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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
Fernanda Isabel Bitazi
A (des)contrução pela ironia: vozes veladas e desveladas
nas narrativas curtas de Moacyr Scliar
São Paulo
2007
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FERNANDA ISABEL BITAZI
A (DES)CONSTRUÇÃO PELA IRONIA: VOZES VELADAS E DESVELADAS
NAS NARRATIVAS CURTAS DE MOACYR SCLIAR
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como requisito
parcial à obtenção do título de Mestre em
Letras.
Orientadora: Profa. Dra. Aurora Gedra Ruiz Alvarez
São Paulo
2007
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B624d Bitazi, Fernanda Isabel
A (des)contrução pela ironia: vozes veladas e desveladas
nas narrativas curtas de Moacyr Scliar / Fernanda Isabel Bitazi.
- - São Paulo, 2007.
165 p ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade
Presbiteriana Mackenzie, 2007.
Orientação: Prof ª Drª Aurora Gedra Ruiz Alvarez.
Bibliografia: p.: 154-158
1. Ironia (Lingüística). 2. Hierarquia enunciativa de vozes.
3. Tensão entre o dito e o não dito. 4. Argumentação indireta.
I. Título.
CDD: 410
FERNANDA ISABEL BITAZI
A (DES)CONSTRUÇÃO PELA IRONIA: VOZES VELADAS E DESVELADAS
NAS NARRATIVAS CURTAS DE MOACYR SCLIAR
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como requisito
parcial à obtenção do título de Mestre em
Letras.
Aprovada em 26 de fevereiro de 2008.
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________________
Profa. Dra. Aurora Gedra Ruiz Alvarez
Universidade Presbiteriana Mackenzie
___________________________________________________________________
Profa. Dra. Maria Thereza Martinho Zambonim
Universidade Presbiteriana Mackenzie
___________________________________________________________________
Profa. Dra. Norma Discini Campos
Universidade de São Paulo
À Aurora, um exemplo de dedicação e
de persistência e, sobretudo, um
exemplo de amor ao conhecimento; e
a meus pais, por estarem comigo em
todos os momentos.
AGRADECIMENTOS
Ao Mackpesquisa, pelo incentivo financeiro, sem o qual, seria difícil a divulgação de
nossos trabalhos acadêmicos em outras instituições de ensino.
À Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, pela concessão do Bolsa
Mestrado, incentivo financeiro este imprescindível para que o sonho de cursarmos o
Mestrado fosse de fato realizado.
A todos os docentes do curso de Mestrado em Letras da Universidade Presbiteriana
Mackenzie, por contribuir para a nossa formação intelectual.
A todos os demais alunos e, portanto, amigos que nos acompanharam nesses
dois anos de Mestrado, contribuindo não somente com seus conhecimentos, mas,
sobretudo, com seu afeto e incentivo.
[...] Bastava-me o ato de escrever. Colocar no
pergaminho letra após letra, palavra após palavra,
era algo que me deliciava. Não era só um texto que
eu estava produzindo; era beleza, a beleza que
resulta da ordem, da harmonia. Eu descobria que
uma letra atrai outra, que uma palavra atrai outra,
essa afinidade organizando não apenas o texto,
como a vida e o universo. O que eu via, no
pergaminho, quando terminava o trabalho, era um
mapa, como os mapas celestes que indicavam a
posição das estrelas e dos planetas, posição essa
que não resulta do acaso, mas da composição de
misteriosas forças, as mesmas que, em escala
menor, guiavam minha mão quando ela deixava
seus sinais sobre o pergaminho (Moacyr Scliar, A
mulher que escreveu a Bíblia).
RESUMO
Visto a ironia ser uma estratégia lingüístico-discursiva que tem por fim desvelar a
contradição dos seres e das situações por elas vividas e, por conseguinte, revelar
uma argumentação indireta do enunciador frente a essas contradições, o presente
trabalho tem por objetivo verificar o funcionamento e a função dessa estratégia em
algumas das narrativas curtas de Moacyr Scliar, ou mais precisamente, o modo
como o enunciador de cada um de seus textos irônicos estrutura peculiarmente os
aspectos constitutivos da ironia a fim de questionar tacitamente a reificação das
relações humanas levada a cabo pela sociedade capitalista contemporânea. Nessa
organização estrutural, ressaltamos a importância desse questionamento indireto
que o enunciador nos sinaliza a partir do embate que ele promove entre o seu ponto
de vista ideológico e a visão de mundo das personagens e do narrador. Tal
importância reside em que desse confronto é que inferimos os valores que o
desvelados e, por extensão, destronados sorrateiramente por esse enunciador, fato
este que acaba por fazer os enunciatários refletirem mais sobre o porquê tais valores
estão sendo postos em xeque.
Palavras-chave: Hierarquia enunciativa de vozes. Tensão entre o dito e o não dito.
Argumentação indireta.
Abstract
Seeing that irony is a linguistic-discursive strategy aimed at unveiling the human
being and his experience’s contradictions, and, therefore, revealing an indirect
argumentation from the enunciator toward these contradictions, the present
dissertation intends to verify the process and function of this strategy in some short
narratives by Moacyr Scliar. In other words, our purpose is to understand how the
enunciator from each of Scliar’s ironic texts, in his own peculiar way, structures the
constitutive aspects of irony, in order to tacitly question the reification of the human
relations, carried out by the contemporary capitalist society. In this structural
organization it is noteworthy that the enunciator’s indirect questioning rises from the
confrontation it promotes among his ideological point-of-view, the character’s and the
narrator’s worldview. This confrontation allows the inference of the unveiled values
that are, as a result, sneakily dethroned by the enunciator, which makes the
enunciatee have a deeper reflection on the reason why these values are being
questioned.
Keywords: Enunciative voices hierarchy. Tension between the said and the non-said
words. Indirect argument.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................... 10
2 IRONIA: UMA QUESTÃO DE HIERARQUIA DE VOZES ............................ 14
3 O ARDILOSO JOGO DUPLO DA IRONIA ................................................... 92
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................ 147
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................... 154
ANEXOS ...................................................................................................... 159
10
1. Introdução
Na introdução de seu livro Elementos de análise do discurso (2005, p. 9-11),
Fiorin ressalta a importância de estudarmos um texto, buscando depreender a
gramática do discurso que lhe é subjacente, pois é dessa forma que, nós, leitores,
podemos inferir, de modo mais adequado, quais são os seus possíveis sentidos.
Portanto, para conseguirmos isso, não basta apenas utilizarmos a nossa capacidade
intuitiva: é preciso ultrapassarmos essa capacidade, tornando “explícitos [os]
mecanismos implícitos de estruturação e de interpretação de textos” (ibidem, p. 10).
É a explicitação desses mecanismos que, ainda conforme as considerações de
Fiorin (p. 10), podemos, então, nos transformar em “bons leitores”.
Essas ponderações iniciais são suficientes para que comecemos a esboçar
o objetivo deste nosso trabalho, que é o de verificar o funcionamento e a função da
ironia nas narrativas curtas de Moacyr Scliar. Segundo Beth Brait (1996, p. 16), a
ironia é uma “categoria estruturadora de texto, cuja forma de construção denuncia
um ponto de vista, uma argumentação indireta, que conta com a perspicácia do
destinatário para concretizar-se como significação”. Articulando essa citação com as
mencionadas ponderações teóricas, podemos deduzir que a ironia é um dentre os
vários mecanismos que estrutura a gramática discursiva de qualquer texto, literário
ou não. No caso específico dos textos literários, como uma de suas funções é a de
revelar-nos o compromisso do escritor com a forma (PERRONE-MOISÉS, 1990, p.
106), isto é, o seu modo de reorganizar o real por meio de expedientes verbais,
muitas vezes louquíssimos” (BARTHES, 1978, p. 23), então, podemos agora passar
do esboço para a especificação do objetivo de nosso trabalho, que será, pois,
estudar como os enunciadores de duas narrativas irônicas de Moacyr Scliar
11
organizam determinados elementos discursivos e lingüísticos para instaurar a tensão
irônica entre o dito e o não dito e, por conseguinte, para fazer-nos inferir a tácita
crítica desses nossos interlocutores acerca da intolerância e da dissimulação
levadas a cabo pela sociedade contemporânea. A propósito da argumentação
indireta dos enunciadores, é importante lembrarmos que esse ponto de vista irônico
é por nós inferido não apenas a partir dos mecanismos discursivos e lingüísticos
geradores da ironia, mas também a partir de seu contexto de produção mais
imediato que diz respeito às condutas de reificação praticadas pela sociedade
contemporânea.
Portanto, a significação irônica ocorrerá de fato, se nos posicionarmos
como destinadores perspicazes dessa significação, ou melhor, se compreendermos
os efeitos de sentido do discurso irônico e as funções desses efeitos como produtos
de uma abordagem tanto interna, quanto externa dos textos, uma vez que é possível
estudá-los sob dois pontos de vista complementares: um deles se refere à análise
dos mecanismos sintáticos e semânticos responsáveis pela produção de sentidos, e
o outro concerne a tal produção de sentidos como decorrência de determinadas
condicionantes históricas e de determinadas relações dialógicas de um texto com
outros (FIORIN, 2005, p. 10).
Todas essas questões anteriormente elencadas por s sobre a ironia são
abordadas nos dois capítulos que compõem esse trabalho. Contudo, cada um
desses capítulos trata de assuntos mais específicos acerca desse fenômeno
discursivo. Assim sendo, no capítulo “Ironia: uma questão de hierarquia de vozes”,
nos concentramos em fazer um levantamento das principais peculiaridades da ironia
dentre elas, a tensão entre o dito e o não dito, bem como a importância da
hierarquia polifônica de vozes para a instituição dessa tensão irônica, hierarquia esta
12
na qual narrador, enunciador, narratário e enunciatário correspondem a
posicionamentos discursivos distintos , não deixando, claro está, de analisar o
funcionamento dessas peculiaridades em um dos contos de Moacyr Scliar, a saber
“Um mentiroso, aquele velho”. Para tratar de todos esses aspectos embasadores da
ironia, valemo-nos, principalmente, das considerações teóricas de Beth Brait
presentes em sua obra Ironia em perspectiva polifônica (1996), e para discutir sobre
a hierarquia polifônica de vozes, recorremos, sobretudo, às ponderações de Fiorin
expostas nos livros Elementos de análise do discurso (2005) e Astúcias da
enunciação (2001), às de Orlandi explanadas em suas obras Análise de discurso:
princípios e procedimentos (2003) e Discurso e leitura (1996b), bem como à clássica
distinção que Wayne Booth fez entre autor implícito, autor e narrador em Retórica da
ficção (1980).
no capítulo “O ardiloso jogo duplo da ironia”, damos continuidade à
discussão sobre a tensão irônica e sobre a hierarquia polifônica de vozes, porém, tal
discussão é associada mais especificamente à relação de subversão que o conto “O
tio pródigo” estabelece com a parábola bíblica do filho pródigo, relação esta que é
estabelecida pelo enunciador para que ele possa ironizar a conveniência do ato de
dissimular o amor e o carinho para a obtenção de um determinado objetivo. Nesse
capítulo, também discutimos sobre o fato do enunciador de cada um dos contos
analisados instaurar a ambigüidade irônica com o objetivo de fazer o enunciatário
fruí-la como vítima ou como parceiro desse tácito ato crítico. Aliás, como dissemos
que cada uma das narrativas possui um enunciador, então também tecemos
algumas considerações sobre o fato de que, apesar dos enunciadores de diferentes
textos irônicos terem em comum a imagem de um enunciador cuja voz é a de um
questionador discreto, cada um deles possui uma identidade específica,
13
dependendo da finalidade, isto é, do aspecto da realidade que cada um almeja
reelaborar criticamente pelo viés irônico.
Nas considerações finais, retomamos e comentamos, resumidamente, todas
as questões sobre a ironia abordadas detalhadamente durante todo o nosso
trabalho, finalizando tais considerações com a idéia de que o compromisso de
Moacyr Scliar com a forma reside em como os elementos constitutivos da ironia
foram singularmente instaurados, em cada um dos textos analisados, por meio de
determinadas escolhas lingüístico-discursivas.
Para finalizar, desejamos manifestar que a nossa escolha pelas narrativas
curtas de Moacyr Scliar para estudarmos o funcionamento da ironia tanto interna,
quanto externamente, justifica-se por muitos desses textos exporem aos nossos
olhos, com muita sutileza, mas, ao mesmo tempo, com muita argúcia, as
contradições da sociedade capitalista contemporânea, cujo aparente respeito em
relação ao outro acaba por ser destruído pelo olhar ardiloso e sorrateiro do
enunciador. Desse modo, é inferindo a maneira como esse enunciador lança esse
seu olhar percuciente a essa realidade, que também nos tornamos observadores
mais atentos ou, para retomar a expressão de Fiorin, transformamo-nos em “bons
leitores” desse fenômeno discursivo que é a ironia, bem como da realidade em que
estamos inseridos.
14
2. Ironia: uma questão de hierarquia de vozes
Eu quisera ver o mundo
(Drummond)
Eu quisera ver o mundo
como o vê Sérgio Bernardo:
ver, no mundo, os muitos signos
que vigiam sob as coisas.
Antes de mergulharmos propriamente no cerne deste trabalho, que versará
sobre a ironia em duas das narrativas curtas de Moacyr Scliar “Um mentiroso,
aquele velho” e “O tio pródigo” —, é importante retomarmos algumas questões
acerca da função da literatura e conhecermos, ainda que de modo sumário, certas
constantes temáticas presentes na obra do escritor gaúcho, sobretudo em seus
contos. Esse nosso procedimento tem por objetivo tornar mais compreensível o uso
da ironia como estratégia de estruturação e, principalmente, como estratégia de
crítica a uma determinada realidade social, bem como ampliar algumas
considerações teóricas sobre o uso da ironia por Scliar em seus contos e de outras
estratégias lingüístico-discursivas que esse escritor utiliza para questionar a
realidade.
Quando dizemos que a ironia é uma estratégia de crítica a uma determinada
realidade social, não pretendemos afirmar com isso que seu objetivo é ser uma arma
que deve exterminar as mazelas do mundo real de modo a torná-lo mais aprazível.
Para esclarecer essa nossa afirmação, convém fazermos um paralelo dessa idéia
com uma outra: a de que também a literatura o é uma arma contra a realidade.
Segundo Perrone-Moisés (1990, p. 104):
15
Na sua gênese e na sua realização, a literatura aponta sempre para o
que falta, no mundo e em nós. Ela empreende dizer as coisas como são,
faltantes, ou como deveriam ser, completas. Trágica ou epifânica, negativa
ou positiva, ela está sempre dizendo que o real não satisfaz.
Como podemos notar, a literatura faz-se a partir do real, mas faz isso de
modo a reorganizar esse real, de modo a transformá-lo em um outro mundo, o qual
traz em si aquilo de que a realidade carece. Esse mundo de palavras é, pois, para
nós, um reduto onde podem estar confinados alguns valores éticos que, no mundo
real, são abafados, subjugados por determinados valores materialistas e
individualistas. A obra de Scliar parece justamente que “empreende dizer as coisas
como são, faltantes”, ou melhor, por detrás da reificação que permeia as relações de
uma personagem para com a outra ou de um narrador para com as personagens,
insinua-se o que deveria existir na realidade: o respeito e a humanização entre as
pessoas. Como poderemos verificar, a ironia é uma das maneiras de que se vale o
escritor gaúcho para criticar implicitamente a prática dessa falta de humanização e,
por conseguinte, resgatar, ainda que indiretamente pelo universo fictício, a prática
desses valores éticos. Mas, deixemos para verificar como a ironia cumpre essa sua
função crítica no momento de analisarmos os contos selecionados para esse fim.
Por ora, é preciso especificarmos um pouco mais quais valores reificadores são
questionados ironicamente em grande parte das narrativas curtas de Moacyr Scliar.
Para isso, ouçamos algumas das considerações de Regina Zilberman (2000, p. 7-8)
em seu texto “Insólito mas coerente: o conto de Moacyr Scliar”, acerca de uma
das temáticas constantes presentes nos contos do escritor brasileiro:
São contos que se revelam parábolas da sociedade contemporânea.
A concorrência norma imposta pelo capitalismo é vencida pela
eliminação sumária dos competidores, o que provoca a violência ilimitada,
provenha ela de dentro ou de fora do indivíduo.
Por esta razão, a temática da crueldade e da violência atravessa a
trajetória do Scliar contista. [...]
16
Os vários contos que enfocam o erotismo e o sexo desdobram a
concepção antes descrita, mostrando um relacionamento em que as
agressões e o desejo de dominação do outro se superpõem ao amor, à
amizade, ao respeito e ao equilíbrio.
Embora o erotismo e o sexo não sejam explorados nas duas narrativas
irônicas que serão por nós analisadas nesse trabalho, ambas apresentam a temática
“do refinamento da crueldade humana” (ZILBERMAN, 2000, p. 7) que permeia as
relações entre os indivíduos, entendendo-se crueldade aqui o como um ato de
violência física
1
, mas sim como um ato de desrespeito ao outro. Esse desrespeito se
revela, ao menos nos dois contos a serem examinados, por meio da intolerância de
um sujeito para com o modo de ser de um outro e também pela prática da
dissimulação dos indivíduos para conseguir às custas de sua alteridade um
determinado objetivo. Intolerância e dissimulação são, portanto, modos de agressão,
de violência de uma pessoa sobre a outra, modos estes que “se superpõem ao
amor, à amizade, ao respeito e ao equilíbrio” que deveriam configurar na realidade.
Conforme afirmamos, todas essas temáticas reificadoras são questionadas,
nos contos a serem analisados, pela instauração da ironia, ou mais especificamente,
tais temas são destronados, ainda que sub-repticiamente, pela ironia. E esse
destronamento decorre da maneira como a ironia é estruturada nesses textos, ou
melhor, decorre dos vários mecanismos gramaticais, discursivos e contextuais
manejados pelo escritor para reorganizar ironicamente o real em seus contos. Essa
reorganização, portanto, está relacionada com o compromisso que o escritor deve
ter com a forma para engendrar um novo mundo, um mundo de palavras que deve
1
O ponto de vista sobre a presença da violência na obra de Scliar adotado por Zilberman em seu
artigo A crítica social nos contos de Moacyr Scliar (2001) parece ser um pouco diferente do que
estamos abordando nesse trabalho, pois, para ela, a violência presente em alguns contos de O
carnaval dos animais parece estar associada ao significado simbólico da aniquilação que seus
personagens podem ou parecem poder sofrer fisicamente (2001, p.10-12).
17
justamente contestar a realidade. Segundo Perrone-Moisés (1990, p. 106), esse
compromisso com a forma na literatura:
[...] é indispensável porque só ela dá aquela visão aguçada que abre trilhas
no emaranhado das coisas. Ao selecionar, o escritor atribui valores, e ao
fazer um arranjo novo sugere uma reordenação do mundo. É por esse
artifício da forma que a literatura atinge uma verdade do real, e é por atingir
essa verdade que ela escandaliza.
É justamente essa reconfiguração do real, feita pelo escritor por meio de
certos mecanismos estruturadores, que é responsável por escandalizar os valores
reificadores, sendo a ironia uma das estratégias discursivas que pode servir à
literatura para escandalizar, isto é, para questionar tacitamente tais valores. Aliás,
nesse nosso trabalho, poderemos verificar que o compromisso com a forma
assumido por Moacyr Scliar não decorre apenas do uso do insólito em muitos de
seus contos, elemento este que Zilberman (2000, p. 7) afirma, no ensaio teórico a
que fizemos menção anteriormente, ser uma das principais características presentes
em muitos dos relatos desse escritor. Esse enfoque na reorganização do real como
decorrência da instauração de elementos não pertencentes ao mundo empírico
também é comentado em um outro ensaio dessa estudiosa da literatura denominado
“A crítica social nos contos de Moacyr Scliar” (2001, p. 9-15), a partir do qual
sabemos que nos contos do livro de estréia do escritor gaúcho intitulado O carnaval
do animais:
[...] o fantástico continua possibilitando o exercício da atividade crítica; e
estabelece uma relação de contigüidade com o cotidiano, iluminando sua
banalidade e acentuando a carga opressiva que exerce sobre o indivíduo,
quando este vive num regime de relações de produção marcado pela
desigualdade (ibidem, p. 14).
De fato o fantástico e o insólito são meios de que se vale Scliar para
questionar a banalidade de um regime de produção que oprime o indivíduo; mas
18
desejamos enfatizar que também a ironia é uma outra estratégia largamente
utilizada pelo escritor gaúcho em seus contos, com o mesmo fim de questionar essa
banalidade ou algum outro aspecto da realidade. Aliás, a ironia como um dos
elementos fundamentais de reorganização da realidade efetuada por Scliar é
confirmada por Carlos Vogt (1989, p. 49) em “A solidão dos símbolos (Uma análise
da obra de Moacyr Scliar)”, por Silverman (1978, p. 170-189) em “A ironia na obra de
Moacyr Scliar” e por Jozef (1982, p. 5) em “Parábola lírica ou conto de fadas para
adultos”.
Contudo, como a Vogt e a Josef não lhes interessa falar especificamente do
uso da ironia nos textos de Scliar, esses teóricos apenas apontam o fato dessa
estratégia lingüístico-discursiva ser uma constante na obra desse escritor; mesmo
Silverman, cujo ensaio trata especificamente da ironia na obra de Scliar, tece
comentários somente sobre a função crítica exercida por tal mecanismo em várias
das obras desse escritor, bem como sobre o tom ou a nuança “vibrante, intensa,
própria de sua espécie particular de parábola contemporânea” (1978, p. 170) e a
emoção que a ironia pode ocasionar nos seus leitores “A ironia provoca no leitor
gargalhadas e lágrimas, compaixão e aversão” (ibidem, p. 173). A nenhum desses
teóricos da literatura lhes interessou, portanto, abordar como Moacyr Scliar instaura
a ironia em muitos de seus textos; é, pois, o que iremos fazer nesse trabalho:
verificar, pela análise de “Um mentiroso, aquele velho” e de “O tio pródigo”, como se
o funcionamento da ironia, ou melhor, verificar que expedientes verbais e
discursivos esse escritor utiliza para cumprir a função de reordenar o real de modo a
questioná-lo veladamente.
Se, por um lado, Moacyr Scliar, como tantos outros escritores, assumem um
compromisso com a forma, isto é, reorganizam o real por meio de um “novo arranjo”,
19
nós, leitores devemos, por outro lado, mergulhar nesse mundo textual, nesse mundo
de formas que é a literatura, para entrarmos em contato com outros pontos de vista
sobre o mundo e, posteriormente, para regressarmos à realidade, trazendo conosco
uma experiência diferenciada. Cortázar (1993, p. 149-150), ao tratar em seu texto
“Alguns aspectos do conto sobre o que considera como as “invariáveis” e as
“constantes” que estruturam esse gênero literário, chegou a afirmar que o ofício do
escritor consiste em atribuir um clima próprio a todo grande conto, o qual “isola o
leitor de tudo o que o rodeia, para depois, terminado o conto, voltar a pô-lo em
contacto com o ambiente de uma maneira nova, enriquecida, mais profunda e mais
bela” (ibidem, p. 157); e a ironia, com sua crítica subentendida, é uma das maneiras
de que um escritor pode se valer para fazer-nos mergulhar fundo no mundo da
literatura para depois regressarmos ao real, lançando-lhe um olhar mais aguçado.
Assim sendo, se O que a literatura pode, e faz, é ampliar nossa
compreensão do real, por um processo que consiste em destruí-lo e reconstruí-lo,
atribuindo-lhe valores que, em si, ele não tem” (PERRONE-MOISÉS, 1990, p. 108),
a ironia pode ser um dos instrumentos discursivos a ser utilizado em uma obra
literária para ampliar nossa compreensão acerca do real. É dessa maneira, pois,
que, para nós, a literatura e também a ironia não são um instrumento capaz de
semear e multiplicar a ética no nosso mundo palpável: na verdade, a literatura é um
reduto de valores faltantes na realidade, na medida em que o criador, por meio da
ironia ou por meio de qualquer outra estratégia discursiva, atribui ao real outro valor,
um outro olhar que se dispõe ao lado de tantos outros na difícil tarefa de ler o
mundo.
Conforme antecipamos, iremos analisar a ironia em “Um mentiroso, aquele
velho” e em “O tio pródigo” sob o ponto de vista de sua construção, isto é, a partir do
20
modo como a ironia se estrutura em tais textos. É, pois, analisando a maneira como
esse mecanismo lingüístico-discursivo se estrutura em tais narrativas que
poderemos compreender a sua função crítica a uma determinada realidade social,
ou mais especificamente, que poderemos ampliar nossa capacidade de questionar
os valores reificadores da intolerância e da dissimulação tão em voga em nossa
sociedade contemporânea.
Ao afirmarmos que a criticidade da ironia será estudada a partir do modo
como ela é construída nos textos, não estamos querendo dizer que seus efeitos de
sentido de subversão aos valores reificadores presentes no texto de Scliar decorrem
apenas da interação estabelecida entre as várias partes de um texto, o que significa
afirmar que tais efeitos de sentido também são oriundos das relações externas que o
texto estabelece com seu contexto de produção. É o que podemos inferir das
ponderações de Beth Brait (1996, p. 15) sobre a ironia, a qual é considerada pela
referida especialista da linguagem:
[...] como confluência de discursos, como cruzamento de vozes.
Por esse enfoque, a ironia é surpreendida como procedimento
intertextual, interdiscursivo, sendo considerada, portanto, como um
processo de meta-referencialização, de estruturação do fragmentário e
que, como organização de recursos significantes, pode provocar efeitos de
sentido como a dessacralização do discurso oficial ou o desmascaramento
de uma pretensa objetividade em discursos tidos como neutros. Em outras
palavras, a ironia será considerada como estratégia de linguagem que,
participando da constituição do discurso como fato histórico e social,
mobiliza diferentes vozes, instaura a polifonia, ainda que essa polifonia não
signifique, necessariamente, a democratização dos valores veiculados ou
criados.
Visto a ironia ser um “procedimento intertextual, interdiscursivo”, então não
podemos de fato estudá-la, limitando-nos à relação que uma palavra estabelece com
as outras no interior de um texto. Como nos ensina Bakhtin (2004, p. 66) que “cada
palavra se apresenta como uma arena em miniatura onde se entrecruzam e lutam os
21
valores sociais de orientação contraditória”, devemos, pois, analisar a ironia sob o
ponto de vista polifônico
2
, o qual revela os diferentes posicionamentos sócio-
ideológicos em conflito em um determinado texto. Mas qualquer enunciado, inclusive
os o-irônicos, apresenta pontos de vista conflitantes, que, ainda segundo as
ponderações do teórico russo (1988, p. 88):
A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo
discurso. [...] Em todos os seus caminhos até o objeto, em todas as
direções, o discurso se encontra com o discurso de outrem e não pode
deixar de participar, com ele, de uma interação viva e tensa.
Se qualquer texto apresenta sempre uma “interação viva e tensa” com sua
alteridade, ou melhor, se um texto apresenta sempre um conflito entre ideologias
distintas, então devemos tentar compreender em que consiste especificamente esse
embate entre os diferentes posicionamentos ideológicos depreendidos em um
enunciado irônico. Para isso, é preciso antes elencarmos os principais aspectos da
ironia:
[...] a ironia pode ser enfrentada como um discurso que através de
mecanismos dialógicos oferece-se basicamente como argumentação
indireta e indiretamente estruturada, como paradoxo argumentativo, como
afrontamento de idéia e de normas institucionais, como instauração
polêmica ou mesmo como estratégia defensiva (BRAIT, 1996, p. 58).
2
É preciso esclarecer que o significado de “polifonia” proposto por Brait para tratar da ironia difere do
significado elaborado por Mikhail Bakhtin em sua obra Problemas da poética de Dostoievski (2005).
Para o teórico russo, a polifonia consiste na atribuição de autonomia ao posicionamento ideológico
das personagens, ou melhor: “Trata-se, antes de mais nada, da liberdade e independência que elas
assumem na própria estrutura do romance em relação ao autor, ou melhor, em relação às definições
comuns exteriorizantes e conclusivas do autor” (BAKHTIN, 2005, p. 11). Já a polifonia de Brait parece
estar associada às afirmações de Ducrot sobre essa estratégia discursiva, feitas em sua obra O dizer
e o dito (1987). A partir da teoria polifônica bakhtiniana mas ao mesmo tempo dela se
diferenciando, por considerar “que ela não chegou a colocar em dúvida o postulado segundo o qual
um enunciado isolado faz ouvir uma única voz” (1987, p. 161) o teórico francês propõe que a
polifonia se refere à “cisão do sujeito falante no nível do próprio enunciado” (CHARAUDEAU;
MAINGUENEAU, 2004, p. 385). Assim, como estamos estudando a ironia sob as considerações
propostas por Brait, conseqüentemente nesse nosso trabalho, a ironia será estudada com base nessa
multiplicidade de vozes, ou mais precisamente, com base no desdobramento do sujeito da
enunciação em mais de um posicionamento discursivo.
22
Como recurso discursivo, a ironia [...] funciona como elemento mais amplo,
mobilizador de valores que estão submetidos à polifonia das diferentes
vozes instauradas no texto (ibidem, p. 95).
[...] a tensão existente entre o literal e o figurado é uma característica
fundamental da ironia (p. 84).
[a] literalidade e a figuratividade são elementos cuja relação num discurso
irônico caracterizam a ambigüidade fundadora que tem como característica
o fato de que o enunciador, ao mesmo tempo que simula, referencializa
essa simulação no próprio discurso (p. 84).
Citados os aspectos da ironia que julgamos serem os mais importantes,
gostaríamos, por ora, de concentrar nossa atenção em suas funções principais que
se referem à questão dessa estratégia discursiva mobilizar diferentes valores por
meio da polifonia de vozes instauradas em um texto e à questão dela empreender
uma argumentação indireta a determinadas normas institucionais. Essa nossa
concentração momentânea em ambas as funções se justifica na medida em que nos
parece que uma função não pode ser dissociada da outra, ou seja, parece que a
interação entre elas é que promove o embate irônico entre posturas ideológicas
distintas: no caso de um enunciado irônico, as vozes presentes tanto implícita
quanto explicitamente veiculam valores ideológicos que estão em constante choque,
em constante “tensão” entre si, tensão esta que produz o que podemos definir como
significado irônico, o qual, por seu turno, consiste em uma argumentação indireta, ou
melhor, em uma afronta sub-reptícia do enunciador a uma determinada postura
ideológica cristalizada.
No caso das narrativas de Moacyr Scliar, a postura ideológica cristalizada
que é sustentada por uma voz e que é questionada pelo sutil viés crítico da ironia
levada a cabo por uma outra voz diz respeito à mencionada agressão que
permeia as relações humanas. Antes, porém, de verificarmos como se estrutura tal
viés crítico nos contos selecionados, importa tecermos algumas considerações
justamente sobre como deve ser conduzida a análise de uma obra literária seja
23
esta irônica ou o —, de modo que a interpretemos adequadamente. De acordo
com Alfredo Bosi (2003, p. 466-467, grifo nosso), ler uma obra literária de forma
adequada consiste em o apertá-la com as tenazes de um modelo monocausal,
cujo uso prático fará regredir as relações móveis entre forma e evento a uma e
hipotética ‘origem’”. Da citação do referido teórico da literatura, conseguimos deduzir
que “forma” diz respeito às estruturas lingüísticas de que um texto é constituído e
que “evento” concerne ao contexto também responsável pela arquitetura textual:
voltamos, pois, à questão da necessidade de analisarmos um texto tanto interna
quanto externamente.
Ainda segundo Bosi (ibidem, p. 467, grifos nossos), são “a perspectiva e o
tom que unificam a leitura de modo compreensível”, ou melhor, são esses dois
elementos que nos impedem de incorrer no erro de tornar nossa interpretação
estanque, monolítica, como se os efeitos de sentido de um texto proviessem das
estruturas lingüísticas, estando dissociados, portanto, do contexto de produção.
Buscar a perspectiva e o tom exatos para a interpretação dos textos irônicos de
Scliar nos auxiliará, pois, a compreendermos, a partir de seu exame interno e
externo, a função desempenhada pela argumentação indireta — ou pelo velado
posicionamento crítico da ironia em relação a uma determinada realidade cio-
ideológica que, como sabemos, diz respeito à constante agressividade entre as
pessoas. Para isso, importa transcrevermos aqui as definições de perspectiva e de
tom:
A perspectiva [...] nos o inteligível cultural da mensagem artística.
Sim, porque o sujeito para o qual se abre o evento significativo [...] percebe
e julga as situações e os objetos através de um prisma que foi construído e
lapidado ao longo de anos e anos de experiência social [...].
Se não atentarmos para a extrema importância que tem a perspectiva
na formação da escrita, a nossa leitura resvalará para toda sorte de
ênfases arbitrárias neste ou naquele dado escolhido ad libitum no meio do
texto.
24
Junto com a qualificação social e cultural da ótica da escrita [...], tem
o maior interesse a caracterização do seu tom dominante.
O termo tom [...] designa em literatura as modalidades afetivas da
expressão. [...]
[...]
[...] Se o leitor conseguir dar, em voz alta, o tom justo ao poema, ele
terá feito uma boa interpretação, isto é, uma leitura “afinada” com o
espírito do texto.
Mediante a perspectiva, a trama da cultura entra na escrita. Pelo tom
é o sujeito que se revela e faz a letra falar (BOSI, 2003, p. 468-469).
Podemos inferir da citação, que a perspectiva diz respeito ao contexto sócio-
ideológico que é reelaborado pelo discurso da obra literária, já que ela é que “nos dá
o inteligível cultural da mensagem artística”. Parece-nos ser inevitável que, dentre os
vários eventos vivenciados pelo escritor, um deles não seja realmente “significativo”
a ponto de ser reformulado pela forma literária, ou mais especificamente, pelas
estruturas lingüísticas, discursivas e contextuais de que dispõe o escritor para recriar
a realidade. São essas escolhas por ele organizadas e harmonizadas no interior da
obra literária que atribuirão, portanto, ao evento um modo especial de leitura: isso
significa que, se um evento é reformulado no interior de uma obra evento este
que nos permite depreender a perspectiva dessa obra por meio da crítica irônica,
então o tom exato para efetuarmos, ou melhor, interpretarmos essa crítica é o tom
vacilante, do que se pressupõe um desnudamento progressivo, lento da essência do
evento por parte do escritor e, inclusive, do leitor.
Transpondo essas considerações teóricas para o nosso trabalho, o que
devemos fazer, enquanto leitores dos textos irônicos “Um mentiroso, aquele velho” e
“O tio pródigo”, é buscar a perspectiva e seu tom. Em palavras mais exatas, durante
a análise, devemos verificar como Scliar faz a reificação das relações humanas
ocorridas na realidade entrar na escrita do mundo literário para ser posta em xeque
pelo tom vacilante da ironia, tom este decorrente da reorganização feita pelo escritor
gaúcho mediante os elementos estruturadores que melhor fazem a “letra falar”, isto
25
é, que melhor fazem vir à tona, ainda que de modo muito sutil, a contradição de que
se constitui tal reificação.
Acabamos de dizer que a crítica que Scliar empreende à opressão de um
indivíduo ao outro por meio do tom vacilante da ironia tem por objetivo transparecer
sub-repticiamente a contradição desse evento. Dispomos esse entendimento da
função da ironia baseados em Jozef (1986, p. 278) que assevera que:
[...] ironia é tomada de consciência, em oposição à aceitação superficial e
inconsciente da aparência dos seres. Ela parte de uma salutar
desconfiança de que a aparência o é a realidade e explora essa
dissociação.
Portanto, ao lermos um texto irônico, vamos desvendando paulatinamente o
jogo entre o ser e o parecer presentes simultaneamente em um evento ou,
especificando melhor essa idéia, pelo tom vacilante irônico, ao decodificarmos um
enunciado irônico, vamos chegando mansamente à essência que um evento
esconde propositalmente sob sua aparência, justamente com o fim de dissimular a
sua contradição. Mas deixemos para explorar com maior acuidade essa idéia depois
de analisarmos um dos contos selecionados; por ora, vamos traçar um paralelo entre
os conceitos de perspectiva e tom respectivamente com a polifonia de vozes e a
argumentação indireta próprias da ironia.
Pelo percurso teórico que empreendemos até o momento, acreditamos ser
possível afirmar que podemos depreender a perspectiva de um texto irônico por
meio dos “valores que estão submetidos à polifonia da diferentes vozes” e que o tom
vacilante da ironia advém do modo como a argumentação, a crítica indireta sobre um
determinado valor ideológico é estruturada pelo produtor do texto. É justamente para
verificar se essa relação realmente procede e, sobretudo, para compreendermos
como Scliar questiona e destrona sutilmente a reificação levada a cabo pela
26
sociedade contemporânea que passaremos agora a abordar mais detalhadamente a
questão sobre a polifonia de vozes que, a nosso ver, é a propriedade da ironia que
gerencia seu “modus operandi”, ou seja, que instala a argumentação indireta, bem
como se relaciona intrinsecamente com outras propriedades da ironia, como a tesão
entre o literal e o figurado e a ambigüidade decorrente dessa tensão entre a
literalidade e a figuratividade.
Consideramos anteriormente que a polifonia nos textos revela os diferentes
posicionamentos sócio-ideológicos em conflito, o que equivale dizer que a polifonia
nos faz depreender a perspectiva, ou melhor, a “trama da cultura” presente em um
texto, uma vez que, retomando a citação anterior de Bosi, a perspectiva “nos o
inteligível cultural da mensagem artística”. Acontece que, para depreendermos esse
inteligível cultural por meio dos diversos pontos de vista disseminados em um
enunciado, é necessário haver uma harmonização das vozes que sustentam tais
pontos de vista, harmonização esta responsável, inclusive, pela coerência de tal
enunciado. É por meio desse procedimento empreendido pelo escritor que a
perspectiva, ou melhor, a “trama cultural entra na escrita”. Tratemos, pois, logo de
esmiuçar em que consiste a polifonia, a fim de compreendermos a sua relação com
o conceito de perspectiva.
Comentamos também, logo no início do nosso estudo, que a inter-relação
entre os diversos valores enunciados pelas diferentes vozes presentes em um texto
pode ocorrer de modo divergente ou convergente. Para melhor compreendermos
essa afirmação, é necessário nos valermos de algumas considerações feitas por Eni
Orlandi (1996b, p. 53) acerca das noções de discurso e de sujeito:
[...] o discurso é uma dispersão de textos e o texto é uma dispersão
do sujeito. Assim sendo, a constituição do texto pelo sujeito é heterogênea,
isto é, ele ocupa (marca) várias posições no texto.
27
Podemos então dizer que o discurso é caracterizado duplamente pela
dispersão: a dos textos e a do sujeito.
[...]
Essas reflexões nos levam a afirmar que o texto é atravessado por
várias posições do sujeito.
Segundo esclarecimentos de Brandão (1998, p. 66) sobre esses
apontamentos de Orlandi, o “discurso é uma dispersão de textos” porque ele é
atravessado por várias formações discursivas, e o “texto é uma dispersão do sujeito”
porque este ocupa no texto várias posições enunciativas. Esclarecendo melhor essa
última afirmação e por extensão, a primeira —, o sujeito, por ser interpelado por
uma ou várias formações discursivas, não fala o que quer, ele fala aquilo que uma
ou mais de uma formação discursiva lhe “determina o que pode/deve ser dito a partir
de um determinado lugar social” (MUSSALIM, 2004, p. 119). Como toda “formação
discursiva é governada por uma formação ideológica” (ibidem, p. 125), então o
sujeito é portador de ideologias que são expressas por ele a partir da posição que
ele ocupa no interior de uma ou várias formações discursivas. É justamente por tudo
isso que a afirmação “o texto é atravessado por várias posições do sujeito” pode ser
interpretada da seguinte maneira: um texto é atravessado por várias formações
discursivas ou por várias ideologias porque o sujeito é quem se encarrega de
enunciar esses vários textos ou essas várias ideologias. E é para compreender a
ironia sob o fenômeno discursivo da interdiscursividade, ou melhor, como uma
confluência de discursos, que é necessário estudarmos as várias posições
enunciativas ocupadas pelo sujeito no interior de um texto.
Antes de passarmos a estudar detalhadamente em que consistem essas
várias posições do sujeito no texto, é preciso fazer uma ressalva: a de que, apesar
de ser portador de várias ideologias, o sujeito as agrupa a partir daquela que é a
dominante, pois, segundo Brandão (1998, p. 66), ao interpretar os dizeres de M.
28
Pêcheux, “em um mesmo texto podem-se encontrar várias formações discursivas,
estabelecendo-se uma relação de dominância de uma formação discursiva sobre
a(s) outra(s)”. Essa informação é importante para que possamos depreender os mais
diversos tipos de relações discursivas em um texto. No caso específico do texto
irônico, essa dominância de uma formação discursiva sobre outra(s) é de
fundamental interesse para entendermos devidamente como ocorre a tensão entre o
literal e o figurado, isto é, entre o que é dito no enunciado e o que o é dito, sendo
que o não dito, ainda assim, faz ecoar seus dizeres sob o enunciado.
Passemos agora efetivamente à problemática da polifonia como decorrência
dos vários posicionamentos do sujeito da enunciação
3
em um determinado texto.
Segundo Fiorin (2001, p. 62), a “questão da polifonia concerne ao fato de que várias
vozes se apresentam no interior de um discurso. Essas vozes aparecem objetivadas
ou não”. Acreditamos que o autor, ao afirmar que as vozes presentes em um
discurso podem ser “objetivadas ou não”, possa estar se referindo, respectivamente,
às vozes explícitas no enunciado e às vozes implícitas na enunciação, ou melhor, às
vozes subjacentes ao enunciado. Assim sendo, as vozes explícitas e, portanto,
objetivadas no enunciado dizem respeito às vozes dos narradores e das demais
personagens, a voz implícita e, portanto, não objetivada no enunciado, mas que
está presente na enunciação ainda que virtualmente, concerne à voz do enunciador.
é possível inferir que enunciador, narrador e personagem correspondem
aos diferentes posicionamentos que o sujeito da enunciação assumirá em cada uma
das narrativas. Se existem três posições do sujeito, manifestam-se, pois, nos textos,
três níveis da hierarquia enunciativa:
3
O “sujeito da enunciação” é, comumente, empregado como sinônimo de enunciador; no entanto,
esse sujeito se desdobra em enunciador e em enunciatário, porque essas duas posições enunciativas
produzem discurso: o enunciador destina seu discurso para o enunciatário que, ao filtrar e interpretar
tal discurso, também é produtor de texto. Para maiores esclarecimentos, ver Fiorin (2001, p. 65) e
Barros (1997, p. 62).
29
O primeiro nível da enunciação tem como actantes o enunciador e o
enunciatário. [...] Enunciador é o destinador implícito da enunciação;
enunciatário é o destinatário implícito da enunciação. [...]
[...]
O segundo nível da hierarquia enunciativa é o do destinador e do
destinatário instalados no enunciado. Trata-se, nesse caso, dos [...]
chamados narrador e narratário. São sujeitos diretamente delegados do
enunciador e do enunciatário. [...]
[...]
O terceiro vel da hierarquia enunciativa instala-se, quando o
narrador voz a[os] [...] actante[s] do enunciado, [...] o destinador e o
destinatário, que, nesse nível, são chamados interlocutor e interlocutário
(FIORIN, 2001, p. 65-67).
Dessa citação, devem-se considerar outros dois importantes aspectos: a) ao
enunciador, ao narrador e ao interlocutor correspondem, respectivamente, o
enunciatário, o narratário e o interlocutário, isto é, os outros posicionamentos do
sujeito da enunciação que constituem a sua identidade; b) como o enunciador e o
enunciatário estão implícitos na enunciação, logo essas posições nunca se
confundirão, por conseguinte, com as posições do narrador e do interlocutor nem
com as do narratário e do interlocutário, posições estas que estão situadas
explicitamente no nível do enunciado, podendo, no máximo, haver uma identificação,
uma coincidência entre todos esses posicionamentos. Fiorin (2005, p. 56) afirma ser
“preciso distinguir duas instâncias: o eu pressuposto e o eu projetado no interior do
enunciado. Teoricamente, essas duas instâncias não se confundem: a do eu
pressuposto é a do enunciador e a do eu projetado no interior do enunciado é a do
narrador”. É justamente o termo “teoricamente” que nos permite afirmar que não
confusão entre os diversos posicionamentos enunciativos do sujeito, mas sim, uma
coincidência, por vezes, entre eles.
Essa não confusão entre posições enunciativas nos auxiliará a compreender
que, na ironia, a voz, ou melhor, a ideologia do enunciador nunca será objetivada, ou
melhor, nunca será mostrada explicitamente, sendo apenas insinuada no fio
discursivo; como sabemos, são as posturas ideológicas dos narradores e das
30
personagens que aparecem de modo mais objetivado, isto é, de modo mais explícito
no enunciado. No caso específico de “Um mentiroso, aquele velho” e de “O tio
pródigo”, o que ocorrerá é uma total divergência entre o posicionamento ideológico
do enunciador e o do narrador no primeiro conto e uma coincidência entre o
posicionamento ideológico do enunciador e o do narrador no segundo conto, sendo
que o posicionamento de ambos, nesse último caso, discordará do universo
ideológico sustentado por pelo menos uma das personagens da narrativa. É preciso
lembrarmos, uma vez mais, que essa discordância do enunciador para com pelo
menos um ponto de vista ideológico objetivado no enunciado ocorre de modo
indireto, fato este que nos permite começar a compreender a afirmação de Bosi
sobre o fato do tom de uma obra literária designar “as modalidades afetivas da
expressão”. Tal modalidade afetiva se refere, no caso dos textos irônicos,
justamente ao modo sutil de que se vale o enunciador para criticar uma determinada
realidade social; esse modo sutil, por seu turno, advém de determinados
mecanismos lingüístico-discursivos que fazem com que essa crítica ou
argumentação indireta soe no texto de modo paulatinamente velado: ou dito de
outra forma, o questionamento a um determinado posicionamento sócio-ideológico
pela ironia ocorre por meio do tom outrora por s denominado vacilante, o qual é
instaurado pelo enunciador com o objetivo de mostrar-nos tacitamente a essência
que se esconde sob a aparência das relações humanas.
Acreditamos que todas essas considerações teóricas nos possibilitam
esclarecer em que consiste a tensão entre o literal e o figurado na ironia, tensão esta
que, para Beth Brait (1996, p. 76), consiste no seguinte: “O que está atualizado, em
presença, não pode ser compreendido a o ser que se leve em conta uma
ausência que de alguma forma ali ressoa por vias de uma contextualização que
31
sinaliza a confluência presença-ausência”. Assim sendo, nos textos irônicos, o
figurado concerne ao não dito, à “ausência” e, por extensão, à voz ideológica não
objetivada do enunciador; o literal se refere ao dito, à “presença” e, por
conseguinte, à voz ideológica objetivada pelos narradores e pelas personagens no
enunciado. Importa ressaltar que, com relação às duas narrativas irônicas curtas do
escritor gaúcho, a ideologia não-explícita do enunciador condena, indiretamente
ou melhor, questiona em um tom vacilante —, a ideologia explícita no enunciado, a
qual concerne à reificação das relações humanas deflagradas em nossa sociedade
contemporânea. Ressaltemos que essa condenação sinalizada propositalmente de
modo indireto nos textos pode ser depreendida e entendida a partir do
mencionado embate entre o dito e o não dito, daí a ironia caracterizar-se como uma
“confluência” entre “presença-ausência”.
Voltando à questão das posições enunciativas, dissemos que o enunciador e
o enunciatário jamais se confundem com as demais posições do sujeito no
enunciado de um texto, o que equivale a afirmar que o enunciador se distingue do
narrador e das personagens e que o enunciatário se diferencia do narratário e
também das personagens. Essa afirmação procede, se considerarmos os seguintes
conceitos de Barros (1997, p. 86-88) sobre as funções do enunciador, do
enunciatário, do narrador e do narratário:
Enunciador: desdobramento do sujeito da enunciação, o enunciador
cumpre os papéis de destinador do discurso e está sempre implícito no
texto, nunca nele manifestado.
Enunciatário: uma das posições do sujeito da enunciação, o enunciatário,
implícito, cumpre os papéis de destinatário do discurso.
[...]
Narrador: é o simulacro discursivo do enunciador, explicitamente instalado
no discurso, a quem o enunciador delegou a voz, ou seja, o dever e o
poder narrar o discurso em seu lugar.
Narratário: é o simulacro discursivo do enunciatário, explicitamente
instalado no discurso pelo narrador.
32
Barros considera o enunciador e o enunciatário como entidades da
enunciação que “nunca” se manifestam no texto, estando, pois, “implícitos” nele; o
narrador e o narratário são entidades do enunciado que nele se manifestam. Como
se nota, Barros e Fiorin partilham das mesmas idéias quanto às funções de cada
uma das posições do sujeito da enunciação em um texto. Contudo, o que
gostaríamos de aprofundar nesse momento é justamente a noção de simulacro, com
o fim de contrapô-la à noção de identificação. Quando Barros diz que o narrador e o
narratário são, respectivamente, simulacros do enunciador e do enunciatário,
podemos deduzir que o narrador e o narratário são criações discursivas do
enunciador e do enunciatário, fato este que, no entanto, não nos autoriza a afirmar
que há, necessariamente uma identificação entre enunciador e narrador de um lado,
e entre enunciatário e narratário de outro. Essa idéia tem a ver com outras já por nós
aqui apresentadas, mas ainda não totalmente desenvolvidas: a de que em “Um
mentiroso, aquele velho”, não há uma identificação entre narrador e enunciador, pois
ambos não partilham da mesma postura ideológica, e a de que em “O tio pródigo”,
uma identificação entre essas duas posições discursivas, pois tanto o narrador
quanto o enunciador são partidários do mesmo posicionamento ideológico. Com
relação às posições do enunciatário e do narratário, este também pode ou não se
identificar com a postura daquele, conforme poderemos verificar ao longo desse e do
capítulo seguinte. Em suma, o que importa para nós é afirmar, uma vez mais, que,
apesar de serem simulacros umas das outras, essas posições nunca se confundem,
podendo ou não se identificar entre si.
Centrando agora nossas reflexões mais especificamente nos
posicionamentos do enunciador e do narrador, a identificação ou não entre essas
duas entidades enunciativas tão distintas pode ser melhor explicada ao associarmos
33
a posição do enunciador ao conceito de autor implícito proposto primeiramente por
Wayne Booth e, depois, reconsiderado e reformulado por vários outros estudiosos
da linguagem, sejam os que se ocupam com a narratologia, sejam os que se
ocupam com a análise do discurso. Comecemos, então, pela diferenciação entre
autor implícito, autor real e narrador:
Do que precisamos é dum termo que seja tão amplo quanto a própria
obra, mas possa ainda chamar a atenção para essa obra como produto
duma pessoa que escolheu e calculou e não como existência autónoma. O
“autor implícito” escolhe, consciente ou inconscientemente, aquilo que
lemos; inferimo-lo como versão criada, literária, ideal dum homem real
ele é a soma das opções deste homem (BOOTH, 1980, p. 92).
“Persona”, “máscara” e “narrador” são termos por vezes usados; mas
referem-se com mais freqüência ao orador da obra que, afinal o passa
de mais um dos elementos criados pelo autor implícito e pode dele ser
diferenciado por amplas ironias. “Narrador” é geralmente aceite como o
“eu” da obra, mas o “eu” raramente, ou mesmo nunca, é idêntico à imagem
implícita do artista (ibidem, p. 90).
Como podemos perceber, a primeira citação concerne ao fato de que o autor
real não pode ser confundido com o autor implícito, e a segunda diz respeito a que o
autor implícito não é a mesma entidade que o narrador. Para esclarecer
devidamente ambas as diferenças, convém, antes, apresentar as funções do autor
implícito em associação com outros importantes conceitos da análise do discurso.
A partir ainda da primeira citação de Booth, podemos afirmar que o autor
implícito é um ser de palavras forjado pelo autor real mediante as “opções” de que
esse homem de carne e osso dispõe para compor a sua obra literária, idéia essa
endossada pela interpretação de Chiappini (1989, p. 19) acerca dos dizeres de
Booth, a qual afirma que o autor implícito é “uma imagem do autor real criada pela
escrita”. Essas afirmações apontam para a primeira distinção, a existente entre o
autor real e o autor implícito. Para aprofundar essa primeira distinção, ressaltem-se
34
as considerações de Orlandi (2003, p. 75-76) sobre uma das funções discursivas do
sujeito, a função-autor:
[...] a autoria é uma função do sujeito. A função-autor, que é uma
função discursiva do sujeito, estabelece-se ao lado de outras funções,
estas enunciativas, que são o locutor e o enunciador, tal como as define
Ducrot (1984): o locutor é aquele que se representa como “eu” no discurso
e o enunciador é a perspectiva que esse “eu” constrói.
[...] a função discursiva autor [...] é, das dimensões do sujeito, a que
está mais determinada pela exterioridade contexto sócio-histórico e
mais afetada pelas exigências de coerência, não contradição,
responsabilidade, etc.
Sendo a autoria a função mais afetada pelo contato com o social e
com as coerções, ela está mais submetida às regras das instituições e nela
são mais visíveis os procedimentos disciplinares. Se o sujeito é opaco e o
discurso não é transparente, no entanto o texto deve ser coerente, não-
contraditório e seu autor deve ser visível, colocando-se na origem de seu
dizer. É do autor que se exige: coerência, respeito às normas
estabelecidas, explicitação, clareza, conhecimento das regras textuais,
originalidade, relevância e, entre outras coisas, unidade, não-contradição,
progressão e duração de seu discurso, ou melhor, de seu texto.
Antes de mais nada, é preciso esclarecer que as posições enunciativas do
sujeito consideradas para a análise da ironia nesse trabalho não são, como se
pôde verificar, as mesmas apontadas por Orlandi, visto que o conceito de
enunciador adotado por nós não é o mesmo que o de Ducrot. Desse modo, o que
realmente nos parece mais importante dessa citação diz respeito ao fato de o autor
ser o responsável por harmonizar as várias vozes instauradas no texto, ou seja,
cabe ao autor a tarefa de parecer que tanto ele próprio, quanto o texto o são
atravessados por várias outras formações discursivas:
O sujeito precisa passar da multiplicidade de representações possíveis
para a organização dessa dispersão num todo coerente, apresentando-se
como autor, responsável pela unidade e coerência do que diz (ORLANDI,
2003, p. 76).
É essa função de harmonizar a dispersão que faz o texto ser “coerente” e
“não-contraditório”, mesmo que nele haja um embate constante entre diferentes
35
posicionamentos discursivos, ou mais especificamente, entre distintos
posicionamentos ideológicos. E essa coerência, essa unidade do texto pode ser
explicada justamente porque o autor concilia essas vozes distintas por meio de uma
voz dominante. Retomando uma idéia por nós já lançada, há, nos textos, uma
relação de dominância de uma formação discursiva em relação às outras com as
quais ela interage, o que nos permite afirmar que é a formação discursiva do autor e,
por extensão, a sua postura ideológica, que domina e rege as demais formações
discursivas por ele convocadas no texto. Assim sendo, e conforme já afirmamos, é a
partir dessa organização coerente das várias formações discursivas efetuada pelo
enunciador que a perspectiva, ou melhor, a trama cultural entra na escrita, fazendo
ressoar seus valores ideológicos que, no caso do texto irônico, irão divergir umas
das outras.
Se, como vimos, o sujeito é interpelado a falar e a fazer aquilo que é
determinado por uma formação discursiva, então é inaceitável que o autor seja
relacionado diretamente com a pessoa de carne e osso. Dito de outro modo, a
pessoa, enquanto ser físico, ao escrever, está sendo interpelada pela formação
discursiva do ato produtor de um texto, a qual lhe exige a “coerência”, a “não-
contradição” e a “responsabilidade” para se poder escrever. Então, se o sujeito é
constantemente interpelado por uma determinada ideologia, isso significa que a sua
passagem de uma situação empírica para uma posição discursiva também é
constante:
[...] não são os sujeitos físicos nem os seus lugares empíricos como tal, isto
é, como estão inscritos na sociedade, e que poderiam ser sociologicamente
descritos, que funcionam no discurso, mas suas imagens que resultam de
projeções. São essas projeções que permitem passar das situações
empíricas os lugares dos sujeitos para as posições dos sujeitos no
discurso. Essa é a distinção entre lugar e posição (ORLANDI, 2003, p. 40).
36
Portanto, todas as vezes que mencionamos e todas as vezes que
voltarmos a mencionar o nome Moacyr Scliar nesse trabalho, é necessário que fique
claro que não estamos falando desse autor enquanto ser físico, mas sim enquanto
um posicionamento discursivo que evoca e harmoniza no texto outros
posicionamentos também discursivos: o do narrador e o das personagens. Como é
possível notar, aproximamos a função-autor de Orlandi do conceito de autor implícito
proposto por Booth, e acreditamos que tal associação é válida pelo fato de ambas
cumprirem a mesma função, o que significa dizer que, se Orlandi se vale da função-
autor para justificar a responsabilidade que esse ser discursivo tem pela unidade do
texto, então “Booth interpõe o autor-implícito, conferindo-lhe a responsabilidade pelo
universo erigido e o manuseamento do narrador, das personagens, das ações, do
tempo e do lugar: a própria elaboração da intriga” (DAL FARRA, 1978, p. 21). Por
essa citação, podemos, então, verificar que também o autor implícito é responsável
por atribuir unidade, coerência ao texto, o que nos permite afirmar que o autor
implícito e a função autor se referem à mesma posição discursiva presente nos
textos.
Na verdade, podemos afirmar que “função-autor”, “autor implícito” e, inclusive,
“enunciador” são equivalentes, na medida em que este, segundo as concepções de
Barros e de Fiorin
4
por nós recuperadas e comentadas anteriormente, é uma
entidade que, apesar de sempre estar implícita no texto, nunca estando nele
objetivada, insinua, de alguma forma, a sua avaliação, o seu julgamento sobre os
fatos explicitados no enunciado de um texto; esse julgamento, aliás, decorre
justamente do fato desse enunciador orquestrar, de modo harmônico e segundo a
sua formação discursiva, as várias outras formações por ele reunidas no texto, o
4
Sobre a identificação entre autor implícito e enunciador, ver Barros (1988, p. 79) e Fiorin (2001, p.
63-65).
37
que, juntamente com outros mecanismos lingüístico-discursivos, determina o tom
que será por ele utilizado para expressar seu ponto de vista. Portanto, esse
julgamento nos permite afirmar que enunciador, autor implícito e função-autor são a
mesma entidade. Com relação à atitude avaliativa do autor implícito, Dal Farra
(1978, p. 20) diz o seguinte:
Manejador de disfarces, o autor, camuflado e encoberto pela ficção,
não consegue fazer submergir somente uma sua característica — sem
dúvida a mais expressiva a apreciação. Para além da obra, na própria
escolha do título, ele se trai, e mesmo no interior dela, a complexa eleição
dos signos, a preferência por determinado narrador, a opção favorável por
esta personagem, a distribuição da matéria e dos capítulos, a própria
pontuação, denunciam a sua marca e a sua avaliação.
Como o enunciador é uma voz não objetivada no enunciado, então ele
precisa, de alguma forma, expressar sua avaliação sobre os fatos, ou melhor, ele
precisa harmonizar no texto os elementos lingüístico-discursivos por ele
selecionados, com o objetivo de instaurar um tom que faça com que nós leitores
“ouçamos” adequadamente o seu julgamento em relação aos acontecimentos
abordados no texto. Vamos verificar, com a análise dos contos, que o tom vacilante
da crítica irônica decorre justamente de uma série de escolhas formais e contextuais
efetuadas pelo enunciador, dentre elas a preferência por um tipo de narrador o
uso da 1
a
pessoa em “Um mentiroso, aquele velho” e da 3
a
pessoa em “O tio
pródigo”, conforme mencionamos anteriormente , a preferência por uma
personagem de identidade mais acaba ou inacabada, o uso do discurso direto,
indireto e indireto livre, dentre outros mecanismos, os quais serão todos
devidamente estudados durante a análise das narrativas por nós escolhidas. Por
ora, ainda continuaremos a discutir sobre as várias posições que o enunciador
ocupa em seus textos que é um outro mecanismo de que ele se vale para avaliar a
38
realidade sócio-ideológica reconfigurada em seu texto: trata-se de seu
desdobramento em outras duas posições enunciativas, que são a do narrador e a
das personagens.
Como sabemos, o enunciador delega voz a um narrador, fazendo com que
este, quando julgar conveniente, delegue voz a determinados personagens.
Portanto, é do embate entre as ideologias expressas por cada uma dessas posições
discursivas que serevelada a postura ideológica do enunciador, postura esta que
é a dominante no texto, pelo fato do enunciador ser aquele quem, de fato, orquestra
toda essa disparidade de vozes. Se ao enunciador lhe cabe essa função de reger
uma orquestra polifônica, então está feita a distinção entre narrador e enunciador
proposta por Booth, distinção esta que aparece na segunda citação desse
narratólogo que transcrevemos anteriormente; relembrando o que diz tal citação,
“‘Narrador’ é geralmente aceite como o “eu” da obra, mas o “eu” raramente, ou
mesmo nunca, é idêntico à imagem implícita do artista”.
Essa distinção entre narrador e enunciador foi reconsiderada posteriormente
por outros estudiosos da linguagem, como, por exemplo, S. Chatman, que afirmou
que o autor implícito “não é narrador, mas antes o princípio que inventou o narrador,
bem como todo o resto da narração” (apud REIS e LOPES, 2002, p. 18). Assim
sendo, tudo o que o narrador e até mesmo o que uma personagem cuja voz lhe
foi delegada pelo narrador disser no enunciado poderá ou não estar de acordo
com a postura ideológica do enunciador, pois é este afinal quem escolhe identificar-
se ou não com o narrador. Vale ressaltar uma vez mais que essa identificação ou
não-identificação sempre ocorre de modo indireto, já que a voz do enunciador não é
objetivada no enunciado.
39
Conforme dissemos, todas essas considerações acerca das várias
posições do sujeito são válidas para qualquer tipo de texto. Contudo, no texto irônico
em específico, essa confluência de posturas ideológicas ocorre da seguinte maneira:
retomando as especificidades da ironia por nós mencionadas logo no início desse
trabalho, o enunciador, ao ser mobilizado por uma formação discursiva específica,
faz a perspectiva, ou melhor, a trama cultural entrar em seu texto, evocando para
isso outras formações discursivas distintas, com o fim de colocá-las em conflito no
texto sempre de um modo harmônico e coerente. É importante esclarecer que
harmonia não deve ser compreendida no sentido de “ausência de conflitos”
(HOUAISS, 2001), devendo, pois, ser considerada no sentido de “combinação de
elementos diferentes e individualizados, mas ligados por uma relação de pertinência,
que produz uma sensação agradável e de prazer” (HOUAISS, 2001). Como
podemos notar, essa última acepção é que está relacionada com a idéia de que o
enunciador é o responsável por organizar a multiplicidade de vozes que atravessam
o texto. Assim, sob essa responsabilidade, o enunciador se desdobra em outros
posicionamentos enunciativos, isto é, em narrador e, quando necessário, em um
interlocutor (ou personagem).
Se, como vimos, a ironia institui-se por meio de uma confluência de vozes, ou
mais especificamente, por meio de uma tensão entre o literal isto é, o dito, a voz
do narrador e das personagens que estão presentes, objetivadas no enunciado e
o figurado ou seja, o não dito, a voz do enunciador ausente, não objetivada no
enunciado —, então o posicionamento ideológico implícito do enunciador deve
divergir silenciosamente de pelo menos um dos posicionamentos ideológicos
explicitados no enunciado, uma vez que a ironia é uma argumentação indiretamente
40
estruturada que afronta, por meio de um tom vacilante, as normas ditadas por um
discurso oficial, um discurso formatado por uma determinada formação social.
Ainda que, em um texto irônico, o enunciador teça seus julgamentos por meio
de um tom vacilante e, portanto, sem alardes, é possível ao leitor, ou melhor, ao
enunciatário, inferi-lo, uma vez que o enunciador, como a própria expressão “sem
alardes” deixa entrever, insinua, sinaliza, referencializa a seu interlocutor a
presença virtual de tais julgamentos. É por isso que, sem a perspicácia do
enunciatário, a ironia corre o risco de ser apenas uma tentativa de instalar-se como
crítica ao já-instituído do discurso oficial. Para que ela seja, pois, uma crítica efetiva,
é necessária a interação entre ambos os interlocutores:
[...] A dupla leitura mobilizada por um enunciado irônico envolve
formas de interação entre os sujeitos, bem como a relação com o objeto da
ironia e com as estratégias lingüístico-discursivas que põem em movimento
o processo.
Assim sendo, o ironista, o produtor da ironia, encontra formas de
chamar a atenção do enunciatário para o discurso e, através desse
procedimento, contar com sua adesão. Sem isso a ironia não se realiza. O
conteúdo, portanto, estará, subjetivamente assinalado por valores
atribuídos pelo enunciador, mas apresentados de forma a exigir a
participação do enunciatário, sua perspicácia para o enunciado e suas
sinalizações, por vezes extremamente sutis. Essa participação é que
instaura a intersubjetividade, pressupondo não apenas conhecimentos
partilhados, mas também pontos de vista, valores pessoais ou cultural e
socialmente comungados ou, ainda, constitutivos de um imaginário
coletivo. É a organização discursivo-textual que vai permitir esse chamar a
atenção sobre o enunciado e, especialmente, sobre o sujeito da
enunciação (BRAIT, 1996, p. 105).
Aqui, importa relembrarmos duas ponderações importantíssimas feitas por
Bosi acerca da importância do tom para uma boa interpretação do texto literário: a
primeira concerne ao fato de que o leitor consegue depreender adequadamente os
sentidos de um texto ao -lo em um tom justo, ou seja, ao fazer “uma leitura
‘afinada’ com o espírito do texto”; e a segunda diz respeito ao fato de que é pelo tom
“que o sujeito se revela”. Da articulação de tais ponderações com a idéia de que a
41
ironia ocorre potencialmente a partir da interação entre o produtor e o leitor da
ironia, podemos inferir primeiramente que, se, por um lado, o enunciador é o
responsável pela “organização discursivo-textual” que instaura o tom vacilante
irônico sobre um determinado fato tom este que, como sabemos, diz respeito
às modalidades afetivas do enunciador —, por outro, o enunciatário é o responsável
por decodificar essa organização discursivo-textual, não podendo prescindir do
mesmo tom vacilante de que se valeu o enunciador.
Em segundo lugar, se o enunciador de um texto irônico revela por meio do
tom vacilante o seu ponto de vista, ou mais especificamente, se, por uma série de
escolhas, ele instaura no enunciado uma argumentação indireta a uma determinada
realidade sócio-ideológica, de forma a evitar uma crítica incisiva a tal realidade e, por
conseguinte, de forma a desvelar tacitamente as contradições das relações
humanas, então a imagem que traçamos desse sujeito é a de um alguém comedido,
postura esta que o enunciatário deve manter ao ler o texto irônico e sem a qual a
função de desvelar sutilmente a mencionada contradição humana pode soar como
uma crítica moralista, e o é essa a função da ironia em Scliar, como poderemos
verificar mais ao final da nossa análise.
É justamente tentando manter esse tom vacilante proposto pela ironia que
iremos analisar como ela se estrutura nas narrativas de Moacyr Scliar, ou mais
especificamente, no conto “Um mentiroso, aquele velho”. Porém, antes de nos
debruçarmos propriamente sobre o mencionado conto, convém trilharmos por mais
alguns conceitos teóricos que nos auxiliarão a compreender em que consiste mais
especificamente esse tom vacilante irônico. Trata-se da distinção entre os dois
modos de se enunciarem os fatos em um texto, a debreagem enunciativa e a
debreagem enunciva:
42
três tipos de debreagens enunciativas e três de enuncivas: as de
pessoa (actancial), as de espaço (espacial) e as de tempo (temporal). A
debreagem enunciativa projeta, pois, no enunciado o eu-aqui-agora da
enunciação, ou seja, instala no interior do enunciado os actantes
enunciativos (eu/tu), os espaços enunciativos (aqui, aí, etc.) e os tempos
enunciativos [...]. A debreagem enunciva constrói-se com o ele, o alhures e
o então, o que significa que, nesse caso, ocultam-se os actantes, os
espaços e os tempos da enunciação. O enunciado é então construído com
os actantes do enunciado (terceira pessoa), os espaços do enunciado
(aquele que não estão relacionados ao aqui) e os tempos do enunciado [...]
(FIORIN, 2005, p. 58-59).
Apesar dessa distinção entre os dois modos de enunciar as pessoas, o tempo
e o espaço no texto, ambos podem ser usados simultaneamente pelo enunciador.
No conto em questão, notamos que uma combinação entre a debreagem
enunciativa e a debreagem enunciva, pois o narrador conta, no momento da
enunciação portanto, em um aqui e agora, ou seja, no presente —, fatos que
ocorreram no momento do enunciado portanto, em um alhures e em um então,
isto é, no passado. Além disso, tais fatos são relatados pelo narrador em 1
a
pessoa,
ou melhor, o enunciador projeta no enunciado a voz de um narrador que diz “eu”;
contudo, o centro das atenções dessa história não é propriamente esse narrador que
diz “eu”, mas sim o seu avô, portanto, um “ele”. Aqui, é necessário ouvirmos as
considerações de Norman Friedman (2002, p. 176) sobre um dos tipos de narrador
de que um escritor pode se valer para que uma história seja relatada: trata-se do
narrador-testemunha ou, segundo a tipologia de Friedman, “‘I’ as witness”:
A conseqüência natural desse espectro narrativo é que a testemunha
não tem acesso senão ordinário aos estados mentais dos outros; logo, sua
característica distintiva é que o autor renuncia inteiramente a sua
onisciência em relação a todos os outros personagens envolvidos, e
escolhe deixar sua testemunha contar ao leitor somente aquilo que ele,
como observador, poderia descobrir de maneira legítima. À sua disposição
o leitor possui apenas os pensamentos, sentimentos e percepções do
narrador-testemunha; e, portanto daquele ponto de vista que
poderíamos chamar de periferia nômade.
O que a testemunha pode transmitir de maneira legitima ao leitor não
é tão restrito como pode parecer à primeira vista: ele pode conversar com
todas as personagens da estória e obter seus pontos de vista a respeito
das matérias concernentes [...]; particularmente, ele pode se encontrar com
43
o próprio protagonista; e, por fim pode arranjar cartas, diários e outros
escritos que podem oferecer reflexos dos estados mentais dos outros.
Fazendo as devidas correlações da combinação entre os mencionados
sistemas enunciativos com a função cumprida pelo narrador-testemunha, podemos
perceber em “Um mentiroso, aquele velho” que o enunciador delega voz a um
narrador, mais precisamente a um neto, que passa a contar, no momento atual, um
fato presenciado e testemunhado por ele em um determinado momento do passado,
fato este desencadeado por uma personagem principal, o seu avô. Daí havermos
dito anteriormente que o foco central desse conto é um “ele”: o narrador parece focar
a atenção nas atitudes do avô com o objetivo de mostrar que este personagem é um
mentiroso por forjar a idéia de que é uma pessoa corajosa, destemida. De fato, a
primeira impressão que poderíamos ter do avô é a de que ele é um mentiroso, pois,
segundo a citação de Friedman, o leitor tem acesso ao mundo do protagonista
apenas mediante as impressões desse personagem secundário que é o narrador-
testemunha; além disso, e ainda segundo a citação do narratólogo, o ponto de vista
desse tipo de narrador não é tão restrito quanto parece, já que ele pode, por
exemplo, tentar comprovar ou querer tentar comprovar a veracidade do seu
relato ao valer-se de conversas que ele tenha tido com o protagonista da história. A
propósito dessas provas, no caso do conto em questão, o fato de o neto relatar os
acontecimentos em um “nós”, em vez de um “eu”, pode ser encarado como uma das
maneiras de que ele se valeu para provar que a coragem do avô é uma farsa, já que
o “nós” demonstra ter havido mais de uma testemunha para os acontecimentos
deflagrados.
No entanto, como o enunciador é o delegado da enunciação, ou melhor, é o
sujeito responsável por organizar toda a trama dessa narrativa irônica, ele se
encarrega de fazer o enunciatário perceber qual pode ser o outro significado daquilo
44
que é considerado uma mentira pelo narrador. Portanto, a voz do enunciador que
não aparece objetivada no enunciado faz o enunciatário transcender as tais
impressões objetivadas pelo narrador no enunciado, transcendência essa que pode
ocorrer se este souber ler adequadamente as pistas que o enunciador pode ou não
demarcar na superfície textual, isto é, se o enunciatário puder:
[...] distinguir, pois, no texto, a enunciação enunciada e o enunciado
enunciado. Aquela é o conjunto de elementos lingüísticos que indica as
pessoas, os espaços e os tempos da enunciação, bem como todas as
avaliações, julgamentos, pontos de vista que são de responsabilidade do
eu, relevados por adjetivos, substantivos, verbos, etc. O enunciado
enunciado é o produto da enunciação despido de marcas enunciativas
(FIORIN, 2005, p. 78).
Essa distinção entre “enunciação enunciada” e “enunciado enunciado” está
relacionada à mencionada combinação entre sistemas enunciativos distintos que
é operada pelo enunciador desse conto, combinação aliás que revela uma
simultaneidade de oposições de pessoa, espaço e tempo e que, por conseguinte, é
responsável pela construção da imagem do narrador. Explicando essas idéias ainda
que sem maiores detalhes, o enunciador fará, justamente por meio dos elementos
disseminados pelo enunciado que instauram essa simultaneidade de oposições, o
enunciatário depreender a imagem de um narrador de personalidade acabada,
definitiva, fixa, visto a sua opinião sobre o avô praticamente não sofrer mudanças
substanciais de um determinado instante para outro: isso significa que o narrador
não reflete, no presente, sobre o que realmente pode ter levado o seu avô a contar
uma “mentira” em um determinado momento do passado, o que, como poderemos
verificar, faz desse narrador uma pessoa insensível, ou melhor, o enunciador faz
com que a capacidade de apenas olhar o outro prevaleça em detrimento da
capacidade de observá-lo.
45
Com relação ao avô, a sua imagem é tecida pelo enunciador e pelo
enunciatário, na medida em que aquele empreende veladamente na superfície
textual um embate entre o discurso do narrador o qual sabemos ser resultado
do conflito de fatos ocorridos entre o momento da enunciação e o momento do
enunciado e o discurso do avô proferido também no nível do enunciado mediante
o discurso direto. É desse embate entre discursos tão diferentes que se confirmará o
acabamento da personalidade dos netos e que, por conseguinte, se forjará a
imagem de um avô de personalidade inacabada, móvel, instável, pois é por meio de
várias máscaras sociais, ou de vários posicionamentos discursivos, que ele expressa
a angústia de sentir-se marginalizado pela família.
No entanto, é preciso ressaltarmos que o acabamento dos netos e o
inacabamento do anão estão explicitados no nível do enunciado, devendo, pois,
serem inferidos pelo enunciatário. Isso significa que, se não perceber o conflito
instaurado entre os mencionados mecanismos espalhados pela superfície textual, o
enunciatário pode correr o risco de interpretar equivocadamente a intenção do
enunciador, entendendo assim que este pretendeu construir a imagem dos netos
como a de pessoas sensatas e a do avô como a de alguém mentiroso, visto aqueles
terem desmascarado, ao final da história, a considerada pretensa coragem do avô
que, segundo as palavras do próprio narrador, “sofria de vertigens das alturas”
(SCLIAR, 2003, p. 145). Assim sendo, se essa é a leitura que o enunciatário faz
desse texto, então ele ficou preso apenas às aparências do que é dito no enunciado,
ou melhor, ele não transcendeu ao o-dito que ressoa veladamente por sob essa
aparência da superfície textual valores que lhes são contrários. Portanto, uma leitura
condizente com o propósito irônico de desnudar sub-repticiamente as aparências
que o enunciador faz propositadamente o narrador relatar no enunciado é
46
justamente aquela em que o enunciatário parte do que é dito na superfície textual
para chegar ao não dito da enunciação: isso significa que o leitor deve, pois,
perceber que uma contradição entre enunciação e enunciado. Especificando em
que consiste a contradição entre essas duas instâncias enunciativas, ouçamos as
ponderações de Fiorin (2001, p. 35):
Quando se produz um enunciado, estabelece-se uma “convenção
fiduciária” entre enunciador e enunciatário, a qual determina o estatuto
veridictório do texto. O acordo fiduciário apresenta dois aspectos:
a) como o texto deve ser considerado do ponto de vista da verdade e da
realidade;
b) como devem ser entendidos os enunciados: da maneira como foram dito
[sic] ou ao contrário.
No que concerne ao primeiro aspecto, procedimentos que
determinam o estatuto de verdade ou de mentira do texto, de realidade ou
de ficção. [...]
[...]
No que se refere ao segundo aspecto, marcas discursivas que
indicam se o enunciado X deve ser interpretado como X ou como não-X.
[...] Há, pois, dois tipos de contratos enunciativos: o de identidade e o de
contraditoriedade.
Se afirmamos mais acima que, em um enunciado irônico, é necessário que o
enunciatário transcenda o que é dito no enunciado, a fim de identificar um outro
significado que subjaz a esse dito, ou mais especificamente, um significado distinto
daquele que é depreendido na superfície textual, então o contrato enunciativo
estabelecido entre ele e o enunciador é o de “contraditoriedade”, uma vez que o
“enunciado X deve ser interpretado [...] como não-X”. E é justamente a partir das
“marcas discursivas” disseminadas pelo enunciador ao longo do enunciado que o
enunciatário chega a essa interpretação velada e, também, à argumentação, ao
posicionamento crítico indireto do enunciador a uma outra postura ideológica: no
caso de “Um mentiroso, aquele velho”, como o enunciador mescla tempos distintos e
usa o discurso direto, associando-os a outros recursos lingüístico-discursivos, isso
faz, respectivamente, com que a identidade do narrador-testemunha e da
47
personagem principal tecida no nível do enunciado seja descontruída veladamente
no nível da enunciação.
Como uma conseqüência dessa desconstrução de identidades, o enunciador
poderá concordar ou discordar sempre implicitamente, uma vez que sua voz
nunca é objetivada no enunciado dos valores ideológicos veiculados por essas
entidades discursivas. No caso do conto em questão, percebemos, enquanto
enunciatários, que o enunciador diverge da postura ideológica do narrador. Esse fato
revela qual a perspectiva que está sendo abordada, ou melhor, reelaborada
criticamente pelo enunciador por meio do tom vacilante da ironia: a agressão que
permeia as relações humanas. Vale lembrar uma vez mais que, por meio desse tom
vacilante, o enunciador faz questionamentos sem ser incisivo, pois sua intenção é
revelar as contradições existentes sob as aparências das situações e dos seres.
Assim sendo, passaremos agora a analisar as marcas enunciativas desse conto que
nos remetem à argumentação indireta tecida pelo enunciador à referida perspectiva
reificadora. Obviamente que, durante toda a análise, retomaremos alguns conceitos
teóricos abordados por nós até o momento, bem como iremos apresentar outros
que possam nortear um pouco mais o nosso trabalho.
Dissemos anteriormente que o enunciador opera na narrativa “Um mentiroso,
aquele velho” uma combinação entre a debreagem enunciativa e a debreagem
enunciva, fazendo com que o narrador relate os acontecimentos se valendo tanto de
um “eu” quanto de um “ele”, de um “lá” e de um “cá” e de um “agora” e de um
“alhures”, o que significa dizer que o narrador-testemunha conta, no presente e sob
o seu ponto de vista portanto, a partir de um “eu” —, os fatos desencadeados por
um protagonista — logo um “ele” — em um determinado momento do passado.
48
No caso específico da debreagem de pessoa, chegamos a comentar que o
fato do enunciador fazer um dos netos narrar o ocorrido por meio de um “nós”, em
vez de um “eu”, tem por função confirmar mais enfaticamente a idéia de que a
considerada pretensa coragem do avô é uma mentira, pois não esse neto, mas
todos os netos escutaram, presenciaram a dita farsa. Ocorre que o uso do “nós” no
lugar do “eu parece exercer também uma outra função, a de enfatizar a
subjetividade desses netos, diferentemente da função do que Fiorin (2001, p. 96)
define por plural de modéstia em que “o eu evita dar realce a sua subjetividade,
diluindo-a no nós”: na medida em que nós, enquanto enunciatários do texto, vamos
empreendendo a leitura do conto, percebemos que esse “nós”, em que se dilui o
“eu” do narrador-testemunha, se presta a realçar a sua subjetividade, ou mais
especificamente, a sua e a indignação de todos os outros netos para com o avô,
indignação essa que teve de ser por eles contida no momento em que o fatos
ocorreram porque, segundo as palavras do próprio narrador, “um a merece
respeito e consideração dos netos” (SCLIAR, 2003, p. 145).
Como esses netos acreditam que o respeito e a consideração ditados por
essa formação discursiva se restringem a simplesmente deixar de verbalizar a
indignação para com uma pessoa mais velha e, por conseguinte, como eles não
puderam, na ocasião em que a história ocorreu, expressar toda sua irritação e
impaciência com relação à “mentira” do afato este comprovado com a quase
total ausência de falas dos netos no momento do enunciado —, então lhes restou
exprimi-las somente no instante em que o acontecimento passado está sendo
narrado, instante este referente ao momento da enunciação, ao agora que não conta
com a presença do avô, mas sim apenas com a presença do narrador e a do
narratário. Com relação ao narratário, é preciso ressaltar que essa posição
49
enunciativa não está explícita no texto, ou seja, o narrador não dialoga diretamente
com o narratário, mas, mesmo assim, é possível dizer, segundo comprovaremos
mais adiante, que a alteridade do narrador está presente no texto, ainda que
virtualmente. Por ora, continuemos com a problemática da combinação entre os
modos de enunciar o texto empreendido pelo enunciador.
Falamos que o narrador exprime sua indignação para com o avô no momento
da enunciação; pois bem, ao transmiti-la claramente somente em um agora, o
narrador faz o narratário pensar que as normas ditadas pela formação discursiva que
reza o respeito incondicional dos netos aos mais velhos estão sendo respeitadas.
Fazendo o seu interlocutor acreditar que o avô não está sendo desrespeitado — pois
este, além de não saber que está sendo objeto de uma discussão, contou uma
mentira —, o narrador aproveita esse instante para falar sobre a irritação de todos os
netos. Portanto, o momento da enunciação passa a ser para o narrador: a) uma
oportunidade de desabafar para o narratário a raiva até então contida; b) uma
oportunidade de desmascarar o avô; c) uma oportunidade de justificar ao narratário
essa raiva, não deixando de, sorrateiramente, fazê-lo compartilhar desse sentimento.
O início do conto revela-nos como esse sentimento de indignação só foi
expresso explicitamente pelos netos no presente:
Certo dia, nosso a voltou para casa muito excitado. Entrou e foi
logo dizendo:
— Meninos, vocês não imaginam o que eu vi.
Nós estávamos vendo televisão, e não queríamos ser interrompidos,
mas nosso avô era insistente:
Coisa espantosa, meninos. Eu estava no centro da cidade quando
de repente umas pessoas começaram a gritar, olha lá, olha lá. Eu olhei e lá
estava o homem na janela do edifício, um edifício alto, vinte andares
pronto para saltar. Juntou gente, meninos, uma multidão, muitos gritando,
salta, salta.
— E ele saltou? — perguntamos.
Não. Ficou ali um tempo e depois voltou pra dentro. Não quis
saltar.
Nós ficamos muito putos. Porra, a gente estava ali vendo TV, um
filme bacana, entra o velho tonto, nos interrompe pra quê? Pra contar
50
uma babaquice. E o pior é que, tendo começado, ele agora o queria
parar (SCLIAR, 2003, p. 144).
Conseguimos depreender a subjetividade do narrador, ou melhor, a sua
irritação para com o avô pela combinação entre as debreagens enunciativa e
enunciva de tempo e de espaço. Primeiramente, ele inicia a sua fala contando um
fato ocorrido em um “Certo dia”, portanto, um fato pertencente ao passado ou, mais
especificamente, ao tempo do enunciado: naquele dia, ao chegar do centro da
cidade, o avô interrompeu a diversão dos netos, para contar-lhes um fato que
julgava ser impactante, que tal fato dizia respeito à tentativa de suicídio de um
rapaz.
Afirmamos que o a julgava o suicídio como algo impactante levados não
apenas pela carga negativa que tal ato possui, mas porque nos parece que ele sabia
que esse acontecimento despertaria algum tipo de curiosidade por parte de seus
netos. Esse propósito do avô de chamar a atenção de seus interlocutores mediante
o relato de uma tentativa de suicídio ainda será melhor explorado por nós. Por ora,
convém enfatizarmos que o avô relatou aos netos justamente uma tentativa de
suicídio e não a concretização desse ato, o que fez os netos não conseguirem
assistir ao tal “filme bacana” e, por conseguinte, os fez ficarem, conforme as
palavras do próprio narrador, “muito putos” naquela ocasião. Acontece que a
irritação depreendida desse sintagma não ficou restrita apenas ao momento do
enunciado. Percebe-se que o narrador revive no presente esse sentimento
deflagrado no passado principalmente no instante em que ele diz “Porra, a gente
estava ali vendo TV, um filme bacana, entra o velho tonto, nos interrompe”: a
concomitância entre o tempo e espaço da enunciação e o tempo e o espaço do
enunciado é sintomática quando o narrador combina o verbo “estava” no pretérito
imperfeito com um advérbio de lugar “ali” relacionado ao tempo presente; além
51
disso, logo depois de dizer “a gente estava ali”, ele fala entra o velho tonto, nos
interrompe”, cujos verbos estão flexionados no presente para expressar um fato
ocorrido no passado e que, portanto, poderiam ser expressos, respectivamente, pelo
pretérito perfeito “entrou” e “nos interrompeu”.
O fato do enunciador operar essa troca do pretérito perfeito pelo presente
expressa justamente o que afirmamos anteriormente: a irritação dos netos,
deflagrada no passado, ainda é sintomática no presente, efeito de sentido este que
podemos comprovar a partir das ponderações de Fiorin (2001, p. 196-197) sobre o
fato de que, com essa troca do pretérito perfeito pelo presente, “Presentifica-se o
acontecimento anterior para mostrar que ele tem ressonância no presente, que pesa
mais que o passado da ação. [...] O presente é, então, visto como uma continuidade
lógica ou psicológica do passado”. Essa presentificação, que tornam concomitantes
os tempos e os espaços de sistemas enunciativos distintos, acaba por aproximar o
narrador, o narratário e também o enunciatário dos acontecimentos já deflagrados —
aproximação esta reforçada pelo advérbio de tempo “agora” que, apesar de referir-
se a fatos presentes, está, nesse caso, sendo usado para expressar um fato
passado —, fazendo-os perceber a consternação dos netos.
A princípio, poderíamos pensar que esse sentimento de consternação por
parte desses netos é perfeitamente compreensível, que muitas vezes, no
momento em que somos contrariados por um outro alguém, não refletimos sobre o
que pode tê-lo levado a agir de um modo que nos desagrada. Essa reflexão parece
ser, na maioria das vezes, sempre posterior ao momento em que tais fatos ocorrem,
quando, então, fora dos acontecimentos, podemos refletir com mais objetividade
e, conseqüentemente, com menos subjetividade. No entanto, o que o enunciador
desse conto parece nos sinalizar é justamente o contrário disso tudo, ou melhor,
52
ele parece chamar sorrateiramente a nossa atenção desde o início do conto para o
fato de que o narrador é um sujeito que não pondera sobre os fatos de sua vivência.
E uma das maneiras do enunciador nos deixar entrever a falta de reflexão desse
narrador sobre os fatos, diz respeito à mescla no enunciado entre o que aconteceu
no tempo e no espaço do aqui e do agora e no tempo e no espaço do e do então.
Como, a nosso ver, a mescla na superfície textual entre os tempos e os
espaços da enunciação e do enunciado pode ser entendida como uma
concomitância entre elementos díspares, então, acreditamos que essa combinação
entre contrários pode ter a função de carnavalizar o narrador e os valores por eles
sustentados, bem como a perspectiva, isto é, a trama cultural que é posta em jogo
nesse texto. Para compreendermos qual é o sentido de carnavalizar e, por extensão,
em que consiste essa relação simultânea entre elementos distintos, devemos
recuperar o conceito de literatura carnavalizada proposto por Bakhtin (2005, p. 122),
para quem esta é a “transposição do carnaval para a linguagem da literatura”, cuja
afirmação é explicada pelo próprio teórico russo mediante a definição do que é o
carnaval:
O carnaval é um espetáculo sem ribalta e sem divisão entre atores e
espectadores. No carnaval todos são participantes ativos, todos participam
da ação carnavalesca. Não se contempla e, em termos rigorosos, nem se
representa o carnaval mas vive-se nele, e vive-se conforme as suas leis
enquanto estas vigoram, ou seja, vive-se uma vida carnavalesca. Esta é
uma vida desviada da sua ordem habitual, em certo sentido uma “vida às
avessas”, um “mundo invertido” (“monde à l’envers”).
Por esta citação, podemos depreender que um texto carnavalizado seria
aquele em que as leis de uma visão de mundo preponderante é questionada por
uma outra que é justamente o seu contrário, o seu outro. Isso significa que esse
outro, na “ordem habitual”, é abafado por essa visão de mundo dominante, podendo,
no entanto, subverter essa imposição justamente no mundo literário: lembremos da
53
lição de Perrone-Moisés de que a literatura “escandaliza”. E uma das maneiras de
que o enunciador desse conto se vale para escandalizar a agressão que tem
permeado as relações humanas na sociedade contemporânea, a qual é levada a
cabo pelo narrador, se refere à instauração no texto do tom vacilante irônico,
instauração que pode decorrer, dentre outros mecanismos lingüístico-discursivos, de
determinados elementos carnavalescos, como o “limiar”.
De acordo com as considerações de Discini (2006, p. 90) feitas a partir das
ponderações bakhtinianas, o limiar é “um elemento constituinte da carnavalização”.
Aliás, Discini (ibidem, p. 76) afirma que Bakhtin projeta a categoria limite vs. limiar,
sendo aquela correspondente ao fechamento e esta correspondente ao
inacabamento. Esse inacabamento que sugere a idéia de fluidez, de mobilidade
próprias da carnavalização, que esta, conforme podemos depreender das
palavras de Bakhtin sobre o carnaval, elimina as fronteiras que separam os
contrários, permitindo uma confluência entre eles está presente na
simultaneidade dos tempos e dos espaços da enunciação e do enunciado a que nos
referimos um pouco mais anteriormente, simultaneidade esta que, como dissemos,
nos revela sub-repticiamente, a incapacidade do narrador e de todos os demais
netos de observar mais profundamente a atitude do outro: ao operar com esse limiar
do tempo e do espaço, ou melhor, ao atualizar o passado no presente mediante as
palavras do narrador, o enunciador revela sutilmente que o tempo compreendido
entre o dia em que o avô “mentiu” e o momento em que tal fato está sendo contado
pelo neto não foi suficiente para que este pudesse refletir com maior acuidade sobre
os motivos que de fato podem ter feito o avô a interromper a diversão de seus netos.
Daí, podermos afirmar que o enunciador faz o narrador pronunciar as expressões
“Porra”, “babaquice” e “velho tonto” no momento da enunciação com o fim de nos
54
sinalizar que, sob a pretensa sensatez que o narrador deseja passar acerca de seu
julgamento, reside não somente a sua falta de reflexão e de observação, mas
também a insensibilidade dele e de todos os outros netos para com o avô.
Um outro recurso que nos faz perceber o uso desse tempo carnavalizado
para usar uma expressão de Discini (2006, p. 84) pelo enunciador como uma
maneira de construir ironicamente a imagem de um narrador hostil diz respeito ao
discurso indireto livre, em que “é a fala da personagem que invade a fala do
narrador” (FIORIN, 2005, p. 68). Nessa narrativa, sabemos que o narrador,
embora não seja o protagonista da história, participou dos fatos que ele próprio
relata ainda que apenas como testemunha; sendo assim, o discurso indireto livre faz
com que o neto deixe a irritação por ele experimentada no passado enquanto
personagem invadir seu relato no presente, demonstrando que, mesmo como um
narrador que está distante dos fatos ocorridos, ele ainda sente os efeitos dessa
irritação deflagrada no “lá” e no “então”.
No trecho inicial do conto que estamos analisando, o enunciador faz o
sintagma “pra quê?” ser expresso pelo narrador por meio do discurso indireto livre,
para demonstrar que ele e os outros netos não compreenderam e, o que é
essencial, não compreendem ainda o motivo da considerada impertinência do avô, o
que ratifica a não reflexão por parte desses netos que continuam achando ser uma
“babaquice” aquilo que o avô lhes contou e que continuam considerando-o como um
“tonto”. Aliás, pelo próprio título, que também é expresso pelo discurso indireto livre,
o enunciador insinua essa estaticidade do poder reflexivo do neto: se, por um lado, o
pronome “aquele” se refere ao julgamento tecido pelo narrador no momento em que
os fatos ocorreram, por outro, o substantivo “velho”, por ser usado mais como um
qualificador do que propriamente como um nome para fazer referência a uma
55
pessoa de idade, concerne à avaliação atual do neto sobre o avô trata-se de
alguém inútil, idiota, “tonto” como ele próprio já afirmou.
Como pudemos verificar, a carnavalização do tempo, ou melhor, a ausência
de limites entre o passado e o presente, permitindo a confluência entre ambos os
tempos na superfície textual, permitiu-nos concluir, nessa narrativa, que de fato o
narrador e o enunciador pertencem, cada um deles, a instâncias distintas da
hierarquia enunciativa e, principalmente, ser cada um deles porta-voz de um
determinado ponto de vista acerca dos fatos narrados. Além disso, a instauração
desse recurso desde o início da narrativa faz com que o enunciatário comece a
perceber a postura inflexível que se esconde por debaixo da pertinente” irritação
desse narrador.
Acabamos de afirmar que o enunciatário começa a perceber a postura
inflexível do neto, porque é a partir do momento em que passamos a escutar o
discurso do avô, o qual é posto em embate com o discurso do narrador, que temos a
confirmação dessa inflexibilidade, conforme poderemos verificar mais adiante. E é
nisso que consiste o tom vacilante da ironia: em desvelar paulatinamente as
contradições dos seres. Por ora o que se tem é um embrião da crítica indireta irônica
que o enunciador passa a tecer com maior vigor durante o restante da narrativa.
Esse embrião consiste justamente em que o enunciador leva o enunciatário a
oscilar, logo no início da história, daquilo que é dito explicitamente no enunciado
para aquilo que é dito implicitamente na enunciação, fazendo-o desconfiar,
conseqüentemente, sobre quem de fato é a vítima de sua ironia. E é a hostilidade
contundente atribuída de maneira sorrateira pelo enunciador ao modo como o
narrador relata os fatos que nos faz perceber que essa vítima não é o avô, mas sim
o narrador e todos os outros netos: se o narrador, ao parecer que é interpelado pela
56
formação discursiva que prima pelas normas da boa conduta, usou aqueles termos
avaliativos para tentar fazer o narratário focar-se naquilo que considera como
postura inconveniente e ridícula do avô, o enunciador, interpelado pela formação
discursiva que respeita os mais velhos, ao permitir que o narrador expresse a sua
indignação por meio de tais termos, tenta fazer a atenção do enunciatário voltar-se
não para a cólera dos netos, mas sim para a agressividade com a qual essa cólera é
por eles proferida. Assim, se o narrador pretende justificar a sua ira ao narratário, o
enunciador pretende desvelar ao enunciatário que esse narrador enuncia sua fala de
uma outra formação discursiva, a que hostiliza os mais velhos, e, por conseguinte,
pretende criticar a insensibilidade desses netos.
No entanto, como é por meio da ironia que o enunciador empreende a sua
crítica, já sabemos que esse seu julgamento acerca da atitude desse narrador ocorre
de modo indireto, não objetivado no enunciado; por isso é que afirmamos, durante o
nosso percurso teórico sobre os aspectos da ironia, ser a presença do enunciador
mostrada, mas não marcada na superfície textual, ou seja, ela se insinua, se
referencializa, de algum modo, ao enunciatário, fazendo com que ele perceba o que
está sendo julgado e, por extensão, fazendo-o perceber quem de fato é a vítima da
ironia. Aliás, sobre o fato da ironia ter um alvo para as suas críticas, Brait (1996, p.
62) interpreta as considerações de Catherine Kerbrat-Orecchioni a respeito do que
esta entende ser uma das peculiaridades da ironia verbal:
A ironia verbal implica um trio actancial: o locutor (A
1
) que dirige um
certo discurso irônico para um receptor (A
2
), para caçoar de um terceiro
(A
3
) que é o alvo da ironia. Ela [Kerbrat-Orechioni] acrescenta também,
detalhando o funcionamento da ironia verbal, que os três actantes
envolvidos podem coincidir no todo ou em parte, dependendo do tipo de
discurso em que aparecem. No caso de um solilóquio irônico a
coincidência entre A
1
e A
2
; no caso de uma auto-ironia a coincidência
entre A
1
e A
3
. ainda a possibilidade de o receptor ser tomado como
alvo, o que implica uma coincidência entre A
2
e A
3
ou, ainda, um caso de
solilóquio auto-irônico em que coincidem A
1
, A
2
, A
3
.
57
No conto em questão, como o narrador ridiculariza o apautado na idéia de
que esse seu julgamento é pertinente, que, segundo seu ponto de vista, essa
personagem conta uma “babaquice” em uma hora inapropriada, isso pode fazer o
enunciatário crer que o avô é a vítima desse texto irônico. Contudo, ao identificar
que o enunciador mescla na superfície textual os tempos e os espaços do enunciado
e da enunciação para sinalizar indiretamente que a irritação do neto persiste de
modo ainda mais agressivo no momento da enunciação visto que é no
presente que ele pode explicitar a raiva silenciada no passado em virtude da
formação discursiva que impõe a necessidade de respeitar os mais velhos —, o
enunciatário passa a desconfiar que a vítima da ironia é o narrador e, por extensão,
passa a perceber o seu descaso e a sua insensibilidade para com o avô.
A constatação por parte do enunciatário de que a vítima é o narrador passa a
ocorrer, conforme antecipamos, quando o enunciador empreende uma
contraposição entre o discurso proferido pelo avô e o discurso proferido pelo
narrador, contraposição esta que ocorre no nível do enunciado, onde tanto a fala do
avô, quanto a do narrador estão objetivadas. É por meio desse embate, inclusive,
que o enunciatário passa a perceber que a imagem do avô construída pelo narrador
não condiz com a imagem de alguém mentiroso. Aliás, essa contraposição entre
posicionamentos enunciativos distintos relativiza a avaliação monolítica de mentira
como algo pejorativo, torpe; é o que iremos verificar mais ao final da análise, pois, o
que nos interessa agora é chamar a atenção para o fato de que o confronto
simultâneo entre tais posicionamentos contrários é mais um elemento
carnavalizador, visto que a citação de Bakhtin nos permite afirmar que a
carnavalização aproxima elementos díspares, fato este confirmado pelas
interpretações de Fiorin (2006, p. 94) acerca das ponderações do estudioso russo:
58
O carnaval é constitutivamente dialógico, pois mostra duas vidas
separadas temporalmente: uma é a oficial, monoliticamente séria e triste,
submetida a uma ordem hierarquicamente rígida, penetrada de
dogmatismo, temor, veneração e piedade; outra, a da praça pública, livre,
repleta de riso ambivalente, de sacrilégios, de profanações, de
aviltamentos, de inconveniências, de contatos familiares com tudo e com
todos.
Pelo que estamos analisando, podemos inferir que a vida oficial,
“monoliticamente ria e triste” é sustentada em “Um mentiroso, aquele velho” pelos
netos; quanto à vida “da praça pública”, a nós nos parece que é o enunciador quem
a sustenta, pois parece que é do confronto por ele harmonizado no enunciado entre
as posturas ideológicas do narrador e do protagonista dessa narrativa que o mundo
às avessas é constituído. Disso tudo, podemos deduzir que a função, nesse conto,
da coexistência entre discursos contrários, sendo cada um deles proferido por uma
determinada personagem, não é o de simplesmente nos mostrar a inflexibilidade dos
netos, mas sim é a de destroná-la para coroar um outro ponto de vista. Sobre essa
ação de destronamento e coroação típicas da literatura carnavalizada (BAKHTIN,
2005, p. 124), ou mais especificamente, sobre a função dessa ação carnavalizadora
também falaremos oportunamente em um outro momento do nosso trabalho. Por
ora, vamos tentar deslindar ainda mais a postura reificadora do narrador e, ao
mesmo tempo, tentar delinear qual é de fato a essência do avô que está subjacente
à sua aparente insensatez. Para isso, passemos a analisar mais detidamente como
ocorre o processo persuasivo do narrador para convencer o narratário de que o avô
é uma pessoa desprovida de bom-senso e também como ocorre o processo
persuasivo do enunciador para fazer o enunciatário transcender as aparências
explicitadas no enunciado para chegar ao significado irônico.
Acabamos de afirmar que o narrador tenta persuadir um narratário, e não o
enunciatário, o que nos leva a tentar diferenciar as funções exercidas por cada uma
59
dessas posições enunciativas do sujeito da enunciação. Nesse conto, estamos
vendo que, para o enunciador conseguir provar que o narrador enuncia seus valores
pautados por uma formação discursiva que hostiliza os mais velhos, ele organiza
todos os elementos compositivos do texto de modo a convencer o enunciatário a
crer nisso. o narrador, para validar a imagem de um avô impertinente, insensato,
precisa organizar seu discurso de modo a convencer o narratário a acreditar nessa
idéia. Acontece que, nessa narrativa, o narratário não está explicitado no fio
discursivo, o que o significa que ele não esteja presente. Conforme Fiorin (2001,
p. 66), esse posicionamento enunciativo pode ser implícito e a sua presença, ainda
que virtual, é assegurada quando ela corresponde a uma imagem construída pelo
narrador. E essa imagem do narratário construída pelo narrador desse texto é a de
alguém que entenda e concorde com o atual estado aborrecimento dos netos.
Tomando por base ainda o início do conto, notamos que, para o neto
convencer o narratário de que o avô é uma pessoa impertinente, o enunciador faz
com que ele delegue voz ao protagonista por meio do discurso direto, cuja função é
criar a ilusão de que o conteúdo expresso por um determinado personagem é
incontestavelmente verdadeiro e, sobretudo, que tal conteúdo é de total
responsabilidade dessa personagem, pois o discurso direto “dá a impressão de que
o narrador está apenas repetindo o que disse o interlocutor” (FIORIN, 2001, p. 74).
Todavia, o narrador não se limita a recuperar o que diz o seu avô: na verdade, ele
recupera em um agora as falas enunciadas por essa personagem em um então para
enfatizar ao narratário a idéia da inconveniência e da falta de bom-senso dessa
personagem.
o enunciatário, para depreender adequadamente a ironia desse conto, ou
melhor, para inferir qual a argumentação indireta do enunciador em relação à
60
postura ideológica desse narrador, não pode cair na persuasão empreendida por
esse narrador no nível do enunciado, caso contrário, ele poderá fazer as vezes do
narratário, correndo o risco, portanto, de acreditar que a visão ideológica defendida
no texto é a que hostiliza os idosos. É por isso que chegamos a comentar
anteriormente que, ao ler as primeiras colocações do avô, o narratário, e amesmo
o enunciatário, têm a impressão de que essa personagem de fato enuncia seu dizer
do interior da formação discursiva dos impertinentes, pois, em vez de simplesmente
relatar, de modo objetivo, que um homem queria pular de um edifício para se
suicidar, o avô valeu-se do tom hiperbólico e da prolixidade, para criar uma tensão
na história que estava contando aos netos: não se tratava, pois, de um fato
qualquer, mas sim de uma “Coisa espantosa”; o edifício também não era qualquer
um, era um edifício “alto”, de “vinte andares”; os netos foram interpelados três vezes
pelo vocativo “meninos”, demonstrando que o a desejava a atenção deles; as
pessoas que se juntaram para assistir ao suicídio do homem não eram poucas, elas
formavam uma “multidão”; e o asimula as falas gritadas dessa multidão que dizia
freneticamente para o homem “salta, salta”.
Como se percebe, o avô conseguiu a atenção dos netos, tanto que estes lhe
perguntaram “E ele saltou?único instante em que o enunciador fez os netos se
pronunciarem na ocasião —, demonstrando que haviam se interessado pelo assunto
e que desejavam saber o desfecho da história. Na verdade, eles esperavam que
tal desfecho fosse trágico, pois o modo como o avô vinha relatando a narrativa de
fato os estava conduzindo a essa expectativa, a qual, no entanto, foi por ele
quebrada, pois o tal homem que pretendia se suicidar acabou por desistir desse
feito. Foi justamente esse final inesperado, associado ao caráter hiperbólico e difuso
do discurso do avô, que acabou por desencadear a indignação em seus netos,
61
fazendo-a perdurar durante o momento em que tal acontecimento está sendo
contado ao narratário. Lembramos que essa indignação pôde ser por nós constatada
justamente quando analisamos a agressividade com que o enunciador fez o
narrador proferir os termos avaliativos sobre a conduta do avô.
Se, no início do conto, o enunciador faz o narrador valer-se do discurso direto
com o objetivo de passar ao narratário a impressão de que o protagonista da história
é uma pessoa impertinente, no restante da narrativa, esse mesmo recurso
gramatical é por ele usado para que nós, enunciatários do texto, possamos inferir a
medida da insensibilidade desse narrador, bem como a medida da não-insensatez
do avô. Assim sendo, o enunciador faz com que o narrador recupere no presente o
discurso de outrora do avô e, ao mesmo tempo, teça alguns comentários sarcásticos
sobre o modo dessa personagem contar a história acerca do suicida.
Quanto ao fato de o narrador tecer comentários à fala do avô, nota-se que ele
faz isso desde o início da narrativa. Na transcrição que diz respeito ao início do
conto, ao afirmar “nosso avô era insistente”, o narrador avalia como inoportuno o
comportamento dessa personagem antes que as palavras deste sejam desnudadas
ao narratário por meio do discurso direto. Contudo, essa avaliação ainda não é feita
de modo pejorativo e agressivo, fato este que vai ocorrer apenas depois de o avô ter
esvaziado as expectativas dos netos, os quais esperavam um desfecho trágico para
a história do homem suicida. O próximo trecho desse relato ilustra bem como a
avaliação do narrador e, por extensão, a dos outros netos, passa, a partir desse
momento, a ser zombeteira:
Eu, se estivesse no lugar dele, faria diferente. Eu esperaria que
uma multidão, uma grande multidão, se reunisse embaixo, que a polícia
e os bombeiros aparecessem. Eu exigiria a presença do prefeito e do
governador; eu deixaria que eles, pelos alto-falantes, apelassem ao meu
bom senso. Quando terminassem, eu ficaria olhando aquela massa, mas
sem deter-me num rosto específico.
62
Na TV, um verdadeiro massacre, um ninja liquidando os inimigos — e
nós ali, tendo de ouvir. Nós tendo de ouvir. Deus.
— Eu levaria o suspense prosseguia o nosso aaos limites do
suportável. E quando aquela gente já não agüentasse mais, eu...
Pausa dramática.
— Eu saltaria.
Até que enfim.
Até que enfim porra nenhuma.
Mas antes o nosso avô, triunfante eu lançaria ao mundo o
meu derradeiro olhar, um olhar capaz de descortinar ao longe mares
bravios, florestas misteriosas, picos nevados, vulcões fumegantes, todos os
lugares que eu sempre quis visitar e nunca consegui ― por causa da
família, por causa da avó de vocês, dos pais de vocês. Eu veria tudo isso.
E aí pularia (SCLIAR, 2003, p. 144-145).
Para compreendermos como o tom sarcástico do narrador nessa transcrição é
que nos confirma ser ele a vítima da ironia empreendida pelo enunciador, necessita-
se agora aprofundar a análise da construção da imagem do avô dada pelo
enunciador, imagem esta que, conforme dissemos, destoa da que foi criada pelo
narrador. Para isso, durante tal análise, destacaremos alguns dos principais
elementos da menipéia que, juntamente com o discurso direto, compõem essa
imagem do avô pelo enunciador, já que tais elementos desse “gênero
profundamente carnavalizado” (Bakhtin, 2005, p. 158) é que irão diferenciar essa
personagem da personalidade acabada, fixa do narrador, atribuindo-lhe, portanto,
uma identidade inacabada, móvel.
Comecemos, pois, por explicar uma possível razão para o avô ter
interrompido a diversão dos netos com o fim de contar-lhes a história do homem que
tentou suicidar-se no centro da cidade. Quando analisamos o trecho inicial de “Um
mentiroso, aquele velho”, chegamos a afirmar que o avô havia chamado a atenção
dos netos por meio de um fato que ele julgava impactante, não apenas pela carga
negativa que tal ato possui, mas porque nos parece que ele sabia que esse
acontecimento despertaria algum tipo de curiosidade por parte de seus netos. De
fato, como constatamos pouco, os netos ficaram curiosos em saber como havia
sido o desfecho trágico de tal história e que sua frustração por o ter havido tal
63
desfecho é que despertou a indignação para com o avô. Acontece que o conteúdo
das falas dessa personagem presentes nesse segundo trecho do conto nos autoriza
a afirmar que há também um outro motivo para ela ter relatado a história do homem
que acabou por poupar a própria vida: o avô parece desejar, com o relato desse
acontecimento, traçar um paralelo entre a concretização de seu suicídio, ainda que
isso ocorra apenas hipoteticamente, e a não-concretização do suicídio por parte do
homem do centro da cidade, e, nessa comparação, parece queum desejo de sua
parte em não se igualar a tal homem que recuou da decisão de matar-se, seja por
medo ou por qualquer outro motivo; parece haver, portanto, um desejo de não ceder
a imposições, e o suicídio parece ser o caminho capaz de libertar o avô de alguma
angústia, de algo que o reprime.
A dimensão desse significado da morte para o avô pode ser melhor explicada
a partir de três dentre as 14 particularidades da menipéia enumeradas por Bakhtin
(2005, p. 114-115) sobre esse gênero carnavalizador:
3. A particularidade mais importante do gênero da menipéia consiste
em que a fantasia mais audaciosa e descomedida e a aventura são
interiormente motivadas, justificadas e focalizadas aqui pelo fim puramente
filosófico-ideológico, qual seja, o de criar situações extraordinárias para
provocar e experimentar uma idéia filosófica [...]
[...]
5. A ousadia da invenção e do fantástico combina-se na menipéia
com um excepcional universalismo filosófico e uma extrema capacidade de
ver o mundo. A menipéia é o gênero das “últimas questões”, onde se
experimentam as últimas posições filosóficas. Procura apresentar, parece,
as palavras derradeiras, decisivas e os atos do homem, apresentando em
cada um deles o homem em sua totalidade e toda a vida humana em sua
totalidade.
[...]
9. São muito características da menipéia as cenas de escândalo, de
comportamento excêntrico, de discursos e declarações inoportunas, ou
seja, as diversas violações da marcha universalmente aceita e comum dos
acontecimentos, das normas comportamentais estabelecidas e da etiqueta,
incluindo-se também as violações do discurso.
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Podemos afirmar, de certo modo, que a situação hipotética criada pelo avô é
extraordinária e ousada pelo fato de ele falar da morte que é uma das “últimas
questões” de que também trata a menipéia — de modo extravagante, exagerado: na
primeira fala desse personagem, notamos que ele transforma o seu desejo pelo
suicídio em um espetáculo, onde estaria presente não uma multidão apenas, mas
uma “grande multidão”; além disso, não bastava a presença de somente umas das
corporações responsáveis por assegurar a vida humana, sendo, pois, que tanto a
“polícia” quanto os “bombeiros” deveriam estar presentes para dissuadirem-no da
idéia de morrer; não bastaria também somente a presença do governador”, era
preciso que inclusive o “prefeito” estivesse presente, ainda que este fosse uma
autoridade com menor poder político se comparado ao governador.
Dissemos que o avô transforma seu hipotético suicídio em um espetáculo;
mas não se trata de um espetáculo banalizado como o que o homem do centro da
cidade poderia proporcionar a uma multidão que parecia estar sedenta apenas por
ver um corpo estendido no chão lembremos que a multidão gritava “salta, salta”
ao homem que queria suicidar-se. Como poderemos verificar mais adiante, o avô
descreve lenta e minuciosamente o ato rumo ao fim, o que nos permite afirmar que o
que ele deseja com essa história hipotética é provocar e experimentar uma idéia,
idéia esta capaz de descortinar “a vida humana em sua totalidade”: isso significa que
o avô pretende transcender o sentido da morte, seja em seu sentido habitual de fim
da vida, seja em seu sentido vulgar de espetacularização gratuita. E é justamente
criando essa situação insólita que ele poderá “ver o mundo” e não somente uma
parte dele, ou mais especificamente, é a partir desse fato inusitado que ele pode
revelar que subjacente a essa aparente loucura está o desejo de libertar-se de certa
angústia.
65
Segundo o que acabamos de afirmar, o avô descreve lenta e minuciosamente
o caminho que poderia levá-lo à morte, ou melhor, à sua libertação. Isso pode ser
constatado quando, após dizer que saltaria, parecendo que havia terminado de
contar a história, ele acaba por retomá-la, afirmando que, antes de saltar, lançaria
um olhar ousado sobre o mundo. Essa maneira de simular que a história havia
acabado para, logo em seguida, retomá-la de modo ainda mais detalhado é uma
maneira que esse avô tinha de, mais uma vez, chamar a atenção de seus netos, os
quais, no entanto, desejavam que o relato findasse rapidamente por julgarem um
martírio ouvir o que parecia uma insensatez, ou melhor, por não perceberem o
significado profundo de tal relato: apenas após narrar como seriam os momentos
finais que antecederiam a sua morte é que o avô explicita ser o cerceamento e a
insensibilidade da família os motivos que o fariam suicidar-se. Como poderemos
verificar, esses motivos o se limitam, contudo, somente ao mundo da história
hipotética, sendo, na verdade, as razões que incitaram o avô a ter inventado essa
história mirabolante, uma vez que somente a ficção é que parece permitir-lhe ser
ousado, é que parece permitir-lhe ultrapassar os limites impostos pela realidade:
notemos que o acontinua contando sua história, mantendo o tom extravagante, o
qual é ainda mais acentuado pelo uso de paradoxos que descrevem os lugares mais
exóticos que o avô gostaria de ter visitado, como “mares bravios, florestas
misteriosas, picos nevados, vulcões fumegantes”. De acordo com Bakhtin (2005, p.
118):
10. A menipéia é plena de contrastes agudos e jogos de oxímoros: [...] A
menipéia gosta de jogar com passagens e mudanças bruscas, o alto e o
baixo, ascensões e decadências, aproximações inesperadas do distante e
separado, com toda sorte de casamentos desiguais.
66
Essa mistura dos quatro elementos da natureza, isto é, a mescla de
elementos contrários entre si como a terra, o fogo, a água e o ar, como o alto e o
baixo, como o quente e o frio, nos faz perceber o desejo do avô pelo inabitual, pelo
incomum, ou melhor, o seu desejo por transcender, conhecer outras verdades além
daquelas que lhe foram apresentadas como únicas, absolutas; esse desejo pelos
extremos, ainda que introduzido por meio de uma história excêntrica, é revelador de
uma identidade móvel, inacabada, isto é, uma identidade sedenta por mudanças.
No entanto, é somente por meio dessa história hipotética que o avô pode
vivenciar, concretizar seu desejo por experimentações ilimitadas, pois, segundo o
que afirmamos, a família impede a execução do desejo dessa personagem no
plano da realidade. Há, portanto, no discurso do avô, um embate entre mais
elementos contrários, o confronto entre sonho e realidade, sendo que esta se impõe
àquela; é sintomático que o sonho — ou a história inventada — seja relatado
basicamente por meio do futuro do pretérito do indicativo e do pretérito imperfeito do
subjuntivo, os quais, nesse caso, expressam acontecimentos hipotéticos, e que a
realidade seja expressa pelo pretérito perfeito do indicativo, o qual, juntamente com
o advérbio “nunca”, expressa uma “verdade geral” (FIORIN, 2001, p. 157), portanto,
um fato incontestável: logo após dizer “eu lançaria ao mundo meu derradeiro olhar,
um olhar capaz de descortinar ao longe mares bravios, florestas misteriosas, picos
nevados, vulcões fumegantes [...]”, o aafirma “todos os lugares que eu sempre
quis visitar e nunca consegui por causa da família, por causa da avô de vocês,
dos pais de vocês”, o que demonstra que o desejo do avô por desvendar o mundo
nunca ultrapassou e provavelmente nunca ultrapassará pelo menos enquanto
estiver vivo o plano dos sonhos, uma vez que, como ele próprio explicitou isso no
nível do enunciado, jamais conseguiu concretizar tal feito na realidade, devido às
67
restrições familiares. É por isso que o suicídio pode ser-lhe a melhor forma para
concretizar a vida ilimitada que a realidade lhe destitui. Vale ressaltar, aqui, como a
gradação ao expressar a culpa dos familiares contribui para a produção da ironia:
notemos que o enunciador faz o protagonista enunciar tal culpa partindo da família
como um todo, para depois falar da sua esposa a “avó” dos netos e de seu filho
e de sua nora os “pais” dos netos faltando apenas a menção dos netos na
menção descendente dessa hierarquia. É essa aparente falta que é ironizada,
aparente porque a insensibilidade e o sarcasmo do narrador em relação à “mentira”
do a estão instalados no texto e também porque, ao final desse conto, até
mesmo o avô parece estar ciente de que nem os netos o compreendem.
Sabendo, pois, por meio dessa explicitação, o motivo que levou o avô a
contar um fato hipotético, o enunciatário percebe que esse personagem enuncia
seus dizeres da formação discursiva do carente. Isso significa que o avô não tenta
chamar a atenção dos netos simplesmente por se tratar de um homem “insistente”,
conforme afirmou o narrador no início de seu relato, mas sim porque ele é
impossibilitado de ter voz própria. Assim, o avô o é impertinente por inventar fatos
e por contá-los de modo efusivo e difuso, sendo, pois, essa maneira de relatar tais
fatos condizente com o espírito de alguém que deseja ultrapassar aquilo que se é
dado a ver.
Quanto ao narrador e a todos os demais netos, o enunciatário percebe que
eles enunciam seus dizeres da formação discursiva dos insensíveis, na medida em
que sequer consideraram a razão que levou o avô a ter inventado determinados
acontecimentos, apegando-se apenas ao fato de tal história ser uma invenção. Essa
incapacidade de enxergar o que por detrás dessa “mentira” floreada e minuciosa
é inferida a partir do momento em que o enunciador faz o narrador tecer comentários
68
ao pronunciamento do avô. Os primeiros comentários revelam uma vez mais a
impaciência por parte dos netos, impaciência esta ironizada pelo enunciador que
parece traçar sutilmente um paralelo entre os netos e a turba frenética que, segundo
o relato do avô, desejava a execução do suicídio por parte do homem do centro da
cidade. sabemos que o protagonista relata sua história hipotética detalhada e
vagarosamente, contando inclusive sobre quem iria presenciar sua morte, fato este
considerado enfadonho pelo neto, quando este diz que era obrigado a ouvir tal
história, sendo que, na TV, estava passando um “verdadeiro massacre, um ninja
liquidando os inimigos”. Esse massacre, do qual se infere a rapidez dos atos
executados pelos ninjas, bem como a morte instantânea dos inimigos se opõe
justamente à lentidão do relato de morte do avô: lembremos que a tal turba frenética
desejava ação, ou melhor, desejava a morte instantânea, rápida do homem do
centro da cidade, desconsiderando se este tinha algo para ser dito nos instantes
finais de sua vida; o mesmo ocorre com os netos, que desejavam assistir à matança
dos inimigos do ninja, em vez de perceberem o significado da monotonia das
palavras do avô.
Esse desejo apenas pela execução sumária dos atos é deduzido também do
momento em que o narrador diz “Nós tendo de ouvir”, expressão esta que revela um
lamento por parte do neto que, ademais de não ter podido assistir ao que realmente
lhe interessava, parecia com isso querer agir de modo semelhante aos ninjas: ele e
todos os netos desejavam, naquele momento, verbalizar ao avô sua irritação para
com ele, porém, por causa da obrigação de se respeitar os mais velhos, eles
precisaram conter a impaciência, a qual pôde ser expressa explicitamente no
momento da enunciação.
69
Mas o narrador não se limita a tecer comentários que expressam somente a
sua impaciência para com o avô; ele também faz comentários sarcásticos que
ironizam o modo grandiloqüente que o protagonista usa para relatar sua história: ao
fazer o narrador dizer que o avô contava sua história de modo “triunfante” e ao fazê-
lo imprimir uma “Pausa dramática” ao que parecia ser o desfecho do relato do avô, o
enunciador tenta focar a atenção do enunciatário na falta de observação desse
narrador, o qual não percebeu que esse modo grandiloqüente e exagerado do a
esconde a frustração e a melancolia do protagonista pela falta de atenção e de
compreensão da família para com seus desejos. Essa insensibilidade é ainda mais
enfatizada ao enunciatário por meio do sintagma “Até que enfim”, com o qual o
narrador joga a cena enunciativa para o passado, recriando o momento de felicidade
de todos os netos com o suposto fim da história considerada impertinente. Contudo,
ele faz tal cena retornar ao momento da enunciação ao dizer, logo em seguida “Até
que enfim porra nenhuma”, comentário este que revela estar o narrador ainda
extremamente impaciente com o que ocorreu. Aliás, o enunciador exacerba essa
intolerância quando faz o narrador afirmar, logo depois do avô ter dito que se
suicidaria somente após observar o mundo inteiro, “O problema é que ele não
chegaria logo ao chão”, conforme revela o último trecho do conto:
O problema é que ele não chegaria logo ao chão.
No primeiro momento eu gozaria aquela sensação de estar livre,
de flutuar no vazio. Depois viria, é claro, o pavor mas muito transitório, o
pavor, e tão mesclado com fascinação que o resultado final seria uma
deliciosa tensão. E , com um ruído seco, eu me estatelaria no chão. As
pessoas correriam e me encontrariam no meio de uma poça de sangue,
morto, completamente morto.
Calou-se, ficou um instante com o olhar perdido. Suspirou, sorriu:
― Que tal?
Não dissemos nada, porque um avô merece respeito e consideração
dos netos, mas sabíamos que aquilo tudo não passava de conversa fiada.
Ele, jogando-se do vigésimo andar? Nunca. Não subia sequer ao terraço
da casa, no primeiro piso. Porque sofria de vertigem das alturas, o velho
mentiroso (SCLIAR, 2003, p. 145).
70
Como podemos perceber, o enunciador faz o narrador pronunciar tal frase de
modo zombeteiro com o fim de ironizar, uma vez mais, a sua alienação, pois a
infelicidade desse narrador e dos demais netos por não conseguirem assistir ao
instantâneo massacre dos inimigos empreendido pelo ninja ressalta ainda mais a
incapacidade deles depreenderem a melancolia que subjaz à prolixidade do discurso
do avô. Diferentemente da postura desse narrador, nós podemos, como
enunciatários dos textos, compreender que essa prolixidade do avô em descrever o
salto final parece ser-lhe o único momento de gozar “a sensação de estar livre” em
relação à solidão a que foi relegado pela família, daí o caminho rumo à morte ser
descrito detalhadamente como um misto de “fascinação” e de “pavor [...] transitório”.
Aliás, nós também podemos inferir do desfecho da história dado pelo aque
o contraste entre a tensão causada no público pela demora em executar o salto e a
morte finalmente concretizada em sua fala com crueza e de modo totalmente
instantâneo é que lhe facultam a liberdade de expressão, bem como a atenção
alheia que lhe são faltantes na realidade: parece que é o seu fim súbito e trágico
depreendidos, respectivamente, dos sintagmas “ruído seco” e “poça de sangue” em
contraste com a poeticidade e a lentidão de seus preparativos rumo a tal fim que nos
faz atentar para o fato de que é o estar “completamente morto” que lhe
proporcionará libertar-se das amarras do mundo e, por conseguinte, lhe
proporcionará visitar os tais lugares que ele sempre quis visitar e nunca pôde.
Contudo, percebemos também que o protagonista parece conscientizar-se de
que a compreensão alheia e a concretização dessa morte libertadora podem
ocorrer em seus sonhos, e essa conscientização é por nós inferida, quando, após
terminar a sua história mirabolante, o avô, segundo as palavras do próprio narrador,
“Calou-se, ficou um instante com o olhar perdido. Suspirou, sorriu” para, logo em
71
seguida, dirigir-se aos netos por meio de um lacônico “Que tal?”. Se analisado do
ponto de vista irônico do enunciador, esse laconismo deve ser compreendido pelo
enunciatário como um melancólico despertar do avô para a realidade, isto é, um
despertar para o fato de que parece que nem a atenção e a compreensão dos
jovens netos ele conseguirá obter, daí ele ter-se calado, ter ficado com o “olhar
perdido”, ter suspirado, o que nos faz afirmar que ele age nesse momento instado
pela formação discursiva do resignado: ele parece perceber, portanto, que o vai
poder concretizar o desejo de libertar-se das amarras da família, atitude esta que, de
certo modo, acaba sendo similar à decisão do homem do centro da cidade em
interromper a sua ação de suicidar-se. Mas o protagonista parece tentar disfarçar
essa resignação, já que ele ainda tenta dar um sorriso antes de pronunciar a
mencionada frase lacônica, parecendo, com isso, buscar indiretamente o mínimo de
aprovação por parte dos netos e, por conseguinte, parecendo amenizar um pouco a
dura constatação de que iria continuar a viver solitário, distante de sua perspectiva
audaciosa.
esse laconismo do protagonista, se analisado do ponto de vista irônico do
narrador, deve ser compreendido como mais uma forma deste escarnecer da
“mentira” que o avô contou aos netos. Quando afirma que o protagonista se calou,
suspirou e ficou por um momento com o olhar suspenso, o neto parece estar
querendo escarnecer, ainda que sutilmente, do que julga ser uma falsa
dramaticidade de que se valeu o avô para conferir credibilidade a uma história
considerada absurda, história absurda que, para os netos, concerne a uma valentia
que o a não tem. E o motivo pelo qual o narrador considera ser uma farsa a
valentia e, por conseguinte, o desejo de suicídio de seu avô é apresentado no
último parágrafo do conto, quando o narrador diz que o avô tinha medo de altura,
72
fato este que o enunciador faz o neto explicitar de modo sarcástico: em vez de
desmascarar a pretensa coragem do avô simplesmente confirmando que ele tinha
medo de altura, o narrador primeiramente insinua o ridículo dessa sua pretensão ao
afirmar que o protagonista “Não subia sequer ao terraço da casa, no primeiro piso”,
ou mais especificamente, ao querer dizer que o avô tinha medo até de alturas
ínfimas. Somente após essa insinuação sarcástica é, então, que o narrador diz
explicitamente que o avô era um “velho mentiroso” porque “sofria de vertigem das
alturas”.
Como pudemos verificar, o conto é finalizado com a imagem de um avô
impertinente e mentiroso, o que, como dissemos, poderia fazer o enunciatário
pensar que o enunciador está de acordo com esse ponto de vista que é enunciado
pelo narrador. Porém, se o enunciatário detecta, desde o início dessa história, as
sinalizações que o enunciador lhes emite com o fim de fazer voltar a sua atenção à
insensibilidade dos netos, então, ao final dessa mesma história, ele tentará
encontrar outras sinalizações que confirmam a idéia de que o enunciador não
partilha dessa imagem de impertinente e mentiroso que o narrador construiu acerca
das condutas do avô. Essa sinalização concerne ao momento em que o enunciador
faz o narrador afirmar “Não dissemos nada, porque um avô merece respeito e
consideração dos netos” logo após o protagonista ter solicitado indiretamente a
opinião dos netos sobre a “conversa fiada” que ele havia relatado: como já sabemos,
a irritação e o escarninho do narrador e de todos os outros netos não foram
explicitados ao avô no momento do enunciado, pois, segundo a frase mencionada,
um amerece ser respeitado; porém, o fato de esse narrador ter expressado, no
momento da enunciação e, principalmente, sem nenhuma contenção, toda a sua
raiva demonstra justamente que esses netos não respeitam o avô e não possuem
73
a sensibilidade necessária para compreender que a tal “conversa fiada” era um
modo de que ele se valeu para falar sobre a angústia de ter sua liberdade de
expressão cerceada por praticamente toda a família. Assim, mesmo que o narrador
tenha tomado o cuidado de contar toda a história na ausência dessa personagem
não faz dele e dos demais netos pessoas observadoras, sensíveis e prestimosas
pelo respeito aos mais velhos.
Portanto, o que pudemos verificar até agora é que o enunciador, por meio do
tom vacilante da ironia, questiona silenciosamente a postura reificadora sustentada
pelo narrador. Como dissemos logo no início desse nosso trabalho, esse tom
vacilante irônico exige de nós, enunciatários, uma interpretação progressiva,
comedida da ironia tecida pelo enunciador frente a essa reificação: todos os
mecanismos por ele utilizados como o embate entre o discurso melancólico do
avô e o discurso sarcástico do neto insinuado no nível do enunciado pelo uso do
discurso direto e dos termos avaliativos desse narrador em relação à fala do
protagonista; a confluência entre os tempos e os espaços da enunciação e do
enunciado reforçada pelo uso do discurso indireto livre como forma de insinuar a
falta de reflexão por parte do narrador de um momento para o outro
instituem uma
crítica implítica, ou melhor, um questionamento que não é mordaz e muito menos
reificador em relação ao posicionamento ideológico que é posto em xeque, pois,
relembrando o que nos disse Jozef, a ironia explora a dissociação entre aparência e
realidade. Desse modo, se a ironia explora essa dissociação, o enunciador que se
vale da ironia não criticará radicalmente tal posicionamento ideológico, caso
contrário ele pode correr o risco de não desvendar as contradições entre a aparência
e a essência das situações e das relações humanas e, por conseguinte, pode correr
74
o risco de tornar absoluto o seu ponto de vista, objetivo este que é contrário ao olhar
do ironista.
Aliás, o fato de a ironia não absolutizar seu argumento indireto tem relação
com a mencionada ação carnavalesca de coroação e destronamento. Para
compreendermos essa relação, ouçamos Bakhtin (2005, p .124-125):
A coroação-destronamento é um ritual ambivalente biunívoco, que
expressa a inevitabilidade e, simultaneamente, a criatividade da mudança-
renovação, a alegre relatividade de qualquer regime ou ordem social, de
qualquer poder e qualquer posição (hierárquica). Na coroação está
contida a idéia do futuro destronamento; ela é ambivalente desde o
começo.
[...]
O rito de destronamento é como se encerrasse a coroação, da qual é
inseparável (repito: trata-se de um rito biunívoco). Através dela transparece
uma nova coroação. O carnaval triunfa sobre a mudança, sobre o processo
propriamente dito de mudança e não precisamente sobre aquilo que muda.
O carnaval, por assim dizer, não é substancional mas funcional. Nada
absolutiza, apenas proclama a alegre relatividade de tudo. O cerimonial do
rito do destronamento se opõe ao rito da coroação; o destronado é
despojado de suas vestes reais, da coroa e de outros símbolos de poder,
ridicularizado e surrado. Todos os momentos simbólicos desse cerimonial
de destronamento adquirem um segundo plano positivo; não representam
uma negação pura, absoluta da destruição (o carnaval desconhece tanto a
negação absoluta quanto a afirmação absoluta).
Como sabemos, a carnavalização permite a simultaneidade entre a
seriedade da vida oficial e a alegria da vida da praça pública, sendo que esta é que
destrona aquela, deixando o mundo de pernas para o ar. Acontece que, nesse
processo de subversão, de relativização de uma ordem social instituída, o
destronado jamais é negado de forma destrutiva, pois, como diz Bakhtin (ibidem, p.
126), “Se a ambivalência carnavalesca se extinguisse nas imagens do
destronamento, estas degenerariam num desmascaramento puramente negativo de
caráter moral ou político-social, tornando-se monoplanares”. Assim sendo, o
enunciador do conto “Um mentiroso, aquele velho” não destrona a postura
reificadora sustentada pelo narrador com o intuito de moralizar essa conduta, isto é,
75
com o fim de assinalar ao enunciatário o que é certo ou errado, mostrando que a
inflexibilidade do modo de ser dos netos seria uma postura incorreta e a mobilidade
do modo de ser do avô seria uma postura correta; segundo a citação de Bakhtin, “o
carnaval desconhece tanto a negação absoluta quanto a afirmação absoluta”.
Dissemos anteriormente que, no conto em questão, a vida oficial séria é
sustentada pelo narrador e que a vida da praça pública é sustentada pelo
enunciador, pois este, ao empreender na superfície textual o conflito entre os
posicionamentos ideológicos do neto e do avô lança um olhar crítico sorrateiro na
agressão que aquele impõe tacitamente a este. É, pois, desvelando o modo de ser
no mundo dessas personagens modo de ser este constituído pelo embate que o
enunciador institui entre os posicionamentos ideológicos de cada uma delas que
o enunciador poderá destronar um ponto de vista ideológico para coroar outro.
Como o desvelamento irônico, ou melhor, como o tom vacilante da ironia tem por
função revelar as contradições humanas progressiva e comedidamente, o modo de
ser do avô e do neto não serão revelados escancaradamente pelo enunciador na
narrativa em questão, havendo, pois, uma oscilação do narrador e do protagonista
entre o modo de ser na verdade de um lado, e o modo de ser no segredo e na
mentira de outro. Essa oscilação de um modo de ser para outro diz respeito à
modalização veridictória, a qual consiste em substituir:
[...] a questão da verdade pela da veridicção ou do dizer verdadeiro: um
estado é considerado verdadeiro quando um sujeito, diferente do sujeito
modalizado, o diz verdadeiro. Parte-se do parecer ou do não-parecer da
manifestação e constrói-se ou infere-se o ser ou o não-ser da imanência
(BARROS, 1997, p. 46).
O sujeito responsável pelo “dizer verdadeiro” é o enunciador, pois, como
pudemos verificar, ele é quem orquestra, por meio dos mais variados recursos
76
lingüísticos e discursivos, os valores enunciados por seus outros posicionamentos
enunciativos. Assim sendo, é ele quem fará o neto construir a imagem de um a
mentiroso e, simultaneamente a esse processo, é ele quem desconstruirá essa
imagem para forjar uma outra, a imagem de um neto insensível, visto este não
compreender o significado da mentira contada pelo avô.
Relembrando algumas considerações de Fiorin acerca do acordo e do
desacordo entre enunciação e enunciado produzirem, respectivamente um contrato
enunciativo de identidade e de contraditoriedade, neste o que é dito não deve ser
lido do modo como se é dado a ler no enunciado, diferentemente do que ocorre
naquele, em que o dito deve ser lido do modo como se é dado a ler no enunciado. É
a partir, pois, de um modo de leitura que o enunciador propõe que o “enunciatário
atribuirá aos discursos em que haja acordo entre o enunciado e a enunciação o
estatuto de verdade (/ser/ e /parecer/) ou de falsidade (/não-ser/ e /não-parecer/) e
àqueles em que se manifeste um conflito o estatuto de mentira (/não-ser/ e /parecer/)
ou de segredo (/ser/ e /não-parecer/)” (FIORIN, 2001, p. 39-40). No caso de “Um
mentiroso, aquele velho”, momentos em que o enunciatário deve ler o enunciado
a partir do contrato enunciativo da identidade pois o neto e o avô são levados a
enunciar seus dizeres no modo da verdade e momentos em que ele deve lê-lo
sob o contrato enunciativo da contraditoriedade — pois o neto e o avô são levados a
enunciar seus dizeres no modo da mentira e do segredo.
Assim sendo, por meio de todos os mecanismos lingüístico-discursivos
instauradores da ironia que foram analisados até o momento, pudemos verificar
que o narrador e todos os demais netos o hostis e sarcásticos no modo da
verdade, pois eles parecem e são hostis e sarcásticos, uma vez que, no nível da
manifestação, essa conduta é confirmada pelos comentários que servem para
77
justificar o que eles julgam como impertinência do avô por este ter atrapalhado a
diversão dos netos para contar uma “mentira”. No entanto, se esse narrador se vale
de tais comentários para justificar tal impertinência, o enunciador o faz enunciá-los
com o fim de mostrar veladamente que, por debaixo dessa justificativa que parece
procedente, reside um modo de ser insensível: portanto, o enunciador faz esse
narrador e todos os netos parecerem que são sensatos no modo da mentira, ou
seja, quando faz o avô parecer, no modo da verdade, que é indignado e carente e,
sobretudo, quando o faz confirmar essa carência e essa indignação a partir do
momento em que esse protagonista culpa explicitamente a família por não ter podido
conhecer os lugares que sempre quis, o enunciador insinua que, subjacentes a tal
justificativa procedente dos netos, estão a sua insensibilidade e a falta de reflexão.
É, pois, desse contraste entre o que o aé no modo da verdade e o que os
netos são no modo da mentira que sabemos que o avô é impertinente no modo da
mentira, pois, se do ponto de vista do narrador, ele parece impertinente, do ponto de
vista do enunciador, esse protagonista o o é, que ele inventa uma história com
o fim de poder falar, ainda que indiretamente, sobre a angústia de ter sua liberdade
podada pela família. Aliás, é justamente devido a esse cerceamento que a audácia
do avô, revelada no modo da verdade até praticamente o final do conto, acaba por
ceder lugar à resignação. De fato, pudemos perceber que a excentricidade do avô —
categoria carnavalesca esta que revela aspectos ocultos da sua natureza humana
(Bakhtin, 2005, p. 123) e a história, ou sonho, extravagante que também é um
outro elemento carnavalesco que permite ao homem vivenciar uma outra vida,
fazendo-o perder a sua perfeição e a sua univalência (ibidem, p. 117) —permitem-
lhe visualizar um mundo onde ele poderia expressar a sua ousadia livre das leis da
vida habitual. Contudo, ao perceber que ele também não poderá saltar, assim como
78
o homem do centro da cidade não saltou, devido à força da imposição repressiva da
família ser maior que seu desejo por liberdade, o avô acaba aceitando,
melancolicamente, que a realidade seja imposta ao sonho. Por isso, ao final do
conto, o enunciador constrói a imagem de um protagonista que é ousado no modo
do segredo, pois ele é ousado, mas acaba por não parecê-lo, fato este que enfatiza
ainda mais a agressividade dos netos, mesmo que isso seja feito de modo sorrateiro.
Assim sendo, a maneira como o enunciador estruturou e organizou esses
“jogos de máscaras” (RECTOR, 1978, p. 102) em que ocorre um intercâmbio de
formações discursivas, isto é, em que o narrador e o protagonista são modalizados
ora no modo da verdade, ora no modo da mentira e do segredo, é que acaba por
nos fazer perceber o ponto de vista que é sutilmente por ele destronado ao final do
conto. Como “Na coroação já está contida a idéia do futuro destronamento”, a
postura reificadora que o enunciador faz ser coroada pelo narrador no nível do
enunciado acaba por ser destronada no nível da enunciação para que, então, uma
“nova coroação” ocorra: a coroação da argumentação indireta, do silencioso
questionamento do enunciador. Portanto, o enunciador questiona a insensibilidade
dessa família e desses netos em tentar compreender que o significado da mentira do
avô transcendia o significado pejorativo de “conversa fiada” e, por conseguinte, em
tentar compreender que o avô não contou a história mirabolante com o fim de
esconder sua suposta covardia; e questiona o fato do dito respeito dos netos
decorrer somente destes terem silenciado sua raiva apenas no momento em que o
avô contou a considerada farsa.
Acabamos de verificar que a trama cultural concernente à agressão e à
crueldade deflagradas pelas relações humanas da sociedade contemporânea entra
na escrita no nosso caso, na escrita irônica por meio desse jogo sutil entre a
79
aparência e a imanência das personagens, ou melhor, mediante os valores que o
enunciador faz afirmá-las ora de uma formação discursiva, ora de outra. Acabamos
de verificar também que, ao promover o embate entre tais valores, ora objetivados
no enunciado, ora deduzidos a partir de elementos presentes no enunciado, o
enunciador acaba por tecer, indiretamente, o seu ponto de vista sobre tais valores,
ou mais especificamente, a sua discordância com pelo menos um desses valores,
cuja verdade absoluta ele acaba por destronar. E para fazer a coroação do seu
ponto de vista prevalecer ainda que sub-repticiamente, o enunciador não pode
descartar a presença de sua alteridade mesmo depois de destroná-la, pois, como
sabemos, a ação carnavalesca de coroação-destronamento é biunívoca, fato este
que relativiza a verdade absoluta impetrada por uma determinada visão de mundo,
sem, contudo, negá-la pura e absolutamente.
Dessas considerações sobre a carnavalização, bem como de todas as demais
que foram comentadas, parece proceder a nossa afirmação de que a
carnavalização é um traço constitutivo da ironia. Segundo podemos depreender das
citações de Brait por nós elencadas logo no início desse nosso trabalho, a
“ambigüidade fundadora” da ironia advém da tensão entre o literal e o figurado, entre
o dito e o não-dito, tensão esta que também é biunívoca se considerarmos que
essas “duas instâncias estão articuladas, relacionadas de uma forma particular e
própria à constituição do processo irônico” (BRAIT, 1996, p. 106), ou seja, sem as
pistas espalhadas no enunciado não podemos chegar à argumentação indireta da
ironia que “diz respeito à dimensão da enunciação e não do enunciado” (ibidem, p.
83).
Além disso, como a ironia é utilizada pelo enunciador para que ele explore as
contradições de um determinado ponto de vista ideológico do que se pressupõe
80
que a ironia não pode negar e aniquilar esse ponto de vista isso nos faz
associá-la à expressão da alegre relatividade de qualquer regime ou ordem social”
própria da ação carnavalesca de coroação e destronamento. É desbastando,
portanto, a ambigüidade irônica, que o enunciatário chega à argumentação indireta
do enunciador acerca de uma visão de mundo oficial. Se, como afirmamos, a
carnavalização é um traço constitutivo da ironia, então essa argumentação indireta
corresponde ao mundo às avessas, ou melhor, à relatividade a qual é submetida a
seriedade do mundo oficial; é preciso ressaltar que, no caso da ironia, esse
mundo às avessas em que são suspensas as leis que regem a existência normal
(FIORIN, 2006, p. 92) deve ser inferido pelo enunciatário, uma vez que a suspensão
dessas leis não é objetivada na superfície textual.
Sobre o papel do enunciatário, importa relembrar que, se ele não perceber
que o enunciador simula a ambigüidade fundadora da ironia, ao mesmo tempo que a
referencializa na superfície textual, ou melhor, se o enunciatário não perceber que o
enunciador sinais de que os fatos narrados no conto devem ser lidos
diferentemente daquilo que está transparente na superfície textual, a ironia jamais
será depreendida. Assim, se realizar apenas uma leitura referencial, literal da
superfície do texto, ele não estará, na verdade, exercendo a posição de enunciatário
requerida por um enunciado irônico, uma vez que o enunciador, ao produzir um texto
por meio da ironia, concebe a imagem de um interlocutor com competência para
inferir a crítica indireta, isto é, a subversão carnavalizadora comedida a um
determinado discurso oficial.
Desse modo, no conto em questão, bem como em todos os outros textos
produzidos por meio da ironia, o enunciatário deve perceber a tensão irônica entre o
literal e o figurado, ou mais especificamente, ele deve perceber que algumas das
81
formações discursivas objetivadas no enunciado não estão de acordo com a
formação discursiva não objetivada na superfície textual, a qual, no entanto, está
presente, silenciosamente, na enunciação. Em “Um mentiroso, aquele velho”, o
enunciador convoca as formações discursivas de onde faz o narrador enunciar seu
sarcasmo e a sua aparente sensatez, bem como as várias formações discursivas de
onde faz o avô enunciar sua aparente impertinência, a sua carência, o seu aparente
delírio e a sua resignação com o intuito de insinuar ao enunciatário que discorda não
apenas da postura do narrador para com o seu avô, mas, principalmente, para
mostrar que discorda de um conflito social muito mais abrangente que é executado
por mais de uma pessoa em relação aos idosos. É hora, portanto, de examinar a
ironia em sua abordagem externa.
Até o momento, o que fizemos foi analisar como a perspectiva da agressão e
da crueldade deflagradas na sociedade contemporânea entra na escrita da narrativa
“Um mentiroso, aquele velho”, isto é, como essa perspectiva é reelaborada
internamente por meio da ironia. Isso significa que procuramos desbastar,
acompanhando sempre o tom vacilante irônico instituído pelo enunciador em seu
texto, a tensão entre enunciação e enunciado, entre o figurado e o real, entre o não
dito e o dito no interior do texto, procurando os sinais que o enunciador disseminou
discretamente ao longo do enunciado e que nos fizeram inferir, paulatinamente, do
embate entre a aparência e a essência das personagens o julgamento crítico indireto
à falta de observação e de insensibilidade do narrador para com a situação do seu
avô. No entanto, para abordar a crítica irônica em um sentido mais lato, é
necessário, pois, analisar o contexto social ou o evento, para usar a terminologia
de Bosi que pode ter incitado o enunciador a abordá-lo metonimicamente em seu
82
conto, na medida em que lemos, nos enunciados desse texto, um conflito entre um
avô e alguns jovens netos.
Para esclarecer essas idéias, convém distinguir em que consiste a análise
interna e externa de um texto. De acordo com Barros (1997, p. 83), o “exame interno
do texto não é suficiente [...] para determinar os valores que o discurso veicula. Para
tanto, é preciso inserir o texto no contexto de uma ou mais formações ideológicas
que lhe atribuem, no fim das contas, o sentido”. É o que faremos, portanto, com o
conto “Um mentiroso, aquele velho”: inseri-lo no contexto de uma formação
ideológica constitutiva da sociedade contemporânea. Todavia, relembremos, antes,
o conceito de formação ideológica:
Falar-se-á de formação ideológica para caracterizar um elemento [...]
suscetível de intervir como uma força em confronto com outras forças na
conjuntura ideológica característica de uma formação social em dado
momento; desse modo, cada formação ideológica constitui um conjunto
complexo de atitudes e de representações que não são nem “individuais
nem “universais” mas se relacionam mais ou menos diretamente a
posições de classes em conflito umas com as outras (HAROCHE; HENRY;
PÊCHEUX, 1971 apud FUCHS, PÊCHEUX, 1997, p. 166).
Como sabemos que uma formação discursiva é governada por uma
formação ideológica, então as várias formações discursivas que foram convocadas
pelo sujeito da enunciação e que ele fez serem enunciadas cada uma delas, de
modo harmônico e coerente, por uma posição enunciativa distinta a sua própria
como enunciador, a do narrador e a do interlocutor de um lado, e a do enunciatário,
a do narratário e a do interlocutário de outro revelam, de certa forma, um conflito
social possível de ser identificado no seio da sociedade contemporânea: no caso do
conto em questão, trata-se do embate entre a formação ideológica que reza que os
idosos são inúteis e os jovens o ousados de um lado e, do outro, a formação
ideológica que diz que os idosos merecem respeito e que a ousadia independe da
83
faixa etária avançada. Na narrativa em questão, o enunciador reelaborou, ou mais
especificamente, figurativizou ironicamente esse conflito sócio-ideológico por meio
de um relato em que um avô conta uma história mirabolante a seus netos. Ao
escolher as figuras do avô e dos netos, atribuindo-lhes valores que subvertem a
estereotipia social de que os idosos não são ousados e de que os jovens o são
fato esse determinado pelo senso comum de que a pouca ou a muita idade
determinam, respectivamente, o vigor ou a falta de vigor de uma pessoa — o
enunciador questiona indiretamente o abafamento dos netos e da família à tentativa
do avô de subverter tal estereotipia de papéis. Lembremos que, embora ao final do
conto o avô tenha que prescindir de seu desejo de liberdade, praticamente durante
toda a narrativa ele pronuncia um discurso, cuja excentricidade elemento
carnavalesco este “que permite ao reprimido exprimir-se, tornando central o que é
marginal, excluído, escandaloso, contingente” (FIORIN, 2006, p. 93) ilustra o seu
desejo por vivenciar uma vida que não fosse regida pela leis do mundo habitual. Em
contraposição, os netos preferem assistir ao mundo estável da ficção da TV, em que
os ninjas são sempre os heróis que aniquilam os inimigos. Portanto, sorrateiramente,
o enunciador constrói a imagem do protagonista e do narrador, subvertendo a
mencionada estereotipia de papéis: o avô é um personagem móvel, inacabado, na
medida em que se consolida no limiar, e o neto é um narrador fixo, acabado, pois se
consolida no limite.
Aliás, é preciso ressaltarmos que a não nomeação de todas as personagens
desse relato contribui para compreendermos a função que essa subversão na
estereotipia de papéis sociais, a qual consiste no embate entre essa mobilidade da
imagem do avô e a fixidez da imagem do neto, pode exercer para a instauração da
84
crítica irônica. De acordo com Zilberman (2000, p. 5), uma das características
marcantes nos contos de Scliar:
[...] é a preferência por personagens carentes de identificação — vale dizer,
predominam nas histórias seres, a maioria sem nome ou qualquer outro
traço que os individualize, que representam tipos genéricos, modelos de
ação e comportamento, em vez de personalidades cuja intimidade e
psicologia são vasculhadas pela pena do escritor.
No caso dessa narrativa, a não nomeação do neto parece, de fato, não
individualizá-lo, ou melhor, a sua opinião e o seu comportamento agressivo
proferidos por ele de modo absoluto acerca da conduta do avô não representam
a opinião e o comportamento de todos os outros netos, como também a de um
determinado tipo de pessoas que consideram a senilidade o fim da vida.
o avô não parece carecer de individualidade: na verdade, o fato de ele
proferir seus dizeres de formações discursivas distintas a do impertinente, a do
carente, a do “insano” e a do resignado lhe confere uma personalidade marcante,
portanto, inacabada. É justamente porque o avô emite suas palavras ora de um
lugar discursivo, ora de outro que faz com que não associemos essa personalidade
marcante a idéias positivas como segurança, firmeza e decisão, associação esta que
corresponde, na verdade, a uma personalidade fixa, acabada. Ao contrário, a
personalidade do avô é marcante justamente por ele ser alguém conflituoso: a sua
segurança em saber que deseja transcender os limites, os estereótipos da realidade
esbarra na castração desse desejo que lhe é imposta pela família. Essa falta de
contornos precisos na construção da imagem dessa personagem:
[...] trata-se de uma consequência e de um reflexo da crise ideológica, ética
e política que vem minando a sociedade ocidental contemporânea crise
que alcançou o paroxismo com a sociedade neocapitalista dos nossos dias,
dominada por uma tecnologia cada vez mais tirânica, regida pelo ideal do
consumo crescente de mercadorias e serviços e comandada por um capital
85
cada vez mais anônimo, mas identificado com gigantescos
empreendimentos técnico-económicos de carácter multinacional e, por isso
mesmo, cada vez mais brutalmente desumano. Nesta sociedade
tecnoburocratizada, carecente de motivações éticas profundas, onde o
homem sofre e não age, onde a reificação vai implacavelmente alastrando,
o romance não poderia retratar personagens segundo os moldes e os
valores da sociedade burguesa e liberal dos séculos XVIII e XIX” (SILVA,
1990, p. 708-709).
Mesmo que Vitor Manuel trate da identidade das personagens do universo
romanesco, também em narrativas curtas é possível identificarmos a presença de
personagens que também não se enquadram segundo “os moldes e os valores da
sociedade burguesa e liberal dos séculos XVIII e XIX”, isto é, segundo o protótipo de
solidez e de fixidez da identidade. A multiplicidade de máscaras assumida por esse
avô de “Um mentiroso, aquele velho” é um exemplo de personagem que não condiz
com o tipo de identidade coerente reclamada pela sociedade burguesa e liberal dos
séculos XVIII e XIX, pois o seu “‘eu’ social é uma máscara e uma ficção, sob as
quais se agitam forças inominadas e se revelam múltiplos ‘eus’ profundos, vários e
conflituantes” (ibidem, p. 708). Na verdade, a atitude reificadora que lhe é
empreendida por toda a família acaba por fazê-lo sofrer e não agir, embora ele seja
um homem de ação em potencial, visto ele ser movido pelo desejo de transcender o
que é visível.
A s, pois, a não nomeação desse personagem pode ter dois efeitos de
sentido: por um lado, o enunciador faz com que o narrador chame o avô por “velho
tonto”, e não pelo seu nome, com o intuito de demarcar implicitamente a
agressividade e a incapacidade reflexiva desse neto; por outro, o enunciador
enfatiza o nivelamento de personalidade que essa personagem acaba por aceitar
em virtude de não poder escolher seu destino por si só. Como conseqüência dessa
castração final, o avô acaba por recolher tudo o que “lhe conferia solidez e relevo”
(ibidem, p. 707), ou mais especificamente, ele acaba por aceitar que seu desejo por
86
vôos mais altos seja abafado, suplantado pelo cerceamento familiar. Assim, o nome
que ele poderia ter recebido, “elemento fundamental [...] para a identificação e
particularização do indivíduo, é destruído ou desfigurado” (SILVA, 1990, p. 707).
Assim sendo, essa contraposição entre a não nomeação do neto como forma
de tipificar e de generalizar a hostilidade de um ser humano em relação a outro de
um lado e, de outro, a não nomeação do avô como forma de avultar a idéia de que
tal hostilidade pode suplantar o desejo desse outro em expressar abertamente a
essência de sua identidade, acaba por reforçar, tacitamente, o questionamento do
enunciador sobre a intolerância de uma pessoa para com outra e sobre a
manutenção da estereotipia de papéis que reza o acabamento da identidade dos
mais velhos e o inacabamento da identidade dos mais jovens.
Voltando, agora, à questão sobre os vários posicionamentos discursivos do
enunciador em um texto, pudemos verificar que, ao desdobrar-se em várias posições
enunciativas, sendo cada uma delas representada por uma determinada figura a
qual é um “elemento semântico que remete a um elemento do mundo natural”
(FIORIN, 2001, p. 24) o sujeito da enunciação instaura um simulacro do que
ocorre no cotidiano da sociedade contemporânea, daí o caráter de verossimilhança
desse conto, bem como o de toda a ficção literária, o que significa que o enunciador
parte da formação social na qual ele está inserido e na qual estão em embate as
mais diversas formações ideológicas, para, posteriormente, reorganizá-las
coerentemente no texto por meio de um conflito entre as formações discursivas
enunciadas pelas várias posições enunciativas.
Nesse processo de reorganização, vale ressaltar, o enunciador também
constrói a imagem do enunciatário, a qual deve ser a de “alguém” que, ao
desconstruir, mediante o tom vacilante irônico, o caminho tecido por esse
87
enunciador, desbastará o texto tanto interna, quanto externamente. No caso dos
textos irônicos, o enunciatário deve prestar atenção para o fato de que a ironia
explora a dissociação entre a aparência e a essência das situações, o que significa
dizer que ele deve prestar atenção para o fato de que o discurso dominante do texto
irônico parece ser aquele que está explicitado no enunciado pelo narrador ou por
uma das personagens a quem esse narrador delega voz, pois, na verdade, o
discurso dominante que rege todas as posições ideológicas objetivadas na
superfície textual é justamente aquele que não aparece explicitado no texto. Tal
discurso, ou mais especificamente, tal formação discursiva dominante que está
ausente do enunciado, mas que está presente virtualmente no texto, é aquela da
qual o enunciador pronuncia, de modo sorrateiramente crítico, o seu ponto de vista
ideológico, ou melhor, o ponto de vista ideológico dessa sua formação discursiva.
Antes de prosseguirmos, queremos deixar claro que, quando dizemos que a
formação discursiva do enunciador é a dominante, não estamos querendo afirmar
que, com ela, o enunciador nega todas as outras formações discursivas, visto
sabermos que a ironia, ao ser usada para destronar um ponto de vista ideológico,
não faz isso de modo a destruí-lo absolutamente. Conforme nossas considerações
teóricas iniciais, a formação discursiva dominante diz respeito àquela sob as quais
as demais são organizadas pelo enunciador, a fim de atribuir coerência e harmonia a
seu texto.
Voltando a tratar da atitude de que deve valer-se o enunciatário de um texto
irônico, se ele perceber que, no conto “Um mentiroso, aquele velho”, aquilo que
parece ser uma defesa à atitude de menosprezo aos mais velhos é, na realidade, um
julgamento a tal postura, então ele percebe que a voz do narrador-testemunha
destoa de uma outra voz que, mesmo estando ausente do enunciado, sussurra seus
88
questionamentos ao posicionamento ideológico desse narrador. Portanto, o fato dos
acontecimentos serem narrados em 1
a
pessoa nem sempre significa que o ponto de
vista do narrador e o do enunciador é o mesmo, o que, por extensão, nos autoriza a
afirmar que nem sempre uma identificação entre essas duas posições
discursivas. Aliás, no caso dessa narrativa irônica de Moacyr Scliar produzida em 1
a
pessoa, percebemos que o narrador é o porta-voz do individualismo, da reificação e
da desvalorização à alteridade, diferentemente do narrador que julga tais valores a
ponto de destroná-los.
No que concerne à argumentação indireta do enunciador, acreditamos que
este pode preferir a crítica velada irônica em relação à realidade por ele recriada em
seus textos, porque a sutileza da ironia explora, como viemos afirmando até o
momento, a dissociação entre o ser e o parecer, ou melhor, essa sutileza explora a
tensão entre o literal e o figurado, entre o dito e o não dito. Dar ênfase à aparência
no nível do enunciado e, ao mesmo tempo, sinalizar veladamente ao enunciatário
que ele deve transcendê-la para chegar à essência de uma realidade é uma forma
de o enunciador mostrar a esse enunciatário que a essência de pelo menos um de
seus posicionamentos discursivos objetivados no enunciado é justamente parecer
alguém que não é, ou seja, é esconder aquilo que ele é verdadeiramente. Portanto,
longe de pretender ser taxativamente moralista, o enunciador pretende com a
argumentação indireta da ironia carnavalizar a seriedade culpada de uma
sociedade que simula permitir e estimular todas as oposições mas as consente
na medida em que elas estiverem desarmadas ou forem domesticadas” (LOPES
apud BARROS, FIORIN, 1994, p. 78).
Assim, essa carnavalização, esse destronamento da seriedade culpada
levada a cabo pelo enunciador por meio da ironia tem por objetivo desvelar o modo
89
sorrateiro de que se vale uma visão de mundo dominante para abafar a sua
alteridade e, por conseguinte, para manter inabalável o seu status quo; sob a
justificativa aparentemente sensata de que o avô é mentiroso, o neto tece a imagem
desse protagonista como a de alguém impertinente, quando, na verdade, acabamos
por perceber que, subjacente a essa aparente impertinência, reside a angústia de
um acujo desejo pela audácia é limitada pela família, bem como acabamos por
perceber que o narrador aparenta sensatez para esconder a sua insensibilidade e,
portanto, para convencer o narratário a acreditar justamente nessa sua sensatez.
Contudo, a essência do seu caráter, que é a insensibilidade, é desvelada ao
enunciatário por uma piscadela do enunciador, e é desse modo que o enunciatário
tem uma visão mais ampla da contradição que constitui o caráter desse narrador,
contradição esta constituída tanto pelo fato de ser hostil, quanto pelo fato de não
parecer hostil. Desse modo, os valores reificadores de agressividade e de crueldade
de um indivíduo sobre outro que preponderam na sociedade contemporânea são
convocados por Scliar em seus contos para que eles sejam sacralizados no nível
superficial do texto, mas, ao mesmo tempo, para que eles sejam dessacralizados no
nível profundo desse mesmo texto. Com o intento de que esse confronto entre
sacralização e dessacralização seja percebido como um conflito irônico, é
necessário que os dois lados da contradição de tais valores desumanos isto é, o
seu ser e o seu parecer sejam dissecados e desvelados ao enunciatário, o que
significa não ser possível desambigüizar a ironia.
A ambigüidade irônica não pode ser desfeita porque, para se compreender
como o enunciador revela, de modo tácito, a essência da situação por ele criticada, é
necessário que a aparência dessa situação esteja presente aos olhos do
enunciatário. É, portanto, do choque simultâneo operado pelo enunciador entre o
90
que é objetivado e o que não é objetivado no enunciado que conseguimos
depreender a sua verdadeira intenção, que é, como afirmamos, apresentar a
contradição da situação por ele criticada sutilmente, quando alguém tenta, na
contramão, esconder a essência contraditória dessa situação. Concordamos, então,
com o fato de o significado irônico ser relacional e inclusivo de que fala Hutcheon
(2000, p. 90). Ele é relacional “no sentido de operar não apenas entre significados
(ditos, não ditos), mas também entre pessoas (ironistas, interpretadores, alvos)”
(ibidem, p. 91), ou seja, para a ironia ser depreendida adequadamente, é necessário
o enunciatário “compartilhar com o enunciador a ambigüidade do enunciado”, ou dito
de outra forma, é necessário o enunciatário considerar a tensão mútua entre o literal
e o figurado instituída pelo enunciador. a sua natureza inclusiva advém dessa
tensão mútua entre o literal e o figurado, entre o dito e o não dito, o que explica que,
ainda que dominante, a formação discursiva do enunciador não pode desconsiderar,
para a produção da ironia, as outras formações discursivas por ele convocadas na
superfície textual; o mesmo vale para o enunciatário, pois não temos que “rejeitar um
significado ‘literal’ para chegar ao que usualmente se chama de significado ‘irônico’
ou ‘real’ de elocução” (ibidem, p. 93). Aliás, essa exclusão estaria totalmente em
desacordo com o princípio de todo discurso ser constitutivamente heterogêneo, isto
é, com a condição de todo discurso definir a sua identidade mediante a sua
alteridade. Como nos lembra Fiorin (2001, p. 71-72):
As diferentes instâncias enunciativas e as diferentes vozes presentes
no enunciado constituem um modo fundamental de funcionamento do
discurso, a heterogeneidade. Com ela, o discurso torna-se um espaço
conflitual e heterogêneo ou contratual e homogêneo onde vozes
discordantes e concordantes tomam lugar em níveis diferentes. Essas
vozes concordam, discordam, constituem-se.
91
No caso da ironia, pudemos verificar pela análise de “Um mentiroso, aquele
velho” que as várias posições enunciativas do sujeito da enunciação estão em
constante conflito: cremos que o enunciado contém um significado que lhe é
atribuído pelas diversas posições enunciativas do sujeito e que a enunciação abarca
um outro significado decorrente das pistas indiretas, sutis, que o enunciador deixa
espalhadas pelo enunciado de modo a subverter a aparência do que essas posições
enunciativas declaram explicitamente. É a partir dessa tensão simultânea entre o
dito e o não dito, entre a aparência e a essência, que o significado irônico — o qual é
dotado de uma “aresta crítica do julgamento” (HUTCHEON, 2000, p. 91) é
produzido pelo enunciador e é decodificado pelo enunciatário. A ironia, portanto,
desbasta as contradições do seu alvo, da sua vítima, com o fim de revelar sua
verdadeira essência: se, na sociedade contemporânea, prepondera a desvalorização
à ética, no texto irônico essa desvalorização é destronada de modo a relativizar a
sua seriedade. Assim sendo, se Moacyr Scliar se vale da ironia como uma das
maneiras de questionar implicitamente a prática dessa falta de humanização, esse
questionamento implícito acaba por tornar-se também um instrumento para resgatar
tal prática, ainda que ela só ocorra no universo da ficção.
92
3. O ardiloso jogo duplo da ironia
Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.
(José Saramago,
Ensaio sobre a cegueira)
No capítulo anterior, enfocamos o estudo do funcionamento e da função da
ambigüidade irônica no complexo embate de valores decorrentes da hierarquia das
posições enunciativas orquestradas pelo sujeito da enunciação em seu texto. Dessa
forma, procuramos analisar os mecanismos lingüístico-discursivos que modalizam,
por meio do tom vacilante irônico, o ser dessas várias posições do sujeito, com o fim
de inferirmos as suas contradições e, por conseguinte, a argumentação indireta, o
questionamento do enunciador frente a alguns desses valores revelados por tais
contradições.
A propósito dessa argumentação indireta de um enunciado irônico, chegamos
a afirmar que esta corresponde ao mundo às avessas, ou melhor, à relativização da
pretensa seriedade e absolutização das verdades de um discurso oficial. Assim
sendo, no caso dos dois contos irônicos de Scliar por nós selecionados, o
enunciador destrona a perspectiva que reifica as relações humanas a qual é
deduzida a partir de pelo menos um dos pontos de vista ideológicos revelados pelas
contradições das personagens e/ou do narrador —, para coroar outro, sem, no
entanto, negar absolutamente essa sua alteridade. É por todos esses motivos que
afirmamos ser a carnavalização um dos traços constitutivos da ironia, não deixando,
contudo, de ressaltar que esse processo de destronamento-coroação ocorre, no
caso das narrativas irônicas, de modo sorrateiro, uma vez que nos parece que os
93
textos não carnavalizados por meio da ironia destronam e coroam uma visão de
mundo não propriamente de modo tácito.
Nesse segundo capítulo, obviamente que continuaremos a analisar o
funcionamento e a função da ironia sob o viés da hierarquia enunciativa, da
modalização veridictória do ser e da carnavalização, dando, porém, maior destaque
a uma outra maneira da ironia ser articulada em torno do conflito de vozes: trata-se
da imitação de um texto e de seu respectivo discurso os quais são conhecidos tanto
pelo enunciador como pelo enunciatário, dada a sua ampla difusão por toda a
comunidade discursiva a que pertencem esses dois interlocutores. Quanto ao termo
“imitação”, convém ressaltar que seu significado não deve ser compreendido como a
“reprodução, o mais exato possível, de algo” (HOUAISS, 2001), mas sim como uma
imitação indireta que sempre pressupõe desvios, ou seja, a variante textual retoma
do texto-base os elementos que lhes são convenientes para expressar uma
determinada idéia, apresentando assim, em relação a esse texto-base, tanto
semelhanças, como diferenças.
Acerca do procedimento da imitação, Genette (1982, apud DISCINI, 2002, p.
16) afirma: “É impossível, porque fácil demais e, portanto, insignificante, imitar
diretamente um texto. Pode-se imitá-lo apenas indiretamente”. Assim sendo, no caso
da narrativa que será objeto de análise desse capítulo a saber o conto “O tio
pródigo” o enunciador convoca e, por extensão, imita a parábola do filho pródigo,
imitação esta que nos é sugerida pelo próprio título do conto. Parece-nos que o
objetivo desse enunciador, ao proceder dessa forma, é estabelecer um paralelo
entre o discurso subjacente a essa parábola e o discurso subjacente às atitudes das
personagens a serem observadas no conto. É por isso, aliás, que esse procedimento
de imitar o Outro não deve ser entendido, ao menos nesse trabalho, de modo
94
pejorativo, isto é, como um mero plágio, cuja retomada por parte do imitador seria
encarada, por exemplo, como falta de originalidade artística e intelectual. Como nos
adverte Bakhtin (2003, p. 272), “Cada enunciado é um elo na corrente
complexamente organizada de outros enunciados”, fato este que já nos faz intuir que
a nossa identidade, ou melhor, que o nosso interior é forjado pela interação
constante que estabelecemos com o nosso exterior. No entanto, é necessário frisar
que esse exterior pode ser retomado por nós tanto intencional, quanto não
intencionalmente, afirmação esta que será melhor compreendida, se convocarmos
as distinções entre heterogeneidade constitutiva e heterogeneidade mostrada
estabelecidas por Jacqueline Authier-Revuz (1990, p. 32) em seu artigo
“Heterogeneidade(s) enunciativa(s)”:
Heterogeneidade constitutiva do discurso e heterogeneidade
mostrada no discurso representam duas ordens de realidade diferentes: a
dos processos reais de constituição dum discurso e a dos processos não
menos reais, de representação, num discurso, de sua constituição.
[...]
A uma heterogeneidade radical, exterioridade interna ao sujeito e ao
discurso, não localisável [sic] e não representável no discurso que constitui,
aquela do Outro no discurso onde estão em jogo o interdiscurso e o
inconsciente —, se opõe à representação, no discurso, as diferenciações,
disjunções, fronteiras interior/exterior pelas quais o um sujeito, discurso
se delimita na pluralidade dos outros, e ao mesmo tempo afirma a figura
dum enunciador exterior ao seu discurso.
Como se nota, o conceito de heterogeneidade constitutiva é caudatário do
conceito de dialogismo bakhtiniano por ser formulado com base na constatação do
teórico russo de que a identidade é naturalmente dialógica, ou melhor, que ela se
constitui na interação com a alteridade. Acontece que, em muitos casos, o “eu” não
percebe isso, crendo, portanto, que a sua identidade decorre unicamente de suas
próprias atitudes, daí a afirmação de Authier-Revuz de que a heterogeneidade
constitutiva não é localizável nem representável no discurso do “eu”. Dessa maneira,
quando afirmamos, anteriormente, que podemos nos apropriar, sem intenção, do
95
discurso da nossa alteridade, estamos falando justamente da heterogeneidade
constitutiva, o que significa dizer que recuperamos o Outro sem nos darmos conta
disso, pois, afetados pelo inconsciente, “temos a ilusão de ser a origem do que
dizemos quando, na realidade, retomamos sentidos preexistentes” (ORLANDI, 2003,
p. 35).
A essa heterogeneidade constitutiva, não representável e não localizável, se
opõe, como pudemos observar na citação de Authier-Revuz, a heterogeneidade
mostrada que consiste em representar essa constitutividade no fio discursivo, ou
melhor, que consiste em retomarmos intencionalmente, conscientemente, o Outro
para forjarmos a nossa identidade. O que se percebe, portanto, é que, apesar da
distinção entre as duas maneiras do “eu” retomar a sua heterogeneidade, ambas
não se excluem, pois o que a heterogeneidade mostrada faz é explicitar a
participação da heterogeneidade constitutiva na construção das identidades dos
sujeitos.
Contudo, essa atitude de explicitar a heterogeneidade constitutiva pode ser
feita de dois modos. Conforme a teórica francesa (1990, p. 36, grifos nossos) nos
apresenta em uma nota a seu artigo, a heterogeneidade mostrada pode ser marcada
ou não marcada:
Neste conjunto de formas marcadas, distingo aquelas que mostram o
lugar do outro de forma unívoca (discurso direto, aspas, itálicos, incisos de
glosas) e aquelas não marcadas onde o outro é dado a reconhecer sem
marcação unívoca (discurso indireto livre, ironia, pastiche, imitação...).
Segundo a citação de Authier-Revuz, a imitação é um caso de
heterogeneidade mostrada e não marcada, porque o enunciador sinaliza que
constrói o seu texto se apoderando do discurso enunciado por um texto amplamente
conhecido, mas sem demarcar as fronteiras ideológicas que os diferenciam um do
96
outro. Essa não-demarcação, aliás, é totalmente condizente com aquele principal
propósito da ironia, o qual consiste em revelar sub-repticiamente a contradição
humana, ou mais especificamente, o embate ambíguo entre a aparência e a
essência humanas. Assim sendo, em “O tio pródigo”, o enunciador desvela
ironicamente essas contradições ao estabelecer um paralelo entre o discurso de
afeto e de perdão da parábola do filho pródigo e o discurso de hipocrisia da
sociedade contemporânea.
Outro motivo para que o enunciador o demarque, ou melhor, para que ele
mostre silenciosamente que um outro discurso participa da constituição de sua
identidade e, inclusive, da constituição da identidade de todas as suas outras
posições enunciativas, pode ser inferido das seguintes considerações de
Maingueneau (1997, p. 102)
sobre a imitação:
Entre os fenômenos de heterogeneidade, a imitação ocupa um lugar
importante, representando uma de suas manifestações mais visíveis;
muito tempo que a retórica a codificara em torno da noção de paródia. Mas
este último termo é utilizado de modo depreciativo
[5]
, enquanto que a
imitação de um gênero de discurso pode assumir dois valores opostos: a
captação e a subversão. Realmente, quando um falante se apaga por trás
do “locutor” de um gênero determinado de discurso, e mostra que o faz,
poderá pretender beneficiar-se da autoridade ligada a este tipo de
enunciação ou arruiná-la. No primeiro caso, quando “captação”, a
imitação incide sobre a estrutura explorada e, no segundo caso, quando
“subversão”, a desqualificação desta estrutura ocorre no próprio movimento
de sua imitação. [...]
[...] Além disso, ela pode incidir sobre um gênero, isto é, produzir
enunciados que não remetem a nenhum texto autêntico, conhecido dos
5
Convém ressaltar que Linda Hutcheon em sua obra Uma teoria da paródia questiona o valor de
ridículo (c1985, p. 70) tradicionalmente atribuído a esse fenômeno da linguagem. Partindo da idéia
(ibidem, p. 47-8) de que o prefixo “para” do termo parodia possui tanto um significado que remete à
divergência entre textos “para” significando, portanto, “contra”, “oposição” como um significado
que remete à convergência entre textos “para” significando então ao longo de” —, a referida
autora (ibidem, p. 48) afirma o seguinte: “Nada existe em parodia que necessite da inclusão de um
conceito de ridículo, como existe, por exemplo, na piada, ou burla, do burlesco. A paródia é, pois, na
sua irónica transcontextualização e inversão, repetição com diferença. Está implícita uma
distanciação crítica entre o texto em fundo a ser parodiado e a nova obra que incorpora, distância
geralmente assinalada pela ironia. Mas esta ironia tanto pode ser apenas bem humorada, como pode
ser depreciativa; tanto pode ser criticamente construtiva, como pode ser destrutiva”. Desse modo,
valendo-se dos termos cunhados por Hutcheon (ibidem, p. 26), o produtor de um texto pode se valer
da paródia para “ressacralizar” ou “dessacralizar” o texto com qual estabelece um diálogo.
97
destinatários, ou sobre um texto particular e, neste caso, evidentemente,
também absorve as coerções do gênero ao qual o texto pertence. Obtém-
se [sic], assim, quatro casos de figuras extremas:
a) captação de um gênero;
b) captação de um texto singular e de seu gênero;
c) subversão de um gênero;
d) subversão de um texto singular e de seu gênero.
Acreditamos que o enunciador da variante intertextual no nosso caso, o
conto “O tio pródigo” — “se apaga” por trás da voz do enunciador do texto-base a
parábola bíblica do filho pródigo —, para despertar no enunciatário a curiosidade de
saber o porquê e o como o discurso de um “texto singular” amplamente divulgado na
comunidade discursiva de ambos está sendo imitado por ele. Ao sinalizar ao
enunciatário, por meio de uma pida piscadela, que esse texto singular está sendo
imitado de modo subversivo, o enunciador o faz ouvir o conflito entre, pelo menos,
duas vozes discordantes: a voz do discurso original do texto-base e de seu gênero
que é uma parábola e a voz do discurso que imita esse texto e seu gênero de
maneira a dele divergir. Para começarmos a compreender mais precisamente como
se dá essa imitação divergente por meio da ironia, convém estabelecermos as
diferenças essenciais que ocorrem entre o texto de Scliar e o da narrativa bíblica e,
conseqüentemente, as diferenças que ocorrem entre seus discursos, para depois,
estabelecermos as diferenças entre os gêneros aos quais cada um desses textos e
discursos pertence.
Começando pela relação entre os textos e os discursos das duas narrativas,
notamos que o enunciador de “O tio pródigo” constrói seu texto se valendo
praticamente das mesmas figuras utilizadas na parábola do filho pródigo: o sobrinho
do conto corresponde à figura do filho pródigo; o tio corresponde à figura do pai da
narrativa bíblica; e a personagem chamada Aline, que é a filha mais velha do tio
pródigo, corresponde à figura do filho mais velho da parábola; a esposa e o filho
98
mais novo do tio são figuras acrescentadas pelo enunciador a seu relato, uma vez
que na narrativa bíblica não figuras que lhes correspondam. Apesar de haver
basicamente um mesmo núcleo figurativo, notamos ao final do conto de Scliar, que
as suas figuras acabam por recobrir temas distintos dos que são recobertos pelas
figuras da parábola: de modo simplificador, podemos dizer que subjacentes às
figuras do conto residem os temas do individualismo e do apego ao material, ao
passo que às figuras da parábola subjazem os temas do amor e do perdão. Dessa
contradição temática, podemos inferir que, como o conto “O tio pródigo” é
estruturado pela tensão irônica entre a presença e a ausência, entre o objetivado e o
não-objetivado, entre o dito é o não dito, então o amor e o perdão da história do filho
pródigo ficam no nível da enunciação ressoando seus dizeres que entram em
conflito com o individualismo e com o apego ao material que acabam por ser
desvelados a partir de elementos presentes no nível do enunciado. Portanto, é da
divergência entre dois discursos distintos que o sentido subversivo da ironia é
produzido pelo enunciador e, por conseguinte, decodificado pelo enunciatário.
Porém, não é apenas a narrativa do filho pródigo que é retomada e subvertida
pelo enunciador do conto; segundo as afirmações de Maingueneau, ao incidir sobre
um texto conhecido, o enunciador também “absorve as coerções do gênero” a que
pertence. Portanto, para verificarmos em que medida a parábola do filho pródigo é
subvertida pelo enunciador do conto, convém esclarecermos algumas características
próprias das parábolas bíblicas, bem como o sentido original, ou mais precisamente,
o sentido subvertido da parábola do filho pródigo.
Como sabemos, a parábola é um gênero discursivo que “encerra um preceito
religioso e moral” (HOUAISS, 2001); que o termo “preceito” pode significar “aquilo
que se recomenda praticar; regra, normae “aquilo que se ensina; lição, doutrina”
99
(HOUAISS, 2001), podemos depreender, então, que o enunciatário de uma parábola
deve seguir à risca os seus ensinamentos, para não incorrer em erros considerados
capitais pelo discurso religioso. No caso da parábola do filho pródigo, o enunciador
tenta passar ao enunciatário a idéia de que a falta do filho em não “honrar pai e
mãe” decorreu da sua necessidade de fruir, de modo inconseqüente, os prazeres
terrenos. Devemos ressaltar que o discurso da parábola e, por extensão, o discurso
religioso, considera como inconseqüente tal atitude, pois o plano temporal ou o
mundo dos homens é imperfeito, falível, ao se contrapor ao plano espiritual ou
o mundo de Deus que é perfeito, infalível (ORLANDI, 1996a, p. 243). Disso
resulta que Deus é o detentor absoluto das verdades que devem conduzir os
homens para a vida eterna e que a parábola é, pois, uma dessas verdades. Isso
significa que, como o discurso religioso é “aquele em que fala a voz de Deus: a voz
do padre [...] ou, em geral, de qualquer representante seu é a voz de Deus”
(ibidem, p. 243), a parábola bíblica mencionada é uma das vozes sagradas que fala,
ou mais especificamente, que repete a incontestável voz divina.
Dessas sucintas considerações, já podemos tentar traçar as coerções do
gênero parábola, as quais, como afirmamos, também serão subvertidas junto com
o texto que ela estrutura. Para delimitarmos essas coerções, escutemos,
primeiramente, as ponderações de Bakhtin (2003, p. 261-262) sobre as
características básicas dos gêneros do discurso, bem como o seu conceito sobre
gênero:
O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e
escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele
campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições
específicas e as finalidades de cada referido campo não por seu
conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção de
recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de
tudo, por sua construção composicional. Todos esses três elementos o
conteúdo temático, o estilo, a construção composicional estão
indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são igualmente
determinados pela especificidade de um determinado campo da
100
comunicação. Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas
cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente
estáveis de enunciados, os quais denominaremos gêneros do discurso.
Todo enunciado que se organiza segundo um conteúdo temático, um estilo e
uma construção composicional e sob um determinado campo da comunicação é um
gênero do discurso. Assim, a parábola, por pertencer ao campo religioso,
apresentará coerções específicas que a tornam relativamente estável, isto é, que lhe
configuram o estatuto de gênero parábola. Tais coerções ou normas dizem respeito
justamente ao conteúdo temático, ao estilo e à construção composicional que a
estruturam e que a fazem ser identificada como parábola e não como qualquer outro
tipo de gênero discursivo. Agora, para que possamos delimitar essas normas da
parábola, é preciso conhecer em que consiste cada um desses três elementos que a
estruturam:
O conteúdo temático não é o assunto específico de um texto, mas é
um domínio de sentido de que se ocupa o gênero. [...]
A construção composicional é o modo de organizar o texto, de
estruturá-lo. [...]
O ato estilístico é uma seleção de meios lingüísticos. Estilo é, pois,
uma seleção de certos meios lexicais, fraseológicos e gramaticais em
função da imagem do interlocutor e de como se presume sua compreensão
responsiva ativa do enunciado (FIORIN, 2006, p. 62).
Articulando essas considerações teóricas com as breves características da
parábola que apresentamos anteriormente, seu conteúdo temático seria o dos
ensinamentos morais, visto seu enunciador ser a voz sagrada que, por repetir a voz
incontestável de Deus, pretende nortear a conduta humana para a prática do bem;
quanto à sua construção composicional, esta se dá mediante o uso de uma narrativa
ficcional cujas personagens ou figuras recobrem temas que, ao serem postos em
conflito, acabam por servir ao tal propósito de nortear seus interlocutores; já o uso de
101
determinados mecanismos lingüísticos que instituem, por exemplo, a isotopia nesse
tipo de texto, determinam o seu ato estilístico ou o seu estilo doutrinário.
Antes de darmos continuidade a nosso raciocínio, gostaríamos de deixar claro
que a nós não nos interessa fazer um levantamento dos meios lingüísticos que
determinam tal estilo doutrinário da parábola, pois nosso objetivo é tentar verificar,
com um pouco mais de precisão, como o enunciador subverte ironicamente os
valores ideológicos sustentados pela parábola do filho pródigo. Feita a devida
ressalva, agora articularemos essas considerações gerais feitas acerca do gênero
parábola com as informações sucintas que tecemos até o momento sobre a parábola
do filho pródigo e sobre o conto “O tio pródigo”, bem como com as informações
abordadas por nós preliminarmente sobre os aspectos da ironia e sobre a função
desempenhada pela literatura.
Dissemos que um dos objetivos da literatura é escandalizar uma verdade
assim considerada pela tradição; desse modo, sob essa função própria do campo
literário e valendo-se das artimanhas da ironia, o enunciador do mencionado conto
imita, de modo subversivo, a referida parábola bíblica por querer escandalizar
silenciosamente não o discurso de amor e de perdão dessa parábola, e sim a
desconsideração da sociedade contemporânea para com esses valores éticos.
Poderemos constatar esse fato ao longo da análise, na medida em que percebemos
que o enunciador desse conto irônico subverte, por meio de determinados
mecanismos lingüísticos e discursivos instauradores da ironia, o conteúdo temático
da parábola, que seu propósito não recai nos ensinamentos morais, mas sim no
desvelamento das contradições humanas, como, por exemplo, no fato de o
enunciador nos desvelar que sob a aparência da compaixão do tio subjaz a
conveniência de manter seu status quo; subverte o propriamente as figuras da
102
narrativa bíblica que esta também lhe é comum —, mas sim os temas que são
recobertos por essas figuras, como pudemos verificar; e subverte o estilo
doutrinário, na medida em que, por meio do tom vacilante instaurado por tais
mecanismos lingüístico-discursivos, o narrador e o enunciador pretendem fazer,
respectivamente, o narratário e o enunciatário inferir a juízo de valor crítico à
desvalorização do amor e do perdão pela sociedade contemporânea, considerando
a tensão, o embate simultâneo entre o dito e o não dito. Dessa apropriação
subversiva, podemos deduzir que o narrador e o enunciador do conto não são
propriamente uma voz que representa Deus, mas sim uma voz crítica que, de certo
modo, converge com o discurso da parábola, aparente contradição esta
contradição por estarmos afirmando a todo instante que o enunciador do conto se
relaciona divergentemente com a parábola — que será elucidada no momento
oportuno da análise. Também elucidaremos no momento mais propício a idéia de
que tanto o narrador quanto o enunciador não são uma voz sagrada, ou melhor, a
idéia de que o enunciador e o narrador são posicionamentos discursivos que não se
confundem, mas que coincidem um com o outro.
Agora que delimitados, em linhas gerais, os elementos que nos farão
compreender como a retomada intencional de um texto conhecido pode contribuir
para a instituição e para a produção da ironia, podemos começar efetivamente a
analisar a relação divergente entre “O tio pródigo” e a parábola bíblica. Iniciemos,
pois, com um procedimento lingüístico que parece delinear o estilo doutrinário das
parábolas. Considerando que o discurso religioso apresenta, com intenção
doutrinária, suas verdades, refutando, conseqüentemente, as verdades alheias,
deduz-se que as parábolas bíblicas tendem a apresentar uma única isotopia que, em
análise do discurso, consiste na “recorrência de um dado traço semântico ao longo
103
do texto. Para o leitor, a isotopia oferece um plano de leitura, determina um modo de
ler o texto” (FIORIN, 2005, p. 113). No caso das parábolas, esse plano de leitura
o qual corresponde aos ensinamentos da verdade sagrada, ou melhor, da verdade
ideológica do discurso religioso concerne à idéia de que o perdão e o
arrependimento são condições precípuas para a salvação dos pecadores, sendo o
perdão um tema subjacente à figura do pai, e o arrependimento, um tema
subjacente à figura do filho pródigo. Vejamos, a seguir, como a isotopia instaura, na
parábola do filho pródigo, os mencionados temas do perdão e do arrependimento:
Entrou então em si e refletiu: Quantos empregados na casa de
meu pai, que têm pão em abundância... e eu, aqui, estou a morrer de fome!
Levantar-me-ei e irei a meu pai, e dir-lhe-ei: meu pai, pequei contra o céu e
contra ti; já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me como a um de
seus empregados. Levantou-se, pois, e foi ter com seu pai. Estava ainda
longe, quando seu pai o viu, e, movido de compaixão, correu-lhe ao
encontro, lançou-se-lhe ao pescoço e o beijou. O filho lhe disse então: Meu
pai, pequei contra o céu e contra ti; já não sou digno de ser chamado teu
filho. Mas o pai falou aos servos: Trazei-me depressa a melhor veste e
vesti-lha, ponde-lhe um anel no dedo e calçado nos pés. Trazei também
um novilho gordo e matai-o; comamos e façamos uma festa. Este meu filho
estava morto, e reviveu; tinha-se perdido e foi achado. E começaram a
festa (LUCAS, 15: 17-24).
Notamos, nesse trecho da parábola, que tanto a recorrência do traço
semântico de arrependimento do filho oriundo dos termos “refletiu” e “Levantar-
me-ei”, e também dos sintagmas “pequei contra o céu e contra ti” e “já não sou
digno” —, quanto a recorrência do traço semântico de perdão do pai inferido dos
sintagmas “movido de compaixão” e “lançou-se-lhe ao pescoço e o beijou” —,
estabelecem a isotopia da salvação, pois o fato de o pai não haver guardado
ressentimento em relação à atitude do filho foi de extrema importância para que a
remissão deste pudesse concretizar-se, isto é, para que a ressurreição de sua alma
pudesse acontecer, mesmo depois de ter sido “morto” pelo hedonismo desmedido.
104
Como pudemos perceber, a repetição dos traços semânticos de
arrependimento e de perdão estabelece para o enunciatário da narrativa bíblica
apenas um plano de leitura, portanto, apenas um único ensinamento, o qual
converge com a tendência monossêmica do discurso religioso: é preciso somente
uma única verdade, um único preceito, para fazer o fiel não se desvirtuar do caminho
do bem. Dessa maneira, a intenção do enunciador da parábola em inscrever apenas
um plano de leitura reside justamente em fazer o enunciatário identificar-se com as
condutas do pai e do filho, a ponto de também tomar o perdão e o arrependimento
como um dos alicerces da sua conduta moral.
em “O tio pródigo”, o enunciador estabelece a princípio o que parece ser
um plano de leitura para a sua narrativa; no entanto, ao final da história, percebemos
que esta apresenta, na verdade, dois planos de leitura. Assim sendo, esse
enunciador o se vale da isotopia para instituir a ambigüidade irônica, isto é, para
gerar a tensão entre o dito e o não dito, mas sim se vale da dupla isotopia. Por ora,
vamos limitar-nos apenas a registrar o fato de a dupla isotopia ser utilizada nessa
narrativa, deixando para discutir mais ao final da análise o efeito de sentido
decorrente de tal recurso lingüístico. Agora, é interessante atentarmos para o fato de
que, associados a essa dupla isotopia, também os breves e sucintos apontamentos
e descrições feitos pelo narrador ao longo do texto instituem e, o que é mais
importante, mantêm a ambigüidade irônica nesse texto, ambigüidade que,
recordemos, não pode nunca ser desfeita em se tratando de um enunciado irônico.
A fim de elucidarmos uma das possíveis funções cumpridas por tais apontamentos e
descrições, retomemos, primeiramente, as considerações de Norman Friedman
(2005, p. 174-175, grifos nossos) acerca de mais um dos tipos de narrador por ele
105
denominado Neutral Omniscience (FRIEDMAN, 1967, p. 123) ou narrador onisciente
neutro (CHIAPPINI, 1989, p. 32):
Uma vez que o próximo passo em direção à objetivação difere do
Autor Onisciente Intruso apenas devido à ausência de intromissões
autorais diretas (o autor fala de modo impessoal, na terceira pessoa),
podemos continuar nossa discussão sobre as diversas media disponíveis
para a transmissão do material da estória em questão. A ausência de
intromissões não implica necessariamente, contudo, que o autor negue a si
mesmo uma voz ao usar o espectro do Narrador Onisciente Neutro. [...]
Com relação à caracterização, embora o autor onisciente possa ter
predileção pela cena e, conseqüentemente, permita a seus personagens
falar e agir por eles mesmos, a tendência predominante é descrevê-los e
explicá-los com sua voz própria.
Esse tipo de narrador conta em 3
a
pessoa os acontecimentos deflagrados,
estando, pois, distante da cena enunciativa relatada. Contudo, essa distância do
narrador, que implica, por extensão, a sua não participação na história por ele
relatada, não o impede de saber o que se passa exatamente com as personagens,
fato este que pode ser deduzido da afirmação de Friedman de que cabe
predominantemente a esse tipo de narrador descrever e explicar para o leitor os
acontecimentos levados a cabo pelas personagens. Isso significa dizer que o
narrador evita emitir sua opinião sobre os fatos, a fim de passar ao narratário o que
seria a imagem fidedigna do estado das personagens, bem como dos
acontecimentos da situação narrada; é por isso que Friedman diz que esse tipo de
narrador não interpõe intrusões à narração, diferentemente do narrador onisciente
intruso que as emite e que, por extensão, acaba por acentuar a sua subjetividade
sobre os fatos.
No conto de Scliar em questão, o enunciador delega voz a um narrador que
passa a contar em 3
a
pessoa os fatos deflagrados sem aparentemente emitir
nenhum juízo de valor sobre eles. Dessa maneira, os breves e sucintos
apontamentos e descrições que ele tece praticamente ao longo de toda a narrativa
106
acerca das atitudes das personagens parecem ser decorrentes apenas do modo
como as situações se desencadeiam. No entanto, essa aparente falta de juízo de
valor é desfeita somente ao final do relato por meio de um conector de isotopias, que
instaura a mencionada dupla isotopia no texto, fazendo-nos ler o conto sob uma
outra perspectiva interpretativa. E é a partir dessa outra perspectiva interpretativa
que percebemos a ambigüidade dos apontamentos e das descrições desse
narrador: ele de fato pode valer-se de tais elementos para mostrar fielmente ao leitor
os fatos, mas ele faz isso a partir do seu ponto de vista sorrateiro sobre tais fatos, do
que decorre que a fidelidade não é aquela que se dá a ler explicitamente ao leitor.
Essa revelação sutil e, ao mesmo tempo, paulatina de uma verdade não
objetivada no enunciado, a qual institui o tom de desvelamento irônico, tem por
função vitimar o apenas as personagens do relato, mas também o enunciatário e
o narratário, posicionamentos enunciativos estes que, em um primeiro momento,
também acabam por coincidir um com o outro conforme poderemos verificar mais
adiante. Essa intenção de vitimar o enunciatário e o narratário parece ser a de fazê-
los perceber que as aparências realmente enganam e que é preciso, portanto,
transcender a aparente transparência de sentido das situações relatadas. Para
examinarmos, então, essa aparente transparência e chegarmos à sua essência,
vamos começar efetivamente a análise do diálogo entre “O tio pródigo” e a parábola
do filho pródigo:
Um rico empresário está em sua mansão vendo TV com a família
quando o criado vem anunciar: há um moço à porta querendo falar com
ele.
— Diz que é seu sobrinho.
O homem levanta-se e vai até lá, à porta está um rapaz de uns
dezessete anos, modestamente vestido, barbudo e com uma expressão
ansiosa no rosto. Como vai, tio, ele diz; o homem vacila; quem é você,
pergunta. Sou seu sobrinho Mílton, diz o rapaz.
— Mílton? Aquele garotinho?
— Eu mesmo, tio. O tempo passou.
107
O homem abre os braços:
— Venha de lá um abraço, Mílton!
Abraça-o demoradamente. Fá-lo entrar, leva-o até onde está a
família, apresenta-o: este é o filho do meu irmão João, que eu não via
desde pequeno. Todos levantam-se e vêm cumprimentar o recém-
chegado; Aline, a filha mais velha (dezoito anos), sorri, tímida. Depois dos
cumprimentos, o homem faz com que o rapaz se sente a seu lado, no
grande sofá, pergunta se ele jantou; quando o rapaz diz que não está
com fome, insiste para que tome algo, um uísque, um refrigerante; o rapaz
aceita um pouco de suco, e, enquanto o criado vai providenciar, o homem
volta-se para ele, os olhos brilhando:
Vamos lá, agora me fale de teus pais. Faz anos que não os vejo
(SCLIAR, 2003, p. 30-31).
Nesse trecho, notamos que o enunciador faz o narrador usar determinados
termos que parecem corresponder a uma descrição fidedigna do tio, de maneira a
orientar o enunciatário e o narratário a interpretar, de um único modo, a conduta
dessa personagem que parece, portanto, ser o caridoso e desprendido quanto o
pai da parábola bíblica. Essa única interpretação é por nós deduzida porque os tais
termos interpretativos do narrador estabelecem no texto a reiteração do traço
semântico da benevolência, instaurando, assim, um único plano de leitura para o
comportamento do rico empresário. Assim, a atitude dessa personagem que “vacila”
diante de um suposto sobrinho pode ser interpretada como uma prudente
desconfiança por parte do tio, da qual, porém, ele acaba por prescindir, porque o seu
carinho e a sua solidariedade aparentemente incondicionais são tamanhos, que ele
“abre os braçospara envolver “demoradamente” aquele que parece ser um garoto
humilde. Aliás, o narrador ressalta indiretamente esse carinho e essa solidariedade
do tio quando o criado, ao anunciar a chegada do rapaz, afirma “Diz que é seu
sobrinho”, parecendo, pois, ser mais desconfiado que o patrão, visto o sintagma “diz
que” relativizar o outro sintagma “é seu sobrinho” do qual se poderia afirmar, de
modo categórico, que o criado não suspeitava de nada. Esse afeto também é
expresso pelo sintagma “olhos brilhando” de que se pode inferir uma saudade
aplacada pela recém chegada do sobrinho. Devemos ressaltar, inclusive, que esse
108
traço semântico da benevolência é ainda mais enfatizado quando o enunciador faz o
narrador delegar voz ao tio para que este expresse, por meio do diminutivo
“garotinho”, a sua ternura pelo rapaz.
Dissemos há pouco que o garoto parece ser alguém humilde. Essa impressão
nos é causada porque o narrador instaura no texto a recorrência do traço semântico
da carência, orientando-nos, dessa forma, a fazermos uma única leitura acerca da
postura dessa personagem. Ao afirmar que o rapaz se apresenta à família
“modestamente vestido, barbudo e com uma expressão ansiosa no rosto”, o
narrador transmite-nos a idéia de que essa personagem é alguém carente tanto de
afeto, quanto das mais adequadas condições financeiras, fato este que, por outro
lado, reitera ainda mais a benevolência do tio que lhe aconchego, pois, ademais
de abraçá-lo, ele “Fá-lo entrar, leva-o até onde está a família, apresenta-o”, de modo
a integrá-lo ao seio familiar. Além disso, o tio tenta suprir as carências do sobrinho
ocasionadas pela falta de condições financeiras adequadas, perguntando-lhe “se
jantou”, ao que “o rapaz diz que não está com fome”, como se não quisesse causar
transtorno à família que o recebeu incondicionalmente, sem impor restrições à sua
modesta aparência. Portanto, o suposto sobrinho parece, de fato, ser alguém
humilde e, sobretudo, alguém despretensioso.
Como podemos notar, essa presença simultânea entre contrários — a riqueza
do tio e a pobreza do garoto acaba por dar um destaque maior à benevolência do
tio. Para compreendermos essa afirmação, é preciso associarmos essa
concomitância entre contrários a duas categorias carnavalescas que são o livre
contato familiar e a mésalliance carnavalesca. De acordo com Bakhtin (2005, p.
123), o livre contato familiar corresponde ao momento em que os “homens,
separados na vida por intransponíveis barreiras hierárquicas, entram em livre
109
contato familiar na praça pública carnavalesca”. Com relação à mésalliance, o
teórico russo (2005, p. 123) afirma:
A familiarização está relacionada à terceira categoria carnavalesca:
as mésalliances carnavalescas. A livre relação familiar estende-se a tudo: a
todos os valores, idéias, fenômenos e coisas. Entram nos contatos e
combinações carnavalescas todos os elementos antes fechados,
separados e distanciados uns dos outros pela cosmovisão hierárquica
extracarnavalesca. O carnaval aproxima, reúne, celebra os esponsais e
combina o sagrado com o profano, o elevado com o baixo, o grande com o
insignificante, o sábio e o tolo, etc.
Como vimos, após a sua aparente prudência de desconfiar de um garoto que
se apresenta como sobrinho ter sido dissipada, o tio o faz entrar em sua casa e o
apresenta à família sem considerar a diferença social que até então os separa,
desprendimento este que acaba, pois, por dar maior relevância à sua benevolência.
Assim, se antes a desconfiança promovia a “cosmovisão hierárquica
extracarnavalesca”, a aparente aniquilação desta pela abnegação do empresário
parece promover a relação igualitária entre ele e o rapaz, bem como a relação
afetuosa da família para com o garoto.
Até o momento, notamos que o enunciador vem estabelecendo uma relação
convergente entre o discurso da parábola e o discurso do seu próprio texto: o tio
parece ser tão caridoso quanto o pai da parábola bíblica, já que ambos agem
conforme a formação discursiva da benevolência, preocupando-se, portanto, em
salvar aqueles que se encontram perdidos na vida; o garoto do conto parece ser tão
sofredor quanto o filho, pois os dois guiam suas condutas segundo a formação
discursiva da humildade; e o narrador e o enunciador, embora não tentem
necessariamente doutrinar o narratário e o enunciatário pois, como sabemos,
uma das funções da literatura não é a de moralizar seu leitor conduzem o relato
de forma similar ao narrador e ao enunciador da parábola, isto é, ao enunciarem
110
seus dizeres da formação discursiva do afeto, assim como o fazem o narrador e o
enunciador da parábola, o narrador e o enunciador do conto parecem querer chamar
a atenção do narratário e do enunciatário para a necessidade das relações humanas
se pautarem pela prática do amor.
Antes de analisarmos o próximo fragmento do conto, devemos assinalar a
presença, nesse trecho, da aparente fidelidade descritiva atribuída pelo enunciador
aos apontamentos do narrador sobre as características de Aline, filha do rico
empresário. Aqui, importa resgatar uma outra característica do narrador onisciente
neutro: “A característica predominante da onisciência [...] é que o autor está sempre
pronto a intervir entre o leitor e a estória, e, mesmo quando ele estabelece uma
cena, ele a escreverá como a vê, não como a vêem seus personagens
(FRIEDMAN, 2002, p. 175, grifos nossos). Pela citação, esse tipo de narrador
interpreta os fatos e os apresenta ao narratário da maneira como ele os vê, ou
melhor, da maneira como esses fatos ocorrem; é o que o narrador de “O tio pródigo”
parece fazer ao afirmar que Aline é uma garota “tímida”: ele parece simplesmente
enfatizar a falta de coragem dessa personagem para expressar mais abertamente o
seu interesse pelo recém-chegado primo.
Acontece que determinados apontamentos que o enunciador faz o
narrador enunciar dos quais não conseguimos depreender, de imediato, a sua
relevância para o relato; um dos dados desse trecho concerne ao fato de Aline ser a
“filha mais velha (dezoito anos)”, o mesmo ocorrendo com a indicação da idade do
sobrinho que tem “uns dezessete anos”. Essa dúvida ocorre justamente porque esse
narrador parece ser neutro em relação aos acontecimentos por ele relatados. Mas,
apesar dessa dúvida, o fato é que a persistência do enunciador em fazer o narrador
indicar apontamentos de mesma natureza incita o narratário e o enunciatário a
111
tentarem tecer conjeturas sobre o significado e a relevância delas ou simplesmente
os faz ficarem atentos para a uma posterior revelação da importância dessas
descrições no decorrer da história. Portanto, apesar de se tratar de informações
vagas, o narratário e o enunciatário percebem que elas não são descartáveis para a
compreensão do relato, tanto que a idade da filha do empresário vem expressa no
texto entre parênteses, de modo a chamar-lhes a atenção para o fato de que esse
dado é importante para uma adequada interpretação do conto. Sobre a função que
essas informações aparentemente descartáveis cumprem nas narrativas irônicas, as
afirmações de Brait (1996, p. 111) são esclarecedoras:
Quando um narrador insiste em interpor incisos ao que está sendo
narrador, interrompendo a linearidade sintagmática para apontar para a
maneira como está atento à pertinência existente entre o que está sendo
narrado e a forma de narrar, certamente ele poderá fazê-lo de forma a
atrair a atenção do leitor para a enunciação.
É o que o narrador parece estar fazendo: com as indicações da idade, ele
certamente tenta “atrair a atenção do leitor para a enunciação”, com o objetivo de
que este descubra qual o significado implícito a tais incisos. Como, até o momento, o
enunciador, por meio do narrador, vem estabelecendo uma relação convergente
entre a parábola e o seu conto, o enunciatário e o narratário, a princípio, podem não
perceber ainda que a real contribuição desses dados no conto é para a produção da
ironia ou para a inferência de uma crítica que está ausente no enunciado, mas
que está presente na enunciação com toda a sua carga avaliativa —, e não
meramente para descrever fielmente os estados físicos e psicológicos das
personagens, o que nos faz deduzir que a vítima da ironia em “O tio pródigo” o
é apenas o empresário e o falso-sobrinho, mas também o são o enunciador e o
enunciatário, como já chegamos a mencionar.
112
Mas deixemos para comentar sobre as vítimas da ironia desse conto somente
mais ao final de nosso trabalho e retomemos a análise da narrativa:
— Vamos lá, agora me fale de teus pais. Faz anos que não os vejo.
Uma sombra de tristeza tolda o rosto do rapaz: voz embargada, conta
que o pai morreu e que a mãe está num asilo de alienados. Não sabia, diz
o homem, consternado. Diz que gostava muito do irmão, recorda cenas da
infância de ambos, num sítio cheio de árvores frutíferas. A conversa se
prolonga; notando que o rapaz dá sinais de cansaço, o homem pergunta
onde ele está morando; em lugar nenhum, é a resposta; acabou de chegar
à cidade, o jovem, não arranjou ainda alojamento. O homem insiste em
hospedá-lo. O rapaz, aparentemente com alguma relutância, aceita. O
criado é chamado e leva-o ao quarto dos hóspedes.
Os dias se passam e o rapaz vai ficando. Para encanto da família,
aliás; a esposa do empresário gosta de conversar com ele; o filho de oito
anos descobriu um companheiro de folguedos; e Aline, bem, Aline está
claramente apaixonada. Os pais notam e, à mesa, se olham, sorrindo.
O empresário oferece-lhe um emprego em sua firma. O rapaz aceita.
Daí por diante saem juntos pela manhã; o jovem agora veste-se
decentemente. Na gerência dos negócios revela-se dinâmico,
empreendedor, inteligente; os assessores do empresário estão encantados
com ele. Prevê-se que, após o noivado com Aline, o rapaz será empossado
oficialmente no cargo de diretor-executivo (SCLIAR, 2003, p. 31).
Nesse trecho, podemos observar um distanciamento maior entre o discurso
da parábola e o discurso do conto, pois o enunciador faz com que o narrador passe
a relatar os fatos não mais do interior da formação discursiva do afeto, mas sim da
formação discursiva da zombaria. Essa mudança do posicionamento ideológico do
narrador é perceptível porque o enunciador institui uma contraposição entre a
recorrência do traço semântico de benevolência levada a cabo pelo tio e a
recorrência do traço semântico da conveniência praticada pelo sobrinho. Até um
determinado momento desse fragmento, o narrador passa a idéia de que, de fato, o
sobrinho é alguém necessitado, contudo, ao afirmar que o rapaz aceita
“aparentemente com alguma relutância” a hospedagem oferecida prestimosamente
pelo tio, o narrador insinua sorrateiramente que esse garoto é um impostor: com
apenas uma palavra, o advérbio “aparentemente”, o enunciatário e o narratário
começam a supor que as atitudes dessa personagem são pautadas por algum tipo
113
de conveniência material e começam a notar, por extensão, que uma distância
entre a conduta do sobrinho de “O tio pródigo” e a conduta do filho pródigo, pois
este, em nenhum momento da parábola, chega a enganar o pai para conseguir
dinheiro e poder gastá-lo em farras; na realidade, o filho pródigo representa,
segundo a visão religiosa, o impulso desmedido de um adolescente inconseqüente
que, ao perceber o seu erro, regressa, arrependido, para o seio familiar.
A partir, pois, desse breve inciso do narrador e, por conseguinte, do
enunciador, seus interlocutores começam a fazer uma outra leitura sobre a postura
do garoto: trata-se de alguém que, percebendo a suposta sensibilidade e
solidariedade de todos os membros da família, tenta conquistá-los por meio de um
discurso carregado de proposital emotividade, tanto que, ao dizer-lhes, com pesar,
que seu pai havia morrido e que sua mãe estava em um asilo, o empresário diz,
“consternado”, não ter tomado conhecimento desses trágicos fatos. Aliás, depois
que esse advérbio “aparentemente” é mencionado no relato é que o narratário e o
enunciatário notam que o narrador, ao descrever que o rapaz pronunciou o
mencionado discurso de emotividade tendo seu rosto coberto por uma “sombra de
tristeza” e a “voz embargada”, não está querendo ressaltar o pesar do jovem por seu
suposto sofrimento, mas sim está querendo ironizar a simulação desse sofrimento.
Para compreendermos como esses apontamentos não são usados para descrever a
tristeza do garoto, é preciso apresentarmos as principais propriedades do discurso
indireto:
No discurso indireto [...] o discurso citado está subordinado à
enunciação do discurso citante. [...] O enunciador a sua versão do plano
de expressão ou do plano de conteúdo do discurso de um locutor. Temos,
assim, dois tipos de discurso indireto: a variante analisadora de expressão
e a variante analisadora de conteúdo.
[...] [Na] variedade analisadora de expressão, [...] o narrador coloca
entre aspas certas expressões do falante. É como se ele destacasse uma
expressão dita por este e a subordinasse a sua enunciação.
114
[...] No caso da variante analisadora de conteúdo, o narrador não se
ocupa do plano de expressão, penetra-o para alcançar o conteúdo, resume
o que foi dito, altera a expressão, pois o que quer é dar sua versão do
conteúdo do texto do falante (FIORIN, 2001, p. 75-76).
É necessário atentarmos, primeiramente, para o fato de que o discurso
emotivo do falso sobrinho nos é relatado pelo narrador justamente por meio do
discurso indireto analisador de conteúdo. Disso, temos que, antes do mencionado
advérbio ter sido introduzido na narrativa, poderíamos afirmar que as expressões
“sombra de tristeza” e “voz embargada” correspondiam a uma interpretação
fidedigna portanto, isenta de opinião desse narrador acerca do profundo pesar
sofrido pelo rapaz; no entanto, a posterior introdução de tal advérbio nos faz
perceber que o narrador e o enunciador ironizam o exagero com que o sobrinho
simula sua tristeza, do que inferimos que os termos “sombra” e “embargada”
sinalizam, na verdade, o peso dramático de que se valeu essa personagem para
tentar compadecer uma família que parece zelar pelo bem-estar alheio. Assim
sendo, a expressão “aparentemente” já é um indício de que é necessário atentarmos
para o fato de que subjaz aos incisos do narrador a sua subjetividade, ou melhor, a
sua opinião sobre os acontecimentos deflagrados, do que inferimos que a
neutralidade é aparente e, sobretudo, é um recurso que reforça ainda mais a
discordância tácita do enunciador sobre um determinado ponto de vista.
Como pudemos verificar, ao fazer o sobrinho enunciar suas falas de uma
outra formação discursiva, a da conveniência, passamos a perceber que o narrador
também faz o tio agir de acordo com uma outra formação discursiva, a da
ingenuidade. Assim sendo, podemos encarar a sensibilidade e a bondade do tio
como uma cegueira para os embustes, fato este potencializado quando o narrador
nos conta que o rico empresário resolve, definitivamente, acolher o estranho “Para
encanto da família”: ao usar o termo “encanto”, o narrador expressa, de modo
115
velado, o seu ponto de vista zombeteiro em relação à inocência da família. Essa
atitude irônica pode ser depreendida pelo fato de o enunciador instituir, nesse
trecho, uma leve tensão entre os dois sentidos que ele faz o narrador atribuir
sutilmente ao termo “encanto”: um deles pode referir-se ao “fascínio” dessa família
diante de alguém que eles julgam ser tão articulado com as palavras — “a esposa do
empresário gosta de conversar com ele” tão companheiro “o filho de oito anos
descobriu um companheiro de folguedos” e o romântico “e Aline, bem, Aline
está claramente apaixonada”; e o outro sentido concerne ao “encantamento”, ao
“feitiço” dessa família diante de um impostor.
Ao instituir essa tensão, parece que o narrador pretende enfatizar a
ingenuidade dessa família, sobretudo a ingenuidade do tio, demarcando, portanto,
uma diferença entre a postura dessa personagem e a postura do pai da parábola:
enquanto a benevolência deste auxilia o filho pródigo a salvar sua alma, a aparente
benevolência daquele auxilia o falso sobrinho a tirar proveito dessa situação. Aliás, é
preciso sinalizarmos que esse termo “encanto” também é utilizado pelo enunciador e
pelo narrador não apenas para ironizar a ingenuidade da família, fato este que se
esmiuçado por nós logo mais ao final da análise; assim, limitemo-nos agora a afirmar
apenas que, ao ironizar tal ingenuidade, o enunciador renuncia à sua falsa
pretensão de orientar o enunciatário do seu texto a trilhar o caminho do afeto para
passar a vitimar alguém por meio da ironia, e esse alguém, até o momento, parece
ser o tio pródigo que, como o próprio adjetivo sugere, é aquele que, por uma
inocência cega, dissipa, esbanja o seu dinheiro com um charlatão. No entanto, como
será possível constatarmos, esse narrador pretende, de fato, vitimar essa
personagem, mas o motivo para torná-lo alvo da ironia não é aparentemente a sua
ingenuidade, mas sim a sua ganância e a sua conveniente benevolência.
116
Por fim, resta destacarmos desse trecho mais uma informação aparentemente
descartável que é sinalizada pelo enunciador e pelo narrador a seus interlocutores, a
qual diz respeito a que o filho mais novo tem “oito anos” e que, portanto, é bem mais
jovem que a filha. Por enquanto, fiquemos com a interpretação mais perceptível aos
nossos olhos de que o pseudo-sobrinho tenta apenas bajular essa criança.
Após ter conseguido o que realmente desejava com a sua conveniente
amabilidade, ou mais especificamente, após ter se tornado gerente de negócios da
firma do rico empresário, ter conseguido vestimentas decentes e ter conseguido
conquistar Aline para com ela casar-se e, conseqüentemente, conquistar
“oficialmente” o cargo de diretor-executivo da empresa ou seja, após ter
conquistado não uma vida digna, mas sim uma vida luxuosa —, o rapaz passa a
enunciar seus dizeres da formação discursiva da contrição, com o fim de garantir,
definitivamente, seus objetivos:
Uma noite ele pede para falar com o futuro sogro. Tem algo
reservado a lhe falar. Retiram-se para a biblioteca; o logo o empresário
fecha a porta, o rapaz, num impulso, ajoelha-se e beija-lhe as mãos. Que é
isso, diz o homem, surpreso e comovido, mas o jovem, em prantos, não
consegue sequer lhe responder. Por fim acalma-se; e diz então que está
grato, muito grato, mas não pelas razões que o empresário imagina; por
outras, bem diferentes. Conta, então, que, deixando o colégio,
vagabundeou muito tempo pelo país, dormindo em barracas e em casas
abandonadas, até que se juntou a um bando de marginais. Juntos,
conceberam o plano de seqüestrar o empresário, pedindo por ele um
grande resgate. Encarregado dessa missão, ele estava, a princípio,
firmemente determinado a cumpri-la. Não pelo dinheiro; também pelo
dinheiro; mas principalmente porque acreditava estar fazendo justiça.
Estudou cuidadosamente todos os detalhes da operação...
Mas o carinho com que foi recebido, o clima que encontrou na casa,
de genuíno amor familiar; e mais, o dinamismo, a inteligência, a bondade
do empresário (a contrastar com a errônea idéia que fazia dos homens de
negócios), tudo isso fez com que mudasse de idéia. Renunciando à
violência, ele agora quer esquecer o passado e começar vida nova.
Percebi, diz, que vivia num mundo de fantasias exaltadas, num mundo de
ilusões perigosas; menos mal que recuei a tempo, não me tornando um
criminoso. Tudo o que quero agora é construir um lar cheio de amor e de
conforto para minha esposa e meus filhos. Esse bom propósito devo-o ao
senhor. A lição de vida que aqui recebi não poderei esquecer, e por ela lhe
serei grato para todo o sempre (SCLIAR, 2003, p. 31-32).
117
Logo no início desse trecho, notamos que o narrador continua a apontar-nos,
sorrateiramente, a falsidade do garoto, ao fazê-lo agir agora de acordo com a
formação discursiva do arrependimento, tanto que esse narrador nos relata que,
“num impulso” isto é, sem um conflito anterior de consciência e sem os rodeios
tão próprios daqueles que mentem e que têm receio de revelar seu erro —, o rapaz
“ajoelha-se e beija-lhe as os” do tio. Desse modo, com essa outra ligeira
sinalização de que esse garoto não é o que parece ser — a primeira, como vimos no
fragmento anterior, refere-se ao advérbio “aparentemente” —, o enunciador agora
passa ironizar a conveniente confissão dessa personagem, cujo discurso
melodramático de contrição nos é apontado sub-repticiamente pelas próprias
palavras desse sobrinho, as quais são ouvidas por nós mediante o discurso direto;
pelas palavras do narrador que interpreta o conteúdo do discurso dessa personagem
por meio do discurso indireto; e pelo discurso indireto livre, a partir do qual
escutamos tanto a voz do narrador como a do sobrinho. Ressaltamos que, em todos
esses discursos que se referem ao conteúdo proferido por essa personagem, o
enunciador faz avultar a simultaneidade entre elementos contrários, mais
especificamente os elementos que dizem respeito à ordem do sagrado e os
elementos que concernem à ordem do profano. Essa carnavalização, ou mais
especificamente, a destruição de barreiras entre idéias díspares, juntamente com os
três mecanismos lingüístico-discursivos a que nos referimos, tem por função
enfatizar ainda mais a ironia do narrador sobre a conveniência do falso
arrependimento desse sobrinho.
No final do primeiro parágrafo do trecho selecionado, a frase “Não pelo
dinheiro; também pelo dinheiro; mas principalmente porque acreditava estar fazendo
justiça” é expressa pelo narrador por meio do discurso indireto livre, podendo assim
118
ser atribuída tanto ao falso sobrinho quanto ao próprio narrador. Se atribuída ao
rapaz, tal frase se converte em uma tentativa de ele convencer o tio de que seu
desejo por fazer justiça é mais importante que sua ganância por dinheiro ou até
mesmo sua necessidade por dinheiro, cuja justificativa poderia ser a de que ele
“vagabundeou muito tempo pelo país, dormindo em barracas e em casas
abandonadas”; parece, pois, que o intuito desse rapaz, ao negar primeiramente essa
vontade ou essa necessidade por enriquecer “não pelo dinheiro” para logo a
seguir confirmá-la — “também pelo dinheiro” —, é o de contrapor um desejo torpe
se considerarmos sua ganância ou um desejo egoísta se considerarmos sua
necessidade, e não a necessidade coletiva — a um outro mais nobre, que é o desejo
de “principalmente” fazer justiça, justiça esta que, como poderemos inferir mais
adiante, consistiria em livrar a sociedade da ambição dos empresários.
Seja qual for o motivo que tenha feito o rapaz destacar em seu discurso a
necessidade de se fazer justiça, o fato é que essa ênfase parece ter por objetivo
impressionar um homem que parece prezar o bem-estar alheio e a conduta ilibada,
correta do ser humano. Chegamos a essa conclusão justamente se considerarmos
que o conteúdo expresso pelo discurso indireto também pode ter sido enunciado
pelo narrador. Nesse caso, o narrador ironiza a tentativa de o rapaz de simular ao tio
“altruísta” uma preocupação com o bem-estar coletivo para atenuar a sua ganância,
afirmação esta que procede se pensarmos que, se o narrador desejasse nos
transmitir a idéia de que essa personagem de fato estava arrependido, então ela não
teria introduzido esse sintagma no meio de seu discurso interpretativo. Note-se que
essa ironia é ainda mais enfatizada pela concomitância entre os elementos da ordem
do profano, como o “dinheiro”, e os elementos da ordem do sagrado, como “justiça”,
carnavalização esta que subverte o sentido habitual de arrependimento atribuído
119
pelo discurso religioso, que é o de pedir perdão se isentando de qualquer
conveniência. Dessa forma, a conseqüência dessa subversão é a ironia do
enunciador e do narrador em relação à atitude do falso sobrinho de tirar proveito de
uma situação.
Ao fazer, pois, com que o narrador pronuncie um seguimento lingüístico em
que se podem ouvir sutilmente vozes proferidas por distintas posições enunciativas e
em que, por conseguinte, se ouvem sentidos ideológicos distintos, o enunciador
institui a tensão irônica entre o dito e o não dito, dramatizando, pois, ironicamente, o
conveniente sofrimento do garoto. Além disso, até o momento, parece realmente que
o narrador tem sido uma espécie de porta-voz do enunciador no que concerne a
avaliar silenciosamente as condutas levadas a cabo pelas personagens do relato, do
que se depreende haver, ao menos por ora, uma coincidência entre essas duas
posições enunciativas.
Voltemos à dramatização irônica que o narrador empreende ao discurso de
contrição do pseudo-sobrinho. Notemos que, no início do segundo parágrafo, o
enunciador ainda faz o narrador interpretar, de modo irônico, as falas dessa
personagem por meio do uso do discurso indireto analisador de conteúdo.
Lembremos que, mediante essa variante do discurso indireto, o narrador chega ao
conteúdo do que foi expresso por uma personagem, com o fim de dar sua versão do
que esta disse. Assim sendo, no sintagma “genuíno amor familiar”, o narrador
parece utilizar o adjetivo “genuíno” para ressaltar o tom convenientemente
hiperbólico de que se valeu o sobrinho para simular admiração pelo que ele pensa
ser uma família ideal, a qual auxilia, não só financeira, mas afetuosamente, e
também sem nenhum tipo de condição, as pessoas que passam por algum tipo de
necessidade.
120
Essa falsa admiração também é depreendida do trecho em que o narrador diz
que o sobrinho desistiu do seqüestro porque “o dinamismo, a inteligência, a bondade
do empresário (a contrastar com a errônea idéia que fazia dos homens de negócios)”
o dissuadiram dessa pensamento. Notemos que a simultaneidade entre alguns
elementos do campo do profano — “dinamismo” e “inteligência” — e um elemento do
campo do sagrado — “bondade” é um sinal do enunciador para percebermos que
não é apenas o amor despojado do tio que fez o rapaz desistir de seqüestrá-lo.
Aliás, importa ressaltar que o narrador, ao reproduzir as falas do pseudo-sobrinho,
menciona primeiramente o “dinamismo” e a “inteligência” do empresário, para
depois mencionar sua “bondade”, gradação esta que insinua sorrateiramente que os
elementos materiais tiveram um peso maior na decisão do garoto de desistir do
seqüestro para conviver com a nova família.
Por fim, essa velada ironia do enunciador é sintomática quando este interpõe
os tais “incisos” de que falou Beth Brait às interpretações do narrador acerca das
falas do rapaz, incisos estes que interrompem, portanto, a linearidade sintagmática
do relato: quando o narrador introduz o inciso “(a contrastar com a errônea idéia que
fazia dos homens de negócios)”, ele ainda está nos insinuando a tentativa do
sobrinho em utilizar o apelo emocional para convencer o tio do seu arrependimento.
Todavia, é preciso assinalarmos que esse inciso, bem como o adjetivo genuíno”
também possuem uma outra intenção irônica por parte do enunciador, a qual é
por nós depreendida ao final do texto, quando, então, uma outra realidade se impõe
a toda história até aqui relatada. Mas deixemos para comentar esse assunto mais
adiante e terminemos a análise desse trecho do conto.
Até agora, investigamos as interpretações irônicas que o narrador fez das
falas do sobrinho por meio do discurso indireto analisador de conteúdo. Passemos
121
agora às interpretações que o narrador faz a partir do uso do discurso direto. Como
pudemos verificar no primeiro capítulo, esse recurso lingüístico-discursivo cria a
ilusão de que os dizeres proferidos por um determinado interlocutor são verdadeiros,
pois este nos conta determinados fatos por meio de suas próprias palavras, sem,
portanto, as intromissões do narrador. Dessa forma, quando o enunciador faz o
narrador delegar voz ao sobrinho para este afirmar ao tio um aparente desejo
verdadeiro de não viver mais “num mundo de fantasias exaltadas, num mundo de
ilusões perigosas” e de “construir um lar cheio de amor e de conforto”, ele quer
destacar ainda mais a essência dessa personagem, a qual prima pelo falso
arrependimento e pelo falso amor familiar. Tal ênfase decorre da associação do
discurso direto com a concomitância entre os elementos do campo do sagrado e os
elementos do campo do profano: é a partir da própria fala do rapaz que inferimos
que ele não desconsidera o materialismo como condição para viver com a família do
empresário, já que ele diz querer construir um lar pleno de “amor”, sem descartar, no
entanto, o “conforto” que vem recebendo desde o momento em que a farsa foi posta
em prática.
Além disso, a idéia por nós comentada anteriormente de que o narrador
ironiza o modo hiperbólico dessa personagem enunciar seu conveniente
arrependimento é confirmada por suas próprias palavras: as fantasias do passado
não eram meras fantasias, elas eram “exaltadas”, isto é, elas o incentivavam a
querer continuar no mundo do crime; as ilusões não eram igualmente meras ilusões,
elas eram “perigosas”, ou seja, o desejo por dinheiro, em vez de fazê-lo buscar
carinho e cumplicidade, também fazia com que ele não prescindisse do crime, ou
melhor, desvirtuava-o da busca por um lar “cheio”, repleto de afeto, o qual acabou
sendo por ele alcançado justamente devido ao afeto que recebera da família do
122
empresário. Esse simulado enaltecimento dos bens espirituais em detrimento dos
bens terrenos é, por fim, enfatizado pelo garoto quando ele agradece a “lição de
vida” que ele recebeu por parte da família, lição esta que consiste na importância de
valorizar o amor de modo irrestrito. Acontece que, como poderemos verificar, essa
personagem acabará por perceber que o é essa a lição de vida que a família do
empresário tenta legar aos outros.
Como pudemos notar, a contribuição do discurso direto para a instituição e a
posterior decodificação da ironia, ou mais especificamente, para a confirmação de
que o narrador e o enunciador não partilham da postura ideológica levada a cabo
pelo pseudo-sobrinho, reside em que o falso arrependimento dito por essa
personagem é percebido a partir da verdadeira desonestidade não dita por ele, mas
insinuada para nós pelo enunciador por meio do uso do discurso indireto e do
discurso indireto livre. Essa tensão entre o dito e o não dito é que nos faz perceber
que o garoto usa o apelo emocional por acreditar que o tio é de fato um homem
bondoso, tanto que o narrador continua a interpretar as atitudes dessa personagem
como se fossem executadas do interior da formação discursiva da benevolência: ao
aparente arrependimento do sobrinho, o tio fica “surpreso e comovido”, parecendo,
pois, ser uma pessoa que se importa com o sofrimento alheio.
Mais uma vez, portanto, pudemos constatar, pelo trecho analisado, uma
distância entre a parábola bíblica e o conto “O tio pródigo”, que o enunciador, por
meio de um narrador que usa a neutralidade de modo irônico, não está preocupado
em ensinar o caminho do bem aos enunciatários. Na verdade, sua preocupação
parece residir em evidenciar o choque entre a aparência e a essência das
personagens observadas: não a aparente ingenuidade do tio é julgada
ironicamente, como também o é o falso e conveniente arrependimento do rapaz.
123
Contudo, toda essa avaliação irônica feita até o momento sofrerá algumas
modificações a partir de um procedimento instaurado pelo enunciador ao final dessa
história, procedimento este que quebra as expectativas interpretativas do narratário
e do enunciatário que vêm sendo tecidas até o momento:
O empresário ouve em silêncio. Mas você é mesmo meu sobrinho?
pergunta, por fim. O rapaz hesita, hesita muito, antes de dizer que a
história foi toda forjada. Ele conheceu o verdadeiro sobrinho do empresário;
desse rapaz, falecido num acidente, obteve todas as informações de que
precisava para se apresentar como falso sobrinho.
O homem então se levanta, diz que precisa fazer algo, pede que o
rapaz aguarde na biblioteca. Sai. Dez minutos depois volta, acompanhado
de dois guardas de sua segurança pessoal. Prendam este homem, diz,
seco. O rapaz olha-o, incrédulo; horrorizado mesmo; lentamente, porém,
seu rosto se abre num sorriso. Obrigado, titio, diz, por fim. Torna a beijar as
mãos do homem e sai, escoltado pelos guardas (SCLIAR, 2003, p. 32).
Pelo final do conto, constatamos que, se o rapaz não tivesse tentado comover
o tio com o seu discurso de contrição, ou melhor, se tivesse mantido a farsa de que
era realmente seu sobrinho, ele não teria sido levado pelos guardas da segurança
pessoal do empresário. nos damos conta disso, devido à atitude inesperada do
empresário, inesperada não somente para o rapaz, mas também para o enunciatário
e para o narratário: ao lerem que o empresário ouve a confissão do falso sobrinho
“em silêncio”, estes ainda podem relacionar essa atitude com a abnegação do tio,
pois, em vez expressar cólera e decepção pelo embuste de que fora vítima, ele
pergunta calmamente ao rapaz se este de fato era seu sobrinho. Todavia, a
presença do conector de isotopias “seco no final do texto obriga o leitor a
depreender a verdadeira essência das atitudes do tio, a qual é distinta do que vinha
sendo inferida até o momento. Porém, antes de analisarmos essa premissa, convém
esclarecermos qual é a função de um conector de isotopias:
Um conector de isotopias é um termo que possui dois ou mais
significados, isto é, um termo polissêmico, presente no texto, que possibilita
uma leitura em dois planos distintos, que permite a passagem de uma
124
isotopia a outra. A dupla leitura apóia-se, pois, num elemento polissêmico
inscrito no texto (FIORIN, 2005, p. 115).
Relacionando tais conceitos teóricos à narrativa, deduzimos que bastou uma
única palavra, para que à isotopia da benevolência do tio, construída ao longo de
quase toda narrativa, sobreponha-se o real comportamento do tio: ele é um
empresário materialista e ardiloso, e não um homem que preza o convívio familiar,
segundo havia pensado o garoto e segundo o enunciador e o narrador fizeram o
enunciatário e o narratário pensarem. É em virtude, pois, desse conector de
isotopias que, ao reler a história, o enunciatário e o narratário começam a
compreender que os favores falsamente despretensiosos do empresário para com o
rapaz parecem ter sido convenientemente arquitetados. Desse modo, ele pode ter
aceitado o rapaz na sua família não por acreditar na união familiar, mas sim por
desejar manter o sucesso de seus empreendimentos financeiros, desejo este que,
para ele, talvez pudesse ser concretizado por meio de alguém que lhe pudesse
inspirar confiança, e o garoto parecia ser esse indivíduo.
O fato de o falso sobrinho ser a pessoa de quem o empresário precisava para
continuar a manter seu status quo parece ser ainda mais ressaltado por sua filha
mais velha, ainda que maior de idade como sabemos, Aline tinha “dezoito anos”
—, ser mulher e, sobretudo, ser “tímida”, do que podemos inferir que ela, talvez,
fosse uma pessoa sem a perspicácia e o dinamismo necessários para tocar o mundo
dos negócios. Aliás, o enunciador parece querer dar relevo a essa timidez e, por
conseguinte, parece querer contrapô-la à falsa amabilidade de toda a família, ao
nomear somente essa personagem, o que acaba por atribuir-lhe uma individualidade
em relação às outras personagens, isto é, a nomeação exclusiva de Aline parece
ressaltar que ela é a única que realmente nutre um sentimento sincero em relação
125
ao rapaz, tanto que, como vimos anteriormente, o narrador diz que ela estava
“claramente apaixonada” pelo rapaz, paixão, portanto, cega à farsa empreendida
pelo garoto.
seu “filho de oito anos”, apesar de homem cuja condição possui um
valor social de virilidade e de dinamismo se comparada à condição feminina é
muito jovem para assumir os negócios. Dessa maneira, a alternativa visualizada pelo
empresário para conseguir sustentar seu poderoso império financeiro pode ter sido o
de acolher o rapaz de aproximadamente “uns dezessete anos”, o que nos faz
deduzir que o tio parece não -lo acolhido por comiseração, mas sim com o intuito
de transformar o garoto em um empresário de sucesso, tanto que, como esse jovem
se revelou “dinâmico, empreendedor, inteligente”, o empresário decide casá-lo com
Aline tão logo esta atinja a maioridade, para, conseqüentemente, dar-lhe
“oficialmente” o cargo de diretor-executivo de tal império.
No entanto, essa intenção do empresário foi desfeita, quando ele teve a
confirmação de que o rapaz não era mesmo seu sobrinho. Percebendo, pois, que
havia dissipado tempo e dinheiro preparando um impostor em quem não podia
confiar, o empresário mostra a sua verdadeira faceta: após a revelação do embuste
por parte do rapaz, ele sai da sala com a desculpa de que precisa resolver um
assunto qualquer e, depois de alguns minutos, entra com seus seguranças para
prender, sem nenhuma hesitação, o garoto. Retornando à análise do início da
narrativa que nos conta que o empresário “vacila”, mais especificamente no
momento da chegada do estranho em sua casa, essa reação se justifica não porque
ele é simplesmente alguém prudente com relação ao bem-estar da família, mas
porque é alguém prudente com relação a seu patrimônio, a seus bens. Caso a
conduta desse empresário fosse de fato pautada pela benevolência e caso ele
126
realmente se importasse com as questões éticas e familiares, ou ele teria agido
como o pai da parábola bíblica, perdoando assim os pecados do garoto, ou ele teria
feito esse impostor enxergar como a mentira poder fim às relações de afeto entre
as pessoas e destruir a retidão de um caráter.
Toda essa postura de quem age ardilosa e sorrateiramente para conseguir
um determinado objetivo se refere, portanto, à isotopia da conveniência, a qual
acaba se sobrepondo à isotopia da benevolência justamente mediante a relação
intrínseca entre a dupla isotopia e a aparente neutralidade dos breves incisos
interpostos pelo narrador durante todo o relato. A partir da instituição do conector
“seco” no último parágrafo do conto, passamos a depreender a ambigüidade de tais
incisos do narrador. Assim, quando, no momento em que acolheu o rapaz em sua
casa, o empresário voltou-se para ele com os “olhos brilhando”, ele não estava
expressando com isso a saudade aplacada pela chegada do suposto sobrinho, mas
sim poderia estar vislumbrando um futuro promissor para esse garoto e, por
conseguinte, para todo o seu império financeiro; aliás, o empresário poderia também
ver no rapaz um marido para a filha que, por ser tímida, poderia demorar a realizar
um casamento e, por conseguinte, poderia não gerar herdeiros e futuros
empreendedores que dessem continuidade à construção desse seu império. Além
disso, quando o narrador diz que o falso sobrinho acabou ficando admirado com o
clima de “genuíno” amor que encontrou inesperadamente na família do empresário,
ele ironizou não o falso arrependimento dessa personagem, como também a
conveniência da família em sustentar as relações inter-pessoais por meio da
dissimulação de afeto e de carinho: forjando-se amabilidade e “encanto” para com o
rapaz, tanto o empresário como a sua esposa, poderiam finalmente conseguir um
marido para a tímida Aline.
127
Como pudemos verificar, essa revelação súbita, decorrente do conector de
isotopias “seco”, acabou por nos confirmar que os breves incisos do narrador não
eram gratuitos, não tendo, pois, por função precípua descrever fielmente a situação
por ele observada. Após a sobreposição da isotopia da conveniência, percebemos
que todas as personagens de “O tio pródigo” acabam sendo vítimas da ironia do
narrador. Com relação ao garoto, notamos que, a princípio, a ironia do narrador e do
enunciador consiste em desvelar-nos a conveniência da falsa identidade dessa
personagem, para ao final eles o ironizarem por sua ingenuidade, visto esse rapaz
ter acreditado no falso e conveniente afeto do tio; aliás, no último parágrafo do
conto, essa sua ingenuidade é expressa ironicamente pelo narrador mediante o
sintagma “horrorizado mesmo”, o qual demonstra que o garoto não esperava o
fracasso de seu plano, que o empresário parecia ser tão prestimoso e
compreensível. quanto ao empresário e por extensão toda a sua família —,
notamos que o enunciador e o narrador nos fazem pensar, de início, que essa
personagem é ironizada por sua bondade incondicional, quando, na verdade, no
desfecho da narrativa, percebemos que ele é julgado pelo mesmo motivo que o do
falso sobrinho, o de forjar convenientemente uma falsa identidade, para manter seu
status quo.
Acabamos de dizer que tanto o enunciador quanto o narrador ironizam todas
as personagens do conto, fato este que acaba por confirmar não haver uma
confusão entre os posicionamentos enunciativos do narrador e do enunciador, mas
sim uma coincidência entre tais posicionamentos discursivos: não confusão
porque o enunciador é que é o responsável por toda a organização do relato, ou
seja, é ele quem, por exemplo, delega voz a um determinado tipo de narrador para
que este relate determinados acontecimentos; mas coincidência, porque o
128
narrador ironiza todas as personagens justamente devido ao enunciador arquitetar a
trama narrativa de modo a fazê-lo enunciar seus dizeres da mesma formação
discursiva que a sua, ou melhor, de modo a fazê-lo discordar do posicionamento
ideológico de todas as personagens, do que depreendemos ser esse narrador em 3
a
pessoa uma espécie de porta-voz do enunciador.
Esse julgamento tácito por parte do enunciador e do enunciatário quanto à
atitude dessas duas personagens é ainda mais sintomático quando, após ter ficado
de fato horrorizado com a atitude do empresário, o rapaz acaba por perceber que
deveria continuar hesitando em revelar o seu embuste. Aqui, importa recuperarmos
a idéia de que a constituição das personagens pode se dar no limiar e no limite. No
caso do garoto, notamos que a sua oscilação entre a confiança e a desconfiança
acaba por forjar uma identidade ancorada no limiar, visto as suas ações serem mais
móveis e flexíveis que a do tio, cuja identidade é, por extensão, constituída no limite.
Examinando melhor essas afirmações, percebemos que a identidade do falso
sobrinho é mais móvel que a do empresário porque suas ações são cambiantes, ou
seja, ele confia, mas ao mesmo tempo desconfia, da benevolência irrestrita do tio:
notemos que, no penúltimo parágrafo, depois que o tio lhe pergunta se ele era de
fato seu sobrinho, o garoto “hesita, hesita muito antes de dizer que a história foi toda
forjada”, fato este que parece nos demonstrar muito sutilmente a desconfiança do
menino em relação à pergunta do tio. No entanto, apesar dessa desconfiança, o
rapaz acaba por confirmar toda a farsa.
Essa postura mais inacabada do falso sobrinho se contrapõe ao acabamento
da postura do empresário, cujas ações são, tanto no “ser” quanto no “parecer”, mais
categóricas, absolutas. Isso significa que antes de descobrir a farsa, essa
personagem aparenta ser extremamente benevolente e prestimosa, ao passo que,
129
depois de descobri-la, ele se revela abruptamente como alguém extremamente
“seco”, sem emotividade. Não há, pois, oscilação entre o parecer e o ser dessa
personagem.
Desse conflito entre as ações dessas personagens, uma determinada no
limiar e a outra no limite, podemos depreender que o enunciador acaba por ironizar
a frase “A lição de vida que aqui recebi não poderei esquecer, e por ela lhe serei
grato para todo o sempre” dita pelo falso sobrinho no final de seu discurso de
contrição. A ironia consiste em apontar a ingenuidade do sobrinho em o perceber
que a “lição de vida” que deveria ter sido aprendida não concerne à aparente
benevolência da família para com ele, mas sim diz respeito ao fato de que, para
obter-se um determinado propósito, é preciso, tal qual o tio, agir de modo a sustentar
uma mentira, uma determinada postura. Se o menino não tivesse oscilado entre a
confiança e a desconfiança, ou melhor, se ele tivesse continuado a mentir, poderia
ainda estar desfrutando o conforto e o bem-estar que havia adquirido até o
momento.
Mas, ao final do conto, o falso sobrinho acaba por aprender, com a falta de
perdão do empresário, essa irônica lição de vida, tanto que ele “Torna a beijar as
mãos do homem” movido não por uma crise de consciência, tal qual fizera o filho
pródigo da parábola, mas por ter descoberto nesse empresário uma espécie de
sábio que o ensinou a como se portar em sociedade. Aqui, é preciso ressaltar que o
enunciador uma vez mais consolida essa personagem no limite ao reunir nele
elementos contrários que acabam por ironizar essa espécie de ensinamento dada às
avessas: note-se que a passagem da percepção do pseudo-sobrinho de que “deve-
se sempre dizer a verdade” para o “é preciso sustentar sempre a mentira” ocorre
gradativamente, isto é, ele passa “lentamente” de um estágio de “horror” para um
130
estado de encantamento ao notar a vantagem de se sustentar uma farsa, acabando
finalmente por abrir um “sorriso” que pode ser compreendido como um sorriso
irônico por este significar a aprovação por parte do garoto de um ensinamento
contrário à moral bíblica de que o apego material deve ser suplantado pelo amor
sincero. Esse ensinamento às avessas é ainda mais ironizado pelo enunciador
quando esse rapaz, depois de ter dito que seria grato “para todo o sempre” pela
lição de vida de amor que pensou ter recebido, acaba, no final da história, por
agradecer ao empresário provavelmente pelo que ele considera agora ser a
verdadeira lição de vida: ao agradecer-lhe chamando-o de “titio” mesmo não o
sendo —, parece que o garoto lhe insinua haver compreendido que, para manter
seus benefícios, ele deveria ter continuado a fingir que este era realmente seu tio.
Além disso, o termo “titio” que, no diminutivo, pode expressar afeto de uma pessoa
em relação à outra, parece ter sido mencionado ironicamente pelo garoto para
insinuar ao empresário que ele não teria sido castigado, caso tivesse mantido o
aparente sentimento de fraternidade.
Como pudemos perceber, esse embate entre as distintas condutas do filho
pródigo e do falso sobrinho de um lado, e as do pai da parábola e do empresário de
outro, é por nós depreendida como um conflito irônico porque a nossa interpretação
a partir do dito é orientada pelo não dito. Explicando melhor essa afirmação, nossa
leitura acercea das condutas do empresário e do rapaz resulta, de certa forma, da
história da parábola que está sendo representada, ou mais especificamente, que
está sendo imitada no enunciado por um outro viés: de início, o enunciador objetiva
no enunciado de “O tio pródigo” o discurso de amor da parábola do filho pródigo,
para depois este ir sendo sobreposto paulatinamente pelo discurso da conveniência
da sociedade contemporânea. O fato de o discurso da parábola ter sido silenciado
131
não significa, porém, que o enunciador tenha se limitado a coroar a conveniência; na
verdade, ele silencia tal discurso com o fim de que este ressoe seus valores a partir
do nível da enunciação, pois é dessa forma que o enunciador consegue avultar a
contradição, ou melhor, a postura dissimuladora de suas personagens.
Portanto, o enunciador coroa a conveniência no nível do enunciado, mas
destrona-a no nível da enunciação para que um outro ponto de vista seja coroado de
modo sub-reptício: é justamente silenciando esse discurso da parábola, mas,
sobretudo, fazendo-o entrar em conflito com o contradiscurso da conveniente
falsidade e do apego aos bens materiais, contradiscurso este que acaba reinando no
enunciado, que o enunciador institui, também de modo velado, a sua discordância
com a valorização do materialismo, com a hipocrisia do não-perdão do empresário
quando, na verdade, ele próprio é tão farsante quanto o sobrinho e com a
relação de agressão e de reificação estabelecida entre as personagens, pois tanto o
empresário quanto o falso sobrinho são, um para o outro, meros objetos que servem
para que um fim materialista seja alcançado. Assim sendo, se, no final do conto, a
mésalliance carnavalesca é eliminada do nível do enunciado, no nível da enunciação
ela reina ao promover o embate entre contrários, ou melhor, ao permitir a
confluência conflitante entre a conveniência e o julgamento a essa conveniência,
produzindo e mantendo, dessa maneira, a tensão, a ambigüidade irônica.
Se o julgamento irônico a essa conveniência decorre, conforme
sinalizamos, dos ensinamentos da parábola do filho pródigo estarem presentes
virtualmente no conto de Scliar, então podemos afirmar que tanto uma
divergência, quanto uma certa convergência entre o conto e a parábola. A
divergência ocorre justamente devido às atitudes levadas a cabo pelas personagens
de cada uma das narrativas serem diferentes entre si, o que nos mostra como a
132
sociedade contemporânea, de um modo geral, não acata um dos mandamentos
divinos que é o de “Amai uns aos outros”. a convergência advém do enunciador
do conto valer-se da imitação para criticar não a moral religiosa, mas sim para
criticar a postura da sociedade que, em detrimento das relações de amor, de afeto e
de perdão entre as pessoas, perdoa o outro e arrepende-se da falta cometida
apenas quando tais atitudes proporcionam um benefício para si. Desse modo, o
enunciador subverteu a parábola no nível do enunciado e captou o seu discurso,
mantendo-o presente no nível da enunciação, justamente para fazer aflorar, de
modo sutil, aos olhos dos enunciatários a sua discordância com a essência
individualista e materialista dessa sociedade contemporânea.
Disso tudo, verificamos que as várias formas de se recuperar o já-dito, sendo,
pois, a imitação uma dessas formas, “podem ser consideradas maneiras especiais
de produzir sentido, como artefatos que permitem descrever a produção do efeito
irônico como atividade de linguagem(BRAIT, 1996, p. 107). Ademais, de todos os
outros sentidos irônicos que analisamos a partir da relação entre a parábola bíblica
do filho pródigo e o conto “O tio pródigo”, devemos destacar o fato de o enunciador
do texto de Scliar ter um propósito distinto do objetivo almejado pelo enunciador da
parábola. Embora, como pudemos verificar, haja uma certa convergência entre os
discursos de ambos os textos, o enunciador da parábola é um representante de
Deus por relatar uma história que serve como modelo de conduta ideal a ser seguida
pelo fiel, daí a parábola possuir apenas um único sentido, o qual, por seu turno, deve
orientar esse fiel a seguir uma única verdade. o enunciador do conto não é um
representante de Deus, mas sim uma voz que, além de contestadora, é uma voz de
identidade tão cambiante, quanto a identidade do empresário: percebemos que ele
chega a nos orientar não exatamente sobre a importância do amor e do perdão para
133
a purificação dos pecados, mas sim para o entendimento de que o amor e o perdão
são subjugados pela conveniência humana. Esse enunciador também nos chama a
atenção para a importância de desvelarmos as armadilhas da dissimulação levada a
cabo pelas pessoas e, sobretudo, para o fato de que podemos ser vítimas dessas
armadilhas: devido à dupla isotopia ter sido desencadeada somente ao final da
narrativa, durante praticamente toda a análise do conto, o enunciador nos fez
acreditar que ele simplesmente tinha, por intenção, desvelar ironicamente a
falsidade do sobrinho e a ingenuidade do tio, tornando-os, assim, vítimas de sua
ironia, quando, na verdade, seu intuito era também o de nos tornar alvos de seus
julgamentos.
Antes de especificarmos como nós, os enunciatários, nos tornamos vítimas da
ironia desse enunciador, convém apontarmos uma diferença entre o enunciador de
“O tio pródigo” e o enunciador de “Um mentiroso, aquele velho”, para somente ao
final de nosso trabalho, detalharmos um pouco mais os efeitos de sentidos
decorrentes dessa diferença. Como pudemos deduzir, os enunciadores de ambas as
narrativas tecem, por meio da ironia, um ponto de vista crítico e, sobretudo, sutil em
relação aos acontecimentos relatados, enfoque este esperado, uma vez que a
ironia é, como sabemos, uma estratégia discursiva que prima pelo desvelamento
tácito com o fim de deixar entrever a tentativa de se escamotearem as contradições
humanas. Acontece que o enunciador de “O tio pródigo” parece querer fazer o
enunciatário atentar para as armadilhas da dissimulação humana, ressaltando
ironicamente o seu caráter também dissimulador, tanto que, como comentamos,
somos tão vítimas da ironia desse enunciador quanto o são o falso sobrinho e o
empresário, embora, esse enunciador ironize cada um desses posicionamentos
discursivos com propósitos distintos. o enunciador de “Um mentiroso, aquele
134
velho” parece simplesmente querer desvelar e ressaltar a atitude reificadora de
algumas pessoas em relação a outras, sendo, pois, esse enunciador mais
complacente para com seu enunciatário, na medida em que não o torna vítima de
sua ironia. Disso, parece que o distanciamento tanto do enunciador quanto do
enunciatário é maior nesse conto do que naquele, ou mais especificamente, em “Um
mentiroso, aquele velho”, parece que o enunciador e o enunciatário são
observadores que estão imunes aos fatos narrados, ao passo que, em “O tio
pródigo”, o enunciador e o enunciatário são observadores que acabam por se
envolver mais com os acontecimentos desencadeados.
Elencadas as diferenças entre os enunciadores de ambos os contos,
voltemos, pois, à questão da vitimização do enunciatário, e também do narrátario,
em “O tio pródigo”. Chegamos a afirmar em um determinado momento de nossa
análise que esses dois posicionamentos discursivos coincidem um com o outro; isso
ocorre, visto que, se o narrador é o porta-voz do enunciador, então os
posicionamentos de enunciatário e de narratário se identificam — ao menos na
primeira leitura do conto —, sendo ambos tão vítimas da ironia quanto o são o
empresário e o pseudo-sobrinho. Enfatizamos que nós, enunciatários, somos vítimas
ao menos na primeira leitura dessa narrativa, porque, somente durante sua releitura,
quando então nós caímos na armadilha do enunciador, estamos preparados para
depreender a real intenção da ironia instituída pelo enunciador, podendo, assim, nos
distinguir do narratário.
Uma das estratégias para o enunciador vitimar o enunciatário e o narratário
consiste no uso do tempo presente pelo narrador para contar um fato que ocorreu
entre a família do empresário e o falso sobrinho. Para compreendermos melhor essa
afirmação, ouçamos as considerações de Fiorin (2005, p. 63):
135
O ato de narrar ocorre, por definição, no presente, dado que o
presente, o agora, é o momento da fala (no caso, fala do narrador). Assim,
o ato da narração é posterior à história contada, que, por conseguinte, é
anterior a ele; por isso, o sistema do pretérito [...] é o conjunto de tempos
por excelência da narração. No entanto, o narrador pode criar uma
narração em que haja uma concomitância entre o tempo da narração e o
dos acontecimentos narrados, para simular que eles acontecem no mesmo
momento em que estão sendo contados. [...] No entanto, isso é simulação,
dado que o narrador narra de o lance ter acontecido, quando é passado,
embora muito recente. Nesse caso, usam-se os tempos do sistema
presente.
Realmente, o enunciador faz o narrador usar apenas o tempo presente para
relatar a história ocorrida entre o rapaz e o empresário, parecendo pretender com
isso simular que o tempo da narração está ocorrendo simultaneamente aos
acontecimentos levados a cabo pelas personagens, fato este que aproxima a cena
enunciativa do narrador ao narratário. Essa simulação parece, pois, ser uma
tentativa do enunciador e do narrador de envolver seus interlocutores nos
acontecimentos, limitando, dessa maneira, a visão mais abrangente e, por extensão,
mais objetiva que eles poderiam ter sobre os fatos desencadeados. Portanto, essa
simulação pode ser considerada um indício de que o enunciador e, por extensão, o
narrador pretendem vitimar o enunciatário e o narratário.
Outra estratégia de que o enunciador usa para ironizar o enunciatário e o
narratário concerne à maneira como as personagens do relato foram modalizadas ao
longo da narrativa. Como pudemos verificar, enquanto a essência do garoto foi nos
sendo desvelada progressivamente, a do empresário nos foi desnudada
abruptamente. No início da narrativa, o falso sobrinho parece ser necessitado e o tio
parece ser prestimoso e benevolente, ou seja, eles parecem, a princípio, serem
modalizados no modo da verdade. Contudo, conforme nossa análise apontou, a
introdução pelo narrador do advérbio “aparentemente”, em um determinado
momento da narrativa para modalizar o comportamento do garoto, nos fez perceber
que essa personagem parece necessitado, mas não é, fato este que vai sendo
136
confirmado quando nos damos conta de que esse rapaz não parece conveniente,
mas é, pois, como vimos, ele acaba por beneficiar-se da aparente amabilidade do
tio: esse jogo entre a modalização do pseudo-sobrinho no modo da mentira e no
modo do segredo avulta aos nossos olhos a dissimulação dessa personagem, ao
mesmo tempo que embaça a nossa visão para o fato de o tio também ser
dissimulado, uma vez que o narrador faz com que este ainda pareça ser
benevolente e prestimoso no modo da verdade.
A manutenção dessa contraposição entre a conveniência de uma
personagem e a aparente benevolência de outra até praticamente o desfecho do
relato nos faz acreditar que a ironia do enunciador e do narrador recai apenas sobre
a farsa do garoto, quando então, somente ao final da narrativa, outras duas farsas
nos são de súbito desveladas: apenas a partir do momento em que o empresário
manda, de modo “seco”, seus seguranças prenderem o pseudo-sobrinho é que nos
é desvelada a essência implacável do tio. Ao mostrar-nos repentinamente a farsa
dessa personagem apenas no último parágrafo da narrativa, modalizando-o no
modo da verdade, isto é, fazendo o empresário confirmar essa sua essência
implacável pelo modo “seco” com que castigou o rapaz, o enunciador e o narrador
parecem ter, pelo menos, duas intenções: questionar não somente a falta de
sensibilidade do empresário, mas também, e principalmente, a sua hipocrisia em não
perdoar um farsante, quando ele próprio o é; e alertar, de modo irônico, o
enunciatário e o narratário sobre as armadilhas da dissimulação, visto que eles
acabaram por ser vítimas da farsa empreendida pelo enunciador e pelo narrador.
Obviamente que a farsa do enunciador e do narrador não se iguala a do
empresário e a do sobrinho, pois, como acabamos de afirmar, a intenção dos
interlocutores do enunciatário e do narratário parece ser a de alertá-los sobre as
137
armadilhas da dissimulação. Dissemos também que eles fizeram isso de modo
irônico, e cremos que assim eles procederam justamente com o objetivo de fazer
seus interlocutores exercitarem mais o seu senso de observação sobre a
complexidade da alma humana, que veste inúmeras máscaras para fingir modos de
ser no mundo e, conseqüentemente, com o fim de não sermos tão vítimas das falsas
aparências, como o foi o falso sobrinho. Assim, apenas quando nós, enunciatários,
nos damos conta disso é que nos distanciamos do narratário e que passamos a
fazer a segunda leitura de modo a perceber que os incisos interpostos pelo narrador
ao longo da narrativa primam pela ambigüidade irônica. Essa nossa premissa parece
encontrar apoio nas seguintes considerações de Beth Brait (1996, p. 129-130):
[...] o processo irônico fundamenta-se na lógica dos contrários, na
tensão entre o literal e o figurado e numa relação muito especial entre o
enunciador e seu objeto de ironia, e entre o enunciador e o enunciatário. A
ironia requer de seu produtor uma familiaridade muito grande com os
elementos a serem ironizados, o que de imediato torna isomorfa a cisão
constitutiva da ironia e a cisão constitutiva do sujeito, do seu produtor.
Naturalmente, essa é uma das dimensões que particularizam a
ambigüidade irônica, tornando-a constitutiva e, por isso, impossível de ser
resolvida. Por outro lado, também o enunciatário espelha a cisão, na
medida em que capta a sinalização emitida pelo discurso e, através dela,
aciona sua competência discursiva, o que lhe possibilitará fruir a ironia
como vítima, ou como parceiro de um ponto de vista do enunciador. De
qualquer forma, o processo emite sinais de forma a acionar a memória
discursiva, a contar com o distanciamento e, dessa maneira, prever a
possibilidade de realização do efeito de sentido irônico.
Acreditamos que, no caso do conto em questão, fruímos a ironia como vítimas
somente na primeira leitura, ou mais especificamente, quando captamos a
sinalização do enunciador para o fato de que o conector de isotopias “seco”
estabelece o real objetivo da ironia que consiste, conforme nossos esclarecimentos
anteriores, não somente em revelar e enfatizar a dissimulação do empresário, mas
também em revelar e avultar a nossa ingenuidade, visto termos acreditado que a
ironia do enunciador iria ficar circunscrita apenas às atitudes convenientes do falso
138
sobrinho e à aparente ingenuidade da benevolência do empresário. É somente após
termos caído nessa armadilha que passamos a ler o conto com mais acuidade,
passando a identificar as outras sinalizações espalhadas pelo enunciado, bem como
os efeitos de sentido que tais mecanismos acarretam para a depreensão adequada
da ironia no texto analisado.
Um outro exemplo que confirma a nossa identidade como enunciatários ideais
do discurso irônico e que, conseqüentemente, demarca o nosso distanciamento em
relação ao posicionamento do narratário diz respeito ao momento em que, durante a
segunda leitura, passamos a compreender por que o enunciador pode ter feito o
narrador referir-se ao tio pródigo apenas pelo termo “homem” e, por vezes, pelo
termo “empresário”, sendo o falso sobrinho chamado somente pela expressão
“rapaz”. Visto o enunciador ter convocado as mais distintas formações discursivas —
tanto as que nos fazem ouvir às atitudes reificadoras da sociedade contemporânea,
quanto as que nos fazem ouvir os preceitos do universo religioso de modo a
confrontá-las e a orquestrá-las sob a sua formação discursiva, a qual é, portanto, a
formação dominante e a qual prima pela valorização da ética, deduzimos, então, que
o narrador não chama o empresário nem o garoto, respectivamente, de “tio” e de
“sobrinho” porque ambas as palavras carregam um valor afetivo que é próprio da
formação discursiva da intimidade familiar. Sabemos por Bakhtin (2004, p. 66) que a
palavra não vale apenas por sua composição lingüística ou apenas pelos sentidos
que o dicionário lhes atribui:
A palavra se apresenta como uma arena em miniatura onde se
entrecruzam e lutam os valores sociais de orientação contraditória. A
palavra revela-se, no momento de sua expressão, como o produto da
interação viva das forças sociais.
139
Assim sendo, desejando demarcar, ainda que sutilmente, a sua distância e,
por extensão, a sua não-conivência com a atitude de ganância levada a cabo pelo
tio e pelo sobrinho, o enunciador faz o narrador chamá-los de “homem” e de “rapaz”,
expressões estas que parecem demonstrar justamente uma não afetividade do
narrador e, por extensão, do enunciador em relação a essas duas personagens.
Com relação ao termo “empresário”, o enunciador já nos indicava tacitamente, desde
o início da narrativa, que seu posicionamento ideológico é o de ironizar a valorização
materialista dessa personagem, a sua preocupação com os negócios, o que acaba
por acentuar ainda mais sua conveniência em forjar um amor desmedido pela família
e pelo garoto. Assim sendo, o enunciador e o narrador não estavam falando de um
tio ou de um homem de família, mas simplesmente de um homem de negócios.
Devemos enfatizar ainda que a crítica implícita do narrador e do enunciatário
à farsa do falso sobrinho também decorre do fato de, a princípio, o narrador fazer
esse rapaz identificar-se por “Mílton” para, depois, esse nome não ser mais
mencionado no restante da narrativa. No início da história, quando ainda o
sabemos que esse garoto é um impostor, podemos pensar que essa sua nomeação
lhe atribui uma personalidade marcante, pois, quando essa personagem se
apresenta ao suposto tio dizendo “Sou seu sobrinho Milton”, o empresário lembra-se
imediatamente do sobrinho que nunca mais havia visto e lhe dá um abraço afetuoso.
Contudo, após percebermos que esse rapaz é um farsante, essa sua individualidade
se desvanece para que suas ações passem a representar tipos genéricos, ou seja,
para que ele seja um representante de um grupo de pessoas que buscam o
enriquecimento ilícito.
É, portanto, a partir do momento em que passamos a inferir a ambigüidade da
ironia, instaurada pelo enunciador mediante um tom vacilante — tom este que, como
140
afirmamos, advém do modo como o enunciador organiza todos os recursos
lingüístico-discursivos com o objetivo de que as contradições sejam desveladas
paulatinamente, sem alardes —, é que nos tornamos “parceiro[s] de um ponto de
vista do enunciador” e que passamos, assim, a “prever a possibilidade de realização
do efeito de sentido irônico”, ou mais especificamente, é que começamos a inferir
qual perspectiva é questionada pelo enunciador de um discurso irônico.
Essa capacidade de prevermos o efeito irônico como algo oriundo de nosso
distanciamento em relação à posição enunciativa de narratário e,
conseqüentemente, da posição de vítimas da ironia pode ser explicada também pelo
que denominaremos aqui como “função-leitor”, expressão esta que, para nós,
corresponde à função-autor definida por Orlandi, conceito este sobre o qual já
discutimos no primeiro capítulo. Quanto a essa “função-leitor”, Orlandi (1996, p. 80)
diz o seguinte:
[...] essa função enunciativo-discursiva, que é a do autor, tem seu
pólo correspondente que é o de leitor. De tal forma isso se dá que não é do
ouvinte, ou do destinatário, mas do leitor que se cobra um modo de leitura.
O leitor está, tal como o autor, afetado pela sua inserção no social. Assim,
na preocupação da leitura, o leitor entra com as condições que o
caracterizam sócio-historicamente. Dessa forma, ele terá sua identidade de
leitura configurada pelo seu lugar social e é, em relação a esse lugar que
se define a “sua” “leitura”.
Nossa identidade como enunciatários de um texto irônico advém justamente
do lugar social de onde enunciamos nossos dizeres. Como esse lugar social nos
incita a que compreendamos as sinalizações irônicas de modo a interpretá-las como
uma crítica, como um julgamento velado a um determinado discurso, então,
devemos ler pela segunda vez o conto “O tio pródigo”, tendo em mente, por
exemplo, que o empresário não é um homem ingênuo, mas que ele finge -lo. É
essa perspicácia, a nós imposta pelo fato de ocuparmos o lugar social de leitores na
141
sociedade do capitalismo em pleno século XXI, que determina uma procedente
leitura irônica, a qual instaura o jogo entre o dito e o não dito e, por extensão, nos
define como enunciatários ideais da ironia.
Para finalizar nossas ponderações acerca da função da ironia, bem como
sobre todos os conceitos teóricos que dizem respeito à produção e à depreensão de
seus sentidos nos textos onde ela é instaurada pelo enunciador, voltemos à questão
da diferença de posturas levadas a cabo pelo enunciador em cada uma das
narrativas por nós analisadas nesse trabalho. Chegamos a afirmar que, em “Um
mentiroso, aquele velho”, o enunciador e enunciatário parecem ser observadores
imunes aos fatos narrados, ao contrário do que ocorre em “O tio pródigo”, cujo
enunciador e enunciatário são observadores que acabam por se envolver mais com
os acontecimentos desencadeados. Essa nossa afirmação parece proceder, na
medida em que, na primeira narrativa, verificamos não haver uma identificação entre
o narrador e o enunciador, do que podemos inferir que este parece desejar
demarcar sua distância e, por conseguinte, sua discordância em relação à postura
agressiva do neto; aliás, ao permitir que esse narrador em 1
a
pessoa faça
comentários sarcásticos ao discurso de um avô solitário, o enunciador desse conto
parece demarcar ainda mais a diferença entre a sua postura ideológica e a que é
proferida pelo neto, pois esse narrador parece revelar, por si logo, sem os
comentários subjetivos de qualquer outra personagem —, essa sua agressividade.
Quanto à postura do enunciatário, esse também parece distanciar-se dos fatos
relatados pelo narrador justamente porque o enunciador o orienta a perceber,
gradativamente, a sua ironia empreendida contra o narrador. Assim sendo, esse
enunciador parece desejar ironizar a pretensa absolutização, ou melhor, o pretenso
caráter de verdade que o neto atribui a seu relato.
142
em “O tio pródigo”, o enunciador e o enunciatário parecem não se limitar a
simplesmente observar os acontecimentos desencadeados, uma vez que, por meio
de um narrador em 3
a
pessoa, o enunciador interpõe incisos que, se a princípio
parecem ser meramente objetivos, neutros em relação à realidade relatada, acabam
por ironizar todas as personagens do conto; esse incisos insinuam, portanto, a
subjetividade, o ponto de vista crítico desse enunciador sobre a postura ideológica
levada a cabo pelo empresário, por sua família e pelo pseudo-sobrinho. E são essas
suas opiniões sutis
as quais vão sendo percebidas por nós gradativamente
,
sobre a conduta de tais personagens que fazem o enunciatário ir se envolvendo com
os fatos relatados por esse narrador para somente no final da narrativa perceber
que, devido justamente à sua falta de observação mais abrangente, ele também é
uma vítima da ironia desse enunciador.
A partir dessas diferenças entre ambas as narrativas, podemos concluir que,
apesar de Moacyr Scliar ter tecido, por meio de uma mesma estratégia discursiva
a ironia
, uma argumentação indireta sobre determinados acontecimentos da
realidade, o fato é que os diferentes propósitos a que ironia se prestou em cada uma
das narrativas acabam por determinar, para cada uma delas, um conjunto específico
de estratégias discursivas e lingüísticas utilizado para a instauração do julgamento
irônico e, por extensão, acabam por definir um tipo de enunciador para “Um
mentiroso, aquele velho” e um para “O tio pródigo”. Para maiores esclarecimentos,
ouçamos Dal Farra (1978, p. 21):
De acordo com as finalidades e consoante à escala de valores que o
autor tem em mente, cada romance revelará um determinado autor-
implícito [...]. Seu perfil e consistência, adensando-se à medida que o fluxo
narrativo prossegue, transparecerão, por fim, numa imagem completa para
o leitor.
Esse ser vagaroso e diluído que sub-repticiamente comanda a
receptividade do leitor não é nem o autor e nem o narrador, mas a versão
143
superior do autor que o criou. Ele é a própria teia na qual o narrador se
movimenta, tecido e fluido que lhe dão vida.
Como em “Um mentiroso, aquele velho”, a finalidade do enunciador parece ter
sido a de tornar o enunciatário, do início até o final da narrativa, seu parceiro da
ironia empreendida à absolutização de um ponto de vista levado a cabo pelo
narrador, então a “imagem completa” do autor implícito ou, segundo o paralelo
por nós traçado desde o início do trabalho, do enunciador que acaba por
transparecer ao leitor é a de uma voz mais complacente. Diferente é a imagem do
enunciador de “O tio pródigo”, pois, como sua finalidade parece ser primeiro a de
vitimar o enunciatário para depois torná-lo um parceiro mais astuto da ironia
empreendida à conveniência e à dissimulação dessas personagens, então a
“imagem completa” do enunciador que acaba por transparecer ao leitor é a de uma
voz mais ardilosa. Assim sendo, se, conforme afirmou Bosi, é pelo tom que o sujeito
se revela, então a identidade de um enunciador de um texto irônico cujo tom é
vacilante, isto é, cujo tom faz a tensão entre o dito e o não dito ser trilhada
paulatinamente pelo enunciatário para que este chegue a um argumento indireto do
enunciador sobre uma determinada realidade é a de um questionador discreto.
Aliás, se o enunciatário deve trilhar gradativamente esse caminho, isto é, se ele deve
colher e interpretar adequadamente as pistas disseminadas pelo enunciador para
ironizar uma determinada situação, então esse enunciatário também se torna um
questionador discreto.
Contudo, como acabamos de verificar, a finalidade do uso da ironia não é a
mesma para todos os enunciadores irônicos, fato este que faz com que cada
enunciador utilize sempre tendo por fio condutor os traços constitutivos da ironia
determinados mecanismos lingüístico-discursivos que especifiquem a natureza
dessa finalidade e que constituam uma identidade particular para si. Portanto, aos
144
enunciatários não basta saber apenas quais são os traços constitutivos que fazem a
ironia acontecer; é preciso que eles percebam como esses traços se estruturam nos
textos de modo que o sentido irônico seja produzido: daí havermos estudado, por
exemplo, a contribuição dos discursos direto, indireto e indireto livre para a
instituição do tom vacilante da ironia e, por extensão, da argumentação
indiretamente desqualificadora do enunciador frente a uma determinada perspectiva,
ou melhor, frente a uma determinada visão de mundo.
A justificativa para os enunciadores dos textos irônicos se diferenciarem entre
si por causa das finalidades específicas almejadas por cada um deles, mesmo tendo
em comum a imagem de um questionador indireto, pode ser encontrada nos
seguintes dizeres de Proença (2001, p. 39):
[...]. No dispositivo verbal configurador da obra literária, cria-se uma
realidade que existe nele e a partir dele como tal, mas que caracteriza
uma apreensão plena do homem e sua circunstância. Essa realidade
revelada ultrapassa os limites individuais do codificador e busca envolver a
totalidade do ser do homem.
Cada “romance revelará um determinado autor-implícito”, ou no nosso caso,
cada conto irônico revelará um enunciador distinto, porque o autor transcende seus
“limites individuais” para tentar chegar à “totalidade do ser do homem”. Em outros
termos, podemos dizer que as circunstâncias em que vivem os seres humanos são
muitas, cada uma delas se caracterizando por uma complexidade específica; desse
modo, mesmo que um autor produza sempre textos irônicos, cada um deles
revelará, sob uma determinada tecitura lingüístico-discursiva da tensão irônica, uma
determinada circunstância que acaba por compor essa totalidade do ser homem.
Dessa maneira, o fato de um mesmo escritor desdobrar-se em enunciadores
145
distintos em cada um de seus textos irônicos nos parece ser uma tentativa sua de
apreender as várias facetas de uma mesma realidade.
No caso das narrativas irônicas de Moacyr Scliar — e, reiteramos, não apenas
nos textos sustentados pelo fantástico e pelo insólito —, os enunciadores
questionam silenciosamente a “brutalidade da sociedade, incomum e inaceitável por
atentar contra os princípios de humanidade que deveriam nortear a civilização”
(ZILBERMAN, 2001, p. 14). Cada um deles tecerá, no entanto, em seus textos, um
determinado microcosmo dessa realidade mais geral: em “Um mentiroso, aquele
velho”, o enunciador organiza os elementos compositivos de sua narrativa de modo
a ironizar a falta de reflexão e de sensibilidade de uma pessoa para com a outra,
fazendo com que o enunciatário seja parceiro dessa sua atitude irônica do início ao
final do conto; em “O tio pródigo”, o enunciador utiliza certos elementos
compositivos em seu relato de maneira a ironizar não apenas a dissimulação como
forma de alguém obter um determinado objetivo às custas do outro, mas também o
envolvimento ingênuo do enunciatário com as aparências das situações narradas, o
que faz com que este se torne parceiro da atitude irônica do enunciador apenas a
partir da segunda leitura do conto.
Essas nossas considerações sobre o uso da ironia nessas duas narrativas de
Moacyr Scliar poderia, a princípio, nos fazer pensar que seus contos são
pessimistas. No entanto, é preciso lembrar o que dissemos logo no início de nosso
trabalho: que os textos do escritor gaúcho parecem nos apontar os valores que
faltam na realidade, tais como o respeito e a humanização entre as pessoas.
Chegamos a essa conclusão justamente porque o enunciador, por meio da ironia,
faz com que nós leiamos o enunciado X como não-X, ou seja, se no nível do
enunciado percebemos que reinam a falta de respeito e a desumanização de uma
146
pessoa para com a outra, no nível da enunciação, notamos que o enunciador
destrona esses valores reificadores, para coroar, sub-repticiamente, valores
contrários, isto é, o respeito e a humanização por nós mencionados. É, pois, essa
tensão irônica entre o dito e o não dito que nos faz perceber que os textos de Scliar
são aparentemente pessimistas: os enunciadores avultam no enunciado os tais
valores reificadores e os desqualificam no nível da enunciação, visando não a uma
atitude moralista e engajadora da sua parte e da parte de seu leitor, mas sim a uma
postura mais questionadora, mais aguçada acerca da realidade, isto é, uma
transcendência para além daquilo que é visível. Talvez essa organização estrutural
própria da ironia nos faça compreender a seguinte afirmação de Janjão, uma
personagem de O banquete de Mário de Andrade (1989, p. 61): “A arte, mesmo a
arte mais pessimista [...] é sempre proposição de felicidade”. Na verdade, a ironia é
uma dentre as várias maneiras de que a arte literária se vale para propor a
felicidade, felicidade que consiste em tornar, conforme afirmamos, mais arguta a
nossa visão sobre a realidade. E o compromisso com a forma na literatura parece
ser o de justamente propor essa felicidade. No caso de Moacyr Scliar, tal proposta
de felicidade decorre não somente da reconfiguração da perspectiva reificadora por
meio do fantástico e do insólito, mas também mediante os expedientes verbais
irônicos.
147
4. Considerações finais
Para tecermos nossas considerações finais, escutemos primeiramente
algumas palavras importantes de Roland Barthes (1978, p. 16-17):
[...] a nós, que não somos nem cavaleiros da fé nem super-homens,
resta, por assim dizer, trapacear com a língua, trapacear a língua. Essa
trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a
língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da
linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura.
[...]
As forças de liberdade que residem na literatura não dependem da
pessoa civil, do engajamento político do escritor que, afinal, é apenas um
“senhor” entre outros, nem mesmo do conteúdo doutrinal de sua obra, mas
do trabalho de deslocamento que ele exerce sobre a língua [...]. O que
tento visar aqui é uma responsabilidade da forma: mas essa
responsabilidade não pode ser avaliada em termos ideológicos e por isso
as ciências da ideologia sempre tiveram tão pouco domínio sobre ela.
Como sabemos por Perrone-Moisés, a literatura escandaliza o real por
mostrar que as leis que o organizam não o tornam satisfatório para os seres
humanos. Especificando melhor essa idéia, é pelo compromisso com a forma que o
escritor elege e harmoniza, no mundo textual, os elementos contextuais, lingüísticos
e discursivos que melhor lhe permitem apontar, conforme ainda as considerações de
Perrone-Moisés, “para o que falta, no mundo e em nós”, e que, por conseguinte, o
auxiliam a questionar essa falta. É, pois, desse questionamento, decorrente
justamente dessa nova organização, desse novo olhar, que o escritor lança sobre a
realidade olhar este que a envolve por meio de palavras, de modo a domá-la
que ele consegue “trapacear com a língua”, permitindo-lhe a si próprio e a seus
leitores “ouvir a língua fora do poder”.
É preciso lembrarmos que o termo “questionamento” não deve ser
considerado no sentido de uma avaliação de cunho moral seja por parte do escritor,
148
seja por parte do leitor, mas, como já frisamos, no sentido de escandalizar esse real,
que se acaba por nos configurar, por meio da forma literária, sob um prisma
diferenciado: por meio do mundo de palavras da literatura, a realidade pode ser
mostrada sob um viés de que não estamos acostumados a observar.
Questionamento, portanto, deve ser compreendido como um refinamento da
capacidade de ler o mundo.
Se, pois, a literatura é uma “trapaça salutar”, “não pela mensagem de que ela
é o instrumento, mas pelo jogo de palavras de que ela é teatro”, então a ironia pode
ser um dos recursos de que a literatura se vale para instituir o jogo de palavras
capaz de gerar uma nova forma de ver e de falar a realidade, ou melhor, capaz de
mostrar, por um outro viés, o embate existente na realidade entre os valores que são
abafados por outros valores cuja verdade é considerada como a absoluta, a
inquestionável. E a ironia pode auxiliar a literatura nessa tarefa justamente porque
ela possui uma determinada forma, ou seja, porque a maneira como ela é
estruturada nos textos nos conduz a um determinado ponto de vista do enunciador
frente a esses valores tidos como absolutos e inquestionáveis, ponto de vista que
consiste, segundo o que dissemos, em aguçar a nossa percepção, a nossa
capacidade interpretativa acerca dos fatos desencadeados no mundo.
Sobre a maneira como a ironia se estrutura, nossa análise nos levou a
deduzir que os traços constitutivos dessa estratégia discursiva isto é, a tensão
entre o dito e o não dito, a ambigüidade oriunda dessa tensão entre o literal e o
figurado, o tom vacilante como um modo de desvelar as contradições humanas, a
argumentação indireta tecida pelo enunciador em relação a um outro ponto de vista
ideológico e a ação carnavalesca de destronamento-coroação são instituídos no
texto por meio de mecanismos lingüístico-discursivos que o escolhidos e
149
organizados pelo enunciador de modo a instaurar o tom vacilante irônico, tom este
que consiste em fazer o enunciador sussurrar e não impor ao enunciatário a
sua argumentação indireta, isto é, o seu ponto de vista sutil acerca de uma
determinada realidade social. No caso de “O tio pródigo”, por exemplo, o uso do
conector de isotopias “seco”, instaurado pelo enunciador ao final do texto, é que nos
fez perceber a tensão irônica entre o dito e o não dito, ou mais especificamente, a
tensão entre a aparente benevolência do empresário e a sua essência individualista
convenientemente camuflada.
Dissemos que o enunciador de um texto irônico não impõe sua visão de
mundo, do que se pode inferir que ele também não moraliza o ponto de vista
ideológico que é por ele destronado ironicamente. Essa informação procede, na
medida em que o enunciador a instaura se valendo de elementos que desvelam, de
modo vacilante, as contradições humanas. É justamente esse desvelamento indireto,
que tem por objetivo fazer o enunciatário ler o enunciado X como o-X, isto é, que
o faz partir da aparência para se chegar sutilmente à essência das pessoas e das
situações, que permite ao enunciador destronar, sem alardes, uma determinada
visão de mundo para coroar a sua: é, pois, por fazer com que tais contradições
sejam entrevistas, que o enunciador de um texto irônico não lhe empreende uma
crítica moral. Vimos, por exemplo, em “Um mentiroso, aquele velho”, que o
enunciador nos desvelou com uma piscadela, ou melhor, mediante o embate entre o
conteúdo proferido pelo avô em discurso direto e o conteúdo proferido pelo neto, que
é o narrador do relato, a falta de sensibilidade deste para com a angústia daquele,
ou mais especificamente, o enunciador apontou-nos sub-repticiamente que, sob a
aparente sensatez dos netos ao justificar sua irritação para com o que eles
150
consideram uma mentira relatada pelo avô, está a sua incapacidade de transcender
as aparências.
No transcorrer de toda a análise e inclusive nessas considerações finais,
temos trabalhado com a idéia de que todo signo é ideológico, sendo, aliás, a palavra
um signo ideológico por excelência (BAKHTIN, 2004, p. 36), fato este importante por
estarmos lidando com a ideologia subjacente a dois textos literários. Esse nosso viés
analítico poderia, a princípio, não estar de acordo com o que Barthes afirmou acerca
da responsabilidade da forma não poder “ser avaliada em termos ideológicos”. No
entanto, acreditamos que o ensaísta francês quis enfatizar que a literatura não visa o
engajamento político ou moral, isto é, ela não pode ser encarada como um
instrumento de luta contra as mazelas da realidade. Como sabemos, o real é
reorganizado lingüística e discursivamente pela forma literária, o que faculta à
literatura a função de “trapacear a língua”. Assim sendo, quando usadas no âmbito
da esfera literária, as palavras não devem ser avaliadas por seu conteúdo
ideológico, mas sim pelo modo como elas passam a veicular tal conteúdo, ou seja,
pela maneira como o enunciador organiza os mecanismos discursivos e lingüísticos
para expressar um determinado ponto de vista ideológico; e como vimos, quando
se vale da ironia, o enunciador de um texto literário veicula sua visão de mundo por
meio de uma organização lingüístico-discursiva específica.
Sobre essa organização, é preciso ressaltarmos que, se a ironia apresenta
uma estrutura composicional própria, então é óbvio que a hierarquia de vozes de um
texto irônico também será orquestrada pelo enunciador de modo peculiar: o
enunciador objetiva expressar no enunciado determinados valores por meio das
personagens e do narrador, sendo que ele acaba por discordar sorrateiramente de
pelo menos um desses valores. Aliás, é justamente pelo fato de todos os
151
posicionamentos discursivos em que se desdobra o sujeito da enunciação
veicularem determinados valores, determinados pontos de vista acerca do mundo
que decidimos estudar o funcionamento da ironia: a partir da maneira como o
enunciador modaliza as personagens e o narrador é que sabemos de que formações
discursivas esses posicionamentos enunciam seus valores e, sobretudo, inferimos
de que formação discursiva o enunciador enuncia seus tácitos dizeres e, por
conseguinte, que valores objetivados no enunciado são de fato por ele ironizados.
Ressaltemos ainda que, se o enunciador modaliza as personagens e o
narrador de acordo com a sua formação discursiva, nós o depreendemos a
identidade desses posicionamentos discursivos, mas também a identidade do
próprio enunciador e do enunciatário de um determinado texto irônico. Como o
enunciador contrapõe indiretamente seu ponto de vista àquele que está objetivado
no enunciado, então sua imagem é a de um questionador discreto, sendo que a do
enunciatário também o é, na medida em que ele colhe e interpreta, segundo o tom
vacilante irônico, as sinalizações sutis que seu interlocutor disseminou pelo
enunciado.
Essa é a imagem, digamos, constante de um enunciador e de um
enunciatário inferida de qualquer texto irônico; no entanto, pela nossa análise,
verificamos que cada enunciado irônico pode produzir, paralelamente a essa
imagem constante, uma imagem específica do enunciador e, por conseguinte, do
enunciatário: se, em “Um mentiroso, aquele velho”, o enunciador é uma voz mais
complacente por não ironizar seu enunciatário, em “O tio pródigo”, o enunciador é
uma voz mais ardilosa por ironizá-lo, do que deduzimos que o enunciatário pode ou
não fruir a ironia como vítima. Não nos esqueçamos que essas imagens específicas
152
do enunciador e do enunciatário advêm justamente do modo como o enunciador
organiza os elementos lingüístico-discursivos instauradores da ironia.
Aliás, o fato de Scliar orquestrar a seu modo esses elementos estruturadores
em seus textos, sejam eles irônicos ou não, pode nos auxiliar a ampliar a afirmação
de Zilberman (2001, p. 12) de que as narrativas do escritor gaúcho “exercem uma
função essencialmente crítica [...] e que o integra à linhagem social do conto
brasileiro”. Zilberman faz tal afirmação referindo-se exclusivamente ao uso do
gênero fantástico por Scliar para que seus contos cumpram essa função de crítica
social. Nosso estudo nos apontou, entretanto, que também a ironia é um outro meio
de que se vale esse escritor para reorganizar a realidade no mundo textual de modo
a questionar a prática reificadora empreendida pela sociedade contemporânea.
Assim, se essa estudiosa da literatura (2001, p. 14) diz que “o modo singular e
pessoal com que o ficcionista se utiliza do gênero fantástico” nos faz entender “o
processo criador do artista, guiado pelo exercício contínuo de um posicionamento
crítico, que o leva à revelação dos procedimentos escusos da sociedade”, devemos
acrescentar a essa sua fala o fato de que também a ironia nos faz compreender o
processo criador de Scliar nessa tarefa de questionar a brutalidade das relações
humanas.
É, pois, a partir desse processo criador do escritor gaúcho ou melhor,
dessa sua responsabilidade com a forma —, de que deve fazer parte o uso da ironia,
que passamos a ampliar outra consideração de Zilberman (2000, p. 12) sobre os
contos de Scliar: “Apresentando-se como arte que reabilita o indivíduo massacrado
pela sociedade e resgata sua humanidade, o conto de Scliar acaba também por
assumir sua própria individualidade e significação”. Como acabamos de verificar,
esse resgate da humanidade do indivíduo e, conseqüentemente, da perspectiva
153
reificadora das relações humanas deflagradas na sociedade contemporânea pode
ser reelaborado nos contos do escritor gaúcho por meio do fantástico e, inclusive,
por meio do insólito, o qual “resulta do refinamento da crueldade humana”
(ZILBERMAN, 2000, p. 7). No entanto, é também sob a tensão irônica entre o dito e
não dito que uma outra ordem, superior ao real, pode ser instaurada em seus textos,
de modo a criticá-la, a questioná-la, ou melhor, de modo a nos fazer enxergar o que
de fato falta no mundo real: a prática da ética e da solidariedade como valores que
deveriam orientar as relações humanas.
Portanto, procuramos investigar, nas narrativas curtas de Moacyr Scliar, como
se processa a responsabilidade da forma na literatura, via ironia, em pelo menos
dois contos desse escritor, ou mais especificamente, desejamos verificar como os
elementos constitutivos da ironia foram singularmente instaurados por meio de
determinadas escolhas lingüístico-discursivas operadas pelo enunciador de tais
narrativas irônicas com o objetivo reorganizar, criticamente, a perspectiva da
opressão de um indivíduo sobre o outro. Acreditamos que é por essa reorganização
crítica, analisada por nós pelo viés irônico, que os contos de Scliar podem assumir
um caráter individual e significativo; afinal as “forças de liberdade que residem na
literatura não dependem da pessoa civil”.
154
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159
ANEXO A SCLIAR, Moacyr. Contos reunidos. São Paulo: Companhia das Letras,
2003. p. 144-145.
Um mentiroso, aquele velho
Certo dia, nosso avô voltou para casa muito excitado. Entrou e foi logo
dizendo:
― Meninos, vocês não imaginam o que eu vi.
Nós estávamos vendo televisão, e não queríamos ser interrompidos, mas
nosso avô era insistente:
Coisa espantosa, meninos. Eu estava no centro da cidade quando de
repente umas pessoas começaram a gritar, olha lá, olha lá. Eu olhei e estava o
homem na janela do edifício, um edifício alto, vinte andares pronto pra saltar.
Juntou gente, meninos, uma multidão, muitos gritando, salta, salta.
― E ele saltou? ― perguntamos.
― Não. Ficou ali um tempo e depois voltou pra dentro. Não quis saltar.
Nós ficamos muito putos. Porra, a gente estava ali vendo TV, um filme
bacana, entra o velho tonto, nos interrompe pra quê? Pra contar uma babaquice.
E o pior é que, tendo começado, ele agora não queria parar.
― Eu, se estivesse no lugar dele, faria diferente. Eu esperaria que uma
multidão, uma grande multidão, se reunisse embaixo, que a polícia e os
bombeiros aparecessem. Eu exigiria a presença do prefeito e do governador; eu
deixaria que eles, pelos alto-falantes, apelassem ao meu bom senso. Quando
terminassem, eu ficaria olhando aquela massa, mas sem deter-me num rosto
específico.
160
Na TV, um verdadeiro massacre, um ninja liquidando os inimigos e nós ali,
tendo de ouvir. Nós tendo de ouvir. Deus.
Eu levaria o suspense prosseguia o nosso avô aos limites do
suportável. E quando aquela gente já não agüentasse mais, eu...
Pausa dramática.
― Eu saltaria.
Até que enfim.
Até que enfim porra nenhuma.
Mas antes o nosso avô, triunfante eu lançaria ao mundo o meu
derradeiro olhar, um olhar capaz de descortinar ao longe mares bravios, florestas
misteriosas, picos nevados, vulcões fumegantes, todos os lugares que eu sempre
quis visitar e nunca consegui por causa da família, por causa da avó de vocês,
dos pais de vocês. Eu veria tudo isso. E aí pularia.
O problema é que ele não chegaria logo ao chão.
No primeiro momento eu gozaria aquela sensação de estar livre, de flutuar
no vazio. Depois viria, é claro, o pavor mas muito transitório, o pavor, e tão
mesclado com fascinação que o resultado final seria uma deliciosa tensão. E aí, com
um ruído seco, eu me estatelaria no chão. As pessoas correriam e me encontrariam
no meio de uma poça de sangue, morto, completamente morto.
Calou-se, ficou um instante com o olhar perdido. Suspirou, sorriu:
― Que tal?
Não dissemos nada, porque um a merece respeito e consideração dos
netos, mas sabíamos que aquilo tudo não passava de conversa fiada. Ele, jogando-
se do vigésimo andar? Nunca. Não subia sequer ao terraço da casa, no primeiro
piso. Porque sofria de vertigem das alturas, o velho mentiroso.
161
ANEXO B SCLIAR, Moacyr. Contos reunidos. São Paulo: Companhia das Letras,
2003. p. 30-32.
O tio pródigo
Um rico empresário está em sua mansão vendo TV com a família quando o
criado vem anunciar: há um moço à porta querendo falar com ele.
— Diz que é seu sobrinho.
O homem levanta-se e vai até lá, à porta está um rapaz de uns dezessete
anos, modestamente vestido, barbudo e com uma expressão ansiosa no rosto.
Como vai, tio, ele diz; o homem vacila; quem é você, pergunta. Sou seu sobrinho
Mílton, diz o rapaz.
— Mílton? Aquele garotinho?
— Eu mesmo, tio. O tempo passou.
O homem abre os braços:
— Venha de lá um abraço, Mílton!
Abraça-o demoradamente. Fá-lo entrar, leva-o até onde está a família,
apresenta-o: este é o filho do meu irmão João, que eu não via desde pequeno.
Todos levantam-se e vêm cumprimentar o recém-chegado; Aline, a filha mais velha
(dezoito anos), sorri, tímida. Depois dos cumprimentos, o homem faz com que o
rapaz se sente a seu lado, no grande sofá, pergunta se ele já jantou; quando o rapaz
diz que não está com fome, insiste para que tome algo, um uísque, um refrigerante;
o rapaz aceita um pouco de suco, e, enquanto o criado vai providenciar, o homem
volta-se para ele, os olhos brilhando:
— Vamos lá, agora me fale de teus pais. Faz anos que não os vejo.
162
Uma sombra de tristeza tolda o rosto do rapaz: voz embargada, conta que o
pai morreu e que a mãe está num asilo de alienados. Não sabia, diz o homem,
consternado. Diz que gostava muito do irmão, recorda cenas da infância de ambos,
num sítio cheio de árvores frutíferas. A conversa se prolonga; notando que o rapaz
sinais de cansaço, o homem pergunta onde ele está morando; em lugar nenhum,
é a resposta; acabou de chegar à cidade, o jovem, não arranjou ainda alojamento. O
homem insiste em hospedá-lo. O rapaz, aparentemente com alguma relutância,
aceita. O criado é chamado e leva-o ao quarto dos hóspedes.
Os dias se passam e o rapaz vai ficando. Para encanto da família, aliás; a
esposa do empresário gosta de conversar com ele; o filho de oito anos descobriu um
companheiro de folguedos; e Aline, bem, Aline está claramente apaixonada. Os pais
notam e, à mesa, se olham, sorrindo.
O empresário oferece-lhe um emprego em sua firma. O rapaz aceita. Daí por
diante saem juntos pela manhã; o jovem agora veste-se decentemente. Na gerência
dos negócios revela-se dinâmico, empreendedor, inteligente; os assessores do
empresário estão encantados com ele. Prevê-se que, após o noivado com Aline, o
rapaz será empossado oficialmente no cargo de diretor-executivo.
Uma noite ele pede para falar com o futuro sogro. Tem algo reservado a lhe
falar. Retiram-se para a biblioteca; tão logo o empresário fecha a porta, o rapaz, num
impulso, ajoelha-se e beija-lhe as mãos. Que é isso, diz o homem, surpreso e
comovido, mas o jovem, em prantos, não consegue sequer lhe responder. Por fim
acalma-se; e diz então que está grato, muito grato, mas não pelas razões que o
empresário imagina; por outras, bem diferentes. Conta, então, que, deixando o
colégio, vagabundeou muito tempo pelo país, dormindo em barracas e em casas
abandonadas, aque se juntou a um bando de marginais. Juntos, conceberam o
163
plano de seqüestrar o empresário, pedindo por ele um grande resgate. Encarregado
dessa missão, ele estava, a princípio, firmemente determinado a cumpri-la. Não pelo
dinheiro; também pelo dinheiro; mas principalmente porque acreditava estar fazendo
justiça. Estudou cuidadosamente todos os detalhes da operação...
Mas o carinho com que foi recebido, o clima que encontrou na casa, de
genuíno amor familiar; e mais, o dinamismo, a inteligência, a bondade do empresário
(a contrastar com a errônea idéia que fazia dos homens de negócios), tudo isso fez
com que mudasse de idéia. Renunciando à violência, ele agora quer esquecer o
passado e começar vida nova. Percebi, diz, que vivia num mundo de fantasias
exaltadas, num mundo de ilusões perigosas; menos mal que recuei a tempo, não me
tornando um criminoso. Tudo o que quero agora é construir um lar cheio de amor e
de conforto para minha esposa e meus filhos. Esse bom propósito devo-o ao senhor.
A lição de vida que aqui recebi não poderei esquecer, e por ela lhe serei grato para
todo o sempre.
O empresário ouve em silêncio. Mas você é mesmo meu sobrinho? pergunta,
por fim. O rapaz hesita, hesita muito, antes de dizer que a história foi toda forjada.
Ele conheceu o verdadeiro sobrinho do empresário; desse rapaz, falecido num
acidente, obteve todas as informações de que precisava para se apresentar como
falso sobrinho.
O homem então se levanta, diz que precisa fazer algo, pede que o rapaz
aguarde na biblioteca. Sai. Dez minutos depois volta, acompanhado de dois guardas
de sua segurança pessoal. Prendam este homem, diz, seco. O rapaz olha-o,
incrédulo; horrorizado mesmo; lentamente, porém, seu rosto se abre num sorriso.
Obrigado, titio, diz, por fim. Torna a beijar as os do homem e sai, escoltado pelos
guardas.
164
ANEXO C — PARÁBOLA do filho pródigo. In: BÍBLIA SAGRADA. 51. ed. São Paulo:
Editora Ave Maria, 1986. p.1369-1370.
Parábola do filho pródigo
[...] “Um homem tinha dois filhos. O mais moço disse a seu pai: Meu pai, dá-
me a parte da herança que me toca. O pai então repartiu entre eles os haveres.
Poucos dias depois, ajuntando tudo o que lhe pertencia, partiu o filho mais moço
para um país muito distante, e dissipou a sua fortuna, vivendo dissolutamente.
Depois de ter esbanjado tudo, sobreveio àquela região uma grande fome: e ele
começou a passar penúria. Foi pôr-se ao serviço de um dos habitantes daquela
região, que o mandou para os seus campos guardar os porcos. Desejava ele fartar-
se das vagens que os porcos comiam, mas ninguém lhas dava.
Entrou então em si e refletiu: Quantos empregados na casa de meu pai,
que têm pão em abundância... e eu, aqui, estou a morrer de fome! Levantar-me-ei e
irei a meu pai, e dir-lhe-ei: meu pai, pequei contra o céu e contra ti; não sou digno
de ser chamado teu filho; trata-me como a um de seus empregados. Levantou-se,
pois, e foi ter com seu pai. Estava ainda longe, quando seu pai o viu, e, movido de
compaixão, correu-lhe ao encontro, lançou-se-lhe ao pescoço e o beijou. O filho lhe
disse então: Meu pai, pequei contra o céu e contra ti; não sou digno de ser
chamado teu filho. Mas o pai falou aos servos: Trazei-me depressa a melhor veste e
vesti-lha, ponde-lhe um anel no dedo e calçado nos pés. Trazei também um novilho
gordo e matai-o; comamos e façamos uma festa. Este meu filho estava morto, e
reviveu; tinha-se perdido e foi achado. E começaram a festa.
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O filho mais velho estava no campo. Ao voltar e aproximar-se da casa, ouviu
a música e as danças. Chamou um servo e perguntou-lhe o que havia. Ele lhe
explicou: Voltou teu irmão. E teu pai mandou matar um novilho gordo, porque o
reencontrou são e salvo. Encolerizou-se ele e não queria entrar; mas seu pai saiu e
insistiu com ele. Ele, então, respondeu ao pai: tantos anos que te sirvo, sem
jamais transgredir ordem alguma tua, e nunca me deste um cabrito, para festejar
com os meus amigos. E agora, que voltou este teu filho, que gastou os teus bens
com as meretrizes, logo lhe mandas-te matar um novilho gordo! Explicou-lhe o pai:
Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu; convinha, porém, fazermos
festa, pois que este teu irmão estava morto e reviveu, tinha-se perdido e foi achado.”
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