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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS
Programa de Pós-Graduação em Educação
DISSERTAÇÃO
ESPELHO, ESPELHO MEU, EU SOU BELA?
ESTUDANDO SOBRE JOVENS MULHERES NEGRAS,
DISCURSO ESTÉTICO, MÍDIA E IDENTIDADE
DIONY MARIA OLIVEIRA SOARES
Pelotas, 2008
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2
DIONY MARIA OLIVEIRA SOARES
ESPELHO, ESPELHO MEU, EU SOU BELA?
ESTUDANDO SOBRE JOVENS MULHERES NEGRAS,
DISCURSO ESTÉTICO, MÍDIA E IDENTIDADE
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Educação da
Faculdade de Educação da Universidade Federal
de Pelotas, como requisito à obtenção do título de
Mestre em Educação.
Orientadora: Prof. Drª. Márcia Ondina Vieira Ferreira
Pelotas, 2008.
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Dados de catalogação na fonte:
Aydê Andrade de Oliveira CRB - 10/864
S676e Soares, Diony Maria Oliveira.
Espelho, espelho meu, eu sou bela? Estudando sobre
jovens mulheres negras, discurso estético, mídia e iden-
tidade / Diony Maria Oliveira Soares. - Pelotas, 2008.
180f.
Dissertação (Mestrado em Educação) Faculdade de
Educação. Universidade Federal de Pelotas.
1. Relações de gênero. 2. Identidade e diferenças. 3.
Mulheres negras jovens. 4. Mídia. 5. Discurso estético. I.
Ferreira, Márcia Ondina Vieira, orient. II. Título.
CDD 370.19
3
BANCA EXAMINADORA
Prof. Drª. Márcia Ondina Vieira Ferreira (Orientadora)
Prof. Drª. Rochele Loguércio
Prof. Dr. Jarbas Santos Vieira
4
Para
Daniel, Janaína e Marina.
5
AGRADECIMENTOS
FAYIDÊ*
* Fayidê, uma palavra da língua iorubá, significa “Ifá aceitou minha prece”.
6
Mas comigo tudo toma um aspecto novo.
Nenhuma chance me é permitida.
Sou sobre-determinado do exterior.
Não sou escravo da “idéia” que os outros têm de mim, mas de minha aparência.
Frantz Fanon - 1952
Os animais
Os pássaros,
os bichos todos.
Nos campos, cidades.
Nas matas, ainda matas.
Trazem segredos
e seus antepassados.
O tucano
tem o mesmo vôo.
E as mesmas cores
de séculos passados...
Andressa Simões Pereira - 2006
(menina negra, nove anos, estudante da segunda série do ensino fundamental da Escola
Estadual São Vicente de Paulo, Pelotas, Rio Grande do Sul).
7
Resumo
SOARES, Diony Maria Oliveira. Espelho, espelho meu, eu sou bela?
Estudando sobre jovens mulheres negras, discurso estético, mídia e
identidade. 2008. 180f. Dissertação (Mestrado em Educação) Programa de
Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal
de Pelotas, Pelotas, RS.
No presente estudo, proponho-me a analisar o impacto do discurso estético
hegemônico sobre jovens mulheres negras, estudantes e residentes na cidade
de Pelotas, localizada na Metade Sul do estado do Rio Grande do Sul, a partir
da abordagem deste discurso nas produções mídiáticas em geral, tendo em
vista o processo identitário destas jovens. Para tal, optei pela metodologia
qualitativa articulando pesquisa bibliográfica e coleta de depoimentos. Como
pano de fundo, problematizei os temas mídia, raça, identidade e gênero,
utilizando prioritariamente como referencial teórico a experimentação de
articulações entre proposições de Michel Foucault e dos Estudos Culturais,
com destaque para reflexões de Stuart Hall, bem como os Estudos Feministas
e os Estudos Negros. Entre os achados, detectei que há uma tendência de
aprisionamento de personagens femininas negras, bem como de mulheres
negras, em um território de subalternidade, que está naturalizado e é pouco
contestado. o contexto local do lugar do estudo revelou-se submerso em
uma política de subjetivação que nega a presença-existência da população
negra, a partir da manutenção da subjetividade colonial e da re-alimentação do
dispositivo do branqueamento. Todavia, ainda que algumas das falas das
estudantes apontem para um ideário estético embranquecido,
contraditoriamente também demonstram que tais jovens negam aquilo que não
é espelho. Elas identificam o discurso estético hegemônico/midiático
reconhecendo imediatamente a ausência de imagens de pessoas negras,
afirmam que não sabem o porquê disso acontecer e pinçam deste universo, no
qual a maioria das mulheres é branca, quase que exclusivamente mulheres
negras como representantes do seu padrão ideal de beleza. Salientam-se, no
conjunto da pesquisa, tensões relativas às questões étnico-raciais e de gênero
(e de classe), das quais considero relevantes as relacionadas com a economia
do afeto. O espelho parece estar partido.
Palavras-chave: Relações de gênero. Identidade e diferença. Mulheres negras
jovens. Mídia. Discurso estético.
8
Abstract
SOARES, Diony Maria Oliveira. Espelho, espelho meu, eu sou bela?
Estudando sobre jovens mulheres negras, discurso estético, mídia e
identidade. 2008. 180f. Dissertação (Mestrado em Educação) Programa de
Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal
de Pelotas, Pelotas, RS.
In the present study, I intend to analyse the impact of the hegemonic aesthetic
discourse concerning young black women, who live and study in the city of
Pelotas, located in the southern half of Rio Grande do Sul state, based on the
approach of this discourse in the media productions in general, considering the
identitary process of these young women. In order to do so, I chose the
qualitative methodology, gathering bibliographic research and reports from
people. As a tool for the paper, I put in doubt the themes media, race, identity
and gender, using mainly as theoretical reference the experiment of
enunciations between the proposals of Michel Foucault and of the Cultural
Studies, with a highlight for the thoughts of Stuart Hall, as well as the Feminist
Studies and the Black Studies. Among the findings I noticed that there is a
tendency of imprisonment of female black characters, as well as black women,
in a territory of subalternity, which is somehow institutionalized and is little
contested. The context of the place of the study, on the other hand, was noticed
as submersed in a policy of subjectivity which denies the presence-existence of
the black population, from the maintenance of the colonial subjectivity and the
re-alimentation of the whitening disposal. However, even though the talk of
some of the students lead to a whitened aesthetic ideal, at the same time it also
shows that such young women deny what is not a mirror. They identify the
hegemonic/media aesthetic discourse immediately acknowledging the absence
of images of black people, affirming that they do not know the reason for this to
happen and mention that in this universe, in which most women are white, they
still almost exclusively pick black women as their ideal standard of beauty. It is
also highlighted in the research, tensions concerning ethnic-racial and gender
(and social class) questions, which I consider relevant the ones connected to
the economy of affection. It seems the mirror is broken.
Key words: Gender relationships. Identity and difference. Young black women.
Media. Aesthetic discourse.
9
Lista de Imagens
Imagem 1. Angélica – Revista Contigo! 15
Imagem 2. Revista ClaudiaEspecial Nossas Mulheres 63
Imagem 3. Taís Araújo – Revista Viva! Mais 65
Imagem 4. Naomi Campbel – Revista Marie Claire 77
Imagem 5. Camila Pitanga – Revista Elle 78
Imagem 6. Danielle Leonel – Revista Marie Claire 79
Imagem 7. Danielle Leonel – Revista Corpo a Corpo Beleza Negra 80
Imagem 8. Revista Veja Sonho de Modelo 81
Imagem 9. Revista Veja A lista dos 40 artistas mais poderosos
do Brasil 157
10
Lista de Abreviaturas
Anped Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em
Educação
Cedeplar Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional
FaE / UFPel Faculdade de Educação da Universidade Federal de
Pelotas
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
PNAD Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio
PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
PPGE Programa de Pós-Graduação em Educação
TEN Teatro Experimental do Negro
UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro
UFMG Universidade Federal de Minas Gerais
UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul
UFPel Universidade Federal de Pelotas
UnB Universidade de Brasília
Unicamp Universidade Estadual de Campinas
11
Sumário
RESUMO 07
ABSTRACT 08
LISTAS DE IMAGENS 09
LISTA DE ABREVIATURAS 10
SUMÁRIO 11
PARTE 1
INTRODUÇÃO 13
I. Origem do estudo 13
II. Justificativa e objetivos 16
III. Primeira contextualização do lugar do estudo 23
IV. Apresentando a estrutura do trabalho 26
PARTE 2
PANO DE FUNDO 27
2.1. O REFERENCIAL 27
2.1.1. Imagem, midiatização, os donos da mídia 30
2.1.2. Racismo, raça, a “Questão do Brasil” 34
2.1.3. Identidade, diferença, representação, identidade negra 42
2.1.4. Gênero, feminismo negro 47
PARTE 3
ESPELHO, ESPELHO MEU, EU SOU BELA? 53
3.1. TRAÇANDO A TRILHA 54
3.2. MULHERES NEGRAS BRASILEIRAS: BREVES NARRATIVAS DE
COMEÇOS 58
3.2.1. Personagens emblemáticas: Chica da Silva e as Xicas 60
3.2.2. Primeiras atrizes negras: premiações e percalços 69
3.2.3. Miss, modelo: a beleza (negra?) é política 74
3.2.4. A Síndrome de Zilda 82
3.2.5. Considerações para reflexão 92
3.3. RECONTEXTUALIZANDO O LOCAL NO LUGAR DO ESTUDO 94
3.4. OUTROS CAMINHOS PARALELAMENTE PERCORRIDOS 109
3.5. A FALA DAS JOVENS 116
3.5.1. O corpo interdito 119
3.5.2. Cabelo: ser crespo ou não ser crespo, eis a questão 124
3.5.3. A cor morena 128
3.5.4. As belas da mídia são negras 132
3.5.5. Expectativas profissionais: o fantasma da doméstica 135
3.5.6. A era do rádio sobrepuja a hegemonia da televisão 139
3.5.7. A revista Raça Brasil 142
12
3.5.8. A perspectiva diaspórica 145
3.5.9. A família 147
3.5.10. O homem negro 151
TECENDO ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS 159
REFERÊNCIAS 166
APÊNDICES
A. Termo de consentimento livre e esclarecido
B. Questionário de identificação apresentado às jovens antes da realização da
entrevista
C. Roteiro flexível de entrevista
13
PARTE 1
INTRODUÇÃO
I. Origem do estudo
A idéia inicial foi pesquisar os processos de constituição de uma suposta
identidade estética étnico-racial de jovens mulheres negras
1
, para a qual
poderiam estar contribuindo leituras feitas por estas jovens de produções
midiáticas em geral, tendo em vista a significância da mídia em tempos de
capitalismo globalizado, nos moldes sugeridos, por exemplo, por Hardt e Negri
(2004) e Sodré (2006).
A priori a opção por tal abordagem sustentava-se a partir de estudos que
apontavam que a globalização, principalmente a partir da segunda metade da
última década do século XX, teria ligação direta com a midiatização e que esta
estaria causando na juventude o impacto mais profundo, não desmerecendo,
evidentemente, o restante da(s) sociedade(s).
Especulava-se assim que determinadas características das produções
da grande mídia brasileira, especificamente no que tange ao discurso estético
hegemônico, poderiam estar sendo absorvidas de maneira peculiar pelos
1
A terminologia negra(o) adotada ao longo deste trabalho segue o critério utilizado pelo IBGE
para a categoria “cor ou raça”. De acordo com o IBGE, a população negra é composta pela
soma daquelas(es) que se auto-classificam como sendo pardas(os) e daquelas(es) que se
auto-classificam como sendo pretas(os). Neste sentido, o Brasil é a segunda maior nação
negra do planeta, sendo a maior fora do continente africano. (A primeira é a Nigéria, cuja
população, em 2006, era de aproximadamente 120 milhões de pessoas.) Segundo o IPEA, até
o final de 2008 o percentual da população negra brasileira atingirá os 50%, chegando à maioria
absoluta em 2010.
14
sujeitos. A pesquisa indicaria qual a intensidade e a profundidade de tal
absorção, bem como os níveis de ressignificação dela decorrente.
O desafio era saber se de fato “do mundinho partiu-se de supetão, para
o planeta(Rolnik, 2006, p.89) e, em caso afirmativo, quais eram as seqüelas
disso para indivíduos residentes em um local distante das grandes metrópoles
e em um país periférico, tendo em vista recortes de raça/etnia, gênero, faixa
etária e classe social. A saber: brasileiras, negras, jovens e pobres, residentes
na periferia de Pelotas, uma cidade localizada na Metade Sul do estado do Rio
Grande do Sul.
A inspiração para tal escolha foi impulsionada por três componentes da
minha própria história de vida. O primeiro corresponde a um sempre vivo e
crescente interesse pela mídia, que me levou à graduação em Comunicação
Social e ao exercício do jornalismo profissional durante vários anos. O segundo
está sintonizado com a experiência de ter sido eu mesma uma menina negra
nos emblemáticos anos 60 e 70 do século XX, sendo moradora do lugar
escolhido para esta pesquisa. O terceiro consiste no relacionamento com duas
meninas negras, minhas filhas, estando, portanto vinculado ao segundo na
medida em que tal cotidiano faz com que minha memória traga à tona algumas
vivências pessoais.
Das minhas filhas, ouvi e vi, durante a convivência do lar,
manifestações verbais e reações emocionais que parecem atestar que as
crianças das mais tenras idades identificam o discurso estético hegemônico
e conseguem perceber as conotações negativas reservadas para o grupo
étnico ao qual pertencem: “Mãe o teu cabelo é feio. Eu queria que o teu cabelo
fosse igual ao da tia (que é liso). Mãe quando eu crescer eu vou alisar o meu
cabelo e pintar de loiro. Mãe uma menina da sala de aula disse que a minha
boneca é feia porque ela é preta. Mãe eu sou bonita?”
Em setembro de 2005, ao assistir uma peça publicitária de determinado
cosmético (Dove), cujo jargão defendia a idéia de apresentar na televisão
“mulheres da vida real”, minha filha, então com sete anos, exclamou: “Elas são
gordas, mas nenhuma é negra!”. (grifo meu). Em agosto de 2006, esta mesma
criança surpreendeu-me, ao ver peça publicitária
2
impressa por uma rede de
2
Panvel – Tudo para você ficar sempre bem. ano 5, n. 08, ago. 2006, Porto Alegre.
15
farmácias cuja capa trazia um homem negro e uma menina negra, ambos com
cabelos crespos, e exclamou: “Olha agora eu vou poder usar o meu cabelo
solto, o Daniel (irmão adolescente) vai poder usar cabelo black power e tu vais
poder sair sem lenço!”.
O seguinte depoimento de um pai publicado pelo jornal Folha de São
Paulo, em 1997, e destacado por Muniz Sodré é altamente significativo:
Sou branco, casado com uma negra. A minha filha mais velha é mulata
de cabelos crespos, contando com 14 anos, muito bonita e
completamente complexada pelo fato de ser negra. Como conseguir
convencer uma adolescente, negra, filha de um branco, que ela é
bonita? Quando ela propagandas televisivas ou impressas
aparecem brancos e brancas, bonitos, ressaltando uma possível
inferioridade da sua beleza (SODRÉ, 1999, p.235-236).
Cavalleiro (2003, p.65), ao realizar pesquisa sobre racismo,
preconceito e discriminação em uma pré-escola da rede pública de São Paulo,
escutou o seguinte de uma menina negra: “É, eu disse para a minha professora
que eu não queria ser preta, eu queria ser como a Angélica. Ela é bonita!”.
Imagem 1. Angélica
Contigo! Editora Abril, Número 1611, 03 de agosto de 2006.
16
Angélica é uma mulher branca, tem cabelos loiros e trabalha como
apresentadora de programas de TV (entretenimento). Em 2006, aos 32 anos,
ela foi eleita pelos leitores da revista Contigo!
3
a primeira colocada de uma lista
das 25 Mulheres Mais Bonitas da TV, tendo, por este motivo, fotos suas
estampadas na capa e em cinco páginas da edição da revista de Número 1611,
do dia 03 de agosto de 2006. Angélica, que começou a aparecer na televisão
ainda criança, consolidou a carreira como apresentadora de programas
voltados para o público infantil.
II. Justificativa e objetivos
Na perspectiva foucaultiana, são os discursos que formam os objetos de
que falam (FOUCAULT, 1995). Decorrente de leituras sobre o pós-
estruturalismo, dentre elas, Veiga-Neto (1995), Silva (1999; 2001) e Peters
(2000), o entendimento de que os discursos em geral e os sobre o corpo, no
caso específico, são frutos de regimes de verdades, construídos a partir de
relações de poder manifestadas nos âmbitos cultural, social e histórico, fez com
que esta pesquisa buscasse abordar como uma jovem começa a se ver como
uma jovem negra. Ou seja, quais são os dispositivos, em decorrência dos jogos
de poder da imagem e da representação, que levam ao processo de
apropriação e reprodução da percepção dicotômica hegemônica menina
branca princesa bonita / menina negra patinha feia (SANTOS, 2004, p.63).
Segundo Foucault, o dispositivo é um conjunto heterogêneo que engloba
discursos, instituições, arquitetura, leis, enunciados científicos, proposições
filosóficas, morais e filantrópicas. “Em suma, o dito e o não dito”. O dispositivo
tem por função responder a uma urgência determinada por momentos
históricos específicos, ou seja, “uma função estratégica dominante”, e é
mantido por intermédio de um duplo processo composto por uma
sobredeterminação funcional, que é exigência de rearticulações e ou
reajustamento dos elementos heterogêneos, e por um perpétuo preenchimento
estratégico, que consiste na re-utilização dos efeitos involuntários e negativos
3
Especializada em assuntos referentes à televisão, Contigo! é uma publicação semanal da
Editora Abril que circula em todo o país desde o ano de 1963. A edição de mero 1611, que
destaca os “Os 50 mais bonitos da TV”, teve uma tiragem de 182.365.
17
em uma nova estratégia que vai ocupar o espaço vazio ou transformar o
negativo em positivo (FOUCAULT, 1999, p.244-245).
Neste sentido, destacam-se na trama aqui abordada quatro
componentes fundamentais: o primeiro sugere que “as representações que se
fazem do “negro” são inteiramente dependentes, para fazer “sentido”, de sua
posição numa cadeia de diferença entre significantes que inclui, entre outros, o
significante “branco” (SILVA, 2001, p.41); o segundo aponta que “o gênero é
uma forma primária de dar significado às relações de poder” (SCOTT, 1995,
p.86); o terceiro considera a importância dos meios de comunicação, os quais
serão nomeados mídia
4
, no processo de globalização que caracteriza os
primeiros anos do século XXI; o quarto leva em conta os processos de
subjetivação das(os) jovens na contemporaneidade.
O impacto do cruzamento entre os temas mídia, globalização e
juventude, tendo por perspectiva a educação, tem sido alvo de vários estudos,
dentre eles, os feitos por Belloni (2001), Fischer (1995; 1998) e Martín-Barbero
(2000).
Fischer (1998, p.108), ao se deter nos discursos da mídia em relação ao
público infantil e adolescente, fundamenta-se nas reflexões de Michel Foucault
sobre poder, saber e sujeito e defende que as redes de poder sobre os jovens
“são hoje construídas de um modo ao mesmo tempo individualizador e
totalizante, e atuam primordialmente no campo das práticas culturais”.
Para Foucault, o poder circula, é exercido em rede, passa pelos
indivíduos, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. “O
poder não é algo que se possa dividir entre aqueles que o possuem e o detêm
exclusivamente e aqueles que não o possuem e lhe são submetidos”
(FOUCAULT,1999, p.183).
4
Alguns estudos utilizam esta nomenclatura no plural, “as mídias” (ver BELLONI, 2001), outros
recorrem ao termo “multimídia emergente” para abordar formas de rádio, cinema, noticiários de
TV e programas de entretenimento (KELLNER, 2006). Nesta pesquisa, optou-se pelo conceito
de comunicação “no seu sentido mais amplo, abrangendo tanto a mídia de massa (rádio,
televisão, propaganda) como as artes (cinema, teatro e música) e a literatura em suas
diferentes formas de expressão (ficcional, científica, popular e didática)” (LIMA, 2000). No
capítulo sobre midiatização, também serão consideradas as tecnologias de informação e
comunicação (TIC), que se constituem no “resultado da fusão de três grandes vertentes
técnicas: a informática, as telecomunicações e as mídias eletrônicas” (BELLONI, 2001).
18
Belloni, que há praticamente três décadas pesquisa o impacto das
técnicas de informação e comunicação na juventude e a maneira como a
escola se apropria (ou não) destes instrumentos, acredita que
Do ponto de vista da socialização das novas gerações, a cultura e a
comunicação (mediatizadas por tecnologias cada vez mais sofisticadas
e de funcionamento opaco para a maioria dos usuários) vão se
transformar: cresce a importância das “interações mediatizadas” e das
mensagens simbólicas mundializadas, de um lado, enquanto do outro,
tende a ocorrer uma perda de importância, ao menos relativa, das
principais instituições modernas de socialização: a família, a escola e a
religião (BELLONI, 2001, p.32).
Ainda segundo esta autora, “a escola e a mídia desempenham o papel
de guardiãs e difusoras de uma espécie de síntese dos valores hegemônicos
que formam o consenso indispensável à vida social” (BELLONI, 2001, p.33).
Martín-Barbero (2000), por sua vez, manifesta preocupação em relação
ao distanciamento/estranhamento da escola frente à intimidade dos
adolescentes com os deslocamentos possibilitados pelo veloz fluxo das
imagens e da oralidade características de alguns veículos da mídia.
Neste sentido, foram consideradas relevantes para esta pesquisa
observações aleatórias feitas em peças midiáticas veiculadas no Brasil
(revistas, material publicitário, novelas, telejornais, programas infantis, etc.)
que, a meu ver, indicam que o discurso estético hegemônico privilegia a
apresentação de imagens de pessoas com características fenotípicas
predominantemente correspondentes ao que se convencionou chamar de raça
branca, em especial a pele clara e os cabelos lisos.
Cabe ainda esclarecer que não houve intenção de abordagem do
discurso expresso em produções midiáticas específicas, bem como produções
voltadas para o público jovem, campo que tem sido contemplado por vários
estudos nos últimos anos, merecendo destaque os que foram realizadas por
Rosa Fischer. A especificidade étnico-racial fez com que este estudo buscasse
outros rumos, uma vez que o boom adolescente no Brasil (FISCHER, 1995,
p.19) não contemplou, em termos de visibilidade e referência, o público negro.
Diante disso e também com a intenção de detectar quais são os veículos
da mídia que são acessados pelos sujeitos, optou-se por focalizar o impacto
causado no público juvenil negro feminino pelo discurso midiático como um
todo. Não havendo, portanto, preocupação específica com tipos de veículos de
19
comunicação ou com determinadas produções midiáticas voltadas para o
público jovem em geral, como também às adolescentes e jovens negras. Os
casos correspondentes a esta abordagem que, porventura, fossem
identificados durante a categorização dos dados seriam analisados conforme a
relevância a eles atribuída.
Destaca-se ainda que, mais fortemente a partir da segunda metade da
década de 90 do culo XX, a mídia brasileira aumentou significativamente a
oferta de imagens de pessoas negras. Tendência que cresce nos primeiros
anos do século XXI, com destaque para as peças publicitárias. Este fato, no
entanto, não afetou o discurso estético hegemônico, levando-se em conta que
a metade da população brasileira é composta por pessoas negras.
A seguinte observação de Sodré pode ser esclarecedora para estes
casos:
[...] a rede hegemônica de televisão no Brasil (Rede Globo) vem
concedendo há muito tempo espaço para uma repórter negra no vídeo.
Há algodo que se poderia chamar de know-how norte-americano na
gestão da imagem empresarial: reserva-se um lugar único para uma
“colored”, à maneira do sistema de cotas, produzindo-se um simulacro
profissional de democracia racial (SODRÉ, 1999, p.246).
Acredito que poderiam ser enquadradas também nesta estratégia, por
exemplo, as atrizes Camila Pitanga, Taís Araújo e Isabel Filardis, bem como a
modelo Naomi Campbel, que é inglesa, mas costuma ser cortejada pela mídia
brasileira.
Assim, partindo-se dos pressupostos hegemônicos que impõem a beleza
do corpo como uma “qualidade” oportuna, em especial para as mulheres,
sugiro que cabe às mulheres cujo fenótipo corresponde as características
atribuídas à raça branca o papel de protagonistas legítimas da beleza, restando
para aquelas com fenótipo não-branco, quando muito e em casos que podem
ser considerados a exceção, a condição de coadjuvantes.
Louro (2001, p.65), ao analisar o papel da linguagem na fabricação das
diferenças sintetiza que “a linguagem não apenas expressa relações, poderes,
lugares, ela os institui; ela não apenas veicula, mas produz e pretende fixar
diferenças”.
Neste sentido, salienta-se que as mulheres brancas são apenas
classificadas como mulheres belas. Como ninguém fala em beleza branca ao
20
referir-se a uma mulher branca, pode-se deduzir que a beleza estaria
intrínseca nesta mulher. para a mulher não-branca é corriqueira a presença
de alguns complementos da linguagem: beleza negra, beleza mestiça, beleza
exótica, beleza étnica, etc. Complementos que podem sugerir a presença de
uma exceção e, no meu entender, abrem o leque da subjetividade podendo
também, por exemplo, sugerir as seguintes mensagens: mesmo sendo negra,
ela é bela. Ela é impura, mestiça, mas consegue ser bela. Ela é completamente
diferente, mas agrada ao invés de causar repulsa: é exótica.
A linguagem de beleza concebível para o Outro precisa de
complementos que o mantenham na sua condição de diferente. Louro (2000,
p.68), em reflexão sobre identidades marcadas, explicita que a norma, ou seja,
a identidade presumida o precisa dizer de si. Sendo, portanto “a identidade
que foge à norma, que se diferencia do padrão, que se torna marcada. Ela
escapa ou contraria aquilo que é esperado, ela se desvia do modelo”.
Ainda no final do século XX, Sodré observava que as questões do
fenótipo e da estética das pessoas negras resultavam em “desvantagens
objetivas” para estas na disputa por “inserção social e melhores oportunidades
de emprego”. Desta forma, detectando a tendência performática que
caracterizaria o discurso estético hegemônico, na primeira década do século
XXI, o autor salientava que o discurso midiático sobre o negro era...
[...] mais estético do que político, doutrinário ou ético. Nos jornais do
passado, os modelos de reconstrução de representação mítica da
identidade eram ideólogos como José do Patrocínio, André Rebouças,
Luiz Gama. Hoje são atores, modelos, cantores, jogadores de futebol
ou figuras de grande sucesso profissional (SODRÉ, 1999, p.254).
Nilma Gomes (2003, p.168), ao estudar as representações e as
concepções sobre o corpo negro e o cabelo crespo, detectou que “a escola
aparece em vários depoimentos como um importante espaço no qual também
se desenvolve o tenso processo de construção da identidade negra”,
concluindo que há “necessidade de articulação entre os processos educativos
escolares e não-escolares e a inserção de novas temáticas e discussões no
campo da formação de professores/as”, uma vez que, segundo ela, “o corpo,
como suporte de construção da identidade negra, ainda não tem sido uma
temática privilegiada pelo campo educacional”.
21
Paralelamente a isso, pesquisas realizadas nos primeiros anos do
século XXI atestaram que é inegável a exclusão social em que vive a
população negra brasileira. Entre elas, o Dossiê Assimetrias Raciais no Brasil:
alerta para a elaboração de políticas realizado, em 2003, pela Rede Feminista
de Saúde/Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos
Reprodutivos
5
e o Atlas Racial Brasileiro – 2005
6
.
Segundo o Dossiê da Rede Feminista, em 2001, 59,8% dos brasileiros
moradores em favelas eram negros e, em 2003, doze estados da Federação
possuíam mais de 50% de sua população negra em situação de pobreza. o
Atlas Racial Brasileiro – 2005 revela que 65% dos pobres e 70% dos indigentes
são negros, sendo que “a proporção de negros abaixo da linha de pobreza no
total da população negra no Brasil é de 50%, enquanto que é de 25% a de
brancos no conjunto da população branca, desde 1995”.
As pesquisas também apontaram para o que considero a personificação
do papel do Outro por parte das mulheres negras brasileiras, por conta da
exclusão geral em que estas se encontram, destacando a posição que ocupam
no mercado de trabalho.
Desta forma, tendo por base a PNAD, realizada pelo IBGE e
considerada a única pesquisa oficial com abrangência nacional, o IPEA,
fundação pública vinculada ao Ministério do Planejamento, Orçamento e
Gestão, detectou que, em 2001, devido à discriminação, as mulheres negras
brasileiras recebiam salários 60% mais baixos do que os homens brancos, o
grupo padrão.
Por outro lado, destaco que observações pessoais sistemáticas de
imagens de pessoas negras apresentadas pela mídia brasileira pareceram
indicativas de que, em relação aos homens negros, as mulheres negras são
minoria. Tais observações me conduziram para a seguinte reflexão: o mito da
democracia racial ajudou a construir e perpetuar no nosso imaginário social a
5
A Rede Feminista de Saúde é uma articulação do movimento de mulheres brasileiras,
fundada em 1991, que reúne cerca de 180 instituições, entre grupos de mulheres,
organizações não-governamentais, núcleos de pesquisa, organizações sindicais/profissionais e
conselhos de direitos da mulher, além de profissionais de saúde e ativistas feministas.
6
Uma iniciativa do PNUD e do Cedeplar
/
UFMG, o Atlas Racial Brasileiro - 2005 é um banco de
dados eletrônico que reúne uma ampla série histórica de indicadores sociais desagregados por
raça/cor. O Atlas trabalha com microdados das PNADs e dos censos demográficos (1980, 1991
e 2000), ambos produzidos pelo IBGE. Disponível em www.pnud.org.br.
22
estreita associação entre o homem negro e o lugar da força física, ludicidade e
musicalidade, como por exemplo: esportista, jogador de futebol e músico
popular (com destaque para os sambistas). Trata-se de um jogo de imagens
construído no contexto do racismo e do sexismo das relações de poder que
colocam em questão a possibilidade e a capacidade de atuação do homem
negro (e da mulher) em outros lugares sociais, tais como: a intelectualidade, a
produção, a política, entre outros. para as mulheres negras, parece restar
prioritariamente o não enquadramento nos padrões estéticos hegemônicos, o
que significa a sub-representação nas imagens da mídia.
Nesta perspectiva, recorro ainda à emblemática Pesquisa Racismo
Cordial, que foi realizada pelo jornal Folha de São Paulo, em 1995, sendo um
marco da mídia impressa na abordagem das relações étnico-raciais no Brasil.
Ao abordar algumas pessoas negras bem sucedidas, a publicação que
apresentou o resultado da pesquisa utilizou apenas fotos e histórias de vida de
homens negros, a maioria deles casados, na época, com mulheres brancas.
Além disso, a abordagem relatada na página 53, a meu ver, deve ser
classificada como sexismo explícito: “Pelo que você sabe ou imagina, quem é
melhor de cama: as brancas, as mulatas, ou as negras?” perguntou o Datafolha
para todos os entrevistados do sexo masculino.
Considerando estes dados e partindo da premissa de que a
discriminação contra as mulheres negras brasileiras é fruto do sexismo e do
racismo, acredito ser relevante a opção por temas sintonizados no impacto de
ambos no Brasil.
Assim, com a pretensão de ampliar os estudos que abordam aspectos
relacionados à subjetividade (aspectos de subjetivação) de mulheres negras,
dentre eles, os feitos pelas autoras Coutinho (2002), Gomes (1995; 2003),
Santos (2004) e Silva (2000), o principal objetivo desta pesquisa é examinar
como jovens mulheres negras estudantes pelotenses constroem suas
identidades tendo em vista suas possíveis interações com o discurso estético
hegemônico expresso pela mídia, ou seja, examinar o quanto a naturalização
de um processo construído socialmente (discurso estético hegemônico) e
repassado cotidianamente pela mídia interfere na formação da identidade de
jovens mulheres negras e de que forma estas jovens passam a lidar com esta
identidade.
23
Buscar-se-á atingir tal objetivo a partir das seguintes questões de
pesquisa:
a) As jovens negras identificam os discursos estéticos presentes na
mídia? Que discursos são esses? Nesse contexto, elas percebem a
existência de um discurso estético hegemônico? Como?
b) Que lugar as jovens negras acreditam ocupar na sociedade, tendo por
referencial as imagens repassadas pela mídia?
c) As jovens negras utilizam (ou não) mecanismos de afirmação e/ou
negação de uma (suposta) identidade étnico-racial? Qual o papel desta
(suposta) identidade étnico-racial nas relações sociais no presente e na
construção das expectativas para o futuro?
d) As jovens negras constroem estratégias de reversão em relação ao
discurso estético hegemônico? Quais? De que elementos lançam mão?
III. Primeira contextualização do lugar do estudo
De acordo com a classificação de “cor e raça” utilizada pelo IBGE, o Rio
Grande do Sul é o segundo estado brasileiro com o maior percentual de
população que se auto-classifica na categoria branco. O estado teria 87,2 % de
pessoas brancas e 12,8%
7
de pessoas negras, estando, portanto somente
atrás do estado de Santa Catarina que registrou os percentuais de 89,6% de
brancas(os) e de 10,4%
8
de negras(os).
O percentual de população negra na Metade Sul do estado do Rio
Grande do Sul, no entanto, região onde está localizado o município de Pelotas
seria de aproximadamente 40%. Ou seja, o percentual de negras(os) de
Pelotas está muito mais próximo do encontrado no Brasil como um todo, que é
de 50%, do que dos meros registrados no Rio Grande do Sul e na Região
Sul do Brasil, sendo este dado, curiosamente, muito pouco apresentado,
inclusive para a própria população envolvida. Uma constatação que, por si só,
pode atiçar a curiosidade de pesquisar como se caracterizam as relações
étnico-raciais em tal contexto.
7
Segundo a PNAD de 2005.
8
Segundo a PNAD de 2003.
24
Neste sentido, considero relevante destacar especificidades da cidade
de Pelotas que, localizada a 271 quilômetros da capital do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, e contando com uma população de cerca de 350 mil habitantes,
merece um capítulo especial na história afro-brasileira.
Foi em Pelotas que, por pouco mais de cem anos, entre o final do século
XVIII e o final do culo XIX, legiões de trabalhadoras(es) negras(os)
escravizadas(os) produziram o charque, ingrediente básico para o preparo da
comida consumida por negras(os) escravizadas(os) em quase todo o Brasil,
com destaque para o Rio de Janeiro e a Bahia, e em países do Caribe
(CARDOSO, 1962, p.67).
A primeira charqueada industrial foi instalada em 1780, às margens do
Arroio Pelotas, uma localização estratégica que previa o fluxo da mercadoria
para o porto marítimo da cidade de Rio Grande.
Foi a exploração do trabalho escravo nas charqueadas que possibilitou o
enriquecimento de várias famílias brancas no extremo Sul do país ou, nas
palavras do historiador Mário Maestri (1988, p.72), “permitiu a formação de
uma rica classe de proprietários”, sendo responsável ainda por colocar o Banco
Pelotense, onde charqueadores e grandes comerciantes depositavam as suas
fortunas, entre os três maiores bancos do país do século XIX. Cardoso, no
estudo Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional, cita a impressão que o
historiador francês Saint-Hilaire teve sobre os comerciantes gaúchos, na época
do ciclo do charque:
São em parte constituídos de Europeus nascidos em uma classe
inferior e que não receberam educação alguma. Começam como
caixeiros de lojas e passam depois a negociar por conta própria. Como
os lucros do comércio são avultados, neste país, eles não tardam a
adquirir fortuna que jamais alcançariam em suas pátrias respectivas
(SAINT-HILAIRE apud CARDOSO (1962, p.75).
A participação de Pelotas na consolidação do progresso econômico do
Rio Grande do Sul no século XIX é incontestável. Há registros de que a
exportação do charque foi a maior do estado, entre 1785 e 1835, constituindo
também a metade do total das vendas gaúchas para os mercados interno e
externo, no fim do século XIX (CARDOSO, 1962, p.69).
Foi também com a exploração do trabalho escravo de negras e de
negros que se viabilizou a construção do complexo arquitetônico formado pelos
25
casarões oitocentistas que, tombados pelo patrimônio histórico, são referências
turísticas para a cidade de Pelotas.
É consenso entre historiadores que as condições de trabalho nas
charqueadas eram muito piores do que as observadas nos restantes postos de
trabalho escravo no Brasil, sendo extremamente hostis (CARDOSO, 1962;
MAESTRI, 1988; BERND e BAKOS, 1991).
As autoras Bernd e Bakos (1991, p.55) explicitam que “o rigorismo no
tratamento ao escravo nas charqueadas tornou-se, na década de 80 [do século
XIX], um dos principais baluartes” a favor da Abolição da Escravidão. As
autoras registram o olhar da literatura sobre a violência das charqueadas
utilizando, entre outras, uma das obras de Vitor Valpírio, pseudônimo do
escritor Alberto Coelho Cunha. Nesta obra, conforme as autoras: “o escravo e o
boi morrem de exaustão, num mesmo cenário, sem despertar a piedade das
pessoas, endurecidas pela rudeza da atividade e pela selvageria do
tratamento dispensado aos escravos” (p.53-54).
Especula-se que a taxa de mortalidade das(os) trabalhadoras(os)
negras(os) das charqueadas era altíssima, com a sobrevida oscilando apenas
entre dois e, no máximo, sete anos, o que atestaria que um enorme
contingente de negras(os) escravizadas(os) morreu durante o ciclo do charque.
registros ainda de que para Pelotas eram mandados como punição (uma
espécie de pena de morte) as(os) escravas(os) que “causavam problemas”
como fugas ou rebeliões. “Ser mandado para o Rio Grande era uma ameaça
usada como intimidação ao negro rebelde” (BARCELLOS, 1996, p. 59).
A decadência do ciclo do charque começou com a suspensão do
sistema escravista. Nesta época, alguns dos ex-charqueadores investiram no
cultivo do arroz o capital acumulado por intermédio da exploração do trabalho
da população negra escravizada. No começo do século XX, um destes ex-
charqueadores chegou a ser considerado o maior industrial do arroz no mundo,
sendo por isso homenageado com o nome da principal praça da cidade:
Coronel Pedro Osório.
Quando foram trazidos para Pelotas para trabalharem como
escravas(os) nas indústrias do charque, as(os) negras(os) representavam
cerca de 30% do total da população da região (LONER, 1999, p.14).
26
IV. Apresentando a estrutura do trabalho
O trabalho que se segue foi dividido em partes distintas e
complementares cujo acesso poderá ser determinado conforme o interesse
da(o) leitora(or).
Uma é intitulada Pano de Fundo e apresenta capítulo no qual
problematizo teoricamente os temas mídia, raça, identidade e gênero, partindo
do global para o local brasileiro.
Outra, que chamo Espelho, espelho meu, eu sou bela?, apresenta os
resultados da coleta de dados divididos em cinco capítulos.
No primeiro exponho o suporte metodológico que norteou a pesquisa.
No segundo, que é inspirado pela genealogia foucaultiana, resgato fatos que
envolveram mulheres negras brasileiras, jovens na maioria, e estão
relacionados com o discurso estético hegemônico e a mídia.
No terceiro elenco os achados obtidos por intermédio de um olhar mais
detalhado para o lugar onde a pesquisa foi realizada, tendo em vista, além do
referencial teórico, a percepção despertada de que o contexto local e a fala dos
sujeitos estavam bastante imbricados. No quarto narro alguns caminhos
percorridos no processo que culminou com as entrevistas com os sujeitos.
No quinto analiso as falas das jovens mulheres negras estudantes, a
partir das questões que me impulsionaram a realizar a pesquisa, tendo em
vista as articulações com os temas problematizados na parte Pano de Fundo,
bem como o devir cartográfico que pode acontecer em qualquer pesquisa. No
final sintetizo os passos dados durante os processos do estudo e manifesto
algumas reflexões no intuito de ampliar as perspectivas de abordagens das
discussões sobre o tema proposto.
27
PARTE 2
PANO DE FUNDO
2.1. O REFERENCIAL
Na argumentação teórica que se segue problematizo os temas mídia,
raça, identidade e gênero, partindo do global para o local brasileiro a partir da
experimentação de articulações entre algumas proposições de Michel Foucault
e dos Estudos Culturais, com destaque para reflexões de Stuart Hall, bem
como os Estudos Feministas e os Estudos Negros.
Na perspectiva foucaultiana, os discursos são frutos de regimes de
verdades construídos a partir de relações de poder manifestadas nos âmbitos
cultural, social e histórico.
A abordagem genealógica proposta por Foucault (1999) tem por
finalidade fazer uma analítica do poder. Não no sentido de tentar explicar o que
é o poder ou de discutir/pesquisar origens para a história, mas sim na tentativa
de apontar como o poder se manifesta e atua ou, em outras palavras, o que o
poder faz conosco.
A genealogia é uma tecnologia política baseada na idéia de que o poder
é micro, é molecular, atua nos nossos corpos:
O corpo: superfície de inscrição dos acontecimentos (enquanto a
linguagem os marca e as idéias os dissolvem), lugar de dissociação do
Eu (que supõem a quimera de uma unidade substancial), volume em
perpétua pulverização. A genealogia, como análise de proveniência,
está, portanto, no ponto de articulação do corpo com a história. Ela
deve mostrar o corpo inteiramente marcado de história e a história
arruinando o corpo [...] A genealogia restabelece os diversos sistemas
de submissão: não a potência antecipadora de um sentido, mas o jogo
casual das dominações (FOUCAULT, 1999, p.22-23).
28
Foucault (1999, p.15) diz que a genealogia “é meticulosa e
pacientemente documentária”, exigindo, portanto, “a minúcia do saber, um
grande número de materiais acumulados”. Segundo o autor,
Fazer a genealogia dos valores, da moral, do ascetismo, do
conhecimento não será, portanto, partir em busca de sua “origem”,
negligenciando como inacessíveis todos os episódios da história; será,
ao contrário, se demorar nas meticulosidades e nos acasos dos
começos; prestar uma atenção escrupulosa à sua derrisória maldade;
esperar vê-los surgir, máscaras enfim retiradas, com o rosto do outro;
não ter pudor de ir procurá-las lá onde eles estão, escavando os
basfond; deixar-lhes o tempo de elevar-se do labirinto onde nenhuma
verdade as manteve jamais sob sua guarda (FOUCAULT, 1999, p.19).
Os termos Estudos Feministas e Estudos Negros estão sendo aqui
empregados em uma perspectiva ampliada. Optei por utilizá-los por entender
que podem situar com maior precisão tanto as escolhas de temas, de conceitos
e de autoras(es), como também o próprio estilo da escrita deste trabalho.
Neste sentido, a referência aos Estudos Feministas engloba, além de
intelectuais feministas, a perspectiva de estudos sobre as relações de gênero,
estando também sintonizada com autoras que abordam especificidades de
mulheres negras (ainda que estas não reivindiquem para si o rótulo feminista) e
com a atitude expressa por ativistas dos movimentos de mulheres negras, bem
como intelectuais e artistas negras.
Quanto aos Estudos Negros, cabe esclarecer que, embora estes sejam
um campo teórico consolidado em alguns países, sobretudo nos EUA
9
, ainda
não atingiram tal patamar no Brasil. Desta forma, ao delinear tal área de
estudos estou me referindo a algumas(uns) autoras(es) que focalizam a
questão negra em seus países de origem, em especial os da diáspora africana,
bem como as(os) autoras(es) que se dedicam a investigar peculiaridades do
racismo no Brasil, em especial na perspectiva da população negra. Destaco,
neste sentido, Abdias do Nascimento, Gislene dos Santos, Joel Zito Araújo,
Muniz Sodré, Nilma Lino Gomes, Sandra Almada e Sueli Carneiro.
os Estudos Culturais o se constituem em uma disciplina, mas em
um campo interdisciplinar voltado para os aspectos culturais das sociedades
9
De acordo com Gonçalves e Gonçalves e Silva (1998, p.47), “os primeiros programas e
departamentos de Black Studies são criados, em 1968, na San Francisco State University”,
como resposta às reivindicações do movimento estudantil.
29
contemporâneas. Em ensaio com breve resgate da trajetória deste campo,
Norma Schulman sintetiza:
É difícil definir os Estudos Culturais de forma sucinta e, de acordo com
Stuart Hall, esta dificuldade é intencional isto é, os Estudos Culturais
orgulham-se de não ter qualquer doutrina ou metodologia “aprovada
pela casa”. Eles são, em vez disso, auto-conscientemente concebidos
como sendo altamente contextuais como um modo de análise
variável, flexível, crítico (SCHULMAN, 2006, p.179).
