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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
LIANI FERNANDES DE MORAES
UMA AUTORA, CINCO CONTOS, MUITAS VOZES:
Um estudo das vozes na narrativa de Karen Blixen
São Paulo
2007
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10
LIANI FERNANDES DE MORAES
UMA AUTORA, CINCO CONTOS, MUITAS VOZES:
Um estudo das vozes na narrativa de Karen Blixen
Dissertação apresentada à Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como requisito
parcial para a obtenção do título de
Mestre em Letras.
Orientadora: Profª Drª Lílian Lopondo
São Paulo
2007
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M827u Moraes, Liani Fernandes de
Uma autora, cinco contos, muitas vozes: um estudo das
vozes na narrativa de Karen Blixen. / Liani Fernandes de
Moraes. – 2007.
126 f. ; 30 cm.
Dissertação (Mestrado em Letras)–Universidade
Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2007.
Orientação: Prof ª Drª Lílian Lopondo
Bibliografia: f. 122-126.
1. Voz. 2. Oralidade. 3. Símbolo. 4. Arquétipo. 5. Estatuto.
6. Sentido. I. Título.
CDD 808.8023
12
LIANI FERNANDES DE MORAES
UMA AUTORA, CINCO CONTOS, MUITAS VOZES:
UM ESTUDO DAS VOZES NA NARRATIVA DE KAREN BLIXEN
Dissertação apresentada à Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre em
Letras.
Aprovada em janeiro de 2008.
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________________________________
Profª Drª Lílian Lopondo – Orientadora
Universidade Presbiteriana Mackenzie
________________________________________________________________________
Profª Drª Ana Lúcia Trevisan Pelegrino
Universidade Presbiteriana Mackenzie
________________________________________________________________________
Profª Drª Sônia Helena Raimundo Piteri
Universidade Estadual Paulista
13
Ao meu marido, José Carlos, pelo
amor e apoio constantes. Aos meus
professores, colegas e alunos, por
tudo o que aprendi e tenho
aprendido. Aos meus pais, irmãos e
filho, por tudo o que faço e sou.
14
AGRADECIMENTOS
A Deus, fonte de sabedoria, pela força e coragem ao longo do caminho.
À Profª Lílian Lopondo, pelo carinho e pela orientação firme e competente.
Aos Profs. da Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em
especial aos Profs. Diana L. P. de Barros, Lílian Lopondo, Aurora G. R. Alvarez, Helena
Bonito C. Pereira, Elisa Guimarães Pinto, Neusa M. O. B. Bastos, José J. Cury e Ana Lúcia
T. Pelegrino, exemplos de competência e dedicação.
Às Profªs Sônia Helena R. Piteri e Ana Lúcia Trevisan Pelegrino, pela leitura cuidadosa do
meu trabalho bem como pelas orientações e sugestões apresentadas por ocasião do
exame de qualificação.
Ao Pe. M. Smyda, Reitor do Colégio São Luís, pelo apoio e incentivo não a mim, mas a
todos nós, professores, na busca do magis, essencial para o bom trabalho docente.
Aos Profs. Denise M. Krein, Jairo Cardoso e Benedita de Lourdes Massaro, Diretores do
Colégio São Luís, pelo incentivo e apoio, e que, juntamente com Pe. Smyda, foram de
ajuda fundamental para a realização deste trabalho.
Aos amigos professores, Oscar A. Guelli Neto, Ana Maria C. P. Bueno, Romilda Sobral, M.
Luíza A. Bittencourt, Carlos E. Faraco, Cleide L. de Andrade, Helena M. Marquesim, Zilda
Cotrim Cortese, M. Stella Scavazza, M. Cristina Mazzocchi, Cristiano B. Wiik, Marco A.
Silva, e M. Cecília Marino, Cristina César, Marília Cantamessa, inspiração e exemplo de
trabalho docente de qualidade.
Às colegas e amigas queridas, Mercedes L. Guelli, Eliane Person e Stella M. N. Hannun,
professoras exemplares e companheiras de sempre.
Aos colegas, professores e funcionários do Colégio São Luís, em especial à Profª Ana
Elvira Casadei Iorio, que tão gentil e competentemente revisou este trabalho.
Aos colegas, funcionários e amigos professores da FESP Fundação Escola de
Sociologia e Política de o Paulo pelo incentivo e carinho, em especial, às Profªs
Evanda Verri Paulino e Cecília Gomes de Almeida.
Às Bibliotecárias Fabiana (FESP), Giselda (Mackenzie), Lídia (Escola Nª Srª das Graças) e
Otávia (Colégio São Luís), pela gentileza e prontidão em tantos momentos, e pelo auxílio
gentil na formatação deste trabalho.
À Márcia Cristina, professora exemplar, guia e lastro, querida companheira e irmã.
A um marido, filho e irmãos, tão pacientes e queridos.
Ao Kíron e à Cléo, companheiros fiéis de tantas madrugadas.
15
Love, with very young people, is a heartless business. We drink at that age from thirst, or to
get drunk; it is only later in life that we occupy ourselves with the individuality of our wine.
(Karen Blixen)
O amor, para os muito jovens, é algo cruel. Bebemos nessa idade por sede, ou para
embriagarmo-nos; é só mais tarde na vida que nos ocupamos da individualidade de nosso
vinho. (Idem.)
1
1
Foto retirada do site <http://www.leme.pt/biografias/dinamarca/letras/karen.html - 10k>. Vide Referências,
Sites Pesquisados.
16
RESUMO
O corpus deste trabalho é constituído pela análise das múltiplas vozes que se fazem
ouvir por meio dos discursos das personagens nos cinco contos de Anedotas do Destino,
de Karen Blixen.
Cada voz pode representar uma ou mais possibilidades de expressão, como a voz
autobiográfica, a voz simbólica, ou ainda, a voz estatutária, revelando significados e
entonações segundo as posições mutáveis das personagens ao longo dos enredos.
Tais vozes não podem ser consideradas conseqüências dos conflitos propostos; ao
contrário, são elas que determinam os embates por meio dos quais se desenvolvem as
narrativas.
Este estudo baseia-se nos postulados de Mikhail Bakhtin referentes à teoria do
dialogismo, os quais, no caso deste trabalho, foram transferidos para o conto, gênero
híbrido cuja origem remonta ao período das histórias passadas através das gerações pela
oralidade.
No caso específico dos contos de Karen Blixen, a análise das vozes remete à própria
gênese do conto como narrativa oral, cuja passagem para a forma escrita conserva certas
características das vozes arquetípicas, as quais se fazem ouvir individual ou
simultaneamente sobrepostas umas às outras, numa harmonia heteroglóssica geradora de
múltiplos sentidos.
Palavras-chave: Voz. Oralidade. Arquétipo. Símbolo. Estatuto. Sentido.
17
ABSTRACT
The corpus of this paper seeks to analyze the nature of the multiple voices which can
be heard through the characters’ speeches in the five short stories in Anecdotes of Destiny
by Karen Blixen.
Each voice may represent one or more possibilities of expression such as the
autobiographical, the symbolic, or even the statutory voice, by revealing meanings and
intonations according to the characters’ changeable positions within the plots.
Such voices can not be considered as consequences of the proposed conflicts;
instead, they determine the tensions through which the stories evolve.
This study is based on Mikhail Bakhtin’s postulates in reference to the theory of
dialogism, which in the case of the present paper, were transferred to the short story, a
hybrid genre whose origin derives from the tales passed on through the generations by oral
transmission.
In the specific case of Karen Blixen’s short stories, the study of the voices is linked to
the own genesis of tales as oral narratives, which were passed to written form by keeping
certain characteristics of the archetypical voices, which can be heard individually, or
simultaneously superimposed, in a heteroglossical harmony capable of generating multiple
meanings.
Keywords: Voice. Oral transmission. Archetype. Symbol. Statute. Meaning.
18
SUMÁRIO
1 SOBRE KAREN BLIXEN E SUA OBRA .................................................... 9
2 APRESENTAÇÃO DO TRABALHO ........................................................... 14
3 CAPÍTULO I – O CONTO E A TRADIÇÃO DA ORALIDADE: O
SOBRENATURAL EM KAREN BLIXEN ................................................... 21
4 CAPÍTULO II – OPOSTOS COMPLEMENTARES: O EMBATE DAS
VOZES FEMININAS E MASCULINAS ...................................................... 41
5 CAPÍTULO III – AS VOZES SIMBÓLICAS ............................................... 57
6 CAPÍTULO IV – A VOZ AUTOBIOGRÁFICA ............................................ 74
7 CAPÍTULO V – AS VOZES REVELADORAS DOS PROCESSOS DE
TRANSFORMAÇÃO ................................................................................. 89
8 CAPÍTULO VI – “A FESTA DE BABETTE”: A CELEBRAÇÃO DA
NARRATIVA ............................................................................................ 106
9 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................... 115
REFERÊNCIAS ........................................................................................ 122
19
SOBRE KAREN BLIXEN E SUA OBRA
Karen Christentze Dinesen, que ao casar-se recebeu o sobrenome Blixen
2
, nasceu
em Rungstedlund, Dinamarca, filha de família abastada e aristocrata, em 17 de abril de
1885. Quando ela tinha 10 anos, seu pai, militar, escritor, político e desportista, cometeu
suicídio, provavelmente motivado pela descoberta de que estava com sífilis, na época,
incurável. Esse fato marcou profundamente a autora, tanto à época do trágico
acontecimento como ao longo de toda a sua vida, inclusive com possíveis reflexos sobre
sua obra.
Karen e suas irmãs tiveram uma educação primorosa. Todas estudaram na Suíça
onde adquiriram perfeito domínio do francês e do inglês. Aos 22 anos, Karen Blixen
começou a publicar pequenas histórias em jornais e revistas dinamarqueses.
Em 1914, aos 28 anos, casou-se com um primo sueco, o Barão Bror von Blixen-
Finecke, homem aristocrático e culto, porém falido, ao contrário de Karen, que possuía um
respeitável patrimônio financeiro. A união entre os dois foi baseada mais em amizade do
que em amor propriamente dito, tendo ela então se tornado a Baronesa Karen Blixen-
Finecke.
Partiram para o Quênia, na África, país que a partir do início da Primeira Guerra
Mundial, ficou sob domínio inglês. Perto de Nairóbi, Karen havia adquirido uma fazenda
para o cultivo de café. Na verdade, seu interesse inicial pela África começou pelo gosto
dos safáris, esporte da moda praticado por gente rica durante o século XIX e parte do
século XX, quando as pessoas achavam normal matar animais por prazer bem como
contratar africanos por minguados salários para fazer todos os trabalhos que os brancos
colonizadores não faziam. A mudança da Europa para a África marcou para sempre a vida
pessoal de Karen, influenciando também sua carreira como escritora.
O barão raramente ficava na propriedade, delegando à esposa todas as tarefas
pertinentes à plantação, colheita e venda do café produzido, já que na maior parte do
tempo, estava envolvido com safáris e mulheres, distanciando-se cada vez mais da
esposa e dos afazeres da fazenda.
2
Além de dados de sua principal biógrafa, Judith Thurman, também foram pesquisados sites para a
elaboração da biografia de Karen Blixen, os quais se encontram citados nas Referências, em Sites
Pesquisados.
20
Mais tarde, a solidão bem como a percepção de que seu casamento havia
fracassado fizeram-na aproximar-se mais dos nativos trabalhadores da fazenda por quem
se afeiçoou e de quem cuidou com carinho, especialmente das crianças, dos idosos e dos
doentes. Sua dedicação foi retribuída por eles, que a tinham em grande estima.
Em 1915, Karen descobriu haver contraído sífilis do marido, o que a obrigou a
retornar à Dinamarca para se tratar. Seu segundo retorno à terra natal ocorreria em
1925, quando resolveu passar um ano em sua casa após divorciar-se oficialmente.
Pouco antes de retornar à Dinamarca pela primeira vez, Karen Blixen conheceu o
inglês Denys Finch Hatton (1887-1931), que se tornaria o grande amor de sua vida. Denys,
cujo senso de independência e aventura o levaram a trabalhar na África como guia de
safáris, pertencia a uma aristocrática e abastada família inglesa. Ainda casada, Karen
iniciou com ele uma amizade e, logo a seguir, um relacionamento amoroso que perduraria
até a morte dele.
Ele tornou-se para ela mais do que um amigo ou um amante, tendo sido, na verdade,
uma espécie de catalisador para a vívida imaginação de Karen, o primeiro e o melhor
ouvinte de suas histórias. Em seu livro autobiográfico, A Fazenda Africana, (Out of Africa),
escrito em 1937, que recebeu em Portugal o título de África Minha, Karen revela o dia-a-
dia de sua vida no Quênia, seus bons e maus momentos, suas alegrias e angústias, seu
relacionamento frustrado com o marido assim como a realização amorosa que encontrou
em Denys, ao menos nos períodos em que ele permanecia na fazenda. Assim ela
descreve seu relacionamento com ele:
Denys Finch Hatton had no other home in Africa than the farm; he lived in my
house between his safaris, and kept his books and his gramophone there. […]
Denys had a trait of character which to me was very precious; he liked to hear a
story told. […] Fashions have changed, and the art of listening to a narrative has
been lost in Europe. […] Denys, who lived much by the ear, preferred hearing a
tale told, to reading it; when he came to the farm he would ask: Have you got a
story? I had been making up many while he was away. In the evenings he made
himself comfortable, spreading cushions like a couch in front of the fire, and with
me sitting on the floor, cross-legged like Scheherazade herself, he would listen,
clear-eyed, to a long tale, from when it began until it ended
3
(BLIXEN, 2001, p.
193-4, grifo da autora).
3
Denys Finch Hatton não tinha nenhum outro lar na África além da fazenda; ele morava em minha casa nos
intervalos entre seus safáris, e mantinha seus livros e gramofone. [...] Denys possuía um traço de caráter
que me era muito precioso; ele gostava de ouvir histórias contadas. [...] Os costumes mudam, e a arte de
ouvir narrativas perdeu-se na Europa. [...] Denys, para quem os sons tinham grande importância, preferia
antes ouvir uma história do que lê-la; quando chegava à fazenda, ele perguntava: Você tem uma história? Eu
tinha criado várias enquanto ele estava ausente. À noite, ele se acomodava confortavelmente, espalhando
almofadas à guisa de sofá defronte à lareira, e comigo ao seu lado, sentada no chão com as pernas
21
Muitas das narrativas de Karen foram construídas a partir de uma frase ou palavra
proferida por ele ao acaso. A partir daí, Karen começava a tecer uma hisria. A cada nova
frase ou palavra, outra história surgia. Graças a Denys, ela descobriu ser a literatura sua
grande vocação, o que viria a concretizar-se, em definitivo, em 1934, com a publicação
de Seven Gothic Tales, obra escrita em inglês quando Karen escrevia sob o
pseudônimo de Isak Dinesen
4
.
Karen Blixen foi grandemente influenciada pela tradição das histórias passadas de
geração em geração pela oralidade, como se pode observar por meio da análise feita
neste trabalho. Recebeu também influências bíblicas e do Corão, dos Contos das Mil e
Uma Noites, dos escritos de Homero, das sagas e dos contos folclóricos da Islândia, bem
como das fábulas de Hans Christian Andersen.
Embora a afinidade e o amor entre Karen e Denys fossem profundos e autênticos, as
também freqüentes ausências dele levaram-na a concluir que talvez seu destino fosse o
de viver sozinha a maior parte do tempo. Suas companhias nos períodos de solidão eram
os nativos kukuios, empregados e moradores da fazenda, a quem Karen aprendeu a
admirar por sua lealdade e coragem, e que mais tarde se tornaram importantes
personagens de sua narrativa autobiográfica.
Catharine Stimpson, ao prefaciar o livro de Susan Hardy Aiken, Isak Dinesen and the
Engendering of Narrative (1990), afirma que Karen Blixen foi uma das fortes vozes anti-
colonialistas. Muitos europeus, seus contemporâneos, tinham-na como pró-nativos.
Embora tenha participado do projeto colonialista como proprietária de fazenda, a qual
empregava africanos por baixos salários, Karen tentou, sempre que pôde, minimizar o
sofrimento de seus empregados, cuidando de sua saúde, ensinando-os a ler e escrever,
brincando com as crianças, lendo para elas, e até participando das cerimônias e rituais das
tribos ao redor de sua propriedade. Em seu livro, Letters from Africa, cujo conteúdo é
constituído por cartas escritas entre 1914 e 1931, e publicado postumamente em 1981, ela
confessa:
This country [...] has a kind of charm that not everyone can understand. […], one
comes to love it in a way I had never thought one could love other countries
besides one’s own, one’s childhood country. The fact that most white people here
hate it and have nothing good to say of it brings it in a way still closer to the hearts
cruzadas como uma Sherazade, ele ouvia, com os olhos atentos, a uma longa história do início ao fim.
(Tradução nossa.)
4
Outros pseudônimos usados por Karen Blixen, além de Isak Dinesen, foram: Osceola, Pierre Andrézel,
Tania Blixen, entre outros.
22
of those who feel that they can understand its voice and that it has spoken to them
5
(BLIXEN apud AIKEN, 1990, p. 209).
A morte trágica e prematura de Finch Hatton, em 14 de maio de 1931, quando seu
avião, o Gipsy Moth, caiu e incendiou-se, foi assim descrita por Karen em Out of Africa
(1972, p. 348-51), desde os eventos que precederam seu conhecimento do fato de que ele
havia morrido:
I looked out for Dennys on Thursday. […] but when he did not come […] I drove in
to town. [...] There was, somehow, a deep sadness over the town [...] and in the
midst of it everybody was turning away from me. […] I drove up to the lovely old
Nairobi house of Chiromo […] and found a luncheon party there. But it was the
same thing at Chiromo’s as in the streets of Nairobi. Everybody seemed mortally
sad, and as I came in the talk stopped
.
[…] I thought: These people are no good to
me. I will go back to the farm. Denys will be there by now. We will talk and behave
sensibly, and I shall be sane again and know and understand everything. But when
we had finished luncheon, Lady McMillan asked me to come with her into a small
sitting room, and there (she) told me that there had been an accident at Voi. Denys
had capsized with his machine, and had been killed in the fall. It was then as I had
thought: at the sound of Denys’s name even, truth was revealed, and I knew and
understood everything
6
(BLIXEN apud AIKEN, 1990, p. 44-5).
Karen o enterrou nas colinas Ngong, no lugar que ambos haviam escolhido como
sepultura comum. Em seu livro autobiográfico, Out of Africa (1972), ela assim descreve o
lugar:
There was an infinitely great view from there: in the light of the sunset we saw both
Mount Kenya and Kilimanjaro. […] Now Africa received him, and would change
him, and would make him one with herself
7
(Idem, p. 45).
Ainda em 1931, a crise econômica e a seca levaram a propriedade à falência,
obrigando Karen a vendê-la. Meses depois, com a morte de Finch Hatton e sem nenhum
5
Este país [...] possui uma espécie de encanto que nem todos conseguem entender [...], chega-se a amá-lo
de um modo que eu nunca havia pensado que alguém pudesse amar outros países além do seu próprio,
como a terra de sua infância. O fato de que a maioria dos brancos daqui o odeiam e não têm nada de bom a
dizer sobre ele, o torna ainda mais próximo dos corações daqueles que sentem que podem entender sua
voz, a mesma voz que fala com eles. (Tradução nossa.)
6
Eu esperei por Denys na quinta-feira. [...] mas quando ele não veio [...] dirigi até a cidade. [...] Havia uma
espécie de tristeza profunda sobre ela [...] e em meio a isso, todos se afastavam de mim. [...] Dirigi até a
velha e adorável casa de Chiromo em Nairóbi [...] e descobri que havia um grupo almoçando lá. Mas foi a
mesma coisa na casa de Chiromo tal qual em Nairóbi. Todos pareciam mortalmente tristes, e quando eu me
aproximava, a conversa era interrompida. [...] Pensei: Essas pessoas estão estranhas, então, voltarei à
fazenda. A esta hora, Denys terá chegado. Conversaremos e nos comportaremos de maneira sensata, e
eu recuperarei meu juízo perfeito, e vou saber e compreender tudo. Mas quando o almoço terminou, Lady
McMillan pediu-me que a acompanhasse até uma pequena sala de visitas, e ali ela me contou que tinha
havido um acidente em Voi. Denys tinha perdido o controle de sua aeronave e havia morrido na queda. Foi
como eu imaginara: no momento da menção do nome de Denys a verdade se revelara, e eu soube e entendi
tudo. (Idem.)
7
Tinha-se uma vista infinitamente grande de lá: à luz do entardecer, víamos tanto o Monte Quênia como o
Kilimanjaro. [...] Agora a África o recebia e o transformaria de modo que ambos se tornassem um só. (Idem.)
23
motivo para permanecer na África, ela regressou definitivamente à Dinamarca aos 46
anos.
Ao deixar o Quênia, segundo Catharine Stimpson (1990), é como se Karen tivesse
deixado sua verdadeira casa e ido para o exílio. A influência de sua estada naquele país
marcou muitas de suas personagens e narrativas, em que a partida, o exílio, a saída
forçada da terra natal, a tentativa de reencontro com as raízes são elementos freqüentes.
O que trouxe Karen Blixen de volta à vida após a morte de Finch Hatton e da partida
da África foram as narrativas, mais uma vez. Ao juntar os fragmentos de seus escritos
daquele período, ela também logrou reunir os pedaços desarranjados de sua própria vida.
Após a publicação de Seven Gothic Tales, veio a público, em 1937, Out of Africa, o retrato
pungente de suas memórias dos anos passados no Quênia. O livro que se seguiu aos dois
primeiros foi Winter's Tales (1942), seguido pela publicação de Last Tales em 1957. Suas
lembranças da África renderam ainda outras duas obras: Shadows on the Grass (1960) e
Letters from Africa, publicado postumamente em 1981. Anecdotes of Destiny, objeto de
estudo deste trabalho, foi publicado em 1958, constando dessa coletânea seu mais
famoso conto, “A Festa de Babette” (Babette's Feast).
Ao longo da década de cinqüenta, a saúde da escritora se tornava cada dia mais
frágil. Mesmo doente, ela viajou pelos Estados Unidos em 1959, recebendo homenagens e
visitas de escritores como E. E. Cummings, Marianne Moore, Pearl S. Buck, Carson
McCullers e Arthur Miller. Tendo o aparelho digestivo seriamente afetado como
conseqüência dos tratamentos rudimentares com drogas agressivas a que se submetera
anos antes para o combate da sífilis, e incapaz de alimentar-se, Karen Blixen acabou
praticamente morrendo de desnutrição, em 1962, em Rungstedlund, sua terra natal.
24
APRESENTAÇÃO DO TRABALHO
É por meio do estudo das vozes e dos contextos socioculturais nos quais elas se
manifestam, que se busca analisar o processo de construção das tramas narrativas que
dão ensejo ao surgimento dessas vozes, as quais falam por si como indivíduos, como
instituições, ou segundo posições estatutárias e identitárias mais ou menos privilegiadas.
Tais vozes revelam-se, por vezes, não-verbalmente, mas segundo entoações indiciais
de intenções que não podem ser percebidas por meio da análise do exclusivamente
verbal, segundo os pressupostos teóricos de Milhail Bakhtin que, neste trabalho serão
aplicados aos contos de Karen Blixen.
O estudo das vozes, com base nos princípios da heteroglóssia, permite a análise da
complexa cadeia comunicativa inserida no processo dialógico, no qual as intenções e
ações das personagens são traduzidas pelas vozes discursivas, depreendendo-se daí o
fato de que, na metalingüística bakhtiniana, a língua, além de enunciação, é expressão e
ação. Segundo Irene Machado, “O
discurso é ação, quer dizer, tradução de um sistema de
signos em um outro. [...] trata-se de heteroglóssia, um procedimento de valorização dos
significados dinâmicos e heterogêneos dos signos no circuito da dialogia” (MACHADO,
1995, p. 41, grifo da autora).
A tentativa de compreensão de posturas conflitantes bem como seu estudo
propriamente dito parte do próprio posicionamento provocativo de Bakhtin, segundo o qual,
o trabalho de análise textual deve ser realizado a partir do levantamento de hipóteses.
Uma delas é a de que a partir do estudo das vozes pode-se definir a exegese da
construção dos conflitos e das tensões que se desenvolvem principalmente no plano
comunicativo-interacional, o que, no caso dos contos de Karen Blixen, se dá sob a
perspectiva da heteroglóssia, segundo a acepção bakhtiniana.
A transposição da teoria de Bakhtin, do romance para o conto, igualmente um gênero
híbrido, torna evidentes as maneiras pelas quais a autora faz ouvir suas personagens,
tanto dos pontos de vista estatutário e identitário, segundo posicionamentos sociológica,
cultural e ideologicamente demarcados, como também pela hierarquização dos conflitos
exteriorizados pelas vozes, de modo a excluir a possibilidade de um único viés dominante.
Ao debruçar-se sobre os romances de Dostoiévski, Bakhtin elaborou sua teoria do
romance polifônico, publicada em sua obra de 1929, Problemas da Poética de Dostoiévski
25
(2005), ao observar a diversidade da transmissão discursiva no romance. Nela o autor
buscou analisar as relações recíprocas entre o autor e o herói, criando, assim, uma nova
noção do que é para ele a idéia de polifonia, aplicada não à lingüística mas à literatura, em
contraposição à concepção teórica de heteroglóssia, na qual o discurso se reporta a um
sistema de signos de caráter não exclusivamente verbal.
Assim, o discurso do autor e os discursos das personagens exibem diferenças
segundo os pontos de vista a partir dos quais são gerados, cabendo definir as
caracterizações dos mesmos tendo em vista essas variações. Ao analisar o romance em
Dostoiévski, Bakhtin observou a postura revolucionária do romancista russo frente a esse
gênero, no qual o autor cria personagens guiadas não pela ão, como no gênero épico,
nem pelas idéias e ideologia autorais, como se pode observar no romance monofônico,
mas como portadoras de discurso e ideologia próprios, independentemente do
posicionamento do autor, o que caracteriza o romance polifônico.
Ainda segundo Irene Machado (1995), foi preocupação fundamental de Bakhtin a
valorização da voz como representação de um contexto cultural amplo, não-restrito à
análise literária, o que pode ser plenamente observado em Karen Blixen no tocante à
tradição da oralidade, constituindo a interatividade o elemento fundante para a
compreensão dos processos socioculturais e comunicativos que se desvelam nas cenas
enunciativas. Portanto, a análise sob a óptica bakhtiniana permite que se tenha acesso
aos sentidos do discurso pela apreciação das múltiplas vias de construção dos
significados, sendo as vozes discursivas em confronto uma dessas vias.
Como parte do estudo, outro objetivo deste trabalho foi o de comparar o original em
inglês, publicado pela Penguin Books em 2001, cotejando-o com a versão em português,
publicada em 2006 pela Editora Cosacnaify, com tradução de Cássio de Arantes Leite,
especialmente quanto a aspectos reforçadores dos pontos analisados, buscando tornar
mais claros os elementos tanto da linguagem propriamente dita como os recursos literários
empregados pela autora na construção das tramas narrativas e das vozes que nelas se
enunciam.
O livro Anedotas do Destino, objeto de estudo deste trabalho, reúne cinco contos: “O
Mergulhador”, “A Festa de Babette”, “Tempestades”, “A História Imortal”, e “O Anel”, tendo
sido a análise dividida em seis capítulos.
26
O primeiro, “O conto e a tradição da oralidade o sobrenatural em Karen Blixen“,
busca resgatar o percurso do conto como gênero oral, o qual remonta a tempos
imemoriais. Élie Bajard, que prefacia o livro A Renovação do Conto emergência de uma
prática oral de Maria de Lourdes Patrini (2005, p. 13), afirma que “A origem do homem é
marcada pelas histórias contadas, que estabelecem a fronteira com os outros primatas.
Homo sapiens é um primata que conta histórias”.
Nesse capítulo são examinados aspectos relativos aos jogos de representações, às
associações de significados, à gênese da oralidade, ao conto atualizado em gênero
literário, às questões relativas à temporalidade, à precariedade e à diversidade cultural
bem como aos elementos textuais mesclados no tecido narrativo, situados entre o real e o
imaginário, próprios dos gêneros maravilhoso e fantástico, formas literárias de escolha da
autora no desenvolvimento de alguns de seus temas, como é o caso dos contos “O
Mergulhador”, “Tempestades” e “O Anel”.
No segundo capítulo, “Opostos complementares: o embate das vozes femininas e
masculinas”, é analisada a questão das tensões geradas pelas vozes das personagens
segundo o gênero. Por ocuparem posições identitárias e estatutárias distintas, colocam-se
essas personagens em situação de permanente conflito, o que permite aprofundar a
questão do dialogismo em termos desses confrontos.
Por tratar-se de gênero eminentemente oral em sua origem, o conto é especialmente
representativo dos pressupostos teóricos desenvolvidos por Mikhail Bakhtin, sendo,
portanto, do ponto de vista metodológico, o mais adequado para a investigação das vozes
e para a análise das relações, não somente como fundamento da representação
discursiva, mas também como substrato teórico da poética da oralidade.
O terceiro capítulo, “As vozes simbólicas”, busca estudar os aspectos constitutivos do
conto como matéria sígnica, com base nas teorias de Carl Jung sobre as representações
arquetípicas, as quais se conectam aos símbolos como manifestação cultural. Justifica-se
a investigação mais aprofundada das vozes simbólicas por constituírem essas importante
aspecto na obra da autora. Este estudo procura igualmente contemplar elementos sócio-
históricos, ideológicos e contextuais que justificaram o aparecimento desses símbolos bem
como os modos pelos quais a autora se apropriou deles na elaboração de suas narrativas.
O capítulo quarto, “A voz autobiográfica” analisa os elementos constitutivos do
substrato autobiográfico que, por vezes, transparecem, ainda que de forma indireta ou
27
velada, nos contos da autora. Neles se desvelam aspectos possivelmente reveladores de
processos mentais relativos à memória afetiva e cultural, por meio dos quais, imagens,
fatos e lugares fornecem a matéria-prima que emerge das narrativas, com raízes tanto nas
formas arquetípicas de modo geral como no universo vivencial da autora.
No quinto capítulo, “As vozes reveladoras dos processos de transformação”, a análise
é, primordialmente, dirigida tanto às vozes individuais e isoladamente manifestadas como
em superposição, constituindo, ambos os processos, meios essenciais para a organização
bem como para a resolução dos conflitos propostos. A análise dos múltiplos discursos
carregados por essas vozes permite a interpretação dos intertextos que permeiam as
falas, direcionando-as para sentidos específicos, revelando, ao mesmo tempo, as
transformações das personagens ao longo do espaço-tempo narrativo.
O sexto capítulo, “‘A Festa de Babette’: a celebração da narrativa”, centra-se naquele
que é considerado o mais famoso e importante conto de Karen Blixen. Nessa narrativa
podem ser apreciados vários dos elementos presentes nos pressupostos teóricos
bakhtinianos, como a heteroglóssia, a intertextualidade, as relações dialógicas contratuais
e polêmicas, a incompletude narrativa. A obra prima de Blixen oferece ao leitor um lugar à
mesa do jantar de Babette, refeição de arte a partir da qual se podem apreciar o
entrecruzamento dos vários discursos representados por vozes socioculturais e
simbólicas, os múltiplos planos intertextuais, e as transformações suscitadas pelos
embates das vozes ao longo do enredo.
O núcleo de estudo deste trabalho consiste, pois, na análise das vozes na narrativa
de Karen Blixen, por meio do estudo dos cinco contos que constituem o livro Anedotas do
Destino.
O trabalho foi realizado segundo a teoria desenvolvida por Mikhail Bakhtin referente à
dialogia, a partir de suas obras Problemas da Poética de Dostoiévski (2005), Marxismo e
Filosofia da Linguagem (1999) e Estética da Criação Verbal (2003), especialmente sob o
ponto de vista da heteroglóssia, que rege a articulação dos discursos nos contos, em
contraposição à polifonia.
Ao conceber o homem como ser de linguagem, que se revela em vozes diversas,
Bakhtin priorizou o dialogismo como fenômeno não restrito à literatura mas que nela pode
ser examinado em toda a sua amplitude, num percurso que vai do oral ao escrito, do
informal ao literário, do heteroglóssico ao polifônico.
28
O universo teórico bakhtiniano pode ser definido como o da incompletude, das
facetas múltiplas que se entrecruzam em discursos que dialogam entre si; em textos que
se revelam dentro de outros; em vozes que se que se expressam ou não de forma verbal,
afirmando-se, por vezes, desvinculadas e autônomas do ponto de vista ideológico do
autor, as quais se fazem ouvir discreta e às vezes eloqüentemente na tessitura narrativa.
Ao afirmar que todo discurso é intencional e, portanto, nunca neutro ou desprovido de
ideologia, Bakhtin aproximou os pesquisadores de literatura das dinâmicas construtivas
dos sentidos explícitos e implícitos, dentro de uma coerência epistemológica e formal que
permite a identificação e a análise das várias intersecções dos planos discursivos, do
intertexto e das relações semânticas que compõem o tecido textual, levando-se igualmente
em conta o substrato sociocultural sobre o qual se apóia a narrativa.
Analisando a prosaica dialógica de Mikhail Bakhtin em seu livro O Romance e a Voz
(1995), Irene Machado, afirma que o autor não em sua teoria a priorização do literário
propriamente dito, dirigindo seu foco de interesse igualmente para a fala do discurso
social-comunicativo e para o discurso individual e especulativo que o romance representa,
e que nesta análise pode ser também estendido ao conto, o que implica “um confronto de
posturas nem sempre em harmonia” (MACHADO, 1995, p. 19).
Segundo a autora,
Ao tomar a voz como um objeto de investigação, a poética da oralidade coloca em
discussão um contexto de relações e de fênomenos nem sempre suscetíveis de
sistematização, principalmente se considerarmos que a voz, por ser radicalmente
social e individual, determina a maneira através da qual o homem se situa no
mundo com relação ao outro, entendendo-se aqui por outro não apenas um
indivíduo mas também os fenômenos e os eventos que ocorrem no espaço-tempo
das civilizações (Idem, p. 210, grifo da autora).
O jogo de vozes, que em Dostoiévski é caracterizado pela polifonia, em Karen Blixen
ocorre segundo embates heteroglóssicos demarcados por posições de poder ou de
submissão sem, todavia, tornar menos tensos os confrontos entre essas vozes. O conceito
de polifonia na acepção bakhtiniana pode ser assim definido:
A obra (de Bakhtin) ocupa-se em essência de um problema de estrutura, isto é, os
procedimentos formais que permitem a Dostoiévski levar cada uma de suas
personagens a falar em voz própria com mínimo de interferência de parte dele
como autor, cujo efeito é o de criar um novo gênero. Bakhtin chama tal gênero de
romance polifônico, porque apresenta muitos pontos de vista, muitas vozes, cada
qual recebendo do narrador o que lhe é devido. (CLARK; HOLQUIST, 2004, p.
258-9, grifo dos autores).
29
Portanto, a partir do posicionamento diferenciado de autor e personagens estabelece-
se a polifonia, conseqüência da articulação de diversos pontos de vista não
necessariamente coincidentes. Ao falar sobre os estudos de Bakhtin com relação ao
romance de Dostoiévski, Irene Machado diz:
A obra de Dostoiévski articula uma diversidade de pontos de vista a partir dos
quais são focalizados o discurso do autor e o dos personagens, tornando-se a
realização mais acabada da lei do posicionamento: existe uma variação entre o
ponto de vista gerador do discurso do autor e o do personagem (MACHADO,
1995, p. 41-2).
a heteroglóssia, dentro da concepção bakhtiniana, pode ser entendida como uma
mistura de grupos de linguagens em cujas vozes revelam-se culturas e classes sociais
diversas de modo a impedir a hegemonia do que seria uma linguagem única. A pluralidade
de visões de mundo e de fazeres socioculturais geradores de embates e tensões desvela-
se, pois, no complexo interativo-dialógico dos discursos múltiplos, dos intertextos que
mostram diferentes pontos de vista, ou por sistemas de interação nos quais se expõem as
intenções, as ações e as vozes das personagens, e que pode ser igualmente apreciado
nos contos de Blixen. Segundo a autora acima,
[...] foi romance o gênero que, na literatura, se encarregou de exprimir a
heteroglóssia da linguagem, pois nele a diversidade e relatividade dos discursos
são experimentadas e transformadas num discurso de representação artística. A
imagem da linguagem que o romance oferece não coincide, certamente, com o
discurso da comunicação, mas exprime possibilidades de tornar presentes as
vozes culturais que o enunciam. Heteroglóssia diz respeito a todos os
procedimentos dialógicos que Bakhtin examina e entende como formações
nucleares no romance polifônico (Idem, p. 41-2).
Anedotas do Destino encerra algumas das mais notáveis passagens da autora como
contista, gênero ao qual dedicou grande parte de sua obra escrita, em sua maioria em
inglês, e apenas algumas vezes originalmente em dinamarquês. Suas histórias são
marcadas por uma atmosfera enigmática e freqüentemente onírica, na qual se misturam
cotidiano e fantasia, em ambientes enunciativos nos quais o insólito e o inesperado
ensejam as trajetórias e alterações de rumo dos enredos, e onde não lugar para a
previsibilidade.
Podem-se observar nos contos, além das vozes femininas e masculinas, estatutárias,
simbólicas e ideológicas, as chamadas vozes anímicas ou de seres inanimados,
representações do que se costuma designar de existência dos objetos, como o mar, a
terra natal, profecias, amuletos, sonhos, além de referências do imaginário coletivo.
30
O tom dos contos de Anedotas do Destino revela elementos que se situam nos limites
entre o real e o imaginário das personagens. Valendo-se da rica tradição nórdica das
narrativas populares, de seu amor confesso pela obra de Shakespeare bem como de
textos da Bíblia e do Corão, Blixen estabelece a conexão entre a realidade e o sonho, o
fantástico e o maravilhoso, a memória arquetípica e a cultural, conduzindo-nos no tapete
voador de sua magistral prosa, da Pérsia aos fiordes da Noruega, chegando até a China.
