1. 2. Os principais manuscritos
A posteridade literária de Édipo é imensa. Desde a sua primeira apresentação
contam-se numerosas adaptações do mito ao teatro, ao cinema e mesmo em romances e
novelas. Este mito não cessa de metamorfosear-se sem, no entanto, se livrar dos seus
principais elementos. A dificuldade em estabelecermos uma reconstituição fidedigna da
peça Édipo Rei
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de Sófocles justifica-se pelos séculos que nos separam da sua primeira
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KNOX, Bernand. “The Date of the Oedipus Tyrannus of Sophocles”. In: Word and Action: Essays of the
Ancient Theater. The Johns Hopkins University Press : Baltimore and London, 1979. A Guerra do
Peloponeso e a praga em Atenas encontram-se figuradas na linguagem da peça Édipo Rei, o que torna
natural recorrermos a estes acontecimentos a fim de identificarmos uma data aproximada para a sua primeira
apresentação nas Grandes Dionisíacas. Portanto, não será espantoso identificarmos no corpo do texto
algumas referências a elementos náuticos, estratégias de guerra, calamidades, miséria, sofrimento e mesmo à
peste em Atenas. Embora não exista nenhuma datação, inscrição ou detalhe plausível, somente através do
próprio texto é possível empreender uma investigação frutífera, ou mesmo nos remetendo a outras peças
contemporâneas a Édipo Rei e que lhe façam referência. As evidências internas, os estudos sobre a métrica e
estilo cronológico não apresentariam hipóteses decisivas; serviriam simplesmente como suporte secundário
ou de menor importância. Algumas passagens são importantes alusões históricas e a mais expressiva delas
refere-se à praga em Tebas, anunciada no prólogo e no párodo. Alguns autores chegam a propô-la como
uma das hipóteses para uma datação aproximada. Mas a praga em Tebas parece ser uma invenção de
Sófocles; então, poderíamos afirmar que ele não estaria se referindo a Tebas, mas a Atenas, quando escreveu
a peça. MUSURILLO, Herbert. “Sunken Imagery in Sophocles’ “Oedipus’”. The American Journal of
Philology, Vol. 78, No. 1. (1957), pp. 38-39. A inserção da peste num texto literário absorve outras funções
que não são meramente históricas, mas simbólicas. A descrição da peste criada por Sófocles em Édipo Rei
alcança uma dimensão que ultrapassa o descrito nos tratados de medicina e nos relatos históricos que
descrevem a peste na cidade de Atenas. Estes relatos, certamente, contribuíram para a construção poética de
Sófocles e correspondiam ao imaginário social da época despertando o reconhecimento nos espectadores. A
praga criada por Sófocles não se restringiria apenas ao que chamamos de epidemia, afetando as plantas, os
animais e os humanos, possuía uma relação direta com o sagrado. Ao compararmos o período e os sintomas
da doença, a ineficiência da religião - pois as preces e os apelos aos oráculos pareciam não surtir efeitos -
aproximamos as descrições de Sófocles e Tucídides em relação à deflagração da peste. A cidade padecia
enquanto o desequilíbrio tomava conta do povo. Além disso, tais quais os tebanos descritos no párodo em
Édipo Rei, os atenienses caiam ali e aqui massacrados por tal páthos. DRAEGER, Andréa Coelho
Farias.“Para além do lógos”: A peste de Atenas na obra de Tucídides. Dissertação de Mestrado. Rio de
Janeiro : UFRJ, 2004, p. 82. Segundo Tucídides “Os mortos, ao expirarem, eram postos uns sobre os outros
e pessoas semimortas rolavam nas ruas em torno de todas as fontes pela ânsia de água. Os templos nos
quais se acampava estavam repletos de cadáveres daqueles que morriam dentro deles”. Em paralelo temos
uma referência que Sófocles utilizou no primeiro canto coral da peça: “Incontáveis. A pólis morre.
Portadores-de-Tânatos, tristíssimos, os mortos proliferam pelas ruas”. (Édipo Rei, v. 179-181, trad. Trajano
Vieira). Sófocles resgata, principalmente, o ambiente de letargia e sofrimento estabelecido pelos cadáveres
insepultos pelas ruas reforçando o clima de insegurança, tristeza e indefinição crescente na pólis. Os relatos
de Sófocles e Tucídides convergem na mesma direção e tal qual a descrita na tragédia Édipo Rei, a peste
dizimava a população. O desamparo, o pedido de socorro, o desespero, a superstição e a religiosidade que
seguem a deflagração da peste não estão distantes da atmosfera criada por Sófocles. A atmosfera religiosa,
os rituais e o comportamento dos cidadãos fortaleceriam esta hipótese. O posicionamento do Sacerdote,
conclamado a falar, demonstra os infortúnios atravessados pelos cidadãos que se vêem impotentes perante
tantas desgraças. “Naufraga a pólis – podes conferi-lo -;/ a cabeça, já é incapaz de erguê-la/ por sobre o
rubro vórtice salino:/ morre no solo – cálices de frutas;/ morre no gado, morre na agonia/ do aborto. O
deus-que-porta-o-fogo esfola/ a pólis – praga amarga -, despovoando/ as moradas cadméias. O Hades
negro/ se enriquece de lágrimas e lamento”. (Édipo Rei, vv. 22-30) A pólis encontrava-se em franca
decadência. Sófocles construiu uma analogia comparando o naufrágio da cidade a um homem se debatendo
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