De qualquer forma, Richard Johnson, que sucedeu Stuart Hall na
direção do CCCS (Centre for Contemporary Cultural Studies), da Universidade
de Birmingham (Inglaterra), o berço dos Estudos Culturais, ainda que concorde
que é difícil definir este campo interdisciplinar afirma:
Para mim, os Estudos Culturais dizem respeito às formas históricas da
consciência ou da subjetividade, ou às formas subjetivas pelas quais
nós vivemos ou, ainda, em uma síntese bastante perigosa, talvez uma
redução, os Estudos Culturais dizem respeito ao lado subjetivo das
relações sociais (JOHNSON, 2006, p.25).
É possível também delinear com certa precisão as áreas de atuação dos
Estudos Culturais. Se inicialmente, eles destacavam as culturas populares e os
impactos culturais dos meios de comunicação de massa, com o tempo
passaram a abordar também as questões de subjetividade e identidade, de
etnia e de gênero, bem como aspectos ligados, por exemplo, à globalização, às
imigrações e ao papel do Estado-nação e das culturas nacionais nos processos
identitários.
Schulman (2006, p.171-172) lembra ainda a relevância para os Estudos
Culturais de “uma conexão orgânica entre a ‘experiência vivida ou pessoal’ e as
posições mais gerais e teóricas que as pessoas adotam como parte de sua
crença acadêmica ou profissional”. A autora utiliza como exemplo disso, a
opção de figuras centrais dos Estudos Culturais” por escrever “de forma
comovedora sobre as privações e os desconfortos pessoais” experimentados
pelas classes operárias, das quais tais figuras são oriundas, como também os
relatos feitos por Stuart Hall da sua experiência de ser imigrante caribenho na
Inglaterra.
Tal perspectiva também inspira, ainda que muito timidamente, a escrita
deste trabalho. Neste sentido, ao longo da terceira parte, apresento algumas
30
experiências pessoais vividas, com o intuito de somar na abordagem sobre as
temáticas estudadas.
2.1.1. Imagem, midiatização, os donos da mídia
A imagem invasora, a imagem onipresente, aquela que se critica e que, ao mesmo
tempo, faz parte da vida cotidiana de todos é a imagem da mídia.
Martine Joly
A partir da segunda metade do século XX, seguidores de diferentes
campos teóricos têm focalizado a imagem em seus estudos. Dentre estes,
Franz Fanon, psiquiatra nascido na Martinica, um dos precursores do pós-
colonialismo, que, em 1952, no clássico livro Pele negra, máscaras brancas
(1983), ao analisar a condição dos negros, o racismo e a condição hegemônica
das culturas branco/européias, defendeu que a mudança de imagem é o
primeiro passo a ser dado em qualquer processo de libertação e de
transformação da sociedade.
Anos depois, em 1966, Foucault, em As palavras e as coisas (1992),
problematizou a representação para traçar uma arqueologia dos saberes,
iniciando o estudo com uma análise de uma imagem expressa na obra As
Meninas, do pintor Diego Velásquez, para mostrar que ao longo dos séculos
XVII e XVIII o ser humano não existia porque dele não se tinha consciência
epistemológica, já que todas as representações remetiam ao divino.
No final do século XX e início do culo XXI, Silva (2001), ao analisar
que “a noção de representação, tal como utilizada na análise cultural, está
centrada nos aspectos de construção e de produção das práticas de
significação” diz que “a imagem reflete a realidade” e que a “representação” “é”
a realidade. (Isto é: a realidade que importa)”.
Contemporaneamente um tema que tem merecido a atenção de
inúmeros teóricos é a globalização. Nesta perspectiva, os autores Hardt e Negri
(2004) construíram o conceito de Império para analisar o capitalismo
globalizado, cuja característica principal é a ascensão dos grandes grupos
econômicos transnacionais e o enfraquecimento dos Estados-nação, em um
contexto de aceleração do tempo e diminuição do espaço.
31
O conceito de Império é apresentado como um concerto global, sob a
direção de um único maestro, um poder unitário que mantém a paz social e
produz suas verdades éticas. Sendo disponibilizada a este poder único a força
necessária para conduzir, quando preciso for, “guerras justas” nas fronteiras
contra os bárbaros e, no plano interno, contra os rebeldes. Segundo Hardt e
Negri:
Desde o começo, portanto, o Império põe em movimento uma dinâmica
ético-política, que jaz no coração do seu conceito jurídico. Esse
conceito jurídico envolve duas tendências fundamentais: a primeira
delas é a noção de um direito afirmado na construção de uma nova
ordem que envolve todo o espaço daquilo que ela considera civilização,
um espaço ilimitado e universal; a segunda é a noção de direito que
abrange todo o tempo dentro de seu fundamento moral. O Império
exaure o tempo histórico, suspende a História, e convoca o passado e
o futuro para dentro de sua própria ordem ética. Em outras palavras, o
Império apresenta sua ordem como algo permanente, eterno e
necessário (HARDT; NEGRI, 2004, p.28-29).
Nesta perspectiva, estes autores destacam que a construção do
empoderamento utiliza como instrumento a imagem midiática:
A legitimação da máquina imperial nasceu pelo menos em parte das
indústrias de comunicação, ou seja, da transformação em máquina do
novo modo de produção. É um sujeito que produz sua própria imagem
de autoridade. É uma forma de legitimação que não repousa em nada
fora de si mesma, sendo repetidamente proposta pelo
desenvolvimento de sua própria linguagem de auto-validação (HARDT;
NEGRI, 2004, p.52).
O lugar privilegiado da imagem midiática em tempos de globalização
coincide com o pensamento de Joly (1996, p.14). Para a autora, que
sistematizou uma metodologia para a leitura de imagens, a partir da
interposição dos atributos icônico, plástico e verbal, “a imagem invasora, a
imagem onipresente, aquela que se critica e que, ao mesmo tempo, faz parte
da vida cotidiana de todos é a imagem da mídia”.
Tentarei fazer uma breve abordagem do papel da mídia na configuração
dos processos sociais contemporâneos conseqüentes da globalização.
Para Sodré (2006, p.20-21), a midiatização é um dispositivo cultural
historicamente emergente que consiste em um tipo particular de interação, a
tecnomediação, viabilizada por “uma espécie de prótese tecnológica e
mercadológica da realidade sensível”. Segundo o autor, a midiatização ocorre
“no momento em que o processo da comunicação é técnica e
32
mercadologicamente redefinido pela informação, isto é, por um produto a
serviço da lei estrutural do valor, também conhecida como capital.”
Sodré (2006, p.22-23) acrescenta ainda que “a midiatização pode ser
pensada como um novo bios, uma espécie de quarta esfera existencial, com
uma qualificação cultural própria (uma “tecnocultura”)”. Neste sentido, ele
considera que a questão inicial é “a influência ou poder [da mídia] na
construção da realidade social”, uma vez que “da mídia para o público não
parte apenas influência normativa, mas principalmente emocional e sensorial,
com o pano de fundo de uma estetização generalizada da vida social”. (grifo
meu)
Nesta mesma sintonia, ao dissecarem a constituição política das duas
últimas décadas do século XX e dos primeiros anos do século XXI e os
processos que levaram a compor e compõem o Império, Hardt e Negri, levando
em conta a concepção foucaultiana de sociedade disciplinar, defendem que os
métodos disciplinares acirraram-se e sofisticaram-se.
Para Foucault a sociedade disciplinar é aquela na qual o comando social
é construído por uma rede difusa de dispositivos que produzem e regulam os
costumes, os hábitos e as práticas produtivas. A sociedade disciplinar viabiliza-
se e assegura obediência a suas regras e mecanismos de inclusão e/ou
exclusão, por intermédio de instituições que explicam a “razão” da disciplina.
Destas instituições, Foucault destacou, por meio de análises, a fábrica e a
escola, bem como o hospital, o manicômio e a prisão.
O poder disciplinar se manifesta na estruturação de parâmetros e limites
do pensamento e da prática, a partir das sanções e das prescrições dos
comportamentos que são considerados normais e daqueles vistos como
desviantes.
Hardt e Negri entendem que o acirramento do poder disciplinar na
sociedade dos tempos globalizados resultou na sociedade de controle, na qual
a disciplina foi e é - cotidianamente - injetada no cérebro e na alma de cada
pessoa. Uma inoculação feita praticamente desde o momento do nascimento:
Os comportamentos de integração social e de exclusão próprios do
mando são, assim, cada vez mais interiorizados nos próprios súditos.
O poder agora é exercido mediante máquinas que organizam
diretamente o cérebro (em sistemas de bem-estar, atividades
monitoradas etc.) no objetivo de um estado de alienação independente
33
do sentido da vida e do desejo de criatividade (HARDT; NEGRI, 2004,
p.42).
Na concepção destes autores, as principais quinas reguladoras do
cérebro são as utilizadas pela mídia, que permitem a conexão global de
sistemas de comunicação, e as novas tecnologias da informação.
Tal opinião parece ser compartilhada por uma imensa lista de teóricos.
Dentre eles, Augé (2006), Galeano (2006), Hall (1999), Harvey (1993) e Martín-
Barbero (2000).
As máquinas da comunicação ocupam papel de destaque nas análises
de construção da identidade na pós-modernidade de Hall e nas reflexões de
compressão de tempo e espaço de Harvey. Também merecendo destaque nas
reflexões sobre a passagem do real ao virtual feitas por Augé, ao propor a
noção de sobremodernidade; e na preocupação de Martín-Barbero, em relação
ao distanciamento/estranhamento da escola frente à intimidade dos
adolescentes com os deslocamentos possibilitados pelo veloz fluxo das
imagens e da oralidade.
Neste sentido, tendo em vista a representação, feita pela mídia, dos
indivíduos cujas identidades são marcadas/subordinadas, considero instigante
a seguinte colocação de Galeano:
Frequentemente as imagens infernais vem da África. A fome africana
se exibe como uma catástrofe natural, e, nas guerras africanas, são
“tribos”que se afrontam. São histórias de negros. As imagens da fome
esquecem de evocar o saque colonial. Raramente mencionam a
responsabilidade das potências ocidentais que sangraram o continente
pelo viés do tráfico de escravos e pela obrigação da monocultura, e
que continuam a hemorragia pagando salários miseráveis e preços
aviltantes (GALEANO, 2006, p. 154). (grifo meu)
No Brasil, a perspectiva de cruzar os temas mídia e racismo levou Sodré
(1999, p.242) a elaborar ensaio sobre identidade, povo e mídia, no qual
destaca a importância de produções de comunicação social a serviço dos
interesses dos negros, a chamada imprensa negra, ao considerar que são os
discursos sociais (“manuais escolares, diálogos socializantes (pais/filhos,
professores/estudantes), programas de radiodifusão, textos jornalísticos,
pronunciamentos parlamentares, etc.”) que modelam as atitudes
discriminatórias e “desempenham um papel central tanto na produção quanto
na reprodução do preconceito e do racismo”.
34
Neste sentido, Sodré (p.243) considera que o discurso midiático é
“capaz de catalisar expressões políticas e institucionais sobre as relações inter-
raciais, em geral estruturadas por uma tradição intelectual elitista que, de uma
maneira ou de outra, legitima a desigualdade social pela cor da pele”. Ele
informa também que “são as elites que ocupam, em cada estado nacional,
sejam as posições de controle direto da mídia, sejam as possibilidades de
moldar o seu discurso”, especificando que
[...] a mídia desenvolveu-se aqui [no Brasil] (e também em muitos
outros países, vale sublinhar) como um bem patrimonial os sujeitos
econômicos da indústria da informação e do imaginário são
predominantemente famílias. A conhecida especulação de Habermas,
no sentido de uma refeudalização” da esfera blica pela mídia
contemporânea (criação publicitária de uma aura mítica em torno de
figuras de autoridades), tem aqui o sentido acrescido: os canais de
transmissão constituem verdadeiros feudos” econômicos-jurídico-
político-ideológicos de elites patrimoniais (SODRÉ, 1999, p.244).
2.1.2. Racismo, raça, a “Questão do Brasil”
Aquilo que não se via ou não se dizia ou se fingia não ver/dizer está dito: racismo.
E é hora de passar adiante.
Jurema Werneck
10
Foucault (1997, p.127) explicita que, a partir da época clássica, o
Ocidente reorientou os seus mecanismos de poder até então enfocados no
direito de causar a morte ou deixar viver” e ingressou no que ele chama de era
do biopoder, “um poder destinado a produzir forças, a fazê-las crescer e a
ordená-las mais do que barrá-las, dobrá-las ou destruí-las”. Segundo Foucault
(p.132), o biopoder foi indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, “que
pôde ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho
de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos
processos econômicos”.
A era do biopoder é contemporânea da criação do discurso ocidental
cristão sobre o sexo, a época da invenção e da instalação do dispositivo da
sexualidade:
10
Jurema Werneck é médica, doutora em Comunicação Social, ativista da Articulação Nacional
de Mulheres Negras e uma das coordenadoras da Organização de Mulheres Negras Criola,
fundada em 1992, no Rio de Janeiro, com o objetivo de instrumentalizar mulheres,
adolescentes e meninas negras para o enfrentamento do racismo, do sexismo e da homobofia.
35
Ocorreu, a partir da segunda metade do século XIX, que a temática do
sangue foi chamada a vivificar e a sustentar, com toda uma
profundidade histórica, o tipo de poder político que se exerce através
dos dispositivos da sexualidade. O racismo se forma neste ponto
(racismo em sua forma moderna, estatal, biologizante): toda uma
política do povoamento, da família, do casamento, da hierarquização
social, da propriedade, e uma longa série de intervenções
permanentes ao nível do corpo, das condutas, da saúde, da vida
quotidiana, receberam então cor e justificação em função da
preocupação mítica de proteger a pureza do sangue e fazer triunfar a
raça (FOUCAULT, 1997, p.140).
No final do século XIX, a raça havia se transformado em uma
categoria biológica. Contribuíram para a construção deste discurso da ciência
autores como o anatomista Robert Knox e o conde Arthur de Gobineau,
considerado um dos “teóricos raciais” mais importantes, cujas teses
transformaram a raça “numa ‘essência própria’, na própria ‘essência’ do ser
humano” (Hofbauer, 2006, p.125).
Ferreira (2003, p.27), ao fazer revisão bibliográfica sobre o conceito de
raça e as relações raciais para estudo sobre a escola e a etnia cigana, enfatiza
que “somente a revelação do horror dos campos de exterminação nazistas, ao
final da segunda Guerra Mundial, veio a permitir que, da raça, passássemos ao
racismo como objeto de estudo”. A autora destaca os estudos de Wieviorka e
Rex, no campo internacional.
O primeiro acompanha o desenvolvimento da idéia de raça na Europa, a
categorização desta idéia na narração histórica do século XIX e faz estudo
comparado entre as trajetórias européias e estadunidense no “descobrimento”
do racismo. Sobre o pensamento sociológico desenvolvido nos EUA, o autor
garante que
[...] não se preocupa tanto com as características, inatas ou adquiridas,
de um determinado grupo humano, como das relações, sobretudo
interculturais, existentes entre grupos. O que foi esboçando nos
Estados Unidos, a partir do começo do século XX, tornando-se preciso
na década de vinte [...] era uma sociologia das race relations. Tratava-
se, por fim, de estudar concretamente determinadas realidades sociais
e interculturais concernentes, entre outras coisas, às relações entre
brancos e negros no interior de uma sociedade que, desde essa
época, ainda excluindo os negros da concepção que tem de si mesma,
mostra-se vacilante à hora de considerar-se um melting pot
(WIEVIORKA apud FERREIRA, 2003, p. 27-28).
O que aponta para
o aspecto relacional do racismo, uma vez que muitos
conflitos étnico-raciais foram desencadeados com o processo de expansão
36
colonialista, para o qual era conveniente o discurso que colocava o Outro em
uma condição de inferior, não humano, sem valor. Em termos estéticos isso
pode traduzir-se nas conotações feio, grosseiro, disforme, uma aberração.
Ferreira (2003, p.26) sustenta ainda que “uma estratégia muito utilizada
na atualidade é entender o racismo como um constructo social”, o que significa
dizer que foi a crença na existência de distintas raças que “originou
comportamentos sociais de coesão ou de repulsão, levando ao aparecimento
do racismo em alguns contextos históricos, marcados por determinadas
condições sócio-político-econômicas”.
A seguinte consideração de Gomes (2005) endossa as reflexões
expostas anteriormente:
Podemos compreender que as raças são, na realidade, construções
sociais, políticas e culturais produzidas nas relações sociais e de poder
ao longo do processo histórico. Isso significa que aprendemos a ver
negros e brancos como diferentes na forma como somos educados e
socializados a ponto de essas ditas diferenças serem introjetadas em
nossa forma de ser e ver o outro, na nossa subjetividade, nas relações
sociais mais amplas (GOMES, 2005, p.49).
Ainda que tenha sido contestado de inúmeras formas durante a maior
parte do século XX, foi somente no começo do século XXI que o discurso
científico da categoria raça sofreu o maior deslocamento, desde o final do
século XIX. Em dezembro de 2002, pesquisadores norte-americanos,
franceses e russos apresentaram o resultado de pesquisa que comparou 377
partes do DNA de 1056 pessoas de 52 populações de todos os continentes e
concluiu que entre 93% e 95% da diferença genética entre os humanos é
encontrada nos indivíduos de um mesmo grupo e a diversidade entre as
populações é responsável por apenas 3% a 5% de genes (KENSKI, 2003, p.
42). Perdiam respaldo definitivamente as teorias racistas que ainda tentavam
se sustentar por supostos discursos científico-biológicos.
Tal mudança discursiva da ciência, no entanto, não alterou em nada os
estudos sobre as relações étnico-raciais e sobre o racismo, uma vez que, como
foi explicitado, tais estudos operam com a concepção de que raça não é um
conceito biológico e sim um conceito construído socialmente.
Nesta perspectiva e salientando o também consenso entre inúmeras/os
autoras/es sobre a enorme dimensão do racismo no Brasil (CAVALLEIRO,
2003; GOMES, 2005; GONÇALVES; GONÇALVES E SILVA, 1998; LOPES,
37
1988; MUNANGA, 2005; NASCIMENTO, 1980; SANTOS, 2004), destaco a
seguinte afirmação de Gomes:
Os militantes e intelectuais que adotam o termo raça (grifo da autora)
não o adotam no sentido biológico, pelo contrário, todos sabem e
concordam com os atuais estudos da genética de que não existem
raças humanas. Na realidade eles trabalham o termo raça atribuindo-
lhe um significado político construído a partir da análise do tipo de
racismo que existe no contexto brasileiro e considerando as dimensões
histórica e cultural que este nos remete (GOMES, 2005, p.47).
Já ao discorrer sobre as duas formas interligadas de expressão do
racismo, a individual e a institucional, a autora destaca o papel da mídia nestes
processos. Em relação à primeira, Gomes (2005, p.52) compara o racismo
existente no Brasil ao extinto regime Apartheid da África do Sul e aos conflitos
raciais nos Estados Unidos
11
. “No Brasil, esse tipo de racismo também existe,
mas geralmente é camuflado pela mídia”. quanto à forma institucional do
racismo, que consiste nas práticas discriminatórias sistematizadas pelo Estado
ou com o seu apoio indireto, a autora avalia que, no Brasil, estas “manifestam-
se também na mídia (propagandas, publicidade, novelas) a qual insiste em
retratar os negros, e outros grupos étnicos/raciais que vivem uma história de
exclusão, de maneira indevida e equivocada” (GOMES, 2005, p.53).
Joel Zito Araújo (2000, p.305-306), ao analisar as novelas produzidas
pela e para a televisão brasileira durante 34 anos (de 1963 a 1997) detectou
que “as imagens hegemônicas em todas as telenovelas carregam, como
subtexto, o elogio dos traços brancos como o ideal de beleza para todos os
brasileiros”.
Volto novamente para o conceito foucaultiano de biopoder para uma
tentativa de analisar o processo de construção do racismo no Brasil que, de
acordo com vários pesquisadores, acontece de um modo muito especial.
11
Em relação a comparações entre os EUA e o Brasil, Hofbauer (2006, p.117) esclarece que
“contrariamente a afirmações de vários autores, durante muito tempo não havia nos estados do
Sul [dos EUA] uma “linha de cor” insuperável. O que permitia que “um mulato livre “bem
sucedido” passasse por branco e que filhos de mulatos fossem registrados como “brancos”.
Recorrendo a estudos produzidos no século XXI, o autor informa que “o “sistema de duas
categorias” e regras rígidas de descendência” o existiam ainda na época colonial e
cristalizaram-se apenas em meados do século XIX. Nesta perspectiva, Hofbauer cita
Fredrickson (2001, p.06) que critica os estudos pioneiros que apresentavam “uma oposição
drástica entre os Estados Unidos e o Brasil, no que diz respeito a dois diferentes padrões de
preconceitos e de relações entre negros e brancos que teriam existido desde os primórdios”,
sugerindo uma revisão nesta concepção.
38
Gomes (2005, p.46) e Santos (2004, p.29) analisam esta característica.
Enquanto para Gomes seria um racismo que “se afirma através da sua própria
negação” (p. 46), Santos fala em “racismo mascarado”.
Cogito que, no Brasil republicano, pós-abolição da escravatura, o
biopoder, em se tratando da população negra, manifestou-se por intermédio do
dispositivo “deixar morrer”
12
, nas primeiras décadas do século XX, com a
importação, a partir do investimento de altas somas de dinheiro por parte do
Estado e do setor privado, de milhões de imigrantes europeus.
Sobre isso, Edna Roland (2000, p.10
)
informa que, na época, à revelia
do enorme contingente de ex-trabalhadoras(es) negras(os) escravizadas(os) e
suas(eus) descendentes, o Estado brasileiro não quis qualificar a população
negra para as novas tecnologias que surgiam.
Algumas interpretações desse período consideram que o Estado
brasileiro parece ter apostado na impossibilidade de que descendentes de
trabalhadoras(es) negras(os) escravizadas(os), substituídas(os) por imigrantes
europeus nos postos avançados de trabalhos, sobrevivessem, dado que não
havia políticas públicas para manutenção da vida.
É também Roland (2000, p.10) que cita Nancy Leyes Stepan para
informar que “o Brasil foi o primeiro país latino-americano a ter um movimento
eugênico organizado significativo, que modelou a ciência, o pensamento social
e as políticas públicas”. Uma ode ao racismo, a eugenia prescreve a procriação
planejada dos “melhores” indivíduos. Seus seguidores acreditam que ela é a
solução para deter a degradação da população e evitar o domínio das “raças
inferiores”.
Bastante consolidado nas primeiras décadas do século XX, o movimento
eugênico acreditava que a mistura de raça, mais especificamente a grande
12
Neste sentido,
Sueli
Carneiro, em artigo sobre o aspecto eugenista da correlação
aborto/combate ao crime, assunto que esteve na pauta nacional em outubro de 2007, explicita:
“Michel Foucault demonstrou que o direito de “fazer viver e deixar morrer” é uma das
dimensões do poder de soberania dos Estados modernos e que esse direito de vida e de morte
“só se exerce de uma forma desequilibrada, e sempre do lado da morte”. É esse poder que
permite à sociedade livrar-se de seus seres indesejáveis. A essa estratégia Michel Foucault
nomeou de biopoder, que permite ao Estado decidir quem deve morrer e quem deve viver. E o
racismo seria, de acordo com Foucault, um elemento essencial para se fazer essa escolha. É
essa política de extermínio que cada vez mais se instala no Brasil, pelo Estado, com a
conivência de grande parte da sociedade.” Ver CARNEIRO (2007).
39
quantidade de sangue africano que havia na população do país, era a grande
“Questão do Brasil”, uma das formas como ficou conhecida, na época, a
tentativa de interpretação da especificidade étnico-racial brasileira. Tal
entendimento levou os eugenistas brasileiros a apostar que, com o tempo,
negras e negros desapareceriam e a população brasileira seria constituída
somente por pessoas brancas.
Sodré (1999, p.103) lembra que “é conhecida a estimativa feita pelo
antropólogo João Batista de Lacerda
13
numa conferência em Londres (1911) no
sentido de que o embranquecimento do Brasil levaria ainda um século”.
Lacerda, que ministrou o primeiro curso de antropologia no Brasil, em 1877, era
diretor do Museu Nacional, quando foi nomeado pelo então presidente da
República para representar o Brasil no Congresso Universal das Raças.
Enfocando o documento apresentado pelo Brasil no referido evento,
Hofbauer (2006, p.210) informa que Lacerda “acreditava que dois fatores
importantes transformariam o Brasil num dos ‘principais centros do mundo
civilizado’: a imigração européia e a seleção sexual (preferência por
casamentos com brancos), que iriam, inevitavelmente, ‘clarear’ a população”.
Na análise de Hofbauer (2006, p.213), a ambigüidade que marca os
processos de inclusão e exclusão no país, por intermédio das negociações
entre os “mais escuros” e os “menos escuros” que resultam da “força do ideário
do branqueamento”, pode ter sido uma das razões pelas quais o Brasil
conseguiu “apresentar-se durante tanto tempo como um país não-racista”. O
autor explicita que as especificidades que envolvem o termo racismo, em se
tratando, por exemplo, de contextos sociais e históricos, podem explicar “por
que o ideário de transformar negro em branco fator tão marcante na história
da exclusão e da discriminação no Brasil não foi relacionado, durante tanto
tempo, com o termo ‘racismo’”. Segundo Hofbauer,
13
Revisão feita por Hofbauer (2006, p.187-188) aponta que “conceitos e argumentos quase
idênticos” aos utilizados por Lacerda haviam sido defendidos pelo médico e filósofo
Francisco Soares Franco e pelo liberal António d’Oliva de Souza Sequeira, em dois ensaios
publicados em 1821, em Portugal. As projeções de Franco e Sequeira a respeito da
transformação de negro em branco reafirmam um ideário que tem acompanhado, desde seus
primórdios, a história do Brasil. [...] Quero chamar a atenção para o fato de que esses planos
foram publicados quase um século antes de J.B. Lacerda – frequentemente tido como o
primeiro articulador de um projeto político de branqueamento no Brasil – fazer o famoso
pronunciamento no Congresso Universal das Raças em Londres (1911).”
40
O ideário do branqueamento induz as negociações pessoais e
contextuais das fronteiras e das identidades dos envolvidos. Essa
prática social contribuiu não apenas para encobrir o teor discriminatório
embutido nessa construção ideológica, mas também para abafar uma
reação coletiva. Assim, a ideologia do branqueamento “atua” no sentido
de dividir aqueles que poderiam se organizar em torno de uma
reivindicação comum, e faz com que as pessoas procurem se
apresentar no cotidiano como o mais “branco” possível (HOFBAUER,
2006, p. 212-213).
Passaram-se apenas duas cadas entre o apogeu do movimento
eugênico e o lançamento da obra em que o sociólogo Gilberto Freyre
14
(1987)
resolveu escrever a sua versão para a “Questão do Brasil”, Casa-Grande e
Senzala, na qual admite, à sua maneira, o inadmissível para a época. Algo
mais ou menos assim: está bem, nós somos o resultado de uma mistura de
raças que aconteceu de forma democrática, pacífica e até mesmo carinhosa.
Estava assim maquiavelicamente instituída a tal praga/mito da democracia
racial que na interpretação de Gonçalves e Gonçalves e Silva (1998, p.73), ao
analisarem a especificidade do multiculturalismo na América do Sul, “foi,
provavelmente, um dos mais poderosos mecanismos de dominação ideológica
produzido no mundo. Apesar de toda crítica que a ele foi feita, permanece
irresistivelmente atual”.
Consciente de que não havia possibilidade de negar as presenças dos
índios e principalmente dos negros/africanos, a solução foi admiti-las com a
ressalva de que os brancos/europeus/portugueses sempre estiveram no
“comando”. O que, ainda segundo Gonçalves e Gonçalves e Silva (1998, p.74),
criou um paradoxo, uma vez que, “ao mesmo tempo em que o orgulho nacional
não abre mão da pluralidade racial tão decantada, a produção cultural e
intelectual brasileira orientava-se integralmente por valores euro-ocidentais”.
14
Por considerar relevante e esclarecedora, transcrevo a seguir trechos de análise feita por
Hofbauer (2006, p.251-252-253) a Gilberto Freyre e sua obra: “Mesmo que o autor [Freyre]
conceda algum espaço ‘as “contribuições culturais” das “raças (culturas) atrasadas”, não
dúvida sobre a direção em que o desenvolvimento racial (cultural) do país deveria se mover:
“Talvez em nenhum outro país seja possível ascensão social mais rápida de uma classe a
outra: do mucambo ao sobrado. De uma raça a outra: de negro a ‘branco’ ou a ‘moreno’ ou
‘caboclo’”, escreve Freyre (1951, III, p.1076) em Sobrados e mucambos. [...] Freyre
reivindicava também, implicitamente, a continuidade de negociações pessoais das definições
(delimitações) do outro” sob a égide do poder patrimonial.” “[...] Freyre nascido numa
tradicional família nordestina (Recife) defendia a estrutura do engenho como modelo social,
numa época já marcada pelos primeiros avanços da industrialização e da urbanização. As
transformações socioeconômicas que acompanhavam o processo de industrialização e
urbanização deveriam ser mantidas sob o controle das oligarquias agrícolas. As relações de
poder deveriam permanecer intocadas. Assim, a análise harmonizadora da formação do povo
brasileiro serviria, também, como uma promessa para o futuro.”
41
De qualquer forma, em reflexão sobre o referido mito, Hofbauer (2006, p.
24) prefere argumentar, baseado em muitos estudos sobre o tema, que
“mesmo que o “mito da democracia racial” não corresponda à realidade, este
mito por si constitui um ideal, um valor social para a maioria da
população brasileira”, sintetizando que: “É preciso levar os mitos a sério”.
Tendo em vista a questão de gênero enfocada nesta pesquisa, volto ao
clássico Casa-Grande e Senzala para lembrar que Freyre (1987) dedica dois
extensos capítulos desta obra à influência dos africanos na formação do Brasil
os quais são emblematicamente intitulados: O escravo negro na vida sexual e
de família do brasileiro (IV e V), bem como emblematicamente embasados no
intercurso sexual entre o homem/colonizador/europeu/branco e a
mulher/escravizada/africana/negra.
Ao longo do século XX, foram surgindo várias versões analíticas para a
mistura de raças no Brasil ora endossando o embranquecimento, ora
contestando, como é o caso dos estudos de Brookshaw (1983), Lopes (1988) e
Sodré (1999), respectivamente sobre literatura, identidade e mídia, que
identificaram uma tendência das elites do país de expurgar, a qualquer preço, o
peso significativo das matrizes culturais africanas na constituição da nação
brasileira.
O cruzamento destas considerações com o pensamento de Fanon
(1983, p.44) sobre “o sentimento de inferioridade do negro” pode apontar, a
meu ver, que, na síntese, a “Questão do Brasil” é a questão do negro
reconhecer-se como tal e admitir-se como tal.
Tal reflexão de Fanon pode sugerir que o exercício do dispositivo “deixar
morrer” aplicado por um Estado-nação, cuja maioria da população é não-
branca, aos negros que constituem oficialmente praticamente a metade da
população total é uma condição patológica que poderia ser resumida no
“desejo de matar o negro em mim”. Ou, em outras palavras, é possível cogitar
que dadvenha à exclusão social na qual a população negra assentada em
solo brasileiro encontra-se até agora. Exclusão essa que perdura no século
XXI, segundo várias pesquisas, sendo esta um fator de inegável peso para a
desconfortável classificação do Brasil no ranking das desigualdades sociais
computado pelas Nações Unidas.
42
2.1.3. Identidade, diferença, representação, identidade negra
Um dos temas que têm estimulado autoras(es) contemporâneas(os) que
estudam os processos sociais decorrentes da globalização é a chamada “crise
de identidade”. Partindo da premissa de que a identidade é algo sempre
construído a partir de uma relação de poder sendo, portanto, política e
relacional, vários estudos apontam que a identidade, a diferença e a
representação são imbricadas (BRAH, 2006; HALL, 1999, 2000; SILVA, 1999;
WOODWARD, 2000).
Stuart Hall argumenta que a fala ocorre sempre a partir de uma posição
histórica e cultural específica, sendo fundamental levar em conta quem fala e
qual é a representação que advém desta fala. Para Hall (2000, p.108-109), a
identidade cultural não se refere a “um eu coletivo capaz de estabilizar, fixar ou
garantir o pertencimento cultural ou uma “unidade” imutável que se sobrepõe a
todas as outras diferenças supostamente artificiais”. As identidades são
fragmentadas e multiplamente construídas ao longo dos discursos e práticas e
“estão sujeitas a uma historicização radical, estando constantemente em
processo de mudança e transformação”.
O autor entende que as identidades podem ser vista de duas maneiras.
A primeira ocorre quando o grupo/comunidade busca recuperar a “verdade” e a
“unicidade” da história e da cultura compartilhadas no passado, uma busca que
pode ser representada em manifestações culturais que reafirmam e reforçam
esta identidade. A segunda está relacionada “não tanto com as questões
“quem s somos” ou “de onde nós viemos”, mas muito mais com as questões
“quem nós podemos nos tornar”; “como s temos sido representados” e
“como essa representação afeta a forma como s podemos representar a nós
próprios”.
A identidade estaria relacionada tanto com a tradição, quanto com a
invenção da tradição. O que leva autores como Hall a optarem pela fluidez da
identidade, uma vez que o “tornar-se a ser” permite aos sujeitos a capacidade
de transformar as identidades que estariam aprisionadas pela história.
Admite-se, desta forma, que o passado está sempre em mutação e que
o processo identitário pode ser feito a partir da reconstrução deste passado por
intermédio de comunidades imaginadas, um conceito tecido por Benedict
43
Anderson que, na visão de Woodward (2000, p.25), “proporciona alguma
certeza em um clima que é de mudança, fluidez e crescente incerteza” e no
qual “as identidades que são construídas pela cultura são contestadas”. E
acrescenta ela:
Enquanto, nos anos 70 e 80, a luta política era descrita e teorizada em
termos de ideologias e, conflito, ela se caracteriza agora, mais
provavelmente, pela competição e pelo conflito entre as diferentes
identidades, o que tende a reforçar o argumento de que existe uma
crise de identidade no mundo contemporâneo ((WOODWARD, 2000,
p.25).
Tanto as reflexões de Hall, quando as Woodward optam pela
caracterização não-essencialista da identidade. A essencialização sugere
fronteiras fixas entre os grupos podendo ser interpretada por intermédio do
binarismo ou/ou. Neste caso, ou branco ou negro (branco/negro).
O binarismo essencialismo/não-essencialismo parece ser um aspecto
controverso, principalmente entre ativistas políticos defensores da causa de
indivíduos cujas identidades são marcadas/subordinadas, neste sentido
considero relevante uma abordagem sucinta da questão, na qual destaco
algumas reflexões de Hall e outras da feminista britânica Avtar Brah.
Partindo da experiência dos negros da diáspora britânica, Hall (2006, p.
326-327) lança mão de proposta política de Paul Gilroy que recusa o binário
negro ou britânico e sugere a lógica do acoplamento manifestada no negro e
britânico. Hall reconhece que existe “um conjunto de experiências negras
historicamente distintas”, entendendo, por isso, que o “ou” fixa em um local de
“contestação constante” e defendendo que “a nossa atenção criativa agora”
deve ser dirigida integralmente “para a diversidade e não para a
homogeneidade da experiência negra”. Para o autor,
O momento essencializante é fraco porque naturaliza e des-historiciza
a diferença, confunde o que é histórico e cultural com o que é natural,
biológico e genético. No momento em que o significante “negro” é
arrancado de seu encaixe histórico, cultural e político, e é alojado em
uma categoria racial biologicamente constituída, valorizamos, pela
inversão, a própria base do racismo que estamos tentando
desconstruir. Além disso, como sempre acontece quando
naturalizamos categorias históricas (pensem em gênero e
sexualidade), fixamos esse significante fora da história, da mudança e
da intervenção políticas. E uma vez que ele é fixado, somos tentados a
usar “negro” como algo suficiente em si mesmo, para garantir o caráter
progressista da política pela qual lutamos sob essa bandeira – como se
44
não tivéssemos nenhuma outra política para discutir, exceto a de que
algo é negro ou não é (HALL, 2006, p.327).
Brah (2006, p.375), por sua vez, admite que “não é fácil tratar desse
problema”, uma vez que “em sua necessidade de criar novas identidades
políticas, grupos dominados muitas vezes apelarão para laços de experiência
cultural comum a fim de mobilizar seu público”. O que pode resultar na
tendência em “afirmar uma diferença aparentemente essencial” que, segundo a
autora, faz com que alguns sugiram que o "risco do essencialismo pode ser
assumido, se for enquadrado do ponto de vista das posições de sujeito
dominado”, uma opção que recebeu o nome de "essencialismo estratégico".
A autora considera que tal opção pode ser problemática, “se o desafio a
uma forma de opressão levar ao fortalecimento de outra”. O que a leva a
defender a não colocação de opressões em compartimentos distintos e a
formulação de “estratégias para enfrentar todas elas [as opressões] na base de
um entendimento de como se interconectam e articulam” (Brah, 2006, p.376)
Por outro lado, é consenso entre Hall, Woodward e Brah que, sendo um
processo relacional, a identidade refere-se diretamente à diferença. Uma vez
que o “eu” pode se dizer “eu” em relação àquilo que ele não é, o “não-
eu/outro”.
Nas palavras de Hall (2000, p.110-111), “acima de tudo, e de forma
diretamente contrária àquela pela qual elas [as identidades] são
constantemente invocadas, as identidades o construídas por meio da
diferença e não fora dela”. Neste sentido, o autor sintetiza que “assim, as
“unidades” que as identidades proclamam são, na verdade, construídas no
interior do jogo de poder e da exclusão”.
Silva (1999, p.87), por sua vez, explicita que “para a concepção s-
estruturalista, a diferença é essencialmente um processo lingüístico discursivo”,
sendo que “é-se diferente relativamente a alguma outra coisa considerada
precisamente como “não-diferente”. Este autor prossegue considerando que
“são as relações de poder que fazem com que a “diferença” adquira um sinal,
que o “diferente” seja avaliado negativamente ao “não-diferente”.
Uma perspectiva que o leva defender que “as diferenças não devem ser
simplesmente respeitadas ou toleradas”, justificando que ”na medida em que
elas estão sendo constantemente feitas e refeitas, o que se deve focalizar são
45
precisamente as relações de poder que presidem sua produção” (SILVA, 1999,
p.88). A saída para a questão seria questionar:
Quais são os mecanismos de construção das identidades nacionais,
raciais, étnicas? Como a construção da identidade e da diferença está
vinculada a relações de poder? Como a identidade dominante tornou-
se a referência invisível através da qual se constroem as outras
identidades como subordinadas? Quais são os mecanismos
institucionais responsáveis pela manutenção da posição subordinada
de certos grupos étnicos e raciais? (SILVA, 1999, p.88).
Avançando nesta discussão, Brah (2006) sugere quatro maneiras como
a diferença pode ser conceituada: 1) diferença como experiência; 2) diferença
como relação social; 3) diferença como subjetividade; e 4) diferença como
identidade.
A primeira vai contra a idéia de um "sujeito da experiência"
plenamente constituído a quem as "experiências acontecem", defendendo que
“a experiência é o lugar da formação do sujeito”; a segunda se refere as
narrativas coletivas e aos sentimentos de comunidades, incluindo os legados
da escravidão, do colonialismo e do imperialismo. A terceira aborda os
processos de formação da subjetividade, que seriam “ao mesmo tempo sociais
e subjetivos”, e busca entender os “investimentos psíquicos que fazemos ao
assumir posições específicas de sujeito que são socialmente produzidas”. A
quarta considera as três primeiras e avança ao sugerir que a qualquer
momento na vivência identitária “o sujeito-em-processo experimenta a si
mesmo como o "eu", e tanto consciente como inconscientemente desempenha
novamente posições em que está situado e investido, e novamente lhes
significado”.
Ainda, segundo esta autora, a diferença “se refere à variedade de
maneiras como discursos específicos da diferença são constituídos,
contestados, reproduzidos e ressignificados”. O que a leva a apostar na
possibilidade de conversão do jogo da diferença.
Algumas construções da diferença, como o racismo, postulam
fronteiras fixas e imutáveis entre grupos tidos como inerentemente
diferentes. Outras construções podem apresentar a diferença como
relacional, contingente e variável. Em outras palavras, a diferença não
é sempre um marcador de hierarquia e opressão. Portanto, é uma
questão contextualmente contingente saber se a diferença resulta em
desigualdade, exploração e opressão ou em igualitarismo, diversidade
e formas democráticas de agência política (BRAH, 2006, p.374).
46
Dando prosseguimento ao raciocínio exposto no começo deste item, em
relação a forma imbricada pela qual a identidade, a diferença e a
representação se manifestam, destaca-se ainda o conceito proposto por
Woodward (2000) para representação, ao examinar “a forma como a identidade
se insere no ‘circuito da cultura’”:
A representação inclui as práticas de significação e os sistemas
simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos,
posicionando-nos como sujeitos. É por meio dos significados
produzidos pelas representações que damos sentido à nossa
experiência a àquilo que somos. Podemos inclusive sugerir que esses
sistemas simbólicos tornam possível àquilo que somos e aquilo no qual
podemos nos tornar. A representação, compreendida como um
processo cultural, estabelece identidades individuais e coletivas e os
sistemas simbólicos nos quais ela se baseia fornecem possíveis
respostas às questões: Quem eu sou? O que eu poderia ser? Quem
eu quero ser? Os discursos e os sistemas de representação constroem
os lugares a partir das quais os indivíduos podem se posicionar e a
partir dos quais podem falar (WOODWARD, 2000, p.17).
Assim, na perspectiva de análise da subordinação de determinadas
identidades étnico-raciais, destaca-se a reflexão de Silva sobre o papel do
conceito de representação na questão do racismo.
Nas análises tradicionais do racismo, o que se contrapõe ao racismo é
uma “imagem verdadeira” da identidade inferiorizada pelo racismo. O
racismo é, fundamentalmente, nessa perspectiva, uma descrição falsa
da verdadeira identidade que ele descreve de forma distorcida. Na
crítica cultural recente, não se trata de uma questão de verdade e
falsidade, mas de uma representação que, por sua vez, não pode ser
desligada de questões de poder. A representação é sempre inscrição,
é sempre uma construção lingüística e discursiva dependente de
relações de poder. O oposto da representação racista de uma
determinada identidade racial não é simplesmente uma identidade
“verdadeira”, mas uma outra representação, feita a partir de outra
posição enunciativa na hierarquia das relações de poder (SILVA, 1999,
p.103).
Neste sentido, Gislene dos Santos (2004), ao analisar a condição da
mulher negra brasileira, sustenta que a viga mestra do racismo no Brasil é a
representação do negro por intermédio de uma figura que oscila entre “o
exótico-sensual que nos atrai e dá prazer” e “o exótico-violento que nos repulsa
e medo”. Um fato que, segundo a autora, “cria e criou condições de
sobrevivência psíquica extremamente difíceis para os negros” (SANTOS, 2004,
p.30-31).
47
Gomes (2005, p.43), por sua vez, afirma que “construir uma identidade
negra positiva em uma sociedade que, historicamente, ensina aos negros,
desde muito cedo, que para ser aceito é preciso negar-se a si mesmo é um
desafio enfrentado pelos negros e pelas negras brasileiros(as)”. E questiona:
“Será que, na escola, estamos atentos a essa questão? Será que incorporamos
essa realidade de maneira séria e responsável, quando discutimos, nos
processos de formação de professores(as), sobre a importância da diversidade
cultural?”
Lembrando que um dos vieses deste trabalho consiste em examinar o
espaço ocupado pela identidade étnico-racial “mulher negra brasileira” na
identidade pessoal de jovens mulheres negras, volto às reflexões de Hall sobre
a identidade cultural, salientando que o autor defende as múltiplas
possibilidades identitárias, mas também se refere às assimetrias do poder:
[...] a globalização é muito desigualmente distribuída ao redor do globo,
entre regiões e entre estratos da população dentro das regiões (grifo
do autor). Isto é o que Doreen Massey chama de geometria do poder”
da globalização. [...] A proliferação das escolhas de identidade é mais
ampla no “centro” do sistema global que nas suas periferias. Os
padrões de troca cultural desigual, familiar desde as primeiras fases da
globalização, continuam a existir na modernidade tardia (HALL, 1999,
p.79).
2.1.4. Gênero, feminismo negro
Louro (2001) e Moreno (1999) produziram obras analisando o impacto
do sexismo na educação e na escola e propondo formas de combatê-lo. Louro
(2001, p.84), ao denunciar que práticas sexistas continuam naturalizadas e
defender a importância de se observar a construção das diferenças, ratifica
“uma das proposições fundamentais dos Estudos Feministas”, lembrando que
“esse é um campo político”.