Na obra analisada, morfemas e lexemas se combinam nas narrativas de modo a
conferir colorido, expressividade, e significados múltiplos em histórias que se situam dentro
de outras, ou ainda, em histórias que suscitam outras, nas quais os recursos de linguagem
e de estilo compõem personagens, cenas e vozes que um verdadeiro contador de
histórias, como Karen Blixen, poderia conceber e realizar.
31
Capítulo I
O CONTO E A TRADIÇÃO DA ORALIDADE: O SOBRENATURAL EM KAREN BLIXEN
Os contos de Karen Blixen, construídos com inspiração nas narrativas orais passadas
de geração em geração, fazem emergir vozes que se entrecruzam em cenas enunciativas
de natureza plural, ambígua e metamórfica, terreno no qual múltiplos intertextos e
metatextos presentificados podem ser observados, quer de ordem canônica quer de
tradição sem registro escrito.
Segundo Ireme Machado (1995, p. 305), a concepção de literatura oral como
manifestação híbrida transita entre a fala e a escritura, ambiente no qual se podem estudar
a questão dos posicionamentos das personagens e a conseqüente manifestação de suas
vozes, não apenas enquanto falas pessoais, mas como veículos reveladores de estatutos
de poder ou de submissão.
Compreender a arte desta autora implica remontar à própria gênese dessa forma oral
que se tornou literária a partir de uma determinada época, evoluindo para maneiras
complexas de narrar, o que acabou por constituir-se em um gênero literário situado em
uma espécie de encruzilhada entre o teatro, o romance, a fábula, e o mito.
Sabe-se que as fábulas populares constituíram, por um longo período, a matéria-
prima de vários tipos de constructos literários. De acordo com Gianni Rodari (1982),
mesmo sofrendo injunções extra-literárias, como imitações, deformações pedagógicas e
apelo comercial, as bulas sobreviveram conservando suas qualidades originais graças a
vários grandes autores como os irmãos Grimm, Andersen e Collodi, além de outros que
perfilaram “entre os grandes libertadores da literatura infantil dos limites edificantes que
assinalaram sua origem, muito ligada ao nascimento da escola pública e popular”
(RODARI, 1982, p. 49, grifo do autor).
A visão de Blixen revela-se não apenas pelo desenvolvimento diegético de suas
tramas, ou pela construção de suas personagens, mas também pelas figuras de linguagem
e de estilo de que se utiliza para expressar as nuances entoativas que compõem a teia
narrativa em seus aspectos lingüísticos e literários.
32
Por meio da análise dos contos de Anedotas do Destino, tanto do ponto de vista
lingüístico como do estilo, é possível perceber que certos aspectos são mais aparentes na
língua original do que na tradução, e vice-versa. Por exemplo, quanto ao aspecto canônico
da língua, o uso do inglês arcaico nas citações das peças de Shakespeare, reforça essa
característica de arte tradicional e prestigiada: “Salve, grande mestre! Distinto senhor,
salve! Venho / Em resposta ao que mais for de teu agrado; seja voar, / Nadar, mergulhar
no fogo, vagar / Através das nuvens onduladas, sob teu firme comando dispor / Ariel e
toda a sua qualidade”
8
(p. 121).
Algo semelhante ocorre com o uso do francês por personagens cuja origem permite a
demonstração desse conhecimento. Por exemplo, no conto “A História Imortal”, ao referir-
se Monsieur Dupont à filha, ele diz: Virginie est fine, elle s’y comprend, en ironie[!]” (p.
155). Outros momentos de manifestação dessa voz francesa, culta e refinada, aparecem
fora das falas das personagens, como na referência a Molière, na p. 65, ou ainda, na
menção feita pelo General Lorens Loewenhielm durante o jantar, no conto “A Festa de
Babette”, ao reconhecer o prato principal como sendo Cailles en Sarcophage (p. 53), o
mesmo que o militar provara há muitos anos em Paris, preparado por uma famosa chef por
ocasião de sua vitória em um concours hippique (p. 49). Ou ainda, na fala do peixe mítico,
no conto “O Mergulhador”, retomando parcialmente o discurso de Madame Pompadour ao
consolar o Rei Luís XV, seu amante: Après nous le déluge
9
(p. 23). E mais além, na
admissão de Babette de que fora uma communarde
10
(p. 60). Ou no caso de Virginie, no
conto “A História Imortal”, ao reconhecer em Elishama le Juif Errant
11
(p. 159).
Processo semelhante se com o uso do latim, como por exemplo, na descrição de
Herr Soerensen, co-protagonista de “A História Imortal”: “[...] o servo obediente de sua
arte, um humilde sacerdote ancião no templo, com as palavras Domine, non sum dignus
12
gravadas no coração”
13
(p. 64).
Todos esses usos configuram o canônico, o culto, o artístico e o solene, em oposição
ao uso informal e popular da língua. Analogamente, as citações religiosas da blia e do
8
All hail, great master! Grave sir, hail! I come / To answer thy best pleasure; be’t to fly, / To swim, to dive into
the fire, to ride / On the curl’d clouds, to thy strong bidding task / Ariel and all his quality (SHAKESPEARE,
William, The Tempest, act 1, scene 2).
9
Depois de nós, o dilúvio.
10
Indivíduo participante do episódio político ocorrido na França, em 1870, denominado de Comuna de Paris.
11
o judeu errante
12
Senhor, eu não sou digno
13
[…] his art’s obedient servant, a humble old priest in the temple, with the words “Domine non sum dignus”
graven in his heart (p. 72).
33
Corão resultam em um clima de circunspecção a envolver o espaço enunciativo, o que
pode ser observado especialmente em “O Mergulhador”, “A Festa de Babette”, “A História
Imortal” e “Tempestades”:
[...] pelos anjos, que arrancam as almas dos homens com violência, e por aqueles
que arrebatam as almas de outros com delicadeza, por aqueles que planam
suavemente através do ar sob ordens divinas, por aqueles que precedem e guiam
os justos no Paraíso e por aqueles que, como subordinados, governam os
assuntos deste mundo [...].
14
[...] Dizei aos turbados de coração: Sede fortes, não temais; eis o vosso Deus!
Com vingança virá, sim, com a recompensa de Deus; vie vos salvará. Então os
olhos dos cegos serão abertos, e os ouvidos dos surdos se desimpedirão. Então o
coxo saltará como o cervo, e a língua do mudo cantará de alegria; porque águas
arrebentarão no deserto e ribeiros no ermo [...].
15
Na tradução de Cássio de Arantes Leite para o português, o gênero maravilhoso em
“O Mergulhador” fica lingüisticamente caracterizado pela freqüente anteposição dos
adjetivos aos substantivos, uso comum nas fábulas e nos contos de fada. Esse índice
lingüístico não é visível no original em inglês uma vez que a anteposição do adjetivo ao
substantivo é de regra. Por exemplo, na tradução podem ser notados os seguintes usos
próprios das descrições do gênero: “puro de coração”, “anjos radiantes”, “nossas escuras
casas e escolas”, “ermos caminhos do éter”, “criaturas aladas”, “privações presentes”, e
“bela carreira” (p. 9-10).
Todorov reafirma a importância da linguagem na literatura ao dizer que “O próprio fato
de a obra literária ser uma obra de arte verbal [...] toda uma disciplina, a estilística, foi
criada numa zona intermediária entre os estudos literários e a lingüística” (TODOROV,
2003, p. 31, grifo do autor).
Por serem, forma e função duas faces do mesmo signo, essas figuras de estilo
ajudam a compor o todo expressivo do texto de Blixen, sendo um dos objetivos da
investigação do funcionamento do sistema literário, a análise de seus elementos
constitutivos e a exposição de suas leis, ou, num sentido mais estrito, a descrição científica
14
Trecho do Corão em “O Mergulhador”, (p. 9):
[…] by the angels, who tear forth the souls of men with violence, and by those who draw forth the souls of
others with gentleness, by those who glide swimmingly through the air with the commands of God, by those
who precede and usher the righteous into Paradise, and by those who subordinately govern the affairs of this
world […] (p. 3).
15
Trecho do Livro de Isaías (Capítulo 35, versículos 4-6) em “A História Imortal”, (p. 138):
[…] Say to them that are of a fearful heart: be strong, fear not. Behold, your God will come with a vengeance.
Even God with a recompense. He will come and save you. Then the eyes of the blind shall be opened and
the ears of the deaf shall be unstopped. Then shall the lame man leap as a hart, and the tongue of the dumb
sing. For in the wilderness shall waters break out […] (p. 166).
34
de um texto literário e, a partir daí, o estabelecimento de relações entre seus elementos”
(Idem, p. 4).
Quanto à oralidade como substrato das narrativas de Blixen, vale salientar sua
importância como registro e memória do aprender e do fazer humanos. Segundo Élie
Bajard,
O conto constitui uma memória da comunidade maneira de ver o mundo,
esperanças e medos, anseio de transcendência possibilitando sua transferência
às novas gerações. O jovem aprende quais são os valores do clã. Através dos
contos, a criança descobre uma ética, as regras entre membros dos dois sexos: o
interditado, o permitido e o desejável. [...] Descobre a relação entre causa e
conseqüência, o papel do tempo no envelhecimento e a inexorabilidade da morte
(BAJARD apud PATRINI, 2005, p. 17-8).
O gosto da autora pelos contos de fada, pelas fábulas e narrativas folclóricas justifica-
se por inflncias recebidas como leitora e ouvinte apaixonada dos Contos das Mil e Uma
Noites, das lendas islandesas e escandinavas, dos contos de Hans Christian Andersen
bem como das histórias transmitidas pela oralidade. Ao gênero maravilhoso, presente em
alguns contos de Blixen, pertencem as fábulas, as narrativas mitológicas e os contos de
fada, categorias literárias aproveitadas magistralmente em Anedotas do Destino.
Segundo Todorov (2004, p. 63), “a aspiração ao maravilhoso enquanto fenômeno
antropológico supera os limites de um estudo que se pretende literário”. E citando Pierre
Mabille, em seu livro Le Miroir du Merveilleux, ele prossegue:
Para além da satisfação, da curiosidade, de todas as emoções que nos dão as
narrativas, os contos e as lendas, para além da necessidade de distrair, de
esquecer, de buscar sensações agradáveis ou terrificantes, a finalidade real da
viagem maravilhosa é [...] a exploração mais total da realidade universal (Idem, p.
63).
Como arte narrativa, o conto estabelece dialogicamente com o leitor uma relação que
transcende a própria narrativa. O que ocorre, na verdade, são níveis diversos de diálogo
nos quais se inclui também os silêncios que, em Karen Blixen, se revelam como
ocultamentos ou apagamentos, elementos extraverbais tão importantes quanto o discurso
verbal propriamente dito. Segundo Brunhilde Biebuyck (1991), é “a construção de todo um
ambiente discursivo e relacional que importa, a narrativa em si mesma não representa,
senão, um elemento” (BIEBUYCK apud PATRINI, 2005, p. 148).
Estuda-se, pois, nessa acepção, o problema da manifestação das vozes que falam de
modo explícito ou implícito, isto é, as vozes que se enunciam verbalmente pelas falas das
35
personagens como aquelas da esfera do pensamento, da alusão, do omitido, além das
oriundas do imaginário.
Ao definir o maravilhoso, gênero presente em “O Mergulhador”, Todorov afirma:
Num mundo que é exatamente o nosso, [...] produz-se um acontecimento que não
pode ser explicado pelas leis deste mesmo mundo familiar. [...] ou se trata de uma
ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação e nesse caso as leis do mundo
continuam a ser o que são; ou então o acontecimento realmente ocorreu, é parte
integrante da realidade, mas nesse caso esta realidade é regida por leis
desconhecidas para nós (TODOROV, 2004, p. 30-1).
O maravilhoso caracteriza-se pela existência de fatos essencialmente sobrenaturais,
“sem implicar a reação que provoquem nas personagens”, (Idem, p. 53). Nesse gênero
não há ambigüidade, sendo, portanto, imagem lúcida do mundo, sem espaço para a
dúvida por parte do leitor ou das personagens. É o que ocorre em “O Mergulhador”,
pontuado por eventos onde necessidade de novas leis da natureza para explicar os
fenômenos.
Nesse conto, a visão e o discurso religioso islâmicos também se fazem notar como
voz nas passagens do Corão, transcritas ou parafraseadas, o que constitui, de per si, a
expressão de uma voz ideológica e estatutária. Mais forte no início do conto, ela se dilui ao
longo da narrativa à medida que outros intertextos tomam lugar na história. Observa-se
também um outro intertexto: o do discurso mitológico grego, apoiado nas figuras de Ícaro e
Dédalo, emulados por Saufe ao tentar construir asas para voar como os pássaros,
metáfora ao mesmo tempo da audácia e da sede de conhecimento.
Esse conto faz emergir a narrativa árabe-islâmica das Mil e Uma Noites por meio da
sobreposição de texto e metatexto, nos quais a personagem-narrador, Mira Jama, inicia a
história contando sobre o desejo de Saufe, jovem estudante softa de teologia, de voar
como os pássaros e os anjos, e assim, poder ver o mundo de cima (p. 11). Na segunda
parte, a personagem-narrador prossegue a partir do ponto em que ambos se encontram,
muitos anos após a partida de Saufe de Xiraz, no distante [...] litoral arenoso
16
, em uma
aldeia de pescadores, onde o softa, tendo definitivamente abandonado seu sonho de voar,
tornara-se um famoso pescador de pérolas.
Karen Blixen faz uso de comparações e metáforas, figuras de estilo freqüentes em
suas narrativas, como por exemplo, na fala de Saufe ao definir as pérolas, objeto cobiçado
pelos pescadores: “E as pérolas são como histórias de poetas: enfermidades
16
[…] the sandy seashores (p. 12).
36
transformadas em amor, ao mesmo tempo transparentes e opacas, segredos das
profundezas trazidos à luz para agradar às jovens, que nelas reconhecerão os segredos
mais recônditos de seu próprio ser”
17
(p. 16).
Neste entrecho, Saufe conta a Mira Jama sobre os eventos que o levaram a
abandonar seu sonho, transformando-se, por fim, em um homem feliz e pacificado. O
processo pelo qual a primeira parte do conto, que é uma narrativa de per si, leva à
segunda, ao mesmo tempo continuação da primeira e também outra história, é chamada
de narrativa-engaste ou enchâssement, segundo Todorov (2003, p. 100).
A estrutura formal do engaste coincide, segundo o autor, com a forma sintática da
subordinação, à qual a lingüística moderna o nome de encaixe (embedding). Nessa
modalidade narrativa, uma história dá origem a outra, como acontece nos Contos das Mil e
Uma Noites.
No gênero maravilhoso é comum também haver a chamada estrutura da intriga, tal
qual sucede em “O Mergulhador”, isto é, a autoridade fica sabendo de algo que a ameaça,
e usa, então, de expedientes, no caso desse conto, a dançarina Thusmu, para tentar
impedir que a ameaça se concretize.
Na primeira parte, Saufe instaura o embate com o status quo das autoridades da
cidade: ao observar as aves, comparando-as a anjos, deseja ele próprio construir asas que
lhe permitam voar. É sua firme convicção de que “quão melhor não seria o mundo do
homem se pudesse consultar os anjos e com eles aprender a discernir o padrão do
universo, que eles lêem com facilidade, pois que o vêem de cima [!]
18
(p. 11).
As autoridades, representadas pelo rei e seus ministros e sacerdotes, e por Mirzá
Aghai, o principal ministro, põem em andamento um plano para tentar afastá-lo do sonho
de voar. Na verdade, as autoridades constituídas vêem no jovem uma ameaça para o
establishment caso ele seja bem-sucedido em seu ousado empreendimento. A afirmação
da ideologia do sistema implica, segundo Thompson (1995), a compreensão de que
[...] o conceito (de ideologia) é inerentemente negativo. Ao contrário das
concepções neutras, que tentam caracterizar fenômenos ideológicos sem implicar
que esses fenômenos sejam, necessariamente, enganadores e ilusórios ou
ligados com os interesses de algum grupo em particular, a concepção crítica
17
And pearls are like poets’ tales: disease turned into loveliness, at the same time transparent and opaque,
secrets of the depths brought to light to please young women, who will recognize in them the deeper secrets
of their own bosoms (p. 12).
18
Also, […] how much better would not the world of man go, if he could consult with angels and from them
learn to understand the pattern of the universe, which they read with ease because they see it from above [!]
(p. 5).
37
postula que a ideologia é, por natureza, hegemônica, no sentido de que ela
necessariamente serve para estabelecer e sustentar relações de dominação e, por
isso, serve para reproduzir a ordem social que favorece indivíduos e grupos
dominantes (THOMPSON apud RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 49).
A voz estatutária do ministro do rei representa o discurso antagonista em oposição
ao sonho do protagonista: “O jovem é perigoso, uma vez que sonha alto. Mas é inofensivo,
e será fácil manipulá-lo, uma vez que negligenciou os estudos deste mundo, onde os
sonhos são postos à prova”
19
(p. 12). A voz do sistema e a ideologia que a rege
contrapõem ao anseio individual o plano de traição envolvendo Thusmu, a dançarina, voz
e figura feminina concebida segundo o estereótipo da beleza sedutora, capaz de manipular
os homens assujeitando-os pelo desejo.
A consciência da instabilidade do poder pela classe dominante, representada pelos
sacerdotes e altos funcionários, investidos da autoridade religiosa comum às teocracias, é
assim explicada pela personagem-narrador:
No início, os grandes de Xiraz, os sacerdotes e os altos funcionários sorriram ante
os rumores de seu feito (o teste bem-sucedido do poder alçador das asas feitas
por Saufe). Mas à medida que o rumor se espalhava e era confirmado por
inúmeros jovens, foram ficando cada vez mais alarmados. Se de fato, diziam uns
aos outros, este rapaz voador conseguir se encontrar e se comunicar com os
anjos, o povo de Xiraz, como é seu costume sempre que algo incomum ocorre,
enlouquecerá de admiração e alegria. E quem poderá dizer que coisas novas e
revolucionárias os anjos não lhe contarão? Pois afinal, observaram, pode haver
anjos no céu
20
(p. 11-2).
Seguindo o plano de Mirzá Aghai, Thusmu aparece para Saufe como se fora um anjo
verdadeiro. Encantado pela celestial beleza do falso anjo, Saufe se apaixona, afastando-se
de seu projeto.
Mesmo servindo aos desígnios do poder estabelecido, a inesperada paixão que
nasce entre Thusmu e Saufe a leva a revelar a verdade sobre a trama. Sua fala parte da
mistificação para a sinceridade, rendendo-se ao idealismo do rapaz:
E, oh, meu amor, disse, não posso voar, embora digam-me que, quando danço,
sou de uma leveza extraordinária. Não fique furioso comigo, mas lembre que o
Mirzá Aghai e seus amigos são gente importante, contra quem uma pobre garota
19
This young man is dangerous, in as much as he has great dreams. But he is harmless, and will be easy to
handle, in as much as he has neglected the study of our real world, in which dreams are tested (p. 6).
20
At first the great people of Shiraz, the divines and high officials smiled at the rumor of his feat. But as the
rumors spread, and were asserted by many young people, they grew alarmed. If indeed, they said to one
another, this flying boy meets and communicates with angels, the people of Shiraz, as is their wont when
anything unusual happens, will go mad with wonder and joy. And who knows what new and revolutionary
things the angels may not tell him? For after all, they remarked, there may be angels in heaven (p. 6).
38
não pode fazer nada. E são ricos, e possuem coisas adoráveis. E você não pode
esperar que uma dançarina seja um anjo
21
(p. 14).
A força de encantamento que Karen Blixen constrói para descrever o arrebatador
envolvimento de Saufe em relação a Thusmu equivale em intensidade à sua desilusão ao
descobrir a traição de que fora vítima, assim como é imensa sua frustração ao contemplar
a destruição de suas asas abandonadas, que foram em parte devoradas pelos ratos.
Vagando pelas ruas de Xiraz, desiludido e , Saufe é perseguido pelos meninos da
rua, que zombam dele:
[...] quando os meninos nas ruas riram e gritaram: Vejam o softa que acreditou que
Thusmu fosse um anjo, estacou, fitou-os e disse: Ainda acredito nisso. Não foi
minha fé na dançarina que perdi, mas a nos anjos. [...] Eu perdi toda a
esperança e sem esperança não se pode voar. É o que me torna incansável
22
(p.
15-6)
23
.
Na segunda parte da narrativa, Saufe parte para uma remota aldeia de pescadores,
tornando-se o melhor pescador de pérolas, capaz de permanecer mais tempo no fundo do
mar e trazer as ostras com os mais belos espécimes.
Ao mudar o locus narrativo para as profundezas do oceano, os elementos do
maravilhoso aparecem de forma mais evidente nas próprias personagens, como parte da
composição imagética e textual. É lá o habitat do peixe sábio, o incrível ser marinho
personificado, que no original em inglês é “um velho peixe fêmea com óculos de aro de
chifre”
24
. Na versão para o português, a fêmea de peixe passa a ser um velho peixe-boi (p.
20), personagem detentora de voz e conhecimento, que reorganiza o espaço-tempo e as
relações das vozes no processo dialógico do conto a partir de sua entrada em cena.
A coerência das inter-relações das estranhas personagens em um espaço insólito
impede os paradoxos e a possível perplexidade dessas ou do leitor frente às
circunstâncias de inverossimilhança.
21
And oh, my love, she said, I cannot fly, although they tell me that when I dance I am of an extraordinary
lightness. Be not angry with me, but remember that Mirzah Aghai and his friends are great people, against
whom a poor girl can do nothing. And they are rich, and own lovely things. And you cannot expect a dancing-
girl to be an angel (p. 10).
22
[…] when boys in the streets laughed at him and cried: Behold the Softa who believed Thusmu to be an
angel, he stood still, looked at them and said: I believe so still. It is not the faith in the dancer that I have lost,
but my faith in the angels. […] I have no hope, and without hope you cannot fly. This is what makes me
restless (p. 11).
23
Questiono, apenas aqui, a excelente tradução feita por Cássio de Arantes Leite. Na última frase, a melhor
tradução para restless é inquieto e não incansável, que Saufe vagava compulsivamente pelas ruas sem
destino. E o fazia não por ser incansável, mas devido à inquietação que sentia por não ser mais capaz de
ajustar-se à realidade, tendo perdido de todo a esperança. (Nota da autora da dissertação.)
24
[…] an old cowfish with horn-rimmed spectacles (p. 16).
39
Tanto a função social quanto a função literária do sobrenatural é a mesma: a
transgressão de uma lei que permite que algo aparentemente impossível se torne real.
Assim, segundo Todorov (2006, p. 164), a intervenção do elemento maravilhoso introduz
uma ruptura no sistema de regras estabelecido, achando nisso sua justificação. A função
dos eventos sobrenaturais é, portanto, romper o equilíbrio original, dando ensejo à busca
pelo reequilíbrio, não necessariamente igual ao do início.
Quanto ao inexorável, característica do pandeterminismo presente no maravilhoso, é
do destino que se trata aqui, contido no próprio título que nome ao conjunto de contos.
É o fatalismo árabe pré-determinístico do qual não podem escapar nem anjos nem
homens, que as asas destruídas de Saufe assim como sua crença nos homens não
poderão ser restauradas. O encontro com o peixe sábio opera em Saufe uma aparente
reunificação entre desejo e realidade, mas a personagem sonhadora e idealista paga o
preço da perda da esperança. Saufe abre mão de seu sonho de voar como se o fizesse
por vontade própria, não se dando conta de que apenas foge de enfrentar o sistema.
O elemento mágico e de encantamento, intrínseco ao maravilhoso, é representado,
na primeira parte do conto, por Thusmu. Na segunda parte, são os peixes, em especial o
peixe-boi mítico, o ser sobrenatural capaz de tudo explicar, fazendo a ponte entre a
infelicidade e a pacificação, mesmo com a perda da ilusão. Segundo Todorov:
Os detentores do sentido formam uma categoria à parte entre as personagens:
são os santos homens, eremitas, abades e reclusas. [...] nenhum deles participará
de uma peripécia: salvo nos episódios de interpretação. [...] os próprios heróis a
elas se referem: Vimos tanta coisa, adormecidos ou acordados [...], que
deveríamos pôr-nos à procura de um eremita que nos explicasse o sentido de
nossos sonhos. No caso de não conseguirem descobrir um, o próprio céu intervém
e uma voz se faz ouvir, explicando tudo (Idem, p. 170, grifo do autor).
Abre-se, dessa forma, o espaço para o fecho da alegoria moral que caracteriza a
segunda parte da história, representada pela máxima enunciada pelo peixe sábio ao
retomar parte do discurso consolador de Madame Pompadour ao rei Luís XV, seu amante,
deprimido pela derrota frente à Prússia, na batalha de Rossbach, em 1757, ocorrida
durante a Guerra dos Sete Anos: Après nous le déluge[!]
25
(p. 23).
“O Mergulhadorpertence a um subgênero do maravilhoso, o maravilhoso exótico ou
hiperbólico. O trecho final da narrativa pode ser denominado de maravilhoso alegórico,
passagem na qual a fala do peixe sábio é representativa de alegoria moral: “Nossa
25
A fala completa de Madame Pompadour é: “Il ne faut point s’affliger: vous tomberiez malade. Après nous le
déluge!, cuja tradução corresponde a: “É absolutamente desnecessário afligir-se: você acabaria adoecendo.
Depois de nós, o dilúvio!” (Tradução nossa.)
40
experiência nos demonstrou, assim como a sua um dia fará por você, que se pode muito
bem nadar sem esperança, sim senhor, que se nadará ainda melhor sem ela”
26
(p. 23).
Em qualquer dessas denominações, observa-se a mistura de elementos naturais e
sobrenaturais, mescla apenas perceptível para o leitor implícito. Para a personagem-
narrador tudo se situa em um mesmo nível o do natural que é aceito dentro do contexto
do sobrenatural, segundo Todorov (2004, p. 61-2).
Diferentemente do maravilhoso, o gênero fantástico implica reação de medo causada
pelos eventos sobrenaturais, o que gera estranheza seja no leitor, seja nas personagens,
ou em ambos. Segundo Todorov, o fantástico dura o tempo de uma hesitação, que pode
ser tanto do leitor como da personagem, “que devem decidir se aquilo que percebem se
deve ou não à realidade, tal qual ela existe para a opinião comum” (TODOROV, 2006, p.
156).
É o que ocorre no conto O Anel”, no qual Lovisa encontra um estranho na floresta,
ou apenas pensa que isso aconteceu, podendo tudo ter ocorrido somente em sua
imaginação, dando ensejo à interpretação simbólica de seu confronto com seu
inconsciente, com seus instintos básicos e seu desejo sexual reprimido. Quer se trate da
imaginação de Lovisa, de um possível encontro com um desconhecido de aspecto
selvagem, ou ainda, do embate simbólico entre consciente e inconsciente, as leis da
realidade permanecem intactas. Segundo Todorov, “A dúvida é mantida aqui entre dois
pólos, dos quais um é a existência do sobrenatural, e o outro, uma série de explicações
racionais” (Idem, p. 157). Dentre as explicações, segundo o autor, podem ser citados o
acaso e as coincidências,
[...] pois no mundo sobrenatural não acaso, reina o que podemos chamar de
pandeterminismo [...]; vêm em seguida o sonho [...]; a influência das drogas [...]; a
ilusão dos sentidos [...]; enfim a loucura [...]. Há evidentemente, dois grupos de
desculpas, que correspondem às oposições real-imaginário e real-ilusório. No
primeiro caso, nada de sobrenatural aconteceu [...]: o que se acreditava ver era
apenas o fruto de uma imaginação desregrada (sonho, loucura, droga). No
segundo, os acontecimentos se produziram realmente, mas explicam-se de modo
racional (acasos, tapeações, ilusões). (Idem, p. 157, grifo do autor).
No caso de O Anel”, a explicação psicanalítica e simbólica é convincente, tanto do
ponto de vista científico como do literário. A autora utiliza-se de elementos simbólicos,
figurativizados no refúgio na floresta e no estranho com aspecto selvagem para referir-se
ao mundo do inconsciente em oposição à realidade da vida consciente.
26
Our experience has proved to us, as your own will some time do it to you, that one may quite well float
without hope, ay, that one will even float better without it (p. 20).
41
dúvida e ambigüidade causadas pela subversão temporal e pelo emprego de
símbolos. Por exemplo, observa-se uma ruptura entre o tempo real e o tempo ficcional,
espaço no qual se o encontro de Lovisa com o homem-lobo, possível devorador de
ovelhas, subvertendo-se a cronologia por meio do chamado tempo psicológico, o que
caracterizaria também o rompimento com a historicidade: “Para os dois atores na
pantomima, foi eterno; segundo um relógio, durou quatro minutos”
27
(p. 195).
É igualmente de se notar o intertexto com a história de Chapeuzinho Vermelho no
qual Lovisa/ Chapeuzinho experimentam a sensação de liberdade ao saírem sozinhas pela
floresta: Lovisa, ao afastar-se fisicamente do marido, pode ser, ainda que por um período,
ela mesma e não a esposa dócil e dependente. Chapeuzinho, por tomar caminho diferente
daquele recomendado pela mãe, afirma-se como sujeito autônomo. Esse primeiro
vislumbre de liberdade levará ambas a seus destinos de independência por meio da
transgressão, o que pode ser considerado, do ponto de vista psicanalítico, como a ruptura
mítica entre mãe e filho.
O Lobo Mau assume aqui a persona do homem selvagem, o transgressor, misto de
ser humano e animal, simbolicamente representando o lado reprimido de Lovisa que ela
teme enfrentar. A tematização do confronto se quando Lovisa descobre, pela primeira
vez, o refúgio na floresta, o que configura o reconhecimento e a aproximação entre as
duas esferas de seu psiquismo: “Ela sentira nesse momento que chegara ao próprio
coração de seu novo lar”
28
(p. 194).
Segundo Mathias, o capataz de Sigismund, o devorador de ovelhas é também um
assassino, já que matou um pastor que tentou detê-lo, e feriu seu filho. Na luta, o braço do
agressor foi ferido. Diante dessa informação, Sigismund, mesmo preocupado com seu
rebanho, sente pena do malfeitor. Ao repreender o marido, Lovisa retoma a fala explícita
de sua avó bem como uma fala implícita que Chapeuzinho poderia ter dirigido ao próprio
Lobo Mau: “Vovó tinha mesmo razão quando dizia que você era um revolucionário e um
perigo para a sociedade[!]”
29
(p. 193). A ironia é clara nesse trecho que Sigismund se
conforma ao padrão de homem adaptado ao sistema, um capitalista que pensa em seus
negócios acima de tudo. Na verdade, o comentário se aplicaria tanto ao Lobo Mau da
fábula como ao devorador de ovelhas, mais que ao pacato e rústico Sigismund. A
27
To the two actors in the pantomime it was timeless; according to a clock it lasted four minutes (p. 240-1).
28
She had felt at that moment that she had come into the very heart of her new home (p. 239).
29
[…] Grandmamma was right when she said that you were a revolutionary and a danger to society[!] (p.
238).
42
metonímia a seguir é ilustrativa dessa característica da personagem: “Sigismund tinha o
rebanho todo na cabeça, mas havia demasiada felicidade em seu coração para que
pudesse desejar o mal a quem quer que fosse no universo”
30
(p. 193).
O trecho a seguir revela o confronto simbólico de Lovisa consigo mesma ao deparar-
se com o desconhecido:
Ela jamais ficara exposta ao perigo, em toda a sua vida. [...] Observava o homem
diante de si como teria observado um espírito da floresta: a própria aparição, não
seus efeitos, transformam (sic) o mundo para o ser humano que se diante dela.
[...] Após alguns instantes, percebeu que o homem a observava do mesmo modo
que ela a ele. Já não estava mais apenas perseguindo, agachado para dar o bote,
mas tinha curiosidade, queria saber. Nisso, ela pareceu ver-se a si mesma com os
olhos do animal selvagem acuado na toca escura: a aproximação silenciosa de
sua forma branca, que podia significar a morte
31
(p. 196).
Nota-se uma gradação decrescente no uso dos substantivos que caracterizam o
desconhecido, em um processo de despersonificação: no início um homem, a seguir uma
fera pronta para dar o bote, por fim, o animal selvagem acuado numa toca escura. Na
verdade, ela via a si mesma com os olhos do homem-animal, como se seu consciente e
seu inconsciente observassem um ao outro. Confrontada com seu lado escuro, ela o
enfrenta. O momento em que se olham com curiosidade sinaliza que Lovisa está pronta
para o mergulho no self. Do mesmo modo, ao perceber que ela e o desconhecido
freqüentam o esconderijo que ela julgava seu, indica que habitam dentro dela, não
apenas a mulher civilizada, a esposa dedicada, o ser submisso e dependente, mas
também o estranho de aspecto selvagem, seu lado desconhecido, independente,
transgressor, agressivo, seu impulso sexual reprimido, seus instintos básicos. Lovisa
sente-se atraída, ao mesmo tempo que repele o confronto:
Não estava negociando a própria vida. Era destemida por natureza e o horror que
lhe inspirava não era medo do que pudesse fazer. Estava dando-lhe uma ordem,
instando-o a desaparecer assim como surgira, a sumir com aquela figura pavorosa
de sua vida, de modo que jamais houvesse estado ali. No mudo movimento sua
jovem forma tinha a grave autoridade de uma sacerdotisa esconjurando um ser
monstruoso por meio de um gesto sagrado
32
(p. 196).
30
Sigismund had his own lambs in his mind, but he was too happy in himself to wish anything in the universe
ill (p. 238).
31
She had never in her life been exposed to danger. It did not occur to her to sum up her position, or to work
out the length of time it would take to call her husband or Mathias, whom at this moment she could hear
shouting to his dogs. She beheld the man before her as she would have beheld a forest ghost: the apparition
itself, not the sequels of it, changes the world to the human who faces it. […] After a while she realized that he
was observing her just as she was observing him. He was no longer just run to earth and crouching for a
spring, but he was wondering, trying to know. At that she seemed to see herself with the eyes of the wild
animal at bay in his dark hiding-place: her silently approaching white figure, which might mean death (p. 241).
32
She did not bargain for her life. She was fearless by nature, and the horror with which he inspired her was
not fear of what he might do to her. She commanded him, she besought him to vanish as he had come, to
43
Não diálogo expresso em palavras nesse encontro. Suas vozes falam por meio do
não-verbal, através de posturas e gestual igualmente eloqüentes. Todavia, é esse diálogo
mudo que traz à tona a revelação pela qual Lovisa anseia, mas teme admitir: a percepção
de que seu casamento está terminado.
Quando sai da floresta e reencontra o marido, Lovisa já não é a mesma mulher. Sua
voz, alterada a partir do encontro inusitado, dá conta, simbolicamente, da mudança sofrida
ao anunciar a Sigismund que havia perdido sua aliança de casamento. O marido,
materialista e pragmático, representante da voz da resistência e do status quo, diz que lhe
dará outra, e que ambos são os mesmos que sempre foram desde o dia do casamento.
Indagada sobre onde teria estado com o anel pela última vez, ela mente, respondendo que
não se recorda. O apagamento intencional da lembrança revela-se pela voz agora
independente, consciente e sagaz da nova Lovisa, externando pela mentira o que significa
para ela a perda do anel: a certeza do rompimento diante da conscientização de que sua
idealização romântica em relação ao casamento não existe mais.
O encontro entre Lovisa e o desconhecido se passara como num sonho ou numa
encenação, nos quais a noção de tempo e espaço é vaga, chegando o leitor a duvidar
momentaneamente do evento, indagando-se se ele não teria ocorrido somente na mente
de Lovisa: “O homem e a mulher fitaram um ao outro. Esse encontro em meio às árvores,
do início ao fim, deu-se sem uma palavra; o que aconteceu só poderia ser expresso por
meio de uma pantomima”
33
(p. 195).
Em “Tempestades”, conto no qual o intertexto shakespeariano, revela-se em seus
aspectos épico e trágico, Karen Blixen tece, por meio desse metatexto, dois planos
narrativos: o da tragédia clássica escrita pelo dramaturgo inglês e o do conto propriamente
dito, em que a confluência do real e do imaginário configura o ambiente para o embate das
vozes narrativas.
O enfrentamento dos conflitos por parte da protagonista, Malli, instaura a visão
feminina da figura aparentemente frágil porém capaz da realização do ato heróico, que ora
é personagem da peça ora o é do conto, sendo a opacidade narrativa a marca que Karen
take a dreadful figure out of her life, so that it should never have been there. In the dumb movement her
young form had the grave authoritativeness of a priestess conjuring down some monstrous being by a sacred
sign (p. 242).
33
The man and the woman looked at each other. This meeting in the wood from beginning to end passed
without a word; what happened could only be rendered by pantomime (p. 240-1).
44
Blixen imprime à sua história, em uma simulação de nevoeiro marítimo, metafórico e
onírico, ao mesmo tempo indicial de desastre e infortúnio.
Essa mudança de posicionamentos e de vozes alimenta uma certa dúvida sobre
tratar-se o acidente de sonho ou da imaginação de Malli, e ainda que se creia que o
salvamento ocorreu, e por uma força sobrenatural Malli foi capaz de realizá-lo, ficam
incertos as razões e os meios pelos quais se produziu o fenômeno
Também a revelação feita por Malli a Arndt de que ela é ora a heroína ora a garota
que não avalia a dimensão do perigo, e por vezes a atriz em meio a uma tempestade
interpretando Ariel, reitera o clima de dúvida que envolve a cena enunciativa, na qual Malli
fala por diferentes vozes: a da atriz, a da garota tímida, e a da heroína salvadora.
Durante todo o tempo que durou o salvamento do navio, Malli não sente medo porque
não percebe ser a frágil garota aspirante a atriz. Se fosse apenas Malli, e tivesse
consciência de suas limitações, não teria forças para salvar a embarcação em perigo. Sua
força e sua coragem têm origem em fatos que o podem ser explicados por leis
puramente naturais.
