dos parlamentares e parlamentaristas começava, de maneira paradoxal, por uma
sorte de denegação da conquista”
77
. Com efeito diziam –, não houve conquista. O rei saxão,
70
IDS, 240.
71
IDS, 240.
72
IDS, 86-96.
73
IDS, 101-111.
74
IDS, 111-120; IDS, 125-147; IDS, 173-188.
75
IDS, 173-188.
76
IDS, 88.
77
IDS, 89
41
antes de morrer, havia deixado o trono, em testamento, para Guilherme. Assim, do rei saxão ao
normando, prevaleceu a continuidade do direito saxão. O novo rei normando, Guilherme, em
1066, não conquistou de fato as terras da Inglaterra, ele foi o sucessor legítimo do rei saxão.
Somente mais tarde, afirmam os parlamentares, estabelece-se o “jugo normando”, interrompendo
a continuidade do direito saxão, e forçando, ao longo do tempo, a instituição de um direito
estrangeiro favorável a reis e aristocratas. Para eles, é contra esse jugo que se debate a Inglaterra
do século XVII. O terceiro grupo do conflito é formado pelos radicais, de origem pequeno-
burguesa, como Levellers e Diggers. Estes retomam a tese da conquista, não para negá-la, mas
para reafirmá-la. Porém, contrariamente ao que diziam os monarquistas e aristocratas, a conquista
não serve para justificar nem a imposição do direito normando nem a do direito saxão, muito pelo
contrário, a conquista invalida qualquer pretensão do direito. Para os radicais, “as leis são
armadilhas”
78
, o direito é um instrumento do poder, não para estabelecer o justo, mas para encobrir
a dominação normanda. O que propõem os radicais? Não um outro direito, não o direito do
parlamento, não aCommon Law, não um utópico direito saxão próximo ao direito natural, mas a
supressão geral das leis. “Supressão, por conseguinte, do aparelho legal inteiro. [...] supressão
igualmente de todas as diferenças que opõem a aristocracia [...] ao resto do povo. Pois os nobres e
o rei não têm com o povo uma relação de proteção, mas uma simples e constante relação de rapina
e roubo”
79
.
Para cada um desses três grupos em conflito radicais, parlamentaristas,
monarquistas –, o mesmo esquema da divisão social em duas raças e da luta incessante entre elas,
apesar de ser agenciado diferentemente, funciona como elemento de análise histórica e
instrumento político. Em grandes linhas, a análise da situação na Inglaterra do século XVII nos
permite retraçar o esqueleto de um tipo de discurso, que, segundo Foucault, é o primeiro a
encontrar, na luta histórica entre raças, um esquema binário de análise da sociedade. Não se trata,
na origem posta por esses discursos, de uma oposição econômica, entre ricos e pobres, mas de
uma oposição racial, de um esquema social binário aplicado sobre fatos de nacionalidade (línguas,
tradições e leis comuns), uma guerra entre duas ras, uma luta que se funda e se justifica na
reativação de passados diferentes. É nesse contexto e contra esse discurso histórico-político inglês,
que se ergue o Leviatã de Hobbes. “O adversário invisível do Leviatã é a conquista”
80
. Para
Foucault, o que Hobbes pretendia era eliminar filosoficamente a conquista, retirar o fato histórico
78
IDS, 93.
79
IDS, 93
80
IDS, 85.
42
da conquista do cenário político. O historicismo político faz da guerra a base da política, encontra,
sob as leis e o Estado, a eterna possibilidade e justificativa da revolta, da não-paz. O Estado de
Hobbes, ao contrário, funda a paz social sobre a vontade dos sujeitos e bane definitivamente a
guerra da comunidade política.
Como no exemplo inglês, na França também, a guerra no discurso da luta de raças é
sempre a ladainha de uma guerra antiga, real, mas que, no agora dos seus tempos, esencoberta,
esquecida, desvitalizada. Uma guerra que, em seus primórdios, foi travada entre duas raças, uma
invasora, outra invadida. Uma guerra que determinou, desde então, as situações históricas e os
destinos das diferentes nações. Mas, entenda-se, aqui, por nação’, segundo o vocabulário do
século XVIII francês, algo totalmente diferente do significado atual. As nações, no discurso da
luta de raças, no século XVIII, significam “os conjuntos, as sociedades, os agrupamentos de gente,
de indivíduos que têm em comum um estatuto, modos, hábitos, uma certa lei particular mas lei
entendida mais como regularidade estamental do que como lei estatal”
81
. Para o aristocrata
Boulainvilliers, por exemplo, a nobreza é uma nação em face de outras, com as quais está em
conflito.
(2) Entretanto, com Sieyès, logo antes da Revolução, aproximamo-nos de uma
definição moderna de nação, fundada na lei comum, estabelecida por um corpo legislativo e
independente de uma tradição compartilhada. “O que é uma nação? pergunta-se Sieyès, para
responder em seguidaUm corpo de associados vivendo sob uma lei comum e representados pela
mesma legislatura
82
. Para Sieyès, a França não é uma nação, porque tem leis distintas para
associados distintos. A nobreza, por sua vez, não preenche as condições substanciais de uma
nação. Uma nação, para Seyès, deve subsistir por si mesma, e a nobreza é incapaz disso. Apenas o
Terceiro Estado, a burguesia, para Sieyès, por si mesma, assume de fato todos os trabalhos e quase
todas as funções que asseguram as condições de existência de uma nação; a burguesia é uma
nação completa. “É a partir da Revolução [Francesa] leciona Foucault – que esse elemento da
guerra, constitutivo da inteligibilidade histórica no século XVIII vai ser, senão eliminado do
discurso da história, pelo menos, reduzido, delimitado, colonizado, localizado, repartido,
civilizado, se quiserem, e até um certo ponto, pacificado”. Termina o discurso que a política
como a expressão de uma relação de dominação ininterrupta entre nações diferentes, raças
diferentes; entra em cena, o universal, a classe universal.
81
IDS, 117
82
SIEYÈS, Emmanuel. Qu’est-ce que le Tiers Etat? Paris: Quadridge / PUF, 1982 [1789]. P. 31.
43
Mas o que foi a Revolução Francesa para essa perceptiva que, durante o século XIX,
vai de encontro ao discurso historicista dos nobres do século XVIII? Para Augustin Thierry,
historiador burguês, a Revolução foi “o último episódio de guerra violenta”, de uma guerra que
não é de tipo militar, mas essencialmente de ordem civil
83
, a afirmação definitiva de um modo
de vida, de uma moral burgueses. A Revolução é o momento em que o Terceiro Estado se torna a
nação e o Estado, pela absorção de todas as funções estatais. “A guerra é apenas momentânea e
instrumental, em relação a enfrentamentos que não o de tipo bélico”
84
. Em Thierry, a burguesia
se torna a nação universal, a classe que se pretende universal. Foucault encontra aí as condições de
possibilidade que permitem a emergência de uma filosofia da história de tipo dialético, em que a
burguesia, como nação, como classe universal, resolve em si os conflitos históricos.
História e filosofia se cruzam quando surgem as questões, sobre quem no presente
porta o universal, e sobre o que é a verdade desse universal; nesse instante, afirma Foucault,
“nasce a dialética”
85
, como filosofia da história. Uma história com sentido e fim se substitui a uma
história de tipo aberto, em que a guerra faz o papel de motor, em que o acaso e as paixões o
decisivos. Uma das coisas que Foucault tem em mente, como pano de fundo a toda essa discussão,
é o posicionamento, sobre a série de discursos descritos em Em defesa da sociedade, da concepção
de Marx do proletariado como classe universal. Antes de Marx, o discurso da nação universal
está em Sieyès; e o da classe universal, em Thierry. Como assinala Foucault, em uma
correspondência com Engels, o próprio Marx atribui a paternidade do termo ‘luta de classes’ a
Thierry
86
. O que era luta de raças, para os historiadores do século XVIII, torna-se, pela primeira
vez, com Thierry, luta de classes. O conflito, que no discurso historicista era de caráter bélico,
torna-se civil. A luta, que tinha por fim manter e reconduzir uma relação de dominação, assume
nas argumentações de Thierry o aspecto de uma rivalidade cujo “objeto e espaço [é] o Estado.
Uma luta essencialmente civil. Ela vai se desdobrar essencialmente através e na direção da
economia, das instituições, da produção, da administração”
87
.
(3) A neutralização da guerra, o fim da colocação em cena da guerra como elemento
para a inteligibilidade da história, no século XIX, conduz a duas recodificações diferentes. Abrem-
se, no século XIX, duas vertentes, nas quais a luta de raças sofre dois tipos de deslocamentos. De
um lado, como vimos, quando a guerra entre raças cessa, quando ela deixa de funcionar como
83
IDS, 210.
84
IDS, 211.
85
IDS, 212.
86
Cf. FONTANA, Alessandro; BERTANI, Mauro. In: IDS, 74, nota 6.
87
IDS, 201.
44
elemento de análise da história, surge a luta de classes, em conflito civil, e o marxismo. De outro
lado, uma “transcrição francamente biológica, que se opera, aliás, bem antes de Darwin”
88
, e
que culmina no darwinismo social, com a luta social pela vida, entre grupos ou entre indivíduos.
Uma bifurcação essencial, portanto, está na base da recodificação do tema da luta de raças, no
século XIX, como luta de classes e como racismo de Estado.
O que nos interessa, no darwinismo social, no tratamento organicista da sociedade, é a
aproximação entre biologia e sociologia, e a decorrente migração de certos conceitos científicos;
sobretudo, a incorporação, pelas teorias sociológicas, das noções biológicas de adaptação ao meio,
de sobrevivência do mais apto e do mais forte, além das noções de hereditariedade (hérédité) e
degenerescência (dégénérescence), tão importantes para o racismo de Estado. Mesmo se parte da
sociologia evolucionista vai utilizar esses conceitos para a defesa de um liberalismo mais
abrangente, não apenas econômico, mas também biológico, são esses mesmos conceitos da
sociologia evolucionista que vão justificar uma ação biológica positiva do Estado, apesar de
defensiva
89
. Com o racismo de Estado, o discurso de luta de ras, que no século XVIII era, em
geral, um discurso contra o poder central monárquico, contra a cristalização do Estado, passa a ser
enunciado a partir do próprio Estado. A guerra que, no discurso historicista, acontecia entre duas
raças, exteriores uma à outra, é de certa forma interiorizada e se “a partir de uma raça dada
88
IDS, 52. Herbert Spencer é o nome mais conhecido dessa sociologia que, no século XIX, faz uso dos conceitos
elaborados por Darwin. Aliás, num campo, o social, totalmente alheio à teoria de Darwin. Segundo Timasheff, a
base da teoria sociológica de Spencer já havia sido publicada, em Social Statics (1850), portanto, nove anos antes
da publicação de The Origin of Species (1859), de Darwin. Destaca-se, em Spencer, a visão organicista da
sociedade, a analogia possível entre sociedade e organismo biológico, entre sociologia e biologia. Para Spencer,
entre sociedade e ser individual, até mais do que uma simples analogia, semelhanças, “a mesma definição de
vida se aplica aos dois”. Na sociedade e no indivíduo, reconhece-se o mesmo ciclo de crescimento, maturidade e
decadência; com a evolução, em ambos, dá-se o aumento da complexidade das partes e das respectivas
funcionalidades; ambos são compostos de partes relativamente autônomas em relação ao todo. Um organismo vivo
individual pode ser considerado uma nação de unidades que vivem individualmente; como a sociedade, uma nação
de indivíduos. TIMASHEFF, Nicholas S.. Teoria sociológica. Trad. Antônio Bulhões. 4 ed. Rio de Janeiro: Zahar,
1973 [1955]. P. 56.
Persistem traços de darwinismo social até mesmo em Max Weber. Depois de tratar da categoria ‘luta’, Weber fala
de ‘seleção’; “seleção é a luta (latente) pela existência, que opõe uns aos outros, sem intenção significativa de luta
[e por isso é uma luta latente] os indivíduos ou os tipos humanos, em vista de suas chances de vida ou de
sobrevivência; ela é dita ‘seleção social’, enquanto se trata das chances de indivíduos vivos, na vida ordinária, e
‘seleção biológica’, enquanto se trata das chance de sobrevivência de caráter heredirio”. E continua: “toda luta
ou concorrência que se desenvolve de modo típico ou em massa conduz, apesar de tudo, no decorrer do tempo, a
despeito dos acidentes ou fatalidades preponderantes, [...], a uma ‘seleção’ daqueles que possuem, num grau mais
elevado, as qualidades pessoais, que são em média [e circunstancialmente] importantes, para assegurar o triunfo no
curso da luta”
88
. WEBER, Max. Op. cit. Cap.1, §8, p. 75. No racismo de Estado e no darwinismo social, pode-se
dizer, as categorias ‘seleção social’ e ‘seleção biológica’ não estão diferenciadas.
89
Era o caso de Spencer, que, como afirma Timasheff, “queria demonstrar, pela sociologia, que os homens não
devem interferir nos processos naturais que se verificam na sociedade”. A sociedade civil, deixada a si, livremente,
desenvolve melhor os “dotes originais das raças”. A intervenção do Estado, por exemplo, com as políticas de
saúde e as medidas sanitárias, para Spencer, representavam, segundo Timasheff, “uma interferência estúpida na
evolução natural”. TIMASHEFF, Nicholas S. Op. cit. P. 59-60.
45
como sendo a verdadeira e a única, a que detém o poder e a norma, contra aqueles que constituem
um perigo para o seu patrimônio biológico”
90
. A raça, no discurso historicista, não apresentava um
viés biológico, mas étnico. O que caracterizava uma raça não era um estigma de tipo biológico,
mas uma tradição, um costume, um passado compartilhado. A unidade social, que havia sido
estabelecida após uma longa história de conquistas, vitórias e derrotas, representava o
encobrimento de uma clivagem primária. Enquanto, na recodificação da luta de raças como
evolucionismo social, ao mesmo tempo em que a noção de raça passa a assumir um fundamento
biológico, a guerra torna-se intestina, princípio de eliminação de um elemento racial,
biologicamente inferior à norma da raça que detém o poder, raça que precisa ser defendida contra
as ameaças contínuas que essas perturbações biológicas representam. É o racismo de Estado: um
racismo que uma sociedade vai exercer sobre ela mesma, sobre seus próprios elementos, sobre
seus próprios produtos; um racismo interno, aquele da purificação permanente, que será uma das
dimensões fundamentais da normalização social”
91
. Se o discurso historicista era um discurso de
defesa contra a sociedade, contra essa sociedade política que perpetua a dominação de uma ra
sobre outra, o discurso do racismo de Estado representa uma inversão – “não: ‘Nós temos que nos
defender contra a sociedade’, mas: Nós temos que defender a sociedade contra todos os perigos
biológicos dessa outra raça, dessa sub-raça, dessa contra-raça, que nós estamos constituindo,
malgrado nosso’ ”
92
. O Estado não é mais o instrumento de repressão de uma raça em luta contra
outra, mas é, e deve ser, o promotor da superioridade e da pureza da raça. Em defesa da sociedade,
o Estado deve garantir a integridade social, circunscrevendo, num outro espaço, propriamente
associal, o delinqüente, o louco, o degenerado, enfim, o anormal. Temos a passagem, com o
racismo de Estado, da luta de raças à pureza da raça, no singular. O discurso do racismo de Estado
emerge paralelamente à temática da luta de classes e da revolução social, e como invertendo-a: “o
discurso da raça foi uma maneira de retornar essa arma, e de utilizar seu fio cortante em proveito
da soberania conservada do Estado, soberania, cujo brilho e vigor não são mais assegurados por
rituais mágico-jurídicos, mas por técnicas dico-normalizadoras”
93
. Segundo Foucault, a
temática racista “vai servir à estratégia global dos conservadorismos sociais”
94
, enquanto, para o
outro viés, para a recodificação da luta de raças como luta de classes, mantém-se como matriz de
90
IDS, 53
91
IDS, 53.
92
IDS, 53.
93
IDS, 71.
94
IDS, 53.
46
inspiração revolucionária. Temos a passagem, com o racismo de Estado, do ideal de libertação ao
ideal de purificação.
No curso de 1975, no Collège de France, intitulado Os anormais, Foucault destaca o
papel que a psiquiatria vai encenar no racismo de Estado. A ação do Estado, no final do século
XIX, se efetiva a partir da elaboração de uma rede de saberes e de instituições, de viés
psiquiátrico, acoplados a outros aparelhos de tipo disciplinar, como as escolas, as usinas, as
prisões, ou de apoio à sociedade disciplinar, como a família. O Estado, na Europa do século XIX,
está munido de um aparato que permite o isolamento, a identificação e o afastamento dos
“anormais”, portadores de um perigoso potencial de degenerescência social. Esse aparato
compreende uma teoria geral“[...] a construção de uma teoria geral da ‘degenerescência’ que, a
partir do livro de Morel (1857) vai, durante mais de meio-século, servir de quadro teórico e, ao
mesmo tempo, de justificação social e moral, a todas as técnicas de reconhecimento, de
classificação e de intervenção sobre os anormais” e uma série de aparelhos estabelecidos: “[...]
uma rede institucional complexa que, nos confins da medicina e da justiça, serve, de uma vez,
de estrutura de ‘acolhimento’ para os anormais e de instrumento para a ‘defesa’ da sociedade”
95
. O
anormal corrompe o patrimônio físico, biológico, e representa uma ameaça para o progresso moral
e intelectual da sociedade
96
. Com a noção de degenerescência, dá-se o recorte de uma zona de
perigo social à qual é atribuído um estatuto patológico; é pelo cruzamento da loucura com a
criminalidade, que a psiquiatria vai justificar sua intervenção direta na sociedade. O perigo social,
contido nessa remissão essencial da loucura ao crime, que faz de todo louco um criminoso
potencial, e do crime à loucura, que faz de todo criminoso um tipo de louco, faz parte da estratégia
de constituição da psiquiatria como ramo da higiene pública
97
.
O Estado do final do culo XIX passa a exercer um papel ativo no processo evolutivo
natural das sociedades. E, como justificativa social e moral, desse exercício do poder do Estado, a
teoria da degenerescência tem um papel relevante. É pela teoria da degenerescência e da
hereditariedade, que a psiquiatria vai juntar-se à biologia e à sociologia, que o anormal se torna
95
ANO, 311.
96
Um excerto do livro de Morel apresenta, em grandes linhas, o desafio e o perigo que a degenerescência e a sua
transmissibilidade representam para as gerações futuras: “Esse desvio [a degenerescência], por mais simples que
se suponha, na sua origem, encerra entretanto elementos de transmissibilidade, de uma natureza tal, que [...] o
progresso intelectual, eliminado na pessoa [do degenerado], se encontra ainda ameaçado na pessoa dos seus
descendentes”. MOREL, Bénédict Augustin. Traité des générescences physiques, intellectuelles et morales
de l’espèce humaine, et des causes qui produisent ces variétés maladives. Paris: J. B. Baillière, 1857. Citado
por Jacques Lagrange. In: LPP, 230, nota 71.
97
O vínculo entre crime e loucura é constituinte da estratégia de interferência no poder judiciário pelo poder
psiquiátrico e do modo pelo qual “a psiquiatria manobrou para se fazer reconhecer como parte da higiene pública”.
Le jeu de Michel Foucault. Texto 206 [1977]. In: DE2, 309.
47
um perigo para a sociedade e uma impureza para a ra. A psiquiatria “se torna a ciência da
proteção científica da sociedade, ela se torna a ciência da proteção biológica da espécie”
98
. A
psiquiatria do final do século XIX, quando ela atinge seu “máximo de poder”, dá origem a um tipo
novo de racismo, “muito diferente daquele que poderíamos chamar de um racismo tradicional,
histórico, o ‘racismo étnico’. O racismo que nasce na psiquiatria desta época é o racismo contra o
anormal [...]”
99
. Um racismo não de uma raça contra a outra, não o racismo da luta de raças do
século XVIII, mas um racismo interno, purificador, voltado contra os elementos biologicamente
deteriorados das sociedades. Foucault ressalva, porém, que entre esse novo tipo de racismo e o
racismo tradicional “toda uma série de interferências, mas sem que tenha havido uma
organização efetiva coerente dessas duas formas de racismo, antes precisamente do nazismo”
100
.
Somente com o nazismo, o racismo tradicional, étnico, e esse novo tipo de racismo, contra o
degenerado, originado da psiquiatria, aparecem vinculados, coerentemente, um ao outro. Deduz-
se, portanto, do que diz Foucault, que, no século XIX, o “neo-racismo” contra o degenerado e o
racismo colonial não se constituem como práticas integradas. O importante é notar que Foucault
traça uma linha que nos leva, desde o século XIX, desde a estratégia da psiquiatria para se
estabelecer como meio de defesa da sociedade, como agente biopolítico de higiene pública, até o
nazismo. Para Foucault, a “tecnologia eugênica com o problema da hereditariedade, da purificação
da raça e da correção do sistema instintivo dos homens”
101
nasce na psiquiatria e é retomada pelo
nazismo.
A bifurcação do tema da luta de raças, no século XIX, como luta de classes e como
racismo de Estado, encontra-se na base na base das duas “doenças de poder”
102
que eclodem no
século XX ocidental, o nazismo e o stalinismo esses dois regimes políticos que impuseram a
Foucault a questão sobre o poder. O nazismo e o stalinismo não são o prolongamento direto dessa
bifurcação, mas a sua transformação, a sua recodificação ao longo da história. Por um lado, a
“transformação nazista” é o racismo de Estado, cuja função de proteger biologicamente a pureza
da raça se funde, regressivamente, com os temas que eram próprios ao discursos historicistas da
luta de raças. “É assim que o nazismo vai reutilizar toda uma mitologia popular, e quase medieval,
para fazer funcionar o racismo de Estado, em uma paisagem ideológico-mítica que se aproxima
98
ANO, 298.
99
ANO, 299.
100
ANO, 299.
101
ANO, 124.
102
Foucault evita fazer um juízo moral, mas se refere ao nazismo e ao stalinismo como patologias do poder. Cf.
FOUCAULT, Michel. Le sujet et le pouvoir. Texto 306 [1982]. In: DE2, p. 1043.
48
daquela das lutas populares que puderam, num dado momento, suportar e permitir formular o tema
da luta de raças”
103
. Por exemplo, enumera Foucault, o tema “da luta da raça alemã sujeitada”, o
tema do “retorno do herói”, o tema “de um novo Reich, que é o império dos últimos dias, que deve
assegurar o triunfo milenar da ra”, mas que é também, como conseqüência disso, “a iminência
do apocalipse e do último dia”
104
. Estes, que são os temas emblemáticos recorrentes da contra-
história de tipo bíblico, são reutilizados pelo nazismo, mas, desta feita, acoplados à produção de
um discurso histórico oficial de tipo romano, cuja função é “produzir, na realidade, de uma só vez,
a justificação do poder e o reforço desse poder, apresentando aos sujeitos o jugo [inexorável] da
[sua] lei, e o brilho da [sua] glória”
105
. Jugo da lei, que liga os sujeitos ao poder; brilho da glória,
que ofusca os sujeitos diante do poder. Cruzamento, no nazismo, de um contra-discurso de tipo
bíblico com um discurso de tipo romano de legitimação e reforço do poder soberano.
“Reconversão, portanto, ou reimplantação, reinscrição nazi do racismo de Estado na legenda das
raças em guerra”
106
.
A segunda transformação que sofre o racismo de Estado, na primeira metade do século
XX, é a “transformação soviética”. De forma diferente do nazismo, que se apropriou do tema da
luta de raças, o stalinismo opera de forma mais sutil, e diz Foucault, mediante uma transformação
sub-reptícia, sem dramaturgia legendária, mas difusamente ‘cientificista’”, uma transformação que
trata politicamente o tema da luta de classes ao modo de uma luta de raça, pela purificação da
raça. O inimigo de classe, no Estado soviético, é tratado como “perigo biológico”, finalmente,
como inimigo da raça – o inimigo político “é o doente, o que se desvia, o louco”
107
.
Foucault procura mostrar como o discurso histórico-político e o tema da guerra, da
guerra como substância da política, da guerra de uma raça contra outra, vai sofrer uma série de
deslocamentos, de neutralizações, de absorções, até ser incorporado por aquela forma de poder, o
poder soberano, contra o qual esse discurso se insurgia, no seu emergir. Nessa série de
transformações, o discurso da luta de ras, apropriado como discurso da ra, da raça única,
torna-se o discurso de um Estado que se legitima não mais pelo discurso jurídico-filosófico da
soberania, mas que obtém sua legitimação no seu papel biopolítico de defesa, de purificação, de
aprimoramento do patrimônio biológico da sociedade. Ao absorver o tema da luta de raças,
transformando-o em purificação da raça, o poder de tipo soberano transforma-se, por sua vez, em
103
IDS, 72.
104
IDS, 72.
105
IDS, 58.
106
IDS, 72.
107
IDS, 72.
49
poder biopolítico, do qual as idéias e os conceitos gerados pela sociologia evolucionista e pelo
darwinismo social, o tema da vida, da sobrevivência do mais apto, da “luta pela vida”, torna-se sua
principal justificativa.
Um dos principais atributos do poder soberano é o direito de vida e de morte, de expor
seus súditos à morte, seja diretamente, como punição por algum delito cometido, seja
indiretamente, em uma guerra. Assim, por exemplo, em Hobbes, “pertence à soberania o direito de
fazer a guerra e a paz”
108
. O soberano é o único que, depois da fundação do Estado, preserva o
direito de punir com a pena capital. Na sociedade política de Hobbes, o soberano permanece no
estado de natureza. O direito de punir “foi-lhe [ao soberano] deixado, e apenas a ele; e tão inteiro
(com exceção dos limites estabelecidos pela lei natural) como na condição de simples natureza e
de guerra de cada um contra o seu vizinho”
109
. Contudo, como ressalta Foucault, prevalece um
desequilíbrio, pois esse poder soberano, sobre a vida e a morte dos sujeitos, se exerce “[...]sempre
do lado da morte. O efeito do poder soberano sobre a vida se exerce a partir do momento em
que o soberano pode matar”
110
. A ação positiva, através da qual esse poder se exerce, é sempre
uma ão de morte, e não uma ação positiva sobre a vida, de provisão da vida. O direito soberano
é ativo a respeito da morte, e passivo a respeito da vida. O poder soberano, sobre a vida e a morte,
sublinha Foucault, é, sobretudo, o “direito de fazer morrer e de deixar viver”
111
.
No processo de transformação do poder soberano, primeiramente, “se estabelece,
desde o fim do XVII e ao longo do século XVIII”
112
, o poder disciplinar. Como vimos, seu
objeto, aquilo sobre o que essa forma de poder se exerce, é o corpo humano individual. A
sociedade disciplinar não é a sociedade de massa, que reduz as individualidades a uma
homogeneidade, que aglomera os indivíduos, lado a lado, mas isolados. Ao contrário, o poder
disciplinar toma a massa para diferenciá-la, para produzir, na massa homogênea e disforme, uma
forma, uma ordem, uma fragmentação coordenada, na qual os indivíduos são diferenciados, mas
não isolados entre si; suas posições, seus comportamentos e seus gestos são articulados uns aos
outros. Se a concepção de sociedade de massa procura descrever a perda da individualidade, se a
massa representa a redução das especificidades de cada um e a sua dissolução em uma
homogeneidade uniforme, a sociedade disciplinar, inversamente, descreve a formação da
individualidade, a partir da massa. Em virtude dessa força que se exerce sobre o corpo individual,
108
Hobbes, Op. cit. Cap. XVIII, p. 114.
109
Hobbes, Op. cit. Cap. XXVIII, p. 204.
110
IDS, 214.
111
IDS, 214.
112
IDS, 215.
50
sobres os indivíduos conectados entre si, em rede, Foucault chama o poder disciplinar de anátomo-
política. Depois, diz Foucault, descolando-se desse tipo de poder, e de certa forma apoiando-se
nele, surge, um pouco mais tarde, na “segunda metade do século XVIII”, uma nova técnica de
poder, que não se dirige mais ao “homem-corpo”, que não se exerce mais sobre os indivíduos,
adestrando suas vontades, e capacitando seus corpos como singularidades numa rede, mas uma
tecnologia de um outro tipo, que se interessa nos homens como seres vivos, no “homem-espécie”.
Se o poder disciplinar é individualizante, essa nova tecnologia de poder, que se interessa no
homem como ser vivo, no homem biológico, no homem-espécie, e que Foucault chama
precisamente de biopolítica’ da espécie humana”
113
, é totalizante, toma a massa de humanos
enquanto tal. Se o correlato do poder disciplinar é o indivíduo, o correlato do biopolítico é a
população, o conjunto vivo dos homens, os humanos enquanto soma, enquanto fenômeno global.
No século XIX, a população é determinada biologicamente, como espécie, como raça. Foucault
enumera três campos, que se não são os únicos, são os três grandes domínios de intervenção
biopolítica: a higiene pública, o meio urbano e os mecanismos de segurança. Dos dois primeiros
dissemos alguma coisa neste e no capítulo anterior, enquanto o terceiro será o assunto do quarto
capítulo.
Assim, se constituem, lado a lado, “duas séries
114
, ligeiramente distanciadas no
tempo, uma em relação à outra. O conjunto dessas duas séries forma o que Foucault chama de
biopoder, “um poder que se encarregou do corpo e da vida, ou, se quiserem, que se encarregou da
vida em geral, com o pólo do corpo e o pólo da população”
115
. A primeira série põe em relação o
detalhe, o corpo, o indivíduo, o organismo, a disciplina e a instituição; a segunda, o global, a vida,
a população, os processos biológicos, os mecanismos reguladores e o Estado. As duas séries,
disciplinar e biopolítica, estão acopladas uma à outra, dependentes uma da outra. Estão
conectadas, por exemplo, pela norma. A norma desloca-se entre a disciplina e o mecanismo
biopolítico. “A norma é o que pode se aplicar tanto a um corpo que se quer disciplinar, como a
uma população que se quer regularizar” (régulariser)
116
. O biopoder se ordena pela norma. A
norma disciplinar é fruto da observação das capacidades orgânicas dos corpos individuais, e
retorna, e é reaplicada sobre esses mesmos corpos, dos quais foi extraída, como critério de
avaliação, para adestrar as performances e para estabelecer a punição dos desviantes. A norma de
113
IDS, 216.
114
IDS, 225.
115
IDS, 225-226
116
IDS, 225. É preciso diferenciar regularizar (tornar regular, ajustado, equilibrado) e regulamentar (estabelecer o
regulamento, as regras). Da mesma forma, diferenciam-se regulação e regulamentação.
51
regulação é fruto dos levantamentos estatísticos; serve primeiro como base para a intervenção
sobre os processos homeostáticos, depois, como medida dos efeitos dessas intervenções. Cruzam-
se as normas disciplinares e biopolíticas, por exemplo, quando o nível de consumo individual de
água, estabelecido numa instituição militar, é aplicado no planejamento do abastecimento de água
de uma cidade; ou quando o índice de fecundidade geral da população feminina é comparado com
o das operárias de uma usina. A “sociedade de normalização é uma sociedade, em que se cruzam,
segundo uma articulação ortogonal, a norma da disciplina e a norma da regulação”
117
. A norma
disciplinar serve como critério para uma intervenção global sobre a vida da população; enquanto a
norma global, para a intervenção sobre os corpos disciplinados.
Ao longo do culo XVIII, e definitivamente no XIX, o biopoder se sobrepõe ao poder
soberano, sem eliminá-lo, sem torná-lo de todo inoperante. Como “esquema organizador”, a
soberania, segundo Foucault, com a “explosão demográfica e a industrialização”, deixa de ser
eficiente para “gerir o corpo econômico e político”
118
da sociedade. Frente ao poder soberano e ao
poder de fazer morrer, institui-se a biopolítica e o poder de fazer viver. A execução da pena de
morte é a manifestação mais resplandecente do poder soberano. Por outro lado, é a vida, a
promoção de um determinado estado de vida, que se constitui como ponto de aplicação da
biopolítica. Isso não exclui certos paradoxos. De fato, se é verdade que o poder soberano se
transforma, em parte, em poder biopolítico, se o poder de fazer morrer se retrai frente ao de fazer
viver, como explicar a recrudescente exposição das populações à morte, desde o século XIX, e
durante o XX, nas guerras que matam milhões? Como explicar os riscos a que o poder político
atualmente expõe as populações, a bomba atômica, a biogenética e a possibilidade, nunca
descartável, de “fabricar o monstro, de fabricar – no limite vírus incontroláveis e universalmente
destruidores”
119
? Como é possível, para um poder político, “que tem por objeto e por objetivo a
vida [...], matar, reclamar a morte, pedir a morte, fazer morrer, dar a ordem de matar, expor à
morte não apenas seus inimigos, mas até mesmo seus próprios cidadãos?”
120
.
A chave que, para Foucault, permite a reconversão do poder biopolítico em poder
soberano, a chave que permite que o poder exerça, contra todos os seus fundamentos, o poder de
matar, que lhe é essencialmente estrangeiro, essa chave é o racismo. “O que inscreve o racismo
nos mecanismos do Estado é a emergência desse biopoder
121
. E o biopoder é o conjunto de
117
IDS, 225.
118
IDS, 222.
119
IDS, 226.
120
IDS, 226-227.
121
IDS, 227.
52
práticas, de mecanismos disciplinares e biopolíticos, que estabelecem as condições e as formas de
aplicação, respectivamente, de um poder sobre os corpos individuais e sobre a vida da população.
“[...] não há praticamente nenhum exemplo de funcionamento moderno do Estado que, a um certo
momento, em um certo limite, e em certas condições, não passe pelo racismo”
122
. O racismo
estabelece o vínculo entre biopoder e poder soberano, e permite o poder biopolítico funcionar
como poder soberano. O racismo teve como função estabelecer, “no continuum biológico da
espécie humana
123
, um corte, uma distinção, uma hierarquia entre as raças, a de fracionar em sub-
grupos um todo, que se caracteriza biologicamente como espécie; “isso vai permitir ao poder tratar
uma população como uma mistura de raças
124
. A segunda função do racismo, como vimos
anteriormente, é a de reintroduzir uma relação de guerra no interior do Estado. A máxima,
característica da relação de guerra, “para viver, é preciso que tu massacres teus inimigos”
125
é
incorporada e interiorizada, como um atributo do Estado, mediante o racismo. O racismo permite
retomar essa máxima militar em termos biológicos. “A morte do outro, não é simplesmente a
minha vida, na medida em que seria a minha segurança pessoal; a morte do outro, a morte da raça
ruim, da raça inferior (ou do degenerado, ou do anormal), é o que vai tornar a vida, em geral, mais
sã; mais sã e mais pura”
126
. A ordem de matar é aceitável, no contexto biopolítico, em que a
fundamentação da política é a vida biológica do homem enquanto espécie, quando o imperativo da
morte passa a representar não somente a supressão de um perigo militar, não apenas a supressão
de uma força adversária, mas a eliminação de uma impureza, de um risco, de um perigo biológico
e, ao mesmo tempo, um enaltecimento, um aprimoramento, da raça que, eliminando as suas
podridões, se torna mais forte e vigorosa. “A raça, o racismo, é a condição de aceitabilidade da
aplicação da morte, numa sociedade de normalização”
127
. O racismo é o único meio pelo qual o
Estado, que se tornou um poder normalizador, pode exercer aquele poder de matar do soberano.
Esse poder de fazer a guerra do Estado normalizador, se torna aceitável, se ele se justifica
biologicamente.
Os temas próprios do evolucionismo sociológico, a hierarquia das espécies, a luta pela
vida, no interior de uma espécie ou entre as espécies, e a seleção dos mais aptos, que elimina,
naturalmente, os menos adaptados, vão, no decorrer do século XIX, tornar-se “não simplesmente
122
IDS, 227.
123
IDS, 227.
124
IDS, 227.
125
IDS, 227.
126
IDS, 228.
127
IDS, 228.
53
uma maneira de transcrever em termos biológicos o discurso político, não simplesmente uma
maneira de encobrir um discurso político, com uma vestimenta científica, mas, verdadeiramente,
uma maneira de pensar as relações de colonização, a necessidade das guerras, a criminalidade, os
fenômenos da loucura e da doença mental, a história das sociedades com suas diferentes
classes”
128
. A guerra racial biológica, seja contra o inimigo, seja contra o criminoso, seja contra o
anormal, torna-se a própria biopolítica. A guerra funciona como conceito para a inteligibilidade
dos fenômenos sociais e, ao mesmo tempo, como exercício da biopolítica. A guerra racial, contra a
outra raça ou contra o elemento degenerado da raça, se torna o principal instrumento de realização
biopolítica.
