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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC - SP
Maria Letícia Candello
Humanização e transcendência: o encontro do humano com o divino, à luz da
psicologia transpessoal, pela visão de Ken Wilber
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
SÃO PAULO
2008
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1
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC - SP
Maria Letícia Candello
Humanização e transcendência: o encontro do humano com o divino, à luz da
psicologia transpessoal, pela visão de Ken Wilber
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
Dissertação apresentada á Banca Examinadora
como exigência parcial para obtenção do titulo de
MESTRE no Programas de Estudos Pós
Graduados em Ciências da Religião, da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob
orientação do Prof. Dr. José J. Queiroz
SÃO PAULO
2008
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2
Banca Examinadora
__________________________________
__________________________________
__________________________________
3
Agradecimentos
A todas as pessoas que me incentivaram acreditar nesse tema;
Aos meus mestres e aos dedicados membros da banca examinadora;
Ao meu orientador, Prof. Queiroz, por caminhar sempre comigo nessa trajetória
Meus sinceros agradecimentos.
4
RESUMO
A dissertação focaliza o tema da humanização e da transcendência que se
estabelece no encontro do humano com o divino, tendo como suporte teórico a
psicologia transpessoal pela visão de Ken Wilber. Como preâmbulo, discorre sobre
os conceitos do homem, humanismo e humanização em sua evolução histórica,
apontando, desde a visão mitológica, os passos que o pensamento filosófico foi
construindo em torno desses temas, com a preocupação de demonstrar que nesse
processo evolutivo foram sendo postos os alicerces da psicologia transpessoal e
da sua visão de transcendência. Na condição pós-moderna, vive-se uma perda de
sentido pela fragmentação do ser, do humano e da sociedade. Ao lado dessa perda,
surge uma busca de novos caminhos na evolução da psique, que traz esperanças
de uma recuperação do humano. Por fim, demonstra-se a hipótese da possibilidade
da reconstrução humana pelo processo de humanização e transcendência, na
condição pós-moderna, tendo como base as concepções da psicologia transpessoal,
nas obras de Wilber e de outros autores que focalizam a consciência humana e seus
estágios evolutivos.
Palavras chave: humanismo, humanização, níveis de consciência, psicologia
transpessoal, Wilber, pós-modernidade.
5
Abstract
The dissertation’s focus is the humanization and transcendence that is established
when the human being meets the divine. The theoretical support is Ken Wilber’s
vision of transpersonal psychology. As a preamble, it covers human being concepts,
humanism and humanization in its historical evolution, showing the philosofical
thought building steps related to these themes since the mytological vision. The
concern was to demonstrate that the basis of the transpersonal psychology and its
transcendence vision were being built through the evolution process. At the
postmodern condition, there is the lost of sense due to human being’s, and society’s
fragmentation. Besides this lost, it appears the search for new ways for psyche’s
evolution that brings hope to recover the human. Finally, it demonstrates the
hypothesis of human reconstruction throught humanization and transcendence
process, at a postmodern condition, based on Wilber’s transpersonal psychology
conception that can be found in his and other authors’s works whose focus is the
human conscience and its evolutes stages.
Key words: humanism, humanization, consciousness levels, transcendence, Wilber’s
transpersonal psychology, postmodernity.
6
Sumário
Introdução---------------------------------------------------------------------------------------------------7
Capítulo I – Homem, humanismo e humanização, veredas: do mítico ao filosófico e à
psicologia transpessoal. --------------------------------------------------------------------------------- 19
I.1 – O homem no pensamento mitológico----------------------------------------------------------- 22
I.2 – Concepções sobre o homem no período pré-socrático.--------------------------------------- 24
I.3 – O homem no pensamento sofista---------------------------------------------------------------- 25
I.4 – O homem no pensamento socrático: o princípio do “conhece-te a ti mesmo”------------ 26
I.5 – Concepções do homem no mundo das idéias de Platão-------------------------------------- 28
I.6 - Aristóteles e suas contribuições para as questões do homem. ------------------------------- 31
I.7 – A época clássica à época helenística: mudanças no pensamento filosófico e suas
conseqüências na vida humana.------------------------------------------------------------------------ 35
I.7.1 – Desenvolvimento das ciências na época helenística e suas influencias na vida humana
-------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 38
I.8– Neoplatonismo em Plotino e influências na vida do homem--------------------------------- 40
I.9 – A era cristã e a ênfase filosófica na história do homem-------------------------------------- 44
I.9.1 – A filosofia patrística – uma elaboração cultural e a busca de uma síntese para a
compreensão do homem -------------------------------------------------------------------------------- 48
I.9.2 – A doutrina de Santo Agostinho e o sentido do homem religioso------------------------- 49
I.10 – Da patrística à escolástica – o início da filosofia medieval e suas influências no homem
-------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 51
I.10.1 – Santo Tomás de Aquino e o apogeu da escolástica medieval e o homem na visão
tomista ----------------------------------------------------------------------------------------------------- 53
I.10.2 – Primeiras investigações científicas na idade média e a busca da humanização fora do
eixo teológico--------------------------------------------------------------------------------------------- 55
I.11 – O pensamento humanista no renascimento--------------------------------------------------- 58
I.11.1 – O humanismo renascentista e a religião ---------------------------------------------------- 60
I.12 – A revolução científica e o homem como objeto de investigação-------------------------- 61
I.12.1 – As ciências humanas e os caminhos do homem na ciência moderna------------------- 63
I.13 – O humano da modernidade à pós-modernidade --------------------------------------------- 65
I.14 – Novas perspectivas na pós-modernidade: humanização e transcendência--------------- 67
Capítulo II – A humanização na pós-modernidade: a falta de sentido, a falta de unidade, o
esquecimento da transcendência e a busca de novos caminhos. ---------------------------------- 71
II. 1 – A modernidade, seus avanços e contradições.----------------------------------------------- 71
II. 2 – A pós-modernidade, seus paradoxos e possibilidades-------------------------------------- 77
II. 3 – O despertar de novos caminhos que apontam para a humanização----------------------- 89
Capítulo III – A reconstrução humana pelo processo de humanização e transcendência. Um
caminho pelas veredas de Wilber, em diálogo com outros autores, em busca do encontro do
humano com o divino.----------------------------------------------------------------------------------100
III. 1 – As ciências humanas e sociais e as escolas psicológicas na pós-modernidade e o
surgimento da psicologia transpessoal. --------------------------------------------------------------100
III. 2 – Conceito de consciência: perspectivas e desenvolvimento.------------------------------106
III. 3 – Humanização e transcendência: a recuperação e a reconstrução do sentido do humano
no encontro com o divino, na condição pós-moderna. --------------------------------------------112
Conclusão ------------------------------------------------------------------------------------------------138
Bibliografia básica: -------------------------------------------------------------------------------------155
7
Introdução
O propósito desse trabalho é investigar o processo da humanização e sua
relação com a transcendência, que se no momento numinoso, isto é, no
encontro do humano com o divino.
A proposta é estudar a relevância deste encontro nesta fase com a
humanidade repleta de fragmentações, dicotomias e também dissociações.
A consciência humana, em muitas situações, se encontra em um estado
crítico e carente de melhor sentido, principalmente em relação à dignidade do ser
humano e à preservação da vida.
Durante muitos anos vivencio o contato diário com diferentes indivíduos, suas
inquietações existenciais, crises de desenvolvimento, problemas que o homem vem
trazendo ao longo do tempo e da sua história.
Durante esses processos, tenho procurado perceber e observar a
potencialidade desses indivíduos, capaz de gerar movimentos internos de
transformações significativas para um sentido de vida com mais dignidade e
qualidade. Essa vivência motivou-me a trabalhar com o tema da pesquisa
Em paralelo, torna-se importante considerar também o meu próprio processo,
inquietações existenciais, buscas, caminhos de orientação, desenvolvimento e
crescimento pessoal, com diversas especializações, aperfeiçoamentos, olhos
voltados ao autoconhecimento, visando transformar os conhecimentos em
experiência de vida.
Paralelamente ao inicio do trabalho profissional, e, pude vivenciar momentos
significativos dos mais importantes em minha vida, através do meu encontro com a
espiritualidade, como momentos de “iluminação da consciência”.
Aos poucos, a orientação humanista e existencialista, obtida na formação
inicial acadêmica e outras especialidades no campo profissional, foi agregando
experiências pessoais, até chegar ao caminho da psicologia transpessoal.
Essa trajetória proporcionou e proporciona visões fecundas complementando
conhecimentos e esclarecimentos acerca de um ser humano, mais completo, pela
abrangência dos vários níveis de consciência de cada individuo, assim como suas
interações, num entrelaçamento de corpo, mente, emoções e nível espiritual.
Para desenvolver o tema da humanização e transcendência, o caminho a ser
percorrido estará contando, principalmente, com as contribuições de Ken Wilber que
é considerado um dos pensadores mais importantes da atualidade.
Como tratar esse tema requer um entendimento, histórico, filosófico e,
fundamentalmente, psicológico, para penetrar no pensamento psicológico
transpessoal é necessário de conhecer algumas passagens importantes, desde a
pré-modernidade, até a modernidade, até a pós-modernidade.
8
Essas passagens permitem trazer alguns esclarecimentos acerca da trilogia:
Homem, humanismo e humanização.
As contribuições dos filósofos gregos, com a clássica sabedoria antiga sobre
o conhecimento e o saber, tecem concepções importantes acerca dos problemas do
homem em seu processo histórico..
Alguns desses principais pensadores são citados, no intuito de ressaltar suas
interações com os estudos sobre a psique desde a antiguidade.
1
Em passagem pelo renascimento, surge a questão do humanismo através da
visão de outros importantes pensadores e as novas escolas científicas que iniciam a
era moderna, com destaque a alguns teóricos e movimentos significativos desse
período.
2
Através desses esclarecimentos, chegarmos à pós-modernidade, como um
processo que envolve o significado do homem, do humanismo, as desconstruções
humanas algo adesumano e suas possibilidades de um retorno, que permita
interagir e integrar o que de melhor tem acontecido, superando as fragmentações e
dicotomias ocorridas.
O referencial teórico principal em nosso trabalho, Ken Wilber, constrói seu
pensamento com fundamentos e concepções do oriente e do ocidente, desde as
tradições clássicas antigas, até abordar autores contemporâneos, indo da pré-
modernidade à pós-modernidade.
Como contribuição à psicologia transpessoal, Wilber trafega desde a
construção e desenvolvimento do espectro da consciência, até, mais atualmente,
uma abordagem integral.
Em sua obra, um movimento constante de integrar o sentido psicológico,
como possibilidade de vir instaurar a ordem na vida humana através de um caminho
que também traga contribuições à humanidade. A consciência, portanto, se torna
seu principal enfoque, inicialmente, capaz de operar esse caminho de integração.
1
As pesquisas realizadas para compor o texto foram referenciadas nas principais obras: REALE, Giovanni e
ANTISSERI, Dario, História da filosofia vols. 1, 2, São Paulo: Paulus, 1990 e 2004; CHAUI, Marilena, Convite
à filosofia, São Paulo: Ática, 2005; CHALITA, Gabriel, Vivendo a filosofia, São Paulo: Ática, 2005; Coleção OS
PENSADORES, São Paulo: Nova Cultural, 1996 e 1999; ABBAGNANO, Nicola, Dicionário de filosofia, São
Paulo: Martins Fontes, 1999; PACHECO, Mario, Humanismo in: Logos, enciclopédia luso-brasileira de
filosofia, verbo vol. 2, 1997; CABRAL, Roque, Enciclopédia luso-brasileira de filosofia, Lisboa/São Paulo:
Editora Verbo, 1990; QUEIROZ, José J., Filosofia da diferença e identidades culturais, São Paulo: Eccos
Revista científica vol. 3, n. 1 (junho de 2001); PLOTINO, Vida e obra, Tratado das Enéadas, São Paulo: Polar
Editorial & Comercial, 2002; EDINGER, Edward F., A psique na antiguidade livros 1 e 2, São Paulo:
Cultrix,1995.
2
Pesquisas realizadas através das obras: REALE, Giovanni e ANTISSERI, Dario, História da filosofia vol. 3,
2004; CHAUI, Marilena, Convite à filosofia, 2005; SIMÕES, Galvão Roberto Carlos, O humanismo de Jacques
Maritain e a educação,WWW.pedagobrasil.com.br/pedagogia/ohumanismo.htm, obtido em 03 de fevereiro de
2006; CHALITA, Gabriel, Vivendo a filosofia, 2005; WILBER, Ken, Psicologia integral, São Paulo: Cultrix,
2000; WILBER, Ken, O espectro da consciência, São Paulo: Cultrix, 2000; GREENING, Thomas C. (org.),
Psicologia existencial humanista, Rio de Janeiro: Zahar, 1975; TABONE, Marcia, A psicologia transpessoal,
São Paulo: Cultrix, 2001.
9
A abordagem, que fundamenta nosso trabalho encontra-se no livro O
espectro da consciência
3
que propõe uma psicologia do desenvolvimento da
consciência humana como uma cartografia arquitetada em diversos níveis, como
bases e propostas de sua teoria.
Em outro livro, Psicologia integral
4
, numa fase posterior, Wilber propõe um
desafio à psicologia, de maneira integral com o trabalho sobre consciência humana,
interagindo todos seus níveis, fundamentados por concepções entre a era pré-
moderna e moderna. Ele apresenta a “arqueologia do espírito” como visão
significativa pós-moderna para a reconstrução humana.
Trabalhar as contribuições de Wilber sobre espiritualidade se torna
importante, para agregar o nível de consciência espiritual, aos demais níveis de
consciência do individuo.
Essa consciência do nível espiritual permite um encontro do humano com o
divino, de acordo com as condições evolutivas dos outros níveis e também de
acordo com as condições de desenvolvimento em se encontram.
Em outra de Wilber, que propõe uma interação melhor entre ciência e religião,
sob o título A união da alma e dos sentidos
5
, encontramos sua visão sobre “A
Grande Cadeia do Ser” como uma filosofia perene e sua relação com os níveis
de consciência humana para a formação de um ser humano mais inteiro, assim
como a importância de integrar ciência e religião nesse caminho.
Em outra de suas obras, intitulada O olho do espírito
6
, Wilber focaliza os três
tipos de olhar para as questões humanas e da vida, através da ótica do olho da
carne, do olho da mente e do olho do espírito, como visões complementares de
conceber as questões em torno do Bem (como olhar da moral), o Verdadeiro (como
olhar da ciência) e o Belo (como o olhar das artes), integrando-se à vida humana.
Essa visão de Wilber, que penetra na experiência interior e exterior do ser
humano é significativa para “um mundo que ficou ligeiramente louco”, segundo as
próprias palavras do autor.
7
Sobre transcendência, na atual área da psicologia transpessoal, alguns
autores muito importantes em suas concepções, estão presentes para dialogar com
nosso autor principal.
Em uma das mais tradicionais de sua obra: As variedades da experiência
religiosa
8
, James nos reporta à importância da vivencia interior do divino, presente
na natureza humana, como “uma experiência de religiosidade imanente no ser
humano”.
3
WILBER, Ken, O espectro da consciência, São Paulo: Cultrix, 2000.
4
WILBER, Ken, Psicologia integral, São Paulo: Cultrix, 1999.
5
WILBER, Ken, A união da alma e dos sentidos, São Paulo: Cultrix, 1997.
6
WILBER, Ken, O olho do espírito, São Paulo: Cultrix, 1995.
7
Ibid, p. 46.
8
JAMES, William, As variedades da experiência religiosa, Rio de Janeiro: Vozes, 1999.
10
Jung
9
considera a experiência do divino como “uma função psíquica, natural e
inerente à psique”.
Outras importantes contribuições estão sendo consideradas nesse trabalho
sobre humanização e transcendência.
Vale lembrar, no campo da psicologia humanista e existencialista, algumas
contribuições do psicólogo americano Rollo May que, em meados do século
passado, nos oferece reflexões permanentes. Nessa oportunidade, dizia May:
“vivemos o fim de uma era que acentuou o racionalismo e o individualismo e que
está sofrendo uma transição interna e externa e, por enquanto, encontra-se em
estado de esmaecidos presságios, parcialmente conscientes do que poderá ser a
nova idade”.
10
Contamos com algumas inserções no campo social, interagindo questões
psicossociais, importantes ao nosso tema. Citamos as contribuições de Franco
Crespi
11
sobre as questões em torno da relação indivíduos e grupos sociais e a
dificuldade em encontrar referencia de sentido mais unitário e coerente. Crespi
propõe um modelo mais integralizado, do que apenas institucional, ao se referir à
experiência humana relacionada ao sentido do divino.
Wilber em sua obra Um Deus Social
12
, se refere às contribuições
psicossociais ao processo de humanização, como fator de sustentação ao indivíduo
em sua formação e na integração de seus níveis de consciência.
Fazemos também referencias ao pensador pós-moderno, nas questões
sociais, Stuart Hall
13
e suas contribuições significativas em torno da questão sobre a
identidade na cultura pós-moderna.
Incluo também as contribuições sobre a pós-modernidade de José J. Queiróz.
A psicologia transpessoal considera importantes as várias contribuições
recentes em alguns campos da ciência e do saber, principalmente em torno de
pesquisas com a consciência humana.
14
Uma dessas pesquisas científicas, no campo das neurociências, tece
referencias sobre a experiência religiosa e suas manifestações cerebrais. O trabalho
do neurocirurgião brasileiro Raul Marino Jr.
15
traz descobertas sobre a questão da
e contribui para nossa pesquisa em torno do encontro do humano com o divino.
Numa perspectiva sobre experiência religiosa numa visão fenomenológica da
transcendência, contamos com contribuições de Aldo Natale Terrin em sua obra O
9
JUNG, C. G., Psicologia e religião, Rio de Janeiro: Vozes, 1999.
10
MAY, Rollo, Poder e inocência, Rio de Janeiro: Vozes, 1969, pp. 324 – 325.
11
CRESPI, Franco, A experiência religiosa na pós-modernidade, Santa Catarina: EDUSC, 1999.
12
WILBER, Ken, Um Deus social, São Paulo: Cultrix, 1999.
13
HALL, Stuart, A identidade cultural na pós-modernidade, Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2005.
14
TABONE, Marcia, A psicologia transpessoal, São Paulo: Cultrix, 2001.
15
MARINO, Raul Jr., A religião do cérebro, São Paulo: Editora Gente, 2005.
11
sagrado off limits
16
, que critica o reducionismo do sagrado e abre caminhos para
uma nova era rumo à transcendência.
Outra importante contribuição da psicologia humanista e existencial é de A.
Maslow, considerado intermediário entre a psicologia humanista e a transpessoal.
Suas principais obras são citadas ao longo do trabalho.
Um dos mais significativos psicólogos da atualidade dentro da psicologia
transpessoal, Stanislav Grof, profundo pesquisador da consciência humana trará
importantes contribuições com sua principal obra A mente holotrópica
17
.
Ao longo desse trabalho, outros pensadores estarão dialogando com Wilber,
na tentativa de traçar um caminho para o processo da humanização e
transcendência. O momento atual, neste inicio de século e milênio, parece pertinente
para relevar a importância desse tema, como um dos estudos sobre as intrigantes
questões e problemas humanos que envolvem o processo de humanização.
O processo da humanização implica no desenvolvimento ativo da consciência
e, suas ações mentais que envolvem as atitudes do indivíduo, sua conduta perante a
coletividade, como exercício de cidadania meio em que vive.
Não é sem tempo que precisamos de ações mais profícuas que possam
promover transformações significativas na vida humana, em relação a cada
indivíduo, deste para o coletivo e se propagar, dando maior sentido à vida em
comunidade, de maneira que sua proliferação possa transformar também a
sociedade, a cultura, quiçá, o planeta.
O ser humano tem vivido ainda sob o impacto de um materialismo e
reducionismo dominantes e bastante observados na conduta dos indivíduos nas
diversas condições do cotidiano.
A orientação de vida ainda vigente e acentuada ainda é aquela que, pelos
vários padrões e condicionamentos adquiridos, estabelece, não raras vezes, uma
“orientação de fora para dentro”. Essa influencia proporciona um estado confuso
tanto das questões internas, como externas, e que permeiam o comportamento das
pessoas.
Esses condicionamentos se tornam hábitos comuns, por vezes, até mesmo
crenças, e geram padrões de comportamentos que projetam, não raras vezes, a
responsabilidade para outras pessoas, ou ao meio, transferindo assim, aquilo que a
cada indivíduo pertença.Essas ocorrências sugerem mais uma “desorientação” das
pessoas, demonstrando em que condições atuais as mesmas se encontram.
situações de comportamentos agressivos e violentos adotados pelos indivíduos em
muitas dessas situações. Isso demonstra modelos e referenciais fragmentados,
distorcidos, principalmente em relação aos valores que norteiam as condutas dos
indivíduos.
16
TERRIN, Aldo Natale, O sagrado off limits, São Paulo: Loyola, 1998.
17
GROF, Stanislav, A mente holotrópica, Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
12
A saúde mental humana parece estar bastante doente. A consciência humana
que, como uma bússola, pode nortear o comportamento dos indivíduos, parece se
encontrar em condições precárias.O ser humano tem demonstrado ainda muito
desconhecimento acerca de si mesmo, de seus valores, enfim, de uma consciência
capaz de se desenvolver mais lúcida, diante das vicissitudes da vida. Isso nos leva a
questionar em que medida essa potencialidade preservada da natureza humana
vem se desenvolvendo satisfatoriamente.
Nessa perspectiva, é possível que o ser humano possa restabelecer sua
conduta, ao restabelecer sua ordem interna. Isso implica em transformar e “iluminar”
conscientemente seu desenvolvimento e produzir ações conscientes mais profícuas,
também procurando restabelecer a ordem externa através de sua conduta no meio
que vive.
O individuo como um ser bio-psico-social se desenvolve pela sua auto-
realização como ser autotranspessoal, através de sua re-ligação com o divino, em
sua condição existencial de ser-em-si e ser-no-mundo.
Essa transcendência diz respeito às questões espirituais e ao senso de
religiosidade na formação dos indivíduos, de maneira que contribuam ativamente
com o processo de humanização e transcendência.
O modelo materialista e reducionista ainda predominante em nossas
importantes instituições tem demonstrado ignorar e desconsiderar assuntos
relevantes ao processo de humanização; revela indiferença e, muitas vezes, rejeição
desses fatores o fundamentais para a formação e o devido preparo dos indivíduos
em diversos segmentos e atividades, notadamente observados nos dias atuais.
O panorama pós-moderno reporta-nos a indivíduos capacitados
intelectualmente, social e culturalmente, porém, com acentuadas dificuldades em
lidar com suas questões próprias, internas; eles manifestam uma consciência
limitada.
Podemos também, para a construção de uma nova era contar com indivíduos
conspiradores, com mentes inquietantes e questionadoras, que, em seus níveis de
consciência, consideram o desenvolvimento e a evolução do ser humano como um
empreendimento e uma aventura em busca de sua individuação, auto-realização e
auto-transcendência, transformando conhecimentos e saber adquiridos, em
experiência construtiva e produtiva de vida.
o é sem tempo querer investir no humano. Afinal, somos responsáveis
por aquilo que venha resultar de nossas próprias ações, em nossas condutas.
Parece até um paradoxo falar em “humanizar o humano”, porém, não é
possível ficar imune diante de uma “epidemia”. E, a epidemia mais sistêmica no
momento, atinge os próprios indivíduos; o que tem feito de suas vidas, da vida em
comunidade, e da própria situação em que se encontra o planeta.
13
O momento, embora diante de situações críticas, também se apresenta
repleto de oportunidades. Não é possível que tenhamos vindo de tão longe e de tão
sábios conhecimentos, que não possamos reconstruir melhor nossa história.
Atualmente, dispomos de muitas mudanças, novos paradigmas que surgem e
contemplam caminhos para um sentido mais profundo e verdadeiro sobre
humanização e transcendência: uma relação que pode dar certo!
O que nos move e motiva, é confiar nas possibilidades e oportunidades de
encontrar melhores condições para as transformações necessárias. Temos
consciência de que o trabalho é grande e têm seu tempo de semeadura, de
germinação e colher seus frutos. Apenas, procuramos fazer nossa parte, como uma
parcela dessa grande empreitada.
Acreditamos que essas sementes, plantadas hoje, fornecerão os bons frutos
que podemos colher amanhã!Nossas sementes trazem como objeto de pesquisa
trabalhar o processo da humanização e transcendência.
Embora o tema humanização seja abrangente, consideramos possível
estabelecer demarcações em nossa pesquisa, na medida em que adotamos o viés
da psicologia transpessoal e a visão de um de seus principais representantes, Ken
Wilber, com as contribuições de outros significativos pensadores.
Humanização e transcendência, portanto, significam, neste contexto, um
processo desenvolvido pelo ser humano, à partir de suas próprias potencialidades
naturais que, agregadas às experiências adquiridas e bem trabalhadas, possam
conceber um desenvolvimento melhor integrado em seus níveis de consciência, de
maneira a recompor o sentido do humano.
A transcendência representa a capacidade humana de re-ligar-se, pelo senso
da espiritualidade, ao divino, de maneira mais profunda e fidedigna, que possa
tornar também capaz de melhor efetivar a condição de dignidade e humanidade do
ser em si e no mundo.
Nosso objeto de pesquisa propõe, fundamentalmente, possibilidades de
mudanças significativas na mentalidade e conduta do ser humano, pela iluminação e
ampliação de sua consciência, capaz de gerar ações profícuas, com vistas a novos
rumos nesse inicio de milênio.
Outra importante consideração, relativa ao objeto, diz respeito ao período que
estamos abordando o tema. Embora nos reporte a algumas concepções da pré-
modernidade e modernidade, nosso propósito maior situa-se na pós-modernidade,
mais especificamente, nesse inicio do terceiro milênio, um período em que parece
desabrochar uma nova era para a humanidade.
Para desenvolver nosso objeto de pesquisa em torno da humanização e
transcendência, levantamos uma primeira pergunta: como entender homem,
humanismo e humanização em seu processo histórico e como nesse processo
14
estariam as bases da teoria fundamental da nossa pesquisa, a psicologia
transpessoal.
Uma segunda questão diz respeito ao contexto atual no qual pretendemos
focalizar o processo de humanização e transcendência. Esse contexto nós o
denominamos, com vários autores, de condição pós-moderna. Como entendê-la,
quais os problemas e possibilidades que ela apresenta para o processo da
humanização e transcendência?
Como nossa escolha em estudar e pesquisar o tema da humanização e
transcendência tem como mediação o pensador contemporâneo, Ken Wilber e a
psicologia transpessoal, interrogamos também: quais as características e as
possibilidades que essa psicologia oferece para o encontro do humano com o divino
e quais os benefícios que esse encontro traz para a evolução do ser humano?
Essas questões pretendem nortear o desenvolvimento desse trabalho em
torno do tema proposto, de maneira que possa propiciar a busca de respostas,
elucidar e abrir pistas para o processo de humanização.
Nossa pesquisa em torno da questão da humanização e transcendência, e
como se essa relação, nos permite, inicialmente, propor a hipótese de que esse
processo e sua relação podem acontecer na linha do pensamento de Wilber,
principalmente em sua fase inicial de construção de sua teoria, pelo
desenvolvimento dos níveis da consciência humana, integrando o desenvolvimento
da espiritualidade.
A ênfase dada ao desenvolvimento do espectro da consciência, em seus
diferentes níveis, um dos pontos centrais da teoria de Wilber, se constitui num dos
pontos principais de nosso trabalho. A interação e a busca de uma melhor
integração dos vários níveis de consciência, integrando o nível espiritual,
contemplam a formação de um ser humano mais inteiro.
A psicologia transpessoal, considerada como a “quarta força em psicologia”
18
,
e algumas contribuições significativas de um dos seus representantes, Wilber, como
também o diálogo com outros pensadores importantes dessa nova abordagem, nos
permitem levantar outra hipótese.
Essa vem complementar a anterior, no que tange ao encontro do humano
com o divino e seus benefícios para a evolução humana, na condição pós-moderna.
A orientação de vida e seu direcionamento voltado para o processo de
humanização através da interação e entrelaçamento dos níveis pessoais e
transpessoais do individuo traz reais possibilidades da pessoa poder vir
administrar melhor suas questões fragmentadas, dicotomias e crises existenciais, de
maneira a poder reconstruir um sentido mais autentico para sua vida pessoal e
18
Citação de Marcia Tabone ao se referir à psicologia transpessoal “como uma abordagem recente e muito
importante, que surgiu nos Estados Unidos nos anos sessenta (do século XX), a partir de um movimento que se
tornou conhecido como a quarta força em psicologia, após o behaviorismo, a psicanálise e a psicologia
humanista. TABONE, Marcia, A psicologia transpessoal, p. 18.
15
social. Essa interação potencia a capacidade humana de transcender, aproximando-
se sempre mais da unidade matéria, corpo, mente, espírito, na relação individuo-
sociedade.
O primeiro resultado concreto que esperamos alcançar é mostrar a
importância do desenvolvimento da consciência humana e sua integração com a
espiritualidade, como processo de humanização e transcendência, com vistas a
obter resultados satisfatórios e benéficos em lidar com as fragmentações e
dicotomias do ser humano, face às questões da própria vida.
Outro resultado é propor a aproximação do humano com o divino como um
“diferencial” significativo ao processo de humanização porquanto, ao realizar
desenvolvimento psíquico e espiritual propicia uma visão holística do ser humano.
Também consideramos como propósito neste trabalho, esclarecer que o
processo da humanização e da transcendência, à luz da psicologia transpessoal, ao
integrar melhor em seus principais níveis de consciência, matéria, corpo, alma e
espírito trazem benefícios pela possibilidade de lidar com mais propriedade com as
questões individuais, sociais, culturais.
Nosso quadro teórico, como foi dito, concentra-se nos estudos e pesquisas
de Ken Wilber no campo da psicologia transpessoal, principalmente em torno de sua
teoria sobre o espectro da consciência, em que cada parte do universo traz
informações sobre todo universo, assim como cada parte constitutiva do ser humano
como um sistema em sua totalidade emerge da interação dos níveis de
consciência de maneira interligada e interdependente e, que qualquer alteração em
uma ou mais de suas partes, podem vir afetar outras e, até mesmo seu sistema
como um todo.
Essa teoria pretende superar o modelo de homem fragmentado, com suas
dicotomias e reducionismo, como um modelo da modernidade tardia baseada na
orientação mecanicista-materialista-positivista, herdado do paradigma newtoniano-
cartesiano.
A palavra humanização pode sugerir vários significados, de acordo com a
abordagem a ser utilizada.
Nossa pesquisa pretende tratar a humanização como um processo, pelo
desempenho ativo conferido ao sentido inteligente e criativo do continuum da psique.
Esse desempenho ativo é considerado como ação movimento no
desenvolvimento da consciência humana e sugere, portanto, que se estabeleça
ações mais integradas na conduta do individuo em seu processo de humanização.
A transcendência, no âmbito do sentido evolutivo do processo de
humanização sugere a capacidade de “transcender o ego”.
19
Transcender o ego implica numa ampliação da identidade, pelo chamado
nível transpessoal do ser humano faixa intermediária entre o nível existencial e da
19
WILBER, Ken, O espectro da consciência, São Paulo: Cultrix, 2001, p. 21.
16
mente (unidade) e que possibilite uma expansão dessa identidade para além da
individualidade.
20
O viés da psicologia transpessoal traz uma nova visão ao tratamento da
transcendência no processo da humanização, pela viabilidade com o diálogo e
integração da antiga sabedoria dos grandes sistemas espirituais do mundo, com o
pragmatismo da ciência ocidental.
21
O processo da humanização e transcendência fundamenta-se, basicamente,
nas pesquisas e estudos sobre a psique desde a antiguidade e, atualmente, sobre a
consciência e seus diferentes níveis, cujo desenvolvimento evolucionário é feito pelo
entrelaçamento e interação desses níveis, de maneira que cada nível posterior
(superior) abarca o anterior (inferior) e, assim, sucessivamente, na busca em
promover uma melhor integração de todos os seus níveis.
