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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE LETRAS
SÔNIA APARECIDA DOS ANJOS
A FALTA TRÁGICA (HAMARTÍA) DE ÉDIPO EM ÉDIPO REI,
DE SÓFOCLES
1
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SÔNIA APARECIDA DOS ANJOS
A FALTA TRÁGICA (HAMARTÍA) DE ÉDIPO EM ÉDIPO REI,
DE SÓFOCLES
Dissertação de Mestrado apresentada ao
curso de pós-graduação em Letras:
Estudos Literários, da Faculdade de
Letras da Universidade Federal de Minas
Gerais, como requisito para obtenção do
título de Mestre em Letras. Área de
Concentração: Estudos Clássicos. Linha
de Pesquisa: Literatura, História e
Memória Cultural.
Orientador: Professor Doutor Teodoro Rennó Assunção
Universidade Federal de Minas Gerais
Faculdade de Letras
Belo Horizonte
2
2008
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Anjos, Sônia Aparecida dos.
S681r.Ya-f A falta trágica (Hamartía) de Édipo em Édipo Rei, de Sófocles
[manuscrito] / Sônia Aparecida dos Anjos. – 2008.
260 f., enc. : il.
Orientador : Teodoro Rennó Assunção.
Área de concentração: Estudos Clássicos.
Linha de Pesquisa: Literatura, História e Memória Cultural.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Minas
Gerais, Faculdade de Letras.
Bibliografia : f. 251-260.
1. Sófocles. Rei Édipo – Crítica e interpretação – Teses. 2. Teatro
grego (Tragédia) – Teses. 3. Édipo (Mitologia grega) – Teses.
I. Assunção, Teodoro Rennó. II. Universidade Federal de Minas Gerais.
Faculdade de Letras. III. Título.
CDD : 882.2
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5
RESUMO
A presente pesquisa visou apontar algumas reflexões sobre a hamartía de Édipo em
Édipo Rei de Sófocles, concatenada à ação de outras personagens, revendo a
interpretação tradicional que prevê como faltas trágicas: o parricídio e o incesto. O
principal objetivo deste estudo se norteou, em primeiro lugar, pelo resgate de uma
definição sistematizada para o termo hamartía a partir da reflexão de Aristóteles na
Poética e de sua possível aplicação na tragédia. Assim, a partir da interpretação dos
episódios e estásimos da tragédia Édipo Rei, procuramos identificar hipóteses que
anunciam direta ou indiretamente a falta trágica (hamartía) de Édipo, no momento
presente da peça.
Palavras-chave: Hamartía (falta trágica), teatro, tragédia grega, Édipo Rei.
ABSTRACT
The present research aimed to point out a few reflections about Oedipus' hamartia in
Sophocles’ Oedipus the King, concatenated to the actions of other characters, reviewing
the traditional interpretation that are seen as tragic flaws: parricide and incest. The main
objective of this study was firstly aimed at recovering a systematized definition for the
term “hamartia” based on Aristotle’s reflection on Poetics and its possible application
in the tragedy. Thus, from the interpretation of the tragedy Oedipus the King’s episodes
and stasimons, we have tried to identify hypotheses that directly or indirectly
preannounce Oedipus’ tragic flaw (hamartia), at the present moment of the play.
Keywords: Hamartia (tragic flaw), theater, greek tragedy, Oedipus the King.
6
ÍNDICE
APRESENTAÇÃO..........................................................................................................9
1. Édipo Rei: breve história da transmissão do texto......................................................12
1.2. Os principais manuscritos ........................................................................................13
2. Algumas das principais adaptações ............................................................................16
3. O estudo da peça e o tema de pesquisa .......................................................................19
CAPÍTULO I: A HAMARTÍA NA POÉTICA E NA TRAGÉDIA..................................25
1. As interrelações entre a hamartía e o herói trágico no contexto do capítulo XIII e
XIV na Poética................................................................................................................25
2. A hamartía e seus sentidos aproximados ...................................................................44
3. Indicação e análise da hamartía em três peças de Sófocles.........................................53
3.1. A hamartía de Dejanira: o amor trágico e destruidor em As Traquínias.................54
3.2. A ambigüidade da hamartía em Antígona...............................................................64
3.3. A negação da hamartía de Édipo em Édipo em Colono.............................................78
CAPÍTULO II: “HOMEM NENHUM AFIRME EU SOU FELIZ...”: A HAMARTÍA EM
ÉDIPO REI DE SÓFOCLES...............................................................................................88
1. A Estrutura da Peça e os Movimentos Cênicos...............................................................88
2. Quadro de distribuição do aparecimento das personagens e movimentos cênicos
.........................................................................................................................................89
3. O conteúdo da peça ....................................................................................................91
4.1. Uma “hamartía” faz sofrer a pólis: a interpretação oracular e as decisões de Édipo
.......................................................................................................................................96
7
4.2. “Incontáveis, a pólis morre”. (v. 179): oração, súplica, esterilidade, doença e
morte...................................................................................................................................106
4.3. Imprudência e maldição: as palavras fatais de Édipo ............................................119
4.4. “Terrível o saber se ao sabedor é ineficaz”: a ineficiência da sabedoria na busca
pela felicidade ...............................................................................................................127
4.5. É inútil se esquivar dos oráculos ...........................................................................137
4.6. Vale a pena crer nos oráculos? Injustiça, cegueira e impiedade............................143
4.7. Desmedida, impiedade, orgulho e injustiça: o segundo estásimo e a hamartía....161
4.8. Prenúncios de um fracasso e a identidade perdida ................................................175
4.9. A reviravolta da fortuna e o reconhecimento da “hamartía”................................189
4.10. A possibilidade da hamartía: a ilusão da felicidade e a fragilidade humana.......198
CAPÍTULO III: A HAMARTÍA EM ÉDIPO................................................................ 213
1. Hamartía, (in)felicidade e reviravolta em Édipo Rei................................................213
2. A hamartía entre a áte, a hýbris e a asébeia:............................................................220
3. Hamartía e má sorte em Édipo Rei: a linguagem oracular, a cegueira e o
aniquilamento................................................................................................................232
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................244
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .....................................................................251
8
APRESENTAÇÃO
O gênero trágico nasceu na Grécia e, ainda hoje, escrevem-se tragédias que com
freqüência nos remetem aos gregos, seus temas e suas personagens. O fenômeno
alcançou seu apogeu durante a época da democracia ateniense e foi extremamente
significativo aos cidadãos. As encenações, que ocorriam uma vez ao ano, eram
celebrações em honra de Dioniso e não significavam mero teatro
1
. Normalmente, nossa
compreensão sobre o trágico relaciona-o a situações que provocavam piedade e terror,
eram os eventos em que a felicidade encontrava-se posta à prova, em que os conflitos
não eram resolvidos ou cujos resultados direcionavam-se ao contrário do esperado.
A tragédia era parte ativa da engrenagem social da pólis e contribuía na criação
de uma unidade que propiciava uma profunda autoconscientização do cidadão enquanto
cidadão e da cidade enquanto cidade
2
. As representações chegavam a ser o ponto
culminante da vida da pólis e, por conseqüência, o espetáculo revestia-se de caráter
cívico. O mito, em sua estrutura simbólica, incorporava valores e preocupações com
questões como guerra, paz, destino, justiça, sofrimento, felicidade e infelicidade. A
utilização destes mitos nas tragédias visava informar e educar a população, já que todos
participavam das Grandes Dionisíacas. Através do espetáculo trágico a pólis se auto-
representava e, ao fazê-lo, encontrava motivos para elogiar-se ou mesmo censurar-se.
Indiretamente, a tragédia celebrava a pólis e questionava sua ideologia.
Admiravelmente adequada à transformação do conhecimento grego, a atmosfera
dramática justificava-se através de uma profunda identificação do público para com o
espetáculo. O espectador da tragédia era dilacerado pelo prazer e dor representados num
espetáculo grandioso e elaborado. Jean-Pierre Vernant demonstra a dimensão política,
1
MEIER, Christian. The Political Art of Greek Tragedy. Cambridge : Polity Press, 1993, p. 2. Cf. artigo:
“Porque os Cidadãos Atenienses Necessitavam das Tragédias.
2
VERNANT, Jean-Pierre. Entre Mito e Política. São Paulo : Edusp, 2001, pp. 360-61.
9
religiosa e jurídica dos espetáculos, a quem este se destinava, seu funcionamento, o
paradoxo temático e a preferência pelas lendas dos heróis
3
.
O coro desempenhava um papel fundamental e através dele vinculavam-se os
comentários sobre a trama. Os diálogos deste com o protagonista e ou com as
personagens secundárias orientavam-se a partir de conselhos, comentários, denúncias e
exortações
4
. Era também o mediador da ação, residindo sua importância na expressão
coletiva dos sentimentos despertados através da ação do herói
5
. Estes sentimentos
resplandeceriam a experiência de exclusão, opressão e vulnerabilidade enquanto
experiência da comunidade. A presença do coro constitui-se enquanto força poderosa no
espaço dramático. Esta percepção sobre a condição humana que o coro incorpora
poderia nos oferecer imagens da experiência humana daqueles tempos
6
.
Dentre as tragédias que nos restaram, Édipo Rei, de Sófocles, é a expressão da
falibilidade humana e representa uma das mais trágicas histórias já encenadas. Uma das
principais características desta peça deve-se ao enigma que corresponde, não apenas ao
destino de Édipo, mas à(s) sua(s) hamartía(s)
7
. Sófocles arquiteta o desenlace do
infortúnio de Édipo, concentrado na encenação do investigador que se descobre réu de
sua própria investigação
8
.
Édipo possui uma personalidade privilegiada e sua queda deveu-se a uma grande
falta cometida. Ele se apresenta como um governante preocupado com os problemas da
3
VERNANT, 2001, Op. Cit., p. 362.
4
DEULEFEU, Luiz Cláudio. A Tragédia Grega. http://www.simonsen.br/novo/revistadigital/tragedia.pdf.
16/11/2007. 16:52
.
5
GOULD, John. “Tragedy and Collective Experience”. In: SILK. M. S. Tragedy and the Tragic. Oxford :
Claredon Paperback, 1998, p. 224.
6
GOULD, 1998, Op. Cit., p. 233.
7
Gostaríamos de pensar na possibilidade de encontrar uma ou mais hamartías na peça Édipo Rei que em
maior ou menor grau contribuem para o desfecho trágico.
8
Acreditamos que os espectadores destas tragédias possuíam certo grau de conhecimento dos mitos e se
interessavam pelo que assistiam. A história de Édipo seria amplamente conhecida e Sófocles extraiu do
mito o que considerou mais peculiar e interessante. Contudo, ao fazê-lo, precisou selecionar e excluir
elementos que faziam parte do mesmo e até acrescentar outros que lhe eram estranhos sem parecer
inverossímil. Em relação ao mito, Édipo cometeu os mais terríveis atos: parricídio e incesto. Porém, no
momento presente da peça escrita por Sófocles a sua falta trágica não é facilmente identificada.
10
cidade e se compromete a resolvê-los. No desenrolar da trama, as suas ações tiveram
resultado contrário ao desejado, e mesmo que ele acreditasse manter o controle da
situação, sua vida foi se transformando num pesadelo que culminaria na sua ruína
9
.
O próprio título
10
, mais do que revelar sobre a trama, revela o momento histórico
grego em suas nuances específicas com relação ao governo, à guerra e às calamidades
provenientes da natureza. O termo “Týrannos” é utilizado algumas vezes na tragédia
como substituto para basileus, mas em Sófocles a palavra não pode ser considerada
neutra em nenhuma de suas aparições. Édipo é tirano porque existe um aspecto em seu
poder que justifica a utilização do termo, a princípio, ele não é o herdeiro hereditário,
mas um sucessor que assume o trono como recompensa por um grande feito, e esta
diferença é fundamental para compreendermos a distinção entre basileus e tirano
11
.
Seguindo parte desta linha de pensamento, Newton Bignotto salienta que a
tradução do título da peça para Édipo Rei consiste num erro de tradução. A tradução
exata seria Édipo Tirano, não apenas devido ao título original em grego, mas porque o
comportamento da personagem é exatamente o de um tirano
12
.
Em direção contrária, poderíamos afirmar que Édipo não se apresenta
categoricamente com o perfil de um tirano – tal qual o concebemos atualmente. Ele
personifica o governante bom e estimado por todos devido a suas qualidades
inigualáveis. Apesar de sua boa índole, solidariedade e empenho em resolver as
9
SÓFOCLES. Édipo Rei. trad. Trajano Vieira, São Paulo : Perspectiva, 2001. Cf., vv. 1526-1530.
Também em Antígona, de Sófocles, identificamos esta visão negativa sobre a vida, sua instabilidade e a
fragilidade da felicidade humana: “Com efeito, a fortuna cria e inverte sempre o homem feliz e o homem
infeliz, e nenhuma divindade pode revelar com certeza o destino futuro dos mortais”. Cf., SÓFOCLES.
Antígona. trad. Guilherme de Almeida.
10
MARSHALL, Francisco. Édipo Tirano: A Tragédia do Saber. Porto Alegre : Ed. UNB, 2000, p. 51.
Segundo Marshall, “o próprio título da tragédia, Édipo Tirano embora de provável origem alexandrina,
encaminha a problemática quanto às formas do poder e aos regimes políticos”.
11
KNOX, Bernard. “Why Is Oedipus Called Tyrannos?” in: Word and Action. London : The Johns Hopkins
University Press, 1979, p. 87.
12
BIGNOTO, Newton. O tirano e a Cidade. São Paulo : Discurso Editorial, 1998, p. 73. Ocorrências da
palavra tirano em Édipo Rei: Édipo é qualificado como tirano por Tirésias (408), Creonte (514), Mensageiro
(925, 939), Coro (1095), o próprio Édipo (380, 535, 541). Édipo se denomina basileus (257). Édipo chama
Laio de tirano em três oportunidades (128, 799, 1043) e basileus em uma (257).
11
pendências populares, ele era um intruso, o estrangeiro que recebeu o trono através de
sua capacidade intelectual. Aos olhos de todos, ele não era um rei de direito hereditário
como sucessor natural do trono, pois desconheciam seu parentesco com Laio. Mas
Édipo era rei por direito hereditário, embora não soubesse disso, então o título tirano
nos parece um contra-senso.
A posição de rei que ele ocupa em Tebas estabelece o seu comprometimento,
responsabilidade e solidariedade para com a pólis e ele não deve, portanto, abdicar de
sua obrigação quando esta se torna necessária. A grande ironia é que não existe nenhum
outro com mais direitos hereditários do que ele
13
, pois Édipo é filho de Laio e Jocasta –
herdeiro natural do trono
14
.
1. Édipo Rei: breve história da transmissão do texto
A tragédia Édipo Rei de Sófocles, dentre outras, sobreviveu porque os estudiosos
da antiguidade, em especial os bizantinos, a escolheram para seus estudos, criando um
cânone de obras imortais
15
. Embora não tenha vencido o primeiro lugar quando foi
apresentada nas Grandes Dionisíacas, pois perdeu para uma peça desconhecida de um
sobrinho de Ésquilo: Fílocles
16
, Édipo Rei adquiriu vitória póstuma, pois encontrou
tratamento relevante na Poética de Aristóteles, revelando-se na posteridade como uma das
mais belas tragédias conhecidas.
13
KNOX, 1979, Op. Cit., p. 89.
14
VERNANT, 2001, Op. Cit., p. 271-2. O tema da usurpação do trono está presente no mito e, segundo o
autor, Laio é órfão, desde cedo, pois Lábdaco falecera quando este ainda era muito jovem. Também Laio
afastara Édipo do trono numa lesa tentativa de assassiná-lo; Édipo, afastado do seu trono de origem,
exilado de Tebas, reencontra-se com Laio e o mata, decifra o enigma da Esfinge, casa-se com Jocasta e
torna-se rei cumprindo o oráculo. O tema da peça subjaz diretamente ao título porque o ideal seria cada
geração substituir a outra sem necessidade de violência ou usurpação, mas por direito. Vernant ainda
elabora um interessante resgate etimológico dos nomes das personagens descendentes de Lábdaco e leva-
nos a pensar o seguinte; sendo Lábdaco, o manco; Laio, o estranho ou o esquerdo; Édipo, pés inchados ou
andar claudicante; nós poderíamos pensar no sentido figurado, pelo menos no nome de Édipo. Ele,
enquanto claudicante, poderia também ser qualificado como aquele que comete faltas.
15
SEGAL, Charles. Oedipus Tirannus: tragic heroism and limits of knowledge. New Yourk : Oxford
University Press, 2001, p. 144.
16
SÓFOCLES. Édipo Rei. Trad. Maria do Céu Zambujo Fialho. Lisboa : Edições 70, 2006, p. 9.
12
1. 2. Os principais manuscritos
A posteridade literária de Édipo é imensa. Desde a sua primeira apresentação
contam-se numerosas adaptações do mito ao teatro, ao cinema e mesmo em romances e
novelas. Este mito não cessa de metamorfosear-se sem, no entanto, se livrar dos seus
principais elementos. A dificuldade em estabelecermos uma reconstituição fidedigna da
peça Édipo Rei
17
de Sófocles justifica-se pelos séculos que nos separam da sua primeira
17
KNOX, Bernand. “The Date of the Oedipus Tyrannus of Sophocles”. In: Word and Action: Essays of the
Ancient Theater. The Johns Hopkins University Press : Baltimore and London, 1979. A Guerra do
Peloponeso e a praga em Atenas encontram-se figuradas na linguagem da peça Édipo Rei, o que torna
natural recorrermos a estes acontecimentos a fim de identificarmos uma data aproximada para a sua primeira
apresentação nas Grandes Dionisíacas. Portanto, não será espantoso identificarmos no corpo do texto
algumas referências a elementos náuticos, estratégias de guerra, calamidades, miséria, sofrimento e mesmo à
peste em Atenas. Embora não exista nenhuma datação, inscrição ou detalhe plausível, somente através do
próprio texto é possível empreender uma investigação frutífera, ou mesmo nos remetendo a outras peças
contemporâneas a Édipo Rei e que lhe façam referência. As evidências internas, os estudos sobre a métrica e
estilo cronológico não apresentariam hipóteses decisivas; serviriam simplesmente como suporte secundário
ou de menor importância. Algumas passagens são importantes alusões históricas e a mais expressiva delas
refere-se à praga em Tebas, anunciada no prólogo e no párodo. Alguns autores chegam a propô-la como
uma das hipóteses para uma datação aproximada. Mas a praga em Tebas parece ser uma invenção de
Sófocles; então, poderíamos afirmar que ele não estaria se referindo a Tebas, mas a Atenas, quando escreveu
a peça. MUSURILLO, Herbert. “Sunken Imagery in Sophocles’ “Oedipus’”. The American Journal of
Philology, Vol. 78, No. 1. (1957), pp. 38-39. A inserção da peste num texto literário absorve outras funções
que não são meramente históricas, mas simbólicas. A descrição da peste criada por Sófocles em Édipo Rei
alcança uma dimensão que ultrapassa o descrito nos tratados de medicina e nos relatos históricos que
descrevem a peste na cidade de Atenas. Estes relatos, certamente, contribuíram para a construção poética de
Sófocles e correspondiam ao imaginário social da época despertando o reconhecimento nos espectadores. A
praga criada por Sófocles não se restringiria apenas ao que chamamos de epidemia, afetando as plantas, os
animais e os humanos, possuía uma relação direta com o sagrado. Ao compararmos o período e os sintomas
da doença, a ineficiência da religião - pois as preces e os apelos aos oráculos pareciam não surtir efeitos -
aproximamos as descrições de Sófocles e Tucídides em relação à deflagração da peste. A cidade padecia
enquanto o desequilíbrio tomava conta do povo. Além disso, tais quais os tebanos descritos no párodo em
Édipo Rei, os atenienses caiam ali e aqui massacrados por tal páthos. DRAEGER, Andréa Coelho
Farias.“Para além do lógos”: A peste de Atenas na obra de Tucídides. Dissertação de Mestrado. Rio de
Janeiro : UFRJ, 2004, p. 82. Segundo Tucídides “Os mortos, ao expirarem, eram postos uns sobre os outros
e pessoas semimortas rolavam nas ruas em torno de todas as fontes pela ânsia de água. Os templos nos
quais se acampava estavam repletos de cadáveres daqueles que morriam dentro deles”. Em paralelo temos
uma referência que Sófocles utilizou no primeiro canto coral da peça: “Incontáveis. A pólis morre.
Portadores-de-Tânatos, tristíssimos, os mortos proliferam pelas ruas”. (Édipo Rei, v. 179-181, trad. Trajano
Vieira). Sófocles resgata, principalmente, o ambiente de letargia e sofrimento estabelecido pelos cadáveres
insepultos pelas ruas reforçando o clima de insegurança, tristeza e indefinição crescente na pólis. Os relatos
de Sófocles e Tucídides convergem na mesma direção e tal qual a descrita na tragédia Édipo Rei, a peste
dizimava a população. O desamparo, o pedido de socorro, o desespero, a superstição e a religiosidade que
seguem a deflagração da peste não estão distantes da atmosfera criada por Sófocles. A atmosfera religiosa,
os rituais e o comportamento dos cidadãos fortaleceriam esta hipótese. O posicionamento do Sacerdote,
conclamado a falar, demonstra os infortúnios atravessados pelos cidadãos que se vêem impotentes perante
tantas desgraças. “Naufraga a pólis – podes conferi-lo -;/ a cabeça, já é incapaz de erguê-la/ por sobre o
rubro vórtice salino:/ morre no solo – cálices de frutas;/ morre no gado, morre na agonia/ do aborto. O
deus-que-porta-o-fogo esfola/ a pólis – praga amarga -, despovoando/ as moradas cadméias. O Hades
negro/ se enriquece de lágrimas e lamento”. (Édipo Rei, vv. 22-30) A pólis encontrava-se em franca
decadência. Sófocles construiu uma analogia comparando o naufrágio da cidade a um homem se debatendo
13
apresentação em Atenas no século V a.C. O que temos é o início da tradição de um
texto – e com ela os primeiros desvios – assim que os copistas começaram a copiar e
transcrever os manuscritos
18
.
Durante o processo de transmissão da peça muitas alterações foram incorporadas
ao texto devido ao erro dos copistas ou mesmo pela sua simples incompreensão. O
trabalho dos filólogos é justamente tentar resgatar parte do que fora o texto original e
buscar um estudo aprofundado do mesmo. Alguns especialistas, por exemplo, consideram
os versos finais interpolação (1524-30)
19
.
Alguns filólogos e paleontólogos, bem como importantes helenistas, consideram o
Laurentianus 32,9 (L), em Florença, o mais antigo manuscrito da peça Édipo Rei, cuja
data provável seria a partir da segunda metade do século X d.C. O manuscrito
Laurentianus possui sete peças de Sófocles, tem 118 folhas e 236 páginas. Na sua ordem,
temos a tríade Ájax, Electra e Édipo Rei, precedidas pelas tragédias Antígona, Traquínias,
Filoctetes, Édipo em Colono
20
.
O celebérrimo Laurentianus, esse exemplar de transliteração (isto é,
cópia minúscula de um texto escrito em unciais), permite-nos quando
muito retornar ao codex do século V d.C., de que ele é uma cópia. Mais
longe, é preciso postular um volume da alta época imperial, que não é o
nas ondas tentando não se afogar. A cidade, completamente indefesa, cai num abismo cuja salvação, se não
houver uma intervenção imediata, será impossível. Perante um ambiente tão miserável somente Hades se
enriquece com os lamentos e dores do povo. O párodo, uma oração extraordinária, também contribui, em
parte, para a solução da datação da peça; os versos apresentam um ambiente religioso muito mais propício a
Atenas do que a própria Tebas e se constitui como uma súplica aos deuses em nome da restituição da paz.
Outra hipótese da encenação seria a primavera de 426 ou 425. O verso 154, quando o coro canta Dalien
Paian em uma forma de invocação a Apolo, seria uma evidência que aproximaria a representação da peça
para o ano de 425. Segundo relatos históricos, no inverno entre 426-425, os atenienses teriam tentado obter
auxílio contra a praga numa expiação feita a Apolo. Desta maneira, o ano de 425 seria uma opção
considerável para a apresentação da peça, pois é próxima ao verão de 426 e faz alusões à segunda
deflagração da praga. Provavelmente, a partir da proposição que associa a apresentação da peça à Peste que
assolou Atenas, optaremos pela datação que prevê que Sófocles apresentou seu Édipo Rei nas Grandes
Dionisíacas entre os anos de 426 e 425 a.C.
18
VIDAL-NAQUET, Pierre. “Édipo em Vicência e em Paris: dois momentos de uma história”. in:
VERNANT, Jean Pierre. Mito e Tragédia na Grécia Antiga, São Paulo : Perspectiva, 1999, pp.317-334.
19
SEGAL, 2001, Op. Cit., p. 144-145. Existem pelo menos duzentos outros manuscritos da peça Édipo Rei
que comprovam o imenso prestígio do mito. Não pretendemos listar todos os manuscritos do texto Édipo
Rei, mas levar em consideração os mais conhecidos e importantes deles.
20
SOPHOCLE, I, Ajax, Antigone, Œdipe Roi, Électre, Texte établi et traduit par Paul Masqueray, Paris:
Belles Lettres, 1956, p. XIII.
14
texto de Sófocles, mas uma interpretação de um filólogo da época de
Adriano
21
.
O Laurentianus também comporta as principais peças de Ésquilo, sob a sigla de
Mediceus M, as Argonáuticas de Apolônio de Rodes e as demais peças de Sófocles.
Acredita-se que os três manuscritos foram escritos no mesmo período por três escribas
diferentes. Um deles teria copiado Sófocles e Os Persas, de Ésquilo; um segundo,
Apolônio e as demais peças de Ésquilo; enquanto coube a um terceiro os escólios dos três
autores clássicos
22
. Desde a edição de Dindorf em 1832, o L é considerado o melhor
manuscrito das peças de Sófocles. Talvez, esta opinião deva-se a pouca correção em
matéria de ortografia encorajando a crença em sua confiabilidade
23
.
Segundo o editor da Belles Lettres, o manuscrito Parisinus 2712 (A) seria do
século XIII, como o indicam particularidades de sua escrita
24
. O Parisinus 2712 (A)
possui seis tragédias de Eurípides, as comédias de Aristófanes e as peças Antígona, Édipo
em Colono, As Traquínias e Ájax de Sófocles. A peça Édipo Rei, também pertencente a
este manuscrito, ocupa da página 139 à 152.
Apesar da importância do L, existem outros manuscritos consideráveis. Por
exemplo, o manuscrito G da biblioteca Laurentiana é um palimpsesto escrito na Itália do
Sul e contém a tríade bizantina Ájax, Electra, Édipo Rei, além do Filoctetes
25
. O
manuscrito A tem exatamente 324 páginas. Da página 117 à 214 encontramos as sete
tragédias de Sófocles. As primeiras estão na mesma ordem do manuscrito Laurentianus
(Ájax, Electra, Édipo Rei e Antígona), seguidos por Édipo em Colono, As Traquínias e
21
VIDAL-NAQUET, Op. Cit., 1999, p 317.
22
BOLLACK, Jean. L'Oedipe Roi de Sophocle (4 volumes). Lille, Presses Universitaires de Lille, 1990, p.
67. Os principais manuscritos das peças de Sófocles são o Mediceus (Laurentianus 32,9) da Biblioteca
Laurenciana de Florença, c. 1000, e o Parisinus 2712, do século XIII, da Biblioteca Nacional de Paris. A
principal fonte da tragédia é o manuscrito Mediceus (Laurentianus 32,9), da Biblioteca Laurenciana de
Florença, datado do final do século X ou do início do século XI.
23
DAWE, R. D. Sophocles: Oedipus Rex. Cambridge : Cambridge Univesity Press, 2006, p. 19.
24
SOPHOCLE. Paris : Belles Lettres, 1956, p. XIV. A recensão de Moschopoulos data o manuscrito
Parisinus a partir do segundo quartel do século XIV, antes atribuída à segunda metade do século XIII.
25
BOLLACK, 1990, Op. Cit., pp. 109-110.
15
Filoctectes
26
. O manuscrito R (Vaticanus gr. 2291) também contém as sete peças de
Sófocles. O manuscrito Q de Paris e o M Mutinensis, da mesma família, apesar de seu
valor textual, não apresentam uma preocupação patente com a estrutura poética do Édipo
Rei
27
.
O aparato crítico fornece as informações básicas para seguirmos a discussão
textual e seus comentários, levando-se em consideração que mesmo o melhor deles não
cobre sistematicamente as dificuldades textuais de uma peça da magnitude de Édipo Rei.
A variedade de manuscritos, tal como as incoerências entre eles, deixam clara a
dificuldade de uma análise acertada e isenta de críticas. Assim, para apreendermos
detalhes da peça que, infelizmente, nos escapam, optamos pelo texto de Jean Bollack que
empreendeu uma discussão apurada e precisa. Sua análise oferece-nos uma seleção de
leituras que possibilita uma interpretação capaz de perceber nas entrelinhas dos versos
detalhes importantes, bem como a comparação entre os manuscritos e as inúmeras
possibilidades de significados de determinadas palavras. Neste sentido, a escolha pelo
aparato de Bollack encontra-se fundamentado nas facilidades que nos oferece e nas
oportunidades que nos proporciona
28
.
2. Algumas das principais adaptações
26
BOLLACK, 1990, Op. Cit., p. 81.
27
BOLLACK, 1990, Op. Cit., p.110.
28
Avaliamos que as traduções e o aparato crítico de Paul Mazon, publicadas pela Belles Lettres
respectivamente em 1989, 1998, 2002, buscam a renovação da peça e suas variantes. É sensivelmente
importante a série organizada pela Oxford Classical Texts e a renovação das edições dos textos clássicos
publicados em uma nova edição das tragédias de Sófocles em 1990 (Sofoclis Fabulae, edit. H. Lloyd
Jones y N.G. Wilson). Identificamos na edição crítica de Victor Henri Debidour, publicada em 1994 pela
editora LGF, nas edições de Didier Lamaison publicadas pela editora Gallimard nos anos de 1994 e 2006;
na de Jean-Paul Savignac pela editora La Différence, em 2006, na de Sylvie Herbinet e Marie-Rosie
Rougier pela editora Hachette, em 1994, importantes contribuições para o estudo da tradição e
transmissão da peça. Todas são referências importantes ao desenvolvimento da pesquisa por serem
amplamente comentadas e de comprovada eficiência, no entanto, optamos pela magistral edição da
Universidade de Lille L’ Oedipe Roi de Sophocle de Jean Bollack. A obra, disposta em quatro volumes e
publicada em 1991, percorre a tradição textual da peça com maestria e competência, além de apresentar
uma tradução com comentários verso a verso da peça.
16
Passados vinte e cinco séculos e após uma infinidade de interpretações, a
tragédia Édipo Rei de Sófocles permanece como uma das grandes obras-primas da
tradição clássica grega. Provavelmente, uma das mais famosas versões para a tragédia
Édipo Rei de Sófocles é a peça Édipo de Lúcio Aneu Sêneca que influenciou muitas
outras adaptações da peça. Somente mais tarde, a peça de Sófocles adquiriu o status e
ocupou seu lugar dentre as principais obras clássicas. Durante a Idade Média, o poema
épico latino Tebaida de Estácio tornou-se um dos veículos de disseminação do mito de
Édipo contando o curso de sua triste história
29
.
No começo do século XV existiam quatro manuscritos antigos das obras de
Sófocles conhecidos na Itália e coletados pelo humanista Nicoló Nicolli, ocorrendo uma
renovação do interesse pelos clássicos e uma busca incessante pelos manuscritos gregos
deixados pelo mundo bizantino. Em 1502, Aldo Manunzio publicou a primeira edição
da obra de Sófocles provocando uma revolução na divulgação e disseminação da obra e
ampliando o número de traduções e adaptações
30
. Mas a história moderna de Édipo Rei
começou entre os dias 03 e 05 de março de 1585, quando a peça foi reapresentada no
Teatro Olímpico de Palladio, em Vicência, através da tradução de Orsatto Giustiniani,
com o canto coral organizado por Angelo Gabrieli
31
.
29
NATIVIDADE, Everton da Silva. Scripta Clássica On-line. Literatura, Filosofia e História na
Antigüidade. Número 2. Belo Horizonte, abril de 2006.
http://www.geocities.com/scriptaclassicaonline. A
Tebaida, tradicionalmente datada em torno de 80 d.C., versa sobre a rivalidade entre os irmãos Etéocles e
Polinice, tendo por modelo a lendária Sete contra Tebas, última peça da trilogia de Ésquilo referente ao
ciclo tebano.
30
SEGAL, Op. Cit., 2001, p. 149.
31
VIDAL-NAQUET, Pierre. “Édipo em Vicência e em Paris: dois momentos de uma História”. Na França,
a adaptação coube ao filólogo André Dacier no ano de 1692. Esta tradução, como observou Marie Delcourt,
marcou a vitória de Sófocles sobre Sêneca, já que até então a obra de Sêneca era a mais conhecida. A
tradução de Marie-Joseph Chénier, falecido em 1811, teve uma publicação póstuma em 1818, a de Folard
em 1722 e Tournelle em 1730-1731, pp. 316 e 334.
17
Dentre as adaptações da peça entre os séculos XVII e XVIII, destacam-se três
obras que estabelecem uma interessante combinação entre as obras de Sófocles e
Sêneca: o Édipo de Pierre Corneille em 1659, o Édipo de Jonh Dryden e Nataniel Lee
em 1678 e o Édipo de Voltaire em 1718. Eles enfatizaram mais as questões voltadas
para o destino, tal como Sêneca, do que a preocupação com o conhecimento e a
autodescoberta como fizera Sófocles. Eles se esforçaram antes em estabelecer uma
conexão com a capacidade de Édipo de suportar seu próprio sofrimento com nobreza e
força, do que em sua determinação em encontrar a verdade em um mundo de ilusões
32
.
As versões dos séculos XIX e XX demonstraram uma preocupação mais
acentuada com os temas filosóficos, abordando o significado da existência humana, o
mistério em torno do destino individual, o desejo incestuoso. Neste período, se
destacam as paródias realizadas por Heinrich Von Kleist em A bilha quebrada em 1808,
e por Fredrich Von Schiller em A noiva de Messina, uma interessante combinação entre
Édipo Rei e Édipo em Colono. Tivemos, sobretudo, a marcante tradução de Hölderlin e
a obra Observações sobre Édipo e Antígona como proposta instigante ao estudo da
tragédia e em especial a de Sófocles.
A partir da interpretação psicanalítica empreendida por Freud o mito de Édipo
alcançou variações mais significativas e avançou em termos de criatividade e solidez. A
influência de Freud conferiu nova roupagem ao mito possibilitando o surgimento de
obras tais como: A máquina infernal de Jean Cocteau em 1934, talvez uma das
adaptações mais significativas de Édipo no século XX; o Édipo de André Gide e o
Édipo ou o Crepúsculo dos Deuses de Henri Ghéon de 1952
33
, também a famosa
adaptação de Pasolini para o cinema se destaca em profundidade, beleza estética e
literária.
32
SEGAL, 2001, Op. Cit., p. 151-152.
33
SEGAL, Op. Cit., 2001, pp. 151-157.
18
3. O estudo da peça e o tema de pesquisa
O interesse pelo tema da hamartía de Édipo em Édipo Rei justifica-se, em
primeiro lugar, pela forma como Sófocles articulou o que conhecia do mito, propondo
uma representação da qual excluiu enquanto ação, no momento presente, o que
usualmente se considera o erro trágico de Édipo: o parricídio e o incesto
34
, narrando-o
através da voz das persongens no decorrer da peça. Toda a nossa perplexidade refere-se
a um herói que por demais perfeito, descobre-se falho em erros que tentara evitar. A
procura pelo assassino de Laio, a questão da identidade, a fatalidade, o confronto entre o
livre arbítrio e o destino são temas que e se apresentam na peça como elementos
cruciais para o seu entendimento. Em segundo, pela ambigüidade interpretativa
oferecida por Aristóteles na Poética. A partir da interpretação de Aristóteles não
considerar a falta do herói como falta moral ou de caráter, mas apenas como grande
falta cometida. Portanto, precisamos compreender a personagem e suas ações no corpo
do texto; sem desconsiderar a atuação das personagens secundárias para a construção da
engrenagem que faz girar o destino do herói e o conduz à ruína.
Poderíamos propor a existência de várias pequenas falhas que articuladas
culminam numa falta maior girando a engrenagem que compõe a trama trágica. No
entanto, no decorrer da peça, uma ou mais hamartías, no sentido que lhe é atribuído
pelos helenistas
35
: erro por ignorância, desconhecimento, erro de cálculo ou erro de
julgamento não nos parece facilmente identificado. Queremos dizer que, apesar de
reconhecermos o parricídio e o incesto como atos recrimináveis, eles não aparecem
34
Para Gerard Else, o erro é parte estrutural do mito complexo e talvez ele possa estar fora da própria
ação dramática, como no caso de Édipo, em que o erro se dera anos antes. Ver nota 33: FIGUEIREDO.
Virgínia, “O sublime como experiência do trágico moderno”, in: DUARTE, Rodrigo. & FIGUEIREDO.
Virgínia, Mímesis e Expressão. Belo Horizonte : Ed. UFMG, 2001, p. 254. Cf.: ELSE, Gerard. Aristotle's
Poetics: The Argument. Cambridge, Massachusetts : Harvard University Press, 1957.
35
Saïd, Halliwell, Dawe, Stinton e outros apresentam argumentos que sustentam este significado para a
hamartía.
19
representadas enquanto ação, são rememorados. Mesmo o suicídio de Jocasta e o auto-
cegamento de Édipo, apesar de ocorrerem no momento presente da peça, são narrados.
Assim sendo, a partir da complexidade da proposta de Aristóteles na Poética, do
mito, da estrutura da peça, dos eventos por ela resgatados, qual seria a falta trágica de
Édipo? Sófocles não apresenta em seu texto a maldição de Laio e esta é fundamental
para a compreensão da fatalidade destinada a Édipo. A maldição é suprimidade de
forma a excluir uma explicação racional para o que sucedeu ao herói.
Desta forma, este estudo pretende elencar algumas questões que, se não
totalmente respondidas, serviram para uma reconstituição do tema da hamartía e sua
aplicação na peça. Se o destino de Édipo estava traçado antes do seu nascimento e ele
ignorava fatos importantes para a compreensão dos acontecimentos ao seu redor, o que
constitui – que ato(s) ou comportamento(s) – a sua hamartía ou suas hamartias em
Édipo Rei? Se, enquanto representação, a ação trágica de Édipo não se concentrava no
incesto e no parricídio, em que consistiria? Se caso ele tivesse se recusado investigar um
passado esquecido, em prol da salvação a cidade, ele teria evitado descobrir a verdade?
Ou esta viria à tona independente de sua ação? Qual o papel das personagens
secundárias para a construção da hamartía? Enfim, donde brotam as decisões de Édipo?
Sua irritabilidade, sua suposta instabilidade emocional, violência e impulsividade
podem ser consideradas como uma falta moral? A gravidade de suas ações residiria
nesta presunção, na idéia que alimenta sobre si mesmo, em sua autoconfiança que o
torna cego perante a verdade? Parece-nos que o erro trágico de Édipo não aparece bem
delineado no cerne da peça. Seria interessante chegar, através de uma análise mais
detida e pontual do encadeamento dos episódios, a uma definição desta hamartía, esteja
esta atrelada ou não apenas à personagem título.
20
Reconhecemos que, apesar da considerável e importante contribuição da Poética
aos estudos sobre o trágico, Aristóteles não dá conta do conceito e sua aplicação nas
tragédias; recaindo, infelizmente, em algumas contradições. A princípio, não existe uma
ação específica considerada a responsável pela destruição de Édipo. Ironicamente, tudo
já aconteceu e o que se representa é a descoberta da verdade de forma progressiva e
ininterrupta a partir da investigação empreendida por Édipo. Investigação ordenada pelo
oráculo como condição para salvar a cidade da praga que a consumia.
Subsiste preliminarmente o fato de as desgraças que se abatem sobre ele não
decorrerem diretamente de seus atos, mas de uma condenação anterior, sobre a qual
Sófocles indiretamente silencia. A ação irrefletida de algumas personagens, também
fruto da rememoração, nos faz pensar sobre a possibilidade de identificarmos a
hamartía em outras personagens que não apenas Édipo. O incesto e o parricídio em si
são ações que estariam fora do controle de Édipo evitar. Embora ele tenha uma
personalidade arrebatadora e impulsiva, outras faltas, como a irritabilidade contra
Tirésias e a desconfiança injusta contra Creonte, explicam-se pelo estado de nervosismo
em que se encontrava.
O tema da hamartía em Édipo Rei, seja da personagem principal ou das
secundárias, se desenvolve num terreno ambíguo e contraditório, portanto, a partir da
definição do conceito presente na Poética de Aristóteles, pretendemos identificar uma
possível falta ou faltas de Édipo na peça. O que temos a princípio são os seguintes
fatores: a presença marcante de um destino profetizado que se cumpre e uma vontade
exacerbada de vencê-lo; uma fuga mal sucedida e um encontro com aquilo do qual se
pretendia fugir; uma investigação que revela uma verdade oculta, adormecida
36
.
36
VERNANT, Jean-Pierre. & VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e Tragédia na Grécia Antiga. São Paulo :
Perspectiva, 1999, p. 74. A peça possui uma ironia trágica porque, num dado momento, as palavras de
Édipo se voltam contra ele, trazendo-lhe o real sentido do que ele teimava em não reconhecer.
21
Tivemos por objetivos identificar e discutir a(s) hamartía(s) de Édipo no corpus
da peça Édipo Rei de Sófocles, descontruindo a interpretação usual que prevê apenas
como faltas trágicas o incesto e o parricídio; e compreender o sentido atribuído à ação
trágica de Édipo, inter-relacionando esta(s) falta(s) trágica(s) às outras personagens –
cuja ação pode encontrar-se fora ou dentro do contexto da peça – possibilitando a
compreensão do conceito hamartía na tragédia Édipo Rei. Se fosse diferente, facilmente
identificável, compreensível e aceitável, certamente, não teríamos uma tragédia, apenas
o relato e descoberta de um crime de assassinato e sua punição. Teríamos um texto
jurídico, a formação de um júri, com testemunhos e relatos, incriminação e auto-defesa,
mas não o trágico. O trágico é quase sempre o incompreensível, o dilaceramento. É esta
a sensação despertada pela peça e que não nos deixa adormecer. A peça mostra o quão
impacatante pode ser o resultado de nossas ações, mesmo as bem intencionadas.
A pesquisa se concentrou principalmente na leitura da peça Édipo Rei, a fim de
identificar nas ações da personagem-título e das secundárias a fundamentação da falta
trágica e suas nuances. Em virtude da grande dificuldade em se encontrar uma tradução
fiel aos sentidos da peça de Sófocles optamos por uma que respondesse aos nossos
interesse e que apresentasse capacidade de representação do drama trágico enquanto
peça de teatro e texto poético. Utilizamos a tradução em versos de Trajano Vieira por
sua expressividade. Em virtude da linguagem ambígua e conflituosa do poeta
encontramos na tradução de Vieira alguns desvios de sintaxe que prejudicam a
interpretação. Por isso, em paralelo à tradução de Vieira, utilizamos a de Maria do Céu
Zambujo Fialho, em prosa, por sua proximidade ao sentido do texto. Embora a tradução
da Professora Fialho não acompanhe a cadência poética, consideramos suas escolhas
fieis ao significado dos termos, facilitando nossa compreensão do mesmo.
22
Sendo nosso foco principal de estudo da falta trágica de Édipo, nossa pesquisa
desenvolveu-se, em primeiro lugar, a partir do estudo da Poética de Aristóteles onde
identificamos a presença do conceito e uma pequena sugestão do que a hamartía
significaria no corpus do texto trágico. Não ousamos uma re-definição do termo, pois
tal tarefa seria impossível. O que se pretendeu foi rever sua aplicação na tragédia e os
subsídios para a sua possível identificação em Édipo ou nas personagens secundárias.
Portanto, estabelecemos, a partir das leituras realizadas, uma definição para hamartía no
contexto da Poética de Aristóteles, bem como a sua delimitação e sua aplicação em
algumas das tragédias de Sófocles: As Traquínias, Antígona, Édipo em Colono.
No segundo capítulo construímos uma análise da peça Édipo Rei e das ações de
Édipo, perpassando pelos cantos corais, alguns dos elementos presentes nos episódios e
que contribuem para a identificação da falta trágica. Embora esta presença não seja
nítida, ela poderia ser levada a sério se percebermos que a peça trata da reconstituição e
reconhecimento de uma hamartía. Através do processo de reconstituição
memorialística, temos uma série de erros ou faltas que nos são reveladas,
principalmente, a partir da ação de Édipo.
Na primeira parte do segundo capítulo, desenvolvemos um estudo sobre os
movimentos cênicos e a estrutura da peça a fim de facilitar nosso entendimento sobre a
hamartía na mesma, frisando seus eixos enigmáticos. A partir deste processo, que
pretendeu construir um esqueleto estrutural do texto, nos detivemos em uma análise da
peça e, através de um estudo esquemático dos cantos corais e dos episódios, analisamos
detalhes que apresentaram argumentos e hipóteses para a identificação da falta trágica
em Édipo Rei.
No terceiro capítulo, apresentamos uma hipótese,
questionando a aplicação do
conceito de hamartía em Édipo Rei, assim como ele é utilizado na Poética. Para facilitar
23
a apresentação de nossos argumentos, construímos um quadro esquemático que
elucidou as principais ações de Édipo na peça e tentou, a partir de uma dinâmica
interpretativa, qualificar o erro em cada uma delas.
Demonstramos que uma grande hamartía, tal como delineia Aristóteles, não é
facilmente identificada, nem em Édipo e nem nas personagens secundárias, no momento
presente da peça, mas que erros passíveis de nossa atenção foram estudados e definidos
em termos de erro de cálculo, interpretação, erro por desconhecimento ou por
ignorância. Os pequenos erros postulados pelos poetas, porém, aparecem normalmente
nas tragédias. Trata-se, portanto, de hamartías indefinidas, de forma que muitos erros
acabam sendo menosprezados por sua pequena força expressiva na tragédia,
prejudicando nossa análise.
Indicamos algumas hipóteses para a hamartía promovendo um deslocamento da
ação de uma personagem para outra; demonstrando que, se a hamartía é fundamental
para a reviravolta da fortuna, o incesto e o parricídio cometidos por Édipo não são
responsáveis diretos pela sua desgraça, mas sim a descoberta da verdade. Apresentamos
também ações condicionadas e concatenadas às outras, de forma que, interpretada
isoladamente, a hamartía torna-se um conceito difícil de ser aplicado à tragédia.
Por fim, após a qualificação destes possíveis erros, concluímos que a
apresentação de uma hipótese definitiva para a hamartía de Édipo em Édipo Rei
continua passível de interpretações e debates. Porém, poderíamos afirmar que algumas
faltas de fato ocorreram no momento presente da peça. Especialmente em relação a
Édipo, compreendemos a necessária articulação da hamartía vinculada a outros termos
e a concepção que se tem de uma ação – falta trágica – que foi mediada pela
desmedida, pela asébeia e pela cegueira.
24
CAPÍTULO I
A HAMARTÍA NA POÉTICA E NA TRAGÉDIA
1. As interrelações entre a hamartía e o herói trágico no contexto do capítulo XIII e
XIV na Poética
O mûthos é a alma da tragédia, e o centro do espetáculo gira em torno do destino
infeliz do herói. Nas peças, ele é apresentado como uma figura radiante, vencedora e no
esplendor da vida, usufruindo seus feitos, envolto numa auréola de glória e confiança
inexpugnáveis quando, repentinamente, vê-se vítima de uma alteração brusca do destino
(peripécia), pois um acontecimento terrível o arremessa à desgraça, o torna infeliz. A
instabilidade da felicidade é o núcleo da maioria das grandes tragédias que nos restaram.
O inesperado, o inevitável, a falibilidade pode arruinar a alegria e propiciar o
sofrimento. O herói comete um erro trágico e através desta ação, fruto de uma escolha
malfadada, ele cai em desgraça. Desta maneira, a felicidade ou infelicidade do herói está
condicionada às suas ações.
Na visão aristotélica, esta reviravolta da fortuna associa-se à hamartía, o que
justifica a importância do conceito para a compreensão do trágico. Portanto,
começaremos nossa exposição citando Aristóteles – capítulo XIII da Poética –, o que
possibilitará a construção de nossos argumentos sobre o conceito de hamartía
37
.
Devemos reconhecer no herói uma figura de grande importância que incorre num erro
fatal e promove a reviravolta em sua própria vida. A hamartía é um dos pilares da
37
O conceito de hamartía aparece mais vezes na Ética a Nicômaco do que propriamente na Poética;
porém o tratamento dado ao termo é diferenciado. Enquanto na Poética a dimensão do conceito é estética,
na Ética a Nicômaco há o âmbito ético. A hamartía nos parece fundamental para a tragédia alcançar o
efeito estético desejado e demonstrar através das ações representadas o que levaria o herói da glória à
destruição.
25
tragédia e quando Aristóteles introduz o termo, descreve o herói como um homem
nobre, cuja má sorte não é trazida por alguma infâmia, mas por força de um erro.
Ὁ μεταξὺ ἄρα τούτων λοιπός. Ἔστι δὲ τοιοῦτος ὁ μήτε ἀρετ
διαφέρων καὶ δικαιοσύνῃ μήτε διὰ κακίαν καὶ μοχθηρίαν
μεταβάλλων εἰς τὴνδυστυχίαν ἀλλὰ δι᾽(10) ἁμαρτίαν τινά, τῶν
ἐνμεγάλῃδόξῃὄντωνκαὶεὐτυχίᾳ,οἷονΟἰδίπουςκαὶΘυέστηςκαὶ
οἱ ἐκ τῶν τοιούτων γενῶν ἐπιφανεῖς ἄνδρες. Ἀνάγκη ἄρα τὸν
καλῶςἔχονταμῦθονἁπλοῦνεἶναιμᾶλλονἢδιπλοῦν,ὥσπερτινές
φασι, καὶ μεταβάλλειν οὐκ εἰς εὐτυχίαν ἐκ δυστυχίας ἀλλὰ
τοὐναντίον(15)ἐξεὐτυχίαςεἰςδυστυχίανμὴδιὰμοχθηρίανἀλλὰ
δι᾽ ἁμαρτίαν μεγάλην ἢ οἵου εἴρηται ἢ βελτίονος μᾶλλον ἢ
χείρονος.Σημεῖονδὲκαὶτὸγιγνόμενον·πρῶτονμὲνγὰροἱποιηταὶ
τοὺς τυχόντας μύθους ἀπηρίθμουν, νῦν δὲ περὶ ὀλίγας οἰκίας αἱ
κάλλισται τραγῳδίαι συντίθενται, οἷον (20) περὶ Ἀλκμέωνα καὶ
Οἰδίπουν καὶ Ὀρέστην καὶ Μελέαγρον καὶ Θυέστην καὶ Τήλεφον
καὶὅσοιςἄλλοιςσυμβέβηκενἢπαθεῖνδεινὰἢποιῆσαι.
38
Resta, portanto, a situação intermediária. É a do homem que não se
distingue muito pela virtude e pela justiça; se cai no infortúnio, tal
acontece, não porque seja vil e malvado, mas por força de um erro; e
esse homem há de ser algum daqueles que gozam de grande
reputação e fortuna, como Édipo, Tiestes ou outros insignes
representantes de famílias ilustres. É, pois, necessário que um mito
bem estruturado seja antes simples do que duplo, como alguns
pretendem; que nele se não passe da infelicidade para a felicidade,
mas, pelo contrário, da dita para a desdita; e não por malvadez, mas
por algum
39
erro de uma personagem, a qual, como dissemos, antes
propenda para melhor do que para pior. Que assim deve ser, o
passado o assinala: outrora se serviam os poetas de qualquer mito;
agora, as melhores tragédias versam sobre poucas famílias, como
sejam as de Alcméon, Édipo, Orestes, Meleagro, Tiestes, Télefo e
quaisquer outros que obraram ou padeceram tremendas coisas.
40
Poucas passagens têm provocado tantas controvérsias e discussões
41
. Segundo
Amélie Oksenberg Rorty, a própria tradução do termo não nos ajuda na compreensão do
mesmo
42
. De tal modo, apesar do vívido interesse dos helenistas pelo conceito de
hamartía, este recebeu pouco tratamento na Poética, pois Aristóteles não ofereceu
nenhuma definição técnica clara ou substancial para o conceito. O conceito é citado
38
http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/aritotle_poetique/precise.htm.
39
A passagem revela-se fundamental à nossa interpretação: poderíamos, sem comprometer nossa
interpretação, compreender “algum” como qualquer tipo de erro?
40
SOUZA, Eudoro de. A Poética de Aristóteles: tradução e comentários. Porto Alegre : Editora Globo,
1966. Cap. 13 – 1453ª, 7-22.
41
DAWE, R. D. “Some refletions on ate and hamartia”. Harvard Studies in Classical Philology, Vol. 72.
1968, p. 889.
42
RORTY, Amélie Oksenberg. “The Psychology of Aristotelian Tragedy”. In: Essays on Aristotle’s Poetics.
Oxford : Princeton University Press, 1992, p. 10.
26
como um dos elementos responsáveis pela construção de um enredo trágico por
excelência
43
, mas não é possível apresentar um argumento sólido para a interpretação do
que seria a hamartía na Poética
44
. Entretanto, parece-nos que no contexto do capítulo
XIII poderíamos inferir que a reviravolta da fortuna é causada por uma hamartía
45
.
Aristóteles afirma que para considerarmos um mito “bem estruturado”, a
personagem trágica precisa passar da felicidade para a infelicidade, e não o seu
contrário. Além disso, a reviravolta da fortuna na vida do herói não deve ocorrer por
força de alguma maldade ou deficiência de caráter, mas por “algum erro”. Ora, quanto
ao melhor tipo de tragédia ele inclui um detalhe que não podemos desconsiderar: a
reviravolta deve-se a “algum erro”. Ou seja, a hamartía poderia corresponder a uma
variante de ações.
The hamartia-group is therefore of very broad and varying
applicability, and that the hamartia of ch. 13 is not meant to be
specific kind of fault or error is strongly suggested by frase ‘some sort
of hamartia. It does not follow from this that tragic hamartia can
correspond to any of the range of things of which this word and it is
cognates are used in the ethical writings; the terms of Aristotle's
theory rule out at least fully guilty action, as well as errors of a purely
fortuitous kind
46
.
43
SHERMAN, Nancy. “Hamartia and virtue”. In: RORTY. Amélie. Aristotle’s Poetics. New Jersey :
Princeton University Press, 1992, pp. 181-182.
44
SCHÜMTRUMPF, Eckart. “Traditional Elements in Concept of Hamartia in Aristotle’s Poetics”.
Harvard Studies in Classical Philology, vol. 92. (1989), p. 143.
45
HALLIWELL, Stephen. “Falibility and Misfortune.” In: Aristotle’s Poetics. Chicago : University
Chicago Press, 1998, p. 205. (202-237). Halliwell afirma que, a partir de Aristóteles, podemos considerar
que as melhores tragédias são as de trama complexa e que combinam o reconhecimento e a reviravolta.
Além disso, representariam ações dignas de piedade e terror. Mas a hamartía não possui a clareza que o
reconhecimento e a reviravolta apresentam no contexto da Poética. A reviravolta da fortuna, que pode
conduzir o herói da felicidade à infelicidade é fruto de um erro irreparável. A felicidade do herói estaria
condicionada à ação. Se ele sofre, se houve a reviravolta da fortuna, é porque ele cometeu uma falta, não
moral, mas fruto de um equívoco. Halliwell discorda de uma aproximação desprovida de senso crítico
entre os conceitos de eutuchia e dustuchia, prosperidade e adversidade apenas relacionados à mudança da
fortuna. Neste sentido, numa tentativa de resgate de significado para o conceito de felicidade, Halliwell
afirma que o termo eutuchia pode algumas vezes ser traduzido por boa sorte, no sentido de bem nascido,
status, riqueza, poder e honra. Os nomes que Aristóteles escolheu para compor a galeria de personagens
trágicas que cometeram grandes hamartías, sem dúvida, apresentam as melhores qualidades dos
afortunados. Além disso, qualquer ação pode balançar o equilíbrio da vida, mesmo em seus estágios
finais.
46
HALLIWELL, 1998, Op. Cit., p. 221. O erro é uma parte estrutural do mito complexo e é o correlato
da agnórisis (reconhecimento). Por isso, faz-se necessário indagar da natureza do erro trágico que se
depreende da Poética.
27
Isto quer dizer que a hamartía, tal como aparece no capítulo XIII, não pretende
ser determinado tipo de falha ou erro.
Aristóteles ainda estaria indicando, mesmo
indiretamente, que a hamartía possui ligação estreita com outro conceito importante
para o estudo do trágico: a infelicidade. Ele compreende a hamartía na Poética
evidenciando que a felicidade e a boa fortuna estão em cheque-mate nos melhores
enredos trágicos.
No capítulo XIII Aristóteles tenta esclarecer o que entende por ação e herói
trágico e a estreita relação entre mito e caráter na tragédia. Não é suficiente para a
consecução da piedade e do terror que uma personagem qualquer passe da boa para a
má fortuna, o estatuto do herói trágico exige um caráter bem delineado. Ele adverte que
a desdita de um homem mau, apesar de satisfazer “os sentimentos de humanidade”,
“não provoca terror nem piedade.” Excluem-se, assim, os homens muito bons e os
muito maus (qualquer que seja a reviravolta da fortuna), sobrando “o sujeito
intermediário”, “aquele que não se distingue muito pela virtude e pela justiça” e cuja má
sorte se deve não a ser ele “vil e malvado”, mas a um erro. Estaria em conformidade
com o capítulo XIII a interpretação de “semelhança” que entende que o herói trágico
deve ser “semelhante a nós”
47
.
Primeiramente, devemos admitir a pertinência dos exemplos citados por
Aristóteles, validando o modelo interpretativo que ele propõe. Para a compreensão desta
passagem precisamos apreender o significado do termo hamartía utilizado para indicar
o que promove a reviravolta da boa para a má fortuna na vida do herói.
A hamartía insere-se no que Aristóteles chama de trama complexa, não é um
atributo do agente, e sim um fator causal. No entanto, como não existe na Poética uma
definição para hamartía, forçosa é a busca por reconstituir o que seria o termo em sua
47
Cf., ARISTÓTELES, Cap. 13 – 1453ª, 7-22.
28
teoria, ou seja, a partir da maneira que Aristóteles faz uso do conceito na passagem em
que este aparece.
Torna-se importante o confronto entre os capítulos XIII e XIV no que se refere à
construção e explicação das cenas de reconhecimento e em que elas contribuem para a
compreensão do sentido da hamartía na tragédia; pois a título de cumprir sua finalidade,
segundo Aristóteles no capítulo XIII, a tragédia precisa representar a mudança da boa
para má fortuna, embora, a partir dos exemplos citados na Poética no capítulo XIV, a
reviravolta da felicidade para a infelicidade não se constitui enquanto regra geral.
Devemos, com cuidado, compreender as possibilidades da hamartía. A raiz da
palavra hamartía (µαρτ) apresenta uma extensa variedade de sentidos
48
e, dentre eles,
poderia significar tanto erros graves, crimes, faltas quanto simples delitos. Aristóteles
prefere uma personagem de personalidade moderadamente virtuosa que se move da boa
a má fortuna devido a uma hamartía, de maneira que tal personagem teria alcançado
grande prosperidade e a perdido.
Um homem perfeitamente virtuoso seria capaz de suportar infortúnios ou
adversidades externas, e as emoções trágicas (a piedade e o terror) seriam suscitadas de
maneira mais eficiente por figuras eticamente menos elevadas, ou seja, o herói trágico
não poderia ser um modelo de perfeição
49
. Não obstante, o herói era sempre uma figura
nobre, abastada, que conseguia manter sua integridade moral, mesmo quando as coisas
desandavam ao seu redor.
E, talvez na tentativa de nos possibilitar uma compreensão geral do significado
do conceito, Aristóteles lista alguns nomes de heróis trágicos que caíram em desdita por
48
SCHÜMTRUMPF, 1989, Op. Cit., p. 138.
49
HALLIWELL, 1998, Op. Cit., p. 235. Porém, Édipo quase sempre nos parece um herói mais do que
perfeito, irrepreensível, excessivamente excelente.
29
uma hamartía. Dentre eles encontramos Édipo como um dos exemplos de herói trágico
que comete uma falta trágica com conseqüências tremendas
50
.
Haveria, por conseguinte, alguma coisa em comum entre os exemplos de heróis
trágicos (Alcméon, Édipo, Orestes, Meleagro, Tiestes, Télefo), citados por Aristóteles?
O que estas histórias apresentariam enquanto possibilidades para a compreensão do
significado de hamartía? Cada mito possuiria pelo menos uma relação indireta com uma
das outras histórias. Por exemplo, se estamos tratando do Alcméon de Astidamas, citado
no capítulo XIV, ele cometeu matricídio, o que o aproximaria de Orestes; se estamos
nos referindo a uma das versões escritas por Eurípides, temos o incesto de Alcméon
com sua própria filha, aproximando-o de Tiestes. Em relação a Orestes, Aristóteles pode
referir-se tanto ao de Ésquilo, na Orestéia, quanto ao de Eurípides, em Ifigênia em
Tauris, outra peça muito apreciada por Aristóteles
51
.
E, se estivermos certos na inter-relação entre eles, a princípio, todas as faltas
cometidas pelas personagens, ou pelas personagens secundárias, se relacionam com o
assassínio de parentes
52
de sangue; com crianças expostas à morte e que sobreviveram;
personagens que tentaram vencer os oráculos e não foram bem sucedidas.
Aristóteles aproxima, principalmente, Édipo e Tiestes e não acreditamos que
seja apenas uma casualidade. Ele põe o nome de Tiestes ao lado do nome de Édipo, pois
Tiestes, sem o saber, comeu a carne dos próprios filhos oferecida por seu irmão Atreu.
Édipo matou o pai e casou com a mãe gerando filhos desta relação incestuosa. Assim,
ambos, Tiestes e Édipo, cometeram coisas horrorosas por ignorância
53
, em relação a
seus familiares.
50
DAWE, 1968, Op. Cit., p. 92.
51
STINTON, T. C. W. “Hamartía in Aristotle and Greek Tragedy.” Classical Quarterly - 25, 1975, p. 227.
52
HALLIWELL, Stephen. The Poetics of Aristotle: translation and commentary. London : Duckworth,
1986, p. 127.
53
DODDS, E. R. “On Misunderstanding the Oedipus Rex”. Greece and Rome 2nd Ser, vol. 13, no. 1.
(Apr. 1966), p. 40. Mas o mito apresenta outros sentidos e possibilidades. Wilson A Ribeiro Jr. assim
30
O que temos de comum entre o mito de Édipo e o de Tiestes? Temos o incesto
entre Tiestes
54
e a filha Pelopéia, porém consciente e voluntário; temos um filho, Egisto
e a tentativa de se matar o pai verdadeiro, mas o reconhecimento o impede e ele mata o
pai adotivo; temos o assassinato de parentes de sangue e a presença incisiva dos
oráculos. Nestes termos, os dois mitos se aproximam e se afastam sem excluir a
hamartía de seu contexto, em especial a questão da ignorância e o crime contra
familiares.
O tema do matricídio submerge nos mitos de Orestes e Alcméon, a despeito das
pequenas diferenças entre os dois heróis, principalmente no que se refere ao aspecto da
sucessão ao trono. Não obstante, não é o tema da sucessão que nos incomoda, mas o
crime contra familiares. Porém, Orestes se volta contra Clitemnestra
por força de uma
ordem divina. Ele precisava vingar a morte do pai, assassinado pela mãe. O tema é
brilhantemente retratado na Orestéia de Ésquilo. Ele não agiu por ignorância, mas
talvez por coação.
Alcméon também age forçado, mas de outra forma. Não pode evitar a
obrigação de vingança que seu pai reivindica no além-túmulo e que,
jogando-o contra sua mãe, faz com que cometa, em nome dos laços
de sangue, um crime contra o que mais simboliza sua
relata o mito da família de Tiestes: Tiestes era filho de Pélops e Hipodâmia, irmão de Atreu, pai de
Agamêmnon e Menelau. Tiestes tornou-se amante da cunhada, além disso, o ódio intenso entre os irmãos
incentivou a disputa pelo trono de Micenas. No passado um oráculo predissera que o trono de Micenas
deveria caber a um dos filhos de Pélops. Atreu encontrou em seu rebanho um cordeiro com velo de ouro e
o guardava em segredo. Por intermédio da amante, Tiestes descobriu e propôs que venceria a disputa
quem apresentasse um velo de ouro. Atreu, seguramente, concordou, mas Tiestes, ajudado pela cunhada,
usurpou o velo de ouro apresentando-o e tornando-se rei. Mas, Atreu, orientado pelos deuses, sugeriu que
Tiestes deveria lhe entregar o poder caso ele conseguisse mudar o curso do sol que nascia no oeste e se
punha à leste. Tiestes concordou com o desafio e Atreu conseguiu realizar a façanha com a ajuda de Zeus.
Desde aquela data o curso do sol passou a ser de leste para oeste e Atreu tornou-se rei, matando a esposa
e banindo Tiestes. Posteriormente, fingindo uma reconciliação, Atreu convidou Tiestes a voltar. Em um
banquete, ofereceu a Tiestes pedaços dos três filhos que este tivera com uma ninfa e, após revelar a
natureza da iguaria que havia comido, expulsou-o novamente. Tiestes, assim, cometera atos terríveis, na
ignorância. Durante o exílio, em obediência a um oráculo, Tiestes uniu-se à própria filha, Pelopéia, e
gerou Egisto. Pelopéia casou-se mais tarde com Atreu e Egisto, criado pelo tio, pensava ser filho do
próprio Atreu. Adulto, Egisto foi incumbido de matar Tiestes, mas ao reconhecer o verdadeiro pai matou
Atreu e colocou Tiestes no trono em Micenas. Cf., RIBEIRO JR., Wilson A. “Tantálidas e Átridas – parte
I”. Graecia Antiqua, S. Carlos, V. 1, N.1, p. 48-51, 1998, pp. 50-51.
http://greciantiga.org/re/1/v1n1011.pdf.
54
STINTON, 1975, Op. Cit., p. 227. Não estamos certos de qual versão do mito Aristóteles tem em mente
quando cita o nome de Tiestes na Poética: se a sedução da cunhada; se o fato de ter comido a carne dos
próprios filhos na ignorância, se o incesto consciente com a própria filha.
31
consangüinidade: o seio materno. Todos os testemunhos convergem a
nos mostrar que, ao viver este conflito, Alcméon aparece aos olhos
dos gregos como o protótipo do infeliz possuído pela demência
55
.
Neste sentido, o exemplo não nos aproxima da explicação que interpreta a
hamartía como um erro por ignorância, mas fundamenta-se enquanto uma falta
involuntária. Alcméon recebe uma ordem para matar a mãe a título de vingança por
ordem do fantasma do pai.
O mito de Meleagro possui duas versões. Em uma delas, Grimal relata que
Meleagro era filho de Eneu e Alteia e noutra filho de Ares. Quando Meleagro
completou sete dias as Moiras se apresentaram a Alteia e vaticinaram que o menino só
se manteria vivo enquanto o tição ardesse no átrio e não fosse reduzido a cinzas. Então,
ela se apressou em apagá-lo e escondeu-o num cofre. Na idade adulta, Meleagro,
reunindo um grande número de heróis gregos, decidiu caçar e matar um javali enviado
por Ártemis e que aterrorizava a cidade.
Morto o animal, ele ofereceu seus despojos à caçadora Atalanta, por quem
estava apaixonado. Os tios de Meleagro se indignaram com a atitude do sobrinho e
como parentes mais próximos reivindicaram o saque. Enfurecido, Meleagro matou os
tios e assegurou o saque a Atalanta. Ao tomar conhecimento da atitude do filho,
enlouquecida pela dor, Alteia retirou o tição do cofre e ateou-o ao fogo. Quando este
ardeu completamente, Meleagro deu seu último suspiro. Voltando a si e dando-se conta
do que aconteceu, Alteia enforcou-se
56
.
Também um oráculo, o perigo do incesto e o mal realizado contra familiares
encontra-se no mito de Télefo. Um antigo oráculo havia advertido Áleo que um filho de
Auge mataria os tios e reinaria em seu lugar. Temeroso, ele consagrou a filha a serviço
55
VERNANT, 2001, Op. Cit., p. 278.
56
GRIMAL, Pierre. Diccionario de Mitologia Grieca y Romana. Barcelona : Paidos, 1986, p. 343-345.
Embora o assassinato não tenha ocorrido de forma inconsciente, há no relato uma referência aos oráculos
e o mal realizado contra parentes próximos. Porém, não saberíamos afirmar quem cometeu uma hamartía,
se Meleagro ou Alteia. Cf., Canto IX - Ilíada. Trad. Fredeirco Lourenço, vv. 540 ss.
32
de Atena. Porém, Héracles, acolhido por Áleo, depois de um grande banquete, e
embriagado, abusou sem o saber da filha do rei, Auge, engravidando-a. Sentindo-se
ameaçado pelas palavras do oráculo, o rei livrou-se da filha. Auge abandonou o filho na
montanha, na Arcádia, onde uma cerva o amamentou. Pastores tê-lo-iam encontrado e,
tocados pelo prodígio, levaram a criança ao seu rei e deram-lhe o nome de Télefo.
Quando adulto, Télefo decidiu consultar o oráculo de Delfos para conhecer o
paradeiro de sua mãe e no caminho matou acidentalmente os tios cumprindo o antigo
oráculo. Chegando a Delfos, em resposta a sua pergunta, o oráculo indicou que viajasse
até a Mísia sem pronunciar uma só palavra durante toda a viagem até que Teutras o
purificasse. Chegando a Mísia ele descobriu que o argonauta Idas sitiava o local. O rei
chamou Télefo em seu socorro prometendo-lhe que lhe daria Auge, que considerava tal
como filha adotiva, em casamento se ele derrotasse o argonauta e o expulsasse do reino.
Télefo saiu vitorioso e Teucras apressou-se em cumprir a promessa. Mas Auge,
fiel à memória de Héracles, não queria unir-se a nenhum mortal, então decidiu suicidar-
se. Acontece que, mal a princesa pegou na espada, os deuses enviaram uma enorme
serpente ao seu quarto; a espada caiu-lhe das mãos e, com ela, a cegueira dos seus
olhos: Auge reconheceu em Télefo, seu filho; evitando, assim, o incesto
57
. O incesto foi
evitado a tempo, porém o crime contra parentes e que fora vaticinado cumpriu-se. Nesta
cena de reconhecimento não temos a passagem da boa para a má fortuna, mas o seu
inverso, o que contraria, pelo menos em parte, o que Aristóteles defende.
Aristóteles resgata as histórias mitológicas de famílias ilustres e faz uma pré-
seleção dos enredos que poderiam fornecer elementos para a construção de tragédias
aprazíveis.
Comprovada a proximidade, mesmo indireta, entre as personagens, os mitos
57
GRIMAL, 1986, Op. Cit., p. 63 e pp. 496-498. Quando percebeu que a filha estava grávida, alguns
aconselharam Áleio que a colocasse num cofre e a atirasse ao mar, ou que a entregasse a confiança do
navegador Náuplio e que este desse fim a moça. Mas Náuplio vendeu a jovem como escrava e esta foi
conduzida a Mísia. O rei da Mísia acolheu Auge e seu filho, Télefo, adotando e nomeando-o como seu
herdeiro.
33
e o que há de comum nestas histórias, poderíamos considerar que estas faltas seriam
involuntárias contra familiares, cometidas na ignorância e por desconhecimento
58
,
tornando o desconhecimento pré-condição para a hamartía
59
.
Não seria estranho considerar que Aristóteles pensava na hamartía de Édipo
como o que leva ao parricídio e incesto, supondo um desconhecimento prévio da
personagem em relação aos próprios atos, mesmo que a “ignorância” não esteja
subentendida no trecho citado do Capítulo XIII. Precisamos, assim, compreender o
conceito para revermos seus possíveis sentidos e traduções e o identificarmos nas
tragédias. A posteridade nos ofereceu apenas um pequeno exemplar do que foram as
tragédias, e dentre as que nos restaram, nos faltam recursos plausíveis à aplicação do
conceito.
But to look at the matter from this angle is not only to see the strong
negative force of argument, but also to recognise that hamartia is not,
as much scholarship has presupposed, a discrete, technical term,
designating a single, sharply demarcated formula of tragic potential,
but rather an appositely flexible term of Greek moral vocabulary to
signify the area opened up in Aristotle’s theory by the exclusion both
of full moral and guilt and of mere subjection to the irrational strokes
of external adversity
60
.
A hamartía seria, portanto, um termo mais flexível do que normalmente
supomos. Certamente, este fato acrescentaria frutos ao nosso entendimento da falta
trágica, pressupondo inúmeras possibilidades. Estas figuras heróicas seriam agentes
ativos. Mas se o herói erra de forma consciente, não poderia ser uma figura exemplar. O
sofrimento do herói – resultado da reviravolta do destino – não despertaria no
espectador a catarse através da piedade e do terror. Considerando-se a proposta de
Aristóteles, precisamos compreender que a falta trágica promoveria a reviravolta na
58
STINTON, 1975, Op. Cit., p. 227.
59
DAWE, 1968, Op. Cit., p.121. Há uma referência aos oráculos e seu poder inexorável de realização. Os
escolhidos por Aristóteles demonstram perfeitamente que o sofrimento é a essência da hamartía.
60
HALLIWELL, 1998, Op. Cit., p. 220.
34
vida do herói não porque este tenha defeito de caráter, pois ele é moralmente mediano,
mas por força deste erro.