O nazismo representa uma sorte de paroxismo do biopoder: encarregar-se do biológico,
da procriação, da hereditariedade; encarregar-se também da doença, dos acidentes”, não há
Estado, não “sociedade mais disciplinar [e] mais asseguradora do que aquela posta em prática
ou, em todo caso, projetada, pelos nazis
129
. Ao mesmo tempo, contudo, em que o biopoder atinge
um máximo, o poder soberano de matar recrudesce, se espraia e atravessa todo o corpo social. No
auge da atenção biopolítica, a própria guerra torna-se um objetivo político, não mais apenas o
fundo social da política, mas um fim político, “uma espécie última e decisiva de todos os
processos políticos”. Mas essa é, segundo Foucault, uma moeda de duas faces “a destruição das
outras raças é uma das faces do projeto, a outra face é expor sua própria raça ao perigo absoluto e
universal da morte”
130
. Somente essa exposição da própria raça alemã a um processo de
purificação, pela morte, pode torná-la superior as outras raças.
***
Neste capítulo investigamos, em Foucault, algumas relações entre política e guerra,
algumas formas pelas quais, ao longo dos últimos séculos, a guerra foi pensada na sua relação com
a política. O ponto de partida de Foucault foi o seu incômodo com as interpretações correntes do
nazismo e do stalinismo, duas das mais importantes experiências de excesso de poder, na Europa
da primeira metade do século XX. Em busca de um instrumento de análise do poder político,
Foucault recusa seguir três dos quatro caminhos que tem à disposição. Recusa a concepção liberal
jurídica do poder como direito, recusa a concepção marxista do poder econômico, recusa a
hipótese Reich do poder repressivo, e investiga o que ele chama de hipótese Nietzsche do poder
128
IDS, 229.
129
IDS, 231.
130
IDS, 231.
54
como relação de força, analisável a partir do paradigma da guerra. Foucault localiza a origem
dessa hipótese da guerra, como fundamento da sociedade política, o no pensamento estritamente
filosófico, mas no contexto das disputas políticas entre monarquistas, nobres e até mesmo, em
certa medida, burgueses, que do século XVII até o século XVIII, buscaram, em um discurso de
tipo historicista, no discurso da luta de raças, os argumentos para fundamentar historicamente suas
reivindicações. Certamente, a burguesia era a que tinha menos interesse nesse tipo de
fundamentação histórica da política, Hobbes, no século XVII, Clausewitz, Sieyès, Thierry, em
torno da virada do século XIX, marcam algumas das principais tentativas burguesas, finalmente
vitoriosas, de barrar o discurso político-historicista da guerra. Entretanto o triunfo da burguesia e
do discurso filosófico-jurídico não representaram o fim do discurso da luta de ras, e sim sua
bifurcação; no decorrer do século XIX, o paradigma da luta de raças transforma-se, à esquerda, no
mecanismo de luta de classes e, digamos, à direita, no racismo de Estado. O desdobramento dessa
bifurcação culmina, no século XX, no stalinismo e no nazismo, no programa de uma só classe, do
socialismo em um só país, e no programa de uma raça superior. A eliminação do inimigo de classe
e dos corpos estrangeiros à raça superior funcionam, porém, segundo o mesmo filtro biológico da
guerra. A guerra torna-se, com o nazismo e o stalinismo, o instrumento biopolítico de drenagem
de dejetos e de purificação do patrimônio biológico próprio a uma população. De acordo com
Foucault, somente o racismo e o ódio de classe explicam como o poder biopolítico, de fazer viver
a população, pôde ser exercido como poder soberano, o qual ele havia superado historicamente, de
fazer morrer pela guerra.
A interpretação do nazismo como biopolítica, isto é, como apreensão política da
população a partir de seus aspectos biológicos, a partir da noção, cientificamente polêmica, mas
politicamente eficaz, da raça, parece não colocar grandes dificuldades. Se a biopolítica, baseada do
racismo, é uma noção adequada para entendermos o que possibilitou tanto teoricamente o
nacional-socialismo, como praticamente o regime de guerra nazista, a aplicação do mesmo modelo
ao stalinismo requer alguma elasticidade. Foucault menciona no seu curso de 1976, apenas por
cima, uma possível analogia entre o inimigo de classe e o inimigo da raça, segundo a qual o
inimigo de classe seria tratado do mesmo modo que um inimigo biológico. A meu ver, a analogia
entre raça e classe é possível porque, da mesma forma que o nazismo, o regime stalinista
utilizou-se do mecanismo da guerra para drenar de seu próprio corpo, do próprio corpo da
população, da classe, os elementos nocivos que, pretensamente, bloqueavam, impediam,
envenenavam o desenrolar da história, no sentido da vida plena da humanidade. A humanidade
55
enfim redimida e a raça enfim purificada devem passar pelo mesmo filtro de uma guerra cirúrgica
interna, que se opera no próprio corpo da população.
Assim, o que sobressai nessa segunda formulação da biopolítica, ou melhor, o que lhe é
mais característico, é o cruzamento da prática da guerra com a política. Por um lado, como
afirmara Clausewitz, a guerra é um instrumento da política, de uma política interna e externa de
purificação da ra; mas, por outro, a guerra, como conflito biológico, com o darwinismo social,
torna-se o princípio de inteligibilidade da própria sociedade. A guerra pode ser duplamente
inteligível, como condição e como efeito da sociedade e da política. Mas, “Se quisermos manter
ainda uma distinção entre guerra e política, talvez devêssemos dizer que essa multiplicidade de
relações de força [que permeiam a sociedade] pode ser codificada em parte e jamais
completamente seja na forma da guerra’, seja na da política’; elas seriam duas estratégias
diferentes (mas prestes a recair uma na outra) para integrar essas relações de força desequilibradas,
heterogêneas, instáveis, tensas
131
.
131
VSR, 123.
56
III. A biopolítica e o dispositivo de sexualidade
A terceira formulação da biopolítica, que aparece em A vontade de saber, faz a descrição
das relações estabelecidas, ao longo dos últimos séculos, entre política e sexualidade. Nessa
terceira formulação, a biopolítica encontra na sexualidade dos indivíduos de uma população
sexualidade que a própria biopolítica induz, incita, produz –, um suporte de regulação. O
dispositivo de sexualidade e os mecanismos de sexualização, cujas técnicas remontam, em parte, à
direção de consciência da pastoral cristã, no século XVI, e são deslocadas progressivamente,
tornando-se mais complexas, para as instituições pedagógicas, para a família burguesa e,
finalmente, para toda a sociedade, constituem um dos principais instrumentos políticos de
regulação das populações. Como acontece, em cada nova formulação, iremos reencontrar
elementos das formulações anteriores. A questão da sexualidade está em estreita relação com a
medicina e a psiquiatria, com o racismo, a afirmação da raça e a eugenia. Neste capítulo, portanto,
estaremos percorrendo trilhas semelhantes às percorridas anteriormente, mas a bússola que nos
guia agora é diferente. Esse nosso novo guia é a sexualidade.
A sexualidade remete à concepção de uma natureza intrínseca à população. Sendo
universal, a sexualidade seria um princípio unificador do conjunto de indivíduos; sendo natural,
funcionaria segundo leis próprias cognoscíveis. Isso nos abre duas trilhas paralelas, como que
traçadas sobre as duas vertentes da mesma cadeia de montanhas. A racionalização da sexualidade,
o conhecimento das suas leis, motivaria a tremenda vontade de saber em torno do sexo, pois sendo
natural e universal, a sexualidade seria a chave do sentido e da essência da população. Essa seria a
primeira trilha, a da história da formação de um saber sobre o sexo. A segunda trilha, a que os
indivíduos logo se encontram na obrigação de seguir, aponta para a sexualidade de cada um. Ela
tinge a sexualidade individual com um valor de verdade, ela aponta para a sexualidade autêntica
do indivíduo, e lhe diz: “aí está a sua verdade”. A primeira trilha constitui um saber sobre a
sexualidade que leva à verdade universal; a segunda, um saber sobre a sexualidade que leva à
verdade sobre si. Mas é a universalidade da lei da sexualidade que conduz o indivíduo a encontrar
a sua verdade em sua sexualidade.
57
Correspondentemente, na forma histórica complexa que assume, tornando-se um
dispositivo armado sobre a materialidade do sexo e do prazer dos corpos, a sexualidade é tanto um
mecanismo de assujeitamento, uma maneira pela qual os indivíduos são submetidos socialmente,
como um modo de subjetivação, da qual faz parte o modo de autocompreensão desses mesmos
indivíduos. A formação do sujeito sexual, do homo sexualis, do ser humano dotado de
sexualidade, que encontra no seu sexo a mais rigorosa verdade sobre si, cuja forma de
manifestação, alguma vezes, se torna a mais profunda afirmação social de sua “interioridade”, é o
correlato da história da articulação do dispositivo de sexualidade. O sexo tornou-se, com o
dispositivo de sexualidade, o desfiladeiro por que deve passar todo aquele que quer “ter acesso à
sua própria inteligibilidade”, “à totalidade de seu corpo”, “à sua identidade”
132
. Como pode
compreender-se, como pode saber o que é seu próprio corpo, como pode afirmar-se idêntico a si
mesmo, aquele que não faz a experiência de sua sexualidade? Essas são as questões prementes que
o dispositivo de sexualidade nos urge responder. Mas, respondê-las, não significa, segundo
Foucault, liberarmo-nos do poder desse dispositivo. O dispositivo de sexualidade não é o poder
que esconde, que reprime, que recalca, em nome da civilização burguesa, o sexo, e com ele nosso
sentido, nosso corpo e nossa identidade autênticos. Pelo contrário, é no afã de produzir as
respostas adequadas a essas questões, que nos tornamos os sujeitos do dispositivo de sexualidade.
“Ironia deste dispositivo nota Foucault –: ele nos faz crer que se trata de nossa ‘liberação’
133
.
Entretanto, quanto mais nos debatemos, na areia movediça da sexualidade, tanto mais nos
afundamos nela.
Um dos princípios essenciais do dispositivo de sexualidade é “o desejo do sexo desejo
de possuí-lo, desejo de ter acesso a ele, de descobri-lo, de liberá-lo, de articulá-lo em discurso, de
formulá-lo em verdade”
134
. O desejo do sexo é a vontade de saber o sexo, de poder o sexo; é
justamente essa vontade, que tem a forma de um dispositivo, que nos faz sujeitos, sujeitos de uma
vontade e sujeitos a um dispositivo, que é congruente com essa vontade. A vontade, assim
entendida, não é uma faculdade humana; ela é, num certo modo de dizer as coisas, exterior ao ser
humano; apesar disso, da sua exterioridade, ela é o que determina a subjetividade do homem. O
homem nasce sujeito à vontade, e é por meio dela, reconhecendo em si mesmo essa vontade, que a
132
VSR, 205.
133
VSR, 211. Se, neste primeiro volume da História da sexualidade, Foucault analisa, na modernidade, a sexualidade
como um modo de assujeitamento – em que a, assim chamada, liberação sexual, de fato, nos torna sujeitos
submetidos ao desejo do sexo , no volume subseqüente, Foucault mostra como, para os gregos, as aphrodisia
constituem a materialidade, a “substância ética”, sobre a qual incidem práticas de controle de si, que são exercícios
refletidos de liberdade. Trata-se, nessas técnicas de si, “da possibilidade de se constituir como sujeito, mestre de
sua conduta”. UDP, 183.
134
VSR, 207.
58
princípio lhe é exterior, que ele se subjetiva. Homo sexualis é o nome desse sujeito da vontade de
saber o sexo, sujeito do desejo do sexo.
A sexualidade, para Foucault, não tem nada de uma sexualidade objetal, antecedente ao
sujeito do conhecimento. A sexualidade, para Foucault, não é natural, originária, essencial, ou ela
o é, mas de um modo peculiar. A sexualidade é de fato essencial para a população, não porque ela
é originária, mas porque ela é imanente, consecutiva, indissociável do modo pelo qual a política
fez da vida sexual da população o correlativo de suas práticas. Foucault escreve o primeiro volume
de uma história da sexualidade, para refutar a concepção de uma sexualidade natural. O grande
alvo de A vontade de saber é a “hipótese repressiva” e os representantes do freudo-marxismo,
entre outros, Reich e Marcuse, ícones do movimento estudantil e revolucionário, nos anos 1960 e
1970. Hipótese comentada, no capítulo anterior, que considera o poder, principalmente, em seu
aspecto repressivo, em seu papel de coação de uma classe, de um instinto e, neste caso específico,
de uma sexualidade. Ao argumentar contra essa hipótese, Foucault não busca negar a realidade da
repressão às formas não canônicas de comportamento sexual, mas assinalar o indissociável, a
imanência, entre as formas da sexualidade e os mecanismos de poder. Não “mulher nervosa”,
“onanista”, “perverso sexual”, “taxa de natalidade”, independentes de um mecanismo de poder,
digamos, ótico-lingüístico, que permita, ao dar-lhes uma forma, enxergar e nomear tais naturezas.
Segundo a hipótese repressiva, a repressão da sexualidade é não apenas uma
conseqüência, mas também uma condição histórica da constituição do capitalismo. A hipótese
repressiva “[...] ao fazer nascer a época da repressão, no século XVII, depois de centenas de anos a
céu aberto e livre expressão, faz coincidi-la com o desenvolvimento do capitalismo: ela faria corpo
com a ordem burguesa”
135
. A única função aceita da sexualidade deve ser a de reprodução
ordenada da força de trabalho. Para evitar desperdício das energias produtivas, a atividade sexual
deve restringir-se ao casal constituído por aliança legítima, ao casal cuja união familiar foi
legitimada pelo poder. Assim, pode-se observar duas conseqüências do capitalismo, dois
corolários da hipótese repressiva: a injunção moral ao silêncio sobre o sexo e a obrigação da
restrição das múltiplas possibilidades de manifestação da sexualidade à forma do casal
heterossexual monogâmico. Dessa relação histórica, entre capitalismo e sexualidade reprimida, a
hipótese repressiva deduz o vetor da revolução, o qual conduziria ao fim do capitalismo o sexo
livre representa uma tal ameaça à ordem burguesa que, simplesmente mencioná-lo, simplesmente
falar sobre o sexo, constitui uma demonstração de força e rebeldia frente ao poder instituído. Para
refutar o viés revolucionário da liberação sexual, Foucault vai negar a validade dos dois corolários
135
VSR, 12.
59
da hipótese repressiva. Ele vai contestar a realidade histórica da interdição do discurso sobre o
sexo e a realidade histórica de que os mecanismos de poder operam no sentido de restringir a
sexualidade a alianças conjugais legítimas.
Foucault procura mostrar que não silêncio, mas, muito pelo contrário, proliferação de
discursos sobre o sexo. Com o Concílio de Trento, no século XVI, transformam-se as instruções
para a confissão religiosa, aumentam as pressões sobre os fiéis, para que acelerem o ritmo das
confissões
136
. As admoestações da pastoral católica, no final do século XVII, apesar da
necessidade de policiamento da linguagem, do cuidado com o vocabulário, da supressão dos
termos explícitos, do uso de metáforas, vão no sentido de uma intensificação do ato confessional.
A exigência de colocação do sexo em discurso, exigência que se torna cada vez mais freqüente e
minuciosa, cada vez mais penetrante, desvia-se do ato sexual em si para todos os pensamentos e
sentimentos que o circundam. A “carne se torna a raiz de todos os pecados”
137
; o momento mais
importante do pecado não é mais o ato sexual ilícito, mas a sua raiz, as tentações da carne mal
disperso e camuflado. É preciso o penitente persegui-las, descobri-las nos seus ínfimos
esconderijos, nas suas primeiras manifestações, na imaginação que vagueia, nos pensamentos,
desejos; é preciso encontrá-las, essas insinuações da carne, nos detalhes do dia-a-dia, e expurgá-
las pela confissão e pela penitência.
A Igreja foi apenas o primeiro foco de uma verdadeira “fermentação discursiva que se
acelerou desde o século XVIII”
138
. Mesmo Sade e a “literatura escandalosa” inserem-se, segundo
Foucault, sob a mesma injunção de “tudo dizer”
139
sobre o sexo. Mas o discurso sobre o sexo não
se restringe aos sussurros velados dos confessionários, às indiretas dos sermões reformistas, nem
às folhas freneticamente manuscritas de autores libertinos; ele emerge também nas disciplinas das
escolas, nas instituições do Estado. Nos colégios, a sexualidade dos alunos, as facilidades e as
exigências para o seu controle são determinantes para os regulamentos internos, para a disposição
do mobiliário colegial, dos dormitórios, dos lavatórios. “Em torno do colegial e de seu sexo,
prolifera toda uma literatura de preceitos, de avisos, de observações, de conselhos medicais, de
casos clínicos, de esquemas de reforma, de planos de instituições ideais”
140
.
136
Para uma breve história da confissão, conferir: ANO, 157-164.
137
VSR, 28.
138
VSR, 26
139
VSR, 30
140
VSR, 40. A sexualidade infantil, portanto, não foi uma descoberta da psicanálise, como o próprio Freud afirmou
no segundo dos Três ensaios: “nenhum autor, ao que eu saiba escreve Freud –, reconheceu com clareza a
normatividade da pulsão sexual na infância, e, nos escritos numerosos sobre o desenvolvimento infantil, o
capítulo sobre o ‘Desenvolvimento Sexualcostuma ser omitido”. FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria
da sexualidade. Trad. Paulo Dias Corrêa. Rio de Janeiro: Imago, 2002 [1905]. P. 51.
60
Nasce, no culo XVIII, apesar de tateante e receoso, em meio às instituições do Estado,
um discurso racional sobre o sexo, desperto e justificado por um interesse na questão que
corresponde à transformação da tecnologia de poder. Para esses novos mecanismos de poder, o
sexo não é tanto uma questão moral, mas, na perspectiva de uma regulação social das condutas
procriadoras, algo “a gerenciar, a inserir nos sistemas de utilidade, a regulamentar para o bem de
todos, a fazer funcionar conforme um optimum”
141
. O sexo, no século XVIII, torna-se assunto de
Estado. Nesse contexto, a problematização da conduta sexual da população é feita a partir de uma
série de índices que permitem a comparação e o acompanhamento de sua evolução: a idade média
dos cônjuges nos casamentos, a taxa de nascimentos ilegítimos, a fecundidade das mulheres, a
precocidade e a freqüência dos atos sexuais, a incidência das práticas contraceptivas. A procriação
deixa de ser uma questão limitada ao casal ou à família, para se tornar uma questão social.
Além da confissão, da literatura, da sexualidade infantil, da polícia das populações,
Foucault identifica outros focos de proliferação da discursividade sobre o sexo: “a medicina
primeiro, pelo intermédio das ‘doenças dos nervos’; a psiquiatria em seguida, [...] sobretudo
quando anexa ao seu domínio próprio o conjunto das perversões sexuais; a justiça penal, também,
[...que além] dos crimes ‘hediondos’ e contra a natureza, [...] em meados do século XIX, abre-se à
jurisdição miúda dos pequenos atentados”
142
.
Assim, ao contrário do que afirma a hipótese repressiva, no processo de afirmação do
capitalismo, não houve injunção ao silêncio em torno do sexo, mas produção e proliferação de
discursos, reunindo enunciados religiosos, opiniões populares, estatísticas de governo, preceitos
pedagógicos, regulamentos disciplinares, teorias científicas. Em torno da sexualidade dos seres
humanos, a partir de uma perspectiva individual ou coletiva, diferentes domínios discursivos
entram em relação: “a demografia, a biologia, a medicina, a psiquiatria, a psicologia, a moral, a
pedagogia, a crítica política
143
”.
Quanto ao segundo corolário da hipótese repressiva, Foucault busca mostrar que, ao invés
de restringir a sexualidade ao casal monogâmico heterossexual, a sociedade burguesa multiplica as
formas de manifestação extra-conjugal da sexualidade, instaurando e provocando, pela saturação
sexual da família, das escolas, das diversas relações sociais, uma série de perversidades,
aberrações, desvios sexuais. Saturadas sexualmente, essas instâncias tornam-se ambientes
propícios para a eclosão de uma sexualidade indisciplinada, monstruosa, anormal. As diversas
relações, estabelecidas entre familiares, entre domésticos e familiares, entre alunos, entre
141
VSR, 34.
142
VSR, 42
143
VSR, 46.
61
professores e alunos, entre criminosos e vítimas, são acompanhadas de uma ameaça sexual que,
como uma sombra, as persegue permanentemente, sempre prestes a tornar-se uma causa real de
corrupção dos indivíduos e da sociedade. A perversão toma a forma de uma “contra-natureza”,
que subjaz à dimensão normal da sexualidade, limitada às relações heterossexuais entre adultos,
algo como um antigênero humano, ao qual pertencem as várias espécies, mais ou menos
aparentadas, de “sexualidades periféricas”, e seus personagens típicos: necrófilos, sádicos,
homossexuais, exibicionistas, fetichistas, zoófilos etc. Apesar de especificadas, as aberrações
sexuais não estão circunscritas a uma parcela imediatamente reconhecível da sociedade, elas
pairam como uma suspeita geral, para identificá-las é preciso persegui-las, relacioná-las com os
locais prováveis de sua ocorrência, pois incógnitas essas sexualidades aberrantes constituem um
perigo social. No entanto, não se trata, de fato, de um projeto de eliminação ou de exclusão da
sexualidade aberrante; e sim, da tática de seu espraiamento na sociedade. “Exclusão dessas mil
sexualidades aberrantes? Não exatamente, mas especificação, solidificação regional de cada uma
delas. Trata-se, ao disseminá-las, de semeá-las no real e de incorporá-las ao indivíduo”
144
. O
dispositivo de sexualidade, no século XIX, é o mecanismo de poder que encontra na perversão a
possibilidade de seu aprofundamento. A deflagração de um estado latente de sexualidade aberrante
permite estabelecer os pontos aos quais o poder se agarra, para controlar a sociedade e os
comportamentos individuais. “O implante das perversões é um efeito-instrumento: é pelo
isolamento, pela intensificação e pela consolidação das sexualidades periféricas que as relações de
poder ao sexo e ao prazer se ramificam, se multiplicam, escalam o corpo, e penetram nas
condutas”
145
. Os disparates sexuais são o efeito de um tipo de poder que esem permanência à
sua caça, são, ao mesmo tempo, os instrumentos que lhe possibilitam exercer mais intensamente
seu controle
146
.
Foucault frisa que esse tráfego entre poder e sexualidade, do poder à sexualidade, da
sexualidade ao poder, em que cada lado reforça o fluxo que leva ao outro lado, é garantido por
“inumeráveis lucros econômicos que, pelo intermédio da medicina, da psiquiatria, da prostituição,
da pornografia, se vincularam à essa multiplicação analítica do prazer e a essa majoração do poder
144
VSR, 60.
145
VSR, 66.
146
Em Os anormais (ANO, 191ss.), Foucault remete o aparecimento dos fenômenos de possessão demoníaca em
meio religioso ao recrudescimento das técnicas de exame e direção de consciência, no poder pastoral eclesiástico,
nos séculos XVI e XVII. Para Foucault, a “carne possuída” é o lugar de confronto entre as tentações dialicas, as
prescrições do exorcista e a vontade ambígua das religiosas. O diabo surge, ali, onde o perseguimos, como resis-
tência a essa perseguição e como justificação dessa perseguição. Analogamente, pode-se dizer, o disparate sexual
se apresenta como efeito do dispositivo de sexualidade, não como elemento que antecede um poder repressivo.
62
que a controla”
147
. A economia, as relações econômicas não têm, no dispositivo de sexualidade,
contudo, um papel infra-estrutural; as relações entre poder e sexualidade não são constituídas na
sua base por relações econômicas, mas as relações econômicas, paralelamente às relações de
poder do dispositivo de sexualidade, estabelecem uma rede que garante o seu funcionamento, mas
não o funda. O dispositivo de sexualidade não se constitui para estabelecer uma fonte de lucros,
mas a fonte de lucros reforça o processo de sua constituição.
O prazer perverso torna-se o ponto a partir do qual o poder psiquiátrico alcança o corpo
social. O isolamento do instinto sexual, a partir da segunda metade do século XIX, e o
reconhecimento do seu papel como “elemento de formação em todas as doenças mentais e, de
forma ainda mais generalizante, em todas as desordens do comportamento”, abre novos campos de
ingerência para a psiquiatria, tanto no campo judiciário das “grandes infrações que violam as leis
mais importantes”, como no campo das famílias, com as “minúsculas irregularidades que
perturbam a pequena célula familial”
148
. Devido à fragilidade da sua natureza, fragilidade que
remete à sua precocidade, à sua ampla presença no organismo, à sua vivacidade, este instinto
deborda facilmente seu limite natural, o de uma relação entre adultos heterossexuais, e se desdobra
em uma série de anomalias e aberrações. As noções de hereditariedade e de instinto sexual
aparecem articuladas na teoria da degenerescência, segundo a qual, uma carga hereditária
impregnada de doenças orgânicas e psíquicas produz uma perversão do instinto sexual, enquanto,
por outro lado, a perversão sexual produz o enfraquecimento da descendência. O sexo aparece em
“posição de ‘responsabilidade biológica em relação à espécie: não somente o sexo podia ser
afetado por suas próprias doenças, mas ele podia, se não fosse controlado, transmitir doenças ou
criá-las para as futuras gerações: ele [o sexo] aparecia, assim, no princípio de todo um capital
patológico da espécie”
149
.
147
VSR, 66.
148
ANO, 261. Foucault atribui o isolamento do instinto sexual a um texto de Heinrich Kaan, de 1844, Psychopathia
sexualis, “o primeiro dos tratados de psiquiatria a falar somente de psicopatologia sexual”. ANO, 262. Cf. VSR,
155.
149
VSR, 156. Dessa centralidade do sexo decorrem os projetos medicais e os programas de eugenia, inovações
tecnológicas da segunda metade do século XIX. A psicanálise representou, nesse processo, a possibilidade de uma
ruptura. Apesar de estar inserida no dispositivo de sexualidade, apesar de reconduzir e implementar o seu quadro
teórico, retomar e reelaborar as suas práticas, a psicanálise buscou desvincular a sexualidade da teoria da
hereditariedade e da degenerescência, portanto, de todos os racismos e eugenismos. A psicanálise, segundo
Foucault, “foi, até os anos 1940, aquela que se opôs rigorosamente aos efeitos políticos e institucionais do sistema
perversão-hereditariedade-degenerescência”. VSR, 158.
Por exemplo, em seu ensaio sobre As aberrações sexuais, ao falar dos “invertidos”, Freud assume, de imediato,
uma posição de desconfiança em relação à compreensão da inversão do objeto sexual a partir da teoria da
perversão, da degenerescência ou da hereditariedade. Para Freud, a escolha de um objeto homossexual não é índice
de degenerescência nem propriamente de inversão. “A psicalise considera, antes, que a independência da
escolha objetal em relação ao sexo do objeto, a liberdade de dispor igualmente de objetos masculinos e femininos,
63
Incitação ao discurso sobre o sexo e implantação social da perversões sexuais são as duas
refutações, elaboradas por Foucault, contra a hipótese repressiva. Em oposição à exterioridade
entre poder e sexualidade, que está na raiz da hipótese repressiva, Foucault propõe analisar sua
relação intrínseca. Para Foucault, o poder não bloqueia, não interdita a sexualidade, nem a
liberação da sexualidade seria uma forma de livrar-se do jugo do poder capitalista, mas o exercício
do poder, na sociedade burguesa, e a sexualidade estão intricados um no outro e, desde o início,
são constituintes um do outro.
Poder e sexualidade estão juntos no que Foucault chama de dispositivo de sexualidade.
Mas, afinal, o que é um dispositivo? Foucault, em uma entrevista de 1977, divide a resposta em
três partes: primeiramente, um dispositivo é “um conjunto decididamente heterogêneo,
comportando discursos, instituições, arranjos arquitetônicos, decisões regulamentares, leis,
medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas,
enfim: do dito, tanto quanto do não-dito”; em segundo lugar, o dispositivo “é a natureza do elo
que pode existir entre esses elementos heterogêneos”; e em terceiro lugar, o dispositivo é uma
espécie de “formação, que num dado momento histórico, teve por função maior responder a uma
urgência. O dispositivo tem, então, uma função estratégica dominante”
150
.
Segundo esse esquema, o dispositivo de sexualidade é composto de elementos
discursivos diversos, científicos ou não, de práticas institucionais, com suas regras e técnicas de
poder, pertinentes a órgãos do Estado, ministérios, secretarias, comissões, escolas, famílias etc.
Esse conjunto heterogêneo não é necessariamente harmônico, concertado, suas partes não se
encaixam umas às outras sem conflitos, sem ajustes; o próprio balanço, o próprio jogo de poder,
jogo discursivo e tático, faz parte do dispositivo. O dispositivo de sexualidade é formado por esses
elementos prático-discursivos, mas também é aquilo que os conecta, é o que se estabelece,
imanentemente, a partir da relação entre esses elementos, e se constitui como o objeto-elo,
supostamente natural, que liga esses elementos disparates: a sexualidade dos seres humanos. A
gênese do dispositivo, sua formação histórica, o pressupõe de modo algum um programa pré-
estabelecido, tampouco “uma astúcia estratégica de qualquer sujeito meta- ou trans-histórico que o
teria percebido ou querido”
151
. Há, na gênese do dispositivo, uma espécie de espontaneidade,
tal como observada na infância, nas condições primitivas e nas épocas pré-históricas, é a base originária da qual,
mediante a restrição num sentido ou no outro, desenvolvem-se tanto o tipo normal como o invertido”. FREUD,
Sigmund. Op. cit. P. 24, nota complementar de 1915.
150
FOUCAULT, Michel. Le jeu de Michel Foucault. Texto 206 [1977]. In: DE2, 299. Embora Foucault não o tenha
feito, poderíamos, retrospectivamente, aplicar a noção de dispositivo também às questões dos dois capítulos
precedentes, e falar de um dispositivo da saúde, de um dispositivo da raça.
151
Ibidem, p. 300.
64
independente das vontades particulares. O dispositivo de sexualidade é esse conjunto prático-
discursivo em torno do sexo, cuja espontaneidade e urgência, contrariamente ao que afirma a
hipótese repressiva, não surge estrategicamente para evitar o desperdício das energias vitais dos
trabalhadores, para concentrá-las exclusivamente na produção, reservando à sexualidade uma
única função, a de reprodutora da força de trabalho. Segundo Foucault, a urgência histórica, à qual
o dispositivo de sexualidade surge como resposta, é a necessidade de auto-afirmação das classes
dominantes, particularmente, da burguesia, em meados do século XVIII. É preciso reconhecer
[os efeitos] da auto-afirmação de uma classe, antes que [os efeitos] da submissão de uma outra:
uma defesa, uma proteção, um reforço, uma exaltação, que foram, na seqüência – depois de
diferentes transformações –, estendidas às outras [classes], como meio de controle econômico e
sujeição política”
152
. Os mecanismos de sexualização incidem primeiramente sobre a classe
burguesa, é na família burguesa que a sexualidade infantil e a dos adolescentes se torna problema,
que a mulher histérica será medicalizada. É a família burguesa que, em primeiro lugar, será
sensibilizada a respeito das possíveis patologias e inúmeros desvios sexuais. Suas crianças
sexualmente precoces, seus adolescentes onanistas, suas mulheres nervosas, seus perversos o os
primeiros a se submeter às “tecnologias racionais de correção”, à medicina dos nervos, à
psiquiatria; tecnologias inventadas pela burguesia e para a burguesia, na medida de sua
inquietação por seu próprio sexo. O dispositivo de sexualidade, segundo Foucault, surge do
projeto de uma superioridade burguesa frente às outras classes sociais, como instrumento de auto-
afirmação, que se faz pelo corpo e pelo sexo. Um organismo em forma e uma sexualidade sadia”
faziam parte da consciência de classe da burguesia, do modo pelo qual ela se auto-representava. A
sexualidade era um assunto que dizia respeito somente a ela mesma. Por essa razão, “ela levou
tanto tempo e opos tantas reticências a reconhecer um corpo e um sexo às outras classes àquelas
mesmas que ela explorava”
153
.
O corpo e o sexo do proletariado são problematizados, mais tarde no século XIX,
quando está disposta uma tecnologia de controle, de tipo disciplinar, escola, prisão, hospital, e
de tipo biopolítico, higiene pública, sistemas de segurança, medicalização geral da população, que
garantem a implantação da sexualidade no proletariado, sem os riscos que isso poderia apresentar
para a burguesia. Dessa forma, desde o início sob o controle de todo um aparelho técnico-
administrativo pré-estabelecido, a sexualidade pôde ser atribuída à classe explorada, sem o perigo
de que ela se tornasse um fator de afirmação desta classe, pois quando o proletariado incorpora a
152
VSR, 162-163.
153
VSR, 167.
65
sexualidade, ele o faz na forma do assujeitamento, como instrumento de reforço da hegemonia
burguesa. A problematização do sexo do proletariado se faz necessária, a partir de alguns pontos
conflituosos: questões de saúde ligadas ao espaço urbano, concernentes à medicina social
promiscuidade, alojamento, epidemias – e urgências econômicas, oriundas do surgimento da
indústria pesada, que requer o controle dos fluxos populacionais e as regulações demográficas.
Na Europa, afirma Foucault, até o século XVIII, no campo e nas populações urbanas,
mesmo pobres, havia poucas uniões livres e um número limitado de filhos ilegítimos. Para isso,
contavam a pressão da Igreja, da sociedade e do sistema jurídico. Era – digamoso tempo em que
as alianças legítimas, com seu dispositivo próprio, atuavam com maior intensidade. Foucault
chama esse dispositivo, a que as camadas populares estavam submetidas, de “dispositivo de
aliança: valorização do casamento legítimo e da fecundidade, exclusão do casamento
consangüíneo, prescrição de endogamia social e local”
154
. O dispositivo de aliança é o sistema,
determinado pelas relações de sexo, pelo qual, em uma sociedade, se fixam e se desenvolvem as
regras de parentesco, as regras de transmissão dos nomes e das riquezas; é o sistema das formas
jurídicas de aliança, de proibição das alianças consangüíneas, de interdição do incesto, de conde-
nação do adultério. “O dispositivo de aliança é ordenado, sem dúvida, para uma homeostasia
(homéostasie) do corpo social, que ele tem por função manter; daí sua ligação privilegiada com o
direito; daí também sua marca forte, a ‘reprodução
155
.
Com a configuração de um proletariado urbano de maior relevância, no início do XIX, os
suportes legais e religiosos, sobretudo os suportes econômicos e sociais da aliança legítima
perdem sua funcionalidade. O casamento perde sua função, “a partir do momento em que se é uma
população flutuante, esperando ou buscando trabalho, que é de todos os modos um trabalho
precário e transitório, em um lugar de passagem”
156
. Respondendo a essa necessidade de
flexibilidade e movimentação da força de trabalho, as formas de união livre aumentam nos meios
populares. Logo em seguida, entretanto, devido ao desenvolvimento da indústria pesada e à
valorização da mão-de-obra, devido também à necessidade de controle político sobre essa massa
móvel e instável, aparece uma necessidade contrária, faz-se preciso fixar os operários na
proximidade de seus locais de trabalho, conter sua mobilidade, minimizar sua capacidade de
agitação. Disso decorre, em torno dos anos 1830, uma vigorosa campanha pública de valorização
do casamento propaganda panfletária e moralista, respaldada por toda uma rie de incentivos
154
VSR, 160.
155
VSR, 141.
156
ANO, 255.
66
econômicos à constituição de uma família legítima: associações de socorro, caixas de poupança,
política de alojamento, válidas somente para casados. Paralelamente a essa campanha pelo reforço
da união legítima e estável dos cônjuges proletários, que pode ser considerada como uma
reafirmação do dispositivo de aliança, divulga-se uma outra campanha uma série de injunções,
de conselhos, de avisos que se referem à sexualidade operária, particularmente, à prevenção do
incesto. A família proletária que deve se estabelecer é, ao mesmo tempo, posta de sobre-aviso. É
preciso configurar os mecanismos que garantam o distanciamento entre os membros da família
proletária, e evitem o seu colapso erótico
157
. A campanha pelo casamento, pela formação de uma
família operária canônica, embora promulgue a aliança legítima, é, ao mesmo tempo, devido à
provável intenção incestuosa dos adultos, um mecanismo de sexualização das camadas sociais
populares e de generalização do dispositivo de sexualidade. A suspeita do incesto permite
desenvolver-se, em torno da família proletária, um esquadrinhamento cerrado de vigilância
policial, o juiz ou o agente de polícia; e mais tarde, no começo do século XX, indiretamente
policial: “todas as instâncias ditas de controle social, o assistente social”
158
. Todos eles formam o
contingente de profissionais e agentes públicos que, a partir da saturação sexual da família
proletária, exercem sobre ela seu poder de controle e vigilância.
Nesse processo de sexualização das classes populares, de infiltração e universalização da
sexualidade, a forma-família foi um intermediário incontornável. Na sua composição, o
dispositivo de sexualidade se apóia no dispositivo de aliança. Semelhante apoio havia ocorrido
também no tocante à burguesia. Foi na família burguesa que o dispositivo de sexualidade
encontrou um ponto de ancoragem e difusão – “o dispositivo de sexualidade, que havia se
desenvolvido primeiro às margens das instituições familiais (na direção de consciência, na
pedagogia), vai se focar pouco a pouco na família”
159
, como forma de auto-afirmação da família
burguesa. Assim, tanto no caso da burguesia como no caso do proletariado, mas por motivos e
mecanismos diferentes, o dispositivo de sexualidade, ao se estabelecer, ancora-se no dispositivo de
aliança, nas alianças legítimas, das quais a família é constituída. Na passagem de um dispositivo
ao outro, da aliança à sexualidade, a família é o elo de ligação
160
.
