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Por fim, resta destacarmos desse trecho mais uma informação aparentemente
descartável que é sinalizada pelo enunciador e pelo narrador a seus interlocutores, a
qual diz respeito a que o filho mais novo tem “oito anos” e que, portanto, é bem mais
jovem que a filha. Por enquanto, fiquemos com a interpretação mais perceptível aos
nossos olhos de que o pseudo-sobrinho tenta apenas bajular essa criança.
Após ter conseguido o que realmente desejava com a sua conveniente
amabilidade, ou mais especificamente, após ter se tornado gerente de negócios da
firma do rico empresário, ter conseguido vestimentas decentes e ter conseguido
conquistar Aline para com ela casar-se e, conseqüentemente, conquistar
“oficialmente” o cargo de diretor-executivo da empresa — ou seja, após ter
conquistado não uma vida digna, mas sim uma vida luxuosa —, o rapaz passa a
enunciar seus dizeres da formação discursiva da contrição, com o fim de garantir,
definitivamente, seus objetivos:
Uma noite ele pede para falar com o futuro sogro. Tem algo
reservado a lhe falar. Retiram-se para a biblioteca; tão logo o empresário
fecha a porta, o rapaz, num impulso, ajoelha-se e beija-lhe as mãos. Que é
isso, diz o homem, surpreso e comovido, mas o jovem, em prantos, não
consegue sequer lhe responder. Por fim acalma-se; e diz então que está
grato, muito grato, mas não pelas razões que o empresário imagina; por
outras, bem diferentes. Conta, então, que, deixando o colégio,
vagabundeou muito tempo pelo país, dormindo em barracas e em casas
abandonadas, até que se juntou a um bando de marginais. Juntos,
conceberam o plano de seqüestrar o empresário, pedindo por ele um
grande resgate. Encarregado dessa missão, ele estava, a princípio,
firmemente determinado a cumpri-la. Não pelo dinheiro; também pelo
dinheiro; mas principalmente porque acreditava estar fazendo justiça.
Estudou cuidadosamente todos os detalhes da operação...
Mas o carinho com que foi recebido, o clima que encontrou na casa,
de genuíno amor familiar; e mais, o dinamismo, a inteligência, a bondade
do empresário (a contrastar com a errônea idéia que fazia dos homens de
negócios), tudo isso fez com que mudasse de idéia. Renunciando à
violência, ele agora quer esquecer o passado e começar vida nova.
Percebi, diz, que vivia num mundo de fantasias exaltadas, num mundo de
ilusões perigosas; menos mal que recuei a tempo, não me tornando um
criminoso. Tudo o que quero agora é construir um lar cheio de amor e de
conforto para minha esposa e meus filhos. Esse bom propósito devo-o ao
senhor. A lição de vida que aqui recebi não poderei esquecer, e por ela lhe
serei grato para todo o sempre (SCLIAR, 2003, p. 31-32).