Moreno (1999, p.67-68), entendendo que as normas de conduta são
adquiridas freqüentemente por vias subliminares e em etapas de nossa infância
em que não temos desenvolvido ainda nenhum mecanismo de crítica que
permita colocá-las sob suspeita”, sugere que estas, “uma vez instaladas,
tornam-se de difícil modificação, precisamente porque ignoramos sua
existência e porque esquecemos completamente a forma pela qual as
adquirimos”.
48
Louro, por sua vez, defende uma atenção redobrada para flagrar
qualquer indício de sexismo, racismo e ou etnocentrismo, sugerindo avanços
nos questionamentos em tornos destes campos. A autora defende
“problematização mais ampla (e também mais complexa), uma
problematização que te de lidar, necessariamente, com as múltiplas e
complicadas combinações de gênero, sexualidade, classe, raça e etnia”.
(LOURO, 2001, p.64-65)
Ferreira (2003), ao fazer revisão bibliográfica sobre educação e relações
de gênero, identifica as duas primeiras fases do movimento feminista no
mundo: a primeira, concentrada nas lutas pelo direito ao voto para as mulheres,
que se intensificaram no final do século XIX e obtiveram sucesso somente nas
primeiras décadas do século XX; a segunda, relacionada aos novos
movimentos sociais que surgiram na década de 60 do século XX, em
decorrência das lutas pela ampliação dos direitos civis.
Segundo a autora, os estudos sobre gênero e educação passaram a
adquirir relevância no meio acadêmico brasileiro somente a partir dos anos 90
do século XX, tendo peso significativo para a substituição gradativa do título
“estudo sobre mulheres” por “estudos sobre as relações de gênero” a
publicação, na revista Educação & Realidade, de artigo da historiadora Joan
Scott sobre o tema. Neste artigo, publicado originalmente em inglês em 1986,
Scott explicita que
[...] o termo “gênero” parece ter feito sua aparição inicial entre as
feministas americanas, que queriam enfatizar o caráter
fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo. A palavra
indicava uma rejeição do determinismo biológico implícito no uso de
termos com “sexo” ou diferença sexual”... Aquelas que estavam
preocupadas pelo fato de que a produção de estudos sobre mulheres
se centrava nas mulheres de maneira demasiado estreita e separada
utilizaram o termo “gênero” para introduzir uma noção relacional em
nosso vocabulário analítico. Segundo esta visão, as mulheres e os
homens eram definidos em termos recíprocos e não se poderia
compreender qualquer um dos sexos por meio de um estudo
inteiramente separado (SCOTT, 1995, p.72).
Scott elaborou uma definição para gênero que conecta duas
proposições: “o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais
baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e o gênero é uma forma
primária de dar significado às relações de poder” (SCOTT, 1995, p.86). Sendo
49
que, para a autora, “o gênero é um campo primário no interior do qual, ou por
meio do qual, o poder é articulado”.
Em artigo publicado na mesma década no Brasil, a feminista Heleieth
Saffioti questiona tal elaboração de Scott e defende que
[...] a raça/etnia e a classe social são também filtros de percepção e
apercepção, servindo, por via de conseqüência, de parâmetros para a
organização das relações de poder. Afirmar que o gênero vem em
primeiro lugar significa atribuir-lhe primazia sobre os demais eixos de
estruturação social [...] A conjuntura do momento determinará qual dos
três eixos deterá a preeminência nos sujeitos em interação (SAFFIOTI,
1994, p.280).
Saffioti sintetiza o seguinte:
[...] o sujeito constituído em gênero o é também em classe social e em
raça/etnia. Assim, em vez de ser unificado, é múltiplo, sendo mais
contraditório que dividido. Isto posto o gênero caracteriza-se, para
Laurentis, ao mesmo tempo, como representação e como auto-
representação. [...] A desconstrução do gênero interfere em sua
construção, o que significa a possibilidade de desestabilização de
qualquer representação (SAFFIOTI, 1994, p.273).
A meu ver, tal pensamento de Saffioti parece estar sintonizado com a
terceira fase do feminismo também conhecida como a terceira onda
(LENGERMANN; NIEBRUGGE-BRANTLEY, 2000, p.391). Esta fase nasceu
dentro do movimento de mulheres durante os anos 80 do século XX. Tal
feminismo analisa criticamente a tendência das feministas das décadas de 60 e
70 de usarem um conceito generalizado de mulher. As feministas da terceira
onda centram-se nas implicações práticas e teóricas das diferenças entre as
mulheres relativas à distribuição desigual de bens e serviços advinda da
hierarquia do sistema mundial, a raça, a etnia, a classe e a orientação sexual.
Destacam-se neste segmento de feminismo, escritoras e teóricas feministas
afro-americanas, dentre elas, Alice Walker e bell hooks.
Los escritos de las mujeres de color norteamericanas que contribuyen
al desarrollo del feminismo de la tercera ola se distinguen todos ellos
por que su objetivo no es atacar la ideología sexual y el estatus
desigual de las mujeres, sino todos los sistemas de dominación
sexista, racista, clasista, heterosexista e imperialista y la falsa
consciencia particular que ha llevado a las mujeres heterosexuales
blancas de clase media a usar el término mujer como una categoría
monolítica en su oposición a la dominación masculina, al tiempo que a
ignorar sus propios actos de dominación de las mujeres que no son de
su clase, raza y preferencia sexual (LENGERMANN; NIEBRUGGE-
BRANTLEY, 2000, p.391-392).
50
A seguinte citação de Valerie Amos e Pratibha Parmar, duas feministas
negras contemporâneas é bastante reveladora:
As feministas brancas caíram na armadilha de avaliar a experiência
das mulheres negras em oposição à sua própria experiência,
rotulando-a, de algum modo, como de carência, e então procuraram
formas pelas quais fosse possível subordinar a experiência das
mulheres negras à sua própria. [...] Ao rejeitar tais análises, nós
queremos situar a família negra nas experiências históricas do povo
negro o nas formas românticas idealizadas, populares entre
alguns antropólogos, e não meramente com um instrumento de
análise. questões sérias a respeito de quem escreveu esta história
e de que forma a escreveu, questões que têm de ser tratadas antes
que nós, como pessoas negras, usemos essa história com um
elemento adicional de nossa análise. As mulheres negras não podem
simplesmente jogar fora suas experiências de vida em determinados
tipos de organização doméstica: elas querem usar essa experiência
para transformar as relações familiares. [...] Feministas brancas,
tenham cuidado! Suas suposições inquestionáveis e racistas sobre a
família negra, sua abordagem acrítica e desinformada em relação à
“cultura negra” têm raízes profundas e, de fato, influenciam a prática
estatal (AMOS; PARMAR apud WEEKS, 2001, p.60-61).
Já a feminista britânica Avtar Brah faz a seguinte análise:
O feminismo negro escancarou discursos que afirmavam a primazia,
digamos, da classe ou do gênero sobre os demais eixos de
diferenciação, e interrogava as construções de tais significantes
privilegiados enquanto núcleos autônomos unificados. A questão é que
o feminismo negro não só representava um sério desafio aos racismos
centrados na cor, mas sua significação ultrapassa esse desafio. O
sujeito político do feminismo negro descentra o sujeito unitário e
masculinista do discurso eurocêntrico, e também a versão masculinista
do "negro" como cor política, ao mesmo em que perturba seriamente
qualquer noção de "mulher" como categoria unitária. Isso quer dizer
que, embora constituído em torno da problemática da "raça", o
feminismo negro desafia performativamente os limites de sua
constituição (BRAH, 2006, p.357-358).
No Brasil, em termos teóricos, as intelectuais Lélia Gonzáles e Sueli
Carneiro salientam as seguintes especificidades das mulheres negras:
A trajetória das mulheres negras brasileiras espelha toda uma história
feita de resistência e de lutas, em que essa mulher tem sido
protagonista [...] (GONZÁLES apud BAIRROS, 2000, p.57).
As mulheres negras advêm de uma experiência histórica diferenciada,
e o discurso clássico sobre a opressão das mulheres não conta da
diferença qualitativa da opressão sofrida pelas mulheres negras e o
efeito que ela teve e ainda tem na identidade das mulheres negras. A
ausência desta compreensão tem determinado que no geral as
conquistas dos movimentos de mulheres tendem a beneficiar as
mulheres brancas como conseqüência da discriminação racial que
pesa sobre as negras. De maneira semelhante, as poucas conquistas
do movimento negro tendem a privilegiar o homem negro como
conseqüência da discriminação sexual que pesa sobre as mulheres
negras (CARNEIRO, 1994, p.192).
51
Ao questionar: “afinal, que cara têm as mulheres deste país? Quando
falamos do mito da fragilidade feminina que justificou historicamente a proteção
paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos
falando?”, Carneiro se encarrega de responder:
Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres,
provavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas
este mito, porque nunca foram tratadas como frágeis. Fazemos parte
de um contingente de mulheres que trabalharam durante séculos como
escravas nas lavouras ou nas ruas como vendedoras, quituteiras,
prostitutas etc.; mulheres que não entenderam nada quando as
feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e
trabalhar!
Fazemos parte de um contingente de mulheres com identidade de
objeto. Ontem a serviço de frágeis sinhazinhas e de senhores de
engenho tarados. Hoje empregadas domésticas de mulheres liberadas
e dondocas, ou mulatas, tipo exportação.
Quando falamos em romper com o mito da rainha do lar, da musa
idolatrada dos poetas, de que mulheres estamos falando?
As mulheres negras fazem parte de um contingente de mulheres que
não são rainhas de nada, que são retratadas com as antimusas da
sociedade brasileira, porque o modelo estético de mulher é a mulher
branca (CARNEIRO, 1994, p.190).
Por fim, falemos um pouco do movimento social de mulheres negras no
Brasil. Em revisão neste sentido, Ribeiro
15
(1995, p.448) informa que “a
presença mais organizada das mulheres negras no movimento feminista em
nível nacional e continental” foi observada a partir de 1985, destacando a
importância do estudo Mulher Negra, produzido neste ano pelas intelectuais
Sueli Carneiro e Thereza Santos
16
. Segundo Ribeiro, “por quase uma década
este estudo constituiu-se numa importante referência sobre a questão da
mulher negra, seja para os movimentos, seja para a academia”.
O estudo compõe diagnóstico sobre a situação da mulher brasileira
elaborado pelo Conselho Estadual da Condição Feminina (SP), tendo em vista
os preparativos de participação na III Conferência Mundial das Mulheres, que
aconteceu, em 1985, em Nairobi. Ribeiro informa ainda que, neste mesmo ano,
aconteceu o III Encontro Feminista Latino-americano e do Caribe, em
Bertioga/Brasil com a participação de 850 mulheres, das quais 116 negras e
15
Em março de 2003, Matilde Ribeiro tornou-se a primeira titular da primeira secretaria
nacional (com status de ministério) criada pelo governo federal para a abordagem das
questões étnico-raciais no Brasil, a Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial
Seppir.
16
Ver CARNEIRO; SANTOS (1985).
52
mestiças, mas que foi somente após o IX Encontro Nacional Feminista (ENF),
ocorrido em 1987, em Garanhus (PE), “mesclado por fortes pressões e críticas
das mulheres negras em relação à ausência da questão racial na pauta” que
essas “decidiram pela realização do Encontro Nacional de Mulheres Negras”
(p.449). Este Encontro aconteceu em 1988, em Valença (RJ) e contou com a
participação de 450 mulheres negras vindas de 17 estados do país e
representando “diferentes setores e experiências organizativas” (p.450).
Fruto dos encontros nacionais, em 1993, em Atibaia (SP), aconteceu o I
Seminário Nacional das Mulheres Negras que “propiciou uma definição
unificada quanto à concepção do Movimento de Mulheres Negras” (RIBEIRO,
1995, p.452). A aprovação da proposta de criação de uma Articulação Nacional
de Mulheres Negras aconteceu no II Seminário Nacional, realizado em 1994.
Lemos (2000, p.62-63), também em resgate da evolução para a
organização do chamado feminismo negro brasileiro, considera ainda
relevantes outras ações de mulheres negras brasileiras no decorrer da história.
A autora destaca, neste sentido, a entrega dos filhos em segredo (Roda)
simulando abandono e sugerindo amores ilícitos, situação que encaminhava a
criança para asilos de menores abandonados, mas a livrava da escravidão; a
criação de Irmandades Religiosas ligadas à Igreja Católica, muitas delas
responsáveis pela compra da alforria de trabalhadoras(es) negras(os)
escravizadas(os); a organização de reuniões com negras(os) libertas(os) no
intuito de valorização de aspectos da cultura negra; o 1
o
Congresso Nacional
da Mulher Negra que aconteceu em 1950.
Nos primeiros anos do século XXI, o ativismo do movimento social de
mulheres negras brasileiras e a atuação de feministas intelectuais negras estão
imbricados, sendo muitos os casos em que as ações de um refletem quase que
obrigatoriamente no outro campo e vice-versa. Exemplo disso é o desempenho
das entidades que compõem a Articulação de Mulheres Negras
17
, muitas delas
criadas a partir da iniciativa de feministas e/ou por elas apoiadas.
17
A Articulação de Mulheres Negras, criada em 1995, reúne dezenas de entidades do
movimento de mulheres negras espalhadas por todo o país, bem como ativistas dos
movimentos negros e intelectuais defensoras da causa negra.
53
PARTE 3
ESPELHO, ESPELHO MEU, EU SOU BELA?
Apenas um Bloco de Sujo
O pessoal lá no morro resolveu
Formar um Bloco de Sujo pra sambar
Porque a escola de samba enriqueceu
E a gente nossa já não tem lugar
Tem um cidadão que apareceu outro dia
E já lhe foi entregue a direção de harmonia
A loura manequim de jeito diferente
Puxará a comissão de frente
Tião nosso primeiro ritmista
Nunca recebeu uma homenagem
E Conceição, aquela negra passista,
Foi cortada por não ter imagem
E o pessoal
Por estas razões
Tomou as decisões
Um Bloco de Sujo sem promoções
Leci Brandão
18
18
Leci Brandão foi a primeira mulher a integrar a ala de compositores da Estação Primeira de
Mangueira, escola de samba do Rio de Janeiro. A música Bloco de Sujo, composta em 1977, é
um protesto contra a exclusão sofrida pela comunidade de sambistas negros, na medida em
que o carnaval carioca foi transformando-se em super-espetáculo midiático. Os blocos de
sujos, cujas características eram as fantasias sem forma definida, informais ou satíricas,
grotescas e esfarrapadas, bem como um desfile anárquico que incluía certa permissividade
para as brincadeiras, eram o devir carnavalesco negro manifestado no início do século XX
como resistência ao estilo carnavalesco europeu, dos corsos e dos desfiles das grandes
sociedades, que a elite branca estava introduzindo no país e do qual negras e negros não
podiam participar.
Para saber mais sobre as primeiras manifestações carnavalescas da população negra
brasileira, ver LOPES (1981) e MOURA (1995).
54
3.1. TRAÇANDO A TRILHA
A partir da segunda metade da década de 90 do culo XX cresceram
os estudos no Brasil sobre a temática mulher negra. No entanto, ainda são
poucos os trabalhos publicados na área da Educação que atentem diretamente
a este tema. Tal constatação pode ser ratificada, por exemplo, por intermédio
da listagem dos trabalhos e pôsteres apresentados nas oito reuniões anuais da
Anped, cujos relatórios constam na página eletrônica da entidade
19
.
Para uma revisão neste sentido, adotei como critério a especificação da
temática mulher(es) negra(s) no título do trabalho ou pôster apresentado. Iniciei
a busca no GT 21 (Relações Raciais/Étnicas e Educação), criado em 2002, na
25ª Reunião Anual. Desta forma, cheguei a somente dois títulos em rígida
concordância com o critério pré-estabelecido: um pôster sobre trajetórias de
mulheres negras, em 2004, na 27ª Reunião, e um pôster sobre mulheres
negras em ascensão, em 2006, na 29ª. Flexibilizei o critério e incluí também
nos achados um trabalho sobre professoras negras, apresentado em 2002.
Nas demais reuniões, realizadas em 2003, 2005 e 2007, respectivamente 26ª,
28ª e 30ª, não detectei, no GT 21, títulos incluindo a temática mulher(es)
negra(s).
Tendo em vista os temas com os quais me proponho a trabalhar, estendi
a busca também para o GT 16 (Educação e Comunicação) e para o GT 23
(Gênero, Sexualidade e Educação), este criado em 2004, na 27ª Reunião
Anual. Nestes GTs não encontrei qualquer referência à temática mulher(es)
negra(s) nos títulos apresentados na página eletrônica. Conferi, também, todos
os trabalhos apresentados nas reuniões de 2000 e 2001, respectivamente 23ª
e 24ª, que aconteceram antes das criações dos GTs 21 e 23, e também nesses
não encontrei títulos com referência a mulher(es) negra(s).
Tais dados apontam também que uma escassez de abordagens dos
cruzamentos temáticos mulher negra e discurso estético e mulher negra e
mídia. Escassez essa que, obviamente, tende a se repetir em relação ao
cruzamento temático mulher negra, discurso estético e mídia.
19
Disponível em www.anped.org.br/inicio.htm.
55
Neste sentido, saliento a importância de estudos sobre mulheres negras
no Rio Grande do Sul, em especial os feitos por Jacira Silva (2000) e Ledeci
Coutinho (2002). Destaco ainda a investigação feita Daisy Barcellos (1996),
ainda que esta autora tenha estudado famílias negras e ascensão social em
Porto Alegre, sem o privilegiar o recorte de gênero. Tanto esta investigação
quanto as duas primeiras ajudaram-me na trilha traçada em busca da
focalização desta pesquisa. Saliento também o estudo feito por Beatriz Loner
(1999) sobre organizações fundadas em Pelotas por representantes da
população negra. Tal artigo foi fundamental para a construção de conjectura
que tem peso ímpar na direção analítica que optei por assumir em termos
contextuais.
Considero que a pesquisa realizada possa ter um caráter exploratório,
uma vez que não pude detectar trabalhos que fizessem a interseção entre os
temas propostos – jovens mulheres negras da Metade Sul do Sul do Rio
Grande do Sul, discurso estético, mídia e identidade. Um a priori que, a meu
ver, amplia a complexidade da abordagem, ampliando ao mesmo tempo a
possibilidade de experimentação na articulação teórico-metodológica.
Neste sentido, compus o traçado metodológico qualitativo deste
trabalho. Busquei, por intermédio de pesquisa bibliográfica, fatos de caráter
nacional que envolveram jovens mulheres negras e estão relacionados com o
discurso estético hegemônico e com a mídia; e coletei depoimentos de jovens
mulheres negras estudantes, residentes na cidade de Pelotas (RS), tendo em
vista examinar o quanto a naturalização de um processo construído
socialmente (discurso estético hegemônico) e repassado cotidianamente pela
mídia interfere na formação da identidade destas jovens e de que forma elas
passam a lidar com esta identidade.
A investigação qualitativa em educação tem sido abordada em vários
estudos, dentre eles, os feitos por Bogdan e Biklen (1994) e Ludke e André
(1986). Bogdan e Biklen (1994, p.48-49) destacam que “os investigadores
qualitativos interessam-se mais pelo processo do que simplesmente pelos
resultados ou produtos”. Disso decorrendo os seguintes questionamentos:
“Como é que as pessoas negociam significados? Como é que se começou a
utilizar certos termos e rótulos? Como é que determinadas noções começaram
a fazer parte daquilo que consideramos ser o “senso comum”?”
56
A pesquisa bibliográfica, segundo Gil (2002, p.44), desenvolve-se a
partir de material elaborado, podendo incluir prioritariamente livros,
publicações periódicas (jornais e revistas) e impressos diversos.
Para a coleta de depoimentos optei inicialmente pela utilização do
método grupo de discussão. Tal método passou a ser utilizado em pesquisas,
especialmente aquelas pesquisas sobre juventude, a partir da década de 80 do
século XX. Os grupos de discussão buscam orientações coletivas e não
somente opiniões individuais. O referencial utilizado para o projeto de pesquisa
baseou-se em argumentação de Weller (2006, p.246), segundo a qual ”é
principalmente no grupo que o jovem trabalhará, entre outras, as experiências
vividas no meio social, as experiências de desintegração e exclusão social,
assim como as inseguranças geradas a partir dessas situações”.
Estabeleci primeiramente que os sujeitos de pesquisa seriam jovens
negras, estudantes em escola blica, oriundas das classes trabalhadoras e
moradoras em bairros periféricos. Considerei ainda como preferencial a faixa
etária entre quinze e dezessete anos.
Ao escolher representantes da classe trabalhadora, moradoras em
bairro periférico, busquei um perfil que correspondesse ao encontrado para a
maioria da população negra brasileira, conforme as pesquisas citadas
anteriormente neste trabalho. A faixa etária proposta, baseou-se no
entendimento de que o início da juventude, ou seja, a adolescência, é um
período significativo de formação da personalidade, no qual a jovem buscaria a
auto-afirmação de valores, às vezes, independentemente daqueles que lhes
foram repassados pela família, o que poderia significar uma idade emblemática
no processo identitário.
Por razões práticas, decidi que as jovens deveriam estudar em uma
única escola, não necessariamente na mesma sala de aula, e que a coleta de
dados seria feita nas dependências da própria escola. Opções que
determinaram o meu contato prévio com a direção e as/os professoras/es da
escola para solicitar autorização para a realização da pesquisa.
Estipulei ainda que as jovens fossem selecionadas em escolas
localizadas no Bairro Areal, uma região relativamente próxima às margens do
57
Arroio Pelotas, nas quais se concentravam as charqueadas
20
. Fator que pode
ser um dos motivos do elevado contingente de população negra residente no
bairro e imediações.
Mais dados sobre o acima descrito serão relatados nas seções 3.3 e 3.4.
Antes disso, apresentarei meu primeiro capítulo analítico resultante
prioritariamente da pesquisa bibliográfica.
20
Ver Introdução III (Primeira contextualização do lugar do estudo)
58
3.2. MULHERES NEGRAS BRASILEIRAS: BREVES NARRATIVAS DE
COMEÇOS
Em abordagem sobre as relações raciais e implicações estéticas,
Inocêncio (1999, p.30-31), explicita que a palavra estética “deriva de ‘sentir’,
mais especificamente das formas de sentir”, destacando que, no Ocidente, o
dispositivo estético proporcionou uma “relação maquiavélica entre a cultura
hegemônica e culturas emergentes”, tendo em vista o componente racial.
Relação que, na avaliação do autor, “tende a anular os modos de sentir dos
“outros”, para que o “bem” prevaleça”, ou seja, “sentir o fardo da cultura
eurobranca implica em não sentir a ausência das culturas não-ocidentais”.
No entendimento de Inocêncio (1999, p.29), “a rigor, existe no Brasil um
padrão estético que nega o perfil multirracial do país”. O que o leva a crer que
“mais do que isso, a divulgação desse padrão condiciona a sociedade a
pensar, a se comportar e almejar vitórias no campo simbólico e até material
que esbarram nesse limite”.
O autor lembra ainda a perspectiva histórica da construção deste
padrão, apontando que “o etnocentrismo trabalhado no imaginário europeu fora
alimentado pela emergência do colonialismo, enquanto sistema político de
proporções mundiais” (p.24).
Logo, o olhar europeu em relação aos africanos e aos ameríndios não
foi um olhar casual, mas causal, que dentro da estrutura dicotômica do
pensamento ocidental passou a exercer um papel preponderante.
Noções de bem e mal, bonito e feio, nobre e vulgar são definidoras do
status cultural (INOCÊNCIO, 1999, p.24).
59
Sobre o reflexo disso no Brasil contemporâneo, Inocêncio argumenta
que “é fundamentalmente a aparência que conta como passaporte para se ter
acesso a algumas conquistas materiais e simbólicas” (p.29).
Santos (2004, p.60), por sua vez, aborda aspectos do sofrimento
decorrente da desvalorização hegemônica do componente estético em
mulheres negras, ao refletir sobre a menina negra que, de acordo com suas
análises, “vive constantes situações em que sua beleza é negada e em que é
desvalorizada e em que é desumanizada”. Segundo esta autora, “essa
violência que marca o período de formação da personalidade feminina, marca
também todo o processo de identificação desse ser como mulher”.
De posse destas reflexões, apresento nesta parte do estudo fatos que
envolveram mulheres negras brasileiras, jovens na maioria, e estão
relacionados com o discurso estético hegemônico e a mídia. As especificidades
destes fatos impulsionaram-me a narrá-los por acreditar que possam dar pistas
do lugar reservado pelo poder hegemônico às mulheres negras em geral.
Neste sentido, focalizo os aspectos temáticos: personagem
emblemático, no qual abordo a presença de Chica da Silva no imaginário
nacional; primeiras atrizes, em que analiso peculiaridades nas trajetórias das
atrizes negras Ruth de Souza e Léa Garcia; e miss, modelo, no qual apresento
trajetórias de misses e modelos negras.
Tais informações foram obtidas por intermédio de livros, jornais e
revistas, como também por alguns depoimentos coletados por mim em
entrevistas abertas.
Também neste item problematizo o lugar que é reservado para mulheres
negras em produções da grande mídia brasileira, por intermédio da noção
Síndrome de Zilda, que elaborei com a pretensão de que esta sirva de
ferramenta analítica.
Assim, as narrativas apresentadas neste capítulo são uma tentativa de
problematizar as implicações discursivas na perspectiva estética para um corpo
racializado/etnicizado e generificado.
Cogito que, a partir da interferência no processo de subjetivação
identitária de mulheres negras, o discurso estético midiático seja um dos mais
poderosos mecanismos hegemônicos de marcação/manutenção da diferença,
60
a partir da subdivisão binária no interior da subalternidade resultante do
cruzamento das questões de gênero e raça.
3.2.1. Personagens emblemáticas: Chica da Silva e as Xicas
Rita da Silva, a fã de Chica da Silva
- Quer dizer que o senhor conde não se agrada da minha cor, queria que eu fosse
branca que nem essa barata descascada aí. Muito bem senhor conde, o senhor pode
ver tenho feito de tudo para agradar o senhor:
Sirvam-se, sirvam-se senhores, não, não esperem por mim que estou de dieta... Não,
não, senhor conde, larga essa galinha para lá, isso é coisa para mim e João Fernandes
que andamos doentes das tripas, é doença das tripas. Sirva-se do cabrito senhor
conde, é uma especialidade da região. Foi feito com muito gosto. Além do mais, a
galinha é de molho pardo senhor conde, Pardo!!! (quando o texto termina, a música
vem aumentando de intensidade e Rita da Silva samba cada vez mais freneticamente,
até o clímax, onde ocorre a pausa completa de movimento e som por um instante. Em
seguida, os músicos retomam o ritmo intenso enquanto Rita da Silva permanece imóvel
e feliz por realizar seu sonho de ser um dia a Chica da Silva).
Cristiane Sobral
21
No início da década de 80 do século XX, Lélia Gonzáles (1983), uma
das mais bem conceituadas intelectuais do movimento negro brasileiro,
denunciava que as mulheres negras no Brasil eram vistas como
mulatas/mucamas, empregadas domésticas e mães pretas. Lélia Gonzáles
estava falando do imaginário nacional, um dos pontos nevrálgicos do jogo de
poder que se estabelece nas relações étnico-raciais no Brasil e um terreno que
pode ser classificado como bastante perverso para as mulheres negras.
Sodré (1999, p.245), em uma análise sobre O discurso da grande mídia
brasileira salienta que “o imaginário é categoria importante para se entender
muitas das representações negativas do cidadão negro” e avalia que “o
21
Cristiane Sobral foi a primeira mulher negra graduada pelo curso de Bacharelado em Artes
Cênicas com Habilitação em Interpretação Teatral oferecido pelo Departamento de Artes
Cênicas do Instituto de Artes da Universidade de Brasília (UnB). O trecho acima é da peça
autobiográfica Boneca no Lixo, escrita e apresentada por Cristiane, quando ela estava com 23
anos, em 1998, como Projeto de Diplomação em Interpretação Teatral. O texto do espetáculo
propõe soluções para a questão da pequena participação dos artistas negros no teatro, na TV
e no cinema brasileiros, com exceção dos papéis ligados aos estereótipos da escravidão.
Cristiane tem vários contos publicados nos Cadernos Negros, coleção criada em 1978, pelo
escritor, teatrólogo e poeta Luiz Silva, cujo nome artístico é Cuti. Ainda em circulação, os
Cadernos Negros reúnem expoentes da produção literária negra brasileira na
contemporaneidade. Cristiane Sobral integra também uma das poucas companhias teatrais
brasileiras compostas quase que exclusivamente por atrizes negras e atores negros e
dedicadas à temática negra, a Companhia Cabeça Feita, de Brasília. Destacam-se também
nesta categoria a Companhia dos Comuns, do Rio de Janeiro, o Bando de Teatro Olodum, de
Salvador e o Caixa Preta, de Porto Alegre.
61
imaginário racista veiculado pelas elites tradicionais pode ser hoje reproduzido
logotecnicamente, de modo mais sutil e eficaz, pelo discurso mediático-
popularesco”.
Santos (2004, p.56), ao analisar as conseqüências do racismo para a
construção da identidade feminina negra a partir dos contos de fadas,
considera que as telenovelas “muitas vezes são reedições de clássicos contos
de fadas”, explicitando, a partir dos resultados obtidos por Araújo (2000) no
estudo sobre o estereótipo do negro na telenovela brasileira, que “as novelas
brasileiras (como os filmes) são uma forma de expressão de grande valor
simbólico (expressão de conteúdos inconscientes)”.
Nos anos 2005 e 2006, o cruzamento de episódio ímpar na
teledramaturgia nacional com o resultado de uma pesquisa sobre personagens
do romance brasileiro contemporâneo forneceu pistas significativas de parte do
conteúdo do imaginário nacional.
O episódio referido consistiu na regravação de duas novelas situadas no
período escravocrata: Escrava Isaura (Bernardo Guimarães/Rede Record) e
Sinhá Moça (Rede Globo) - com agravante de que, provavelmente a novela
Escrava Isaura foi a primeira na história da teledramaturgia nacional a ser
reprisada automaticamente após o término da primeira exibição
22
.
a pesquisa A personagem do romance brasileiro contemporâneo foi
realizada pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da
UnB e coordenada pela professora Regina Dalcastagnè (2005).
Se as duas novelas citadas acima mantêm o que Araújo (2000, p.78)
considera “estereótipos criados pelos romances folhetinescos no período
escravocrata”, o resultado da pesquisa da UnB parece indicar que, no
imaginário dos escritores brasileiros contemporâneos, dos editores de livros ou
de ambos, surpreendente, após 118 anos do término do regime escravocrata,
ser escrava é a segunda opção mais viável para uma mulher negra no Brasil,
depois da opção número um, que é ser empregada doméstica.
22
Com a justificativa de que foi uma solicitação de milhares de telespectadores, a Rede
Record voltou a apresentar - pela terceira vez - a referida novela, a partir do dia 29 de janeiro
de 2007, às 14h30. Nesta novela, que alcançou altos índices no Ibope em suas exibições no
Brasil e foi primeiro lugar na audiência em Portugal, Venezuela, República Dominicana,
Guatemala, Costa Rica, Peru, Paraguai, Uruguai e Chile, os principais personagens são
interpretados por atores brancos.
62
Ao mapearem os personagens de todos os romances publicados pelas
editoras brasileiras Rocco, Record e Companhia das Letras, entre os anos de
1990 e 2004, num total de 258 obras e 1245 personagens, pesquisadoras(es)
da UnB detectaram que, nas obras produzidas por um total de 72,7% de
escritores do sexo masculino, 471 personagens eram do sexo feminino, ou
seja, 37,8% e tinham as seguintes profissões, a partir do recorte étnico racial:
Mulheres brancas: Dona de casa 21,6%; Artista 8,7%; Estudante 6,4%;
Não mencionada 6,0%; Professora 5,6%; Desocupada 5,3%.
Mulheres negras: Doméstica 18,2%; Escrava 15,9%; Profissionais do
sexo 13,6%; Dona-de-casa 11,4%; Bandida 4,5%; Mendiga 4,5%.
No meu entender, a constatação das(os) pesquisadoras(es) da UnB
coincide com o pensamento de lia Gonzáles, manifestado 23 anos antes da
pesquisa, e pode ser interpretada como um xeque-mate à opinião de Araújo
sobre “estereótipos criados pelos romances folhetinescos no período
escravocrata”. Os estereótipos, ao que tudo indica, mantiveram-se intactos à
revelia do tempo.
Buscando confirmar (ou não) a conjectura, resolvi checar uma das mais
antigas revistas voltadas para o público feminino brasileiro e ainda em
circulação, a revista Claudia
23
, publicada desde 1961 pela Editora Abril. Claudia
se diferencia de outras publicações voltadas para o mesmo público, a partir de
pretenso viés feminista sustentado pela editora desde os primeiros anos da
revista e ratificado pela iniciativa Prêmio Claudia, que homenageia mulheres
que tenham se destacado nas mais diversas atividades, em especial àquelas
de cunho social.
Neste sentido, analisei o material preparado pela revista para brindar as
emblemáticas comemorações dos 500 anos do “descobrimento” do Brasil: o
caderno especial Nossas Mulheres 500 anos Fazendo a História do Brasil,
publicado em 2000.
23
De acordo com o Instituto Verificador de Circulação (IVC), da Associação Nacional dos
Editores de Revistas (ANER), em 2003, a circulação mensal da revista Claudia era de 536 mil
exemplares, a segunda maior do país. (A primeira era a da Revista Veja, com 1 milhão e 142
exemplares mensais.) em setembro de 2006, de acordo com a Editora Abril, os números de
circulação da revista Claudia eram os seguintes: assinaturas - 263.660; venda avulsa -
113.620; exterior – 100; total - 377.280.
63
Quem seria aquela mulher negra na capa da revista cercada pela
modelo internacional Gisele Bündchen; pela cantora Elis Regina; pela estilista
Zuzu Angel; pela Miss Brasil 1954, Marta Rocha; pela esportista Maria Ester de
Bueno; pela amante de dom Pedro I, Marquesa dos Santos, sobre a qual recai
a suspeita de assassinato da imperatriz Leopoldina; pela soldado Maria
Quitéria; pela militante do Movimento Revolucionário 8 de Outubro, o MR8, Iara
Iavelberg; pela primeira prefeita eleita na América Latina, Alzira Soriano?
Imagem 2. Revista Claudia – Especial Nossas Mulheres
Claudia, Editora Abril, Número 463, Abril de 2000.
Encontrei a resposta na seção educação, na gina 21 da publicação.
Tratava-se de uma mulher jovem, nascida e moradora no estado da Bahia, que
não sabia ler na época em que a reportagem foi feita. Vejamos o texto:
Ela não lembra mais quantos empregos perdeu por não saber ler e
escrever. “Passo vergonha, não quero que todo mundo fique sabendo.
Mas também não para mentir”, explica. [...] Aos 28 anos, faz planos
de voltar a estudar quando a filha, Érica, 4 anos, entrar na escola.
Na capa da edição, a foto desta jovem é a única imagem representante
das mulheres negras brasileiras. Nas primeiras páginas da edição, a revista
apresenta a outra imagem de mulher negra: uma iconografia de uma “escrava
64
do século XIX”. os textos citam, além da pequena biografia da baiana da
capa, apenas outras quatro mulheres negras, todas representantes do Brasil
escravocrata: Adelina, a Charuteira, a Escrava Bernarda e a Escrava Justina,
as três na seção as rebeldes, e Chica da Silva, na seção história.
Francisca da Silva, conhecida como Chica da Silva
24
, parece ser um dos
principais ícones do imaginário nacional brasileiro, em se tratando do aspecto
representação de mulher negra, a partir da inspiração para a produção de
obras de ficção, muitas delas romances históricos recheados com doses
inoportunas de racismo e sexismo.
A partir da década de 50 do século XX, a personagem Chica da Silva
ganhou o papel de protagonista de peças de teatro, romances, filme e novela
de televisão, tornando-se responsável pela inclusão de atrizes negras num
mercado até estão fechado para elas. Repetindo os passos da personagem
histórica, as Xicas da ficção garantiram pioneirismos.
Em 1958, foi a vez da estréia da peça O Tesouro de Chica da Silva, de
autoria de Antônio Callado. A peça inclusa no livro A revolta da cachaça: teatro
negro
25
foi montada pela Escola de Teatro da Universidade da Bahia. A direção
foi feita por Gianni Ratto e a atriz Nevolanda Amorim interpretava a figura da
protagonista.
Em 1976, aconteceu o lançamento do filme Xica da Silva
26
, dirigido pelo
cineasta Cacá Diegues, garantindo para a atriz Zezé Motta o posto de primeira
mulher negra protagonista do cinema brasileiro, o que lhe rendeu prestígio,
inclusive, fora do país. Em 1996, 20 anos após o filme, foi a vez da novela Xica
da Silva, produzida pela Rede Manchete, garantir para a atriz Taís Araújo, na
época uma adolescente de dezessete anos, o posto de primeira atriz negra
protagonista de uma telenovela brasileira, bem como outros pioneirismos.
Taís Araújo foi a primeira atriz negra brasileira a ter uma boneca com o
seu próprio nome. A novidade mereceu a seguinte nota da revista Época.
24
A listagem de obras e estudos que abordam especificidades da população negra brasileira e
que citam, ainda que sucintamente, a personagem histórica Chica da Silva é longa. Dentre
muitas/os outras/os autoras/es destaco as/os seguintes: ARAÚJO (2000), COUTINHO (2002),
GOMES (2005), SANTOS (2004), SILVEIRA (2005), SODRÉ (1999).
25
Ver CALLADO (1983).
26
Notar que Diegues optou por grafar o apelido da personagem com a letra X, de acordo com
as regras de ortografia do século passado e diferentemente de outros trabalhos
contemporâneos, incluindo esta pesquisa, que optam pela grafia com Ch, ou seja, Chica.
Também na novela da Rede Manchete, o apelido aparece com X.
65
Uma cópia quase perfeita - Vocês se lembram da atriz Taís Araújo?
Continua a mesma. Mas seus cabelos estão lisinhos, lisinhos. Não
apenas a cabeleira verdadeira, como a da boneca batizada com seu
nome, lançada pela indústria Baby Brink. Na versão plástica, a bela
mulata também perdeu um pouco da melanina e ficou com a pele mais
clara do que a morenice de sua musa inspiradora. “Ficou um pouco
diferente, mas o pessoal da fábrica me explicou que boneca não
precisa ser uma réplica exata, precisa ter bochecha, ser menos
magra”, diz Taís, 19. A pele clarinha, segundo explicaram à atriz, é
resultado de uma dificuldade técnica industrial em chegar a sua cor
verdadeira. E os cabelos anelados, onde foram parar? “Estou mesmo
com o cabelo liso para meu personagem na próxima novela das 19
horas”, justifica Taís, escalada para ser a cabeleireira Edivânia, em
Miragem, substituta de Corpo Dourado. Lembrada por sua
interpretação em Xica da Silva, na TV Manchete, ela foi eleita por 63%
dos entrevistados em uma pesquisa, encomendada pela Baby Brink,
para descobrir que mulher negra, na opinião do público, mereceria
servir de modelo para a boneca (revista Época, Editora Globo, 27 de
julho de 1998).
Imagem 3. Taís Araújo
Viva! mais – para a mulher que quer vencer, Editora Abril,
Número 227, 06 de fevereiro de 2004.
O tom explicitamente jocoso da revista remete ao seguinte comentário
de Sodré (1999, p.256), em análise sobre o mercado, a mídia e a identidade
negra ou a “descoberta pelos publicitários de um filão novo de mercado”, que o
autor chama de a “lógica assimilacionista da sociedade hegemônica (os claros)
que artificializa a diferença negra: nariz afilado, cabelos normalizados, rostos
moldados por um padrão idealizado (egípcio, grego)”.
66
No entendimento do autor,
Constrói-se, assim, por identificação projetiva, uma identidade negra
com os materiais fantasísticos (trazidos do culto individualistas das
aparências) do homem branco. No espelho neoliberal (mercado e
mídia), o descendente de africano tem direito a uma espécie de
“semiurgia” identitária, que o transforma num branco diferente
fenotipicamente degradé (já que o paradigma é sempre o da pele
clara) (SODRÉ, 1999, p.256).
A boneca
27
Taís Araújo foi para as prateleiras das principais lojas de
brinquedos das maiores cidades do Brasil, em 1998. Até então, este segmento
de brinquedos era um feudo exclusivo das apresentadoras de programas
infantis da
televisão brasileira, a maioria loira
28
. A o primeiro semestre de
2007, nove anos depois, Taís Araújo ainda era a única atriz negra brasileira
que tinha tal façanha no currículo.
Quando personificou Xica da Silva, Taís Araújo era uma das poucas
jovens atrizes negras com destaque na televisão tanto que, em 1999, ela era
uma das poucas mulheres negras brasileiras a ter uma página eletrônica na
Internet. Neste mesmo ano, em Angola, ela foi condecorada pelo presidente
José Eduardo dos Santos, como embaixadora da Paz daquele país. A revista
Isto é informou o seguinte:
Taís Araújo, uma rainha em Angola - Na segunda 23, Taís Araújo,
20 anos, desembarcou pela primeira vez em Angola para receber do
presidente José Eduardo dos Santos uma missão especial: ser a
Embaixadora da Paz daquele país. A atriz é, dois anos, uma das
mais populares em Angola, desde que a novela Xica da Silva, na qual
estreou na tevê, em 1996, foi exibida. [...] Durante a visita, de sete
dias, Taís Araújo cumpriu uma agenda digna de chefe de estado (ISTO
É GENTE, 13 de setembro de 1999).
Em 2000, Taís Araújo foi eleita uma das 25 mulheres mais bonitas da
América Latina, conquistando o 10
o
lugar, segundo a revista People em
espanhol, que circula na Espanha, no México e em países de língua
espanhola.
Taís Araújo foi também a única mulher negra a integrar, por três anos
consecutivos, a lista “Os 50 mais bonitos da TV”, uma promoção da revista
27
Foram produzidas 100 mil unidades da boneca Taís Araújo.
28
No final de 1997, a também atriz negra, Cinthia Raquel, ganhou uma boneca com a sua cara,
representando a personagem Biba, uma das protagonistas da premiada série infantil Castelo
tim bum, produzida pela TV Cultura, de São Paulo. A diferença entre os dois brinquedos é
que a boneca Biba ostentava o nome da personagem representada pela atriz negra, enquanto
a boneca Taís Araújo tinha o mesmo nome da atriz negra.
67
Contigo!, que nos anos 2004, 2005 e 2006 disponibilizou no site da revista
enquête para a eleição das 25 mulheres e dos 25 homens mais bonitos da TV
brasileira. Taís Araújo ocupou, respectivamente, o 17
o
, o 23
o
e o 24
o
lugares.
Nos dois primeiros anos da promoção, ela foi a única mulher negra eleita pelos
internautas. Em 2006, a lista incluiu a também atriz negra Camila Pitanga, no
16
o
lugar. As listagens produzidas pela enquête nestes três anos da promoção
de Contigo! não incluíram homens negros.
Por fim, a partir de 26 de janeiro de 2004, Taís Araújo tornou-se a
primeira protagonista negra de uma novela produzida pela Rede Globo (A cor
do Pecado). Tal posto rendeu à atriz capas de revistas que exaltavam a sua
beleza e ensinavam o que ela faz para “domar os cachos”, ou seja, cuidar dos
cabelos.
Chica da Silva - Em 2003, a professora de História da Universidade
Federal de Diamantina, Junia Ferreira Furtado, lançou um livro
29
repleto de
documentação histórica sobre a trajetória de Chica da Silva. Antes disso, Junia
Furtado, em entrevista que realizei com ela, em 1999, fez o seguinte
comentário: “O século XVIII não tinha padrões de beleza. Os padrões de
beleza surgiram no culo XIX e explodiram no culo XX, quando tudo é
aparência. É claro que Chica era bonita, se não fosse não teria conquistado
João Fernandes”.
A professora informou ainda que Chica foi apenas uma das muitas
mulheres negras com terras e dinheiro nas Minas Gerais do século XVIII e que
a pesquisa que estava realizando desmistificava a imagem preconceituosa em
relação a esta personagem histórica. “Ela era uma senhora que viveu
maritalmente, em regime de concubinato, com o contratador João Fernandes e
com quem teve muitos filhos. Foi o Joaquim Felício dos Santos que criou o mito
Chica da Silva, 100 anos após a sua morte”, garantiu Junia Furtado, referindo-
se a obra de Joaquim Felício dos Santos, Memórias do Distrito Diamantino,
publicada pela primeira vez em 1868
30
. Observe-se a seguinte citação do
referido autor:
Foi célebre esta mulher, única pessoa ante quem se curvava o
orgulhoso contratador [João Fernandes de Oliveira]; sua vontade era
29
Ver FURTADO (2003).
30
Rio de Janeiro, Tipografia Americana, 1868.