157
Parte desses mecanismos são arquitetônicos. “O ideal, na cidade operária, da qual os projetos são feitos nesses
tempos, é a famosa casa com três peças”. A arquitetura de uma casa ideal é concebida, na intenção dos operários,
com uma distribuição ordenada dos quartos: separação entre pais e filhos e separação entre filhos de sexo
diferente; um quarto para o casal, outro para os filhos de sexo masculino, outro para as filhas, se possível com
leitos individuais. ANO, 255.
158
ANO, 257.
159
VSR, 145.
160
A família exerce uma função importante, seja como instrumento, seja como modelo, a ser seguido ou superado,
em todo o processo de transformação do poder jurídico-soberano em biopoder.
67
A família serve de elo de ligação, mas participa do processo histórico a forma moderna
da família burguesa está vinculada ao dispositivo de sexualidade. Admitamos que a interdição do
incesto seja fundamental para a forma da família e, para além dela, da formação social; admitamos
“que o limiar de toda cultura é o incesto interdito”
161
; será preciso notar, contudo assinala
Foucault –, que houve, nas famílias burguesas, na formação do dispositivo de sexualidade, não
apenas a interdição, mas também a incitação ao incesto. Essa incitação ao incesto se encontra
presente, na Europa, desde a campanha praticamente bissecular contra o onanismo. No início do
século XVIII, floresce, em toda Europa, uma série de livros, panfletos, textos, que discorrem sobre
os efeitos nocivos da masturbação juvenil
162
. Essa campanha se dirige ao público burguês, aos
próprios adolescentes, a seus pais, a pedagogos; são conselhos, avisos, sugestões terapêuticas,
armadilhas, receitas diversas. A preocupação com o onanismo infantil possui, é certo, um cunho
moralizante, mas Foucault sublinha que ela concerne sobretudo à saúde do corpo. “Aquilo com
que se ameaça as crianças, quando se proíbe que se masturbem, não é uma vida adulta perdida em
devassidão e vício, é uma vida de adulto tolhida por doenças
163
. O onanismo, seja por representar
em si mesmo uma doença, seja por atuar como uma porta de entrada para diversas doenças,
enfraquece e limita o potencial de vida da classe burguesa, e é por isso que ele é combatido como
uma praga insidiosa. A causa da introdução das crianças à masturbação, mais comumente
invocada por esses textos, é a sedução das crianças pelos adultos agregados à família nuclear, que
se interpõem “entre a virtude dos pais e a inocência natural dos filhos”
164
. Assim, o principal alvo
da campanha antimasturbatória são esses personagens que formam a família estendida. Trata-se de
uma campanha pelo encolhimento da família, pela reaproximação de pais e filhos, pela eliminação
ou redução máxima de todos os intermediários e domésticos. Trata-se de dar uma nova forma à
família, distinta daquela determinada pelo dispositivo de aliança, que era a família estendida,
como rede de relações de consangüinidade; trata-se de estreitar a família, de formar a família
afetiva. A linha de penetração da sexualidade na família burguesa, pela ameaça do onanismo
infanto-juvenil, é um dos elementos constitutivos da família celular, restrita ao casal e a seus
filhos. A necessidade de vigilância contínua dos filhos pelos pais exige que pais e filhos
compartilhem um mesmo espaço, à noite, por exemplo, o mesmo leito. “Pode ser que,
historicamente, a grande família relacional, essa grande família, feita de relações permitidas e
161
VSR, 145. Essa suposição deveria admitir também que o dispositivo de aliança fosse a estrutura das sociedades
culturais.
162
Essa campanha tem início, primeiro, em países protestantes: “em 1720-1725, publica-se na Inglaterra um livro
cujo título é Onania”; e logo em seguida, nos católicos. ANO, 218.
163
ANO, 223.
164
ANO, 229.
68
interditas, se tenha constituído com base na proibição do incesto. Mas – diz Foucault –, a pequena
família afetiva, sólida, substancial, que caracteriza nossa sociedade, da qual vemos o nascimento,
em todo caso, no fim do século XVIII, se constituiu a partir do incesto dos olhares e dos gestos
que [para vigiá-lo e protegê-lo] roçam o corpo da criança”
165
. É essa forma de incesto, suscitado
nos pais pelo dever de conhecer e vigiar imediatamente, pelo olhar, pelo contato, o corpo dos seus
filhos e filhas, de sua prole, de seu patrimônio biológico, que se encontra, segundo Foucault, na
base da família burguesa moderna.
A sexualidade familial, que se constituiu, a partir do século XVIII, como marca distintiva
da burguesia, vai generalizar-se, ao longo do XIX, pela totalidade do corpo social. O que não quer
dizer, porém, que a burguesia perdeu sua sexualidade específica. Na demarcação da especificidade
do sexo burguês, em relação ao sexo proletário, o incesto e a psicanálise tiveram um papel
relevante. Apesar da socialização do dispositivo de sexualidade, a burguesia alcança, com a
psicanálise, novos meios para manter a especificidade de sua sexualidade: “é preciso dizer que
uma sexualidade burguesa, que sexualidades de classe”
166
. A psicanálise oferece uma
interpretação universalista da sexualidade, mas seus efeitos incidem, e se farão sentir cada vez
mais, no decorrer do século XX, principalmente, sobre a sexualidade da burguesia. A psicanálise
serve, no momento em que o dispositivo de sexualidade está totalmente socializado, para demarcar
uma especificidade própria à sexualidade da burguesia. Essa demarcação de especificidade é um
efeito de classe decorrente da formulação de uma lei universal, a lei do incesto
167
. Com o acesso à
terapêutica psicanalítica, a burguesia passa a ocupar em relação ao incesto uma posição singular,
“a psicanálise se esforça em trazê-lo [o incesto] à luz do dia, como desejo, e a suspender, para
aqueles que sofrem disso, o rigor que o recalca”
168
. A absorção da psicanálise provoca um efeito
específico sobre a classe burguesa, ela pôde diferenciar sua sexualidade da sexualidade proletária.
“Aqueles que haviam perdido o privilégio exclusivo de preocupar-se de sua sexualidade se
arrogam, a partir de então, o privilégio de experimentar, mais do que outros, o que a interdita, e o
privilégio de possuir o método que permite suspender o recalcamento”
169
. A burguesia, no
165
ANO, 234.
166
VSR, 168.
167
Freud formula a lei do incesto, em uma das suas lições, da seguinte maneira: “A criança toma ambos os genitores,
e particularmente um deles, como objeto de seus desejos eróticos. Em geral o incitamento vem dos próprios pais,
cuja ternura possui o mais nítido caráter de atividade sexual, embora inibido em suas finalidades. O pai em regra
tem preferência pela filha, a mãe pelo filho: a criança reage desejando o lugar do pai se é menino, o da mãe caso se
trate da filha”. FREUD, Sigmund. Cinco lições de psicanálise. Trad. diversos. Rio de Janeiro: Imago, 2003
[1909]. Quarta lição, p. 52.
168
VSR, 172.
169
VSR, 172.
69
momento de sua afirmação como classe, no século XVIII, faz do seu sexo saudável o elemento
diferenciador. A partir do fim do século XIX, o que diferencia a burguesia será sua sexualidade
menos reprimida. “Agora, a diferenciação social se afirmará não pela qualidade ‘sexual’ do corpo,
mas pela intensidade de sua repressão”
170
. Onde essa repressão torna-se ou pode tornar-se
patogênica, a psicanálise agirá suspendendo o seu rigor.
Tomando-se em consideração todo esse múltiplo processo de formação da sexualidade,
entende-se por que, para Foucault, a sexualidade não é uma essência que antecede à forma
constrangida, interditada, que o poder lhe impinge, mas a sexualidade é o correlato de uma forma
de exercício do poder que faz do sexo e do prazer um seus dos pontos de inscrição sobre os corpos
individuais. “Não se deve descrever a sexualidade como uma pontada, um acesso renitente,
estrangeiro por natureza e indócil por necessidade a um poder que, de seu lado, se esgota a
submetê-la e freqüentemente falha em controlá-la inteiramente. Ela aparece antes como um ponto
de passagem particularmente denso para as relações de poder: entre homens e mulheres, entre
jovens e velhos, entre pais e progenitura, entre educadores e alunos, entre padres e leigos, entre
uma administração e uma população”
171
. Estamos diante de uma interpretação da sexualidade a
que corresponde o posicionamento metodológico de Foucault. Foucault não aborda a sexualidade
como um objeto que, pouco a pouco, se desvela, de forma cada vez mais objetiva, para as ciências;
nem, por conseguinte, como uma naturalidade pré-existente às práticas-discursivas do que ele
chama de dispositivo de sexualidade. Nesse método, que é a genealogia, trata-se de partir de uma
análise das práticas históricas, das técnicas de poder associadas a elas, das formulações discursivas
oriundas das mais diversas fontes, sem desqualificá-las de antemão. Práticas, estratégias e
discursos polimorfos, nos quais a questão da sexualidade se coloca como problema. À genealogia
de Foucault, a essa forma de abordagem de uma problematização, feita não a partir de uma
história das idéias, supostamente cada vez mais claras, mas das práticas concretas em que as
noções tomam corpo; feita não a partir dos discursos, supostamente científicos, mas da análise
histórica das práticas em que esses discursos puderam tomar forma, mediante a reativação também
dos discursos cientificamente desqualificados; à essa genealogia, a essa forma de interpretação de
um problema, corresponde uma concepção do poder como multiplicidade de relações de forças,
multiplicidade permeada por lutas incessantes que reforçam ou transformam sua organização,
170
VSR, 170.
171
VSR, 136.
70
invertendo localmente os equilíbrios e globalmente o vetor resultante dessas forças. Relativos ao
que se pode chamar de poder são também os apoios que essas relações de força encontram uma
nas outras, para formar cadeias ou sistemas; são as relações de força orientando-se mutuamente,
ordenando-se, emparelhando-se, determinando-se umas pelas outras, alinhando-se umas com as
outras, formando forças resultantes mais complexas que assumem a aparência de um todo global,
seja como soberania, seja como princípio ontológico ou deontológico, seja como dominação total.
Poder são as estratégias segundo as quais as relações de força se efetivam, estratégias, mais uma
vez, que no seu desenho geral, na sua cristalização institucional, tomam corpo nos aparelhos de
Estado, nas formulações da lei, nas hegemonias sociais. Se Foucault fala de onipresença do poder,
não é porque o poder, para ele, seja como um grande guarda-chuva, um grande céu, que tudo
abraça e engloba. O poder é onipresente porque ele es em todo lugar, porque ele se produz a
cada momento, em toda relação de um ponto a outro do corpo social. O que o poder tem de fixo,
de central, de global, de repetição, de permanência, de auto-reprodutibilidade é apenas o efeito de
conjunto, a somatória, o efeito integralizado, aparentemente uno e estável, de uma multiplicidade
microfísica, pontual e potencialmente instável. Esse efeito global, Estado, lei, dominação, apóia-se
nessa rede de relações locais de força e busca, que depende delas, reforçá-las, reconduzi-las,
torná-las estáveis, reproduzir-se mediante a sua reprodução, manter-se por meio da manutenção
local dessas unidades sobre as quais se apóia. A polaridade, o desequilíbrio, a diferença de
potencial, que se estabelece entre cada ponto, em cada da rede que forma a sociedade, é o que
permite, pela coordenação, pelo alinhamento, pela conjunção, pela integração dessas múltiplas
diferenças, obter fenômenos globais.
O tratamento do dispositivo de sexualidade nos permite acrescentar a essa concepção de
poder, que é basicamente a que Foucault defende desde Vigiar e punir, três elementos que, se não
constituem propriamente variantes dessa concepção, pelo menos, lhe são complementares: (1) a
questão da resistência, (2) a intenção não-subjetiva do poder e (3) o nominalismo.
(1) Com o tratamento da resistência, Foucault quer desfazer uma impressão que pôde
resultar da leitura de Vigiar e punir. A impressão de que não há como resistir, como opor uma
força eficaz aos mecanismos de assujeitamento, como os mecanismos disciplinares. A impressão
de que a onipresença do poder, afirmaria a nossa inexorável submissão à sua lei. Dizer que não há
escapatória ao poder, afirmar sua onipresença, não quer dizer que não saída, possibilidade de
reconfiguração das relações de poder. Não há poder sem resistência; é justamente sobre a
resistência que o poder se exerce. Na relação de poder, ela faz “o papel de adversário, de alvo, de
71
suporte, de protuberância para uma presa”
172
. A resistência é imprescindível para a relação de
poder, os pontos de resistência estão disseminados por todos os lugares da malha de poderes. A
resistência é simétrica em referência à multiplicidade das relações de poder, não assume uma
única forma, por exemplo, a do ideal revolucionário. A revolução não é a única forma de
resistência, as formas que a resistência pode assumir numa relação de poder são muitas. A
revolução pode ser considerada uma forma de integração das múltiplas resistências, “um pouco
como o Estado repousa sobre a integração institucional das relações de poder”
173
.
Devemos entender essa resistência, essa resistência ao poder, como reatividade? A
resistência é uma força, certo, mas é força sempre reativa? Resistir é reagir ou exercer uma ação
que inova e não apenas reage
174
? Como afirma Judith Revel, a resistência, em Foucault, não é a
ocupação de uma posição de simples enfrentamento do poder, não é mera reatividade. Segundo
Revel, Foucault insiste em três pontos: a) a resistência não é nem anterior nem posterior ao poder
que ela enfrenta, mas lhe é coexistente, “o par resistência/poder não é o par liberdade/dominação”;
b) a resistência deve ser tão criativa, tão ativa quanto o poder, a “resistência não vem, portanto, do
exterior do poder, ela realmente se assemelha a ele por assumir suas características”; c) a
resistência pode transformar ou fundar novas relações de poder, da mesma forma que novas
técnicas de poder suscitam novas formas de resistência. “A descrição de Foucault dessa
‘reciprocidade’ indissolúvel não é redutível a um modelo simplista no interior do qual o poder
seria inteiramente negativo e as lutas como tentativas de liberação [...]”
175
. As lutas de resistência
ao poder não são lutas, ou não devem ser pensadas como lutas de libertação, para acabar com o
poder, mas para estabelecer uma outra forma de relação de poder.
172
VSR, 126. Assim o onanismo, o nervosismo da mulher, a perversão sexual são, ao mesmo tempo, linhas de
penetração e efeito de resistência ao dispositivo de sexualidade. Assim, também, a histeria é resistência ao poder
psiquiátrico (LPP, 253); e a possessão demoníaca, ao poder pastoral (ANO, 191).
173
VSR, 127.
174
Nos vem ao espírito o desgosto de Nietzsche pela reatividade, pelo pensamento que vê a vida como reação ao
meio, ou adaptação. “A idiossincrasia democrática contra tudo o que domina ou quer dominar” produziu uma
teoria da vida e da sociedade (e Nietzsche pensa em Darwin, e menciona Herbert Spencer) que retira da vida “uma
noção [que lhe é] fundamental, a de atividade”. Segundo essa teoria, a vida e o que vive são aqueles que se
adaptam, mera reatividade, o que deixa de lado, segundo Nietzsche, o que a vida tem de mais próprio; “com isto se
desconhece a essência da vida, a sua vontade de poder; com isto não se percebe a primazia fundamental das forças
espontâneas, agressivas, expansivas, criadoras de novas formas, interpretações e direções [...]”.NIETZSCHE,
Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo César Lima de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 2003 [1887]. II, 12, p. 67.
Se, nesse aspecto, Foucault pensa como Nietzsche, a resistência não pode ser pura reatividade, adaptação. A
resistência inova, é propriamente uma força inovadora da relação de poder.
175
REVEL, Judith. Foucault: conceitos essenciais. Trad. Carlos Piovezani Filho e Nilton Milanez. São Carlos:
Claraluz, 2005 [2002]. P. 75.
72
Para Deleuze, “a definição de Foucault parece muito simples, o poder é uma relação de
forças ou, antes, toda relação de forças é uma ‘relação de poder’
176
. A força não está nunca
sozinha, mas sempre em relação com outras forças, as quais afeta ou pelas quais é afetada.
Deleuze reconhece nisso, o “profundo nietzscheanismo” de Foucault. A força é uma força
justamente por seu poder de afetar outras forças, mas “a força afetada não deixa de ter a
capacidade de resistência. De uma vez, cada força tem o poder de afetar (outras) e de ser
afetada (por ainda outras)”. A resistência é a capacidade de uma força para afetar, em retorno, a
força que a afeta. Mais uma vez, esse retorno não é mera reatividade, mas reinvenção contínua da
relação de força. E Deleuze toma como exemplo a biopolítica. Na biopolítica, “é bem a vida que
surge como novo objeto do poder”, mas é também a questão da vida, por outro lado, aquilo, em
torno do quê, se articula uma resistência. “A vida torna-se resistência ao poder, quando o poder
toma a vida por objeto”
177
. A vida é aquela “protuberância”, como disse Foucault, à qual o
biopoder se agarra, no seu exercício. A vida é a força que a força biopolítica afeta, mas como
força, ela também tem a capacidade de afetar, por sua vez, os mecanismos de poder que se
configuram como biopolítica. Por isso, a biopolítica tem duas vias, ela é tanto a apreensão da vida
pela política, e uma ocupação do Estado, como o avanço do tema da vida como resistência à forma
pela qual o Estado se encarrega de nossas vidas.
(2) “[...] as relações de poder são, ao mesmo tempo, intencionais e não-subjetivas
178
afirma Foucault. Uma relação de poder é um jogo de intenções, mas a formulação dessas
intenções não tem sua origem, no interior anterior de uma subjetividade. As intenções dos agentes
não antecedem a relação de poder, mas surgem dela; é a partir das relações de poder que as
intenções se estabelecem. Relações de poder se constituem através das intenções, da colocação de
objetivos, da aplicação oportuna de táticas, de cálculos ligados a imperativos hipotéticos,
condicionados à primeira pessoa (se eu quero aquilo, devo fazer assim!) ou à terceira (se ele fizer
aquilo, devo fazer assim!). São essas intenções calculadas que tornam inteligíveis as relações de
poder. O que faz com que as relações de poder sejam inteligíveis é o fato de que elas são ligadas, o
tempo todo, a um tipo de cálculo”, uma racionalidade instrumental que estabelece estratégias,
objetivos intermediários; objetivos que sempre se renovam, porque não são objetivos finais,
porque estão vinculados a outros cálculos estabelecidos de uma parte à outra da relação de poder.
176
DELEUZE, Gilles. Foucault. Paris: Minuit, 2004 [1986]. P. 77.
177
DELEUZE, Gilles. Op. cit., p. 98. Em Foucault, cf. VSR, 191.
178
VSR, 124.
73
“Mas isso não quer dizer que [o poder] resulta da escolha ou da decisão de um sujeito individual;
não busquemos o estado-maior que preside segundo sua racionalidade; nem a casta que governa,
nem os grupos que controlam o aparelho do Estado, nem aqueles que tomam as decisões
econômicas as mais importantes não gerem o conjunto da rede de poder que funciona numa
sociedade (e a faz funcionar)”. Os dispositivos de conjunto são formados pela aglomeração, pela
integração dessas múltiplas intenções, que, na sua lógica local, no seu cálculo imediato, alinham-
se umas em relação às outras, umas em função das outras. As decisões tomadas, em vel local,
são fruto de cálculos que levam em consideração os cálculos e as decisões tomadas dentro de
táticas estabelecidas por terceiros. Essas decisões, esses cálculos, essas táticas “encadeando-se uns
aos outros, atraindo-se, propagando-se, encontram alhures o seu apoio e a sua condição”
179
;
alhures, não no interior de uma subjetividade. Em um dispositivo ou em um mecanismo de poder,
um automatismo, do fato de que as múltiplas relações de poder entre os indivíduos orientam-se
umas pelas outras. Esse automatismo dos dispositivos de conjunto permite afirmar que as relações
de poder não são subjetivas, apesar de intencionais e inteligíveis
180
.
(3) Foucault diz: “é preciso, sem dúvida, ser nominalista: o poder não é uma instituição,
não é uma estrutura, o é uma certa potência de que alguns seriam dotados; poder é o nome que
atribuímos a uma situação estratégica complexa, em uma dada sociedade”
181
. O poder é um nome,
a sexualidade é um nome, articulados um ao outro, na formação do dispositivo de sexualidade. O
que está em jogo no nominalismo é a ontologia do universal. O universal é uma entidade real, à
qual corresponde um nome? Ou o universal, como defendem os nominalismos, é simplesmente um
nome, e os únicos existentes são os indivíduos? Marx, por exemplo, para fazer a ciência da
história dos homens, afasta os supostos universais, as idéias abstratas, destrói as ideologias e
coloca, em seu lugar, a forma prática e material pela qual se dá a produção dos meios de existência
dos homens; a história da produção das condições materiais existenciais se substitui à história das
idéias, como chave para a análise das sociedades
182
. Foucault, em seu nominalismo, afasta-se e
179
VSR, 125.
180
A noção de resistência e de não-subjetividade da relação de poder são a catástrofe do pensamento de Foucault.
Mas não devemos entender aqui a catástrofe como o calcanhar de Aquiles, que faz ruir o corpo do herói, o corpo
teórico de Foucault; devemos entender a catástrofe, como aquele ponto de inflexão de um discurso que, por sua
problematicidade, desata a tensão dramática da tragédia e leva a narrativa para seu fim. A reflexão sobre a
possibilidade da resisncia e sobre o espaço de manobra reservado à subjetividade é a catástrofe do pensamento
de Foucault, que o leva, nos anos 80, à problematização da liberdade e à possibilidade, portanto, de uma ética.
181
VSR, 123.
182
O nominalismo está no centro da polêmica entre Marx e Max Stirner. Stirner é um nominalista radical, que acusa
os comunistas de mistificar a revolução e de mascarar a realidadeltipla dos indivíduos. Marx procura
demonstrar, na Ideologia alemã, que os universais são produtos de práticas individuais; apesar de não existirem, é
74
aproxima-se de Marx. Como Marx, ele desconsidera de antemão os universais, o Estado, a
sociedade civil, o poder, o homem, a sexualidade, para analisar a forma prática, os instrumentos e
aparelhos concretos, as tecnologias, pelos quais, na história, pôde-se chegar a falar de um Estado,
de um poder, de uma sexualidade. Diferente de Marx, por outro lado, os mecanismos de poder de
Foucault não são tributários nem redutíveis à história das tecnologias de produção, que em Marx,
correspondem aos “estágios de desenvolvimento da divisão do trabalho” e às “diversas formas de
propriedade”
183
. Os dispositivos de Foucault, dispositivos que dão forma e nome à loucura, à
delinqüência, à sexualidade, não são mecanismos em que está em jogo um poder exclusivamente
econômico, mas um poder que é indissociável da formação de um saber. Foucault não trata o saber
das ciências humanas como ideologia, como a máscara que encobre a única ciência”, a da história
da produções das condições materiais de existência. o há para Foucault a verdadeira ciência. Os
saberes são o que são, correspondem às práticas concretas, aos modos específicos de exercício do
poder. Assim, as ciências humanas nascem com o poder disciplinar. O homem, objeto dessas
ciências, nasce com a apreensão do corpo pelo poder. Da mesma forma, a scientia sexualis nasce
com o dispositivo de sexualidade.
Paul Veyne escreve a respeito do nominalismo de Foucault: “dizer que a loucura o
existe não é afirmar que os loucos são vítimas de um preconceito nem, aliás, negá-lo”. Não é
tampouco afirmar que a loucura é fabricada pela sociedade. É possível que haja uma matéria da
loucura, “uma matéria behaviorista [comportamental] e talvez corporal [neurológica]. Mesmo que
a loucura fosse essa matéria, ela não seria loucura ainda”; não pode haver loucura sem o poder
psiquiátrico. Pode haver uma matéria da loucura, “moléculas nervosas dispostas de um certo
modo, frases e gestos [...] diferentes daqueles de outros humanos”
184
, pode haver uma diferença
material, porém essa diferença não é ainda loucura. A loucura só surge com o poder psiquiátrico, a
partir da prática psiquiátrica. Da mesma forma, podemos dizer que o sexo, há o prazer, mas
sexualidade quando se institui, no século XIX e XX, o dispositivo de sexualidade. Segundo
Veyne, o nominalismo é o que faz da obra de Foucault uma filosofia “[...]a negação do objeto
natural estatura filosófica à obra de Foucault [...]
185
. Poderíamos completar e dizer, que o
nominalismo de Foucault é uma filosofia política da linguagem, que se concentra no modo pelo
posvel fazer a história de sua gênese a partir da história das relações sociais, e discernir as abstrações que se
referem a um conhecimento real daquelas que são mistificadoras. Cf. BALIBAR, Étienne. La philosophie de
Marx. 2 ed. Paris: La Découverte, 2001 [1993]. Pp. 33-35.
183
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. L’idéologie allemande. (1845-1846) Première partie. Trad. Hans Hildebrand.
Paris: Nathan, 2003 [1846]. Considerações iniciais, p. 40.
184
VEYNE, Paul. Foucault révolutionne l’histoire. In: Comment on écrit l’histoire. Paris: Seuil, 1996 [1971]. P.
412.
185
VEYNE, Paul. Ibid.
75
qual os nomes o forjados no seio de práticas discursivas, no seio de procedimentos de produção
de saber ligados a mecanismos de poder, em que os universais são vinculados, não a essências
metafísicas, mas a práticas de poder. O nominalismo de Foucault diz que nomes, como poder,
sexualidade, loucura, delinqüência, doença, indivíduo e, também, população, mercado, Estado,
não se referem a essências exteriores ao ato de nomeação, essências fixas, invariáveis, meta-
históricas, metafísicas, que existem lá, em seu ser natural, à espera de que a linguagem venha ao
seu encontro, enfim, inaugurando, com o nome e pelo nome, com a nomeação e pela nomeação, o
espaço próprio para que os seres humanos falantes possam, finalmente, percebê-las, falar sobre
elas, classificá-las, pô-las em relação com outras essências e nomes, constituindo, nesses atos, o
seu saber sobre elas. Foucault sendo nominalista é anti-essencialista.
O que chamei de filosofia política da linguagem, Foucault vai chamar, em um texto de
1978, de filosofia analítica da política. Foucault, em relação ao poder, se dá a tarefa, como filósofo
o que não quer dizer que essa seja a tarefa de todos os filósofos, da filosofia, sequer da filosofia
política –, não a de descobrir o que está encoberto, escondido, mas a de analisar e tornar visível
aquilo que vemos sem perceber, a de “fazer aparecer o que está tão próximo, o que é tão imediato,
o que está tão intimamente ligado a nós mesmos, que, por isso, nós não o percebemos.”
186
. Isso é
um pouco, segundo Foucault, o que faz a filosofia analítica anglo-americana, que podemos seguir
como modelo, transformando-o em parte. Embora, o espectro da filosofia analítica seja extenso,
ele se refere provavelmente a filósofos como Wittgenstein, John Austin, John Searle. O que faz,
segundo Foucault, a filosofia analítica? “A filosofia analítica anglo-saxã não se como tarefa
refletir sobre o ser da linguagem ou sobre as estruturas profundas da língua [como o fazem os
lingüistas]; ela reflete sobre o uso quotidiano que se faz da língua nos diferentes tipos de discurso
[, ...] uma análise crítica do pensamento a partir da maneira com a qual dizemos as coisas”
187
.
Como a filosofia analítica, o olhar de Foucault vasculha os discursos, tais quais eles se enunciam
no quotidiano de uma prática para, a partir deles, compreender o jogo de relações de poder. Como
na filosofia analítica, trata-se de perceber no que é visível, na superfície da aparência e não no
que estaria por trás dela, no desvelado, no mais real que o real, no fundamental, no origirio, no
transcendental, como se queira –, o que está em jogo, os objetivos, as táticas, as estratégias, as
reiterações, as conexões, as práticas que, finalmente, dão nome às coisas. A filosofia analítica da
política seria “uma filosofia que trataria, por conseguinte, mais das relações de poder do que dos
186
FOUCAULT, Michel. La philosophie analytique de la politique. Texto 232 [1978]. In: DE2, 540.
187
FOUCAULT, Michel. Ibid., p. 541.
76
jogos de linguagem, uma filosofia que trataria de todas essas relações que atravessam o corpo
social, antes do que dos efeitos de linguagem que atravessam e sustentam o pensamento”
188
.
Para a filosofia analítica da linguagem, os significados dos termos universais, como
Estado, soberania, poder, são definidos pelo uso que nós fazemos deles, no interior de um jogo de
linguagem. A filosofia analítica anglo-saxã procura, portanto, o significado das palavras, no uso
quotidiano que fazemos delas, no jogo de linguagem em que elas estão inseridas, não numa
suposta referência última e definitiva dessas palavras a essências metafísicas. A busca dessas
essências seria uma espécie de patologia do pensamento. Para Wittgenstein, “a filosofia é uma luta
contra o enfeitiçamento do nosso entendimento por meio de nossa linguagem”
189
; a linguagem é o
que nos enfeitiça e, ao mesmo tempo, o que permite, quando a restituímos a seu uso quotidiano, a
nossa cura. Nós reconduzimos as palavras de seu uso metafísico de volta para seu uso
quotidiano”
190
. Para Foucault, para uma filosofia analítica da política, o uso das palavras remete a
uma prática discursiva em que estão em jogo relações de poder. O esclarecimento, o tornar visível
o visível dessas práticas, dessas relações de poder, dos seus modos de funcionamento, dos
mecanismos de poder que condicionam essas relações, com suas estratégias globais e táticas
locais, é a tarefa de uma filosofia analítica da política. A filosofia para Foucault também é uma
luta contra o feitiço, uma luta pelo esclarecimento das práticas. O significado da palavra
‘sexualidade’ é esclarecido se tornamos visíveis as relações de poder que estão em jogo, em torno
do uso quotidiano desta palavra. “Importância, por conseguinte, [na questão da linguagem, como
na de poder] da noção de jogo”
191
. Compreender o poder como um jogo, não tanto como uma
relação de dominação, em que os papéis de dominantes e dominados estão definidos de uma vez
por todas. Quando jogamos, jogamos estrategicamente, perseguindo objetivos, utilizando-nos de
diversas táticas que aplicamos, em determinado instante, em determinado lugar, que modificamos,
que trocamos, segundo o que é oportuno; quando jogamos, consideramos, ao elaborarmos as
nossas estratégias, também as presumíveis estratégias dos parceiros do jogo. Para esclarecer, para
tornar mais clara, a relação de poder, pensá-la a partir do modelo do jogo, mais do que da
dominação.
Dizer que Foucault é um nominalista, não quer dizer que, para ele, a linguagem é
independente do ser das coisas, que ela determina o ser das coisas, a partir das relações que as
palavras estabelecem entre si, porque as coisas o antecederiam ontologicamente às palavras. O
188
FOUCAULT, Michel. Ibidem.
189
WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophische Untersuchungen. Frankfurt: Suhrkamp, 2003. §109.
190
WITTGENSTEIN, Ludwig. Ibid. §116.
191
FOUCAULT, Michel. La philosophie analytique de la politique. Op. cit., p. 541.
77
nominalismo de Foucault deve ser entendido como uma filosofia analítica da política, em que o
nome está ligado a uma prática, a um mecanismo de poder e de saber, que não são, contudo,
independentes de um traço material. Como Veyne observou, há, para Foucault, uma base material
para o nome. O dar nome a essa base material, porém, é um processo que se forma no interior de
uma prática, uma prática discursiva, que envolve campos de força e de saber, estratégias em
conflito, técnicas de poder, de adestramento, de sujeição, de obtenção de obediência.
Afirmar que o nominalismo de Foucault é o que faz de Foucault um filósofo, como
afirmou Veyne, requer um pouco mais de nossa atenção. Nessa grande discussão Foucault é
filósofo, é historiador? –, certamente se coloca uma questão epistemológica, a respeito do que é
filosofia, do que é o conhecimento de tipo filosófico. Sem entrarmos nesse assunto, talvez
possamos aplicar a Foucault o que disse Althusser sobre Marx, nas suas indicações de leitura do
livro I de O Capital: não buscar, em O Capital, nem um livro de história ‘concreta’ nem um livro
de economia política ‘empírica’, no sentido com que os historiadores e economistas compreendem
esses termos. Mas encontrar aí, um livro de teoria que analisa o modo de produção capitalista”
192
.
Da mesma forma, poderíamos sugerir a respeito dos livros de Foucault: não buscar aí um conteúdo
de história, mas a análise dos mecanismos e das tecnologias de poder pertinentes ao capitalismo.
Em uma entrevista de 1978, um interlocutor pergunta a Foucault, se suas análises da
delinqüência na sociedade francesa seriam universalmente aplicáveis. “O objeto de análise –
responde Foucault é sempre determinado pelo tempo e pelo espaço, mesmo se tentamos dar-lhe
uma universalidade. Meu objetivo é analisar a técnica de poder que busca constantemente novos
meios, e meu objeto é uma sociedade submetida à legislação criminal. Essa sociedade difere na
França, na Alemanha e na Itália. Por outro lado, a organização que torna o poder eficaz é
comum”
193
. Foucault não faz historiografia da França, da Inglaterra ou da Alemanha, embora
muitas vezes, suas pesquisas apareçam atreladas à história desses países, mas Foucault utiliza-se
de elementos historiográficos para fazer a análise de mecanismos de poder, tais como a disciplina,
a biopolítica, o poder pastoral, e de dispositivos, como o da sexualidade, o da loucura, o da
delinqüência. Embora Foucault parta de dados históricos, localizados num certo espaço e tempo,
para descrever esses mecanismos e dispositivos, suas formas, suas organizações, são comuns a
diversas sociedades. No meu entender, Foucault não faz somente história, e seria limitar o impacto
de suas formulações sobre o nosso presente, querer localizar e temporalizar rigidamente seus
estudos. Quem não reencontra, hoje em dia, nas empresas, na organização das instituições
192
ALTHUSSER, Louis. Avertissement aux lecteurs du Livre I du Capital. [1969]. Disponível em: <http://
www.marxists.org/francais/marx/works/1867/Capital-I/althusser_cap.htm>. Acesso em: 03.04.2007.
193
FOUCAULT, Michel. La société disciplinaire en crise. Texto 231 [1978]. In: DE2, 532.
78
bancárias, nas escolas, nos órgãos públicos, mecanismos de poder muito próximos ao poder
disciplinar do século XIX francês? Quem não reencontra, nos discursos dos nossos políticos, nos
principais tópicos dos programas de governo, nas reivindicações de segurança e de saúde etc., os
traços evidentes das tecnologias biopolíticas dos três últimos séculos, na Europa? Quem não
reconhece, no modo como lidamos com nossa sexualidade, importantíssima, midiática,
consumista, mas também, perigosíssima, uma semelhança com o dispositivo de sexualidade que se
originou da necessidade de auto-afirmação da burguesia francesa do século XVIII? Em Foucault,
na genealogia, não se trata de fazer história primeiro, para depois reconhecer os traços que ainda
permanecem ativos no presente; trata-se de partir do presente, das questões que nos são mais
relevantes, para constituir retrospectivamente o modo como essas questões se articularam na
história com os mecanismos de poder que nos sujeitam, que nos governam. Trata-se de
problematizar historicamente o presente. É a partir da problematização do que nos acontece, hoje,
que se arma a história da sexualidade.
***
O dispositivo de sexualidade é uma das ordens do biopoder, uma das configurações
políticas das forças, na qual indivíduos, classes econômicas, populações se encontram vinculados
por seu sexo, na qual o sexo constitui a matéria que, elaborada em um regime prático-discursivo,
toma a forma da sexualidade. Instituições e governos, disciplinas e biopolíticas encontram, na
forma da sexualidade, o ponto de apoio para o assujeitamento dos seres humanos, o ponto de
apoio a partir do qual os comportamentos podem ser normalizados, conduzidos. A sexualidade é
objeto para saberes diversos medicina, psiquiatria, psicanálise, sexologia, antropologia,
sociologia –, para toda a scientia sexualis, da qual emerge o objeto homem como sujeito de
sexualidade, o homem inexoravelmente sujeito de seu sexo. O dispositivo de sexualidade é um
modo de objetivação do homem em relação com um mecanismo de assujeitamento. No que diz
respeito aos aspectos propriamente biopolíticos desse mecanismo, a sexualidade se apresenta
como um operador de regulação das populações. A sexualidade é, por um lado, concebida como o
ingrediente essencial da natureza humana, por outro, como um sistema de distinções que
acompanha a estratificação da população. Objetificada, a sexualidade faz-se índice de
mapeamento da população, por gêneros, por faixas etárias, por classes econômicas. Os costumes
sexuais, normalizados e normalizáveis, são considerados o núcleo dos comportamentos e aquilo a
partir de que esses comportamentos podem ser conduzidos. A sexualidade e o comportamento
79
sexual são um problema de Estado, concernem de muito perto a saúde da população, são os
motores e veículos de sua bio-história, estão estreitamente ligados às questões macro-econômicas,
à constituição da população ativa, a diversos setores produtivos e consumidores. As estratégias e
programas governamentais de higiene e saúde públicas, de natalidade, os sistemas de ensino, os
sistemas habitacionais se configuram com base nessa sexualidade comum e estratificada das
populações e, com isso, seguem e reforçam, ao mesmo tempo, os princípios da scientia sexualis.
