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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC.
A DEVOÇÃO A NOSSA SENHORA EM PACIENTES ONCOLÓGICOS
Michele Mileib de Vasconcelos
São Paulo
2008
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Michele Mileib de Vasconcelos
A DEVOÇÃO A NOSSA SENHORA EM PACIENTES ONCOLÓGICOS
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Psicologia Clínica. Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo. São Paulo, como requisito parcial à obtenção do
título de Mestre.
Orientadora: Prof.a Dr.a Marília Ancona-Lopez Grisi
São Paulo
2008
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Dedico este trabalho ao Sagrado, mistério da
vida, diante do qual busco viver essa linda
e turbulenta viagem que é a vida
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Neile e Miguel, por tudo o que fizeram e fazem por mim, pelo apoio, pelo amor e
também por me ensinarem que minha crença não é superior a nenhuma.
Ao meu marido Tico, por ter acreditado no meu projeto, mesmo quando eu fraquejava de exaustão,
e por reclamar muito pouco diante das minhas ausências e horas dedicadas aos estudos. Obrigada,
Amor!
A minha irmã, Nicole, minha família em São Paulo, que me acolheu em sua casa e em seus braços.
Ao meu irmão Henrique, com quem pude discutir tantas vezes“assuntos religiosos”.
À Dona Mariquinha, minha querida avó postiça e a Maria do Carmo, minha sogra, devotas de
Nossa Senhora, por todos os ensinamentos, ajuda e orações.
Aos meus Padrinhos Tia Maria Ângela e Tio Zeuler, apoio constante desde sempre.
À Saleth que me ajuda a tomar as rédeas na direção do meu caminho.
À Marília, que eu não saberia agradecer, pelo exemplo, pelo carinho, pelas possibilidades
oferecidas...
Aos amigos que fiz em São Paulo, em especial Renata Figueiredo, Simone Yazbek, Giovana
Luczinski, Cynthia Dutra e Andréia além dos queridos companheiros da PUC, Adriana, Analu,
João, Beth, Cristina, Roberto, Sílvio, Auricéia, Irene e Vanessa.
À Gohara Yvette Yehia, Maria Helena Pereira Franco e Gilberto Safra, mestres que abriram portas
para um conhecimento inesperado.
A Ana Lúcia Oliveira e Elisabeth Montagna, que compuseram minha banca e me são tão queridas.
A Dona Jô e Frei Miguel, que não puderam esperar a conclusão deste trabalho, mas que em vida
lançaram sementes que hoje busco cultivar.
À Carol Marra, grande incentivadora de meus estudos na PUC.
À Ju Moretti, amiga com quem conto, presença freqüente, muitas vezes de longe...
A Rê e Anne, amigas do coração que se tornaram irmãs.
À Karen Avellar, pela amizade macia e por ter se disposto tão prontamente a realizar a correção
técnica do capítulo I.
À Lourdes, que com tamanha generosidade me abriu seu mundo.
A Lola e Pablo, cuja existência e perda tanto me ensinaram sobre a vida...
A FUNEDI, Fundação Educacional de Divinópolis, pelo incentivo.
Aos meus alunos e clientes que, como bem disse Winnicott, pagam para me ensinar.
À Ana Paula Martins, pela atenção com que fez a revisão ortográfica do texto.
Ao CNPQ, pela bolsa fornecida de 2005 a 2007.
Para a sede do meu coração, o mar é uma gota.
Adélia Prado
RESUMO
Vasconcelos, Michele Mileib de. A Devoção a Nossa Senhora em Pacientes Oncológicos.
Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, SP, 2008.
Este trabalho tem como objetivo compreender o sentido da devoção a Nossa Senhora em
pacientes oncológicos. Quando se depara com o diagnóstico de câncer, normalmente
percebido como sentença de morte, o paciente busca compreender o sentido de estar
doente, de morrer e da própria vida. Esta busca pelo sentido, a espiritualidade, não é
provocada pela doença, mas pode ser evidenciada por ela. Entre os inúmeros resultados
possíveis da busca pelo sentido, a religião aqui recebe destaque. O modo como cada um se
posiciona diante das crenças, baseado tanto na cultura em que se está inserido quanto em
questões individuais, promove vivências bem particulares dentro da mesma perspectiva
religiosa. Dentre as crenças apresentadas por pacientes oncológicos, escolhi aqui tratar da
devoção a Nossa Senhora. O Brasil é um país de maioria católica, em que a devoção à
Maria é bastante difundida. A partir de um estudo de caso, buscou-se apontar sentidos
possíveis da devoção a Nossa Senhora. Concluiu-se que Maria representa para os fiéis uma
figura de intercessão entre Deus e os homens e, principalmente, o modelo de entrega e
confiança plena. Nos momentos de grande dificuldade perante a doença e tratamento, Maria
é vista como mãe, figura de amparo e acolhimento, que compreende as dores de seus filhos,
os acompanha e solicita que façam segundo a vontade divina.
Palavras- chave: câncer, fenomenologia, psicologia, religiosidade.
ABSTRACT
Vasconcelos, Michele Mileib de.The devotion to Our Lady in oncologic patients. Master’s
thesis. Program of Graduate Studies in Clinical Psychology of the Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. São Paulo, Brazil, 2008.
This work has the aim to understand the meaning of the devotion to Our Lady in oncologic
patients. When they come across the diagnosis of cancer, usually realized as a death
sentence, the patient search to understand the sense of being ill, of dying and of life itself.
This search for the sense, the spirituality, is not caused by the disease, but it can be revealed
by it. Among the countless possible results of the search for the sense, the religion receives
distinction here. The way each one stands before the beliefs, based as much on the culture
that they are inserted as on individual questions, promotes individual experience inside the
same religious perspective. Among the beliefs given by oncologic patients, I chose to treat
here the devotion to Our Lady. Brazil is a country of catholic majority, in which the
devotion to Maria is very much spread. From a case study, it was looked to point the
possible senses of the devotion to Our Lady. There was concluded that Maria represents for
the loyal ones a figure of intercession between God and the men and, mostly, a model of
surrender and full confidence. At moments of great difficulty before the disease and
treatment, Maria is seen as a mother, figure of support and acceptance, she re-understands
her son’s pains, she accompanies them and she appeals for them to do in accordance to the
Divine Will.
Key words: cancer, phenomenology, psicology, religiousness
SUMÁRIO
Página
Introdução
10
Capítulo I - O câncer: uma nova realidade para o paciente
16
1.1 Aspectos psicológicos do câncer 16
1.2 Caracterizando o câncer 20
1.3 Incidência 22
1.4 Diagnóstico, Estadiamento e Prognóstico 23
1.5 Tratamentos 25
1.6 Efeitos colaterais e toxicidade 26
1.7 Diante da morte 31
Capítulo II - O homem no caminho da fé
33
2.1 Sobre o homem 33
2.2 Em busca de sentido 35
2.3 Espiritualidade 36
2.4 Religião 37
2.5 Religiosidade 39
Capítulo III - Nossa Senhora 42
3.1 A devoção à Maria 43
3.2 Maria na Bíblia 43
3.3 Os dogmas marianos 48
3.4 A piedade popular 50
3.5 Maria, mãe dos doentes e necessitados 52
Capítulo IV: Caminho Metodológico
55
4.1 Objetivo 55
4.2 O caminho da pesquisa 60
Capítulo V: Lourdes 65
5.1. Descrição da entrevista 65
5.2. Análise da entrevista 86
5.3. Conclusão 100
Considerações finais
103
Referências Bibliográficas
105
Anexos
110
10
INTRODUÇÃO
De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?
Adélia Prado
Ousadia começar. Impossível uma conclusão definitiva. O tema escolhido para este trabalho
envolve dois assuntos que sempre me seduziram: a religiosidade e o sofrimento humano, aqui
representados pela devoção a Nossa Senhora e pelo adoecimento por câncer.
Justifico a construção deste trabalho pela necessidade de que nós, psicólogos, nos
embrenhemos na busca de um ser humano total, multifacetado, e que sofre por muitos
motivos, um deles, o de estar diante da morte. O diagnóstico de câncer tem o poder de
conscientizar o homem de sua finitude, por ser uma doença grave e que muitas vezes leva o
paciente à morte.
A percepção mais aguda da morte costuma aproximar o homem de questões fundamentais, da
busca de compreender qual o sentido da vida. O voltar-se do homem para estas questões
fundamentais resulta muitas vezes em um caminho de crenças religiosas.
Ainda que a relação entre religiosidade e doença seja apresentada constantemente no discurso
de pacientes das mais diversas patologias, a temática é pouco abordada academicamente,
merecendo estudos mais aprofundados e específicos.
11
Nosso país, prevalentemente católico, tem Nossa Senhora como um importante objeto de fé.
Como mãe, Nossa Senhora é continuamente evocada, principalmente diante do sofrimento e
fragilidade humanas.
É preciso esclarecer que mesmo sendo um tema que muito me instiga a estudar, não sou
particularmente devota de Nossa Senhora, nem muito católica. Nunca tive câncer ou outra
doença grave, nem nenhum de meus familiares, mas conheço muitas pessoas portadoras desta
doença. Pessoas com quem trabalhei, pessoas a quem me afeiçoei e com quem pude me
encontrar verdadeiramente e que mostraram em seu olhar o sofrimento, o medo, a fé e ao
mesmo tempo a esperança. Conforme ressalta Schopenhauer (APUD Campbell, 2002 ) “como
é possível que o sofrimento que nem é meu e nem me interessa me afete de imediato como se
fosse meu e com força tal a ponto de impelir-me à ação?”.
O interesse pela religiosidade como objeto de estudo surgiu durante o tempo em que estagiei
no setor de Pediatria da Santa Casa de Misericórdia de Belo Horizonte, entre os anos de 2000
e 2001. Este setor de comporta as mais diversas especialidades clínicas, mas a maioria das
crianças internadas sofre de patologias de alta gravidade como câncer e cardiopatia congênita.
Por tratar-se de patologias que envolvem risco de vida e um longo percurso de tratamento, era
comum que mães e crianças já estivessem acostumadas com a rotina de internações, com o
sofrimento físico, com a privação do lar, com um estado de apreensão pelo medo da morte das
crianças.
12
As mães, das mais variadas religiões, ou sem credo específico, pareciam buscar na fé consolo
por estarem ali, pelo seu sofrimento e da criança e depositavam muitas vezes sua esperança
nas mãos de Deus. Algumas vezes, uma mãe se revoltava contra suas crenças anteriores ao
adoecimento do filho. A barganha religiosa também era muito comum – vi mães oferecerem
sacrifícios e prometerem uma vida mais religiosa caso Deus salvasse seu filho.
A percepção de que minha postura como profissional deveria ser respeitosa e cautelosa em
relação à fé religiosa das pessoas já existia, mas muitas vezes, eu não soube como agir.
Certa vez, ao atender uma mãe cujo filho acabava de entrar para o bloco cirúrgico, disse que ia
rezar para que tudo desse certo. Uma outra mãe que estava ao lado me disse, então: “Nós
somos evangélicas, nós não rezamos, nós oramos”. Eu lhe respondi que minha intenção era a
mesma apesar de usar uma palavra diferente. A partir deste dia, em casos semelhantes, só
dizia: “Vou pedir a Deus que dê tudo certo”, ou no caso das pessoas não ser religiosa: “estou
torcendo por seu filho”. Esta última me entristecia, pois me sentia impotente ao dizê-la. Era
como se eu torcesse pela criança sozinha, como se não pudesse contar com um poder maior
que o humano.
Em outro momento, um menino de dez anos morreu durante uma cirurgia cardíaca. Foi um
choque para todos, equipe, família e vizinhos de enfermaria. Estávamos constantemente
preparados para a morte de uma das crianças da oncologia, mas eram raras as mortes por
cirurgias cardíacas. Na busca de apoiar a mãe, já que neste momento não é possível um
trabalho efetivamente terapêutico, procurávamos deixar que ela falasse da dor enorme que
sentia. Até que fomos interrompidos por outra mãe, evangélica fervorosa, que insistia que a fé
13
salvaria a criança, que Jesus havia ressuscitado Lázaro, e que se a mãe tivesse fé de verdade
ela encontraria o filho dela vivo de novo.
O ambiente hospitalar é impregnado de religiosidade. Nos atendimentos realizados pela equipe
de Psicologia, era freqüente que o tema viesse à tona. Mesmo entre a equipe médica era
comum dar um sentido religioso àquela realidade. Nos grupos de familiares, as mães
contavam o conteúdo de suas orações, de suas dúvidas sobre o porquê de estarem vivendo
aquilo tudo.
No atendimento às crianças, a temática religiosa também surgia, repetindo-se orações,
descrevendo-se as crenças da família e, as mais velhas trazendo questionamentos sobre o
sentido de estarem doentes. Um menino de nove anos, que aguardava uma cirurgia, gostava
muito de desenhar nos atendimentos. Freqüentemente fazia figuras em combate, com sangue,
armas, mas no mesmo desenho, sempre havia uma menção à religião: um anjo, uma igreja,
uma cruz. Era como se ele representasse a agressividade da situação que se encontrava, e a
necessidade de um amparo espiritual.
14
O fato de estarmos diante da morte iminente de uma criança, nos faz questionar muito o
sentido da vida. Isso nos coloca diante de nossa própria religiosidade.
Sou de família católica. Quando criança, estava sempre envolvida nas atividades da Igreja,
além de procurar sempre seguir o modelo cristão, através da bondade e da doação. Na
adolescência, me afastei dos rituais, mas sei como a religiosidade fez parte de minha
formação.
Através do estágio no setor de Pediatria, percebi o quanto parecia ser reconfortante muitas
vezes “colocar-se nas mãos de Deus”, ter certeza de que “Ele é que sabe o que é o melhor”,
em confiar que o filho “foi para um lugar muito melhor”, depois de uma vida curta, cercada
pelo sofrimento.
A partir da relação existente entre a religião e o suportar a doença tão importante e rica, que
escolhi este o tema para minha monografia de conclusão de estágio: “Pai, protegei o meu
filho” (VASCONCELOS, 2001, p. 12). Nesse trabalho, procurei focalizar o atendimento aos
familiares, em geral às mães, e o modo como estas expunham sua fé religiosa e davam sentido
à doença do filho através desta. Mães da mesma religião se comportavam muitas vezes de
forma quase antagônica. Enquanto algumas mães percebiam a doença do filho como um
castigo divino, outras acreditavam que Deus as estava amparando para que tudo desse certo e
que Ele protegeria a criança.
15
Mesmo percebendo alguns padrões de crença, pude observar como cada um se coloca na
própria fé. A questão não era a religião que a pessoa professava e como esta influenciava suas
atitudes, mas como cada um vivencia esta fé, sua religiosidade, que é subjetiva.
Muitos anos depois, passando por outras experiências como a clínica e a docência, a
religiosidade das pessoas ainda me encanta. Muitos psicólogos afirmam que este não é um
tema muito presente na clínica. Não concordo. Considero não só um tema freqüente, mas
relevante e cujas reflexões podem auxiliar muito no crescimento da pessoa.
Desta forma, defini, inicialmente, o tema desta dissertação como a religiosidade em pacientes
gravemente enfermos, posteriormente me limitando aos pacientes oncológicos, cujo
diagnóstico se assemelha às vezes com uma sentença de morte.
Realizei uma entrevista exploratória e nela ficaram evidentes as particularidades da fé em
Nossa Senhora durante o adoecimento e tratamento. De fato, grande parte das orações que vi
acontecer no setor de Pediatria dirigiam-se a Nossa Senhora.
A partir de minhas experiências e de minha prática como psicóloga clínica e como professora,
minha intenção é, agora, compreender mais esse fenômeno, tão relevante para os pacientes e
tão pouco estudado, a fim de despertar outros profissionais para a questão, tornando-a mais
clara aos olhos dos psicólogos e, assim, tema pertinente dentro do âmbito terapêutico.
16
Capítulo I : O câncer: uma nova realidade para o paciente
Não sem sofrimento, reconhece-se um ser-para-a-morte,
enxergando no câncer um atentado contra o seu poder ser (VALLE, 2004).
1.1- Aspectos psicológicos do câncer
A compreensão do câncer como doença não só física, mas afetada também por repercussões
sociais, psíquicas e espirituais, permite uma abordagem mais global do paciente o que além de
ser uma atitude respeitosa com o paciente, segundo pesquisas, aumenta sua possibilidade de
recuperação.
Pensamentos e sentimentos não provocam nem curam o câncer. Porém são um fator, e
dos mais importantes, que contribuem para a integração harmoniosa do ser humano
como um todo. Os sentimentos afetam a química do organismo, assim como a química
do corpo afeta os sentimentos (LESHAN, 1989:13).
Até o século XIX, era comum no círculo médico relacionar o câncer a fatores psicológicos.
Entretanto o desenvolvimento de técnicas cirúrgicas, porém, focalizou o câncer como doença
localizada em uma parte específica do corpo, e não como um aspecto do funcionamento global
do ser humano (LESHAN,1989).
Na Psicologia, a tentativa de relacionar as influências psíquicas ao adoecimento, em especial
ao câncer originou a Psicologia Oncológica, ou Psiconcologia, que vem sendo vanguarda nos
estudos da Psicologia da Saúde. Muito do conhecimento produzido hoje sobre as práticas
psicológicas hospitalares é relacionado ao câncer. Como a doença é reconhecidamente uma
enfermidade grave, grande parte dos estudos envolvendo o câncer pode ser generalizada para
outras patologias.
17
A Psiconcologia tem dois focos principais de estudo: o primeiro visa conhecer tipos de hábitos
e comportamentos que aumentam a chance do desenvolvimento do câncer, a partir de
fundamentos da Psicossomática. O segundo busca compreender os impactos do câncer sobre a
vida e hábitos do paciente, e então desenvolver meios para melhorar sua qualidade de vida
(GIMENES, 2003).
Neste trabalho sigo esta vertente da Psiconcologia, e procuro compreender o significado da fé
em Maria nos pacientes com câncer. Devido a esta escolha, limitar-me-ei a discutir a como a
fé é vivenciada pelo paciente, sem me ater aos aspectos curativos da fé, o que tornaria a
pesquisa exaustivamente grande.
O diagnóstico de câncer é vivenciado por muitos pacientes como uma sentença de morte, a
despeito da evolução dos tratamentos e do grande índice de cura alcançado atualmente. Além
da diminuição brusca da perspectiva de vida, o paciente oncológico enfrenta perdas muito
significativas, como a mudança de suas funções dentro da família, nos relacionamentos sociais
e na vida profissional. O tratamento do câncer pode acarretar constantes internações,
vivenciadas muitas vezes como isolamento, abandono, rompimento de laços afetivos
(MORAES, 2003).
O conjunto de reações de uma pessoa à perda significativa constitui o luto. O luto pela morte
de um ente querido é visto como acontecimento importante e até óbvio, mas o luto por perdas
menos evidentes muitas vezes é subestimado (PARKES, 1998).
18
Quando uma pessoa se encontra diante de perdas tais como as acarretadas pelo câncer, dentre
elas a da perspectiva de vida, da auto-imagem e de muitos de seus papéis, necessita vivenciar
um processo de reajustamento, de adaptação – o enlutamento (BROMBERG, 2000).
O luto em si já é capaz de provocar sintomas físicos e afetar o sistema imunológico,
aumentando a possibilidade do aparecimento de doenças. Segundo Parkes (1998), existem
indicadores de que após uma experiência de luto, muitas pessoas procuram o médico e
apresentam queixas físicas relacionadas ao sofrimento da perda.O paciente oncológico já
enfrenta uma doença séria e um tratamento desgastante. A vivência deste luto e os sentimentos
relacionados a ele podem agravar o quadro clínico do paciente. É importante, desta forma,
observar se o processo de luto vem sendo vivido de modo natural, não patológico. O luto
normal não implica em luto sem sofrimento. Ele apresenta uma sucessão relativamente regular
de quadros clínicos, que sofrem variações individuais (BROMBERG, 2000), a saber:
1.1.1-Entorpecimento – a primeira reação diante da perda é o choque e a sensação de estar
perdido diante da nova realidade. Neste primeiro momento, comumente acontece a negação da
realidade da perda, uma forma de defesa diante de algo de difícil aceitação.
1.1.2-Anseio e protesto – após o choque, é comum haver um período de grande sofrimento
psicológico e agitação física, quando ocorre a maior consciência da realidade da perda. É
natural o sentimento intenso de raiva, pois junto à consciência da perda existe um forte desejo
de que ela não seja verdadeira.
19
1.1.3-Desespero – depois de um certo tempo que ocorreu a perda, inicia-se uma fase de apatia
e depressão, que pode gerar o afastamento das pessoas e a perda do interesse por atividades.
1.1.4-Recuperação – os momentos de alegria e esperança tornam-se cada vez mais
freqüentes. O enlutado passa a aceitar a perda, o que leva à construção de uma nova
identidade. A aceitação da perda não implica a anulação da lembrança, da saudade e de
sofrimentos eventuais.
Para Bromberg (2000), a recuperação no luto se dá através de duas mudanças psicológicas: o
reconhecimento e a aceitação da realidade, e o lidar com as emoções e os problemas
decorrentes dessa perda.
O acompanhamento psicológico pode auxiliar na recuperação do paciente, contribuindo para a
promoção de sua qualidade de vida. No caso dos pacientes oncológicos, o acompanhamento
psicológico pode, além de evitar o agravamento da sintomatologia pela vivência do luto,
aumentando a expectativa de vida; fornecer ao paciente um espaço para falar livremente sobre
o adoecimento, já que muitas vezes o paciente percebe que suas queixas são incômodas e
passa a representar um papel de paciente resignado, buscando diminuir o impacto da sua
doença na família e na equipe médica. O acompanhamento à família propicia, ao lado disto,
uma compreensão de que são naturais expressões de revolta e tristeza, sendo importante para o
paciente poder expressá-las, sem sentir que há um risco de decepcionar sua família e de ser
abandonado.
20
Os objetivos principais do acompanhamento psicológico ao paciente oncológico e a sua
família são o alívio da ansiedade no período pós-diagnóstico; a ressignificação de algo que não
se pode altera, no caso a facticidade de ser acometido por um câncer; e a busca do resgate da
subjetividade, conscientizando o sujeito de sua responsabilidade diante das escolhas possíveis
(VALLE, 2004).
Ser ouvido, ajudado, esclarecido e orientado nesses encontros dão-lhe a oportunidade
de elaborar as informações médicas – freqüentemente transmitidas em uma linguagem
científica, matemática, precisa, de construir a sua história da doença e sua participação
nessa história, de refletir sobre as experiências que está vivenciando (VALLE,
2004:90).
Para uma compreensão mais ampla da vivência do paciente oncológico, considero importante
salientar alguns conceitos relativos ao câncer e como a doença e o tratamento impactam seu
corpo.
1.2- Caracterizando o câncer
O câncer é uma doença que se inicia com a mutação dos gens de uma célula. Segundo
Yamaguchi (2003), várias mutações são necessárias para que uma célula adquira um fenótipo
de malignidade, isto é, torne-se uma célula cancerosa.
As células normais do corpo multiplicam-se de forma a preencher as necessidades orgânicas.
Assim, quando morre determinado número de células de um tecido ou órgão, as células
vizinhas iniciam a multiplicação de forma a substituir o tecido lesado. A multiplicação se dá
através de um processo denominado mitose. Na mitose, a partir de uma única célula são
21
geradas duas células com carga genética idêntica. Alguns tecidos do corpo sofrem mais
renovação celular, suas células morrem mais facilmente e têm de ser constantemente
substituídas como, por exemplo, as células das mucosas e do sangue.
Existe um sistema de feedback em resposta à morte celular que sinaliza para que novas células
iniciem a reprodução dentro de um determinado limite. As células cancerosas não obedecem a
esse limite e proliferam-se excessivamente (BONASSA, 2005). Assim, as células cancerosas
multiplicam de forma exagerada, formando o tumor que, gradativamente, torna-se perceptível.