68
cegamente obedecida, seus mais leves ou frívolos caprichos
prontamente satisfeitos. Dominadora no Tijuco, com a influência e
poder do amante, fazia alarde de um luxo e grandeza, que
deslumbravam as famílias mais ricas e importantes; quando, por
exemplo, ia às igrejas [...] o lugar mais distinto do templo era-lhe
reservado [...] Os grandes, os nobres, que vinham a Tijuco, os
enfatuados de sua fidalguia, não se dignavam de render-lhe
homenagem, curvavam-se a beijar a mão da amante de um vassalo do
Rei (SANTOS, 1978, p.169).
Passaram-se anos da morte de Chica da Silva, mas a sua fisionomia
continuou inspirando controvérsia. Quem e como seria, afinal, esta mulher que
aprisionou o coração de um riquíssimo homem branco em pleno século XVIII?
O que a faria tão afortunada? Que segredo ocultaria para merecer tamanha
“generosidade” do destino em contraposição às demais companheiras de
descendência africana mesmo nos séculos vindouros? Segundo Joaquim
Felício dos Santos, Chica da Silva
Tinha as feições grosseiras, alta, corpulenta, trazia a cabeça raspada e
coberta com uma cabeleira aneladas em cachos pendentes, como
então se usava; não possuía graças, não possuía beleza, não possuía
espírito, não tivera educação, enfim não possuía atrativo algum, que
pudesse justificar uma forte paixão (SANTOS, 1978, p.170). (grifo
meu)
Tal descrição feita pelo autor do século XIX mereceu a seguinte nota de
rodapé redigida por Nazaré Meneses
31
, provavelmente nos primeiros anos da
década de 20 do século XX:
Xica da Silva seria boçal, mas nunca odienta e asquerosa como a
descreve o Dr. Joaquim Felício dos Santos. Se assim não fosse não teria
inspirado ao Desembargador João Fernandes de Oliveira, moço,
nababo, nobre, galanteador, paixão tão ardente e duradoura...
(MENESES In SANTOS, 1978, p.170).
a opinião de Meneses, no entanto, foi questionada por José Teixeira
Neves em nota de rodapé redigida provavelmente no começo da década de 50
do século XX e publicada na seqüência da nota de Meneses, na 5
a
edição da
obra de Santos. O que atesta, a meu ver, que o tema é relevante:
A observação de Nazaré Meneses quanto à aparência de Xica da Silva
não procede. A concubina de João Fernandes falecera a 15 de
fevereiro de 1796, apenas trinta e dois anos antes do nascimento do
autor. Muitas pessoas daquele tempo ainda eram vivas ao serem
fixadas tais impressões, que, por tradição oral, alcançaram até nossos
31
Nazaré Meneses prefaciou a 2
a
edição do livro Memórias do Distrito Diamantino publicada
pela Livraria Castilho, no Rio de Janeiro, em 1924.
69
dias através de reminiscências de famílias veteranas da Diamantina
[...] (NEVES In SANTOS, 1978, p.170).
Fato curioso é que sendo rica, protetora de artistas, vaidosa e
inegavelmente poderosa, Chica não tenha se deixado retratar em telas que
revelariam a sua fisionomia para posteridade. Chica morreu em 1796, aos 70
anos, alguns dos seus filhos tornaram-se padres, freiras e desembargadores.
No meu entender, discutir Chica da Silva pelo prisma de sua beleza
atesta um dos pilares de sustentação do discurso para a construção do papel
que deverá ser desempenhado pelo Outro, tendo como alvo a subjetividade da
auto-estima. Neste sentido, no Brasil, após a instauração do império da mídia
nas últimas décadas do século XX, as mulheres negras brasileiras ainda
causam estranhamento quando enquadradas nos padrões clássicos da beleza
feminina, ou seja, o discurso estético hegemônico.
3.2.2. Primeiras atrizes negras: premiações e percalços
Existe um padrão estabelecido de beleza, de comportamento, dentro da sociedade
brasileira, do qual o negro não faz parte.
Léa Garcia
A primeira vez que atrizes negras e atores negros atuaram no palco do
Teatro Municipal do Rio de Janeiro foi na estréia do Teatro Experimental do
Negro, o TEN, no dia 08 de maio de 1945, com a peça O Imperador Jones, do
dramaturgo norte-americano Eugene O’Neil. Foi também a primeira vez que
este teatro recebeu negras e negros em sua platéia.
O TEN, fundado pelo ativista e intelectual negro, Abdias do Nascimento,
em 1944, foi a primeira iniciativa para mexer com os moldes da arte dramática
brasileira, que até então só abria espaço para a atuação de artistas brancos.
Nascimento descreve o TEN da seguinte forma:
Nós não constituíamos um grupo que simplesmente desejava
apresentar e representar algumas peças nos palcos brasileiros, até
então reservados exclusivamente para o desempenho dos artistas
brancos. As peças que se montavam nesses palcos refletiam com
absoluta intransigência a vida, os costumes, a estética, as idéias, e o
completo ambiente social e cultural da sociedade dominante branca -
como se mais da metade da população, de origem africana, não
existisse. Quando um ator ou atriz de origem africana tinha a
oportunidade de pisar um palco, era, invariavelmente, para representar
70
um papel exótico, grotesco ou subalterno: um dos muitos estereótipos
negros destituídos de humanidade, tais como a criadinha de fácil
abordagem sexual, o moleque careteiro levando cascudo, a Mãe Preta
chorosa ou o domesticado Pai João (NASCIMENTO, 1978, p.161-162).
O TEN foi responsável pelo ingresso nas artes cênicas, ainda na
adolescência, das atrizes Ruth de Souza e Léa Garcia. A primeira com
dezessete anos, a segunda com dezesseis.
A participação no elenco de O Imperador Jones fez de Ruth de Souza a
primeira atriz negra a atuar no palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
Ruth de Souza foi também a primeira atriz brasileira a ser indicada para um
prêmio internacional de cinema
32
. Foi no ano de 1954, na Mostra Internacional
de Cinema de Veneza, na Itália. A atriz, que foi indicada por sua atuação no
filme Sinhá Moça, produzido pela companhia cinematográfica Vera Cruz, não
ganhou o prêmio por apenas dois pontos, mas seu trabalho passou a ser
reconhecido internacionalmente por público e crítica.
Lembrando que Ruth de Souza foi também uma das primeiras atrizes
contratadas pela TV Record, Araújo (2000, p.89) salienta, no entanto, a
condição de estereótipo que lhe foi reservada, a despeito dos papéis
desempenhados por ela no cinema e no teatro: ”[...] em sua primeira
participação em telenovela, A deusa vencida, em 1965, na TV Excelsior, foi
designada para o papel de uma empregada subalterna, uma mucama
bisbilhoteira”.
Para Araújo (2000, p.90), os seguintes relatos de Ruth de Souza,
“confirmam a dificuldade de reconhecimentos do ator e da atriz negros na
televisão brasileira”: “[...] Os autores vêem o negro como serviçal [...]. Estou
completando este ano [em 1995] 50 anos de carreira artística, sinto que têm
certo respeito por mim, mas não é o que eu mereço”.
32
Dorothy Dandridge foi a primeira afro-americana a concorrer ao Oscar de melhor atriz, em
1954, por sua atuação no filme Carmen Jones. A atriz perdeu o prêmio para Grace Kelly.
Nascida em Ohio, em 1922, Dorothy teve uma vida marcada por profundas discriminações e
várias tragédias pessoais. Ela morreu em 1965 de overdose de antidepressivos.
Halle Berry foi a primeira afro-americana a ganhar o Oscar de melhor atriz, em 2002, ano em
que o prêmio completou 74 anos de existência. Halle Berry tinha 35 anos e foi consagrada pela
sua atuação no filme A Última Ceia. Coincidentemente, o maior desafio da carreira de Halle
Berry foi estrelar e produzir o filme Introducing Dorothy Dandridge, que apresenta toda a
trajetória da atriz Dorothy Dandridge. O projeto, encampado pelo canal por assinatura HBO, em
1999, enfrentou inúmeras dificuldades atribuídas ao racismo de Hollywood.
71
Este outro depoimento de Ruth de Souza, também destacado por
Araújo, é bastante revelador:
[...] começaram os protestos das outras atrizes, meu nome que estava
no primeiro lugar [como protagonista da novela A cabana do Pai
Tomás, em 1969] passou para o segundo. Lembro de Sérgio Cardoso
que me falou: “Ruth, estão criando um protesto enorme, a novela tem
de correr, você se importa de deixar colocar outros nomes, das atrizes
brancas, na frente do seu? E eu disse: “não, eu não me importo”.
Claro! O que eu ia dizer, a sobrevivência, um papel maravilhoso. E, a
partir daí, o meu papel foi declinando, declinando, declinando. (Ruth de
Souza, depoimento para o documentário A negação do Brasil.
ARAÚJO, 2000, p.90).
Léa Garcia foi a primeira atriz brasileira a ser indicada para a Palma
de Ouro, do Festival de Cannes, na França. Isso aconteceu em 1959, quando a
atriz estava com 24 anos. Ela foi indicada para a categoria de melhor atriz por
sua atuação no filme Orfeu do Carnaval, uma co-produção franco-ítala-
brasileira dirigida pelo francês Marcel Camus, a partir da peça de Vinícius de
Morais. Léa Garcia, que ficou na segunda colocação, relembra a conquista em
depoimento feito à jornalista Sandra Almada (1995, p.122): “O Henrique
Pongetti (revista Manchete) fez uma crônica enorme, de página inteira, sobre o
meu segundo lugar na Palma de Ouro. E fiquei 15 dias sem ir à rua, porque eu
era muito envergonhada e não queria que ninguém olhasse para a minha cara”.
Tanto Ruth de Souza, quanto Léa Garcia têm trajetórias como atrizes
que incluem inúmeros trabalhos realizados no teatro, no cinema e na televisão.
O pioneirismo nas artes nicas nacionais, manifestado nas primeiras
indicações do país para dois importantes prêmios internacionais não parece, no
entanto, ter garantido para estas atrizes negras um local privilegiado no
mercado da indústria cultural brasileira. A maioria das personagens
desenvolvidas por estas duas premiadas atrizes na televisão é de coadjuvantes
que desempenham, nas poucas cenas em que são requisitadas, atividades
marcadamente subalternas.
Citando a pesquisa de Araújo sobre o estereótipo do negro na telenovela
brasileira, Santos salienta uma das personagens mais emblemáticas
interpretadas por Léa Garcia, a escrava malvada Rosa:
A mulher negra também poderia ser descrita com algumas das
características genéricas descritas por Araújo como sendo estereótipos
dos negros tais como o escravo demônio ou a escrava feiticeira
(selvagem, traiçoeira e ingrata descrita na novela Escrava Isaura pela
personagem vivida por Léa Garcia) (SANTOS, 2004, p.56).
72
Almada, ao fazer o seguinte questionamento a Léa Garcia: “Como se
explica que uma atriz do seu nível ainda não tenha conseguido, em conjunto ou
isoladamente, furar esse bloqueio, sobretudo na televisão?”, obteve a seguinte
resposta da atriz:
Nós não vamos conseguir furar esse bloqueio. Primeiro porque ainda
não detemos o poder em lugar nenhum desse país. Na televisão,
especificamente, você imaginou as dificuldades? Existe um padrão
estabelecido de beleza, de comportamento, dentro da sociedade
brasileira, do qual o negro não faz parte (ALMADA, 1995, p.98).
A novela Escrava Isaura, produzida pela Rede Globo, em 1976, foi o
maior sucesso da teledramaturgia brasileira, sendo comercializada, até os
primeiros anos da década de 90 do século XX, para 67 países.
Assim como a citada novela Xica da Silva, a novela Escrava Isaura
retrata o Brasil escravocrata, tem como protagonista uma mulher negra (pelo
menos, em tese) e aborda o relacionamento amoroso entre uma escrava e um
homem branco.
Araújo (2000, p. 202) sintetiza: “A escrava negra de maior sucesso da
tevê brasileira era branca, desde a sua criação nas mãos do autor abolicionista
Bernardo Guimarães, em 1875“. E prossegue:
Naquela época, portanto, a associação de negritude com beleza,
inocência e pureza era inimaginável para todos os brancos, os
potenciais consumidores de romances. A descrição de Isaura como
branca obedecia a imperativos culturais e político-sociais do seu
tempo, o que nos permite deduzir que a intenção do autor não era a de
retratar uma jovem quase ariana, mas sim uma mulata, uma vez que a
personagem era filha de negros e brancos. No entanto, as
personagens de mulatas nos romances do período já estavam
associadas ao estigma de sedutora lasciva e amoral, o que
prejudicaria o enredo e os fins a que se destinava o romance, segundo
os objetivos de um abolicionista (ARAÚJO, 2000, p.203).
Sem sequer imaginar que o romance seria alvo de nova abordagem
televisiva 29 anos depois - em 2005 -, na qual permaneceu a escolha por uma
atriz branca para o papel da parda Isaura, Araújo tece, em 2000, a seguinte
crítica:
Entre o contexto político e social em que vivia o autor do romance e o
contexto da época do adaptador da história, dos produtores e diretores
da telenovela havia cem anos de distância, não se justificando,
portando, a falta de ousadia da emissora e a continuidade dos
preconceitos do século XIX nos anos 70 do século XX. Talvez por
73
esses motivos a telenovela brasileira não tenha apresentado até então
nenhum galã ou heroína negra (ARAÚJO, 2000, p.203). (grifo meu)
O escritor Guimarães foi um dos pioneiros do regionalismo, sendo o
conjunto da sua obra alvo permanente de estudantes da produção literária
brasileira e, conseqüentemente, presença provável em listagens de conteúdo a
ser avaliado em provas de vestibulares para ingresso em universidades do
país.
“A sociedade brasileira que, no século XIX, tanto se condoeu das
desventuras de Isaura, aceitou-a porque ela era branca e educada” avisa, em
1998, Maria Nazareth Soares Fonseca, ao apresentar a 2 edição do livro,
integrante da Série Bom Livro, da Editora Ática. O suplemento de leitura anexo
a esta mesma edição estimula a expressão escrita dos estudantes brasileiros a
partir da seguinte questão na página 4:
Agora asas a sua imaginação. Suponha que Isaura, ao contrário do
que acontece no romance, fosse uma escrava mais semelhante à
maioria dos escravos brasileiros do século XIX: negra, de aparência
maltratada, rude e inculta. Desenvolva agora uma narração, contando
a história de sua escrava Isaura.
Dito isso, volto às trajetórias das atrizes Ruth de Souza e Léa Garcia
para lembrar que, em agosto de 2004, elas dividiram o prêmio de melhor atriz
no Festival de Cinema de Gramado por sua atuação no longa-metragem Filhas
do Vento do cineasta Joel Zito Araújo.
Em abril de 2006, em entrevista realizada por mim e publicada no jornal
Ìrohìn, o diretor de teatro Jessé Oliveira, vencedor de vários prêmios nos
estados do Sul do Brasil e em países da América do Sul, ao ser questionado
sobre as artes cênicas produzidas por negras e negros brasileiros, fez o
seguinte comentário:
Contemporaneamente, o primeiro salto qualitativo pode ser observado
no também emblemático filme As Filhas do Vento, do diretor Joel Zito
Araújo. Este filme é todo estrelado por atores negros e atrizes negras
que, formados por diretores brancos, “caíram” na mão de um diretor
negro. Qual é a diferença desta obra em relação aos filmes dirigidos
pelos diretores brancos? É a visão de mundo. No filme de Araújo
beleza de todas as idades, velhos, jovens, adolescentes. O que
precisamos é dar o segundo salto qualitativo. O que se precisa
construir a partir de agora é a geração de atores negros formados por
diretores negros para que, nos próximos anos, se tenha uma
representação real do negro e se possa construir um outro imaginário
para a nação brasileira. Estamos nos encaminhando para isso.
(SOARES, 2006, p.33)
74
3.2.3.
Miss, modelo: a beleza (negra?) é política
A zoeira no Maracanã lotado era infernal. [...] mas os meus ouvidos só registram a voz
daquela mulher que ia por entre as mesas, me acompanhando e repetindo que nem
uma matraca: - Sai daí crioula! Teu lugar é na cozinha!
Vera Lúcia dos Santos
Muitos me desencorajavam a seguir a carreira, mas não desisti.
Hoje, sei que estou no caminho certo.
Rojane Fradique
Vera cia Couto dos Santos foi a primeira mulher negra a ganhar um
concurso oficial de Miss realizado no Brasil, ao torna-se Miss Guanabara, em
1964. Ela tinha, na época, dezenove anos. Ainda em 1964, Vera Lúcia
consagrou-se a vice-Miss Brasil. Oliveira, em obra que apresenta pequenas
biografias de pessoas negras emblemáticas para a luta anti-racista
encaminhada pelos diversos segmentos do movimento negro brasileiro,
destaca o seguinte depoimento de Vera Lúcia, coletado pelo jornalista Haroldo
Costa:
Sai daí crioula! Teu lugar é na cozinha! Não se manca não? Enquanto
todas as candidatas faziam o desfile de conjunto, aquela mulher na
ponta da passarela, possessa, gritava desesperada. A zoeira no
Maracanã lotado era infernal. Faixas, serpentinas, charangas, apitos,
buzinas, tinha de tudo, mas os meus ouvidos registram a voz
daquela mulher que ia por entre as mesas, me acompanhando e
repetindo que nem uma matraca: - Sai daí crioula! Teu lugar é na
cozinha! (OLIVEIRA, 1998, p.271).
Deise Nunes foi a primeira Miss Brasil negra, obtendo o título aos 17
anos, em 1986, 22 anos após Vera Lúcia ser a vice-Miss Brasil. Nos anos 80
do século XX, o concurso ainda mantinha um pouco do glamour, que foi
perdido totalmente nos anos 90, com os concursos promovidos pelas agências
de modelos.
Antes de Deise Nunes, o Brasil nunca havia participado com uma
representante negra no concurso para escolha da Miss Universo. Naquele ano,
o concurso aconteceu no Panamá e teve 78 candidatas. Deise Nunes ficou
entre as dez finalistas e trouxe para o Brasil o sexto lugar. Em entrevista
realizada por mim com Deise Nunes, em 2000, a ex-Miss contou detalhes da
sua trajetória. Apresento a seguir trechos deste depoimento:
Para mim foi uma grande surpresa. Recebi muitas cartas de gente
negra me dando parabéns pela coragem de participar de um concurso
sem tradição de participação negra. Dizendo que a minha vitória dava
75
forças para a raça negra e que isto deveria ter acontecido muito
tempo.
A trajetória que levou Deise Nunes a ser a primeira Miss Brasil negra
começou dois anos antes em Porto Alegre, quando ela tinha 15 anos e foi
escolhida a Rainha das Piscinas de 1984. Freqüentadora das piscinas do
Grêmio Futebol Porto Alegrense desde os nove meses de idade, Deise Nunes
venceu o concurso como representante do time rival, o Sport Club
Internacional. Ela conta o que aconteceu quando a sua mãe, Ana Maria
Nunes
33
, no final de 1983, procurou a direção social do Grêmio pensando no
próximo Rainha das Piscinas, previsto para março de 84.
Eles solicitaram um álbum de fotografia. Eu tinha uma espécie de
book. trabalhava como modelo desde os 14 anos. O book ficou lá
por duas semanas, sem nenhuma resposta. Quando eu fui solicitar
uma posição, os diretores disseram que naquele ano o Grêmio não iria
participar da festa porque estava com problemas financeiros para fazer
o garden party [a festa para escolha da represente do clube]
.
A justificativa para recusar a candidatura de Deise Nunes não tinha
procedência. Logo depois, o Grêmio fez uma festa e escolheu uma
representante branca para o concurso Rainha das Piscinas.
Nesta mesma época, Deise participou de um coquetel de lançamento do
Baile Municipal de Carnaval e foi convidada para ser a representante do
Internacional. Tornou-se, desta maneira, a 27º Rainha das Piscinas e a
primeira negra a ganhar o concurso.
Segundo ela, no entanto, tal vitória não foi tranqüila:
muito tempo depois é que eu fiquei sabendo que houve uma
pressão forte no corpo de jurados para que euo ganhasse o Rainha
das Piscinas. Como vamos eleger uma negra? Foi a maior polêmica.
Fizeram três votações e nas três vezes eu venci.
A imprensa gaúcha anunciou que Deise Nunes, a primeira negra Rainha
das Piscinas, era uma “bela morena”. “Naquele tempo as coisas não eram tão
abertas, quanto agora”, cogita Deise Nunes, contando que, na segunda-feira
após o concurso, passeava sozinha pela Rua da Praia, uma das principais do
centro de Porto Alegre, quando ouviu o seguinte bate-papo entre um casal de
adolescentes: “O que tu fizestes sábado? Eu fiquei em casa assistindo o
33
Ana Maria Nunes trabalhava como lavadeira de roupas dos jogadores do Grêmio. Ver
SILVEIRA (2002).
76
Rainha das Piscinas na TV. No meio de tanta loira foi ganhar justo uma
negra...”
Deise conta também uma das discriminações que sofreu como modelo
negra:
Foi numa seleção para desfile no Hotel Alfred. Fui chamada para a
seleção, desfilei para o produtor e ele não me dispensou. Pensei que
havia sido selecionada quando ele chamou para o ensaio, mas ele
disse que o. Eu perguntei por que e ele disse: “A empresa não quer
negros no desfile.” Ele era do interior e o sabia que eu era a Rainha
das Piscinas. Um colega branco, que havia morado em Nova Iorque,
ficou revoltado e disse que se eu não desfilasse, ele também não
desfilaria e foi embora junto comigo. Foi uma sensação ruim. De
desprezo. Me senti um lixo. O meu valor profissional não valia nada.
Não adiantava ser dedicada, nunca chegar atrasada, ter experiência.
Eu processei a empresa, as Linhas Círculo, com base na lei Afonso
Arinos. Não deu em nada.
Em 1986, Deise Nunes foi escolhida Miss Rio Grande do Sul, entre
outras 24 candidatas, em eliminatórias, em São Paulo, transmitidas ao vivo
pela TV (Sistema Brasileiro de Telecomunicação SBT). Venceu por
unanimidade a primeira e a segunda eliminatórias. Venceu ainda, com
tranqüilidade, as outras 26 representantes dos estados brasileiros. O júri lhe
brindou com 115 de um total possível de 120 pontos.
Foi muito legal, na época. Quando cheguei a São Paulo achavam que
eu não era gaúcha. Era baiana, carioca ou pernambucana. E diziam
que o Rio Grande do Sul nunca havia mandado uma negra e que a
maioria da população do estado era branca. O mais engraçado é que
eles não notavam que os outros estados, a Bahia, o Rio e
Pernambuco, onde a maioria da população é negra, também nunca
haviam mandado uma representante negra.
Em 2002, dezesseis anos após Deise Nunes ser consagrada como a
primeira Miss Brasil negra, o jornalista José Barrionuevo publicou a seguinte
nota no jornal Zero Hora:
Miss pode ser vice de Rigotto Se o PSDB impuser a aliança dos
tucanos gaúchos com o PMDB, Rigotto (na foto com Cláudia, sua
mulher, e o jornalista João Pulita) [A foto de Deise Nunes não foi
incluída na nota.] não terá nada a perder para os candidatos que
apostaram no poder de voto da mulher. Deise Nunes, miss Brasil, uma
negra, é o primeiro nome cogitado pelo PSDB (Zero Hora, Rede Brasil
Sul de Comunicação (RBS), 16 de junho de 2002, seção Página 10,
p.12. (grifo meu).
77
Cinco anos antes desta nota, em 1997, a revista Raça Brasil afirmava
que Cris Ribeiro era “a mais bem-sucedida modelo negra do Brasil”, em
matéria, assinada por Adriano Catozzi, na qual a modelo reclamava:
Faço poucos editoriais. Aliás, a gente não nunca uma neguinha nas
revistas. o passa de 1% no ano todo. É muito chato você ouvir que
uma amiga poderia ser capa de uma revista, mas a produtora achou
que uma negra o venderia (RAÇA BRASIL, Número 7, Março de
1997, p.38).
Neste mesmo ano, quando a revista Marie Claire, da Editora Globo,
colocou pela primeira vez a imagem de uma mulher negra na capa, a foto foi
identificada com o nome da modelo: Naomi Campbel, a top-model inglesa.
Imagem 4. Naomi Campbel
Marie Claire, Editora Globo, Edição 78, Setembro de 1997
Não é convencional colocar o nome da modelo ao lado da foto e sim na
página que contém o expediente da revista. A foto de Naomi, uma produção da
Marie Claire francesa, apareceu na edição número 78, de setembro de 1997. A
mesma capa continha uma chamada destinada às leitoras negras: Maquiagem
Ouro, Bronze e Cobre sobre a Pele Negra. (Além da foto da capa, a edição 78
78
apresentou apenas outras duas fotos de modelos negras, a primeira, uma foto
pequena, na página 117, no Jornal da Moda, que destaca os desfiles nas
passarelas internacionais; a segunda, na página 157, ilustra a matéria
referida sobre maquiagem
34
). A seção Cartas da edição imediatamente anterior
a esta (Número 77, Agosto de 1997) justifica a capa tão “inusitada”, a partir da
seguinte reclamação de uma leitora e a conseqüente resposta da redação da
revista:
Beleza Negra - Na edição de junho (M.C. 75), a reportagem
‘Cintilâncias sutis’ sobre maquiagem, me interessou muito. Mas tive a
surpresa desagradável ao perceber que a matéria era direcionada
apenas a mulheres brancas. Será que para lermos sobre maquiagem,
corte de cabelo ou moda para negras teremos que esperar uma edição
especial? Ana Sales por e-mail. Resposta da Redação - A edição de
setembro corrigirá a omissão com reportagem de beleza totalmente
dedicada à maquiagem para a pele negra
.
Em 2000, as comemorações dos 500 anos do descobrimento do Brasil
resultaram em alguns pontos a favor de modelos negras, uma vez que as
revistas femininas - timidamente - ousaram colocá-las em suas capas.
Imagem 5. Camila Pitanga
Elle, da Editora Abril, Ano 12, Número 4, Abril de 2000.
34
Abaixo do sugestivo título Cor sobre cor, o parágrafo de abertura da matéria terminava com a
seguinte frase: “A única dificuldade é encontrar os produtos adequados, que agora a
indústria cosmética começa a se preocupar com a beleza étnica”.
79
A revista Elle, da Editora Abril, colocou a foto da atriz e modelo Camila
Pitanga na capa da edição do mês de abril de 2000. Eis a manchete: Beleza
Brasileira Camila Pitanga, uma atriz com a cara do Brasil (Ano 12, Número 4,
Abril/2000). As duas primeiras frases da matéria, assinada por Dagmar Serpa e
publicada na página 26, são as seguintes: “Ela é a prova de que a alquimia da
miscigenação brasileira produz resultados primorosos. A atriz Camila Pitanga,
22 anos, tem a pele morena, boca carnuda, olhos levemente amendoados,
cabelos lisos naturais).”
A revista Marie Claire estampou na capa de maio de 2000, o mês
seguinte ao aniversário, a modelo negra Danielle Leonel, “uma das primeiras
negras a aparecer em capa de revista de moda brasileira” (revista Veja, 07 de
fevereiro, 2001, p.67).
Imagem 6. Danielle Leonel
Marie Claire, Editora Globo, Maio de 2000.
Ainda em 2000, no mês de julho, o jornal Folha de São Paulo, citava a
presença de Danielle no mundo da moda, em matéria que afirmava, já no título,
que “Passarelas ainda são império das loiras”:
[...] assim como no caso das apresentadoras dos programas infantis de
televisão, ter-se-á vivido novamente sob o império das loiras, Giselle
80
Bundchen, Ana Claudia Michels e Mariana Weickert, três brasileiras de
maior projeção internacional, parecem ter nascido na Escandinávia.
Por que as modelos mulatas e negras não sobressaem? Danielle
Leonel, 17, mineira de Ipatinga, a única modelo negra a desfilar pela
Fórum, tem a resposta na ponta da língua. ‘Há muita discriminação,
principalmente nos testes’, diz ela. Ela cansou de ver mulatas e negras
bonitas que sabiam desfilar bem serem preteridas em favor de
brancas, principalmente loiras (FOLHA DE SÃO PAULO, Ilustrada, 03
de julho de 2000, p.E5).
Danielle Leonel tornou-se modelo em 1996, quando era uma
adolescente de 14 anos e venceu o 2
o
Beleza Negra, na época, concurso
promovido pela agência paulista New Company Black Model’s e patrocinado
pela grife Negritude Confecções, também de São Paulo. Quase sete anos
depois de estar na capa da Marie Claire, Danielle Leonel foi também escolhida
para ilustrar a capa da revista Corpo a Corpo Beleza Negra, publicação
lançada pela Editora Símbolo em dezembro de 2006 apresentada às leitoras
com editorial que começa da seguinte maneira:
Você é linda! A mulher negra é dotada de uma beleza especial: sua
pele é incrivelmente sedutora e iluminada, o rosto de traços marcantes
é naturalmente expressivo, o cabelo crespo, cheio de estilo, permite
muitos penteados, possibilitando um visual sempre diferente. Mas a
gente também sabe que essa beleza étnica requer cuidados
específicos para ser valorizada. (CORPO A CORPO BELEZA NEGRA,
Número 1, Dezembro de 2006, p. 04).
Imagem 7. Danielle Leonel
Corpo a Corpo Beleza Negra, Ano 1, Número 1, Dezembro de 2006
81
A última edição do milênio de um dos concursos para modelos mais
badalados do país aconteceu na noite do dia 22 de setembro de 1999 e foi
transmitida ao vivo pela MTV. Tratava-se da escolha da representante
brasileira para o concurso mundial que escolheria a top do terceiro milênio. O
Super Models Brasil 99, da Ford Models, recebeu mais de 38 mil fichas de
inscrição. Vinte adolescentes entre 13 e 18 anos foram escolhidas para a
grande final. Na esteira do sucesso das tops brasileiras no exterior, o discurso
unânime dos especialistas presentes exaltava as curvas das brasileiras, fruto
da mistura de raças.
Entre as concorrentes a maioria absoluta vinha do Sul do país e tinha
traços que em nada lembravam a tal de mistura de raças. As exceções ficaram
por conta das candidatas Ana Paula Santiago (17 anos, Fortaleza (CE)),
visivelmente afro-descendente, e da parda Juliana Bahia (18 anos, Lauro de
Freitas (BA)). Ambas não ficaram entre as seis finalistas. A noite foi da
catarinense, de Blumenau, Patrícia Beck.
Imagem 8. Revista Veja Sonho de Modelo
Veja, Editora Abril, Edição 1606, Ano 32, Número 28
Pouco antes disso, na edição do dia 14 de julho de 1999, a revista Veja
trazia na capa a seguinte manchete: Sonho de modelo O fascínio, as ilusões
82
e os perigos da profissão que nove entre dez meninas desejam seguir. A
revista escolheu para ilustrar a manchete a foto de 30 adolescentes
contratadas pelas principais agências de modelo no país naquele momento:
Ford, Elite e Mega. Entre as 30, nenhuma era negra.
Foi somente no segundo semestre de 2003, que uma adolescente de
dezessete anos, com características fenotípicas incontestáveis daquela que se
convencionou chamar de raça negra, rompeu a barreira do discurso estético
hegemônico ao consagrar-se na etapa nacional do concurso de modelos Elite
Model Look. Garantiu, com isso, o posto de primeira modelo negra a
representar o Brasil na final mundial do concurso.
Ela é baiana, filha de uma cabeleireira e se chama Rojane Fradique.
Sem dinheiro para pegar um ônibus e se inscrever no concurso, Rojane
percorreu a os vários quilômetros que separam sua casa da agência de
modelos. Sem dinheiro para fazer um book, ela apresentou apenas uma foto
pequena.
O primeiro lugar do concurso nacional da Elite foi para a gaúcha Emilia
Cachele. Mesmo obtendo o segundo lugar, Rojane conquistou, em 2004, uma
agenda repleta de compromissos profissionais significativos no mundo da
moda, entre eles, vários desfiles no São Paulo Fashion Week.
Para a revista Isto é
35
, em janeiro de 2004, Rojane declarou: “Muitos me
desencorajavam a seguir a carreira, mas não desisti. Hoje, sei que estou no
caminho certo”.
3.2.4. A Síndrome de Zilda
As evidências de que uma tendência de aprisionamento de
personagens femininas negras e mulheres negras em um território
36
de
subalternidade e de que esse discurso é pouco contestado, devido à
naturalização com que o processo é percebido, levou-me a propor a noção
35
Isto É, Edição 1789, Janeiro de 2004, In O negro na tevê.
36
Território, territorialização, desterritorialização e reterritorialização são conceitos filosóficos
construídos por lix Guattari e Gilles Deleuze. O território designa os afetos, as máscaras, os
rituais, configurações mais ou menos estáveis que atravessam terras e grupos os mais
variados, não estando, portanto, relacionado com a geografia (Rolnik, 2006, p.58). Todo
território possui um vetor de saída que pode conduzir à desterritorialização. o
desterritorialização sem o esforço para a reterritorialização de outro modo.
83
Síndrome de Zilda, uma ferramenta para análise da representação de mulheres
negras pela grande mídia brasileira.
Stuart Hall (2000) argumenta que a fala ocorre sempre a partir de uma
posição histórica e cultural específica, sendo fundamental levar em conta quem
fala e qual é a representação que advém desta fala. Hall vê as identidades de
duas maneiras. A primeira quando o grupo/comunidade busca recuperar a
“verdade” e a “unicidade” da história e da cultura compartilhadas no passado,
uma busca que pode ser representada em manifestações culturais que
reafirmam e reforçam esta identidade. A segunda está relacionada “não tanto
com as questões ‘quem nós somos’ ou ‘de onde nós viemos’, mas muito mais
com as questões ’quem nós podemos nos tornar’, ‘como nós temos sido
representados’ e ‘como essa representação afeta a forma como nós podemos
representar a nós próprios’” (HALL, 2000, p.109).
Na opinião de hooks (1995, p.470), “a insistência cultural em que as
negras sejam encaradas como ‘empregadas domésticas’”, bem como uma
suposta “aceitação passiva desses papéis pelas negras, talvez sejam o maior
fator a impedir que mais negras escolham tornar-se intelectuais”.
A opção por uma perspectiva diaspórica e a apropriação destas
reflexões de Hall e hooks levaram-me a propor uma noção que possa ser útil
na análise da representação de mulheres negras pela grande mídia brasileira,
destacando-se as produções da teledramaturgia. A intenção é oferecer uma
ferramenta para o campo teórico das relações étnico-raciais brasileiras a partir
da perspectiva das relações de gênero, tendo em vista os movimentos
necessários para a construção de um território, no qual as faces do arquétipo
da subalternidade possam ser reconhecidas e identificadas.
Impulsiona-se, desta forma, a ressignificação do arquétipo,
ultrapassando-se assim a longa etapa da denúncia constante
emblematicamente encabeçada, no início da década de 80 do século XX, por
Lélia Gonzáles (1983).
O seguinte pensamento de Hall (2006, p.327) auxiliou na decisão sobre
o rumo tomado: "não como escapar de políticas de representação e não
podemos lidar com a idéia de 'como a vida realmente é fora' como uma
espécie de teste para medir o acerto e o erro político de uma dada estratégia
ou texto cultural".
84
O ponto de partida consistiu em um trabalho genealógico nos arquivos
sempre vivos do imaginário nacional brasileiro, no qual, ao que tudo indica, a
figura feminina negra subalterna sofre de uma "cristalização existencial", nos
moldes sugeridos por Félix Guattari que, apropriados por Suely Rolnik (2006, p.
33), relacionam-se com “figuras que se repetem, como num ritual”.
Foram fundamentais, neste começo, as investigações de David
Brookshaw (1983), Sandra Almada (1995) e Joel Zito Araújo (2000).
Paralelamente considerei algumas reflexões de Rolnik (2006), em cartografia
de figuras-tipo do feminino, na qual são abordadas as transformações da
subjetividade de algumas mulheres (as noivinhas) durante os anos 50, 60 e 70
do século XX, a partir da “seqüência de transformações da estratégia do desejo
produzida naquele período” (ROLNIK, 2006, p.14).
Das ciências médicas tomei emprestado o termo síndrome,
considerando suficiente a definição de Aurélio Buarque de Holanda (1977, p.
470): “estado rbido caracterizado por um conjunto de sinais e sintomas, e
que pode ser produzido por mais de uma causa”.
Para nomear tal síndrome, busquei uma personagem emblemática, no
mínimo por duas especificidades: a) integra trama produzida e veiculada no
também emblemático ano de 2000, quando o Brasil comemorou os 500 anos
do “descobrimento”; b) integra trama produzida e veiculada na virada do século
XX para o século XXI.
A personagem em questão é Zilda, uma empregada doméstica que foi
interpretada pela atriz Thalma de Freitas, que é negra, na novela Laços de
Família, produzida pela Rede Globo e veiculada entre os dias 05 de junho de
2000 e 03 de fevereiro de 2001. A novela, escrita por Manoel Carlos e dirigida
por Ricardo Waddington, teve 209 capítulos na versão original brasileira e não
incluiu atrizes negras ou atores negros em seu núcleo principal.
Zilda é a empregada doméstica da personagem Helena, que foi
interpretada pela atriz protagonista Vera Fischer, que é branca. Durante toda a
trama, Zilda “cuida” da patroa numa combinação equilibrada dos estereótipos
da mucama e da mãe-preta, ainda que, em se tratando desta última, destaque-
se o contraste de idade entre a jovem empregada e a madura patroa.
No final da novela, praticamente todas as personagens “encontram o
seu par”, incluindo aquelas de estilos de vida socialmente desaprovados, como
85
é o caso da prostituta Capitu (nesta novela a prostituta “regenera-se” e
“encontra o amor da sua vida”), bem como o emocionante desfecho da
personagem Paulo Soriano, interpretada pelo ator Flávio Silvino que, numa
mistura entre vida real e ficção, também “encontra o amor”, enquanto se
recupera de seqüelas motoras resultantes de danos cerebrais causados por um
grave acidente.
Sem parentes, amigas(os), amores ou vida próprios, Zilda permanece o
tempo todo na casa da patroa. No final, além de um uniforme novo, merece
como recompensa ficar “cuidando” também das crianças que foram geradas e
paridas ao longo da trama: filho e netos da patroa. Parece feliz com este
destino.
As características da representação hegemônica para personagens
pertencentes à população negra brasileira foram detectadas por vários
estudos. Dentre eles, os produzidos por Abdias do Nascimento, em especial os
relativos ao TEN, as investigações feitas por Brookshaw (1983), sobre o negro
como autor e personagem na produção literária brasileira, e por Zilá Bernd e
Margaret Bakos (1987), sobre a negritude e a literatura na América Latina, bem
como a pesquisa realizada por Araújo (2000) sobre a presença/ausência do
negro nas telenovelas produzidas no Brasil.
Especificamente sobre as personagens femininas na literatura, a
seguinte constatação de Brookshaw parece ideal:
Isaura foi a primeira e possivelmente a última mulata "excepcional" a
aparecer na literatura brasileira. Por certo, na obra de escritores da
Escola Naturalista como Aluísio de Azevedo, seria o estereótipo da
mulata sombriamente sensual que prevaleceria, por exemplo, Rita
Bahiana em O Cortiço. No século XX, as heroínas "mulatas" de Jorge
Amado, tais como Rosenda, Gabriela e Ana Mercedes, ou a Isaura de
Lins do Rego deveriam desenvolver-se segundo as linhas de Rosa e
não da nobre mulher escrava de Guimarães (BROOKSHAW, 1983, p.
31).
Um pouco antes desta constatação o autor apresenta a personagem
Rosa: "De fato, para contrastar com Isaura existe Rosa, cujo ciúme e índole
vingativa destoavam das virtudes de Isaura e cujos atributos eram puramente
sensuais. Rosa, significativamente, é mais africana de traços" (p.31).
Em outra análise, Brookshaw especula que de Jorge Amado...
pode-se retirar conclusões semelhantes de sua caracterização da
86
mulata. A ela não é permitido ser esposa ou mãe, pois é o símbolo da
liberalidade sexual. Ela não é respeitada nem como mulher nem
como indivíduo. Sua função é atrair homens, ser explorada por eles e
em troca explorá-los para obter o que quer através do sexo
(BROOKSHAW, 1983, p. 142).
Em virtude de produções da teledramaturgia brasileira no século XXI,
tais constatações são altamente significativas.
Pois bem, com base nestes estudos e outros (ALMADA, 1995; SANTOS,
2004), chego aos principais sinais e/ou sintomas apresentados pela
personagem midiática afetada pela Síndrome de Zilda:
a) a personagem desempenha papéis subalternos: a escrava, a
empregada doméstica, a desqualificada profissionalmente;
b) a personagem permanece durante toda a trama numa espécie de
não-lugar, em se tratando de relacionamentos familiares e afetivos. Ela o
tem família de origem (neste caso é possível uma variação, na qual a
personagem é fruto de um relacionamento inter-racial do qual apenas um
componente do casal é apresentado), nem forma família durante toda a trama.
É estéril, não tem filhos, não tem amigas(os) negras(os);
c) a personagem mantém relacionamentos caracterizados por forte
apelo erótico/sensual, mas mantém-se também em um não-lugar, uma vez que
tais relacionamentos são desaprovados pelo padrão moral hegemônico. Ela é a
amante, a prostituta, a mãe solteira, a concubina;
d) a personagem tem uma atração irresistível por homens brancos, em
detrimento de homens negros.
Percebe-se assim que a Síndrome de Zilda é um dispositivo diretamente
relacionado com a economia do afeto. Desta forma, se num primeiro momento
alguns dos sinais e/ou sintomas elencados anteriormente podem parecer
antagônicos, um olhar mais aprofundado pode mostrar que se tratam apenas
de duas faces do arquétipo mulher negra escravizada pelo colonizador, que é
vista como objeto feito para servir o dominador.
Assim, a escrava erotizada, profana ao extremo, também pode ser a
mestiça/mulata libertina, que também pode ser a morena brejeira sensual
amoral e ingênua, que também pode ser - em uma manipulação dominante na
qual a violência é vista através de lentes que a suavizam e pelas quais a vítima
se transforma em cúmplice num escorregar que a aprisiona em um território de
87
suposto consentimento e suposta opção consciente pela exclusão e/ou pela
manutenção das fronteiras que demarcam a diferença - a prostituta preta e
pobre ou a mulata "tipo-exportação".
Na outra face, a escrava que não corresponde (ou não serve) às
expectativas erótico/profanas do dominador, por razões que podem ser
prioritariamente estéticas e/ou etárias, é utilizada como a mãe-preta, a escrava
devotada, sagrada ao extremo, que é o sustentáculo afetivo da família do
dominador por intermédio de seus cuidados incondicionais, que também pode
ser a empregada doméstica que é como se fosse uma pessoa da família ou
que é quase uma pessoa da família.
A primeira oferece o corpo para sustentar a sagacidade sexual do
dominador. É profana e por isso mesmo o poderá dividir-se de fato com a
sagrada constituição de uma família própria, consangüínea e/ou afetiva. A
segunda oferece o corpo para sustentar a sagacidade afetiva do dominador. É
sagrada e por isso mesmo não poderá dividir-se de fato com a profana
constituição de uma família própria, consangüínea e/ou afetiva.
Duas faces que, por corresponderem a um mesmo arquétipo, estiveram
e estão sempre em processo de reavivamento e realimentação no imaginário
nacional. Num primeiro movimento, pela sociedade disciplinar.
Contemporaneamente, pela sociedade de controle globalizada e midiatizada,
na qual o referido arquétipo manifesta-se na forma de território da identidade
conhecida, situada na linha da conservação onde não espaço para o
"atrevimento de singularizar", explicitado por Guattari:
O que vai caracterizar um processo de singularização é que ele seja
automodelador. Isto é, que ele capte os elementos da situação, que
construa seus próprios tipos de referências práticas e teóricas, sem
ficar nessa posição constante de dependência em relação ao poder
global, a nível econômico, a nível do saber, a nível técnico, a nível das
segregações, dos tipos de prestígio que são difundidos (GUATTARI;
ROLNIK, 1996, p.46).
Ou, em outras palavras, em se tratando da representação de mulheres
negras brasileiras, a Síndrome de Zilda é um dos dispositivos que impedem a
passagem dos fluxos e intensidades que poderiam levar a intensas
desterritorializações existenciais que, por sua vez, poderiam abrir o leque para
ilimitadas reterritorializações.
88
Assim, não importa a face do arquétipo na qual se encontra a
personagem da mulher negra, se devoradora de homens ou se mãe-preta
incondicional, o que importa é que o arquétipo manifesta-se a partir da
escassez do afeto e da serialização subjetiva que impede/bloqueia devires.