80
IV. A biopolítica e o pacto de segurança
Nas três primeiras lões do curso de 1978 publicadas no livro intitulado Sécurité,
territoire et population , Foucault apresenta o que contamos como a quarta formulação da
biopolítica. A apreensão e a regulação da vida humana são abordadas, desta vez, a partir de
mecanismos de poder que visam a promover a segurança da população. A segurança é aqui uma
questão ampla, que envolve não apenas a doença, os genótipos corruptores ou a anormalidade
hereditária, que põem em risco o patrimônio biológico da espécie, mas tudo aquilo que representa
um perigo, uma ameaça à vida da população. Nas três abordagens da biopolítica tratadas,
abordagens feitas pelo viés da saúde, da raça e da sexualidade, fazia-se presente um fator positivo
de implementação da vida da espécie. Pelas políticas de medicina social, pelos mecanismos de
guerra interna ou externa ou pela ancoragem sexual, tratava-se sempre não apenas de proteger, de
resguardar, a vida das populações, mas sobretudo de promovê-la, incrementá-la, purificá-la. Na
abordagem da biopolítica como dispositivo de segurança dá-se maior enfoque às ações de cuidado,
de proteção, de defesa, ações mais negativas, digamos, do que positivas. Com isso, Foucault
amplia a perspectiva analítica da biopolítica, da questão do racismo, da eugenia, para um novo
campo, a segurança, que lhe permite continuar a interpretar, biopoliticamente, as relações
contemporâneas entre Estado e população. “A referência de um Estado a uma população –
segundo Foucault se faz essencialmente sob a forma disso que poderíamos chamar o ‘pacto de
segurança’. [...] O que o Estado propõe como pacto à população é : Vocês estarão garantidos’.
Garantidos contra tudo o que pode ser incerteza, acidente, dano, risco”
194
. O Estado toma para si a
responsabilidade de organizar uma rie de mecanismos capazes de reduzir as ocorrências danosas
ocasionais e controlar seus efeitos entre eles, além dos tradicionais mecanismos de segurança
militar e jurídica, os mecanismos de segurança social, seguro-saúde, seguro-desemprego, fundos
de solidariedade, vigilância policial, prevenção da criminalidade. Trata-se de desenvolver os
mecanismos capazes de apreender e regularizar os eventos aleatórios que, de algum modo,
ameaçam a segurança de uma população.
194
FOUCAULT, Michel. Michel Foucault: la sécurité et l’État. Texto 213 [1977]. In: DE2, 385.
81
Uma dessas ameaças, entre tantas, seria o terrorismo. O pacto de segurança explica
porque a repercussão do terrorismo sobre os Estados é tão impactante. Segundo Foucault, o
terrorismo não constitui uma ameaça real e direta à força do Estado; é num outro plano que ele
constitui um perigo. Quando o terrorismo atinge a população, é percebido pelo Estado como uma
ameaça, porque põe em risco não diretamente o aparelho do Estado, mas o pacto de segurança,
pacto que é a condição de aceitabilidade das suas relações com a população, cuja segurança é sua
função garantir. O atentado terrorista, enquanto fato espetacular, atinge em cheio o conteúdo desse
pacto, e desacredita o Estado e sua promessa, “justamente no plano em que ele afirmou a
possibilidade de garantir às pessoas que nada [de mal, de arriscado] lhes sucederia”
195
. O Estado
reage com virulência ao terrorismo porque este põe em xeque a essência do pacto que o vincula à
população. Para enfatizar que cumpre a sua parte no pacto, a cada vez que a segurança da
população é posta em risco, a ão do Estado deve ser espetacular. Foucault afirma que “toda a
campanha sobre a segurança pública deve estar apoiada para ter credibilidade e ser rentável
politicamente por medidas espetaculares que provem que o governo pode agir, rapidamente e
firmemente, acima da legalidade. Agora, a segurança está acima da lei”
196
.
O Estado, no desempenho de sua função de garantir a segurança da população, deve
demonstrar constantemente sua intenção e sua capacidade de se colocar acima do sistema de leis e
do mecanismo jurídico. Diante do inusitado do acontecimento, o Estado interm
excepcionalmente, sem que essa intervenção, essa decisão excepcional, pareça uma arbitrariedade
ou um abuso de poder, mas pelo contrário, uma disposição solícita do Estado para cumprir seu
papel. Foucault reconhece, nessa tendência à exceção, a vocação dos Estados ao totalitarismo.
“Toda uma efervescência de abusos, de excessos, de irregularidades, forma não uma deturpação
inevitável, mas a vida essencial e permanente do Estado de direito”
197
. Certamente por que,
quando o princípio que orienta o Estado é o cuidado com a vida, uma tendência a vincular o
195
FOUCAULT, Michel. Ibid., p. 386. Além do terrorismo, o que mais ameaça, espetacularmente e especularmente, a
nossa vida? A lista de inimigos blicos é longa: a violência criminosa, o acidente de trânsito, o colesterol, o
câncer, as epidemias, a bomba amica na mãos dos outros, os estrangeiros em nosso país, a degradação ambiental.
a invalidez, a velhice, a fome, o desemprego, a pobreza etc.
196
FOUCAULT, Michel. Michel Foucault: “Désormais, la curité est au-dessus des lois”. Texto 211 [1977]. In:
DE2, 367. Foucault se referia à extradição expeditiva para a Alemanha de Klaus Croissant, advogado do grupo
terrorista Rote Armee Fraktion, que, em julho de 1977, havia solicitado asilo político à França.
197
FOUCAULT, Michel. Préface. Texto 191 [1977]. In: DE2, 139. Aqui, Foucault parece próximo de Carl Schmidt,
para quem: “Soberano é quem decide sobre o estado de exceção”. SCHMITT, Carl. Teologia política. Trad.
Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2006 [1922-1970]. P. 7. Mas, como procuraremos deixar claro logo
adiante, para Foucault, não se trata de fundar a biopolítica na soberania; a biopolítica não acompanha
necessariamente o mecanismo de poder da soberania, nem o substitui; ela é um acontecimento distinto da
soberania; o dispositivo de segurança não coincide com o poder soberano; o pacto de segurança’ e o pacto de
soberania’ correspondem a dois mecanismos de poder diferentes, apesar de estarem, hoje em dia, justapostos.
82
poder sobre a vida, a biopolítica, ao poder totalitário; pois a vida, substrato biológico comum à
espécie humana, totaliza a população, e relega as especificidades biográficas individuais e o
pluralismo a um plano secundário.
A transformação da ação política em atividade de defesa e valorização do processo vital
da espécie humana perfaz essa tendência totalitária dos governos. Mas, “no sentido estrito insiste
Foucault –, um Estado totalitário é um Estado em que os partidos políticos, os aparelhos de
Estado, os sistemas institucionais, a ideologia fazem corpo, em uma espécie de unidade controlada
de alto a baixo, sem fissuras, sem lacunas e sem desvios possíveis”
198
. Por isso, Foucault não
compartilha o posicionamento daqueles que afirmam que as democracias liberais ocidentais são
regimes totalitários. um hiato possível entre o recurso recorrente a medidas de exceção e o
totalitarismo. As “sociedades de segurança”, do final do século XX, são muito mais tolerantes a
respeito das diferenças ideológicas e comportamentais: “há uma margem de manobra e um
pluralismo tolerados infinitamente maiores que nos totalitarismos. Trata-se de um poder mais
hábil, mais sutil do que aquele do totalitarismo”
199
. Os Estados não se tornaram mais rígidos e
inflexíveis, mas inversamente, se ordenaram de tal forma a poderem se tornar mais elásticos, e por
isso, mais resistentes. Obviamente essa tolerância e essa elasticidade podem cessar diante do
“acidente perigoso”. Para Foucault, no entanto, a estratégia de abordagem dessas “sociedades de
segurança” como totalitarismos, utilizando-se de “velhos conceitos históricos” para recodificar o
presente, deixa escapar aquilo que a atualidade tem de específico, e diminui nossa capacidade
analítica. Entender o que está acontecendo nas democracias ocidentais, entender as estratégias
efetivamente utilizadas pelos mecanismos de poder atuais é a única maneira de levar adiante, se
for o caso, uma luta contra esses mecanismos.
O Estado deve mostrar-se a postos, para agir com presteza e vigor frente ao perigo,
pronto para tomar as decisões necessárias para garantir a segurança, mesmo que o faça em
detrimento das leis. “Essa característica de solicitude onipresente, é o aspecto sob o qual o Estado
se apresenta. É essa modalidade de poder que se desenvolve”
200
. Essa é a faceta contemporânea do
198
FOUCAULT, Michel. Ibid. P. 386.
199
FOUCAULT, Michel. Ibid. P. 386. A crítica, que Foucault faz à utilização do termofascismo’ ou ‘totalitarismo
para designar os regimes políticos das democracias ocidentais não é apenas uma questão teórica, visa também a
retirar o fundamento de justificação do terrorismo grupuscular. Segundo Michel Senellart, o apoio de Foucault a
Croissant, em nome da defesa do direito de asilo, excluía portanto toda solidariedade com o terrorismo. Posição
que esteve, sem vida, na origem de sua desavença com Gilles Deleuze”. SENELLART, Michel. Situation des
cours. In: STP, 386.
200
FOUCAULT, Michel. Michel Foucault: la sécurité et l’État. Texto 213 [1977]. In: DE2, 385. Foucault vai dizer,
em 1979, que a sensação perigo é a condição de possibilidade do liberalismo, que os indivíduos “são
condicionados a experimentar sua situação, sua vida, seu presente, seu futuro como portadores de perigo”. NBQ,
68.
83
dispositivo de segurança. O pacto de segurança se articula em torno da ameaça, constantemente
anunciada, mesmo que virtual, do perigo para a população. A nuvem sombria de perigos, que nos
envolve e penetra o corpo, renova indefinidamente o pacto e a exigência de um Estado
responsável pelo cuidado da população. A biopolítica, o exercício do poder do Estado como
cuidado com a vida da população, diante da virtualidade dos perigos que constantemente a
ameaçam, segundo Foucault, é a modalidade contemporânea do exercício do poder político. O
dispositivo de segurança resultaria da incorporação paulatina, pelo mecanismo de poder soberano,
a partir do século XVI até os nossos dias, de cnicas de obediência desenvolvidas num domínio
alheio ao Estado, técnicas pertinentes ao poder pastoral, as quais regulam os compromissos de
abade e monges, em congregações monásticas cristãs, desde os primeiros séculos do cristianismo.
Mesmo o termo governo’, antes de seu uso político, era aplicado ao poder pastoral, entendido
como direção de consciência, como governo das almas. A pastoral cristã, o saber e a arte de
governar os homens, devido à sua complexidade, era considerada, durante pelo menos quinze
séculos de cristianismo, do século II-III ao XVIII, a ciência das ciências, a arte das artes, arts
artium, isto é, a própria filosofia
201
. De fato, para Foucault, o pastorado foi o que permitiu a
religião cristã organizar-se como Igreja.
Três traços seriam suficientes para caracterizar a analogia entre o abade, que dirige as
consciências e governa as almas dos iniciados, e o pastor de ovelhas. Primeiro, o próprio tema do
pastor, ao qual o rebanho deve sua existência como grupo, sem o qual o rebanho se dispersa e se
perde. O poder do pastor se exerce sobre uma multiplicidade, dando-lhe a configuração de
rebanho. Não rebanho sem pastor, como não há congregação religiosa sem abade. Segundo, o
poder do pastor é um poder benfazejo. Com toda paciência, sabedoria e diligência, o pastor visa ao
bem do rebanho, provê o necessário à subsistência de todos. O pastor de ovelhas as guia para um
objetivo. O pastor cristão conduz o rebanho de fiéis à salvação. Terceiro, o exercício do poder
pastoral é um dever, mais do que um privilégio. O pastor está a serviço de seu rebanho, seu
cuidado é dirigido às ovelhas e não a si mesmo. A salvação do abade está atrelada à salvação de
cada um dos monges
202
.
201
O que deslocaria, segundo Foucault, a teologia para um segundo plano. Cf. STP, 154.
202
STP, 128-132. Deixamos, no corpo do texto, apenas os aspectos totalizantes do poder pastoral, correspondentes à
biopolítica. Contudo, o poder pastoral é também essencialmente um poder individualizante. O cuidado do pastor
tem como objeto o rebanho como um todo e cada uma das ovelhas isoladamente. É sob o olhar e o zelo atenciosos
do pastor que as ovelhas se individualizam no rebanho. O pastor cristão, como diretor de consciências, ensina a
todos a verdade de Deus, mas ensina sobretudo ao monge produzir a verdade que se encontra no seu próprio
interior. O assujeitamento dos monges ao abade é correlativo à produção dessa verdade interior, dessa
subjetividade própria a cada um, pela técnica do exame de consciência. O pastor cristão alcança o assujeitamento
pela subjetivação de suas ovelhas. Os aspectos individualizantes do poder pastoral cristão, ao lado dos totalizantes,
84
Ao ser absorvida pelas formas laicas de governo, a salvação eterna torna-se segurança em
vida. A segurança é a promessa que o Estado faz à população, quando se põe a seu serviço.
Contudo, podemos nos perguntar exatamente em que as relações de governo e o “pacto de
segurança” biopolítico, entre Estado e população, diferem do pacto político, do contrato
fundamental do poder soberano? Afinal, a segurança, em Hobbes, não é tarefa do soberano?
A incumbência ligada à posição do soberano (seja um monarca ou uma assembléia)
consiste no fim em vista do qual lhe foi confiado o soberano poder, a saber, a
obtenção da segurança do povo, ao qual está obrigado pela lei de natureza, e do qual
tem de prestar contas a Deus, o autor desta lei, e a mais ninguém. Contudo, segurança,
aqui, não quer dizer a simples preservação, mas também todas as outras comodidades
da vida, as quais todo o homem por uma indústria legítima, sem perigo ou dano para o
Estado, deve adquirir para si próprio.
203
A segurança do povo é a tarefa do soberano, assim como a segurança da população é a
tarefa do governo. Se há, efetivamente, uma diferença entre poder soberano e dispositivo de
segurança, devemos encontrá-la entre os vínculos que se estabelecem entre Estado, população e
governo, no caso dos dispositivos de segurança, e aqueles que se estabelecem entre Estado, povo e
soberano, no caso dos mecanismos jurídicos.
O dispositivo de segurança como ficará claro, quando em seguida analisarmos os
mecanismos de seu funcionamento é uma forma de gestão de casos, riscos, perigos, crises, que
de alguma forma ameaçam a vida da população, não eliminando diretamente os acontecimentos
nefastos, mas favorecendo os processos homeostáticos que tendem a restabelecer um ponto de
equilíbrio otimizado. O que produz a unidade da população é um princípio unificador de caráter
biológico, natural. Esse princípio biológico ou natural está diretamente relacionado à questão da
segurança. De certa forma, garantir a segurança de uma população é defendê-la contra tudo aquilo
que constitui uma ameaça a esse princípio que unifica seus elementos isolados num todo natural.
Defender a população é garantir a efetividade de seu princípio unificador. O vínculo biopolítico,
em torno do qual se articulam as práticas de governo, as práticas de regularização do meio, as
práticas integralizadas das relações de poder entre Estado e população, é a vida natural, cujo
princípio natural é, variavelmente, a saúde, a sexualidade, a evolução social ou a tendência ao
equilíbrio homeostático. Nos dispositivos de segurança modernos, o vínculo entre Estado,
população e governo é um dado natural. E reside a diferença fundamental entre biopolítica e
poder soberano.
perfazem, na sua transformação moderna, o biopoder. STP, 170-188. Cf. também Omnes et singulatim. Texto 291
[1979]. In: DE2, 953-980.
203
HOBBES, Thomas. Leviathan. Indianapolis/Cambridge: Hackett, 1994 [1651]. Cap. XXX, §1, p. 219.
85
O que, em Hobbes, estabelece o vínculo entre Estado, povo e soberano? A noção de
segurança do povo (Salus populi), tarefa no soberano, em Hobbes, não é a salvação do povo em
referência aos pecados cometidos, referente ao poder de tipo pastoral, mas a condição de
possibilidade da sua indústria. Isso é o que podemos ler no texto em destaque, logo acima. Sem o
Estado, sem um poder político estabelecido acima dos homens, os acordos entre eles são incertos,
e essa incerteza inviabiliza os negócios, a indústria; “acordos sem a espada não são mais do que
palavras”
204
. Para viabilizar a indústria, não bastam as leis comuns e naturais da razão, pois os
homens, deixados à sua naturalidade própria, sucumbem facilmente às suas paixões egoístas. A
segurança definitiva de que os acordos entre os homens serão cumpridos se alcança com a
fundação do Estado. Mas devemos prestar atenção ao uso que Hobbes faz do termo ‘indústria’,
obviamente diferente do uso que fazemos atualmente. Hobbes escreve que, sem segurança, “não
lugar para a indústria, porque seu fruto é incerto, e, conseqüentemente, não cultivo da terra,
não há navegação, nem uso das mercadorias que possam ser importadas pelo mar, não
construções cômodas, [...], o artes, não letras, não sociedade, e o que é pior, medo
contínuo e perigo de morte violenta, e a vida do homem é solitária, pobre, abominável, brutal e
curta”
205
. A indústria é toda a artificialidade que separa o homem de suas condições naturais; o
fruto da indústria é tudo aquilo que torna a existência humana distinta da mera vida preservada. A
vida cômoda é decorrente da indústria, não da segurança. Entretanto, nem a preservação da vida
nem a indústria são o objeto próprio do soberano; o objeto próprio do soberano é a segurança,
como garantia das condições de possibilidade da indústria, da comodidade da vida, que ela mesma
é atividade dos súditos e não do Estado.
Na introdução ao Leviatã, Hobbes distingue claramente natureza e artifício. Do lado
da natureza, ele elenca, entre muitos outros itens, o homem, seu corpo, sua alma; do lado do
artifício, respectivamente, o Estado, o povo, o soberano. Poderíamos completar a lista,
posicionando, do lado natural, a simples vida preservada, “abominável, brutal e curta”; do lado
artificial, a indústria e todos os seus efeitos de civilização. O homem, seu corpo e alma são o dado
natural. O Estado, o povo e o soberano surgem, de uma vez e ao mesmo tempo, de uma
artificialidade fundamental, o pacto, estabelecido entre os homens em estado de natureza. O
vínculo entre esses três elementos é uma artificialidade fundadora; diferente, portanto, da
naturalidade dada, que vincula biopoliticamente Estado, população e governo. Comparando
soberania e biopolítica, temos, de um lado, a série da artificialidade, que nos leva da segurança à
204
HOBBES, Thomas. Ibidem. Cap. XVII, §2, p. 106.
205
HOBBES, Thomas. Ibidem. Cap. XIII, §9, p. 76.
86
civilização, passando pela indústria; do outro, a série da naturalidade, que nos leva da segurança à
vida, passando pela naturalização. O soberano exerce seu poder mediante o artifício do pacto; o
governo governa naturalizando a população. Para Foucault, estas duas séries correspondem a dois
mecanismos de poder diferentes. O poder soberano apreende o povo, ao produzir-se como
princípio de sua unidade, e em última instância, segundo a vontade de todos. A unicidade do
soberano é o princípio artificial de unidade do povo. Só há unidade de todos, enquanto o soberano
tem como correlato o povo. “Pois assere Hobbes é a unidade do representante, não a unidade
do representado, que torna [a massa de homens] uma pessoa”
206
. O princípio unificador de uma
multiplicidade de homens, enquanto povo, é sua representação artificial, o poder soberano; e,
como tal, esse princípio transcende ao povo. O poder biopolítico, por sua vez, mantém a
população em seus mecanismos unificando-a, como vimos, não por um princípio artificial, o
pacto, mas por um princípio natural, a vida imanente à população. Pacto e vida, artificialidade e
naturalidade, indústria e naturalização, transcendência e imanência, estas são, a meu ver, as
diferenças irredutíveis entre soberania e biopolítica.
O processo histórico de configuração do dispositivo de segurança não descartou o
funcionamento paralelo do mecanismo jurídico da soberania nem, aliás, do mecanismo disciplinar.
Seria impróprio, segundo Foucault, pensar em uma série cronológica, na qual cada mecanismo de
poder aparece como a novidade que substitui a anterior. Em cada época, medieval, moderna ou
contemporânea, “[...] o que vai mudar é a dominante ou, mais exatamente, o sistema de correlação
entre os mecanismos jurídico-legais, os mecanismos disciplinares e os mecanismos de
segurança”
207
. A segurança envolve medidas de âmbito global, como as estatísticas, as campanhas
e as políticas públicas; medidas disciplinares, como o fortalecimento das instituições e do aparelho
de vigilância; e medidas legais, como a criação ou modificação da legislação específica no
ordenamento jurídico. A tecnologia de segurança “[...] consiste, em boa parte, na reativação e na
transformação das técnicas jurídico-legais e das técnicas disciplinares [...]”
208
.
A fim de caracterizar essa tecnologia, Foucault ressalta quatro modos de funcionamento
específicos do dispositivo de segurança: (1) o modo como a segurança lida com a circulação e
com o espaço, (2) o modo de tratamento do evento aleatório, (3) a forma de normalização da
segurança e (4) a correlação com a população. Numa fórmula que reúne esses quatro itens,
podemos afirmar que é característico da biopolítica a maneira de deixar circular o acontecimento
206
HOBBES, Thomas. Ibidem. Cap. XVI, §13, p. 104.
207
STP, 10.
208
STP, 11.
87
singular e anômalo, remetendo-o a um todo apreensível, e buscando desenvolver os processos de
normalização para alcançar um estado de homeostasia
209
.
(1) O modo de gestão do espaço é a primeira especificidade do dispositivo de segurança.
De forma esquemática, assinala Foucault, seríamos levados a fazer as seguintes relações – a
soberania remete a um território, em cujos limites ela é exercida; a disciplina remete aos corpos
dos indivíduos; a segurança, ao conjunto de uma população. “Limites do território, corpos dos
indivíduos, conjunto de uma população, bom, sim..., mas não é exatamente isso, e eu creio diz
Foucault – que isso não cola [não funciona desse jeito]”
210
. Por que não? Ora, um fator de
multiplicidade ocorre também na soberania, em que se trata de múltiplos sujeitos e não apenas de
inscrição em um território. Na disciplina, por sua vez, os indivíduos não são matéria-prima; o que
se apresenta de início à disciplina é uma multiplicidade disforme e uma meta; os indivíduos serão
produzidos disciplinarmente a partir dela. Portanto, a multiplicidade não é uma exclusividade da
segurança; ela ocorre na soberania como povo; e, na disciplina, como multiplicidade individua-
lizada. Da mesma forma, o espaço não é uma exclusividade da soberania. A disciplina é um
espaço cercado, esquadrinhado até a célula individual; e a segurança tem seu próprio modo de
lidar com o espaço. Isso se mostra, sobretudo, na questão da cidade, do espaço urbano.
Na Idade Média, até mesmo durante o século XVII e o início do século XVIII, a cidade
era isolada do resto do país; juridicamente e administrativamente, era murada e fechada sobre si
mesma, marcada por uma heterogeneidade econômica e social que a distinguia fortemente do
espaço de campos que a envolvia. Recolocar a cidade em um espaço de circulação”
211
se tornou a
tarefa do século XVIII. Soberania, disciplina e segurança, cada uma a seu modo, vai lidar com
essa tarefa. A cidade do soberano, a capital, deve abrir-se sobre o território, do qual, idealmente,
ocupa o centro. A capital é o ponto de irradiação do esplendor soberano; a partir dela, idéias,
mercadorias, modos, “vontades e ordens circulam sobre o restante do território sobre toda a
extensão do território. Economicamente, também, a capital tem um papel exclusivo o luxo da
capital deve atrair as mercadorias estrangeiras, e sua posição central deve funcionar como ponto
de redistribuição do comércio.
A cidade da disciplina, por sua vez, é uma cidade que se ergue do nada, a partir de um
plano que segue a configuração dos acampamentos militares, é desenhada em função de suas
209
Em A vontade de saber, Foucault chama esses processos normalizadores de “controles reguladores” (VSR, 183);
em Em defesa da sociedade, de mecanismos de segurança” (IDS, 219).
210
STP, 13.
211
STP, 14.
88
necessidades internas. Basicamente, o planejamento urbano da disciplina concebe uma
extremidade comercial, com quarteirões retangulares menores e mais ruas, e uma extremidade
periférica e residencial, com quarteirões retangulares maiores e menos ruas. A intenção é oferecer
uma solução racional para o problema da circulação na zona comercial, quarteirões menores e
mais ruas facilitam o fluxo, e ampliam o contato entre casas e ruas; na zona residencial, as casas
que dão para as ruas paralelas à rua central são casas de dois andares; aquelas que dão para as ruas
perpendiculares, menores e mais simples. O urbanismo disciplinar traça as linhas e as zonas que
demarcam as hierarquias, as relações de poder; faz corresponder a geometria de ruas e quarteirões
com as diferentes funções econômicas, sociais e políticas, atribuídas a seus edifícios.
o plano típico de uma cidade de segurança se organiza a partir de quatro tarefas.
Primeiro, o planejamento de segurança urbana parte de um dado material prévio e não de um
ideal. Trata-se de trabalhar um espaço configurado, de reformar uma cidade existente, não de
conceber artificialmente uma nova. Em segundo lugar, a tarefa da segurança não é absoluta; não
intenção de eliminar completamente a ocorrência do dano, mas de favorecer a circulação, na
cidade, dos elementos positivos, mercadorias, trabalhadores, consumidores, vigilantes, ar, água, e
de dificultar a circulação dos elementos negativos, ladrões, doenças, miasmas. A segurança
concebe o dano como uma quantidade que pode ser reduzida, mas até um certo limite. Trabalha-se
com probabilidades, com proporções aceitáveis entre investimentos e resultados, custos e
benefícios. Uma materialidade pré-existente, um nível de tolerância do dano, e também, terceira
tarefa, pensar a cidade a partir da polifuncionalidade dos seus aparelhos, reorganizados segundo as
suas variadas funções. A rua, por exemplo, cumpre diversos papéis. Por ela circulam as
mercadorias, mas também os miasmas e as doenças; os transeuntes, mas também os ladrões.
Quando se organiza a rua, deve-se levar em consideração tanto os elementos positivos como os
negativos. Em quarto lugar, o espaço urbano deve ser planejado em função de sua dinamicidade,
em função das perspectivas para o futuro, do desdobramento provável das potencialidades da
cidade; consideram-se as tendências, as linhas de fuga, as séries abertas sobre as quais os eventos
urbanos de toda a sorte se alinham indefinidamente, sejam eles referentes ao crescimento físico da
cidade, à evolução industrial, aos índices de criminalidade etc. A segurança urbana é basicamente
a gestão de ocorrências singulares, que se acumulam irregularmente, segundo séries abertas que só
podem ser controladas por uma estimação de probabilidades
212
.
O mecanismo de segurança parte de uma situação material existente, considera os
acontecimentos correspondentes a essa situação como aleatórios, apreensíveis apenas em termos
212
Cf. STP, 15-22.
89
de probabilidade, alinháveis em uma série aberta que se prolonga indefinidamente. A segurança
releva a inter-relação de diversas funcionalidades presentes no elemento sobre o qual se a
intervenção; e faz um prognóstico do desdobramento futuro da série, o qual faz parte do cálculo
geral da intervenção. “O espaço próprio à segurança remete então a uma série de acontecimentos
possíveis, ele remete ao temporal e ao aleatório, um temporal e um aleatório que será preciso
inscrever em um espaço dado.
213
Esse espaço de inscrição é o meio. A segurança pensa o espaço
como meio. O meio é o espaço dado, onde os acontecimentos aleatórios se sucedem em séries
abertas. O que é então o meio? O meio responde Foucault “é então o suporte e o elemento de
circulação de uma ação. É o problema da circulação e da causalidade que está em questão nessa
noção de meio”
214
. O meio é o que suporta a circulação multifuncional, dos transeuntes, das
carruagens, das mercadorias, dos ladrões, dos miasmas, enquanto exerce, ao mesmo tempo, uma
influência sobre eles. O meio produz efeitos sobre aquilo que nele circula. Para Foucault, os
urbanistas do século XVIII, fazem uso dessa noção de meio, embora não utilizem o termo, quando
interferem no espaço urbano. “Os dispositivos de segurança trabalham, fabricam, organizam,
arranjam um meio, antes mesmo que a noção tenha sido formada e isolada”
215
. Para esses
urbanistas, o meio é um complexo formado por um conjunto de dados naturais, rios, pântanos,
colinas, ventos, clima, percurso solar, em relação de causalidade com um conjunto de dados
artificiais, indivíduos, casas, ruas. A variação de um desses elementos, como em um fluido,
acarreta uma mudança correspondente, um rearranjo, em todas os outros elementos do meio, em
um circuito fechado de efeitos e causas. “Por exemplo, quanto maior o amontoamento, tanto mais
haverá miasmas, tanto mais vai se ficar doente. Quanto mais se fica doente, é claro, mais se morre.
Quanto mais se morre, mais haverá cadáveres e, por conseguinte, mais miasmas etc.”. O meio,
condição de possibilidade da circulação e da causalidade, será o ponto de intervenção
característica da segurança, para se atingir uma multiplicidade de indivíduos, não como “sujeitos
de direito capazes de ações voluntárias”, como no caso da soberania, não como “corpos
213
STP, 22.
214
STP, 22.
215
STP, 23. Segundo Canguilhem: “historicamente considerados, a noção e o termo de meio são importados da
mecânica na biologia, na segunda metade do culo XVIII. A noção mecânica, mas não o termo, aparece com
Newton”. Newton utilizava o termo ‘fluido’, cujo arquétipo era o éter, com a mesma noção mecânica de meio’,
com a qual explicava a ação de um corpo sobre outro, distantes entre si e sem contato imediato. A noção mecânica
e o termo meio’ aparecem no verbete ‘Milieu’ da Encyclopédie de D’Alembert et Diderot. Para Lamarck, os
meios são os fluidos como a água, o ar e a luz. Lamarck, de fato, ainda segundo Canguilhem, utiliza a expressão
‘circusncias influentes’ para “designar o conjunto de ações que se exercem de fora sobre um vivente, quer dizer,
aquilo que s [em biologia] chamamos hoje de meio [...]”. Para Newton, o éter, que acolhe os astros e toda
matéria, também é material. Os astros exercem a força gravitacional um sobre os outros, por intermédio do éter,
arquétipo do fluido, meio por excelência. CANGUILHEM, G. Le vivant et son milieu, In: La connaissance de la
vie. Apud: SENELLART, Michel. Notas 36 e 37. In: STP, 28-29.
90
suscetíveis de performances”, como no caso da disciplina, mas como “população”. É nesse
contexto que Foucault define a população, como “uma multiplicidade de indivíduos que estão e
que só existem profundamente, essencialmente, biologicamente ligados à materialidade no interior
da qual eles existem”
216
. Assim não faz sentido pensar a população separada do meio no qual ela
vive. População e meio interagem, e é a partir dessa interação essencial que a intervenção sobre o
meio produz efeitos sobre a população.
A população, como objeto correlato da biopolítica, não deve ser pensada como
comunidade política de sujeitos de direito, nem como a soma de indivíduos organizados
disciplinarmente. É certo que a população do mesmo modo que a comunidade de direitos e o
aparelho disciplinar é composta de uma multiplicidade de entes; mas o que confere à população
sua unidade específica, não o as trocas pactuadas de direitos entre sujeitos, para formar o corpo
político da soberania, nem a composição e a ordenação das forças dos corpos individuais, para
formar o aparelho performático da disciplina, e sim o suporte biológico da espécie, essa
naturalidade especificamente humana em relação essencial com o meio em que existe.
É a partir da relação causal, politicamente manipulável, entre o meio e a naturalidade
da população que devemos compreender as célebres frases de Foucault, em A vontade de saber.
“O homem, durante milênios, permaneceu sendo o que ele era para Aristóteles: um animal vivente
e além disso capaz de uma existência política; o homem moderno é um animal, na política do qual,
sua vida de ser vivente está em questão”
217
. Para Aristóteles, o bíos politikós, a existência política,
é a possibilidade da qual dispõe o cidadão livre das premências biológicas que amarram os
animais comuns – de deliberar, entre iguais, a respeito da boa vida e do bem comum. A vida
biológica de animal vivente é, para Aristóteles, o suporte existencial do qual a política do homem
se desprende. A existência política do homem, nesse sentido, só é possível pela transcendência em
relação às suas necessidades biológicas. A essência política do ser humano é a capacidade de
transcender sua essência biológica. Foucault assinala que, na modernidade, a política, ao invés de
se depreender, se volta justamente para aquilo que constitui sua base animal, natural. Na
modernidade, a política, ao tomar como objeto a vida da população, é imanente ao plano da
existência biológica. No mecanismo que é próprio ao biopolítico, essa volta, esse retorno, essa
política da imanência, se faz indiretamente, através do meio. No “limiar de modernidade
biológica” das sociedades ocidentais, a naturalidade da população são os seus caráteres biológicos
essencialmente articulados ao meio em que está inserida.
216
STP, 23.
217
VSR, 188.
91
Assim, durante o século XVIII, pelo intermédio das relações da política com a
fronteira, com a cerca e com os fluidos circundantes, podemos acompanhar, de acordo com
Foucault, “como o soberano do território se tornou arquiteto do espaço disciplinado, mas também,
e quase ao mesmo tempo, regulador de um meio”
218
.
(2) A segunda característica do dispositivo de segurança é a sua forma específica de
lidar com o acontecimento aleatório, o modo com que a política programa a segurança em relação
à contingência. Em um dispositivo de segurança, o fenômeno singular, que em si é imprevisível,
ordena-se, passa a ocupar um lugar em uma curva de distribuição de ocorrências.
Os mecanismos de poder próprios à biopolítica são os dispositivos de regulação, no
nível da população, dos fenômenos singulares e aleatórios. Trata-se de inserir o acontecimento
singular, “no interior de uma série de acontecimentos prováveis”. Em seguida, “inserem-se as
reações do poder a respeito desse fenômeno em um cálculo, que é um cálculo de custo”. As
medidas de poder que serão tomadas para o controle, para a regularização dos fenômenos, são
avaliadas a partir de um cálculo de efetividade, da relação entre o custo e o resultado dessas
medidas. Por exemplo, a partir do estudo dos diversos distritos de uma cidade, estabelece-se uma
correlação entre a taxa de criminalidade e o número de policiais por mil habitantes. Pode-se,
assim, calcular o custo necessário para fazer baixar de 1% o nível de criminalidade em uma dada
região. Este custo será posto em relação com outros possíveis no momento em que o poder avalia
as suas táticas de ação, e o impacto que essas ações terão sobre a opinião pública, e sobre a própria
capacidade dos mecanismos de controle regularizadores
219
. Trata-se, no dispositivo de segurança,
de estabelecer, no âmbito geral de avaliação de táticas e objetivos, as médias ideais e os limites, as
margens aceitáveis de dispersão das singularidades, em relação a essas médias. Se o mecanismo
jurídico trabalha na lógica bipolar, legítimo-ilegítimo, o dispositivo de segurança, próprio à
biopolítica, trabalha com uma distribuição ideal do aleatório no interior de uma margem de
tolerância; “ao invés de instaurar uma partilha binária entre o permitido e o proibido, fixa-se uma
218
STP, 31.
219
Sobre o aspecto da população como ‘público’ (le public), cf. STP, 77. Vimos, no primeiro capítulo, como Foucault
salienta a importância da opino pública em uma das mobilizações do político. Porém, a meu ver, Foucault jamais
deu à gestão da opinião pública um tratamento à altura de sua importância. Referindo-se a Francis Bacon (1561-
1626), Foucault lembra as duas causas das rebeliões populares: a fome e a opinião; cf. STP, 273. A fome remete à
gestão econômica; a opinião, pode-se dizer, à gestão do espetáculo. Entretanto, como salienta Guy Debord autor
que Foucault insiste em pôr de lado; cf. SEP, 252, e NBQ, 117 –, a gestão da economia e a do espetáculo são a
mesma coisa. O poder espetacular não poderia ser considerado um dispositivo do governo da população? Os
motivos para uma resposta positiva a essa pergunta ficarão mais explícitos, adiante, no desenvolvimento do quinto
capítulo. Cf. DEBORD, Guy. La société du spectacle. 3ª ed. Paris: Gallimard, 1992 [1967].