Como o tumor não obedece ao sistema de feedback, ele adquire um tamanho em que passa a
haver escassez de oxigênio e nutrientes; nesta etapa há uma desaceleração no crescimento
tumoral.
Enquanto cresce, o tumor costuma invadir tecidos vizinhos. O tumor tem também a
capacidade de se disseminar por tecidos distantes do foco inicial, o que é denominado
metástase. A forma mais comum de metástase é quando células cancerosas se desprendem do
tumor e alcançam a circulação linfática, podendo chegar a outras partes do corpo e se
alojarem, gerando um novo tumor (BONASSA, 2005).
As mutações celulares, que tornam as células cancerosas, são freqüentes nos organismos, mas
tendem a ser percebidas pelo sistema imunológico e atacadas.Em outras palavras, as células
cancerosas, quando percebidas, são combatidas pelo sistema imunológico, pois sofreram
mutações e não cumprem a função do tecido de origem. Quando há uma falha no sistema
22
imunológico, como fragilidade física ou emocional, a proliferação das células neoplásicas
passa despercebida e o sistema imunológico não reage (BONASSA, 2005).
1.3-Incidência
O câncer é hoje, no Brasil, a terceira maior causa de morte entre os homens e a segunda entre
as mulheres, ficando atrás apenas das doenças cardiovasculares e por causas externas.
A proporção de óbitos por câncer vêm aumentando, em parte, devido ao controle de doenças
com potencial de morte como as doenças transmissíveis e infecciosas e ao aumento da
sobrevida da população, mas também a maior detecção da doença.
Na medida em que a população envelhece, aumenta a tendência para surgimento das
neoplasias, já que quanto mais idoso o corpo, mais tempo ele tem de exposição a fatores de
risco e maior a chance de mutação das células. Embora o câncer acometa todas as faixas
etárias, é entre a população com mais de 65 anos que grande parte da enfermidade aparece.
Mesmo sendo a causa principal de muitos óbitos, o câncer é, hoje, considerado uma doença
crônica, com a qual o indivíduo pode conviver por muitos anos. Os tratamentos de combate ao
câncer buscam, atualmente, proporcionar ao paciente um aumento da sobrevida e melhora da
qualidade da vida com a doença.
Segundo Smeltzer & Bare (2000), cerca de 85% dos casos de câncer sofre a influência do
ambiente, o que justificaria a maior incidência da doença em sociedades mais industrializadas.
23
Os hábitos da vida moderna como o consumo excessivo de gorduras, pouca atividade física,
obesidade, consumo de álcool e cigarro, além da exposição à poluição e ao estresse têm
contribuído para o aumento dos índices de câncer.
De acordo com Yamaguchi (2003), cerca de 40% dos casos de câncer poderiam ser evitados,
mas para isso seria necessária uma mudança radical nos hábitos de vida da população,
diminuindo-se a exposição aos fatores de risco.
1.4-Diagnóstico, Estadiamento e Prognóstico
A partir da fase de maior crescimento do tumor, quando este, conforme sua localização, pode
se tornar visível, é que a doença é mais facilmente detectada. Havendo suspeita de câncer, são
realizados os procedimentos diagnósticos para confirmar sua presença.
O diagnóstico inicia-se com a retirada de células da massa tumoral, através de biópsia ou
punção para análise citológica. Outra forma de diagnóstico do câncer se dá quando o
funcionamento de algum órgão acometido é prejudicado, levando a equipe médica a investigar
esse comprometimento através de exames de imagem como ultrassonografia, tomografia,
ressonância magnética e outros.
Se o diagnóstico do câncer é confirmado, inicia-se a etapa de estadiamento, investigando qual
a extensão da doença: o tamanho do tumor, invasão em outros órgãos, metástase. A
classificação dos tumores mais utilizada, TNM, busca verificar o estádio em que a doença se
24
encontra no organismo, levando-se em conta a extensão do tumor primário (T), a presença ou
não de metástase em linfonodo regional (N) e a presença ou não de metástase à distância (M)
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2004).
Nesta etapa é também avaliado o grau de diferenciação das células tumorais. As células
cancerosas são semelhantes morfologicamente às células do tecido do qual se originam.
Assim, sua velocidade de multiplicação e resistência podem ser avaliadas descobrindo de qual
tecido se originaram, o que pode auxiliar na delimitação do prognóstico.
As células cancerosas podem variar em grau de semelhança daquelas dos tecidos dos quais se
originaram. Quanto mais as células forem semelhantes morfologicamente ao tecido de origem
quanto à estrutura ou função, menos agressivo tende a ser o tumor e melhor resposta tende a
dar aos tratamentos (SMELTZER & BARE, 2000).
A partir dos dados fornecidos pelos exames diagnósticos e de estadiamento, a equipe médica
costuma traçar um prognóstico, isto é, tomar conhecimento das possibilidades de cura ou de
controle da doença e a partir daí, estabelecer o tipo de tratamento a ser feito. O prognóstico
pode ou não ser revelado ao paciente.
Os exames para controle da evolução da doença e resposta ao tratamento continuam a ser
feitos durante todo o período e após o tratamento e a expectativa em relação aos resultados
geram ansiedade no paciente e na família.
25
Mesmo conhecendo o fato de que a maioria dos casos de câncer hoje são passíveis de cura ou
estabilizados com o tratamento, o diagnóstico de câncer ainda é visto como sentença de morte
para muitos.
No Brasil, é comum a família solicitar uma entrevista prévia com o profissional que cuidará do
doente oncológico, e existe uma resistência de informar ao paciente que ele tem câncer
(YAMAGUCHI, 2003). Como é uma doença relacionada à morte e incapacitação, os
familiares tendem a tomar a frente no tratamento, buscando preservar o doente de maior
sofrimento.
1.5- Tratamentos
As tentativas de cura e controle do câncer desenvolveram-se no final do século XIX, com a
evolução das cirurgias para retirada do tumor. As técnicas cirúrgicas da época eram bastantes
radicais e era comum a mutilação do paciente.
Em 1920, a radioterapia começou a ser utilizada, mas, exclusivamente em pacientes cujos
procedimentos cirúrgicos não eram suficientes para eliminar todo o tumor (YAMAGUCHI,
2003).
No início dos anos 40, começaram a ser utilizados hormônios para os tratamentos de tumores
na mama e na próstata (BONASSA, 2003). No final dos anos 40, surge o primeiro agente
quimioterápico anticâncer.
26
Desde então desenvolveram-se muitas técnicas para diagnóstico e tratamento, e a medicação
evoluiu consideravelmente.Atualmente, a grande preocupação dos pesquisadores, além de
aumentar a eficiência dos tratamentos, é a de que os tratamentos existentes passem a atingir
com mais exclusividade as células cancerosas e assim provoquem menos efeitos adversos.
Os tratamentos contra o câncer disponíveis hoje são bem variados. A escolha de qual
tratamento ou combinação de tratamentos será utilizado depende da avaliação diagnóstica e da
orientação teórica do médico. Muitas vezes, a família e o próprio paciente participam da
decisão sobre tratamento a ser adotado. Os tratamentos mais freqüentemente utilizados hoje
em dia são a cirurgia, a radioterapia, a quimioterapia e a terapia biológica.
1.5.1- Cirurgia
A remoção cirúrgica é um dos métodos mais antigos de abordagem do câncer, e segundo
Smeltzer & Bare (2000), o mais eficiente e mais utilizado. A cirurgia pode ser utilizada no
tratamento do tumor primário, removendo-se todo o tumor. A excisão pode ser localizada,
quando o tumor é pequeno, retirando-se junto ao tumor uma margem de tecido sadio por
segurança, ou pode ser ampla removendo junto ao tumor nódulos linfáticos e estruturas
adjacentes. A excisão ampla muitas vezes causa alterações estéticas e funcionais, e é utilizada
quando existe chance real de cura ou acometimento de áreas vizinhas.
27
Outra abordagem de tratamento é a cirurgia de salvamento, utilizada quando há recidiva, isto
é, retorno da doença localizada, nela amplia-se a excisão local feita anteriormente.
O paciente com câncer pode passar por outras cirurgias que não visem o tratamento direto do
câncer. A biópsia é cirurgia com fim diagnóstico; a cirurgia profilática para remover tecidos
com possibilidade de desenvolver câncer; a cirurgia reconstrutiva, que visa corrigir
funcionalmente ou esteticamente uma região lesionada pela doença ou a cirurgia ampla e, por
fim, a cirurgia paliativa busca o conforto para o paciente com pouca possibilidade terapêutica,
a fim de aliviar as complicações advindas da doença, melhorando sua qualidade de vida pelo
maior tempo possível (SMELTZER & BARE, 2000).
1.5.2- Radioterapia
A radioterapia é o emprego de radiação ionizante que destrói a capacidade da célula cancerosa
de crescer e multiplicar-se, e em menor proporção, mata células cancerosas. É um tratamento
localizado, utilizado por cerca de 60% dos pacientes oncológicos, de forma isolada ou
combinada a outros tratamentos (OTTO, 2002).
A radiação pode ser utilizada com o objetivo de curar o câncer ou de controlar a doença
quando o tumor não puder ser removido cirurgicamente. Um tumor tem mais vulnerabilidade à
radiação quando está passando por freqüentes mitoses, é na fase de multiplicação que a
radiação consegue melhores resultados (SMELTZER & BARE, 2000).
28
A radioterapia pode ser administrada de forma externa (teleterapia) ou interna (braquiterapia).
A teleterapia é mais extensivamente usada, sendo substituída pela braquiterapia quando é
necessária uma dose maior de radiação e os tecidos vizinhos correm risco de lesão.
A dosagem de radiação é definida de acordo com a vulnerabilidade do tumor. Como a
radiação também danifica os tecidos saudáveis, a radiação necessária é dividida em várias
sessões e aplicada com intervalos que permitam a reconstituição dos tecidos normais.
1.5.3- Quimioterapia
A quimioterapia antineoplásica utiliza agentes químicos isolados ou conjuntamente visando
tratar os tumores (BONASSA, 2005). É uma modalidade de tratamento sistêmico que permite
o tratamento precoce de metástases não detectáveis.
A quimioterapia pode ser aplicada anteriormente à cirurgia, de forma a reduzir o tamanho do
tumor e permitir uma cirurgia mais conservadora. É aplicada isoladamente ou em conjunto
com outras modalidades de tratamento (OTTO, 2002).
Assim como a radioterapia, a quimioterapia tem maior resultado em tecidos com rápida
multiplicação, cujas células encontram-se em fase de mitose. Quando o tumor já atingiu um
tamanho que lentifique sua multiplicação, pode ser necessária uma cirurgia para eliminar parte
do tumor, propiciando novamente um crescimento acelerado e assim, tornando as células
cancerosas mais vulneráveis à quimioterapia (OTTO, 2002).
29
Existem, hoje, inúmeros agentes quimioterápicos, e é comum usar alguns deles de forma
combinada. Desta forma, atinge-se uma quantidade mais significativa de células cancerosas e
evita-se que essas, passíveis de mutação, desenvolvam resistência ao agente quimioterápico.
Considera-se que em cada aplicação de quimioterápicos podem ser destruídas de 20 a 99% das
células cancerosas, conforme a dosagem de quimioterápicos e a sensibilidade do tumor ao
medicamento. As células cancerosas não costumam ser totalmente destruídas pela
quimioterapia, mas espera-se que o pequeno número de células remanescentes seja eliminado
pelo sistema imunológico do organismo.
1.5.4- Terapia Biológica e Terapia Alvo
A terapia biológica, também denominada imunoterapia, é uma modalidade muito recente no
tratamento do câncer. Segundo a Divisão de Tratamento de Câncer do Instituto Nacional do
Câncer Americano, a terapia biológica busca modificar a relação entre o tumor e o organismo
hospedeiro, alterando a resposta do organismo às células tumorais (OTTO, 2002).
Os modificadores de resposta biológica, substâncias utilizadas nesse tratamento, buscam
interferir nessa relação alterando os mecanismos imunológicos; diminuindo efetivamente o
tumor ou influenciando em outras atividades biológicas como alteração da diferenciação
celular, o que facilitaria a ação de outros tratamentos (OTTO, 2002).
Outra forma de tratamento que vem sendo utilizada é a Terapia Alvo. A Terapia Alvo utiliza
anticorpos monoclonais no tratamento do câncer, e estes afetam exclusivamente as células
30
doentes, preservando as saudáveis e reduzindo de modo significativo efeitos colaterais como
náuseas, perda de cabelos e queda de resistência imunológica.
1.6-Efeitos Colaterais e Toxicidade
Os efeitos colaterais dos tratamentos de câncer são muitas vezes mais temidos que a própria
doença em si.
A cirurgia oncológica é, como as demais técnicas cirúrgicas, invasiva, e pode ocasionar
complicações pós-operatórias além dos riscos inerentes à cirurgia. Quando utilizada para
retirada de um tumor gera ansiedade no paciente e nos familiares por ser desconhecida sua
extensão exata até o momento em que acontece.
A radioterapia e a quimioterapia têm um impacto no organismo anteriormente esperado. A
radioterapia, por ser um tratamento localizado, tem efeitos colaterais mais limitados que a
quimioterapia e que dependem da área atingida pela radiação. Como a radiação afeta também
as células saudáveis, principalmente as que se proliferam com rapidez, tecidos como a pele, as
mucosas gastrointestinais e a medula óssea costumam ser mais acometidos. É comum que o
paciente submetido à radioterapia sinta fadiga, mal-estar, dores de cabeça, náuseas e tenha
vômitos (SMELTZER & BARE,2000).
A toxidade da quimioterapia é maior por se tratar de uma abordagem sistêmica de
enfrentamento do câncer. As células de crescimento rápido são mais atingidas a curto prazo. A
31
produção da medula óssea pode diminuir, causando anemia e leucopenia. Alguns
quimioterápicos podem ainda, em doses repetidas, causar lesões neurológicas. Os testículos e
os ovários também podem ser afetados, resultando em infertilidade.
Os efeitos colaterais mais comuns em pacientes que recebem a quimioterapia são náuseas e
vômitos que, atualmente, são medicados para minimizar o desconforto. Também é comum que
a alopecia, ou queda de cabelos, ocorra durante o tratamento. Embora a queda de cabelos
tenha uma importância menor em um momento em que o principal é preservar a vida, ela
costuma comprometer a auto-imagem, já afetada, do paciente.
1.7-Diante da morte
Receber o diagnóstico de um câncer, perder os cabelos, o apetite, o ânimo de fazer coisas.
Aproximar-se da morte. Mesmo com recursos tecnológicos cada vez maiores para um
diagnóstico preciso e tratamento eficaz contra o câncer, ao se defrontar com a doença o
paciente costuma perceber a morte como possibilidade real e palpável.
Segundo Heidegger (1967), o homem é um ser-para-a-morte. É a consciência de que irá
morrer um dia que norteia o ser humano no seu percurso pela vida: é a partir do conhecimento
da morte, da temporalização da vida, que o homem atribui um sentido a existência. “É um
sentido de tempo que organiza as experiências vividas pelo indivíduo ao longo de sua vida,
dando a ele uma representação de si mesmo” (SAFRA, 2005:58).
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Ao mesmo tempo em que tem consciência de sua finitude, no dia a dia, é muito raro pensar
nela, conduzindo a vida como se fosse eterna ou com uma duração pré-determinada.
A vivência de uma doença grave como o câncer comumente traz à tona esta limitação de
tempo, podendo aumentar a angústia do homem como um ser jogado a uma realidade árida,
que precisa se adaptar a ela.
Esta vivência muitas vezes foi correlacionada a aproximação da fé religiosa. De acordo com
Campbell (2002), uma das funções desta fé é a de conduzir o indivíduo através dos estágios e
crises da vida.
Ao lidar com doentes internados e seus familiares, pude perceber que o adoecimento grave
coloca as pessoas diante de um posicionamento religioso. A crise parece ter o poder de
fomentar dúvidas existenciais, que não mais podem ser acalmadas pela busca de prazeres
fulgazes. É comum uma aproximação do sagrado tanto das pessoas já religiosas como das não
religiosas. Esta aproximação nem sempre se dá como adesão religiosa podendo ser, ao
contrário, um afastamento da fé propagada anteriormente à doença. Campbell (2002) coloca
que outra importante função das religiões é interpretar a ordem do universo, atribuindo um
sentido aos acontecimentos.
33
Capítulo II : O homem no caminho da fé
Não me importa a palavra, esta corriqueira(...) A palavra
é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada
Adélia Prado
2.1. Sobre o homem
Um ser incompleto, inacabado. Um ser de desejo, insatisfeito por natureza. Ser de busca:
“quem sou, de onde vim, para onde vou?” Ainda que procuremos definir o que ou quem é o
homem, esta tarefa se faz de antemão fracassada: o homem é portador de infinitas
características e possibilidades, muitas delas presentes em toda a espécie, e, tantas outras que
se concretizam individualmente. Mesmo se conseguíssemos realizar a árdua busca de
contabilizar todas as suas características, ainda assim, não chegaríamos ao que é o homem.
Mais do que um produto, somatório de qualidades, o homem é dinâmico, vivendo em um
contínuo processo de vir-a-ser. Muito diferente dos demais animais, o homem não é só o que
possui, mas tem a marca da liberdade: perceber opções e ter que escolher qual caminho seguir.
Um ser em dinâmica transformação, não só de suas características próprias, mas do mundo a
sua volta. Neste encontro homem/mundo ambos são constantemente transformados.
A Psicologia Fenomenológica não busca explicar o que é o homem nem quais são suas
características. Percebendo o homem como ser de relação, a fenomenologia almeja
compreender como é para o ser humano vivenciar determinada situação.A compreensão de
como é o homem pode ser buscada através do entendimento de suas vivências. Para a
Psicologia Fenomenológica, para compreender o homem é necessário concebê-lo na própria
34
realidade em que este se insere. É próprio do ser humano, faz parte da sua subjetividade não
ser puramente, o homem é um ser para (ALES BELLO, 2004).
A Psicologia Fenomenológica tem como pressuposto básico a intencionalidade humana. O
homem se volta para o mundo constituindo-o e também a si mesmo de forma unívoca, através
de seus atos de consciência: sentidos, percepções, memórias, pensamentos. O ser humano se
constrói sempre nesta relação com o mundo. Mesmo quando não está se relacionando
diretamente com o mundo, como quando está pensando, sonhando ou recordando fatos, o
homem parte sempre de uma experiência com a realidade. Podemos considerar o homem
como um sistema aberto, que é afetado, a todo momento, pelo contato com a realidade
circundante e também a transformando.
Para Winnicott (1975), o homem traz consigo uma tendência a crescer, a se relacionar, a se
integrar, amadurecer. A partir dessa tendência, em seu caminho de vida, tem possibilidades
únicas e pode escolher. Assim, vai desenhando o seu próprio caminho e este caminho acaba
por constituir cada homem como exemplar único, singular.
Em tudo o que deseja e faz, o ser humano manifesta que não é um ser pleno: deve
crescer biologicamente, aprender intelectualmente, preparar-se para tudo, buscar
metas, melhorar a saúde, aspirar a uma vida melhor, reiniciar uma e outra vez
caminhos novos; ainda na véspera da morte, sente que tem de fazer algo para ser o
que ainda não é. É um ser que está sempre em busca. Essa é uma característica
fundamental do ser humano (CROATTO, 2001:15).
Winnicott (1975) considera que o processo de amadurecimento humano está fortemente ligado
às primeiras experiências da vida e que somente um ambiente facilitador pode acolher a
tendência ao amadurecimento e propiciar o processo de crescimento e integração. Estas
35
primeiras experiências são essenciais para o desenvolvimento da confiabilidade humana,
fundamental para a posterior vivência de fé.
Miller (2004), da mesma forma, vincula as primeiras relações com a possibilidade de crença
religiosa. Para a autora, é necessário que haja uma relação de confiança com a figura materna
para o desenvolvimento da fé em um Deus de bondade ou, ao menos, justo.
2.2. Em busca de sentido
Em tudo o que faz, o ser humano busca dar sentido ao mundo e a si próprio. O homem é um
ser que pergunta, se angustia e busca significados. Segundo Frankl (1990), a busca de
significado para a vida está relacionada à constatação de que a vida tem sempre um sentido,
mesmo que desconhecido e a crença na impossibilidade de um sentido, para o autor, pode
levar ao desespero.
Aletti (2005) coloca que as questões sobre o significado da vida são universais, já que faz
parte da experiência do homem perguntar-se sobre os fenômenos que não consegue
compreender: a origem, a morte, o mal. O homem traz essas questões consigo enquanto ser
humano, e a cultura da qual faz parte lhe oferece respostas, as quais ele adere ou não,
conferindo através de sua escolha sentido as suas experiências. Portanto, para as mesmas
perguntas existenciais, são possíveis inúmeras e polimórficas respostas singulares e culturais.
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A resposta à busca pelo sentido da existência é, portanto, nomeada pela cultura em que o
indivíduo se insere, mas, é também uma resposta que se configura na subjetividade, de acordo
com as experiências pessoais vividas na realidade circundante. A cultura tem o poder de
apontar sistemas de crenças estabelecidos historicamente, mas é muito pessoal o modo de cada
um vivenciar essa realidade e se apropriar dela.
2.3. Espiritualidade
De acordo com Valle (1998) e Giovanetti (2005), a busca pelo sentido da existência configura
a espiritualidade constitutiva do ser humano o que não implica, como comumente se julga, que
o homem já traga em si a fé em um ser sagrado, no transcendente ou tenda obrigatoriamente à
adesão a um sistema religioso. Para Giovanetti (2005), a espiritualidade é uma experiência
subjetiva, na qual o ser humano realiza um profundo mergulho em si mesmo, buscando
experienciar a realidade como um todo, com a qual se sente integrado.
Para Ancona-Lopez (2005), a espiritualidade caracteriza-se como um sentimento oceânico, ou
seja, dinâmico, vital, criativo que se relaciona, ou não às religiões institucionalizadas.
Consideramos que espiritualidade não está necessariamente vinculada a algum tipo específico
de crença, ela constitui mais do que tudo um movimento de busca, um colocar-se diante do
mistério, o que muitas vezes encontra expressão em uma religião, e assim, pode ser
compartilhada com pessoas do mesmo credo.
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De fato, a busca pelo sentido da vida freqüentemente aponta para um caminho de fé, de
procura do sagrado.Para Aletti (2005), a religião dá nome ao objeto de desejo humano, que
nasce da condição de incompletude do homem.
2.4. Religião
A religião, sistema simbólico de crenças, oferece uma resposta cultural à questão do sentido e
à vivência da espiritualidade. Quando vivida apenas como ritual mecanizado, sem sentido
experiencial, a religião perde seu potencial de transcendência e se esvazia da busca de um
sentido maior.
Desta maneira, a fé torna-se corrompida, tomando a forma de ideologia (...) Os
objetos religiosos são reduzidos a talismãs, e a criatividade, imaginação e habilidade
para brincar se deterioram em atos estereotipados e repetitivos. Os símbolos
religiosos degeneram-se em realismo e fundamentalismo literal aplicado aos textos
sagrados (ALETTI, 2005:08).
Enquanto resposta cultural, a religião é composta de mitos, crenças que os fiéis compartilham
a respeito do divino e a constituição da relação entre o divino e a humanidade e também dos
ritos que atualizam os mitos e rememoram os primeiros tempos, aproximando o fiel do
“Divino” (VALLE, 1998).
De acordo com Campbell (2002), as religiões apresentam através de mitos, historicamente
condicionados, o mistério que atinge todos os homens. Segundo o autor, alguns mitos mostram
elementos comuns independentes da proximidade física e cultural do povo, o que reforça a
idéia de que há padrões que se repetem.
Para Campbell (2002), a religião tem funções de grande importância social e pessoal:
harmoniza a consciência com as pré-condições da existência, como a finitude e a
fragilidade humana,
38
apresenta uma imagem consistente da ordem do universo, imprimindo sentido aos
acontecimentos,
dá validade e respaldo a uma ordem moral específica,
conduz a pessoa através das várias crises da vida, tais como nascimento, morte,
adoecimento.
