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A voz do general, ao estabelecer o diálogo entre um eu e um outro de naturezas
diversas, exprime a nova realidade, a transformação ideológica que se instaurou a partir
do jantar francês, e não apenas nele, mas nos demais membros da comunidade.
Em sua fala de despedida de Martine, trinta anos antes, a visão do então jovem
tenente era de que “neste mundo há coisas impossíveis” (p. 28). Três décadas depois, já
mais maduro, o general se sente tocado emocionalmente pelo jantar-discurso de Babette,
reconhecendo, a partir daí, que “[...] neste mundo tudo é possível” (p.56), o que instaura a
oposição entre sua visão de jovem ambicioso e sua posição atual de homem maduro, de
modo a unir novamente as pontas cortadas do mesmo fio.
O general finalmente reconhece que o sacrifício verdadeiro da renúncia é um bem
tanto quanto as escolhas que fez. Ele, Achille Papin, as filhas do pastor, Babette, todos
abriram mão do amor, da família, de um certo modo de vida como expressão da felicidade
terrena e reconhecem, finalmente, que se não apreciarem a alegria passageira e mundana
pelo que ela realmente é, não terão feito sacrifício algum, e os atos de renúncia não terão
valido a pena, pois não vieram acompanhados da consciência de que fala Althusser:
O indivíduo em questão conduz-se desta ou daquela maneira, adota este ou
aquele comportamento prático e, o que é mais, participa em certas práticas
reguladas, que são as do aparelho ideológico de que dependem as idéias que
enquanto sujeito escolheu livremente, conscientemente. [...] Em todo este
esquema verificamos portanto que a representação ideológica da ideologia é
obrigada a reconhecer que todo sujeito, dotado de uma consciência e crendo nas
idéias que a sua consciência lhe inspira e que aceita livremente, deve agir
segundo as suas idéias, deve portanto inscrever nos atos da sua prática material
as suas próprias idéias de sujeito livre. Se não o faz, as coisas não estão bem
(ALTHUSSER, 1970, p. 85-7, grifo do autor).
Em seu pronunciamento, o general contraria ainda a fala do jovem militar que ele um
dia fora, ao partir de Berlevaag, abrindo mão de seu sonho romântico. Ao fim da ceia, ao
despedir-se de Martine, ele lhe diz:
Tenho estado com você todos os dias de minha vida. Sabe, não sabe, que tem
sido assim? E, prosseguiu ele, estarei com você por todos os dias que ainda me
restarem. Todas as noites me sentarei, se não em carne e osso, que nada
significam, em espírito, que é tudo, para jantarmos juntos, como esta noite. Pois
esta noite descobri, querida irmã, que neste mundo tudo é possível
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(p. 56).
Já Achille Papin, anos depois de sua partida da curta visita que fizera à Noruega, na
carta que escreve às irmãs pedindo-lhes que acolham a amiga Babette, faz um balanço de
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I have been with you every day of my life. You know, do you not, that it has been so? And, he continued, I
shall be with you every day that is left to me. Every evening I shall sit down, if not in the flesh, which means
nothing, in spirit, which is all, to dine with you, just like tonight. For tonight I have learned, dear sister, that in
this world anything is possible (p. 62).