A partir desta interpretação, temos pelo menos três pilares de apoio à análise da
hamartía: o herói trágico, apesar de venturoso e de família ilustre, cai no infortúnio não
por uma deficiência de caráter, mas devido a um grande erro; a reviravolta não deve
nascer de uma deficiência moral, mas de uma grande falta cometida; e, sendo a tragédia
a imitação de realidades dolorosas, ela representaria a desmedida humana cujo resultado
é, quase sempre, a catástrofe
61
.
A hamartía, a partir do que já foi exposto, seria uma falta irreversível cometida
na ignorância, além de ser involuntária. Mesmo assim, não nos parece pertinente afastar
o sentido de hamartía das questões que envolvem a ética e a responsabilidade.
Acreditamos que o conceito desligado de outros não nos oferece uma oportunidade de
análise aplicável às tragédias
62
, o que nos aproximaria dos tratados sobre ética escritos
por Aristóteles.
Além disso, apesar de Aristóteles interessar-se mais pelas ações humanas do que
pelas personagens, no contexto imediato em que ele utiliza o termo hamartía, expõe
uma sucessão de conceitos que descrevem não um ato, mas a disposição de caráter de
um homem de boa reputação e de família ilustre; que não se destaca nem pela virtude e
nem pela justiça; que não é vicioso e nem perverso
63
, mas que comete um erro e
transforma a própria vida numa desventura.
61
LUCAS, D.W. “Pity, Terror, and Peripeteia”. The Classical Quarterly, New Series, Vol. 12, No. 1.
(May, 1962), p. 53. O herói é vítima de uma hamartía (uma espécie de mal entendido) e nem sempre a
hamartía resulta em peripécia.
62
DAWE, 1968, Op. Cit., p. 89.
63
KIRKWOOD, G. M. Hamartia. Tragic Error in the Poetics of Aristotle and in Greek Tragedy by J. M.
BREMER. The American Journal of Philology. Vol. 12, no. 1. (May., 1962), p. 713. A grande questão
gira em torno das palavras de Aristóteles: o herói passa da felicidade para a infelicidade devido a uma
hamartía.
35
Curiosamente, Amelie Rorty compara a hamartía ao câncer
64
. Tal analogia
merece nossa atenção. O senso comum considera o câncer como uma das doenças mais
temidas pela humanidade, gerando medo, angústia e desespero. Vista como um processo
irreversível, uma sentença de morte, considerada abominável, repugnante e um mau
presságio, não é tarefa difícil associar a hamartía ao câncer. Após sua identificação, o
câncer alcança proporções que nem sempre são contornáveis, tornando-se fatal. A
tragédia revelaria a existência de um câncer no coração da ação trágica
65
: a hamartía. A
comparação nos proporcionou a oportunidade de vislumbrarmos a dimensão do conceito
no espetáculo trágico. É claro que uma personagem define-se não como um corpo
sujeito a adoecer, mas como um conjunto de ações que podem resultar em boa ou
fortuna, ou seja, em felicidade ou infelicidade.
O erro de juízo cometido pelo herói não é conseqüência de uma personalidade
afetada por desvios morais, mas de uma avaliação má sucedida que poderia acontecer a
qualquer um. Ocorrida a hamartía, não existem meios que possam impedir a reviravolta
da fortuna. A hamartía alcança uma dimensão maior do que as definições normalmente
encontradas e não será possível compreendê-la sem consideramos seu significado para o
agente que incorreu em falta, pois promove a modificação da sua imagem, ameaçando
sua existência e identidade. A hamartía traria a lembrança da vulnerabilidade, da
fraqueza e do medo.
Porém, existe a predominância de uma interpretação que vê a hamartía como um
erro intelectual; neste sentido, os trabalhos que apresentam um estudo mais profundo
são os de O. Hey e J. M. Bremer
66
. Mas a hamartía não pode ser concebida
simplesmente a partir desta definição. Interpretada enquanto erro intelectual, ela pode se
64
RORTY, 1992, Op. Cit., p. 11
65
RORTY, 1992, Op. Cit., p. 11.
66
SAÏD,1978, Op. Cit., p. 20. A interpretação da hamartía enquanto erro de ordem intelectual é defendida
por consagrados estudiosos que se dedicaram à análise do conceito: H. Funke, J. M. Bremer, H. Philips, P.
van Braam, O. Hey, S. M. Pitcher, A. W. Adkins e R.D. Dawe.
36
enquadrar em um tipo de falta cometida por ignorância, ou seja, o herói desconhecia
elementos importantes para a elucidação da situação que enfrentava e por isso incorreria
em falha grave. Assim, a hamartía estaria associada a um erro intelectual, uma
ignorância a respeito da identidade de um parente próximo
67
.
Ela não corresponderia necessariamente a um ato voluntário, mas involuntário.
Este ato ocorreria devido à ignorância do agente a respeito de circunstâncias
importantes referentes à situação enfrentada. O herói comete uma ação na ignorância da
totalidade dos eventos e de suas prováveis conseqüências e a reviravolta da fortuna
resultaria de uma ação, não necessariamente da falta de sorte
68
.
Aristotle is emphasizing that the change from good fortune to bad
must result from some action, i.e. not be the result of a mischance, an
τύχηµα. True, he has said this positively elsewhere (9. 1452a. I ff.),
but it is important, so he says it again, negatively. There is no ground
whatever in the form of the expression for restricting the range of
µαρτία
69
.
Para compreendermos a aplicação do conceito de hamartía retornaremos à
definição de tragédia por Aristóteles no Capítulo VI da Poética. Aristóteles define a
tragédia como a representação de uma ação
70
; a tragédia é, pois, acontecimento, uma
vez que sem ação não haveria tragédia.
Ἔστινοὖντραγῳδίαμίμησις πράξεως σπουδαίας (25) καὶ τελείας
μέγεθοςἐχούσης,ἡδυσμένῳλόγῳχωρὶςἑκάστῳτῶνεἰδῶνἐντοῖς
μορίοις, δρώντων καὶ οὐ δι᾽ ἀπαγγελίας, δι᾽ ἐλέου καὶ φόβου
περαίνουσατὴντῶντοιούτωνπαθημάτωνκάθαρσιν.
É, pois, a tragédia imitação de uma ação de caráter elevado, completa
e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com as várias
espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes [do drama],
[imitação que se efetua] não por narrativa, mas mediante atores, e
67
SAÏD,1978, Op. Cit., p. 13. Butcher salienta o caráter limitado da inteligência humana. Dacier
compreendeu a hamartía como uma falta involuntária que é movida por uma força maior ou superior,
cometida na ignorância ou por imprudência, contra a vontade. Ou talvez para fazer executar as ordens que
se tentou desobedecer.
68
Poderíamos, então, associar a hamartía à reviravolta da fortuna e ao reconhecimento.
69
STINTON, 1975, Op. Cit., p. 225.
70
SCHÜMTRUMPF, 1989, Op. Cit., p.139. Definir a ação exigirá pensar se relembrar o passado é uma
ação, da mesma maneira, se o autocegamento, embora o encenado, se enquadraria como uma ação. Cf.
Retórica (1,13) e Ética a Nicômaco (5,3-10).
37
que, suscitando o “terror e a piedade”, tem por efeito a purificação
dessas emoções
71
.
A tragédia é a representação de uma ação completa e de caráter elevado que
possui princípio, meio e fim
72
, é uma forma específica de mímese (imitação) feita não
mediante narrativa, mas através de atores, e que se dá no momento presente e não se
atrela apenas à audição, mas à visão
73
. A tragédia é imitação de ações humanas, se há
ação, há o agente, esta ação será de acordo com o caráter e o pensamento. A ação é o
elemento central da tragédia e sem a ação, o gênero não existiria
74
.
Aristóteles trata da maneira como uma tragédia deve ser composta para atingir
seus objetivos que é, em princípio, a catarse. A arte do poeta é uma imitação das ações
humanas e, apesar de exigir certa criatividade, esta se fundamenta a partir de histórias já
conhecidas
75
.
O mais importante, para Aristóteles, é a trama dos fatos. A tragédia imita ações
felizes e infelizes, porque a felicidade ou a infelicidade estaria condicionada à ação e
agir é a própria condição do humano. Sendo assim, a ação não é uma qualidade humana
em si, mas a definição do que é propriamente humano. O que determina a felicidade ou
infelicidade não é o caráter, mas a ação, a ventura ou desventura são relativas à ação
executada pelos homens. A melhor tragédia é aquela cuja ação conduz o herói da
felicidade à infelicidade
76
. E a passagem da boa para a má fortuna dá-se através de uma
71
ARISTÓTELES. Poética. Cap. VI, 1449b. 24-28. No ponto de vista de Aristóteles a tragédia suscitaria
o terror e a piedade no espectador a partir desta ação. O assunto é controverso, porém aponta uma relação
entre ação e agente dentro da ética aristotélica.
72
ARISTÓTELES. Poética. Cap. VI, 1450b 24-25.
73
Daí nossa preocupação com a presença da hamartía no momento presente da tragédia.
74
ARISTÓTELES. Poética, Cap. VI, 1450a. 23.
75
ARISTÓTELES. Poética, Cap. III, 1448ª 28-29.
76
ARISTÓTELES. Poética, Cap. IX,1451a. 6-15. Ao final do capítulo IX o termo peripécia parece associar-
se a um elemento inesperado. O exemplo citado por Aristóteles no capítulo XI é a fala mensageiro de
Corinto, no Édipo Rei. O mensageiro pretendia afastar de Édipo os temores que o atormentavam em relação
à mãe, mas essa intenção inicial se transformou em causa acidental de Édipo descobrir quem ele era. Ou
seja, para afastar Édipo dos temores em relação a sua mãe deve-se revelar quem ele é, e essa revelação
produz o efeito contrário do pretendido. O ato de revelar a identidade de Édipo anula a intenção do
mensageiro. A relação entre revelar a identidade de Édipo e atemorizá-lo quanto a seu destino, no entanto, é
38
hamartía, atrelada à cena de reconhecimento
77
. E o reconhecimento dá-se na passagem
da ignorância ao conhecimento promovendo a reviravolta da fortuna
78
.
Aristóteles confirma que encontramos em Édipo Rei uma das melhores cenas de
reconhecimento numa tragédia, pois esta resulta da estrutura da própria intriga, ou seja,
o melhor tipo de reconhecimento é o que coincide com a peripécia ou a reviravolta da
boa à má fortuna na vida do herói. Segundo Dawe, quando Else associa a hamartía com
o seu inverso, ou seja, o reconhecimento, ele atribui à palavra um sentido que revela um
erro cometido em virtude da ignorância
79
. A hamartía estaria ligada às ações
desfavoráveis, e a grande questão atém-se ao fato de que o agente não é capaz de
compreender a dimensão de seu gesto e tão pouco é capaz de adivinhar seus resultados
até que os reconheça.
Isto nos leva a crer que não basta haver uma hamartía na tragédia, é preciso que
exista o reconhecimento, porque, aparentemente, o reconhecimento da hamartía
contribui para a condução do herói da felicidade à infelicidade. Isto quer dizer que se o
herói cometeu um erro, porém não sabe que errou, o seu estado de ignorância o mantém
numa felicidade ilusória. Portanto, acreditamos que o reconhecimento da hamartía é
crucial para o desenlace trágico. Neste sentido, devemos levar em conta a importância
do conhecimento e da ignorância na tessitura dramática. Ambos os conceitos estão
centrados no agente e na natureza de suas ações. Porém, em algumas tragédias não
uma relação necessária, assim como parecia necessária ao mensageiro a relação entre acalmar Édipo quanto
a seu destino e revelar sua identidade. Não obstante, as intenções de aliviar a alma perturbada de Édipo
saíram frustradas. Ele não diz exatamente que são as intenções de Édipo que se frustraram. Portanto, o
reconhecimento consiste na descoberta de algo que era desconhecido previamente. Adiante, no capítulo
XIV, ele cita situações trágicas possíveis e que despertariam o terror e a piedade. Aristóteles oferece uma
tipologia das cenas de reconhecimento, hierarquizando-as a partir do efeito emocional produzido. Levando
em conta o critério estético, as melhores são as que estão associadas à peripécia e são conseqüência da ação
dramática, cujos exemplos são a do Édipo Rei e a da Ifigênia em Tauris.
77
ARISTÓTELES. Poética, Cap. VII,1452a. 13-16.
78
Mas nem todo reconhecimento promove a reviravolta da fortuna, como podemos observar no Cap. XVI
da Poética.
79
DAWE, 1968, Op. Cit., p. 92.
39
podemos afirmar facilmente se o agente é ou não uma vítima passiva
80
dos atos que se
desenvolvem no enredo trágico. Vale ressaltar que, o reconhecimento não responde
necessariamente a uma hamartía, mas o conhecimento de si numa outra circunstância,
quase sempre adversa da atual
81
.
No capítulo XIII e no capítulo XIV Aristóteles trata do melhor tipo de tragédia,
neste sentido, ele não estaria se referindo às tramas trágicas em sua totalidade, mas daria
preferência às tragédias que possuíam trama complexa considerando-as melhores. A
hamartía foi apresentada no capítulo XIII como a causa primeira da reviravolta de
fortuna em uma trama considerada complexa e cujas outras características seriam a
inversão e o reconhecimento
82
.
A tragédia não sugere que o herói permaneça sem reconhecer. Não parece
sensato e nem correto que em uma tragédia um herói mantenha-se na ignorância; é
necessário que ele se descubra falível. Além disso, a queda no infortúnio mediante uma
hamartía produziria no espectador a catarse. Aristóteles complementa afirmando que a
ação trágica não precisa se encontrar no corpo textual da tragédia, podendo estar
também fora da trama.
ἔστιν δὲ (30) πρᾶξαι μέν, ἀγνοοῦντας δὲ πρᾶξαι τὸ δεινόν, εἶθ᾽
ὕστερονἀναγνωρίσαιτὴνφιλίαν,ὥσπερ ὁ Σοφοκλέους Οἰδίπους·
τοῦτο μὲν οὖν ἔξω τοῦ δράματος, ἐν δ᾽ αὐτῇ τῇ τραγῳδίᾳ οἷον ὁ
Ἀλκμέων ὁ Ἀστυδάμαντος ἢ Τηλέγονος ὁ ἐν τῷ τραυματίᾳ
Ὀδυσσεῖ.
80
HALLIWELL, Stephen. “Action and Character.” In: Aristotle’s Poetics. Chicago : University Chicago
Press, 1998, p.147.
Poderíamos citar como exemplo a tragédia Ifigênia em Tauris, de Eurípides, pois não
conseguimos distinguir com precisão quem é vítima ou quem é o agente na trama. Tanto a própria
Ifigênia quando Orestes poderiam ser agentes ou vítimas. O reconhecimento se dá em duas etapas:
primeiro Orestes reconhece Ifigênia. As provas de identidade que Orestes oferece são evocações de
objetos ou de fatos cuja memória é compartilhada por ambos. São eles: 1) um bordado, feito por Ifigênia,
que mostrava a disputa entre Atreu e Tiestes pelo Carneiro do tosão dourado; 2) detalhes da breve
passagem da moça em Aulis - banho nupcial e o corte dos cachos de cabelos para oferenda fúnebre; 3) a
lança de Pélope, pendurada na parede do quarto da moça em Argos. Diante dessas evidências, Ifigênia se
rende e também reconhece o irmão, entregando-se a uma longa celebração do encontro.
Desde ponto de
vista, a cena de reconhecimento desta peça evita a hamartía,
sem que se perca o prazer advindo do
reconhecimento Cf., DUARTE, Adriana da Silva. “O reconhecimento na tragédia grega: a Ifigênia em
Tauris, de Eurípides.” V Semana de Estudos Clássicos & Educação da FEUSP, Paideuma, pp. 1-11,
2006, p. 10.
81
Estamos levando em consideração a tragédia Édipo Rei.
82
HALLIWELL, 1998, Op. Cit., p. 216.
40
Mas também pode dar-se que algum obre sem conhecimento do que
há de malvadez nos seus atos, e só depois se revele o laço de
parentesco, como no Édipo de Sófocles (esta ação é verdade que
ocorre fora do drama representado, mas, por vezes, o mesmo se dá na
própria tragédia, como a de Alcméon, na homônima tragédia de
Astidamas, e a de Telégono no Ulisses Ferido)
83
.
A citação é valiosa e atinge o ponto crucial desta pesquisa. Assim, como pensar
os exemplos citados por Aristóteles na Poética? Aristóteles insinua neste fragmento que
a falta trágica de Édipo consiste no incesto e parricídio. Ele também estabelece os
critérios que tornam uma situação trágica e qual o herói que mais despertaria simpatia
nos espectadores. Todavia, ao citar exemplos de heróis que cometeram a hamartía, ele
não esclareceu qual a falta trágica responsável pela reviravolta.
Aristóteles cita algumas situações que incorporam indiretamente o
reconhecimento, a reviravolta e a hamartía
84
. Dentre as selecionadas temos o mito de
Medéia. A ação trágica de Medéia é contra os próprios filhos com a finalidade de ferir
Jasão. Neste caso, ela agiu intencionalmente e com conhecimento. Em uma avaliação
apressada poderíamos crer que o exemplo de Medéia não desepertaria em nós os
sentimentos de terror e piedade característicos do enredo trágico que ele apresentou nos
capítulos antecedentes
85
. Ela age e sabe contra quem está agindo; mas nem por isso
podemos negar a tragicidade desta peça.
Aristóteles também faz uma breve alusão ao episódio de Hémon em Antígona,
quando ele se apressa em agir contra o pai e não o faz, sendo este o pior exemplo a ser
seguido, tornando a cena repugnante e não trágica. Ora, Hémon não age, porém sabia o
83
ARISTÓTELES. Poética, Cap. XIV - 1453b, 29-34. A situação trágica, por excelência, sugerida por
Aristóteles no capítulo XIV nos leva a refletir sobre a hamartía, embora o conceito não apareça no
decorrer do texto. Ele afirma que as ações devem ocorrer entre pessoas que possuem algum laço de
amizade ou parentesco e cita como exemplo o irmão que mata ou está a ponto de matar o irmão, ou filho
ao pai, ou mãe a um filho, ou um filho à mãe. Estas são as situações verdadeiramente trágicas. Além
destas não há outras trágicamente possíveis. Cf., 1453b 15-20 e 36.
84
Os comentários que se seguem sobre as tragédias Medéia, Antígona, Édipo Rei e Ifigênia em Tauris são
sustentados pelas observações de Halliwel. Cf., HALLIWELL, 1998, Op. Cit., pp. 224-225.
85
ARISTOTLE. Poetica. Introduzione, traduzione e note de Diego Lanza, Milano : Rizzoli Libri, 1992, p.
51-52.
41
que ia fazer e contra quem estava agindo. Teríamos a ausência da ação e o episódio não
despertaria sequer nossa simpatia. Por sua vez, embora não cite diretamente o nome de
Édipo, estamos propensos a crer que o próximo exemplo é o do filho de Laio: o agente
que age sem o saber. Ao tratar do atentado de Édipo contra os pais, Aristóteles frisa que
esta ação deveu-se à ignorância, de maneira que não haveria como o herói saber o que
havia de terrível em seus atos. Édipo cometeu uma falta involuntária e na ignorância.
E, contrariando as expectativas do capítulo XIII, Aristóteles considera o
reconhecimento na tragédia Ifigênia - na qual a irmã está prestes a matar o irmão e não
o faz porque o reconhece em tempo hábil evitando a hamartía -, o melhor exemplo para
a compreensão da reviravolta e do reconhecimento. Não deixa de ser surpreendente
porque neste contexto não poderíamos qualificar a ação na referida peça de Eurípides na
categoria hamartía associando-a a um erro por ignorância, erro de cálculo, erro por
desconhecimento. Além disso, a reviravolta na referida tragédia é da infelicidade para a
felicidade, ou seja, a infelicidade é evitada
86
. Aristóteles não proíbe este tipo de
estrutura para a tessitura do enredo trágico, mas no capítulo XIII afirma que as melhores
composições representam a passagem da prosperidade para a adversidade.
Analisando objetivamente os exemplos citados por Aristóteles temos uma ênfase
na ignorância como elemento fundamental no capítulo XIV. Não obstante, a reviravolta
da fortuna, mencionada consideravelmente antes do capítulo XIII, é abandonada pelo
próprio Aristóteles no capítulo XIV. Esta discrepância não deveria ser tratada como um
elemento isolado, pois sabemos que a reviravolta, o reconhecimento e a hamartía são
elementos importantes para a construção do enredo trágico segundo o próprio filósofo.
Além disso, apesar da notável importância da presença dos deuses nas tragédias,
Aristóteles não faz qualquer menção à divindade na tragédia. Parece-nos que ele situa a
86
ARISTOTLE. Poetica. Trad. Diego Lanza, 1992, Op. Cit., p. 52.
42
ação do herói no campo ético do agir humano de maneira que o herói trágico é mais
culpado do que realmente poderíamos pensar sob o peso das próprias escolhas
87
. Ele faz
uma interpretação racional das tragédias, o que nos leva a pensar que, segundo o ponto
de vista de Aristóteles, tudo é fruto da ação humana. Os exemplos citados por ele são
surpreendentes, ainda que a ação e as escolhas individuais nos pareçam legítimas.
Assim, embora tenhamos a convicção de que Aristóteles na Poética interpreta as
tragédias sob o ponto de vista estético, reconhecemos que a ética, aqui direcionada à
ação humana, não pode ser ignorada
88
.
Os capítulos XIII e XIV nos oferecem subsídios suficientes para crermos nestas
contradições, em especial, na escolha da estrutura do melhor tipo de tragédia. Basta
avaliarmos as diferenças entre Ifigênia em Tauris, de Eurípides, e Édipo Rei, de
Sófocles
89
. Pois não nos parece haver qualquer hamartía na referida peça de Eurípides.
As duas peças são, por conseguinte, as que foram citadas mais vezes na Poética a título
de exemplificação, o que a priori, poderia representar não apenas a preferência de
Aristóteles, mas um dado extremamente significativo porque elas constam dentre os
poucos exemplares do gênero trágico que nos restaram. Deste modo, a escolha não pode
ser ignorada
90
. E, se no capítulo XIII somos levados a crer que o fim da tragédia é a
representação de uma hamartía, não é tarefa simples explicar esta irônica reviravolta no
ponto de vista de Aristóteles quando ele cita no capítulo XIV a peça de Eurípides como
admirável.
87
Identificamos em Édipo Rei a presença da divindade, mesmo que apenas mencionada. O pano de fundo
em Édipo Rei mostra-nos uma realidade diferente da ação meramente humana e o tema dos oráculos não
pode ser ignorado. Devemos assumir que Aristóteles negligencia o tema que é importante e está presente
nas tragédias.
88
Em referência a Stinton, Saïd afirma que este não apresenta nada de novo, na verdade ele realiza uma
releitura da obra de Dacier, Glanville e, em especial, Butcher. Aristóteles fala “uma falta qualquer” e ou
uma “grande falta”. Neste sentido, qualquer ação, mesmo a mais banal, poderia ser qualificada como uma
hamartía. Saïd pontua o erro da tradução do termo hamartía à luz dos valores religiosos cristãos. Bauer,
por exemplo, traduz o termo que aparece no verso 649 da Orestéia em equivalência ao Evangelho de São
João, ou seja, como pecado. Cf., SAÏD, Op. Cit., p. 21.
89
HALLIWELL, “The Setting of the Poetics”, 1998, Op. Cit., p. 32.
90
HALLIWELL, 1998, Op. Cit., p. 40.
43
2. A hamartía e seus sentidos aproximados
A hamartía é quase sempre interpretada como um erro irremediável. Para
compreendermos sua inserção e significado no corpus da tragédia é inegável a
importância do capítulo XIII, quando Aristóteles aborda a escolha da personagem para o
melhor tipo de tragédia. Ele escolhe, para designar a personagem chave, o sujeito
intermediário cuja desdita relaciona-se diretamente a um erro cometido
91
.
A hamartía seria também uma composição mista de ações
92
e encontramos uma
passagem relevante na Ética a Nicômaco citando quatro situações para definir o teor de
culpabilidade de um agente: em primeiro lugar, os atos cometidos na ignorância e cujos
resultados não poderiam ter sido previstos; em segundo, os atos cometidos na ignorância e
que poderiam ter sido facilmente evitados porque eram previsíveis; em terceiro, os atos
cometidos intencionalmente sob a influência de alguma paixão; e enfim, os erros
cometidos por meio de um vício, por meio da maldade, da injustiça e da falta de caráter
93
.
Bremer cita cognatos para hamartía: aliteín, amplakeîn, sphállesthai, que
possuem sentido negativo e são utilizados de maneira mais ou menos metafórica para
designar erros, faltas ou crimes
94
. Assim, o estudo da hamartía careceria de elementos
de comparação. Seria interessante, se possível, fazer um estudo da hamartía englobando
os termos que apresentam similitudes e analogias evidentes, oferecendo uma dupla
garantia de precisão e objetividade na análise do conceito e sua aplicação nas tragédias.
Deveras é significativo pensarmos a hamartía enquanto um erro por ignorância.
O herói se confrontaria com um enigma ou fato que estaria fora do seu alcance
desvendar. Essencialmente, a hamartía seria um ato involuntário cometido na
91
ARISTÓTELES, Cap. 13 – 1453ª, 7-22.
92
STINTON, 1975, Op. Cit., p. 254.
93
STINTON, 1975, Op. Cit., p. 230. São involuntárias as ações cometidas por ignorância. O potencial de
involuntariedade da ação, contudo, é discutível quando mediado pela coação. Neste sentido, é atribuída
maior importância ao fato da ação realmente ser cometida na ignorância para se configurar como hamartía
94
SAÏD, 1978, Op. Cit., p. 21.
44
ignorância. Isto não implica na ausência de um caráter inteligente do herói, pois sua
inteligência é inegável, o que se afirma é seu fracasso. O herói vê-se vítima de um erro
que ele poderia ter evitado caso conhecesse todas as circunstâncias que envolviam a
situação enfrentada por ele
95
. A falta cometida, embora realizada pelo herói e motivada
por razões quase sempre honestas, apresenta conseqüências contrárias à sua vontade.
Desta maneira, embora ciente de que cometeu uma falta, o herói reconhece que
errou involuntariamente, ou seja, sua obra decorreu de um desconhecimento cujos
resultados eram imprevisíveis. Um ato deverá ser considerado voluntário quando
depende do agente deliberar ou não a respeito do que deve fazer
96
, a ação é fruto de sua
vontade. No caso das tragédias devemos levar em consideração que escolher não é
tarefa fácil
97
e depende muito do grau de consciência no ato de deliberar. Porém, um
erro por ignorância pode ser voluntário, involuntário ou contravoluntário
98
.
Realizando uma breve revisão das definições apresentadas para a hamartía,
podemos assumir algumas posições necessárias. Stinton lista algumas possibilidades a
partir daqueles que o precederam: Adkins, por exemplo, frisa a importância da relação
entre a hamartía e o aspecto ético da ação; Bywater a define como erro de julgamento;
Humphry House relembra a rejeição por Aristóteles do sentido moral aplicado a
hamartía
99
, pois a infelicidade do herói trágico não estaria condicionada a um caráter
duvidoso, mas a um grave erro cometido, um erro de cálculo
100
. Mas, se a hamartía não
95
STINTON, 1975, Op. Cit., p. 226.
96
MUÑOZ, Alberto Alonso. Liberdade e Causalidade: ação, responsabilidade e metafísica em Aristóteles.
São Paulo : Fapesp, 2002, p. 117-119.
97
É complicado determinar as circunstâncias de uma escolha, quais os benefícios independentes da
vontade de quem escolhe.
98
MUNÕZ, 2002, Op. Cit., p. 122. A reação do agente perante os resultados imprevisíveis da própria
ação, isto é, se ele se arrependeu ou não, se agiu coagido ou deliberadamente, são também fatores
importantes para a interpretação da hamartía.
99
STINTON, 1975, Op. Cit., p. 226.
100
CARVALHO, Alfredo Leme Coelho de. Interpretação da Poética de Aristóteles. São José do Rio Preto :
Editora Rio Pretense, 1998, pp 122-147.
45
se refere, a princípio, a um erro moral, poderia, no mínimo, incluí-lo
101
. Contudo, não
podemos afirmar que nenhuma tragédia foi ocasionada por um erro moral, mesmo que a
principal característica das melhores tragédias quase sempre se associe à sua ausência.
Philip W. Harsh, interpretando as definições de Bywater e Gudeman, definiu a
hamartía como erro intelectual ou erro de julgamento e não lhe atribui uma falta ética no
sentido aristotélico do termo, nem mesmo a considerou fruto de uma fraqueza ou falta de
caráter
102
. A hamartía seria uma falta de teor intelectual, cujos pormenores envolvem o
pensamento, a interpretação e o conhecimento. Não obstante, Harsh não desconsiderou,
em sua totalidade, o valor moral do conceito de “hamartánein” na tragédia
103
.
O erro de julgamento, cometido na ignorância, se expande à medida que os
estudiosos avançam em suas investigações. Dawe, aproveitando-se da definição de
Rostagni, também considera a hamartía como erro de julgamento e, segundo ele, esta
definição tem enfrentado críticas imerecidas
104
. Para ele, o erro de julgamento pode ser
responsabilidade do herói, seja por indução dos deuses – que o enganaram – ou mesmo
mediado por um conflito onde existiria pouca ou nenhuma escolha
105
. Neste caso,
poderíamos considerar que o erro de julgamento não seria da inteira responsabilidade do
agente, mas sofreria influência dos deuses que o colocariam em uma situação tal que
haveria pouca alternativa de escolha a ser feita. Somos propensos a pensar que o erro de
julgamento como uma das possíveis definições para a hamartía, principalmente em se
tratando dos acontecimentos trágicos representados nas tragédias.
A hamartía é imprescindível para o desencadeamento do processo trágico. O
erro trágico ainda relaciona-se com intenções frustradas. E, segundo Aristóteles, o herói
101
STINTON, 1975, Op. Cit., p. 225. Teríamos, contudo, segurança se compreendermos a hamartía, como
sinônimo de hamártema: um erro proveniente de uma ignorância inevitável; erro ou falha num sentido
moral; atos movidos ou cometidos por agentes tomados por alguma paixão; qualquer defeito ou fraqueza.
102
HARSH, Philip Whaley. “Hamartia again”. Transactions and Prodedings of the American Philological
Association. (1974 - ), vol. 105. (1975), p. 51.
103
SAÏD, 1978, Op. Cit., p.19.
104
DAWE, 1968, Op. Cit., p. 90.
105
DAWE,1968, Op. Cit., p. 94-5.
46
cai da felicidade para a infelicidade devido a uma hamartía. O efeito trágico estaria
condicionado a esta ação contrária às expectativas e deve-se à ignorância de elementos
cruciais para a interpretação dos eventos que compõem a trama. E mesmo que suas
ações não sejam intencionais, o herói não fica livre de seu destino e nem tem sua
suposta responsabilidade diminuída. Mas também precisamos ver a sua relação com a
questão do azar ou simples falta de sorte. Carvalho, a respeito da presença da hamartía
no cerne da tragédia, explicita que o irracional não precisa estar dentro do drama. Além
disso, aponta que, apesar de Aristóteles negar a falta moral como um dos vieses da
hamartía, Édipo não é um modelo de perfeição, ele é excessivo em tudo o que faz, é
excessivamente inteligente, irascível, impaciente, sempre adianta-se na tomada de
decisões, imprudente.
Poderia ainda contribuir para a interpretação exclusivamente moral o
fato de que Édipo, na tragédia sempre apontada como modelo por
Aristóteles, tinha também um defeito moral: era impaciente e
irascível. O certo é que os comentadores contemporâneos da Poética
se dividem, no caso, em duas alas: a dos que consideram hamartía
como simplesmente um erro de julgamento, e a dos que vêem nesse
erro uma mescla de falha moral
106
.
A partir desta afirmativa, o sentido de hamartía aproxima-se do erro de
julgamento proveniente de certo desconhecimento ou da ignorância. Embora seja uma
falha mais intelectual que moral, enquanto negligência e cegueira, esflora o campo
moral
107
. Mas não podemos nos limitar simplesmente ao erro de julgamento, já que
também podemos lhe atribuir o sentido de erro intelectual
108
. Ora, conceito apreende a
subjetividade da interpretação e teria relação direta com a inteligência e raciocínio
arguto. Além disso, o erro de interpretação dependeria do uso que se faz do
conhecimento e o alcance cognitivo do agente.
106
CARVALHO, Op. Cit., p. 140.
107
CARVALHO, Op. Cit., p. 142. Apud a Rostagni e Albeggiani, respectivamente. Neste aspecto, não é tarefa
simples excluir-lhe o valor moral.
108
CARVALHO, Op. Cit., p. 141. A hamartía é assim compreendida como um passo em falso, um erro de
interpretação, um mero erro de cálculo.
47
Contudo, a diferença entre o erro de julgamento e o erro de interpretação parece-
nos quase imperceptível. Poderíamos associar o erro de julgamento ao raciocínio
apressado e a má análise dos eventos e circunstâncias. O erro de interpretação
associaria-se ao fato de que, talvez, fosse perfeitamente possível fazer a interpretação
certa, ou que embora esta estivesse certa, a decisão fora equivocada. Poderíamos citar
como exemplo o caso de Édipo. Ele interpretou corretamente o oráculo quando ouviu
que mataria o pai e casaria com a mãe. Porém, ao decidir fugir, sua decisão como
conseqüência do que ouvira não atingiu o objetivo que era evitar tais acontecimentos.
A vida humana é feita de alternâncias, e se os heróis são senhores de suas
escolhas, não o são da sorte, cujas conseqüências são eles os primeiros a sofrer. Eles não
são capazes de enxergar os resultados de seus atos. No mundo trágico estas
conseqüências são a marca da condição humana e só os deuses escapam a elas. Na
alternância entre a sorte e o domínio divino explica-se que o homem não pode penetrar
no mistério da vontade divina e nem deve tentar fazê-lo.
Nesta perspectiva, a hamartía apresentaria quatro significados plausíveis: seria
um erro devido à insuficiência de conhecimento - a respeito de circunstâncias
fundamentais para a compreensão dos eventos que se apresentam ao herói – e que por
isso culmina num erro por ignorância ou desconhecimento; um erro inevitável a partir
da ignorância; ato consciente e intencional, mas não deliberado, tal como um ato
cometido e motivado pela raiva ou pela paixão; seria um delito de caráter, de certa
forma, vicioso
109
.
Uma ação por ignorância é, portanto, aquela em que o agente
escolheria agir de outro modo se tivesse sido capaz de prever suas
conseqüências e se tivesse podido apreender corretamente todas as
particularidades relevantes de sua ação, desde que tal ignorância não
seja, ela própria, resultado de uma ação voluntária dele
110
.
109
CAREL, Havi Hannah. “Moral and Epistemic Ambiguity in Oedipus Rex”. Janus Head, 9(1), NY,
97-115, 2006, p. 104. Cf., nota 13. Como Stinton, Havi Hannah Carel também apoiá-se em Butcher em
suas considerações para hamartía.
110
MUNÕZ, 2002, Op. Cit., p. 123.
48
Retornemos ao eixo que se apodera da ação por ignorância como a principal
definição para a hamartía. As ações com conseqüências fatais realizam-se,
ironicamente, no ápice da paixão e a partir da ignorância de elementos cruciais para a
interpretação dos eventos em torno de um acontecimento enfrentado pelo herói
trágico
111
. Esta insuficiência de conhecimento seria comparável à montagem de um
quebra-cabeça com algumas peças faltando. A visualização da totalidade seria
prejudicada pela ausência de elementos que o completariam. Contudo, mesmo a
ignorância pode ser produzida por negligência ou imprudência do agente. Não
poderíamos ignorar certo grau de culpabilidade do agente, mesmo em se tratando de
uma ação involuntária
112
. Frisando melhor esta interpretação, podemos inferir que a
hamartía provém do limitado conhecimento humano e que por isso estaria diretamente
ligada à capacidade cognitiva e intelectual
113
.
Alberto Alonso Munõz, a partir de Aristóteles na Ética a Nicômaco, elabora um
esquema com detalhes essenciais à acepção de uma ação por ignorância. Precisamos,
contudo, responder seis questionamentos para apreendermos as suas particularidades.
Assim, precisamos saber: (1) quem está praticando a ação; (2) o que está fazendo; (3)
sobre o que ou em quem está agindo; (4) com o que está fazendo, isto é, o instrumento;
(5) com que finalidade; (6) de que maneira
114
.
Em alguns casos o agente pode até mesmo desconhecer o que está fazendo,
percebendo-o diferentemente do que o fará posteriormente. Poderíamos citar,
111
Não podemos ignorar a importância da paixão na realização da ação do agente trágico. Veremos como
estes elementos se intercalam na sua aplicação direta nas tragédias.
112
HARSH, 1975, Op. Cit., p. 53.
113
SAÏD, 1978, Op. Cit., p. 15.
114
MUNÕZ, 2002, Op. Cit., pp.123-124. Munõz cita os exemplos utilizados por Aristóteles para sustentar
sua argumentação, mas tentaremos, se possível, utilizar este esquema para a compreensão da hamartía
enquanto ação involuntária ou contravoluntária - em três tragédias de Sófocles: As Traquínias, Antígona e
Édipo em Colono. Nossa hipótese nos parece viável porque o autor usa, literalmente, o exemplo de Édipo,
sustentado por Aristóteles, quando fala do erro por desconhecimento e ação por ignorância
contravoluntária.
49
seguramente e por motivos óbvios: Édipo, pois ele desconhecia que, ao descobrir a
identidade do assassino de Laio, descobriria a própria identidade. A finalidade da ação
também pode ser imprecisa, pois poderíamos interpretá-la mais como ignorância a
respeito das conseqüências do que das circunstâncias.
O mais importante é pensarmos “a ignorância do que o agente está fazendo e a
ignorância concernente ao resultado da ação
115
.” Munõz, assim, nos apresenta dois tipos
de ação que ele denominará “ação não-voluntária, praticada por ignorância: (a) ação
involuntária, na qual as circunstâncias e conseqüências da ação diferem das previstas,
mas não há arrependimento; (b) ação contravoluntária, na qual as circunstâncias e
conseqüências da ação diferem das previstas, e há arrependimento
116
”.
Da argumentação de Munõz nascerá uma possibilidade interpretativa para a ação
por ignorância que não seria simplesmente um ato involuntário, mas contravoluntário.
Na ação contravoluntária, se o agente soubesse de detalhes pertinentes aos resultados de
seu ato, ele não o teria realizado. Além disso, temos o arrependimento, de acordo com o
resultado da ação contrária ao previsto, como sua norma
117
.
No entanto, faz sentido defender a idéia de que a hamartía não existe
isoladamente, associando-a a outros conceitos com os quais ela teria algo em comum,
tal como a áte, pois a hamartía freqüentemente associa-se à força da áte nas peças
trágicas
118
. Esta interpretação representa um grande passo na análise do que seria a
hamartía porque levanta questões pertinentes ao enredo trágico. Em primeiro lugar
porque as diferenças entre os conceitos não são tão profundas quanto parecem. Embora
115
MUNÕZ, 2002, Op. Cit., p. 125.
116
MUNÕZ, 2002, Op. Cit., p. 120. Uma ação, contravoluntária por ignorância é, portanto, aquela em que o
agente age por ignorância e, em que, após sua realização, se arrepende. Trata-se de uma ação na qual há
falha epistêmica quanto à previsão das circunstâncias e conseqüências e em que o agente, caso tivesse tido
acesso epistêmico a elas, teria agido diferentemente. C.f., p. 126. Adaptação nossa.
117
MUNÕZ, 2002, Op. Cit., p. 414. Assim, em relação à ação contravoluntária seria possível abster o agente
de responsabilidade
118
DAWE, 1968, Op. Cit., pp. 94-95. Concordamos que a argumentação carece de uma atenção mais
detalhada, mas não nos propomos a fazê-lo porque utilizaremos o conceito apenas como um dos vieses
para o estudo da hamartía.
50
o conceito não apareça em Aristóteles, existe uma estreita relação entre a áte e o sentido
de ruína, destruição, desastre e azar
119
.
A linguagem poética trata da áte e da hamartía como conceitos ligados, porém, a
hamartía aparece significativamente na poesia trágica, de maneira que a sua relevância
se tornou fundamental
120
. A hamartía seria uma decisão fatal cujos resultados
apresentar-se-iam ao agente através do reconhecimento. O herói, ignorante da real
situação que enfrentava, seria tomado de surpresa porque não contava com a sua própria
ruína. Os heróis caem em desgraça porque falharam, e a tragédia versa sobre uma figura
heróica que cai movido por forças que ele é incapaz de conter
121
. A tragédia descreve
personagens que são, pelo menos parcialmente, responsáveis pela própria queda. O
poeta trágico expõe a responsabilidade da personagem através das observações do coro
ou de uma personagem secundária que interage com a personagem principal
122
.
O erro é considerado involuntário porque converge em direção oposta ao
pretendido, e, mesmo que o herói estivesse buscando o bem, alcançaria o mal. Tudo
deriva de uma escolha cujos resultados são imprevisíveis ou o contrário daquilo que foi
calculado
123
. À primeira vista, as ações que se aproximam da hamartía e salientadas por
Aristóteles são as que suscitam o terror e a piedade. O sofrimento do agente é essencial,
senão não teríamos estes sentimentos em relação a ele. Assim, poderíamos considerar
que o lamentável é a reviravolta da boa à má fortuna.
Tentaremos, portanto, compreender a natureza de uma falta que por ser trágica
desperta a compaixão nos espectadores e também porque Aristóteles recorre a exemplos
nas tragédias para ilustrar sua teoria, citando em particular Édipo Rei.
119
DAWE, 1968, Op. Cit., p. 95.
120
DAWE, 1968, Op. Cit., p.107. Na linguagem poética, a escolha de uma ou outra palavra dependeria mais
do ponto de vista do poeta do que de alguma diferença substancial de sentido.
121
DAWE,1968, Op. Cit., pp. 93-94. Embora a falta trágica quase sempre se associe aos atos condenáveis
no sentido da lei, da religião ou mesmo da moral, as ações do herói são conduzidas por seu próprio
interesse, e quase sempre incorrendo em engano.
122
HARSH, 1975, Op. Cit., p. 48
123
HARSH, 1975, Op. Cit., p. 49.
51
Apesar da culpabilidade de Édipo ser motivo de debates acirrados, ele cometeu
homicídio porque foi agredido pelo condutor do veículo. É claro que sua reação foi
extremamente violenta em virtude da afronta sofrida, mas este trecho não se encontra
bem definido no texto de Sófocles, exceto pela narrativa do próprio Édipo. Ele não
pretendia deliberadamente fazer o mal a um parente e não merece os próprios
infortúnios, mas é culpado
124
pelo crime de assassinato. Ele agira contra o próprio pai
sem o saber. Em se tratando do incesto, o casamento em si significa a fatalidade em se
casar por acaso e na ignorância com a própria mãe
125
. Segundo o relato do próprio
Édipo sabemos que ao cometer um assassinato, motivado pelo conflito na trifurcação,
ele pretendia defender-se. Alguém poderia defini-la como uma ação motivada pelo
orgulho e fúria, mas não podemos negar que se tratou de uma autodefesa. Em relação ao
incesto, ao casar-se com Jocasta, ele não poderia imaginar que esta era sua mãe
verdadeira. Entre outras coisas, poderíamos afirmar que ele pretendia alcançar o bem e
realizou o mal ao aceitar casar-se com ela como fruto de uma recompensa pela derrota
da Esfinge.
Sófocles não menciona o termo hamartía em Édipo Rei diretamente, levando-
nos a questionar o conceito, sua aplicação e seu significado no contexto geral da peça.
Usa, decerto, alguns cognatos difíceis de serem identificados. A hamartía de Édipo que
todos conhecem ressoa no enredo não como ação, mas enquanto menção. São ecos de
um passado esquecido, levando-nos a pensar que não se pode escapar do passado e nem
desdenhar a fortuna.
Ao nos questionarmos sobre a hamartía de Édipo identificamos na Poética uma
resposta. Segundo o ponto de vista de Aristóteles, apesar de se encontrar fora do
124
HARSH, 1975, Op. Cit., p. 48.
125
Neste caso, em específico, a piedade e o horror são despertados porque a ação foi praticada na
ignorância.
52
contexto cênico da peça, o incesto e o parricídio poderiam ser considerados hamartías, e
seriam erros por desconhecimento, tendo em vista que ele ignorava a identidade de seus
verdadeiros pais. Mas a advertência do oráculo deveria ter dissuadido Édipo de
assassinar qualquer homem em idade para ser seu pai e de casar com qualquer mulher
em idade para ser sua mãe. Não obstante, apesar deste aviso, ele realizou os atos que
deveria ter evitado
126
.
Poderíamos definir que a hamartía de Édipo consistiria em sua delicada relação
com os oráculos e na sua incapacidade de compreensão dos mesmos, cometendo um
erro de interpretação. Daí, o elemento trágico da história seria a sua insistência na busca
pela verdade. Além disso, a queda de Édipo deve-se à descoberta de quem ele era, sem
este reconhecimento não haveria a reviravolta e tampouco ele deixaria de ser quem ele
até então acreditava ser
127
.
3. Indicação e análise da hamartía em três peças de Sófocles:
Após a exposição de algumas definições para a hamartía na primeira parte deste
capítulo, pretendemos exercitar sua identificação em algumas peças de Sófocles.
Iniciaremos analisando brevemente as peças: As Traquínias, Antígona e Édipo em
Colono
128
; pontuando o aparecimento do conceito, o direcionamento a uma personagem
e uma possível definição que nos aproxime dos significados defendidos pela maioria
dos estudiosos.
126
HARSH, 1975, Op. Cit., p. 53.
127
DAWE, 1968, Op. Cit., p. 118.
128
Apesar de Dawe associar o conceito de hamartía a outros que lhe são correlatos: a áte e a hýbris,
ressaltamos que a hamartía é o ponto principal de nossa interpretação, cabendo aos outros conceitos uma
apreciação secundária e superficial. Não podemos desconsiderar o aparecimento, direto ou indireto, dos
conceitos de áte, hýbris e hamartía nas tragédias na voz do coro, das personagens secundárias ou mesmo
na voz personagem principal. É claro que, por si só, isto não é capaz de explicar o conceito de hamartía e
nem a sua aplicação, mas nos oferece uma oportunidade de reflexão levando-se em consideração a sua
aplicação e localização na peça.
53
3.1. A hamartía de Dejanira: o amor trágico e destruidor em As Traquínias
A tragédia As Traquínias
129
apresenta um variado aspecto temático. Nela
coexistem os temas tradicionais nas principais tragédias: a reviravolta da fortuna, a
onipresença do destino, os conflitos e as contradições derivados da vida cotidiana, dos
oráculos e da falência humana.
Segundo Maria Helena da Rocha Pereira, As Traquínias é a tragédia que
apresenta o maior número de ocorrências de palavras da família de hamartía
130
.
Identificamos em As Traquínias uma menção a hamartía como erro de julgamento, de
interpretação, por ignorância ou desconhecimento
131
, seja voluntário, involuntário e ou
contravoluntário.
Em As Traquínias, o erro involuntário e ou contravoluntário aparece mesclado a
diferentes formas de traição, engano, ocultação da verdade, de modo que o tema
convencional e ético é mediado pelos limites impostos por nossa condição mortal, ou
seja: pelo fato de que o humano possui tempo e conhecimento limitados, e aqui,
dizemos tempo no sentido do limite da existência humana enquanto mortal e perecível.
O saber humano, em seus limites, nunca pode ser visto ou alcançado em sua perfeição.
Em As Traquínias são questionadas as fontes do saber humano e, em particular, se trata
do desvelamento da verdade e, em boa medida, de uma verdade relativa ao passado, à
má interpretação dos oráculos e à hýbris.
129
Sófocles apresenta em As Traquínias o seguinte argumento: uma esposa solitária encontra-se temerosa
ao que possa acontecer ao seu marido, que quase sempre encontra-se longe dos seus. Héracles, de retorno
ao lar e em sua desmesura, envia a sua casa a jovem amante, sem explicação. Dejanira, até então paciente,
decide resgatar o amor do marido mediante um sortilégio, um filtro dado de presente pelo Centauro Neso,
inimigo de Héracles, e que se mostrará um veneno mortal. Em virtude deste erro involuntário, Dejanira
provoca a morte de Héracles e se suicida com uma espada em seu leito nupcial. É assaz interessante a
morte da heroína. Se Dejanira dá termo à vida de modo viril, atravessando o peito com uma espada, a
morte de Héracles se dá mediante grandes dores e gritos.
130
PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de História da Cultura Clássica – Cultura Grega – Volume
I. Lisboa : Calouste Gulbenkian, 2006, p. 402.
131
DAWE, 1968, Op. Cit., p. 90.
54
Dejanira aparece apenas na primeira parte da tragédia. No prólogo, temos
Dejanira aflita que ansiosamente espera pelo retorno de Héracles. Há quinze meses
desaparecido, ele deixara escrito que aquela expedição representaria sua ruína ou paz
132
.
Chorosa, sente saudades do marido ausente descrevendo a dor provocada por esta
ausência e pela falta de uma resposta positiva que lhe aliviasse o coração. Então, ela
envia seu filho Hilo com a missão de buscar notícias. Desconhecendo o paradeiro de
Héracles, cabe a ela apenas esperar.
No primeiro episódio, Dejanira relata seu medo em relação a um mau presságio.
Quando ela parece não suportar mais tamanha aflição, temos a entrada de um
Mensageiro anunciando o retorno de Héracles. Ele justifica que o atraso do herói devia-
se ao povo que o cercava indagando-lhe por suas aventuras. O coração de Dejanira
enche-se de alegria, porém o retorno de Héracles não trazia boas novas, pelo menos em
relação às suas expectativas.
A chegada de Licas com as cativas, a princípio, não levanta suspeitas e, na
tentativa de evitar o sofrimento da ama, ele oculta-lhe a verdade. Percebendo o
estratagema de Licas, o Mensageiro revela a Dejanira que o arauto omitira-lhe a
verdadeira identidade de Íole, uma das cativas tomada por concubina por Héracles.
Enfim, vendo-se pressionado, ele assume que mentiu:
καὶταῦτα,δεῖγὰρκαὶτὸπρὸςκείνουλέγειν,
οὔτ᾽εἶπεκρύπτεινοὔτ᾽ἀπηρνήθηποτέ, 480
ἀλλ᾽αὐτός,ὦδέσποινα,δειμαίνωντὸσὸν
μὴστέρνονἀλγύνοιμιτοῖσδετοῖςλόγοις,
ἥμαρτον,εἴτιτήνδ᾽ἁμαρτίαννέμεις.
O que estou a contar – necessário é, pois, dizê-lo em seu abono – não
me recomendou ele que o escondesse ou negasse jamais; mas fui eu,
senhora, que temendo ferir o teu coração com estas palavras, eu,
quem cometeu esta falta – se como falta julgas o meu gesto.
133
vv. 472-489
132
BOLLACK, Jean. “L’amour-suicide ou les morts de Déjanire Les Trachiniennes de Sophocle.” Clinique
du suicide. Coord. Genevière Morel. Ramenville Saint-Agne : Éditions Éres, 2002, pp. 224-225.
133
SÓFOCLES. As Traquínias Tradução Maria do Céu Zambujo Fialho. Coimbra : Instituto de Estudos
Clássicos, 2003. Licas não foi coagido a agir desta ou daquela maneira, ele cometeu deliberadamente uma
falta voluntária na tentativa de alcançar um bem, evitando, por conseguinte, a revelação de uma verdade
55
Licas reconhece sua falta voluntária quando mente para Dejanira ocultando-lhe a
verdadeira identidade da concubina de Héracles, mas salienta que seu objetivo era
evitar-lhe sofrimento maior. As mentiras dele assumem papel diplomático, porém, um
elemento nos chama a atenção: Dejanira também usa o artíficio da mentira para enganar
Licas, que inadvertidamente acredita nela. Ou seja, o abalo de Dejanira fora profundo,
mas ela escondera-o do arauto
134
.
Ele desconhecia a natureza das palavras de Dejanira que lhe ocultou os
verdadeiros sentimentos e se mostrou sensível ao aparecimento de uma nova
companheira para Héracles. Segundo as palavras do próprio arauto, Héracles sucumbira
de amor pela moça e sitiou toda uma cidade para tê-la. E, apesar da mentira de Licas
aparecer na peça como um erro, é perfeitamente aceitável concentrar a falta em
Dejanira, abordando a questão da responsabilidade de um erro, que, seguindo as
observações de Munõz acerca da ação por ignorância, chamaremos de contravoluntário.
Dejanira fala de sua dor profunda e, entregue às suas preocupações,
confessa ter consciência de já não ser a jovem por quem Héracles se
batera; agora, envelhecida, vê o herói apaixonado por outra jovem,
cuja beleza vai desabrochando em contraste com a sua que se vai
esvaindo; vê que por essa jovem ele se bate como fizera outrora por
si
135
.
A nova amante não era apenas uma escrava, uma concubina, uma simples
aventura, mas uma paixão que representava uma inegável rivalidade doméstica
136
.
Dejanira decidiu não aceitar a situação passivamente, ela até poderia superar as escravas
vítimas dos espólios, mas enquanto mãe, rainha e esposa legítima, não suportaria uma
outra que se deitasse em seu leito como igual.
inevitável. Não existe nele uma falta por ignorância, e muito menos ele poderia prever a reação de Dejanira
quando esta soube da verdade. Ainda que ele não tenha cometido uma falta por ignorância, ele foi
imprudente em confiar nas palavras da ama, acreditando que ela apenas enviaria um presente de boas vindas
para Héracles. Mesmo Dejanira não previra os resultados de seu ato. Contudo, não é Licas a nossa
personagem em foco, mas Dejanira.
134
FERREIRA, José Ribeiro. Amor e Morte na Cultura Clássica. Coimbra : Ariadne, 2004, p. 44.
135
FERREIRA, 2004, Op. Cit., p. 45.
136
BOLLACK, 2002, Op. Cit., p. 222.
56
O ciúme e o desejo de não dividir o amor de Héracles com outra, a inveja da
juventude de Íole em comparação ao seu próprio envelhecimento e a possibilidade de
ser substituída em seu papel de esposa a transtornou. Ela reconheceu que a ira não era
boa companheira de uma mulher sensata, mas o amor que lhe ardia no peito falou mais
alto e uma lembrança lhe veio à memória.
No passado, Neso
137
, o centauro morto pelas mãos de Héracles, havia lhe
confiado um segredo: o seu sangue derramado e untado a um manto seria capaz de
reaver o amor de Héracles, caso num futuro distante ele viesse a deixar de amá-la.
Lembrando-se das palavras do Centauro, sem pestanejar e agindo precipitadamente,
Dejanira seguiu suas palavras. Vendo-se ameaçada em seu papel de esposa, ela fez uso
de um sortilégio na tentativa de recuperar o amor do marido
138
. Não obstante, ela
mantém a preocupação em afirmar que não gosta de e nem pretende se envolver com
ações más, somente deseja reaver o amor do Héracles.
Na ânsia de atingir seus objetivos, ela não foi capaz de perceber que, por trás das
palavras de Neso, escondia-se uma mentira. Na verdade, ela não recuperaria o amor de
Héracles, o perderia de uma forma ainda mais nefasta e brutal. Ela buscou o incentivo
no coro das Traquínias a fim de realizar sua ação. Concordante, o coro apoiou a sua
decisão. Aos olhos do coro, capaz de compreender o abalo sofrido pela heroína, a
decisão de Dejanira parecia a melhor possível:
Χορός:ἀλλ᾽εἴτιςἐστὶπίστιςἐντοῖςδρωμένοις,
δοκεῖςπαρ᾽ἡμῖνοὐβεβουλεῦσθαικακῶς.
Coro: Se tens confiança no que fazer, parece-nos,
pela nossa parte, que não foi má decisão.
v. 588-589.
137
GRIMAL, 1986, Op. Cit., pp. 135-136 (Cf., Dejanira), p. 254 (Cf., Héracles), p. 379 (Cf., Neso). Neso
habitava às margens do rio Eveno transportando os homens em seus braços de uma margem à outra.
Quando Héracles e Dejanira precisaram dos serviços do centauro, este se prontificou a atravessá-los. Mas,
Neso sentiu uma forte atração por Dejanira, e ao transportá-la, ele tentou violá-la, e foi alvejado com uma
flecha envenenada pelo sangue de Hidra, lançada por Héracles. Antes de morrer, porém, convenceu
Dejanira de guardar seu sangue, dizendo que poderia fazer com que ela nunca perdesse o amor de
Héracles.
138
SAÏD, 1978, Op. Cit., p. 337.
57
Ignorante dos antecedentes dos fatos, o coro, provisoriamente, aprova as ações
da heroína. Porém, no desenrolar da trama, ela reconhecerá que cometeu um engano. A
ação de Dejanira não é simplesmente uma ação movida pela ignorância. É antes uma
ação por ignorância movida pela paixão, fruto do ciúme incontrolável ou amor
excessivo
139
. Dejanira comete uma ação voluntária que culmina num erro
contravoluntário. É inegável que ela age voluntariamente quando preparou o sortilégio e
enviou a Héracles o manto mortal. Não obstante, ela ignorava o verdadeiro sentido das
palavras do Centauro e enganou-se vendo frustradas suas verdadeiras intenções.
Acometida pelo arrependimento, Dejanira percebe que foi precipitada e assevera sobre
as ações de resultado incerto.
Δηιάνειρα:μάλιστάγ᾽,ὥστεμήποτ᾽ἂνπροθυμίαν
ἄδηλονἔργουτῳπαραινέσαιλαβεῖν.
Dejanira: É justamente isso! E de tal modo
que a ninguém aconselho que se entregue
às acções de resultado incerto.
vv. 669-670
Ela demonstra o quanto é necessário agirmos com prudência e discernimento em
relação às nossas ações e reconheceu que fora precipitada. A possibilidade de consertar
um erro cometido é quase nula. A angústia e o sofrimento são imperiosos, por isso a
precipitação é um mal enquanto fonte de incentivo a ações de resultados calamitosos.
Através de um floco de lã que utilizou para untar o manto que enviara para
Héracles ela reconheceu a possibilidade de ter cometido uma atrocidade. A lã se
consumia aquecida pelo sol e só assim ela compreendeu a falsidade das palavras do
Centauro e encheu-se de temor. Ele advertira que guardasse o filtro longe do fogo, do
calor e dos raios do sol, que o escondesse muito bem e só o retirasse quando fosse
139
SAÏD, 1978, Op. Cit., p. 238. Portanto, não podemos excluir a paixão como um dos elementos
motivadores da hamartía nas tragédias.
58
necessário usá-lo. Então ela lamentou a própria ingenuidade: por que razão Neso se
mostraria indulgente com a responsável por sua morte
140
?
Dejanira conclui que tudo não passara de um projeto bem articulado de vingança
por parte de Neso e que ela fora ludibriada. A heroína sente que se algum mal sucedeu a
Héracles, ela também sucumbirá como se fosse um só golpe. Estaria igualmente
morta
141
. Ainda assim o coro não se precipita ao julgá-la e permanece na expectativa
dos acontecimentos.
Χορός:ταρβεῖνμὲνἔργαδείν᾽ἀναγκαίωςἔχει,
τὴνδ᾽ἐλπίδ᾽οὐχρὴτῆςτύχηςκρίνεινπάρος.
Δηιάνειρα:οὐκἔστινἐντοῖςμὴκαλοῖςβουλεύμασιν 725
οὐδ᾽ἐλπίς,ἥτιςκαὶθράσοςτιπροξενεῖ.
Χορός:ἀλλ᾽ἀμφὶτοῖςσφαλεῖσιμὴ᾽ξἑκουσίας
ὀργὴπέπειρα,τῆςσετυγχάνεινπρέπει.
Δηιάνειρα:τοιαῦταδ᾽ἂνλέξειενοὐχὁτοῦκακοῦ
κοινωνός,ἀλλ᾽ᾧμηδένἐστ᾽οἴκοιβαρύ. 730
Coro: O receio de más obras é uma necessidade, mas
não devemos deixar que a expectativa julgue antes da sorte.
Dejanira: Não há para desígnios menos nobres
qualquer expectativa que empreste alento.
Coro: Mas se é involuntariamente que alguém erra,
a ira humana apazigua-se. Será esse o seu caso.
Dejanira: Tais pensamentos não são próprios
de quem participa no erro, mas daquele a quem
nada pesa no seu íntimo.
v. 723-730
Este fragmento é importante para a nossa compreensão da hamartía. Associamos
inocência, ignorância e responsabilidade para julgarmos o teor da ação de Dejanira e
concluímos que realmente trata-se de um erro contravoluntário, porque pressupõe o seu
arrependimento. Ela foi imprudente e, cometida uma ação na completa ignorância, o
coro estava certo de que o mal provocado fora sem intenção e de que esse erro não
140
FERREIRA, 2004, Op. Cit., pp. 46-47.
141
BOLLACK, 2002, Op. Cit., p. 229. Agir precipitadamente também se aproximaria do conceito de
hamartía.
59
despertaria a ira. Porém, incerta das palavras do coro, Dejanira não se convence e
mantém o espírito em total desatino
142
.
A certeza de sua ação infame se comprova através das palavras de seu filho Hilo
que traz a notícia do sofrimento e dor de Héracles. De volta ao lar, Hilo maldiz a mãe por
ser a responsável pela morte do pai no meio de dores horríveis
143
, mas também toma
conhecimento do que realmente ocorrera e apieda-se da mãe. Não sendo capaz de suportar
tamanha dor e arrependimento, ela entra silenciosamente dentro do palácio e tira a própria
vida, suicida-se com uma espada no leito nupcial evidenciando seu desespero e
arrependimento. Dejanira se suicida quando compreende que o líquido derramado no
manto que enviara de presente a Héracles e que pretendia resgatar o seu amor tem
resultado contrário às suas expectativas, pois este o mata
144
.
É inegável que a reviravolta da fortuna e o reconhecimento da própria falta estão
presentes nesta tragédia. Dejanira teve apenas um lampejo de felicidade assegurado por
um fio de esperança na tentativa de recuperar o amor de Héracles. Desde o princípio ela
é infeliz devido à solidão. Seu ato representava uma chance derradeira quando tudo lhe
parecia perdido
145
. Porém, ao tentar recuperar a própria felicidade, ela perdeu-a por
completo e reconheceu sua falta.
Hilo, ao justificar as ações da mãe para Héracles, afirma que Dejanira errou
involuntariamente. Sabemos que ela foi incentivada por forças aleatórias ao seu
conhecimento. Aborda-se em As Traquínias, de maneira especial, o problema da
responsabilidade pelas próprias ações frente ao próprio conhecimento. Trata-se de uma
tragédia cujo drama também se converte numa busca penosa pela felicidade.
142
É interessante notar a tensão e a expectativa que tomam conta do espírito de Dejanira antes da cena de
reconhecimento final.
143
FERREIRA, 2004, Op. Cit., p. 47.
144
BOLLACK, 2002, Op. Cit., p. 221.
145
BOLLACK, 2002, Op. Cit., p. 221.
60
Sófocles nos confronta com as conseqüências negativas de um equívoco e como
este pode destruir uma vida; mostra que se trata de um erro que qualquer um poderia
cometer, mesmo na melhor das intenções. Dejanira comete, sem dúvida, uma ação
voluntária, já que ela age movida pelo desejo de reaver o amor de Héracles, cujo resultado
é o contrário do esperado e repercute num erro involuntário
146
.
Ἡρακλῆς:εἰπὼνὃχρῄζειςλῆξον·ὡςἐγὼνοσῶν 1120
οὐδὲνξυνίημ᾽ὧνσὺποικίλλειςπάλαι.
Ὕλλος:τῆςμητρὸςἥκωτῆςἐμῆςφράσωνἐνοἷς
νῦνἐστινὥςθ᾽ἥμαρτενοὐχἑκουσία.
Ἡρακλῆς:ὦπαγκάκιστε,καὶπαρεμνήσωγὰραὖ
τῆςπατροφόντουμητρός,ὡςκλύεινἐμέ; 1125
Ὕλλος:ἔχειγὰροὕτωςὥστεμὴσιγᾶνπρέπειν.
Ἡρακλῆς:οὐδῆτατοῖςγεπρόσθενἡμαρτημένοις.
Ὕλλος:ἀλλ᾽οὐδὲμὲνδὴτοῖςγ᾽ἐφ᾽ἡμέρανἐρεῖς.(112026)
(...)
ἅπαντὸχρῆμ᾽,ἥμαρτεχρηστὰμωμένη.1136.
Héracles: Fala, diz-me o que pretendes; pois que eu,
assim enfermo, nada entendo do teu discurso capcioso.
Hilo: Venho falar-te de minha mãe: do que lhe aconteceu
e de como ela errou involuntariamente.
Héracles: Ó malvado dos malvados! E ainda referes
à tua mãe, à assassina de teu pai! Como te hei-de ouvir?!
Hilo: Em tal situação se encontra, que me não devo calar.
Héracles: Não, sem dúvida! Sobretudo quanto aos seus erros
passados.
Hilo: Não dirás certamente que não, quanto aos acontecimentos de
hoje. (...) Para dizer tudo: errou, movida por um justo desejo.
vv. 1120-1126 e 1136
Hilo explica ao pai que Dejanira atuou de maneira aparentemente criminal,
persuadida pelas palavras do Centauro. Identificamos em As Traquínias uma falta por
ignorância e desconhecimento, um erro involuntário que é fruto da má interpretação de
uma predição ou de um aconselhamento, sendo Dejanira imprudente por confiar em Neso.
O desejo amoroso é apresentado de maneira negativa, pois Dejanira tentou recuperar o
amor de Héracles mediante um sortilégio.
146
STINTON, 1975, Op. Cit., p. 237. Consideraremos também a avaliação de Munõz no que se refere à
ação contravoluntária, uma vez que nos parece adequada à situação descrita na peça.
61
Dejanira realmente erra durante a peça, ela foi movida pelo desejo de reaver o
amor de Héracles, e utilizando o sangue do centauro ela unta um manto que oferecerá ao
marido como presente conduzindo-o à morte. A ação de Dejanira é determinada pela
compulsão do amor
147
, levando-nos a crer que o amor mata e é a própria morte
148
, ele
destrói, é o amor como loucura
149
e enfermidade
150
. Ignorando que o Centauro a
enganara, Dejanira, involuntariamente e ou contravoluntariamente, provoca a morte de
Héracles
151
, reconhecendo que cometeu um erro fatal.
Dejanira usa de encantamento em As Traquínias. A hamartía na peça não é
simplesmente uma ação por ignorância, mas é uma ação por ignorância movida pela
paixão desmedida – uma hýbris
152
– fruto do ciúme e amor excessivos. O poeta deixa
claro que Dejanira agiu sem intenção de matá-lo, guiada pelas palavras do centauro. É
inegável que na peça ela cometeu um erro - involuntário e ou contravoluntário - movido
pela ignorância dominada por seu amor excessivo. Sófocles, em As Traquínias, através da
voz do arauto, pontua que a hýbris é condenada pelos deuses e todos os que incorrem em
hýbris possuem destino trágico:
ὕβρινγὰροὐστέργουσινοὐδὲδαίμονες.
κεῖνοιδ᾽ὑπερχλίοντεςἐκγλώσσηςκακῆς
αὐτοὶμὲνἍιδουπάντεςεἴσ᾽οἰκήτορες,
πόλιςδὲδούλη.
A insolência, porém, de modo algum os deuses a apreciam. Os que se
mostraram arrogantes na maldade das suas palavras, esses são agora
todos eles habitantes do Hades e sua cidade está cativa.
vv. 280-284.
147
DAWE, 1968, Op. Cit., p. 114.
148
BOLLACK, 2002, Op. Cit., p. 226.
149
Cf., As Traquínias, v. 442, 1142.
150
Cf., As Traquínias , v. 445, 544, 882.
151
Embora fora da trama, a paixão desmedida de Herácles pela moça não pode ser descartada, pois é o
elemento desencadeador de todo o mal. O desejo dele por Íole provoca a destruição da Ecália e se mostra
como uma paixão repentina e violenta. O tema da beleza física e juventudade de Íole e sua superioridade
sobre Dejanira é um ponto a ser pensado. É esta beleza da jovem escrava que desperta em Héracles este
desejo desmedido que resultará em conseqüências funestas. O arauto, talvez por ter mentido, também
morre, mas a mentira, mesmo bem intencionada, é formada por um erro de conduta moral. Contudo, seu
assassinato por Héracles o coloca na posição de vítima inocente. Héracles exterioriza toda a sua cólera em
Licas e o atira contra o rochedo, abrindo-lhe o crânio numa cena lastimável de se ver.
152
CAIRNS, Douglas L. P. “Hybris, dishonour, and thinking big”. Journal of Hellenic Studies, 116 (1996),
1-32, p. 1.
62
Dejanira seria uma anti-Clitemnestra
153
pois não premeditou a morte do marido.
Ao contrário do que acontece em Agamêmnon, o crime de Dejanira não é deliberado.
Mas não deixa de ser irônico que um guerreiro que enfrentou tantas adversidades venha
a atingir o termo da vida de maneira tão degradante. Neste caso, contribuem para a ação
de Dejanira: o Centauro que a enganou e o próprio Héracles que levara uma amante
para o lar provocando-lhe ciúme.
Em As Traquínias a ação por ignorância involuntária ou contravoluntária ganha
peso, mas, ainda assim, não garantimos a aplicação do termo em Édipo Rei de forma tão
clara quanto em As Traquínias. No entanto, os versos finais frisam categoricamente que
todos aqueles eventos, terríveis e estranhos aos olhos de todos, são obra de Zeus
154
. O
erro trágico de Dejanira derivou de sua confiança excessiva em Neso, levando-a a um
comportamento inadequado, motivada por sua paixão doentia. Por sua precipitação ela
perdeu-se. Uma vez que esta confiança se vê frustrada, ela percebeu que errou pelo
excesso, pois não se questionou pelas verdadeiras razões do presente de Neso, daí viu-se
perdida. Até aquele momento, Dejanira era uma esposa paciente e mãe exemplar;
porém, instigada pelos engodos do centauro, deixou-se enganar, confiando e aceitando
presentes de um inimigo.
Nesta perspectiva, como enquadrarmos a ação assassina de Dejanira? Héracles
lembra que, segundo um oráculo de seu pai, seria assassinado por um morto. Ele
finalmente compreende o significado do oráculo que se cumpriu. Se não havia saída, se
Héracles possuía uma condenção anterior prevista por um oráculo funesto, não seria
153
SAÏD, 1978, Op. Cit., p. 366. A comparação de Saïd é bastante interessante. Levando-se em conta os
elementos presentes em ambas as tragédias temos o anúncio do retorno do marido, uma amante e um
assassinato. Porém, Dejanira não tramou um ardiloso assassinato com a ajuda de um amante como ocorreu
com Clitemnestra. Dejanira não possui a natureza da esposa de Agamêmnon, é feminina e apaixonada pelo
marido. Enquanto Clitemnestra se glorifica, Dejanira, arrependida, se mata. Também, o filho de Dejanira
recebe como missão, por parte do pai, vingar sua morte e apelar para a vingança das Erínias. Enquanto
Orestes recebe a missão da própria divindade. Temos a partir daí a diferenciação entre um ato involuntário
de um crime voluntário.
154
Cf., As Traquínias, vv. 1275-78
63
Dejanira mais um instrumento para a realização do mesmo do que uma agente voluntária?
As duas coisas podem coincidir porque de um lado temos os oráculos inexoráveis, do
outro, uma mulher que agiu voluntariamente movida pelo desejo de reconquistar o amor
do marido.
Em As Traquínias temos a vontade humana convertida em seu contrário por forças
impossíveis de serem contidas. A catástrofe surge da desarmonia entre a vontade de
Dejanira, “compreensível e pura e o conjunto do destino como imprevisível potência
divina
155
”. Assim, ela descobre o seu próprio destino e falibilidade a partir da sua natureza
humana limitada. O mal entranhou tanto em seu ser quanto no corpo do próprio Héracles,
porém em Dejanira se acasalou com a dor do arrependimento.
Os deuses prepararam o ambiente possível para a ocorrência de tão terríveis
males. Levando-se em conta os versos finais, temos a ligeira impressão de que a ação da
divindade na tragédia não é ilusória, de forma que a ação trágica ganha contornos cada
vez mais complexos.
3.2. A ambigüidade da hamartía em Antígona:
A tarefa de identificar qualquer falta trágica em Antígona do ponto de vista
aristotélico se torna complicada porque sua principal atitude, sepultar o irmão, não nos
parece um erro segundo as definições apresentadas para o conceito de hamartía. Não
identificamos nas ações da protagonista um erro por desconhecimento ou por
ignorância, já que ela conhecia e muito bem o édito de Creonte e a punição para aquele
que ousasse sepultar o cadáver do traidor da pólis. Não seria, por ventura, um erro de
cálculo, pois ela sabia que seu destino seria a morte caso fosse desobediente.
155
LESKY, Albin. A Tragédia Grega. São Paulo : Perspectiva, 2001, p. 160-61.
64
Porém, desde o princípio, ela tem a clara intenção de sepultar o irmão,
estabelecendo um “contraveredicto” à lei de Creonte
156
. Talvez poderíamos atribuir-lhe
um erro de interpretação. Ao sepultar o irmão Antígona, segundo ela própria o indica no
texto, estaria cumprindo a vontade dos deuses
157
e disto ela não poderia ter certeza; pois
a vontade dos deuses talvez seja incognoscível. No desenrolar da trama, Ismênia frisa o
comportamento indevido de ambas e fala de examartía.
Ἰσμήνη:καὶμὴνἴσηνῷνἐστινἡ᾽ξαμαρτία.V.558
Ismênia: Então o nosso erro é equivalente
158
.