E agora encontrei coragem para lhe escrever o segredo sobre o qual você nada
sabe. Quero que saiba, Arndt, que quando eu estava em meio à tempestade no
Kvasefjord, a bordo do Sofie Hosewinckel, eu não tive então o menor medo. As
pessoas em Christianssand chamam-me de heroína. que uma heroína é
alguém que enxerga o perigo e o teme, mas o desafia. Eu, porém, o o
enxerguei, e segundo meu entendimento, não havia perigo. [...] Pois pensava ou
acreditava em algo que você jamais imaginará sem que eu lhe diga, mas que
agora explico. Eu pensei que aquela borrasca fosse a tempestade da peça
homônima, na qual eu atuaria, e que li mais de uma centena de vezes. Nela eu
faço Ariel, um espírito do ar e um mágico poderoso
34
(p. 126).
Também o marujo Ferdinand, ferido no naufrágio e que viria a morrer mais tarde,
confunde-se com o Ferdinand da obra shakespeariana. A mescla entre vida real e palco é
o recurso narrativo concebido por Karen Blixen para criar o que seria um nevoeiro
metafórico, como em uma encenação. Cheguei quase a acreditar: eis a fórmula que
resume o espírito do fantástico. A absoluta como a incredulidade total nos levam para
fora do fantástico; é a hesitação que lhe dá vida” (TODOROV, 2004, p. 36, grifo do autor).
34
And now I have gained courage, and I will write to you the secret of which you know nothing. You are to
know then, Arndt, that when I was in the midst of the storm in Kvasefjord, on Sofie Hosewinckel, then I was
not in the least afraid. People in Christianssand call me a heroine. But a heroine is such a girl as sees the
danger and is afraid of it, but defies it. But I, I saw it not, and understood not that there was danger. […] For I
thought or believed something that you can never imagine on your own, but that I shall now explain to you. I
thought that the storm was the storm in the play The Tempest in which I was then soon to play a part, and
which I had read more than a hundred times. Therein I myself am Ariel, a spirit of the air, and a mighty
magician (p. 149).
45
No caso desse conto, não há dúvida de que Malli não pode ser Ariel, porém a
questão reside em saber por que meios ela salvou o navio. Segundo o relato do Diário de
Christianssand, ao descrever a surpresa de todos diante do salvamento nota-se a
perplexidade:
É compreensível que o espírito inquebrantável de uma donzela numa hora de
necessidade pudesse prevalecer e fortalecer nossos extenuados marujos. Mas é
praticamente inconcebível que uma jovem, jamais posta à prova na vida do mar,
pudesse se achar em posse de forças tão poderosas
35
(p. 80).
Outros eventos narrados no conto são factíveis, como a possibilidade da personagem
Herr Soerensen, ator decadente, diretor teatral sem prestígio ou emprego, ainda que seja
considerado um negociante hábil, imaginar-se como Próspero, o todo-poderoso da obra A
Tempestade, pois ele assim se via, antecipando o prazer de, um dia, desempenhar esse
papel.
Em “A História Imortal”, conto que trata de temas como a ambição, a vaidade, a
cobiça e o materialismo, é Mister Clay quem deseja se apossar de uma história, tal qual
Mira Jama, mas com o intuito de torná-la sua e real. De fato, faz parte das características
das histórias de tradição oral a presença, ao mesmo tempo, de elementos de concretude e
de irrealidade, seja pela emulação do cotidiano seja pela valorizão de virtudes éticas e
morais, ou ainda, pela própria construção dramática que as aproximam das experiências
vividas por seres humanos, mesmos que os fatos descritos jamais tenham ocorrido como
tal.
Cria-se, por meio dos contos de tradição oral, ou que apresentam características
semelhantes, uma espécie de intertexto emocional entre narrativa e leitor, que é,
simultaneamente, um metatexto, no qual histórias freqüentemente contadas passam, de
algum modo, a pertencer ao ouvinte pelo estabelecimento de um vínculo afetivo
diegeticamente ensejado. O leitor-ouvinte sente-se assujeitado ao enredo ao mesmo
tempo que pode manipular e acrescentar elementos composicionais aqui e ali de modo a
tornar mais rico o encantamento narrativo, em que muito do prazer está em ouvir a mesma
história contada várias vezes e por muitas vozes.
Por exemplo, no conto “A História Imortal”, Elishama, ao explicar ao surpreendido
Mister Clay que a história que ele julga ser real não é verdadeira, afirma:
35
It is understandable that a maiden’s unconquerable spirit in the hour of need might prevail upon and
strengthen our struggling seamen. But it is as good as inconceivable that a young female, unproved in
seafaring life, should be found in possession of so great a strength (p. 91-2).
46
É a história de todos os marinheiros do mundo. Até mesmo as frases e as palavras
são as mesmas. Mas todo marinheiro sente prazer quando, mais uma vez, um
deles começa a contá-la. [...] Os marinheiros que contam essa história, Mister
Clay, são homens pobres e levam uma vida solitária no mar. É por isso que
contam sobre a casa rica e a linda mulher. Mas a história que contam jamais
aconteceu
36
(p. 143).
O conto oral estabelece, pois, a interação definitiva entre contador e ouvinte. Ao ler
os contos de Blixen é como se ouvíssemos a voz de um contador de histórias. É a
semântica pictórica das imagens somada às vozes das personagens que constróem a
sintaxe das encenações que se desenrolam presentificadas diante da platéia.
Observa-se também um permanente intertexto com o teatro, como em uma peça na
qual a montagem exige não somente numerosas mudanças de cena, mas também trocas
de papéis das personagens-atores, que assumem diferentes vozes ao longo das
narrativas. Estabelecem-se, a partir daí, comparações, metáforas e alegorias,
figurativizando a analogia entre a vida e a representação artística, o cotidiano e a
encenação teatral, o homem e a personagem, o viver humano e a narrativa. Assim, é o
teatro o recurso que Karen Blixen emprega para fazer representar o palco como metáfora
e metalinguagem da vida, como se pode observar em “Tempestades” e A História
Imortal”. No primeiro, por exemplo, Herr Soerensen sente que pode perder Malli, seu
projeto de atriz, caso ela se case com Arndt e permaneça para sempre em Christianssand,
o que o leva a refletir, tomando a vida como palco de encenações:
Entendeu, ou por um vislumbre percebeu, a atitude de sua pupila, e ficou
impressionado. Eis uma poderosa incumbência: o mundo todo, a vida comum do
dia-a-dia, levada a subir ao palco, tornando-se uma com ela. Seja feita sua
vontade, William Shakespeare, assim no palco como na sala de estar! Eis que na
vida real seu Ariel abriu de fato um par de asas e ergueu-se no ar bem diante de
seus olhos
37
(p. 92).
Em vários dos contos é possível notar o caráter encantatório das palavras. Em “O
Mergulhador”, são as frases do Corão e as palavras do peixe sábio que revelam esse
aspecto. Em “Tempestades” e A História Imortal”, as citações da peça de Shakespeare
36
It is the story of all sailors in the world. Even the phrases and the words are the same. But all sailors are
pleased when, once more, one of them begins to tell it. […] The sailors who tell this story, Mr. Clay, are poor
men and lead a lonely life on the sea. That is why they tell about that rich house and that beautiful lady. But
the story which they tell has never happened (p. 172-3).
37
He understood, or by glimpses caught, his young pupil’s attitude, and was impressed. Here was a mighty
undertaking: the whole world, the everyday common life, lifted onto the stage and being made one with it. Thy
will be done, William Shakespeare, as on the stage so also in the drawing room! Here in very reality his Ariel
did spread out a pair of wings and did rise into the air straight before his eyes (p. 107).
47
bem como a profecia de Isaías instauram o vínculo mágico entre o real da narrativa e o
real descrito nos textos teatral e bíblico.
Esse aspecto encantatório confere prioridade das palavras sobre a ação, tornando
aquelas mais importantes que as coisas. Mais ainda, segundo Todorov (2003, p. 137),
“são as palavras que criam as coisas”. De acordo com o autor, e como decorrência da
importância conferida às palavras, “escrever é instaurar a realidade” (Idem, p. 140).
Esse autor estabelece um interessante paradoxo sobre o falso e o verdadeiro na
narrativa, segundo o qual,
[...] a fala, quando verdadeira, é falsa; quando falsa, é verdadeira. Se quisermos
reunir essas duas regras numa só, deveremos dizer: as palavras ditas não
significam a presença das coisas, mas sua ausência. Formulada assim, essa lei é
pertinente para o conjunto dos referentes, e não para uma de suas partes: a
verbalização altera a natureza das atividades psíquicas e indica sua ausência; ela
não altera a natureza dos objetos materiais, mas fixa antes sua ausência que sua
presença (Idem, p. 141).
Nas narrativas oriundas da oralidade, outro aspecto pode ser ressaltado, comum
também às histórias de Blixen: trata-se da questão do desejo. Sobre esse aspecto,
Todorov comenta:
Nada favorece tanto o desejo como o obstáculo. [...] O paradoxo e a tragédia do
desejo decorrem precisamente de sua natureza dupla. Deseja-se a um só tempo o
desejo e seu objeto. [...] É fácil, agora, restabelecer a relação profunda entre fala e
desejo. [...] Ambos desafiam a lógica tradicional que pretende conceber os objetos
em si mesmos, independentemente de sua relação com aquele para quem
existem. [...] As palavras são para as coisas o que o desejo é para o objeto do
desejo (Idem, p. 146-7).
A partir dessas constatações é possível estabelecer o nexo dialógico entre os
elementos que compõem a ficção. De acordo com o autor, o desejo é um dos universais
semânticos que conectam o objeto e quem o deseja, mediados pelo obstáculo:
Ao tomar o desejo como uma das constantes temáticas, a literatura nos revela, de
maneira distorcida, seu segredo que é sua lei primordial: que ela é seu próprio
objeto essencial. Ao falar do desejo ela continua a falar de si mesma. Pode-se,
pois, desde já lançar uma hipótese sobre a natureza dos universais semânticos da
literatura: eles sempre serão apenas transformações da literatura ela mesma
(Idem, p. 148).
Nos contos de Karen Blixen, é o desejo o elemento primeiro que move as
personagens, conformando e enformando as vozes narrativas no processo do dialogismo
concebido por Bakhtin.
Em “O Mergulhador”, o desejo de Saufe de ver o mundo de cima, tal qual os anjos, o
faz idealizar asas que permitam tornar real sua aspiração. Por outro lado, é desejo do
48
establishment impedir que o sonho de Saufe se realize. Nesse caso, o desejo do rapaz é o
obstáculo do sistema. Ao ser usada como instrumento pelo ministro do rei, Thusmu passa
a ser o obstáculo de Saufe que, ao apaixonar-se, transforma a dançarina em objeto de seu
desejo. Já o desejo de Thusmu é a vinda de Saufe para vê-la dançar no festival da colheita
de rosas. Seu desejo é sua esperança, reiterado pela afirmação: “Pois sem esperança não
se pode dançar”
38
(p. 15).
A fala de Thusmu estabelece um paradoxo com a do peixe mítico, para quem a
esperança e, portanto, o próprio desejo, constituem obstáculos para quem deseja. A
máxima do peixe sábio contraria os fundamentos da fábula: a de que é possível nadar sem
esperança, isto é, sem desejo, sendo o ato de nadar tomado como metáfora de viver.
Para o peixe, pode-se nadar bem, ou viver ainda melhor sem a existência de sentimentos
como esperança e desejo. A pacificação de Saufe é, pois, baseada no não-desejo, aqui
interpretada como fuga do enfrentamento da realidade.
Em “Tempestades”, muitos desejos movem as personagens, conduzindo a trama
narrativa e abrindo diferentes caminhos para a manifestação de suas vozes: o desejo de
Malli era ser Ariel e também a esposa de Arndt, e mais, a salvadora do navio, celebrada
como tal pelo povo de Christianssand. O de Herr Soerensen era o de interpretar papéis
shakespearianos como o de Próspero, ou ainda, o de ter seu crânio, após sua morte,
utilizado no palco como a caveira de Yorick na peça Hamlet. Seu desejo de atuar e de
desempenhar papéis, mesmo depois da morte, é figurativizado em seu testamento, no
qual deixou explícito seu desejo sobre a utilização de seu crânio. Nesse caso, o desejo
sobrevive à morte como se fosse uma entidade autônoma.
No conto “A História Imortal”, Mister Clay ambiciona poder, riqueza e prestígio a
qualquer custo. Sobre seus desejos materialistas assenta-se algo etéreo: alguém que
nunca lera nada além de livros contábeis, e mal sabia o que era uma história, almeja ser
dono de uma ao torná-la real. Outro paradoxo se pode notar aqui, isto é, a aspiração pelo
intangível por parte de alguém ligado apenas às coisas materiais. Esse mesmo paradoxo
pode ser notado, em sentido contrário, em “O Mergulhador”, em que Saufe abre mão do
intangível, o sonho de voar, pelo material, isto é, tornar-se pescador de pérolas. Em ambos
os casos, a fuga do sofrimento justifica a tomada de posição das personagens, mesmo
que de maneira oposta.
38
For without hope one cannot dance (p. 11).
49
Analogamente, no conto “A História Imortal”, Elishama, que aparentemente se privou
de ambições e desejos, espera e deseja que a profecia de Isaías se torne realidade,
mesmo sem ter plena consciência disso. Um ser obediente e individualista, solidário às
causas dos mais fracos, que sabia apenas fazer analogias contábeis, ele anseia por algo
que não sabe descrever. Seu longo percurso de sofrimentos o faz aproximar-se cada vez
mais da Terra Prometida de sua própria alma, quando então, sua vida de dor e privações
poderá afinal encontrar a recompensa de Deus. “[...]. E a miragem tornar-se-á em lago; e a
terra sedenta em mananciais de águas; e nas habitações onde jaziam os chacais haverá
erva com canas e juncos”
39
(p. 138). Na verdade, Elishama deseja sem saber que deseja.
No mesmo conto, Virginie, mais do que a vingança contra o cruel Mister Clay,
responsável pela ruína e morte de seu pai bem como pela destruição de sua família,
deseja ser amada. Torna-se duas vezes personagem: a segunda, ao tornar real a história
que os marinheiros contavam. Ao viver seu sonho efêmero de amor com Povl, teve
também realizada sua própria profecia de Isaías, mesmo que por apenas uma noite.
Em “O Anel”, Lovisa, liberta de seu ideal infantil e romantizado do casamento, deseja
ser uma pessoa inteira, dona de seu destino. Ao perder simbolicamente o anel, seu
obstáculo figurado, ela encontra sua vida.
Por fim, em “A Festa de Babette”, desejam as irmãs Martine e Philippa servir ao pai e
ao próximo, ainda que com o sacrifício da realização pessoal. A Achille Papin, o tenor
francês que renunciou a tudo por sua arte, desejando inutilmente fazer de Philippa a artista
de voz celestial, resta o desejo do reencontro com sua amada no Paraíso, ele, como Don
Giovanni, retomando com sua Zerlina o dueto interrompido.
O jovem tenente Lorens Loewenhielm ambiciona poder e prestígio, e quem realiza
seu desejo é ele próprio, ao abrir mão de outros desejos. O maduro general finalmente
compreende que o preço que pagou por suas renúncias, só valeu a pena por tê-lo
conduzido, de modo inesperado, de volta à casa amarela do pequeno povoado, onde sua
fome e sede de redenção e transcendência puderam ser saciadas pelo jantar-discurso de
Babette, memória tornada novamente realidade.
De todas as personagens de Karen Blixen, uma merece especial destaque. Trata-se
de Babette, indivíduo que pertence à mesma classe, segundo Platão, dos poetas criativos,
39
[…] For in the wilderness shall waters break out. And streams in the desert. And the parched ground shall
become a pool, and the thirsty land springs of water, and the habitation of dragons, where each lay, shall be
grass with reeds and rushes (p. 166).
50
e daqueles artistas e artesãos sobre quem se diz serem inventivos. Parafraseando o
filósofo, pode-se dizer que ela encarnou sua alma em sua criação, deixando algo novo e
fresco no lugar do velho, ao fazer com que o mortal tomasse parte no imortal, “tanto no
corpo como na alma”
40
.
Babette personifica o desejo em duas instâncias: o seu próprio anseio de ser de novo
a artista que um dia fora, e aquela a quem cabe satisfazer desejos, mesmo daqueles que
não têm consciência de que os possuem. Ela é a narrativa completa, personagem-discurso
desde sempre sabedora de que possui um bem que jamais lhe poderá ser tirado, sua arte,
por meio da qual se torna capaz de conferir harmonia à comunidade de fiéis, levando-os
ao transcendente por meio do sensorial.
Nos contos de Anedotas do Destino, mais do que personagens, está presente a alma
humana que fala por meio de vozes. O sutil embate de pensamentos conflitantes encontra
seu caminho de extravasamento por meio dessas vozes, portadoras de sentidos que
remetem a ideais, a fantasias, ao atávico, ao imaginário coletivo, a símbolos, ao
maravilhoso, ao onírico, ao sobrenatural, ao fantástico, aos sentimentos próprios da
natureza humana, seus vícios e virtudes, todos os elementos que se julgava estarem
ultrapassados ou perdidos devido ao declínio da arte de contar histórias. A voz do
contador, que sutilmente tece a teia dos enredos de Blixen, retoma uma oralidade
dialógica que pode ser lida sem perder sua forma original, aquela que necessita da voz
humana para se fazer ouvir.
40
Os trechos da paráfrase e da citação foram extraídos de “O Banquete”, de Platão, obra constituída por
uma série de diálogos filosóficos escritos algum tempo depois de 385 A.C., sendo imprecisa a data exata.
Trata-se de uma discussão sobre a natureza do amor feita na forma de discursos, tanto satíricos como
sérios, tendo como cenário uma reunião festiva na qual tomaram parte apenas homens, na casa de Agathon
em Atenas. (Dados obtidos online, tradução nossa do inglês – Vide Referências, Sites Pesquisados.)
51
Capítulo II
OPOSTOS COMPLEMENTARES: O EMBATE DAS VOZES FEMININAS E MASCULINAS
Não se pode falar em feminismo por parte da autora, tal qual esse movimento é
concebido a partir do final dos anos sessenta. Na verdade, Karen Blixen traz em si desde
criança sinais de um feminismo latente, o qual acaba por se desenvolver ao longo de sua
infância e juventude, revelando-se especialmente durante os anos da idade adulta até a
maturidade.
Em uma carta escrita para sua tia Bess Westenholz (AIKEN, 1990, p. 112), em 1926,
ela faz reflexões cruéis sobre o status feminino, tratando-o como uma cifra dentro dos
códigos de gênero da velha ordem mundial. Ela escreve: “A masculinidade é um conceito
humano”, enquanto “a feminilidade tem a ver com as qualidades em uma mulher que são
agradáveis ao homem”, ou das quais eles necessitam. Para ela, é como se de algum
modo as mulheres não existissem, passando a ter vida e voz apenas quando seus homens
retornam para casa. Em sua visão, nenhum trabalho, nenhum talento, nenhuma forma de
produtividade tais quais eram exercidos pelas mulheres valiam tanto quanto agradar aos
homens. Segundo ela, as mulheres acabavam por dedicar suas habilidades para servir a
esse propósito já que suas vidas se baseavam em uma lógica androcêntrica, na qual todos
os contratos entre homens e mulheres não eram senão formas variantes de prostituição.
Provavelmente devido a esse posicionamento ideológico e crítico da autora, pode-se
perceber nos contos de Anedotas do Destino bem como em outras obras suas, o destaque
conferido às personagens e aos papéis femininos, revelado por suas vozes e falas, seus
atos e entoações.
A disputa por poder e afirmação nos contos de Anedotas do Destino retrata o embate
das vozes heteroglóssicas identitárias de caráter religioso, de prestígio social, do universo
feminino em luta por afirmação frente à hegemonia masculina, da prevalência artística
sobre o cotidiano restrito, revelando o conflito constante entre posturas antagônicas,
posicionamentos socioculturais, ideológicos e filosóficos divergentes, planos que ora se
afastam ora confluem para firmar-se estatutariamente por meio das falas das
personagens.
52
Em “O Mergulhador”, os representantes do sistema, isto é, as altas figuras de Xiraz, o
rei, os sacerdotes, os ministros e, em especial, Mirzá Aghai, grupo eminentemente
masculino, fazem valer seu poder por meio da dissimulação exercida pela figura feminina,
Thusmu, ao mesmo tempo manipulada pelo sistema, de acordo com a visão árabe-
islâmica de assujeitamento da mulher ao homem, e também manipuladora, ao enganar
Saufe e domi-lo pela paixão. O estereótipo feminino e reducionista de beleza e sedução
fala pela voz de Thusmu:
Vocês, homens, disse, adoram leis e argumentações e depositam grande nas
palavras que passam através de suas barbas. Mas pretendo convencê-lo de que
temos uma boca para debates mais doces, e uma boca mais doce para debates.
Vou ensiná-lo de que modo anjos e homens chegam a um perfeito entendimento
sem argumentações, à maneira divina
41
(p. 13).
Ao estabelecer a relação dialógica antitética do percurso de Saufe entre o que ele
deseja ser e o que se tornará, isto é, entre as alturas do céu e as profundezas do mar,
Karen Blixen marca o embate dos opostos que se complementam nos terrenos
epistemológico, fenomênico e de gênero, traçando um caminho através do qual os seres
humanos transitam, agravando ou tentando resolver seus conflitos existenciais,
metafísicos e ideológicos, entre suas aspirações e as realizações possíveis.
A fala consoladora e pragmática de Madame Pompadour é similar à fala de Thusmu a
Saufe, sugerindo a reconstrução de suas asas, a qual também é semelhante ao discurso
do peixe mítico, destituindo todos de seus sonhos. Apoiadas sobre o domínio subliminar e
mistificador da mulher sobre o homem, essas vozes femininas fundam-se em
argumentação articulada e lógica, ainda que por meio de sutilezas, fazem o contraponto à
voz masculina de mando, revelando o choque entre realidade e ilusão, o ideal e o possível,
a racionalidade e a beleza sedutora. A crítica ao mundo masculino se revela, ainda, na fala
do peixe sábio, no original em inglês uma figura feminina, ao reforçar os percursos de
ascensão (vôo) e queda (mergulho) dos seres humanos:
Mencionarei ainda, muito ligeiramente [...] à maneira sábia e irrefutável dos peixes,
o fato de que o homem, embora caído e corrupto, mais uma vez logrou, pelo
engenho, ascender ao topo. Continua aberto à dúvida, contudo, se mediante esse
aparente triunfo o homem obteve verdadeiro bem-estar. Como uma autêntica
segurança poderá ser obtida por uma criatura sempre ansiosa acerca da direção
em que se move e que atribui importância vital ao ato de se erguer e cair? Como
41
You men, she said, love laws and argument, and have great faith in the words that come out through your
beards. But I am going to convince you that we have a mouth for sweeter debates, and a sweeter mouth for
debates. I am going to teach you how angels and men arrive at perfect understanding without argument, in
the heavenly manner (p. 8).
53
pode o equilíbrio ser obtido por uma criatura que se recusa a abrir mão da idéia de
esperança e risco[?]
42
(p. 22).
Os embates entre opostos no conto “Tempestades” aparecem figurativizados tanto na
tormenta da peça de Shakespeare como na do conto, conferindo poder não aos
indivíduos, mas ao destino, ao fate de que são vítimas homens e personagens. Como
numa tempestade permanente e alegórica da vida, são todos figurativamente atirados de
para lá tal qual marujos no tombadilho de um navio em meio à tempestade, sinalizando
um final imprevisível.
No conto, as aspirações das personagens não se realizam no plano social ou
pessoal: Herr Soerensen é o ator mambembe e decadente, em contraste com sua vaidade
e seus altos ideais de diretor teatral e ator shakespeariano. Malli abandonara o lar para se
tornar atriz e, por um curto período, desfruta das glórias de ter sido a heroína salvadora do
navio de Jochum Hosewinckel, o que acaba por lhe trazer mais dor que realização.
Nessa narrativa, cabe a Malli o papel de conduzir a trama, como uma mistura de atriz,
heroína e garota frágil, diante da qual se rendem Herr Soerensen, Arndt, seu pai e dono do
navio, o marinheiro Ferdinand e o povo de Christianssand.
O artístico como privilégio torna-se a sina da qual é impossível escapar. Destino e
escolha, amor e renúncia, mestre e discípula são dicotomias obrigatórias no caminho do
amadurecimento de Malli, personagem ao mesmo tempo feminina e masculina, ao tornar-
se Ariel, o espírito do ar e mago da peça de Shakespeare, estabelecendo, por analogia, o
engano como realidade e o teatro como palco da vida.
Esse processo de mutação vem reiterar uma possível idéia da autora quanto aos
papéis de homens e mulheres. No caso de Malli, a afirmação implícita é de que uma
mulher pode ter características masculinas conservando sua feminilidade, ou ainda, que
atos heróicos cabem apenas aos homens, tornando-se surpreendentes quando realizados
por uma mulher.
Em todos os contos de Anedotas do Destino é a figura feminina a condutora da
trama, o olhar pragmático, a competência para a superação e a adaptação frente às
42
I shall further […] in the wise and proven manner of the fish, pass lightly over the fact that man, although
fallen and corrupted, once more succeeded, by craft, in coming out on top. It does, however, remain open to
doubt whether, through this apparent triumph, man obtained true welfare. How will real security be obtained
by a creature ever anxious about the direction in which he moves, and attaching vital importance to his rising
or falling? How can equilibrium be obtained by a creature who refuses to give up the idea of hope and risk[?]
(p. 19-20).
54
provações. Elishama, em “A História Imortal”, é a única personagem que contraria esse
padrão. Sua sensibilidade o aproxima do pensamento e do modo de ser da mulher, como
se dentro do homem habitasse uma alma feminina.
Herr Soerensen é a ponte para o intertexto da tragédia grega e do teatro
shakespeariano bem como da poesia nórdica de tradição oral. É a áspera paisagem
setentrional norueguesa que assiste ao declínio do ator cuja arte ele se recusa a
abandonar, ao viajar com sua pequena companhia de cidade em cidade, para cima e para
baixo pelos fiordes, cumprindo abnegadamente seu destino de decadência. Ele é a voz
masculina que sonha e tem visões, capaz de conservar os pés fincados na dura realidade,
ator e negociante hábil, arrostando adversidades e mantendo-se firme. Expulso do palco
do teatro real de Copenhague e transformado em saltimbanco pelos reveses da vida, ele é
feliz com sua nova liberdade, apesar de tudo.
Sua principal característica, a duplicidade, permite que veja o sucesso como penoso
e o fracasso como possibilidade de libertação. Ele é também o ator sensível e o
negociante astuto, o estereótipo masculino do vencedor que, mesmo quando perde, não
abandona o barco que naufraga. Nele se revelam o intertexto da religiosidade humilde
embora altiva, aliada a uma segunda natureza, pragmática e objetiva.
A natureza de Herr Soerensen tinha uma espécie de duplicidade perfeitamente
capaz de confundir e perturbar o seu entorno e podia até mesmo ser chamada de
demoníaca, mas com a qual ele próprio lograva viver em termos harmoniosos. Era
por um lado um negociante atento, astuto e incansável, com olhos na nuca, um
faro preciso para o lucro e um olhar completamente prático e desinteressado sobre
seu público e a humanidade em geral. E era ao mesmo tempo o servo obediente
de sua arte, um humilde sacerdote ancião no templo [...]
43
(p. 64).
Ao mesmo tempo que trilha sua modesta vida de ator mambembe, é capaz de elevar-
se, pelo espírito, às alturas da glória jamais perdida:
[...] quando tarde da noite, depois de saborear uma ceia modesta, e com um
pequeno copo de schnapps entornado na goela, subia para o quarto, vela na mão,
por uma escada o íngreme e estreita quanto a rampa de um galinheiro, em
espírito movia-se por alturas tão elevadas quanto um velho anjo na escada de
Jacó. Lá em cima, sentava-se à mesa outra vez com Eurípides, Lope de Vega e
43
Herr Soerensen in his nature had a kind of duplicity which might well confuse and disturb his surroundings
and might even be called demoniacal, but with which he himself managed to exist on harmonious terms. He
was on the one hand a wide-awake, shrewd and untiring businessman, with eyes at the back of his head, a
fine nose for profit, and a completely matter-of-fact and detached outlook on his public and humanity in
general. And he was at one and the same time his art’s obedient servant, a humble old priest in the temple
[…] (p. 72).
55
Molière, com os poetas da idade do ouro de seu próprio país, e com aquele que
mais se parecia com o ser humano, William Shakespeare em pessoa
44
(p. 64-5).
Em sua primeira parte, a trama é estabelecida a partir dessa personagem, em dois
planos: sua teoria e sua ambição artística. A primeira advém da arte: “[...] a de que grande
parte do que é indigno na vida humana poderia ser evitado se as pessoas simplesmente
se acostumassem a falar em versos”
45
(p. 65), retomando, de certo modo, a fala de Saufe
em “O Mergulhador”: a de que o mundo seria melhor se os seres humanos pudessem ver
o mundo de cima, tal qual os anjos. Sua ambição artística é também seu sonho: produzir
A Tempestade e fazer ele mesmo o papel de Próspero.
A resolução dos conflitos nos contos de Blixen aponta sempre em direção à salvação
pela arte, à sublimação pelo espírito, e a conformação às adversidades.
A voz masculina pragmática do negociante esperto convive em harmonia com o
artista, de cuja boca saem números e cálculos, mas também versos iâmbicos. A mente
que concebe negócios e lucros também alimenta sonhos e dialoga com os grandes do
teatro e da literatura.
A contrapor-se à decadente e pouco atraente personagem de Herr Soerensen está
sua discípula Malli. Ao perceber nela qualidades para desempenhar o papel de Ariel, ele
assume o discurso masculino e chauvinista de seu outrora diretor de teatro em
Copenhague, emblemático da posição masculina frente à mulher:
[...] que a mulher é para o homem o que a poesia é para a prosa, então as
mulheres com quem cruzamos no dia-a-dia são poemas lidos em voz alta... são
lidos com gosto, e agradam aos ouvidos... ou, por outra, mal lidos, e rangem e
ferem... mas esta minha gracinha de olhos cinzentos é uma melodia
46
(p. 67).
Observa-se a quebra de expectativa do estereótipo feminino quando Malli é escolhida
para fazer um papel masculino. Em outro ponto da narrativa isso se confirma quando ela
abandona a pele da menina frágil e é recebida no porto como um homem, após salvar o
44
[...] when, later at night, after having enjoyed his modest supper, with a little glass of schnapps thrown in,
he ascended to his bedroom, candle in hand, up a staircase as steep and narrow as a hen-coop ladder, in
spirit he moved as high as an old angel on Jacob’s ladder. Up there he sat down again to table with
Euripides, Lopez de Vega and Molière, with the poets of his country’s golden age, and with the one who most
of all looked like a human being, with William Shakespeare himself (p. 73).
45
[…] that much which is unworthy in human life might be avoided if people would only accustom themselves
to talking in verse (p. 73).
46
[...] that woman is to man what poetry is to prose, then are the womenfolk we come across from day to day
poems read aloud.They’re read aloud with taste, and please the ear – or else they’re badly read, and grate
and jar. – But this my gray-eyed lassie is a song (p. 76).
56
navio, “com aclamação semelhante à que uma nação marítima confere a seus heróis do
mar”
47
(p. 81).
Por vezes, é o tom híbrido, entre o masculino e o feminino, que caracteriza a
entoação narrativa: “Sim, era uma heroína, uma donzela com um coração de leão”
48
(p.
98).
Todavia, é no final que se pode notar sua mudança de posicionamento, reforçadora
da voz feminina como clichê, voltando ela a ser a mulher dependente a quem cabe ao
homem salvar, mesmo tendo sido a heroína em uma situação improvável. Ao despedir-se
de Arndt, por carta, rompendo o noivado, ela rememora os trágicos eventos da
tempestade, revelando sua fragilidade e dependência:
E me parece que então, no último minuto antes de afundar, poderei com toda
sinceridade ser sua. E estou pensando como será ótimo e grandioso deixar a
batida da onda cobrir a batida do coração. E nessa hora dizer: Eu fui salva, porque
o encontrei e olhei para você, Arndt[!]
49
(p. 127).
Malli se dá conta de todas as dificuldades que envolvem seu sonho de se tornar atriz,
como a perda do lar materno, a vida errante, o destino incerto. A pergunta que faz a Herr
Soerensen sobre a razão de suas vidas serem tão difíceis e seus sonhos parecerem
inalcançáveis, desencadeia a resposta que ela, de antemão, conhece. Investido
momentaneamente do poder que as palavras da personagem Próspero lhe infundem, ele
expõe algo que raramente faz, isto é, a desesperança e a conformação do homem que, a
maior parte do tempo, se vê como vencedor e em alguns momentos se sente
derrotado: “Ai, menina, silêncio! Não devemos nos entregar ao questionamento... é aos
outros que cabe nos questionar... [...] E a nós, jamais cabe perguntar. [...] E em
compensação ganhamos a desconfiança do mundo... e nossa pavorosa solidão. Nada
mais”
50
(p. 123).
Em “A História Imortal”, Mister Clay é a representação do poder material, da riqueza
que traz domínio sobre os demais. Seu prestígio resulta do temor que infunde a seus
empregados e aos outros com quem convive. A personagem é representativa da aridez de
47
[…] with an acclaim such as a seafaring nation accords to its sea heroes (p. 94).
48
Ay, she was a heroine, a lion-hearted maiden (p. 115).
49
And it seems to me that then, in the last moment before we go down, I can in all truth be yours. And I am
thinking that it will be fine and great to let wave-beat cover heart-beat. And in that hour to say: I have been
saved, because I have met you and have looked at you, Arndt[!] (p. 151).
50
O girl, be silent. We must never question – it is the others shall come questioning us – […]. And ne’er
ourselves to ask. […] And in return we get the world’s distrust – and our dire loneliness. And nothing else (p.
145-6).
57
espírito e do vazio existencial, preenchidos apenas por bens materiais e livros contábeis,
homem cercado de aduladores, exceto por seu empregado, Elishama.
Mister Clay estabelece o antagonismo em relação especialmente a Monsieur Dupont,
seu ex-sócio e desafeto: a riqueza e o empobrecimento, a imoralidade e a ética, a vida
familiar e a solidão.
O título do conto refere-se a uma história passada de geração em geração, conhecida
por todos os marinheiros, narrando o encontro entre um rico cavalheiro e um jovem
marinheiro. Convidado pelo rico senhor para uma esplêndida refeição em sua casa, o
milionário oferece cinco guinéus de ouro ao marujo para que tenha relações sexuais com
sua jovem e bela esposa de modo a engravidá-la.
Mister Clay, ao contá-la a seu empregado Elishama, é subitamente interrompido pelo
guarda-livros que narra, a partir daí, o seu final, surpreendendo o patrão, que a julgava
verdadeira por tê-la ouvido de um marinheiro. Recebe, então, de Elishama a explicação de
que a história é chamada de imortal por dois motivos: ela não é real e nunca terá fim.
Segundo o jovem guarda-livros, trata-se de uma narrativa conhecida por todos os
marinheiros, representando uma reconstituição do próprio Éden, ideal que subsiste apesar
de ser o mundo governado pelas leis de mercado.
Mister Clay, que enriqueceu lendo somente livros contábeis, lidando apenas com
dinheiro e bens materiais, e que nutria desprezo pelo mundo da fantasia e do sonho,
acaba por perceber na velhice que o mundo das coisas intangíveis pode ser real. E não
por generosidade ou apreço pela ficção, mas somente por ambição, resolve tornar a
história verdadeira para ao menos um marinheiro.
Seu objetivo é o de apossar-se de seres humanos, transformando-os em teres,
marionetes que ele mexerá de acordo com sua conveniência, numa analogia ao modo
como enriqueceu, isto é, manipulando e comprando pessoas. Karen Blixen faz aqui uma
ácida crítica ao capitalismo e, por extensão, ao mundo masculino dos negócios. Por meio
do conto, ela caminha em sentido oposto à sociedade da época, isto é, reduzindo os
homens a fantoches, e em seu próprio território. O discurso explorador representativo
desse universo androcêntrico e materialista fala pela voz de Mister Clay, ao relatar seus
meios de enriquecimento e os decorrentes direitos adquiridos sobre os indivíduos que
manipulou:
Pois não eram meus os membros doloridos nos campos de chá, sob a névoa da
manhã e o calor escaldante do meio-dia. Não eram minhas as mãos que se
58
queimavam nas chapas de ferro sobre as quais as folhas de chá são desidratadas.
Não eram minhas as mãos que ficavam em carne viva de manter retesados os
cordames do clíper, fazendo-o atingir a máxima velocidade. Os cules
51
famélicos
dos campos de chá, os marujos extenuados do quarto noturno jamais souberam
que contribuíam para produzir um milhão de libras. Para eles, apenas os minutos,
a dor em suas mãos, a enxurrada de granizo em seus rostos e as míseras moedas
de cobre de seus pagamentos tinham existência real. Era em minha mente e por
minha vontade que essa multiplicidade de coisas pequenas combinava-se e
cooperava para produzir uma única coisa: um milhão de libras. Não terei eu,
então, legalmente a gerado[?]
52
(p. 166).
Mister Clay apresenta, por sua própria descrição física e atitudinal, as características
de desesperança, de distorção de caráter e onipotência de outras personagens masculinas
de Karen Blixen, presentes nele de modo exacerbado. A descrição da personagem é
econômica de palavras, em um percurso de gradação dos adjetivos que caminham do
aspecto físico para o atitudinal e de caráter, refletindo, na forma lingüística, a aridez do
homem sem sentimentos, cuja prepotência o deixa cego para valores espirituais ou éticos,
alguém para quem apenas duas coisas têm valor: o dinheiro e o poder. Desse modo,
posicionam-se na primeira seqüência os adjetivos alto, seco, avarento, e na segunda,
ereto, silencioso e solitário.
