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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Ednilton José Santa-Rosa
A família e a criança no psicodiagnóstico infantil:
estudo em uma clínica-escola de São Paulo
DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL
SÃO PAULO
2008
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Ednilton José Santa-Rosa
A família e a criança no psicodiagnóstico infantil:
estudo em uma clínica-escola de São Paulo
DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL
Tese apresentada à Banca Examinadora como
exigência parcial para obtenção do título de
Doutor em Psicologia Social pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, sob a
orientação do Prof. Doutor Odair Sass.
SÃO PAULO
2008
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Banca Examinadora
_________________________________________
_________________________________________
_________________________________________
_________________________________________
_________________________________________
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AGRADECIMENTOS
À Veronice, minha esposa e Helena, minha filha que compartilharam comigo
todos os momentos difíceis e sempre me apoiaram com muita dedicação e amor.
Ao orientador, Odair Sass, pela competência, seriedade e rigor com que me
orientou.
À instituição de ensino superior, por disponibilizar seus arquivos para a realização
deste trabalho.
À Faculdade Paulista de Serviço Social, cujo apoio financeiro foi fundamental
para que esse trabalho fosse realizado.
Ao Cláudio, pela grande disponibilidade nas traduções.
Aos amigos Marcelo, Tadeu, Gil, Pedro, Erich, que muito contribuíram com suas
reflexões e sugestões.
À Sonia e à Cida que, de maneira direta e indireta, sempre estiveram dispostas a
colaborar.
Ao Jeová, pela paciência e dedicação na revisão do texto.
À Marlene, secretária do programa, que muito me ajudou na solução dos
problemas administrativos.
v
SANTA-ROSA, Ednilton José. A família e a criança no psicodiagnóstico infantil:
estudo em uma clínica-escola de São Paulo. Tese de Doutorado apresentada ao
Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, 2008, 105p.
RESUMO
O presente estudo tem como objetivo analisar a idéia de família contida nos
psicodiagnósticos infantis realizados por psicólogos em formação, em uma
clínica-escola da cidade de São Paulo. Foram pesquisados 21 relatórios finais de
psicodiagnósticos, elaborados entre 2003 e 2004, que determinaram o
encaminhamento da criança para a psicoterapia. Dos relatórios selecionados foram
extraídos vários elementos, tais como: termos, conceitos, expressões e
explicações relacionados à função da família na formação da criança. Esses
elementos permitiram agrupar os conteúdos em duas categorias, denominadas de
“Vínculos familiares” e “Cuidados com a criança”. Na primeira categoria foram
alocados indicadores referentes à maneira como foi compreendida, pelo
psicodiagnóstico, a vinculação entre a criança e cada um dos membros da família.
Já na segunda, foram relacionados os indicadores atinentes à conduta dos
familiares no cuidado com a criança quanto ao sentimento de segurança, proteção
e desenvolvimento. A base conceitual da pesquisa é pertinente à teoria crítica da
sociedade, destacando-se as discussões relacionadas à família, ideologia,
psicologia e técnica. As principais conclusões obtidas indicam que a idéia de
família contida nos psicodiagnósticos estudados têm como base um modelo
familiar constituído por indivíduos que se vinculam por meio de papéis definidos:
pai, mãe e filho(a). A análise dos relatórios também aponta que os cuidados
relacionados à criança estão condicionados ao ajustamento dos membros da
família, mais especificamente ao relacionamento dos pais e à capacidade destes
em exercerem seus papéis. Constata-se que, apesar de presentes nos
psicodiagnósticos, os fatores sociais determinantes da situação familiar não são
devidamente considerados nos relatórios.
Palavras-chave: família, psicodiagnóstico infantil, teoria crítica da sociedade.
vi
SANTA-ROSA, Ednilton José. A família e a criança no psicodiagnóstico infantil:
estudo em uma clínica-escola de São Paulo. Tese de Doutorado apresentada ao
Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, 2008, 105p.
ABSTRACT
The present study has the objective to verify the idea of familys contained in the
infantile psychodiagnostics realized in a clinic-school at São Paulo city by
psychologist trainee. It was searched twenty-one final reports of
psychodiagnostics, made between 2003 and 2004, that had determined the leading
of children to the psychotherapy. From the selected reports were extracted some
elements, such as, terms, concepts, expressions, and explanations related to the
family in the child education. These elements allowed us to separate the subjects
in two categories named as Family Linking and Children Care. In the first
category, we allocated the psychodiagnostic comprehension of indicators referred
to the way the linking between the child and each one of the family members. It
was allocated in the second category the indicators concerned to family members
conduction when it affects the children’s feelings of safe, protection, and
development. The conceptual base of the searching is pertinent to the critical
theory of the society; especially the discussions related to family, ideology,
psychology and technique. It was concluded that a family representation
constituted by individuals, who are linked with defined rules such as father,
mother and children, bases the notions of family. The function, performed by the
family, of child care is conditioned to the adjustment of the family members, more
specifically the parents, to the their rules functions. Nevertheless, it is not
considered duly the social factors that imply in the family constitution.
Key words: Family, infantile psychodiagnostic and critical theory of the society
vii
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 1
1. PSICOLOGIA E TÉCNICA 9
2. FAMÍLIA 20
3. A FAMÍLIA NOS PSICODIAGNÓSTICOS 35
3.1. O psicodiagnóstico na clínica-escola 36
3.2. Etapas da pesquisa 38
O arquivamento dos prontuários 39
Seleção do material para análise 40
Os prontuários 41
Exame dos prontuários selecionados 43
4. APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS 45
4.1. Características das crianças atendidas em psicodiagnóstico
e suas famílias 45
Problemas relativos à criança, relatados pelos familiares
ou responsáveis 55
4.2. A compreensão da participação da família nos problemas
psicológicos da criança, indicada nos psicodiagnósticos 62
A. Vínculos familiares 64
Vínculo da criança com a mãe 66
Vínculo da criança com o pai 72
Vínculo da criança com a mãe e o pai 74
Vínculo da criança com a família 77
Vínculos entre a criança e os irmãos 80
viii
B. Cuidados com a criança 81
Sentimento de segurança da criança 82
Desenvolvimento da criança 85
Proteção à criança 90
CONSIDERAÇÕES FINAIS 99
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 103
ix
TABELAS E QUADROS
Tabela 1. Crianças submetidas ao psicodiagnóstico, segundo o sexo 45
Tabela 2. Idade e escolaridade das crianças submetidas ao psicodiagnóstico 46
Tabela 3. Renda mensal familiar 48
Tabela 4. Pais e mães das crianças, segundo a ocupação 50
Tabela 5. Vínculos dos pais biológicos das crianças 53
Quadro 1. Detalhamento das famílias das crianças atendidas em
Psicodiagnóstico 54
Tabela 6. Local de ocorrência dos problemas apresentados pelas crianças,
registrados nas queixas dos relatórios finais de psicodiagnóstico 56
Tabela 7. Busca pelo serviço psicológico 57
Tabela 8. Indicadores de problema apresentados nos relatórios finais 59
Tabela 9. Participação da família atribuída no psicodiagnóstico quanto às
causas do problema psicológico das crianças 62
Tabela 10. Vínculos entre a criança e seus familiares 65
Tabela 11. Conduta dos pais para o cuidado com a criança 82
Quadro 2. Resumo dos resultados obtidos em relação aos indicadores de
Vínculos familiares e Cuidados com a criança 93
1
INTRODUÇÃO
A presente pesquisa tem como objetivo investigar a idéia de família
contida nos psicodiagnósticos infantis elaborados por psicólogos em formação,
em uma clínica-escola da cidade de São Paulo. Tal objetivo se fundamenta na
importância atribuída à família no psicodiagnóstico quando este a inclui na
diagnose do problema psicológico infantil. Servem de base para esta pesquisa os
prontuários de uma clínica-escola vinculada a uma instituição de ensino superior
da cidade de São Paulo.
O psicodiagnóstico é um instrumento psicológico “cujo objetivo é
conseguir uma descrição e compreensão, a mais profunda e completa possível, da
personalidade total do paciente ou do grupo familiar” (Ocampo, Arzeno e
Piccolo, 1987, p. 17). Esse instrumento proporciona a obtenção de dados que
servem de base para o tratamento psicológico ou ainda como “base da orientação
vocacional e profissional, do trabalho como peritos forenses ou trabalhistas, etc.”
(Arzeno, 1995, p. 5). Quando se trata de psicodiagnóstico infantil, a compreensão
do psicólogo sobre a família da criança atendida ocupa um lugar de destaque,
desde que se considere a importância da família na formação da criança. Freud
(1980)
1
, dentre outros teóricos, já havia afirmado a determinação das relações
familiares na formação do psiquismo. Autores que se ocuparam especificamente
da psicologia infantil, tais como Winnicott (1983, 1999, 2005); Spitz (1983);
Anna Freud (1983); Bowlby (1997), também apresentaram estudos mostrando o
estreito vínculo entre o desenvolvimento psíquico da criança e a qualidade das
relações afetivas vividas na família.
1
A data entre parêntesis indica o ano da publicação consultada.
2
Diante da evidência de que as primeiras relações desenvolvidas pela
criança fornecem a base para a constituição de seu psiquismo e considerando que
a família é, geralmente, na atual sociedade, o primeiro grupo social do qual a
criança participa, torna-se inegável a influência das relações familiares em sua
formação e, portanto, das possíveis dificuldades psicológicas infantis.
Estudiosos do psicodiagnóstico infantil (Soifer, 1983; Arzeno, 1995;
Gomes, 1998; Trinca, 2003; Tsu, 2003) enfatizam a importância de se incluir as
relações familiares, como um dos elementos básicos desse procedimento
psicológico, para a compreensão dos problemas psíquicos da criança.
Soifer (1983) afirma que determinadas configurações familiares podem
gerar sintomas nos componentes da família. Gomes (1998) apresenta um estudo
mostrando a maneira como, em muitas situações, a relação conjugal determina o
sintoma psicológico da criança:
[...] a experiência clínica nos mostra como os casais muitas vezes se
tornam infelizes, gerando dinâmicas familiares desestruturadas, que
podem interferir negativamente no desenvolvimento das crianças, as
quais são totalmente dependentes de suas famílias e que, por sua vez,
num futuro, serão geradoras de outras famílias. (p. 15)
Arzeno (1995), argumentando que “O sintoma da criança é o emergente
de um sistema intrapsíquico que está, por sua vez, inserido no esquema familiar
também doente, com sua própria economia e dinâmica”(p. 167), recomenda que
seja feita, no mínimo, uma entrevista familiar no processo psicodiagnóstico. A
autora afirma ainda que a entrevista familiar será mais necessária quanto mais
3
grave for a hipótese diagnóstica como, por exemplo, psicoses, quadros
“borderlines”, perversão, psicopatias ou hipocondrias graves.
Percebe-se a unanimidade dos autores acima citados no que diz respeito à
participação da família na constituição do problema infantil, mas não se nota
considerações a respeito de fatores sociais que podem ocasionar a formação de
uma família geradora de problemas na criança. Tais autores compartilham de um
modelo de família que tem seus componentes ligados psicologicamente e os
problemas familiares geradores dos chamados sintomas da criança seriam
produzidos no interior da família, como se esta tivesse sua constituição
independente da sociedade. No caso de expressar a enfermidade da família é
como compará-la a um organismo que, ao adoecer, afetaria seus membros e,
portanto, necessitaria de tratamento para retornar ao equilíbrio saudável.
É certo que outros autores tais como Trinca (2003) e Tsu (2003), mesmo
considerando as relações familiares como um aspecto importante no
entendimento do problema psicológico infantil, não compreendem a família
como fator determinante dos sintomas da criança. Afirmam que as dificuldades
desta devem ser consideradas em um contexto maior, como descreve Tsu (2003),
que defende a necessidade de se observar as relações sociais da criança no
entendimento de seus sintomas. Tal argumento, embora expresse uma ampliação
do olhar sobre os problemas psicológicos infantis, ainda sugere uma separação
entre família e sociedade, como se a criança fosse ora influenciada pela primeira,
ora pela segunda.
De qualquer maneira, ainda que haja diferenças entre os teóricos a respeito
do grau de importância das relações familiares na determinação dos problemas
psicológicos apresentados pela criança, a família é geralmente investigada no
4
processo de realização do psicodiagnóstico infantil, ainda que seja apenas
indiretamente, por meio da entrevista de anamnese.
Por se tratar de um instrumento dotado de procedimento comparativo, o
psicodiagnóstico vale-se de valores empíricos para uma confrontação com os
fenômenos considerados normais. Ao incluir a família como um componente a
ser considerado na diagnose do problema infantil, toma como base o que é
esperado socialmente em uma relação familiar para o devido apoio psicológico,
necessário ao bom desenvolvimento psíquico da criança.
Mas, se o objetivo do psicodiagnóstico é conseguir uma compreensão
mais completa e profunda possível do indivíduo ou da família (Ocampo, Arzeno e
Piccolo, 1987), como seriam tratados os fatores sociais que incidem sobre a
formação da família que colabora para o surgimento ou manutenção de um
problema psicológico infantil?
A questão acima apresentada encontra fundamento no fato de que sobre a
família, formada em dependência estrita à sociedade, incidem modificações,
mais ou menos profundas, decorrentes das transformações sociais. Segundo
Horkheimer e Adorno (1978), a família não só depende da realidade social, mas é
mediatizada pela sociedade em sua estrutura mais íntima, o que dá sustentação à
pergunta da presente pesquisa: ao incluir a família na diagnose do problema
psicológico infantil, em que medida é considerada, pelo psicodiagnóstico, a
mediação social da formação familiar da criança que manifesta problemas e
dificuldades psicológicas? Em consonância com esse entendimento, à pergunta
formulada decorre a hipótese de que a idéia de família nos psicodiagnósticos
tende a não considerar os fatores sociais, econômicos, políticos e culturais,
5
determinantes das relações familiares, reduzindo os problemas apresentados pela
criança e seus familiares a aspectos de ordem psicológica.
A questão acima formulada pode e deve ser discutida na formação do
psicólogo, que encontra um momento importante nos estágios realizados em
clínicas-escola, que têm como objetivo principal o de propiciar ao aluno, na
experiência do atendimento clínico, uma das possibilidades de aplicação da
psicologia
2
. A atividade principal realizada pelo estagiário em psicologia clínica é
o atendimento clínico que, depois de ser completado, é registrado como relatório
e discutido em um grupo de supervisão. Este, em geral, é composto por um
professor supervisor e um pequeno número de alunos pertencentes à mesma fase
de formação. As discussões e reflexões realizadas nos grupos de supervisão
representam a base de análise dos casos atendidos, passando pela apreciação do
professor e pelas diversas observações dos alunos do grupo.
A clínica-escola presta serviços psicológicos ao público, o que representa
uma das possibilidades para o atendimento da população de baixo poder
aquisitivo, considerando-se que algumas clínicas-escola não cobram pelo
atendimento prestado. Cabe, entretanto, a ressalva de que tal atendimento é
limitado pelo calendário acadêmico, pois o aluno ao iniciar seus atendimentos
clínicos tem, geralmente, dois semestres letivos para finalizá-los, correspondentes
ao número mínimo de horas exigido para a sua formação profissional. Isso
significa que, muitas vezes, o tratamento iniciado com um estagiário é finalizado
com outro, quando não ocorre o fato de um paciente passar por três ou mais
estagiários, dependendo do caso.
2
As práticas supervisionadas fazem parte da formação do psicólogo. O aluno, para adquirir o
título de psicólogo, deve realizar estágios profissionalizantes supervisionados por um professor do
curso em que estuda. Além da clínica, o aluno tem a possibilidade de realizar estágios na área da
psicologia organizacional, escolar, comunitária, hospitalar e outras que forem oferecidas pela
faculdade.
6
Outro problema enfrentado pelas clínicas-escola é a fila de espera. Muitas
pessoas que fazem a inscrição para atendimento próprio ou do filho (a), acabam
aguardando muito tempo para serem atendidas, quando a demanda por
atendimento psicológico é maior do que a oferta do serviço.
Com vistas a minimizar os problemas gerados para os pacientes, quer seja
pela troca de estagiários durante o tratamento, quer seja pelo tempo de espera para
ser atendido, muitas faculdades têm adotado, em suas clínicas-escola, a terapia
breve, cujo tempo de processo psicoterapêutico pode ser reduzido a poucas
sessões, possibilitando ajustar o procedimento terapêutico ao tempo disponível do
aluno em treinamento. Além disso, por ser um procedimento com um número
reduzido de sessões, a fila de espera tende a diminuir, contribuindo para que o
indivíduo não fique tanto tempo aguardando para se atendido
3
.
Para todo atendimento realizado na clínica-escola abre-se um prontuário
no qual são guardados os materiais referentes ao processo psicológico do
paciente. Isso significa que há, geralmente, um grande acervo de atendimentos
documentados em clínicas-escola, sendo este, portanto, um local adequado para
coleta de informações.
Considerando que os psicodiagnósticos realizados em clínicas-escola são
sistematicamente registrados e discutidos pelos estagiários com seus supervisores,
somado ao fato de que a clínica-escola possui um número considerável de
avaliações psicológicas arquivadas, definiu-se como a fonte principal desta
pesquisa os prontuários de psicodiagnósticos infantis elaborados e arquivados em
uma clínica-escola.
3
É importante considerar que a terapia breve é mais propriamente uma modalidade de
atendimento em psicologia clínica realizada por profissionais formados. Embora permita o
equacionamento das dificuldades acima citadas, talvez caibam estudos para se verificar o impacto,
a longo prazo, dos resultados obtidos com os pacientes de clínicas-escola.
7
Para a efetivação do estudo, depois de selecionada a instituição e obtida a
autorização para efetuar o levantamento de informações, procedeu-se à
investigação dos prontuários arquivados; as informações obtidas foram
sistematizadas com o objetivo de se investigar como a família da criança é
considerada no processo de diagnose. O presente estudo adota como referência a
teoria crítica da sociedade, em especial as análises dos autores da Escola de
Frankfurt, teóricos que, entre outros temas, estudaram a família como mediação
social (Adorno e Horkheimer, 1978; Horkheimer, 2003 e Marcuse, 1975, 1998).
Tais análises mostram que há um declínio da família na sociedade do capitalismo
monopolista, o que incide diretamente na redução crescente de a família exercer o
papel principal na formação da criança.
O estudo, no primeiro capítulo, discute a relação entre psicologia e
técnica, com ênfase sobre o aspecto instrumental da psicologia. Pretende-se
mostrar que a psicologia, em sua dimensão técnica, pode contribuir tanto quanto
dificultar o entendimento acerca dos problemas humanos. O psicodiagnóstico, ao
considerar as relações familiares na diagnose do problema psíquico da criança,
quando fixa determinada idéia de família como referencial de comparação, corre
o risco de abrir mão de conhecer a família concreta em favor de uma família
abstrata: promove o ajuste da família real à família ideal. Nessa medida, a
psicologia reproduz a ideologia uma vez que não desvela os fatores sociais,
culturais e econômicos que determinam a formação da família e seus problemas.
O segundo capítulo trata da família moderna, fruto das transformações
sociais. Nele destacam-se a perda da autoridade paterna e o empobrecimento dos
vínculos afetivos como características da família, sob a sociedade industrial.
Apresenta, ainda, como os aspectos do cotidiano determinam as relações
8
familiares; discute-se também acerca das determinações sociais que pesam sobre
a família e provocam o seu enfraquecimento na sociedade industrial.
O terceiro capítulo é dedicado à exposição da pesquisa empírica. Contém
a descrição do processo de psicodiagnóstico da clínica-escola estudada, a
especificação das fontes, os procedimentos da coleta das informações contidas
nos prontuários, bem como a apresentação e a discussão dos resultados obtidos.
Seguem-se, por fim, as considerações finais.
9
1. PSICOLOGIA E TÉCNICA
Discute-se, neste capítulo, o aspecto técnico da psicologia e a relação da
técnica com a ideologia. Para isso, são considerados os estudos dos autores da
Escola de Frankfurt, que refletiram sobre a ideologia no capitalismo avançado.
Esses teóricos realizaram uma atualização do conceito de ideologia, mostrando
como o seu caráter irracional contribui para a sustentação de uma sociedade
irracional. Tal discussão é necessária para se pensar sobre a técnica do
psicodiagnóstico infantil que, neste estudo, destaca o papel da família na diagnose
do problema psicológico infantil.
A psicologia compõe um vasto campo de conhecimento, cuja origem está
na filosofia clássica e se manteve como área de estudo filosófico até o último
quartel do século XIX, quando alcançou o status de ciência autônoma. À época da
constituição da psicologia científica, grande parte do que foi produzido nas
ciências sociais, como é o caso da sociologia e da psicologia, partiu de
concepções das ciências naturais, as quais Horkheimer (1980) denominou de
teorias tradicionais. Essas concepções científicas fortaleceram a fragmentação do
conhecimento e a cisão entre o indivíduo e sociedade: o indivíduo deveria ser
compreendido pela psicologia e a sociedade pela sociologia.
Por sua vez, Adorno (1986) afirma que só é possível compreender o
indivíduo em sua relação com a sociedade. Para o autor, a separação entre homem
e sociedade se constitui em uma falsa consciência, considerando que a esfera
psíquica não pode ser adequadamente entendida sem a dimensão social, pois a
sociedade tem primazia na constituição do indivíduo.