Rolnik (2006, p.13), apropriando-se do conceito foucaultiano de
subjetivação
37
, argumenta que “políticas de subjetivação mudam em função da
instalação de qualquer regime, pois estes dependem de formas específicas de
subjetividade para sua viabilização no cotidiano de todos e de cada um, onde
ganham consistência existencial e se concretizam”.
Neste sentido, a permanência ao longo do tempo dos sintomas da
Síndrome de Zilda pode ser um indicativo de que alguns segmentos ficam
acorrentados a um círculo vicioso: à margem das mudanças das políticas de
subjetivação à margem das possibilidades de escolhas que surgem a partir
das mudanças do regime à margem das mudanças das políticas de
subjetivação à margem das possibilidades de escolhas que surgem a partir
das mudanças do regime.
a articulação do referido raciocínio de Rolnik com as reflexões de
hooks (1995, p.470) sobre “a insistência cultural em que as negras sejam
encaradas como ‘empregadas domésticas’”, parece indicar que à revelia dos
movimentos pós-regime escravocrata, que culminam contemporaneamente
com o capitalismo globalizado, manteve-se uma política de subjetivação de
subalternidade para as mulheres descendentes das(os) trabalhadoras(os)
negras(os) escravizadas(os), ou seja, o território da subjetividade da escrava,
dificultando desta forma a possibilidade de reconhecimento de outros papéis
sociais.
Em se tratando do Brasil, tal estagnação de território da subjetividade
pode ter sido delineada a partir dos anos 50 do século XX, quando algumas
mulheres ingressaram em uma intensa desterritorialização, manifestada a partir
do ingresso destas no mercado de trabalho e da flexibilização dos
comportamentos afetivo-eróticos que resultaram em novos arranjos/territórios
de relacionamentos entre mulheres e homens (ROLNIK, 2006).
Sustentadas pela segunda onda do movimento feminista, a
37
Para Foucault as técnicas de subjetivação são uma dimensão da definição do poder que não
pode ser captada através dos modelos jurídico ou institucional.
89
desterritorialização da dona-de-casa e a reterritorialização na mulher que
trabalha fora de casa, ambas vivenciadas por algumas mulheres, podem ter
produzido como seqüela o impedimento da desterritorialização de outras
mulheres (que sempre trabalharam fora de casa) do território da
subalternidade. Ou seja, a desterritorialização das mulheres das classes
dominantes baseou-se, pelo menos em um primeiro momento, na manutenção
do território de outras mulheres, estas das classes subalternas e, no caso do
Brasil, preponderantemente descendentes das(os) trabalhadoras(es)
negras(os) escravizadas(os).
Dois fatores talvez tenham corroborado para este quadro crítico de
manutenção da territorialidade de subalternidade: a) o longo tempo de duração
do regime escravocrata; b) o significativo percentual de negras(os) no total da
população brasileira. Do primeiro, merece destaque o fato de o Brasil ter sido o
último país do planeta a abolir o tráfico negreiro e a abolir a escravidão. Tal
longevidade poderia ter construído uma espécie de calcificação no imaginário
nacional, a partir de uma calcificação nas políticas de subjetivação, o que, por
sua vez, pode ter resultado em uma fixação destas políticas na territorialidade
das relações de dominação do regime escravocrata. Evidentemente, neste tipo
de dominação a figura mais vulnerável será aquela que expressar mais
componentes de subordinação. Cruzam-se as questões de gênero e raça (e
classe) e chega-se à mulher negra (e pobre).
Se, por um lado, a grande quantidade de pessoas descendentes das(os)
trabalhadoras(es) negras(os) escravizadas(os)negras pode(ria) potencializar a
desterritorialização da subordinação, por outro, pode ser exatamente este
elemento quantitativo o responsável pela suposta fixação da territorialidade das
relações de dominação do regime escravocrata. Também neste caso a maior
vulnerabilidade recairia em quem expressa a maior subordinação no
cruzamento binário das questões de gênero e raça (e classe): a mulher negra
(e pobre).
Utilizando a noção Síndrome de Zilda para analisar personagens
interpretadas pelas atrizes negras brasileiras Taís Araújo e Camila
Pitanga
90
De nome emblemático, Preta, personagem interpretada por Taís Araújo,
seria protagonista de uma novela com um título, no limite, sugestivo: A Cor do
Pecado, homônimo do samba, que composto por Bororó, em 1939, foi utilizado
como trilha da novela e cujos versos dizem o seguinte:
Esse corpo moreno cheiroso e gostoso que você tem / É um corpo
delgado da cor do pecado / Que faz tão bem / Esse beijo molhado,
escandalizado que você me deu / Tem sabor diferente que a boca da
gente jamais esqueceu / E quando você me responde umas coisas
com graça / A vergonha se esconde / Porque se revela a maldade da
raça / Esse cheiro de mato tem cheiro de fato [...]
Preta, uma jovem ingênua, pobre e feirante, apaixona-se por um homem
branco e rico vindo do Sul do país, do qual engravida e tem um filho que cria
sozinha, durante aproximadamente oito anos. Nascida no Maranhão, filha de
um casamento inter-racial, Preta foi criada somente pela mãe, não possuindo
nenhuma outra referência familiar. Também não têm amigas(os) negras(os) e
rejeita um pretendente negro, que, aliás, é um homem desqualificado e sem
caráter. Quando a mãe de Preta morre, a personagem decide viajar para o Sul
do país onde, por não possuir qualificação profissional, ingressa no mercado
informal de trabalho como vendedora ambulante de comida.
Nesta pequena sinopse é possível detectar também a ocorrência de pelo
menos um aspecto de cada um dos sintomas elencados para a Síndrome de
Zilda (a; b; c; d). Ou seja, um exemplo clássico manifestado em uma trama que
foi celebrada pela grande mídia como sendo um marco na história da
representação da população negra pela telenovela brasileira. Uma leitura que
foi assimilada inclusive e principalmente pelo público negro.
Passemos agora para outra personagem desempenhada por outra atriz
negra que também mereceu destaque de público e mídia: Bebel, interpretada
por Camila Pitanga na novela Paraíso Tropical (2007, Rede Globo).
Outro caso clássico de manifestação da Síndrome de Zilda, Bebel
dispensa maiores apresentações. É uma prostituta. Ao que tudo indica, a
personagem consagrou a atriz cuja trajetória apresenta peculiaridades
significativas. Considerada atriz revelação no ano da sua estréia na TV, em
1993, na novela Fera Ferida (Rede Globo), Camila Pitanga praticamente
permaneceu na coadjuvância nos 13 anos seguintes. A exceção poderia ser a
91
sua atuação na novela Porto dos Milagres
38
(2001, Rede Globo), na qual o seu
nome integra a listagem do elenco central. No entanto, o início de entrevista
publicada na TV/PRESS e assinada pelo jornalista Jorge Rodrigues
Jorge/Carta Z dá uma pista para prosseguirmos:
Camila Pitanga cansou de ser comparada a Gabriela. Seja pelos
traços marcantes da pele morena ou ainda pelas formas
harmoniosamente sinuosas do corpo. [....] Principalmente depois que a
atriz carioca foi escaldada para viver a espevitada Esmeralda na
novela Porto dos Milagres. A exemplo de Gabriela, a sensualidade vai
ser uma das características mais marcantes de Esmeralda, que
promete enlouquecer os homens do balneário baiano que título à
novela das 8h da Globo.
Vejamos ainda a sinopse na qual os autores da trama apresentam a
personagem:
Esmeralda (Camila Pitanga) - A morena bonita, de corpo bem feito,
cheio de requebrado. É sorridente, maliciosa e sonsa como ninguém.
Cresceu amando Guma (Marcos Palmeira), mas adora receber elogios
de outros homens. Quando Guma se apaixona por Lívia (Flávia
Alessandra) não sabe o que fazer da vida [...]
39
Ao observar algumas peculiaridades de outras personagens
desempenhadas pela atriz é impossível não lembrar igualmente da Síndrome
de Zilda. Vejamos: Em Belíssima (2003), Mônica é empregada doméstica. Em
Mulheres Apaixonadas (2005), Luciana é médica, mas é também a amante de
um cirurgião famoso. Casos triviais da territorialidade de subalternidade. Uma
espécie de preliminar de Bebel, a personagem de Paraíso Tropical (2007) que
a mídia impressa chegou a cogitar que abortaria e morreria no final da novela,
devido ao comportamento “reprovado socialmente”. Sim, ela abortou e,
seguindo outras personagens igualmente afetadas pela Síndrome de Zilda, não
deixou descendentes no imaginário nacional. Não, ela não morreu. Apenas
continuou sendo o que sempre foi: prostituta.
38
Em Porto dos Milagres a atriz Taís Araújo interpretou a personagem Selminha Aluada, uma
prostituta.
39
Ver em http://foro.telenovela-world.com/~diane/portodosmilagros/Cast.HTM
92
3.2.5. Considerações para reflexão
Neste capítulo, busquei detectar a rede de discursos sobre a estética do
corpo da mulher no Brasil, mais especificamente o discurso estético
hegemônico. Para tal, utilizei fragmentos de trajetórias de mulheres negras que
pioneiramente ultrapassaram as fronteiras de marcadores da diferença e
passaram a excursionar em lugares hegemônicos e midiáticos, nos quais a
beleza feminina é inegavelmente valorizada: o cinema, a televisão, os
concursos nacionais de Miss e as grandes agências de modelos.
O capítulo destaca a escassa presença de mulheres negras em tais
lugares e a naturalização deste processo. Ao fazer tal incursão, a intenção foi
provocar uma reflexão sobre o processo de subjetivação da identidade mulher
negra brasileira. Nesta perspectiva, proponho alguns itens:
1. A conexão no imaginário entre mulher negra/empregada doméstica e
as seqüelas que isso provoca na subjetividade da mulher negra;
2. a importância da visibilidade positiva para a auto-estima de
indivíduos cujas identidades étnico-raciais são subalternas;
3. a fragilidade emocional decorrente de um ato de discriminação racial;
4. a supremacia do componente étnico-racial para mulheres negras em
detrimento de um suposto componente estético universal;
5. a necessidade de justificativa, por parte dos representantes do poder
hegemônico, quando ocorre alguma transgressão de fronteiras de
marcadores de diferença;
6. o componente racial africano pode ser aceito diluído e
embranquecido pelos processos da miscigenação/mestiçagem;
7. a naturalização da ausência de modelos negras e atrizes negras
desempenhando papéis protagonistas ou a naturalização da
supremacia de modelos brancas e de atrizes brancas em situação de
protagonistas;
8. a necessidade de novidade (new face), que caracteriza o mercado da
moda e da mídia, em especial a televisiva dramática, é racializada,
não contemplando (ou contemplando muito pouco) modelos negras e
atrizes negras;
93
9. a “descoberta” tardia da consumidora negra por parte de um
mercado que se encarrega de manter os marcadores da diferença;
10. à revelia do elevado percentual de negras e negros na população
brasileira e do mito da democracia racial, o discurso estético
hegemônico não contempla mulheres negras.
94
3.3. RECONTEXTUALIZANDO O LOCAL NO LUGAR DO ESTUDO
No decorrer das primeiras coletas de dados para esta pesquisa comecei
a sentir a necessidade de uma análise mais detalhada do lugar do estudo, o
que me levou a incorporar aos procedimentos investigativos um maior
aprofundamento sobre o local, por intermédio de breve pesquisa bibliográfica
que, entre outros, incluiu publicações periódicas produzidos pela mídia.
Richard Johnson explicita sobre a valorização do contexto, em artigo no
qual examina e apresenta definições para os Estudos Culturais. Segundo o
autor, é por intermédio da interseção entre formas públicas e privadas que
podem ser respondidos os dois conjuntos centrais de questões sempre
presentes nos Estudos Culturais. “O primeiro conjunto diz respeito ao prazer da
“popularidade” e ao valor de uso das formas culturais. Por que algumas formas
subjetivas adquirem uma força popular, tornando-se princípios de vida?”. O
segundo relaciona-se com os resultados das formas culturais, na medida em
que questiona se essas tendem a reproduzir formas de subordinação; se elas
satisfazem ou contêm ambições sociais e definem os desejos; se elas
permitem “um questionamento das relações existentes e sua superação em
termos de desejo; ou se “apontam para arranjos sociais alternativos”. Grosso
modo, as melhores respostas resultam da interseção entre as análises dos
textos e da descrição das formas sociais “diretamente através do circuito de
suas transformações”, tendo sempre em mente a colocação destas “no interior
de todo o contexto de relações de hegemonia no interior da sociedade”.
(JOHNSON, 2006, p.103).
Neste sentido, considerei os exemplos utilizados por Gomes (2006,
p.150-151) sobre “fatores que interferiram e ainda interferem na variedade de
respostas locais em relação ao corpo negro e ao cabelo” para inferir que
95
existem especificidades vivenciadas pela população negra inserida nos
estados mais brancos do país.
Nos exemplos, a autora destaca ascendências culturais mais
encontradas nas regiões Sudeste e Nordeste e problematiza que “uma coisa é
ser negro e viver no centro urbano; outra é viver no meio rural. Uma coisa é
viver no centro e outra no interior”. Parafraseando a autora sugiro que: uma
coisa é ser negra(o) e viver nas regiões Sudeste, Nordeste, Norte e Centro-
Oeste do país. Outra coisa é ser negra(o) e viver na Região Sul.
Avançando um pouco mais proponho que: uma coisa é ser negra(o) e
viver na porção branca do Rio Grande do Sul, sendo, portanto o grupo étnico
minoritário também em termos quantitativos; outra é viver na Metade Sul do Rio
Grande do Sul e pertencer a um grupo étnico que, apesar de representar em
termos quantitativos praticamente a metade do total da população local, foi e é
sistematicamente invisibilizado, tendo portanto a presença não reconhecida e
negada.
Gomes (2006, p.152-153), ao analisar algumas raízes históricas do
movimento rejeição/aceitação vivenciado pela população negra brasileira em
relação ao seu corpo e seu cabelo, ressalva a importância de “não
desconsiderar a relação entre o passado e o presente” apontando um trabalho
realizado no Rio Grande do Sul
40
, ao citar estudos que sustentam que um dos
sustentáculos do escravismo foi a negação da identidade negra concretizada a
partir da “coisificação imposta ao africano”.
A autora explicita que busca, nessa perspectiva, “as possíveis razões
históricas do conflito rejeição/aceitação presente na cultura e na subjetividade
dos negros, a ponto de atingir a sua relação com a estética corporal” (p.152).
Neste sentido, o detalhamento do contexto local me fez perceber que
alguma coisa muito singular em Pelotas, a “Princesa do Sul”. Tendo em visto o
referencial escolhido para a pesquisa, tal singularidade foi se delineando em
indícios de uma forte manutenção da subjetividade do período colonial, a
despeito das mudanças nas políticas de subjetivação que, inevitavelmente, são
ditadas ao longo dos processos históricos pelos quais as sociedades vão se
40
Ver CARDOSO (1962).
96
defrontando. Considerei por subjetividade colonial especificidades que, no meu
entender, caracterizam grosso modo às relações étnico-raciais na cidade.
Para melhor analisar tal quadro, elaborei uma listagem sintética na qual
dispus os elementos que me sugeriam tais especificidades:
1) a identificação de uma insistente invisibilidade da participação da
população afro-descendente nas narrativas históricas sobre a construção da
cidade, ou seja, o mito fundador;
2) a identificação de uma insistente invisibilidade do grande percentual
de população negra na composição do percentual total da população da cidade
na contemporaneidade;
3) a identificação de uma insistente imobilidade sócio-econômica da
população negra, que pode ser traduzida pela manutenção de espaços
racializados (apartação), dentre vários outros, as vilas periféricas, no que tange
a local de moradia, e o Balneário dos Prazeres (Praia do Barro Duro), no que
tange a local de lazer.
Suspeitei que o racismo vigente na sociedade brasileira como um todo
não seria suficiente para sustentar uma análise mais criteriosa deste contexto.
Justifiquei tal suspeita por intermédio da percepção de quatro fatos:
1) o fato de Pelotas registrar um significativo contingente de população
negra que pode ser percentualmente o maior de toda a Região Sul do Brasil;
2) o fato de Pelotas estar situada no estado da federação com o
segundo menor percentual de negros, no qual o discurso hegemônico
supervaloriza a presença de europeus, sobretudo portugueses, italianos e
alemães, em detrimento da também presença de outros grupos étnicos, em
especial o afro-descendente;
3) o fato de Pelotas estar inserida na região do Rio Grande do Sul
(Metade Sul) com menor índice de crescimento e maior índice de pobreza, em
contraste com o fato de a cidade ter alcançado projeção nacional no período
colonial, por conta de um crescimento econômico ímpar. Crescimento este
viabilizado somente a partir da exploração das(os) trabalhadoras(es)
negras(os) escravizadas(os).
4) o fato de a história registrar a existência de uma significativa listagem
de ações realizadas pela comunidade negra da cidade, sobretudo àquelas
verificadas nas primeiras décadas do século XX, dentre elas, a fundação do
97
Jornal A Alvorada, um dos mais longevos da imprensa negra brasileira (1907-
1967); as fundações de dezenas de clubes negros; e a criação da Frente Negra
Pelotense (1934)
41
.
Esses fatos me confirmavam que havia mesmo alguma coisa de peculiar
na “Princesa do Sul”, além do racismo à brasileira. Pareceu-me, neste sentido,
impossível não tentar descobrir quais os interstícios do dispositivo local que
mantém o que supus ser uma subjetividade colonial.
Cogitei que o primeiro deles seria o mito fundador da cidade, o qual
nomeei de o mito da riqueza do colonizador (que também poderia ser traduzido
(ou desdobrado) no mito do paraíso perdido).
Considero que, segundo este mito, no passado - entendido por “nos
tempos do colonizador” -, a cidade era tão rica, tão rica, que era considerada
uma das mais prósperas do Brasil, o que possibilitava para os seus moradores
viagens incessantes a Europa, nas quais estes tinham contato com a cultura
erudita do mundo civilizado. Assim, na volta para casa, tal cultura era
repassada aos habitantes da cidade, por intermédio da disseminação popular
do gosto por sofisticadas manifestações artísticas e culturais, com destaque
para a arquitetura.
Exemplos de narrativas desse mito podem ser observados em 2007,
com uma breve análise do material publicitário distribuído gratuitamente nas
dependências da Fenadoce (Feira Nacional do Doce)
42
, o maior evento da
cidade.
Vejamos alguns trechos:
Pelotas Uma viagem pela história - [...] A riqueza das Charqueadas
trouxe arquitetos famosos da Europa para a construção de casarões,
palacetes e monumentos, formando um conjunto arquitetônico único,
nos estilos neoclássico, renascentista, compósito, açoriano, colonial e
art-noveau. [...] Fundada em 7 de julho de 1812, a cidade tornou-se rica
e próspera, sendo rota obrigatória de atividades culturais. A herança
41
A Frente Negra Pelotense foi criada por ativistas negros de Pelotas, em 1932. Era uma
organização negra de caráter político voltado para a luta contra a discriminação racial e a
busca da ascensão social da população negra, prioritariamente por intermédio da educação. A
Frente Negra Pelotense seguia os passos da Frente Negra Brasileira (FNB) que foi criada em
1931 com o objetivo de unificar nacionalmente a luta de diversas entidades negras que
atuavam em vários cantos do país. Durante seis anos, a FNB promoveu atividades anti-
racistas, incluindo grandes desfiles e passeatas. A divulgação e o chamamento para as ações
ficavam por conta do jornal A Voz da Raça. O desmantelamento da FNB aconteceu em 1937,
com a ditadura de Getúlio Vargas.
42
Criada em 1986, a Fenadoce acontece anualmente e recebe visitantes de várias partes do
país.
98
dos portugueses pode ser encontrada na arquitetura local, nas ruas,
culinária e cultura [...] (Jornal VIP, Pelotas, Ano III, Fenadoce Especial
N. 3 – Junho de 2007, p.15) (grifo meu)
15 Fenadoce - Um resgate à cultura e ao orgulho pelotense - [...] A
cultura doceira de Pelotas foi herdada de Portugal, através das
riquezas trazidas junto aos imigrantes que vieram em meados do
século XIX. Esses contribuíram com suas deliciosas receitas de ninhos,
fios-de-ovos, babas-de-moça, camafeus, papos-de-anjo, canudinhos
recheados, pastéis de Santa Clara e outros mais. Mas os imigrantes
italianos e alemães tiveram sua participação, pois também trouxeram e
criaram suas fórmulas [...] (Revista Trilhas. Esporte, cultura, lazer, N 1,
Julho de 2007, p. 6-7) (grifo meu)
Pelotas e seus doces [...] Baseada na Indústria do Charque, no final
do século XVIII, Pelotas era sinônimo de elegância, desenvolvimento e
prosperidade. Vem dessa época a denominação de Cidade Princesa
do Sul e também o apelido de Atenas Rio-Grandense, reflexos da
opulência de suas construções urbanas e do compromisso de seu povo
com as artes e as letras. Ao longo de sua história, os pelotenses que
no início foram basicamente portugueses, receberam a contribuição
de muitos outros povos como: alemães, franceses e italianos.
Imigrantes que vieram contribuir não só para a diversificação da
arquitetura da cidade, como também aprimorar ainda mais seus
costumes e sua doce culinária [...] (Noite & Cia, Ano 05, n. 110, de 01
a 15 de julho de 2007, p. 17(especial) (grifo meu)
Os textos, narrativas míticas que constroem uma história da cidade a
partir da exaltação da riqueza obtida por intermédio da indústria do charque,
não citam em momento algum a presença da população negra neste processo.
Uma perspectiva que poderia apontar para a contradição entre a riqueza
supostamente de todos e a participação decisiva e imprescindível da população
negra escravizada na manutenção das charqueadas.
Afinal, as(os) negras(os) eram as(os) trabalhadoras(es) desta indústria e
as(os) consumidoras(es) do produto final industrializado. Sem negras(os), além
de o ter a mão-de-obra, a indústria não teria consumidores e, portanto o
charque não poderia ser transformado em mercadoria.
Além disso, o reconhecimento da presença negra possivelmente
rasuraria o mito no que diz respeito às tradições culturais européias, que
seriam a marca tradicional da cidade, e, quem sabe, poderia resultar em
questionamentos quanto à cristalização local da assimetria das relações de
poder, em especial, no que tange a invisibilidade, subalternidade, exclusão e
apartação em que se encontra, em geral, a população negra da cidade.
Neste sentido, ao referir-se a cidade, alguns dos referidos textos
lembram apenas da participação de imigrantes italianos e alemães. Um
99
discurso que contradiz estudos que apontam que Pelotas “não recebeu
contingentes de imigrantes”, o que pode ser entendido que a presença de
imigrantes não chegou a constituir peso significativo para o cômputo total da
população da cidade (BARCELLOS, 1996, p.46).
De qualquer forma, a exclusiva presença de portugueses, italianos e
alemães em Pelotas estaria também em sintonia com o discurso que é
repassado para o restante do país, segundo o qual o Rio Grande do Sul é um
Estado com uma população quase que exclusivamente branca descendente,
em grande parte, de imigrantes europeus.
Em outras palavras, diferentemente do restante do Brasil, o mito de
origem do Rio Grande do Sul o inclui a presença do negro. Fato
perfeitamente sintetizado por Barcellos:
O Rio Grande do Sul é uma região assentada numa formação
multiétnica e numa ideologia que enfatiza o valor da imigração
européia e da mística campeira livre e branca. Diferencia-se do
restante do país quanto ao processo que o formou bem como pela
ideologia que o reconstrói. [...] Os elementos documentais que
embasaram a historiografia clássica do Rio Grande do Sul constituíram
os alicerces do ideário democrático e branco do estado. Enfatizando a
formação luso-brasileira do Rio Grande do Sul e omitindo a presença
do negro, elaborou-se o imaginário gaúcho sobre si mesmo que exclui
o negro não só dos estudos históricos, mas da própria sociedade
(BARCELLOS, 1996, p.60).
Assim, ainda que esta mesma autora aponte que novos estudos,
principalmente realizados a partir da última década do século XX, começaram a
desfazer esse imaginário, cogito que é necessário um tempo maior para que
esse deslocamento do discurso acadêmico sobre as relações étnico-raciais no
Rio Grande do Sul possa ser reconhecido pela mídia. Sem desconsiderar, é
claro, que o discurso midiático sustenta relações de poder que atendem aos
interesses hegemônicos.
Ainda sobre a Fenadoce, cabe ressaltar que foi somente em 2005 que
uma jovem negra, Francine Dias, na época com 20 anos, foi escolhida para ser
a soberana do evento. Enquanto a manchete na capa do Diário Popular, do dia
24 de outubro de 2005, falava em quebra de tabu, a matéria, assinada pelo
jornalista Ivan Rodrigues começava com a seguinte frase: “Ao longo de 13
edições nunca uma negra havia integrado a corte da Feira Nacional do Doce” .
100
Vejamos uma carta enviada por um leitor para o Diário Popular e
publicada na coluna Instantâneos, no dia 29 de outubro de 2005:
Parabéns Pelotas! Estou imensamente satisfeito com a escolha da
rainha da Fenadoce. Pelotas cresce com esta escolha. Foi uma mostra
que os requisitos para o concurso foram respeitados. Pela primeira vez
uma menina negra representará a cidade. Para a comunidade negra e
também comunidade carnavalesca, que são origens da querida
Francine, é um orgulho muito grande; essa escolha nos deixou muito
feliz. Ela que começou no carnaval como porta-bandeira da E.S.M.
(Escola de Samba Mirim) Explosão do Futuro em 1997, rainha do
Carnaval, mais bela negra Pelotas, miss mulata do Mercosul em 2004,
este ano desfilou na Estação Primeira do Areal.
É significativo observar que, mesmo com todas as premiações recém
citadas, quando pensou em participar do concurso para Rainha da Fenadoce,
Francine Dias não recebeu apoio da comunidade carnavalesca da qual sempre
participou, uma vez que esta não acreditou na possibilidade de sucesso de
uma negra neste tipo de concurso. Apenas o coreógrafo negro Daniel Amaro,
especializado em dança afro, acreditou no sonho de Francine e convidou-a
para ser a representante do grupo de dança que ele dirige. Foi com o
coreógrafo que a Rainha da Fenadoce 2005 aperfeiçoou a performance de
sambista nos preparativos para ser a Rainha do Carnaval de Pelotas, em 2004.
Na noite em que foi escolhida a Rainha da Fenadoce, Francine pode
contar com uma pequena torcida, composta praticamente por familiares. A
vitória foi uma surpresa geral.
Acho relevante também analisar outras faces do dispositivo da
subjetividade colonial. Pelo menos é essa a leitura que eu faço, por exemplo,
de uma iniciativa do diretório acadêmico do Curso de Turismo da UFPel que,
acontecendo também durante a Fenadoce de 2007, gerou protestos entre
representantes dos movimentos negros de várias regiões do país. Tratou-se do
projeto Doces Imagens – Você na Era do Charque, uma parceria com a
Associação Museu do Charque e alguns estabelecimentos comerciais, que
consistia em um estande onde os visitantes da feira, por um preço entre R$ 15
e R$ 30 reais, poderiam vestir réplicas de roupas utilizadas pelos
charqueadores, como eram conhecidos os proprietários da indústria do
charque, e ou pela população negra escravizada, ser fotografados com tais
indumentárias e depois receber a foto como lembrança da feira.
101
Vejamos trechos de release de divulgação do projeto encaminhado no
dia 12 de julho de 2007 e publicado na íntegra por alguns pequenos jornais e
páginas eletrônicas de veículos de comunicação da cidade:
Segundo um dos coordenadores do projeto, Daniel Balhego, o objetivo
principal da presença do “Doces Imagens” na multifeira é dar início ao
resgate da cultura do charque de Pelotas. “Muitas pessoas não
conhecem o passado da Princesa do Sul e isso influencia muito na
hora de valorizar o que temos aqui”, salienta o aluno. Segundo ele, a
iniciativa é o ponto de partida para divulgar o belíssimo passado da
cidade. [...] Entre as três camadas sociais da época as roupas de
charqueadores são as mais procuradas na multifeira, mas além delas,
ainda estão à disposição do público os vestuários de comerciantes e
escravos de 1860.
Indignada a porto-alegrense, Nilda Correa, que reside em Brasília e
tomou conhecimento da iniciativa por intermédio de um destes sites, utilizou a
Internet para lançar uma carta de repúdio abaixo-assinada, na qual considera a
iniciativa “de mau gosto”. Vejamos trechos deste documento que circulou via
Internet por listas de ativistas dos movimentos negros de todo o Brasil, sendo
encaminhado à direção do Curso de Turismo da UFPel:
Será que os turistas ao vestir a roupa de escravos 1860 irão sentir as
chibatas arder no seu corpo, irão assistir ao número de escravos que
morriam de exaustão pelo excesso de trabalho ou de banzo
? [...]
A
direção do Curso de Turismo deve ter cuidado ao associar a imagem
da escravidão a algo tão doce e belo, pois a escravidão foi sim algo
amargo com fel e horrível, deixou cicatrizes profundas, foi este o preço
pago à escravidão nas charqueadas. [...] Até hoje os afro-brasileiros
lutam e resistem pelo direito de ter uma igualdade racial.
Também em 2007, a Fundação Cultural Palmares, órgão ligado ao
Ministério da Cultura, assinou Termo de Cooperação Técnica com a UFPel
43
,
tendo como principal objetivo “resgatar a importância da cultura negra”. Para o
informativo eletrônico Palmares
44
do dia 13 de março de 2007, o vice-reitor da
UFPel, Telmo Pagana Xavier, disse que “o ato trará um grande incremento
para a região e resultados significativos para todos, principalmente porque
Pelotas tem um grande número de afro-descendentes”. o presidente da
Palmares, Zulu Araújo declarou, no mesmo informativo, que “em uma cidade
que tem 48% de afro-descendentes em sua população total, devemos sim
43
Segundo levantamento feito por BARCELLOS (2006), a UFPel tinha matriculados em 2005
somente 4% de alunos que se auto-classificaram como negros.
44
Disponível em www.palmares.gov.br.
102
divulgar e levar ao conhecimento de todos a história dos negros e negras que
aqui chegaram”.
Por fim, neste mesmo ano, evento realizado em um dos clubes negros
destinado a homenagear a etnia negra da cidade, inusitadamente reservou a
mesa principal exclusivamente para representantes de poder público local, em
detrimento, por exemplo, de associadas(os) do clube que fossem ilustres ou
históricas(os) ou idosas(os) - símbolos da experiência vivida - ou jovens -
símbolos da perspectiva de continuidade de um projeto; ou mesmo
pesquisadoras(es) locais que começam a se destacar pelos estudos sobre o
tema etnia negra. Passei a desconfiar que houvesse mesmo alguma coisa
muito peculiar nos clubes negros.
Desta forma, ao observar que na abertura do referido evento um
representante do poder público municipal dizia estar se sentindo confortável em
um espaço físico que havia sido doado à comunidade negra por um familiar
seu que, na primeira metade do século XX, também havia sido titular de
importante cargo público na cidade, comecei a suspeitar que houvesse uma
cristalização nas relações étnico-raciais locais. O cruzamento com pesquisa de
Loner (1999) sobre organizações negras em Pelotas respondeu algumas das
minhas inquietações.
Considerei relevante para a minha investigação o fato de o estudo desta
pesquisadora sobre a etnia negra em Pelotas, no meu entender, ter apontado
para uma rígida divisão cio-econômica entre os freqüentadores dos clubes
negros. Tal constatação parece ser uma pista do quanto às relações étnico-
raciais locais estariam marcadas pela presença do colonizador, uma vez que,
ao fundar diferentes clubes negros, a população de trabalhadoras(es)
negras(os) apenas reproduzia, entre si, uma experiência de apartação
observada no comportamento do colonizador. Vejamos algumas reflexões da
autora em relação às organizações negras:
Para as lideranças mais conseqüentes, buscava-se a integração, com
o respeito ao negro e sua cultura e história. Mas havia também aqueles
que buscavam a integração individual pela perda dos traços distintivos
do grupo negro, tanto cultural quanto fisicamente. As várias
organizações criadas por eles [os negros] na cidade, refletiram de
alguma forma, essas diversas estratégias, havendo, inclusive,
associações exclusivas de determinados grupos ou setores, dentro da
etnia, e que discriminavam os demais (LONER, 1999, p.32).
103
De posse destes dados, arrisquei-me a fazer uma revisão histórica à luz
de um deslocamento do enfoque até então feito sobre os clubes negros
pelotenses. Assim, ainda que não desconsiderando a boa impressão causada
por estas referidas entidades em Florestan Fernandes, que garantiu, em 1955,
não ter visto nada igual no restante do Brasil (Loner, 1999, p.33), duvidei que
tais clubes fossem genuínos exemplos de um movimento de resistência anti-
racista. Justifiquei tal problematização a partir da visível perpetuação da
territorialidade de apartação, invisibilidade e subalternidade em que se
encontra a população negra da cidade. Assim, tendo em vista detectar algumas
pistas que apontassem os motivos do que considerei uma contradição, passei
a tentar analisar tais organizações negras pelotenses.
Levei em conta primeiramente a afirmação de Loner de que os
associados de determinados clubes pertenceriam às elites negras e às classes
alta e média. Tal afirmação, no meu entender, entra em contradição com
levantamentos apresentados pela mesma autora, sobre a sintonia entre o
movimento operário e a criação das entidades negras em Pelotas.
Segundo a pesquisadora, muitas destas entidades eram uma forma de
resistência contra a discriminação sofrida por negras e negros e uma maneira
destes se organizarem, tendo em vista o pleito da ascensão social, o que
significava o abandono da condição de pária por intermédio do ingresso na
condição de operário. Vejamos as palavras da autora:
Para este grupo, ser operário, embora significasse uma vida difícil e
sofrida, ainda era superior à situação de fazedor de biscates, sem
profissão definida, mão de obra apenas para tarefas humilhantes,
pesadas ou esporádicas, que era o que a sociedade parecia reservar
ao grupo. A situação de pária era menos valorizada do que a situação
de operário, mesmo que a segunda implicasse em trabalho pesado e
pouca remuneração. Por isso mesmo, vai-se encontrar sempre a
presença das associações negras em todas as festas operárias da
cidade ou participando de lutas e comemorações da classe (LONER,
1999, p.22).
Neste sentido, suspeitei que os informantes de Loner, possivelmente
pertencentes à população negra, tenham repassado uma interpretação
particular do poder aquisitivo dos associados dos referidos clubes negros, ao
invés de uma classificação que corresponda aos paradigmas
convencionalmente adotados para a classificação de classe social. Isso me fez
lembrar que eu mesma, neta de empregada doméstica e de lavadeira,
104
analfabetas, filha de trabalhador gráfico e de professa primária, estudante de
escola pública, moradora de bairro da periferia, passei a infância inteira e
quase toda a adolescência freqüentando o clube da elite negra da cidade.
Considerei ainda que o incentivo dado por representantes do poder
hegemônico para a manutenção destes clubes, ao contrário de significar um
relacionamento étnico-racial amistoso ou cordial, como tais representantes
defendem ao longo dos anos, pode ser interpretado como um dos
componentes do dispositivo para a manutenção da apartação étnico-racial na
região. Apartação esta que se manteve durante todo o século XX e pode ser
constatada, por exemplo, por intermédio das pesquisas de Silva (2000) e
Coutinho (2002) ainda nos primeiros anos do século XXI.
Questionei também os motivos de uma suposta abertura das entidades
negras para outros segmentos e etnias e suspeitei que o discurso do
branqueamento pudesse estar muito presente neste procedimento. A seguinte
constatação de Loner pode dar uma pista a este respeito:
Poucos estatutos conseguiram ser recuperados dessas associações.
Entretanto, tem-se o suficiente para perceber suas diferenciações em
relação a outras entidades. Consultando-os, percebe-se que não havia,
por parte das entidades negras, discriminação com relação a
elementos de outras etnias ou cores. [...] Uma comprovação desse fato
é a trajetória da sociedade Harmonia dos Artistas. Nascida de uma
cisão de uma entidade negra, em 1881, ela vai, ao longo dos anos,
incorporando uma série de artistas brancos, alguns imigrantes.
Reestruturada em 1895, ela passou por nova cisão em 1898, a partir
da formação interna de grupos com posições diferenciadas. Embora
não se possa saber os reais motivos da divisão, uma chapa perdedora
em duas eleições sucessivas se retira e forma a S.B. União
Humanitária, também de artesãos e com maioria de elementos da
nacionalidade portuguesa entre seus quadros (LONER, 1999, p.23).
Tais informações fizeram com que me arriscasse a inferir que a
pretendida “integração” defendida pelas entidades negras teria grandes
probabilidades de manutenção da mente colonizada, nos moldes sugeridos por
Fanon (1983).
O que, por sua vez, me levou a inferir também que negros(as)
trabalhadores(as) com melhores condições financeiras que tinham acesso
negado aos clubes sociais freqüentados exclusivamente por pessoas brancas
(elite econômica / poder hegemônico) reproduziam em seus clubes negros as
festas “de gala”, bailes de debutantes e outras manifestações tidas como
105
típicas da “elite” e, na mesma proporção, reproduziam a apartação que sofriam
ao negarem (ou tentarem negar) o acesso nestes referidos clubes negros de
outros(as) negros(as) trabalhadores(as) com menores condições financeiras e
menor poder aquisitivo.
Os clubes negros reproduziam as relações de apartação colonial, ainda
que, de fato, provavelmente a totalidade dos(as) associados(as) destes
referidos clubes fosse composta por trabalhadores(as). Reproduzia-se assim a
apartação verificada na sociedade e, por exemplo, um(a) freqüentador(a) do
“Fica Aí” preferia se abster de freqüentar o “Chove Não Molha”, enquanto
um(a) freqüentador(a) deste clube desdenhava os(as) do “Fica Aí”, por
considerá-los(as) esnobes.
Neuza Santos Souza sintetiza esse conflito ao analisar casos em que de
fato verificou-se uma ascensão social. Penso, no entanto, que tal análise serve
perfeitamente para as rivalidades ocorridas dentro da classe trabalhadora,
entre quem tem menos poder aquisitivo e quem tem um pouco mais, ou entre
párias e operários.
De um lado ficavam aqueles que se conformavam com a “vida de
negro” e do outro os que ousavam romper com o paralelismo negro-
miséria. Uns e outros se hostilizavam reciprocamente. Os primeiros,
pelo ressentimento de não subir na vida” e pela convicção de que
perderiam o antigo companheiro que, ao ascender, se afastaria do
meio negro. Os outros, por um sentimento de retaliação frente à
hostilidade dos primeiros e pela tendência a assimilar o discurso
ideológico da democracia racial que o negro que não sobe como
desqualificado, do ponto de vista individual. Assim, o negro que
conseguia romper com todas estas barreiras e ascender, tornava-se
exceção. E a condição sine qua non para a “pessoa de cor” contar
como exceção ainda é a identificação ostensiva com os interesses, os
valores e os modelos de organização da personalidade do “branco”
(SOUZA, p. 23 apud SANTOS, p. 50).
Depoimento coletado por Regina Soares, em estudo com mulheres
negras da Metade Sul do Rio Grande do Sul, pode ser também uma pista neste
sentido. Segundo Soares (2003, p.24), Dona Zilda, empregada doméstica, que
nos primeiros anos do século XXI contava com aproximadamente 60 anos,
disse ter ido, na juventude, somente a um baile no “Depois da Chuva”, “pois
naquela época, eram muitas as exigências para poder participar e a sua
condição financeira não permitia”. Por este motivo, Dona Zilda, ao invés dos
clubes sociais negros freqüentava os bailes que um tio “realizava para os
106
negros” na Sede da Sociedade 15 de julho, um clube social branco. Cabe
ressaltar que, segundo Loner (1999), o “Depois da Chuva” era o clube social
negro cujos associados tinham o menor poder aquisitivo.
Avançando um pouco mais considerei que talvez este comportamento
correspondesse bem mais à expectativa do branqueamento “em termos
culturais”, do que a uma tentativa de valorização de um pertencimento étnico-
racial, o que talvez seja compreensível em uma sociedade fortemente
verticalizada e marcada por políticas de subjetivação voltadas para a
manutenção da hegemonia do colonizador português.
Neste sentido, o branqueamento, a potente estratégia de biopoder
adotada pelo Estado Brasileiro exatamente na época em que explodiram as
entidades negras em Pelotas (nas primeiras décadas do culo XX), foi
apreendido pelo grupo discriminado, como sendo uma das saídas para burlar a
discriminação. Ou seja, as dificuldades de lançar mão do branqueamento
biológico (a mestiçagem) podem ter jogado as expectativas para a
possibilidade de que estratégias de branqueamento cultural pudessem produzir
resultados satisfatórios.
A meu ver, isto poderia ser traduzido por intermédio da meta principal de
muitas destas entidades que consistia na integração - ainda que, no primeiro
olhar, tais estratégias tenham sido vistas como resistência cultural.
Órfãos de um mito de origem, negras e negros da Metade Sul da Região
Sul dispunham somente da figura negativa do escravo, em um estado onde a
afirmação das origens étnico-raciais eram e são bastante valorizadas, como
também as fronteiras étnico-raciais eram e o bem definidas. Permaneceram,
de fato, em uma espécie de orfandade de pertença, por conta da potente
negação hegemônica da presença de afro-descendentes na região.
Acredito que o traçado desta pesquisa busca ferramentas para
desconstruir, entre tantos outros, o estereótipo “o negro discrimina o negro”.
Tratando-se, portanto, da tentativa de um deslocamento de perspectiva tendo
em vista, prioritariamente a captura de aspectos do processo de subjetivação
decorrente dos dispositivos que mantém o racismo, nos moldes propostos por
Avtar Brah (2006), quando esta problematiza o fato de que, salvo o trabalho
realizado por Frantz Fanon, poucos estudos têm buscado penetrar nos efeitos
subjetivos do racismo.
107
Sem considerar a obra de Fanon, o envolvimento com a problemática
da racialização da subjetividade é ainda limitado. Como seriam
perturbadas as formulações psicanalíticas tratando do racismo? [...] Em
outras palavras, precisamos molduras conceituais que possam tratar
plenamente a questão de que os processos de formação da
subjetividade são ao mesmo tempo sociais e subjetivos; que podem
nos ajudar a entender os investimentos psíquicos que fazemos ao
assumir posições específicas de sujeito que são socialmente
produzidas (BRAH, 2006, p.369-370).
Neste sentido, não se trata de desacreditar o discurso de que o grande
número de associações negras de Pelotas seria um exemplo de resistência
negra. Trata-se de rever escolhas que parecem ter resultado na manutenção
de territórios existenciais colonizados, muito próximos (ainda) do colonizador,
ao invés de permitir a desterritorialização de subjetividades e a conseqüente
possibilidade de escolha por reterritorializações, no limite, descolonizadas. Não
é o caso também de “condenação” do caminho escolhido. Estratégias
pertencem aos seus contextos. E contextos, penso eu, precisam ser analisados
à luz da perspectiva temporal da experiência vivenciada. É apenas uma
questão de considerar a relação entre o passado, as metanarrativas que
perpetuam este passado e a construção (ou não) de contra-narrativas que
contestam (ou não) estas metanarrativas.
Para finalizar esta contextualização, apresento trechos da revista
produzida pelo poder público de Pelotas para prestar contas à comunidade,
das ações realizadas no biênio 2005-2006
45
.
Vejamos parte do texto publicado na página 04 e intitulado “Trabalho e
otimismo vencem acomodação e pessimismo”:
Pelotas é uma grande cidade, com inúmeras possibilidades e as mais
variadas potencialidades de crescimento socioeconômico,
consideradas únicas no contexto do Estado e do País. Com um povo
ordeiro, trabalhador, culto e participativo, Pelotas reúne as condições
ideais para se transformar em um Município moderno, desenvolvido e
próspero, onde as pessoas possam viver com tranqüilidade, dignidade
e qualidade de vida. Diante disso, algumas questões se impõem: por
que, então, Pelotas ainda não conseguiu vencer suas dificuldades e
deu o grande salto de modernidade rumo ao futuro? É possível reverter
o quadro de estagnação, o pessimismo de alguns, a indiferença de
outros tantos e a desesperança de significativa parte da população?
45
Prefeitura de Pelotas, Revista de Prestação de Contas 2005-2006, Secretaria de
Comunicação Social (Secom), mar. 2007.
108
Quais são os caminhos que Pelotas deve trilhar para assegurar o lugar
de destaque que lhe pertence no contexto do Rio Grande do Sul e do
Brasil?
Mais adiante, na gina 05, a mesma publicação critica a disparidade
dos orçamentos das duas maiores cidades do interior do Rio Grande do Sul,
que possuem quase o mesmo número de habitantes que Pelotas. Segundo a
publicação, Caxias dispõe de R$ 1,5 mil para cada habitante; Canoas
disponibiliza R$ 1 mil; e Pelotas R$ 500,00.