92
média considerada ótima e fixa-se os limites do aceitável, além dos quais é preciso que não se
passe”
220
.
Foucault toma, como exemplos de tratamento do aleatório, as medidas tomadas pelos
diferentes mecanismos de poder para evitar a penúria, a escassez de grãos, causa direta de
violentas revoltas populares nas cidades. Foucault analisa como dois mecanismos de poder
arquetípicos, o mercantilismo, no início do século XVIII, e a fisiocracia, logo a seguir, em meados
do mesmo século, com suas respectivas tecnologias, procuram dar conta desse fenômeno aleatório
da penúria. “[...] desde os acontecimentos do século XVII, a revolta urbana é, para o governo, a
grande coisa a ser evitada. Calamidade do lado da população, catástrofe, crise, do lado do
governo”
221
. O que é a penúria para os economistas do século XVIII? A penúria é decorrente ou da
fortuna, secas, geadas, excesso de umidade, ou da natureza humana, efeito da avidez e do
egoísmo dos homens; de toda forma, fortuna ou castigo de Deus, a penúria é imprevisível e
incontrolável. A penúria não é como a fome, a falta absoluta e real de grãos, mas uma situação de
escassez decorrente das expectativas de produtores e consumidores. As baixas colheitas provocam
um estado de raridade do grão; a raridade dos grãos faz subir os preços; quanto mais altos os
preços, tanto mais os produtores tendem a estocar os grãos, para esperar que os preços subam
ainda mais e aumentar seus ganhos; o que tenciona circularmente o estado de raridade. A penúria
decorrente das baixas colheitas tende a incidir num círculo vicioso que acentua seus efeitos.
Na luta contra a penúria, o mercantilismo lança mão de táticas a um tempo jurídicas e
disciplinares: medidas de obrigação de cultivo, de vigilância do comércio, de limitação de
exportações, de limitação do direito de estocagem, de limitação também da áreas cultivadas, para
evitar a abundância e a ruína dos cultivadores. Tudo isso, assinala Foucault, com o objetivo
estratégico de “que os grãos sejam vendidos ao mais baixo preço possível”
222
. Como
conseqüências desejadas, esse sistema de imposições força artificialmente para baixo, no mesmo
movimento, os lucros dos camponeses, o preço dos grãos que as pessoas pagam nas cidades e os
salários pagos a essas pessoas. As imposições mercantilistas são, porém, um fracasso. O princípio
mercantilista de controle de preços, para manter a produção de grãos compatível com o consumo,
para evitar tanto a escassez, que eleva os preços dos grãos, como a abundância, que causa a perda
dos camponeses, não funciona. O baixo lucro dos camponeses os coloca numa situação-limite, em
que não margens que lhes permitam semear o suficiente, de tal modo que as mínimas
220
STP, 8.
221
STP, 32.
222
STP, 34
93
oscilações climáticas fazem com que as colheitas fiquem abaixo do necessário e que os períodos
de penúria sejam recorrentes.
A resposta da doutrina fisiocrata ao mercantilismo vai no sentido da liberdade da
produção e da circulação dos grãos – laissez faire, laissez passer. A adoção das medidas propostas
pelos fisiocratas significaram “uma fase de grande mudança nas técnicas de governo”
223
e um dos
elementos do estabelecimento dos dispositivos de segurança. Para os fisiocratas, não se trata de
impedir, de antemão, o aparecimento da penúria por um sistema de intervenções jurídico-
disciplinares, mas de permitir a livre-circulação dos grãos de forma a regularizar o impacto das
oscilações das colheitas. Trata-se de deixar que, pela realidade própria do cultivo dos grãos, das
necessidades no campo e nas cidades, se crie um mecanismo de correções, de compensações,
capazes de amortecer, sem necessariamente eliminar, as oscilações de preço do grão. Essa
abordagem naturalista da história do cultivo do grão, na sua dinâmica própria e real, constitui o
elemento físico da fisiocracia. O objetivo estratégico de base é exatamente o contrário do objetivo
de base no mercantilismo; ao invés de visar ao preço do grão o mais baixo possível, os fisiocratas
aliás, eles são representantes dos nobres, donos da terra – propõem favorecer a elevação dos
preços. Para tanto, algumas medidas iniciais precisam ser tomadas; algumas artificiais, incentivos
à exportação, por um lado, e pressões contrárias sobre a importação, taxando-as, por outro;
algumas liberalizantes, como o fim das restrições à estocagem e o fim da interdição das
exportações. O preço alto tem como conseqüência previsível a extensão das culturas. Enquanto o
baixo preço dos grãos, na política mercantilista, representava um desestímulo para o produtor, na
política fisiocrata, o preço alto se torna um incentivo à produção. Com a liberdade para exportar,
os preços permanecem altos, mesmo quando uma colheita abundante. Os fisiocratas partem do
princípio de que a penúria é uma situação fantasiosa; quer dizer, as colheitas, na realidade, nunca
são totalmente ruins, em todos os lugares, ao mesmo tempo. Mesmo quando a colheita é baixa,
sempre se colhe o suficiente para abastecer o país durante algum tempo, para dez, ou oito meses,
no cômpito do ano. Dessa forma, se as importações são permitidas, logo virão remessas do
exterior para suprir as necessidades. O produtor local, sabendo que a importação pode ocorrer a
qualquer momento, não pensará em estocar seu produto durante muito tempo, sob risco de ter que
vender seu produto a um preço inferior àquele do momento. Os fisiocratas contam com o
comportamento calculável dos produtores locais e dos produtores exportadores de outros países,
223
STP, 36.
94
com “esse elemento de comportamento bem concreto do homo oeconomicus, que deve ser levado
em consideração”
224
.
Para estabelecer o mecanismo de segurança da população, em torno do fenômeno
aleatório da penúria, a fisiocracia não vai combatê-la diretamente, forçando e intervindo na
produção e no comércio. Pelo contrário, ela procura suspender, na medida do possível, as
intervenções, e deixar a realidade mesma da penúria, ao aparecer, ativar, incitar, uma série de
processos compensatórios intrínsecos a essa realidade, os quais vão suavizar seus efeitos mais
graves. Não impedir ou proibir a ocorrência do dano, mas favorecer a formação de um equilíbrio
seguro, obtido por uma série de processos homeostáticos de correção, de retorno ao ponto de
equilíbrio, a partir do momento em que o aleatório se produz. Para o estabelecimento do
mecanismo de segurança em torno da penúria, foi preciso suspender todo o sistema de coações
jurídico-disciplinares, que mascarava a realidade própria ao cultivo dos grãos, foi preciso deixar
subir os preços, deixar que haja abundância ou escassez em certos mercados, para que a realidade
mesma aparecesse, isto é, a realidade de que não escassez de grão efetiva. É essa realidade, à
qual foi dada a liberdade para se desenvolver em seus mecanismos intrínsecos, que vai levar à
auto-regulação da circulação dos grãos e, senão ao fim, pelo menos, ao abrandamento das crises
de alimentos. Trata-se de dar liberdade à realidade do comportamento econômico da população,
para que, nessa liberdade, o sistema como um todo se auto-regule, se autocompense, e as épocas
de penúria sejam mitigadas. Ao invés de procurar inibir diretamente o dano aleatório, o dispositivo
de segurança deixa que ele se manifeste e, para regulá-lo, conta com a liberdade econômica,
fundamental para que o mecanismo funcione. O dispositivo de segurança regula os fenômenos
aleatórios, levando em consideração a iniciativa de produtores e consumidores que, na sua
liberdade, comportam-se, em média, como é esperado. “A liberdade não é outra coisa do que o
correlativo do estabelecimento dos dispositivos de segurança”
225
. A liberdade, sobretudo, não é um
direito ou um privilégio dos indivíduos, mas o que permite de modo mais eficaz, o governo da
população.
(3) Além da questão da circulação e do tratamento do aleatório, o dispositivo de
segurança se distingue também por uma terceira característica sua forma específica de
normalização, diferente do poder soberano e do disciplinar. No mecanismo da soberania, a norma
jurídica, se tomamos a título de exemplo a sua formulação em Kelsen, tem, segundo Bobbio, a
224
STP, 42.
225
STP, 50.
95
seguinte forma: “Se A é, B deve ser onde A indica o comportamento (ilícito) seguido pelos
súditos; e B, a sanção que o juiz deve aplicar”
226
. Gostaríamos de destacar duas características
dessa formulação. Primeiro como assinala Foucault, ao falar de forma geral e não
especificamente da formulação de Kelsen –, a norma jurídica determina o comportamento ilícito, a
lei assere o que não deve ser feito, enquanto tudo aquilo que a lei não proíbe expressamente é
permitido. “No sistema da lei, o que é indeterminado é o que é permitido [...]”
227
. Em segundo
lugar, na formulação de Kelsen, a norma jurídica não se dirige diretamente ao súdito, mas ao
soberano, na figura do juiz. A norma jurídica não diz qual deve ser a ação do súdito, mas
determina a do juiz
228
. O sistema de leis regula diretamente o momento de expressão e a medida
do poder de coação do Estado; e, apenas indiretamente, a atividade social. Por outro lado, a norma
disciplinar visa determinar, nos mínimos detalhes, o que deve ser feito pelos indivíduos
disciplinados. O determinado, no caso da norma disciplinar, é a conduta dos sujeitos, enquanto o
que não deve ser feito permanece indeterminado. O súdito, no mecanismo da soberania, sabe o
que não deve ser feito e, como o sistema de leis não lhe diz o que deve fazer, todo o restante lhe é
permitido. O sujeito disciplinado, pelo contrário, sabe o que deve ser feito, “no sistema de regras
disciplinares – completa Foucault o determinado é o que deve ser feito, e, por conseguinte, todo
o resto, sendo indeterminado, é proibido”. Sendo, em geral, a parte indeterminada da conduta
maior do que a parte determinada, pode-se afirmar que no sistema jurídico o súdito dispõe de um
campo de conduta mais aberto do que o campo de conduta do sujeito disciplinado. A norma
jurídica é categórica a respeito do que não deve ser feito; a norma disciplinar, do que deve ser
feito; já “o dispositivo de segurança, ao contrário, – como vimos no caso da penúria e da
fisiocracia – deixa fazer (laisse faire)”
229
.
Na disciplina, chega-se à norma, a partir da decomposição dos lugares, dos tempos, dos
gestos em elementos sistemáticos, que podem ser examinados, medidos e corrigidos. A disciplina
classifica, agrupa, ordena, aprimora esses elementos em função de objetivos e performances
determinadas, em função de uma majoração contínua dos resultados dos aparelhos disciplinares.
Dessa forma, os critérios que a disciplina estabelece para o recorte entre o normal e o anormal são
226
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Trad. Márcio Pugliesi. São Paulo:
Ícone, 1995 [1960-1961]. Parte XI, cap. IV, §49, p. 194.
227
STP, 48.
228
Nas palavras de Kelsen: “Os destinatários imediatos das normas jurídicas gerais hipotéticas são, por conseguinte,
os indivíduos autorizados e possivelmente também obrigados a ordenar e executar os atos de coação que in
concreto atuam como sanções. KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Trad. José florentino Duarte. Porto
Alegre: Fabris, 1986 [1979]. Cap. 14, p. 64.
229
STP, 47.
96
critérios relativos à possibilidade de disciplinarização dos indivíduos. São considerados anormais
os indisciplináveis. A norma disciplinar está condicionada aos resultados ideais esperados do
aparelho disciplinar, como um todo, e dos seus elementos modulares, em particular. Somente uma
vez essa norma posta, pode-se distinguir o normal do anormal. A norma, na disciplina, é
determinada pelo fim, por isso Foucault vai afirmar, a respeito da disciplina, “o caráter primeiro
da norma em relação ao normal”
230
.
No dispositivo de segurança, a norma funciona segundo um mecanismo diferente.
Foucault, nas lições de 1978, distingue a “normatividade” (normativité) dos comportamentos,
intrínseca ao sistema jurídico, da “normação” (normation) disciplinar, devida à precedência da
norma em relação à normalidade; e reserva o termo ‘normalização’ (normalisation) para o
dispositivo de segurança. Foucault elege, para tratar da forma de normalização específica da
segurança, as técnicas de combate à varíola. A varíola, no início do século XVIII, era uma doença
endêmica com elevado índice de mortalidade: uma a cada oito pessoas no geral da população; “um
fenômeno – releva Foucault – que apresentava também o caráter de surtos epidêmicos muito fortes
e muito intensos
231
. As questões que giram em torno das técnicas de inoculação e de vacinação
são típicas da segurança. Essas técnicas são insólitas para as práticas medicais da época, segundo
Foucault, por quatro motivos. São técnicas preventivas; são técnicas generalizáveis, isto é,
aplicáveis sem grandes dificuldades materiais a toda a população; são técnicas que apresentam um
resultado garantido; e cnicas baseadas em resultados empíricos, sem possuir qualquer
fundamento teórico, pelo menos até que Pasteur publique seus trabalhos de microbiologia, por
volta de 1860. Técnicas insólitas pois as terapias medicinais do século XVIII são em geral
curativas, de aplicabilidade restrita, incertas e alinhadas a alguma forma de saber medical.
Apesar de estranhas à prática medical, a inoculação e a vacinação encontraram, segundo
Foucault, dois suportes que tornaram possível sua aplicação. Em primeiro lugar, “um suporte
[teórico] matemático, que foi ao mesmo tempo uma espécie de agente de integração, no interior
dos campos de racionalidade aceitáveis e aceitados na época”. Esse suporte matemático era o
estudo das probabilidades e a estatística. O segundo suporte era constituído pela incorporação de
técnicas semelhantes aplicadas, com sucesso, em outros domínios da segurança, como àquelas
aplicadas a questão da penúria. A inoculação e a vacinação eram semelhantes ao tratamento da
questão aleatória da escassez de grãos nisso que, ao invés de combater diretamente a doença,
excluindo os doentes, como o mecanismo de tipo soberano fazia com os leprosos, ou isolando-os,
230
STP, 59.
231
STP, 60.
97
contabilizando-se um a um, como procedia o mecanismo disciplinar nas epidemias de cólera, elas,
muito pelo contrário, induziam por inoculação a doença. A técnica de variolização consistia em
inocular, nos indivíduos, o próprio agente que produzia a doença, mas de tal forma que essa
primeira doença, artificialmente produzida, os protegia de futuros ataques. Um técnica que, como
as propostas fisiocratas de combate à penúria, deixava os elementos da realidade regularem-se por
si mesmos.
Em seu modo de análise da varíola, a segurança parte de um dado natural, a distribuição
endêmica dos casos da doença, no todo da população. E é essa curva de distribuição, fora das
épocas de crise, que ela considera normal. A partir daí, procura, segmentando a população em
relação a diferentes aspectos, regiões, faixas etárias, gêneros, situações econômicas, desencaixar,
uns dos outros, aqueles riscos diferenciados presentes na situação normal, as diferentes curvas de
normalidade da população. “Vamos ter a curva normal, global, as diferentes curvas consideradas
normais, e a técnica vai consistir em quê? Em tentar rebater as normalidades mais desfavoráveis,
as mais desviantes em relação à curva normal, geral, rebatê-las sobre esta curva normal, geral”
232
.
Trata-se de, uma vez estabelecida a normalidade, identificar as zonas de alto risco, de perigo, e de
tentar fazer com que essas curvas desfavoráveis se aproximem da curva global. “A norma [da
segurança] é um jogo no interior de normalidades diferenciais. É o normal que é primeiro, e a
norma se deduz disso [...]”
233
.
(4) Outra característica do dispositivo de segurança é a sua correlação com a população.
No século XVIII, a população torna-se o correlativo das técnicas e das práticas de governo, “um
personagem político absolutamente novo acredita Foucault que não havia existido, que o
havia sido percebido, reconhecido de algum modo, recortado até então”
234
.
Para o pensamento mercantilista, o número de habitantes, seja qual for o termo que o
expresse, aparece como um elemento fundamental, como força produtiva que é a base sobre a qual
se constitui a riqueza de um Estado. Uma população numerosa representa braços numerosos nos
campos, nas manufaturas e para produzir tudo aquilo que um Estado necessita. Além disso, com a
232
STP, 64.
233
STP, 65.
234
STP, 69. Segundo Senellart, a primeira ocorrência do termo ‘população’, em inglês, se situa no Political
Discourses de Hume, de 1751. O termo está ausente na primeira edição de Essai sur la police générale des grains
de Cl.-J. Herbert, datada de 1753, mas aparece na segunda edição, de 1755. Cf. SENELLART, Michel. Nota 13.
In: STP, 83. Nos primórdios da reflexão política referente à razão de Estado, isto é, no final do século XVI, o
termo ‘população’, embora sugerido, es ausente; cf. STP, 283. no texto de Von Justi (1756), referente à
Polizeiwissenschaft, a população aparece como “o verdadeiro objeto da polícia”; cf. Omnes et singulatim. Texto
291 [1979]. In: DE2, 979.
98
competição acirrada, os salários serão baixos. Com os salários baixos, os preços das mercadorias
serão baixos, o que propicia novas oportunidades para a exportação. Reduzir as importações e
aumentar as exportações, garantias do crescimento da potência do Estado, dependem do aumento
da população. “[...] a população como força produtiva, no sentido estrito do termo, era essa a
preocupação do mercantilismo”. Mas tudo isso, com uma condição, “que essa população seja
efetivamente treinada, repartida, distribuída, fixada, segundo mecanismos disciplinares
235
.
Com os fisiocratas, a noção de população tem novo desdobramento. Em relação aos
mercantilistas, assinala Foucault, eles são mesmo considerados “antipopulacionistas”. De fato,
porém, para os fisiocratas, o aumento da população não é um dado primeiro para o aumento da
potência do Estado. A população só cresce se dispõe das possibilidades de subsistência para tanto;
a população não é um dado primeiro, posicionado na origem de uma rie de efeitos, mas é ela
mesma dependente de um jogo de fatores condicionantes, como o clima, a disponibilidade das
subsistências, a intensidade da atividade comercial, a circulação das riquezas, as leis, os costumes,
os valores morais e religiosos. O crescimento da população não é, nem pode ser, o efeito de uma
vontade, de uma decisão do soberano, mas é um fenômeno natural condicionado por uma série de
variáveis que precisam estar ajustadas a seu crescimento. “Um fenômeno da natureza que não se
pode mudar por decreto, o que não quer dizer, entretanto, que a população seja uma natureza
inacessível e impenetrável, muito pelo contrário”
236
. A partir da metade do século XVIII, a
população vai ser considerada “como um conjunto de processos que é preciso gerir naquilo que
eles têm de natural e a partir disso que eles têm de natural”
237
.
Foucault vai ressaltar, então, três peculiaridades dessa naturalidade da população. A
primeira é o fato de a população ser, em seu número, controlável, manipulável, não diretamente,
mas indiretamente pela manipulação daquelas variáveis que a condicionam, pela manipulação
dessas “[...] coisas aparentemente afastadas da população, mas das quais se sabe, pelo cálculo,
pela análise e pela reflexão, que elas podem efetivamente agir sobre a população”.
O segundo ponto de destaque da naturalidade da população é o fato de ela dispor de um
único motor de ação. Um único motor da ação origem a uma multiplicidade de ações
individuais o desejo. O desejo dos indivíduos os faz agir na direção de seus próprios interesses.
“O desejo é a procura do interesse para o indivíduo”
238
. Mas a naturalidade desse desejo é tal que,
deixado a si, apesar dos interesses individuais disparates, na sua soma, no nível abrangente da
235
STP, 71.
236
STP, 73.
237
STP, 72.
238
STP, 75.
99
população, produz-se algo que é interessante globalmente, algo que vai no sentido do interesse
coletivo. De nada adianta tentar ir contra esse desejo. Fazer com que os indivíduos ajam na
direção contrária a seu desejo é um desperdício de força infrutífero, pois vai contra a sua natureza.
Para o pensamento tanto dos fisiocratas como dos economistas utilitaristas da segunda metade do
século XVIII, a naturalidade da população é penetrável às técnicas de governo, somente enquanto
esse desejo é manipulável, mas não contrariado. “Produção do interesse coletivo pelo jogo do
desejo: isso é o que marca de um vez a naturalidade da população e a artificialidade possível
dos meios disponíveis para gerenciá-la”
239
. Isso é o que caracteriza a mudança radical do exercício
da soberania para as novas técnicas de governo. O soberano era aquele capaz de dizer não ao
desejo dos indivíduos, e o problema teórico era como avaliar ou como defender a legitimidade
desse não; com as novas técnicas de segurança, trata-se, pelo contrário de favorecer a
manifestação do desejo individual, de permitir que os indivíduos busquem seus interesses egoístas,
que no cômpito geral, esses interesses dispersos produzem, por uma rie de efeitos articulados
entre si, o interesse coletivo. Nisso, nessa concepção de um vínculo entre desejo individual e
interesse coletivo se encontra a matriz de toda uma filosofia utilitarista, “a filosofia utilitarista foi
o instrumento teórico que atendeu a essa novidade que foi nessa época o governo das
populações”
240
.
A terceira peculiariedade é a constatação de que, apesar do caráter acidental dos eventos
individuais, a população se constitui de tal forma que, no seu todo, apresenta uma constância dos
fenômenos com ela relacionados. Taxas de mortalidade, curvas de morbidade, índices de
natalidade apresentam relações, até certo ponto, regulares em função das variáveis condicionantes.
A naturalidade da população “aparece na constância dos fenômenos dos quais se poderia esperar
que fossem variáveis, pois dependem de acidentes, de acasos, de condutas individuais, de causas
conjunturais”
241
. Desordem e irregularidade no nível dos indivíduos, constância e regularidade no
nível da população. O princípio geral baseia-se na suposição naturalista de que a curva de
distribuição de um fenômeno aleatório qualquer, como a mortalidade ou a incidência de uma
doença, determinável a partir de uma amostra reduzida, mas representativa da população, pode ser
transposta para parcelas distintas ou mais abrangentes da população. A mesma curva de
distribuição, que vale para descrever as probabilidades de ocorrência de um fenômeno em uma
239
STP, 75. Em as As palavras e as coisas, Foucault afirma que, apesar de sua adversidade, os fisiocratas,
representantes da nobreza fundiária, e os utilitaristas, representantes dos comerciantes e dos empresários,
pertencem arqueologicamente à mesma “disposição geral” do saber. Cf. MTC, 209.
240
STP, 76.
241
STP, 76
100
pequena amostra, deve valer para a população como um todo, a não ser que algum fator seja causa
de variações. De tal forma que, para os fenômenos referentes a uma população, o incerto e o
imprevisível, no nível das singularidades, atinge um certo grau de certeza e probabilidade no nível
do conjunto, da totalidade, da espécie. Se o podemos captar as leis que permitem prognosticar
os acontecimentos, no nível das singularidades, o dispositivo de segurança procura as leis que
permitem agrupá-los, ordená-los e prevê-los, no nível do conjunto. Se não é possível produzir a lei
de prognóstico da manifestação singular do perigo, da ameaça à segurança, pode-se produzir a
curva estatística que determina a probabilidade de sua ocorrência; a exatidão se transforma em
chance.
Portanto, na correlação com a população, a política não se ocupa dos indivíduos. O
que conta para o mecanismo de segurança é a garantia da vida da população como um todo e não
a garantia da vida de cada indivíduo isoladamente. Prova disso, a fisiocracia, para estabelecer seu
mecanismo homeostático de regulação da penúria, conta positivamente com os casos individuais
de fome. “[...] não havemais penúria em geral, com a condição de que, para toda uma série de
pessoas, em toda uma série de mercados, haja sim uma certa raridade, uma certa elevação dos
preços, uma certa dificuldade a comprar o trigo, uma certa fome, por conseguinte, e afinal pode
ser que alguns morram de fome”
242
. O suprimento geral, no nível da população, é garantido
mediante a ocorrência pontual da escassez. É essa ocorrência pontual que desperta, com maior
eficacidade, os mecanismos reguladores. No dispositivo de segurança, a garantia da vida da
população é assegurada pelos casos isolados de morte dos indivíduos. Não se trata, para o
fisiocrata, de criar os mecanismos de segurança que impeçam que todos os membros da população
passem fome, ou até mesmo pereçam de fome. De modo semelhante, no caso da varíola, a
inoculação, apesar das controvérsias, pois o próprio fato da inoculação era responsável por um
certo número de óbitos, torna-se aceitável, a partir de um certo cálculo, que demonstra as suas
vantagens, em termos globais, apesar das desvantagens em termos individuais
243
. A questão da
vida e da morte individual entra em consideração em um cálculo que visa, em geral, favorecer a
vida da população como um todo. A vida individual não é, de modo algum, um absoluto para o
dispositivo de segurança. A morte individual, por fome ou por inoculação, é um fenômeno
aleatório, que o dispositivo de segurança tende a aceitar, a partir de um cálculo de utilidades, em
242
STP, 43.
243
Em sua tese de doutorado em medicina, que Foucault conhecia, Anne-Marie Moulin, destaca que, em 1760, as
estatísticas do matemático Bernoulli eram a única justificativa teórica da inoculação. Segundo Moulin, Bernoulli
demonstra que, “se adotada, a inoculação resulta em um ganho de vários milhares de pessoas para a sociedade
civil; mesmo se ela é mortal, pois ela mata as crianças no berço, ela é preferível à varíola que faz perecer os
adultos úteis à sociedade”. Citado por SENELLART, Michel. Nota 8. In: STP, 83.
101
vista de um bem maior: a segurança da população em seu aspecto global. No dispositivo de
segurança, a população, e não os indivíduos, aparece como correlato apropriado da ação do
governo. “Esse nível de pertinência para a ação do governo – ensina Foucault – não é a totalidade
efetiva, ponto por ponto, dos sujeitos, mas a população com seus fenômenos e seus processos
próprios”
244
.
Da análise destas quatro características do mecanismo biopolítico, duas figuras se
destacam: a multiplicidade e o meio. A multiplicidade não é uma qualquer. Como parte do
mecanismo biopolítico, ela obedece a duas condições complementares: ela é constituída por um
conjunto de elementos aleatórios; mas esse conjunto não se implementa por mero acúmulo de
unidades díspares na sua essência, vige um princípio que reúne essas singularidades. Por um
lado, os elementos individuais são apreendidos pelas engrenagens do mecanismo enquanto
totalidade, pois em si mesmas essas singularidades são imprevisíveis, praticamente incontroláveis
e anômalas. O mecanismo biopolítico não opera com singularidades, mas com o conjunto dessas
singularidades, com o múltiplo enquanto múltiplo. Só é possível a apreensão dessas singularidades
aleatórias, mediante a aplicação da estatística. A singularidade aleatória encontra sua
regularidade em termos probabilísticos, que não se referem propriamente ao elemento singular,
mas ao conjunto. É somente pela possibilidade de seu enfeixamento num conjunto normalizado
probabilisticamente, que as singularidades são apreendidas no mecanismo biopolítico. Por outro
lado – segunda condição imbricada na primeira –, deve haver um princípio que rege a comunidade
das singularidades. Esse princípio, necessariamente presente na multiplicidade biopolítica, permite
a reunião coerente de singularidades. O conjunto relativo ao mecanismo biopolítico não é uma
mera coleção de unidades, mas um múltiplo cuja formação é regida por um princípio. Esse
princípio de reunião do conjunto permite estabelecer a naturalidade que atribui coerência
probabilística à multiplicidade, a naturalidade que fundamento lógico para o salto entre
parcelas diferentes do conjunto e para o salto da amostra para a totalidade.
O que significa essa naturalidade do múltiplo, cuja essência é o seu próprio princípio
de reunião? E que sentido podemos falar de uma multiplicidade natural? O princípio de reunião de
uma multiplicidade biopolítica é, ao mesmo tempo, um princípio operacional, portanto correlativo
a uma prática, e um princípio de inteligibilidade, portanto correlativo a um saber. Imbuídos do
244
STP, 68. Hannah Arendt faz uma análise da relão do Estado moderno com a vida da população, que de certa
forma acompanha a de Foucault. Segundo Arendt, na modernidade, o enfraquecimento da fé no Deus cristão
reforça, paradoxalmente, um dos princípios do cristianismo: a sacrossantidade da vida, mas não exatamente da
vida individual; “[...] a única coisa que podia ser considerada potencialmente imortal, tão imortal quanto fora o
corpo político na antigüidade ou a vida individual na Idade Média, era a própria vida, isto é, o processo vital,
possivelmente eterno, da espécie humana”. ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. 10
ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001 [1958]. P. 334.
102
espírito analítico nominalista de Foucault, é preciso afirmar que esse princípio de reunião obtém
sua naturalidade da facticidade dessas correlações, e não de uma alguma essência anterior a essas
práticas e saberes, por isso, o princípio de reunião remete a uma situação histórica. A
multiplicidade é capturada pelos mecanismos da biopolítica a partir de sua naturalidade, que serve
a esses mecanismos como princípio de inteligibilidade e operacionalidade. A naturalidade do
múltiplo, imanente às práticas biopolíticas, permite a formulação das leis que tornam previsíveis e
reguláveis o comportamento médio, a tendência geral, a reação, não das singularidades, mas da
totalidade do múltiplo enquanto múltiplo. Como se referem a uma naturalidade, essas leis são
consideradas, pelo saber biopolítico, como leis naturais.
A segunda figura da biopolítica é o meio. O meio e o múltiplo enquanto múltiplo são
as duas figuras da biopolítica; ambas compartilham as singularidades aleatórias. Se, por um lado, o
acontecimento singular aleatório é reunido no interior de um conjunto, conforme um princípio de
reunião natural, por outro, ele deve inscrever-se num espaço que lhe sirva de suporte ontológico
e esse espaço é o meio. O meio é o substrato de ocorrência e de circulação dos acontecimentos
singulares; é o que permite relacionar as singularidades, distantes umas das outras. O meio é, a um
tempo, a condição de possibilidade existencial das singularidades e a condição de possibilidade
operacional e lógica de reunião dessas singularidades num múltiplo natural. As duas figuras do
mecanismo biopolítico, por compartilharem, cada uma ao seu modo, os mesmos acontecimentos
singulares, a figura do múltiplo reunindo-os em si mediante um princípio natural, a figura do
meio servindo de suporte para sua existência –, estas duas figuras compartilham também de uma
naturalidade comum. Meio e multiplicidade compartilham uma mesma natureza. De tal forma, que
o meio é o que assegura a determinabilidade estatística do múltiplo. De tal forma, também, que as
mudanças no meio produzem mudanças calculáveis no nível da multiplicidade, embora
imprevisíveis no nível das singularidades. Entre meio e multiplicidade se estabelece uma relação
de causalidade. O meio é causa determinante dos estados da multiplicidade. A regularização da
multiplicidade, o alcance de um equilíbrio homeostático do múltiplo enquanto múltiplo, objetivo
do mecanismo biopolítico, só pode ser atingido mediante uma ão sobre o meio, fundada em uma
ciência de tipo natural das relações causais entre o meio e o múltiplo. Essa ciência se baseia no
recorte do meio em variáveis relevantes, cuja variação e tendência de variação produzam
variações e tendências de variação estatisticamente codificáveis no nível do múltiplo. A ciência
biopolítica – seja ela medicina da saúde pública, genética humana, demografia, darwinismo social,
ciência da opinião pública, ciência social, ciência política, ciência econômica, ou tantas outras –,
tem como objeto os efeitos de massa produzidos, no múltiplo, por variações do meio.
103
***
Para encerrar o capítulo, acho interessante reforçar algumas questões terminológicas
pertinentes às noções de biopoder e biopolítica. O dispositivo de segurança, em Sécurité, territoire
et population, aparece como o mais recente avatar da biopolítica, e sua dependência em relação à
disciplina é consideravelmente menor. No dispositivo de sexualidade, como vimos no capítulo
anterior, biopolítica e disciplina aparecem intimamente conectadas em torno do sexo, como
biopoder. Em A vontade de saber, o biopoder é o entrelaçamento, que se realiza no século XIX,
entre a tecnologia de poder sobre os corpos individuais, a anátomo-política, a disciplina, e a
tecnologia de poder sobre a vida da população, a biopolítica. Esse entrelaçamento se fará “[...] na
forma de agenciamentos concretos que constituirão a grande tecnologia do poder no século XIX: o
dispositivo de sexualidade se um deles, e um dos mais importantes”
245
. Contudo, se
acompanharmos as duas únicas ocorrências do termo ‘biopoder’, nas lições de 1978, veremos que
Foucault o utiliza como sinônimo de ‘biopolítica’. Logo no início do curso, na sua primeira frase,
Foucault situa o seu objeto de estudos. “Este ano, eu gostaria de começar o estudo de algo que eu
havia nomeado, assim um pouco vagamente, o biopoder”. Biopoder que Foucault, na seqüência,
vai definir do seguinte modo: “o conjunto de mecanismos pelos quais isso que, na espécie
humana, constitui seus traços biológicos fundamentais, vai poder entrar no interior de uma
política, de uma estratégia política, de uma estratégia geral de poder; dito de outro modo, como a
sociedade, as sociedades ocidentais modernas, a partir do século XVIII, retomaram em conta o
fato biológico fundamental de que o ser humano constitui uma espécie humana”
246
. Ora, essa é
uma definição que se aplica perfeitamente ao termo ‘biopolítica’. Por exemplo, em A vontade de
saber, Foucault afirma, e isso é uma definição, que seria preciso falar de uma biopolítica’, para
designar o que faz entrar a vida e seus mecanismos no domínio de cálculos explícitos e faz do
poder-saber um agente de transformação da vida humana”
247
. No curso de 1978, a segunda e
última ocorrência é a seguinte: “[...] o primeiro grande teórico e Foucault refere-se aqui a
Moheau, autor de Recherches et considérations sur la population (1778) daquilo que
poderíamos chamar de biopolítica, biopoder”
248
. Ou seja, também nesse alinhamento dos termos
na frase, biopolítica e biopoder se equivalem indistintamente.
245
VSR, 185.
246
STP, 3.
247
VSR, 188.
248
STP, 23.
104
Esse deslocamento de significado não surpreende os leitores de Foucault. Os termos, as
definições, as noções, em Foucault, jamais adquirem um significado fixo, imóvel e ele é muitas
vezes criticado por isso. Essa flutuação, essa instabilidade dos significados, dos usos dos termos,
faz parte de um tipo de pensamento que não se conforma a uma sistematização absoluta. No
sistema, todos os conceitos ocupam um valor semântico invarvel, sem que sua componibilidade
possa constituir, de modo algum, dois juízos válidos em contradição interna. O pensamento
sistemático é uma arquitetura de conceitos, uma arquitetura, digamos, erguida em espaço
euclidiano, em que a simetria, a isotropia permite a reprodução idêntica e infinita da experiência
de pensamento.
O pensamento de Foucault, entretanto, constrói-se a partir de uma topologia não
euclidiana, um pouco como aquelas dos desenhos de Escher, uma topologia em que cada
experiência de pensamento é única e apenas parcialmente reprodutível. Na sua reconstrução, um
caminho, nessa topologia, sempre leva a um outro ponto, inesperável, em que as noções
apresentam significados levemente deslocados, mas não realmente distintos. A significação está
mais vinculada à singularidade de uma situação determinada do que ao já dito, ao já pensado. Nos
desenhos de Escher talvez seja fácil perceber o local em que a ‘ilusão’ se produz, o ponto de
inversão que nos remete a uma outra ordem do espaço. Pode-se, talvez, apontar o lance de escada,
a coluna retorcida, cujo sombreamento ambíguo, cujo apoio inusitado, inverte a relação de
horizontalidade e verticalidade entre os planos e ‘explica’ a aberração que faz o mais alto coincidir
com o mais baixo, a direita com a esquerda, o bidimensional com o tridimensional. Mas
considerar esse ponto como ilusão, como truque, como passe de mágica, é posicionar-se, desde o
início, em um espaço, em uma forma de percepção, a que se atribui uma prerrogativa. É essa
qualidade do ponto de inversão escheriano que pode ser horizontal, que pode ser vertical, que é
ambos, ora um ora outro – o que permite a construção de um palácio que figure a complexidade da
percepção e do pensamento, que em sua errância voltas sobre si mesmo, cruza-se em direções
aparentemente opostas, avança sem realmente sair do lugar.
“Mas o que é então a atividade filosófica pergunta Foucault senão o trabalho crítico
do pensamento sobre si mesmo?”
249
. Os pontos de inversão ou de ambivalência, nos textos de
Foucault, não remetem exatamente a contradições, mas a incongrncias, a incompatibilidades, a
excessos e faltas na comparação das definições, feitas em lugares diferentes, do mesmo termo.
Não conseguiremos traçar um arco-íris conceitual sobre a obra de Foucault. Aliás, por isso, se é
249
UDP, 16.
105
forçado adotar uma abordagem genética, a mais próxima possível da ‘aspereza das palavras’, para
tratar da biopolítica
250
.