Campbell (2002) categoriza as religiões a partir da relação com o divino que estas
estabelecem. Segundo religiões orientais como o Budismo e o Hinduísmo, o divino está em
cada um e se revela à medida que conseguimos desenvolver determinadas características. Nas
grandes religiões ocidentais, como o Judaísmo, o Islamismo e o Cristianismo, o divino é visto
como externo ao humano, a perfeição inalcançável, de que o homem se aproxima através do
vínculo com a instituição religiosa. “Como nós conseguimos, entretanto, a necessária relação
com Jesus? Através do batismo e, com isto, nos tornando membros da sua
Igreja”(CAMPBELL, 2002:25)
Para Otto (1992), o Sagrado é o totalmente outro, e sua busca tem como marca a permanência
do mistério, pois este não pode nunca ser abarcado pela compreensão humana. O
conhecimento do Sagrado não é conhecimento do Sagrado em si, já que este permanece
oculto, mas das vivências e reações pessoais em relação as suas manifestações.
Otto parte de sua vivência pessoal de fé cristã. Para ele, na vivência do Sagrado a pessoa se
descobre como ser dependente, nada mais do que simples criatura, que necessita da potência
divina. O Sagrado é visto como algo desconhecido que permanece sempre misterioso já que a
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capacidade humana não consegue desvendá-lo. O Sagrado traz ao ser humano uma vivência
ambígua: ele fascina, como mistério gerador de salvação por seu poder, e causa temor, pela
desigualdade de forças e extrema dependência do homem. O paradoxo inerente ao Sagrado,
algo que se teme mas, diante do qual não é possível resistir, mostra o encanto possibilitado
nesta relação: algo que desejamos mais do que tudo, mas diante do qual somos tão
insignificantes que dele nos distanciamos reverentemente (OTTO,1992).
2.5. Religiosidade
Em Psicologia da Religião, não se busca compreender a religião em si, enquanto instituição,
mas sim, a experiência religiosa da pessoa.Afirma Aletti (2005) que cabe à psicologia
entender o processo da crença religiosa e não opinar sobre a validade da crença.
Compartilhando desta idéia, Ancona-Lopez (2005), considera ser preciso ver como a pessoa se
apropria da religião que lhe é culturalmente oferecida, e como a incorpora subjetivamente,
colorindo-a de forma pessoal.
Cada religião, embora apresente estruturas razoavelmente estáveis em seu aspecto
institucional, é vivida de maneira muito específica e precisa ser conhecida no modo
como foi apropriada e é experienciada individualmente. (ANCONA-LOPEZ,
2005:75)
A doença, com seu risco de morte iminente, põe o homem ante sua relação ao Sagrado. A
debilidade física o coloca em situação de maior dependência: o Sagrado, ou Deus, é
comumente procurado como quem a provocou, deixou que acontecesse mas, também, como
quem pode acabar com o sofrimento ou dar a ele um outro sentido.
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Diante do diagnóstico de câncer, a religiosidade freqüentemente aflora na sede de
compreender a doença, de encontrar um sentido para ela. Para Frankl (1990), tal como o amor
e a paixão por uma causa, o perceber-se sofredor dota de sentido a vida, já que toda vida é
permeada pelo sofrimento.”De que outra forma senão sob golpe de martelo, no calor do nosso
sofrimento assim gerado, teria nossa vida adquirido forma e corpo?” (FRANKl,1990:73)
O significado dado à doença, ao sofrimento, pela pessoa dependerá de seu posicionamento
diante da vida. A atribuição de um sentido religioso a essa realidade está vinculada à vivência
da pessoa diante da fé e à sua religiosidade, mais do que aos dogmas da religião que segue
oficialmente. Desta forma, pessoas que participam da mesma comunidade religiosa e cultivam
aparentemente os mesmos valores e crenças podem reagir de forma diferente e até antagônica
diante do adoecimento (TETZNER, 2005).
A vivência da fé no Sagrado apresenta diferenças significativas, principalmente, em situações
de doença. Muitas pessoas vêem suas possibilidades de cura e o tratamento em si como
dádiva de Deus, mas é comum, principalmente no início da doença, a idéia de punição divina.
A crença na punição divina ainda que atribua significado negativo à religião, dota de sentido a
realidade da doença. Pargament (1997) afirma que o entendimento da doença como castigo,
em geral entendido como um ponto negativo à adesão religiosa, provoca menos sofrimento
que o vazio causado pela falta de significado da doença e da providência divina.
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A religiosidade diante da doença, especificamente do câncer, pode emergir em pessoas que já
participam de alguma religião, mas o momento da doença e tratamento abre caminho para a
vivência da religiosidade mesmo em pessoas não vinculadas com nenhuma crença.
É comum a conversão diante de um diagnóstico difícil, e que os religiosos que visitam
hospitais e casas de apoio no intuito de oferecer consolo no momento da doença, contribuindo
para uma possível uma adesão ou conversão religiosa, sejam bem recebidos pelos doentes.
Dentre as formas de religiosidade freqüentemente expressas pelos pacientes diante do
sofrimento do adoecer encontra-se no Brasil, país de cultura cristã, a devoção a Nossa
Senhora. Maria é vista como uma pessoa santa, que sofreu muito por seu filho e conhece bem
a dor.
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Capítulo III : Nossa Senhora
Eu vou pedir para alguém que está mais perto de nós,
pra gente que é gente mesmo. Meu trunfo é maior
que qualquer santo (...). Valei-me Nossa Senhora,
mãe de Deus de Nazaré.
(João Grilo, em O Auto da Compadecida)
3.1. A devoção à Maria
Maria de Nazaré, Virgem Maria, Mãe de Deus, Nossa Senhora. São muitas as formas a que os
fiéis se referem à Maria. Dentre os cristãos, os católicos têm uma ligação especial com Maria.
Faz parte da identidade católica a devoção a Nossa Senhora, mãe de Jesus. Imagens e estátuas
da Virgem encontram-se espalhadas nos países católicos e a “Ave Maria” é, depois do “Pai
Nosso”, a oração mais conhecida e rezada pelos fiéis.
Os fiéis devotam-se à Maria de forma particular: rezam o terço, fazem novenas, usam
escapulários. As romarias são também características da fé em Maria, junto a inúmeras festas
em seu nome e promessas a ela dirigidas. A presença de Maria como objeto de fé dos fiéis é
marcada pelas crenças não litúrgicas, não estimuladas pela Igreja em suas tradições
propriamente, mas aceita por ela como vivência do povo.
Maria é percebida pelos fiéis como uma mulher forte, intercessora do povo perante Deus,
defensora dos mais necessitados, mãe de Cristo, da humanidade desde que aceitou gerar o
Salvador para a humanidade. Maria é reverenciada por ser humana, de uma humanidade sem
pecado.
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Em distinção feita por São Tomás de Aquino, o culto de latria, ou adoração, é reservado
somente a Deus, enquanto a dulia representa a veneração dirigida aos santos. A reverência a
Nossa Senhora é denominada hiperdulia, uma superveneração dedicada somente a Maria.
Maria é colocada em lugar intermediário entre Deus e os homens, devido a sua puríssima
humanidade (MIEGGE, 1962).
3.2.Maria na Bíblia
A presença de Maria nos evangelhos varia muito de autor para autor. Os primeiros evangelhos
bíblicos a serem escritos, de Marcos e de Mateus, datam de 70 anos DC, aproximadamente.
Nestes primeiros evangélicos, Maria apresenta uma importância limitada na história de Cristo,
sendo poucas vezes citado o seu nome e nenhuma vez tendo ela a palavra.
No Evangelho de Lucas (datado de cerca de 80DC), Jesus adquire uma feição mais humana, e
sua vida passa a ser contada e compreendida como em etapas da História da Salvação. A
solidariedade de Cristo, a relação que estabelece com as pessoas, em especial a importância
dada às mulheres que participam de sua história traz à tona a vida de sua mãe, Maria.
Também a alegria da salvação parece ser reservada ao evangelho de Lucas. No momento da
anunciação a Maria, o anjo a saúda: “Ave Maria” que pode ser traduzido por: “Alegra-te
Maria” (Gomes, 2005).A partir de então, segundo Gomes (2005:12) “Maria passa a
representar o povo de Israel sendo convidada à alegria salvífica. Ela é chamada ‘cheia de
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graça’ pelo anjo. Graça, cujo significado é o amor gratuito e incondicional de Deus, a salvação
ou o próprio Deus”
Ainda em Lucas, pode-se perceber que a valorização de Maria não se relaciona propriamente
com a maternidade biológica. Maria tornou-se importante por assumir a missão não só de
gestar Jesus, mas de ser sua discípula fiel.
Em uma passagem bíblica, ao discursar para um grupo de pessoas, uma delas se volta a Jesus:
“Felizes as entranhas que te trouxeram e os seios que te amamentaram”, mas Jesus a responde:
“Bem aventurados são os que ouvem a palavra de Deus e a observam” (Lucas,11,27-28).
Segundo Gomes (2005), Lucas é o evangelista que desenvolve a mariologia mais a fundo. A
importância dada à Virgem pode ser evidenciada através das principais funções exercidas por
Maria neste evangelho:
exemplo perfeito de seguidora de Cristo,
elo entre os três tempos bíblicos: o tempo da promessa (Antigo Testamento), o tempo do
cumprimento das promessas (Novo Testamento) e o tempo da Igreja (Atos dos Apóstolos),
serva do Senhor, que em sua liberdade se coloca a serviço de Deus e dos homens.
Boff (2002) compartilha com Gomes (2005) a percepção que o evangelista Lucas traça à
figura de Maria e a sua relação com Jesus e Humanidade de modo muito mais profundo que a
maternidade biológica. Para Boff (2002), Maria deve ser considerada:
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alguém aberta ao diálogo, que ao receber a notícia de que seria mãe do Salvador, questiona
a Deus, através do anjo Gabriel. A postura de Maria perante Deus modifica a concepção
dos fiéis das possibilidades de vivenciar sua fé, e Deus passa a ser visto como alguém a
quem se pode dirigir em diálogo,
como quem proclama a justiça de Deus, que opta pelo cuidado dos mais humildes,
como quem acolhe verdadeiramente a palavra de Deus, não só espiritualmente, mas no
próprio corpo. Aqui, novamente, Maria é referida como serva. O servo, diferente do
escravo, escolhe sua condição, tem liberdade.
O quarto evangelho, de João, escrito em torno do ano 90DC cita Maria seis vezes, sempre se
referindo a ela como mãe de Jesus. Neste evangelho, a presença de Maria é de suma
importância em algumas passagens, como em Caná e na Crucificação, e os devotos recorrem
frequentemente a estas passagens para justificar o apreço que têm por MARIA (HÄRING,
1984 e BOFF , 2004).
Três dias depois houve um casamento em Caná da Galiléia, e a mãe de Jesus estava
presente. Jesus e seus discípulos também foram convidados para a boda. Como
viesse a faltar vinho, a mãe de Jesus disse para este: “Eles já não têm vinho”. Jesus
retorquiu: “Que temos nós com isto, mulher? Minha hora ainda não chegou”. Sua
mãe disse aos servidores: “Fazei o que ele vos disser”. Havia ali seis talhas de pedra
para a purificação dos judeus, e cada uma delas levava duas ou três medidas. Disse-
lhes Jesus: “Enchei de água estas talhas”. E encheram-nas até a borda. Disse-lhes
depois: “Tirai agora e levai ao chefe da mesa”. Assim fizeram. O chefe da mesa
depois de provar da água transformada em vinho, como não sabia de onde viera, pois
só o sabiam os servos que tinham tirado a água, chamou o noivo, e disse-lhe: “Toda a
gente serve primeiro o vinho bom e, quando os convidados já tiverem bebido bem,
servem então o pior. Tu, porém, guardaste o vinho bom até agora”. Este foi o
primeiro milagre de Jesus. Realizou-o em Cana da Galiléia. Manifestou a sua glória e
os seus discípulos acreditaram nele (Jo 2, 1-11).
O relato das bodas de Cana é antecedido por uma semana de acontecimentos: no primeiro dia,
João Batista dá seu testemunho sobre Jesus (Jo 1, 19-28), no segundo Jesus é proclamado
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Cordeiro de Deus (Jo 1, 29-34), no terceiro as testemunhas reconhecem Jesus como Messias
(Jo 1, 35-42) e no quarto dia Filipe se encontra com Natanael ( Jo 1, 35-42). Três dias depois,
o sétimo dia, há uma festa de bodas em Caná. O simbolismo bíblico relativo ao sétimo dia é
muito rico – é o término da criação, o dia do descanso de Deus (Shabat) e do homem e
também o dia da aliança. A aliança estabelecida entre os noivos pode também representar a
nova aliança entre Deus e seu povo; Jesus (GOMES, 2005).
Da mesma forma, a água tornada vinho, que estava disposta em seis talhas, seria utilizada em
um ritual de purificação. A partir deste momento, em que é explicitado o primeiro milagre de
Cristo, o sacrifício da cruz é antecipado – “Minha hora ainda não chegou” - e Jesus passa a ser
aquilo que purifica os homens perante Deus, salvando-os de seus pecados (BOFF,2002 e
GOMES, 2005).
Nas bodas de Caná, Maria age como intercessora, mostrando-se atenta às necessidades de seus
filhos e pedindo a ajuda de Jesus em prol deles.Este pedido é visto como humilde e, ao mesmo
tempo, corajoso. Ela pede e aguarda, pois confia que Jesus agirá. Em Caná, Maria intercede
pelos noivos, neste momento representando a humanidade, tendo misericórdia e assumindo
para si o problema deles e, ao mesmo tempo, coloca-se como discípula de seu filho, ou seja
não só crê, mas induz os outros a crer e obedecer (BOFF, 2004) quando pede aos servidores:
Fazei o que ele vos disser. E no momento da crucificação de Cristo:
“Junto à cruz de Jesus estavam sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria, mulher de Cléofas
e Maria Madalena. Ao ver sua mãe e junto dela o discípulo que ele amava, Jesus disse
a sua mãe: ‘Mulher, eis aí o teu filho’. Depois, disse ao discípulo: ‘Eis aí tua mãe’. E
desde aquela hora, o discípulo recebeu-a em sua casa.”(Jo 19, 25-27)
47
Neste momento, Jesus a declara como mãe de todos os homens. Maria acolhe a humanidade
como filha e intercede por ela junto a Deus. Como mãe, Maria é protetora e não julga os filhos
por seus pecados.Maria foi entregue, na pessoa do discípulo, a cada um, como tesouro
precioso a ser cuidado. Entre os tantos valores espirituais que Cristo deu aos seus discípulos,
deve-se contar também sua mãe. (...) Maria, portanto, faz parte da identidade cristã (BOFF,
2004). Também segundo Gomes (2005), o acolhimento de Maria pelo discípulo, levando-a
para sua intimidade, colocando-a entre seus valores mais preciosos, descreve a postura
esperada de um cristão por excelência.
Jesus chama Maria nestas duas passagens de “Mulher”. Nestes dois momentos, Maria não é
somente mãe de Cristo, e a situação descrita ultrapassa o plano familiar dos dois. Maria é
chamada Mulher como a Mulher símbolo, a nova mãe da humanidade, a nova Eva. No Antigo
Testamento, Eva através de sua desobediência, instaura o pecado, a morte e se afasta de Deus.
No Novo Testamento, Maria, por sua obediência e confiança sem fim em Deus possibilita um
caminho de vida para a humanidade.
Mulher é um símbolo portador de vários sentidos, entre os quais sobressai a Nova Eva.
O Gn 3,20 chama Eva ao mesmo tempo de Mulher e Mãe por excelência. É a mulher
protológica, sendo a Mulher de Ap12,1-8 a mulher escatológica. Portanto, usando o
tratamento Mulher, Jesus não está depreciando a mãe, mas justamente o contrário, ele
está lhe demonstrando a máxima reverência, reconhecendo-lhe a posição histórico-
salvífica. Filho nenhum colocou a mãe em posição tão elevada (BOFF, 2004).
O valor dado a Maria como a Mulher, a Mãe da humanidade, também a coloca como arquétipo
feminino da perfeição. Segundo Boff (1980) Maria é a ecce mulier, que evoca e anima as
48
qualidades potencialmente semeadas em toda mulher. Maria é, mais uma vez, colocada como
modelo a ser seguido, perfeição humana a ser imitada.
3.3. Os Dogmas Marianos
A partir das crenças desenvolvidas pela fé popular, através do estudo das escrituras – exegese,
algumas crenças passam a ser consideradas como dogmas, “verdades que a comunidade/
Igreja carrega consigo, quando dialogando com os povos e as culturas” (Gomes, 2005). A
Igreja Católica conta hoje com 44 dogmas de fé, sendo quatro destes relativos à Virgem
Maria:
3.3.1. A Maternidade Divina
Buscando resolver a controvérsia de qual seria a natureza de Jesus, puramente divina, ou
somente humana, Jesus foi declarado humano e divino e sua mãe, elevada à mãe de Deus
(Concílio de Éfeso).
Que seja excomungado quem não professar que Emanuel é verdadeiramente Deus e,
portanto, que a bem aventurada Virgem é verdadeiramente Mãe de Deus, Theotókos,
pois deu à luz segundo a carne àquele que é Verbo de Deus”(Concílio de Éfeso, apud
Gomes, 2005).
3.3.2. A Virgindade
No sentido teológico, virgindade significa consagração a Deus, integridade. Maria foi
inicialmente considerada virgem (451DC) e, anos depois (649DC), virgem perpétua. Afirmar
que Maria continua Virgem, antes, durante e depois do parto, significa dizer que ela sempre
49
foi íntegra, toda de Deus, consagrada totalmente ao Deus Vivo e Verdadeiro (GOMES,
2005:28).
3.3.3.Imaculada Conceição
O dogma da Imaculada Concepção de Maria, proclamado por Pio IX em 1854, foi baseado
inicialmente na fé do povo, que nunca atribuiu à Maria o que Santo Agostinho nomeou Pecado
Original (tendo como base Gênesis 3 e Romanos 5, 12) O pecado original representa a frágil
moral humana e nossa dependência do divino para nos salvarmos (GOMES,2005).
Segundo Boff (1980), o dogma da Imaculada Conceição denota a concepção que a Igreja e os
fiéis têm de Maria. Ela é vista como alguém pensado por Deus para abrigar o Espírito e gerar
Jesus. Ela foi concebida para esta missão, concebida sem pecado, por obra do Espírito Santo.
Declaramos... que, no primeiro momento de sua concepção, a bem aventurada Virgem
Maria foi, pela graça singular e o privilégio de Deus, em vista dos méritos de Jesus
Cristo, o salvador do gênero humano, preservada intacta de toda mancha do pecado
original” (Pio IX, 1854 apud Gomes, 2005).
3.3.4.Assunção de Maria
O dogma de Maria Imaculada é reafirmado pela crença na Assunção de Nossa Senhora. O
fato de Nossa Senhora subir aos céus levada pelos Anjos decorre tanto de sua natureza
incorruptível quanto do fato de que sua alma já estava entregue a Deus.
Maria aceita sua missão de mãe e se entrega a ela, sacrificando-se junto a Jesus no momento
da crucificação, morrendo simbolicamente com Ele (MIEGI, 1962).
50
De acordo com Gomes (2005), o dogma da Assunção de Maria não implica na crença que a
mesma não tenha morrido. A antropologia bíblica fala da carne e do corpo não apenas no
sentido material, mas dizendo da pessoa, do ser humano considerado individualmente e em
suas relações.
3.4. A Piedade Popular
A devoção a Nossa Senhora iniciou-se nos primeiros tempos do cristianismo, no momento em
que há uma valorização da humanidade de Cristo e se estabeleceu, a princípio, fora do
contexto litúrgico.
A maioria do povo ignorava os conceitos teológicos subjacentes à fé: a cultura teológica era
privilégio de uma minoria, o contato direto com a Bíblia limitava-se aos que tinham estudo e
condições financeiras. O culto oficial era rígido e em uma língua que poucos conheciam. Por
ser distante da compreensão do povo, mostrava-se insuficiente para conter a vivência da
religiosidade. O povo busca novos caminhos para vivenciar sua fé, através de rituais além
daqueles realizados pela Igreja (KRIEGER, 1995).
As pessoas apropriavam-se de significados religiosos, incorporando-os a outros elementos
culturais, que lhes eram mais próximos e compunham, deste modo, formas características de
viver a religião.Desenvolveu-se, assim, a religiosidade popular, ou piedade popular - modo
como o Cristianismo se encarna nas diversas culturas e se manifesta de forma particular na
vida do povo (KRIEGER, 1995).
51
No Brasil, tendo sido a fé católica imposta aos índios nativos e negros vindos da África,
muitas divindades e símbolos foram incorporados ao catolicismo no país (BOFF, 2002).
A piedade popular é marcada pela espontaneidade, pela busca maior pelo sentimento do que
pelo raciocínio, pela abertura ao transcendente, sem necessidade de entendimento conceitual.
Esta forma de viver a piedade manifesta-se, entre outros, nas festas religiosas. Através das
festas religiosas, Nossa Senhora se encontra presente no modo de organizarmos o tempo
durante o ano e também nas datas históricas.
As vivências de piedade popular são em grande parte relacionadas à devoção a Nossa Senhora.
A fé em Nossa Senhora é incentivada nos católicos desde a tenra infância, sendo a Ave Maria
a primeira oração a ser aprendida e a coroação à imagem de Maria, no mês de maio, muito
esperada pelas crianças, que se vestem de anjo e entoam cânticos à Virgem.
Dentre as manifestações da piedade popular merecem um destaque especial
as referentes à Virgem Maria. Elas nascem da fé e do amor do povo para com
Jesus e da percepção da missão que Deus confiou a Maria, que a torna não só
mãe do Senhor, mas mãe de todos os homens (KRIEGER, 1995).
Para Gomes (2005), a mãe tem representação muito relevante dentro de culturas mais
machistas. A mãe passa a ser vista como protetora diante da possível violência paterna. Neste
contexto, é comum a maternidade ser percebida pelos filhos de forma idealizada.
A piedade popular traz elementos da cultura regional para a vivência religiosa. Maria
apresenta vários “rostos” de acordo com as características locais e a necessidade de cada povo.
No Brasil, encontra-se a devoção a Nossa Senhora de vários títulos. Estes indicam os locais
52
onde Maria viveu (Nossa Senhora de Nazaré), fazem referência a sua história (Nossa Senhora
do Bom Parto), dizem de suas características e dons (Nossa Senhora da Consolação), dos
locais de suas aparições (Nossa Senhora de Lourdes) e de seus templos e imagens especiais
(Nossa Senhora Aparecida) (AVELAR, 2002).
Entre outros, ela recebe constante devoção enquanto Nossa Senhora de Aparecida, padroeira
do País. Nossa Senhora Aparecida é negra, como grande parte dos brasileiros, e protetora dos
mais pobres e necessitados.
Em se tratando da piedade popular, é muito comum perceber-se a necessidade da
concretização da fé. Desta forma, as imagens de Maria ganham atenção especial, e também as
romarias a locais considerados sagrados.
No sentimento religioso do povo não só há lugar para a Mãe Maria, mas sempre há
lugares concretos, físicos, que confirmam a fé popular. Nestes lugares sagrados a
imagem de Maria inspira devoção especial para obter graças e realizar desejos íntimos
(BOFF, 2002:62)
3.5. Maria Mãe dos doentes e necessitados
Dentre as denominações de Maria, duas merecem ser melhor descritas neste trabalho: Nossa
Senhora da Saúde e Nossa Senhora das Dores.
53
3.5.1. Nossa Senhora da Saúde
A devoção a Nossa Senhora da Saúde teve início em Portugal, no século XVI, durante a
grande peste. Diante do número cada vez mais extenso de mortos e da falta evidente de
recursos humanos, Maria passa a ser evocada largamente entre o povo. Ainda hoje é venerada
como defensora dos enfermos.
As freiras seguidoras de Nossa Senhora da Saúde têm formação em enfermagem básica e
buscam cuidar dos doentes, oferecendo auxílio no sofrimento físico e também espiritual.
3.5.2. Nossa Senhora das Dores
Também evocada sob o título de Nossa Senhora das 7 Dores, Nossa Senhora da Piedade,
Nossa Senhora da Angústia entre outros, Nossa Senhora das Dores recebe devoção de fiéis
que se encontram em situação de grande sofrimento, como é o caso dos pacientes oncológicos.
Nossa Senhora das Dores é assim nomeada por viver junto a Jesus nos momentos de grande
sofrimento, e a dor de Maria tem ainda mais duração que a do próprio Cristo, já que após a
morte deste, ainda vivencia momentos de grande dor. Sob este título, Maria é percebida como
mãe extremamente próxima e compreensiva, que sofre junto aos filhos e não os abandona,
mesmo diante das maiores dificuldades, principalmente na hora da morte, possibilidade
sempre presente diante do adoecimento por câncer. Na morte, Maria “roga por nós”:
Ave Maria
Cheia de graça
O Senhor é convosco
54
Bendita sois vós entre as mulheres
E bendito é o fruto do vosso ventre
Jesus
Santa Maria
Mãe de Deus
Rogai por nós, pecadores
Agora, e na hora de nossa morte
Amém
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Capítulo IV : CAMINHO METODOLÓGICO
1. Objetivo
Este trabalho tem como objetivo buscar compreender os significados da devoção a Nossa
Senhora em pessoas que tiveram ou têm câncer, procurando colher os sentidos atribuídos a sua
devoção durante o processo do adoecimento e tratamento.
2. O Caminho da Pesquisa
A escolha de trabalhar a religiosidade a partir da pessoa que a vivencia, buscando os sentidos
que a mesma atribui a sua fé e as suas crenças, os sentidos que expressa como seus, fez com
que eu procurasse um método que possibilitasse esta perspectiva.
Compreender nas ciências do homem é rejeitar a busca de fórmulas e leis
universais, pelo menos enquanto objeto principal, e buscar colher a partir do
interior a subjetividade (DELEFOSSE, 2001:155)
A pesquisa em Psicologia Fenomenológica caracteriza-se por estabelecer a busca de
compreensão das experiências vividas. Amatuzzi (2007) enfatiza a importância do pesquisador
fenomenológico partir sempre da realidade como ela se apresenta. É necessário “voltar-se às
coisas mesmas”, encontrar-se com o fenômeno o mais despido possível de julgamentos,
inclusive de artifícios teóricos, sendo que, para a Psicologia Fenomenológica, o fenômeno
caracteriza-se como uma vivência.
56
Desta forma, é próprio desta abordagem o fato de partir sempre da coisa mesma, do objeto de
pesquisa, para então pensar em um caminho que propicie a sua compreensão. É um método,
portanto, sempre aberto ao fenômeno, tal como este se mostra.
Diferente da pesquisa fenomenológica filosófica, que se volta à coisa mesma a fim de
conhecer sua essência, a Psicologia Fenomenológica interessa-se pelo sentido atribuído pela
pessoa à experiência. Este sentido é colhido no relato da experiência, ou no diálogo propiciado
em entrevista, na relação estabelecida entre pesquisador e pesquisado.
Amatuzzi (2001) denomina “fala autêntica” a possibilidade da atribuição de um sentido, ou de
um novo sentido à vivência no momento do diálogo. A fala autêntica é o próprio pensamento
fluindo, sem concepções previamente estabelecidas.
Para participar de uma pesquisa em fenomenologia, geralmente são convidadas pessoas que
reconhecidamente tiveram uma experiência relacionada ao que se busca investigar. Isto porque
se considera que, ao compreender uma experiência abrem-se possibilidades de compreensão
de experiências semelhantes. Além disso, o pesquisador necessita reconhecer, na pessoa que
entrevista, aquela experiência que pretende estudar. Por essa razão, inicialmente, solicitei a
amigos e conhecidos a indicação de pessoas que vivenciaram a experiência de adoecimento e
tratamento do câncer e, simultaneamente, percebiam-se em um movimento religioso de busca
de sentido à doença.
Algumas pessoas indicadas foram contatadas e não se dispuseram a participar da pesquisa.
Notei que, no caso destas pessoas, a recordação da vivência do câncer ainda provocava mal
57
estar. Uma senhora colocou que não “agüenta mais falar disso”, que todo mês necessita expor
a situação atual a uma junta médica, na tentativa de prolongar sua licença do trabalho e se
aposentar. Nesse caso e em outros que compreendi que a pessoa já se sentia constantemente
invadida, considerei que diante de uma pesquisa que visava refletir sobre recordações
dolorosas, a pessoa teria dificuldade de falar livremente e de forma aprofundada sobre o
assunto, além do que a entrevista poderia exacerbar seu sofrimento de forma desmedida.
Realizei uma primeira entrevista, com uma das pessoas indicadas, com finalidade exploratória.
Ela não será apresentada neste trabalho, mas, foi fundamental para o rumo que o mesmo
tomou. Tratou-se de uma senhora que tinha tido câncer e, naquele momento, estava em
remissão total da doença. Em nosso encontro, que aconteceu em sua própria casa, ela foi me
contando da doença, do tratamento e de suas orações voltadas a Deus e a Nossa Senhora.
Durante seu relato, pude perceber que seu modo de voltar-se para o Sagrado variava conforme
o objeto de fé. Ela relatou que rezava a Deus em seu quarto, de olhos fechados, nos momentos
de desespero. E pedia proteção a Nossa Senhora na sala, onde havia um pequeno oratório. As
rezas a Nossa Senhora tinham um caráter muito diferenciado: eram ditas em voz alta, de olhos
abertos, muitas vezes andando pela casa. Eram dirigidas à imagem de Nossa Senhora, como
uma presença física viva em sua sala. Nossa Senhora era tratada por mãe, e os pedidos feitos a
ela eram de amparo e interseção junto a Deus. Ao realizar esta entrevista, atentei para algo que
nunca havia observado: que a fé em Nossa Senhora, tão presente em nossa cultura, carrega em
si características únicas. A entrevista exploratória, portanto, auxiliou-me não apenas a
aperfeiçoar o uso da técnica, verificar sua compatibilidade com o objetivo da dissertação, mas,
58
também, permitiu delimitar melhor o foco do trabalho. A partir daí, foquei o tema de meu
trabalho na devoção a Nossa Senhora.
Procurei através de amigos e familiares a indicação de pessoas devotas de Nossa Senhora que
tivessem tido câncer. Muitas pessoas me foram indicadas. A partir do conhecimento que tive
delas, pelas indicações, optei por entrevistar três senhoras, cuja idade variava de 65 a 75 anos,
considerando que elas tinham boa capacidade de reflexão, de verbalização e poderiam,
portanto, contribuir para a obtenção de material que trouxesse elementos para o
desenvolvimento desta dissertação.Todas três senhoras tinham tido o diagnóstico de câncer há
mais de dois anos e, destas, duas tinham tido remissão da doença e uma convivia com o câncer
de forma crônica.
Das três entrevistas que realizei, escolhi me ater apenas à entrevista de Lourdes (nome
fictício), que será apresentada no próximo capítulo. A escolha se baseou nas particularidades
das vivências apresentadas pela mesma, o conteúdo que considerei diferenciado e riquíssimo e
que permitiria trabalhar de forma aprofundada.
É próprio do método fenomenológico em Psicologia a participação ativa do sujeito da
pesquisa, nomeando suas vivências e construindo, muitas vezes, novos significados a partir da
reflexão. Percebi que as outras entrevistadas, mesmo mostrando-se abertas à participação no
trabalho, traziam discursos de certa forma estereotipados, prontos, relativos a suas
experiências, não se dispondo a aprofundar-se em suas vivências, o que as levou a fugir
59
algumas vezes do tema, e a trazer colocações muito racionalizadas, não conseguindo expor-se
na descrição dos fatos.
É por esta dificuldade de coleta da vivência humana que dentro da pesquisa fenomenológica, a
escolha dos participantes colaboradores da pesquisa é feita levando-se em conta não só a
experiência de vida da pessoa, mas, também o fato do tema da pesquisa ser significativo para
ela, de tal forma que se disponha a relatar profundamente a sua vivência.
A pesquisa acaba solicitando ao participante que, dentro de suas possibilidades, tal como o
pesquisador, suspenda temporariamente suas racionalizações sobre a vivência, coloque-as
entre parênteses, e busque retornar o contato com a mesma, para relatá-la ao pesquisador o
mais fielmente possível.
O debruçar-se sobre a memória do que aconteceu, envolvendo-se novamente na experiência e,
paralelamente, distanciando-se dela através da reflexão proporciona ao entrevistador e
entrevistado a construção de um sentido possível, que não é dado anteriormente à entrevista,
mas é desenvolvido nela.
A escolha da entrevista de Lourdes, e a sua riqueza definiram o caráter deste trabalho, como
pesquisa a partir de um Estudo de Caso. Trabalhar a partir de um único caso revela-se
benéfico, como já enfatizou André (2005), por permitir a exploração detalhada da vivência do
sujeito, do contexto em que este se encontra inserido, propiciando uma compreensão
aprofundada da experiência.
60
Tratou-se do uso instrumental de um Estudo de Caso, ou seja, o caso foi escolhido a fim de
auxiliar no esclarecimento da questão. O foco aqui não é o caso em si, mas a questão cuja
compreensão avança através da explicitação do caso, dado que o mesmo apresenta
características relevantes que poderão estar presentes em outros com características
semelhantes.
Segundo André (2005), entre as vantagens de utilizar o Estudo de Caso estão:
A capacidade de retratar situações da vida real sem prejuízo de sua complexidade e de sua
dinâmica natural;
A possibilidade de fornecer uma visão profunda, ampla e integradora de uma unidade
complexa;
A capacidade heurística, que permite através do foco no fenômeno estudado, a concepção
de novos sentidos e relações.
O Instrumento
A busca de compreensão da vivência do paciente oncológico devoto de Nossa Senhora torna
necessária a investigação do que não é observável para o pesquisador. A experiência só é
acessível ao próprio sujeito, sendo desta forma, necessário um instrumento que permita à
pessoa expressá-la.
(...) Na pesquisa em psicologia fenomenológica o método implicará a consideração
da interação que auxilia a explicitação do vivido: trata-se, portanto, de um trabalho
interativo que visa, de um lado favorecer a atividade de construção do sentido do
mundo vivido através de uma situação dialógica reflexiva e de outro lado produzir
conhecimentos psicológicos a partir deste materia (DELEFOSSE, 2001:150)
61
A experiência, tal como outros aspectos do psiquismo, não pode ser captada diretamente, pela
observação externa, mas apenas quando expressa pela própria pessoa.
Quando a pesquisa fenomenológica tem como objeto a vivência humana de determinada
situação, é importante que se colham relatos espontâneos e sinceros sobre esta vivência.
(FORGHIERI, 2003).
O instrumento adotado neste trabalho para a obtenção do material de análise foi o da entrevista
semi-dirigida, orientada para o relato da experiência pela qual o participante passou, focada
em sua descrição, para, posteriormente, buscar colher os seus sentidos.
Segundo Oliveira (2005), a utilização de entrevistas semi-dirigidas favorece a narrativa livre
dos participantes, mas toma o cuidado de manter-se dentro da temática do trabalho.
De acordo com Forghieri (2003), a busca da compreensão fenomenológica pressupõe dois
momentos inter-relacionados e reversíveis: o envolvimento existencial e o distanciamento
reflexivo. Em um primeiro momento, é importante que o pesquisador coloque entre parênteses
seus conhecimentos sobre o tema, evitando uma atitude intelectualizada, e busque
compreender o fenômeno em sua totalidade.
O pesquisador, a partir deste contato, busca um distanciamento do fenômeno e procura refletir
sobre sua compreensão. Percebendo pontos ainda não compreendidos, aproxima-se novamente
da vivência e assim sucessivamente. É ao mesmo tempo interessante e angustiante reconhecer
62
que as possíveis compreensões desenvolvidas sobre pesquisa nunca se esgotarão
(FORGHIERI,2003).
A fim de realizar a entrevista, entrei em contato com Lourdes pelo telefone, apresentando a ela
o que era minha pesquisa e perguntando se gostaria de participar. A entrevista foi realizada em
sua casa, em um horário que não comprometeria seus cuidados com o marido e compromissos
com a igreja.Considerei de grande importância para nosso encontro que o horário escolhido a
deixasse a vontade para a conversa, sem pressa para realizar outras tarefas e também sem
sentir que a entrevista seria um “peso” para ela. A escolha do local da entrevista, sua própria
casa visou, inicialmente, proporcionar conforto a Lourdes, cuja saída de casa despenderia
maior tempo e preocupação. Muito além do conforto à entrevistada, o encontro em sua casa
propiciou que Lourdes compartilhasse comigo seu “pocinho” de oração, suas recordações
como fotos e permitiu uma compreensão mais ampla da vivência da fé desta mulher.
Transcrita a entrevista, a mesma foi lida e relida por mim inúmeras vezes. Como a transcrição
não equivalia totalmente ao encontro, perdendo muitas vezes o sentido das emoções expressas
pela entrevistada e do ambiente de forma geral, fiz um relato descritivo com o acréscimo de
minhas observações. Diante deste primeiro relato, percebi a necessidade de um novo contato
com Lourdes. Entendi que uma nova entrevista poderia propiciar esclarecimentos, e fornecer
novos elementos, para os quais, durante a primeira entrevista, dada a quantidade de
informações relevantes, não pude me atentar.
63
Após a construção do relato da primeira entrevista, percebi que alguns temas se repetiam na
fala de Lourdes e busquei agrupá-los. Percebi que no decorrer da fala, a entrevistada abordava
algum tema importante, mudava de assunto e voltava novamente ao mesmo tema, trazendo
acréscimos. Muito do que foi colocado pela entrevistada dizia respeito à compreensão que eu
buscava. A partir do sentido do relato para a questão da dissertação, dividi em itens os temas
que se mostravam importantes, pois estavam relacionados a este trabalho.
Da divisão em temas surgiram pontos que percebi como merecedores de aprofundamento
através da reflexão e do diálogo com autores já citados no corpo do texto.
Cuidados éticos
Todas as entrevistas realizadas, mesmo as que não foram utilizadas para análise, tiveram o
aval das entrevistadas e seu uso autorizado para publicação, através da assinatura de um termo
de consentimento esclarecido.
Antes da assinatura deste termo, cada entrevistada foi informada sobre o sigilo que seria
mantido sobre sua identidade, usando-se um nome fictício. As dúvidas foram esclarecidas.
Após a assinatura do termo de compromisso e ligado o gravador de áudio, foi pedido a cada
entrevistada que falasse sobre sua fé e sobre seu adoecimento. Diante de alguma colocação
obscura ou que eu tenha considerado como merecedora de aprofundamento, foram feitas
perguntas.
64
É sabido que o gravador exerce certa influência sobre o entrevistado, que muitas vezes sente-
se intimidado com sua presença. A decisão, ainda assim, de utilizar o gravador, baseou-se na
necessidade de uma transcrição do relato o mais fiel possível, mesmo compreendendo que a
transcrição não consegue englobar tudo o que foi dito e propiciado no encontro.
65
Capítulo V : LOURDES
1. Descrição da Entrevista
Lourdes foi-me indicada por um padre, o padre Miguel, nosso conhecido em comum e antigo
vigário da paróquia em que ela é catequista e freqüentadora. Ele, durante toda sua vida, foi
uma figura marcante, por esbanjar uma fé cheia de alegria e pouco apegada aos aspectos mais
tradicionais da Igreja. Diferente da maioria dos padres com quem tive contato, padre Miguel
não demonstrava rejeitar outros tipos de fé, nem considerava a fé católica mais correta ou
superior. Dona Lourdes se diz discípula do padre Miguel. Ele indicou Lourdes por ter
conhecimento do câncer que ela teve e por saber que Lourdes é uma pessoa muito religiosa.
Já pelo telefone, quando liguei a fim de convidá-la a participar da pesquisa, e pude explicar
brevemente o trabalho e agendar a entrevista, simpatizei com Lourdes. Ela ficou felicíssima ao
ser convidada para ser entrevistada, pois naquele mesmo dia havia procurado o Hospital do
Câncer para oferecer ajuda, e sua oferta foi recusada devido a sua pouca disponibilidade de
tempo. Os cuidados de Lourdes com o marido, que tem Diabetes em estágio avançado e, em
decorrência disso ficou cego e faz hemodiálise, deixaram pouco tempo para as demais
atividades.Ainda assim, Lourdes encontra tempo para se dedicar a Igreja, como catequista e
freqüentar a missa todos os dias.
Disse ter sentido que participando da minha pesquisa também iria ajudar os pacientes
oncológicos, só que de outra maneira. Marcamos um encontro para o dia seguinte, pela manhã,
em sua casa. Logo que cheguei para a entrevista fui recebida com carinho e alegria. Lourdes
66
repetiu o que havia dito ao telefone sobre seu desejo de ajudar e me precaveu que fala muito, e
que eu poderia cortá-la se fosse necessário. Ficou impressionada pelo fato da entrevista ser
gravada em áudio, o que considerou muito honroso. Quando a informei de que ela não seria
identificada no trabalho, sendo utilizado um nome fictício, me respondeu que nem era preciso
porque já deu alguns depoimentos na Igreja e o que me falasse não seria segredo. Ainda assim,
optei por manter o nome fictício, atendendo os critérios estabelecidos anteriormente.
Expliquei a ela novamente o tema do trabalho e solicitei o preenchimento do termo de
consentimento, atendendo às exigências éticas de pesquisas envolvendo seres humanos.
Pedi a ela que falasse livremente sobre sua fé religiosa, sua doença e em como a fé auxiliou a
passar pela doença e tratamento. Como ela sabia que o trabalho era sobre Nossa Senhora, não
especifiquei o tipo de religiosidade procurava em sua entrevista, para que ela falasse de forma
mais espontânea sobre o tema.
Inicialmente, questiono Lourdes sobre como é sua história religiosa.
Lourdes conta que sua mãe era muito religiosa e ensinou os filhos a partir de sua própria
experiência a necessidade de buscarem Deus para suportar as várias dificuldades da vida
Ela sempre falava: se eu não buscar a Deus, se eu não buscar a eucaristia, eu não agüento
carregar a cruz.
67
Lourdes diz ter aprendido com sua mãe uma catequese de vivência, de poucas palavras. Como
não tinham condições de ter em casa a Bíblia, a mãe lhes ensina a Magnificat, como forma de
aproximação da palavra.
Lourdes atribui o início do enorme amor que sente por Jesus ao testemunho de sua mãe e à
educação recebida.
Eu sei que a minha primeira comunhão, que foi dia 15 de junho, 15 de agosto de 1940 e eu
tenho lembrança ainda, aquela lembrancinha que eles dão e eu apaixonei com Jesus, mas eu
acho que eu já tava apaixonada com Ele por causa do testemunho da mamãe, sabe!?
A partir da primeira comunhão, Lourdes parece se aproximar mais da Igreja e de seus rituais.
Então, eu nunca mais deixei de comungar. Então foi crescendo tanto no meu coração o Jesus,
a bondade dele, a misericórdia de um Deus que nos ama tanto que na medida que eu fui
crescendo, procurando sempre a Igreja, o catequismo, né!? Eu nunca deixei de freqüentar a
catequese. Eu era uma menina assim; presente, catequista, se doando com freqüência.
Com a aproximação maior da Igreja, Lourdes ingressa aos 17 anos nas Filhas de Maria. Como
filha de Maria, Lourdes mantém seu vínculo com a Igreja através do aprendizado (Escolas de
Doutrina e Aprofundamento) e do trabalho (como catequista).
Lourdes diz, com muita alegria, que foi a primeira filha de Maria de sua cidade natal a manter-
se filha de Maria após o casamento.
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Casei até com a fita. Antes, o Padre, quando a moça fosse casar, tirava a fita porque falava
assim: Quem é filha de Maria tem que ser virgem pura. Virgindade não é isso, não ter filhos,
é uma coisa do coração, ser pura, quer dizer, ter coração puro né!? Então eu “admiro” por
no meu casamento, eu fui à primeira filha de Maria que o Padre falou: Não vou tirar a fita!
Filha de Maria, Filha de Maria para Sempre! Eu volto com a fita.
Continuando a descrever seu casamento, Lourdes conta que ao sair da igreja, deixou seu buquê
aos pés da imagem de Imaculada Conceição.
Quando eu desci do altar já casada, com meu marido, eu coloquei meu buquezinho lá no
altar, aos pés de Imaculada. E pedi para ela que caminhasse com a gente e ela vem
caminhando...
Lourdes diz não se considerar muito devota de Maria, já que a devoção para ela encontra-se
muito vinculada aos rituais que comumente são dirigidos à Virgem.
Então essa devoção que eu conservo no meu coração, essa beleza de Maria, essa pureza de
fidelidade de Deus. Eu vejo Maria não como uma devoção, como um espelho de fidelidade a
Deus de prontidão de fazer aquilo que Deus queria dela. Não tenho muita devoção de ficar
em novena, presa, já foi esse tempo, agora não!
Para Lourdes, Maria é um espelho em quem se mirar, um modelo de fidelidade a Deus.
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Tudo na minha vida que acontece, eu falo como Maria: Pai, que seja feita Tua Vontade.
Como Jesus também ensinou no Pai Nosso, não é mesmo!?
Lourdes também considera Maria como modelo de humildade.
(...) a mulher mais famosa da humanidade porque ela carregou no ventre o filho de Deus, mas
ela não fez por arrogância nenhuma. Ela foi simples, pura.
Pergunto, então, a Lourdes como é que é seu contato com Maria. Ela me responde que busca
em Maria uma conselheira, que ensine a trazer Jesus no coração, já que como mãe o trouxe no
ventre, e que ensine a levar Jesus ao coração das outras pessoas, como de sua família e das
crianças da catequese.
Lourdes conta que começou a trabalhar como catequista há mais de 30 anos, no começo
catequisando em sua própria casa. Sua necessidade de pregação parece estar vinculada a sua fé
transbordante.
O que eu queria dizer pra você é que Deus, Ele ta tão grande dentro do meu coração que eu
não quero guardar só pra mim. É um egoísmo. Então eu comecei a trabalhar na catequese, a
fazer palestra, falar, e até hoje é assim.
Pergunto a Lourdes sobre sua doença (câncer). Ela diz ter descoberto um carocinho na mama
durante um banho em dezembro. Com os afazeres do Natal e também devido a pouca
preocupação, só procurou um médico em abril. O clínico geral, mesmo não conseguindo
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perceber nenhuma alteração, encaminhou Lourdes para uma mastologista. Como ela estava
muito ocupada com os ensaios da coroação de Nossa Senhora, não pretendia procurar
imediatamente a médica, mas apressou a busca quando começou a sentir dor.
Mas lá na coroação eu fui abraçar um anjinho, e ela me apertou, e eu senti mais ainda a
fincada. Deus é bom, usa até os anjinhos pra avisar a gente.
A médica solicitou muitos exames e Lourdes fez todos. Quando retorna ao consultório, para a
averiguação dos exames, pede a Nossa Senhora que não a deixe entrar sozinha. A partir dos
resultados dos exames, a médica faz um novo encaminhamento, desta vez para que os
procedimentos de quimioterapia e cirurgia fossem realizados. Pela solicitação feita pela
médica, Lourdes entende qual era o diagnóstico.
Ela falou comigo através dos resultados que ia me encaminhar para Belo Horizonte, para
uma médica lá, que eu ia ter que fazer quimioterapia. Eu vi que era câncer. Se precisava de
quimioterapia, logo, eu tava com câncer.
Ao sair do consultório médico, Lourdes se sente fragilizada e busca auxílio em um Santuário
próximo, onde dirige suas preces à Virgem Maria.
A gente é humano, baqueia, quer segurar em alguma coisa. Eu não tava acompanhada pelo
meu marido e nenhuma das minhas filhas. Só. Sozinha assim, entre aspas. Eu fui ao santuário,
que é pertinho, e falei com Deus, depois fui naquela imagem na porta, uma Nossa Senhora e
falei: Mãe venha me acompanhar, me protege que eu tenho cinco sessões de quimioterapia
pra fazer antes da cirurgia.
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Ela conta que sofreu os efeitos colaterais da quimioterapia logo nos primeiros dias, como o
mal estar e a queda de cabelos, mas que apesar disso, continuou participando das atividades da
Igreja e freqüentando a missa.
A quimioterapeuta falava com as enfermeiras: “faz a quimioterapia da Lourdes que ela tem
que ir a missa”. Eu não fico sem o Senhor não.
Eu ia a missa, continuei dando catecismo, fazendo coroação. Ia em casamento; muito
casamento eu fui de lencinho.
Lourdes comenta que um dos casamentos que assistiu enquanto se tratava era de uma moça
que no momento faz tratamento para curar um câncer. Diferente dela, a moça não aceita com
resignação a doença e Lourdes não condena seu comportamento, ao contrário, parece
compreender as diferenças entre elas.
Hoje mesmo tem uma menina, filha de uma amiga minha, que está tirando uma mama. Ela
fala: Nossa, com você foi tão tranqüilo tudo, e a minha filha ta chorando tanto. Eu falei: não
me compara com ela. Ela tem seus sonhos.
Passadas as sessões de quimioterapia, a cirurgia foi agendada. Lourdes diz ter preferido
realizar todos os procedimentos em Belo Horizonte, como havia recomendado o médico, para
que ela pudesse descansar nos dias subseqüentes à cirurgia, estando hospedada na casa da
sobrinha e longe das ocupações com a casa e o marido.
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Lourdes foi acompanhada pela sobrinha no dia da cirurgia. Ao perceber a preocupação
estampada nos olhos da sobrinha, ao se despedir da tia no bloco cirúrgico, Lourdes busca
consolá-la.
Aí minha sobrinha me agarrou. Eu falei: “não, oh, pode ficar tranqüila. Agora mesmo a tia tá
boa, ou tá no céu, sei lá, né!?”
Após a cirurgia, Lourdes necessitou, como já era previsto, ficar internada no hospital por
alguns dias. Quando chega à enfermaria, pergunta à senhora do leito ao lado se alguém trazia
comunhão aos enfermos, que responde que estando há um mês internada, nunca havia visto.
Aí abre a porta e achei que era enfermeira porque não vinha visita na hora, nós éramos de
fora, uma carinha fala assim: tem alguém que quer comungar aqui?
Eu dei um grito: eu sabia que Ele ia vir. A irmã, elas são muito assustadas né!? Nó, irmã,
deixa eu te falar; é porque eu comungo todo dia, não fico sozinha não. Aí a irmã falou assim:
não, a senhora não vai ficar sem comunhão não.
Depois de ter alta hospitalar, Lourdes ainda precisou passar um tempo em Belo Horizonte, e
ficou hospedada na casa de sua sobrinha. Como queria continuar recebendo a comunhão
diariamente, Lourdes pede que a sobrinha interceda por ela junto ao padre da paróquia. A
sobrinha não era muita participativa na Igreja e tinha problemas no relacionamento com o
marido. A partir da solicitação de Lourdes, o padre torna a sobrinha de Lourdes e seu marido
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ministros da eucaristia. O fato de tornar-se ministra da eucaristia é visto como benção por
ambas.
O tratamento durou cerca de um ano, foi mais longo que o esperado devido à queda de
plaquetas e anemia, efeitos colaterais da quimioterapia. O tratamento cirúrgico exigiu de
Lourdes uma mudança em suas atividades diárias, que passaram a ser mais restritas por causa
da necessidade de repouso no pós-operatório e foi preciso contratar uma ajudante para fazer o
serviço mais pesado da casa.
Lourdes não demonstra se incomodar com a retirada das mamas. Recusou a oferta da sobrinha
de colocar próteses de silicone, que na época não eram garantidas pelo SUS.
Não tem sinal, cicatriz, só não tem a mama. A minha sobrinha quis me dar à prótese, eu não
quis. Eu falei: eu quero ser assim mesmo, eu me amo desse jeito. Ela falou: não tia, mas eu te
dou mesmo. Não Maria Helena, eu te agradeço de coração, mas eu não quero. Eu quero ser
assim mesmo; tirou, acabou, “o gato comeu”. Pronto. Então, fui feliz. Passou o tempo e eu tô
aí, vivendo, alegre, feliz, trabalhando, cuidando do meu maridinho.
A partir da experiência de adoecimento, Lourdes parece ter aceitado de forma mais tranqüila e
resignada suas limitações.
Um dia eu senti uma dor, uma coisa assim... aí, eu fiz uma sessão de fisioterapia e libertou.
Foi desaparecendo aquele aperto, sabe!? Agora uma coisa eu não faço que eu não devo fazer:
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carregar muito peso, porque os braços, assim, não tem muita resistência e torcer roupa,
vamos dizer, roupa grande, coberta. Não dou conta e não faço isso. Porque a gente também
tem limite, e tem que reconhecer o que pode e o que não pode, né!? Eu respeito isso. E fazer
na tranqüilidade, na certeza que Deus fez de acordo com a vontade dele.
Sobre a possibilidade de morrer como conseqüência do câncer, Lourdes demonstra através de
palavras e com seu semblante leve, não temer a morte.
Eu não tenho medo de morrer não. Eu tenho ânsia de ir pro céu. Eu amo a vida. E como eu
acho a vida maravilhosa, a outra também é linda, maravilhosa lá no céu, né!? Então é viver...
Sou muito feliz.
Lourdes demonstra o tempo todo ser uma pessoa muito alegre e voltada para ajudar os outros.
Ao mesmo tempo em que não se preocupa muito com sua morte, vista como algo até positivo,
coloca o cuidado com o marido como sua principal missão do momento.
Eu gosto muito de ajudar. Eu pensei: eu quero ir na casa de apoio, que a gente contribui, mas
eles aceitam só quando a pessoa é voluntária. E voluntária agora eu não posso, porque minha
missão agora é outra. Assim, eu posso fazer as coisas, dar catecismo, ir na Hora Santa,
alguma coisa assim, mais compromisso eu não posso, que eu tenho meu marido doente. É
minha primeira missão agora.
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Lourdes parece não parar. Além da missão de cuidar do marido, procura sua comunidade não
como forma direta de receber apoio, mas para doar-se aos outros. Esta energia para a ação
constante parece residir na certeza de que não está sozinha.
Eu sou uma pessoa muito feliz, sabe!? A gente enfrenta as durezas da vida, mas a gente não
está sozinha. A certeza que eu tenho dentro de mim é que a gente não está sozinha.
Quando conta sobre os acontecimentos cotidianos, sempre envolvidos com mistério do
sagrado, Lourdes costuma atribuir um sentido maior aos eventos que a aproximam do divino.
E ontem foi tão bonitinho... eu perdi lá no hospital São João de Deus. Eu tinha que entrar em
uma porta, entrei em outra, e eu tava procurando o quarto da minha amiga. Uma porta que
eu entrei – a Capela - eu olhei assim na cruz e me veio aquele canto, Olhe pra mim.
Enquanto conversávamos, o marido de Lourdes (que estava no quarto ao lado) dá sinais de que
acordou e está se levantando. Ela se mantém atenta aos movimentos do marido, ao mesmo
tempo em que fala comigo sobre o relacionamento dos dois. Diz, sem reclamar, que foi difícil,
principalmente no começo, esses 46 anos de caminhada juntos. E completa colocando que só
se consegue perceber o bom, se se vivencia o ruim.
Pra gente experimentar alegria, a gente tem que saber o que é tristeza. Até pra experimentar
a saúde, a gente precisa adoecer.
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Lourdes não considera que a cura do câncer tenha a ver com sua fé, nem que seja um milagre,
mas que ainda não estava na sua hora de morrer.
Agora, tem gente que fala assim: a senhora sarou, porque é uma mulher de muita fé. Mas eu
sarei porque eu não estava pronta. Eu não tava pronta pra ir embora, porque se eu tivesse,
Ele me levava.
Lourdes mostra se entregar nas mãos de Deus com muita segurança, situação que surpreende
as pessoas a sua volta. Este se colocar nas mãos de Deus inclui aceitar a condição de
sofredora, que é natural e parte da vida.
O sofrimento vem, ele vem pra qualquer pessoa. Tem gente que fala assim: fulano é tão bom,
porque sofre tanto? Gente, Jesus, Maria, os apóstolos, foi sofrimento! Faz parte da nossa
vida. Ninguém ta fora disso não. A gente ta aqui sentada, o telefone pode tocar e me dar uma
notícia que eu não quero escutar. A gente é humano, não é desse mundo.
Para Lourdes, a presença de Deus não retira o sofrimento da vida, mas conforta pelo fato de se
saber que é uma presença com que sempre se pode contar.
A pessoa que é boa, que é religiosa, acontece sim o sofrimento, mas Deus prometeu estar
junto. Isso que é importante, mas tem gente que não acredita. Eu falo assim com Jesus: Jesus,
eu não sei nada, não posso nada, não entendo nada. Falo todo dia. O senhor sabe tudo, pode
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tudo, entende tudo. É uma questão de paz, de serenidade, de confiança. Porque Deus vai te
domando. Nunca que a gente está sozinho. É uma coisa gostosa, sabe!?
Para Lourdes, a aceitação do sofrimento como parte da vida, de um plano maior levou Nossa
Senhora a aceitar ser mãe de Deus.
Se Maria não estivesse disposta a aceitar o plano de Deus... Ela estava prometida em
casamento. Ela falou: o senhor falou, que bom! Uma sombra vai me cobrir. Pronto. Ele que
sabe, eu não sei nada.
Lourdes continua, dizendo que diante do sofrimento, “só Deus”. Mas completa:
E a força de Nossa Senhora, junto. Porque Nossa Senhora, nas bodas de Caná, intercedeu.
Ela não faz milagre. Ela intercede, igual ela fez nas bodas de Caná. Ele reclamou, mas
obedeceu Ela. Então, ela tem muita força. Ela intercede pela Igreja, por nós. É nosso modelo,
Mãe e intercessora. Advogada nossa, a gente não fala na Salve Rainha? Ela advoga em nossa
causa. Ela é mãe da humanidade. Jesus entregou ela na cruz, como nossa mãe, mãe da
humanidade, a São João.
Lourdes mostra-se encantada, “apaixonada” mesmo, como ela diz com a condução da história
por Deus, desde o princípio dos tempos, passando pela ressurreição de Cristo, até o momento
que vivemos agora. E considera a palavra de Deus atemporal: sem ontem nem amanhã, só
existe o hoje.
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Mesmo considerada totalmente curada de seu câncer, Lourdes acredita que ele pode retornar
ou que ela pode adoecer de novo. Mas assegura que, para ela, o mais importante não é a saúde
física e que não é pela sua saúde que roga a Deus.
O câncer não vem sozinho. A graça de Deus vem junto. Então, eu suporto, eu vou. Seja o
câncer, seja o que for. Eu não peço a Deus saúde, não. Tem gente que fala: o principal da
vida é saúde. Não é não. É ter Deus com a gente.
Lourdes considera importante não só ler a palavra (Bíblia), mas que se rumine sobre o que lê.
Ainda assim, não acredita que o sagrado possa ser compreendido jamais.
A fé é um salto no escuro. Você vai porque acredita.
Lourdes acredita que só Deus penetra fundo no coração, só Ele pode nos fazer felizes. E que a
palavra de Deus é dita ao coração, não entendida pelo cérebro como as outras palavras.
Demonstrando ter a certeza na fé, se sentindo pecadora e incompleta, Lourdes se diz feliz por
estar na companhia divina, por poder contar com a presença de Deus.
A minha certeza é que mesmo que eu esteja lá embaixo, Ele vem. Porque eu sou humana, sou
pecadora, sou frágil... sou criatura, não alcancei ainda a meta não. Eu estou engatinhando.
Um dia Ele vai me levantar, mas eu ainda estou engatinhando. Amanhã não é igual a hoje. Eu
posso estar caindo em lágrimas, mas eu sei que Ele é presença. Isso já está aqui dentro do
meu coração.
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Mas Lourdes não espera passivamente as coisas acontecerem.
Porque Deus propõe, Ele não impõe. “Se quiser me seguir, pegue a cruz”. Ele não falou:
“Pegue um ramo de flores e segue. Pegue a cruz de cada dia. Se você quiser me seguir, é
desse jeito”.
Logo depois, sr. Ciro se juntou a nós. Conversou com grande simpatia e entusiasmo, apesar da
debilidade física. Informado por Lourdes que meu trabalho era sobre Nossa Senhora, falou
como considera Maria importante para a vida dos católicos e mostrou-se incomodado com o
fato de muitos fiéis terem mais consideração pela mãe do que pelo Filho.
Passados alguns meses, após estudar muito o material coletado na primeira entrevista, retornei
à casa de Lourdes. Novamente, fiz o contato pelo telefone e me dispus a comparecer na hora
que fosse mais adequada para ela. Mais uma vez, Lourdes pediu que a entrevista fosse pela
manhã, em um dia que não tivesse compromisso de levar o marido às sessões de hemodiálise.
Desta vez, Lourdes me conduziu ao local onde realiza suas orações – o “pocinho” – para que
ali conversássemos. O “pocinho” foi instalado em um quarto, que antes abrigou sua mãe
doente e acamada. Seria um quarto comum, não fosse pelas figuras afixadas na parede junto a
uma cruz de madeira, todos símbolos de religiosidade de Lourdes. Ela inicia sua fala me
explicando o sentido daquele local para ela e como aqueles símbolos foram sendo adquiridos e
compondo o ambiente. A história do “pocinho” se inicia quando Lourdes começa a rezar para
o Menino Jesus, pedindo que seu primeiro momento do dia fosse com Ele, antes de qualquer
outra coisa.
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Um dia, dia de Nossa Senhora de Aparecida, ao escutar os foguetes que estavam sendo soltos
na igreja, ela pega a Bíblia e vai para esse local. Lourdes explica a escolha do nome
“pocinho”.
Então, por que meu pocinho? Por causa do evangelho de São João, quando Ele (Jesus)
encontra com a mulher samaritana na poço de Jacó e começa a conversar com ela. Naquele
tempo, qualquer coisinha a pessoa era jogada de lado. Jesus deu pra ela toda atenção,
conversou com ela, ofereceu a ela a água viva. Ela foi buscar água e Ele falou assim – se ela
soubesse quem era Ele...Foi uma pessoa que anunciou pra muita gente o evangelho. Eu quis
colocar aqui meu pocinho, onde eu espero que Jesus também esteja me convertendo. E eu
comecei.
Para compor o “pocinho”, Lourdes inicialmente procura uma cruz, mas uma cruz que não
tivesse o Cristo morto. Queria uma cruz, símbolo de amor. Lourdes procurava, mas não
encontrava a cruz que queria. Mas ela não desistiu porque queria uma cruz que encontrasse,
não uma que mandasse fazer.
Eu fui procurar a cruz e não achava a cruz que eu queria. Eles falaram: “Ah, você vai ter que
fazer” e eu “Não, ainda vou achar”. Procurei, procurei, procurei. Um dia eu saí aqui e na
rua achei esta cruz. Só que ela não estava assim, pregadinha. Dois tracinhos, eu disse: “É
essa que eu quero”. Aí, eu pedi o vizinho aqui, ele pregou um preguinho. Eu queria um
símbolo assim, não um símbolo dele na cruz, mas dele, né?! Eu queria lembrar de Jesus vivo.
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Eu sou de comunhão diária há 32 anos, nunca deixei de comungar. Então, eu peguei e
coloquei o trigo aqui. Eu gosto muito de trigo, por causa da hóstia.
Para Lourdes, achar a cruz na rua foi achar a cruz que Cristo queria. O trigo foi colocado logo
depois.
Então, me veio a idéia de colocar o trigo, que o trigo moído é Cristo, ele mesmo fala, o padre
São Tomás de Aquino.
Após colocar o trigo, Lourdes sente que deve deixá-lo lá, quando 15 dias depois recebe um
papel com os dizeres: Jesus é o projeto do Pai consumido na eucaristia. Lourdes continua me
mostrando, com carinho e orgulho, os objetos presentes no quarto: um quadro com uma
imagem de Jesus em oração no horto das Oliveiras, que ela ganhou de presente de um
palestrante da igreja, que a viu “namorando” a imagem enquanto esperava a palestra começar,
e um outro quadro de Jesus, Bom Pastor com duas ovelhinhas, uma nos braços de Cristo e
outra ao lado Dele. Lourdes me fala, rindo, que pensa que é a ovelha que está em seu colo, e
que a outra pensa: “Vou perder”.
Ainda me mostrando as figuras afixadas na parede, Lourdes aponta para sua lembrança de 1ª
Comunhão, emoldurada, e segundo ela, diferente das lembranças de outras pessoas por conter
Maria. Pergunto a ela o que a presença de Maria representa na sua 1ª Comunhão e ela me
corrige: Não só na primeira comunhão... E começa a me dizer de sua história de família, que
foi a 7ª de 12 filhos, que não era comum registrar as crianças quando nasciam e que foi
chamada apenas de Fia pela família até o dia de seu batizado, aos seis meses. Lourdes conta
que não haviam escolhido um nome para ela, mas que durante o batismo, quando o padre
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perguntou o nome da menina, a futura madrinha respondeu sem pensar: Maria de Lourdes.
Depois de alguns minutos a tia veio a saber que aquele era dia de Nossa Senhora de Lourdes.
Eu acho muito bonito ela por meu nome de Maria de Lourdes, sem saber que era dia de
Nossa Senhora de Lourdes. Ela falava assim: “Você tem que se muito devota dela porque foi
ela que escolheu seu nome”. E a vida inteira foi assim, teve muito a presença de Maria.
Lourdes tem os eventos de sua vida muito marcados pelos dias dedicados a Nossa Senhora.
Quis casar-se no dia 8 de dezembro, dia de Imaculada Conceição, mas o marido, que na época
morava em outra cidade, achou difícil. Deu pela primeira vez a comunhão como ministra da
eucaristia também no dia 8 de dezembro. Mudou-se com o marido para Divinópolis, depois de
morar em uma cidade muito longe, no dia 15 de agosto, que também é dia dedicado a Nossa
Senhora. Sobre este momento, Lourdes conta:
E quando o caminhão de mudança estava chegando na esquina, a gente teve que parar e
esperar, que tava passando a imagem de Nossa Senhora. Eu falei: “Nossa, que lindo, veio
esperar a gente”. Eu guardo isso com muito carinho no coração.
Pergunto a Lourdes sobre sua mãe. Ela coloca que a mãe era uma mulher maravilhosa, muito
trabalhadora, que passou por muitos sofrimentos, mas que era muito religiosa. Lourdes
considera sua mãe sua primeira catequista. De forma diferente, Lourdes conta de seu pai, um
homem muito caridoso, mas que não tinha religião.
Lourdes me fala que nunca foi a Aparecida do Norte, nem tem vontade de ir, não gosta de
viajar. Só viajou uma vez, por insistência do marido, mas não queria ir pra não perder a missa.
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Quando chegaram à cidade, o casal se perdeu do grupo e acabou achando uma igreja.
Chegando lá, perguntou se haveria missa e uma senhora respondeu-lhe que haveria uma em 20
minutos. Lourdes se empolga ao relatar o fato e lembra de seus pensamentos na época:
– “Não acredito! Primeira que chegou na igreja”. Então, não tenho nenhuma queixa, a
viagem foi perfeita.
Ela prossegue sua fala, contando sem muito entusiasmo, como para alguns fiéis são
importantes as aparições de Maria e as mensagens deixadas por ela. Eu não fico muito ligada
nisso não.Tem muita gente que acredita e muita gente que não acredita. Deve ter a liberdade
– eu tenho a minha crença e você tem a sua, né?!
Quando uma senhora falou a Lourdes a respeito das mensagens deixadas por Maria, recebeu
de Lourdes a resposta imediata – “Pra mim ela não chegou com essa mensagem não. A
mensagem que ela me deixou, eu ainda não dou contra de cumprir, até hoje”. A senhora
pareceu ter entendido que Nossa Senhora falou pessoalmente com Lourdes, mas ela continua:
“Fazei tudo o que Ele vos disser”. E ela ri muito ao me contar isso.
Pergunto a Lourdes se ela vê diferença no jeito que Maria e que Jesus a acompanham.
Jesus é Deus, né?! Maria é aquela que é serva de Deus. Maria é intercessora. Maria não faz
milagre, ela intercede. Como nas Bodas de Cana, ela pede ao filho dela. Toda passagem
(Bíblica) que é sobre Maria, ela é humildade. Maria, ela rezou a vida inteira: “Eis-me aqui
sua serva”. Ela é uma mulher que é modelo, modelo de amor a Deus.
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Lourdes diz perceber Maria como modelo, advogada, mãe e protetora. E dona de qualidades
como a fidelidade e a confiança absoluta. Coloca Maria, a exemplo da Igreja Católica, como
figura mais importante que os santos, merecedora de um culto específico. Neste momento,
Lourdes utiliza palavras próprias da Teologia, e falando sobre Maria ser isenta do pecado
original, coloca esta crença não como pessoal, mas como parte da doutrina católica.
Eu rezo de acordo com a doutrina católica. Eu não vou discutir com ninguém, se acredita, se
não acredita. Eu rezo o Credo para todo mundo, porque todo mundo é filho de Deus.
Questiono qual o sentido ela vê na sua doença, uma vez que percebe a realidade toda
impregnada de um sentido maior. Ela responde que o nosso corpo é carne, perece. Ao mesmo
tempo, acredita que não temos o direito de perguntar o porque da doença.
Igual meu marido, ele ta fazendo hemodiálise, fica horas naquela cadeira. (Fala Baixo) E a
gente fica pensando: “Por que?... A gente não tem direito de perguntar por que. Porque Deus
é que sabe, a gente não sabe de nada. O corpo é composto de carne, até tem mau cheiro. A
gente que não toma banho, não escova dente todo dia pra ver. A gente adoece.
Lourdes se diz muito feliz, e demonstra isso ao longo de nossos encontros.
Eu falei com meu neto: “Olha, quando a vó morrer, você vai escrever bem bonito assim:
‘Morreu de felicidade. A doença foi só uma desculpa’”. E eu sou muito feliz, acordo feliz e
durmo feliz.
Quanto à expectativa de cura ou de recidiva da doença, Lourdes parece não se incomodar: Tem
muita gente que me pergunta se eu tenho medo de voltar a doença. Se voltar, voltou, uai. Eu
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faço o que o médico mandou. Porque um dia chegou uma dona aqui, me entregou umas
apostilas, e falou que uma senhora tinha pedido pra me entregar, uns livros com testemunho,
um tratamento espiritual. – “Você leva desse jeitinho que está aí, agradece ela muito pela boa
vontade, mas eu só preciso de duas coisas: da misericórdia de Deus, porque eu sou fraca, sou
humana e da medicina”. Porque até o médico morre, o filho do médico morre.
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2. Análise da Entrevista com Lourdes
No decorrer do processo de entrar em contato com o material colhido na entrevista, refletir
sobre os encontros, transcrever a gravação de nossa conversa e construir um relatório
descritivo, foi possível perceber que alguns temas eram mais intensos na sua fala, ou pela
dimensão dada por ela ao tema, ou pela freqüência com que retornavam à conversa. Procurei
dividir a fala de Lourdes em temas, reunindo os sentidos semelhantes que se mostravam no
decorrer de sua fala.
Desta forma, defini estes temas de forma a analisar cada um deles:
1- A história religiosa de Lourdes,
2- O adoecimento,
3- A presença do Sagrado
4- Maria como modelo de fé
2.1-A história religiosa de Lourdes
Durante a descrição de Lourdes de sua história de vida e religiosa, percebi a presença de uma
família numerosa e estruturada, de baixo poder aquisitivo, e seguidora dos princípios
religiosos de um dos genitores, a mãe. A vida da mãe, marcada por privações financeiras e
sofrimentos de outras ordens, tem na religião e na Eucaristia o apoio para continuar sua
caminhada.
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Ela sempre falava assim: se eu não buscar Deus, se eu não buscar a
Eucaristia, eu não agüento carregar a cruz.
Lourdes diz que mesmo sua família sendo pobre, ela e os irmãos eram muito felizes, porque
tinham uma mãe que lutava por eles, trabalhadora e religiosa que educou todos os filhos
dentro destes preceitos religiosos. Na falta de condições financeiras para ter em casa uma
bíblia, rezava e ensinou os filhos a rezarem a Magnificat todos os dias. A mãe é considerada
sua primeira catequista, e Lourdes enfatiza que a catequese da mãe era de poucas palavras, era
“a vivência que está no coração”.
Ela também fala do pai, um homem bondoso, mas que não tinha religião. Um homem de fé,
que não ia a igreja nem participava dos rituais católicos. Quando Lourdes fala dos pais, pude
perceber que ela os diferencia, não na tentativa de depreciar o pai, ao contrário, ela demonstra
pelo pai um profundo afeto e compreensão pelo fato deste não ter sido religioso. A mãe, mais
presente na fala dela, é descrita com muita admiração, é co-responsável pela religiosidade de
Lourdes.
Eu sei que a minha primeira comunhão (...) eu apaixonei com Jesus,
mas eu acho que eu já tava apaixonada com Ele por causa do
testemunho da minha mãe.
A vivência de fé religiosa tem sua semente nas primeiras relações estabelecidas com a mãe ou
a figura cuidadora. Para Winnicott (1975) e Miller (1997), as experiências iniciais de
confiança marcam o modo como a pessoa pode se relacionar com o outro e também o Grande
Outro, o Sagrado.
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Durante toda a fala de Lourdes percebe-se como a relação com sua mãe pode ter contribuído
para seu desenvolvimento como pessoa que crê e confia. A mãe parece influenciar Lourdes
não somente a partir de seu testemunho de fé e da educação religiosa que passa aos filhos, mas
como pessoa confiável, bondosa, que busca uma vida coerente com os princípios que ensina
aos filhos.
A participação junto à comunidade religiosa parece ter-se dado de forma gradativa e natural.
Então, foi crescendo tanto no meu coração o Jesus, a bondade Dele, a misericórdia de um
Deus que nos ama tanto que na medida que eu fui crescendo, procurando sempre a Igreja, o
catecismo, né?!
Neste movimento de inserção dentro da comunidade religiosa, o ingresso nas Filhas de Maria
aparece como momento de grande significado. As Filhas de Maria são um grupo de moças que
se reúne para seguir o exemplo de Nossa Senhora através de orações, trabalhos de
evangelização e caridade.Como filha de Maria, Lourdes começou a participar mais ativamente
das atividades de igreja, tal como o ensino do catecismo para crianças e também a freqüentar a
missa e comungar diariamente.
Até hoje, mesmo tendo o tempo em grande parte preenchido com os cuidados com seu marido,
que está enfermo, continua se dedicando a Igreja, inclusive quando o marido se encontra
hospitalizado. Os princípios de doação, muito presente nas Filhas de Maria continuam
operando em Lourdes, o que pode ser reforçado pelo fato de Lourdes ter sido a primeira filha
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de Maria a manter-se integrante do grupo após o casamento, e naquele momento, o padre que
realiza a cerimônia coloca: Filha de Maria, filha de Maria para sempre.
Além de freqüentar a igreja e participar da comunidade paroquial como catequista e ministra
da eucaristia, Lourdes determinou em casa um local específico para as orações íntimas, feitas
pela manhã, que ela chama de “pocinho”. O “pocinho” foi o nome dado por Lourdes, baseado
no encontro de Jesus com a samaritana no poço de Jacó, no evangelho de João. (Jo 4, 1-42)
O dia a dia de Lourdes é extremamente permeado por sua religiosidade. Seus horários são
divididos de acordo com os momentos de orações, da ida a igreja. Seu espaço, sua casa é um
local de dedicação a Deus, a fé, ao mesmo tempo em que é o lugar onde tudo o mais acontece.
A piedade popular, esse modo de expressão da religiosidade, independente dos rituais
impostos pela Igreja e da liturgia, parece estar vinculado à necessidade do fiel de um
movimento maior na sua manifestação de fé. A demarcação temporal e espacial que Lourdes
promove no seu dia a dia, dando especial atenção ao Sagrado, que recebe lugar e hora em seu
dia, parecem proporcionar a Lourdes uma vivência mais palpável deste Sagrado.
2.2- O adoecimento
Lourdes suspeitou da doença, quando durante o banho, percebeu um volume na mama
esquerda. Devido aos inúmeros afazeres na época, período de Natal, e também pelo fato de
não ter se impressionado muito com o risco da doença, Lourdes não procurou um médico.
Alguns meses depois, já em abril, Lourdes começa a sentir “fincadas” no local, mas ainda
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assim protela a procura do especialista por estar ocupada ensaiando os anjinhos da coroação.
Lourdes resolve procurar o especialista, quando ao abraçar um destes anjinhos, sente de forma
mais acentuada a fincada na mama.
Deus é tão bom, usa até os anjinhos para avisar a gente. Nossa, eu preciso ir
ao médico, ta passando da hora.
Lourdes comparece sozinha ao consultório médico e, após realizar alguns exames solicitados
retorna ao médico para entregar os resultados e pede a Nossa Senhora que não a deixe entrar
sozinha.
Mesmo não sendo informada diretamente do diagnóstico de câncer, Lourdes percebe qual a
sua doença após a prescrição médica de quimioterapia. Lourdes sai do consultório abalada e
vai a igreja mais próxima.
A gente é humano, baqueia, quer segurar em alguma coisa.
Na igreja, Lourdes reza inicialmente a Deus, e depois se dirige à imagem da Virgem Maria,
que fica na lateral da igreja:
Mãe, venha me proteger que eu tenho cinco sessões de quimioterapia antes da
cirurgia.
A descoberta de uma doença com potencial mortífero, como é o caso do câncer, suscita
comumente a vivência de luto pela vivência das perdas propiciadas pela doença: perda da
saúde, da ilusão de uma morte distante, dos papéis familiares e sociais que o doente ocupa,
entre tantas outras. O luto é um processo considerado normal, cuja vivência implica em
quadros clínicos diferenciados que se sobrepõem, vistos como necessários para a elaboração
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de uma perda de algo considerado significativo (Bromberg, 2000 e Parkes, 1998). Não
apresentar os sintomas das fases do luto, como choque, revolta e tristeza é visto como
propiciador de um luto patológico, o que poderia cronificar o processo e decorrer em
patologias físicas e mentais.
No caso de Lourdes, não foi possível perceber a vivência deste processo de luto já que
somente no momento que recebe o diagnóstico, Lourdes se mostra em choque, mas por um
curto período de tempo, não evoluindo para outros quadros característicos.
Durante as primeiras sessões de quimioterapia, anteriores à cirurgia, Lourdes já sofre com os
efeitos colaterais comuns como náusea, vômito e alopécia, mas não deixa de freqüentar a
igreja, de ir a missa e comungar todos os dias.
Eu fazia tudo a mesma coisa. Ia a missa. A quimioterapêuta falava com as
enfermeiras:’Faz a quimioterapia da Lourdes, que ela tem que ir à missa.
Ela não fica sem o Senhor não’. Eu ia à missa, continuei dando catecismo,
fazendo coroação. Ia em casamento; muito casamento eu fui de lencinho.
Lourdes se submeteu à cirurgia de ressecção das duas mamas e esvaziamento dos vasos
linfáticos e necessitou ficar internada alguns dias no hospital. Durante a internação recebeu a
comunhão todos os dias, e também quando já estava na casa da sobrinha, em repouso.
O tratamento durou cerca de um ano, porque as plaquetas de Lourdes abaixavam muito após
as sessões de quimioterapia e era necessário um intervalo maior entre as sessões.
Depois da cirurgia, a sobrinha quis lhe dar próteses de silicone para reconstruir as mamas.
Eu falei: eu quero ser assim mesmo, eu me amo deste jeito (...). Eu te
agradeço de coração, mas eu não quero. Eu quero ser assim mesmo. Tirou,
acabou, o gato comeu. Pronto. Então fui feliz.
92
Lourdes aceita com resignação os limites impostos pela doença e cirurgia, mas observa que
estes limitaram sua possibilidade de realizar esforço físico.
Porque a gente tem limite e tem que reconhecer o que pode e o que não pode.
Eu respeito isso. E fazer na tranqüilidade, na certeza de que Deus fez de
acordo com o que fosse a vontade dele.
A religião é comumente colocada como um possível modo de enfrentamento às adversidades,
inclusive adaptando-se as situações de enlutamento (Pargament, 1997). Nestes casos, a pessoa
pode se aproximar mais da religião e da busca do Sagrado diante de dificuldades, como forma
de conseguir obter uma solução ou visualizar aquele evento como dotado de sentido.
Lourdes parece ter sua fé muito mais abrangente do que como um modo de se relacionar com
a doença. Mantém a rotina religiosa, apesar de sofrer com os efeitos colaterais do tratamento
como mal estar, vômitos, queda de cabelo (quimioterapia) e limitações físicas e dor (cirurgia)
e não demonstra ter se afligido com a presença de uma doença grave e que poderia resultar em
sua morte. Mostra uma perspectiva de vida de entrega e de fé. Não pede a Deus a cura da
doença, pede que esteja com ela.
E quanto à possibilidade de que a doença retorne, Lourdes a aceita com a mesma resignação
que apresentou durante o tratamento. As doenças acometem o corpo porque o corpo é de
carne, perece. E faz parte da vida o morrer. Porque até o médico morre, o filho do médico
morre. Esta é a condição humana, o que Lourdes aceita com mais tranquilidade que a maior
parte das pessoas.
93
Segundo Campbell (2002), entre as funções da religião, estão auxiliar o fiel a compreender e
aceitar sua condição de fragilidade e finitude humanas, dotar de sentido a realidade, mesmo
que permeada de sofrimento, e conduzir o fiel através das crises enfrentadas durante a
existência, como o adoecimento e a morte.
2.3-A presença do Sagrado
Para Lourdes, existe uma necessidade religiosa, uma procura constante por sentido através da
entrega pela fé. A fé de Lourdes é vivida com alegria e sentida como transbordante, algo que
ela necessita compartilhar com outras pessoas.
Deus, Ele é tão grande dentro do meu coração que eu não quero guardar só pra mim.
É um egoísmo. Então eu comecei a trabalha na catequese, a fazer palestra, falar, e até
hoje é assim.
Segundo minha percepção, Lourdes é uma pessoa com uma religiosidade aflorada, que
considera a presença de Deus como algo fundamental para sua vida, mais do que tudo, mais do
que sua saúde, inclusive.
Lourdes dota de sentido todas as suas vivências, percebendo um sentido maior, sagrado, nas
coisas. Assim, a realidade é concebida por ela a partir de uma ótica do sagrado, da intenção
divina, e todos os eventos que acontecem parecem ser regidos por uma lógica única.
Deus é bom, usa até os anjinhos pra avisar a gente.
Desta forma, o fato de abraçar um anjinho e sentir dor é considerado um sinal divino da
necessidade de procurar um médico, do mesmo modo que se perder no hospital e entrar na
capela, perder-se na viagem e achar uma igreja, em horário de missa, e também o fato de
94
participar deste trabalho depois de, no mesmo dia do convite, ter sido rejeitada sua
participação como voluntária no Hospital do Câncer.
A religiosidade de Lourdes a coloca em uma posição de busca diferenciada do Sagrado,
notando-se não uma aproximação do Sagrado no momento de seu adoecimento, mas uma
mudança do modo de se dirigir a este, que parece estar relacionada também a mudança da
perspectiva de vida e da concepção de si mesma.
Da mesma forma, o relacionamento íntimo que Lourdes estabelece com Nossa Senhora não
propriamente se intensifica com o adoecimento, mas adquire um caráter mais acolhedor.
Lourdes coloca como fundamental a relação que tem com Deus e Maria e a certeza de não
estar sozinha, considerando o sofrimento como parte da vida. A religiosidade para ela, não
protege do sofrimento imposto pela vida, mas faz a pessoa sentir-se acolhida, na presença do
Sagrado.
O câncer não vem sozinho. A graça de Deus vem junto. Então, eu suporto, eu
vou. Seja o câncer, seja o que for. Eu não peço a Deus pra me dar saúde
não. Tem gente que fala que o principal da vida é saúde. Não é não. É ter
Deus com a gente.
O sofrimento vem. Ele vem pra qualquer pessoa. Tem gente que fala assim:
fulano é tão bom, por que sofre tanto? Gente, Jesus, Maria, os apóstolos, foi
sofrimento. Faz parte da nossa vida. Ninguém ta fora disto não.
A pessoa que é boa, que é religiosa, acontece (o sofrimento), mas Deus, Ele
prometeu estar junto.
A certeza que eu tenho dentro de mim é que a gente não está sozinha. Hoje
mesmo na palavra Ele fala: Eu estarei com você sim. Ele não prometeu a
ninguém felicidade total aqui.
95
O sofrimento é visto por Lourdes como parte da existência, natural e universal. Sua resignação
quanto ao sofrimento que enfrenta se vincula muito ao sentimento que tem de não conhecer os
propósitos divinos e na confiança de que Deus a ama e tudo sabe.
A confiança no amor de Deus parece estar relacionada à compreensão que Lourdes tem de sua
relação com Deus, criador e criatura. Deus é visto como alguém que não abandona nem ignora
a necessidade dos filhos.
A minha certeza é que mesmo que eu esteja lá embaixo, Ele vem. Porque eu
sou humana, sou pecadora, sou frágil... sou criatura, não alcancei a meta
ainda não. Um dia Ele vai me levantar, mas eu ainda estou engatinhando
.
Deste modo, Lourdes não demonstra ter se afligido com a presença de uma doença grave e que
poderia resultar em sua morte. Mostra uma perspectiva de vida de entrega e de fé. Não pediu a
Deus a cura da doença, pediu que estivesse com ela.
Tem gente que fala assim: a senhora sarou porque é uma mulher de muita fé,
mas eu sarei porque não estava pronta. Eu não estava pronta pra ir embora,
porque se eu estivesse, Ele me levava.
A confiança extrema em Deus torna a morte para ela, algo não só natural, mas até desejado.
Eu não tenho medo de morrer não. Eu tenho ânsia de ir pro céu. (...) Um dia
uma amiga falou comigo: ô,Lourdes, você tem tanta certeza que vai para o
céu. Você está achando que é santa? – Não, eu sou pecadora, mas foi pra
isso que Ele veio.
2.4-Maria como modelo de fé
A ligação de Lourdes com Nossa Senhora começou muito cedo, quando ela ainda era bebê e
foi ser batizada. A escolha de seu nome é atribuída por sua madrinha a Nossa Senhora, já que
o nome Maria de Lourdes surgiu sem muita reflexão e em um dia significativo, o dia de Nossa
Senhora de Lourdes.
96
Em determinado momento da entrevista, ao falar de sua mãe, Lourdes a caracteriza como
trabalhadora, sofredora, religiosa e que tinha filhos felizes por saber que a mãe lutaria por eles.
Sinto que, neste momento, ela fala das duas mães. Maria não parece ser vista por Lourdes
como parte integrante deste Sagrado. Ela aparece mais como um modelo de se relacionar com
Ele, um modelo inclusive de entrega total. A relação estabelecida com Maria foi se
aprofundando durante todo o seu percurso de vida, com a herança da devoção de sua mãe e a
inserção nas Filhas de Maria.
Quando fala da fé em Deus e em Nossa Senhora, Lourdes distingue os dois, localizando Deus
em um lugar de Sagrado, de potência. Maria é vista como intercessora desta presença sagrada,
intercessora oferecida pelo próprio Deus, com posição intermediária entre sagrado e humano.
Lourdes busca evidenciar a diferença de sua crença em Deus e em Nossa Senhora. Nossa
Senhora é vista como modelo de bondade de aceitação da vontade de Deus.
Faça-se em mim a vossa vontade. É a oração que eu aprendi com Maria.
Minha devoção, minha afinidade com Nossa Senhora é como modelo de
fidelidade a Deus (...) de prontidão, de fazer aquilo que Deus queria dela.
Diferente da devoção expressa por Lourdes, muitos fiéis apresentam Maria como figura mais
relevante, como divindade absoluta, postura que incomoda a Igreja e é reprimida pelos
sacerdotes. Pude perceber em um de meus atendimentos como psicóloga clínica esta
predileção por Maria enquanto objeto de fé. Aparecida, uma senhora de 57 anos, viúva e mãe
de dois filhos, católica, que acompanha os acontecimentos da igreja em casa, assistindo
inclusive as missas apenas pela televisão, repetia com freqüência em nossos encontros que
“prefere Nossa Senhora”. Aparecida acredita que como mãe, Maria sofreu mais que o próprio
filho na crucificação e está atenta e sensível aos sofrimentos humanos.
97
Outros fiéis, devotos de Maria, mesmo não a tendo como figura de adoração, consideram sua
presença como fundamental em sua religiosidade. Desta forma, alguns até consideram a
possibilidade de conversão religiosa para religiões evangélicas, encantados com o culto mais
festivo e emocionante, mas desde que possam continuar com a liberdade de se devotarem a
Maria.
Lourdes mostra-se numa relação de proximidade com Nossa Senhora, função mesmo de
intermediária. No dia a dia, Lourdes faz orações destinadas a Nossa Senhora como o terço e a
Magnificat, buscando levar a mensagem da oração para a sua vida cotidiana. Desta forma,
busca espelhar-se no modelo de Nossa Senhora.
É só Deus, bem. É só Ele. E a força de Nossa Senhora junto. Porque Nossa
Senhora nas bodas de Caná intercedeu. Ela não faz milagre. Ela intercede,
igual ela fez nas bodas de Caná. Ele reclamou, mas obedeceu ela. Então, ela
tem muita força.
Lourdes busca desenvolver a confiança absoluta em Deus, a mesma confiança que ela admira
tanto Nossa Senhora por ter.
Eu peço a Maria que seja minha conselheira, que me ajude a caminhar, a
encontrar Cristo.
Toda passagem (Bíblica) que é sobre Maria, ela é humildade. Maria, ela
rezou a vida inteira: Eis-me aqui sua serva. Ela é uma mulher que é modelo,
modelo de amor a Deus.
Eu vejo Maria não como uma devoção,(mas) como um espelho de fidelidade
a Deus, de prontidão de fazer aquilo que Deus queria dela.
Lourdes não parece se impactar com as aparições de Nossa Senhora e com as mensagens
recebidas pelos videntes destas aparições, não se posicionando como quem acredita ou não
98
acredita nelas enquanto fato. A mensagem que Lourdes considera que Maria deixou para a ela
está na Bíblia, na passagem das Bodas de Caná: “Fazei o que Ele vos disser” (Jo 2, 5).
Durante sua fala, Lourdes cita espontaneamente os dogmas da Igreja relacionados à Maria.
Alguns são colocados por ela como dogmas de fé propostos pela Igreja, que ela acolhe por ser
católica e não questiona seu valor, mas, ao mesmo tempo, não demonstra uma ressonância
entre estes dogmas e sua fé. Quanto ao dogma da virgindade de Maria, Lourdes demonstra
uma compreensão diferente quanto ao significado de virgindade, através da história de seu
casamento. Lourdes mostra-se muito feliz e impressionada por ter sido a primeira filha de
Maria de sua cidade a permanecer no grupo após o casamento, inclusive carregando em seu
pescoço, durante seu casamento, a fita das filhas de Maria.
Antes, o padre, quando a moça fosse casar, tirava a fita porque falava assim,
quem é filha de Maria tem que ser virgem pura. Virgindade não é isso, não
ter filhos, é uma coisa do coração, ter coração puro.
Eu fui a primeira filha de Maria que o padre falou: ‘Não vou tirar a fita.
Filha de Maria, filha de Maria para sempre
.
O fato de se considerar Filha de Maria para sempre parece ir muito além de continuar
participando deste grupo religioso. Quando saiu da igreja, após a cerimônia de seu casamento,
Lourdes colocou seu buquê aos pés da imagem da Imaculada. E pedi pra ela caminhar com a
gente, e ela ta caminhando.
Lourdes demonstra a proximidade de Maria como uma filha, talvez ainda criança, que observa
a mãe, admirada, e busca ser esse modelo em quem se espelhar. No caso das mães terrenas, os
filhos crescem e se aproximam da condição adulta e superior da mãe. Quanto a Maria, mãe
99
celeste, a referência é de alguém próximo pela maternagem, mas inalcansável quanto à
condição de pureza e de resignação extrema à vontade de Deus.
Percebo que o adoecimento não aproxima Lourdes de forma mais efetiva da religião, talvez
pelo fato de que ela já estava bastante comprometida em sua fé, mas modifica o modo de
Lourdes se dirigir a Nossa Senhora. A relação que Lourdes estabelece com Maria no dia a dia,
é baseada em Maria ser para Lourdes um modelo de fé. Ao relatar seu adoecimento, Lourdes
se volta para Maria como mãe, e pede que esta não a deixe só.
100
3-Conclusão
A religiosidade de Lourdes parece ter em particular o fato de que a realidade adquire um
caráter de sagrado. O divino é percebido como exterior a ela, mas algo tão presente na sua
realidade que possibilita a sacralização da mesma. O tempo toma uma outra dimensão, não
mais cotidiana, mas um tempo também conduzido pelo divino. Desta forma, Lourdes “sarou”
e não morreu porque não estava “pronta”, porque não era sua hora.
O câncer é percebido para a maioria das pessoas como uma possibilidade de morte iminente, o
que costuma afligir a muitos. A vivência do Sagrado como algo que organiza dimensões
possíveis, como a vida e a morte, com a percepção do Sagrado Pessoal, Deus, como quem
tudo pode, tudo sabe e como figura sublime de amor, parece colocar Lourdes de forma muito
confortável em relação às possibilidades futuras.
Eu não tenho medo de morrer não. Eu tenho ânsia de ir pro céu.
Lourdes mostra em sua relação com o Sagrado, a percepção de Deus como ser de poder e
sabedoria. Descreve-se apaixonada com Ele, fascinada com sua força, e em busca de
compreender o sentido das coisas do mundo. Ao mesmo tempo, não se percebe um temor em
relação a Deus. Ela vive essa relação com tal intimidade, com tamanha confiança, que mais
uma vez penso nela como uma criança, desta vez com seu pai. Um pai que essa criança sabe
que a ama e que mesmo tendo muito mais força que ela buscará ser delicado com a criança,
para que não a machuque.
101
Maria não parece ser vista por Lourdes como parte integrante deste Sagrado. Ela aparece mais
como um modelo de se relacionar com Ele, um modelo inclusive de entrega total.
Lourdes não demonstra passar pelo câncer vivendo o luto por estar doente e nem lutando
contra a doença, como uma força inimiga. Ao contrário, vida, morte e doença, alegria e
sofrimento, aparecem em seu discurso de mãos dadas, próximos e inseparáveis. Como se
percebe dentro deste processo em fluxo, que é a vida, Lourdes já conta com os sofrimentos da
vida e não se esforça para e esquivar destes.
Pra gente experimentar alegria, a gente tem que saber o que é tristeza.
Até pra experimentar a saúde, a gente precisa adoecer.
A resignação é freqüentemente relacionada com o posicionamento de Maria na aceitação de
seu papel de mãe de Jesus. Portanto, o modelo de Maria é o modelo de resignação, de
aceitação da vontade de Deus, da entrega e confiança plena.
Maria ocupa um lugar de destaque na religiosidade de Lourdes, lugar de importância,
ocupado por aquele em que se espelha, que se toma como modelo, e, no momento do
sofrimento, lugar de proximidade, de conforto, um colo de mãe que não desampara.
O papel dado à Maria não se vincula ao distanciamento com Deus, ao contrário, Lourdes
percebe Deus como extremamente próximo e amoroso, como alguém com quem estabelece
uma relação de intimidade.
Maria adquire não um valor complementar ao Divino, a Deus, mas é um ser humano, uma
mulher admirada por Lourdes e vista como modelo de conduta e fé. A proximidade do
102
relacionamento com Nossa Senhora dota esta da maternidade. Assim, nos momentos de
sofrimento, Maria é, mais que tudo, a mãe acolhedora.
Pude concluir, a partir da análise deste caso, que a presença da religiosidade durante o
adoecimento de uma enfermidade grave como é o câncer, tem o poder de revestir de sentido a
realidade da doença e da morte.
A devoção a Nossa Senhora aparece não como complementação a fé em Deus ou em Jesus
Filho, simplesmente. Mesmo quando há uma relação de intimidade com Deus, sem medo da
ação devastadora do Sagrado sobre nós, humanos, ainda assim, a devoção a Nossa Senhora
pode aflorar.
Neste caso, Nossa Senhora não ocuparia tanto o papel de intermediária, solicitando a Deus a
resolução das dificuldades humanas, já que existe uma proximidade entre o fiel e Deus que
permite o encontro direto, sem intercessores.
Assim, Maria é buscada pelos fiéis como mãe, consoladora, como companheira presente e
fonte de apoio. E ainda como modelo de conduta e resignação diante da vontade de Deus.
103
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Compreender o sentido da devoção a Nossa Senhora em pacientes com diagnóstico de câncer.
Este foi meu objetivo inicial. No decorrer da elaboração deste trabalho pude reformular
crenças e postulados, até então definidos como absolutos para mim. Deste modo, pude
assumir, na medida em que me apropriava da teoria e entrava em contato com os pacientes,
uma postura fenomenológica, compreendendo por força da enorme variedade de informações
que me atropelavam que existem vários modos completos e complexos de crer e se devotar. O
meu modo de me colocar diante do Sagrado era mais uma possibilidade, de modo algum mais
correta que as outras, e se eu partisse sempre de meu ponto de referência, acabaria por estragar
o fenômeno que a mim se apresentava. Foi como escutar novamente Ales Bello (2004) nomear
de Arqueologia Fenomenológica esse modo cuidadoso de apreender as vivências da pessoa.
Tal como um arqueólogo, cujo material de busca é valioso e comumente encontra-se um
pouco escondido, enterrado, necessitamos como pesquisadores entrar em contato com o
sujeito que nos relata sua experiência de forma delicada de modo a não comprometermos o
material aprendido, nem o sujeito pesquisado.
Estar diante de uma entrevistada que apresentava uma fé transbordante, que lhe proporcionava
não só sentido a vida, mas também alegria em seu viver evidenciou a mim possibilidades de fé
religiosa e posturas de vida antes não imaginadas.
104
Assim, perceber que o diagnóstico de câncer não necessariamente conduz a vivência de um
luto, o que era minha expectativa inicial, foi sendo gradativamente elaborado durante a análise
da entrevista escolhida.
Do mesmo modo, a devoção a Nossa Senhora, percebida por mim como relacionada
principalmente ao papel de Maria como intercessora, já que em várias entrevistas escutei os
pacientes citando as bodas de Caná, como justificativa da importância da devoção a Maria não
se revelou a única ou principal função de Maria.
A necessidade de uma referência concreta, que ampare até fisicamente o devoto, que o auxilie
na organização do tempo e do espaço, parece ser uma das necessidades atendidas na devoção a
Nossa Senhora. Assim, os fiéis podem manter uma imagem, ou até mesmo um altar em casa,
com quem conversam, expõe seus medos e depositam sua confiança.
Estar diante da morte pode proporcionar a pessoa uma vivência de grande solidão. É difícil
muitas vezes se imaginar contando com uma pessoa qualquer, próxima e prestativa, sabendo
que o apoio desta pessoa é limitado até onde pode ir esta pessoa para não deixar sozinho
alguém diante da morte? Até onde pessoas comuns podem continuar como referência de
apoio, de companhia?
Mesmo a maioria das pessoas com alguma crença religiosa compreendendo a morte como
caminho de transição, passagem, não é possível que um semelhante, mortal, nos conduza por
este caminho. Não é possível que o outro dê respostas duradouras sobre o sentido do
105
adoecimento, da morte, da vida. Neste sentido, Maria é aceita como quem acompanha e
ultrapassa a barreira estendida entre a vida e a morte.
Rogai por nós, pecadores
Agora e na hora de nossa morte
Amém.
106
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110
ANEXO Formulário de Consentimento Esclarecido
Título do Estudo:O Sentido da Devoção a Nossa Senhora em Pacientes Oncológicos
Pesquisadora: Michele Mileib de Vasconcelos
Orientadora: Marília Ancona-Lopez Grisi
Curso: Mestrado em Psicologia Clínica
Instituição: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Endereço: R. Ministro Godói, 969, Perdizes, São Paulo, SP
Telefone: (11) 3379-2483
Objetivo Geral do estudo: O presente estudo tem como objetivo buscar compreender o
sentido da devoção a Nossa Senhora para pacientes oncológicos durante seu diagnóstico e
tratamento. Para isto, serão realizadas entrevistas semi-dirigidas com pessoas que têm ou
tiveram algum tipo de câncer, sendo submetidas a algum tratamento médico em decorrência da
doença e que, ao mesmo tempo manifestam sua devoção a Nossa Senhora.
Procedimento: Esta pesquisa será realizada com pacientes oncológicos adultos, de ambos os
sexos, que creiam em Nossa Senhora, independente da religião que professem e da freqüência
de visitas à Igreja.
1- Para ser incluído no estudo, a pessoa deve ter tido o diagnóstico de câncer, e ter feito
ou estar fazendo tratamento para remissão da doença. O participante será escolhido
baseado em sua devoção a Nossa Senhora.
2- A entrevista será realizada na forma de diálogo, tendo como objetivo que o
entrevistado fale livremente sobre o tema, de acordo com sua vivência do mesmo. Não
serão estabelecidas questões previamente. Serão feitas perguntas a fim de clarear
pontos não compreendidos e aprofundar nas vivências.
3- Para participar deste trabalho não é necessário que o entrevistado tenha conhecimento
teórico sobre o câncer nem sobre a religião, já que será investigado é como o mesmo
experiência a crença no adoecer.
111
4- Será realizada uma entrevista em local escolhido pelo participante e, se necessário, será
marcado um outro encontro.
5- Caso haja alguma dúvida em relação a alguma pergunta realizada, o participante tem
total liberdade de pedir à examinadora que repita quantas vezes forem necessárias para
seu melhor entendimento.
Sigilo: Em hipótese alguma a identidade e a voz do participante serão expostas. Para tanto,
nome e dados que identifiquem o participante serão ocultados. A gravação da entrevista só
será utilizada para uma análise fidedigna dos dados, sendo sua transcrição anexada a
pesquisa. Este trabalho poderá ser divulgado na forma de apresentação ou publicação,
seguindo os mesmos parâmetros de sigilo estabelecidos.
Recusa ou desistência da participação: A participação na pesquisa é inteiramente
voluntária e o participante poderá, a qualquer momento, se recusar a participar ou desistir,
caso assim deseje. Para tanto, deverá entrar em contato com o pesquisador responsável
(contato em anexo).
Declaro que os objetivos e detalhes deste estudo foram-me completamente explicados e
minhas possíveis dúvidas esclarecidas. Deste modo, concordo em participar deste estudo.
--------------------------------------------------------------- -----------------------------------
(nome) (RG)
112
Transcrição da Entrevista com Lourdes, 72 anos, que há treze anos teve Câncer de
Mama.
Como é que foi sua história religiosa?
Desde os Seis anos que a minha mãe era uma mulher muito religiosa, muito fervorosa. E ela
sempre ensinou a gente o caminho de Deus, da fé, né!?
E ela vivenciava isso na vida dela, com as dificuldades que ela teve, que ela enfrentou que foi
muito, né!?
Ela sempre falava: se eu não buscar a Deus, se eu não buscar a eucaristia, eu não agüento
carregar a cruz.
Ela está tão assim no meu coração, é assim, uma catequese de poucas palavras, de vivência.
Porque naquele tempo a pessoa nem tinha Bíblia, e ela já ensinava a gente a rezar
Magnificat”.
Eu sei que a minha primeira comunhão, que foi dia 15 de junho, 15 de agosto de 1940 e eu
tenho lembrança ainda, aquela lembrancinha que eles dão e eu apaixonei com Jesus, mas eu
acho que eu já tava apaixonada com Ele por causa do testemunho da mamãe, sabe!?
Então, eu nunca mais deixei de comungar. Então foi crescendo tanto no meu coração o Jesus,
a bondade dele, a misericórdia de um Deus que nos ama tanto que na medida que eu fui
crescendo, procurando sempre a Igreja, o catequismo, né!? Eu nunca deixei de freqüentar a
catequese. Eu era uma menina assim; presente, catequista, se doando com freqüência.
Tenho guardado desde uns dez anos um cartão postal que é Cristo e uma menininha com a
mão dele no ombro, e eu sempre falo: Eu sou essa aqui! Ele está com a mão no meu ombro
seeeempre, e ele está ali, guardado nos meus guardados, tudo!
Então eu fui criada assim. Depois de mais mocinha, eu fui ser filha de Maria. Eu tinha escola
de catequese, escola de doutrina e aprofundamento... e com Maria. E filha de Maria, né!?
Casei até com a fita. Antes o Padre, quando a moça fosse casar, tirava a fita porque falava
assim: Quem é filha de Maria tem que ser virgem pura. Virgindade não é isso, não ter filhos, é
uma coisa do coração, ser pura, quer dizer, ter coração puro né!? Então eu “admiro” por no
meu casamento, eu fui à primeira filha de Maria que o Padre falou: Não vou tirar a fita! Filha
de Maria, Filha de Maria para Sempre! Eu volto com a fita.
113
E eu tenho foto de fita no meu casamento e tudo. Mas quer ver, o moço falou assim que
bonitinho o meu casamento em relação à Maria, com devoção que eu tenho com a Imaculada
Conceição, porque quando eu casei, eu mesma que fiz meu buquezinho. Não tinha floras nem
nada, então eu saí na vizinhança e pedi flores e eu mesma amarrei e fiz meu buquê. E tinha um
altar da Imaculada de lado, porque eu morava em Pará de Minas e quando eu desci do altar já,
né!? casada, com meu marido, eu coloquei meu buquezinho lá no altar, aos pés de Imaculada.
E pedi para ela que caminhasse com a gente e ela vem caminhando.
Então essa devoção que eu conservo no meu coração, essa beleza de Maria, essa pureza de
fidelidade de Deus. Eu vejo Maria não como uma devoção, como um espelho de fidelidade a
Deus de prontidão de fazer aquilo que Deus queria dela. Não tenho muita devoção de ficar em
novena, presa, já foi esse tempo, agora não!
Agora é ver Maria como um espelho, de uma fidelidade a Deus. Faça-se em mim a Vossa
Vontade. É a oração que aprendi com Nossa Senhora tudo na minha vida que acontece, eu falo
como Maria: Pai, que seja feita Tua Vontade. Como Jesus também ensinou no Pai Nosso, não
é mesmo!?
Então minha devoção, minha afinidade com Nossa Senhora é como modelo. De fidelidade a
Deus. Ela, na pureza dela, na castidade dela podia ser, foi, é, né!? a mulher mais famosa da
humanidade porque ela carregou no ventre o filho de Deus, mas ela não fez por arrogância
nenhuma. Ela foi simples, pura.
E como é que é seu contato com Maria?
É de confiança e como conselheira. Eu peço Maria que seja minha conselheira, que me ajude a
caminhar, a encontrar Cristo, né!? Porque assim como ela trouxe Cristo no ventre dela, que me
ensine a como trazer Jesus também no meu coração. Não pra trazer Jesus no meu coração,
mas, prá levar Jesus no coração do outro, ou seja, das minhas filhas, dos meus netos, do meu
marido, na catequese. Que eu convivo com as crianças da catequese a trinta e tantos anos.
A catequese começou aqui em casa. Eu junto crianças, mas, não foi aqui só (Divinópolis)! Lá
em Pará de Minas, eu com dezessete anos, já comecei, ficava, assim, na porta da minha casa.
114
O que eu queria dizer prá você é que Deus, Ele tá tão grande dentro do meu coração que eu
não quero guardar só pra mim. É um egoísmo. Então eu comecei a trabalhar na catequese, a
fazer palestra, falar, e até hoje é assim.
Então, Maria é meu modelo de fidelidade, é meu espelho. Devoção. Rezo o Terço, rezo o
Magnificat” todo dia, rezei hoje. Na “Magnificat”, minha oração é assim: eu não leio aquilo
só não. Eu tiro um versículo ou dois, um salmo, e coloco a minha vida, a realidade da minha
vida. Ou seja, o Senhor fez em mim maravilhas, aí eu falo assim: assim como o Senhor fez
para a senhora maravilhas, minha mãe, permita que ele faça também na minha vida. Aí
completo junto com a oração dela, a minha, entendeu!?
Há quanto tempo a senhora ficou doente?
Eu descobri que tinha um tumor, eu que descobri, foi no banho. Eu passei a mão no lado
esquerdo da minha mama e senti um, vamos dizer assim, um caroço. No meu modo de pensar
ele tava mais ou menos assim. (ela mostra com os dedos cerca de dois centímetros)
E eu falei: ih! Tem uma coisa estranha aqui! Não liguei muito não. Isso foi no mês de
dezembro, era Natal e tudo, mas de repente aquilo começou a ferroar, sabe!? Tudo que dá
ferroada é porque está acontecendo alguma coisa, mas eu não liguei muito não! Dezembro,
janeiro...
Foi em abril que eu fui ao médico. Dr. Fernando apalpou e tudo, e falou: olha, Lourdes, eu vou
mandar você para a Dra. Eloísa examinar que eu não estou notando nada não. E eu fui. Eu
falei assim: ah! Eu tô ensaiando anjo de coroação, tô com muita coisa. Mas lá na coroação eu
fui abraçar um anjinho, e ela me apertou, e eu senti mais ainda a fincada. Deus é bom, usa até
os anjinhos pra avisar a gente.
Aí que eu fui, e a Dra. Eloísa mandou fazer os exames que precisava: tomografia, e precisou
da mamografia que eu fiz em Belo Horizonte.
Eu pedi a Nossa Senhora que não me deixasse entrar sozinha quando eu voltei no consultório.
Ela (Médica) falou comigo através dos resultados que ia me encaminhar para Belo Horizonte,
para uma médica lá, que eu ia ter que fazer quimioterapia. Eu vi que era câncer. Se precisava
de quimioterapia, logo, eu tava com câncer.
115
Assim que eu saí do consultório da Dra. Eloísa, que é no Pioneiro (prédio de consultórios ao
lado de um santuário), eu olhei pro lado. A gente é humano, baqueia, quer segurar em alguma
coisa. Eu não tava acompanhada pelo meu marido e nenhuma das minhas filhas. Só. Sozinha
assim, entre aspas. Eu fui ao santuário, que é pertinho, e falei com Deus, depois fui naquela
imagem na porta, uma Nossa Senhora e falei: Mãe venha me acompanhar, me protege que eu
tenho cinco sessões de quimioterapia pra fazer antes da cirurgia.
Aí eu ia pra Belo Horizonte fazer quimioterapia, e vinha vomitando, passando mal. Mas eu ia
pra Igreja. Na primeira quimioterapia, meu cabelo começou a cair. Ela foi muito forte. Eu tava
ali na porta da cozinha e quando eu vi, um fio saindo. Mas como agente conhece um pouco a
palavra de Deus e lá ta escrito os cabelos da sua cabeça estão todos contados... É o Senhor que
sabe. Eu ia tomar banho, passava a escova, e a mão saia cheia. Até que acabou tudo. Na
segunda sessão, não tinha mais nenhum fio. O quioterapeuta falou: mas já caiu o cabelo todo?
Eu disse: já caiu. Tô carequinha, neném de novo. Eu olhava no espelho. Minha menina falou:
mãe, não me deixa ver não! Eu pus o lenço, tá guardado. Se precisar dele de novo, tá
guardado. Minha amiga fez um de crochê pra mim, muito bonitinho, e eu fazia tudo a mesma
coisa. Ia a missa. A quimioterapeuta falava com as enfermeiras: faz a quimioterapia da
Lourdes que ela tem que ir a missa. Eu não fico sem o Senhor não.
Eu ia a missa, continuei dando catecismo, fazendo coroação. Ia em casamento; muito
casamento eu fui de lencinho.
Tem até uma menina que eu fui ao casamento dela de lencinho. Agora é ela que tá fazendo. A
gente fica até com pena, que é uma moça nova, eu já tava com mais de sessenta, não pode
comparar com uma menina. Hoje mesmo tem uma menina, filha de uma amiga minha, que
está tirando uma mama. Ela fala: Nossa, com você foi tão tranqüilo tudo, e a minha filha tá
chorando tanto. Eu falei: não me compara com ela. Ela tem seus sonhos.
Então foi assim, foi muito tranqüilo, e marcou a cirurgia. Eu fiz no Hospital Felício Rocho,
aquele hospitalão daquele tamanho, quando me chamou eu tava com a sacolinha que tinha que
levar uma roupinha assim, né!? E foi num corredor comprido, chegou lá na porta, ele falou
com a minha sobrinha: Agora você volta.
Aí minha sobrinha me agarrou. Eu falei: não, oh, pode ficar tranqüila. Agora mesmo a tia tá
boa, ou tá no céu, sei lá, né!?
Aí entrei, foi uma médica lá, fez uma entrevista comigo...
116
E o bonitinho de tudo isso, minha filha, quando eu entro no quarto, tinha uma senhora que
tinha feito transplante de rins, de máscara. E eu falei com ela assim: olha, vem alguém trazer
comunhão aqui? Que o meu negócio é receber Jesus todo dia. Não, tem um mês que eu tô
aqui, porque tá dando injeção e eu nunca vi não.
Aí abre a porta e achei que era enfermeira porque não vinha visita na hora, nós éramos de fora,
uma carinha fala assim: tem alguém que quer comungar aqui?
Eu dei um grito: eu sabia que Ele ia vir. A irmã, elas são muito assustadas né!? Nó, irmã,
deixa eu te falar; é porque eu comungo todo dia, não fico sozinha não. Aí a irmã falou assim:
não, a senhora não vai ficar sem comunhão não. Aí eu fui ficar na casa da outra minha
sobrinha.
Maria Alice, a tia não fica sem comunhão, você é amiga do padre Danilo e você fala com ele
que a sua tia não fica sem comunhão não. Ela não era ministra da eucaristia, nem ela nem o
marido. O padre falou: é você vai levar a comunhão pra ela todos os dias. Ela falou comigo:
Deus escreve certo em linhas tortas. Eu falei: não, Ele escreve certo em linhas certas.
Então, passou tudo tranqüilo, fiz todo o tratamento. Janeiro agora eu fui em B.H., porque
primeiro a gente vai de três em três meses, depois vai com seis, depois vai com um ano. Aí
chegou o tempo de ir de ano em ano. Em janeiro agora, treze, quatorze anos que eu fiz a
primeira quimioterapia.
O médico falou assim: ó Dona Lourdes, obrigação de vir aqui a senhora não tem não, mas a
senhora está cadastrada, porque eu fiz pelo SUS, não paguei nada, fui muito bem tratada. ‘
mas por esse problema, a senhora não precisa mais vir aqui não. Se a senhora quiser, vai
rezando pra senhora assim, com a cabecinha boa, que a gente olha a senhora e parece que a
senhora ta liberada.
O tratamento durou um ano, porque as minhas plaquetas abaixaram muito. Eu lembro que
quando deu nove aplicações, a Dra. Aparecida, que é a quimioterapeuta falou comigo assim:
eu vou aplicar na senhora porque é a última, porque não tinha condição... tanto que ia, tinha
dia e voltava sem fazer. Porque eu ia levando o resultado do exame e eu não olhava. E não
tinha condição de fazer porque senão eu ficava muito anêmica, né!? Aí ela me deu a idéia de
telefonar e passar os resultados. Então minha filha lia os resultados e ela falava: pode vir ou
não pode vir. Aí eu tinha que esperar mais uma semana.
117
Então com isso, demorou um ano. Mas um ano muito tranqüilo. Antes de fazer a cirurgia eu
fazia de tudo. Lavava, cozinhava, arrumava a casa, tudo que eu faço.
Aí depois não porque o corte foi muito grande, né!? Porque fez esvaziamento aqui (axilas) e
tirou as duas mamas, então eu tinha que ter um certo repouso.
O que a gente sente é que tem a sensação que tem uma corada apertando. É esquisito.
Não tem sinal, cicatriz, só não tem a mama. A minha sobrinha quis me dar à prótese, eu não
quis. Eu falei: eu quero ser assim mesmo, eu me amo desse jeito. Ela falou: não tia, mas eu te
dou mesmo. Não Maria José, eu te agradeço de coração, mas eu não quero. Eu quero ser assim
mesmo; tirou, acabou, “o gato comeu”. Pronto. Então, fui feliz. Passou o tempo e eu tô aí,
vivendo, alegre, feliz, trabalhando, cuidando do meu maridinho.
Então nesse meio tempo então, eu coloquei uma moça aqui, porque eu não podia fazer
movimento, né!? Essa coisa de sentir apertando, porque corta muito nervo, né!? Corta muita
coisa, é muito agressivo.
Aí, eu não melhorava daquilo, e eu tava ficando muito gorda, muito à toa. E eu não tenho
espírito de ficar assentada, esperando a pessoa fazer. E eu gosto da minha comida. Eu tenho
muitos defeitos, inclusive esse. Aí, ela fazia tudo, mas eu fazia a comida.
Um dia eu senti uma dor, uma coisa assim... aí, eu fiz uma sessão de fisioterapia e libertou. Foi
desaparecendo aquele aperto, sabe!? Agora uma coisa eu não faço que eu não devo fazer:
carregar muito peso, porque os braços, assim, não tem muita resistência e torcer roupa, vamos
dizer, roupa grande, coberta. Não dou conta e não faço isso. Porque a gente também tem
limite, e tem que reconhecer o que pode e o que não pode, né!? Eu respeito isso. E fazer na
tranqüilidade, na certeza que Deus fez de acordo com a vontade dele.
Porque tem gente que não acredita no que eu falo, mas você vai acreditar. Eu não tenho medo
de morrer não. Eu tenho ânsia de ir pro céu. Eu amo a vida. E como eu acho a vida
maravilhosa, a outra também é linda, maravilhosa lá no céu, né!? Então é viver... sou muito
feliz.
Eu gosto muito de ajudar. Eu pensei: eu quero ir na casa de apoio, que a gente contribui, mas
eles aceitam só quando a pessoa é voluntária. E voluntária agora eu não posso, porque minha
missão agora é outra. Assim, eu posso fazer as coisas, dar catecismo, ir na hora Santa, alguma
coisa assim, mais compromisso eu não posso, que eu tenho meu marido doente. É minha
primeira missão agora.
118
Eu dou catecismo aqui perto na paróquia. Primeiro era aqui em casa. Nos outros lugares que
eu morei juntava sempre os meninos e dava catecismo na minha casa. Até antes de casar, eu
dava catecismo na porta da minha casa. Depois dei catecismo até numa carpintaria. Tem gente
que me pára até hoje e fala: Oh tia, deu catecismo pra mim, né!?