22
O desenvolvimento e expansão dos níveis de consciência no processo de
humanização, ao proporcionar a capacidade de transcendência do individuo, torna-o
também capaz de uma experiência interior e uma vivencia da espiritualidade,
mediante o encontro do humano com o divino.
Para compreendermos melhor o sentido da humanização abordado no
presente trabalho, faremos considerações das principais categorias que estão sendo
pesquisadas e estudadas, contemplando o pensamento de alguns autores e, suas
respectivas contribuições para esse fim.
O positivismo cientifico e materialista, como modelo vigente na cultura
ocidental nos dois últimos séculos, não conseguiu frear o avanço no campo dos
estudos e pesquisas voltados às questões humanas, notadamente a partir da
segunda metade do século XX.
Na psicologia, o advento das escolas humanistas começou abrir perspectivas
para uma valorização do humano, de um lado, como um retorno às antigas tradições
do conhecimento e de outro, abrindo pistas para um significativo avanço científico
em tratar do conhecimento acerca das questões humanas na atualidade.
Em meio a esse considerável avanço, surge a chamada “quarta força em psicologia”:
a psicologia transpessoal.
23
A psicologia transpessoal constitui-se em uma abordagem de interação dos
principais conceitos e pensamentos das escolas filosóficas clássicas do ocidente e
dos principais conceitos e ensinamentos das tradicionais escolas do oriente,
buscando integrá-los com a perspectiva da espiritualidade como transcendência
humana.
Com essa concepção sobre a totalidade da consciência humana, concebida
através de vários níveis e seu entrelaçamento em continua interação, ela desenvolve
20
TABONE, Marcia, A psicologia transpessoal, São Paulo: Cultrix, 2001, p. 87.
21
GROF, Stanislav, A mente holotrópica, Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 10.
22
WILBER, Ken, A união da alma e dos sentidos, São Paulo: Cultrix, 1997, p. 13.
23
TABONE, Marcia, A psicologia transpessoal, p. 18.
17
seu próprio sistema, que vem sendo estudado e pesquisado visando à elaboração
de novos conceitos e teorias que propiciem uma melhor compreensão sobre o
processo da humanização, mediante experiências estabelecidas nas esferas
inconscientes e conscientes, como um continuum do psiquismo humano.
Para compreender melhor sobre a totalidade da consciência na construção do
processo da humanização e transcendência, consideramos a “psicologia do
espectro” the spectrum of consciosness desenvolvida por Ken Wilber, como a
teoria fundamental em cujos aspectos multidimensionais nos orientam neste trabalho
de pesquisa, e como abordagem de grande importância para a psicologia
transpessoal.
24
Mais detalhes sobre o quadro teórico, que pretendemos trabalhar, aparecerão
nos capítulos segundo e terceiro dessa dissertação.
A metodologia utilizada no presente trabalho concentra-se na revisão
bibliográfica, por ser uma investigação teórica, sem trabalho de campo.
A bibliografia selecionada para nossa pesquisa tem como fonte primária
algumas obras do pensador Ken Wilber, em algumas de suas fases, e que estarão
servindo de suporte teórico o tema humanização e transcendência, pelo viés da
psicologia transpessoal.
Como fontes secundárias, utilizaremos outras contribuições de diversos
autores como William James, A. Maslow, C. G. Jung, Rollo May, Stanislav Grof,
Marcia Tabone, Raul Marino Junior, Aldo Natale Terrin, Franco Crespi, Stuart Hall,
José J. Queiroz, e outros pensadores, filósofos, psicólogos, sociólogos, etc., com o
propósito de interagir e dialogar com o pensamento do autor principal.
Faremos seleção de textos, análise e interpretação dos mesmos, e das idéias
que eles contêm, e utilização deles no desenvolvimento dos capítulos.
O corpo da dissertação se organiza nos seguintes capítulos:
No primeiro capítulo Homem, humanismo e humanização, veredas: do mítico
ao filosófico e à psicologia transpessoal, o enfoque em torno do homem segue pelas
veredas do pensamento mitológico, até o pensamento filosófico das principais
escolas clássicas gregas e as concepções sobre a psique na antiguidade.
Em meio ao nascimento da ciência moderna, surge o movimento
renascentista que contempla as visões sobre o humanismo, influenciando as
primeiras concepções da psicologia como ciência. O processo histórico sobre a
trilogia homem, humanismo, humanização chega até a pós-modernidade, com o
propósito de trabalhar a relação da humanização com a transcendência como uma
reconstrução humana na condição pós-moderna.
No segundo capítulo, com o título: A humanização na pós-modernidade: a
falta de sentido, a falta de unidade, o esquecimento da transcendência e a busca de
novos caminhos, buscamos trazer, principalmente, os acontecimentos e mudanças
24
WILBER, Ken, O espectro da consciência, São Paulo: Cultrix, 2000, p. 18.
18
que foram ocorrendo na psique humana em momentos significativos desse processo
histórico das veredas do homem.
Essas influências na vida humana são constatadas, como conseqüências
históricas na era moderna, através das transformações ocorridas na psique humana,
demonstrando suas contradições, seus avanços, seus paradoxos e também
possibilidades, gerando fragmentações e dicotomias, ao mesmo tempo, apontando
para novos caminhos para a humanização e transcendência na condição s-
moderna, através do viés da psicologia transpessoal.
No terceiro capítulo, A reconstrução humana pelo processo de humanização e
transcendência. Um caminho pelas veredas de Wilber, em diálogo com outros
autores, em busca do encontro do humano com o divino, focaliza as possibilidades
de um caminho para a reconstrução humana na condição pós-moderna,
fundamentadas, principalmente, na psicologia transpessoal.
As contribuições das ciências humanas e sociais, assim como das escolas
psicológicas na pós-modernidade, possibilitaram um suporte teórico para traçar esse
caminho de reconstrução humana. Os estudos e as pesquisas sobre a consciência –
um dos principais pilares desse trabalho trouxeram suas perspectivas e
desenvolvimento, capazes de contribuições significativas para trabalhar os níveis de
consciência, suas interações e evolução no processo de humanização e
transcendência, e, o encontro do humano com o divino na construção pós-moderna.
Todos esses caminhos percorridos tornaram possíveis construir um trabalho
que visa possibilidades ao processo de humanização e transcendência, promover o
encontro do humano com o divino, pela recuperação dos valores e sentido que o ser
humano possa desenvolver na sua condição pós-moderna.
19
Capítulo I Homem, humanismo e humanização, veredas: do mítico ao
filosófico e à psicologia transpessoal.
A construção dos conceitos de homem, humanismo e humanização insere-se
numa evolução, desde a antiguidade até os dias atuais.
Neste universo repleto de idéias, temas e problemas em torno do homem,
procuramos destacar as principais concepções e seus pensadores que, ao longo da
história, trouxeram importantes contribuições na busca pelo conhecimento e pela
sabedoria. Uma postura critica se torna saudável, unida à vontade de refletir e
estudar o tema, como parte significativa de um aprendizado sobre as questões
humanas e o humanismo no mundo em que vivemos.
Nosso propósito, neste capitulo introdutório, é trazer as principais
concepções, em seu processo evolutivo.
Iniciamos nossa trajetória com algumas passagens anteriores ao nascimento
da filosofia, cuja ênfase é o sentido do imaginário, que permeava o pensamento do
homem nos mitos e seus deuses, historias transmitidas entre os povos e suas
gerações, que deram origem ao pensamento mitológico.
Observamos também a presença de algumas correspondências com os
povos do oriente, que mostravam alcançar níveis elevados, mesmo antes dos
gregos. Embora não tenham encontrado maior ressonância para o desenvolvimento
da filosofia antiga, não se pode deixar de citar suas contribuições, principalmente ao
sentido transcendental do homem, embora a superioridade dos gregos em termos
qualitativos tenha sido fundamental na criação da filosofia e sua importância no
ocidente.
A filosofia, cuja palavra significa “amor pela sabedoria” (significado que
parece ter sido atribuído a Pitágoras), nos permite encontrar, desde os seus
primórdios, uma explicação do principio das coisas, tendo como objeto a totalidade
da realidade e do ser.
25
A investigação filosófica na antiguidade, em torno do pensamento, da cultura
e da sociedade, alcança seu apogeu no período da Grécia clássica, através das
25
REALE, Giovanni e ANTISSERI, Dario, História da filosofia, vol. 1, São Paulo: Paulus, 1990, p. 21
20
obras de Platão e Aristóteles, porém, se torna importante uma visão panorâmica dos
principais períodos da evolução do pensamento sobre o homem, o humanismo e a
humanização para melhor compreensão da pesquisa proposta. O objetivo é mostrar
que a psicologia transpessoal, onde se localiza o objeto da nossa pesquisa, é
herdeira desse processo evolutivo.
O primeiro período a ser considerado encontra-se entre o final do século VII
ao final do século V a.C. chamado pré-socrático ou cosmológico, no qual os
problemas e indagações giravam em torno da origem do mundo e a busca pela
compreensão da natureza e as causas de suas transformações, e os seres humanos
e sua evolução se fazem presentes como parte da reflexão sobre a natureza, a
origem e o devir de todas as coisas.
Um segundo período, chamado de socrático ou antropológico, que vai do final
do século V e abrange todo século IV a.C., é uma fase significativa para a nossa
pesquisa, pois ocorrem investigações em torno das questões humanas, com ênfase
nos estudos antropológicos (ântropos = homem), na ética, na política, buscando pela
compreensão da importância do homem no mundo.
Outro período significativo situa-se do final do século IV ao final do século III
a.C., no qual se dá uma sistematização do pensamento filosófico em torno do
mundo, do homem e de Deus. O conhecimento humano e seu agir no mundo são
investigados em profundidade. Essa grande busca do conhecimento, no sentido de
encontrar o fundamento de todas as coisas e da realidade como um todo, algum
tempo depois vem a ser chamada de metafísica.
O período chamado helenístico, que implica também na civilização greco-
romana, ocorre entre o final do século III a.C. e o século VI d.C., abrangendo uma
longa fase desde a decadência da Grécia e o domínio romano e o aparecimento do
cristianismo. Os temas investigados versam sobre as questões do conhecimento
humano, da ética, das relações do homem com a natureza, e com Deus.
A chamada filosofia patrística, que vai do século I ao século VII, tem como
autores principalmente os padres da igreja, que o os mentores da doutrina e da
política do cristianismo, como nova religião, buscando conciliar seus dogmas com o
pensamento filosófico dos gregos e dos romanos, com a tarefa de evangelização
cristã e de combate às teorias e à moral do paganismo contrários à visão cristã.
Da era patristica, passamos para a era medieval (século VIII ao século XIV),
na qual vamos encontrar pensadores europeus, árabes, judeus e cristãos. Nessa
21
época foram criadas escolas e universidades ligadas à igreja, e a filosofia aristotélica
- tomista passa a ser conhecida com o nome de escolástica.
O final da era medieval dá lugar ao período da renascença, que vai do século
XIV ao século XVI, que traz um marco na redescoberta da cultura clássica pagã
grega e romana que havia sido marginalizada na idade média. O humanismo se
torna um dos ápices do renascimento, ocupando o lugar teológico reservado a Deus,
o homem é valorizado como centro do universo, e o mundo gira em torno de sua
liberdade e de seu poder criador de operar transformações significativas.
A filosofia e as crenças que surgem entre o século XVII e meados do culo
XVIII, dão inicio à chamada era moderna com o predomínio do racionalismo clássico,
cujo período é permeado por grandes mudanças, principalmente no que se refere ao
chamado ceticismo ocorrido através de um pessimismo teórico entre o final do
século XVI e inicio do XVII buscando recuperar o ideal filosófico do conhecimento
racional verdadeiro e universal.
Ainda no chamado modernismo, consideramos a época do chamado
iluminismo, entre meados do século XVIII e inicio do culo XIX, marcado por um
período racionalista, onde a razão é colocada como sendo “as luzes” desse
movimento, de onde surge o nome iluminismo.
A era contemporânea surge em meados do século XIX e vem até os tempos
atuais. Esse período é marcado por uma complexidade e diversidade entre posições
filosóficas. Apesar disso, o século XIX pode ser considerado como o marco da
descoberta da história do homem, da sociedade, das ciências e das artes.
Finalmente, a pós-modernidade. Considera-se que chegamos ao período da
pós-modernidade a partir dos anos cinqüenta do século XX, uma época também
chamada de pós-industrial, que critica e chega a recusar as idéias modernas, em
especial à razão como fundamento único do conhecimento e da pratica. O
“logocentrismo” é acusado de eliminar a diferença e transformar em instrumento de
dominação.
26
Na passagem da modernidade à pós-modernidade, chegamos à psicologia
transpessoal que, em parte, recolhe o que de perene no pensamento antigo,
clássico, moderno e, à partir deles, constrói a sua visão de homem, humanismo e
26
Cf. QUEIROZ, José J., Filosofia da Diferença e Identidades Culturais, São Paulo: Eccos Revista científica v.
3, n. 1 (junho de 2001), pp. 25 – 40.
22
humanização, na qual ocupa lugar preeminente a transcendência ou o encontro do
homem com o divino.
Com essa introdução histórica, buscaremos trabalhar a questão do homem,
do humanismo e da humanização.
I.1 – O homem no pensamento mitológico
Antes do nascimento da filosofia, o pensamento do homem era povoado pelo
imaginário, principalmente em relação aos mistérios da natureza, a ocorrência de
seus fenômenos e as influencias que estes causavam nas condições humanas da
época.
Através do imaginário, o homem procurava explicar fenômenos naturais
incompreensíveis, recorrendo aos mitos e ao sobrenatural.
O contato com a sabedoria oriental, através das viagens empreendidas pelos
gregos, fez com que ocorresse a recepção de mitos, cultos religiosos, instrumentos
musicais, dança, a música, poesia e outras formas de cultura, que influenciaram a
civilização grega antes do surgimento da filosofia.
A mitologia e o pensamento mitológico nasceram então, muito por influencia
dos mitos e das religiões dos povos orientais. A palavra mito passou a significar para
os gregos narrativas que eram transmitidas oralmente, que os ouvintes recebiam
como fatos verdadeiros.
27
Os “deuses”, como entidades superiores, tornaram-se mitos que povoaram o
pensamento e o imaginário dos gregos. Eles se manifestavam nos vários fenômenos
da natureza, e, surgiram narrativas sobre a origem deles e a influencia que exerciam
na vida dos indivíduos, principalmente pela semelhança das suas manifestações
com as ações humanas.
Na época dos mitos havia uma estreita relação entre o homem e a natureza, e
entre os seus fenômenos, e a busca pelo entendimento do sentido das coisas e das
ações humanas.
27
CHAUI, Marilena, Convite à filosofia, São Paulo: Ática, 2005, pp. 33 - 35
23
Os gregos criaram um grande número de divindades, deuses e deusas
considerados imortais e dotados de grandes poderes. Embora esses mitos
representassem uma realidade misteriosa para o homem, na mitologia havia uma
tentativa de explicar a realidade através da relação homem divindade, mediante
uma experiência religiosa que antecedeu as explicações racionais da filosofia.
Consideramos importante ressaltar, neste período, o significado da presença
dos mitos e de seus valores culturais na experiência religiosa, principalmente no que
diz respeito ao sentido da transcendência e da relação humana com o divino. Esse
sentido permanece até os dias de hoje, embora assumindo novas conotações e
perspectivas.
O contato com a sabedoria oriental, através das viagens empreendidas pelos
gregos, fez com que ocorresse a recepção de mitos, cultos religiosos, instrumentos
musicais, dança, a música, poesia e outras formas de cultura, que influenciaram a
civilização grega, antes do surgimento da filosofia.
A mitologia e o pensamento mitológico nasceram, então, muito por influencia
dos mitos e das religiões orientais. A palavra mito passou a significar para os gregos,
narrativas que eram transmitidas oralmente, que os ouvintes recebiam como fatos
verdadeiros.
28
Os “deuses”, como entidades superiores, tornaram-se mitos que povoaram o
pensamento e o imaginário dos gregos. Eles se manifestavam nos vários
fenômenos da natureza. Surgiram narrativas sobre a origem deles e a influencia que
exerciam na vida dos indivíduos, principalmente pela semelhança das suas
manifestações com as ações humanas.
A psicologia transpessoal respeita essa visão mitológica que trazemos
internamente como fenômenos numinosos, através de “conceitos e imagens
carregados de numinosidade que acompanha todas as coisas recém nascidas (...) e,
cujos profetas hebraicos se fascinavam com certas imagens arquetípicas”.
29
A psicologia transpessoal mostra aqui a relação com os mitos, pois neles
vê-se a primeira forma de conhecimento e transcendência.
28
CHAUÍ, Marilena, Convite à filosofia, São Paulo: Ática, 2005, pp. 33- 35.
29
EDINGER, Edward F., A psique na antiguidade, livro um, São Paulo: Cultrix, 1995, pp. 10 – 11.
24
I.2 – Concepções sobre o homem no período pré-socrático.
O período pré-socrático, também considerado como cosmológico, marca o
início da construção filosófica na Grécia antiga ou arcaica, que vai do final do século
VII ao final do século V a.C.
Essa época se caracteriza pela presença dos chamados filósofos da
natureza. A filosofia surge como uma cosmologia cuja preocupação era a origem do
mundo e as causas das transformações da natureza, em cujas mudanças se
inseriam também os seres humanos.
Característica importante nesse período é a busca pelo principio primeiro de
todas as coisas, eterno, imperecível e imortal. Esse princípio é a natureza primordial
chamada de physis. A physis é a natureza em sua totalidade, compreendida como
causa e principio da existência e das transformações de todas as coisas. Na physis
está o ser humano que participa do seu todo com a sua própria natureza.
30
A physis, embora princípio primordial eterno e imperecível (como principio
gerador), origem às coisas físicas que são mutáveis e perecíveis, e aos seres
humanos que integram o mundo “físico”. O que irá diferenciar o humano dos demais
seres “físicos” será o pensamento, na busca de uma explicação racional e
sistemática de si e da natureza.
Os filósofos desse período divergiram, encontrando diferentes motivos e
razões para determinar o principio imutável e eterno que está na origem da natureza
e de suas transformações.
Para nosso objeto de pesquisa, desse período interessa a compreensão de
todas as coisas pelo todo o todo da physis e as suas partes, entre elas o ser
humano como componente significativo desse todo - que viria a ser estudado e
pesquisado posteriormente pelas ciências particulares, a psicologia e outras
ciências, preocupadas com as questões humanas, suas relações com o mundo, e
cuja trajetória e evolução darão suporte à nossa compreensão do humanismo e do
processo de humanização.
31
A psicologia transpessoal aprende dos pré-socráticos que a nossa
compreensão sobre o homem, apesar de sua complexidade e pluralidade, faz parte
30
CHAUI, Marilena, Convite à filosofia, pp. 38 - 40.
31
REALE Giovanni e ANTISERI Dario, História da filosofia v.1, p. 31
25
integrante de um todo, inserido em um principio primordial. As concepções do
humano passarão por transformações necessárias, dependerão do tempo e das
condições de cada época, mas com todas buscaremos interagir para formar nosso
entendimento sobre o homem, humanismo e humanização.
I.3 – O homem no pensamento sofista
O termo “sofista” significa aquele que é sábio (um especialista do saber). O
movimento sofista se caracterizou por uma mudança significativa da pesquisa
filosófica da physis (cosmologia), deslocando-se para o homem e sua vida em
sociedade, girando em torno da ética, da política, da retórica, arte, língua, religião e
educação. Esse deslocamento representou uma verdadeira revolução espiritual na
época, comparada com que, hoje, conhecemos como a cultura do homem,
considerando-se aquele período, também, como o início da filosofia humanista
antiga.
32
Embora a sofística tenha sofrido julgamentos e críticas, inclusive por Platão e
Aristóteles, se torna importante ressaltar que esses sofistas participaram de um
momento histórico de muitas instâncias e angústias, procurando responder às
necessidades do momento, principalmente entre os jovens.
A ênfase dada aos jovens fez com que as doutrinas sofistas tivessem seu
aspecto positivo ao abordar questões que envolviam os problemas educacionais. O
compromisso pedagógico deles surge como um novo significado referente à
educação, dando ênfase à difusão do saber, rompendo com a restrição do seu
acesso a determinadas camadas sociais. Essas mudanças tiveram repercussão na
cultura, promovendo a liberdade de espírito, mostrando as possibilidades da razão, e
ultrapassando a visão do Estado ideal platônico.
33
O pensamento sofista, ao introduzir a reflexão sobre o homem na filosofia
antiga, e também por focalizar a educação e os meios pedagógicos para a difusão
do saber, é de grande relevância para nossa pesquisa. Os sofistas o colocados
32
REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario, História da filosofia, pp. 73 – 75.
33
Pesquisas realizadas na obra, apud REALE,Giovanni e ANTISSERI Dario, História da filosofia, vol. 1, pp.
73 - 76
26
entre os “mestres da primeira geração”, por suas idéias revolucionárias, que
introduziram a physis homem como um novo eixo da filosofia. Por isso foram
considerados dignos de respeito pelos grandes filósofos da antiguidade, inclusive
por Platão, apesar das suas polemicas e restrições às posições sofistas.
No que tange à posição dos sofistas, vista pela psicologia transpessoal,
cumpre ressaltar que, se um lado eles rejeitam as explicações míticas e espirituais,
construindo uma imagem do homem “secularizado”, ainda assim consideram-se as
posições deles como precursoras dos tempos modernos, enquanto foram os
primeiros a dar relevância às bases psicológicas do conhecimento.
Nessa trajetória da construção filosófica da antiguidade em sua busca do
sentido do homem, humanismo e humanização, torna-se importante considerar que,
naquela época, o homem ainda necessitava de bases mais sólidas e fundamentos
para um melhor reconhecimento de si. Um passo à frente na procura da “essência
do homem como “psyqué” – que hoje se usa psique -, é dado por Sócrates.
I.4 – O homem no pensamento socrático: o princípio do “conhece-te a ti
mesmo”
Sócrates não deixou nenhum registro escrito, o seu legado foi transmitido
verbalmente, através do diálogo e da chamada oralidade dialética. O mais famoso
dos seus discípulos, Platão, foi o responsável por escrever vários diálogos atribuídos
a Sócrates, e que contém a sua doutrina.
34
Importante registrar que a filosofia socrática teve uma grande influencia no
desenvolvimento do pensamento na Grécia, como também no pensamento
ocidental, promovendo significativas mudanças na concepção de homem.
Uma das principais concepções atribuídas a Sócrates é a descoberta da
essência do homem como psyqué. Aí está a importância desse pensador no que
tange a problemática do homem e o sentido da humanização. Importante também
para nossa pesquisa, a partir de crates, introduz-se o significado da psyque nos
34
REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario, História da filosofia vol. 1, p. 86.
27
estudos sobre o homem, este vindo a ser, mais tarde, uma das principais
concepções no âmbito da psicologia.
Levantando a grande questão em torno do que é a essência do homem,
Sócrates procurou respondê-la, afirmando: ”o homem é a sua alma”. E a alma do
homem é exatamente o que o distingue de qualquer outra coisa.
35
A alma, no pensamento socrático, adquire um sentido elevado espiritual. Por
ser a essência do homem, é fundamental que este cuide dela, mais do que o próprio
corpo. Este é apenas um instrumento um instrumento de que se serve a psyqué: a
alma que é a própria inteligência do homem. Para A.E. Taylor, a alma em Sócrates
“é a consciência e a personalidade intelectual e moral”, colocando uma
compreensão da alma em torno da razão, do pensamento e da ética.
36
A máxima socrática: “conhece-te a ti mesmo” leva o homem à busca pela
elevação de sua consciência e de sua reflexão critica, trazendo um novo quadro de
valores à vida humana.
A virtude, como valor atribuído ao homem, possibilita à alma agir conforme a
sua natureza, buscando em todas as coisas aproximar-se do que é bom e perfeito.
Para Sócrates aquilo que permite ao homem ser virtuoso é ciência ou o
conhecimento que vence a ignorância.
A grande revolução socrática foi trazer para dentro do homem seus
verdadeiros valores, e não mais no mundo externo, na riqueza, no poder, na fama e
nas questões especificamente ligadas ao corpo físico. O verdadeiro bem se encontra
na alma do homem, e o conhecimento é identificado com a virtude.
A ignorância, para Sócrates, está diretamente relacionada ao mal, ao cio. A
ignorância do sentido do bem é a causa do mal.
Importante ressaltar que o intelectualismo socrático influenciou o pensamento
dos gregos, tanto na época clássica, como na helenística. Embora os sofistas
tivessem levantado a questão em torno das virtudes, com Sócrates a vida humana e
seus valores aparecem submetidos ao domínio da razão. A alma é a própria
natureza do homem, que se manifesta pela razão. Alma e razão são aperfeiçoadas,
através da ciência e do conhecimento, que constituem o fundamento das virtudes.
37
35
REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario, História da filosofia, vol. 1, p. 87.
36
TAYLOR, A. E. apud REALE e ANTISERI, História da filosofia, vol. 1., p. 87.
37
As principais concepções de Sócrates foram colhidas na obra de REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario,
História da filosofia, vol. 1, pp. 85 – 91.
28
Esta síntese da humanização na vertente da psicologia transpessoal assume
como relevante e integra a visão socrática da “psyqué” – ou, psique – e a ênfase que
ele coloca no conhecimento como condição necessária para se fazer o bem. Se não
conhecemos o bem, como podemos fazê-lo? Para Sócrates, conhecimento e virtude
eram inseparáveis; cada homem deveria procurar desenvolver o conhecimento e o
autodomínio. O conhecimento e a consciência humana são considerados
fundamentais para a construção d o homem. Assim, crates coloca as premissas
do que viria a ser o autoconhecimento para a psicologia moderna.
I.5 – Concepções do homem no mundo das idéias de Platão
- O Banquete de Platão e a essência do amor -
(...) finalmente o poeta, anfitrião da festa, toma a palavra: todos os que
me precederam louvaram o amor pelo bem que faz aos humanos, mas
nenhum louvou o amor por ele mesmo. É o que farei. O amor, Eros, é o mais
belo, o melhor dos deuses. O mais belo, porque sempre jovem e sutil, porque
penetra imperceptivelmente nas almas; o melhor, porque odeia a violência e a
desfaz onde existir; inspira os artistas e os poetas, trazendo a beleza ao
mundo. Há algum sentido corporal por meio do qual chegaste de que te falo...
a essência de todas as coisas?... Aquele que se serviu de nenhuma mistura,
procurará encontrar a essência pura e verdadeira sem auxilio dos olhos ou
dos ouvidos... completamente isolado do corpo, que apenas transtorna a alma
e impede que encontre a verdade.
38
Platão introduz uma revolução no pensamento, pela intuição do chamado
supra- sensível – o ser supra-físico.
No mundo das Idéias de Platão, as questões incorpóreas e invisíveis não
estão na matéria, pela razão de sua inteligibilidade. Às essas causas inteligíveis dos
objetos físicos, Platão chamou de idéias ou formas. Essas questões incorpóreas ou
invisíveis são, portanto, divinas. São acessíveis somente pela inteligência,
abstraindo-se do corpo. Diz ele no Diálogo Fedon.
39
A doutrina platônica não abre mão da transcendência das idéias, diferindo da
doutrina pitagórica, fundamentada nos números e na mimesis imitação das coisas
38
CHAUÍ, Marilena, Convite à filosofia, p. 187.
39
PLATÃO, Fedon, Coleção Os pensadores, São Paulo: Nova cultural, 1999, p. 127.
29
com os números num caráter de imanência que para Platão “o mundo sensível
seria uma imitação do mundo inteligível”.
40
O desenvolvimento da doutrina platônica, marcando sua distinção com
Sócrates, seu mestre, surge pelos diálogos deste, com a noção de Idéia, concebida
como essência existente em si, independente das coisas e do intelecto humano. Em
suas palavras, Platão diz: “... existe um Belo em si e por si; um Bom em si e um
Grande em si.”
Ponto fundamental na filosofia platônica é a descoberta da metafísica,
inicialmente, numa perspectiva gnosiológica, isto é, como teoria do conhecimento
das Idéias. Em um segundo momento, com o advento do neoplatonismo, a
metafísica adquire significado de um conhecimento do divino e se eleva à dimensão
mística. O platonismo apresenta também um eixo político-ético-educativo. O
importante é que se considera o pensamento platônico como uma integração de
todos esses aspectos.
Com relação às artes, por exemplo, Platão considera que as artes plásticas
tentam reproduzir a realidade das formas incorpóreas, o que o coloca como um
precursor da arte abstrata moderna. No campo social, ainda que de maneira
considerada utópica, seu fundamento sustenta um sistema educativo que
possibilitasse a cada classe social desenvolver as virtudes necessárias às suas
atribuições, através de uma gama de estudos para atingir a meta da época, ou seja,
o conhecimento das idéias, até seu fundamento básico: a idéia do Bem.
41
No platonismo, o conhecimento é tido como comunhão do intelecto com a
emoção, da razão com a vontade, e, dos resultados da inteligência e do amor.
42
Para nossa pesquisa, é importante a intuição platônica do ser como uma
realidade supra física, como também a sua teoria do Logos, que, segundo
Heidegger, capta o ser, embora não capte a vida. Assim, o mito surge em Platão
exatamente para propor uma explicação para vida, que não é captada pelo Logos.
43
40
Ibid, p. 136.
41
PLATÃO, Vida e obra, Coleção Os pensadores, p.25.
42
Ibid, p. 27.
43
Como referência, citamos as próprias palavras de Platão: “Certamente, não convém a um homem dotado de
bom senso sustentar que as coisas se passem como eu as descrevi; sustentar, entretanto, que algo de semelhante
deva acontecer no que diz respeito às almas e às suas moradas, a partir do fato de que se conclui que a alma é
imortal, me parece perfeitamente legítimo, sendo interessante correr o risco de acreditar, porquanto o risco é
belo! É importante que, com tais crenças, nos encantemos a nós mesmos; é por isso que eu, desde há algum
tempo, continuo sustentando o meu mito” PLATÃO, apud, REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario, História da
filosofia vol.1, p. 132
30
O homem que ainda permanece refém dos sentidos e do sensível está
dividido e não alcança a totalidade do ser. Quando ele se liberta dos sentidos e do
sensível e se eleva ao plano da razão ou do Logos, atinge a perfeição e a pureza
que existem no mundo das idéias. É o mundo da Verdade, do Bom e do Belo,
com idéias ou formas puras, inteligíveis, despidas de qualquer contemplação da
matéria.
O mundo das Idéias de Platão se refere a essas realidades inteligíveis,
causas de natureza não física. As Idéias constituem o campo do pensamento, liberto
do sensível, ou seja, o patamar do “verdadeiro ser” o ser por excelência a
essência das coisas, que faz com que cada coisa seja aquilo que é. Neste mundo
supra-sensível estão as idéias de todas as coisas, múltiplas e infinitas.
Platão concebe seu mundo das Idéias como um sistema hierarquicamente
organizado, no qual as Idéias inferiores se ordenam às superiores, num sentido de
continuidade, de entrelaçamento, até alcançar os níveis mais elevados. Para nossa
pesquisa é importante essa teoria platônica porque nos reporta à construção da
“Grande Cadeia do Ser” ou ao “Grande Ninho do Ser” ao qual Wilber vai se referir
em sua teoria, para fundamentar a transcendência, como uma possibilidade de
reconstrução do humano em seu sentido pleno.
Na teologia platônica, o Demiurgo é o Artífice divino que organiza o mundo
por bondade e por amor. O mal e o negativo, que também habitam esse mundo, são
derivações de uma “espacialidade caótica” - originada da matéria sensível que se
coloca frente ao inteligível, como o irracional frente ao racional.