Dessa forma, como vimos, em um lugar, ‘biopoder’ significa mais do que ‘biopolítica’,
em outro, significa o mesmo. Em um momento, ‘biopoder’ é o todo do qual ‘biopolíticaé uma
parte, em outro, os dois termos coincidem. Mas gostaria de tomar a redução do significado de
‘biopoder’, que o torna um sinônimo de ‘biopolítica’, como sinal do ganho de importância da
biopolítica, em relação à disciplina, quando Foucault esboça a análise de nossas sociedades como
“sociedades de segurança”. Estamos diante de uma ambigüidade, de um ponto possível de
inversão, que nos permite passar a um outro estágio do pensamento de Foucault, em seu esforço
renovado para conceber uma grade de inteligibilidade que permita apreender o que nos es
acontecendo.
Em uma das figuras possíveis da metonímia, a parte assume o mesmo significado do
todo. Isso se dá, por exemplo, quando fazemos uso da palavra homem’ para designar o conjunto
dos seres humanos, sejam homens ou mulheres. Ao utilizarmos ‘homem’ como metonímia para
‘ser humano’, fazemos elisão de uma das partes ‘mulher’. É isso o que acontece, mas de forma
invertida, quando Foucault faz o termo ‘biopoder’ equivaler a ‘biopolítica’; nesse caso, o termo
geral passa a ter o mesmo significado que o termo parcial, e há elisão de uma parte, a ‘disciplina’.
A elisão da disciplina representa uma redução de sua relevância no biopoder contemporâneo. No
final do século XX, já não é viável pensar a sociedade sequer como projeto de “sociedade
disciplinar”. “A disciplina – afirma Foucault, em uma entrevista de 1978 –, que era tão eficaz para
manter o poder, perdeu uma parte de sua eficacidade. Nos países industrializados, as disciplinas
entram em crise”
251
. O ideal de uma sociedade completamente disciplinarizada, o “sonho militar
da sociedade”
252
, as disciplinas como mecanismo de poder aplicado em todas as esferas do corpo
social, nunca se realizou plenamente. No século XX, o aumento das populações, a concentração
urbana, as migrões, as transformações do capitalismo, a globalização, tensionaram as estruturas
cristalizadas das sociedades disciplinares. O poder disciplinar, ao operar a individualidade, ao
250
Podemos ler o livro de Beatriz Han, como a tentativa de estabelecer um rol de noções e definições ambíguas nos
textos de Foucault. Han, apesar de concentrar-se no modo como Foucault problematiza o sujeito, persegue, nessa
linguagem, diversos outros pontos de incoerência. Han encontra, no “corpus foucauldiano, várias definições
incongruentes para a priori histórico’, para arquivo’, para ‘problematização’, para acontecimento’, para
‘assujeitamento’, para ‘pensamento’ etc. De fato, ao ler Foucault, do modo como o faz Han, ficamos com a
impressão de que, se a produção de Foucault chega a formar um corpus, esse corpus é um tanto bizarro, disforme
e fracassado.
Talvez, entretanto, o que fracassa é o desejo de sistematicidade posto como critério para se avaliar
um pensamento que percorre sempre novos caminhos, dependentes do relevo que encontram. HAN, Béatrice.
L’ontologie manquée de Michel Foucault. Grenoble: Jérôme Millon, 1998.
251
FOUCAULT, Michel. La société disciplinaire en crise. Texto 231 [1978]. In: DE2, 532.
252
SEP, 198.
106
reconduzir o múltiplo às suas figuras individuais, tem dificuldades de incluir a totalidade das
populações nas redes do seu poder, além de se constituir como obstáculo à necessidade estratégica
do capitalismo contemporâneo, necessidade de fluidez crescente da mão-de-obra, da mercadoria,
dos recursos naturais disponíveis e dos capitais
253
. A crise das instituições representa a falência do
modelo disciplinar. Certamente não de modo completo. Não se abandona tão facilmente uma
técnica tão eficaz. Quando se fala de crise da disciplina, entende-se não o seu desaparecimento,
mas o fim do ideal de supremacia dos mecanismos de poder com a forma da disciplina. Novos
mecanismos de poder se tornaram mais eficazes, justamente aqueles que perfazem os dispositivos
de segurança. A arte de governo das populações, os mecanismos de poder que visam a garantir a
segurança, as ciências humanas que estudam as relações de causalidade entre meio e população,
não se baseiam mais em instituições disciplinares, no tratamento da multiplicidade a partir das
individualidades, mas desenvolvem técnicas próprias de cunho estatístico para a abordagem do
múltiplo enquanto múltiplo. Os mecanismos de segurança não são pertinentes apenas a Estados
nacionais, várias instituições supra-nacionais são biopolíticas, desenvolvem suas operações a
partir de estudos estatísticos, a partir de programas em vel mundial, lastreados numa pretensa
naturalidade das populações.
253
“Nós estamos escreve Deleuze, em 1990 em uma crise generalizada de todos os meios de encerramento,
prisão, hospital, usina, escola, família. A família é um ‘interior’ em crise como qualquer outro interior, escolar,
professional etc.”. Segundo Deleuze, as tecnologias de controle atuais não encerram os indivíduos; elas lhes
conferem uma senha de passe, a qual lhes permite fluir, ou não, entre zoneamentos, aceder, ou não, a créditos, a
informações, a territórios. Não se trata mais de encerrar, mas controlar os fluxos, os acessos. Isso corresponde a
uma profunda “mutação do capitalismo”. Não experimentamos mais, como no século XIX, um capitalismo de
produção e de propriedade, mas um capitalismo do fluxo financeiro, dos bancos, da venda de serviços, de
aquisição de ações. Não mais um capitalismo das fábricas, mas um capitalismo das montadoras de peças, cuja
origem é diversa e mutante. Não mais um capitalismo de concentração, mas de dispersão. Essa mutação do
capitalismo aprofunda a miséria no mundo e torna irrealizável o sonho de disciplinar as massas de excluídos.
DELEUZE, Gilles. Post-scriptum sur les sociétés de contrôle. In: Pourparlers. Paris: Minuit, 1990. Pp. 229-247.
107
V. O governo segundo a racionalidade econômica
Poderíamos ter-nos limitado e, ao mesmo tempo, ter limitado o conteúdo dessa
dissertação aos temas abordados nos quatro primeiros capítulos. Afinal, saúde, raça, sexualidade
e suscetibilidade ao perigo parecem englobar toda a naturalidade biológica da população e, assim,
tudo o que faz referência à biopolítica. Entretanto, na descrição do dispositivo de segurança,
vimos como o desejo do interesse” foi pensado, pelos fisiocratas, como uma característica natural
do sujeito, elemento da população. Esse desejo, ligado a um interesse, é entendido como o
operador natural, mas também como o fundamento de inteligibilidade, de toda uma série de
relações que se estabelecem entre os seres humanos vivos, relações de troca de bens e de trabalho,
intermediadas pela moeda. Âmbito em que o valor desses bens e desse trabalho é medido pelo
preço e pelo salário. Esse desejo e esse interesse de cunho econômico são concebidos como o fio
que costura, que põe em relação, na sua coexistência, os homens uns com os outros, formando
assim um todo, natural e inteligível, a população. O interesse não é propriamente um operador
biológico, como o sangue ou o sexo, mas, do mesmo modo que estes, o interesse é investido como
determinante de uma natureza humana. Dessa forma, ao lado das características biológicas as
taxas de morbidade, de natalidade, de mortalidade, os traços raciais – a população encerra, desde o
século XVIII, também uma característica que a remete ao econômico.
Como vimos, nos quatro primeiros capítulos, a população é governável, enquanto sua
saúde é objeto para um poder medical, enquanto a purificação de sua raça é o objeto de uma
mecânica de guerra, enquanto seu sexo é a protuberância à qual se agarra um dispositivo de
sexualidade, enquanto sua predisposição ao dano é o correlativo de um dispositivo de segurança.
Se aceitamos que a população é governável somente enquanto dispõe de uma materialidade sobre
a qual uma biopolítica pode tomar forma, então, nossa intenção, nesse quinto capítulo, é
apresentar o interesse econômico, como mais uma materialidade constitutiva da população, que a
torna suscetível a uma forma específica de governo: o “governo econômico” (gouvernement
108
économique)
254
. Nossa intenção é mostrar como o texto de Foucault nos autoriza, de alguma
forma, a afirmar que o governo econômico é uma biopolítica. De alguma forma? Sim, de alguma
forma, pois, afirmar isto, desperta algumas dificuldades. De fato, Foucault jamais escreveu ou
afirmou expressamente que o governo econômico é uma biopolítica. O que, conforme o espírito
conservador que orienta esta dissertação, colocaria a razão da existência deste quinto capítulo
sob suspeita. Porém, Foucault vai ser explícito ao afirmar que poderemos entender a
biopolítica, quando entendermos o que foi e o que é o governo econômico, o liberalismo:
“somente uma vez que soubermos o que foi esse regime governamental chamado liberalismo, é
que poderemos – assim parece a Foucault – apreender o que é a biopolítica”
255
.
Trata-se, para Foucault, de estudar, então, o regime governamental próprio ao
liberalismo, como contexto geral no qual a biopolítica toma forma. Para entendermos o que
Foucault quis dizer com isto, precisamos investigar: (1) o que é um “regime governamental” e (2)
o que é o “liberalismo”, para depois (3) responder por que, e em que medida, o liberalismo nos
permite apreender a biopolítica. O primeiro ponto remete às questões de governo, aos termos:
‘razão governamental’ (raison gouvernementale), ‘governamentalidade’ (gouvernementalité)
problemática que emerge na quarta lição do curso de 1978, Sécurité, territoire et population, curso
ao qual, segundo Foucault, um outro título corresponderia mais exatamente Uma história da
governamentalidade
256
. Enquanto, praticamente, todo o curso de 1979, Naissance de la
biopolitique, é dedicado ao segundo ponto, ao estudo do liberalismo ou da governamentalidade
liberal e neoliberal.
(1) O termo ‘regime’, em Foucault, está associado à sua concepção de verdade. A
expressão ‘regime de verdade’ designa as condições e as regras segundo as quais, em uma
sociedade, os discursos podem ser ditos verdadeiros ou falsos. O regime de verdade é o arcabouço
de instituições e de práticas institucionalizadas que, a partir de sua grade de inteligibilidade
própria, isto é, a partir de seus critérios inerentes de aceitabilidade dos enunciados, fixam as
254
A expressão ‘governo econômico’ é utilizada pelo fisiocrata Quesnay (1757), para designar não o governo que se
faz com poucas despesas, mas o governo que respeita os princípios de uma realidade econômica. Foucault
reconhece o caráter redundante da expressão, que economia significava, ainda no século XVI, o governo da
casa, da família, a gestão dos bens e dos indivíduos de um domínio, pelo patriarca. Entretanto, quando Quesnay
utiliza a expressão, a palavra ‘economia’ já tem um significado moderno. “A palavra ‘economia’ designava uma
forma de governo, no culo XVI; ela designará, no século XVIII, um nível de realidade, um campo de
intervenção para o governo [...]”. STP, 99.
255
NBQ, 24.
256
Cf. STP, 111.
109
condições e estabelecem as regras de referência dos discursos à verdade. O regime de verdade está
ligado às articulações circulares entre poder e saber.
“Toda sociedade possui seu regime de verdade, sua política geral da verdade: quer
dizer, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os
mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros ou
falsos, a maneira pela qual uns e outros são sancionados; as técnicas e os
procedimentos que são valorizados para a obteão da verdade; o estatuto daqueles
que se encarregam de dizer o que funciona como verdade”
257
.
Quando Foucault afirma que toda sociedade possui seu regime de verdade, isso não quer
dizer que esse regime seja algo como uma estrutura social. Foucault faz a opção de reconhecer,
nas noções que desenvolve, apenas o seu estatuto analítico, epistemológico, e não o ontológico.
Por isso, insiste em repetir, por exemplo, que o poder não é uma substância, que não se trata de
dizer o que é o poder, mas de estabelecer um instrumental analítico que permita descrever as
formas como ele é exercido, que os mecanismos de poder são uma forma de inteligir, de tornar, ao
menos parcialmente, acessíveis à inteligência os acontecimentos e os seus efeitos de poder e de
verdade sobre nossas vidas
258
. Nesse sentido, decifrar o regime governamental de uma sociedade é
desenvolver uma grade de noções, a partir da qual, o mecanismo estatal de governo, com seus
procedimentos baseados em certos critérios de verdade, possa ser inteligido. Partindo da noção de
regime e de sua remissão à questão da verdade, podemos entender o regime governamental como
o regime de verdade próprio, não a uma sociedade no seu todo, mas à prática específica de
governo, ao tipo de relações de poder estabelecidas entre Estado e população. Portanto, o regime
governamental esligado ao tipo de racionalidade governamental de uma determinada técnica de
governo, está ligado, enfim, ao que Foucault chama de ‘governamentalidade’. Dessa forma,
precisamos entender o que foi e ainda é a governamentalidade liberal para apreendermos o que é a
biopolítica.
‘Governamentalidade’ é mais uma dessas noções rebeldes, nômades ou ambíguas, como
se queira, em Foucault, mas dificilmente podemos contorná-la, se nossa preocupação é a de
entender o desdobramento e a evolução da noção de biopolítica. Senellart assinala, em Foucault,
257
FOUCAULT, Michel. Entretien avec Michel Foucault. Texto 192 [1976]. In: DE2,158.
Béatrice Han faz uma crítica contundente à noção de regime de verdade, na sua remissão ao par poder-saber. Em
um primeiro momento, Han afirma que, para Foucault, “[…] a existência de uma relação coextensiva entre saber e
poder não é simplesmente um dado histórico, mas um invariante estrutural , portanto uma noção transcendental,
que contradiz ou conflita com a adoção explícita, por Foucault, das noções nietzscheanas de perspectiva e
interpretação. Para Han, o próprio Foucault reconhece essas dificuldades, e é esse reconhecimento que o leva a
adotar uma abordagem “[...] expressamente nominalista, que consiste em considerar o saber-poder como uma
‘grade de análise’ [...]”. HAN, Béatrice. Op. cit. Pp. 233-235.
258
A esse respeito, cf.: FOUCAULT, Michel. Le sujet et le pouvoir. Texto 306 [1982]. In: DE2, 1051.
110
três momentos consecutivos, três usos contíguos, mas distintos, do termo ‘governamentalidade’,
para designar: (a) um acontecimento histórico ligado à emergência da reflexão dos fisiocratas e
dos economistas liberais; (b) um campo das relações de poder referente às técnicas de governo em
jogo na formação do Estado moderno; (c) uma grade de análise estratégica para os múltiplos tipos
de relações de poder entendidas como relações de governo, como conduta de condutas
259
. A noção
de governamentalidade alcança uma generalidade cada vez maior: desde uma referência limitada a
um momento histórico singular e restrito, em que a governamentalidade é exclusivamente a
governamentalidade liberal do século XVIII; passando pela designação geral dos dispositivos de
poder do Estado, com suas racionalidades próprias, em que a governamentalidade é o gênero do
qual a governamentalidade liberal é uma espécie; até atingir, do modo mais abrangente, um campo
semântico que inclui toda prática refletida de uma relação de poder, não apenas daquela que se
estabelece entre Estado e população, mas de qualquer uma que possa ser entendida como conduta
de conduta, isto é, como uma relação de governo, notadamente, o governo da população, o
governo dos homens, o governo das almas, o governo dos loucos, o governo de si. A introdução
do termo ‘governamentalidade’ é considerada a ponte de passagem, no desdobrar do pensamento
foucauldiano, entre a política e a ética, entre o governo da população e o governo de si. Por outro
lado, e isso nos concerne diretamente, a introdução desse novo termo provoca uma retração
correspondente do significado do termo ‘biopolítica’.
Logo no momento inaugural do uso do termo ‘governamentalidade’, a quarta lição do
curso de 1987, Foucault aduz uma tripla definição ‘governamentalidade’, ali, designa: (i) as
instituições, as reflexões, os cálculos, as táticas cujo alvo é a população, cuja forma de saber é a
economia política e cujo instrumento são os dispositivos de segurança; (ii) a supremacia do
governo sobre outros “tipos de poder, como a soberania e a disciplina; (iii) o processo pelo qual o
Estado se torna pouco a pouco “governamentalizado”
260
. Essa tríplice acepção coincide com
aquela do dispositivo de segurança. Sendo um dispositivo, o dispositivo de segurança é um
conjunto de instituições, de reflexões, cálculos e táticas, em que a população encena o papel
principal, dentro do quadro epistemológico da economia política; ele é um mecanismo de poder
que se justapõe à disciplina e à soberania; e sua formação se insere no processo de estatização do
poder pastoral. Além disso, o dispositivo de segurança, sendo uma forma de regulação da
população, cujos mecanismos analisamos no capítulo anterior, pertencia ao campo da biopolítica,
mais ainda, era a própria biopolítica. O dispositivo de segurança que era próprio à biopolítica, com
259
Cf. SENELLART, Michel. Situation des cours. In: STP, 405-408
260
Cf. STP, 111-112.
111
a introdução do novo termo, torna-se próprio à governamentalidade. A noção de
governamentalidade provoca um deslocamento, uma retração, da noção de biopolítica. Pode-se
dizer que até a quarta lição do curso de 1978, a biopolítica, como dispositivo de segurança, foi
apresentada na sua máxima compleição; ela designava, de forma abrangente, a relação de poder
entre Estado e população, o governo da população pelo Estado, os dispositivos postos em prática
para o governo da população pelo Estado. Com a introdução da noção de governamentalidade, a
biopolítica passa a designar um domínio mais restrito, conforme a definição que Foucault nos
oferece no resumo do seu curso de 1978:
O desenvolvimento, a partir da segunda metade do século XVIII, daquilo que foi
chamado Medizinische Polizei, hygiène publique, social medecine, deve ser reinscrito
no quadro geral de uma ‘biopolítica’; esta tende a tratar a ‘população’ como um
conjunto de seres vivos e coexistentes, que apresentam traços biológicos e patológicos
particulares, e que, por conseguinte, referem-se a saberes e a técnicas específicas. E
esta ‘biopolíticadeve ela mesma ser compreendida a partir de um tema desenvolvido
desde o século XVII: a gestão das forças estatais.
261
Nos vemos, novamente, diante de uma definição de biopolítica, que é congruente com
aquela do primeiro capítulo desta dissertação, em que a biopolítica se restringe ao quadro das
relações entre medicina e política. As diferentes políticas de saúde postas em prática, desde o
século XVIII, na Alemanha, na França, na Inglaterra, associadas respectivamente a Medizinische
Polizei (polícia medical), a higiène publique (higiene pública) e a social medecine (medicina
social), devem ser todas remetidas à noção de biopolítica; sendo ela mesma parte da gestão geral
das forças do Estado; e a saúde da população, apenas um dos aspectos dessa força. Com a
introdução da noção de governamentalidade, a biopolítica torna-se a prática refletida, o dispositivo
próprio às instituições medicais. Assim, Foucault vai dizer que a governamentalidade é a
tecnologia geral de poder que determina a inteligibilidade das mudanças circunstanciais, passíveis
de ocorrer nas instituições do Estado. “Será possível falar de algo como uma
‘governamentalidade’, que seria para o Estado aquilo que as técnicas de segregação eram para a
psiquiatria, aquilo que a biopolítica era para as instituições medicais?”
262
. Quando a
governamentalidade passa a valer para o todo da prática refletida do governo pelos mecanismos do
Estado, a biopolítica reduz-se à tecnologia de poder ligada ao poder medical, torna-se algo como
um ramo da grande árvore da governamentalidade.
A noção de governamentalidade, na sua acepção política, isto é, referente às relações
entre Estado e população governada, passa a constituir um guarda-chuva maior, que envolve a
261
STP, 377.
262
STP, 124.
112
noção de biopolítica. A biopolítica passa a designar apenas um setor limitado de todo o campo das
práticas refletidas de governo, “[...] a maneira pela qual tentou-se, desde o século XVIII,
racionalizar os problemas colocados à prática governamental pelo fenômenos próprios à um
conjunto de viventes constituídos em população: saúde, higiene, natalidade, longevidade,
raças...”
263
. A biopolítica, em seu sentido estrito, é a racionalização das práticas de um
determinado tipo de relação de poder, aquela que se estabelece entre Estado e população, que se
refere a fenômenos imanentes a essa população, considerada como conjunto de seres vivos
caracterizados por uma série de variáveis de viés biológico: a saúde, a higiene, etc. Definida
assim, a noção de biopolítica designa um dos domínios da prática e da reflexão governamental, o
domínio delimitado pela higiene pública ou saúde pública, mas não a totalidade da
governamentalidade. São propriamente biopolíticos os domínios que envolvem as relações de
poder inerentes ao poder medical, ao racismo de Estado, ao dispositivo de sexualidade. Além
disso, deduz-se que haveria uma biopolítica própria a cada tipo de governamentalidade. À
governamentalidade liberal, por exemplo, corresponderia um modo específico de se encarregar das
questões medicais; à governamentalidade burocrático-administrativa, um outro. Contudo, é
verdade, as reticências, presentes nessa última definição de biopolítica, deixam um espaço aberto
para outros “fenômenos próprios” à população; e a economicidade, com certeza, poderia ser um
deles. O fato de que, a partir do culo XVIII, a coexistência dos homens tenha sido pensada como
uma coexistência fundamentalmente econômica, permitiria afirmar que as diferentes maneiras de
racionalizar os fenômenos econômicos, próprias às diferentes práticas governamentais, são no
fundo biopolíticas. Assim, num sentido estrito, a biopolítica é a governamentalidade da saúde e da
doença, dos traços biológicos da população. Num sentido amplo, a biopolítica é a
governamentalidade da população, desde que a prática refletida de governo se fa a partir do
fenômenos próprios à população, quaisquer que sejam as naturezas desses fenômenos, biológicas
ou econômicas.
(2) A questão do regime governamental está ligada diretamente à racionalidade
governamental e à governamentalidade. À tecnologia de poder própria à governamentalidade
corresponde uma racionalidade governamental, isto é, um tipo de cálculo do investimento de
governo, das ações de governo,lculo conforme ao regime de verdade segundo o qual as
propostas de governo são acolhidas, refletidas e avaliadas. Quando Foucault analisa o liberalismo,
ele o faz a partir de “um plano de análise possível aquele da ‘razão governamental’, quer dizer,
263
NBQ, 323.
113
desses tipos de racionalidade postos em operação nos procedimentos pelos quais se dirige,
mediante uma administração estatal, a conduta dos homens”
264
. Para entender o que é o
liberalismo, Foucault escolhe um entre vários caminhos investigativos possíveis: ele vai procurar
descrever os mecanismos, as estratégias, pelos quais o governo liberal racionaliza e põe em prática
o direcionamento, a delimitação do comportamentos, a regulação do modo de agir dos homens.
Em meados do século XVIII, a nova razão governamental que surge com o liberalismo
elabora uma nova resposta à questão do limite da intensidade do governo. Até que ponto o Estado
pode e deve governar os homens? Até onde é justificável a intervenção do Estado na vida da
população? Até onde a intervenção do Estado é útil, até onde ela contribui para a sua própria
existência e para a existência dos que lhe o submetidos? A essa questão do limite do exercício
da soberania, as respostas, até então, haviam sido elaboradas a partir da teologia ou do direito
natural. Na Idade Média, principalmente, a crítica ao exercício ilimitado do poder soberano, é feita
a partir da teologia, segundo a qual o poder que o soberano exerce sobre seus súditos deve
coordenar-se a uma ordem divina, que extrapola os fins do soberano, e que lhe serve de limite.
Nos séculos XVI e XVII, essa crítica é feita a partir de uma reflexão jurídica; o direito vai
funcionar como limitador da razão de Estado (raison d’État), o poder soberano deve conformar-se
a algo que lhe precede, o direito natural, que estabelece os termos do contrato que funda o Estado
e o poder público
265
. Teologia e direito natural são os fundamentos de uma crítica ao poder
soberano sem limites, que se faz a partir do exterior, são limites exteriores ao poder do soberano.
Com os fisiocratas franceses, segundo Foucault, surge um outro campo para a reflexão
crítica da exteno do poder público, própria à razão governamental liberal: a economia política.
Essa crítica, ao contrário da teológica e da jurídica, é inerente à própria prática governamental. A
fisiocracia, como crítica que estabelece o limite do poder soberano, é feita no próprio quadro da
razão de Estado, o quadro histórico de racionalidade governamental que lhe é imediatamente
anterior. Para o fisiocrata, e repousam as suas dificuldades e bloqueios que só serão superados
pelo liberalismo, a economia não se mostra como um limite exterior ao governo, mas como um
264
NBQ, 327.
265
A emergência, nos séculos XVI e XVII, do que se chama razão de Estado está na base da transformação da
reflexão política, e acompanha o início do processo de absorção do poder pastoral pelo Estado. Foucault apresenta
a razão de Estado como a reflexão sobre a essência do Estado, em que o Estado aparece como um fim em si
mesmo, em ruptura com a tradição teológica-política. Cf. STP, 243-263. Na seqüência, Foucault apresenta a
polícia como “um aparelho posto em prática para fazer funcionar a razão de Estado”. STP, 284. Segundo Senellart,
no momento do curso de 1978, Foucault não mostras de haver lido o livro de Friedrich Meinecke (1862-1954)
sobre a razão de Estado: Die Idee der Staatsräson in der neueren Geschichte (1924). Cf. SENELLART, Michel.
Situation des cours. In: STP, 399. Mais tarde, porém, Foucault menciona Meinecke. Cf. Omnes et singulatim.
Texto 291 [1979]. In: DE2, 969. Nesse contexto, Foucault apresenta a razão de Estado como uma doutrina distinta
da teoria da polícia.
114
princípio de regulação do próprio ato de governo. O governo econômico, nesse sentido, remete à
frugalidade do governo, ao governar o menos possível, apenas o suficiente para manter unidas as
forças que compõem o Estado. O governo econômico fisiocrata é o limite que o próprio governo
estabelece para os seus atos a fim de, mediante essa economia, favorecer as suas próprias forças.
A economia política surge, assim, do cruzamento da prática governamental com um
princípio de auto-regulação dessa prática a partir de um novo “lugar de verdade
266
, o mercado. O
mercado é o espaço definido pelo jogo de trocas de bens e de trabalho, segundo a lógica dos
interesses. O mercado, se ele for deixado a seu jogo próprio, é o espaço em que a produção pode
articular-se com a necessidade, a oferta com a demanda, o valor com o preço. O mercado é lugar
de manifestação de uma verdade, porque funciona segundo um mecanismo espontâneo, natural e
auto-regulado, segundo uma natureza própria, cujas leis naturais de funcionamento podem e
devem ser conhecidas. O mercado torna-se o lugar de comprovação da verdade dos atos de
governo, o lugar a partir do qual os atos de governo podem ser avaliados, não mais como justos ou
injustos a partir da teologia, não mais como legítimos ou ilegítimos a partir da teoria jurídica, mas
como verdadeiros ou falsos a partir da economia política. A economia política é o novo regime de
verdade das práticas governamentais fisiocrata e liberal. O regime governamental liberal é a
prática de governo que se refere ao regime de verdade da economia política.
Para a economia política, a realidade econômica é constituída pela naturalidade das
relações de troca entre homens, que fazem valer livremente e reciprocamente seus interesses
privados, segundo a lógica fundada no benefício mútuo, na “dupla-lucratividade”, no lucro de
ambos os parceiros da troca. Quanto menor for a interferência regulamentar, quanto menos houver
de coerção externa à liberdade de troca, à liberdade econômica, tanto maior serão os benefícios
resultantes dessa somatória de trocas, que perfazem o livre-mercado, para todos os homens em
sociedade. O princípio da “dupla-lucratividade” que rege a troca econômica livre é o operador que
permite conectar o interesse privado e aleatório do agente econômico ao interesse de todos, ao
interesse geral da população. Quanto mais livres de coações externas forem os agentes
econômicos, tanto mais eles farão valer seus interesses particulares no mercado. Quanto mais o
mercado for livre de governo, tanto mais o mercado será o lugar em que as trocas ocorrerão
segundo o princípio do benefício mútuo dos parceiros da troca. Se todas as trocas livres
beneficiam, de algum modo, ambos os parceiros, então todos os parceiros serão beneficiados, se as
trocas econômicas forem livres de qualquer coerção que impeça a manifestação dos verdadeiros
266
NBQ, 31.
115
interesses particulares dos agentes econômicos
267
. Por isso, vale a regra dos fisiocratas franceses e
dos economistas liberais ingleses, segundo a qual os agentes econômicos devem absolutamente
concentrar-se, nas suas trocas econômicas, em seus interesses particulares, para assim,
indiretamente, contribuir para o interesse geral. “Não somente cada um pode seguir seu próprio
interesse, mas é preciso que cada um siga seu próprio interesse. Que ele o persiga até o fim, que
busque levá-lo a seu máximo, e é neste momento que se encontrarão os elementos a partir dos
quais o interesse dos outros não somente será preservado, mas se encontrará por isso mesmo
majorado”
268
. A mecânica dos interesses egoístas é de tal sorte que esses interesses privados,
dirigidos por uma “mão invisível”, vão articular-se espontaneamente uns aos outros e contribuir
cada um deles para o interesse coletivo
269
.
Foucault faz a análise dos dois termos desta conhecida expressão de Adam Smith. A
“mão” é essa força misteriosa que faz com que os interesses egoístas e díspares, singulares e
aleatórios, dos sujeito econômicos se articulem de modo a favorecer o interesse coletivo, o bem
comum. Mas esta mão, segundo Foucault, não é o “resto de um pensamento teológico da ordem
natural”
270
, não é a mão de um Deus providencial, para quem é evidente o processo pelo qual os
interesses egoístas dos particulares se totalizam conforme o interesse coletivo. Para Smith, afirma
Foucault, “A economia é uma disciplina atéia; uma ciência sem Deus e sem totalidade”
271
. A mão
que orienta misteriosamente os interesses egoístas para o bem comum não é a mão de um Deus
onisciente; muito pelo contrário, ela deve permanecer invisível; não há, nem deve haver, um
ponto, mesmo que ele seja um ponto divino, a partir do qual a consolidação do interesse geral,
mediante a busca dos interesses particulares, mostre sua evidência. Esem Smith, portanto, “A
ausência ou a impossibilidade de um soberano econômico”
272
. E é essa, segundo Foucault, a
diferença entre os economistas liberais ingleses e os fisiocratas franceses; para estes últimos, o rei,
déspota absoluto, poderia e deveria ocupar a posição do sábio econômico, lugar a partir do qual o
267
Cf. NBQ, 55. O princípio do duplo-benefício vale também para as relações comerciais entre dois Estados, que se
beneficiam mutuamente das trocas internacionais. Os liberais propõem que o livre-comércio internacional
substitua o protecionismo do Estado mercantilista. O mercado torna-se mundial e não mais nacional. Segundo
Foucault (NBQ, 57), com o liberalismo, é a primeira vez que a Europa, como unidade econômica, pensa o mundo
como seu domínio. O liberalismo forma um par com o imperialismo europeu.
268
NBQ, 279.
269
Para o pensamento neoliberal, o princípio da dupla-lucratividade continua valendo como elemento de
argumentação. Para Hayek, a “ordem do mercado, especialmente, não repousa nos objetivos comuns, mas na
reciprocidade, isto é, na conciliação de diferentes objetivos para o benefício mútuo dos participantes”. HAYEK, F.
A. Os princípios de uma ordem social liberal. In: CRESPIGNY, Anthony; CRONIN, Jeremy. Ideologias da
política. Brasília: Universidade de Brasília, 1981 [1975]. P. 50.
270
NBQ, 282.
271
NBQ, 286.
272
NBQ, 287.
116
mistério econômico era desfeito. Enquanto Smith desqualifica a possibilidade de um soberano
econômico, se para Smith a economia é o domínio que deve permanecer sem deus e sem rei,
domínio sem totalidade visível, domínio em que a única fonte de racionalidade é a razão granular
do homo oeconomicus, os fisiocratas, por sua vez, resguardam ao rei três funções econômicas: a
de co-proprietário de todo o reino, o que justifica os impostos; a de conhecedor do processo
econômico e do modo segundo o qual a economia conta com a liberdade econômica individual; e
a de difusor do saber econômico, do modo pelo qual, sendo livres, os diversos sujeitos econômicos
podem maximizar seus lucros – a coexistência do déspota soberano e de uma liberdade econômica
total é possível. Se a crítica fisiocrata era feita a partir do interior do poder soberano, era o poder
soberano esclarecido limitando-se a si mesmo, a crítica liberal dos economistas ingleses, por sua
vez, é feita a partir do exterior, a economia funciona como um limite exterior ao governo
soberano. Para os liberais ingleses, não pode haver governo econômico. Toda tentativa de
governar a economia é fadada ao fracasso. Não soberano econômico. O homo oeconomicus do
liberalismo clássico é ingovernável.
Como regime de verdade da prática governamental, a economia política é um complexo
de enunciados e de regras e critérios de formação de enunciados. A economia política se configura
no mesmo período em que a noção de população toma forma, em meados do século XVIII. A
história de uma, como de outra, é correlativa a uma mesma prática governamental. De fato, a
economia pode tornar-se assunto de política, assunto do soberano, quando ela extrapola seu
foro original, o oikos, o domínio familial, quando ela deixa de ser o governo da família pelo seu
chefe, para representar o governo da população pelo soberano.
O modelo-família representava um bloqueio para as artes de governar do século XVI. O
oikos é constituído por um pequeno grupo de indivíduos, fortemente unidos uns aos outros, cujas
atividades são coordenadas entre si e em torno de objetivos comuns, indivíduos que são
submetidos a um poder zeloso e vigilante de tipo pastoral. Mas o governo do oikos, a economia, é
inapropriado como modelo para um governo que deve ser exercido sobre uma multiplicidade,
composta de singularidades aleatórias, com objetivos diversos e antagônicos, dispersa sobre um
território que extrapola, em muito, o domínio familial. A passagem da família à população
constitui o desbloqueio epistemológico da arte de governar
273
. O surgimento do objeto população,
como objeto de uma prática de governo, está associado à estatização do poder pastoral, à
governamentalização do Estado. Por um lado, o soberano assume, como o chefe de família, as
273
Cf. STP, 106-109.
117
funções do pastor, e se põe a serviço daqueles que governa, mas por outro, deixa de considerar
aqueles que governa como membros de uma família, e sim como membros de um conjunto mais
amplo e disperso, que pouco a pouco se configura como uma população.
A realidade econômica, o domínio de realidade delimitado pela economia, como
fenômeno indissociável da noção de população, começa a se desenhar no século XVIII, no
quadro emoldurado pela Polizeiwissenschaft, pela ciência da polícia, pela ciência da administração
pública, dentro do tipo de racionalidade governamental que diz respeito à razão de Estado, às
práticas e regras de conduta que visam a assegurar e incrementar as forças do Estado, como um
fim em si mesmo. O mercantilismo é um dos aspectos dessa razão de Estado. Para o
mercantilismo e para a ciência da polícia, a população é uma das forças estatais, seu
fortalecimento é um meio para fortalecer o Estado. Fortalecer a população significa não somente
aumentar indefinidamente o número dos indivíduos que a constituem, mas também fortalecê-la em
seus aspectos qualitativos.
Apartando-se dos mecanismos de poder próprios ao feudalismo, a formação e a
consolidação do Estado central monárquico, caracterizou-se pela concentração, nas mãos do rei,
pelo intermediário de sua administração, das questões das disputas jurídicas, das forças armadas e
do recolhimento dos impostos. Além dos domínios da justiça, do exército e das finanças, a polícia
abre um novo campo de intervenção para o Estado administrativo. Para De Lamare (1705), por
exemplo, a vida é o objeto próprio da polícia. A polícia, para De Lamare, deve ocupar-se do
vivente, primeiramente dos aspectos morais e religiosos de sua vida, em seguida dos meios de sua
preservação e finalmente das suas comodidades; são objetos da polícia a bondade da alma, a
preservação do corpo e a riqueza dos viventes, quer dizer, a vida em todos os seus aspectos. Para
Von Justi (1756), que Foucault considera o grande teórico da polícia, o objeto próprio da polícia é
a população. A polícia trata de estabelecer as regras e as leis que ordenam a vida da população, de
tal forma que ela venha a favorecer o vigor, a força do Estado. Trata-se da proposta de uma gestão
integral, total, dos diversos aspectos da vida da população como uma das forças constituintes do
Estado
274
.
Se a pedagogia do príncipe, tal qual era preconizada na Idade Média, era a origem de uma
série que partia do governo de si do príncipe, para o governo do Estado, passando pelo governo da
família, em que a condição do bom governo do Estado, era o bom governo da família, e
fundamentalmente a virtude moral do príncipe, então, a polícia percorre a mesma série, mas no
274
Cf. STP, 319ss. STP, 341ss. De forma mais concisa, a polícia também é assunto em Omnes et singulatim. Texto
291 [1979]. In: DE2, 972ss.