Porque eu era filha de Maria e eles mandavam a gente pros bairros, sabe!? Então a gente
levava o catecismo pro bairro que a gente morava. Aqui na Sidil (bairro em que reside) não
tinha tanta Igreja, agora é que tem, então eu dava catecismo na carpintaria e nos domingos eu
ia fazer pic nic com eles de caminhão. O lanche era aqueles pães de sal grandes e recheados de
carne moída, e levava guaraná quente. Eu levava bola pra jogar com os meninos.
Outro dia mesmo, eu fiz um gol aqui na rua. Todo mundo me chama de Vó aqui. Se vo
perguntar onde mora a Vó aqui todo mundo sabe onde eu moro. Se perguntar Lourdes...
Eu sou uma pessoa muito feliz, sabe!? A gente enfrenta as durezas da vida mas a gente não
está sozinha. A certeza que eu tenho dentro de mim é que a gente não está sozinho.
Hoje mesmo na palavra, Ele fala: eu estarei com você sim. Ele não prometeu a ninguém
felicidade total aqui “ no mundo havereis de ter aflição, mas coragem, não tenham medo, eu
venci”. E São Paulo fala: “ nós seremos vencedores com Ele”. “ Eu estarei com vocês todos os
dias, em toda situação”. Ele é presença, né!? Eu sou apaixonada!
E ontem foi tão bonitinho... eu perdi lá no hospital São João de Deus. Eu tinha que entrar em
uma porta, entrei em outra, e eu tava procurando o quarto da minha amiga. Uma porta que eu
entrei – a Capela- eu olhei assim na cruz e me veio aquele canto, Olhe pra mim.
(Marido de Dona Lourdes se levanta) Nós estamos juntos há quarenta e seis anos. Dá pra falar
que no começo foi tudo tranqüilo? Não. É muito difícil. Viver é uma coisa, conviver é outra.
Nessa caminhada de quarenta e seis anos, que a gente olha, foi um caminho mesmo pra chegar
agora, nessa tranqüilidade. Ele é aposentado. Aposentado com tempo integral, tem toda
assistência médica. A gente vive tranqüilo. As meninas, os netos, tanta coisa bonita, né!? É o
caminho que Deus vai... agora, falar que foi tudo fácil, aí não tinha graça, né!? Pra gente
experimentar alegria, a gente tem que saber o que é tristeza. Até pra experimentar a saúde, a
gente precisa adoecer.
Agora, tem gente que fala assim: a senhora sarou, porque é uma mulher de muita fé. Mas eu
sarei porque eu não estava pronta. Eu não tava pronta pra ir embora, porque se eu tivesse, Ele
me levava.
119
Meu irmão mais novo veio aqui em casa, tinha ido ao médico, e o médico falou que ele estava
com a saúde de rapaz. Ele tinha cinqüenta e nove anos. Mas não parecia não. Aquela pessoa
jovem, alegre! Voltando pra B.H. de caminhão, a carreta bate nele e ele morre... não tem hora.
É a hora que chegou.
Um dia, uma amiga falou assim comigo: Lourdes, você tem tanta certeza que vai pro céu, você
tá achando que é muito santa? – Não, eu sou pecadora, mas pra isso foi que ele veio.
Mas você não tem medo? – Olha, já tive.
Ela falou assim: Eu morro de medo.
Eu falei assim: Mor- re de medo. Você fica presa. Você fica pensando no velório, que as
pessoas vão olhar pra você e falar: nossa ela era tão boa! Passa um pouco, jogam você num
buraquinho, deixam você lá, todo mundo vai embora, né!? E tem outra coisa... ela falou: outra
coisa? - É, você vai ver Deus. E tem uma coisa pior ainda. Você não acredita que ele te
perdoa.
- É, a gente é tão pecadora...
- É, todo mundo é. E o que é muito pior: você não acredita que Ele te ama!
Assim, eu fui criada na Igreja. As bases muito forte. Eu acho que é isso que está precisando, as
crianças de hoje, a juventude, ter essa base.
O sofrimento vem, ele vem pra qualquer pessoa. Tem gente que fala assim: fulano é tão bom,
porque sofre tanto? Gente, Jesus, Maria, os apóstolos, foi sofrimento! Faz parte da nossa vida.
Ninguém tá fora disso não. A gente tá aqui sentada, o telefone pode tocar e me dar uma notícia
que eu não quero escutar. A gente é humano, não é desse mundo.
A pessoa que é boa, que é religiosa, acontece sim o sofrimento, mas Deus prometeu estar
junto. Isso que é importante, mas tem gente que não acredita.
Se Deus não poupou o próprio filho, e permitiu que ele sofresse como homem!
Jesus morreu com todas as dores, conseqüência do sofrimento. E o Pai viu aquilo.
Na Paixão de Cristo (O Filme), eu achei tão bonito, depois que Jesus morre, cai uma lágrima,
a lágrima do Pai. Mas esse era o plano. Se Maria não estivesse disposta a aceitar o plano de
Deus... Ela estava prometida em casamento. Ela falou: o senhor falou, que bom! Uma sombra
vai me cobrir. Pronto. Ele que sabe, eu não sei nada.
Eu falo assim com Jesus: Jesus, eu não sei nada, não posso nada, não entendo nada. Falo todo
dia. O senhor sabe tudo, pode tudo, entende tudo. É uma questão de paz, de serenidade, de
120
confiança. Porque Deus vai te domando. Nunca que a gente está sozinho. É uma coisa gostosa,
sabe!?
Tem dia que eu tenho uma saudade da minha mãe... ela ficou seis anos doente, já não falava,
tava sofrendo muito, tadinha. Mas quando a pessoa morre, você sente a ausência, de saber que
a pessoa não volta.
É só Deus, bem! É só Ele. E a força de Nossa Senhora, junto. Porque Nossa Senhora, nas
bodas de Caná, intercedeu. Ela não faz milagre. Ela intercede, igual ela fez nas bodas de Caná.
Ele reclamou, mas obedeceu Ela. Então, ela tem muita força. Ela intercede pela Igreja, por
nós. É nosso modelo, Mãe e intercessora. Advogada nossa, a gente não fala na Salve Rainha?
Ela advoga em nossa causa. Ela é mãe da humanidade. Jesus entregou ela na cruz, como nossa
mãe, mãe da humanidade, a São João.
Bonito demais! É um encanto, a gente fica apaixonada mesmo! Como que Deus foi
conduzindo desde o princípio da criação do mundo, até chegar na ressurreição, que nós
estamos vivendo agora!
Mas o católico é muito preguiçoso. E descrente. Lê. Lê, mas não rumina. Não traz a palavra
prá vida, como você lê uma notícia que não é de hoje. A palavra de Deus não tem ontem nem
amanhã, é o hoje.
Eu falei com o meu marido: se eu falar com você um dia que eu não vou à missa, o que que
você faz? - Ah, eu chamo o Dr. Faria (médico da família). Eu interno com meu marido, fico
com ele no hospital, mas não deixo de ir à missa, eu dou um jeitinho. Eu falo: eu vou buscar
meu amor, viu?
A médica falou comigo: eu não vou falar pra você que você tá curada, porque nem eu sei se eu
tenho. Porque isso pode estar no corpo anos, de repente aparece.
O câncer não vem sozinho. A graça de deus vem junto. Então, eu suporto, eu vou. Seja o
câncer, seja o que for. Eu não peço a Deus saúde, não. Tem gente que fala: o principal da vida
é saúde. Não é não. É ter Deus com a gente. É preciso conhecer a palavra de Deus. Lê Isaías,
está escrito: “Eu te amo, Eu te aprecio, Eu troco reinos por ti”. Olha, Deus nos criou a sua
imagem e semelhança, deu o sopro da vida. Bonito demais, né!? A gente não entende Deus,
ninguém entende. A fé é um salto no escuro. Você vai porque acredita.
Quando eu entrei no quarto, prá preparar para cirurgia, eu falei com minha sobrinha: eu não
estou sozinha. Não precisa pensar que você me faz feliz não, que você não entra aqui dentro
121
(Mostra o coração). Você me ajuda a ser feliz. Você não entra aqui dentro, Ele entra. Deus é o
único que penetra lá no fundo do coração.
Na medicina, tem muita coisa sobre a mente, prá relaxar, sobre o que a mente comanda. Na
palavra, Deus fala é no coração. O cérebro pára, e a pessoa continua viva. O coração pára, a
pessoa morre. Eu entendo muito pouco dessas coisas. Eu tenho o quarto ano de grupo (4ª série
do ensino fundamental). Nunca estudei mais nada, colégio nenhum. Meu colégio é o banco da
Igreja. A Bíblia, a palavra de Deus, então, e aí que é meu colégio.
Todo ano, eu peço a Deus que me dê uma palavra para guiar o ano. Nesse ano, a palavra que
ele me deu foi confiança absoluta. A minha certeza é que mesmo que eu esteja lá embaixo, Ele
vem. Porque eu sou humana, sou pecadora, sou frágil... sou criatura, não alcancei ainda a meta
não. Eu estou engatinhando. Um dia Ele vai me levantar, mas eu ainda estou engatinhando.
Amanhã não é igual a hoje. Eu posso estar caindo em lágrimas, mas eu sei que Ele é presença.
Isso já está aqui dentro do meu coração.
Mas a gente tem que fazer por onde isso acontecer. Porque Deus propõe, Ele não impõe. “ Se
quiser me seguir, pegue a cruz”. Ele não falou: “Pegue um ramo de flores e segue. Pegue a
cruz de cada dia. Se você quiser me seguir, é desse jeito”.
Trancrição da segunda entrevista com Lourdes
Posso começar? Você sabe, né? Todo mundo que vem aqui, eu trago no meu pocinho e mostro
minha lembrança de primeira comunhão. –Tantos anos, a senhora ainda tem guardado?- Eu
mandei restaurar. Eu queria aqui um lugar para eu fazer minha oração de manhã. Eu pedia
muito ao Menino Jesus que meu primeiro momento do dia fosse com Ele, antes que eu fizesse
qualquer coisa.
E eu rezei muito, rezei muito, rezei muito. Tinha dia que rezava, tinha dia que falava com Ele.
Foi por aí. Faz sete anos agora em outubro, é dia de Nossa Senhora Aparecida, né? Lá na
igreja ficou soltando foguete. Eu disse assim: é hoje! Levantei, passei a mão na Bíblia,
comecei, vim pra cá. Então,por que meu pocinho? Por causa do evangelho de São João,
quando Ele (Jesus) encontra com a mulher samaritana na poço de Jacó e começa a conversar
com ela. Naquele tempo, qualquer coisinha a pessoa era jogada de lado. Jesus deu pra ela toda
atenção, conversou com ela, ofereceu a ela a água viva.Ela foi buscar água e Ele falou assim –
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se ela soubesse quem era Ele...Foi uma pessoa que anunciou pra muita gente o evangelho. Eu
quis colocar aqui meu pocinho, onde eu espero que Jesus também esteja me convertendo. E eu
comecei. Aí eu queria uma cruz, só que não queria uma cruz com Cristo morto. Queria uma
cruz, símbolo de amor. Eu fui procurar a cruz e não achava a cruz que eu queria. Eles falaram:
“Ah, você vai ter que fazer” e eu “ Não, ainda vou achar. Procurei, procurei, procurei. Um dia
eu saí aqui e na rua achei esta cruz. Só que ela não estava assim, pregadinha. Dois tracinhos,
eu disse: “ É essa que eu quero”. Aí, eu pedi o vizinho aqui, ele pregou um preguinho. Eu
queria um símbolo assim, não um símbolo dele na cruz, mas dele, né? Eu queria lembrar de
Jesus vivo. Eu sou de comunhão diária há 32 anos, nunca deixei de comungar. Então, eu
peguei e coloquei o trigo aqui. Eu gosto muito de trigo, por causa da hóstia.
- O que significou para a senhora achar a cruz na rua?
Eu acho que Ele queria essa cruz, né? Então, me veio a idéia de colocar o trigo, que o trigo
moído é Cristo, ele mesmo fala, o padre São Tomás de Aquino. E como eu sou apaixonada...
Eu arrumei um galhinho de trigo e coloquei. Tinha uns 15 dias que eu tinha colocado a cruz
com o trigo e teve uma reunião e eu não pude ir. Aí trouxeram pra mim um papel assim:
“Jesus é o projeto do Pai consumido na eucaristia”. Eu já tinha colocado o trigo, então eu falei:
“Deixa, porque Jesus é o projeto do Pai que consumou na eucaristia”. E quanto àquele Jesus
no horto das Oliveiras. Eu cheguei na igreja e assentei no meu lugarzinho; todo mundo sabe
onde é meu lugarzinho, é lá na frente, no canto. Aí, chegou o rapaz que tinha colocado a
estampa para uma palestra e me viu olhando, falou assim: “Namorando, né, Dona Lourdes?” E
aí, passado uns 8 dias, eu cheguei em casa e ele tinha deixado essa estampa, de presente. E o
outro (quadro) é Jesus, bom pastor. Eu fico olhando e pensando que a ovelha que está nos
braços dele é eu, porque a outra, do lado, está olhando e pensando: “Vou perder”. (Risos)
Você deve olhar e pensar: “Eu acho que ela é doida”.
- Doida por quê?
(Cantando) “Meu Jesus, eu te amo. Sou louca de amor por ti”.
A minha lembrança da primeira comunhão é diferente das outras por causa da presença de
Maria.
O que a presença de Maria representa na sua primeira comunhão?
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Não só na primeira comunhão... Minha mãe teve 12 filhos e naquele tempo não registrava a
criança na hora que nascia. Não tinha registro, certidão de nascimento. E ela teve 12 filhos, eu
sou a sétima. Aí veio a lei do Abono Família. Minha mãe e o meu pai não eram casados no
civil, só na Igreja. Aí eles tiveram que casar no civil pra ter direito ao benefício e registrou,
num dia só, todos filhos. Tanto que a gente não tem muita certeza se a gente nasceu foi
naquele dia mesmo não. Então, o meu nome de família, todo mundo me chamava de Fia, não
tinha nome. E quando eu tinha 6 meses, minha madrinha, que é tia da minha mãe, veio de Belo
Horizonte e minha mãe pediu pra ela: “Você podia levar a Fia pra batizar hoje, que ela já vai
fazer 6 meses e não batizou ainda. E minha madrinha me levou. Então, na hora de batizar tinha
que falar o nome, não podia falar Fia, porque Fia não é nome. Quando o padre perguntou pra
ela: “Como é que chama a menina?” , ela falou: “Maria de Lourdes”. Aí, ele batizou. Depois,
ela sentou no banco, tava me segurando no colo quando reparou umas senhoras esperando
perto do altar de Nossa Senhora de Lourdes. Ela perguntou pra uma senhora e ela respondeu
que era dia de Nossa Senhora de Lourdes. Eu acho muito bonito ela por meu nome de Maria
de Lourdes, sem saber que era dia de Nossa Senhora de Lourdes. Ela falava assim: “Você tem
que se muito devota dela porque foi ela que escolheu seu nome”. E a vida inteira foi assim,
teve muito a presença de Maria.
Eu queria casar no dia 8 de dezembro, dia de Imaculada. Aí, o Ciro falou: “Ah, não dá não!”.
Porque ele morava em Belo Horizonte, ficava muito difícil.
Quando eu fui chamada prá ser ministra da eucaristia, o primeiro dia que eu dei comunhão foi
8 de dezembro.
Eu morava em Passos. Chorava dia e noite. Saudade de mamãe e papai. Aí, no dia 15 de
agosto, que é dia de Nossa Senhora também, nós viemos pra cá. E quando o caminhão de
mudança estava chegando na esquina, a gente teve que parar e esperar, que tava passando a
imagem de Nossa Senhora. Eu falei: “Nossa, que lindo, veio esperar a gente”. Eu guardo isso
com muito carinho no coração.
Como era a religiosidade que sua mãe lhe passou?
Mamãe era uma mulher maravilhosa. Ela sofreu muito, mas era muito religiosa. Ela levou
todos nós para a Igreja. Ela era trabalhadora, lavava roupa pra fora. A gente era pobre, mas era
feliz, tinha uma mãe que lutava, que não deixava faltar nada pra gente. Não que a gente tivesse
luxo... Ela era muito religiosa. Você sabe que a minha primeira catequista foi minha mãe? O
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meu pai, ele era muito bonito, eu era apaixonada com ele, mas ele não tinha religião não. Uma
qualidade que ele tinha, ele ajudava toda gente, leproso, doente.Ele acudia as pessoas, dava
remédio, tirava a camisa e dava se fosse preciso. Ele tinha fé, muita fé. E eu, que preparei ele
para morrer. Ele morreu de câncer, a mãe já morava aqui comigo, que ela estava de cama
esclerosada. E a cama dela era aqui. Ela viveu seis anos na cama.
Eu nunca fui a Aparecida do Norte. Quem gosta, deve ir. Minha irmã já foi lá 25 vezes. Mas
eu nunca tive vontade, e não tenho. Eu não gosto de viajar. O lugar mais longe que eu fui foi
Campos do Jordão, que é até perto, né? O Ciro falava muito de ir a Campos do Jordão, de
excursão, mas eu não queria. Tinha que ficar sem missa, de jeito nenhum. De tanto ele falar:
“Vamos, vamos”, eu falei: “Ta bom, vamos, você me convenceu”. Aí, quando chegou numa
rua, a gente perdeu da turma; eu tinha ido telefonar pra minha filha pra falar que tinha
chegado, que estava tudo bem, e a gente se perdeu da turminha. Olhamos prum lado, olhamos
pro outro e “Olha ali, uma igreja”. Eu falei: “Ah, vamos lá?” – “Vamos”. Chegando lá tinha
uma senhora atravessando, eu perguntei pra ela: “Tem missa aqui?” Ela falou: “Daqui 20
minutos”. –“Não acredito! Primeira que chegou na igreja”. Então, não tenho nenhuma queixa,
a viagem foi perfeita. Porque eu sou apaixonada com Jesus Cristo. E com Nossa Senhora, que
com seu carinho, falou tão pouco... Teve um dia que teve uma reunião e a gente tava
conversando sobre a aparição de Nossa Senhora. Nossa Senhora apareceu pra umas pessoas,
deixou umas mensagens. Eu não fico muito ligada nisso não.Tem muita gente que acredita e
muita gente que não acredita. Deve ter a liberdade – eu tenho a minha crença e você tem a sua,
né? –“Ah, porque ela apareceu e falou assim, assim, assim”. –“ Pra mim ela não chegou com
essa mensagem não. A mensagem que ela me deixou, eu ainda não dou contra de cumprir, até
hoje”. Ela ficou curiosa: “Ela já falou com a senhora? (Fala baixinho)Você pode me contar?
–“Posso, ué, eu conto” Cheguei perto dela e respondi bem baixinho: “Fazei tudo o que Ele vos
disser”. (Risos) Ela deve ter pensado: “Ela vai me falar agora, eu vou correndo no
supermercado comprar um monte de velas”. Tem muita coisa bonita na vida de Nossa
Senhora...
A senhora vê diferença do jeito que Nossa Senhora acompanha a vida de vocês e o jeito que
Jesus acompanha?
Jesus é Deus, né? Maria é aquela que é serva de Deus. Maria é intercessora. Maria não faz
milagre, ela intercede. Como nas Bodas de Cana, ela pede ao filho dela. Toda passagem
125
(Bíblica) que é sobre Maria, ela é humildade. Maria, ela rezou a vida inteira: “Eis-me aqui sua
serva”. Ela é uma mulher que é modelo, modelo de amor a Deus. Santa, pura, imaculada.
Nasceu sem pecado, viveu sem pecado, morreu sem pecado. Jesus ascendeu aos céus, Maria
foi carregada pelos anjos, assim diz a doutrina da Igreja, assunção. Mas ela viveu a vida inteira
em função do que Deus quisesse dela. Sem reclamar.
A senhora tem Maria como modelo?
Modelo, advogada, mãe, protetora. Fidelidade, confiança absoluta... Eu não tenho nenhum
santo, assim. Eles são importantes,porque dedicaram a vida a Deus. Eu admiro muito São
Francisco. Ele rejeitou até a roupa do corpo, o nome do pai; viveu profundamente o amor a
Deus.
Agora, o culto de Maria é maior do que e qualquer santo. Dulia e hiperdulia. Maria é
maior.Todos os santos tiveram pecado, Maria não. Ela é isenta do pecado original, que a gente
nasce com ele. Eu rezo de acordo com a doutrina católica. Eu não vou discutir com ninguém,
se acredita, se não acredita. Eu rezo o Credo para todo mundo, porque todo mundo é filho de
Deus.
Eu falo muito que eu vou pro céu, sabe? Aí, uma senhora falou assim: “Como que a senhora
tem tanta certeza que vai pro céu, você acha que é tão santa assim?” –“Não, minha filha, olha
lá no evangelho. Jesus fala assim: ‘ Eu vim chamar os pecadores’. Os santos, os puros não
precisa”. Se não, a gente tava perdida. Eu vou é na palavra. Não é nos “diz que diz”, assim
não. Mas Ele me ama, com meus pecados. Ele me ama, eu tenho certeza.
A senhora consegue ver o sentido de encontrar a imagem quando está mudando, achar a cruz.
E a doença da senhora, qual o sentido?
Filha, o nosso corpo é carne, perece. Igual meu marido, ele ta fazendo hemodiálise, fica horas
naquela cadeira. (Fala Baixo) E a gente fica pensando: “Por que?... A gente não tem direito de
perguntar por que. Porque Deus é que sabe, a gente não sabe de nada. O corpo é composto de
carne, até tem mau cheiro. A gente que não toma banho, não escova dente todo dia pra ver. A
gente adoece.
Eu falei com meu neto: “Olha, quando a vó morrer, você vai escrever bem bonito assim:
‘Morreu de felicidade. A doença foi só uma desculpa’”. E eu sou muito feliz, acordo feliz e
durmo feliz.
Quando a senhora adoeceu, como Maria e Jesus ajudaram você no período de doença?
126
Foi assim, eu tinha a mama muito grande. Eu fui tomar banho, e é a hora mais própria pra
descobrir e tinha uma coisa maior na minha mama esquerda. Mas eu não liguei muito não, eu
não sou de impressionar. Fiquei, fiquei, fiquei. Mas um dia, eu tava ensaiando os anjinhos da
coroação, que eu ensaiei anjinho 15 anos, cada coroação mais bonita! Quando eu peguei um
anjinho, eu senti uma fincada profunda no lugar. Eu fui no médico, ele me mandou para a dra.
Heloísa. Eu fiz os exames que ela mandou, e ela mandou fazer outros em Belo Horizonte, e
uma biópsia. E aí me mandou pra outra médica em Belo Horizonte, pra fazer quimio e operar.
Quando a dra. Heloisa falou tudo comigo, e não é fácil a gente receber uma notícia desta. A
gente é humano, né? Eu fiquei abalada, porque a família do meu pai tem muito câncer,
inclusive meu pai. Eu parei na porta do Pioneiro (prédio de consultórios), olhei assim e -“Ah!”
Fui no Santuário primeiro –“ Jesus, só isso, o senhor me acompanha, eu e minha família”.
Depois cheguei aos pés de Nossa Senhora –“Mãe, me acompanha, fica comigo”.
Temer a Deus é confiar, é abandonar, é confiança.Isso aqui (corpo) vai embora, mas a alma...
“Vocês que são maus amam seus filhos, quanto mais Deus que é perfeito”.
Tem muita gente que me pergunta se eu tenho medo de voltar a doença. Se voltar, voltou, uai.
Eu faço o que o médico mandou. Porque um dia chegou uma dona aqui, me entregou umas
apostilas, e falou que uma senhora tinha pedido pra me entregar, uns livros com testemunho,
um tratamento espiritual. –“Você leva desse jeitinho que está aí, agradece ela muito pela boa
vontade, mas eu só preciso de duas coisas: da misericórdia de Deus, porque eu sou fraca, sou
humana e da medicina”. Porque até o médico morre, o filho do médico morre.
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