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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Letícia Souto Ribeiro de França
AS PRÁTICAS PROFISSIONAIS DE MODIFICAÇÕES
CORPORAIS: ENTRE A BIOSSEGURANÇA E AS TÉCNICAS DE
SI
MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL
SÃO PAULO
2008
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LETÍCIA SOUTO RIBEIRO DE FRANÇA
AS PRÁTICAS PROFISSIONAIS DE MODIFICAÇÕES
CORPORAIS: ENTRE A BIOSSEGURANÇA E AS TÉCNICAS DE
SI
MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial para a obtenção do título de Mestre
em Psicologia Social sob a orientação da
Professora Doutora Maria Cristina
Gonçalves Vicentin.
SÃO PAULO
2008
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Banca Examinadora
_______________________________
_______________________________
_______________________________
Para Maria Amélia Ribeiro (in memoriam):
Minha Mariinha, minha força, meu amor sem palavras.
AGRADECIMENTOS
Agradecer a todas/todos que de alguma forma participaram da
construção deste trabalho, é uma tarefa impossível. Duas ginas não dão
conta. Os agradecimentos são incompletos em si, mas completam o corpo
dessa dissertação.
À Profª Drª
Maria Cristin
a Vicentin
- a
Cris
-
minha orientadora. Parceira, estimuladora e
cúmplice em toda trajetória. Pela paciência, por
seu entusiasmo, por sua acolhida incondicional.
Por ter me incitado a desenvolver minhas
potências, por ter me puxado pela mão nas
horas em que pensei não conseguir. A você,
toda minha admiração.
À Profª Drª
Mary Jane Spink
, pelo
acompanhamento desde o início do
mestrado, por sua generosa
disponibilidade e, principalmente por seu
carinho comigo.
À
Juliana Coelho
, minha grande
amiga, minha grande irmã, o chão
que eu trouxe do Recife para São
Paulo. Pela sua companhia, pelo
seu sorriso estimulante, pelo
acolhimento sempre.
À Profª Drª
, pelas
valiosas sugestões, por ocasião do
exame de qualificação. Por sua
prontidão, eficiência e doçura.
À minha mãe,
Leoneide Souto
, por seu
amor, sua confiança e seu investimento
constante. Seu exemplo de
combatividade me faz querer ir além.
À
Mariana Prioli
, pela amizade
sincera, pelo suporte constante,
pelas leituras atentas e
cuidadosas. Pelas comidinhas,
os encontros e os afagos desses
dois anos. És um exemplo,
minha amiga!
À
Flávia Ribeiro
, meu
morequinho! Pelos
abraços mais calorosos,
o colo mais acolhedor.
Por ser brilhante e
inspiradora. Pelas
lágrimas, os banzos, e
por “aquelas sensações
de deslocamento”
compartilhadas. Alagoas
e Pernambuco são
estados irmãos!
À
Milena Lisboa
, pelo amor
construído, transformado,
crescido. Pela sustentação nas
horas impossíveis, por ter posto as
mãos neste trabalho. Por todas as
discussões sobre meu tema de
pesquisa, e por sua paciência. Por
dividir comigo as dores e as
delícias da vida. Viva a Bahia!
Ao
Núcleo de Práticas de Discursivas
e Produção de Sentidos, pela acolhida
e pelas discussões esclarecedoras.
Especialmente à Vanda, ao Serginho, a
Jacke e à conterrânea de naturalidade e
de tema, Tina Galindo.
Ao
Felipe Lopes
, ao
Alan de Paula
,
Ângelo Sampaio e Fábio Belloni.
Amigos queridos da academia e fora
dela.
À
Marlene Camargo
, por toda paciência
desde a seleção para o mestrado. Por
me acalmar nas horas dos aperreios, por
sua constante prontidão.
Às minhas tias:
Fátima Souto
e
Bernardete Cordeiro, pelo
apoio, interesse e vibração.
Às amigas que São Paulo me deu:
Yorrana Maia e Lorena Morkazel.
Pelos momentos de descontração e pelo
afeto.
Ao meu irmão,
Saulo
Souto, pelo amor e por
sempre acreditar em mim.
Ao
Estevão Cabestre
,
pela amizade e o suporte técnico
nas horas de desespero!
À
Mercês Cabral
, pelo
incentivo, o amor e a força
desde a graduação. De
professora à colega de
profissão, pela amizade e a
confiança. E à Carmen
Mendonça, obrigada pela
parceria e o acolhimento.
Às amigas(o) do meu Recife:
Raphaela Nascimento, Lorena
Galvão, Yana Santos, Renata
Dias, Karla Daniele Maciel,
Luciana Santos, Maria
Eduarda Torres e Roberto
Vinícius. Vocês são a minha
segurança...
À
Bia
e ao
Alexandre
(Dengue), pela redescoberta da
amizade.
À querida amiga,
Mariana
Ferraz, pela amizade e a ajuda
no abstract.
À
Kátia Cesana
, pelo
apoio nos últimos meses.
À minha analista,
S
tella Maris
,
por sua fundamental escuta.
Aos profissionais participantes
da pesquisa: André Meyer,
Rafa Mendes e Snoopy pela
disposição em compor este
trabalho comigo. Eles são os
verdadeiros autores.
Aos
profess
ores e colegas do
Programa de Estudos Pós-
Graduados em Psicologia
Social.
Ao
Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico (CNPq), pela
concessão da bolsa que permitiu
a realização desta pesquisa.
RESUMO
FRANÇA, Letícia Souto Ribeiro de. As práticas de modificações corporais:
entre a biossegurança e as técnicas de si. 2008. Dissertação (Mestrado).
Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008.
A relação do ser humano com seu corpo é atravessada por práticas de
manipulação cultural e temporalmente situadas. Neste trabalho abordamos os
modos como o corpo vem sendo alvo de intervenções, trazendo exemplos de
culturas tradicionais, suas técnicas e funções, e apresentamos uma discussão
sobre as práticas de modificação corporal na sociedade contemporânea
ocidental. Partindo da reflexão foucaultiana de que uma tecnologia política
dos corpos, buscamos acompanhar as técnicas de si acionadas pelos
profissionais de modificações corporais e os modos como essas práticas vão
forjando suas fronteiras com outras tecnologias políticas. Para tal, realizamos
entrevistas individuais com três profissionais de modificações corporais, pois
acreditamos que eles ocupam um lugar estratégico no campo: estando em
relação tanto com as demandas dos que solicitam o seu trabalho, quanto com
agências que socialmente têm algum mandato de controle social sobre a
gestão dessas práticas. O caminho encontrado foi entrar em contato com o
Sindicato de Empresas de Tatuagem e Body Piecing do Estado de São Paulo
(SETAP-SP). Fundado em 2005, o SETAP-SP busca regularizar a prática de
tatuagem e body piercing no estado de São Paulo. A perspectiva
construcionista nos ofereceu o aporte metodológico da pesquisa ao permitir
uma postura não realista diante do nosso objeto, possibilitando reconhecer o
discurso dos participantes como conhecimento, posto ao nível de qualquer
outra produção discursiva. Propusemos então, diálogos entre o conhecimento
prático dos participantes com reflexões teóricas acerca do cuidado de si, da
biopolítica e biossegurança. De acordo com as análises, observamos que
práticas de biossegurança, mencionadas pelos três profissionais entrevistados,
sinalizam o processo de inserção dessa preocupação, nas últimas décadas, no
campo das modificações corporais no Brasil. Entretanto, se as modificações
corporais estão fazendo interfaces com a ótica da biossegurança, elas não
deixam de fazer fronteiras ou interfaces importantes com as questões da
saúde, porém, menos por uma perspectiva normatizante (no sentido da
biopolítica) e mais como potência de diferir. Ou seja, menos como norma e
mais como normatividade. Assim, concluímos também que as práticas
profissionais de modificações corporais podem ter conotações distintas, neste
caso, próximas das práticas clínicas e das técnicas de si.
Palavras-chave: Modificações corporais; Biossegurança; Técnicas de si.
ABSTRACT
FRANÇA, Letícia Souto Ribeiro de. The practices of body modifications among
the biosecurity and the techniques of the self. 2008. Dissertation (Master).
Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008.
The relation of the human being and his body is crossed by practices of cultural
manipulation and temporarily situated. In this work we explore the ways in
which the body is being the target of interventions, bringing examples of
traditional cultures, its techniques and functions, and we present a discussion
about the body modification practices in the contemporary occidental society.
Starting with the foucaultian reflection that there is a political technology of the
body, we try to keep up with the techniques of the self activated by the body
modification professionals and the ways these practices forge its frontiers with
others political technologies. For such, we made individual interviews with three
body modification professionals, because we believed that they occupy an
strategic place in their field: they are not only in relation with the ones who
request their work, but also with agencies that socially have any social control
mandate over the management of these practices. The way found was to get in
touch with The Tattoo and Body Piercing Company Union of the State of São
Paulo (SETAP-SP). Found in 2005, the SETAP-SP regularizes the practice of
tattoo and body piercing in the state of São Paulo. The constructionist
perspective offered us a methodological help on the research allowing a non
realistic posture before our object, making possible to recognize the participants
speech as knowledge, set in the level of any other discursive production. We
proposed, so, dialogues among the practical knowledge of the participants with
theoric reflection about self care, biopolitic and biosecurity. According to the
analyses, we noticed that the biosecurity practices mentioned by the three
interviewed professionals, show us the insertion process of this concern, in the
last decades, in the field of body modifications in Brazil. However, if the body
modifications are doing interface with the biosecurity optic, they do not stop
having frontiers or important interfaces with the health subjetc, but, less in a
normative perspective (in the sense of biopolitic) and more as a potency to
differ. In other words, less as a norm and more as normativity. Therefore we
also conclude that the professional practice of body modification can have
distinctive connotations, in this case, close to the clinical practices and the
techniques of the self.
Key Words: Body modifications; Biosecurity; Techniques of the self.
ERRATA
1. Na página 16, onde se lê: “Por fim, apontamos alguns pontos
embasaram nossas análises (1.3).”, leia-se “Por fim, apontamos alguns pontos
que embasaram nossas análises (1.3)”.
2. Na página 20, onde se lê: “A estratégia desenvolvida foi utilizar, como
estratégia disparadora, cartões com imagens de diversos corpos [...]”, leia-se:
A estratégia desenvolvida foi utilizar cartões com imagens de diversos corpos”.
3. Na página 39, onde se : “Este movimento teve importante relevância
para o desdobramento da outros movimentos [...]”, leia-se: “Este movimento
teve importante relevância para o desdobramento de outros movimentos”.
4. Na gina 64, onde se lê: “Se as modificações corporais tomadas pela
ótica da biossegurança [...]”, leia-se: “Se as modificações corporais não estão
tomadas pela ótica da biossegurança”.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.............................................................................................................
12
CAPÍTULO 1 – MÉTODO E PROCEDIMENTOS...........................................................
15
1.1. Sobre o problema e o campo-tema...................................................................
16
1.2. Sobre a construção das entrevistas.........................................................................
19
1.2.1. Sobre o roteiro e utilização das imagens e das frases...........................................
22
1.2.1.1. Imagens e frases usadas na entrevista.................................................................
23
1.2.1.1.1 As imagens.............................................................................................................
23
1.2.1.1.2. As frases......................................................................................................
26
1.3. Sobre os participantes e a realização das entrevistas....................................
26
1.3.1. Sobre os participantes........................................................................................
27
1.3.2 . Sobre entrevistas e o referencial teórico-metodológico........................................
30
1.4. Sobre a análise....................................................................................................
32
CAPÍTULO 2 – DAS MODIFICAÇÕES CORPORAIS.................................................
33
2.1. Das marcas corporais...................................................................................................
34
2.1.1. O início da prática profissional da tatuagem e do piercing no Brasil....................
37
2.1.2. Body Art..............................................................................................................
38
2.1.3. Body Modification...............................................................................................
39
2.1.4. Modern Primitives...............................................................................................
41
2.2. Das modificações corporais.............................................................................. 42
CAPÍTULO 3 – AS MODIFICÕES CORPORAIS E A
BIOSSEGURANÇA.....................................................................................................
49
3.1. Do poder de soberania ao poder sobre a vida.................................................
50
3.1.1. Medicalização....................................................................................................
52
3.1.2. Biossegurança....................................................................................................
54
3.2. Profissionalizar a prática: negociar para legitimar..........................................
58
3.3. Modificações corporais: problema de saúde pública?...................................
62
CAPÍTULO 4 TÉCNICAS DE SI E SUBJETIVAÇÃO NAS PRÁTICAS DE
MODIFICAÇÕES CORPORAIS...................................................................................
65
4.1. Biossociabilidade e bioascese..........................................................................
70
4.2. Elementos da cultura somática.........................................................................
71
4.3. Técnicas de si, normatividade e diferença.......................................................
75
CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................................
79
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................
81
ANEXOS...................................................................................................................................
86
U
ma experiência é qualquer coisa
da qual saímos transformados em
nós mesmos.
M
ichel
F
oucault
12
INTRODUÇÃO
No decorrer da história, observamos que o corpo humano esteve,
em maior ou menor grau, no foco da atenção de pensadores das artes, das ciências,
das religiões. Constituído sócio-historicamente, ele leva a marca da cultura num
processo de construção constante. É possível observar a tentativa de domínio do
corpo através de diversas modificações e técnicas – ele é adornado, mutilado,
manipulado. Neste trabalho, conduziremos uma discussão sobre o corpo, a partir de
um recorte sobre as modificações corporais. Mais especificamente, discutiremos a
seguinte questão: é possível pensar as práticas profissionais de modificação
corporal como práticas de si?
No primeiro capítulo, são apresentados os métodos adotados nessa
pesquisa, explicitando o percurso desenvolvido, desde os procedimentos de escolha
e contato com os participantes até a elaboração do instrumento entrevista semi-
dirigida com uso de imagens e frases disparadoras. Apontamos também como
desenvolvemos o nosso problema de pesquisa. Por fim, são explicitados os
procedimentos analíticos utilizados na compreensão e interpretação das entrevistas.
No segundo capítulo, apresentamos um breve histórico sobre a
prática de modificações corporais em algumas culturas. Para isso, discutimos a
inserção e apropriação de tais práticas na sociedade ocidental, difundidas a partir do
contato com sociedades tradicionais não européias. Abordamos também a
introdução das práticas de tatuagem e body piercing no Brasil, usando os
participantes da pesquisa como autores e atores desse processo. Descrevemos as
13
técnicas mais antigas e as contemporâneas utilizadas nessas práticas, de acordo
com seus contextos sociais e históricos. Realizamos uma breve discussão sobre os
modos como são categorizadas as divisões grupais dos adeptos às modificações, no
contexto atual, pelas Ciências Humanas, com destaque para a Antropologia.
No terceiro capítulo, a partir dos conteúdos trazidos pelos
profissionais das práticas de modificações corporais nas entrevistas, abordamos a
temática da biossegurança como dispositivo de poder e controle sobre os corpos.
Considerando os estudos de Michel Foucault, percorremos os investimentos
políticos sobre corpos expondo os modos como os dispositivos de poder incidiram
sobre o corpo na sociedade de soberania, na sociedade disciplinar e como incidem
na sociedade atual. Nesse sentido, a biossegurança se apresenta como um
dispositivo que visa assegurar a vida, ou seja, ela está sob a égide do biopoder.
Para Foucault (2006), nada é mais físico, mais material, mais
corporal do que o exercício do poder. O corpo é uma peça dentro de um jogo de
dominações e submissões presentes em toda uma rede social, que o torna
depositário de marcas e sinais que nele se inscrevem. Seguindo essa trilha,
discutimos a noção da medicalização e suas implicações nas estratégias de
legitimação das práticas profissionais de modificações corporais. Explicitamos
também reflexões acerca das práticas de modificações corporais como problema de
saúde pública.
No capítulo 4, apresentamos as práticas de modificações corporais
a partir do cuidado e da ética, que nos fizeram aproximar tais práticas de uma
clínica, de uma terapêutica. Aproximamos-nos então, de modos de subjetivação,
uma experiência do campo das liberdades que Foucault propõe. Pensamos que
nessas práticas um escape às formas do biopoder e a experimentação de um
14
governo autônomo do corpo. Buscamos apontar, nas considerações finais,
caminhos que nos pareceram relevantes no campo das práticas de modificações
corporais, bem como as “brechas” deixadas por nossa investigação.
15
C
APÍTULO
1
Humildade com técnica é o
seguinte: só se aproximando com
humildade da coisa é que ela não
escapa totalmente.
Clarice Lispector
16
MÉTODO E PROCEDIMENTOS
Iniciar uma dissertação com um capítulo metodológico, a principio,
pode gerar certa estranheza. Contudo, essa estrutura faz-se coerente com a
proposta de nosso trabalho, uma vez que optamos por tratar nossas entrevistas de
modo diferente do que é usualmente realizado em trabalhos acadêmicos. As razões
epistemológicas para tal tratamento serão explicitadas ao longo desse capítulo.
Desta forma, a análise não será apresentada em uma seção específica. Ela
atravessará todo corpo da dissertação, articulando os conteúdos das entrevistas
com as reflexões teóricas.
Neste capítulo, buscamos apresentar o percurso traçado para a
realização de nossa pesquisa. Para isso, inicialmente, explicitamos os caminhos
percorridos para delimitação do tema e dos objetivos de pesquisa (1.1). Em seguida,
indicamos os procedimentos adotados para montagem do roteiro da entrevista, bem
como os critérios para a escolha dos entrevistados (1.2). Por fim, apontamos alguns
pontos embasaram nossas análises (1.3).
1.1 Sobre o problema e o campo-tema
Para abordamos a delimitação do nosso tema de pesquisa,
achamos importante esclarecer o que entendemos por campo-tema. Peter Spink
(2003), em uma discussão sobre campo e a pesquisa em Psicologia Social, propõe
17
que a noção de campo não se refere a um lugar específico, mas que ele se refere “à
processualidade de temas situados” (2003, p. 18). Assim, partimos da premissa de
que, no momento em que escolhemos um tema para pesquisa, estamos inseridos
(as), implicados(as) num campo-tema. Ou seja, quando delimitamos, por exemplo,
um problema de pesquisa, estamos nos posicionando frente a um campo-tema.
Estamos abrindo possibilidades de diálogo, de argumento frente a um debate
(SPINK, P., 2003).
Inicialmente tínhamos a proposta de focar a multiplicidade de
sentidos das modificações corporais, entendidas como sinalizadoras de resistência
aos modos de saber-poder que modulam o corpo no contemporâneo, orientadas por
uma perspectiva foucaultiana. Partíamos da hipótese de que os usos/práticas
corporais pelos adeptos e profissionais das modificações corporais podem configurar
modos de subjetivação singulares.
A partir dos estudos de Foucault, tratou-se de perceber em que
medida o sujeito era constituído, respectivamente, pelas técnicas discursivas (saber)
e pelos mecanismos de normalização (poder), configurando-se a perspectiva do
assujeitamento. Nos seus trabalhos posteriores, especialmente com A História da
Sexualidade, estudando os gregos (“o cuidado de si”), Foucault tratou de pensar no
sujeito que se auto-constitui a partir de práticas ou técnicas de si, em suas relações
com o saber e o poder, podendo-se falar propriamente em “subjetivação”
(FONSECA, M. 2002).
Um outro fator importante para a delimitação do objeto e dos
objetivos de nossa pesquisa foi a participação na 10ª Convenção Internacional de
Tatuagem, realizada na cidade de São Paulo, em outubro de 2006.
estabelecemos os primeiros contatos com profissionais e adeptos às modificações
18
corporais. Pudemos observar que as tatuagens e os piercings movimentam um
imenso mercado, gerando empregos, renda e, inclusive, investimento por parte da
indústria especializada em produtos voltados para essa prática. Aliado a isso, nos
chamou atenção a existência do Sindicato de Empresas de Tatuagens e Body
Piercing do Estado de São Paulo
1
, o SETAP-SP, que credencia profissionais para
atuarem na área. Naquele momento, tínhamos como proposta convidar alguns
adeptos às modificações corporais para participarem da pesquisa. Trazendo esses
interlocutores, estaríamos situando o limite de ruptura com o padrão de
“normalidade”. Nesse sentido, pensávamos em processos de subjetividade nômades
ou dissidentes, conforme propõe Perlongher (1986) ao abordar os devires
minoritários (de mulheres, negros, homossexuais, crianças, etc.):
Não se trata de uma paixão morbosa pelo exótico, nem um liberalismo
radical, mas de pensar qual é o interesse dessas minorias de ponto de
vista de mutação da existência coletiva. Elas estariam propondo,
experimentando modos alternativos, dissidentes, “contra-culturais”, de
subjetivação. Seu interesse residiria, então, em que abrem “pontos de
fuga” para a implosão de certo paradigma normativo de personalidade
social (p. 05).
Tendo isso em vista, realizamos uma primeira conversa com um
profissional e adepto às modificações corporais extremas, o Mineiro
2
. Esse encontro
configurou-se como entrevista aberta, o que nos permitiu iniciar uma aproximação
com os movimentos das modificações corporais em São Paulo, seus grupos e
técnicas utilizadas.
1
Na época em que foram realizadas as entrevistas (junho de 2007), Snoopy, um dos entrevistados,
se referia ao sindicato como Sindicato de Empresas de Tatuagens e Body Piercing do Estado de São
Paulo. Entretanto, atualmente, no site oficial da organização encontramos outra nomenclatura:
Sindicato dos Estúdios de Tatuagens e Body Piercing do Brasil. Optamos por utilizar a primeira
sempre que nos referirmos à tal organização, respeitando as informações dadas durante a entrevista.
2
Solicitamos a todos os entrevistados que os mesmos optassem por serem ou não identificados na
pesquisa, tendo em vista que se trata de pessoas com certa visibilidade no campo. Todos optaram
por serem identificados. No caso do Mineiro, este é o pseudônimo usado por ele profissionalmente.
19
Desde essa primeira aproximação, percebemos que existe um
vasto universo de práticas de modificações corporais e que os sentidos atribuídos a
essas práticas destacam a noção de corpo. Sendo assim, partindo da reflexão
foucaultiana de que uma tecnologia política dos corpos (FOUCAULT, 2006), nos
propusemos a compreender à luz dos sentidos atribuídos ao corpo pelos
profissionais e adeptos às modificações corporais, os modos como, nessas práticas,
o corpo é atualmente investido de poder.
Ainda na fase exploratória da pesquisa, observamos que muitas
das experiências praticadas pelos adeptos às modificações corporais são publicadas
na internet de diversas formas. A internet tem se revelado grande fonte de
informações e debates sobre o tema, fazendo uso de diversos recursos, como fotos,
entrevistas, depoimentos, vídeos (tornando blico, por meio deles, inclusive
detalhes sobre as intervenções, materiais utilizados e discussões sobre riscos
envolvidos). Além disso, os sites e as redes de relacionamentos assumem formas de
divulgação dos profissionais e também dos adeptos. Assim, a internet mostrou-se
uma rica fonte de interlocução com o tema. Entendemos com Peter Spink que:
Não há múltiplas formas de coleta de dados e, sim, múltiplas maneiras
de conversar com socialidades e materialidades em que buscamos
entrecruzá-las, juntando os fragmentos para ampliar as vozes,
argumentos e possibilidades presentes (SPINK, P. 2003, p.37).
1.2 Sobre a construção das entrevistas
Objetivando identificar os sentidos dessas práticas corporais
para
os adeptos às modificações corporais, escolhemos como estratégia procedimental a
20
realização de entrevistas individuais com os profissionais e/ou adeptos desse
universo. Entendemos a entrevista como uma prática discursiva, ou seja, como uma
interação contextualizada e constantemente negociada, “por meio do qual se
produzem sentidos e se constroem versões da realidade” (PINHEIRO, 2000, p.186).
As entrevistas eram guiadas por um roteiro composto por questões
abertas que visavam estimular o relato dos participantes sobre suas práticas
enquanto profissionais e adeptos. Antes de iniciarmos as entrevistas, deixávamos
claros os objetivos da pesquisa, focando temas corpo, legitimação da prática, etc.
ressaltando que a entrevista o se ateria somente às histórias de vida, uma vez
que tínhamos como objetivo um enfoque na prática profissional de modificações
corporais. No entanto, emergia uma questão: como fazê-los ‘falar’ o corpo, do seu
corpo, do corpo do outro? A estratégia desenvolvida foi utilizar, como estratégia
disparadora, cartões com imagens de diversos corpos (corpos sem modificação,
corpos pouco modificados, corpos com modificações extremas, corpos passando por
processos de modificação, etc.) e frases relacionadas ao tema. Esse era um modo
de apresentar na cena da conversa um conjunto de sentidos que emergem a partir
das experiências corporais. Assim, pretendíamos construir, com esses materiais,
certo dispositivo
3
que permitisse convocar nos participantes sentidos em circulação e
suscitar a produção de outros.
Desde o princípio, imagens de modificações corporais faziam parte
da pesquisa para identificar e conhecer o campo-tema. Realizamos pesquisa em
sites, blogs, fotologs de praticantes e também de entusiastas das práticas de
3
A noção de dispositivo, desenvolvida por M. Foucault e trabalhada por Deleuze (especialmente em
seu livro sobre M. Foucault) aponta para algo (uma montagem, um artifício, uma estratégia) que faz
funcionar, que aciona um processo de decomposição, que produz novos acontecimentos e que
acentua a polivocidade dos componentes de subjetivação. (Baremblitt, Gregório. Compêndio de
análise institucional e outras correntes. Teoria e Prática. Rio de Janeiro, Editora Rosa dos Tempos,
1992).
21
modificações corporais, onde extraímos as imagens fotográficas que puderam
auxiliar o nosso diálogo. As imagens escolhidas propunham conter corpos
esteticamente diferentes, com e sem modificações. Acreditamos que a
heterogeneidade de tais imagens mobilizaria os participantes a negociar na
entrevista múltiplos sentidos de corpo. Nesse sentido, além do uso das imagens,
frases relacionadas às modificações corporais foram selecionadas, entre elas alguns
trechos de textos expostos na internet. Elegemos também um fragmento da fala de
um pesquisador do campo das modificações corporais. Ao trazermos as imagens
para a entrevista, podemos trabalhar a interface entre os aspectos discursivos e a
rede de materialidades em que as imagens estão inseridas. Segundo Peter Spink
(2003),
A materialidade tem também as características de um meio na medida
em que permite conversar com outros lugares e tempos. Nos mesmos
moldes, a internet, documentos, artefatos de todos os tipos podem
também ser partes do campo, maneiras de aumentar nossa
capacidade de diálogo. O documento público não é um mero registro,
ele é parte do processo; ele é materialidade e não matéria, parte de
um diálogo lento (p. 32).
Sendo consideradas desta forma, as imagens e os textos possuem
grande poder de produção de sentidos, bem como são usadas de diferentes
maneiras para produzi-los.
Como dito anteriormente, as entrevistas foram elaboradas com
base nos objetivos descritos. Entretanto, ao entrevistarmos exclusivamente os
profissionais das práticas (escolha que será explicada à frente), compareceu menos
a tematização da subjetividade dissidente e da transgressão à norma e mais a
questão da intervenção no corpo do outro. Assim, a discussão das técnicas e do
22
cuidado de si, também trabalhadas por Foucault, mostraram-se mais relevantes,
principalmente quando articulados aos conceitos de biossegurança e biopolítica.
Por técnicas de si entendemos “as práticas pelas quais os
indivíduos, por seus meios ou com ajuda de outros, agem sobre seus próprios
corpos, almas, pensamentos, condutas e formas de ser, de forma a transformar-se a
si próprios e chegar a um certo estágio de perfeição ou felicidade” (FOUCAULT,
1988).
Assim, nossa trajetória na dissertação passou a acompanhar as
técnicas de si acionadas pelos profissionais das modificações corporais, enquanto
tecnologia política do corpo, e os modos como essas práticas vão forjando suas
fronteiras com outras tecnologias políticas como a medicalização e a biossegurança.
Passamos também a ter como objetivo a articulação entre o
discurso dos participantes da pesquisa com as reflexões teóricas, dando um outro
status à fala dos participantes, colocando-os no mesmo patamar das produções
teóricas relacionadas ao nosso fenômeno de pesquisa.
1.2.1 Sobre o roteiro e utilização das imagens e das frases
Na etapa narrativa da entrevista, baseada no roteiro básico,
buscávamos abordar:
A prática profissional dos entrevistados;
Sua inserção no campo profissional;
23
Suas vivências com modificações corporais.
Após discutirmos as questões contidas neste roteiro, dispúnhamos
os cartões com as imagens na frente do participante, seguindo uma ordem aleatória,
e pedíamos para ele escolher três. Neste momento, tomávamos o cuidado de não
direcionar sua escolha, ou seja, o critério deveria ser do participante e, em seguida
perguntávamos o porquê da escolha. Por fim, trazíamos os cartões com as frases,
para que o participante selecionasse uma delas. Solicitávamos que ele a
relacionasse com suas vivências e práticas.
Sabíamos que qualquer que fosse a ordem escolhida para a
introdução desses dispositivos, ela contaminaria o olhar do participante. Entretanto,
partimos do princípio de que a imagem permite mais abertura a sentidos variados.
as frases capturam mais, induzem os sentidos. Optamos, então, por utilizar a
seqüência narrativa – imagens – texto.
1.2.1.1. Imagens e frases usadas na entrevista
1.2.1.1.1. As imagens
Fig. 01 – Implantes intra e sub-dermais. Fig. 02 – Bebê.
24
Fig. 03 – Homem tatuado Fig.04 – Idoso tatuado
Fig.05 – Modelação da cintura através Fig.06 – Adultos jovens tatuados.
de cintos de metal; perfurações peitorais
e tatuagens.
25
Fig.07 – Mulher com narinas alargadas e Fig. 08 – Processo da prática de escarificação
tatuagens faciais. contemporânea.
Fig. 09 – Tatuagem, piercings faciais e Fig. 10 – Processo da prática de tatuagem
implantes dentários. contemporânea.
26
Fig.11 –Processo de Tongue Splitting com Fig. 12 – Mulher com botoque no lábio
sutura. superior e orelhas alargadas.
1.2.1.1.2. As frases
(A) “O corpo é obsoleto”.
(B) “Não possuo mais pele, tenho apenas tela”.
(C) “Olha, é pra sempre mesmo”.
(D) “O gosto amargo do preconceito e o doce prazer de ter o direito de ser diferente".
(E) “As modificações corporais perturbam as fronteiras entre a natureza e a cultura”.
1.3 Sobre os participantes e a realização das entrevistas
Até agora explicitamos as etapas percorridas para a reformulação
do nosso problema de pesquisa, bem como as implicações dessas mudanças na
análise das entrevistas. Nesse tópico, esclareceremos os procedimentos que
utilizamos para a escolha dos participantes da pesquisa e o percurso traçado para
encontrá-los.
27
Como dissemos, inicialmente tínhamos a idéia de entrevistar as
pessoas cujo contato havia sido feito durante a 10ª Convenção Internacional de
Tatuagem. Entretanto, essa estratégia mostrou-se pouco interessante, pois diante
de um campo heterogêneo e com tantas multiplicidades de adeptos, interessados e
profissionais, qual recorte poderíamos realizar?
Pensamos então em trabalhar com os profissionais, pois eles
ocupam um lugar estratégico: estando em relação tanto com as demandas dos que
solicitam o seu trabalho, quanto com agências que socialmente têm algum mandato
de controle social sobre a gestão dessas práticas.
O caminho encontrado foi entrar em contato com o Sindicato de
Empresas de Tatuagem e Body Piecing do Estado de São Paulo (SETAP-SP).
Fundado em 2005, o SETAP-SP busca regularizar a prática de tatuagem e body
piercing no estado de São Paulo, acolhendo, inclusive, empresas e estúdios de
outros estados do país. O sindicato foi responsável pela criação do código de ética
da profissão, bem como de um estatuto que visa a normatizar esta prática
profissional. Assim, os profissionais inseridos nessa rede social devem formular
sentidos para normatizar e legitimar suas práticas.
1.3.1. Sobre os participantes
Ao entrarmos em contato com Antonio Carlos Ferrari - Carlinhos,
diretor presidente do SETAP-SP, explicitamos os objetivos da pesquisa e solicitamos
a indicação de pessoas que trabalham ou que tiveram alguma experiência com
modificações corporais. Nossa proposta era de que cada participante pudesse
indicar uma outra pessoa do campo formando um processo ‘bola de neve’. Assim,
Carlinhos nos indicou Ronaldo Sampaio Brito Snoopy, diretor vice-presidente do
28
sindicato e body piercier. Após a realização da entrevista, Snoopy nos indicou mais
dois profissionais: o tatuador Elcio Sorrentino Polaco
4
e Rafael Mendes Rafa,
body piercer e adepto às modificações corporais extremas. Polaco, por sua vez, nos
indicou André Meyer, profissional e precursor da prática de piercing no Brasil. As
entrevistas foram realizadas no estúdio de cada profissional (nos meses de junho e
agosto de 2007), exceto com o Rafa que atualmente não trabalha com modificações
corporais (quadro 1).
Quadro 1 – Participantes
Entrevistado Prática profissional
Ronaldo Sampaio
Snoopy
Body piercer desde 1997, possui mais de vinte
mil cadastros de pessoas nas quais aplicou
piercing. Um dos fundadores e diretor vice-
presidente do Sindicato de Empresas de
Tatuagens e Piercings do Estado de São Paulo,
Snoopy atua também oferecendo cursos sobre a
prática profissional do piercing e biossegurança.
André Meyer Precursor do piercing no Brasil, começou a se
interessar pelas modificações corporais após
uma viagem para o Amazonas, onde teve
contato com os índios. Realizou sua primeira
tatuagem em 1986, aos 16 anos. No início da
década de 1990, viajou para a Europa e trouxe a
técnica/prática do piercing para o Brasil. Pioneiro
em vários segmentos das modificações
corporais, André Meyer abriu sua primeira loja
em 1996, na cidade de São Paulo. Tornou-se
referência da prática no Brasil e atualmente está
focado no desenvolvimento e criação de jóias
para o corpo.
4
Realizamos a entrevista com o profissional, no entanto, tivemos um problema com o gravador que
nos impediu trabalhar com o material da entrevista.
29
Rafael Mendes – Rafa Começou a se tatuar por volta dos doze anos.
Realizou as primeiras modificações extremas
aos quinze anos. Possui vários piercings,
tatuagens e implantes. A fim de aperfeiçoar sua
prática, realizou vários cursos, incluindo
enfermagem e costumava marcar consultas
médicas com o intuito de tirar suas dúvidas
sobre fisiologia e cuidados com o corpo.
Trabalhou profissionalmente com piercings e
modificações durante sete anos na cidade de
Franca, interior de São Paulo. A procura maior
era por piercings estéticos, entretanto, realizava
modificações extremas em outras cidades. Hoje
não mais trabalha profissionalmente com
modificações corporais.
Os critérios éticos adotados nessa pesquisa seguem a postura
construcionista que, conforme propõem Spink e Menegon (2000), toma a pesquisa
enquanto prática social com uma postura reflexiva frente à produção de
conhecimento; explicita os critérios adotados, possibilitando a visibilidade dos
procedimentos e aceita a dialogia própria da relação entre pesquisadores e
participantes. Em todas as entrevistas, foi utilizado o Termo de Consentimento Livre
e Esclarecido (anexo A), conforme dispõem as diretrizes do Ministério da Saúde -
Conselho Nacional de Saúde Resolução 196, de 10/10/1996 Diretrizes e
Normas Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos. A questão
da identificação foi negociada com cada participante. Até aqui, apresentamos os
procedimentos de produção do corpus de nossa pesquisa. Nos tópicos seguintes,
apresentaremos as análises que dele derivaram.
30
1.3.2. Sobre entrevistas e o referencial teórico-metodológico
A perspectiva construcionista, por meio de reflexões
epistemológicas e ontológicas, problematiza os modos de produção de
conhecimento e o estatuto da realidade, dando centralidade às discussões sobre
linguagem. Tal abordagem nos ofereceu o aporte metodológico da pesquisa ao
permitir uma postura não realista diante do nosso objeto, possibilitando reconhecer o
discurso dos participantes como conhecimento, posto ao nível de qualquer outra
produção discursiva. Partindo dessa perspectiva, deixamos de nos referir a uma
verdade última no processo de construção do conhecimento, fazendo equiparar
perspectivas teórico-científicas e prático-vivenciais. Entendemos que o processo de
construção do conhecimento científico envolve regras específicas para sua
legitimação. Ademais, consideramos que os participantes da pesquisa o como
porta-vozes
5
do campo das práticas. Propusemos então, diálogos entre o
conhecimento prático dos participantes com reflexões teóricas acerca do cuidado de
si, da biopolítica e biossegurança.
Realizando uma crítica à postura realista, que concebe o
conhecimento científico como representando fielmente a realidade exterior, a
perspectiva construcionista propõe que sujeito e objeto de conhecimento são
construções cio-históricas. Isso implica na consideração de que o acesso à
realidade constrói os seus objetos, construções essas limitadas pelas características
sociais e biológicas das pessoas que as produzem (SPINK, M.J., 2000). Nessa
perspectiva não existe uma realidade em si, separada do sujeito que a conhece. Tal
5
A noção de porta-voz que estamos empregando aqui esta sustentada pelas idéias de Latour (2000),
que considera ser este alguém que fala no lugar daquele que não fala. Um/uma porta-voz é a
unificação da voz de uma coletividade.
31
realidade é discursivamente construída nas interações sociais, participando
conjuntamente da construção das pessoas com quem interage.
Se os objetos da natureza são constituídos por nossas categorias, se
essas categorias são artefatos humanos, produtos de interações
historicamente situadas, então a hegemonia dos sistemas de
categorias depende das vicissitudes dos processos sociais e não da
validade interna dos constructos (SPINK, M. J. e FREZZA, 2000,
p.28).
De acordo com a autora, esta perspectiva trata a concepção de
verdade como uma convenção social que segue critérios coletivos. É Importante
ressaltar que, para a perspectiva construcionista, não verdades e conhecimentos
absolutos; a distinção entre enunciados verdadeiros e falsos não se refere à
aproximação maior ou menor com a realidade pensada objetivamente. Dessa forma,
enunciados são sempre interpretações, que podem ser considerados mais ou menos
adequados de acordo com os critérios de construção de conhecimento. Essa
postura considera que tais critérios devem estar pautados nas suas implicações
éticas. O conhecimento científico seria, então, uma forma de interpretação
sistematizada por tais critérios, que deve garantir a explicitação do modo como seus
argumentos foram construídos, permitindo a discussão pública.
A centralidade oferecida pelo construcionismo à linguagem na
constituição da realidade não considera que todos os fenômenos tenham somente
natureza lingüística. No processo de objetivação, as materialidades assumem
importante papel na constituição das práticas discursivas e sociais.
Ao relacionar práticas discursivas com produção de sentidos,
estamos assumindo que os sentidos não estão na linguagem como
materialidade, mas no discurso que faz da linguagem a ferramenta
para a construção da linguagem (PINHEIRO, 2000, p.193).
32
1.4 Sobre a análise
Após a realização das entrevistas, realizamos a transcrição
integral de cada uma delas. A partir de diversas leituras desse material, pudemos
identificar as principais temáticas abordadas pelos participantes. Realizamos um
agrupamento dos principais eixos abordados pelos profissionais, eixos esses que
estavam vinculados ao nosso objeto de investigação. Com isso, percebemos três
temáticas predominantes: classificação/diferença das práticas de modificações
corporais; biossegurança e ética/respeito ao corpo.
Essas temáticas foram analisadas e estão discutidas nos capítulos
seguintes. No capítulo 2, buscamos tratar um pouco sobre a história das
modificações corporais, suas distinções e a inserção da prática de modo profissional
no Brasil. No capítulo 3, focalizamos a biossegurança como estratégia biopolítica e
os modos como tal estratégia ancora a legitimação das práticas de modificações
corporais. E por fim, no capítulo 4 tratamos a temática da ética/respeito pelo viés das
tecnologias de si.
33
C
APÍTULO
2
Que o corpo porta em si a marca da vida
social, expressa-o a preocupação de toda
sociedade em fazer imprimir nele, fisicamente,
determinadas transformações que escolhe de um
repertório cujos limites virtuais não se
podem definir. [...] Em cada sociedade poder-
se-ia levantar o inventário dessas impressões-
mensagens e descobrir-lhes o código: bom
caminho para demonstrar nas superfícies dos
corpos as profundezas da vida social.”
José Carlos Rodrigues
34
DAS MODIFICAÇÕES CORPORAIS
2.1. Das marcas corporais
A relação do ser humano com seu corpo é atravessada por práticas
de manipulação cultural-historicamente situadas. Cada uma dessas práticas
arranhar, rasgar, queimar, perfurar a pele - pode ser explicada por uma razão
particular. São “cicatrizes-signo”, formas artísticas ou indicadores rituais de status,
em que a sociedade projeta a “fisionomia do seu espírito e legitima um “sistema
político”, são “signos de pertinência ao grupo” e de “concordância com seus
princípos”, como nos ensina Rodrigues (2006,p.62-63).
Nesse capítulo, abordamos os modos como o corpo vem sendo
alvo de intervenções, trazendo exemplos de culturas tradicionais, suas técnicas e
funções, bem como uma discussão sobre as práticas de modificação corporal na
sociedade contemporânea ocidental. Trazendo, também, as vozes dos participantes
da pesquisa, uma vez que suas práticas fizeram e fazem a história da modificação
corporal no Brasil.
Registros de formas de arte anteriores ao surgimento da escrita e
do uso dos metais apontam a possibilidade da marcação da pele por homens e
mulheres há milhares de anos (RODRIGUES, 2006; FRANGE, 2004). Em um estudo
sobre o processo retrospectivo de escrever no corpo, Ramos (2001) relata
descobertas de corpos preservados de períodos muito antigos com inscrições
35
tatuadas na pele, datados de até cinco mil e trezentos anos. Esses achados
parecem indicar que a existência de práticas interventivas sobre o corpo estava
intimamente relacionada com uma cultura compartilhada.
A prática da tatuagem apresentava (e ainda apresenta)
significações distintas em sociedades não ocidentais. Na região da Oceania, por
exemplo, a tatuagem marcava a diferenciação social. Como seus habitantes
acreditavam que as tatuagens possuíam uma força sagrada, somente quem era livre
e nobre poderia portá-la. Desta forma, lhe era atribuído um status diferenciado dos
demais. Neste contexto, um escravo não tinha direito de portar uma tatuagem. Na
África, a tatuagem ainda é considerada como um ornamento protetor, um agente
terapêutico e também um símbolo de beleza (FRANGE, 2004; RAMOS, 2001). As
técnicas utilizadas pelos povos africanos são diversificadas. A realização de cortes
na pele onde são introduzidos materiais como terra, óleos e fragmentos de bambu,
causam quelóides, que chegam a ser consideradas como escarificações por alguns
antropólogos (RAMOS, 2001).
No Japão, a prática da tatuagem é milenar, o que permitiu o
aperfeiçoamento das técnicas. Com relação às suas funções e significados, Ramos
(2001, p. 34) afirma que “como em nenhuma outra cultura, a tatuagem no Japão
cobre o corpo todo com signos, que vão do corporativismo às discriminações
sociais”. De acordo com a autora, atualmente, somente profissionais licenciados
podem exercer essa prática. Nas Américas essas práticas foram difundidas com
os primeiros habitantes. No Brasil, por exemplo, tribos indígenas faziam marcas
corporais que demarcavam hierarquias sociais. Na Europa, por sua vez, a tatuagem
foi difundida e apreciada por alguns nobres. No entanto, grande parte da sociedade
manifestava aversão a essas práticas.
36
As marcas corporais se manifestaram de diversas formas no
Ocidente, entretanto, na Idade Média o Cristianismo aboliu tais práticas. Denis Bruna
(2001 apud Costa, A. 2003) relata que as marcas corporais estavam relacionadas
aos que se situavam à margem da prática cristã e que assim podiam quebrar a
imagem sacralizada do corpo, do corpo humano como imagem e semelhança de
Deus. Com isso, as marcas corporais permaneceram impregnadas de exclusão e,
até mesmo, de interdição durante muito tempo e em diversas sociedades.
Como essas práticas foram retomadas pela sociedade ocidental?
As grandes navegações do final do século XVIII permitiram que os europeus
entrassem em contato com práticas culturais diferentes das suas. As tatuagens
despertaram assim, a curiosidade e o desejo de experimentá-las em seus corpos:
Vários capitães e marinheiros começaram a se interessar por esta
arte, fazendo-se tatuar, transformando, dessa maneira, seus
próprios corpos numa tela para ser exibida aos incrédulos olhos do
Ocidente. Apesar de que se tinha conhecimento de diferentes
marcas corporais existentes entre os povos “primitivos”, somente
quando os marinheiros e viajantes talharam suas peles foi que se
estabeleceu uma ponte através da qual o Ocidente se aproximou e
iniciou sua trajetória na tatuagem (FONSECA, 2003:19).
Por volta do fim do século XIX e início do culo XX, as tatuagens
passam a ser realizadas pelos chamados ”marginais” da sociedade marinheiros,
prostitutas, detentos transformando-os nos protagonistas dessa prática no
Ocidente (COSTA,2003). Para Le Breton, os adeptos às tatuagens escolhiam
“expressar sua infâmia por esse desenho tegumentar que traduziria a sua
dissidência diante dos valores colocados como sendo os da civilização” (2003, p.35).
Esse viés da marginalidade foi mantido durante algum tempo, no entanto, a entrada
do corpo como objeto da arte (body art), marcou uma diferença.
37
2.1.1. O início da prática profissional da tatuagem e do piercing no Brasil
A prática profissional da tatuagem no Brasil iniciou-se através de
um intercâmbio com tatuadores estrangeiros, que trouxeram as cnicas,
executaram e difundiram tal exercício. No início da década de 1960, a prática, ainda
informal, teve como mentor um imigrante dinamarquês, o Lucky, pioneiro no uso da
máquina elétrica no Brasil. Ele foi, segundo Fonseca,
um ponto de referência para as gerações modernas de
tatuadores e, em especial, para seus pioneiros, que tiveram,
se assim se pode afirmar, a primeira escola com ele, através
de uma aprendizagem informal, característica desse ofício,
que guarda com muito receio seus segredos e truques, e que
só se evidência na e através da prática (2003, p. 24).
No início dos anos 1980, ainda incipientes, começam a surgir as
primeiras lojas de tatuagem no Brasil. André Meyer nos contou que seu contato com
essa prática ainda vinha através de filhos dos amigos de seus pais, que traziam as
tatuagens como souvenirs de viagens à Europa: “aqui não era uma coisa muito
comum”(sic).
André Meyer foi um dos introdutores da prática do piercing em São
Paulo, no ínicio dos anos 1990, como podemos observar em seu relato:
quando eu cheguei no Brasil pra fazer essa atividade, ninguém
sabia nem o que era piercing. Não sabiam nem o que era a palavra,
não sabia! Foi muito difícil eu adquirir meus clientes. Conquistar o
público e tal... Porque não era uma prática existente, não tinham
pessoas exercendo isso profissionalmente. Tinham uns tatuadores
que tentavam isso por experiência, mas ninguém que vivesse disso,
chegasse com os instrumentos próprios, né? Nem com a técnica
também. (André Meyer, p. 111).
38
André Meyer acredita que sua prática profissional foi estabelecida
num paralelo entre a tatuagem e o piercing, uma vez que, inicialmente, ele fazia uso
das lojas de tatuagem para exercer profissionalmente a prática do piercing. Em
1996, ele abriu sua primeira loja na cidade de São Paulo.
2.1.2. Body Art
No final da década de 1960, e nos anos 1970, o movimento da
body art tomou o corpo como instrumento da arte. O artista foi colocado como obra
viva e havia um destaque para a relação com público. Este movimento inscreveu-se
num contexto marcado por importantes acontecimentos políticos e sociais nos
Estados Unidos, tais como a Guerra do Vietnã e a Guerra Fria, além de
questionamentos sobre liberdade de expressão, liberação sexual e a relação com as
drogas (PIRES, 2005; LE BRETON, 2003).
Nesse contexto, a body art, ou arte do corpo, tinha como propósito
potencializar o corpo para uma libertação, de modo a sensibilizar os outros quanto à
relação com seus corpos, questionando, assim, os valores e as regras sociais. Para
isso, os artistas expunham seus corpos, provocando os expectadores com
exposição dos órgãos sexuais, sangue, etc. Essas performances buscavam gerar
sensações diversas, que iam do prazer a repulsa (PIRES, 2005). Le Breton nos traz
um panorama sobre o movimento:
O corpo entra em cena em sua materialidade. A incorporação da
arte como ato inscrito no efêmero do momento, inserido em um
ritualismo combinado ou improvisado segundo as interações dos
participantes, contesta os funcionamentos sociais, culturais ou
políticos por um engajamento pessoal imediato. A body art é uma
crítica pelo corpo das condições de existência. Oscila de acordo
39
com os artistas e as performances entre a radicalidade do ataque
direto à carne por um exercício de crueldade de si, ou a conduta
simbólica de uma vontade de perturbar o auditório, de romper a
segurança do espetáculo. As performances questionam com força a
identidade sexual, os limites corporais, a resistência física, as
relações homem-mulher, a sexualidade, o pudor, a dor, a morte, a
relação com os objetos, etc (LE BRETON, 2003, p.44).
Este movimento teve importante relevância para o desdobramento
da outros movimentos, tais como os modern primitives e a body modification.
2.1.3. Body Modification
Em meados da cada de 1970, a Body Modification surgiu como
um desdobramento da body art, acompanhando o surgimento do movimento punk,
que inicialmente levava a marca de uma revolta contra as condições de existência,
marca essa que era carregada na própria pele. Segundo Le Breton (2003, p. 34),
nesse período “o ódio do social [converteu-se] em um ódio do corpo que justamente
simboliza a relação forçada com o outro”.
É importante lembrar que “nessa época, a tatuagem já contava com
mais de setenta anos de reputação e era reconhecida como uma ‘marca da
marginalidade’” (FONSECA, 2004, p.21). Entretanto, a assimilação das marcas
corporais pela cultura punk, permitiu uma mudança de status dessas práticas.
Tomadas pela moda, elas passam a ser difundidas como uma busca de
singularidade (LE BRETON, 2003; PIRES, 2005).
Em sua entrevista, André Meyer nos contou que a prática
profissional do piercing teve duas vertentes. Uma em meados da década de 1970,
em São Francisco e a outra, a qual ele fez parte, na Inglaterra. A primeira foi
impulsionada por “gays excêntricos” (sic) que faziam uso somente do piercing. a
segunda, a prática do piercing tinha uma relação com a tatuagem e movimento
40
punk, ou seja, tratava-se de “duas escolas diferentes. (...) tatuagem e piercing têm
uma ligação, mas nem sempre” (sic).
Segundo Pires (2005), a expressão body modification refere-se a
um conceito utilizado para designar as modificações corporais executadas das mais
diversas formas, que usam desde produtos químicos até intervenções cirúrgicas. De
acordo com a autora, a body modification cria uma relação do artista com o corpo
totalmente diferente das estabelecidas pela body art e pela performance. Nela a
relação corpo-objeto é independente da relação tempo-espaço. “Não distinção
entre o artista e a obra, entre o sujeito criador e o objeto criado. O sujeito é o objeto
e não deixará de ser, independentemente do tempo e do espaço em que se
encontre. O evento artístico não se reduz ao tempo da exposição ou da
apresentação” (p.138). O tempo de exposição é o tempo de vida do indivíduo, e o
espaço destinado a ela é composto por todos os ambientes por onde ele circula.
Braz (2006) não acredita que tais distinções na body art
(artista/obra; sujeito/objeto) sejam tão demarcadas a ponto de se localizar na
ausência ou presença delas a diferença entre esses dois universos. Ele afirma que
tais fronteiras “permanecem borradas” (p.24). Para ele, a body modification nasce da
body art e guarda bastantes semelhanças. O que não significa, contudo, que sejam
a mesma coisa. “A body modification vem sendo afirmada nos últimos anos como
um campo profissional (e artístico) independente, com técnicas, saberes e um
aparato discursivo próprio” (p.24).
41
2.1.4. Modern Primitives
O movimento Modern Primitives teve origem nos Estados Unidos, e
teve como precursor Fakir Musafar. Em suas práticas uma grande ênfase na
questão ritualística, bem como, na superação da dor e na elevação espiritual. Fakir
Musafar sempre dispôs seu corpo a diversas experimentações. Evocava práticas
que em sociedades - consideradas por Fakir Musafar e seus seguidores -
tradicionais são carregadas de significados, apropriando-se dos ritos e das
modificações corporais.
Le Breton (2003, p. 37) nos alerta que pode haver uma “colagem
nas práticas e de rituais fora de contexto, flutuando em uma eternidade indiferente,
longe de seu significado cultural original, muitas vezes ignorado por aqueles que o
empregam, transformando-o em performances físicas”. Entretanto, como exemplo
dessa transposição, Snoopy nos falou sobre os modos e os cuidados no exercício
de tais práticas:
Então não vem somente o ato de perfurar. Vem toda uma cena
teatral, toda uma ideologia... Porque é aquela coisa: você pega uma
pessoa que nunca viu isso na vida? Ou uma, ou uma centena
delas? E de repente ela se defronta com uma coisa dessas? Ela vai
entrar em choque! Mal súbito, pressão baixa, alguma coisa
acontece. Agora, quando a pessoa tá preparada pra o que ela vai
ver, que ela sabe o que ela vai ver... e a pessoa que está se
predispondo a fazer isso, e a outra a sofrer isso.. quer dizer, tem a
consciência disso, então, fica uma coisa mais fácil de você passar
pro público. (Snoopy, p. 90).
Os adeptos e difusores da Modern Primitives agrupam as
modificações corporais em sete tipos: contorção, constrição, privação, tortura, jogos
corporais pelo fogo, penetração e suspensão. Todas estariam articuladas à
42
separação e à superação do corpo, na forma dos chamados estados alterados de
consciência ou de alguns estados de excitação sexual.
Encontramos um exemplo da prática de suspensão exercida como
uma superação no relato de Rafa Mendes:
Têm pessoas que nunca se interessaram por tatuagem e piercing e
achou legal a idéia da suspensão... Assistiu e gostou e quer fazer
por diferentes motivos, né? Ou por realização pessoal, ou superação
da dor, né? Não sei... “N” motivos. Ou por um lado espiritual,
também, que é o que o pessoal mais procura... Essas coisas.
Suspensão pra mim é um jeito que eu tenho pra relaxar. Pra mim é
um lance de mediunidade, que eu trabalho a respiração,
concentração. É uma coisa que eu faço pra relaxar. Me divirto,
lógico. Mas eu descarrego todas as minhas energias ruins na
suspensão. Porque eu não tenho nenhum tipo de cio, sou
totalmente natural, então eu faço isso pra me relaxar. (Rafa Mendes,
p. 122).
2.2. Das modificações corporais
Neste trabalho chamamos de modificações corporais as ações que
visam à modificação da imagem individual do corpo standard, a modificação do
corpo real. Dito de outra maneira, são alterações no corpo que se opõem ou, de
alguma maneira, questionam as formas e as funções que são estabelecidas a partir
da educação corporal do seu tempo. Nessas práticas incluímos os piercings, as
tatuagens, as escarificações e as inserções de implantes. Contudo, acreditamos que
cada uma dessas práticas é específica, cada uma cria determinado corpo. (GIL,
1997; LE BRETON, 1999 apud GALINDO, 2006). Não trataremos a especificidade
de cada prática, entretanto, apresentamos uma breve descrição das técnicas mais
utilizadas:
43
Tatuagem: utiliza substâncias que alteram a coloração da epiderme.
Piercing: Perfuração da pele com introdução de jóias em aço cirúrgico.
Dependendo da região do corpo onde é aplicado, diz-se que o piercing é
estético ou funcional. Os funcionais têm objetivo exclusivamente sexual.
Atualmente tem o intuito de intensificar o prazer do sujeito que o possui,
durante o ato sexual ou não, e de seu parceiro. Para isto são vários os tipos
de perfurações e combinações possíveis.
Escarificação: Produção de cicatrizes que podem ser feitas através de
incisões cutting ou queimaduras branding. Após a queima ou corte da
pele uma cicatriz forma um desenho.
Implantes subcutâneos: Implantação de um objeto (de silicone, aço cirúrgico,
osso, etc.) sobre a pele. duas formas de implantes. Na primeira, o objeto é
implantado subcutaneamente, formando um alto relevo. Na segunda,
somente a parte do objeto necessária para sua fixação é implantada, e
podemos vê-lo quase que totalmente.
Apresentaremos, a seguir, um panorama das pesquisas realizadas
no campo das modificações corporais. Com isso, pretendemos demonstrar a fluidez
das discussões e conceitualizações do nosso campo de pesquisa.
Essa definição deve ser tomada apenas operacionalmente, pois as
pesquisas realizadas e a interlocução com os participantes da nossa pesquisa
permitem ver a fluidez das discussões e conceitualizações desse campo e sugerem
que esse é um campo em movimentação.
Por modificações corporais Kemp (2005) considera quaisquer
intervenções sobre o corpo de modo a transformá-lo. Ela categoriza as modificações
corporais em dois grandes grupos: (1) mainstream, que corresponde a uma
44
tendência reconhecida e legitimada socialmente e que se articula em torno da idéia
da busca da beleza e da saúde e (2) Arte corporal ou body art, que corresponde a
um grupo bastante heterogêneo que realiza modificações corporais invasivas, como
tatuagens, piercings e implantes. Contudo, essa distinção é trazida pela autora como
um recurso puramente textual. Ela acredita que apesar de parecerem fenômenos
muito distintos, ambos são respostas ao nosso tempo, a uma mesma experiência
social.
Cunha (2002) chama de modificação corporal toda ação do próprio
indivíduo - ou de um outro autorizado diretamente por ele ou por meio de pactos
grupais e laços sociais sobre seu corpo, com vista a transformá-lo de maneira
visível e pretensamente definitiva. Cunha inclui nessa definição as cirurgias
plásticas, o piercing, as tatuagens, as dietas de emagrecimento, o fisiocuturismo e
certas práticas mutilatórias. Cada uma dessas ações – ou categorias de ação, já que
existem diferentes tipos de tatuagem, de cirurgia plástica etc. possui
especificidades e um campo próprio de sentidos, interpretações e efeitos sobre a
vida do indivíduo e sua posição no mundo.
Braz (2006) realizou um estudo etnográfico junto aos profissionais,
adeptos e entusiastas daquilo que ele chamou de “parte pouco usual das
modificações corporais” (p.03), ou seja, das práticas denominadas no próprio campo
como extremas ou radicais. Seu trabalho constituiu em uma tentativa de interpretar
antropologicamente o universo da body modification na cidade de São Paulo. A
partir das técnicas corporais e da medicalização da body modification, o autor
discutiu a possibilidade de efetivação de um discurso que enxerga nessas práticas
um meio de conformação de projetos corporais individuais, em contraposição com a
crescente profissionalização e normatização desse universo. Por fim, o autor buscou
45
discutir “uma potencialidade subversiva” (p.165) dessas práticas corporais. Sua
pesquisa trouxe uma considerável contribuição para o campo, na medida em que
realizou um mapeamento do universo das modificações corporais, contextualizando
a realidade de São Paulo.
O autor considera que dentro do universo da body modification
existem “práticas pouco convencionais”, como, por exemplo, piercings em locais
menos comuns, especialmente nos genitais, piercings alargados, como os
alargadores de orelha (geralmente no lóbulo), escarificações (marcas feitas a partir
de queimaduras ou cortes), implantes subcutâneos, bem como os ditos rituais de
suspensão
6
(p.26). Na tentativa de compreender as categorias body modification e
extreme body modification, Braz (2006) observou que “essas fronteiras são bastante
fluidas, talvez a circustanciais. Há, porém, algumas idéias que se repetem,
compondo um quadro de representações comuns” (p.27). Para os participantes de
sua pesquisa, a tatuagem e os piercings tradicionais, por terem sido, nos termos
deles, “aceitos pela sociedade” e pela moda, não seriam mais body modification.
Podemos observar na entrevista com Rafa Mendes essa fluidez
relatada por Braz:
Ah, modificação é tudo o que altera mesmo o corpo, né? que eu
considero mesmo, modificação... umas coisas mais extremas,
igual... implante na testa, que eu tinha, agora não tenho
mais...Porque agora eu vou trocar, né? Botar umas peças maiores...
Bifurcar a língua... Essas coisas mais extremas que eu considero
modificação... mas a partir de um brinquinho que você tem, você
modificou o seu corpo... (Rafa Mendes, p. 120).
6
Nesta pesquisa não trabalharemos com os rituais de suspensão, acreditando que se trata de uma
prática de ordem distinta à ordem do nosso objeto de pesquisa.
46
Sobre a realidade das modificações corporais consideradas
extremas, no Brasil e no exterior, AndMeyer nos conta que muitos anos temos
contato com tais práticas em outros contextos:
Eu sempre falo que quando eu viajo, eu vejo uns malucos, loucos
fora, de língua bifurcada, e chifre, implantes, essas coisas... E aí, cê
fala: Ah,meu! Isso pode ser diferente, mas aqui no Brasil, desde
pequeno, a gente via travestis, né? Então, a gente sempre teve esse
contato com essa modificação que é extrema! Nada mais como
mudar sua aparência, de mulher pra homem, de homem pra mulher,
enfim... Hoje em dia trocar de sexo... (André Meyer, p. 116).
Galindo (2006) realizou uma discussão sobre o que pode ser
considerado como modalidades brandas e extremas no campo das modificações
corporais. Desta forma, ela propõe que
em sua modalidade extrema, a estética convencional é questionada,
são impostos limites à inserção social dos seus praticantes, além
dos riscos à saúde a que se expõem. A modalidade branda, além de
não limitar o trânsito social dos praticantes, implica adesão por
modismo e a seleção de procedimentos cuja segurança está
razoavelmente consolidada pelo uso. A definição de modificações é
sempre relacional, uma vez que as alterações da forma corporal
podem ter efeitos diversos em função da sociedade com a qual
dialogam. Não podem ser classificadas em brandas ou extremas
baseando-se apenas no mal estar ou sensação de conforto que
causam ao pesquisador (p.76).
Soares Neto (2005), por sua vez, utiliza o termo modificações
corporais para se referir às práticas voluntárias e conscientes que alteram a forma e
o funcionamento do corpo. São práticas com objetivos demarcados e riscos
conhecidos. Genericamente, ele as divide em duas categorias: (1) práticas com
empenho individual e que geralmente são reversíveis – tais como os cuidados
relativos à aparência estética: regimes alimentares, exercícios físicos, etc.; e (2)
práticas que dependem de um outro – práticas ligadas ao ornamento do corpo
47
(piercings, tatuagens, implante e branding); práticas que modificam a forma e/ou a
função corporal (cirurgias estéticas, o uso do botox, splitting lingual, esculturas
dentárias); e as práticas que exploram as faculdades sensoriais ou elásticas do
organismo (escarificações, alargamentos de orifícios e as suspensões). Soares
Neto ainda antevê que as modificações corporais possam passar por um processo
semelhante ao da loucura no Ocidente, que acredita que “as modificações
corporais têm o potencial de sofrer o mesmo processo de aprisionamento discursivo
pela nosografia científica e de se tornar uma questão de saúde pública, pois
aparecem como midiático e fonte de preocupação social” (p.14).
para Galindo (2006), ainda não é possível falar sobre o ingresso
dessas práticas neste caso, as práticas de modificações extremas (escarificação,
implantes, etc.) nos dispositivos de segurança da vida, uma vez que para isso é
necessário, inicialmente, que estas sejam consideradas um problema público de
saúde. No capítulo quatro desenvolveremos mais esta idéia.
As pesquisas e estudos indicam de um lado a “potencialidade
subversiva” e a possibilidade de conformação de projetos corporais individuais que
as modificações encarnam em contraposição com a crescente normatização e risco
de aprisionamento discursivo desse universo, inclusive sob o signo da
medicalização. Ao iniciarmos nossa pesquisa, esse eixo de discussão era também
de certo modo nosso interesse: a escolha dos participantes por um viés profissional,
como explicitamos no capítulo 1, pareceria nos conduzir a essa mesma
problematização, que aparecerá colocada no campo das fronteiras com a saúde
pública, como veremos no capítulo seguinte.
No entanto, o eixo das práticas das modificações corporais como
experimentação dos limites do corpo e como superação apareceu fortemente
48
referido pelos participantes e apesar do risco apontado por Le Breton de redução
dos seus contextos culturais de origem e de sua transformação em “performances
físicas”, nos pareceu importante acompanhar que lugar essas experiências ganham
no contemporâneo e como podem ganhar singularidade nessa conformação sócio-
histórica. Conforme Soares e Terra (2007) apontam, “o fascínio que o corpo exerce
é imenso, pois é ao mesmo tempo material e imaterial. Constituído de carnes e
entranhas, mas, também, de subjetividade, não cessa de nos surpreender, de
revelar em seus mais íntimos recônditos os traços da história e da cultura em sua
constituição” (p.113). Seguindo essa direção, os discursos dos profissionais das
práticas de modificações corporais nos indicam que tais práticas estão tomadas por
duas dimensões: 1) pela biossegurança, ou seja, o corpo material e 2) por práticas
clínicas e técnicas de si, ou seja, o corpo imaterial. Esses aspectos serão
aprofundados nos capítulos que se seguem (capítulo 3 e 4).
49
C
APÍTULO
3
Não é que a vida tenha sido
exaustivamente integrada em técnicas que a
dominem e gerem; ela lhes escapa continuamente.
Michel Foucault
50
AS MODIFICAÇÕES CORPORAIS E A BIOSSEGURANÇA
Neste capítulo, buscaremos apresentar a noção de biossegurança
abordada pelos participantes da pesquisa no que concerne às práticas de
modificações corporais. A partir disso, explicitaremos uma articulação da
biossegurança com a discussão que Foucault propõe sobre biopolítica e biopoder.
3.1. “Do poder de soberania ao poder sobre a vida”
7
Foucault (1999) em uma aula ministrada em março de 1976 no Collège
de France, publicada posteriormente como “Em defesa da sociedade”, afirma que
“uma tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo, uma espécie de
estatização do biológico ou, pelo menos uma certa inclinação que se conduz ao que
se poderia chamar de estatização do biológico”(p. 286), foi um dos fenômenos mais
importantes do século XIX. A fim de aprofundar a compreensão desse fenômeno, o
filósofo recorre à teoria clássica da soberania, lembrando que o direito de vida e de
morte eram vinculados ao poder do soberano. “A vida e a morte dos súditos se
tornam direitos pelo efeito da vontade soberana”, ou seja, “o soberano pode fazer
morrer e deixar viver” (p.286). Assim, o direito de vida e de morte é assimétrico,
sendo exercido somente do lado da morte.
No final do século XVII e no decorrer do século XVIII, emergiram
técnicas centradas no corpo individual, chamadas pelo autor de tecnologias
disciplinares ou o poder disciplinar. Tratava-se de um poder que se aplicava aos
7
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
51
corpos individualmente, visando ao controle e à ordem através de técnicas de
vigilância que possibilitavam o aumento da força útil do corpo. Esse poder sobre o
corpo individual era imposto pelas instituições (tais como escolas, fábricas,
hospitais), visando a docilizar e a disciplinar os corpos, em outras palavras, era um
poder que atuava sobre o homem-corpo. De acordo com Engelman (2004), “o
objetivo da disciplinarização não era destruir e bloquear a produção dos corpos, mas
sim incitá-los a produzir mais para o nascente sistema econômico. O poder
caracterizava-se pela sua positividade e não apenas por mostrar-se repressivo e
negativo” (p.53). Nas palavras de Foucault (2001), “o corpo como máquina, no seu
adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no
crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas
de controle eficazes e econômicos” (p.131).
Por volta da metade do século XVIII, surgiu um novo lo de poder
sobre a vida, que se centrava no
corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e
como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os
nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a
longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar;
tais processos são assumidos mediante toda uma série de
intervenções e controles reguladores: uma biopolítica da população”
(Foucault, 2001, p.131).
Foi no culo XVIII que aconteceu, segundo Foucault (2001), uma
grande transformação: a entrada dos fenômenos próprios à vida da espécie humana
na ordem do saber e do poder, no campo das técnicas políticas:
o homem ocidental aprende pouco a pouco o que é ser uma espécie
viva em um mundo vivo, ter um corpo, uma condição de existência,
probabilidade de vida, saúde individual e coletiva, forças que se
podem modificar e um espaço em que se pode reparti-las de um
52
modo ótimo. (...) O fato de viver não é mais um sustentáculo que
emerge de tempos em tempos, no acaso da morte e de sua
fatalidade: cai, em parte, no campo do controle do saber e de
intervenções de poder (Foucault, 2001, p.134).
Para o autor, essa organização do poder sobre a vida se
desenvolveu a partir de dois pólos principais: as disciplinas do corpo e as regulações
da população. Abre-se, assim, a era de um biopoder: “sua articulação não será feita
no nível de um discurso especulativo, mas na forma de agenciamentos concretos
que constituirão a grande tecnologia do poder no século XIX” (Foucault, 2001, p.132)
e que tea vida como alvo do poder. Enquanto a disciplina se como anátomo-
política dos corpos e se aplica essencialmente aos indivíduos, a biopolítica se aplica
à população a fim de governar a vida. Essa “grande medicina social” (Revel, 2005)
encontra no surgimento da medicina social um ponto importante de implantação, na
medida em que a medicina é um saber-poder que incide ao mesmo tempo sobre o
corpo e sobre a população. Do mesmo modo, o elemento que vai circular entre o
disciplina, que se aplica sobre um corpo, e sobre a o regulamentador, que se aplica
sobre a multiplicidade biológica – a população – será a norma (Foucault, 1999).
3.1.1. Medicalização
De acordo com Foucault (1999), o saber cnico da medicina
atrelado à higiene exerceram grandes influências científicas sobre a corpo e a
população no século XIX. Atuando como uma “técnica política de intervenção”, a
medicina também possui efeitos de poder próprios. “A medicina é um saber-poder
que incide ao mesmo tempo sobre o corpo e sobre a população, sobre o organismo
e sobre os processos biológicos e que vai, portanto, ter efeitos disciplinares e efeitos
regulamentadores” (p.302).
53
Foucault (2001, p.08) ao conceber o poder de modo positivo, como
“uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social, muito mais do que uma
instância negativa que tem por função reprimir”, nos permite compreender as
práticas da medicina como produtora de realidades e subjetividades. O discurso
médico constitui formas de agir, pensar e se comportar. À medida que esse discurso
opera no tecido social, “os indivíduos e a sociedade vão sendo produzidos por eles,
se moldando ao saber médico” (AGUIAR, 2004, p. 135).
Segundo Foucault (2001), a medicalização é o processo pelo qual o
saber médico expande-se para outros domínios, além do campo da Medicina,
assumindo a função de regulação social. Processo esse que teve início no século
XVIII por meio do reconhecimento do saber científico como um coadjuvante no
tratamento da doença e que contribuiu para legitimar o lugar da clínica nosográfica e
do esquadrinhamento da doença.
A medicalização também é um conceito bastante usado na
sociologia moderna. Ele refere-se a uma das grandes mudanças do Ocidente, que
substituiu a dicotomia entre bem e mal por outra dicotomia, culturalmente mais
poderosa: a diferença entre saudável e doente (CLARKE 2000, apud AGUIAR,
2004). Inicialmente, o processo de medicalização correspondeu a uma expansão da
jurisdição da profissão dica a novos domínios, como o espiritual, o moral e o
legal, no contexto da nova biopolítica. Serviu assim, de meio para um maior controle
social dos corpos, no sentido disciplinar sugerido por Foucault (SOARES NETO,
2005). Em outras palavras, o saber médico apresenta verdades que eram
expandidas para outros domínios, além do campo da Medicina, assumindo a função
de regulação social.
54
4.1.2. Biossegurança
Uma dimensão da medicalização no contemporâneo, na
perspectiva do biopoder, se expressa na biossegurança. Podemos considerá-la
como um dispositivo que visa a assegurar a vida, um mecanismo implantado pela
biopolítica que busca intervir no fenômeno de modo global. O poder intervém para
fazer viver, controlando os acidentes, as eventualidades e as deficiências da vida.
(FOUCAULT, 1999). Seria então, a biossegurança uma tecnologia regulamentadora
da vida: “uma tecnologia que agrupa efeitos de massas próprios de uma população,
que procura controlar a série de eventos fortuitos que podem ocorrer numa massa
viva; uma tecnologia que procura controlar (eventualmente modificar) a
probabilidade desses eventos” (p.297).
Outras definições de biossegurança encontram-se descritas na
literatura, como por exemplo, a definição utilizada pela Fundação Oswaldo Cruz:
a condição de segurança alcançada por um conjunto de ações
destinadas a prevenir, controlar, reduzir ou eliminar riscos inerentes
às atividades que possam comprometer a saúde humana, animal e
vegetal e o meio ambiente. (FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ, 2002).
A acepção da Fundação Oswaldo Cruz aborda: 1) as normas e
mecanismos controladores do impacto de possíveis efeitos negativos de novas
espécies ou produtos originados por espécies geneticamente modificadas; e 2) a
manutenção de condições seguras nas atividades de pesquisa biológica, de modo a
impedir danos aos trabalhadores, a organismos externos ao laboratório e ao
ambiente. No caso das práticas de modificações corporais, nos interessa a seguinte
definição:
55
Conjunto de medidas voltadas para prevenção, minimização ou
eliminação de riscos inerentes às atividades de pesquisa, produção,
ensino, desenvolvimento tecnológico e prestação de serviços, que
podem comprometer a saúde do homem, dos animais, do meio
ambiente ou a qualidade dos trabalhos desenvolvidos (FUNDAÇÃO
OSWALDO CRUZ, 2002, grifo nosso).
Galindo (2006), que toma como referências Foucault e também a
Fundação Oswaldo Cruz, descreve a biossegurança como um recente mecanismo
de segurança da vida criado para controlar os riscos advindos ou que possam advir
do laboratório tendo em vista a proteção dos trabalhadores e do ambiente externo.
Segundo a autora, a gestão da biossegurança ainda está se consolidando no Brasil,
e é dividida em duas áreas: uma referente a organismos geneticamente modificados
que se encontra numa fase mais regulamentatória que a segunda e a outra
relativa a organismos não geneticamente modificados.
A biossegurança no Brasil só se estruturou como área específica da
Saúde Pública nas décadas de 1970 e 1980. Entretanto, desde a instituição das
escolas médicas e da ciência experimental, no século XIX, vêm sendo elaboradas
noções sobre os benefícios e riscos inerentes à realização do trabalho científico, em
especial nos ambientes laboratoriais (ALMEIDA e ALBUQUERQUE, 2000).
As práticas que envolvem a biossegurança têm se expandido
gradativamente para áreas além dos laboratórios. O Sindicato de Empresas de
Tatuagem e Body Piercing do Estado de São Paulo, também caracteriza a
biossegurança “por um conjunto de normas e procedimentos considerados seguros
e adequados a manutenção da saúde em atividades de risco” (Sindicato de
Empresas de Tatuagem e Body Piercing do Estado de o Paulo). As práticas de
biossegurança mencionadas pelos três profissionais entrevistados ilustram o
processo de inserção da preocupação com a higiene ocorrido nas últimas décadas
56
no campo das modificações corporais no Brasil (COSTA, 2004; GALINDO, 2006;
BRAZ, 2007) - tal como podemos observar no seguinte trecho da fala de Snoopy:
Então, a superação que eu falo não é simplesmente cravar os
ganchos. Tem todo um preparo, desde a assepsia de pele, pra você
não jogar nenhuma bactéria pra dentro; as medições corretas pra
fazer a passagem da agulha, onde vai ser introduzido. Então, quer
dizer, tem todo um cuidado. (Snoopy, p.89)
No relato de Rafa Mendes, observamos também uma preocupação
relacionada às tecnologias de higiene e prevenção de riscos:
Aí, você tem que usar toda uma roupa estéril, luva, máscara,
touca... Tudo. O máximo cuidado que você puder tomar, ainda não
é o bastante. Você ainda corre risco tomando o máximo de
cuidados. Tanto que a gente várias pessoas com infecção
hospitalar, né? Dentro de salas cirúrgicas. (p.126)
AndMeyer acredita que a inserção de materiais que visam a
diminuir ou eliminar os riscos à saúde nas práticas de modificações corporais têm
uma relação com o consumo, que faz parte da “evolução do mercado”:
Cada dia mais, como eu tava falando, as empresas cirúrgicas
tendem a pesquisar pra colocar no mercado, materiais modernos e
consumíveis. Inclusive pela beleza. Hoje em dia a gente luvas de
nitril de várias cores, com cheirinho, pra facilitar e visualizar melhor a
profissão. E dar mais segurança também, né? Então, faz parte da
evolução do mercado. (p.117)
Snoopy ressalta a importância de que as práticas sejam executadas
por pessoas qualificadas e “do meio”. Nesse sentido, o risco estaria em realizar as
práticas fora “do meio”. Quando são executadas por pessoas “qualificadas para
estarem prestando esse tipo de apresentação”, o um risco em absoluto, ele é
controlado. O risco surgiria quando essas práticas não estão inseridas na ritualidade
que lhe é singular. Desta forma, para que seja uma prática consistente, que não
57
acarrete em prejuízos ao corpo, um conjunto de elementos que vão das cnicas
(conhecimento do corpo) aos significado das práticas (cultura). Em outras palavras,
“o meio” assegura e dá a estabilidade necessária para a manipulação do corpo.
Snoopy, em sua narrativa, ressalta a importância de ‘quem executa’
e ‘como executa’ as modificações corporais. Para ele, primeiramente é necessário
ter conhecimento do corpo biológico, dos seus limites e também de suas potências.
Além disso, o profissional precisa estar comprometido com as medidas de
biossegurança e higiene, passando pelo cuidado e o “respeito” com o corpo do
cliente. A questão da segurança e da saúde é constantemente negociada com o
campo do saber médico. Isso pode ser observado quando são adotados os
procedimentos de assepsia e higiene, além da aderência às entidades
regulametadoras da saúde (Vigilância sanitária e ANVISA
8
), tal como podemos
observar na seguinte fala de Snoopy:
Eu, particularmente, quando comecei a trabalhar com piercing, eu
senti uma carência danada a nível de quê? Mais respaldo a nível
de biossegurança. Eu, graças a Deus, sempre tive muitos amigos
médicos. O quê que esses médicos faziam por mim? Eles me
emprestavam livros, essas coisas... Então, dentro dessas coisas,
eu fui adaptando... Eu fui introduzindo o meu conhecimento de
piercing e comecei a introduzir o conhecimento a nível de
saúde, de biossegurança. Pra quê? Pra eu poder oferecer pros
meus clientes mais segurança no ato da aplicação, e até informação
mesmo (p. 97).
André Meyer justifica a relação das práticas profissionais de
modificações corporais com a biossegurança através de um processo evolutivo,
fazendo referência às práticas em outros contextos culturais. A biossegurança
aparece como o diferencial, algo que assegura a prática.
8
Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
58
É, é inevitável que a biossegurança seja prioridade nesse
mercado. Como nós vendemos, né, dor, nós precisamos vender
segurança. Né? A gente precisa vender um trabalho que não
prejudique a pessoa futuramente, né? Nem no próprio serviço.
Se você contaminar uma pessoa com uma jóia infectada, com uma
agulha, você ta atrapalhando o seu próprio serviço! É
inconcebível! Como é que você vai fazer algo numa pessoa que
ao invés de você tá melhorando, você pondo em risco?
Então, isso é óbvio. Para profissionais, isso é fundamental. Essa
evolução. Porque é profissional! Você não pode comparar tribos que
fazem essas modificações há centenas de anos, que lá passa de pai
pra filho, sabe exatamente qual a madeira adequada, qual é a planta
certa, é muito óbvio. E eles não cobram por isso. Tem o pajé, tem
o xamã, que sabe como cuidar disso. É muito vulnerável, a outras
doenças, né? no nosso caso, a gente ta cobrando por um
serviço a gente tem que dar ao cliente total segurança! É óbvio!
Isso faz parte do capitalismo, isso faz parte do processo
profissional. (p.117)
3.2. Profissionalizar a prática: negociar para legitimar
Observamos que a crescente profissionalização das práticas de
modificações corporais, mais especificamente das práticas de tatuagem e piercing
no Brasil tem-se dado através de uma articulação com as questões de segurança da
vida, bem como o estabelecimento de um ‘diálogo’ com a medicina. Essas
negociações têm trazido importantes implicações sociais no exercício das práticas
de modificações corporais.
Segundo Perez (2003) a prática da tatuagem tem passado por um
“processo de institucionalização” - e nesse caso expandimos para as práticas de
piercing uma vez que para instalar um estúdio é necessário que se cumpra uma
série de requerimentos de ordem jurídica, sanitária e também comercial para a
obtenção de uma licença de funcionamento. Com essas medidas, um aumento
59
de controle social das práticas, o que também traz em certo grau o reconhecimento
e legitimidade social para a profissão.
A criação do SETAP-SP, bem como as medidas jurídicas expedidas
em torno da prática de tatuagens e piercings parecem ser os grandes marcos de
legalidade da profissão. A fala de Snoopy sobre a função do SETAP-SP na profissão
ilustra uma tentativa de adesão a alguns princípios médicos, e também de uma
demarcação que tem por objetivo assegurar e controlar o exercício da prática:
“O trabalho do SETAP-SP, em si, é primeiro, resguardar os direitos
adquiridos dos tatuadores e pierciers.”(p.18)
Então, o SETAP-SP ele foi isso, a desenvoltura... a idéia do SETAP-
SP realmente foi isso [...] Fazer o quê? Se organizar, pra quê? Pra
que se ocorrer alguma porcaria ali, falar: “opa, esse cara não
tinha nada a ver com nós profissionais! Esse cara, é um cara
que, meu... Resolveu, acordou e falou: eu vou começar a fazer
tatuagem, vou começar a aplicar piercing e começou a fazer. Deu
certo um, dois, três e agora eu”. Porque o que acontece geralmente,
hoje em dia é: faz qualquer besteira? Entendeu? E relacionam o
todo. É que nem na Medicina, entendeu? que a Medicina tem
um Conselho Federal de Medicina e um Regional. Então, a
nossa idéia é fazer a nossa entidade federativa e, em cada
estado ter um conselho regional de tatuadores e pierciers.
(p.09)
A partir do que foi visto anteriormente, podemos pensar em
estratégias que visam a regulamentar e a legitimar as práticas profissionais de
modificações corporais. Legitimação que Snoopy faz questão de frisar:
Porque, meu! Você dar uma palestra pro pessoal do meio da
tatuagem, é uma coisa. Você dar uma palestra pro pessoal do
Ministério da Saúde, ou médicos e ser aplaudido, é outra. Porque
você vê que realmente o que você tá falando tem a ver... E a
dinâmica que você vê aqui no meu serviço foi desenvolvida por mim!
Mediante o quê? As dificuldades (p.97).
60
Institucionalização que passa por fazer fronteiras com o saber
médico: “eles [os médicos] me emprestavam livros, essas coisas...”, mas, ao mesmo
tempo, com o conhecimento das práticas de outros territórios culturais:
Em 2001, também, veio aquela coisa de suspensão humana,
entendeu? Aí, o que aconteceu? Eu tava trabalhando com
piercing desde 1997. Aí comecei a estudar sobre. Quer dizer,
nessa época, você não tinha tanto acesso à internet sobre. Então eu
tive que importar muitos livros, entendeu? Trazer muita coisa. E é
aquela coisa, muitas vezes dificuldades até de falar inglês, hoje não
(risos). Mas na época... Então o que acontece? Tipo, meu... Muito
translator, varava a noite... Por gostar e por querer conhecer a
cultura, o que levava uma pessoa a ser suspensa? foi que eu
descobri que o lance mesmo da suspensão é... ela é originária dos
índios silks. Isso em 1840, teve um relato de um francês. E trouxe
pro ocidente o que rolava com os índios silks..
.
(p.88, grifo nosso)
É interessante observar que através da articulação dos profissionais
das modificações corporais com as áreas da saúde, ou seja, com a medicina, a
vigilância sanitária e a biossegurança, a instalação de “uma estrutura punitiva de
controle e regimento público de uma prática que, em seus albores e através de sua
história, esteve fora do “status quo” dentro de formas e cenários tipicamente
marginais. Assim, no momento, em que se regulamenta, também se legitima, mas
dentro de normas”
(PEREZ, 2003, p.39).
Em contrapartida, algo nas práticas de modificações corporais
que escapa da cnica médica, do corpo médico, biológico: “Só que o piercing foge”,
destaca Snoopy ao falar sobre a especificidade de sua prática. uma
singularidade, um conhecimento que o campo médico não dá conta.
Médico tem o conhecimento fisiológico e biológico do corpo. que
piercing foge. É totalmente outra técnica. Quer dizer, não adianta
o cara ser formado em Medicina, ou ser um enfermeiro. Porque se
ele não tiver o conhecimento de como funciona as técnicas de
piercing, ou até as técnicas de modificação, ele acaba até
61
machucando mesmo. Mesmo ele tendo conhecimento (p.88, grifo
nosso).
Em outras palavras, ele propõe que a modificação corporal não seja
uma prática pra qualquer um, nem para quem é submetido, nem para quem a
executa. regras heterônomas (no sentido da fiscalização, da vigilância sanitária,
dos cuidados com o corpo) e também a dimensão que o sujeito precisa estar
inserido numa cultura que o assegure. Ou seja, de um lado ele apóia certo grau de
normatização e de outro uma cultura própria das modificações corporais. Isso pode
ser visto quando Snoopy aponta para os cuidados de assepsia no instrumentário
utilizado para a inserção de piercings. Ele coloca: “o meu diferencial eu faço com a
qualidade. Então, quer dizer, é a mesma coisa. Na vitrine você tem os piercings.
O ar tem bactérias. Então, se a pessoa for fazer, da minha sala de aplicação pra
dentro vai tá tudo lacrado e estéril
9
(p.98).
9
Em sua prática, Snoopy usa o referente da Portaria da Vigilância Sanitária do Município de São
Paulo Artigo, que aponta:
Artigo - Na execução de procedimentos inerentes às práticas de tatuagem e de piercing, antes de
atender cada cliente, o tatuador prático e o prático em piercing deverão:
Inciso I - realizar a lavagem das mãos com água e sabão/detergente, escovando a região entre
os dedos e sob as unhas, seguida de anti-sepsia com álcool etílico iodado a 2% ou álcool
etílico a 70%.
Lavagem das mãos é a fricção manual vigorosa de toda a superfície das mãos e punhos, utilizando-
se sabão/detergente, seguida de enxágue abundante em água corrente;
Inciso II - calçar um par de luvas, obrigatoriamente descartável e de uso único.
O uso de luvas não dispensa a lavagem das mãos antes e após contatos que envolvam sangue ou
outros fluídos corpóreso do cliente;
Inciso III - realizar a limpeza da pele do cliente com água potável e sabão/detergente apropriado e
eficaz para esta finalidade;
Inciso IV - após a limpeza da pele descrita no inciso anterior, proceder a anti-sepsia da pele do cliente
empregando álcool etílico iodado a 2% ou álcool etílico a 70%, com tempo de exposição mínimo de 3
minutos.
Artigo 10º - Obrigatoriamente, todo o instrumental empregado na execução de procedimentos
inerentes às práticas de tatuagem e de piercing, deverá ser submetido a processos de
descontaminação, limpeza e esterilização (grifo nosso).
Parágrafo Primeiro - As agulhas, lâminas ou dispositivos destinados a remover pelos, empregados na
prática de tatuagem, deverão ser descartáveis e de uso único.
Parágrafo Segundo - Os materiais a que se refere o Parágrafo anterior, não poderão ser
reprocessados ou reutilizados.
Parágrafo Terceiro - Antes de serem introduzidos e fixados no corpo humano, os adornos
deverão ser submetidos à processo de esterilização.
62
Rafa Mendes também se posiciona de modo semelhante ao de
Snoopy, no que diz respeito à necessidade em aprofundar seus conhecimentos
sobre as práticas de modificações corporais. A diferença trazida por ele se na
ênfase acerca da relação entre as práticas de modificações corporais e o saber
médico:
Eu sempre tenho na minha cabeceira livros de anatomia, fisiologia,
cinesiologia, histologia... To sempre me reciclando, meus
conhecimentos... Estudando bastante... Eu comecei até, no começo
do ano... ano passado... uma faculdade de Educação Física, junto
com a Enfermagem, pra pegar as aulas de anatomia, estudar as
aulas teóricas... Quando acabou eu parei a faculdade... Que nos
outros anos não teriam... Aí, eu tô sempre estudando... (p.126)
3.3. Modificações corporais: problema de saúde pública?
As medidas jurídicas que a o momento têm sido expedidas em
torno do exercício da tatuagem e do piercing
10
são: do Centro de Vigilância Sanitária
de São Paulo, onde se regulamentou o funcionamento dos locais ou “gabinetes de
tatuagem” e “gabinetes de piercings”, as medidas higiênicas que deviam seguir e
algumas proibições em torno da sua prática; a Lei Estadual n. 9.828, de 06-11-97,
proíbe a realização, em menores de idade, de procedimentos inerentes à prática da
tatuagem; e a Portaria CVS-12, de 30-7-99, do Centro de Vigilância Sanitária de São
Paulo, que dispõe sobre os “gabinetes de tatuagem” e os “gabinetes de piercing”,
realizando uma série de definições dessas práticas, suas normas de funcionamento,
os requerimentos que devem cumprir, as medidas higiênicas que devem seguir e a
proibição aos menores de idade. Todas essas normas jurídicas têm sido expedidas
pelo Estado de São Paulo e atualmente os Estados do Rio de Janeiro, Paraná,
Ceará e Espírito Santo também constituíram suas próprias legislações.
10
a Portaria CVS-12, de 30-7-99.
63
Há também o projeto de lei
11
nº 2104/07 apresentado pelo deputado
João Paulo Cunha, que visa à regulamentação cultural da prática de tatuagem e
piercing no Brasil, e está tramitando na Câmara dos Deputados. Em tal projeto são
apresentadas algumas justificativas que nos parecem reforçar o ingresso das
práticas profissionais de modificações corporais (piercings e tatuagens) nos
dispositivos de segurança da vida, das quais destacamos:
É notório o risco de contrair doenças infectas contagiosas em
Ateliês de Body Piercing e Tatuagens, pois, não raramente
ocorre a inobservância das precauções universais de
biossegurança, sendo constatado o uso de utensílios, bem como
meio de desinfecção e esterilização fora dos padrões mínimos de
higiene e segurança. As determinações de medidas eficazes para
o controle de doenças transmissíveis nesses tipos de
atividades, são de responsabilidade das autoridades sanitárias,
que igualmente devem intervir sempre que houver
possibilidade de ameaça à saúde pública. Através desse Projeto
de Lei queremos exigir condições mínimas de higiene e segurança
para o adequado funcionamento dos estabelecimentos onde se
desenvolve a atividade de prático em DERMOPIGMENTAÇÃO e
prático em piercing, elidindo o risco de exposição dos clientes
aos agentes infecciosos veiculados pelo sangue, tais como:
Vírus da Imunodeficiência Humana - HIV, Vírus da Hepatite C, Vírus
da Hepatite B, dentre outros, bem como a ocorrência de acidentes
durante a realização de tais procedimentos, salvaguardando a
integridade de todos os brasileiros que se utilizarem desse tipo de
serviço (BRASIL, 2007).
Desse modo, um fator que ajudou notoriamente a orientar essa
atual fachada do cenário da tatuagem e do piercing é o “relacionado com a saúde,
que a manipulação do corpo e, em especial, do sangue, convertem-na num objeto
de controle sanitário e de vigilância social” (PEREZ, 2003, p.37).
Conforme apontamos no capítulo dois, Galindo (2006) afirma que a
entrada das modificações corporais nos dispositivos de segurança da vida se
11
Dispõe sobre a Regulamentação da ATIVIDADE de DERMOPIGMENTAÇÃO ARTÍSTICA
(popularmente chamada de TATUAGEM) e PERFURAÇÃO CORPORAL (popularmente chamado de
Piercing) e condições de funcionamento dos estúdios de TATUAGEM e BODY PIERCING” (Projeto
de Lei nº 2104/07).
64
restringe às práticas de piercing e tatuagem, uma vez que estas se encontram numa
esfera da saúde pública. Assim, ainda não é possível afirmar que as modificações
corporais (nesse caso, as práticas consideradas extremas, de escarificação,
implantes, branding, etc.) estejam inseridas na lógica da segurança. A autora
argumenta que pode haver uma indagação dessas práticas por duas vias da saúde:
pelos efeitos adversos – inflamações, infecções decorrentes das aplicações das
técnicas de modificação corporal e pelo viés da saúde mental numa tentativa de
dar conotações distintas da patologização (PEREZ, 2004; SOARES NETO, 2005).
Outra justificativa na qual se fundamenta o não ingresso dessas
práticas nos campo da biossegurança ou da biopolítica se com a perspectiva que
aponta motivações estéticas, políticas ou sensacionais (Galindo, 2006) como
justificativa para as ações no corpo. Tal perspectiva constitui o foco argumentativo
de vários autores, como Almeida (apud PEREZ, 2003), que afirma que o processo
de tatuar-se está determinado pelo mero “prazer e imaginação estética” e Liotard
(apud GALINDO, 2006), quando aponta as modificações corporais como algo que
“é, a priori é inútil e não institucional”.
Se as modificações corporais não estão tomadas pela ótica da
biossegurança, elas não deixam de fazer fronteiras ou interfaces importantes com as
questões da saúde, porém, menos por uma perspectiva normatizante (no sentido da
biopolítica) e mais como potência de diferir. Ou seja, menos como norma e mais
como normatividade, tal como pensada por Canguilhem (1990). Desenvolveremos
essa idéia no capítulo seguinte, argumentando que as práticas profissionais de
modificações corporais podem ter conotações distintas, neste caso, próximas das
práticas clínicas e das técnicas de si.
65
C
APÍTULO
4
Constitua-te livremente, pelo
domínio de ti mesmo.
Michel Foucault
66
TÉCNICAS DE SI E SUBJETIVAÇÃO NAS PRÁTICAS DE
MODIFICAÇÕES CORPORAIS
No capítulo 2, acompanhando os estudiosos do campo das
modificações corporais, vimos aparecer um tensionamento entre duas maneiras de
pensar a emergência das modificações corporais no contemporâneo: 1) sua
tematização como algo da ordem das sensações e das vertigens num corpo-lugar
de encenação de ‘efeitos especiais’” (Le Breton,2003, p. 28) e 2) como ‘ato
performativo’, um meio de conformação de projetos corporais individuais em que
uma potência subversiva pode se realizar, construindo alternativas ao possível.
(Braz, 2006).
Não entendemos tal tensionamento como duas formas antagônicas
de compreender essa experiência, mas como dois modos de agenciá-la às formas
do contemporâneo, uma destacando seu feito “espetáculo” e seu risco de captura
nas lógicas da sociedade de mercado-consumo e a outra seu efeito
“subversão/criação” e invenção de novos corpos-mundo.
Nossa opção em ouvir os profissionais nos levou a uma direção na
qual ganharam visibilidade os “cuidados” com o corpo do outro, quando as
modificações se mostram então como uma complexa tecnologia de intervenção com
suas prescrições, “regras de prudência” e preocupações éticas. Esse modo de
apresentar as práticas profissionais como exercício de cuidado e que coloca
questões éticas, certamente se relaciona ao tema da profissionalização, como vimos
67
anteriormente, e quase poderia ser reduzida a uma mera distinção “charlatões
versus profissionais”. No entanto, vimos comparecer na fala dos profissionais um
saber-fazer que é nomeado ora como “xamanismo”, como “ato terapêutico” (André),
em que se destaca a delicadeza da intervenção, o que nos fez aproximá-los de uma
prática “clínica”. Vejamos porque, acompanhando André, Snoopy e Rafa, clínicos
do/no contemporâneo.
André Meyer apresenta-se como um “xamã
12
” do contemporâneo:
E eu acho que é super interessante o que eu exerço, nessa
geração. Sendo que, pesquisando, estudando, eu sei que isso é
feito milhares de anos em outras culturas. A única diferença é
que eu sou... eu me sustendo disso, sou um profissional, né? É
lógico que qualquer pagé, xamã de tribo recebe premio (p.109).
Exemplo disso pode ser observado quando ele fala sobre os
motivos que levam às pessoas a submeterem seus corpos às modificações: “[...] é a
solução pra algum problema. Pra despertar alguma coisa adormecida, algum
sentimento, esse sentimento pode ser positivo quanto negativo... quando é negativo,
eu evito fazer. Porque eu não uso do meu trabalho como um auto-flagelo” (p.109).
uma forte insistência na discussão da ética, destacando sua
responsabilidade quanto aos efeitos que as práticas produzem, conforme podemos
observar também nos seguintes trechos:
Porque eu sempre gostei da parte profissional, ética, sem ser
sensacionalista, né? Do real, do verdadeiro, sempre consciente.
Tipo: ‘ó, tomem cuidado porque também não é tão fácil.’ Você pode
traumatizar as pessoas, você pode prejudicar as pessoas. E
meu trabalho não é isso. É deixar todo mundo que me procura,
melhor do que veio (André Meyer, p. 112, grifo nosso).
Você lidar com o corpo humano é fantástico! Desde... Desde que
você tenha o quê? Desde que você tenha um certo respeito. Tem
que ter respeito pelas pessoas (Snoopy, p.101).
12
Entre certos povos, espécie de sacerdote que recorre a forças ou entidades sobrenaturais para
realizar curas, adivinhação, exorcismo, encantamentos, etc” (FERREIRA, 2005).
68
Trabalho terapêutico, por diferentes razões (religiosas, sexuais,
espirituais):
Então eu acho que a minha profissão tem muito um trabalho...
é... pra algumas pessoas, terapêutico, né? (..) Pra marcar a vida
dessas pessoas por vários motivos. A maior parte dos motivos é
pela moda. Nessa geração que a gente vive. Por outros motivos,
espirituais, religiosos, sexuais, céticos, enfim... (André Meyer, p.01).
Um trabalho com a dor
13
:
Eu não sou fã nem adepto de modificações extremas. Eu trabalho...
Como chama?... Eu tento passar a dor, como um prazer. Sem
traumatizar. (...) isso só quando o corpo comporta determinado
adorno (p.109 grifo nosso).
Tatuagem eu acho que veio muito bem, assim, na minha profissão,
porque os primeiros lugares que eu vim trabalhar no Brasil, não foi
em estúdio de cabeleireiro, estética... Lógico que tava muito
ligado à tatuagem, a dor. Adorno!
14
(André Meyer, p.114 grifo
nosso).
Um trabalho de superação, como vemos com Snoopy:
Então, quer dizer, na realidade, eu entendo a suspensão hoje como
uma superação. Por que? Porque hoje em dia você, que nem no
caso da suspensão, você olha e diz: meu, eu tô brigando com meu
próprio instinto. Entendeu? (p.89 grifo nosso).
Xamãs, terapeutas, trabalhadores da invenção de um corpo-
adorno, para além dos instintos, podemos pensá-lo como clínicos do/no
contemporâneo se entendemos a clínica como uma tecnologia da subjetividade
inventando novas formas de reordenar a existência. Uma clínica comprometida a
remexer nas formas de estar no mundo, fazendo-as sempre potencializadoras da
vida, produtoras de uma nova saúde (PAULON, 2004).
13
A temática da dor nos parece um importante campo de pesquisa no que concerne às práticas de
modificações corporais e merece futuras investigações.
14
Durante esse momento da entrevista, André Meyer ao falar sobre a dor utiliza um trocadilho com a
palavra ‘adorno’, utilizando uma entonação que conota referência à dor. Algo como um adorno que
dói.
69
As noções de sujeito e subjetividade trabalhadas por Foucault nos
auxiliam a pensar as práticas profissionais de modificações corporais como
produtoras de vetores de subjetivação. Foucault (2000) acredita que a constituição
do sujeito se dá de duas formas: a) através de práticas de assujeitamento; b) através
de práticas de liberação, de liberdade, uma forma mais autônoma. Pensamos, então,
que as práticas de modificações corporais, tal como aparecem formuladas por esses
profissionais, estariam de acordo com esta última. Nesse caso, trata-se de práticas
de si, práticas que permitem um trabalho sobre si mesmo. Foucault denomina de
técnicas de si: ”os procedimentos, que, sem dúvida, existem em toda civilização,
pressupostos ou prescritos aos indivíduos para fixar sua identidade, mantê-la ou
transforma-la em função de determinados fins, e isso graças a relações de domínio
de si sobre si ou de conhecimento de si por si” (FOUCAULT, 1997, p.109). No início
dos anos 80, o tema do cuidado de si aparece nos trabalhos de Foucault no
prolongamento da idéia de governamentalidade, referindo-se à idéia do governo de
si, isto é, a maneira pela qual os sujeitos se relacionam consigo mesmos e tornam
possível a relação com o outro. Na Antiguidade Clássica, que ele estuda, “o ethos
do cuidado de si o está em oposição ao cuidado dos outros: ele é uma arte de
governar os outros e, para isso, é essencial saber tomar cuidado de si” (REVEL,
2005, p. 34).
André nos fala de um ethos em que é essencial cuidar do outro e
de si: “eu ensino as pessoas a ter ética, a ter respeito ao corpo” (p.02)
“É... quando eu entrei nessa de perfurações, eu procurei o máximo
de informações, o máximo que eu pude a respeito dessa profissão,
né? E aí, por ver essas opções, eu tive a liberdade de escolher o
que eu queria e o que eu não queria fazer. O que eu achava
saudável e viável, o que eu achava que era só sensacionalista, né?
Então como eu fundado na minha prática de vida também,
nesse respeito com os seres e ao meu respeito também, que eu
não quero me agredir fazendo algo que incomodando,
70
machucando, que ta sendo violento pra determinadas pessoas” (p.
112, grifos nossos).
4.1. Biossociabilidade e bioascese
Ortega (2003) ao analisar a formação das chamadas “identidades
somáticas” ou “bioidentidades” - que deslocam para a exterioridade o modelo
internalista e intimista da construção e descrição de si, afirma que a construção de
tais tipos se através da ênfase dada os cuidados corporais, da medicina, e da
higiene. Tais identidades podem ser observadas através de uma forma de
sociabilidade chamada de biossociabilidade que busca “descrever e analisar as
novas formas de sociabilidade surgidas da interação do capital com as
biotecnologias e a medicina” (p.63). Trata-se de uma sociabilidade constituída por
grupos de interesses privados que seguem critérios de saúde, performances
corporais, etc. Diferente da biopolítica clássica, onde se davam agrupamentos
tradicionais, como raça, classe, orientação política. Na biossociabilidade são criados
critérios de mérito e reconhecimento fundamentados em regras de higiene, criação
de modelos ideais de sujeitos baseados em critérios físicos e de saúde.
Para o autor, as formas de biossociabilidade e bioascese são
fundamentais no processo de “desmontagem da cultura íntima e de somatização e
exteriorização da subjetividade” (p.62).
Uma outra tematização relevante sobre o corpo no
contemporâneo, nos é dada pela idéia de cultura somática.
71
4.2. Elementos da cultura somática
O advento da cultura somática (Costa, 2004) pôs em questão o
lugar que o corpo vem ocupando nas construções das identidades na
contemporaneidade. As mudanças subjetivas da história que se convencionou
chamar de culto ao corpo, ou cultura somática é um fenômeno com várias facetas e
complexidades, com origem nas transformações históricas da modernidade. Costa
ancora-se na expressão conceitual de Lash (1978) chamada “cultura narcísica”
15
,
acreditando, entretanto, que os principais traços da cultura narcísica presentes nos
estudos de Lash perderam seus lugares para o atual domínio da cultura somática.
Costa propõe que dois fatores em especial têm possibilitado esse
fenômeno: 1) o remapeamento do corpo físico fornece justificativas racionais para
a redescrição do que somos e 2) a invasão da cultura pela moral do espetáculo – as
normas morais do que devemos ser. O primeiro fator diz respeito às mudanças que
a visão de corpo, no Ocidente, vem passando ao longo do tempo: na Antiguidade
Clássica - onde o corpo era concebido como uma espécie de instrumento a serviço
da ação; na educação burguesa - o corpo passou a ser pensado como uma ameaça
“à delicadeza da interioridade psicológica”. Atualmente, o remapeamento cognitivo
do corpo físico que tem como fatores decisivos para a revalorização do corpo: o
progresso das ciências; os avanços tecnológicos da medicina; o desinvestimento
nos temas políticos tradicionais (conflitos de classes, econômicos) que provocou um
deslocamento do interesse dos indivíduos para questões da esfera social; as
transformações de ordem espiritual (inclusão de elementos de religiões asiáticas,
15
Foucault, ao elaborar seu projeto sobre a cultura de si, foi influenciado pela leitura de “A cultura do
narcisismo” de Christofer Lash. Para Foucault, a descrição uma desilusão com o mundo moderno
presente nos estudos de Lash pareciam similares com o a situação ocorrida no Império Romano.
Assim, Foucault localizou as raízes do moderno conceito de si no primeiro e no segundo século da
filosofia greco-romana e no quarto e quinto da espiritualidade cristã (EIZIRIK, 2005).
72
por exemplo) e, por fim o progresso intelectual, que postula a não distinção entre o
físico e o mental.
Com a junção dessa série de progressos, “o interesse pelo corpo
exacerbou a atenção dos indivíduos para com a sensorialidade, e a superexploração
dessa faceta da experiência corporal vem sendo acompanhada de efeitos físicos,
mentais e socioculturais inusitados” (p.192).
Costa sugere que pensemos a cultura somática como um complexo
cultural com duas dimensões distintas: a moral do espetáculo e a moral do governo
autônomo do corpo. A moral do espetáculo é um dos componentes do que Guy
Debord (1999) chamou de “sociedade do espetáculo”. Ela é “a trama dos
dispositivos discursivos e não-discursivos que se apresenta como independente da
ação e do julgamento dos indivíduos” (Costa, 2004, p.227). A moral do espetáculo
imprime as formas ideais do sujeito atuar e dar sentido à vida, tendo como via de
condução a mídia. Além de espectadores, os sujeitos são levados a tornarem-se
protagonistas da realidade-espetáculo. De acordo com o autor, essa atuação se
através da imitação de personagens de destaque, da moda. Limitada pelas
impossibilidades do real - neste caso, as riquezas, o poder político, dotes artísticos,
formação intelectual dos personagens em evidência a imitação vem através da
aparência corporal. Ou seja, no que de mais acessível a qualquer um. Nasce
então, o que o autor chama de corpo-espetacular.
Costa ainda faz referência aos sentimentos de passividade e
impotência gerados pela moral do espetáculo, que resultam na forma como o sujeito
se isenta de responsabilidade com o mundo real e permanece com a fantasia da
“realidade-espetáculo”. Entretanto, “o impacto do espetáculo sobre o sujeito, apesar
de nefasto, não impede o surgimento de ações e reações contra-alienantes”(p.230).
73
Nesse sentido, Costa sugere também a existência de um “lado
positivo” da cultura somática. Nele, os cuidados e atenção voltada para o corpo,
podem aparecer como uma “preocupação ética consigo” (p.236), entendendo ética
conforme expusemos anteriormente. um espaço para experimentações que
possibilitem melhores formas de viver, que o estão sucumbidos pela cultura do
espetáculo, do narcisismo. Exemplo disso são as espiritualidades asiáticas, que têm
como uma das características fundamentais o tratamento dado ao físico (corpo) na
condição moral do sujeito. A corporeidade física não é vista como um obstáculo ao
aperfeiçoamento espiritual, diferentemente das religiões judaico-cristãs. Conhecer o
corpo físico de modo a dominar formas de se alimentar, respirar, sentar
corretamente são etapas que possibilitam a superação do sofrimento e o alcance da
sabedoria e serenidade. Para Costa, esse conforto físico-mental produzido pelas
práticas corporais (menos opressivas e alienantes) são modos de resistência às
formas impostas pela moral do espetáculo. É a partir dessas referências e
discussões que sustentamos também nosso argumento de que as práticas das
modificações corporais ensejam essa possibilidade.
Para Ortega (2003) a incorporação das práticas espirituais orientais
se como forma de bioascese, ou seja, perdem a dimensão simbólico-
transcendente original, objetivando somente a melhora da performance corporal.
Assim, a subjetividade e interioridade do sujeito são deslocadas para o corpo, dando
lugar às sensações. Enquanto que as asceses clássicas visavam atingir a coragem,
a sabedoria, o conhecimento de si, a bondade, as práticas de bioascese buscam
desafiar os limites estabelecidos de satisfação, potência física, o bem-estar físico.
A pesquisa e o contato (por exemplo sobre as suspensões, como
vimos com Snoopy) com práticas que eram circunscritas a determinados grupos e
74
culturas e, que de algum modo são incorporadas pelos adeptos na
contemporaneidade, essa retomada das práticas e das performances rituais - que
parece invocar algum saber das sociedades tradicionais– ao invés de “colagem fora
de contexto, flutuando em uma eternidade indiferente, longe de seu significado
cultural original” como quer Le Breton, não podem ser olhadas também como uma
tentativa de escape à somatização e à busca da superação do sofrimento, como
sugere Costa?
Isso não quer dizer que não haja o risco da captura na cultura
somática e na lógica do “espetáculo”. Os participantes dessa pesquisa percebem e
fazem a crítica dessa possibilidade:
Eu acho que o piercing se popularizou tanto na nossa sociedade, eu
acho super legal, assim... E isso foi mutio aceito, como eu tava
falando, porque... na verdade, antes era uma marca definitiva. Hoje
em dia é muito mais uma marca temporária. Né? [...] Então, eu
acho que é isso, né? Faz parte dessa geração como uma moda.
Então, é isso aí. Eu tava na hora certa, no lugar certo quando e
comecei a exercer esse trabalho. [...] Perante essa sociedade atual,
moderna, é tudo cíclico, né? Tem partes que tem uma procura,
uma demanda maior, tem partes que neutraliza, como criatividade.
Tem hora que tem uma busca frenética, tem hora que tem uma
calmaria, assim... (André Meyer, p. 110, grifos nossos).
Teve uma época da minha vida que eu fiquei com uma grande
questão. Será que esse piercing vai durar até quando? Meus
familiares falavam... Pessoas mais velhas falavam: ‘Isso é
uma moda, daqui a pouco passa.’. é verdade, eles estavam
certos. Hoje em dia é moda, é comum. Antes era uma coisa que
despertava, realmente, interesse... diferenciava uma pessoa da
outra. Hoje em dia ta estampado na nossa cara aí! Todo mundo
usa, todo mundo tem, em todas as classes sociais. Não são só mais
os modernos, né? Então, é.... Esse negócio do temporal vai bem
pra essa geração, né? (André Meyer, p. 115, grifos nossos).
É importante lembrar também o alerta que nos traz Castiel (2007)
que o autocuidado, na perspectiva da governamentalidade, pode operar também
75
como uma estratégia de assujeitamento, tornando os indivíduos pessoalmente
responsáveis pela gestão de riscos socialmente gerados
16
, conforme vemos
atualmente com o uso da qualidade de vida e do estilo de vida para esse fim:
é necessário um corpo apto, delgado, atraente de vários modos, não
com beleza física, mas também desfilando sinais indicativos de
disponibilidade e abertura a experiências (como indicam certas
marcas corporais - tatuagens , piercings). Corpos capazes,
sobretudo, de dar conta do máximo de opções e possibilidades que
se descortinam nos extensos e variados menus de atividades
cotidianas, oferecidos para além das alternativas gastronômicas.
Para isto, cabe a realização de ‘sacrifícios auto-infligidos’ (idem, p.
62).
4.3. Técnicas de si, normatividade e diferença
Ao tomarmos as práticas de modificações corporais como técnicas
de si, em que a experiência ética se coloca, inovando as formas de subjetivação,
podemos pensá-las como práticas que possibilitam a criação de novas normas,
práticas que se instauram no campo da vida e da saúde, tal como pensada por
Canguilhem (1990). Para o autor, normatividade é a capacidade de instituir normas:
[...] a limitação forçada de um ser humano a uma condição única e
invariável é considerada pejorativamente, em referência ao ideal
humano normal que é a adaptação possível e voluntária a todas as
condições imagináveis. [...] O homem normal é o homem normativo,
o ser capaz de instituir novas normas, mesmo orgânicas (p.109)
17
16
Possíveis desdobramentos dessa pesquisa, certamente, precisarão dialogar mais precisamente
com a discussão de risco de Beck (1993) e com as produções do Núcleo de Práticas Discursivas de
Produção de Sentidos – PUC.
17
Trabalhando sobre as ciências da vida, o autor problematiza os conceitos de norma, patologia e
saúde, pois os viventes comportam irregularidades, no sentido positivo das diferenças. É impossível
constituir uma ciência do vivente (a biologia e a medicina) sem que se leve em conta –como essencial
a seu objeto- a possibilidade da doença, da morte, da monstruosidade, da anomalia e do erro. A vida
é atividade normativa e a “boa saúde” se quando o homem se sente mais do que normal, isto é,
não apenas adaptado ao meio e às suas exigências, mas também normativo, capaz de seguir/criar
novas normas de vida.
76
Desse ponto de vista, as práticas de modificações corporais podem
ser olhadas como produtoras de vetores de subjetivação: produzem sujeitos
normativos, ou seja, que criam novos padrões para si.
A ênfase dada à diferença como exercício de liberdade também
parece relacionar-se com a ativação da potência de normatividade, como vemos em
alguns trechos das entrevistas:
Hoje em dia eu posso dizer pra você, com toda exatidão que, eu
tenho o doce prazer em ser diferente. Porque eu conquistei minha
liberdade. E isso tem um pouco de política. Porque o sistema em
si, ele faz desenho do que você tem que ser. Escravo do
dinheiro, escravo do relógio. Assim, não que eu tenha... Não que eu
esteja sendo aqui extremista, não. Eu hoje em dia por dizer pra você
que eu trabalho 10 anos, virado de costas, com todo o
preconceito conhecido [...] pra mim o prazer de ser diferente é o
prazer de você poder ser você mesmo, de repente. Tem um dizer
que eu achei muito legal: “nada mais igual do que um bando de
diferentes”. Então, quer dizer, a gente um bando de diferentes
juntos em convenção de tatuagem. Mas aí, o que é que é ser
diferente? (Snoopy, p. 108)
[...] todo mundo tem um rótulo diferente, todos nós somos rótulos
diferentes. Então... sei lá. É muita igualdade de todo mundo, um
fato igual, que todo mundo tem, é o fato de ser diferente
mesmo, né? É a única coisa em comum que todo mundo vai ter.
Não tem como ter duas pessoas iguais, nem gêmeos. Então, é por
isso que eu não gosto de falar ah, você é diferente’. Tá, não sou
igual a você mesmo! (Rafa Mendes, p.133)
Eu acho que a gente tem que respeitar. Isso é o mais importante
que a gente aprende. Que nós somos todos diferentes e que a
gente tem que respeitar o próximo independente dele ter a língua
cortada ou... daqui a pouco um implante do terceiro olho na testa,
enfim... Ou um deficiente físico, ou uma pessoa extremamente bela,
entendeu? Então é isso. As diferenças que nós vivemos, que
temperam a vida (André Meyer, p.117).
Ortega (2003) acredita que nas práticas de bioascese não há lugar
para a distinção entre corpo e self. Há, então, uma exterioridade do psiquismo, uma
somatização. Assim, o autor compreende
77
as atividades de bodybuilding, as tatuagens, piercings, transplantes,
próteses, clonagem, e até mesmo a última moda das amputações
corporais (body modifications), como esforços de dar uma marca
pessoal, uma configuração própria e individual ao corpo, uma
singularidade que se define mais corporalmente do que
psiquicamente (p.62)
Para ele, em tais práticas de bioascese um desejo de adaptar-se à norma,
uniformizar-se, constituir modos de existência “conformistas e egoístas”, tendo em
vista apenas a busca da saúde e de um corpo perfeito.
Entretanto, observamos nas práticas profissionais de modificações
corporais uma prática afirmativa, de cuidado com o corpo do outro. Um cuidado que
não está necessariamente sob a égide das normas, que passam mais por uma ética,
uma clínica. Nesse sentido, as práticas profissionais de modificações corporais
parecem se aproximar mais das práticas de ascese, que implica um processo de
subjetivação, “expressão da vontade de singularização, de estilo, de separação, de
alteridade, de constituição de formas alternativas de sociabilidade” (p.71).
As práticas de modificações corporais, nesse caso se aproximam
mais de uma reivindicação de criatividade e expressão de novas formas de vida
como também nos sugere Soares Neto (2004), uma vez que se tratam de ações
voluntárias sobre o próprio corpo, questionando os cânones de saúde que associam
tradicionalmente “estranheza, radicalidade e perturbação mental”. o se trata
somente de ações individuais, pois, enquanto problema “de organização da
existência”, a subjetivação remete à ética e à questão do poder, pois diz respeito
tanto às relações dos indivíduos consigo mesmos, quanto ao campo das relações
entre os indivíduos. E ainda implica a “responsabilidade com respeito às verdades
que enunciamos, às estratégias políticas no interior das quais essas verdades se
inserem, e responsabilidade com respeito às relações que estabelecemos conosco
78
mesmos e que nos fazem nos conformar com as configurações existentes ou resistir
a elas” (Fonseca, M. A. 2002, p. 285).
79
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste estudo definimos o campo de problematizações, a partir do
conteúdo das entrevistas realizadas, numa articulação de dois elementos principais:
1) a biossegurança, enquanto dispositivo de segurança da vida, suas implicações e
articulações com as práticas profissionais de modificações corporais e 2) uma ética
exercida através do cuidado e o respeito com o corpo, que nos levou a uma
aproximação com a prática clínica, produtora de vetores de subjetivação.
Em síntese, podemos dizer que conforme analisados os conteúdos
das entrevistas, as práticas profissionais de modificações corporais revestem-se de
duas vias de cuidado. A primeira busca assegurar a vida através de dispositivos do
biopoder, isto é, o domínio das técnicas que incidem sob o corpo, bem como uma
articulação com disciplinas da área da saúde (nesse caso, a vigilância sanitária, a
medicina). Assim, o cuidado é voltado ao corpo orgânico, um cuidado que busca
legitimar a profissionalização das práticas de modificações corporais. A segunda via
de cuidado parece se efetivar enquanto prática clínica, ou seja, uma prática que
busca produzir modos de subjetivação, uma ascese. nesse caso, tecnologias de
si, conforme aponta Foucault. “Formular a existência de tecnologias de si é enunciar,
ao mesmo tempo, que a subjetividade não é nem um dado nem tampouco um ponto
de partida , mas algo da ordem da produção. A subjetividade não estaria na origem,
como uma invariante encarada de maneira naturalista, mas como ponto de chegada
de um processo complexo” (BIRMAN, 2003, p.80).
Sabemos, entretanto, não ter encerrado todas as questões que
mobilizaram a realização dessa pesquisa. Ao contrário, abriram-se algumas
80
possibilidades para investigações futuras. Uma delas se apresenta através da nossa
escolha em entrevistar profissionais do campo de modificações corporais. A
dimensão clínica apareceu como um modo que merece desdobramentos, no sentido
de que tais práticas estão ancoradas em uma ética, que possibilitam um exercício de
liberdade.
Apontamos também certa fragilidade em nosso instrumento de
pesquisa, no caso a utilização de imagens e frases durante a entrevista. A utilização
das imagens pareceu apenas confirmar os conteúdos abordados na etapa discursiva
da entrevista. Com relação ao uso das frases, o instrumento possibilitou a
abordagem de temas específicos, no caso: diferença, preconceito. Entretanto,
percebemos uma potência do instrumento com os não adeptos às modificações
corporais durante a fase de elaboração. O instrumento pareceu possibilitar uma
abertura ao imaginário social acerca das modificações corporais. Importante lembrar
que a construção de nosso dispositivo se deu quando ainda não havia sido feita a
escolha em trabalhar com os profissionais das práticas de modificação corporal.
Assim, em nossa análise o instrumento não foi utilizado amplamente, não sendo
possível avaliá-lo e experimentá-lo amplamente.
Uma outra forma de avançarmos nas reflexões sobre o nosso
objeto de pesquisa é investigar o lugar da dor nas práticas de modificações
corporais. As dimensões de controle da dor, a relação com as sensações e as
superações, parecem indicar a existência de um cuidado com a dor.
Por fim, pensamos que nas práticas profissionais de modificações
corporais uma implicação da responsabilidade que possibilita a criação de novos
padrões para si, ou seja, espaço para a liberdade para o exercício de um poder
sobre si.
81
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86
ANEXOS
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ANEXO A – Modelo de termo de consentimento informado
CONSENTIMENTO INFORMADO PARA PARTCIPAÇÃO EM ENTREVISTA
O objetivo da pesquisa “Modificações corporais: os sentidos do corpo” é mapear os
sentidos atribuídos ao corpo pelos adeptos às modificações corporais extremas ou radicais.
Para a consecução deste objetivo realizaremos entrevistas com adeptos/as às modificações
corporais e/ou profissionais da área.
A entrevista será gravada de modo a facilitar o registro das informações e para isto é
necessário ter seu consentimento explícito, sendo este um procedimento normal dentro dos
padrões de ética em pesquisa. O meu compromisso em relação ao uso desta gravação é:
1. que sua voz não será, em hipótese alguma, utilizada nos meios de comunicação;
2. que as informações obtidas serão utilizadas somente para fins desta pesquisa, como
dado complementar para consecução dos objetivos delineados acima;
3.
que a análise dos dados obtidos através da entrevista estarão disponíveis para o/a
participante da pesquisa.
4. que sua participação é totalmente voluntária e que, durante a realização da entrevista,
você poderá interrompê-la no momento em que desejar sem ser em nada prejudicado/a.
Caso concorde com os termos propostos, solicito sua assinatura neste documento.
Nome: ____________________________________________________________
______________________________________
Assinatura do/a participante
RG: __________________________
TERMO DE COMPROMISSO
Eu, Letícia Souto Ribeiro de França, pesquisadora principal desta atividade de pesquisa,
comprometo-me a utilizar as informações fornecidas na entrevista obedecendo aos termos do
presente Consentimento Informado.
________________________________
Pesquisadora
RG: 5542865 – SSP/PE
Contatos: (11) 8197-6007
88
ANEXO B – Transcrição da entrevista com Ronaldo Sampaio
Entrevista - Snoopy
Data: 28 de Junho de 2007
Iniciei a entrevista falando sobre os objetivos da pesquisa e pedindo que o Snoopy
me falasse sobre sua prática enquanto profissional e adepto às modificações
corporais.
Snoopy- A procura maior por esse tipo de trabalho, são pessoas do meio. Ou
seja, é muito difícil uma pessoa chegar, um cliente de porta. Geralmente é muito
difícil chegar um cliente de porta e falar “eu quero fazer uma escarificação, quero
fazer um implante, quero fazer um transdermal ou uma supensão”, entendeu?
Então, esse tipo de trabalho é mais focado pro pessoal do meio, entendeu? Porém,
às vezes acontece de chegar um e falar “pow, eu quero fazer”. Por quê? Porque
viajou, tem conhecimento. Porque hoje em dia a gente fala... Você nem precisa
desse lance de viajar pra adquirir conhecimento a nível desse tipo de cultura, né?
Porque você tem a internet, a globalização faz isso e muito mais. Então é isso. Eu
tenho algumas coisas pra mostrar pra você (Ele pega um livro). Esse aqui é um livro
que o é vendido aqui no país, tá? É direcionado à modificação mesmo, corporal.
Fala direitinho sobre suspensão...
Letícia: Tu acreditas que a suspensão tá no mesmo nível de um implante...
Snoopy: Não, não, não. Eu caracterizo, até por ser um trabalho subcutâneo, mais
leve, entendeu? O implante ele é um trabalho interno. Quer dizer, a pessoa vai
fazer o que primeiro? A pessoa vai fazer uma incisão pra fazer a aplicação.
Geralmente, são usados não anestésicos intradérmicos, e sim tópicos, entendeu?
Pra fazer esse tipo de intervenção. Mesmo porque a pessoa pode vir a ter algum
choque anafilático, algum mal súbito por causa do anestésico.
Letícia: Certo.
Snoopy: E outra: anestesia é pra médico! Já muda de coisa...
Os materiais usados geralmente pra implantes são variados. Então a gente tem o
PTFE, que é o politetrafluoetileno, mais conhecido como bioplástico. Esse produto...
Esse... Produto, na América, na América e na Europa, ele líquido, sendo usado
como substituto do plasma sanguíneo. E lá fora também eles estão usando o... Sabe
o (xxxxx)? Que você tem no carro, normalmente? Eles introduzem um microchip,
dentro do PTFE e embute nas pessoas também. É uma forma de você ter como...
Vai, se a pessoa for seqüestrada, por via satélite você busca ela. Nova tecnologia,
entendeu? Mas de início, são esses materiais, o PTFE e o silicone. Só que o silicone
usado na implantação é um silicone que eles usam... A medicina usa, geralmente,
pra fazer a reconstituição no caso da narina, da cartilagem, entendeu? É um silicone
próprio pra implante. Esse material mesmo de implante, no caso, o PTFE, ele veio...
Quando ele surgiu, ele veio com o nome TEFLON, isso em meados de 1997 pra
1998. Porque assim, o mentor dessa técnica, chama-se Steve Halrd. Ele é de São
Francisco, Califórnia. O pai dele, geralmente, trabalha até hoje com hospitais. Então
89
ele fazia o coração mecânico, válvulas, essas coisas, tudo à base de PTFE. Aí, o
que ele começou a fazer? Ele começou a trazer esse material em forma de adorno,
pra fazer o quê? Um relevo 3d. Então foi daí que começou a surgir o implante.
Aí, em 2001 eu tive a... Aqui no Brasil, eu tive a visita de um dos melhores, que é
mundial, o Lucas , não se você conhece, se chegou nessa parte. É um
francês. E eu fiz workshop com ele, tudo direitinho, tal... certinho. Foi uma puta
experiência legal, o cara veio com muita informação... Ou seja, a gente fora a
informação, que eu posso absorvendo via internet, a gente tem um intercâmbio
muito forte, entendeu? Agora mesmo, no final agora de julho, vai rolar em Toronto,
Canadá, um Modcom. Eu fui o único brasileiro convidado a participar. Mas não
porquê... Porque foi eu o primeiro a focar. Porque quem começou com essas coisas
aqui no país, foi eu e o André Fernandes.
Letícia: André Fernandes.
Snoopy: Que é da Tattoo You. Ele mesmo. Porque antes de vir o Lucas, esse
pessoal, o André ele tinha... Na época que eu fiz o curso com ele, ele tava indo
pra esse lado da implantação. E eu curioso, como todo curioso que trabalha... Que
nem no meu caso: eu não fiz porque eu queria ser diferente de ninguém. Eu fiz
porque eu queria conhecer a técnica pra eu poder falar sobre. E estudar piercing,
porque também é uma cultura que é aquela coisa que a gente sabe: médico tem o
conhecimento fisiológico e biológico do corpo. que piercing foge. É totalmente
outra técnica. Quer dizer, não adiante o cara ser formado em Medicina, ou ser um
enfermeiro. Porque se ele não tiver o conhecimento de como funciona as cnicas
de piercing, ou até as técnicas de modificação, ele acaba até machucando mesmo.
Mesmo ele tendo conhecimento.
Letícia: Sim.
Snoopy: Então a coisa veio mesmo por esse lado. Fora difundido, que nem eu te
falei. O caro veio, deu aquele ‘bum’ no país... E o que acontece? Hoje,
atualmente, o André Fernandes ele não trabalha mais com piercing, no caso, com
modificação também. Porque agora ele é dono de um bar. Eu, no começo, fiz. Tive
experiências, fui implantado, meu braço tinha 10 esferas. que na realidade, não
eram esferas inteiras, então quer dizer, era um terço delas. Por que? Porque por
baixo, eu não posso ter nenhum atrito em baixo... (Carlinhos-presidente do sindicato-
entra na sala)
Aí, veio surgindo. Em 2001, também, veio aquela coisa de suspensão humana,
entendeu? Aí, o que aconteceu? Eu tava trabalhando com piercing desde 1997.
Aí comecei a estudar sobre. Quer dizer, nessa época, você não tinha tanto acesso à
internet sobre. Então eu tive que importar muitos livros, entendeu? Trazer muita
coisa. E é aquela coisa, muitas vezes dificuldades até de falar inglês, hoje não
(risos). Mas na época... Então o que acontece? Tipo, meu... Muito translator, varava
a noite... Por gostar e por querer conhecer a cultura, o que levava uma pessoa a ser
suspensa? foi que eu descobri que o lance mesmo da suspensão é... ela é
originária dos índios silks. Isso em 1840, teve um relato de um francês. E trouxe pro
ocidente o que rolava com os índios silks. Pra quê que era feita a suspensão
humana? No caso, a suspensão humana tem várias. Tem o frontal, que é o
geralmente usado pelos silks, né? Como forma de um pagamento de promessas.
Tipo, a pessoa sobe uma escada... Uma pessoa é devota de Nossa Senhora
90
Aparecida, sobre uma escada de 1100 degraus, um exemplo. Então, pra pagar uma
promessa, que ela...
Letícia: Alcançou uma graça...
Snoopy: Alcançou! Perfeito. A mesma coisa é o índio. que em 1840, isso, essa
versão que eu te falando, essa versão ela em livros... Atualmente, da forma
como eu te falando aqui. que eu fui a fundo. Então eu descobri livros, como:
Modern Primitives, você já deve ter ouvido falar.
Letícia: Hum-rum.
Snoopy: Entre o Pagan fashion work que também é do Steve... E você começa a
entrar na coisa... e ver um lance muito mais anterior. É a hora que você vai vendo
que pra um índio se tornar um guerreiro, ele não passa que nem aqui, num quartel,
todo um treinamento... Ele teria que ser suspenso. Então, geralmente a suspensão
era feita... Esse índio não ficava, tipo.. horas. Vai, 30 minutos ou 2, 3, 10 horas. Ele
ficava dois dias! Então, quer dizer, nas festividades eles desciam, se alimentavam e
subiam de novo. Então, isso é uma cultura deles. Então, quer dizer, na realidade, eu
entendo a suspensão hoje como uma superação. Por que? Porque hoje em dia
você, que nem no caso da suspensão, você olha e diz: meu, eu brigando com
meu próprio instinto. Entendeu? Então, a superação que eu falo não é simplesmente
cravar os ganchos. Tem todo um preparo, desde a assepsia de pele, pra você não
jogar nenhuma bactéria pra dentro; as medições corretas pra fazer a passagem da
agulha, onde vai ser introduzido. Então, quer dizer, tem todo um cuidado. Porém,
como isso chegou e está difundido no mundo inteiro, a suspensão, várias pessoas
também se metem a fazer isso, entendeu? Então, graças a Deus aqui no Brasil, a
gente ainda não teve nenhum problema com óbito, no nível de suspensão, por
causa de um curioso. Ou a nível, amesmo, implantação por causa de um curioso.
Como aconteceu no piercing básico, uma garota de... Acho que se eu não me
engano....
Letícia: 13 anos...
Snoopy: Isso, 13 anos. Eu fiz até uma matéria pro Fantástico, “Piercing: moda
perigosa”, essa matéria foi comigo. Então, o que é que acontecia? A garota foi... A
gente tem uma lei aqui em São Paulo que é proibida a aplicação de piercings em
menores... Então, quer dizer, o Campos Machado fez a lei, só que automaticamente,
os órgãos fiscalizadores, acabaram fazendo o quê? Acabaram pecando. Por quê?
Não fiscalizam. Tudo o que você vendo aqui, que você vai até ver nas demais
salas, o policiamento é nosso.
Letícia: Certo...
Snoopy: O que eu não quero pra os meus filhos, eu o quero pra os filhos dos
outros. E é aquela coisa: é... que nem to te falando, hoje em dia tem muito mais loja,
do que pessoas pra perfurar. Essa é a grande verdade. Então, o que acontece?
Pessoas como eu, que já trabalham 10 anos com isso, acaba ejetado por
pessoas que começaram e não têm o mínimo conhecimento, o mínimo
embasamento técnico, ou qualquer conhecimento na área de saúde... O que eu
cobro R$80,00, essa pessoa cobra R$25,00. o brasileiro ele tem a cultura do mais
91
barato mesmo. Então, nessa é o que sai caro. Muitas vezes não é nem um óbito,
mas uma infecção, né? Uma série de outras coisas. O complicado é isso. A gente
teria que ter um controle hoje em dia, bem maior. Um controle do quê? Até aonde o
cidadão pode ir? Pra começar. Que nem eu te falei, eu 10 anos, do meu
primeiro ao quarto ano com piercing, tudo pra mim era novo. Eu queria conhecer
tudo. Mas você também amadurece dentro da profissão, por quê? Por causa de
família. Eu sou casado, também 10 anos. Tenho 2 filhos... Então você começa
a pensar em como podar, não incentivar seu filho... Mas em como podar. Mas ao
mesmo tempo educar. Não tem como falar: o bebe dessa água, que não presta.
Por que isso também pode fazer: ah, se ele bebeu e aqui, por que ele
falando pra eu não beber? Então, eu acho que a coisa vai muito mais além... Pra
mim, hoje em dia, eu me sinto um cara muito mais maduro e mais consciente dentro
do que eu faço. Então isso daí me deu opção pra falar ‘sim’ pra algumas coisas e
‘não’ pra as outras. Por que? Porque é um mercado que eu vendo... que nem o
caso da suspensão, tranqüilo ainda. As pessoas que estão fazendo, pelo menos no
Brasil, então como são poucos, tem como você saber quem fazendo isso, o nível
de conhecimento que a pessoa tem. E aentão, isso também não é uma coisa de
outro mundo. Se você reparar bem, o fakir, no mundo inteiro, né?
Letícia: Hum-rum...
Snoopy: ... Engolindo espada, deitando em cama de prego... Então, quer dizer, as
pessoas que estão se propondo a fazer isso, são pessoas que estão levando as
coisas pra esse segmento. Então não vem somente o ato de perfurar. Vem toda uma
cena teatral, toda uma ideologia... Porque é aquela coisa: você pega uma pessoa
que nunca viu isso na vida? Ou uma, ou uma centena delas? E de repente ela se
defronta com uma coisa dessas? Ela vai entrar em choque! Mal bito, pressão
baixa, alguma coisa acontece. Agora, quando a pessoa já tá preparada pra o que ela
vai ver, que ela sabe o que ela vai ver... e a pessoa que está se predispondo a fazer
isso, e a outra a sofrer isso.. quer dizer, tem a consciência disso, então, fica uma
coisa mais fácil de você passar pro blico. De uma forma tipo: ‘olha, você vendo
isso mas são pessoas qualificadas para estarem se prestando e fazendo esse tipo
de apresentação’. Como: ‘não tentem isso’, que é o que acontece. Porque,
geralmente, você vê muito aí, a molecada... tá no ápice da coisa. Tá se machucando
sozinha. Ou então, a algum outro amigo. Então, aí é que tá o perigo de tudo isso...
Pode perguntar!(risos)
Letícia: Eu vou te perguntar! Você falou que teve implantes, e hoje você não tem
mais...
Snoopy: Não, eu não tenho mais. Eu não tirei porque deu problema, ou infeccionou,
nem nada. Foi como eu te falei, mediante a profissão mesmo, você vai
amadurecendo com isso. Eu já cheguei a me olhar porque... isso daí eute falando
até uma visão minha. Eu trabalhava muito com mãe e filha. Então, quer dizer,
mesmo eu sendo um dos pioneiros... Eu comecei a sentir o quê? Meu, é muita
informação pra uma pessoa mais velha. De repente, uma pessoa mais nova, ela
tendo a informação que ela tem, ela pode enxergar isso e aceitar. Mas uma pessoa
mais velha, não. Tantas pessoas com hemodiálise... com uma série de coisas,
querendo remover... e o outro criando uma diferenciação. Porém, é nessa parte que
a coisa começa, entendeu? Que fala, diferenciação. Então, quer dizer,
92
geralmente quem me procura pra fazer, no caso scar, como eu te falei, são pessoas
que têm trabalho corporal, ou seja, tattoo, piercing, implante... Ou então, quer
dizer, eu não tenho como te dar uma base certa do que a pessoa procura,
entendeu? Porque na realidade, todas elas dizem a mesma coisa: ‘eu quero fazer
porque eu gosto. Porque eu me identifiquei com a arte. Não por querer ser diferente
dos demais da sociedade’. De repente, no fundo, no fundo pode ser até isso. Porque
o meu questionário, ele vem do quê? Dados pessoais, dados clínicos, né? Eu tenho
um questionário para isso. Eu não invado a vida pessoa: “como é você em casa com
sua e, com seu pai...” mesmo porque esse tipo de trabalho quem procura... é
muito difícil você pegar uma pessoa, por exemplo, de 18 anos. Geralmente a faixa
etária disso varia de 22 a 30 anos. É um público...
Letícia: Mais maduro...
Snoopy: Geralmente uma pessoa que se pressupõe a sofrer um processo de
implante ou até mesmo escarificação, é uma pessoa que ela tá... Geralmente, as
que me procuram, né? Eu não posso generalizar... Mas é uma pessoa
estabilizada. Ou que tem o seu estúdio, ou que tem a sua loja, entendeu? Não no
mesmo segmento... Ou CD, ou roupa, ou carro. Isso é que é interessante, esse
mercado, porque é relativo. Eu não tenho um público só. Eu trabalho com uma faixa
etária, hoje, de 18 a 56 anos. A pessoa... que eu coloquei semana passada, tinha
62. Então, quer dizer, você... A gente sofreu muito aqui no início com o próprio
preconceito... não da sociedade, quanto da própria medicina, certo? O que é que
acontece? É cultural do brasileiro: o que ele desconhece, ele abomina. Ele não vai
procurar entender. Então, o entendimento pode até vir... por via de você mesma,
entendeu? De levar esse tipo de informação aos demais. Tanto acadêmicos, quanto
não acadêmicos... Então as coisas eu creio que aconteçam por aí. E a internet
também, né? Hoje em dia, rola bastante.
Mas é isso, Letícia. É aquela coisa, assim... Eu conheci um rapaz, isso... ele era do
Sul. Na época ele devia ter uns 23 anos. E... o que aconteceu? Esse rapaz... em
2003, por aí. Foi. Ele... Meu, tinha muita tattoo, tal... No entanto, a única pessoa que
eu conheci complexada nesse meio... Complexada, que eu falo assim, algumas
desavenças com família, algo do tipo assim... foi ele. Que veio a falecer. Não por
erro, nem de nada. Ele mesmo acabou se matando. O pai, um político, entendeu?
Eu acho que assim... de repente a educação que esse pai deu, de repente por ser
ausente pela vida política, essas coisas... eu acho que abalou um pouco a pessoa.
No caso, esse rapaz que veio a falecer. Nada a ver com isso! que a pessoa
tinha um problema... dele. Ele fazia as coisas... Pelo que eu entendi, depois do
óbito... eu não sou nenhum psicólogo, nenhum psicanalista, mas não precisa ser!
Pra você entender que essa pessoa fazia o que fazia pra se defrontar mesmo com o
pai. Eu acho que ele já não tinha a mãe, umas coisas assim.
Letícia: Uma história...
Snoopy: Atribulada mesmo! Entendeu?
Letícia: Entendi. Mas me diga aí, esse lance com a medicina. Porque quando tu
falas: “anestesia é uma coisa pra médico”. E aí, como é que fica esse campo, essa
divisão?
93
Snoopy: Essa divisão, porque geralmente aqui, no caso do implante, eu posso te
falar com exatidão. O implante é um trabalho subcutâneo. Então você tem:
epiderme, derme e endoderme. Geralmente, o trabalho subcutâneo fica entre a
epiderme e a derme, ele não chega a pegar tecido gorduroso. Então, quer dizer, é
usada uma espátula, pra afastar o quê? A elastina, o colágeno e a gordura. Depois
que você espatulou, você descolou todo o tecido pra depois você embutir a peça.
Então, geralmente, pontos são poucos que o. Geralmente é usado o ponto falso.
Então, esse tipo de trabalho é feito dessa forma. a área onde foi feita a assepsia, o
isolamento local... o isolamento local que eu me refiro é: eu vou fazer um braço, eu
isolo toda a lateral dele, a paramentação certinha... Isso eu tô falando aqui no Brasil,
quem tá fazendo!
Letícia: Tá...
Snoopy: Porque na Europa, e na América essa coisa... por eles serem os
precursores, europeu e americano eles têm aquela coisa tipo... de não sentir, de não
querer usar a paramentação, que é importantíssima.
Letícia: E é?
Snoopy: É. Tanto é, que agora eu tô até saindo.
Da parte de tatuagem e piercing os nossos enfermeiros e os médicos são vistos
como os melhores mundiais. Porque geralmente, tanto o americano, quanto o
europeu eles são muito, são frios no tratamento com as pessoas. Então,
automaticamente... sabe disso. Quanto mais você atenção, cuida direitinho,
essa pessoa ela tem uma porcentagem de voltar até mais rápido, entendeu? A nível
de um ferimento, de uma doença degenerativa, entendeu? Eu acho que tem aquela
coisa de você fazer uma coisa por gostar e ser obrigado. Então é assim. Eu vejo a
coisa por esse lado também.
Letícia: Certo... E os médicos, a Medicina em geral chega a afrontar a classe...
Snoopy: Não, não, não...
Letícia: ...como se não fosse o campo de vocês... Porque tem uma lógica que rege
que o corpo só quem cuida é o pessoal da saúde... O médico, o enfermeiro...
Snoopy: Hoje a gente em 2007 e você que a Medicina está tentando se
regulamentar hoje! Você ver quê... O que é ato médico? Aí é que começa a coisa. O
que é ato dico? É a mesma coisa: O que é que proíbe uma pessoa de ir até uma
casa de... Vou dizer até diretamente, uma casa cirúrgica e comprar um bisturi? Qual
a legislação que fala: não, você não é médico, você não pode comprar. Ou
anestesista: você não é anestesista, você não pode comprar. Então, eu acho que
isso ddeveria haver normas para... ‘Opa, você não é dico, enfermeiro, alguma
coisa do gênero, então por que você vai comprar? Eu não vou te vender’. Mas essa
não é a nossa realidade de mercado. Eu acho que também por falta... eu não posso
nem culpar a Medicina, e nem culpo. Às vezes por falta da fiscalização da própria
vigilância mesmo, isso acaba acontecendo, entendeu? Por isso que eu te falei: eu
entrei nesse meio... na hora que eu fui, falei: ‘não. Meu negócio é piercing
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tradicional. Umbigo, nariz, supercílio. Isso é o que eu quero fazer pro resto da vida,
porque foi com isso que eu me consagrei e é com isso que eu me sustento.
Esse tipo de coisa não dinheiro! Então, quer dizer... Esse é o lado... você acaba
lidando com um pessoal que tem a vontade de ser diferente, e muita vezes não tem
grana pra pagar isso. Então, o que acontece? Eles acabam caindo na mão de
pessoas sem o mínimo respaldo mesmo. E vem a hora que... graças a Deus
ainda não... Mas podem começar a se machucar. Seriamente, entendeu?
Então é esse apoio. No campo mesmo médico, meu... eu tenho muitos amigos
médicos e pros caras é aquela coisa. Tem um juramento pela vida, ? Então, não.
Se for pra causar alguma coisa, que nem no caso... uma plástica... Hoje em dia se a
gente for parar pra pensar, quem são os primeiros Body Moders, que é o nome
correto, foram os travestis! Que naquela tentativa de alterar o corpo, eu quero ter
peito, eu quero ter mais bunda... Então quer dizer, como é que era feito isso? De
qualquer forma. Silicone industrial, tinha necrose, uma série de problemas...
Letícia: Que até hoje rola, né?...
Snoopy: Até hoje! Hoje em dia, a preocupação do SETAP-SP, hoje, é principalmente
essa. A gente preza o quê? A arte. Corporal. Eu não posso descaracterizar uma
implantação como uma expressão artística também. Eu não posso falar: não é uma
expressão artística. É. Mas é uma expressão que a gente tem aqui... Eu falo isso
com experiência, embasamento que eu tive total acesso dentro disso... que não tem
pessoas aptas aqui, pra fazendo esse tipo de coisa, entendeu? Aptas, o que é
que eu falo: médicos. Porque você fala, um enfermeiro. Meu, se você for lá...
Enfermeiro diz: cuidar do enfermo, né? Quer dizer, ou o pessoal confundindo
muito essa coisa, como não tem... no meu ver, como não tem um pessoal que
fiscaliza, um órgão fiscalizando isso, a coisa vai continuar acontecendo. Que foi
como eu te falei, essas pessoas que prestam esse tipo de serviço, atualmente, eles
não prestam esse serviço em lojas de tatuagem ou piercing. Então, geralmente,
você conhece ele dentro de um google, orkut, ou um site dele próprio, entendeu?
Então ele vai te falar... ele vai te convidar pra você ir até onde ele mora, começa
daí...
Letícia: a coisa é meio marginal...?
Snoopy: É! Falou tudo! Underground mesmo! É aquela coisa, se você é um
profissional, você tem um endereço fixo. Foi a mesma coisa que eu te falei: eu tive
mesmo contato com isso. Fiz. Trabalhei, fiz alguns trabalhos. Tive contato direto,
sempre com um médico do meu lado, monitorando direitinho... Porque é aquela
coisa, você lidando com vida. Tem que ter um respeito. Repito: o que eu não
quero pra os meus filhos, eu não quero pra os dos outros. Então, por isso, eu como
vice-presidente do Sindicato hoje, eu fui o primeiro a entrar barrando isso, desde
2005. Porque é uma coisa que eu tava vendo, assim, uma molecada... uma
molecada que eu falo assim, pra mim, no modo de falar, assim... entre 20 a 22 anos,
23... que acha, que se acham aptos a fazendo isso, porque fez um curso de
enfermagem, dois anos. Então, graças a Deus, uma coisa que a gente tem que
levando em consideração, não só... É uma comunidade pequena. Quer dizer, não é
um grupo difundido, estendido. Uma coisa grande que nem rolando com o
piercing. Cê vê. A gente colocou um piercing, tatuagem, não só a classe que
trabalha com tatuagem e piercing, mas o pessoal da enfermagem mesmo, da
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psicologia... uma série de outras classes estão sendo afetadas com essa regulação
médica. vê, tatuagem e piercing. Vamos até colocar: simples nada. A gente fala:
o quê que é simples no corpo humano? Nada! Cada organismo reage de uma forma!
Então seria até da minha parte, hipocrisia falar: simples! Então quer dizer, cada
organismo reage de uma forma. Então eu tenho que trabalhar dentro de cada
pessoa. Pra ter conhecimento adquirido. Então, agora, eu vou começar a prestar
vestibular, faculdade mesmo... Tô querendo entrar mais na área da dermatologia
mesmo pra dar uma seqüência legal. Mas não implantação. Piercing mesmo que é
um respaldo maior, que é o que eu tô fazendo.
Letícia: E... Outra coisa, como foi a criação do Sindicato? Que necessidades?...
Snoopy: Então, o que foi acontecendo foi o seguinte: teve aquela coisa... teve uma
lei de 1997 do Campos Machado proibindo a tatuagem e piercing em menores de
idade, que foi... particularmente, eu não sou contra. Se realmente houvesse um
órgão fiscalizador, pôxa, isso ia ser maravilhoso, entendeu? E o quê que aconteceu?
Nós... a gente tem um conhecimento adquirido da prática, do piercing, entendeu?
Acabamos ejetados e os grandes shoppings... Entendeu? Porque hoje em dia, você
leva, um exemplo, uma sobrinha... eu não sei se você tem filha... Uma sobrinha, ou
uma parente sua... Ou o seu amigo leva a filha dele ali dentro de um shopping... Eu
não falando de São Paulo, eu falando de todas as cidades do Brasil. Então,
quer dizer, você chega num lugar que tem segurança, bombeiro... Quer dizer, você
pensa: eu tô num lugar...
Letícia: Seguro...
Snoopy: Primeira: idôneo. Um lugar idôneo. Então você entra num lugar desses,
que meu... são verdadeiros abatedouros! Porque assim, eu trabalho muito com
workshop de piercing. São pessoas que já trabalharam com piercing e tal e às vezes
querem expandir e tal... Então, eu tenho conhecimento adquirido, pra passar o que
eu adquiri dentro desses 10 anos. Muito mais do que qualquer faculdade aí. Então, o
que acontece? Tipo... você escuta relatos. Relatos que chocam. Eu escutei o relato
de uma garota da Vitória Régia, que é uma loja... Essa loja tem no Brasil inteiro, que
ela usava o mesmo cateter o dia inteiro! Tipo, 20 pessoas! trocava de luva,
quando a luva amarelava. E não quer dizer, mediante a isso, mediante essa lei do
Campos Machado, mediante a mesmo à mídia, a opinião pública, até mesmo a
saúde. Porque foi o que te falei, você vai e protocola uma denuncia na vigilância, a
pessoa continua atendendo no mesmo lugar. A matéria que eu fiz pro Fantástico,
então eles vieram na minha loja, dei todo o respaldo de como funcionava,
monitorava o funcionamento da autoclave, porque tem muitas pessoas que acham...
pegam o papel gral ali, a marca marrom e fala: não, estéril. Mas isso é uma
grande inverdade! Pelo seguinte fato: a marca marrom, ela significa que passou
vapor no papel gral, e não que ele estéril! Como é que eu tenho realmente uma
noção de que estéril numa autoclave? Eu tenho que estar fazendo dois tipos de
monitoramento: o clínico e o biológico. Entendeu? Por que? Então, isso são poucas
pessoas que conhecem... Então a coisa vai muito além. Muitas vezes eu questiono...
até o pessoal que me procurar... Meu, você extrairia um dente com uma pessoa que
não tem um diploma? Que realmente fez um curso e tal? Então por que você aplica
piercing em qualquer lugar? Na rua, em shopping, entendeu? Ah, mas eu vi lá placa:
tatuagem e piercing! Então, quer dizer, muitas pessoas tão com placa e não sabem
nem o que estão fazendo! O que acontece? Geralmente, a pessoa chega na loja: ‘oi,
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tudo bom’? não é cultura perguntar: ‘posso ver os teus trabalhos? Você aprendeu a
fazer com quem? Você tem alguma formação? É aculputurista, enfermeiro, o quê é
que você é? Então, tem ainda esse tipo de cultura no Brasil. Porém, o mau do
brasileiro, assim, no meu ver... é não usar os órgãos públicos. Que nem no caso,
vai... Processo. Me deu um problema por causa de... vai e processa o cara. Não! No
Brasil tem uma cultura de ‘não, vou processar, vou gastar dinheiro, vai demorar’,
entendeu? Então isso daí também atrasa muito. Eu falo isso porque eu tive vários
contatos... Toronto, Costa Rica, Londres... E você acaba vendo que o pessoal de
é mais exigente. E até a nível de metal mesmo. Na América você tem a (xxxxxx and
drougs) que é um órgão que cuida diretamente dessas coisas, e na Europa você tem
a (XXXXX) 56:45. Então, essas pessoas, o que é que elas fazem? Elas fazem um
monitoramento do que é vendido nas lojas de piercing. Geralmente, todo metal
usado no piercing é o mesmo metal usado na osteossíntese, eu não sei se você
conhece... A pessoa que sofre uma fratura exposta, e vai fazer uma reconstituição...
Os mesmos metais, os mesmos polímeros são usados, que é usado na
osteossíntese, é usado também no piercing. que é aquela coisa: graças a Deus,
por esse respaldo que a gente tem desses dois lugares, desses dois países que eu
te falei, o americano e o europeu, que não chega porcaria pra nós. Entendeu?
Porque senão a coisa ia ser pior ainda! Porque o que aconteceu? Em meados de
1999 para cá, o pessoal começou... Começou a acontecer muita fábrica de piercing
aqui no país. Então, a gente sempre com o embasamento: ‘olha, pra você abrir uma
fábrica, você vai ter que ir no IPT, Instituto de Pesquisa Tecnológica, ou então,
você vai ter que ir no IMETRO pra você laudar o seu metal, pra você poder oferecer
uma jóia de acordo com o corpo, né? Hipoalérgica. Uma jóia certa, certo?
Isso, vai... De 100%, 10% que vieram procurar a gente. Porque o que eu cheguei
a remover de piercing de umbigo?!! Meu, piercing de aço de bicicleta! Então esse é
que o grande problema, entendeu? O problema maior do piercing, hoje em dia, que
eu vejo... Assim, no meu ver, é isso. É que assim, têm pessoas de boa índole
fazendo isso. Como em toda área: têm bons médicos, têm maus médicos; têm bons
policiais, têm maus policiais; bons governantes e uns lixos! Então, quer dizer, em
toda área tem isso. Eu acho até mesmo que essa lei do ato médico, ela vai vir a
ser útil também. Entendeu?
Letícia: Hum-rum.. Certo
Snoopy: Mesmo que assim, restringir... Mesmo que abra um artigo: “Parágrafo 4,
inciso 2, abra um parênteses: exceto tatuagens e piercings”. Legal! Mas isso a gente
tá correndo com a documentação. A gente com poder mesmo, político!
Deputados federais... Então, o SETAP-SP ele foi isso, a desenvoltura... a idéia do
SETAP-SP realmente foi isso, viu Letícia? Fazer o quê? Se organizar, pra quê? Pra
que se ocorrer alguma porcaria ali, falar: “opa, esse cara não tinha nada a ver com
nós profissionais! Esse cara, é um cara que, meu... Resolveu, acordou e falou: eu
vou começar a fazer tatuagem, vou começar a aplicar piercing e começou a fazer.
Deu certo um, dois, três e agora eu”. Porque o que acontece geralmente, Letícia,
hoje em dia é: faz qualquer besteira? Entendeu? E relacionam o todo. É que nem na
Medicina, entendeu? que a Medicina tem um Conselho Federal de Medicina e
um Regional. Então, a nossa idéia é fazer a nossa entidade federativa e, em cada
estado ter um conselho regional de tatuadores e pierciers. Então, quer dizer, são
pessoas mais velhas no meio, entendeu? Isso lógico... O SETAP-SP mesmo oferece
cursos com médicos, biomédicos, infectologistas... A gente conseguiu dar esse
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apoio pros nossos associados. Então o que é que acontece? Quando a pessoa não
é associada... então ela... ela não é associada mas ela quer ter conhecimento, vocês
abrem? Então, nós abrimos também. que ela não tem o privilégio de um
associado, de pagar mais barato, aquela coisa... ela vai pagar um valor, um “xis” a
mais ali, mas ela também vai poder obter, entendeu?
Conseguimos agora também com a ANVISA, que nem no caso dos pigmentos pra
tatuagem, do Ministério da Saúde. Isso daí já é um grande avanço!
Letícia: É, um grande avanço!
Snoopy: Então, por que também? É aquela hora que você vê que o que acontece? A
Medicina, eles eram os primeiros a nos atacar. Então quer dizer, quem não tem uma
certificação e não sabe o que fazendo, eles podem atirar as pedras que eles
quiserem, entendeu? Agora, antes de eu aplicar um piercing, um exemplo, no
queixo, eu vou comparar primeiro a estrutura, a anatomia local, a espessura do lábio
(lábio fino, lábio grosso), a espessura da chapa interna pra não acontecer retração.
Então, quer dizer, eu não sou um leigo fazendo. Também não me considero
tecnólogo, mais dez anos, pode falar...
Letícia: Prática, né?
Snoopy: Praticante e atuante. É a mesma coisa se for na língua! Se você puser uma
jóia reta na língua, ela vai atrapalhar o palato superior e, possivelmente, daqui um ou
dois anos, ela vai começar a bater no dente da frente e pode ter uma quebradura
dos dentes laterais. Enquanto que você pode fazer na diagonal a 45 graus e não
causar nenhum mal ao palato superior e nenhuma quebradura dos dentes. Então,
tem todo um estudo aí. Daí você fala: “Pô Snoopy, como é que...?” Eu criei isso!
Letícia: Hum-rum...
Snoopy: Porque fora, o conhecimento dos caras são meros! Então, quer dizer,
geralmente eles vêm... Eles aplicam o piercing reto! Então, não tem uma pinça
específica. E é interessante que a pessoa esteja deitada num.. inclinada, entendeu?
Pra quê? Porque se você faz numa pessoa sentada, ela vai começar a babar. Então,
isso dificulta. Mesmo você usando toda paramentação, a baba da pessoa pode até
para rosquear o piercing... Vo trabalhando com a pessoa deitada, ela engole a
própria saliva. Então eu tenho um meio mais seguro pra poder oferecendo isso.
Tanto é que o único curso homologado pelo SETAP-SP é o meu. Por que, o que
acontece? Temos aqui o pioneiro, você já deve ter ouvido falar, o André Meyer...
Letícia: Sim, sim!
Snoopy: ... Que trabalha desde 1992, porém, acontece muito aquela coisa... Tem
pessoas que chegam num certo patamar da vida e de repente, não é mais aquilo
que ela quer fazer, então ela não intensifica os estudos, né? Ou parte pra joalheria...
É o que acontecendo geralmente. A coisa tá indo pra um canto que é assim:
quem trabalha direito, vai sobreviver. Aquele que quiser ser abusado, não obedecer
aos limites, essas coisas... Ele vai... Porque é a mesma coisa... Quando a gente se
transformar num conselho regional, toda denúncia que chegar até o SETAP-SP vai
ser encaminhada direto pra ANVISA, em Brasília, protocolada e levada pra
vigilância daqui. Então, quer dizer, a coisa caminhando pra isso. A gente tem
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ó: tanto o PCdoB mas, particularmente, a gente tá dando preferência ao PT. Porque
assim, foi o único partido que desde o início apoiou a gente... Estão sempre ali... Em
Brasília, no primeiro rum de debates sobre o ato médico, a gente tava presente.
Fomos bem recebidos por todo o corpo do pessoal da Medicina, da saúde, os
acupunturistas. Porque, meu! Você dar uma palestra pro pessoal do meio da
tatuagem, é uma coisa. Vodar uma palestra pro pessoal do ministério da saúde,
ou médicos e ser aplaudido, é outra. Porque você que realmente o que você tá
falando tem a ver... E a dinâmica que você aqui no meu serviço foi desenvolvida
por mim! Mediante o quê? As dificuldades. Eu tenho uma pinça certa pra um local
certo, eu tenho um cateter certo... Por exemplo, eu não perfuro a orelha com
material, um fio de espessura mais grosso pra não dar interferência de vasos...
Então, quer dizer, tem todo um estudo que eu criei pra isso, entendeu? A coisa
andando por aí. Eu me sinto feliz de poder estar, ao mesmo tempo, contribuindo pro
Brasil, no nível de diminuição de risco. Porque hoje em dia você o pessoal falar
muito de AIDS. que o pessoal se esquece que a hepatite é a doença do 3º
milênio. Se não existir um órgão fiscalizador, competente. Sim, porque tem que ser
uma entidade competente. Então, a gente sempre falando do sindicato, da forma
correta... Porque é a mesma coisa... os cirurgiões passaram a ter muitos problemas,
com muitas pessoas fazendo intervenções plásticas. Têm pessoas que perderam
mama, enfim, com a lipoaspiração... pessoas entrando em óbito... então, o que eles
criaram? Um conselho regional deles ali. Um conselho deles, dos plásticos. Então,
todo lugar que você for que tiver ali o certificado da entidade dos plásticos, pode
ficar seguro. Eu, particularmente, quando comecei a trabalhar com piercing, eu senti
uma carência danada ao nível de quê? Mais respaldo ao nível de biossegurança.
Eu, graças a Deus, sempre tive muitos amigos médicos. O quê que esses médicos
faziam por mim? Eles me emprestavam livros, essas coisas... Então, dentro dessas
coisas, eu fui adaptando... Eu fui introduzindo o meu conhecimento de piercing e
comecei a introduzir o conhecimento ao nível da saúde, da biossegurança. Pra quê?
Pra eu poder oferecer pros meus clientes mais segurança no ato da aplicação, e até
informação mesmo. Porque é aquela coisa mesmo que eu falo: todo piercing que
geralmente eu aplico, essa pessoa vem, preenche o cadastro certinho, dali mesmo
eu pego... Por exemplo, se ela tiver antecedentes alérgicos à prata, ou latão
chapeado, mesmo o aço cirúrgico o pode ser usado. Porque na composição do
aço também tem carbono e níquel. Então eu tenho que inverter essa situação. Eu
tenho que oferecer um metal que seja inócuo ao corpo dela. Que seja bio-compatível
mesmo com as deficiências alérgicas dela. Então é a hora em que eu ofereço:
titânio, bioplástico. O bioplástico é um resinado. O titânio o nosso organismo é
saturado dele, então, a reconstituição celular é mais rápida porque ele é um metal
de liga leve. É como eu te falando, são 10 anos trabalhando. Eu tenho atualmente
mais de 22 mil cadastros com ficha de anamnese. Tem que ter todo um respaldo pra
fazendo... Foi aquilo que eu te falei, por que o SETAP-SP chegou com essa coisa
com a modificação? Porque fora é underground isso. fora isso é underground
mesmo. Não são feitas, entendeu? Por exemplo, você não vai a uma clínica fazer
um implante. Não vai a uma clínica com médicos. Você procura pessoas que até são
médicas, mas não têm clínica. Mas são médicos que estão trabalhando com
tatuagem e piercing. Eu tenho muitos exemplos disso. Eu tenho um amigo que eu
conheci ele trabalhando na área da medicina, hoje em dia ele tem estúdio de
tatuagem e piercing e jogou o CRM dele dentro da gaveta e disse: “tô feliz do jeito
que eu aqui”. Tem uma série de coisas. Uma série de comparações que você vai
vendo...
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Particularmente, eu acho que a coisa tem que ser mais fiscalizada mesmo. Pra
gente poder ter um embasamento melhor, porque do jeito que indo.. é aquela
coisa. Até os enfermeiros fazendo, que nem fora que ocorre muito, e mesmo
assim eles não são cassados fora por fazerem isso. Porque é aquela coisa,
quando você fala punção, a punção ela tem várias coisas... Está escrito num artigo,
na nova lei do ato médico... até a impressão, com todo respeito à você, mas até
penetração vai ser proibido, né? reservado pra médicos... Então, é complicada a
coisa, entendeu? Então, automaticamente o que é mal redigido passa a ser mal
entendido.
Letícia: Fica pesado...
Snoopy: Fica pesado! Perfeito. Então, tem toda uma coisa, tem toda uma coisa que
tem que se tomar um cuidado legal. Mas eu acho que tem que partir primeiro da
entidade, entendeu? Porque a... porque a.... a sociedade como é uma... como é uma
forma de expressão que não ganhou... não ganhou margem, e eu acredito que nem
vá ganhar, entendeu? Então, a sociedade ainda tá longe dessa coisa, entendeu?
Letícia: Tu achas que não vai ter um ‘bum’?
Snoopy: o, não, não, não! Porque assim, foi o que eu te falei: isso no Brasil
desde 2001! Então, quer dizer, quem fez? O cara do estúdio ali, o outro cara do
estúdio ali... ah! Quem fez nele? O enfermeiro ali, o outro enfermeiro ali... Mas você
não vai chegar em loja, isso eu te asseguro, você não vai chegar em loja de
tatuagem e piercing e ver moldes pra vender disso daí. Entendeu? O que eu acho
extremamente ofensivo hoje em dia assim, pra mim, no meu ver é você ir numa 25
de março e ver aqueles cara vendendo piercing e cateter pras pessoas! Como se
não bastasse piercing! Porque é aquela coisa, uma pessoa leiga ela compra um
piercing aberto, ela não tem a noção daquilo, que aquilo precisa ser feito uma
desinfecção de alto grau ou uma esterilização. Então,é que o grande problema
da coisa, entendeu? Porque essa pessoa ela compra o piercing dela, a pessoa que
fez não pediu o retorno, que é o mínimo que o cara pode fazer, que é o que eu faço.
Quer dizer, eu fiz o piercing hoje, daqui a um mês eu pedindo um retorno.
Geralmente essa pessoa que retorna, ela nunca retorna sozinha. Vem ela, uma
amiga, dois amigos, ou o marido... fala: ‘pôxa, velho! Onde eu fiz lá, o cara não
pediu nada disso!’ Então, quer dizer, o meu diferencial eu faço com a qualidade.
Então, quer dizer, é a mesma coisa. Na vitrine você tem os piercings. O ar tem
bactérias. Então, se a pessoa for fazer, da minha sala de aplicação pra dentro vai
tudo lacrado e estéril. Então a coisa muda tudo, entendeu? que esse tipo de
concepção... é... a gente... a gente tem... agora, dia 29 de julho? Dia 22 e 23 de
julho a gente vai dar uma palestra em... Mogi das Cruzes. No teatro municipal,
entendeu? Pelo prefeito, a secretaria... Então, quer dizer, o pessoal bancando a
gente. Então, a coisa já começando a andar.
Letícia: Sei...
Snoopy: Porque assim, é... se fala do sindicato... eu como diretor vice-presidente, eu
não ganho um puto. E eu diretamente focado nisso de corpo e alma. Então, quer
dizer, eu falando aqui com você, mas eu poderia, se eu não estivesse agora
falando com você, eu estaria lá dentro, entendeu?
100
Letícia: Sim, sim..
Snoopy: Vendo o que se passando, vendo o que se passando... tudo! No site,
erros e acertos, entendeu? Então tem coisa pra se fazer, que assim, eu acho
que... o trabalho que a gente querendo fazer, eu acho que se a ajuda do governo
vai ficar impossível. Entendeu? Porque é aquela coisa, tem que ter um custo
governamental. Porque é aquela coisa que eu te falei, eu poderia estar fazendo mil
coisas, menos informar o outro. E eufazendo o que? Tô informando os outros. As
mil e outras coisas eu deixando pra depois. Por quê? É uma prática, no caso da
tatuagem e piercing, que feita de forma correta ela não oferece risco. Como em toda
profissão, ela tem um risco, ? Isso é indiscutível. Mas feita de forma correta, ela
não oferece risco. que o problema é: como é que eu vou pegar, eu vou barrar
uma loja errada? Isso não é meu trabalho.
Letícia: Sim, não é.
Snoopy: Na realidade, eu acho que os órgãos fiscalizadores têm que ser mais
diretos nisso daí, entendeu? Têm que ter uma posição mais... E infelizmente, ainda
têm. E foi o que eu te falei, pra nossa proteção é tentar fazer a coisa com, com..
conselho regional de tatuadores e body pierciers, entendeu? Pra gente tentar chegar
em algum lugar legal, entendeu? Porque é a mesma coisa, cê fala desse ato
médico. Que os médicos venham a fazer a prática do piercing e da tatuagem. Você
acha que essa coisa vai parar? Então, quer dizer, a gente tem uma cultura. Eu
trabalho com isso mais de uma década. Eu tenho meu direito adquirido. Tem
tatuadores que trabalham 20 anos. Como é que um médico vai fazer um rosto
perfeito? Entendeu? Como é que um médico vai adquirir cultura de piercing, se ele
não vai estar com uma pessoa que fez piercing? Eu conheço dentistas e médicos
que, geralmente... eu vou te dar um exemplo sico. Geralmente, o médico
cirurgião, aquele que faz a lipo, ele faz a remoção do umbigo pra fazer a remoção da
gordura com as cânulas. Então, o que acontece? Depois que ele reconstitui o
umbigo, ele vai lá e coloca um piercing. Então o que acontece? Esse piercing fica ali,
junto com uma cinta, pra dar aderência, né?
Letícia: É mesmo? Já estão fazendo...
Snoopy: É, tem. Daí o que acontece? Esse ar, não tem por onde circular ar. Aquela
cinta é usada pra dar aderência, né? Na elastina e no colágeno. Não tem como
circular ar. Necrose.
Letícia: Nossa...
Snoopy: Rejeição mesmo. Então, quer dizer, a pessoa foi fazer uma plástica pra
ficar mais bonita... No caso de uma mulher, pra poder vestir um top, um maiô, um
biquininho legal, ela acaba tendo o quê? Constrangimento da cicatriz mediante a....
pós a cirurgia. Porque foi que ela fez a intervenção. Eu tive três problemas com
médicos com isso daí. E os três que eu liguei, eu expliquei toda a teoria, toda a...
toda a base... a logística, a função do piercing. Meu, os três, até hoje, eles me
mandam clientes. Geralmente eles liberam pra fazer o piercing, eles não aplicam,
liberam pra aplicar o piercing depois de três meses. Eu peço seis. Entendeu?
101
Porque eu preciso de uma reconstituição celular ali, melhor. Eu preciso que aquela
cicatriz não tenha tanta fibrose ali. Então, tem uma série de coisas que têm que
ser levadas em consideração.
Letícia: E hoje tu trabalhas só com piercing?
Snoopy: Só com piercing.
Letícia: tu já tatuaste?...
Snoopy: Não, não. Desde que eu comecei mesmo, é piercing! Quer dizer, antes de
começar com piercing, eu trabalhei no consulado americano, saí do cônsul... Do
cônsul eu comecei a trabalhar num bar. nesse bar eu tive contato com esse meu
amigo André Fernandes, que veio de Londres, daí eu falei pra ele: ‘Pow, e aí, eu
tenho tempo de dia pra fazer esse curso. Eu tava a fim de fazer esse curso, de
aprender...’ Porque era uma coisa nova no Brasil e era um mercado promissor.
Infelizmente, vou te falar, Letícia. O que acontece, do meu ponto de vista, eu não
falo no piercing e na tatuagem, eu falo em geral. Tudo que faz isso, ó (levanta a
mão para cima), sobe no nosso país, parece que chega um momento, ele faz assim,
ó (ainda mostrando com a mão) ele vira um ‘T e começa a descer de novo. Por
quê? O oportunismo. Eu vou te dar um exemplo básico. Você pegava boy, oficeboy.
Depois motoboy. Hoje em dia, os cara, meu, mais morrem do que ganham dinheiro
aí, né? Então, são exemplos do que tá acontecendo. A banalização, né? Se vai num
Jacques Janine e quanto é um corte de cabelo? R$200,00, R$300,00. vai ali,
R$5,00. Então, essa diferença brutal que tem que se acabar. Porque aquele cara
que corta por R$5,00, se ele não souber limpar a máquina direito, ele cria uma ferida
na sua cabeça, aquilo vira um , entendeu? Vira uma série de outras coisas,
entendeu? Essa diferença brutal, no meu ver, não tem o por que. certo, ó? Que
nem aqui, a minha situação real, vai. A pessoa me procura pra aplicar um piercing,
eu vou cobrar dela de R$60,00 a R$200,00. Porque eu tenho o quê? Eu tenho aço,
eu tenho titânio, tenho nióbio, tenho bioplástico, tenho ouro branco, ouro amarelo eu
não aplico por causa da... na composição do ouro amarelo tem o cobre. Então na
reconstituição celular local acaba escurecendo. Então tem toda uma preocupação.
Não é simplesmente chegar e bum!
Letícia: Furar...
Snoopy: Entendeu? Que nem tão fazendo. É isso que é o problema maior. Porque...
Jamais eu.. quer dizer, você poderia vir até a mim, eu te falar uma série de outras
coisas: “não, porque é maravilhoso,”. não, não é! Eu sou um cara bem pé no chão.
Porque assim, se tiver formas de fazer uma coisa melhor e você for uma das portas
pra isso,pow, eu vou ficar feliz, entendeu? Minha contribuição já... valeu. Não
critico quem tá fazendo.
Letícia: Certo...
Snoopy: Essa é a grande verdade. Desde que se faça consciente do que tá fazendo.
Então, quer dizer, ninguém que procura esse trabalho... Pow, você fala: ‘como é
que você afirma isso?’ eu afirmo isso porque eu tenho contato. Porque assim, como
foi eu e o André os precursores, as pessoas tem em nós como referência. Então,
pow, os caras começaram! Então, eu, o André Meyer, o André Fernandes, o Jairo,
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entendeu? O xxxxxx, que é um húngaro, que teve grande papel na cultura body
piercing do país, entendeu? Então essas pessoas vieram... A gente veio do celeiro,
assim, modo de falar, mas de um celeiro consciente, certo? Aí o que acontece? Uma
pessoa passou a trabalhar na loja, numa loja tal. Então, ela via o outro cara
trabalhando. E então, o que é que ela fazia? Ela saía da loja onde ela tava
trabalhando e ia trabalhar em outra loja. o como faxineiro... Porque tem uma
cultura do piercing, da tatuagem. Ninguém aqui começa já aplicando piercing, não. É
dois anos quase, que a pessoa passa com a gente! Como um filho, um amigo,
entendeu? Então, a pessoa, o que é que ela faz. Ela tem o emprego dela onde tiver,
mas ela fica num estágio aqui com a gente. É que nem os workshops que eu faço.
No meu workshop mesmo, a pessoa fica comigo trinta horas e nessas trinta horas...
depois disso ela fica comigo. Então, o que é que acontece? Fica dois, três, quatro
meses, se for o caso. Então, tem toda uma preocupação. Isso é a cultura correta,
não é a que acontecendo fora. Entendeu? é que é o complexo. Entendeu?
Porque a... porque que a pessoa... Sei lá... Eu vendo a coisa de uma forma
assim... tipo... eu acho que tem que ser, na realidade, assim... quem tá, quem tá...
quem trabalhando com isso, fala: ‘não, eu preciso me especializar’. E não é o que
acontece, porque foi como eu te falei. O que eu cobro R$100,00, tem gente que
cobra R$25,00. Então, ele ganha mais que eu. É a mesma coisa de você vender
uma banana a R$12,00 e você vender uma zia a R$12,00. Entendeu? Então,
complica. Então, isso daí me engessando. Foi o que eu te falei, eu sou pai, tenho
dois filhos, tenho minha casa, tenho minhas despesas. Tenho todas essas questões.
Até pra eu sobreviver com isso, hoje em dia, eu vou falar pra você, até o ano
passado ainda tava ótimo. Mas esse ano já começou a me sufocar, entendeu?
Porque é aquela coisa, meu. Eu sempre fui acostumado a trabalhar e ter grana. Não
trabalhar pra pagar conta. Então, quer dizer, eu não sou um filhinho de papai
estabilizado, entendeu? Eu sou um cara, meu... eu sou um cara, eu vim e acreditei
nessa... acreditei. E ahoje eu acreditando, e vou morrer acreditando. Porque é
aquela coisa, é o que eu faço de melhor. É o que eu descobri que eu faço de melhor,
que eu descobri que eu me identifiquei. Você lidar com o corpo humano é fantástico!
Desde... Desde que você tenha o quê? Desde que você tenha um certo respeito.
Tem que ter respeito pelas pessoas. Desde formas... Eu vou te falar até de forma
nua e crua... até mesmo o tratamento... Quando a pessoa adentra a minha sala, eu
trato ela como infectado. Entendeu? Pra quê? Dois pares de luvas. Primeiro
procedimento, eu faço o quê? Anti-sepsia local, caneta pica pra marcação, em
língua eu não posso usar caneta tópica porque é porosa. Então eu tenho que
usando violeta líquida. Porque às vezes eu pego uma pessoa hepática e pego a
caneta nela e marco. eu vou com a mesma caneta e marco outro, faço uma
intervenção. Então, o que acontece? Eu acabo infectando. que, quantos deles
sabem disso?
Letícia: É verdade...
Snoopy: Então, eu não te mostrando aqui que eu sou superior. Eu me considero
um cara, assim... que eu cheguei onde eu cheguei, primeiro por respeitar a saúde
alheia, entendeu? E segundo, por ter vontade mesmo. Então, pra mim eu não me
limito em buscar conhecimento. Eu sempre me aprofundando, eu quero saber
mais. E é isso que me cria um diferencial, que ao mesmo tempo é como eu te
falei, não é um diferencial que tá me sustentando. Então, quer dizer, o André
Fernandes parou. Daqui a um tempo, eu paro. E isso daí vai ficar na mão de quem?
103
Entendeu? Então é aí... é.... que a... esse lance do SETAP-SP é de sumária
importância. Tem que existir mesmo um órgão fiscalizador representativo,
entendeu? Pra quê? Porque, meu, eu quero me unir ao SETAP-SP-SP, porque você
oferecendo vários cursos, tal... legal, e como é que é? Porque geralmente...
fizeram um sindicato aqui, em 1999, chamado Sindicato dos Autônomos. Onde você
vai conseguir força com o Sindicato dos Autônomos? Então, o SETAP-SP-SP é o
Sindicato das Empresas de Tatuagem e Body Piercing do Estado de São Paulo,
então é empresa! Então a coisa fica mais fácil de andar, porque é uma empresa.
que tem todo esse tipo de preocupação. Então as pessoas que querem entrar, não é
assim: Ah! Vai pagar o sindicato e vai entrar. Ele vai ter que primeiro fazer um giro
de 360 graus no ambiente dele. Porque por exemplo, Macapá, Amapá, eu tenho...
Nós temos clientes até de fora do país, associados! (risos)
Letícia: É mesmo, é?
Snoopy: Então você fala, o que é que tem a ver o cara... da Costa Rica ser
associado ao SETAP-SP? Mas isso mostra a força que a gente tem fora?
Entendeu? Porque assim, como são entidades, então, na América tem entidades, na
Europa tem a APP, a Associação Profissional Piercing. É alegal se você quiser ir
a fundo, dar uma olhada. vai ver que a coisa é muito séria... E essa seriedade
fora, na parte técnica, é que a gente quer introduzir aqui. Então, porque, é mesma
coisa de você dizer: ‘pow, é justo o cara fazer medicina pra aplicar piercing?’. Mas é
justo também o cara não saber o que fazendo e ir aplicando? Então, quer dizer,
aonde que o SETAP-SP entra com isso? Cursos! O cara não precisa ficar numa
faculdade quatro anos. Mesmo porque a gente tem uma carga horária. Tem um
método avançado de aprendizado, no qual eu tenho desenvolvido. Então, quer
dizer, isso daí, o que é que acontece? São mais pessoas entrando. Hoje em dia
mesmo, a vigilância sanitária ela aceitando o nosso certificado como...como...
como referência mesmo no caso do piercing. Entendeu? Porque é a única entidade
representativa do Brasil. Então, quer dizer, porque a entidade leva esse mérito?
Porque é uma entidade ria! Uma entidade que vai pra Brasília, dar a cara pra
bater pra uma série de pessoas, não é uma entidade que tá brincando com ninguém.
É uma entidade que acredita no que faz e que tá indo pra cima porque sabe que tem
a forma certa. Porque foi o que eu te falei, é justo a gente passar... eu sofri todo um
preconceito de início. minha orelha, hoje dia vendo, ela tem 35 milímetros,
minha orelha era 37 (milímetros). Implante no braço... Então, marginalizado, tudo...
Pra hoje em dia nego chegar e falar: ‘é nosso!’. Os colarinhos brancos, burguês.. ‘é
nosso! Vocês os marginal que começou’... Então é o direito adquirido pra eles...
Então, eu tenho uma visão bem dessa, eu.. eu... eu caracterizo isso como
monopolizar o saber. que isso não existe em lugar nenhum. No mundo inteiro se
você procurar por piercing e tatuagem, você vai constatar que são técnicas culturais.
Opa! Culturais por quê? Por que isso vem da onde? A tatuagem vem da onde?
Tatau, maori, entendeu? Os marinheiros, entendeu? A mesma coisa com o piercing,
pôxa, se você pegar referência indígena, maia, egípcia... Poucas pessoas sabem,
mas Cleópatra, o que é que acontece, tem duas versões. A primeira versão é a
seguinte: Cleópatra pra reconhecer as suas melhores... pra não precisar ficar
procurando, ela ordenou que as mesmas tivessem um adorno no umbigo. Então daí
vem o piercing. Uma outra, uma segunda versão diz que no Egito a realeza
ostentava piercing. A mesma coisa é do piercing do mamilo. Vem da parte... vem da
parte do quê? Gladiadores romanos eles tinham piercing no mamilo. Aliás, não
104
piercing, um adorno no mamilo. Isso pra quê? Pra agradar os (-------) Em Roma, nos
dias de hoje, eu falo isso com embasamento, é símbolo de virilidade. Os maias
acreditavam que com a perfuração da língua eles conseguiam se elevar e ficar mais
próximos daqueles que eles acreditavam como entidades. Então, quer dizer, tudo
tem uma cultura. Nada foi assim: ‘ah, vamos começar a fazer! No oba-oba!’. Não!
Em 1975 teve um cara na... Chamado (xxxxxxxxx)28:35. Esse cara ele era o dono
da (xxxxxx). A (xxxxxx) foi a primeira fábrica de piercing do mundo. Ele em contato
também com o Fakir Musafar, que o pioneiro mundialmente com a prática de
branding... É isso que eu te falando, escarificação e branding... tudo bem, isso é
uma coisa. A implantação é outra. tá entendendo o que eu defendendo? Eu
defendendo uma coisa... eu tô... então, o que acontece, o branding é uma coisa.
Escarificação é outra. Entendeu? Suspensão é outra. Implantação é outra,
entendeu?
Letícia: Tua achas que... cada um...
Snoopy: Então, quer dizer, piercing... o biotipo da sua loja. Ah! quem fazendo
implantação é médico, é enfermeiro? Enfermeiro padrão, pelo menos. É? Então,
não. Então não serve. Então tem que ter isso. Foi como eu te falei, não por eu
machucar ninguém que eu falei, eu senti essa necessidade de parar ou coisa assim.
Foi de olhar e falar: ‘opa! Peraí!’, entendeu? Opa!? A coisa vai indo, vai indo, cada
vez mais adentrando, mas peraí, vamos pôr o no chão. Vamos procurar oferecer
um trabalho de qualidade pras pessoas. Porque foi o que eu te falei. Em momento
algum eu fui procurado por pessoas que não tivessem nculo com tatuagem,
piercing. É a mesma coisa do piercing genital. A pessoa que procura fazer o capuz
do (xxxxxx) 26:55, lábio interno, lábio externo. Essa pessoa ela... é muito difícil você
pegar uma “pessoa porta” pra fazer isso. São pessoas mais do meio. Às vezes
acontece, sim! Às vezes chega o marido e diz: Ah, eu vi num filme da Buttman
um piercing assim, assim, assim.. ô Ronaldo, sabe fazer? Como é que é? Me
conta o início como é que é, onde faz, o quê que é capuz, o quê que é prepúcio...
Vamos conversar aí’ Então, quer dizer, eu tenho ginecologistas que me mandam
pessoas! Então, quer dizer, eu conquistei isso com respeito! Então hoje em dia eu
não posso jogar todo esses meus dez anos por água abaixo. E levantar uma
bandeira de uma coisa que: a) eu sei que o dinheiro; b) que é uma minoria,
minoria mesmo, que procura esse tipo de trabalho... minoria mesmo!não tenho como
te afirmar com números, mas ao nível da população brasileira, é um nada,
entendeu? Vamos colocar... cinqüenta milhões, dois, três, dez fazendo isso. Que
têm isso. Porque não é uma coisa que . Mesmo porque se isso for pra “bum”,
eu como vice-presidente do SETAP-SP, eu vou em cima. Eu vou em cima por quê?
Eu vou analisar quem é essa pessoa. Quem é você, porque você faz isso e tal...
Mas não diretamente com ela, você tem meios. Hoje em dia a internet ela... você
colocou ali google, aparece tudo e muito mais, entendeu? É isso. O trabalho do
SETAP-SP, em si, é primeiro, resguardar os direitos adquiridos dos tatuadores e
pierciers. Modificadores... Então, quer dizer já... esse termo no Brasil foge. Então,
foge modificadores. Porque se você parar bem... fala: modificação corporal. Que
é que você acha que é isso? (aponta para seu corpo) Na lateral é uma modificação!
Então, quer dizer, nós temos uma forma. Me sinto bem com um trabalho aqui. É a
mesma coisa que eu te falei, eu tinha uma tattoo, pow, eu vou achar legal ter um
trabalho 3d. Aí fiz. Eu não gostei e retirei e não tive problemas... Então, quer dizer, é
isso também. A compatibilidade desse material é absurda! Entendeu? A
105
reconstituição celular com ele é absurda! Então, tem toda uma ciência em cima
disso, entendeu? que também o que não pode haver é abuso, ? Tem que ter
um mero respeito aí, né? E foi o que eu te falei... Eu não sei aonde você foi, eu não
sei com quem você falou...Até então, você falando comigo aqui. Mas foi o que eu
te falei, acho que tem até um lance espiritual... Espiritualidade mesmo, assim... Hoje
em dia eu sou kardecista, quer dizer, eu adoro o Kardecismo... sempre tive... então,
hoje em dia eu tô muito mais a fundo. Então, quer dizer, tem coisas na sua vida que,
meu! Eu freqüentei uma igreja, freqüentei uma outra... Então, quer dizer, tudo isso é
um conjunto pro ser humano, né meu? O ser humano vazio é um ser humano infértil.
Então, quer dizer, essas coisas eu atribuo para uma melhora do ser humano... sua,
né? Família, filho... Eu quando não tinha filho, minha cabeça era outra! Hoje em dia,
com filho, minha cabeça é outra! olha pros filhos dos outros com outra... de
outra forma... entendeu? Por isso que eu te falo, que nem eu falei... A gente sabe
que não existe órgão fiscalizador, uma pessoa pega e perfura um filho meu. fala:
‘eu vou processar’? fala: ‘meu, eu vou pegar esse cara e vou arrebentar, meu!’.
O que é que acontece? Cê vai numa Galeria do Rock aqui em São Paulo, nós temos
das vinte... De vinte a trinta lojas, duas têm alvará de funcionamento. O resto?
aberto! Polícia chega lá, morde o dinheiro e vai embora. Órgão fiscalizador. O quê é
que acontece? Entram pela parte de baixo e desaparecem. Então, aquilo ali,
sabemos que é um patrimônio tombado, né? A galeria... A igreja ali do lado do
Paisandú é do Niemeyer, a Galeria do Rock é do Niemeyer... Quer dizer, por que
que ali? Ali é o pior foco que tem! Igual aos shoppings da Grande São Paulo. Pra
mim, assim, o pior foco de todos são os shoppings. Os shoppings. Por que o que é
que acontece? Meu, geralmente o trabalho oferecido ao público são naqueles
mezaninos. Se a pessoa me sofre um mal súbito, ela vai descer uma escada...
então, quer dizer, se ela cair o que tiver de frente, ela vai arrastar com a cabeça.
Então daí a necessidade também da pessoa que aplicando dela ter conhecimento
ao nível de enfermagem mesmo, biossegurança, socorrista, né? Porque a gente lida
com mal súbito, né? Alto verão, vasodilatação. Pressão alta, baixa, hemofilia,
hipoglicemia... O que é que eu posso aplicar? Se eu aplicar um piercing num
hemofílico, será que... será que vai reconstituir? Será que vai parar de sangrar? Ele
não tem coagulação! Entendeu? Então tem que ver... Hepático. Então, quer dizer,
Hepatite B... tá bom, ele pode fazer, ele tem imunidade no organismo dele, não no
meu! Tem que tomar cuidado! Então, tem que ter esse princípio de consciência
ativa. Pra você fazer as coisas direito e continuar. E meu, foi o que eu te falei, depois
de dez anos aí, eu feliz. Dia cinco de outubro desse ano, faz onze anos! E tamos
aí!
Letícia: certo! Então vamos passar pra segunda etapa da entrevista... Eu vou te
mostrar umas imagens... e pedir que tu escolhas três, e me fale delas.
Snoopy: Tudo bem! Sem problema! Vamo lá!
Letícia: Disponho as imagens.
Snoopy: Hoje?
Letícia: É.
106
Snoopy: Essa daqui é nova até pra mim, sabia? (referindo-se a foto número 12).
Esse tipo de batoque no lábio superior, eu nunca tinha visto não.
Letícia: Essa foto é uma foto antiga... Acho que ela é de...
Snoopy: Nossa, muito, muito bonita!
Letícia: Eu tenho a referência da foto, pra você. Depois eu posso lhe dar.
Snoopy: Ah, legal! Vamos trocar e-mail depois!
Letícia: Vamos! Vamos, sim!
Snoopy: Oh, Letícia... Que nem eu te falando... Hoje em dia... Eu prefiro até, ao
invés de escolher 3, a gente ir falando de cada uma delas. Cê vê, ó, é que nem esse
trabalho (referindo-se a foto número 7) se você acessa o BME, que é um site
também, você vai ver que esse tipo de trabalho aqui, na aba do nariz, ele é
irreversível. É uma cartilagem. Até 4 o 5 milímetros, por experiência eu tô te falando,
essa cartilagem vai ter uma reconstituição celular ali, que provavelmente a pele pode
cobrir... a cartilagem pode não se recompor, mas fecha. No caso desse calibre
dessa senhora, é irreversível. Tribo Malori, pelo o que eu vendo o queixo, os
riscos...
Tongue Split (foto número 11), tongue split, eu não sei se você sabe a função dele
também.
Letícia: Me fale!
Snoopy: O que acontece é o seguinte, o tongue split é a língua mesmo, né?
Letícia: Sim...
Snoopy: Então, quando você faz o corte, você tem o movimento das duas. Dos dois
lados. Isso daí até sendo pesquisado pela comunidade dica. E outra coisa, até
2003 eram... se você cortasse, era irreversível. Agora, tem reversão. Foi o que eu te
falei, a gente tem duas artérias de baixo. Pode assim... tem a trava, o freno
sublingual e a trava sublingual. Aqui nas laterais, nós temos duas artérias. Um corte
ali errado, você pode perder um pedaço da língua. Necrose mesmo. Necrose, perda
da região mesmo. Quer dizer, isso pode. Olha, experiência com tongue split eu
tive.
Letícia: De tu fazeres em....
Snoopy: Exatamente. tive, sim. Porque, meu... Porque você olha e deve pensar
assim: meu, isso deve sangrar demais. Então, quer dizer, você parou a circulação
local com pinça de (------) lateral enquanto você fazendo o corte. Mas é que nem
eu te falei, eu fiz isso ao lado de um enfermeiro em conjunto. Dois trabalhando. Mas
tem coisa que olha assim, e... Pow, é isso que eu quero que você entenda. Hoje
em dia, de 2001 a 2005 a sua visão é uma. A minha visão era uma. Até 2007, eu
ainda postei foto no BME. De trabalhos meus de 2005. Eu ainda fui e postei,
entendeu? E meu, é uma coisa que cê vai olhando assim...
107
Aqui mesmo (referindo-se à foto número 10). Esse cara tatuando sem paramentação
nenhuma. Respirando em cima, sem um avental... Nem luva ele usando. Pelo
jeito, nem luva. Esses são os tradicionais tatuadores de São Francisco...
Mas hoje em dia eu prezo... Eu tô prezando mais hoje em dia, por esse tipo de coisa
mesmo, a vida, né?(pega a foto número 2) Bebê! (risos) Essa criança maravilhosa
aqui! E segundo, tatuagem mesmo. Isso daqui eu amo de paixão (foto número 3). É
minha vida. E terceiro, piercing. que até eu não vi nada pra mim falar
assim... que nem esse cara aqui que é o Fakir, né(foto número 5)?... entendeu? Que
geralmente assim... isso deve aberto até hoje, esse tubo aqui... que ele usava pra
manter isso aberto, era o PTFE.
Letícia: Ah é?
Snoopy: Ele fez a inserção, como se fosse uma inserção de lóbulo, pegou na base
do tronco e depois usou uma barra de PTFE, que cicatrizou. É um Fakir, ele faz as
apresentações... Ele vive disso. Hoje em dia não, né? Hoje em dia, pelo governo dos
Estados Unidos, ele dá cursos! A única coisa que pode lá é o dele. Não tem
conversa. Então é aquela coisa também, modificação no rosto. Os caninos aqui,
ó...(foto numero 9) Aí, eu vou entrar em outra questão que a parte de dentista.
Então, quer dizer.. o exemplo desse cidadão aqui... deve ter uns 30 anos. Vamos
colocar assim. Então, durante 30 anos, ele nunca teve um canino alongado, o canino
dele sempre foi um canino normal. A partir do momento em que ele coloca isso, ele
altera. Eu tive debates com médicas, com dentistas, falando sobre essas coisas.
‘Não, mas eu faço!’. Mas doutora, a gente tem a mandíbula e o maxilo... como é que
a gente faz? (faz um barulho simulando a ausência de resposta da profissional).
peguei dermatologista em rede nacional... deixei ela desnorteada. Porque ela falava
‘é simplesmente pegar um piercing pra aplicar na aba do nariz’. E eu disse:
discordo da senhora, doutora. Trabalho já com isso, na época há sete anos, e aqui é
uma área toda irrigada por vasos. Se eu pegar, marcar e não mapear, eu vou
interferir num vaso. E se esse vaso vai se interligar com outros vasos, sobrecarregar
os outros...’ ela... então, quer dizer, não humilhando a pessoa. Mas mostrando pra
ela que eu sei mais do que ela. Porque muitas vezes eles se escondem atrás do
CRQ, CRM... Não, eu tô aqui! Pra pagar pelas coisas que eu cometi mesmo, de erro.
Consciente do que faz. Consciente do que também.. ação e reação. Mas é isso. As
fotos aqui escolhidas são essas. Essa daqui eu até escolheria... Mas o canino aqui...
(risos) (foto 9). Eu vou escolher essa que é cultural.
Letícia: Certo... A primeira que tu pegaste foi essa, né? (foto 12)
Snoopy: Eu quero até que tu me mandes.. Nossa, é muito bonito!
Letícia: Eu posso mandar. Isso é de um site... O Corbis. É um site de imagens, que é
interessantíssimo. Tudo o que você quiser você acha lá... de imagens.
Snoopy: O que você achou lá... da matéria do Camilo?
Letícia: Muito bom. Muito interessante. O trabalho dele tá...
Snoopy: O Camilo foi um dos pioneiros. Eu fiquei muito feliz, porque quando ele veio
procurar, eu achei muito legal... Foi em meados de 2001, 2003.
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Letícia: Ele defendeu o ano passado! Em março, eu acho. E foi muito legal... Ele fez
um mapeamento de São Paulo...
Snoopy: Na realidade, pelo pouco que eu tive contato com ele... mas, meu! Ele...
onde tinha qualquer coisa, ele tava lá. Ele ganhou a amizade e a confiança desse
pessoal. Por isso ele chegou onde chegou.
Letícia: O trabalho dele tá muito legal. Ele tá sendo muito importante pra mim.
Snoopy: Uma referência de um cara que fazendo bastante essas coisas...
implantes, é o Sick.
Letícia: Sim, você me falou dele!
Snoopy: Você já teve contato com esse cara?
Letícia: Não...
Snoopy: Porque, meu... o cara é enfermeiro, trabalha tudo direitinho... ele fabrica as
peças dele. Então, é um cara que poderia te dar um respaldo maior. Eu hoje em dia
não tenho contato com ele... Não é nenhum tipo de divergência, nem nada... mas é
que assim.. opa... eu tenho o meu caminho, ele tem o dele. Mas é um cara que pode
te dar muita informação porque ele é ativo.
Letícia: Tu sabes como eu posso entrar em contato com ele?
Snoopy: Eu tenho o e-mail. Posso te passar tudo isso.
Era legal tu conversando com os faquires mesmo. Você teve contato com o
Neto?
Letícia: Não.
Snoopy: esse Neto ele trabalha com apresentação de freak show. Puta cara dez!
Legal de conversar, aberto... Pessoa que vai te passar conteúdo mesmo.
Letícia: certo... Então as 3 que tu escolheste são essas... E por que tu não
escolheste estas daqui?
Snoopy: Primeira, isso é o meu sonho (foto número 3). E isso daqui ó, expressão
corporal correta, segura... e respeitar também o pessoal de onde veio a cultura,
(foto 12)? A escola começa desse povo, né? A medicina também tirou muita coisa
deles, e tira até hoje.
Letícia: E pra fechar a história, deixa eu te mostrar mais uma coisa. Aqui eu tenho
umas frases. São algumas frases... Diante disso que tu me falaste, alguma delas faz
sentido pra você? Ou não?
Snoopy: Eu acho que essa primeira: “O gosto amargo do preconceito e o doce
prazer de ser diferente”. Porque é aquela coisa que eu te falei, é cultural do nosso
109
país, entendeu? O que as pessoas desconhecem, elas abominam. Quando eu
comecei a fazer isso, eu senti o gosto amargo do preconceito. Hoje em dia eu posso
dizer pra você, com toda exatidão que, eu tenho o doce prazer em ser diferente.
Porque eu conquistei minha liberdade. E isso tem um pouco de política. Porque o
sistema em si, ele faz desenho do que você tem que ser. Escravo do dinheiro,
escravo do relógio. Assim, não que eu tenha... Não que eu esteja sendo aqui
extremista, não. Eu hoje em dia por dizer pra você que eu trabalho 10 anos,
virado de costas, com todo o preconceito conhecido... E o que é que acontece? O
sistema, hoje em dia, ele quer tomar da gente o que a gente fez. Então, “como é que
uns caras desses”, na visão deles, de uma minoria, “maconheiro, drogado e tal.
Como é que um cara desses ganha R$ 5.000 por mês?”. Eu escutei isso daí. Não
pra mim, diretamente. Eu escutei isso. E isso me incomodou, ué, mas por que a
gente o pode ganhar? Porque a partir do momento em que ele generalizou os
tatuados, é a mesma coisa de dizer que a polícia não presta, que a psicologia é uma
farsa, que a acupuntura é uma medicina enganosa então, quer dizer, eu
generalizando. Hoje em dia eu posso falar pra você isso aí. Com todas as letras.
E é aquela coisa. Pra gente ser diferente hoje... No meu caso foi o que eu te falei,
você tem filhos, chegar onde cheguei.... Isso daqui (referindo-se ao estúdio) funciona
bem melhor do que qualquer mini-uti. Daqui a pouco eu vou te levar pra você
conhecer. Então, são várias salas individuais, então cada qual tem um tatuador, um
responsável pela sala. Aqui é um estabelecimento no qual cada um é responsável
por seu ambiente, respondendo até judicialmente, com um documento que é bem
específico...
Então hoje dia, eu cheguei a um ponto em que as pessoas me procuram. Você me
achou, outros me acham... então pôxa, pra mim o prazer de ser diferente é o prazer
de você poder ser você mesmo, de repente. Tem um dizer que eu achei muito legal:
“nada mais igual do que um bando de diferentes”. Então, quer dizer, a gente
um bando de diferentes juntos em convenção de tatuagem. Mas aí, o que é que é
ser diferente? Foi o que eu te falei. Às vezes a pessoa é infeliz porque não te um
mamilo, vai, uma mulher não tem a mama do tamanho ideal... Pô, chegou ali e se
sente bem. O porquê que uma pessoa não pode se tatuar e sentir bem? Então, esse
tipo de concepção precisa ser revista. A sociedade precisa se rever, porque ela
sendo hipócrita com uma série de outras coisas. Isso é um mal. Isso é a.... a pior
doença, entendeu? É o preconceito. A pior. Eu não falo de cor, de raça. Eu falo
em geral. Porque pra eu falar assim Letícia, que eu não gosto de uma coisa, no meu
caso, né? Eu vou procurar saber o que é essa coisa.
Letícia: que coisa é essa...
Snoopy: Pra falar que eu não gosto. Que nem eu te falei, eu fui e conheci o
implante e disse: “Opa! Não é minha praia”
Letícia: Não é minha praia...
Snoopy: então, tem que haver essa coisa, um bom senso. Tendo um bom senso,
você entra em um consenso pra dizer não. Então é isso.
110
ANEXO C – Transcrição da entrevista com André Meyer
Letícia: Eu queria que tu me falasse assim, da tua prática... Eu não tenho o objetivo
de saber da tua história de vida, sei ... Eu quero saber da sua prática mesmo.
Como é isso, como é que tu vê essa prática aqui no Brasil, a coisa das modificações
extremas, o que é uma modificação extrema pra tu...
André: Bom, eu faço aquilo que os meus clientes pedem, isso quando o corpo
comporta determinado adorno. Eu não sou nem adepto de modificações
extremas. Eu trabalho... Como chama?... Eu tento passar a dor, como um prazer.
Sem traumatizar. Pra marcar a vida dessas pessoas por vários motivos. A maior
parte dos motivos é pela moda. Nessa geração que a gente vive. Por outros motivos,
espirituais, religiosos, sexuais, céticos, enfim... Então eu acho que a minha profissão
tem muito um trabalho... é... pra algumas pessoas, terapêutico, né?
Letícia: Hum-rum..
André: Tipo... é a solução pra algum problema. Pra despertar alguma coisa
adormecida, algum sentimento, esse sentimento pode ser positivo quanto negativo...
quando é negativo, eu evito fazer. Porque eu não uso do meu trabalho como um
auto-flagelo. E eu acho que é super interessante o que eu exerço, nessa geração.
Sendo que, pesquisando, estudando, eu sei que isso é feito milhares de anos em
outras culturas. A única diferença é que eu sou... eu me sustendo disso, sou um
profissional, né? É lógico que qualquer pagé, xamã de tribo recebe premio..
Letícia: Risos. É verdade... Alguma retribuição...
André: Alguma recompensa pelos trabalhos prestados! No nosso caso, essa
retribuição vem em formas seguras de aplicação. Com materiais tecnológicos,
todas as técnicas de assepsia, né? E de higiene, né? Então é isso, eu acho que o
quê despertou nessas gerações, nessas últimas décadas, um interesse cada vez
maior em se diferenciar... Lógico, porque você ta exposto à mídia. E a gente hoje
tem muitas informações através da internet... coisa que antes era... hoje a gente
pode ter acesso à outras culturas com muita facilidade, coisa que antigamente era
impossível. As pessoas voltavam tatuadas ou perfuradas quando elas tinham
contato com outros povos. E isso servia como um souvenir de determinada região.
Hoje em dia, nosso souvenir ele é muito rápido, muito temporário, né? Lógico que
algumas modificações corporais podem ser traumatizantes e são permanentes, né?
Mas, como eu não mexo com isso, eu falando mais da minha parte, né? Eu faço
piercing desde 1992... É.... A princípio, muita coisa mudou de pra ... mesmo
porque o início do piercing foi em 1975, profissionalmente falando, em São
Francisco. E de pra cá, nesses trinta anos da profissão, muita coisa foi mudando.
Vem mudando tanto, que a vertente dessa modificação corporal chegou ao extremo
de amputação, de bifurcação de língua, de genitais, de implantes, de técnicas
desenvolvidas nesses últimos anos. É... Normalmente a gente tem uma raiz, de uma
referência do passado, de povos primitivos, que foi a minha escola.
111
Letícia: Sim...
André: Hoje em dia, tão evoluindo tanto que o fazendo daquela ficção dos filmes,
uma realidade. Então, é... Eu optei por desenvolver jóias e trabalhar com materiais,
ao invés de trabalhar com o corpo. Eu ainda tento preservar o corpo. É... Muitas
vezes eu percebi que quem procura essas novidades são pessoas de uma geração
nova, não é de uma geração como a minha, de quarenta anos. Eu acho que a gente,
quando tem 20 anos, na puberdade, na passagem da adolescência pra vida adulta,
passa por essas modificações, por essas metamorfoses, que faz com que a pessoa
se sinta mais responsável pelas... pelo menos pelo próprio corpo, né? Em outras
culturas isso sempre existiu, e sempre foi induzido pela própria cultura. Quer dizer,
determinados jovens poderiam ter determinada atividade, passando por um rito
de passagem.
Letícia: hum- rum..
André: E isso continua acontecendo. Então, eu acho que é inevitável, né? que
eles não fazem mais parte da minha geração. Eu modifiquei as pessoas quando eu
tinha a mesma idade das pessoas que se modificavam. Hoje em dia, eu modifico
as ias. Só modifico e tento materializar a minha criatividade, com os materiais e
toda a experiência de bagagem que eu tive nessas viagens. O mais incrível disso é
que... é... sei , eu colaborei bastante pra profissionalizar essa atividade, né?
Divulgar de uma forma positiva e... eu fico muito satisfeito de ter... ter tido contato
com milhares de corpos, milhares de sensações. Né? Todo esse estresse de pré-
aplicação, quanto a tranqüilidade, a calma do pós-aplicação. Isso aí, como no
começo, eu tava falando, é uma parte xamanica, parece terapêutica, porque a gente
vendo emoções, né? Sempre falo que vende dor. Vender dor, é... não é tão fácil. A
gente vende uma sensação, né? E pra isso se tornar uma experiência positiva,
requer alguns anos de experiência. Porque no começo eu desmaiei muita gente.
Então hoje em dia... a gente sabe como você evolui.
Letícia: Passa segurança, né?
André: Como é a evolução dessa... Mesmo porque eu faço workshop, eu ensino as
pessoas... a ter ética, a ter respeito ao corpo... E basicamente é isso... Eu acho que
o piercing se popularizou tanto, ta na nossa sociedade, eu acho super legal, assim...
E isso foi mutio aceito, como eu tava falando, porque... na verdade, antes era uma
marca definitiva. Hoje em dia é muito mais uma marca temporária. Né? (Bibi, abaixa
um pouco o som, por favor.)
Então, eu acho que é isso, né? Faz parte dessa geração como uma moda. Então, é
isso aí. Eu tava na hora certa, no lugar certo quando e comecei a exercer esse
trabalho.
Letícia: E tu sempre tivesses interesse em culturas...
André: É, minha história é o seguinte, eu nasci em Porto Alegre, né... Meu pai é
militar, da aeronáutica. É... Moro em São Paulo... Nasci em Porto Alegre, mas moro
em São Paulo desde 1973 e... Na minha adolescência, com 12 anos, eu fui pro
Amazonas, numa viagem de navio, tive contato com alguns índios... Achei
interessante a forma como eles viviam... Liberdade e adornados, né? E a partir
112
daí, sei lá... me despertou. Na década de 1970, final da década de 1970, começo da
década de 1980, filhos mais velhos de amigos da minha mãe tinham tatuagem,
que fizeram na Europa.
Letícia:Sim.
André:Então, era... demais... Aqui não era uma coisa muito comum. Tão
incomum, o piercing, que quando eu cheguei no Brasil pra fazer essa atividade,
ninguém sabia nem o que era piercing. Não sabiam nem o que era a palavra, não
sabia! Foi muito difícil eu adquirir meus clientes. Conquistar o público e tal... Porque
não era uma prática existente, não tinham pessoas exercendo isso
profissionalmente. Tinham uns tatuadores que tentavam isso por experiência, mas
ninguém que vivesse disso, chegasse com os instrumentos próprios, né? Nem com
a técnica também.
Letícia: Sim...
André: Então... Ninguém tinha estudado, até então! Pelo que eu sei... Risos.
Letícia: Mas é verdade...!
André: Eu tive essa oportunidade e essa coragem de investir numa coisa que eu
achei que, mais cedo ou mais tarde iria funcionar. Mesmo porque eu fiz com amor,
daí funcionou. Sempre funciona!
Letícia: Funciona...
André: Mas é isso... Perante essa sociedade atual, moderna, é tudo cíclico, né? Tem
partes que tem uma procura, uma demanda maior, tem partes que neutraliza, como
criatividade. Tem hora que tem uma busca frenética, tem hora que tem uma
calmaria, assim...
Letícia: hum-rum..
André: Acho que é meio por aí...
Letícia: E me diz uma coisa, na tua prática com piercing, tu classificas, um alargador
como uma modificação extrema...
André: É verdade!
Letícia: Como é...
André: Na área do piercing, algumas técnicas são definitivas. E realmente é uma
modificação corporal. Como uma expansão, né? Das perfurações. Mais como a
gente perfurações no lóbulo da orelha expandidas, em tamanhos extremos, né?
Um cilindro de 20 milímetros é extrema porque é irreversível, porque não volta
mais.
Letícia: Certo...
113
André: Muitas vezes, muitos jovens tentam expandir com técnicas de corte com
bisturi e, normalmente quando essa expansão é feita com muita velocidade, o
arrependimento vem na mesma velocidade. Então... Eu aprendi com os índios, com
os povos tribais, que na vida a gente tem que ter calma. Paciência, e tem que se
respeitar. Respeitar o próprio tempo. Se você quer fazer determinada atividade, que
seja gradativa, progressiva. Pra você absorver essas sensações. Caso contrário, da
mesma forma que vem, vai muito rápido.
Letícia: Hum-rum...
André: Por isso, as técnicas que eu uso são as técnicas primitivas. Eu respeito o
corpo. Respeito a integridade do tecido. Sem romper, sem danificar, sem violar, pra
não ocorrer algum trauma com a forma de algum quelóide, ou alguma dificuldade na
cicatrização.
Letícia: Hum-rum... E tem gente que te procura, sei lá, com uma idéia.. louca... Daí
tu já fizeste e hoje em dia não faz mais... Como é?
André: É... quando eu entrei nessa de perfurações, eu procurei o máximo de
informações, o máximo que eu pude a respeito dessa profissão, né? E aí, por ver
essas opções, eu tive a liberdade de escolher o que eu queria e o que eu não queria
fazer. O que eu achava saudável e viável, o que eu achava que era
sensacionalista, né? Então como eu to fundado na minha prática de vida também,
nesse respeito com os seres e ao meu respeito também, que eu não quero me
agredir fazendo algo que incomodando, machucando, que ta sendo violento pra
determinadas pessoas. Então, eu sempre aprendi essas práticas, mas pouco exerci,
ta? Lógico, eu fiz branding, fiz técnicas de implantes... Eu mesmo tive... Fui o
primeiro brasileiro a fazer suspensão... Pioneiro em vários segmentos dessa
modificação corporal. Mas pouco exerci. Mas por experimentos mesmo. Mas pra tez
certeza...
Letícia: de que “não é isso que eu quero”.
André: Não é isso que eu quero, né?
É isso. Hoje em dia tudo é mercado também, né? A oportunidade de trabalho, a
oportunidade de ganhar dinheiro, a oportunidade de se destacar no meio de um
mundo competitivo. Eu acho isso natural. que eu tenho que competir com outras
formas. E eu deixo isso pras outras gerações.
Letícia: E tu viraste um ícone, né?
André: Fizeram! (risos)
Letícia: Risos. Você se fez? Será, né?
André: Talvez, né? Porque eu sempre gostei da parte profissional, ética, sem ser
sensacionalista, né? Do real, do verdadeiro, sempre consciente. Tipo: ‘ó, tomem
cuidado porque também não é tão cil.’ Você pode traumatizar as pessoas, você
pode prejudicar as pessoas. E meu trabalho não é isso. É deixar todo mundo que
me procura, melhor do que veio.
114
Letícia: É. E hoje tu tas bem focado pro design, pra criação de jóias...
André: É. O que é que a gente pode fazer pelo corpo, porque isso é estética, né?
Quais os materiais, o quê que a gente pode... Sair da referência da minha criação
pra outras partes do mundo. Pra mim é mais importante hoje.
Letícia: E hoje tu tens... Tens pessoas que trabalham contigo, como é que funciona?
André: Tem. Eu tive, como na vida, ápices de sucesso, trabalhando com equipes
de mais de dez pessoas... várias lojas, muito ocupado... Foi bem no ‘bum’, essa
história. Em 1999, 1998. Pra você ter uma noção, eu comecei em 1992 e continuei
viajando... Voltei pro Brasil em 1993 e 1994, aqui ninguém sabia o que era isso...
Voltei pra Europa e 1996 que eu abri a primeira loja. Então, é.... Hoje eu trabalho
com pessoas que me acompanham desde então... desde 1998, 1999... E é isso. Eu
trabalho com design, criação e desenvolvimento de peças, com materiais clássicos,
como o ouro, né? Materiais orgânicos, madeira. Minerais: pedras... E ultimamente eu
tenho desenvolvido bastante, que tem me dado mais é... satisfação é... a exportação
de jóias de vidro, enfim... e ouro. E eu to sempre pesquisando, vendo o que é
possível, como eu faço pra manter minhas atividades.
Letícia: Certo... E tu exportas e vendes também aqui no Brasil...
André: Eu vendo no Brasil, mas aqui eu não invisto muito. Porque... o sei. Porque
não me procuram muito.
Letícia: E como é que tu vês isso?
André: Eu vejo normal, como brasileiro. O que vem de fora, sempre acham que é
melhor. Então, isso é da nossa cultura, né? Enquanto isso, tem gente que acha que
a gente é melhor em outros lugares. Então, é bom isso. Mas é isso. Eu tento, to
tentando popularizar minhas peças. Dependendo do segmento, dependendo da
linha, dependendo do estilo. Qual grupo, qual a empresa, qual o segmento que é
consumidor. E isso é incrível porque hoje mesmo eu tive uma reunião no MAM,
Museu de Arte Moderna, que tem lojas, e a minha idéia é, nessa reunião, é distribuir
as minhas peças num lugar desses. algum tempo eu tenho distribuição nacional
através de sites como o Submarino, que é uma empresa grande, que trabalha com
grandes designers, enfim... e eu tento mexer aos poucos...
Letícia: E aí teu investimento hoje, maior é nisso, né?
André: É... É porque a mão de obra é isso, né? Eu treino a mão de obra. Eu dou
aula pras pessoas.
Letícia: E como é tua rotina dando workshops?
André: Minha rotina é acordar às seis e meia da manhã e fazer a Ioga.
Letícia: ÊÊÊ... pra começar o dia...
115
André: É... pra ficar... pra passar logo pelo sofrimento. Pra depois a vida ficar
melhor. Mas é... é... daí é... é isso aí. Venho, corro, procuro, faço reunião, crio, corro
atrás, pago conta...
Letícia: E, sim! Tu nunca trabalhaste com tatuagem?
André: Já! Eu nunca fui tatuador. Mas eu acho que esse meu meio, de piercing,
acho que veio meio que paralelo com a tatuagem. Porque eu sou adepto da
tatuagem desde 1986, primeira tatuagem de máquina que eu fiz. A primeira eu fiz no
colégio, com 16 anos. A primeira de máquina foi com Sérgio, aquele_________.
Naquela época eu também tinha conhecimento do Marco Leoni, os primeiros
tatuadores que tinham estúdio aqui em São Paulo, na Vila Madalena... Depois se
tornou um amigo meu... Ao qual me convidou para uma convenção na Inglaterra em
__________, em 1992, que eu morava n Inglaterra. Fui lá reencontrar. E lá eu vi que
o mundo do piercing tava cada vez maior. Tatuagem eu acho que veio muito bem,
assim, na minha profissão, porque os primeiros lugares que eu vim trabalhar no
Brasil, o foi em estúdio de cabeleireiro, estética... Lógico que tava muito ligado à
tatuagem, a dor. A(DOR)no.
Letícia: A(DOR)no!!
André: Aí... é isso... Acabei até montando um estúdio de tatuagem, mas eu vendi
pro meu funcionário. (Toca o celular dele).
André: Então é isso aí. Lógico, é paralelo, né? O trabalho...
Letícia: Eu gostei desse seu A(DOR)no!
André: A(DOR)no, né? É...
Letícia: Até porque tem essas facilidades, né?
André: É! Hoje, por exemplo, eu poderia usando aqui como tatuagem também,
né? Mas não... Não... O barulho me incomoda... Acho que tatuagem é bem
sujo...Muito contaminante, né?... E eu sou especializado em piercing. passou o
tempo de querer fazer tudo. Quando eu foco numa coisa, é numa coisa. Apesar de
ser geminiano... Eu toco, fotografo, crio, perfuro, dou aula, lálálá... Mas eu sou um
ser humano simples. Não pra fazer muita coisa, senão você complica. É isso,
tatuagem, eu tive estúdio pra facilitar a vida dos meus clientes de piercing que
sempre procuravam tatuagem.
Letícia: É uma coisa que...
André: É muita ligada...
Letícia: Não tem como separar, né?
André: É. É... a minha escola de piercing é bem separada. Eu estudei piercing com
pessoas que faziam piercing. A história do piercing, na verdade, nos EUA
começou como piercing mesmo. A ________ era uma empresa em São
116
Francisco, de uns gays excêntricos, que fizeram piercing. Eu estudei na
Inglaterra, que a história do piercing era ligada com tatuagem e movimento punk.
Foi__________ ver a técnica de agulha com cateter. Na verdade eram agulhas
veterinárias. Então é isso, são duas escolas diferentes. Tanto que as jóias foram
feitas diferentes. Então, é isso. Tatuagem e piercing têm uma ligação. Mas nem
sempre. Os motivos que levam as pessoas a fazerem piercing, nem sempre são os
mesmos que levam uma pessoa a fazer tatuagem. Principalmente nessa geração.
Tem geração que usa piercing e não gosta de tatuagem. Mesmo porque sabe
que piercing se você enjoar, você tira.
Letícia: E como é que tu vês essa coisa de não ser permanente...
André: Então, isso aí eu acho legal porque mostra bem a... inconstância do mundo.
Né? Ta tudo sempre... Não ta tudo parado. As coisas mudam. Ainda bem! Né? Ou
regridem, ou evoluem. Então é isso... Muitas vezes a pessoa faz o piercing em
determinada fase da vida e... passou aquela fase da vida, e tirou. Se ele não tirou,
né?... E não abandonou a perfuração, ele pode trocar a jóia. E ser um objeto... Ou
usou e cicatrizou, tirou por muito tempo... Tenho clientes que voltaram depois de
meses, assim... anos... ‘Ah, eu usei, tal... Quero refazer...’.
Letícia: hum-rum...
André: Legal... Teve uma época da minha vida que eu fiquei com uma grande
questão. ‘Será que esse piercing vai durar até quando?’ Meus familiares já falavam...
Pessoas mais velhas já falavam: ‘Isso é uma moda, daqui a pouco passa.’. é
verdade, eles estavam certos. Hoje em dia é moda, é comum. Antes era uma coisa
que despertava, realmente, interesse... diferenciava uma pessoa da outra. Hoje em
dia ta estampado na nossa cara aí! Todo mundo usa, todo mundo tem, em todas as
classes sociais. Não são mais os modernos, né? Então, é.... Esse negócio do
temporal vai bem pra essa geração, né? A gente faz as coisas... e podem ser
refeitas. E podem ser recicladas. Como as jóias também. Uma jóia de aço, de titânio,
de ouro, ela é permanente. Eu falo sempre pros clientes: ‘Guarda ela que um dia
você vai poder usar’. Entendeu?
Letícia: É... eu tenho um piercing no umbigo que eu fiz há 10 anos e é a mesma jóia.
André: Então, essa parte da tecnologia do material também.
Letícia: E hoje, com certeza a coisa ta muito mais...
André: Então! Tem todo esse mercado capitalista que começou nos EUA e na
Inglaterra, como eu tava falando, jóias que antigamente eram super caras, hoje em
dia... a oferta é enorme, o preço caiu muito, porque é lógico que na China também
são feitas essas jóias e lógico, que por um custo muito menor! Com equipamentos
de alta tecnologia, de material de boa qualidade, não adianta falar que é coisa mal
feita. Eles conseguem chegar lá. E aí, diminui o preço. Então é isso, você tem dois
segmentos: ou você populariza, e vende em quantidade, pra todo mundo. Ou você
customizar, que é o que faço.
Letícia: Que é o que tu fazes.
117
André: É. A gente tenta pegar e trazer uma jóia exclusiva pra determinada pessoa.
Muitas das perfurações que eu faço são perfurações projetadas pra vestir
determinada ia no futuro. Então é isso, um trabalho interessante também. Não é
simplesmente modificar o corpo. A modificação corporal, eu acho que é inevitável.
Porque se a gente for ver, sempre existiu. Mas o mercado cirúrgico hoje, é enorme.
Cada dia mais tem próteses pros seios, né? Pras nádegas. Próteses faciais. A
tecnologia da beleza investe muito. As pessoas compram muito esses produtos.
Então, isso pra mim é modificação corporal. Eu sempre falo que quando eu viajo, eu
vejo uns malucos, loucos fora, de língua bifurcada, e chifre, implantes, essas
coisas... E aí, fala: Ah,meu! Isso pode ser diferente, mas aqui no Brasil, desde
pequeno, a gente via travestis, né? Então, a gente sempre teve esse contato com
essa modificação que é extrema! Nada mais como mudar sua aparência, de mulher
pra homem, de homem pra mulher, enfim... Hoje em dia trocar de sexo. Você como
psicóloga, deve saber como é que é o comportamento humano.
Letícia: E aqui no Brasil a gente não vê muito pessoas com língua bifurcada...
André: Aqui no Brasil, nem no mundo!
Letícia: É, não é uma coisa...
André: Isso é uma minoria!
Letícia: É uma minoria, minoria mesmo!
André: É uma minoria, minoria mesmo! Tanto que, primeiro foi ilegal, ta
exercendo uma profissão, na verdade, de médicos. Você não pode cortar, suturar,
dar pontos, cauterizar, que nos procedimentos de implantes é feito assim... É uma
coisa underground. Segundo que quem desenvolveu essas técnicas foram os
americanos. E como bons americanos capitalistas, tudo é produto, tudo é dinheiro...
Então, nada mais do que uma forma de marketing, de colocar aquilo dos filmes de
Hollywood na vida das pessoas. A ficção científica acaba virando, pra alguns, uma
realidade. Então é isso.
Letícia: E como é que tu vês esse poder sobre o corpo... O corpo enquanto matéria
mesmo... Essas possibilidades de...
André: Isso tudo é uma competição. Competição e vaidade, né? Você pode falar
disso como atletas, esportistas, body bi_____--, faquires, isso daí também é
exposição externa do pensamento... Uma reflexão interna das pessoas. A gente tem
esse poder de se projetar e tentar alcançar esse sonho imaginário. Eu acho que é
isso. A pessoa se projeta e: ‘Ah, vou deixar meu cabelo crescer, eu vou ficar magro,
eu vou ficar muito forte, eu vou me tatuar inteiro’. É uma forma de atrair, muitas
vezes, como é feito milhares de anos, essas modificações corporais tendem a
atrair os parceiros. Ou amedrontar os rivais. Né?
Letícia: Hum-rum..
André: Então, as pessoas querem competir, muitas vezes também. E tentar se
satisfazer, se sentir bem e completar alguma carência. Então, num mundo em que a
118
gente compra as coisas, é uma forma de você gastar seu dinheiro. É gico que em
outras culturas, isso daí não tem a menor importância. Pelo contrário, isso daí é uma
aversão. É fora. Porque não ta no contexto de determinadas culturas. Isso é muito
mais uma cultura atual, capitalista, moderna, de consumo, de competição que nós
vivemos.
Letícia: Enfim... E a gente termina tendo que se adaptar a essas demandas, né?
André: E não termina nunca, porque isso é uma questão de ciclos. Eu acho que a
gente tem que respeitar. Isso é o mais importante que a gente aprende. Que nós
somos todos diferentes e que a gente tem que respeitar o próximo independente
dele ter a língua cortada ou... daqui a pouco um implante do terceiro olho na testa,
enfim... Ou um deficiente físico, ou uma pessoa extremamente bela, entendeu?
Então é isso. As diferenças que nós vivemos, que temperam a vida.
Letícia: E outra coisa, a questão da biossegurança que, não sei se eu to enganada,
mas é um movimento que tem crescido muito... um investimento muito... Como
era antes, como é hoje...
A: É, é inevitável que a biossegurança seja prioridade nesse mercado. Como nós
vendemos, né, dor, nós precisamos vender segurança. Né? A gente precisa vender
um trabalho que não prejudique a pessoa futuramente, né? Nem no próprio serviço.
Se você contaminar uma pessoa com uma ia infectada, com uma agulha, você
ta atrapalhando o seu próprio serviço! É inconcebível! Como é que você vai fazer
algo numa pessoa que ao invés de você melhorando, você pondo em risco?
Então, isso é óbvio. Para profissionais, isso é fundamental. Essa evolução. Porque
é profissional! Você não pode comparar tribos que fazem essas modificações
centenas de anos, que passa de pai pra filho, sabe exatamente qual a madeira
adequada, qual é a planta certa, é muito óbvio. E lá eles não cobram por isso. Tem o
pajé, tem o xamã, que sabe como cuidar disso. É muito vulnerável, a outras
doenças, né? no nosso caso, a gente ta cobrando por um serviço a gente tem
que dar ao cliente total segurança! É óbvio! Isso faz parte do capitalismo, isso faz
parte do processo profissional.
Letícia: Hum-rum..
André: Então é isso. Cada dia mais, como eu tava falando, as empresas cirúrgicas
tendem a pesquisar pra colocar no mercado, materiais modernos e consumíveis.
Inclusive pela beleza. Hoje me dia a gente luvas de nitril de várias cores, com
cheirinho, pra facilitar e visualizar melhor a profissão. E dar mais segurança também,
né? Então, faz parte da evolução do mercado.
IMAGENS
Letícia Eu vou te mostrar as imagens, e pedir que tu escolha as três, enfim... E me
fale sobre elas. Vou pôr aqui no chã, que daí fica mais fácil pra tu...
André: Ok! Ta bom! Falar...
Letícia: Escolha 3 e fale sobre elas!
119
André: Ah! Escolher 3!
Eu vou escolher primeiro o bebê! Que eu vou ser pai agora em
janeiro!(entusiasmado)
Letícia: Ah! Pronto!
André: Tudo começa por aqui, não é verdade? Olha quanto inocência a gente
consegue captar nessa imagem... não é?
Letícia: Hum-rum...
André: e quanto esse ser vai ter que evoluir e passar por determinadas experiências
pra se fortalecer? Eu acho que as experiências de vida que ele vai adquirir, isso vai
ser experimentado através do corpo, não é?
Letícia: Hum-rum..
André: se ele for uma pessoa bem sucedida, na forma de se vestir, na forma de se
portar, né?
Letícia: Vai ser o teu primeiro filho?
André: É!
Letícia: Legal!
André: Legal, né?
A outra eu acho que eu vou pegar essa tribal indígena aqui... Indiana, na verdade.
Então, isso é uma senhora, que é... o final. Da vida, na verdade. Com esse olhar, e
com esses adornos, dá pra ver como somos diferentes, não é? Por mais que a gente
tente se parecer e colocar isso no nosso corpo, vai ser muito difícil ter as
experiências que essa pessoa teve. Porque essa pessoa, com certeza vive uma
vida muito tranqüila, muito pacata, muito familiar, muito tradicional. Muito equilibrada.
Letícia: bem diferente...
André: Bem diferente do que a gente nessa daqui! Que é essa busca de... Bem
diferente dessa geração... que ta buscando ansiosa por novas experiências, por
novas... formas de capitalizar e deixar sua marca. É uma nova geração, não é?
Letícia: sim..
André: Acho que é isso. Começo, meio e fim.
Letícia: É um contraste muito grande, né?
André: É!
Letícia: Apesar de...
120
André: Uma história de vida bem diferente da outra. Eu sei porque...
Letícia: Tu já viveste com as duas coisas...
André: eu vivi com as duas coisas... dá pra colocar muito bem.
Letícia: E tu queres falar alguma coisa das que tu não escolheste?
André: Ah, as outras pra mim parecem muito comuns.
Letícia: Sim..
André: Muito.. é... comuns...
(áudio ruim)
Letícia: agora eu vou te mostrar as frases e você pode escolher uma, ou não... Ou
como você disse, falar a sua... Enfim, fique à vontade.
André: Hum-rum..
A: É respeito de?
Letícia: Das modificações e do corpo... Acho que é mais disso, das possibilidades..
André: Dos meus títulos é : Respect your self. Tenha o próprio respeito. Então é
isso. Isso remete bem às diferenças. Tem que se respeitar. Por mais radical que
seja, a gente se respeitando... tudo... você vai ter uma aceitação mais light... (áudio
ruim)
É... nenhuma dessas frase, realmente, me desperta nada. Porque... o gosto
amargo do preconceito...” Diferentes todos somos! Desde que nascemos, né?
“ Não possuo mais pele, tenho...” É.. telas geralmente duram mais do que peles...
“O corpo é obsoleto” Pra quem não valoriza, né?
“As modificações perturbam.. É verdade. A cultura, ela existe nos seres
humanos. E as modificações corporais também é possível em outras formas de vida.
Como o mimetismo, os polvos, lulas, lagartos, né? A mutação, a metamorfose
também acontece com as borboletas... Então, eu não sei... A natureza também tem
modificações corporais. Né?
E “olha, é pra sempre mesmo”, eu não acho que nada é pra sempre mesmo. Tudo é
mutável. Tudo faz parte da vida, do karma, do cosmos... Não é uma coisa definitiva.
Então eu fico com a minha própria palavra, do respeito. É isso aí.
121
ANEXO D – Transcrição da entrevista com Rafa Mendes
Letícia: Há quanto tempo tu se tatuas?
Rafa: Eu me tatuo desde os 11, 12 anos...
Letícia: Me fale disso aí...
Rafa: (Risos). Na verdade eu me interessei pela arte corporal, eu devia ter uns 8
anos, após assistir... 8 ou 9 anos, mais ou menos... Após assistir um filme que
chama ‘mórbido silêncio’. Que o cara era praticante da arte, foi primeira vez que eu
vi suspensão...
Letícia: sim...
Rafa: E outros tipos de modificações, né? De body art. Na hora em que eu vi o
filme, eu amei! E falei: ah, eu vou fazer tudo o que esse cara faz!’. nessa idade,
eu comecei a me perfurar, bifurquei a língua, coloquei alargador, body piercing...
já fui juntando dinheiro e com 11, 12 comecei a me tatuar e com 15 a me
modificar.
Letícia: Certo... E aí, o que é que tu chamas de modificação, pra tu... O que é arte
corporal, se existe alguma diferença, como é que faz essa distinção?
Rafa: Ah, modificação é tudo o que altera mesmo o corpo, né?
Letícia: Hum-rum...
Rafa: Só que eu considero mesmo, modificação... umas coisas mais extremas,
igual... implante na testa, que eu tinha, agora não tenho mais...
Letícia: Hum-rum...
Rafa: Porque agora eu vou trocar, né? Botar umas peças maiores... Bifurcar a
língua... Essas coisas mais extremas que eu considero modificação... mas a partir de
um brinquinho que você tem, você modificou o seu corpo...
Letícia: Sim, sim
Rafa: Uma maquiagem, um batom, você é modificou. Agora, body art eu
considero suspensão, as coisas mais ritualísticas.
Letícia: Certo...
Rafa: Entre aspas, né? Tatuagem também, você ta fazendo uma arte na pele... acho
que engloba tudo... aí depende do ponto de vista de cada um...
Letícia: Me diz uma coisa, tu já chegaste a... tu sabes tatuar? Já chegaste a perfurar
alguém?
122
Rafa: Sim, sim! Eu tinha estúdio. Eu tinha na minha cidade, eu tinha uma clínica,
fazia tatuagem, piercing e modificações. Eu faço piercing e modificações, não
faço tatuagem.
Letícia: Ah, ta.
Rafa: Eu tinha isso como meio de vida também.
Letícia: Também. Hum-rum... E aí tu paraste pra poder vir pra São Paulo...
Rafa: Isso.
Letícia: Pra estudar...
Rafa: Pra estudar computação gráfica. É minha paixão também, desde muito cedo.
Eu quero ser animador a qualquer custo.
Letícia: Ah, certo, certo...
Rafa: Mas eu amo a modificação também.
Letícia: Ah ta... Então, quer dizer, tu trabalhaste com isso, fazendo perfuração,
modificação... durante quanto tempo?
Rafa: Ah, desde quando eu comecei a me perfurar, eu estudei... Daí você começa
a perfurar os amiguinhos, né? É aquele negócio, é anti-higienico, lógico! No começo,
né? vai sem saber muita coisa, que depois, você vai ser reeducando, claro...
Faz cursos... Eu estudei enfermagem, também. Tem tudo isso, né? Mas no começo,
faz errado. Isso eu assumo, que o começo de todo mundo... Todo mundo entre
aspas, né? Mas a grande maioria... é errado. Eu devo ter começado com uns 13
anos e trabalhei até o meio desse ano.
Letícia: Paraste agora...
Rafa: Uns 7 anos eu trabalhei na área.
L: Certo, certo... E como era lá em Franca? O público... Tinha muita gente disposta?
Rafa: Adepta à modificação, não. Ninguém. Não que eu conheça... Ninguém.
Tatuagem, as clássicas: borboletinha, estrelinha, essas coisinhas pequenas...
Nada demais.
Letícia: Mas, assim... Tu vivias disso?
Rafa: Sim. Eu tinha um público bom, lá. Uma clientela legal.
Letícia: Sim. Piercing... Estética. Umbigo...
123
Rafa: Sim. Umbigo, nariz, sobrancelha... Modificação e fazia mais em outras
cidades. O pessoal ia pra minha... O pessoal de outras cidades, ? Iam pra
Franca pra eu poder fazer neles. Ou quando eu viajava, eu fazia em estúdios de
amigos.
Letícia: Ah, certo. Quer dizer que tu mantinhas um intercâmbio...
Rafa: Eu tava sempre aqui em São Paulo fazendo... Até na Bahia, Itacaré e Ilhéus,
trabalhando...
Letícia: E aí... Tu trabalhas também com suspensão?
Rafa: Sim, faço! Faço, sim.
Letícia: E como é? Assim.. É isso, tem público?
Rafa: Tem! Tem muita gente! Muita gente. Não falta público nunca!
Letícia: Como é? Me fala, são pessoas que têm outras modificações ou...
Rafa: Não. São pessoas que não têm nada. Agora tem gente nada a ver fazendo.
Letícia: É?
Rafa: É. Tem pessoas que nunca se interessaram por tatuagem e piercing e achou
legal a idéia da suspensão... Assistiu e gostou e quer fazer por diferentes motivos,
né? Ou por realização pessoal, ou superação da dor, né? Não sei... “N” motivos. Ou
por um lado espiritual, também, que é o que o pessoal mais procura... Essas coisas.
Letícia: E pra tu? Essas práticas...
Rafa: Suspensão pra mim é um jeito que eu tenho pra relaxar. Pra mim é um lance
de mediunidade, que eu trabalho a respiração, concentração. É uma coisa que eu
faço pra relaxar. Me divirto, lógico. Mas eu descarrego todas as minhas energias
ruins na suspensão. Porque eu não tenho nenhum tipo de vício, sou totalmente
natural, então eu faço isso pra me relaxar.
Letícia: Como era a tua presença em Franca? Aqui em São Paulo a gente sabe
que as pessoas são... Ninguém vai te olhar...
Rafa: É igual. No interior e aqui.
Letícia: Tu não sentias diferença?
Rafa: Não. Aqui eles ficam olhando também, também... a cidade é pequena,
então todo mundo me conhecia. eu fiquei bem conhecido. Então, não tinha
problema.
Letícia: Mas tu sentias algum tipo de preconceito?
124
Rafa: me deparei com várias coisas chatas... Eu devia ter uns 16 anos, uma
turminha lá... Se juntou em mim e me bateram.... Rasgaram todos os piercings que
eu tinha, simplesmente porque não gostaram do meu estilo.
Letícia: Lá em Franca.
Rafa: Lá em Franca.
Letícia: E aconteceu alguma coisa com eles?
Rafa: Não, eu deixei quieto... Eu deixei eles de lado. Eu achei uma atitude muito...
ignorante da parte deles... Eram seis rapazezinhos da elite da cidade, essas
coisas...
Letícia: E quais são teus planos, pro teu corpo, pro futuro?
Rafa: (Risos). Eu vou ser 100 por cento tatuado, com certeza. Vou me tatuar inteiro.
E tem muita modificação ainda pra vir.
Letícia: Tu tens tatuagens em que partes do corpo? No corpo todo quase, já?
Rafa: É. São bem espalhadas.
Letícia: Já ta bem...
Rafa: Não tenho muitas, mas já tá bem espalhadas. Tatuagens grandes...
Letícia: E implante, tu já tivesse...
Rafa: Na testa, mas eu tirei... Tenho no braço ainda, tenho implantes genitais...
Letícia: Piercing genital também tu tens?
Rafa: Tenho.
Letícia: Tu já furaste... Tem no mamilo também?
Rafa: Tenho, alargadores.
Letícia: Ah, é? Alargadores nos mamilos?
Rafa: (Risos). É. Nos genitais também. São todos alargados.
Letícia: E tu fizeste com quem?
Rafa: Eu.
Letícia: Tu mesmo fizeste?
Rafa: As modificações sou eu que faço. algumas mais extremas que não. Os big
______ não fui eu e os big _____ também não. Mas o resto tudo foi.
125
Letícia: Mas tu fizeste lá em Franca ou aqui em São Paulo?
Rafa: Eu fiz no Guarujá, com um rapaz que trabalhando aqui em São Paulo
agora... E os do nariz eu fiz em Campinas com um amigo meu.
Letícia: Certo... E a tua família? Como é a reação? Teus pais... Tua relação com as
pessoas mais próximas?
Rafa: Ah, meus pais são bem novos. Muito novos mesmo. Tem a cabeça mais
aberta a conversação, assim. Tem como você negociar um pouco mais. que é
aquilo, né? Eles não querem ver o filho se modificando, o filho inteiro tatuado, ‘o quê
que a sociedade pode pensar’... Claro, eles tão querendo o bem pra mim, né?
(risos).
(Um funcionário da limpeza solicita nossa saída do lugar onde estávamos).
Letícia: Sim, aí.. Teus pais apesar de serem abertos, têm algumas restrições...
Rafa: É, eles não aprovam muito, né? faz uma tatuagem... Minha e vem e
Ah, mais uma... Pra quê? Não precisava...” que depois começa “Nossa, que
linda! Muito bem feita, adorei!’. Tem isso... Porque eles adoram também, têm
bastante tatuagens... Minha mãe, meu pai...
Letícia: Ah, então já é um... Já tem uma história familiar, né?
Rafa: Já! Mas eles começaram depois de mim.
Letícia: Ah, foi?
Rafa: Foi. Minha mãe, eu já coloquei vários piercings nela, já!
Letícia: Foi? Tu tens irmãos?
Rafa: Tenho. Tenho uma irmã.
Letícia: Uma irmã?
Rafa: Uma irmã mais nova.
Letícia: Que tem piercing também?
Rafa: Nada! Ela odeia!
Letícia: E é?
Rafa: Não gosta nem um pouco! Nunca me criticou, mas nela...
L: Mas não é a praia dela, né?
126
Rafa: Ela pediu uma vez pra eu perfurar o umbigo dela. Eu fiz, bonitinho... Não
gostou de ficar com a jóia e tirou! Um ano depois! Ela falou que não é a praia...
Letícia: Não é a praia dela. É...
Tu ainda queres... Tu pretendes aqui em São Paulo, enfim, continuar trabalhando...
Rafa: Não. Na área, não.
Letícia: Não.
Rafa: Agora...
Letícia: Tua vida deu... uma mudada...
Rafa: Agora eu vou investir em computação gráfica. Eu quero um emprego na área e
ficar nisso.
Letícia: Então tu deste um tempo...
Rafa: Dei.
Letícia: E esse tempo... é até quando?
Rafa: Ah, se surgir alguma coisa, lógico que eu vou fazer, né? Alguma modificação
com o pessoal que procura, né? Lógico. Algum amigo, que quer mesmo ter um
trabalho meu, lógico que eu vou fazer! Mas eu o quero ficar enfurnado em um
estúdio mais não. Não quero porque hoje ta complicado essa profissão. Os
profissionais novos que tão surgindo, ta difícil de lidar com eles...
Letícia: É? Fala mais... disso aí...
Rafa: Ah, porque o problema...
Letícia: O que é que tu sentes?
Rafa: Como todo tipo de profissão, né? Um pisando na cabeça do outro, pra subir
um degrau a mais. Em vez de todo mundo se unir, subir todo mundo junto, não.
Acha que é melhor do que o outro, então quer acabar... Então, eu o quero perder
a amizade com ninguém que eu tenho, e eu sei que meus amigos começam a me
criticar, criticam os outros amigos deles também... então eu preferi parar com isso e
manter todas as amizades que eu tenho.
Letícia: E isso foi um dos motivos pra essa parada? Ou não tem nada a ver?
Rafa: Não. Não tem nada a ver. Não, não.
Agora que surgiu essa oportunidade, pra eu vir morar aqui e fazer esse curso. Eu
queria ele bem mais tempo, antes. Mas não tinha nem condições financeiras pra
vir pra cá. Então, agora que deu uma estabilizada, eu vim. Pra fazer isso. Mas esse
motivo, muitos profissionais grandes estão parando. E pararam também grandes
nomes da body art. Ou pararam, ou tão dando um tempo...
127
Letícia: eu ouvi falar, assim... de que a prática de que a prática de modificações
extremas, ficou uma coisa meio marginal... Marginal, entenda, marginal de estar à
margem...
Rafa: Hum-rum.
Letícia: Que as pessoas que fazem... Não têm conhecimento.. Tipo, não é feito você
que tem curso de enfermagem... Não têm conhecimento de anatomia do corpo... E
que alguns profissionais ficam meio receosos quanto à prática...
Rafa: hum-rum...
Letícia: E o que é que tu achas disso?
Rafa: É. Esse negócio mais... Assim, essas práticas mais extremas têm que ter um
cuidado redobrado. Triplicado de um piercing normal. Você ta fazendo uma
microcirurgia em alguém. E isso é algo até proibido. Não somos médicos pra fazer.
Não temos autorização e a gente a cara à tapa e faz. Por isso é que tem um
monte de gente que fica receoso, porque não estuda também, né? Não vai atrás.
Agora, eu sempre tenho na minha cabeceira livros de anatomia, fisiologia,
cinesiologia, histologia... To sempre me reciclando, meus conhecimentos...
Estudando bastante... Eu comecei até, no começo do ano... ano passado... uma
faculdade de Educação Física, junto com a Enfermagem, pra pegar as aulas de
anatomia, estudar as aulas teóricas... Quando acabou eu parei a faculdade... Que
nos outros anos não teriam... Aí, eu tô sempre estudando...
Letícia: teu interesse era, exatamente, se aprofundar...
Rafa: Era. Eu tinha um foco.
Letícia: Sim, sim.
E o lance da biossegurança, que ta totalmente relacionado a isso... Me fala um
pouquinho... da tua prática.
Rafa: Biossegurança, você tem um curso... na minha cidade eu fiz curso na
Santa Casa, que eles deram pra mim o curso de Biossegurança... Tem o curso que
os bombeiros também dão... Aí eu não sei como é em cada cidade.. Mas eu já tenho
dois cursos e tudo mais... Eu fiz um... Quando faz Enfermagem, também tem a
matéria bisossegurança... Isso é totalmente importante, né? Porque vírus taí se
alastrando muito fácil... Hepatite, você pega muito fácil... Isso em estúdio... Se o
pessoal o tomar os devidos cuidados. Então, você não tem que ter uma estúdio
mesmo. Você tem que ter uma clínica pra poder trabalhar com essas coisas mais
extremas. Não um estúdio simples.
Letícia: certo, certo...
Rafa: Aí, você tem que usar toda uma roupa estéril, luva, máscara, touca... Tudo. O
máximo cuidado que você puder tomar, ainda não é o bastante. Voainda corre
risco tomando o ximo de cuidados. Tanto que a gente várias pessoas com
infecção hospitalar, né? Dentro de salas cirúrgicas.
128
Letícia: é verdade...
Rafa: Então, isso é bem complicado.
Letícia: Eu aqui pensando no fato de tu teres dado um tempo... Bem, tu tens
planos pro teu corpo, né? No corpo dos outros... a coisa ta mais...
Rafa: É. Eu tô parando.
Letícia: hum-rum...
Rafa: Eu parando de verdade. Não gosto desse negócio de concorrência, de um
falando mal do outro por causa da concorrência, sabe? Eu acho que amizade
acima de tudo. Amizade devia prevalecer em tudo. Se você é amigo, você aprende
bem mais, você tem bem mais lucro com isso. Então, eu tô parando. O pessoal acha
melhor, então beleza. Deixa eles trabalharem e eu continuo amigo de todo mundo. E
sei do meu potencial, do meu trabalho, confio no que faço, tenho bastante
experiência, tenho estudo, que é o mais importante... Então, sei lá...
Letícia: Quer dizer que essa conversa entre os profissionais... é que a coisa tá meio..
Rafa: Tá. Surgiu agora o ato médico, que tá complicando a vida de todo mundo...
Letícia: Inclusive pros psicólogos!
Rafa: Ah, é? (risos). Eu não sabia!
Letícia: É. Eu tenho que lhe dizer que não é só...
Rafa: Pois é! Assim, eu tenho medo também... De que se eu vivesse disso, de eu
perder minha profissão... E daqui pra frente eu não mais o que fazer. Então, sempre
paralelo à modificação, eu tinha a computação gráfica, que é o que eu to investindo
agora. Eu sei que é um mercado muito grande, e que tá faltando profissionais.
Letícia: Deu um giro na tua vida...
Rafa: Sim. Total!
Letícia: E... deixa eu ver o que eu tenho que perguntar...
como é que tu vês o corpo... o que seria o corpo pra tu?
Rafa: Eu não sei resumir assim... (risos)
Letícia: É, eu sei que é uma pergunta difícil... (risos)
Rafa: É complicado explicar isso... Isso depende também da visão religiosa da
pessoa, né? Se é alguém muito religioso, sempre vem com a conversa: ‘seu corpo é
perfeito, Deus te fez perfeito, você não precisa de nada” e tudo mais... que eu
não sei... Eu não sou tão religioso assim, mas também não critico nada, tenho as
minhas crenças separadas, e tudo mais, né? Tudo é válido, eu acho. Então... eu não
129
sei... não sei o que falar! (risos). Não sei... Eu acho que a gente tem o livre arbítrio, e
a gente tem que fazer com o corpo o que quiser, né? Deixar ele do jeito que quiser.
Que o pessoal, que às vezes critica uma modificação extrema, usa muita
maquiagem! E isso é um tipo de modificação, é um tipo de body art que fazendo.
Se o corpo é tão perfeito, não deveria fazer nem tanta maquiagem! Então, eu
comparo sim, modificações com esse tipo de maquiagem, com vaidade mesmo...
tirar a sobrancelha, pintar o cabelo, tudo modificando o seu corpo! Então, a
gente só modifica um pouco mais a fundo. A gente coloca implante, mulheres
colocam silicone, não sei. Que é a mesma coisa, é a mesma operação! Não muda
em nada, só materiais diferentes.
Letícia: hum-rum..
Rafa: não sei... acho que é isso.
Letícia: E entra também, esse lance do... sei , o poder sobre o corpo... da
medicina...
Rafa: Sim! Lógico!
Letícia: ... da medicina... é aquilo que você falou antes: ‘ A gente não é médico pra tá
fazendo’, né?
Rafa: Todo mundo tem consciência disso. É uma coisa que devia ficar sempre do
lado underground. Esse negócio de modificação, agora, é moda. Não deveria ter
virado moda, não mesmo. Porque isso é uma coisa proibida, todos os profissionais
sabem disso, não temos permissão pra fazer. Lógico que fazemos com todos os
cuidados, com bastante conhecimento, muito estudo. Mas mesmo assim não é
legalizado. Então deveria na parte underground. E isso que atrapalhou todos
os profissionais, foi... Novas pessoas fazendo, muita gente querendo ter...
popularizou bastante e eu acho que isso foi estragando o lado dos profissionais.
Letícia: É. E populariza até os profissionais.
Rafa: É!
Letícia: Porque tem muita gente que acha que pode fazer e termina...
Rafa: Isso. E também muitos meios de comunicações errados que o pessoal tava
usando pra divulgar os seus trabalhos. Eu acho que não deve ser... eu acho que
esse tipo de trabalho extremo,mais underground, não deve ser divulgado em
qualquer tipo de meio de comunicação. Deve ficar sempre mais reservado.
Letícia: E aí tu falas em quê? Tipo, na internet?
Rafa: Orkut! Orkut!
Letícia: Fotolog?
130
Rafa: Isso, orkut, fotolog. Acho que isso não é pra divulgar esse tipo de trabalho. É
bom você divulgar o seu básico, você fazer o seu nome... Divulgar aquilo que você
ganhe dinheiro! Com modificação, não vai ficar rico com modificação. Se for
piercing básico, estético, você vai ficar! Você pode manter sua família tranqüilo, com
seu piercing básico, estético e tatuagens pequenas. Modificação, não. É um pessoal
bem direcionado que vai te procurar isso. Não rende tanto lucro, né?
Financeiramente falando, lógico. Então eu não acho que deve divulgar em tantos
lugares públicos. Deve, sei lá, seu portifólio de foto, suas fotos, procedimentos,
mostrar pro cliente que vir procurar. Nada mais. Ao menos, é o que eu faço. É o que
acontece comigo, assim. Todos os trabalhos extremos que eu tenho, não saem do
meu portifólio. Eu não tenho em nenhuma via digital pra ninguém ficar olhando.
Letícia: Sim... E tu falas até mesmo... A gente sabe que tem na internet, a gente
acha os processos...
Rafa: Isso.
Letícia: A coisa do corte...
Rafa: É! Isso! o pessoal vai e acha que... tem uma site, o Bmenzine, que é o
site onde todos os profissionais divulgam os trabalhos lá... os leigos, né, que tão
começando agora, acham que o Bmezine é uma escola. Você entra, você aprende,
você saiu fazendo. E isso acabou muito. E começam a surgir maus
profissionais, começam a fazer cagadas, aí começa a sair na mídia as coisas
erradas.. pessoal morrendo por infecção generalizada, etc, etc... e isso também vai
acabando com o lado profissioal da coisa.
Letícia: O Bmezine, eles dão curso? Ou é somente o lugar pra exposição das...
Rafa: Não! É como se fosse o Orkut! Você vai lá, você manda umas fotos...
Letícia: Aí eles publicam?
Rafa: Aí, eles publicam. faz tipo um blog dentro. Aí, você tem acesso com os
outros blogers. E eles chamam de ‘I am’, né? tem um ‘I am Bmezine’. Que é um
blog. tem o seu espacinho, lá. divulga seu trabalho, suas fotos, tem o seu
diário, pra você escrever alguma coisa...
Letícia: Sim...
Rafa: Aí, cê deixa comentários, tudo mais. Como se fosse um Orkut.
Letícia: Uma rede de relacionamentos, né?
Rafa: É. Igual ao my spaces, essas coisas.
Letícia: Sim, sim. Só que voltado pra modificação?
Rafa: Só pra modificação. Bory art, né? Em si.
131
Letícia: Pois eu não sabia disso. Como tu disseste, os leigos acham que é ‘o
lugar’! e na verdade...
Rafa: pois é! Os leigos usam como enciclopédia. ‘Ah, vou pegar no Bmezine, ver o
que é que tem de novo, e vou sair fazendo tudo. E é totalmente errado! Porque foto
você o aprende nada. Vo aprende lendo teoria, e conversando com
profissionais. Eu fui aprendendo a fazer esse tipo de coisa porque na minha cidade
eu tenho convênio médico, toda semana eu marcava com algum médico diferente,
sentava e falava: ‘Olha, eu não quero tomar muito o seu tempo, mas pelo menos,
cinco minutos de conversa’. E ficava especulando o médico. Desde ginecologista até
neurologista, eu fui conversar. E toda semana eu tava em algum conversando.
foi onde eu...
Letícia: Foi uma forma que tu encontraste pra...
Rafa: hum-rum! Lógico que muitas portas se fecham. Na sua cara. que você
também encontra ótimos médicos, com cabeça aberta, que tá lá pra conversar
mesmo... e te ajuda e me deram muita força.
Letícia: hum-rum...
Rafa: Lá eu tinha ajuda de muitos médicos.
Letícia: Certo...
Eu sinto que tá tendo atritos profissionais...
(Foi solicitado pelo participante que nós retirássemos um trecho da entrevista)
Letícia: Pronto. Eu vou te mostrar algumas imagens, e vou pedir que tu escolhas
três. E me fales delas, o por quê que tu escolheste ou não...
Rafa: Vou escolher essas três. Então, vou falar dessas duas primeiro (figuras 2 e 3).
Essas duas porque são tribais, eles fazem esse tipo de modificação por causa da
cultura deles. Não pelo lado estético, assim... que foi o que me levou, e tudo mais...
Lógico que tem vários outros motivos, né? Mas esse pessoal aqui, desde o ínicio,
eu acho, da tribo deles eles fazem isso... seguem a cultura até hoje, eles têm
objetivos com isso... eu não sei te falar quais o, o por quê deles, mas eu gosto do
jeito que eles fazem.
Letícia: Certo.
Rafa: Essa daqui porque é o Fakir, né? (risos)
Letícia: hum-rum... O famoso...
Rafa: (risos). É, o famoso Fakir! Putz, admiro demais esse cara! Porque ele foi... ele
foi... ficou muito tempo nessas tribos pra tentar entender o por quê que eles faziam
esse tipo de modificação. Ele é um adepto, por causa do... por causa das tribos
132
mesmo, do motivo que as tribos fazem esse tipo de modificação. Tanto... esse
negócio que ele tem no peito, é uma coisa que os índios fazem... Eles fazem, acho
que é com costela de algum animal... eles se suspendem com costela de algum
animal... o sei qual... acho que é tigre, ou leão.. não sei falar qual que é. E ele fez
isso em uma tribo... ele submeteu aos tratamentos que a tribo faz, com os pessoais
que moram lá, né? Então, eu admiro demais esse cara! (risos). E ele que divulgou a
modificação! Se não fosse ele, sei lá! Eu não ia ter conhecimento de nada! Então, eu
acho que tudo que a gente sabe hoje em dia, tem que agradecer a esse cara que
divulgou.
Letícia: Certo... E essas outras aqui... Tu foste mais pro...
Rafa: Início...
Letícia: Pro clássico. A coisa mais...
Tá. Quer falar alguma coisa dessas outras? Ou tá bom?
Rafa: Ah, não tem muito o que falar, né? Essa aqui (figura 5) é o lado pop da
tatuagem. Como que a tatuagem hoje. Que hoje em dia bem mais aceito, o
pessoal de todo tipo de classe fazendo, todo tipo... todo mundo fazendo
tatuagem, né?
Letícia: E tu achas o quê disso? Tu achas isso interessante ou não?
Rafa: Cada um tem um estilo diferente... de tatuagem. A gente, assim, que gosta de
modificação, gosta de ter umas tatuagens maiores, com outros significados... E tem
a modinha também dessas tatuagenzinhas pequenas, em lugares estratégicos...
Isso é bom pra aceitação, né? Acabando com o preconceito... Tipo, as classe mais
altas fazendo, então isso ajuda muito a acabar com o preconceito... e vai
surgindo na novela ‘olha lá, o pessoal tem tatuagem, então vou fazer’. Então a
sociedade já fica mais aceitável. Então, por um lado é bacana.
Letícia: Tá.
Rafa: Hum... não sei das outras...
Letícia: Eu vou colocar umas frases pra tu escolheres alguma, que faça algum
sentido pra tua prática... ou não...
Rafa: Eu não sei o que falar das frases...
Letícia: Tem alguma que... Alguma que você se identifique ou não... ‘nenhuma delas
eu me identifiquei’.
Rafa: não...
Não me identifiquei não...
Letícia: Tá. Queres fazer alguma crítica?
Tipo: ‘Olha, é pra sempre mesmo’ e pra você não é...
133
Rafa: É.... quase todo tipo de modificação tem como você voltar ao normal... menos
_______ que é você amputar alguma parte do corpo... isso é mais complicado.
Tirando isso, tudo você pode voltar. Uma língua que você bifurca, você pode
custurar ela normal. Um implante você pode tirar, uma tatuagem você pode
remover... então, eu creio que não é pra sempre mesmo.
Letícia: Hum-rum...
Rafa: Essa ‘Não possuo pele, tenho apenas tela’ eu levei muito ao da letra. Pele
eu não vou ter sempre... Eu não sei... Eu não tenho ainda o corpo todo tatuado pra
achar que ele é uma tela. Tenho muita parte ainda em branco... então eu não tenho
ainda uma tela no meu corpo...
Letícia: hum-rum...
Rafa: ‘O doce amargo do preconceito e o doce prazer de ser diferente’, eu acho que
eu não tenho um prazer de ser diferente. Eu não me considero diferente. Eu acho
normal, eu estudo, tenho família, sou honesto, trabalho. Então eu acho que o seu
visual, o seu rótulo... lógico, todo mundo tem um rótulo diferente, todos nós somos
rótulos diferentes. Então... sei lá. É muita igualdade de todo mundo, um fato igual,
que todo mundo tem, é o fato de ser diferente mesmo, né? É a única coisa em
comum que todo mundo vai ter. Não tem como ter duas pessoas iguais, nem
gêmeos. Então, é por isso que eu não gosto de falar ah, você é diferente’. Tá, não
sou igual a você mesmo!
Letícia: É.
Rafa: hum... Eu acho que as modificações... na frase: as modificações corporais
perturbam as fronteiras entre natureza e cultura’, isso depende também da
sociedade em que você tá inserindo as modificações. Igual as sociedades tribais, ele
não têm nenhum tipo de problema com isso, né? Então, não... sei , não vão ser
perturbados, né? Por causa de uma coisa disso.. que é a tradição deles. Então, acho
que se na sociedade o todo mundo inserido, né, é mais complicado a
aceitação... mas a gente vai quebrando os tabus. Essas coisas de falar ‘eu tô
sofrendo muito preconceito, e de estar pertubando’ ficando muito pro passado.
acabando. Eu acho que em algumas áreas, você sofre, lógico. Igual a eu vir
pra São Paulo, foi horrível eu ir em imobiliárias perguntar por imóveis. Muitas portas
fecharam pra mim. Todos eu tinha que tratar só por telefone, não podia aparecer em
nenhum lugar. Tem coisas assim... que você ainda...
Letícia: Vê...
Rafa: (risos) Isso é complicado! Mas tá acabando. Pra emprego, é fácil você arrumar
tendo esse visual. Não tendo tantas portas fechando. Hoje em dia, o mercado
quer profissionais competentes.
Letícia: independente...
Rafa: não tão bonitinhos.
134
Letícia: É. Do rótulo, né?
Rafa: Bonitinho vira modelo e vai ganhar dinheiro sendo bonito! O resto tem que ser
competente. Acho que é isso.
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