Para Platão, o Divino é o mundo das Idéias em todos os seus planos, onde
impera a “divina” Idéia do Bem. Todos os seres inteligentes e animados são divinos,
assim também se consideram as almas humanas, onde também se encontram os
“demônios”, acolhidos pela tradição.
O conhecimento em Platão é uma atividade de recordação anamnese
daquilo que sempre existiu no interior da alma humana como um reflexo do mundo
das idéias. O homem extrai de sua própria alma os conhecimentos. Por ser mortal, a
alma renasce muitas vezes, e, traz consigo o conhecimento acumulado nas vidas
pregressas. Pelos sentidos, captamos as coisas materiais e mensuráveis, porém,
pela razão, captamos a realidade supra-sensível, e incomensurável. Essa realidade
está dentro de nós.
31
A dualidade corpo-alma em Platão advém da origem desses dois elementos:
a alma é oriunda do mundo supra-sensível; o corpo, do mundo material. Mesmo com
a morte do corpo, a vida continua através da alma (supra-sensível). Pela morte, a
alma se liberta do corpo como de um “cárcere”.
Portanto, na filosofia platônica, o homem é definido como um ser de duas
dimensões: a do sensível e a do supra-sensível. Tendo a alma uma existência
imortal como ser meta-empírico, Platão descreve o destino da alma após a morte
recorrendo aos mitos, com referências e idéias bastante complexas.
44
Embora descartemos a concepção platônica radicalmente dual do ser
humano, Platão oferece subsídios para a nossa pesquisa porquanto enfatiza o
encontro do humano com o divino, como dimensão espiritual, que possibilita a
fragmentação da materialidade e dos sentidos, propiciando uma via para a
humanização a partir da relação do homem com o transcendente.
Sua contribuição para a psicologia em geral, analítica e transpessoal é
relevante. Edinger na alegoria da caverna, relatada na República de Platão, “uma
imagem muito adequada para descrever a projeção psicológica”.
45
A luz que vem de fora projeta as sombras dos prisioneiros, que se
encontram, no fundo da caverna, e “o desfile dessas figuras corresponderia à ação e
aos atores arquetípicos no pano de fundo da psique”.
46
I.6 - Aristóteles e suas contribuições para as questões do homem.
O século IV a. C. concentra a Grécia como um grande centro cultural e
artístico. Com a finalidade de dar prosseguimentos aos seus estudos e atraído pela
oportunidade cultural, Aristóteles chega a Atenas entre os anos 367 ou 366 a. C.,
vindo da Macedônia.
Ele ingressa na Academia de Platão que requeria uma ciência (epísteme)
como fundamentos da realidade, inserindo a atividade humana como correta e
44
As concepções de Platão e sua explicação do homem foram extraídas da obra de REALE, Giovanni e
ANTISERI, Dario, História da filosofia v.1, pp. 125 - 161
45
EDINGER, Edward F., A psique na antiguidade, p. 89.
46
Ibid, p. 89.
32
responsável, norteada por valores estáveis e um ideal de linguagem construída em
torno das Idéias platônicas, como medidas justas de significação e realidade.
47
Para Aristóteles, à diferença de Platão, a essência das coisas a verdade
sobre o ser se atinge pelo conhecimento racional do mundo mediado pela
experiência sensorial. A razão conhece o ser abstraindo as idéias ou as essências
contidas na individualidade das coisas, que a ela se apresentam pela atividade dos
sentidos. As teorias aristotélicas dividem-se em dois grupos, a saber: os escritos
“exotéricos” – destinados ao grande público, externos à escola – e os escritos
“esotéricos” contendo a base didática aristotélica, com acesso restrito aos
discípulos na escola.
As obras esotéricas tratam da problemática filosófica e de vários campos das
ciências naturais. As obras de cunho propriamente filosófico são muitas e vão desde
tratados sobre lógica, obras de cosmologia, de física, de psicologia, de ética e
política, poética e retórica, mas os mais famosos são os livros da Metafísica. O
campo das obras de Aristóteles é vasto, amplo e abrangente. Por isso, vamos nos
deter apenas nos aspectos mais pertinentes ao nosso tema.
Embora Aristóteles tenha sido um dos principais discípulos de Platão, e suas
diferenças com o mestre não estejam apenas no domínio da filosofia, Aristóteles se
afasta do componente místico-religioso que foi tão significativo em Platão, e
pretende elaborar um discurso mais rigoroso do ponto de vista filosófico.
As concepções aristotélicas foram formuladas com bases na análise e crítica
de outros pensadores, concedendo um caráter sistemático ao vasto conjunto
enciclopédico desde a antiguidade até a idade dia, considerado como uma
grande autoridade em questões filosóficas e científicas. Por essa razão, Aristóteles
foi nomeado de “o Filósofo”, por ter construído uma doutrina de extensão universal,
cujo valor é permanente e intemporal.
48
Suas bases partiram das ciências empíricas e importância com a coleta e
classificação dos seus dados. Mas o ponto saliente do pensamento aristotélico é a
problemática filosófica em torno da metafísica, física, psicologia, ética, política,
estética e lógica.
Os ramos das ciências desenvolvidos por Aristóteles implicam as ciências
teoréticas (que buscam o saber em si mesmo); as práticas (buscam o saber para
47
ARISTÓTELES, Vida e obra, Coleção Os pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1978, pp. 06 – 07.
48
Ibid, Vida e obra, Coleção Os pensadores, p. 12.
33
atingir a perfeição moral) e as poiéticas (buscam o saber pelo fazer, produzir).
Dentre as três categorias, as mais significativas são as ciências teoréticas,
constituídas pela metafísica, pela física incluindo a psicologia e também a
matemática sendo que as outras ciências passam a ter seu significado a partir das
teoréticas.
Metafísica significa “o que está além da física”. A denominação usada por
Aristóteles e “filosofia primeira”, por ser a ciência que se preocupa com as realidades
que estão acima das realidades tão somente físicas e estabelece os primeiros
princípios de todo conhecimento e do próprio ser.
A metafísica aristotélica, ao indagar as causas e os princípios primeiros,
indaga também o ser enquanto ser, a substância, Deus e as substancias supra-
sensíveis, de maneira a criar estruturas interligadas entre si e cada uma à outra, até
atingir a perfeita unidade.
Para Aristóteles, dentro de sua metafísica, uma estreita vinculação de
cada concepção à sua causalidade. E, causa é tudo que contribui para a realidade
de um ser.
49
A importância da metafísica encontra-se no enfoque de que esta não
responde às questões materiais – que é o campo da física – mas sim, busca
responder às questões em nível superior de abstração, que vão além da experiência
sensível.
A metafísica considera o ser como “inteiro”, buscando explicar sua realidade
em sua totalidade.
A “filosofia primeira” aristotélica estuda as essências sem diferenciá-las, pois
cabe às ciências empíricas estudá-las em suas diferenças nos seres. A metafísica
ao estudar o “Ser enquanto Ser” eleva-se também ao estudo do ser divino, como
realidade primeira e suprema. Tudo o mais busca se aproximar da sua perfeição
imutável (a essência divina) dentro do devir incessante que move todos os seres
constituídos de ato e potência. Um segundo estudo diz respeito aos primeiros
princípios e causas primeiras de todos os seres (essências existentes); e, o terceiro
estudo, é o das propriedades gerais de todos os seres, a partir dos quais se pode
determinar a essência dos seres particulares. A essência constitui-se, portanto, na
realidade primeira e última de um ser, sem a qual um ser não poderá existir. Nesse
49
ARISTÓTELES, Vida e obra, Coleção Os pensadores, p. 22.
34
sentido, à essência é dado o nome de “substancia”, e a metafísica se propõe a
estudar a substância num sentido geral.
50
A metafísica aristotélica, que focaliza o ser na sua totalidade e unidade, torna-
se muito importante para nosso entendimento em torno da problemática do homem.
O caminho da humanização, como veremos, é também uma busca do humano em
sua integralidade, embora salvando as diferenças e individualidades da
singularidade humana.
As relações metafísicas aristotélicas, principalmente entre matéria-forma,
potência-ato, são as que comandam a explicação aristotélica do homem. Assim, a
investigação ética sobre o homem é o de descobrir a causa verdadeira da existência
humana. A finalidade, como causa do universo em torno do homem, portanto, é a
procura do bem ou da felicidade que a alma alcança quando exerce atividades
que permitam sua plena realização.
51
Outro ponto a destacar na filosofia aristotélica diz respeito ao sentido do
divino para o homem. Tanto para Aristóteles, como para Platão, o Divino designa
uma ampla esfera. Ele é o Logos platônico, o ser primeiro de Aristóteles, mas
também é atribuído a múltiplas e diferentes realidades. Assim, a alma intelectiva dos
homens também é considerada divina, pois divino é tudo aquilo que é eterno e
incorruptível.
52
Esse caminho para o divino é relevante para o nosso tema, pois, como
veremos, o encontro do humano com o divino, é fundamental para a humanização;
possibilita compreender o significado da unicidade, pois desencadeia a busca pelo
conhecimento e pela reintegração do homem dividido na totalidade do ser.
Aristóteles também propõe algo que vai além do intelectualismo socrático,
quando coloca um diferencial entre “conhecer o bem” e “fazer e realizar o bem”.
Esse diferencial inclui a questão da “escolha” no agir humano, dos “meios” para
atingir os fins que a razão apresenta como bons. Nessa escolha o homem se torna
responsável, pois não é determinado no seu agir. Posteriormente, essa
indeterminação será chamada de “livre arbítrio”.
O bem do indivíduo se amplia para a dimensão social. A filosofia de
Aristóteles concebia o indivíduo em função da cidade. Para se tornar um cidadão, o
50
CHAUI, Marilena, Convite à filosofia, p. 189
51
ARISTÓTELES, Vida e obra, Coleção Os pensadores, p. 23.
52
REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario, Historia da filosofia v.1, pp. 173 – 191.
35
indivíduo devia participar das questões publicas e administrativas, e praticar a
virtude da justiça. A finalidade do Estado, portanto, torna-se moral, visando os bens
da alma e as práticas das virtudes, e a satisfação das necessidades materiais.
53
O pensamento aristotélico é abrangente. Em relação ao homem, suas
concepções visam as questões da vida humana, a vida em sociedade, a política e
suas influencias no homem e a própria natureza humana, seus limites e interesses,
como investigações filosóficas significativas na antiguidade.
54
O que mais interessa ao nosso objeto é a grande contribuição de Aristóteles
para a psicologia, em especial, no seu tratado sobre a alma (De Anima).
Segundo Edinger, “trata-se do primeiro esforço objetivo em larga escala para
estudar a psicologia. Muitas das questões que levanta continuam por responder até
hoje, e ainda são objeto de exame”.
55
Edinger assim resume as principais indagações: o que é a psique, ela é
coletiva ou individual; que relação existe entre psique e corpo; é fonte de movimento
(de intenção, de volição)?
56
Edinger implícita nas “questões de Aristóteles” a idéia de que a psique
pode representar uma harmonia ou uma sintonia em várias partes.
57
I.7 – A época clássica à época helenística: mudanças no pensamento filosófico
e suas conseqüências na vida humana.
A época helenista é marcada principalmente pela ascensão ao poder de
Alexandre Magno (356 323 a.C.), considerado o criador do helenismo. Suas
conquistas promoveram significativas mudanças no cenário político da época, como
também provocou transformações no espírito grego.
Na política, as conseqüências ocorreram pela queda sóciopolítica da Polis
grega, e da antiga concepção da Cidade-estado. Alexandre instaurou um projeto de
monarquia divina universal, formando novos reinos no Egito, na ria, Macedônia e
53
REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario, História da filosofia vol. 1, pp. 207 – 210.
54
ABBAGNANO, Nicola, Dicionário de filosofia, pp. 518 – 519.
55
EDINGER, Edward F., A psique na antiguidade, p. 100.
56
Cf. Ibid, p. 100.
57
Ibid, pp. 100 – 101.
36
Pérgamo. Porém, as monarquias helenísticas tornaram-se instáveis. O conceito
clássico de cidadão se transformou em súdito, de maneira que as antigas virtudes
civis foram substituídas por conhecimentos técnicos que o poderiam estar à
disposição de todos, acabando por dissolver a questão ética e promover a questão
profissional. O indivíduo torna-se um funcionário, soldado ou mercenário.
Com a queda de Alexandre e do Império Macedônio, a Grécia torna-se uma
província romana. Os romanos passam a exercer seu domínio através de um ideal
do cosmopolitismo o mundo todo como uma cidade submissa a Roma, incluindo
nesse ideal, tanto os homens, como os deuses, requerendo que o homem busque
por uma nova identidade.
Essa nova identidade acarreta a mudança do significado de cidadão, para o
de “indivíduo”. As relações homem-estado vão se tornando menos estreitas,
surgindo formas políticas nas quais o poder passa a ser exercido por uma única
pessoa ou por poucas pessoas. As conseqüências desse processo levam aos
excessos do egoísmo e do individualismo. Outra conseqüência é a separação entre
ética e política. A ética passa a ser autônoma ou individualista, tendo o homem seu
foco voltado mais para si do que para a Polis.
Em meio a essas transformações, os filósofos dessa época criaram
paradigmas espirituais, propondo soluções para os problemas humanos e da vida,
focalizados no indivíduo. Surgem: o cinismo, epicurismo, estoicismo e ceticismo.
O cinismo de Diógenes propunha uma espécie de anticultura frente às
filosofias conhecidas anteriormente. As necessidades verdadeiras do homem seriam
aquelas elementares de sua animalidade. Essa proposta foi considerada extremista
e anarquista, além da pobreza espiritual, se comparada ao epicurismo e ao
ceticismo, e outros movimentos filosóficos da época.
Uma das primeiras escolas helenísticas foi a de Epicuro (final do século IV
a.C.), chamada epicurismo pelos sucessores. Seus ensinamentos ocorriam em um
jardim –uma novidade revolucionária para a época. Suas propostas, em linhas
gerais, se constituíam em concepções sobre a realidade como sendo penetrável e
cognoscível pela inteligência do homem. Nas dimensões desse real podem existir
espaço para a felicidade. Para atingi-la, o homem só precisa de si mesmo, da
superação do medo e do espantalho da morte – o homem como um ser autárquico e
independente dos deuses. O empirismo e a busca do prazer são pontos relevantes
no pensamento epicurista. Negou a transcendência e ligam-se ao natural e ao físico.
37
Assim não lugar para a metafísica platônica e seu desenvolvimento no
aristotelismo.
O terceiro movimento filosófico chamado ceticismo surge com Pirro (323
a.C.), que busca criar um novo modo de pensar e uma atitude existencial, diante dos
eventos drásticos que vinham ocorrendo naquela época. Esse paradigma propunha
que, diante dos problemas da vida, era possível viver com arte a felicidade, sem se
preocupar com as verdades e os valores, como foram concebidos no passado. O
homem, para ser feliz, precisava ser pragmático: ver as coisas como elas o, por
natureza; depois, observar a própria disposição em relação a essas coisas; e,
finalmente, aguardar o que poderá ocorrer suspendendo qualquer juízo sobre a
verdade ou não das coisas.
O estoicismo surge com Zenon de Cítio (333 / 332v- 262 a. C.), que traz esse
nome em seu movimento devido ao fato de Zenon fundar uma nova escola com o
nome de “Estoá”. Embora compartilhasse o conceito epicureu de filosofia, não
aceitava os dogmas epicuistas como soluções para os problemas. Considerava esse
sistema reducionista em relação ao homem e ao mundo, derrubando teses
epicuristas. Porém, as duas escolas epicurismo e estoicismo negam a
transcendência e seus movimentos seguem paralelamente nessa época.
58
O ecletismo, como movimento paralelo ao ceticismo, foi introduzido na
Academia por Fílon de Larissa (110 a.C.) que afirma que: “quanto ao critério estóico,
isto é, à representação catalética, as coisas são incompreensíveis, mas, quanto à
natureza das coisas mesmas, compreensíveis”.
59
No que tange à nosso tema de pesquisa, devemos observar que se trata um
período bastante obscuro para as questões do homem no campo filosófico. A
produção nessa área é escassa por ser uma época marcada por sucessivas
mudanças sociais, culturais e políticas. Essas circunstâncias vão caracterizar uma
certa desconstrução do sentido do homem, principalmente se comparado às
produções filosóficas clássicas da antiguidade. De alguma maneira, esses reflexos
tiveram sua repercussão no ocidente e também, provavelmente, influencias
significativas na construção do pensamento sobre o homem em épocas posteriores,
pois o ceticismo, o estoicismo, o epicurismo voltaram muitas vezes, inclusive na
modernidade, a influenciar a concepção de homem, de humanismo e humanização.
58
REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario, História da filosofia, vol. 1, p. 252.
59
Ibid, p. 276.
38
No que tange ao estoicismo de Zenon, Edinger uma aproximação entre
sua teoria do “fogo do divino” pela qual o mundo é um ser vivo, dotado de alma e
razão, tendo o éter (ou fogo) como seu principio regulador – com a psicologia
analítica.
“O fogo do céu semeia sementes de si mesmo para gerar o que agora
podemos entender psicologicamente como a potencialidade da consciência dos
indivíduos”.
60
Até mesmo o conceito de providencia cristão, segundo o autor, “cria um
legado da idéia estóica de que a centelha divina que motiva os indivíduos deriva do
fogo divino”.
61
Esta centelha pequena parte da alma divina “traz a intenção transpessoal
do fogo divino de que proveio”.
62
Imagem teleológica: tudo o que sucede no universo
é intencional, tem sentido. E o autor vai além: “podemos entender essa doutrina
como sendo uma projeção para o mundo exterior do modelo e objetivo teleológicos
que residem no Self”.
63
I.7.1 – Desenvolvimento das ciências na época helenística e suas influencias
na vida humana
Ao lado da fraqueza da especulação filosófica, e em concretização a ela, o
período helenístico marcou um grande florescimento das ciências empíricas.
Embora Atenas tenha mantido sua primazia no campo filosófico, foi em
Alexandria no Egito que a cultura cientifica se instalou.
O helenismo não conseguiu penetrar no Egito, com exceção de Alexandria,
que procurou trazer intelectuais gregos, para tornar o legado de Alexandre Magno
como uma capital cultural helenística. Foi assim que nasceu o Museu uma
instituição sagrada dedicada às Musas, consideradas protetoras das atividades
intelectuais e também a Biblioteca, onde o Museu trazia todos os recursos para as
60
EDINGER, Edward F., A psique na antiguidade, p. 118.
61
Ibid, p. 120.
62
Ibid, p. 120.
63
Ibid, p. 120.
39
pesquisas cientificas da época (medicina, biologia e astronomia) e a Biblioteca
continha a produção literária grega.
Com a Biblioteca foram lançadas as bases da ciência filológica, inicialmente
com os “Catálogos” em 120 livros e a primeira edição da Ilíada e Odisséia de
Homero em 24 livros seguida da primeira Gramática grega e do gênero literário
da biografia.
Quanto à historiografia filosófica, aparece uma síntese da filologia e suas
aquisições, feita por Diógenes Laércio, através de material recolhido desta época, e,
principalmente a edição das obras esotéricas de Aristóteles.
Neste período ocorre uma ênfase ao florescimento das ciências particulares,
como a matemática, a mecânica, a astronomia, a medicina helenística, a geografia,
a medicina.
A ciência helenística traz um novo fenômeno, tanto em termos de qualidade,
como intensidade, através do conceito de “especialização” – o saber diferenciado em
partes, definindo de maneira autônoma cada uma dessas partes estabelecendo
uma espécie de libertação da religião tradicional e sua mentalidade de
intransponibilidade, assim como da filosofia como fundamento do saber.
O nascimento das ciências particulares e a ênfase na especialização são
precursores da construção do pensamento cartesiano, com suas dicotomias e
fragmentações cuja influencia perdura até os dias de hoje na concepção do homem
e no caminho para a humanização.
Mesmo diante dessas circunstancias, vale citar Filo, que viveu em Alexandria
entre, aproximadamente, 25 a. C. a 45 d. C. Entre Zenon e Filo decorrem três
séculos e a natureza da psique teve mudanças significativas, cuja maior importância
encontra-se em Filo.
64
Embora as idéias de Filo tenham sido desprezadas na época, ele transcendeu
aos hebreus que eram fanáticos literalistas e os racionalistas gregos. Segundo
Edinger, “sua obra é importante para a psicologia profunda como um exemplo inicial
da tradução das realidades psíquicas do contexto concreto da religião, para outra
estrutura, a fim de torná-las viáveis para uma nova época”.
65
64
EDINGER, Edward F., A psique na antiguidade, p. 133.
65
Ibid, p. 133.
40
A psicologia junguiana como também a transpessoal se beneficiou das idéias
de Filo, para suas respectivas tarefas, como abordagens atualmente voltadas à
psicologia profunda, principalmente em torno do continnum consciente-inconsciente.
I.8– Neoplatonismo em Plotino e influências na vida do homem
Entre os séculos II e III d.C. em Alexandria, surge o movimento neoplatônico
através da escola de Amônio Sacas, educado como cristão e que se dedicou à
filosofia, retomando o paganismo, e se tornou o mestre de Plotino. Sua dedicação à
filosofia se sobressaiu pelo exercício e cultivo da inteligência, da vida e da
espiritualidade.
Plotino viveu de 204 a 270 d. C., duzentos anos depois de Filo e quase
seiscentos anos depois de Platão, a quem Plotino considerava seu mestre.
66
Plotino nasceu em 205 d.C. em Licópolis e entra para o círculo de Amônio em
232 d.C., permanecendo até 243 d.C. e sai de Alexandria e segue para o oriente e
ter contato com a sabedoria persa e hindu. Depois, seguindo rumo a Roma no ano
de 245 d.C., se estabelecendo. Em Roma, Plotino abre uma escola e ministra
lições, mas nada escreve por conta de um pacto feito de não divulgar, inicialmente,
as doutrinas de Amônio.
67
No ano de 254 d.C., Plotino se dedica a escrever tratados, totalizado
cinqüenta e quatro que foram divididos em seis grupos de nove, de onde surge o
título de Enéadas. O título faz alusão ao significado metafísico do número 9 (em
grego, ennea).
68
Os escritos de Plotino se encontram por inteiro até os dias atuais, que,
juntamente com os diálogos de Platão e os esotéricos de Aristóteles, trazem das
mais elevadas mensagens da antiguidade e do ocidente.
66
EDINGER, Edward F., A psique na antiguidade, p. 153.
67
PLOTINO, Vida e obra, Tratado das ENÉADAS, Introdução de Américo Sommerman, , São Paulo: Polar
Editorial & Comercial, 2002, pp. 09 – 10.
68
REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario, História da filosofia vol.1, p. 339.
41
O objetivo dos ensinamentos de Plotino era oferecer ao homem um modo de
vida que liberta das coisas daqui de baixo, para reunir-se ao divino e contemplá-lo
até sua transcendência em uma “união extática”.
69
Como uma espécie de “testamento espiritual”, em suas últimas palavras,
Plotino nos deixa o seguinte legado: “procurai conjugar o divino que em vós com
o divino que há no universo”.
Em nosso objeto de pesquisa, ao tratar do encontro do humano com o divino,
torna-se importante essas palavras de Plotino, como um resgate em nossa época
atual da redescoberta do sentido do divino em nós mesmos na integração da
espiritualidade como nível de consciência elevado e transcendente na sua
integração com o universo na reconstrução humana em seu processo de
humanização. Mas vejamos as bases metafísicas que permitiram a Plotino chegar a
essa conclusão.
O principio primeiro e absoluto, produtor de si mesmo e não gerado é o “Uno”
- principio supremo de unidade, verdade e beleza. Todo ente contém sua unidade,
em diversos níveis, mas o “Uno” é concebido como a perfeita unidade.
Plotino coloca o Uno acima do ser e da inteligência. A sua infinitude é
inefável.
Outro termo usado por Plotino é “Bemo “Uno-Bem” que significa o bem
em si o Bem para todas as outras coisas que dele necessitam o Bem
transcendental. O Uno é atividade autoprodutora, ou seja, é o Bem que se cria a si
mesmo (o que de mais elevado se possa imaginar). É liberdade criadora, causa de si
mesmo, o que existe em si e para si – é o transcendente em si mesmo.
Procurando uma melhor compreensão ao pensamento de Plotino acerca do
significado do principio primeiro, o Uno, podemos dizer que a atividade do Uno é a
de autopor-se. Ele é liberdade criadora, e, por excelência, livre. A atividade que
procede do Uno, no entanto, é diferenciada, pois se trata de uma necessidade que
depende de um ato de liberdade (como uma necessidade desejada). Senão
vejamos, “Deus não cria livremente o outro de si, mas se autocria livremente a si
mesmo, e que se trata de um ‘si’ que se autocria livremente como potencia infinita,
que se expande, produzindo “o outro de si”. “O Uno, portanto, é inefável (...),
transcendente a si mesmo”, como o que de mais elevado se possa imaginar.
70
69
Ibid, p. 339.
70
REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario, História da filosofia vol. 1, pp. 340 – 343.
42
Desse principio supremo, deriva, por emanação, o segundo principio
chamado de “Nous” considerada a inteligência suprema que contém todo o mundo
platônico das Idéias a inteligência que produz a totalidade do inteligível. O Nous é
o Espírito a união do pensamento com o supremo pensado. O Espírito, quando se
olha, fecundado pelo Uno em si a totalidade das coisas. Portanto o Espírito para
Plotino torna-se o Ser por excelência o Pensamento por excelência, a Vida por
excelência, o Bem e a beleza em sua forma essencial.
A Alma deriva do Espírito, que deriva do Uno. A interação da Alma com o
Nous constitui, basicamente, na doutrina de Plotino, possibilidade de um retorno ao
Uno.
A natureza da Alma consiste em dar vida a todas as coisas que existem no
mundo sensível, e não apenas no puro pensar. A Alma, portanto, é a geradora e
organizadora das coisas sensíveis, fazendo-as viver, no nível corpóreo, ao mesmo
tempo sendo e permanecendo uma realidade incorpórea interagindo nesses dois
níveis.
Ao trazer essas concepções de Plotino para definir o que é o homem,
percebemos que o homem não nasce quando surge no mundo físico, mas pré-existe
no estado de pura alma habitando um mundo transcendente. Quando a alma
desce aos corpos, traz como finalidade uma necessidade ontológica, no sentido de
procurar concretizar em si as potencialidades existentes no universo, e, reconduzir
tudo ao Uno. Todas as atividades que o homem desenvolve na vida dependem da
própria alma. Ela é capaz de “julgar” as sensações humanas, e delas se afastar,
quando são obstáculos à união com o Espírito e o Uno. O sensível e o material
(corpóreo) parecem funcionar, como uma espécie de “veículo” que faz a ligação com
a Alma – que organiza – e, desta, com o Espírito, e daí, para chegar ao Uno.
A estrutura desenvolvida por Plotino se assemelha muito à estrutura da
psique, dentro da psicologia profunda e junguiana. Na teoria psicológica, a psique é
descoberta ascendendo de baixo para cima com vistas a se chegar ao Self, ao
contrário de Plotino que desce do alto (a partir do Uno).
71
O sensível e o material (o corpóreo) são importantes níveis para Plotino, pois
são aqueles que procuram organizar o conteúdo interno do homem até abarcar a
Alma, que também realiza sua própria organização para a recepção do Espírito, que,
71
EDINGER, Edward F., A psique na antiguidade, p. 155.
43
por sua vez, pode tecer sua compreensão ao significado do Uno na vida humana,
como um sentido elevado da própria condição humana (ênfase minha).
Podemos observar em nossa própria experiência, como se tivesse dentro de
nós um tipo de “ponteiro” indicativo de nossas sensações que, de uma maneira
muito simples, diante de alguma situação, pode nos indicar se essa sensação é boa
ou ruim. Nesse momento, a alma já se encontra em estado de prontidão para
elaborar seu juízo em torno dessa sensação provocada, como se “escolhesse” qual
ação (ou reação) será gerada pelo sensível, através de alguma forma a ser utilizada
– uma atitude, um gesto, uma palavra ou ações seqüenciais. (ênfase minha).
A atividade mais elevada da alma corresponde à liberdade, ligada à
imaterialidade, pois a liberdade é a volição do Bem. Os destinos da alma estão
relacionados à reintegração com o divino. Torna-se importante destacar que a
felicidade pode vir a ser desfrutada nessa terra, mesmo em meio a tormentos físicos,
porque existe ems o poder de transcendência que nos permite ligar-nos ao
divino, mesmo enquanto ocorra um sofrimento corpóreo.
A matéria é representada, na psicologia profunda e junguiana, como o
pensamento de Deus se concretizando.
72
A psicologia transpessoal considera o
desenvolvimento da consciência desde o nível da matéria até o nível espiritual, que
estabelece a transcendência humana em sua compreensão com o sentido do Uno
(da Unidade).
É possível, em tempos de dor e sofrimento, uma disposição do ser humano
em compreender e agregar à sua consciência, a espiritualidade da mística
plotiniana, a busca do bem e do sentido da unicidade. Afastados, perdidos,
fragmentados em um mundo sensível e tão insensível ao conhecimento, ao valor e à
dignidade, os humanos tem, na mística e na doutrina de Plotino, um convite a um
retorno ao Uno, espelho da transcendência.
73
A contribuição de Plotino é muito importante para a psicologia transpessoal,
pois seu sistema sico encontra-se nas concepções filosóficas, e sua magnitude,
sobre a estrutura do universo. É como se ele percebesse a estrutura da psique
interpretada através do universo.
74
72
EDINGER, Edward F., A psique na antiguidade, p. 155.
73
As pesquisas para esse texto foram realizadas nas obras: PLOTINO, Tratado das Enéadas, São Paulo: Polar,
2002 e REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario, História da filosofia vol. 1, pp. 338 – 349.
74
EDINGER, Edward F., A psique na antiguidade, p. 154.
44
A psicologia transpessoal considera a autotranscendência como uma
elevação e evolução da consciência do indivíduo em direção ao sentido da Unidade
do Universo.
A questão da realidade, dominada pela filosofia grega, “envolve o problema
do relacionamento do homem com ela, o que de imediato nos leva além da ciência
pura”. A filosofia grega “se fundamenta na de que a realidade é divina e de que a
única coisa necessária é que a alma, aparentada ao divino, entre em comunhão com
ele”.
75
I.9 – A era cristã e a ênfase filosófica na história do homem
A Bíblia do grego significando livros constitui-se de uma coletânea de
vários livros, com suas respectivas peculiaridades. A Bíblia se apresenta como a
palavra de Deus, e sua mensagem é objeto de fé. Embora a Bíblia não seja
considerada uma filosofia no sentido grego não se pode deixar de considerá-la
como uma visão geral da realidade do homem, na medida em que traz também
conteúdos relevantes tratados pela própria filosofia.
A mensagem trazida pela Bíblia se difunde por todo ocidente, trazendo
mudanças significativas ao sentido espiritual, através da palavra de Cristo no Novo
Testamento, como uma revelação que busca complementar e aperfeiçoar aquilo que
havia sido revelado pelos profetas do Antigo Testamento. Essa revolução vem
influenciar sobremaneira os problemas do homem em relação à filosofia antiga e
aquilo que viria ocorrer daí para o futuro.
O cristianismo se torna o paradigma que estabelece os horizontes no mundo
ocidental, propagando-se pela Europa e conquistando continentes através da
mensagem bíblica. Nessa difusão, algumas posições se tornam muito precisas. É
possível filosofar na fé; crer; procurando distinguir os limites e a articulação entre
razão e a fé.
A concepção do divino é colocada em torno de um Deus único a unicidade
de Deus – confrontando-se com a filosofia grega clássica que concebia a unidade do
75
EDINGER, Edward F., A psique na antiguidade, p. 171.
45
divino em uma esfera composta por uma pluralidade de entidades, manifestações e
forças em diferentes níveis hierárquicos. A filosofia grega admite o politeísmo,
enquanto a mensagem bíblica comporta a unicidade de Deus como uma
transcendência absoluta, dando origem ao monoteísmo.
Outro aspecto a se considerar diz respeito ao criacionismo. Deus é o criador
de todas as coisas e também do homem. Um possível entendimento ontológico da
doutrina da criação está em considerar que, ao criar, Deus se doa gratuitamente e
em plena liberdade.
Outro confronto de concepções encontra-se na concepção grega tida como
cosmocêntrica - homem e cosmos estão estreitamente interligados, pois ambos são
dotados de alma e vida – enquanto que, na mensagem bíblica, sua concepção é tida
como antropocêntrica o homem é concebido à imagem do próprio Deus, portanto,
senhor de todas as coisas criadas por ele. Essa imagem e semelhança impõem ao
homem todos os esforços para assemelhar-se a Deus.
Para os gregos, a lei moral estava inserida na própria natureza (physis). Nos
escritos bíblicos, a lei de Deus se insere como mandamentos; o bem moral (as
virtudes) adquire um aspecto teológico como obediência aos mandamentos de Deus.
No Novo Testamento, a presença de Cristo surge como aquele que
concretizou com perfeição a vontade de Deus, proclamando que o objetivo maior da
vida é o amor de Deus e amor recíproco; a boa vontade, sustentada pela graça
divina constitui a base da moral humana.
76
Para a psicologia profunda, há o surgimento de uma nova imagem arquetípica
na psique, principalmente, na judaica. O Deus-imagem era a do pai, porém, algum
tempo depois, encontramos outra imagem, a do filho, chamado “Filho de Deus” ou
“Filho do homem”, com uma natureza diferente e mais específica do que a anterior,
de caráter coletivo.
77
Essa realidade pode ser entendida em dois níveis, sendo um pessoal e
redutivo; e, o outro, algo que deriva da dimensão transpessoal, divina. Na relação
com a psicologia, se torna compreensível em termos da individuação, que procede
de dois centros no individuo: o ego e o Self.
78
76
REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario, História da filosofia vol.1, pp. 337 – 382.
77
EDINGER, Edward F., A psique na antiguidade livro dois, p. 09.
78
Ibid, p. 10.
46
O sentido da Providência bíblica é que um Deus pessoal, que cuida do
homem como um pai cuida dos seus filhos; mas também requer o cuidado recíproco
entre os homens, principalmente com relação aos humildes, necessitados e
pecadores.
Os gregos não chegaram ao conceito de Providência Divina. Sócrates e
Platão se referiram a um Deus demiurgo, que constrói e governa o mundo.
Aristóteles contestou esse conceito, assim como à maioria dos filósofos gregos, com
exceção dos estóicos que consideravam a Providência como um aspecto racional de
um Deus que governa todas as coisas e marca o destino e o desígnio dos homens.
Com relação à fé ou crença, a filosofia grega as colocava entre as coisas
sensíveis, mutáveis, inferiores ao conhecimento filosófico. Platão valorizava as
crenças como mito. Para ele o conhecimento era as crenças como virtude por
excelência do homem. A mensagem bíblica, porém, requer do homem uma
superação dessa dimensão, colocando a fé acima da ciência.
Para a psicologia, o mito de Jesus, como arquétipo emergente do Messias,
tem sua expressão e efeitos mais duradouros em razão da comunidade que se
centrou em sua figura após sua morte.
79
No pensamento cristão, surge uma nova antropologia que abrange três
dimensões: corpo, alma e espírito. O espírito participa diretamente do divino através
da e da graça, abrindo-se para acolher e praticar a Palavra e Sabedoria divina
preconizada no Antigo Testamento.
80
No mundo grego não havia conflito entre ciência e fé.
Os conflitos e divergências, possivelmente, surgiram na transição entre
filosofia grega, como concepção universal da realidade, e a visão cristã, que traz a
supremacia da explicação teológica sobre as explicações racionais. Ao longo dos
séculos, esse conflito teve pontos salientes, especialmente na modernidade, e,
presente até hoje.
Nietzsche chegou a mencionar uma “total subversão dos valores antigos”, ao
se referir às mudanças de valores na história humana a partir do advento da
mensagem bíblica cristã.
Outra diferença bastante significativa entre a filosofia grega e a mensagem
bíblica encontra-se na questão da imortalidade da alma e a ressurreição dos mortos.
79
EDINGER, Edward F., A psique na antiguidade livro dois, p. 12
80
REALE, Giovanni e ANTISSERI, Dario, História da filosofia vol. 1, pp. 382 – 387.
47
Os gregos criaram o conceito de alma a partir de Sócrates a alma como essência
do homem e Platão referencia sua imortalidade com provas racionais. Plotino,
coloca a alma como uma das três hipóstases ou unidade (junto com o Uno e o Nous
ou Inteligência).
A alma racional ou psyché se constitui das figuras teoréticas mais marcantes
do pensamento grego e seu idealismo metafísico. Ela é imortal por natureza. Na
mensagem cristã, além da doutrina acerca da imortalidade da alma, também a
na ressurreição dos mortos, como marca da nova religião. Essa ressurreição implica
no retorno do corpo à vida, contrariando os estóicos e epicureus, para os quais a
alma não poderia renascer em um mesmo corpo já repleto de negatividade e mal.
Quanto à história, os gregos tiveram um pensamento mais a - histórico.
Aristóteles concebia a humanidade passando por catástrofes, que levariam a um
estágio primitivo, para seguir um estágio evolutivo, avançando na condição de
civilização, ao que se segue nova catástrofe, e assim por diante, ao infinito. a
concepção histórica da mensagem bíblica não se coloca num âmbito cíclico, mas
sim, retilíneo, que se faz por eventos decisivos e irrepetíveis; o fim dos tempos se
constitui também no fim para o qual o homem foi criado: o juízo universal e o
advento do Reino de Deus em sua plenitude. Dessa forma, o homem pode
compreender de onde vem, onde se encontra e aonde é chamado a chegar.
81
Para a abordagem psicológica, a figura de Cristo é arquetípica, se
constituindo no arquétipo do Self. O desenvolvimento psicológico, como o biológico,
contempla a compreensão de si mesmo – a individuação – a partir do homem que se
conhece apenas como um ego e que o self como uma totalidade, se torna
indistinguível de uma imagem-de-Deus (imago Dei).
82
A atuação do trabalho de integração no continnum consciente-inconsciente
permite ao ego penetrar no domínio do divino, ou mesmo, ir além do ego, num nível
de transcendência, de acordo com a psicologia transpessoal.
83
Importante salientar as contribuições da psicologia, principalmente as
abordagens junguiana e transpessoal, ao estabelecer relações com as mudanças e
desenvolvimento da psique em cada etapa da história do homem, contada desde a
antiguidade.
81
REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario, História da filosofia vol. 1, pp. 388 – 395.
82
Citação de JUNG, apud EDINGER, Edward F., A psique na antiguidade livro dois, pp. 19 – 20.
83
EDINGER, Edward F. A psique na antiguidade livro dois, p. 20.
48
Lembramos a figura de Paulo de Tarso, que viveu entre os anos 10 d.C. e 67
d.C., e que não deve ser superestimada na evolução da igreja cristã, pois seu maior
feito foi seu encontro numinoso na estrada para Damasco. Sua experiência é um
exemplo clássico que, nas palavras de Edinger, o resumidas, como “o embate de
um individuo com o numinoso”. Isso pode comprometer a sobrevivência da igreja
cristã.
84
Na tentativa de criar uma síntese entre o pensamento grego, e a mensagem
cristã, em suas diversas dimensões, é que nasce o chamado “humanismo cristão”.
Um dos principais representantes desse humanismo cristão é Santo
Agostinho, vértice do pensamento da Patrística, cujo movimento busca tratar as
questões e problemas tanto doutrinários, quanto filosóficos, que surgiram dos
impactos e diferentes dimensões trazidas pela mensagem bíblica.
I.9.1 – A filosofia patrística – uma elaboração cultural e a busca de uma síntese
para a compreensão do homem
O pensamento da filosofia patrística tem seu início com as reflexões
filosóficas e teológicas contidas nas Epístolas de São Paulo e o Evangelho de São
João, mas a era patrística se inicia no século II, chegando até o século VII com o
início da filosofia medieval.
O nome “patrística” deve-se ao fato de ter sido obra dos chamados “Padres
da Igreja”, que se constituíram nos primeiros mentores espirituais e intelectuais do
cristianismo, buscando uma conciliação para a nova religião (cristianismo) e o
pensamento filosófico dos gregos e romanos. Sua função, portanto, se constituía,
basicamente, numa tarefa de evangelização e de reflexão em relação aos conflitos,
tanto teóricos como morais, que decorriam do encontro do cristianismo com o
pensamento filosófico que fundamentava o paganismo da época.
84
Ibid, pp. 24 – 27.
49
I.9.2 – A doutrina de Santo Agostinho e o sentido do homem religioso
Além das idéias trazidas pela mensagem bíblica, a patrística procurou
introduzir o sentido de um “humanismo religioso”, principalmente por obra de Santo
Agostinho e Boécio. Propunha a idéia de “homem interior”, dotado de consciência
moral e livre arbítrio que o capacitava a fazer escolhas entre o bem e o mal e ser
responsável pela corrupção e pelo mal do mundo.
Agostinho é uma figura importante, pós O Concilio de Nicéia em 325 d. C.,
como um “divisor de águas na história dos primórdios do cristianismo”.
85
Os Padres da Igreja proclamavam as idéias cristãs como “verdades reveladas
por Deus”. A Bíblia e os santos se constituíam nos veículos desses decretos divinos
– os dogmas – que assumiam o caráter de verdades irrefutáveis e inquestionáveis. A
filosofia anterior desconhecia essa distinção entre verdades reveladas ou da fé e
verdades da razão ou humanas (verdades sobrenaturais e verdades naturais).
Dessa maneira, a filosofia patrística introduz a questão da possibilidade ou não
de conciliar a razão e a fé.
86
A patrística latina, ligada à igreja de Roma, tem seu apogeu na figura de
Santo Agostinho, abrindo novos horizontes ao pensamento da época. Para
Agostinho a fé tornou-se o fundamento da vida e do pensamento. O seu “filosofar na
fé”, foi influenciado por Plotino que ofertava novas categorias ao pensamento, e lhe
oferecia bases para enfrentar o materialismo e maniqueísmo que proclamava a
realidade substancial do mal. Com Agostinho vemos surgir a chamada “filosofia
cristã”. A questão da conversão seria tratada como uma conquista da fé: um
acontecimento único, cuja essência encontra-se na consciência do homem ao ser
atingido pela graça divina, que opera transformações na alma, na mente e no corpo.
Para Agostinho, a não substitui nem elimina a inteligência e a capacidade
racional do homem, mas estimula a inteligência. Assim, e razão são
complementares. A inteligência é iluminada pela , e a adquire um entendimento
consciente pelas luzes da razão.
Com Agostinho dá-se a descoberta da pessoa e a metafísica da interioridade.
O enigma não está no cosmos, mas, no homem; o verdadeiro mistério não está no
85
EDINGER, Edward F., A psique na antiguidade livro dois, p. 181.
86
CHAUI, Marilena, Convite à filosofia, pp. 46 – 47.
50
mundo, mas, em nós para nós mesmos. Essa reflexão leva o homem a uma busca
interior, para encontrar-se a si mesmo e a verdade, a sua essência, o seu “eu” como
indivíduo, como pessoa. Assim, o “eu humano”, a pessoa adquire seu significado.
Agostinho é considerado um místico em certo sentido, pois cultivou a vida
interior da oração e da contemplação.
87
Do ponto de vista da psicologia profunda, em meio a seus conflitos pessoais,
entre instinto e espírito, Agostinho realiza sua completa conversão, tornando-se um
significativo representante da era cristã, cuja decisão pela vida religiosa se constitui
em um passo também decisivo em sua individuação.
88
A psicologia moderna, num modelo cartesiano, pode considerar o conflito de
Agostinho e sua conversão, como uma representação de dissociação definitiva.
89
No pensamento central de Agostinho está o dilema religioso que surge do
confronto da vontade humana pecaminosa, com a vontade divina, levando à
descoberta do “eu” como pessoa e da graça que a salva do pecado e o liberta da
concupiscência, santificado pela graça se torna imagem de Deus e da Trindade.
Refletindo as três pessoas da Trindade e sua unidade o homem torna-se ele próprio
pessoa. Alma e Deus tornam-se os pilares da filosofia cristã agostiniana, pois Deus
se espelha na alma do homem; ao encontrar sua alma, o homem encontra Deus.
“Conhecer-se a si mesmo” como quer Sócrates, para Agostinho, significa
conhecer-se como imagem de Deus.
90
Com isso, no homem algo de mais
profundo que o próprio homem. A verdade encontra-se no interior da alma do
homem. Como diz Agostinho: “(...) e se achares mutável a tua natureza, transcende-
te a ti mesmo, tu mesmo (...) de modo que o termo da transcendência deve ser o
princípio onde se acende o próprio lume do raciocínio (...) a verdade é uma meta na
qual nos detemos depois de ter raciocinado (...) e um acordo final conclui tudo:
sintoniza-te com ele. Convence-te de que não és tu o que é a verdade: a verdade
não busca a si própria, mas és tu, distinto dela, que a busca (...)”.
91
A influência de Platão via Plotino, se faz presente na doutrina agostiniana,
com algumas diferenças. Uma é criacionismo, Deus é puro Ser que transmite,
através da criação, o ser às outras coisas. “Deus cria como Ser iluminá-nos como
87
EDINGER, Edward F., A psique na antiguidade livro dois, p. 181.
88
Ibid, p. 185.
89
EDINGER, Edward F., A psique na antiguidade livro dois, p. 185.
90
GILSON, E, apud REALE e ANTISERI, História da filosofia vol. 1, p. 439.
91
SANTO AGOSTINHO, apud REALE e ANTISERI, História da filosofia vol. 1, p. 440.
51
Verdade, atrai-nos e nos a paz como Amor”.
92
Para Plotino os seres decorrem do
Uno por emanação. Deus cria os seres pela sua palavra. Diz Agostinho, nas
Confissões: “É necessário concluir que falastes, e os seres foram criados. Vos os
criastes pela vossa palavra”.
93
Para Agostinho, a essência do homem é o amor. Portanto, o homem bom é
aquele que ama, enquanto, para os filósofos gregos, desde Sócrates, o homem bom
é aquele que pratica a sabedoria e o conhecimento como virtudes.
Para nossa pesquisa, torna-se importante destacar o pensamento de
Agostinho nesse período da história, pois vem resgatar as importantes idéias
filosóficas da antiguidade, como também desenvolver reflexões significativas em
torno das questões do homem, dando ênfase à sua interiorização, à busca do
sentido pela relação com o divino, à descoberta do “eu” pelo conhecimento e
autoconhecimento, condições para uma construção do significado da humanização,
em relação com o Divino, fim último do homem, a ser conquistado pela graça que
infunde nos corações a fé e o amor.
Depois de Agostinho e a partir de 1500 d. C., se constitui uma época decisiva
em que a imagem-de-Deus cai dos céus para a psique humana, segundo Edinger. E
vai além, em considerar que essa imagem muda de projeção dos sistemas
metafísicos, para o domínio humano. “Todas as grandes formas do mundo moderno
começam nessa época: a Reforma, o Renascimento, a investigação científica, o
renovado interesse na tecnologia e a induz a humanidade a uma vasta soberba,
uma valorização excessiva do ego humano”, acrescenta Edinger.
94
I.10 – Da patrística à escolástica – o início da filosofia medieval e suas
influências no homem
A época que se estende do século VII ao século XIV é marcada pelo domínio
da igreja romana na Europa, pela coroação de reis, pelas Cruzadas e pela criação
das primeiras universidades e escolas junto às catedrais. A filosofia medieval
92
Ibid, p. 448.
93
SANTO AGOSTINHO, Confissões, Coleção Os pensadores, São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 313.
94
EDINGER, Edward F., A psique na antiguidade livro dois, p. 203.
52
ensinada nessas escolas passa a se tornar conhecida pelo nome de escolástica. É
nesse período também que nasce a chamada filosofia cristã vinculada à teologia.
Os principais filósofos gregos a influenciar a filosofia medieval foram Platão
(principalmente os neoplatônicos - Plotino) e Aristóteles (principalmente pela
tradução dos árabes), seguidos pelas idéias de Santo Agostinho, contemplando
como temas fundamentais a existência de Deus e imortalidade da alma, sustentadas
por provas racionais. Na relação entre razão e fé, Agostinho afirma a subordinação
da primeira à segunda, na linha de Plotino, ele no universo uma hierarquia de
seres, onde os superiores governam e dominam os inferiores.
Na idade média, o pensamento subordinava-se ao chamado “princípio da
autoridade”, método criado pela escolástica para fundamentar as idéias filosóficas da
época. Essa autoridade tinha que ser universalmente reconhecida, como por
exemplo, a Bíblia, o papa, ou mesmo um filósofo de grande fama.
95
Um dos precursores da escolástica foi Boécio, considerado tradutor e
intérprete das obras lógicas de Aristóteles e um mediador entre a antiguidade e a
idade média. Em face de situações pessoais vividas em meio aos males pelos quais
passava, Boécio utiliza a filosofia como uma espécie de terapia ou consolação para
escrever seus livros, basicamente retomando teses de natureza neoplatônicas, e
afirma que o Uno, o Bem e Deus são a mesma coisa.
As obras teológicas de Boécio trazem fortes fundamentos filosóficos e sua
filosofia cristã assume uma autonomia e consistências próprias.
96
Por escolástica entende-se a filosofia e a teologia ensinada nas escolas
medievais. O fechamento das últimas escolas pagãs (século VI) marca também o
final da cultura pagã. As novas instituições educativas agora são formadas e
organizadas pela Igreja, iniciando uma nova cultura. Ocorre uma reavaliação da
dialética e da filosofia, assim como a inserção das artes liberais na concepção
teológica.
No século XIII algumas escolas episcopais se transformam em universidades,
um produto característico da idade média, tutelados por interesses de categorias de
pessoas. Essa tutela se fazia diretamente pelo rei, o bispo e autoridades
eclesiásticas, sob a proteção do papa. Sacerdotes e leigos tinham a
responsabilidade de ensinar a doutrina revelada, sob a égide da Igreja, o que antes
95
CHAUI, Marilena, Convite à filosofia, pp. 47 – 48.
96
REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario, História da filosofia vol. 1, pp. 463 – 475.
53
era confiada à hierarquia eclesiástica. A esses mestres eram confiadas as
condições de profissionais voltados à elaboração de uma ciência, como pessoas
qualificadas para falar de fé e da doutrina.
I.10.1 – Santo Tomás de Aquino e o apogeu da escolástica medieval e o
homem na visão tomista
Considerado como um dos maiores pensadores da história, assim como um
grande metafísico, Tomás de Aquino desenvolveu um sistema filosófico-teológico,
fundamentado no paradigma aristotélico.
Tomás de Aquino viveu conflitos intelectuais, característicos de sua época,
devidos, principalmente, pela divulgação da filosofia aristotélica. Esses conflitos
traziam a oposição do conhecimento pela fé e o conhecimento pela razão, a teologia
em oposição à filosofia e a crença na revelação da bíblia se opondo com as
investigações dos filósofos gregos.
97
Graças à capacidade de Tomás na organização metodológica e habilidade
dialética aliada a um profundo sentimento de cristã, a doutrina tomista opera uma
distinção aristotélica na questão entre essência e existência. Neste sentido, segundo
Tomás, apenas em Deus ocorre identidade entre essência e existência, que
considera a posição aristotélica como distinção ontológica.
98
O principal objeto das obras de Tomás é Deus. Ele considera a revelação
divina como principio capaz de fundar o discurso e a compreensão do homem e do
mundo. Para ele, não é possível substituir a teologia pela filosofia, ocorre integrar a
filosofia com sua configuração e autonomia à sacra doutrina relacionada a Deus, ao
homem e ao mundo. Essa concepção contempla a fé sustentando a razão, onde
ela alcança seus limites. A orienta a razão, e, é necessária uma filosofia correta
para se ter uma boa teologia.
Para Tomás, verdades que superam todo poder da razão. Porém,
considera que é preciso recorrer à razão, partindo das verdades racionais, para, ao
lado da revelação, constituir um pensamento teológico, harmônico e universal. A
97
AQUINO, Tomás de, Vida e obra, Coleção Os pensadores, São Paulo: Nova Cultural, 1996, pp. 06 – 07.
98
IDEM, O ente e a essência, Coleção Os pensadores, p. 53.
54
razão se constitui numa característica natural do homem, mas ela necessita dessa
fonte divina para um melhor exercício filosófico. Entretanto, a revelação não fere a
autonomia do mundo e do homem no seu ser e agir.
Na hierarquia tomista, o homem surge como ser dotado de duplo
compromisso: pela sua alma pertence ao campo dos seres imateriais, embora ainda
não seja uma inteligência pura em função do seu corpo. Portanto, o homem pode
conhecer pela sua alma, mas o corpo dificulta seu contato com o inteligível, embora
a alma humana possa tocar o mundo dos corpos e dos espíritos.
99
Para Tomás, sob influencia da teoria aristotélica do conhecimento, o intelecto
humano pode “gerar conceitos abstratos e universais porque não é um mero
intelecto passivo”. O conhecimento pode ter um início no plano corpóreo
(psicológico, pela ação do sensível), embora o processo seja comandado pelo seu
fim, situado no plano incorpóreo, espiritual.
100
A metafísica de Tomás está centrada no ser. O ato de ser é possível e se
origina no ser de Deus, que se comunica às criaturas. O ser, portanto, se constitui no
ato de existir que realiza a essência, ao passo que Deus é o ato puro e nele a
essência não se distingue da existência. O tema do ser pertence ao campo do
mistério e do indizível, contemplando sua profundidade como fundamento do saber.
É o mistério do ser em seu sentido transcendental. O ser transcendental inclui uma
identidade e unidade analógica. Ele se refere principalmente a Deus como primeiro e
supremo ser, no qual a unidade, a verdade e o bem se encontram identificados e em
grau supremo. Em ordem decrescente, ele se refere ao homem, e demais seres,
enquanto modo de ser divino.
Para Tomás, alcançar Deus significa percorrer caminhos que possam chegar
a Ele como meta suprema, onde tudo se unifica e adquire luz e coerência. A vida na
terra é uma escolha na qual a razão e a vontade humana devem conhecer e mirar
ao bem e a sua liberdade consiste em escolher a via e os melhores caminhos para
alcançar os bens terrestres e o bem supremo, praticando as virtudes e superando os
vícios.
101
Dotado de um espírito metódico e organizado, Tomás considera a doutrina
aristotélica que, segundo seu mestre, a quem chamava de “o Filósofo”, afirmava que
99
AQUINO, Tomás de, Vida e obra, Coleção Os pensadores, p. 11.
100
Ibid, Vida e obra, Coleção Os pensadores, pp. 11 – 12.
101
REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario, História da filosofia vol. 1, pp. 552 – 561.
55
“o ofício do sábio é colocar ordem nas coisas” (I Metafísica, II, 3). O nome de sábio,
em seu sentido estrito, se reserva àqueles que tomam como objeto de sua reflexão a
finalidade ou a meta do universo que, por sua vez, se constitui no princípio de tudo.
Seu ofício, portanto, é o estudo das causas mais altas ou elevadas.
102
Com bases nas palavras de Aristóteles, Tomás de Aquino afirma que para o
homem, quanto mais este se dedicar à sabedoria, tanto mais participa da verdadeira
felicidade, pois sua aplicação em estudar a sabedoria o aproxima da semelhança
com Deus. Segundo o “Livro da Sabedoria” (Livro da Sabedoria, capítulo 7, versículo
14), a própria sabedoria também conduz o homem ao reino da imortalidade e, que a
sabedoria constitui para todos os homens “um tesouro inesgotável, um tesouro tal,
que os que dele hauriram participaram da amizade de Deus”.
103
A importante contribuição de Tomás de Aquino na construção dos caminhos
da humanização está, basicamente, na filosofia do ser. Enquanto Aristóteles se
referia à razão dos seres entre si, movendo-se no sentido horizontal, Tomás se
move em sentido vertical na medida em que estabelece a relação interna e
participativa entre Deus, o mundo e o homem. Deus e as criaturas, o infinito e o
finito. Essa contribuição à humanização acontece na relação indissolúvel entre a
razão e a fé e na construção de uma filosofia do ser humano o mais como
emanação do Uno, ou do Logos, como na vertente platônica, mas como participante
do Ser supremo, criado a sua imagem e semelhança, e com a incumbência de
regressar a Ele, carregando, nessa busca e nesse retorno, todas as criaturas.
104
I.10.2 – Primeiras investigações científicas na idade média e a busca da
humanização fora do eixo teológico
O surgimento da chamada filosofia experimental, considerada como o início
de pesquisas científicas, trata da natureza mesclada aos elementos teológicos,
místicos e metafísicos da antiguidade. Os elementos experimentais estavam
baseados na aritmética, geometria, música e astronomia.
102
AQUINO, Tomás de, Vida e obra, Coleção Os pensadores, pp. 129 – 130.
103
Ibid, pp. 130 – 132.
104
CHAUI, Marilena, Convite à filosofia, pp. 266 – 267.
56
Um dos representantes desse período foi Roger Bacon (1214 1292) que
coloca a ciência como obra da humanidade, enquanto que a verdade era obra do
tempo. Dessa forma, a verdade deveria ser encontrada através do caminho da
experiência - tanto externa, como interna sendo que a experiência externa é feita
através dos sentidos, chegando às verdades naturais; quanto à experiência interna é
considerada como sendo a “iluminação” de Agostinho, através das quais, chegamos
às verdades sobrenaturais.
A sabedoria dos filósofos se coloca em torno do conhecimento, onde a
experiência se torna capaz de produzir esse conhecimento. O domínio da língua
princípio do uso da linguagem – se torna fundamental para fazer ciência, evitando-se
assim as deformações comuns trazidas pelas traduções.
Esse pensamento que reúne teoria e prática se tornaria o movimento que
traria o início da chamada ciência moderna.
105
As diversas discussões e os conflitos do período medieval até o culo XIII
trazem influências ao homem em torno das questões entre a razão e a fé, embora
ainda envolta pela metafísica, tanto a clássica, como a cristã. Os primeiros sinais
contemplando o início das investigações científicas trazem o conhecimento através
da utilização da experiência como caminho do homem para construir seu significado
histórico.
A idade média se encerra no século XIV rompendo com a relação entre razão
e fé. Novos fenômenos sociais ocorrem, movidos pelos conflitos existentes entre as
autoridades que detinham o poder a igreja católica e imperadores trazendo um
crescimento da burguesia e da economia, e, assim uma maior autoridade do Estado.
Do ponto de vista humano e social, ocorre uma ruptura da concepção unitária da
sociedade, levando a questão espiritual do coletivo para o individual e sua
interiorização.
A metafísica deixa seu lugar de destaque para a física dentro do novo método
de pesquisa científica, ligado a uma nova lógica e a critica da cosmologia tradicional.
Na tentativa de minimizar o conflito e controvérsias em torno da e da razão
entre o final do século XVI e início do século XVIII, ocorre uma separação da filosofia
e da religião, onde cada qual passa a seguir seus próprios caminhos. Ocorre uma
espécie de rejeição tanto da autoridade dos antigos filósofos, assim como da
105
REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario, História da filosofia vol. 1, pp. 591 – 597.
57
autoridade religiosa. A filosofia passa a ter como ponto de partida a teoria do
conhecimento investigação sobre a capacidade humana em torno do
conhecimento da verdade, tendo a razão como eixo principal da capacidade
intelectual do homem sem contradizer a religião em torno das verdades e dogmas
da Inquisição e Santo Ofício criados pela igreja católica que controlavam o
pensamento cristão.
106
Do ponto de vista psicológico, Edinger considera que tenham ocorrido
conseqüências na psique coletiva nestes séculos, pela erupção do arquétipo do
Filho de Deus, representado pela encarnação da imagem da Divindade. uma
descida da imagem-de-Deus na forma humana, para resgatar a humanidade do
pecado e das trevas.
107
Os efeitos dessas conseqüências de uma erupção arquetípica formaram duas
vertentes principais: os sistemas gnósticos, com ênfase no conhecimento intelectual
e experiência individual destruída em seguida em sua forma sistemática -; e, a
formulação eclesiástica que enfatiza a fé e a comunhão com parceiros de fé, num
contexto coletivo – que prevaleceu nessa disputa - e ainda prevalece.
108
Quando a imagem-de-Deus passou para a psique humana, induziu a
humanidade a uma “vasta soberba, uma valorização excessiva do ego humano”,
segundo Edinger. E acrescenta: “o secularismo racionalista e o materialismo
cientifico governam o mundo moderno, e tudo isso pode ser simbolizado pela
imagem do domínio de Cristo substituída pelo domínio do Anticristo”.
109
Como no mundo ocidental de hoje uma morte da imagem-de Deus em
funcionamento e, muito poucas pessoas trazem a experiência da imagem divina
como a posse mais intima de sua alma, pois que a religião só é fé e forma exterior, e
a função religiosa não é experienciada em nossa própria alma, nada de alguma
importância acontece. A correspondência interior com a imagem-de-Deus (cristã)
exterior não se desenvolve, pois a alma não está em sintonia com suas crenças
exteriores.
110
A psicologia junguiana, assim como a transpessoal consideram que é
possível entender ”que a imagem-de-Deus por que vivemos, cuja perda condenou à
106
CHAUI, Marilena, Convite à filosofia, pp. 195 197.
107
EDINGER, Edward F. A psique na antiguidade livro dois, p. 201.
108
Ibid, p. 201.
109
Ibid, p. 203.
110
Ibid, p. 210.
58
morte espiritual das pessoas e sua falta de sentido seresgatada num novo nível
de consciência”, através de seu desempenho ativo e do continnum consciente-
inconsciente, ou, eixo ego-Self e “em virtude de sua consciência humana iluminada,
que por isso adquire um significado metafísico e cósmico”.
111
I.11 – O pensamento humanista no renascimento
O humanismo surge, inicialmente, como um movimento representativo de um
renascimento cultural.
O movimento literário e filosófico nascido na Itália na segunda metade do
século XIV difundiu-se para os países da Europa, originando a chamada cultura
moderna, traz como eixo central a questão do humanismo. O humanismo também é
considerado como qualquer movimento filosófico que traga como fundamento a
natureza humana, caracterizando os limites e interesses do homem.
112
Dentro do significado histórico, o homem é considerado como aspecto
fundamental do Renascimento, onde se reconhece o valor do homem em sua
totalidade, buscando compreendê-lo em seu mundo enquanto natureza e história.
Essa totalidade é considerada em torno do ser formado de corpo e alma, exaltando
a liberdade e dignidade do homem como centro da natureza, dominando seu
destino. Também reconhece o vínculo do homem com seu passado, unindo-o e
distinguindo-o deste, como aspecto filológico, buscando nos textos antigos a
verdade filosófica ou religiosa que os mesmos tragam. Outro ponto importante a
destacar contempla o reconhecimento do valor humano, por isso tratar agora da
questão do humanismo e da formação de uma consciência realmente humana,
através da crítica histórica da tradição cultural e sua devida consciência. A
naturalidade do homem também se faz reconhecida nesse período, como ser natural
e a necessidade do conhecimento da natureza, onde o aristotelismo, a magia e
especulações naturalistas se tornam pré-concepções para a ciência moderna.
111
Ibid, p. 213.
112
ABBAGNANO, Nicola, Dicionário de filosofia, São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 518.
59
Importante destacar também que o humanismo considera toda filosofia que
tome o homem como medida das coisas, onde qualquer tendência filosófica possa
considerar as possibilidades limitações do homem ofertando condições para um
redimensionamento dos problemas filosóficos.
113
Poderíamos citar um sem número de concepções sobre o humanismo de
acordo as antropologias descritivas que subordinam o homem a sua realização
pessoal e livre a outros fins, sejam em relação ao estado, à sociedade, ao progresso
científico ou técnico. Considera-se que esses saberes, desde que positivos, devam
ser reinterpretados por um projeto filosófico unitário, com propósitos de uma mais
efetiva intenção humanística.
114
Esse parece se constituir o próprio redimensionamento das questões
filosóficas em torno do homem, de acordo com cada época e sua historicidade,
dentro de um significado de desenvolvimento e evolução pelo qual o homem vem
passando ao longo do tempo.
O sentido do humanismo, embora ressaltado no período do renascimento,
iniciado no século XV, com o termo “humanista”, e, seus equivalentes em várias
línguas, anteriormente se mencionava o termo “humanitas” dentro daquilo que os
helênicos consideravam como “paidéia”, ou seja, a educação e formação do homem,
onde a formação espiritual era feita através das letras poesia, retórica, história e
filosofia – desempenhando um papel fundamental.
Importante considerar que o humanismo significa essa tendência geral em
torno de suas várias concepções que, através de Petrarca seus antecedentes na
época medieval, passam a se apresentar no renascimento com uma forte tendência
aos estudos relativos à literatura humana, desde a antiguidade clássica greco-latina,
considerada através de seus autores como verdadeiros mestres da humanidade.
É possível que o fator primordial a distinguir o humanismo se constitua agora
em um novo sentido do homem e seus problemas, sentido esse que vai se revelar
através de expressões multiformes, outras vezes opostas, embora trazendo sua
importância ao estudo do homem e sua dignidade.
115
113
ABBAGNANO, Nicola, Dicionário de filosofia, pp. 518 – 519.
114
CABRAL, Roque, Enciclopédia luso-brasileira de filosofia, Lisboa/São Paulo: Editorial Verbo, 1990, pp.
1214 – 1217.
115
REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario, História da filosofia vol. 3,São Paulo: Paulus, 2004, pp. 05 – 08.
60
I.11.1 – O humanismo renascentista e a religião
No final do século XV e início do século XVI surge na Holanda o filósofo
Erasmo de Rotterdam, considerado “príncipe do humanismo”, cuja principal obra
Elogio da Loucura tece críticas à Igreja e ao clero renascentista e seu dogmatismo,
contrapondo-se aos problemas metafísicos, físicos e dialéticos da filosofia
escolástica. A filosofia de Erasmo de Rotterdam traz sua fundamentação no
conhecimento da sabedoria e prática da vida cristã que contempla o caminho de
Cristo para a salvação. Indica elementos adequados para a construção desse
caminho pelo homem por meio da “fé sincera, caridade não hipócrita e esperança
que não se envergonha”. Em sua obra Elogio da Loucura, que se assemelha à
ironia socrática em relação às diversas máscaras reveladoras da verdade, ele coloca
a loucura em vários graus, o último é aquele que revela a verdade e faz com que se
enxergue a comédia da vida, cujo ápice está na em Cristo a loucura da cruz
onde se encontra a felicidade celeste. Esse filósofo contribuiu para as premissas da
reforma protestante de Lutero, embora escreva contra ele o tratado sobre o livre
arbítrio.
116
Entre os séculos XV e XVI ocorre o movimento de reforma religiosa, tendo em
Martinho Lutero sua expressão principal, propondo uma renovação da religião como
volta ao evangelho e à bíblia e às origens do cristianismo confiando totalmente à fé,
a salvação. As escrituras o consideradas como as únicas fontes da verdade. Tudo
aquilo que podemos saber a respeito de Deus e da relação homem-Deus são
encontradas somente na Sagrada Escritura. Lutero, assim como depois Calvino e
outros teólogos da Reforma e renovação, faz parte do chamado movimento
protestante.
Neste período surge também a Contra Reforma ou a Reforma Católica, tendo
o Concílio de Trento como determinante de uma renovação interna da Igreja, a
retomada da escolástica e as tentativas de revivência e conciliação entre a fé e a
razão, entre a natureza e a graça entre o humano e o divino.
116
Pesquisas realizadas na obra de GALVÃO SIMÕES, Roberto Carlos, O humanismo de Jacques Maritain e a
educação, www.pedagobrasil.com.br/pedagogia/ohumanismo.htm, obtida em 03 de fevereiro de 2006, e na obra
de REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario, História da filosofia vol. 3, pp. 67 e 84.
61
I.12 – A revolução científica e o homem como objeto de investigação
Entre o período que vai de meados do século XVI até final do século XVII – de
Copérnico a Newton acontece a chamada revolução científica, com a obra de
Copérnico, Kepler e Galileu, e dos filósofos Bacon e Descartes. A base é o
pensamento newtoniano que revoluciona a imagem do universo, inclusive no que diz
respeito às mudanças entre saber científico e fé religiosa.
Em Copérnico encontramos uma mudança do centro do universo; a terra
deixa de ser o lugar central da criação designada por Deus, e o homem deixa de ser
o aspecto mais elevado dessa criação. Com Galileu, ocorre um desencontro com a
Igreja e as suas pesquisas sobre o heliocentrismo incluem a questão da autonomia
da ciência em relação à fé. Começa a mudança da imagem do mundo, do homem, e,
assim, também vai mudando a imagem da ciência.
A chamada “ciência moderna” se caracteriza pela concepção racionalista,
tendo o método hipotético-indutivo como ponto fundamental em seu processo,
rejeitando as proposições essencialistas da filosofia aristotélica em torno da
substancia, e dando ênfase à questão da função do saber.
Os pressupostos filosóficos do essencialismo aristotélico ainda aparecem na
pesquisa de Copérnico, Kepler e Galileu, mesmo que as idéias girem em torno,
basicamente, da matemática e da geometria.
Isaac Newton utiliza a matriz física em suas pesquisas matemáticas,
configurando um sistema de mundo em torno da física clássica. O método de
Newton está baseado em quatro regras de raciocínio filosófico: não se devem admitir
mais causas para as coisas naturais além daquelas que sejam verdadeiras e
suficientes; para os mesmos efeitos deve-se atribuir as mesmas causas, sempre que
possível; as qualidades universais de todos os corpos são consideradas quando nos
experimentos as qualidades dos corpos não apresentam nem aumento, nem
diminuição de grau; na filosofia experimental são consideradas proposições
advindas pela indução geral dos fenômenos (precisas ou muito próximas), apesar de
toda hipótese contrária, até que outros fenômenos sejam apresentados e que
possam se tornar mais precisos, para não se iludir com as hipóteses.
117
117
REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario, História da filosofia vol. 3, pp. 232 – 246.
62
A formação de um novo tipo de saber, baseado na pesquisa científica
experimental moderna, traz agora a figura do cientista capaz de fundir a teoria com a
técnica, validando teorias com experimentos através de operações instrumentais
com e sobre os objetos valorizando os instrumentos científicos juntamente com o
saber e técnica, teoria e prática.
Os principais filósofos da ciência moderna, em seu inicio, são Francis Bacon e
Descartes.
Bacon foi considerado um filósofo da era industrial, iniciando no ocidente uma
nova visão intelectual. Descontando o conceito de substancia, sua pesquisa gira em
torno da função da ciência na vida e na história humana, considerando insuficiente o
que havia sido feito até então filosofia e pela gica tradicional. Seu método se
constitui, basicamente, na indução que elimina os axiomas a priori, como caminho
para a descoberta da verdade.
René Descartes (1596 1650) foi considerado o fundador da filosofia
moderna. Embora, inicialmente, sua formação aristotélica-tomista lhe oferecesse um
conhecimento em torno da física e da metafísica, procurou elaborar sua teoria com
ênfase no “caráter sistemático do pensamento” através de um saber mais racional
baseado no estudo das matemáticas, que considerava ser aplicável em outras áreas
do saber. Para atingir seus propósitos em torno das matemáticas, adotou em seu
método filosófico o procedimento baseado no modelo lógico-demosntrativo da
geometria analítica.
118
Dessa metodologia, Descartes desenvolve um novo tipo de saber centrado no
homem e na racionalidade humana, estabelecendo sua critica em torno da herança
cultural, filosófica e científica da tradição anterior em torno da centralidade no ser e
em Deus. Seu método traz regras que se baseiam na evidência racional, na análise,
na síntese e no controle completo dos elementos analisados pela revisão das
operações sintéticas, adotando o critério das certezas matemáticas. Esse método
cartesiano é aplicado à filosofia. No Discurso do Método ele descarta opiniões e
convicções comuns e vai à busca da certeza e das idéias claras e distintas,
superando a vida metódica pela intuição infalível do ser como pensamento:
“penso, logo existo”. Descartes escreve sobre metafísica em torno de 1640, à partir
118
CHALITA, Gabriel, Vivendo a filosofia, pp. 232 – 234.
63
da absoluta certeza da idéia do eu racional. Dessa idéia ele parte para provar a
existência de Deus como Ser perfeito e infinito e garantia das nossas certezas.
119
A modernidade é inaugurada por modelos racionais e newtoniano-
cartesianos, que norteiam as construções científicas dos principais pensadores
desse período, estendo-se até a chamada modernidade tardia ou a pós-
modernidade, como observará adiante. Na modernidade nascem os diferentes
modos de realização do ideal de cientificidade, de acordo com os diferentes campos
investigados com seus respectivos métodos e tecnologias, criando assim as novas
“ciências”.
I.12.1 – As ciências humanas e os caminhos do homem na ciência moderna
Parece evidente considerar que toda e qualquer ciência traga em seu escopo
o significado humano, por fazer parte da atividade especifica do homem, o
conhecimento. Ao nos referir às ciências humanas, entendemos apontar aqueles
cujo objeto é o próprio ser humano. Essa idéia do homem como objeto científico
surgiu apenas no século XIX, pois, anteriormente, o que se referia ao homem era
estudado no amplo campo da filosofia que abrangia o ser, o mundo, a natureza, o
agir humano e Deus. Outra importante consideração diz respeito ao fato de que
as ciências humanas surgiram depois que outras ciências, como as ciências
matemáticas e naturais, tinham se constituído dentro do critério de cientificidade,
levando as ciências humanas a seguir o que já havia sido estabelecido. Portanto, os
problemas humanos deveriam ser estudados como algo matemático e experimental,
mediante conceitos, métodos e técnicas advindos das ciências naturais. Esses fatos
terminaram em resultados contestáveis por tratar o objeto humano através da
utilização do modelo hipotético-indutivo com experimentos em laboratório. Assim, a
subjetividade humana perdia sua riqueza e se reduzia aos fenômenos quantificáveis
nos moldes das ciências naturais. Assim, as ciências do homem como a
119
Pesquisas realizadas através das obras de CHAUI, Marilena, Convite à filosofia, pp. 221 – 225, e REALE,
Giovanni e ANTISERI, Dario, História da filosofia vol. 3, pp. 263 – 306.
64
psicologia, a sociologia, a história e a própria filosofia, em consonância com esse
paradigma assumiram um caráter de ciências hipotético-indutivas ou positivas.
120
É a partir do século XIX que entramos no período chamado de positivista,
iniciado por Augusto Comte. Comte tinha uma visão progressista da humanidade. O
homem, como ser social, exigia que se fizesse um estudo científico da sociedade.
Nasce a sociologia, que deve estudar os fatos humanos utilizando-se dos métodos e
técnicas das ciências da natureza.
Essa concepção positivista torna-se uma das correntes mais influentes para a
área das ciências humanas durante todo o século XX.
No século XIX nasce também a psicologia positivista, afirmando que seu
objeto não é o psiquismo (e nem a consciência), mas o comportamento humano
observável, utilizando-se do método experimental das ciências naturais.
Outro movimento da modernidade, o Iluminismo, iniciado a partir do século
XVIII, cria a chamada “razão iluminista”. O sujeito, pela razão e o conhecimento
domina e controla a natureza e todas as atividades humanas. Esse modelo foi
criticado pela escola neo-hegeliana de Frankfurt por instrumentalizar a razão,
colocando a serviço da produção e do consumo como se fora um laboratório
cientifico, no qual a experimentação supere a experiência,e cria condições artificiais
para o ser humano e a sociedade e a arte que são envolvidas em objetos
“enlatados” e descartáveis.
121
O iluminismo penetra também na psicanálise de Freud que compreende a
razão configurada historicamente e socioculturalmente contextualizada. Freud
revaloriza o corpo, o instinto, o desejo, sem desqualificar a razão e o consciente.
A era moderna trouxe muitos ritos, dentre eles a a valorização e a
autonomia do sujeito e da razão, a evolução das ciências, da tecnologia e das artes.
Porém, ao mesmo tempo, com a perspectiva emprico-cientifica, produziu uma
desintegração das questões interiores, a prevalência das questões exteriores. As
verdades subjetivas, introspecção, arte, consciência, a beleza e as intersubjetivas
e sociais – a ética, justiça, e os valores substantivos, foram desintegrados em
situações exteriores, empíricas, sensório-motrizes, um reducionismo no qual o
mundo interior passa a ser explicado em termos puramente objetivos (exteriores).
122
120
CHAUI, Marilena, Convite à filosofia, pp. 226 – 227.
121
CHAUI, Marilena, Convite à filosofia, p. 237.
122
WILBER, Ken, Psicologia integral, pp. 85 – 86.
65
No final do século XIX e início do século XX surge com Dilthey um período
tido como historicismo, trazendo as idéias do idealismo alemão de Kant, Ficht,
Schellin, Hegel, que consideram existir uma grande diferença entre homem e
natureza, portanto, entre ciências humanas e naturais, que Dilthey chama de
ciências do espírito ou da cultura. O historicismo leva em consideração que os fatos
humanos são históricos, trazendo seu valor e sentido, significando sua finalidade ao
se distinguir dos fatos naturais, não podendo, portanto, utilizar o método
experimental e da observação apenas, criando um método que implique na
explicação e compreensão do sentido dos fatos humanos dentro da sua causalidade
histórica.
123
Max Weber e Jurgen Habermas consideravam que a modernidade
desenvolveu uma diferenciação das esferas de valores culturais, permitindo com que
cada uma seguisse seu próprio caminho, utilizando seus próprios instrumentos e
suas descobertas. Porém, as transformações ocorridas na modernidade, em muitos
aspectos importantes, foram se transformando em dissociações, fragmentações,
tomando rumos redutores, ora em direção ao materialismo, ora ao racionalismo e
outras tendências, sem considerar o ser humano, a natureza, a arte, a ética, a
religião, as ciências como um todo articulado.
124
I.13 – O humano da modernidade à pós-modernidade
Quase em meados do século XX ocorre uma ruptura epistemológica e uma
revolução científica no campo chamado por alguns autores como humanidades.
A fenomenologia introduz a noção de essência ou significação como conceito
que permite diferenciar internamente uma realidade de outras realidades,
encontrando seu sentido, sua forma, suas propriedades e origem. A fenomenologia
permite a diferença entre a esfera da essência natureza e a esfera da essência
homem. A essência homem se diferencia internamente em outras essências
diversas como o psíquico, o social, o histórico, o cultural. Assim, a psicologia como
123
CHAUI, Marilena, Convite à filosofia, pp. 227 – 229.
124
WILBER, Ken, Psicologia integral, pp. 76 – 77.
66
ciência humana do psiquismo torna possível estudar o conjunto de fatos internos e
externos ligados à consciência, como a sensação, a percepção, motricidade,
linguagem, etc., como fatos dotados de significado objetivo próprio.
O estruturalismo foi outra escola que trouxe sua contribuição, permitindo às
ciências humanas métodos específicos para o estudo de seus objetos. Essa escola
propõe que os fatos humanos assumem forma de estruturas, que são totalidades
organizadas segundo princípios internos que têm sua particularidade, cada qual
administrando seus elementos. Uma estrutura é uma totalidade dotada de sentido.
125
Com o pensamento de orientação humanista de meados do século XX em
diante, projeta-se a liberdade essencial do homem e o poder criador do indivíduo,
exaltando a dignidade como valor individual de liberdade interior e criatividade. A
busca de valores pelo ser humano é considerada como inerente ao homem desde o
começo da vida do indivíduo, como crença na existência de um potencial criador
existente em cada ser humano.
126
Os movimentos humanistas ocorridos ao longo da história, tendo como inicio
o renascimento, trazem no século XX a chamada “terceira força em psicologia”, após
o advento do behaviorismo e da psicanálise, agora através do movimento
humanista-existencialista.
O existencialismo, ligado ao humanismo da modernidade avançada, traz
como princípios básicos a responsabilidade, envolvimento e ação, somados à crença
em torno da capacidade do homem de escolha e crescimento. Essas orientações
valorizam o eu-em-processo interiormente experimentado, distinto do eu em
encontro ou ação. O existencialismo reconhece o caos, o absurdo, desespero e
desamparo do ser humano, mas também o fato do homem dispor de imenso
potencial de transformação e realização, diante dos obstáculos inerentes à
existência, como postulado de escola humanista moderna. Essas dualidades se
tornam complementares pela existência básica humana, que precede sua própria
essência.
127
O existencialismo traz origens mais recentes que o humanismo; o filósofo
Kierkgaard considera-se como seu criador. O existencialismo não se resume numa
única escola de pensamento, pois seus representantes trazem pontos de vista
125
CHAUI, Marilena, Convite à filosofia, pp. 229 – 230.
126
GREENING, Thomas C. (org.), Psicologia existencial humanista, Rio de Janeiro: Zahar, 1975, pp. 33 – 44.
127
GREENING, Thomas C. (org.), Psicologia existencial humanista, pp. 33 – 34.
67
próprios, embora o que tragam em comum seja a especulação filosófica em torno da
existência humana, em boa parte marcada por uma tendência carente de esperança.
A existência é considerada absurda, pois o homem “é um ser para a morte”, que é o
limite final de toda transcendência.
Heidegger contesta Kierkgaard, por considerá-lo mais teólogo do que filósofo.
Heidegger foi influenciado por Nietzsche e Jaspers, também considerados como
fundadores da filosofia existencial, onde buscam pela concepção da interpretação do
Ser. O existencialismo, em geral, considera as limitações da ciência como modo de
conhecimento. Sartre coloca a questão da escolha e decisão com conhecimento
adequado e suas conseqüências para nós mesmos e os outros, com nuances da
condição humana em torno do absurdo e trágico.
Pensadores humanistas mais recentes mostram-se preocupados com o
pensamento existencialista por enfatizar a angustia, o desespero e fechar as
perspectivas para o homem. Dentre eles, destacam-se Rollo May e Maslow, que
buscam alimentar uma visão mais otimista sobre a natureza humana. Esse otimismo
parece se constituir em um diferencial significativo entre as escolas existencialista e
humanista.
128
A filosofia, e a psicologia estão presentes também na construção humanista
da pós-modernidade. Nessa fase influencias marcantes de períodos anteriores,
em especial de autores como Nietzsche e Heidegger, considerados precursores das
posições pós-modernas. Os conflitos do homem se fazem presentes, a angustia, o
temor, a tragédia, mas também aspectos importantes que apontam novos temas
e novas potencialidades para o desenvolvimento e crescimento do ser humano.
I.14 – Novas perspectivas na pós-modernidade: humanização e transcendência
É possível que a consciência esteja se tornando um dos mais importantes
paradigmas nos estudos e pesquisas mais recentes em torno humano, na sua
incessante busca pelo conhecimento.
128
GREENING, Thomas C. (org.), Psicologia existencial humanista, pp. 32 – 35.
68
Estamos vivendo uma revolução cientifica no que diz respeito, principalmente,
à mudança do velho paradigma newtoniano-cartesiano, que, mesmo tendo
promovido progressos em alguns importantes campos da ciência, tem se revelado
um tanto reducionista na medida em que também veio trazendo conseqüências
fragmentárias para a sobrevivência do homem e da humanidade.
129
Da segunda metade do século XX, até os dias atuais, temos presenciado
acentuadas mudanças culturais e cientificas, ao mesmo tempo, limitações
preocupantes em torno das necessidades humanas e dos inúmeros problemas
existenciais, implicando em patologias individuais e coletivas que indicam uma falta
de sentido para a vida, assim como uma percepção fragmentada da realidade.
A consciência vem sendo o principio fundamental da psicologia transpessoal,
considerada uma concepção recente que nasceu nos Estados Unidos na década de
sessenta do século XX, e tida como a “quarta força” em psicologia, precedida pelo
behaviorismo, pela psicanálise e pela psicologia humanista.
130
Dentre os principais criadores da psicologia transpessoal, citamos Maslow,
Assagioli, Grof e Wilber, esse último como sendo o pensador principal para nosso
objeto de pesquisa que focaliza humanização e transcendência, como uma proposta
de reconstrução humana nesse novo milênio.
Na psicologia transpessoal, a humanização é um processo que implica, ao
mesmo tempo, o trabalho de individuação como na concepção junguiana e o
desempenho ativo da consciência conscientização mediante a abordagem
integral de Wilber para desenvolver o processo de humanização. Essa abordagem
comporta o trabalho de integração dos diferentes níveis de consciência do ser
humano. A humanização, portanto, inclui uma ação mais efetiva do ser humano na
vida, ao lidar com as questões e os problemas que o homem carrega ao longo de
sua história, de acordo com sua real e atual situação existencial. Sua relação com a
transcendência implica em redimensionar seus níveis de consciência numa
concepção integral da matéria para o corpo, deste para a mente, daí para a alma,
até o espírito – de maneira que possa vir a transcender sua própria condição
humana diante da vida.
As explanações mais detalhadas acerca do processo de humanização e
transcendência, como nosso objeto de pesquisa, estarão sendo apresentadas ao
129
TABONE, Márcia, A psicologia transpessoal, citação do pensador Pierre Weil, p. 15.
130
Ibid, p. 18.
69
longo dos capítulos seguintes, ofertando condições para um melhor entendimento do
seu desenvolvimento como acesso ao ser humano, e, seu respectivo
aproveitamento.
A psicologia integral proposta por Wilber inclui concepções significativas de
fontes pré-modernas, modernas e pós-modernas, como também principais
concepções em torno da consciência trazidas pelas culturas ocidentais e orientais,
considerando o que se pode apurar das contribuições significativas, necessárias e
complementares neste sentido. Foi por isso que percorremos a longa e fascinante
epopéia do conhecimento, como premissas necessárias à proposta transpessoal.
Para construir o processo de humanização e sua relação com a
transcendência a proposta transpessoal compreende os diferentes modos de tratar a
consciência e suas manifestações no comportamento humano. Considera as
funções da consciência as que incluem percepção, desejo, vontade e ação; como
estruturas, dentre as quais, algumas podem ser inconscientes, e incluem corpo,
mente, alma e espírito; os estados da consciência, que incluem a vigília, o sonho, o
sono (estado normal) e o incomum e meditativo (estado alterado); os modos, que
incluem o estético, o moral e o científico; o desenvolvimento, que é mais abrangente,
pois inclui o chamado espectro, que vai do pré-pessoal ao pessoal, deste ao
transpessoal, do subconsciente ao autoconsciente, e, deste, ao superconsciente (o
espírito); o relacional e comportamental, que implica na interação com o mundo
objetivo, exterior, sociocultural dos valores e percepções compartilhados.
131
Desde as concepções clássicas da antiguidade e da idade média, pelos quais
o conhecimento buscava explicações sobre o homem e tudo aquilo que o rodeava,
passando pelo renascimento e o humanismo cujas concepções se espalharam e se
desenvolveram por todo ocidente, até a criação das ciências humanas, chegamos à
pós-modernidade trazendo fundamentos, contribuições importantes, como também
conflitos, fragmentações e patologias individuais e coletivas para este momento
significativo para a história da humanidade. Observamos que o homem, o
humanismo e a humanização passaram por diversos ciclos na sua construção
histórica, social e cultural, desenvolvendo tanto condições favoráveis, quanto
desfavoráveis ao desenvolvimento e crescimento do ser humano.
131
WILBER, Ken, Psicologia integral, p. 14.
70
O momento agora parece sugerir um sentido de reconstrução do homem e da
humanidade, nas condições adversas que apresentaremos nos próximos
capítulos.
132
132
WILBER, Ken, ao se referir aos “três olhos do conhecimento” humano, quando desenvolvidos e interagindo
em nível interno no homem, apresentado em sua obra: A união da alma e dos sentidos, p. 22.
71
Capítulo II A humanização na pós-modernidade: a falta de sentido, a falta de
unidade, o esquecimento da transcendência e a busca de novos caminhos.
Neste capítulo pretendemos tratar as principais questões que vem assolando
a vida humana, desde alguns desastres significativos ocorridos em alguns
momentos da era moderna, ao presente inicio desse novo milênio, com destaque
a uma fase importante ocorrida em meados do século XX.
Observamos, nessa nossa trajetória, alguns fatos importantes em torno da
questão da identidade, discutida em larga escala na teoria social, assim como,
também, a questão do processo de individuação, e, conseqüentemente, o processo
de humanização, discutidos nas teorias psicológicas e em outras áreas humanas, e
as influencias ocorridas, no sentido de buscar por uma melhor compreensão dos
aspectos que têm contribuído para essa negação da humanização, verificada na
falta de sentido para com a própria vida, a falta do senso de unidade em torno do ser
humano e, conseqüentemente, o distanciamento e esquecimento do sentido da
transcendência.
Buscamos também perspectivas e a busca de novos caminhos.
Portanto, neste capítulo trabalharemos três itens: 1) A modernidade, seus
avanços e contradições; 2) A pós-modernidade, seus paradoxos e possibilidades; 3)
O despertar de novos caminhos que apontam para a humanização.
II. 1 – A modernidade, seus avanços e contradições.
A era moderna pode ter trazido suas contribuições à ciência, à arte e à moral,
porém, também fez surgir uma nova forma de individualismo, marcado por
dicotomias e dissociações, levando a posições narcisistas e niilistas um
descontrolado e inflado (ora, desinflado) individualismo -, ao mesmo tempo,
caracterizadas por novas e complexas identidades, embora fragmentadas em meio a
todas essas mudanças, que também deslocam as estruturas e processos centrais
72
das sociedades, causando abalos em quadros significativos de referencia que
outrora ofereciam aos indivíduos uma “ancoragem estável no mundo social”.
133
Stuart Hall ainda acrescenta: “O sujeito, previamente vivido como tendo uma
identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma
única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não
resolvidas”.
134
O conceito de individualidade e o sentido do humanismo começam a ser
substituídos pelo conceito e sentido do individualismo, mais relacionado ao
egocentrismo do indivíduo com fragmentações em seu senso de identidade.
A mecanização, o mercantilismo, a automatização, o paradigma materialista e
racionalista do modelo dominante da ciência, e todas as demais conquistas
modernas e pós-modernas, têm gerado uma instabilidade no indivíduo e em suas
relações pessoais. Em tal situação, presenciamos paradoxos e dilemas,
transitoriedade e descartabilidade dos objetos, que refletem no ser humano, no
social e cultural, que tem trazido marcas profundas, necessárias de serem
estudadas e pesquisadas, em meio a tantas interpretações apresentadas.
135
Várias pesquisas, em alguns importantes campos da ciência, vêm fazendo
descobertas que sugerem, dentre outras coisas, a imensa capacidade humana e
todo seu potencial criativo, podendo ir para caminhos tão significativos de novas e
possíveis descobertas, que, até há pouco tempo atrás, não podíamos imaginar.
Como elemento inclusivo dessas pesquisas, salientamos, particularmente, aquelas
relacionadas à natureza da consciência humana. Essas novas perspectivas e
descobertas estão possibilitando uma nova abordagem da psique, através de uma
nova visão que possam interagir os avanços da ciência, com as tradições da
sabedoria mais antigas, tanto do oriente, como do ocidente.
136
Até por volta do século XX, o modelo dominante da ciência contemplava uma
visão materialista e racionalista do mundo como sendo uma grande maquina
composta de matéria sólida, contendo suas determinadas regras e leis que, quando
descobertas, permitiriam um domínio sobre tudo aquilo que estivesse sendo
observado. Dessa maneira, também a própria vida, os seres humanos, a inteligência
133
HALL, Stuart, A identidade cultural na pós-modernidade, São Paulo: DP&A editora, 2005, pp. 07 – 09.
134
Ibid, p. 12.
135
QUEIROZ, José J., As religiões e o sagrado nas encruzilhadas da pós-modernidade, in: QUEIROZ, José J.
(org.), Interfaces do sagrado em véspera de milênio, São Paulo: CRE PUC SP e Olho Dágua, pp.09 – 13.
136
GROF, Stanislav, A mente holotrópica, p. 15.
73
criativa, a consciência, estariam sendo considerados como subprodutos de
acidentes proporcionados de acordo com a disposição dessa matéria como cerne do
universo.
O modelo cartesiano e newtoniano parece ter contribuído para o avanço da
ciência desde a modernidade, gerando um ciclo de paradigma racionalista,
caracterizado pelo aspecto fragmentário, responsável pelas dicotomias e os
excessos que afetam grande parte dos problemas humanos nos dias de hoje.
As conseqüências causadas pela invasão desse urgente estado das coisas
em diversas áreas do conhecimento humano, principalmente no ocidente, trouxeram
situações criticas para as condições da consciência humana, assim como para a
liberdade interior de realizar escolhas satisfatórias em seu contexto existencial,
social e cultural.
137
A modernidade, à parte de suas importantes e significativas contribuições,
também trouxe a chamada “disseminação da perda de sentido”. Max Weber e
Jurgen Habermas consideram que essa disseminação da perda de sentido se deve,
principalmente, pela diferenciação das esferas de valores culturais, sobretudo, em
relação à arte, à ética e à ciência. Ao invés de procurar uma interação entre elas, na
modernidade e pós-modernidade acabou ocorrendo uma separação, cada qual
seguindo seu curso com suas próprias descobertas. Essa separação pode ter
contribuído para fragmentar o pensamento dentro das áreas do conhecimento,
trazendo sérias conseqüências citadas como: “a morte de Deus, a mercantilização
da vida, substituição da qualidade pela quantidade, perda dos valores e do sentido,
fragmentação da vida em âmbito universal, terror e vazio existencial, industrialização
poluente, enfim, um materialismo desenfreado e vulgar”.
138
Essas conseqüências trazidas pela modernidade invadiram a pós-
modernidade, ainda sob a forte influencia dos modelos dominantes, o cartesiano e
newtoniano, limitando e reduzindo a visão do ser humano e de todo seu potencial
criativo e inteligente.
Até o século XX, a visão de mundo girava em torno da firme convicção de que
o universo era composto de matéria sólida, como se fosse uma máquina imensa,
através da qual seriam descobertas todas as leis e regras que pudessem governá-la.
137
TABONE, Márcia, A psicologia transpessoal, citação de Luiz Pellegrini na apresentação da obra da autora, p.
12.
138
WEBER, Max e HABERMAS, Jurgen, apud WILBER, Ken, Psicologia integral, pp. 75 – 76.
74
Essa imagem do universo poderia até permitir, numa perspectiva reducionista, a
reprodução da vida, se misturada a determinados produtos químicos num tubo de
ensaio. Nessa perspectiva também, a vida, a consciência, a inteligência criativa e os
seres humanos estariam sendo considerados como subprodutos acidentais de uma
incrível disposição da matéria.
139
Além da disseminação da falta de sentido, observamos também um
distanciamento do sentido de unidade e de transcendência, anteriormente
considerados tão significativos pelas tradicionais escolas clássicas da antiguidade,
tanto do ocidente, quanto do oriente. Os modos mais elevados da alma e do espírito
deixam de ser inclusivos; a questão da “filosofia perene” trazida pelas grandes
tradições de sabedoria foi desconsiderada, desde Platão a Plotino, assim como para
pensadores do oriente e suas significativas contribuições. Assim, o ocidente
moderno também passa a desconsiderar a importância da “Grande Cadeia do Ser”,
conforme estudos de Plotino (ocidente) e Aurobindo (oriente), destacando a
integração dos níveis dessa cadeia, desde a matéria até Deus – o Absoluto, a
Divindade, a Deusa ou Ente Supremo como significado e sentido do Ser
universal.
140
As reformas ocorridas durante o período em que a igreja e o cristianismo
fincaram suas bandeiras permitiu uma maior liberdade individual, quase secularizou
e desvinculou-se das instituições religiosas da igreja; o período do renascimento
declarou o nascimento do humanismo, colocando o homem como centro do
universo; o advento das ciências causou também sua revolução, conferindo ao
homem capacidades para investigar e decifrar os mistérios da natureza; com a
chegada do iluminismo, o homem é colocado como centro de uma imagem racional,
científica, onde domina a própria história humana; o “sujeito cartesiano” com seus
poderes e capacidades, através do filósofo Descartes, tido como um “sujeito
moderno”: racional, pensante e situado no centro do conhecimento; a modernidade
trouxe o “sujeito-da-razão”, onde o “cidadão individual” se torna responsável e gera o
sentimento do “individualismo”, misturando-se ao crescimento das sociedades cada
vez mais complexas, às máquinas industriais, burocráticas e administrativas desse
novo e moderno estado que surge.
141
139
GROF, Stanislav, A mente holotrópica, p. 16.
140
WILBER, Ken, A união da alma e dos sentidos, pp.22 – 23 e 68.
141
HALL, Stuart, A identidade cultural na pós-modernidade, pp. 25 – 30.
75
O ser humano integrado que trazia como status uma condição mais integrada
na Grande Cadeia do Ser como ordem secular e divina das coisas, a “filosofia
perene” foi gerando uma posição individualista entre o humanismo renascentista
do século XVI e o Iluminismo do século XVIII, como uma ruptura com seu passado
clássico das antigas tradições, influenciando toda estrutura humana, assim como o
sistema social e cultural refletido na modernidade e pós-modernidade.
142
Vários pensadores do ocidente e do oriente, em praticamente todas as
grandes tradições de sabedoria desde a pré-modernidade, consideram a Grande
Cadeia do Ser como a essência da visão de mundo pré-moderna, como uma visão
quase em sentido universal, onde a realidade se constitui em uma rica tapeçaria de
níveis entrelaçados, abrangendo desde a matéria até o corpo, até a mente, até a
alma, até o espírito, descrita como uma situação de “transcendência e inclusão”,
uma cadeia que abrange a matéria até Deus.
Com a chegada da modernidade no ocidente, principalmente a partir do
Iluminismo, a civilização desse período chega a negar quase que totalmente a
existência da Grande Cadeia do Ser, através do materialismo científico, agora como
visão de mundo dominante.
143
Um dos desatinos da modernidade diz respeito justamente à questão da
diferenciação das esferas de valores em torno da arte, da moral e da ciência,
principalmente em seu período mais florescente, considerado a partir do Iluminismo.
Segundo Will e Ariel Durant, a modernidade foi definida como sendo a “Idade da
Razão e da Revolução”, pelo fato de contemplar diversas tendências, que se
estenderam até os dias de hoje, recebendo a denominação de “modernidade tardia”
ou pós-modernidade.
É possível que essas diversas tendências, que incluem campos como: a
filosofia, a arte, a ciência, cognição cultural, identidade pessoal, direitos políticos e
civis, tecnologia, política, possam ter sofrido dicotomias severas, decorrentes das
formas de pensar mais voltado a um sentido “monológico” e “dialógico”, excluindo o
sentido “translógico” definições de Wilber para o pensamento moderno -
afastando-se, portanto, de um significado espiritual cabível ao senso da unidade e
da transcendência, gerando uma falta de sentido existencial ao universo humano.
144
142
Ibid, A identidade cultural na pós-modernidade, p. 25.
143
WILBER, Ken, A união da alma e dos sentidos, pp. 11 – 16.
144
WILBER, Ken, A união da alma e dos sentidos, pp. 37 – 41.
76
Todos esses movimentos parecem ter contribuído para trazer uma
significativa confusão entre os conceitos de diferenciação e dissociação, dentro da
epistemologia de Wilber.
Confundir diferenciação com dissociação pode se constituir em um conflito se
instalando, como confundir crescimento com patologia, evolução com caos. A
diferenciação se constitui em uma ocorrência que implica numa condição natural das
esferas ou níveis que compõem um sistema complexo de fina unidade e de
integridade funcional, enquanto que, se essa diferenciação sofrer algum dano
significativo em seu processo natural e saudável de crescimento, em sua
diferenciação e integração, poderá resultar em ocorrências que demonstram
dissociação ou fragmentação nesse processo, e isso poderá vir a ser indicativo de
uma ocorrência com sinais de alguma patologia.
145
A distância que foi se criando, principalmente, na diferenciação das esferas
de valor, e, que, por conseqüência, foram gerando dissociações refletidas nas
dicotomias e fragmentações na vida humana, possivelmente também trouxeram
contribuições para a criação do materialismo, como uma concepção dominante
durante um significado período, o que por sua vez, passou a dominar determinadas
esferas representativas no desenvolvimento de certas visões de mundo e da
humanidade.
O ser humano, sob a influência dessa separação nas esferas de valores,
acabou por adotar modelos e padrões sociais e culturais refletidos em sua conduta
individual e coletiva, e, por conseguinte, se expandindo e sendo refletidos na
construção cultural e social que sustenta a humanidade.
Weber denominou esse processo como “o desencanto do mundo”; o filósofo
Nietzsche chamou de “a morte de Deus”; e, de acordo com as palavras do psicólogo
transpessoal Stanislav Grof:(...) “seguindo a gica desse modelo materialista, “a
consciência humana, a inteligência, a ética, a arte, a religião e a própria ciência eram
tidos como subprodutos de processos materiais que ocorrem dentro do cérebro”.”
146
A liberdade essencial do homem, seu poder criador, valores de dignidade e
liberdade interior, e outros tantos valores, vieram se desqualificando, acarretando
uma falta de sentido à própria vida, como uma negação à realidade substancial da
145
WILBER, Ken, A união da alma e dos sentidos, p. 47.
146
GROF, Stanislav, A mente holotrópica, Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 16.
77
Grande Cadeia do Ser como uma construção integrada em seus níveis primordiais
- seja na esfera do corpo, da mente e, principalmente, do espírito.
Atualmente, ainda parece um tanto comum nos deparar, por exemplo, com a
religião sem o humano, ou, o humano sem religião.
147
A experiência religiosa, como
algo inerente à natureza humana, se encontra carente de um desenvolvimento
saudável em sua integração espiritual, parecendo ainda se encontrar também em
meio aos desencontros fragmentários de uma conduta humana permeada de
conflitos e dicotomias.
A conduta do ser humano, observado em situações diversas, parece vir
demonstrando uma falta de sentido de vida, e que se apresenta com acentuada
dificuldade do indivíduo em lidar com situações da sua vida. Um elemento primordial
neste aspecto diz respeito a um dos fatores mais importantes para a vida do homem:
a consciência e suas respectivas ações.
Essa consciência parece vir se apresentando de uma maneira um tanto
desconectada em seus diferentes níveis de integração. Essa situação parece
demonstrar uma tendência do individuo em buscar sua sustentabilidade em posturas
e condutas em torno de um pensamento muito racionalista, ou ainda, em condutas
inadequadas, como agressividade e violência, maus tratos nas relações
interpessoais, que chegam próximo à patologia, ou até mesmo assumem um caráter
patológico propriamente dito.
II. 2 – A pós-modernidade, seus paradoxos e possibilidades
O período considerado como pós-moderno parece surgir em meio a uma
complexidade de mudanças, possivelmente não vivenciada em suas dimensões
mais claras e consistentes, como uma era efetivamente ainda em construção
(HABERMAS, 1985).
Temas polêmicos têm permeado as visões de mundo e o pensamento em
diversos campos da ciência, influenciando, sobretudo, as áreas destinadas aos
147
BENTO, Fábio Régio (org.), Texto: A religião sem o humano, Cristianismo, humanismo e democracia, p.
223 - 224.
78
estudos e pesquisas em torno dos problemas humanos da atualidade, em face
dessas grandes mudanças e transformações que os indivíduos, o mundo social e
cultural vem atravessando e enfrentando, trazendo tendências ambíguas em meio
aos deslocamentos e fragmentações sofridas estruturalmente pela nomeada
“modernidade tardia”. As posições são variadas, de tal maneira que alguns autores
consideram a pós-modernidade ainda como uma continuidade da modernidade
(GIDDENS, 1991); outros consideram ter ocorrido uma extinção desta
(VATTIMO,1996).
148
O indivíduo na pós-modernidade tem participado de um processo que implica
em transformações contínuas em relação aos sistemas culturais dominantes (HALL,
1987). A identidade, portanto, se torna móvel, definida mais historicamente, do que
biológica e psicologicamente.
149
Convivemos com paradoxos como um grande desenvolvimento da tecnologia
em curva ascendente, ao mesmo tempo, se depara com o desenvolvimento humano
em curva descendente em relação ao avanço tecnológico. Sem contar com um sem
número de concepções que são nomeadas com títulos estrategicamente elaborados
em cima de velhos e antigos padrões largamente conhecidos, apenas mudando sua
“persona”, a sua cara, como um apelo de marketing no disputado mercado
capitalista, materialista e ainda muito racionalista. O que parece ser mais importante
está na “embalagem”, não no “conteúdo”.
Na busca por traçar relações entre importantes teorias, o reducionismo e
materialismo que ainda tentam dominar o pensamento s-moderno, se deparam
com concepções significativas que permitem diálogos, discussões e reflexões na
construção pós-moderna.
Citamos a importância da teoria junguiana em torno do inconsciente coletivo,
relacionado à formação da identidade que, inconscientemente, também se estrutura
em torno da linguagem. Estudos de Ferdinand de Saussure e, posteriormente, de
Jacques Derrida, demonstram a importância da utilização da língua na formação da
identidade. Afinal, “falar uma língua não significa expressar nossos pensamentos
148
QUEIROZ, José J. , Deus e crenças religiosas no discurso filosófico pós-moderno. Linguagem e religião,
REVER, Revista Científica de Estudos da Religião, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, PUC-
SP, pesquisa pela Internet
www.pucsp/rever//rv2_2006/t_queiroz.htm, em 06/04/2007.
149
HALL, Stuart, A identidade cultural na pós-modernidade, pp. 12 – 13.
79
mais interiores e originais, mas, pode significar ativar os significados e símbolos
implícitos em nossa língua e sistemas sociais”.
150
Embora o conceito de “identidade” seja ainda considerado “complexo, muito
pouco desenvolvido e muito pouco compreendido na ciência social contemporânea
para ser posto a prova”, as sucessivas transformações, que estão ocorrendo,
parecem colocar mesmo à prova as identidades pessoais, de tal maneira que o
sentido da humanização tem sofrido abalos significativos, onde o ser humano parece
se encontrar em constante conflito diante da noção de si mesmo como um sujeito
integrado.
151
Ao observarmos a diversidade pós-moderna, parece que não houve uma
“completa ruptura” com os sistemas da modernidade, onde o racionalismo e
mecanicismo lideram a situação sócio-econômica e também cultural, girando em
torno de um capitalismo, ora reforçado por algumas estruturas, ora contestado por
outras. Esses paradoxos contribuem para gerar seus conflitos e suas crises,
sugerindo conseqüências oriundas da modernidade. O perfil do homem
contemporâneo não se apresenta como era na metade do século passado.
Tivemos um grande avanço da tecnologia, e da indústria, que trouxe influencias ao
mundo interior do indivíduo, assim como em seus aspectos sociais e culturais.
Estamos na era do efêmero e do descartável, que vai dos objetos de consumo até o
ser humano.
152
As ocorrências da modernidade e as perspectivas pós-modernas trouxeram
muitas frustrações, mas também possibilitaram muitas discussões e debates críticos
que, aos poucos, parecem delinear novas perspectivas nos horizontes da pós-
modernidade. “É plausível falar-se em pós-modernismo como um novo jeito de ser e
estar no momento atual “(...) Porém, os pilares estruturais da modernidade ainda se
mantêm”.
153
Observamos que vivemos em meio a diversos paradoxos. Esses nos
reportam às dicotomias existentes em vários âmbitos da vida humana. E as
dicotomias representam dissociações, fragmentações, acarretando, basicamente,
150
HALL, Stuart, A identidade cultural na pós-modernidade, pp. 40 – 41.
151
Ibid, p. 09.
152
QUEIROZ, José J., citação em artigo publicado pelo autor na revista REVER, PUC São Paulo, referindo-se a
aspectos da pós-modernidade, com o título: Deus e crenças no discurso filosófico pós-moderno. Linguagem e
religião.
153
QUEIROZ, José J. , citação feita pelo autor no artigo Deus e crenças no discurso filosófico pós-moderno.
Linguagem e religião, Revista Rever, PUC São Paulo.
80
apatia, a depressão, caos; o ego inflado, uma esquizofrenia paranóica pelo poder.
Podem esses estados dar sustentação ao ser humano, a uma sociedade, a uma
cultura? Respostas a essas questões requerem estudos, pesquisas, reflexões mais
profundas, para que as transformações possam vir a ter direções mais saudáveis,
adequadas, produtivas na reconstrução do processo de humanização e
transcendência.
A pós-modernidade, à parte de suas significativas descobertas e conquistas,
parece ainda carregar a herança de uma modernidade tardia, onde os herdeiros se
constituem em algumas gerações de indivíduos portadores de um pensamento que
contempla, em certas situações, uma visão monológica aquela concebida pelo
“olho da carne ou da matéria” (empirismo) que pode vir acrescida de uma visão
dialógica aquela concebida pelo “olho da mente” (racionalismo) ainda carente da
visão translógica – aquela concebida pelo “olho do espírito” (contemplação), na
visão de Wilber gerando as fragmentações e dicotomias aos descendentes diretos
desse materialismo científico.
154
Essa visão de Wilber nos reporta à importância de uma reflexão em torno do
processo de autoconhecimento, referenciado pelo desenvolvimento das
potencialidades humanas de Maslow e sua auto-realização, pelo processo da
individuação de Jung, e chegar ao sentido da autotranscendência, concebido pela
psicologia transpessoal.
Ainda sob a forte influência da ciência moderna, que colonizava e dominava
todas as demais formas de conhecimento e do ser, as diferenciações das esferas de
valor chegaram a sofrer dissociações, apesar de momentos significativos em sua
história como a industrialização e os movimentos de libertação, a pós-modernidade
inicia seu processo numa tentativa de superar a hegemonia da racionalidade formal.
Vai à busca da “diversidade”, ou mesmo de um multiculturalismo ou pluralismo,
encontrado no centro da abordagem construtiva pós-moderna, de acordo com o
pensamento integral de Wilber.
155
A busca de valores na vida humana parece se constituir em algo inerente ao
indivíduo, como uma crença em seu potencial criador em relação ao ideal da
154
WILBER, Ken, A união da alma e dos sentidos, p. 22.
155
WILBER, Ken, Psicologia integral, p. 178.
81
dignidade humana, como um valor expoente dentro dos valores concebidos pelo ser
humano.
156
A pós-modernidade surge com um grande número de significados, poucos
dos quais encontram convergências ou coincidem.
Indivíduos e grupos sociais tem se deparado com dificuldades em encontrar
referências de sentido mais unitárias e coerentes. Do ponto de vista da experiência
religiosa, sua dimensão tem sido procurada como indagação fundamental em torno,
principalmente, do sentido da existência.
157
No aspecto mais restrito e técnico, a pós-modernidade traz uma noção de que
não existe verdade absoluta, mas sim, interpretações, geralmente construídas
socialmente. No sentido mais amplo ou generalizado, traz algumas das maiores
correntes de pensamento que ainda seguem a tradição da modernidade, mesmo
que reagindo contra a mesma, ou ainda, como uma continuação desta, como
podemos observar tanto na industrialização como, mais recentemente, na era da
informática, por exemplo.
O mundo pós-moderno, como mundo atual, passa a se constituir, portanto, de
diversificadas correntes, algumas carregando as tendências da modernidade
impulsionadas por um Iluminismo; outras trazem resquícios pré-modernos, como
aspectos da religião mítica, ou ainda o sentido mágico tribal; outras, ainda envolvem
concepções complexas, apontando novos caminhos e novos temas.
A preocupação pós-moderna na construção de uma visão de mundo que
recupere sua dignidade diante dos problemas humanos constitui uma busca, de
superação da perspectiva empírica, monológica, instrumental, atomística,
penetrando em outras esferas de valores e na percepção interior do individuo, na
própria psique, na alma, no espírito, na moral, na ética, na arte, e reforçando, no
individuo, o poder de decisão do que seja ou não real.
158
Parece que a no progresso e na ciência foi colocada em discussão. A
elaboração pessoal e, conseqüentemente, sua interpretação estimulada pela riqueza
de significados e pela sua relevância, trazem finalidades para uma melhor
compreensão de nossa situação existencial.
159
156
NOGARE, Pedro Dalle, Humanismos e anti-humanismos, introdução à antropologia filosófica, Petrópolis:
Vozes, 1990, pp. 15 – 16.
157
CRESPI, Franco, A experiência religiosa na pós-modernidade, pp. 09 – 10.
158
WILBER, Ken, A união da alma e dos sentidos, p. 52.
159
CRESPI, Franco, A experiência religiosa na pós-modernidade, p. 65.
82
As fragmentações ocorrem no individuo, podendo se expandir para um senso
coletivo, até atingir uma dimensão social e cultural; observamos rupturas, ou mesmo
a ocorrência da negação da interação, desde os níveis mais inferiores, aos mais
superiores da consciência humana.
A pós-modernidade, nos aspectos trazidos como herança da modernidade,
ainda se apresenta como um colapso sofrido pelo Cosmo multidimensional,
parecendo se destituir de “consciência, solicitude, compaixão, preocupação, valores,
profundidade e divindade”.! Difícil se torna ainda conviver com certas afirmações
como: “uma experiência religiosa o era realmente a descoberta de realidades
espirituais, mas simplesmente uma forte descarga de dopamina no cérebro”.
Felizmente, algumas discussões pós-modernas estão sendo inclusivas em
considerar os domínios interiores que passam a ser mais bem reconhecidos,
compreendidos e respeitados.
160
A pós-modernidade, em termos de religiosidade e transcendência, tem
demonstrado que estamos vivendo em um vasto “mercado religioso”, gerando
distância dos propósitos mais significativos da religiosidade profunda. Não podemos
deixar de considerar que essa mentalidade pseudo-religiosa ainda se apresenta
muito reducionista, racionalista e também capitalista.
A proliferação de movimentos e crenças, inspiradas em alguma crença de
natureza religiosa, sugere uma espécie de “fenômeno periódico” que visa utilizar a
própria religião em função de exigências de natureza social.
161
Um dos impactos mais significativos, no mundo de hoje, parece girar em
torno, basicamente, da relação entre ciência e religião. Embora a ciência seja
considerada um dos métodos mais eficazes para descobrir a verdade, a religião
ainda é a maior força propulsora de significação.
162
No caso do indivíduo, mesmo na sociedade e na construção da cultura, nos
deparamos com uma fragmentação caótica, onde mergulham as pessoas; suas
condutas são frágeis; a vida não tem sentido, mergulhada em patologias ainda
inconscientes. Essa fragilidade que se apresenta, por vezes, de maneira ingênua, ou
até mesmo inocente, pode significar imaturidade, falta de poder – do latim, ser capaz
poder que se afirma através da criatividade para enfrentar forças
160
WILBER, Ken, A união da alma e dos sentidos, pp. 67 – 71.
161
CRESPI, Franco, A experiência religiosa na pós-modernidade, p. 10.
162
WILBER, Ken, A união da alma e dos sentidos, p. 11.
83
desumanizadoras, ou evitar o uso indevido do próprio poder, que se exerce com
dominação e controle em relação aos valores do outro.
163
O mundo inconsciente do ser humano traz conteúdos ainda muito
desconhecidos e sem a devida iluminação da consciência, contribuindo para, além
de criar conflitos, retardar as condições saudáveis de desenvolvimento e
amadurecimento. Não é difícil nos depararmos com questões que demonstram essa
falta de maturidade. Numa interpretação de cunho popular, não é raro observar
certas condutas em indivíduos que tratam a questão da esperteza como inteligência,
numa confusão de conceitos, por exemplo, manipulando outros indivíduos em
condições de fragilidade (ingenuidade e inocência) para obter seus intentos. Em
qualquer uma dessas condições, geralmente, o resultado pode se apresentar, de um
lado, como vazio, desespero, depressão, e, de outro, como uma euforia paranóide,
vaidade, orgulho, prepotência, um exercício de egoísmo sem limites.
Michel Foucault, filósofo e historiador francês, destaca a questão do “poder”
como uma disciplina que se preocupa com “as vidas, as atividades, o trabalho, a
infelicidade e os prazeres do indivíduo”. Essas práticas têm suas bases no poder dos
regimes administrativos, do conhecimento “especializado” dos profissionais. Para
Foucault, embora esse “poder disciplinar” seja um produto das instituições coletivas,
as mesmas contribuem para um maior isolamento, vigilância e individualismo do ser
humano conhecimento fornecido pelas disciplinas vigentes na educação s-
moderna em vários segmentos.
164
A dificuldade do ser humano pós-moderno continua a demonstrar a “falta de
sentido” em torno de sua própria capacidade em interpretar de maneira consciente e
com discernimento o que ocorre em suas “ações mentais”, seus significados e
valores atribuídos a essas mesmas ações. É possível que seu pensamento
reducionista e racionalista ainda esteja carecendo de conteúdo eficientemente
elaborado à luz da consciência, de maneira que possa enriquecer suas “ações
mentais” seus símbolos, significados e valores pois esses parecem ter ficado
muito pobres diante de todo o potencial criativo humano.
Destacamos que não apenas o indivíduo, mas também suas relações
interpessoais, seus convívios sociais, profissionais e sua condição cultural, acabam
163
MAY, Rollo, Poder e inocência, Rio de Janeiro: Artenova, 1974, p. 19.
164
FOUCAULT, Michel em referência a um dos principais aspectos do descentramento da identidade, apud
HALL, Stuart, A identidade cultural na pós-modernidade, pp. 41 – 43.
84
se manifestando sob condições de certas condutas comprometedoras, e, portanto,
sem uma contribuição produtiva às finalidades de um sentido mais humanizado. A
generalização do “desconhecimento” leva a uma particularização da falta do
autoconhecimento, que é um requisito fundamental para se viver melhor no mundo
de hoje.
O conflito entre “ser e ter” parece ficar cada vez mais evidente nos indivíduos,
acarretando conflitos nas esferas significativas da vida humana e nos valores
exercidos através da conduta que cada um manifesta consigo mesmo, com os
outros e diante da própria vida.
Pode aocorrer um abuso no uso da palavra “crise”, de tal maneira que ela
se tornou um tanto quanto banalizada. Nas palavras de Florestan Fernandes: “...
uma crise fundamental que é a crise de uma civilização que não conseguiu
responder sequer às tarefas históricas que se colocaram, mesmo em nome da
essência dessa civilização”.
165
Ao nos referirmos aos valores humanos, destacamos a questão da ética no
mundo de hoje. Hoje a ética parece estar “fora de moda”. O conceito e significado de
“cidadania” também parecem vir se esvaziando, gerando uma dicotomia entre a
“expressão e o seu compromisso”.
166
A formalidade em torno do conceito de
cidadania parece ter gerado certo descaso sobre o conteúdo desse compromisso
ético ligado ao ser; agora a cidadania assume a condição do ter. “Ser ético”,
entretanto, implica em um conteúdo de valores conscientes e efetivos nas “ações
mentais” do indivíduo.
A “falta de ética”, a “falta de sentido”, a “falta da dignidade” e outras “faltas”
parecem se constituir em condutas comuns no cotidiano das pessoas. Observamos
essas “faltas” em muitas situações da vida humana atual. Desde atitudes e
comportamentos individuais, passando pelas relações interpessoais, até os sistemas
estruturados com base nessa visão reducionista e racionalista. Encontramos,
sobretudo, uma falta de melhor consideração para com as pessoas. As mesmas
parecem estar sendo tratadas como “coisas”, manipuladas como “coisas”, deixando-
se manipular como “coisas”, vivendo como “coisas”... Em lugar da humanização
parece estar ocorrendo uma “coisificação” do humano.
165
FERNANDES, Florestan, Ética e cidadania, In QUEIROZ, José J. (org.), Ética no mundo de hoje, São Paulo:
Paulinas, 1985, p. 16.
166
DALLARI, Dalmo, Ética e cidadania, In QUEIROZ , José J. (org.), Ética no mundo de hoje, São Paulo:
Paulinas, 1985, pp. 20 – 21.
85
Segundo o psicólogo Paulo Gaudêncio, quando “as pessoas são respeitadas
em sua dignidade, são autônomas e se comprometem”. Em contrapartida, as
pessoas tidas como “reificadas “atitudes típicas de coisas” – “se apresentam
heterônomas, participam, mas não se comprometem”. E, completa: “quando
desrespeitada em sua dignidade, a pessoa se coisifica”.
167
Não raras vezes, em algumas situações, principalmente observadas na área
de saúde, notamos a pessoa ser tratada como “o caso X” ou “o problema Y”,
geralmente, de acordo com a situação de saúde em que se encontra, ou, o problema
que apresenta. Ou ainda, a pessoa se torna apenas um órgão, ou uma parte do
corpo, e não é vista como “a pessoa que adoeceu”, podendo necessitar ser cuidada
como um ser humano em sua totalidade, pois, geralmente nessas ocasiões, é
comum a pessoa se apresentar angustiada, confusa, em conflito com sua própria
situação. Porém, parece não se “ter” tempo para exercer esses cuidados de maneira
mais satisfatória, pois as coisas da vida estão andando muito rápidas, e as pessoas
precisam se apressar também em suas condutas, e o tempo vai ocupando o lugar do
cuidado. Também questionamos se, na condição de “cuidador” aquele que “cuida”
está tendo um preparo adequado para essa finalidade, ou seja, se o próprio
“cuidador” vem se cuidando de maneira satisfatória para poder vir a cuidar do outro.
Não raras vezes, encontramos profissionais dotados de um extenso currículo
demonstrando todo seu saber intelectual, que são ineficientes quando se refere ao
trato com o humano e às questões humanas, demonstrando também uma atitude
reducionista em seu autoconhecimento e preparo pessoal e profissional.
Segundo o médico neurofisiologista Antonio Damásio (1998), há “uma
amputação do conceito de natureza humana na medicina”, destacando a
ambigüidade na relação mente e corpo; de um modo geral, “as conseqüências do
corpo sobre a mente merecem uma atenção secundária ou mesmo nenhuma
atenção na medicina... (ela) não percebe que aquilo que as pessoas sentem em
relação ao seu estado físico é um fator principal no resultado do tratamento”.
168
Parece que essa “amputação do conceito de natureza humana” não se
encontra apenas na medicina, ainda sob a influência dos conceitos e pressupostos
positivistas e materialistas. Em vários segmentos da área da saúde, assim como em
167
GAUDENCIO, Paulo, Men at work, São Paulo: Editora Gente, 1999, pp. 29 – 30.
168
DAMÁSIO, Antonio R., O erro de Descartes, emoção, razão e cérebro humano, São Paulo: Companhia das
Letras, 1996, p. 287.
86
diversas áreas da educação, do conhecimento e do saber, ainda encontramos
questões referentes à natureza humana sendo amputadas, desconsideradas,
desconhecidas. É preocupante esse estado das coisas, principalmente para aqueles
que, de alguma maneira, lidam com o ser humano e que, portanto, estão diante de
sua própria natureza a ser tratada.
Especialistas em psicologia hospitalar alertam para esses desafios na pós-
modernidade, principalmente em relação à ética em saúde. Em suas palavras,
afirmam que: “vivemos um tempo em que o trânsito da história da civilização
humana parece passar por uma imensa convulsão (...) os valores referenciais das
estruturas de equilíbrio sociocultural estão caindo ou sendo severamente
questionados”.
169
Em face dessas situações, a saúde nos parece estar mais “doente” diante das
atitudes reducionistas que não consideraram “a pessoa que adoeceu”, mas sim,
apenas “a doença”, ou “fragmentos de um corpo doente”, isso quando também, e
não raras vezes, se soma à falta de recursos materiais, à imensa burocracia, e
outros fatores, tão comuns em nossas instituições.
Novamente nos reportamos à questão da ética na saúde e sua relação com
as questões humanas e sociais, assim como sua repercussão às esferas culturais.
Nas palavras de CHIATTONE E SEBASTIANI (1997)
170
, se referem assim:
Instituições basilares como os modelos políticos, as religiões, os
modelos econômicos e apropria estruturação familiar passam por
profundos processos de reformulação/transformação. Muitos dos
paradigmas que fundamentaram esses modelos e que vigoram
como referenciais de um sem-número de processos relacionais
não encontram mais sustentação, o que tem levado o homem a
uma espécie de limbo no que tange a seus recursos simbólicos de
representação dos elementos norteadores de condutas e
relações”.
Na educação, observamos a experiência do conhecimento e do saber
educacionais e pedagógicos mais profundos sendo substituídos pela contabilidade,
169
CHIATTONE, Heloisa B. de C. e SEBASTIANI, R. W., em citação na obra, apud, ANGERAMI, Valdemar
A. (org.), A ética na saúde, São Paulo: Pioneira, 1997, p. 175.
170
Ibid, pp. 175 – 176.
87
departamento de pessoal e outros departamentos, na medida em que as instituições
educacionais se transformam completamente em “empresas” disputando o mercado,
onde a “folha de pagamento” parece constituir a base da contratação e da demissão,
em detrimento da qualidade de profissionais e educadores credenciados e
habilitados ao exercício da educação. Novamente nos deparamos com uma visão
materialista e tecnicista, permeando diversos setores da nossa educação. Parece
mesmo que estão em “baixa” os critérios avaliadores realmente qualitativos.
Um notável educador e humanista, Willis Harman, numa visão semelhante a
outros notáveis como Rogers (1961) e Malsow (1968), sobre a perspectiva
existencial-humanista em educação, dizia: “O termo refere-se a um conceito de
educação que enfatiza a pessoa, suas potencialidades e individuação, sua auto-
realização, sua descoberta de significado de vida”.
171
No final da década de sessenta do século XX, o Dr. Willis W. Harman,
fundador do Centro de Pesquisas de Política Educacional no Instituto de Pesquisa
da Universidade Stanford, considerado um dos grandes educadores na pós-
modernidade, reúne destacados representantes de diversas áreas do saber. Seu
propósito, desde então, é identificar principais influências individuais e coletivas
significativas na cultura, e como a educação pode contribuir para que as forças
positivas e promotoras do crescimento humano influam nessas tendências. Também
desenvolve, através da educação, seu melhor preparo para assistir às pessoas em
sua participação social em torno de valores mais humanos.
172
O mundo parece estar em transformação. Em meio a essas transformações, o
contexto cultural da educação precisa ser examinado também como um processo
em transformação. A perspectiva da humanização desempenha um papel
fundamental nas forças geradoras para um futuro melhor na educação na pós-
modernidade.
Segundo Harman, existe uma necessidade de mudanças nas premissas mais
básicas da cultura. Essas premissas o as crenças sobre a natureza do homem e
do universo em que ele vive. Portanto, torna-se importante que a educação, como
um grande meio de transformações, enfatize a pessoa, suas potencialidades e
individuação, sua auto-realização, sua descoberta de significado na vida, e que o
171
HARMAN, Willis W., em texto com o título O futuro da perspectiva existencial-humanista em educação,
apud GRENNING, Thomas C., Psicologia existecial-humanista, p. 149.
172
HARMAN, Willis W., O futuro da perspectiva existencial humanista na educação, apud GREENING,
Thomas C. (org.), Psicologia existencial humanista, p. 148.
88
indivíduo possa atingir sua “consciência cósmica” como conhecimento imediato de
uma realidade infinita e eterna, através de um estado superior e participativo no
processo evolucionário.
173
Um exemplo muito recente na área educacional e que envolve, principalmente
a importância da psicologia e ciências humanas neste contexto, demonstra a falta de
significância atribuída à formação dos jovens e adolescentes.
Em trechos colhidos da carta endereçada à sociedade, para retomada do
ensino da psicologia no ensino médio, durante o VI Encontro da ABEP (Associação
do Ensino da Psicologia), o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, junto a
outros órgãos interligados, se manifesta assim
174
:
Urge a retomada do ensino de psicologia no Ensino Médio! Dos
estudantes brasileiros tem sido, ao longo do tempo, diminuída a
possibilidade de compreender o mundo a partir das lentes de
grande parte dos conhecimentos oriundos das ciências humanas,
em favor de uma formação mais tecnicista. Entre os
desdobramentos do privilegiamento de uma formação menos
humanística encontra-se o empobrecimento das formas de leitura
e compreensão das relações humanas e sociais por parte de
nossos estudantes. É preciso reverter esta lógica nos projetos de
formação (...), de forma a possibilitar uma formação mais
abrangente e socialmente significativa aos estudantes, contando
com currículos que garantam fortemente a presença de conteúdos
das disciplinas das ciências humanas, como Psicologia e Filosofia,
por exemplo. (...)
A religião, que até a pouco, causava tanto ceticismo, ou disputava com a
ciência um melhor reconhecimento, ou ainda, se constituía em um “oceano
desconhecido”, agora volta com vigor, questionando a experiência do indivíduo;
porém, ainda, muitas vezes, assume o aspecto de um “milagre transformador”, de
um mercado religioso, substituindo a verdadeira pela barganha de um “ter pelo
ser”.
Sobre a experiência religiosa, James (1902), dizia: “A religião, seja ela qual
for, é a reação total de um homem à vida”.
175
Neste sentido, o ser precede o ter, que, precede o fazer. Portanto, numa
seqüência natural, primeiro somos para fazermos e obtermos aquilo que vamos ter.
173
Ibid, pp. 149 e 162.
174
PSI, Jornal de Psicologia, ao se referir à carta elaborada no VI Encontro Nacional da Associação Brasileira
de Ensino da Psicologia, junto ao CRP e órgãos competentes, e endereçada à sociedade para pedir a retomada do
ensino de Psicologia no Ensino Médio, p. 05.
175
JAMES, William, As variedades da experiência religiosa, p. 34.
89
Essa é uma reflexão importante acerca de nossa experiência religiosa, assim como
de tantas outras importantes ações e decisões em nossa vida.
Se as chamadas “grandes instituições”, formadoras de opinião no meio social,
político, cultural e religioso, ainda estão se comportando e funcionando através
dessas condições precárias e duvidosas, qual o norte que o indivíduo precisa buscar
para contribuir em sua formação como ser humano e cidadão, assim como também
em sua experiência de transcendência?
uma confusão também girando em torno de conceitos. Eles trazem uma
carga de valores repleta de conteúdos ambíguos, adquiridos como “padrões” e
condicionamentos bastante comuns, em sua interpretação e entendimento.
Desorientam as pessoas internamente e nas relações externas, por refletirem a
“coisificação” do sistema produtivo atual, conturbam a linguagem e seu significado
se desvanece. Não raras vezes, torna-se difícil uma compreensão mais profunda e
melhor fundamentada dos conceitos no mundo de hoje.
Novamente nos deparamos com a questão do reducionismo conceitual que
reflete as características fragmentadas, dicotomizadas, confusas, ambíguas que
permeiam a pós-modernidade.
Consideramos que a educação e a saúde se constituem em importantes e
fortes pilares, e que também se encontram em toda e qualquer base para construir
uma cultura, através de sua contribuição na preparação do indivíduo como um ser
humano e edificar uma sociedade que promova cidadãos e seus valores mais
fidedignos.
II. 3 – O despertar de novos caminhos que apontam para a humanização
Em meio às complexidades e variadas posições relativas ao s-
modernismo, aos fragmentos de uma cultura, de uma sociedade, e, da própria
condição humana frente aos inúmeros problemas recebidos como herança dos
processos conturbados da modernidade, acreditamos ainda ser possível resgatar
90
contribuições importantes, como diz Wilber: “nenhuma época deixou de ter seus
gênios, a sua sabedoria, as suas verdades permanentes”.
176
Em meio às crises, aos desastres causados à humanidade nos últimos
séculos e toda disseminação das violências que vem ocorrendo ainda nos dias
atuais, consideramos de bom senso buscar um caminho que vem despontando,
principalmente a partir da segunda metade do século XX, penetrando nesse novo
milênio: a humanização e sua relação com a transcendência.
A humanização pode ser vista como uma nova visão na s-modernidade,
tendo como eixo central o desempenho ativo da consciência do ser humano, em
seus diferentes níveis desde a matéria, até o espírito como uma proposta de
reconstrução humana.
A psicologia, com o surgimento da psicologia humanista em meados do
século XX vem procurar preencher lacunas em torno da compreensão do ser
humano moderno, como uma força propulsora diante das várias transformações no
modo de vida do indivíduo, principalmente em relação à falta de sentido e ao “vazio
existencial”, em meio aos avanços do capitalismo pós-industrial, da tecnologia, dos
meios de comunicação de massa e do consumismo. Vazio e falta de sentido que se
fazem cada vez mais agudos.
Maslow, notável humanista pós-moderno, enfatiza a capacidade humana para
realizar escolhas e a responsabilidade e o futuro como aspectos positivos em sua
vida. O desenvolvimento das potencialidades humanas é um caminho promissor.
177
As crises, os conflitos, as fragmentações provocaram respostas e busca para
a vida humana e o modo de viver dos indivíduos, fazendo surgir no horizonte dessa
situação, novas concepções e visões, principalmente no campo da psicologia, com o
surgimento na década de sessenta do século passado, da psicologia transpessoal e,
com ela, uma nova força propulsora das frentes aos problemas do homem.
A psicologia, desde as teorias de William James (1902), prescrevia a
importância da chamada “consciência smica” em oposição à consciência
fragmentada, ou seja, como “um estágio da consciência que transcende os limites do
indivíduo”, precedendo a própria psicologia transpessoal em torno do ser humano
integrado e do próprio sentido da humanização e transcendência, colocando a
176
WILBER, Ken, Psicologia integral, p. 177.
177
BUHLER, Charlote, ao se referir ao pensamento de Maslow em texto com o título Psicologia existencial e
humanista: respostas a desafios contemporâneos, apud GREENING, Thomas C. (org.), Psicologia existencial
humanista, p. 36.
91
questão filosófica da realidade de um poder superior, onde o self e seu conteúdo
inconsciente funcionariam como uma espécie de intermediário entre esse poder
superior e a natureza humana propriamente dita. A essa experiência, James
considerou como sendo a experiência mais elevada de Deus.
178
O sentido da humanização e transcendência também pode ser percebido em
toda obra do psiquiatra e psicólogo C. G. Jung, principalmente em torno de sua
teoria acerca do processo de individuação, como possibilidade e potencialidade de
desenvolvimento da totalidade da psique. Em suas palavras, Jung diz:
179
A consciência do homem foi criada com a finalidade de (1)
reconhecer que sua existência provém de uma unidade superior;
(2) dedicar a esta fonte a devida consideração e cuidados; (3)
executar as ordens emanadas dessa fonte, de forma inteligente e
responsável; e (4), por conseguinte, proporcionar um grau ótimo
de vida e de possibilidade de desenvolvimento à totalidade da
psique.
A falta de integração nos níveis de consciência do ser humano levou Wilber a
propor uma visão integral da mesma frente a “um mundo que ficou ligeiramente
louco”.
180
Observações clínicas, pesquisas científicas e experimentais vêm
demonstrando uma estreita relação entre consciência e certas condições
neurofisiológicas e patológicas, quando da ocorrência de mudanças dramáticas na
consciência. Essas condições dizem respeito a casos de infecção, trauma,
intoxicação, tumor e derrame cerebral. Porém, isso não quer dizer, necessariamente,
que a consciência seja originária desses processos e seja produzida pelo rebro,
mas sim que, nossas funções mentais ligam-se aos processos biológicos em nosso
cérebro, tanto que é possível o diagnóstico pela localização de determinado dano
no cérebro, mesmo que causado por fatores mentais.
181
Dentro de uma visão reducionista, a consciência seria tratada apenas como
um subproduto de processos materiais que ocorrem no cérebro humano, e não
decorrente de profundas interações entre a inteligência criativa e todos os níveis da
realidade. Esse reducionismo acaba impondo uma visão limitada do ser humano e
178
JAMES, William, As variedades da experiência religiosa, São Paulo: Cultrix, 1995.
179
JUNG, C. G. , In EDINGER, Edward F., Ego e arquétipo, individuação e função religiosa da psique, São
Paulo: Cultrix, 1995, p. 17.
180
WILBER, Ken, citação de capa da obra: O olho do espírito, São Paulo: Cultrix, 1995.
181
GROF, Stanislav, A mente holotrópica, p. 17.
92
de todo seu potencial, que vai muito mais além do que imaginamos. Também limita a
psique em toda sua dimensão, assim como também a própria natureza, em seu
sentido de expansão, complexidade, desenvolvimento e crescimento.
Bertrand Russel afirmou que “sem enxergar o bem nem o mal, imprudente
quanto à destruição, a matéria onipotente rola em seu caminho inexorável”.
182
Todos nós trazemos os “nossos pontos cegos” traços e tendências que
recusamos admitir, e que projetamos e transferimos para o meio externo, sem
entender que esses conflitos estão sendo travados dentro de nosso próprio intimo,
conosco mesmo e que, se há um suposto inimigo, esse está mais próximo de nós do
que imaginamos.
A “projeção de emoções negativas, como de qualidades negativas”, é algo
muito comum tanto no aspecto individual quanto social. O fato reside na dificuldade
do indivíduo aceitar seus próprios traços negativos, podendo transformá-los e
integrá-los. Ao contrário, os mesmos são alienados interiormente e projetados para
fora de si, nos outros e no meio onde vive. Esses traços são chamados de “sombra”
por ficarem alienados num nível inconsciente e projetados aos outros e ao meio.
Desfazer uma projeção implica em um “movimento ou transição descendentes ao
longo do espectro da consciência da sombra para o ego podendo ampliar nossa
área de identificação”, através da utilização adequada da própria consciência. Essa
“tomada de consciência” nos permite enxergar “coisas que estamos fazendo para
nós mesmos, pelas quais somos responsáveis”.
183
Carl G.Jung, , afirma:
184
A aceitação de si mesmo é a essência do problema moral e a
epítome de toda uma visão de vida. Alimentar os famintos,
perdoar um insulto, amar o inimigo em nome de Cristo todas
essas, sem dúvida alguma, são grandes virtudes. Aquilo que faço
ao menor dos meus irmãos, eu o faço a Cristo. Mas o que
acontece se eu descobrir que o menor dentre eles, o mais pobre
dentre os mendigos, o mais imprudente dentre os pecadores, o
próprio inimigo, todos eles estão dentro de mim e que eu, eu
mesmo, preciso das esmolas da minha própria bondade, que eu
182
Citação de Bertrand Russell ao se referir à importância de não negar o bem e o mal existentes em cada
indivíduo, e a necessidade de lidar com nossos níveis de consciência, desde os inferiores, até os superiores,
inserida na obra de Ken Wilber, A união da alma e dos sentidos, p. 147.
183
WILBER, Ken, Assumindo a responsabilidade pela própria sombra, apud ZWEIG, Connie e ABRAMS,
Jeremiah, (orgs.), Ao encontro da sombra, São Paulo: Cultrix, 1999, pp. 298 – 299.
184
Citação de texto de Jung, inserido no artigo de Ken Wilber sob o título Assumindo a responsabilidade pela
própria sombra, apud ZWEIG, Connie e ABRAMS, Jeremiah (orgs.), Ao encontro da sombra, p. 298.
93
mesmo sou o inimigo que precisa ser amado o que acontece
então?
Wilber nomeia de “desastre da modernidade” ao conjunto específico de
“dissociações”, onde o Bem (a moral) e a Beleza (a arte) ficaram submissas à
Verdade (a ciência) em seu aspecto monológico “positivismo, raciocínio empírico-
analítico, processos dinâmicos e suas teorias, teoria dos sistemas, teoria do caos,
modalidades tecnológicas de conhecimento” não pelo fato de suas diferenciações,
o que é benéfico, mas sim pelo distanciamento entre elas, separações, até a
ocorrência de suas dissociações. A importância do EU e do NÓS como domínios
subjetivos e internos foram abarcados pelo ELE – como domínios objetivos,
externos e empíricos, atomísticos ou sistemáticos de tal maneira que a própria
consciência, por exemplo, não poderia simplesmente ser examinada por um
microscópio.
185
Uma possibilidade de poder entender melhor o pós-modernismo talvez
repouse na importância da “interpretação” como um crédito tanto dentro da
epistemologia, como da ontologia, no sentido do saber e do ser, como saídas e
novos caminhos dentro da pós-modernidade. “Introspecção, interpretação e
contemplação” poderiam se constituir numa trilogia significativa na pós-modernidade.
A ênfase na interpretação s-moderna encontrada, inicialmente, em Nietzche,
passando por Dilthey, em torno da ontologia hermenêutica de Heidegger até Derrida,
demonstra caminhos importantes no pós-modernismo.
186
Para encantar o mundo novamente, parece que as fases, estágios, ciclos que
demonstram necessidades de mudanças, se constituam em caminhos importantes,
onde novas visões possam estabelecer debates, diálogos, com o devido
aproveitamento das teorias e das visões de mundo que estejam agregando valores e
conteúdos com seus significados relevantes para a reconstrução do mundo e do ser
humano.
Geralmente, as “reações extremas”, são, com freqüência, as “imagens de
espelho daquilo que cada um despreza ou rejeita em si mesmos”, nos diz Wilber.
Talvez, esse conglomerado complexo de noções na pós-modernidade,
principalmente aquelas com posturas de uma radical rejeição, possam estar
trabalhando através do “efeito espelho”. Essas rejeições internas se constituem em
185
WILBER, Ken, A união da alma e dos sentidos, p. 49.
186
WILBER, Ken, A união da alma e dos sentidos, p. 96.
94
conteúdo inconsciente, ainda sem a devida iluminação da consciência, com
entendimento e discernimento necessários.
187
O processo de humanização e sua relação integrada com a transcendência
se constituem em um trabalho que o se limita a um conhecimento adquirido de
maneira mais superficial e simples. Também não podemos buscar seu recurso em
uma mentalidade que traz a consciência reducionista de um mundo material objetivo
de maneira apenas passiva, mas sim, ela tem um papel ativo na criação da própria
realidade. Não se limita à exploração de um micromundo composto apenas de
sólidos e discretos objetos, mas abrange a realidade como uma complexa teia de
relações e eventos unificados, interligados e interagindo em suas próprias
diferenças.
188
Graças às pesquisas de Jung, na construção do processo de individuação,
observamos que, atualmente, a psique individual se constitui em um produto da
experiência pessoal, e envolve também uma dimensão pré-pessoal ou transpessoal,
que se manifesta em padrões e imagens universais. A descoberta fundamental de
Jung gira em torno do inconsciente coletivo ou psique arquetípica, onde o arquétipo
central ou da unidade é o chamado Si-mesmo (Self), considerado a sede da
identidade objetiva e que equivale à Imago Dei, fenomenologicamente se
constituindo nas varias representações que o homem faz da divindade, descrito de
forma mais simples, de Deus. O ego, mais conhecido, é a sede da identidade
subjetiva e se constitui no centro da personalidade humana. A respectiva alternância
entre a união e a separação do ego-Si-mesmo parece ocorrer de forma continua ao
longo da vida, buscando expressar o processo básico do desenvolvimento
psicológico do nascimento à morte.
189
Esse movimento circular no processo parece indicar experiências que
ocorrem nessas duas estruturas. A ocorrência de rupturas, fragmentações mais
comprometedoras nesse circuito passam a indicar rias probabilidades de
possíveis ocorrências patológicas, responsáveis pelos conflitos e crises verificadas
nos indivíduos, podendo ser projetadas e transferidas para o meio externo, nas
pessoas e no ambiente onde vivem. Essa “quebra” na rede de interações e na
necessidade de uma melhor integração de suas estruturas pode vir a desencadear
187
WILBER, Ken, Psicologia integral, p. 182.
188
GROF, Stanislav, A mente holotrópica, p. 19.
189
EDINGER Edward F., Ego e arquétipo, individuação e função religiosa da psique, pp. 21 – 24.
95
uma “desconectação” nos níveis de consciência do ser humano, abalando sua
psique. Portanto, diante da necessidade de buscar pelo entendimento dessas
ocorrências internas, subjetivas e objetivas, ocorre uma dificuldade em recompor
essa rede de conexões e interações tão importantes à saúde psicológica humana.
O processo de individuação, na teoria junguiana, assim como o processo de
humanização e transcendência, que procuramos desenvolver, envolve e requerem
vivências humanas que busquem pelo seu desenvolvimento e amadurecimento,
tendo a consciência como desempenho ativo e elemento primordial, inclusivo em
ambos os processos.
A preocupação hoje é recuperar a transcendência como um encontro do
humano com o divino, pois ela veio perdendo terreno gradualmente para a ciência
dominante e racionalista, que se julgou provedora da realidade. Nessa perspectiva
racionalista, a transcendência, assim como a religião e toda importância da
experiência religiosa na vida humana, tem se manifestado de maneira pálida e como
“relíquia do pensamento pré-científico, um remanescente infeliz de épocas menos
sofisticadas”, carentes da parafernália tecnocrata e dos modelos mecanicistas.
Deus, por exemplo, se ainda não estiver morto, tem se apresentado de maneira
muito dramática, numa gama de formas, beirando ao gênero fundamentalista em
muitas de suas expressões. Observamos, neste sentido, um grande afluxo sem
precedentes de religiões, colocando em discussão a questão da própria natureza da
religião.
190
A questão em torno da experiência religiosa humana a ser revista e
recuperada tem importância significativa, aproximando muito os estudos e pesquisas
tanto para a psicologia, como para a sociologia, e, atualmente, no campo das
neurociências, principalmente. Isso pressupõe, de um lado, padrões sociais mais
amplos, e, de outro, a busca de superar os aspectos que são considerados
possíveis de patologias. Para Wilber, “os diferentes sistemas psicológicos e sociais
poderiam ser mais bem resolvidos, se os encarássemos como se estivessem
voltados para estruturas diferentes e parcialmente complementares de consciência e
de níveis do inconsciente, como também de interações sociais”.
191
De acordo com as condições em que se encontram os níveis de consciência
de cada indivíduo, se torna viável, através da utilização da “interpretação” e do
190
WILBER, Ken, Um Deus social, citação de Roger Walsh, M.D. e PH.D no prefácio da obra de Wilber, p. 08.
191
WILBER, Ken, Um Deus social, nota de Walsh, p. 12.
96
entendimento aprofundado, aquilo que pode estar ocorrendo no mundo interior da
pessoa, dando origem a um determinado significado, ou até mesmo, a vários
significados.
A ciência que trata da interpretação é, normalmente, denominada de
“hermenêutica” do grego hermeneutikos que significa “traduzir ou interpretar”. A
hermenêutica, na modernidade, tem suas origens na fenomenologia, na busca em
descobrir a “natureza e significado das ações mentais”. Husserl considerava a ação
mental como “intencional, ou seja, possui significado ou valor pelo fato de abranger
outros significados, símbolos e valores”.
192
Numa linguagem junguiana, alguém sob um estado de “inflação de ego”
além dos limites das próprias medidas e também sem a devida iluminação da
consciência, pode gerar um estado de alienação, capaz de quebrar e se desvincular
de sua identificação com o Si-mesmo, de tal maneira que pode estar criando até
uma condição patológica, sem, contudo, também identificá-la. Nas palavras de
Edinger: “trata-se de um estágio no qual algo pequeno (o ego) atribui a si qualidades
de algo mais amplo (o Si-mesmo) e, portanto, está além das próprias medidas”.
193
Esse distanciamento entre os limites das próprias medidas e possíveis
fragmentações sinaliza condutas do indivíduo em torno da prepotência, da
presunção, da vaidade, etc., contrariando, portanto, condições de condutas tidas
como saudáveis.
Heráclito traduz em suas palavras poéticas que: “o sol não ultrapassará suas
medidas; se o fizer, as Erínias, servidoras da justiça, o descobrirão”.
194
Numa observação acerca das identidades modernas e suas fragmentações,
alguns autores atribuem que a “modernidade tardia” trouxe, além de uma
desagregação do sujeito, também um deslocamento como certas rupturas nos
discursos do conhecimento moderno. Os avanços ocorridos nas teorias sociais e nas
ciências humanas, na segunda metade do século XX, permitiram certo
descentramento do sujeito cartesiano. Marx cita que “os homens fazem a história,
mas apenas sob as condições que lhes são dadas”. Esse deslocamento permite
duas importantes proposições da filosofia moderna: 1) “Que uma essência
192
HUSSERL, apud WILBER, Ken, Um Deus social, pp. 30 – 31.
193
EDINGER, Edward F., Ego e arquétipo, pp. 27 e 72.
194
HERÁCLITO, apud EDINGER, Edward F., Ego e arquétipo, p. 21
97
universal do homem; 2) Que essa essência é o atributo de cada individuo singular, o
qual é seu sujeito real”.
195
Outros descentramentos ocorreram pela psicanálise de Freud sobre a vida
subjetiva e psíquica atribuídas à psicologia. Outros ainda citam a lingüística
estrutural de Ferdinand de Saussure que sugere: “podemos utilizar a língua para
produzir significados que expressamos na mesma (...) sendo essa um sistema social
e não individual”; e, Derrida (1991) cita que “as palavras são multimodulares,
carregando ecos de outros significados, portando, instáveis”.
196
Apesar dos descentramentos e crises, nem tudo está perdido na vida
humana. Existem também as oportunidades que desafiam a nossa potencialidade
criativa, nossa capacidade inteligente e nosso continuo aprendizado e
desenvolvimento em tornar nossa consciência iluminada e ativa em nossos
processos internos e externos; em redescobrir esses valores essenciais que a
própria história nos oferta como herança milenar em nossa busca para integrar
sábios conteúdos e, compor cada qual, sua história. Poder transformar, criar,
redescobrir, reconstruir, humanizar aquilo que é, por natureza, o próprio sentido do
humano; transcender aquilo que foi reduzido, dicotomizado, fragmentado, ignorado
ao longo dessa história, e retomar o caminho de uma humanidade que possa vir a
ser mais humanizada em suas diferentes e complementares expressões da vida,
com dignidade, respeito, ética, e seus valores mais essenciais.
Acreditamos nessa potencialidade humana de transformação e resgate de
sua dignidade, liberdade e compromisso para consigo mesmo, com os outros e com
a preservação da própria vida e do planeta que vivemos.
A responsabilidade e o compromisso são de cada um de nós, da comunidade,
que soma e se multiplica, da sociedade que interage e integraliza, e da cultura que
se constrói pela somatória, multiplicação e integração desses fatores e valores. O
momento é de reflexão, discussão, pesquisas, estudos e diálogos que tragam ações
eficientes e iluminadas pela consciência que abrange e amplia essa realidade e sua
pluralidade epistemológica, capaz de entender essas questões como preservação
da própria vida e do planeta em que vivemos.
Estamos ainda distantes de um sentido mais fidedigno de transcendência que
se aproxime melhor da perfeição e da totalidade. Temos muito trabalho pela frente.
195
HALL, Stuart, Identidade cultural na pós-modernidade, pp. 34 – 35.
196
DERRIDA, apud HALL, op.cit, p. 42.
98
E, são muitos os que estão contribuindo para esse caminho e não podemos
desconhecer tantas e significativas contribuições e ensinamentos de tantos
pensadores e suas mentes especulativas, questionadoras, até mesmo sábias.
Somos conscientes da existência de uma dualidade e diferenciação presentes
na complexidade estrutural e funcional do ser humano em seus diferentes níveis de
desenvolvimento, inclusive das próprias condições de nossa consciência, enquanto
um elemento primordial de nosso psiquismo. Consideramos também os diferentes
ciclos de evolução, pelos quais, cada indivíduo passa, e que as “crises” junto às
“oportunidades”, estarão se constituindo em uma busca pela sua melhor integração,
através de suas forças potenciais e criativas.
A transcendência, como uma relação do humano com o divino, se torna,
dentro desse raciocínio, uma necessidade de também reintegrar o sentido espiritual
aos outros níveis no processo de humanização e transcendência. Essa integração
pode produzir “ações mentais” capazes de possibilitar esse encontro do humano
com o divino de maneira profunda e verdadeira.
A transcendência como “nível transpessoal” tem um alcance muito além do
limites do nosso corpo e de nosso ego. O vel transpessoal representa uma
conexão entre a psique individual, o inconsciente coletivo (Jung) e o universo como
um todo. Dessa maneira, considera-se a dimensão espiritual como uma “chave
mestra” para a psique humana e sua relação com os acontecimentos universais.
197
O método de “começar de dentro”, ou a nova direção da maturidade humana
“de dentro para fora”, tem como principio o “eu” do indivíduo e sua “presença”
essenciais na experiência de autoconsciência pela vontade, aatingir o self (sede
das mais altas potencialidades humanas)
198
, que irá se constituir no significado
central do conceito de “experiência e identidade”, ênfase dada por vários autores,
como Maslow, Allport, Goldstein, Fromm, Erikson, Assagioli. Também consideramos
a importância do reconhecimento dos valores éticos, estéticos, noéticos e
religiosos como consciência clara das motivações nas escolhas e decisões e o
reconhecimento da profundidade e seriedade na vida humana e do lugar que cada
um ocupa nela.
199
197
GROF, Stanislav, A mente holotrópica, pp. 34 – 36.
198
TABONE, Marcia, A psicologia transpessoal, p. 78.
199
ASSAGIOLI, Roberto, Psicossíntese, São Paulo: Cultrix, 1982, p. 18.
99
No próximo capítulo, vamos discorrer sobre os tópicos centrais em torno do
nosso objeto de pesquisa que trazem a proposta de um caminho, na pós-
modernidade, da humanização e sua relação com a transcendência, baseando-nos
principalmente na teoria de Ken Wilber, dentro da psicologia transpessoal,
dialogando com outros autores importantes que possam complementar e ampliar
nossa visão de mundo, como contribuições importantes nos tempos que estamos
vivendo.
100
Capítulo III A reconstrução humana pelo processo de humanização e
transcendência. Um caminho pelas veredas de Wilber, em diálogo com outros
autores, em busca do encontro do humano com o divino.
Nos capítulos precedentes, desenvolvemos a trilogia homem, humanismo e
humanização, mediante enfoques da filosofia, da sociologia e da psicologia, em uma
caminhada histórica em direção à psicologia transpessoal. Expusemos também a
crise da humanização na pós-modernidade e a busca de novos caminhos.
Neste capítulo, o foco é apontar as contribuições da linha de pensamento de
Wilber e de outros importantes autores, para a recuperação do sentido de
humanização mediante a re-ligação com a transcendência.
Esse caminho de realização é um viés em meio à multiplicidade de outras
veredas que surgem no horizonte da construção de uma nova era.
A psicologia transpessoal e a teoria de Ken Wilber nos possibilitam uma
visão de mundo mais abrangente e consciente, um enfoque holístico da realidade,
na medida em que nos colocam, de maneira acessível, os diferentes níveis ou
estados da consciência humana e suas relações com os diversos “aspectos da
vida, da natureza e do cosmos”.
200
Para atingir nossos objetivos vamos trabalhar os seguintes tópicos: III. 1 As
ciências humanas e sociais e as escolas psicológicas na s-modernidade e o
surgimento da psicologia transpessoal; III. 2 – Conceito de consciência: perspectivas
e desenvolvimento; III. 3 Um caminho para a humanização e transcendência: a
recuperação do sentido do humano e o encontro com o divino no processo de
reconstrução humana na pós-modernidade.
III. 1 – As ciências humanas e sociais e as escolas psicológicas na pós-
modernidade e o surgimento da psicologia transpessoal.
200
PELLEGRINI, Luis, apudTABONE, Marcia, A psicologia transpessoal, p. 13.
101
No panorama geral das ciências humanas e sociais, assim como em
tradicionais escolas psicológicas, observamos um distanciamento em relação a
dimensão unitária que ocupa as áreas do psiquismo humano.
201
Essas áreas continuam a estabelecer suas estruturas e sistemas ainda sob
influência do Iluminismo renascentista (século XVI) e do individualismo, heranças do
século XVIII. Mais recentemente, nos séculos XIX até meados do século XX,
prevalecem o pensamento cartesiano racionalista e o materialismo, também
influenciando essas e outras áreas do conhecimento.
A superação do mecanicismo cartesiano e newtoniano e os novos
paradigmas científicos, expostos por Capra em O ponto da mutação repercutiram no
modelo cientifico da psicologia tradicional, que não dava conta da amplitude dos
problemas humanos e suas necessidades, que permaneciam bloqueadas frente à
falta de sentido da vida, individual e coletiva, e às patologias decorrentes dos níveis
de consciência fragmentados em relação à realidade.
As ciências humanas, inicialmente, procuraram sua afirmação baseadas
numa metodologia centrada nas ciências exatas e naturais que, historicamente,
tinham sido bem sucedidas. Porém, essa redução mecanicista levou cientistas
sociais também a certo reducionismo ao deixar de analisar aspectos peculiares e
únicos sobre o comportamento humano, tanto no nível individual quanto coletivo.
A psicologia tradicional, baseada nesses pressupostos, construiu, por sua
vez, duas linhas metodológicas que representavam, basicamente, duas posturas
epistemológicas e seus respectivos modos de interpretação da realidade.
Uma dessas linhas metodológicas se posiciona dentro de um “rigor científico”
através de certo conjunto de regras e métodos de compilação, com manipulação e
análise de dados, reduzindo os fenômenos, mesmo os observáveis, a um modelo
mecanicista. A outra linha procurou desenvolver qualitativamente as manifestações
dos fenômenos psicológicos humanos.
202
A escola behaviorista se insere na primeira linha metodológica citada, seguida
pela psicanálise, como a outra linha metodológica que começa a se firmar no início
do século XX, tendo como principais expoentes S. Freud e C. G. Jung. A importância
da preservação qualitativa das manifestações do fenômeno humano, pelas teorias
201
TABONE, Marcia, A psicologia transpessoal, p. 18
202
CARDOSO SILVA, Vera Lúcia, apud COULSON, William R. e ROGERS, Carl R., O homem e a ciência do
homem, Belo Horizonte: Interlivros, 1973, pp. 03 – 04.
102
de Freud e Jung, seguidos por W. James e outros pensadores importantes,
inauguram a “segunda força em psicologia”, antes sob o domínio do behaviorismo.
Entre esses pensadores, Jung se separa da psicanálise de Freud, criando a
psicologia analítica e uma visão que se ocupa dos fenômenos psicológicos vistos na
sua complexidade, diferente de outras correntes que reduzem consideravelmente os
fenômenos complexos a seus elementos.
203
O sentido de religiosidade também se
insere no pensamento junguiano, inicialmente pelo fascínio pela idéia de Deus. Em
1940, Jung lança a obra Psicologia e Religião para tratar das questões do divino e o
senso da experiência religiosa na vida humana.
204
Dentro das ciências humanas, a psicologia humanista foi se posicionando
como a terceira força em psicologia, atendendo às necessidades dessa época
meados do século XX - e mergulhando na área dos fenômenos humanos e nas
sutilezas da experiência, em busca de novos conhecimentos para além dos limites
apenas do ego.