Ismênia anuncia que ambas erraram
159
, porém o erro de Antígona é antes um
delito contra o Estado, enquanto o de Ismênia é a abnegação. Ismênia as coloca em
de igualdade porque percebeu a gravidade de sua atitude compatível à da irmã.
Poderíamos interpretar a cena dizendo que Ismênia sente-se arrependida. Mas, em
virtude da ambiguidade de Sófocles, e levando-se em consideração que examartía
aproxima-se do conceito de hamartía, como poderíamos aplicá-lo a uma das definições
e incorporá-lo ao contexto da tragédia? Acreditamos que o sentido aproximado a que
Ismênia se refere, talvez seja falhar em um objetivo.
No prólogo, Antígona convida Ismênia a sepultar o irmão contra a promulgação
de Creonte. O decreto de Creonte contra Polinices repousava sobre uma hierarquia de
valores que pretendia defender a soberania da pólis e estava de acordo com a defesa e
organização da cidade. Ele pretendia a manutenção de uma política una e sólida. De
fato, Polinices era inimigo e traidor de Tebas
160
, e seu castigo não seria surpreendente,
156
BOLLACK, Jean. La Mort d’Antigone La tragédie de Créon. Paris : Universitaires de France, 1999, p.
3.
157
Cf., Antígona, vv. 69-77.
158
SÓFOCLES. Antígona. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Coimbra : Fundação Calouste Gulbekian,
(sem data). Utilizaremos a tradução de Maria Helena da Rocha Pereira apesar de discordarmos de algumas
de suas indicações e escolhas.
159
SAÏD,1978, Op. Cit., p. 119.
160
BOLLACK, 1999, Op. Cit., p. 86.
65
mas Antígona não poderia suportar a visão do cadáver putrefato do irmão, sem tomar
atitude alguma.
Pelos laços de sangue, seria natural que Ismênia participasse do intento, mas esta
se recusa a agir contra a lei dos homens, ou seja, a lei de Creonte. Neste caso, Antígona
agiu sozinha. A descoberta do delito e a punição promulgada à Antígona despertam em
Ismênia o arrependimento. Mas Antígona não aceita uma manifestação de amor
demonstrada apenas em palavras e não em atos
161
. Apesar da ação de ambas divergirem,
Ismênia entendeu que ambas erraram, e que estes erros têm o mesmo peso.
Provavelmente, para Ismênia, ambas tiveram a vida destruída.
A insistência de Ismênia em assumir a mesma culpa nos inquieta. Antígona
escolheu a morte e Ismênia a vida. Portanto, a morte e vida aqui se equivalem na
simples menção da palavra examartía, de maneira que a atitude de ambas é irreversível.
A decisão de Antígona a encaminhara para uma tumba; a de Ismênia para o
esquecimento. Teríamos, por conseguinte, o anúncio da morte civil de Antígona e da
morte moral de Ismênia
162
.
Antígona cometeu um crime aos olhos da lei porque desrespeitou o édito de
Creonte que, apesar de parecer injusto, tinha valor legal. Poderíamos compreender que o
crime de Antígona deveu-se a uma falta contrária à justiça dos homens, pois Polinices
foi um traidor da pólis? Ela realizou um ato de desobediência e sua ação, segundo os
temores de Creonte, poderia resultar futuramente numa rebelião contra o seu governo,
mas talvez seu gesto não seja uma hamartía.
Pouco a pouco se esboçam os delineamentos de uma “prudência” que
reconhece que o racional (defender a integridade do Estado contra a
rebelião, de onde quer que venha) pode não ser razoável (porque, neste
caso particular – mas todos os casos são particulares – a rebelde tem
também boas razões), que sabe que neste mundo há problemas
161
Cf., Antígona, v. 541 ss.
162
BOLLACK, 1999, Op. Cit., p. 67.
66
insolúveis e se contenta, então, com compromissos, deixando aos
cuidados dos deuses a verdadeira solução
163
.
A existência de uma falta em Antígona postula-se na tentativa de demonstrar que
Creonte detém o poder e o exerce não apenas no nome, mas incorpora todas as
características de um tirano e autocrata, comumente descrito como a encarnação do
pensamento sofístico
164
. Assim, ele se mostrou impiedoso, até mesmo contra os seus, na
tentativa de reafirmar seu poder.
Αἵμων:οὐγὰρδίκαιάσ᾽ἐξαμαρτάνονθ᾽ὁρῶ.
Κρέων:ἁμαρτάνωγὰρτὰςἐμὰςἀρχὰςσέβων;
Hémon: É que te vejo falhar no cumprimento da justiça.
Creonte: É erro então ter respeito pelo meu soberano poder?
vv. 743-44.
Temos na discussão acirrada entre Creonte e Hémon
165
um conflito que
ultrapassa a mera oposição entre pai e filho, entre o velho e o jovem, entre o poder e o
povo; pois Hémon afirmou que representava, além da opinião comum, um momento de
reflexão em torno das ações individuais e sua relação com a justiça. Hémon ressaltou a
injustiça nas ações do pai, porém Creonte não partilha da mesma opinião e afirmou que
apenas resguardava-se contra possíveis insubordinações em defesa de sua autoridade.
Na verdade, Creonte será condenado por sua segurança e sua “presunção de saber o que
é bom em si
166
.”
O gesto de Antígona não foi apenas um ato de loucura
167
, mas suicida. Ela
própria admitiu a ambigüidade de sua ação. É certo que ela se deixou levar por uma
audácia excessiva ao se insurgir contra o édito do tio em prol do irmão. Mas Creonte e
Antígona apresentavam estreiteza de visão com relação aos fatos, sendo radicais em
suas escolhas e desconsiderando as conseqüências e os conflitos existentes, cada um
163
AUBENQUE, Pierre. A prudência em Aristóteles. São Paulo : Discurso Editorial, 2003, p. 260.
164
BOLLACK, 1999, Op. Cit., p. 77.
165
HARSH, 1975, Op. Cit., p. 54.
166
AUBENQUE, 2003, Op. Cit., p. 259.
167
SAÏD, 1978, Op. Cit., p. 120.
67
dentro da posição adotada. Acreditamos que ambos foram tomados pela hýbris e pela
áte.
Χορός:προβᾶσ᾽ἐπ᾽ἔσχατονθράσους
ὑψηλὸνἐςΔίκαςβάθρον
855
προσέπεσες,ὦτέκνον,πολύ·
πατρῷονδ᾽ἐκτίνειςτιν᾽ἆθλον.
Coro: Do arrojo avançado até o extremo limite,
Contra o trono excelso da Justiça,
Embateram, ó filha, teus passos.
Dos antepassados alguma falta expias.
vv. 853-856
Antígona, apesar do tropeço, é inflexível
168
e o autor frisa a trajetória da heroína
solitária, que sucumbe às forças que se impõem contra ela comparando-a ao inflexível
pai. Ela prefere a morte que retroceder. A heroína caminha até o limite que seus pés
poderiam alcançar e o poeta resgata o tema de uma maldição herdada. Ela é vista
explicitamente como a filha de Édipo, o coro apresenta o mal vivido por Antígona como
uma reafirmação do que sucedeu à raça maldita dos Labdácidas
169
, como se todo o mal
fosse hereditário
170
. Mesmo que ela tenha agido voluntariamente, temos a sensação de
que Antígona seria uma vítima inocente dos crimes de seus ancestrais
171
.
No verso 914, ela assume que aos olhos de Creonte aparecera como “culpada e
ousada” (
ἁμαρτάνειν) e, apesar de reconhecer a falta, sua fala é ambígua porque,
indiretamente, indica que a falta cometida pode ser atribuída a outro, de forma que, se
isto for verdade, que caiam sobre o infeliz tristezas iguais às que lhe foram
inflingidas
172
.
925ἀλλ᾽εἰμὲνοὖντάδ᾽ἐστὶνἐνθεοῖςκαλά,
παθόντεςἂνξυγγνοῖμενἡμαρτηκότες·
εἰδ᾽οἵδ᾽ἁμαρτάνουσι,μὴπλείωκακὰ
πάθοιενἢκαὶδρῶσινἐκδίκωςἐμέ.
168
Cf., Antígona, vv. 471-2.
169
SAÏD, 1978, Op. Cit., p.129.
170
BOLLACK, 1999, Op. Cit., p. 43.
171
SAÏD,1978, Op. Cit., p.129. Neste ponto, recordamos Aristóteles, que atribui as maiores tragédias e
hamartías às famílias ilustres.
172
HARSH, 1975, p. 54.
68
Antígona: Mas se esta pena é bela aos olhos dos deuses, só depois de
a termos sofrido poderemos reconhecer que erramos. Se porém, são
eles que erram, que eles não sofram maiores males do que aqueles a
que me forçaram, fora da lei.
vv. 925-928.
Estes versos nos provocam inquietude e insegurança e tentam, mesmo que
indiretamente, atribuir uma falta à Antígona. Ela sente-se tomada pelo mais profundo
sofrimento, porém, no final dos versos, ela propõe uma reversão deste sentimento, de
maneira que ele possa atingir aqueles que lhe causaram mal. Apesar de Antígona
compreender a dimensão de seu gesto, ela acredita que o sofrimento e a punição podem se
dirigir a outro. Sobretudo, ela apresenta um apelo à justiça
173
e refere-se, provavelmente, a
Creonte.
A cegueira de Creonte é a hamartía que desencadeia o drama e a converte em uma
tragédia racional, onde nenhum acontecimento se produz via casualidade. Sua cegueira se
encontra reforçada porque ele se recusa a escutar; é tão cego aos signos que lhe enviam os
deuses, quanto surdo aos conselhos que provêm das personagens secundárias. Sua queda
é, assim, inevitável.
Τειρεσίας:ἀνθρώποισιγὰρ
τοῖςπᾶσικοινόνἐστιτοὐξαμαρτάνειν·
1025
ἐπεὶδ᾽ἁμάρτῃ,κεῖνοςοὐκέτ᾽ἔστ᾽ἀνὴρ
ἄβουλοςοὐδ᾽ἄνολβος,ὅστιςἐςκακὸν
πεσὼνἀκῆταιμηδ᾽ἀκίνητοςπέλῃ.
αὐθαδίατοισκαιότητ᾽ὀφλισκάνει.
Tirésias: Reflete, pois nisto, meu filho. Errar é comum a todos os
homens. Mas quando errou, não é imprudente nem desgraçado aquele
que, depois de ter caído no mal, lhe dá remédio e não permanece
obstinado.
vv. 1024-1029
No texto, no verso 1026, Tirésias vale-se da palavra
ἄβουλος para designar o
homem imprudente, que se conduz à loucura e ao equívoco
174
. Ele fala, sobretudo,
daquele que não é imprudente. Em suma, a imprudência deve possibilitar a aprendizagem.
173
SAÏD, 1978, Op. Cit., p. 200.
174
AUBENQUE, 2003, Op. Cit., p. 258. Cf., nota 33.
69
A máxima destes versos leva-nos a refletir que errar é demasiadamente humano. Tirésias
consegue mostrar para Creonte as possíveis conseqüências de seu ato, mas é tarde demais.
Incoerentemente, ao aceitar as sugestões de Tirésias, Creonte primeiro optou por
sepultar o cadáver de Polinices para depois resgatar a condenada Antígona. Sua decisão,
ao priorizar o morto em favor da viva, confirmou a catástrofe que já se desenhava desde o
princípio. Além disso, a própria reversão já se distinguia na ação de Creonte quando ele
proibiu o sepultamento de Polinices e ordenou o sepultamento de Antígona
175
.
Correndo para salvar Antígona, ele chegou somente para encontrá-la morta. Ela
decidiu a própria morte suicidando-se ao enfocar-se com um laço de cabelo pouco depois
de confinada. Creonte volta atrás em suas decisões, acaso ela tivesse esperado mais um
pouco, provavelmente, teria sido salva
176
. Retornando para casa ele descobre que sua
esposa e filho também morreram. Creonte sofre a reviravolta da fortuna, tem a
oportunidade de se arrepender, continuar vivo e amargar o sofrimento por suas decisões.
No caso de Creonte, não a morte, mas viver é a pior desgraça. Sua decisão de
proibir o sepultamento do sobrinho ocasiona uma série de outros eventos que conduzem à
calamidade final. A morte física de Antígona se contrapõe à morte simbólica de
Creonte
177
. A morte de Antígona é distintiva e ele sucumbe perante a morte da sobrinha
porque a sua escolha voltou-se contra ele.
Em Antígona, temos a necessidade de questionar: quem é o culpado? Quem
cometeu a hamartía? Parece coerente pensar que a hamartía de uma personagem vista de
forma isolada não nos permite compreender o todo da peça. Em relação à atitude de
Eurídice, o mensageiro se horroriza e teme o que ela possa fazer quando souber do
175
ASSUNÇÃO, Teodoro Rennó. “Notas sobre ‘a tragédia de Creonte’”. Correio (Escola Brasileira de
Psicanálise), São Paulo - Brasil, v. 39, p. 62-70, 2002, p. 65.
176
ASSUNÇÃO, 2002, Op. Cit., p. 67.
177
BOLLACK, 1999, Op. Cit., p. 50.
70
suicídio do filho. Não obstante, ele não acredita que ela possua tão pouco discernimento
que possa conduzi-la, também, a uma falta.
[1250]Ἄγγελος:γνώμηςγὰροὐκἄπειρος,ὥσθ᾽ἁμαρτάνειν.
Mensageiro: Nem ela é tão desprovida de discernimento que cometa
um erro.
v. 1250.
Porém, ela também se mata. O desfecho trágico se concentra em três mortes
enfatizando o horror da cena. Devemos estar atentos à situação de Creonte. A sua
hamartía é explícita e ele só se conscientiza disto ao vislumbrar as três mortes, em
especial a do filho e da esposa. Ele se lamentou, clamou e reconheceu o quanto fora
responsável por sua situação infeliz. Solitário, ele está aniquilado. Sobre ele repousam as
conseqüências de seu ato. O coro salienta a hamartía de Creonte:
Χορός:καὶμὴνὅδ᾽ἄναξαὐτὸςἐφήκει
μνῆμ᾽ἐπίσημονδιὰχειρὸςἔχων,
εἰθέμιςεἰπεῖν,οὐκἀλλοτρίαν
1260
ἄτην,ἀλλ᾽αὐτὸςἁμαρτών.
Κρέων:ἰὼφρενῶνδυσφρόνωνἁμαρτήματα
στερεὰθανατόεντ,
ὦκτανόνταςτεκαὶ
θανόνταςβλέποντεςἐμφυλίους.
1265
ὤμοιἐμῶνἄνολβαβουλευμάτων.
ἰὼπαῖ,νέοςνέῳξὺνμόρῳ
αἰαῖαἰαῖ,
ἔθανες,ἀπελύθης
ἐμαῖςοὐδὲσαῖςδυσβουλίαις.
Coro: Mais eis que avança o próprio rei,
trazendo nas mãos a prova evidente
- se lhe é ilícito dizê-lo –
de que o erro foi seu, de mais ninguém.
Creonte: Ai! Pecados de uma mente dementada,
fatais, obstinados!
Ó vós que vedes ser da mesma raça
quem mata e quem morre!
Ai das minhas decisões!
Ai, filho, com destino prematuro,
ai! ai!
morreste, partiste,
na juventude, por insensatez, não tua, mas minha!
vv. 1256-69
178
178
A tradução por “pecado”se aproxima do conceito cristão e desprende-se um pouco das nossas intenções
de interpretação. Guilherme de Almeida traduz o termo como “delitos”, mas manterá o sentido de demência
atribuída à
φρενν δυσφρνων.
71
Curiosamente, em Antígona, as implicações morais da falta trágica estão
presentes o tempo todo. O coro condena as ações de Creonte
179
que assume a
responsabilidade pelas três mortes, alegando certa insanidade. Porém, ele afirma que
cometeu um erro involuntário, pelo menos no que se refere à morte da esposa e do
filho
180
. Sabemos que os atos involuntários enquadram-se perfeitamente no sentido de
hamartía e, associando seu erro à ignorância, o herói trágico poderia se inocentar.
Κρέων:ἐγὼγάρσ᾽ἐγὼἔκανον,ὢμέλεος,
1320
ἐγώ,φάμ᾽ἔτυμον.
(...)
Κρέων:ἄγοιτ᾽ἂνμάταιονἄνδρ᾽ἐκποδών,
1340
ὅς,ὦπαῖ,σέτ᾽οὐχἑκὼνκάκτανον
σέτ᾽αὖτάνδ,ὤμοιμέλεος,
Creonte: Fui eu, fui eu que te matei, ó desgraçada,
fui eu, esta é a verdade.
vv. 1319-20.
(...)
Creonte: Levai, sim, levai para longe este homem
tresloucado, que sem querer te matou, filho,
e a ti também!
vv. 1339-1341.
A famosa áte em Antígona
181
nos apresenta a oportunidade de vislumbrarmos as
decisões tomadas no mais alto grau de cegueira e intransigência. Com efeito, a conduta
de Antígona é interpretada em termos de áte tanto pelo coro quanto por Creonte
182
.
Creonte lamentou seu erro e em seguida, com o mesmo fôlego, atribuiu aos deuses sua
mal fadada sorte. Segundo ele, sua hamartía teria sido vontade dos deuses
183
.
A personagem que verdadeiramente o atravessa, para colher no final
os cadáveres de sua família e o fracasso patente de um programa
cívico “esclarecido”, é não Antígona, que abandona a cena após a
procissão de seu enterro, mas Creonte. (...) Se pensarmos não apenas
no suicídio de Antígona, mas também, e sobretudo, nos de Hemon,
filho de Creonte, e de Eurídice, sua mulher, percebemos que – além
do efeito que eles podem exercer sobre os que, desses três,
respectivamente permanecem vivos – é Creonte o grande visado, na
qualidade de rei, pai e esposo
184
.
179
HARSH, 1975, Op. Cit., p. 54.
180
SCHÜTRUMPF, 1989, Op. Cit., p. 145.
181
Cf., Antígona, vv. 582 e ss.
182
SAÏD, 1978, Op. Cit., p. 128.
183
DAWE, 1968, Op. Cit., p. 113.
184
ASSUNÇÃO, 2002, Op. Cit., p. 64-65.
72
Nesta perspectiva, como apresentaríamos uma visão da hamartía excluindo da
ação a vontade divina? Como enquadrar a personagem Antígona dentro dos sentidos
atribuídos a hamartía? É claro que a personagem não é objeto principal desta pesquisa,
mas um exemplo que contribui para reforçar o argumento de que não é tarefa fácil
identificar a hamartía na tragédia associando-a apenas à personagem principal.
A incompreensão do ato da protagonista e sua penalidade apresentam uma
desproporção entre a ação e o castigo. A ação dramática termina numa preocupação
bem digna de Sófocles, sobre o bom ou o mau uso que o homem pode fazer de suas
escolhas. A peça reafirma a máxima trágica que diz: nenhum excesso entra na vida dos
mortais sem trazer o desastre, grandes sofrimentos e tristezas. Apresenta claramente o
sentido da reviravolta da fortuna e da instabilidade da felicidade
185
, pois o poeta
descreve a felicidade cambiante do homem e a insegurança em que todos se
encontram
186
.
A felicidade basta a si mesma, mas para atingir a felicidade que basta
a si mesma, é preciso passar por mediações que não dependem de
nós, de modo que, qualquer que seja nosso mérito, podemos não
atingir a felicidade a que temos direito e que, com efeito, dependeria
de nós se a tivéssemos
187
.
Em Antígona podemos perceber que a infelicidade é fruto da hamartía, e a
reviravolta da fortuna é resultado deste erro sem proporções que acomete as personagens
trágicas. O erro de Creonte, segundo ele próprio, fora involuntário. Mas, também nesta
circunstância, gostaríamos de apresentar a proposição de um erro contravoluntário porque
ele amarga o arrependimento das próprias deliberações. Além disso, no que refere às
definições conhecidas de hamartía, nos parece também um “erro de cálculo”.
Aparentemente, a hamartía – no sentido estabelecido pelos estudiosos e acrescida da cena
de reconhecimento – caberia mais a Creonte do que à Antígona.
185
AUBENQUE, 2003, Op. Cit., p. 137. Cf., vv. 1157-1158.
186
SAÏD, 1978, Op. Cit., p. 615.
187
AUBENQUE, 2003, Op. Cit., p. 135.
73
Em relação à postura da heroína podemos tratar, principalmente, do tema do amor.
O amor de Antígona é semeado entre os mortos, daí sua falta trágica
188
. E se a hamartía
não decorre nem da maldade e nem da perversidade, seu erro seria, sem dúvida,
involuntário
189
. O amor declarado ao irmão insepulto faz com que Antígona caminhe em
direção ao seu auto-sepultamento em vida. Seu amor, semeado entre o morto, seria sua
desmedida e áte – culminando em sua hamartía
190
.
Eros, em Antígona, se apresenta como uma divindade poderosa e invencível;
temos uma linguagem que nos aproxima de uma cena de combate e sendo Eros superior
aos homens não é sensato enfrentá-lo. O hino a Eros mostra-nos o quanto ele é irresistível
e capaz de enlouquecer; é o responsável pelo conflito entre os parentes, pelo cegamento
das personagens, pela morte de Antígona e exclui o brilho da vida de seu olhar.
Χορός:Ἔρωςἀνίκατεμάχαν,Ἔρως,ὃςἐνκτήμασιπίπτεις,
ὃςἐνμαλακαῖςπαρειαῖςνεάνιδοςἐννυχεύεις,
φοιτᾷςδ᾽ὑπερπόντιοςἔντ᾽ἀγρονόμοιςαὐλαῖς· 785
καίσ᾽οὔτ᾽ἀθανάτωνφύξιμοςοὐδεὶς
οὔθ᾽ἁμερίωνσέγ᾽ἀνθρώπων.ὁδ᾽ἔχωνμέμηνεν.790
σὺκαὶδικαίωνἀδίκουςφρέναςπαρασπᾷςἐπὶλώβᾳ,
σὺκαὶτόδενεῖκοςἀνδρῶνξύναιμονἔχειςταράξας·
νικᾷδ᾽ἐναργὴςβλεφάρωνἵμεροςεὐλέκτρου 795
νύμφας,τῶνμεγάλωνπάρεδροςἐνἀρχαῖς
θεσμῶν.ἄμαχοςγὰρἐμπαίζειθεὸς,Ἀφροδίτα.
Coro: Eros invencível no combate,
Eros que as riquezas destróis,
que estás de vigília às faces tenras
da donzela,
vagueias sobre o mar e nos campos!
Não te evitou nenhum dos deuses
nem dos humanos de curta vida:
quem te possui
enlouquece.
188
Cf., Antígona v. 781-806. O coro canta um hino a Eros invencível. Quem é tomado por Eros é, por
conseguinte, tomado pela loucura.
189
Não é possível perceber no texto, pelo menos aparentemente, arrependimento por ter sepultado o irmão.
Acreditamos que ocorre o contrário: ela não se arrepende, pois se pudesse, voltaria a fazê-lo.
190
Um detalhe importante nos leva a repensar a atitude de Antígona. Na peça posterior, Édipo em Colono,
também de Sófocles, Polinices, prestes a sair de cena sob o peso da maldição de Édipo, pede às suas
irmãs, Antígona e Ismene, que quando ele tombasse junto a Tebas lhe rendesse honras fúnebres. Como
sabemos, o sepultamento de Polinices é essencial ao desenvolvimento da peça Antígona. SÓFOCLES.
Édipo em Colono. Trad. Trajano Vieira. São Paulo : Perspectiva, 2005. Cf., 1406-1410. “O pai, duro,
invocou Ara, a Maldita./ Pelos numes, se a Maldição se cumpre,/ e a vós duas couber rever o lar,/ não
deixeis o corpo desonrado: depositai dons fúnebres no túmulo!”
74
Tu desvias dos justos o ânimo,
fâ-los injustos para o seu mal,
tu, que excitaste esta contenda
nos parentes;
vence, porém, da formosa noiva
a luz brilhante do seu olhar,
das grandes leis par no poder; ri-se
invencível,
Afrodite.
vv. 783-797.
Antígona, ao tirar a própria vida, na realidade, provocou a morte de Hémon e,
sob a alegação de ter se matado, obteve a condolescência de muitos, ainda que tenha,
involutariamente, provocado a morte do noivo e de Eurídice. Será que a falta de
Antígona não tem relação com a desconsideração pelo amor de Hémon e o destino
trágico deste?
O amor desta por Hémon parece-nos menos eloqüente e devotado do que
o dirigido a Polinices, pois o pensamento de Antígona, por inteiro e em absoluto, dirige-
se ao irmão morto. Sobre o amor de Hémon por Antígona, acreditamos que é a
condenação e morte de sua amada que o conduz ao suicídio e não a ira contra o seu
próprio pai, Creonte, contra quem havia dirigido sua espada num momento de
arrebatamento
191
. Assim, em sua desmedida, Antígona poderia ser responsabilizada pela
morte do noivo e da sogra? Ousamos supor que em parte, pois, ao escolher o irmão
morto, voluntariamente ela nega aos outros membros da família – Eteocles, Ismênia,
Creonte, Eurídice e Hémon -, sua devoção, respeito e ternura.
Enfim, para compreendermos a dimensão e aplicação da falta trágica em
Antígona, devemos dividir a peça em duas fases que oscilam entre a morte de Antígona e
a queda de Creonte. A reviravolta da fortuna cabe antes a Creonte porque Antígona, desde
o princípio, se vê como infeliz e por isso não experimenta a reviravolta da fortuna, nem
mesmo a inversão da felicidade para a infelicidade. Por outro lado, Creonte, que aparece
191
Cf., Antígona, vv. 1231-1237. O filho deita-lhe um rápido e fero olhar, cospe-lhe no rosto, e, sem nada
responder, puxa dos copos da espada, mas não atinge o pai, que se precipita na fuga. Em seguida, o
desventurado, furioso consigo mesmo, tal como estava, coloca-se sobre o montante, apóia-o contra o
flanco até a metade e, ainda lúcido, atrai a donzela aos seus braços a desfalecer.
75
como o soberano poderoso e ímpio, seguro de si e intransigente, vê-se reduzido às cinzas.
Ele sofreu a reviravolta da fortuna e reconheceu que errou. Poderíamos compreender que
ele calculou erroneamente suas ações e reconheceu a sua hamartía quando se deparou
com a morte do filho e da esposa, tomando consciência da dimensão de suas decisões.
A partir da interpretação da peça, mesmo sabendo que a heroína dá nome à
tragédia, temos a impressão de que existe um deslocamento da hamartía da personagem
título para a personagem secundária, de maneira que, em parte, a conceituação de
Aristóteles se torna frágil e imprecisa para os nossos interesses. Podemos, pelo menos
nesta ocasião, deslocar a hamartía da figura central ou personagem título e concentrá-la
em outra.
Κρέων:ἄγοιτ᾽ἂνμάταιονἄνδρ᾽ἐκποδών,
1340
ὅς,ὦπαῖ,σέτ᾽οὐχἑκὼνκάκτανον
σέτ᾽αὖτάνδ,ὤμοιμέλεος,οὐδ᾽ἔχω
ὅπᾳπρὸςπότερακλιθῶ·πάνταγὰρ
1345
λέχριατἀνχεροῖν,τὰδ᾽ἐπὶκρατίμοι
πότμοςδυσκόμιστοςεἰσήλατο.
Χορός:πολλῷτὸφρονεῖνεὐδαιμονίας
πρῶτονὑπάρχει.χρὴδὲτάγ᾽εἰςθεοὺς
[1350]
μηδὲνἀσεπτεῖν.μεγάλοιδὲλόγοι
μεγάλαςπληγὰςτῶνὑπεραύχων
ἀποτίσαντες
1352
γήρᾳτὸφρονεῖνἐδίδαξαν.
Creonte: Levai sim, levai para longe este homem
tresloucado, que sem querer te matou, filho,
e a ti também!
Ai de mim, desgraçado, não sei para qual
hei-de olhar, a quem apoiar-me, pois tudo
que tenho nas mãos está abalado; sobre mim
impere um futuro
que não se suporta
192
.
Coro: Para ser feliz, bom-senso é mais que tudo.
Com os deuses não seja ímpio ninguém.
Dos insolentes palavras infladas
pagam a pena dos grandes castigos;
a ser sensatos os anos lhe ensinam
193
.
vv. 1339-1352.
192
Creonte: Arrastai daqui depressa este homem louco/ eu, meu filho, que, sem querer, te matei/ e também a
ela. Infeliz, já nem sei/ a qual desses dois volver o olhar. Já tudo/ ao redor de mim é ruína. Tudo oscila./
Abeteu-me um destino implacável. Tradução de Guilherme de Almeida.
193
Coro: Há muito que a sabedoria é a causa/ primeira de ser feliz. Nunca aos deuses/ ninguém deve
ofender. Aos orgulhosos/ os duros golpes, com que pagam suas/ orgulhosas palavras/ na velhice ensinam
a ser sábios. Tradução de Guilherme de Almeida.
76
Creonte comete um erro fatal, com conseqüências drásticas e irreparáveis
conduzindo-o da dita para a desdita. Embora sua falta seja assumidamente involuntária ou
contravoluntária, agora, isolado, ele vive enquanto expiação
194
e sofre todas as
calamidades provenientes de seu erro. Diferentemente de Antígona, ele passa por uma
cena de reconhecimento, se arrepende e amarga a insuportável dor de suas escolhas.
Durante toda a peça ele esteve cego aos signos que lhe permitiam vislumbrar sua
precipitação na desgraça e a reconheceu tarde demais
195
. Cambiante, ele percebeu que a
felicidade fugira de suas mãos. O coro canta a necessidade do bom-senso e da sensatez na
manutenção da felicidade.
O crime de Creonte, o que constitui sua “desmesura”, certamente não é
ter preferido sua cidade à suas afecções (pois isso nunca foi crime para
os gregos), mas, ao recusar sepultura a seu inimigo morto, o de ter
ultrapassado os poderes do homem que se detém diante das portas da
morte. A culpa de Creonte foi ter querido substituir os deuses para
solucionar um problema humanamente insolúvel. Ao fim da tragédia, é
um Creonte mal arrependido que vai lançar ao coro uma última réplica
e dar lugar ao mais belo hino jamais escrito em louvor da prudência
196
.
Os gregos usavam a palavra φρονεῖνpara designar a prudência. A prudência, aqui
traduzida por bom-senso e sensatez, permitiria ao herói detectar os perigos e evitar os
erros
197
. O homem prudente seria capaz de deliberar corretamente sobre as escolhas que
deveria fazer, ele saberia como se comportar frente aos conflitos
198
. Mas o coro ressalva
que o tempo é capaz de ensinar ao homem a ser sábio, neste caso, cabe a Creonte este
ensinamento. De fato, Creonte merecia o título de herói trágico numa peça que,
ironicamente, não leva o seu nome
199
.
194
ASSUNÇÃO, 2002, Op. Cit., p. 63.
195
BOLLACK,1999, Op. Cit., p. 33.
196
AUBENQUE, 2003, Op. Cit., p. 260.
197
A interpretação depende, em parte, de uma questão de tradução.
198
AUBENQUE, 2003, Op. Cit., p. 61.
199
SAÏD, 1978, Op. Cit., p. 363. Se, em Antígona o vocabulário da hamartía se organiza em torno de
Creonte e de uma falta religiosa, em As Traquínias se reagrupa notadamente sobre Dejanira e o
assassinato de Héracles é involuntário, embora possamos também empregar o termo voluntário à ação da
heroína. A conduta de Creonte é qualificada como uma hamartía e se constitui enquanto ultraje ao divino
e ao humano: ao recusar sepultura a Polinices ele o ultraja; ao ordenar o sepultamento em vida de
Antígona, causando um dano à vida humana, ele dá pulsão à situação trágica e tomba. No ponto de vista
77
3.3. A negação da hamartía de Édipo em Édipo em Colono
Finalmente, trataremos de Édipo em Colono na tentativa de compreendermos a
hamartía e o sentido que lhe é conferido, em especial, pelo próprio agente. Édipo realizou
um ato involuntário e na ignorância, porque desconhecia a identidade de quem matou e
daquela com quem se casou. Porém, não é inocente do crime de assassinato.
Utilizaremos Édipo em Colono não a título de estudo e análise pormenorizada,
nem para a identificação de uma hamartía, porém, os elementos presentes na peça,
principalmente em afinidade com os versos selecionados, nos indicam uma possível
hipótese para a análise da hamartía em Édipo Rei. Reiteramos que Édipo em Colono está
sendo pensado apenas em relação ao Édipo Rei. Assim, não traçaremos uma interpretação
da peça e tampouco uma exposição do tema da tragédia em si, mas recorreremos às
respostas de Édipo em relação aos seus erros do passado.
A primeira autodefesa de Édipo encontra-se no kômmos, quando ele é
questionado sobre sua identidade, aumentando a dramaticidade da peça. Ele não deseja
responder pergunta alguma, pois se considera um desditoso desde o nascimento e tenta
adiar ao máximo pronunciar o próprio nome. Ele teme ser expulso daquelas terras em
que se encontra naquele momento. Relutante, ele pronuncia primeiramente o nome de
Laio e faz referência à raça dos Labdácidas. Quando finalmente pronuncia o próprio
nome, o coro o reconhece e tenta expulsá-lo. Antígona intervém em defesa do pai. Ela
apela com o objetivo de obter a piedade de seus futuros anfitriões, mas sua súplica não
surte efeito e Édipo passa a proferir sua própria defesa, pois é interpelado pelo coro que
deseja conhecer detalhes sobre o parrídicio e incesto no início do primeiro episódio.
de Antígona, o decreto de Creonte é contrário às leis eternas e imortais, proclamadas por Zeus, o soberano
dos deuses e homens. Ela compreende que anteriores às leis humanas encontram-se as leis divinas. Cf.,
Antígona, vv. 456-57.
78
Οἰδίπους:ὄνομαμόνονδείσαντες;οὐγὰρδὴτόγε 265
σῶμ᾽οὐδὲτἄργατἄμ᾽·ἐπεὶτάγ᾽ἔργαμου
πεπονθότ᾽ἐστὶμᾶλλονἢδεδρακότα,
εἴσοιτὰμητρὸςκαὶπατρὸςχρείηλέγειν,
ὧνοὕνεκ᾽ἐκφοβεῖμε·τοῦτ᾽ἐγὼκαλῶς
ἔξοιδα.καίτοιπῶςἐγὼκακὸςφύσιν, 270
ὅστιςπαθὼνμὲνἀντέδρων,ὥστ᾽εἰφρονῶν
ἔπρασσον,οὐδ᾽ἂνὧδ᾽ἐγιγνόμηνκακός;
νῦνδ᾽οὐδὲνεἰδὼςἱκόμηνἵν᾽ἱκόμην,
ὑφ᾽ὧνδ᾽ἔπασχον,εἰδότωνἀπωλλύμην.
Édipo: (...) Meu nome atemoriza? Nem meus atos
Remotos amedrontam, nem meu corpo.
Os atos padeci, não cometi,
se posso mencionar meus genitores,
que fomentam o atual pavor. Bem sei,
nada macula minha natureza:
reagi ao que sofri. Acaso fui
agente ciente? Quem me diz que errei?
Cheguei aonde cheguei nada sabendo;
sofri por quem, sabendo, me arruinou.
vv. 265-274
200
.
Édipo está tomado pela paixão. Questiona o temor que o seu nome proporciona. A
princípio vale-se do argumento de que fora vítima do destino e que agira
inconscientemente, que seus crimes foram involuntários. Ele deixa claro que não cometeu
tais crimes, mas os sofrera. Sua fala é emotiva, ele diz que seus sofrimentos devem-se, em
primeiro lugar, àqueles que mesmo sabendo, o arruinaram
201
. Ele os responsabiliza.
A segunda autodefesa também não se apresenta com argumentos precisos e nem
se dirige a alguém que o tenha acusado diretamente. A emoção continua prevalecendo
sobre a razão. O diálogo entre Édipo e o coro nos proporciona a dimensão do sofrimento
do herói. Ele fortalece a idéia de que agiu sem intenção, que seu ato foi involutário e que
agiu na ignorância. Édipo não tem necessidade de uma argumentação pontual, precisa e
consistente, pois desenvolve sua autodefesa diante de um auditório que se apieda de seus
infortúnios; o coro não o acusa formalmente, mas demonstra curiosidade sobre seu
passado.
200
SÓFOCLES. Édipo em Colono. Tradução Trajano Vieira. São Paulo : Editora Perspectiva, 2005.
Utilizaremos a tradução de Trajano Vieira.
201
Talvez pudéssemos inferir que Édipo se refere aos pais que mesmo conhecendo o oráculo o
desobedeceram dando à luz um filho.
79
Οἰδίπους:ἤνεγκ᾽οὖνκακότατ᾽,ὦξένοι,ἤνεγκ᾽ἀέκωνμέν,
θεὸςἴστω,τούτωνδ᾽αὐθαίρετονοὐδέν.
Χορός:ἀλλ᾽ἐςτί;
Οἰδίπους
κακᾷμ᾽εὐνᾷπόλιςοὐδὲνἴδριν 525
γάμωνἐνέδησενἄτᾳ.
(...)
Χορός:ἔπαθες
Οἰδίπους:‐‐ἔπαθονἄλαστ᾽ἔχειν.
Χορός:ἔρεξας
Οἰδίπους:οὐκἔρεξα.
Χορός:τίγάρ;
Οἰδίπους:‐‐ἐδεξάμην
δῶρον,ὃμήποτ᾽ἐγὼταλακάρδιος 540
ἐπωφέλησαςπόλεοςἐξελέσθαι.
Χορός:δύστανε,τίγάρ;ἔθουφόνον
Οἰδίπους:τίτοῦτο;τίδ᾽ἐθέλειςμαθεῖν;
Χορός:πατρός;
Οἰδίπους:‐‐παπαῖ.δευτέρανἔπαισας,ἐπὶνόσῳνόσον,
Χορός:ἔκανες 545
Οἰδίπους:‐‐ἔκανον.ἔχειδέμοι
Χορός:τίτοῦτο;
Οἰδίπους:πρὸςδίκαςτι.
Χορός:τίγάρ;
Οἰδίπους:‐‐ἐγὼφράσω.
καὶγὰρἄν,οὓςἐφόνευσ᾽,ἔμ᾽ἀπώλεσαν·
νόμῳδὲκαθαρός,ἄϊδριςεἰςτόδ᾽ἦλθον.
Édipo: Arquei com o pior, ó forasteiro,
arquei sem o querer
- saiba o deus! -,
malgrado meu.
Coro: Em relação a quê?
Édipo: Num leito infame,
a pólis me enlaçou, nada sabendo,
na ruína de um matrimônio.
Coro: Te deitaste, conforme eu escutei,
no impronunciável leito maternal?
vv. 521-526
(...)
Coro: Cometeste...
Édipo: De modo algum!
Coro: Estranho.
Édipo: Útil à pólis,
Sofrido-coração, ganhei um dom.
Nunca o tomara!
Coro: Aziado! Então mataste...
Édipo: Queres que eu elucide o quê?
Coro: Teu pai?
Édipo: Ai! Ai! Segundo golpe: feres a ferida!
Coro: Mataste...
Édipo: Matei, mas...
Coro: O quê?
Édipo: ... posso justificar-me.
Coro: Como?
Édipo: Matei sem o saber, dei cabo dele.
Sou puro frente à lei, pois ignorava-o.
vv. 537-548
80
Além de ser responsável por despertar a piedade do espectador, as defesas de
Édipo demonstram a evolução no caráter da personagem. Se em seu primeiro discurso
sobre o parricídio, o personagem se mostra abalado, sua segunda autodefesa apresenta
uma argumentação mais clara e organizada, ainda que breve. O argumento utilizado
ainda é a inconsciência dos atos, mas agora o herói o aplica pontualmente ao parricídio
e ao incesto.
Quando Creonte acusa-o de parricida e impuro, Édipo responde pontualmente a
cada acusação e profere sua terceira e mais famosa autodefesa. Sua argumentação
adquire um tom mais persuasivo, pois agora ele encontra-se diante de um acusador
formal, um inimigo, e precisa provar sua inocência ao coro, a Teseu e ao público.
Consideramos este episódio extremamente intrigante. Outra vez teremos uma referência
a fatos passados. Édipo não admite o fato de ter cometido hamartía. Ele se considera
um escolhido pelos deuses para ter um destino funesto que o eleva à condição de herói,
cujos restos mortais protegerão a cidade que o abrigar. Novamente ele afirmará que seus
atos foram mais sofridos que cometidos, e nega sua responsabilidade e culpa alegando
que suas ações foram erros cometidos contra ele e não por ele. A hamartía tomará,
principalmente no fragmento selecionado, rumos curiosos.
(Οἰδίπους)
960
ὦλῆμ᾽ἀναιδές,τοῦκαθυβρίζεινδοκεῖς,
πότερονἐμοῦγέροντοςἢσαυτοῦ,τόδε;
ὅστιςφόνουςμοικαὶγάμουςκαὶσυμφορὰς
τοῦσοῦδιῆκαςστόματος,ἃςἐγὼτάλας
ἤνεγκονἄκων·θεοῖςγὰρἦνοὕτωφίλον,
965
τάχ᾽ἄντιμηνίουσινεἰςγένοςπάλαι.
ἐπεὶκαθ᾽αὑτόνγ᾽οὐκἂνἐξεύροιςἐμοὶ
ἁμαρτίαςὄνειδοςοὐδέν,ἀνθ᾽ὅτου
τάδ᾽εἰςἐμαυτὸντοὺςἐμούςθ᾽ἡμάρτανον.
ἐπεὶδίδαξον,εἴτιθέσφατονπατρὶ
970
χρησμοῖσινἱκνεῖθ᾽ὥστεπρὸςπαίδωνθανεῖν,
πῶςἂνδικαίωςτοῦτ᾽ὀνειδίζοιςἐμοί,
ὃςοὔτεβλάσταςπωγενεθλίουςπατρός,
οὐμητρὸςεἶχον,ἀλλ᾽ἀγέννητοςτότ᾽;
εἰδ᾽αὖφανεὶςδύστηνος,ὡςἐγὼ᾽φάνην,
ἐςχεῖραςἦλθονπατρὶκαὶκατέκτανον, 
975
μηδὲνξυνιεὶςὧνἔδρωνεἰςοὕςτ᾽ἔδρων,
πῶςἂντόγ᾽ἆκονπρᾶγμ᾽ἂνεἰκότωςψέγοις;
81
μητρὸςδέ,τλῆμον,οὐκἐπαισχύνειγάμους
οὔσηςὁμαίμουσῆςμ᾽ἀναγκάζωνλέγειν,
οἵουςἐρῶτάχ᾽·οὐγὰροὖνσιγήσομαι,
980
σοῦγ᾽εἰςτόδ᾽ἐξελθόντοςἀνόσιονστόμα.
ἔτικτεγάρμ᾽ἔτικτεν,ὤμοιμοικακῶν,
οὐκεἰδότ᾽οὐκεἰδυῖα,καὶτεκοῦσάμε,
αὑτῆςὄνειδοςπαῖδαςἐξέφυσέμοι.
ἀλλ᾽ἓνγὰροὖνἔξοιδα,σὲμὲνἑκόντ᾽ἐμὲ
985
κείνηντεταῦταδυσστομεῖν·ἐγὼδένιν
ἄκωνἔγημαφθέγγομαίτ᾽ἄκωντάδε.
ἀλλ᾽οὐγὰροὔτ᾽ἐντοῖσδ᾽ἁλώσομαικακὸς
γάμοισινοὔθ᾽οὓςαἰὲνἐμφορεῖςσύμοι
990
φόνουςπατρῴουςἐξονειδίζωνπικρῶς.
ἓνγάρμ᾽ἄμειψαιμοῦνονὧνσ᾽ἀνιστορῶ.
εἴτιςσὲτὸνδίκαιοναὐτίκ᾽ἐνθάδε
κτείνοιπαραστάς,πότεραπυνθάνοι᾽ἂνεἰ
πατήρσ᾽ὁκαίνωνἢτίνοι᾽ἂνεὐθέως;
995
δοκῶμέν,εἴπερζῆνφιλεῖς,τὸναἴτιον
τίνοι᾽ἂνοὐδὲτοὔνδικονπεριβλέποις.
τοιαῦταμέντοικαὐτὸςεἰσέβηνκακά,
θεῶνἀγόντων·οἷςἐγὼοὐδὲτὴνπατρὸς
ψυχὴνἂνοἶμαιζῶσανἀντειπεῖνἐμοί.
Édipo: Seu pulha! Pensas que tua fúria insólita
me antige, um velho, mais do que a ti mesmo?
Tua bocarra vomita contra mim
núpcias, delitos, desventuras! Mísero,
busquei o que sofri? Aprouve aos numes,
ira antiga – quem sabe? – contra os meus.
Procura em mim o erro censurável
da hamartía! Não a encontras. A hamartía,
erro horrível, nem contra mim, nem contra
os meus eu cometi. Responde: o oráculo
previu ao pai que o filho o mataria;
como vens censurar-me justamente,
se a semente vital máter-paterna
não existia e eu era um não-nato?
Se vim à luz qual vim, alguém sem sorte,
e às vias de fato com meu pai, matei-o,
nada sabendo contra quem agia,
reprovar-me por ato involuntário
é razoável? Forçar-me referir
o conúbio com minha mãe, tua irmã,
é uma vergonha, ó infame! Mas não calo,
pois tua boca imunda o mencionou.
Gerou, gerou-me – triste azar o meu! –
e, me gerando (nada então sabíamos!),
deu vida a nossos filhos, sua insídia!
Eis o que sei: por gosto, a mim e a ela,
enlameias os dois! Contra gostando,
casei-me e a contragosto eu falo disso,
mas não aceito ouvir que sou culpado
pelas bodas e pelo assassinato,
assunto em que repisas, crudelíssimo.
Responde a uma pergunta apenas: se
alguém agora viesse te matar,
a ti, tão justo, indagarias se é teu
pai, assassino, ou no ato o punirias?
Se tens amor à vida – penso – o vil
82
punirias, sem o exame do direito.
Foi como me meti num mal assim,
numes à frente. Se a ânima do pai
vivesse – creio -, não contestaria.
vv. 960-998.
Édipo se declara vítima das ações divinas. O discurso de Édipo apresenta uma
contraposição à acusação de Creonte e a sua autodefesa se sustenta sobre três pilares: o
tema da legítima defesa, a plena ignorância da ação praticada e a involuntariedade da
ação. Seus argumentos se aplicam, de modo geral, ao incesto e ao parricídio e parecem
convincentes, já que Édipo desenvolve uma argumentação mais precisa, enumerando
argumentos que o inocentem com relação aos atos cometidos.
Ele defende-se quando afirma que realizou uma ação involuntária cometida na
ignorância da identidade das pessoas que estavam à sua volta, pois ele ignorava que
matou o pai e casou com a mãe. Alega que realizou tais ações contra a vontade
202
.
Assim, por que ser censurado por um ato involuntário? Ora, mesmo antes do seu
nascimento, Laio recebera a predição que morreria pelas mãos de um filho.
Ele admite que suas ações foram involuntárias – no que diz respeito ao
assassinato do pai e ao casamento com a mãe –, porém não assume que cometeu uma
hamartía. Se o próprio Édipo desafia Creonte a encontrar nele a hamartía, resta-nos
questionar sobre realmente onde ela se encontra.
Creonte insultara Édipo resgatando os crimes descritos em Édipo Rei, mas, aos
olhos de Édipo, por ter cometido uma ação involuntária, esta não se configura como
hamartía. Encontramo-nos diante de um desafio, já que não temos nenhuma evidência
sobre o que seria de fato a hamartía de Édipo. Ele se vale do argumento da
inconsciência para se inocentar de seus crimes. Tais argumentos poderiam inocentar
Édipo; a personagem menciona que seu ato foi uma autodefesa e insinua que o próprio
Creonte teria agido da mesma forma se estivesse em seu lugar. Num estado de alerta,
202
SCHÜTRUMPF, 1989, Op. Cit., p. 144.
83
em que a dignidade, a segurança física e a moral estavam em jogo, só lhe restava
defender-se. Ele acrescenta o mais interessante dos argumentos: se o próprio Laio
estivesse nas mesmas condições ou pudesse julgá-lo, não o condenaria.
Apesar da bela defesa, não podemos inocentar Édipo do crime de assassinato,
mesmo que ele se valha do direito à legítima defesa. Podemos nos questionar se ele não
agiu de forma exagerada em sua reação contra o estranho na encruzilhada, de maneira
que a situação talvez pudesse ser resolvida de outra forma que não a agressão física. Por
outro lado, ele jamais poderia esperar que o estranho na encruzilhada fosse seu
verdadeiro pai, portanto ele precisava defender-se da injúria sofrida
203
.
A resposta de Édipo a Creonte apresenta a defesa de sua inocência. Possui
algumas características distintas das anteriores: é mais organizada, precisa e persuasiva.
Ele nega o fato de ser o autor de tais erros, implicando que outros seriam responsáveis
pelo desastre (966-68)
204
. Afirma que seu ato foi um crime involuntário e relembra o
oráculo proferido ao seu pai, quando ele sequer havia nascido
205
.
Os trâmites em torno da construção de um conceito de hamartía em Édipo em
Colono fundamentam-se em outras perspectivas. Observamos uma importante discussão
em relação ao significado do conceito e sua inserção na tragédia. Não duvidamos que
para o texto Édipo em Colono a hamartía é uma falta extremamente grave, porém o que
nos surpreende é sua negação na voz do próprio Édipo. Esta negação confunde-nos. Se
203
WHITMAN, Cedric. Apocalypse: Oedipus at Colonus. Oxford Readings in Greek Tragedy. Erich
Segal (ed.). Oxford : Oxford UP, 1983, p. 160. Ao citar os nomes de heróis de famílias ilustres e que
cometaram erros tremendos, grandes hamartías, megale hamartía, Aristóteles lista o nome de Édipo. Cf.
Cap. 13 – 1453ª, 7-22. Não é tão somente um erro involuntário, mas uma ação cometida na ignorância, o
que corresponde exatamente à análise aristotélica e às diretrizes para a compreensão de uma ação que na
ignorância resulta num erro involuntário. Quem age não o faz deliberadamente procurando realizar o mal,
mas o seu inverso.
204
MARKANTONATOS, Andreas. Tragic Narrative: A narratological Study of Sofocles’s Oedipus at
Colonus. Walter de Gruyter - Berlin – New York, 2002, p. 47.
205
MARKANTONATOS, 2002, Op. Cit., p. 48. Não há qualquer referência à maldição de Laio, mas o
retorno à mensagem oracular a respeito do futuro tenebroso que o aguardava
84
ele não cometeu nenhuma hamartía, nossas inquietações se multiplicam. Então, como
compreender a dimensão da falta trágica no cerne desta tragédia?
A rejeição da hamartía por Édipo é inegável. Se ele rejeita qualquer hamartía,
qual seria seu erro em Édipo Rei? Sua falta estaria intrinsecamente ligada à ação das
personagens secundárias ou seria o mais puro azar, a falta absoluta de sorte, seu engano
em se sentir o filho da sorte? Seria seu desejo e a busca incansável pela verdade
206
?
Reconhecemos como válida uma visão da importância atribuída à hamartía por
Aristóteles, permitindo, não obstante, questionar a rigidez de seu esquema, propondo
que uma grande tragédia poderia atingir seus objetivos com mais de uma hamartía ou
mesmo sem nenhuma
207
.
A liberdade que, supostamente, enxergamos no enredo, os caminhos percorridos
por Édipo e as ações que comete, mesmo involuntariamente, as palavras que profere e
as ações secundárias conduzem o drama e demonstram que ele não agiu de forma
imoral. Édipo é virtuoso, contudo justo ele, que parecia moralmente impecável,
reconhece que matou o pai e casou com a mãe.
No caso de Édipo não nos parece ser uma decisão ou comportamento e nem que
ele tenha dado o passo inicial para o desencadeamento do desfecho trágico, mesmo que
toda a ação se desenvolva a partir dele. Gostaríamos de pensar na possibilidade de
identificarmos a hamartía na própria peça, e talvez associá-la a outra personagem,
seguindo as principais definições para o conceito.
Em torno da idéia central aqui desenvolvida, um estudo da hamartía localizada
na tragédia, nós temos algumas noções primárias que contribuem para a discussão dos
206
Parece-nos, segundo nos expõe o poeta, que a verdade plena só caberia aos deuses e não aos mortais.
207
STINTON, 1975, Op. Cit., p. 240-241. Qual é, então, o significado de hamartía que Aristóteles deseja
alcançar? A hamartía, um dos elementos escolhidos pelos poetas para a construção de um enredo
dramático, poderia ser um erro de interpretação ou desconhecimento, tal como um erro referente à
identidade de um parente ou mesmo a confusão que antecede ao reconhecimento.
85
modelos de erros trágicos aqui denunciados. Identificamos o reconhecimento e a
reviravolta da fortuna nas peças analisadas, mas seria prudente de nossa parte, ou pelo
menos para o momento, incluir a hamartía não com o intuito de traduzi-la, mas
pensando em sua inclusão num discurso essencial para a compreensão do trágico,
enquanto evento que acontece inexplicavelmente devido ao ato do herói. Assim, a
reviravolta, o reconhecimento e a hamartía formariam uma tríade
208
pertinentes ao
discurso aristotélico e culminando no que poderíamos chamar de ignorância trágica.
A hamartía se assemelharia à desventura, já que em certos casos, apesar das
evidências, não fora evitada. Devemos estar cientes que, seja qual for o caso, o erro é
involuntário; não obstante, isto não isenta o agente de culpa. A presença da hamartía
nestas histórias permite-nos pensar na coexistência de um confronto de concepções
sobre a falta trágica que combinam conceitos tais como responsabilidade, cegueira e
desmedida. Se a hamartía é essencial para a reviravolta da fortuna seria interessante, se
possível for, identificá-la com precisão, principalmente no corpo textual das tragédias.
Mas, mesmo seguindo pontualmente o enredo, isto não é tarefa simples, de forma que a
nossa compreensão da hamartía na tragédia de Édipo quase sempre se limita mais ao
mito do que à peça.
It is true that hamartia, as Aristotle uses it in connexion with the
‘tragic hero’, is not a moral concept; but the text of Oedipus Tyrannus
contains nothing about hamartia, and does contain emphatic
references to hybris, which is always a moral concept
209
.
Como conseqüência do posicionamento de Vellacott, podemos questionar sobre
as discrepâncias entre os conceitos de hamartía e hýbris em Édipo Rei
. Ousadamente,
ele põe em dúvida uma das principais questões propostas por Aristóteles na Poética, que
a reviravolta da fortuna na vida do herói dar-se-ia mediante uma falta (hamartía)
208
HALLIWELL, 1998, Op. Cit., p. 212.
209
VELLACOTT, P. H. “The Chorus in Oedipus Tirannus.” Greece & Rome, 2nd Ser., Vol. 14, No. 2.
(Oct., 1967), p. 124.
86
cometida. E se dermos crédito à hipótese da não existência de uma hamartía em Édipo
Rei a teoria aristotélica seria questionada. Na verdade, não encontramos ocorrências do
termo hamartía na peça, identificamos a forma verbal
ἁμαρτάνω (v. 1149) e
ἡμαρτημένα (621). Temos em Antígona e em As Traquínias ocorrências mais
significativas. Entretanto, não acreditamos que a ocorrência e aparecimento do termo na
peça seja crucial para a identificação da hamartía, mas que facilitaria nossa análise, pois
de forma diferente, somos obrigados a adotar desvios que perpassam por outros
conceitos, tal como o de hýbris.
Nada nos permite em absoluto afirmar com certeza o que é o erro trágico e muito
menos identificá-lo nas tragédias que nos restaram. Além disso, resta-nos questionar, se
a hamartía é uma característica essencial e indispensável à construção do enredo
trágico. Pelas definições apresentadas, a hamartía seria cometida por ignorância e teria
cunho involuntário ou contravoluntário; seria um erro de cálculo ou de interpretação. Se
as definições, em sua maioria, se aproximam das conseqüências mais do que da ação em
si, qualquer ação, por mais simples, poderia ser funesta. Através dos exemplos
elencados por Aristóteles, reconhecemos a gravidade das faltas cometidas pelos heróis
trágicos. Poderíamos pensar que, na verdade, o esquema aristotélico apresenta algumas
incoerências além de não suportar uma análise pontual das tragédias como um todo.
Enfim, se for possível apresentar uma resposta ao desafio proposto pelo próprio
Édipo em Édipo em Colono, estabeleceremos no segundo capítulo uma interpretação
seqüencial de alguns trechos da peça, incluindo os cantos corais e tentaremos identificar
neles a hamartía, pontuando em qual situação, ação, circunstância e rememoração
poderíamos inferir, sugerir ou identificar de maneira pontual, incisiva, direta ou indireta
a hamartía de Édipo em Édipo Rei de Sófocles, comprovando sua existência ou não no
momento presente da peça.
87
CAPÍTULO II:
HOMEM NENHUM AFIRME: EU SOU FELIZ...
210
”:
A
HAMARTÍA
EM
ÉDIPO REI
, DE SÓFOCLES
1. A Estrutura da Peça e os Movimentos Cênicos
A tragédia Édipo Rei é conhecida como expressão máxima de uma hamartía que
destrói e aniquila o herói e cujos efeitos são irreparáveis. A trama gira em torno de
Édipo, apresentado no começo como uma figura vencedora e no esplendor da vida,
usufruindo seus feitos, envolto numa auréola de glória e confiança inexpugnáveis
quando, repentinamente, vê-se vítima de uma alteração brusca do destino, reaparecendo
no final magnificamente desamparado e exposto à tempestade que ele mesmo
desencadeou.
Assim, a construção cênica da peça Édipo Rei é valiosa para o estudo da ação e
seu significado. A movimentação cria a unidade do texto teatral organizando-o e
relacionando-o às seqüências lógicas no espaço cênico. O movimento cênico conduz o
aparecimento e o desaparecimento das personagens em uma determinada cena e
oferece-nos a oportunidade de conhecer o cerne da trama, a forma como ela se articula,
os elementos fundamentais para a compreensão das ações representadas e sua
importância, o deslocamento de Édipo em cena, suas entradas, saídas, posicionamento
com relação aos outros atores, os elementos do cenário e até mesmo a expectativa do
público.
210
SÓFOCLES. Édipo Rei. Trad. Trajano Vieira. São Paulo : Perspectiva, 2001. Cf., vv. 1528/1529.
88
Além disso, a divisão dos movimentos cênicos nos ajuda a compreender melhor
o desencadeamento de uma ação que, aos olhos de Aristóteles, é fundamental na
constituição de uma tragédia exemplar: a hamartía.
2. Quadro de distribuição do aparecimento das personagens e movimentos cênicos
Para a construção desta parte do capítulo nos inspiramos em “Structure et
composition des tragédies de Sophocles” de Jean Irigoin que traçou a divisão dos
movimentos cênicos de algumas das peças de Sófocles. Édipo é a personagem que tem
relação direta com cada uma das outras na peça. A trama concentra-se nesta figura
central e todas as personagens secundárias, os acontecimentos externos e internos estão
em função dele e de um conflito trágico que ele tem que enfrentar.
Creonte aparece no prólogo, no segundo episódio e no fim da peça. Jocasta
aparece pela primeira vez no momento da discussão entre Édipo e Creonte e no terceiro
episódio. O Sacerdote, Tirésias, o Mensageiro de Corinto e o Pastor de Laio – apesar da
brevidade da participação - intervêm de forma extremamente significativa. Cada um
representa um papel único em relação a Édipo e emite uma mensagem específica ao rei,
e assim que realiza a sua missão, retira-se.
O Sacerdote suplica pela salvação do povo contra a peste a Édipo, exortando-o a
buscar uma solução; Tirésias, respondendo a um chamado da casa real, lhe desperta a
cólera e revela-lhe a verdade sobre a morte de Laio; o Mensageiro anuncia-lhe a morte
de Pólibo e ainda revela-lhe que o rei e a rainha de Corinto eram seus pais adotivos; o
Pastor, único sobrevivente ao ataque que matou Laio, é o mesmo que o entregou ao
mensageiro de Corinto no passado e revela a informação mais dramática de todas: a
relação de Édipo com a criança rejeitada anos atrás pelos reis de Tebas.
89
Édipo compartilha a cena com todas as personagens, elimina-as
progressivamente e reencontra-se cada vez mais só. O coro aparece em intercalação
entre os episódios, principalmente nos estásimos ou em diálogo com as personagens.
Sua aproximação e seu afastamento da trama são responsáveis pelo desenvolvimento da
tensão dramática que percorre todo o texto. Participa nos diálogos da cena de tomada de
consciência de Édipo, pondo-o em guarda e tentando moderar os seus acessos de
cólera
211
.
Quadro de distribuição do aparecimento das personagens
Personagem Prólogo 1º.Ep. 2º.Ep. 3º. Ep. 4º. Ep. 5º. Ep. Total
Édipo 2x 2x 3x 2x 1x 2x 12x
Tirésias 1x 1x
Jocasta 2x 3x 5x
Creonte 1x 3x 1x 5x
Corifeu 2x 4x 1x 1x 3x 11x
Coro 5x entre os
episódios
Mensageiro 2x 2x
Mensageiro 2 1x 1x
Servo de Laio 1x 1x 2x
Sacerdote 2x 2x
Quadro de distribuição dos movimentos cênicos
Episódio Movimento Cênico Versos Cenas Diálogos
Prólogo
vv. 1-150
1º. MC. 1-84
2º. MC. . 85-150.
150
Apresentação do
tema central.
Édipo-Sacerdote
Creonte-Édipo
211
IRIGOIN, Jean. “Structure et composition des tragédies de Sophocles”. In: KNOX, Bernard. Et.al.
Sophocle. Genève : Fondation Hard, 1983, pp. 39-75.
90
Párodo ou 1º.
canto coral
vv.151-215
151-215
64
1º. Episódio
vv. 216-462
1º. MC. 216-296
2º. MC. 297-462
246
1ª. cena de
enfrentamento.
Édipo-Corifeu
Édipo-Tirésias
1º. Estásimo
vv. 463-511
463-511
48
2º. Episódio
vv. 512-862
1º. MC. 512-633
2º. MC. 634-696
3º. MC. 697-862
350
2ª. cena de
enfrentamento e
reconhecimento
parcial
Creonte-corifeu
Édipo-Creonte
Jocasta-Creonte-Édipo-Corifeu
Corifeu-Jocasta
Jocasta-Édipo
2º. Estásimo
vv. 863-910
863-910
47
3º. Episódio
vv. 911-1085
1º . MC. 911-1109
2º. MC. 1010-1085
174
Reconhecimento
de Jocasta
Mensageiro-Jocasta
Édipo-Jocasta-Mensageiro
3º. Estásimo
vv. 1086-1109
1086-1109
23
4º. Episódio
vv. 1110-1185
1110-1185
75
Reconhecimento
total (Édipo)
Édipo-Corifeu-Pastor
Édipo-Pastor
Mensageiro-Pastor
4º. Estásimo
vv. 1187-1222
1186-1222
36
Êxodo
vv. 1223-1530
1º. MC. 1223-1296
2º. MC. 1297-1415
3º. MC. 1416-1477
4º. .MC. 1478-1523
Epílogo: 1524- 1530
307
Catástrofe
Criado-Corifeu
Corifeu-Édipo
Édipo-Creonte
3. O conteúdo da peça
A peça Édipo Rei inicia-se in media re e constitui-se como um regresso ao
passado, mas as perspectivas de futuro apresentam-se como fundamentais em um
presente imposto pelas desgraças que atormentam os cidadãos. O tempo é o elemento
91
trágico: o presente se manifesta através de um resgate do passado que não pode apagar-
se. O futuro de Tebas está no centro – é o que se deseja preservar. Por isso, no momento
presente, Édipo precisa desvendar um mistério esquecido no passado. O ponto de
partida é a necessidade de assegurar o futuro da cidade, a trama desvia-se para a
reconstituição de um tempo passado: o assassinato de Laio; que ao mesmo tempo
envolve o passado enigmático de Édipo.
A peça estrutura-se em torno de quatro eixos enigmáticos desenvolvidos nos
movimentos cênicos. Através destes eixos ou intrigas teremos a oportunidade de pensar
se existe ou não uma hamartía de Édipo, identificando em que momento, através de
qual ação, ele provocou a própria queda ou se essa hamartía possui ligação intrínseca
com as personagens secundárias.
No prólogo instaura-se a primeira estrutura enigmática: quem é o culpado pelas
dores da pólis? No primeiro movimento cênico – o diálogo entre Édipo e o Sacerdote –
tomamos conhecimento da devastação da cidade pela peste, sendo necessário encontrar
uma solução. Édipo deixa claro que tomou a dianteira e enviou Creonte a Delfos a fim
de buscar uma solução para o dilema.
O segundo movimento cênico traz Creonte à cena e apresenta a condição
necessária para solucionar a peste: limpar a cidade da mancha fatal encontrando e
punindo o assassino de Laio. Consciente dos seus deveres, Édipo decide efetuar a
investigação e encontrar o assassino. Não existe para ele, enquanto rei, uma segunda
opção. Cabe principalmente a Édipo a busca por uma resposta, identificar e punir o
assassino.
No primeiro episódio Édipo realiza o seu famoso pronunciamento. Sua voz
domina a cena e sua determinação é inquestionável. Ele anuncia a punição: banir o
culpado da cidade, e põe-se à procura de indícios que possam ajudá-lo. Tirésias, dentre
92
os mortais, possui dons proféticos e é o único que sabe a verdade, por isso é convocado
para dar seu depoimento. Enquanto súdito, ele não poderia se dar ao luxo de se abster
desta convocação. Seguramente, ele também não poderia optar pelo silêncio devido à
gravidade da crise que Tebas enfrentava. Porém, Tirésias mantém-se em silêncio,
encolerizando Édipo. Após uma briga violenta, a primeira cena de enfrentamento na
peça, Tirésias revela a Édipo a identidade do assassino: o próprio investigador. A
verdade é tão terrível que Édipo recusa-se a acreditar. A acusação de Tirésias é
extremamente grave. Então, Édipo conclui que Creonte armou um ardil e deseja
usurpar-lhe o poder
212
.
O segundo episódio traz o retorno de Creonte em cena, a segunda cena de
enfrentamento e a primeira de reconhecimento parcial da verdade. Após as desavenças
com Creonte, Jocasta surge para provocar o primeiro conflito interno na consciência de
Édipo. Ela relata o depoimento do pastor em testemunho à morte de Laio e a descrição
do local do assassinato provoca em Édipo uma perturbação devido a um
descontentamento. Ele vê a possibilidade de ser o responsável pela morte de Laio e se
atormenta, pois matara um homem semelhante a Laio no mesmo local onde o antigo rei
fora assassinado. Nasce daí uma segunda intriga: Édipo é o assassino de Laio?
Então, ele precisa comprovar a versão do pastor que difere da sua para ter
certeza de sua inocência. Porém, mesmo que o pastor altere a versão dos fatos, segundo
o ponto de vista de Jocasta, os oráculos são falhos, pois disseram que Laio morreria
pelas mãos do filho e ele foi assassinado por malfeitores. A questão dos oráculos, sua
212
IRIGOIN, 1983, Op. Cit., p. 46. No primeiro episódio temos os elos causais da trama. Na segunda cena
do primeiro episódio (vv. 297-462) Tirésias revela para Édipo toda a verdade. A cena divide-se em duas
partes matematicamente iguais. Na introdução temos a voz do Corifeu que ocupa 3 versos, em seguida
temos a fala de Édipo que ocupa cerca de 16 versos, depois temos o diálogo travado entre Édipo e Tirésias
que ocupa cerca de 64 versos perfazendo um total de 83 versos, localizando-se entre os versos 297-379.
Encerramos com a acusação direta de Tirésias: teu mal provém de ti, não de Creon. Temos a segunda fala de
Édipo, 24 versos, uma breve intervenção do Coro, 4 versos, novo diálogo entre Tirésias e Édipo, 18 versos,
segunda fala de Tirésias em tom profético, 16 versos, novamente temos um total de 83 versos e o adivinho
encerra as duas partes, localizando-se entre os versos 380-462, perfazendo um total de 166 versos.
93
veracidade e poder surge em pauta, nascendo outro tema: é necessário crer nos
oráculos?
Agora, além de identificar o assassino de Laio, Édipo precisa saber se ele é o
culpado e se os oráculos merecem ou não credibilidade. Jocasta demonstra-lhe a
probabilidade de erro por parte dos oráculos e conta-lhe que o oráculo predissera ao seu
primeiro marido que este pereceria pelas mãos do próprio filho, mas este filho morreu
muito antes do pai e Laio, como todos sabem, morreu pelas mãos de assaltantes.
Édipo relembra as previsões recebidas por ele próprio do oráculo de Delfos, que
seria parricida e incestuoso. Com receio, fugiu do destino previsto e chegou a Tebas.
Sem provas a respeito da veracidade dos oráculos, ele ainda teme sua realização. O
suspense está no ar. Em Tebas ele torna-se rei mediante a solução do enigma da Esfinge
e agora enfrenta novos enigmas e um deles é uma questão de estado: a morte de Laio.
A chamada por uma testemunha ocular torna-se capital para comprovar a
inocência ou culpa de Édipo. As questões que permeiam a peça encontram-se
intimamente ligadas, mas espera-se a vinda do antigo pastor a serviço de Laio, o único
sobrevivente à chacina, para elucidar o enigma em torno do assassino, mas antes dele,
temos a chegada do mensageiro de Corinto anunciando a morte de Pólibo, e a questão
muda de foco. Então, ele deixa-se persuadir por Jocasta e crê que os oráculos podem
falhar. Chegamos a notar uma leve ironia em seus dizeres. A morte de Pólibo, a
princípio, o alivia. Mas ele teme que parte do oráculo ainda se realize: o incesto. O
mensageiro, desejando tirar o peso deste medo das costas de Édipo, revela-lhe a sua
adoção. A trama toma um curso assustador: quem é Édipo?
213
Agora ele tem outro objetivo, conhecer a origem do seu nascimento.
Gradativamente, ele monta o quebra-cabeça sem perceber o seu grau de
213
HARSH, Philip. “Implicit and Explicit in the Oedipus Tyrannus.” The American Philology, vol. 79,
no. 3. (1958). pp. 248-249.
94
responsabilidade na desestruturação da cidade
214
. Jocasta, mais perspicaz e conhecedora
de elementos importantes, tenta convencê-lo a parar, mas Édipo pensa que ela teme que
ele possua uma origem modesta e faça sombra ao seu reino, assim, não recua. O
conhecimento do próprio passado, de sua história oculta, de sua origem obscura torna-se
tão ou mais importante que a pergunta de origem: a identidade do assassino de Laio.
Então, sua investigação prossegue. A chegada do Pastor representa o momento mais
dramático da peça. Seu depoimento confirmará a verdade dos oráculos.
Édipo não é culpado por desconhecer sua própria história e identidade, mas é o
criminoso de duas horrorosas atrocidades, mesmo que involuntárias, cuja contaminação
atinge não só a si, mas toda sua família e cidade. Pensar que não havia forma dele
escapar de seu destino, ou de outra maneira que, mesmo agindo contra as previsões, ele
acabaria realizando as profecias, não é um erro completo, mas reduz a sua grandeza e a
sua inteligência, enaltecendo a profundidade da ação dos deuses sobre a trama. Seria
complexo pensar uma falta, ou seja, uma hamartía de tal forma predestinada que não
deixasse margens para uma escolha. A grande questão do erro trágico residiria nas
escolhas que o herói faz. Deste modo, devemos nos questionar a respeito do grau de
independência das escolhas de Édipo.
Devemos avaliarmos se existe uma falta trágica de Édipo no contexto da peça; se
esta falta é externa, interna ou relacionada a personagens secundárias; e como, a partir
de Aristóteles, seríamos capazes de pensar a hamartía; enfim, se através da Poética
daríamos conta do conceito aplicado a uma peça da magnitude de Édipo Rei.
214
TAinda assim, observamos um esquema enigmático tão bem esquematizado que desperta em nós,
pouco-a-pouco, os sentimentos de terror e piedade. Terror porque a verdade é infinitamente cruel; piedade
porque ao simpatizarmos com Édipo, vemos nele o rei que desejava o melhor para a cidade e que se
considerava infalível, cair.
95
4.1. Uma “hamartía” faz sofrer a pólis: a interpretação oracular e as decisões de
Édipo
A tragédia Édipo Rei se inicia com o encontro de um grupo de suplicantes e
Édipo frente a um altar. O clima de prostração, a entrega e desalento tomam conta do
ambiente. O ritual, o vapor de incenso, os cantos fúnebres são ouvidos por todos e o que
poderia ser apenas mais um agrupamento de pessoas tornou-se uma manifestação
popular. Édipo se aproxima e toma a posição de destaque, daquele que deseja sanar as
dores do povo. Ele quer ouvi-los, não se valendo apenas dos mensageiros e dos
rumores.
ΟΙΔΙΠΟΥΣ:Ὦτέκνα,Κάδμουτοῦπάλαινέατροφή,
τίναςποθ´ἕδραςτάσδεμοιθοάζετε
ἱκτηρίοιςκλάδοισινἐξεστεμμένοι;
Πόλιςδ´ὁμοῦμὲνθυμιαμάτωνγέμει,
5
ὁμοῦδὲπαιάνωντεκαὶστεναγμάτων·
ἁγὼδικαιῶνμὴπαρ´ἀγγέλων,τέκνα,
ἄλλωνἀκούειναὐτὸςὧδ´ἐλήλυθα,
ὁπᾶσικλεινὸςΟἰδίπουςκαλούμενος.
Ἀλλ´,ὦγεραιέ,φράζ´,ἐπεὶπρέπωνἔφυς
[10]
πρὸτῶνδεφωνεῖν·τίνιτρόπῳκαθέστατε,
δείσαντεςἢστέρξαντες;ὡςθέλοντοςἂν
ἐμοῦπροσαρκεῖνπᾶν·δυσάλγητοςγὰρἂν
εἴηντοιάνδεμὴοὐκατοικτίρωνἕδραν.