Era um velho alto, seco e avarento. Tinha uma casa magnífica e uma esplêndida
carruagem e no centro de ambas sentava-se ereto, silencioso e solitário.
[...] É
duvidoso dizer se alguma vez teve consciência da falta de
sentimentos
amistosos
à sua volta, pois a idéia de sentimentos amistosos jamais tomara parte em seu
esquema de vida.
[...]
Gradualmente, em sua existência nababesca, Mister Clay
passara a crer em sua própria onipotência
53
(p. 130-1).
Ele próprio assim se descreve ao conversar com o jovem marinheiro Povl, contratado
para ser a personagem masculina da sua história:
Sou um homem duro e seco, disse. Sempre fui assim e não poderia ser de outro
jeito. Sinto repugnância dos fluidos corporais. Não gosto da visão de sangue, não
consigo beber leite, o suor me é repulsivo, lágrimas me enojam. Em coisas como
51
Cule, do inglês coolie, palavra originária do hindi, que significa operário nativo não especializado, oriundo
da China, da Índia, etc.
52
It was not my limbs that ached in the tea-fields, in the mist of morning and the burning heat of midday. It
was not my hand that was scorched on the hot iron-plates upon which the tea leaves are dried. Not my hands
that were torn in hauling taut the braces of the clipper, pressing her to her utmost speed. The starving coolies
in the tea-fields, the dog-tired seaman on the middle watch, never knew that they were contributing to the
making of a million pounds. To them the minutes only, the pain in their hands, the hail-showers in their faces,
and the poor copper coins of their wages had real existence. It was in my brain and by my will that this
multitude of little things were combined and set to cooperate to make up one single thing: a million pounds.
Have I not, then, legally begotten it[?] (p. 202-3).
53
He was a tall, dry and close old man. He had a magnificent house and a splendid equipage, and he sat in
the midst of both, erect, silent and alone. […] It is doubtful whether he was ever aware of the lack of
friendliness in his surroundings, for the idea of friendliness had never entered into his scheme of life. […]
Slowly, in his career as a nabob, Mr. Clay had come to have faith in his own omnipotence (p. 155-7).
59
essas os ossos de um homem se dissolvem. E nessas relações entre as pessoas
a que se dá o nome de companheirismo, amizade ou amor os ossos de um
homem igualmente se dissolvem. Separei-me de um sócio meu porque não podia
permitir que se tornasse meu amigo e dissolvesse meus ossos. Mas o ouro, meu
jovem marinheiro, é sólido. É duro, à prova de dissolução. Ouro, repetiu, a sombra
de um sorriso perpassando seu rosto, é solvência
54
(p. 167).
Ainda que opostos entre si, uma relação simbiótica entre Mister Clay e Elishama:
“[...] patrão e empregado pareciam estar um de costas para o outro, arrostando o resto do
mundo, e na verdade se comportavam, sem que se dessem conta, exatamente como
teriam feito se fossem pai e filho
55
(p. 135). Tanto a idéia de oposição como a de
similaridade são transportadas pelos substantivos patrão e empregado, dualidade social
que implica uma oposição natural, e por pai e filho, que implica afinidade e semelhança por
parentesco. As personagens principais apresentam, assim, aspectos de similaridade e
oposição, podendo o conto “A História Imortal” ser considerado uma alegoria da profecia
de Isaías.
Elishama é o contraponto de Mister Clay, antíteses que se complementam,
estabelecendo um paralelismo de opostos: o desejo de poder e de riqueza de um é
satisfeito pelo trabalho e pela submissão do outro. A relativa estabilidade de Elishama,
após tantos anos de lutas e privações, é garantida por sua inteligência a serviço da
ambição.
Elishama, que desprezava os bens terrenos, passava o tempo todo, da manhã até
a noite, entre gente gananciosa e invejosa e assim foi por toda a sua vida. Para
ele, era assim mesmo. Entendia perfeitamente os sentimentos dos que o
cercavam e os aprovava. Pois era desses sentimentos que provinham, afinal, seu
cubículo e a porta que o fechava
56
(p. 134-5).
Aqui também se observa uma gradação dos substantivos, do abstrato para o
concreto, reveladora do que é importante para Elishama: sentimentos, cubículo, porta,
54
I myself, he said, am hard, I am dry. I have always been so, and I would not have it otherwise. I have a
distaste for the juices of the body. I do not like the sight of blood, I cannot drink milk, sweat is offensive to me,
tears disgust me. In such things a man’s bones are dissolved. And in those relationships between people
which they name fellowship, friendship or love, a man’s bones themselves are likewise dissolved. I did away
with a partner of mine because I would not allow him to become my friend and dissolve my bones. But gold,
my young sailor, is solid. It is hard, it is proof against dissolution. Gold, he repeated, a shadow of a smile
passing over his face, is solvency (p. 203-4).
55
[...] the master and the servant seemed to be standing back to back, facing the rest of the world, and did
indeed, unknowingly, behave exactly as they would have behaved had they been father and son (p. 163).
56
Elishama, who despised the goods of this world, passed his time from morning till night amongst greedy
and covetous people, and had done so all his life. This to him was as it should be. He understood to a nicety
the feelings of his surroundings, and he approved of them. For out of those feelings came, in the end, his
closet with the door to it (p. 161-2).
60
expondo de modo metonímico os compartimentos representativos da segurança essencial
para a personagem.
A capacidade do rapaz de ultrapassar obstáculos e vencer, mesmo não se vendo
como um vencedor, confere-lhe o poder da sobrevivência e da manipulação sobre os que
serve e despreza ao incutir-lhes cobiça, consciente das razões que o movem. Judeu
fugitivo e descrente, guarda consigo a profecia de Isaías, uma espécie de amuleto que
representa, em última análise, sua porção emocional íntegra e preservada apesar dos
sofrimentos. As vicissitudes por que passou o conduzem a um doloroso aprendizado, que
incluiu, tal como ocorreu com Saufe, a perda da esperança. Seu poder origina-se,
paradoxalmente, da negação do poder. Ele ambiciona somente ser deixado em paz. Seu
mote implícito é o de que nada perde quem nada deseja:
[...] o motivo para o aparentemente ilógico estado de coisas era a total falta de
ambição no espírito do rapaz. O desejo, sob qualquer forma, havia sido
expurgado, limpo e calcinado nele antes que tivesse aprendido a ler. [...] Nada era
suave ou abundante nele, nada de anseios românticos ou aventurescos, nenhum
senso de competição, nenhum medo, nenhuma vontade de lutar. Por fora e por
dentro, era uma espécie de inseto, uma formiga difícil de esmagar até para o
calcanhar de uma bota. Uma única paixão ele possuía, [...]. um desejo fanático
de segurança e de ser deixado em paz
57
(p. 134).
A metáfora que iguala Elishama a um inseto, uma formiga resistente ao sistema,
representado pelo calcanhar da bota, é representativa do modo reducionista como ele se
vê. Mesmo descrente, Elishama é dotado de compaixão por mulheres jovens e por
pássaros, símbolos de beleza e fragilidade, igualmente vítimas de uma sociedade
materialista e opressora:
Em sua natureza, Elishama apresentava um traço que poucas pessoas teriam
esperado encontrar ali. Sentia uma profunda simpatia ou compaixão inata por
todas as mulheres deste mundo, particularmente as jovens. [...] Misteriosamente,
sentia a mesma simpatia e compaixão por pássaros
58
(p. 147).
O paralelismo lingüístico e literário está presente nos contos, quer por relação de
semelhança ou de oposição. Por similaridade, esse paralelismo pode ser notado em
Martine e Philippa, Elishama e Virginie, o jovem e ambicioso tenente e o maduro General
57
[…] the reason for the apparently illogical state of things was the total lack of ambition in the boy’s own
soul. Desire, in any form, had been washed, bleached and burnt out of him before he had learned to read.
[…] He had no softness or fullness in him, no yearning for love or adventure, no sense of competition, no fear
and no wish to fight. Outwardly and inwardly he was some kind of insect, an ant hard to crush even to the
heel of a boot. One passion he had, […] – a fanatical craving for security and for being left alone (p. 160-1).
58
Within his nature Elishama had a trait which few people would have expected to find there. He felt a deep
innate sympathy or compassion towards all women of this world, and particularly toward all young women.
[…] Mysteriously, he felt the same sympathy and compassion towards birds (p. 177-8).
61
Lorens Loewenhielm, o sonhador Achille Papin e o pragmático Herr Soerensen,
personagens que estabelecem contrapontos de semelhança ou oposição, uns em relação
aos outros, confluindo essas características para a complementaridade.
Por exemplo, Thusmu e Saufe, as filhas do pastor e Babette, Malli e Ariel, Herr
Soerensen e Próspero são opostos complementares. A aproximação entre eles se por
injunções circunstanciais, como é o caso das irmãs norueguesas e Babette, ou por
instâncias extraordinárias, como se com a Malli, a atriz, e a personagem
shakespeariana Ariel, ambas dotadas de poderes sobrenaturais, o que se repete em Herr
Soerensen, decadente, pobre, sem perspectiva de alcançar a fama, e Próspero, a todo-
poderosa personagem da peça de Shakespeare.
A dualidade por semelhança ocorre, por exemplo, entre Elishama e Virginie, ambos
vitimados pelo destino que os condenou à perda do lar e da família, obrigando-os à dura
luta pela sobrevivência. Ao final, se assenhoram de suas vidas, superando a condição de
vítimas graças às escolhas que lhes permitem a recriação de suas histórias.
O contraste entre Paris e Berlevaag instaura, analogamente, uma relação antitética:
são ambos cenários da construção identitária e estatutária de Babette. A cosmopolita e
multicultural Paris permite a revelação de sua arte como chef-de-cuisine; a rústica
Berlevaag testa sua capacidade de contenção e de adaptação à realidade primitiva e
conservadora de um remoto povoado norueguês desprovido de sofisticação e bens
materiais.
Saufe e Thusmu constituem antíteses complementares por suas próprias naturezas.
Saufe é a personagem representativa do sonho, do idealismo, da vocação para a
transcendência. Thusmu representa o feminino sedutor, o sensual pragmático e terreno da
dançarina, arremedo de anjo que faz percurso contrário ao de Saufe. De dançarina do rei é
alçada, por meio do engodo, à condição de anjo. Saufe, é lançado das alturas do
sonho, na tentativa da emulação do vôo dos pássaros, ao abismo da desesperança, tendo
suas asas espirituais cortadas e seu ideal destruído.
Outra antítese ocorre quando se opõem a comida simples do vilarejo e o jantar
francês de Babette. A rude sopa de bacalhau seco e cerveja é apenas alimento para o
corpo; os refinados pratos cuidadosamente preparados por Babette, como Cailles en
Sarcophage, os Blinis Demidoff, e ainda, os vinhos especiais como o Amontillado, e
62
mesmo o renomado champanha que o general reconhece como sendo um Veuve Cliquot
de 1860, constituem, além de alimento, fruição para o espírito e os sentidos.
Mais atenuadas em Herr Soerensen, que afinal era um artista, a ambição e o
materialismo de Mister Clay atingem uma magnitude não encontrada em qualquer outra
personagem dos contos de Anedotas do Destino. Tomou a casa de um francês, Monsieur
Dupont, que fora seu cio e com quem se desentendera. O ex-sócio, mais do que um
desafeto, tornara-se seu rival a quem ele buscou com todo o empenho destruir. O homem,
destituído de tudo que possuía devido a maus negócios, viu que sua bela casa acabaria
nas os do antigo sócio. Arruinado e infeliz, antes de cometer suicídio, queimou e
destruiu todos os seus objetos de arte, deixando apenas os espelhos para que estes, ao
invés de refletirem a feliz vida familiar de outrora, mostrassem sempre o retrato do
usurpador.
No fim do conto, ao ver Mister Clay morto, Elishama conclui que aquele que
manipulara os outros como marionetes agora se assemelha a uma: “Toda a figura
orgulhosa e rígida, invejada e temida por milhares, nesta manhã parecia mais uma
marionete quando a mão que manipula os fios subitamente a deixa cair”
59
(p. 184).
Quanto às personagens femininas, observa-se uma tendência à adaptação e ao
mesmo tempo à mutabilidade, em oposição a um certo tipo de imobilismo e acomodação
por parte das personagens masculinas. Essas, quando mudam, fazem-no através de um
processo de aprendizagem de fora para dentro, como se o destino e os eventos os
impelissem a isso. É o caso de Saufe, que recebe do peixe-boi a lição da desesperança, o
que acaba por destruir a mensagem subliminar de Thusmu, personagem-metáfora de
dança e vida, oposta à primeira: a de que sem esperança não é possível viver.
Outro aspecto marcante nas figuras masculinas diz respeito à indiferença e ao
egoísmo com relação a seus semelhantes. É o caso do marido de Lovisa, Sigismund, do
conto “O Anel”, que de namorado apaixonado e marido dedicado no início do casamento,
acaba por se tornar indiferente aos anseios e à felicidade da esposa. Um dia, quando
inspecionava seu rebanho, centro de suas atenções, mandara a esposa para casa, pois
ainda demoraria em sua tarefa: “Assim, foi mandada embora por um marido impaciente,
para quem seu rebanho significava mais do que a esposa”
60
(p. 194).
59
The whole proud and rigid figure, envied and feared by thousands, this morning looked like a jumping-jack
when the hand which has pulled the strings has suddenly let them go (p. 226).
60
So she was turned away by an impatient husband to whom his sheep meant more than his wife (p. 238).
63
Herr Soerensen replica, em certa medida, o comportamento indiferente do marido de
Lovisa, ainda que nele o pragmatismo conviva com os dons artísticos praticamente em pé
de igualdade, numa combinação inusitada e dúbia de materialismo e religiosidade, arte e
habilidade para os negócios. A conformação às dificuldades da vida é de natureza distinta
nas personagens masculinas e femininas. Mister Clay e Herr Soerensen manipulam seus
semelhantes como propriedades suas, cientes da importância que isso lhes confere, e que
se constata por meio de suas falas e entoações, por suas posturas e seus pensamentos.
Herr Soerensen, ainda que se apiede de Malli, a como objeto seu, como parte de seu
projeto pessoal e profissional, seu último bem, a quem ele não pode deixar escapar. Tanto
Herr Soerensen como Mister Clay apossam-se de pessoas como meio de manutenção do
poder.
As personagens masculinas dos contos de Blixen chegam a bom termo em sua
existência quando perdem a esperança ou quando a velhice as alcança, fazendo-as
contemplar o passado, refletir, e mirar seu futuro de solidão. É o caso de Saufe, de Herr
Soerensen, do General Lorens Loewenhielm, de Monsieur Papin, de Mister Clay, de
Elishama.
Ainda que ao final Mister Clay se renda à sabedoria de Elishama, fica no conto a
marca da mesquinhez de um mundo androcêntrico, pequeno e oportunista, no qual as
mulheres e os próprios homens são apenas mercadoria manipulada segundo interesses
espúrios.
as personagens femininas encontram a realização pela arte, pelo exercício
estético, pela dedicação a um ideal e ao próximo, como se pode observar em Babette, nas
irmãs Martine e Philippa, em Malli e em Thusmu. Essas, quando se fazem onipotentes, o
são por meio do exercício de papéis tidos como masculinos, como se com Malli, que se
torna heroína ao salvar o navio e ao assumir o papel teatral de Ariel. Ou de Lovisa, que
embora não assuma um papel masculino, rompe com o status quo da mulher casada
submissa, que finalmente se liberta, contrariando os ditames sociais de uma época em
que, mesmo infeliz, a mulher mantinha as aparências do casamento, prestando ao marido
e à sociedade contas de seu comportamento.
A sabedoria de Babette, de Thusmu, de Malli, pode também ser apreciada em alguns
homens, como é o caso de Elishama, indivíduo sensível, contrapondo-se por seu caráter,
às demais figuras masculinas. Saufe, por exemplo, após tantos enganos e sonhos vãos,
64
atinge uma falsa pacificação, saindo do estado de desesperança para o da não-esperança,
adquirindo, como os peixes, a conformação à sua natureza.
A uma vida pragmática e imediatista vivida pela maioria das personagens masculinas,
opor-se-á outro modo de vida, simples, desprendido e até por vezes ascético de algumas
personagens femininas. Babette apresenta esse traço de modo mais evidente por ter
transitado de um universo complexo e sofisticado para uma vida simples e destituída de
bens materiais.
Martine e Philippa, Malli, sua mãe, Lovisa, e mesmo Thusmu e Virginie, são mulheres
que valorizam aspectos emocionais e espirituais mais do que os valores materiais que as
tentam seduzir. Algumas vendem seus préstimos aos poderosos, como Virginie e Thusmu,
sem perder sua dignidade original.
Essa simplicidade não as impede de serem felizes, cada qual a seu modo, num
processo de resistência à adversidade só encontrada em poucas personagens masculinas,
como Elishama, Povl e Saufe, sobreviventes de diferentes naufrágios, cujos bens
preciosos são imateriais. Para Elishama, a fortuna constituía-se na profecia de Isaías, que
desde menino trazia consigo; para Povl, era uma concha rara, presente reservado a
Virginie; para Saufe, era o vôo dos pássaros.
Para as personagens femininas, os desejos são ainda mais intangíveis. Babette
desejava oferecer um jantar que ultrapassa seu valor material, conquistando pelo paladar
e pelo refinamento estético mentes e almas. Para Martine e Philippa, a alegria residia na
dedicação aos necessitados e no louvor a Deus. A aspiração de Malli era tornar-se atriz;
para Thusmu, nada significava mais que o desejo de dançar; para Lovisa e Virginie, o bem
maior era sentirem-se amadas.
A cena em que Elishama recebe das mãos do jovem marinheiro a rara concha rosa
para entregar a Virginie, resume a essência do bem mais precioso contido nas narrativas
da autora, descrito pelo discurso interior de Elishama ao colocar a concha junto ao ouvido:
O rosto de Elishama assumiu a exata expressão do rosto do jovem marinheiro,
poucos minutos antes. Sentiu um choque estranho, delicado, profundo,
proveniente do som de uma nova voz na casa e na história
61
(p. 188).
A autora marca distintamente, portanto, a natureza diversa da alma feminina em
relação à masculina, conferindo à primeira capacidade de adaptação e resistência, sem
61
Elishama’s face took on exactly the same expression as the sailor’s face a few moments ago. He had a
strange, gentle, profound shock, from the sound of a new voice in the house, and in the story (p. 231).
65
prejuízo do processo de transformação, o que se evidencia nas mudanças físicas e
espirituais das mulheres diante dos sofrimentos a que são submetidas.
Virginie, que no início é movida pelo desejo de vingança, se realiza e redime por
meio de sua relação com Povl, vendo-se, ao final, não como a mulher feita que era, mas
como a jovem de dezessete anos que um dia fora, desfazendo-se, assim, seu status de
mercadoria. A garota com sonhos de princesa, sente que esses, de certo modo, se
realizaram. A simplicidade e a ingenuidade de Povl estabelecem a ponte entre sonho e
outro plano da realidade, na qual o dinheiro que Mister Clay lhes pagara pelo desempenho
de seus papéis, lhes compra, em última análise, a liberdade.
Ao renunciar à vida amorosa ou à realização profissional, não fica nos rostos e nos
corações de Martine e Philippa sinal de perda. São mulheres que assumem seus destinos,
certas de que as decisões que tomaram foram as melhores, não ao pai ou à sociedade,
mas a elas próprias. Quase não diálogos a traduzir suas falas, expressando-se suas
vozes mediante suas posturas de recato e abnegação.
Outra marca importante a sinalizar a superioridade das figuras femininas sobre as
masculinas são os momentos surpreendentes, indiciais das mudanças de rumo nas
narrativas, como em “O Mergulhador”, em que Thusmu é a responsável pela mudança de
direção na trama, levando Saufe a um destino surpreendente.
As figuras femininas são, pois, condutoras da trama por caminhos e desfechos
inesperados. Suas vozes são mutáveis como elas mesmas, ora em posição de mando ora
de submissão; por vezes, vozes consoladoras e, em outros momentos, de repreensão,
sem perder a condição de comando das situações em que se acham envolvidas. Vozes
que se adaptam e se revoltam, são elas vozes-personae de múltiplas identidades. As
posturas de conformação assumidas refletem o que de fato essas personagens desejam
como escolha de posicionamento estatutário e ideológico, e que está para além da posição
de aparente inferioridade.
Ao falar do destaque conferido pela autora às vozes femininas, é de se notar que,
embora menos importantes que aquelas, as vozes masculinas fazem o necessário
contraponto ao discurso feminino. Esse entremear de falas, de vozes, de posicionamentos,
de discursos e de intertextos constitui a matéria-prima de que são tecidas as histórias de
Karen Blixen/ Tanne
62
/ Isak Dinesen, ela própria, uma voz multifacetada, habitante
62
Esse era o apelido familiar de Karen e do qual ela própria não gostava. (Nota da autora da dissertação.)
66
adaptada, por força dos percalços de sua vida, tanto ao mundo masculino quanto ao
feminino.
67
Capítulo III
AS VOZES SIMBÓLICAS
É certo que no mundo moderno a memória e a tradição se atualizam, do mesmo
modo que se atualizam os escritores e os gêneros literários. Apesar de todas as
mudanças, evoluções e rupturas, a trama narrativa faz parte de nossa memória discursiva
tanto como sentido revelado em texto, como em símbolo resgatado de nossa memória
coletiva arquetípica.
A partir dessa constatação, vale notar que a voz e o discurso simbólicos estão
sempre presentes em todos os contos do livro. Para melhor compreensão do que é
linguagem simbólica, é importante ter clara a noção do conceito de símbolo. Carl Jung, na
introdução do livro Man and His Symbols, afirma:
Man uses the spoken or written word to express the meaning of what he wants to
convey. His language is full of symbols, but he also often employs signs or images
that are not strictly descriptive. […] What we call a symbol is a term, a name or
even a picture that may be familiar in daily life, yet that possesses specific
connotations in addition to its conventional and obvious meaning. It implies
something vague, unknown, or hidden from us. […] Thus a word or an image is
symbolic when it implies something more than its obvious and immediate meaning.
It has a wider unconscious aspect that is never precisely defined or fully explained.
Nor can one hope to define or explain it. As the mind explores the symbol, it is led
to ideas that lie beyond the grasp of reason
63
(JUNG, 1977, p. 3-4, grifo do autor).
Nos contos de Blixen essas vozes estão freqüentemente ligadas aos arquétipos
femininos e masculinos, ainda que a voz simbólica feminina prevaleça sobre as demais.
No ensaio da escritora argelina Hélène Cixous, The Newly Born Woman (1975), há uma
frase bastante ilustrativa da simbologia das vozes, cujo conteúdo pode ser também
percebido nas narrativas de Blixen:
In feminine speech, as in writing, that element which never stops resonating […] is
the song: first music from the first voice of love which is alive in every woman. The
Voice sings from a time before law, before the Symbolic took one’s breath away
and reappropriated it into language under its authority of separation. The deepest
63
O homem usa a palavra falada ou escrita para expressar o significado daquilo que quer transmitir. Sua
linguagem é cheia de mbolos, embora ele freqüentemente empregue sinais ou imagens que o são
especificamente descritivos. [...] O que chamamos de símbolo é um termo, um nome ou mesmo uma imagem
que podem ser familiares na vida cotidiana mas que possuem conotações específicas além daquelas
referentes ao seu significado óbvio e convencional. Ele implica algo vago, desconhecido, ou escondido de
nós. [...] Portanto uma palavra ou uma imagem é simbólica quando revela mais do que seu significado óbvio
e imediato. O símbolo possui um aspecto inconsciente mais amplo que nunca é definido com precisão ou
totalmente explicado. A ninguém é dado, também, defini-lo ou explicá-lo. À medida que a mente explora o
símbolo, essa é levada a idéias que estão além dos limites da razão. (Tradução nossa.)
68
the oldest, the loveliest Visitation. Within each woman the first, nameless love is
singing
64
(CIXOUS apud AIKEN, p. 53).
Segundo Todorov (2003, p. 129), o simbólico funciona como disfarce ou dissimulação
da significação indicial, como em “O Anel”, conto em que um casamento aparentemente
harmonioso ensejará uma abordagem psicanalítica do desejo sexual como manifestação
do inconsciente. Nesse conto, uma variedade de símbolos opera como suportes da trama
como, por exemplo, elementos arquetípicos de dominação masculina e submissão
feminina, os quais estão representados nas personagens de Lovisa e de seu marido. Em
nenhuma outra narrativa foi a autora tão pródiga em valer-se do simbólico para representar
elementos do inconsciente humano, especialmente representativos da realidade e dos
anseios femininos.
A floresta, símbolo do inconsciente, é para a jovem esposa um tempo e um lugar
paralelos ao tempo e ao lugar da vida cotidiana, simulacro de uma outra dimensão. A cena
do encontro entre Lovisa e a estranha figura, misto de homem e animal, expõe elementos
simbólicos ligados ao casamento, ao medo do desconhecido, à castração, ao desejo
sexual, todos analogamente conectados à vida de Lovisa. Ao ver-se ameaçada pelo
estranho, que agora lhe aponta a faca para a garganta, ela lhe oferece seu anel de
casamento, único bem de que dispõe no momento. Ao estender-lhe o anel, Lovisa derruba
o lenço branco que segurava, símbolo de pureza, o lado feminino que ela conhece e
preza. O estranho não pega o anel; ao contrário, chuta-o para longe, desinteressado do
objeto de valor. A seguir, abaixa-se e pega o lenço. Ato contínuo, o desconhecido o
envolve em torno da lâmina da faca, enfiando-a, a seguir, na bainha.
Outra interpretação simbólica para a mescla de homem e animal pode ser feita ao se
constatar que ele está sujo e manchado de sangue, figurativizando a alegoria da
castração. Lovisa se conta, então, de que ela não é um ser por inteiro, isto é, sua vida
tem sido castrada, que como esposa, é apenas parte e acessório do marido, até menos
importante do que seu rebanho. O encontro na floresta permite que essa visão, até ali
inconsciente, venha à superfície, tematizando simbolicamente o embate da mulher frágil e
submissa consigo própria e com a sociedade a quem deve prestar contas.
64
No discurso feminino, assim como na escrita, o elemento que nunca pára de ressoar ... é a canção:
primeira música da primeira voz do amor, que vive em toda mulher. A Voz canta desde uma época anterior
às leis, antes que o Simbólico nos tirasse o fôlego e o devolvesse, transformado, à linguagem sob a sua
autoridade de diferenciação. A mais profunda, a mais antiga, a mais adorável Visitação. Dentro de cada
mulher, o primeiro amor sem nome é o canto. (Tradução nossa.)
69
Ao desprezar o anel e apanhar o lenço, o estranho demonstra, de modo simbólico,
uma outra visão de mundo e de valores, distinta da que Lovisa conhecera até ali, o que a
leva a perceber o que é realmente importante e valioso, e que está para além dos bens
materiais e das convenções sociais.
O desejo de controlar a natureza externa e de auto-controlar a natureza humana
revela-se nos contos como tentativas das personagens, por meio dos enredos e do
embate das vozes, de refazer percursos que resvalaram para desvios insólitos e hostis, e
que podem, de algum modo, ser refeitos, como se ao homem enquanto espécie, pudesse
ser concedida uma segunda chance, por intermédio da qual ocorrerá, simbolicamente,
uma cura metafísica.
É o que acontece com Elishama, Virginie, Saufe, Babette, a comunidade de fiéis
puritanos, o General Lorens Loewenhielm, e também com Malli. Carl Jung assim
caracteriza as cisões entre consciente e inconsciente bem como as tentativas de
reintegração das duas esferas:
What we call civilized consciousness has steadily separated itself from the basic
instincts. But these instincts have not disappeared. They have merely lost their
contact with our consciousness and are thus forced to assert themselves in an
indirect fashion. […] A man likes to believe that he is the master of his soul. But as
long as he is unable to control his moods and emotions, or to be conscious of the
myriad secret ways in which unconscious factors insinuate themselves into his
arrangements and decisions, he is certainly not his own master. These
unconscious factors owe their existence to the autonomy of the archetypes.
Modern man protects himself against seeing his own split state by a system of
compartments. Certain areas of outer life and of his own behavior are kept, as it
were, in separate drawers and are never confronted with one another
65
(JUNG,
1977, p. 72).
Algumas personagens tentam negar suas fraturas interiores, como Elishama, Virginie,
Saufe, Lovisa, o jovem tenente Lorens Loewenhielm e a comunidade de fiéis de “A Festa
de Babette”. Suas vozes, porém, revelam os arquétipos que as comandam,
independentemente de sua vontade manifesta, sendo suas fraturas reveladas por
injunções dos enredos, ao emergir na consciência das personagens por vias inusitadas.
65
O que chamamos de consciência civilizada tem estado separada continuamente dos chamados instintos
básicos. Todavia, esses instintos não desapareceram. Eles apenas perderam contato com nosso consciente
e são, portanto, forçados a reafirmar-se de modo indireto. [...] Os seres humanos gostam de acreditar que
são senhores de suas almas. Mas se são incapazes de controlar seus sentimentos e suas emoções, ou
ainda, de conscientizar-se das inúmeras maneiras secretas pelas quais fatores inconscientes se insinuam
em seus arranjos e decisões, eles não são certamente seus próprios senhores. Esses fatores inconscientes
devem sua existência à autonomia dos arquétipos. O homem moderno protege-se contra seu próprio estado
de ruptura mediante um sistema compartimentado. É como se certas áreas de sua vida externa e de seu
próprio comportamento fossem mantidas em compartimentos distintos e nunca se confrontassem umas com
as outras. (Tradução nossa.)
70
Um estudo mais detalhado dos símbolos a partir dos arquétipos e da memória atávica
se justifica por elementos da simbologia ligados à cultura e à esfera das relações sociais,
os quais, muitas vezes, estão apoiados em enraizamentos da infância e da memória
coletiva arquetípica. Trata-se aqui de analisar a questão da arbitrariedade e da
relativização dos usos dos símbolos bem como sua importância na composição narrativa
da autora. Segundo Bakhtin, “Os símbolos são os elementos mais estáveis e, ao mesmo
tempo, mais emocionais: referem-se à forma e não ao conteúdo” (BAKHTIN, 2003, p. 406).
Tais aspectos não estão dissociados das vozes na narrativa nem das relações
semânticas geradas por elas a partir dos significados simbólicos. Antes, eles estabelecem
a diferença entre a visão que a personagem tem de si mesma e a visão do leitor, mediadas
por elementos da esfera do simbólico. O trecho abaixo ilustra algumas das características
mencionadas:
A conversão da imagem em símbolo a reveste de profundidade semântica [...]. A
imagem deve ser compreendida como o que ela é e como o que significa. Através
dos encadeamentos semânticos mediatizados, o conteúdo do símbolo autêntico
está correlacionado com a idéia de totalidade, com a plenitude do universo
cósmico e humano. O mundo tem um sentido. [...] Toda interpretação do símbolo
permanece ela mesma símbolo, que um tanto racionalizado, isto é, um tanto
aproximado do conceito. [...] A interpretação das estruturas simbólicas tem de
entranhar-se na infinitude dos sentidos simbólicos, razão por que não pode vir a
ser científica na acepção de índole científica das ciências exatas (Idem, p. 398-9,
grifo do autor).
O simbólico confere diferentes posicionamentos ao sujeito do discurso. Ao mesmo
tempo que manipula, aquele é igualmente manipulado pela arbitrariedade simbólica, quer
se conta disso ou não. Trata-se de uma alternância de posicionamentos das
personagens modulada pelos sentidos de seus discursos:
Em um primeiro momento temos a interpelação do indivíduo em sujeito pela
ideologia. Essa é a forma de assujeitamento que, em qualquer época, mesmo que
modulada de maneiras diferentes, é o passo para que o indivíduo, [...] afetado pelo
simbólico, na história, seja sujeito, se subjetive. É assim que podemos dizer que o
sujeito é ao mesmo tempo despossuído e mestre do que diz. Expressão de uma
teoria da materialidade do sentido que procura levar em conta a necessária ilusão
do sujeito de ser mestre de si e de sua fala, fonte de seu dizer (ORLANDI, 2005, p.
105).
Por exemplo, pode-se observar no conto “O Mergulhador” a cisão intencional da
narrativa em duas partes, sinalizando a fratura simbólica que sofre a personagem Saufe. O
que julga ser mergulho, ao tornar-se pescador de pérolas é, na verdade, queda.
Aparentemente, pesca pérolas preciosas quando, na verdade, tenta proteger-se no fundo
71
do mar, evitando ver a fratura entre as duas metades de sua alma. O mar e a água,
símbolos do desconhecido e do mutável, das camadas ocultas da natureza humana,
desempenham o papel de oferecer a Saufe a oportunidade do autoconhecimento, caso
seu mergulho seja suficientemente profundo. Resta-lhe a perda da esperança a justificar
um pragmatismo simbólico, que todas as suas tentativas de realização são apenas e
parcialmente fruto de sua vontade, embora ele julgue que exerce poder de arbítrio sobre
seu destino.
Na primeira parte da história, Saufe se exime de responsabilidade por sua própria
felicidade, colocando-se como vítima do destino devido à trama planejada pelo ministro do
rei. na parte seguinte, ao tornar-se um bem-sucedido pescador de pérolas, admite ter
achado felicidade e paz com a ajuda do peixe sábio, sem apelos ilusórios e sonhos vãos.
O pragmatismo que o fez juntar fortuna material, é também indicial do estado de espírito
que ele chama de pacificação:
De fato, Elnazred, como o haviam agraciado, em seu dialeto significava uma
pessoa bem-sucedida ou feliz e contente. [...] Acreditava-se nas aldeias dos
pescadores que o homem tinha, nas águas profundas, alguém talvez uma bela
sereia ou algum demônio do mar – que o ajudava a se guiar.[...] A despeito de sua
reputação demoníaca, ele era, ao que parecia, em terra firme e na vida cotidiana,
um homem pacífico
66
(p. 17, grifo da autora).
Por injunções mágicas e insondáveis, típicas do gênero maravilhoso, Saufe liberta-se
afinal do processo de provação, indo ao encontro da felicidade possível. No início, vítima
de si mesmo, ele agora se torna, em parte, senhor de seu destino, confirmando que nem
todos os sonhos se realizam e que o sistema conforma os indivíduos de um modo ou de
outro. Segundo Jung:
But all such attempts have proved singularly ineffective, and will do so as long as
we try to convince ourselves and the world that it is only they (i.e., our opponents)
who are wrong. It would be much more to the point for us to make a serious
attempt to recognize our own shadow and its nefarious doings. If we could see our
shadow (the dark side of our nature), we should be immune to any moral or mental
infection or insinuation
67
(JUNG, 1977, p. 73, grifo do autor).
66
In fact, the name, Elnazred, which they had given him, in their dialect meant the successful or the happy
and content person. […] It was believed in the pearl-fishers’ villages that he had got, in the deep water, a
friend – maybe some fair young mermaid or maybe again some demon of the sea – to guide him. […] In spite
of his demoniacal reputation he was, it seemed, on dry land and in daily life, a peaceful man (p. 13, grifo da
autora).
67
Mas todas essas tentativas provaram ser basicamente ineficazes, e assim continuará sendo enquanto
tentarmos nos convencer e ao mundo de que apenas eles (i.e. nossos adversários) estão errados. Seria
muito melhor para nós tentar reconhecer nossa própria sombra e suas ações deletérias. Se pudéssemos
enxergar nossa sombra (o lado escuro de nossa natureza), estaríamos imunes a qualquer efeito ou
contaminação de ordem moral ou mental. (Tradução nossa.)
72
Segundo a acepção de herói no romance, e que pode ser igualmente estendido ao
conto, diferentemente do herói épico, Bakhtin afirma:
A idéia da provação do herói e da sua palavra é, talvez, a principal idéia
organizadora do romance, que cria sua distinção radical do relato épico: o herói
épico se coloca desde o início livre de qualquer provação; é inconcebível uma
atmosfera de dúvida quanto ao heroísmo do herói no mundo épico. A idéia da
provação permite organizar de modo profundo e substancial o variado material
romanesco em volta do herói (BAKHTIN, 1998, p. 182).
No caso de Saufe, sua provação envolve conformação, adaptação, pacificação e
perda da esperança, elementos que se equivalem, confirmando uma certa visão
pessimista da autora, diferente das inconscientes idealizações infantis em que as hisrias
devem ter happy endings. O universo literário de Blixen é o de dualismos opostos,
antíteses que se desdobram em outras, vozes que se transformam, reproduzindo, por sua
complexidade, os próprios embates existenciais humanos, cujos desfechos não são
obrigatoriamente felizes.
A seguinte constatação de Jung reforça a idéia do mundo como palco de opostos em
permanente luta:
The sad truth is that man’s real life consists of a complex of inexorable opposites
day and night, birth and death, happiness and misery, good and evil. We are not
even sure that one will prevail against the other, that good will overcome evil, or joy
defeat pain. Life is a battleground. It always has been, and always will be; and if it
were not so, existence would come to an end
68
(JUNG, 1977, p. 75).
Em “O Mergulhador”, a metáfora do vôo remete à própria transcendência, sendo a
impossibilidade de voar alegórica em relação à queda do Paraíso e à conseqüente perda
da esperança. Já o anseio de ver o mundo de cima como os anjos, refere-se,
simbolicamente, ao anseio humano de ultrapassar as limitações da vida cotidiana. A
redenção final ocorreria, em tese, pelo reencontro do indivíduo consigo mesmo, o
mergulho profundo da alma, que Saufe não logrou atingir em plenitude.
O sonho, elemento que para Jung foi de fundamental imporncia como objeto de
seus estudos, pode ser observado, de modo simbólico, em “Tempestades”, quando do
intercurso da tormenta que ameça levar a pique o navio a bordo do qual estão Malli e Herr
Soerensen. O que aparenta estar no limite entre sonho e realidade, revela-se pela
68
A triste constatação é que a verdadeira vida humana consiste em um complexo de opostos inexoráveis
dia e noite, nascimento e morte, felicidade e tristeza, bem e mal. Não temos sequer certeza de que um
prevalecerá sobre o outro, de que o bem suplantará o mal, ou de que a alegria derrotará a dor. A vida é um
campo de batalha. Sempre foi assim, e sempre será; e se tal o fosse, a existência findaria. (Tradução
nossa.)
73
configuração de um nevoeiro onírico, figurado, metafórico. As dúvidas de Malli quanto ao
fato do evento ter ou não ocorrido são indicativas de uma dimensão sobrenatural
intermediária, espaço limiar entre realidade e imaginação. O sonho na narrativa, tal qual o
descreve Bakhtin, faz crer que as dúvidas de Malli procedem que são partilhadas por
outras personagens que tomaram parte no evento:
De um ponto de vista plástico-pictural, o mundo do sonho é plenamente idêntico
ao mundo da percepção real: nele a personagem central não está externamente
expressa, não se situa no mesmo plano das outras personagens; enquanto estas
são expressas externamente, aquela é vivenciada de dentro. [...] Encontramos a
mesma diversidade de planos no sonho. [...] É isso que diferencia o mundo da
criação artística do mundo do sonho e da realidade da vida: todas as personagens
estão igualmente expressas em um plano plástico-pictural de visão, ao passo que
na vida a personagem central o eu não está externamente expressa e
dispensa imagem (BAKHTIN, 2003, p. 27, grifo do autor).
Outro importante aspecto referente à simbologia presente nos contos de Blixen está
no embate, não apenas entre elementos simbólicos dos universos feminino e masculino,
mas do que esses significam como recurso narrativo, o qual aparece figurativizado no mito
do herói, representação alegórica da complexidade humana e da divisão de papéis sociais,
tal como é explorado por Jung.
No conto “Tempestades”, por exemplo, Malli, interpreta uma multiplicidade de papéis,
sendo ela própria uma representação do mito do herói. Ela é a menina magra e
desajeitada, em transição da adolescência para a idade adulta, a aspirante a atriz, a filha
de uma chapeleira de um pequeno vilarejo norueguês à beira de um fiorde, cujo pai pode
ser o belo e heróico capitão escocês Alexander Ross, ou talvez, o Holandês Voador. Ela
passa de heroína salvadora de um navio à bela mulher, noiva de Arndt, a quem ela
abandona posteriormente, renunciando ao amor e ao casamento. Malli é, ainda, a pupila
de Herr Soerensen, podendo ser repentinamente transformada na personagem Ariel.
Assim Jung descreve aspectos relativos ao mito do herói:
Over and over again one hears a tale describing a hero’s miraculous but humble
birth, his early proof of superhuman strength, his rapid rise to prominence or
power, his triumphant struggle with forces of evil, his fallibility to the sin of pride
(hybris), and his fall through betrayal or a heroic sacrifice that ends in his death.
[…] These godlike figures are in fact symbolic representatives of the whole psyche,
the larger and more comprehensive identity that supplies the strength that the
personal ego lacks. Their special role suggests that the essential function of the
heroic myth is the development of the individual’s ego-consciousness his
awareness of his own strengths and weaknesses in a manner that will equip him
74
for the arduous tasks with which life confronts him
69
(JUNG, 1977, p. 101-3, grifo
do autor).
Ao falar do mito do herói se é levado a imaginar, de antemão, a figura masculina
como elemento principal. Todavia, as mulheres dos contos de Anedotas do Destino
desempenham, igualmente, o papel mítico do herói, cuja força é testada por sacrifícios que
pavimentam o caminho para a libertação. Enquanto a provação masculina leva o homem a
renunciar à sua independência e a aproximar-se da mulher para satisfazer de modo mais
maduro seus anseios, a libertação conduz as personagens femininas a um encontro
identitário, ao autoconhecimento, e à percepção de sua importância como indivíduos
autônomos. Ainda segundo Jung,
On the other hand, the woman, no less than the man, has her initial trials of
strength that lead to a final sacrifice for the sake of experiencing the new birth. This
sacrifice enables a woman to free herself from the entanglement of personal
relations and fits her for a more conscious role as an individual in her own right. In
contrast, a man’s sacrifice is a surrender of his sacred independence: he becomes
more consciously related to woman. Here we come to that aspect of initiation which
acquaints man with woman and woman with man in such a way as to correct some
sort of original male-female opposition
70
(Idem, p.126).
Pode-se estabelecer, a partir dos conceitos junguianos, a relação com os estudos de
Bakhtin referentes à articulação das vozes discursivas e a autonomia do herói, o qual
carrega suas próprias idéias e posicionamentos, desvinculados das iias e dos
posicionamentos do autor. A identidade da personagem é construída a partir de posturas
ideológicas, consistindo a polifonia em um conceito com base na ciência das relações de
diversidade entre autor e personagens.
Embora não se possa falar em discurso polifônico quanto às vozes das personagens
de Blixen, pode-se falar da autonomia do hei sob a ótica da heteroglóssia, ao analisar a
69
Ouvimos por diversas vezes uma história que descreve o nascimento miraculoso embora humilde de um
herói, as provas precoces de sua força sobre-humana, sua rápida ascensão ao prestígio e ao poder, sua luta
triunfante contra as forças do mal, sua falibilidade ao pecado do orgulho (hybris), e sua queda por meio da
traição ou do sacrifício heróico que leva à morte. [...] Essa figuras, à semelhança de deuses, são, na
verdade, representações simbólicas do todo psíquico, a identidade ampla e mais abrangente que provê a
força que falta ao ego pessoal. Seu papel especial sugere que a função essencial do mito do herói é o
desenvolvimento da consciência do ego individual a consciência do indivíduo em relação à sua própria
força e às suas fraquezas de modo a prepará-lo para as árduas tarefas diante das quais a vida o coloca.
(Tradução nossa.)
70
Por outro lado, a mulher, não menos que o homem, tem seus rituais de iniciação de força que levam ao
sacrifício final pelo benefício de experimentar o renascimento. Esse sacrifício permite à mulher libertar-se dos
embaraços de suas relações pessoais, capacitando-a para um papel mais consciente como indivíduo. o
sacrifício masculino é uma renúncia à sua sagrada independência: ele passa a se relacionar de modo mais
consciente com a mulher. Chegamos aqui ao aspecto da iniciação que aproxima o homem da mulher e a
mulher do homem de modo a corrigir algum aspecto de antagonismo original entre ambos. (Idem.)
75
personagem Babette, por exemplo, que encarna, em certa medida, o mito e o discurso do
herói. Ela suplanta todas as adversidades para afirmar seu poder pela arte, o que a
distingue de todas as demais vozes e personagens. Ora concordante ora em desacordo
com as demais, sua voz nunca deixa de estar claramente demarcada, seja por sua postura
política, como ocorreu no episódio da Comuna de Paris, seja pelo processo de adaptação
à nova realidade do distante vilarejo norueguês, ou ainda, pela afirmação de sua arte de
gourmet. Segundo Bakhtin,
Encontrar sua voz e orientá-la entre outras vozes, combiná-las com umas,
contrapô-las a outras ou separar a sua voz da outra à qual se funde
imperceptivelmente são as tarefas a serem resolvidas pelas personagens no
decorrer do romance. É isso que determina o discurso do herói. Esse discurso
deve encontrar a si mesmo, revelar a si mesmo entre outros discursos na mais
tensa orientação de reciprocidade com eles. E todos esses discursos costumam
ser dados desde o início (BAKHTIN, 2005, p. 243).
Mister Clay é o contraponto do herói, o lado escuro manifesto, o herói do mal, aquele
cujo poder o faz alçar-se às alturas do prestígio e da riqueza. Elishama é o que se
poderia denominar de pequeno herói, sem conotação reducionista, mas por ser ele o herói
improvável, o que é capaz de enfrentar todas as adversidades, desde o pogrom polonês,
passando por muitos países, ajudado por desconhecidos, sofrendo provações até chegar a
Cantão e subjugar, por sua inteligência e sagacidade, o poder de Mister Clay.
Não se trata de um herói na acepção clássica, mas de uma personagem elevada a
essa categoria por seus esforços e sofrimentos, o anti-herói que, embora descrente da
vida e dos homens, carrega consigo a profecia de Isaías, uma pequena e simbólica chama
espiritual para um judeu sem apreço por sua religião, mas incapaz de se desapegar de
todo de suas raízes ancestrais. Ele tem seu nome mudado, seus modos alterados, adquire
conhecimentos que lhe permitem sobreviver em um mundo hostil, criando, assim, uma
nova voz a se sobrepor à original.
Ao final do conto, Elishama não se representa mais pela voz do menino fugitivo e
abandonado. Seus novos poderes não são mágicos, mas adquiridos a um alto preço de
sacrifício pessoal. Elishama é o pequeno contador que, de manipulado e usado por seus
superiores, se assenhora gradativamente de seu destino e de sua voz, diferentemente de
Mister Clay, que faz percurso oposto. O milionário é o falso herói que seus poderes
esvaziados, aquele que pretendia apropriar-se de uma história apenas por orgulho e pelo
prazer do exercício do poder, o manipulador que, ao final da história, morto, se
assemelha a uma marionete.
76
Elishama, cuja vida constituiu-se numa sucessão de vicissitudes que ele ousou
enfrentar, é o herói discreto e descrente; seu prestígio não é ostentado mas reconhecido
como fruto de provações. Ao salvar Virginie da indignidade e fazê-la conhecer o amor, ele
resgata a dama em desespero, outra faceta do herói, também e de certo modo, levada a
efeito pelo homem-lobo, que a Lovisa condições para a libertação. Sobre a relação
simbólica entre a mulher e o homem que a resgata do perigo, diz Jung:
[...] one of the more important aspects of the myth of the typical hero (is) his
capacity to save or protect beautiful women from terrible danger. (The damsel in
distress was a favorite myth of medieval Europe.) This is one way in which myths
or dreams refer to the anima – the feminine element of the male psyche that
Goethe called the Eternal Feminine
71
(JUNG, 1977, p. 115, grifo do autor).
Paralelamente ao mito do herói, outro importante elemento da esfera da simbologia
está presente nos contos de Anedotas do Destino. Trata-se do aspecto arquetípico dos
rituais de iniciação.
Joseph L. Henderson (1977), seguidor das idéias de Jung, explicita uma diferença
fundamental no âmbito psicológico entre o ego propriamente dito e a imagem do herói,
quando o indivíduo se separa dos arquétipos ligados às figuras paterna e materna da
primeira e segunda infâncias. É como se o homem, ainda muito jovem, tivesse a noção de
ser inteiro (wholeness), sendo essa uma sensação poderosa do self do indivíduo como tal,
tomado aqui como a totalidade da psique. O processo de individuação, ou da consciência
do ego emerge à medida que o indivíduo cresce. Tal processo de cisão ou de
diferenciação ocorre basicamente na passagem da infância para a juventude, sendo
sempre acompanhada de dor, marca do rompimento da sensação de wholeness, isto é, do
todo íntegro formado pelo indivíduo e por seus pais:
Ancient history and the rituals of contemporary primitive societies have provided us
with a wealth of materials about myths and rites of initiation, whereby young men
and women are weaned away from their parents and forcibly made members of
their clan or tribe. But in making this break with the childhood world, the original
parent archetype will be injured, and the damage must be made good by a healing
process of assimilation into the life of the group. […] Thus the group fulfills the
claims of the injured archetype and becomes a kind of second parent to which the
young are first symbolically sacrificed, only to re-emerge into a new life
72
(HENDERSON, 1977, p. 120-1).
71
[…] um dos mais importantes aspectos do mito do herói pico (é) sua capacidade de salvar ou proteger
belas mulheres de perigos terríveis. (A donzela em desespero era um dos mitos prediletos da Europa
medieval.) Essa é uma das maneiras pela qual mitos ou sonhos se referem à anima o elemento feminino
da psique masculina ao qual Goethe chamou de o Eterno Feminino. (Tradução nossa.)
72
A história remota e os rituais das sociedades primitivas contemporâneas nos têm fornecido grande
quantidade de material acerca dos mitos e dos rituais de iniciação por meio dos quais jovens homens e
mulheres passam por um processo de desmame ou de separação em relação a seus pais, forçados que são
77
Esse doloroso processo é vivido por Saufe, Elishama, Malli, Babette, Lovisa, Virginie,
cada qual a seu modo. Todos são como que arrancados do conforto de suas vidas e
lançados de encontro a seus destinos, como se uma força poderosa e invisível os
arrebatasse inexoravelmente.
Saufe, ao perceber que jamais poderá ver o mundo de cima, vítima do engodo
operado por Thusmu, emerge para um novo equilíbrio após o mergulho nas
profundezas do mar, processo por meio do qual ele se torna pacificado e próspero, ainda
que por um processo simultâneo de renúncia ao amor e à esperança.
Elishama, ao presenciar a morte de Mister Clay, contempla a fugacidade da riqueza e
do poder encarnados naquele espectro de homem, comparado agora a um boneco, cuja
vida se esvai a cada segundo, reduzindo-o da posição de homem à de animal, pelos sons
que Elishama imagina ouvir, saídos de seu peito. Outra vez se estabelece para Elishama a
conexão com a profecia de Isaías:
O servo e confidente sentou-se numa cadeira, escutando os ganidos e rosnados
no peito do velho. Mas não havia som algum no quarto. Elishama repetiu para si
as palavras do profeta: e deles fugirá a tristeza e o gemido
73
(p. 184, grifo da
autora).
A cena final é emblemática do término do doloroso processo de cisão dos dois
Elishamas, que agora se reúnem em um só, findo o processo simbólico de cura metafísica
(healing). Ele, que ainda criança fora tragado por um vórtice inesperado e cruel
representado pelo pogrom polonês de 1848, sofre o mais longo processo de fratura
psicológica para sobreviver e tornar-se homem. Como outras personagens, paga o preço
da perda da esperança, que lhe retorna ao fim da história quando, ao ouvir o estranho
som vindo da concha de Povl, lembra-se vagamente da felicidade vivida em algum
momento remoto do passado, e que ele sente que pode eventualmente resgatar. O ruído
da concha assim como a possível realização da profecia de Isaías constituem a
representação simbólica da retomada da esperança e da cura metafísica, as quais
sinalizam o rompimento da relação pai e filho, de certo modo vivida por Elishama e Mister
a serem membros de sua tribo ou de seu clã. Entretanto, ao operar essa cisão com o mundo infantil, o pai
arquetípico original será ferido, e a cicatrização do ferimento ocorrerá através de um processo de
assimilação para dentro da vida do grupo. [...] Desse modo, o grupo supre as necessidades do arquétipo
ferido e se torna uma espécie de segunda figura paterna para a qual os jovens são inicialmente sacrificados
de maneira simbólica, voltando a emergir para uma nova vida. (Tradução e grifo nossos.)
73
His servant and confidant sat down on a chair, listening to the usual whining and snarling in the old man’s
chest. But there was not a sound in the room. Elishama repeated to himself the words of his Prophet: And
sorrow and sighing shall flee away (p. 226, grifo da autora).
78
Clay: [...] porque águas arrebentarão no deserto e ribeiros no ermo. E a miragem tornar-
se-á em lago
74
(p. 185, grifo da autora).
[...] (Elishama) ergueu a concha junto ao ouvido. De dentro vinha uma agitação
remota e profunda, como o rugido distante de ondas imensas. O rosto de Elishama
assumiu a exata expressão do rosto do jovem marinheiro, poucos minutos antes.
Sentiu um choque estranho, delicado, profundo, proveniente do som de uma nova
voz na casa e na história. ouvi isso antes, pensou, muito tempo. muito,
muito tempo. Mas onde[?]
75
(p. 188).
No caso de Malli, há uma primeira ruptura simbólica, quando ela se dá conta da perda
do pai. A busca pela figura paterna é remediada, em parte, por sua associação a Herr
Soerensen, paródia simbólica híbrida, na qual se misturam, na mesma personagem, o ator
decadente, o mestre e a figura do pai teatralizado, simulando uma encenação da relação
pai e filha.
Ao experimentar sua representação do mito do herói, simbolicamente figurativizado
no resgate do navio, Malli se assume como adulta e independente, apta a seguir seu
destino. A partida da casa materna e o rompimento com Arndt, eventos em tempos
distintos, carregando cada um sua carga de dor, dão a ela a certeza de que sabe, depois
de tudo por que passou, diferenciar ficção e realidade. Seu ponto de transformação é
marcado pelas palavras dirigidas a Herr Soerensen, retomando como Ariel o intertexto
shakesperiano de A Tempestade:
Meu corpo jaz a cinco braças;
De meus ossos se fez coral;
Eis as pérolas que foram meus olhos,
Em verdade, nada meu se desmanchou,
Mas se foi, com o mar,
Em algo rico e estranho transformado.
Ninfas marinhas soam meu dobre fúnebre.
Ouve! Agora as escuto – dim-dom, faz o sino
76
(p. 122).
74
[…] in the wilderness shall waters break out, and streams in the desert. And the parched ground shall
become a pool (Idem, p. 227, grifo da autora).
75
[…] (Elishama) himself lifted the shell to his ear. There was a deep, low surge in it, like the distant roar of
great breakers. Elishama’s face took on exactly the same expression as the sailor’s face a few moments ago.
He had a strange, gentle, profound shock, from the sound of a new voice in the house, and in the story. I
have heard it before, he thought, long ago. Long, long ago. But where [?] (p. 231).
76
Full fathom five my body lies,
Of my bones are coral made,
Those are pearls that were my eyes,
Nothing of me that doth fade,
But doth suffer a sea-change
Into something rich and strange.
Sea-nymphs hourly ring my knell.
Hark! Now I hear them – ding dong bell (p. 144).
79
Tanto em “A História Imortal” como em “Tempestades”, é o recurso sonoro que
permite a rememoração da felicidade que pode novamente se realizar, figurativizados
ambos no som da concha e no dobre do sino.
A resposta de Herr Soerensen revela seu conhecimento do renascimento e da
libertação de Malli: “Meu Ariel, criança, agora, nos elementos livre, e bons ventos te
levem[!]
77
(p. 122).
Virginie, mesmo com todas as perdas, ainda vivia em um mundo idealizado, no qual
continuava a ser a garotinha favorita de seu pai. Estimulada por ele, supria sua imaginação
com histórias da corte francesa. E mesmo após sua morte, já vivendo um período de
privações, era para essa época de sonho que ela se voltava, tentando reencontrar a
infância e a felicidade perdida:
[...] Virginie vivera por muitos anos no grande mundo da corte francesa, nos
amplos e radiantes salões de baile das Tulherias, em meio a recepções de
soberanos estrangeiros, conspirações palacianas, affaires românticos, duelos e
valsas de Strauss. Após a morte de seu pai, durante longos anos de pobreza e
privação, [...] Virginie secretamente voltara-se para esse mundo glorioso em busca
de consolo. Continuava a galgar degraus de mármore iluminados por centenas de
velas, ela própria cintilando de diamantes, para dançar com príncipes e duques;
[...] No fim, contudo, as próprias Tulherias foram sumindo e acabaram evaporando
ao seu redor
78
(p. 152-3).
O sonho comum de Virginie e de seu pai não se concretizou uma vez que ela não se
casou nem na Catedral de Notre Dame nem na “pequena e cinzenta Igreja Francesa de
Cantão”
79
(p. 153). Levada a se prostituir para sobreviver, não encontra em seus amantes
nem a figura paterna nem um certo conforto que lhe permitiam preencher o espaço vazio
de seus sonhos, antes habitados por luxo, riqueza e felicidade idealizados. Ela, que vivia
para esperar o dia em que se vingaria do algoz de seu pai, encontra-se, inesperadamente
e pelas artimanhas do destino, com Povl, o marinheiro dinamarquês. Ele a faz recuperar a
adolescência perdida e a simplicidade do amor verdadeiro. Aparentemente manipulados
por Mister Clay, tornam-se senhores de suas vidas.
77
My Ariel, chick, then to the elements
be free, and fare thou well[!] (p. 145).
78
[…] Virginie had for many years lived in the grand world of the French Court, in the vast radiant ballrooms
of the Tuileries, among receptions of foreign majesties, court cabals, romantic love affairs, duels and the
waltzes of Strauss. After her father’s death, during long years of poverty and hardship, […] Virginie had
secretly turned to this glorious world for consolation. She still walked up marble stairs lighted by a thousand
candles, herself all sparkling with diamonds, to dance with princes and dukes; […]. In the end, however, the
Tuileries themselves had faded and vanished round her (p. 185).
79
(It had not even run through) the little gray French Church of Canton (p. 186).
80
Os relacionamentos entre homens e mulheres nos contos de Blixen contêm, de per si,
uma simbologia que envolve o Logos masculino em embate com o Eros feminino, o que
conduz ao medo atávico do desconhecido e da perda da identidade. Isso se evidencia em
todos os contos de Anedotas do Destino, nos quais os relacionamentos representam,
figuradamente, a perda da independência, quer seja da perspectiva feminina quer da
masculina.
Por exemplo, a assunção de responsabilidades nem sempre traz a estabilidade como
corolário do processo de amadurecimento, o que também pode ser observado em O
Mergulhador”, quando Saufe abre mão do amor de Thusmu e foge, externando a voz
simbólica masculina o temor da responsabilidade e da perda da independência,
dissimulado pelo medo de que Thusmu possa ser vítima da vingança do ministro do rei:
“[...] e agora que seu trabalho está terminado deve partir, uma vez que ser-lhe-á perigoso
permanecer comigo”
80
(p. 15).
Em “A Festa de Babette”, a renúncia de Achille Papin ao casamento em nome de sua
arte é também a expressão da voz masculina da personagem que parte para não se
defrontar com a perspectiva da perda da autonomia que um relacionamento implica.
Analogamente, a renúncia do general ao relacionamento com Martine é emblemática
da renúncia simbólica masculina. Sua persona jovem cede aos apelos mundanos da
vaidade pessoal e profissional, o que o leva a um casamento de conveniência na corte por
não ser capaz de enfrentar sua vaidade e seus medos, ainda que tenha permanecido
apaixonado por Martine durante toda a vida.
Algo semelhante ocorre com Malli, para quem o final do conto o representa a
resolução dos conflitos que lhe restam apenas a renúncia ao amor de Arndt, a perda de
Ferdinand, e a não-realização do sonho de se tornar atriz. Seu medo de trazer infelicidade
a todos que se aproximam dela, faz com que ela abra mão da realização amorosa e,
simbolicamente, do comprometimento: “Preciso ir embora, disse. Se não for embora, trarei
azar a ele (Arndt). Ah, azar e dor, Herr Soerensen[!]
81
(p. 117).
Jung assim define o aspecto do temor da perda da liberdade e da identidade:
Quite apart from the neurotic fear that invisible mothers or fathers may be lurking
behind the marriage veil, even the normal young man has good reason to feel
aprehensive about the wedding ritual. It is essentially a woman’s initiation rite, in
which a man is bound to feel like anything but a conquering hero. No wonder we
80
[…] and now that your work is done you must go, since it will be dangerous to you to stay with me (p. 10).
81
I must go away, she said. If I do not go away I shall bring misfortune upon him. Oh, misfortune and misery,
Herr Soerensen[!] (p. 139).
81
find, in tribal societies, such counterphobic rituals as the abduction or rape of the
bride. These enable the man to cling to the remnants of his heroic role at the very
moment that he must submit to his bride and assume the responsibilities of
marriage
82
(JUNG, 1977, p. 127).
A idéia de casamento e relacionamentos estabelecidos ou rompidos, freqüente nos
contos de Anedotas do Destino, remete à questão do universo feminino refratado em
símbolos. Por exemplo, em “A História Imortal”, a idéia aparece na forma de “uma grande
e brilhante concha cor-de-rosa”
83
(p. 188), elemento simbólico que Susan Aiken classifica
como “[…] emblem of a female sexuality and generativity that subverts the supposedly
omnipotent plots of the lordly Mr. Clay”
84
(AIKEN, 1990, p. 62, grifo da autora).
O som dentro da concha igualmente referencia elementos ancestrais da origem
humana, não fosse ela própria a representação imagética, não apenas do órgão genital
feminino, mas da própria mulher, a geradora, a matriz ancestral: “[...] when you hold it to
your ear, there is a sound in it, a song [...] a deep low surge […] like the distant roar of
great breakers”
85
(p. 173). Ainda segundo Susan Aiken,
That sound is, of course, an illusion, the product of the body’s own coursing blood;
the song arises precisely from the hollowness of the instrument that seems to echo
the resonances of its own place of origin. Yet for just these reasons the shell’s
surge recalls the semiotic sonorities of that other place of origin, the mother’s long-
lost body. The story repressed by the phalocentric symbolic order, it is utterly
remote yet uncannily familiar
86
(AIKEN, 1990, p. 62-3, grifo da autora).
Renúncias que aparentam ser parte da trama são, de fato, renúncias simbólicas,
encarregando-se as vozes de velar a realidade e externar a camada superficial do que se
supõe ser verdadeiro, mas não o é. Em quase todos os casos, um ciclo que se repete:
82
Bastante distanciado do medo neurótico que mães ou pais invisíveis possam inconscientemente abrigar
atrás do véu do casamento, mesmo o jovem normal tem razões de sobra para sentir-se apreensivo com
relação ao ritual do casamento. Esse é essencialmente um rito de iniciação feminino no qual o homem é
levado a sentir-se de muitas maneiras, exceto como um herói conquistador. Não é de causar estranheza o
fato de encontrarmos, em sociedades tribais, tais rituais que podem ser chamados de antifóbicos, ou de
contrafóbicos, tais como o rapto ou o estupro da noiva. Esses atos permitem ao homem conectar-se ao que
restou de seu papel heróico no exato momento em que deve submeter-se à sua noiva e assumir as
responsabilidades do casamento. (Tradução nossa.)
83
[...] one big, shining pink shell (p. 230).
84
[...] símbolo da sexualidade e da capacidade geradora femininas, capazes de subverter os ardis
onipotentes do arrogante Mister Clay. (Tradução nossa.)
85
[...] quando você a segura junto ao ouvido, um som nela, uma canção [...] uma profunda e abafada
agitação [...] como o rugido distante de ondas imensas (p. 188).
86
Aquele som é obviamente uma ilusão, produto do próprio fluir do sangue no corpo; a canção surge preci-
samente da parte interna oca do instrumento que parece ecoar as ressonâncias de seu próprio lugar de
origem. Todavia, exatamente pelas mesmas razões, a agitação na concha remete às sonoridades semióticas
daquele outro local de origem, o corpo materno, muito perdido. A história, reprimida pela ordem simbólica
falocêntrica é, em última análise, remota, mas ao mesmo tempo, estranhamente familiar. (Tradução nossa.)
82
a esperança, o fracasso, o engano ou a perda, a desilusão, a nova busca e a redenção
final. Segundo Jung,
[...] it is essential to recognize that at each of the stages in this cycle there are
special forms of the hero story that apply to the particular point reached by the
individual in the development of his ego-consciousness, and to the specific
problem confronting him at a given moment. That is to say, the image of the hero
evolves in a manner that reflects each stage of the evolution of the human
personality
87
(JUNG, 1977, p. 103).
No conto “A História Imortal” dois tipos de renúncia simbólica: uma, a renúncia
masculina mencionada, figurativizada nas personagens de Mister Clay e Elishama, que
não cogitam de casamento por terem suas vidas totalmente dirigidas para a resolução de
problemas materiais e cotidianos, mesmo com diferentes motivações. A profecia de Isaías,
que Elishama carrega consigo, traz, de forma subjacente, a voz simbólica tanto da
vingança como da esperança por parte de uma personagem que, embora vencedora, tem
em si as marcas de um passado de renúncias e sofrimento, buscando alívio, superação e
redenção, mesmo não crendo em seu íntimo ser isso possível.
A outra é a renúncia à própria alegria, à felicidade de aproveitar a vida pelo que ela é,
a renúncia à esperança em sentido amplo. Esse segundo tipo afeta a ambos, Mister Clay e
Elishama, aparentes opostos que se complementam em uma simbiose da qual não
conseguem abrir mão. A redenção de ambos se por meio de uma história tornada real,
mas que, ao realizar-se, desfaz-se no ar, deixando de ser uma história e tornando possível
a quebra da ligação simbiótica que os unia.
A voz religiosa, por conter em si numerosos elementos da voz simbólica, está
igualmente presente nos contos de Blixen como voz autônoma, às vezes em consonância
ou como contraponto às demais, como é o caso do Velho Testamento hebraico. Em “A
História Imortal”, a profecia de Isaías fala como voz clamando por justiça e vingança, mas
também por um futuro de esperança, no qual não haverá lugar para chacais (dragons)
como Mister Clay.
Por fim, a real consciência do self, outro importante aspecto abordado por Jung e
seus seguidores em seus trabalhos, está presente em poucas personagens de Karen
Blixen nos cinco contos. Essa consciência pode ser observada apenas em Babette e em
87
[…] é essencial reconhecer que, em cada uma das etapas desse ciclo,formas peculiares da história do
herói que se aplicam ao ponto específico atingido pelo indivíduo no processo de desenvolvimento da sua
consciência do ego, e também no que se refere ao problema particular com o qual ele se confronta em um
dado momento. Isso equivale a dizer que a imagem do herói evolui de uma maneira que reflete cada estágio
da evolução da personalidade humana. (Tradução nossa.)
83
Elishama, constituindo ambos personagens que pairam acima de seus destinos desde
sempre e por seus próprios meios, conscientes disso. Segundo Henderson,
As any change must begin somewhere, it is the single individual who will
experience it and carry it through. The change must indeed begin with an
individual; it might be any one of us. Nobody can afford to look round and to wait
for somebody else to do what he is loath to do himself
88
(HENDERSON, 1977, p.
91).
Quanto às demais personagens, a consciência do self vai sendo adquirida aos
poucos, no processo freqüentemente penoso que rege a busca do autoconhecimento,
como se dá com Virginie, com Elishama, com Povl, com Lovisa e Malli.
Todos os elementos simbólicos presentes nas narrativas de Blixen estão de algum
modo ligados ao patriarcalismo estabelecido, de forma velada ou contundente. A tentativa
explícita que a autora empreende de subversão desse status quo reside na construção de
personagens femininas independentes e fortes, que ousam tomar o destino nas próprias
mãos, criando, assim, um novo padrão de poder.
88
Como qualquer mudança deve começar por algum lugar, é o próprio indivíduo quem a experimentará,
levando-a até o fim. Na verdade, a mudança deve começar com o indivíduo, que pode ser qualquer um de
nós. Ninguém pode se dar ao luxo de olhar em torno de si, esperando que alguém faça o que ele mesmo
reluta em fazer. (Tradução nossa.)
84
Capítulo IV
A VOZ AUTOBIOGRÁFICA
A distinção entre a vida e a obra de um autor deve ser claramente demarcada de
modo a que se perceba que mesmo a biografia ou a autobiografia será tão real como
qualquer outra história, mesmo quando contada pelo protagonista ou pelos atores que a
viveram ou a observaram como testemunhas, ou ainda, por um biógrafo que a pesquisou.
Como não há discurso isento, o discurso biográfico ou autobiográfico sofre, do
mesmo modo, as injunções circunstanciais e pessoais de quem o escreve, como inserções
de lembranças e apagamentos, conscientes ou não, os quais influem sobre os conceitos
de veracidade e factualidade. Bakhtin assim define seu conceito de biografia/
autobiografia:
Entendo por biografia ou autobiografia (descrição de uma vida) a forma
transgrediente imediata em que posso observar artisticamente a mim mesmo e
minha vida. Vamos examinar a forma da biografia apenas naqueles sentidos em
que ela pode servir para a auto-objetivação, isto é, ser autobiografia, ou seja, do
ponto de vista de uma eventual coincidência entre a personagem e o autor nela,
ou melhor (porque coincidência entre personagem e autor é contradictio in adjecto,
o autor é elemento do todo artístico e como tal não pode coincidir dentro desse
todo com a personagem, outro elemento seu. A coincidência pessoal na vida da
pessoa de quem se fala com a pessoa que fala não elimina a diferença entre
esses elementos no interior do todo artístico (BAKHTIN, 2003, p. 139, grifo do
autor).
que se relativizar, portanto, todo discurso biográfico ou autobiográfico, como uma
representação discursiva e artística de idéias e vivências com eventuais raízes no factual,
sujeita a escolhas e processos seletivos, conscientes ou não por parte do autor, os quais
expõem e escondem aspectos, muitas vezes, mais próximos do ficcional do que da própria
realidade. E ainda que a veracidade de muitos fatos possa ser comprovada, lacunas e
preenchimentos que respondem por um gênero narrativo em que a mescla de fato e
fantasia se dá à revelia ou por arbítrio do autor. Assim, ao se tornar texto, o relato
biográfico ou auto-biográfico adquire o status de ficção.
Ainda segundo Bakhtin, “É muito mais difícil produzir uma imagem completa da
própria imagem externa na personagem autobiográfica de uma obra literária quando essa
imagem externa, inserida no movimento polimorfo do enredo, deve abranger o homem
pleno” (Idem, p. 32).
85
Conseqüentemente, as questões ligadas às narrativas autobiográficas remetem,
forçosamente, a um estudo mais apurado da memória afetiva enquanto limite entre os
planos do imaginário e do real, objeto também do estudo psicanalítico. Diz Jacqueline
Authier-Revuz ao tratar da fala heterogênea: “O trabalho psicanalítico consiste em fazer
ressurgir conflitos esquecidos, demandas recalcadas eventualmente portadores de
sofrimentos que agem, sem que o sujeito saiba, na sua vida presente” (AUTHIER-
REVUZ, 2004, p. 50, grifo da autora).
Segundo Lacan (1953, p. 136):
O inconsciente é esta parte do discurso concreto enquanto transindividual, que
não está à disposição do sujeito para restabelecer a continuidade de seu discurso
consciente [...]. O inconsciente é o capítulo de minha história que é marcado por
um vazio ou ocupado por uma mentira: é o capítulo censurado (LACAN apud
AUTHIER-REVUZ, 2004, p. 50).
De acordo com a questão mencionada, referente aos intercursos de lembranças e de
apagamentos, observam-se, nos contos de Blixen, a exploração de diferentes aspectos
relativos à questão da historicidade e da memória seletiva tanto no âmbito pessoal como
no coletivo, e que constituem dois vieses fundamentais da obra da autora. Cabe aqui
lembrar que a memória consiste em uma espécie de repositório enformado pelas
ideologias, atrelada tanto ao simbólico como ao arquetípico e ao atávico, mais do que ao
racional, a qual é objeto de estudo neste capítulo, segundo essa acepção.
Ainda que sua principal biógrafa, Judith Thurman, conhecedora profunda da vida e da
obra de Karen Blixen, afirme que muito de sua vida está em sua obra e, ao ler sua
biografia, se constatem muitas coincidências com trechos e personagens de seus contos,
é difícil delimitar a fronteira entre a obra desconectada do autor e a influência das
vivências do autor em sua obra.
Por exemplo, em “O Anel”, fica-se tentado a estabelecer um paralelo entre a
infelicidade de Lovisa no casamento e seu desejo de independência com a própria vida de
Karen Blixen. O máximo a que se pode chegar é à constatação de que essa narrativa
representa, possivelmente, como que uma revisitação e, ao mesmo tempo, uma recriação
de parte da história da vida conjugal da autora e de seus dissabores amorosos, o que
também não deixa de ser o recontar da história de tantas mulheres cujos casamentos
foram experiências amargas.
Não se trata aqui de afirmar que a autora quis fazer de Lovisa seu próprio retrato de
esposa infeliz. O que se pode dizer é que há, provavelmente, o aproveitamento de certas
86
vivências de Blixen as quais transparecem, sempre modificadas, nas vidas das
personagens, e sobre as quais ela pode ou não ter exercido certo grau de
intencionalidade.
É como se Lovisa fosse uma parte revelada do discurso que retrata e refrata a
infelicidade conjugal, e Karen fosse a outra parte, coincidente com a anterior, tal qual um
possível reflexo num jogo de espelhos. O conjunto das vivências de ambas resultaria,
supostamente, num todo que expõe as vozes femininas em conflito com o poder masculino
estabelecido, desvelando a posição de submissão feminina vigente contra a qual Karen
Blixen abertamente se colocava.
Ainda que não se possa falar em fidelidade, mesmo ao abordar a questão do discurso
autobiográfico, áreas de aproximação da realidade histórica na voz do sujeito que a
viveu e a descreve, resguardadas as proporções de não-neutralidade ou de imparcialidade
por parte dessa voz.
Por seus dissabores conjugais e amorosos, fruto de seus desentendimentos tanto
com seu marido como com Denys Finch Hatton, esse último também alvo de suas críticas
por sua falta de comprometimento e suas prolongadas ausências, não se pode garantir
que Karen fosse uma mulher que não apreciasse os homens, ou mesmo que se tratasse
de alguém incapaz de construir relacionamentos estáveis. De fato, por várias vezes, ela
tentou construir uma vida amorosa satisfatória, de partilha e companheirismo. Segundo
sua biógrafa, a própria Karen declarou, em mais de uma ocasião, que casamentos deviam
ter como base o amor e interesses mútuos, diferentemente do que ocorreu com ela a
própria e com seu primo e marido, o Barão Bror von Blixen-Finecke.
Mesmo a grande paixão de sua vida, o inglês Denys Finch Hatton, revelou-se um
amante ausente e incapaz de preencher o ideal amoroso concebido por ela, sendo
possível atribuir, em parte, a razão de tais desencontros às próprias características da
personalidade de Karen, desde sempre um ser independente, vivendo em uma época na
qual as mulheres eram, em sua grande maioria, submissas e dependentes de seus pais e
maridos.
Seu desejo de autonomia e de conhecimento grandemente incentivado pelo pai, que
reconhecia seu talento e sensibilidade especiais, provavelmente, alimentou seu interesse
por ver reconhecidos os talentos femininos, além dos domésticos, o que provavelmente a
87
colocou na posição de espelhar em si mesma o que julgava ser um ideal de independência
para todas as mulheres.
Essa luta interna, entre o duplo papel de esposa dedicada e de mulher independente,
foi talvez um dos principais motivos que a levaram a criar sua ficção como tal, permitindo
que Karen Blixen desse à luz Isak Dinesen, o ente feminino velado por um pseudônimo
masculino, que tanto a dividia como a aproximava de si mesma.
Em uma de suas cartas, ela afirma ter-se tornado uma criatura híbrida, tal qual seu
nome e seu pseudônimo, os quais reafirmam a imutável condição da mulher como um ser
deslocado, uma estrangeira destituída pela cultura e pelo discurso patriarcal. De certo
modo, essas constatações fizeram-na tornar pouco nítidas as fronteiras entre nomes,
nacionalidades e identidades sexuais, entre sonho e realidade, fato e ficção, mulher e
autora, dúbias partes que se interpenetram. No mundo da razão, essa estranha sensação
de o-pertencimento pode ter conferido ao sonho, à utopia e à idealização, um papel
mais importante que a realidade, o que acabou por se tornar um tema recorrente em suas
obras e em suas reflexões sobre seu duplo status de mulher e de escritora.
Por todas essas razões, é possível observar, diante da análise de sua obra, que suas
personagens femininas mostram-se mais densas, senhoras de seus destinos, adaptadas
às suas realidades e às eventuais mudanças ao longo dos percursos narrativos, dado que
se não pode ser comprovado à luz da vida da autora, é parte intrínseca da construção de
suas personagens. Por exemplo, em “Osceola” (1944), a fala da própria personagem que
dá nome ao conto, se faz ouvir como uma voz feminista exacerbada: “If I were you, I would
let no man be my equal”
89
(BLIXEN apud THURMAN, 1982, p. 372).
Cláudia T. G. de Lemos, no capítulo de sua autoria, “A função e o destino da palavra
alheia três momentos da reflexão de Bakhtin”, afirma que, na visão do autor, a relação
autor-personagem ocorre como fato estético a partir do momento em que o autor assume
esse excedente de visão como uma “posição extraposta ou exotópica que lhe permite
construir a personagem como totalidade” (LEMOS, 2003, p. 40). E completa:
Ainda que (Bakhtin) reconheça nesse mesmo texto que em um primeiro momento
da atividade estética pode haver identificação, empatia ou mesmo fusão, (ele)
afirma que essa atividade tem realmente início quando o autor se volta para si
mesmo e se afasta para dar forma e completude ao material, produto da
identificação. Esse necessário movimento de volta a si mesmo, representado pela
metáfora espacial do estar fora, que se opõe ao estar dentro da identificação, é
89
Se eu fosse você, não permitiria que nenhum homem fosse meu igual. (Tradução nossa.)
88
que põe em ação não o eu do autor, mas o autor enquanto outro do outro. (Idem,
p. 40, grifo da autora).
Segundo Bakhtin,
Se levarmos em conta todos os fatores aleatórios que condicionam as declarações
do autor-pessoa sobre as suas personagens, [...] veremos com absoluta evidência
o quanto é incerto o material que deve emanar dessas declarações do autor sobre
o processo de criação da personagem (BAKHTIN, 2003, p. 16).
Outro ponto a ser observado na
obra de Karen Blixen é a presença de um
pessimismo subjacente que, segundo sua biógrafa, ela também externou em frases, cartas
e declarações, tendo como provável origem a constatação já mencionada de se sentir uma
estranha em seu mundo, sentimento que transparece nas falas de muitas de suas
personagens femininas e masculinas, como Saufe, Herr Soerensen, Elishama, Virginie, e
Malli. Essa última, ao falar sobre sua partida iminente de Christianssand, após o
rompimento do noivado com Arndt, lamenta: “Agora tenho de ir embora. Meu Deus, tenho
de ir embora antes que torne a todos infelizes”
90
(p. 116). E ainda, na pergunta a Herr
Soerensen: “E o que ganhamos com isso? [...] Qual é nossa compensação, Herr
Soerensen?”
91
(p. 123) ao que ele responde, concluindo que a vida de ator, cheia de
desilusões e tristezas é, em última instância, coroada apenas por solidão e esquecimento:
“Em compensação? Ai de nós, minha pequena Malli, [...] em compensação ganhamos a
desconfiança do mundo... e nossa pavorosa solidão”
92
(p. 123).
Em outra passagem de “A História Imortal”, Malli retoma o intertexto bíblico, citando o
oitavo versículo do capítulo 29 do Livro do Profeta Isaías, pleno de pessimismo e tristeza:
“[...] e será ainda como o faminto que sonha comer, mas quando acorda, sua alma está
vazia; ou quando o sedento sonha beber, mas está sedento; e quando acorda, está fraco e
sua alma tem fome”
93
(p. 127).
O que é certo afirmar é que na autobiografia o autor-protagonista é tão personagem
como todas as outras, ainda que lhe seja dado destaque. Ao adquirir o biografado a
condição de personagem, e ao ser retratado por si mesmo ou por um biógrafo, sofreas
mesmas injunções da trama narrativa que qualquer personagem ficcional, mesmo que o
90
I must go away. God, I must go away before I make them all unhappy (p. 138).
91
And do we get for it? […] What do we get in return, Herr Soerensen [?] (p. 145).
92
In return? Alas, my little Malli, […] in return we get the world’s distrust – and our dire loneliness (p. 146).
93
It shall even be when a hungry man dreameth, and behold, he eateth; but he awaketh, and his soul is
empty; or as when a thirsty man dreameth, and behold, he drinketh; but he awaketh, and behold, he is faint,
and his soul hath appetite (p. 148).
89
autor-personagem ou o biógrafo procurem não se afastar da assim chamada verdade.
Bakhtin acrescenta:
Até mesmo em trabalhos histórico-literários sérios e conscienciosos, o mais
comum é extrair o material biográfico das obras e vice-versa, explicar pela
biografia uma dada obra, e se consideram plenamente satisfatórias as
justificações puramente factuais como, por exemplo, a simples coincidência entre
fatos das vidas da personagem e do autor, destacam-se extratos da obra na
pretensão de que tenham algum sentido, ignorando-se inteiramente o todo da
personagem e o todo do autor; conseqüentemente, ignora-se o elemento
essencial: a forma do tratamento do acontecimento, a forma do seu vivenciamento
na totalidade da vida e do mundo (BAKHTIN, 2003, p. 8).
A título de ilustração do dualismo obra vs. autor, fala a principal biógrafa de Karen
Blixen, Judith Thurman, sobre o profundo ressentimento que Karen nutria em relação à
família de sua mãe, Ingeborg, que sempre reprovou o casamento com seu pai, Wilhelm
Dinesen:
Ingeborg had accepted him above her family’s deep misgivings, loved him with a
passion that was the greater for being opposed and misunderstood, and his suicide
was not only a loss of the greatest personal dimensions for her, but a kind of
shameful defeat. If Ingeborg felt her mother and sisters did not like Wilhelm, she
never reproached them for it; she did not have a heart capable of revolt. But she
became passive … melancholy … inhospitable.
94
Like Madam Ross, the sea
captain’ s widow in “Tempests”, no one got to know what she felt about it
95
(THURMAN, 1982, p. 31, grifo da autora)
96
.
Sabe-se, segundo a biógrafa, quais eram os sentimentos de Karen com relação ao
casamento dos pais e ao suicídio de Wilhelm, uma vez que, quarenta anos após a morte
dele, ela escreveu o conto “Alkmene”, o qual, segundo Thurman é “[...] uma das mais
essencialmente trágicas e transparentes histórias autobiográficas que a autora escreveu”
97
(Idem, p. 31). Nele, seu pai é representado pela personagem Vilhelm, um velho professor
que encaminha uma pobre menina órfã, Alkmene, para adoção. O amor quase erótico e
incestuoso que Karen nutria pelo pai, repete-se no conto: “The one person with whom
Alkmene has a natural affinity is Vilhelm. He admires precisely those qualities in her, the
94
Thomas Dinesen, My Sister, passim.
95
BLIXEN, 2001, p. 81.
96
Ingeborg o havia aceitado apesar dos receios de sua família, o amara com uma paixão ainda maior devido
à oposição e à falta de compreensão familiar e seu suicídio não foi apenas uma perda de dimensões
monumentais para ela, mas um tipo de derrota constrangedora. Se Ingeborg sentia que sua mãe e irmãs não
gostavam de Wilhelm, ela nunca as censurou por isso; ela não tinha um coração capaz de revoltar-se.
Todavia, ela se tornou passiva ... melancólica distanciada. Como Madam Ross, a viúva do capitão em
“Tempestades”, ninguém chegou a saber o que ela sentia com relação a isso. (Tradução nossa.)
97
[…] one of the most purely tragic and transparently autobiographical stories she ever wrote (THURMAN,
1982, p. 31).
90
esthetic qualities that frighten her parents. He takes a brotherly but erotic role in her life”
98
(Idem, p. 32).
Sendo Vilhelm o narrador do conto, é sua voz onisciente que explica ao leitor que
havia um profundo e silencioso entendimento entre pai e filha, o qual as outras pessoas
eram incapazes de entender: We seemed, both of us, to be aware that we were like one
another in a world different from us”
99
(Idem, p. 33).
Judith Thurman especula ainda sobre a veracidade e a factualidade possivelmente
contidas nos contos comparadas a alguns traços biográficos da autora. Essa mesma
especulação pode também caber aos críticos, analistas e pesquisadores de literatura em
geral, especialmente aos estudiosos do gênero biografia e autobiografia:
It is possible that the tale is simply the tragic alternative ending to her own story.
But it is also possible that it shows us the way in which appearance or even
biographical facts diverge from or even belie feeling, psychological truth. Dinesen
cultivated in her work and her persona precisely those qualities of spirit and those
emblems of strangeness that she gave Alkmene, and the young Alkmene is
resurrected in the old Dinesen
100
(Idem, p. 35, grifo da autora).
Em todos os contos, é como se Isak Dinesen contemplasse Karen Blixen como
personagem ligada a eventos marcantes de sua vida, no caso, o insucesso conjugal e o
desejo de independência, aspectos que faziam parte do seu modo de ser e, a partir daí,
construísse suas personae, ora Lovisa, ora Malli, às vezes Babette, Martine e Philippa, e
ainda Virginie, aproveitando fatos e eventos relativos à sua vida ou às vidas de outrem,
que poderiam ter sido vividos de algum modo por ela, apenas imaginados, ou ainda, que
fossem fruto da observação do mundo à sua volta.
É de se notar também que as vozes das personagens femininas que renunciam à
felicidade amorosa carregam em si a força que as permite ser o que são por elas próprias.
Suas falas atestam o lado independente e arrojado da autora, como um reflexo no espelho
das personagens. O amor como algo inatingível as torna fortes, em oposição às
98
A única pessoa com quem Alkmene tem uma afinidade natural é Vilhelm. Ele admira nela precisamente
aquelas qualidades de ordem estética que atemorizam seus pais. Ele assume um papel fraternal e ao
mesmo tempo erótico na vida dela. (Tradução nossa.)
99
Parecia que nós dois nhamos consciência de que éramos iguais um ao outro, vivendo em um mundo
diferente de nós. (Idem.)
100
É possível que o conto seja o trágico fim alternativo para sua própria história. Mas é também possível que
ele nos mostre o modo pelo qual as aparências ou os fatos biográficos podem até mesmo enganar ou
divergir do sentimento e da verdade psicológica. Dinesen cultivou tanto em seu trabalho como em sua
persona precisamente aquelas qualidades de espírito e aquelas representações de estranhamento que deu
a Alkmene, e a jovem Alkmene é ressuscitada na velha Dinesen. (Tradução nossa.)
91
personagens masculinas, comparativamente mais frágeis. Na verdade e paradoxalmente,
é como se fosse dado às personagens femininas escolher enquanto às masculinas
caberia renunciar, o que, de certa forma, emula a postura independente da autora em
relação aos homens de sua vida e à vida conjugal nos moldes ortodoxos.
A partir da leitura da obra de Judith Thurman, mais do que detalhes da vida pessoal e
profissional de Karen Blixen, buscou-se afirmar a existência da pesquisa biográfica
seriamente realizada, que traz dados relevantes sobre a mulher e a autora, e não justificar
fatos das vidas das personagens a partir da vida de Karen Blixen e vice-versa.
Ainda segundo Bakhtin, ao tratar sobre biografia e autobiografia:
Ao criar a personagem e sua vida, o autor se orienta pelos mesmos valores com
que a personagem vive a sua vida; no essencial, ele não é mais rico que a
personagem, não possui para a criação elementos excedentes e transgredientes
que a pesonagem não possua para a vida; em sua criação, o autor apenas
continuidade ao que já está alicerçado na própria vida das personagens. Aí não há
contraposição de princípio do ponto de vista estético ao ponto de vista da vida,
não diferenciação; a biografia é sincrética. o que [a personagem] viu e quis
em si e para si em sua vida o autor e quer nela e para ela. (BAKHTIN, 1995, p.
150).
Assim como Karen Blixen não pode ser considerada como espelho e reflexo de
Lovisa ou de Malli, assim também é possível afirmar que traços de Karen podem
transparecer aqui e ali em suas personagens, até mesmo em Thusmu e Babette, ou ainda,
em Virginie, podendo esses elementos ser advindos apenas da imaginação da autora, que
pode não tê-los reconhecido obrigatoriamente em si mesma, ou ainda, representar uma
afirmação intencional, valorada e ajuizada segundo seus princípios, vivências ou ideologia,
uma vez que, em se tratando da importância que Blixen conferia à emancipação feminina,
não seria de admirar que um tema que lhe era tão caro também aparecesse de alguma
forma em suas narrativas.
Reside aí um dado de incompletude que não cabe aos pesquisadores de literatura
concluir como fato irrefutável e comprovável. Deve-se, apenas, constatar as coincidências
entre a autora e suas personagens femininas, sem tentar justificá-las axiologicamente.
Prossegue Bakhtin, dizendo:
É claro que no seu íntimo o autor de biografia vive a incoincidência consigo
mesmo e com sua personagem, não se entrega plenamente na biografia,
preservando para si uma escapatória interior para fora das fronteiras do dado, e
alimenta o seu viver, evidentemente, com seu excedente sobre o dado-existência,
mas esse excedente não encontra expressão positiva no interior da própria
biografia (Idem, p. 151).
92
O que em Karen Blixen se tende a classificar como possivelmente autobiográfico não
é senão sua visão do choque entre os mundos masculino e feminino bem como seu
posicionamento contundente contra o sistema. Ainda assim, sua obra deve ser avaliada
pelo que representa em termos de sua significativa qualidade artística, pela contribuição
ao gênero conto e à literatura de modo geral.
Judith Thurman (1982), sabedora do fato de que o biógrafo não tem as restrições do
analista de uma obra, chega a afirmar que o conto “Tempestades” é o próprio recontar dos
passos de Karen Blixen em seu processo para se tornar uma artista. No início, a criança
sonhadora, depois a adolescente que descobre as afinidades com seu pai, o qual
vislumbrara o talento da filha que, por sua vez, sente por ele quase que uma atração
erótica. Ela havia prometido a ele sua alma e, em troca, ele lhe garantira que sua vida se
transformaria em histórias. E, assim, literalmente, aconteceu. De acordo com a biógrafa,
ao falar sobre Freud e sua importância para a moderna literatura, Karen Blixen observou
que “[...] o é necessário desenterrar as raízes para saber que elas estão lá
101
(BLIXEN
apud THURMAN, 1982, p. 416).
De sua vida pessoal, com base nas biografias que sobre ela foram feitas, sabe-se
que Karen sempre foi um ser independente, que se assenhorou desde muito cedo de seu
destino, consciente de que assim o fazia, mesmo pagando o alto preço da censura familiar
e social. Ao analisar mais detidamente suas personagens femininas, notam-se em várias
delas características de semelhança com a autora, como a impulsividade de Malli, a
coragem e o senso de independência de Babette e Lovisa, e o posicionamento altivo e
responsável de Martine e Philippa.
É possível que a chamada voz autobiográfica que parece transparecer nas figuras
femininas dos contos de Karen Blixen, tenha como matriz, não apenas a própria Karen,
mas também várias das mulheres que ela encontrou e com quem conviveu ao longo da
vida, freqüentadora habitual e observadora crítica dos mundos masculino e feminino.
Ela é, talvez, a personagem feminina subjacente e múltipla, sutil e etérea de suas
histórias: a fazendeira, a esposa traída, a amante, a escritora, a contadora de histórias, a
mulher culta, conhecedora de literatura e arte, a viajante aventureira, e a baronesa, que
tinha a África como pátria de adoção.
101
[…]
it is not necessary to dig up the roots, to know that they are there.
93
De fato, Karen ansiou durante toda a vida por uma rotina doméstica e feliz, cercada
de livros, ao lado do homem amado, sem ter visto seu sonho realizado em plenitude.
Diferentemente de algumas de suas personagens femininas, como Babette e Malli,
que abandonaram sua terra natal para sempre, Karen partiu da fria Escandinávia ainda
relativamente jovem para viver seu sonho africano, mas nunca perdeu suas raízes. Mesmo
nutrindo amor especial pelo Quênia, ao qual se adaptou e onde buscou ser feliz, nos
momentos de crise tinha sempre a Dinamarca natal à sua espera.
A voz possivelmente autobiográfica que se faz notar em algumas de suas
personagens femininas não é portadora de desfechos para as histórias. Acima de tudo,
essas personagens são contadoras de histórias inacabadas, protagonistas de embates
que não se resolvem pelo encerrar das narrativas. Essas complexas personagens
femininas em aberto representam a porta para o inusitado, para o surpreendente, para o
que está além da história.
Os elementos autobiográficos desvelados por elas não têm caráter confessional.
Suas vozes exibem uma certa transparência, um revelar que também oculta, algo como
uma miragem que, quando alcançada, desaparece, como a história dentro da história do
conto “A História Imortal”, ou a história vivida por Saufe após sua saída de Xiraz, no conto
“O Mergulhador”.
De sua posição estatutária de autora, Karen Blixen tinha a opção e a possibilidade de
incorporar ou não repertórios interpretativos seus em suas personagens, assim como
qualquer autor pode fazê-lo, intencionalmente ou não.
Ao fazer referência neste trabalho a uma possível voz autobiográfica, pretendeu-se,
antes de mais nada, afirmar a consciência de uma outra consciência que se revela por
meio do enredo e das personagens, criticando ou enaltecendo valores e posturas, mais do
que relatar fatos, comprováveis ou não, da vida da autora.
A questão da autenticidade compromete, em certa medida, a essência da chamada
voz autobiográfica como tal. Segundo Bakhtin (2005, p. 210), “o autor-criador sabe mais do
que o seu herói”. É como se esse autor-criador arbitrasse suas escolhas, retirando da vida
de conhecidos, familiares e da sua própria, elementos em seu juízo convenientes para
compor tal ou qual personagem. É desse poder de autoria que se trata aqui e não
necessariamente de elementos de factualidade ou de veracidade. Na obra organizada por
Beth Brait (2005), Cristovão Tezza afirma:
94
Temos um excedente de saber e um primeiro pressuposto da visão de mundo
bakhtiniana, um princípio básico: a exotopia, que podemos simplificar definindo-a
como o fato de que só um outro nos pode dar acabamento assim como nós
podemos dar acabamento a um outro. [...] (O) princípio da exotopia é, em última
instância, uma visão de mundo que tem conseqüências teóricas inescapáveis. Ele
pode ser entendido, de fato, como o princípio dialógico bakhtiniano, que, a partir
do conceito de signo e de significação o conceito de linguagem
substancialmente revolucionário de Bakhtin, fora do qual todos os seus outros
conceitos parecem reduzir-se a uma lista de novas definições estruturais –,
abrange toda a atividade da cultura humana, ou, para usar uma expressão que lhe
era cara, o acontecimento aberto da vida (TEZZA, 2005, p. 210-11, grifo do autor).
É esse excedente de saber, o acontecimento aberto da vida que, por vezes, permite
ao autor revelar o que lhe é caro, pessoal, íntimo, doloroso. É a armadura possível, o
recorte narrativo, o desvio para onde o dirigidas as emoções que de outro modo não
seriam extravasadas. Ainda segundo Tezza,
[...] a exotopia não é apenas um conceito espacial, a instância do olhar é, aliás,
inseparavelmente, um conceito temporal. O autor-criador está à frente,
espacialmente de fora e temporalmente mais tarde que o herói do mesmo modo
que o autor-contemplador, este de modo mais radical ainda. É o excedente de
visão, no tempo e no espaço, que sentido estético à consciência do outro, dá-
lhe forma e acabamento, uma forma e um acabamento que jamais podemos ter
por conta própria, na estrita solidão de nossa voz (Idem, p. 214, grifo do autor).
Por exemplo,
a infelicidade amorosa e a não-realização profissional de muitas
mulheres ao longo dos tempos, especialmente até a década de sessenta do século XX,
repete-se em várias das personagens femininas de Blixen, como um possível eco de sua
própria voz, alter ego crítico de uma realidade social condenável. Nessa acepção, diz
Bakhtin:
É claro que o autor, como elemento constitutivo da obra de arte, nunca coincide
com a personagem: eles são dois, mas entre eles não contraposição, seus
axiológicos são congêneres, o portador da unidade da vida a personagem e o
portador da unidade da forma o autor pertencem ambos ao mesmo universo
de valores. [...] O mundo da biografia não é fechado nem concluído, não está
isolado do acontecimento único e singular da existência por fronteiras sólidas e de
princípio (BAKHTIN, 2003, p. 151-2, grifo do autor).
Ao descrever personagens femininas fortes, Karen Blixen não as constrói como
portadoras da voz feminista em sua acepção panfletária. Trata-se, sim, de vozes femininas
que carregam um ideal, que se fazem completas e independentes pelo que são ou pelo
que podem vir a ser, e não meras
extensões do masculino identitariamente superior.
Assim também, pode-se afirmar que o autor se refrata em suas personagens com direito a
construí-las não como reflexo exclusivo de si mesmo ao revelar aqui e ali impregnações
muitas vezes simbólicas e sutis de sua visão de mundo, mas, pelo contrário, suas
95
personagens podem se opor a seu modo de pensar e agir, o que as configura como seres
ficcionais autônomos e verossímeis.
A voz autobiográfica exprime-se, pois, por intermédio de formulações discursivas que
não conseguem escapar totalmente do sujeito-autor, vivenciador e criador de sentidos. E
ainda que seu objetivo não seja o de retratar-se, ele se desvela em fragmentos ao longo
das narrativas, em textos que atualizam memórias, apagamentos, lembranças alteradas,
recriações. É esta análise da textualização e do funcionamento do discurso realizado em
texto que cabe ao analista e ao pesquisador de literatura desvendar, independentemente
do gênero narrativo.
Os intercursos de apagamento e da efetivação da memória seletiva funcionam como
marcas indiciais a diferenciar historicidade, memória pessoal e memória discursiva. Acerca
desse aspecto, afirma Bakhtin:
A memória sobre o outro e sua vida difere radicalmente da contemplação e da
lembrança de minha própria vida: a memória vê a vida e seu conteúdo de modo
diferente, e só ela é esteticamente produtiva (o elemento de conteúdo pode,
evidentemente, proporcionar a observação e a lembrança de minha própria vida
mas não o ativismo que lhe dá forma e acabamento) (Idem, p. 98, grifo do autor).
Neste trabalho, o fio condutor são as vozes das personagens que constroem a
materialidade discursiva, a matriz narrativa dos sentidos explícitos e implícitos e dos jogos
ideológicos e simlicos, quer estejam contidas essas vozes em uma memória chamada
de real quer pertençam a uma memória platônica ou afetiva, a qual seleciona os
acontecimentos que devem ou podem ser recuperados pelas personagens, segundo
intenções claras ou subjacentes, dependentes ou não da vontade da autora.
De acordo com
Eni Orlandi (2005, p. 95), “Às margens do texto, textos fantasmas
diluem as bordas da textualização, seus limites”. Do mesmo modo, paralelamente às
vozes que soam através das personagens, outras possíveis vozes se ouvem e se diluem,
sendo uma delas a do próprio autor-criador, revelada em histórias inacabadas
provenientes de muitas outras histórias, nas quais vozes sociais, autobiográficas ou não,
se individualizam e emergem em determinados momentos.
A pressuposição de uma voz autobiográfica é, antes de mais nada, uma marca de
incompletude, do que pode vir a ser, do autor incompleto, da personagem por terminar, e
do entrelaçamento simultâneo de todos esses planos. Os sentidos esquecidos e os
rememorados podem levar a uma consciência do outro, que além de personagem pode,
96
eventualmente, ser também o autor, transformado em personagem ficcional e, portanto,
independente da matriz que lhe deu origem. Segundo Bakhtin,
Contemplar a mim mesmo no espelho é um caso inteiramente específico de visão
da minha imagem externa. Tudo indica que neste caso vemos a nós mesmos de
forma imediata. Mas não é assim; permanecemos dentro de nós mesmos e vemos
apenas o nosso reflexo, que não pode tornar-se elemento imediato da nossa visão
e vivenciamento do mundo: vemos o reflexo da nossa imagem externa mas não a
nós mesmos em nossa imagem externa; a imagem externa não nos envolve ao
todo, estamos diante e não dentro do espelho; o espelho pode fornecer o
material para a auto-objetivação, e ademais um material não genuíno. De fato,
nossa situação diante do espelho sempre é meio falsa: como não dispomos de um
enfoque de nós mesmos de fora, também nesse caso nos compenetramos de um
outro possível e indefinido, com cuja ajuda tentamos encontrar uma posição
axiológica em relação a nós mesmos (BAKHTIN, 2003, p. 30).
E ainda que os aspectos materiais do passado não possam ser alterados do ponto de
vista factual, ainda assim, a memória afetiva, com seus intercursos de lembrança e de
apagamento, se encarregará de operar mutações estéticas e sentimentais, exercendo a
memória, segundo Bakhtin (2003, p. 396), “seu papel de transfiguração do passado”.
Em nada diminui a importância do discurso biográfico e autobiográfico o fato de que
nele é impossível retratar ou retratar-se, de forma acabada, o autor. Pelo contrário, isso
apenas reafirma o poder maior da literatura que, além de estético, é eminentemente
ficcional.
Como último ponto deste capítulo, vale comentar a interessante aproximação entre
maternidade e autoria no plano simlico, aspectos aos quais Karen Blixen o ficou
imune. A representação da gestação feita por Julia Kristeva em A Maternidade Segundo
Giovanni Bellini (1980) pode servir de termo de comparação para ilustrar o paralelismo
existente entre autoria e maternidade. Ela diz: “Cells fuse, split, and proliferate; volumes
grow, tissues stretch, and body fluids change rhythm […]. Within the body, growing as a
graft, there is an other (sic)”
102
(KRISTEVA apud AIKEN, 1990, p. 4).
A interpretação feita por Julia Kristeva com relação à gestação e à maternidade é
comentada por Susan Aiken como ilustrativa do processo de autoria em comparação ao
desenvolvimento simbólico do self bem como das conseqüências daí decorrentes:
Kristeva’s reading of gestation as a proliferation
of internal difference, a strange
form of split symbolization, and a negation of the social symbolic bond suggests
that the figure of the femme enceinte potentially threatens not only traditional
Western notions of the single, sovereign self but also traditional views of language
102
As células fundem-se, dividem-se, e multiplicam-se; os volumes aumentam, os tecidos se dilatam, e o
ritmo dos fluidos corporais se altera [...]. Dentro do corpo, crescendo como um enxerto, há um outro.
(Tradução nossa.)
97
(and the volumes that grow out of it) as unitary, monological, and transparent
103
(AIKEN, 1990, p. 4, grifo da autora).
Nessa acepção, Susan Aiken prossegue citando Kenneth Burke (1979), o qual faz
menção ao Gênesis bíblico, capítulo 2, e à peça de Ésquilo, Orestéia (1953). Segundo
Susan Aiken, Burke classifica como obstetrícia anti-natural o nascimento da mulher a partir
do corpo masculino, do mesmo modo que qualifica de biologia perversa a disputa quanto
aos direitos dos pais de Atena em relação a ela. A fala do pai fecha, de modo simbólico e
significativo, a peça de Ésquilo: “[...] the mother is no parent to that which is called her
child”
104
(AESCHILLUS apud AIKEN, 1990, p. 4).
Tanto no texto do nesis como na peça, em que pesem consideráveis diferenças
quanto à natureza das duas obras, de se notar o fato de que ambas registram a
intensidade da necessidade masculina de conter o perigoso excesso feminino em um
universo eminentemente falocêntrico, por meio da usurpação simlica do poder gerativo
da mulher. Tais mitografias encontram eco na própria literatura, em que o autor à luz
sua obra como uma mulher grávida à luz seu filho, reforçando o modelo edipiano e
patriarcal de autoria. O poder conferido à mulher de gerar filhos agrega o ônus de declinar
a identidade do pai da criança gestada. Desde a famosa afirmação de Freud de que “a
maternidade é provada pela evidência dos sentidos enquanto a paternidade é uma
hipótese, algo baseado em uma inferência”
105
, assume-se que existe um sistema que
iguala a propriedade feminina com a apropriação masculina, e que qualquer mulher que se
recuse a dizer o nome do pai de seu filho, arrisca-se a ser considerada uma figura
imprópria, segundo Aiken (1990, p. 4-5, grifo da autora).
Ao fazer confluir biologia e linguagem, segundo a autora, a partir das significativas
descrições do texto bíblico e da peça grega, o novo homem confirma simbolicamente sua
autoridade sobre a recém-nascida mulher ao assumir por duas vezes o direito de dar-lhe
um nome (Gen. 2:23; 3:20), o mesmo ocorrendo com Atena, que reafirma o direito de
103
A interpretação de Kristeva sobre a gestação como uma multiplicação de diferenças internas, uma
estranha forma de divisão simbólica, e uma negação do simbolismo do vínculo social sugerem que a figura
da mulher grávida é uma ameaça potencial não apenas em relação à noção ocidental do único e soberano
self mas também à visão tradicional de linguagem (e os volumes que dela crescem) como algo unitário,
monológico e transparente. (Tradução nossa.)
104
A mãe não é genitora daquela que é chamada de sua filha. (Idem.)
105
Esta frase de Freud (maternity is proved by the evidence of the senses while paternity is a hypothesis,
based on an inference) aparece na coletânea Moses and Monotheism the standard edition of the complete
psychological works of Sigmund Freud, publicado e traduzido para o inglês por James Strachey, 24 volumes
– London: Hogarth Press, 1953, volume 13, p. 114.
98
maternidade/paternidade de seu pai sobre ela, pai que havia devorado sua mãe grávida.
Segundo Susan Aiken,
In arguing that the unity or integrity of Occidental narrative, grounded in both
classical and Judeo-Christian traditions, depends on a series of genealogical
connections: author-text, father-son, beginning-middle-end, beneath which lies the
imagery of succession, of paternity, of hierarchy
106
(AIKEN, 1990, p. 5, grifo da
autora).
Estabelece-se a relação entre o autor e o seu ofício, pelo poder que lhe confere a
autoria como matriz geracional de sua obra. Assim, as narrativas de Anedotas do Destino
apresentam o poder como a grande metáfora representada pelas histórias, elas próprias
capazes de conferir ao contador essa mesma investidura. O talento de tecer narrativas
torna Karen Blixen ciente de que lida em seu ofício com algo da esfera do intangível, do
quase-sobrenatural, matéria de que são feitos os sonhos, a fantasia e a arte.
Parafraseando Herr Soerensen, o contador de histórias é, ao mesmo tempo, um enigma
para si mesmo e um arauto de alegria para o mundo (p. 99).
No cumprimento de seu ofício e arte de escritora, Karen Blixen permite que emerja o
autor como o herói salvador que resgata da morte os que estão em perigo, isto é, todos os
seres humanos, presos a um destino de realidade não fosse o contador de histórias a
tecer a teia da vida, produto híbrido de fantasia, imaginação e cotidiano, encenação
possível a desenrolar-se em palcos variados, sempre que assume seus papéis um
punhado de atores-personagens, moldando e tornando real, ainda que temporariamente, a
sutil matéria-prima de que são feitas as histórias.
Vivendo a literatura como seu porto seguro, Karen Blixen fez de suas narrativas a
metalinguagem do ofício de escritor, artesão e mágico, construtor de asas e pescador de
pérolas, realizador de profecias e gourmet que, ao misturar ingredientes raros e
improváveis preparou um banquete de arte depois do qual a vida nunca mais foi a mesma.
106
Ao argumentar que a unidade ou integridade da narrativa ocidental está embasada tanto nas tradições
clássicas como nas de natureza judaico-cristã, faz com que esta dependa de uma série de conexões
genealógicas: autor-texto, pai-filho, começo-meio-fim, sob a qual está todo o repositório imagético ligado à
sucessão, à paternidade, à hierarquia. (Tradução nossa.)
99
Capítulo V
AS VOZES REVELADORAS DOS PROCESSOS DE TRANSFORMAÇÃO
A palavra-chave nos contos de Karen Blixen é mutação. Tal processo inexorável de
transformação atende por vários nomes: é Thusmu, a dançarina que se transforma em
anjo; é também Babette, a chef francesa, refugiada e deslocada para o povoado humilde,
capaz de operar a mudança nos corpos e nas almas dos habitantes de Berlevaag por meio
de seu jantar francês; é Malli, mulher e atriz que também pode ser homem e personagem,
garota fgil e heroína ao mesmo tempo; também é Lovisa, a esposa devotada e imatura,
que se liberta pelo autoconhecimento. Trata-se ainda de Saufe, que transita do vôo ao
mergulho, ou de Elishama, o sobrevivente, o desesperançado que, ao colocar uma concha
rara junto ao ouvido, realiza sua profecia pessoal.
Nos contos de Karen Blixen como que uma hierarquização de vozes, que marca,
de início, os posicionamentos das personagens, mas que no processo do desenrolar das
narrativas têm seus estatutos alterados, o que repercute nas condições não-estáveis do
jogo de vozes em constante transformação identitária.
As posições estatutárias são geradoras não apenas dos embates diegéticos, mas
conferem sentidos diferenciados aos vários entrechos narrativos por meio da luta de
permanência ou de mudança do status quo das personagens, em consonância ou em
oposição às transformações ensejadas pelo evoluir das tramas.
A compreensão do universo sociocultural das personagens, que também se revela
por meio dessas falas, é essencial para que se perceba a gênese dos conflitos e seus
modos de reequilíbrio, o que implica mudanças obrigatórias ao longo dos enredos.
Do ponto de vista das vozes em mutação ao longo do espaço-tempo, estabelece-se o
devir bakhtiniano da história por fazer, do jogo de relações entre personagens mutantes e
mutáveis, seja pelo processo de adaptação, como é o caso de Martine e Philippa, seja
pelo processo de transformação, como é o caso do General Lorens Loewenhielm.
No conto “A Festa de Babette”, por exemplo, o general, quando jovem, era o tenente
vaidoso e fútil, expressando em seu discurso toda a sua imaturidade e ambição, as quais o
levaram, posteriormente, a abrir mão de uma vida simples e da realização amorosa.
Seu pai, indignado com as dívidas de jogo e a vida de dissipação do filho, obriga-o a
visitar mensalmente a tia idosa, seguidora do pastor, para que nesses períodos de retiro,
100
ele pudesse meditar sobre seus erros e desregramentos. Ao longo desses períodos, ele
passa por três instâncias de transformação: a primeira se quando avista Martine pela
primeira vez, encantando-se com a beleza da moça. Por meio da tia, é aceito na casa do
pastor para as orações comunitárias. Diante dela, o jovem oficial, que sempre fora ousado,
impulsivo, conquistador e arrogante, fica mudo: “a cada vez sentia-se menor, mais
insignificante e desprezível”
107
(p. 28). Não acha palavras para dizer que a ama,
conseguindo, apenas, segui-la com olhar de veneração. No último dia de sua estadia,
planeja declarar-se à moça, mas as palavras não saem. Na despedida, beija-lhe a mão
com ardor, dizendo que jamais voltará a vê-la: “[...] aprendi aqui que o destino é severo e
que neste mundo coisas impossíveis”
108
(p. 28). Aquele que se julgava senhor do
mundo, está agora subjugado pela paixão e por sua incapacidade de lutar pelo amor de
uma jovem. Essa mesma fala é contrariada pelo próprio general ao fim do conto,
sinalizando a mudança ocorrida em seu espírito e em sua visão de mundo.
A segunda transformação se quando Lorens retorna a seu posto na cidade, ao
decidir mudar o rumo de sua vida: dali em diante se concentrará apenas em sua carreira
de modo a ganhar prestígio, fortuna e poder. Ao atingir, por fim, seus objetivos de vaidade
e ambição, percebe que não se tornou um homem feliz.
A terceira mudança ocorre bem mais tarde quando, maduro e consciente de suas
escolhas passadas, boas e más, o agora General Lorens Loewenhielm fala pelo discurso
religioso e conciliatório daquele que, nessa quadra da vida, é capaz de contemplar
reflexivamente o passado, confrontando o homem maduro com sua persona jovem.
A caminho da casa das irmãs Martine e Philippa para celebrar o centenário de
nascimento do pastor, o general está deprimido. Algo que ele julgava absurdo vinha
acontecendo: a preocupação com sua alma imortal. Percebia que essa inquietação não
era de ordem moral, mas mística. “Olhava-se no espelho, examinava o monte de
condecorações em seu peito e suspirava: “Vaidade, vaidade, tudo é vaidade[!]”
109
(p. 48).
Indaga-se se, porventura, a soma de suas vitórias não seria uma derrota. O velho general
cumprira os desejos do jovem tenente e, apesar de todas as conquistas, sente que em
algum lugar algo se perdera. Ao fazer o balanço de sua vida, decide que naquela noite fará
107
[…] each time (he) seemed to himself to grow smaller and more insignificant and contemptible (p. 26).
108
[…] I have learned here that Fate is hard, and that in this world there are things which are impossible[!] (p.
27).
109
He looked into the mirror, examined the row of decorations on his breast and sighed to himself: Vanity,
vanity, all is vanity[!] (p. 52).
101
um ajuste de contas com o jovem Lorens Loewenhielm a fim de descobrir se fizera as
escolhas certas.
Ao fim do jantar preparado por Babette, encantado por tudo que bebera e saboreara,
pelas lembranças revividas de Paris e, reconhecendo no jantar em Berlevaag os sabores
que provara outrora pelas mãos da famosa chef-de-cuisine do Café Anglais, ele se sente,
por fim, apaziguado.
Ao retomar o discurso pastoral, não são apenas seus lábios, mas é seu coração que
o enuncia, sinalizando a grande mudança em seu posicionamento identitário, indivíduo que
se transformado pelo outro, no caso Babette, frente ao evento que no presente dialoga
com outro semelhante do passado. Trata-se da metaforização do jantar como o
redespertar para a arte e para a beleza, ora recuperadas pela memória gustativa, olfativa,
visual, e afetiva.
Ao término da ceia, o general tem selada a paz entre o homem maduro atual e o
jovem tenente de outrora, o qual tantas exigências de poder e de renúncia de prazeres
terrenos lhe cobrou no passado, como homem e como militar. Nesse entrecho, estabelece-
se a intertextualidade bíblica das falas do pastor com o Salmo 84, que o general retoma
em seu discurso:
A misericórdia e a verdade, meus amigos, encontraram uma à outra, disse o
general. A retidão e a bem-aventurança devem beijar uma à outra. [...] O homem,
meus amigos, disse o general Loewenhielm, é frágil e tolo. A todos nos foi dito
que a graça divina encontra-se por todo o universo. Mas em nossa tolice e miopia
humanas, imaginamos ser a graça finita. Por esse motivo, trememos. [...]
Trememos antes de fazer nossas escolhas na vida e após tê-las feito trememos de
medo de ter escolhido errado. Mas eis que chega o momento em que nossos
olhos estão abertos e vemos e percebemos que a graça é infinita. A graça, meus
amigos, não exige nada de nós senão que a aguardemos com confiança e a
reconheçamos com gratidão. A graça, irmãos, não impõe condições e não escolhe
nenhum de nós em particular; a graça nos toma todos em seu seio e proclama
anistia geral. Vejam! Aquilo que escolhemos nos é dado e aquilo que recusamos
nos é igualmente, e ao mesmo tempo, concedido. Sim, que o que rejeitamos seja
copiosamente vertido sobre nós. Pois que a misericórdia e a verdade encontraram
uma à outra e a retidão e a bem-aventurança beijaram uma à outra[!]
110
(p. 54-5).
110
Mercy and truth, my friends, have met together, said the General. Righteousness and bliss shall kiss one
another. […] Man, my friends, said General Loewenhielm, is frail and foolish. We have all of us been told that
grace is to be found in the universe. But in our human foolishness and short-sightedness we imagine divine
grace to be finite. For this reason we tremble. […] We tremble before making our choice in life, and after
having made it again tremble in fear of having chosen wrong. But the moment comes when our eyes are
opened, and we see and realize that grace is infinite. Grace, my friends, demands nothing from us but that we
shall await it with confidence and acknowledge it in gratitude. Grace, brothers, makes no conditions and
singles out none of us in particular; grace takes us all to its bosom and proclaims general amnesty. See! That
which we have chosen is given us, and that which we have refused is, also and at the same time, granted us.
Ay, that which we have rejected is poured upon us abundantly. For mercy and truth have met together, and
righteousness and bliss have kissed one another[!] (p. 60-1).
102
A voz do general, ao estabelecer o diálogo entre um eu e um outro de naturezas
diversas, exprime a nova realidade, a transformação ideológica que se instaurou a partir
do jantar francês, e não apenas nele, mas nos demais membros da comunidade.
Em sua fala de despedida de Martine, trinta anos antes, a visão do então jovem
tenente era de que “neste mundo coisas impossíveis” (p. 28). Três décadas depois,
mais maduro, o general se sente tocado emocionalmente pelo jantar-discurso de Babette,
reconhecendo, a partir daí, que “[...] neste mundo tudo é possível” (p.56), o que instaura a
oposição entre sua visão de jovem ambicioso e sua posição atual de homem maduro, de
modo a unir novamente as pontas cortadas do mesmo fio.
O general finalmente reconhece que o sacrifício verdadeiro da renúncia é um bem
tanto quanto as escolhas que fez. Ele, Achille Papin, as filhas do pastor, Babette, todos
abriram mão do amor, da família, de um certo modo de vida como expressão da felicidade
terrena e reconhecem, finalmente, que se não apreciarem a alegria passageira e mundana
pelo que ela realmente é, não terão feito sacrifício algum, e os atos de renúncia não terão
valido a pena, pois não vieram acompanhados da consciência de que fala Althusser:
O indivíduo em questão conduz-se desta ou daquela maneira, adota este ou
aquele comportamento prático e, o que é mais, participa em certas práticas
reguladas, que são as do aparelho ideológico de que dependem as idéias que
enquanto sujeito escolheu livremente, conscientemente. [...] Em todo este
esquema verificamos portanto que a representação ideológica da ideologia é
obrigada a reconhecer que todo sujeito, dotado de uma consciência e crendo nas
idéias que a sua consciência lhe inspira e que aceita livremente, deve agir
segundo as suas idéias, deve portanto inscrever nos atos da sua prática material
as suas próprias idéias de sujeito livre. Se não o faz, as coisas não estão bem
(ALTHUSSER, 1970, p. 85-7, grifo do autor).
Em seu pronunciamento, o general contraria ainda a fala do jovem militar que ele um
dia fora, ao partir de Berlevaag, abrindo mão de seu sonho romântico. Ao fim da ceia, ao
despedir-se de Martine, ele lhe diz:
Tenho estado com você todos os dias de minha vida. Sabe, não sabe, que tem
sido assim? E, prosseguiu ele, estarei com você por todos os dias que ainda me
restarem. Todas as noites me sentarei, se não em carne e osso, que nada
significam, em espírito, que é tudo, para jantarmos juntos, como esta noite. Pois
esta noite descobri, querida irmã, que neste mundo tudo é possível
111
(p. 56).
Achille Papin, anos depois de sua partida da curta visita que fizera à Noruega, na
carta que escreve às irmãs pedindo-lhes que acolham a amiga Babette, faz um balanço de
111
I have been with you every day of my life. You know, do you not, that it has been so? And, he continued, I
shall be with you every day that is left to me. Every evening I shall sit down, if not in the flesh, which means
nothing, in spirit, which is all, to dine with you, just like tonight. For tonight I have learned, dear sister, that in
this world anything is possible (p. 62).
103
sua vida em tom melancólico, tal qual o general antes do jantar. Seu ocaso artístico é
indicial das perdas que sofreu e que agora lamenta. Todavia, o tom pessimista que
permeia a carta aponta, no final, para a transcendência como redenção para a infelicidade
terrena:
Por quinze anos, senhorita Philippa, lamentei que sua voz não houvesse enchido a
Grand Opéra de Paris. Quando, esta noite, penso na senhora, sem dúvida cercada
por uma família feliz e amorosa, e em mim, velho, solitário, esquecido pelos que
outrora me aplaudiram e adoraram, sinto que deve ter escolhido a melhor parte da
vida. O que é a fama? O que é a glória? O túmulo nos aguarda a todos! E ainda
assim, [...] à medida que escrevo, sinto que o túmulo não é o fim. No Paraíso,
ouvirei sua voz novamente
112
(p. 33-4).
Quanto a Saufe, a ruptura é absoluta. Embora se tenha tornado, ao final do conto, um
homem feliz e pacificado, embora sem esperança, isso se dá, em parte, graças ao quase-
esquecimento em relação ao jovem softa que ele um dia fora. Ao falar do antigo Saufe, ele
diz:
Outrora, disse, tinha o bem-estar do softa Saufe, sobre quem acaba de me contar,
no centro de minhas atenções. Hoje, quase o esqueci. Mas fico feliz em saber que
faz parte de uma história, pois é para isso provavelmente que ele foi feito, e no
futuro aí deverei deixá-lo sem pestanejar
113
(p. 18).
A lógica das relações interpessoais e a exegese dos conflitos reveladas pelas vozes
que determinam os contornos da trama, deixam, ao mesmo tempo, uma porta aberta para
a mudança, indicial da incompletude, daquilo que pode vir a ser, seja o que está para além
da reconciliação, no caso da comunidade de fiéis em “A Festa de Babette”; seja a busca
da pacificação, no caso de Saufe; ou ainda, em “Tempestades”, o tênue equilíbrio de Malli
sobre a lâmina fina que separa a heroína da atriz shakespeariana e da garota cuja vida
tem mais a oferecer que miragens de sonhos; ou mais além, em “A História Imortal”, conto
no qual as transformações foram ensejadas por indivíduos de quem pouco se poderia
esperar pela visão reducionista que tinham de si mesmos, como é o caso de Elishama, de
Virginie, de Povl, que tomaram parte na vingança do destino contra o materialista Mister
Clay.
112
For fifteen years, Miss Philippa, I have grieved that your voice should never fill the Grand Opera of Paris.
When tonight I think of you, no doubt surrounded by a gay and loving family, and of myself: gray, lonely,
forgotten by those who once applauded and adored me, I feel that you may have chosen the better part in
life. What is fame? What is glory? The grave awaits us all! And yet, […] as I write this I feel that the grave is
not the end. In Paradise, I shall hear your voice again (p. 34).
113
Once, he said, I had the welfare of the Softa Saufe, of whom you have just told me, much at heart. By this
time I had almost forgotten him. But I am pleased to know that he has got into a story, for that is probably
what he was made for, and in future I shall leave him therein confidently (p. 15).
104
As características polissêmica e metafórica dos contos de Blixen o representativas
dos processos de transformação ao longo dos enredos. Desse modo, personagens,
lugares e objetos aparentam ser, à primeira vista, algo que na realidade não são, como a
tempestade na qual Malli se torna a heroína salvadora, ou o lugar na floresta no qual
Lovisa se refugia, ou o litoral distante onde Saufe se torna pescador de pérolas, ambientes
enunciativos de contornos pouco nítidos,.
Algumas personagens são igualmente polissêmicas, como Babette, por exemplo. Ela
abriga em si os múltiplos sentidos que a constituem como pessoa, podendo ser a chef
refinada, a empregada de uma casa simples em um povoado norueguês, a cosmopolita
habitante de Paris, a mulher com ideais políticos que a condenaram ao exílio.
Analogamente, seu jantar contém múltiplos significados, constituindo por si mesmo um
discurso, portador de léxico e sintaxe. A comida, as bebidas, os talheres, os pratos, o
arranjo da mesa, são todos elementos composicionais da cena enunciativa,
representações da arte, do figurado, do transcendente.
Outras personagens revelam, pelo do vocabulário que as descreve e com o qual
estão associadas, a figurativização do que elas próprias são. É o caso de Mister Clay,
indivíduo que tem na esfera do material seus objetivos e meio de vida. As palavras
referentes a ele, conforme descrição do narrador onisciente e dele próprio ao descrever-
se, remetem a uma realidade de forte carga semântica negativa: velho alto, seco e
avarento (p. 129), insensível (p. 130), duro, velho (p. 132), negociante de c
imensamente rico (p. 129), homem duro como aço e um pão-duro (p. 129), existência
nababesca (p. 131), onipotência (p. 131), carrasco (p. 130), assassino (p. 130), ambição,
cobiça, poder (p. 131), imperador Nero de Roma (p. 150), desdém, repugnância dos
fluidos corporais, repulsivo, falta de sentimentos amistosos à sua volta (p. 130) .
Uma outra figura de linguagem, a catacrese, acentua as características negativas de
Mister Clay, e não por falta de termos próprios que o descrevam, mas para reforçar a
desumanização do indivíduo, cujas características negativas o tornam praticamente um
animal, processo que se acentua à medida que a narrativa se aproxima do final: “Mister
Clay rosnou um pouco”
114
(p. 145, grifo nosso). E mais adiante: “O servo e confidente
114
Mr. Clay growled a little (p. 175).
105
sentou-se numa cadeira, escutando os ganidos e rosnados no peito do velho”
115
(p. 184,
grifo nosso).
Outra comparação aproxima homem e animal. Trata-se da descrição de Povl, o
marinheiro, ao despedir-se de Virginie, estabelecendo com ela um contraste físico. Aos
olhos da moça, a cena se reveste de grande dramaticidade ao notar que, por seu
tamanho, o marinheiro se assemelha a um urso: “O rapaz tinha um tamanho sobre-
humano, formidável, como um urso encolerizado, erguido nas patas traseiras e sacudindo
a direita no ar”
116
(p. 181).
Por oposição, o sócio francês de Mister Clay, que foi por ele arruinado, é descrito com
palavras associadas a qualidades positivas: homem capaz e amável, com uma linda
esposa e uma família numerosa (p. 130), a linda e meiga esposa e os alegres filhinhos (p.
130).
Após seu suicídio, Monsieur Dupont, é descrito de modo mais favorável do que talvez
tivesse sido em vida, realçando o contraste entre ele e Mister Clay: “Agora que, aos olhos
dos amigos, comparavam-no com a insensível figura de Mister Clay, começava a brilhar
com uma auréola de raios alegres e delicados”
117
(p. 130). Tal descrição, mais do que um
índice do modo como era visto em vida, revela o processo transformacional que torna os
que morreram em modelos idealizados, descrição que no caso de Monsieur Dupont
aproxima-o da figura de um anjo transformado em mito: “Com o correr do tempo essa
história assumiu o caráter de um mito”
118
(p. 130).
Os adjetivos, substantivos e comparações usados para caracterizar Elishama revelam
sua origem, seu sofrimento, seu modo de ser, seu percurso de sobrevivência e de
aprendizado, suas transformações: judeu (p. 133), jovem (p. 132), duras provações (p.
133), trouxas maltrapilhas (p. 133), carregado e largado, esquecido, levado (p. 133),
criança perdida e soliria, totalmente nas mãos do destino (p. 133), estranhos sofrimentos
(p. 133), tanto conhecimento (p. 133), como uma ferramenta amolada pela pedra da vida
(p. 133), com olhos e ouvidos de lince e sem quaisquer ilusões sobre qualquer coisa do
mundo ou da humanidade (p. 133), falta de ambição (p. 134), desejo expurgado (p. 134),
115
His servant and confidant sat down on a chair, listening for the usual whining and snarling in the old man’s
chest (p. 226).
116
The boy looked superhumanly big, formidable now, like an enraged bear, risen on his hind legs, and
swinging his right forelimb in the air (p. 222).
117
Now that, in the eyes of his friends, he was contrasted with the stony figure of Mr. Clay, he began to shine
with a halo of gay and gentle rays (p. 156).
118
In the course of time this story had taken the character of a myth (p. 156).
106
jovenzinho bastante comum (p. 134), pequeno, magro e muito escuro (p. 134), le Juif
Errant (p. 159), indivíduo ao mesmo tempo criança precoce e homem muito velho (p. 134),
inseto, uma formiga difícil (p. 134).
Com referência a Mister Clay, a profecia de Isaías (p. 137-8) possui elementos
indicativos de uma possível e desejável mudança em seu caráter: Mister Clay, o que é
turbado de coração, e pode ter, eventualmente, os olhos cegos abertos, e os ouvidos
surdos desimpedidos. Sendo alguém comparado à terra sedenta, ele poderá,
eventualmente, ver-se transformado em mananciais de água. O que não passa de uma
miragem poderá ser um lago e não um deserto, lugar onde há vida e abundância, com
ervas e juncos onde antes habitavam chacais como ele próprio. Como Mister Clay fizera a
Monsieur Dupont, aqueles que pilham e se alimentam dos cadáveres também poderiam,
um dia, ser transformados. Tal mudança lograria acontecer caso a profecia pessoal de
Mister Clay se realizasse, fato que, na realidade, não ocorreu.
Por fim, concretamente, apenas a morte se encarrega de transformá-lo, esvaziando-o
da soberba e do poder: os olhos estão parcialmente abertos, [...] pálidos como seixos”
119
(p. 184). Os lábios finos e fechados revelam um sôrriso irônico. O rosto está cinzento, as
mãos esqueléticas. Mal parece haver um corpo dentro do robe. O homem orgulhoso,
temido, odiado, rígido, assemelha-se a uma marionete.
Seguindo em direção oposta à de Mister Clay, Elishama começa a ver a miragem de
sua profecia tornar-se realidade ao encostar no ouvido a rara concha que Povl pediu que
ele entregasse a Virginie. Compreende, então, que não são inúteis os desejos e as
emoções que a vida oferece de formas inesperadas. Mister Clay morrera sem conseguir
apropriar-se de uma história, mas Elishama se tornara dono da sua.
O maravilhoso, que tem destaque no conto “O Mergulhador”, pode ser considerado o
gênero das metamorfoses. Saufe se transformado em dois níveis: o primeiro é
denotativo, configurado por sua transição de construtor de asas a mergulhador e pescador
de pérolas. O segundo nível é conotativo e passa por três estágios. No primeiro, o jovem
sonhador, estudante de teologia e muçulmano crente, com aspirações a voar como os
anjos e como os ssaros, tem frustrado o seu sonho. Tomado pela desilusão e por uma
inquietação que lhe estreita os horizontes físicos e espirituais, ele vaga por um ano como
um mendigo pelas ruas de Xiraz, limbo que constitui o estágio intermediário de sua
119
[…] pale, like pebbles (p. 225).
107
transformação. Na terceira etapa, ao se tornar pescador de pérolas, ele dá o passo final no
sentido da pacificação, sufocados todos os desejos e ilusões.
Especialmente em “A Festa de Babette”, “O Mergulhador”, e “A História Imortal”, o
caminho místico-religioso estabelece, no plano do enredo, uma ponte entre um estado de
coisas e outro, revelando as mudanças pelas quais passam as personagens e suas vozes.
A busca pelo transcendente constitui o meio pelo qual personagens como o general,
Saufe, Elishama e Achille Papin, por exemplo, transitam da desesperança para a
pacificação espiritual, não sem antes atravessar o que poderia ser chamado de a noite
escura da alma. Nesse percurso, eles deixam para trás superficialidades, ilusões,
ambição, vaidade e, às vezes, até a esperança.
Desse modo, em um processo de adaptação por vezes doloroso, a voz simbólico-
religiosa pavimenta o caminho das personagens no processo da cura metafísica,
propiciando um renascimento que recria vozes e personagens em dimensões distintas do
que eram no início das narrativas. Por sua importância nos processos transformacionais
das vozes em conflito, a voz religiosa merece destaque na obra de Karen Blixen. Embora
paradoxal para alguém que se dizia agnóstica, a autora faz uso freqüente de citações
bíblicas e de passagens do Corão, construindo tramas inspiradas em um viés místico-
religioso, seja ele cristão ou não. Porém, não é necessariamente o sentido estritamente
religioso ou devocional que ela buscava expressar, mas antes, o processo de mutação
ensejado pelo anseio do transcendente, seja na forma do autoconhecimento, seja do
questionamento quanto à imortalidade da alma, ou ainda, pelo desejo de atingir, por meio
do caminho artístico, sensorial e estético, planos inacessíveis apenas pela via da
materialidade.
Ao criar personagens que ao final das tramas são outras, múltiplas, desdobradas,
Karen Blixen não descaracteriza a essência das personagens, mas as recria em outro
plano filosófico-relacional, de modo que, mesmo transformadas, não deixam de ser
completamente o que eram, mas mantenham em seu cerne a matriz original da aspiração,
da busca, do inconformismo, do sonho.
São a incompletude e o devir na acepção bakhtiniana, elementos essenciais para a
percepção, a construção e o desenvolvimento dos fluxos de consciência das personagens
na narrativa, tendo como base eventos externos que acabam por modificar suas condições
108
internas, como se pode ver neste trecho de “O Anel”, em que Lovisa reencontra o marido
após sair da floresta, lugar de confronto entre ela e o desconhecido:
Ela estava livre. [...] Uma vez fora do bosque estacou e olhou em torno procurando
a trilha do campo, encontrou-a e começou a andar para casa. O marido ainda não
contornara a orla do bosque. Agora a avistava e acenava alegremente; aproximou-
se rápido e juntou-se a ela. [...] Ela caminhava um passo à frente e pensava: está
tudo acabado. Depois de alguns instantes, ele notou seu silêncio, encostou a seu
lado para fitar-lhe o rosto e perguntou: Qual é o problema? Ela procurou em sua
mente alguma coisa para dizer, até que finalmente disse: Perdi meu anel
120
(p.
197-8).
A partir desse momento, a mudança está consumada, passando seus anseios do
plano do inconsciente para o consciente. Segundo Resende e Ramalho,
Os sentidos a serviço da dominação podem estar presentes nas formas simbólicas
próprias da atividade social particular ou podem se fazer presentes nas
autoconstruções reflexivas, caso a ideologia seja internalizada e naturalizada
pelas pessoas. No entanto, a busca pela auto-identidade, que deve ser criada e
sustentada rotineiramente nas atividades do indivíduo, também pode sinalizar
possibilidade de mudança social (RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 45).
A dominação exercida por Sigismund, por Mister Clay, ou pelo ministro do rei Mirzá
Aghai é, como toda hegemonia, instável. Trata-se de uma permanência relativa, sempre
na iminência de desarticular-se para gerar nova articulação em vista das mudanças sociais
provocadas pelos eventos, que revelam mudanças posturais e comportamentais das
personagens e de suas vozes.
Em “O Anel”, a assimetria na relação conjugal de Sigismund e Lovisa é sinal do
desequilíbrio como reforçador do status de instabilidade. De acordo com Chouliaraki e
Fairclough (1999), “a ão representa um artifício potencial para a superação da relações
assimétricas, desde que esse elemento ativo seja subsidiado por uma reflexividade crítica”
(CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH apud RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 44).
Outra marca indicial de assimetria ao final do conto, reside na ambientação cênica: o
caminho é muito estreito para que os dois caminhem juntos, figurativizando a desarmonia
conjugal. No final, significativamente, é ela quem caminha à frente, sinalizando a mudança
ocorrida, tendo Lovisa se apropriado de sua vida e de seu destino. Mesmo antes do
encontro com o estranho na floresta, sua mente racional se divide entre o orgulho que
120
She was free. […] Once outside the grove she stood still and looked round for the meadow path, found it
and began to walk home. Her husband had not yet rounded the edge of the grove. Now he saw her and
helloed to her gaily; he came up quickly and joined her. […] She walked a step before him and thought: All is
over. After a while he noticed her silence, came up beside her to look at her face and asked, What is the
matter? She searched her mind for something to say, and at last said: I have lost my ring (p. 243).
109
sente do marido, conhecedor de tantas coisas e, ao mesmo tempo, a constatação de sua
imaturidade frente ao amadurecimento de Lovisa:
Sigismund orgulhava-se de seu rebanho; estudara criação de ovinos em
Mecklenburg e Inglaterra e trouxera junto consigo reprodutores Cotswold para
melhorar sua raça dinamarquesa. Conforme caminhavam, explicava a Lise as
grandes possibilidades e dificuldades do projeto. Ela pensava: Como é inteligente,
quantas coisas sabe! e, ao mesmo tempo: Que pessoa mais simplória é, com seu
rebanho! Que bebê! Sou cem anos mais velha que ele
121
(p. 192).
Enquanto a postura de Sigismund é indicial de imobilidade e resistência, a de Lovisa
indica mudança e imprevisibilidade.
Como autora-criadora, Karen Blixen revela sua habilidade descritiva ao caracterizar
eventos e tipos humanos em mutação que compõem variados tecidos narrativos, os quais
se tornam vivos graças às vozes que deles emanam. Para Bakhtin (1982 apud
MACHADO, 1995, p. 151), é o autor-criador a única energia formativa capaz de dar o tom
da personagem e da obra, tomando-se as vozes como múltiplos discursos sociais em
paralelo e também sobrepostos.
A abordagem sociodiscursiva permite que se vinculem discurso e poder, o que nos
contos de Anedotas do Destino evidencia-se nas mudanças nas vozes e posturas das
personagens, em um processo de interação verbal que tanto as une e identifica, como as
separa e diferencia. Segundo Bakhtin, a decodificação do sentido específico da interação
sociodiscursiva se dá pela “[...] compreensão da palavra em seu sentido particular, isto é, a
apreensão da orientação que é conferida à palavra por um contexto e uma situação
precisos, uma orientação no sentido da evolução e não do imobilismo” (BAKHTIN, 2002, p.
15).
O deslocamento geográfico é outro fator gerador de conflitos e transformações nas
vozes e nas personagens de Karen Blixen. Como ocorre em “Tempestades”, “A Festa de
Babette”, “O Mergulhador”, e A História Imortal”, busca a autora realçar não apenas a
capacidade de adaptação à adversidade como componente da vida humana, mas também
como elemento do qual decorrerá a felicidade, impossível de concretizar-se sem perda,
mudança ou sublimação. Trata-se da transformação no caráter das vozes que, deslocadas
de seus topoi de origem, transmutam-se em outras, que se sobrepõem às primeiras.
121
Sigismund prided himself on his sheep; he had studied sheep-breeding in Mecklenburg and England, and
had brought back with him Cotswold rams by which to improve his Danish stock. While they walked he
explained to Lise the great possibilities and difficulties of the plan. She thought: How clever he is, what a lot of
things he knows! And at the same time: What an absurd person he is, with his sheep! What a baby he is! I am
a hundred years older than he (p. 236).
110
No universo literário da autora transitam o adverso transformado em prazer, o
maravilhoso que se torna plausível, o improvável transformado em realidade: “Assim, dia
após dia, Malli se tornava mais Ariel, assim como, dia após dia, Herr Soerensen tornava-se
mais Próspero”
122
(p. 77).
O limbo em que esteve Saufe por um ano, é também vivido por Babette que, por
doze anos, ficou à espera do momento de proferir o seu jantar-discurso, ou de Elishama,
que ao carregar por anos a profecia de Isaías, cumpriu seu destino de provações até vê-la
realizada em sua própria vida.
Em “A História Imortal”, narrativa ambientada na China do século XIX, as temáticas
da onipotência, da solidão e do rancor são exploradas com maestria por Karen Blixen. O
inesperado, mais uma vez, altera o desenrolar da trama, em que outro metatexto
estabelece o desfecho. Novamente são as vozes os fatores determinantes dos embates
que fazem por estabelecer a sublimação dos rancores como meio para a transformação
final.
Trata-se da construção da alteridade em um presente que escapa para o futuro
apenas vislumbrado, como o devir que se antevê momentaneamente, o qual “constitui um
resultado cognoscível do presente” (CLARK; HOLQUIST, 2004, p. 231).
Os desfechos dos contos de Blixen sinalizam mais que transformações. Trata-se da
certeza de que, ao mesmo tempo em que se conta a mesma história, paradoxalmente,
nunca a mesma narrativa é contada, sendo os desfechos portas abertas para outras
possíveis histórias. A propósito disso, afirma Bakhtin:
Não existe a primeira nem a última palavra, e não limites para o contexto
dialógico (este se estende ao passado sem limites e ao futuro sem limites). Nem
os sentidos do passado, isto é, nascidos no diálogo dos séculos passados, podem
jamais ser estáveis (concluídos, acabados de uma vez por todas): eles sempre
irão mudar (renovando-se) no processo de desenvolvimento subseqüente, futuro
do diálogo. Em qualquer momento do desenvolvimento do diálogo existem massas
imensas e ilimitadas de sentidos esquecidos, mas em determinados momentos do
sucessivo desenvolvimento do diálogo, em seu curso, tais sentidos serão
relembrados e reviverão em forma renovada (em novo contexto). Não existe nada
absolutamente morto: cada sentido terá sua festa de renovação (BAKHTIN, 2003,
p. 410, grifo do autor).
A grande mudança proposta nos contos de Karen Blixen se no nível diegético,
conferindo uma qualidade etérea às narrativas. Trata-se da possibilidade da história
122
So day by day Malli grew more Ariel, just as, day by day, Herr Soerensen grew more Prospero (p. 88).
111
desfazer-se quando se torna real, estabelecendo um paradoxo intrínseco à literatura como
processo ficcional.
Isso se evidencia em “Tempestades” e “A História Imortal”, nas quais a característica
de imaterialidade das narrativas as faz impossíveis de serem compradas ou possuídas,
nem de se transformarem em histórias verdadeiras, sob pena de não serem mais histórias
e, nesse caso, não valer a pena serem contadas. É o que diz Saufe a Mira Jama, que
desejava saber a história do jovem que um dia quis voar, tornando-se depois o mais
famoso pescador de pérolas:
O que me aconteceu, [...] depois que deixei Xiraz, não tem história nenhuma [...]
Mas isso o é história alguma. [...] Então, isto não é história alguma. [...] e de
modo a não desencorajar um jovem poeta, embora isto não seja história alguma,
vou lhe contar o que me aconteceu depois que deixei Xiraz
123
(p. 19).
Fato análogo ocorre com Povl, o marinheiro de “A História Imortal”, contratado por
Mister Clay para ser personagem de uma história de modo a torná-la real. Ao final do
conto, instado por Elishama, que até lhe oferece cinco guinéus para que conte a história
na qual tomou parte, obtém como resposta, à semelhança de Saufe:
Que história? [...] Por que chama isso de história? [...] Mas essa história não se
parece nem um pouco com o que aconteceu comigo. [...] Contá-la? [...] A quem eu
a contaria? Quem neste mundo acreditaria, se eu contasse? [...] Eu não a contaria,
[...] nem por cinco guinéus multiplicados por cem
124
(p. 186-7).
Pode-se concluir que os processos de mudança nos contos de Blixen têm suas raízes
em fenômenos e eventos nos quais as vozes narrativas representam instâncias
provisórias, planos instáveis em estado de permanente conflito e transformação,
desequilíbrios em busca de novos equilíbrios:
Toda narrativa é movimento entre dois equilíbrios semelhantes mas não idênticos.
[...] Temos um equilíbrio inicial e um equilíbrio final perfeitamente realistas. [...]
O elemento maravilhoso é a matéria que melhor preenche essa função precisa:
trazer uma modificação da situação precedente, romper o equilíbrio (ou o
desequilíbrio) (TODOROV, 2006, p. 163-4).
É como se cada personagem possuísse não apenas uma única voz do início ao fim,
mas contivesse outras tantas vozes à espera de manifestar-se. Segundo Faraco,
123
What happened to me, [...] after I left Shiraz, makes no story at all. […] But that makes no story. […] So
that makes no story. […] and so as not to discourage a young poet, although it makes no story, I shall tell you
what happened to me after I left Shiraz (p. 16).
124
What story? [...] Why do you call it a story? […] But that story is not in the least like what happened to me.
[…] Tell it? […] To whom would I tell it? Who in the world would believe it if I told it? […] I would not tell it, […]
for a hundred times five guineas (p. 228-9).
112
Como a realidade lingüístico-social é heterogênea, nenhum sujeito absorve uma
voz social, mas sempre muitas vozes. Assim, ele não é entendido como um
ente verbalmente uno, mas como um agitado balaio de vozes sociais e seus
inúmeros encontros e entrechoques. O mundo interior é, então, uma espécie de
microcosmo heteroglótico, constituído a partir da internalização dinâmica e
ininterrupta da heteroglóssia social. Em outros termos, o mundo interior é uma
arena povoada de vozes sociais em suas múltiplas relações de consonâncias e
dissonâncias; e em permanente movimento, que a interação sócio-ideológica é
um contínuo devir (FARACO, 2006, p. 81).
Quanto ao aspecto da constituição dos enredos, vale notar que é o engano, ou o
auto-engano a etapa de provação que pavimenta o caminho de mudança para o estado de
consciência, na direção de um novo reequilíbrio. Esse percurso passa pelo maravilhoso,
ou pelo fantástico, ou ainda, pelo alegórico e o simbólico, sinalizando que não
mudanças fáceis e imediatas no plano da evolução humana, figurativamente representada
pelos enredos, onde habitam personagens e suas vozes. De acordo com Fiorin (2005),
uma mesma personagem carrega muitos discursos, não apenas reveladores de intenções
e de transformações, mas tamm de falas que as ocultam. Levando-se em conta essa
característica de discursos múltiplos e mutáveis, afirma Fiorin quanto ao romance, o que
pode ser aplicado também ao conto:
Os discursos que se opõem e se delimitam no espaço discursivo criado pelo
romance podem ser veiculados por diferentes personagens, pela mesma
personagem que, ao longo do romance, representa dois ou mais discursos
distintos, ou pelo narrador e pelas personagens. Em todos esses casos, no
entanto, o que singulariza o romance é que ele exibe o direito e o avesso do
discurso, enquanto outros discursos sociais o ocultam (FIORIN, 2005, p. 224).
Por exemplo, a fugitiva Babette, que chegou ao povoado da Jutlândia, molhada pela
chuva e trêmula de frio e de medo, recupera gradualmente, ao longo da narrativa, a mulher
segura que fora um dia, graças à sua vontade, às suas decisões, às suas escolhas de
acomodação ou de ruptura, uma voz que espera o instante de se revelar por inteiro.
Em certa medida, o posicionamento ideológico das personagens de Blixen, tal como
ocorre com Babette, suscita uma discussão envolvendo a dialética entre a estrutura
narrativa e a ação das personagens do ponto de vista da liberdade do sujeito. Esse
posicionamento contraria o conceito de Althusser de sujeito assujeitado a uma situação,
impossibilitado, muitas vezes, de transformar seu entorno e, portanto, a si mesmo.
Segundo Resende e Ramalho, a noção de assujeitamento de que fala Althusser
(1985), “é negada, visto que as pessoas não são apenas pré-posicionadas no modo como
113
participam em eventos e interações sociais [...], são também agentes sociais criativos,
capazes de criar e mudar coisas” (RESENDE; RAMALHO, 2006, p. 78).
Na verdade, Babette é a única personagem de Anedotas do Destino que não deixa de
ser o que sempre foi, tendo plena consciência disso e assumindo sua postura
desencadeadora de transformações radicais. Seu poder de adaptação a faz ajustar-se ao
novo modelo cultural e ideológico de modo a sobreviver diante de mudanças inevitáveis.
Apenas quando o jantar francês se torna realidade, e ao exercer sua arte culinária
refinada, ela se torna capaz de recuperar algo mais de sua natureza que jazia vivo dentro
dela, porém em suspenso.
A intertextualidade e o processo transformacional podem ser observados, mais do
que em qualquer outro conto de Anedotas do Destino, em “A Festa de Babette”, no qual o
jantar-discurso configura relação intertextual com a Santa Ceia, por vias de similaridade e
antítese: por oposição, já que na passagem bíblica a última ceia marca a despedida de
Jesus dos apóstolos, enquanto o banquete, ao contrário, significa um início de
congraçamento inédito. Analogamente às palavras de Cristo, que disse na última ceia que
sempre estaria com os apóstolos, no banquete, é a presença do pastor ausente que se
expressa pelas falas dos convivas, os quais repetem trechos de seus sermões,
perpetuando sua existência entre eles. A partir daí, a atmosfera muda do conflito para o
perdão, das brigas para a reconciliação, em uma união verdadeiramente cristã. As frases
devotas, repetidas antes mecanicamente e que representavam apenas um eco da voz do
pastor, destituídas do sentimento do verdadeiro cristianismo, a partir do jantar passam a
representar um encontro na pela conquista dos sentidos físicos: o paladar, a beleza da
mesa, os arranjos, o tilintar das taças, os múltiplos sabores, o prazer da reunião, fazem a
transição para além de uma fé vazia e desprovida de compromisso.
Os doze à mesa, retomando o número de astolos em torno de Jesus, que no caso
do jantar se reúnem em torno da memória do pastor, a ausente décima-terceira figura,
experimentam uma transformação profunda, que é a do entrechoque de dualidades
ambivalentes, da relação dialética e polêmica que se estabelece pelos contrários que se
justapõem: o ascetismo religioso e o congraçamento que louva ao Senhor pela alegria; as
desavenças há tempos escondidas e o perdão que se concedem mutuamente os convivas;
o passado de renúncias e o presente que busca encontrar um sentido maior na existência;
a comida cotidiana, plana e tosca, e o banquete francês de Babette, rico de cores,
114
sabores, e prazeres sinestésicos, elementos externados pelas vozes que transmutam o
banal em evêntico, o sensorial em transcendente.
O jantar-discurso permite que se refaça o percurso dialógico entre seres distanciados
e hostis, propiciando uma reviravolta ideológica capaz de transformar um grupo indistinto
em indivíduos que se colocam de forma única no plano da existência, ascendendo da
platitude cinzenta de um pseudocristianismo para uma real comunhão de almas. Essa
característica do mutável e do indefinido compõe igualmente o conceito de incompletude
tal qual o concebe Bakhtin ao falar sobre intertextualidade. Planos de realidade se cruzam,
em que falam vozes pelo que foi, pelo que é, pelo que poderá ser. Segundo Leyla Perrone-
Moisés:
A primeira condição da intertextualidade é que as obras se em por inacabadas,
isto é, que permitam e peçam para ser prosseguidas. Para Bakhtin, o inacamento
de princípio e a abertura dialógica são sinônimos. A obra acabada é a obra
historicamente liquidada, aquela que mais nada diz ao homem (ao escritor de
hoje), a que nada lhe permite dizer. A obra inacabada, pelo contrário, é a obra
prospectiva, a que avança através do presente e caminha para o futuro. A obra
inacabada é a necessidade que temos duma invenção [...] (Revista
Intertextualidades, 1979, p. 217-8, grifo da autora).
A marca definitiva da transformação das personagens em “A Festa de Babette”
revela-se em um raro instante de transcendência, figurativizada na saída dos convivas da
casa das irmãs, anciãos-crianças novamente felizes por partilharem juntos do banquete da
vida.
Quando enfim o grupo se dispersou a neve cessara. A cidade e as montanhas
exibiam um esplendor branco, sobrenatural, e o céu cintilava com milhares de
estrelas. [...] Os convidados da casa amarela bambeavam em seus pés,
cambaleavam, sentavam-se abruptamente ou caíam adiante sobre os joelhos e as
mãos, ficando cobertos de neve, como se tivessem de fato lavado os pecados e os
deixado brancos como lã, e nesse inocente traje recuperado saltitassem como
cordeirinhos. [...] Foi também um abençoado momento de diversão observar os
velhos irmãos e irmãs, que se levavam tão a sério, naquela espécie de segunda
infância celeste. Tropeçavam e ficavam de pé, seguiam caminhando ou
estacavam, as mãos dadas no corpo e no espírito, por alguns momentos formando
a grande corrente de lanciers beatíficos
125
(p. 56-7).
125
When at last the company broke up it had ceased to snow. The town and the mountains lay in white,
unearthly splendor and the sky was bright with thousands of stars. […] The guests from the yellow house
wavered on their feet, staggered, sat down abruptly or fell forward on their knees and hands and were
covered with snow, as if they had indeed had their sins washed white as wool, and in this regained innocent
attire were gamboling like little lambs. […] it was also a blessed joke to watch old Brothers and Sisters, who
had been taking themselves so seriously, in this kind of celestial second childhood. They stumbled and got
up, walked on or stood still, bodily as well as spiritually hand in hand, at moments performing the great chain
of beatified lanciers (p. 63).
115
Narrativas contidas em outras, personagens complexas portadoras de muitas vozes e
discursos, assim se configuram os vários ambientes enunciativos dos contos de Blixen. E
ainda que muito seja mostrado por essas vozes, bastante fica ainda por revelar, como um
longo novelo de múltiplas pontas que, aos poucos, vai sendo desenrolado por muitas
mãos.
116
Capítulo VI
“A FESTA DE BABETTE”: A CELEBRAÇÃO DA NARRATIVA
O conto “A Festa de Babette” merece destaque especial neste trabalho. Obra-prima
de Karen Blixen/ Isak Dinesen no gênero, é ele especialmente significativo no que se
refere à questão do estudo da voz. Nele estão representadas vozes de diferentes
estatutos, tanto femininas quanto masculinas, envolvidas em embates que se desvelam
por meio de relações polêmicas e contratuais, determinantes do enredo e de seu
desfecho.
Essa narrativa foi publicada pela primeira vez em junho de 1950 na revista feminina
norte-americana Ladies’ Home Journal. Mais tarde, foi traduzido pela autora para o
dinamarquês para ser apresentado como radionovela, integrando, anos depois, o conjunto
de cinco contos que constitui o livro que é o objeto deste trabalho.
As personagens principais do conto, possível intertexto com o fragmento “A cozinha
da Bruxa”, do Fausto, de Goethe, são um pastor, profeta e deão, respeitado em toda a
Noruega, criador de uma seita protestante de vertente fundamentalista e puritana, e suas
duas filhas solteiras, Martine e Philippa, órfãs de e, devotadas ao pai e à sua doutrina.
Com sua morte, elas prosseguem no trabalho de assistência aos habitantes desvalidos do
lugar. A mentalidade ascética e puritana mantém-nas solteiras, fazendo-as abdicar,
quando jovens, dos vários pretendentes atraídos por sua beleza e virtudes.
O conto tem início estando as irmãs já idosas, com a narrativa em flashback
retornando ao ponto em que o pai está ainda vivo e as duas irmãs são jovens e belas. A
cena enunciativa localiza-se em Berlevaag, um distante povoado norueguês. A partir
dessa pequena vila, situada nos confins da Jutlândia, microcosmo aparentemente restrito,
abre-se um universo de complexidade estética, temática e narrativa, pleno de vozes que
se entrecruzam em diversos ambientes enunciativos, conduzindo o fio do enredo a um
final de inesperada profundidade e beleza.
Os atos de renúncia à felicidade pontuam a narrativa e tematizam os eventos que
compõem a trama, sendo as vozes das filhas do pastor representativas da conformação
feminina a seu destino de submissão ao homem.
117
Em nenhum momento do conto, Martine e Philippa recorrem a memórias de tempos
passados; tudo acontece como se as personagens habitassem um permanente aqui e
agora, sem futuro nem passado, vivendo ambas em permanente estado de
presentificação, em que não há espaço para lembranças de tristeza ou de alegria, em uma
aparente e total negação das perdas sofridas
Duas vozes se fazem ouvir em Philippa: uma literal, que é sua bela voz de soprano,
e a outra, a da mulher bonita e submissa, capaz de renunciar a um grande amor e à
carreira de cantora lírica. O narrador onisciente conta sobre a inesperada chegada a
Berlevaag de Achille Papin, um tenor francês em busca de solidão e descanso. Ao ouvir
Phillipa na igreja, ele se encanta com sua beleza e com sua voz, e pede a seu pai licença
para lhe dar aulas de canto.
Papin, esfuziante, comunicativo, cheio de vida, gordo e rosado, bem vestido e
cosmopolita, é a antítese dos homens do lugar, contidos e reticentes. Os contatos durante
as aulas despertam em Achille Papin e Philippa uma paixão da qual ela decide abrir mão
ao se perceber apaixonada, o que a leva a abandonar inesperadamente as aulas de canto.
Seu mestre, desconsolado, logo retorna a Paris ao ver desfazer-se o sonho de burilar sua
pedra preciosa e bruta.
A outra filha do pastor, Martine, é cortejada por um tenente do exército, Lorens
Loewenhielm, oriundo de família nobre do lugar, sobrinho de uma rica seguidora do pastor.
Assim o jovem tenente conhece Martine, por quem se apaixona. Ainda que de forma
discreta, ela corresponde à corte feita pelo militar. Mesmo sem nenhum interesse religioso,
ele começa a freqüentar as reuniões de oração na casa do pastor, esperando pelo
momento de declarar-se à moça, o que acaba por não acontecer.
Com o passar do tempo, Martine e Philippa envelhecem, seguindo em sua existência
espartana e inalterada. Numa noite de temporal, o inesperado determinará os rumos da
narrativa. Nova voz feminina se sobreporá às outras em contraste com as primeiras. Trata-
se da vinda da francesa exilada Babette Hersant que, fugitiva política do episódio
conhecido como Comuna de Paris, ocorrido em 1871, chega à casa das duas senhoras. A
jovem viúva perdera seu marido e filho, executados no curso da revolta. Conseguindo
escapar e portando uma carta do amigo comum, Achille Papin, pede abrigo na casa das
senhoras.
118
Papin suplica na carta para que Martine e Philippa acolham Babette. A voz outrora
altiva da importante chefe de cozinha, deslocada de seu topos original, a França
cosmopolita e culta, torna-se a voz submissa da fugitiva em luta pela sobrevivência. E ela
o faz sem ressentimentos, adaptando-se ao pequeno povoado desprovido de conforto e à
drástica mudança de vida. O único vínculo de Babette com Paris é um bilhete de loteria
que um amigo francês se encarrega de renovar anualmente.
O grupo de fiéis da comunidade religiosa se reúne periodicamente para os cultos
semanais na igreja e, vez por outra, na casa das irmãs, sempre com o intuito de relembrar
as mensagens de e religiosidade deixadas pelo pastor em seus sermões, para cantar,
ler, e interpretar a Bíblia. A voz do pastor, mesmo após sua morte, é permanentemente
recuperada pelas vozes do pequeno grupo de seus seguidores. As mesmas vozes que, de
início, fazem coro à voz do pastor, aos poucos se tornam cada dia mais dissonantes ao
trazer para o presente conflitos não-resolvidos do passado.
As vozes ressentidas do passado, agora freqüentemente trocam insultos, rememoram
fatos, tornando cada vez menos audível a voz religiosa que outrora cantava louvores ao
Senhor.
O mundo aparentemente organizado antes da chegada de Babette, aos poucos
revela-se fragmentado pelas relações inconclusas, pelos sussurros, pelas traições
veladas, pela má-fé subjacente, pela fuga da reconciliação, tudo isso envolto em uma
roupagem falsamente pia de renúncia, de amor ao próximo, em um arremedo de fé.
A figura do pastor morto estabelece paralelo intertextual com o próprio Cristo,
constituindo o grupo de fiéis, por decorrência, o intertexto com as figuras dos apóstolos. A
pseudo-fé que une a comunidade religiosa é somente um tênue fio a ligar seres em estado
de solidão mais do que a conferir-lhes compromisso religioso profundo.
As irmãs Martine e Philippa, ao servirem ao pai em vida e mesmo após sua morte,
estabelecem intertextualidade com o texto bíblico, na passagem em que as irmãs Marta e
Maria buscavam servir e agradar a Jesus, cada qual a seu modo.
A renúncia como temática está presente em todo o desenrolar da narrativa, não
apenas no que se refere à renúncia amorosa das irmãs, mas também relativamente a
Babette, cujo afastamento forçado da vida de Paris e de sua arte de chef-de-cuisine a
conduz ao oposto do que anteriormente viveu. A renúncia à vida amorosa e familiar
estende-se igualmente a Babette, a Achille Papin, e ao agora General Lorens
119
Loewenhielm, apoiando-se em duas razões: alguns abriram mão da felicidade no aqui e no
agora em nome da obediência ou da devoção a uma causa, como é o caso das irmãs e de
Babette; outros, como o tenor e o general, por ambição e vaidade pessoal.
Ainda em relação à temática da renúncia, há aí outro aspecto de intertextualidade que
remete às ordens religiosas contemplativas de indivíduos que se retiram do mundo,
dedicando-se apenas à oração e à caridade, como é o caso específico de Philippa e
Martine. É como se cumprissem o simbolismo contido em seus próprios nomes, escolhidos
para homenagear Martinho Lutero e seu discípulo, Philip Menachthon. Essa submissão
não deixa entrever arrependimento ou angústia, ou mesmo a perda de algo que lhes é
forçosamente tirado. Entretanto, é a partir da inesperada chegada de Babette, que
representa, de per si, o contraponto de vida em relação aos habitantes do lugarejo, que se
operam transformações profundas, de ordem social, ideológica e cultural na vida da
isolada comunidade.
Babette assume seu novo destino, de peito aberto e cabeça erguida, grata pela
oportunidade que lhe é oferecida. Uma nova persona Babette, simples e dedicada, insere-
se naquela vida provinciana e desprovida de prazeres, como se sempre houvera vivido ali,
assumindo de conformidade o lugar da sofisticada Babette parisiense, sem prejuízo,
todavia, de sua dignidade nata. É a partir desse ponto que se torna mais nítido seu poder
de adaptação a um topos inóspito. As irmãs contemplavam caladas, sem conseguir
penetrar, seus momentos privados de recolhimento e reflexão:
E acontecia de Martine ou Philippa falarem com Babette e não obterem resposta e
ficarem se perguntando se ao menos ela ouvira o que haviam dito. Encontravam-
na na cozinha, os cotovelos fincados na mesa e as têmporas nas mãos, perdida
no estudo de um pesado livro negro que secretamente suspeitavam ser um livro
de orações papista. [...] Em momentos como esses percebiam que Babette era
profunda e que no abismo de seu ser havia paixões, havia lembranças e desejos
sobre os quais nada sabiam
126
(p. 37).
Sua descrição pelo narrador onisciente, no capítulo significativamente intitulado
Natureza-morta, nos conta de sua postura e eficiência bem como de seu poder de
adaptação, segundo um processo de gradação que parte da comparação de um animal
126
And it happened when Martine or Philippa spoke to Babette that would get no answer, and would wonder
if she had even heard what they said. They would find her in the kitchen, her elbows on the table and the
temples on her hands, lost in the study of a heavy black book which they secretly suspected to be a popish
prayer-book. […] At such moments they realized that Babette was deep, and that in the soundings of her
being there were passions, there were memories and longings of which they knew nothing at all (p. 38).
120
em fuga até chegar à pessoa inteira que ela sempre fora, momentanemente desfigurada
pelos percalços de suas perdas pessoais e da fuga do país natal:
Babette chegara exaurida e com olhar esgazeado, como um animal sendo caçado,
mas em seu novo ambiente de cordialidade logo adquiriu a aparência de uma
criada confiável e respeitável. Antes, parecera uma mendiga; agora, mostrava-se
uma conquistadora. As feições serenas e o olhar firme e profundo tinham
qualidades magnéticas; sob seus olhos, as coisas se moviam, sem fazer ruído,
para o lugar apropriado
127
(p. 35).
A passagem a seguir é igualmente indicial do poder de conformação da francesa
frente à realidade estrangeira:
Mostraram a Babette como preparar o bacalhau seco e uma sopa de cerveja com
pão; durante a demonstração, o rosto da francesa ficou absolutamente impassível.
Mas em uma semana Babette preparava bacalhau seco e sopa de cerveja com
pão tão bem quanto qualquer um nascido e criado em Berlevaag
128
(p. 35).
Babette, que chegara à casa das irmãs Martine e Philippa na condição de exilada, em
breve sofre uma metamorfose, a qual não é senão externa. Seu poder de ajuste e de
conformação à nova realidade a tornam capaz de enfrentar todas as adversidades.
Diferentemente das outras personagens femininas de Karen Blixen, Babette é uma
mulher madura e senhora de seu destino desde sempre, o que se revela não apenas por
meio de suas falas, mas também por uma voz e um discurso postural e de
comportamento.
O inusitado, a mudar o rumo da narrativa, configura-se na premiação do bilhete de
loteria de Babette, o que a faz suplicar às irmãs que a deixem preparar um verdadeiro
jantar francês para a celebração do centenário de nascimento do pastor, pagando ela
própria as despesas. Após alguma insistência, as irmãs concordam. É durante esta
refeição que se desenrolará a mudança no espírito dos fiéis, outra abertura para o
inesperado.
A chegada de ingredientes exóticos para a comemoração preocupa as irmãs: uma
enorme tartaruga viva, um engradado de codornas, uma grande barra de gelo, e tudo o
mais necessário ao jantar: a toalha, frutas exóticas, os talheres, a louça, os cristais e as
127
Babette had arrived haggard and wild-eyed like a hunted animal, but in her new, friendly surroundings she
soon acquired all the appearance of a respectable and trusted servant. She had appeared to be a beggar;
she turned out to be a conqueror. Her quiet countenance and her steady, deep glance had magnetic qualities;
under her eyes things moved, noiselessly, into their proper places (p. 35).
128
They had distrusted Monsieur Papin’s assertion that Babette could cook. In France, they knew, people ate
frogs. They showed Babette how to prepare a split cod and an ale-and-bread-soup; during the demonstration
the Frenchwoman’s face became absolutely expressionless. But within a week Babette cooked a split cod
and an ale-and-bread-soup as well as anybody born and bred in Berlevaag (p. 36).
121
bebidas. E preocupam-se ainda mais ao saber que Babette servirá vinho aos convidados,
temendo que a comemoração simples que planejaram se transforme em algo que possa
ferir sua estrita moral puritana.
Martine e Philippa, pedem, então, ao grupo de fiéis que se abstenham de comentar
ou apreciar a comida e a bebida que Babette lhes servirá. Ao negar-se o prazer do
verdadeiro sabor das bebidas e dos pratos, participam de um jogo hipócrita que, em nome
do respeito e da austeridade, age pela mentira e pela dissimulação. Cria-se, assim, uma
espécie de nonsense dialogístico, no qual os elogios do general, convidado para a
celebração juntamente com sua tia idosa, são respondidos pelos fiéis com comentários
sem sentido, ocasionando o que se poderia chamar de assimetria semântica, na qual não
se combinam as duas partes do mesmo diálogo. Ainda que estejam apreciando
sinestésica e emocionalmente a refeição, os seguidores do pastor simulam não estar,
mercê do acordo pactuado.
Todavia, à medida que o jantar se desenrola, a animosidade e os atritos são aos
poucos diluídos e apaziguados na sucessão de iguarias trazidas à mesa. O que deveria
ser simplesmente comido e bebido, passa a ser saboreado. O que no princípio buscaram
ignorar, isto é, o prazer de ver, cheirar, tocar e degustar, aos poucos lhes vai cativando os
sentidos e a alma.
Pode-se também definir o jantar como um embate dialógico entre a voz rural
escandinava e a voz francesa de Babette, entre o vilarejo dinamarquês primitivo, puritano
e áspero e a voz refinada da cultura parisiense, a qual se revela por meio da sofisticada
refeição, como se o refinamento tivesse de ser importado para poder existir, ainda que por
um curto período. À rústica sopa de bacalhau seco, sobrepõe-se uma sucessão de pratos
refinados, e a caseira cerveja norueguesa é temporariamente substituída por vinhos de
safras especiais.
A presença da fugitiva francesa constitui no povoado simples o que alio havia. Não
se trata de mera reconstrução, mas de uma ideologia que substitui a anterior, na qual os
signos pré-existentes o rearranjados de modo a estabelecer uma nova realidade
dialógico-discursiva, ensejada pelo jantar-discurso.
Esse conflito intercultural propiciará um novo equilíbrio na narrativa. Babette,
portadora de ideologia e discurso próprios, faz um percurso dialógico complexo de
122
deslocamento de seu centro pessoal e geográfico, adaptando-se ao novo estado de coisas
que lhe é imposto, mas também escolhido e acatado.
O intertexto com a Santa Ceia configura os contornos que o banquete assume
enquanto perdão e reaproximação dos sujeitos por meio da ressignificação do prazer
material que conduz à elevação espiritual. Ao tomar o corpo e beber o sangue de Cristo,
os apóstolos se vêem transformados e comprometidos com sua missão evangelizadora.
Assim também os convivas, ao degustar os pratos e beber dos vinhos, saboreando os
variados gostos e texturas desconhecidos até ali, também vão aos poucos se
transformando e constituindo um grupo simultaneamente uno e múltiplo, que se perdoa, se
reconcilia, se redime.
A disforia estabelecida no início da narrativa é obliterada, no final do conto, por uma
atmosfera de harmonia e união entre os fiéis, caminhando para uma euforização catártica
e dialógica de perdão mútuo, da real aproximação entre os convivas, da cura de
desentendimentos passados, da compreensão da beleza como caminho para o espiritual.
Consciente de seu self, Babette é uma sobrevivente por seus próprios meios. A
totalidade do ser de que fala Henderson, pode ser observada nela graças à sua arte de
gourmet, sendo seu jantar-discurso a representação de sua redenção como indivíduo, a
vitória simlica sobre seu destino, a recuperação de seu status de artista. Ao ser
questionada pelas irmãs sobre as conseqüências de ter gasto no jantar todo o seu prêmio
de loteria, ficando novamente pobre, ela responde:
Pobre?, disse Babette. Sorriu para si mesma ao ouvir isso. Não, nunca vou ser
pobre. Já lhes disse que sou uma grande artista. Uma grande artista, madames,
nunca é pobre. Temos algo, madames, a respeito do qual as outras pessoas não
fazem a menor idéia
129
(p. 61).
No final, as palavras do eu Philippa dialogam com o outro Babette, portadora da arte
e da graça, de um mundo não-terreno mas celestial: “No Paraíso, será a grande artista que
Deus planejou! Ah!, [...] como encantará os anjos[!]”
130
(p. 61). Nesse trecho, Philippa
retoma o discurso de Achille Papin, expresso na carta de apresentação de Babette, ao
referir-se a ela: “No Paraíso, ouvirei sua voz novamente. Lá a senhora cantará, sem
129
Poor? said Babette. She smiled as if for herself. No, I shall never be poor. I told you that I am a great artist.
A great artist, Mesdames, is never poor. We have something, Mesdames, of which other people know nothing
(p. 67-8).
130
In Paradise you will be the great artist that God meant you to be! Ah! she added, the tears streaming down
her cheeks. Ah, how you will enchant the angels[!] (p. 68).
123
medos ou escrúpulos, como Deus quis que cantasse. será a grande artista que Deus
planejou. Ah, como encantará os anjos”
131
(p. 33-4).
O próprio banquete constitui-se em um discurso, portador de léxico (ingredientes) e
sintaxe (o arranjo da mesa, o seqüenciamento na apresentação dos pratos e bebidas). A
voz autônoma de Babette contrapõe ao mundo ascético e vazio de prazeres a rica e
sofisticada culinária francesa. Trata-se da abertura inesperada que deixa entrever um
mundo pluridimensional, totalmente desconhecido da comunidade norueguesa.
Há, ainda, todo um conjunto de vozes anímicas que externam beleza, arte e prazer: o
vinho, as cores, os sons, os sabores, a beleza da mesa e das flores, elementos inseridos
em um processo heteroglóssico de vozes múltiplas que falam pelo jantar-discurso. Mais
do que pela comida e pela bebida, essa voz se exprime pela interação entre os membros
do grupo, faminto de harmonia e de prazer sensorial.
É a incompletude de que fala Bakhtin, e que permite ao futuro adentrar o presente,
representando-se, quase que polifonicamente, por breves instantes, tanto pela voz
religiosa do pastor morto como pela voz artística de Babette. Segundo Irene Machado,
É muito importante entender a vivência como determinação de dado
posicionamento em interação com outros para se ter a dimensão do ato estético
tal como o concebeu Bakhtin. [...] o primeiro momento da atividade estética é a
vivência. Contudo, o ato estético enquanto fenômeno acabado o se constitui
pelos limites do plano vivencial, mas pelo excedente de visão. É fruto das visões
inacabadas. [...] O excedente de visão, que completa a vivência inacabada, é que
se encarrega de criar o acabamento (MACHADO, 2005, p. 142, grifo da autora).
Roman Jakobson, prefaciador da nona edição de Marxismo e Filosofia da
Linguagem, assim se refere ao conceito de incompletude definido por Bakhtin: “Nada lhe
parece acabado; todo problema permanece aberto, sem fornecer a mínima alusão a uma
solução definitiva” (JAKOBSON apud BAKHTIN, 1999, p. 10).
Ao ganhar o prêmio da loteria, Babette contraria a expectativa das irmãs por não
desejar retornar à França, uma vez que lá ninguém a espera e seus mortos jazem
enterrados. A remota península da Jutlândia, seu lar adotivo, o é apenas do ponto de vista
físico. Na verdade, Babette reside no mundo mais etéreo da arte, onde nunca perdas e
a fortuna é permanente.
131
In Paradise I shall hear your voice again. There you will sing, without fear or scruples, as God meant you
to sing. There you will be the great artist that God meant you to be. Ah! how you will enchant the angels (p.
34).
124
A artista, representada pela personagem Babette, ao doar sua arte, na verdade doa-
se a si mesma. Reside aí a grande metáfora eucarística do conto.
125
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao estudar a questão das vozes nas narrativas de Karen Blixen, procurou-se, antes
de tudo, analisar a importância que essas conferem à construção das formações
discursivas, como sustentáculos da trama narrativa e definidoras dos sentidos implícitos e
explícitos que elas buscam revelar ou ocultar.
Um importante objetivo deste trabalho foi o de embasá-lo teoricamente segundo os
pressupostos bakhtinianos, os quais deram novos contornos à importância das vozes em
seu confronto dialógico, vozes que agora assumem um papel mais importante na narrativa,
que antes cabia ao enredo.
É no emprego da voz que se pode aferir a avaliação social. Para Bakhtin, a voz tem
sentido metafórico e não simplesmente acústico ou vocal. A acepção de acústico tem
relação apenas com os conceitos de heteroglóssia ou de polifonia, como representação
analógica do soar múltiplo das vozes no discurso. Cabe à voz, antes de tudo, transportar
sentidos implícitos e explícitos, e não apenas como veículo, mas como entidade autônoma
e portadora de conteúdos semânticos sujeitos a modificações ao longo das tramas.
Assim, nos contos de Karen Blixen, a heteroglóssia desenha arquiteturas narrativas
complexas, nas quais as diferenças entoativas refratam os significados em sucessivos
desdobramentos dos sentidos originais.
É amplo o tema da construção dos sentidos segundo os pressupostos bakhtinianos,
valendo a pena destacar seus aspectos mais relevantes. Um deles envolve a questão dos
embates dialógicos, geradores de processos de transformação e de instabilidade no
desenrolar do enredo. Tanto são mutáveis as vozes como as conseqüências para a trama
causadas por elas, o que faz retomar a questão dos múltiplos significados advindos dos
embates entre elas, quer em articulação dialógica de consonância ou de divergência. Essa
mutabilidade narracional é uma das características peculiares em Karen Blixen. Nada é o
que parece ser, o inesperado está presente em todos os contos, e os desfechos o
imprevisíveis, o constituindo finais propriamente ditos, mas aberturas para outros
possíveis desfechos.
Vale ainda dizer que as vozes, tanto no conto como no romance, organizam e
articulam efeitos de significado além de configurar dialogicamente os conflitos condutores
do fio narrativo. É pelo desvendamento dessas vozes nas formações discursivas, como
126
portadoras das entonações, que se chega ao core da narrativa, no qual foram
assimilados espaço e tempo.
Cinco aspectos foram analisados com o intuito de mostrar a importância da questão
das vozes em algumas de suas marcantes acepções. Ao dar destaque ao conto como
gênero originalmente oral, buscou-se conferir à oralidade o status de apoio e ponte para a
escritura, preservadas as características originais da historicidade, dos aspectos
socioculturais e ideológicos sustentados pelas vozes narrativas.
O primeiro aspecto analisado diz respeito à gênese do conto e às implicações
conferidas pela oralidade na elaboração dos enredos engendrados pela autora. Excluindo
outras possíveis vertentes, buscou-se explorar aspectos dos gêneros maravilhoso e
fantástico, presentes em algumas das narrativas de Anedotas do Destino, nas quais as
nuances entoativas criam diferentes ambientes enunciativos. Neles, os elementos de
estranhamento, de referenciação simbólica, de alegoria, ou de aparente ilogicidade
permitem a abordagem de questões humanas complexas, cuja importância está para além
do enredo.
O segundo ponto abordado foi a questão do embate das vozes femininas e
masculinas, importante tópico temático explorado por Karen Blixen e que mereceu, nesse
trabalho, um amplo capítulo. As definições estatutária e identitária a partir dos gêneros das
vozes estão na gênese dos conflitos propostos. Em verdade, o que se instaura por meio
do choque entre elas, decorrente das relações polêmicas e contratuais presentes nas
tramas, sobrepõe-se à questão do gênero. De fato, os conflitos estão imbricados no fio
narrativo, estabelecendo uma relação de dualidade por oposição e semelhança que as
vozes buscam externar. Trata-se aqui também de avaliar as conseqüências dos
posicionamentos masculino e feminino frente a questões sociais e de estatutos
hierárquicos e identitários, representados por elementos de resistência e ruptura, de crítica
e de apoiamento, revelados ou ocultados pelas formações discursivas.
O terceiro ponto consistiu na análise das vozes simbólicas por meio das quais se
procurou levantar o que de modo mais agudo permeia os contos da autora com base nas
teorias de Jung e de seus seguidores, que as vozes em Karen Blixen são
eminentemente simbólicas, quer por processos ligados à mitologia, aos antigos contos de
tradição oral islandeses e escandinavos quer pelos aspectos vinculados à religião e às
crenças míticas.
127
O freqüente viés simbólico-religioso torna-se mais evidente em “A Festa de Babette”,
“O Mergulhador” e “A História Imortal”, encaminhando as transformações no âmbito
espiritual e da consciência, com reflexos importantes nos desdobramentos dos enredos.
Essa contínua disposição para o religioso como caminho de redenção e para a fé como via
de superação dos conflitos constitui elementos que são, ao mesmo tempo, enformadores e
organizadores de discursos que aspiram ao estético imaterial e transcendente.
O quarto aspecto, ligado ao estudo da voz autobiográfica, teve o intuito de destacar as
implicações da memória no constructo narrativo, entendida como reverberação
histórico-social, mais do que a retomada de aspectos da vida pessoal da autora que se
refletem nas personagens, plano sobre o qual se assentam conflitos pessoais e do âmbito
da convivência social. Todavia, em se tratando de uma escritora cujas narrativas ensejam,
por meio da análise das vozes e dos conflitos diegéticos, possíveis relações de
semelhança entre autor e personagens, pode-se concluir pela ocorrência da chamada
consciência da consciência, expressão usada por Bakhtin (2003) para definir o autor-
criador.
A visão exotópica do autor permite que algum material pessoal seja recuperado e/ou
processado e reaproveitado, não necessariamente de forma sentimental e memorialística,
mas como a criação de uma espécie de duplo, o qual mantém certo grau de autonomia em
relação à personagem original. Os dados pessoais eventualmente recuperados não têm
propósito confessional; apresentam, antes, uma função crítica ou de exposição de uma
dada situação sociocultural e ideológica expressada por vozes enraizadas na história, para
usar uma expressão de Cristovão Tezza (2005, p. 215).
Outro ponto a ser observado nos contos refere-se a um processo de refração da
memória por meio do qual as personagens conservam sempre uma ampla liberdade, não
se configurando, portanto, como meros reflexos autorais.
No quinto capítulo, a idéia foi a de explorar o conceito de incompletude, de seres e de
eventos em processo de transformação, característica que marca indelevelmente a obra
de Blixen, sendo os finais dos contos portas que não se fecham em definitivo, tendo sido
resolvidos os embates propostos. Ao contrário, são aberturas para o devir, para a
retomada do dito e também para o não-dito, para aquilo que subliminarmente foi, para o
que poderia ser, e para o que ainda eventualmente será.
128
São as dissonâncias e os conflitos, mais do que o prazer da recompensa na
felicidade, os elementos que engendram as relações dialógicas e intertextuais em Karen
Blixen, relações essas apoiadas sobre um mosaico de vozes que constroem microcosmos
narrativos em busca da harmonia utópica, na qual bem e mal coexistem, e onde o conforto
espiritual e a esperança revelam-se, o mais das vezes, como horizontes desejáveis,
embora inatingíveis. Essa utopia, porém, se realiza em alguns momentos, interstícios
breves e inesperados, como a reafirmar que o utópico pode ser às vezes possível, mesmo
que não permanente.
O efêmero e o intangível das narrativas da autora são representados nas tramas
pelas buscas, por perdas, pelos breves encontros, pelo consolo proporcionado pela beleza
e pela arte. Sobre essa temática assentam-se os conflitos, menos de caráter pessoal, e
mais de viés ontológico, nos quais os embates pessoais são pano de fundo para as
grandes questões humanas.
Neste capítulo buscou-se dar destaque à talvez principal característica de Karen
Blixen como contista: seu modo de imprimir um caráter de instabilidade às vozes e, por
decorrência, às personagens no transcorrer das narrativas. Vale notar, todavia, que se
trata de uma instabilidade em busca de equilíbrio e inteireza, como um devir que se vai
realizando e reatualizando gradualmente. Suas personagens não possuem vozes estáveis
ou acabadas, mas de modo sutil, o elas mutantes à medida do desenrolar das tramas.
Observa-se também, em Karen Blixen, uma disposição para a redenção/
transformação das personagens, revelada por processos de adaptação, de resistência ou
de ruptura do status quo, o que se evidencia nas mudanças de entonação das vozes, nos
conteúdos que elas expressam, por reviravoltas no enredo, e por desfechos inesperados.
Essa marca de incompletude de que fala Bakhtin (2003), é característica não apenas de
uma concepção estética, mas constitui um produto da visão social do homem, como
indivíduo e como grupo, em processo de mudança no decorrer da história.
O espaço para a redenção configura uma segunda chance, uma abertura para o
inusitado, uma nova perspectiva dialógico-interacional, um novo colocar-se no mundo por
parte de personagens à procura de si mesmas e de seus destinos. Ao encontrar o que
buscavam, essas já o são mais as mesmas, seres em constante processo de
transformação, o qual não visa ao estável imóvel, mas é revelador de um antes e de um
depois, desvelados por relações movediças de seres em permanente conflito. Trata-se, na
129
verdade, de personagens à procura de uma consciência ou de um caminho transcendente
que as situe como entidades autônomas, sendo o autoconhecimento a ponte para a
almejada utopia.
O sexto capítulo foi dedicado à obra-prima de Blixen, o conto “A Festa de Babette”.
Nele, a autora consti sua mais acabada personagem, Babette, ela própria uma
personagem-discurso, cuja e entrada em cena faz salientar, de modo único, os embates
manifestados pelas vozes, catalizando a revelação dos conflitos latentes que, a partir daí,
vêm à luz.
Ao preparar seu jantar-discurso, Babette suscita a grande transformação das demais
personagens, fazendo emergir nela própria a voz adormecida: a da artista que permite que
indivíduos presos a um cotidiano limitado vislumbrem o transcendente. Ao proferir seu
discurso de arte, ela realiza, por certo período, a utopia, personagem cuja voz reverbera
em múltiplos ecos, percorrendo seu próprio caminho e apontando outros possíveis.
Por sua complexidade, Babette representa a voz que dá acabamento às outras vozes
pela revelação de planos diegéticos inesperados. Aqueles que acreditavam ser a pobreza
condição de elevação a Deus percebem que a abundância material, a beleza, o sabor e o
refinamento não são incompatíveis com a espiritualidade, estabelendo-se uma relação
interacional com base em ideologias e valores culturais distintos. Trata-se do
entrecruzamento de visões de mundo e verdades das personagens de que fala Bakhtin
(2005, p. 72).
Karen Blixen não faz uma literatura de entretenimento propriamente dita. A aparência
leve de suas temáticas revela, apenas, o plano narrativo de superfície. Na realidade, seus
temas navegam por dicotomias socioculturais, estéticas e de conteúdo filosófico e
ideológico complexos. Neles se pode observar tanto a visão do outro como a visão do eu,
espelho e reflexo da alteridade material e corpórea, mas também espiritual. Todas as
narrativas apresentam, em algum momento, essa visão da alteridade dialógica profunda
do eu que se diferencia mas, igualmente, se completa no outro.
Os contos de Blixen estabelecem, pois, uma dialética de múltiplos dualismos
aparentemente opostos, oxímoros que confluem para se tornarem unos: o sagrado e o
profano, o carnal e o espiritual, o imediato e o transcendente, a renúncia e a escolha, o
ascetismo e o prazer, a arte e o cotidiano, a hipocrisia e a verdade, o pecado e o perdão,
os cismas e a reconciliação, a morte e a ressurreição, o sacrifício e a sublimação, os erros
130
humanos e a redenção, o sonho e a realidade. As aparências e inferências iniciais nos
contos são contrariadas durante as narrativas, mas especialmente, ao final, por desfechos
inusitados.
Karen Blixen/ Isak Dinesen não é apenas uma escritora dinamarquesa que
escreveu a maior parte de sua obra em inglês. Embora seu enraizamento original seja
dinamarquês, trata-se de uma contista cuja literatura pode ser internacionalmente
apreciada que não está presa a esta ou àquela cultura especificamente. Sua temática é
universal e atemporal. Seus grandes temas dizem respeito ao homem como ser em
processo.
Especialmente, observa-se na obra da autora um multicuturalismo eclético que
aponta para questões relevantes que emergiram a partir do final do século XIX, tornando-
se mais evidentes no decorrer do século XX: as relações de poder, a questão da
submissão feminina, as inter-relações e os limites dos mundos masculino e feminino, a
diversidade cultural e de costumes, a própria ideologia colonial imperialista, para citar
apenas algumas. Seus textos são duplamente afetados: primeiro, por sua condição de
mulher e de autora dinamarquesa que escrevia em inglês sob um pseudônimo masculino,
inserida em uma tradição literária essencialmente androcêntrica; segundo, pelo fato de ser
uma européia que viveu por muitos anos na África, obtendo de suas experiências uma
visão crítica do processo colonialista e dos temas do universo feminino.
Segundo Susan Aiken (1990), Karen Blixen antecipou, de forma marcante, muitos dos
insights das mais radicais teorias literárias contemporâneas, particularmente aquelas
ligadas à crítica feminista francesa. O lugar de destaque que a escritora deve ocupar no
cenário literário internacional, pela qualidade de seu trabalho, ainda está para ser
alcançado.
A riqueza artística de sua obra deixa muitas portas abertas para outras análises,
como a questão do estudo das personagens e de suas relações com o poder, as questões
relativas à identidade, à alteridade e à memória; a construção e os percursos dos sentidos;
a questão da intertextualidade e da intradiscursividade; a arquitetura narrativa e as
questões ideológicas; a relação entre discurso e texto e seus reflexos do ponto de vista
estilístico; as formações discursivas e a textualização quanto à análise do discurso; enfim,
são muitas as possibilidades de investigação e pesquisa no que concerne à obra da
autora, tanto em seus aspectos especificamente lingüísticos como literários.
131
Seus enredos, ainda que tenham como locus narrativo os pequenos povoados, não
constituem, intrinsecamente, desenvolvimentos de temas paroquiais. A partir de um
microcosmo circunscrito a determinado cronotopo, sua temática se abre para a
universalização, para a alma humana em trânsito para a ruptura, seja por processos de
resistência, de enfrentamento, ou de adaptação. Seu horizonte literário é o próprio destino
humano tal qual se apresenta e, ao mesmo tempo, aquele que se deseja alcançar.
O escopo deste estudo foi o de tentar ouvir essas vozes e, por conseqüência,
perceber e analisar alguns dos possíveis sentidos por elas revelados.
De volta de Paris, em 1962, Karen retornou à Dinamarca pela última vez. Em um
jantar em homenagem a um amigo, em 26 de julho, menos de dois meses antes de sua
morte, ela proferiu um pequeno discurso em francês. Ao final, concluiu: Il faut dans ce bas
monde aimer beaucoup de choses pour savoir après tout, ce qu’on aime le mieux
132
(BLIXEN apud THURMAN, 1982, p. 438).
Com o aparelho digestivo arruinado pelos tratamentos para a cura da sífilis, Karen
Blixen sofreu de dores intensas a maior parte de sua vida. Durante a produção do conto “A
Festa de Babette”, seus sintomas se intensificaram. Ciente de que sua morte estava
próxima e, irônico como possa parecer, ditou sua história sobre comida e espiritualidade
enquanto, literalmente, morria de fome. Como Babette, ela rendeu seu último sacrifício
oferecendo-nos um banquete de arte e transmutando a beleza em graça.
132
One must, in this lower world, love many things to know finally what one loves the best. / Precisamos,
neste pobre mundo, amar muitas coisas para saber, finalmente, o que amamos mais. (Tradução nossa.)
132
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