118
sentido inverso, o bom governo do Estado faz com que as famílias sejam bem governadas, e
famílias bem governo são a garantia da virtude moral dos indivíduos
275
. Na governamentalidade
policial, a família é incluída na população e funciona como agente do Estado no controle do
comportamento individual. Como afirma Foucault, “a família, de modelo, vai tornar-se
instrumento, instrumento privilegiado para o governo das populações, e não modelo quimérico
para o bom governo”
276
. Contudo, a partir da análise que fizemos anteriormente a respeito da
família, do governo da família, pode-se dizer que a governamentalidade própria à polícia ainda
não se desvinculou integralmente do modelo familiar. A gestão policial da população refere toda
atividade da população a um único fim, o Estado. Orientar as atividades dos múltiplos membros
da população, segundo um fim comum, que é o Estado, ainda remete a polícia à economia de tipo
familial. Somente com o liberalismo, a prática governamental vai se liberar definitivamente do
modelo da família. A gestão da população passa a ser feita em acordo com uma economia que não
remete mais em última instância ao Estado, mas com uma economia que remete à própria
naturalidade da população
277
. com o liberalismo, o soberano torna-se plenamente um
governador da população, paradoxalmente, justo quando deixa de querer governá-la
completamente, extensivamente.
Até agora falamos em liberalismo de modo geral. Porém é preciso diferenciar, no interior
do próprio liberalismo clássico, duas formas heterogêneas de justificação da preservação da esfera
de liberdade dos indivíduos e da limitação do poder público. Foucault fala de uma via liberal
axiomática, que parte dos direitos humanos postulados como axiomas, para deles derivar os
limites da soberania, via que se coloca na linha de continuidade da crítica jurídica ao Estado de
polícia, e que foi própria à Revolução Francesa; e de uma via liberal indutiva, que não parte do
direito, mas da observação empírica da prática governamental, para dela inferir, por indução, a
esfera ideal de independência dos governados. Segundo Foucault, essas duas vias o
heterogêneas, mas não incompatíveis, devemos considerar suas interações para entendermos o
desenrolar do pensamento liberal nos séculos XIX e XX. A via axiomática concebe o ordenamento
jurídico como expressão da vontade coletiva e a liberdade como direito humano que os indivíduos
concordam, mas apenas parcialmente, em restringir. A via indutiva concebe a lei como uma
negociação que estabelece a esfera de intervenção do poder público e a esfera de liberdade
275
Cf. STP, 97.
276
STP, 108.
277
Hayek prefere abandonar o termo ‘economia’, e introduzir um novo termo técnico, ‘catalaxia, para caracterizar a
ordem espontânea que surge a partir da liberdade econômica, que respeita a ltipla finalidade dos diversos
setores sociais, sem equacioná-las a um único fim, sob a orientação policial de um Estado dirigista. Cf. HAYEK,
F. A. Op. cit. P. 51.
119
individual, entendida como esfera de independência dos governados em relação aos
governantes
278
.
No neoliberalismo, no desdobramento do liberalismo clássico, ao longo do século XX, a
primeira via, a axiomática, tende a retrair-se diante da segunda, a indutiva. O neoliberalismo,
como reflexão crítica da prática governamental, parte da defesa de uma esfera ampla de
independência dos governados, e não tanto, ou menos, da questão dos direitos humanos. Se, por
um lado, o liberalismo clássico buscava preservar o mercado da interferência do governo,
delimitando no campo social, um domínio econômico ingovernável, por outro, ele deixava aberto
ao governo todo o restante. E é, por essa grande brecha, que puderam se organizar, nos Estados
liberais do século XIX, os grandes sistemas de coerção das sociedades disciplinares, nas quais se
a intensa articulação das instituições disciplinares, as indústrias, as instituições bancárias, as
escolas, os hospitais, as prisões, com o Estado e com os aparelhos de segurança e de administração
públicas. Permanecia aberto à intervenção do poder público, como domínio próprio ao governo,
tudo o que não era econômico, toda a vida não econômica da população a vida moral e seus
vínculos com a saúde física e mental, com a pureza racial, com a sexualidade adequada. Ao lado
das liberdades econômicas, havia todo um campo aberto ao biopoder, às biopolíticas de tipo
policial, ao governo das populações a partir de sua base material biológica, governo estreitamente
associado aos aparelhos disciplinares. A liberdade econômica e a certo ponto política, no século
XIX, foi a contrapartida do biopoder, da disciplinarização dos corpos individuais e da
biopolitização das populações. O biopoder foi a condição de possibilidade do governo liberal e
vice-versa
279
.
Nesse contexto, Foucault apresenta o pensamento neoliberal como uma radicalização da
crítica da prática governamental liberal. O fundo comum de adversidade para os neoliberais, sejam
eles ordoliberais alees, anarco-liberais americanos ou liberalizantes franceses, era o
intervencionismo, a ingerência do governo não apenas no âmbito econômico, mas também na
278
Cf. NBQ, 40. Hayek, por sua vez, fala de duas filosofias políticas distintas que se autodenominam liberais. A
primeira, ligada à tradição liberal inglesa, a qual pertencem Hume e Smith, mas também alguns continentais, entre
os quais Kant e Tocqueville, parte de uma “interpretação evolucionária” dos fenômenos civilizatórios, segundo a
qual o desenvolvimento da cultura é processual e não pode ser artificialmente programado pela razão. Isso é
exatamente o contrário do que defende a segunda forma de liberalismo, que ele chama de “racionalismo
construtivista”, ligada aos nomes de Voltaire e Rousseau e aos princípios da Revolão Francesa. Para Hayek,
apenas a primeira das duas tradições defende “limitações ao poder do governo”, enquanto a segunda apregoa “o
ideal dos poderes ilimitados da maioria”. Hayek afirma que a primeira vertente do liberalismo não é uma
construção teórica, mas “deriva da descoberta de uma ordem autogerada ou espontânea dos assuntos sociais.
Portanto, na base do liberalismo se encontra uma observação empírica (não uma construção racional), que foi
posvel durante a revolução burguesa na Inglaterra do século XVII, a de que a limitação dos poderes do governo
tem efeitos benéficos sobre a ordem social espontânea. Cf. HAYEK, F. A. Op. cit. Pp. 47-48.
279
Cf. NBQ, 68.
120
política social
280
. Para eles, o intervencionismo fatalmente transfigura-se em totalitarismo. Na
intervenção econômica, nos subsídios estatais, nos preços fixos, nos planos qüinqüenais de
desenvolvimento, na garantia de emprego, nas políticas de emprego pleno, no crescimento
voluntarista, os neoliberais de antes da Segunda Guerra viam, aí, uma só e mesma coisa seja no
New Deal americano, na adoção das propostas econômicas de Keynes na Inglaterra e na sua
difusão mundial, na economia planificada soviética stalinista, no Front Populaire francês, na
economia de guerra nacional-socialista –, a falsa pressuposição de um soberano econômico
onisciente, o erro da determinação econômica diante da espontaneidade do mercado. Mais tarde,
combateram com os mesmos argumentos as políticas sociais desenvolvidas no Ocidente do pós-
Segunda Guerra, para afastar a ameaça do comunismo, como aquelas do Plano Beveridge na
Inglaterra, os mecanismos de segurança social que, em diversos países da Europa ocidental,
formaram o Estado de bem-estar social, a introdução de toda uma administração pública para o
controle do risco, que visava a corrigir os efeitos negativos do crescimento econômico, as
“externalidades”, os custos sociais que o mercado continuamente empurrava para fora do processo
de formação dos preços. Para os neoliberais, os efeitos nocivos do mercado não eram devidos ao
mercado, mas ao Estado, ao crescimento do poder público, às amarras econômicas, ao controle das
atividades e das iniciativas. O Estado administrativo, o Estado providência, a burocratização do
Estado, o controle dos indivíduos, a formação de um Estado policial e o Estado totalitário, para a
crítica neoliberal do imediato pós-guerra, pertenciam a uma e mesma série, a da expansão
paulatina do Estado sobre a sociedade. Os críticos neoliberais acreditavam que o Plano Beveridge
levaria a Inglaterra ao nazismo. A questão chave para os neoliberais, na época, não era o
280
Os ordoliberais, pertencentes à Escola de Friburgo, foram um grupo de economistas e juristas alemães formado em
torno de Ludwig Erhard (1897-1977), nos anos 1930. Posteriormente, Erhard tornou-se ministro da economia no
pós-guerra e chanceler alemão pelo CDU (Christlich-Demokratische-Union) de 1963 a 1966. Cf. NBQ, 107.
Os neoliberais americanos ou anarco-liberais da Escola de Chicago, como Milton Friedman (1912-2006),
inspiraram-se fortemente nas idéias de L. von Mises (1881-1973) e F. von Hayek (1889-1992), da escola austríaca.
Hayek foi uma espécie de ponte entre ordoliberais alemães e anarco-liberais americanos. Cf. NBQ, 166. Os
anarco-liberais tiveram grande influência na administração de Ronald Reagan, a partir de 1980. Na Inglaterra, o
neoliberalismo foi posto em prática sob o governo de Margareth Thatcher, a partir de 1979. Para uma breve
história do neoliberalismo, conferir o texto de ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, Emir;
GENTILI, Pablo (Orgs.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1995. Pp. 9-23.
Na França, Foucault menciona os filósofos Louis Rougier (1889-1982) e Raymond Aron (1905-1983), que
também estiveram em contato com os ordoliberais, logo antes da Segunda Guerra. Cf. NBQ, 138. Foucault analisa
também as propostas de tendencial neoliberal de Valéry Giscard D’Estaing, em 1972, como ministro da fazenda de
Georges Pompidou. Cf. NBQ, 208. Giscard D’Estaing foi presidente da República Francesa de 1974 a 1981.
121
antagonismo do capitalismo com o socialismo, mas a escolha entre o intervencionismo e o
governo frugal
281
.
Em um dos poucos momentos do curso de 1979, em que Foucault tece uma crítica difusa
aos neoliberais difusa porque ela não se dirige exclusivamente aos neoliberais, mas a todos os
que, inclusive na esquerda, se alarmam pelo crescimento da esfera de influência do Estado –,
Foucault argumenta que essa fobia de Estado – derivada de uma suposta tendência de expansão do
Estado sobre a sociedade civil, e da tese de uma autogênese das formas de Estado, umas das
outras, que leva do intervencionismo econômico ao totalitarismo não se suporta sobre bases
históricas. Segundo Foucault, o Estado de bem-estar social o tem a mesma origem que Estado
totalitário, como mostram os exemplos do nazismo e do estalinismo. O Estado totalitário não é a
continuidade das monarquias administrativas do século XVIII, do Polizeistaat do século XIX, não
é o paroxismo do Estado burocrático. O totalitarismo, na experiência do século XX, o deriva do
crescimento contínuo da esfera de intervenção do Estado sobre a sociedade, mas efetivamente de
um deslocamento do Estado, de uma substituição do Estado pela governamentalidade de
partido
282
. Segundo Foucault, o totalitarismo derivou do desmantelamento das estruturas do Estado
e de sua substituição pelas técnicas de poder próprias aos grandes partidos de massa, da
substituição dos princípios do Estado pelos princípios da governamentalidade partidária: o culto
do líder, a supressão da hierarquia administrativa estatal, o hermetismo ideológico, o fisiologismo,
o espírito de pertença. Por outro lado, o que vinha se passando, em 1979 – tendência que, aliás,
desde então, veio se confirmar com a adoção em escala mundial de algumas teses do
neoliberalismo, nos anos 80 e 90 –, era justamente o contrário, não o reforço do Estado, mas a
retração mundial do Estado frente a uma governamentalidade cada vez mais liberal
283
.
A análise que Foucault faz dos princípios do ordoliberalismo, tal qual foi formulado antes
da Segunda Guerra e implantado na Alemanha ocidental do pós-guerra, do pós-nacional-
socialismo, permite que Foucault questione uma série de falsas suposições a respeito do
neoliberalismo. Diz-se do neoliberalismo: que ele é a simples reativação de velhas teorias do
século XVIII; que ele representa a instauração na sociedade de relações estritamente mercantes e
281
Hayek, por exemplo, afirma que “o oposto do liberalismo é o totalitarismo”. Segundo ele, o liberalismo remete de
fato ao pluralismo dos interesses, mesmo se ele é defendido autoritariamente, e não necessariamente à democracia,
em que há possibilidade da formação de uma maioria hegemônica. Cf. HAYEK, Op. cit, P. 47.
282
Cf. NBQ, 196; NBQ, 115.
283
Cf. NBQ, 197.
122
espetaculares; que ele dissimula uma intervenção social generalizada do Estado. Para Foucault,
contudo, “o neoliberalismo é outra coisa”
284
.
Em primeiro lugar, o neoliberalismo vai além do liberalismo, não é a simples retomada
de suas idéias. O liberalismo dosculos XVIII e XIX reservava o domínio econômico, o
mercado, como uma esfera não governamental, a qual, entretanto, deveria permanecer sob a
vigilância do Estado. O neoliberalismo propõe, pelo contrário, “um Estado sob a vigilância do
mercado”
285
. O Estado, tendencialmente patológico, na concepção ordoliberal, deve ser regulado
pela economia de mercado. Os princípios próprios ao mercado devem servir de base para a
regulação e para a auto-regulação do Estado.
No neoliberalismo, o se trata simplesmente de laisser-faire, de deixar atuar o princípio
do duplo-interesse presente nas trocas do livre-mercado. Não se trata simplesmente da não-
intervenção do Estado na economia. Para o neoliberalismo, o que caracteriza o livre-mercado não
é o fato de que as trocas possam ser realizadas livremente, segundo os interesses dos parceiros
econômicos, mas que haja concorrência. Somente a existência da concorrência, ou das condições
de possibilidade da concorrência, e não a livre-troca, pode garantir o investimento contínuo em
tecnologia, o esforço de diminuição dos custos de produção, a baixa lucratividade e a
possibilidade de aumento momentâneo do lucros pela diminuição do preços e aumento da
produtividade
286
. Não se trata de deixar acontecer a espontaneidade das trocas, mas de produzir as
condições em que uma verdadeira concorrência possa se efetivar. O homo oeconomicus neoliberal
não é o sujeito de interesses liberal, mas o homem empreendedor. Somente num contexto de
concorrência acirrada, a racionalidade do homo oeconomicus é estimulada ao máximo, o que
resulta em benefício para toda a sociedade
287
.
Para os ordoliberais, o estado de concorrência no mercado não decorre de uma
naturalidade própria ao mercado; não se trata de um naturalismo, a concorrência não é um dado
primitivo, mas ela “só pode aparecer, se produzida por uma governamentalidade ativa”
288
. Para
284
NBQ, 136. O estudo do ordoliberalismo, feito por Foucault, desmonta as opiniões, um pouco confusas, que, na
época, acreditavam que a importação do modelo alemão representava a introdução, na França, do fascismo,
quando, de fato, o que se passava era a adoção, pela França, do modelo econômico ordoliberal. Cf. NBQ, 198.
285
NBQ, 120.
286
A crítica feita ao capitalismo, devido à sua tendência ao monopólio, é contornada pelos ordoliberais. Num
ambiente econômico livre e dinâmico, apoiado pelo mecanismo de crédito estatal, mesmo os monopólios são
obrigados a comportar-se como se houvesse concorrência. Essa é a política do como-se”. Existindo as condições
para a organização da concorrência, tudo funciona como se, de fato, houvesse concorrência. Dessa forma, os
empreendedores, mesmo nos setores monopolizados da economia, buscam, sob a ameaça potencial da organização
da concorrência, aprimorar-se tecnologicamente, e manter um preço competitivo. Cf. NBQ, 142.
287
NBQ, 272.
288
NBQ, 125.
123
fazer funcionar a concorrência, como fundamento do aprimoramento dos homens, da tecnologia e
da cultura, e a competitividade de mercado como princípio regulador de todas as relações sociais,
são necessárias ações de governo e uma política ambiental. Ambiental no sentido de que não se
trata de intervir diretamente sobre os agentes econômicos ou sobre a materialidade econômica,
mas sobre o meio, sobre as condições de mercado; não se trata de intervir diretamente sobre os
jogadores, mas sobre as regras do jogo. Isso inclui, obviamente, a intervenção no quadro jurídico
da economia, tanto no estabelecimento da legislação apropriada para favorecer a concorrência
econômica, como no reforço do papel do Estado enquanto mediador de conflitos resultantes do
aumento dessa concorrência. O Estado deve intervir sobre as condições de mercado, com uma
política de crédito favorável ao empreendedorismo, é claro, mas sobretudo, o objetivo primeiro de
sua intervenção é manter a inflação sob controle, mediante o controle do volume monetário, o
equilíbrio entre receitas e despesas estatais, o controle dos juros. Todos os outros objetivos
econômicos e sociais, como o pleno emprego, o aumento do poder de compra e até mesmo a
política de créditos, devem estar submetidos ao controle da inflação. Não intervir diretamente no
mercado significa não fixar os preços autoritariamente para controlar a inflação, não realizar
investimentos públicos diretos na economia, o subsidiar os setores do mercado em dificuldades,
favorecer a abertura dos mercados, a importação e a exportação. Além disso, cabe ao Estado criar
as condições jurídicas e tecnológicas para que os diversos setores sociais alienados dos princípios
de regulação de mercado possam funcionar como agentes econômicos efetivos, abertos à
concorrência. Trata-se de criar as condições para que o mercado possa fornecer competitivamente
os serviços tradicionalmente assumidos pelos monopólios de Estado, como a produção e a
distribuição de energia, o abastecimento de água, os transportes públicos, a saúde, o sistema de
aposentadoria etc. Trata-se de criar as condições para que possam fechar-se as torneiras dos
subsídios estatais a setores privados economicamente fragilizados. Trata-se de não falsear as
condições de mercado, para que sua realidade efetiva apareça na superfície das relações sociais, e
assim ative e incentive a criatividade do homem empreendedor
289
.
O princípio de regulação próprio ao mercado, que premia a eficacidade produtiva, o
dinamismo, a inovação, que desqualifica a acomodação, os erros de investimento, os desperdícios,
que transfere os recursos financeiros e humanos para os setores mais performáticos, na lógica
neoliberal, deve cobrir toda a sociedade e todas as relações sociais. Para tanto, o Estado deve
produzir as condições em que todos os agentes sociais passem a funcionar como agentes
289
Sobre o âmbito das “ações reguladoras” (actions régulatrices) de governo, que visam, mediante intervenções nas
condições do mercado, a manter o dinamismo econômico, e das “ações ordenadoras” (actions ordonnatrices), que
visam a fazer funcionar todo o campo de relações sociais segundo os princípios da economia, cf. NBQ, 143-147.
124
econômicos, e mais especificamente como empresas, num ambiente de concorrência, em que o
jogo estratégico é próprio à racionalidade empresarial. “Esta multiplicação da forma ‘empresa’ no
interior do corpo social constitui – acredita Foucault – o desafio da política neoliberal”
290
.
Os ordoliberais vão argumentar, em segundo lugar, que essa sociedade de empresas, essa
sociedade imbuída da racionalidade empresarial, não é, de forma alguma, a sociedade mercante, a
sociedade da mercadoria. Criar a sociedade de empresas não é fazer do homo oeconomicus um
consumidor sem identidade, sem iniciativa, um indivíduo isolado junto a outros, fundidos todos
eles em uma massa homogênea, mas é, pelo contrário, promover a racionalidade empresarial que
desaliena o homem, que conta com o desenvolvimento de sua autonomia, de sua individualidade.
Ora, o que vão dizer os ordoliberais a respeito das políticas sociais que se desenvolvem no pós-
guerra europeu, como o Plano Beveridge na Inglaterra, e que são o correlativo social das propostas
econômicas de tipo keynesiano? O Estado de bem-estar social, as políticas de pleno emprego, que
põem em prática uma política social capaz de corrigir as desigualdades e os efeitos nocivos do
desenvolvimento econômico, favorecendo o acesso eqüitativo ao consumo medical, ao consumo
cultural, mediante uma política de transferência de rendas, mediante uma oferta de bens sociais
acessível a todos, financiada pela taxação dos rendimentos elevados, isso sim, para os
ordoliberais, gera uma sociedade de massa, de indivíduos proletarizados e alienados. Finalmente,
dizem os ordoliberais, as políticas econômicas intervencionistas e as políticas sociais corretivas,
que são seu contrapeso, com suas exigências burocráticas, suas fichas, seus atestados, seus
mecanismos de controle, acarretam a tomada, em mãos do Estado, das vidas dos governados
291
.
Para os ordoliberais, tratava-se de implementar o somente uma economia de mercado,
mas uma “economia social de mercado”
292
, ao invés de uma política social de compensações.
Trata-se de capitalizar as famílias, para privatizar a política social, e fazer com que cada um
administre, como melhor entender, sua cobertura de riscos. A ação do governo, segundo as
propostas ordoliberais, não é apenas do âmbito da economia, mas refere-se a uma política de
sociedade, a uma Gesellschaftpolitik, em que os objetivos finais da ação governamental são a
facilitação ao acesso à propriedade privada, a redução do gigantismo urbano, a descentralização
demográfica e administrativa, o encorajamento de pequenas unidades rurais, industriais e
comerciais
293
.
290
NBQ, 154.
291
Cf. NBQ, 147-153.
292
NBQ, 150.
293
A proposta de privatização da política social, a “economia social de mercado” de Müller-Armack (NBQ, 150), e a
política de sociedade ordoliberais, a Gesellschaftpoltik de Erhard (NBQ, 151), dentro de um quadro de integração
social, sustentada por uma “política da vida”, a Vitalpolitik de Rüstow (NBQ, 153), por razões que aqui o
125
Foucault identifica nessa política de sociedade ordoliberal algumas ambigüidades, que
serão varridas do tabuleiro do jogo, definitivamente, pelos anarco-liberais americanos. Os
ordoliberais reconhecem a forma empresa e a concorrência acirrada como indexadores da
atividade social, mas, por outro lado, defendem uma política de defesa contra os efeitos anti-
sociais da concorrência e do comportamento estritamente empresarial. Por um lado, incentivam a
economização completa da sociedade, por outro, buscam desenvolver uma forma de mercado
desalienante, descentralizadora, composta não por grandes unidades, mas por uma multiplicidade
de pequenas e médias empresas, em pequenas e médias cidades, de modo que os valores morais e
culturais permaneçam pulsantes, unindo os indivíduos uns aos outros apesar do espírito de
concorrência. Trata-se de desenvolver uma sociedade de pequenas unidades empresariais, que
conservem uma espécie de “ética social de empresa”
294
, que compense a frieza do cálculo próprio
à racionalidade econômica em ambiente competitivo. Porém, essa iia de um liberalismo que
intervém, de um ‘liberalismo positivo’, esse ‘liberalismo social’
295
secompletamente inaceitável
para os anarco-liberais americanos, vertente do neoliberalismo que a partir dos anos 1970, e
principalmente, nos anos 1980, vai se impor mundialmente
296
.
Em relação ao que consideram ser as ambigüidades dos ordoliberais, os neoliberais
americanos serão radicais; segundo eles, não cabe ao governo qualquer orientação, qualquer
direcionamento, qualquer estruturação do mercado, na direção de uma forma de sociedade pré-
concebida, qualquer que seja, a partir de valores morais pré-estabelecidos. A fórmula anarco-
liberal é não apenas deixar fazer o mercado, mas também não deixar fazer o governo
297
. Para os
neoliberais americanos, nada além do mercado, da racionalidade de mercado, resguardado o
cumprimento da lei, deve funcionar como princípio de inteligibilidade das relações sociais e dos
comportamentos individuais. Todo o campo social é um campo econômico; a racionalidade
econômica pode explicar todo comportamento social, e nada deve ser-lhe artificialmente imposto
do exterior. A linguagem de mercado, os princípios de mercado, a lógica de mercado devem
funcionar como filtros da ação governamental, como limite do campo de ação governamental
298
.
podemos analisar, não puderam ser efetivamente levadas a cabo, sequer durante a gestão CDU, no governo
alemão, desde o pós-guerra até 1969. Mas permaneceu como uma idéia reguladora do pensamento ordoliberal.
294
NBQ, 153.
295
Termos utilizados, pelos ordoliberais, para caracterizar seu neoliberalismo. Cf. SENELLART, Michel. Nota 15.
In: NBQ, 158.
296
Cf. NBQ, 138.
297
Cf. NBQ, 248
298
Foucault estabelece um paralelo entre a crítica da linguagem, nos moldes do positivismo lógico do Círculo de
Viena, e a crítica neoliberal americana da governamentalidade. Se o positivismo lógico exclui do discurso
científico qualquer alusão metafísica sem significado cognoscível, o positivismo econômico” da crítica neoliberal
126
A identificação sem restos do comportamento social com o comportamento econômico, a
utilização da lógica de mercado, como princípio de inteligibilidade de todo e qualquer
comportamento social, conduz uma certa vertente do neoliberalismo americano, talvez a mais
radical, na direção de um behaviorismo econômico, segundo o qual o comportamento individual é
controlável a partir da manipulação das variáveis econômicas. Toda conduta individual, que
responda de forma sistemática a modificações nas variáveis do meio, sendo esse meio entendido
como o mercado, como a realidade econômica, deve referir-se a uma análise de tipo econômico. O
indivíduo funciona como sujeito econômico a partir do momento em que aceita o real, a situação
de mercado em que está inserido, como determinante de sua conduta. O homo oeconomicus é
aquele indivíduo que aceita regular suas ações em função das possibilidades que lhe são ofertadas
pela realidade, fundamentalmente econômica. Assim, [...] a economia vai poder se definir como a
ciência da sistematicidade das respostas às variáveis do meio”
299
. O homo oeconomicus neoliberal
é o homem governável, desde que o governo utilize e manipule as variáveis econômicas para
tanto.
(3) Agora, uma vez que abordamos o regime governamental liberal e neoliberal, estamos
em condições de analisar o papel da biopolítica dentro do quadro geral do liberalismo. Para o
regime de polícia, para o Estado de polícia, dos séculos XVII e XVIII, o domínio de atividades
definido pela população era, todo ele, um extenso campo para a intervenção governamental. Cada
aspecto da vida da população, a moral e a religião, a reprodução e a saúde, a produção e o
comércio das comodidades, deveria ser meticulosamente esquadrinhado e orientado em função da
razão de Estado, para a qual a valorização da vida da população era um dos fundamentos. É com o
Estado de polícia que a vida da população ingressa nos assuntos estatais, começa algo que
poderíamos chamar – essa não é uma expressão de Foucault – de biopolítica policial, já que a vida
da população é assunto de polícia, de legislação e disciplina. Todo o campo referente à população,
ao conjunto de viventes que coexistem, e estabelecem entre si uma “sociedade”, ou dito com as
palavras de hoje, que estabelecem entre si relações sociais, surge como domínio aberto à plena
intervenção do Estado.
busca excluir da política governamental todos traços exteriores à racionalidade e à realidade estritamente
econômica. Cf. NBQ, 252. Ao “tudo é sexodo dispositivo de sexualidade, corresponde, no governo segundo à
racionalidade econômica, a fórmula “tudo é econômico”.
299
Foucault apresenta Gary Becker (nascido em 1930), também da Escola de Chicago, como o expoente mais radical
do neoliberalismo americano. NBQ, 273. Foucault ressalta, em outro momento, que a mutação epistemológica das
análises neoliberais, em relação ao liberalismo clássico, é fazer da economia uma ciência do comportamento
humano. Cf. NBQ, 228.
127
A crítica à razão de Estado, efetuada pelo liberalismo clássico, faz aparecer, no campo da
conduta da população, da sociedade, da sociedade civil, da nação, no campo do governo, todo um
domínio do ingovernável, o campo das atividades econômicas. A realidade econômica, no
liberalismo, é propriamente o campo do qual o Estado, para o seu próprio bem ou em nome da
população, deve retirar-se, ausentar-se, reconhecer sua incapacidade. Com a crítica liberal, o
domínio da população é como cindido em dois. Um fechado ao governo, o campo econômico, e
um outro aberto às intervenções do Estado, campo em que se inserem as biopolíticas de tipo
policial, como a higiene pública, a medicina social.
O neoliberalismo, que é o regime de governo tendencialmente em voga no mundo
contemporâneo, vai procurar reintegrar a população. O princípio de integração da população em
sua unidade parte da generalização da atividade econômica, da forma empresa, sobre todo o corpo
social; princípio que é, novamente, um operador prático e, ao mesmo tempo, um elemento de
inteligibilidade. Nesse sentido, governar a população é fazer com que todo fenômeno social seja
também uma atividade econômica, analisável segundo a racionalidade econômica. Racionalidade
que, por sua vez, é entendida basicamente como a arte de alocar eficazmente recursos escassos a
fins alternativos
300
. A arte econômica torna-se critério da razoabilidade da conduta. Dessa forma,
podem ser inteligidas e dirigidas economicamente as condutas que tipicamente se colocavam fora
do domínio econômico, por exemplo: as escolhas individuais no âmbito das relações familiares, da
formação profissional, da saúde, do uso de drogas, da criminalidade
301
.
Com a reintegração da unidade da população – através da ordenação e da interpretação de
todas as relações sociais como relações econômicas –, todo o domínio definido pela população
volta a concernir o Estado. Mas a intervenção do Estado não se faz mais diretamente sobre os
indivíduos, mediante cnicas policiais e, sim, sobre o meio em que eles estão inseridos. Esse meio
é um meio econômico, é o mercado. A intervenção estatal tipicamente neoliberal limita-se às
ações que visam a abertura de todos os campos das relações sociais ao princípio de auto-regulação
da economia de mercado, e à intervenção intensa porém restrita a algumas poucas variáveis da
situação de mercado, como os juros estatais, as políticas fiscais, o mbio.
As políticas sociais, dentro do quadro geral do neoliberalismo, assumem uma nova
configuração. A intervenção do governo neoliberal no campo da saúde, por exemplo, é uma ão
que busca integrar a saúde da população ao jogo de oferta e procura do mercado. No contexto da
300
Cf. NBQ, 273.
301
Foucault, no curso de 1979, mostra como esses fenômenos da população são analisados economicamente pelos
neoliberais. Para as relações familiares, cf. NBQ, 235. Para a formação individual gerida como um capital
humano, cf. NBQ, 231. Para as futuras escolhas genéticas, cf. NBQ, 234. Para a criminalidade, cf. NBQ, 253. Para
o uso de drogas, cf. NBQ, 262.
128
governamentalidade neoliberal, a política de saúde deixa de ser uma atribuição direta do Estado; a
saúde passa a fazer parte do jogo econômico. O neoliberalismo remete as políticas de saúde
pública à concepção de uma política social individual, que substitui a racionalidade de Estado pela
racionalidade própria aos governados. Cabe aos governados decidirem por si mesmos como
devem alocar os recursos escassos disponíveis a fim de garantir a sua segurança individual.
Princípio do qual decorre, conseqüentemente, a privatização da infra-estrutura pública da saúde e
da segurança social como um todo.
Retomemos a noção de biopolítica, tal qual foi possível extraí-la do texto de Foucault, na
formulação do dispositivo de segurança. Quais são os objetos determinantes do mecanismo
biopolítico? Dois elementos permitem determiná-lo, um certo tipo de multiplicidade e de meio:
uma multiplicidade, composta por singularidades aleatórias vinculadas entre si por um princípio
operacional; um meio, que serve como substrato para a circulação dessas singularidades. O poder
biopolítico não interm no nível das singularidades, enquanto, no nível da multiplicidade, é
exercido mediante a manipulação do meio, decomposto em variáveis. Nos cabe retomar esta
definição bastante genérica do mecanismo biopolítico e aplicá-la ao governo econômico
neoliberal. No contexto do regime governamental neoliberal, as singularidades aleatórias são os
comportamentos individuais dos sujeitos econômicos, inapreensíveis em si mesmos, nas suas
individualidades múltiplas, que visam a fins múltiplos e distintos, mas perfeitamente analisáveis
em termos de uma racionalidade econômica de tipo empresarial, calculadora da melhor aplicação
de recursos escassos. A forma empresa é o princípio de reunião dessas singularidades aleatórias. O
meio de circulação próprio a essas singularidades é o mercado, a realidade econômica, a ordem
natural, que acolhe em si as singularidades, objetivadas como sujeitos econômicos. As ciências
econômicas são os saberes associados a esse modo de objetivação do homem como homo
oeconomicus. A objetivação do meio e da multiplicidade encontra nos dois uma semelhança, uma
naturalidade comum, a economicidade. Essa natureza compartilhada entre singularidades e o seu
domínio de circulação encerra a possibilidade de determinação de relações causais, a partir das
quais, no nível estatístico, isto é, considerado o desvio padrão em referência a uma média
dominante, os comportamentos singulares podem ser probabilisticamente manipulados.
O estado ou a situação do mercado é analisada em um conjunto de variáveis
probabilísticas: inflação geral e setorial dos pros, déficit público, nível dos salários segundo as
diferentes categorias econômicas, nível de desemprego, nível de ocupação, nível da atividade
econômica, valor do produto econômico, rendimento per capita, nível de investimentos,
rendimentos do capital, nível de taxação da economia, juros médios, taxas de câmbio, balança
129
comercial, grau de concorrência, grau de competitividade etc. As ciências econômicas estudam as
vinculações dessas variáveis entre si, e os efeitos e incidências que as variações de umas causam
sobre as outras, assim como sobre o comportamento médio da população resultante de uma
determinada situação de mercado, ou de uma determinada situação setorial do mercado.
Por exemplo, as ciência econômicas vão buscar analisar a incidência que o aumento da
taxa de juros, artificialmente estabelecida pelo governo, tem sobre outras variáveis do mercado,
como o rendimento do capital, a inflação, o desemprego, a poupança, o mercado de ações, o
câmbio, o comércio externo, os salários, o consumo, a atividade industrial, a pecuária, a
agricultura, o comércio; e, também, suas implicações, diretas ou indiretas, sobre os índices
propriamente sociais, como a pobreza, a criminalidade, a urbanização, as migrações das
populações entre regiões geográficas e entre setores econômicos, as condições para a privatização
do sistema de saúde pública, do sistema de educação, do sistema de transportes.
Segundo a governamentalidade neoliberal, todo comportamento social, em termos
probabilísticos, é passível, ou deve tornar-se passível, de uma análise de tipo econômico, que
encontre sua vinculação, mais ou menos direta, com a situação de mercado em que esteja inserido,
segundo as variáveis econômicas que compõem tal situação. Todo comportamento social
determinado é relativo a uma determinada situação geral, setorial e regional do mercado; de tal
modo que a modificação artificial de algumas variáveis econômicas, facilmente manipuláveis pelo
governo, como os juros, o câmbio, a circulação monetária, os impostos ou a relação entre as
despesas e as receitas públicas, implica uma nova situação de mercado geral e setorial e
conseqüentemente novos comportamentos sociais.
Para a razão governamental neoliberal, obviamente, uma sociedade completamente
econômica, livre de todos os entraves dirigistas, que bloqueiam a naturalidade desses vínculos
causais entre mercado e população, é verdadeiramente passível de ser governada. em uma
sociedade completamente econômica, só em uma sociedade na qual os indivíduos funcionem
como empresas e as empresas como indivíduos, num meio de elevada concorrência, o modelo do
governo econômico, a determinação do comportamento social pela situação do mercado, pode
funcionar plenamente. Entretanto, as diversas realidades sociais concretas jamais são totalmente
econômicas. Como se verifica facilmente, nelas permanecem diversos setores que não funcionam
economicamente, como enormes bolhas de ar presentes no mar da economia, bolhas de
artificialidade, bolhas de protecionismo, de dirigismo, de falso mecanismo, de heteronímia. Trata-
se, para a política governamental neoliberal, portanto, de liberalizar os diversos setores sociais,
como as relações de trabalho, as reservas de mercado, como a saúde, a assistência, a segurança
130
social, a educação, os diferentes domínios do comércio interno e externo, de forma a que,
mediante sua liberalização, esses diversos setores reencontrem sua naturalidade submersa, ou seja,
sua natureza econômica, livre de qualquer concepção que lhes indique uma direção artificial e pré-
concebida. A intervenção do Estado neoliberal vai na direção da diluição dessas bolhas de ar
artificiais no oceano da economia. Tudo vai melhor quando funciona economicamente, quando é
dirigido por uma racionalidade econômica, segundo a lógica do mercado. Portanto, para que não
haja diferença entre população e governo, para que não haja o ingovernável, não deve haver
diferença entre sociedade e mercado, tudo deve se tornar mercado.
Os principais elementos do mecanismo de poder da biopolítica a naturalização e a
regulação da multiplicidade pelo meio em que está inserida, a inteligibilidade e a manipulação das
vinculações de causalidade entre meio e multiplicidade, a apreensão probabilística das
singularidades aleatórias, o estudo e o favorecimento do processos homeostáticos próprios ao
múltiplo enquanto múltiplo, próprios à naturalidade compartilhada entre meio e multiplicidade
estão presentes na governamentalidade neoliberal, no governo econômico. A noção formal da
biopolítica, como tecnologia do exercício de poder sobre uma multiplicidade, mediante
intervenções sobre o meio em que ela se insere, aplica-se como uma luva à “mão visível” da
governamentalidade neoliberal.