Édipo: Descendentes de Cadmo! Crianças, moços!
Por que trazeis à testa ramos súplices,
prostrados, nos assentos dos altares?
Vapor de incenso assoma em meio à pólis,
assomam cantos fúnebres, lamentos.
Considerei injusto ouvir dos núncios,
por isso eu vim, meninos, pessoalmente,
Édipo, cujo nome pan-aclamam.
Fala, decano! Tens a primazia
da palavra. Que humor vos põe assim?
Temor? Anseio? O meu intuito é dar
total auxílio. Um homem insensível
seria, alheio à ocupação das sedes.
Imaginando a encenação, poderíamos visualizar todos em desalento caídos pelo
chão entre cantos e lamentações. Édipo se aproxima supremo e o primeiro verso repousa
sobre grande ambigüidade confrontando duas idéias fundamentais para a compreensão
96
da peça: o velho
- πάλαι - e o novo - νέα
215
. O verso não se restringe apenas à
continuidade genealógica, mas à perpetuação dos tempos, uma vez que a vida está posta
em risco devido à peste. Neste pequeno verso vislumbra-se a inscrição de um indivíduo
numa unidade e numa tradição familiar, numa genealogia, numa história, pois Édipo se
dirige ao povo como “nova geração do antigo Cadmo
216
”. Ironicamente, ele é parte
desta descendência, sem o saber. A palavra de abertura é τκνα. Édipo invoca o termo
normalmente traduzido por “meus filhos
217
”, “crianças, moços
218
”, “enfants
219
confrontando-o com o tema da ancestralidade. Exprime a afetividade do soberano para
com os seus súditos, pois agora os descendentes de Cadmo são de responsabilidade de
Édipo
220
.
A fundação de Tebas é a genealogia de Cadmo. O “antigo Cadmo” perpetua uma
linhagem, um nome, uma história, uma tradição que se vê ameaçada. Segundo Bollack,
τροφήaparece com o sentido de progenitor
221
; como se aquela fosse a última geração de
Cadmo. O começo coincide com o fim, pois Cadmo fundou Tebas e Édipo, através de
sua ação ainda desconhecida, dará um fim aos descendentes de Cadmo
222
.
215
O tema do velho e do novo retornará na voz de Jocasta no início do terceiro episódio.
216
Ouso aqui lançar mão da minha tradução do verso.
217
Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira.
218
Tradução de Trajano Vieira.
219
Tradução de Paul Mazon e Jean Bollack.
220
DAWE, 1968, Op. Cit., p. 70. Em referência ao verso 1.
221
BOLLACK, Jean. L'Oedipe Roi de Sophocle (4 volumes). Lille, Presses Universitaires de Lille, 1990, p.
3. Em relação ao verso 1.
222
GRIMAL, Pierre. Diccionario de Mitologia: Griega y Romana. Barcelona : Paidos, 1986, p. 79-80.
Cadmo é o filho de Agenor, rei de Tiro, e o irmão de Europa que Zeus seduziu, sob a forma de um touro.
Quando a sua filha desapareceu, Agenor enviou a sua esposa e todos os seus filhos à procura de Europa.
No entanto, as buscas destes não apresentaram resultados e então Cadmo decidiu consultar o oráculo de
Delfos. Este o aconselhou a abandonar sua missão e a fundar uma cidade no lugar em que encontrasse
uma vaca prostrada pela fadiga. O oráculo cumpriu-se quando ele atravessava a Beócia. Resolvido a
oferecer em sacrifício a Atena a vaca que se deitara na sua frente, enviou os seus companheiros de viagem
à procura de água, numa fonte vizinha. Mas um dragão, nascido de Ares, que guardava a fonte, dizimou o
grupo. Cadmo correu em socorro dos seus amigos e matou o monstro. Atena apareceu-lhe e aconselhou-o
a semear os dentes do dragão. Passado algum tempo, brotaram deste solo guerreiros armados,
terrificantes. Cadmo procurou apedrejá-los e eles, em pânico, acabaram por se matar uns aos outros,
sobrevivendo apenas cinco. Um destes desposará, mais tarde, uma filha de Cadmo, Agave. Não obstante,
para expiar a morte do dragão, o herói serviu como escravo a Ares por oito anos. Depois disso, fundou a
cidade de Tebas, com a ajuda de Atena, no local indicado pelo oráculo. E Zeus deu-lhe como esposa a
97
Levando-se em conta a fala de Édipo, poderíamos imaginar a cena observando-o
de pé junto ao povo enfraquecido, abatido, humilhado, lançado ao chão em postura de
súplica e adoração. No espaço cênico, incenso e súplica fundem-se e chamam a atenção
do soberano. A disposição do povo, descrita através do termo
καθέστατε, poderia
exprimir tanto a posição em que este se encontrava quanto sua atitude mental
223
. Édipo
avisa que veio pessoalmente saber o que se passava; ele, o mais célebre dentre os
mortais
224
, se dirigiu ao povo chamando a atenção do Sacerdote para que este
pronunciasse o desejo dos cidadãos. O povo estava, por assim dizer, frente-a-frente a
um humano excepcional cuja opinião era valiosa.
Esta posição de destaque que Édipo assume parece-nos uma alteração de papéis.
Até aquele momento, apesar das libações, das orações e súplicas à divindade, esta não
apresentou uma solução; então, Édipo se posiciona como uma alternativa possível para
reverter o aniquilamento promovido pela peste. A renovação das gerações encontra-se
ameaçada, a continuidade vê-se interrompida pela peste esterilizante e pelas mortes
prematuras. A peste, segundo o Sacerdote, destrói as forças vivas de Tebas; a
decadência, a infecundidade do ventre e do solo perturba a temporalidade gerando a
insegurança, o medo e o sofrimento.
ΙΕΡΕΥΣ:(...) τὸδ´ἄλλοφῦλονἐξεστεμμένον
[20]
ἀγοραῖσιθακεῖ,πρόςτεΠαλλάδοςδιπλοῖς
ναοῖς,ἐπ´Ἰσμηνοῦτεμαντείᾳσποδῷ.
Πόλιςγάρ,ὥσπερκαὐτὸςεἰσορᾷς,ἄγαν
ἤδησαλεύει,κἀνακουφίσαικάρα
βυθῶνἔτ´οὐχοἵατεφοινίουσάλου,
25
φθίνουσαμὲνκάλυξινἐγκάρποιςχθονός,
φθίνουσαδ´ἀγέλαιςβουνόμοιςτόκοισίτε
ἀγόνοιςγυναικῶν·ἐνδ´ὁπυρφόροςθεὸς
σκήψαςἐλαύνει,λοιμὸςἔχθιστος,πόλιν,
ὑφ´οὗκενοῦταιδῶμαΚαδμεῖον,(...)
Sacerdote: (...) A multidão se prostra junto ao duplo
templo de Palas, ramo à testa, na ágora,
filha de Ares e de Afrodite, Harmonia. Cadmo e Harmonia tiveram vários filhos. De entre eles podemos
destacar Sémele, que será a mãe de Dioniso, e Polidoro, antepassado de Édipo.
223
BOLLACK, 1990, Op. Cit., p. 12.
224
BOLLACK, 1990, Op. Cit., p. 8.
98
em torno às cinzas do apolíneo augúrio.
Naufraga a pólis – podes conferi-lo -;
a cabeça, já é incapaz de erguê-la
por sobre o rubro vórtice salino:
morre no solo – cálices de frutas;
morre no gado, morre na agonia
do aborto. O deus-que-porta-o-fogo esfola
a pólis – praga amarga -, despovoando
as moradas cadméias.
v. 19-29.
A cidade é descrita como um navio à deriva
225
e, por si, não é capaz de erguer-se
sem o apoio dos fortes braços da divindade ou de Édipo. Os frutos da terra perecem,
ainda fechados nos botões, morrem as manadas de bois e os rebentos concebidos pelas
mulheres não nascem
226
. Brandindo a sua tocha, o deus porta-fogo bate à porta da
cidade devastando as residências cadméias.
Aos olhos dos tebanos, no começo da peça, Édipo é a esperança e a
salvação. Ele se diz renomado e glorioso Édipo (v.8). Os habitantes
de Tebas vão consultá-lo portando os ramos rituais suplicantes (v.3):
Assim se dirigem aos altares (do palácio) do rei (v.16). Édipo é
considerado “senhor supremo” (v.40), “melhor entre os mortais” (v.
46) e “salvador” (v. 48). O sacerdote incita-o a salvar, novamente, a
pólis, como anteriormente o fizera (vv.52-3)
227
.
O Sacerdote deposita sua esperança na capacidade do novo rei, que outrora fora
capaz de derrotar a terrível e mortífera Esfinge
228
, oferecendo a Tebas uma sorte
“supostamente” favorável. O povo reconhece a humanidade de Édipo e sua sabedoria.
Porém se ele não é tal qual um deus, e somente os deuses são infalíveis, logo no começo
temos a indicativa de que mesmo o grande decifrador de enigmas poderia fracassar.
Caso nenhuma atitude fosse tomada a contento, a pólis corria o risco de tornar-se
uma espécie de cidade fantasma, inabitada, deserta. É como se o Sacerdote avisasse a
Édipo que uma torre ou nau, com efeito, por mais vasta que seja, não é nada, se vazia de
225
BOLLACK, 1990, Op. Cit., p. 15.
226
Poderíamos julgar que esta situação caótica estava diretamente ligada ao casamento impuro de Édipo
com Jocasta.
227
FRANCISCATO, Maria Cristina Rodrigues da Silva. τχη e Caráter de Hipólito em Eurípides. Tese
apresentada ao programa de pós-graduação em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo : São
Paulo, 2006, p. 266.
228
Cf., Édipo Rei, vv. 35-38.
99
homens. O Sacerdote reconhece que a presença física das pessoas e de seus espíritos dá
vida à pólis. Na ausência do humano a cidade ficaria desolada e o silêncio, assustador.
Após descrever o próprio sofrimento, Édipo disse que não se manteve inerte. A
necessidade de preservar uma memória vívida e positiva
229
a respeito do seu governo
motiva-o a tomar uma atitude, antes que seja tarde. Seu primeiro passo, assumindo que
não desconhece as dores do povo e as sofre na própria pele, demonstra que ele não é
insensível e que antes mesmo de ouvi-los tomara uma providência. Ele é atento, ciente
das suas obrigações e solidário à dor dos cidadãos
230
. Ao ouvir a voz do Sacerdote de
Zeus, ele afirmou que, após muito pensar, encontrara apenas um remédio possível:
enviar Creonte à Delfos para buscar uma explicação àquela situação catastrófica
231
.
A chegada de Creonte aparentemente anuncia boas notícias. Imediatamente,
Édipo dirige-se a ele e solicita-lhe a resposta oferecida pela divindade. Diz que ele
poderá pronunciar frente aos presentes o que a divindade exigiu para exterminar a peste,
pois é um assunto de interesse comum. Segundo as notícias trazidas de Delfos por
Creonte a cidade estava contaminada por um miasma.
95ΚΡΕΩΝ:Λέγοιμ´ἂνοἷ´ἤκουσατοῦθεοῦπάρα
ἌνωγενἡμᾶςΦοῖβοςἐμφανῶςἄναξ
μίασμαχῶραςὡςτεθραμμένονχθονὶ
ἐντῇδ´ἐλαύνεινμηδ´ἀνήκεστοντρέφειν.
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Ποίῳκαθαρμῷ;τίςὁτρόποςτῆςξυμφορᾶς;
[100]{
ΚΡΕΩΝ}Ἀνδρηλατοῦντας,ἢφόνῳφόνονπάλιν
λύοντας,ὡςτόδ´αἷμαχειμάζονπόλιν.
Creonte: Escutarás tal qual ouvi do deus.
Sem circunlóquio, Foibos, pleniluz,
Mandou-nos expulsar o miasma. Aqui
cresceu, e há de crescer, se não ceifado.
Édipo: Como nos depuramos? Qual desgraça?
Creonte: Caçar o réu, pagar com morte o morto:
Que escarcéu faz na pólis este sangue!
vv. 95-101
229
Cf., Édipo Rei, vv. 49-50.
230
Cf., Édipo Rei, vv. 60-1.
231
Cf., Édipo Rei, v. 69.
100
Creonte esclarece que para reaverem a paz deveriam encontrar e punir um
assassino. O termo miasma designa o flagelo descrito pelo Sacerdote e que afeta a todos
que tiveram contato com o assassino
232
, sendo, portanto, contagioso. O miasma é como
se fosse uma doença infecciosa e que pode atingir uma família ou mesmo uma cidade
inteira, não se sabendo ao certo como era transmitida. Sua cura dá-se mediante o
isolamento do indivíduo submetido aos rituais de purificação impostos pelo deus
ofendido ou pelos seus sacerdotes
233
.
Le terme
μίασμα designe le fléau décrit par le prêtre (v.22-30), mais
en lui donnant une cause. Sa violence s’explique: elle repose sur un
détournement des forces de croissance qui se déploient en dehors des
limites du bien. L’oracle revèle, dans la “souillure”, une cause
“collective”, non identifiée, de la calamité. Pour Kamerbeek, ce serait
à la fois la “pollution” qui dévaste le pays, touchant la communauté,
et la malédiction qui pèse sur le meurtrier, l’auteur de la
“pollution
234
”.
Sófocles ainda utiliza a metáfora da agricultura, pois o mal precisa ser ceifado
antes que se espalhe de maneira irreversível pela cidade; ou seja, a contaminação deve
ser contida rapidamente. Esta situação será relembrada no párodo, porque o solo
improdutivo faz crescer o mal que deverá ser exterminado. O mal é explicado porque o
assassino de Laio encontra-se à solta sem a devida punição.
Temos no episódio uma possível interpretação individual por parte de Creonte
em relação às palavras do oráculo, ou uma exigência de Édipo para além do que Creonte
era capaz de compreender? Creonte esclarece que a divindade exige uma reparação.
Édipo abre um inquérito em direção a Creonte através de uma série de perguntas que
revelam as incoerências de um passado obscuro. Mas até que ponto Creonte interpretou
bem o oráculo? Ele repetiu as palavras tais quais ouviu? Ele também não deixa claro se
ouviu mais informações da Pitonisa ou se ele próprio concluiu que se tratava da morte
232
DAWE, 1968, Op. Cit., p. 98.
233
BOLLACK, 1990, Op. Cit., p. 56
234
BOLLACK, 1990, Loc. Cit.
101
de Laio. A grave omissão de perseguir o assassino do antigo rei e cunhado levaram
Creonte a interpretar espontaneamente a palavra sagrada, sem mais perguntas
235
?
Que uma divindade exija vingança implica na obrigação dos tebanos em vingar
o seu rei como o fariam pela morte dos parentes mais próximos, e eles faltaram para
com este dever. Se foi isto mesmo que o oráculo disse, segundo as palavras de Creonte,
a única pista para a identificação do assassino também implica numa falha:
[110] {ΚΡΕΩΝ} Ἐν τῇδ´ ἔφασκε γῇ· τὸ δὲ ζητούμενον
ἁλωτόν,ἐκφεύγειδὲτἀμελούμενον.
Creon: Aqui, falou. Só se acha o que se caça;
o que negligenciamos nos escapa.
vv.110-111
O que pensar da frase de Creonte? Enxergamos aqui a possibilidade de uma
censura por parte do oráculo, talvez a partir da interpretação de Creonte, sobre os
tebanos negligentes em relação à investigação do assassinato do antigo rei. O oráculo
em Delfos declarou a razão pela qual Tebas sofria de uma praga: ela estava poluída
porque a morte de Laio não foi vingada, a única solução era punir o assassino.
Solucionar o assassinato de Laio seria corresponder às expectativas alheias
236
.
O oráculo enfatiza a negligência e o dever da comunidade de descobrir e
expulsar o assassino e critica que tenham por tanto tempo permitido viver entre eles o
criminoso. Tal indiferença os deuses não poderiam perdoar. As questões pretendem
resgatar o mistério da morte de Laio. Sabe-se que ele morreu a caminho de Delfos e
segundo uma testemunha o séqüito fora atacado por várias mãos.
235
MARSHALL, 2000, Op. Cit., p. 173. “Esta maleabilidade da palavra oracular, decorrente dos
acidentes possíveis em sua transmissão e interpretação, implica certa precariedade, podendo mesmo ser
eventualmente manipulada pelos legados. O próprio Creonte faz largo uso (senão abuso) desta sua
posição, pois tanto protela a transmissão do oráculo quanto o permeia de comentários pessoais de caráter
interpretativo, contrários à índole sintética e enigmática com que se notabilizaram as respostas oraculares.
Seus ‘esclarecimentos’, portanto, comportam larga margem de interferência pessoal, e nem a mensagem é
transmitida corretamente, pois sabemos que a pitonisa proferia as respostas em versos hexâmetros,
métrica esta ausente na mensagem reportada por Creonte. O cunhado de Édipo demonstra então ser um
consultante de eficácia duvidosa, o que pode favorecer posteriores ilações quanto à lisura de sua
conduta”.
236
FRANCISCATO, 2006, Op. Cit., p. 267.
102
{ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Κακὸνδὲποῖονἐμποδών,τυραννίδος
οὕτωπεσούσης,εἶργετοῦτ´ἐξειδέναι;
[130]{
ΚΡΕΩΝ}ἩποικιλῳδὸςΣφὶγξτὸπρὸςποσὶσκοπεῖν
μεθένταςἡμᾶςτἀφανῆπροσήγετο.
Édipo: Derruído o rei, que mal, travando o pé,
impede assim a solução do caso?
Creon: A Esfinge, canto-enigma, o que estiver
aos pés, olhar; deixar velado o opaco.
vv. 128-131
O abandono da investigação foi justificado pela presença maléfica da Esfinge, que
era no passado a maior preocupação de todos. Contudo, o argumento não nos parece
sustentável apenas se referindo à Esfinge, pois com a chegada de Édipo ela foi vencida e a
cidade liberta. Por que não resgataram a investigação?
Seja como for, tudo indica que existia uma indiferença coletiva na
corte que impediu a apuração do assassinato. Havia um impedimento
obscuro que vedava, mesmo após a liberação da Esfinge. A corte de
Tebas não estava disposta a defrontar-se com as verdadeiras causas da
morte de Laio, como se uma apuração pudesse confirmar suspeitas
obscuras
237
.
Édipo diz que ouvira falar de Laio, mas que nunca o vira. Mal sabia Édipo que
não apenas o havia visto, como fora seu algoz. Toda a história em torno do assassinato
se fundamenta a partir do ouvir falar
238
. Tudo o que se sabe a respeito da morte de Laio
é insuficiente para se atingir uma resposta em sua plenitude. Édipo encontra-se
notadamente preocupado, pois um crime ocorrido numa época tão distante é difícil de
ser solucionado. As provas, as evidências, os testemunhos podem ter se apagado com o
tempo. Como encontrar a resposta em meio à tamanha nebulosidade? Aos poucos Édipo
consegue extrair de Creonte detalhes. Ele, recém-chegado a Tebas, preocupa-se mais
237
ROSENFIELD, Kathrin H. “Dos ‘Erros’ de Sófocles aos Indícios Concretos do ‘Caso’ Édipo”. Unicamp
: Phaos -2005 (5), p 87.
238
Cf., Édipo Rei, v. 290.
103
com o resgate desta memória mergulhada no esquecimento do que os cidadãos da pólis
que não investigaram o crime
239
.
Portanto, Édipo pensa saber o que faz ao investigar o passado para expiar o
miasma do presente e garantir um futuro promissor à pólis. As perguntas que lhe
atormentavam a alma precisavam de respostas, por mais calamitosas que elas lhe
resultassem, e, mesmo que sua vida fosse arruinada, ele não retrocederia. Confiante na
própria capacidade, Édipo profere palavras fatais:
Ἀλλ´ἐξὑπαρχῆςαὖθιςαὔτ´ἐγὼφανῶ·(...)
Ἀλλ´ὡςτάχιστα,παῖδες,ὑμεῖςμὲνβάθρων
ἵστασθε,τούσδ´ἄραντεςἱκτῆραςκλάδους,
ἄλλοςδὲΚάδμουλαὸνὧδ´ἀθροιζέτω,
145
ὡςπᾶνἐμοῦδράσοντος·ἢγὰρεὐτυχεῖς
σὺντῷθεῷφανούμεθ´ἢπεπτωκότες.
Desato o nó de novo desde a origem. (...)
Sem mais delongas, abandonai meninos,
os altares, nas mãos os ramos súplices.
Alguém reúna aqui o povo cádmio.
Neste afazer me empenho. Atue o nume
e recolhamos júbilo ou catástrofe.
v. 132/142-46
Estas palavras exprimem a disposição de Édipo, justificando seus sentimentos
240
e a preocupação com o povo e em particular com o futuro da cidade. Ele investigará a
fundo a questão até obter uma resposta. Para tanto, ele deverá buscar a origem de todo o
mal. É interessante notar que ao mesmo tempo em que ele convida para que abandonem
os altares convoca toda a população para que possa ouvi-lo.
Como no episódio da Esfinge, ele está disposto a desvendar o novo mistério
acreditando no triunfo. Sua determinação é taxativa e nada o fará desistir. Édipo – o
decifrador de enigmas – tem diante de si outro desafio: desvendar o assassinato de Laio
e imortalizar sua fama de herói e salvador de Tebas.
O que temos diante de nós é a necessidade de se transmitir uma mensagem. O
oráculo trazido por Creonte foi claro: expulsar daquelas terras a poluição alimentada
239
ROSENFIELD, 2005, Op. Cit., pp. 87.88.
240
BOLLACK, 1990, Op. Cit., p. 80.
104
naquele país; eles não deveriam nutri-la, caso contrário, a cidade não seria curada.
Indiretamente, a cidade está ligada a esta falta cometida no passado, porque sofre as
conseqüências do assassinato de Laio. O foco e o mandamento do deus não deixam
dúvidas. Não trata diretamente do assassinato, mas do definhamento de uma
comunidade que tem nutrido um mal
241
. O único remédio possível é um ritual de
purificação matando ou expulsando o criminoso.
O autor da morte, ironicamente, apresenta a vingança contra o assassino e
predispõe-se a buscar as raízes de um crime que se encontra num arquivo morto. Édipo
apela para a consciência cívica e se empenha em resolver um crime esquecido. Salienta
que além de agir em nome do falecido, da cidade e dos cidadãos, age em próprio
proveito. Ele acredita que contra ele os assassinos podem se voltar no futuro tramando
sua morte. Seja para o bem ou para o mal, ele atingiria a verdade.
Édipo finaliza dizendo que age em nome da divindade, sua declaração mostra
que ele se vê assistido por ela. Ele atende ao pedido do Sacerdote porque corresponde
ao mesmo tempo à deliberação divina. A situação inicial do triunfo sobre a Esfinge é
transferida para a ordem do divino; a ação de Édipo não poderia ser exitosa sem o
subsídio de Apolo. Não obstante, as palavras do Sacerdote são ambíguas.
ΙΕΡΕΥΣ}Ὦπαῖδες,ἱστώμεσθα·τῶνδεγὰρχάριν
καὶδεῦρ´ἔβημενὧνὅδ´ἐξαγγέλλεται.
Φοῖβοςδ´ὁπέμψαςτάσδεμαντείαςἅμα
[150]
σωτήρθ´ἵκοιτοκαὶνόσουπαυστήριος.
Sacerdote: Meninos, já podemos retirarmo-nos,
pois nos moveu o apalavrar do rei.
Apolo nos enviou a profecia:
retorna, Sóter, e nos salva e cura!
vv. 147-150
O Sacerdote exprime a voz da divindade que reclama a vingança. Apesar de
reconhecer em Édipo a palavra empenhada, ele finaliza acreditando que a salvação e a
241
CARAWAN, Edwin. “The edict of Oedipus (Oedipus Tyrannys 223-51)”. The American Journal of
Philology, vol., 120, no. 2. (Summer, 1999), p. 195.
105
cura proviriam de Apolo. Denominado na fala do Sacerdote como aquele que enviou as
profecias, Apolo é conhecido dentre seus epítetos como deus curador. Assim, Apolo
seria aquele que restringe o mal, o médico da pólis, que afastará a calamidade e a
morte
242
. Através do qualificativo Paian, que aparecerá na voz do coro no primeiro
estásimo, temos a confirmação destas palavras. Apolo é o deus curador, que restringe o
mal, é o que ataca e destrói.
4.2. “Incontáveis, a pólis morre”. (v. 179): oração, súplica, esterilidade, doença e
morte
O párodo apresenta-nos uma hipótese possível de interpretação para a hamartía
na peça porque a narrativa gira em torno do nascimento de um enjeitado: Édipo e
porque o nascimento e a sobrevivência dele são vitais para a realização do incesto e do
parricídio. O párodo combina uma oração de invocação aos deuses e um canto de
lamentação. Estendendo-se por três pares de estrofes, o primeiro canto coral é um dos
mais longos dentre as tragédias de Sófocles que nos restaram
243
. A pólis encontra-se
homenageada na referência direta aos deuses e o choro e os lamentos representam o
espaço temporal da Guerra do Peloponeso e encenam um ambiente de oração e súplica.
O tom suplicante permanece por todo o canto e na primeira estrofe o coro invoca
repetidamente aos deuses pela triste sorte da cidade e obscuridade dos oráculos. Logo
no início, as palavras do coro se dirigem para Zeus, deus justiceiro, “senhor do Céu, Pai
dos deuses e dos homens
244
,” que reúne em si todas as qualidades: astúcia e poder. A
242
A tradução de Zambujo Fialho apresenta uma melhor visualização das palavras do Sacerdote: “E que
Febo, que enviou estes oráculos, seja ao mesmo tempo nosso salvador e exterminador do mal”.
243
BURTON, Richard. The Chorus in SophoclesTragedies. Oxford : Clarendon Press, 1980. p. 143.
244
VERNANT, 2001, Op. Cit., p. 233 e 261. Gostaríamos de refletir sobre a primeira divindade evocada
pelo coro. Interessantemente, Zeus também recebeu uma profecia que predizia que ele sucumbiria pelas
mãos de um filho. Um filho de Métis e Zeus herdaria da mãe a mesma astúcia ardilosa sendo invencível e
106
ação no drama se dá à luz da necessidade de se reparar uma profunda violação de suas
leis; no interior da obra se trata de reparar um crime de regicídio do qual Laio fora
vítima e no âmbito extracênico temos um crime a ser reparado de incesto e parricídio
cometidos por Édipo na ignorância.
Nos três primeiros versos destaca-se uma tripla evocação, trazendo a doce
palavra de Zeus soberano, mediada pelo santuário de Delfos em direção a Tebas,
destinatária desta mensagem
245
. Toda mensagem pressupõe uma recepção. O coro
deseja compreender as palavras do oráculo, questionando-lhe seu sentido. No entanto,
ele não se arrisca a uma interpretação equivocada e o medo e a desorientação
incorporam-se à sua voz.
{ΧΟΡΟΣ}:ὮΔιὸςἁδυεπὲςφάτι,τίςποτετᾶςπολυχρύσου
Πυθῶνοςἀγλαὰςἔβας
Θήβας;Ἐκτέταμαιφοβερὰνφρένα,
δείματιπάλλων,
ἰήιεΔάλιεΠαιάν,
155
ἀμφὶσοὶἁζόμενοςτίμοιἢνέον
ἢπεριτελλομέναιςὥραιςπάλιν
ἐξανύσειςχρέος·
εἰπέμοι,ὦχρυσέαςτέκνονἘλπίδος,
ἄμβροτεΦάμα.
Coro: Suave fala de Zeus,
o que nos vem de Delfos, toda-ouro,
à bela Tebas?
Coração transido,
o pavor me oprime, Apolo Délio,
senhor do grito lenitivo!
Ao meu redor, tremor:
Qual meu tributo? Um novo rito,
rito refeito ao ciclo da estação?
Diz, filha de Élpis-ouro,
Voz ambrósea.
vv. 151-8
Ainda na primeira estrofe, o coro dirige um apelo a Apolo, na condição de deus
oracular, para que apresente o conforto, a salvação e a cura. A purificação e salvação da
venceria o pai. Ameaçado pelo casamento que o consagra rei dos deuses e de ter destino semelhante ao
reservado ao soberano anterior: seu pai, caindo pelas mãos do próprio filho, Zeus enganou Métis e a engoliu.
Ele se torna a própria Soberania, todo astúcia, metíeta. Nada mais poderia surpreendê-lo, enganar sua
vigilância, contradizer seus desígnios. Através deste episódio Zeus tornou-se a própria Soberania,
inquestionável. Ele tornou-se pai e mãe ao mesmo tempo, pois Atena nasceu de sua cabeça. A narrativa
encontra-se em Hesíodo, Teogonia, v. 886-900 e v.924-26.
245
BOLLACK, 1990, Op. Cit., p. 87.
107
cidade procedem da força dos oráculos
246
e o apelo a Apolo adquire um simbolismo
particular, pois este é o deus da luz e haverá de iluminar este enigma que se esconde na
penumbra do passado. Temos, nesta perspectiva, a ambigüidade da função atribuída à
luz. Se, por um lado ela ilumina, por outro, cega, ou pelo menos ofusca. Em relação aos
dons proféticos de Apolo, estes se associavam à loucura profética e, segundo Dodds:
Do alto de seu conhecimento divino, Apolo seria capaz de dizer o que
fazer quando alguém se sentia ansioso ou temeroso; ele conhecia as
regras do jogo complicado que os deuses jogam com a humanidade; ele
era o supremo alexikakoς (aquele que adverte sobre o mal)
247
.
Profeta inspirado, Apolo era o deus da palavra acertada, levava na mão o arco e a
lira, também era o purificador das máculas, dos crimes contra parentes de sangue, dos
pecados religiosos
248
. Temos em seguida uma antítese: νέονe πάλιαν
249
.
O coro dirige-se
a Apolo perguntando que dívida precisava ser quitada; em que tempo se situava, a qual
evento se entrelaçava e se era recente ou advinda de um passado remoto. Sendo um débito
do passado, houve, por ventura, um período de omissão. Se o coro assim se remete a
Apolo, se o deus sabe o que eles devem fazer e a razão de tudo, nada mais natural que o
coro queira compreender o que se passa.
O coro finaliza a primeira estrofe cantando a esperança
250
. No prólogo o oráculo
indica uma solução para os tormentos da pólis, possivelmente todos se colocam na
expectativa de que tudo se resolverá, dado o empenho de Édipo. Uma vez que a peça trata
da construção e desvendamento de um enigma, e, levando-se em consideração a
246
A importância dos oráculos é definida no desenrolar da ação: um oráculo anterior obrigara Laio e
Jocasta a se desfazerem do próprio filho; também fora um oráculo que conduzira Édipo para longe de
Corinto abandonando seus supostos pais. Assim, as personagens se movem com a intenção de evitar os
oráculos. E é precisamente um oráculo trazido por Creonte que movimenta a ação. Dito isto, não podemos
afirmar que Édipo seja impiedoso e não acredite neles, é claro que ele deseja evitar os oráculos malignos,
mas também nos parece que ele sabe respeitá-los, temê-los e honrá-los.
247
DOODS, E.R. Os gregos e o irracional. São Paulo : Escuta, 2002. p. 81.
248
VERNANT, 2001, Op. Cit., p. 234.
249
BOLLACK, 1990, Op. Cit., p. 93.
250
Elpídos aparecerá ainda por 5 vezes em Édipo Rei além do verso 158: versos – 121, 836, 1432, uma
variante no verso 771 elpídon e outra em 835 elpída. O seu sentido mais rasteiro pode referir-se a
pensamento, expectação, temor, esperança. Mas o sentido de esperança no mundo grego poderia ser
ambíguo e significar ilusão. Cf. HESÍODO. O Trabalho e os Dias, vv.96/98.
108
ambigüidade da palavra
Ἐλπίδος, talvez nem todos se satisfizessem no final com a
apresentação de uma resposta aos dilemas que a cidade enfrentava.
O coro continua invocando a divindade, agora Atena, protetora da pólis, designada
pela sua imortalidade
251
e que aparece junto a Apolo. É uma deusa protetora e, sobretudo,
identificada por sua inteligência, castidade, prudência refletida e engenho
252
. Apolo e
Atena se relacionam intimamente na resolução de enigmas. Partindo-se do princípio de
que a peça estrutura-se e desenvolve-se a partir da construção de enigmas, a referência a
Atena e a Apolo não nos surpreende.
Πρῶτάσεκεκλόμενος,θύγατερΔιός,ἄμβροτ´Ἀθάνα, 
[160]
γαιάοχόντ´ἀδελφεὰν
Ἄρτεμιν,ἃκυκλόεντ´ἀγορᾶςθρόνον
εὐκλέαθάσσει,
καὶΦοῖβονἑκαβόλον,ἰώ,
τρισσοὶἀλεξίμοροιπροφάνητέμοι,
εἴποτεκαὶπροτέραςἄταςὕπερ
165
ὀρνυμέναςπόλει
ἠνύσατ´ἐκτοπίανφλόγαπήματος,
ἔλθετεκαὶνῦν.
Primeira invocação: Atena ambrósea;
depois, sua irmã, guardiã-do-solo, Ártemis,
trono augusto no círculo da praça,
e Apolo, bom-na-lança.
Defesa tripla contra Moira-Morte,
Vinde! Se outrora – a urbe em ruína –
lançastes longe o fogo da catástrofe,
voltai de novo agora!
vv.159-167
Através desta preferência, o coro indica que o homem deveria ser supervisionado
pela inteligência divina para não fracassar. Também o sacerdote, no prólogo, afirma para
Édipo a necessidade de se valer da sabedoria divina
253
na busca de uma solução para o
infortúnio da cidade. Mesmo Édipo, em sua última fala no prólogo, não descarta a ajuda
da divindade neste novo desafio. O conhecimento apresenta-se como elemento chave para
251
Em relação à imortalidade, é importante frisar que no quarto estásimo o homem será definido por sua
mortalidade, no segundo estásimo as leis imortais de Zeus jamais devem ser esquecidas. Neste aspecto, não
consideraremos desprezíveis os epítetos reservados aos deuses na passagem do primeiro canto coral.
252
VERNANT, 2001, Op. Cit., p. 234.
253
Cf., Édipo Rei, v. 42.
109
a reconstituição da pólis, mas esse conhecimento desvinculado da sabedoria divina
poderia apresentar algumas falácias próprias do humano. Tais falácias distinguiriam a
sabedoria divina da humana e a divindade sempre se sobreporia ao humano em todas as
instâncias.
O coro adverte que Apolo
254
nunca erra o alvo, seu epíteto é bom-na-lança, aquele
que acerta o alvo ao longe. Este epíteto demonstra, simbolicamente, que os deuses não
cometem erros e por isso nos convencem como a melhor opção para a salvação da cidade.
Em seguida a Atena, invoca-se Ártemis, a deusa da caça e a protetora daquela terra, pois
se exige a preparação simbólica para uma caçada incessante até que se encontre a presa: o
assassino de Laio. O ambiente descrito em torno de Ártemis refere-se a um espaço
sagrado sugerindo o culto e as libações que certamente estavam acontecendo. Isto nos
leva a uma metáfora que sustenta a presença efetiva da deusa naquele ambiente povoado
pelo sofrimento através de uma estátua no centro da Ágora
255
. Este local onde os cidadãos
gregos se encontravam para deliberar decisões é bastante propício ao enredo da peça, pois
se nota a emergência de uma solução para os tormentos da cidade.
Um detalhe desperta nossa atenção: as divindades Atena e Ártemis ocupam os
primeiros lugares na primeira antístrofe. Poderíamos pensar numa pressuposição para a
questão relacionando-a às festas cívicas que se valiam, principalmente, da participação
feminina enquanto um de seus atributos da integração cívica na pólis.
Em primeiro lugar, se o que pesa sobre a cidade tem relação com o tema da
esterilidade, como veremos na segunda estrofe e antístofre, seria viável que o coro se
dirigisse à Démeter, normalmente reconhecida como a deusa da terra, da vegetação e da
254
Como vimos no capítulo anterior, uma das possíveis definições para hamartía é errar o alvo. Neste
sentido, os deuses nunca falham, em especial, Apolo.
255
BOLLACK, 1990, Op. Cit., p. 98.
110
fertilidade
256
. Vale questionar o papel simbólico de Atena e Ártemis no universo grego
e que nos ajudaria a pensar a seleção do coro e que justifique o dilema enfrentado pela
pólis. Ainda que, de acordo com o mito, Atena rejeite o casamento e a maternidade, a
deusa também representa a fertilidade
257
.
Ártemis, também deusa da fecundidade, faz crescer os vegetais, os animais e os
humanos. Além de seus conhecidos epítetos, era também a deusa dos partos. Uma deusa
tríplice, associada ao nascimento, procriação e morte
258
. Protetora dos partos, “guarda
ainda outro limite, não só o da passagem da jovem ninfa a mulher/mãe, mas também, e
principalmente, permite a entrada da criança no mundo
259
.” A escolha do coro é um
pedido de ajuda que tem relação direta com a crise enfrentada por Tebas.
Assim sendo, após as primeiras invocações à divindade, em uma clara referência
à pólis, o coro apresenta entre lamentos os sofrimentos que os tebanos suportam e que
justificam as primeiras estrofes que clamam aos deuses por piedade, ajuda e, quem sabe,
justiça
260
. A riqueza dos detalhes é surpreendente. Deveras é um ambiente desolador.
De tal modo, o segundo par de estrofes corresponde à descrição da praga
261
: a morte, a
256
LESSA, Fábio de Souza. O feminino em Atenas. Rio de Janeiro : Mauad, 2004. p. 106-107. Cf., nota
96. O terceiro dia do festival chamava-se “Kalligéneia – a deusa do belo nascimento -, cujo interesse se
restringia essencialmente a gerar boas crianças”. Cf., p. 119. Havia também a Arrephoría, outro festival
em homenagem à Atena e que se referia à esfera da sexualidade.
257
LESSA, 2004, Op. Cit., p. 135-137. Havia um festival chamado Panathéneias que, diferentemente das
Thesmophórias, permitia a participação de todas as formas vivas da pólis. Atena e Poseidon disputaram o
domínio e soberania sobre a Ática. Cada um tratou de oferecer o que poderia fazer de melhor. Enquanto
Poseidon fez brotar uma fonte na Acrópole, Atena fez brotar a primeira oliveira, dando origem à primeira
das oliveiras sagradas, glória inconteste da terra Ática. A Ática é chamada a decidir pelo voto, escolhendo
sua divindade preferida em uma assembléia de mulheres que elege Atena. O mito estabeleceria uma
conexão tradicionalmente feminina com a fertilidade da terra. GRIMAL,1986, Op. Cit., p. 61.
258
VERNANT, Jean Pierre. A morte nos olhos – figuração do outro na Grécia Antiga: Ártemis e Gorgó.
São Paulo: Zahar Editor, 1991, p. 21. Ártemis era responsável pelos rebentos dos animais e dos humanos;
sua função é nutri-los e fazê-los crescer e amadurecer até que se tornem plenamente adultos: a mocinha
assume a condição de mãe e esposa e o efebo, a condição de hoplita, soldado-cidadão, que os gregos
reconheciam como um dos modelos para a identidade social.
259
MARQUETTI, Flávia Regina. “Limite e Transgressão: Os caminhos que levam de Ártemis a Afrodite.”
Revista Ártemis, n. 5. UFPB, pp. 1-5. p. 3.
260
VEGA, José Lasso de La. Sófocles. Madrid :Ediciones Clásicas. 1994. P. 199. O segundo conjunto de
estrofes é quase uma reprodução fiel das palavras do sacerdote. Cf., vv. 25-30.
261
BURTON, Richard. The chorus in Sophocle’s Tragedies, p. 144. Não faremos referência, por uma
segunda vez, à praga em Atenas. Aqui, nos enveredaremos por um caminho mais tortuoso. Tentar identificar
na peste uma maldição aos cidadãos e uma indireta ligação a Jocasta.
111
esterilidade das mulheres, a improdutividade – esterilidade – do solo, a destruição do
gado eram responsáveis pelo sofrimento, miséria e desespero dos cidadãos tebanos;
“plantas e mulheres estéreis – a natureza improdutiva – o crime está ligado à fonte
vital
262
”.
Ὦπόποι,ἀνάριθμαγὰρφέρω
πήματα·νοσεῖδέμοιπρόπας
[170]
στόλος,οὐδ´ἔνιφροντίδοςἔγχος
ᾧτιςἀλέξεται·οὔτεγὰρἔκγονα
κλυτᾶςχθονὸςαὔξεταιοὔτετόκοισιν
ἰηίωνκαμάτωνἀνέχουσιγυναῖκες·
175
ἄλλονδ´ἂνἄλλῳπροσίδοιςἅπερεὔπτερονὄρνιν
κρεῖσσονἀμαιμακέτουπυρὸςὄρμενον
ἀκτὰνπρὸςἑσπέρουθεοῦ.
Suporto males múltiplos.
A tropa adoece em bloco
e as armas do pensar, nenhuma nos
resguarda.
Não vinga o fruto no afamado campo;
sem dar à luz, esposas gritam dores.
Como aves, belas-asas, mais
ágeis que o fogo indômito,
todos, um a um, lançam-se às encostas
do deus crepuscular.
vv. 168-177
O coro gira em torno do termo τoκοισιν: que, dentre seus principais sentidos,
pode significar tanto criança quanto dar à luz. A referência aos nascimentos, às novas
vidas que não vingam, à dor do parto e ao sofrimento da perda dos seus infantes torna-
se evidente. A esterilidade, o aborto e a morte na infância estão associados ao malogro
em que vivem todos os cidadãos, principalmente as mulheres
263
. Neste contexto, “as
dificuldades reveladas pela dor do parto, os gritos, as dores, o delírio que o
262
LIMA, Geraldo Ferreira de. “Racionalismo, hamartía e ambigüidade em Édipo Rei de Sófocles”.
Sitientibus, Feira de Santana, No. 12, 1994. p. 17. Durante a Guerra do Peloponeso plantações inteiras foram
devastadas devido à guerra. A miséria, a fome e a ausência da comida acentuaram a imunodeficiência e a
fraqueza da população, favorecendo o surgimento da peste. Cf. BAPTISTA, Lyvia Vasconcelos. “A
representação do medo na descrição da peste em Atenas (V século a. C.)” In.: História, imagem e
narrativas. Número 4, ano 2, abril/2007, p. 116.
263
Poderíamos supor que a esterilidade tivesse ligação direta não apenas com um nascimento que não
poderia ter ocorrido no passado quanto com o nascimento de uma prole amaldiçoada: os filhos de Édipo e
Jocasta, frutos de um relacionamento incestuoso.
112
acompanham revelam o lado selvagem e animalesco da feminilidade
264
.” As mulheres,
por outro lado, através das práticas mágicas e seus cultos, possuíam o controle da
fertilidade humana e do próprio corpo, regulando “cada estágio de suas vidas
reprodutoras: menstruação, concepção, aborto, parto, amamentação e possivelmente,
menopausa
265
”.
Poderíamos interpretar que as mulheres deixavam de desempenhar um de seus
papéis na pólis enquanto as genitoras dos futuros cidadãos e guerreiros, comprometendo
a sobrevivência da cidade
266
. A cena é aterradora: mães gritando os nomes dos filhos,
maridos, irmãos perdidos, cujos gritos confusos, desesperados, coincidiam com os
cantos e orações. Não obstante, a relação do parto, da mortalidade e da insegurança com
a maternidade eram inquietações comuns às mulheres daquele período.
A população feminina na Grécia Clássica se encontrava seriamente
ameaçada pelas septicemias consecutivas ao parto ou ao aborto e a
expectativa de vida das mulheres era menor do que a dos homens,
girando em torno dos 36 anos de idade, enquanto a dos homens se
encontrava próxima dos 45 anos
267
.
Parece que Sófocles quis dizer que a divindade enviou a praga com a intenção de
atacar a própria fonte de vida e salienta que ambos: frutos e descendentes não
vingariam. É importante para o sentido que o crime assume, pois este provocou uma
profunda perturbação nas leis que regem as relações entre pais e filhos, de forma que a
praga tem relação simbólica com o crime
268
.
Esta relação entre os frutos do solo e o fruto do ventre reflete-se na
transferência em termos agrícolas para a impureza do casamento de
Édipo e Jocasta, e o que a reflexão sugere é a responsabilidade
daquele casamento profano pela colheita mirrada. Esta era uma
264
LESSA, Fábio. “Maternidade e Morte na Atenas Clássica”. Politéia, Vitória da Conquista, vol. 6, n. 1,
pp. 87-97, 2006, p. 88. Daí a importância atribuída à Ártemis no momento do parto.
265
LESSA, 2004, Op. Cit., p. 113.
266
CORINO, Luis Carlos Pinto. “Homoerotismo na Grécia Antiga – Homossexualidade e Bisexualidade,
Mitos e Verdades”. Biblos, Rio Grande, 19, 2006, p. 23.
267
LESSA, 2006, Op. Cit., p. 87.
268
MUSURILLO, Herbert. “Sunken Imagery in Sophocles' Oedipus”. The American Journal of
Philology, vol. 78, No. 1, (1957), p. 39. Não podemos nos esquecer, claro, que o contexto histórico da
peça é a reprodução das calamidades resultantes da Guerra do Peloponeso.
113
concepção que não necessitava de ênfase maior para o público grego;
a relação mágica entre o rei e a fertilidade de seus domínios era uma
crença antiga na Grécia
269
.
Provavelmente o ar estava pesado como se a própria natureza sentisse as dores e
sofrimentos do corpo humano e tivesse medo do que estava acontecendo e do porvir. A
esterilidade denota, mesmo que indiretamente, uma referência à situação de Jocasta – a
única dentre as mulheres que não poderia ter gerado um filho, pois acarretaria a
realização de uma predição divina – e a sobrevivência de uma criança que não deveria
viver. A esterilidade, a morte e a punição por uma falta cometida no passado, uma
dívida não quitada, são elementos resgatados pelo coro confirmando a tragédia que a
pólis atravessava.
O caráter desafiador da epidemia que assola a cidade é tão evidente que é
assustador demais para o povo. Se as primeiras palavras do coro remetem à divindade,
agora ele lista os sofrimentos dos cidadãos a fim de suscitar a piedade dos deuses. Na
segunda estrofe o coro enumera os diversos males sofridos na cidade. Todos estavam
emocionados e com a alma em luto ao som do lamento e do grito lancinante das
mulheres
270
.
A letargia tomara conta da pólis, os cadáveres insepultos jaziam pelas ruas numa
profanação à divindade e aos rituais fúnebres. Os deuses pareciam ter abandonado
Tebas, que se encontrava sem qualquer defesa ou imunidade
271
. Assim, completamente
à mercê da desgraça, a pólis não possuía nenhum plano ou estratégia para reverter o mal
e salvar-se da destruição.
Ὧνπόλιςἀνάριθμοςὄλλυται·
[180]
νηλέαδὲγένεθλαπρὸςπέδῳ
θαναταφόρακεῖταιἀνοίκτως·
ἐνδ´ἄλοχοιπολιαίτ´ἔπιματέρες
269
KNOX, 2002, Op. Cit., p. 99.
270
BOLLACK, 1990, Op. Cit., p.111.
271
BOLLACK, 1990, Op. Cit., p. 102.
114
ἀκτὰνπαρὰβώμιονἄλλοθενἄλλαι
185
λυγρῶνπόνωνἱκετῆρεςἐπιστενάχουσι.
Παιὰνδὲλάμπειστονόεσσάτεγῆρυςὅμαυλος·
ὧνὕπερ,ὦχρυσέαθύγατερΔιός,
εὐῶπαπέμψονἀλκάν.
Incontáveis. A pólis morre.
Portadores-de-Tânatos, tristíssimos,
os mortos proliferam pelas ruas.
Ao pé do altar acorrem mães senis,
esposas choram súplices
a dura agrura.
Fulgura o hino e o coro de lamentos.
Envia, Palas, olhi-paz, dourada
filha de Zeus,
o júbilo da ajuda.
vv.179188.
A inquietação é muito compreensível, devido ao fato de que a peste anunciava a
desertificação ao mesmo tempo em que multiplicava os mortos. O próprio equilíbrio
entre os vivos e os mortos encontrava-se ameaçado por este clima de medo e
desconfiança. Provavelmente, os cadáveres eram abandonados pelo pavor do contágio.
Os corpos de homens, velhos, mulheres e crianças de todas as idades encontravam-se
espalhados pelo chão tal como as folhas das árvores após a tempestade. O medo se
espelhava nos olhos dos sobreviventes como se a morte os aprisionasse numa loucura
febril que descortinava os horrores de uma peste e miséria indescritíveis.
Os sofrimentos desmedidos associavam-se às mortes incontáveis. Os doentes,
provavelmente, eram abandonados à própria sorte e a impressão que temos é que o
desânimo dos cidadãos ou mesmo a própria apatia os impedia de sepultar os mortos
provocando a profanação da pólis
272
. A honra aos cidadãos mortos estava comprometida
pelo medo do contágio, e a imagem dos corpos espalhados pela cidade “proliferando”
em número sem conta é desoladora.
A morte era quase certa, devido ao caráter contagioso da peste. A cidade,
gradativamente, se esvaziava e Ares seria o responsável por todo o sofrimento. A
272
ROSENFIELD, 2005, Op. Cit., p. 95. Cf., nota de rodapé no. 21.
115
tristeza, os lamentos fúnebres, a dor e o sofrimento eram ouvidos por todos os lados, e
chamaram a atenção de Édipo como ele próprio esclareceu no prólogo. Hades se
enriquecia de almas e corpos gerando a lamentação e o sofrimento, enquanto os
descendentes de Cadmo morriam e eram condenados à miséria.
Aqueles que estão quase mortos contemplam o espetáculo terrível da cidade se
esvaziando. A cidade parece-nos abandonada e os deuses o fizeram porque o
esquecimento ou mesmo a inércia impedira a resolução de um crime de Estado ocorrido
num passado distante, como se nada tivesse acontecido até então
273
. O coro encerra esta
passagem referindo-se a Palas e implorando sua ajuda. Édipo destruiu a Esfinge, mas o
coro pede à divindade que salve a cidade. Tal passagem nos parece estranha. Seria uma
ironia às pretensões de Édipo?
As pessoas afogavam-se numa tristeza sem fim, reduzidas a uma extrema
incompreensão do que se passava, e temiam até mesmo o ar que compartilhavam,
temiam os mortos, os vivos e a si mesmas, vislumbrando os mortos cujos corpos jaziam
nas ruas insepultos. Aquele era um espetáculo pungente e o choro das mulheres
aumentava a aflição no pedido de remédio para aquele mal. Um grito ecoa silencioso no
ar: de quem é a culpa? O mal permanecia misterioso, e as investigações tornavam-se
urgentes. Tudo o que haviam feito parecia inútil. Libações, súplicas e lamentos eram
insuficientes para resgatar a ordem. A peste continuava espalhando o horror e a morte.
Adiante, temos Ares, simbolizando a morte e aludindo à peste em Tebas. Uma
metáfora leva-nos a crer que tudo acontecia à noite: “ao que sobra da noite, o dia
assalta”
274
. A escuridão ocultaria detalhes importantes sobre os acontecimentos que
atormentavam a pólis, mas que o dia permitiria a contemplação da verdade oculta pelo
véu do passado.
273
ROSENFIELD, 2005, Op. Cit., p 87. Lembrar que no segundo estásimo, v. 870, o esquecimento aparece
em evidência.
274
Édipo Rei. versos 197-198
116
[190]Ἄρεάτετὸνμαλερόν,ὃςνῦνἄχαλκοςἀσπίδων
φλέγειμεπεριβόατοςἀντιάζων,
παλίσσυτονδράμημανωτίσαιπάτρας
ἄπουρον,εἴτ´ἐςμέγαν
195
θάλαμονἈμφιτρίτας,
εἴτ´ἐςτὸνἀπόξενονὅρμων
Θρῄκιονκλύδωνα·
τελεῖνγάρ,εἴτινὺξἀφῇ,
τοῦτ´ἐπ´ἦμαρἔρχεται·
[200]
τόν,ὦτᾶνπυρφόρων
ἀστραπᾶνκράτηνέμων,
ὦΖεῦπάτερ,ὑπὸσῷφθίσονκεραυνῷ.
Λύκει´ἄναξ,τάτεσὰχρυσοστρόφωνἀπ´ἀγκυλῶν
205
βέλεαθέλοιμ´ἂνἀδάματ´ἐνδατεῖσθαι
ἀρωγὰπροσταθέντα,τάςτεπυρφόρους
Ἀρτέμιδοςαἴγλας,ξὺναἷς
Λύκι´ὄρεαδιᾴσσει·
τὸνχρυσομίτραντεκικλήσκω,
[210]
τᾶσδ´ἐπώνυμονγᾶς,
οἰνῶπαΒάκχονεὔιον,
Μαινάδωνὁμόστολον
πελασθῆναιφλέγοντ´
ἀγλαῶπι‐‐‐
215
πεύκᾳ´πὶτὸνἀπότιμονἐνθεοῖςθεόν.
Ares fulminador,
sem o bronze do escudo, agora
arde e circum-troa.
Gira a espádua, retorna
rápido, sob a aura,
ao megatálamo de Anfitrite,
ao porto hostil a estranhos,
aos trácios vórtices!
Ao que sobra da noite,
o dia assalta.
Rei do ígneo fulgor,
teu raio, ó Zeus, fulmine Ares.
Senhor da Lícia,
teu arco, nervo-ouro,
dispare invencível, à vanguarda,
os dardos protetores. Com eles
cheguem as tochas flâmeas de Ártemis –
consigo a deusa as leva aos montes lícios.
Senhor da mitra áurea,
epônimo de Tebas,
eu chamo Baco em chamas,
rosto-vinho,
Evoé quando evocado,
ministro das Mênades,
com tocha ardente, contra
o deus que os deuses desestimam!
v. 190-215.
117
A luminosidade divina contrasta com a escuridão
275
. Simbolicamente,
poderíamos afirmar que somente a luz poderia trazer a verdade à tona e esclarecer todas
as dúvidas em relação à morte de Laio. Somente o revolver da memória poderia pôr fim
aos dilemas enfrentados.
O coro clama pelo retorno da divindade e espera a luz dos deuses: o raio de
Zeus, as flechas douradas de Apolo, as tochas de Ártemis e a dourada mitra de Baco –
deus tutelar de Tebas e também portador da luz – para acabarem com a obscuridade de
Ares
276
, que derramou uma sombra fúnebre e tenebrosa sobre a cidade
277
.
Poderíamos justificar a presença de Dioniso (Baco) na nova tríade apresentada
pelo coro, utilizando as palavras de Dodds a respeito da loucura ritual, cujo deus é
Dioniso
278
. O ritual dionisíaco era essencialmente catártico e Dioniso representaria uma
necessidade tão grande quanto Apolo. Mas Dioniso era extremamente ambíguo, o
grande “mestre das ilusões, sendo capaz de enganar os homens e fazê-los enxergar o
mundo como ele não é
279
”. Assim, não nos parece casual a sua presença nos versos
finais, se levarmos em consideração a natureza da peça, pois a tragédia versa,
principalmente, sobre a ilusão em que todos, principalmente Édipo, viviam.
Alguns elementos são considerados vitais à compreensão da peça e aparecem
indiretamente na voz do coro. O coro apresenta um ambiente que é o retrato de uma
condenação que responsabiliza e pune toda uma cidade por um crime que eles não
cometeram; pontua-se o tema da esterilidade, que consideramos importantíssimo ao
desenvolvimento da trama, pois tudo gira em torno de um nascimento indesejado: o de
275
HARSH, Philip. “Implicit and Explicit in the Oedipus Tyrannus.” The American Philology, vol. 79, no.
3. (1958), p. 250.
276
GRIMAL, 1986, Op. Cit., p. 44-45. Ares era objeto de culto em Tebas, considerado antepassado dos
descendentes de Cadmo.
277
Mas o poeta não esclarece a relação deste com a peste.
278
DODDS, E.R. Os gregos e o irracional. São Paulo : Escuta, 2002, p. 71. Esta alusão a Dionisos não
terá algo a ver com a gestação de Édipo? Lembremo-nos que, segundo o mito, foi num momento de
embriaguez de Laio, que por um instante se esquecera dos oráculos, que Édipo foi gerado.
279
DODDS, 2002, Op. Cit., p. 83. Apto.
118
Édipo. O enjeitado, que deveria ter morrido na tenra infância, sobreviveu devido à
condolência de um homem do povo, incumbido de matá-lo, e a sobrevivência de Édipo,
em um passado anterior aos acontecimentos da peça, fora vital ao cumprimento do
oráculo e a realização do incesto e parricídio.
Jocasta tentou aniquilar a própria prole por força de um oráculo. Francisco
Marshall, a respeito da situação de Jocasta questiona: “que mãe, de fato, atrever-se-ia a
aniquilar a própria prole como ela procurou fazer? Muitas, naquela Grécia de práticas
eugenéticas, poder-se-ia dizer, mas poucas por força de uma proclamação religiosa
como a que instou Jocasta e Laio
280
”. Seria preferível que ela fosse estéril, sofresse
aborto ou mesmo que a criança não houvesse sobrevivido, tais quais as crianças e
jovens citados no párodo, a fim de se evitar tamanha fatalidade.
4.3. Imprudência e maldição: as palavras fatais de Édipo
O primeiro episódio inicia-se com o famoso monólogo de Édipo e a maldição
que ele lança sobre o suposto criminoso escondido em terras tebanas
281
. A ironia na
maldição proferida por Édipo contra o assassino pontua que ele próprio decretou sua
pena e demonstra os primeiros indícios de uma possível falta trágica – sendo precipitado
em suas decisões – incorrendo, de certa forma, em um erro de cálculo.
Veremos no preâmbulo do decreto de Édipo, na abertura do primeiro episódio,
uma censura à comunidade que deixara um assunto de tamanha gravidade ser
postergado. Este sentimento de negligência, reafirmado no discurso de Édipo, afirma
280
MARSHALL, Francisco. Édipo Tirano: A Tragédia do Saber, 2000, Op. Cit., p. 121.
281
Normalmente divide-se o monólogo de Édipo em três seções: o preâmbulo que ocupa os versos 216 à
222; o édito que ocupa os versos 223 à 251 e incluem as medidas para se assegurar da identidade do
assassino e a sua devida punição, a maldição que Édipo lança sobre si mesmo sem o saber; e o sermão
sobre os deveres de um bom governante e do bom cidadão que ocupa os versos 252 à 275. Porém, a fim
de facilitar nossa interpretação, dividiremos o pronunciamento de Édipo em quatro seções: vv. 216-229,
230-245, 246-263, 264-275.
119
que o povo havia desconsiderado seu dever para com o rei e que agora paga por este
erro
282
. Porém, ele próprio, enquanto substituto do monarca, deveria ter se inteirado da
situação a contento, mas também não o fez.
Édipo recebe as súplicas do povo, embora seja um estrangeiro, o último dos
cidadãos, alheio ao crime, ignorante dos fatos porque não se encontrava em Tebas na
época do assassino. Ele nada sabia do ocorrido, nem do que fora falado a respeito, nem
ouvira os testemunhos. Ele apresenta as insígnias reais e reafirma seu poder
proclamando-se parente da vítima, assinalando sua relação de parentesco através da sua
união com Jocasta
283
.
A proclamação ainda possui força de impacto porque, a princípio, podemos
perceber que a pena prevista pelo oráculo é modificada por Édipo. A amplitude desta
alteração é o primeiro ponto que gostaríamos de discutir. O decreto apresenta algumas
dificuldades interpretativas: a distinção entre um decreto de excomunhão e uma
maldição; uma tendência para confundir a distinção entre culpado e informante.
{ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Αἰτεῖς·ἃδ´αἰτεῖς,τἄμ´ἐὰνθέλῃςἔπη
κλύωνδέχεσθαιτῇνόσῳθ´ὑπηρετεῖν,
ἀλκὴνλάβοιςἂνκἀνακούφισινκακῶν.
Ἁγὼξένοςμὲντοῦλόγουτοῦδ´ἐξερῶ,
[220]
ξένοςδὲτοῦπραχθέντος·οὐγὰρἂνμακρὰν
ἴχνευοναὐτός,μὴοὐκἔχωντισύμβολον·
νῦνδ´,ὕστεροςγὰρἀστὸςεἰςἀστοὺςτελῶ,
ὑμῖνπροφωνῶπᾶσιΚαδμείοιςτάδε·
«
Ὅστιςποθ´ὑμῶνΛάϊοντὸνΛαβδάκου
225
κάτοιδενἀνδρὸςἐκτίνοςδιώλετο, 
τοῦτονκελεύωπάντασημαίνεινἐμοί·
κεἰμὲνφοβεῖται,τοὐπίκλημ´ὑπεξέλοι
αὐτὸςκαθ´αὑτοῦ·πείσεταιγὰρἄλλομὲν
ἀστεργὲςοὐδέν,γῆςδ´ἄπεισινἀσφαλής.
Édipo: Rogas e o rogo – se ouves com apreço
minha fala, e cuidas da moléstia -
encontra proteção, além de alívio.
282
CARAWAN, 1999, Op. Cit., p. 196.
283
Ora, a busca pelas vítimas de assassinato dependia, em parte, da iniciativa dos parentes de sangue, tal
como notamos na Orestéia de Ésquilo – quando Orestes vinga a morte do pai matando a mãe por ordem
de Apolo. Assim, Édipo se dirige à cidade utilizando-se de prerrogativas religiosas, políticas, genealógicas
e jurídicas. Cf., MARSHALL, 2000, Op. Cit., pp.178-180.
120
Alheio ao dito, alheio ao sucedido,
declaro: só e sem melhor indício
será difícil prolongar a busca.
Na condição de cidadão tardio,
proclamarei aos cádmios o seguinte:
se alguém souber que mãos mataram Laio,
filho de Lábdaco, a esse alguém ordeno,
que se apresente a mim e conte tudo.
Se teme a punição ao pronunciar-se
contra si mesmo, afirmo que uma pena
sofrerá: parte ileso para o exílio.
vv. 216-229.
O édito é público e dirige-se a todos os moradores de Tebas: cidadãos, mulheres,
servos, estrangeiros, autores do crime ou cúmplices. No primeiro verso da proclamação
de Édipo, o verbo
αἰτεῖς aparece duas vezes e representa o clima de tensão que une o
povo ao seu governante
284
. O verbo, aplicado ao contexto da peça, poderia significar
um pedido aproximando-se da situação de suplicantes na qual se encontravam os
tebanos. A introdução do verbo
λάβοις, compreendido no sentido figurado, demonstra
que Édipo tenta compreender e solucionar a situação pelos sentidos ou pela inteligência.
As palavras escolhidas por Édipo são sintomáticas de uma atitude
própria de um deus. Elas aceitam e prometem a concretização da
oração feita pelo coro (que foi dirigida a Atena, Ártemis, Apolo, Zeus
e Dionísio) e são expressas numa fórmula característica do oráculo
délfico
285
.
A inserção da palavra σύμβολονassegura que,embora alheio aos fatos, ele não
desejava investigar sem um indício seguro porque não queria enganar-se
286
. Édipo
inspira confiança nos tebanos porque sua capacidade se fundamenta na certeza de seu
êxito, pois já dera provas de sua competência. Mas ele sente falta de pistas, signos,
evidências, pois ele não sabe nada a respeito do crime
287
. Portanto, apesar de sua
284
BOLLACK, 1990, Op. Cit., p. 140.
285
KNOX, 2002, Op. Cit., p. 142.
286
BOLLACK, 1990, Op. Cit., p. 142.
287
Até aquele momento, ele acreditava realmente nada saber do crime. Quanto mais reconhecer-se como o
verdadeiro culpado.
121
qualidade de estrangeiro, ele se enquadra como cidadão e “proclama” aos descendentes
de Cadmo seu desígnio.
Os primeiros versos da proclamação de Édipo são ambíguos e aparentemente
destinam-se ao informante. Parece que a ordem para o exílio e a excomunhão só se
aplicaria ao autor do crime, mas, se compreendermos as palavras de Édipo noutra
perspectiva, poderíamos considerar que qualquer um que se mantivesse omisso e
escondesse o criminoso ostentaria certo grau de culpa e deveria ser punido em
conformidade
288
.
O decreto proferido por Édipo desenvolve-se a partir de alguns pressupostos:
quem conhece o assassino ou o responsável deve dar informações; aquele que se auto-
incriminar seguirá seguro para o exílio (cf., versos 224-29); mas se alguém, mesmo
conhecendo quem é o culpado, se mantiver em silêncio, será excomungado e
considerado traidor da pólis (cf., versos 233-241).
[230]Εἰδ´αὖτιςἄλλονοἶδενἢ´ξἄλληςχθονὸς
τὸναὐτόχειρα,μὴσιωπάτω·τὸγὰρ
κέρδοςτελῶ´γὼχἠχάριςπροσκείσεται.
Εἰδ´αὖσιωπήσεσθε,καίτιςἢφίλου
δείσαςἀπώσειτοὔποςἢχαὐτοῦτόδε,
235
ἃκτῶνδεδράσω,ταῦταχρὴκλύεινἐμοῦ.
Τὸνἄνδρ´ἀπαυδῶτοῦτον,ὅστιςἐστί,γῆς
τῆσδ´ἧςἐγὼκράτητεκαὶθρόνουςνέμω
μήτ´εἰσδέχεσθαιμήτεπροσφωνεῖντινα,
μήτ´ἐνθεῶνεὐχαῖσιμήτεθύμασιν
[240]
κοινὸνποιεῖσθαι,μήτεχέρνιβοςνέμειν·
ὠθεῖνδ´ἀπ´οἴκωνπάντας,ὡςμιάσματος
τοῦδ´ἡμὶνὄντος,ὡςτὸΠυθικὸνθεοῦ
μαντεῖονἐξέφηνενἀρτίωςἐμοί.
Ἐγὼμὲνοὖντοιόσδετῷτεδαίμονι
245
τῷτ´ἀνδρὶτῷθανόντισύμμαχοςπέλω·
Se o assassino for um outro alguém
de fora, mesmo nesse caso, fale
e colha a recompensa do homem grato.
Não sendo aceita a minha oferta, se,
receando pelo amigo ou por si mesmo,
alguém se cale, assim procederei:
seja qual for a identidade dele,
288
CARAWAN, 1999, Op. Cit., p. 188.
122
até onde meu trono e cetro imperem,
ninguém o deixe entrar, ninguém lhe fale,
ninguém se lhe associe em atos sacros,
ninguém a água lustral – ninguém! – lhe oferte.
Merece o teto acolhedor um homem
que nos macula a todos com seu miasma,
conforme revelou o deus em Delfos?
E quanto a mim, eu luto em prol do nume,
eu luto pelo nome do homem morto.
vv. 230-245.
Com efeito, segundo os versos, ele reconhece que se alguém sabia de alguma
coisa, mas escolheu manter-se em silêncio, por seu silêncio era conivente e, portanto,
cúmplice. Para Édipo não é convincente que ninguém saiba nada a respeito do
assassinato, ele acredita na existência de certa má vontade do povo em revelar o que
sabe.
A pressão obrigaria a população, temente, a buscar nos recônditos da memória
uma resposta. Por um lado, se o criminoso que vive impunemente na cidade se auto-
incriminar, haverá a possibilidade de uma penalidade mais branda, e por outro, se
alguém teme pelo bem de algum amigo ou parente mantendo-se calado, sua
cumplicidade mereceria punição à altura. Édipo optou pelo banimento e não mencionou
a morte como penalidade
289
. Não obstante, o oráculo trazido por Creonte exigia a
punição do culpado pela morte de Laio. Tebas tinha a obrigação de vingar seu antigo rei
e nada fizera. Omitir-se em relação a este crime e permanecer na inércia configuravam,
aos olhos de Édipo, falta grave.
Édipo, um cidadão tardio, um estrangeiro recém-chegado à cidade, propõe-se a
resolver um novo enigma. Ele preocupa-se com questões esquecidas que só dizem
respeito aos que viveram no período da morte de Laio; por isso reconhece a dificuldade
em se identificar o assassino, tendo em vista o tempo passado e a ausência de pistas
favoráveis à investigação.
289
BOLLACK, 1990, Op. Cit., p. 157.
123
O assassino encontrava-se presente em Tebas e entre os tebanos, porém não
poderia manter-se às escondidas por mais tempo. Este criminoso seria excluído de todos
os contatos sociais e excomungado. Mas se viesse a assumir a própria culpa, partiria
voluntariamente da cidade. Édipo apresentou a punição antes mesmo de estabelecer a
investigação do crime. Além do mais, ele pronuncia uma execração em seu nome não
mais como estrangeiro, mas enquanto rei. Ele estabelece uma proibição. O
pronunciamento de Édipo afasta o assassino da vida social, da vida religiosa e urbana,
da vida familiar
290
. Afinal, a gravidade da falta cometida afeta a todos.
A ocultação do criminoso representaria uma cumplicidade equivalente ao
assassinato, por isso o crime mantido em segredo deveria ser imediatamente revelado. O
assassinato de Laio foi um crime contra o Estado e os conspiradores poderiam tramar
contra Édipo se o assassino não fosse identificado
291
.
κατεύχομαιδὲτὸνδεδρακότ´,εἴτετις
εἷςὢνλέληθενεἴτεπλειόνωνμέτα,
κακὸνκακῶςνινἄμορονἐκτρῖψαιβίον·
ἐπεύχομαιδ´,οἴκοισινεἰξυνέστιος
[250]
ἐντοῖςἐμοῖςγένοιτ´ἐμοῦξυνειδότος,
παθεῖνἅπερτοῖσδ´ἀρτίωςἠρασάμην.
Ὑμῖνδὲταῦταπάντ´ἐπισκήπτωτελεῖν,
ὑπέρτ´ἐμαυτοῦτοῦθεοῦτετῆσδέτε
γῆςὧδ´ἀκάρπωςκἀθέωςἐφθαρμένης
255
Οὐδ´εἰγὰρἦντὸπρᾶγμαμὴθεήλατον,
ἀκάθαρτονὑμᾶςεἰκὸςἦνοὕτωςἐᾶν,
ἀνδρόςγ´ἀρίστουβασιλέωςὀλωλότος,
ἀλλ´ἐξερευνᾶν·νῦνδ´ἐπεὶκυρῶτ´ἐγὼ
ἔχωνμὲνἀρχὰςἃςἐκεῖνοςεἶχεπρίν,
[260]
ἔχωνδὲλέκτρακαὶγυναῖχ´ὁμόσπορον
κοινῶντεπαίδωνκοίν´ἄν,εἰκείνῳγένος
μὴ´δυστύχησεν,ἦνἂνἐκπεφυκότα
νῦνδ´ἐςτὸκείνουκρᾶτ´ἐνήλαθ´ἡτύχη·
Ao inferno – assassino! – esteja oculto
sozinho ou com o bando de comparsas.
Na miséria, sem Moira, acabe o mísero!
E digo mais: se acaso em meu palácio,
consciente, acontecer de recebê-lo,
recaia em mim a imprecação que faço.
290
SÓFOCLES. Rei Édipo. Tradução: FIALHO, Maria do Céu Zambujo. Lisboa : Edições 70, 2006, p. 71.
Cf., nota 30 em referência aos versos 238-240.
291
CARAWAN, 1999, Op. Cit., p. 201.
124
Adjuro todos a cumprir o dito,
pelo nume, por mim, por esta terra
sem fruto, sem o deus, sem vida, nada.
Mesmo se o deus não nos forçasse à ação,
não conviria deixar impura a pólis:
quando o melhor falece, o basileu,
mister é esclarecer. Aconteceu-me
de herdar o mando que lhe pertencia,
de herdar o seu leito e desposar-lhe a esposa;
não o privasse a sorte má de filhos,
teriam os nossos uma só matriz.
Sobre a cabeça dele pesa o azar.
vv. 246-264.
A fim de aumentar a dramaticidade, Édipo comprometeu-se acrescentando uma
significativa proposição: caso ele abrigasse sob seu teto o criminoso de forma
consciente, que recaísse sobre ele a maldição. Por diversas vezes ele frisa a questão da
conivência no ocultamento do crime.
Na medida em que insiste, Édipo age em conformidade com o oráculo,
posicionando-se como aliado da divindade e da vítima. Ele invoca a maldição contra o
assassino ou os assassinos; ironicamente, embora ainda não saiba que é o culpado, ao
atirar a maldição contra si mesmo, ele deve provar se abriga ou não o assassino. A
maldição que Édipo lança sobre o assassino deixa-nos em suspenso porque precisamos
entender que ele também amaldiçoa as pessoas supostamente envolvidas no
assassinato
292
.
Édipo estava empenhado em encontrar o culpado e convidou o assassino a se
autodenunciar
293
. Os tebanos são convidados a obedecerem-no, seja em nome da cidade,
da lei ou da própria divindade
294
. Assim, ele desafiou todos os presentes a declararem
sua inocência ou culpa, sob pena de sofrerem a maldição. O repúdio ao assassino se
expressou em termos enérgicos e o decreto de Édipo foi compreendido pelos deuses,
cidadãos e mesmo pelo assassino - e seus possíveis cúmplices -, devido a sua clareza. O
292
CARAWAN, 1999, Op. Cit., pp. 190-91
293
CARAWAN, 1999, Op. Cit., p. 210.
294
BOLLACK, 1990, Op. Cit., p. 159.
125
exílio representou um estímulo à confissão e uma pena mais branda. Se o responsável
confessasse, seria simplesmente exilado, mas nos versos 100 a 101 a divindade exigiu
que se deveria pagar com a morte o morto.
ἀνθ´ὧνἐγὼτάδ´,ὡσπερεὶτοὐμοῦπατρός,
265
ὑπερμαχοῦμαι,κἀπὶπάντ´ἀφίξομαι,
ζητῶντὸναὐτόχειρατοῦφόνουλαβεῖν,
τῷΛαβδακείῳπαιδὶΠολυδώρουτεκαὶ
τοῦπρόσθεΚάδμουτοῦπάλαιτ´Ἀγήνορος·
καὶταῦτατοῖςμὴδρῶσινεὔχομαιθεοὺς
[270]
μήτ´ἀροτὸναὐτοῖςγῆςἀνιέναιτινά,
μήτ´οὖνγυναικῶνπαῖδας, ἀλλὰτῷπότμῳ
τῷνῦνφθερεῖσθαικἄτιτοῦδ´ἐχθίονι.
ὙμῖνδὲτοῖςἄλλοισιΚαδμείοιςὅσοις
τάδ´ἔστ´ἀρέσκονθ´ἥτεσύμμαχοςΔίκη
275
χοἰπάντεςεὖξυνεῖενεἰσαεὶθεοί.
Por isso, como por meu pai, combato.
Em minha busca, nada me limita
até que eu prenda o autor desse homicídio:
por Laio, rei, descendente de Polidoro,
Cadmo, Agenor: ancestres ilustríssimos.
Contra quem negue auxílio, deuses, peço:
não saiba o que é brotar no campo o fruto,
não colha da mulher senão aborto,
pereça de um flagelo pior do que este.
Quantos cádmios nos derem hoje escuta,
Possa Dike ajudar, guerreira amiga,
Com sua presença os deuses nos regalem.
vv. 264-275.
Antes que tivesse terminado sua última palavra, provavelmente a ágora
encontrava-se cheia. Todos estavam esperando naquele momento pelas providências
que Édipo tomaria em prol da segurança dos habitantes da cidade. Consideramos esta
parte importante porque resgata o tema da ancestralidade evidenciada no prólogo. Os
descendentes da linhagem real dos Labdácidas
295
se distribuem em três grupos. No
primeiro grupo temos Laio - implícito - e Lábdaco; no segundo, Polidoro e Cadmo; no
terceiro, o antigo Agenor. Édipo insinua que a linhagem teve fim em Laio, uma vez que
no seu entendimento ele não tivera filhos. Assim, ironicamente, ao ocupar o papel de
295
Em sua tradução, Trajano Vieira optou por ocultar o nome de Lábdaco. Talvez fosse mais significativo
se traduzíssemos o verso: “filho de Lábdaco descendente de Polidoro, e seu antepassado Cadmo, e do
antigo Agenor”.
126
um filho adotivo – pois ele estaria agindo como se vingasse o assassinato do próprio pai
–, Édipo investiu-se da linhagem de Laio ao invocar os espíritos vingadores dos antigos
ancestrais.
Édipo prometeu que o assassino confesso partiria ileso para o exílio sem sofrer
maiores danos. Mas, numa tentativa de assustar o culpado e fazê-lo escolher a
alternativa mais suave, decretou que se o informante e o culpado recusassem sua oferta,
sofreriam uma sentença cruel
296
. Certamente, a partir do decreto, o destino de Édipo
torna-se mais terrível.
O mais impressionante é que Édipo trouxe para si mesmo um aspecto que o
oráculo não havia previsto: o decreto. O decreto, em valor legal, seria irrevogável,
mesmo que se apiedassem do criminoso e este se arrependesse do que fez
297
. A
divindade, por sua vez, ordenou a investigação e estabeleceu a punição, como é
perceptível nas palavras de Creonte, no prólogo.
4.4. “Terrível o saber se ao sabedor é ineficaz”: a ineficiência da sabedoria na busca
pela felicidade
Enquanto esperavam a chegada do profeta, Édipo prosseguia a investigação,
tomando conhecimento dos boatos em torno do assassinato de Laio por malfeitores ou
andarilhos. Édipo respondeu que ele partilhava daquele conhecimento, mas que a única
testemunha não morava mais em Tebas. A confirmação de uma história através de
boatos não deixa de ser irônica porque tudo dependia de conjeturas e suposições que
296
DYSON, M. “Oracle, Edict, and Curse in Oedipus Tyrannus”. The Classical Quarterly, New Series,
Vol. 23, No. 2. (Nov., 1973), p. 203. Porém, neste esquema, o decreto e a maldição são nitidamente
diferenciados, pois o decreto possui um sentido político enquanto a maldição apela ao sobrenatural.
297
DYSON, 1973, Op. Cit., p. 208.
127
não obtiveram confirmação. A investigação demandaria profunda inteligência e
perspicácia.
Na peça todos confirmam que a inteligência de Édipo excede a de outros
homens, mas ele cumprimenta o velho cego Tirésias com humildade e reverência,
indicando-o como o sábio dos sábios, aquele que tudo vê. Tirésias é capaz de decifrar o
invisível, entrar em contato com o outro mundo. Mas as palavras do adivinho não foram
encorajadoras. E, apesar da reverência de Édipo, ele não ouve do profeta o que deseja
saber. Além disso, o sentido das palavras de Tirésias oscila entre um lamento pela
própria condição e é também uma advertência a Édipo, para que este não mergulhe num
passado remoto; significaria também a inutilidade do conhecimento quando este não é
capaz de promover a reviravolta dos fatos, perante o que é irreversível. Ele trata da
inutilidade do saber que não traz nenhum proveito a quem o detém, sendo melhor não
insistir; pontuando a ambigüidade em se ter ou não o conhecimento, pois às vezes ele
nos serve e outras não
298
.
ΤΕΙΡΕΣΙΑΣ:Φεῦφεῦ,φρονεῖνὡςδεινὸνἔνθαμὴτέλη
λύῃφρονοῦντι·ταῦταγὰρκαλῶςἐγὼ
εἰδὼςδιώλες´·οὐγὰρἂνδεῦρ´ἱκόμην.
Tirésias: Terrível o saber se ao sabedor
é ineficaz. Embora ciente disso,
me descuidei: jamais teria vindo.
vv. 316-8.
A cena é uma das mais significativas da peça. Tirésias chega atrasado, talvez
porque estivesse relutante e não desejasse atender ao pedido do rei, porém, ainda assim,
ele compareceu
299
, anunciando que veio contra a vontade. A passagem é crucial porque
as palavras do profeta representam a raiz do conflito humano que se desenvolve na
298
CAREL, Havi Hannah. “Moral and Espistemic Ambiguity in Oedipus Rex”. Janus Head, 9(1), N.Y
2006, p. 98.
299
LATTIMORE, Steven. “Oedipus and Teiresias”. California Studies in Classical Antiquity, 8 (1976),
p.105.
128
cena
300
. Apesar de Édipo reverenciar o profeta, este sente repugnância diante do que
sabe. Neste sentido, poderíamos confirmar que, apesar de conhecer a verdade, a situação
era irreversível. Disto ele tinha plena certeza. Nada poderia reverter o que estava por vir
e muito menos consertar o que havia sido feito. O saber humano é incapaz de mudar o
curso das coisas. E este saber revelaria o pior dos males, explicando porque Tirésias
preferia o silêncio a se pronunciar
301
.
Aqui é a palavra φρονεῖν que designa esse saber do qual é
eufemismo dizer que é inútil. Contudo, desse phronein que,
literalmente, não proporciona interesse
(μὴ τέλη λύῃ), porque
pretende penetrar os segredos do Destino e da Fortuna, pode-se
pensar que Tirésias aponta para uma phrônesis superior, aquela que,
ao se limitar, se eleva ao nível de uma virtude, da qual Édipo, o
grande “descobridor de enigmas”, é cruelmente desprovido
302
.
É complexo pensar o saber enquanto um dom maldito, mesmo porque o uso da
argúcia nas escolhas feitas pelas personagens não aparece com facilidade. Mesmo que
Édipo pareça agir com certa imprudência e impulsividade, ele deixou claro desde o
início agiu depois de muito pensar e todas as ações que se desenvolvem na peça partem
do oráculo trazido por Creonte. Tirésias adverte que cada um deveria suportar o próprio
fado, e que Édipo deveria deixá-lo partir a fim de atingir um bem maior: o
desconhecimento da verdade
303
.
O adivinho se recusou a participar no inquérito. Édipo o ameaçou com as
conseqüências do decreto salientando que este silêncio representava o choro da cidade.
Édipo lançou mão de diversos argumentos: a legalidade da verdade, a pólis e o
sofrimento do povo
304
. Mas Tirésias continuou a obstruir a investigação e Édipo
lembrou-lhe que o silêncio representava cumplicidade com o criminoso
305
.
300
BOLLACK, 1990, Op. Cit., p. 204.
301
BOLLACK, 1990, Op. Cit., p. 205
302
AUBENQUE, 2003, Op. Cit., p. 261.
303
LATTIMORE, 1976, Op. Cit., p. 106.
304
BOLLACK, Jean. La Naissance d’Oedipe: traduction et commentaires d’Oedipe Roi. Paris : Gallimard,
1995, p. 121. Cf., vv. 324-325.
305
CARAWAN, 1999, Op. Cit., p. 212.
129
Do ponto de vista do decreto, de Édipo ou mesmo dos espectadores, a postura de
Tirésias realmente representava traição. Édipo se encolerizou perante a mudez e
passividade do outro
306
considerando-a uma traição à cidade. Assim, o adivinho
apresentava uma vontade arbitrária ao se decidir pelo silêncio. Não lhe era facultado o
direito de manter-se em segredo à custa do sofrimento do povo. O que nos parece
compreensível aos olhos de Édipo é que o conhecimento, apesar de ineficaz, não é
incomunicável. Ele não entendia o comportamento do adivinho que parecia não se
compadecer dos infortúnios dos cidadãos.
Tal homem, totalmente ciente de seu valor como governante, seguro
de sua autoconfiança e da admiração de seus súditos, inteligente,
capaz de deliberação e acostumado a pensar em termos políticos, não
é levado à cólera com facilidade. Espera-se, contudo, que quando isso
ocorra, sua fúria seja terrível. Édipo não frustra esta expectativa; sua
cólera é mais terrível do que se poderia esperar. É ilimitada, uma
força que nada pode interromper ou controlar até que se dissipe
307
.
Após uma série de insultos e ser responsabilizado pela morte de Laio, a situação
se agrava e Tirésias quebra o sigilo do que prometera não revelar. Na verdade,
acreditamos que se trata mais de uma resposta a uma ofensa do que propriamente de um
intuito de responder à inquirição de Édipo.
345{ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Καὶμὴνπαρήσωγ´οὐδέν,ὡςὀργῆςἔχω,
ἅπερξυνίημ´.Ἴσθιγὰρδοκῶνἐμοὶ
καὶξυμφυτεῦσαιτοὔργον,εἰργάσθαιθ´,ὅσον
μὴχερσὶκαίνων·εἰδ´ἐτύγχανεςβλέπων,
καὶτοὔργονἂνσοῦτοῦτ´ἔφηνεἶναιμόνου.
350]{
ΤΕΙΡΕΣΙΑΣ}Ἄληθες;ἐννέπωσὲτῷκηρύγματι
ᾧπερπροεῖπαςἐμμένειν,κἀφ´ἡμέρας
τῆςνῦνπροσαυδᾶνμήτετούσδεμήτ´ἐμέ,
ὡςὄντιγῆςτῆσδ´ἀνοσίῳμιάστορι.
Édipo: Já não fica implícito – motiva-me
a fúria: arquitetaste o assassinato,
melhor, o cometeste, embora com
as mãos de um outro. Se pudesses ver,
diria ser obra de um autor somente.
Tirésias: Verdade? Pois então assume os termos
306
KNOX, 2002, Op. Cit., p. 21. Édipo se enfureceu tanto em nome da cidade quanto pelo ultraje à sua
condição de rei.
307
KNOX, 2002, Op. Cit., p. 20.
130
do teu comunicado: de hoje em diante,
não fales mais comigo nem com outrem,
pois com teu miasma contaminas Tebas.
v. 345-353.
A revelação é surpreendente. Tirésias sugeriu que Édipo aplicasse contra si
mesmo os termos impostos no édito, uma vez que ele foi identificado como o assassino
procurado e responsável pelas calamidades que arrasam a cidade. O profeta desafiou ao
tirano recusando-se a contar o que sabia, para mais tarde indicar-lhe que ele deveria
aplicar o decreto contra si mesmo. Édipo contaminava a cidade, pois era o autor do
crime, e não o havia cometido por fins conspiratórios ou políticos, tudo não passou de
um desentendimento numa encruzilhada, fruto de seu temperamento explosivo e
impaciente. Porém, Édipo não compreende as palavras de Tirésias como verdadeiras,
ele as considera um insulto.
Muitos consideram a intemperança de Édipo uma das razões para sua queda.
Contudo, ele possuía motivos plausíveis para se irritar. Mesmo que sua cólera
representasse uma forma de intemperança e um desequilíbrio que poderia prejudicar-lhe
o raciocínio, nos parece justa a sua irritação, uma vez que, enquanto rei, ele precisava
zelar pela justiça e salvação da pólis. Porém, o Coro se manifestará condenando as
reações de Tirésias e Édipo:
{ΧΟΡΟΣ}Ἡμῖνμὲνεἰκάζουσικαὶτὰτοῦδ´ἔπη
405
ὀργῇλελέχθαικαὶτὰς´,Οἰδίπου,δοκεῖ.
Δεῖδ´οὐτοιούτων,ἀλλ´ὅπωςτὰτοῦθεοῦ
μαντεῖ´ἄρισταλύσομεν,τόδεσκοπεῖν.
Coro: Segundo nos afigura, rei, a cólera
inspira os dois pronunciamentos.
Nós não carecemos disso. Eis nosso escopo:
solucionar o vaticínio délfico.
vv. 404-407.
O coro aponta a necessidade de solucionar o oráculo sem perder tempo com
discussões que não levarão a resultado satisfatório. O importante seria levar o oráculo a
sério e desvendá-lo, com ajuda da divindade ou não. Mas a ira de Édipo, uma vez
131
despertada, alcança proporções inimagináveis e não se extingue facilmente,
principalmente quando conclui que existe uma conspiração de Tirésias e Creonte contra
seu governo
308
.
{ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Κρέοντοςἢσοῦταῦτατἀξευρήματα;
Édipo: Creon armou o ardil ou é obra tua
309
?
Reconhecidamente inteligente, Édipo precisava encontrar uma saída; não
obstante, Tirésias tem razão em relação à ambigüidade do conhecimento do monarca e
sua cegueira involuntária em relação ao que era verdade ou mentira. Ao viver uma
mentira – a história de seu nascimento – ele seria um exemplo para compreendermos
um erro por ignorância ou desconhecimento sem desconsiderarmos a inteligência do
herói. Apesar de sábio, não lhe era possível conhecer certas informações, tal como a
história de seu nascimento. O episódio será fundamental para o decorrer da peça porque
desviará a investigação e fornecerá os principais elementos para o segundo estásimo.
390]{ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Ἐπεί,φέρ´εἰπέ,ποῦσὺμάντιςεἶσαφής;
πῶςοὐχ,ὅθ´ἡῥαψῳδὸςἐνθάδ´ἦνκύων,
ηὔδαςτιτοῖσδ´ἀστοῖσινἐκλυτήριον;
Καίτοιτόγ´αἴνιγμ´οὐχὶτοὐπιόντοςἦν
ἀνδρὸςδιειπεῖν,ἀλλὰμαντείαςἔδει·
395
ἣνοὔτ´ἀπ´οἰωνῶνσὺπροὐφάνηςἔχων
οὔτ´ἐκθεῶντουγνωτόν·ἀλλ´ἐγὼμολών,
ὁμηδὲνεἰδὼςΟἰδίπους,ἔπαυσάνιν,
γνώμῃκυρήσαςοὐδ´ἀπ´οἰωνῶνμαθών·
Édipo: Onde imperam teus mânticos domínios?
Por que negaste auxílio ao povo quando
vivia a Esfinge, cadela de rapsódias?
Não de um desavisado a solução
do enigma dependia, mas de um profeta.
Ficou patente: nem as aves, nem
os deuses te inspiravam. E eu cheguei;
dei cabo dela, alguém sem crédito, Édipo;
vali-me do pensar e não dos pássaros.
v. 390-398.
308
LATTIMORE, 1975, Op. Cit., p. 105.Teríamos um retorno ao prólogo e Édipo tenta, provavelmente,
re-interpretar a demora de Creonte quando este fora a Delfos buscar uma resposta para pôr fim aos
sofrimentos da cidade. A demora parecia adquirir outro sentido justificando a culpa de Creonte. Cf., vv.
73-75. “Medir o dia de hoje com o metro do tempo dói: a ausência de Creon supera o combinado e o
razoável”.
309
Cf., Édipo Rei, vv. 378.
132
Édipo insinua que Tirésias não passa de um charlatão. Seu pensamento perpassa
pelo perigo e sofrimento ocasionados pelo enigma da Esfinge e que somente ele fora
capaz de desvendar. Ou seja, apesar de não ser um profeta detentor do saber mântico,
ele conhecia a solução para o enigma da Esfinge, valendo-se apenas de sua inteligência.
A prova da incapacidade de Tirésias era, segundo ele, evidente. O saber de Tirésias
possuiria um grau limitado de ação. Édipo questiona o alcance deste saber e sua
utilidade para o bem público, de modo que, realmente, o saber mântico de Tirésias
pouco ou nada vale para o bem-estar da pólis
310
.
Para Édipo, Tirésias não dispunha nem de sinais e muito menos da inspiração
divina para solucionar o enigma. É uma formulação contrária às palavras iniciais dele
em referência ao profeta. A racionalidade de Édipo se apresenta através da sua
capacidade cognitiva, pois ele conseguiu desvendar o segredo da Esfinge. Não
dependeu da inspiração divina, e parece-nos que ele desdenha do auxílio divino,
precisamente reprovando Tirésias.
Deste modo, ele se distingue não apenas pela força (ele matou muitos na
estrada), mas também pela inteligência
311
. Não obstante, a maior qualidade de Édipo
haverá de se tornar sua maior rival: seu espírito investigativo o levaria ao
esclarecimento de todos os mistérios e o que deveria ser bom – o conhecimento de todas
as respostas que buscava – tornar-se-ia funesto.
{ΟΙΔΙΠΟΥΣ} Ὡς πάντ´ ἄγαν αἰνικτὰ κἀσαφῆ λέγεις.
[440] {
ΤΕΙΡΕΣΙΑΣ} Οὔκουν σὺ ταῦτ´ ἄριστος εὑρίσκειν ἔφυς;
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ} Τοιαῦτ´ ὀνείδιζ´ οἷς ἔμ´ εὑρήσεις μέγαν. ΤΕΙΡΕΣΙΑΣ}
Αὕτηγεμέντοις´ἡτύχηδιώλεσεν.
Édipo: Falas de modo obscuro e por enigmas.
Tirésias: Não és o mestre das decifrações?
Édipo: Verás o meu valor no que me insultas.
Tirésias: Provém tua perdição dessa ventura.
vv. 439-442.
310
BOLLACK, 1990, Op. Cit., p. 247. “Dotado de visão não vês teu mal com quem moras, em que lugar
habitas”. Cf., Édipo Rei, vv. 413-415.
311
CAREL, 2006, Op. Cit., p. 99.
133
Num jogo de afrontas, a habilidade e inteligência de Édipo na decifração de
enigmas são questionadas, com ironia, por Tirésias. Édipo é impetuoso e por isso o
poeta prepara-lhe uma armadilha justamente no que ele é mais vulnerável: seu desejo
ilimitado de saber. Afinal ele venceu a cruel cantora e, além da sua obrigação de rei, seu
desejo de saber o impedia de desistir da procura pelo assassino de Laio e também pelo
culpado pela peste e terríveis sofrimentos que assolam a cidade. Mas sua competência
poderia lhe trazer a ventura e o desastre.
Mesmo o sucesso sobre a Esfinge é questionável. Quando ele a derrota, Édipo deu
o primeiro passo para a concretização total de seu destino tornando-se soberano de
Tebas e marido de Jocasta, sua mãe. Mas ele passou a suspeitar de uma conspiração e
concluiu que Tirésias seria parte de uma terrível trama - culpado de um golpe contra o
governo -, arquitetando o crime, é claro, com a ajuda de alguém
312
.
A cólera e a autoconfiança estão relacionadas a um dever público (descobrir o
assassino de Laio para exterminar a peste em Tebas); mesmo que de outro modo ele não
poderia deixar esta investigação e esquecer tudo, como aconselhou Tirésias. Então, se a
cólera de Édipo e sua autoconfiança indevida são responsáveis por sua queda, a
hamartía em Aristóteles é ironicamente moral; se Édipo não é responsável por seu
destino, não há lugar para a moralidade na hamartía em Aristóteles.
Nisso tudo não pode haver hamartía em nenhum sentido da palavra,
exceto “erro” o que, à parte o fato de certamente não ser este o
significado atribuído por Aristóteles, é irrelevante aqui, uma vez que
a partir do ponto de vista de evitar a catástrofe, cada uma das ações de
Édipo constitui igualmente um erro
313
.
Tirésias é extremamente sutil e trata de uma maldição paterna e materna sem
revelar o seu teor. Neste sentido, acreditando que o público conhecia o mito de Édipo,
312
KNOX, Bernard. Édipo em Tebas. São Paulo : Perspectiva, 2002, p. 13.
313
KNOX, 2002 Op. Cit.,, p. 22.
134
poderíamos crer que indiretamente ele fazia referência à maldição de Laio
314
. Enfim,
Tirésias encerra o episódio de forma tenebrosa. Ele resgata toda uma história oculta por
anos a fio.
{ΤΕΙΡΕΣΙΑΣ}Εἰπὼνἄπειμ´ὧνοὕνεκ´ἦλθον,οὐτὸσὸν
δείσαςπρόσωπον·οὐγὰρἔσθ´ὅπουμ´ὀλεῖς.
Λέγωδέσοι·τὸνἄνδρατοῦτονὃνπάλαι
[450]
ζητεῖςἀπειλῶνκἀνακηρύσσωνφόνον
τὸνΛαΐειον,οὗτόςἐστινἐνθάδε,
ξένοςλόγῳμέτοικος,εἶταδ´ἐγγενὴς
φανήσεταιΘηβαῖος,οὐδ´ἡσθήσεται
τῇξυμφορᾷ·τυφλὸςγὰρἐκδεδορκότος
455
καὶπτωχὸςἀντὶπλουσίουξένηνἔπι
σκήπτρῳπροδεικνὺςγαῖανἐμπορεύσεται.
Φανήσεταιδὲπαισὶτοῖςαὑτοῦξυνὼν
ἀδελφὸςαὑτὸςκαὶπατήρ,κἀξἧςἔφυ
γυναικὸςυἱὸςκαὶπόσις,καὶτοῦπατρὸς
[460]
ὁμοσπόροςτεκαὶφονεύς.Καὶταῦτ´ἰὼν
εἴσωλογίζου·κἂνλάβῃςμ´ἐψευσμένον,
φάσκεινἔμ´ἤδημαντικῇμηδὲνφρονεῖν.
Tirésias:
Irei, mas antes digo o que me trouxe –
teu cenho nada pode contra mim:
aquele cujo paradeiro indagas,
pela morte de Laio, aos quatro cantos
vociferando, bem aqui se encontra;
tido e havido como homem forasteiro,
irá se revelar tebano autêntico,
um triste fato. Cego – embora ele hoje
veja -, um mendigo (ex-rico), incerto em seu
cetro, em terra estrangeira adentrará.
E então nós o veremos pai e irmão
dos próprios filhos; no que toca à mãe,
dela será o marido; e quanto ao pai,
sócio no leito, além de seu algoz.
No paço, pensa. A tua conclusão,
se for que eu minto, diz: falso profeta!
vv. 447-462.
As palavras de Tirésias apresentam elementos simbólicos interessantes. Ele fala
da identidade do assassino de Laio; um tebano por nascimento e considerado,
erroneamente, um estrangeiro. O profeta lamenta a sorte que a divindade reserva a este
homem que sofrerá a reviravolta da fortuna e expiará os seus últimos dias em terra
estrangeira. Tirésias, indiretamente, resgata os antecedentes que explicam os fatos e
314
Cf., Édipo Rei, versos 417-8. Terror nos pés, a maldição te expulsa daqui, mater-paterna, açoite duplo.
(trad. Trajano Vieira) Uma maldição de dois gumes, a de teu pai e a de tua mãe, te há de arrastar para fora
desta terra no seu terrível passo. (trad. Maria do Céu Zambujo Fialho).
135
trata da validade da arte oracular a serviço de Apolo, pois ele remete ao presságio feito a
Laio num passado distante, por sua vez, muito parecido ao que fora também predito ao
próprio Édipo.
Os versos 457 a 460 nos contam grandes faltas, atos monstruosos, terríveis de se
ver e ouvir: aquele de quem o profeta fala é pai e irmão dos próprios filhos, assassino do
pai e marido da mãe. Não poderia existir um homem em situação mais trágica. As
palavras do profeta se dirigem diretamente ao rei
315
. Então, ele incita Édipo a refletir;
caso comprove a falsidade de suas palavras, então ele aceitará o epíteto de “falso
profeta”.
Em relação aos versos Vellacott resgata uma dúvida muito pertinente. Quando o
profeta insinua que o rei deve refletir, ele o faz como se Édipo tivesse saído de cena.
Assim, Édipo teria deixado o palco antes que o profeta proferisse suas últimas palavras.
Ele encontrar-se-ia no espaço privado do palácio em profunda reflexão para confirmar
ou desmentir as palavras do adivinho
316
. Portanto, somente o coro teria ouvido tudo o
que Tirésias tinha para dizer.
Porém, muita importância tem sido atribuída à ignorância de Édipo
317
. Ao
receber a profecia hedionda, ele acreditava ser filho de Pólibo e Mérope, então, ele
fugiu e se orientou pelas estrelas para se manter distante deles. Mas isto era exatamente
o que Édipo não sabia: sua verdadeira identidade e não conseguiu sanar sua incerteza
em relação à sua origem. O parricídio ocorreu não só porque Édipo não sabia onde ele
se encontrava – longe de Corinto –, mas porque ele insistiu em agir como se não
soubesse o que poderia fazer: ser o assassino do pai.
315
BOLLACK, 1990, Op. Cit., p. 288-89.
316
VELLACOTT, Philip. Sophocle and Oedipus: A Study of Oedipus Tyrannus with a New Translation.
London : Macmillan, 1971, p. 170. e também Cf., LATTIMORE, 1976, Op. Cit., p. 110, nota 10.
P
317
P KANE,1975, Op. Cit., p. 189.
136
Através da cena com Tirésias, no embate entre o conhecimento de Édipo e a
inspiração do vidente, Sófocles provou a inutilidade de um conhecimento sem uma
visão abrangente da realidade. A inteligência pode ter levado Édipo a resolver o enigma
da Esfinge, mas ele não sabia que o prêmio para sua sabedoria seria o casamento com a
própria mãe. Descobrir o enigma foi o segundo passo para sua tragédia pessoal, e isto
ele deve à sua inteligência singular. Acaso ele não tivesse acertado o enigma da Esfinge,
pelo menos no que se refere ao incesto, ele estaria imune. Sem o saber, pouco a pouco
Édipo realizou o oráculo. Faltava apenas que ele próprio se convencesse disto.
4.5. É inútil se esquivar do oráculo
Tal qual no párodo, o primeiro estásimo inicia-se com um questionamento. O
coro deseja conhecer a identidade do assassino referido pelo oráculo
318
e se as palavras
do adivinho merecem consideração. Assim, com a saída de Tirésias, o coro se encontra
frente a um novo enigma: que vozes se ouviam de Delfos? Quais mãos assassinas e
manchadas de sangue realizaram os horrores indescritíveis? Eles não parecem suspeitar
de Édipo. Pelo contrário, a sua resposta sugere que a imputação de culpa é indireta, que
pode haver uma antiga inimizade entre o filho de Pólibo e o clã dos Labdácidas, e que
nele apareça alguma mancha herdada.
ΧΟΡΟΣ}Τίςὅντιν´ἁθεσπιέπειαΔελφὶςεἶπεπέτρα
465
ἄρρητ´ἀρρήτωντελέσανταφοινίαισιχερσίν;
Ὥρανινἀελλάδων
ἵππωνσθεναρώτερον
φυγᾷπόδανωμᾶν·
ἔνοπλοςγὰρἐπ´αὐτὸνἐπενθρῴσκει
[470]
πυρὶκαὶστεροπαῖςὁΔιὸςγενέτας,
δειναὶδ´ἅμ´ἕπονται
Κῆρεςἀναπλάκητοι.
Coro: A pedra délfica – a profética –
318
DAWE, 1968, Op. Cit., p.114.
137
increpa a quem de perpetrar
com mãos de sangue
o indizível do indizível? Urge
que ele ponha os pés em fuga,
com mais vigor
do que os eqüinos turbinosos.
Hoplita do relâmpago e do fogo,
Apolo, filho de Zeus,
avança contra ele.
No encalço vêm, terríveis,
as Fúrias implacáveis.
vv.46373.
A solenidade do primeiro estásimo acompanha o ritmo do párodo (primeiro
canto coral). Além da forte presença da divindade, os oráculos são evidenciados, neste
caso em referência aquele trazido por Creonte e que exigia a punição do assassino de
Laio. Uma questão, logo no início, nos inquieta. O coro questiona: quem possui as mãos
sujas de sangue e cometeu ações terríveis e, portanto, condenáveis? Este condenado, na
visão do coro, andava em fuga, alternava passos rápidos e corridas pelas trilhas dia
inteiro e noite adentro. Este homem, invisível aos olhares humanos, só poderia ser
percebido pela divindade.
O coro se dirige à palavra profética e ao saber que a fundamenta. A divindade
conhece o autor do crime e já o condenou. Ao verem as mãos do assassino manchadas
de sangue professam a punição. A agitação mantida pelo coro justifica-se porque o
oráculo ainda mascara o autor do crime. A palavra divina que inspira e se manifesta
através da divindade dispõe das armas de Zeus.
Curiosamente, os tradutores acrescentam a palavra pés no contexto da primeira
antístrofe para frisar a fuga desenfreada desse homem até então desconhecido. Segundo
Knox, “estas palavras do coro, com seu trocadilho inconsciente com o nome de Édipo,
enfatiza a terrível e até então insuspeita verdade, que o caçador e a caça são um só, que
Édipo é ambos, o rastreador e o touro selvagem
319
”.
319
KNOX, 2002, Op. Cit., p. 97.
138
À espreita, em seu encalço estão Apolo e as Fúrias, “implacáveis”. As Fúrias
administravam a vingança divina. Eram impiedosas e normalmente analisavam as
circunstâncias que levavam uma pessoa a cometer uma falta. Puniam, principalmente,
os assassinos de parentes de sangue. Como sabemos, este é o caso de Édipo. Elas eram
inevitáveis quando se praticava um crime considerado hediondo. O santuário de Delfos,
representado por Apolo, estava a serviço da lei e da justiça. Apolo ordena a perseguição
ao assassino, origem do mal, revelado pelo deus.
Ἔλαμψεγὰρτοῦνιφόεντοςἀρτίωςφανεῖσα
475
φάμαΠαρνασσοῦτὸνἄδηλονἄνδραπάντ´ἰχνεύειν·
φοιτᾷγὰρὑπ´ἀγρίαν
ὕλανἀνάτ´ἄντρακαὶ
πέτραςἅτεταῦρος,
μέλεοςμελέῳποδὶχηρεύων,
[480]
τὰμεσόμφαλαγᾶςἀπονοσφίζων
μαντεῖα·τὰδ´αἰεὶ
ζῶνταπεριποτᾶται.
Desponta a voz e já lampeja
na neve do Parnaso: sigam
todos o rastro do homem ignoto,
um touro errante pelos antros, rochas,
florestas, desgarrado,
um desgraçado
que traz no pé a desgraça!
Quer se esquivar (inútil)
do oráculo – ônfalo da Terra:
este pervive circum-voando.
vv. 474-481.
A voz do Parnaso chegada à Tebas apresenta a ordem divina: encontrar o
assassino de Laio, perseguir os rastros deste homem maldito. O coro canta que a voz do
Parnaso anunciou a necessidade de se encontrar o assassino desconhecido e que este
fosse perseguido por toda parte. O Parnaso, situado no centro da Grécia, era o local
preferido de Apolo. Do seu alto se avistava os arredores, Corinto e Delfos.
Curiosamente, esta visão do alto ofereceria a oportunidade de se avistar o assassino até
então, ignorado e em fuga.
Sófocles utiliza a metáfora do touro – desditoso –, que vaga sem rumo
acompanhado pela má sorte. Este homem invisível é tal qual um touro solitário em fuga
139
que habita as cavernas, predestinado ao mal. Mesmo vagando, tentando se esconder, a
divindade cairia sobre ele e o abateria, tal como num ritual de sacrifício. O próprio
ritmo vertiginoso do touro nos remete à imagem do pobre animal encurralado. Em
seguida, o coro fala-nos novamente dos oráculos e que este touro tentava se
desvencilhar tornando-os inválidos numa atitude inútil. O coro frisa a diferença entre o
touro e à palavra divina: enquanto o animal toca o chão e anda a galope, os oráculos
voam à sua volta cercando-o
320
.
Δεινὰμὲνοὖν,δεινὰταράσσεισοφὸςοἰωνοθέτας,
485
οὔτεδοκοῦντ´οὔτ´ἀποφάσκονθ´·ὅτιλέξωδ´ἀπορῶ·
πέτομαιδ´ἐλπίσινοὔτ´ἐνθάδ´ὁρῶνοὔτ´ὀπίσω.
ΤίγὰρἢΛαβδακίδαις
[490]
ἢτῷΠολύβουνεῖκοςἔκειτ´;Οὔτεπάροιθένποτ´ἔγωγ´οὔτε
τανῦνπω
ἔμαθονπρὸςὅτουδὴβασάνῳ
ἐπὶτὰνἐπίδαμον
495
φάτινεἶμ´ΟἰδιπόδαΛαβδακίδαις
ἐπίκουροςἀδήλωνθανάτων.
O sábio vate me desmonta,
terrível. Aceitá-lo ou refutá-lo?
Aporia: dizer o quê?
Nas asas da esperança, não vislumbro
presente nem pretérito.
Ignoro o pomo da discórdia entre
o filho de Políbio e os Labdácidas.
Em prol dos últimos, na questão
da morte obscura,
eu nada sei – agora ou no passado –
que desabone a fama de Édipo.
vv. 482-495.
Na segunda estrofe, temos uma referência às palavras fatais de Tirésias contra
Édipo
321
. Ele se situa face às acusações contra o rei, concluindo, em primeiro lugar, que
não há provas concretas contra Édipo e que afirmem a verdade do profeta. Incomodado,
ele não sabe se deve ou não acreditar no adivinho. O coro afirmou sustentar-se pelas
“asas da esperança”, mas bem se sabe que desde Hesíodo (O Trabalho e os Dias 96/98)
a esperança é designada como enganosa e ilusória. A ambigüidade do coro demonstra
que, embora ele não quisesse acreditar nas palavras de Tirésias, sua esperança seria
320
VEGA, Sófocles, 1994, Op. Cit., p. 205.
321
VEGA, 1994, Op. Cit., p. 211.
140
inútil. Pois, se o coro, mesmo temeroso, admitisse a verdade das palavras do adivinho,
admitiria a culpa antecipada de Édipo.
O uso dos profetas na intriga política era perfeitamente familiar ao
público ateniense (...). Homens mais ou menos sensatos, mesmo que
aceitassem a visão religiosa de que a vida humana estava sujeita ao
controle divino, devem ter ficado repugnados pelos excessos cínicos
dos profetas profissionais. Deduzir, contudo, a falsidade da profecia
como um todo a partir da má fé de charlatães, era um passo adicional
que poucos estavam dispostos a dar, pois a verdade da profecia divina
era uma pressuposição fundamental para aquela combinação de culto
ritual e literatura heróica que servia de religião para os gregos
322
.
A divindade é conhecedora da natureza humana e nada lhe passa despercebido,
assim não cometeria erros; por outro lado, tratando-se da sabedoria humana – em
comparação ao adivinho – haveria a possibilidade do engano. A divindade conhece a
causa de todas as coisas e os precedentes de todos os acontecimentos, o homem é
ignorante destes fatos, principalmente o que diz respeito a ele. A distinção entre o saber
humano e o divino agita o íntimo do coro e fundamenta o critério para a verdade
oracular: a origem divina.
Mesmo que a inteligência de Édipo tenha mostrado sua pujança, o coro
desconhecia a superioridade divina em relação ao conhecimento. O saber de Édipo
confrontava-se ao de Tirésias. Devido à relatividade do saber humano, não se deve
questionar o saber divino. Os deuses conhecem o que há de mais obscuro e a autoridade
da palavra divina contrabalanceada pelo saber de Édipo torna-se o elemento chave deste
estásimo. Sófocles encerra o primeiro estásimo escolhendo as palavras, pois o coro,
receoso de cometer uma injustiça e reconhecedor da qualidade de Édipo e do bem que
outrora este trouxera à pólis, se abstém de condená-lo.
Ἀλλ´ὁμὲνοὖνΖεὺςὅτ´Ἀπόλλωνξυνετοὶκαὶτὰβροτῶν
εἰδότες·ἀνδρῶνδ´ὅτιμάντιςπλέονἢ´γὼ
[500]
φέρεται,
κρίσιςοὐκἔστινἀληθής·
σοφίᾳδ´ἂνσοφίαν
παραμείψειενἀνήρ·
ἄλλ´οὔποτ´ἔγωγ´ἄν,πρὶνἴδοιμ´ὀρθὸνἔπος,
322
KNOX, 2002, Op. Cit., p. 36.
141
505μεμφομένωνἂνκαταφαίην.
Φανερὰγὰρἐπ´αὐτῷπτερόεσς´ἦλθεκόρα
ποτέ,καὶσοφὸςὤφθη
[510]
βασάνῳθ´ἁδύπολις·τῷἀπ´ἐμᾶς
φρενὸςοὔποτ´ὀφλήσεικακίαν.
Unidos pelo tino, Apolo e Zeus
conhecem o afazer humano.
Entre os mortais,
um vate conta mais do que eu?
É um juízo descabido.
Pode em saber um superar o outro.
Mas em acusador eu não me arvoro,
enquanto tudo for mera suspeita.
Outrora a virgem
de-asas, a Esfinge, lançou-se
abertamente contra ele;
e ele foi sábio – todos vimos –
e a pólis o aprovou: era benquisto.
Jamais empenharei
meu coração em condená-lo.
vv. 496-512.
O que podemos pensar do primeiro estásimo e qual a importância do mesmo
para a questão que nos propomos a analisar, ou seja: a falta trágica na peça? Em
primeiro lugar, existe uma profunda reflexão em torno das palavras de Tirésias e da
identidade do assassino. Em segundo, o coro, indiretamente, frisa a inutilidade em se
tentar fugir do oráculo. Para Dodds, “os gregos acreditavam no seu oráculo, não por
serem tolos supersticiosos, mas porque não podiam viver sem acreditar
323
”. Em terceiro
porque a questão oracular é taxativamente posta à prova, e o coro tem receio em duvidar
deles, talvez por medo de incorrer em impiedade contra os deuses.
O coro procura, sem conseguir encontrar, um motivo que tornasse a
acusação contra Édipo plausível. (...) O coro não pode encontrar
nenhum motivo para sustentar a acusação, sua autoridade deve
apoiar-se unicamente na credibilidade de Tirésias como profeta. Está
disposto a acreditar que Zeus e Apolo conhecem a verdade (498-500),
mas Tirésias, ainda que profeta, é somente um homem, e entre sua
palavra e a de outro homem não pode haver “um julgamento
verdadeiro” (501)
324
.
Poderíamos configurar a tentativa de invalidar os oráculos como uma ação que
conduz ao erro, de forma que a falta trágica se associaria à questão oracular. Levando
323
DODDS, E.R. Os gregos e o irracional, 2002, Op. Cit., p. 81.
324
KNOX, 2002, Op. Cit., p. 75.
142
em conta as considerações do coro, lembraremos que temos uma tentativa ilusória de
driblar o oráculo, seja por parte de Édipo ou por seus pais verdadeiros. O coro oferece-
nos a oportunidade de antever a catástrofe e o fato de que o aparecimento da verdade
dependeria de uma questão de tempo. O coro está resolvido a ignorar as palavras de
Tirésias até que se prove o contrário. Embora reconheça a possibilidade do erro humano
na previsão do adivinho, o coro reconhece que os deuses, por sua vez, não se enganam.
4.6. Vale a pena crer nos oráculos? Injustiça, cegueira e impiedade
Os primeiros versos apresentam uma importante cena de enfrentamento. Creonte
quer esclarecer os “rumores” e as acusações de Édipo contra ele. Este ambiente povoado
por boatos o incomoda e ele pretende ouvir do próprio rei o que se passa; porém, antes,
questiona se o coro sabe a respeito do ocorrido. Este não se posiciona, nos parece
temeroso e apenas afirma não prestar atenção na ação daqueles que detêm o poder.
Não podemos desconsiderar que Édipo encontrava-se tomado pela ira. E este
juízo apressado sobre as circunstâncias que se apresentavam a ele, fruto de um
desconhecimento de aspectos relevantes para um exame completo e pormenorizado da
situação, leva-o a cometer uma injustiça contra Creonte, acusando-o de traição. Por
outro lado, se Édipo não encontra outro para acusar, ele se torna o principal suspeito,
uma vez que fora acusado por Tirésias.
ΚΡΕΩΝ}Εἴτοινομίζειςκτῆματὴναὐθαδίαν
[550]
εἶναίτιτοῦνοῦχωρίς,οὐκὀρθῶςφρονεῖς.
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Εἴτοινομίζειςἄνδρασυγγενῆκακῶς
δρῶνοὐχὑφέξειντὴνδίκην,οὐκεὖφρονεῖς.
Creonte: Se crês que a audácia destituída de
razão é um bem, incorres em equívoco.
Édipo: Se crês que, agindo mal contra um parente,
Dike não puna, incorres em equívoco
325
.
325
AUBENQUE, 2003, Op. Cit., pp.256-8. O homem dotado de phronêsis é o homem consciente da sua
qualidade de mortal, limitado em seus desejos, sem ambicionar disputar com os deuses e não incorrendo
143
Para Creonte, a arrogância sem o raciocínio reto é uma insensatez, uma
imprudência. Ele assinala a possibilidade de Édipo não estar compreendendo bem o que
se passa
326
. Afirma que Édipo realizou um julgamento audacioso e destituído de razão
se fundamentou suas conclusões a partir de rumores. Acusa-o de não raciocinar, de não
examinar bem em seus pormenores as circunstâncias que se apresentam, por isso estaria
comprometendo a legalidade das próprias conclusões, sendo injusto.
Édipo responde à altura e, provavelmente, incorre em seu primeiro grande
equívoco. Ironicamente, ele usou palavras que voltar-se-iam contra ele ao afirmar que a
justiça puniria aquele que agisse contra parentes. A discussão se prolonga pelos versos
seguintes. Édipo tem motivos para desconfiar de Creonte. O crime não foi investigado e
ele não vivia em Tebas naquela época. Ainda assim, Creonte também encontra motivos
para desconfiar de Édipo agora que ele sabe que o profeta o incriminou.
Creonte convida Édipo a raciocinar. Incita-o a voltar a Delfos e buscar por uma
prova eficiente contra ele. Salienta o quanto é grave um erro de julgamento tomando o
certo pelo errado e o errado pelo certo. Entre outras palavras, poderíamos crer que na
fala de Creonte se assinala um ponto chave para identificarmos a hamartía enquanto
erro por desconhecimento, julgamento e interpretação.
{ΚΡΕΩΝ} γνώμῃδ´ἀδήλῳμήμεχωρὶςαἰτιῶ.
Οὐγὰρδίκαιονοὔτετοὺςκακοὺςμάτην
[610]
χρηστοὺςνομίζεινοὔτετοὺςχρηστοὺςκακούς.
Creonte: A conjectura ofusca o julgamento.
Se é grave de antemão tomar o mau
por bom, do mesmo modo o inverso é grave.
O homem injusto não possui o que é característico de um homem prudente, não
é capaz de discernir bem para avaliar a diferença entre o bem o mal e Creonte acusa
Édipo neste sentido. O homem prudente caracteriza-se pelo bom discernimento, é capaz
em impiedade. O termo phronêsis é muito usual nas tragédias, sendo amiúde empregado no sentido
intelectual do saber e da deliberação que pode ser boa ou má em situações particulares.
326
Cf., Édipo Rei, v. 583.
144
de tomar a decisão certa para o momento
327
, e Édipo acredita em sua capacidade. Mas
somente o tempo poderia revelar seu equívoco
328
. Édipo precipita-se em suas
conclusões e o Coro percebe o deslize, sempre atento a qualquer detalhe. Nos versos
616 à 617 o coro responde a proclamação de Creonte, elogiando-lhe sua sensatez e
censurando a atitude precipitada de Édipo:
ΧΟΡΟΣ}Καλῶςἔλεξενεὐλαβουμένῳπεσεῖν,
ἄναξ·φρονεῖνγὰροἱταχεῖςοὐκἀσφαλεῖς.
Coro: Sensato, não escorregou na fala;
pensar às pressas, rei, nos leva à queda.
v. 616-617.
O coro sublinha as virtudes de um bom julgamento opostas às decisões
rápidas
329
. Temos discursos antagônicos entre Édipo e Creonte, “o coro instruído pela
experiência sabe que as verdades humanas são difíceis, não somente para nós, mas em si
mesmas”
330
. O coro pede-lhes sensatez, precaução, cautela. A passagem é importante
porque podemos identificar na arrogância, precipitação e presunção de Édipo as
primeiras evidências de uma possível falta trágica
331
.
Para Alberto A. Munõz, “a ira é resultado de um raciocínio apressado”
332
. E
este juízo apressado sobre as circunstâncias que se apresentavam a ele, fruto de um
desconhecimento de aspectos relevantes para um exame completo e pormenorizado da
situação, leva Édipo a cometer uma falta trágica? Este pensar às pressas, este raciocínio
rápido, sem a devida reflexão, seria uma forma de hamartía? Que tipo de sabedoria é a
fundamentada em deduções precipitadas? É a ira
333
a responsável por tornar Édipo
incapaz de analisar a situação com clareza, deixando-o cego e inapto para agir? A ira
327
AUBENQUE, 2003, Op. Cit., p. 174.
328
BOLLACK, 1990, Op. Cit., p. 370.
329
SAÏD, 1978, Op. Cit., p. 452.
330
AUBENQUE, 2003, Op. Cit., p. 259.
331
GREENE, William Chase. Moîra: Fate, Good, and Evil in Greek Thought. Cambridge, Massachusetts :
Harvard University Press,1948, p. 160.
332
MUNÕZ, 2002, Op. Cit., pp. 215-216.
333
Édipo Rei, cf., vv. 335-340, 344-345, 354, 405, 524, 699, 805-807, 1025, 1080, 1317. Estes versos
referem-se à ocorrência das palavras cólera e ira na tradução de Trajano Vieira.
145
contra Creonte e Tirésias seria então uma (ou a) falta trágica de Édipo na peça? Se esta
hipótese fosse levada a sério, seria preciso então comentar com cuidado os episódios em
que esta ira se manifesta e relacioná-los com o conjunto da trama. Édipo acredita no
contrário. Crê que, se agir rapidamente, evitará a conspiração:
{ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Ὅτανταχύςτιςοὑπιβουλεύωνλάθρᾳ
χωρῇ,ταχὺνδεῖκἀμὲβουλεύεινπάλιν.
[620]
Εἰδ´ἡσυχάζωνπροσμενῶ,τὰτοῦδεμὲν
πεπραγμέν´ἔσται,τἀμὰδ´ἡμαρτημένα
334
.
Édipo: Quando ágil um conspirador serpeia,
devemos decidir com rapidez.
Se me acomodo à calmaria, os planos
dele dão fruto e os meus tão-só me frustram.
v. 618-621.
A agilidade apresenta-se como uma faca-de-dois-gumes. A agilidade versus a
agilidade – eis como Édipo compreende o que se passa. Se ele se acomodar, o inimigo o
vencerá. A ocorrência do particípio hemartemena nos leva a questionar se o erro de
Édipo se concentrava neste comportamento apressado que guiava seus passos desde a
fuga de Corinto. Édipo justifica a necessidade de suprimir imediatamente uma
conspiração, por isso não deve manter-se passivo. O particípio
ἡμαρτημένα na fala de
Édipo é, ironicamente, usado no sentido de sucesso, ou seja, ele quer evitar o fracasso.
Se alguns acreditam que a inércia e a espera são sinônimas de fracasso, Édipo vê na
velocidade da decisão a condição para o sucesso.
Dans Oedipe Roi, quand le héros veut justifier la nécessité de
réprimer immédiatement le complot qu’il croit avoir découvert et
déclare: “Si je reste là sans agir, son affaire est réussie et la mienne
manquée”, il donne en effet à hamartánein, qu’il oppose à práttein
(employé ici au sens de “réussir”), le sens d’échouer. L’analyse des
causes de l’échec politique que supposent ces paroles mérite qu’on
s’y arrête. Car visiblement Oedipe se range au nombre de ceux qui
pensent que l’ “inaction” et l’ “attente” entraînent l’échec et qui
voient dans la rapidité de decision la condition du succès. Il s’oppose
par là à Créon comme au choeur, qui mettent également l’accent sur
les vertus d’un jugement sûr et les dangers de la rapidité
335
.
334
Particípio perfeito, nominativo-acusativo, plural, neutro, médio-passiva do verbo hamartano. O verbo
hamartemena se aproxima do sentido de sentir-se frustrado, ou seja, não acertar nas intenções, caso uma
atitude rápida não seja tomada.
335
SAÏD, 1978, Op. Cit., p. 452-3.
146
Quando ele justifica a necessidade de conter um complô, ele declara que uma
decisão rápida, ao contrário da passividade, é a garantia para se evitar o erro e a
frustração. Apenas a agilidade seria compatível com a agilidade. Édipo acredita que
lança mão de um momento oportuno, de uma ocasião favorável para tomar uma decisão
importante. O confronto entre Creonte e Édipo nos aponta a possibilidade de equívoco,
de imprudência, erro de intepretação, cálculo e ignorância. Édipo tinha medo do que
Creonte pensaria a respeito dele, caso ele não tomasse uma atitude. A sua imagem e o
que esta representava aos tebanos estaria comprometida.
Em uma sociedade de confronto na qual, para ser reconhecido, é
preciso vencer os rivais em uma competição incessante pela glória,
cada um encontra-se colocado sob o olhar de outro, cada um existe
por este olhar. Somos o que os outros vêem em nós. A identidade de
um indivíduo coincide com sua avaliação social: da derrisão ao
louvor, do desprezo à admiração
336
.
Nenhum deles deseja ver-se diminuído sob o olhar do outro ou mesmo dos
presentes, o coro. Cada qual, orgulhoso de si e de suas qualidades deseja subjugar o
adversário não apenas no confronto verbal mas na própria condição de poder. Édipo
clama pela pólis conclamando-a como sua e Creonte refuta-o lembrando-o que Tebas
também lhe pertencia, talvez, ironicamente, remetendo-se ao fato de que ele era cidadão
legítimo e Édipo, até onde ambos conheciam, um estrangeiro.
A discussão encontra-se em seu ápice quando o coro anuncia o aparecimento de
Jocasta. Ela os censura, pois não é aconselhável perder tempo com discussões enquanto
a pólis definha. Posta a par do que ocorria, Jocasta tenta mostrar para Édipo a dignidade
e a credibilidade de Creonte, mas ele teme que, caso ceda, ele esteja se autocondenando.
{ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Ἥκιστα·θνῄσκειν,οὐφυγεῖνσεβούλομαι.
Édipo: Não quero teu exílio, mas tua morte.
v. 623.
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Εὖνυνἐπίστω,ταῦθ´ὅτανζητῇς,ἐμοὶ
ζητῶνὄλεθρονἢφυγεῖνἐκτῆσδεγῆς.
336
VERNANT, Jean-Pierre. Entre Mito e Política. São Paulo : Edusp, 2001, pp. 184-85.
147
Édipo: Pois sabes que com tal pedido estás
pedindo a minha morte ou meu exílio?
vv. 658-659.
Aceitar as sugestões do coro é assinar a própria sentença. Ele quer que o coro
fique ciente que esta alternativa prevê a morte ou exílio contra si mesmo. É admitir-se
culpado sem apresentar as provas cabíveis. Mas, se ele realmente tivesse levado adiante
sua decisão de punir Creonte, cometeria um erro. Principalmente porque ele afirma que
desejava a morte e não o exílio do cunhado
337
.
Recordaremos que no édito a alternativa do exílio evidencia-se. Na verdade, a
morte de Creonte se justificava devido a uma conspiração contra Laio e contra o
governo atual, enquanto ele, Édipo, não se enquadraria na condição de conspirador, já
que não conhecia o antigo rei e não teria, por isso, nenhuma querela contra este. Seu
valor como o decifrador de enigmas, rei e salvador da cidade estava em cheque pelas
palavras de Tirésias. Ele precisava resgatá-la.
Se o valor de um homem permanece ligado à sua reputação, toda
ofensa pública à sua dignidade, todo ato ou palavra que atinjam seu
prestígio, serão sentidos pela vítima, enquanto não tiverem sido
abertamente reparados, como uma forma de rebaixar ou de destruir
seu próprio ser, sua virtude íntima, e consumir sua decadência.
Desonrado, aquele que não conseguiu fazer com que aquele que o
ofendeu pague por seu ultraje renuncia, perdendo a face, à sua timé, a
seu renome, a seu lugar, a seus privilégios
338
.
Édipo sentia-se, evidentemente, injustiçado. Enfim, ele renuncia à sua decisão
inicial de condenar Creonte. Jocasta deseja se inteirar do assunto, desde a sua origem,
para tentar entender o que se passava. O coro intervém com palavras no mínimo
curiosas e fala de um equívoco, uma idéia mal compreendida, de uma atitude injusta
proveniente deste provável erro de interpretação.
ΧΟΡΟΣ:Δόκησιςἀγνὼςλόγωνἦλθε,δάπτειδὲκαὶτὸ
μὴ´νδικον.
337
Édipo Rei, Cf., v. 623. “Não quero teu exílio, mas tua morte.” Ironicamente, tal qual Hémon em
Antígona, Édipo está prestes a agir e não o faz, pois foi convencido por Jocasta. Em contrapartida,
sabemos que ao não fazê-lo ele é salvo de cometer um erro muito grave: punir um inocente.
338
VERNANT, 2001, Op. Cit., p. 185.
148
Coro: O equívoco da suspeição surgiu
das palavras. Também o injusto morde.
vv. 681-82
Um dos sentidos para hamartía é: erro de interpretação. Assim, o mal entendido
e a injustiça perpassam pela voz do coro. Mas não é um equívoco unilateral, segundo o
coro tratava-se de um engano partilhado. Creonte e Édipo ignoram a verdadeira
situação. As palavras do coro se explicam pela violência das acusações injustas contra
Creonte em virtude das acusações proferidas contra Édipo por Tirésias. O coro não
deseja entrar em detalhes e nem revela o motivo da discussão. Deseja manter o assunto
enterrado, mas sem sucesso. Jocasta insiste em saber por que Édipo foi tomado pela
cólera assumindo uma postura irreconhecível. Ele relata a conversa com Tirésias e
afirma acreditar no complô de Creonte contra seu governo. Ele fala das palavras do
adivinho e da profecia maldita. Jocasta se contrapõe a estas palavras expondo sua tese.
{ΙΟΚΑΣΤΗ}Σύνυνἀφεὶςσεαυτὸνὧνλέγειςπέρι
ἐμοῦ´πάκουσονκαὶμάθ´οὕνεκ´ἐστίσοι
βρότειονοὐδὲνμαντικῆςἔχοντέχνης·
[710]
φανῶδέσοισημεῖατῶνδεσύντομα·
χρησμὸςγὰρἦλθεΛαΐῳποτ´,οὐκἐρῶ
Φοίβουγ´ἀπ´αὐτοῦ,τῶνδ´ὑπηρετῶνἄπο,
ὡςαὐτὸνἥξοιμοῖραπρὸςπαιδὸςθανεῖν
ὅστιςγένοιτ´ἐμοῦτεκἀκείνουπάρα.
715
Καὶτὸνμέν,ὥσπεργ´ἡφάτις,ξένοιποτὲ
λῃσταὶφονεύους´ἐντριπλαῖςἁμαξιτοῖς·
παιδὸςδὲβλάσταςοὐδιέσχονἡμέραι
τρεῖς,καίνινἄρθρακεῖνοςἐνζεύξαςποδοῖν.
ἔρριψενἄλλωνχερσὶνεἰςἄβατονὄρος
[720]
Κἀνταῦθ´Ἀπόλλωνοὔτ´ἐκεῖνονἤνυσεν
φονέαγενέσθαιπατρός,οὔτεΛάϊον,
τὸδεινὸνοὑφοβεῖτο,πρὸςπαιδὸςθανεῖν.
Τοιαῦταφῆμαιμαντικαὶδιώρισαν,
ὧνἐντρέπουσὺμηδέν·ὧνγὰρἂνθεὸς
725
χρείανἐρευνᾷ,ῥᾳδίωςαὐτὸςφανεῖ.
Jocasta: Não deixeis que esse assunto o aborreça.
A arte da profecia – deves sabê-lo –
não interfere nas questões humanas.
Sucintamente posso demonstrá-lo:
outrora Laio recebeu um oráculo
- senão do próprio Apolo, de seus próceres -,
segundo o qual a Moira lhe traria
a morte pelas mãos de um filho nosso.
Mas forasteiros – dizem – o mataram,
Ladrões na tripla interseção de estradas.
Quanto ao menino, em seu terceiro dia,
149
Laio amarrou-lhe os pés pelos artelhos,
mandou alguém lançá-lo a um monte virgem.
Assim frustrou-se Apolo: nem o filho
assassinou o pai, nem padeceu
o rei – temor maior! – nas mãos do filho,
tal qual fixara o vozerio profético.
Não te ocupes do nada. Quando um deus
Tem um desígnio, ele o evidencia.
vv. 707-725
Para libertar Édipo daquela angústia ela contou a ele sobre um antigo oráculo.
Na verdade ela não comentou a respeito da discussão entre o marido e o irmão. Ela
sugeriu que ele não se preocupasse com os oráculos porque, comprovadamente, eles não
eram verídicos. E ela poderia atestar sua afirmação. Por isso, Jocasta resgatou o tema do
assassinato e descreveu elementos até então desconhecidos por Édipo. Um oráculo
nefasto havia predito que Laio morreria pelas mãos do filho.
Jocasta ciente de que o tormento de Édipo era fruto das palavras proféticas de
Tirésias, tenta tranqüilizá-lo resgatando uma velha história, proclamando que as
profecias são sem valor e que não há motivos para se preocupar com elas. Ela conta-lhe
de um vaticínio feito a Laio – que seria morto pelo próprio filho –, mas forasteiros o
haviam eliminado. Além disso, o menino morrera ainda nos primeiros dias de vida
339
. O
oráculo fracassara em duplo erro
340
.
Mas Jocasta descreveu o local do assassinato, despertando em Édipo uma
suspeita fatal contra si mesmo. A expressão “triplaîs hamaxitoîs” (v. 731) sugere a
Édipo um indício forte de que foi ele o assassino de Laio
341
. Ela parece afirmar que, se
Apolo determinou um acontecimento, ele o faria ser percebido mais cedo ou mais tarde.
Esta é uma declaração extraordinária. O oráculo falso não veio de
Apolo, mas de seus “sacerdotes”. Quem eram eles? Desta vez, não
Tirésias, ou Jocasta teria dito seu nome – o caso contra a falibilidade
do profeta estaria claro e seria suficiente. Ela deve estar se referindo
aos “sacerdotes” de Apolo em Delfos, os sacerdotes ou sacerdotisas
responsáveis pela entrega da profecia. Os sacerdotes deram voz à
profecia, mas Apolo não a concretizou; não era sua profecia. (...)
339
BOLLACK, 1990, Op. Cit., p. 449.
340
GREGORY, Justina. “The Encounter at the Crossroads in Sophocle’s Oedipus Tyrannus.” The Journal
of Hellenic Studies, Vol. 115, 1995 (1995), pp. 141-146, p. 141.
341
MARSHALL, Francisco. Édipo Tirano: A Tragédia do Saber. Porto Alegre : Ed. UNB, 2000, p. 187.
150
Evita acusar Apolo mas desfere um golpe mortal contra a profecia
apolínea, que há tempos imemoráveis era transmitida por intermédio
de seus sacerdotes em Delfos
342
.
Ela oculta de propósito ou por esquecimento – bem o diremos pela intenção do
próprio poeta – o incesto, mesmo que ainda não tivesse como saber que casara – e tivera
filhos – com o próprio filho. No restante da conversa, ele descobre que as feições de
Laio são parecidas com as suas, porém tomadas pelo envelhecimento
343
. Ironicamente,
ela não atingiu os seus objetivos. Tornou ainda pior a situação, transtornando Édipo.
Após o relato de Jocasta sobre o assassinato de Laio, Édipo angustia-se, pois percebe as
possibilidades de ele ser o assassino. Entre outras palavras, as intenções de Jocasta, que
eram trazer conforto aos tormentos de Édipo, frustram-se. Identificamos aqui uma cena
de reconhecimento parcial oriunda de um despertar da memória. Esta cena ocorreu
porque um estímulo sensível produziu lembranças capazes de revelar sentimentos
profundos e inquietantes.
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Οἴμοιτάλας·ἔοικ´ἐμαυτὸνεἰςἀρὰς
745
δεινὰςπροβάλλωνἀρτίωςοὐκεἰδέναι.
Édipo: Contra mim mesmo – creio – a maldição
acabo de lançar, sem o saber.
vv. 744-45
Édipo assume que, talvez, ele tenha lançado sobre si mesmo as imprecações,
sem o saber. Ele desconfia da veracidade das palavras de Tirésias. Relances de
memória, até então esquecidos, reaparecem. Desta maneira, ele haveria de fazer cumprir
o édito sobre si mesmo. Ele só não desconfiava do tamanho de sua desgraça. Aos
poucos as peças do quebra-cabeça começam a se organizar, alterando os sentimentos de
Édipo da confiança para o desespero.
Apenas um detalhe poderia salvá-lo. O sobrevivente à chacina que relatara o
ocorrido ser encontrado e confirmar que muitas mãos mataram Laio e sua comitiva.
342
KNOX, 2002, Op. Cit., p. 152.
343
VELLACOTT, 1964, p. 140. Édipo Rei, Cf. vv. 706-742.
151
Ora, existem duas versões para a morte de Laio. Na primeira, contada pela maioria, são
muitos os assassinos e um sobrevivente. Não sabemos quantos seguiam no séqüito de
Laio, talvez cinco, e desconhecemos quantos eram os assassinos. Na segunda versão, na
divulgada por Édipo, existe apenas um assassino e nenhum sobrevivente, pelo menos
nenhum de que ele se lembre.
Tal evidência nos oferece um caminho a respeito do perfil de Édipo. Caso ele
não tenha percebido que um dos seguidores de Laio havia conseguido escapar, ele
demonstra parte de sua cegueira. Apesar de suspeitar contra si mesmo, não faz parte de
suas lembranças que uma das vítimas houvesse escapado. Em dado momento, quando
Jocasta refere-se ao pastor, disse que o mesmo, quando retornou a Tebas, encontrou
Édipo como rei e pediu para se ausentar. Motivada pelos favores que devia ao pastor, e
ela não os revela naquele momento, Jocasta permitiu.
{ΙΟΚΑΣΤΗ}Οὐδῆτ´·ἀφ´οὗγὰρκεῖθενἦλθεκαὶκράτη
σέτ´εἶδ´ἔχονταΛάϊόντ´ὀλωλότα,
[760]
ἐξικέτευσετῆςἐμῆςχειρὸςθιγὼν
ἀγρούςσφεπέμψαικἀπὶποιμνίωννομάς,
ὡςπλεῖστονεἴητοῦδ´ἄποπτοςἄστεως.
Κἄπεμψ´ἐγώνιν·ἄξιοςγὰροἷ´ἀνὴρ
δοῦλοςφέρεινἦντῆσδεκαὶμείζωχάριν.
Jocasta: O homem, ao retornar a Tebas, quando
viu que reinavas em lugar do morto,
tocando as minhas mãos, veio rogar-me:
deixasse-o ir ao passo atrás do gado.
Bem longe dos demais, queria estar.
Embora escravo, não lhe negaria
graça até maior. Dei meu sim. Partiu.
vv. 758-764.
O episódio nos oferece uma incoerência de ordem cronológica. Quando a única
testemunha do assassinato retorna à Tebas, Édipo já se encontra no trono. Permitir a
ausência do pastor, ocultando-a de Édipo, o novo rei, merece um pouco de atenção.
Percebendo que Édipo era rei no lugar de Laio, numa cena de reconhecimento externa à
peça, o pastor pede para se afastar da cidade, talvez temendo pela própria segurança.
152
Em uma investigação, quando tudo parece nebuloso, deve-se voltar ao começo
para se elucidar todas as dúvidas. E é justamente o que Édipo faz. Ele deseja encontrar o
servo sobrevivente ao massacre: pois para ele este é o princípio de tudo. No entanto,
ainda que o servo seja o portador dos elementos que faltavam para a montagem do
quebra-cabeça que o atormenta, o princípio está no nascimento de Édipo e é preciso
regressar a este episódio para que tudo venha à tona e finalmente a verdade se apresente
pura e simples diante dos olhos de todos.
O oráculo, a testemunha, Creonte, Jocasta, o Coro - se levarmos em
consideração as suas informações -, todas as fontes, isto é, que são independentes de
Édipo, apresentam um detalhe fundamental: a multiplicidade dos assassinos, porque os
testemunhos de Creonte e do sobrevivente são corroboradas pelas palavras do próprio
Apolo
344
. Voltando a uma questão crucial no evento da encruzilhada que não é
encenado, mas rememorado, todos morreram, menos um, por coincidência, o servo
incumbido de matar o filho pequeno de Laio e Jocasta. O sobrevivente à chacina não
explicou bem os motivos e nem relatou a verdade em sua totalidade. Ele omitiu parte do
ocorrido, disse que muitas mãos mataram Laio e o séqüito que o seguia. Por que ele
mentiu? Teria mentido por medo, vergonha, erro de interpretação com relação ao
ocorrido? Poderíamos afirmar que ele exagerou por medo ou por vergonha da própria
conduta no momento do conflito, porém o episódio não está claro no contexto da
peça
345
. Desde o princípio, se eles quisessem saber a verdade ou descobrir o assassino,
não teria sido tarefa difícil. Seria Édipo múltiplo? Neste sentido, poderíamos pontuar
344
GOODHART, Sandor. “Oedipus and Laius’ many murderers”. Diacritics, vol. 8, no. 1, Special Issue on
the Work of Rene Girard, (Spring, 1978), p. 59.
345
Porém, se ele tivesse contado a verdade, Sófocles não teria construído sua trama da forma como o fez.
Ainda com relação ao enigmático verso que diz: “muitas mãos o mataram” Creonte remete ao oráculo no
verso 107 e Édipo responde no verso 108 utilizando o singular. O coro também usa o plural no verso 292:
“dizem que uns andarilhos o mataram” e no verso 277. Édipo responde no singular no verso 293. No
entanto, ele usa o plural no verso 308: “matar os homens.” Édipo usa o singular nos versos 124, 139, 225,
230, 236. Porém, em 246-7 usa o singular e o plural simultaneamente. Enfim, no verso 715, Jocasta usa o
singular.
153
que Édipo não era uno, mas que ele encarnaria o Édipo rejeitado, o exilado, o fujão, o
irascível.
{ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Δέδοικ´ἐμαυτόν,ὦγύναι,μὴπόλλ´ἄγαν
εἰρημέν´ᾖμοι,δι´ἅνινεἰσιδεῖνθέλω.
Édipo: O meu temor, mulher, é ter falado
em demasia.Por isso eu quero vê-lo.
vv. 767-768
Édipo praticamente se reconhece como o responsável pela morte de Laio e
culpado pelas desgraças sofridas pela pólis. Apesar de reconhecer que falara demais, ele
não era capaz de prever resultados tão negativos, e muito menos poderia conhecer a
verdadeira identidade dos pais, pois acreditava ser filho de Mérope e Pólibo. Mas, se
Édipo era um exilado, e digo-o exilado por duas vezes, em primeiro lugar na infância e
depois através de um auto-exílio, o que motivou a fuga de Édipo?
Segundo o mito, durante uma festa, um bêbado o chamou de bastardo.
Contrariado, questionou os pais sobre a possibilidade de não ser filho legítimo. Estes o
tranqüilizaram, porém, ele não se convenceu totalmente e foi a Delfos buscar a verdade
sobre sua origem. Lá, não encontrou a resposta que procurava, mas que mataria o
próprio pai e casaria com a mãe dando origem a uma prole amaldiçoada. Assustado e
temendo a realização do vaticínio, ele foge. Ele desejava evitar a realização do oráculo.
Depois, ele relata os eventos na encruzilhada e a maneira como ele assassinou um velho
e seu séquito. O medo e a tensão tomam conta da cena. Édipo está extremamente
preocupado e teme ser realmente o assassino apontado por Tirésias.
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Κοὐμὴστερηθῇςγ´ἐςτοσοῦτονἐλπίδων
ἐμοῦβεβῶτος·τῷγὰρἂνκαὶμείζονι
λέξαιμ´ἂνἢσοὶδιὰτύχηςτοιᾶσδ´ἰών;
ἘμοὶπατὴρμὲνΠόλυβοςἦνΚορίνθιος, 
775
μήτηρδὲΜερόπηΔωρίς.Ἠγόμηνδ´ἀνὴρ
ἀστῶνμέγιστοςτῶνἐκεῖ,πρίνμοιτύχη
τοιάδ´ἐπέστη,θαυμάσαιμὲνἀξία,
σπουδῆςγεμέντοιτῆςἐμῆςοὐκἀξία.
Ἀνὴργὰρἐνδείπνοιςμ´ὑπερπλησθεὶςμέθῃ
[780]
καλεῖπαρ´οἴνῳπλαστὸςὡςεἴηνπατρί.
Κἀγὼβαρυνθεὶςτὴνμὲνοὖσανἡμέραν
μόλιςκατέσχον,θἀτέρᾳδ´ἰὼνπέλας
154
μητρὸςπατρόςτ´ἤλεγχον·οἱδὲδυσφόρως
τοὔνειδοςἦγοντῷμεθέντιτὸνλόγον.
785
Κἀγὼτὰμὲνκείνοινἐτερπόμην,ὅμωςδ´
ἔκνιζέμ´αἰεὶτοῦθ´·ὑφεῖρπεγὰρπολύ.
Λάθρᾳδὲμητρὸςκαὶπατρὸςπορεύομαι
Πυθώδε,καίμ´ὁΦοῖβοςὧνμὲνἱκόμην
ἄτιμονἐξέπεμψεν,ἄλλαδ´ἀθλίῳ
[790]
καὶδεινὰκαὶδύστηναπροὐφάνηλέγων,
ὡςμητρὶμὲνχρείημεμιχθῆναι,γένοςδ´
ἄτλητονἀνθρώποισιδηλώσοιμ´ὁρᾶν,
φονεὺςδ´ἐσοίμηντοῦφυτεύσαντοςπατρός.
Κἀγὼ´πακούσαςταῦτατὴνΚορινθίαν
795
ἄστροιςτὸλοιπὸνἐκμετρούμενοςχθόνα
ἔφευγον,ἔνθαμήποτ´ὀψοίμηνκακῶν
χρησμῶνὀνείδητῶνἐμῶντελούμενα.
Στείχωνδ´ἱκνοῦμαιτούσδετοὺςχώρουςἐνοἷς
σὺτὸντύραννοντοῦτονὄλλυσθαιλέγεις.
[800]
Καίσοι,γύναι,τἀληθὲςἐξερῶ.Τριπλῆς
ὅτ´ἦκελεύθουτῆσδ´ὁδοιπορῶνπέλας,
ἐνταῦθάμοικῆρύξτεκἀπὶπωλικῆς
ἀνὴρἀπήνηςἐμβεβώς,οἷονσὺφῄς,
ξυνηντίαζον·κἀξὁδοῦμ´ὅθ´ἡγεμὼν
805
αὐτόςθ´ὁπρέσβυςπρὸςβίανἠλαυνέτην.
Κἀγὼτὸνἐκτρέποντα,τὸντροχηλάτην,
παίωδι´ὀργῆς·καίμ´ὁπρέσβυςὡςὁρᾷ
ὄχονπαραστείχοντα,τηρήσαςμέσον
κάραδιπλοῖςκέντροισίμουκαθίκετο.
[810]
Οὐμὴνἴσηνγ´ἔτεισεν,ἀλλὰσυντόμως
σκήπτρῳτυπεὶςἐκτῆσδεχειρὸςὕπτιος
μέσηςἀπήνηςεὐθὺςἐκκυλίνδεται·
κτείνωδὲτοὺςξύμπαντας.Εἰδὲτῷξένῳ
τούτῳπροσήκειΛαΐῳτισυγγενές,
815
τίςτοῦδέγ´ἀνδρὸςνῦνἔτ´ἀθλιώτερος;
τίςἐχθροδαίμωνμᾶλλονἂνγένοιτ´ἀνήρ;
ᾧμὴξένωνἔξεστιμηδ´ἀστῶντινα
δόμοιςδέχεσθαι,μηδὲπροσφωνεῖντινα,
ὠθεῖνδ´ἀπ´οἴκων.Καὶτάδ´οὔτιςἄλλοςἦν
[820]
ἢ´γὼ´π´ἐμαυτῷτάσδ´ἀρὰςὁπροστιθείς.
Λέχηδὲτοῦθανόντοςἐνχεροῖνἐμαῖν
χραίνω,δι´ὧνπερὤλετ´.Ἆρ´ἔφυνκακός;
ἆρ´οὐχὶπᾶςἄναγνος;εἴμεχρὴφυγεῖν,
καίμοιφυγόντιμἤστιτοὺςἐμοὺςἰδεῖν
825
μήτ´ἐμβατεῦσαιπατρίδος,ἢγάμοιςμεδεῖ
μητρὸςζυγῆναικαὶπατέρακατακτανεῖν,
Πόλυβον,ὃςἐξέθρεψεκἀξέφυσέμε.
Ἆρ´οὐκἀπ´ὠμοῦταῦταδαίμονόςτιςἂν
κρίνωνἐπ´ἀνδρὶτῷδ´ἂνὀρθοίηλόγον;
[830]
Μὴδῆτα,μὴδῆτ´,ὦθεῶνἁγνὸνσέβας,
ἴδοιμιταύτηνἡμέραν,ἀλλ´ἐκβροτῶν
βαίηνἄφαντοςπρόσθενἢτοιάνδ´ἰδεῖν
κηλῖδ´ἐμαυτῷσυμφορᾶςἀφιγμένην.
Édipo: Nada te ocultarei, chegando ao ápice
da expectativa. Ao deparar-me com
155
o azar da sorte, quem melhor me escuta?
Políbio, meu pai, era de Corinto;
minha mãe, Mérope, era dória. Máximo
na pólis – viam-me assim -, até que o Acaso
impôs-me um caso digno de estupor,
mas, para mim, indigno de desvelo.
Um homem ébrio, já muito alto, num
festim, chamou-me filho putativo.
Muito abalado, a duras penas, eu
me contive esse dia. Alvoreceu.
Interroguei meus pais. Sentindo o ultraje,
reagiram contra quem o pronunciara.
Deixaram-me feliz, mas logo aquilo
voltou-me a atormentar, e sempre mais.
Fui em sigilo a Delfos, de onde – flâmeo –
Foibos, sem dar-me o prêmio da resposta,
me despediu, mas, num lampejo, disse-me
o que previa: miséria, dor, desastre.
Faria sexo com minha própria mãe,
gerando prole horrível de se ver;
seria o algoz do meu próprio progenitor.
Ouvi, fugi da pátria; mensurava
Pelo estelário o quanto ela distava.
Queria achar um canto onde não visse
cumprir-se a infâmia desse mau oráculo.
Em meu perambular
346
, cheguei ao ponto
em que morreu, segundo afirmas, Laio.
Serei veraz, mulher: quando eu estava
perto de onde os caminhos se trifurcam,
cruzei com um arauto; sobre o coche,
sentado, um homem qual o já citado.
Vindo de encontro a mim, o auriga e o velho
me empurraram: devia dar passagem.
347
Colérico, esmurrei meu agressor
- o auriga -, e o velho, vendo-me ladear
o carro, à espreita, com chicotes duplos,
feriu-me bem no meio da cabeça.
348
Pagou preço maior: no mesmo instante,
recebe um golpe do meu cetro. Rola
do carro, ao chão, decúbito dorsal.
Executei o grupo. E se o estrangeiro
tiver com Laio laços consangüíneos?
Alguém será mais infeliz do que eu,
A quem os Sempiternos mais execram?
Proibido ao cidadão e ao forasteiro
falar comigo ou receber-me em casa.
É clara a ordem: devem me expulsar!
Contra mim mesmo impus a maldição.
Manchei o tálamo do morto com
as mãos que o assassinaram. Vil, nasci?
Sou todo-nódoa? O exílio se me impôs
346
Édipo estaria cansado? Ocupando-nos da linguagem náutica sempre presente na peça, veríamos a
possibilidade de Édipo procurar um porto seguro?
347
Édipo, de pés cansados, sem rumo e exilado é praticamente atirado para fora da estrada, como qualquer
um. Seria aceitável, sendo ele quem é, permitir tamanho insulto?
348
Existiria alguma pista neste verso, o fato de Laio ter ferido Édipo na cabeça é relevante? Ele estava cego
de raiva? Laio não tentava apenas se defender, já que Édipo agredira seu servo?
156
e, me exilando, os meus não mais rever,
não mais pisar Corinto, sob o risco
de unir-me a minha mãe, matar meu pai,
de quem nasci, com quem aprendi.
349
Erra quem julgue que um demônio cru
sobre o meu ombro faz pesar o azar?
Não, magnitude imácula dos numes,
que eu não veja esse dia! Alheio ao mundo
prefiro estar, alguém já não-visível,
antes que sobre mim caia essa mácula.
350
vv. 731-833
Uma das coisas mais perturbadoras sobre a jornada mental, física e emocional de
Édipo era que ele não tinha certeza de quando e nem onde ela ia terminar até encontrar-
se com a Esfinge. Édipo inicia sua fala afirmando que não ocultará nada de Jocasta, que
falará toda a verdade. Uma vez que toda a peça se pauta em meias verdades, Édipo
isenta-se de cometer um erro ao falar abertamente sobre os acontecimentos que remetem
ao seu passado.
Mas por que Édipo relata sua preocupação com o oráculo e a fuga de Corinto
para Jocasta? Qual é a relação entre um evento – a morte de Laio que deveria ser morto
pelo próprio filho e que por ventura tem semelhança física com Édipo – e os eventos
que ocorreram em Corinto? Por que ele sente necessidade de contar a Jocasta o que
ocorrera antes de ele fugir até o momento em que ele se encontra com Laio na
encruzilhada? Teria Édipo, inconscientemente, desconfiado de alguma coisa, levando
em conta sua inteligência singular? O episódio é necessário porque “a descoberta da
verdade por Édipo não poderia aparecer de forma repentina”, ou seja, em se tratando de
um espetáculo, a fala de Édipo se torna indispensável para o desfecho do enredo
trágico
351
.
349
Édipo não poderia voltar para casa. Uma vez culpado, sentia-se sem rumo.
350
Édipo desejava a morte? É muito estranho preferir a morte, o sensato seria preferir o contrário, mas, em
contrapartida, o preferível é ambíguo porque a fortuna pode ser tão terrível que não seria surpreendente
desejar o contrário do que seria natural.
351
VERNANT, 1999, Op. Cit., p. 66.
157
Em primeiro lugar ele fala da própria linhagem, demonstrando que se orgulha da
mesma. O que aumenta a dramaticidade do que estava por vir. Precisamente, devido à
informação genealógica temos a ironia no relato de Édipo. Tal comportamento retórico
seria mais viável no prólogo
352
, mas, provavelmente, Sófocles tinha seus motivos para
inserir este detalhe neste momento da peça.
Não deixa de ser curioso, pois ele também falará que a identidade de seus pais
fora posta em dúvida. Édipo nunca esqueceu o que o conduziu a Delfos e depois o
afastou definitivamente de Corinto. A fala de um bêbado numa festa o deixara
transtornado, mas ele frisou bem que, naquela data, ele se conteve. O papel do bêbado é
o ponto inicial de todo o conflito – extra-cênico – e que promove a fuga de Édipo.
Parece digno de investigação porque em outras circunstâncias ele não teve o mesmo
procedimento: chegou a ser intemperante e agressivo, tal como ele relatou nos versos
seguintes. Segundo Édipo, indignados, seus “supostos pais” reagiram contra quem
proferira palavras tão cruéis e “falsas
353
.
Apesar de Édipo não ter forçado uma resposta convincente de seus “supostos”
pais, ele não se conteve. Encaminhou-se para Delfos a fim de buscar respostas que
acalmassem seu espírito conturbado, mas não obteve sucesso. Ficou ainda mais abalado
quando ouviu do oráculo que casaria com a mãe e mataria o pai
354
. Acreditando que o
perigo se encontrava em Corinto, ele fugiu. Ele resolveu evitar Corinto para evitar seus
352
GREGORY, 1995, Op. Cit., p. 142.
353
LESSER, Simon. “Oedipus the King: The Two Dramas, the Two Conflitcs”. College English, Vol. 29,
no. 3. (Dec., 1967), p. 188. Na versão mitológica para a triste sina de Édipo, é estranho perceber que
sendo ele tão implacável na busca pela verdade, não tenha investigado até o fim a história sobre sua
ascendência. Boatos põem à prova a sua ligação consangüínea com seus pais. Ele os argüiu e foi
tranqüilizado, como era se de esperar. Mas seu espírito desinquieto e atormentado o leva a questionar ao
oráculo a verdade sobre sua ascendência. A resposta que encontra é: “matarás teu pai e dormirás com tua
mãe”. Ora, ele contenta-se com a afirmação do oráculo, porque foge imediatamente, temendo cumprir a
predição. Ele confiava nos oráculos, ou pelo menos ele oscila entre o crer e o duvidar, como o podemos
perceber ao longo da peça. O tema dos boatos infundados, pouco investigados e esquecidos se repete ao
longo da trama como veremos adiante. Cf. Édipo Rei. vv. 771-797, 964-976, 994-999.
354
A informação encontra-se necessariamente nesta ordem, primeiro Édipo relata o contato incestuoso com
a mãe e depois o assassinato do pai.
158
pais, fugindo à predição. A questão do “onde” ele se encontrava e não com “quem” ele
estava parece-nos soar mais forte. Ele reconheceu que se permanecesse onde estava ele
corria o risco de praticar atos hediondos. Em sua mente, contudo, pairaria a dúvida:
seria ele um bastardo membro da família real de Corinto ou de origem humilde
355
?
Cada vez mais distante de casa, sem rumo e infeliz, Édipo encontrou-se com
Laio. Este o tratou mal, agredindo-o, e Édipo enfurecido matou e eliminou a todos -
exceto um – da comitiva. Ele não sabia nada a respeito daquele homem na beira da
estrada. Mas poderia supor sua linhagem real, pois estava acompanhado de um séqüito.
Além disso, ele não queria se sentir diminuto, nem poderia ignorar um insulto
356
,
respondendo furiosamente ao gesto do condutor do veículo que o atacou tentando
expulsá-lo da estrada e abrir caminho.
Édipo chegou em Tebas com sangue nas mãos, e um dos homens que
acabara de matar era uma pessoa importante, que andava numa
carruagem, acompanhada por um arauto. É verdade, Édipo atacou em
auto-defesa, no entanto, o coro passou a conhecer em Édipo do qual
não suspeitava, um homem violento que pode dizer, não sem um
toque de arrogância, “Matei-os todos” (813)
357
.
Sem dúvida, ele possuía boas razões para acreditar que lançara contra si mesmo
a maldição, sendo, portanto, o maior suspeito do crime de assassinato. Em relação ao
que ouviu do oráculo, as conclusões de Édipo foram precipitadas, tendo em vista que
desconhecia parte de sua história, mas errou quando não tentou levar até o fim a questão
que o conduziu a Delfos. Um dos erros de Édipo deveu-se, sobretudo, ao seu excesso de
confiança e segurança no próprio julgamento, de maneira que ele encontrava-se seguro
demais para duvidar da própria interpretação dos eventos
358
.
355
GREGORY, 1995, Op. Cit., p. 145.
356
GREGORY, 1995, Loc. Cit., p. 145.
357
KNOX, 2002, Op. Cit., p. 47. No primeiro estásimo o coro indaga quem é o homem cujas mãos tintas de
sangue cometera crimes hediondos. Cf., v. 465. Grifo nosso.
358
VERNANT, 1999, Op. Cit., p. 66.
159
A peça começa muitos anos depois de Édipo ter matado Laio e se casado com
Jocasta
359
. A praga que ataca Tebas e um oráculo anunciando a existência de um
assassino, que deveria ser expulso, compõem a trama
360
. O que está em pauta na
investigação parece uma questão de número que oscila entre o plural e o singular em
relação ao assassino de Laio: muitos ou um único homem. Para Jocasta, mesmo que o
servo mude o relato completamente, ela tem absoluta certeza que os oráculos
fracassaram e por isso ela não lhes dá crédito algum.
{ΙΟΚΑΣΤΗ}Ἀλλ´ὡςφανένγετοὔποςὧδ´ἐπίστασο,
κοὐκἔστιναὐτῷτοῦτόγ´ἐκβαλεῖνπάλιν·
[850]
πόλιςγὰρἤκους´,οὐκἐγὼμόνη,τάδε.
Εἰδ´οὖντικἀκτρέποιτοτοῦπρόσθενλόγου,
οὔτοιποτ´,ὦναξ,τόνγεΛαΐουφόνον
φανεῖδικαίωςὀρθόν,ὅνγεΛοξίας
διεῖπεχρῆναιπαιδὸςἐξἐμοῦθανεῖν.
855
Καίτοινινοὐκεῖνόςγ´ὁδύστηνόςποτε
κατέκταν´,ἀλλ´αὐτὸςπάροιθενὤλετο.
Ὥστ´οὐχὶμαντείαςγ´ἂνοὔτετῇδ´ἐγὼ
βλέψαιμ´ἂνοὕνεκ´οὔτετῇδ´ἂνὕστερον.
Jocasta: Eu repeti somente o que era público;
ele não pode, pois, voltar atrás:
toda cidade ouviu, além de mim.
Ainda que altere o seu relato prévio,
não provará, nem mesmo assim, o acerto
da profecia. Apolo asseverou
que Laio morreria às mãos do filho.
Sabemos bem que o pobre garoto
já estava morto quando o pai morreu.
Oráculo nenhum, desde essa época,
me leva a olhar aqui ou acolá
361
.
vv. 848-858
Jocasta propõe o abandono dos recursos proféticos, pois denuncia o aparente
fracasso dos oráculos. Desde a época que o oráculo feito a Laio falhou, ela não se
preocupa com eles. Ela tentou convencer Édipo a não dar credibilidade às palavras de
Tirésias. Segundo ela, se o próprio Apolo é passível de falhar, tanto mais um de seus
359
CAREL, 2006, Op. Cit., p. 98.
360
SEGAL, Oedipus Tirannus: Tragic Heroism and Limits of Knowledge, 2001, Op. Cit., p. 12. Édipo inicia
uma investigação e o restante da peça revela a identidade do assassino.
361
Jocasta assegura o erro do oráculo. Porém, como evidenciamos no primeiro estásimo, é mais fácil o erro
partir do vidente – enquanto ser humano – do que dos deuses – que não erram jamais. Neste sentido,
acreditamos que Jocasta incorre em impiedade contra os deuses através de seu posicionamento.
160
sacerdotes
362
. A fala de Jocasta nos faz regressar ao primeiro estásimo, quando o coro
questiona a validade da profecia, mas não tem a ousadia de recusar a palavra divina,
ainda que questione a veracidade das profecias provenientes da fala humana.
A descrença de Jocasta provocou a reprovação do coro. Ela desejava provar
empiricamente que o vidente estava enganado e, portanto, sem crédito
363
. E se a
hamartía tem relação direta com uma ação cujos resultados são frustrados, temos no
relato de Jocasta um exemplo. Ao relatar o fracasso das profecias contando a história de
Laio e do filho, a intenção dela era acalmar Édipo, porém seus objetivos não foram
alcançados. Ciente do local da morte de Laio e suas condições, ele se desespera e
começa a dar fiabilidade ao relato de Tirésias acreditando na possibilidade de ser o
assassino. Esta reação nos oferecerá um dos mais impressionantes e enigmáticos cantos
corais da peça: o segundo estásimo.
Uma vez que o oráculo ameaçou Édipo de parricídio e incesto, era lógico que ele
deveria manter-se longe de seus pais. Mas a lógica, neste caso, provou-se inútil, e fê-lo
por razões que ultrapassavam o simples fato de que ele estava evitando as pessoas
erradas
364
. Estranhamente, Laio e Édipo viajavam na estrada entre Tebas e Delfos, mas
a razão humana nunca poderia explicar porque a viagem do pai e a do filho coincidiram
numa encruzilhada.
4.7. Desmedida, impiedade, orgulho e injustiça: o segundo estásimo e a hamartía
O segundo estásimo recebeu diversas interpretações e dentre seus principais
enigmas encontramos uma referência ao conceito de hýbris. A hýbris, em Édipo Rei, é
362
KNOX, 2002, Op. Cit., p. 155.
363
KANE, Robert L.“Prophecy and Perception in the Oedipus Rex.” Transactions of the American
Philological Association (1974 -), Vol. 105. (1975),1975, pp. 195.
364
KANE, 1975, Op. Cit., p. 196.
161
essencial para a compreensão da hamartía; o conceito se relaciona com o não respeitar
limites, com o transpor barreiras para além daquilo que o herói deveria fazer. A hamartía
é cometida justamente porque o herói se encontra em hýbris, cheio de orgulho,
ultrapassando a medida. Quando a hýbris toma conta do herói, provoca uma mudança
brusca na ordem constituída.
Nesta perspectiva, tentaremos pensar uma hipótese interpretativa para a hamartía
através do segundo estásimo. O que diferencia este canto coral dos demais não é
simplesmente o extremo da angústia vivenciada pelo Coro em face à situação dramática
que se apresentava, mas principalmente sua relação ao comportamento de algumas
personagens que poderiam se encontrar na mira das críticas que serão proferidas.
Antes de considerar-se quem pode ser o destinatário das críticas e
denúncias ora apresentadas (se de fato o é alguém em particular), pode-
se tentar definir qual a verdadeira denúncia aí versada, o que pode ser
feito percebendo-se o momento e o contexto de enunciação tal como
visto e sentido pelos cidadãos que integram o Coro, em estreita
correlação com o encadeamento de ações que precede e subjaz a este
estásimo
365
.
Dentre os estudiosos que se ocuparam do segundo estásimo em virtude de sua
complexidade, utilizaremos as reflexões realizadas por Cairns, Carey, Winnington-
Ingram, Gellie, Phillip Vellacott, Ruth Scodel e Keith Sidwell, estabelecendo as suas
similitudes e diferenças que residem, em particular, na necessidade de explicar o
sentimento do coro, seu ponto de vista, estratégia retórica e críticas.
Nossa expectativa de leitura tem tendência a considerar o segundo estásimo como
uma extensão da cena precedente. Porém, não poderíamos afirmar categoridamente a
natureza exata desta afinidade, exceto a segunda antístrofe, diretamente relacionada com o
ceticismo de Jocasta
366
. O coro oferece uma ampla resposta emocional ao que está
365
MARSHALL, 2000, Op. Cit., p. 236.
366
WINNINGTON-INGRAM, R. P. “The Second Stasimon of the Oedipus Tyrannus”. The Journal of
Hellenic Studies, Vol. 91. (1971), pp. 119-135, p. 123.
162
acontecendo e o foco principal deste canto encontra-se nas particularidades do diálogo
entre Jocasta e Édipo e nos prepara para as calamidades que serão reveladas.
Winnington-Ingram comenta que a ode é de difícil compreensão
367
e as diversas
interpretações existentes direcionam para uma tendência, quase que unânime, em a
considerarem o ponto chave da peça.
{ΧΟΡΟΣ}Εἴμοιξυνείηφέροντιμοῖρατὰν
εὔσεπτονἁγνείανλόγων
865
ἔργωντεπάντων,ὧννόμοιπρόκεινται
ὑψίποδες,οὐρανίαν
δι´αἰθέρατεκνωθέντες,ὧνὌλυμπος
πατὴρμόνος,οὐδένιν
θνατὰφύσιςἀνέρων
ἔτικτεν,οὐδὲμήποτελάθα
[870]
κατακοιμάσῃ·
μέγαςἐντούτοιςθεός,οὐδὲγηράσκει.
À sagrada pureza da linguagem
e do afazer, a Moira me destine:
leis – altos pés! – a fixam,
geradas através do urânio éter.
Delas o pai é o Olimpo, é só o Olimpo!
Nem as criou o homem perecível,
nem Lete – o oblívio – as adormece.
Nelas, um megadeus nunca envelhece.
vv. 863-871.

Na primeira estrofe, versos 863-871, o coro trata da divindade, sua eternidade e
suas leis. As leis divinas mencionadas na primeira estrofe são descritas geralmente como
leis que governam a conduta humana em seus vários campos de atuação. O coro canta
sobre a reverente pureza da palavra, bem como sobre a Moira, e pode se referir também,
entre outras coisas, ao posicionamento de Jocasta, que se esquecera da força da palavra
divina. Ela pode ser um instrumento útil ao exame preliminar do estásimo como um todo,
se primeiramente examinarmos a impiedade - se este é o termo certo -, de Jocasta
368
.
O apelo à lei divina é estimulado também pelo fato de que a lei humana
parece ter falhado. Tanto o abandono do filho de Laio quanto o
assassinato aconteceram há muito tempo, sem que nenhuma autoridade
interviesse ou punisse. As leis do homem tornaram-se arcaicas e
impotentes, foram ludibriadas e esquecidas. Quanto à lei divina, no
367
WINNINGTON-INGRAM, 1971, Op. Cit. p. 119.
368
WINNINGTON-INGRAM, 1971, Op. Cit., p. 119.
163
entanto, jamais o esquecimento a fará adormecer, ela não pode ser
enganada, e o deus nunca envelhece
369
.
As verdadeiras leis, aquelas que realmente importam, não se destinam nem ao
envelhecimento e nem ao esquecimento. Aquele que haverá de sucumbir encarna a
hýbris, o oposto exato da pureza pela qual o coro reza
370
. As leis mencionadas na primeira
estrofe da ode são descritas, geralmente, como as leis que governam a conduta humana,
sua relação com a divindade, família e com os outros em suas mais variadas formas e
campos de atuação. As leis sagradas são imutáveis, imperecíveis e permanentes
371
.
A natureza e a substância das leis divinas presentes no Olimpo Celestial
permanecem eternas em relação aos atributos humanos e possuem uma condição supra-
humana. A lei divina não precisa ser escrita, sua paternidade está ligada ao divino, é
intocável pelo homem, talvez, por isso mesmo, imutável
372
. A própria ordem universal
dependeria de um princípio superior. Aquele que confia na própria imperecibilidade, na
força da própria lei e violência poderia errar. Por sua vez, a substância humana é mortal,
perecível, mutável, fadada ao esquecimento e à falibilidade. O coro nos faz pensar sobre
a imprevisibilidade do futuro e precariedade das coisas terrenas
373
, abertas à
indeterminação.
Na antístrofe encontramos o principal enigma do estásimo. Concordamos que a
sua ligação com a estrofe anterior não nos parece clara. Seria viável, e facilitaria a nossa
compreensão, se o sujeito dos versos iniciais se aproximasse daquele que está presente
nos versos finais da estrofe anterior. Este ponto é crucial porque nos ajudaria a resolver a
questão da hamartía, lembrando a relação ao conceito que aparece no primeiro verso da
369
KNOX, 2002, Op. Cit., p. 82.
370
SCODEL, Ruth. “Hybris in the Second Stasimon of the Oedipus Rex”. Classical Philology, Vol. 77, No.
3. (Jul., 1982), p. 215.
371
SIDWELL, Keith. “The Argument of the Second Stasimon of Oedipus Tyrannus”. The Journal of
Hellenic Studies, Vol. 112 (1992), pp. 106-122, p. 110.
372
BOLLACK, 1990, Op. Cit., p. 545-6.
373
AUBENQUE, 2003, Op. Cit., p. 278.
164
antístrofe. O coro descreve como a hýbris gera o tirano e pede aos deuses benefícios à
cidade. Que os mesmos não a abandonem. Os deuses se encontram em primeiro lugar.
Ὕβριςφυτεύειτύραννον·
ὕβρις,εἰπολλῶνὑπερπλησθῇμάταν
875
ἃμὴ´πίκαιραμηδὲσυμφέροντα,
ἀκρόταταγεῖς´ἀναβᾶς´
ἄφαρἀπότομονὤρουσενεἰςἀνάγκαν,
ἔνθ´οὐποδὶχρησίμῳ
χρῆται.Τὸκαλῶςδ´ἔχον
πόλειπάλαισμαμήποτελῦσαι
[880]
θεὸναἰτοῦμαι·
θεὸνοὐλήξωποτὲπροστάτανἴσχων.
A desmedida gera a tirania.
A desmedida –
se infla o excesso vão
do inoportuno e inútil –
galgando extremos cimos, decairá
no precipício da necessidade,
onde os pés não têm préstimo.
Eu rogo ao deus:
Perdure na cidade a bela pugna!
Que à frente eu sempre tenha o deus!
vv. 872-877
Depois de ter atingido as alturas, o agente mergulha nas profundezas do abismo.
Depois que este começou a cair, o processo é inevitável e nada poderá salvá-lo
374
. O coro
afirma que a hýbris conduz o tirano e é a responsável pela queda. O monarca que se deixa
levar pela hýbris governa no erro. E, embora o sentimento do coro nos pareça duplo, de
uma coisa eles têm certeza: se a hýbris não for contida, a pólis se perderá. Mas não
podemos afirmar se que o coro refere-se a Édipo, mas que o herói tomado pela hýbris tem
o fracasso como destino certo. É preciso triunfar a partir das forças da inteligência e não
da força bruta.
Pensando no sentido do primeiro verso que esta ode faz à pureza, poderíamos
concluir que na antístrofe a hýbris faria referência ao impuro? A pureza não permite
mácula, mancha, ela é pertinente apenas às coisas sagradas, já que é impossível ao
humano ser puro. A tradução para a palavra hýbris é diversa: insolência, desmesura,
374
WINNINGTON-INGRAM, 1971, Op. Cit., p. 124.
165
desmedida, violência são normalmente utilizadas. Mas independentemente das traduções
sabemos que a palavra não recebe, neste contexto, atributo positivo.
Quando o herói ultrapassa a medida, comete de imediato uma hýbris – um ato de
violência contra si próprio e a divindade. O sentimento de orgulho desmedido leva os
heróis da tragédia a perpetuarem uma violação à ordem estabelecida, através de uma
ação que se constitui como um desafio aos poderes e à ordem divinos. Se a hýbris
conduz a ação do herói, seria pertinente pensarmos a sua relação com a hamartía
375
.
A hýbris, neste contexto, refere-se à desmedida, uma forma de insolência,
desmedida, ultraje, excesso, violência arbitrária e desrespeito aos deuses que não toleram
comportamentos deste tipo. Resumidamente, a hýbris é a transgressão dos limites
próprios do humano. A hamartía é cometida justamente porque o herói se encontra em
hýbris, cheio de orgulho e ambição, ultrapassando a medida ou o métron.
O herói trágico, ao incorrer na bris, o faz cometendo um erro. Quando a hýbris
toma conta do herói, provoca a peripécia; uma mudança brusca na ordem constituída, ou
seja, “a mutação dos sucessos, no contrário”, uma inversão
376
. A peripécia não pode ser
casual, mas por força de um ato, de uma desmedida do herói. A hamartía, fundamental
para a compreensão do trágico, é a falha que vem desembocar na hýbris, a desmedida,
capaz de provocar a reação divina, e a detonadora do processo trágico
377
.
A hýbris é o excesso, desmedida, descomedimento. Pode também ser
traduzida como violência, orgulho, arrogância, impetuosidade e
insolência, mas nenhuma dessas traduções esgota a abrangência de seu
significado. (...) A hýbris é primeiro a violência temerária que resulta
do orgulho pela força ou pelo poder que se possui. Outra fonte de
hýbris é a paixão. Em alguns contextos, pode ser traduzida por luxúria e
lascívia
378
.
375
A partir do segundo estásimo ocorre uma aproximação entre os conceitos de bris e hamartía. A
hýbris aparece como desmesura, como um erro, um excesso, uma falta que geraria o tirano. O conceito
assume um tom irônico e ilustra a importância da hýbris associada à impiedade e injustiça. A injustiça
também seria uma forma de hýbris, porque é a transgressão dos justos limites em relação aos homens.
376
ARISTÓTELES. Poética, Cf., Cap. XI -1452a , 22.
377
Neste sentido, a hýbris causaria a falha e possibilitaria a queda do herói trágico.
378
FRANCISCATO. Cristina Rodrigues. Héracles. São Paulo : Palas Atenas, 2003, p. 29.
166
Quem é, por assim dizer, a personagem visada pelo coro e tomada pela hýbris?
Alguns poderiam indicar Jocasta e seu comportamento inadequado em referir-se aos
oráculos com certa desconsideração. É, certamente, uma conduta hibrística a impiedade
contra os deuses. Se a hýbris refere-se a Édipo, onde encotraríamos sua desmedida? Ele
é a personificação da hýbris
379
? A hýbris que caracteriza Édipo não se limita apenas ao
comportamento arrogante, orgulhoso, seguro da própria superioridade frente a outros
homens e aos deuses. Se, por um lado, ele se enxerga como auto-suficiente, é causa para
que Tirésias o perceba como um homem insolente, orgulhoso e indisciplinado. Se Édipo
é arrogante, o seu orgulho é intelectual. Ele se entusiasma com a própria inteligência,
mas o que ele precisa aprender é que enganou-se, em especial, no que se refere ao
enigma da Esfinge. Esta brecha entre a percepção e a autopercepção é determinante na
tragédia. Sua principal falta pode ser a “impiedade”. Porque, indiretamente, ele falta
com o devido respeito aos deuses.
Em resumo, a hýbris, na visão tradicional, é uma espécie de ofensa aos
deuses: atos, palavras ou mesmo pensamentos por meio dos quais o
mortal esquece as limitações que lhe são próprias, compete com os
deuses e procura adquirir seus atributos, provocando a hostilidade
divina. (...) A hýbris gera necessidade de reparação dos limites
transgredidos, que se manifesta como punição divina
380
.
Édipo é um herói claramente intelectual frente ao desastre do conhecimento.
Segundo Aubenque, a hýbris consiste em pensar de maneira não própria aos mortais;
trata-se da oposição entre um pensamento mortal (anthropina phronein) frente a um
pensamento imortal (athanata phronein). Ao homem, enquanto mortal, ser perecível e
passível de esquecimento, cabe pensamentos humanos e mortais, “e pode-se pensar o
homem, o mundo ou os deuses sobre-humanamente, isto é, inumanamente, o que é a
379
A hýbris significa muitas coisas, dentre elas uma violação insolente à lei ou à integridade física ou
moral de outra pessoa. A própria legalidade e os limites do poder soberano poderiam ser considerados
abusivos.
380
FRANCISCATO, 2003, Op. Cit., p. 30.
167
própria definição de hýbris
381
”. Esta forma de ultrapassar o que é propriamente humano
é a tessitura da tragédia. O elevar-se e a queda, bem como a punição divina à insolência
dos homens, seriam benefícios para a pólis
382
.
O comportamento hibrístico também é considerado um crime porque corresponde
a um ataque à honra de algum indivíduo ou grupo e que põe em risco a comunidade
383
. O
medo toma conta da voz do coro porque a hýbris não pode dominar a cidade. A
enigmática morte de Laio parece sem solução para a inteligência humana, ou seja, apenas
a divindade seria capaz de revelar a verdade
384
. O assassinato de Laio e a querela entre
Édipo e Creonte mostram que algo não está certo, mas não sabemos, e o coro também
parece não saber, até onde a polução se espalhou. Por outro lado, o assassino é, ao mesmo
tempo, um tirano em potencial
385
.
Este sujeito, até então oculto e elevado ao ápice, não atingira o céu. A segurança
de sua escalada valeu-se da imprudência, pois, confiante ao extremo, não percebeu a
insegurança do resultado das ações humanas em qualquer de suas obras, principalmente,
daquelas movidas pelo excesso. Como se os pés que conduzem o homem nada pudessem
contra o desígnio divino, a tal ponto que, se este caminha em direção contrária ao que
acredita ser pior para ele, sua resolução pode, contudo, converter-se numa escolha fatal. A
primeira antístrofe encerra reafirmando “uma súplica de revelação
386
” para salvar aquele
ambiente angustiante e limitadamente humano.
Εἰδέτιςὑπέροπταχερσὶνἢλόγῳπορεύεται,
885
Δίκαςἀφόβητοςοὐδὲ
δαιμόνωνἕδησέβων,
κακάνινἕλοιτομοῖρα,
δυσπότμουχάρινχλιδᾶς,
381
AUBENQUE, 2003, Op. Cit., p. 266-268.
382
SIDWELL, 1992, Op. Cit., p. 111.
383
CAIRNS, Douglas L. P. “Hybris, dishonour, and thinking big’”. TJournal of Hellenic StudiesT, 116
(1996), p. 1. Apud. FISHER.
384
SIDWELL, 1992, Op. Cit., pp. 106-122, p. 107.
385
SCODEL, 1982, Op. Cit., p. 219.
386
FIALHO, Maria do Céu Zambujo. Luz e Trevas no Teatro de Sófocles. Coimbra : Instituto Nacional de
Investigação Científica, 1992, p.83.
168
εἰμὴτὸκέρδοςκερδανεῖδικαίως
[890]
καὶτῶνἀσέπτωνἔρξεται,
ἢτῶνἀθίκτωνἕξεταιματᾴζων.
Τίςἔτιποτ´ἐντοῖσδ´ἀνὴρθυμοῦβέλη
εὔξεταιψυχᾶςἀμύνειν;
895
Εἰγὰραἱτοιαίδεπράξειςτίμιαι,
τίδεῖμεχορεύειν;
Quem no falar ou no fazer
palmilha a trilha da soberba,
valente contra o justo,
irreverente
com sedes sacras,
a Moira má o apanhe,
em paga pelo mal-fadado fausto –
se acaso lucre um lucro injusto,
se não evite o sacrilégio,
se, desvairado, toque no inatingível.
Quem nesse estado pode se gabar
de uma psique imune
aos dardos da fúria?
Se é honrosa essa conduta,
por que seguir o corifeu na dança?
vv. 882-896.
Nos versos 882-896, retornamos ao conceito de hýbris, embora o mesmo não
apareça nos versos. O verbo
σέβων
387
possui duas ocorrências em Édipo Rei – versos
885 e 898 – e apresenta um sentido contrário à
ὑβρίζω, podendo referir-se ao temor
derivado do respeito e honra aos deuses, isto é: ao ser piedoso. Jocasta e Édipo são
culpados, mas, embora terrivelmente errados em seu posicionamento, eles tinham todos
os motivos para acreditar e dizer o que disseram, mesmo incorrendo em impiedade
388
.
Acompanhado por uma partícula negativa,
σέβων adquire sentido aproximado ao de
hýbris. Em seguida, temos uma lista de ofensas, um curso de características bem
prováveis de um tirano, ações controvertidas, palavras impronunciáveis.
A hýbris assume aqui o sentido mais preciso de transgressão às leis
religiosas, ou às leis morais e sociais fundadas na precedência e
superioridade do divino sobre o humano. É o sentido exalado por
Ésquilo em um canto coral da tragédia Eumênides, em que se lê que
“a desmedida [hýbris] é filha da impiedade” (v. 534); a impiedade
(asébeia), por seu turno, era sentida como um crime contra o Estado
em Atenas e passível de sanções penais bastante rigorosas
389
.
387
Particípio presente, nominativo singular, masculino, do verbo σβω.
388
WINNINGTON-INGRAM,1971, Op. Cit., p. 122.
389
MARSHALL, 2000, Op. Cit., p. 244.
169
O coro trata daquele que erra e age de tal maneira que deverá ser castigado e ter a
queda confirmada. Mesmo que o termo hýbris não apareça, encontra-se subentendido no
corpo do texto e demonstra o que provoca uma queda inevitável, pois o coro lista as ações
condenáveis: a soberba, a injustiça, a impiedade e a desmedida. Se um homem fala e age
orgulhosamente, se não teme ser injusto com os deuses ou outrem, se ganha ilegalmente,
se toca o intocável, somam-se estas atitudes e temos um homem impuro
390
. Somos quase
induzidos a nos lembrar de Édipo, a origem de sua soberania, o parricídio, o incesto
391
.
Tocar no intocável poderia referir-se ao ato de coabitar com a mãe. Além do mais,
quem age desta ou daquela maneira não poderia gabar-se de permanecer imune à ação dos
deuses. Como alguém, tomado pela conduta listada pelo coro, escaparia ileso da justiça
divina? A voz do coro é sutil e artificiosa. Édipo, assim, tomado pela soberba e
acreditando tudo saber, cometeu o sacrilégio de matar o pai, sido valente e injusto contra
Creonte e Tirésias, coabitado com a mãe – tocando o intocável
392
e sendo ímpio contra a
divindade.
Ao listar os vícios é como se o coro afirmasse a necessidade da mansidão, da
justiça e do discernimento na construção de uma cidade digna e próspera. A
transgressão, a violência, a soberba, a injustiça são altamente condenáveis. Todo aquele
que se deixar levar por estes vícios, certamente cairá e será destruído, sofrendo nas
mãos dos deuses
393
. Ou seja, se alguém se comporta orgulhosamente em ações e
palavras, se caminha sem sentir temor da justiça, nem respeito aos deuses, e se se
envaidece, deverá alcançar um funesto destino por causa de sua infortunada conduta. O
rei que nega a ordem divina se tornará um tirano e arruinará a cidade.
390
CAREY. C. “The Second Stasimon of Sophocles' Oedipus Tyrannus”. The Journal of Hellenic Studies,
Vol. 106. (1986), pp. 175-179, P. 177.
391
GELLIE, G. H. “The Second Stasimon of the Oedipus Tyrannus”. The American Journal of Philology,
Vol. 85, No. 2. (Apr. 1964), pp. 113-123, p. 121.
392
LASSO DE LA VEGA,1994, Op. Cit., p. 230.
393
CAREY, 1986, Op. Cit., pp. 177-8.
170
Os vícios cantados pelo coro e associados à hýbris não nos parecem separados
do sentido ético da ação. O comportamento condenado pelo coro conduz à queda e não
se isenta de um sentido moral negativo. Assim, se estas ações não forem passíveis de
punição e dignas de justiça, o coro não vê porque venerar e fazer honrarias ao divino.
O coro reza pela pureza dos atos e palavras de acordo com as leis que são de
origem divina, não sujeitas ao esquecimento ou à decadência. Gradativamente,
percebemos no coro uma obsessão em relação à memória e um medo terrível do
esquecimento. Isto nos leva a pensar que os homens, seres imperfeitos e mortais, são
fadados a esquecer.
Οὐκέτιτὸνἄθικτονεἶμιγᾶςἐπ´ὀμφαλὸνσέβων,
οὐδ´ἐςτὸνἈβαῖσιναόν,
οὐδὲτὰνὈλυμπίαν,
[900]
εἰμὴτάδεχειρόδεικτα
πᾶσινἁρμόσειβροτοῖς.
Ἀλλ´,ὦκρατύνων,εἴπερὄρθ´ἀκούεις,
Ζεῦ,πάντ´ἀνάσσων,μὴλάθοι
905
σὲτάντεσὰνἀθάνατοναἰὲνἀρχάν.
ΦθίνονταγὰρτοῦπαλαιοῦΛαΐου
θέσφατ´ἐξαιροῦσινἤδη,
κοὐδαμοῦτιμαῖςἈπόλλωνἐμφανής·
[910]
ἔρρειδὲτὰθεῖα.
Não mais irei em reverência
ao inviolável ônfalo da Terra
- Delfos -,
ao templo de Abe, à Olímpia,
se não se cumprem essas profecias –
se não servem de índice aos mortais.
Zeus Pai, senhor de tudo, não nos faltes,
não falhe o teu império semprevivo.
A voz-do-deus rejeitam:
não se perfaz o oráculo de Laio.
Já não reluzem glórias apolíneas.
O divino declina.
vv. 897-910.
O coro ainda trata da verdade oracular. Delfos afirmou que apenas encontrando e
punindo o assassino de Laio salvariam Tebas da praga. Nos versos 904-910 o coro pede
pela ajuda divina. Se esta preocupação surge é porque exprime uma visão cética de
Jocasta que se poderia pensar chocante a partir dos fundamentos sobre os quais se
171
baseou a sua opinião: uma possibilidade de fracasso dos oráculos sem a devida
confirmação
394
.
O coro teme porque a negação do oráculo representa a negação do divino. No
verso 898, identificamos novamente o termo
σέβωνque pode significar neste contexto
honrar e venerar os deuses, ser piedoso. Precedido por οὐδέlembra-nos imediatamente
o segundo episódio e a fala de Jocasta para Édipo em relação aos oráculos.
A impiedade provoca horror ao coro. O ceticismo de Jocasta pode ser um mau
exemplo, pois se os oráculos não forem válidos, toda a divindade estará desacreditada.
O coro se preocupa porque a blasfêmia de Jocasta em relação aos oráculos representa
não apenas uma ameaça à divindade mas o fim da autoridade oracular e da religião
395
.
Inconformado, o Coro invoca a Zeus, o detentor de uma inteligência hábil para
prever o futuro
396
, para maquinar tudo antecipadamente, sendo prudente
397
, e exige o
cumprimento do oráculo a fim de preservar a verdade e a honra da divindade. Eles
suplicam para Zeus, deus supremo e senhor de todos, que demonstre, mesmo à custa da
infelicidade de alguém, que os oráculos não mentem, que não se esquecem do que fora
dito e por isso promovem a justiça.
Aqui enfrentamos o dilema do significado das palavras do coro. Na verdade, se o
coro já reconheceu em Édipo o filho e o assassino de Laio, temos a realização dos dois
oráculos simultaneamente. Mas, se o coro ainda não reconheceu em Édipo o filho de
Laio, até aquela altura era possível chegar à conclusão de que, talvez, ele desejasse
apenas demonstrar que o filho de Laio e não Édipo cometeu o assassinato. Por outro
394
WINNINGTON-INGRAM, 1971, Op. Cit., p. 119.
395
GELLIE, G. H. “The second stasimon of the Oedipus Tyrannus. The American Journal of Philology,
Vol. 85, No. 2. (Apr., 1964), pp. 113-123, p. 123.
396
GELLIE, 1964, Op. Cit., p. 115.
397
VERNANT, 2001, Op. Cit., p. 258.
172
lado, se o coro o vê como o assassino, mas ainda não o reconheceu como o filho de
Laio, supostamente morto, inferirá na descrença do oráculo
398
.
O coro apela aos deuses não para dar sanção às palavras de Édipo no começo do
primeiro episódio, mas para proteger a cidade contra a hýbris. Neste sentido, a hýbris
deve ser contida para não contaminar todo o corpo cívico. Mas se a divindade responder
positivamente à oração, as últimas palavras do estásimo farão sentido. O coro honra as
leis divinas e canta a sua grandeza reconhecendo que são imutáveis, imperecíveis,
universalmente eficazes, engendradas no limbo e nunca envelhecem. Diferentes da
natureza humana, nunca caem no esquecimento. E se os deuses desejam receber
honrarias, precisam provar que os oráculos são verdadeiros.
A divindade nunca adormece, ela tudo vê, tudo percebe. Diferentemente dos
humanos, a divindade está sempre em alerta, nunca erra no raciocínio, sempre acerta o
alvo. Os versos são visivelmente aplicados ao respeito que os homens devem aos
deuses. Para que os oráculos sejam respeitados e a divindade realmente mereça este
nome, eles precisam provar que nunca se enganam, demonstrando sua eterna vigilância.
O coro teme que a predição oracular perca seu valor e desapareça, caindo no
esquecimento de todos
399
; já que Jocasta não a valoriza e nem teme. O que está em jogo
é um embate entre o poder divino e a sabedoria humana. Se a religião deseja ser
preservada, e isto é condicional, os oráculos devem provar que não falharam, pois estes
sim, foram incondicionais.
E, se, como afirma Jocasta a Édipo, a profecia sobre o parricídio e incesto é falsa
e não merece crédito, toda e qualquer profecia seria igualmente falsa. Tal constatação
desonraria Apolo, os deuses e o sentido dos rituais religiosos. A tragédia de Édipo, por
398
SÓFOCLES. Rei Édipo. Trad. FIALHO, Maria do Céu Zambujo. Lisboa : Edições 70, 2006, p. 39.
399
Vale conferir: FIALHO, Maria do Céu Zambujo. Luz e Trevas no Teatro de Sófocles. Coimbra :
Instituto Nacional de Investigação Científica, 1992, p. 87. ROSENFIELD. Kathrin H. “Dos ‘Erros’ de
Sófocles aos Indícios Concretos do ‘Caso’ Édipo”. Unicamp : Phaos, (5), pp. 83-96, 2005, p.87-90.
173
mais impossível que pudesse parecer naquele instante, era preferível à desonra dos
deuses.
O coro cataloga os excessos típicos do tirano. A implicação é que os deuses
devem infalivelmente vindicar sua lei contra tais transgressões. Nos últimos versos,
quando o coro se refere a essas profecias, remete imediatamente ao cumprimento da
antiga profecia destinada a Laio e, provavelmente a Édipo. Porém, ao suplicar pela
verdade dos oráculos, inconscientemente, clama pelo castigo a Édipo
400
.
O segundo episódio relata o ceticismo em relação aos oráculos e profecias
expresso por Jocasta que dissemina uma atmosfera de impiedade, impureza, incerteza e
oscilação deixando o coro desinquieto
401
. A preocupação do coro surge não apenas pelo
fato de ela expressar um ponto de vista cético e um pensamento terrível; mas pelas
possíveis repercussões que tal atitude provocaria na pólis. Em face disto, temos um
oráculo fracassado, pelo menos na visão de Jocasta que menciona no verso 720:
frustrou-se Apolo.
Apolo dissera claramente que o filho mataria o pai e casaria com a mãe e assim
não aconteceu. Laio morreu por mãos de bandidos e o dito filho morreu ainda bebê.
Então, obviamente, o oráculo não tem validade e tolos seriam aqueles que se
preocupassem em demasia com coisas sem fundamento, ou seja, não há porque perder
tempo pensando nos oráculos e seus dizeres, pois estes estão fadados ao erro.
O coro, através de seus votos, tenta se distanciar do sacrilégio de Jocasta e de
sua contestação ao oráculo. A “impiedade” de Jocasta ameaça o mundo religioso. Ela
desmoralizou o oráculo, Apolo e seus ministros. Contudo, ironicamente, embora não dê
crédito ao oráculo, na cena precedente, ela reza para que o deus providencie uma
solução e que alivie o desencanto e preocupação do marido.
400
KANE, 1975, Op. Cit., p. 199.
401
SCODEL, 1982, Op. Cit.,, p. 221.
174
O coro reza pelos inocentes e puros, pois as leis eternas punirão o assassino de
Laio. Na verdade, não conseguimos dissociar Édipo da conjuntura apresentada pelo
coro. Ele se encaixa perfeitamente no contexto descrito pelo Coro. As implicações
desastrosas dos próprios equívocos não são percebidas por Jocasta e Édipo, e se a
verdade da profecia for provada, eles passarão pela cena de reconhecimento.
4.8. Prenúncios de um fracasso e a identidade perdida
O terceiro episódio é um recomeço e vem atender aos anseios do coro. Temos
Jocasta em posição de suplicante, contraditória em relação ao que ocorrera no segundo
episódio. Mesmo incorrendo em falta na crença contra a divindade, não podemos
imaginar Jocasta deixando de participar nos rituais de sacrifício e nos cultos. No período
de incerteza, antes da chegada do mensageiro, Jocasta lamenta o temperamento de
Édipo, pois ele não age como um homem sensato capaz de inferir o novo do velho
402
.
{ΙΟΚΑΣΤΗ}Χώραςἄνακτες,δόξαμοιπαρεστάθη
ναοὺςἱκέσθαιδαιμόνων,τάδ´ἐνχεροῖν
στέφηλαβούσῃκἀπιθυμιάματα.
ὙψοῦγὰραἴρειθυμὸνΟἰδίπουςἄγαν
915λύπαισιπαντοίαισιν;οὐδ´ὁποῖ´ἀνὴρ
ἔννουςτὰκαινὰτοῖςπάλαιτεκμαίρεται,
ἀλλ´ἔστιτοῦλέγοντος,ἢνφόβουςλέγῃ.
Ὅτ´οὖνπαραινοῦς´οὐδὲνἐςπλέονποῶ,
πρὸςς´,ὦΛύκει´Ἄπολλον,ἄγχιστοςγὰρεἶ,
[920]ἱκέτιςἀφῖγμαιτοῖσδεσὺνκατεύγμασιν,
ὅπωςλύσιντιν´ἡμὶνεὐαγῆπόρῃς·
ὡςνῦνὀκνοῦμενπάντεςἐκπεπληγμένον
κεῖνονβλέποντεςὡςκυβερνήτηννεώς.
Jocasta: Ocorreu-me, senhores, acorrer
ao templo dos celestes, transpondo
a dádiva dos ramos, dos incensos.
Múltiplas dores hiperentorpecem
o ânimo do rei. Já não vê no novo
sinais do antigo, como um homem lúcido.
Cede a quem fala, se a fala é de horror.
Por não frutificarem meus conselhos,
rogo-te, Apolo, deus circunvizinho,
402
KANE, 1975, Op. Cit., p. 207
175
com dons votivos, trago minha súplica:
a solução sagrada propicia-nos!
Transtorno aterra a pólis toda quando
ao leme vê um piloto acabrunhado.
vv. 911-23.
O terceiro episódio inicia-se com as súplicas de Jocasta por Édipo, que ao
contrário de um homem que raciocina bem, é incapaz de distinguir o “velho” do “novo”.
Podemos identificar nas palavras de Jocasta uma negação da inteligência de Édipo,
louvado no começo da peça por sua capacidade cognitiva. Poderíamos inferir que
Jocasta faz uma breve referência aos oráculos dados a Laio (velho) e Édipo (novo)
403
.
Segundo o oráculo dado a Laio o filho mataria o pai e casaria com a mãe, mas Laio foi
assassinado por malfeitores e o filho morreu ainda bebê. Também para Édipo era
impossível qualquer possibilidade de cometer incesto e parricídio devido à distância em
que se encontrava dos seus “supostos” pais. Assim, em relação aos oráculos, o casal
acreditava encontrar-se aliviado.
Na descrição feita por Jocasta de Édipo nota-se que há nele a dificuldade de um
raciocínio coerente. O rei ouve a todos sem distinção, tendo em vista que conclamou por
informações sobre o assassino, mas atormenta-se perante cada depoimento,
submetendo-se, especialmente, às palavras terríveis, não escutando os conselhos de
Jocasta. Ela esclarece que todos estão amedrontados porque Édipo está atormentado, em
estado de insanidade. Segundo Dodds, “os insanos eram temidos, porque, afinal, eles
estavam em contato com o mundo sobrenatural e podiam, quando surgisse a ocasião,
dispor de poderes negados aos homens comuns
404
”.
A chegada do mensageiro de Corinto, que precede a anunciação da grande
desgraça de Édipo, promove a primeira reviravolta na trama. A sua entrada coincide
com o momento no qual Jocasta descreve o estado de transtorno de seu marido. Ela e
403
SANSONE, David. “The Third Stasimon of the Oedipus Tyrannus”. Classical Philology, vol. 70, no. 2.
(Apr, 1975), p. 111.
404
DODDS. Os Gregos e o Irracional, 2002, Op. Cit., p. 75.
176
Édipo sentem medo, porém, por motivos divergentes. Ele porque se vê diante de um
dilema insolúvel, ela porque tem diante de si um rei tomado pelo medo
405
.
Quando ele anuncia a morte de Pólibo, Jocasta comemora, pois pensa que sua
oração foi atendida. Ela frisa que o homem sensato guia-se pelas leis do acaso sem se
preocupar com a visão profética. Apesar deste lampejo de felicidade, sabemos que o
próprio mensageiro deixara claro que a notícia apresenta ambigüidades. Ela desejava
que o espírito conturbado de Édipo encontrasse paz; mas, como sabemos, ela cometeu
um engano, suas orações não foram atendidas, mas sim as súplicas do coro.
945{ΙΟΚΑΣΤΗ}Ὦπρόσπολ´,οὐχὶδεσπότῃτάδ´ὡςτάχος
μολοῦσαλέξεις;Ὦθεῶνμαντεύματα,
ἵν´ἐστέ;ΤοῦτονΟἰδίπουςπάλαιτρέμων
τὸνἄνδρ´ἔφευγεμὴκτάνοι,καὶνῦνὅδε
πρὸςτῆςτύχηςὄλωλενοὐδὲτοῦδ´ὕπο.
v.945949.
(...)
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Φεῦφεῦ,τίδῆτ´ἄν,ὦγύναι,σκοποῖτότις
965
τὴνΠυθόμαντινἑστίαν,ἢτοὺςἄνω
κλάζονταςὄρνις,ὧνὑφηγητῶνἐγὼ
κτενεῖνἔμελλονπατέρατὸνἐμόν;ὁδὲθανὼν
κεύθεικάτωδὴγῆς,ἐγὼδ´ὅδ´ἐνθάδε
ἄψαυστοςἔγχουςεἴτιμὴτὠμῷπόθῳ
[970]
κατέφθιθ´·οὕτωδ´ἂνθανὼνεἴη´ξἐμοῦ.
Τὰδ´οὖνπαρόντασυλλαβὼνθεσπίσματα
κεῖταιπαρ´ἍιδῃΠόλυβοςἄξι´οὐδενός.
{
ΙΟΚΑΣΤΗ}Οὔκουνἐγώσοιταῦταπροὔλεγονπάλαι;
v.964973
Jocasta: Fâmula, por que tardas a informar
o senhor? Profecias dos numes, como
ficais agora? Há muito o rei fugiu,
para evitar assassinar Políbio;
e hoje levou-o o fado e não seu golpe.
v. 945-949
(...)
Édipo: Mulher, qual o sentido de observar
o recinto profético de Píton,
as aves, como ululam céu acima?
Não me cabia matar meu próprio pai?
Agora sob a terra jaz; sequer
toquei em minha espada. A causa mortis
foi minha ausência? Então serei culpado.
Políbio tais oráculos consigo
405
LESSER, Simon. “Oedipus the King: The Two Dramas, the Two Conflitcs”. College English, Vol. 29,
no. 3. (Dec., 1967), p. 186.
177
levou ao Hades, letra morta, nada.
Jocasta: Não era o que eu há muito predizia?
v. 964-973.
Erroneamente, Édipo e Jocasta apreendem a notícia da morte de Pólibo como a
confirmação da invalidade dos oráculos, o prenúncio oficial do fracasso da profecia, a
negação incontestável das palavras de Apolo. Assim, Édipo conclui que não devemos
nos valer da verdade oracular, pois corremos o risco de perder o nosso tempo. Irônico,
mediante a prova definitiva de que o oráculo falhou, ele uniu-se a Jocasta e zombou
considerando que a morte de Políbio deveu-se à sua ausência e à saudade dele; levando
consigo para o Hades não apenas os oráculos que o atormentavam, mas todos os outros
possíveis. O homem que ele desejava evitar, afastando-se de Corinto, estava morto. A
morte de Políbio é um acontecimento crucial para o desfecho da peça. Jocasta reafirma
sua impiedade acreditando na sua capacidade individual de predição como mais
sustentável que o próprio oráculo. Tudo, por ora, indicava que os oráculos realmente
fracassaram, justificando a exultação de Édipo e Jocasta. Os oráculos que previam um
crime horrendo falharam. Era, certamente, fator correspondente ao desejo de Jocasta e
Édipo. Entretanto, tudo não passava de uma ilusão
406
.
Apesar de acreditar no fracasso oracular, Édipo ainda sente-se um exilado sem
condições de voltar para casa. Seu autobanimento representava uma morte simbólica
porque possuía como condição primeva nunca mais retornar para casa. Estranhamente,
uma vez que o mensageiro sabe do paradeiro de Édipo, poderíamos concluir que os
coríntios, inclusive Pólibo e Mérope, sabiam que ele se encontrava em Tebas, mas por
algum motivo nunca o haviam procurado. Poderíamos supor que seu feito em derrotar a
Esfinge tenha se alastrado pelas redondezas, tornando-o bastante conhecido. Mas a sua
ausência do lar, que ele pensava ser o verdadeiro, era fato definitivo. Sua ressurreição
406
MARSHALL, 2000, Op. Cit., pp.120-121.
178
estava condicionada à morte dos pais adotivos: para que ele voltasse ao lar seus pais
deveriam deixar de viver.
{ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Καὶπῶςτὸμητρὸςλέκτρονοὐκὀκνεῖνμεδεῖ;
{
ΙΟΚΑΣΤΗ}Τίδ´ἂνφοβοῖτ´ἄνθρωπος,ᾧτὰτῆςτύχης
κρατεῖ,πρόνοιαδ´ἐστὶνοὐδενὸςσαφής;
εἰκῇκράτιστονζῆν,ὅπωςδύναιτότις.
[980]
Σὺδ´εἰςτὰμητρὸςμὴφοβοῦνυμφεύματα·
πολλοὶγὰρἤδηκἀνὀνείρασινβροτῶν
μητρὶξυνηυνάσθησαν·ἀλλὰταῦθ´ὅτῳ
παρ´οὐδένἐστι,ῥᾷστατὸνβίονφέρει.
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Καλῶςἅπανταταῦτ´ἂνἐξείρητόσοι,
985
εἰμὴ´κύρειζῶς´ἡτεκοῦσα·νῦνδ´ἐπεὶ
ζῇ,πᾶς´ἀνάγκη,κεἰκαλῶςλέγεις,ὀκνεῖν.
{
ΙΟΚΑΣΤΗ}Καὶμὴνμέγαςγ´ὀφθαλμὸςοἱπατρὸςτάφοι.
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Μέγας,ξυνίημ´·ἀλλὰτῆςζώσηςφόβος.
{
ΑΓΓΕΛΟΣ}Ποίαςδὲκαὶγυναικὸςἐκφοβεῖσθ´ὕπερ;
[990]{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Μερόπης,γεραιέ,Πόλυβοςἧςᾤκειμέτα.
{
ΑΓΓΕΛΟΣ}Τίδ´ἔστ´ἐκείνηςὑμὶνἐςφόβονφέρον;
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Θεήλατονμάντευμαδεινόν, ὦξένε.
{
ΑΓΓΕΛΟΣ}Ἦῥητόν;ἢοὐχὶθεμιτὸνἄλλονεἰδέναι;
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Μάλιστάγ´·εἶπεγάρμεΛοξίαςποτὲ
995
χρῆναιμιγῆναιμητρὶτἠμαυτοῦ,τότε
πατρῷοναἷμαχερσὶταῖςἐμαῖςἑλεῖν.
Ὧνοὕνεχ´ἡΚόρινθοςἐξἐμοῦπάλαι
μακρὰνἀπῳκεῖτ´·εὐτυχῶςμέν,ἀλλ´ὅμως
τὰτῶντεκόντωνὄμμαθ´ἥδιστονβλέπειν.
[1000]{
ΑΓΓΕΛΟΣ}Ἦγὰρτάδ´ὀκνῶνκεῖθενἦσθ´ἀπόπτολις;
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Πατρόςγεχρῄζωνμὴφονεὺςεἶναι,γέρον.
{
ΑΓΓΕΛΟΣ}Τίδῆτ´ἐγὼοὐχὶτοῦδετοῦφόβους´,ἄναξ,
ἐπείπερεὔνουςἦλθον,ἐξελυσάμην;
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Καὶμὴνχάρινγ´ἂνἀξίανλάβοιςἐμοῦ.
1005{
ΑΓΓΕΛΟΣ}Καὶμὴνμάλιστατοῦτ´ἀφικόμην,ὅπως
σοῦπρὸςδόμουςἐλθόντοςεὖπράξαιμίτι.
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Ἀλλ´οὔποτ´εἶμιτοῖςφυτεύσασινγ´ὁμοῦ.
{
ΑΓΓΕΛΟΣ}Ὦπαῖ,καλῶςεἶδῆλοςοὐκεἰδὼςτίδρᾷς.
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Πῶς,ὦγεραιέ;πρὸςθεῶν,δίδασκέμε.
[1010]{
ΑΓΓΕΛΟΣ}Εἰτῶνδεφεύγειςοὕνεκ´εἰςοἴκουςμολεῖν. 
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}ΤαρβῶνγεμήμοιΦοῖβοςἐξέλθῃσαφής.
{
ΑΓΓΕΛΟΣ}Ἦμὴμίασματῶνφυτευσάντωνλάβῃς;
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Τοῦτ´αὐτό,πρέσβυ·τοῦτόμ´εἰσαεφοβεῖ.
{
ΑΓΓΕΛΟΣ}Ἆρ´οἶσθαδῆταπρὸςδίκηςοὐδὲντρέμων;
1015{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Πῶςδ´οὐχί,παῖςγ´εἰτῶνδεγεννητῶνἔφυν;
{
ΑΓΓΕΛΟΣ}Ὁθούνεκ´ἦνσοιΠόλυβοςοὐδὲνἐνγένει.
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Πῶςεἶπας;οὐγὰρΠόλυβοςἐξέφυσέμε;
{
ΑΓΓΕΛΟΣ}Οὐμᾶλλονοὐδὲντοῦδετἀνδρός,ἀλλ´ἴσον.
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Καὶπῶςὁφύσαςἐξἴσουτῷμηδενί;
[1020]{
ΑΓΓΕΛΟΣ}Ἀλλ´οὔς´ἐγείνατ´οὔτ´ἐκεῖνοςοὔτ´ἐγώ.
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Ἀλλ´ἀντὶτοῦδὴπαῖδάμ´ὠνομάζετο;
{
ΑΓΓΕΛΟΣ}Δῶρόνποτ´,ἴσθι,τῶνἐμῶνχειρῶνλαβών.
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Κᾆθ´ὧδ´ἀπ´ἄλληςχειρὸςἔστερξενμέγα;
{
ΑΓΓΕΛΟΣ}Ἡγὰρπρὶναὐτὸνἐξέπεις´ἀπαιδία.
1025{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Σὺδ´ἐμπολήσας,ἢτυχώνμ´αὐτῷδίδως;
{
ΑΓΓΕΛΟΣ}ΕὑρὼνναπαίαιςἐνΚιθαιρῶνοςπτυχαῖς.
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Ὡδοιπόρειςδὲπρὸςτίτούσδετοὺςτόπους;
{
ΑΓΓΕΛΟΣ}Ἐνταῦθ´ὀρείοιςποιμνίοιςἐπεστάτουν.
179
{ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Ποιμὴνγὰρἦσθακἀπὶθητείᾳπλάνης;
[1030]{
ΑΓΓΕΛΟΣ}Σοῦδ´,ὦτέκνον,σωτήργετῷτότ´ἐνχρόνῳ.
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Τίδ´ἄλγοςἴσχοντ´ἐνκακοῖςμελαμβάνεις;
{
ΑΓΓΕΛΟΣ}Ποδῶνἂνἄρθραμαρτυρήσειεντὰσά.
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Οἴμοι,τίτοῦτ´ἀρχαῖονἐννέπειςκακόν;
{
ΑΓΓΕΛΟΣ}Λύως´ἔχονταδιατόρουςποδοῖνἀκμάς.
1035{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Δεινόνγ´ὄνειδοςσπαργάνωνἀνειλόμην.
{
ΑΓΓΕΛΟΣ}Ὥστ´ὠνομάσθηςἐκτύχηςταύτηςὃςεἶ
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Ὦπρὸςθεῶν,πρὸςμητρὸςἢπατρός;φράσον.
{
ΑΓΓΕΛΟΣ}Οὐκοἶδ´·ὁδοὺςδὲταῦτ´ἐμοῦλῷονφρονεῖ.
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Ἦγὰρπαρ´ἄλλουμ´ἔλαβεςοὐδ´αὐτὸςτυχών;
[1040]{
ΑΓΓΕΛΟΣ}Οὔκ,ἀλλὰποιμὴνἄλλοςἐκδίδωσίμοι.
Édipo: Dormir com minha mãe ainda me assusta.
Jocasta: Fará sentido o padecer humano,
se o Acaso impera e a previsão é incerta?
Melhor viver ao léu, tal qual se pode.
Não te amedronte o enlace com tua mãe,
pois muitos já dormiram com a mãe
em sonhos. Quem um fato assim iguala
a nada, faz sua vida bem mais fácil.
Édipo: Nenhum reparo ao teu discurso, esposa,
se a mãe que me gerou não mais vivesse.
Tua fala bela não me anula o medo.
Jocasta: A tumba do pai, olho enorme a guiar-te.
Édipo: Enorme, eu sei. Mas ela vive e eu temo.
Mensageiro: Mas qual mulher vos amedronta tanto?
Édipo: Mérope, velho, a esposa de Políbio.
Mensageiro: E o que ela tem que vos atemoriza?
Édipo: Do deus provém um duro vaticínio.
Mensageiro: É público ou dizê-lo não é lícito?
Édipo: É lícito. Meu fado – Apolo disse –
seria fazer amor com minha mãe,
das mãos vertendo o sangue de meu pai.
Eis o motivo pelo qual Corinto
virou lugar longínquo. Tive o bem
do acaso, mas rever meus pais, quem dera!
Mensageiro: O exílio decorreu desse pavor?
Édipo: Quis evitar também matar meu pai.
Mensageiro: Por que não pus fim no teu temor,
se aqui cheguei com intenções honestas?
Édipo: De mim receberás um prêmio digno.
Mensageiro: Pois vim principalmente para obter,
quando ao lar retornares, um dádiva.
Édipo: A mim jamais verás no lar paterno.
Mensageiro: É claro, filho: ignoras quanto fazes.
Édipo: Como ancião? Pelos numes, dá-me um norte!
Mensageiro: Se esse casal é a causa de tua fuga...
Édipo: Eu temo a flâmea lucidez de Foibos.
Mensageiro: Temes contrair o miasma de teus pais.
Édipo: Exatamente, é a sina que me assombra.
Mensageiro: Pois não tem fundamento o teu pavor.
Édipo: Mas como, se eles são os meus genitores?
Mensageiro: Não tinhas parentesco com Políbio.
Édipo: Como? Políbio não me deu a vida?
Mensageiro: Nem mais nem menos que este com quem falas.
Édipo: Então devo concluir: ninguém me fez?
Mensageiro: Nem ele te gerou, nem eu te gerei.
Édipo: Por que Políbio me dizia: meu filho?
Mensageiro: De mim – direi! – te recebeu: um dom.
180
Édipo: Por que tão grande amor se eu vim de um outro?
Mensageiro: Falta de um filho explica-lhe o querer.
Édipo: Fui dom comprado ou fui um dom do acaso?
Mensageiro: Te achei no estreito escuro do Citero.
Édipo: Com qual escopo andavas por ali?
Mensageiro: Do rebanho montês me encarregava.
Édipo: Eras pastor e pela paga erravas?
Mensageiro: Teu salvador – diria – àquela altura.
Édipo: Quando me ergueste, eu tinha alguma dor?
Mensageiro: Teus pés dão, por si sós, um testemunho.
Édipo: Por que recordas esse mal remoto?
Mensageiro: Livrei teus pés, furados os extremos.
Édipo: Infâmia que me avilta desde o berço.
Mensageiro: Fortuna assina no teu nome a sina.
Édipo: E quem me deu o nome? Pelos numes!
Mensageiro: Quem me fez a doação talvez o saiba.
Édipo: A um outro coube o acaso de encontrar-me?
Mensageiro: Te recebi das mãos de outro pastor.
vv. 976-1040.
Pólibo, ao morrer, levara consigo apenas parte da profecia ditada a Édipo, de
maneira que seus tormentos perdurariam até a revelação de sua adoção. Corinto ainda
era onde ele não deveria estar. O oráculo não se limitava apenas ao assassínio do
próprio genitor, mas possuía algo ainda pior: a possibilidade do incesto. Com a morte
do “suposto” pai, ele corria risco considerável de cair em delito e temia cumprir o
oráculo casando-se com a mãe. A mulher cuja imagem o perseguia tal qual um fantasma
ainda estava viva. Jocasta tenta argumentar dizendo que o homem deve caminhar
guiado pela lei do acaso, pois o homem condenado à própria sorte, vivendo
aleatoriamente, encontrava maiores motivos para ser feliz do que se conduzir pelos
oráculos. A morte do pai dava-lhe uma prerrogativa satisfatória para se convencer pelos
argumentos de Jocasta, mas Mérope estava viva. Ele desconhecia, contudo, que sua mãe
encontrava-se à sua frente. No entanto, qual foi sua surpresa? O mensageiro de Corinto,
a fim de aliviar-lhe os temores, revela-lhe sua adoção.
As intenções do mensageiro saem frustradas. Édipo não sente alívio, mas
desespera-se. Anotícia anula a possibilidade de consolo em Édipo e, com efeito, ele viu-
se momentaneamente sem chão. Afinal, a partir desta informação, ele sequer conhecia a
181
própria origem, mergulhando num mundo de sombras tão tenebroso que pôs fim à sua
felicidade. Ele já não se reconhece, nem sabe quem é ou quem o gerou.
Tais dúvidas precisavam ser dirimidas e a única saída era encontrar aquele que o
entregara às mãos do próprio mensageiro que o conduzira a Corinto para que fosse
criado como filho verdadeiro pelos reis. O mensageiro ainda dissera que aconselhou aos
pais adotivos de Édipo a contarem a verdade, mas estes preferiram manter-se no
silêncio. A revelação dependerá unicamente do prosseguimento ou não de Édipo em
busca da verdade. Ele percebeu que toda a sua história de vida estava arruinada, dali por
diante ele não sossegaria até decifrá-la.
O mensageiro que trazia a notícia da morte de Políbio, coincidentemente, era o
mesmo que recebeu dos braços do pastor uma criança que deveria ter morrido no
passado. Por sua vez, o pastor que fora convocado como testemunha do assassinato de
Laio será o mesmo que deveria ter assassinado o filho de Laio e Jocasta. Então, Édipo
ordena que busquem onde quer que se encontre o pastor de Laio, única testemunha
capaz de desvendar o enigma de seu nascimento e a identidade de seus pais. Ele não
poderia permanecer sem identidade.
Embora irracionais, aos olhos humanos, estas coincidências não são sem sentido
na perspectiva divina, uma vez que a combinação destes fatores serve para justificar a
validade dos oráculos, provando que os homens podem cometer erros quando estão em
dúvida ou tentam fugir à responsabilidade de suas ações
407
. Jocasta, ao reconhecer a
verdade, insiste para que Édipo não desenterre esta história. Apesar desta insistência de
Jocasta, Édipo poderia permanecer na obscuridade?
A despeito do medo, Édipo insistiu em tirar todas as pistas do mensageiro
porque se encontrava desesperado. Seu desespero deveu-se, em parte, ao enigma em
407
KANE, 1975, Op. Cit., p. 198.
182
torno de suas origens. Talvez fosse possível afirmar que Édipo sentiu um total
aniquilamento da sua história de vida, arremessando-o num mundo de sombras na qual
sua origem se escondia. Ele persiste mediante as evidências que hora a hora vão se
apresentando para a montagem deste quebra-cabeça.
{ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Οὐκἂνγένοιτοτοῦθ´,ὅπωςἐγὼλαβὼν
σημεῖατοιαῦτ´οὐφανῶτοὐμὸνγένος.
[1060]{
ΙΟΚΑΣΤΗ}Μή,πρὸςθεῶν,εἴπερτιτοῦσαυτοῦβίου
κήδῃ,ματεύσῃςτοῦθ´·ἅλιςνοσοῦς´ἐγώ.
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Θάρσει·σὺμὲνγὰροὐδ´ἐὰντρίτηςἐγὼ
μητρὸςφανῶτρίδουλος,ἐκφανῇκακή.
{
ΙΟΚΑΣΤΗ}Ὅμωςπιθοῦμοι,λίσσομαι·μὴδρᾶτάδε.
1065{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Οὐκἂνπιθοίμηνμὴοὐτάδ´ἐκμαθεῖνσαφῶς.
{
ΙΟΚΑΣΤΗ}Καὶμὴνφρονοῦσάγ´εὖτὰλῷστάσοιλέγω.
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Τὰλῷστατοίνυνταῦτάμ´ἀλγύνειπάλαι.
{
ΙΟΚΑΣΤΗ}Ὦδύσποτμ´,εἴθεμήποτεγνοίηςὃςεἶ. 
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Ἄξειτιςἐλθὼνδεῦροτὸνβοτῆράμοι;
[1070]
ταύτηνδ´ἐᾶτεπλουσίῳχαίρεινγένει.
{
ΙΟΚΑΣΤΗ}Ἰοὺἰού,δύστηνε·τοῦτογάρς´ἔχω
μόνονπροσειπεῖν,ἄλλοδ´οὔποθ´ὕστερον.
Jocasta: Que te importa saber de quem se fala?
Esquece! É vão rememorar palavras.
Édipo: Impossível, com base em tais indícios,
Deixar de elucidar minha origem.
Jocasta: Pelos deuses! Se tem valor a tua vida,
Imploro, pára! Basta o meu sofrer.
Édipo: Tem brio! Mesmo se eu for escravo ao triplo
- de mãe da mãe da mãe -, o mal é meu.
Jocasta: Mas eu, contudo, insisto: encerra a busca!
Édipo: Só encerro quando tudo esclarecer.
Jocasta: Desejo-te o melhor, quando te falo.
Édipo: Há muito esse melhor só me angustia.
Jocasta: Pudesses ignorar tua identidade!
Édipo: Alguém me traz aqui o pastor ou não?
Que ela se gabe de sua rica estirpe!
Jocasta: Ai, infeliz! É o termo que melhor
contigo casa, agora e no porvir.
vv. 1056-1072.
Seria mesmo uma inutilidade revolver memórias? Édipo acredita que não. Ao
saber-se uma criança enjeitada, ele precisava construir uma memória que naquele
momento se apagou. Sua vida não passara de uma ilusão, uma mentira que ele precisava
desvendar. Temos nesta cena um erro de interpretação, pois ele interpreta erroneamente
os avisos e apelos de Jocasta como sinais de vergonha. Ele acredita que ela se
envergonharia de sua possível origem modesta, e orgulhosa de sua alta linhagem não
183
admitiria como companheiro alguém que lhe fosse inferior, um escravo, um homem do
povo, qualquer um. Assumir uma condição servil em oposição à sua condição real era
crucial para ele saber quem era. Mesmo que fosse três vezes de escravos nascido
408
, era
melhor que permanecer sem origem.
As palavras de Jocasta desejam desviar Édipo da verdade. Ela já havia
compreendido tudo e apenas desejava evitar que se revelasse a ele uma história do
passado que ela própria julgara solucionada. Jocasta passa por uma cena de
reconhecimento e sofre a reviravolta da fortuna antes de Édipo. Sua catástrofe bastava.
Seu próprio sofrimento em reconhecer que estava enganada e que tinha diante dos olhos
o filho que acreditara morto é terrível. Ela desejou que Édipo nunca viesse a conhecer a
própria origem
409
. Já conhecedora da verdade, ela não é capaz de chamá-lo de filho, o
chama de “infeliz”.
Mas como ela poderia viver com a verdade, ocultando-a dele? Édipo estava
obcecado e continuou sua busca incessante. Ele ainda interpreta mal a situação. Da
pequenez à grandeza ele se julga filho da Sorte. Sua completa ignorância aumenta o tom
dramático da peça. É como se ele compreendesse a situação por um prisma bastante
inusitado: se filho da Sorte, ele teve um segundo nascimento tornando-se rei
410
. Ao
nascer de novo ele teria construído uma história diferente. Mal sabia ele que em breve a
verdade o faria enxergar a ilusão que construíra precipitadamente a fim de se salvar.
Édipo parece dizer que, sendo filho da τύχη,sua vida alterna entre
“altos e baixos”. Mas, por ser ela benfazeja, tudo acabará bem: não
será desonrado. Mais uma vez, um personagem trágico não alcança a
ironia e a ambivalência da própria fala. Édipo nasce de uma τύχη,de
uma moira (v. 713) anteriormente fixada: Laio já sabia que, se tivesse
um filho, seria morto por ele (vv.711-14). Cada atitude do herói,
408
BOLLACK, 1990, Op. Cit., p. 682. Ele utiliza o termo materno para definir o seu nascimento.
409
VERNANT, 1999, Op. Cit., p. 68. Ela pensa assim por piedade e por que não desejava o sofrimento de
Édipo? Por que zombou dos oráculos e viu-se enganada? Ou por que ele descobriria o que ela lhe fez no
passado? Ela própria diz que apenas o sofrimento dela era suficiente. Porém, acreditamos que esta recusa,
além de um excelente instrumento cênico, representa algo além do que podemos compreender para o
momento.
410
BOLLACK, 1999, Op. Cit., p. 694.
184
expressão também de seu caráter, o conduz à realização dessa moira.
Ele se engana quanto a se tratar de uma
τύχηbenfazeja(v.1081)
411
.
O coro se preocupava com a origem de Édipo e entra em cena cantando as
horríveis questões relativas ao nascimento de Édipo. Temos no terceiro estásimo um
confronto feroz entre a ilusão e a realidade
412
. Sófocles, assim, promove um breve
intervalo para abreviar o suspense e atingir o efeito desejado no próximo episódio:
perceber o desenrolar das ações até a revelação final. O estásimo aponta conexão com
outros momentos da peça, demonstrando que, apesar da brevidade, apresenta
importantes referências ao contexto trágico e prepara-nos para a seqüência de
reconhecimento da verdade por Édipo
413
.
ΧΟΡΟΣ:Εἴπερἐγὼμάντιςεἰμὶκαὶκατὰγνώμανἴδρις,
οὐτὸνὌλυμπονἀπείρων,ὦΚιθαιρών,
[1090]
οὐκἔσῃτὰναὔριον
πανσέληνον,μὴοὐσέγεκαὶπατριώτανΟἰδίπου
καὶτροφὸνκαὶματέρ´αὔξειν,
καὶχορεύεσθαιπρὸςἡμῶν,ὡςἐπίηραφέροντα
1095
τοῖςἐμοῖςτυράννοις.
ἸήϊεΦοῖβε,σοὶδὲταῦτ´ἀρέστ´εἴη.
Coro: Pelo Olimpo!
Se sou clarividente,
alguém dotado de intuição certeira,
Citero,
Ao plenilúnio de amanhã,
Não mais serás espaço sem limites:
te exaltam – mãe, nutriz, a pátria de Édipo!
Dançaremos em tua honra –
de ti provém o júbilo do rei.
Apolo,
senhor do grito lenitivo,
que te agrade a festa!
vv. 1086-1098.
Novamente, o coro faz alusão à divindade evocando o Olimpo. O valor cósmico
atribuído à situação nos remete à ordenação do caos por Zeus. Também se refere à
eficiência do pensamento humano enquanto atividade autônoma, distinta da inteligência
411
FRANCISCATO, Maria Cristina Rodrigues da Silva. TτχTη e Caráter de Hipólito em Eurípides. Tese
apresentada ao programa de pós-graduação em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo : São
Paulo, 2006, p. 271.
412
LASSO DE LA VEGA, 1994, Op. Cit., p. 236.
413
SANSONE, David. “The Third Stasimon of the Oedipus Tyrannus”. Classical Philology, vol. 70, no. 2.
(Apr, 1975), pp. 110.
185
divina, mas fundamentado por esta. Assim, se eles possuem raciocínio reto e intuem
bem, estão certos que a resposta sobre a maternidade de Édipo não tardaria a aparecer.
Quem é e donde vem Édipo? Quem sabe Édipo é filho de Pã, Apolo, Hermes,
Baco ou outra divindade? Seria filho de alguma ninfa? Os elementos simbólicos
presentes neste estásimo podem representar ilusão ou ironia. A visibilidade de toda a
verdade seria anunciada pelo plenilúnio, o tempo de duração do drama e sua solução.
O Citerão seria motivo de lamentação de Édipo e não de regozijo. O coro
proclama que o Monte será glorificado como compatriota, mãe, irmã de Édipo
414
. As
relativas ligações familiares são, no mínimo, curiosas. Citerão, o monte da desgraça e
sede das Erínias
415
, encontra-se em oposição ao monte Hélicão, morada das Musas.
Contudo, não sabemos o que o coro está pensando nestes versos
416
. Ele nos parece ora
irônico e ora realista, fundamentado nas próprias palavras de Édipo que se auto-intitula
filho da sorte”.
O estásimo oscila entre a ironia e a ilusão
417
. Como veremos, promove uma
profunda reflexão sobre as interpretações de Édipo sobre os eventos que o circundam.
Se o coro sabe quem é Édipo, é extremamente irônico, mas se ainda ignora a identidade
do rei, encontra-se iludido. Mas, como saber o que se passa na mente do coro? Assumir
que é Tebas e não Corinto a pátria de Édipo é uma necessidade vital. Não existe
alternativa senão aceitar a verdade.
A ironia se concentra, especialmente, quando evoca o Olimpo
418
. As leis
imortais, imperecíveis e permanentes do Olimpo também são referidas no segundo
estásimo. Acaso seja provada a verdade da profecia, Édipo está destinado à poluição; se
por outro lado é falsa, Édipo seria filho de uma das divindades citadas pelo coro. Se
414
SANSONE, 1975, Op. Cit., p. 113.
415
LASSO DE LA VEGA, 1994, Op. Cit., p. 237.
416
SANSONE, 1975, Op. Cit., p. 112 e LASSO DE LA VEGA, 1994, Op. Cit., p. 236.
417
SANSOME, 1975, Op. Cit., p. 111.
418
SANSOME, 1975, Op. Cit., p. 113.
186
Édipo é a causa da peste, ele o é tão somente por causa de seu nascimento. O coro canta
sua qualidade de profeta e poderíamos crer que os tebanos dependiam das profecias e
não do próprio raciocínio. Assim, através da divindade citada pelo coro, podemos
afirmar que a validade das profecias se consolida cada vez mais.
Τίςσε,τέκνον,τίςς´ἔτικτετῶνμακραιώνωνἄρα
[1100]
Πανὸςὀρεσσιβάταπατρὸςπελασθεῖς´,
ἢσέγ´εὐνάτειράτις
Λοξίου;τῷγὰρπλάκεςἀγρόνομοιπᾶσαιφίλαι·
εἴθ´ὁΚυλλάναςἀνάσσων,
1105
εἴθ´ὁΒακχεῖοςθεὸςναίωνἐπ´ἄκρωνὀρέωνεὕρημαδέξατ´ἔκ
του
ΝυμφᾶνἙλικωνίδων,αἷςπλεῖστασυμπαίζει.
Quem te gerou menino?
Que ninfa sempreviva
acolheu Pã,
em trânsito nos píncaros?
Que ninfa foi atrás do oblíquo Lóxias,
a quem apraz o plaino das pastagens?
A Hermes, senhor Cilênio, ou
ao deus do frenesi bacante,
cuja morada é o pico das montanhas,
uma das ninfas do Hélicon – seu par
no prazer – te ofertou , recém-achado?
v. 1098-1109.
O coro especularia sobre a paternidade de Édipo. Embora preocupado com uma
resposta que será fornecida num tempo futuro, pedindo a Citerão para que mostre o que
sabe, o coro lida com o passado perguntando sobre o nascimento de Édipo e se abre, ao
mesmo tempo, com uma preocupação indireta com o presente (a praga), porque pede a
Apolo, deus consolador, que os cantos tenham efeitos
419
.
O monte Cilênio apresenta-se, como um elemento importante na voz do coro,
enquanto a morada de Hermes, o deus mensageiro, arauto entre os mundos, deus
viajante, e que nasceu numa caverna no monte Cilênio, o guia das almas na passagem
entre a vida e a morte; o psicopompo
420
.
419
SANSOME, 1975, Op. Cit., p. 115.
420
ROSA, Armando Nascimento. “Um Édipo: Reescrita e Produção Cênica de um Mito Paradigmático.”
In: Mito, Memória e Identidade. Org. LEÃO, Delfim. Coimbra : Ariadne, 2005, p. 127.
187
No Citerão Édipo fora exposto à morte e salvo. Porém, o motivo para a inserção
dos outros dois montes não é facilmente visível. O Cilênio é avistado a partir da Beócia,
o Citerão está ao sul e o Helicão a oeste, com um vislumbre do Parnaso, monte referido
por nome pelo coro no primeiro estásimo, atrás dele. Mas por que razão Sófocles
menciona em seu texto estes montes?
421
Acreditamos que a seleção de Sófocles não se
deveu apenas à função métrica e beleza estética dos versos. Parece-nos que existe uma
relação entre os montes de maneira que eles nos trazem uma resposta para o dilema que
o coro deseja responder.
Os montes Parnaso e Citerão parecem estar ligados por dois pólos nos quais o
fio condutor da trama está suspenso. A voz brilhante que vem do Parnaso, na forma do
oráculo de Laio, e a resposta a Édipo representa os elementos que instigam a ação.
Citerão deveria ser o local que evitaria que Édipo cumprisse seu destino. Sobre o
caminho que se estende sobre os dois montes, o ato se manifesta e o oráculo se cumpre.
Quer dizer, entrelaçam-se não apenas os dois oráculos: aquele ouvido por Laio e a
resposta a Édipo que previa o parricídio
422
, mas a confirmação dos mesmos.
Neste sentido, poucos dias após seu nascimento, Édipo é salvo da morte e passou
de Tebas para Corinto por meio do Citerão. Porém devemos nos alertar para um detalhe
significativo, em sua viagem para Delfos Édipo passou novamente pelo Citerão. À sua
esquerda, visível em todo o golfo de Corinto, encontra-se o monte Cilênio, para onde
ele nunca deveria retornar. Ele também passará pela sombra do Hélicão, com o Parnaso
ao fundo. Entre estas duas montanhas Édipo matará seu pai e Laio morrerá pelas mãos
do filho, sem o saberem
423
.
421
SANSONE, 1995, Op. Cit., p. 117.
422
SANSONE, 1995, Loc. Cit. Sansone não esgota seus argumentos e continua nos confrontando com a
importância destes montes para o desfecho dramático para o qual a tragédia converge.
423
SANSONE, 1975, Loc. Cit.
188
Teríamos, simbolicamente, nas entrelinhas deste estásimo, um resgate da
trajetória de Édipo. Assim como nós, o coro também poderia concluir que estes montes
são as testemunhas silenciosas deste terrível crime, que causaria posteriormente horror e
sofrimentos aos envolvidos.
4.9. A reviravolta da fortuna e o reconhecimento da “hamartía
O quarto episódio representa os momentos mais dramáticos da peça. Nele temos
duas características amplamente defendidas por Aristóteles na constituição de uma
tragédia exemplar: a peripécia e o reconhecimento coincidentes
424
. A grande reviravolta
da fortuna na vida de Édipo dar-se-á mediante um reconhecimento. E segundo
Aristóteles, a cena de reconhecimento em Édipo Rei é um modelo de perfeição poética,
comprovando a competência de Sófocles. De maneira que o reconhecimento resulta da
própria intriga e a supresa resulta naturalmente, a cena de reconhecimento em Édipo Rei
dispensa artifícios, sinais e silogismos
425
.
Édipo esperava ansiosamente pela chegada do pastor. O único que poderia
salvá-lo ou fazê-lo se perder para sempre. Ele seria confrontado enquanto testemunha
ocular para revelar o que realmente havia acontecido naquela encruzilhada e também
sobre os acontecimentos em torno da origem de Édipo.
Em passo certamente moroso, pelo peso dos anos e relutância em vir,
chega o Servo, mandado chamar para confirmar o testemunho do
assassinato de Laio e esperado agora para falar também da origem de
Édipo. Do confronto entre estas duas figuras, de classe igualmente
modesta, e do reconhecimento mútuo se gera uma tensão de forças
opostas no rápido processo de revelação que constitui este episódio
tão breve quanto agitado
426
.
424
ARISTÓTELES. Poética, 1452 a 13-16.
425
ARISTÓTELES, Poética, 1455 a 16-20.
426
FIALHO, 1992, Op. Cit., p. 91.
189
Curiosamente, Édipo não se lembrou do Pastor. Pode parecer um detalhe
irrelevante, mas, se ele é mesmo um dos sobreviventes do massacre, Édipo deveria no
mínimo reconhecê-lo. As idades do mensageiro de Corinto e do servo de Laio são
aproximadas, como é notório pelos traços, mas Édipo afirma nunca tê-lo visto, pedindo
que o coro o ajude nesta tarefa, confimando sua impressão.
[1110]{ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Εἰχρήτικἀμὲμὴσυναλλάξαντάπω,
πρέσβεις,σταθμᾶσθαι,τὸνβοτῆρ´ὁρᾶνδοκῶ,
ὅνπερπάλαιζητοῦμεν·ἔντεγὰρμακρῷ
γήρᾳξυνᾴδειτῷδετἀνδρὶσύμμετρος,
ἄλλωςτετοὺςἄγονταςὥσπεροἰκέτας
1115
ἔγνωκ´ἐμαυτοῦ·τῇδ´ἐπιστήμῃσύμου
προὔχοιςτάχ´ἄνπου,τὸνβοτῆρ´ἰδὼνπάρος.
Édipo: Senhores, eu jamais travei contato
com o pastor há muito procurado.
Arriscarei dizer, porém, que o vejo.
Velho na idade, àquele este é simétrico.
Meus servos o conduzem. Reconheço-os
melhor do que ninguém deves sabê-lo,
pois o pastor o viste anteriormente.
v. 1110-1115.
O pastor, testemunha da identidade do assassino de Laio, é o mesmo que doara
Édipo ao mensageiro de Corinto anos atrás. Quando o pastor chega, Édipo não pergunta
a ele sobre a identidade do assassino de Laio e nem as circunstâncias desta morte
427
. O
diálogo entre as personagens no quarto episódio é intrigante, tenso e dramático. O
mensageiro faz menção à memória e força as lembranças do pastor, que certamente
deseja esquecer o passado. O diálogo que se segue possui ritmo ágil e as revelações
ocorrem a partir da pressão que Édipo faz sobre o pastor. Ele não se mantém nos
primeiros motivos que o levaram a buscar o pastor: resolver o dilema do assassinato de
Laio. Teremos que admitir que as diferenças nas duas versões sobre a morte do antigo
rei de Tebas não foram resolvidas
428
, mas Édipo já conhece a identidade do assassino,
só não sabia sua origem e muito menos que era culpado de incesto.
427
Sua pergunta tem outra direção e parece-nos que Édipo já conhece a identidade do assassino.
428
HARSHBARGER, Karl.“ Who Killed Laius?” The Tulane Drama Review, vol. 9, no. 4. (Summer,
1965) pp. 120-131, p. 123.
190
{ΘΕΡΑΠΩΝ}Οὐχὥστεγ´εἰπεῖνἐντάχειμνήμηςὕπο.
{
ΑΓΓΕΛΟΣ}Κοὐδένγεθαῦμα,δέσποτ´·ἀλλ´ἐγὼσαφῶς
ἀγνῶτ´ἀναμνήσωνιν.Εὖγὰροἶδ´ὅτι
κάτοιδεν,ἦμοςτὸνΚιθαιρῶνοςτόπον
1135
ὁμὲνδιπλοῖσιποιμνίοις,ἐγὼδ´ἑνὶ
ἐπλησίαζοντῷδετἀνδρὶτρεῖςὅλους
ἐξἦροςεἰςἀρκτοῦρονἑκμήνουςχρόνους·
χειμῶναδ´ἤδητἀμάτ´εἰςἔπαυλ´ἐγὼ
ἤλαυνονοὗτόςτ´εἰςτὰΛαΐουσταθμά
[1140]
Λέγωτιτούτων,ἢοὐλέγωπεπραγμένον;
{
ΘΕΡΑΠΩΝ}Λέγειςἀληθῆ,καίπερἐκμακροῦχρόνου.
{
ΑΓΓΕΛΟΣ}Φέρ´εἰπὲνῦν,τότ´οἶσθαπαῖδάμοίτινα
δούς,ὡςἐμαυτῷθρέμμαθρεψαίμηνἐγώ;
{
ΘΕΡΑΠΩΝ}Τίδ´ἔστι;πρὸςτίτοῦτοτοὔποςἱστορεῖς;
1145{
ΑΓΓΕΛΟΣ}Ὅδ´ἐστίν,ὦτᾶν,κεῖνοςὃςτότ´ἦννέος.
{
ΘΕΡΑΠΩΝ}Οὐκεἰςὄλεθρον;οὐσιωπήσαςἔσῃ;
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Ἆ,μὴκόλαζε,πρέσβυ,τόνδ´,ἐπεὶτὰσὰ
δεῖταικολαστοῦμᾶλλονἢτὰτοῦδ´ἔπη.
{
ΘΕΡΑΠΩΝ}Τίδ´,ὦφέριστεδεσποτῶν,ἁμαρτάνω;
[1150]{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Οὐκἐννέπωντὸνπαῖδ´ὃνοὗτοςἱστορεῖ.
v. 1131-1150
Servo: Não me recordo assim abruptamente.
Mensageiro: Não me surpreendo, rei. Mas vou lembrá-lo
do que afirma ignorar, pois é impossível
ter apagado da memória os tempos
do Citero. Eu tocava um só rebanho,
e ele, dois. Três períodos de convívio,
da primavera até surgir Arcturo.
No inverno, eu recolhia a grei ao estábulo,
enquanto ele abrigava os bois de Laio.
Confere ou não confere os fatos?
Servo: Muito passou, mas não alteras nada.
Mensageiro: Recordas que um menino então me deste,
para eu dele cuidar, qual fora um filho?
Servo: O que pretendes com toda essa história?
Mensageiro: Este senhor, meu caro, é aquela criança.
Servo: Vá para o inferno! Cala tua matraca!
Édipo: Não o censures, velho! Tua linguagem
merece mais censura do que a dele.
Servo: Onde eu errei, senhor inigualável?
Édipo: Calando sobre a criança mencionada.
vv.1131-1150.
Temos, em primeiro lugar, o confronto entre os dois criados. O servo de Laio
afirma que não é capaz de reconhecer o mensageiro, assim, de forma abrupta e valendo-
se da memória. O mensageiro de Corinto não reconhece a dimensão do que está por vir.
Acredita que estará trazendo consolo ao rei. O outro sabe demasiadamente, mais do que
realmente gostaria e desejaria revelar. O que podemos identificar neste fragmento é a
ação da memória, do conhecimento e da investigação, tão pertinentes ao desvelamento
da verdade.
191
Recordar, o quão doloroso é recordar, e porque fazê-lo, com qual intenção ou
benefício? Por um ano e meio eles foram companheiros no Citerão, e com a convivência
e as conversas, provavelmente, um sabia muito do outro. Apesar das palavras do
Mensageiro aprofundarem a investigação e trazerem elementos que poderiam ativar a
memória do servo de Laio, este se mantinha firme em afirmar que o tempo fora
responsável pelo seu esquecimento e que nada se alterava.
O mensageiro de Corinto revela, então, um segredo do passado, que dizia
respeito apenas aos dois: a história de um rejeitado. Eis que ao servo apresenta-se uma
cena de reconhecimento. O menino que ele salvou encontrava-se diante dos seus olhos e
representava não apenas a figura do soberano como o assassino do antigo rei,
ironicamente, seu pai. À medida que o seu conhecimento se aproxima do servo de Laio,
Édipo se torna mais e mais agressivo e não deixa alternativa ao pobre velho, que
subjugado, falará a verdade.
Tomando como exemplo o pastor que se recusa a matá-lo e o doa a um
estrangeiro, temos um detalhe no mínimo curioso no verso 1149: a ocorrência do termo
hamartáno, o que nos leva a pensar na atitude do servo que salvou a vida de Édipo e
propiciou a ocorrência de tantos desastres. O pastor acreditava que para evitar um mal
maior, ele deveria poupar a vida do menino, ainda que de algum modo, dada sua boa
intenção, ele não tenha cometido uma falta ou crime (hamartáno). Podemos pensar que
talvez fosse um ato de piedade para evitar uma desgraça quando os reis de Tebas
ordenaram-lhe a morte do menino.
As cenas que se seguem representam o clímax da peça e a reviravolta, onde
ambos se reconhecem como co-responsáveis pela tragédia que se abate sobre todos. O
ritmo alucinante permanece e os erros de Édipo cometidos no passado são, enfim,
revelados.
192
1155{ΘΕΡΑΠΩΝ}Δύστηνος,ἀντὶτοῦ;τίπροσχρῄζωνμαθεῖν;
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Τὸνπαῖδ´ἔδωκαςτῷδ´ὃνοὗτοςἱστορεῖ;
{
ΘΕΡΑΠΩΝ}Ἔδωκ´·ὀλέσθαιδ´ὤφελοντῇδ´ἡμέρᾳ.
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Ἀλλ´εἰςτόδ´ἥξειςμὴλέγωνγετοὔνδικον.
{
ΘΕΡΑΠΩΝ}Πολλῷγεμᾶλλον,ἢνφράσω,διόλλυμαι.
[1160]{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Ἁνὴρὅδ´,ὡςἔοικεν,ἐςτριβὰςἐλᾷ.
{
ΘΕΡΑΠΩΝ}Οὐδῆτ´ἔγωγ´,ἀλλ´εἶπονὡςδοίηνπάλαι.
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Πόθενλαβών;οἰκεῖονἢ´ξἄλλουτινός;
{
ΘΕΡΑΠΩΝ}Ἐμὸνμὲνοὐκἔγωγ´,ἐδεξάμηνδέτου.
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Τίνοςπολιτῶντῶνδεκἀκποίαςστέγης;
1165{
ΘΕΡΑΠΩΝ}Μὴπρὸςθεῶν,μή,δέσποθ´,ἱστόρειπλέον.
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Ὄλωλας,εἴσεταῦτ´ἐρήσομαιπάλιν.
{
ΘΕΡΑΠΩΝ}ΤῶνΛαΐουτοίνυντιςἦνγεννημάτων.
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Ἦδοῦλος,ἢκείνουτιςἐγγενὴςγεγώς;
{
ΘΕΡΑΠΩΝ}Οἴμοι,πρὸςαὐτῷγ´εἰμὶτῷδεινῷλέγειν.
[1170]{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Κἄγωγ´ἀκούειν·ἀλλ´ὅμωςἀκουστέον.
{
ΘΕΡΑΠΩΝ}Κείνουγέτοιδὴπαῖςἐκλῄζεθ´·ἡδ´ἔσω
κάλλιστ´ἂνεἴποισὴγυνὴτάδ´ὡςἔχει.
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Ἦγὰρδίδωσινἥδεσοι;
{
ΘΕΡΑΠΩΝ}Μάλιστ´,ἄναξ.
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Ὡςπρὸςτίχρείας;
{
ΘΕΡΑΠΩΝ}Ὡςἀναλώσαιμίνιν.
1175{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Τεκοῦσατλήμων;
1175{
ΘΕΡΑΠΩΝ}Θεσφάτωνγ´ὄκνῳκακῶν.
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Ποίων;
{
ΘΕΡΑΠΩΝ}Κτενεῖννιντοὺςτεκόνταςἦνλόγος.
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Πῶςδῆτ´ἀφῆκαςτῷγέροντιτῷδεσύ;
{
ΘΕΡΑΠΩΝ}Κατοικτίσας,ὦδέσποθ´,ὡςἄλληνχθόνα.
δοκῶνἀποίσειν,αὐτὸςἔνθενἦν·ὁδὲ
[1180]
κάκ´εἰςμέγιστ´ἔσωσεν·εἰγὰροὗτοςεἶ
ὅνφησινοὗτος,ἴσθιδύσποτμοςγεγώς.
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Ἰοὺἰού·τὰπάντ´ἂνἐξήκοισαφῆ.
Ὦφῶς,τελευταῖόνσεπροσβλέψαιμινῦν,
ὅστιςπέφασμαιφύςτ´ἀφ´ὧνοὐχρῆν,ξὺνοἷςτ´
1185
οὐχρῆνὁμιλῶν,οὕςτέμ´οὐκἔδεικτανών.
Servo: Tristeza! A que vem isso? Qual tua dúvida?
Édipo: O garoto em questão, a ele o entregaste?
Servo: Sim. Por que eu não morri naquela data?
Édipo: Pois morrerás, calando o que não deves.
Servo: E se eu falar, há de vir pior morte.
Édipo: O velho, ao que parece, ganha tempo.
Servo: De modo algum. Não disse que o dei?
Édipo: E qual a procedência do menino?
Servo: Não era meu; de alguém o recebi.
Édipo: De alguém da pólis? Onde ele reside?
Servo: Pára de investigar, suplico, mestre!
Édipo: És homem morto, se de novo indago.
Servo: Pois bem; de alguém do círculo de Laio.
Édipo: Nasceu escravo; é filho do palácio?
Servo: Estou a ponto de falar o horror.
Édipo: E eu de ouvi-lo; mas é preciso ouvir.
Servo: Filho do rei, diziam. Lá dentro está
quem pode dar detalhes: tua mulher.
Édipo: Foi ela quem te deu a criança?
Servo: Exatamente, rei.
Édipo: Com que finalidade?
Servo: Para dar cabo dele.
193
Édipo: A própria mãe? Incrível!
Servo: Temia um mau oráculo.
Édipo: Qual?
Servo: Seria o matador dos pais – diziam.
Édipo: Por que motivo então o deste ao velho?
Servo: Me condoí. Pensei: ao seu país
de origem levará o menino. Para
um mal maior, salvou-o. Se és quem ele
diz, crê: nasceste para a desventura.
Édipo: Tristeza! Tudo agora transparece!
Recebe, luz, meu derradeiro olhar!
De quem, com quem, a quem – sou triplo equívoco:
ao nascer, desposar-me, assassinar!
vv.1155-1185.
O pastor ainda tentou escapar do inquérito, mas não conseguiu. Sob ameaça de
morte ele se sente pressionado a falar. Para Édipo a morte é um mal menor perante a
verdade que ele está prestes a revelar. Ao que tudo indica, segundo a visão de Édipo, o
pastor tenta ganhar tempo, mas mesmo o seu silêncio não seria capaz de manter a paz de
espírito de Édipo e dele próprio. As circunstâncias o deixaram sem saída, ele fora
coagido a falar. Édipo precisava saber sua procedência, sua origem, o nome de seus
pais, detalhes que lhe eram incognoscíveis devido à sua pouca idade na época dos
eventos. O servo ainda relutou, mas sob nova ameaça de morte, ele revelou a verdade.
A revelação é extremamente chocante. O pastor revelou o que ninguém poderia
imaginar: que Laio foi morto pelo próprio filho de acordo com os termos do oráculo. E
que o incesto não era uma possibilidade distante e irrealizável como pensavam
respectivamente Édipo e o Mensageiro, mas fato consumado.
O resultado disto tudo demonstra que não se pode calcular valendo-se apenas do
raciocínio. Os mortais tentam fazê-lo baseando suas interpretações no que é visível e
esquecendo-se de que as pistas podem ser enganosas e conduzirem a um erro de
interpretação ou por desconhecimento, devido à ignorância.
O sobrevivente à chacina escolheu a mentira no lugar da verdade e ninguém
procurou desvendar o mistério. A morte de Laio pelo próprio filho, aos olhos de Jocasta,
era uma impossibilidade lógica, pois ela acreditava que este filho amaldiçoado estivesse
194
morto. Édipo, por sua vez, também acreditava ter burlado o oráculo, pois fugira de casa
mantendo-se distante dos pais.
O pastor desejou a própria morte quando precisou revelar a terrível verdade.
Novamente teríamos a validade do conhecimento e seu préstimo a quem o detém.
Assim, embora seja natural preferirmos a vida à morte, sabemos que, devido às
circunstâncias do destino, nossos desejos podem convergir numa direção oposta à
esperada. Responder sobre a procedência do menino correspondia, indiretamente, a
assumir a própria culpa em relação aos eventos trágicos que se apresentavam. Tal qual
Tirésias, o pastor conhecia parte de uma verdade que completaria o quebra-cabeça que
compunha a peça. Porém, este homem cheio de medo é o oposto do altivo adivinho que,
ao ser ofendido, revela a verdade a Édipo.
O conhecimento do pastor devia-se ao seu envolvimento direto com a história, já
os dons premonitórios de Tirésias deram a ele o total conhecimento da verdade. O
próprio pastor, no verso 1180 afirma: nasceste para a desventura. Ora, nesta
perspectiva, Édipo se diz triplo equívoco: ao nascer, ao casar e ao matar. Ele não
cometeu apenas o incesto e o parricídio, de forma que seus erros condicionavam-se a
um erro anterior: seu nascimento
429
. Ele assume as próprias faltas, de forma que nos
leva a pensar a respeito de sua hamartía de forma mais ponderada, porém, ainda
excluindo da peça enquanto ação os crimes que ele cometeu na ignorância.
Segundo o próprio coro, no segundo estásimo, a soberba é um erro. As
personagens definem-se como profetas em concorrência com as personagens
verdadeiramente iluminadas. Em lugar de inspiração, as previsões humanas são
baseadas num pretenso conhecimento. A peça demonstra a inutilidade do método
429
Embora não fosse dado a ele escolher o seu agir: evitar matar o pai e casar com a mãe, porque estes
eram acontecimentos controlados pelos deuses, somente na ação ele pôde ter a garantia de sua existência.
Infelizmente, o que Édipo deveria preferir, caso o soubesse antecipadamente, não poderia fazê-lo:
escolher não ter nascido, pois o seu nascimento e sobrevivência foram cruciais à realização de sua
fatalidade.
195
indutivo, pois cada vez que as personagens tentam empregá-lo, refutando os oráculos, o
cálculo humano falha.
Ao reconhecer a claridade da situação, Édipo compreende que os oráculos são
verdadeiros
430
. Se há alguma lição na peça, é que a inteligência exercida num vácuo
pode ser pior do que a mera ignorância. Em particular, a prática de se deduzir o
desconhecido a partir do que é conhecido - o invisível do visível - é uma armadilha
traiçoeira. A peça é uma crítica ao racionalismo demonstrando que a ciência não pode
compensar as lacunas existentes na perspectiva do homem imperfeito
431
.
Édipo consulta o profeta Tirésias, seu cunhado Creonte, sua esposa Jocasta, um
servo da casa de Laio sobrevivente ao massacre a fim de assegurar a primeira versão
dos fatos e manter sua consciência tranqüila. Ele precisava assegurar que não fora
apenas um assassino, mas muitos. E quando Édipo descobriu não só que era o assassino
de Laio, mas que este era seu pai e a mulher com quem ele casou e teve filhos era sua
mãe, ele se viu culpado de parricídio e incesto como o oráculo délfico previu há muito
tempo
432
. A hamartía em Édipo transita entre a questão das intenções e das
conseqüências. Os eventos da peça, em termos de relato, derivam de um acidente, uma
hamartía que não poderia ser compreendida como um erro, exceto em retrospectiva.
Para entendermos o incidente na encruzilhada, devemos imaginar o estado de
espírito de Édipo quando este deixou Delfos, perturbado pelas palavras do oráculo e
disposto a evitar crimes hediondos. Porém, para alcançar seus objetivos, ele deveria
obedecer a duas regras simples: nunca matar um homem mais velho em idade para ser
seu pai e que principalmente se assemelhasse a ele; nem casar com uma mulher mais
velha, em idade para ser sua mãe. A consulta ao oráculo tornara claro que duas regras, e
430
KNOX, Édipo em Tebas, 2002, Op. Cit., p. 117. Em referência ao v. 1182.
431
KANE, 1975, Op. Cit., p 208.
432
GOODHART, Sandor. “Oedipus and Laius’ many murderers”. Diacritics, vol. 8, no. 1, Special Issue
on the Work of Rene Girard. (Spring, 1978), p. 55.
196
não apenas a vontade em se manter afastado de Corinto, deveriam ser a preocupação
máxima de Édipo quando ele deixou Delfos
433
.
Ele deveria ter se concentrando na tarefa simples de evitar ao máximo matar um
homem mais velho e casar com uma mulher mais velha, não correndo risco algum de
fazer cumprir a profecia, uma vez que pairava a dúvida sobre o seu parentesco com
Políbio e Mérope. Em sua primeira oportunidade, Édipo ignorou um aviso divino. Mas
como ele poderia imaginar que o desconhecido na encruzilhada era seu pai legítimo?
Era uma coincidência tão incrível quanto impossível, mas este era o risco que ele não
deveria ter enfrentado
434
. E como ele poderia imaginar que a mulher que recebeu por
esposa quando chegou a Tebas e desvendou o enigma da Esfinge era sua mãe? As
coincidências são incríveis e inacreditáveis.
Mas por que o servo o salvara? É a última pergunta de Édipo. Por que o servo
sentira piedade
435
por aquela criança aparentemente indefesa? Provavelmente uma idéia
lhe ocorrera. Se o desse àquele servo de outras terras, este o levaria para longe e,
certamente, a criança seria criada e nunca mais retornaria. Assim, ele se livraria do
crime de matar uminocente” e todos pensariam que ele cumprira a missão.
A piedade sustenta o destino de Édipo. Sua sobrevivência é um dos motivos que
desencadeiam o enredo trágico. O servo não executou a ordem e o mensageiro, unido ao
outro em prol de uma vida, mantém o curso da profecia oracular. A conexão da história
do mensageiro com a do servo de Laio se efetua
436
e revela o malogro e ilusão que
ofuscavam a visão de todos. A sobrevivência, contudo, não é o maior dos males de
Édipo, mas o cumprimento da profecia que dependera, e muito, de sua ação. Adulto, ele
433
GOODHART, 1978, Op. Cit., p. 62
434
VELLACOTT, 1971, Op. Cit., pp. 209-210.
435
BOLLACK, 1990, Op. Cit., p. 768.
436
BOLLACK, 1990, Op. Cit., p. 770.
197
matou Laio, desvendou o segredo da Esfinge e ascendeu ao trono em Tebas casando-se
com a viúva do antigo rei. Era um mal triplo: ao nascer, ao casar e ao assassinar.
A chegada do mensageiro de Corinto é acidental
437
. Sem ele o testemunho do
sobrevivente à chacina teria se centrado na questão anterior: quantos mataram Laio e
não quem é Édipo. Além disso, o falso laço de parentesco com Pólibo e Mérope e a
relação de parentesco com Laio e Jocasta permaneceriam desconhecidos. O quarto
episódio apresenta-nos a revelação da verdade.
4.10. A possibilidade da hamartía: a ilusão da felicidade e a fragilidade humana
O quarto estásimo é um lamento sobre a condição humana. Não existe nenhuma
garantia à felicidade, sendo ela ilusória. Nenhum mortal pode ser feliz em sua
totalidade, dadas as circunstâncias da vida. A miséria, a dor, a melancolia são
inexoráveis e a felicidade é tão efêmera quanto a existência humana. A possibilidade de
invencibilidade e sucesso é tal qual um sonho.
{ΧΟΡΟΣ}Ἰὼγενεαὶβροτῶν,
ὡςὑμᾶςἴσακαὶτὸμηδὲνζώσαςἐναριθμῶ.
Τίςγάρ,τίςἀνὴρπλέον
[1190]
τᾶςεὐδαιμονίαςφέρει
ἢτοσοῦτονὅσονδοκεῖν
καὶδόξαντ´ἀποκλῖναι;
Τὸνσόντοιπαράδειγμ´ἔχων,
τὸνσὸνδαίμονα,τὸνσόν,ὦ
τλᾶμονΟἰδιπόδα,βροτῶν
1195
οὐδὲνμακαρίζω·
Coro: Estirpe humana
438
,
o cômputo do teu viver é nulo.
Alguém já recebeu do demo um bem
não limitado a aparecer
e a declinar
depois de aparecer?
És paradigma,
o teu demônio é paradigma, Édipo;
437
GOODHART, 1978, Op. Cit., p. 64.
438
Prefiro assumir a tradução do verso por “Oh! Geração de mortais” como o faz Maria do Céu Z. Fialho
ou por“Ai! Geração de Mortais”, como o traduz Ordep Serra, por representar melhor os nossos interesses
de interpretação.
198
mortais não participam do divino.
vv.1187115
O coro parece cantar aos humanos, demasiadamente humanos, que, crentes em
sua condição de mortais, não devem tentar se igualar aos deuses. O maior perigo para a
vida do herói trágico era separar o conhecimento divino do seu viver, acreditando que
poderia conhecer tal qual os deuses. A mortalidade define a essência humana e agora o
coro canta, justamente, os humanos, enquanto seres destinados à morte. O coro canta a
instabilidade da felicidade. Tudo é estranhamente ilusório. A própria felicidade é um
engodo, e quando o herói acredita que é vitorioso, feliz, dotado de boa fortuna, é
surpreendido pela desventura. Ao errar o alvo, ao ver frustradas as suas boas intenções,
ele pode se tornar o mais malfadado dos mortais, pois aos mortais cabe o fracasso. Em
si, a mortalidade não apenas encerra a finitude, mas a falibilidade.
O erro dos tiranos, ao supervalorizarem o político: crêem recusar a
sepultura. (...) Por isso pagam com sua frágil felicidade. (...) Pois o
erro dos tiranos é o de se considerarem imortais, ou felizes (...), e a
tragédia se entrega de bom grado a dramatizar sua queda; extrai então
mais de uma vez à moral comum o adágio em virtude do qual
ninguém poderia considerar-se feliz antes de estar morto. Deve-se
entender com isso que todo favorito da sorte, pode, um dia, ver sua
fortuna aniquilada
439
.
Édipo, acometido pela hýbris, esquece-se da mortalidade enquanto característica
de quem é passível de errar e acredita na própria invencibilidade. Por isso é necessário
vislumbrar a queda do herói, porque este não crê em sua derrota. Quem outrora invejara
Édipo, agora consegue somente lamentar sua triste sorte. Assim, ele é modelo aos que
se julgam infalíveis, e cabe aos mortais reconhecer sua debilidade e perceber que não
podem tudo.
De acordo com os termos aristotélicos existe a obrigatoriedade de o processo
trágico se subordinar à prática da hamartía por parte do herói trágico. Neste sentido,
temos a necessidade de identificação do público com a ação do herói, de maneira que as
439
LORAUX, Nicole. “A Tragédia Grega e o Humano.” IN: NOVAES, Adauto. Ética. São Paulo : Cia das
Letras, 2003, p. 25. (17-34).
199
personagens das grandes tragédias constituíssem, em relação ao público, paradigmas de
erros a evitar.
A instabilidade da felicidade e da vida apresenta-se como condição ao humano
que se vê à mercê da própria sorte. De geração em geração, o humano, além de
reconhecer a morte como certeza absoluta, deve reconhecer que é passível de
sofrimento e de erro. Todo o resto é ilusão.
ὅστιςκαθ´ὑπερβολὰν
τοξεύσαςἐκράτησετοῦπάντ´εὐδαίμονοςὄλβου,
ὦΖεῦ,κατὰμὲνφθίσας
τὰνγαμψώνυχαπαρθένον
[1200]
χρησμῳδόν,θανάτωνδ´ἐμᾷ
χώρᾳπύργοςἀνέστα·
ἐξοὗκαὶβασιλεὺςκαλῇ
ἐμὸςκαὶτὰμέγιστ´ἐτι
μάθηςταῖςμεγάλαισινἐν
Θήβαιςινἀνάσσων.
Com a hipérbole do arco,
lograste o plenifausto
do bom-demônio.
Por Zeus!
Tu abateste a Esfinge,
- a virgem de unhas curvas! -,
com seu canto-vaticínio.
Em prol da pátria então se ergueu
uma torre contra Tânatos.
E houve o clamar (também clamei):
Basileu!
Te coube a distinção extrema:
reinar em Tebas, a magnífica!
vv. 1196-1205
Édipo já demonstrara motivos para ser respeitado e, certamente, não poderia ser
considerado qualquer um. Seu sucesso anterior no desvelamento do enigma da Esfinge
o elevara à categoria de herói. Se uma vez ele fora capaz de salvar a cidade, é claro que
todos esperavam a realização de um feito parecido. Não obstante, na tentativa de salvar
a cidade pela segunda vez através de sua inteligência, ele sucumbiu.
200
A posição privilegiada atribuída à Esfinge em Édipo Rei não é acidental. A vida
de Édipo está intimamente ligada à Esfinge
440
como se fossem ligadas por uma força
supra-humana. Édipo compreende que o saber é superficial, profundamente
decepcionante e ilusório. Realmente, de que vale o conhecimento se ele lhe é inútil? A
vitória sobre a Esfinge era a sua maior façanha e a concretização de sua desgraça.
O coro associa a vitória sobre a Esfinge como um dos passos da derrocada de
Édipo. A descoberta do enigma tem relação direta com o prêmio: tornar-se rei de Tebas
e marido de Jocasta. Ilusoriamente tratava-se de uma recompensa, pois uma de suas
tragédias vinculava-se ao casamento com a própria mãe e a união com Jocasta lhe
possibilitara esta ruína. Ele tentara acertar no ponto mais alto, mas fracassara.
Τανῦνδ´ἀκούειντίςἀθλιώτερος;
1205
τίςἄταιςἀγρίαις,τίςἐνπόνοις
ξύνοικοςἀλλαγᾷβίου;
ἸὼκλεινὸνΟἰδίπουκάρα,
ᾧμέγαςλιμὴναὑτὸςἤρκεσεν
[1210]
παιδὶκαὶπατρὶθαλαμηπόλῳπεσεῖν,
πῶςποτεπῶςποθ´αἱπατρῷαίς´ἄλοκεςφέρειν,τάλας,
σῖγ´ἐδυνάθησανἐςτοσόνδε;
Quem tem reputação mais triste agora?
Quem sofre tanta dor, tão dura agrura,
no revés da vida?
Ínclito chefe, Édipo!
Um só porto, um único
bastou ao pai e ao filho
no seviço das núpcias
cair, subindo ao tálamo.
Como o campo semeado pelo pai,
silente, te acolheu por tanto tempo?
vv. 1204-1212
Ele cometeu incesto e tornou-se pai de seus próprios irmãos, o tempo revelou-
lhe que o seu sucesso do passado – eliminar a Esfinge – fora apenas aparente, uma triste
ilusão. Édipo não salvou a cidade, pelo contrário, a conduziu em direção a um mal
maior que não tardou a aparecer. Triunfo e ruína, embora palavras opostas, concentram-
440
MOORE, Kevin Z. “The Beauty of the Beast: Presence/Absence and the Vicissitudes of the Sphinx in
Sophocles' Oedipus Tyrannus and Oedipus at Colonus”. Boundary 2, Vol. 8, No. 3. (Spring, 1980), p. 2.
201
se numa única ação e provocam a salvação e o aniquilamento, simultaneamente, porque
ao mesmo tempo em que salvara a cidade trouxera à mesma a peste.
E, pelas virtudes de sua inteligência heróica na decifração do enigma
da Esfinge, Édipo obra a salvação do reino, livrando-o da presença
mortífera do monstro que dizimava o país; todavia, porque ele é o
assassino impune de Laio a contaminar o chão por seu sangue
derramado, é também causa miasmática da pestilência que assola a
terra tebana, desgraçando o país
441
.
A presença do assassino de Laio em Tebas era a razão da peste. Sabemos que
Édipo permaneceu na cidade porque se tornou rei através de seu casamento com Jocasta
e que isto só foi possível porque ele venceu a terrível Esfinge, de maneira que esta
vitória fundamenta-se na ignorância, pois não foi capaz de reconhecer na rainha sua mãe
verdadeira. Ele sofria, então, uma dor e um fracasso incomparáveis. Em
correspondência à voz do coro no quarto estásimo, no êxodo, Édipo lamenta seu fado
infeliz desejando não ter vindo a ser, não ter sobrevivido. Àquela altura da vida era
preferível a morte do que ter realizado ações tão horrendas.
Ἐφηῦρές´ἄκονθ´ὁπάνθ´ὁρῶνχρόνος·
δικάζειτὸνἄγαμονγάμονπάλαι
1215
τεκνοῦντακαὶτεκνούμενον.
Ἰώ,Λαΐειονὦτέκνον·
εἴθες´εἴθ´ἐγὼμήποτ´εἰδόμαν·
δύρομαιγὰρὡςπερίαλλ´ἰαχέων
ἐκστομάτων.Τὸδ´ὀρθὸνεἰπεῖν,
[1220]
ἀνέπνευσάτ´ἐκσέθεν
καὶκατεκοίμησατοὐμὸνὄμμα.
Malgrado teu,
a pan-visão de Cronos te descobre:
faz muito julga núpcias anti-núpcias –
o gerar e o gerado.
Filho de Laio,
Jamais quisera ver-te!
Lamento sem limite:
da boca saem-me nênias.
Serei veraz: me deste alento,
na escuridão meus olhos adormeço.
vv. 1213-1221
441
PIRES, Francisco Murari. “A Morte do Heróico.” in: ROSENFIELD, Denis L. Filosofia e Literatura..
Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 2001, p. 105.
202
Édipo restitui a vida a Tebas ao mesmo tempo em que a conduz à morte. Como
autor do crime e condutor da investigação
442
Édipo se autodescobre. Também o tempo,
que tudo revela, tudo sabe e retém, reconhece o horror da vida impura que Édipo levava
considerando-se, ao contrário, cheio de glória. Não ter nascido ou não ter sobrevivido
era a única saída, a única chance que ele possuía de não ter cometido estes horrores.
{ΕΞΑΓΓΕΛΟΣ}(...)κακὰ
[1230]
ἑκόντακοὐκἄκοντα·τῶνδὲπημονῶν
μάλισταλυποῦς´αἳφανῶς´αὐθαίρετοι.
Arauto: (...) males
voluntários e não-involuntários.
As piores dores são as auto-impostas.
vv. 1229-1231
O horror do suicídio e da automutilação são ações autodestrutivas. As dores auto-
impostas, o cegamento, por vontade do agente ou não, estão implícitas no lamento do
herói. Os terríveis males vividos por Édipo, o parricídio e o incesto, são anteriores ao
auto-cegamento. Mas o auto-cegamento está atrelado ao suicídio de Jocasta. É justamente
quando ele se depara com o corpo da mãe falecida que ele se mutila, tornando-se cego no
sentido integral da palavra. Os atos, suicídio e cegamento, embora não representados, são
voluntários. Incapazes de suster a dor perante os acontecimentos, Jocasta se mata e Édipo
se cega; ambos se abstêm da luz.
A morte de Jocasta é conseqüência imediata de seu reconhecimento (que falhara
na tentativa de assassinato do filho); o auto-cegamento é imediato ao encontro de Édipo
com o corpo de Jocasta morta, aliado ao reconhecimento de que ele era o incestuoso e
assassino de Laio, seu pai. Temos a nítida oposição entre a vontade e a fortuna, ou seja, o
conflito entre um destino injusto e um outro deliberado. O incesto e parricídio se
configurariam como um destino injusto e o auto-cegamento seria deliberado.
442
BOLLACK, 1990, Op. Cit., p. 809.
203
O arauto descreve a cena de auto-cegamento de Édipo. A descrição nos
surpreende pela veemência com a qual Édipo se pune. Ele fura os olhos para
definitivamente não contemplar o mal causado e nem o mal sofrido
443
. Talvez
envergonhado, Édipo se priva da visão, se pune e se autocondena.
ΧΟΡΟΣ}Δείλαιετοῦνοῦτῆςτεσυμφορᾶςἴσον,
ὥςς´ἠθέλησαμηδαμὰγνῶναίποτ´ἄν.
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Ὄλοιθ´ὅστιςἦνὃςἀγρίαςπέδας
[1350]
νομάδοςἐπὶπόαςἔλαβέμ´ἀπότεφόνου
ἔρυτοκἀνέσωσεν,οὐδὲνεἰςχάρινπράσσων.
Τότεγὰρἂνθανὼν
1355
οὐκἦνφίλοισινοὐδ´ἐμοὶτοσόνδ´ἄχος.
{
ΧΟΡΟΣ}Θέλοντικἀμοὶτοῦτ´ἂνἦν
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Οὔκουνπατρόςγ´ἂνφονεὺς
ἦλθον,οὐδὲνυμφίος
βροτοῖςἐκλήθηνὧνἔφυνἄπο.
[1360]
Νῦνδ´ἄθεοςμένεἰμ´,ἀνοσίωνδὲπαῖς,
ὁμογενὴςδ´ἀφ´ὧναὐτὸςἔφυντάλας.
Εἰδέτιπρεσβύτερον
1365
ἔτικακοῦκακόν,τοῦτ´ἔλαχ´Οἰδίπους.
[...]
[1386]
Ἥκιστάγ´·ἀλλ´εἰτῆςἀκουούσηςἔτ´ἦν
πηγῆςδι´ὤτωνφραγμός,οὐκἂνἐσχόμην
τὸμἀποκλῇσαιτοὐμὸνἄθλιονδέμας,
ἵν´ἦτυφλόςτεκαὶκλύωνμηδέν·τὸγὰρ
[1390]
τὴνφροντίδ´ἔξωτῶνκακῶνοἰκεῖνγλυκύ.
ἸὼΚιθαιρών,τίμ´ἐδέχου;τίμ´οὐλαβὼν
ἔκτειναςεὐθύς,ὡςἔδειξαμήποτε
ἐμαυτὸνἀνθρώποισινἔνθενἦγεγώς;
Coro: Fado infeliz, espírito infeliz.
Melhor que não soubesses nada! Nunca!
Édipo: Antes morrera quem meus pés
- seja quem for! –
livrou das duras travas, no ermo campo.
O que ele fez não foi favor.
Morto, tamanha dor eu evitara
aos meus amigos e a mim.
Coro: concordo totalmente.
Édipo: Não teria sido um parricida,
de mim ninguém diria: esposo
de quem lhe deu a vida.
Sem deus agora, filho de sacrílegos,
em homogênese com quem me fez.
Se prévio a um mal existe um mal
Maior, a mim coube vivê-lo.
[...]
Impossível! Pudesse pôr no ouvido
Lacre auditivo, e eu não hesitaria
em isolar meu pobre corpo: surdo,
443
Édipo Rei, Cf., vv. 1271-72. Édipo gritava então que não veriam o mal causado nem o mal sofrido.
204
além de cego. Doce é o pensamento
que não hospeda o mal em sua morada.
Por que Citero, não me rejeitaste,
ou, me acolhendo, não me assassinaste?
O mundo ignoraria a minha origem.
vv. 1357-1365, 1386-1393
O peso da infelicidade cai sobre o espírito de Édipo. Lembramo-nos da condição
anterior do soberano, marcada pela inteligência e poder. Ele não vê benefícios na
salvação de sua vida, pois o seu triunfo sobre a morte na infância não lhe trouxera
felicidade. Então, Édipo amaldiçoa, desejando a morte daquele que o salvou de perecer
no Citerão reservando-lhe pior destino. Ele, contudo, é infeliz devido à sagacidade em
resolver enigmas
444
, desta paixão desenfreada pelo saber. Talvez por isso o coro tenha
desejado que ele nunca viesse a tomar conhecimento do que fizera contra si e contra os
pais.
É claro que não podemos atribuir ao servo coríntio e ao pastor de Laio tamanha
responsabilidade, mas é possível pensar na redistribuição desta responsabilidade a
outras personagens que não apenas Édipo. A partir do que a peça nos apresenta é
possível deduzirmos que estamos condenados a conviver com o erro. Que não podemos
deixar de confiar em nossas personalidades e procedimentos, porém, de outra forma, ao
confiar, sabemos que deixamos aberta uma brecha à incerteza, e que em algumas
ocasiões podemos nos equivocar.
A tragédia de Édipo mostra-nos a necessidade das personagens confiarem em
suas próprias crenças e ao mesmo tempo a impossibilidade de se fiarem nelas
completamente. Este aprendizado tardio por meio do sofrimento é conseqüência de um
erro, pois apenas depois de se cometer uma grave falta atinge-se o conhecimento. Às
vezes confiar significa não pôr à prova, não tratar de eliminar a incerteza nem afiançar
444
BOLLACK, 1990, Op. Cit., p. 925.
205
as expectativas. Ora, pôr à prova não é um simples procedimento para se obter a
verdade incontestável e Jocasta não comprova a verdade sobre a morte do filho.
Laio e Jocasta, provavelmente, decidiram incumbir outra pessoa de matar o
próprio filho que não eles próprios, pelo desejo de escapar da grave culpa de matar um
parente de sangue. Eles desejavam evitar o sentimento de culpa por algo que em
definitivo deveriam realizar e ao delegarem ao servo a realização do crime eles próprios
evitariam ser a causa direta da morte da criança. A exposição do menino e a certeza de
sua morte dependiam de um grau de sorte que não garantia morte assegurada e disto
Laio e Jocasta deveriam ter se certificado, caso quisessem estar certos da morte de
Édipo.
Édipo gradualmente desvenda a verdade de sua origem. Algumas das
personagens, dentre elas Tirésias, Jocasta e o Pastor confrontavam-se com ele
afirmando que certas verdades nunca deveriam emergir. Cada um, de seu jeito, ocultava
parte da história. Apenas Tirésias tinha o conhecimento total de tudo. Jocasta acreditava
piamente na morte do filho, o pastor não poderia imaginar que o atual rei – o assassino
de Laio - era o menino que ele salvou da morte anos atrás
445
. Seu confronto com o
mensageiro de Corinto o põe frente a frente com aqueles que ele desejava nunca
reencontrar. Sua surpresa e seu desalento são insuficientes para convencer Édipo a
desistir. Apesar das palavras terríveis que aquele estava prestes a dizer, ele sabia que
não havia mais saída.
De um líder honesto determinado a encontrar a causa da praga, Édipo é
transformado em um criminoso, um incestuoso, assassino, cego para a própria
identidade e para seus pais verdadeiros. A bem da verdade, ele já era um assassino,
parricida, incestuoso – o miasma –, apenas não tinha ciência disto; eis a importância da
445
Não temos nenhuma evidência que comprove que o servo tenha reconhecido em Édipo o filho de Laio e
Jocasta, mas poderíamos sugerir que ele reconheceu nele o assassino, por isso pediu a Jocasta para
afastar-se de Tebas. Cf., vv. 758-764.
206
cena de reconhecimento. Ele não comete um erro ao se reconhecer falível, mas ele
precisa se reconhecer como tal para não permanecer ignorante.
Temos em Édipo falhas inegáveis, em primeiro lugar, ele fugiu quando deveria
ter averiguado melhor a história de sua origem denunciada pelo bêbado e negada pelos
pais adotivos
446
. Ele calcula mal os resultados de sua investigação. Ele acredita na
vitória, em seu êxito, porém alcança o fracasso. Lança um decreto impiedoso contra o
assassino, que é ele próprio. Não interpreta bem o lamento e silêncio de Tirésias e
acusa-o injustamente. Por pouco não pune um inocente: Creonte. Compartilha com
Jocasta da descrença nos oráculos. Interpreta mal a reação de Jocasta quando ela insiste
que ele deve parar de investigar o enigma de seu nascimento.
O coro canta que quisera que Édipo nunca tivesse descoberto a verdade,
permanecendo, assim, na ignorância, porém feliz. Não obstante, aquele que ignora a
própria identidade torna-se um ninguém. Ignorar as próprias origens é um fato,
permanecer na obscuridade é uma escolha.
Sabemos que viver uma mentira era demais para Édipo, ele já demonstrou isto
quando quis tirar a limpo a história do bêbado inquirindo seus pais e depois o próprio
oráculo. Acreditamos que para um grego daqueles tempos, tão orgulhoso da própria
estirpe, de repente ver-se deprovido de memória socialmente construída era a verdadeira
morte. A importância atribuída à ascendência e descendência é vital para alimentar o
orgulho pelos antepassados e garantir uma memória indefectível aqueles que estavam
por vir. Para Édipo, desconhecer sua origem representaria a morte civil e física
simultaneamente, a perda das garantias enquanto cidadão da pólis e tornar-se um morto
vivo, sem qualquer valor. Mesmo que Édipo acreditasse numa origem humilde,
446
Será que Édipo sentiu medo de descobrir que não era filho de Políbio e Mérope? Alguém poderia
questionar que ele não se limita a meias verdades na investigação empreendida na peça e o
questionamento está correto. Porém, precisamos lembrar que, ele agora ocupa um papel de rei e por
conquista. Talvez fosse motivo de orgulho que alguém de origem humilde tenha pelo próprio mérito
alçado vôos tão altos: vencer a Esfinge desvendando seu enigma e tornar-se rei.
207
orgulhosamente ele se vangloriava de ter vencido estas barreiras e ter chegado a rei.
Mas se o desastre de Édipo no Édipo Rei é reconhecer plenamente sua identidade, onde
estaria o erro em (ou ao) tentar fazê-lo?
Ora, não existe erro substancial na tentativa de Édipo em descobrir a verdade. O
fato é que é este processo de descoberta que promove a reviravolta da fortuna.
Enquanto ignorante da própria identidade ele era feliz, de maneira que é o
reconhecimento de suas faltas no passado que o torna verdadeiramente infeliz. A partir
do momento em que deixou de ser ignorante, diga-se que foi por vontade própria, apesar
das coincidências que o motivaram a prosseguir na investigação, que ele se tornou o
mais miserável e infeliz dos mortais.
Édipo tinha diante de si dois caminhos: manter-se na obscuridade e suportar
eternamente o fato não possuir uma identidade ou escolher investigar o próprio passado
e descobrir enfim quem é. Portanto, se ignorar as próprias origens era um fato – tal qual
a situação de Édipo –, nós sabemos que ele optou por sair da obscuridade e vir
literalmente à luz, responsável pelo seu cegamento. Édipo escolhe descobrir quem é,
seja de origem humilde, servil ou nobre ele não poderia permanecer ignorando sua
identidade.
Mesmo no momento mais terrível de sua vida, ele deve ter em suas
mãos a história completa, sem nenhum traço de obscuridade (...) Sua
compreensão do que lhe ocorreu deve ser uma estrutura racional
plena, antes que possa se entregar ao curso das emoções que o
conduzirá à automutilação
447
.
O que aconteceu a Édipo é o resultado de uma maldição endereçada a seu pai,
então seu comportamento não poderia, em princípio, explicar a trama. A peça representa
eventos que não são parte da profecia como um todo, mas fragmentos da mesma
448
. A
questão oracular assume importância crucial para nossa interpretação. Precisamos
447
KNOX, 2002, Op. Cit., p. 14.
448
CAREL, 2006, Op. Cit., p.102.
208
entender a mensagem transmitida pelo poeta ao reafirmar de forma tão categórica a
verdade da profecia.
Édipo violou leis onde a ignorância, de certa forma, não é desculpa
449
.O incesto
representa uma violação na sua forma mais extrema; é um erro, só que no que se refere
ao crime de incesto não existe qualquer relevância para o castigo que Édipo tenha
ordenado contra o assassino de Laio. Afinal, não era um crime de incesto a ser
investigado. Por isso, no primeiro reconhecimento, quando Jocasta descreve detalhes do
assassinato de Laio, ele fala da possibilidade de ser o assassino, mas a respeito do
incesto, compreendido pela profecia oracular, não existe nada. Daí, a punição decretada
para o crime de incesto não se encontrar bem delineada no texto. Além disto, a cidade
não padece, pelo menos diretamente, pelo crime de incesto. Segundo o oráculo trazido
por Creonte, se a cidade padecia, era devido ao assassinato do antigo rei.
Em seu último lamento, ele fala da encruzilhada onde ele cometeu um delito,
onde manchou as mãos com o sangue paterno e, em seguida, que chegou a Tebas e
desvendou o segredo da Esfinge – circunstância crucial para fazer cumprir seu destino e
casar com a mãe, sem nada perceber ou suspeitar. O poeta, contudo, não inocenta
Édipo, mas atesta sua ignorância. Não foi um crime premeditado, foi um ato impulsivo,
se prestarmos atenção ao seu relato.
1455Καίτοιτοσοῦτόνγ´οἶδα,μήτεμ´ἂννόσον
μήτ´ἄλλοπέρσαιμηδέν·οὐγὰρἄνποτε
θνῄσκωνἐσώθην,μὴ´πίτῳδεινῷκακῷ
Édipo: Mas direi: nem me arruinará doença,
nem outra causa. Antes, quase morto,
se eu me salvei, foi para um mal terrível.
vv. 1455-1457
A sobrevivência de Édipo é questionada. Escapar com vida não fora um bem,
mas o que possibilitou a realização de um mal. Toda a dramaticidade da história de
449
CARAWAN, 1999, Op. Cit., p. 118.
209
Édipo se desenrola a partir da chegada do Mensageiro de Corinto. Todo o desastre da
vida de Édipo se desencadeia e ele se sente sem chão. Não restava apenas desvendar e
provar a própria inocência, ele precisava antes de tudo descobrir quem era. O
Mensageiro traz a notícia da morte de Pólibo. Jocasta enche-se de júbilo porque o
oráculo fracassou, aos seus olhos, uma segunda vez, reafirmando que são apenas
conjecturas sem fundamento. Jocasta acreditava piamente que o servo cumprira a
obrigação que lhe fora ordenada matando a criança que traria maldição a sua casa, ou
seja, ela desconhecia que o servo incumbido de matar o pequeno Édipo, simplesmente o
doara a outro, acreditando, por sua vez, que jamais a verdade viria à tona. Por um lado,
Laio nunca reconheceria a verdade oracular.
Portanto, gostaríamos de apresentar uma hipótese para o tema da hamartía
propondo que a hamartía não seria exclusivamente de apenas uma das personagens. Se
pensarmos que a hamartía não é privilégio apenas da personagem central,
localizaríamos a falta trágica em outras personagens. A própria peça nos fornece
elementos importantes e que sustentam esta visão, mesmo se levarmos em conta que a
falta trágica pode se encontrar fora do enrendo representado. Em primeiro lugar,
retornaremos à previsão incondicional feita a Laio, afirmando que seu próprio filho
seria seu algoz e se casaria com a mãe; mas Laio engravidou Jocasta; ambos, temerosos
do oráculo, decidiram matar a criança, mas incumbiram outro de fazê-lo, não prevendo
que este poderia não levar adiante a missão; o responsável para matar a criança se
apieda da mesma e a entrega a outro julgando que ninguém nunca saberia do ocorrido; o
menino é criado como filho legítimo pelos reis de Corinto, e, segundo o próprio Édipo,
durante uma festa, um bêbado o chamou de bastardo. Contrariado, questionou os pais
sobre a possibilidade de não ser filho legítimo. Estes o tranqüilizaram, porém, ele não se
convenceu e foi a Delfos buscar a verdade sobre sua origem.
210
Não obstante, ele não encontrou a resposta que procurava, mas recebeu um
oráculo nefasto dizendo que ele mataria o próprio pai e casaria com a mãe, dando
origem a uma prole amaldiçoada. Assustado, e temendo a realização do vaticínio, ele
fugiu. Mas, quando Édipo resolveu investigar a sua ascendência, não investigou
criteriosamente
450
. Ou seja, a ilusão dele sobre a identidade de sua família é fatal para o
desencadeamento de suas ações. Ele desejava evitar a realização do oráculo, e é
justamente quando ele tenta fugir do vaticínio que ele engendra o mecanismo que o
conduz ao seu derradeiro destino.
Numa encruzilhada, ele entra em conflito com um velho em idade para ser seu
pai e o mata, depois, ao chegar a Tebas, valendo-se de sua inteligência singular,
desvenda o enigma da Esfinge e torna-se um herói. Provavelmente feliz, ele deixa de ser
um exilado e casa-se com uma mulher em idade para ser sua mãe, a rainha viúva de
Laio, tornando-se o grande rei e salvador de Tebas até que se descobriu o contrário do
que acreditava ser. Ironicamente, todos estes elementos encontram-se fora da peça
enquanto ação, mas provocam um elo causal que culmina na revelação da verdade.
Estes elementos, alguns esquecidos e guardados na memória por anos a fio, são
resgatados através da investigação empreendida por Édipo.
O processo de rememoração reforça nossa crença neste desejo pelo ato de
lembrar. Que memória é esta que eu quero contar ou quero que seja contada a meu
respeito no futuro? Édipo teme a memória que será perpetuada a seu respeito, agora que
ele sequer sabe quem é ou de onde veio. Assim, ele rejeita este tipo de verdade pessoal
mais ilusória que verdadeira e precisa seguir adiante para elucidar o grande enigma de
sua vida.
450
Édipo Rei, Cf., vv. 779-797.
211
É pelo fato de a ação ser um erro por ignorância que nos sentimos tocados pela
história de Édipo. Segundo Dodds, se ele tivesse agido deliberadamente sua ação seria
desumana e terrível demais, mesmo para os olhos e ouvidos dos espectadores daqueles
tempos. A hamartía de Édipo, de acordo com a interpretação do autor, não reside em
seu temperamento tempestuoso e inflamado contra Tirésias e nem em seu conflito
contra Creonte, sua falta é principalmente colocada no parricídio e no incesto, os
maiores erros que um homem poderia cometer
451
. Mas é a descoberta da verdade que
desencadeia a cena de reconhecimento e a reviravolta da fortuna. Ou seja, sem o
reconhecimento Édipo morreria ignorante, e quem sabe terminaria seus dias feliz.
A peça, mais do que encenar uma hamartía, trata da descoberta de uma hamartía
que é sustentada por outros pequenos erros, e como esta pode indefinidamente trazer a
infelicidade aos que se deixam conduzir pelo acaso deixando de ser vigilantes.
451
DODDS, 2002, Op. Cit., p. 40.
212
CAPÍTULO III
A HAMARTÍA EM ÉDIPO
1. Hamartía, (in)felicidade e reviravolta em Édipo Rei
A hamartía possui um papel significativo no desenvolvimento do ideal trágico.
Seja a catástrofe conseqüência ou não da hamartía, seja o homem vítima ou não do seu
próprio erro trágico ou de um alheio, seja a intervenção divina fator de reposição ou não
de justiça, a perspectiva em que tais preceitos são enunciados e desenvolvidos, no ponto
de vista de Aristóteles, é permanentemente situada no humano. E o herói, através de sua
própria característica de humanidade, está fadado ao fracasso. A tradição aristotélica
enfatiza aspectos ainda comuns ao discurso trágico e, com efeito, dentre os que se
sobressaem temos os critérios que definem a figura do herói trágico ideal e a prática da
hamartía.
A tragédia Édipo Rei, por um lado, demasiado clara, por outro, incompreensível,
é o exemplo mais citado na Poética. A peça nos oferece olhares múltiplos aos diferentes
tipos de hamartía, ao mesmo tempo em que exclui possibilidades de a identificarmos
com segurança. Em uma peça tão singular, seria impossível sugerir um único centro ou
um ponto focal para a compreensão da falta trágica nos moldes estabelecidos por
Aristóteles, porém, poderíamos inferir que a ação trágica pode se encontrar fora da
trama ou mesmo no momento presente ao atentarmos para detalhes sugestivos no
decorrer do texto. De outra maneira, seria possível identificarmos qualquer hamartía.
Édipo é um líder honesto lutando para libertar Tebas da praga. Encontrar o
assassino de Laio – ordem do oráculo de Delfos – e descobrir a verdadeira origem não
são erros substanciais. Não faz sentido dizer que Édipo é punido por uma transgressão
213
ao almejar e descobrir a verdade
452
. E não nos contentamos em considerar o incesto e o
parricídio, que são extracênicos, como suas faltas clássicas e, por ventura, mais
facilmente aceitas. O caráter de Édipo é complexo e realista, ele responde humana e
corajosamente aos eventos e não se comporta de maneira que pareça substancialmente
falho. Ele não pode ser imaculado, pois correria o risco da platéia sentir-se em estado de
choque perante os eventos, ele é falho no sentido de que sua intemperança, mesmo a
representada fora da peça, leva-o a cometer erros – assassinar o velho e sua comitiva na
encruzilhada.
Sófocles recusa-se a dar uma resposta plausível ao tema da falta trágica de
Édipo, ou talvez, nós nos recusamos a enxergá-la. Para Aristóteles a resposta é óbvia: os
crimes de Édipo são o incesto e o parricídio, não intencionais e cometidos na
ignorância
. Teria sido melhor que Édipo não descobrisse a verdade e se deixasse
convencer por todos que o incentivaram a cessar a busca? Tudo teria terminado bem?
Do ponto de vista da cidade, ou do coletivo das pessoas, a resposta é não. A peste, a
miséria e a desolação só teriam fim se a verdade aparecesse. Do ponto de vista
individual de Jocasta, que vivia maritalmente com Édipo sem qualquer desventura que a
incomodasse, a resposta é duvidosa. Por outro lado, em relação a Édipo, em
determinado momento, a ignorância era o êxtase que o cegava.
Édipo não cometeu nenhum ato duvidosamente moral ao insultar Creonte e
Tirésias, parece-nos natural o que ele fez com eles tendo em vista as circunstâncias. A
disparidade entre a responsabilidade das ações e suas conseqüências imprevistas é
notória e tal situação nos comove. A peça expressa a tensão entre a vontade de Édipo,
enquanto livre, e as conseqüências que ele não poderia prever: deliberadamente ele
452
CAREL, 2006, Op. Cit., p. 101.
214
matou um homem em idade para ser seu pai e casou com uma mulher em idade para ser
sua mãe, agindo involuntariamente contra seus verdadeiros pais.
Mesmo as profecias não representam o destino puro e simplesmente. Elas são
elementos parciais mais do que causais das ações de Édipo. Por isso não podemos
excluir Édipo da responsabilidade por seus atos. Apesar de ignorar a verdade sobre seu
passado, ele tentou evitar cometer estes horríveis crimes ao fugir de Corinto, mas os
cometeu.
Na verdade, a situação escapou ao seu controle. Daí ele não deveria ser
considerado responsável pelo que estava além do seu alcance: conhecer a sua verdadeira
identidade e a dos seus pais, mas eticamente cometeu erros imperdoáveis. O assassinato
do pai e o incesto com a mãe foram involuntários mas, se quisermos considerar o extra-
cênico uma possível resposta ao nosso dilema, concordaríamos com Aristóteles e
determinaríamos que esta fora a hamartía de Édipo. Não obstante, gostaríamos de
propor que existe uma rede de ações que compõe toda uma engrenagem que, se evitada
a tempo, não possibilitaria a ação de Édipo. Esta possibilidade nos levaria a pensar na
partilha da responsabilidade trágica desviando o erro como ação derivada apenas da
personagem principal. Isto quer dizer que, se Laio não tivesse engravidado Jocasta, se
esta tivesse sofrido um aborto, se o servo tivesse cumprido a tarefa e deixado o menino
à mercê da morte, se Édipo não tivesse dúvidas da sua origem, se seus pais adotivos
tivessem lhe falado a verdade e se ele não tivesse fugido, talvez, tudo pudesse ter sido
evitado. Ou seja, a má sorte em torno das decisões das personagens, interna ou
externamente à peça, foi crucial para o desfecho da tragédia.
Certamente não teríamos uma tragédia, caso estas ações tivessem sido evitadas.
Todas as ações têm uma razão e conseqüentemente apontam para uma necessidade vital
ao enredo. Fazemos este resgate para propor uma visão amplificada da ação trágica
215
como se esta fosse um mecanismo que precisasse de todas as peças, no caso as ações,
para fazer a tragédia acontecer. Eis que a ação incestuosa e o parricídio dependiam de
que outros também ignorassem eventos importantes do passado e tivessem, de certo
modo, ignorado algumas ordens ou aconselhamentos. As personagens, de maneira
indireta ou não, se decepcionaram com a intenção de suas próprias ações
453
.
A ambigüidade gerada pela peça não é uma incapacidade temporária de
julgamento, mas consiste principalmente em fatos desaparecidos, esquecidos e em uma
linguagem obscura. Como um homem inteligente, vivamente consciente de sua
linhagem, compreenderia o significado dos oráculos? É possível que Édipo tenha se
esquecido do oráculo agourento quando ele se casou com uma mulher mais velha que
ele e matou um homem em idade para ser seu pai, como também é possível que ele
tenha realmente sido genuinamente ignorante e inocente destes fatos. A natureza do
conhecimento de Édipo é um elemento vago na trama. Mas esta imprecisão tem sido
interpretada como uma indicativa da completa ignorância de Édipo e, por isso, como
causa possível da realização de ações culpadas
454
.
Mesmo que o inocentássemos como um agente que paga por um erro que ele
cometeu por desconhecimento, pensar que Édipo é totalmente ignorante do real
significado de suas ações cria lacunas e incoerências. Ele foge de Corinto, depois de
ouvir um oráculo, sem esclarecer as dúvidas que o assaltavam sobre sua origem. Na
verdade, ele buscava outras respostas, das quais não ouviu sequer menção. O oráculo
453
Jocasta se decepcionou em relação ao assassinato do filho, mesmo que o reconhecimento de Laio não
seja representado; o pastor que salvou a vida do menino acreditando que ninguém descobriria seu ato de
desobediência viu seu ato sendo revelado; o mensageiro de Corinto que revelou a verdade a Édipo
acreditando que assim livraria-lhe da angústia viu-se igualmente frustrado. Mesmo Édipo, em relação a si
próprio, quando acreditava ser infalível, afortunado e feliz, frustrou-se.
454
CAREL, 2006, Op. Cit., p. 105.
216
nada diz sobre seus verdadeiros pais, mas que contra eles Édipo cometeria atos absurdos
e nefastos: mataria o pai e casaria com a mãe
455
.
Quanto mais equivocado um personagem estiver a respeito de si,
quanto mais submerso nas aparências, mais o papel da
τύχη
será o
de evidenciar sua verdade existencial. (...) Nenhum outro personagem
encontra-se tão enganado a respeito de si quanto Édipo no início da
trama, assim como nenhum outro sofrerá revés maior da sorte
456
.
Ele é atingido pela reviravolta do destino e os versos finais cantam a falibilidade
humana. Nos versos 1524-6, o coro caracteriza Édipo antes da série de desastres que
transformaria sua vida numa seqüência de horrores. Chamado de o mais poderoso dos
homens, o rei de Tebas, digno de inveja, agora reduzido ao mais miserável, serve de
paradigma aos que acompanharam sua triste trajetória:
{ΧΟΡΟΣ}ὮπάτραςΘήβηςἔνοικοι,λεύσσετ´,Οἰδίπουςὅδε,
1525
ὃςτὰκλείν´αἰνίγματ´ᾔδεικαὶκράτιστοςἦνἀνήρ,
οὗτίςοὐζήλῳπολιτῶνἦντύχαιςἐπιβλέπων,
εἰςὅσονκλύδωναδεινῆςσυμφορᾶςἐλήλυθεν,
ὥστεθνητὸνὄντ´ἐκείνηντὴντελευταίανἰδεῖν
ἡμέρανἐπισκοποῦνταμηδέν´ὀλβίζειν,πρὶνἂν
[1530]
τέρματοῦβίουπεράσῃμηδὲνἀλγεινὸνπαθών.
Coro: Olhai o grão-senhor, tebanos, Édipo,
decifrador de enigmas insigne. Teve
o bem do Acaso – Týkhe -, e o olhar de inveja
de todos. Sofre à vaga do desastre.
Atento ao dia final, homem nenhum
afirme: eu sou feliz!, até transpor
– sem nunca ter sofrido – o umbral da morte.
vv. 1524-1530
Os versos despertam em nós a sensação de uma existência fadada ao sofrimento
e ao fracasso, retratam a possibilidade sempre presente do desastre. Édipo é o exemplo
máximo do sujeito que falhou e caiu sem desejar, que ignorava acreditando que tudo
sabia. Os reveses da sorte atingem, em particular, aqueles que, seguros de si, se
vangloriam do que são e da condição que possuem. Édipo é considerado como o homem
do conhecimento, o grande solucionador de enigmas – designação adequada ao tema do
455
CAREL, 2006, Op. Cit., p. 106.
456
FRANCISCATO, Maria Cristina Rodrigues da Silva. τχη e Caráter de Hipólito em Eurípides. Tese
apresentada ao programa de pós-graduação em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo : São
Paulo, 2006, p. 266.
217
conhecimento e do autoconhecimento que respaldam a peça -, conhecimento que o
levou a tornar-se rei. Ele presidiu a investigação sobre a morte de Laio conduzindo a si
mesmo ao infortúnio. Apesar de ser reconhecidamente o mais poderoso dos homens e
digno de inveja, reduziu-se ao mais indigno deles. O coro canta o horror do existir se
apropriando de uma vívida metáfora: a onda de desastres que recaiu sobre o herói.
Simplesmente viver torná-se o suficiente para que a vida humana seja tomada pelas
ondas do sofrimento tal como acontecera a Édipo. É necessário esperar o fim da vida
para que alguém se vanglorie da felicidade. Nada que é humano é estável. Nem os
desígnios divinos são claros. O Coro, ao final, fala das reviravoltas da fortuna a que o
homem está sujeito, do quão instável é a vida.
Um oráculo ordenou que se fizesse uma investigação para desvendar a causa de
tanto sofrimento para os tebanos. O motivo relacionava-se ao assassinato de Laio e o
assassino deveria ser descoberto e severamente punido. Os tebanos solicitaram a ação
do rei como legítimo salvador. Édipo, o mais poderoso e sábio dos homens, o homem
do conhecimento, que solucionou o enigma da Esfinge, é conclamado o salvador. Mas
sua queda deveu-se justamente ao seu poder de conhecimento. Édipo chegou a rei
devido a sua capacidade cognitiva e também através da sua capacidade de investigação
foi reduzido à miséria absoluta. A ironia consiste especialmente na concepção que se
tem do valor do conhecimento na vida humana. Em Édipo Rei o êxito do
autoconhecimento é simultaneamente o seu fracasso.
A partir desta perspectiva é plausível pensar que a hamartía em Édipo Rei tenha
relação com a falta por ignorância ou por desconhecimento. Porque desejava conhecer
para além do que verdadeiramente conhecia, ou deveria saber, é que ele se
autodescobriu e revelou a verdade sobre si mesmo, sobre o assassinato de Laio e o
casamento com a própria mãe. Ele acreditava que possuía uma sabedoria acima da
218
média, o que é verdade. Mas mesmo o mais sábio dos humanos não pode saber tudo. O
humano não é capaz de tudo reter e muito menos articular uma inteligência infalível,
demonstrar uma prudência inabalável
457
. Descobrir-se fraco é descobrir-se perecível,
um simples mortal.
Sólon sustentava que só se pode dizer de um homem que ele foi feliz,
depois de morto, pois enquanto viver estará submetido às vicissitudes
do acaso (...). Só pode ser dita feliz a vida subtraída às incertezas do
futuro, para nós oculto, (cf.Ájax, v. 1418-1420) a vida transformada em
destino pela morte
458
.
Pode o homem julgar-se feliz antes de chegar ao termo sua vida? A máxima do
Sólon de Heródoto nos mostra que a garantia da felicidade plena é atingir a morte antes
de qualquer sofrimento. Sófocles resgata a idéia de que a felicidade pode ser perdida
mesmo antes da morte e Aristóteles retorna, subjetivamente, ao tema quando fala da
reviravolta da fortuna. Segundo os versos, a felicidade, em sua plenitude, depende antes
da morte que da vida, pois enquanto estivermos vivos estamos à mercê da sorte, ou pior,
somos propensos a agir de tal maneira que a nossa ação, ela mesma, poderá ser a
responsável por nosso infortúnio, mesmo que o objetivo desta ação seja honesto
459
. Se a
ação do herói serve-nos de paradigma para a ação a ser evitada na vida real, e se a
felicidade é o “fim” da vida, faz sentido pensarmos que estes erros que nos conduzem à
infelicidade devem ser evitados.
A partir dos versos, poderíamos concluir que a principal característica da
felicidade é a sua instabilidade, pois “o homem não é o mestre de sua própria vida e está
submetido ao acaso
460
”. Ironicamente, no princípio da peça Édipo é considerado o
grande médico que haverá de curar a cidade da praga que a aflige, o grande juiz com
457
Nem sequer poderíamos afirmar que a memória de Édipo encontrava-se perdida num labirinto de idéias
adormecidas, porque em relação ao seu passado, ele possuía uma memória construída, uma história de
genealogia falsa, e não havia qualquer possibilidade de lembrança, dada sua pouca idade.
458
AUBENQUE, 2003, Op. Cit., pp. 129-130. (cf. Ésquilo – Agamêmnon, v. 928; Sófocles – Édipo Rei, v.
1528-30; As Traquínias, v. 1-3; Eurípides, Andrômaca, v. 100).
459
É claro que numa situação de morte horrível a máxima poderia sofrer alguns questionamentos.
460
AUBENQUE, 2003, Op. Cit., p. 137.
219
poder de discernimento e capacidade de julgar infalíveis, o árbitro da situação, o grande
rei mediante o povo, um homem feliz e afortunado; no final ele é o enfermo que infesta
a pólis com sua pestilência; é o réu que deverá ser julgado e punido; é o desterrado e
mendigo; é o rei que foi destronado, é o infeliz e desafortunado.
Na peça, poderíamos pensar a falta trágica de Édipo concentra-se no incesto e
parricídio; ou que a grande falta gira em torno de um erro de cálculo, de interpretação,
por ignorância ou desconhecimento vinculando esta hamartía, principalmente, à
desmedida, à cegueira e à impiedade como falhas representadas na peça. Mas, em que
sentido podemos sustentar e fundamentar estas novas ocorrências? De que maneira a
desmedida, à cegueira e à impiedade poderiam ultrapassar em termos de valor e
substância o incesto e parricídio que ocorreram num passado distante e são extra-
cênicos como a hamartía de Édipo? Para respondermos a esta questão delinearemos de
maneira objetiva alguma das cenas em que encontrarmos estas ocorrências.
1.2. A hamartía entre a áte, a hýbris e a asébeia
As ações referenciadas no quadro não são grandes hamartías, mas poderiam ser
erros comuns e correspondentes, em maiores ou menores dimensões, às definições
aproximadas do termo
461
. Neste sentido, poderíamos acreditar e até mesmo ousar
apontar as diversas possibilidades para as hamartías de Édipo na peça, associando-a aos
erros de outras personagens.
461
Estamos mais propensos a aceitar o erro por ignorância como nosso eixo principal para construção
deste quadro. Vale ressaltar que acompanha o erro por ignorância a designação de voluntário,
involuntário e contravoluntário discutidos no segundo capítulo. Construímos este quadro a partir das
principais defições para a hamartía tentando localizar no texto da peça Édipo Rei, situações que pudessem
se aproximar do termo e que nos levasse a refletir sobre as múltiplas possibilidades para as falhas que
mobilizam o acontecer trágico.
220
Quadro de reconhecimento dos atos de Édipo e – ou personagens secundárias - que se aproximam
do conceito de hamartía
462
Versos Ação Agente Pessoa
sobre quem
age
Finalidade Resultado Designação da ação
131-46 Promulgar a
investigação
sobre o
assassinato
de Laio.
Édipo Assassino de
Laio.
Salvar a
cidade e
vangloriar-
se.
Salvou a
cidade, mas
arruinou-se.
Ação voluntária com
resultado
involuntário. Erro de
Cálculo.
216-75 Édito ou
Decreto
Édipo Assassino de
Laio e
possíveis
cúmplices
Punir o
assassino e
cúmplices.
Punir a si
mesmo.
Erro de Cálculo e
Desconhecimento.
Ação voluntária com
resultado
involuntário.
325-379
1º.
Episódio e
2º. M.C
Discussão
com
Tirésias.
Édipo é
tomado pela
ira.
Édipo Tirésias Extrair a
verdade do
adivinho
julgando-o
um traidor.
Descobre-se
o criminoso.
Erro de interpretação.
429-42
1º. Ep. 2º.
M.C
Continuação
da discussão
com
Tirésias.
Édipo Creonte e
Tirésias
Provar a
culpa de
Tirésias e
Creonte
Provou a
própria
culpa.
Erro por ignorância.
532-560 Discussão
com
Creonte.
Novamente
Édipo é
tomado pela
ira.
Édipo Creonte Culpá-lo
pela morte
de Laio e
usurpação
do poder.
Provou a
inocência de
Creonte
Erro de julgamento
561-630 Continuação
da discussão
com
Creonte.
Édipo Creonte Punir
Creonte por
crime de
traição
Provou a
inocência de
Creonte
Erro por ignorância.
707-770 Descrença
nos oráculos
Édipo
Jocasta
Oráculos
Divindade
Provar a
falsidade
dos oráculos
Provam a
verdade dos
oráculos
Erro por ignorância e
desconhecimento
463
.
771-862. Relato de
Édipo sobre
a sua
trajetória e
história de
vida.
Édipo Sobre si
mesmo
Provar a
inocência
Prova a
própria
culpa
Erro por ignorância
464
462
Através do esquema de Munõz resgataremos algumas cenas da peça e construiremos uma cadeia de ações
realizadas por Édipo delineando uma possível falta trágica. Cf. Capítulo I da dissertação, pp.46-49. Ao
considerarmos a definição de Aristóteles para a hamartía como uma falta que provoca a reviravolta da
fortuna, poderíamos concluir que os erros mencionados neste quadro são erros que provocariam a passagem
da felicidade à infelicidade?
463
Não houve erro de interpretação porque os oráculos não foram mal interpretados, eles entenderam a
mensagem, só não sabiam exatamente das circunstâncias no entorno das ações que executavam, de modo
que cabe melhor designarmos a ação como erro por ignorância.
464
O relato de Édipo apresenta algumas questões importantes: em primeiro lugar, dos versos 771 a 883 ele
fala da sua linhagem e que, acusado de ser um bastardo, procura investigar a própria origem. Ao tomar
ciência que seria parricida e incestuoso, foge. Aqui ele comete o primeiro erro por ignorância, pois ignorava
que Pólibo e Mérope eram seus pais adotivos, excluindo, assim, certa possibilidade dele cumprir o oráculo
caso permanecesse junto deles. No caminho ele defronta-se com um estrangeiro que o ofende, na retribuição
221
848-858 Desafiar os
oráculos.
Jocasta Oráculos
Divindade
Provar que
são falsos,
ainda que
Édipo seja o
assassino.
Provou que
eram
verdadeiros
que Édipo
apenas não
era o
assassino
como seu
filho.
Erro por ignorância
945-973 Mensageiro
revela que
Édipo é
adotivo
465
.
Mensageiro
Édipo Aliviar o
coração de
Édipo
Transtorna
Édipo
Erro de cálculo
1054-1085 Investiga a
própria
origem e
questiona
Jocasta.
Édipo Jocasta Investigar a
própria
origem:
humilde,
divina ou
nobre.
Descobre-se
filho de Laio
e Jocasta –
parricida e
incestuoso.
Erro de interpretação
da reação de Jocasta
que implorava que
ele não prosseguisse
investigando.
1110-1180 Revelação
do Pastor.
Pastor Édipo Salvar o
menino no
passado
Destruí-lo
no presente.
Erro de cálculo.
Idem Inquirição
agressiva em
relação ao
Pastor
Édipo Pastor Descobrir a
verdade
sobre sua
origem.
Ele
descobriu
quem era.
Descobriu que
cometeu um erro por
ignorância, embora
voluntário, com
resultado involuntário
– contravoluntário.
Em primeiro lugar temos representado nos versos 131-46 um erro de cálculo,
mesmo que este exemplo inicial possua algumas complicações naturais, tais como a
ausência da palavra hamartía ou suas cognatas. Não obstante, temos uma ação que
possui um determinado objetivo e cujo resultado, pelo menos em parte, é o contrário do
desejado pelo agente. Apesar de confirmarmos a nobreza dos propósitos, os resultados
são adversos; as verdadeiras intenções e desejos não são alcançados por Édipo em sua
totalidade, pois ele agia não apenas em prol da cidade, mas em próprio benefício.
Analisando os versos, Édipo descobriu a verdade sobre o assassinato de Laio e
lançou luz sobre si mesmo. O elemento inesperado é o desvelamento da origem do mal
desta ofensa ele o mata e também ao séqüito. Contudo, ele ignora que matara o pai. Ele matou um homem
voluntariamente, porém, involuntariamente matou o próprio pai, sem o saber. Talvez, se ele soubesse deste
detalhe, faria diferente, o que contribui para pensarmos sua ação enquanto erro contravoluntário.
465
Apenas através da revelação do Mensageiro Édipo pode descobrir quem era, melhor dizendo, a morte de
Pólibo é estranhamente conveniente para a revelação da verdade, assim como também é coincidente que o
mensageiro de Corinto e o Pastor do passado conheçam detalhes da história que não fazem parte do
repertório de Édipo.
222
que atinge a cidade. Afirmar que obteria a verdade nunca nos pareceu tão verdadeiro em
relação ao alcance das intenções de Édipo, porém ele desejava consagrar-se como
benfeitor insuperável e descobriu-se o contrário daquilo que imaginava ser. O seu
desejo era evitar a desertificação da pólis, se consagrar como o grande benfeitor, amado,
bem sucedido e poderoso e descobriu-se o malfeitor, digno de ser detestado,
desprezado, mal sucedido, fracassado.
Na apresentação de Sófocles é ingenuidade acreditar que desvendar o enigma da
Esfinge é um feito digno de admiração. A indagação da Esfinge cantava uma cilada. É
ingênuo, ou irônico, o coro que, grato pela salvação momentânea, jura a Édipo sua
fidelidade e gratidão. Édipo foi ingênuo quando acreditou que este feito comprovava
sua “grandeza”. Tirésias conhecia a verdade e sabia que esta felicidade era ilusória e
retrucou que precisamente este dia representaria a reviravolta da fortuna. Tirésias não
queria simplesmente afirmar que o desvendamento do enigma da Esfinge representou o
casamento com a mãe e a consumação do incesto, mas a reviravolta da fortuna em si
mesma.
Foi a agilidade intelectual de Édipo (Cf., v. 441) que, de certo modo,
o destruíra: por ter decifrado o enigma da Esfinge, casou-se com a
mãe e nela gerou filhos; busca agora decifrar a morte de Laio. Mas,
embora se acredite grandioso em sua capacidade intelectual, erra
reinteradamente ao interpretar, com arrogância, as evidências contra
ele. Por outro lado, não desistirá até decifrar o próprio enigma e nisto
será, de fato, bem sucedido
466
.
Um homem degredado pela própria vontade, vagando, chegaria a uma cidade
onde por seus méritos tornar-se-ia rei e, portanto, o responsável pelo cumprimento da
lei. Esta responsabilidade o forçou a procurar a verdade. Édipo solucionou o enigma e
se orgulhava disto, soube o que nenhum outro homem sabia. Esta irrisória ilusão pode
nos parecer banal, mas é de grande importância para a mensagem que a peça quer
466
FRANCISCATO, 2006, Op. Cit., p. 268.
223
transmitir. Se o feito de Édipo era o contrário do que julgávamos ser, a sua ação em si
mesma era o princípio da realização de sua desgraça pessoal e da cidade.
Enquanto erro de julgamento, ele se considerava infalível e conhecedor de
enigmas, mas ele não enxergava sua verdadeira condição. Ele se julgava feliz após a
descoberta do enigma da Esfinge porque encontrou um lugar para morar, ser rei,
constituir família. Não obstante, tudo que conquistou deveria lhe ser proibido sob pena
de sofrimento maior.
Por um lado, seu erro por desconhecimento revela-se mais amplo. Neste ponto
nos remeteremos ao famoso pronunciamento de Édipo. No final do prólogo ele convoca
o povo tebano a ouvir seu pronunciamento. No início do primeiro episódio, temos um
homem grandioso que promulga a punição contra o assassino de Laio. A ação de Édipo
é voluntária, mas também teremos uma ação cujo resultado será o contrário do desejado.
É certo que ele descobrirá o nome do assassino, porém, em virtude da própria ameaça
contida em seu pronunciamento, sabemos que Édipo ignorava ser o assassino do antigo
rei. Não poderia haver, neste sentido, ironia pior. Acaso suspeitasse da própria culpa,
certamente, ele não teria ousado lançar contra o assassino uma penalidade tão severa
467
.
Teríamos uma ação voluntária, mas ao mesmo tempo um erro de cálculo, uma falta por
desconhecimento com resultado involuntário.
Os pequenos equívocos de Édipo prosseguem, por assim dizer, como uma reação
em cadeia. Mesmo sua reação perante o adivinho Tirésias configura-se como um erro de
julgamento. Afinal ele julgou erroneamente as palavras do adivinho. O que também se
revela um erro por ignorância, pois ele não sabia quem era, o que fez, onde estava. Para
compreendermos a peça no sentido que desejamos empreender, devemos resgatar o
episódio que, em primeiro lugar, faz alusão à falta trágica de Édipo, mesmo que no
467
FIALHO, 1992, Op. Cit., p. 72.
224
campo extra-cênico. Vamos analisar a questão a partir de três vieses: Laio foi morto por
Édipo; Édipo era filho de Laio; Édipo vivia em regime matrimonial com a própria mãe.
Tudo poderia ser apenas uma terrível calúnia, mas o adivinho avisa que ele não enxerga,
não sabe onde vive, com quem vive, nem quem o gerou e muito menos o que fez.
Tirésias é um adivinho conhecido por sua competência e esta característica o investe de
grande autoridade, assim, suas palavras não poderiam cair no total descrédito sem uma
averiguação detalhada. A atitude de Tirésias não foi uma afronta à autoridade de Édipo,
embora compreendida por este desta maneira. Também não foi uma atitude perversa em
relação ao herói, tão somente correspondeu a um impulso motivado pelo próprio Édipo
em tirar a verdade do adivinho. Ao sair do palco, Tirésias deixa o coro perplexo e
Édipo, que se defronta com enigmas tão ou mais obscuros que o da Esfinge, continua
sem compreender o que se passa.
Convicto de que a única explicação converge na direção de uma trama política,
ele continua irritado. A princípio, as dúvidas de Édipo encontram-se fundamentadas em
boas razões: afinal por que Tirésias não revelou a identidade do assassino de Laio
quando o assunto foi abordado pela primeira vez? O próprio Creonte responde que não
sabe, Édipo conclui que se o crime não foi investigado é porque, sendo Creonte o
assassino, este seria descoberto e punido. Não obstante, ninguém na peça questiona
porque Édipo nunca investigou a morte do antigo rei.
A cena detém-se em torno do valor do conhecimento. O autoconhecimento de
Édipo o teria ajudado a evitar suas terríveis ações, ou seja, ciente da verdade sobre si
mesmo, do seu parentesco com os reis de Tebas, provavelmente, ele não teria cometido
o incesto e o parricídio, tendo em vista que esta era sua vontade, ou não teria fugido de
Corinto com esta intenção.
225
O público compreende que, ao ser tirado de casa desde o nascimento, nunca
tendo visto o homem que ele matou na encruzilhada, não teria condições de reconhecê-
lo como seu pai. Em contrapartida, também não poderia ter reconhecido em Jocasta sua
mãe. Além disso, a própria descrição do assassinato não lhe dava indicativas
sustentáveis de que o homem que ele matou na encruzilhada, o rei de Tebas e o seu pai
eram a mesma pessoa.
Ele cresceu como filho legítimo de Políbio e Mérope e não havia motivo para
duvidar. Quando o bêbado pôs à prova sua filiação, como confirmar a verdade do
boato? Imediatamente, ele buscou a confirmação dos pais. Através da declaração destes,
seria provável que Édipo se contentasse e desse o assunto por encerrado, mas,
descontente, ele procurou esclarecer os fatos com o oráculo de Delfos. A resposta
obtida, pouco esclarecedora, motivou seu auto-exílio. Levando-se em conta que Édipo
amava seus pais adotivos e estes o amavam tal qual um filho, ele sofreu a amargura de
separar-se deles e descobriu que esta separação fora desnecessária, pois os mesmos não
eram seus pais verdadeiros. Por um lado, também Jocasta permitira a morte do filho
inutilmente.
Furioso com a acusação de Tirésias, ainda conduzido pela ira, Édipo voltou-se
contra Creonte e julgou-o culpado. Na verdade, apesar do cálculo de Édipo parecer
coerente com o que se passava, ele não baseou sua conclusão em fatos concretos. Ele
tinha uma suspeita contra Creonte e quer, imediatamente, puni-lo pelo crime de
assassinato e complô político sem o devido inquérito. Atentos à considerável
imprudência da ação de Édipo nesta cena, os trâmites em torno dos limites do
conhecimento e da habilidade investigativa são postos à prova.
O próprio Creonte salientou que não existiam razões para usurpação do poder,
tendo em vista que este é partilhado. Ele apelou à sensatez de Édipo e demonstrou que
226
não é justo agir deixando-se levar pelas afirmações incertas. Teríamos então, nesta cena,
um erro de julgamento e por ignorância. Ao mesmo tempo, Édipo estava prestes a
cometer uma grave injustiça se realmente condenasse o cunhado à morte, pois este era
inocente. A chegada de Jocasta amenizou o confronto e ela conseguiu convencer Édipo
a poupar Creonte. A cena demonstra que Édipo possui um temperamento impulsivo.
Uma dose de orgulho e arrogância não poderia ser descartada, porém, não acreditamos
que este fator, em específico, seria decisivo na realização de seu destino.
O avanço das cenas torna a situação mais dramática. A entrada de Jocasta
apresenta-nos um dos momentos mais polêmicos da peça: os prenúncios da asébeia.
Teríamos o que poderíamos chamar simultaneamente de erro por ignorância ou
desconhecimento. Neste pressuposto, englobaremos desde a cena na qual Jocasta tenta
convencer Édipo de que os oráculos não são dignos de confiança, o relato de Édipo
sobre sua trajetória até chegar à Tebas, a confirmação de Jocasta de que os oráculos não
merecem crédito. Mas o erro não se encontrava na relação entre os deuses e o profeta,
mas na relação entre os profetas e os homens
468
.
A questão oracular justifica os acontecimentos que serão representados em
seqüência linear até a descoberta da verdade e o regresso ao passado. Teríamos por
parte das personagens a representação de uma asébeia clara e simples. A asébeia
(impiedade) seria uma espécie de audácia contra a divindade, que consistia em omissão
em participar nos serviços e nos sacrifícios divinos, representando ateísmo contra a
religião. Honrar os deuses é ser piedoso e cumprir com uma obrigação ritual,
respeitando o que é devido a eles. Desta maneira, sendo piedoso, o cidadão reconhecia a
importância do divino no cotidiano na pólis.
Crer nos deuses” é em grego uma forma banal de reconhecer sua
presença na cidade, sua importância na vida dos homens em
sociedade e, mais particularmente, quando o grupo social se organiza
468
LATTIMORE, 1976, Op. Cit., p. 108.
227
em comunidade política. (...) O “crer”, na ocorrência grega, engloba o
conjunto do que é devido aos deuses: tanto sacrifícios, preces, cantos,
danças, purificações, quanto “ritos”, práticas reconhecidas, conformes
ao que convém dizer e fazer
469
.
Não podemos ignorar que as acusações de asébeia foram freqüentes na Grécia,
condenando qualquer forma desrepeitosa de se dirigir a e conceber a divindade.
Jaqueline de Romilly parece concordar que a questão oracular é muito importante para o
contexto trágico, “até mesmo a forma por que os oráculos acabam por se realizar,
convida a que se inclinem diante da soberania divina
470
”. Assim, Édipo não foi
suficientemente piedoso e nem respeitoso em relação aos deuses.
Honrar os deuses (...) é render-lhes culto: é um crer prático, é um ato
de piedade. Nesse sentido, não “crer nos deuses” é excluir-se da
comunidade dos homens, perder-se na loucura, entregar-se a violento
desregramento. (...) A impiedade é um delito público
471
.
Como se dá a relação entre a hamartía e a asébeia nas atitudes de Jocasta e
Édipo? É, de certa forma, compreensível. A própria descrença em um oráculo, que sem
eles o saberem havia se cumprido, pode configurar-se como uma espécie de hamartía.
Eles temiam que o oráculo se cumprisse e tentaram impedi-lo. A princípio não
poderíamos julgar que eles não acreditavam nos oráculos, simplesmente concluíram que
poderiam se desviar deles. No caso de Pólibo, quando este morreu, Édipo acreditou que
o pai morrera de saudade – conduzindo a interpretação do oráculo noutra direção
472
.
Mas os oráculos não apontavam objetivamente o desenrolar dos acontecimentos,
e, apesar da clareza dos vaticínios
473
, eles exigiam a interpretação dos interessados. Isto
469
DETIENNE, Marcel & SISSA, Giulia. Os Deuses Gregos. São Paulo : Cia das Letras, 1989, p. 204-205.
470
ROMILLY, Jaqueline. A Tragédia Grega. Lisboa : Edições 70, 1997. p, 99. A impiedade é posta lado a
lado com a injustiça: adikia – embora a asébeia seja um ato de desrespeito contra a divindade e a adikía é
contra os homens.
471
ROMILLY, 1997, Op. Cit., pp. 206-207.
472
MUSURILLO, Herbert. “Sunken Imagery in Sophocles Oedipus”. The American Journal of Philology.
Vol, 78, no. 1, (1957), pp. 36-51, p. 48.
473
Devemos levar em consideração que o parricídio e o incesto não fazem parte da encenação, eles são
apenas relembrados. A profecia também aparece como rememoração, lembrança. Todos estes eventos
ocorreram num passado distante e geram desconfiança por parte dos interessados, que acabam por
desmerecê-los.
228
é, o herói trágico tem liberdade de interpretação, seja de forma correta ou errônea
474
. As
palavras de Jocasta exprimem sua rejeição em relação a todas as formas de expressão
oracular. Ela tenta demonstrar, por vias concretas, que os oráculos falharam, pelo menos
no que diz respeito ao antigo rei, por isso, as profecias não poderiam servir de
justificativa para o transtorno que Édipo enfrentava: as palavras de Tirésias contra ele.
Ironicamente, Jocasta fez referência ao flagelo do pequeno filho exposto à morte com os
tornozelos amarrados
475
, portanto, ela tinha provas suficientes de que os oráculos não
interferiam nas questões humanas. Supostamente, ela sequer diferencia a arte profética
divina e a inspirada, ou seja, a arte profética humana. A profecia reservara a Laio um
destino triste, mas ele, como dissera Jocasta, rejeitou este destino para não morrer pelas
mãos do próprio filho. Laio amarrou os tornozelos da criança e ordenou que alguém o
expusesse à morte, mas a exposição, em si, não poderia garantir a morte do garoto. A
atitude de Laio, embora relatada com naturalidade por Jocasta, parece-nos brutal e
insensível. É, de fato, uma ação criminosa e voluntária contra o próprio filho.
Não obstante, ao que parece, ele não conferiu se o objetivo da exposição fora
alcançado. Jocasta reforçou seu argumento pedindo que Édipo não se preocupasse com
os oráculos. Porém, durante seu pronunciamento, a descrição do local da morte de Laio
preocupou Édipo, deixando-o transtornado. Evidentemente, sua memória fora resgatada
e ele poderia ser o assassino procurado com tanta insistência. Apesar da discussão girar
em torno desta proposição, o que realmente pesa em nossa análise é a desvalorização do
oráculo, pois eles não poderiam imaginar que o oráculo havia se realizado.
Tudo parece tristemente irônico, o próprio Édipo reconheceu esta possibilidade
ao evocar o nome de Zeus e questionar a ordem dos acontecimentos. Ao atribuir os
acontecimentos ao divino: “que decidiste, ó Zeus, fazer comigo?” ele não conseguia
474
KNOX, 2002, Op. Cit., p. 27.
475
Naquele momento Édipo não se lembrou de sofrer um mal semelhante.
229
acreditar na ironia da situação, sendo ele o caçador e a caça. Porém, ele sequer
desconfiava da real gravidade da situação. Ela relatou que Laio e Édipo se
assemelhavam fisicamente, exceto pelo grisalho dos cabelos. Agora, Édipo tinha quase
certeza da própria culpa, mas ainda restavam detalhes a desvendar. Enquanto o relato de
Jocasta avançava, nos dirigimos para o que chamaríamos de testemunho ocular. Era
preciso encontrar quem viu o ocorrido, o sobrevivente à chacina, para que este
reconhecesse em Édipo o culpado.
Édipo desconfiou que seu maior equívoco fora falar além do que deveria. Porém,
não está claro se ele tratava da promessa de investigação que não pretendia abandonar
ou do decreto que lançara contra o criminoso e que contra ele se voltava como num
efeito bumerangue. Ele se perdeu pela palavra, se falou em demasia ele contrariou o que
acreditava ser sua maior virtude: o poder de bem refletir e tirar conclusões acertadas.
Édipo se reconheceu, momentaneamente, culpado por designar, através de sua própria
proclamação, sua penalidade. A sua identificação provisória com o criminoso operou
uma reviravolta momentânea, pois ele deixou de lado sua felicidade inicial para assumir
uma angústia crescente e incontida.
O sentimento de angústia foi gerado pelo peso das tarefas que a sua posição e
prestígio exigiam. Ao ser inquirido por Jocasta pelos motivos de tamanha aflição, ele
contou sua história de vida antes de chegar a Tebas, como se até então, marido e
mulher, nunca houvessem falado a respeito de si mesmos um para o outro. Em seu
relato sobre sua trajetória ele procurou provas da própria inocência, porém, cada vez
mais, ele se aproximava da reviravolta da fortuna. O relato de sua trajetória foi, porém,
a prova inconteste de sua ignorância. Cada vez mais Sófocles parece querer nos
convencer de que se trata de uma peça cujo passado se alinhava ao presente com fios
230
fortemente entrelaçados. Baseado em sua memória socialmente construída, Édipo
relatou o que acreditava ser o passado de sua história
476
.
Crente que o oráculo feito a Laio falhara, Jocasta afirma que ainda que o servo
alterasse seu primeiro testemunho sobre a morte de Laio, não alteraria, por conseguinte,
o fracasso oracular. Édipo deu credibilidade e elogiou as palavras da esposa, porém, ele
precisava da presença do servo para que este acalmasse teu espírito e que por fim ele
esquecesse as terríveis palavras de Tirésias: o criminoso és tu! Jocasta pronunciou a
inconsistência do oráculo e que por isso não confiava neles. No entanto, eles ignoravam
que as profecias cumpriram-se e que eles viviam numa triste ilusão. Ou seja, eles
incorreram num ato de impiedade ao desacreditarem nos oráculos e na lesa tentativa de
vencê-los. O deus assim afirmava que nenhum mortal poderia superá-lo.
No início do terceiro episódio encontraremos uma cena que despertou o
interesse de Aristóteles na Poética. Ao designar a reviravolta do destino ele cita as
intenções malfadadas do mensageiro de Corinto que ao tentar aliviar o coração de Édipo
o transtorna ainda mais. A intenção do mensageiro seria um erro de cálculo, pois
promovem uma reação tempestuosa em Édipo. A partir daquele momento ele não mais
se reconhecia, não era ninguém, era um sujeito sem passado e ele não poderia admitir
isso. Estas revelações exigiram dele uma ação direcionada a descobrir a própria origem.
Jocasta, por sua vez, enxergou o que se revelara: os oráculos se cumpriram. Ela tentou,
em vão, impedir que ele prossiguisse nesta nova investigação. Mas Édipo interpretou
erroneamente a reação de Jocasta frente à revelação de que ele não era filho de Mérope
e Políbio. Ele se encontrava totalmente cego perante as ações que se desenvolviam à sua
frente.
476
Um detalhe, contudo, nos intriga: o modo como eles não perceberam a semelhança entre os oráculos.
Isto, nos revela, de certa forma, um erro intelectual.
231
A chegada do Pastor revela enfim a verdade oculta. No passado, incumbido de
matar o filho de seus senhores, ele tivera a intenção de salvá-lo da morte premeditada
pelo próprio pai, mas o salvara para um destino funesto. Não temos na peça a revelação
do grau de conhecimento que o pastor possuía do oráculo predito a Laio, porém estamos
cientes que ele se apiedara do menino e o dera a outro para que este o enviasse para
longe de Tebas. Acreditando que o menino nunca mais retornaria, também o pastor
passa por uma cena de reconhecimento quando o mensageiro de Corinto aponta no rei
do presente o menino do passado. Revelar a verdade foi doloroso, mas, ameaçado por
Édipo, ele não tivera saída. Os oráculos se mostraram verdadeiros e todo o esquema
engenhosamente bem construído por Sófocles demonstra o quão frágil somos perante os
esquemas da existência humana.
3. Hamartía e má sorte em Édipo Rei: a linguagem oracular, a cegueira e o
aniquilamento
A linguagem oracular costuma ser obscura e indecifrável e nem sempre
apresenta uma indicação clara do que deve ser feito, apenas sinaliza, e cabe aos homens
interpretar corretamente os sinais. Ou seja, apesar de enigmática, a linguagem oracular
não mentia, mas possibilitaria um erro de interpretação
477
. Por isso, a função do oráculo
no drama não pode ser descartada porque o fato de ele ter sido cumprido comporta uma
mensagem clara: a peça é a afirmação da verdade da profecia e da realização de uma
hamartía e Édipo é a representação do herói que desafiou e tentou fugir do mais terrível
vaticínio feito a um ser humano
478
.
477
VERNANT, 1999, Op. Cit., p. 66
478
KNOX, 2002, Op. Cit., p. 33. A questão da desobediência ao oráculo não se apresenta de forma bem
delineada. Em Sete Contra Tebas, Ésquilo conta-nos que Laio desobedeceu ao oráculo, por isso sofreu
um destino trágico, porém, Édipo não desobedeceu ao oráculo. Tentou de todas as formas não cumpri-lo.
232
Hölderlin oferece-nos uma hipótese para a questão nas Observações sobre
Édipo e Antígona”. Ele escreveu que Édipo interpretou infinitamente o oráculo,
incorrendo aí sua falta trágica. Sua queda no abismo deveu-se ao seu excesso de saber
que o conduziu a uma morte simbólica, esteticamente sublime, tanto pela pulsão
violenta como pela impiedosa fúria com que se absteve de seus olhos
479
. Aí ele adquire
uma visão que não possuía – sendo-lhe possível descobrir sua própria identidade.
Contraditoriamente, o símbolo dessa mais verdadeira e ampla forma de ver, é o próprio
ato de cegar-se; pagando com os próprios olhos, mergulhando na obscuridade da
cegueira voluntária
480
.
{ΧΟΡΟΣ}Ὦδεινὰδράσας,πῶςἔτληςτοιαῦτασὰς
ὄψειςμαρᾶναι;τίςς´ἐπῆρεδαιμόνων;
{
ΟΙΔΙΠΟΥΣ}Ἀπόλλωντάδ´ἦν,Ἀπόλλων,φίλοι,
[1330]
ὁκακὰκακὰτελῶνἐμὰτάδ´ἐμὰπάθεα.
Ἔπαισεδ´αὐτόχειρνινοὔτις,ἀλλ´ἐγὼτλάμων.
Τίγὰρἔδειμ´ὁρᾶν,
1335
ὅτῳγ´ὁρῶντιμηδὲνἦνἰδεῖνγλυκύ;
Coro: Como pôdes ferir assim seus olhos?
Tua ação assombra! Um deus te ensandeceu?
Édipo: Apolo o fez, amigos, Apolo
me assina a sina má: pena apenas.
Ninguém golpeou-me,
além das minhas mãos.
Ver – por quê? -,
Se só avisto amarga vista?
vv. 1327-1335.
Segundo Édipo, os acontecimentos oscilam entre duas instâncias: a vontade divina
e as ações dele próprio. Isto quer dizer que a ação ocorreu a dois níveis de causalidade: a
causa divina e a causa humana. Apesar de Édipo executar a ação, ele tenta se justificar
afirmando que mesmo o divino contribuiu para o seu padecimento. Ora, a fronteira do
agir de Édipo esbarra naquilo que ele precisou suportar para o cumprimento do oráculo.
479
ROSENFIELD, Kathrin H. Antígona de Sófocles a Hölderlin: Por uma Filosofia Trágica da Literatura.
Porto Alegre : L & PM, 2000. Cf. anexo que contém os comentários de Hölderlin sobre Édipo e Antígona.
pp. 385-408.
480
Édipo Rei, Cf., vv. 1327-1415. Atenção especial aos versos 1329-1332.
233
Existe o mal que ele causou e o mal que ele sofreu, e que culminam em simultâneo, ativa
e passivamente, no incesto e no parricídio
481
.
Édipo cometeu atos involuntários, mas se auto-flagelou furando seus olhos numa
atitude abertamente voluntária. É compreensível que ele se sinta envergonhado por ter
praticado uma ação e porque contra a vontade inflingiu um mal terrível aos outros. Tais
acontecimentos o conduzem ao auto-cegamento. Porém, não nos é surpreendente que,
ao ser questionado sobre o que fizera contra si mesmo, ele atribui a Apolo seus
sofrimentos afirmando: “Apolo o fez, amigos, Apolo me assina a sina má”, atribuindo-
lhe indiretamente a responsabilidade por sua cegueira. Nesta seqüência, extremamente
ambígüa, identificamos uma ação sofrida e uma ação executada. Édipo sofre uma ação
por meio da divindade e ao mesmo tempo executa uma ação contra si mesmo
482
. Ele
ultrapassa a fronteira da ignorância para o conhecimento reconhecendo que fora
atingido pela fatalidade. Édipo furará os olhos porque quis “ver” além dos limites e por
não ter compreendido a advertência de Tirésias. Ele aprendeu que não deve rivalizar
com os deuses na possessão de uma sabedoria sobre-humana
483
.
Na verdade, ainda no primeiro episódio, ele fora informado por Tirésias que
Apolo seria responsável por sua queda
484
. O atributo principal de Édipo, não obstante,
foi a realização de seus males, incluindo a descoberta da verdade e o subseqüente auto-
cegamento. Ironicamente, poderíamos crer que o cumprimento do oráculo não dependia
das manifestações apaixonadas de Édipo: a ira, a irredutibilidade, a busca irrefreável
pela verdade, a capacidade de investigação ou mesmo a cegueira. A previsão oracular
481
SAÏD, 1978, Op. Cit., 214-215. Neste sentido, a hamartía não poderia atribuir-se unicamente à ação do
herói enquanto sua vontade livre, estaria também condicionada, pelo menos em parte, à ação divina. Por
outro lado, poderíamos também pensar que esta hamartía não era guiada pelos deuses mas que estes a
conheciam por antecipação. Conhecer uma ação por antecipação não quer, necessariamente, afirmar que
esta é a vontade divina, mas que os deuses conhecem a natureza humana e aquilo que os homens são
capazes de fazer, mesmo em desconhecimento.
482
Vale a pena conferir Édipo em Colono, v. 267: “os atos padeci, não cometi”.
483
AUBENQUE, 2003, Op. Cit., p. 261.
484
Édipo Rei, Cf., v. 376-377.
234
afirmava que ele mataria o pai e casaria com a mãe. É certo que estes crimes possuem
natureza terrível, que o agente, mesmo ao praticá-lo de maneira involuntária, sentiria
repulsa de si mesmo. A previsão se fez infalível, ao contrário da natureza falível do ser
humano. Os oráculos confirmaram os limites do conhecimento humano dos quais Édipo
é paradigma. Parece-nos que, independente de sua vontade, Édipo cumpriu seu destino.
Então, poderíamos chamar de hamartía o que estava fora do alcance do herói evitar?
O destino de Édipo realizou-se. De fato ele matou seu pai e casou-se com a mãe,
involuntariamente
485
. Deliberadamente ele desejava desvendar o segredo do seu
nascimento, pergunta que a priori não tem relação direta com a investigação inicial:
descobrir a identidade do assassino de Laio de modo que cessasse a epidemia. Édipo vai
além do que o preocupava. Voluntariamente ele decidiu não voltar a Corinto e a sua
mutilação foi um gesto de liberdade, pois ele corajosamente, ou vítima de um acesso
súbito de desespero, desafiou a divindade infligindo a ele mesmo sua própria punição.
Os deuses não puniram Édipo com o auto-cegamento, portanto, a cena é crucial
para a conclusão da peça. É a manifestação concreta, visível e categórica da cegueira
intelectual do herói e a representação de sua ruína. Ele próprio não queria vislumbrar a
própria decadência, não desejava ver e nem ser visto pelos filhos. Ser visto sem poder
ver constitui segundo auto-exílio, exilando-se de encarar a visão alheia e evitando ele
próprio ver-se e aos outros. Megulhar nas trevas seria uma forma de exílio profunda e
simbólica. Édipo se afasta de todos que poderiam vê-lo e, enganado pelas coisas
aparentes, caminhou para a ruína. As metáforas da luz e da cegueira são paradoxais:
Tirésias é cego, mas conhece o passado e o futuro; Édipo é perspicaz quando decifra o
485
A ironia trágica é recorrente ao longo de toda a peça que oferece uma verdadeira visão do homem e do
mundo. O homem é um enigma em si e qualquer tragédia reside na resolução deste enigma porque o
homem revela-se incapaz de decifrar os sinais do destino.
235
enigma da Esfinge, mas é cego para ler os sinais do seu próprio destino. Cegado por sua
hýbris
486
, acreditava ser dono do saber.
O auto-cegamento garante que Édipo manifeste sobre si mesmo a pena que ele
escolheu para expurgar seus males. Ele se sente indigno de olhar para os cidadãos,
parentes, ou mesmo no Hades, quando morto, para seus pais. Ele sente necessidade de
se punir por suas falhas e transgressões. É uma contradição ao que ele acreditava antes e
a confirmação do que Tirésias afirmara: ele era cego apesar de poder ver, sendo cego
aos detalhes de sua vida, crendo numa felicidade ilusória
487
.
A visão e a cegueira apresentam-se enquanto elementos importantes na peça e
podem ser tratadas metaforicamente ou literalmente. Ser fisicamente cego é ser incapaz
de ver e a cegueira metafórica é a incapacidade ou falta de habilidade para compreender
ou discernir. Sófocles coloca os dois elementos no centro da ação e usa-os para criar a
ironia dramática.
Édipo tem a visão física perfeita. Não obstante, é completamente cego em
relação a si mesmo e ao passado, e esta visão “adquiriu um lugar cativo na piedade e no
terror dos espectadores para sempre
488
.” Durante toda a peça ele deseja saber, ver,
averiguar, ter certeza absoluta, sem limites. Mas ele não consegue
489
.
Embora a verdade seja prejudicial a ele, Édipo quer seguir adiante. Tirésias, cuja
vidência ganhou “fama e imortalidade mítica
490
”, é cego fisicamente e o único capaz de
enxergar a situação tal como ela é: trágica. A cegueira é parte da natureza do velho
488
ROSA, Armando Nascimento. “Um Édipo: reescrita e produção cénica de um mito paradigmático, 2005.
p. 124.
486
A noção de hýbris (excesso, excedência, incontinência) integra a antropologia do homem grego. O
homem acometido pela hýbris, que tentava ir além de suas medidas (possibilidades) humanas, era
submetido ao castigo dos deuses.
487
LESSER, Simon, 1967, Op. Cit., p.196. Cf., DODDS, 2002, Op. Cit., p. 43. Simon Lesser e Dodds
compartilham os motivos pela qual Édipo optou pelo auto-cegamento.
489
{ΧΟΡΟΣ} Φεῦ φεῦ, δύσταν´· ἀλλ´ οὐδ´ ἐσιδεῖνδύναμαί σε, θέλων πόλλ´ ἀνερέσθαι,πολλὰ
πυθέσθαι,πολλὰδ´ἀθρῆσαι·τοίανφρίκηνπαρέχειςμοι.
Coro: (...) Triste Édipo! Se te encaro, esmoreço. E havia tanto a inquirir, tanto a saber, tanto a sondar!
Tremor sem par em mim suscitas.
vv. 1303-1307.
490
ROSA, 2005, Op. Cit., p. 124.
236
adivinho. Édipo, agora cego, ganhou um novo tipo de visão. Ele viveria a partir de então
uma vida mais verdadeira do que ilusória. Ele atingiu a verdade mediante grande dor,
não é como uma qualidade inerente tal qual a verdade que Tirésias possuía.
Ora, nem todas as ações humanas são pré-determinadas. Nem Sófocles afirma
isso, o que não é notório é o poder de conhecer certos acontecimentos. O auto-
cegamento é um exemplo de ação voluntária e nem poderíamos dizer que ele não agiu
com liberdade. Mesmo que o parricídio e o incesto estivessem longe do seu alcance
evitar porque foram preditos, não implicavam na descoberta ou não da verdade. Ele
poderia, simplesmente, manter-se ignorante
491
. A grande questão é o reconhecimento;
mais do que encenar uma hamartía terrível, temos a encenação da descoberta de uma
hamartía respaldada por outros equívocos, que, embora pequenos, são cruciais para o
encadeamento dramático da peça. Diferentemente do que poderíamos imaginar, a
soberba torna-se uma terrível falta, a impiedade configura-se como um erro imperdoável
e a cegueira como a representação da imprudência daqueles que se fiam apenas em
evidências fragmentadas.
Caso Édipo desejasse escapar de sua triste sina, evitando que o oráculo se
cumprisse, após receber previsão tão terrível, deveria abster-se de assassinar qualquer
homem em idade para ser seu pai e de unir-se com qualquer mulher em idade para ser
sua mãe
492
. A peça termina com uma nova consulta ao oráculo e este episódio não
poderia ser desprezível
493
. É uma afirmação de fé, uma oportunidade para Édipo
demonstrar sua confiança na divindade e nos oráculos; ser piedoso.
1445{ΚΡΕΩΝ}Καὶγὰρσὺνῦντἂντῷθεῷπίστινφέροις.
Creonte: Uma ocasião de crer nos deuses terias.
491
DODDS, 2002, Op. Cit., p. 43.
492
SAÏD, Suzanne. La faute tragique. Maspéro : Paris, 1978, p. 27.
493
ROMILLY, 1997, Op. Cit., p. 99.
237
A fala de Creonte nos dá uma hipótese sobre a conduta de Édipo e a necessidade
de se crer nos oráculos. Creonte o adverte por sua falta de crença anterior
494
, mas Édipo
não responde a esta observação sarcástica do cunhado. A peça versa sobre a descoberta
por parte do protagonista de que o oráculo do qual ele tentou fugir já fora cumprido. O
oráculo não ordenava a descoberta da verdade, Édipo o fez por sua própria iniciativa
levado primeiramente por seu desejo de salvar Tebas e depois pela busca da sua própria
identidade. Como o oráculo foi cumprido antes do início da peça, ele só entra
diretamente nela pelas suas próprias afirmações e de Jocasta, que procuram negar-lhe o
valor
495
. A soberania do oráculo se sobrepõe à soberania humana, de maneira que a
sociedade grega, apesar das adversidades e dúvidas, não poderia deixar de crer nos
oráculos com possibilidade de ser castigada.
O oráculo não vaticinou o desvelamento da verdade, “o suicídio de Jocasta ou a
cegueira auto-inflingida de Édipo. O destino não desempenha nenhuma função nas
ações de Édipo na peça (...), a busca enérgica pela verdade é impulsionada até a
revelação final pela vontade de Édipo e nada mais
496
”. Poderíamos apontar, ainda que
sem muito sucesso, alternativas para Édipo, como permitir o sofrimento do povo,
ignorando a peste e permitindo que ela seguisse seu curso dizimando a cidade. Mas
como poderia um governante, com o perfil de Édipo, permitir a desertificação da pólis?
Quando Creonte retornou com a predição de Apolo e a necessidade de se identificar e
punir o assassino de Laio – condição para o fim da peste –, ele poderia ter ignorado
estas palavras e esquecer a investigação. Foram os sentimentos de piedade e justiça que
o mobilizaram a agir.
494
KNOX, 2002, Op. Cit., p. 172.
495
Não podemos nos esquecer do oráculo de Delfos apresentado por Creonte no início da peça e que
desencadeia toda a trama. Édipo Rei. Cf., vv. 95-98.
496
KNOX, 2002, Op. Cit., p. 5-9. Ele descobrirá a verdade por sua livre e espontânea vontade. O que o
destino vaticinou não poderia ser evitado, mas encontra-se fora da peça, quando citado é por meio de
lembranças, devido à investigação implacável de Édipo.
238
Ele também não precisava ter forçado a verdade extraindo-a de Tirésias e do
velho Pastor de Laio, mas mesmo usando da força ele precisava identificar a si mesmo.
Ele não poderia descansar enquanto a grande mentira em que se forjara a sua vida não
fosse desvendada. O oráculo, contudo, não vaticinou que Édipo descobriria a verdade,
se isto aconteceu, deveu-se a sua insistência e pesquisa. Ao desrepeitar os oráculos,
Édipo foi cego, imprudente, impiedoso, audacioso e cheio de soberba porque acreditou
que poderia evitá-los. Ironicamente, o que provoca sua queda é o atributo e a soma de
suas virtudes: sua lealdade, coragem, conhecimento e justiça
497
.
Uma hipótese para o erro de Édipo não se limitaria ao seu temperamento
precipitado, mas em um obstinado desejo pela verdade. Atrelava-se também à sua
negligência em relação aos oráculos, correndo um risco ao qual não tinha direito. Ele
deveria reconhecer que o mundo era regido por uma Díké
498
, e que esta justiça, regida
pelas leis do Olimpo, não o deixaria impune.
Mas se Édipo é uma vítima inocente de um castigo que ele não pôde evitar, ele
está reduzido a um mero fantoche e a tragédia negaria a liberdade de deliberação do
herói. O significado do erro por ignorância atinge dimensão superior ao fato de Édipo
ter cometido incesto e parricídio. Refere-se, sobretudo, ao fato de ele ser o contrário do
que acreditava.
Édipo não sabia onde estava – sua terra natal –, o que fez – matou o pai e casou
com a mãe –, quem era – o culpado pela peste, o filho de Laio e Jocasta, um rejeitado. A
gargalhada “silenciosa” dos deuses na peça é ouvida a partir do momento em que
Édipo, simultaneamente, descobriu onde realmente estava, o que fizera, quem era. De
certa forma, ele percebeu que o humano não era a medida de todas as coisas. O que nos
497
DODDS, 2002, Op. Cit., p. 43.
498
VELLACOTT, 1964, Op. Cit., p. 147.
239
subjuga em Édipo é o terror da coincidência do qual nem o mais prudente dos homens
poderia escapar.
Poderíamos compreender a falta trágica de Édipo como um defeito de caráter e
citar a cólera como um exemplo. Poderíamos insistir em apontar o seu orgulho, a sua
violência incontida na encruzilhada contra um desconhecido, o descontrole contra
Tirésias e Creonte, a temeridade e a imprudência como a origem das calamidades de
Édipo. Seria conveniente, de nossa parte, acreditar que a hamartía de Édipo é a
demonstração crucial do caráter limitado da inteligência humana, mas não nos parece
que é em um defeito de caráter que reside o mal de Édipo. Admitiríamos, tacitamente,
que a hamartía à qual se refere Aristóteles na Poética é de fato a falta que
procuramos
499
. Compreenderíamos, portanto, a hamartía como uma falta involuntária
cometida na ignorância ou por imprudência ou um erro movido por uma força maior ou
superior, que mobiliza o herói para fazer executar as ordens que se tentou
desobedecer
500
. E o erro de Édipo, mesmo extra-cênico, seria o incesto e parrícidio.
No início da peça, Édipo se julga um homem livre, capaz de mudar a profecia,
evitando-a, fugindo de seus pais. Mas Pólibo e Mérope não são seus pais de
nascimento. Aos seus próprios olhos, Édipo acredita que está agindo decentemente ao
tentar evitar seu destino, mas quando finalmente percebe quem era o homem que ele
matou a caminho de Tebas e a mulher com quem se casou a título de agradecimento por
salvar a cidade da Esfinge, ele se reconhece falível.
Para Philip Vellacott Édipo não era inocente de seus atos, não ignorava os fatos
ao seu redor. Afirma que se Édipo tivesse seguido os muitos indícios à sua disposição,
499
Mas para assegurar esta conclusão devemos admitir a pertinência dos exemplos que Aristóteles citou,
validando o modelo interpretativo que ele nos propõe.
500
SAÏD, 1978, Op. Cit., p. 16.
240
teria com certa facilidade descoberto a verdade
501
antes de realizar qualquer mal. Para
Vellacott, o texto Édipo Rei não contém evidências sobre a hamartía no sentido que
Aristóteles atribuiu ao termo. Ele trata mais da hýbris – a qual é sempre associada a um
conceito moral. Seria necessário, a partir deste ponto de vista, uma releitura da hamartía
a partir da ação das outras personagens. Talvez fosse mais simples identificar a hýbris
em Édipo.
Pelo menos em parte, Édipo poderia ser considerado um fantoche dos deuses,
porém ele não é capaz de compreender isto. Se ele realmente era um fantoche dos
deuses, então, nada do que fez seria sua responsabilidade, nenhuma das suas decisões
teria feito sentido, porque, no fim, os deuses iriam encontrar uma forma de executar
tudo o que havia sido predito. Se, por outro lado, ele é um homem livre, deve lutar para
conseguir o que deseja e nada garante que os deuses possam colaborar com ele.
Evidentemente, trivialidades permitiram que Édipo exercesse o seu livre arbítrio
dando um pouco de personalidade à sua vida. Os acontecimentos decisivos, no entanto,
eram controlados pelos deuses. Exceto pelo fato de que incondicionalmente ele mataria
o pai e casaria com a mãe, ele era livre para escolher o que fazer do resto de sua vida,
inclusive descobrir a verdade.
Outra alternativa pressupõe que a hamartía de Édipo seria de ordem intelectual e
as crenças humanas não seriam verdades inabaláveis tais como as divinas. Porém
demorou que ele encontrasse uma prova para desvendar profundamente a verdade: os
mistérios da personagem Apolo. As provas necessárias provieram do Mensageiro de
Corinto e do Pastor de Laio, que serviram de testemunhas oculares para a identificação
de Édipo como um outro. No entanto, o primeiro testemunho do mensageiro não foi
capaz de derrubar sua crença na verdade que ele construiu para si e na qual acreditava.
501
VELLACOTT, Philip. Sophocle and Oedipus: A Study of Oedipus Tyrannus with a New Translation.
1971. London : Macmillan, p. 143.
241
Suas respostas emocionais também são importantes: ele atravessava da
segurança para a indignação, depois, angustiado e implacável, ele precisava ouvir as
verdades terríveis que o pastor fora obrigado a dizer, também porque seu compromisso
com a verdade estava em harmonia com a sua obediência moral e civil. Em vários
momentos ele teve a chance de preservar o seu bem-estar e a sua posição social. Mas ele
seguiu adiante
502
.
O erro de Édipo também consiste na confiança de que ele tem que pode
contrariar a verdade oracular de Apolo com as armas da racionalidade humana. Ele se
esquece que a verdade divina transcende a esfera das crenças humanas; ele descobre a
divina sabedoria de Apolo dentro dos parâmetros da sua própria humanidade.
Com efeito, conhecendo a verdade, ele torna a si mesmo cego, talvez após o
reconhecimento de que ele realmente não poderia “ver” antes. Agora, ele entendeu
porque “Apolo que o levou a esta amargura”. Seu conhecimento o conduz diretamente à
sua eleição como rei e, com isso, à sua relação e casamento incestuoso com sua mãe, a
rainha de Tebas. O conhecimento o liga aos terríveis eventos que se seguem: a peste a
desertificação da pólis. Édipo adquire tardiamente o autoconhecimento, o seu
aprendizado é que ele é a fonte da praga em Tebas, a qual lhe permite punir a si mesmo
e, assim, pôr termo ao sofrimento do seu povo.
Ele percebe, da pior maneira possível, que os mortais nada podem contra o poder
dos oráculos. Nem os reis ou sacerdotes, nem o mais corajoso ou inteligente poderia
502
A questão que permeia a peça é substituída. No princípio questionava-se “quem fez?”, depois se
questiona “serei eu?” para enfim tornar-se “quem eu sou?” É estranho observar que, de repente, o tema da
peste não é mais o foco; que a investigação toma um outro rumo surpreendentemente necessário para a
descoberta de quem é Édipo. Assim, o mito resgata a história de um homem em busca dele próprio, a
trajetória de um exilado que deseja se encontrar. Na obrigação de exterminar a peste que assola o demos,
Édipo acaba por se descobrir como a própria causa e solução do enigma que enfrentava. Sua investigação,
causada pelo bem público, coincide com a autodescoberta de seus próprios mistérios, um encontro de si
para si. Bem ao propósito de Aristóteles, Édipo realizou uma ação completa, com começo, meio e fim, ao
descobrir a verdade e podemos perceber como um erro intelectual pode conduzir a uma queda dramática.
Em suma, a hamartía de Édipo, por diversas vezes, se enquadra como um erro intelectual.
242
vencer o divino. Loucos e cegos são os que se sentem capazes de fazê-lo. A loucura e a
cegueira permanecem, portanto, como irrupções da imprudência e da desmedida. Édipo,
dilacerado com o reconhecimento de sua trajetória amaldiçoada, reconhece a mentira
que fora toda a sua vida, e a verdade esmagadora que o transforma, ao final, em um
exilado em si mesmo, condenado à cegueira e à solidão.
243
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Existem muitas formas de errar na tragédia, uma delas é pensar que se está
agindo corretamente. Porém, é difícil afirmar que Édipo cometeu erros substanciais no
decorrer da peça, ele apenas ignorava elementos importantes para o conflito que
enfrentava. Mas se ele descobriu a identidade do assassino como havia planejado, se
descobriu sua origem, ele obteve sucesso, mas foi ao encontro de resultados contrários
às suas expectativas. Ele acreditava na sua glória completa sendo duas vezes salvador da
cidade, mas decepcionou-se. E, embora ele tenha salvo a cidade, um dos seus objetivos,
reconhecemos que a glória fora substituída pela humilhação e pela vergonha. Então, ele
viu-se derrotado e diminuído porque era o responsável direto pelas terríveis calamidades
que atormentavam a cidade. Todos tentaram, em vão, detê-lo. Se a verdade foi
descoberta, devemos isso a ele e a ninguém mais.
Neste sentido, como compreender o que aconteceu a Édipo? Como julgar a ruína
de Édipo em termos da ética? Somente o inexplicável da situação aplaca nosso horror
diante do que aconteceu. O absurdo dos acontecimentos provoca a morte de Jocasta e o
auto-cegamento de Édipo. A catástrofe do herói não é, com efeito, um defeito moral. O
oráculo o impulsionara a agir e se ele não agisse, ele deixaria de ser quem era: Édipo.
Para ele não havia escolha a não ser aceitar o desafio. É como se ele gritasse aos deuses
e aos tebanos: como posso viver sem meu nome? Talvez fosse preferível a morte de
fato, já que a perda da identidade representou, por instantes, o pior tormento que ele
enfrentou. O tema da tragédia sutilmente nos leva a crer que antes ser um desgraçado do
que um ninguém; antes ter um passado do que viver na incógnita.
Édipo precisava de uma solução ao enigma que construíra em torno de si, era seu
grito trágico em resposta ao seu mundo que desmoronava. Infelizmente, ele não
244
conseguiu o sucesso desejado, embora tivesse alcançado a resposta que tanto procurava.
Ele apenas achava que o resultado seria outro. O estilhaçamento da vida, a
impossibilidade de uma solução para o sofrimento que causara, sua frustação e o
aniquilamento de seus desejos mais profundos o remeteram à sua destruição.
Em seu íntimo não existia o desejo de morte, mas o desejo de não ver, nem a si
nem aos demais, cegando-se. Em sua agonia, Édipo ainda é capaz de se erguer, mesmo
cego, segue cambaleando. O homem que sempre se orgulhou da própria inteligência e
poder de iniciativa, agora precisa suportar a dor e o peso da própria desgraça,
extremamente solitário. Desconhecido era Édipo para si mesmo, uma vergonha
encoberta, um mal insustentável. Ao se autodescobrir, mostrou-se como era: falível. Eis
a grande mensagem da tragédia: Édipo, paradigma, mostra-nos que não devemos viver
sem acreditar nos oráculos e sem respeitar a divindade; que devemos evitar a
imprudência e a soberba.
Mais do que elucidar um crime de incesto e parricídio, de fato grandes
hamartías, a peça quer passar uma mensagem: ninguém pode mais do que o divino. Ele
precisava ter em mãos a história de sua vida, intrinsicamente ligada, não por acaso, à
morte de Laio. Ele não desejava nenhum traço de obscuridade que o impedisse de ver a
verdade com clareza. Vivendo literalmente na escuridão desde o nascimento, ele nasce,
morre e renasce no momento presente da peça.
Não há em Édipo uma ação em específico que responda à questão da hamartía.
A grande hamartía - aos olhos de Aristóteles é o incesto e o parricídio - depende de
outras ações. Sem o coletivo das ações que se conectam ao longo da trama, não há
tragédia de fato.
Além disso, a racionalidade de Édipo se apresenta através da sua capacidade
cognitiva, além disso, descobrir a sua verdadeira origem não nos parece um erro, muito
245
menos investigar um assassinato como ordenado pelo oráculo em Delfos. A sua
capacidade de análise do presságio oferecido pelo oráculo - e que apresenta resposta
parcial ao enigma - lhe é dificultada por desconhecer elementos importantes para a
investigação da morte de Laio. E, ao ouvir da boca do adivinho a verdade sobre si,
Édipo enche-se de cólera, pois esta é terrível demais para ser aceita. Então, ele perde o
senso da razão e absorve-se numa busca desesperada pela verdade.
A possibilidade de nunca vir a ser na perspectiva ontológica não era sequer
admissível. Mesmo que ele se descobrisse o mais miserável dos homens, era melhor do
que não ter um passado. O passado que ele conhecia havia sido construído e a sua
origem, enquanto ser, era desconhecida; ele ignorava quem era e com isso ele não
poderia continuar vivendo. Sabendo-se possível atingir a verdade, melhor encará-la do
que negá-la.
A derrota de Édipo deveu-se ao seu êxito na busca pela verdade. É uma peça
onde as formas de conhecimento se enfrentam. O caminho percorrido por Édipo
encontra-se cheio de erros de interpretação e por ignorância. Ele tomou por estranhos
seus pais naturais e os adotivos por verdadeiros, reconhecendo esta irônica realidade
apenas quando adulto, e comete, a partir daí, dois grandes erros: incesto e parricídio na
mais completa ignorância. Temos também um crime de filicídio mal sucedido, quase
sempre esquecido no drama, porque não havia sido previsto pelo oráculo o assassinato
do filho pelo pai, mas o contrário, sendo este bem sucedido. Além disso, temos o
incesto involuntário de Jocasta, pois este crime não foi unilateral. Ou seja, nem ele
reconheceu nela sua mãe e nem ela o reconheceu como filho. No curso de sua
investigação comete outros erros: confunde a revelação de Tirésias com uma
conspiração por motivos políticos e acusa o adivinho como aliado de Creonte, lançando
contra o cunhado uma série de imprecações e ameaças. Também confunde o medo de
246
Jocasta com vergonha. Assim, os erros fundamentais de Édipo que têm lugar como
anterioridade, inclusive os dramáticos parricídio e incesto, são compreendidos como
erros por ignorância motivados por sua inicial incapacidade de interpretação dos fatos.
Outra hipótese é que a hamartía seria a insistência pela verdade, de forma que a
verdade plena só caberia aos deuses e não aos mortais. A caracterização do direito
divino postula que todos devem estar sempre vigilantes. O erro trágico de Édipo poderia
ensinar que a força de uma vontade empenhada na virtude é insuficiente para lograr uma
vida virtuosa e às vezes até mesmo a contraria, além disso, o limite da prudência é algo
oculto e difícil de conhecer para os mortais. Então, Édipo conhece uma premissa maior
que é geral: deveria evitar o incesto; no momento de aplicar a regra num caso particular,
se equivoca: pensa que Jocasta não é sua mãe e, portanto, comete incesto por
ignorância. A partir deste mesmo argumento poderíamos explicar o parricídio de Édipo.
Édipo erra quando foge e se defronta com o destino pré-anunciado; é o que
conhece e desconhece ao mesmo tempo; é o que oscila entre a cegueira e a visão. Ele
possui caráter admirável e age nobremente, mas mesmo assim incorre em hamartía e
sofre o seu excesso. Qualquer outro sujeito menos virtuoso escaparia de uma catástrofe.
Não desconsideraremos a contribuição de Aristóteles, mas levaremos em questão que a
hamartía não poderia estar unicamente localizada na personagem principal, pois
correríamos o risco de diminuirmos o valor dramático da tragédia.
Em relação ao que conhecemos do mito, Édipo comete uma falha e fracassa no
sentido de possuir uma intenção e atingir outra, ele erra o alvo porque apreende o
aparente como real. Notadamente virtuoso, suas ações não podem ser classificadas
como mal intencionadas. Todos os seus empreendimentos, pelo menos na peça, nos
parecem frutíferos e justos. Ele não possui caráter incompleto, apenas deseja a verdade
plena. Édipo não é uma simples vítima do destino ou dotado de um caráter defeituoso.
247
O que temos são resultados calamitosos porque as escolhas feitas por ele não se
fundamentaram em situações claras e precisas. Mesmo que nos remetêssemos ao
parricídio e ao incesto, não poderíamos ver neles uma falta moral ou de caráter. Se ele
matou, não era seu desejo matar o pai; se ele se casou, não era sua intenção se casar com
a mãe. Tudo foi acidental, sem intenção. Ao herói que é vítima da arbitrariedade do
destino e cuja queda deve-se a um fator que está para além da sua capacidade evitar,
podemos estabelecer critérios para crermos na sua inocência, embora não possamos
ignorar sua responsabilidade.
Édipo correu o risco, ele deveria escolher entre ser homem ou conformar-se em
ser um ninguém. Esta era a principal condição imposta pela peça e pelas personagens,
suas interlocutoras. Se ele deixasse de escolher, perderia seu estatuto de humanidade.
Então, ele apoderou-se desta possibilidade e optou pelo que parecia melhor naquelas
circunstâncias, ignorando o terrível resultado.
Édipo, por acreditar-se superior e sem limites, confiou no próprio julgamento, e
só enxergou a própria verdade. A verdade aparente domina o raciocínio de Édipo, a
verdade da essência só é revelada no final, e é ela que define o seu destino de mendigo e
cego. É a hýbris de Édipo que estabeleceu o seu erro. O herói confiou tanto em si
próprio que viu apenas o que queria ver. Ele precisou aprender que não existe nada em
absoluto que defina o humano, tudo acerca da vida pode apresentar verdades aparentes,
mostrar apenas uma das facetas do homem. Ele descobriu, a custa do próprio
sofrimento, que não poderia confiar no próprio julgamento e nem valer-se de suas
vontades. Apenas a verdade divina permaneceu.
Édipo se destaca em sua magnitude mesmo em seu espaço limitadamente
humano. Não podemos, contudo, afirmar que ele não faz uso brilhante de seu raciocínio
privilegiado. Seu sucesso, ironicamente em prol de sua derrota, foi surpreendente. Sua
248
capacidade, nada opaca, se sobressaiu como havia planejado. Ele recolheu a catástrofe
no lugar do júbilo.
Todo o caos descrito no início da peça tem uma justificativa. Tudo acontecia
porque um assassino encontrava-se impune. Mas o oráculo não afirmou que a ruína da
cidade devia-se ao incesto. Muito menos afirmara que a ruína humana encontrava-se
ligada ao conhecimento e à soberba. Pelo menos, poderíamos concluir que Édipo vai
para além do que ele próprio esperava. Havia muito mais a descobrir do que
previamente ele desconfiava. O que temos é a contraposição entre as coisas aparentes e
as verdadeiras. O encadeamento das ações conduz, enfim, ao desfecho final e ao
desvelamento da hamartía. A peça é, sem dúvida, o drama do descobrimento e
revelação de uma hamartía predita pelo divino e que nenhuma ação humana seria capaz
de evitar, pior, toda e qualquer ação seria a causa antecipada da realização da mesma.
Como dissera o coro, a luz do dia não deixaria escapar nenhuma evidência, e
Édipo, desiludido, escolheu mergulhar na escuridão eterna cegando-se. Obstruído da
luz, resta a ele tatear inseguro, agora, pelo menos, sabendo quem é, onde está e o que
fez. O que nos chama a atenção é que ele assume a responsabilidade total pelos
acontecimentos. Porém, mesmo no texto de Sófocles, temos gradativamente a presença
de co-responsáveis pelo desfecho trágico. Símbolo da capacidade de decifrar enigmas, é
ele, contudo, que tem a disposição de juntar todas as peças e concatenar todas as ações
até encontrar uma resposta para todas as perguntas que sobrevoavam sua mente
insaciável. A certeza final apreendida por ele é que a felicidade é ilusória e sua
inconstância leva a humanidade a uma vida insegura e instável. A tragédia Édipo Rei é
uma peça cheia de segredos, partilhados ou não e, cujas revelações são primordiais para
Édipo compreender quem é. Muitas coisas parecem acontecer no momento presente da
peça, mas apenas uma realmente se evidencia: a descoberta da verdade.
249
Pensar se a divindade é ou não responsável pelo grande conflito e desfecho
trágico não deixa de ser uma grande questão. Quando o mensageiro de Corinto
acreditava aliviar Édipo e dar-lhe vazão para retornar ao lar, nada mais fez do que
mostrar-lhe que ele já estava de fato no seu lar, sem o saber.
Enfim, o divino mostrou que não cometeu erro algum, que seus oráculos são
certeiros, e em contrapartida, os homens são destinados a errar, envelhecer, morrer. A
hamartía cabe ao humano. O divino é dotado de uma inteligência que tudo compreende,
é capaz de ver para além das aparências, sabe o que foi, o que é e o que está por vir. Um
bêbado, quem sabe tomado pelo furor dionisíaco, constrói a ponte da desconfiança que
leva Édipo a questionar os pais sobre sua verdadeira origem. Recebendo resposta
adversa, ele buscou em Delfos o alívio, porém não encontrou o que esperava e preferiu
fugir. Esta fuga foi crucial, pois representou o primeiro passo em direção ao
cumprimento de seu destino.
Em todo o arcabouço trágico construído por Sófocles podemos enxergar um
conjunto de hamartías. Para identificá-las, dependeu, quando muito, das nossas
intenções interpretativas. Preferimos pensar que a hamartía ou hamartías de Édipo são
várias, porém, uma das mais graves fora acreditar na própria infalibilidade. Temos, na
fragilidade e na derrota de Édipo, sua grandeza. Seu heroísmo, sua coragem e
resistência, sua força inabalável o tornam capaz de suportar a dor infinita que toma
conta de todo o seu ser. Não obstante, o divino nunca conhecerá o fracasso, a dor ou o
sofrimento porque jamais cometerá uma hamartía.
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http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/aritotle_poetique/precise.htm.
260
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