Considero a publicação emblemática, a partir da abordagem
manifestada por alguns textos que denuncia, penso eu, a baixa auto-estima
que orienta a subjetividade local, bem como uma pista de que esta pode ter
relação direta com a conjuntura socioeconômica da cidade.
109
3.4. OUTROS CAMINHOS PERCORRIDOS PARALELAMENTE
Pois bem, após abordagens sobre trajetórias de mulheres negras no
Brasil e sobre o contexto local do lugar do estudo, passo a focalizar a partir de
agora a coleta de dados, que consistiu em entrevistas com jovens estudantes
negras.
Tendo por base os requisitos explicitados na seção 3.1. (Traçando a
trilha), cheguei à escola escolhida para locus da pesquisa. Trata-se de um
estabelecimento de ensino ligado à rede pública estadual que possui um
elevado percentual de alunas(os) negras(os), fato que leva as(os)
professoras(es) a classificá-lo de “escola negra”.
Tal perspectiva passou a ganhar visibilidade na cidade de Pelotas a
partir do ano de 2002, com a implantação do projeto De mãos dadas com
nossas raízes e nossos irmãos. O projeto nasceu de um concurso de beleza
que foi intitulado A mais bela negra e o mais belo negro, tendo em vista as
atividades alusivas ao Dia da Consciência Negra, 20 de novembro.
De 2002 até 2007, somaram-se ao concurso diversas ações no sentido
de estimular a auto-estima da comunidade negra escolar, bem como da
comunidade negra do bairro no qual a escola está inserida e até mesmo da
comunidade negra da cidade de Pelotas.
Foram os professores ligados a este projeto que me receberam na
escola e possibilitaram o meu acesso às estudantes que poderiam
potencialmente incorporar o papel de sujeitos da minha pesquisa. Por
intermediação destes, a intenção do estudo foi apresentada às estudantes
negras em sala de aula e foi feita a sondagem sobre quais e quantas delas
poderiam e estariam dispostas a participar da investigação.
110
Feito isso, iniciou-se para mim um processo de reconhecimento da
escola que incluiu não apenas os sujeitos em potencial, mas o espaço escolar
como um todo. Cabe ressaltar, neste sentido, a receptividade bastante
amistosa que senti por parte de representantes de todos os segmentos da
comunidade escolar com os quais estabeleci contatos: a direção, alguns
professores e funcionários, bem como várias estudantes, dentre elas as jovens
que poderiam ser os sujeitos da pesquisa.
Assim, a metodologia foi sendo desenhada em forma de uma rede de
articulação entre a pesquisadora e a comunidade escolar. Este desenho se
delineou por intermédio da observação do espaço físico da escola durante
algumas manhãs sem e com a presença das (os) estudantes.
Merece destaque a grande presença de jovens negras e jovens negros.
O que, confesso, causou-me uma sensação de pertencimento nunca
vivenciada durante toda a minha trajetória escolar: ensino básico (fundamental
e médio), graduação e pós-graduação.
Silva (2000, p.127) aborda este aspecto em item da pesquisa feita com
professoras negras em Pelotas, no qual analisa a exclusão da população negra
dos bancos escolares. Neste sentido, a autora optou por deixar anônima a
epígrafe “De negra era só eu”, uma vez que a considerou um “elemento comum
a todos os relatos”. Fato verificado “independentemente dos tempos e espaços
onde se situam as trajetórias escolares”.
A autora avalia que “a ausência de colegas negros dificulta a
identificação entre eles” [a população negra], o que resulta, na opinião das
suas entrevistadas, em “um problema porque acaba reforçando a ideologia do
branqueamento e, consequentemente, um maior afastamento dos valores
negros” (p.132).
Considerei o depoimento de uma das professoras negras entrevistadas
por Silva revelador: Eu senti isso na Faculdade. No início foi um horror! Me
olhavam assim...de cima a baixo. Também, não tinha nenhuma outra negra.
Era eu, como se eu fosse um bicho raro. Aquilo era gritante” (SILVA, 2000,
p.135).
Neste sentido, vou abrir um parêntese para uma breve antecipação dos
dados coletados por mim e apresentar o depoimento de uma das jovens
estudantes negras entrevistadas para esta pesquisa, a qual será chamada pelo
111
nome fictício Ana. Considero que tal depoimento ratifica as constatações de
Silva (2000) no que diz respeito a uma “permanência” da exclusão da
população negra pelotense dos bancos escolares, ao mesmo tempo em que
aponta para a relevância do sentimento de pertença:
D: E a quantidade de negros [na escola fundamental] era pequena, era
grande?
Ana: Na minha aula mesmo eu acho que era eu e outra menina só.
D: E aqui nesta escola?
Ana: Tem mais, principalmente de manhã. De manhã tem bastante.
Quando eu estava de tarde eu vim fazer um trabalho de manhã, eu
recém tinha chegado ao colégio e eu até estranhei porque no meu
outro colégio não tinha tanto assim. Eu tinha visto muitos alunos
negros. Eu até comentei com a minha mãe em casa: como tem alunos
negros lá. Eu achei interessante.
D: E o que você acha disso? É interessante, mas interessante quer
dizer o quê?
Ana: Que sei não estão desistindo assim tão fácil estão caminhando
além. Algo do tipo assim. [...] Eu gosto mais daqui do que de lá.
D: Você se sente melhor aqui?
Ana: É me sinto melhor aqui.
Pois bem, foi com uma sensação inusitada de pertencimento que travei,
no pátio da escola, os primeiros contatos com as jovens que foram receptivas à
pesquisa. Neste clima, apresentei outros detalhes da investigação e fiz
consultas sobre dias e horários ideais para as respectivas entrevistas.
Observei que todas se conheciam, ainda que estivessem em turmas
diferentes. A maioria das jovens andava em grupo. Algumas em duplas.
Chamou-me a atenção à forma pela qual se referiam umas as outras. Quase
que unanimemente utilizavam os termos “neguinha”, quando interpeladas por
mim para saber a localização das colegas. “Ah aquela neguinha do segundo
ano?”, por exemplo.
Lembrei que Silva (2000) avalia esta subtração do nome próprio como
sendo uma forma de silenciamento e utiliza para justificar esta interpretação o
seguinte depoimento de uma das suas entrevistadas:
Quando alguém te fala sobre uma pessoa negra que não conheces, a
maioria não diz é fulana. Mas identificam pelas características físicas, e
geralmente, destacando aspectos menos positivos. Sabes, é aquela
negrinha, assim...que tem o cabelo despenteado, que anda sempre
com aquele vestido...assim....assado...(SILVA, 2000, p.148).
Observei comportamentos, gestos, ocupações de espaços, hábitos de
vestuário e conversas que captei aleatoriamente no pátio da escola. Quanto ao
espaço físico, acho relevante salientar a boa impressão que me causou o locus
112
da pesquisa. A meu ver, a escola é ampla e limpa, incluindo paredes, muros,
corredores, banheiros e tio. Os espaços são satisfatórios, destacando-se a
sala de informática, as quadras de esportes e a sala de vídeo.
Durante este primeiro contato muitas jovens, negras e brancas,
aproximavam-se querendo saber do que se tratava e manifestando interesse
em participar da pesquisa. Foi neste momento que decidi flexibilizar a faixa
etária e incluir também jovens de dezoito anos. As jovens negras se
encarregavam de comunicar às brancas, de um jeito que eu classificaria como
“jocoso amistoso”, que o papo era só para as negras.
Além das estudantes contatadas, conversei com outras duas
explicando os pontos básicos da pesquisa e coletando os seus nomes,
telefones e turmas. Fiz isso porque, apesar da ótima receptividade das jovens,
relatos feitos informalmente por pesquisadores que também optaram pela
pesquisa com sujeitos adolescentes, apontavam para a grande probabilidade
do não comparecimento aos encontros e/ou a evasão da pesquisa.
Foram, aliás, estes relatos que geraram em mim uma ansiedade que
acabou sendo a responsável pela demora no começo da investigação, uma vez
que achei que o momento certo para isso só aconteceria quando contasse com
um número que correspondesse a, no mínimo, o dobro dos sujeitos previstos
no projeto, ou seja, para um grupo de no máximo cinco entrevistadas, o ideal
seriam dez sujeitos em potencial.
Durante esse processo percebi que existe, por parte da instituição
escolar ou, pelo menos, por parte dos adultos que trabalham nesta instituição,
o que me pareceu ser uma baixa expectativa ou, melhor ainda, uma
expectativa negativa em relação ao comportamento e as iniciativas que advém
dos alunos jovens. Pude perceber isso tanto por parte de professores quanto
por parte dos funcionários que, por mais que tenham demonstrado claramente
o incentivo para a realização da pesquisa, mostravam-se reticentes em relação
ao desempenho que as alunas teriam durante o processo. Talvez elas não
fossem comparecer quando solicitadas. Talvez fossem ficar andando pelas
dependências da escola sem necessidade, após, ou antes, das entrevistas.
Talvez não fossem ter responsabilidade para corresponder aos compromissos
assumidos.
113
Tanto o diretor da escola quanto as meninas contatadas manifestaram
preferência para realizar as reuniões pelas manhãs de sábado. Isso porque o
referido estabelecimento de ensino funciona num regime chamado Escola
Aberta, mantendo as portas abertas sete dias por semana. Sendo que, aos
sábados e aos domingos pela manhã, das 10h ao meio-dia, além das
alunas(os) são esperadas(os) também representantes da comunidade em
geral, que usufruem do espaço físico da escola utilizando, por exemplo, as
quadras de esportes e/ou as salas de aulas onde são ministrados cursos
profissionalizantes organizados pela própria comunidade.
Pois bem, chegado o dia previsto para a primeira reunião, das doze
jovens que confirmaram pessoalmente a presença, apenas uma compareceu.
Este fato inusitado exigiu um esforço da minha parte para redirecionar a técnica
de pesquisa, a fim de que pudesse realizar a entrevista com esta jovem.
De qualquer forma, por algum tempo, minhas emoções pautaram-se
pelo medo da não realização do projeto, como também pela suspeita da
rejeição por parte dos sujeitos em potencial. O contato posterior com as jovens
estudantes que não haviam comparecido ao encontro marcado, felizmente,
dissipou as primeiras emoções negativas. O que não significa dizer, no entanto,
que as coisas se conduziram como eu havia previsto.
Quase todas as jovens justificaram que não compareceram porque,
naquela manhã, estavam dormindo. Disseram sorridentes - que saíram na
noite anterior e dormiram na manhã de sábado. Diante de tal resposta propus
um novo horário, ficando decidido que o sábado pela manhã não era a melhor
opção.
Na segunda reunião, prevista para uma sexta-feira à tarde (turno inverso
das aulas), apenas duas jovens compareceram. O que me obrigou novamente
a redirecionar a técnica da entrevista. Justifiquei para mim mesma que a
técnica da pesquisa teve seu procedimento redimensionado por intermédio da
ação dos sujeitos.
Tal repetição de ausência, bem como a dinâmica que se estabeleceu
com as três jovens que compareceram aos encontros previstos, levaram-me a
questionar a viabilidade da técnica prevista inicialmente, tendo em vista que a
maioria dos sujeitos já havia sido entrevistada.
114
Cabe aqui explicitar que tais entrevistas exigiram um esforço da minha
parte, decorrente do redirecionamento da cnica de pesquisa para uma
entrevista que, somente em parte, utilizou algumas das perguntas previstas em
roteiro apresentado no projeto da pesquisa, elaborado para o caso da
ocorrência de algum problema na condução do grupo de discussão.
Devido à flexibilidade que, de fato, caracterizou a conversa com as
jovens estudantes, considero que utilizei uma técnica mista construída a partir
da articulação entre procedimentos da entrevista semi-estruturada e da
entrevista de superfície.
Essa experiência fez com que eu começasse a rever os meus passos de
pesquisadora iniciante. Presa ao mapa delineado pelo projeto inicial de
pesquisa, os rumos tomados nos encontros com os sujeitos geraram em mim
um processo de resistência que me angustiou por várias semanas. Todavia,
aos poucos, o que me pareceu desestimulante, sendo até mesmo assustador,
foi sendo digerido. Desta forma descobri, sem querer e na prática, a diferença
entre o mapa e a cartografia. Se o mapa representa um todo estático, a
cartografia vai sendo desenhada de acordo com os movimentos da paisagem
(ROLNIK, 2006, p.23).
Percebi que as presenças aos encontros pré-estabelecidos poderia ser
utilizada como um critério, via sujeitos, para efetivamente definir quais jovens
seriam entrevistadas. Também via sujeitos cheguei à técnica mais viável para a
investigação. Num parto difícil, observei em mim um devir cartográfico.
As estudantes entrevistadas tiveram seus nomes preservados. Atribuí a
elas nomes fictícios. A saber: Ana, Rita e Maria. As três pertencem a famílias
com renda familiar de até três salários mínimos, residem com os pais (pai e
mãe), irmãs e irmãos, dedicam-se exclusivamente aos estudos e, no período
das entrevistas, estavam cursando a segunda série do ensino médio. Ana e
Maria tinham dezessete anos. Rita tinha dezoito. Ana e Rita são filhas de
empregadas domésticas. Nenhuma das jovens frequentava clubes ou
participava de associações, grupos ou outro tipo de atividades desenvolvidas
coletivamente.
A entrevista de Ana foi aplicada individualmente. As entrevistas de Rita e
Maria foram aplicadas ao mesmo tempo e no mesmo local, o que possibilitou
115
que, em alguns momentos, as duas jovens trocassem idéias sobre os temas
apresentados.
A meu ver, o constrangimento das jovens quando interpeladas por mim
pode ter sido resultado daquilo que considerei uma certa dificuldade de
entendimento das temáticas abordadas pelas perguntas. Em alguns momentos,
isso gerou em mim boas doses de ansiedade. Interpretei os muitos momentos
de silêncio e/ou risos embaraçados como um indicativo de que as jovens
poderiam estar pela primeira vez pensando sobre tais temáticas. Neste sentido,
quanto mais as perguntas pareciam mexer diretamente com as suas
subjetividades, mais eu percebia que também a minha subjetividade de mulher
negra pesquisadora estava sendo tocada.
Cabe destacar ainda que no total dos depoimentos obtidos, as falas da
jovem Ana foram as que mais fugiram espontaneamente do tempo aqui e agora
proposto para a pesquisa. Ana recorreu, em alguns momentos, a lembranças
de infância marcadas pelo racismo sofrido por parte de uma professora do
ensino fundamental, bem como da reação da sua família a tal fato.
Os depoimentos foram gravados e degravados pela própria
pesquisadora. O processo posterior à coleta de dados consistiu na identificação
das categorias reveladas pela análise dos achados e da interlocução destas
com os referenciais teóricos escolhidos para sustentar a pesquisa.
116
3.5. A FALA DAS JOVENS MULHERES NEGRAS ESTUDANTES
Para começar a investigação, apresentei às três jovens material
publicitário produzido pela rede Marisa para a divulgação da moda primavera-
verão 2008 e solicitei que falassem o que estivessem pensando, não
especificando eixo para a leitura. "Falem o que tiverem vontade. Pode ser
sobre as roupas, as(os) modelos, os preços..."
O catálogo foi distribuído nos pontos de ônibus da cidade de Pelotas e
estava disponível nas lojas da rede citada entre os meses de agosto e
setembro de 2007. A publicação possui 36 páginas, nas quais inclui um total de
62 imagens de modelos fotográficos, sendo 34 mulheres, nove homens, 13
meninas (crianças e adolescentes) e seis meninos (crianças e adolescentes).
Deste total, apenas duas imagens apresentam uma modelo negra
(adolescente). Tais imagens estão respectivamente nas páginas 23 e 24.
Ainda que eu não tenha especificado um tema para a leitura do catálogo
apresentado na abertura da entrevista, todas as primeiras manifestações das
três jovens estavam diretamente relacionada à questão étnico-racial.
Ana permaneceu folhando o catálogo em silêncio até chegar na página
23, onde emitiu o primeiro comentário ao deparar-se com a modelo negra:
“Essa guria aqui é bem bonitinha acho que ficou muito forçado esse cabelo
liso [...] para negro o cabelo liso fica muito forçado. Eu acho natural mais
bonito”. Rita, ainda na metade da publicação, constatou: “Não tem nenhum
pretinho...Só tem branco. Não tem nenhum neguinho”. Questionando, a seguir,
timidamente: "Por que será que tem branco nesta revista?" Ao chegar na
página 23, exclamou: "Ah! uma neguinha! Mas neguinho não tem..."
Quando Rita e Maria chegaram ao final da publicação, perguntei: “Vocês
gostariam de dizer alguma coisa?” Maria respondeu: “Não sei, normal ué!” ,
117
Perguntei o que achavam da escassez de imagens de pessoas negras
destacada por elas:
(Grande silêncio)
Rita: Não sei. A maioria que tem na revista... eu acho que só tem duas
neguinhas.
Maria: Só tem uma neguinha.
Rita: E tem uma aqui que se acha branca eu acho (Risos) porque ela
não é branca.
(Grande silêncio)
D: e você teria alguma coisa a dizer sobre isso? O que você acha
disso?
Rita: De quê?
D: Disso que você me disse que viu duas modelos negras e uma
acha que não é?
Rita: (Risos) Eu é que tô falando que eu acho....
D: Tá independente dela ser ou não. O que vocês duas acham disso?
(Grande silêncio)
Maria: Eu acho ruim porque tem tanta negra bonita ou independente
disso e a maioria das revistas que a gente pega não tem muita modelo
negra. A não ser a revista Raça. O resto, a maioria não tem modelo
negra. E aqui mesmo só tem uma criança.
D: E por que você acha que isso acontece?
Maria: Eu não sei. Eu até gostaria de saber, mas eu não sei.
D: E você?
Rita: Por que acontece o quê?
D: Porque a gente abre uma revista como esta que passa pelo país
todo e só tem uma criança visivelmente negra?
Rita: Porque eu não sei.
Maria: (Em tom mais baixo) Racismo. É eu acho, não sei.
D: Que seria o que para vocês?
Maria: Ah não sei te explicar!
D: Tá qualquer coisa... Só para eu ter uma idéia...
(Grande silêncio)
Maria: Eu não sei dizer...
É relevante, a meu ver, que além de terem destacado quase
instantaneamente a ínfima presença de imagens de pessoas negras no
catálogo ou, por outro lado, terem percebido a supremacia das imagens de
pessoas brancas, as jovens também tenham observado de maneira crítica a
faixa etária da única modelo negra. A condição “ser uma criança” foi vista como
um agravante pelas jovens, provavelmente porque faz com que o catálogo não
apresente, de fato, nenhuma imagem de mulher negra adulta.
No meu ver, no entanto, tais manifestações iniciais ainda não poderiam
ser consideradas um indicativo de que as estudantes têm em mente a
existência de um discurso estético hegemônico, uma vez que, logo em seguida,
quando questionadas sobre o porquê de cada uma das manifestações em
relação ao catálogo, as três mantiveram-se reticentes.
118
Rita garantiu que não sabia o porquê da escassa presença de mulheres
negras na publicação. Maria balbuciou de modo quase imperceptível que seria
racismo, mas, quando perguntei o que significava racismo para ela, garantiu
que não sabia dizer ou explicar.
Por outro lado, a manifestação da preferência de Ana por cabelos
crespos, contrasta com os cabelos de praticamente todas as jovens
consideradas sujeitos em potencial e com as quais travei um pequeno contato
na escola.
A unanimidade delas usa cabelos alisados, extremamente normalizados,
puxados para trás. Aliás, após uma rápida observação pelas dependências da
escola pesquisada verifiquei que esta é a característica de praticamente a
totalidade das estudantes negras.
Este começo de investigação, no entanto, serviu para balisar o quanto
jovens negras pelotenses poderiam estar respondendo à investigação a partir
de um modelo de subjetivação hegemônico, o que, em se tratando do Brasil,
poderá significar um entendimento de que não existe racismo ou ainda que, no
limite, não se deve falar que ele existe.
Tal suspeita pode encontrar explicação no mito da democracia racial,
que, na interpretação de Gonçalves e Gonçalves e Silva (1998, p.73), ao
analisarem a especificidade do multiculturalismo na América do Sul, “foi,
provavelmente, um dos mais poderosos mecanismos de dominação ideológica
produzido no mundo. Apesar de toda crítica que a ele foi feita, permanece
irresistivelmente atual”.
Os autores denunciam o paradoxo criado pelo mito da democracia racial,
segundo o qual, “ao mesmo tempo em que o orgulho nacional não abre mão da
pluralidade racial tão decantada, a produção cultural e intelectual brasileira
orientava-se integralmente por valores euro-ocidentais” (1998, p.74).
A peça publicitária que apresentei às jovens pode ser uma pista de que,
em tempos de globalização, a mídia tomou para si o papel de manutenção
desta representação hegemônica euro-ocidental.
Somente após as manifestações das estudantes em relação ao catálogo
apresentado, passei a fazer algumas perguntas. A partir de agora analiso
esses achados, tendo em vista várias temáticas categorizadas.
119
3.5.1. O corpo interdito
Iniciei perguntando para as jovens quais as características que
consideravam necessárias para que uma mulher fosse considerada bonita.
Maria: Se a gente estivesse idealizando?
D: É, uma mulher bonita. Claro, quando a gente pensa em alguma
coisa, a gente imagina. O que vem à cabeça?
Maria: Tem que ser magra, tem que ter um corpo legal.
D: Isso. É isso mesmo...Pode dizer...
Maria: Tem que ter o corpo legal, aquelas coisas assim que a gente
sempre quer...
D: Tá, mas eu gostaria que vocês me dissessem textualmente magra e
o que mais? Corpo legal significa o quê?
Maria: Ah corpo sarado, malhado.
D: Tá, mas é pouco. Tem que dizer mais coisas, dizer tudo o que vocês
estão pensando...
Rita: Hum... cabelo bom.
Maria: Tem que ter um cabelo bonito, arrumado, tem que ser magra,
tem que ter o corpo malhado.
D: Então vamos por partes. Você falou em cabelo bom. O que é isso?
Rita: (Risos) Cabelo bom? (Risos)
D: É isso mesmo.
Rita: Um cabelo, sei lá, bonito.
D: Mas ele teria de ser como para ser bonito?
Rita: Bem cuidado.
(Grande silêncio)
D: E o que mais?
(Grande silêncio)
D: Você também falou em cabelo bonito, bem cuidado, me uma
característica.
Maria: Ah comprido, na minha opinião, comprido. Eu prefiro um cabelo
crespo.
Rita: Eu também.
Maria: Do que liso ou chapinha.
D: Crespo como?
Rita: Crespo cacheado.
D: E o que mais, não os cabelos. Se vocês estivessem imaginando:
essa é a pessoa perfeita fisicamente falando.
(Silêncio)
D: Pode falar.
Maria: Malhada... Alta...
Rita: Não muito alta, né.
Maria: O que mais? Bem vestida. Morena.
Rita: É.
D: Morena é o que? É o cabelo preto? É a pele? O que é morena?
Maria: Pele morena.
D: E o cabelo?
Maria: O cabelo também.
D: O que é uma pele morena para vocês?
Maria: Assim que nem eu, negra.
(Silêncio)
Rita: Pele morena e pele negra não tem diferença uma da outra.
Morena e negra.
D: Vocês precisam me dizer exatamente para eu entender....
Maria: então deixa eu ver: uma mulher não muito alta, magra,
malhada, cabelo comprido crespo e morena.
120
D: Eu gostaria que você dissesse o que é necessário, na sua
concepção, para uma mulher ser bonita?
Ana: Eu acho que as pessoas ligam muito para a beleza exterior
estética. Assim... a aparência ajuda. A forma de vestir. Se a pessoa se
veste bem essas coisas assim. As pequenas coisas eu acho que
ajudam. As pessoas reparam mais é essa beleza exterior.
D: Mas o que você acha?
(Grande silêncio)
Ana: Na beleza da mulher?
D: Isso.
(Grande silêncio)
D: Existe alguma coisa que você acha?
(Grande silêncio)
Ana: Sei eu não julgo a pessoa pela beleza exterior muito assim tipo
eu estou conversando com uma pessoa as outras pessoas podem
achar aquela pessoa de forma feia, mas quando eu começo a conhecer
a pessoa eu acho a pessoa bonita. Sei eu vejo as pessoas por
este lado eu não julgo muito essa coisa.
Estas primeiras respostas parecem apontar que as estudantes negras
entrevistadas têm dificuldade para elencar características do corpo das
mulheres, a despeito do discurso pró-culto ao corpo corpolatria – que a mídia
tem veiculado, principalmente a partir das últimas décadas do século XX.
Com falas que se traduzem muito mais por intermédio dos silêncios, das
reticências e das evasivas do que pela palavra dita, as jovens parecem ler o
corpo feminino de uma maneira fragmentada, na qual alguns elementos estão
eclipsados. Isso ocorrendo ainda que o discurso estético midiático possa ser
percebido no que tange a uma reprodução compulsiva da discursividade
canônica pró-corpo magro. Ou seja, os elementos que se somam à magreza no
discurso estético midiático, em especial nas narrativas sobre mulheres jovens,
por exemplo, bocas, olhos, pernas, seios, pés, mãos, bem como as formas, os
tamanhos, as texturas e as cores corpóreas estão interditos.
Em outras palavras, para estas jovens estudantes negras o corpo parece
cristalizado entre fronteiras fixas de traços fenotípicos negros, em especial o
cabelo crespo. Fenótipo que, por ser marcado, parece sobrepujar quaisquer
outras especificidades dos biótipos, resultando disso, a meu ver, uma espécie
de aprisionamento e/ou engessamento de perspectiva que não permite
alcançar supostos atributos corporais positivos que ultrapassam o discurso
canônico da magreza.
Isso me fez lembrar de vivências pessoais resultantes do relacionamento
profissional e/ou escolar com mulheres de outras etnias, cujo fenótipo não é
121
marcado, nas quais por inúmeras vezes observei longas discussões sobre
características corpóreas. Destaco uma conversa que me pareceu emblemática
por conta de exatos 20 minutos “gastos” em abordagens sobre as origens dos
olhos claros de parentes, por intermédio de descrições detalhadas de nuances
das colorações presentes nos olhos dos componentes das famílias maternas e
paternas das pessoas envolvidas na conversa.
Levando em conta este exemplo, a reação das jovens negras pode ser
indicativo de que não é muito comum conversarem corriqueiramente entre si
sobre características positivas dos seus corpos, ainda que, por exemplo, bocas
carnudas sejam valorizadas pelo discurso estético hegemônico e olhos
amendoados independam a priori de um fenótipo específico, como também
pernas bem torneadas, seios grandes ou pequenos, quadris e cinturas
proporcionais, etc.
Por outro lado, considerei relevante que, ao citarem as expressões
“bem vestida” “forma de vestir” e “se a pessoa se veste bem”, jovens negras
pelotenses parecem supervalorizar roupas e indumentárias como sendo
elementos constituintes da beleza (do corpo) de uma mulher (negra). Pude
observar que este padrão território de subjetividade foi também detectado
por Barcellos (1996), Silva (2000) e Coutinho (2002), em suas pesquisas com
mulheres negras radicadas no estado do Rio Grande do Sul.
“Eu não posso ser feia, eu não posso estar mal apresentada”, afirmou a
Coutinho (2002, p.85) uma mulher negra adulta, nascida no estado da Bahia,
mas residente em Pelotas. Silva, por sua vez, entre inúmeros depoimentos que
apontam neste sentido, coletou o seguinte, a meu ver, emblemático:
Quando uma mulher negra anda bem arrumada ela é olhada
diferente. Se é uma branca que anda sempre com a mesma
roupa, com a mesma calça de brim, com o tênis meio velho,
ninguém repara. Mas se é uma negra ficam olhando e dizendo
que é relaxamento. Por isso, às vezes, eu fico furiosa quando
vejo uma professora negra com o cabelo mal arrumado, porque
assim, além de negra ela vai ser reparada porque não está
bem arrumada (SILVA, 2000, p.151).
Resta a interrogação do que significam tanto para jovens negras
pelotenses do século XXI quanto para mulheres negras adultas as expressões
“bem arrumada” e “bem vestida”.
122
De minha parte, cogito que possam ser uma negação do corpo, que só
pode ser enfrentado por intermédio da camuflagem das roupas e ou dos
cosméticos, situação que Santos (2004, p.46) avalia como sendo: “O desejo de
aceitação da mulher negra no mundo branco implica mutilação.” Explicitando e
ao mesmo tempo questionado:
Sem a mutilação do corpo, a mulher negra “padeceria” de uma
aparência crônica”. A cosmética tornaria mais aceitável ou diminuiria o
grau de rejeição de seu corpo negro, de seu cabelo crespo, seu nariz,
sua boca...Seria possível a uma mulher negra, sem a máscara da
cosmética, almejar a menor aceitação na sociedade branca?
(SANTOS, 2004, p.48).
Ainda, no meu entender, a necessidade de estar “bem arrumada” pode
significar também uma manifestação colonizada que tenta contrapor o
estereótipo negra(o) suja(o) relaxada(o), mas acaba reforçando-o na medida
em que não permite às mulheres negras a possibilidade de desterritorialização
e de infinitas reterritorializações no que tange às escolhas estéticas. O que, a
meu ver, produz um resultado perverso para as mulheres negras uma vez que
bloqueia o fluxo da singularidade, nos moldes propostos por Guattari, quando
este aborda a identidade conhecida, situada na linha da conservação onde não
há espaço para o "atrevimento de singularizar":
O que vai caracterizar um processo de singularização é que ele seja
automodelador. Isto é, que ele capte os elementos da situação, que
construa seus próprios tipos de referências práticas e teóricas, sem
ficar nessa posição constante de dependência em relação ao poder
global, a nível econômico, a nível do saber, a nível técnico, a nível das
segregações, dos tipos de prestígio que são difundidos (GUATTARI;
ROLNIK, 1996, p.46).
Outro fator que merece ser lembrado é que esse “auto-policiamento”
calcado no “estar bem vestida” não evitou que todas as mulheres negras
entrevistadas por todas as autoras citadas anteriormente tenham sido vítimas
da discriminação racial em várias vezes e em praticamente todos os espaços
sociais pelos quais passaram. Restando saber, neste sentido, qual é a seqüela
para estas mulheres, bem como para jovens estudantes negras pelotenses, da
manutenção de um território subjetivo “auto-policiado” que, ao final das contas,
não garante imunidade contra a discriminação.
Também a primeira resposta de Ana pode apontar para uma negação do
corpo, tendência essa que não condiz com a supervalorização estético-corporal
123
propalada pela mídia, em especial para as mulheres jovens. Neste sentido,
ainda que tal resposta possa ser interpretada à luz de uma escala de valores
sobre a qual seria, no mínimo, imprudente inferências deterministas, fica a
suspeita de que por intermédio de uma tentativa de separação entre o corpo e
o espírito, Ana busque evitar, possivelmente de forma inconsciente, uma leitura
corporal que poderia suscitar questionamentos problemáticos.
Ana: Sei eu não julgo a pessoa pela beleza exterior muito assim tipo
eu estou conversando com uma pessoa as outras pessoas podem
achar aquela pessoa de forma feia, mas quando eu começo a conhecer
a pessoa eu acho a pessoa bonita. Sei eu vejo as pessoas por
este lado eu não julgo muito essa coisa.
Confirmo este padrão em outro momento da entrevista com Ana, no qual
insisto e explicito que gostaria de conhecer a opinião da jovem sobre
características relacionadas às modelos e, mais especificamente, com o corpo
das mulheres em geral, e continuo obtendo praticamente somente a
confirmação de uma supremacia da magreza:
D: Se você pensa em uma modelo, passarela, propaganda, quais as
características que você lembra? Uma modelo. Faça um exercício
mental e imagine.
Ana: Uma modelo... ?
D: Qualquer modelo.
Ana: Fisicamente como ela é...?
D: É.
Ana: Alta, super-magra, às vezes até doente, algumas [com] anorexia,
bulimia. Aquela fama que dura pouco, enquanto jovem, e depois não
resta mais nada, uma carreira curta...
(Silêncio)
D: Pode ir dizendo...O que mais você lembra?
(Grande Silêncio)
Ana: Algumas fazem sucesso, outras não.
D: Em termos de corpo, a gente nem precisa falar de corpo de modelo,
mas vamos falar de corpo. Corpo de mulher. Você disse que prefere a
beleza interior não a exterior, mas de qualquer forma eu gostaria que
você falasse alguma coisa do corpo, bem no sentido estético mesmo.
Que parte do corpo de alguma mulher que você lembre que você acha
interessante? Pode ser jovem ou não, famosa ou não, bonita ou não.
(Silêncio)
D: É o corpo mesmo...
(Silêncio)
D: Se é que você lembra... se não lembra não tem importância...
Ana: Eu acho que o formato do rosto, a boca, olhos...mãos, mãos me
chamam muito a atenção...
D: Em que sentido?
Ana: Mãos? O formato das mãos, tipo assim dedos longos.
D: Eu sei que você prefere a beleza interior, mas uma coisa é o que
você acha e outra coisa é o que você acha que os outros acham. O
que você acha que os outros acham?
Ana: O que eu acho que os outros acham?
124
D: É. As pessoas de modo geral.
Ana: Eu acho que as pessoas preferem as pessoas magras e homens
preferem as mulheres que tenham corpo bonito que tenham peito que
tenham bunda. As pessoas mais gordinhas são excluídas. Essa fase
de criança mesmo os colegas não querem chegar perto, não querem
brincar.
Nesta perspectiva, Gomes (2006), ainda que reconheça que houve “uma
certa flexibilização no padrão estético considerado universal”
,
recorre à
influência da mídia para lembrar a manutenção do discurso estético
hegemônico:
[...] basta ligar a televisão, abrir as revistas de moda, observar o perfil
dos artistas, as academias de ginástica e a ânsia pelo emagrecimento
que invade tanto as classes médias quanto os setores populares para
ver que ainda impera a crença de que a beleza é branca, o corpo
bonito é magro, e o cabelo liso é “bom” (GOMES, 2006, p. 328-329).
E prossegue a autora, “esse padrão ideal invade a comunidade negra,
cujo biótipo, principalmente feminino, não se encaixa na representação de
magreza exigida pelo mundo da moda e que migrou para a sociedade mais
ampla”.
3.5.2 Cabelo: ser crespo ou não ser crespo, eis a questão
A indumentária de quem curtia a soul music era cheia de detalhes e requintes, mas os cabelos
constituíam um capítulo à parte. Começava pela escolha do pente, seguido pela técnica de
desembaraçamento e coroado pelo uso de um disco. Era mais ou menos assim: imagine um
garfo. Não, não , não, não é um garfo de mesa, imagine o garfo de Netuno, o rei do mar,
imaginou? Aquela coisa imponente, elegante, com três dentes no original. Mas acrescente
outros, vários, dentes finos, de metal, levemente espaçados, adequados para o cabelo crespo
desenrolar-se por aqueles pequeninos vãos. Diminua o tamanho do cabo, de acrílico. Deixe-o
adequado à sua mão, uns dez centímetros bastam. Daí já viu, né? Muito jovem negro que tinha
um pente desses no bolso foi preso por “porte ilegal de armas”. Mas o pior não era ser preso,
era ficar sem o pente e ser impedido de cuidar dos cabelos.
Cidinha da Silva
46
Após a manifestação de um ideal de magreza, na segunda característica
de beleza, lembrada por Rita, surge a classificação de acordo com atributos
fenotípicos: “Cabelo bom”. Eu pergunto: “O que é isso?” Rita responde: (Risos)
Cabelo bom? (Risos) Eu insisto na pergunta. Ela diz: “Um cabelo, sei lá,
bonito.” Eu prossigo perguntando: “Tá, mas ele teria de ser como para ser
bonito?” Rita: “Bem cuidado”. Maria: “Ah! Comprido, na minha opinião. Eu
46
Cidinha da Silva é fundadora do Instituto Kuanza formação, intervenção e pesquisa em
educação, raça, gênero e juventude, que atua na cidade de São Paulo. Ver SILVA (2006).
125
prefiro um cabelo crespo.” Rita: “Eu também.” Maria: “Do que liso ou chapinha.”
Eu pergunto: “Como é um cabelo crespo?” Rita responde: “Crespo cacheado.”
Ao se referir a um “cabelo bom” Rita utiliza uma expressão corriqueira que
contrapõe o cabelo crespo fenotipicamente negro, considerando-o ruim, ao
cabelo fenotipicamente branco supostamente liso, considerando-o bom. Gomes
(2006, p.21) explicita que “o cabelo do negro, visto como ‘ruim’, é expressão do
racismo e da desigualdade racial que recai sobre esse sujeito”. A autora
considera, neste sentido, que “ver o cabelo do negro como ‘ruim’ e do branco
como ‘bom’ expressa um conflito”.
Salienta-se que as jovens manifestam preferência por cabelos crespos,
mas especificam este crespo como sendo cacheado e comprido, o que aponta
para uma característica distinta daquelas encontradas em cabelos crespos que
correspondam ao fenótipo negro.
Neste sentido, também Gomes (2006), ao analisar reações semelhantes
em adolescentes negras mineiras que frequentam salões de beleza para
realizar a técnica de alongamento
47
, faz a seguinte análise:
Em última análise, se o cabelo crespo, em nossa sociedade, pode ser
considerado um ícone da identidade negra, ao rejeitarem o cabelo
essas garotas rejeitam também o próprio corpo e a sua ascendëncia
ancestral africana. Rejeitam a si mesmas. O alongamento, conquanto
um estilo de cabelo negro da diáspora, cumpre a função, nesse caso
específico, de camuflagem de um pertencimento étnico racial e de
aproximação do padrão estético branco, considerado como o ideal em
nossa sociedade (GOMES, 2006, p.292).
A autora, também, ao propor discussão sobre o termo “mulata”, tendo
em vista um ideal de branqueamento, cogita que “no imaginário do brasileiro, é
possível que uma mulher negra de cabelo liso ou cacheado, quer seja natural,
quer seja artificial, deixe de ser classificada como ‘negra’” (GOMES, 2006, p.
291). Isso porque, na avaliação da autora, “a textura ‘menos crespa’ do cabelo
é vista na cultura como fruto da mistura racial, ou seja, ela atesta a presença
do branco na conformação do corpo negro”.
O cabelo provavelmente é um dos pontos mais vulneráveis no corpo
negro (GOMES, 2003; INOCÊNCIO, 2005; SODRÉ, 1999; WALKER, 1988).
Inocêncio (2005, p.152), enfocando elementos que compõem “a história das
47
Alongamento Procedimento que passou a ser oferecido pelos salões de beleza brasileiros,
principalmente a partir da década de 90 do século XX, e consiste no implante de cabelos
naturais ou artificiais junto aos fios de cabelo da pessoa.
126
artes plásticas, da fotografia, do cinema e da televisão” considera que “o que
vemos em maior quantidade é a continuação da representação visual negativa
do corpo afro-descendente, sendo que o cabelo, em particular, assume a
condição de metáfora expressiva”.
Nesta perspectiva, tendo em vista o dialogo com o imaginário nacional, o
autor busca um exemplo na cultura popular:
Na medida em que a representação visual degradante mantém-se
hegemônica, perpetua-se a significação danosa do cabelo afro. Os
exemplos são inúmeros, a partir da cultura popular, como na
elaboração da imagem da “nega maluca”, um cruzamento problemático
de raça e gênero (INOCÊNCIO, 2005, p.152).
Sodré (1999, p.253), por sua vez, informa que “na mídia negra da
contemporaneidade (Raça Brasil, Black People) a preocupação com o cabelo é
quase obsessiva, tal a sua recorrência em anúncios e reportagens”. O autor
lembra ainda, em um resgate da trajetória do movimento negro, que desde a
Frente Negra Brasileira (1931-1937) o cabelo sempre ocupou um lugar de
destaque no que se pode chamar de busca de uma identidade negra:
A questão do cabelo parece constituir uma espécie de índice semiótico
da revalorização identitária. Não é, na verdade, uma questão nova. Já
em jornais do tempo da Frente Negra, podia-se encontrar anúncios do
tipo “Alise e ondule seu cabelo e, quando você passar, alguém dirá:
Que lindo cabelo!” (SODRÉ, 1999, p.253).
Voltemos à avaliação de Gomes:
Até mesmo hoje, depois de adultas, as mulheres negras continuam
enfrentando um verdadeiro “patrulhamento ideológico” em relação à
sua estética. Alguns as desejam com o cabelo “crespo natural”,
considerado por um grupo como autêntica expressão da negritude;
outros querem-nas de tranças, por julgarem que esse penteado
aproxima a mulher (e o homem negro) de suas raízes africanas;
outros, com o cabelo alisado, por considerarem que tal penteado
aproxima as mulheres negras do padrão estético branco, visto
socialmente como o mais belo. Enfim, esse tipo de cerceamento da
liberdade da expressão estética e corporal do negro, sobretudo da
mulher negra, demonstra que continuamos mergulhados nas malhas
do racismo e do preconceito racial. Na realidade, o que pode parecer
uma simples opinião ou um mero julgamento estético, revela a
existência de uma tensão racial, fruto do racismo ambíguo e do ideal
do branqueamento desenvolvidos no Brasil. Essas questões deveriam
ser consideradas com mais seriedade pelos educadores e pelas
educadoras (GOMES, 2003, p.177-178).
Isso me fez lembrar de três episódios que vivenciei, tendo o meu cabelo
crespo como protagonista. O primeiro ocorreu na minha infância quando, ao
127
chegar à escola com os cabelos recém alisados, fiz um comentário sobre tal
prática e isso gerou um desconforto e a mudez das colegas. Naquela época, ao
que tudo indica, o assunto era tabu e não poderia ser comentado entre
meninas.
O segundo diz respeito a minha vida profissional, quando no início da
década de 90 do século XX, o editor-chefe de um jornal localizado em
município da Serra Gaúcha, no qual eu trabalhava como subeditora, criticou o
meu cabelo em plena reunião de pauta. O mais interessante é que eu havia
recém saído de um salão de beleza onde um cabeleireiro havia me incentivado
“a assumir os crespos”. Incomodado, o editor me recomendou: “você deveria
prender este cabelo”.
o terceiro ocorreu em Pelotas, em 2006, na casa de uma mulher
negra idosa e pobre, que, quando me viu com os cabelos crespos naturais e
amarrados para cima por com um lenço, reclamou mal-humorada: “Não adianta
você se arrumar, com este cabelo sempre vai parecer uma mendiga”. Pior de
tudo (ou melhor) nestas três ocasiões, eu lembro nitidamente, estava me
sentindo bem bonita.
Salão de beleza - Durante a realização desta pesquisa, Pelotas não
possuía um salão de beleza afro, nos moldes dos pesquisados, por exemplo,
por Gomes (2006). Nas listas telefônicas dos primeiros anos do século XXI,
somente dois salões ofereciam serviços potencialmente destinados a cabelos
crespos (alisamento a frio, relaxamento, permanente afro, entrelaçamento,
compra e venda de cabelos), ainda que o nome comercial desses
estabelecimentos em nada denunciasse a condição de salão afro, muito menos
fizesse referência ao público negro em particular.
Para compreender melhor este contexto, consultei mulheres negras com
longa vivência e permanência na cidade. Elas contaram que, de acordo com as
suas lembranças, por volta das décadas de 60 e 70 do século XX, a cidade
teve apenas dois grandes salões de beleza destinados exclusivamente à
população negra e situados na região central. Um deles, “os Percy”,
especializado em alisamento a frio na época do auge desta técnica, não existe
mais. O outro ainda continua em funcionamento e é um dos dois
estabelecimentos citados no parágrafo anterior. uma informante jovem que
costuma manter o cabelo alongado com tranças finas afirmou que, em Pelotas,
128
o seu tipo de penteado é feito também por algumas poucas cabeleireiras em
salões caseiros, localizados na periferia da cidade, por exemplo, no bairro
Navegantes.
Por outro lado, desde 2005, um salão de beleza localizado no centro da
cidade tornou-se uma referência para a população negra, em especial a mais
jovem, por conta da divulgação e venda de ingressos para festas e shows
produzidos e/ou voltados para a comunidade negra, como também devido à
presença, na lista de clientes, de representantes dos movimentos negros
locais. Em conversa informal, o proprietário deste estabelecimento me disse
que “em Pelotas, é difícil dizer que é um salão afro, se disser pode dar
problema de o pessoal o vir ou de dizerem que é racismo”. Cabe destacar
que, no começo do mês de janeiro de 2008, nas duas vitrines externas deste
salão destacam-se grandes cartazes promocionais de produtos para cabelos
cujas modelos eram somente mulheres brancas.
3.5.3. A cor morena
Prosseguindo a entrevista, eu retorno a perguntar quais características
compõem uma mulher bonita e percebo que as jovens estudantes negras
utilizam o termo morena como classificação étnico-racial. Assim, diante da
afirmação de que uma das características de uma mulher bonita é ser morena,
eu pergunto: “O que é morena?” Maria responde: “Assim que nem eu negra”.
Rita afirma: “Pele morena e pele negra não tem diferença uma da outra”.
A relevância de entender o significado do termo moreno remete, a meu
ver, a uma incursão na trajetória da classificação de “cor ou raça”, empregada
pelo IBGE e utilizada, a partir da década de 90 do século XX, em vários
levantamentos oficiais sobre o perfil individual da população brasileira, como
também de maneira independente por alguns organismos governamentais.
Um destes é o INEP, que em 2005, na primeira vez em que o incluiu o
quesito “cor e raça” no questionário do censo escolar, detectou para o total de
estudantes no país o significativo percentual de 56,1% de estudantes negros,
sendo 46,1% de pardos e 10% de pretos, em contraposição a 41,6% de
estudantes brancos.
129
Osório (2003, p.6), em texto para discussão integrante do Projeto
Combate ao racismo e superação das desigualdades raciais, conduzido pelo
IPEA, com recursos do PNUD, discute o sistema classificatório empregado pelo
IBGE para “cor ou raça”, defendendo a sua adequação “para fins de pesquisa e
caracterização das desigualdades raciais existentes no Brasil”. O autor lembra
que para realizar o primeiro Censo oficial brasileiro, em 1872, o Executivo
transformou em categorias para a classificação de “cor” os termos mais
utilizados pela sociedade brasileira, na época, para a hierarquização racial:
branco, preto e pardo, havendo ainda caboclo, que designava indígenas. Em
1890, no segundo Censo oficial brasileiro, o termo mestiço substituiu o pardo.
Depois destes dois primeiros levantamentos, a classificação de “cor” foi
suspensa por 50 anos, voltando a ser coletada em 1940. Neste Censo, o
termo pardo retornou, substituindo definitivamente o mestiço. Também em
1940 foi criada a categoria amarelo, devido ao fluxo de imigrantes asiáticos,
sendo a categoria caboclo abolida definitivamente.
As categorias branco, preto, pardo e amarelo foram mantidas nos
seguintes 50 anos, entre 1940 e 1991. Foi somente em 1991, com a inclusão
da categoria indígena, que a classificação deixou de ser somente de “cor” e
passou a ser de “cor e raça”. A partir daí estabilizaram-se as cinco categorias
utilizadas até 2008: branco, preto, pardo, amarelo e indígena. Para a leitura das
informações obtidas por intermédio destas cinco categorias, o IBGE agrega as
pessoas pretas e as pardas obtendo assim o grupo populacional negro, ou
seja, a população negra. Segundo Osório (2003, p.23), “de um ponto de vista
estritamente estatístico, apenas as semelhanças socioeconômicas entre os
pretos e os pardos justificariam tal agregação”.
O termo moreno começou a integrar o vocabulário étnico-racial da
sociedade brasileira somente nas primeiras cadas do século XX. Os
morenos seriam “o produto final da miscigenação e de sua uniformização
branqueadora, o fenótipo ideal do Brasil”.
Em contraposição ao termo pardo que, segundo alguns estudos, desde
o final do século XVII começou a designar a população mestiça com pelo
menos um ascendente africano, o termo moreno não implicaria
necessariamente na presença da africanidade ou dos traços estéticos
característicos dos negros. Desta forma, a classificação morena(o) pode ser
130
aplicada para pessoas fenotipicamente brancas, historicamente não
vulneráveis à discriminação racial, após o escurecimento temporário da pele
resultante, por exemplo, de uma longa exposição ao sol durante o verão.
Assim, “a reivindicação da morenidade não é mais que uma das muitas faces
do racismo e da persistência do ideal de embranquecimento (Osório, 2003,
p.31-32).
O termo moreno é rejeitado tanto por ativistas dos movimentos negros
quanto por técnicos. Para estes dois segmentos, a substituição da categoria
pardo pela categoria moreno nos censos oficiais dificultaria o estudo e o
monitoramento das desigualdades raciais no Brasil.
A especificidade da categoria parda pode ser entendida melhor à luz do
estudo realizado por Oracy Nogueira (1955) que, publicado originalmente na
década de 50 do século XX, comparou os preconceitos existentes nos Estados
Unidos e no Brasil.
Para fins analíticos, Nogueira definiu que nos Estados Unidos um
preconceito racial de origem e no Brasil um preconceito racial de marca. No
primeiro caso, não importa se a pessoa traz em sua aparência física (fenótipo)
os traços de seu grupo de origem, caso seja detectada a incidência de
miscigenação, tal pessoa será identificada com o grupo discriminado, ainda
que fisicamente possua a aparência do grupo discriminador. Ou seja, nos EUA,
na década de 50, qualquer pessoa que tivesse um antepassado negro seria
considerada também negra, ainda que a sua pele fosse branca.
no caso do Brasil, onde vigoraria o preconceito de marca, a origem
não importaria apenas a quantidade de características físicas que a pessoa
possui do grupo discriminado. Ou seja, no Brasil, caracterizado por um intenso
processo de miscigenação, um mestiço claro que ascende socialmente e
adquire fatores compensatórios às marcas pode potencialmente casar-se com
uma pessoa branca ou mesmo se considerar uma pessoa branca, dependendo
da sua localização regional no país.
O seguinte exemplo sugerido por Osório para analisar as características
do preconceito de marca, no qual tanto o grupo discriminado quanto a pertença
a este grupo são flexíveis, parece ideal:
Que se imagine, então, gêmeos idênticos, cuja aparência os colocasse
na fronteira entre o pardo e o branco, e que tivessem sido separados
131
na infância, um crescendo em Salvador, e o outro em uma cidadezinha
de colonos alemães do interior de Santa Catarina. [...] é bem plausível
que o de Salvador sempre tenha sido considerado branco, nunca tendo
sido discriminado racialmente, e o do interior tenha sido, desde a mais
tenra infância, conhecido como “negão”. Interessaria que essas
pessoas com aparência física rigorosamente idêntica (mesmo fenótipo)
fossem classificadas de forma precisa com pardos, ou como brancos,
nos dois lugares? Obviamente não, pois o resultado de interesse seria
que eles fossem classificados de acordo com o que são nos contextos
em que estão inseridos: o sujeito de Salvador como branco, e o outro
como pardo, quiçá preto. (OSÓRIO, 2003, p.23)
A tensão que se manifesta na fronteira entre a categoria parda e a cor
morena pode ser percebida nos achados desta pesquisa por intermédio da
manifestação de Rita ao olhar o catálogo das Lojas Marisa e detectar uma
modelo que estaria nesta fronteira: “Essa aqui tu o vens dizer que ela é
branca que ela não é branca coisa nenhuma!”, exclamou Rita.
É interessante notar que um pouco depois a jovem tenta se justificar “eu
é que falando que eu acho....”, sugerindo uma espécie de dúvida de
classificação ou a possibilidade de haver “o engano” que faz com que “a
morena” dependendo do contexto seja ou uma mulher negra ou uma mulher
branca.
Nesta discussão, cabe lembrar também que a mídia costuma adotar o
termo morena(o) em situações em que uma visível tensão étnico-racial. Por
exemplo, quando em 1984 e 1986, Deise Nunes
48
sagrou-se, respectivamente,
Rainha das Piscinas e Miss Rio Grande do Sul. Ou nas apresentações da atriz
Camila Pitanga, ainda que esta desde o começo da carreira artística tenha se
auto-classificado como negra. O que pode ser confirmado pela capa do
segundo número da revista Raça Brasil, publicado em 1996, que apresenta a
imagem da atriz, juntamente com o seu pai, o ator Antônio Pitanga, e a
seguinte manchete: “Camila Pitanga: Tenho orgulho de ser negra”.
No interior da publicação, em matéria assinada por Leyde Morais (p. 40),
Camila reclama: “tenho de conviver com colegas, empresários e um monte de
gente falando para mim: ‘Você é tão clarinha, por que fala que é negra? [...]
Isso é uma besteira, prova viva de preconceito. Eu sou negra com o maior
orgulho”.
48
Ver neste trabalho seção 3.2.3. (Miss, modelo: a beleza (negra?) é política).
132
3.5.4. As belas da mídia são negras
Quando perguntei às jovens estudantes quais mulheres na mídia
corresponderiam ao padrão ideal de beleza traçado por elas, as três
entrevistadas elencaram quase que exclusivamente mulheres negras, o que,
pelo menos em tese, vai na contra-mão do discurso estético hegemônico.
Ana: Atriz de televisão eu acho mais bonitas as atrizes negras que
agora é que elas estão conseguindo mais espaço porque antes não
tinha e as outras eu acho mais comum porque a gente vê sempre. Tipo
a Taís Araújo eu acho super-bonita. A Camila Pitanga. Quem mais...?
Ah agora esqueci o nome dela... Atrizes que trabalham muito tempo
na TV tipo Fernanda Montenegro eu acho interessante. Quem mais...?
Apresentadoras eu acho muito interessante a Glória Maria porque ela
correu muito atrás. Ela conseguiu alcançar o que ela queria. Ela queria
ser jornalista e conseguiu alcançar numa época em que o preconceito
era muito grande e eu acho que ela é muito interessante e também o
trabalho dela. Eu acho que é isso.
D: Existe mais alguma que você lembre?
(Grande silêncio)
Ana: Agora não vem nada na cabeça.
(Grande Silêncio)
D: Tá bom é assim mesmo...
Ana: (Interrompendo) Ah sim agora me lembrei tem uma cantora que
eu adoro que eu acho super legal que é a Alcione. Eu adoro a Alcione.
Eu acho ela hiper bonita também. Eu tenho vários discos dela eu acho
legal.
Maria e Rita: (Praticamente ao mesmo tempo) A Beyoncé
49
, a Taís
Araújo.
Maria: A Camila Pitanga
Rita: A Camila Pitanga.
Maria: Ela tem o cabelo (inaudível) eu acho ela super-bonita.
Rita: Tri bonita mesmo.
Rita: Uma da novela das oito. Ah eu não sei o nome dela.
(Silêncio)
Rita: A Ciara.
D: Quem é Ciara?
Rita: É uma negra americana.
D: Eu não conheço. Cantora?
Rita: É, que nem a Beyoncé.
Rita: Deixa eu ver quem mais...
49
Beyoncé Giselle Knowles é afro-americana e nasceu em 1981. Ela é cantora, compositora,
arranjadora vocal e atriz. Em 2008, Beyoncé comemorou 10 anos de carreira, nos quais seus
discos venderam mais 130 milhões de cópias. Neste período, ela também realizou shows em
mais de 30 países e ganhou dez prêmios Grammy, além de vários outros prêmios em vários
países. Suas fotos já ilustraram inúmeras capas de revistas. Ela foi garota propaganda de
marcas famosas, dentre elas, Pepsi, Armani e L’Oréal, sendo ainda considerada pela imprensa
norte-americana como uma das mulheres mais bem-vestidas de Hollywood. Em 2001, Beyoncè
recebeu o prêmio de melhor compositora pop pela Associação de Editoras dos Estados
(ASCAP Pop Songwriter Of The Year Award), sendo a primeira afro-americana a receber esta
homenagem. Site oficial da cantora: www.beyonceonline.com
133
Maria: Eu acho a Juliana Paes bonita.
Rita: Aquela que é bailarina do Faustão.
Maria: A negona aquela?
Rita: A namorada do cigano...
D: A namorada do cigano é quem?
Rita: A bailarina. Ela é bonita também.
(Silêncio)
Maria: A Ivete Sangalo.
Rita: A Ivete é bonita.
(Silêncio)
D: Vocês falaram na pele morena. Como vocês consideram a Ivete?
Maria: Branca. No caso eu digo que ela é morena branca do cabelo
preto e as outras são negras.
D: Mais alguém que vocês lembrem? Modelo, por exemplo?
Maria: Aquela americana é bonita.
Rita: A Naomi Campbel.
(Silêncio)
D: Ela é inglesa...
(Silêncio)
D: Mais alguém que vocês lembrem?
(Grande silêncio)
Tais respostas levaram-me a questionar se esta seria uma estratégia de
resistência ao discurso estético hegemônico, uma vez que a beleza das
mulheres negras foi afirmada ao longo das entrevistas.
Aparentemente, a visível desvantagem quantitativa das mulheres negras
na mídia brasileira parece não incomodar as jovens entrevistadas. Durante
vários momentos nos quais solicitei exemplos de mulheres consideradas
emblemáticas em termos estéticos, as jovens pareciam pinçar conscientemente
representantes de mulheres negras em um universo onde a maioria das
mulheres é branca.
De qualquer forma, elas lembraram quase que instantaneamente
somente de personalidades inegavelmente midiáticas. Destacando-se a
cantora afro-americana Beyoncé, as atrizes brasileiras Taís Araújo e Camila
Pitanga, a modelo inglesa Naomi Campbel.
No meu entender, tais escolhas podem ser analisadas como sendo o
código negociado, sugerido por Stuart Hall (2006), no que tange à
decodificação feitas pelas audiências aos textos apresentados pelas mídias.
Hall entende que as audiências podem interpretar as mensagens, em especial
as televisivas de três formas: 1) quando a decodificação pela(o) receptora(or)
atende exatamente os objetivos da construção da mensagem, ou seja, a
intenção proposta pela produção, constituindo-se em uma leitura dominante ou
preferencial; 2) quando o sentido da mensagem é negociado de acordo com as
134
condições particulares da (o) receptora(or), sendo assim uma leitura
negociada; 3) quando a intenção da produção é percebida pela(o)
receptora(or), mas esta(e) opta por interpretar a mensagem de acordo com
referências alternativas, consistindo em uma posição de oposição.
A meu ver, na leitura que fazem das imagens midiáticas, as jovens
negociam e privilegiam as mulheres cujo fenótipo se aproxima mais daquele
que elas próprias possuem. Negociação que, por intermédio das minhas filhas,
pude verificar que começa já na infância e abrange também, neste caso,
bonecas e personagens de desenho animado.
Hall (2006, p.350) acredita que o “‘espaço negociado’ está preenchido
por um número de diferentes posições, em relação às sub-culturas”, o que faz
com que as leituras negociadas sejam “provavelmente o que a maioria de nós
faz”.
Neste sentido, o máximo que jovens pelotenses chegam é até a
“morenice” da atriz Juliana Paes e da cantora Ivete Sangalo. Maria diz: “a Ivete
Sangalo.” Rita concorda: “É a Ivete é bonita”.
Baseada nas afirmações iniciais das jovens sobre a preferência pela
beleza das mulheres negras, eu pergunto como elas classificam a cantora. Rita
explicita que Ivete é uma branca morena e que as outras mulheres
consideradas belas são negras. Eu passo a inferir que o fato de ser morena
habilita Ivete Sangalo a transitar em um território protagonizado por mulheres
negras.
Suspeitei a partir disso que outras características fenotípicas, em
especial as relacionadas aos cabelos claros também são interditas para as
jovens negras. Por exemplo, a existência de mulheres loiras é apenas
lembrada quando as jovens referem-se a preferência manifestada pelos
homens negros: “Ah eles adoram uma loira.”
Neste sentido, considerei relevante que as estudantes não teceram
opinião sobre especificidades “desta loira” e suspeitei também que, a priori, a
característica loira não exige adjetivos.
Em momento algum foi dito se as loiras preferidas pelos homens negros
são, por exemplo, feias ou bonitas, gordas ou magras. Voltarei a tratar deste
assunto no item 3.5.10. (O homem negro).
135
3.5.5. Expectativas profissionais: o fantasma da doméstica
O desenvolvimento da noção Síndrome de Zilda constituiu em uma
experimentação intelectual na perspectiva da criação de uma política de
subjetivação de mulheres negras brasileiras que esteja sintonizada com o
potencial de “tornar-se a ser” (HALL, 2000).
A inspiração para tal movimento, fruto da apropriação de reflexões de
Stuart Hall, sobre a potência das identidades culturais de e para inventar a
tradição, e de bell hooks, sobre as intelectuais negras, leva em conta os
movimentos necessários para a construção de um território, no qual as faces
do arquétipo da subalternidade possam ser reconhecidas e identificadas.
A intenção é propiciar um deslocamento nas disposições do poder a
partir de uma ferramenta que pode somar no jogo lingüístico que preenche o
imaginário e cria o real, o que poderá ser útil nos enfrentamentos políticos
resultantes da complexidade das relações étnico-raciais vigentes no Brasil
contemporâneo, ainda mais se levada em conta à perspectiva das relações de
gênero.
Neste sentido, no meu entender, a noção pode ser útil também na
análise das respostas das jovens estudantes negras pelotense sobre as suas
expectativas profissionais futuras, uma vez que tais expectativas podem estar
contaminadas pelas representações de mulheres negras veiculadas pela mídia
brasileira.
Cheguei a esta hipótese a partir de afirmações das jovens de que
conhecem poucas mulheres negras que sejam bem-sucedidas
profissionalmente, além das mulheres negras que reconhecem exclusivamente
por intermédio na mídia. Obtive esta resposta quando perguntei quais
características que Ana, Rita e Maria consideravam necessárias para que uma
mulher (sem especificação étnico-racial) seja bem-sucedida profissionalmente:
Maria: Eu acho que ela tem que se atualizar. Não sei se tem muito a
ver com estética...eu acho que não. Acho que tem que se atualizar.
Sempre estudar. Sempre querer mais.
D: E você?
Rita: Eu penso a mesma coisa que ela. Tem que querer sempre mais.
D: Eu falei mulher e não entrei em detalhes. E uma mulher negra vocês
acham que tem alguma característica...
Maria: (Interrompendo a pergunta) Mais ainda. A mesma coisa mais
eu acho que bem mais.
136
Rita: Porque nos dias de hoje do jeito que tá.... tipo a minha mãe e
minha dinda são sem estudo e elas sempre dão em cima de mim para
eu estudar: “Pra ti não ficar que nem eu faxineira”. Elas querem que a
gente seja uma pessoa, alguém na vida, que elas não foram nada. A
minha mãe mesmo estudou até a quarta, eu acho. Recém agora ela
foi aprender a escrever.
D: Você disse: “eu acho que ela tem que estar sempre se aprimorando,
se aperfeiçoando e que não teria nada a ver com a questão estética”.
Foi isso que você disse? E quando eu perguntei sobre a mulher negra,
você disse “tem que ser mais ainda”. Eu gostaria de saber o porquê de
você ter dito isso.
Maria: Ah porque eu acho. Não sei, pelo que eu vejo assim.
D: Mas você teria algum exemplo?
Maria: Ah porque é raro tu veres uma negra formada. É raro. E isso
vem desde o início. Sei tu não vês um negro formado. Sei lá, eu não
sei dizer por que. Eu acho que tem que ser mais.
(Silêncio)
D: Vocês conhecem mulheres negras (não estas das novelas e do
cinema eu digo aqui da vida real) que vocês considerem em boa
situação profissionalmente?
Maria: A prima do meu pai. Eu não tenho muito contato, mas eu
conheço.
D: E afora ela você lembra de outras?
Maria: Não.
D: E você? Que você lembre daqui, não as da TV.
Rita: Só a professora
50
.
Ana lembra das cantoras, mas não especifica nomes. Pressuponho que
o acesso da jovem a tais mulheres negras viabilizou-se por intermédio da
mídia.
D: Quais as profissões que você acha que hoje em dia seriam
interessantes para mulheres? Você acha que existe diferença entre
mulheres negras e mulheres brancas?
Ana: Eu acho que no meio social as pessoas fazem diferença. Eu acho
que eles julgam mais a aparência. Se a pessoa é clara, se a pessoa é
mais escura, do que pela inteligência e a capacidade da pessoa. A
maioria das mulheres negras que têm talento eu vejo cantando ou
atriz ou alguma coisa do tipo... Atriz não tem tanto. Mais é na música
mesmo. Eu não vejo tanto nas profissões comuns, tipo médico,
advogado, essas coisas. Acho que isso tem a ver um pouco com o
preconceito.
D: Você acha que o interesse das mulheres negras, mas não
oportunidade?
Ana: Eu acho. A maioria da população negra vem da classe pobre, né,
e, às vezes, a própria família diz: a gente é pobre, a gente não pode. E,
às vezes, falta um pouco e a pessoa acaba desistindo. Às vezes, quer
tentar e tem que sustentar a família, tem que trabalhar e acaba
deixando o estudo de lado e a vontade de estudar lá atrás também.
D: Você disse que as mulheres negras bem-sucedidas que você
conhece são mais do meio artístico e que das outras áreas você não vê
tanto?
50
A professora citada pelas estudantes é uma mulher negra nascida em Pelotas, graduada em
Arquitetura e Urbanismo, Mestre em Química e Doutora em Engenharia Civil. Na escola, a
professora ministra aulas de Matemática no ensino médio, sendo também uma das
idealizadoras do projeto De mãos dadas com nossas raízes e nossos irmãos já citado na seção
3.4. (Outros caminhos percorridos paralelamente).
137
Ana: Isso. Não vejo tanto. Quando eu vejo, eu acho legal.
D: Diga uma que você ache legal.
Ana: Tipo a professora
51
. Eu acho ela tri massa porque ela fez um
monte de coisas já. E ela um dia estava contando para nós que ela é
de uma família bem humilde. Ela alcançou tudo o que quis. Eu acho
legal. Eu acho um meio de eu me espelhar em alguém assim sabe?
Para ir atrás do que eu quero de tentar chegar ao lugar onde eu quero
no futuro.
A profissão das mães de Rita e Ana parece interferir nas expectativas
destas em relação ao futuro, como vimos na gina anterior, na fala de Rita e
podemos ver agora, na fala de Ana:
Ana: Ela [a mãe] se diminui. Eu acho que, às vezes, por ser negra ela
deixa as pessoas diminuírem ela por isso. E realmente não tem motivo
para ela ser menos do que as outras pessoas. Ela tinha até que sentir
mais orgulho de ser, do que ela tem.
[...]
Ana: Quando eu digo uma coisa para ela, que eu tenho um plano, ela
sempre acha que eu não vou conseguir. [...] por ser negra ou por ela
ter tido outra educação e ter tido sempre um tipo de emprego, toda vida
ter sido doméstica, ela não pensa que eu vou ter outro tipo de
emprego. Ela sempre acha que eu vou seguir a mesma coisa que ela
seguiu.
D: E o seu pai?
Ana: O meu pai é bem diferente dela. Ele é bem diferente nesta
questão. Ele é mais culto um pouco ele gosta bastante de ler se
atualizar e quando eu converso com ele sobre estas coisas ele entende
melhor. Ele conversa melhor. Neste sentido eu gosto mais de
conversar com ele do que com a minha mãe.
D: Conversar em temos de futuro?
Ana: Ela é mais pessimista. Ele é realista, né, mas ele dá mais apoio.
D: Sobre o seu futuro, você já conversou com ele?
Ana: Não, até porque a gente não conversa muito. A gente conversa
mais sobre algumas coisas, mas não é aquela coisa de conversar
sempre.
D: Você falou que quando terminar o ensino médio pretende procurar
um emprego ou fazer um curso técnico ou fazer o vestibular. Você já
chegou a conversar com a sua mãe ou com o seu pai sobre isso
?
Ana: Essas coisas eu não converso muito com ele [...] Eu nunca parei
para conversar com ele sobre estas coisas.
D: Nem no sentido de fazer vestibular ou fazer curso técnico ou
começar a trabalhar
?
Ana: o. Eu não converso muito com ele, mas ele sempre me apóia
nas coisas que eu quero fazer. Ele até apóia bastante.
D: E a sua mãe
?
Você chegou a falar com ela sobre estas três
possibilidades
?
Ana: Não, até porque eu me irrito. Começo a falar e me irrito um pouco
porque ela é muito pessimista. Ela me põe pra baixo então eu prefiro
nem conversar.
Todas as jovens dizem que pensam em estudar, dando a entender
que têm interesse em uma vida profissional. Mas ao serem questionadas sobre
51
Ver nota acima.
138
qual profissão desejam seguir, duas delas dão respostas um tanto vagas.
Somente Maria parece segura ao falar no Curso de Direito, escolha que, aliás,
pode ter recebido influência da única referência familiar que possui grau
universitário, ainda que a jovem destaque que não tenha contato com esta
pessoa:
Maria: Ah antes eu queria Direito. Eu quis Jornalismo. quis
Veterinária. Mas eu acho que é Direito.
D: E existe alguma pessoa na sua família que tenha feito Direito?
Maria: Tem, mas eu não tenho nem ligação. Uma prima do meu pai
daqueles primos distantes. Eu nem tenho contato.
[...]
D: Vocês conhecem mulheres negras (não estas das novelas e do
cinema, eu digo aqui da vida real) que vocês considerem em boa
situação profissionalmente?
Maria: A prima do meu pai. Eu não tenho muito contato, mas eu
conheço.
D: E afora ela você lembra de outras?
Maria: Não.
Ana diz que quer seguir várias carreiras, mas também diz que talvez
precise trabalhar tão logo conclua o ensino médio, uma vez que sua família é
pobre:
D: E o que você quer agora? Pode ser que mude, mas neste
momento?
Ana: Agora eu o tenho certeza só penso em terminar o médio e
tentar conseguir um emprego de imediato porque a minha família é
mais humilde e o tem condições agora. Conseguir um emprego mais
ou menos assim para fazer o curso técnico e depois fazer a faculdade.
D: Técnico de quê?
Ana: Alguma coisa relacionada à informática ou então fazer vestibular,
tentar para Medicina e me especializar em pediatria. Eu acho legal
trabalhar com criança.
D: E se for o técnico seria técnico em informática é isso?
Ana: É isso. Bem diferente, mas eu em dúvida ainda não sei direito
o que eu quero. Mas é coisa que eu penso em fazer.
[...]
Ana: Eu queria fazer algum curso antes. Sair do ensino médio e ir
direto para a faculdade é muito complicado porque é muito diferente,
né. Então eu queria fazer alguma coisa antes que fosse mais parecido
com a faculdade para chegar com mais estrutura.
D: Alguém na sua família já fez faculdade?
Ana: Não.
D: Não precisa ser pai, mãe, irmã. Tio, prima... família de modo
geral, família mais extensa?
Ana: Não.
D: E nas suas relações, nas suas amizades, conhecidos do seu pai, da
sua mãe?
Ana: É algumas amigas da minha mãe. Deixa eu ver... uma se formou
em Artes, eu acho, e a outra fazendo a faculdade de Educação
Física, mas eu acho que é só. O meu pai eu não conheço muito os
amigos dele.
139
D: E onde você mora, os vizinhos, moram algumas pessoas negras
que tenham feito faculdade?
Ana: Não.
A suposta referência positiva que as mulheres negras midiáticas
inspiram em jovens negras revelou-se para mim um problema, tendo em vista
tanto a escassez ou sub-representação de tais mulheres pela mídia brasileira
quanto a subalternidade das personagens por elas interpretadas, como pode
ser detectado pelas análises nas quais a noção Síndrome de Zilda foi utilizada.
Como uma jovem negra poderá almejar grandes vôos profissionais se
faltam-lhe referências positivas neste sentido, tanto nos relacionamentos que
resultam dos arranjos locais quanto nas narrativas midiáticas nas quais as
personagens de ficção interpretadas por pouquíssimas mulheres negras
emblemáticas encontram-se aprisionadas em um território de subalternidade?
3.5.6. A era do rádio sobrepuja a hegemonia da televisão
Tendo em vista a identificação de uma significativa participação da mídia
no dispositivo de subjetivação que está sendo acessado por jovens negras
estudantes pelotenses, passei a investigar qual é o nível de intimidade das
entrevistadas com alguns veículos midiáticos. Neste sentido, fui nomeando os
veículos e perguntando qual era e como era o relacionamento das jovens com
eles.
Cabe lembrar aqui a intenção, explicitada na introdução deste
trabalho, de detectar quais são os veículos da mídia que são acessados pelos
sujeitos. Desta forma, descobri que, a despeito do senso comum alimentado
pela mídia de que os aparatos midiáticos de última geração, que permitem o
acesso imediato a imagens, estariam em destacada importância na listagens
de preferências dos jovens contemporâneos, uma das jovens entrevistadas
prefere o rádio, em especial as emissoras locais, e outra parece não achar a
Internet muito interessante.
140
Maria afirmou: “Mas até eu acho que na verdade eu escuto mais rádio.”
Rita garantiu: “Às vezes eu entro pelo Orkut
52
delas [das primas], mas eu assim
fazer eu nunca tive vontade”.
Uma vez que eu mesma havia praticamente alijado o rádio do roteiro da
entrevista que planejei apresentar às jovens, tendo em vista uma leitura
pessoal que privilegiava a estética da imagem, fui surpreendida pela resposta e
precisei rever tal opção.
Maria: Mas até eu acho que na verdade eu escuto mais rádio.
D: Nossa! Tá bem. Você também escuta rádio?
Rita: Sim.
D: E qual é a rádio que você escuta?
Maria: Eu escuto a 94.5 só de noite que o Sambalanço e escuto a
Atlântida.
D: O dia inteiro escutando rádio...
Rita e Maria: (Risos)
D: E você?
Rita: Menos a Atlântida, eu não sou muito. Escuto a 91, que é a Studio,
dá só pagode.
Maria: Ah a Studio!
Evidenciou-se também que, do amplo espectro de mídias vigentes na
contemporaneidade, a televisiva, em especial a TV aberta, é praticamente a
única acessada com regularidade pelas jovens entrevistadas, depois, é claro,
das rádios locais.
Na televisão, as três informaram que assistiam prioritariamente a
programação do canal hegemônico, a Rede Globo, em especial as novelas,
destacando as apresentadas no horário nobre, também conhecidas como a
“novela das oito”. Ainda assim uma das jovens citou uma produção que não se
enquadra nesta categoria.
D: E das novelas da Globo existe algumas atrizes que você se lembre
de ter gostado do papel, do desempenho?
(Silêncio)
Ana: Eu acho que A Cor do Pecado. Eu nunca tinha visto uma atriz
negra fazendo o papel principal, então foi legal.
D: Existe outra que você lembre?
Ana: Acho que não. Acho que é só essa.
52
Criado pelo engenheiro turco Orkut Buyukkokten, em janeiro de 2004, o Orkut
(www.orkut.com) é uma página eletrônica que funciona como uma rede virtual de
relacionamentos que faz parte da Google, empresa proprietária do site de busca mais
conhecido no mundo. No Brasil concentram-se mais de 50% do total de usuárias(os) do Orkut
em todo os países conectados pela Internet.
141
Ainda que nenhuma das jovens tivesse acesso à Internet em casa, elas
contaram que ocasionalmente navegavam na rede.
D: E Internet? Vocês acessam a rede?
Maria: Eu acesso.
D: Participam de alguma comunidade?
Maria: Eu tenho Orkut, MSN agora eu não tenho acessado muito
porque eu tô sem internet em casa, mas seguido eu acesso.
D: E você?
Rita: Eu entro de vez em quando na lan house, mas eu não tenho
Orkut não.
D: Você não participa de nenhuma dessas comunidades?
Taís: Não. As minhas primas... às vezes eu entro pelo Orkut delas,
mas eu assim fazer eu nunca tive vontade.
Destaca-se ainda que a mídia impressa é a que menos chama a atenção
das jovens entrevistadas. Em especial, o jornal impresso, não importando se
esse seja da grande imprensa e tenha circulação diária ou aborde temas
específicos e tenha outro tipo de periodicidade.
As estudantes contam que a escola disponibiliza diariamente
exemplares de um dos jornais impressos locais. No entanto, Maria e Rita
comentam que o máximo que lêem nestes jornais é o horóscopo. “Eu não curto
muito ler jornal”, diz Rita. Jornal horóscopo e se tiver assim alguma notícia
que chame a atenção, mais interessante, senão só o horóscopo”, afirma Maria.
Também as revistas em geral não são consideradas interessantes.
“Revistas eu não leio muito”, comenta Ana. Maria, às vezes, tem acesso à
revista Veja: “A patroa da minha avó manda para a gente estudar. Aí eu
guardo, se um dia eu precisar.” Eu pergunto: “E nestas revistas de vários
assuntos, teria algum que você mais gosta de ler?” Maria responde:
“Geralmente não tem. Mas como ela manda, eu sempre dou uma olhada.”
Tais respostas levaram-me a cogitar que a posição de indiferença
sobrepuja em muito uma suposta atitude pró-leitura negociada, manifestada em
relação a mulheres negras midiáticas consideradas emblemáticas, bem como
pessoas negras em geral.
Uma pesquisa sobre os interstícios desta indiferença certamente seria
bem-vinda. No entanto, ainda que suspeite que a indiferença, o contexto local
desta pesquisa e o racismo vigente na sociedade brasileira como um todo
estejam bastante imbricados, considero que este tema merece um
aprofundamento que o propósito deste trabalho não alcança.
142
Cabe destacar, no entanto, que a exceção manifestada pela revista
Raça Brasil
53
pode ser uma pista instigante para futuras investigações.
Maria: Gosto da Raça, como eu te falei.
D: E você tem acesso a esta revista como?
Rita: A minha mãe sempre pega no trabalho dela e minha tia compra,
às vezes.
3.5.7. A revista Raça Brasil
A revista Raça Brasil começou a circular em setembro de 1996, sendo
publicada pela Editora Símbolo. Sem liderança no mercado editorial, a Símbolo
se diferenciou pela aposta em projetos inovadores, se levado em conta o
público alvo. O lançamento da revista Raça Brasil foi uma surpresa por conta
das mais de 200 mil assinaturas iniciais. A publicação surgiu com o nome de
Raça Brasil a revista dos negros brasileiros. Três anos depois, passou a ser
simplesmente Raça Brasil.
Vejamos a seguir parte do editorial que, assinado pelo editor chefe
Aroldo Macedo, apresentava a publicação no primeiro número da revista, em
setembro de 1996, a meu ver, com um discurso em tom messiânico, que
privilegia a perspectiva de uma auto-estima calcada na beleza e na alegria:
Felizmente, os tempos estão mudando. Nadando contra a corrente,
vamos aos poucos conquistando espaço, respeito e dignidade. [...]
Raça Brasil nasceu para dar a você, leitor, o orgulho de ser negro.
Todo cidadão precisa dessa dose diária de auto-estima: ver-se bonito,
a quatro cores, fazendo sucesso, dançando, cantando, consumindo.
Vivendo a vida feliz.
Todos os meses, Raça Brasil vai falar de nossos problemas e
apresentar soluções. Vai ajudá-lo a se cuidar melhor, a viver com mais
alegria e segurança. Vai também discutir nossa identidade, resgatar
nossa herança cultural e mostrar que a negritude é alegre, rica, linda.
Estaremos atentos para negar o preconceito, mas, acima de tudo,
queremos afirmar nossas qualidades.
Nosso trabalho apenas começou. Quem vai continuá-lo é você. Lendo,
discutindo, escrevendo, sugerindo, reivindicando. Queremos oferecer o
que há de melhor. Ninguém neste país merece mais do que você.
Queremos esta revista com a cara da nossa raça: black, colorida, com
balanço e ginga bem brasileiros. Isto é Raça Brasil. (RAÇA BRASIL,
Número 1, Setembro de 1996, p.04)
53
Várias investigações acadêmicas foram feitas tendo por objeto a revista Raça Brasil.
Destaco aqui, por exemplo, as dissertações de ALMADA (2000), BRASILEIRO (2003) e
SANTOS (2004).
143
Em 2007, a revista passou a ser publicada pela Escala Editora, tendo à
frente do conselho editorial o cartunista Maurício Pestana, conhecido
nacionalmente por seu ativismo nos movimentos negros do país.
Ainda que garantam que “não gostam de ler revistas”, por não
considerarem interessantes os assuntos por estas abordados, as três jovens
entrevistadas para esta pesquisa citaram, em vários momentos ao longo das
entrevistas, a revista Raça Brasil. Cabe destacar, no entanto, que em uma
destas citações elas contaram que olham mais as imagens do que lêem as
reportagens. Vejamos:
D: Eu gostaria que vocês me falassem sobre a revista Raça. O que
vocês acham da revista? As duas disseram que lêem, que gostam...
Rita: Eu só olho. Não leio.
D: Você olha e não lê? Então vocês gostam de olhar a Raça mais
do que qualquer outra revista? E o que vocês acham? Eu gostaria que
vocês me dissessem.
Maria: Ah eu acho legal ver pessoas negras.
D: Mas você pode olhar pessoas negras aqui [na escola].
Maria: Mas eu gosto de olhar lá.
D: E por quê?
Maria: Ah eu não sei por que.
(Silêncio)
Rita: Porque tem negão.
Maria: É.
D: Você diz negão de maneira geral ou só os homens negros?
Rita: De preferência só os homens.
D: E tem bastante?
Maria: Ah tem.
(Risos)
D: E existe alguma outra revista, apesar de vocês dizerem que não
lêem muitas revistas, algum outro local que vocês acham que podem
encontrar os negões fora a Raça?
Maria: Não.
(Silêncio)
D: Você lembra de algum?
(Silêncio)
Maria: Que tenha assim pessoas negras?
D: É.
Maria e Rita (ao mesmo tempo): É só na Raça.
Maria: As outras assim báh...a Capricho não tem nenhum negro.
(Grande silêncio)
D: E o que vocês acham disso?
(Grande silêncio)
D: O que vocês acham disso?
Maria: O que eu acho?
(Grande silêncio)
D: O que vocês sentem com isso? O que vocês gostariam?
Maria: Ah a gente gostaria que tivesse ...agora a gente não sabe por
que não tem.
Considero interessante o fato de a revista Raça Brasil não ser lida,
segundo informam as jovens, de uma forma que Stuart Hall (2006) consideraria
144
uma leitura preferencial, ou seja, aquela que ocorre quando a decodificação
pela(o) receptora(or) atende exatamente os objetivos da construção da
mensagem ou, em outras palavras, a intenção proposta pela produção.
No caso da revista citada uma supervalorização da imagem, ou seja,
o discurso imagético impresso, em detrimento do discurso manifesto na palavra
escrita. Tal deslocamento é instigante, em se tratando de uma mídia impressa
cuja temática abordada pelos discursos verbais a priori está relacionada com
as pessoas negras que as jovens, ao longo de toda a entrevista, parecem
buscar como referência. Por que então as jovens não manifestam interesse por
estes discursos verbais?
A priori tal desinteresse poderia sugerir até mesmo uma leitura de
oposição, aquela que ocorre quando a intenção da produção é percebida
pela(o) receptora(or), mas esta(e) opta por interpretar a mensagem de acordo
com referências alternativas.
Uma outra hipótese que me agrada talvez seja alcançada a partir de
uma mudança de perspectiva: Qual seria a relação entre a inegável ausência
de representação imagética positiva de pessoas negras, ou seja, a sub-
representação de pessoas negras de modo geral, e o desinteresse pelo
discurso verbal impresso de um modo geral, incluindo os casos em que este
discurso verbal possivelmente aborde temáticas que digam respeito às
imagens de pessoas negras?
Quando desloco um pouco o olhar e resgato o discurso do primeiro
editorial da revista, no que diz respeito ao “ver-se bonito, a quatro cores,
fazendo sucesso, dançando, cantando, consumindo. Vivendo a vida feliz”, tal
leitura das jovens, a meu ver, pode tornar-se mais compreensível e, arrisco-me
a sugerir, até mesmo não problemática, enquanto focalizada em um discurso
imagético impresso.
Podendo ser, neste sentido, simplesmente um tipo de leitura imagética
preferencial ou dominante, na qual a percepção da presença de imagens
ausentes em outras produções midiáticas brasileiras, faz com que o texto
manifesto em tais imagens seja suficiente ao ponto de eclipsar totalmente às
palavras escritas.
A exclusão da população negra da mídia foi abordada em matéria
publicada no primeiro número da revista Raça Brasil. Com o título O negro e
145
a mídia uma relação delicada, o texto assinado por Ângela Oliveira
questionava: “por que tão poucos negros estrelam comerciais de TV, novelas,
peças teatrais, filmes, o que for? Falta de ousadia, de pesquisa e de
informação, ou simplesmente racismo? Afinal, qual é o problema da mídia com
o negro?” (p. 99).
As respostas de jovens estudantes pelotenses apontam que, após onze
anos da criação da revista Raça Brasil, o problema da mídia brasileira com o
negro persiste. Sendo possível inferir também que a perceptível mudança da
mídia em relação à inserção de pessoas negras, em especial nas imagens da
publicidade a partir da segunda metade da década de 90 do século XX, é
bastante insuficiente em termos de visibilidade positiva da população negra.
3.5.8. A perspectiva diaspórica
“Eu acho que eu fui duas vezes ao cinema”, disse Maria. “Eu também
poucas vezes”, complementou Rita. Ambas assistem filmes em casa no
aparelho de DVD. Ao serem questionadas sobre os tipos de filmes da suas
preferências, uma disse que não gosta dos filmes brasileiros e comentou que
gosta de filme “de negão”. Nenhuma lembrou de nomes de atrizes brasileiras
que atuam no cinema. Ambas gostam de filmes de negros norte-americanos.
Rita: Eu não gosto de terror, eu gosto de comédia eu gosto de ver filme
assim de negão.
Maria: É filmes americanos.
Rita: É.
D: Existe algum ator ou atriz que vocês gostam mais nestes filmes que
vocês vêem?
Rita: Mas ai é negro americano...
Ainda que reconheçam que existem especificidades entre os racismos
praticados nos diferentes países da diáspora africana e que se posicionam
contra essencialismos, algumas(uns) autoras(es) (HALL, 2006; FANON, 1983;
GOMES, 2006) manifestam, a meu ver, por intermédio de seus estudos, que,
por possuírem traços comuns, as experiências das populações negras que
vivem fora do continente africano podem ser utilizadas positivamente por toda a
diáspora.
146
É neste sentido, penso eu, que Gomes (2006), por exemplo, tendo em
vista comportamentos relacionado com a estética corporal, compara os EUA e
o Brasil. Vejamos duas destas passagens:
O olhar do negro brasileiro, ao se voltar para os EUA, destaca o
comportamento, a militância e a estética corporal dos negros norte-
americanos, que comporta desde o estilo black power até a avançada
tecnologia dos produtos étnicos e dos cabelos emoldurados ao redor
do rosto. (GOMES, 2006, p.163).
Ao adotarem a expressão “beleza negra”, tomada de empréstimo do
movimento black is beautiful, cuja forte presença marcou a luta dos
negros norte-americanos das décadas de 60 e 70, as cabeleireiras e os
cabeleireiros étnicos explicitam, no seu fazer cotidiano, um
posicionamento político e a tensão entre imagem social e auto-imagem
do negro em nossa sociedade, uma vez que reivindicam para esse
grupo o direito historicamente negado de ser visto e considerado belo
(GOMES, 2006, p.165).
Ainda nesta perspectiva, a seguinte frase de Hall (2006, p.39), no meu
entender, é lapidar: “A África passa bem, obrigado, na diáspora”. Assim,
enquanto teóricos brasileiros do final do século XIX e começo do século XX,
entre eles, Raimundo Nina Rodrigues e João Batista Lacerda, centravam-se na
mistura de raças como sinônimo de uma mancha negra (aliás, o nome de um
personagem do mal - dos quadrinhos
54
) e apostavam que a situação poderia
ser remediada pela mestiçagem, da qual prevaleceriam os caracteres
biológicos europeus cuja presença no Brasil foi reforçada via imigração, Hall,
penso eu, faz um deslocamento ímpar ao focalizar o continente africano.
A grande diferença aqui, no entanto, é que não se trata de colocar um
Estado-nação ou continente no comando. Neste sentido, o nacionalismo da
mulataria ou mesmo da meta-raça que faria do Brasil o local mítico da
convivência harmônica de todas as raças perde o sentido.
Além de isso nunca ter acontecido, o Estado-nação perdeu os seus
privilégios. “Os desenvolvimentos globais acima e abaixo do nível do Estado-
nação minaram o alcance e o escopo de manobra da nação, e com isso, a
54
Mancha Negra é um personagem vilão dos Estúdios Disney. A primeira aparição do vilão
aconteceu na revista norte-americana Mickey Mouse Outwits the Phantom Blot, em 1941. A
partir dos anos 60, Mancha Negra passou a ser o par romântico da bruxa Madame Min. Nos
anos 70, o vilão passou a aparecer com frequência nas versões brasileiras das revistas da
Disney produzidas pela Editora Abril. Mancha Negra é assaltante de bancos e inimigo do
personagem Mickey Mouse.
147
escala e a abrangência os pressupostos panópticos de seu ‘imaginário’,
lembra Hall (2006, p.35), que toma como exemplo, as culturas caribenhas, para
questionar se o referencial adotado pelas políticas nacionalistas pós-
independências “ainda constitui uma estrutura útil para a compreensão das
trocas culturais entre as diásporas negras” (p.34).
Neste sentido, o autor avalia que o status dos EUA estaria não tanto
relacionado com o seu papel de Estado-nação, mas sim às suas “ambições
globais e neo-imperiais”, o que faz considerar que “portanto, é importante ver
essa perspectiva diaspórica da cultura como uma subversão dos modelos
culturais tradicionais orientados para a nação”, defendendo ainda que “como
outros processos globalizantes, a globalização cultural é desterritorializante em
seus efeitos” (HALL, 2006, p.36).
3.5.9. A família
Minha mãe achava que eu não precisava estudar, pois nunca deixaria de ser empregada
doméstica. Quase não saía de casa, pois minha mãe dizia que negro não devia andar em
bando, não devia rir ou falar alto. Não devia se destacar.
(mulher negra em depoimento a Elisabete Pinto, Suely Boulos e Mabel de Assis)
55
Os depoimentos das jovens destacam a importância da figura materna.
Todas elas, pelo menos em algum momento, referiram-se às mães, em
especial quando questionadas sobre as suas expectativas futuras. Tais
depoimentos oferecem pistas de que, pelo menos, duas das mães citadas
podem ter problema de baixa auto-estima, a priori devido à condição subalterna
em que se encontram no mercado de trabalho: são empregadas domésticas.
Problema este que, cogito, pode interfir na construção das expectativas e na
visão que as jovens têm de si mesmas. Voltemos a trechos dos depoimentos
das jovens:
Rita: Porque nos dias de hoje do jeito que tá.... tipo a minha mãe e
minha dinda são sem estudo e elas sempre dão em cima de mim para
eu estudar “Pra ti não ficar que nem eu faxineira.” Elas querem que a
gente seja uma pessoa, alguém na vida, que elas não foram nada. A
minha mãe mesmo estudou até a quarta, eu acho. Recém agora ela
foi aprender a escrever.
55
Ver ASSIS; BOULOS; PINTO (2000).
148
Ana: Ela [a mãe] se diminui. Eu acho que, às vezes, por ser negra ela
deixa as pessoas diminuírem ela por isso. E realmente não tem motivo
para ela ser menos do que as outras pessoas. Ela tinha até que sentir
mais orgulho de ser, do que ela tem.
Ana: [...] Quando eu digo uma coisa para ela, que eu tenho um plano,
ela sempre acha que eu não vou conseguir. [...] por ser negra ou por
ela ter tido outra educação e ter tido sempre um tipo de emprego, toda
vida ter sido doméstica, ela não pensa que eu vou ter outro tipo de
emprego. Ela sempre acha que eu vou seguir a mesma coisa que ela
seguiu.
[...]
D: Você falou que quando terminar o ensino médio pretende procurar
um emprego ou fazer um curso técnico ou fazer o vestibular. Você já
chegou a conversar com a sua mãe ou com o seu pai sobre isso
?
[...]
D: E a sua mãe
?
Você já chegou a falar sobre estas três
possibilidades
?
Ana: o, até porque eu me irrito. Começo a falar e me irrito um pouco
porque ela é muito pessimista. Ela me põe pra baixo então eu prefiro
nem conversar.
A análise de hooks (2000) sobre os relacionamento entre as mães
negras e as suas filhas negras é impactante. Na avaliação desta autora, o
racismo e a discriminação fazem com que a mãe negra não disponha de
“munição afetiva” para apresentar a suas filhas. O que, a meu ver, poderia
gerar nas mulheres negras o ciclo vicioso: carência – baixa auto-estima –
fracasso nas relações afetivas ou escolhas afetivas equivocadas carência
baixa auto-estima - fracasso nas relações afetivas ou escolhas afetivas
equivocadas.
hooks (2000, p.188) aborda o tema em ensaio que começa de forma
comovente: “Muitas mulheres negras sentem que em suas vidas existe pouco
ou nenhum amor. Essa é uma de nossas verdades privadas que raramente é
discutida em público. Essa realidade é tão dolorosa que as mulheres negras
raramente falam abertamente sobre isso”.
A autora utiliza-se da literatura para exemplificar situações nas quais
filhas negras questionam o amor materno e ou ressentem-se por acharem que
não receberam amor adequada e suficientemente de suas mães negras,
mulheres encarceradas pelas perversidades advindas do racismo, do sexismo
e da pobreza.
Santos (2004, p.85), em uma análise psicanálitica, explicita que “a mãe
seria a responsável pela construção de uma imagem positiva para a criança,
funcionando como um espelho que devolve a ela uma imagem boa ou ruim de
si”. Neste sentido, prossegue a autora, “se a mãe negra deseja para si a
149
brancura como signo de status e aceitação, também ela não poderá aceitar o
bebê negro. Pode amá-lo como filho que é, mas rejeitá-lo como símbolo
daquilo que ela também rejeita em si mesma”.
Hall (2006), também relata de uma maneira direta e talvez dura, mas
também comovente, a sua experiência com a mente colonizada da sua família,
em especial a da sua mãe mestiça. O autor avalia que teria sido destruído se
não tivesse saído de casa para nunca mais voltar. Outra experiência diaspórica
que, a meu ver, ainda se repete a despeito da distância temporal do
colonizador. Vejamos trechos do relato de Hall:
Desde o início, então, o que era encenado em minha família, em
termos culturais, era o conflito entre o local e o imperial no contexto
colonizado. Ambas as frações de classe se opunham à cultura da
maioria, do povo negro jamaicano pobre: altamente preconceituosas
em relação a raça e cor, identificavam-se com os colonizadores. Eu era
o membro mais escuro da minha família. [...] Por causa disso, fui
sempre identificado em minha família como alguém de fora, aquele que
não se adequava, o que era mais negro que os outros, o “pequeno
coolie etc. E desempenhei esse papel o tempo todo (HALL, 2006,
p.386).
E prossegue o autor:
Pude ver que todas essas estranhas aspirações e identificações que
meus pais haviam projetado sobre nós, seus filhos, destruíram minha
irmã. Ela foi vítima, portadora das ambições contraditórias de meus
pais naquela situação colonial. [...] Eu não ia ficar lá. Eu não seria
destruído por aquilo. Tinha que sair de lá. Senti que nunca mais
deveria voltar para lá, pois seria destruído (HALL, 2006, p.390-391).
Enquanto algumas autoras (SANTOS, 2004; HOOKS, 1995; WALKER,
1988) comentam e fazem conjecturas do impacto do racismo sobre a relação
que se estabelece entre a mãe negra e as suas filhas, algumas(uns) ativistas
dos movimentos negros arriscam expressar que existem dificuldades
específicas nos relacionamentos internos das famílias negras, o que poderia
resultar em seqüelas emocionais para os indivíduos pertencentes a esta
parcela da população.
A investigação feita Barcellos (1996) sobre famílias negras e ascensão
social em Porto Alegre apontou algumas destas especificidades, entre elas, a
sobreposição dos aspectos morais aos afetivos.
Considero que a análise de tais especificidades deve levar em conta os
discursos hegemônicos que, ao longo do tempo mantém fixas as fronteiras da
diferença entre negras(os) e brancas(os) no Brasil, merecendo destaque o
150
discurso popular da ”melhoria da raça construído no começo do século XX
como parte integrante da estratégia do branqueamento.
A manutenção de tal discurso, a meu ver, é um indício da permanência
da forte presença do colonizador que se manifesta num âmbito que pode
solicitar uma boa dose de sagacidade analítica: os relacionamentos afetivos
que podem se constituir em arranjos familiares.
Isso me fez lembrar de conversa informal com uma professora que
realiza projeto de inclusão em escola estadual situada no município de Pelotas,
por intermédio da qual eu tive acesso a vários relatos de relacionamentos
familiares tensos, por conta da questão étnico-racial. Esta professora contou-
me que entre os inúmeros depoimentos emocionados que ouviu destacam-
se os feitos por integrantes de famílias “mistas”, nas quais os componentes
negros são discriminados, por intermédio do isolamento e da rejeição.
Silva (2000, p.114) detectou algumas destas tensões repassadas pelas
famílias ao realizar pesquisas com professoras negras em Pelotas. Destaco
que alguns destes depoimentos falam em “policiamento” das famílias negras
para que fosse adotado um determinado tipo de postura e comportamento
“para não dizerem isso é coisa de negro!”, bem como críticas familiares
dirigidas a algumas características fenótipicas negras, com destaque para o
cabelo. Vejamos trechos de um destes depoimentos:
A mãe e as minhas tias pegavam o cabelo da gente e puxavam com
ferro e diziam assim: que cabelo horroroso! Ah! Não dá...esse cabelo
de vocês...esse cabelo ruim! E alisavam o cabelo da gente. Eu alisava
meu cabelo desde pequena, desde os 7 anos, mais ou menos, porque
minha mãe, minha família tinha isso (SILVA, 2000, p.112).
Considero que seria importante entender quais seriam as experiências
que reforçam e mantém a territorialidade da baixa auto-estima. O que, a meu
ver, significa também tentar romper o silêncio do lar (da família negra), em se
tratando do racismo vigente no Brasil, assunto abordado com detalhamento e
profundidade por Cavalleiro (2003).
tendo em vista uma perspectiva diaspórica, vários estudos apontam
que quanto maior a presença local da subjetividade do colonizador, maior
poderá ser o conflito interno suscitado pela negritude no interior das famílias
negras fixadas na territorialidade desta subjetividade colonizada. Destacando-
se que o silenciamento de muitas das contradições e tensões decorrentes de
151
tal subjetividade não altera, evidentemente, em nada os enormes e quase
sempre inevitáveis conflitos que delas decorrem e que, em muitos casos, têm
por principais reprodutores os diferentes arranjos que constituem as famílias
negras.
3.5.10. O homem negro
“Se eu encontrasse uma negra na faculdade, será que eu me casaria com ela? Não.
Minha esposa não tem curso superior, é baixa, gorda e tem barriga.Mas é branca” .
Depoimento de um administrador de empresas negro para a revista Raça Brasil
Algumas respostas dadas pelas estudantes ao longo das entrevistas
apontavam que os temas homens negros e relacionamentos afetivos eram
imprescindíveis para fechar o traçado da pesquisa. Desta forma, comecei a
abordá-los na perspectiva de conhecer um pouco mais do impacto desses
temas nas expectativas futuras das jovens.
Na época das entrevistas, nenhuma delas tinha namorado. De qualquer
forma, todas se mostraram mais descontraídas quando falaram das suas
expectativas em relação ao sexo oposto. O que o significa, no entanto, que
as falas não tenham sido permeadas por questões que apontam conflitos e
tensões.
Rita: Têm alguns brancos que não gostam de negras.
Maria: Muitos.
D: E os negros?
Rita: (Rápida e espontaneamente) Ah adoram uma loira. Meu irmão
mesmo só namora loira. Eu acho que nunca namorou negra.
D: E por quê?
Rita: Não sei, sei lá, as loiras é que gostam dele.
Maria: É preferência, eu acho.
D: Você falou no seu irmão. Há mais outro que vocês conhecem?
Maria: Assim de negro que namora branca?
D: Sim.
Maria: Geralmente nas festas tu vês muito agora. Geralmente antes
eles falavam assim ah pode ir negro. Tinha esta coisa, mas agora
vai muito branco e elas ficam com os negros e os negros ficam com
elas. Normal.
Entre as três jovens, Ana parece a mais desencantada com os
relacionamentos afetivos.
D: Você não teve um relacionamento afetivo mais prolongado. Eu
gostaria que você me falasse um pouquinho sobre o que você pensa, o
que você acha, como é que funciona essa coisa de namorado?
152
Ana: Sei lá. Eu ainda não encontrei ninguém que me agradasse. Eu
sou um pouco chata. [...] Porque eu nunca encontro alguém eu sou
muito de achar defeito nas pessoas que ficariam comigo então eu
prefiro ficar sozinha. A pessoa nunca me agrada.
D: Mas, se fosse o caso, como é que seria o príncipe encantado?
(Silêncio)
Ana: Eu acho que sei lá as pessoas não me agradam não tem príncipe
encantado.
D: Mas então o que não agrada? Quem seria o sapo?
Ana: Eu acho que uma pessoa grosseira, estúpida que faz sempre
grosserias, piadinhas. Eu não gosto destas coisas assim. É isso. Tipo
ficando com algum guri já fico pensando: eu acho que a minha mãe
não vai gostar desta pessoa. Assim sabe...acho que é bobagem minha,
mais da minha cabeça mesmo. Sei , sempre tem alguma coisa que
não me agrada.
D: Entendi grosseiro, estúpido... Mas não haveria outras coisas?
Ana: É, às vezes, não combina, né, a pessoa gosta de uma coisa a
outra gosta de outra. Ai não certo. Gosta de outras festas. Não
gosta de ficar em casa. Eu gosto de festa. Não gosta de ir. Não quer
que eu vá. Não gosto que me prendam. Essas coisas assim...
D: Mas se existisse o príncipe? Vamos fazer um exercício de
imaginação. Se existisse o príncipe, como ele seria?
Ana: Deixa eu ver...
D: Vamos imaginar...
(Silêncio)
Ana: Ah. Sei lá tem que ser legal, gostar das coisas que eu gosto. Tem
que ser bonito também, que ninguém é de ferro... inteligente que é
legal dá pra gente conversar melhor, carinhoso, essas coisas assim...
D: Tá, vamos por partes só para concluir...
Ana: Tá.
D: Diga três coisas que você gosta...
Ana: Eu gosto de estudar. Gosto de festa e gosto de ficar em casa.
D: Tem que ser bonito, que ninguém é de ferro. O que seria isso?
Como é que ele seria fisicamente?
Ana: Fisicamente... Eu acho que alto, não muito alto, fortinho, tem que
ser negão (Risos). Eu acho que é isso.
Ao garantirem que os jovens negros preferem as jovens brancas e que
os jovens brancos não gostam das jovens negras, as entrevistadas repetem
uma queixa bastante ouvida por parte de mulheres negras. A questão passou a
ser reconhecida no meio acadêmico por intermédio do trabalho da demógrafa
Elza Berquó, que inaugurou os estudos sobre saúde da mulher negra, a partir
de pesquisa sobre nupcialidade
56
da população negra, em 1987. Nesta
investigação, Berquó analisou o mercado matrimonial e apresentou a Pirâmide
da Solidão, na qual demonstrou com números a solidão das mulheres negras.
Neste sentido, a historiadora Lilia Schwarcz (1998) detectou que a
endogamia é maior entre os brancos, em especial no Sul do país, e que a
mestiçagem resulta mais de casamentos entre mulheres brancas e homens
pretos do que o contrário. Ou seja, o embranquecimento viabiliza-se mais
56
Ver BERQUÓ (1987).
153
acentuadamente a partir das escolhas dos homens negros (SCHWARCZ,
1998).
Também nesta perspectiva, a cientista social Raquel Souzas e a
socióloga Augusta Thereza de Alvarenga, em investigação sobre as diferenças
de gênero e de raça nas questões reprodutivas de mulheres negras e brancas,
tendo em vista à concepção de liberdade, observam o seguinte:
É interessante, neste ponto, pensar que, no Brasil, mulheres negras
são preteridas do mercado matrimonial, como aponta Berquó
57
e
supervalorizadas, como exóticas, para o tráfico sexual, como
denunciam pensadoras do movimento negro. A estereotipa a que as
mulheres negras estão submetidas impede-as de usufruírem da
liberdade, inclusive a sexual, e de exercitarem sua autonomia e
dignidade, ferindo, portanto, os direitos sexuais das mulheres negras
(SOUZAS; ALVARENGA, 2007, p.130).
E prosseguem as pesquisadoras:
Enquanto mulheres brancas visam à vida pública, mulheres negras
visam à vida privada. Considerando as diferentes histórias de mulheres
negras e brancas e constatando que mulheres negras têm uma história
de vida pública, inscrita em trabalhos forçados e desqualificados,
podemos considerar que elas partem para organizar sua vida privada
como tarefa histórica (SOUZAS; ALVARENGA, 2007, p.131-132).
Por outro lado, a pesquisadora Maria Luiza Heilborn (2006), que realizou
estudo sobre mitos e comportamentos sexuais a partir de dados
provenientes
de um inquérito domiciliar realizado em três cidades de distintas regiões do
país, com jovens de ambos os sexos, de 18 a 24 anos, considera que
A preferência de homens negros por mulheres brancas, em
casamentos inter-raciais, é reveladora de uma forma de ascensão
social e de uma hierarquia, tanto de beleza como racial, o que integra
distintos modos de prática e de representações da sexualidade. Esse
exemplo ilustra não somente um determinado modo de ascensão
social, como também evidencia relações de gênero e sua codificação
em regras jurídicas e em costumes sexuais (HEILBORN, 2006, p.47).
A desvantagem das mulheres negras no mercado matrimonial foi
abordada algumas vezes pela revista Raça Brasil, incluindo matéria publicada
já no primeiro número da revista, em setembro de 1996, intitulada Casais
Mistos da cor do pecado, assinada por Ângela Oliveira. A matéria, que trata
de relacionamentos inter-raciais, a partir de depoimentos de integrantes destes
casais, afirma em um dos subtítulos que Homens têm mais preconceitos,
sintetizando que “nem sempre a alquimia certo. Principalmente na raça
57
Ver BERQUÓ (1986).
154
brasileira. Ora é o homem branco que mostra seu preconceito em relação às
mulheres negras. Ora são os próprios homens negros que preferem as
brancas” (p. 79).
Dois anos depois, em outubro de 1998, o tema foi retomado pela revista
Raça Brasil em matéria, assinada por Tânia Regina Pinto e intitulada Por que
eles preferem as loiras?, na qual a reflexão de D. P., um administrador de
empresas negro bem-sucedido é tão objetiva que, a meu ver, dispensa
análises: “Se eu encontrasse uma negra na faculdade, será que eu me casaria
com ela? Não. Minha esposa não tem curso superior, é baixa, gorda e tem
barriga. Mas é branca” (p. 41).
A mesma matéria apresenta opinião do historiador e escritor negro, Joel
Rufino dos Santos, também bastante direta: “a branca é mais bonita que a
negra, e quem prospera troca automaticamente de carro. Quem me conheceu
dirigindo um Fusca e hoje me de Monza tem certeza de que não sou um
pé-rapado: o carro, como a mulher, é um signo” (p. 43).
Tal determinismo aponta que as relações étnico-raciais podem
condicionar fortemente as escolhas afetivas o que pode resultar para as
mulheres negras em poucas chances de negociação no que tange a essas
escolhas. Ainda assim, perguntei indiretamente para as entrevistadas como
elas fazem para “competir com as loiras”. Elas riram e disseram também
indiretamente que “sempre se dá um jeito”.
D: Tá, mas e aí como é que faz? Se os brancos não gostam das
negras e se os negros...
Maria: (Interrompendo a pergunta) Ah, mas a gente sempre acha.
(Risos das duas)
Maria: Sempre tem. Tipo assim: os negros são mais assim eles pegam
negras e brancas. que os brancos, a maioria tem as exceções, mas
a maioria só pega branca.
Eu desconfiei, no entanto, que não é assim tão simples, levando em
conta para isso, inúmeras queixas que ouvi de mulheres negras de todas as
idades sobre a desvantagem no mercado afetivo e a falta da parceria afetiva
por parte dos homens negros.
Isso me fez lembrar de conversas com algumas integrantes do Grupo
Enegreser, em 2004, na época em que o coletivo reunia estudantes negras
e negros da UnB. Na ocasião, as jovens universitárias, que estavam na faixa
155
etária entre 23 e 26 anos, contaram que os poucos homens negros que
transitavam pela UnB quando passavam por elas, nas dependências do
campus universitário, viravam para o lado como se estivessem fazendo
questão de demonstrar que não estavam olhando para elas.
Neste sentido, suspeitei que, na tenra juventude, estudantes negras
pelotenses parecem administrar a rejeição em potencial condicionando-se a se
contentar com o que seria, no meu entender, as sobras, os restos, a sorte.
De tal forma que algumas das respostas relacionadas com expectativas
destas jovens em torno de relacionamentos afetivos podem ser vistas como
uma estratégia para burlar uma possível rejeição. A começar pela preferência
explícita por homens negros que pode ser uma maneira de enfrentar a
também, segundo elas, explicita rejeição dos jovens brancos.
D: E vocês de que vocês gostam?
Maria: Ah de negro.
Rita: Eu gosto de negro.
Maria: Porque tem branco que é ... a gente diz são brancos mas têm
ascendentes negros porque são assim.. são do meio sabe?
D: Tá, mas ai então vocês vão ter que detalhar [...] Você até falou
daquela modelo que seria negra, mas que não sabe que é negra.
Neste sentido então qual seria a característica deste negro que vocês
gostam?
Maria: Negro, visivelmente negro. Eu já fiquei com branco. Mas a
preferência é negro. É melhor.
D: Por que?
(Risos de todas)
Maria: Porque eu acho.
D: Mas existe alguma diferença?
Maria: (Rápida e espontaneamente) Ah tem.
(Risos de todas)
Maria: Eu não sei explicar, mas quando tu ficas tu sentes.
D: Tá, no caso você disse que já ficou com branco...
Maria: Já, já namorei um branco até.
Rita: Eu só fiquei com dois, mas não durou, não deu certo.
D: E você acha que há diferença também?
Rita: Acho.
D: E o que é?
Rita: Ah eu não sei só ficando pra ver.
(Risos de todas)
D: Mas é uma coisa física ou de...
Maria: De sentimento assim...sei lá.
Maria: É a gente que é a fim, sei lá pra mim tem diferença.
D: Assim de afinidade?
Maria: Isso, sei lá, eu gosto mais. Não sei por que. Sempre foi assim.
Rita: Eu também.
D: Tá, mas se fosse ver bem pelo lado da estética? Independente disso
tudo...
Maria: Não é pela estética porque tem negros bonitos e negros feios e
brancos feios e brancos bonitos. Não é pela estética. Eu não sei dizer.
D: Tá bem. São várias coisas.
Maria: Quando eu fico eu sempre sinto assim diferença.
156
D: Tá.
Maria: É melhor.
(Risos de todas).
Ana, por sua vez e como visto, ao referir-se ao homem que poderia
ser o “príncipe encantado” elencou várias características de personalidade:
“legal, inteligente, carinhoso, gostar de estudar, de festa e de ficar em casa”, e
somente depois de ser questionada sobre quais as características corporais
que seriam bem-vindas caso ostentadas pelo referido “príncipe”, destacou:
“fisicamente alto e negão”.
Algumas outras respostas parecem também remeter para estratégias
para burlar a rejeição. Maria diz que quer um parceiro do mesmo “nível”. Eu
pergunto o que ela quer dizer com isso e ela afirma que vai querer fazer uma
faculdade, dando uma pista de que não es muito segura de encontrar
homens negros em um ambiente universitário, ou que possuam diploma de
nível superior, ou ainda que estes vão querer ter um relacionamento afetivo
com ela.
Ana e Rita manifestaram o que considero um desencantamento em
relação a arranjos afetivos que, no meu entender, chega a ser comovente,
levando-se em conta que elas tinham, respectivamente, 18 e 17 anos. Ana
afirmou que as pessoas não lhe agradam. Rita disse: “Eu agora penso em
estudar. Que eu namorei, né? Agora nem penso em namorar. até tentei
namorar, mas não consigo mais.”
No meu entender, tais depoimentos podem apontar que a condição
étnico-racial destas jovens mulheres, no contexto em que elas se encontram,
pode ser a responsável por desvantagens nos jogos que levam aos arranjos
afetivos. Uma espécie de jogo de cartas marcadas, no qual para jovens negras
não adiantaria muito a busca da auto-afirmação feminina por intermédio dos
atrativos do corpo, tendo em vista acionar nos parceiros em potencial o
arquétipo da musa. Diria Carneiro:
Quando falamos em romper com o mito da rainha do lar, da musa
idolatrada dos poetas, de que mulheres estamos falando?
As mulheres negras fazem parte de um contingente de mulheres que
não são rainhas de nada, que são retratadas com as antimusas da
sociedade brasileira, porque o modelo estético de mulher é a mulher
branca (CARNEIRO, 1994, p.190).
157
A constatação de que os homens de modo geral preferem as mulheres
brancas, grosso modo não importando muito se estas são bonitas ou não tão
bonitas ou mesmo feias, parece resultar também em uma rivalidade implícita
com as mulheres brancas. O que se pode inferir pela quase ausência de
comentários das jovens entrevistadas em relação a estas mulheres, no sentido
de descrição corporal.
Por outro lado, considero relevante que mesmo as jovens tendo
afirmado a preferência por homens negros, quando pergunto nomes de
homens negros que elas conheçam por intermédio de produções midiáticas,
em especial atores negros, o nome citado foi o de Rodrigo Santoro, um homem
branco. Uma contradição tendo em vista o tipo físico de homem que as jovens
afirmaram considerar o ideal. Tal resposta das jovens entrevistas levou-me a
inferir que, como sugere a enquête da revista Contigo! sobre os 50 mais
bonitos da TV (2004, 2005 e 2006), em termos midiáticos, os homens negros
não são considerados homens bonitos. As listagens da revista não incluem
homens negros em nenhum dos três anos.
Imagem 9. Revista Veja – A Lista dos 40 artistas mais poderosos do Brasil
Veja, Editora Abril, Edição 1814, Ano 36, Número 31, 06 de Agosto de 2003.
158
Fiz o cruzamento desta ausência com o conteúdo de uma matéria de
capa da revista Veja, que listou os poderosos da mídia em 2003, e percebi que,
a despeito de um suposto maior acesso a visibilidade midiática, a participação
de homens negros brasileiros em posições de poder na mídia, principalmente
na indústria do entretenimento, ainda é ínfima e o advém de qualquer
performance na qual estética corporal e/ou econômica possam estar em jogo.
A revista Veja apresentou aqueles considerados, em 2003, os 40 artistas
mais poderosos do Brasil. A listagem inclui apenas três homens negros: Hélio
de la Peña, por ser integrante do Grupo Casseta e Planeta, que obteve o 1
o
lugar; Zeca Pagodinho (28
o
lugar) e Alexandre Pires (30
o
lugar). Sobre este
último, a revista salienta, no entanto, que “venceu no exterior”, mas não no
Brasil. A lista não inclui mulheres negras.
159
TECENDO ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS
O entendimento de que os discursos sobre o corpo são frutos de
regimes de verdades, construídos a partir de relações de poder manifestadas
nos âmbitos cultural, social e histórico, levaram-me a começar este estudo
interessada em examinar o quanto o discurso estético hegemônico repassado
cotidianamente pela mídia interfere na formação da identidade de jovens
estudantes negras, oriun
das da classe trabalhadora e moradoras na cidade de Pelotas,
localizada na Metade Sul do estado do Rio Grande do Sul.
Havia o interesse de saber se estas jovens percebiam a existência deste
discurso estético hegemônico; de que forma isso acontecia; que lugar elas
acreditam ocupar na sociedade, tendo por referencial as imagens repassadas
pela mídia; bem como se elas constroem estratégias de resistência ao referido
discurso.
Tais indagações, motivadas pelo senso comum de que o local estaria
sendo assolado por uma suposta midiatização paradigmaticamente relacionada
ao processo da globalização, sustentavam-se a partir das interseções que
poderiam ser problematizadas em uma trama constituída prioritariamente pelas
temáticas de gênero e de etnia, balizadas pela premissa de que a exclusão que
afeta mulheres negras brasileiras é resultado do sexismo e do racismo.
Para aprofundar os estudos do traçado que foi se delineando em torno
dos pontos apresentados anteriormente, assumi como suporte teórico a
experimentação de possíveis conexões entre algumas reflexões de Michel
Foucault e algumas proposições apresentadas pelos Estudos Culturais, bem
como os Estudos Negros e os Estudos Feministas. Destaquei, ainda, a opção
pelos conceitos pós-estruturalistas de identidade, diferença e representação.
A perspectiva do olhar aleatório para produtos oferecidos pela grande
mídia brasileira, sem opção por um veículo ou um produto específico, me fez
160
esboçar uma breve genealogia do lugar que é reservado por esta mídia para
mulheres negras.
Durante a feitura de tal genealogia detectei o que considerei uma
perpétua representação de subalternidade. Instigada por tal constatação, mas
principalmente com a naturalização deste processo, ampliei o diálogo teórico
em busca de conceitos que melhor se adequassem aos meus anseios de
analisar esta perspectiva, o que me aproximou dos conceitos de território e
territorialidade existencial.
A partir deste viés, cogitei que a subalternidade que estaria reservada
pela mídia brasileira às mulheres negras seria alimentada por intermédio da
cristalização de uma territorialidade existencial colonizada que fixa o imaginário
nacional na subjetividade das relações de dominação do regime escravocrata.
As produções midiáticas ocupariam lugar privilegiado no dispositivo que re-
alimenta tal territorialidade.
Estimulada pela apropriação de reflexões de Stuart Hall, sobre a
potência das identidades culturais de e para inventar a tradição, e da feminista
afro-americana bell hooks, sobre as intelectuais negras, arrisquei-me a propor
a noção Síndrome de Zilda, uma ferramenta que problematiza esta
representação subalterna por intermédio da captura das várias faces desta
mesma representação. A meu ver, tal ferramenta poderá ser um elemento
teórico a mais nas discussões suscitadas pelo tema.
O diálogo teórico me levou ainda a perceber que a análise do contexto
local do estudo era decisiva para a pesquisa, tendo em vista que o local teria
peso bastante significativo na leitura que as jovens fariam das produções
midiáticas supostamente mais próximas de uma perspectiva globalizadora.
A focalização do contexto local me fez perceber uma singularidade que
se delineou em indícios de uma forte manutenção da subjetividade do período
colonial escravocrata, por conta de uma potente negação hegemônica da
presença de afro-descendentes na região.
A tentativa de descobrir quais os interstícios do dispositivo local que
mantém esta subjetividade colonial levou-me ao mito fundador da cidade de
Pelotas que, ao contrário do restante do Brasil, faz questão de omitir a
presença local, tanto no passado como no presente, da população afro-
descendente. Aqui cabe lembrar que o mito de origem do Rio Grande do Sul
161
também não inclui a presença da população negra, ainda que estudos mais
recentes comecem a desfazer esse imaginário. Cogito, no entanto, que é
necessário um tempo maior para que esse deslocamento de perspectiva possa
ser reconhecido pela mídia. Sem desconsiderar, é claro, que o discurso
midiático sustenta relações de poder que atendem aos interesses
hegemônicos.
Observei exemplos de narrativas do mito fundador local, as quais
apresentam a história de Pelotas exaltando a riqueza obtida pela indústria do
charque sem citar, em momento algum, que tal riqueza só foi possível graças à
presença da população negra. Uma presença que, penso eu, não convém ao
poder hegemônico, uma vez que poderia apontar para uma contradição entre a
riqueza mítica supostamente de todos e a participação decisiva e
imprescindível da população negra escravizada na manutenção das
charqueadas.
Além disso, o reconhecimento da presença negra possivelmente
resultaria em uma rasura no mito, no que diz respeito às tradições culturais
européias, que seriam a marca tradicional da cidade, e, quem sabe, poderia
resultar em questionamentos quanto à cristalização local da assimetria das
relações de poder, em especial, no que tange a invisibilidade, subalternidade,
exclusão e apartação em que se encontra a maioria da população negra.
Por outro lado, a análise de especificidades da população negra
pelotense me fez suspeitar que o branqueamento, a potente estratégia do
biopoder adotada pelo Estado Brasileiro exatamente na época em que
explodiram as entidades negras locais (nas primeiras décadas do século XX),
foi apreendido pelo grupo discriminado. Ou seja, as dificuldades de lançar o
do branqueamento biológico (a mestiçagem) podem ter jogado às expectativas
para a possibilidade de que estratégias de branqueamento cultural pudessem
produzir resultados satisfatórios. O que não aconteceu em uma sociedade
fortemente verticalizada e marcada por políticas de subjetivação voltadas para
a manutenção da hegemonia do colonizador português. Resultado: Órfãos de
um mito de origem, em um estado onde a afirmação das origens étnico-raciais
eram e são bastante valorizadas, como também as fronteiras étnico-raciais
eram e são bem definidas, negras e negros da Metade Sul da Região Sul
permaneceram, de fato, em uma espécie de orfandade de pertença, que
162
parece ter produzido como seqüela o estado subjetivo “não-ser”, que, a meu
ver, é bem mais potente do que “estar fora”.
Neste sentido, achei relevante observar que Nilma Gomes, ao analisar
algumas raízes históricas do movimento rejeição/aceitação vivenciado pela
população negra brasileira em relação ao seu corpo e seu cabelo, recorreu a
um trabalho realizado no Rio Grande do Sul como exemplo de estudos que
sustentam que um dos sustentáculos do escravismo foi a negação da
identidade negra concretizada a partir da “coisificação imposta ao africano”.
Pois bem, de posse desta bagagem, analisei as falas das jovens que se
dispuseram a participar da investigação.
Não me vejo, logo não me interesso
Ainda que as jovens mulheres negras estudantes entrevistadas
reproduzam um ideário de estética embranquecido, penso eu, reflexo primeiro
do contexto local, contraditoriamente elas parecem negar aquilo que não é
espelho. Assim, a meu ver, muitas tensões são resolvidas por intermédio do
mecanismo da negação: Eu não me vejo, logo eu não me interesso.
Neste sentido, as jovens identificam prontamente os discursos estéticos
presentes na mídia em diversos tipos de produções e em diferentes veículos,
por intermédio do reconhecimento praticamente imediato da ausência de
imagens de pessoas negras nestas produções.
Tal reconhecimento da ausência manifesta-se muito menos pela
contestação desta e muito mais por intermédio daquilo que Stuart Hall chama
de leitura negociada. As jovens supervalorizam as imagens de pessoas negras,
independentemente da visível desvantagem destas em relação às pessoas
brancas, mantendo este mesmo tipo de leitura em relação às mídias impressas
e às imagéticas, bem como tendo em vista a valoração de um suposto talento
artístico e a preferência por um estilo musical.
Uma leitura que pode ser encarada como uma tentativa de negação do
discurso estético hegemônico e, ainda que não sejam estabelecidos discursos
de oposição, de resistência ou mesmo alternativos, pode apontar para uma
atitude de oposição e de resistência.
163
Mas pode também significar conformação com o status quo. Uma
espécie de resignação, provavelmente inconsciente: “bom, pelo menos temos a
Taís Araújo e a Camila Pitanga”. O que torna a análise complexa, sendo
necessários dados mais específicos para saber, tendo em vista as intensidades
subjetivas desejantes, quais desses fatores prevalece.
De qualquer forma, essa negociação pode afirmar também o
reconhecimento de uma identificação étnico-racial e atestar uma busca de
pertencimento, bem como de referências positivas.
A lembrança de uma cantora afro-americana, de uma modelo inglesa e
de um tipo específico de produção cinematográfica aponta também para uma
leve abertura para o global, ainda que esta possa estar desequilibradamente
voltada para a mídia norte-americana.
Ainda assim, a meu ver, o peso do local sobrepuja, em muito, as
tendências de adesão a um padrão estético afro, no qual o potencial de beleza
expresso no fenótipo negro é maximizado, por exemplo, em salões de beleza
assumidamente específicos para cabelos crespos. Tendências estas que já são
observadas em centros maiores, em especial aqueles pertencentes às demais
regiões do país.
Em Pelotas, ao que tudo indica, a incidência de globalismos localizados
é mais rarefeita. Assim, a despeito de algumas mudanças nas relações étnico-
raciais no Brasil, que estão sendo detectadas por algumas pesquisas em
outras regiões do país, e das conquistas viabilizadas pelas lutas dos
movimentos negros, algumas delas manifestadas por intermédios de ações
afirmativas implementadas por diferentes instâncias governamentais, jovens
pelotenses dizem não saber o porquê da ausência de imagens de pessoas
negras na mídia e afirmam não saber o que significa o racismo.
O que gera mais uma suspeita da incidência do mecanismo da negação,
bem como pode sugerir que as jovens responderam à investigação a partir de
um modelo de subjetivação hegemônico, o que, em se tratando do Brasil,
poderá significar um entendimento de que não existe racismo ou ainda que, no
limite, não se deve falar que ele existe.
A meu ver, no entanto, é na temática perspectivas profissionais para
mulheres negras que o cruzamento entre o discurso estético hegemônico e o
contexto local pode causar seqüelas mais problemáticas. que, se por um
164
lado o local as jovens afirmam que praticamente não conhecem mulheres
negras profissionalmente bem sucedidas, por outro, elas identificam nas
mulheres negras que reconhecem por intermédio da mídia o que consideram
profissionais bem-sucedidas.
Como uma jovem negra poderá almejar grandes vôos profissionais se
faltam-lhe referências positivas neste sentido, tanto nos relacionamentos que
resultam dos arranjos locais quanto nas narrativas midiáticas nas quais as
personagens de ficção interpretadas por pouquíssimas mulheres negras
emblemáticas encontram-se aprisionadas em um território de subalternidade?
Por outro lado, o inusitado das falas das jovens manifestou-se por
intermédio do pouco fascínio pelas novas tecnologias de informação, bem
como pela preferência pelo rádio, cuja principal característica é a percepção
exclusivamente sonora sem o acionamento da visão.
É relevante destacar também a leitura que as entrevistadas fazem da
revista Raça Brasil. Neste caso, uma supervalorização da imagem, ou seja,
o discurso imagético impresso, em detrimento do discurso manifesto na palavra
escrita. Tal deslocamento, a meu ver, é instigante, em se tratando de uma
mídia impressa cuja temática abordada pelos discursos verbais escritos a priori
estaria relacionada com as pessoas negras que as jovens parecem buscar
como referência. Por que então as estudantes negras não demonstram
interesse por estes discursos escritos?
A resposta talvez seja uma mudança de perspectiva: Qual seria a
relação entre a inegável ausência de representação imagética positiva de
pessoas negras, ou seja, a sub-representação de modo geral, e o desinteresse
pelo discurso verbal impresso de um modo geral, incluindo os casos em que
este discurso verbal possivelmente aborde temáticas que digam respeito às
imagens de pessoas negras?
o cruzamento entre estudos sobre a desvantagem de mulheres
negras no mercado matrimonial e os depoimentos das jovens entrevistadas
aponta que a condição étnico-racial pode dificultar a performance destas jovens
nos jogos que levam aos arranjos afetivos. O que pode significar uma condição
de desvantagem em um jogo de cartas marcadas, no qual não adianta muito
lançar mão de práticas que supostamente mantém a auto-afirmação feminina
165
por intermédio dos atrativos do corpo, tendo em vista acionar nos parceiros em
potencial o arquétipo da musa.
Neste sentido, no meu entender, muitas das respostas das jovens
mulheres negras estudantes pelotenses entrevistadas parecem dar pistas de
que a identidade mulher negra é bastante marcada, sendo mesmo
essencializada.
Assim, volto às reflexões de Stuart Hall sobre a identidade cultural,
salientando que o autor defende as múltiplas possibilidades identitárias, mas
também se refere às assimetrias do poder que parecem recrudescer em
tempos imperiais de capitalismo globalizado, sugerindo que as posições
hierárquicas de menor prestígio possivelmente sejam as últimas a desfrutarem
do deslocamento identitário.
As trocas desiguais do sistema global, manifestadas nas relações entre
os grupos étnico/raciais que ocupam posições dominantes e subalternas,
levam-me a cogitar que a subalternidade da condição mulher negra brasileira
pode colocar em xeque as possibilidades, de fato, de deslocamentos
identitários.
Salientam-se, no conjunto desta pesquisa, as tensões relativas às
questões étnico-raciais e de gênero (e de classe), das quais considero
relevantes as relacionadas com a economia do afeto, que, tendo em vista o
tema proposto, rasuraram definitivamente qualquer perspectiva de
aproximação a um suposto glamour que estaria normatizado na sociedade de
controle midiatizada. O espelho parece estar partido.
166
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Telenovelas (cit.)
A Cabana do Pai Tomás (Rede Record, 1969).
A Cor do Pecado (Rede Globo, 2004).
A Deusa Vencida (Rede Excelsior, 1965).
Belíssima (Rede Globo, 2003).
Escrava Isaura (Rede Globo, 1976).
Escrava Isaura (Rede Record, 2006).
Fera Ferida (Rede Globo, 1993).
Laços de Família (Rede Globo, 2000).
Mulheres Apaixonadas (Rede Globo, 2005).
Paraíso Tropical (Rede Globo, 2007).
Porto dos Milagres (Rede Globo, 2001).
Sinhá Moça (Rede Globo, 2006).
Xica da Silva (Rede Manchete, 1996).
Cinema (cit.)
As Filhas do Vento (2003).
Orfeu do Carnaval (1958).
Sinhá Moça (1954).
Xica da Silva (1996).
176
APÊNDICES
177
APÊNDICE A - Termo de consentimento livre e esclarecido
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Objetivos do projeto: Debates sobre a influência da mídia tendo por base os
padrões de beleza.
Neste sentido, a jovem sob sua responsabilidade está sendo convidada para
participar de algumas reuniões de aproximadamente duas horas, a serem
realizadas na escola, em horário que não coincida com as atividades de sala
de aula. Para melhor compreensão das informações resultantes dos debates,
as reuniões serão gravadas.
Confidencialidade
A participação nestas reuniões é totalmente confidencial e voluntária. Ninguém
além da(os) pesquisadora(es) terá acesso ao que a adolescente falar. O
verdadeiro nome da adolescente não será escrito ou publicado em nenhum
local. Toda informação será guardada com número de identificação.
Participação
A participação da adolescente é voluntária. Ela pode, inclusive, recusar-se, por
motivos pessoais, a responder qualquer pergunta, bem como, deixar de
participar de algum encontro.
Caso a Senhora e/ou o Senhor deseje obter alguma informação relacionada ao
projeto, contate pelo telefone 9159.2755 a pesquisadora Diony Oliveira Soares
(aluna do Mestrado de Educação, da Faculdade de Educação, da Universidade
Federal de Pelotas).
CONSENTIMENTO
Declaro que li ou leram para mim o consentimento acima e autorizo a
participação da adolescente sob minha responsabilidade na referida pesquisa.
Nome da adolescente:_____________________________________________
Nome da/o responsável:____________________________________________
Assinatura da/o responsável:________________________________________
Data: ___/___/___
178
APÊNDICE B
Questionário apresentado às jovens antes da realização da entrevista:
Cara Jovem,
estou desenvolvendo uma pesquisa sobre a auto-imagem a partir da influência
da mídia (meios de comunicação), tendo por base os padrões de beleza. Neste
sentido, gostaria que as perguntas abaixo fossem respondidas. Todas as
informações serão tratadas com rigor e sigilo. Nem os nomes, nem o local
de residência serão divulgados.
Nome:
Idade:
Endereço: (Rua e bairro)
Tem irmãos/ãs? Sim ( ) Não ( )
Número de irmãos:
Número de irmãs:
Cidade em que nasceu:
Moradia:
Mora com: a mãe ( ) os pais ( ) parentes ( ) outros ( )
Escolaridade:
Série que está cursando:_________________________________________
Trabalho:
Você exerce alguma atividade remunerada? sim ( ) não ( )
Qual?_________________________________________________________
Situação familiar:
Renda familiar:
Até um salário mínimo: ( )
Até três salários mínimos: ( )
Até cinco salários mínimos: ( )
Mais de cinco salários mínimos: ( )
Escolaridade familiar:
Escolaridade da mãe:______________________________________________
Ensino Fundamental completo ( ) incompleto ( )
179
Ensino Médio completo ( ) incompleto ( )
Ensino Superior completo ( ) incompleto ( )
Profissão da mãe:_______________________________________________
Escolaridade do pai: _____________________________________________
Ensino Fundamental completo ( ) incompleto ( )
Ensino Médio completo ( ) incompleto ( )
Ensino Superior completo ( ) incompleto ( )
Profissão do pai:__________________________________________________
Você mantém um relacionamento afetivo estável (namorado) por mais de seis
meses?________________________________________________________
Dados complementares:
Lazer preferido:__________________________________________________
Participa de algum grupo, associação ou clube? sim ( ) não ( )
Se sim, quais as principais atividades realizadas pelo grupo do qual participa?
_______________________________________________________________
180
APÊNDICE C
ROTEIRO FLEXÍVEL DE ENTREVISTA
Quais características uma mulher precisa ter para ser considerada
bonita?
Citem exemplos de mulheres bonitas.
Quais as qualidades que uma mulher precisa para ser bem-sucedida
profissionalmente?
Quais as qualidades que uma mulher negra precisa para ser bem-
sucedida profissionalmente?
Qual a profissão que vocês pretendem seguir?
Quais os meios de comunicação que vocês mais têm acesso?
Vocês têm contato com jornais e revistas? Quais? Que tipo de
informação vocês procuram nestes veículos?
Quais os canais de TV e quais os programas que vocês mais assistem?
Vocês têm acesso a cinema e a teatro?
Vocês têm acesso a computador? Independente de ter ou não, que
assuntos vocês gostariam de poder tratar por intermédio do
computador?
Ídolos – O que vocês acham deste assunto? Se os têm, falem nelas/es e
digam o porquê de serem as/os suas/seus preferidos?
Vocês poderiam falar um pouco sobre os seus namorados? Ou
pretendentes?
181
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