Para resumir, depois de havermos investigado, nos capítulos anteriores, o cruzamento da
política com a medicina, da política com as artes da guerra, da política com a scientia sexualis e da
política com a ars artium, o tema deste último capítulo, foi o cruzamento da arte política com as
ciências econômicas. Esse tema confere à noção de biopolítica o seu uso mais amplo e atual.
Nesse sentido, a biopolítica é o governo da população pelo Estado, mediante a vigilância, o
controle e a manipulação de algumas variáveis econômicas; a biopolítica é o governo econômico,
que concebe e opera a população a partir de sua economicidade natural.
Contudo, dentro de nossa perspectiva conservadora, embora essa última acepção esteja
conforme a noção formal de biopolítica, é preciso dizer, Foucault não emprega o termo biopolítica
neste sentido, como governo econômico. Este uso do termo foi absorvido pela introdução de um
novo: ‘governamentalidade’ e, mais precisamente, ‘governamentalidade neoliberal’. O governo
segundo a racionalidade econômica é próprio dos regimes neoliberais ou parcialmente neoliberais;
nesse contexto, a biopolítica, com significação reduzida, assume uma feição conforme, em que o
Estado entrega ao mercado, ou pelo menos divide com ele, a gestão do aspectos biológicos da
população, entre outros, a saúde e o patrimônio genético.
131
Conclusões e depois
Todo o mistério do mundo entrou
para a minha vida econômica.
302
Álvaro de Campos
Temos dispostas, atrás de nós, as quatro ou cinco formulações da biopolítica, traçadas por
Foucault, entre 1974 e 1979. Saúde, raça, sexualidade, segurança e economicidade são os cinco
princípios que, agenciados nos seus respectivos dispositivos biopolíticos, reúnem os seres
humanos em uma população. A população correlativa às práticas biopolíticas está atrelada a uma
naturalidade que lhe é supostamente intrínseca: sua vitalidade física e mental, seus caráteres
raciais, a lei de seu desejo, sua condição de rebanho ameaçado, seu interesse e racionalidade
econômicos. As cinco formulações da biopolítica mostram como cada uma dessas realidades
naturais, desses aspectos da vida humana, emerge, é agenciado no interior de práticas político-
discursivas. Esses cinco domínios, aparentemente exteriores e independentes da política,
aparecem, na análise de suas genealogias, senão como puros efeitos, pelo menos, como cinco
domínios indissociáveis de seus agenciamentos políticos.
A população, correlativo biopolítico, não é o mero acúmulo de partículas elementares
desconexas; não é o círculo de homens agrupados ao acaso ou arbitrariamente; não é a massa
humana assujeitada, por sua própria vontade, ao soberano; não é o arranjo hierárquico e funcional
de indivíduos em um sistema performático; nem, tampouco, a grande família; mas é o conjunto de
seres humanos articulados, em suas vidas, uns aos outros, por um ou mais dos princípios
biopolíticos de reunião. O princípio de reunião de indivíduos em uma população está baseado em
um aspecto da vida da espécie humana: o seu vigor físico, o seu patrimônio genético, a sua
conduta com relação ao incesto, a sua natureza probabilística ou a sua realidade econômica; de
302
PESSOA, Fernando. Obra poética. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005. P. 410.
132
todo modo, esse princípio de reunião funciona, ao mesmo tempo, como princípio de
inteligibilidade e como princípio de operacionalidade da população.
Aquela naturalidade, que permite reunir elementos díspares no todo coeso da população,
é objeto para os diferentes saberes biopolíticos, cujos princípios de inteligibilidade são justamente
a saúde, a guerra, a sexualidade, a segurança e a economicidade. A cada uma das cinco
biopolíticas corresponde um campo científico, um modo específico de objetivação do homem, que
o naturaliza, que faz do homem um ser natural. A saúde é objeto para a medicina, para a
psiquiatria; a luta de raças é objeto para as ciências das raças humanas, para o darwinismo social;
a sexualidade é objeto para a scientia sexualis; a carência de cuidados, para a ars artium, a arte de
governar um rebanho; o jogo econômico de necessidades e satisfações, para as ciências
econômicas. Cada um desses aspectos da vida humana é um modo de objetivação, ao qual se
articula um modo de assujeitamento. A naturalidade da população é a protuberância à qual se
agarram os diferentes poderes, é a matéria em torno da qual esses poderes se constituem, dando-
lhe uma forma. Saúde, ra, sexualidade, segurança e economicidade são, respectivamente, os
princípios de operacionalidade que tornam possíveis os vários modos de assujeitamento das
populações, os arranjos e exercícios do poder, segundo as distintas figuras biopolíticas: o poder
medical, o poder purificador da raça, o dispositivo de sexualidade, o dispositivo de segurança, o
governo econômico.
Em cada uma de suas cinco configurações, a biopolítica, isto é, os mecanismos de poder
que concernem ao governo da população, está mais ou menos conjugada à anátomo-política, aos
mecanismos de poder que apreendem os corpos humanos individuais. A conjunção dos
dispositivos propriamente biopolíticos com os anátomo-políticos é o que Foucault chamou de
biopoder. A anátomo-política é uma tecnologia de poder individualizante, cujo efeito é o
indivíduo, enquanto a biopolítica é uma tecnologia de poder totalizante, cujo efeito é a população.
No que foi assunto para o quarto e, sobretudo, para o quinto capítulo, para o governo da segurança
e para o governo econômico, os mecanismos de poder biopolíticos aparecem em suas figuras mais
independentes em relação aos mecanismos anátomo-políticos. A tecnologia propriamente
biopolítica é o mecanismo de poder que lida com o todo da população, que desenvolve os
instrumentos prático-discursivos para agenciar a vida da espécie humana, não por uma ação direta
sobre o corpo de cada um dos seus elementos, o por uma intervenção imediata sobre as vidas
individuais dos elementos que compõem o conjunto de uma população, mas por uma ação sobre as
variáveis ambientais que condicionam a vida da população, por uma intervenção mediada pelas
determinações naturais que têm uma implicação causal sobre a ordem da população. O mecanismo
133
de poder biopolítico age não diretamente sobre os indivíduos constituintes da população, mas
sobre o meio em que estão inseridos, cujas diversas variáveis são condicionantes de uma situação,
de um estado da população.
Dessa maneira, a biopolítica, no tocante à saúde da população, age sobre o planejamento
espacial dos diversos aparelhos urbanos, a renovação do ar, as canalizações de água e esgoto, a
localização de cemitérios, abatedouros, hospitais, desenvolve programas de saúde e campanhas
públicas que visam à população como um todo. A raça superior, por sua vez, precisa desvincular-
se do meio biológico degenerado que as outras raças, inferiores, constituem. A guerra, como
eugenia negativa, age sobre esse outro presente em si mesmo, impedindo sua reprodução,
eliminando-o massivamente, bloqueando as vias pelas quais ele se cruza com a boa parcela da
população, e a contamina. A tecnologia de purificação da população e a eugenia positiva não são
técnicas individuais, que operam os corpos individuais, mas técnicas de população, embora
lancem mão, em ampla medida, de aparelhos policiais de controle individual. A sexualidade
também, além de constituir-se como verdade para o indivíduo, é um fenômeno de população, é
considerada a causa de sua morbidade, de sua anormalidade, é uma modalidade constitutiva da
diferença de classes, é motivo para consolidar seu controle e vigilância. Nas técnicas de segurança,
as vidas individuais desaparecem sob as curvas estatísticas; os comportamentos individuais
anômalos são desconsiderados e até mesmo tolerados dentro de certos limites importa apenas o
desenho da curva estatística, a média, o desvio padrão e a margem de erro da ação de segurança.
Por outro lado, também no modelo econômico, o indivíduo é o inapreensível, o desconhecido. A
governamentalidade neoliberal o apreende apenas no nível do coletivo, mediante as técnicas que
desenvolve para a configuração das condições do mercado, do meio econômico em que se insere a
população. Para o neoliberal, que pretensiosamente defende ao máximo o direito individual, a
manipulação das variáveis de mercado, cuja ordem espontânea deriva do comportamento natural
da população, é o único instrumento admissível de governo.
Nos resta, para concluir, responder à questão de tipo socrático colocada na introdução a
esta dissertação. Afinal, as cinco formulações são aspectos de uma única e mesma biopolítica, da
mesma forma que diferentes quantidades do ouro são todas feitas do mesmo ouro, ou como as
diferentes partes do rosto que compõem um todo? É preciso, aqui, proceder por partes.
O poder medical, o poder racial, o dispositivo de sexualidade, o dispositivo de segurança
e a governamentalidade econômica, as cinco biopolíticas, não são como pesos ou figuras
diferentes, porém feitas, de um mesmo ouro, de uma mesma matéria. Como ficou claro, as cinco
134
biopolíticas diferem entre si justamente por aquilo que se apresenta como matéria para seu poder:
a saúde, a ra, o sexo, o espírito de rebanho, o comportamento econômico. Por outro lado,
tampouco são como diferentes partes de um todo nariz, olhos, boca, orelhas de um rosto –, as
cinco biopolíticas não se coordenam umas às outras para formar um todo. A biopolítica não é algo
completo, do qual fazem parte as suas cinco configurações. Nossas sociedades são atravessadas
por diferentes mecanismos biopolíticos de poder, talvez até mesmo por todos os cinco, mas a
ausência eventual de um ou mais deles não deixam incompleto o todo resultante.
Os diferentes mecanismos biopolíticos se somam, mas não como as quantidades de ouro,
que se acumulam. Esses mecanismos se somam, atravessando-se e permeando-se uns aos outros.
Um pintor cubista representaria o rosto do homem, objeto da biopolítica, com cinco faces, todas
elas completas e independentes entre si. Essas cinco faces não seriam como cinco nomes, nem
como cinco aspectos do mesmo homem natural, mas seriam cinco faces correlativas, digamos, às
próprias técnicas de pintura empregada pelo pintor, que seriam elas mesmas diferentes entre si, da
mesma forma que a cada técnica biopolítica corresponde um aspecto diferente do homem.
As cinco biopolíticas não são nomes diferentes para uma mesma coisa, cada uma refere a
uma prática-discursiva peculiar; tampouco são como partes independentes de um todo, cada uma é
em si mesma um todo completo. Seria preciso dar um outro tipo de resposta a Sócrates. Cada uma
das cinco configurações é dita biopolítica, porque todas elas são resultantes da aplicação da
mesma tecnologia de poder, que apreende, como população em relação com o meio ambiente,
uma multiplicidade de seres humanos, ao rebater essa multiplicidade a uma naturalidade comum à
vida de todos. É por aplicarem a mesma forma de tecnologia, que as cinco tecnologias de poder
podem ser agrupadas, num só conjunto, a biopolítica.
Devemos compreender a biopolítica como um mecanismo de poder, em que está em jogo
o governo de uma população. A população vale como coletivo de ser humano vivo. O que permite
designar a população como múltiplo de humanos é um princípio de reunião, que lhe é imanente,
isto é, que não lhe é imposto de fora. O fato de o princípio de reunião da população ser
compreendido como um princípio natural e imanente a distingue do coletivo hobbesiano para
súdito, o povo, constituído por artifício, em relação de exterioridade com o soberano, que o reúne.
O princípio que totaliza os seres humanos em uma população, não é um artifício, ele remete à sua
naturalidade.
A biopolítica é um mecanismo de poder que se interessa pelo coletivo. O indivíduo lhe
interessa apenas por sua ressonância no coletivo do qual faz parte. Em regimes políticos mais
policiais, mais herméticos, mais disciplinares, a biopolítica, a gestão do coletivo, da população,
135
aparece associada a mecanismos de controle direto sobre os indivíduos. Em regimes menos
disciplinares, em que o controle policial individual de cada um dos membros da população é
inviável, a biopolítica dispõe dos seus próprios mecanismos de governo. A estatística lhe permite
apreender, em termos de probabilidade, o comportamento individual. A população é, pode-se
dizer, uma entidade que pode ser conhecida e governada, não no vel do seu detalhe, mas no
plano do seu comportamento integralizado. As ferramentas da estatística possibilitam integralizar
os comportamentos e as situações individuais, em um comportamento e em uma situação coletiva,
geral, mediana, associada a uma curva de distribuição de casos. O desenho dessa curva estatística
é correlacionado com o meio ambiente, em que a população está inserida. O saber biopolítico
estabelece as correlações entre a situação desse meio ambiente, decomposto em variáveis
manipuláveis, e o comportamento estatístico da população. A ação biopolítica manipula essas
variáveis de modo a atingir a situação de população mais favorável ao regime político, ou seja, o
comportamento de menor tensão, de menor resistência, a homeostasia, a situação ideal em que os
desvios em relação à média são automaticamente compensados, por processos inerentes à relação
entre população e meio, mantendo-se com isso o equilíbrio visado. O que de comum nas cinco
formulações de biopolítica aqui analisadas é essa forma própria ao mecanismo biopolítico, isto é, a
presença e a modelação de um princípio natural de apreensão dos elementos individuais em uma
população, inserida em um meio que, por sua vez, é manipulado para se alcançar um estado
homeostático favorável ao próprio mecanismo. O que possibilita isso são os processos que
mobilizam a formação da opinião pública, e conduzem à identificação dos indivíduos com o
modelo antropológico operado no mecanismo biopolítico, o modelo do homem de saúde, de raça,
de sexualidade, o modelo do homem seguro, o modelo econômico.
A biopolítica em Foucault tem cinco formulações, cinco realidades diferentes, mas uma
forma. A biopolítica em Foucault é, ao mesmo tempo, cinco e uma. Cinco, porque a matéria
que está em jogo em cada uma delas é distinta da outra. Uma, porque cada uma delas opera sua
materialidade segundo o mesmo mecanismo formal.
Diante dessa resposta, certamente, Sócrates, descontente, nos faria novas e infindáveis
perguntas. Acossados pelo incansável moscardo, que discute as questões até reduzir a nada as
respostas, seríamos levados a seguir adiante
303
. Assim, adiantemo-nos de alguns passos...
303
No ensaio Pensamento e considerações morais, Arendt afirma que, para Sócrates, o papel do filósofo, na cidade, é
o do moscardo: “sabe como aferroar os cidadãos, que, sem ele, continuarão adormecidos e calmos pelo resto de
suas vidas”. ARENDT, Hannah. Pensamento e considerações morais [1970]. Trad. Helena Martins. In: A
dignidade humana: ensaios e conferências. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993. P. 156.
Apesar de certas semelhanças, Sócrates não pode ser o moscardo da mortal Io, a personagem da peça de Ésquilo,
Prometeu acorrentado. Io, inconsciente tanto da cobiça de Zeus como do ciúme de Hera, é perseguida por um
136
Nas biopolíticas, como em outros mecanismos de poder, estão em jogo três modos de
apreensão dos seres humanos. Como vimos, as biopolíticas referem-se a modos de objetivação do
homem, por exemplo, a medicina, a genética, a psicanálise, a governamentalidade, a economia, e a
modos de assujeitamento correspondentes, o poder medical e psiquiátrico, o poder racial, o poder
sobre a sexualidade, o pacto de segurança, os regimes econômicos. Um terceiro modo, que
mencionamos anteriormente, porém, sem destaque suficiente, compõe o tripé da biopolítica, o
modo de subjetivação dos homens. Fazem parte das estratégias de biopoder, os diversos modos de
produção de subjetividade individual e coletiva. No biopoder, a forma da referência de si a si, pela
qual a subjetividade individual se constitui, é sempre atravessada pelo modo de subjetivação
coletiva, isto é, a forma da referência de um si a um nós. Os homens em população estão sujeitos
às malhas do poder medical, porque se representam como sujeitos de um corpo, porque se
consideram saudáveis ou doentes, porque agem eles mesmos enquanto tais. Ao dispositivo de
sexualidade corresponde o sujeito de seu sexo; é enquanto homo sexualis, que o homem,
individualmente e coletivamente, se sujeita a tal dispositivo. Enquanto compreende a si mesmo
como homo oeconomicus, o homem se sujeita à governamentalidade econômica. Enquanto ovelha
em perigo, incapaz de governar a si mesma, os homens totalizam-se em população governável,
correlato do dispositivo de segurança. Enquanto se considera elemento de uma raça, ele luta por
sua sobrevivência, assujeita-se ao poder que faz a guerra.
O sujeito biopolítico ao mesmo tempo, assunto de saber, efeito de poder, índice de
interioridade é um sujeito naturalizado, que representa a sua própria vida de homem atrelada a
seus aspectos naturais supostamente incontorveis. A biopolítica opera o sujeito a partir de sua
natureza, e remete todas as suas potências a seus aspectos vitais finitos, os quais não pode, de
modo algum, transcender. Se durante séculos, as filosofias buscaram a essência do homem naquilo
que o diferenciava do animal, na capacidade infinita do sujeito humano de transcender sua
animalidade a racionalidade, a política, a religiosidade, a linguagem, a liberdade –, a
modernidade biopolítica vai fundar essa essência, como princípio de reunião dos humanos em
população, naquilo mesmo que prende a população à sua natureza, na finitude de sua vida, na
doença que a deteriora, na impureza racial que a degenera, no instinto sexual que a perverte, na
morte que a ameaça, no trabalho que a desgasta, e cujo produto lhe é sempre alienado
304
. À
biopolítica está associado o pensamento da finitude do homem, o pensamento do homem como ser
moscardo e condenada a seguir adiante indefinidamente. crates-moscardo persegue os cidadãos, em círculos,
não os afasta da pólis, nem os conduz à verdade; enquanto o moscardo de Io a persegue, para além da cidade, até a
presença do Deus, de quem ouve a verdade sobre seu próprio destino.
304
Cf. STP, 81.
137
finito. Para as antropologias biopolíticas, a essência do homem é a sua vida finita, fisiológica,
econômica. A biopolítica apreende as vidas dos homens como indissociáveis da naturalidade dos
seus corpos, e ao mesmo tempo as desveste de toda escrita própria, de todo traço biográfico, de
todo uso específico e individual, que cada sujeito possa fazer desse corpo, dessa natureza. Sem
vestes próprias, as vidas dos homens, suas biografias, se reduzem, nas confissões, nos relatos, nos
relatórios, nos discursos, nos saberes, ao plano de seu corpo, de sua vida natural, biológica e
desejante. Na modernidade antropológica, as potências da vida humana aparecem vinculadas,
atreladas, à sua natureza finita e determinadas por ela
305
.
Numa perspectiva oposta a essa da finitude, a potencialidade da vida, isto é, a
indeterminação dos múltiplos usos que individualmente podemos fazer de nossas vidas, foi o tema
de Kant, em sua Antropologia do ponto de vista pragmático. Obra familiar a Foucault, que a
traduziu, em 1960. “O conhecimento fisiológico do homem afirma Kant tende à exploração
daquilo que a natureza faz do homem; o conhecimento pragmático, à exploração daquilo que o
homem, enquanto ser de atividade livre, faz, ou pode e deve fazer, de si mesmo”
306
. Esse uso que
nós podemos fazer de nossas vidas permite a Kant, na sua Antropologia, delimitar o espaço
próprio de uma liberdade pragmática: o mundo, o espaço aberto pela relação entre o homo
naturalis e o “homem como cidadão do mundo”, uma relação jamais definitiva, que não é de
completa exterioridade, sem ser tampouco de superposição, de coincidência, uma relação que se
desenrola na forma do jogo e do artifício, a partir do exercício, da experiência, em que o indivíduo
pode submeter a sua própria condição natural. Nos anos 1980, Foucault volta a refletir sobre a
305
Walter Benjamin nos adverte do perigo que representa a concepção da finitude como essência da humanidade: “O
homem precisamente não deve ser confundido de modo algum com a vida nua humana (mit dem bloßen Leben des
Menschen) BENJAMIN, Walter. Zur Kritik der Gewalt und andere Aufsätze. Frankfurt: Suhrkamp, 1965
[1921]. P. 62.
306
KANT, Immanuel. Anthropologie du point de vue pragmatique. Trad. Michel Foucault [1964]. 4 ed. Paris: J.
Vrin, 2002 [1798]. P. 15. AK, XI, 119. Para Foucault, Kant é o último dos clássicos e o primeiro dos modernos.
Kant é moderno, porque toma, na Antropologia, o homem como objeto de saber para um sujeito, cuja
possibilidade de conhecimento é limitada pela crítica, a qual admite o conhecimento vinculado à experiência de
sua vida natural. Kant é clássico, porque, mesmo no seio de sua Antropologia, reconhece, no homem, o Geist, o
princípio espiritual, a irredutível tendência humana à metafísica e à autonomia, que o remete sempre para além de
suas determinações antropológicas naturais. Cf. FOUCAULT, Michel. Introduction à l’Anthropologie de Kant.
Thèse Complémentaire (Doctorat ès lettres) – Inédita. Paris: Biblioteca da Universidade da Sorbonne, 1961.
Disponível em: <http://www.foucault.qut.edu.au/links.html>. Acesso em: 16.03.2006.
No final de sua tese de 1961, Foucault posiciona, curiosamente, Nietzsche na fileira de Kant. Nietzsche, muitas
vezes, é considerado como o filósofo do corpo, da fisiologia. Conferir, por exemplo: LEVINAS, Emmanuel.
Quelques réflexions sur la philosophie de l’hitlerisme. Paris: Fata Morgana, 1997 [1934]. Em sua posição,
Foucault interpreta Nietzsche de outro modo, como o filósofo do fim do homem, do ancio da possibilidade de
sua transcendência, do Übermensch.
138
possibilidade da ética
307
. O retorno a Kant, acompanha o distanciamento de Foucault em relação à
sua concepção de um sujeito determinado por mecanismos de poder heterônomos, concepção
derivada da analítica dos poderes dos anos 1970. O retorno de Foucault à reflexão a respeito de
um sujeito capaz de governar-se a si próprio, de ser, pelo menos em parte, o agente de sua própria
subjetivação, esse retorno à substância do texto da Antropologia, em que a vida não é mais um
elemento biológico determinante do sujeito, mas um elemento biográfico, suporte para uma
escritura de si, por parte do próprio sujeito, talvez possa ser posto em relação com a transformação
da sua concepção da relação de poder. A partir de 1978, para Foucault, a noção de governo, em
detrimento da noção de força, torna-se crucial para inteligir as relações de poder.
É muito diferente decifrar as relações de poder como relações de governo, estabelecidas
entre governantes e governados, do que decifrá-las como relações de força, como força contra
força em meio a uma batalha contínua. No campo de forças, as forças são contíguas, tocam-se
necessariamente umas nas outras; força enquanto contra-força, resistência. Não pode
haver espaço, qualquer folga, entre forças; força enquanto ela se exerce contra uma outra
força; as forças caem a zero quando não se confrontam diretamente. Obviamente, não podemos
tomar a relação de força como uma mecânica pura; trata-se de um instrumento de análise, parte de
uma grade de noções para inteligir como operam as relações de poder. Mesmo assim, a
inteligibilidade da relação de poder como relação de força possui, a meu ver, três grandes
restrições, superadas pela noção de governo. Primeiro, forças são exercidas entre coisas, entre
seres humanos, e entre humanos e coisas. Falta à relação de força uma característica exclusiva à
relação entre humanos. A segunda restrição são os necessários imediatismo e presença das forças
em jogo; falta ao imediato da relação de força a dimensão da intervenção do passado e do futuro
sobre o acontecimento presente; falta ao contato das forças o espaço aberto, a folga de um campo
aberto a movimentos possíveis. A terceira restrição é a figura da liberdade; em uma relação de
força, a liberdade só pode ser pensada como resistência e, assim, como determinada pelas próprias
forças às quais resiste.
A relação de poder interpretada como relação de governo contorna essas três
dificuldades
308
. O poder, como o governo, é sempre uma relação entre humanos livres. Relação
que pode ser individual, de um indivíduo a outro, ou coletiva, de um grupo a outro. Não se
governa um navio, mas os marinheiros. Sobre as coisas se exerce uma força, não um governo.
307
Entender o pensamento ético de Foucault, como retorno, modificado pelo percurso, às análises do texto de Kant,
talvez explique sua frase, escrita em 1984, em um momento crucial de reavaliação do seu próprio trajeto:
“Acreditávamos nos afastar, e nos encontramos na vertical de nós mesmos”. UDP, 19.
308
A respeito do que se segue, cf. Le sujet et le pouvoir. Texto 306 [1982]. In: DE2, 1055-1058.
139
Governar é estruturar o campo das ações possíveis dos governados. Apesar do governo, apesar da
estruturação e do limite que o governante estabelece no seu campo de ações possíveis, o
governado é ainda e sempre um agente, que tem diante de si um leque de possibilidades. Ainda e
sempre, resta ao governado a iniciativa da ação. Ao estruturar o campo de possibilidades das ações
dos governados, o governante leva em consideração o passado dessas ações, assim como seu
eventual desdobramento no futuro. O governo é uma ação sobre uma ação possível. A violência
não é constitutiva da relação de poder, mas um recurso do exercício do poder; quando a força
violenta o ser humano, ele se coisifica, a violência é o limite da relação de poder como relação de
governo. O governante conduz os homens elaborando o campo de suas ações potenciais, jamais
deixa de considerá-los, portanto, como sujeitos de ação, como agentes, e como agentes livres, ao
menos parcialmente. O espaço de liberdade do agente, que se abre pela concepção da relação de
poder como relação de governo, talvez inaugure a possibilidade da ética. A liberdade desse agente
só é levada às últimas conseqüências quando se torna uma prática refletida.
A última conseqüência da liberdade do agente, na relação de governo, desde que se
disponha a tanto, é a sua possibilidade de transcender o governo pelo outro, que na modernidade, é
um governo biopolítico, portanto, a sua possibilidade de transcender os princípios a partir dos
quais se sua sujeição ao governo, os princípios biopolíticos que o atrelam à sua finitude. À
ética, como prática refletida dessa liberdade, como governo de si, como cuidado de si, como
instrumento para uma autobiografia, à ética cabe oferecer à potência de subjetivação do homem a
possibilidade de transcender sua determinação biopolítica. A ética inaugura, para o ser humano
que exercita sua potência experiencial, sua liberdade, a possibilidade de transcender a sua própria
naturalidade, à qual os mecanismos de poder biopolíticos o mantêm fixo.
O sujeito em Foucault não pré-existe à relação de poder de si a si; ele surge da forma
dessa relação, assim como o sujeito biopolítico surge dos mecanismos de poder biopolíticos. Na
ética de Foucault, há uma materialidade a ser trabalhada, um modo subjetivo de assujeitamento às
regras, mediante técnicas e práticas de poder sobre nós mesmos, orientadas segundo os fins que o
sujeito estabelece para si. A subjetividade é o correlato das tecnologias de si, assim como o homo
naturalis, saudável, sexual e econômico é o correlato dos dispositivos biopolíticos. A
possibilidade de uma ética, de uma transcendência em relação ao plano de imanência biopolítico,
pressupõe um sujeito que, embora seja um sujeito sem forma prévia, de algum modo é capaz de
reconhecer em si mesmo a sua potência de auto-determinação, a possibilidade de estabelecer, para
si mesmo, uma maneira de viver diferente daquela continuamente reproduzida pelos mecanismos
de poder heterônomos. O sujeito do último Foucault é um sujeito por fazer, potencialmente capaz
140
de estabelecer, em relação a si mesmo, uma diferença contínua. Sua única indeterminação, porém,
é a potência de reconhecer, em si mesmo, um material ao qual pode ser dado uma outra forma. O
que pré-existe, no sujeito ético de Foucault, não é a forma que ele é capaz de dar à sua própria
materialidade, não é a forma que constitui a sua experiência, mas a simples capacidade de se
experimentar sempre outro em relação a si próprio, à sua própria forma atual. Aliás, a forma que o
sujeito a si mesmo, na prática refletida de sua liberdade, está à sua disposição, não antes da
experiência que ele faz de si mesmo, não na sua ‘interioridade’, mas no mundo do qual faz parte.
141
Referências
Entre colchetes, apresenta-se a data da primeira publicação dos artigos e livros.
ALTHUSSER, Louis. Avertissement aux lecteurs du Livre I du Capital. [1969]. Disponível em:
<http://www.marxists.org/francais/marx/works/1867/Capital-I/althusser_cap.htm>.
Acesso em: 03.04.2007.
ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposo. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2001 [1958].
––––––. Pensamento e considerações morais [1970]. Trad. Helena Martins. In: A dignidade
humana: ensaios e conferências. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993. Pp. 145-168.
ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, Emir; GENTILI, Pablo (Orgs.).
Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1995. Pp. 9-23.
BALIBAR, Étienne. La philosophie de Marx. 2 ed. Paris: La Découverte, 2001 [1993].
BENJAMIN, Walter. Zur Kritik der Gewalt und andere Aufsätze. Frankfurt: Suhrkamp, 1965
[1921].
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Trad. Márcio Pugliesi.
São Paulo: Ícone, 1995 [1960-1961].
CLAUSEWITZ, Carl von. De la guerre. Paris: Minuit, 1955 [1832].
DEBORD, Guy. La société du spectacle. 3ª ed. Paris: Gallimard, 1992 [1967].
DEFERT, Daniel. Chronologie [1994]. In: DE1. Pp. 13-90.
DELEUZE, Gilles. Foucault. Paris: Minuit, 2004 [1986].
––––––. Post-scriptum sur les sociétés de contrôle. In: Pourparlers. Paris: Minuit, 1990. Pp. 229-
247.
ESPOSITO, Roberto. Bíos: Biopolitica e filosofia. Torino: Einaudi, 2004.
FONTANA, Alessandro; BERTANI, Mauro. Situation du cours [1997]. In: IDS. Pp. 245-263.
FOUCAULT, Michel. Introduction à l’Anthropologie de Kant. Thèse Complémentaire
(Doctorat ès lettres) – Inédita. Paris: Biblioteca da Universidade da Sorbonne, 1961.
Disponível em: <http://www.foucault.qut.edu.au/links.html>. Acesso em: 16.03.2006.
––––––. Les mots et les choses. Paris: Gallimard, 1966.
142
––––––. Le pouvoir psychiatrique: Cours au Collège de France, 1973-1974. Paris:
Seuil/Gallimard, 2003 [1974].
––––––. Surveiller et punir: naissance de la prison. Paris: Gallimard, 1975.
––––––. Les anormaux: Cours au Collège de France, 1974-1975. Paris: Seuil/Gallimard, 1999
[1975].
––––––. Il faut défendre la société: Cours au Collège de France, 1975-1976. Paris:
Seuil/Gallimard, 1997 [1976].
––––––. Histoire de la sexualité 1: La volonté de savoir. Paris: Gallimard, 1976.
––––––. Sécurité, territoire, population: Cours au Collège de France, 1977-1978. Paris:
Seuil/Gallimard, 2004 [1978].
––––––. Naissance de la biopolitique: Cours au Collège de France, 1978-1979. Paris:
Seuil/Gallimard, 2004 [1979].
––––––. História da sexualidade II: L’usage des plaisirs. Paris: Gallimard, 1984.
––––––. Dits et écrits. Vol. II. 1976-1988. Paris: Quarto Gallimard, 2001 [1994].
––––––. Dits et écrits. Vol. I. 1954-1975. Paris: Quarto Gallimard, 2001 [1994].
––––––. Entretien avec Michel Foucault. Texto 192 [1976]. In: DE2. Pp. 140-160.
––––––. L’incorporation de l’hôpital dans la technologie moderne. Texto 229 [1974]. In: DE2.
Pp. 508-521.
––––––. La naissance de la médecine social. Texto 196 [1974]. In: DE2. Pp. 207-228.
––––––. La philosophie analytique de la politique. Texto 232 [1978]. In: DE2. Pp. 534-551.
––––––. La situation de Cuvier dans l’histoire de la biologie. Texto 77 [1969]. In: DE1. Pp. 898-
934.
––––––. La société disciplinaire en crise. Texto 231 [1978]. In: DE2. Pp. 532-534.
––––––. Le jeu de Michel Foucault. Texto 206 [1977]. In: DE2. Pp. 298-329.
––––––. Le monde est un grand asile. Texte 126 [1973]. In: DE1. Pp. 1301-1302.
––––––. Le sujet et le pouvoir. Texto 306 [1982]. In: DE2. Pp. 1041-1069.
––––––. Les rapports de pouvoir passent à l’intérieur des corps. Texto 197 [1977]. In: DE2.
Pp. 228-236.
––––––. Michel Foucault: “Désormais, la sécurité est au-dessus des lois”. Texto 211 [1977]. In:
DE2. Pp. 366-368.
––––––. Michel Foucault: la sécurité et l’État. Texto 213 [1977]. In: DE2. Pp. 383-388.
––––––. Omnes et singulatim. Texto 291 [1979]. In: DE2. Pp. 953-980.
––––––. Préface. Texto 191 [1977]. In: DE2. Pp. 138-140.
––––––. Prisons et révoltes dans les prisons. Texto 125 [1973]. In: DE1. Pp. 1293-1300.
143
FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Trad. Paulo Dias Corrêa. Rio de
Janeiro: Imago, 2002 [1905].
––––––. Cinco lições de psicanálise. Trad. diversos. Rio de Janeiro: Imago, 2003 [1909].
HAN, Béatrice. L’ontologie manquée de Michel Foucault. Grenoble: Jérôme Millon, 1998.
HAYEK, F. A. Os princípios de uma ordem social liberal. In: CRESPIGNY, Anthony; CRONIN,
Jeremy. Ideologias da política. Brasília: Universidade de Brasília, 1981 [1975].
HOBBES, Thomas. Leviathan. Indianapolis/Cambridge: Hackett, 1994 [1651].
ILLICH, Ivan. A expropriação da saúde: Nêmesis da medicina. Trad. José Kosinski de
Cavalcanti. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira [1975].
KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Trad. José florentino Duarte. Porto Alegre: Fabris,
1986 [1979].
MARCUSE, Herbert. Preface à l’édition française. In: L’homme unidimensionnel: essai sur
l’idéologie de la société industrielle avancée. Trad. Monique Wittig e Herbert Marcuse.
Paris: Minuit, 1968 [1964].
MARX, Karl. Para a crítica da economia política [1857]. Trad. José Arthur Giannotti e Edgar
Malagodi. Col. Os Pensadores, XXXV. São Paulo: Abril, 1974.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. L’idéologie allemande. (1845-1846) Première partie. Trad.
Hans Hildebrand. Paris: Nathan, 2003 [1846].
––––––. Manifeste du Parti communiste. Trad. Laura Lafargue. Paris: Librio, 1998 [1847].
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Trad. Paulo César Lima de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002 [1882].
––––––. Ainsi parlait Zarathoustra. Trad. Geneviève Bianquis. Paris: Flammarion, 1996 [1885].
––––––. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo César Lima de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003 [1887].
PLATÃO. Protágoras - Górgias – Fedão. Trad. Carlos Alberto Nunes. 2 ed. Belém: Edufpa,
2002 [1973].
REVEL, Judith. Foucault: conceitos essenciais. Trad. Carlos Piovezani Filho e Nilton milanez.
São Carlos: Claraluz, 2005 [2002].
SCHMITT, Carl. Teologia política. Trad. Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2006
[1922-1970].
SENELLART, Michel. Situation des cours. In: STP. Pp. 379-411.
––––––. Situation du cours. In: NBQ. Pp. 331-336.
SIEYÈS, Emmanuel. Qu’est-ce que le Tiers Etat? Paris: Quadridge / PUF, 1982 [1789].
TIMASHEFF, Nicholas S.. Teoria sociológica. Trad. Antônio Bulhões. 4 ed. Rio de Janeiro:
Zahar, 1973 [1955].
VEYNE, Paul. Foucault révolutionne l’histoire. In: Comment on écrit l’histoire. Paris: Seuil,
1996 [1971]. Pp. 383-429.
144
WEBER, Max. Économie et socié. T. 1. Les catégories de la sociologie. Trad. diversos. Paris:
Plon, 1995 [1920].
WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophische Untersuchungen. Frankfurt: Suhrkamp, 2003.
Lista das obras referenciadas de Michel Foucault já traduzidas para o português
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Trad.
Salma Tannus Muchail. 8 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
––––––. O poder psiquiátrico. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
––––––. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 27 ed. Petrópolis: Vozes,
2003.
––––––. Os anormais. Trad. Eduardo Brandão. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
––––––. Em defesa da sociedade. Trad. Maria Ermantina Galvão. 2 ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2005.
––––––. História da sexualidade 1: A vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa
Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 15 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2003.
––––––. História da sexualidade 2: O uso dos prazeres. Trad. Maria Thereza da Costa
Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 7 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1994.
––––––. Ditos e escritos. Vol I. Problematização do Sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise.
2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
––––––. Ditos e escritos. Vol II. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento.
2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
––––––. Ditos e escritos. Vol III. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. 2 ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2006.
––––––. Ditos e escritos. Vol IV. Estratégia, Poder-saber. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2006.
––––––. Ditos e escritos. Vol V. Ética, Sexualidade, Política. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2006.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo