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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Isabela Augusta Andrade Souza
O preconceito nosso de cada dia:
um estudo sobre as práticas discursivas no cotidiano
DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL
SÃO PAULO
2008
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Isabela Augusta Andrade Souza
O preconceito nosso de cada dia:
um estudo sobre as práticas discursivas no cotidiano
DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL
Tese apresentada à Banca Examinadora
como exigência parcial para obtenção do
título de Doutor em Psicologia Social pela
Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, sob orientação da Prof.
a
Dr.
a
Mary
Jane Paris Spink.
SÃO PAULO
2008
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SOUZA, Isabela Augusta Andrade
O preconceito nosso de cada dia: um estudo sobre as práticas discursivas no
cotidiano. – São Paulo, 2008. (Tese de Doutorado). Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo.
Área de concentração: Psicologia Social
Orientadora: Prof.
a
Dr.
a
Mary Jane Paris Spink
Palavras-chave: 1. Psicologia Social; 2. preconceito; 3. práticas discursivas.
Banca Examinadora
___________________________________
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Saber Viver
Cora Coralina
Não sei... Se a vida é curta
Ou longa demais pra nós,
Mas sei que nada do que vivemos
Tem sentido, se não tocamos o coração das pessoas.
Muitas vezes basta ser:
Colo que acolhe,
Braço que envolve,
Palavra que conforta,
Silêncio que respeita,
Alegria que contagia,
Lágrima que corre,
Olhar que acaricia,
Desejo que sacia,
Amor que promove.
E isso não é coisa de outro mundo,
É o que dá sentido à vida.
É o que faz com que ela
Não seja nem curta,
Nem longa demais,
Mas que seja intensa,
Verdadeira, pura... Enquanto durar
AGRADECIMENTOS
Esta tese foi realizada graças às mãos, vozes, carinho e apoio de muitos:
Agradeço em primeiro lugar às incomparáveis mãos do Senhor DEUS, que,
como sempre, abundantemente me abençoou em cada momento da minha vida e, não
diferente, me guiou a cada passo e em cada detalhe de tudo que consegui realizar
nesta tese. A ELE toda honra, toda glória, todo louvor, ontem, hoje e eternamente;
Agradeço ao apoio de minha família, seja ao estender as mãos para segurar
ou acarinhar, seja ao unir as mãos para oração, pois sei que, mesmo distante, rogou
por mim. Obrigada mamãe Marlene, papai Elbe, Alessandra, Rodrigo, meus
cunhados Jaime e Juliane. Beijos especiais à Luiza e Mariana da titia coruja;
Agradeço às mãos, ao carinho, ao apoio e, principalmente, à paciência de
minha querida orientadora Mary Jane, que sempre generosamente doou-me mais do que
palavras, orientação, riscos e rabiscos, leituras ou ensino. Doou-me tamm força e
amizade, incentivo e, por que não dizer, 'colo' muitas vezes;
Agradeço às mãos, carinho e apoio de tantos outros familiares e amigos que
também intercederam por mim em oração, ou 'simplesmente' foram o abraço, a
palavra, o olhar certo na hora e no momento certos. No entanto, devo agradecer a
algumas pessoas queridas em especial: Tia Odete, sempre com a casa, o café, o bolo e
o tempo disponível; à Doriane, amiga e irmã, e ao 'afilhado postiço', Estêvão;
Agradeço a todos os amigos que, de uma forma ou de outra, estão comigo
nesta jornada. São tantos que não poderia escrever o nome de cada um. Mas quero
que saibam que todos me fazem muito bem só por existirem;
Agradeço às vozes, aos abraços, aos carinhos e à amizade de todos meus
queridos do grupo de canto da Universidade Federal do Paraná, o inesquecível
GMPB (Grupo de Música Popular Brasileira), que há tantos anos estão comigo.
Onde quer que eu vá, levarei vocês todos comigo no coração. Foi e é muito bom
cantar e estar com vocês;
Agradeço a todas as pessoas que fizeram parte do Núcleo de Práticas
Discursivas e Produção de Sentidos da PUC-SP. Aos amigos mais próximos desta
jornada que, sem dúvida, fizeram diferença neste período de desafios e lutas
conquistadas: Vanda, Lenise, Adriana, Serginho, Jaqueline, Raquel, Juliana, Eliete...
Agradeço à UNEMAT (Universidade do Estado do Mato Grosso) pelo
apoio total, especialmente ao Departamento de Pedagogia do campus de Sinop e a
todos os meus colegas de trabalho;
Agradeço a todos os professores do Programa da Pós-Graduação em
Psicologia Social da PUC-SP, especialmente à prof.
a
Maria Cristina Vicentin, que
além de professora foi banca em minha qualificação, e muito contribuiu para o
enriquecimento desta tese; agradeço também à Marlene pela disponibilidade em
todos os momentos, burocráticos ou não, do programa;
Agradeço ao CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico), excelente órgão federal de apoio ao fomento de pesquisa no Brasil;
Agradeço a todas as vozes que estão presentes aqui nesta tese, pessoas que
se disponibilizaram a falar de suas vidas, suas histórias, seus sentimentos, me
acolhendo e confiando em mim como pesquisadora.
RESUMO
SOUZA, Isabela Augusta Andrade. O preconceito nosso de cada dia: um estudo sobre as
práticas discursivas no cotidiano. 2008. 168p. Tese (Doutorado) - Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, 2008.
Abordar o preconceito como prática discursiva do cotidiano é uma proposta complexa e,
embora haja várias formas de conceituações teóricas, sua compreensão é necessariamente
abrangente, pois envolve elementos históricos, sociais e culturais, sendo que talvez a
melhor explicação seja aquela que contemple questões como separação, reprovação,
divisão, enfim, tudo o que leva um indivíduo a adotar valores e conceitos que o conduzam
a fazer alguma forma de julgamento e desvalorização do outro. O interesse de nossa
pesquisa foi tentar compreender o que as pessoas entendem por preconceito e como o
vivenciam em suas vidas, seja como ato preconceituoso em relação ao outro, seja em
forma de sentimento gerado por alguma situação de preconceito em sua história de vida.
O foco principal foi compreender preconceito como linguagem em ação, permeando as
práticas discursivas e a produção de sentidos no cotidiano dos entrevistados envolvidos
nesta pesquisa. Nosso olhar se voltou às práticas discursivas, com base no referencial
teórico-metodológico da Psicologia Discursiva, centrando-se em repertórios científicos e
do domínio comum. Tomamos como hipótese que o preconceito permeia o cotidiano das
pessoas através da linguagem, entendida como ação, como versões situadas da
realidade, e, desta forma, dialógicas. Sendo assim, o preconceito ocorreria independente
de características específicas, como classe social, cor, idade, gênero, ou qualquer outro
elemento que apareça adjetivado a esse tema. A coleta das informações foi realizada
através de entrevistas com 26 pessoas de uma diversidade de inserções sociais.
O tratamento do material empírico foi feito nos moldes da análise das práticas discursivas.
Os resultados desta pesquisa sugerem que o preconceito é compreendido pelas pessoas
como conceito de senso comum, em que os termos estigma, exclusão e discriminação
foram utilizados de forma intercambiável. Verificou-se, também, que todas as pessoas, de
alguma forma, passaram por situações de experiência de preconceito em suas vidas,
independente de características socioeconômicas, gênero, raça ou qualquer outra forma
específica. Foram momentos vivenciados, na sua maioria, em situações de interações
públicas ocasionais ou institucionalizadas. As situações de preconceito envolveram uma
diversidade de significados sociais, sendo, em sua maior parte, de depreciação e
desvalorização. Várias formas de perceber a questão do preconceito foram relatadas,
ocasionando, principalmente, sentimentos relacionados a algum tipo de sofrimento.
Diante dos resultados, faz-se necessário pensar em estratégias e formas de trabalho
baseadas em ações educacionais contínuas, com a urgência de fomentar maneiras de
veicular a importância da solidariedade e da tolerância individual e social, por meio de
estratégias que visem ressignificar o que é visto como anormal e fora dos padrões
esperados pela sociedade e, assim, buscar uma maior serenidade harmoniosa entre
os indivíduos.
Palavras-chave: 1. Psicologia Social; 2. preconceito; 3. práticas discursivas.
ABSTRACT
SOUZA, Isabela Augusta Andrade. O preconceito nosso de cada dia (our daily prejudice):
a study on daily discourse practices. 2008. 168p. Thesis (Doctorate) - Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo, 2008 (São Paulo Catholic University, 2008).
Since prejudice theoretical concepts may have different forms, considering it a good
approach to daily discourse practices is a complex proposal. Prejudice involves historical,
social and cultural elements requiring a comprehensive understanding, and maybe to explain
it we should take into consideration those issues such as separation, division and whatever
leads to values and concepts that makes a person be disregarding and judgmental about
other people. Our research aims at understanding what prejudice means to people and
how they deal with it, no matter if it is a prejudicial act concerning other people or a feeling
arising from some prejudicial circumstance. Mainly, the research focused on understanding
prejudice as an active language permeating discourse practices and feeling production in
the research interviewee daily life. We addressed our views to discourse practices based
on the Discourse Psychology theoretical-methodological references that focus both
scientific and common repertoires. Our hypothesis is that prejudice is present in people
daily life through language, herein understood as action and reality versions, and thus
dialogistical. Thus, prejudice would exist and does not depend on specific characteristics,
such as social class, skin color, age, gender or any other element. Information collection
was carried out through interviews with twenty-six people belonging to different social
segments. The empirical material treatment was performed pursuant to the discourse
practice analysis. The present research results suggest that people understand prejudice
as a common sense concept where stigma, exclusion and discrimination are interchangeable.
The results also showed that every person has experienced prejudice somehow in their
lives no matter what their socioeconomic gender, race, or any other specific characteristics
were like. Prejudice situations involved a variety of social meanings, most of them concerning
depreciation and disregard. The interviewees showed different forms of noticing prejudice
and almost always their feelings were connected to some kind of suffering. Thus, according to
the results it is necessary to plan strategies and works based on continuous educational
actions to foster the importance of solidarity and individual and social tolerance, through
strategies directed to review the meaning of what is considered abnormal or does not
meet society accepted standards in order to finally accomplish a greater serenity and
harmony among the human beings.
Key-words: 1. Social Psychology; 2. prejudice; 3. discourse practices.
LISTA DE TABELA E QUADROS
TABELA 1 TESES, DISSERTAÇÕES E ARTIGOS LOCALIZADOS NAS BASES DE
DADOS CONSULTADAS.................................................................................
21
QUADRO 1 EIXOS TEMÁTICOS DAS PRODUÇÕES ACADÊMICAS LOCALIZADAS
NOS BANCOS DE DADOS..............................................................................
22
QUADRO 2 NÚMEROS DE PARTICIPANTES POR CIDADE............................................
86
QUADRO 3 PANORAMA GERAL DAS PESSOAS ENTREVISTADAS..............................
87
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 DEFINIÇÕES DE PRECONCEITO A PARTIR DOS ENTREVISTADOS........... 93
FIGURA 2 CIRCULAÇÃO DOS AMBIENTES ONDE OCORRERAM AS SITUAÇÕES
DE PRECONCEITO............................................................................................
104
FIGURA 3 MOTIVOS DO PRECONCEITO..........................................................................
117
FIGURA 4 PRECONCEITO E SENTIMENTOS ...................................................................
119
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................. 11
CAPÍTULO I - O PRECONCEITO: APROXIMAÇÕES TEÓRICAS................. 20
1.1 O PRECONCEITO COMO TEMA DE PESQUISAS................................ 20
1.2 O PRECONCEITO EM DIFERENTES OLHARES TEÓRICOS............... 29
1.2.1 O Preconceito como Tema de Interesse para as Ciências Sociais....... 30
1.2.2 Preconceito na Perspectiva da Cognição Social................................... 33
1.2.3 Preconceito na Perspectiva do Interacionismo Simbólico.....................
43
1.2.4 Preconceito na Perspectiva dos Processos da Exclusão Social...........
51
CAPÍTULO II - O PRECONCEITO COMO LINGUAGEM SOCIAL ................. 63
2.1 DAS POSSIBILIDADES DE CONCEBER A LINGUAGEM COMO
AÇÃO: O GIRO LINGÜÍSTICO................................................................ 64
2.2 SOBRE O COTIDIANO: APROXIMAÇÕES TEÓRICAS ......................... 66
2.3 A ABORDAGEM DE ANÁLISE DE PRÁTICAS DISCURSIVAS
UTILIZADAS PELO NÚCLEO DE ESTUDOS E PESQUISAS SOBRE
PRÁTICAS DISCURSIVAS E PRODUÇÃO DE SENTIDOS (NPDPS).... 69
2.3.1 Sobre a Perspectiva Construcionista .................................................... 70
2.3.2 Sobre Práticas Discursivas.................................................................... 73
2.3.3 Sobre os Processos de Interanimação Dialógica.................................. 74
2.4 CONSEQÜÊNCIAS DA POSTURA CONSTRUCIONISTA PARA A
PESQUISA ADOTADA NO NÚCLEO DE PRÁTICAS DISCURSIVAS
E PRODUTOS DOS SENTIDOS............................................................. 79
CAPÍTULO III - OBJETIVOS E PROCEDIMENTOS .......................................
82
3.1 OBJETIVOS E HIPÓTESES....................................................................
82
3.1.1 Objetivo Principal .................................................................................. 82
3.1.2 Objetivos Específicos............................................................................
82
3.2 PROCEDIMENTOS PARA A COLETA DE INFORMAÇÕES ..................
83
3.3 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE........................................................... 88
CAPÍTULO IV - AS PRÁTICAS DISCURSIVAS SOBRE O PRECONCEITO..... 90
4.1 DEFINIÇÕES DE PRECONCEITO NA ÓTICA DOS
ENTREVISTADOS...................................................................................
91
4.1.1 Para mim preconceito é... Perspectiva da Cognição Social..................
96
4.1.2 Para mim preconceito é... Perspectiva da Escola Exclusiva e de
Poder..................................................................................................... 98
4.1.3 Para mim preconceito é... Perspectiva a partir do Estigma................... 100
4.2 O PRECONCEITO SITUADO/CONTEXTUALIZADO NAS PRÁTICAS
SOCIAIS E DISCURSIVAS ...................................................................... 103
4.2.1 Situações Públicas Ocasionais ............................................................. 105
4.2.2 Situações Públicas Institucionalizadas.................................................. 109
4.2.3 O Lado B: Eu fui preconceituoso quando.............................................. 113
4.3 O PRECONCEITO QUE ME FAZ SENTIR.............................................. 118
CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................
127
REFERÊNCIAS................................................................................................
135
APÊNDICE A - RESUMO DAS ENTREVISTAS.............................................. 141
APÊNDICE B - MAPA DIALÓGICO................................................................ 148
11
INTRODUÇÃO
Trajetórias que levam à escolha do tema
Escrever uma tese é contextualizar, em um primeiro momento, a vida de
quem a escreve, afinal, para se chegar até aqui também se fez história. Esta
pesquisa resulta da experiência de dois momentos: o primeiro é o profissional.
Como docente da Universidade Estadual do Estado do Mato Grosso (UNEMAT),
dentre diferentes atividades da área, uma delas foi a de desenvolver um projeto
em prevenção às DSTs e Aids, com cursos de formação para nossos alunos (a
maioria já professores de escolas estaduais, municipais e particulares, entre outras
profissões), além da população em geral.
O segundo momento foi a experiência de pesquisadora como mestranda,
cujo objeto de estudo foi compreender a vida afetiva, familiar, escolar, entre outros
tantos aspectos psicossociais, dos adolescentes portadores do vírus HIV, e o sentido
dessa (con)vivência, a partir de um olhar sócio-histórico.
Esses dois trabalhos trouxeram à tona um ponto significativo de confluência,
gerando um incômodo profissional e pessoal: a questão do preconceito.
No primeiro caso, como ministrávamos o curso de prevenção em
DSTs e
Aids, percebíamos que os alunos, durante as discussões sobre a população a ser
envolvida no trabalho, hesitavam em atuar junto aos profissionais do sexo de
forma geral, por julgarem que os mesmos não mereciam tal atenção por estarem
"nessa vida de sexo, perversidade, sem-vergonhice", entre outros adjetivos, como
se fosse por vontade própria.
O preconceito e a discriminação apareciam quase que naturalmente, sendo
aceitos e justificados por todos por se tratar "daquela gente". Apesar de insistentes
12
discussões a respeito da importância de trabalhar com todos, qualquer que fosse
a população a ser contemplada com a atividade de prevenção, e sua importância
para nossa equipe, nossos cursistas não se sentiam na obrigação, muito menos
na responsabilidade, de trabalhar prevenção com essas pessoas. Afinal, as
mesmas já estavam "perdidas na vida mesmo".
Num segundo momento, como pesquisadora no mestrado, a oportunidade
do estudo trouxe à tona um outro viés da questão do preconceito: a de quem
percebe ou tem receio do preconceito em relação a si mesmo ou à sua família,
quando este é decorrência do que se pode talvez dizer que foi a grande praga do
século XX, a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, ou seja, a Aids. Os adoles-
centes entrevistados, bem como seus familiares, estavam perfeitamente cientes do
que significava ser soropositivo, principalmente em relação ao estigma, à discri-
minação e ao preconceito diretamente relacionados a essa doença. O vírus e as
possibilidades de doenças oportunistas, os remédios, os exames, a alimentação
controlada, entre outros detalhes tão importantes no cotidiano do portador do vírus
HIV, pareciam não preocupar tanto quanto o receio de alguém vir a saber, sem ser
pelo próprio soropositivo, de sua condição sorológica.
Esse receio ficou claro em todas as falas, tanto dos adolescentes que
participaram da pesquisa, quanto de seus familiares. Essa possibilidade de revelação
parece ser uma sombra permanente no cotidiano das pessoas HIV positivo, levando
inclusive ao evitamento de tomar os remédios em lugares públicos onde há pessoas
do seu círculo de convívio que não sabem de sua soropositividade. Um breve
exemplo: um adolescente entrevistado recusava-se a levar sua medicação para a
escola, com medo de suscitar perguntas dos colegas sobre o porquê de tais
medicamentos e, assim, ser revelado seu segredo, com conseqüências para a sua
13
convivência social. Limitação da sociabilidade social e segredo eram as palavras
de ordem, tanto por parte dos adolescentes quanto de seus familiares (SOUZA, 2003).
Tais experiências nos levaram a um inconformismo. Ficar alheia ou mesmo
insensível diante de tais fatos, sem se incomodar com o que se vê e percebe, seria
desprezar o sentimento do outro. Se na Universidade, nos cursos ministrados,
isso já era um motivo de preocupação, em relação a esses adolescentes e suas
famílias, que de igual modo vivem sob esse medo cotidiano do preconceito, com
experiências doloridas e marcantes em suas vidas, não fazer mais nada a respeito
seria acreditar no inimaginável mundo da 'neutralidade científica'.
Afinal, o que nos move senão aquilo que vivenciamos, sentimos ou acredi-
tamos serem nossas pseudo-verdades, sonhos e objetivos de vida? Por acaso, há
como nos despirmos dessas percepções na hora de construirmos e vivenciarmos
situações de nossas vidas, em especial o trabalho, a pesquisa ou qualquer outra
atividade a que nos propomos? Não somos nós feitos de questionamentos e
de perplexidades que ora nos deixam estagnados ora nos fazem responder,
movimentar, agir?
Eu não saberia dizer qual era a 'verdade', se institucional, se aceita ou não
pela ciência e seus critérios formais. Isso naquele momento não importava. O que
importava é que aquela era a verdade vivida, sentida e sofrida dos adolescentes
soropositivos e suas famílias. Eram as verdades de suas concepções, relações
e acordos sociais da mais legítima forma de sobrevivência diante do medo do
preconceito social (IBÁÑEZ, 1994).
Foi a partir dessas experiências vividas e, por que não dizer, sentidas, que
nos mobilizamos para aprofundar a reflexão sobre esse tema, ou seja, a questão
do preconceito nas práticas discursivas do dia-a-dia das pessoas.
14
A opção conceitual por preconceito
Quando se fala em preconceito, quase sempre este tema remete a outros
dois conceitos muito próximos que, na prática, muitas vezes parecem ter o mesmo
sentido: trata-se dos termos discriminação e estigma. Sendo termos muito usados
nas Ciências Sociais e Humanas, preconceito, estigma e discriminação muitas vezes
acabam por confundir leitores quanto à sua conceituação.
Não só nesta pesquisa. Por ocasião da dissertação no Mestrado, assim
como na experiência do projeto sobre prevenção ao HIV/Aids já mencionado
anteriormente, pudemos observar que, na fala das pessoas com quem tivemos contato,
alunos ou entrevistados, esses termos eram usados com facilidade, dando a
impressão até de serem 'sinônimos'. Faz-se mister, portanto, situar o uso desses
vários termos na literatura científica, e, assim, justificar nossa opção por preconceito.
O estigma, para Goffman (1975), é tudo aquilo que é diferente do que uma
determinada formação social denomina como normal, logo, a pessoa estigmatizada é
aquela que está inabilitada para a aceitação social plena. Historicamente este termo
foi utilizado na Grécia Antiga, quando as pessoas eram marcadas com sinais no
corpo (com corte ou fogo), como um aviso visual para que todos soubessem que
aquele que portava tal sinal era pessoa não grata para a convivência social.
Trata-se de um termo com teor depreciativo que remete a componentes
físicos (como no caso de deformidades corporais), relacionados a questões de raça
ou religião, ou ainda, num movimento de autoculpa, como se este indivíduo tivesse
total responsabilidade por corresponder às demandas sociais, certos tipos de
prática, como no caso de viciados e homossexuais, entre outros. Desta forma, o outro
é reconhecido por sua inferioridade ou incapacidade, que podem acarretar, inclusive,
alguma forma de perigo para a sociedade. Justificavam-se, assim, estratégias
15
como vilas para leprosos, manicômios e outras formas de exclusão, simplesmente
pela aparência de se ter uma moralidade duvidosa (GOFFMAN, 1975).
Embora este autor não tenha aprofundado tanto o entendimento sobre
discriminação, ele aponta que é justamente com este ato discriminatório que as
pessoas estigmatizadas acabam por ser tratadas como quase não humanas. O que
vem a ser, então, a discriminação?
A palavra discriminação, em sua etimologia, é derivada do latim e significa
separação. Na definição do dicionário, discriminação é um ato ou efeito de discriminar,
distinguir. É uma ação que tem o efeito de separar, pôr à parte, segregar; ou
ainda, um tratamento pior ou injusto dado a alguém por causa de características
pessoais, intolerância, preconceito. É um ato que quebra o princípio de igualdade,
como distinção, exclusão, restrição ou preferência por variadas motivações: raça,
sexo, cor, idade, trabalho, religião etc. (HOUAISS, 2006). Ou seja, a discriminação
está mais ligada ao ato em si do que ao que pensamos sobre determinada pessoa.
A palavra discriminação passou a ser usada e difundida principalmente em
relação a questões raciais e aos tratamentos desiguais que certos grupos, como os
judeus na época do nazismo e fascismo, começaram a sofrer. Bobbio (2002) mostra
ainda que a discriminação é algo negativo, pois dela decorre grande probabilidade
de injustiças sociais e atos de desigualdade. Essas injustiças podem, segundo
o autor, acontecer tanto no âmbito individual quanto no grupal. O que deve ser
observado é que esta desigualdade é fruto de nossas práticas sociais, ou seja,
do preconceito.
Em recente tese discorrida a respeito de práticas sociais em situações de
discriminação relacionada à Aids, Nascimento (2007) trouxe para esta discussão
16
sobre a questão do preconceito autores como Singhal & Roger
1
(2003) e Gruskin,
Hendriks & Tomasevski
2
(1996), que afirmam que a discriminação é um compor-
tamento visível e observável que resulta geralmente em uma atitude de negação da
diversidade humana, fazendo com que a pessoa se sinta superior a outra, pelo fato
de este outro ser diferente. Reforça, assim, as desigualdades sociais e impossibilita
iguais oportunidades a todos.
Pode-se dizer, então, que a discriminação é quase que necessariamente
relacionada ao ato da intolerância frente à diferença do outro em relação ao que
eu acredito, ou mesmo sou, em determinado contexto social ou histórico. Tem por
base a imagem do outro como algo que não deve ser levado em conta ou deve
até mesmo ser excluído ou eliminado, como foi, no caso do período nazista, o
tratamento dado ao povo judeu. É o que Bobbio (2002) pontua quando diz que a
discriminação pressupõe que os homens são desiguais e, logo, há a possibilidade
do juízo de valor. Sendo assim, a discriminação "torna-se justificada em nome da
desigualdade tácita".
O que podemos perceber, entretanto, é que embora o preconceito, o estigma
e a discriminação possam caminhar juntos no senso comum, seu uso e entendimento
estão bem demarcados nas ciências.
1
SINGHAL, Arving; ROGERS, Everrett M. Combating AIDS: communication strategies in action.
London: Sage, 2003.
2
GRUSKIN, Sofia; HENDRIKS, Aart; TOMASEVSKI, Katarina. Aids e diretos humanos, In:
MANN, Jonathan; TARANTOLA, Daniel J.M.; NETTER, Thomaz W. (Org.). A AIDS no mundo.
Trad. Outras Palavras. Rio de Janeiro: Relume Dumará: ABIA: IMS, UERJ, 1996. p.241-272.
17
Assim, escolhemos e procuramos o preconceito. Não o preconceito adje-
tivado
3
, mas aquele sem nome, endereço ou qualquer característica que porventura
pudesse, neste momento, singularizar nosso olhar de pesquisadora. Não nos importa
a vertente teórica ou prática e suas discussões, muito menos suas conclusões.
Nosso objetivo, nesta pesquisa, é considerar todo o tipo de preconceito que possa
estar acontecendo nas relações sociais cotidianas: como circula e quais são suas
características, não importando com quem, onde ou em qual circunstância.
Mais que conceito ou teorias, nosso olhar se volta às práticas, com foco
nos repertórios – científicos e de domínio ou senso comum – e nas maneiras de
usá-los no dia-a-dia.
A estrutura da tese
O interesse de nossa pesquisa será tentar compreender o que as
pessoas entendem por preconceito e como o vivenciam em suas vidas, seja como
ato preconceituoso em relação ao outro, seja enquanto sentimento gerado por
alguma situação de preconceito em sua história de vida. Como foco principal, o
preconceito será compreendido enquanto linguagem em ação, permeando as
práticas discursivas e a produção de sentidos no cotidiano dos entrevistados
envolvidos nesta pesquisa.
Para tanto, no primeiro capítulo mergulharemos na questão do preconceito,
já com as lentes devidamente colocadas e ajustadas para o desenvolvimento da
tese. Tomamos como ponto de partida o levantamento feito de teses e dissertações
3
A idéia, aqui, não é fechar a questão de que preconceito é um tema adjetivo de certas classes
ou situações sociais, como negros, racismo, mulheres, portadores de deficiência etc. A questão
é justamente pensar por que o preconceito, no senso comum, e muitas vezes em pesquisas,
de alguma forma aparece sempre colado ou adjetivado.
18
que versaram sobre o tema, para, num segundo momento, fazer uma revisão
aprofundada das diferentes teorias e escolas que tiveram o preconceito como foco.
Sem dúvida, não poderíamos deixar de lado a questão dos Direitos Humanos quando
estudamos este tema e, para isso, ainda neste capítulo, traremos aspectos desta
discussão, não como um objetivo da pesquisa, mas como um item importante
para a compreensão dos discursos contemporâneos sobre preconceito.
No segundo capítulo discutiremos o preconceito como linguagem em ação.
Discorreremos sobre o giro lingüístico e a conseqüente ênfase na linguagem em
ação. Noções teóricas sobre a questão do cotidiano e a abordagem de estudos das
práticas discursivas de nosso Núcleo de Pesquisa da PUC-SP também farão parte
deste capítulo. Trata-se basicamente de nosso olhar enquanto pesquisadora, de
como lidaremos com o corpus de análise. Com isso, buscamos demarcar nosso
embasamento teórico e epistemológico.
Os procedimentos desta pesquisa serão apresentados no terceiro capítulo.
Nele estarão os objetivos, a coleta das informações através das entrevistas e os
procedimentos que serão utilizados na análise, que se encontra no quarto capítulo.
Todo esse processo vem imbuído de nosso pressuposto, que é olhar a questão
do preconceito não como algo que se reduz a minorias, maiorias ou lugares, mas se
apresenta sem cor, idade, posição social ou qualquer tipo de estereótipo engessado.
Por isso, uma de nossas preocupações foi buscar, para as entrevistas, pessoas
sem nenhum tipo de característica, apostando na aleatoriedade.
É no quarto capítulo que apresentaremos a análise do material empírico
conseguido através das entrevistas, onde tentaremos agregar teoria e prática sobre
o preconceito nas discussões a respeito das práticas discursivas no cotidiano.
A análise será feita nos moldes da análise das práticas discursivas enquanto padrão
19
metodológico e olhar epistemológico. Significa dizer que iremos trilhar as veredas
dos conhecimentos socialmente construídos, seja por meio da vivência das pessoas,
seja como foco do conhecimento sobre o tema, compartilhando com Harré (1993) a
proposta de que a construção do mundo acontece devido à atividade conversacional
das pessoas e é essa atividade humana que faz nossa própria existência acontecer,
incluindo aí nossos pensamentos e projetos individuais, e até mesmo sentimentos.
Apostamos, assim, no preconceito nosso de cada dia enquanto discursos que circulam
nas práticas sociais cotidianas propiciando diferentes produções de sentidos.
E, finalmente, partiremos para a conclusão e considerações finais desta
tese, por meio da qual esperamos não apenas contemplar nossos objetivos como
pesquisadora para a vida acadêmica, mas também conseguir sensibilizar as pessoas
que venham a ter acesso a este material e assim, quem sabe, ressignificar, mesmo
que individualmente, a questão do preconceito.
20
CAPÍTULO I
O PRECONCEITO: APROXIMAÇÕES TEÓRICAS
O objetivo deste capítulo é fazer uma revisão das formas de conceituação
e uso da noção de "preconceito". Para isso foram utilizadas duas estratégias.
A primeira focaliza a relação entre maneiras de conceituar preconceito e seus usos
em pesquisas publicadas em teses, dissertações e artigos científicos. A segunda
volta-se à revisão das principais teorias que abordam o preconceito.
1.1 O PRECONCEITO COMO TEMA DE PESQUISAS
O primeiro passo em nossa trajetória de pesquisa foi procurar o preconceito
em produções acadêmicas que estão sendo publicadas, destacando apenas algumas
delas para algumas reflexões introdutórias. Ou seja, a partir deste panorama geral
escolhemos algumas teses, dissertações e artigos, de modo a apreender a
diversidade de linhas de argumentação teórica, buscando nestas as que mais se
aproximavam de nosso objetivo.
Para tanto, fizemos uma pesquisa utilizando como palavra-chave
PRECONCEITO, em qualquer campo, nas bases de teses e dissertações da
CAPES, PUC-SP e INDEX-PSI, assim como os artigos constantes no SCIELO e BVS
(Biblioteca Virtual em Saúde) e BVS-PSI (Biblioteca Virtual em Saúde em Psicologia).
A pesquisa foi realizada no segundo semestre de 2006 e durante o ano de 2007,
e os resultados obtidos encontram-se na tabela 1.
21
TABELA 1 - TESES, DISSERTAÇÕES E ARTIGOS LOCALIZADOS NAS BASES DE DADOS CONSULTADAS
FONTE
Teses e Dissertações Artigos
ANO DE
PUBLICAÇÃO
CAPES PUCSP INDEX-PSI SCIELO BVS
(1)
TOTAL
1959 1 1
1987 1(+7) 8
1988 1 3 4
1989 1 1 2 4
1990 1 1 2
1991 1 2 2 5
1992 4 1 1 10 16
1993 2 2 3 7
1994 5 2 3 10
1995 6 9 15
1996 4 1 6 11
1997 10 4 3 17
1998 11 1 3 3 7 25
1999 13 3 1 3 10 30
2000 13 2 2 3 5 25
2001 25 4 5 4 6 44
2002 18 3 9 17 47
2003 28 3 2 5 11 49
2004 44 4 5 10 12 75
2005 28 4 2 9 7 50
2006 30 5 2 18 10 65
2007 3 7 10
TOTAL 244 34 33 79 136 518
FONTES: Scielo, BVS (Biblioteca Virtual de SAúde) e BVS-PSI (Biblioteca Virtual de Saúde da Psicologia)
(1) Colocamos o total geral de artigos, com a palavra-chave preconceito. Estão incluídos: Index Psi: Periódicos técnicos
científicos (115); Index Psi de divulgação científica (21). 07 artigos que não estão na tabela, com as seguintes
datas: 1969 (1); 1981(1); 1985(2); 1984(1); 1986 (2), perfazendo um total de 136 artigos.
Podemos verificar que há um número razoável de artigos, teses e disser-
tações pesquisados de 1959
4
a 2007. Independente da quantidade de artigos
encontrada, o objetivo do levantamento era fazer uma imersão nas maneiras como o
preconceito está sendo utilizado, seja como conceituação teórica, seja como
reflexão sobre práticas. Numa visão geral, essas produções se inserem nos mais
4
Essa foi a primeira tese que abordou a questão do preconceito no Brasil, não direta nem
exclusivamente, mas como parte de uma pesquisa de autoria de Dante Moreira Leite, cujo
título foi Caráter nacional brasileiro: descrição das características psicológicas do brasileiro
através de ideologias e estereótipos.
22
variados campos do saber: Psicologia, Lingüística, Direito, Sociologia, Pedagogia,
Antropologia, entre outros, e têm como eixos temáticos os seguintes assuntos:
raça/etnia; saúde e sexualidade, conforme podemos observar no quadro 1.
TEMA/
EIXO
NOMEAÇÕES UTILIZADAS
1. Raça / Etnia racismo, negro, afrodescendente, judeu, latino, lusitano, polonês, japonês, gaúcho, etnia
2. Saúde
Aids/HIV, deficiência visual, deficiência mental, deficiência auditiva, necessidades especiais,
obesidade, diabetes, hanseníase, epilepsia, hemofilia, drogas, alcoolismo
3. Sexualidade
gênero, homossexuais, heteroestereótipo, homoerotismo, adolescentes
especiais, Síndrome de Down, homossexualidade e Aids
4. Outros
questões escolares, lingüística, publicidade, idoso, estereótipos, igreja, grupos marginalizados
(prisioneiros, adolescentes, catadores de lixo reciclável, pobres, assentados, criminosos etc.),
minorias, corpo, mulher, valores, dominação, violência, adoção, behaviorismo, outros...
QUADRO 1 - EIXOS TEMÁTICOS DAS PRODUÇÕES ACADÊMICAS LOCALIZADAS NOS BANCOS DE DADOS
O que observamos, a partir da análise dos resumos, é que a questão do
preconceito é pesquisada em várias vertentes teóricas, com diferentes abordagens e
olhares científicos. Ilustraremos essa diversidade com alguns exemplos que cruzam
diferentes abordagens teóricas e temas variados.
Da área da História, selecionamos um artigo publicado na Revista Brasileira
de História em 2002, que tem como objeto de estudo a imigração judaica no
Brasil, especialmente no Rio de Janeiro e em São Paulo. Cytrynowicz (2002),
autor do artigo, aponta que, na época em que esses imigrantes vieram para o
Brasil, vigorava o regime político do então governo Getúlio Vargas. Restrições de
cunho nacionalista foram impostas, como, por exemplo, nacionalizar os nomes das
entidades que eram consideradas estrangeiras. No entanto, o autor lembra que
esta não foi uma exclusividade judaica, pois pessoas imigradas de outras nações
e suas associações também passaram pelas mesmas adequações nacionalistas.
23
Embora esse artigo tenha por foco a comunidade judaica, o que nos
chamou a atenção foram algumas considerações do autor, em especial quanto à
postura dos imigrantes como meros espectadores do contexto histórico vivenciado
na época, que os colocava no lugar de vítimas ou como grupos minoritários que
sofrem situações adversas dadas as dificuldades encontradas.
Cytrynowicz (2002) relata que os imigrantes judeus (bem como os japoneses
e sírio-libaneses), longe de serem vítimas ou minorias submetidas às pressões,
inventaram formas de continuarem com seus costumes, valores, nomes, entre
tantas outras coisas que faziam parte de sua cultura de origem, utilizando estratégias
que acabaram por ser positivas. Em outras palavras, a identidade nacional de seu
país de origem continuou viva, sendo repassada para outras gerações, apesar das
proibições da época.
Temas que abordam o racismo colado à questão do preconceito foram os
que mais apareceram nos bancos de dados aos quais tivemos acesso. A partir do
enfoque dos grupos de minoria, a questão racial tem sido amplamente debatida
tanto na mídia quanto em ambientes universitários. Palestras, passeatas, dia da
consciência negra, entre outros movimentos, fomentam o ativismo em busca de
direitos até então esquecidos e desvalorizados na história do Brasil. Ainda assim,
segundo alguns artigos por nós analisados, essa consciência não tem sido incor-
porada no cotidiano das pessoas. Os negros continuam clamando por direitos iguais
por considerarem que ainda nos dias de hoje são discriminados sem nenhum
pudor, principalmente por questões socioeconômicas, que fazem com que esse
segmento de população tenha mais carências que outros, se comparado, por
exemplo, com a população branca (GUIMARÃES, 2004).
24
Tomemos como ilustração de abordagem do racismo um artigo sobre discri-
minação a afrodescendentes que nos chamou atenção tanto pela metodologia
quanto pela discussão feita. Os autores tratam da questão do preconceito a partir
da seguinte situação: uma gerente, em face de dois candidatos à mesma vaga em
igualdade de condições de preencher o cargo, escolheu uma pessoa de cor branca,
opção esta que seria decorrente de preconceito com a raça, pontuando ainda mais
as diferenças de oportunidade. Tanto o resultado desta escolha para preenchimento
do cargo, quanto os possíveis critérios do mesmo foram apresentados para grupos
diferentes. Mas esses dois grupos (controle e experimental) não viram nada de
errado no fato de a gerente ter escolhido justamente o candidato de cor branca
(PEREIRA; TORRES; ALMEIDA, 2003).
Outro grupo igualmente discriminado e que, embora ainda seja margi-
nalizado pela sociedade, tem se organizado em busca de seus direitos, é o de
homossexuais. Apesar de conquistas de grande repercussão na mídia, como a
parada do orgulho gay nas ruas de São Paulo e do Rio de Janeiro; mesmo que
muitas empresas, como a Petrobrás, considerem os direitos de pessoas que vivem
com outras pessoas do mesmo sexo, ofertando plano de saúde extensivo aos
seus companheiros; e, apesar de hoje, no Brasil, muitos ganharem na Justiça o
direito de compartilhamento de bens devido à vida em comum com parceiros que
venham, por exemplo, a falecer, a aceitação da sociedade para com essas pessoas
está muito aquém da necessária para falarmos de inclusão social plena. Gays,
lésbicas e transgêneros, no Brasil, sofrem ainda uma série de discriminações
sociais, judiciais, trabalhistas, religiosas, entre tantas teias que regem a complexa
atitude de um ser humano para com outro com base em julgamentos morais que
25
os classificam como uma aberração da natureza, na contramão dos princípios
"normais" da sociedade e dos bons costumes.
A esse respeito, destacamos dois artigos: um de Mott (2006) e outro de
Smigay (2002). Ambos trazem discussões complementares voltadas às questões
dos direitos mais do que humanos que essas pessoas deveriam ter, sem neces-
sariamente ter que lutar para isso. Mott (2006) discute questões sobre os direitos
que as pessoas parceiras do mesmo sexo têm, especialmente quanto à união civil
legal, uma vez que, segundo ele, nada além da ignorância e do preconceito
justifica tamanho ranço da sociedade, que insiste não só em discriminar e
desprezar os direitos humanos, mas também em desconsiderar por completo os
direitos sexuais e afetivos das pessoas.
Não menos importantes são os temas que Smigay (2002) menciona: a
homofobia, o sexismo e outras formas de violência relacionadas a questões de
gênero em um mundo masculino onde tudo o que é feminino é considerado como
fraco. Assim, a violência contra as mulheres, dependendo da região geográfica, é
passível de ser considerada normal, uma vez que o homem é o senhor da casa e
a mulher deve ser submissa aos ataques violentos que seriam "naturais" nos
homens. O mesmo ocorre em relação aos homossexuais, que, assim como as
profissionais do sexo, seriam o "lixo do feminino apodrecido".
Sem possibilidade de disfarçar a diferença do outro que muitas vezes
incomoda, como acontece com pessoas negras, homossexuais, judeus, japoneses,
pessoas obesas, de estatura ou muito baixa ou muito alta, e tudo aquilo que não é
considerado como bonito, agradável aos olhos e 'normal', o preconceito atinge um
grau quase impossível de ser ocultado em face das pessoas com deficiências
físicas. O estranho que salta aos olhos quando se vê alguém que manca, rasteja,
26
gesticula para se fazer entender; usa de outros artifícios para se comunicar, no
caso dos deficientes auditivos; caminha usando bengalas especiais ou outros
objetos para se locomover, como é o caso dos deficientes visuais, não consegue
passar despercebido, e, logo, não se consegue ignorar sua presença.
Ver o outro em seu limite leva a perceber a possibilidade do eu também
limitado. É o que escreve Silva (2006) em seu artigo sobre o estranhamento
causado pela deficiência e a naturalização do preconceito em relação à diferença.
Segundo a autora, na sociedade ocidental atual, onde a cultura se converteu em
mercadoria, o outro com carências e impossibilidades evidenciadas ressalta o
lado limitado que todos querem evitar para não sofrer exclusão e preconceito.
Não menos complexa é a inclusão das pessoas com paralisia cerebral quando
se discute a educação inclusiva. É isso que mostra um estudo feito por Gomes e
Barbosa (2006), para quem, apesar de cursos de capacitação, os professores ainda
não se sentem aptos para atuar nessa realidade escolar, e muitos são contra essa
atual política educacional. Segundo os autores da pesquisa, os resultados evidenciam
a necessidade de serem revistas as posturas dos docentes, incluindo reflexões sobre
valores, preconceito e crenças que pressupõem atitudes que não se desfazem
apenas com cursos de capacitação. Faltam ainda, de acordo com os autores,
experiências práticas, como o contato, nessas capacitações, com pessoas
portadoras de necessidades especiais como a paralisia cerebral.
A questão da inclusão de portadores de deficiência e seus aspectos culturais,
políticos, econômicos e sociais também foram estudados por Brumer, Pavei e
Mocelin (2004), na cidade de Porto Alegre, em relação aos portadores de deficiência
visual. Os preconceitos vivenciados por estas pessoas foram os mais variados
possíveis. Como exemplo, uma mulher, candidata a vereadora da cidade, portadora
27
de deficiência visual, foi questionada quanto à sua capacidade para exercer o cargo,
pois 'se pessoas normais não enxergavam o que faziam no governo, como ela,
que nem visão
5
tinha, poderia fazer alguma coisa na política?'. Isso exemplifica
que, apesar de leis que garantem ao portador de deficiência estudo, trabalho, entre
outras tantas facilidades sociais a que tem direito, nem sempre este consegue
ter acesso às oportunidades, e, mesmo quando consegue, estas não o protegem
do preconceito.
A pesquisa de Albuquerque, Vasconcelos e Coelho (2004) sobre assen-
tamentos foi realizada em Paraíba. O objetivo do estudo era avaliar a integração
de assentados de um grupo do Movimento Sem Terra e de pequenos agricultores
que pagaram por suas terras. Apesar de as pessoas, nesses grupos, terem
histórias parecidas (pessoas de baixa renda, procurando um lugar para plantar e
melhorar sua condição de vida) e residirem numa mesma região, não havia nenhum
aspecto que pudesse uni-las em torno de objetivos comuns. O preconceito e os
conflitos intergrupais estavam presentes nas comunidades envolvidas, principalmente,
segundo os autores, por questões relacionadas à ausência de políticas públicas.
Seja como for, ambos os grupos apresentavam descontentamentos em
relação ao outro. Para os assentados, os pequenos agricultores eram desorganizados,
individualistas e acomodados por não lutarem mais por seus direitos. Já os pequenos
agricultores consideravam os assentados baderneiros, invasores, desonestos,
preguiçosos, privilegiados pelo governo e violentos.
5
Visão, neste caso, está sendo relacionada à cegueira no sentido fisiológico da pessoa em questão.
28
O que podemos perceber nesses artigos, teses e dissertações, é que há
diferentes aportes teóricos, metodológicos e epistemológicos sobre a questão do
preconceito, podendo esta aparecer ora como fundo, ora como figura principal
das pesquisas, circulando em vários lugares, sob vários tons, vários aspectos
e contextualizações.
Tomadas como exemplos, essas produções trazem à tona algumas reflexões
que fazem parte do nosso objeto de estudo. Pretendemos extrapolar questões sobre
etnia, raça, sexualidade, ou qualquer outra característica que venha a demarcar
um preconceito que consideremos ser adjetivado. Procuraremos o preconceito
nos repertórios do dia-a-dia, ou seja, aquele que se faz presente em qualquer
lugar. O desafio é pesquisar o preconceito em suas mais diferentes faces e
formas de se apresentar no cotidiano, nas práticas discursivas que permeiam as
interações humanas.
A tentativa será – diferentemente dos artigos e pesquisas até então
encontrados – de alçar um vôo livre, em que os ventos dos discursos das pessoas
poderão nos levar a diferentes paisagens dos preconceitos, independente do lugar
do pouso. Não fugimos dos lugares demarcados, dos nichos de preconceitos.
Apostamos, sem querer generalizar, que o preconceito está circulando nas práticas
discursivas cotidianas de todos nós, podendo ou não atingir-nos, causando ou
não sentimentos que mobilizem ou não ações ou reações a essa situação.
Mais do que histórias de vida, queremos compreender como as pessoas
concebem e percebem o preconceito entendido como uma prática social. Para
isso, iremos contactar diferentes personagens da vida cotidiana, sem estabelecer
critérios de seleção, etnia, posição social, ou qualquer que seja o pré-requisito.
Afinal, segundo Boaventura Santos (2005), há urgência em dar respostas a
29
perguntas aparentemente simples, pois por aí também se chega ao mais profundo
da nossa perplexidade individual e social, para dar sentido até mesmo às nossas
práticas como pesquisadores reconhecidos e fazedores da ciência.
Entendemos que Boaventura Santos coloca uma preocupação básica que
é tácita e absolutamente impossível de ser descolada da vida acadêmica: não
fazer de uma pesquisa mais um caderno grande encapado, empoeirado e enrijecido
na prateleira de uma biblioteca, não só pelo tempo, mas pela teoria nele contida.
Ou seja, que pelo caminho aparentemente óbvio de um assunto, se chegue a
alguma mudança na prática e no comprometimento social, nem que seja para
atingir somente o próprio pesquisador em sua postura de vida.
Sendo assim, procura-se o preconceito: o meu, o seu, o nosso precon-
ceito do dia-a-dia.
1.2 O PRECONCEITO EM DIFERENTES OLHARES TEÓRICOS
Como já dissemos, nosso olhar sobre a questão teórica do preconceito, a
exemplo dos artigos e teses pesquisados, por princípio terá que respeitar a diversidade
de conceitos sobre o tema. Evidentemente, iremos nos ater às Ciências Sociais
por uma questão de afinidade de campo de pesquisa e de entendimento de ser
humano. Iniciaremos então por um conceito mais próximo daquilo que podemos
chamar de senso comum, pois um dicionário está mais perto das mãos da
população em geral do que os livros especializados.
Preconceito, então, segundo o dicionário Aurélio (1999, p.1.625), apresenta
a seguinte definição:
Preconceito - (de pré + conceito) 1. Conceito ou opinião formados anteci-
padamente, sem maior ponderação ou conhecimento dos fatos; idéia
preconcebida. 2. Julgamento ou opinião formada sem se levar em conta
30
o fato que os conteste; prejuízo. 3. P. ext. Superstição, crendice; prejuízo.
4. P. ext. Suspeita, intolerância, ódio irracional ou aversão a outras raças,
credos, religiões, etc.
Pensamos que tal definição é preciosa por nos aproximar de um
entendimento mais próximo do cotidiano das pessoas. Acreditamos, no entanto,
que, para uma discussão mais aprofundada, é necessário fazer uma imersão nas
teorias existentes. Começaremos essa exposição com a trajetória histórica do
interesse acadêmico pelo preconceito e, posteriormente, apresentaremos suas
diferentes conceituações, a partir de variados lugares teóricos, pois entendemos
que essa aproximação sem pré-conceitos se faz salutar e propicia uma visão mais
ampla da temática.
1.2.1 O Preconceito como Tema de Interesse para as Ciências Sociais
O estudo sistemático do preconceito, segundo Lima e Pereira (2004), teve
início apenas no século XX, tendo como principal autor G. W. Allport, que, na década
de 1950, publicou o livro A Natureza do Preconceito, que se tornou inspiração não só
para esse tema, como também para estudos sobre a discriminação e os estereótipos.
Na Psicologia, o tema aparece com ênfases que refletiam as mudanças
históricas e sociais, assim como as normas vigentes nas diferentes épocas.
As evoluções tanto metodológicas quanto teóricas foram acontecendo, a saber:
na década de 1920 o preconceito era visto como atitudes normais frente a grupos
sociais considerados até então como 'inferiores'; nas décadas de 1940 e 1950,
surgem as primeiras teorias sobre questões intra-individuais como frustração-
agressão e personalidade autoritária; e, nas décadas de 1970-1990 apareceram
teorias que enfatizavam relações intergrupais, trabalhando com temas como
identidade social, conflito intergrupal e categorização social.
31
O que Lima e Pereira (2004) pontuam é que nos séculos XVIII e XIX, e até
a primeira metade do século XX, não havia preocupação quanto à questão do
preconceito, pois este era visto de certa forma como algo natural, decorrente das
formas sociais hierárquicas da época. Foi apenas por volta das décadas de 1940-
1960, com as críticas aos regimes nazi-fascistas que levaram à Declaração dos
Direitos Humanos (1948) e aportes dos movimentos feministas, entre tantos
outros movimentos sociais na Europa, EUA e África do Sul, que a questão do
preconceito foi sendo revista.
Desses movimentos, talvez pelo seu pioneirismo e maior abrangência
mundial, a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi aprovada na Liga das
Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, atingindo, enquanto proposta de
maior tolerância, quase todas as nações, visando maior respeito à vida humana.
Formulada a partir do Conselho, com representantes de vários países, essa decla-
ração, com 33 artigos, teve por objetivo pontuar valores humanos básicos, desde
direitos de liberdade e igualdade, até questões de saúde, moradia e educação,
além de livre expressão.
A tentativa, segundo Alencar (2002), era de atingir todos os povos e nações
em torno de um ideal comum, em que o esforço maior seria colocar a generosidade e
a solidariedade acima das diferenças que, à época, haviam levado muitos países
a conflitos sangrentos. Era o consenso em torno da paz mundial almejada. Foi
este o início de uma virada social, em que movimentos voltados aos direitos de
minorias começaram a surgir, a exemplo das feministas.
No entanto, como o próprio autor afirma, esta Declaração também foi feita
a partir de um contexto social e histórico, e, nos dias de hoje, mais de 50 anos
depois, apresenta lacunas que deveriam ser discutidas com a máxima urgência.
32
Incluem-se aí questões ecológicas e dos direitos das mulheres, a regulação da
exploração nas especulações econômicas e o direito à diversidade cultural e à
diferença em cada país-membro.
Lacunas nas leis universais de Direitos Humanos; lacunas no direito de ter
direitos, de ser e fazer diferente, de poder ir e vir, sair e entrar, aceitar ou negar.
Lacunas sociais, econômicas, culturais, históricas... Não estaria aí um dos cernes
da questão do preconceito?
De modo a investigar as teorias existentes sobre esse tema complexo, foi
necessário fazer um exercício de classificação das abordagens teóricas citadas na
literatura consultada para não cair num profundo poço sem fundo, e, por questões
até mesmo de tempo e afinidade científica, o critério de escolha das teorias e dos
autores que falam sobre o preconceito foi o de priorizar aqueles que mais se
aproximavam da Psicologia Social. As escolas selecionadas foram: a perspectiva
cognitiva social, a interacionista simbólica, e a perspectiva que chamaremos de
processos de exclusão social.
Para uma melhor visualização do que iremos expor a seguir, apresen-
tamos, no quadro abaixo, as abordagens e os respectivos autores que teorizaram
sobre o preconceito:
TEÓRICOS E TEORIAS
Cognição Social Interacionista Simbólica Exclusão Social
Allport
Tajfel
Moscovici
Jodelet
Goffman
Harré
Adorno
Sawaia
Baumman
A partir deste momento, apresentaremos as três escolas e suas respectivas
teorias. Iremos tecer, após cada perspectiva, comentários sobre suas diferenças e
33
confluências e, ao final de todas elas, procuraremos dar uma visão geral sobre o
tema. Esse exercício de revisão teórica tem por objetivo subsidiar a proposta desta
pesquisa de compreender como o preconceito permeia a relação das pessoas
no dia-a-dia.
1.2.2 Preconceito na Perspectiva da Cognição Social
Foi no ano de 1956 que Jerome Bruner e George Miller difundiram a idéia
da cognição e propuseram um amplo debate no Symposium on Information
Theory. Cognição é um termo com diferentes interpretações, mas duas merecem
destaque: "informação ou conhecimento obtido pela experiência pessoal", e um
sistema de "processos e conteúdos mentais interligados" mantendo relações de
influência mútua com os demais estados. Na Psicologia Social, a conceituação
mais utilizada, por ser considerada mais abrangente, é: "processos e conteúdos
psicológicos individuais, estando presentes em tomadas de decisão, na seleção
de comportamentos, na orientação da conduta e na organização da escala de
valores" (
KRÜGER, 2004, p.27).
Historicamente, a Cognição Social surgiu em 1970. Dentre vários autores
que estudaram o assunto, foram Devine, Hamilton e Ostrom (1994, apud KRÜGER,
2004) os que mais se aproximaram de uma definição abrangente: "a cognição
social refere a estruturas e processos psicológicos subjacentes a fenômenos
psicossociais". Segundo esses autores, a cognição social seria uma teoria que
pode analisar variáveis de "natureza interveniente, associadas à formação de
impressões, percepção social, organização do self, inferência social, atribuição de
causalidade, consonância cognitiva, formação e mudança de atitudes, valores,
preconceitos e estereótipos sociais" (p.27).
34
Na Europa, os estudos de Henri Tajfel sobre identidade social e de Serge
Moscovici sobre representações sociais, e a própria análise do discurso elaborada
por vários autores, incorporaram aspectos relacionados à cognição social, pois tais
tendências temáticas, metodológicas e teóricas da Psicologia Social de tradição
européia, segundo Krüger (2004, p.28), voltam-se "para tópicos como os das minorias
sociais, relações interculturais, representações coletivas, estereótipos, formação e
mudanças da identidade social e funções interpretativa e diretiva de sistemas
ideológicos em processos políticos e socioculturais".
A cognição social apresenta seis pressupostos filosóficos, a saber: valorização
da mente (tradição filosófica); realismo (lugar no mundo objetivo); cognoscibilidade
(conhecimento de processos, conteúdos e cognição social por métodos e técnicas
apropriados); admissão de inter-relações (considerando afetividade, comportamento,
conduta etc.); possibilidade de suposições com orientação nomotética, e possibi-
lidades de abordagem multidisciplinar.
A partir dessa breve apresentação do que vem a ser a Psicologia Social
embasada na perspectiva da cognição social, entraremos agora na questão do
preconceito propriamente dito, a partir de teóricos que pesquisaram este tema ou
assuntos adjacentes.
Iniciaremos com a proposta de Gordon W. Allport, um importante pesqui-
sador que estudou o preconceito. Sua obra, La naturaleza del prejuicio, escrita em
1954, inicia uma discussão sobre o tema que seria propulsora de tantas outras
pesquisas sobre o assunto. Para o autor, o homem conseguiu grandes avanços
no controle do sofrimento físico e da morte prematura, mas quanto às relações
humanas é como se ainda vivesse na Idade da Pedra. Justifica essa afirmação
argumentando que o homem, em tudo que faz em direção ao progresso, avança
35
também em direção contrária, pois acaba por provocar um outro lado prejudicial à
própria existência, seja em questões econômicas, raciais, religiosas,
mercadológicas ou ideológicas. Seriam antagonismos que caminham juntos
desde o início da humanidade até os dias atuais. Para Allport (1971), é mais fácil
destruir um átomo do que o preconceito. Por ser um processo complexo, histórico,
cuja característica principal é sua não-singularidade, o preconceito não tem uma
causa; ao contrário, pode apresentar causalidades múltiplas. Porém, em qualquer
que seja a situação, o resultado será, segundo o autor, o mesmo: negativo.
A palavra 'prejuízo' deriva do latim 'praejudicium' e passou por três
transformações: 1) para os antigos, praejudicium queria dizer precedente, ou seja,
juízo que se baseava em decisões e experiências prévias; 2) em inglês, mais
tarde, significou juízo formado antes do devido exame e consideração, ou um
juízo prematuro; 3) adquiriu mais recentemente um matiz emocional, em que o
juízo prévio acompanha um estado favorável ou desfavorável. Pode-se dizer,
então, que ter preconceito é pensar mal de outras pessoas sem motivo suficiente,
ou ainda, estar seguro de algo que não se sabe. Allport (1971) pressupõe que
esse falso julgamento pode acontecer devido à vida cotidiana ser muito rápida. As
pessoas tendem a tomar para si verdades a respeito das coisas por não terem
muito tempo para olhar mais de perto os assuntos cotidianos. Além disso, há
certamente questões culturais, de valores, e históricas que vão se formando no
decorrer do tempo. Por sua complexidade e causalidade múltipla, o preconceito
deve ser tratado por vários ângulos e, como diz o autor, ecleticamente. Ele sugere
alguns enfoques: histórico, sociocultural, situacional, psicodinâmico, e, ainda, um
enfoque fenomenológico.
36
O preconceito acontece, segundo Allport (1971), a partir de alguns
pressupostos: o endogrupo (família, grupos próximos como o religioso, de amigos
etc.) traz fortes referenciais às pessoas e é vital para a sobrevivência pessoal. Em
forma antagônica, o exogrupo contrasta tudo o que envolve valores, costumes
etc. com o endogrupo. Assim, o exogrupo é um inimigo natural de tudo aquilo que
uma pessoa acredita ser, mas que não faz parte do seu endogrupo, o que não
significa que necessariamente precise ser exterminado, mas é julgado por ser
diferente e não pertencer ao grupo.
A tendência à generalização, para Allport (1971), é um outro grande
problema no que se refere ao preconceito, e a história já teve provas disso, a
exemplo do holocausto. O povo alemão acreditou ser uma raça superior e buscou
exterminar os judeus, julgados por eles como uma raça inferior da humanidade.
O autor aponta que, no caso do preconceito, a hostilidade nas relações pessoais
pode ser dirigida a uma pessoa ou a um grupo inteiro, e formar, a partir disto, uma
postura irracional generalizada.
A discriminação, segundo o autor, é outra característica da prática do
preconceito, por se tratar de ação de uma pessoa em face de outra pessoa ou
grupo. A diferença da discriminação (que é uma ação) em relação ao preconceito
(entendido como julgamento) é a questão das conseqüências, pois na discriminação
estas ocorrem imediatamente. Allport (1971) postula cinco graus de ação negativa,
com crescente hostilidade: 1) falar mal (pode não haver ação direta); 2) evitar o
contato (ignorar o outro); 3) discriminação (ação excludente visível e palpável,
levando à segregação – que é uma discriminação institucionalizada); 4) ataque físico
(ataque de violência ou semiviolência); e 5) exterminação (linchamentos, matanças,
genocídios, a exemplo do que ocorreu com os judeus) (p.29). Concluindo, para
37
esse autor o preconceito estaria intimamente associado ao poder, e geralmente
apresenta-se como uma cegueira assustadoramente conformada com costumes
sociais e históricos/culturais dominantes de uma dada sociedade.
Henri Tajfel (1981) também pesquisou o preconceito. Para ele, a
identidade social passa pelo autoconceito do indivíduo, que se reconhecerá ou
não como filiado a um ou vários grupos sociais, contemplando também o aspecto
emocional e o valor atribuído a essa filiação (podendo ser este positivo ou
negativo). A importância do pertencer a um grupo é inegável, pois é nessa rede
de socialização que um indivíduo estabelece crenças, identidade social, proteção
e pertença. É também no grupo que o indivíduo organizará seu ambiente e
formulará esquemas classificatórios, separando pessoas e objetos, e assim fará
categorizações relacionadas diretamente com valores. Será, então, a divisão entre o
nós e eles. Esse processo de filiação grupal está associado a processos emocionais e
cognitivos, ou seja, ao reconhecimento de pertencer a um grupo diferente de outro.
A noção de identidade social, para Tajfel (1981), é aquela parte do
"autoconceito do indivíduo que se deriva do reconhecimento de filiação a um (ou
vários) grupo social, juntamente com o significado emocional e de valor associado
àquela filiação" (p.63). São estas algumas conseqüências desse reconhecimento
de pertencer a um grupo: a) o indivíduo busca um novo grupo se este contribuir
para melhorar os aspectos positivos de sua identidade social; b) deixa o grupo
que não contribuiu positivamente para a sua identidade, a menos que isto seja
impossível; e, c) na impossibilidade de abandonar o grupo, pode reinterpretar os
atributos deste, tornando-os mais aceitáveis, ou esforçar-se para melhorar a posição
que o grupo ocupa na sociedade. Esses movimentos acabam por estimular a
38
comparação com outros grupos, podendo impulsionar atitudes e ações discri-
minatórias em relação a eles.
O conceito de Estrutura de Crença e de Mobilidade Social é importante
para Tajfel (1981), pois significa que é possível que grupos possam tanto ser
flexíveis e mutáveis, como o oposto disso: imutáveis e rígidos. Tais regras ocorrem
por meio de leis, normas, regras e sanções, para preservar, no caso da sociedade, o
status e lugar elevado de um grupo em relação a outros, desfavorecidos e sem
prestígio. Essa situação pode ser modificada, caso haja consenso dos grupos
quando ambos estiverem lutando por um objetivo em comum.
Como pesquisador, Tajfel procurou compreender o que levava uma
pessoa a emitir diferentes julgamentos nas mais variadas situações. Para ele, a
forma como as pessoas percebem as diferentes categorias sociais não é fruto de
um processo universal, mas um produto da assimilação de valores e normas
sociais da cultura à qual pertencem. As avaliações positivas ou negativas que
fazemos dos grupos sociais é fruto da aprendizagem e transmissão por meio de um
processo de assimilação desde a infância. Esse pesquisador estudou a questão
dos estereótipos sociais e, segundo ele, haveria quatro principais funções para eles
acontecerem: a cognitiva (similar à da categorização), a preservação do sistema
de valores, a ideologia e a diferenciação em relação aos outros grupos. Teriam
também o objetivo de diminuir a diferença entre as pessoas pertencentes ao mesmo
grupo, sendo o inverso também proporcional. Sua grande contribuição, no que
concerne às questões do preconceito e do estereótipo, foi ter demonstrado, em
suas pesquisas, que a categorização afeta tanto a inclusão quanto a exclusão das
pessoas nos grupos sociais (ESTRAMIANA, 2006).
39
Apesar de Serge Moscovici não pesquisar diretamente a questão do
preconceito, sua teoria sobre as Representações Sociais conduziu a um novo
modo de olhar a Psicologia Social, sugerindo um estreito laço entre as Ciências
Psicológicas e as Ciências Sociais. No Brasil, a Teoria das Representações
Sociais surgiu na década de 1970, em estreita relação com o desenvolvimento da
Psicologia Social crítica brasileira, na época em que algumas instituições de ensino
começaram a ter uma postura crítica, tanto em relação à Psicologia americana
quanto ao papel servil da ciência em relação às questões de ordem social, em
especial a macrossocial (
SPINK, 1996 apud OLIVEIRA; WERBA, 1998).
Para Moscovici (2003), a não definição fechada e engessada desta teoria
é seu marco diferencial. Uma das possibilidades de entendimento do conceito de
representações sociais é que estas seriam formas de conhecimento socialmente
elaboradas e partilhadas, cujo propósito seria transformar algo não familiar em
familiar, expressando uma mediação entre o sujeito psíquico e a realidade social.
A representação é uma ação simbólica de um sujeito em relação ao mundo, mas
seu processo de produção é social. Jodelet (apud
, 1993) complementa essa
definição conceituando representação social como segue:
O conceito de Representação Social designa uma forma específica de
conhecimento, o saber do senso comum, cujos conteúdos manifestam a
operação de processos generativos e funcionais socialmente marcados.
Mais amplamente, designa uma forma de pensamento social. As Repre-
sentações Sociais são modalidades de pensamento prático orientadas
para a comunicação, a compreensão e o domínio do ambiente social,
material e ideal (SÁ, 1993, p.32).
As representações sociais são sistemas de interpretação da realidade e
têm caráter histórico; não constituem, portanto, uma construção definitiva, pois
apresentam certa plasticidade. Podemos apresentar quatro pontos cruciais da Teoria
40
das Representações Sociais: 1) concebe a racionalidade, crenças coletivas, ideologias,
senso comum e saberes populares como sistemas coerentes de signos; 2) repulsa o
dualismo indivíduo-mundo social: não existe sujeito sem sistema nem sistema
sem sujeito, e nada é estático, pois há um conflito entre os dois e com isso se dá
o movimento; 3) é uma teoria elástica e complexa para entender a diversidade
dos problemas e dos fenômenos novos, ao procurar descrever ou explicar; e,
4) sua metodologia de pesquisa é polissêmica, sem apego a metodologias quanti-
quali-específicas (MOSCOVISCI, 2003, p.11).
A Teoria das Representações Sociais vê o sujeito como um ser que, com
sua atividade e relação com o objeto-mundo, constrói tanto o mundo como a si
próprio. Sua base está na realidade e envolve a dimensão cognitiva, a afetiva e a
social. É na vida, ou na convivência com os outros, que pensamentos, senti-
mentos e motivações humanas se desenvolvem. É nas negociações com o outro,
ou com outros indivíduos e grupos, que temos consciência de que os processos
se desenvolvem. Daí a importância da representação para esta teoria.
A partir dessa perspectiva, anos mais tarde surge um conceito que pode
vir a ser incorporado como possibilidade de compreensão a respeito do preconceito
no cotidiano. Trata-se do estudo sobre alteridade, na Psicologia. A principal
pesquisadora desse tema, na perspectiva da Teoria das Representações Sociais, é
Denise Jodelet (1998). Esta autora escreve que
[...] ao designar o caráter do que é outro, a noção de alteridade é sempre
colocada em contraponto: "não eu" de um "eu", "outro" de um "mesmo"...
é um produto de duplo processo de construção e de exclusão social que,
indissoluvelmente ligados como os dois lados duma mesma folha, mantém
sua unidade por meio dum sistema de representações (JODELET, 1998,
p.47-48).
41
Essa compreensão tem que se dar tanto no nível interpessoal como no
intergrupal, e supõe-se que a passagem do próximo ao alter traz consigo o social
por meio da pertença a um grupo, sustentando assim os processos simbólicos e
materiais da produção da alteridade. Desse modo, a alteridade pode também ser
entendida como produto do duplo processo de constrão e de exclusão social,
podendo até gerar mais esta última.
Na Psicologia Social, o termo produção da alteridade se refere ao processo
de elaboração da diferença em relação a um outro, sendo orientada para o interior do
próprio grupo em termos de proteção, e para o exterior em termos de desvalori-
zação do diferente, associando, num mesmo movimento, a construção da identidade
e a exclusão da diferença. Já o 'objeto alteridade' acha-se situado no plano do
vínculo social, em que a relação entre um ego e um alter implicará apenas esse
plano, quaisquer que sejam os contextos de inclusão. Será um substantivo
elaborado no seio de uma relação social e em torno de uma diferença. Jodelet
(1998) diz ainda que, para entender a elaboração da diferença na alteridade,
convém voltar-se para as relações sociais engendradas pela organização e
funcionamento social, mostrando que a produção da alteridade associa,
num mesmo movimento, uma construção e uma exclusão. É levando em
conta os processos simbólicos e práticos de marginalização que se pode
estudar a alteridade como forma específica de relação social, superando
a sua definição puramente negativa de que o outro não é o mesmo
(JODELET, 1998, p.52).
Joffe (apud ARRUDA, 1999), discorrendo sobre alteridade, traz o conceito
de "outro" como algo amplamente empregado na teoria feminista e cultural, e
geralmente aplicado aos que estão excluídos, subordinados a grupos de pessoas
que se consideram donas das idéias dominantes. Ela cita Said (1978), que postula
que ser o "outro" é ser objeto de fabricações de alguém diferente e, com isso,
42
deixa de ser um sujeito com poder e voz, podendo ser depreciado, como no caso
dos judeus, sob o pretexto de serem diferentes.
Jovchelovitch (1999) também discute a questão da alteridade, e postula
que "a consciência do outro em sua alteridade, ou seja, a consciência da diferença,
é um problema de proporções históricas e de contínua importância na vida de
grupos e comunidades" (p.69). Ela cita Sartre, dizendo que, na perspectiva a partir
da qual esse filósofo compreendeu o mundo, a alteridade seria um inferno, uma
vez que a presença de outros envolve um sistema de diferenças e distinções que
é impossível de ser evitado. Mesmo não concordando com este olhar sartriano,
ela aponta que cada um de nós é inter-subjetivo, e "o reconhecimento de que a
alteridade atravessa o que somos tem conseqüências não apenas para o que
fazemos, mas para o modo como fazemos o que fazemos". O incômodo que o
outro oferece é o de uma vida onde a onipotência do desejo do sujeito é um
sonho em vão, pois estará "limitado pelo desejo do outro, pelo seu olhar, seu
gesto e reconhecimento" (JOVCHELOVITCH, 1999, p.74). Esse olhar limitador do
outro pode conter a:
onipotência dum olhar autocontido, um olhar certo de si mesmo e da
verdade que impunha. Para este olhar, o outro não existe, e com seu
desaparecimento simbólico, comunidades são destruídas, direitos
individuais são postos em questão, saberes sociais tornam-se uma
ameaça, e o viver, de fato, pode tornar-se um inferno. Contra essa
sombria visão, nossa única alternativa e esperança seria a resistência
ativa deste outro (JOVCHELOVITCH, 1999, p.75).
Dentro desta perspectiva, o que podemos afirmar, resumidamente, é que:
a questão do preconceito, sob o olhar da Cognição Social, fez-se presente a partir
da reflexão de Allport (1971), que indicou que as pessoas estão sendo o tempo
todo expostas a conceitos, valores etc. pelo meio cultural e histórico, podendo ser
43
aceitas ou afastadas, dependendo do contexto no qual estejam inseridas. Tajfel
(1978) disse que o indivíduo busca sua identidade social através de sua inserção
num grupo social, e assim reconhecerá 'o nós e o eles', podendo iniciar atitudes
de comparações e ações discriminatórias ou não. Para ele, os conceitos e normas
sociais são aprendidos na infância, com grande influência cultural. A Teoria das
Representações Sociais considera o senso comum como um sistema de repre-
sentação da realidade, com suas ideologias, crenças coletivas, entre outros, onde
tanto o sujeito quanto o sistema social estão em constante mudança. A questão
da alteridade aparece nesta linha de pensamento, sendo tema aprofundado pelos
estudos de Jodelet (1999), onde o mesmo é compreendido como um processo de
exclusão e inclusão nas relações sociais, em que a diferença poderá aproximar
ou refratar o outro, dependendo do que este vier a representar: algo positivo ou
negativo para a harmonia do grupo, ocorrendo aí relações de poder.
1.2.3 Preconceito na Perspectiva do Interacionismo Simbólico
O Interacionismo Simbólico tem sua história demarcada por dois pesqui-
sadores que participaram da era conhecida como "a Escola de Chicago": George
Mead e Erving Goffman. De todos os representantes da Escola de Chicago, foi
Mead quem exerceu maior influência na Psicologia Social e no seu desenvolvimento
como ciência. Para ele, o conhecimento deveria estar vinculado à ação (ÁLVARO;
GARRIDO, 2006).
Foi na Escola de Chicago que a pesquisa empírica, com temas urbanos
relacionados a problemas sociais emergentes (imigração, europeus instalados na
cidade, criminalidade, delinqüência) e com o emprego de novos métodos qualitativos
de pesquisa (diversas fontes documentais, documentos pessoais e trabalho de
44
campo), começou a ser valorizada. Para Mead, a conduta individual e as regularidades
dos grupos sociais não poderiam constituir entidades isoladas e independentes.
Ele valorizou não apenas o trabalho de campo (observação, entrevista, testemunho,
observação participativa), mas também a utilização de documentos pessoais,
como autobiografias, diários e relatos feitos pelos próprios indivíduos. Ou seja,
escolheu metodologias múltiplas para seu trabalho (PORTUGAL, 2006).
Mead postulava não haver dicotomias tais como: mente-corpo, indivíduo-
sociedade, biológico-cultural. Ele acreditava numa perspectiva processual; por
exemplo, para ele a linguagem "surge e reside dentro do campo da relação entre
o gesto de um organismo humano e sua subseqüente conduta na medida em que
é indicada ao outro organismo por este gesto" (PORTUGAL, 2006, p.114). É na
linguagem que ocorre a evolução da pessoa, e é na forma desse gesto vocal que
acontece a interação simbólica (ÁLVARO; GARRIDO, 2006).
Postulou, também, que a significação é construída objetivamente como
relação entre certas fases do ato social, num processo relacional que envolve o
gesto de um organismo, sendo o ato social já incluso neste gesto, assim como a
reação do outro a essa ação (PORTUGAL, 2006).
Já o indivíduo, para Mead, é concebido como um efeito da experiência e não
como seu produtor; indivíduo e sociedade seriam, então, produtos de um mesmo
processo pré e extra-individual, histórico e contextual. O ato social envolveria
sempre o outro (uma relação), sendo simultaneamente agente e objeto neste
processo. A mente não é um produto espontâneo de um indivíduo, mas a
expressão de formas organizadas de experiências sociais. A pessoa emerge no
processo social organizado na medida em que se torna objeto para si; ou seja,
além da consciência dos objetos percebidos haveria a consciência de si (
PORTUGAL,
45
2006). Conseqüentemente, o indivíduo estaria sempre numa posição de agente
ativo diante das influências do meio (ÁLVARO; GARRIDO, 2006).
Esses, entre outros pressupostos teóricos de Mead, fizeram dele um
inaugurador de idéias controversas e pouco aceitas na época, pois era o positivismo
quantitativista que vingava nas academias, onde o que fosse mensurável era o
que se considerava como ciência.
Goffman fez do seu trabalho uma reflexão sobre delinqüência, doença
mental e processos de estigmatização. Trabalhou com observações, privilegiou
análises etnográficas sobre as relações entre as instituições sociais e as categorias
subjetivas e pesquisou, entre outros temas, a construção da carreira de doente e
do "eu" na vida cotidiana. Suas observações são ricas do ponto de vista meto-
dológico, pois ele usou a análise qualitativa a partir de situações sociais reais não
controladas. Ele considerava que a metáfora da estrutura é essencial para a
compreensão da vida social – e por estruturas queria dizer o conjunto de percepções
construídas socialmente que formam o contexto de qualquer interação específica
(PORTUGAL, 2006).
Um dos temas pesquisados por esse autor é o estigma. Para Goffman
(1975), estigma é tudo aquilo que é diferente do que o grupo social considera como
"normal". A pessoa estigmatizada é aquela que está inabilitada para a aceitação
social plena. Em nosso entendimento, isso reforça a questão da aproximação
entre o preconceito e o estigma, uma vez que um poderá gerar o outro.
O estigma não é algo novo ou mesmo contemporâneo. Sabe-se, pela
história, que o termo foi criado na Grécia clássica, época em que as pessoas
eram marcadas com sinais no corpo; o sinal significava que essa pessoa não era
bem-vinda na convivência social entre pessoas que se julgavam normais e
46
absorvendo os valores da época (GOFFMAN, 1975). Para esse autor, a sociedade
que se autodenomina normal trata a "diferença" como se esse outro diferente não
fosse humano; assim, a discriminação e o medo do perigo que este "estranho"
representa levam-no a ter menores chances de sobrevivência social, pois prova-
velmente ficará excluído e distante das relações sociais cotidianas.
Se a pessoa é considerada inabilitada para a convivência social plena, a
sociedade estabelece meios de categorizá-la limitando-a ou mesmo impedindo-a
de cumprir seus papéis sociais. Esse é um processo de julgamento, pois impomos a
outra pessoa nossas expectativas e o que pensamos que ela deveria ser (a partir de
nossas demandas pessoais e sociais). Buscamos uma identidade social virtual
(expectativas sobre o que o outro possa ser) e nos deparamos com a identidade
social real (atributos reais que a pessoa de fato possui). É justamente nessa
discrepância entre o que esse indivíduo é (real) e o que achamos que ele seja
(virtual) que ocorre o julgamento, logo, o estigma. Assim, surge no estigmatizado a
sensação de não saber o que os outros estão pensando dele (GOFFMAN, 1975).
Freqüentemente, a pessoa estigmatizada tenta se aproximar dos que a
julgam, procurando adaptar-se, para não ser diferente do outro que lhe imputa valores.
A condição para ser aceito pelo que se considera normal exige do estigmatizado
enfrentar situações difíceis para manter uma convivência harmônica:
Quando uma pessoa estigmatizada adota essa posição de bom ajuste,
diz-se com freqüência que ela tem um caráter forte e uma profunda
filosofia de vida talvez porque nós normais desejamos encontrar uma
explicação para a sua força de vontade e a sua habilidade de agir assim
(GOFFMAN, 1975, p.132).
Para esse autor, "O normal e o estigmatizado não são pessoas, e sim
perspectivas que são geradas em situações sociais durante os contatos mistos,
47
em virtude de normas não cumpridas que provavelmente atuam sobre o encontro"
(GOFFMAN, 1975, p.149).
Esse pesquisador, segundo Giddens (2003), foi um importante e persistente
estudioso das rotinas da vida cotidiana, oferecendo importantes esclarecimentos a
respeito do caráter da integração social, estando elas presentes ou ausentes, com
importantes contribuições para a "exploração das relações entre a consciência discur-
siva e a consciência prática nos contextos de encontros" (GOFFMAN, 1975, p.81).
Goffman propõe uma análise microssociológica da interação social que,
entretanto, não possui um caráter individualista. Para ele,
os papéis que representamos e as máscaras que utilizamos para realizar
nossa representação/apresentação diante dos outros estão prescritos
socialmente, ao mesmo tempo em que são produtos dos acordos aos
quais chegamos no decorrer da interação
e, embora existam normas sociais, essas não regulam necessariamente a ação
das pessoas (ÁLVARO; GARRIDO, 2006, p.210).
Outro autor que, a nosso ver, dialoga com a perspectiva interacionista é
Rom Harré. Dentre seus estudos importantes, um deles foi sobre a noção de
regras. Para ele, essas devem ser entendidas a partir da Psicologia Social, pois
são "normas locais sobre o que é conduta apropriada ou inapropriada, e as ações
das pessoas, e o que dizem a respeito delas, devem ser tratadas em relação ao
conjunto de regras que guiam a ação social" (ÁLVARO; GARRIDO, 2006, p.329).
As teorizações de Davies e Harré (1990) sobre posicionamento são
particularmente relevantes para pensar o preconceito no cotidiano. Esse conceito
apresenta-se muito mais dinâmico do que, por exemplo, a identidade, que nos dá
a noção de algo mais estrutural ou mesmo fixo. Já o posicionamento, segundo os
autores, é fluido e contextual, em que pessoas ocupam posições, conscientemente
48
ou não, como parte do processo de interação. Ou seja, são as diversas maneiras
como as pessoas, pelas práticas discursivas, irão produzir suas realidades
psicológicas e sociais.
Desta forma, a conversação é tida como uma ação conjunta para a
produção de atos de fala e o 'posicionamento' é um fenômeno da ordem da
conversação. A conversação se desenrola por meio da "ação conjunta de todos
os participantes na medida em que eles fazem (ou procuram fazer) as ações,
suas e dos outros, socialmente categóricas (determinante)" (DAVIES; HARRÉ,
1990, p.2). O 'significado social' do que foi dito depende do posicionamento dos
interlocutores, pois estes são, por si mesmos, produto das forças sociais.
Essa institucionalização da linguagem pode ser disciplinar, política,
cultural ou de pequenos grupos; pode competir entre si e criar versões diferentes
da realidade e, ainda no que diz respeito ao conhecimento, esse conhecer alguma
coisa é sempre em termos de um ou mais discursos. Nessa teoria social, o
discurso possui um papel semelhante ao dos 'esquemas conceituais' (compreendido
como discurso, processo público multifacetado por meio do qual os sentidos são
alcançados de forma progressiva e dinâmica). É por meio das práticas discursivas
que o sujeito vê o mundo e se posiciona em relação ao outro nas relações sociais.
"Um indivíduo emerge dos processos de interação social não como um produto
final fixo, mas como um que é constituído e reconstituído através das várias
práticas discursivas nas quais participa." (DAVIES; HARRÉ, 1990, p.3). Logo, quem
somos sempre será um leque de possibilidades, uma pergunta aberta, pois dependerá
de nossas práticas discursivas cotidianas, bem como das dos outros, além das
histórias que farão sentido para ambos.
49
Os autores também conceituaram o que seria a multiplicidade do self.
Para eles, nossos sentidos pessoais e de como o mundo deve ser interpretado na
perspectiva de quem achamos que somos envolvem os seguintes pressupostos:
1) há a aprendizagem das categorias (as pessoas são incluídas e excluídas);
2) quando ocorrem as práticas discursivas, as categorias anteriormente citadas
ganham sentidos, incluindo aí a história de vida de cada um e, assim, ocorrem
diferentes elaborações das posições das pessoas; 3) há o posicionamento do self
em relação às categorias (como pertencer a uma destas); e 4) quando uma
pessoa se auto-reconhece como membro de uma categoria de classe, ocorre um
desenvolvimento da forma de ver e de pertencer ao mundo, fazendo-nos
posicionar e nos comprometer moral e emocionalmente com relação a este grupo
por conta do sentimento de pertença.
Quanto à dinâmica, mesmo não sendo intencional, o posicionamento
funciona por meio de um processo discursivo em que os selves são situados nas
conversações como participantes, sempre coerentes com as histórias conjun-
tamente construídas. Pode haver posicionamento interativo (situação onde uma
pessoa diz algo e posiciona a outra) e posicionamento reflexivo (quando nos
autoposicionamos). Essa flexibilidade deriva do fato de que as pessoas, como
locutores, apesar das crenças sobre si mesmas, estarão sempre em mudança,
seja na forma de pensar ou de agir, à medida que as práticas discursivas interagem
e mudam e, conseqüentemente, elas assumem posições nas mais variadas linhas
de história. Isso acontece porque esses selves podem ser contraditórios.
Sendo assim, diferentemente do conceito de papéis, em que a pessoa
pode ser separada do papel que ela assume, a questão da posição aparece como
um "conceito organizador central para analisar como as pessoas fazem o ser
50
pessoa, nós nos deslocamos para uma concepção diferente da relação entre
pessoas e suas conversações" (DAVIES; HARRÉ 1990, p.14). Davies e Harré
apontam ainda que:
Com o posicionamento, o foco está na maneira como as práticas discursivas
constituem os locutores e ouvintes podem negociar novas posições. Uma
posição de sujeito é uma possibilidade dentro de formas conhecidas de
falas; a posição é o que é criado na e por meio da fala à medida que
locutores e ouvintes assumem-se como pessoas. Esta forma de pensar
explica as descontinuidades na produção do self a partir das múltiplas e
contraditórias práticas discursivas e das interpretações destas práticas
que podem ser trazidas por locutores ouvintes para a situação, ao se
engajarem em conversações (p.14-15).
Spink (1999) afirma que posicionar-se é como que navegar "pelas múltiplas
narrativas com que entramos em contato e que se articulam nas práticas discursivas".
Para a autora, a questão do posicionamento é onde acontece o processo de
interanimação dialógica, no qual os selves serão "situados nas conversações como
participantes observáveis e subjetivamente coerentes", especialmente se pensados
em termos das suas histórias, pois, embora realizadas em conjunto, haverá
sempre uma "linha de história" produzida em determinados contextos.
A abordagem interacionista simbólica muito contribuiu para a Psicologia
Social contemporânea. Num breve destaque temos Mead, para quem todo
conhecimento deve estar relacionado à ação, sendo a linguagem um fator importante
na evolução da pessoa e na interação simbólica; Goffman, que privilegiou o
trabalho com observações da vida cotidiana, utilizando metodologias qualitativas
diversas, e estudou pessoas estigmatizadas usando a análise microssociológica da
interação social; Davies e Harré, que, em suas teorizações sobre posicionamento,
nos apontam que é nas conversações, ou seja, nas práticas discursivas, que os
51
posicionamentos sociais ocorrem, ou seja, é na interação social que o indivíduo é
constituído e reconstituído enquanto ser histórico.
1.2.4 Preconceito na Perspectiva dos Processos da Exclusão Social
Os teóricos da Escola de Frankfurt, Adorno, Benjamin, Marcuse, Horkheimer,
entre outros, tiveram como ponto comum tentar compreender a modernidade como
uma totalidade. Como princípios básicos e norteadores da Teoria Crítica temos:
1) a noção de crítica consistiria em examinar e colocar em suspenso qualquer
juízo sobre o mundo para sua própria interrogação; 2) a crítica ao positivismo nas
ciências humanas, diferente do positivismo, que anula o homem como ser, a
Teoria Crítica inspirada em Kant, considerava o homem como um ator autônomo
e responsável que sabe o quê e porque faz, como ser social em interação com
outros seres sociais que agem num contexto sociocultural determinado, numa
dinâmica regida por um conjunto complexo de regras, cujos significados interpreta
e decide seguir ou não. As estruturas sociais aparecem como uma oportunidade,
cuja dinâmica se constrói permanentemente, atravessada pelas motivações e
razões dos seus atores; 3) a abordagem "micrológica", modelo de pesquisa
calcado na escolha do detalhe, do particular, mas que vislumbra o todo. Não se
trata de método, mas de um contramétodo, um antídoto às metodologias lógicas
derivadas de estruturas engessadas; 4) as tentativas de aproximações teóricas
entre Freud e Marx. Para os frankfurtianos, a teria proposta por Marx não dava
conta da complexidade do mundo da modernidade, especialmente se pensada
em termos do exemplo nazista, que mobilizou a nação alemã num movimento de
preconceito generalizado contra os judeus. Sendo assim, a teoria psicanalítica, ao
reconhecer a oposição entre desejo e razão, oferece uma linha de fuga teórica
52
considerada desde então fundamental como possibilidade de examinar a dinâmica
social (SOARES, 2006).
Em relação ao preconceito, Adorno, Levinson, Sanford e Frenkel-Bruswik
(1950) publicaram um estudo sobre a personalidade autoritária, que teve por objetivo
verificar a relação entre a adesão a tipos de ideologias político-econômica, liberal
ou conservadora e configurações de personalidade, predispostas ou não ao fascismo.
Eram estudiosos da sociedade, e entendiam que tanto a ideologia quanto as
personalidades eram mediadas socialmente, não podendo ser entendidas em si
mesmas, mas pela configuração social (
CROCHIK, 2005).
Sobre preconceitos e estereótipos, esses pesquisadores postulavam que,
na constituição da personalidade, poderia haver influência das regras, valores e
costumes sociais, dependendo da configuração social.
Crochik (1997), a partir de autores como Adorno e Freud, tece algumas
reflexões, segundo as quais ninguém está imune ao preconceito. O autor traz
algumas contribuições sobre o tema. Para ele, o preconceito é uma reação individual,
assim como o estereótipo é um produto cultural, aparecendo sempre como uma
realidade deturpada.
O preconceito seria um fenômeno que aponta para duas dimensões: a
do indivíduo e a da sociedade. Para que uma pessoa se torne preconceituosa,
segundo o autor, além da questão psicológica há também implicações quanto ao
processo de socialização, pois é como fruto da cultura e da história que esse sujeito
se transforma e se forma como indivíduo. A pessoa com preconceito desenvolverá
esse comportamento em relação a diversos objetos: negros, judeus, pobres, entre
outros. Essa postura preconceituosa sobre o objeto surge a partir da cultura.
Sendo o sujeito produto da cultura, apesar de sua singularidade e mesmo com a
53
experiência, não consegue refletir o suficiente para desfazer seus objetos de
preconceito, pois está imerso nesses valores.
Diz Crochik (1997, p.13): "a onipotência – manifestada ou velada – pela
qual o preconceituoso julga-se superior ao seu objeto corresponde à impotência
que sente para lidar com os sofrimentos provenientes da realidade". Desta forma,
o indivíduo reagiria a um perigo real ou imaginário, podendo tanto atacar quanto
ignorar o outro.
Como elementos que fazem parte do preconceito o autor aponta:
1) o estereótipo, que é produto cultural para o controle social e padronização, de
modo a garantir o status quo, justificando assim a dominação e naturalizando uma
situação de opressão; 2) a dominação, em que ocorre a subjugação real e imaginária
que se faz presente quando há necessidade de julgar o outro, compensando a
própria fragilidade sentida e não admitida. O autor afirma que "numa cultura que
privilegia a força, o preconceito prepara a ação da exclusão do mais frágil por
aqueles que não podem viver a sua própria fragilidade" (CROCHIK, 1997, p.23).
O antídoto para que haja uma possibilidade de mudança quanto ao precon-
ceito seria a reflexão sobre si mesmo dos juízos formados através da experiência.
No entanto, o preconceituoso não é susceptível à argumentação racional e, em
muitos casos, nem mesmo à experiência, apresentando argumentações lógicas
para não refletir.
Para Crochik, conceituar preconceito é complexo, por sua gênese e formação
social, e, também, porque se situa como resultante de conflitos dentro de cada
uma das dimensões da realidade social e individual: no social, dá-se na luta
contra a natureza necessária para a autoconservação e na regulamentação para
o convívio social e, no individual, entre os desejos do indivíduo e a possibilidade
54
de sua realização. O preconceito seria uma regressão social e individual, pois,
apesar de todos os recursos que a civilização oferece nos dias atuais, o homem
ainda necessita de confrontos com outros homens para garantir sua sobrevivência.
Para Heller (2000, p.43), "o preconceito é a categoria do pensamento e do
comportamento cotidianos". Segundo ela, a compreensão dos preconceitos deve
partir da esfera da cotidianidade, pois, em se tratando de preconceito, pensamento
e comportamento têm a mesma implicação.
A ultrageneralização, inevitável na vida cotidiana, é uma estratégia aprendida
pelas pessoas por meio das experiências ou das tradições. É característica de
nosso pensamento e comportamento, e acontece quando assumimos estereótipos,
analogias e esquemas já elaborados, transmitidos pelo meio em que crescemos
(sendo que muitas vezes não se tem noção crítica dessa 'herança'). Preconceito
seria, então, um tipo particular de juízo provisório, o que significa dizer que nem todo
juízo é preconceito. A ciência não está neutra quanto a praticar juízos provisórios e
preconceitos, quando refuta argumentos que possam trazer experiências novas, mas
que não entram nos esquemas já estabelecidos das chamadas verdades científicas.
O que provocaria o preconceito, segundo a autora, seriam as interações
sociais nas quais vivem os homens, especialmente pela diferença de classes sociais.
Há muitos tipos de preconceito: preconceitos-tópicos (homens bons e maus),
preconceitos morais, científicos e políticos, preconceitos de grupo, nacionais,
religiosos, raciais etc. Quaisquer que sejam, contudo, sua esfera é sempre a vida
cotidiana. Heller (2000, p.57) destaca que:
o homem predisposto ao preconceito rotula o que tem diante de si e o
enquadra numa estereotipia de grupo. Ao fazer isso, habitualmente passa
por cima das propriedades do indivíduo que não coincidem com as do
grupo... há duas coisas que o homem predisposto nunca é capaz de
fazer: corrigir o juízo provisório que formulou sobre um grupo baseando-se
55
em sua experiência posterior, e investigar acerca da profundidade da
integração dos indivíduos em seus respectivos grupos. [...] O homem
predisposto não se deixa impressionar sequer pelas qualidades éticas
do indivíduo.
Como vemos, segundo a autora, o preconceito social, dependendo de sua
generalização ou dominação, poderá apresentar ou não estereótipos. Outra
característica importante é que a maioria dos preconceitos é produto da classe
dominante, uma vez que esta deseja alimentar seu status de dominância. Em
relação ao "outro", o desprezo, a antipatia, a indiferença sempre estiveram presentes,
e são tão antigos quanto a própria humanidade. O homem com predisposição ao
preconceito rotula o que tem diante de si e o enquadra numa estereotipia de
grupo, passando por cima do "outro", desqualificando-o e, segundo Heller (2000),
nunca estando disposto a corrigir seu juízo provisório, desconsiderando até
qualidades éticas que esse "outro" possa apresentar.
É na estrutura antropológica permanente do preconceito que o movimento
individual – particular – ocorre, dado o pragmatismo das relações sociais. Quando
os grupos se sentem ameaçados, produzem constantemente preconceitos sociais,
e assim satisfazem suas "demandas" do particular-individual. Todo preconceito é
sempre considerado moralmente negativo "porque todo preconceito impede a
autonomia do homem, ou seja, diminui sua liberdade relativa diante do ato de escolha,
ao deformar e, conseqüentemente, estreitar a margem real de alternativa do
indivíduo" (HELLER, 2000, p.59). Esse círculo vicioso do preconceito, seja individual
ou social, se perpetuará se cada um que é responsável pelo seu próprio julgamento
não conseguir buscar o que a autora chama de "alternativa" para que haja uma
libertação das escolhas que nos são mais conhecidas e, por conseqüência, acabam
por recair nos mesmos juízos prévios do "outro".
56
Heller (1988) também se preocupou, em seus estudos sobre o "outro",
com o sentido da moral: o que ela chama de "teoria da responsabilidade". Ela
escreve: "importe-se com os outros seres humanos, bem como na sua formulação
negativa: não prejudique nenhum ser humano intencionalmente" (HELLER, 1998,
p.19). Alguns princípios são importantes para o evitamento do preconceito:
1) considerar a vulnerabilidade das pessoas, não ofendendo a elas ou aqueles
que elas amam. Não desprezá-las, não envergonhá-las. Além disso, expressar
amor, amizade e respeito pelas pessoas; 2) respeitar a autonomia das outras
pessoas. Não violar-lhes o corpo ou a alma, não tutelá-las; 3) valorizar o mérito
moral dos outros; 4) tentar diminuir o sofrimento dos outros.
Há outros autores que se debruçam sobre questões relacionadas a
sofrimentos e sentimentos associados ao preconceito. Cabe citar Bader Sawaia
(1999), que reflete a respeito da exclusão. Exclusão, segundo a autora, é um
processo sócio-histórico que se configura pelos recalcamentos em todas as esferas
da vida social e é vivido como necessidade do eu na forma de sentimentos,
significados e ações. Segundo a autora, há diferentes qualidades e dimensões da
exclusão, daí sua complexidade multifacetada, com configurações de dimensões
materiais, políticas, relacionais e subjetivas. Trata-se de processo sutil e dialético,
uma vez que só existe em relação à inclusão, como parte constitutiva dela. Não é
uma coisa ou um estado, mas um processo que envolve o homem por inteiro em
suas relações com os outros. A exclusão não tem uma única forma e nem é falha
do sistema: ela é produto do funcionamento do sistema.
Ao pesquisar o assunto, a autora opta pelo caminho da afetividade, por
acreditar que o conceito de sofrimento ético-político deve incorporar a ética, a
felicidade e o humano como critérios que se entrelaçam com o econômico e o
57
político quando se pensa o processo de inclusão perversa. Estudar a exclusão
pelas emoções das pessoas que vivem esse processo é refletir sobre o cuidado que
o Estado tem, ou não, com seus cidadãos: "Elas são indicadoras do (des)compromisso
com o sofrimento do homem, tanto por parte do aparelho estatal quanto da
sociedade civil e do próprio indivíduo" (SAWAIA, 1999, p.99).
As argumentações teóricas da autora, para compreender a questão da
exclusão sob esta perspectiva, estão embasadas em autores como Heller, Espinosa
e Vigotsky, por entender que eles concebem a emoção positivamente, como
constitutiva do pensamento e da ação, coletivos ou individuais, bons ou ruins,
como fenômenos objetivos e subjetivos que constituem, segundo essa visão, a
matéria-prima da condição humana. Referindo-se ao conceito de dor, a autora
reporta-se a Heller, que a postula como sendo própria da vida humana, logo, um
aspecto inevitável. Seria algo que emana do indivíduo, das afecções do seu corpo
nos encontros com outros corpos. Diz respeito, portanto, à sua capacidade de
sentir. Logo, o sofrimento é a dor mediada pelas injustiças sociais.
O sofrimento de estar submetido à fome e à opressão pode não ser sentido
como dor por todos; mas, quem vive essa situação da exclusão sente dor. Senti-
mentos morais também fazem parte dessa discussão. Vergonha e culpa seriam
exemplos desses sentimentos, com características degenerativas ou ideologizadas,
mas com a função de manter a ordem social excludente. De uma forma ou outra, as
emoções são apontadas como fenômenos históricos, e podem servir de estratégias
de controle social. Um breve exemplo: na época dos escravos, estes sofriam de
uma doença conhecida como banzo. Sawaia (1994) aponta que a humilhação por
ações legitimadas pela política de exploração e dominação econômica da época é
58
que gerava essa situação de sofrimento do povo escravo, levando muitos deles,
inclusive, à morte física.
Como o sofrimento ético-político abrange múltiplas e diferentes formas de
mutilação de corpos e almas, é salutar, segundo a autora, o conhecimento dessas
formas de exclusão e, dialeticamente, entendê-las como a outra face de uma mesma
moeda, de inclusão. Esta última pode servir de pretexto para a disciplinarização dos
excluídos, e, portanto, ser uma forma de controle e manutenção das desigualdades,
injustiças e exploração social.
Outro autor que aborda a exclusão é Bauman. A partir de um exemplo
histórico de sofrimento humano, o holocausto, propôs uma nova leitura dos acon-
tecimentos à luz das Ciências Humanas, especialmente da Sociologia. Em uma
postura crítica pessoal, o autor questiona o papel da falta de posição da ciência e de
todo o resto da humanidade diante dos fatos ocorridos. Sua profunda indignação,
como pessoa e profissional, vai sendo aos poucos revelada. Bauman (1998), já
nas primeiras páginas de seu livro, situa a barbárie do holocausto como sendo o
teste da modernidade. Para ele, uma outra face do ser humano apareceu como
sendo constituinte de uma mesma pessoa. Exemplifica essa afirmação ao mostrar
que, em meio a situações diversas dessa época, maridos, esposas, entre outros
exemplos, só se importavam em salvar a própria pele, esquecendo-se do outro,
mesmo sendo este um ente próximo.
Apesar do avanço civilizatório, como as tecnologias, o lado humano ficou
como que esquecido, se pensado pelo olhar do que significou o holocausto, em
que a razão não demonstrou senão o que ele chamou de "fracasso da civilização".
Para explicar por que o extermínio em massa ocorreu de forma tão brutal, Bauman
(1998) aponta alguns princípios: 1) a violência autorizada, ou seja, práticas
59
governadas por normas e papéis especificados; 2) as vítimas da violência foram
desumanizadas por definições ou doutrinações ideológicas.
É no silêncio da ética e da moralidade que se tornam possíveis várias
atrocidades humanas (individuais e sociais). A modernidade tornou possível não
só o holocausto, mas também a questão do racismo como um todo, dado o poder
estatal, a tecnologia moderna, a concepção de mundo e o avanço da ciência moderna.
Para ele, o racismo que se manifestou contra o povo judeu pode acontecer
em relação a qualquer outro povo, uma vez que isola certas categorias de pessoas
e lhes retira todas as chances de melhorar de vida, sendo, sem dúvida, uma das
formas de a sociedade moderna perpetuar as diferenças. São elementos como a
invisibilidade, o racismo, o distanciamento como razão prática da burocracia,
entre outros, que levaram – e levam – ao genocídio moderno.
A ação burocrática que gera a desumanização, a distância psicológica e
física que as novas tecnologias promovem (especialmente a informática), acabam
por obliterar a humanidade dos seus objetos humanos, separando pessoas em
suas interações e condições reais de proximidade, num ritmo sem precedente.
Sugere com isso que a desumanidade é uma questão de relacionamentos sociais.
Na mesma proporção em que estes são racionalizados e tecnicamente aperfeiçoados,
também o são sem sua capacidade e eficiência de produção social da desumanidade.
Para Bauman, fica claro que a produção social do comportamento humano se faz
pela indiferença e deslegitimação dos preceitos morais.
Bauman (1998) acredita na capacidade de juízo individual, o que seria,
então, a responsabilidade moral de resistir à socialização, a exemplo inclusive de
vários alemães que colocaram suas vidas em jogo para proteger judeus. Essa
capacidade de distinguir o certo do errado deve ser adquirida além da consciência
60
coletiva, tornando-se, assim, útil. A capacidade moral seria a capacidade de
resistir, escapar e sobreviver no processo de socialização, de forma que, no fim
do dia, a autoridade e a responsabilidade pelas opções morais repousem onde
sempre deveriam repousar: na pessoa.
Assim, a questão da moralidade deve ser re-situada, da problemática da
socialização aos processos humanizadores da educação e civilização, buscando,
desse modo, a questão da moral na esfera social.
Ele cita Dostoievski, que escreveu o seguinte: "somos todos responsáveis
por todos, por todos os homens perante todos, e eu mais que os outros". Estar
com os outros é ser responsável por este outro. Para Bauman (1998), a respon-
sabilidade é a estrutura fundamental, essencial e primária da subjetividade. Logo,
torno-me responsável ao me constituir como sujeito. Torno-me responsável pelo
outro mesmo que não haja reciprocidade.
Se a responsabilidade é o modo de existência do sujeito humano, a
moralidade é a estrutura primária da relação intersubjetiva na sua forma mais
cristalina, que precede ou está acima de todo interesse. A moralidade não é um
produto da sociedade, é algo que a sociedade manipula, explora, redireciona,
espreme. Por outro lado, o comportamento imoral não é um problema societário, e
requer investigação da administração social da intersubjetividade. Bauman (1998,
p.212) escreve: "A responsabilidade, tijolo constitutivo de todo comportamento
moral, surge da proximidade do outro, e proximidade significa responsabilidade e
responsabilidade é proximidade".
Infelizmente, há um distanciamento dessa proximidade e, conseqüentemente,
da responsabilidade para com o outro. A esse processo dá-se o nome de separação.
61
Essa separação pode causar indiferença. A indiferença ao outro provoca o que
temos assistido no cotidiano de nossa sociedade.
A importância dessa discussão, segundo o autor, é a de rever posturas,
principalmente quanto à questão da moralidade. A moralidade não está na questão
societária, mas na capacidade pessoal de discernimento. O dever moral tem que
contar puramente com sua fonte: a responsabilidade humana essencial pelo outro.
A lição do holocausto para a humanidade está em perceber como é fácil,
para a maioria das pessoas, arranjar justificativas para escapar ao dever moral, e
adotar preceitos de interesse racional e de autopreservação. Em um sistema em
que a racionalidade e a ética apontam em sentidos opostos, o grande perdedor é
a humanidade. Mas, para Bauman (1998), se a primeira lição é um alerta, a
segunda é uma esperança. Colocar a autopreservação acima de qualquer noção
de moralidade não é necessariamente solução possível diante das dificuldades da
vida, pois, apesar das pressões, não somos forçados a isso. Independente de
quantos optaram pela autopreservação, o que importa é que houve um outro
caminho de escolha: preservar a vida do outro. Pode-se, sim, resistir às pressões,
inclusive a da autopreservação – trata-se da ESCOLHA. O lado mais cruel da
crueldade é que ela desumaniza suas vítimas antes de destruí-las. E a mais dura
das lutas, afirma o autor, é "continuar humano em condições inumanas" (
BAUMAN,
1998, p.237).
Como vimos nesses textos acima, a questão do preconceito toma outros
rumos, não menos importantes que os outros, mas diferenciados quanto ao seu
olhar. Bauman, Sawaia, Crochik e Heller trazem, nessas discussões, a noção
da humanidade e da interação humana e suas relações sociais como aspectos
importantes para sua própria sobrevivência. Relações de poder, exclusão e inclusão,
62
cultura e história são diretamente constituintes da formação do indivíduo inserido
na sociedade, formatando seus direitos e responsabilidades, suas possibilidades
de reflexão e mudança, seja no pensamento ou na ação. A não neutralidade,
tanto científica quanto política e social, diante do sofrimento e desumanização do
outro, é um assunto que permeou este último contexto de discussão a respeito de
nosso interesse de pesquisa.
Negligência, indiferença, intolerância são palavras que não surgiram nos
textos no sentido específico do termo, mas ao mesmo tempo parecem presentes
e sinônimos quando nos deparamos com esses quadros teóricos, desde a primeira
até a última abordagem por nós considerada, estando presentes em cada autor
em sua descrição do que vem a ser – diretamente apontado ou não – o preconceito.
Cada uma traz em suas reflexões uma faceta que não só se diferencia, mas
sugere um universo de possibilidades de compreensão de como o preconceito
nasce e circula nas relações interpessoais e nas mais variadas práticas sociais.
Mais do que um levantamento e aprofundamento bibliográfico sobre a
questão do preconceito, nosso objetivo foi o de confirmar aquilo que já havíamos
imaginado: a complexidade do tema provavelmente não nos permitirá reduzir o
olhar a uma única cor desse prisma, mas aproveitar cada cor que nos é apresentada
e, a partir do empírico, ou seja, das entrevistas, tentar compreender, no presente,
os repertórios sobre o preconceito que circulam nas falas, nas idéias e nas
relações do dia-a-dia das pessoas.
63
CAPÍTULO II
O PRECONCEITO COMO LINGUAGEM SOCIAL
No capítulo anterior discutimos o tema central de nossa tese, o preconceito,
nas perspectivas das discussões teóricas e circulação de trabalhos científicos.
Buscando contextualizar historicamente as teorizações sobre preconceito nas
Ciências Sociais, pesquisamos todas as escolas que, de algum modo, conceituaram
ou discutiram a respeito deste tema, iniciando com as contribuições de Allport e
passando pelas perspectivas da Cognição Social, do Interacionismo Simbólico e
da Exclusão Social.
O objetivo deste capítulo é fazer uma ponte entre as teorizações existentes e
a nossa proposta de pesquisar o preconceito como prática corriqueira do
cotidiano de todos nós. Nosso enquadre, portanto, é o da linguagem em ação, e
nossa maneira de conduzir esta pesquisa está ancorada numa perspectiva de
Análise de Discurso, que vem sendo desenvolvida no Núcleo de Estudos e Pesquisas
sobre Práticas Discursivas e Produção de Sentidos (
NPDPS), coordenado pela
professora doutora Mary Jane P. Spink, na Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (
PUC-SP).
Assim, estruturamos o capítulo de modo a contemplar três aspectos centrais
à abordagem que utilizaremos nesta pesquisa: a questão da linguagem em ação,
a noção de cotidiano que sustentará nossas análises, e os principais aspectos da
abordagem de análise de práticas discursivas que vem sendo utilizada no Núcleo.
64
2.1 DAS POSSIBILIDADES DE CONCEBER A LINGUAGEM COMO AÇÃO: O
GIRO LINGÜÍSTICO
O foco desta tese é a linguagem em ação. Para compreender melhor as
implicações desta maneira de trabalhar com a linguagem é preciso falar um pouco
do que vem a ser o Giro Lingüístico. Esta expressão foi introduzida nas décadas
de 1970 e 1980 para designar mudanças quanto ao papel da linguagem nas
Ciências Humanas e Sociais, introduzindo novos conceitos sobre a natureza do
conhecimento, assim como propor novas estratégias para se compreender a realidade
social e cultural.
Iniciado na Filosofia, esse movimento teve como precursores Ferdinand
de Sausurre, que introduziu a lingüística moderna, Bertrand Russel e Gottlob Frege,
que inauguraram a Filosofia analítica, sendo a partir dos estudos destes dois filósofos
que os enunciados lingüísticos tomaram grande impulso para o giro lingüístico
anglo-saxão (IÑIGUEZ, 2004). No entanto, devemos deixar claro que, segundo
Iñiguez, o giro lingüístico não se fez a partir de apenas um processo, tendo
passado por progressivas articulações no meio nas Ciências Humanas e Sociais,
ficando assim com várias configurações.
Essa nova maneira de entender a linguagem foi foco de teorizações de
diversos pensadores em diferentes épocas, como, por exemplo, Chomsky, Heidegger,
Foucault, Rorty, Austin, entre outros, que contribuíram, cada um a seu modo, para
se compreender e fazer ciência. O que todos eles tinham em comum era um novo
e diferente olhar sobre as estratégias sociais, mais precisamente em relação a
compreender que a linguagem desempenha um papel crucial na formação daquilo
que entendemos por realidade, além de ser um instrumento para exercitar nossos
pensamentos e constituir nossas idéias. Passamos, assim, da posição clássica da
65
Filosofia da Consciência de representação da realidade para o papel de co-construção
como membros ativos de uma dada formação social.
Foram os filósofos de Oxford e sua corrente analítica centrada na linguagem
que mais contribuíram para a grande reviravolta metodológica das Ciências Sociais e
Humanas, havendo quatro grandes principais influências neste percurso. A primeira
questionou as verdades consideradas irrefutáveis desde a época de Descartes, a
partir de duras críticas de vários filósofos quanto à natureza do conhecimento científico
e ordinário, dentre eles Richard Rorty (1994). A segunda influência foi promover a
discussão a respeito do papel da linguagem como "atividade". Particularmente, essa
linha de pensamento influenciou as correntes construcionistas, nas quais
estudiosos como John Austin deram grande impulso ao caráter performativo da
linguagem, onde "dizer é, também e sempre, fazer". Segundo esta influência: "a
linguagem não só nos diz como é o mundo, ela também o institui; e não se limita
a refletir as coisas do mundo, também atua sobre elas, participando de sua
constituição" (IÑIGUEZ, 2004, p.39).
Na Psicologia Social, Kennet Gergen, John Shotter, Michel Billing, Ian Parker
e Johnathan Potter são alguns dos expoentes desta perspectiva que toma a
linguagem como ação, desenvolvendo a vertente teórico-metodológica da análise
do discurso.
A terceira influência provém de reflexões em que a linguagem não é tomada
apenas como ação "sobre o mundo", mas também "sobre os demais", resgatando
a retórica como artifício para criar realidades diversas. Bruno Latour é um dos
exemplos de pesquisadores que investigam os procedimentos retóricos na constituição
dos próprios "fatos" científicos (IÑIGUEZ, 2004).
66
A quarta e última influência provém da Sociologia, incluindo aí a Etnome-
todologia, com suas análises minuciosas de conversas, até as Sociologias qualitativas
e interpretativas. Isso se deve ao fato de a linguagem ser compreendida como
constitutiva da realidade, servindo assim como um instrumento de possibilidade
de atuação sobre o mundo e também sobre os semelhantes.
Iñiguez (2004) conclui que, com essas quatro influências, houve uma gama
de novas possibilidades a partir do giro lingüístico, em que a linguagem, como um
importante e fundamental elemento de análise, pode ser estudada por diferentes
metodologias que muito enriqueceram as Ciências Sociais e Humanas.
Enquanto movimento, o giro lingüístico rompeu com tradições seculares
dos estudos do "mundo das idéias" interiorizado e privado, lançando a linguagem
para fora, como que desnudada, em forma de pensamento e ação, onde, para
compreender o mundo, é necessário compreender o discurso como instrumento
para fazer coisas e não somente para representar coisas. A linguagem, portanto,
fica compreendida, a partir deste giro lingüístico, não como algo estático, mas
como um instrumento que pode produzir, formar e transformar realidades.
2.2 SOBRE O COTIDIANO: APROXIMAÇÕES TEÓRICAS
Segundo o historiador Michel de Certeau (1997), o cotidiano é aquilo que
nos é dado a cada dia, ou o que pelo menos nos cabe em partilha. É tudo o que
nos pressiona, dia após dia. Cotidiano seria, enfim, todos os dias, aquilo que
assumimos ao despertar.
A partir do olhar da Sociologia do Conhecimento, e mais especificamente
das teorizações de Berger e Luckmann (2004), a vida cotidiana apresenta-se como
uma realidade interpretada pelos homens, subjetivamente dotada de sentido, na
67
medida em que forma um mundo diferente. O cotidiano é onipresente nas vidas
das pessoas e tem sua origem no pensamento e na ação dos homens comuns,
sendo firmado como real por eles, não requerendo maior verificação, por se
apresentar como facticidade evidente. Essa realidade está embuída de tempo,
espaço, localização e historicidade. É, portanto, por meio da linguagem que o
cotidiano pode ser compreendido e, assim, adquirir sentido.
Para Heller (2000), a vida cotidiana é a vida de todo homem, pois todos a
estão vivendo, independentemente do trabalho intelectual ou físico, ou de qualquer
outro tipo de habilidade, sentimentos, idéias ou ideologias. É a vida do homem
inteiro, ou seja, com sua personalidade e individualidade. O homem, segundo a
autora, já nasce inserido nessa cotidianidade, e seu amadurecimento ocorre à
medida que vai adquirindo habilidades imprescindíveis para a vida em sociedade
e, assim, para viver por si mesmo essa cotidianidade.
Será nos grupos, nas relações face a face, que, através do que a autora
denomina de mediação, os costumes, as normas, os valores e outros elementos
da sociedade serão apreendidos pelo homem. A vida cotidiana faz parte do processo
histórico, trazendo para este cotidiano coisas do passado e do presente. Sendo
assim, o homem é, ao mesmo tempo, genérico e particular. É na espontaneidade
da vida cotidiana, característica marcante do cotidiano, que as coisas acontecem:
daí a impossibilidade de previsão, mesmo para a ciência, das conseqüências
possíveis de uma ação. Elas podem encaixar-se em probabilidades, mas não em
certezas. Fé, confiança, economicismo, juízo provisório, entre outras características,
fazem parte da vida cotidiana. Resumindo, é na condução da vida cotidiana,
levando em consideração a história, os tempos presentes, as condições sociais,
econômicas etc. que se supõe que cada um deva apropriar-se, a seu modo, da
68
realidade e impor a ela a marca de sua personalidade, mesmo mantendo a
estrutura da cotidianidade.
Embora não tenha discutido a questão do cotidiano, as teorizações de
Goffman, segundo Giddens (1989), basearam-se persistentemente na análise das
rotinas da vida cotidiana, buscando esclarecer o caráter da integração social, nas
ausências e presenças dessas interações. São muitas as possibilidades apresentadas
por este autor, refletindo o que ele chamou de consciência dos discursos e das
práticas nos contextos dos encontros, fio condutor da interação social no ciclo diário
de atividades. É na linguagem, ou seja, na conversação cotidiana que os encontros
são sustentados. Sobre o cotidiano, Giddens (1989), citando vários autores, aponta
alguns elementos que estão aí presentes: serialidade (fenômenos seqüenciados,
interpolados, incluindo aí a monitoração reflexiva do corpo e gesto), a fala, a reflexi-
vidade e o posicionamento (entendido aqui como uma questão de identidade social).
Parece-nos que essas teorias sobre o que é o cotidiano e sobre o que se
pode abstrair no cotidiano para uma pesquisa, como no caso específico de Goffman,
estão afinadas em alguns pontos que, a nosso ver, somam-se, complementando
o que, embora tão conhecido e presentificado em nossas vidas, torna-se, por
outro lado, complexo.
Seja o cotidiano aquilo que nos é dado a cada dia, ou uma realidade
interpretada historicamente, ou, ainda, a vida de todo homem, um fio condutor da
interação social no ciclo diário de atividades, há um ponto em comum e inegável a
todas as explicações: todos se iniciam e terminam no ser humano. Ser humano
este historicamente localizado, posicionado, convivendo com seus pares, interagindo
socialmente, ou seja, vivendo e convivendo com sua cotidianidade. Sendo então,
este ser humano, o protagonista do cotidiano, parece-nos plausível, como pesqui-
69
sadores, preocuparmo-nos não com o tipo de cotidiano que estamos tratando,
mas com as pessoas que estão inseridas no mesmo em suas relações sociais e
práticas discursivas.
Trata-se de uma postura diferenciada, quando pensamos principalmente
no compartilhamento dessas interações, principalmente em relação a um assunto
tão conhecido, mas tão delicado, como a questão do preconceito. Estamos tomando
como pressuposto que conhecer o cotidiano é compatível com aquilo que Spink
(2007) apontou como uma forma construcionista de pesquisar, em que pesquisador
e pesquisado fazem parte de uma mesma comunidade. Logo, estamos com isso
reafirmando a tese de que o preconceito e seus sentidos acontecem no dia-a-dia,
não importando, portanto, o tipo de cotidiano, mas, sim, como acontecem essas
práticas discursivas em relação a esta temática.
2.3 A ABORDAGEM DE ANÁLISE DE PRÁTICAS DISCURSIVAS UTILIZADAS
PELO NÚCLEO DE ESTUDOS E PESQUISAS SOBRE PRÁTICAS
DISCURSIVAS E PRODUÇÃO DE SENTIDOS (NPDPS)
Se estamos propondo que focalizar o preconceito no dia-a-dia é falar das
práticas discursivas e da produção de sentidos pelas pessoas em suas dialogias e
interações sociais, é necessário situar o que entendemos por práticas discursivas.
Compreendemos práticas discursivas como sendo linguagens sociais, com enun-
ciados e vozes presentes nas conversações que Bakhtin (1994) denomina de
interanimação dialógica. Práticas discursivas, desse modo, são as linguagens em
ação em que pessoas produzem sentidos e se posicionam em suas relações
sociais cotidianas (SPINK; MELDRADO, 1999). A pessoa não existe isoladamente,
uma vez que, estando na presença do outro, a linguagem que se processará entre
70
ambos será sempre uma linguagem social, produzindo ações, e conseqüências a
partir destas.
A abordagem voltada à compreensão das práticas discursivas que vem
sendo elaborada no NPDPS está assentada em três principais pilares: um deles
versa sobre a natureza do conhecimento e se alia à perspectiva construcionista; o
segundo toma as práticas sociais como relações de poder e tem em Michel Foucault
seu principal suporte; e o terceiro, voltado ao suporte teórico propriamente dito,
focaliza os processos de interanimação dialógica.
Para localizar e contextualizar esta postura metodológico-epistemológica,
iniciaremos situando a perspectiva epistemológica do construcionismo e as questões
teóricas do estudo das práticas discursivas.
2.3.1 Sobre a Perspectiva Construcionista
O Construcionismo surgiu a partir de movimentos questionadores das
formulações representacionistas enquanto descontentamento com relação à produção
de conhecimento. Na ciência, temos alguns exemplos deste abalo inconformista
na Biologia, na Física, na Antropologia, entre outros. Na Filosofia, iniciou-se com a
reação ao representacionismo; na Sociologia do Conhecimento, com a desconstrução
da retórica da verdade, atingindo a Psicologia, inclusive a Psicologia Social. Eram
movimentos amplos, reconfigurando inclusive visões de mundo próprias de cada
época. Na Sociologia em especial, a inquietação construcionista se fez presente
em autores como Garfinkel e Berger e Luckman.
Reflexões sobre a realidade ser socialmente construída e, portanto, ser
um produto humano, aparecem como temáticas centrais. Nessas teorizações, o ser
humano é visto como um produto social em constante transformação e ressignificação.
71
Rupturas, desfamiliarização, entre outros termos, levam o Construcionismo a se
diferenciar de outras formas de ciência, enquanto maneira de pesquisar e examinar
convenções, entendê-las, localizá-las histórica e socialmente, e reconhecer a
linguagem como prática social, ou como linguagem em uso.
Também historicamente construídos enquanto movimento de desconten-
tamento, foram vários os caminhos para se chegar aos constructos teóricos que,
ainda hoje, encontram-se em amadurecimento sobre como fazer ciência, para
tentar se posicionar como tentativa de um novo olhar diante da realidade social.
Talvez o maior deles foi o descontentamento com o modelo positivista-empirista,
até então majoritário, dominador e avalista de tudo quanto era considerado ciência
(GERGEN,1985).
Ibañez (2001), em seu livro Municiones para disidentes, afirma que, para
se ter uma postura construcionista, é preciso aceitar que os objetos não são
independentes de nós. Logo, o conhecimento que temos da realidade depende de
nossas práticas sociais. Sendo assim, a concepção do mundo, bem como a dos
fenômenos sociais, devem ser histórica e culturalmente localizadas, o que significa
dizer que o conhecimento se torna uma construção coletiva a partir das práticas
sociais, sendo, estas também, socialmente localizadas.
Se antes discuti minha trajetória de vida, como profissional e pesquisadora,
para justificar o porquê da escolha do tema desta pesquisa, agora é preciso falar
das opções teórico-metodológicas.
É preciso dizer que, a partir do momento em que comecei a freqüentar,
como doutoranda, o Núcleo de Estudos e de Pesquisa em Práticas Discursivas
e Produção dos Sentidos, minha visão de possibilidades de pesquisa foi sendo
ressignificada à medida que a perspectiva construcionista ia sendo incorporada
72
em minha história enquanto aluna. Outras lentes foram colocadas em meu olhar,
e é deste lugar que falo agora.
É importante salientar que toda e qualquer produção, acadêmica ou não,
parte de uma visão de mundo. Nossa perspectiva, neste sentido, será a partir da
Psicologia Social, pautada na Psicologia Discursiva sob o enfoque construcionista, o
qual tem por foco as práticas discursivas no cotidiano, bem como suas interações
sociais, entendendo estas como produções humanas, contextualizadas na história
e na cultura de cada sociedade (SPINK, 1999).
Rompe-se desta forma com a questão da verdade absoluta e universal,
objeto tão proclamado e buscado pelas ciências em geral. Se o conhecimento é
situado e historicamente demarcado e produzido, a generalização do mesmo torna-se
no mínimo duvidosa ou questionável, uma vez que o próprio conhecimento ocorre
devido à produção humana, sendo esta resultante, também, de processos históricos
(GERGEN, 1985; IBÁÑEZ, 1994).
A partir disto, o Construcionismo vem se firmando como uma perspectiva
epistemológica e sua escolha visa à prática de uma ciência responsável e
compromissada, nos mais diferentes aspectos – sociais, econômicos, culturais e
históricos –, preocupando-se com a maneira como as pessoas lidam com os fenô-
menos cotidianos. É assim que se constrói hoje, na perspectiva construcionista, a
ciência. É assim que também acontece no Núcleo de Práticas Discursivas e
Produção dos Sentidos, e é também desta forma que deverá ocorrer a formatação
desta tese.
73
2.3.2 Sobre Práticas Discursivas
Para se ter uma noção do são práticas discursivas, precisamos primeiro
entender o que vem a ser sentido. São as práticas discursivas que servirão como
instrumento de aproximação à produção de sentidos no cotidiano, entendendo
sentido como uma construção social, ou seja, como empreendimento coletivo-
interativo onde pessoas constroem os termos a partir dos quais entendem e lidam
com situações e fenômenos em sua volta.
Enquanto abordagem teórico-metodológica, faz interlocução com uma
diversidade de autores, entre eles Foucault, Ibáñez, Gergen, Rorty. A produção de
sentidos é um fenômeno sociolingüístico, uma vez que o uso da linguagem sustenta
as práticas sociais geradoras de sentido. É uma prática social e dialógica, que implica
linguagem em uso ou linguagem em ação.
Segundo Davies e Harre (1990), as práticas discursivas diferem dos
discursos pois estes possuem regularidades lingüísticas, uso institucionalizado e
sistemas de sinais, que lhes dão o status, por exemplo, de discurso oficial em
diferentes grupos ou organizações sociais; tendem, também, a permanecer no
tempo. Aproximam-se da noção de linguagem social de Bakhtin, se vistos como
discursos peculiares a um estrato específico da sociedade, num contexto e momento
histórico onde os gêneros de linguagem moldam a forma e o estilo das enunciações
e aparecem como regras, nas práticas cotidianas das pessoas.
O olhar da análise a partir das práticas discursivas procura compreender
as linguagens em uso em sua totalidade, as não regularidades e a polissemia
(diversidade), buscando assim as rupturas com o habitual, de modo a dar mais
visibilidade às produções de sentido na vida cotidiana das pessoas. É por meio
74
destas, ou seja, das linguagens em ação, que as pessoas se posicionam e produzem
sentidos cotidianamente.
2.3.3 Sobre os Processos de Interanimação Dialógica
Nosso ponto de partida para compreender o processo de interanimação
dialógica será Bakhtin (1994). Para este autor, a dinâmica e os enunciados orientados
por vozes caminham juntos: ambos descrevem o processo de interanimação
dialógica que se processa numa conversação. O enunciado de uma pessoa estará
sempre em contato com, ou será endereçado a uma ou mais pessoas, havendo
sempre a interanimação, mesmo na situação de diálogo interno. Esta é a unidade
básica da comunicação, sendo ponto de partida para a dialogia, entendida como
expressões, palavras e sentenças articuladas em ações situadas. O pensamento
também pode ser dialógico, uma vez que nele habitam falantes e ouvintes que
se interanimam e orientam enunciados e produção de sentidos. Ao produzir um
enunciado o falante utiliza um sistema de linguagem e de enunciações preexistentes,
implicando presença de interlocutores, presentes, passados e futuros, havendo
sempre, assim, um endereçamento, sendo a presença do outro presentificada ou não.
As vozes, segundo Bakhtin (1994), incluem os interlocutores ou pessoas
presentes ou presentificados, podendo estar espacialmente ou temporalmente
distanciados nos diálogos. São negociações que se processam na produção de
um enunciado, em que o próprio falante é respondente de várias vozes passadas
ou presentes. A partir, então, da noção de vozes e enunciado, fica claro que, na
visão desse autor, não tem como falar de uma autoria falada ou escrita isolada,
pois a dialogicidade remete sempre a autorias múltiplas.
75
Sendo assim, a linguagem é uma ação que tem conseqüências, não
necessariamente intencionais, mas sempre presentes na interlocução, produzindo
um jogo de posicionamentos entre os falantes. É na linguagem falada ou escrita
que aparecem também os repertórios interpretativos, unidades de construção das
práticas discursivas, demarcando possibilidades de construções discursivas, levando
em conta o contexto e os estilos gramaticais e a polissemia da linguagem como
possibilidade de transitar por diferentes contextos e situações. Para Potter e Wetherell
(apud SPINK, 1999), os repertórios interpretativos são fundamentais para o estudo
das práticas discursivas por tornarem possível "entender tanto a estabilidade como
dinâmica e a variabilidade das produções linguísticas humanas" (SPINK, 1999, p.48).
Devemos também compreender a problemática dos contextos de produção
de sentidos, onde, segundo Bakhtin (1994), não há nem primeira nem última
palavra porque não há limite temporal nas cadeias de interanimação dialógica, e
os sentidos, mesmo os passados, não estão estanques no tempo e nem mortos.
Podem ser retomados e ressignificados no momento presente. Cabe às análises
discursivas enfrentar o tempo e a história destes discursos, e apresentar um modelo
de compreensão dentro de três possíveis e necessárias interfaces, que são:
1) tempo longo: marca o domínio da construção social dos conteúdos
culturais que formam os discursos de uma dada época. É neste
tempo histórico que se pode apreender os repertórios disponíveis que
serão moldados pelas contingências sociais da época e se apresentam
agora como fragmentos de vozes de outrora que povoam nossos
enunciados. Constituem, ainda, espaços de conhecimentos produzidos
e reinterpretados por diferentes domínios de saber, antecedendo a
vivência das pessoas, fazendo-se presentes por meio de instituições,
76
convenções, normas etc. como reprodução social. Permeiam nossas
práticas discursivas através, por exemplo, dos museus, pinturas de
família, entre outros; são produções ressignificadas ao longo do tempo
que alimentam, ampliam e definem novos repertórios de que dispomos
para produzir sentido;
2) tempo vivido: trata-se do processo de ressignificação desses conteúdos
históricos a partir dos processos de socialização, remetendo também
às experiências da pessoa no curso da sua história pessoal, a exemplo
das linguagens aprendidas nos processos de socialização. Trata-se
da aprendizagem no tempo de vida de cada pessoa, com diferentes
linguagens sociais de cada classe, profissão, faixa etária etc., tornando-se
vozes situadas povoando nossas práticas discursivas. Aqui também é
onde se situam o afeto, as narrativas pessoais e identitárias, bem
como a memória;
3) tempo curto: é o tempo dos acontecimentos e dos processos dialógicos.
É neste tempo que entendemos a dinâmica da produção dos sentidos,
podendo compreender a comunicação e a construção discursiva das
pessoas. É o momento concreto da vida social. É aqui, também, que
encontramos as vozes, ativadas pela memória cultural do tempo longo
ou pela memória afetiva de tempo vivido. São as interações sociais
face a face, em que os interlocutores se comunicam diretamente, e em
que encontramos também a polissemia e a contradição, processualidade
e produção de repertórios.
Quanto à história, esta encontra-se diretamente associada à compreensão
das diversidades e permanências das construções lingüísticas dotadas
77
de sentido a partir do tempo longo, vivido e curto. É um empreendimento
sócio-histórico e merece ser considerada a partir do contexto cultural
e social para compreendermos a dialogia das práticas discursivas.
a pessoa, deve ser compreendida como um ser situado em
jogos de relações sociais, em constante processo de negociação e
trocas simbólicas; um espaço de intersubjetividade e/ou interpes-
soalidade, posicionando-se e produzindo sentidos a partir das práticas
discursivas, incorporando também repertórios interpretativos e posi-
cionamentos identitários.
Somando a essas conceituações sobre o que vêm a ser práticas discursivas,
temos ainda alguns autores que se fazem presentes na abordagem do NPDPS,
como Davies e Harré, e Potter.
Davies e Harré (1990) conceituam práticas discursivas como sendo todas as
maneiras como as pessoas se posicionam por meio de seus discursos. Para Harré
(1993), a construção do mundo se dá pela atividade conversacional conjunta das
pessoas, em que sentimentos e projetos individuais também se incluem.
Cabe aqui resgatar um pouco sobre o que já escrevemos no capítulo primeiro
a respeito do posicionamento, apenas para elucidar o uso desta noção na análise
de práticas discursivas. Posicionamento é um fenômeno da ordem da conversação,
podendo ser: dinâmico; interativo, quando eu sou posicionado a partir da fala do
outro; e, também, reflexivo, quando me posiciono a partir da posição do outro.
78
Para Davies & Harré (1990, p.52):
Posicionar-se, ou posicionamento do sujeito, possibilita pensar-nos como
sujeitos com escolhas, localizando-nos nas conversações de acordo com
as formas de narrativas com que temos familiaridade e trazendo para
estas narrativas nossas histórias subjetivamente vividas a partir das quais
aprendemos metáforas, imagens, personagens e enredo (DAVIES; HARRÉ,
1990, p.52).
Em outras palavras, nesses processos de interação social, um indivíduo é
constituído e reconstituído por meio das práticas discursivas e, com isso, com
possibilidades sempre abertas de ressignificar, a partir das posições e sentidos,
sua vida e a dos outros (DAVIES; HARRÉ, 1990).
Nas práticas discursivas, a questão do posicionamento faz com que o
foco esteja tanto nos locutores quanto nos ouvintes, podendo, ambos, negociar
suas posições. Sendo assim, a partir dessa perspectiva, podemos compreender
que uma pessoa pode posicionar-se e ser posicionada de variadas formas durante a
interanimação dialógica (DAVIES; HARRÉ, 1990).
Não podemos encerrar este capítulo sem mencionarmos a questão dos
repertórios interpretativos, que vêm de uma vertente da psicologia discursiva e têm
como um dos principais pesquisadores Jonathan Potter. Este modelo interpretativo
traz o foco, em sua essência, "nas orientações para a ação que se faz presente
nas falas ou escritos e, portanto, examina as construções discursivas no contexto de
sua ocorrência", bem como nas construções de fatos (SPINK; SPINK, 2007, p.580).
Os repertórios interpretativos são o conjunto de figuras de linguagem,
termos, descrições e lugares comuns que constroem estilos gramaticais próprios,
e essa construção de discursos abre possibilidades de construções discursivas,
tendo a prática discursiva e os 'speech genres' por parâmetros. A partir destas
noções, podemos sintetizar definindo práticas discursivas como as "maneiras a
79
partir das quais as pessoas produzem sentidos e se posicionam em relações
sociais cotidianas", tendo como elementos básicos constitutivos: a dinâmica
(enunciados orientados por vozes), as formas (speech genres) e os conteúdos
(repertórios interpretativos) (SPINK; MEDRADO, 1999). Em outras palavras, pode-se
também compreendê-las como sendo todas as maneiras como as pessoas,
por meio de seus discursos, produzem realidades sociais e psicológicas (DAVIES;
HARRÉ, 1990).
2.4 CONSEQÜÊNCIAS DA POSTURA CONSTRUCIONISTA PARA A
PESQUISA ADOTADA NO NÚCLEO DE PRÁTICAS DISCURSIVAS E
PRODUTOS DOS SENTIDOS
A partir da perspectiva adotada no NPDPS, podemos resumir que fazer
pesquisa científica é adotar uma postura crítica e reflexiva tomando-a como uma
prática social, incorporando o conceito de que a produção de conhecimento é
permeada por decisões, inclusive no que concerne ao uso dos instrumentos para
coleta de informação, e é determinada pelas relações sociais, valores e sistemas
de crenças científicas. Sendo assim, é impossível negar que o próprio fazer ciência
está atravessado por relações de poder e posicionamento políticos.
Enquanto epistemologia, a perspectiva construcionista postula que tanto objeto
quanto sujeito são construções sócio-históricas, e a realidade não existe independen-
temente do nosso modo de acessá-la. Somos produtos/produtores de nossas épocas
e de nossos contextos sociais, sem perder as vozes do passado. O conhecimento
é algo que as pessoas fazem em constante construção (e co-construção): ver o
mundo é ver também a si próprio. Compreender as convenções que permeiam as
regras socialmente situadas é algo inerente a esta perspectiva.
80
Como metodologia, o rigor e a objetividade são pensados a partir de três
dimensões: 1) a indexicabilidade (vinculação com o contexto), que é re-conceituada
como possibilidade de busca de métodos que possam complementar-se e, assim,
possibilitar maior visão e abrangência na busca dos fenômenos pesquisados; 2) a
inconclusividade, a qual está relacionada à complexidade e impossibilidade de
controlar todas as variáveis, mas não deve ser empecilho para que o pesquisador
tente explorar todas as possibilidades e processos de produção sentidos do
fenômeno estudado; e 3) a reflexibilidade, que rejeita a pretensa neutralidade – a
subjetividade do pesquisador na pesquisa torna-se um recurso a mais para a
possibilidade de análise.
Finalmente, há que se considerar também a ética na pesquisa. Se olharmos
para o cenário das ciências de uma forma geral, identificamos que há várias formas
de interpretar a ética, que pode, assim, ter diferentes sentidos. Novaes (1992) diz
que se comparássemos o significado de ética nos tempos antigos com a noção
tal como é entendida nos tempos modernos, as definições não seriam apenas
radicalmente diferentes, mas também contraditórias.
Para que não haja dúvidas, recorremos ao dicionário eletrônico Houaiss
(2006), que, entre outras definições, conceitua a ética como sendo investigação
dos princípios que motivam, distorcem, disciplinam ou orientam o comportamento
humano; ou ainda, o estudo de fatores concretos (afetivos, sociais etc.) que
determinam a conduta humana em geral. O que mais nos chamou atenção é o
que o dicionário chama de derivação, ou extensão de sentido: o "conjunto de regras
e preceitos de ordem valorativa e moral de um indivíduo, de um grupo social ou
de uma sociedade".
81
Além de uma conceituação – mesmo porque percebemos que esta tem uma
gama de possibilidades –, a ética na perspectiva construcionista parte de alguns
princípios que regem mais a postura do pesquisador do que a ordem valorativa de
uma moral social, pois quando se fala em ética, no Construcionismo, fala-se em
prática crítica.
Mais do que normas de conduta, como a visibilidade dos procedimentos
de coleta e análise dos dados e a aceitação da dialogia pesquisador-pesquisado,
a ética construcionista nos obriga a pensar a pesquisa como uma prática social
reflexiva. Esta postura ética, como prática crítica, não se restringe à coleta de
dados. Faz-se presente em cada passo, não só da pesquisa, mas da postura de
pesquisador, como o compromisso de respeitar as diferenças, mesmo teóricas.
Sendo assim, podemos situar a questão da ética na vertente construcionista
a partir dos seguintes aspectos: 1) pensar a pesquisa como prática social reflexiva;
2) garantir a visibilidade dos procedimentos de coleta e análise dos dados;
3) aceitar a dialogia pesquisador-pesquisado; 4) tomar o consentimento informado
como acordo para a transparência quanto aos procedimentos bem como aos direitos
e deveres dos envolvidos na pesquisa; 5) resguardar-se de relações de poder
abusivas (garantindo a não-resposta e revelação velada); e 6) garantir o anonimato.
Uma vez situadas as possibilidades de compreender o preconceito como
linguagem em ação a partir das práticas discursivas cotidianas, e apresentados os
alicerces da pesquisa na vertente teórico-metodológica do construcionismo, no
próximo capítulo apresentaremos os passos que utilizamos para realizar as entrevistas
e analisar os dados.
82
CAPÍTULO III
OBJETIVOS E PROCEDIMENTOS
3.1 OBJETIVOS E HIPÓTESES
3.1.1 Objetivo Principal
Entender como o preconceito, enquanto linguagem em ação, permeia as
práticas discursivas e a produção de sentidos no cotidiano das pessoas envolvidas
nesta pesquisa.
3.1.2 Objetivos Específicos
- entender como as pessoas definem preconceito;
- compreender como as pessoas vivenciam preconceitos em suas
vidas, seja como ato preconceituoso em relação ao outro, seja como
experiência própria;
- pesquisar os sentimentos gerados pelas situações de preconceito em
sua história de vida.
Antes de definir o campo empírico desta pesquisa, cabe esclarecer o que
entendia ser o meu lugar como pesquisadora. Spink P. (2003) nos convida à
seguinte reflexão: seja qual for a pesquisa, temos o compromisso de perguntar para
quê e por quê estamos levantando informações; qual a finalidade e a contribuição
da pesquisa a que nos propomos e, sobretudo, se ela será útil.
83
Acreditamos que a questão do preconceito é multifacetada, tanto teori-
camente quanto no cotidiano das pessoas. Foi por este motivo que nos preocupamos
em explorar os diferentes olhares teóricos a respeito dessa questão. E foi nessa
perspectiva que optamos por trabalhar com a fluidez das interações cotidianas.
Entendemos o campo de pesquisa como espaço construído por argumentos
e encontros efêmeros, podendo acontecer em lugares diferentes, os quais, segundo
Peter Spink (2003), é onde interações sociais, trocas lingüísticas e práticas discur-
sivas ocorrem.
3.2 PROCEDIMENTOS PARA A COLETA DE INFORMAÇÕES
Buscando lugares e pessoas diferentes, tomamos a aleatoriedade como
princípio para a definição de entrevistas e do perfil dos entrevistados. Não houve
lugar nem hora marcados para nosso encontro. Nossa escolha de entrevistados não
foi pautada por características físicas, sociais, de cor, idade, ocupação/profissão,
ou mesmo escolaridade. Nossa postura, neste sentido, visou justamente não cair
na armadilha que detectamos quando fizemos o levantamento de artigos e teses: a
de adjetivar o preconceito a partir de categorias de pessoas, como negros, mulheres,
homossexuais, deficientes etc.
Nosso objetivo foi pesquisar como o preconceito circula no cotidiano das
pessoas através dos discursos e dos processos de produção de sentidos. Para
alcançarmos nossa meta, norteamos nossos encontros dialógicos a partir de três
questões principais: 1) o que você entende por preconceito?; 2) você já sofreu
84
preconceito?; 3) você já se flagrou tendo preconceito?
6
As entrevistas não foram
fechadas; ao contrário, à medida que a pessoa respondia e a conversa ia fluindo,
outras possibilidades de diálogo iam acontecendo, sempre em torno do eixo
norteador, ou seja, o preconceito e seus desdobramentos na vida da pessoa.
Pode parecer estranho o uso concomitante dos termos "entrevista" e
"conversa". No referencial adotado, contudo, não nos parece nem confuso, nem
impossível. Se considerarmos a estrutura das perguntas relacionadas aos objetivos a
serem alcançados (MINAYO, 2000), fizemos entrevistas. Mas, no enquadre da
Psicologia Discursiva, podemos considerar que também foram conversas, pois
buscamos entender a linguagem em uso em encontros casuais e fortuitos, ou as
práticas discursivas como linguagem em ação. Ou seja, centramo-nos no que
dizem essas pessoas em relação ao preconceito e nas formas pelas quais elas
produzem sentidos sobre as experiências relativas a este tema.
A pesquisa foi feita em duas cidades. A primeira foi Curitiba, no Paraná, no
primeiro semestre de 2005, onde conversamos com 14 pessoas. A maioria delas
encontrava-se no prédio da Universidade Federal do Paraná. Algumas faziam
atividades relacionadas a canto-coral, outras a trabalho voluntário. A abordagem
aconteceu da seguinte forma: em primeiro lugar, me apresentava como pesqui-
sadora. Falava da pesquisa que pretendia fazer para obtenção do doutorado,
6
Nem todas as pessoas responderam a esta questão, pois ela não constava do roteiro, ao
realizar as entrevistas em Curitiba. Como uma pessoa deliberadamente contou um evento de
comportamento preconceituoso, achei que seria importante introduzir esta pergunta na
segunda leva de entrevistas, realizadas em Belo Horizonte durante o congresso nacional da
ABRAPSO (Associação Brasileira de Psicologia Social), e inclui esta pergunta aos entrevistados.
85
explicando os objetivos da tese, e como seriam usadas as informações, caso
me concedessem a entrevista. A partir do aceite da pessoa, o consentimento era
formalizado verbalmente pela mesma ao afirmar que se prontificava a responder
às perguntas. Portava um gravador pequeno, que apresentava à pessoa,
perguntando se ela permitiria o uso do aparelho durante a conversa. Se houvesse
consentimento
7
, ligava o aparelho e dava início à entrevista. É importante
ressaltar que, durante a apresentação dos objetivos e solicitação de consentimento
do uso da entrevista na tese, esclareci a postura ética da pesquisa e o
compromisso de minha parte, como pesquisadora, de não explicitar nome,
sobrenome, ou algum dado que pudesse identificar a pessoa em sua instituição de
trabalho, ou alguma outra particularidade que revelasse sua identidade pessoal.
Após todos os esclarecimentos e o aceite do entrevistado, iniciava a entrevista com
as três perguntas norteadoras.
A segunda rodada de entrevistas foi feita na cidade de Belo Horizonte,
Minas Gerais, por ocasião do XIII Encontro da Associação Brasileira de Psicologia
Social (ABRAPSO), no segundo semestre de 2005. Nesta ocasião, foram entrevistadas
11 pessoas, seguindo os procedimentos usados na cidade de Curitiba: aleatoriedade
de escolha, tipo de abordagem, questões éticas, consentimento verbal do entrevistado,
e a conversa propriamente dita. As entrevistas foram feitas no campus da Univer-
sidade, tanto na praça de eventos artísticos, como nos prédios onde aconteciam
os cursos e palestras. Como resultado das entrevistas, tivemos então:
7
Nenhuma das 25 pessoas que convidei a participar da pesquisa se recusou a gravá-la.
86
CIDADE FEMININO MASCULINO TOTAL
Curitiba 11 03 14
Belo Horizonte 08 03 11
TOTAL GERAL 19 06 25
QUADRO 2 - NÚMEROS DE PARTICIPANTES POR CIDADE
Pude observar, no desenrolar das entrevistas, que a maioria das pessoas
entrevistadas foi trazendo histórias de suas vidas, além de suas noções sobre
preconceito, o que enriqueceu muito o material de pesquisa. A intenção era
justamente esta: deixar a pessoa com liberdade para expressar suas vivências
cotidianas em relação ao tema da pesquisa, dando vazão aos seus sentimentos a
esse respeito.
Fiz a transcrição das entrevistas, levando em conta as expressões orais
exatamente como foram emitidas. Não exclui conteúdos nem fiz correção ortográfica
nas falas. Essa preocupação de minha parte foi devida à diversidade de pessoas
que entrevistei: de serventes de pedreiro a professores universitários.
Para se ter uma visualização, ainda que resumida, do que estamos
dizendo sobre a aleatoriedade, apresentamos, no quadro 3, o panorama geral das
pessoas entrevistadas, com sua idade, gênero, ocupação, lugar de origem e local
da entrevista.
Esse quadro possibilita entender a aleatoriedade da escolha de participantes
nesta pesquisa. Por uma questão de oportunidade, houve menos homens entrevis-
tados do que mulheres, mas não entendemos isso como algo preocupante, uma
vez que não tínhamos a preocupação com a questão de gênero. A faixa etária
variou de 19 a 56 anos. As ocupações – que também refletem a escolaridade de
cada um dos participantes da pesquisa – também são diversas, incluindo desde
assistente de jardineiro a pessoas da área jurídica.
87
NOMES
(fictícios)
IDADE SEXO OCUPAÇÃO
ESTADO DE
ORIGEM
CIDADE ONDE
SE DEU A
ENTREVISTA
1. Zélia 42 fem.
Estudante de Psicologia e técnica de
enfermagem
Minas Gerais Belo Horizonte
2. Selma 40 fem. Psicóloga e professora Minas Gerais Belo Horizonte
3. Ceumar 51 fem. Psicóloga e professora São Paulo Belo Horizonte
4. João 48 masc. Pedreiro Minas Gerais Belo Horizonte
5. Simone 40 fem. Faxineira/serviços gerais Minas Gerais Belo Horizonte
6. Mônica 45 fem. Faxineira/serviços gerais Minas Gerais Belo Horizonte
7. Gal 19 fem. Estudante de Psicologia Santa Catarina Belo Horizonte
8. Ivan 23 masc. Recém formado Psicologia Rio de Janeiro Belo Horizonte
9. Ivete 43 fem.
Do lar: trabalho temporário de serviços
gerais para o Congresso
Minas Gerais Belo Horizonte
10. Marisa 39 fem.
Do lar: trabalho temporário de serviços
gerais para o Congresso
Minas Gerais Belo Horizonte
11. Vinícius 26 masc. Auxiliar de jardineiro Minas Gerais Belo Horizonte
12. Djavan 33 masc. Assistente administrativo Paraná Curitiba
13. Leandro 23 masc. Vendedor e músico Paraná Curitiba
14. Nana 30 fem. Comerciante Paraná Curitiba
15. Leila 22 fem. Farmacêutica Paraná Curitiba
16. Sueli 37 fem. Agrônoma Paraná Curitiba
17. Roberta 44 fem. Secretária Paraná Curitiba
18. Rolando 46 masc. Desenhista industrial/projetista Paraná Curitiba
19. Rita 26 fem. Bióloga Paraná Curitiba
20. Cecília 24 fem. Estudante de Arquitetura Paraná Curitiba
21. Cida 56 fem. Aposentada (área jurídica) Paraná Curitiba
22. Ana 41 fem. Aposentada (tribunal) Paraná Curitiba
23. Cora 38 fem. Dentista Paraná Curitiba
24. Marina 43 fem. Arte-educadora Paraná Curitiba
25. Daúde 45 fem. Professora/maestrina Paraná Curitiba
QUADRO 3 - PANORAMA GERAL DAS PESSOAS ENTREVISTADAS
A aleatoriedade, como já dissemos anteriormente, foi importante para
fugir daquilo que chamamos de preconceito adjetivado, relacionado a questões de
gênero, raça, sexualidade etc. Desta forma, nossa preocupação era justamente
não sair a campo com o propósito de encontrar pessoas com características
previamente escolhidas. Fizemos isso porque buscamos o preconceito não nas
pessoas, mas nos repertórios discursivos que permeiam as relações sociais
cotidianas e suas produções de sentidos.
88
3.3 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE
Como já mencionado, conceituamos a linguagem como práticas discursivas
e buscamos entender a forma como as pessoas, por meio da linguagem, produzem
sentidos e se posicionam em suas relações sociais. Desta forma, não estamos
procurando estruturas ou formas usuais de linguagem, mas, sim, conteúdos que se
associam a determinados contextos, e estes a outros contextos, compreendendo
os sentidos, desse modo, como tendo fluidez e contextualização (SPINK, 1999).
A partir do olhar da epistemologia construcionista, utilizaremos autores
como Mary Jane Spink e Rom Harré, entre outros. Assim, pretendemos atingir
nosso objetivo, ou seja, como o preconceito permeia as relações cotidianas, tomando
como princípio os processos de produção de sentidos. Iremos analisar cada conversa
no contexto em que os discursos foram apresentados, a fim de dar visibilidade aos
repertórios utilizados, logo, às produções de sentidos associadas ao preconceito,
bem como às interpretações das vivências particulares de cada pessoa entrevistada
em relação a este assunto.
A análise das práticas discursivas sobre a questão do preconceito e de
como ele é compreendido no cotidiano das 25 pessoas que foram entrevistadas
seguirá os passos abaixo:
1) Contextualizar cada entrevista individualmente e colocá-la na forma de
mapas dialógicos, respeitando as perguntas norteadoras e incluindo
mais duas categorias relacionadas à explicação dada ao preconceito
e aos sentidos por ele suscitados, conforme Apêndice B deste estudo.
Os mapas dialógicos são formas de analisar sistematicamente o
processo de interanimação dialógica, a fim de compreender tanto os
repertórios lingüísticos quanto a construção da dialogia na produção
89
de sentidos, em que pesquisador e pesquisado são protagonistas.
Trata-se de uma estratégia analítica peculiar e usual do Núcleo de
Estudos e Pesquisas sobre Práticas Discursivas e Produção de Sentidos
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP).
2) Sintetizar o conjunto das entrevistas, destacando os principais termos,
expressões e repertórios que haviam sido identificados nos mapas
individuais. A síntese para as leituras reduzidas dos diferentes dias e
locais (Curitiba e Belo Horizonte) encontram-se no Apêndice A.
3) Analisar, a partir da organização dos passos anteriores, o material
empírico. A análise propriamente dita focalizou três dimensões de
expressão do preconceito:
- definição de preconceito;
- o contexto em que o preconceito aconteceu e quais os motivos da
sua ocorrência;
- os sentimentos associados ao preconceito.
A partir do exposto, apresentaremos, no quarto capítulo, as análises realizadas.
90
CAPÍTULO IV
AS PRÁTICAS DISCURSIVAS SOBRE O PRECONCEITO
...e defendo que a ciência, em geral, depois de ter
rompido com o senso comum, deve transformar-se
num novo e mais esclarecido senso comum.
Boaventura Sousa Santos
Como já dissemos anteriormente, debruçamo-nos sobre as histórias dos
entrevistados com o compromisso maior de trazer à tona não apenas palavras e
discursos, mas também experiências vivenciadas, em situações em que nossos
entrevistados se depararam com alguma forma de preconceito.
Não se trata de uma forma diferente de fazer análise, mas de nos respon-
sabilizarmos, como pesquisadores, por denunciar, algumas vezes, a dor, em
outras a indignação ou no mínimo o riso desconcertado, como que fora do lugar –
reações que todas as pessoas entrevistadas tiveram ao falar sobre este tema.
Desta forma, nossa pesquisa tentará compreender a questão do preconceito
por meio deste pequenino recorte da sociedade contemporânea, ocidental e brasileira,
sem a mínima pretensão de generalização de nossos resultados, enquanto
verdade absoluta. Nosso objetivo é buscar entender os usos e, por que não dizer,
abusos que o tema provoca, assim como suas conseqüências na vida de quem
experiencia o preconceito em sua vida cotidiana.
Mais do que objetivos a serem alcançados, o que está em pauta é também
um inconformismo meu como pesquisadora e uma tentativa de provocação a
partir da vivência profissional e pessoal cotidiana, na qual, invariavelmente, quase
sempre deparei-me com a questão do preconceito, em diferentes contextos.
91
Seguirei, para tanto, os passos já explicitados no capítulo anterior, sobre os
procedimentos e as fases da análise, e, para assegurar o anonimato dos entrevis-
tados, utilizo apenas a primeira letra de seus nomes e substituo pelo prenome de
cantores de nossa música popular brasileira, ou ainda de escritores nacionais,
não só por achar simpático e, assim, dar um pouco de leveza à tese, mas também
por fazer parte de meu estilo particular de gosto pela música e poesia.
4.1 DEFINIÇÕES DE PRECONCEITO NA ÓTICA DOS ENTREVISTADOS
Para analisar como as pessoas entrevistadas definem o preconceito,
percorri os seguintes passos:
1) reli todas as entrevistas em seu estado bruto, ou seja, todas as falas
que foram transcritas a partir da gravação;
2) feita essa releitura, destaquei as frases, termos e expressões que, de
alguma forma, pudessem resumir a conceituação de preconceito;
3) a partir desse momento, voltei ao capítulo teórico sobre as diferentes
concepções de preconceito, norteando assim a análise em categorias
compatíveis com as três abordagens ali discutidas. Assim, fez-se a
junção de termos próximos não só em seu aspecto formal de linguagem,
mas também em seus sentidos, sempre contextualizados pela situação
de entrevista e pelas características de cada entrevistado. As categorias
escolhidas foram:
- aspectos cognitivos;
- exclusão/discriminação, incluindo aí as relações de poder e dominação;
- sinais físicos, incluindo especialmente a questão do estigma.
92
A figura 1, a seguir, permite visualizar todas as definições de preconceito
a partir das verbalizações dos entrevistados, já em sua forma categorizada; ou
seja, cada expressão se faz acompanhar por um número que permite situá-la nas
categorias anteriormente citadas. A partir desta síntese, aprofundaremos nossa
análise tendo como norte as teorizações sobre preconceito discutidas no capítulo 1.
Se o preconceito é "a categoria do pensamento e do comportamento
cotidianos", como propõe Heller (2000), o que podemos abstrair dessas diferentes
conceituações é que, nas três categorias utilizadas nesta primeira aproximação
de análise, todas as pessoas, de uma forma ou de outra, conseguem dizer como
entendem o preconceito. Não houve nenhuma pessoa entrevistada que não
pudesse, mesmo que através de exemplos cotidianos, nos dar uma definição
sobre o tema. Alguns aspectos dessas definições merecem destaque.
Primeiro, em todas as conceituações, não houve nenhum momento em
que as diferenças de gênero pudessem se fazer presentes propiciando um
entendimento diferenciado de preconceito. Por exemplo, tanto Djavan como Nana
colocam o preconceito como um pré-conceito formado:
Isabela: Djavan, você poderia me dizer o que entende por preconceito?
Djavan: É um conceito pré-formado, com várias formas de conceitos
pré-formados, contra homossexual, HIV, racismo... geralmente
acaba em discriminação ou excluindo uma pessoa.
Djavan, 33 anos, masc., assistente administrativo, 2.
o
grau completo
Isabela: Nana, como você conceituaria o que é preconceito?
Nana: É quando você tem dificuldade em lidar com uma... um conceito,
na verdade, você não aceita um conceito, então é... o precon-
ceito é um conceito formado antes do conhecimento... Eu
tenho preconceito porque eu não sei lidar com determinados
conceitos... eu julgue uma pessoa pelo que é ela ou deixa de
ser... dificuldades de aceitação, eu acho que o preconceito é
quando você não aceita a pessoa como ela é.
Nana, 30 anos, fem., comerciante, 3.
o
grau completo
FIGURA 1 - DEFINIÇÕES DE PRECONCEITO A PARTIR DOS ENTREVISTADOS
NOTA: (1) Aspectos Cognitivos; (2) Exclusão/discriminação/poder e relações de domínio; (3) Estigma, sinais físicos.
94
Em segundo lugar, também a classe social ou mesmo o grau de educação
não trouxeram diferenças na maneira como as pessoas falaram do assunto. Temos,
por exemplo, João, que não completou o primeiro grau, e Sueli, que possui doutorado,
apresentando o preconceito como sendo qualquer coisa que a pessoa vê de
diferente no outro:
Isabela: Seu João, se o senhor fosse falar, assim, explicar para alguém
a partir do que o senhor acha, o que é preconceito, seu José?
João: A pessoa é... o preconceito o que eu acho é igual ao que
você vê... qualquer coisa que a pessoa vê diferente nos
outros ela acha que é... né... que se sente melhor do que o
outro, pra mim já é preconceito, entendeu?
João, 48 anos, masc., carpinteiro, 1.
o
grau completo
Isabela: O que é preconceito para você?
Sueli: É você não considerar uma outra pessoa com a mesma
capacidade que você tem de fazer as coisas... é diferenciar
as pessoas por algum motivo qualquer...
Sueli, 37 anos, fem., agrônoma, pós-graduada (doutorado)
Essas formas semelhantes de conceituar o preconceito nos levam a acreditar
que este tema circula entre as pessoas como algo que já está incorporado em
suas vidas cotidianas, seja como conceituação, seja como experiência, assunto
que retomaremos mais adiante.
Em terceiro lugar, a maioria dos entrevistados, ao conceituar preconceito,
referiu-se a situações cotidianas de preconceito explícito, como, por exemplo, em
assuntos relacionados a doenças (Aids principalmente), etnia, homossexualidade,
fator econômico-social, entre outros. Vejamos alguns exemplos:
95
Exemplo 1:
Isabela: Simone, o que você acha que é preconceito?
Simone: Olha...peraí, deixa eu pensá... é quando a pessoa... você, né,
vamo pôr, né, igual à Aids, né, que é HIV, né, soropositivo...
você se afasta, né, ou às vezes você não conversa, né...
Simone, 40 anos, fem., serviços gerais, 1.
o
grau completo
Exemplo 2:
Isabela: Ivete, o que é preconceito para você?
Ivete: ...essa pessoa passa, tem aquele preconceito: "Ah, não vou
chegar perto", é aquele preconceito, né, do negro, da pessoa
deficiente físico, né, da pessoa doente, do idoso, né, e...
eu acho que é isso.
Ivete, 43 anos, fem., serviços gerais, 1.
o
grau completo
Exemplo 3:
Isabela: Para você, o que significa preconceito?
Leila: É não aceitar as diferenças, pra mim é isso... essa parte de
homossexualismo, eu sou homossexual... quando eu
descobri, eu mesma senti preconceito.
Leila, 22 anos, fem., farmacêutica, 3.
o
grau completo
Mas, afinal, o que vem a ser o preconceito? Quais das respostas seriam
as mais assertivas; seriam aquelas cuja definição contemplaria todas as demais
ou, mesmo, pudesse ser apresentada como sendo a verdadeira ou a legítima?
Vejamos o que cada uma das respostas de nossos entrevistados nos diz à luz
das três escolas teóricas que apresentamos.
96
4.1.1 Para mim preconceito é... Perspectiva da Cognição Social
Conforme ilustrado na figura 1, há várias respostas que identificamos como
estando associadas às perspectivas cognitivistas. São respostas que nos falam
de causalidades múltiplas num primeiro olhar, mas que têm um teor negativo,
como aponta Allport (1971). Quando temos respostas que tomam o preconceito
como "uma maneira de se defender" ou de "julgar a pessoa", ou mesmo "quando
o diferente é entendido como errado". Estes conceitos nos remetem ao que este
autor escreveu sobre a questão do endogrupo, que julga e expele tudo aquilo que
considera ser diferente do que acredita e vivencia, valores estes que, como disse
uma das pessoas entrevistadas, "vêm da educação, especialmente familiar".
Isabela: Para você, o que significa preconceito?
Roberta: ...é sempre uma maneira de se defender, entendeu?,
preconceito é sempre uma maneira de se defender...
Roberta, 44 anos, fem., secretária, 3.
o
grau completo
Isabela: Como você conceitua ou define o preconceito?
Rita Lee: Acho que é bem do nome, né, conceito prévio sem se colocar
no lugar, é o diferente ser entendido como errado, acho
que talvez um resumo seja isso, não conseguir entender que
tem diferenças...
Rita Lee, 26 anos, fem., bióloga, 3.
o
grau completo
Isabela: Para você, o que significa preconceito?
Cora: É uma coisa já pré-estabelecida, né, então é um conceito que
você já conhece, é uma coisa que vem pela educação,
principalmente da familiar, mesmo, então é um conceito
que eu aprendi... um pré-conceito que eu já tenho da questão
em si...
Cora, 38 anos, fem., odontologista, 3.
o
grau completo
97
Ainda nessa perspectiva, Tajfel (1981) traz a questão da rede de
socialização, onde as pessoas buscam, através de valores e crenças, identidades
individuais e sociais que acabam por fazê-las pertencer a um determinado grupo,
e isso faz com que vejam o outro, não pertencente a este meio, quase que como
um intruso. Definições que falam do preconceito como "uma insegurança minha
em relação ao outro", ou "uma forma de se defender", ou ainda "medo de perder
espaço", fazem sentido quando olhamos a partir dessa perspectiva. Ou seja, muitas
vezes o preconceito pode acontecer por conta de algumas pessoas estarem
localizadas em ambientes confortavelmente organizados e estruturados e, assim,
terem a tendência de emitir julgamentos de valor em relação àqueles que queiram
invadir esse círculo de harmonia, a fim de preservar o grupo em questão. Isso
geralmente acontece em ambientes de trabalho.
Isabela: Para você, o que significa preconceito?
Roberta: ...é uma insegurança da parte da pessoa em relação ao
outro... então a pessoa se sente insegura, e daí pra ela se
sentir melhor que os outros ela começa a construir mitos de que
ela é melhor, que ela é mais rica, que ela é melhor porque ela
descende de determinada raça, é uma maneira dela conseguir
se firmar, conseguir vencer sua própria insegurança... e o
preconceito também é o medo de perder espaço...
Roberta, 44 anos, fem., secretária, 3.
o
grau completo
De uma forma ou outra, o que fica claro aqui nesta categoria cognitiva de
conceituação é que o preconceito pode aparecer como resultado da exposição a
crenças e valores que são socialmente arraigados, tanto culturalmente quanto
historicamente. Não há, portanto, como descolar essas afirmações dos contextos
sócio-históricos, como se tivessem surgido num passe de mágica. Nossos
entrevistados também são protagonistas nessa circulação de idéias e experiências.
98
4.1.2 Para mim preconceito é... Perspectiva da Escola Exclusiva e de Poder
Encontramos várias falas de nossos entrevistados que podem ser entendidas
na perspectiva da escola que tem por foco os processos de exclusão ou, ainda, de
relações de poder e dominação. Quando dizem que o preconceito é "menosprezar",
"não chegar perto" ou ainda "virar as costas para uma pessoa", isso nos remete
ao desprezo por motivos associados ao que Crochick (1997) apontou como sendo
uma necessidade de diminuir o outro para que o mesmo não veja minhas fragilidades.
Isabela: Para você, o que significa preconceito?
Cida: ...preconceito, penso eu numa maneira bem rude a palavra,
quer dizer isso, você julgar ou menosprezar ou supervalorizar
alguma coisa sem saber o que você está falando ou valorizando,
né... a questão da raça é a mesma coisa, religião... enfim,
está dentro de nós.
Cida, 56 anos, juíza de alçada aposentada, fem., 3.
o
grau completo
Isabela: Para você, o que significa preconceito?
Simone: ...quando a pessoa chega perto de você, você se afasta, né,
ou às vezes você assim, você não conversa, né... é você
virar as costas pra pessoa... é, seria isso pra mim.
Simone, 40 anos, fem., serviços gerais, 1.
o
grau completo
Como podemos perceber a partir das falas, o preconceito, para algumas
pessoas, surge como algo que me faz "ignorar o outro por me achar superior".
Para Heller (1998), essa maneira de tratar o outro seria uma forma de rotular e
garantir que minha verdade prevaleça e, assim, o meu "eu preconceituoso" continue
no poder ou na dominação.
99
Isabela: Ana Carolina, você poderia definir pra mim o que vem a ser
preconceito?
Ana: Antes de tentar definir, acho que o preconceito, pra começar,
é uma ignorância das pessoas porque... todos nós erramos,
todos nós temos defeitos, ninguém é perfeito aqui... preconceito
infelizmente eu acredito que é alguém que acha que sabe
mais, acredita que é superior a alguém em determinada
ocasião ou determinado momento.
Ana, 41 anos, fem., funcionária pública aposentada, 3.
o
grau completo
Definições nas quais o preconceito aparece como sendo uma "exclusão", ou
"discriminar uma pessoa", também aparecem nas falas de nossos entrevistados:
Isabela: Marina, o que é preconceito pra você?
Marina: Exclusão pra mim é isso, é você não gostar por qualquer
motivo e excluir uma pessoa do seu relacionamento, até do
seu pensamento.
Marina, 43 anos, fem., arte-educadora, 3.
o
grau completo
Isabela: Bem, Gal, você talvez já tenha lido sobre isso, ou estudado,
mas eu gostaria de saber de você, Gal, falando sobre o que é
preconceito.
Gal: Preconceito? Ah, eu não sei o que que é... acho tipo... tipo
você discriminar uma pessoa por alguma coisa que ela tem,
né, pode ser preconceito por ter Aids, né, por qualquer
coisa...
Gal, 19 anos, fem., estudante de psicologia
Ao definirem preconceito como "falta de respeito" ou como "não considerar
outra pessoa", nossos entrevistados se aproximam das reflexões de Bauman
(1998) sobre o holocausto, em que ele afirma que é na desumanização do outro
que eu consigo não só não enxergar, mas ambém me afastar sem nenhuma culpa do
sofrimento pelo qual o próximo possa estar passando. Sendo assim, na justificativa
de minha sobrevivência, posso desconsiderar valores morais e éticos da forma
100
como entender melhor, pois no afã de autopreservação torno-me indiferente
ao outro, podendo não só julgar, mas excluir e afastar sem nenhum remorso
ou sentimento.
Isabela: O que é preconceito pra você?
Sueli: ...é diferenciar as pessoas por algum motivo qualquer... essa
diferenciação que as pessoas fazem entre elas próprias, quer
dizer, não considerar outra pessoa igual a você, é diferenciar
as pessoas.
Sueli, 37 anos, fem., agrônoma, pós-graduada (doutorado)
Isabela: Rolando, você poderia me dizer o que você entende por
preconceito?
Rolando: É a discriminação que as pessoas têm... é uma falta de
respeito... e que vai contra as ideologias de outras pessoas e
elas não aceitam...
Rolando, 46 anos, masc., desenhista industrial, 3.
o
grau completo
4.1.3 Para mim preconceito é... Perspectiva a partir do Estigma
O preconceito enquanto definição aparece como conceito pela vertente do
estigma, que é nossa terceira categoria, onde estão incluídas expressões como:
"algo que vai além do aparente", "tabu social", ou ainda, mais diretamente, "é um
estigma". Goffman (1975) aponta, em seu conceito sobre estigma, que não respeitar
a diferença, especialmente física ou mesmo relacionada a alguma outra limitação
do outro, é sequer perceber a existência desta pessoa. Assim, o estigmatizado
poderá nem mesmo ter a chance de mostrar suas capacidades, qualquer que seja
o contexto.
Isso ocorre, segundo o autor, porque a sociedade cria uma expectativa
sobre as pessoas, sobretudo em relação aos padrões de normalidade, em que
tudo o que é diferente passa a ser estigmatizado e, muitas vezes, invalidado e
101
depreciado. Sendo assim, o aparente ou a possibilidade de algo além das aparências
figuram em nossas entrevistas como uma forma de conceituar o preconceito:
Isabela: Zélia, em suas palavras, o que você entende ou como você
conceituaria preconceito?
Zélia: Preconceito... quando você já tem um estigma formado
anteriormente antes de deparar com a situação.
Zélia, 42 anos, fem., técnica em enfermagem, estudante de Psicologia
Isabela: Selma, em suas palavras, o que você entende ou como você
conceituaria o preconceito?
Selma: Hum... nossa... preconceito é... você precisa me dar um
tempo pra eu formular aqui porque ele é... é algo que vai
muito além do aparente, né...
Selma, 40 anos, fem., psicóloga e professora de Psicologia
Até este momento procuramos elucidar, à luz das escolas teóricas e do
nosso material empírico, o que vem a ser preconceito para nossos entrevistados.
No entanto, embora, em sua maioria, os exemplos utilizados tenham sido trazidos
por pessoas diferentes, isso não foi uma regra, pois houve momentos em que
algumas pessoas, pela maneira de conceituar o tema, contemplaram mais de
uma categoria teórica. Ou seja, em nossa análise houve momentos em que, nas
falas, apareceram mais de duas interpretações. Houve, até mesmo, um caso em
que a definição fornecida por uma das entrevistadas contemplou as três categorias
teóricas sobre preconceito. Por exemplo, estas três vertentes – a cognitiva, a que
nos diz dos processos de exclusão/discriminação, e aquela que contempla o estigma –
estão presentes na definição dada por Cida, uma juíza de Direito aposentada:
102
[...] são certos tabus sociais, como o preconceito contra a mulher em
determinadas funções, preconceito de religião... se a gente pegar a
palavra é um pré-conceito, ou seja, é fazer um juízo de valor sobre uma
coisa sem conhecer... é você menosprezar ou supervalorizar alguma
coisa sem saber o que você está falando.
O que isso nos mostra, confirmando o que dizem vários autores, é que
quando tratamos da questão do preconceito, fica muito claro que a sua comple-
xidade e a multiplicidade de fatores que fazem com que ele ocorra tornam quase
impossível estudar ou tentar compreender esse fenômeno por um ângulo apenas.
Isso se comprovou, ao nosso ver, a partir das definições de nossos entrevistados,
que, em sua maioria, trouxeram para nossa conversa uma grande riqueza, não só
quanto à conceituação, mas em termos de exemplos e de vivências, como veremos
nas discussões a seguir.
De qualquer forma, tendo em vista que não dispomos de uma teoria
consensual e completa a respeito do preconceito, torna-se necessário levar em
consideração o conjunto de perspectivas existentes até o momento. Essa perspectiva
multiteórica faz ainda mais sentido se pensarmos, a partir das considerações de
Davies e Harré (1990), que todas as relações sociais são práticas discursivas em
que, no fluxo da produção de sentidos no dia-a-dia, há a possibilidade de ressignificar
sentidos através de uma simples palavra.
Então, enquanto houver a possibilidade de reescrever a história, a partir
da vida de cada um de nós, e enquanto houver tempo, poderemos refletir sobre
variadas formas de viver e reinventar projetos, sonhos e ações, até mesmo na
questão do preconceito.
Se o preconceito não tem um conceito que possa dar conta de sua
complexidade, seria sua prática algo diferente? Em outras palavras, haveria data,
local, ou qualquer outra forma de acontecer o preconceito, como se pudesse
103
haver um perfil de pré-disposição para que ele se apresente, ou este fenômeno
acontece em variados contextos nas práticas sociasi?
O próximo eixo de análise volta-se justamente a investigar as situações
em que o preconceito ocorreu, uma vez que o roteiro da entrevista incluía uma
pergunta sobre situações de preconceitos vivenciadas pelos entrevistados, seja
na perspectiva de ter sido alvo de preconceito, seja na de ter sido o agente de
uma atitude preconceituosa.
4.2 O PRECONCEITO SITUADO/CONTEXTUALIZADO NAS PRÁTICAS SOCIAIS
E DISCURSIVAS
As diferentes conceituações de preconceito nos levam a uma gama
variada de possibilidades para sua compreensão. Entretanto, também no que diz
respeito às práticas sociais preconceituosas ele pode se manifestar em uma
diversidade de situações e contextos do convívio social cotidiano. Assim, nas
entrevistas, além de perguntar qual o entendimento sobre o preconceito, também
buscamos investigar se as pessoas já haviam sofrido algum tipo de preconceito
ou haviam sido preconceituosas.
O que pudemos detectar é que, em sua grande maioria, houve algum
momento de suas vidas em que alguma experiência de preconceito se fez presente.
Para uma primeira aproximação a esta questão, elaboramos uma síntese,
apresentada na figura 2, que possibilita uma visão geral das situações em que se
deu o preconceito.
FIGURA 2 - CIRCULAÇÃO DOS AMBIENTES ONDE OCORRERAM AS SITUAÇÕES DE PRECONCEITO
105
Como podemos perceber, o preconceito aconteceu na vida dessas pessoas
em diferentes circunstâncias e, por que não dizer, lugares e épocas. Para caracterizar
a diversidade de situações encontradas, as classificamos em duas categorias:
aquelas que ocorreram em situações públicas ocasionais e as que ocorreram
em contextos institucionalizados, como no âmbito das interações familiares ou
de trabalho.
Discorreremos a seguir sobre as diferentes formas da manifestação do
preconceito, a partir das falas das pessoas por nós entrevistadas.
4.2.1 Situações Públicas Ocasionais
Consideraremos as situações públicas ocasionais em duas circunstâncias
distintas: a primeira se dá no anonimato, ou seja, situações em que não houve
verbalização por parte dos integrantes, mas houve a presença sentida do
preconceito; a segunda concerne a interações face a face, embora em contextos
fugazes de interações sociais.
Situações públicas ocasionais onde o anonimato se fez presente
As narrativas que se seguem trazem como exemplo a questão do preconceito
vivenciado a partir de uma situação pública ocasional no contexto do anonimato:
Isabela: Seu João, o senhor já sentiu preconceito em relação ao
senhor, assim, uma pessoa em relação ao senhor?
João: Já, sim, eu é... talvez seja conforme o estabelecimento que
a gente vai, né... é... tem lugar que eu não entro... então
isso aí é um preconceito que já tá na cara... a pessoa já fica
visando a gente, né, entendeu? Por causa assim da gente
trabalhar em obra o preconceito já tá aí.
João, 48 anos, masc., carpinteiro-pedreiro, 1.
o
grau completo
106
Isabela:
Simone, na tua vida, em relação a você, já sentiu algum
preconceito? Em que situação?
Simone:
Já, já senti sim, principalmente nessa situação, nessa... da
gente ser faxineira é que as pessoas têm preconceito... mas
quando você, em todos os lugares quando você... se você
tiver bem vestida, você é tratado bem agora se você não
tiver... de chinelinha havaiana cê pode sabê, minha filha,
nossa!, infelizmente o Brasil é desse jeito, não só o Brasil né...
Simone, 40 anos, fem., serviços gerais, 1.
o
completo
Isabela: Mônica, na tua vida, em relação a você, já sentiu algum
preconceito? Em que situação?
Mônica: Sim, tipo assim, é tipo assim, se você entra num banco com
a... o uniforme de faxineira, aí o povo começa a olhar... é se
você vai mexer no caixa, aí as pessoas já começa a olhar,
ficar de olho em você, o que cê tá fazendo, então o preconceito...
Mônica, 45 anos, fem., serviços gerais, 1.
o
completo
Gal: ...passei por preconceito aqui neste Congresso [ABRAPSO]...
Isabela: Você então já sofreu preconceito, é isso? Como é que foi?...
Gal: ...pelo fato de eu ser do sul e aqui ter bastante gente negra,
né, e daí tipo eu tenho a pele meia clara, meia, né, porque eu
também tenho negro no sangue, só que o pessoal não, não
nota isso, né, porque minha pela é clara, então "hã, ah, essa
loira burra do sul", isso pra mim é preconceito... eu ouvi isso...
foi caminhando por aqui...
Gal, 19 anos, fem., estudante de Psicologia
Isabela: Em algum momento de sua vida, você já sentiu preconceito
em relação a sua pessoa?
Ceumar: Então, eu já senti é... uma vez assim claramente, mas não foi no
Brasil, né, foi fora do Brasil... era uma coisa, assim, de... é...
nos Estados Unidos, dos latinos, né, uma coisa assim de
menos... e que senti exatamente isso, uma coisa que me
afastava do... do... de alguém, né, do outro, é... claro que tava na
cara que eu era estrangeira... era uma coisa assim do tipo físico,
da... da cor de pele e que me caracterizava lá no... no grupo dos
latinos, é... e aí o grupo dos latinos tem todo lá um significado.
Ceumar, 51 anos, fem., psicóloga e professora
Esses exemplos nos trazem situações em que as pessoas se sentiram
alvos de preconceitos de outras pessoas, mesmo sem haver qualquer troca de
107
comunicação direta entre as partes. Um olhar provavelmente discriminatório já era
suficiente para que a pessoa se sentisse incomodada e, de alguma forma, sendo
julgada. Além disso, não podemos esquecer que, pela própria condição econômica
e social objetivada na vestimenta típica de uma dada ocupação (como pedreiro
e faxineira), é inferida uma posição social inferior segundo os padrões da socie-
dade ocidental.
Se houve ou não de fato esse olhar julgador não há como aferir, mas,
sem dúvida, essas pessoas se sentiram tratadas de modo diferente, o que nos
leva a pressupor a existência da exclusão, pois, em todas essas falas, há um
sentimento de não se sentir parte do lugar, como os bancos, onde o dinheiro é o
símbolo das relações de poder e de dominação.
Esse tipo de preconceito nos remete a Allport (1971), para quem uma das
formas de sua atuação é um tipo de poder intimamente relacionado às formas de
dominação de uma dada época, em que os valores, costumes e culturas tendem a
uma insistente cegueira social para que não haja perigo de mudança no status quo.
Situações públicas ocasionais onde há interação face a face
Como já dissemos, o preconceito pode acontecer em situações públicas
ocasionais, nas quais se dá uma segunda face desta moeda: interação face a
face, como nos exemplos a seguir.
Isabela: Em relação a você, Roberta, já sentiu preconceito?
Roberta: ...já me senti mal em lojas, fui mal atendida porque eu ando
de uma maneira bem simples, assim, e entrei numa loja assim
meio um pouquinho acima das minhas possibilidades finan-
ceiras, e essa vendedora deixou assim muito claro, sabe,
não com palavras, mas gestos, que eu não estava no ambiente
certo, né...
Roberta, 44 anos, fem., secretária, 3.
o
grau completo
108
Isabela: Em relação à sua pessoa, já sentiu preconceito?
Daúde: Acho que... eu não sei se é preconceito isso, mas eu já senti
alguma discriminação em atendimento em relação ao nível
social, um lugar muito fino e tal e eu provavelmente não
estava bem vestida, e o atendimento não foi como deveria,
e me senti mal...
Daúde, 45 anos, fem., professora e maestrina, pós-graduada (mestrado)
Isabela Ivan, já sentiu preconceito em relação a você?
Ivan: Já teve várias... uma marcante foi... a primeira acho... eu era
bem pequeno e tava com minha família... numa churrascaria
que fica na Barra de Tijuca, que é um bairro nobre lá da
cidade do Rio... o meu pai tem uma cor bem mais escura que
a minha mãe, é... é o que as pessoas chama de branca, aqui
no Brasil, e quando a gente tava comendo... eu percebi... eu
tinha 7 anos... mas foi uma coisa nítida, os garçons se posi-
cionando ao redor da nossa mesa tipo assim a uma certa
distância, e na hora de pagar meu pai puxou o American Express,
que na época ninguém tinha, né,... e aí o garçom se assustou...
os outros garçons se desarmaram, ah, as costas sabe...
Ivan, 23 anos, masc., psicólogo, 3.
o
grau completo
Isabela: Ivete, já sentiu preconceito em relação à sua pessoa?
Ivete: ...uma vez assim... excluído, né, é... há uns três anos atrás...
a gente foi comprar um carro e chegando lá a pessoa viu a
aparência da gente e eu senti aquele preconceito. Ela pra
mim ela pensou: "esse pessoal não tem dinheiro, não vai
comprar carro, né, não tem condições", e deixou a gente
parado ali num canto com aquele preconceito, e foi atender
outra pessoa mais, né, que a gente diz assim mais graduado,
mais aparência, mais bonita...
Ivete, 43 anos, fem., serviços gerais, 1.
o
grau completo
Como podemos perceber, em todas essas narrativas o preconceito
extrapola qualquer tipificação ou característica que pudesse justificar esta ou
aquela categoria de pessoa ou mesmo de status social. Temos de profissionais
pós-graduados a atendentes de serviços gerais que passaram por situações de
preconceito explícitas, mesmo quando não verbalizadas pela outra pessoa.
109
O que apreendemos, quanto às manifestações do preconceito, é que esses
casos remetem às reflexões de Joffe (apud ARRUDA, 1999), que discorre sobre a
questão da alteridade, em que o outro, ao ser discriminado, acaba se expondo a
diferentes situações, como esperar em uma loja até ser atendido, deixando de ser
alguém com voz e, desta forma, podendo ser esquecido ou invisibilizado.
4.2.2 Situações Públicas Institucionalizadas
Entendemos como institucionalizadas todas as situações em que haja
uma mínima normalização, costume, cultura ou regra de convivência, como ocorre
nas relações familiares e no trabalho. Pode também ser uma vivência com um
tempo determinado, como no caso de um grupo coral ou escola. Nesse contexto,
em nossa análise, o que está sendo considerado é o preconceito que ocorre em
qualquer relação duradoura e mais próxima, em contraponto com a situação
anterior, em que as interações eram meramente ocasionais. Essas situações podem
estar relacionadas à raça, sexualidade, classe social e relações de gênero. Como
exemplo dessas vivências, temos as seguintes narrativas:
Em relação à raça:
Isabela: Você já sentiu preconceito em relação à sua pessoa? Em que
situação?
Zélia: Já, tem várias... por exemplo, não ir a uma festa que não
tenho roupa apropriada... em relação à cor também... toda a
família do meu pai é toda loira, é de olhos verdes, azuis, aí
chegava na minha casa, minha irmã é clara de olhos claros,
falavam: "ai, que menina linda!", aí olhavam pra mim: "você
também é bonitinha", isso é preconceito... da própria
família, essa situação, né, te comparar com outra pessoa que
não é igual a você, e que a outra é melhor por ser da pele
clara... ou é mais inteligente ou é mais bonita ou só porque
é branca... acho que não é por aí.
Zélia, 42 anos, técnica em Enfermagem e estudante de Psicologia
110
Quanto à classe social:
Isabela: Em relação a sua vida, Selma, em algum momento da sua vida
você já sentiu algum preconceito em relação a você?
Selma: Em relação a mim? Eu acho que na adolescência, né... na
infância...
Isabela: Poderia me dar um exemplo?
Selma: Por ser pobre, em primeiro momento, né, na minha
infância... eu tinha que estudar numa escola municipal
então aquilo fazia com que eu: "pôxa, não tô valendo nada,
né, nada..." na adolescência por não ter, né... as condições,
as mesmas oportunidades que os meninos da minha idade
tinham, aí: "pôxa, mas eu sou menina, eu tenho 14,15 anos, o
que vai ser de mim?..."
Selma, 40 anos, fem., psicóloga e professora de Psicologia
Isabela: Em relação a você, Roberta, já sentiu preconceito?
Roberta: Sim, senti várias vezes já... antes de eu ter faculdade existia
muito preconceito em relação ao fato de eu só ter 2.
o
grau, e
uma pessoa uma vez chegou a confessar pra mim que ela se
sentia superior em relação a mim porque ela tinha faculdade
e eu não tinha...
Roberta, 44 anos, fem., secretária, 3.
o
grau completo
Isabela: Rita, já sentiu preconceito em relação a você?
Rita: Sim, eu tinha 14, não, 12 anos, eu estudava num colégio de
freira supertradicional e minha família era fora do padrão
normal, né, porque meus pais eram novos... e eram liberais,
né... a escola inteira era super, supertradicional, elite, e a
gente não era, a gente tava lá meio por acaso, e quando
meus pais se separaram eu sofri bastante porque passei a
ser a diferente da escola... ninguém acreditava quando eu
tava chorando na escola porque meus pais tinham separado...
porque no mundo deles não existia, então passei a ser isolada
de alguns grupos...
Rita, 26 anos, fem., bióloga
111
Em relação à orientação sexual:
Isabela: Em relação a sua pessoa, já sentiu algum tipo de preconceito?
Cora: Senti, eu senti vários preconceitos pra comigo mesma, em
relação à opção sexual é... assim, principalmente quando as
pessoas do ambiente familiar ou no ambiente de trabalho sabem
e fazem comentário a respeito de uma pessoa, assim, e você está
ali incógnita... e em algumas ocasiões eu sinto este preconceito.
Cora, 38 anos, fem., odontologista, 3.
o
grau completo
Isabela: Em relação a sua pessoa, já sentiu preconceito?
Rolando: Já, eu senti preconceito com relação a minha pessoa em
relação a minha sexualidade, é... e também com relação ao
nível social... numa questão de trabalho eu tava fazendo um
projeto de interiores pra minha prima... e daí meu tio chegou
pra minha prima... eu fiquei sabendo disso pelo filho da minha
prima... o meu tio perguntou pra minha prima como que é...
ela tinha deixado... como que ela tinha contratado uma
bichona pra fazer o projeto da casa dela, nestes termos,
ele usou assim...
Rolando, 46 anos, masc., desenhista industrial, 3.
o
grau completo
No que concerne às relações de gênero:
Isabela: E você, já sentiu algum tipo de preconceito em relação a sua
pessoa?
Sueli: Um pouco sim, já senti, já senti em relação a ser mulher
trabalhando na área de agronomia... é uma área muito mais
masculina... por dois anos eu fiquei numa cidade trabalhando
sozinha como agrônomo, e o pessoal ficava meio assim, não
queria falar comigo... chegavam no escritório e falavam: "cadê o
agrônomo?" Aí eu falava: não tem agrônomo, tem agrônoma...
Sueli, 37 anos, fem., agrônoma, pós-graduada (doutorado)
Essas experiências cabem perfeitamente naquilo que havíamos denominado
de "preconceito adjetivado". Trata-se de conseqüências de posicionamentos sociais
que, segundo a literatura, predispõem a atitudes preconceituosas. Entretanto, nossos
112
entrevistados trouxeram outras situações que fogem a esta regra: concernem a
expectativas de comportamento por causa da pertença a camadas sociais mais
privilegiadas ou, então, pela discrepância ideológica em um mesmo extrato social.
Isabela:
Em algum momento já sentiu preconceito em relação a você?
Cecília:
Sinto preconceito porque no meu caso é porque meus pais
são arquitetos, também, e quando as pessoas sabem disso,
que nem... eu estudo arquitetura, existe esse preconceito
por eu ser filha de arquitetos e talvez ter alguma ajuda na
escola... já senti preconceito foi disso... filha de arquiteta
deveria saber mais ou deveria saber menos, isso em relação
aos professores e aos colegas... quando não me conhecem
geralmente dizem: "ah, é filha de arquiteta, é por isso..".
Cecília, 24 anos, fem., estudante de arquitetura
Isabela:
Em relação a sua pessoa, já sentiu algum tipo de preconceito?
Ana:
...só aconteceu numa única situação em um grupo musical,
eu entrei e uma das pessoas que estavam ali há mais tempo me
olhava como se eu tivesse cantando errado, me ignorava
quando eu perguntava alguma coisa no sentido de procurar
ajuda, e de um modo geral ela evitava de ficar perto de mim,
ou de cantar junto... era pessoal mesmo.
Ana, 41 anos, fem., funcionária pública aposentada, 3.
o
grau completo
O que podemos observar é que, nessas experiências preconceituosas,
não houve nenhuma categoria especial de classe social, idade, ou situação que
pudesse eximir as pessoas de passarem por estas situações vividas. Ou seja, não
houve uma padronização nas formas do preconceito. Isso talvez se deva às
variadas faces do preconceito. Heller (2000) aponta que as pessoas sempre estão
predispostas a rotular o que têm diante de si, enquadrando o outro numa
estereotipia, passando, assim, por cima das características singulares de cada um
de nós, que podem não coincidir com as do grupo ao qual pertencem.
Embora as três formas de preconceito aqui relatadas – públicos ocasionais
no anonimato ou face a face, e as situações institucionalizadas – estejam em
113
patamares de envolvimento pessoal diferentes no que concerne à aproximação
física, social e emocional, o que chama atenção é que, mediante um gesto ou uma
verbalização direta, em todos os casos as pessoas se sentiram desvalorizadas
em relação às demais.
4.2.3 O Lado B: Eu fui preconceituoso quando...
Faz-se necessário, neste momento, trazer para esta discussão a questão
do preconceito para com o outro, pois as narrativas de nossos entrevistados
colocam-nos como pessoas que também emitiram algum juízo de valor em
relação a outrem em diferentes situações cotidianas.
Após perguntarmos para as pessoas se elas haviam sentido alguma forma
de preconceito em sua vida, viramos sua perspectiva pelo avesso, e questionamos
se já haviam se flagrado em situações nas quais teriam sido elas as preconceituosas.
Nas narrativas que apresentamos a seguir, pudemos perceber que a maioria
das manifestações de preconceito ocorreu em situações públicas institucionalizadas,
embora em algumas delas o interlocutor seja um anônimo, membro de uma
categoria genérica. Por exemplo:
Isabela: E você, já se percebeu tendo preconceito com alguém? Poderia
me relatar?
Zélia: Às vezes... eu trabalho com Saúde Pública e, de vez em
quando, a pessoa vem sem tomar banho, vem... vem suja,
né, e eu conheço a casa, falo com ela: "tem que tomar banho
antes de vir pro médico", né... aí às vezes eu dou uma
puxada no freio, assim... isso não é legal...
Zélia, 42 anos, fem., técnica de enfermagem, estudante de psicologia
114
Foram mais comuns os relatos em que ocorreram encontros face a face:
Isabela: E você, já se flagrou tendo preconceito em alguma situação
ou com alguma pessoa?...
Simone:
Infelizmente, foi... olha, eu sinto até vergonha, sabe, foi um...
um senhor, tadinho, que tava, sabe, com ferida, sabe, aí chegô,
sabe, ô, meu Deus, eu senti, sabe, eu fiquei com vergonha, aí
ele me pediu um dinheiro, alguma coisa, aí eu olhei assim, sabe,
eu dei, mas eu fiquei, sabe, eu senti, sabe, mas daí depois eu
pensei: "ô, meu Deus, mas eu não podia ter feito isso".
Simone, 40 anos, fem., serviços gerais, 1.
o
grau completo
Isabela: E você, já se flagrou tendo preconceito em alguma situação
ou com alguma pessoa?...
Mônica: Já, foi até aqui, ó, um dia saindo daqui da escola, da faculdade,
da UFMG, eu fui pegar o ônibus ali em baixo, aí um cara chegou
e começou a pedir dinheiro pra gente, né, mas só que da
maneira que ele falava a gente não dava pra acreditar no
que ele falava não... aí eu pensei, pensei: "ah, eu vô não,
mexe com isso não" ...aí ele tornô chegar perto de mim,
tornô a pedir e eu disse "infelizmente eu não tenho"... Pra mim
era mais conversa fiada dele, eu achei ele... era mentira...
Mônica, 45 anos, fem., trabalho, serviços gerais, 1.
o
grau completo
Embora menos freqüentes, as narrativas envolveram, também, situações
públicas ocasionais e no anonimato:
Isabela: Você já se flagrou tendo preconceito em alguma situação que
você parou e pensou: "nossa!, fui preconceituosa agora"?
Gal: Já, já, algumas vezes...
Isabela: Pode me relatar?
Gal: De classe social, só que não classe social baixa, classe social
alta, eu já... algumas vezes assim eu tipo não, ai num, num
me bate muito, sabe, ah, é "pat", sabe, é chamar os outros
de "pat" é tipo um preconceito...
Gal, 19 anos, fem., estudante de Psicologia
115
Isabela: E você, Ivan, você já se flagrou tendo preconceito em alguma
situação, poderia me dizer?
Ivan: Ah, já, já... pô!, foram algumas, pô!, foi, a primeira vez que eu me
flagrei também, flagrante de preconceito, foi na minha adoles-
cência ainda e um amigo meu foi apresentar, foi me apresentar
um amigo dele que ele tava fazendo aniversário, bebemos pra
caramba coisa e tal... era tipo uma confraternização... aí daqui a
pouquinho chega um outro cara na sala,os dois se beijam,
caraca meu, aí eu descobri que eu era preconceituoso...
também nesse dia, que foi uma cena...
Isabela: Mas o que você sentiu? o que quer dizer esse tipo "caraca"?...
Ivan: Caraca, foi... foi nojeira, nojeira, eu "caramba, o que que é
isso?..."
Ivan, 23 anos, masc., psicólogo
Isabela: E você, já se flagrou tendo preconceito com alguém? Pode
me dar um exemplo?
Selma: Olha o que... eu fui... que aquele meu comportamento de... é...
é... preconceituoso... isso em relação às... aos moradores
periféricos mesmo, que tem a ver comigo, que têm a ver
com minha infância, né, que até hoje a gente vê, então em
relação com... com a periferia, né, "mas aqui é muito perigoso"...
eu me vi assim momentos pensando...
Selma, 40 anos, fem., psicóloga e professora de Psicologia
Isabela: E você, em relação ao outro, você já se flagrou...
Ceumar: Tendo preconceito? Claro, já, já... é, quer dizer, sempre
dentro desta coisa que me afasta do outro, né, é... tem um...
tem um episódio que eu num... não esqueço, que eu tava
andando sozinha pela rua, e vi um rapaz é... tava frio... e
tinha um rapaz vindo na minha direção com uma jaqueta
e um gorro enterrado na cabeça e fiquei com medo dele...
eu achei mesmo é... como um tipo suspeito, já alguém
que pudesse me assaltar, e quando eu fui chegando perto...
continuei lá no meu caminho, mas com medo... e quando
cheguei perto eu reconheci... era o rapaz... chapeiro da
lanchonete da faculdade... eu convivia, eu sabia o nome e
tal... eu fiquei muito envergonhada... eu nunca falei isso, tô
falando agora aí pra você... eu fiquei muito envergonhada...
Ceumar, 51 anos, fem., psicóloga e professora de Psicologia
116
Isabela: Você quer falar mais alguma coisa [a respeito do preconceito]?
Rita: Eu tive [preconceito] quando eu fui pra Europa. É, eu tava
na França e tem muitos negros que são de colônias é
africanas e são negros azulões né, e eu me vi em várias
vezes assim com medo de tá passando pela rua e tá vindo
um negro, e eu que sou assim, me considero totalmente sem
preconceito; converso com pessoas na rua que pedem
dinheiro, e de repente num lugar desconhecido eu não sabia
se aquela pessoa representava um perigo ou não, na primeira
vista pra mim um negro representou perigo, eu me senti
supermal depois de ter tomado isso pro consciente...
Rita, 26 anos, fem., bióloga
Estas narrativas nos permitem visualizar a diversidade de práticas coti-
dianas do preconceito, tendo como fundo os valores, os costumes históricos e
sociais da sociedade ocidental atual e as diferentes formas de compreender o mundo.
Permitem entender os variados motivos que, como mola propulsora, podem servir
para que eu julgue o outro como sendo diferente do que aceito como norma, e
assim, acabe por praticar a intolerância em forma de preconceito para com o outro.
A figura 3, elaborada como síntese da discussão sobre as experiências
envolvendo preconceito, permite visualizar a diversidade de motivos que, de um
lado, levou nossos entrevistados a serem preconceituosos e, de outro, os fez se
sentirem alvos de preconceito. As situações e os motivos que levam ao preconceito,
nessas entrevistas, trazem para o palco um outro elemento, que confere cono-
tações especiais a essas experiências: os sentimentos por elas suscitados, assunto
do próximo passo de nossa análise.
FIGURA 3 - MOTIVOS DO PRECONCEITO
118
4.3 O PRECONCEITO QUE ME FAZ SENTIR...
Há pessoas que nos falam e nem escutamos;
Há pessoas que nos ferem e nem
cicatrizes deixam.
Mas há pessoas que, simplesmente,
aparecem em nossa vida...
E que marcam para sempre...
Cecília Meireles
Esta análise fecha o círculo do nosso objetivo de tese: a compreensão do
preconceito como linguagem em ação, presente nas práticas discursivas do dia-a-
dia das pessoas entrevistadas.
Iniciamos a análise das informações coletadas nas entrevistas com o que
cada um deles, a partir de sua história de vida, compreende por preconceito.
Depois, focalizamos os momentos e os contextos sociais em que se sentiram
alvos de preconceito, e, paralelamente, os momentos e contextos em que tiveram
reações preconceituosas, incluindo aí o motivos e explicações para tais ocorrências.
Agora, nosso objetivo é buscar compreender quais os sentimentos que essas
experiências suscitaram.
Este tema não poderia estar descolado das experiências vividas de nossos
participantes da pesquisa, pois freqüentemente, sem que houvéssemos perguntado
sobre como ele ou ela havia se sentido ao perceber que estava sendo atingido pelo
preconceito de alguém, eles expressavam algum tipo de emoção a esse respeito.
Como Heller (1970) comenta, a emoção é elemento constituinte do pensamento e
da ação dos seres humanos, e, assim, torna-se fenômeno inevitável.
A figura 4 permite visualizar a gama de sentimentos que emergiram
nas entrevistas.
119
FIGURA 4 - PRECONCEITO E SENTIMENTOS
NOTA: Estes e outros sentimentos foram apontados como reação ao preconceito em três diferentes momentos:
Sentimentos do entrevistado quando outra pessoa apresentou algum tipo de preconceito para com ele;
Sentimentos do entrevistado quando sentiu-se de alguma forma depreciado por outra pessoa quando
este mostrou algum tipo de preconceito para com ele;
Sentimentos dos entrevistado ao perceber que foi preconceituoso para com outra pessoa.
Os sentimentos em relação ao preconceito emergiram de diferentes formas
durante as entrevistas: houve pessoas que, ao relatar sua experiência vivida por
ter passado pela situação de preconceito, já falaram das emoções sentidas, tendo
estas, em sua grande maioria, um teor depreciativo; foram raras as pessoas que
se sentiram indignadas ou explicitamente revoltadas. Outros poucos, por não se
lembrarem de alguma situação vivida, ao serem perguntados como uma outra
pessoa se sentiria nesta situação também evocaram sentimentos com teor de
120
humilhação. Vamos aos exemplos das narrativas de nossos entrevistados,
iniciando pelos sentimentos associados à vivência de preconceito.
Tristeza, humilhação...
Muitas das emoções presentes nas narrativas têm um teor negativo; de
forma geral, retratam sentimentos de tristeza, humilhação, muitas vezes com um
tom desolador:
Isabela: Em relação a essa tua vivência, você gostaria de acrescentar
mais alguma coisa?
Zélia: Essa situação, né, te comparar com outra pessoa que não é
igual a você, e que a outra é melhor por ser da pele clara ou
por ter dinheiro, ou é mais bonita, ou só porque é branca, é
mais inteligente, só porque tem dinheiro, acho que não é por
aí, é horrível!
Zélia, 42 anos, fem., técnica em enfermagem e estudante de Psicologia
Isabela: E esse preconceito que você sentiu, só voltando um pouquinho,
se você pudesse falar rapidamente, quando você estava nos EUA.
Selma: Ah, que eu senti... ah, é horrível né, é uma coisa de humilhação,
de... de... desprezo, de menor... de menos, né, de menos,
de pior, né, uma coisa assim.
Selma, 40 anos, fem., psicóloga e professora de Psicologia
Isabela: E como é que é sentir este preconceito, senhor. João?
João: Ah, é triste, né, porque eu acho que a gente, todo mundo são
iguais né, mas a gente, como se diz, a gente é assim, assim
tem que ser, né, o preconceito não vai acabar mesmo, não
tem como acabar com o preconceito, então fazê o quê?
A gente se sente muito triste, muito, a gente se sente muito
pobre, porque a gente trabalha dia a dia todo... a gente tá
trabalhando, ainda o preconceito em cima da gente fica muito
triste, vai faze o quê?...
João, 48 anos, masc., carpinteiro-pedreiro, 1.
o
grau completo
121
Isabela: Em relação a este sentimento, quando você sentiu este
preconceito em relação a você o que você sentiu com isso, o
que te passou, o que te ficou?
Simone: Sinceridade eu fiquei chateada, porque eu acho que todo
mundo é igual, sabe, num... raça, cor, sabe, e o que você, a
função que você exerce, sabe, eu fiquei chateada sim, me
deu um sentimento, sabe, mas depois, sabe, passou, toca a
vida pra frente, ué!...
Simone, 40 anos, fem., serviços gerais, 1.
o
grau completo
Isabela: Em relação a este sentimento, quando você sentiu este precon-
ceito em relação a você o que você sentiu com isso, o que te
passou, o que te ficou?
Mônica: Ah, eu sei lá, eu sinto assim meia... fica... a gente fica meia
pra baixo, né, mas depois a gente pensa bem e fala assim:
ah, deixa pra lá porque a profissão da gente é essa mesmo",
então a gente tem que... bola pra frente... num preocupa
muito com esse tipo de coisa porque senão a gente acaba
sofrendo mais, né, a gente acaba sofrendo mais...
Mônica, 45 anos, fem., serviços gerais, 1.
o
grau completo
Isabela: E, Ivete, o que você sentiu quando isso aconteceu?
Ivete: Eu senti assim pequena, né, pô!, eu sou igual aquela pessoa
outra lá, que tá toda bonita, que tá toda aparência bonita, né,
e... eu senti assim bem... você sente arrasada, chateada
vontade de não voltar ali mais, né, é isso que eu senti, senti
muito chateada.
Ivete, 43 anos, fem., serviços gerais, 1.
o
grau completo
Rolando: ...eu me senti supermal, superconstrangido e eu não toquei
no assunto, mas foi uma coisa assim muito ruim, assim...
Isabela: Então você acha que as pessoas que passam por preconceito
sentem...
Rolando: Eu acho que rola é... por mais que a pessoa queira passar
por cima, no fundo no fundo isso marca, eu acho que toca a
pessoa porque é como levar um tapa na cara, ou você dá o
outro lado ou você revida, né, eu acho que a questão da... a
situação do preconceito é uma assim, ou você engole, ou
você respira e continua a sua vida, ou você vai ficar lá
batendo, né...
Rolando, 46 anos, masc., desenhista industrial, 3.
o
grau completo
122
Isabela: Você relata que vivenciou, então, a questão do preconceito...
você sentiu alguma coisa nessa situação?
Sueli: Sente assim justamente esse isolamento, essa separação,
né, é... no meu caso assim eu percebo que a pessoa falou
"não é com... não quero falar com ele, quero falar com outro".
Eu falo: "pôxa, quem que eu sou, eu sou a pessoa, será que
eu não tenho capacidade, né, de estar aqui, de responder
essa pergunta, tal?", e aí outros tipos de preconceito, é bem
isso é... uma coisa de porque eu não posso, quem é, por
que que essa pessoa me desconsidera, quem é ela, aí
começa, eu acho que aí gera revolta: "quem é ela pra dizer
que eu não posso, que eu não sou", etc.
Sueli, 31 anos, fem., agrônoma, doutorado
Como podemos perceber nesses relatos, não há uma padronização social
que possa fazer diferença nos sentimentos quando se passa pela experiência de
ter sofrido algum tipo de preconceito. Sentimentos de humilhação, de
constrangimento, de desvalorização, entre outras emoções relatadas, são fortes e
marcantes na vida de cada um.
Como exemplo de uma reação distinta das outras, encontramos alguns
casos em que a pessoa sentiu indignação ou irritação não se deixando abater,
pelo menos diante da fala, pelo julgamento do outro. Observe-se o seguinte relato:
Isabela: E escuta, Gal, como é que foi isso pra você, como é que você
se sentiu?
Gal: Ah, eu primeiro me irritou, né, eu: "bah!, nem me conhece vai
chegar e falar "a loira burra, loira burra do sul", tá, nem me
conhece, não sabe se eu sou burra ou o que, né, porque pra
mim não existe burro, todo mundo sabe alguma coisa, mas
depois eu pensei: "ah, deve tá querendo arrumar encrenca,
alguma coisa", ah, nem dei bola.
Gal, 19 anos, fem., estudante de psicologia
Talvez essa reação possa ter sido conseqüência de não ter havido um
confronto direto, como foi o caso de outras pessoas cujas experiências já foram
123
relatadas. Gal encontrava-se em um contexto social distinto do seu, uma vez que
no Sul, seu estado de origem, sua aparência é mais comum, e o fato de ser loira
não faz com que se sinta excluída.
Eu acho que quando uma pessoa sente preconceito ela...
Algumas pessoas, durante as entrevistas, disseram não ter passado pela
experiência do preconceito ou não se lembrarem, naquele momento, de nenhum
fato ocorrido. Mesmo assim, perguntamos: se uma pessoa passasse ou mesmo
vivesse sob essa situação, quais seriam seus sentimentos? O que percebemos
nas respostas dos entrevistados 'experiência', é que nenhuma apareceu como algo
apenas hipotético, mas, sim, como experiência presenciada ou relatada por alguém
que havia passado por isto ou, ainda, como possibilidade. Eis algumas falas:
Isabela: Você acha que uma pessoa sente alguma coisa ao passar
por esta situação, sua própria amiga, mesmo, por exemplo...
Nana: Eu acho que as possibilidades são podadas, então lógico que a
pessoa se sente podada, porque ela, com a mesma capaci-
dade, numa decisão não foi justa com função da cor dela,
então, assim, com certeza não tem como a pessoa se
sentir indiferente, né, quem sofre preconceito não tem como
ser indiferente.
Nana, 30 anos, fem., comerciante, 3.
o
grau completo
Isabela: Então, pessoas que sofrem preconceito...
Rita: Sente muito péssimo, acho que é isso, se sentir é... apesar,
né, das diferenças serem reconhecidas, mas todo mundo quer
ser aceito, eu acho, né, então é... é muito ruim se sentir
excluído de qualquer coisa que seja, eu acho que sofrer
preconceito é ser excluído.
Rita, 26 anos, fem., bióloga, 3.
o
grau completo
124
Isabela: E as pessoas que vivem esta situação de sentir preconceito
em relação a elas, como deve ser isso?
Cida: Acho que o preconceito é uma coisa muito doída, é uma
dor horrível, uma dor profunda, sabe...
Cida, 56 anos, fem., juíza de alçada aposentada, 3.
o
grau completo
Isabela: Uma pessoa que vive uma situação de preconceito, como ela
deve se sentir?
Marina: Será que desprezada... eu lembro, dentro da minha casa eu
já vi e achei que a pessoa se sentiu desprezada e ficou muito
mal por isso, eu acho que por mais que você não concorde
você se sente rebaixada, se sente no chão mesmo, pisada,
assim, esmagada...
Marina, 43 anos, fem., arte-educadora, 3.
o
completo
Isabela: Então você sentiu preconceito de você mesma além de outras
pessoas... Como você acha que uma pessoa então se sente
ao passar por esta situação?, ou você...
Leila: Sente rejeitada, sente um vazio, rejeição, culpa.
Leila, 22 anos, fem., farmacêutica, 3.
o
grau completo
Isabela: Seja no caso de outra pessoa ou no seu, o que será que uma
pessoa sente em caso de preconceito?
Roberta: Ela sente humilhação, uma vergonha, e às vezes ela não tem
preparo forte, ela embarca na da pessoa que tem preconceito
e ela realmente acaba achando que ela é inferior, se ela
não é segura de si, ela acaba... absorvendo o conceito do
outro e se achando mesmo pior que o outro e ela sofre
muito mais por isso.
Roberta, 44 anos, fem., secretária, 3.
o
grau completo
Isabela: Uma pessoa que sinta isso no seu dia-a-dia, como deve se
sentir?
Cora: Eu acho isso muito ruim, é uma coisa que te mantém presa,
né, e faz com que você não se posicione perante a vida,
na verdade, né, porque daí você fica mantendo, vamos dizer
assim, uma aparência, na verdade é uma coisa que te deixa
estagnada, né.
Cora, 38 anos, fem., odontologista, 3.
o
grau completo
125
A partir dos relatos, o que podemos perceber é que pensar na dor do
outro em face do preconceito é pensar, muitas vezes, na própria experiência vivida.
Pensar no outro é ver um panorama que vai além das possibilidades de
sentimentos, como sentir-se péssimo, sentir dor, exclusão, humilhação, vergonha,
entre outros que surgiram. Pensar no preconceito a partir do que o outro possa
estar vivenciando é pensar em limitações de possibilidades variadas, inclusive de
vida social com igualdade e justiça.
Como Nana aponta, "não tem como a pessoa se sentir indiferente, né?,
quem sofre preconceito não tem como ser indiferente". Acreditamos que esta
experiência do preconceito pode deixar marcas profundas, como no caso de
Rolando, que nos disse que "por mais que a pessoa queira passar por cima, no
fundo no fundo isso marca, eu acho que toca a pessoa porque é como levar um
tapa na cara".
De certo que há pessoas que podem reagir diferente diante do preconceito
por parte do outro, a exemplo de Gal, que nem deu bola; contudo, nem por isso a
atitude preconceituosa passou desapercebida mas fez com que ela se sentisse
incomodada a ponto de se sentir, no mínimo, irritada. Ou seja, de alguma forma,
isso a atingiu, mesmo que sua reação não tenha sido marcada por sentimentos
de tristeza e humilhação.
Seja como for, o que queremos aqui demonstrar é que o preconceito
parece ser um tipo de comportamento social que pode estar presente em todas as
relações humanas, podendo ou não ser manifestado, tanto verbalmente quanto
fisicamente, como num simples olhar julgador relatado por algumas das pessoas.
Como aponta Bobbio (2002), o preconceito acaba por ser uma opinião errônea
126
tomada fortemente por verdadeira, acolhida muitas vezes acriticamente e passi-
vamente pelos costumes ou tradição.
O que mais há pra dizer diante dessas pessoas, dessas histórias, desses
sentimentos, desses preconceitos?
127
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Estar neste momento da tese, ou seja, fazer as considerações finais é no
mínimo interessante, pra não dizer intrigante. Interessante pois a sensação de
nunca conseguir chegar neste momento 'final' se dissipa, pois afinal este parece
ter chegado. Intrigante, porque há um movimento não de conclusão, mas de
abertura para tantos outros questionamentos e reflexões, o que faz com que este
para ser apenas um detalhe de um universo imenso ainda por desvendar.
Nesta expressão, considerações finais, cada palavra tem seu significado.
Não iremos longe, ficaremos no bom e velho conhecido dicionário e veremos
que considerações significam motivo, razão, opinião, ou, ainda, observação sobre
algo. Já a palavra final tem o significado de derradeiro, o último ponto, o que
conclui. Logo, percebemos o impasse. Não temos como colocar um ponto final
nesta tese. Teremos um ponto, mas que não é o último; razões que não são
necessariamente derradeiras.
Talvez o que tenhamos, na realidade, é sim uma observação sobre algo,
quando muito algumas opiniões a respeito de.
A respeito do quê? A respeito de nosso tema, que é o preconceito.
Vejamos o que conseguimos e onde chegamos.
Sobre o preconceito e seus conceitos
O que pudemos ver até o momento desta pesquisa, neste ano, neste
lugar, é que não há uma teoria, pelo menos das Ciências Sociais e Humanas, que
possa dar conta da complexidade teórica e, por que não dizer, prática da questão
do preconceito.
128
Pesquisadores das mais variadas épocas e, com certeza, com as mais
variadas razões e motivos, não deram conta de chegar a um denominador comum,
a uma conclusão, ou seja, a um fim.
Allport, Heller, Bauman, Tajfel, Goffman e tantos outros de diferentes escolas
e os mais diferentes olhares não fecharam o assunto, não encerraram a questão.
Fizeram, sim, excelentes contribuições nas quais a reflexão não nos passa desper-
cebida, pelo contrário, enriquece e esclarece muito a respeito do tema e nos prova
que de fato o preconceito tem diferentes faces, e a cada época historicamente e
socialmente localizada toma formas muitas vezes inimagináveis, como no caso do
holocausto, mudando de nome, de intensidade, de ação, de intenção.
Seja como for, o preconceito de fato existe. E aqui cabe perguntarmos:
mas, afinal, o que é o preconceito?
Segundo algumas escolas teóricas, o preconceito é o pensar mal de outras
pessoas sem motivo suficiente, ou, ainda, estar seguro de algo de que não se sabe
(ALLPORT, 1971); ou pode passar pela questão da identidade social, em que o
indivíduo se reconhecerá ou não como filiado a um ou vários grupos sociais,
formulando esquemas classificatórios, separando pessoas e objetos, ocorrendo
daí a divisão entre o nós e eles, segundo Tajfel (1981). Para Goffman (1975), que
pesquisou a questão do estigma, este se apresenta em tudo aquilo que é diferente
do que um grupo social considera como "normal". Em nosso entendimento, isto
reforça a questão da aproximação entre o preconceito e o estigma, uma vez que
um poderá gerar o outro. Crochik (1997) escreveu que ninguém está imune ao
preconceito. Para ele o preconceito é uma reação individual, assim como o
estereótipo é um produto cultural, aparecendo sempre como uma realidade deturpada.
O preconceito, para Heller (2000), é a categoria do pensamento e do comportamento
129
cotidianos. E, para Bauman (1998), é no silêncio da ética e da moralidade que se
tornam possíveis várias atrocidades humanas, a começar pelo preconceito.
Mas há ainda outro entendimento de preconceito, o qual, apesar de ser
menos elaborado cientificamente, não significa que tenha menor valor ou possa ser
desmerecido. É o preconceito que circula como linguagem em ação no cotidiano
das pessoas, seja ele de domínio comum, seja em forma de vivência. É o que "vai
além do aparente", aquilo que "domina o outro" e também o que me "afasta do
outro" e faz com que uma pessoa "vire as costas" porque "se sente melhor do que
o outro". Preconceito também pode ser o "não considerar a outra pessoa com a
mesma capacidade", e ainda "achar o diferente errado". Há os que dizem que o
preconceito "é uma insegurança da parte da pessoa em relação ao outro", ou
sempre uma maneira de se defender". Deve ser por causa dos "tabus sociais e
os juízos de valor". Mas preconceito também pode ser "discriminação e exclusão",
podendo até "excluir uma pessoa do seu relacionamento ou até do seu
pensamento".
E esse preconceito aconteceu e acontece nas mais variadas formas: pode
ser numa relação amorosa, no trabalho, na escola, na família, no restaurante, no
comércio ou mesmo numa festa. Não tem idade, cor, estatura ou condição social.
Em outras palavras, o preconceito não tem preconceito. Ele se dá em meio às
práticas discursivas, que é a linguagem em ação, permeadas de história e cultura,
valores e normas, produzindo sentidos a partir das vivências e experiências
sociais e individuais.
E, assim, o sujeito enxerga e se vê no mundo e se posiciona em relação
ao outro, como Davies e Harré (1990) apontam, ou seja, somos um leque de
possibilidades, uma pergunta aberta, aprendendo, ressignificando, reinterpretando
130
e (re)posicionando nossas vidas, à medida que as negociações de convivência
ganham sentidos e nos comprometem moral e emocionalmente a um grupo por
conta do sentimento de pertença, sempre numa construção conjunta, logo,
sempre em mudança.
No entanto, sobre o preconceito e sua ação, arriscamos dizer que talvez uma
única coisa que não muda é o resultado de quem passou por esta experiência: o
sofrimento. Como dizem nossos entrevistados, ele é "horrível", é algo que "dói, é
uma facada, um punhal", algo que pode fazer com que as pessoas "não se
posicionem perante a vida", "constrange, faz com que as pessoas se sintam
desprezadas, rebaixadas, no chão, pisadas, diminuídas, mal, humilhadas,
esmagadas".
É verdade que existem reações contrárias: "achei ridículo", diria Rolando;
"me irritou... nem dei bola", diria Gal. Mas, de uma forma geral, há a dor, o
sofrimento, o baixar a cabeça e o ir tocando a vida assim mesmo. Como diz
seu João, "o preconceito não vai acabar mesmo, não tem como acabar com
o preconceito".
Seja como for, acreditamos que o preconceito-conceito indica uma maneira
de neutralizar o outro em forma de exclusão, negação, isolamento, depreciação,
inferioridade, insignificância, um modo para que esse outro – aquele lá – fique longe,
bem longe do meu lugar confortável, para que eu possa garantir meu sossego em
meu grupo ou 'ninho' social. O preconceito é um conceito e, por que não dizer, uma
prática que simplesmente aceitamos. Como escreve Bobbio (2002), acriticamente,
passivamente, e, ainda por cima, tomamos por verdadeira.
Acreditamos com isso que alcançamos nosso objetivo, que foi entender
como o preconceito, enquanto linguagem em ação, permeia as práticas discursivas e
131
a produção de sentidos no cotidiano das pessoas, seja como conceito, experiência,
posicionamento ou sentimento.
Quanto à questão de o preconceito não ser adjetivado, ou seja, necessa-
riamente colado a alguma característica especial desta ou daquela pessoa (negros,
deficientes, idosos etc.), também consideramos que isto tenha ficado esclarecido,
uma vez que a circulação do preconceito se deu de diferentes formas e situações,
fossem elas públicas ocasionais anônimas ou face a face, além de ter acontecido
em situações públicas institucionalizadas. Ou seja, de fato, a prática do preconceito
no cotidiano das pessoas não está relacionada a nenhuma situação específica, a não
ser aos conceitos estabelecidos enquanto valores culturais e sociais apreendidos
no decorrer da vida.
E agora, João, Zélia, Selma, Ivete, Nana, Leila, Sueli, Roberta, Rolando,
Cecília, Ana, Cora, Marina...??
A questão agora é o que fazer com este material, para que ele não se
torne mais uma pesquisa encadernada em uma biblioteca universitária.
Pensamos que escrever artigos não é o suficiente, embora isto possa, de alguma
forma, expor o tema em pauta a mais pessoas. A questão passa por outros meios,
que, acreditamos, tenham uma relação mais ptica que teórica.
Conforme já dissemos, como profissionais sempre estivemos preocupados
em provocar reflexões em nossos alunos sobre a questão do preconceito, ou seja,
sobre a necessidade da tolerância para com todos, quaisquer que fossem os
atributos apresentados pelo outro, seja no estereótipo, seja no comportamento ou
outra característica qualquer.
A importância deste tema, a nosso ver, é mostrar que, embora alguns
trabalhos sejam também importantes, de certa forma mostram uma tendência a
132
adjetivar o preconceito para certos nichos bastante específicos de pessoas, não
considerando outras situações também significativas. Precisamos estar atentos,
justamente, para o fato de que, ao ignorar ou mesmo desprezar o outro por este
não estar bem vestido, por exemplo, de algum modo causamos a ele algum dano,
seja ele moral, psíquico ou social.
Da mesma forma, precisamos estar atentos para que não nos ocorra o
mesmo que se deu com os afrodescendentes, que somente após anos de luta
conseguiram leis que protegem direitos que deveriam ser entendidos como tácitos
a todo e qualquer cidadão. Não podemos ou o deveríamos nos acostumar a isso,
com o risco de chegar a esse mesmo ponto, ou seja, precisar esperar que haja uma
lei para que compreendamos que, de fato, todos temos direitos mais que humanos
e nascemos livres e iguais em dignidade, e que o espírito de fraternidade deveria
ser a tônica das relações políticas e sociais.
Se pela linguagem se constrói o mundo, também por ela pode ser
desconstruída uma vida. É preciso estar atento ao preconceito, ao mesmo tempo
que é preciso dar atenção ao que seria talvez seu antídoto, a saber, a tolerância.
Se ter preconceito é julgar o outro pelo que não se sabe, tolerar é
condescender, admitir e aceitar a diferença do outro, mesmo que eu não a entenda.
O preconceito não parece ser só uma ausência de saber do outro, não é
apenas um instrumento de julgamento para que meu inimigo imaginário seja
simplesmente esquecido. É também um forma de violência que pode provocar
não só a exclusão, a discriminação, a intolerância, mas também o ódio, gerando
conflitos tais como os que temos visto na mídia, provocados pelos skinheads,
entre outros grupos, que se colocam contra os homossexuais, profissionais do
sexo, contra pessoas em pontos de ônibus, dentre tantas outras atrocidades em
133
pleno século 21. Como escreve Wiesel (2000), quando a linguagem fracassa é a
violência que a substitui, pois estará substituindo o que temos de mais precioso
como seres humanos, que são a palavra e as possibilidades que advêm disso.
Negar o outro é negar suas possibilidades de humanidade, de sonhos, de
realização, de direitos e de deveres. A sutileza do preconceito deve ser iluminada
para que não haja nem sombra de dúvida quanto ao seu alcance de humilhação e
limitação de quem quer que passe por esta experiência. Identificar e reconhecer o
preconceito nas relações cotidianas é discernir e assumir a postura de não ficar
indiferente e, assim, tentar deslegitimar um comportamento usualmente e
infelizmente aceito, muitas vezes, como normal em nossas relações sociais, tal
como expresso por João e outras pessoas entrevistadas: "o preconceito não vai
acabar mesmo... então o negócio é tocar a vida".
De fato, infelizmente talvez seu João tenha razão. O preconceito pode não
acabar, assim como a fome, a miséria, as doenças. Então devemos simplesmente
nos acomodar e aceitar esse fato sem fazer nada? Não é nisso, absolutamente,
que acreditamos, muito pelo contrário. Acreditamos que talvez pela sensibilização
cotidiana, especialmente nas escolas e universidades, possamos desmascarar o
preconceito como algo aparentemente inofensivo mas que extrapola o direito à
harmonia de simplesmente viver em paz consigo mesmo e com o próximo do jeito
que se é. É isso o que fizemos e continuaremos a fazer, pois é um compromisso
nosso, como professora, como cidadã. Mais do que um título, é um compromisso
ético de vida.
Sendo assim, este tese não acaba aqui. Impossível mesmo seria esse
feito. E a razão é simples: trata-se de mais uma maneira, como tantas outras, de
olhar o preconceito, mas com outra perspectiva. A idéia não é para ser mais uma,
134
mas para tentar fazer alguma diferença, nem que seja para dizer: "Ei, você!, não
negue... perceba, olhe, é isso mesmo! O preconceito existe!"
A prova disso são essas pessoas, essas histórias reais de vida aqui relatadas.
A prova disso é minha vida, porque eu já fui preconceituoso, e eu também
já sofri preconceito.
E você?
Que tal fazermos alguma coisa a respeito?
135
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141
APÊNDICE A
RESUMO DAS ENTREVISTAS
Entrevistado Para mim, preconceito é... Eu sofri preconceito...
O motivo seria
por...
O que eu senti...
Outros elementos acerca do
preconceito...
1. Djavan
33 anos
um conceito pré-formado,
com várias formas de
conceitos pré-formados
Sim (relacionamento)
preconceito velado por
pena
não foi legal
Aqui aparecem outros sentimentos
do sentir preconceito, como se
morder por dentro, aceitar para não
perder um amor, um amigo.
2. Leandro
23 anos
alguma coisa errada
preconceito existe em tudo
Sim
pela dificuldade de
comunicação
pelo jeito de ser
a gente se sente mal
ela (o outro) se
entristece
Aqui ele não culpabiliza diretamente
as pessoas, mas coloca até a
correria do dia-a-dia como sendo
fator para as pessoas não se
conhecerem.
3. Nana
30 anos
um conceito formado antes
do conhecimento
julgar uma pessoa pelo que
ela é ou deixa de ser
quando você não aceita a
pessoa como ela é
Não se lembra
(traz relato de amiga negra)
não se lembra
(amiga – pela cor)
(o outro)
se sente podado
não consegue ser
indiferente a isso
O exemplo da amiga negra aparece
como sendo algo que aconteceu,
mas ela mesma diz ter preconceitos
variados, sem citar quais.
4. Leila
22 anos
não aceitar as diferenças Sim (homossexualidade)
auto-aceitação
amigos
rejeição
vazio
culpa
Coloca principalmente o
autopreconceito como um fator de
dificuldade primeira e maior da
condição da sexualidade.
5. Sueli
37 anos
não considerar uma outra
pessoa com a mesma
capacidade
diferenciar as pessoas por
algum motivo qualquer, seja
por raça... não, raça não
existe, seja por cor de pele,
diferenciar as pessoas
Sim (questões de gênero)
no ambiente de trabalho,
seja em escritório ou campo
isolamento
separação
sensação de falta de
capacidade
Relata variadas situações de
trabalho onde fica clara a questão
de gênero; inclusive em uma visita a
pessoa mandou que ela fosse pra
cozinha conversar com a mulher,
sendo ela a técnica que iria orientar.
QUADRO A.1 - ENTREVISTA FEITA NA CIDADE DE CURITIBA-PR
continua
continuação
Entrevistado Para mim, preconceito é... Eu sofri preconceito...
O motivo seria
por...
O que eu senti...
Outros elementos acerca do
preconceito...
6. Roberta
44 anos
insegurança da parte da
pessoa em relação ao outro
o medo de perder espaço
sempre uma maneira de se
defender
Sim (escolaridade e situação de
classe social)
por não ter faculdade
estar em loja cara, sendo
simples
(o outro)
humilhação, vergonha,
sente-se inferior, pode
absorver conceito do
outro e achar-se pior,
sofre muito
Fala de exemplos outros de precon-
ceito, como a questão do racismo,
inclusive de pais que não querem
que seus filhos casem e tenham
filhos, e assim o sofrimento segundo
ela, continuaria nestes. Percebeu
preconceito em relação a sua pessoa
inclusive não-verbal, mas em gestos.
7. Rolando
46 anos
a discriminação que as pessoas
têm, é... com relação a uma
opção que você é
Sim (homossexualidade)
foi contestada a sua
capacidade pela
sexualidade (no trabalho)
por questões sociais
sentiu-se constrangido
muito mal
é como levar um tapa
na cara
tem que engolir e
respirar e tocar a vida
Reforça a questão do preconceito
como sendo falta de respeito para
com o outro.
8. Rita
26 anos
conceito prévio sem se colocar
no lugar, é o diferente, ser
entendido como errado
não conseguir entender que
tem diferenças
Sim (adolescência)
pais jovens, liberais,
separaram-se, e ela sofria a
separação mas isto não era
levado em conta
sentiu-se isolada
o outro: deve sentir-se
péssimo, excluído
Flagrou-se tendo preconceito racial
quando estava na França, sentiu-se
em situação de perigo pelas figuras
freqüentes em um país que não
conhecia e sentiu-se envergonhada
por isso.
9. Cecilia
24 anos
é uma idéia anterior, assim,
sem saber na verdade o que
a pessoa é realmente
uma idéia falsa da pessoa
Sim (faculdade)
por fazer arquitetura e os
pais também serem
arquitetos
(o outro)
deve ser terrível
Sua situação profissional dentro da
sala de aula sempre foi questionada
por ser filha de pais arquitetos.
10. Cida
56 anos
tabus sociais
é pré-conceito, ou seja, você
é... fazer um juízo de valor
sobre uma coisa sem
conhecer
você julgar ou menosprezar
ou supervalorizar alguma
coisa sem saber o que você
está falando
Sim (adolescência)
auto-preconceito, por ser
gorda, pobre e 'peluda'
(o outro)
muito doída, é uma dor
horrível, uma dor
profunda, é uma
facada, é um punhal
Coloca outras questões de preconceito,
como na adoção e escolha de uma
criança devido a vários fatores.
Coloca questões sociais, econômicas
e questões de afetividade, entre
outras, relacionadas direta ou
indiretamente ao preconceito.
QUADRO A.1 - ENTREVISTA FEITA NA CIDADE DE CURITIBA-PR
continuação
conclusão
Entrevistado Para mim, preconceito é... Eu sofri preconceito...
O motivo seria
por...
O que eu senti...
Outros elementos acerca do
preconceito...
11. Ana
41 anos
uma ignorância das pessoas
alguém que acha que sabe
mais, acredita ou que é
superior a alguém em
determinada ocasião ou
determinado momento
Sim (grupo musical)
Sentiu-se rejeitada por uma
pessoa do grupo, mas diz
ser por questões pessoais
incômodo
Embora tenha deficiência visual
devido a doença, não coloca isso
como sendo fator de preconceito
para com ela.
12. Cora
38 anos
coisa já pré-estabelecida, né,
então é um conceito que
você já conhece
que vem pela educação,
principalmente da familiar
mesmo, então é um conceito
que eu aprendi
pré-conceito sem
conhecimento de causa
Sim (vários)
pessoas do trabalho ou
familiares comentam sobre
sua situação sexual
constrangimento
Relata questões de
constrangimentos de um modo
geral, especialmente sobre o outro,
e comentários a respeito de sua
vida pessoal.
13. Marina
43 anos
exclusão
você não gostar por qualquer
motivo e excluir uma pessoa
do seu relacionamento, até
do seu pensamento
Não se lembra não se lembra
(o outro)
desprezada, fica mal,
rebaixada, se sente no
chão mesmo, pisada,
assim, esmagada
Essa pessoa diz não ter sofrido
nenhum preconceito, o que causou-me
surpresa pelo seu biótipo: negra,
baixa, e de classe social baixa.
14. Daúde
45 anos
imaginar, pressupor que uma
pessoa pertence a uma
determinada categoria que
você não gosta por algum
motivo
Sim (nível social)
em loja foi mal-atendida
por não estar trajada
'adequadamente' para o
estabelecimento em questão
mal, diminuída,
humilhada
Relata questão de preconceito
social para com ela.
QUADRO A.1 - ENTREVISTA FEITA NA CIDADE DE CURITIBA-PR
NOTA: Esta entrevista foi a primeira a ser realizada. Procuramos não direcionar muito as perguntas, deixando a pessoa falar mais livremente sobre o tema. Com isso, não houve, por
grande parte dos entrevistados, relatos de terem sido preconceituosos para com outra pessoa.
Entrevistado
Para mim
preconceito é...
Eu sofri preconceito...
O motivo
seria por...
O que eu senti...
Tive preconceito, e o
motivo foi...
Explicações e
contextualizações...
Isso me fez sentir...
1. Zélia
42 anos
estigma
Sim
(familiar)
classe social e cor
(racial)
é horrível
Sim, pela falta de
higiene do outro
No trabalho atende pessoas
de baixa renda e indigentes.
2. Selma
40 anos
algo que vai além
do aparente,
baseado na
dominação de
um sobre o outro
Sim
(adolescência
e infância)
por ser pobre e
estudar em escola
pública
não tô valendo
nada
o que vai ser de
mim?
Sim, por pessoas da
periferia
Por ser perigoso, devido à
situação.
3. Ceumar
51 anos
aquilo que me
afasta do outro
Sim (fora do Brasil)
por ser latino-
americana
é horrível, uma
coisa de
humilhação, de
desprezo, de
menor... de
menos, de pior
Sim, um rapaz na rua
com 'certos trajes'
Medo por morar em São Paulo
e isso ser comum em
pessoas, medo de ser
assaltada.
4. João
48 anos
qualquer coisa
que a pessoa vê
diferente nos
outros, se sente
melhor do que o
outro, a pessoa
tá usando... tem
uma roupa
melhor do que a
gente... a gente...
a pessoa já sente
preconceito
Sim (lugares em que
vai)
conforme o
estabelecimento
que a gente vai
entrar, tem lugar
que eu não entro...
isso aí é um
preconceito já tá
na cara, a pessoa
já fica visando a
gente, né,
entendeu? Por
causa assim da
gente trabalhar em
obra o preconceito
já tá aí
é triste, a gente
sente muito
triste, muito, a
gente sente
muito pobre,
porque além da
gente trabalhá
dia a dia todo a
gente tá
trabalhando,
ainda o
preconceito em
cima, a gente
fica muito triste,
vai faze o quê?
Não, num acho ninguém
diferente de mim,
ninguém é diferente de
ninguém
"Ninguém diferente de mim."
5. Simone
40 anos
é você virar as
costas pra
pessoa
Sim (por ser faxineira) nas idas a bancos fiquei chateada
Sim, ao ajudar outra
pessoa
Sentiu alguma coisa em
relação à pessoa (negativa).
QUADRO A.2 - ENTREVISTA FEITA NA CIDADE DE BELO HORIZONTE-MG
continua
continuação
Entrevistado
Para mim
preconceito é...
Eu sofri preconceito...
O motivo
seria por...
O que eu senti...
Tive preconceito, e o
motivo foi...
Explicações e
contextualizações...
Isso me fez sentir...
6. Mônica
45 anos
Sim (por ser faxineira)
nas idas a bancos
com o uniforme de
faxineira os outros
olham
fica pra baixo
o negócio é não
preocupar com
isso pra não
sofrer mais
Sim, não dando dinheiro
a uma pessoa
A pessoa não parecia
precisar, parecia estar
mentindo.
7. Gal
19 anos
discriminar uma
pessoa por
alguma coisa que
ela tem, pode ser
preconceito por
ter Aids, por...
qualquer coisa...
Sim (por ser loira e do
sul do Brasil)
por ser loira, no
congresso, as
outras pessoas
falavam dela
em uma festa,
também no
congresso, com
um rapaz que
brigou com ela
irritou-se
achou ridículo
ficou indignada
Sim, questão de classe
social/modismo
Não gosta de meninas
"patricinhas".
8. Ivan
23 anos
conceitos
estabelecidos
antes de você ter
contato com
aquilo em
relação com o
qual você
estabeleceu um
conceito
é histórico e
cultural
Sim (racial)
na infância, em
restaurante com a
família, garçons
pareciam não
acreditar que
teriam condições
de pagar a conta
indignação,
porque acaba
te travando, as
pessoas
colocam
barreiras pra
você em
diversas
situações
Sim,
homossexualidade
Viu homens se beijando em
festa.
QUADRO A.2 - ENTREVISTA FEITA NA CIDADE DE BELO HORIZONTE-MG
continua
conclusão
Entrevistado
Para mim
preconceito é...
Eu sofri preconceito...
O motivo
seria por...
O que eu senti...
Tive preconceito, e o
motivo foi...
Explicações e
contextualizações...
Isso me fez sentir...
9. Ivete
43 anos
ah não vou
chegar perto, é
aquele
preconceito né,
do negro, da
pessoa deficiente
físico, né, da
pessoa doente,
do idoso
Sim
(social/aparência)
classe social
(foi comprar carro
com marido em
agência e não foi
atendida por conta
da aparência)
senti assim...
pequena, né,
você sente
arrasada,
chateada,
vontade de não
voltar ali mais,
né, é isso que
eu senti, senti
muito chateada
Não, nunca senti
"Do jeito que a gente não
gosta de sentir, então você
também não pode fazer isso
pra ninguém."
10. Marisa
39 anos
sobre negros,
sobre a pessoa
deficiente, se´é
uma pessoa que
tem uma doença
Não se lembra Não Não Não, nunca senti
"Porque a pessoa é o que é,
pode até ser menos que a
gente, que todo mundo é
humano, se a pessoa tá
doente... é pobre... é negra... a
pessoa não tem culpa."
11. Vinícius
26 anos
racismo assim...
de doença e por
morte
Não Não Não não "Pra mim é tudo igual."
QUADRO A.2 - ENTREVISTA FEITA NA CIDADE DE BELO HORIZONTE-MG
NOTA: Estas entrevistas foram feitas posteriormente à anterior, na cidade de Belo Horizonte, por ocasião do Encontro Nacional da ABRAPSO, e as entrevistas foram um pouco mais
dirigidas, incluindo aqui a pergunta sobre a questão do sentir preconceito pelo outro e não somente como experiência pessoal.
148
APÊNDICE B
MAPA DIALÓGICO
Entrevista 4
Nome: João
Local: Praça de Eventos em uma construção / reforma- UFMG Cidade: B.H. ABRAPSO – nov. 2005
Caracterização: homem, 48 anos, carpinteiro
Escolha: escolhi esta pessoa por se encontrar fora do circuito do encontro, ou seja, estava dentro de uma das lojas da "praça" do evento, em seu ambiente de trabalho, e por
parecer-me ser da cidade em que me encontrava. Além disso, pensei ser interessante devido à sua ocupação, no caso, braçal, e pelo fato de não estar no encontro como
congressista .
Pergunta do entrevistador Definição de preconceito
Experiência pessoal de
preconceito
Experiência de preconceito
em relação ao outro
Explicação ou exemplo Sentimentos
E.: Qual é o seu nome, sua
idade e sua ocupação?
Meu nome é João, minha idade
é 48 anos... e eu trabalho aqui
como carpinteiro.
E.: Seu João, se o Sr. fosse
falar assim, explicar pra alguém...
a partir do que o Sr. acha, o
que é preconceito, seu João?
A pessoa eu é... o preconceito,
o que eu acho é igual ao que
você vê qualquer coisa que a
pessoa vê diferente nos outros
ela acha que é... né... que se
sente melhor do que o outro
pra mim já é preconceito,
entendeu? Eu penso assim,
porque é a gente vê uma pessoa...
se a pessoa tá usando tem
uma roupa melhor do que a
gente... a gente... a pessoa já
sente preconceito, eu acho que
seria bobagem né, preconceito
é bobagem?
Pergunta do entrevistador Definição de preconceito
Experiência pessoal de
preconceito
Experiência de preconceito
em relação ao outro
Explicação ou exemplo Sentimentos
E.: Em relação ao senhor, seu
João, o Sr. já sentiu
preconceito em relação ao Sr.,
assim, uma pessoa em relação
ao Sr.?
Já, sim, eu é talvez seja
conforme o estabelecimento
que a gente vai entrar, né.. é...
tem lugar que eu não entro.
Não entro porque eu me sinto...
que a pessoa vai sentir
preconceito de mim porque a
gente é uma pessoa que
trabalha neste ramo que a
gente trabalha a gente tem
muito preconceito com isso,
entendeu?
Então, isso aí é um
preconceito, já tá na cara
porque a gente chega num... aí
mesmo*, se a gente for entrar
aí é um pouco assim, a pessoa
já fica visando a gente, né,
entendeu? Por causa, assim,
da gente trabalhar em obra, o
preconceito já tá aí
*Ele aponta para fora do lugar
onde ele trabalha, que é no
meio das pessoas no pátio de
eventos.
Pergunta do entrevistador Definição de preconceito
Experiência pessoal de
preconceito
Experiência de preconceito
em relação ao outro
Explicação ou exemplo Sentimentos
E.: O sr. é funcionário da firma?
Sou da firma mas não da
Universidade; É, eu trabalho no C.
E.: e como é que sentir este
preconceito, Sr. João?
Ah, é triste.
Porque eu acho que a gente,
todo mundo, são iguais, né,
mas a gente, como se diz, a
gente é assim, assim... tem
que ser, né, o preconceito
não vai acabar mesmo, não
tem como acabar com o
preconceito, então fazê o quê?
A gente sente muito triste,
muito, a gente sente muito
pobre, porque além da gente
trabalha dia a dia todo a
gente tá trabalhando, ainda o
preconceito em cima, a gente
fica muito triste, vai fazê o
quê?...
E.: e o Sr. seu João, o sr. já
sentiu algum preconceito em
alguma situação, com alguma
pessoa
não eu acho que não, não eu
não tenho preconceito com
ninguém não, com nada,
Pergunta do entrevistador Definição de preconceito
Experiência pessoal de
preconceito
Experiência de preconceito
em relação ao outro
Explicação ou exemplo Sentimentos
Eu acho que todo mundo são
iguais apesar de a igualdade
não combina, né, num dá certo,
mas acontece é o seguinte, eu
acho que eu mesmo nunca tive
preconceito com ninguém não,
Graças a Deus, nunca tive
preconceito com ninguém não,
num acho ninguém diferente
de mim, não, nem diferente
de ninguém.
E.: Em relação a este assunto,
o Sr. gostaria de falar mais
alguma coisa?
Não, vamo deixá quieto.
Entrevista 5
Nome: Sueli
Local: Prédio central da UFPR Cidade: Curitiba – 1.
o
/2005
Caracterização: mulher, 37 anos, agrônoma, doutorado.
Escolha: por ser mulher e possuir pós-graduação
Pergunta do entrevistador Definição de preconceito
Experiência pessoal de
preconceito
Preconceito em relação ao
outro ou como o outro deve
se sentir
Explicação ou exemplo Sentimentos
E.: Você poderia me dizer seu
nome, idade e ocupação?
Sueli, 37 anos, agrônoma.
E.: O que é preconceito pra
você ?
É você não considerar uma
outra pessoa com a mesma
capacidade que você tem de
fazer as coisas ou com a
mesma... é capacidade ou o
mesmo direito que você tem
de fazer as coisas, é
diferenciar as pessoas por
algum motivo qualquer, seja
por raça... não, raça não
existe, seja por cor de pele,
diferenciar as pessoas.
É você falar "não essa pessoa
não pode fazer isso" ou
percebe que é muito
inconsciente isso, a gente
incorpora isso de criança até...
então, mas eu acho que é
isso.
Pergunta do entrevistador Definição de preconceito
Experiência pessoal de
preconceito
Preconceito em relação ao
outro ou como o outro deve
se sentir
Explicação ou exemplo Sentimentos
Essa diferenciação que as
pessoas fazem entre elas
próprias, quer dizer, não
considerar outra pessoa
igual a você, é diferenciar as
pessoas.
E.: E você, já sentiu algum
tipo de preconceito em
relação a sua pessoa?
Um pouco sim, já senti, já
senti em relação a ser mulher
trabalhando na área de
agronomia, principalmente
isso, em outros assuntos não,
não senti não, enquanto a ser
mulher...
Porque a agronomia é uma
área muito masculina, né, e
de repente uma vez eu tava...
por dois anos eu fiquei numa
cidade sozinha trabalhando
como agrônomo e o pessoal
ficava meio assim, não queria
falar comigo tipo queria falar
com outras pessoas, então
senti um pouco, mas nada
muito... nada que me afetasse,
na verdade... eu não deixei
isso me afetar não, porque eu
já tava meio preparada
também porque já desde a
faculdade é uma coisa que é
Pergunta do entrevistador Definição de preconceito
Experiência pessoal de
preconceito
Preconceito em relação ao
outro ou como o outro deve
se sentir
Explicação ou exemplo Sentimentos
um ambiente muito masculino,
acostumada só com homem,
só com... então eu já tava
meio preparada pra encarar
isso, então eu nunca achei, eu
continuei trabalhando do
mesmo jeito – "não quer falar
comigo, tá bom, não fala, fala
com outro que vai passar pra
mim" –, quer dizer, vai sobrar
uma hora que a pessoa vai ter
que me encarar e vai perceber
que sou eu que faço aqui, não
é um homem zootecnista ao
lado, mas a Sueli agrônoma
aqui, então, não... o espaço
taí, eu vou conseguir marcar
meu espaço, não me
preocupo com isso... É...
principalmente porque eu tava
numa cidade pequena então
as pessoas, eu acho que
talvez não seja não, nem tanto
o preconceito, mas o não
estar acostumado, é, então
assim as pessoas são muito
simples, então chegavam no
escritório e falavam: "cadê o
agrônomo?" – falava: 'Aí não,
aqui não tem agrônomo, tem
agrônoma'. "Cadê o João?" –
que era o responsável, o
Pergunta do entrevistador Definição de preconceito
Experiência pessoal de
preconceito
Preconceito em relação ao
outro ou como o outro deve
se sentir
Explicação ou exemplo Sentimentos
chefe do escritório, aí eu
falava: 'não, não é com ela é
com ela mesmo que você tem
que falar'... então as pessoas
no fim tinha que encarar, mas
assim então tá né, fazer o
que, na mesma forma que em
outra situação assim – 'ah, a
mulher tá lá na cozinha, vai lá',
e eu falei: 'não, eu que tenho
que resolver esse assunto com
você, não é ele, não é o resto
do grupo que tá aqui, sou eu
que tenho que resolver'. Então
de repente senti um pouco
isso, mas eu falo, chega uma
hora eu falo: 'Não, sou eu que
tenho que fazer isso, não são
os outros..." então respeitando
meu espaço foi isso.
E.: Você relata que vivenciou
então a questão do
preconceito, você sentiu
alguma coisa nessa situação?
Sente assim justamente esse
isolamento, uma separação,
né?
é... no meu caso assim, eu
percebo que a pessoa falou –
'não é com... não quero falar
com ela, quero falar com
outro' – eu falo
Pergunta do entrevistador Definição de preconceito
Experiência pessoal de
preconceito
Preconceito em relação ao
outro ou como o outro deve
se sentir
Explicação ou exemplo Sentimentos
Pôxa, quem que eu sou, eu
sou a pessoa, será que eu
não tenho capacidade, né,
de estar aqui, de responder
essa pergunta, tal?
e aí outros tipos de
preconceito é bem isso é, uma
coisa de...
Porque eu não posso, quem
é, porque que essa pessoa
me desconsidera, quem é
ela... aí começa, eu acho que
gera revolta: "quem é ela
pra dizer que eu não posso,
que eu não sou?, etc."
então sei lá se isso é uma
definição mas eu tenho em
mente no momento.
E.: Bem, você gostaria de
acrescentar mais alguma
coisa a esse respeito?
Não, acho que é isso.
Entrevista 6
Nome: Roberta
Local: Prédio central da UFPR Cidade: Curitiba – 1.
o
/2005
Caracterização: mulher, 44 anos, secretária
Escolha: por ser uma pessoa conhecida.
Pergunta do entrevistador Definição de preconceito
Experiência pessoal de
preconceito
Preconceito em relação ao
outro ou como o outro deve
se sentir
Explicação ou exemplo Sentimentos
E.: Pode dizer seu nome, idade
e profissão?
Roberta, 44 anos,
secretária.
E.: Para você, o que significa
preconceito?
É uma insegurança da parte
da pessoa em relação ao
outro.
Então é a pessoa se sente
insegura, e daí pra ela se sentir
melhor que os outros ela
começa a construir mitos de
que ela é melhor porque ela é
mais rica, que ela é melhor
porque ela descende de
determinada raça, é uma
maneira dela conseguir se
firmar, conseguir vencer sua
própria insegurança, nada
mais que isso... e aliás eu
tenho certeza que é isso, não é?
Pergunta do entrevistador Definição de preconceito
Experiência pessoal de
preconceito
Preconceito em relação ao
outro ou como o outro deve
se sentir
Explicação ou exemplo Sentimentos
E o preconceito também é o
medo de perder espaço.
Então, quando a pessoa,
também é insegurança, medo
de perder espaço, por exemplo,
a pessoa que tem preconceito
contra... eu acho que muita
gente que tem preconceito
contra negro, na realidade a
pessoa não tem, mas ela tem
medo que os filhos não tenham
esse preconceito, casem com
negros e terão netos que
sofrerão com... entendeu?
É sempre uma maneira de se
defender, entendeu?,
preconceito é sempre uma
maneira de se defender.
Em relação a você Roberta, já
sentiu preconceito?
Sim, senti, várias vezes já...
antes de eu ter faculdade
existia muito preconceito em
relação ao fato de eu só ter
2.
o
grau, e uma pessoa uma vez
chegou a confessar pra mim
que ela se sentia superior em
relação a mim porque ela tinha
faculdade e eu não tinha,
também já senti, já me senti
mal em lojas, fui mal atendida
porque eu ando de uma
maneira bem simples, assim.
Pergunta do entrevistador Definição de preconceito
Experiência pessoal de
preconceito
Preconceito em relação ao
outro ou como o outro deve
se sentir
Explicação ou exemplo Sentimentos
E entrei numa loja assim meio
pouquinho acima das minhas
possibilidades financeiras e
essa vendedora deixou, assim,
muito claro, sabe, não com
palavras, mas gestos, que eu
não estava no ambiente
certo, né? mas foi uma coisa
bem...
Eu já me senti... às vezes eu
não sei o que fazê, é, a gente
tem a impressão de estar sendo
discriminada, ou se a pessoa
passa uma mensagem sem
palavras que você consegue
perceber... várias vezes, já.
E.: Seja no caso de outra
pessoa, ou no seu, o que será
que uma pessoa que sente em
caso de preconceito?
Ela sente uma humilhação,
uma vergonha.
E às vezes ela não tem preparo
forte, ela embarca na da pessoa
que tem preconceito e ela
realmente acaba achando que
Ela é inferior, se ela não é
segura de si, ela acaba é...
absorvendo o conceito do
outro e se achando mesmo
pior que o outro, e ela sofre
muito mais por isso.
E.: Você gostaria de falar mais
alguma coisa a respeito?
Não.
Entrevista 10
Nome: Cida
Local: Prédio central da UFPR Cidade: Curitiba – 1.
o
/2005
Caracterização: mulher, 56 anos, juíza de alçada aposentada
Escolha: por ser uma pessoa um pouco mais amadurecida, e por ser juíza aposentada.
Pergunta do entrevistador Definição de preconceito
Experiência pessoal de
preconceito
Preconceito em relação ao
outro ou como o outro deve
se sentir
Explicação ou exemplo Sentimentos
E.: Poderia me dizer seu
nome, idade e ocupação?
Cida, 56 anos
juíza de alçada aposentada.
E.: Para você o que significa
preconceito?
Muito difícil, sabe, eu acho
que a gente não tem muita
idéia da profundidade dessa
palavra, e o que eu tenho
percebido quando eu começo
a prestar atenção nas reações
das pessoas, de algumas
coisas que acontecem na rua,
ou lugares públicos, ou na
família mesmo, é que passa
como preconceito, são certos
tabus sociais, como
preconceito contra a mulher
em determinadas funções,
preconceito de religião é
uma coisa muito acentuada,
preconceito de raça é uma
coisa muito forte pra mim,
mas eu tenho me ligado muito
nesta coisa de preconceito.
Pergunta do entrevistador Definição de preconceito
Experiência pessoal de
preconceito
Preconceito em relação ao
outro ou como o outro deve
se sentir
Explicação ou exemplo Sentimentos
Porque eu tenho observado
que o preconceito é da
própria pessoa, entende?, o
preconceito não é dos
outros em relação à gente, o
preconceito é da gente, por
exemplo: se uma pessoa
que tenha origem, uma
criança muçulmana precisa
usar aquelas vestimentas,
aquelas roupas, véus para
estar se cobrindo, ela é que
se sente mal em relação às
outras, não são os outros
que têm preconceito com
relação a ela, é ela que tem,
então se a gente pegar a
palavra, é pré-conceito, ou
seja, você é..., fazer um
juízo de valor sobre uma
coisa sem conhecer, isso é
preconceito, penso eu numa
maneira bem rude, a palavra
quer dizer isso, você julgar
ou menosprezar ou
supervalorizar alguma coisa
sem saber o que você está
falando ou valorizando ou
não valorizando, né, e a
questão da raça é a mesma
coisa, religião, essa é uma
palavra o... enfim, está
dentro de nós.
Pergunta do entrevistador Definição de preconceito
Experiência pessoal de
preconceito
Preconceito em relação ao
outro ou como o outro deve
se sentir
Explicação ou exemplo Sentimentos
E.: Mas não estaria também
no outro que pode estar te
julgando?
Eu acho que desencadeia,
não posso afirmar, é uma
coisa temerária dizer assim
que os outros também não
têm uma certa reserva, talvez
até tenha, mas a dimensão
maior desse preconceito está
no interior daquele que se
sente atingido pelo
preconceito, sabe?
E.: Em relação a sua pessoa,
já sentiu preconceito?
Sim, sim, sim, na minha
adolescência, né...
É, engraçado, né, essas coisas
nos pegam muito assim de
surpresa, veja, eu quando era
adolescente eu tinha, eu fui
uma adolescente gordinha,
né, e não gostava nem um
pouco de mim e tinha precon-
ceito com relação a mim mesma
e além de tudo sou descendente
de portugueses, e eu tinha
sobrancelhas grossas, cabelo
preto escuro, mas um monte
de pelo, tinha muito, então eu
não gostava de sol, não
gostava de me expor, me
Pergunta do entrevistador Definição de preconceito
Experiência pessoal de
preconceito
Preconceito em relação ao
outro ou como o outro deve
se sentir
Explicação ou exemplo Sentimentos
E.: E as outras pessoas em
relação a você?
achava diferente das outras
meninas e acho que isso foi
uma coisa que me marcou
muito embora eu gostasse
muito da minha família, e tinha
essa tendência das mulheres
serem cheinhas, e o que me
incomodava era o excesso de
cabelo e pelo que eu tinha
pelo corpo, e isso me
incomodou muito na minha
adolescência, dos 13 aos 18,
19 anos, e aí eu não gostava
de mim mesma, não me
aceitava e tinha muito
preconceito comigo mesma,
eu não queria ser daquele
jeito...
Elas nem viam, nem se
davam conta que eu passava
por esse tipo de
constrangimento com relação
a mim mesma e o preconceito
com relação a minha forma e
o meu jeito de ser.
E.: E as pessoas que vivem
esta situação de sentir
preconceito em relação a elas,
como deve ser isso?
Acho que o preconceito é uma
coisa muito doída, é uma dor
horrível, uma dor profunda,
sabe?
Pergunta do entrevistador Definição de preconceito
Experiência pessoal de
preconceito
Preconceito em relação ao
outro ou como o outro deve
se sentir
Explicação ou exemplo Sentimentos
Porque se você pegar, porque
se a gente considerar, por
exemplo: o preconceito social
e que marginaliza quem vive
na rua, quem é drogado, quem
é... adolescentes que prati-
caram algum tipo de delito ou
crianças que estão cheirando
cola na esquina com 6, 7, 10
anos, ou meninas com 13, 14
que ficou grávida, com relação
a esta situação de miséria, de
marginalidade, de pobreza,
existe muito pré-conceitos dos
outros que estão do outro
lado, e são as pessoas de
classe média... baixa, que
seja, quem é de classe média
baixa tem preconceito contra
o miserável, quem é de
classe média-média tem
preconceito contra o de classe
média-baixa, e assim nós
vamos, e por mais que você
tenha um poder aquisitivo
fantástico, você vai ter alguém
que vai ter muito mais que
você, e sempre vai ter alguém
que vai ter muito menos que
você, e mesmo assim sofre
preconceito dos dois lados, de
quem tem mais e de quem
tem menos ou nada, agora
Pergunta do entrevistador Definição de preconceito
Experiência pessoal de
preconceito
Preconceito em relação ao
outro ou como o outro deve
se sentir
Explicação ou exemplo Sentimentos
esse que não tem nada, nada,
eu não falo nem de pobreza,
mas miséria... gera um
preconceito muito grande
no sentido de afastar, de
não acolher, de não incluir,
de marginalizar, de querer
vê-los bem longe, porque
cheiram mal, são perigosos.
E esse preconceito é o que
mais dói, esse dói, é uma
facada, é um punhal.
Porque é algo contra o qual a
pessoa não pode lutar, é o
tipo de preconceito que cheira
a injustiça, já, é o preconceito
que cheira a injustiça, né,
você exclui, marginaliza,
mas não dá nada para aquela
pessoa sair do lugar e ela por
si só não sai, então você entra
num círculo vicioso social
que não tem fim, eu noto
muito isso, notei quando eu
trabalhava na vara de
infância, que eu lidava só com
essa criançada de rua e de
abrigo, abandonada mesmo, a
miséria no seu mais alto grau
atingindo crianças,
adolescentes e famílias, e
essas pessoas, ninguém quer
saber delas, a sociedade não
quer saber delas, o governo
não quer saber delas, as
Pergunta do entrevistador Definição de preconceito
Experiência pessoal de
preconceito
Preconceito em relação ao
outro ou como o outro deve
se sentir
Explicação ou exemplo Sentimentos
ONGs não quer saber delas,
nem ninguém, até quem
ajuda, escolhe quem quer
ajudar, o preconceito na
vara da infância para a
adoção é uma coisa
fantástica, porque tinha uma
fila quilométrica para a
adoção, por quê? Porque para
adotar, tem que ser um sonho
dourado de todo pai e toda
mãe, e não tem criança assim,
chega ao ponto de querer
saber de onde vinha a
criança, quem era o pai, a
mãe, era doente? Bebia? a
mãe não sei o quê, quer dizer,
se a criança tiver aquela carga
toda ela nunca é escolhida...
esquisito, isso é puro
preconceito, porque aquela
criança pode ser mil coisas,
mas ela já está fazendo um
conceito prévio, um pré-
conceito de que aquela
criança que tem esse pai,
desse jeito horroroso e essa
mãe horrorosa, então eu não
quero, esse é o preconceito
que mais dói, o moral e o
social, porque acaba se
tornando um preconceito
afetivo, e sem afetividade
Pergunta do entrevistador Definição de preconceito
Experiência pessoal de
preconceito
Preconceito em relação ao
outro ou como o outro deve
se sentir
Explicação ou exemplo Sentimentos
um ser humano não vive,
nem bicho sobrevive, então
essas crianças acabam sendo
fadadas ao insucesso, ao
desconforto moral, à frieza da
sociedade, e tudo mais, e
esse preconceito é muito
dolorido, muito dolorido...
porque talvez o preconceito
nasça da arrogância da
gente, o ser humano é muito
arrogante, a nossa vaidade é
um negócio horroroso, temos
que lutar contra ela todo o dia,
é a vaidade que impede você,
gera a arrogância e impede as
pessoas de serem solidárias,
e aí vem o preconceito,
acho... a gente como ser
humano... temos que melhorar
muito.
E.: Bem, você gostaria de
acrescentar mais alguma
coisa?
Não.
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