10
A psicologia, caracterizada por sua diversidade de objetos e métodos, à
medida que é fundamentada na divisão entre indivíduo e sociedade, atribui ao
primeiro todas as responsabilidades pelas mazelas vividas em um sistema social
que requer, a todo instante, a integração incondicional dos homens à sua estrutura
e organização. As técnicas desenvolvidas por essa psicologia contribuem para o
ajustamento do indivíduo à sociedade, sem questionar, contudo, os custos e o
sofrimento psíquico que incidem sobre a vida pessoal. Adorno (1986) já apontava
para a utilização da psicologia com o objetivo de devolver ao sistema produtivo, o
mais rápido possível, o indivíduo que, desajustado psiquicamente, compromete o
adequado funcionamento da totalidade do sistema. O sistema social, mesmo
quando admitido como fonte de sofrimento dos homens, não é considerado como
alvo de mudanças, pois, além de a ideologia conceber a realidade, tal como é
percebida, como um fato natural e imutável, informa que não seria papel da
psicologia atuar a favor das transformações que privilegiam a formação do
indivíduo.
Cabe destacar que Horkheimer e Adorno (1978) mostram que as
mudanças ocorridas na sociedade implicaram também em transformação da
ideologia. Esses autores afirmam que a ideologia da sociedade atual não se ocupa
de ocultar a realidade, antes, apresenta-se como a expressão da própria realidade e
com esta se confunde. Essa ideologia limita a reflexão e faz com que as
contradições inerentes ao capitalismo sejam compreendidas como algo existente
nos indivíduos e não como condições objetivas, historicamente impostas a eles.
Crochík (2005), ao discutir os efeitos da mediação ideológica na
compreensão da realidade, afirma:
11
A realidade tal como pode ser captada é tida como o referente último,
sem se perguntar pela sua gênese e potencialidades de transformação;
ela é tornada natural e convertida em eterna; disso resulta um hiper-
realismo que se alia com a busca pragmática dos resultados, e a
percepção imediata passa a se destacar da realidade como a sua
verdade. A ênfase na competência e, portanto, na solução dos
problemas imediatos, passa a ser a tônica para a adaptação ao mundo
atual. (p. 16 )
Quando a realidade é assim tratada, cabe à psicologia elaborar técnicas de
intervenção sobre os comportamentos para que os indivíduos se conformem da
maneira mais confortável possível, custando-lhes a consciência e a autonomia. O
fato é que se a fonte de sofrimento continua existindo, a tensão do indivíduo com
a sociedade se mantém e, portanto, é mantido o seu sofrimento. Isso dá um caráter
ilusório para a aplicação da psicologia à redução ou eliminação do sofrimento e
reafirma sua função mantenedora do sistema opressor.
Os saberes desenvolvidos pela psicologia são consoantes à sociedade e as
diversas teorias refletem as relações sociais. Considerando-se a importância cada
vez maior da tecnologia para o sistema social vigente, pode-se pensar sobre a
ênfase dada pelo ensino da psicologia ao saber técnico.
No que diz respeito à formação do psicólogo, pode-se afirmar que, na
ausência de crítica às teorias e técnicas elaboradas sem se considerar as condições
históricas e sociais na determinação do problema psicológico, o aluno é formado
para o tecnicismo da psicologia, concentrando-se mais na aplicação de técnicas do
que no desenvolvimento do conhecimento crítico teórico, mediado pela técnica. A
12
técnica é aprendida como um fim e não como um meio, assume a condição de um
fetiche capaz de revelar o que se encontra no âmago do sujeito.
A sociedade atual encontra-se em pleno progresso, cujo objetivo primeiro
não é o de atender às necessidades humans, pois visa antes atender às exigencias
do próprio sistema. A tecnologia impulsionadora do progresso não trouxe a
realização dos ideários de liberdade e justiça, visto que acabou por ter um fim em
si mesma; não objetivou a emancipação do homem, mas a perpetuação e
aperfeiçoamento do sistema social vigente. A confecção e o uso de técnicas
psicológicas, quando realizado sem crítica, podem se constituir na mesma lógica
de um desenvolvimento tecnológico a serviço do acúmulo de capital em
detrimento do ser humano.
A teoria crítica mostrou que a tecnologia se transformou em ideologia,
que ultrapassa o universo industrial no qual foi criada, e se deslocou para outras
dimensões sociais, tornando, inclusive, técnicas as relações entre os homens:
A ciência e a tecnologia são a base do desenvolvimento industrial e
ultrapassam essa órbita direcionando-se para as esferas sociais. As
relações humanas tornam-se relações técnicas, relações entre coisas. Se
essa reificação já era enfatizada por Marx (1984) no século passado
como decorrência do caráter social próprio do trabalho que produz
mercadorias, a tecnificação do cotidiano amplia a coisificação humana
(Crochík, 1998, p. 56)
O fetichismo resultante do processo de produção da mercadoria,
evidenciado por Marx, ao estender-se para outras esferas das relações sociais,
pode redundar em um pensar e agir técnicos, dispensando a reflexão sobre como
13
os problemas se constituem em sociedade. Na sociedade moderna o pensamento
tende a ser negligenciado (Adorno e Horkheimer, 1997), criando a noção de que a
solução dos problemas está no uso da ferramenta certa e adequada para
determinada finalidade. A idéia mantenedora dessa prática é que um método bem
aplicado servirá para o fim a que se destina, não importando a maneira como foi
constituído e nem a serviço de quem foi elaborado. O pensamento vai sendo
gradativamente desqualificado e o compromisso com a verdade perde o sentido
diante de uma lógica para a qual o importante é a forma do fazer, a técnica correta
a ser aplicada. Os homens se preocupam cada vez menos com a verdade,
atribuindo um valor excedente à prática instrumentalizada em detrimento da
reflexão (Horkheimer e Adorno, 1997).
A ideologia da racionalidade tecnológica atua para a manutenção da
concepção burguesa de indivíduo, como se este fosse constituído independente
das condições históricas e sociais. Além disso, sustenta a idéia da técnica ser
reconhecida, senão como a única forma possível, a mais confiável na solução dos
problemas, ainda que a racionalidade não consiga dar conta de outras tantas
questões envolvendo a humanidade, tais como os conflitos entre os homens
(Crochík, 1998), reafirmando o caráter irracional da ideologia. A esse propósito,
Adorno (1995) afirma que:
[...] na relação atual com a técnica, há algo excessivo, irracional,
patógeno. Esse algo está relacionado com o véu tecnológico. As
pessoas tendem a tomar a técnica pela coisa mesma, a considerá-la um
fim em si, uma força com vida própria, esquecendo, porém, que ela é o
prolongamento do braço humano. (p. 118)
14
Sob a égide da sociedade industrial, a psicologia se firma como ciência,
cuja apropriação de métodos pelo capitalismo procura identificar no indivíduo as
dificuldades na integração social, elaborando técnicas de ajustamento do
comportamento com o objetivo de garantir a harmonia do todo. Isso mostra o
aspecto ideológico do positivismo científico. A ordem social que o produz é
considerada como imutável e a adaptação ao sistema como a única possibilidade
de sobrevivência.
Daí, a psicologia, ao ser aplicada às mudanças de comportamentos e
hábitos do homem, sem a devida crítica, pode aliar-se a interesses ideológicos e
transformar-se em instrumento de dominação. O pensamento matematizado
(Horkheimer e Adorno, 1997) transforma as intervenções do profissional em
ações definidas de antemão, cuja previsão dos resultados garante a manutenção da
técnica aplicada. A inverdade situa-se no fato do processo ser decidido de
antemão (Horkheimer e Adorno, 1997). Como, para a lógica formal a contradição
não existe na realidade, mas apenas no campo das idéias, o pensamento reflexivo
é abandonado paulatinamente, emergindo assim a primazia do pensamento
instrumental, fazendo deste um fetiche.
No que concerne ao psicodiagnóstico infantil, trata-se de um importante
instrumento utilizado em psicologia clínica para o encaminhamento da criança ao
devido tratamento psicológico. É um procedimento técnico constituído de
modelos de comparação para mensurar o desvio do padrão de normalidade, na
medida em que é “um processo que visa identificar forças e fraquezas no
funcionamento psicológico, com um foco na existência ou não de
psicopatologia.” (Cunha, 2003, p. 23). Ao incluir a família na diagnose da
dificuldade psicológica da criança, o psicodiagnóstico toma como base aquilo que
15
é esperado em uma relação familiar para bom desenvolvimento infantil, uma vez
que “[...] deve partir de um levantamento prévio de hipóteses que serão
confirmadas ou infirmadas através de passos predeterminados e com objetivos
precisos”. (Cunha, 2003, p. 26). Atendendo aos objetivos para os quais foi criado,
o psicodiagnóstico indica, em seus resultados, os desvios ocorridos nas relações
familiares – constatados pela comparação das condutas individuais com as
normas –, que culminaram na geração e/ou manutenção do problema psicológico
apresentado pela criança.
Contudo, deve-se considerar que a família, assim como o indivíduo, é
mediada socialmente e, na ausência dessa consideração, ela é vista como algo
que se forma na sociedade de maneira autônoma e natural. Contribui para essa
visão as teorias psicológicas que desconsideram a constituição psíquica como o
resultado não só da história individual, mas também, da história da própria cultura
na qual vivem o indivíduo e sua família.
Em que pese o fato de que a psicoterapia pode promover a adaptação do
indivíduo à sociedade, (Adorno, 1986), não se pode negar que, em determinadas
situações, a adaptação, ao desfazer a tensão vivida pelo indivíduo permite o alívio
do sofrimento psíquico e até mesmo garante a integridade física da pessoa. O que
se questiona é o uso instrumental da psicologia como um fim em si mesmo, como
pode ocorrer por meio do psicodiagnóstico. Este ao mesmo tempo em que
permite uma compreensão mais precisa sobre os problemas apresentados pela
criança, mantém intocados os elementos sociais que fazem com que as relações
entre os homens causem sofrimentos. O entendimento dos problemas com base na
compreensão das dificuldades relacionais vividas pela criança acaba sendo
16
utilizado para a indicação de um reforço egóico (a psicoterapia) a fim de que ela
supere essas dificuldades. A estrutura social permanece intacta.
No mesmo sentido, os estudos de Faria (2000) acerca das concepções de
indivíduo presentes nos atendimentos realizados por estagiários de psicologia em
clínicas-escola, mostram que, em sua maioria, os estagiários tendem a considerar
o indivíduo como uma mônada. A partir dessa consideração, o autor efetuou as
seguintes interpretações dos conteúdos dos prontuários por ele analisados:
[...] nega-se o caráter repressor imposto pela cultura e centraliza-se a
causa dos sofrimentos na inadaptabilidade do indivíduo, colocando-o
como causa de si mesmo.
As antinomias são desconsideradas pelos estagiários e as interpretações
dadas por eles aos sofrimentos dos clientes por eles atendidos são
remetidas à subjetividade, como se a construção da subjetividade não
fosse mediada pelos valores, crenças e normas sociais. (Faria, 2000, p.
194).
O autor assevera que, ao desconsiderar as antinomias presentes na
sociedade, o indivíduo passa a ser visto como o único responsável por suas
mazelas, independente das condições objetivas impostas pelo sistema, ou seja, das
amarras das repressões sociais. Desse modo fomenta-se a ilusão de que o
indivíduo por si só, ajudado pela psicoterapia, é capaz de conquistar sua
felicidade:
As interpretações dos estagiários que remeteram a uma compreensão
de indivíduo como uma mônada, em sua maioria, apresentam a
sociedade – representada nas narrativas da vida cotidiana – como mero
17
cenário, no qual o indivíduo se faz existir. Em outras palavras, a
constituição da subjetividade, na sua relação com o mundo objetivo,
dar-se-ia através dos sentidos que o indivíduo, por ele mesmo,
atribuiria às experiências que vive no mundo objetivo. (Faria, 2000, p.
178)
Esse entendimento, sem dúvida, repercute na formação que é
proporcionada ao psicólogo, bem como repercutirá em seu exercício profissional.
Uma vez que a compreensão do indivíduo é deformada, caso não se
considere a sociedade, assim como também a sociedade não é adequadamente
entendida sem a análise do homem (Adorno, 1986), pode-se entender que a
psicanálise, dentre as diversas teorias constitutivas da ciência da psicologia,
fornece importante referencial teórico na formação do psicólogo. É uma teoria
que mostra seu potencial crítico ao destacar a importância da sociedade na
constituição psicológica. Uma vez que a vida civilizada promove a repressão, mas
não a supressão dos impulsos, a psicanálise permite constatar que o homem
permanece em constante conflito com a cultura. O indivíduo, constituindo-se
nesse conflito, tem em seu psiquismo a reposição das contradições inerentes à
sociedade em que vive. Contudo, ainda que apresente bases teóricas para uma
compreensão crítica do homem na relação de tensão que ele mantém com a
sociedade, a psicanálise pode adquirir um aspecto essencialmente adaptativo,
contribuindo mais para a reprodução do sistema do que para a emancipação do
indivíduo (Adorno, 1986; Marcuse, 1998).
As teorias discutidas no decorrer do curso de psicologia, que
desconsideram as determinações sociais da formação familiar, não permitem uma
avaliação mais profunda sobre os dilemas enfrentados pelos componentes da
18
família, dilemas estes que têm sua origem na própria sociedade. Verifica-se um
círculo que se fecha em torno dos autores da psicologia que desenvolveram tais
teorias, dos professores que ensinam essas teorias tal qual foram concebidas e dos
alunos, comungando a idéia de uma determinada representação de família. O
rompimento desse círculo pode ocorrer pelo processo de ensino e aprendizagem,
no qual o professor, valendo-se do pensamento crítico, discute as contradições de
tais teorias, não se limitando a simplesmente descrever o que foi proposto pelos
autores. Isso pode ser feito, por exemplo, mostrando os limites da psicanálise ou
das teorias de desenvolvimento, que se restringem à formação do indivíduo no
seio de uma família ideal, cuja estrutura e organização devem se dar independente
da sociedade. Esse procedimento garante a apreensão do conhecimento teórico
então desenvolvido e abre caminhos para o pensamento crítico, assim como para
o cuidado do futuro psicólogo, no transcorrer de sua vida profissional, ao
proceder sua prática fundamentada em tais conhecimentos. Na ausência de uma
orientação teórica crítica, o aluno é formado para o tecnicismo da psicologia,
quando esta se concentra mais na aplicação de técnicas do que no
desenvolvimento do conhecimento crítico teórico (Gomide, 2000). Assim, não
são negadas as teorias, mas circunscritas à conjuntura em que foram produzidas.
No tocante à prática do psicodiagnóstico, é de grande importância que o
aluno de psicologia seja preparado, na universidade, para a compreensão dos
fatores que determinam as estruturas e relações familiares que podem gerar os
problemas apresentados pelas famílias. A crítica deve ser imanente à ação
profissional. Parece necessário refletir sobre o fato de que os profissionais, por
vezes, não se dêem conta de que suas práticas podem colaborar na perpetuação
dos valores que mantêm a ideologia dominante, contribuindo com as
19
circunstâncias impeditivas da liberdade humana, geradoras do sofrimento
psíquico.
20
2. FAMÍLIA
Estudos sobre a família apresentam formas distintas de estruturas desse
agrupamento social. Eles entram em contraste com a idéia tradicional de que a
família moderna, nuclear, monogâmica e patriarcal, sempre existiu. A família
surge como uma relação natural e espontânea, historicamente vai se
diferenciando até chegar à monogamia, criando a esfera das relações privadas,
conforme afirmam Horkheimer e Adorno (1978):
Na História, a família apresenta-se primeiro como uma relação
espontânea e natural que, depois, vai se diferenciando até chegar à
moderna monogamia e, em virtude desse processo de diferenciação,
cria uma área distinta, que é a das relações privadas. (p. 133)
Autores como Morgan (1976) e, mais tarde, Engels (1976), admitiram
que o estado primordial da família se caracterizou pela promiscuidade, evoluindo
para o matriarcado até chegar ao patriarcado. Ainda que, dado o cunho
evolucionista das idéias desses autores sobre as transformações da família,
antropólogos que os sucederam tenham refutado suas teorias, Morgan e Engels
contribuíram significativamente para se pensar a família não mais como uma
entidade natural, mas incluída na dinâmica histórica: “Com esta concepção, o
casamento e a família, arrancados à hipóstase da entidade natural, passaram a
inserir-se na dinâmica histórica”. (Horkheimer e Adorno, 1978, p. 135).
Na sociedade capitalista, a família deve contribuir para a constituição de
homens seguidores das regras e das normas, que os tornam indivíduos adaptados
a um sistema que necessita tanto da força do trabalho, quanto da relação de
21
dominação para sua manutenção. Para manter a lógica da dominação, a força de
trabalho deve se situar fora da esfera do poder decisório e compor a massa de
pessoas que acatam as decisões e as obedecem. Em seu estudo sobre autoridade e
família, Horkheimer (2003, p. 223) afirma que “[...] o impulso de submissão não
é uma grandeza eterna, mas um fenômeno originado essencialmente na família
unicelular burguesa”. Colabora para isso a exclusividade do amor paterno e
materno, próprios do modelo da família burguesa, que transforma o afeto e
proteção em recompensa pelo comportamento obediente, condição necessária
para a perpetuação da sociedade hodierna, que tem na satisfação do outro a
garantia da autoconservação (Horkheimer e Adorno, 1978).
A intimidade familiar, que torna possível um aprofundamento dos laços
afetivos entre as pessoas, é de origem social. Na fase do capitalismo de
concorrência a intimidade na família contribuía para a constituição de indivíduos
prontos não só para aceitarem, mas também desejarem a obediência (Horkheimer
e Adorno, 1978). Isso ocorreu quando a criança, no contexto da intimidade,
passou a ser criada em um ambiente de medo da perda do amor exclusivo dos
pais, aprendendo que a obediência garantia a recompensa de ser amado. Essa
obediência se manifestava na incapacidade de aceitar possibilidades diferentes de
vida, além daquela imposta pelo sistema social vigente.
Observa-se que a repressão familiar se dissipa em face das transformações
sociais: a autoconservação não mais depende exclusivamente do que o pai pode
transferir para o filho nos aspectos do conhecimento, financeiro e
afetivo/emocional. A sociedade moderna permite a alguns a emancipação
econômica em relação à família, já que inúmeras instituições oferecem
conhecimento, informação e preparação para atividades profissionais nas diversas
22
camadas sociais, seja no treinamento da mão-de-obra qualificada, seja na
preparação daqueles que vão comandar ou administrar os meios produtivos e o
próprio sistema
4
.
A autoridade do pai não é mais absoluta, podendo ser questionada,
criticada e até mesmo negada com mais vigor que no passado: o pai, cada vez
mais, deixa de ser o único provedor financeiro da família; seu saber perde a
eficácia nas soluções dos problemas vividos pelos filhos.
Se a princípio o declínio do poder paterno remete à idéia de uma
igualdade nas relações familiares, os autores da teoria crítica mostram que,
embora os aspectos repressivos da família venham se desfazendo, eles não são
necessariamente substituídos por formas menos autoritárias ou livres. Horkheimer
e Adorno (1978) afirmam:
A efetiva debilidade do pai na sociedade, que tem sua origem na
redução da esfera da concorrência e da livre iniciativa, penetra assim
até as células mais profundas do equilíbrio psíquico-moral: a criança já
não pode mais identificar-se totalmente com o pai, não pode fazer a
interiorização das exigências impostas pela família que, apesar de seus
aspectos repressivos, contribuía de uma forma decisiva para a
formação do indivíduo autônomo. (p.144).
A dominação presente na sociedade tem na repressão a garantia da
manutenção da estrutura e ordenamento sociais. Os impulsos devem ser
4
É claro que essa possibilidade de emancipação transforma-se no adestramento obrigatório para a
autoconservação, que, afinal é importante para a manutenção do sistema, pois esse treinamento
garante, dentre outras coisas, a perpetuação da produção, necessária ao funcionamento da
sociedade capitalista, atendendo ao domínio da racionalidade tecnológica e da circulação de
mercadorias. Além disso, é importante salientar que essa pretensa emancipação não é conseguida
por todos, sendo que se observa que muitos jovens permanecem morando na casa de seus pais por
muito tempo.
23
reprimidos em favor da progressiva socialização. A família ainda arca com a
responsabilidade social para que essa repressão se realize desde a mais tenra idade
da criança, que é modelada de acordo com aquilo que a cultura permite ou exige
(Horkheimer e Adorno, 1978). Paradoxalmente, na sociedade industrial, essa
situação causa na família um antagonismo: por um lado, a família contribui para
a reprodução da ideologia dominante, fazendo com que a criança introjete os
valores e crenças sociais, que lhe garantirão seu lugar na sociedade; por outro,
tem menor capacidade de exercer influência sobre a aprendizagem e educação dos
filhos (Horkheimer e Adorno, 1978).
Os autores mostram ainda que esse antagonismo é próprio da atual
sociedade, pois a autoridade da família foi enfraquecida em virtude dos novos
meios de socialização. Ocorre que na sociedade atual, a autoridade ainda se faz
necessária. Então, o pai é substituído por outras formas de autoridade, como
afirmam Horkheimer e Adorno (1978):
O pai é, inclusive, substituído por poderes coletivos, como a classe
escolar, o “team” esportivo, o clube e, por último, o Estado. Os jovens
manifestam a tendência a submeter-se a qualquer autoridade, seja qual
for seu conteúdo, desde que ela ofereça proteção, satisfação narcisista,
vantagens materiais e a possibilidade de descarregar sobre outros o
sadismo, em que a desorientação inconsciente e o desespero encontram
uma cobertura. (p. 145)
Horkheimer e Adorno (1978) mostram que no capitalismo monopolista, "a
crise da família é a crise da desintegração da humanidade”. (p. 141). Os homens,
embora cercados de outras pessoas, se encontram cada vez mais solitários,
24
transformados em átomos sociais (Horkheimer e Adorno, 1978). No entanto,
estão amalgamados em uma grande massa, cujo líder é o próprio aparato social
(Marcuse, 1998). Por estar intrinsecamente ligada à sociedade, a família tem a
mesma atomização em seus componentes, com as relações de trocas passando
também a mediar os relacionamentos familiares.
O empobrecimento dos vínculos afetivos faz com que o indivíduo se torne
mais interiorizado, trancado em si mesmo. A ideologia produz a ilusão de que a
sociedade provê aquilo que o indivíduo necessita para se tornar feliz. A indústria
cultural propaga essa ideologia, fornecendo produtos que prometem atender aos
desejos narcisistas. A família cumpre com sua função de reprodutora ideológica
na medida em que essas idéias são transmitidas à criança mediante a importância
dada pela família aos produtos da indústria cultural. Ressalta-se aqui o caráter de
formação que a família mantém, pois ainda que esteja cada vez mais fragilizada
no que diz respeito à sua capacidade mediadora entre a criança e a sociedade,
mostra sua influência na constituição do indivíduo, mesmo que seja concedendo
maior poder à socialização direta.
Refletir sobre as determinações sociais que pesam sobre a família não
significa negar a participação das relações familiares na constituição das
dificuldades enfrentadas pela criança, mas considerar que os conflitos vividos
pelos indivíduos em suas famílias, desencadeadores de sofrimento psíquico, não
podem ser delegados exclusivamente por uma relação familiar inadequada e
geradora de problemas. Seguindo esse pensamento, Berenstein (2002), afirma que
o termo “situações familiares” é mais adequado do que “problemas familiares” e
destaca três áreas de situações familiares: as que são resultado da própria relação
familiar (separação, morte de um dos pais, decisão acerca de ter ou não ter filhos,
25
entre outros); situações familiares provenientes do mundo social (guerras,
migrações, falta de trabalho, entre outros) e situações familiares provenientes das
variações do mundo interno dos indivíduos, as quais acarretarão efeitos nos
vínculos familiares. Os conflitos vividos pelas pessoas em suas relações
familiares extrapolam a órbita da própria família. Por isso, devem ser
interpretados com base em uma visão ampliada, que contemple o contexto social
e histórico, abarcando os níveis do indivíduo, da família e da sociedade.
Por meio do psicodiagnóstico é possível se investigar as relações
familiares implicadas no surgimento e manutenção de problemas psíquicos na
criança. Para isso, a delimitação da família orienta a interpretação do psicólogo
quanto aos vínculos estabelecidos entre os membros familiares. Contudo, adotar
um modelo orientador de família com base em uma linha demarcatória, que traça
rigidamente onde começa e termina a família, separando-a das relações sociais,
cria uma representação familiar abstrata, cujos problemas vividos estariam
circunscritos às relações vividas pelos indivíduos no interior da divisa,
desconsiderando-se as determinações sociais, mediadoras das relações familiares.
Admite-se a dificuldade de se reconhecer, com precisão, as fronteiras que
delimitam uma família. Essa situação pode gerar no psicólogo certo desconforto,
uma vez que na ausência de um modelo orientador, as variáveis para o
entendimento dos problemas apresentados pelos indivíduos em suas famílias
ganham maiores proporções, acarretando uma maior insegurança no profissional,
no momento em que a compreensão sobre a família da criança atendida se fizer
necessária para sua ação prática.
Mesmo levando-se em conta a dificuldade acima, deve-se considerar que
o entendimento das dificuldades familiares feito a partir de um determinado
26
modelo de família ofusca a realidade concreta vivida pelas famílias no contexto
de um sistema social que busca reificar continuamente as relações,
transformando as pessoas em coisas e as submetendo à lógica de trocas, própria
do capitalismo. A crise da família deve ser relacionada à crise da sociedade
(Horkheimer e Adorno, 1978). Quando, ao se deparar com problemas vividos nas
famílias, surgirem propostas baseadas na homeostase ou na negociação de
conflitos, será reposta, exclusivamente no indivíduo ou na família, a
responsabilidade pelos problemas, como se estes – o indivíduo e a família – não
estivessem em profunda relação com a sociedade.
Poster (1979), analisando a dificuldade de se estabelecer as fronteiras que
delimitam a família, afirma que “A definição da estrutura da família deve ser
suficientemente rigorosa para tornar uma família inteligível como padrão definido
de associação humana. Tem que haver fronteiras claramente traçadas na teoria
que delimitem o que é e o que não é parte da estrutura da família” (p. 160).
O autor propõe uma teoria crítica para o entendimento da família,
apontando limitações de diversos autores que a estudaram trazendo uma
significativa contribuição para a compreensão da família moderna, descrevendo
sua formação histórica a partir de quatro modelos: “[...] a família burguesa de
meados do século XIX, a família aristocrática dos séculos VXI e XVII, a família
camponesa dos séculos XVI e XVII e a família da classe trabalhadora do início da
revolução industrial” (1979, p. 185).
Poster (1979) argumenta ainda que a família moderna tem suas raízes na
burguesia européia, em meados do século XVIII. Para o autor, a família burguesa
possuía um nítido contraste com a família da aristocracia e a dos camponeses. A
família burguesa, explica, se origina na Europa do século XVIII, modificando as
27
formas de estrutura e relações familiares da época, a saber: da família
aristocrática, proprietária das terras e que habitava os castelos e da família
camponesa, cujos componentes eram os trabalhadores de terras de propriedade
dos nobres. Tanto a família aristocrática quanto a família camponesa viviam em
comunidade, cada qual dentro de suas condições econômicas, de tal forma que a
privacidade não era um elemento considerado com tanta importância. Criando
novas formas de relações familiares, a família burguesa caracterizava-se por se
fechar em si mesma, marcando a separação entre a residência e o local de
trabalho, entre a vida pública e a vida privada. Com isso, novos padrões de
higiene foram constituídos, diminuindo-se assim a mortalidade e a natalidade
infantil. Começa a existir um envolvimento emocional na amamentação; os
hábitos alimentares foram controlados rigorosamente. Havia uma vigorosa
repressão à sexualidade infantil e se desenvolve uma total dependência dos filhos
em relação aos pais. Surge, assim, a esfera da vida privada, na qual o afeto dos
pais em relação à criança estava condicionado à obediência dos filhos.
Com as transformações sociais ocorridas a partir da Revolução Industrial
surge, na classe trabalhadora, uma nova forma de família, que se organizava em
torno das exigências impostas aos trabalhadores. Estes tinham sua sobrevivência
condicionada às novas formas de trabalho. Sua constituição se deu no início do
século XIX, com a industrialização sob condições de sofrimento social e
econômico por parte do operariado. Todos trabalhavam, inclusive as crianças. As
condições sanitárias eram precárias e havia um alto índice de mortalidade infantil.
As famílias dos trabalhadores residiam umas próximas às outras, no entorno da
fábrica, preservando o espírito da vida em comunidade.
28
Nos estágios iniciais da Revolução Industrial, a família da classe
trabalhadora possuía características peculiares em relação à família de seus
patrões, os burgueses, mas com o passar do tempo isso foi se modificando. Na
segunda metade do século XIX, em virtude dos movimentos operários por
melhores condições de trabalho, ocorreram certas melhorias nas circunstâncias da
vida dos trabalhadores, aproximando a família proletária dos padrões burgueses
de família, observando-se, inclusive, a diferenciação de papéis sexuais: a mulher
ficava mais tempo com os filhos enquanto os homens trabalhavam nas fábricas.
No século XX, com a mudança das fábricas para lugares que melhor lhes
conviessem, a família operária, perseguindo os postos de trabalho, é empurrada
para os subúrbios, rompendo os vínculos com a comunidade que até então se
formava no entorno das antigas fábricas, absorvendo a característica de
isolamento da família burguesa. Ao mesmo tempo, com o advento dos
monopólios, boa parte da burguesia foi perdendo o controle de suas propriedades,
o que obrigou os antigos burgueses a procurarem trabalho assalariado nas grandes
empresas que se formavam. Boa parte da antiga família burguesa, em virtude da
queda do poder econômico, estaria agora se assemelhando à família da classe
trabalhadora. Percebe-se, então, a fusão histórica das formas de família,
resultando em uma nova constituição familiar:
Desse modo, na conjuntura atual, a família apresenta uma mistura de
elementos históricos. Essa história condensada da família européia
sugere por que os quatro modelos são necessários à compreensão da
família moderna. (Poster, 1979, pp. 185 e 186)
29
Guardados os méritos de Poster quanto ao entendimento da formação da
família na atual sociedade, algumas críticas à sua teoria se fazem necessárias. Na
tentativa de delimitar a estrutura familiar, o autor afirma que a família se
caracteriza como sendo “[...] o lugar onde se forma a estrutura psíquica e onde a
experiência se caracteriza, em primeiro lugar, por padrões emocionais” (Poster,
1979). Cabe pensar como ficaria a formação psíquica de um indivíduo criado sem
família, como é o caso de crianças que vivem em instituições de abrigo desde o
nascimento. Além disso, a maneira como Poster dá prioridade ao nível
psicológico, conferindo ao cotidiano uma importância secundária, leva ao risco
de perder a dialética no entendimento da família, como se pode observar, ao final
de suas reflexões sobre os elementos para uma teoria crítica da família, quando
afirma que seu estudo apresentou:
[...] as linhas gerais de uma teoria crítica da família em que a análise se
desenvolve em três níveis. No primeiro nível, a família foi concebida
como uma estrutura psicológica. Esse nível definiu a família e indicou
que contribuição o estudo da família pode dar para a ciência social. O
segundo e o terceiro níveis, os da vida cotidiana e das relações com a
sociedade, foram conceptualizados como suplementares do primeiro.
(Poster, 1979, p. 182)
Considerar o cotidiano e as relações com a sociedade como aspectos
suplementares à estrutura psicológica da família constitui-se em um equívoco,
pois a família não só depende da realidade social, mas é socialmente mediatizada
em sua estrutura mais íntima (Horkheimer e Adorno, 1978).
No trabalho de Gomes (1995) fica clara a maneira como os vínculos
existentes entre as pessoas componentes das famílias podem ser transformados
30
pelo cotidiano e pelas relações sociais. A autora estudou famílias de baixa renda,
refletindo sobre as condições de vida enfrentadas por essas pessoas, destacando a
luta pela sobrevivência que os indivíduos das camadas populares têm de travar, o
que lhes exige verdadeiras estratégias de sobrevivência, as quais irão determinar a
própria vinculação entre seus membros. Descreve a situação de famílias
migrantes, moradoras de uma determinada vila na periferia de São Paulo, cujas
mulheres necessitam deixar seus filhos sob os cuidados de outrem, enquanto
trabalham fora. Em gerações passadas nessa mesma vila, as crianças eram
deixadas com uma avó, tia ou comadre, para que fossem cuidadas, dentro do
espírito solidário que marcava os vínculos entre essas pessoas. Com o tempo, em
decorrência do aumento do número de mulheres que trabalham fora, surgiu uma
nova atividade informal: a mulher paga para cuidar de crianças. Ela pode ser tanto
uma vizinha, quanto um parente, uma avó, uma irmã, mas que agora irá receber
uma quantia em dinheiro para cuidar do afilhado, neto ou sobrinho. Para Gomes
(1995) essa situação, impensável em épocas anteriores, altera as relações
familiares e de vizinhança, cujos vínculos sempre foram fortes nessa camada da
população.
As experiências vividas pelas pessoas, que determinam as relações
afetivas, também podem ser observadas no estudo sobre circulação de crianças,
realizado por Fonseca (2002), que afirma que as emoções e percepções de um
indivíduo são constituídas dentro de circunstâncias concretas, sendo, portanto,
consideradas como variáveis sociais e históricas, não como constantes. A autora
descreve o caso de uma menina que dizia possuir três mães: a que gerou, a que
amamentou e a que a criou. O caso foi explicado da seguinte maneira: por
ocasião de uma viagem, a genitora deixou a criança (que à época contava com
31
seis dias) sob os cuidados de uma mulher, a princípio por alguns dias, mas, à
medida que passou o tempo, a criança ficou permanentemente com essa
cuidadora. Uma terceira mulher, irmã daquela que estava cuidando da criança,
encontrava-se amamentando o filho e ofereceu-se para também amamentar a
menina, já que a mãe biológica da criança não tinha leite materno. Nessas
condições, afirma a autora, o cuidar da criança não se limitou à mãe biológica ou
ao casal de pais, mas foi estendido por uma rede de adultos, constituída por
pessoas de fora dos laços de parentalidade. Dessa forma, pode-se observar os
vínculos afetivos se estabelecendo a partir de uma situação concreta de vida,
mostrando as circunstâncias sociais como decisivas no estabelecimento dessas
relações afetivas.
As condições sociais mostram ainda mais sua influência, promovendo a
expansão dos limites e interferindo na constituição das relações familiares, como
se pode ver em Mello (1995), quando descreve seu trabalho com famílias de
moradores (de baixa renda) de um bairro da periferia de São Paulo. A autora
apresenta a especificidade das organizações familiares que se agrupam de acordo
com as necessidades impostas pela realidade vivida. Mello (1995) argumenta
que, contrariamente ao que se afirma acerca das camadas populares, há uma
importância nada desprezível no que diz respeito aos laços familiares. Denomina
de aglomerados familiares o conjunto não só de pessoas de mesmo laço
sanguíneo, mas também do conjunto de famílias nucleares e outras pessoas,
parentes ou não, que compartilhem do mesmo espaço de moradia e que
contribuem com o apoio mútuo nos momentos de necessidade. O estudo mostra
que existem situações em que toda a vizinhança socorre os mais necessitados:
32
“Eu diria que o bairro favorece a criação de uma rede de sustentação mútua para
os momentos de necessidade aguda” (Mello, 1995, p. 54).
Com isso, a autora (1995) destaca o risco de interpretar as famílias e
seus problemas a partir de modelos normativos, que apontam os padrões
utilizados para medir os desvios de tais modelos. Ela já havia mostrado nesse
mesmo texto a visão que se tem da patologia social radicada na pobreza. As
famílias que não conduzem seus componentes de maneira ordeira e obediente
seriam as responsáveis pelas mazelas da sociedade:
De modo muito claro, a família é declarada incompetente. Seus
membros adultos são desqualificados culturalmente. Suas funções
essenciais de socialização são responsáveis pela geração de
‘personalidades deformadas’, ou seja, inaceitáveis, capazes de cometer
as mais bárbaras atrocidades. (Mello, 1995, p. 52).
A família pobre acaba, por condições objetivas alheias à sua vontade,
afastando-se de um modelo idealizado de família e recebendo o rótulo de
“desorganizada”. Essa “desorganização” é apontada pela sociedade como a causa
de problemas sociais, tais como: “[...] fonte de violência, de abandono de
crianças, e da marginalidade de jovens, ou seja, a família é responsável pelo que
aparece como fracasso moral de seus membros” (Mello, 1995, p. 57).
Ora, é contraditório pensar em uma organização familiar independente do
contexto social em que vivem seus membros. A família se constitui em meio às
adversidades sociais; os conflitos vividos no ambiente familiar reproduzem os
vividos em sociedade: “Com efeito, se a família está indissoluvelmente ligada à
sociedade, o seu destino dependerá do processo social e não da sua própria
33
essência como forma social auto-suficiente” (Horkheimer e Adorno, 1978, p.
1461-47).
Não obstante, a família pode ser um lugar de crescimento, de trocas
afetivas, que não necessariamente redundam no aprisionamento do indivíduo.
Representa um lugar de refúgio no momento em que se intensifica o desequilíbrio
entre o indivíduo e as forças totalitárias da sociedade (Horkheimer e Adorno,
1978). Na família, as emoções podem ser manifestadas sem os subterfúgios
necessários na manutenção das aparências, que garantem as relações sociais fora
da família, mostrando seu caráter de resistência a uma sociedade totalitária.
Considerando a importância da família na formação psíquica da maior
parte dos indivíduos (Horkheimer, 2003) é certo admitir que a família está ligada,
em grande parte, aos problemas psíquicos apresentados pelas crianças. Seguindo
esta linha de raciocínio, o psicodiagnóstico infantil pode mostrar seu potencial
crítico quando, ao identificar tal ligação, fornece elementos importantes para se
pensar a atual sociedade, que impede uma organização familiar constituída de
indivíduos autônomos, como concluem os autores da teoria crítica:
É ilusório pensar que se possa realizar uma família de pares e iguais
numa sociedade em que a humanidade não é autônoma e na qual os
direitos humanos ainda não tenham sido realizados numa medida mais
concreta do que a atual. É impossível manter a função protetora da
família e eliminar o seu aspecto de instituição disciplinar, enquanto
tiver que proteger os seus membros de um mundo em que é inerente a
pressão social, mediata ou imediata, e que, necessariamente, terá de
transmiti-la a todas as suas instituições. (Horkheimer e Adorno, 1978,
p. 147)
34
O potencial crítico do psicodiagnóstico deve ser provocado, refletindo-se
sobre os seus resultados quando tratam os problemas psicológicos infantis como
sintomas gerados no interior de sua família, como se esta fosse um agrupamento
isolado da sociedade. Nessa medida, o próximo capítulo se ocupa em analisar e
discutir os resultados de psicodiagnósticos infantis (que incluem a família na
interpretação do problema apresentado pela criança) realizados por estagiários de
psicologia em uma clínica-escola.
35
3. A FAMÍLIA NOS PSICODIAGNÓSTICOS
Com o intuito de responder à pergunta da pesquisa, qual seja: ao incluir a
família na diagnose do problema psicológico infantil, em que medida é
considerada, pelo psicodiagnóstico, a mediação social da formação familiar da
criança que manifesta problemas e dificuldades psicológicas? – optou-se por
analisar, conforme foi mencionado na introdução, como fonte de informação
primária, os prontuários de crianças submetidas ao procedimento de
psicodiagnóstico em uma clínica-escola do curso de psicologia de uma
universidade localizada na cidade de São Paulo. A escolha da referida instituição
foi decidida em virtude da aceitação institucional da proposta de investigação.
O projeto de pesquisa foi apresentado ao responsável pela universidade
escolhida, a fim de obter a autorização para proceder a coleta das informações,
que foi prontamente concedida. Foram entregues a Carta de Informação à
Instituição e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que foram assinados
pela pessoa responsável da Instituição.
Definiu-se, com a professora responsável pela unidade onde se encontram
arquivados os prontuários, os dias e horários para a coleta das informações
contidas nos prontuários. Tal procedimento ocorreu sempre na dependência da
citada unidade.
A seguir, é apresentado o procedimento para a realização do
psicodiagnóstico pela clínica-escola selecionada, assim como as etapas da
pesquisa, contemplando-se o processo de arquivamento e conteúdo dos
prontuários e os critérios de seleção do material de pesquisa.
36
3.1. O psicodiagnóstico na clínica-escola
Na clínica-escola já referida, cada psicodiagnóstico é realizado por um
estagiário do oitavo semestre de psicologia sob a supervisão de um professor. As
sessões de supervisão são realizadas em pequenos grupos de estagiários que se
encontram na mesma etapa de formação. Em geral, cada estagiário apresenta o
caso que está atendendo, suscitando discussões e reflexões, sob a orientação do
supervisor, acerca dos conteúdos dos atendimentos, bem como dos procedimentos
adotados visando a compreensão e condução do atendimento em pauta.
O processo de atendimento infantil tem início com a inscrição da criança,
pela família, na clínica-escola. Em seguida, os pais da criança são chamados para
procederem a triagem, que pode resultar ou não para a realização do
psicodiagnóstico propriamente dito. A fim de inscrever a criança, os pais ou
responsáveis devem comparecer pessoalmente na secretaria da clínica-escola e
preencher uma ficha de inscrição, com os dados pessoais da criança e da família,
bem como a indicação do horário disponível para o atendimento.
A triagem é parte integrante do psicodiagnóstico. Portanto, é realizada por
um estagiário e discutida no grupo de supervisão de psicodiagnóstico. Tem como
objetivos: 1) verificar a demanda trazida pelos familiares ou responsáveis e 2)
encaminhar o caso para as fases subseqüentes de psicodiagnóstico ou encerrá-lo
na própria triagem. São realizadas, geralmente, duas sessões de entrevistas de
triagem. Na primeira o estagiário atende aos pais, preferencialmente sem a
presença da criança, com o intuito de compreender melhor o pedido de ajuda.
Posteriormente, o aluno apresenta o relatório do atendimento ao grupo de
supervisão com o qual o caso é discutido. Com a supervisão do professor é
37
definido o encaminhamento, que pode ser externo (para outros profissionais ou
instituições) ou interno (para a própria clínica-escola). Quando o caso não
necessita de atendimento psicológico ou se conclui, na triagem, que a demanda
não pode ser atendida pelos serviços disponíveis na clínica-escola, é realizado o
encaminhamento externo para terceiros (profissionais ou instituições); já o
encaminhamento interno é feito quando se verifica que o caso deve prosseguir
para a consecução do psicodiagnóstico propriamente dito ou ainda, diretamente
para o processo psicoterapêutico. Em seguida, o estagiário realiza a segunda
entrevista, com o objetivo de explicar ao familiar, ou responsável pela criança, o
que foi decidido em supervisão.
Quando o caso é encaminhado para o psicodiagnóstico, inicia-se o
processo, cujo período de duração é de seis a dez sessões, sendo que as duas
sessões iniciais e as duas últimas são realizadas com os pais, preferencialmente,
sem a presença dos filhos. As demais sessões são dedicadas à aplicação dos testes
e entrevistas com a criança. Nos dois primeiros encontros com os pais, o
estagiário aplica uma entrevista denominada de anamnese, a qual consiste em
uma investigação detalhada sobre a concepção, nascimento e desenvolvimento da
criança, além de questões relativas à sua vida escolar e às relações familiares
(incluindo a história de vida dos pais e suas relações conjugais). As duas
entrevistas finais com os pais têm como objetivo informar sobre a conclusão do
psicodiagnóstico e os devidos encaminhamentos quando necessários. A
conclusão de um psicodiagnóstico abrange os seguintes resultados possíveis: a)
informar que o caso não necessita de acompanhamento psicológico; b)
recomendar a assistência da criança por outros profissionais ou instituições, cujos
serviços prestados não são disponíveis na clínica-escola; c) indicar o caso para
38
psicoterapia breve infantil, modalidade de atendimento colocado à disposição pela
clínica-escola. Em algumas situações, a conclusão do psicodiagnóstico recomenda
o atendimento da criança em psicoterapia breve infantil (na própria clínica-escola)
em conjunto com serviços prestados por outros profissionais ou instituições. Por
exemplo, uma criança que necessita de psicoterapia breve, associada a um
atendimento de psicopedagogia, é atendida na clínica-escola e encaminhada para
um psicopedagogo ou para uma instituição que presta o atendimento de
psicopedagogia. A título de encerramento é realizada uma sessão com a criança,
para informá-la sobre o resultado do processo, depois daquelas já realizadas com
os pais, também com a finalidade de apresentar os resultados derivados do
psicodiagnóstico.
Assim como no caso da triagem, no processo de psicodiagnóstico todas as
sessões realizadas pelos estagiários são supervisionadas em grupo, quando os
relatórios referentes aos atendimentos são apresentados e discutidos.
3.2. Etapas da pesquisa
No que diz respeito à coleta de informações propriamente dita, efetuou-se
a leitura dos prontuários referentes à psicoterapia breve infantil que já estavam
encerrados e arquivados, procurando se conhecer o procedimento de arquivo dos
prontuários e, em seguida, procedendo-se a seleção e análise do material coligido.
39
O arquivamento dos prontuários
Quando é iniciado um atendimento na clínica-escola, abre-se um
prontuário, no qual são guardados todos os materiais referentes ao atendimento
psicológico. O arquivamento do material é realizado de acordo com a etapa de
atendimento em que o caso é encerrado. Os psicodiagnósticos que indicaram, em
seus resultados, a necessidade de que a criança fosse submetida à psicoterapia
breve são guardados em conjunto, provisoriamente, com o material referente aos
processos da psicoterapia e ali permanecem até o final do atendimento
psicoterapêutico, quando são definitivamente arquivados.
Ao ser encerrado um processo de psicoterapia breve infantil, fecha-se o
prontuário referente à criança atendida. Nele, arquivam-se todos os materiais e
instrumentos psicológicos utilizados desde a abertura do caso até a sua
finalização: ficha de inscrição; ficha de triagem; relatórios de entrevistas de
triagem; eventuais cartas de encaminhamentos efetuados por outros profissionais
ou instituições à clínica-escola; instrumentos utilizados no psicodiagnóstico;
relatórios de entrevistas realizadas durante o psicodiagnóstico, além dos relatórios
das sessões de psicoterapia.
A ficha de inscrição é preenchida no primeiro contato da família com a
clínica-escola e é de responsabilidade da secretaria. Possui dados elementares de
identificação, contatos e horários disponíveis para o atendimento. Já a ficha de
triagem é preenchida pelo estagiário responsável pela entrevista de triagem.
Diferencia-se claramente da ficha de inscrição por conter informações mais
detalhadas, coletadas com a finalidade de subsidiar o atendimento psicológico. Os
relatórios de triagem registram as entrevistas realizadas pelo estagiário com a
família e a criança, podendo conter materiais anexados como, por exemplo,
40
desenhos elaborados pela criança no transcorrer da entrevista. As cartas de
encaminhamento não estão presentes em todos os prontuários, mas apenas nos
casos em que o encaminhamento ao serviço da clínica-escola é feito, por escrito,
por outros profissionais (médicos, fonoaudiólogos, pedagogos e outros) ou
instituições (escola, creche, organizações não-governamentais que desenvolvem
trabalhos com crianças).
Todas as fases do processo de psicodiagnóstico são registradas e
arquivadas com os instrumentos utilizados: a anamnese, os testes psicológicos
aplicados, os relatórios das entrevistas com a família e com a criança e, por fim, o
relatório final de psicodiagnóstico com a sugestão de encaminhamento.
Procedimento semelhante ocorre com o processo de psicoterapia, devidamente
documentado em relatórios de cada uma das sessões de atendimento
psicoterapêutico, culminando com o relatório final de psicoterapia, que registra o
encerramento do caso e/ou sugere os encaminhamentos julgados adequados.
Seleção do material para análise
O primeiro critério para seleção de material foi a escolha de prontuários
mais recentes. Como a coleta foi iniciada no final de 2006, os prontuários de 2005
foram considerados os mais adequados por já se encontrarem devidamente
encerrados e organizados nos arquivos da clínica-escola, sendo, portanto, os mais
atuais à disposição. Como segundo critério optou-se pelos psicodiagnósticos que,
mediante os resultados obtidos, encaminharam o caso à psicoterapia. O exame
detalhado dos prontuários permitiu conhecer o seu conteúdo e verificar que as
informações, que diziam respeito aos elementos que permitissem identificar as
41
noções de família presentes nos psicodiagnósticos, encontravam-se
principalmente nos relatórios finais. Optou-se por trabalhar com esse material
porque ele registra os resultados das aplicações e interpretações dos instrumentos
da avaliação. Também foram consideradas as “Fichas de triagem” por conter
informações mais detalhadas do que as registradas nos relatórios finais, tanto no
que diz respeito aos dados pessoais da criança e da família, quanto sobre o
encaminhamento da criança à clínica-escola. Sendo assim, o terceiro critério para
seleção do material de análise foi a leitura dos relatórios finais de
psicodiagnósticos infantis e da “Fichas de triagem”.
Os prontuários
Em 2005 foram encerrados 43 processos de psicoterapia breve infantil,
encaminhados a partir dos resultados dos psicodiagnósticos realizados na clínica-
escola. É importante registrar que, pelo fato dos prontuários selecionados para
análise serem referentes a processos de psicoterapia encerrados em 2005, os
psicodiagósticos foram realizados no período que abrange o segundo semestre de
2003 e o ano de 2004.
Os prontuários estavam arquivados em dez caixas e, ao examiná-los,
percebeu-se que 24 deles possuíam uma versão do relatório final de
psicodiagnóstico em disquete. Em dois desses prontuários constava que as mães
das crianças não haviam autorizado a utilização das informações para fins de
pesquisa e em outro prontuário não se encontrou a carta de autorização. Assim
sendo, optou-se por investigar os 21 prontuários restantes, cujos relatórios finais
contavam com versão em disquete, junto à carta de autorização assinada pela
42
pessoa responsável pela criança. O trabalho com os disquetes significou uma
maior agilidade na coleta de informações, realizada por meio de um computador
portátil, sem que houvesse a retirada do material das dependências da clínica.
Além disso, contribuiu para que se analisasse um número razoável de 21
prontuários, ou seja, a proporção de 0,49 em relação a 43 prontuários encerrados e
arquivados no período de 2005.
Os relatórios finais de psicodiagnóstico apresentam as informações em
seis seções: “Identificação”, “Queixa”, “Histórico pessoal e familiar”,
“Procedimento”, “Conclusões” e “Encaminhamento”. Para cada um destes ítens
há uma recomendação de preenchimento, expressa por um roteiro entregue ao
estagiário. Na sessão “Identificação” encontram-se as informações referentes aos
dados pessoais da criança, tais como nome, idade, escolaridade, nome dos pais e
endereço. O campo destinado à “Queixa” informa o problema verificado com a
criança. A recomendação ao estagiário é que a queixa seja detalhada e conforme
relatada pelos pais. O “Histórico pessoal e familiar” informa, de maneira
resumida, sobre o desenvolvimento da criança e as relações com sua família. No
item “Procedimento” são relatados os instrumentos utilizados no
psicodiagnóstico, tais como os testes aplicados e as entrevistas com a criança e
com os familiares. A seção “Conclusões” contém resultados do psicodiagnóstico.
Deve ser elaborada conforme a seguinte recomendação: “Apresentar a
compreensão da dinâmica psíquica, incluindo-se de forma articulada as principais
angústias, defesas, conflitos, recursos e o papel da queixa nessa dinâmica; no caso
de criança ou adolescente, também a compreensão da dinâmica familiar, do papel
do paciente e do sentido da queixa dentro dessa dinâmica”. A seção denominada
“Encaminhamento” diz respeito ao tipo de atendimento, quando necessário, a ser
43
realizado (por exemplo, psicoterapia breve infantil, terapia familiar e outros).
Também é solicitado ao aluno justificar o encaminhamento e indicar o local
considerado adequado para o atendimento.
Exame dos prontuários selecionados
Os 21 prontuários selecionados foram investigados com o objetivo de se
responder à pergunta da pesquisa: “Ao incluir a família na diagnose do problema
psicológico infantil, em que medida é considerada, pelo psicodiagnóstico, a
mediação social da formação familiar da criança que manifesta problemas e
dificuldades psicológicas?
Procurou-se caracterizar as famílias que buscaram o serviço da clínica-
escola, bem como caracterizar as crianças submetidas ao psicodiagnóstico. Tais
informações foram obtidas com as “Fichas de triagem”.
Com a leitura da seção “Queixa” do relatório final de psicodiagnóstico,
foram coletadas as informações a respeito dos problemas relatados pelos
familiares. Do texto apresentado na referida seção foram destacadas frases ou
palavras que diziam respeito aos problemas relatados e, posteriormente,
classificadas de acordo com o Catálogo de queixas, desenvolvido por Silvares
(1993) e descrito à frente.
A investigação dos relatórios finais de psicodiagnóstico permitiu constatar
que as informações relativas às interpretações acerca das famílias das crianças,
coligidas por meio dos instrumentos do psicodiagnóstico, encontravam-se
principalmente na seção dos relatórios finais, denominada “Conclusões”. Nessa
sessão registram-se as compreensões sobre a participação da família na formação
ou manutenção dos problemas apresentados pelas crianças. Pôde-se notar que em
44
todos os relatórios as famílias foram consideradas responsáveis pelos problemas
psicológicos das crianças. Além disso, foram identificados indicadores que
forneceram informações a respeito de como as famílias foram avaliadas com
relação ao trato com a criança. Tais indicadores diziam respeito à maneira dos
familiares se vincularem e como os pais dispensam cuidados às crianças.
45
4. APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Neste tópico são apresentados os resultados obtidos na investigação dos
21 prontuários selecionados para leitura. A apresentação foi dividida em duas
partes, sendo a primeira relativa às características das crianças e suas famílias,
além dos problemas relativos à criança, relatados pelos familiares ou responsáveis
da criança. A segunda parte se refere à interpretação dada pelo psicodiagnóstico à
participação da família na formação do problema psicológico da criança. Os
resultados obtidos em ambas as partes foram distribuídos em tabelas e discutidos
posteriormente com base na teoria crítica da sociedade.
4.1. Características das crianças atendidas em psicodiagnóstico e suas
famílias.
Com relação às características da criança considerou-se as informações
relativas ao sexo, idade e escolaridade da criança, obtidas das “Fichas de
triagem”. A tabela 1 representa a divisão, em termos de sexo, das crianças
atendidas em psicodiagnóstico, referentes ao total de 21 prontuários estudados.
Tabela 1. Crianças submetidas ao psicodiagnóstico, segundo o
sexo.
Fonte: Fichas de triagem, referentes aos anos de 2003 e 2004, arquivadas
junto aos prontuários de psicologia breve infantil, encerrados em 2005.
Sexo Freqüência Proporção
Masculino 17 0,81
Feminino 4 0,19
Total 21 1,00
46
A diferença, no que diz respeito ao sexo das crianças atendidas em
psicodiagnóstico infantil, é notável. Do total de 21 psicodiagnósticos estudados,
17 foram realizados com crianças do sexo masculino, enquanto que apenas 4 são
crianças do sexo feminino.
A tabela 2 registra as informações sobre a idade e a escolaridade das
crianças.
Tabela 2. Idade e escolaridade das crianças submetidas ao psicodiagnóstico
Fonte: Fichas de triagem, referentes aos anos de 2003 e 2004, arquivadas junto aos prontuários de psicologia
breve infantil, encerrados em 2005.
Quanto à faixa etária das crianças atendidas em psicodiagnóstico, notam-
se duas crianças com cinco anos, duas com seis anos, oito crianças com sete anos;
cinco crianças com oito anos; uma criança com nove anos; duas com dez anos e
uma criança com idade de onze anos.
No que concerne à escolaridade, encontram-se seis crianças freqüentando
a educação infantil e as demais (15 crianças) no ensino fundamental, das quais 11
5
A diferença de centésimos, nesta e em outras tabelas, deve-se à aproximação feita na segunda
casa decimal.
Ensino
Fundamental 1 Fundamental 2
Idade
Educação
infantil
f p
1º ciclo
(1ªa 2ª series)
f p
2º ciclo
(3ª a 4ª séries)
f p
5ª série
f p
Total
f p
5 2 0,10 - - - - - - 2 0,10
6 2 0,10 - - - - - - 2 0,10
7 2 0,10 6 0,28 - - - - 8 0,38
8 - - 5 0,24 - - - - 5 0,24
9 - - - - 1 0,05 - - 1 0,05
10 - - - - 1 0,05 1 0,05 2 0,10
11 - - - - - - 1 0,05 1 0,05
Total 6 0,30 11 0,52 2 0,10 2 0,10 21 1,02
5
47
crianças estão no primeiro ciclo do ensino fundamental 1 (três na primeira e oito
na segunda série), duas no segundo ciclo do ensino fundamental 1 (uma na
terceira e uma na quarta série) e duas freqüentando o ensino fundamental 2, na
quinta série.
Registre-se que há uma predominância de crianças, na faixa etária entre
sete e oito anos, estudando no primeiro ciclo do ensino fundamental,
encaminhadas para realização de psicodiagnóstico – 11 crianças em uma
proporção de 0,52.
As informações das tabelas 1 e 2 serão retomadas mais à frente, ao se
analisar sua relação com os problemas das crianças, relatados na seção “Queixas”
dos relatórios finais.
Referente às características da família, levou-se em conta as informações
extraídas das “Fichas de triagem” e da seção “Histórico pessoal e familiar” dos
relatórios finais, relativas à renda mensal, ocupação dos pais e composição
familiar.
A renda familiar mensal encontrada nas “Fichas de triagem” foi registrada
em termos absolutos, ou seja, em Reais. Como o estudo abrangeu casos atendidos
em 2003 e 2004 e arquivados nos prontuários de psicoterapia encerrados em
2005, os valores declarados foram convertidos em unidades de salários mínimos
com base nas informações contidas na página eletrônica do Ministério do
Trabalho e Emprego.
48
Tabela 3. Renda mensal familiar.
Fonte: Fichas de triagem, referentes aos anos de 2003 e 2004, arquivadas junto
aos prontuários de psicologia breve infantil, encerrados em 2005.
Em termos gerais relativos à renda mensal, encontram-se quatro famílias
que têm renda no limite de dois salários mínimos; sete que recebem de 2,1 a 4
salários mínimos; três encontram-se na faixa de 4,1 a 6 salários mínimos; duas
que recebem entre 6,1 a 8 salários mínimos; duas ficam entre 8,1 a 10 salários
mínimos e duas famílias recebem, mensalmente, acima de 10 salários mínimos.
Em um dos prontuários, essa informação foi omitida.
A renda mensal familiar, registrada na tabela 3, indica uma concentração
maior de famílias que recebem, no máximo, quatro salários mínimos (11 das 21
famílias, ou uma proporção de 0,52). Vale destacar que, na faixa de até quatro
salários mínimos, a menor renda é de uma família que declara receber pouco
mais de um salário mínimo (1,25 salário mínimo); já a maior renda não chega a
quatro salários mínimos (3,95 salários mínimos).
Percebe-se que o perfil das famílias, no tocante à renda mensal familiar
(tabela 3), mostra que a maioria possui uma condição econômica precária, fator
social que interfere material e emocionalmente na família. Uma vez que as
necessidades dos familiares deixam de ser atendidas por conta de limitações
econômicas, gera, certamente, ansiedades que irão mediar os relacionamentos dos
membros da família. Tais condições dificilmente podem ser superadas pelos
Renda mensal Freqüência Proporção
Até 2 salários mínimos 4 0,19
2,1 a 4 salários mínimos 7 0,33
4,1 a 6 salários mínimos 3 0,14
6,1 a 8 salários mínimos 2 0,10
8,1 a 10 salários mínimos 2 0,10
Acima de 10 salários mínimos 2 0,10
Não consta 1 0,05
Total 21 1,01
49
indivíduos, no caso os pais, pois são determinadas historicamente e têm relação
direta com o modo de produção, ou seja, com o trabalho.
Marx e Engels (1998)
6
já mostraram que as condições materiais presentes
na relação capital e trabalho, recrudescem as desigualdades sociais e legitima o
poder do capital, fazendo com que os trabalhadores vivam em situação cada vez
mais miserável, enquanto os capitalistas aumentam seu domínio. Nessa relação de
dominação, as desigualdades e injustiças sociais existentes desde as sociedades
anteriores não só foram mantidas, como também outras foram criadas, próprias da
sociedade industrial.
A injustiça existente na relação patrão e empregado ficou mascarada no
contrato livre de trabalho, pois na medida em que as duas partes envolvidas na
relação trabalhista são consideradas livres,
[...] a obrigação de entrar nesta relação atua de forma diferente. O
trabalhador é pobre e tem contra si toda a concorrência de sua própria
classe, na escala nacional e na internacional. Atrás de cada indivíduo
estão diretamente a fome e a miséria. Seu parceiro de contrato, ao
contrário, dispõe não só de meios de produção, de visão, de influencia
sobre o governo e de todas as possibilidades da propaganda, mas
também de crédito. (Horkheimer, 2003, p. 205)
A diferença entre rico e pobre é condicionada socialmente, no entanto se
apresenta ideologicamente como natural e necessária, como se não hovesse nada a
ser feito. No contrato de trabalho o empregado se sujeita à condições
estabelecidas pelo patrão e reconhece a posição de mando do empregador
(Horkheimer, 2003).
6
Publicado originalmente em 1848
50
A ocupação dos pais é mostrada na tabela 4, e ajuda a refletir sobre as
condições econômicas das referidas famílias. Para efeito de tabulação, as
ocupações dos pais e das mães das crianças foram categorizadas de acordo com a
Classificação Brasileira de Ocupações, de 2002. de trabalho” (CBO 2002).
Tabela 4. Pais e mães das crianças, segundo a ocupação.
Fonte: Fichas de triagem, referentes aos anos de 2003 e 2004, arquivadas junto aos
prontuários de psicologia breve infantil, encerrados em 2005.
No que se refere à ocupação dos pais, na categoria Dirigentes de
empresas, encontra-se um exercendo as atividades de comerciante; dois na
categoria Profissionais das ciências, sendo um deles engenheiro e o outro
advogado; um, exercendo a função de investigador de polícia, encontra-se na
Ocupação
Pais
f p
Mães
f p
Dirigentes de empresas.
1 0,05
- -
Profissionais das ciências e das
artes.
2 0,10
- -
Técnicos de nível médio.
1 0,05
- -
Trabalhadores de serviços
administrativos.
3 0,14
5 0,24
Trabalhadores dos serviços,
vendedores do comércio em
lojas e mercados.
5 0,24
6 0,28
Trabalhadores de produção de
bens e serviços industriais.
6 0,28
- -
Trabalhadores de reparação e
manutenção.
1 0,05
- -
Dona de casa.
- -
8 0,38
Aposentado (a).
- -
1 0,05
Sem informação.
2 0,10
1 0,05
Total
21 1,01
21 1,00
51
categoria Técnicos de nível médio; três na categoria Trabalhadores de serviços
administrativos, com um almoxarife, um assistente financeiro e um caixa; cinco
na categoria Trabalhadores dos serviços, vendedores do comércio em lojas e
mercados, sendo dois cabeleireiros, um garçom, um porteiro e um camelô; seis
na categoria Trabalhadores de produção de bens e serviços industriais, com um
pedreiro, um pintor de automóveis, um soldador, um serralheiro e dois
motoristas; na categoria Trabalhadores de reparação e manutenção encontra-se
um que trabalha como mecânico. Dois prontuários omitiram a ocupação do pai.
Percebe-se uma concentração de ocupação de pais nas categorias
Trabalhadores dos serviços, vendedores do comércio em lojas e mercados e
Trabalhadores de produção de bens e serviços industriais, somando, as duas, 11
pais ou uma proporção de 0,52.
No tocante à ocupação das mães, cinco estão na categoria Trabalhadores
de serviços administrativos, sendo uma auxiliar administrativa, uma auxiliar de
escritório, uma escrituraria, uma operadora de cobrança e uma encarregada de
reservas; seis encontram-se na categoria Trabalhadores dos serviços, vendedores
do comércio em lojas e mercados, com uma empregada doméstica; uma
garçonete; uma auxiliar de limpeza; uma cabeleireira; uma passadeira e uma
cuidadora de crianças; na categoria Dona de casa, encontram-se oito mães; na
categoria Aposentado tem-se uma mãe. Um prontuário omitiu a ocupação da
mãe.
É notória a predominância de mães registradas na categoria Dona de casa
( 8 mães ou uma proporção de 0,38). Vale observar que uma delas, formada em
serviço social, optou por não trabalhar fora de casa. Já as 11 mães (proporção de
0,52) que desenvolvem atividades remuneradas, têm suas ocupações registradas
52
em apenas duas categorias: cinco (proporção de 0,24) na categoria
Trabalhadores de serviços administrativos e seis (proporção de 0,28) na
categoria Trabalhadores dos serviços, vendedores do comércio em lojas e
mercados. Há de se considerar ainda que, somando-se as funções de dona-de-
casa, empregada doméstica e cuidadora de crianças, tem-se um total de 10 mães
(em uma proporção de 0,48) exercendo suas atividades em ambiente doméstico.
Tal situação parece repor a imagem da mãe como aquela responsável pelo lar,
ainda que remunerada para tal.
As informações relativas à ocupação dos pais e das mães mostradas na
tabela 4 revelam que as atividades desenvolvidas, na maioria dos casos, sugerem
não possibilitar uma transformação nas condições econômicas das famílias. O
contrato de trabalho, quando existe, apenas reafirma a falsa liberdade que o
trabalhador possui em relação ao trabalho, qual seja a de trabalhar ou morrer à
míngua (Marcuse, 1967).
Outro fator das famílias estudadas na presente pesquisa foi a sua
composição. Em primeiro lugar, verificou-se, com a leitura das entrevistas de
triagem e anamnese, se os pais biológicos permaneciam casados ou estavam
separados
7
. Em seguida, foram verificadas as formas com que as famílias se
estruturam, tendo em vista a vinculação entre os participantes de cada família.
Na tabela 5 estão registrados os resultados referentes aos vínculos entre
os pais biológicos da criança, ou seja, se são casados ou separados.
7
Para efeito de simplificação do texto, não foi considerado o tipo de união legal dos pais, ou seja,
se o casamento se deu oficialmente ou se os pais simplesmente foram morar juntos. O mesmo
ocorre na situação de separação, que não se considerou o fato de ter sido oficializada ou não.
Dessa forma, doravante serão adotados simplesmente os termos “casado (a)” e “separado (a)”.
53
Tabela 5. Vínculos dos pais biológicos das crianças.
Fonte: Seção “Histórico pessoal e familiar” dos relatórios finais de psicodiagnóstico
realizados no segundo semestre de 2003 e no ano de 2004, arquivados junto aos
prontuários de psicologia breve infantil, encerrados em 2005.
Onze crianças têm os pais casados e dez contam com seus pais separados.
Com relação às 11 famílias em que a mãe e o pai da criança moram juntos, as
situações específicas das famílias são as seguintes: em quatro casos o pai já
possuía um ou mais filhos antes do atual casamento; em um caso o pai já havia
sido casado, mas não possuía filhos do casamento anterior. Nos outros seis
prontuários, verifica-se que o casal de pais compartilha da primeira experiência
conjugal.
No que se refere às dez famílias em que os pais da criança são separados,
nota-se que em sete delas a criança permaneceu morando com a mãe; apenas uma
criança permaneceu com o pai. Havia, ainda, uma criança adotada por uma
mulher que não tinha qualquer parentesco com a família. Tratava-se de uma
senhora que havia sido contratada para cuidar da criança, mas com o tempo
passou a criá-la como filha. A mãe biológica, que desconhecia o pai da criança,
entregou a guarda definitiva da filha para essa mulher. Outro fato a se observar é
que, em três famílias, os pais declararam estar em um novo casamento, dentre as
quais se encontra aquela do pai que ficou com a criança.
Com o intuito de melhor detalhar a composição das famílias estudadas,
elaborou-se o quadro 1, com as informações de cada família no tocante às pessoas
que compartilham a casa, além das condições de vínculos entre os pais da criança
submetida ao psicodiagnóstico e desta com os irmãos.
Vínculos Freqüência Proporção
Casados 11 0,52
Separados 10 0,48
Total 21 1,00
54
Quadro 1 – Detalhamento das famílias das crianças atendidas em psicodiagnóstico
Prontuário Vínculo entre os
genitores da criança
Pessoas que residem na casa Informações complementares
1 Casados
A criança mora com seus pais e
um irmão mais velho
O pai tem dois filhos com outra
mulher, sendo que um deles foi
assassinado.
2 Casados
A criança mora com os pais e o
irmão mais velho
O pai tem dois filhos com outra
mulher
3 Separados
A criança mora com a mãe e um
irmão mais novo
------------
4 Casados
A criança mora com os pais A criança é filho único
5 Casados
A criança mora com os pais A criança é filho único. Dividem a
casa com a tia materna, seu tio e
seu primo.
6 Separados
A criança mora com a mãe,
padrasto e a filha da mãe com o
padrasto.
O pai da criança foi assassinado
tempos depois de separar-se da
mãe.
7 Casados
A criança mora com o pai, a mãe
e duas irmãs mais velhas.
O pai já foi casado mas não teve
filhos no casamento anterior.
8 Casados
A criança mora com os pais A criança é filho único
9 Separados
A criança mora com a mãe e dois
irmãos mais velhos, por parte de
mãe
A criança tem uma irmã de 10
anos, por parte de pai.
10 Separados
A criança mora com a mãe, o
padrasto, um irmão por parte de
pai e mãe e um irmão por parte
de mãe e do padrasto.
O padrasto tem uma filha do
primeiro casamento, que fica com
a família da criança nos finais de
semana
11 Separados
A criança mora com a mãe, com
uma irmã de 3 anos, com os avós
maternos e sua tia materna.
O tio materno, que também
morava na casa e tinha estreito
vínculo com a criança, foi
assassinado.
12 Casados
A criança mora com os pais e
com uma irmã mais nova
O pai tem uma filha de 11 anos,
fruto do primeiro casamento.
13 Casados
A criança mora com os pais O pai já foi casado e tem 3 filhos
do primeiro casamento
14 Separados
A criança mora com a mãe
adotiva, a irmã da mãe adotiva e
dois sobrinhos (adultos) da mãe
adotiva
A mãe, que desconhecia o pai da
filha, entregou a criança em
adoção a uma pessoa que não
tinha parentesco com a família.
15 Separados
A criança mora com seu pai e
com a companheira de seu pai.
A criança tem três irmãos por
parte de mãe e do atual
companheiro desta.
16 Casados
A criança mora com os pais e
com uma irmã mais nova
------------
17 Separados
A criança mora com a mãe e com
a avó materna
O pai não tem companheira
18 Casados
A criança mora com os pais e
dois irmãos mais velhos
------------
19 Separados
A criança mora com a mãe O pai foi assassinado
20 Casados
A criança mora com os pais e
com um irmão mais velho
------------
21 Separados
A criança mora com a mãe O pai não tem companheira
atualmente, mas já teve.
Fonte: Seção “Histórico pessoal e familiar” dos relatórios finais de psicodiagnóstico realizados no segundo
semestre de 2003 e no ano de 2004, arquivados junto aos prontuários de psicologia breve infantil, encerrados
em 2005.
55
Nota-se que a maior parte dos prontuários estudados na presente pesquisa
diz respeito a famílias formadas por uma constelação de relações. Somando-se as
quatro famílias em que os genitores são casados (prontuários 1, 2, 12 e 13), cujos
pais já tinham filhos de um relacionamento anterior, às três em que os genitores
são separados (prontuários 6, 10 e 15), mas tinham se casado novamente, têm-se
um total de sete famílias reconstituídas
8
. Pode-se pensar, assim, nas várias
possibilidades de vinculação da criança, seja com os novos companheiros dos
pais (padrastos em seis casos e madrasta em um caso), seja com os filhos dos
pais, gerados em outros relacionamentos conjugais - quando a criança possui
irmãos dos mesmos genitores ou quando têm irmãos apenas por parte de mãe
(prontuário 15) ou por parte de pai (prontuários 1, 2, 9, 10, 12 e 13).
Outro fator que pode ser observado com a exposição do detalhamento das
famílias no quadro 1 é a morte, por assassinato, dos pais de duas crianças
(prontuários 6 e 19) e do tio de uma das crianças, que tinha um forte vínculo com
o sobrinho (prontuário 11).
As informações descritas no quadro acima fornecerão subsídios para a
discussão posteriormente apresentada no presente estudo.
Problemas relativos à criança, relatados pelos familiares ou responsáveis.
A seção “Queixa” dos relatórios finais registra que as demandas dos
serviços da clínica-escola são provenientes de problemas apresentados pela
criança no convívio com a família e com a escola. O referido material revelou
8
O termo “família reconstituída” foi adotado no presente texto para descrever as famílias
formadas por cônjuges que já tiveram um ou mais casamentos anteriores. A opção por esse termo
se dá pelo fato dele ser utilizado por profissionais da área de psicologia e, embora tenha como
base a família nuclear, considerou-se adequado ao contexto em que se inscreve.
56
também os motivos que levaram as famílias a procurar pelos serviços
psicológicos da clínica-escola. As razões foram consideradas, nesta pesquisa, sob
dois aspectos: origem da procura pelo serviço e problemas da criança relatados
pelos familiares ou responsáveis.
A tabela 6 mostra, segundo o relato dos pais ou responsáveis pela criança,
os locais em que são observados os problemas com a criança.
Tabela 6. Local de ocorrência dos problemas apresentados pelas crianças,
registrados nas queixas dos relatórios finais de psicodiagnóstico.
Fonte: Seção “Queixa” dos relatórios finais de psicodiagnóstico realizados no segundo
semestre de 2003 e no ano de 2004, arquivados junto aos prontuários de psicologia breve
infantil, encerrados em 2005
Dez, dos 21 psicodiagnósticos consultados são provenientes de situações
ocorridas com a criança na residência e na escola; sete casos são provenientes de
situações ocorridas com a criança apenas na residência. Em quatro relatórios os
problemas são associados a situações ocorridas com a criança somente na escola.
A procura pelos serviços da clínica-escola foi originada, no que se refere à
amostra desta pesquisa, de três fontes: encaminhamento pela escola, busca
espontânea da família e indicada por profissionais da saúde. No encaminhamento
da escola foram incluídos aqueles realizados por professores, coordenadores
pedagógicos ou diretores de escolas. Como busca espontânea considerou-se todas
aquelas realizadas por iniciativa dos próprios familiares da criança. Como
indicação de profissionais da saúde, os encaminhamentos realizados por eles,
quando, ao atenderem a criança, encaminharam o caso à ajuda psicológica.
Local Freqüência Proporção
Na residência e na escola 10 0,48
Na residência 7 0,33
Na escola 4 0,19
Total 21 1,00
57
A tabela 7, apresentada abaixo, registra a origem da busca pelo serviço da
clínica-escola, indicando a freqüência de relatórios que registram tal informação e
a proporção em relação ao total de prontuários investigados.
Tabela 7. Busca pelo serviço psicológico.
Fonte: Fichas de triagem, referentes aos anos de 2003 e 2004, arquivadas junto aos
prontuários de psicologia breve infantil, encerrados em 2005.
Foram encontrados 12 casos em que a criança foi encaminhada, para o
serviço da clínica-escola, pela escola. Em seis prontuários a busca pelo serviço
foi espontânea; em três casos houve a indicação de profissionais da saúde, sendo
um encaminhado por neurologista, um por pediatra e um por fonoaudióloga.
Assim, percebe-se uma concentração de casos encaminhados pela escola, cuja
freqüência é maior que a soma por procuras espontâneas e por encaminhamento
de profissionais da saúde.
Com relação aos problemas relativos às crianças, relatados pelos pais ou
responsáveis e registrados nos relatórios finais, notou-se que a maioria dos
relatórios (19) apresentavam dois ou mais problemas com a criança (em um
relatório, por exemplo, estão registrados 11 problemas). Tais problemas são
apresentados na seção “Queixa” por meio de frases ou palavras que fornecem
indicadores de seu conteúdo. Convencionou-se, portanto, denominá-los como
“Indicadores de problemas”, no lugar de simplesmente “Problema apresentado”,
uma vez que pareceu ser uma expressão mais precisa.
Busca pelo serviço psicológico Freqüência Proporção
Por encaminhamento da escola 12 0,57
Espontânea 6 0,28
Indicação de profissionais da saúde 3 0,14
Total 21 0,99
58
Considerando-se os 21 relatórios finais estudados, obteve-se os seguintes
indicadores de problemas registrados na sessão “Queixa”: inquietação, distração,
perturbação dos colegas durante a aula; desorganização, desobediência, recusa a
fazer deveres escolares, agitação, falta de interesse, furtos, mentiras,
agressividade, dificuldade de atenção, pouca dedicação aos estudos, travessuras
na escola, falta de concentração, disposição apenas para brincar, guardar para si
os sentimentos, tristeza, quietude, falar pouco, apatia, não copiar matéria da
lousa, dificuldade em comunicar-se, não falar a respeito de si próprio, insônia,
enurese noturna, gagueira e problemas na fala, dificuldade de relacionamento,
relacionamento conflituoso e dificuldade de contato físico, não prestar atenção à
aula, pegar e tocar nos órgãos genitais dos colegas, dificuldades para ir à escola,
nervosismo, baixo rendimento escolar, não saber ler e escrever, dificuldade para
fazer as lições de casa, não acompanhar a turma (classe escolar), não absorver o
que é ensinado, passar para a série seguinte sem ter aprendido nada. Em alguns
relatórios finais, o problema é descrito genericamente como “dificuldade de
aprendizagem” ou “problemas de aprendizagem”. Muitos indicadores se
repetiram em um ou mais relatórios, sendo que a soma totalizou 78 indicadores.
Dada a quantidade encontrada, decidiu-se por agrupar os indicadores de
problemas em categorias. Para isso, considerou-se o catálogo de queixas citado
por Silvares (1993), formulado a partir das declarações dos responsáveis pelas
crianças. O catálogo abrange 77 categorias comportamentais diferentes,
mutuamente exclusivas e distribuídas em oito grupos, a saber:
1) Distúrbios específicos do desenvolvimento e das habilidades
escolares; 2) Distúrbios de comportamentos explícitos; 3) Distúrbios de
59
comportamentos não explícitos; 4) Distúrbios de alimentação e sono;
5) Distúrbios de identidade; 6) Tiques; 7) Distúrbios de expulsão e 8)
Distúrbios orgânicos (Silvares, 1993, p. 89)
A tabela 8 apresenta a distribuição dos indicadores de problemas, de
acordo com o Catálogo de queixas formulado por Silvares, em números absolutos
e na proporção em relação ao total de indicadores encontrados (78).
Tabela 8. Indicadores de problema apresentados nos relatórios finais.
Fonte: Seção “Queixas” dos relatórios finais, referentes aos anos de 2003 e 2004, arquivados
junto aos prontuários de psicologia breve infantil, encerrados em 2005.
A tabela 8 mostra que o total de 78 indicadores de problemas encontrados
nos relatórios finais estão distribuídos da seguinte maneira: 18 relacionados a
distúrbios do desenvolvimento e das habilidades escolares; 41 dizem respeito a
distúrbios de comportamentos explícitos; 12 se referem a distúrbios de
comportamentos não explícitos; um se relaciona com distúrbios de alimentação e
sono; um ao distúrbio de identidade; três indicadores dizem respeito a distúrbios
de tique e dois se referem a distúrbio de expulsão.
Indicadores Freqüência Proporção
Distúrbios específicos do desenvolvimento e das
habilidades escolares
18 0,23
Distúrbios de comportamentos explícitos 41 0,53
Distúrbios de comportamentos não explícitos 12 0,15
Distúrbios de alimentação e sono
1 0,01
Distúrbios de identidade
1 0,01
Distúrbios de tique
3 0,04
Distúrbios de expulsão
2 0,02
Total 78 0,99
60
É possível tecer algumas considerações a respeito das informações obtidas
no que concerne aos problemas relatados pelos familiares, os quais geraram o
psicodiagnóstico. Chama a atenção a quantidade de indicadores identificados
como problemas relacionados a comportamento. Ao se somar os indicadores das
categorias que agrupam os problemas das crianças relacionados ao
comportamento, ou seja, à categoria Distúrbios de comportamentos explícitos e
Distúrbios de comportamentos não explícitos, encontra-se um total de 53
indicadores, ou uma proporção de 0,68, que ultrapassa a soma dos demais que,
juntos, atingem o total de 25, ou uma proporção de 0,32. Nota-se que o
comportamento considerado inadequado é compreendido como um problema
psicológico, como o próprio Catálogo de Queixas de Silvares deixa explícito.
Considerando-se as informações registradas na tabela 1 (p. 42) que
mostram uma concentração expressiva de meninos encaminhados para serem
submetidos ao psicodiagnóstico (17 prontuários ou proporção de 0,81) e a
incidência de problemas relacionados ao comportamento, pode-se inferir que
existe uma questão de gênero, já que os meninos manifestam com mais
facilidade seus comportamentos, considerados inadequados aos padrões sociais
estabelecidos. Dito de outra forma, pode-se pensar que muito embora se observe
um movimento da sociedade em direção a uma relativa igualdade entre os sexos,
parece que as meninas continuam sendo criadas para a obediência e os meninos
para as aventuras, ainda que estas afrontem as normas estabelecidas.
Outro fator a ser considerado é relativo à busca pelo atendimento.
Conforme pode ser observado na tabela 7 (p. 53), a maioria dos casos (12
relatórios ou uma proporção de 0,57) foi encaminhado pela escola, muito embora
se possa perceber que os resultados da tabela 6 (p. 53) mostram que os
61
problemas relativos às crianças manifestam-se, segundo relatos dos pais ou
responsáveis, na residência e na escola.
Pode-se refletir sobre o papel da escola na formação da criança e, no caso,
como reguladora do comportamento. Não se trata de negar a sua importância na
contribuição para que a criança se situe no mundo em que vive, mas refletir sobre
o que é possível, em termos de educação, além da adaptação:
A educação seria impotente e ideológica se ignorasse o objetivo de
adaptação e não preparasse os homens para se orientarem no mundo.
Porém ela seria igualmente questionável se ficasse nisto, produzindo
nada além de well adjusted people, pessoas bem ajustadas, em
conseqüência do que a situação existente se impõe precisamente no
que tem de pior. (Adorno, 2003, p. 143)
Quando solicita à família para que encaminhe a criança a um tratamento,
visando apenas o ajuste do aluno ao padrão estabelecido de comportamento, a
escola assume um caráter ideológico de sustentação do sistema, que exige
indivíduos obedientes às regras impostas. A idéia que parece estabelecida é a de
que os problemas de ajustamento de comportamentos são de ordem psicológica e
já que não foram solucionados pela família, devem ser resolvidos com
intervenção psicoterapêutica ou com ajuda do psicólogo para orientação familiar.
62
4.2. A compreensão da participação da família nos problemas psicológicos da
criança, indicada nos psicodiagnósticos.
Notou-se em todos os relatórios que as famílias são consideradas
inadequadas no trato com a criança. Essa inadequação está relacionada, em
maior ou menor grau, aos problemas descritos na sessão “Queixa” dos relatórios
finais. Em alguns relatórios a família é compreendida como determinante dos
problemas psicológicos da criança; em outros, é vista como participante do
problema associada a outros fatores, identificados nos resultados obtidos no
psicodiagnóstico. A tabela 9 mostra a freqüência de relatórios em que se que
registram tais informações e a proporção em relação ao total de relatórios
pesquisados.
Tabela 9. Participação da família atribuída no psicodiagnóstico
quanto às causas do problema psicológico das crianças.
Participação atribuída Freqüência Proporção
Associada a outro fatores 12 0,57
Fator principal 9 0,43
Total 21 1,00
Fonte: Seção “Conclusões” dos relatórios finais de psicodiagnóstico realizados no
segundo semestre de 2003 e no ano de 2004, arquivados junto aos prontuários de
psicologia breve infantil, encerrados em 2005.
Em 12 psicodiagnósticos as famílias foram consideradas responsáveis,
associadas a outros fatores, pelos problemas psicológicos das crianças.
Apresentam como principais características a negligência com o filho,
dificuldades pessoais dos pais no trato com a criança, relação de dependência do
filho com a mãe, falta de proteção dos pais, pouco contato dos pais com o filho
quando bebê, ambiente familiar proporcionando comportamento infantilizado da
criança, falta de solicitações dos familiares que permitam o desenvolvimento da
63
criança, dificuldades na solução do Complexo de Édipo, separação dos pais,
pouco apoio dos pais para o estabelecimento de relações sociais da criança e
reforço da mãe para o comportamento infantilizado da criança.
Nos outros nove psicodiagnósticos as famílias foram consideradas como
fator principal dos problemas apresentados pelas crianças. As seguintes
características principais registradas nos relatórios foram: rejeição e abandono
dos pais em relação à criança, relacionamento simbiótico entre mãe e filha,
condutas inadequadas dos pais na resolução do complexo de Édipo, questões
pessoais dos pais interferindo no relacionamento com a criança, conflitos
familiares, relação agressiva do pai para com o filho e relação educacional e
afetiva regredidas.
Procurou-se compreender como as famílias foram avaliadas para que o
psicodiagnóstico chegasse a esse resultado recorreu-se novamente ao exame da
seção “Conclusões” dos relatórios finais. Verificou-se que as avaliações das
famílias registradas nos psicodiagnósticos levam em conta, principalmente, o
vínculo entre os membros da família e as condutas dos pais com relação aos
cuidados dispensados à criança. Organizou-se, então, duas categorias
denominadas de “Vínculos familiares” e “Cuidados com a criança”. As leituras
foram retomadas, agora com o objetivo de se conhecer, por meio de indicadores,
como os vínculos familiares e os cuidados com as crianças foram interpretados e
apresentados nos relatórios finais de psicodiagnóstico.
Os indicadores que avaliam os vínculos familiares nos psicodiagnósticos
se referem ao emprego de termos que sugerem tanto os comportamentos de
interação entre os familiares quanto os sentimentos dos membros familiares entre
si. Já os indicadores que avaliam os cuidados dos familiares com a criança se
64
referem à descrição de condutas dos pais implicadas no desenvolvimento, na
proteção e no sentimento de segurança da criança.
A seguir são apresentados e discutidos os resultados obtidos. A fim de
análise, foram extraídos fragmentos contidos nos textos dos relatórios finais
9
.
A. Vínculos familiares
A análise dos vínculos familiares leva em conta a maneira como o
relatório registra o relacionamento entre os membros da família. Foram
considerados, para efeito de indicadores, os vínculos entre: a criança e a mãe; a
criança e o pai; a criança, o pai e a mãe; a criança e a família; a criança e os
irmãos. O critério adotado para a inclusão dos indicadores foi a menção explícita
de relacionamentos e os sentimentos que tanto a criança quanto os familiares
nutrem uns pelos outros.
Pôde-se perceber nas leituras dos relatórios, que o desenvolvimento
adequado de vínculos entre os familiares foi entendido como dependente de
condutas e sentimentos dos membros da família. A satisfação no relacionamento
familiar estaria condicionada à capacidade dos indivíduos se ajustarem ao modelo
considerado adequado de vinculação.
A tabela 10 mostra os indicadores de vínculos familiares contidos nos
relatórios. Foram consideradas as diversas formas de vínculos da criança e os
demais membros da família seja com um único membro, como no caso do
9
Os fragmentos retirados dos relatórios tiveram seus textos mantidos tal como foram registrados,
procedendo-se apenas as alterações necessária para a manutenção do anonimato das pessoas
envolvidas. Assim, os nomes, quando constavam nos textos, foram substituídos por termos que
pudessem identificar sua posição na família, como por exemplo: pai, mãe, filho, criança e irmão.
65
vínculo com sua mãe ou com seu pais, ou ainda com mais de um componente da
família, como é o caso dos vínculos com a família, com o pai e a mãe ou então
com os irmãos. Considerou-se, para se efetuar tal distribuição, a forma como
estava relatado no relatório. O vínculo entre a criança e o pai e mãe se distingue
do vínculo da criança com a família. No primeiro caso, o vínculo se refere apenas
à criança e ao casal de pais, enquanto que, no segundo, a vinculação é referente à
criança e à sua família, incluindo-se outros membros além do pai e da mãe, por
exemplo, os irmãos, avós e tios.
Tabela 10. Vínculos entre a criança e seus familiares.
Fonte: Seção “Conclusões” dos relatórios finais de psicodiagnóstico
realizados no segundo semestre de 2003 e no ano de 2004, arquivados
junto aos prontuários de psicologia breve infantil, encerrados em 2005
A tabela 10 mostra que o total de 33 indicadores de vínculos está dividido
da seguinte maneira: 11 relacionados ao vínculo da criança e sua mãe; quatro
dizem respeito aos vínculos da criança com seu pai; nove se referem a vínculos
entre a criança, sua mãe e seu pai; sete se relacionam aos vínculos entre a criança
e a família e dois dizem respeito aos vínculos entre a criança e seus irmãos.
A concentração de indicadores de vínculos da criança com a mãe pode
indicar que, pelo fato de geralmente a criança ser acompanhada por ela durante o
atendimento, tal vínculo fique mais aparente. Contudo, considerando que as
informações contidas no relatório são referentes às entrevistas e outros
Vínculos Freqüência Proporção
Mãe 11 0,33
Pai 4 0,12
Mãe e pai 9 0,27
Família 7 0,21
Irmãos 2 0,06
Total 33 0,99
66
instrumentos psicológicos, pode se inferir que mais informações sobre o vínculo
da criança com o pai poderiam ser coletadas, pois mesmo na ausência física deste
seria possível se investigar sobre seu relacionamento com o filho.
A seguir, os tipos de vínculos expressos na tabela 10 serão descritos e
analisados um a um, bem como o relatório no qual se encontrou o indicador.
Note-se que a numeração do relatório segue a ordem do quadro 1 da página 50.
Vínculo da criança com a mãe
O relatório 19 registra que a criança encontra dificuldades atinentes ao
complexo de Édipo por conta problemas vividos em sua família. Relata que a
criança apresenta conflitos na esfera sexual, justificando que, com a morte do pai,
as fantasias edípicas de concretização do desejo incestuoso são alimentadas pela
situação familiar: “[...] a mãe chega a verbalizar para a estagiária que agora ele é
o homenzinho da casa. O menino é tratado pela mãe como se fosse seu parceiro,
inclusive com quem divide a cama de casal para dormir”. O vínculo entre a mãe e
seu filho é interpretado como oriundo de uma confusão de papéis. Isso é
percebido na interpretação que a mãe trata o filho como se fosse o parceiro com
quem divide a cama. A família parece ser considerada fechada, cujos vínculos
estabelecidos são gerados apenas por fatores que envolvem a relação entre mãe e
filho, desconsiderando outros fatores que extrapolam a órbita das relações
familiares, principalmente o fato de que a morte do pai foi ocasionada por
assassinato.
No relatório 5 é afirmado que a criança valoriza muito sua mãe, embora
sinta-se inferiorizada em relação a ela. Por isso, necessita chamar a atenção e
67
exibir-se para agradar a mãe e as outras pessoas. Tal comportamento teria como
objetivo compensar um sentimento de desvalia. A interpretação dada pelo
psicodiagnóstico, segundo a qual a criança sente-se inferiorizada perante a mãe,
parece determinar a maneira com que o vínculo entre elas se estabelece. Há uma
relação de causa e efeito, de tal forma que a criança procura agradar a mãe para
compensar o sentimento de desvalia.
Houve um caso (relatório 1) em que é apresentada uma “ligação muito
forte” da criança com sua mãe, “buscando constantemente apoio e todo tipo de
afeto”. Nota-se que o fator que favorece a vinculação com a mãe foi interpretado
como sendo proveniente de uma demanda interna da criança quanto à necessidade
de apoio e afeto.
Os demais indicadores de vínculos da criança com a mãe (9 relatórios)
estão relacionados a aspectos pessoais da mãe interferindo no vínculo com a
criança. Como se nota nas transcrições dos fragmentos extraídos do relatório que
segue, parece que a interpretação dada pelo diagnóstico é que aspectos pessoais
da mãe interferem no exercício apropriado de seu papel: para realizá-lo de
maneira correta, ela deveria adequar seus sentimentos e comportamentos
esperados para sua função materna.
Nas três situações descritas a seguir, se percebe a interpretação de que as
dificuldades da mãe são absorvidas diretamente pela criança. Tal interpretação
sugere a idéia de um sistema de trocas, em que os elementos vinculados
transferem, uns para os outros, características individuais. O relatório 2 faz
referência ao sentimento de rejeição da mãe pelo filho. Além disso, segundo o
relatório, a genitora faz comparações entre os filhos, sendo que a criança
submetida ao psicodiagnóstico é sempre preterida. De acordo com o registrado, a
68
criança sente a necessidade de agradar a mãe o tempo todo, pois a percebe como
dominadora, o que lhe causa restrições. O relatório continua afirmando que a
rejeição da mãe para com a criança:
[...] pôde ser notado durante as entrevistas e também quando a mãe se
questionava se o fato de ter engravidado enquanto amamentava o filho
mais velho e ter desgostado da notícia da gravidez, representaria uma
rejeição à criança, além de dizer que esta nasceu magrinha e feinha e
que ela pensou que o filho não iria “vingar”.
O relatório 6 registra que a mãe sente culpa pelos problemas do filho. Ela
oculta da criança o fato de o pai ter sido assassinado, mas, conforme o relatório,
tem consciência de que o filho saberá em algum momento. A mãe entende que
seria melhor ela contar a verdade. De acordo com o relatório, a família passa por
uma situação propícia para que a mãe conte ao filho o que realmente aconteceu,
mas, para isso, ela deve antes resolver as dificuldades pessoais em relação à
morte do ex-marido:
Sabe também que o momento que está vivendo, segundo seus próprios
relatos, é um momento mais equilibrado, pois já constituiu outra
família, o casal está empregado e com situação financeira estável, o
filho já tem quase nove anos e que é de grande importância e auxílio, o
fato de seu atual companheiro ser bastante próximo do menino e se dar
muito bem com ele. Portanto, o momento parece propício para que
aprenda como lidar com a situação e sentir-se mais apta e tranqüila
para conversar com o filho. Mas é de grande importância que antes
resolva as dificuldades pessoais que talvez ainda tenha em referência à
morte de seu ex-marido.
69
O menino, segundo o relatório, parece estar confuso, pois de certa forma
percebeu algo estranho no relato da própria mãe. Isso teria dificultado o
estabelecimento de um vínculo de maior confiança entre a mãe e o filho. Na
conclusão do relatório final, o estagiário deixa claro que a forma com que a mãe
poderia melhorar o vínculo de confiança com a criança seria contando a verdade
sobre o assassinato de seu pai. Não parece que os argumentos da mãe, que se
nega a contar a verdade com receio de revoltar o filho, sejam levados em
consideração. É como se a ela devesse superar suas dificuldades, seus receios,
para então assumir uma postura que poria fim a confiança abalada que
supostamente desenvolveu com a criança.
O relatório 8 afirma que mãe idealizou muito o filho. Segundo os
registros, a criança absorveu todas as expectativas, ansiedades, medos e
inseguranças da mãe, tornando-se assustada, confusa e sem saber o que deve ou
não fazer: “[...] sem saber quais são os seus limites, um dos jeitos que ele
encontrou de manifestar isso é o cocô.”. Seguindo a mesma linha de
entendimento, no relatório 9 há uma observação de que a mãe projeta na filha
questões de ordem pessoal, difíceis de serem resolvidas.
Conforme relatado no relatório 21, a criança cumpre o papel de elo entre a
mãe e seu ex-marido. A mãe, de acordo com os registros, deposita no filho as
frustrações de seu casamento e projeta nele os desejos impedidos no transcorrer
de sua vida. Segundo consta no relatório, com a separação do casal “a criança
internalizou uma figura materna fálica, pois cabe à mãe a responsabilidade da
manutenção doméstica em dupla jornada”. Nota-se que, ao se utilizar do termo
“figura materna fálica”, o relatório sugere que a mãe cumpre com a função do
pai, que não mora com a família em virtude da separação. Parece que a
70
interpretação do estagiário leva em conta um modelo de família para se orientar.
Tal modelo seria composto por pessoas ocupando funções determinadas , mas na
ausência de uma dessas pessoas, ocorreria a substituição.
A dificuldade da mãe em assumir uma postura adulta e independente pôde
ser notada no relatório 11. Segundo consta, a mãe da criança vive em um
ambiente onde tem que dar conta de ser mãe e filha ao mesmo tempo. Além
disso, ela não consegue, de acordo com o relatado, administrar essa situação de
forma que possa “[...] ter um espaço para si mesma. Esse contexto desencadeia
certa ansiedade, com a qual ela encontra dificuldade em lidar, sentindo-se tensa e
sobrecarregada. A mãe não assumiu uma postura adulta e independente”.
Contudo, conforme descrito, apesar de a criança perceber a mãe como sendo uma
pessoa que não tem o suficiente para ela, “[...] tem uma ligação afetiva positiva
com a mesma.”. O registro parece insinuar que a mãe, ao não cumprir com um
papel esperado, ou seja, o de adulta e independente, colocaria em risco sua
vinculação com a criança. Parece que se espera que a afetividade da criança esteja
vinculada àquilo que a mãe pode oferecer.
O relatório 17 registra que a mãe e a filha mantêm uma relação
simbiótica que poderá ser prejudicial para ambas no futuro. Segundo consta no
relatório, a mãe vive intensamente para a filha e vice-versa. “Atualmente a
criança já sofre ao ter que se separar da mãe, mesmo que seja por apenas algumas
horas e sabendo onde esta se encontra.”. A relação estabelecida entre a mãe e a
filha é compreendida como uma ligação aprisionadora. Pode-se considerar que
em um relacionamento em que uma pessoa se liga exclusivamente à outra implica
em poucas possibilidades de autonomia. Contudo, não se vê no relatório fatores
envolvidos, que não estejam relacionados à relação entre mãe e filha ou ao
71
mundo interno de cada uma delas, para que esse tipo de vinculação se
estabelecesse.
No relatório 20 são destacados os sentimentos ambivalentes da mãe em
relação à criança, pois durante a gravidez, a genitora havia recebido o diagnóstico
médico informando que a criança nasceria com deficiência. Ao nascer, a criança
apresentou alguns problemas de infecções, mas a deficiência prevista pelo médico
não se concretizou. Alguns problemas de saúde da criança afastaram-na do
contato com a mãe, que devido a algum tipo de infecção teve de ficar internada.
O destaque dado aos sentimentos ambivalentes da mãe com relação ao filho
parece indicar uma situação geradora de dificuldades na relação de ambos. Tanto
que mais à frente, no final da conclusão diagnóstica, o estagiário, indicando a
psicoterapia breve, justifica a necessidade de trabalhar a relação de dependência
do filho com a mãe, gerada pela superproteção desta. A culpa da mãe, gerada
pelos seus sentimentos ambivalentes em relação ao filho enquanto estava grávida,
seria a causa da chamada superproteção.
Em resumo, vistos em conjunto, os relatórios que se referem-se ao
vínculo entre a criança e sua mãe, indicam que o relacionamento poderia ser
melhorado, caso ela tivesse uma outra forma de lidar com o filho ou filha. Não
são apresentados os fatores sociais que interferem nessa vinculação. Ao contrário,
quando surgem, como é o caso do relatório 6, em que se encontra uma situação de
assassinato do pai da criança, a conclusão diagnóstica insiste na idéia de que a
solução está na mudança da postura da mãe, mas a estrutura social geradora da
violência que causou a morte do pai permanece intocada. O mesmo ocorreu com
o relatório 19, cuja criança também teve seu pai assassinado. As conclusões do
relatório se limitaram à interpretação da relação da mãe com a criança,
72
destacando a inadequação de uma vinculação em que ambas dormem na mesma
cama. Aqui, também o assassinato do pai não parece ser devidamente
considerado como um fator importante na mediação do vínculo da mãe com a
criança.
Vínculo da criança com o pai
No relatório 15 é descrito um bom vínculo entre a criança e seu pai.
Segundo o relatório, o fato da criança ter passado com o pai a maior parte de sua
vida pôde estabelecer com ele um vínculo mais sólido e duradouro. O filho
coloca o pai como uma “figura perfeita, alguém a ser imitado e copiado”.
Contudo, ainda segundo o relatório, tal imitação acaba dificultando as relações da
criança, pois “Ao colocar seu pai como algo ideal a criança se identifica com ele,
copiando seus comportamentos na escola e no relacionamento com seus colegas e
professores. Desta forma, a criança imita os comportamentos de seu pai, inclusive
sua agressividade.” A estabilidade e constância são fatores entendidos como
determinantes para um vínculo sólido e duradouro. Não se considera as
circunstâncias sociais em que isso se deu. Nota-se, ainda, que apesar de o filho
estabelecer um bom vínculo com o pai, o fato da identificação com o genitor é
suficiente para se interpretar a relação da criança com outros indivíduos que se
relacionam com ela. Verifica-se novamente a idéia de transferência de
comportamentos de um membro da família para outro, dentro de um sistema
fechado de relações, pois não há no relatório qualquer menção sobre outros
fatores implicados nas relações da criança com as pessoas que não participam da
família. No relatório 3 a criança desenvolve uma boa vinculação com seu pai, a
partir da interpretação dos resultados obtidos nos instrumentos HTP e Desenho da
73
Família
10
: “Sobre a figura paterna, a menina também demonstrou possuir afeto e
desejo de interação”. Já no relatório 12 percebe-se a informação de que, de
acordo com o resultado da aplicação da Fábula de Düss
11
, a criança “demonstrou,
em relação à figura paterna, desejos destrutivos”. A informação presente nos dois
relatórios acima sugere elementos intrapsíquicos na vinculação com o pai sem
considerar outros fatores que poderiam colaborar para o relacionamento da
criança com o pai. Limita-se às interpretações dos resultados obtidos nos
instrumentos e não fazem menção a outras informações sobre o tema que
poderiam ser conseguidas, por exemplo, nas entrevistas com os familiares, ainda
que o pai não fosse ouvido.
No relatório 2 consta que “A figura paterna também se mostra como
ausente, entretanto esse fato não parece causar conflitos no cliente”. A ausência
do genitor é citada, mas não revela as circunstância em que isso ocorre. Fica
apenas a descrição de um fato, que sugere o descumprimento de uma expectativa
relacionada ao pai, que seria sua presença na relação com a criança.
Observa-se que nos quatro indicadores sobre o vínculo com o pai se faz
referência a figuras. Nos três últimos indicadores, o termo pai é substituído por
figura paterna, indicando uma relação estabelecida da criança com modelos, em
detrimento de uma relação entre pessoas: não seria com o pai que a criança se
vincula, mas com a figura que o representa.
10
HTP (House, Tree, Person Test) e Desenho da Família - Instrumentos de avaliação psicológica
que consistem em desenhos realizados pela criança (casa, árvore, pessoa e família).
11
Teste psicológico de referencial teórico psicanalítico desenvolvido por Louise Düss. Consiste
em apresentar à criança pequenas histórias incompletas, cujos heróis se encontram em
determinada situação que representa uma fase do seu desenvolvimento psicossexual. É solicitado à
criança que complete a história, para com isso se identificar possíveis conflitos psicológicos
infantis.
74
Vínculo da criança com a mãe e o pai.
No que tange aos vínculos da criança com seus pais, foram encontrados
quatro indicadores que fazem referência ao Complexo de Édipo. No relatório 1 é
narrado que a criança, em relação ao pai, demonstra um “conflito edípico, pois
desafia o pai constantemente”. Segundo relatado, a criança tenta manter uma
aliança com a mãe para desafiar o pai, contudo “suas investidas são frustradas, e
fazem com que ele respeite a figura paterna e se submeta às suas leis”. A
afirmação é baseada na interpretação do CAT
12
. O relacionamento da criança
com os pais é interpretado a partir do resultado obtido no instrumento de
avaliação psicológica, que aponta para um componente interno da criança, gerado
pelo conflito edípico e se fecha na relação com os pais: a aliança da criança com a
mãe e a frustração da investida do menino, que se submete-se às leis do pai. No
relatório 15 encontra-se registrado: “Em relação ao Complexo de Édipo, a criança
demonstra certa dificuldade na resolução de seus conflitos, estando ligada à
dificuldade de identificação de papéis e falta de estabilidade na relação com os
mesmos”. Os papéis são mencionados como um modelo de identificação que não
se define por conta de suas instabilidades, gerando a dificuldade na criança para a
solução de seus conflitos. Não há menção de circunstâncias sociais geradoras da
indefinição dos papéis. No relatório 16 são descritos os conflitos da criança
envolvendo vínculos com os pais: “há presença de angústia na vivência do
desmame e principalmente no Complexo de Édipo, em que a figura paterna é
vista como muito ameaçadora e destrutiva”. No caso, não se apresentam as
condições em que ocorreu a angústia na vivência do desmame, assim como
também as causas da visão da chamada “figura paterna” ser vista pela criança
12
CAT (Children Apperception Test) - Instrumento de avaliação psicológica que consiste em
apresentar pranchas de desenhos à criança e solicitar-lhe que conte história a partir do que vê.
75
como algo ruim. No relatório 7 é mencionado que a criança apresenta “sinais de
uma não adequada finalização edípica, embora já estivesse com onze anos de
idade”. O relato procura mostrar como a dinâmica da relação dos pais interfere na
vida emocional da criança, na medida em que o comportamento desanimado e
apático do pai suscita sentimento de amor e ódio na criança em relação à mãe. A
relação entre o filho e seus pais fica condicionada a um comportamento do pai
que nega suas funções, sustentando a idéia de um modelo paterno:
Através de uma compreensão psicodinâmica, percebemos que a criança
em seus onze anos apresentou sinais de uma não adequada finalização
edípica. Através da execução de desenhos, da família e brincadeiras
com objetos da caixa lúdica, esperava sempre a vinda de um herói que
pudesse salva (á)-lo dos sentimentos de amor e ódio que sente pela
mãe, causado pelo desânimo e apatia do pai.
Nos quatro casos expostos acima a interpretação das relações familiares é
baseada na expectativa de papéis. A dinâmica da família foi compreendida
considerando o enfoque psicanalítico, que define a família, composta de pai, mãe
e filhos ou as figuras que lhes representam. A referência ao complexo de Édipo
mostra um modelo de comparação para as relações familiares, cujo exercício
apropriado de papéis é fundamental para o estabelecimento de bons
relacionamentos e formação da pessoa.
O relatório 8, registra que o menino sente-se excluído da relação dos pais
e complementa: “Devido a essa exclusão apresenta impulsos agressivos que são
dirigidos principalmente para a figura materna”. A exclusão apontada pode
refletir a idéia da relação como um lugar delimitado por fronteiras que, no caso,
76
não são transpostas pela criança. O efeito dessa exclusão estaria gerando os
impulsos agressivos da criança contra a “figura materna”.
No relatório 2 é registrado que os pais possuem uma forma distorcida de
enxergar a criança. O destaque dado à forma como eles vêem o desenvolvimento
do filho parece indicar uma falha no exercício dos papéis:
Os pais apresentam uma visão negativa do filho, sendo que a visão da
mãe é mais distorcida, podendo ser notado esse aspecto, quando ela diz
que ele sempre foi atrasado no desenvolvimento psicomotor, mas
quando revela os dados de como foi esse desenvolvimento, percebemos
que ocorreu dentro do esperado.
A contraposição entre “figura materna e feminina” e “figura paterna e
masculina” é registrada no relatório 14. De acordo com o relatado, a criança se
identifica com a “figura materna e feminina” que se mostra muito importante em
sua vida. Já a “figura paterna e masculina” surge na vida da criança sob a forma
punitiva e ameaçadora, de acordo com suas experiências vividas com o pai e o
tio. Os papéis são mencionados sugerindo que seus ocupantes suscitaram na
criança a identificação, ou não, dependendo da experiência vivida.
A ambigüidade de sentimentos está presente na relação da criança com
seu pai e sua mãe, registrada no relatório 17. Os pais são separados e a criança
mora com a mãe. Segundo relatado, a criança não queria ver o pai, por conta de
uma série de episódios de violência verbal dele contra a mãe. Contudo, essa
recusa da criança fazia com que sofresse: “O fato de não querer ver o pai causa
muito sofrimento a ela, pois sente falta da presença de uma figura paterna, mas
também sente que isso pode entristecer sua mãe”. A afirmação mostra que a
criança teria a necessidade de uma figura paterna e não do pai propriamente dito.
77
Parece insinuar que uma outra pessoa, desde que ocupando o papel de pai de
maneira adequada, poderia satisfazer a criança.
No relatório 5 observa-se o seguinte registro: “Percebeu-se que a
agressividade da criança é proveniente de sua relação insatisfatória com a figura
materna e da impossibilidade de manter contato com a figura paterna, a criança
expressa através de atitudes agressivas toda sua raiva e solidão”. Novamente se
nota que ao invés de se referir à pessoas do pai e da mãe, o relatório exprime o
relacionamento entre figuras, o que pode sugerir idéias abstratas de pai e mãe.
Vínculo da criança com a família.
No que diz respeito aos vínculos da criança com a família, em dois casos
são registrados problemas relacionados a conflitos familiares. Em um deles, no
relatório 6, é descrito que a criança:
[...] teve uma infância muito turbulenta. As mudanças de ambiente
eram constantes e também havia um clima de preocupação, discórdia,
ansiedade e nervosismo em sua família. Posteriormente, houve a
separação dos pais, a temporada curta na casa dos avós e a morte de
seu pai.
Os conflitos familiares são descritos como que gerados no interior da
família. Não se considera o que promoveu a necessidade da família se mudar de
residência constantemente. A discórdia, ansiedade e o nervosismo também
aparecem como criados nas relações familiares, sem se levar em conta os fatores
sociais envolvidos na questão. Também um fator importante a ser considerado é
que a morte do pai foi ocasionada por assassinato, o que certamente pesa nas
78
relações da família, parece não ter a devida importância na interpretação
realizada.
O outro caso em que surgem conflitos familiares está registrado no
relatório 14, que relaciona diretamente os problemas relatados aos conflitos
existentes na dinâmica familiar da criança:
Por meio das atividades que foram propostas à cliente, percebe-se de
uma maneira muito clara que as queixas que vêm tanto da escola (falta
de atenção e desobediência) quanto de sua mãe (agressividade) estão
intrinsecamente ligadas ao funcionamento psicodinâmico da criança e
ocultam os verdadeiros conflitos que existem em sua dinâmica
familiar.
Os problemas relacionados à criança, relatados pela escola e pela mãe,
são interpretados como sendo gerados internamente na criança e assumem uma
função na dinâmica familiar de ocultar os conflitos existentes na família. Tanto a
família quanto a criança são, portanto, consideradas entidades fechadas.
Foram encontrados dois relatórios afirmando que a criança sentia-se
excluída da família. No relatório 12, consta a seguinte informação: “A criança
também demonstrou que se sente excluída da família, aspecto que também
aparece em outros instrumentos”. No relatório 7 há uma recomendação explícita
para que a família receba ajuda: “Após todo o procedimento realizado com o
menino, concluímos que a família dele necessita de ajuda porque a criança não se
sente enquadrada na mesma, encontra-se deprimido e triste”. Os dois relatórios
mostram o entendimento da família circunscrita nas relações, de modo que seus
79
componentes podem ou não ser incluídos em suas delimitações. Fica a idéia da
família como um lugar a ser ocupado.
Com relação ao relatório 5, menciona-se que a criança idealiza uma
família “estruturada”, diferente daquela vivida:
Em relação à família idealizada pela criança, esta se apresenta
totalmente diferente da família real, a criança se volta para a fantasia
na tentativa de compensar uma realidade que é difícil suportar. A
família ideal é estruturada e adaptada, havendo interação e
solidariedade entre os membros.
O fragmento acima sugere a idéia de uma estrutura familiar definida, pois
a afirmação de que o ideal de família para a criança é a estruturada, passa pela
interpretação do estagiário, que certamente admite um modelo de comparação,
tanto que logo em seguida é afirmado: “Parecia que a criança gostaria de possuir
uma família estruturada, como isso não era possível, contentava-se com os
objetos das crianças que tinham uma vida familiar que ela gostaria de ter”
No relatório 3 é registrado que os comportamentos da criança, relatados
pela mãe, estariam relacionados, junto com outros fatores, à dinâmica familiar e à
separação dos pais:
Por fim, é interessante uma discussão sobre os problemas
comportamentais da menina trazidos como queixa pela mãe, como
mentir, furtar e dar objetos indiscriminadamente. Apesar do tempo
escasso e de outros fatores, pode-se levantar algumas hipóteses para
tais problemas, como uma necessidade de chamar a atenção do meio.
80
Outra hipótese seria uma necessidade da criança em ser contida através
de limites. Porém, outros fatores podem estar associados, como a
dinâmica familiar, a separação dos pais, além de mecanismos de
aprendizagem comportamental e de reforço positivo, como propõe a
teoria behaviorista.
Como se nota, as hipóteses com relação aos problemas da criança estão
relacionadas a ela ou às relações familiares, seja na dinâmica seja no fato da
separação dos pais.
Percebeu-se um vínculo relatado como satisfatório. Tal informação se
encontra no relatório 16: “[...] a criança lida de forma realista e adequada com
seus desejos em relação às figuras parentais e fraternais, como mostrou a
interpretação dos testes”. Lidar de forma realista e adequada com os desejos
parece indicar a maneira apropriada de se portar na família e assumir seu papel de
filho, o que poderia contribuir para uma estabilidade familiar.
Nos sete casos acima relatados nota-se uma idealização de família com
estrutura e dinâmica determinantes das relações entre seus membros.
Vínculos entre a criança e os irmãos
Os dois relatórios que fazem menção ao vínculo da criança com seus
irmãos mostram que há rivalidade entre eles. No relatório 3 se vê: “[...] em
relação à figura fraterna, no caso o irmão mais novo, a criança talvez apresente
alguma rivalidade ou hostilidade, além de uma possível não aceitação da mesma”.
O termo figura se faz presente na interpretação do vínculo da criança com o
irmão, suscitando a idéia de modelo. Já no relatório 2 é registrado que, em
relação ao irmão, a criança demonstra ser bastante competitiva, já que os próprios
pais incentivam esse aspecto quando o comparam com o irmão mais velho e
81
supervalorizam o último. A interpretação indica que os pais deixam a desejar no
tocante a seus papéis.
Percebe-se que nos dois relatórios em que são mencionados o vínculo da
criança submetida ao psicodiagnóstico com o irmão, as relações são mediadas por
papéis, quando no relatório 3 se faz menção ao termo “figura fraterna”, enquanto
que o relatório 2 sugere que os pais não atendem a uma expectativa de seus
papéis.
B. Cuidados com a criança
Por cuidados com a criança, entende-se a capacidade de zelar pelo bem-
estar do indivíduo, que abrange as esferas da saúde física e psicológica, função
essa, na sociedade atual, delegada quase que exclusivamente à família.
Nos relatórios pesquisados foi possível se verificar a maneira como as
famílias são avaliadas no que concerne ao cumprimento ou não de funções
relacionadas aos cuidados da criança. Como indicadores foram consideradas as
condutas dos pais ou seus substitutos no desenvolvimento, no sentimento de
segurança e na proteção da criança. Foi considerado como critérios para a
inclusão dos indicadores, expressões que diziam respeito a sentimentos e
comportamentos da criança (“sentimentos de solidão”, “a criança encontra-se
regredida”) e condutas propriamente ditas dos pais (“a mãe participou no
desenvolvimento da filha”, “os pais abandonaram a criança”).
Notou-se que a interpretação dos relatórios condiciona os cuidados
despendidos pela família, que garantem à criança um desenvolvimento saudável,
82
ao ajustamento dos membros da família, especialmente os pais, à função de seus
respectivos papéis. A tabela 11 mostra os resultados obtidos.
Tabela 11. Conduta dos pais para o cuidado com a criança.
Fonte: Seção “Conclusões” dos relatórios finais de psicodiagnóstico realizados no
segundo semestre de 2003 e no ano de 2004, arquivados junto aos prontuários de
psicologia breve infantil, encerrados em 2005
O total de 29 indicadores de cuidados da família para com a criança está
assim distribuído: 11 dizem respeito ao Sentimento de segurança, 11 se
relacionam com o Desenvolvimento e sete se referem à Proteção da criança.
Os indicadores da conduta dos pais para os cuidados com a criança
registrados na tabela 11 são, a seguir, descritos e analisados, indicando-se o
relatório no qual se encontrou o indicador, com base na numeração estabelecida
no quadro 1 da página 50.
Sentimento de segurança da criança.
Do total de 11 relatórios que se referiam ao sentimento de segurança da
criança, notou-se que em nenhum caso a criança sentia-se segura. Seis deles se
referem ao sentimento de insegurança a partir do que foi observado na criança
pelo estagiário, por meio de testes psicológicos e entrevistas com a criança. Os
outros cinco sugerem que determinados comportamentos dos familiares,
observados nas entrevistas realizadas com a família, proporcionam tal sentimento.
Cuidados Freqüência Proporção
Sentimento de segurança da criança 11 0,38
Desenvolvimento da criança 11 0,38
Proteção da criança 7 0,24
Total 29 1,00
83
Os seis indicadores relativos ao que foi observado na criança podem ser
descritos conforme segue: no relatório 15 tal sentimento é atribuído ao medo de
ficar abandonado: “A criança mostra certa insegurança e sensação de não estar
protegida, demonstrando medo de ser ‘abandonada’ novamente, tendo sempre que
ficar atenta e alerta para não ser deixada de lado”. Segundo o relatório 9, a criança
mostra-se desconfiada e com intensa sensação de abandono, pois sabe que não
tem um retorno do que necessita. Conclui o relatório: “[...] a criança, dentro da
sua dinâmica familiar, parece sentir que não tem o apoio, segurança, confiança,
atenção e o contato dos pais que tanto deseja”. Sentimentos de solidão e a falta de
apoio das figuras parentais também são registrados no relatório 14:Pôde-se
perceber que a criança sente-se sozinha, sem o apoio das figuras parentais; mas
mesmo com muito medo e insegurança está tentando caminhar para a sua
independência”. Traços de ansiedade, sentimentos de solidão, acentuada
necessidade de cuidado e afeto são citados no relatório 1, assinalando que tais
sinais “apareceram sempre ligados a alguma figura paterna, quando está
extremamente ligado aos pais ou em situações que sente a falta de atenção dos
mesmos”. A insegurança da criança frente ao pai é explicitada no relatório 21,
quando afirma: “[...] em relação à figura paterna a criança apresenta extrema
insegurança. Isso fica evidente a partir da análise da transferência, pois ao agir, o
faz de maneira extremamente cuidadosa temendo sua desaprovação”. Já no
relatório 8 a insegurança da criança é sugerida pela sensação de falta de proteção
da mãe, quando conclui: “A criança não sente a mãe como protetora, por isso
muitas vezes tenta assumir uma postura independente e dar conta sozinho das
suas necessidades”.
84
O que se observa é que os relatórios acima indicam que a criança
desenvolve em seu mundo interno uma percepção de insegurança em relação à
sua família. Tal elemento interno faz com que ela sofra e, dependendo de suas
potencialidades, desenvolva comportamentos de superação.
Com relação aos cinco indicadores de sentimento de insegurança,
atribuídos aos comportamentos dos familiares, observa-se que dois deles revelam
as necessidades do dia-a-dia da família: no relatório 2 é assinalado que o fato de
a mãe sair e deixar o filho sozinho em casa “o amedronta muito e lhe remete a
fantasias de abandono”. Não são mencionadas as circunstância em que a mãe
necessita sair e deixar a criança sozinha. O relatório 4 sugere que o fato de os pais
deixarem a criança em uma instituição desde os três meses de idade, para
poderem trabalhar, pode ter acarretado o sentimento de insegurança na criança.
Segundo relatado pelo estagiário, “nessa etapa as crianças necessitam do
relacionamento afetuoso com os adultos, de um contato que estimule segurança,
confiança e proteção”. Neste caso, o fato de os pais terem de trabalhar é referido
apenas de maneira descritiva, não se refletindo acerca das condições em que os
pais se vêem obrigados a trabalhar. Os outros três relatórios que atribuem ao
comportamento dos familiares o sentimento de insegurança na criança, indicam
que tal sentimento é gerado por dificuldades pessoais dos pais. As conclusões
dos relatórios sugerem que os cuidados para com a criança são funções esperadas
dos papéis de pai e mãe, que parecem ter ficado comprometidos pelas
dificuldades pessoais: o relatório 7 afirma que o pai não consegue transmitir, por
limitações pessoais, o sentimento de segurança para a criança: “o pai em sua
atitude apática, ausente e desanimada, parece ter abdicado de sua posição de
figura paterna capaz de transmitir segurança”. O relatório 20 conclui que “as
85
idéias ambivalentes da mãe”, existentes desde a gravidez, “podem dificultar o
exercício da função de Holding
13
, pois a mãe é muito ansiosa no contato com a
criança”. Também no relatório 11 as dificuldades pessoais da mãe são
apresentadas como um fator para sua incapacidade de dar conta das dificuldades
do filho:
A mãe demonstra não conseguir se aproximar e entrar em contato com
os sentimentos e necessidades da criança. Fatos difíceis em sua vida
pessoal lhe trazem dificuldades, gerando a necessidade de se voltar
para si mesma. Em decorrência, ela não se sente segura o suficiente
para criar o filho e para dar conta das angústias da criança.
Nota-se que os 11 relatórios acima referem que a criança não sente
segurança na relação com os familiares. De acordo com as conclusões
apresentadas neles, a dinâmica familiar estaria gerando o sentimento de
insegurança da criança. Essa dinâmica envolveria fatores relacionados ao mundo
intrapsíquico da própria criança ou à conduta dos pais, o que sugere a idéia de
uma família fechada em suas fronteiras, cujos membros deveriam se organizar de
tal forma que permitisse à criança o sentimento de segurança.
Desenvolvimento da criança.
Dos 11 indicadores que se referem à implicações da família no
Desenvolvimento da criança, observou-se que apenas um (relatório 3) exprime a
participação efetiva da mãe no desenvolvimento da filha, contudo o relatório
exprime a ocupação adequada da mãe em seu papel, quando ao invés de se referir
13
Termo designado por Douglas W. Winnicott para descrever o acolhimento físico do bebê pela
mãe, que permite ao filho a sensação de amparo e sustentação.
86
à mãe, é utilizado o termo “figura materna”: “A figura da mãe pareceu ser a mais
valorizada, afetiva e atenciosa, destacando-se sua participação efetiva no processo
de desenvolvimento como um todo da filha ”.
Os outros dez revelam que os familiares não colaboram de maneira
adequada para o desenvolvimento da criança. No relatório 9, é sugerida a
psicoterapia breve infantil, justificando que “foi concluído que é necessário
trabalhar terapeuticamente, tanto com os pais, quanto com a criança, a estrutura
desta dinâmica familiar e como ela está refletindo na vida da criança e no seu
desenvolvimento psíquico”. A indicação da psicoterapia com vistas a trabalhar a
estrutura da família mostra claramente a idéia de uma organização familiar em
desacordo com um modelo que não está sendo seguido pela família.
O relatório 14 registra que a família não colabora para o desenvolvimento
da criança. Nele, afirma-se que os problemas enfrentados pela criança têm como
gênese os conflitos vividos pela família: “a partir dos resultados obtidos na
aplicação de testes psicológicos, notou-se que a criança é inteligente e não possui
problemas cognitivos. Conclui-se, então, que os conflitos familiares estão
prejudicando o desenvolvimento da criança na escola”. Parece que a idéia que
sustenta tal conclusão é a de que a superação de tais conflitos permitiria o
adequado desenvolvimento da criança. Como se percebe, a conclusão diagnóstica
indica que, na medida em que se envolve em conflitos, a família deixa de cumprir
com sua função, repondo a idealização de uma família harmoniosa como
condição para o desenvolvimento adequado da criança.
No relatório 17, é referido que a relação simbiótica que a mãe
desenvolveu com a filha prejudica tanto seu “setor afetivo-relacional” quanto o
“sócio-cultural”, uma vez que a criança “gasta muita energia na relação com a
87
mãe e não consegue canalizar para outras relações”. A relação estabelecida entre
a mãe e a filha parece, de acordo com a conclusão do relatório, suficiente para
determinar o desenvolvimento da criança. Mostra a idéia de que a família é uma
entidade fechada.
No relatório 4 em que é analisado um problema de encoprese
14
, é
apresentado o fato de a criança deixar de usar fraldas precocemente. Relata que o
treinamento do controle esfincteriano foi realizado por profissionais de uma
instituição na qual a criança ficava enquanto os pais trabalhavam. Descreve o
relatório:
Um ensino demasiado coercivo e exigente ou demasiado precoce,
levam geralmente a uma situação de encoprese. A mãe do paciente diz
que o filho não usava fraldas (nem durante o dia, nem durante a noite)
com um ano e oito meses, mas não foi ela quem fez o treinamento e
sim a Instituição onde a criança ficava em período integral. Portanto,
não se sabe se o treinamento foi coercivo e exigente, porém um pouco
antecipado.
Nota-se que os cuidados entendidos como necessários para o
desenvolvimento da criança, que dependem da presença dos pais, são
prejudicados pelo trabalho, contudo, desconsidera-se o fato da necessidade
concreta dos pais trabalharem. Mantém-se a idéia de que a família deve superar a
dificuldade, ainda que as condições objetivas lhes sejam desfavoráveis.
Seis relatórios apontam para as relações familiares implicadas no
comportamento regredido da criança. No relatório 11 a dificuldade de ela crescer
é relacionada à carência materna: A criança se apresenta regredida devido à sua
14
Incontinência fecal.
88
dificuldade em crescer, ligada à carência materna e ao medo de perder a mãe”.
Vivências traumáticas são consideradas determinantes na regressão da criança,
avaliada no relatório 5: “Devido às vivências traumáticas que teve,
principalmente em relação à figura materna, a criança em momentos de crise e
pressão social, regride a etapas anteriores do desenvolvimento”. Percebe-se, nos
relatórios 11 e 5 que a regressão da criança é atribuída à relação com a mãe, que
parece não atender às necessidades de atenção da criança. O mesmo se observa
no relatório 13, que relaciona a imaturidade da criança ao fato da diferença muito
grande de idade com relação aos irmãos por parte de pai. Tal imaturidade seria
reforçada pela conduta da mãe, que estaria impedindo o amadurecimento da
criança:
O fato da criança ser o único filho da mãe e a diferença de idade de
seus irmãos por parte de pai ser muito grande também podem colaborar
para sua imaturidade, uma vez que a mãe demonstra ser muito
protetora e que com freqüência faz suas vontades, contribuem para que
ele não seja incentivado a amadurecer, tornando-o acomodado e
dependente da figura materna.
O relatório 16 afirma, mediante o resultado dos testes aplicados, que a
criança é retraída e possui contato inadequado com a realidade, assinalando que
“Tais características podem ser agravadas pelas atitudes da mãe, que reforçam
seu comportamento infantil”. A conclusão denota a idéia de um problema de
ordem individual da criança sendo intensificado com a conduta da mãe, que não
estaria agindo de acordo com a expectativa inerente às suas funções. O relatório
18 expõe que a família, de uma maneira geral, se mantém distante do contato com
89
o meio externo e se volta para as relações entre seus membros. Conclui que: “o
que existe é uma relação educacional e afetiva regredida, muito primitiva, que
não é capaz de oferecer recursos para que a criança desenvolva sua autonomia e
maturidade emocional”. Segundo o relatado, “as relações educacionais ficam
defasadas e a criança reage a isso com extrema dependência, infantilidade e
imaturidade frente a todas as situações de contato social, especialmente na
escola”. A família é considerada, pelo relatório, como uma entidade fechada ao
mundo externo, além de possuir força suficiente para impedir que a criança
amplie suas relações com pessoas que não participam de suas relações familiares.
Avaliando o problema trazido pela mãe referente ao comportamento
“extremamente infantilizado do filho” (relatório 1), é afirmado que, mediante os
resultados de testes aplicados, o fato “realmente ocorre, mas no contexto familiar,
pois no contato com o estagiário o garoto comportou-se de forma absolutamente
adequada”. O relatório conclui, ainda, que:
Em muitas situações o garoto transparece o conflito entre a
dependência e a autonomia, pois demonstra momentos de evolução
maturacional e de regressão ao mesmo tempo. Ainda que busque fazer
coisas sozinho e confrontar o pai, mantém uma ligação muito forte
com a psique parental, colocando-se muitas vezes como um bebê ou
como uma criança muito pequena
A conclusão do relatório 1, ao apontar para uma espécie de ligação
psíquica entre pai e filho, parece expressar uma idéia de relação hermética,
fechada nos aspectos psíquicos que ocorre em um lugar específico: na família.
90
O conjunto de relatórios que mencionam a participação da relação
familiar no desenvolvimento da criança parece não levar em conta os fatores
sociais que medeiam a família. As conclusões sugerem-na como um local isolado
da sociedade.
Proteção à criança.
Os relatórios que se referem ao comportamento dos familiares em relação
à Proteção da criança totalizam sete, dos quais quatro dizem respeito à falta de
proteção à criança e três são relacionados a uma proteção demasiada.
Com relação à falta de proteção dos familiares à criança, nota-se o
seguinte: o relatório 10 registra o caso da criança que passou grande parte de sua
vida residindo em uma cidade do interior de Minas Gerais e posteriormente veio
morar com a mãe no centro de São Paulo. Descreve o relatório:
O menino, com apenas oito anos de idade, se locomove sozinho tanto
para a escola como para outras localidades de São Paulo como Sesc e
Praça da República e é quanto a este tipo de negligência que a mãe
e/ou família devem ser orientados, pois por se tratar de uma criança
inteligente, esperta e com ampla possibilidade de um desenvolvimento
saudável, neste descuido pode ser facilmente influenciado por grupos
como traficantes, usuários de drogas, entre outros.
A orientação para que os familiares voltem a atenção ao fato da criança
locomover-se sozinha a lugares inadequados à sua idade é pertinente. Contudo,
parece que o histórico da família não é considerado suficientemente, ao se
interpretar a conduta dos familiares como negligente. É importante pensar em
91
como a mãe desenvolveu sua percepção de cuidados para com seu filho, que era
criado pela avó em um outro ambiente.
No relatório 15, é sugerida a falta de proteção da família quando afirma:
“Por ser tão esperta e atenta à sua realidade, a criança tem consciência das
situações difíceis pelas quais já passou - abandono, desamparo e falta de
estabilidade familiar”. Dificuldades escolares relatadas pela mãe nas entrevistas
de psicodiagnóstico (relatório 5) são atribuídas à história de abandono que a
criança viveu: “Neste sentido as dificuldades escolares parecem ser provenientes
de estados emocionais insatisfatórios, podendo estar relacionados à história de
abandono que a criança viveu”. Encontra-se ainda, no relatório 11, a situação em
que a mãe não consegue, devido a limitações pessoais, ajudar o filho na
elaboração do luto referente à morte do tio:
Após tudo que ocorreu no seu contexto familiar, especialmente a morte
do tio materno, a mãe da criança se sentiu desprotegida, e o seu
distanciamento em relação às necessidades da criança se acentuou, não
permitindo que ela ajudasse o filho na elaboração do luto.
Nos três relatórios que exprimem superproteção encontram-se os
seguintes registros: no relatório 20, a superproteção é identificada e interpretada
como uma maneira de a mãe compensar a culpa pela imperfeição do filho: “A
mãe parece sentir-se muita culpada pela dificuldade e imperfeição do filho,
tentando compensar a culpa por meio de uma superproteção”. No relatório 8 é
citado o comportamento da mãe “que sempre foi muito protetora, sempre com
medo que algo acontecesse a ele, não o deixando ir para festas, casas de amigos,
92
ou até mesmo freqüentar casas de parentes”. Já no relatório 7, o comportamento
da mãe é considerado como um empecilho para que o pai se coloque em seu
papel, o que alimenta as fantasias edípicas da criança:
A mãe acredita ser seu filho infantil, tendo atitudes protetoras
colocando-o sempre ao seu lado, protegendo-o inclusive das tentativas
do pai de se colocar em seu papel de pai e alimenta assim as fantasias
edípicas de Luiz, fragilizando diante de seus olhos, a figura do pai, já
tão desacreditado inclusive por si mesmo (envelhecido, cansado,
doente, aposentado).
Nota-se que a proteção é medida em escala, ora insuficiente, ora
demasiada, sendo que as causas da proteção inadequada são relacionadas, nos
relatórios, a fatores pessoais dos pais, não se considerando devidamente outros
fatores que podem levar os familiares a desenvolverem tal conduta.
O quadro 2 apresenta um resumo de como as famílias foram
compreendidas pelo psicodiagnóstico no que tange aos vínculos familiares e à
conduta dos pais nos cuidados com a criança e tem como objetivo facilitar a
visualização para a posterior discussão.
93
Quadro 2 – Resumo dos resultados obtidos em relação aos indicadores de Vínculos
familiares e Cuidados com a criança.
Relatório Vínculos familiares Cuidados com a criança
1
O relatório informa que o vínculo da criança
com a mãe é proveniente de uma demanda
interna da criança. O componente psíquico da
criança, gerado pelo conflito edípico,
determinaria a relação da criança com seus pais.
O relatório indica que a criança desenvolve em
seu mundo interno uma percepção de
insegurança em relação à sua família. Refere
também uma ligação muito forte da criança com
a psique parental, colocando-se muitas vezes
como um bebê ou como uma criança muito
pequena.
2
A ausência do pai na relação com o filho é
citada, mas não se comenta as circunstâncias em
que ocorre. O relatório sugere que os pais falham
na expectativa de seus papéis quando incentivam
a rivalidade entre os irmãos e quando não
percebem a evolução da criança de maneira
adequada.
O relatório afirma que o fato de a mãe sair e
deixar o filho sozinho em casa o amedronta
muito e lhe remete a fantasias de abandono, mas
não é mencionada a circunstância em que a mãe
necessita sair e deixar a criança sozinha.
3
Elementos intrapsíquicos da criança estariam
determinando a vinculação com o pai. As
hipóteses com relação aos problemas da criança
estão relacionadas à criança ou às relações
familiares, seja na dinâmica ou no fato da
separação dos pais. O relatório menciona a
relação da criança com seu irmão utilizando o
termo “figura fraterna”.
O relatório exprime o exercício adequado da mãe
em seu papel, quando ao invés de se referir à
mãe, é utilizado o termo “figura materna”, para
expressar a participação efetiva dela no
desenvolvimento da criança.
4
Nenhuma referência foi encontrada
O relatório indica que o fato de os pais deixarem
a criança em uma instituição desde os três meses
de idade, para poderem trabalhar, pode ter
acarretado o sentimento de insegurança nela. O
desenvolvimento da criança é prejudicado pelo
trabalho dos pais, contudo, desconsidera-se o
fato da necessidade concreta dos pais
trabalharem.
5
O Sentimento de inferioridade da criança em
relação à mãe determinaria o vínculo daquela
com esta. O relatório exprime o relacionamento
entre figuras, quando afirma que a agressividade
da criança é proveniente de sua relação
insatisfatória com a figura materna e da
impossibilidade de manter contato com a figura
paterna. Consta, ainda, que a família não possui
uma estrutura adequada.
A regressão da criança é atribuída à relação com
a mãe, que, segundo o relatório, parece não
atender às suas necessidades de atenção.
6
Segundo o relatório, o vínculo da criança com a
mãe seria abalado em virtude da conduta desta.
Os conflitos familiares seriam gerados
exclusivamente no interior da família. O
assassinato do pai parece não receber a devida
atenção na interpretação do relatório.
Nenhuma referência foi encontrada
7
Consta no relatório que o comportamento
desanimado e apático do pai suscita sentimentos
de amor e ódio da criança em relação à mãe. O
relatório recomenda psicoterapia em virtude de a
criança não se sentir enquadrada na família.
O sentimento de insegurança seria gerado por
dificuldades pessoais dos pais. O comportamento
da mãe é considerado como um empecilho para
que o pai se coloque em seu papel, o que
alimentaria as fantasias edípicas da criança.
8
Segundo o relatório, a criança sente-se excluída
da relação com os pais.
A criança, de acordo com o relatório, desenvolve
em seu mundo interno uma percepção de
insegurança em relação à sua família. A mãe é
avaliada como muito protetora.
9
Nenhuma referência foi encontrada
A criança, de acordo com o relatório, desenvolve
em seu mundo interno uma percepção de
insegurança em relação à sua família. A
indicação da psicoterapia com vistas a trabalhar
a estrutura da família mostra a idéia de uma
organização familiar em desacordo com um
modelo que não está sendo seguido pela família.
94
Relatório Vínculos familiares Cuidados com a criança
10
Nenhuma referência foi encontrada
Segundo o relatório, A mãe é negligente pelo
fato de a criança deslocar-se sozinha para locais
inadequados à sua idade, não considerando a
conjuntura em que se envolve a família.
11
A conduta da mãe, de acordo com o relatório,
colocaria em risco o vínculo com a criança, pois
a mãe não cumpre com a expectativa de seu
papel.
O sentimento de insegurança da criança é
interpretado como sendo gerado por dificuldades
pessoais dos pais. A regressão da criança é
atribuída à relação com a mãe, que parece não
atender às suas necessidades de atenção.
12
Segundo o relatório, elementos intrapsíquicos da
criança determinariam sua vinculação com o pai.
Consta ainda que a criança sente-se excluída da
família.
Nenhuma referência foi encontrada
13
Nenhuma referência foi encontrada
O relatório informa que a criança desenvolve em
seu mundo interno uma percepção de
insegurança em relação à sua família. Relaciona
a imaturidade da criança ao fato da diferença
muito grande de idade com relação aos irmãos
por parte de pai. Tal imaturidade seria reforçada
pela conduta da mãe, que estaria impedindo o
amadurecimento da criança.
14
O relatório afirma que a criança se identifica
com a figura materna e feminina que se mostra
muito importante em sua vida. Já a figura
paterna e masculina surge na vida da criança sob
a forma punitiva e ameaçadora. Registra também
que os problemas psíquicos da criança estariam
encobrindo conflitos familiares.
Segundo o relatório, o fato da família envolver-
se em conflitos deixaria de contribuir para o
desenvolvimento da criança.
15
De acordo com o relatório, a identificação da
criança com o pai faria com que ela imitasse o
comportamento agressivo do pai nas relações
com os colegas da escola. A instabilidade da
relação entre os paiso forneceria modelo de
identificação de papéis para a criança.
O relatório indica que a criança desenvolve em
seu mundo interno uma percepção de
insegurança em relação à sua família, gerada por
abandono, desamparo e falta de estabilidade
familiar.
16
O relatório refere que a criança viveu uma
angústia no desmame e vê a “figura materna”
como algo ruim. Registra ainda que a criança
lida de forma realista e adequada com seus
desejos, o que parece indicar a maneira
apropriada de se portar na família e assumir seu
papel de filho, contribuindo para a estabilidade
familiar.
Segundo consta no relatório, o problema de
ordem individual da criança é intensificado com
a conduta da mãe, que não estaria agindo de
acordo com a expectativa inerente às suas
funções para o desenvolvimento do filho.
17
O relatório indica que a ligação entre mãe e filha
é aprisionadora, não permitindo à criança
estabelecer relação com outras pessoas. O
relatório afirma ainda que a criança teria
necessidade de uma “figura paterna”.
A relação estabelecida entre a mãe e a filha
parece, de acordo com a conclusão do relatório,
suficiente para determinar a dificuldade no
desenvolvimento da criança.
18
Nenhuma referência foi encontrada
A família, segundo o relatório, impede que a
criança amplie suas relações com outras pessoas
que não participam de suas relações familiares.
19
Segundo o relatório, o vínculo entre a mãe e
filho seria afetado pela confusão de papéis,
quando a mãe trata o filho como se fosse seu
parceiro, dividindo a cama com ele. O
assassinato do pai parece não receber a devida
atenção na interpretação do relatório.
Nenhuma referência foi encontrada
20
De acordo com o relatório, a relação de
dependência da criança com a mãe seria gerada
pela superproteção materna.
Segundo o relatório, o sentimento de insegurança
seria gerado por dificuldades pessoais dos pais.
A superproteção é identificada e interpretada
como uma maneira da mãe compensar a culpa
pela imperfeição do filho
21
De acordo com o relatório, e a mãe cumpre com
a função do pai, que não mora com a família em
virtude da separação
O relatório indica que a criança desenvolve em
seu mundo interno uma percepção de
insegurança em relação à sua família.
95
Pode-se perceber que a idéia de família compartilhada nos
psicodiagnósticos é baseada em um modelo que parece não considerar
devidamente a mediação social. Os fatores sociais, embora presentes nas
conclusões diagnósticas, são compreendidos como extrínsecos à formação
familiar. Tal modelo expressa uma representação de família, cuja característica é
o fechamento em si própria, formada por indivíduos que se vinculam por meio de
papéis definidos de pai, mãe e filho (a). Os indivíduos que participam dos
relacionamentos familiares devem se adequar a determinadas maneiras de
interação, e são avaliados de acordo com o desempenho no manejo de seus
papéis: não seriam pessoas interagindo, mas papéis que devem ser devidamente
ocupados.
A participação, em maior ou menor grau, da família na formação e/ou
manutenção do problema psicológico da criança foi interpretada pelos
psicodiagnósticos tendo como base a adequação dos familiares em seus
respectivos papéis. De acordo com essa interpretação, para que não haja
problemas na família, os familiares devem submeter-se a um rígido controle de
seus comportamentos e sentimentos, a fim de se adequarem ao que supostamente
se predispuseram ao assumir suas famílias.
O que fica obscurecido nas interpretações das relações familiares,
realizadas nos psicodiagnósticos, é a dificuldade concreta dos familiares em
desempenhar os papéis. Conforme discutido neste trabalho, a família é mediada
socialmente (Adorno e Horkheimer, 1978), não pode ser considerada como um
grupo à parte, abstrato que se organiza e se mantém de forma totalmente
autônoma aos acontecimentos sociais. A idéia de uma família abstrata implícita
96
na interpretação dos instrumentos de avaliação supera a família concreta, ou seja,
a que existe de fato.
A avaliação das famílias a partir de um modelo pode oferecer certa
precisão na análise, contudo, não revela os fatores determinantes de sua estrutura,
ofuscando a verdadeira realidade experimentada por ela. Como se pode perceber
no Quadro 1 (p. 54), as famílias constantes nos relatórios estudados são formadas,
na sua maioria, por uma constelação de relações, estabelecidas no transcorrer da
história de vida dos indivíduos. Para Horkheimer (2003) “A família muda sua
estrutura e sua função tanto de acordo com períodos isolados quanto também
segundo os grupos sociais. Em especial, ela se transforma de maneira decidida,
sob as influências do desenvolvimento industrial”. (p. 235)
As dificuldades pelas quais passou e passa cada membro familiar
determinam a formação da própria família. Experiências realizadas em outros
casamentos, expectativas ou não de ter filhos, estratégias de sobrevivência,
condições econômicas e de trabalho são alguns dos fatores que se imbricam e
medeiam as vinculações entre os familiares.
Cabe ressaltar ainda que a maioria das famílias descritas nos relatórios
estudados possui uma condição econômica precária
15
, que tem sustentação nas
formas em que os pais desenvolvem suas atividades laborais. Tal condição por si
só já pode ser entendida como um importante fator social mediador tanto dos
vínculos entre os familiares, quanto dos cuidados dispensados às crianças.
Certamente os indivíduos participantes de grupos sociais economicamente
desfavorecidos ficam mais vulneráveis a dilemas de impacto psicológico, tais
15
Ver tabela 3 (p. 48).
97
como desemprego e pagamento de despesas (moradia, alimentação, saúde,
educação).
É certo que a família marca de maneira indelével a criança. Cabe,
portanto, afirmar que não se trata de absolver a família dos problemas
psicológicos de suas crianças; trata-se de ampliar o entendimento e pensar sobre
as condições concretas que cada membro familiar enfrenta para fazer diferente do
que faz, na medida em que, segundo Horkheimer (2003):
Na verdade, a família representa uma das formas sociais que, como
elementos da atual estrutura cultural, devido às contradições e crises
cada vez mais acentuadas, executam de forma cada vez pior as funções
em si necessárias, sem que, no entanto, possam ser alteradas fora do
contexto social geral. (pp.216-217)
Para um entendimento mais completo das relações familiares não se pode
prescindir da análise dos determinantes sociais, históricos, políticos e culturais
que pesam sobre elas. O psicodiagnóstico, quando inclui a família na
compreensão do problema da criança, indica por meio de instrumentos a maneira
como a família contribui mais ou menos na constituição do problema psicológico
da criança. Contudo, ao responsabilizar diretamente uma relação familiar
conflituosa pelo surgimento e/ou manutenção do problema psicológico da
criança, o psicodiagnóstico não elucida a real fonte de promoção do problema,
mas esgota o problema na aparência dos fatos. Para se adequar a um papel
abstrato determinado pela posição do indivíduo em sua família, o
psicodiagnóstico exige igualmente a existência de um indivíduo abstrato, livre de
suas determinações sociais. Para além de entender a dificuldade dos membros
98
familiares de se adequarem aos seus papéis designados, deve-se considerar os
fatores sociais que determinaram a constituição dos indivíduos e da própria
família.
A família é mediação social e os problemas apresentados nas suas
relações refletem os problemas da própria sociedade: “[...] quanto mais esta
sociedade, em conseqüência de suas leis imanentes, se aproxima de um estado
crítico, tanto menos a família pode fazer justiça a este respeito à sua tarefa”
(Horkheimer, 2003, p. 235).
99
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesta pesquisa pretendeu-se investigar a idéia de família presente nos
psicodiagnósticos infantis realizados na clínica-escola. O estudo mostra a
importância concedida às relações familiares na formação dos problemas das
crianças que foram submetidas ao psicodiagnóstico. Compreende-se a
legitimidade dessa importância relegada à família que, nesta sociedade,
geralmente representa o primeiro contato social da criança. Não há como negar
que essas primeiras relações marcarão profundamente sua personalidade.
Refletindo-se sobre a formação do indivíduo, pode-se pensar ainda nas
determinações que as experiências com sua família lhe propiciarão. Esse fato,
ainda que irrefutável, merece a ponderação apresentada no corpo teórico, a qual
diz respeito à mediação social na formação familiar.
Os resultados encontrados nesta pesquisa mostram que os
psicodiagnósticos infantis investigados exprimem uma idéia de família que parece
não levar devidamente em consideração os fatores sociais na sua formação.
Apresentam como modelo uma representação de família formada por indivíduos
vinculados por meio dos papéis de pai, mãe e filho que, quando exercidos de
maneira adequada, permitem a execução de suas funções esperadas pela
sociedade. Os fatores sociais, quando considerados, são compreendidos como
externos à família e os problemas decorrentes da estrutura social devem ser
superados pelo esforço individual dos seus integrantes.
Os frankfurtianos Adorno, Horkheimer e Marcuse, principais autores que
dão sustentação teórica a esta pesquisa, mostram que a família é mediada
socialmente. Não pode ser considerada como um grupo à parte e abstrato, que se
100
organiza e se mantém de forma autônomo da estrutura social. A idéia de uma
família abstrata, na interpretação dos instrumentos de avaliação, supera a família
concreta, ou seja, a que existe de fato; confirma-se, assim, a função ideológica da
psicologia.
Ao adotar um modelo de comparação ao invés de se compreender os
determinantes sociais que incidem na formação da família, a psicologia rende-se
ao tecnicismo e atende às necessidades do sistema social que, como mostra
Horkheimer, produz os tipos humanos próprios de cada época.
Os autores da teoria crítica mostram que na sociedade atual, o indivíduo
deve não só aceitar a autoridade, mas desejá-la; deve conformar-se com sua
posição social e preparar-se para o trabalho. Ele deve ser plasmado na família e
quando isso não ocorre, a psicologia pode ser requerida para atuar tecnicamente,
seja na conformação do indivíduo, seja na da família. O problema familiar é
compreendido como resultado de sua estrutura que provoca o problema
psicológico infantil, por não possuir uma configuração adequada ou pelos seus
membros, que não são competentes para assumir os papéis para os quais foram
designados de antemão pela estrutura ideal de família. A incompetência em
assumir o papel designado pelo familiar da criança é apontada, nos
psicodiagnósticos, pelas dificuldades pessoais pelas quais ele passa.
O pensar técnico verificado nos relatórios de psicodiagnósticos
pesquisados encerra os problemas apresentados pelas crianças quanto às relações
vividas por estas com suas famílias. Ao propor a psicoterapia, tanto da para a
criança quanto para os familiares, é esgotada no indivíduo a razão pelas quais se
vive o sofrimento. De acordo com os resultados obtidos nas investigações, nota-se
que há uma lógica funcional na idéia de família que serve de modelo de ajuste:
101
para que não haja problemas na família, a sua estrutura deve propiciar uma
situação que se aproxime o máximo da relação harmoniosa.
A dificuldade concreta dos familiares desempenharem os papéis é
entendida, de acordo com as conclusões diagnósticas, como uma falha pessoal.
Às dificuldades pessoais dos componentes familiares de se ajustarem em seus
papéis pré-determinados segue a proposta de psicoterapia, cujo propósito é por
vezes declaradamente o ajuste do indivíduo, que deve sujeitar-se à realidade dada
e produzir habilidades próprias na superação de seus problemas.
Vale destacar a importância do psicodiagnóstico infantil como
instrumento que pode desvelar as fontes sociais do sofrimento vivido pela criança
e pela sua família. O potencial crítico do psicodiagnóstico está no
aprofundamento dos seus resultados. Seria necessário superar a noção de sintoma,
calcada na idéia de que os problemas apresentados pelas crianças possuem um
caráter meramente psicológico e atentar para os determinantes sociais que atuam
na formação psíquica, como bem mostra a teoria crítica. Marcuse, ao criticar a
cisão entre a psicologia, a política e a filosofia social, mostra que os distúrbios
pessoais estão relacionados com a própria desordem social. O autor conclui que
os problemas psicológicos são na verdade problemas políticos.
A dimensão política deve ser destacada já na formação do psicólogo. A
aplicação do psicodiagnóstico na clínica-escola representa uma boa oportunidade
para se discutir com os alunos do curso de psicologia a maneira como a mediação
social atinge a estrutura familiar. Os resultados obtidos nos psicodiagnósticos
realizados na clínica-escola podem fornecer subsídios para se refletir sobre o peso
da sociedade na estruturação familiar. Como exemplo, no caso em que se nota
claramente que os vínculos familiares e os cuidados com a criança são
102
prejudicados pelo tempo gasto pelos pais no trabalho. Ainda que se considere a
importância de os pais saberem como lidar com tal questão objetiva, pois eles
precisam continuar trabalhando, é importante se pensar para além da adequação
do indivíduo à realidade dada: cabe questionar o que poderia ser diferente diante
do que já existe. É necessário se refletir sobre a própria sociedade que, tendo em
vista o que já evoluiu, poderia possibilitar uma maior liberdade ao homem.
Contudo, o progresso alcançado não atende às necessidades humanas e sim à
manutenção do próprio sistema social. Essa reflexão contribui para a formação
crítica do aluno e questiona o uso da investigação psicológica puramente como
instrumento de ajustamento dos indivíduos a papéis determinados ou a
comportamentos considerados adequados.
Este estudo não esgota as discussões sobre o tema, mas, certamente, pode
oferecer subsídios para uma reflexão acerca do uso instrumental da psicologia
que, embora possa ter como objetivo manifesto contribuir para a eliminação dos
dilemas humanos, ao propor como única saída a adaptação do indivíduo a um
sistema social considerado imutável, pode recair no recrudescimento da fonte dos
sofrimentos.
103
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