Um dos pensadores da psicologia humanista, o psicólogo Carl Rogers,
também em meados do século XX, se referiu à psicologia como ciência, com essa
afirmação: “A Psicologia e as outras ciências do comportamento estão, sem dúvida,
adquirindo seus direitos”.
205
A psicologia existencial se une à psicologia humanista depois de um período
dilacerado pela guerra, poluição e pobreza. Ela vem para preencher lacunas de um
momento angustiante que as pessoas vivenciavam. Sua orientação voltada à
pessoa também procurava por uma interação com a sociedade, através de novas e
múltiplas maneiras, principalmente pelos grupos de encontro (Rogers) e o centros de
crescimento humano, que surgiam em diversos lugares, inclusive no Brasil. Em
meados do século XX, seus principais expoentes eram Carl Rogers e Abraham
Maslow.
206
Depois de um longo período de uma orientação com predominância
materialista, o pensamento existencial e humanista torna-se, nesse período, muito
acolhido nos meios acadêmicos e científicos. Embora o humanismo traga suas
raízes desde o culo V, com Nicolau V - o primeiro papa humanista - foi com
Erasmo de Rotterdam e suas obras, que o humanismo começa se firmar, como
203
SILVEIRA, Nise da, Jung vida e obra, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 39.
204
Ibid, p. 23
205
ROGERS, Carl R., apud COULSON, William (orgs.), O homem e a ciência do homem, p. 55.
206
GREENING, Thomas C. (org.), Psicologia existencial humanista, p. 17.
103
movimento, entre o final do século XV e início do século XVI. Petrarca, chamado de
“o pai do humanismo” também exaltara a “dignidade do homem”. Esses
pensadores, que demonstravam a importância dos valores de dignidade
individual, liberdade interior e criatividade, foram os precursores do movimento
humanista.
207
Importante salientar que essa época culo XV e XVI marcou o inicio do
renascimento e, com ele, surgiu, inicialmente o termo “humanitas” concebido pela
educação e formação do homem, com uma forte tendência nos estudos sobre
literatura humana. O termo humanismo surgiu em seguida, contemplando um novo
sentido do homem e seus problemas nesse período. Petrarca e Erasmo de
Rotterdam foram expoentes do humanismo no inicio do renascimento.
O existencialismo surge com Kierkegaard na primeira metade do século XIX.
Suas características, basicamente, trazem um modo de pensar bastante peculiar a
cada um de seus pensadores e, com isso, não se resume em uma única escola de
pensamento. Uma característica comum é a especulação filosófica sobre a
existência humana. Seus principais expoentes foram Kierkegaard, Nietzsche,
Jaspers, Gabriel Marcel, Heidegger, Tillich, Sartre. A essência do existencialismo “é
que o homem reflete em seu existir sua própria experiência, que é tudo o que ele
pode ter da realidade”.
208
Seu lema principal foi expresso por Sartre: “a existência
precede a essência”.
A. H. Maslow (1970) o mesmo considerava a ocorrência de um avanço nas
psicologias humanistas e nas novas psicologias transcendentes; elas surgiam como
uma “florescência com práticas asseguradas, apesar de ainda, lamentavelmente,
não terem acesso à maioria dos órgãos de psicologia”. Referia-se também ao
nascimento da psicologia transpessoal, considerando-a como o surgir de uma nova
força na psicologia, por aprofundar-se nas reflexões transcendentais.
209
A psicologia transpessoal surge nos meios acadêmicos e científicos a partir
da década de sessenta do culo passado. Ela estabelece um critério da
207
BUHLER, Charlotte, Psicologia existencial e humanista: respostas a desafios, In: GREENING, Thomas C.,
Psicologia existencial humanista, pp. 32 – 33.
208
Ibid, pp. 33 – 35.
209
MASLOW, A. H., Motivation and personality (Nova Iorque: Harper & Row, 1970, In: ASSAGIOLI,
Roberto, Psicossíntese, São Paulo: Cultrix, 1972, p. 07.
104
transcendência humana em relação aos limites restritos ao ego e da consciência
mais usual.
210
Nessa época, mesmo mantendo semelhanças com a psicologia humanista, a
identidade fundamental metodológica da psicologia transpessoal está centrada no
“método de começar de dentro”. O princípio encontra-se no eu do indivíduo e sua
presença, que implica na importância central atribuída ao conceito de identidade.
Essa visão, também utilizada por um grupo de psicólogos e psiquiatras importantes
(Allport, Goldstein, Fromm, Erikson, Maslow e outros), estabelece que o indivíduo se
encontra em constante desenvolvimento em processo de crescimento e que
pode realizar muitas potencialidades latentes. Em meio a esse desenvolvimento,
cada indivíduo atribui significado à sua vida – ou à sua busca pela importância dos
valores (éticos, noéticos, estéticos e religiosos), confrontando as escolhas e
decisões e, respectivamente, a responsabilidade e a motivação que irão determiná-
las.
211
Com perspectivas otimistas, a psicologia existencial e humanista se afirma
como um aprofundamento dos conceitos que buscam definir a condição humana.
Allport, ao comentar as obras de Maslow, como importante expoente existencialista
e humanista do século XX, considera essas perspectivas otimistas como “a
preparação de um caminho, pela primeira vez, para uma psicologia da humanidade”.
Maslow enfatiza a capacidade da pessoa de escolha, responsabilidade e futuro
como aspectos positivos na vida e como concretização das potencialidades da
natureza humana, o que ele chamou de individuação.
212
Nessas perspectivas, a psicologia transpessoal identifica também a
importância da consciência no trabalho com as “ações mentais inteligentes” dos
indivíduos, interagindo em seus principais níveis, para uma melhor compreensão e
discernimento em lidar com as questões e os problemas humanos e a utilização das
próprias capacidades em considerar as potencialidades naturais e inatas existentes
no ser humano.
Os novos desafios e descobertas em torno da consciência sugerem que “a
capacidade humana vai muito além do que, sequer, imaginávamos”.
213
Com isso,
210
TABONE, Marcia, A psicologia transpessoal, p. 18.
211
Ibid, p. 18.
212
ALLPORT, apud BUHLER, Charlotte, Psicologia existencial e humanista: respostas a desafios
contemporâneos, apud GREENING, Thomas C. (org.), Psicologia existencial humanista, p. 36.
213
GROF, Stanislav, A mente holotrópica, p. 15.
105
forçamo-nos a encarar, mais de perto, quem somos nós, física, mental e
espiritualmente. As pesquisas sobre consciência dentro da psicologia transpessoal,
buscam trazer uma visão de mundo que procura combinar as mais avançadas
descobertas nas fronteiras da ciência, com a sabedoria da antiguidade.
214
Assim, a psicologia transpessoal vai se desvinculando um modelo, até então
dominante, com uma imagem do universo que encarava a vida, a consciência, os
próprios seres humanos e sua inteligência criativa como meros subprodutos
acidentais, dispostos através de uma visão simplista da matéria. Atualmente,
inúmeras observações, estudos e pesquisas indicam ocorrências estreitas entre a
conexão da consciência com certas condições neurofisiológicas e patológicas.
215
Em oposição à limitada visão do ser humano e seu potencial, baseada na
ciência newtoniana e nas idéias do modernismo iluminista, agora, diversas
pesquisas científicas apresentam a visão da realidade como uma complexa
tapeçaria de relações e eventos unificados. Dessa maneira, a consciência não mais
reflete um mundo passivo, material e objetivo, mas exerce, “um papel ativo na
criação da própria realidade”.
216
A psicologia transpessoal se fundamenta e se relaciona a várias áreas do
conhecimento e do saber e, com isso, possibilita uma visão mais abrangente em
torno das questões humanas, principalmente aquelas vividas na condição pós-
moderna, com tantas fragmentações e dicotomias. Esse novo paradigma, além de
questionar os valores ultrapassados da cultura ocidental, propõe a mudança social
tão necessária, como resultado das transformações pessoais “de dentro para fora”
– através de transformações na consciência individual e coletiva.
217
O que parece real na atualidade é que não podemos desconhecer e fechar os
olhos aos avanços de novos estudos e pesquisas em alguns importantes campos da
ciência, notadamente com o advento da psicologia transpessoal. Viemos de tão
longe, através dos sábios da antiguidade ocidental e oriental, chegamos ao início de
construção de uma nova era pós-moderna, com tantos instrumentais acessíveis ao
nosso conhecimento, e utilizamos tão pouco ainda de nossa potencialidade criativa e
inteligente.
214
GROF, Stanislav, A mente holotrópica, p. 15.
215
Ibid, pp. 16 – 17.
216
GROF, Stanislav, A mente holotrópica, pp. 18 – 19.
217
Ibid, pp. 23 – 25.
106
O que a teoria de Wilber propõe é uma verdadeira síntese – e não um
ecletismo das principais abordagens da consciência, que valoriza as visões de
pensadores da psicologia (Freud, Jung, James, Maslow, May, e outros), e acolhe a
sabedoria acumulada ao longo da história.
218
Wilber convida as ciências humanas e sociais e a própria psicologia como
ciência, a participar desse movimento da pós-modernidade que se empenha em
estudar e pesquisar profundamente as questões do homem e da humanidade. Assim
como a psicologia da religião, a psicologia transpessoal está disponibilizando suas
teorias para que ocorra o desenvolvimento das questões e problemas que visam a
melhorar as condições do ser humano. Na esteira de W. James, Wilber convida a
uma profunda reflexão para avançar no caminho da humanização e transcendência.
Diz James: “a religião, seja ela qual for, é a reação total de um homem à vida (...),
pois, a divindade do objeto e a solenidade da reação são tão bem marcadas que não
dão margem à dúvida”.
219
Antes, porém, de abordarmos a questão da transcendência, faz-se necessário
desenvolver o conceito de consciência em sua evolução que desemboca na posição
da psicologia transpessoal.
III. 2 – Conceito de consciência: perspectivas e desenvolvimento.
A consciência humana tem sido um dos assuntos mais discutidos, estudados
e pesquisados na atualidade, em diversas áreas da ciência.
Essas pesquisas tem contribuído para o avanço da psicologia, principalmente
da psicologia transpessoal que coloca a consciência para além das esferas do ego
como mero subproduto do cérebro.
220
Peter Russel, pensador contemporâneo e autor de vários livros, em sua obra
“The global brain, o despertar da terra” fala sobre a consciência humana e seu
desenvolvimento, baseado na combinação da filosofia, da psicologia e da física,
218
WILBER, Ken, O espectro da consciência, p. 11.
219
JAMES, William, As variedades da experiência religiosa, pp. 36 – 37.
220
GROF, Stanislav, A mente holotrópica, p. 17.
107
para desenhar um novo quadro da humanidade e dos tempos que estamos
vivendo.
221
Nosso propósito é focalizar conceitos e concepções sobre a importância da
consciência humana, seus níveis e funções significativas para o processo da
humanização e transcendência, pelo viés da psicologia transpessoal.
No significado etimológico, a palavra consciência vem do latim conscire
conhecer, ter cognição de. Na realidade trata-se de um termo indefinível, ou melhor,
definível mediante o recurso introspectivo direto às experiências conscientes.
Para Sir William Hamilton, “a consciência não pode ser definida (...) a razão é
simples: a consciência está na base de todo conhecimento”.
222
Um termo mais abrangente para consciência vem do inglês
conscienciousness que significa “a qualidade ou estado de ser consciente de alguma
coisa dentro ou fora de uma pessoa e que abrange todos os estados de consciência
dessa realidade”.
223
Um dos primeiros pensadores a tecer concepções sobre consciência, no
âmbito da psicologia, foi William James (1902), que fez a seguinte afirmação:
224
A nossa consciência normal em estado de vigília é apenas um tipo
especial de consciência, ao passo que em toda a sua volta,
separadas dela pela mais fina das telas, jazem formas potenciais
de consciência inteiramente diversas. Podemos passar a vida
inteira sem suspeitar-lhes sequer da existência; aplique-se-lhes,
porém, o estimulo necessário e, ao primeiro toque, por mais leve
que seja ei-las ali em toda a sua plenitude... Não pode ser
definitiva nenhuma explicação do universo em sua totalidade que
não dê atento dessas outras formas de consciência... De qualquer
maneira, elas atalham o nosso prematuro acerto de contas com a
realidade.
Wilber, ao descrever sua teoria em torno do espectro da consciência, aponta
seus diversos níveis presentes no indivíduo, embora alguns ainda se encontrem em
condições potenciais e latentes na natureza humana. Essas formas potenciais
221
RUSSELL, Peter, ao se referir sobre seu trabalho em torno da consciência, em vídeo, com o título O buraco
branco no tempo da editora Aquariana, 1985, apud The global brain, o despertar da terra, São Pulo: Cultrix,
1985.
222
HAMILTON, William, apud RUNES, Dagobert D. (org.), Dicionary of philosophy, Nova York:
Phiolosophical Library, 1960, p. 64.
223
LONGMAN’S, Dictionary of the English Language, Essex, 1991.
224
JAMES William, Prólogo, apud WILBER, Ken, O espectro da consciência, p. 15.
108
implicam que estejam em plenas condições de desenvolvimento e, portanto,
possíveis de desencadear ações mentais a partir delas.
Ao falarmos sobre consciência, inicialmente, é importante não pensá-la de
maneira apenas cartesiana centrada no cérebro exclusivamente material, físico
assim como também num sentido só espiritual, como se a mesma não tivesse corpo,
ao tratarmos da consciência de si e do mundo.
225
De maneira muito especial, os níveis superiores de vida mental, nos quais o
individuo exerce uma consciência “iluminada”, estão em contraposição aos
processos inconscientes, assim como também transcendem aqueles que temos em
comum com outras espécies e que não devem ser excluídos e nem desconsiderados
na psicologia e na psique humana.
226
Jung, em sua obra Tipos Psicológicos, diz sobre consciência: “entendo como
consciência a relação dos conteúdos psíquicos com o ego, na medida em que essa
relação é percebida como tal pelo ego”. E prossegue: “as relações com o ego que
não são percebidas como tal são inconscientes”.
227
A teoria junguiana aborda a evolução da consciência, cujo inicio se pelo
estagio no qual o ego ainda se encontra contido no inconsciente. Esse primeiro
estágio é chamado de cosmogênico não dualidade entre o consciente e o
inconsciente - pois o material psíquico é totalidade e perfeição, simbolicamente
originais. O ego, através de suas atividades, opera modificações ao tomar
consciência de sua própria condição, sendo capaz de ampliar e também tornar
relativas suas experiências.
Nesse estágio, o ego capta seu objeto conceitualmente, já como um conteúdo
da consciência. Cada captação do ego do conteúdo inconsciente acarreta uma
expansão do mesmo, proporcionando o desenvolvimento do self união da
consciência com o inconsciente, que é igual à totalidade - para o desenvolvimento
do processo de individuação.
228
Na concepção de Wilber, a consciência é pluridimensional composta de
muitos níveis e a consciência cósmica é fonte e sustentação de todas as
225
VALLE, Edênio, Questões e perspectivas em torno do conceito de consciência, referente ao texto em apostila
de estudos do curso: Psicologia da Religião, São Paulo: PUC – CRE, 2005, pp. 06 – 07.
226
Ibid, pp. 06 – 07.
227
JUNG, Carl G.,em referência a seu entendimento sobre consciência, apud EDINGER, Edward F., A criação
da consciência, p. 34.
228
NEUMAN, Erich, História da origem da consciência, p. 25.
109
anteriores. Em síntese, esse nível de consciência se faz pela interação do nível do
eu transpessoal com a consciência cósmica.
229
A relação entre Jung e Wilber acerca do desenvolvimento da consciência se
encontra principalmente no nível transcendente níveis mentais mais elevados
que aproximam a forma cosmogênica (Jung) com a consciência cósmica (Wilber);
“os estados mitológicos da evolução” de Jung se aproximam com os estágios de
consciência de Wilber. Esses estágios ocorrem, originalmente, numa composição
integrada, para se diferenciar e voltar a se reintegrar pelo desenvolvimento e
evolução que possam ser alcançados pela consciência humana.
Para Jung, a psique representa a totalidade dos conteúdos psíquicos no
estágio inicial como forma cosmogênica e que não estão diretamente ligados ao
ego em sua totalidade; a relação entre o ego e o inconsciente começa a ocorrer
quando esses conteúdos passam a assumir a qualidade da consciência.
230
Para Wilber, a consciência se assemelha ao espectro eletromagnético, que
ele usa com um significado metafórico para a finalidade de comunicação e
investigação, com o intuito de criar um modelo científico. O espectro eletromagnético
implica em ondas eletromagnéticas, com seus respectivos veis ou faixas de ondas
e de acordo com os diferentes comprimentos dessas ondas, dentro de um vasto
“oceano fluídico”, cujas radiações eletromagnéticas vão desde os raios cósmicos
(mais finos e fluídicos), até as ondas de radio, por exemplo, que são mais densas.
Por analogia, os níveis de consciência humana funcionam através de energias
naturais reciprocamente penetrantes, desde a mais fina consciência luminosa, até a
forma mais densa de consciência materializada.
231
Os trabalhos iniciais de Wilber o colocam como o criador da psicologia do
espectro ou “spectrum psycology” como um modelo de desenvolvimento
psicológico na formação das estruturas da psique.
232
Wilber buscou conhecimentos em várias escolas para compor seus estudos
sobre os níveis de consciência. Dentre elas, destacamos a psicanálise, a teoria
analítica de Jung, a gestalt, a psicossintese, o budismo, o hinduísmo, etc.. Wilber,
229
WILBER, Ken, O espectro da consciência, p. 11.
230
EDINGER, Edward F., A criação da consciência, São Paulo: Cultrix, 1999, p. 34.
231
WILBER, Ken, O espectro da consciência, p. 16.
232
WILBER, Ken, Transformações da consciência, São Paulo: Cultrix, 2000, p. 15.
110
então, procura identificar os níveis básicos de consciência para compor seu
“espectro da consciência”.
233
Nesses níveis básicos do espectro da consciência, Wilber destaca,
inicialmente, o chamado “Nível do Ego”, como um nível que inclui a “imagem que
temos de s mesmos” (o “nosso papel” em nossa vida individual e coletiva) e seus
aspectos conscientes e inconscientes, assim como a natureza analítica e
discriminativa do intelecto (mente) nesse sentido. O segundo nível é o “Nível
Existencial”, que envolve nosso organismo total (psique e corpo) e que permite
nosso sentido básico de existência como ser-no-mundo, formando a referência
sensorial de nossa auto-imagem como experiências de contato com o ambiente e a
totalidade do universo. O terceiro é o “Nível Transpessoal”, constituído pelas faixas
ou ondas intermediárias entre o nível existencial e o nível da mente (que nos confere
a consciência de unidade), expandindo o senso de identidade para além da
individualidade. O quarto é o “Nível da Mente”, que permite à consciência a
sensação ou o sentimento da nossa identificação com o universo, com o cosmo, e
torna a consciência unida com a energia sica do universo é a chamada
consciência cósmica.
234
Outra relação importante entre Jung e Wilber diz respeito ao ato de conhecer,
como um dos fenômenos da consciência. Para Jung, a função mental do ato de
conhecer se constitui numa abordagem psicológica-empírica, cujo todo permite
elaborar, de maneira descritiva, a experiência do conhecer.
235
Para Wilber, em sua
teoria do espectro, o ato de conhecer está diretamente relacionado a cada nível de
consciência, portanto, “diferentes modos de conhecer correspondem a diferentes
níveis de consciência”. Sua base epistemológica está no método psicológico.
236
Atualmente, recentes descobertas, em vários campos da ciência, trazem
novas e amplas possibilidades para as pesquisas em torno da consciência. Citamos
a física, a psicofisiologia, a neurociência, biologia molecular, assim como a própria
psicologia que tem demonstrado - e, esperamos ainda mais - utilizar-se de vários
outros conhecimentos, convergindo para um movimento interdisciplinar pelo caráter
emergente que possa reunir e integrar tendências metodológicas de várias áreas da
233
WILBER, Ken, O espectro da consciência, pp. 18 - 19.
234
Ibid, pp. 18 - 19 e o texto de TABONE, Marcia sobre a cartografia da consciência proposta por Ken Wilber
em sua obra A Psicologia transpessoal, pp. 86 – 89.
235
EDINGER, Edward F., A criação da consciência, pp. 34 – 35.
236
WILBER, Ken, O espectro da consciência, p. 44.
111
ciência e da filosofia, contando também com a religião, de maneira que contemple as
reais e atuais necessidades em torno das questões e dos problemas humanos.
Na psicologia transpessoal, um dos mais contemporâneos autores, Pierre
Weil, tece seus comentários sobre as recentes pesquisas sobre consciência,
dizendo: “A psicologia transpessoal tem por finalidade o estudo dos vários estados
de consciência pelos quais passa o homem, assim como das suas relações com a
realidade, com o comportamento e com os valores humanos”.
237
Para Wilber, cada indivíduo traz sua identidade pessoal intimamente
relacionada com o nível de consciência desde o qual e no qual está operando.
Assim, o indivíduo também estabelece seu modo de conhecer e sua respectiva
relação com a realidade. O conhecimento da realidade é dado pelo modo “não-dual
de conhecer em comunhão com o que conhece”. O outro modo de conhecer, o dual,
é aquele que “cria dois mundos de um” para a consciência da realidade lógica.
238
Para Jung, a função psicológica de conhecer requer, inicialmente, que a
experiência indiferenciada seja “cindida num sujeito e num objeto (o conhecedor e o
conhecido), como divisão primordial da unicidade original”. Para Neumann: “o ato de
cognição consciente divide o mundo em opostos, pois a experiência do mundo é
possível através dos opostos”.
239
Stanislav Grof afirma que “a pesquisa moderna de consciência revela que
nossa psique não tem limites reais e absolutos”. A amplitude das experiências
sugere que a psique humana traz potencial para transcender o que se restringe às
limitações de tempo e espaço. E acrescenta: “somos parte de um campo infinito de
consciência que engloba tudo que existe”. Isso nos reporta a tantas realidades ainda
a serem exploradas.
240
E Wilber enfatiza que: “tratar a consciência como espectro se constitui numa
metáfora, numa analogia, pois se dirá com o que se parece a consciência, mas o
dirá o que ela é; pois o que ela é vai por trás das palavras e dos símbolos”.
241
Portanto, consideramos a importância do individuo identificar, em condições
satisfatórias e pertinentes, como operam seus níveis de consciência dentro do
processo de desenvolvimento e evolução em que se encontram, pois a humanização
237
WEIL, Pierre, apud TABONE, Marcia, A psicologia transpessoal, p. 28.
238
WILBER, Ken, O espectro da consciência, p. 42 – 45.
239
JUNG, C. G. e NEUMANN, Erich, apud EDINGER, Edward F., A criação da consciência, p. 35.
240
GROF, Stanislav, A mente holotrópica, p. 244.
241
WILBER, Ken, O espectro da consciência, p. 24.
112
e sua relação com a transcendência estão diretamente relacionadas e também são
inclusivos nesse processo. Por conseqüência e inclusão, sua condição perante a
coletividade, assim como sua responsabilidade social e cultural, também estarão
inseridos neste contexto.
É possível que a consciência humana, através de seu desenvolvimento ativo
e, por conseqüência, manifesto através das ações mentais do indivíduo em suas
atitudes e comportamentos, possa vir a ser um novo paradigma e um novo caminho
pós-modernidade. As pesquisas mais atuais neste sentido têm apontado a
consciência como um importante diferencial para o processo da humanização e
transcendência, numa era em plena construção.
III. 3 – Humanização e transcendência: a recuperação e a reconstrução do
sentido do humano no encontro com o divino, na condição pós-moderna.
O ponto central de nosso objeto de pesquisa diz respeito a cada um de nós,
pois se trata do ser humano em seu processo de humanização pelo desempenho
ativo da consciência e pela capacidade de transcender o ego, como condição
necessária para uma melhor qualidade de vida na atual situação da humanidade.
Na trilogia “homem, humanismo e humanização”, observamos, nos capítulos
anteriores, que a relação com a transcendência, em alguns momentos históricos,
ficou distante e até mesmo esquecida.
Atualmente, em muitas áreas do saber e da ciência, que se preocupam com
as questões e problemas humanos, existem pesquisas, estudos e aplicações
práticas que organizam trabalhos interdisciplinares com teorias e técnicas ocidentais
e orientais, voltadas ao processo de humanização e transcendência.
À luz da psicologia transpessoal e outras concepções que focalizam a
importância da relação humana com a transcendência, através da espiritualidade,
procuramos possibilidades que possam desenhar um novo caminho na pós-
modernidade.
Propomos um caminho de reconstrução para o ser humano, mediante o
trabalho com os níveis de consciência e a busca para sua melhor integração,
113
partindo do estudo e pesquisa em torno do espectro da consciência
242
e
contribuições de outros pensadores da psicologia transpessoal, como também de
outras áreas da psicologia.
A esse caminho de reconstrução, chamamos de “humanização”. Ele inclui a
re-ligação com o divino, uma experiência de transcendência. Por isso, humanização
e transcendência estão intimamente relacionadas.
Desde o advento da psicologia humanista, acompanhada pela psicologia
existencial, uma direção voltada para as questões humanas em torno de seu
potencial de satisfação das necessidades básicas, principalmente de amor e estima,
e para as experiências transcendentes ou “culminantes”.
243
James, desde 1896, até complementar seu trabalho em 1902, na obra As
variedades da experiência religiosa, um estudo sobre a natureza humana, escrito
com o psiquiatra canadense R. M. Bucke, reacende a chama da transcendência
humana, através da chamada “Consciência Cósmica”, que ele considera como um
“estágio de consciência que transcende os limites do indivíduo”. Essa obra
preconiza a psicologia transpessoal
244
Na psicologia, inicialmente, Willian James e Carl Gustav Jung se destacaram
no enfoque da transcendência e religiosidade.
A questão religiosa ocupa também um lugar de destaque na obra de C. G.
Jung. Neste sentido, um de seus feitos foi reconhecer que os conteúdos arquetípicos
da alma humana, suas representações primordiais coletivas, se encontram na base
de diversas formas de religião. Segundo Jung (1937), “a religião constitui, sem
dúvida alguma, uma das expressões mais antigas e universais da alma humana”.
245
Religião, na leitura de Jung, do vocábulo latino religere, significa “uma
acurada e conscienciosa observação do numinosum”- o numinoso a que Rudolf
Otto se refere como “uma existência ou efeito dinâmico não causado por um ato
arbitrário”.
246
Esses dois grandes psicólogos, ao buscar a ligação com o divino abrem
caminhos para Wilber, herdeiro deles em considerar que a vida humana atual, em
meio aos paradoxos, ambivalências e fragmentações, clama por uma melhor
242
WILBER, Ken, O espectro da consciência, como referência para as bases de nosso objeto de pesquisa.
243
MASLOW, A. H., Introdução à psicologia do ser, Rio de Janeiro: Eldorado/Tijuca, 1978, pp. 99 – 125.
244
WEIL, Pierre em seu prefácio, apud JAMES, William, Variedades da experiência religiosa, p. 07.
245
JUNG, C. G., Psicologia e religião, Petrópolis/Rio de Janeiro: Vozes, 1987, p. 07.
246
OTTO, Rudolf, Das Heilige, 1917, apud JUNG, C. G., Psicologia e religião, p.09.
114
coerência e bom senso, mesmo daqueles que detêm capacidades intelectuais mais
desenvolvidas, embora movidos ainda pelo “olho da carne” e pelo “olho da mente”,
tecendo condutas monológicas e dialógicas. Eles necessitam interagir e buscar
integrar conhecimento e visão em nível translógico, pelo “olho do espírito”.
247
Em 1906, W. James lançou suas bases para o “florescer do potencial
humano”, em discurso na American Philosophical Association na Universidade de
Columbia, afirmando:
Via de regra, os homens usam habitualmente apenas uma parte
dos poderes que realmente possuem e que poderiam usar sob
condições apropriadas. (...) a maioria de nós sente como que uma
nuvem pairando sobre nossas cabeças, conservando-nos abaixo
do nosso mais alto grau de clareza de discernimento, de
segurança de raciocínio, de firmeza de decisão. Comparando com
o que poderíamos ser, estamos apenas meio despertos. (...)
Estamos fazendo uso de apenas uma pequena parte de nossos
recursos físicos e mentais. De um modo geral a criatura humana
vive, assim muito aquém dos seus limites. Possui poderes de
vários tipos que, habitualmente, deixa de usar.
248
O desenvolvimento humano, suas potencialidades e capacidade de ir além do
ego, têm a possibilidade de inclusão da experiência transcendente, pelo encontro do
humano com o divino.
Essas potencialidades estão atreladas às condições naturais e reais em que
se encontram os diferentes níveis de consciência e depende do modo como cada
pessoa esteja operando em sua vida, na conduta de cada indivíduo, mediante suas
“ações mentais”, ou seja, o desempenho ativo de sua consciência. Importante
salientar que essa potencialidade humana existe como inteligência criativa inerente
à nossa natureza e é uma riqueza que pertence ao ser humano, independente da
sua raça, credo, condição sócio-econômica-cultural.
James (1902) nomeou de experiências místicas àquelas que trazem o sentido
de uma presença do divino, como uma realidade do invisível. James esclarece: “(...)
é como se houvesse na consciência humana um sentido de realidade, um
247
WILBER, Ken, A união da alma e dos sentidos, o autor faz referência aos três tipos básicos de conhecimento:
empirismo (olho da carne), racionalismo (olho da mente) e misticismo (olho da contemplação ou do espírito), pp.
22 – 24.
248
JAMES, William, The energies of men in Essays on Faith and Morals, Cleveland, Ohio, Meridian, 1962, p.
221.
115
sentimento de presença, uma percepção de que algo ali, mais profundo e mais
geral do que qualquer um dos sentidos”.
249
James desenvolveu profundo estudo sobre a natureza humana e a
transcendência – que chamou de misticismo – em sua obra As variedades da
experiência religiosa.
O misticismo, como sentido de transcendência para James (1902) se refere à
“vivência religiosa do divino” que ocorre através das disposições interiores do
homem e a relação direta “de coração para coração, de alma para alma, entre o
homem e seu criador”.
250
E complementa ao esclarecer que essa relação se
estabelece através “das experiências dos indivíduos em sua solidão, na medida em
que se sintam relacionados com o que quer que possam considerar o divino”.
251
Jung nomeou o centro ordenador e unificador da psique total que inclui
consciente e inconsciente de Si-mesmo, assim como o ego se constitui no centro
da personalidade consciente. O Si-mesmo é descrito como a divindade empírica
interna e equivale à imago Dei.
252
Os estudos de Jung sobre o inconsciente coletivo ou imagem arquetípica
demonstram que a psique como totalidade o é apenas produto da experiência
pessoal. A psique envolve uma dimensão pré-pessoal ou transpessoal, manifesta
em imagens universais. O estado original da totalidade é chamado de mandala e, de
onde emerge o ego individual, antes contido nesse mesmo estado-mandala original.
Essa se constitui na visão cosmogênica referenciada por Jung, tratada como mito da
criação.
253
Parece que é pela “mandala da vida” que o ser humano busca pelo seu
processo de individuação, de auto-realização, de humanização e transcendência.
Quando a mente humana empreende-se na aventura do auto-conhecer-se e
compreender o universo como um todo, alguns aspectos desse universo o homem
e o sentido da totalidade possivelmente, ainda permanecem desconhecidos,
embora facilitem e melhorem sua compreensão.
254
249
JAMES, William, As variedades da experiência religiosa, p. 47.
250
JAMES, William, As variedades da experiência religiosa, pp. 30 – 31.
251
Ibid, pp. 31 – 32.
252
JUNG, C. G. apud EDINGER, Edward F., Ego e arquétipo, p.22.
253
Ibid, pp.22 – 23.
254
WILBER, Ken, O espectro da consciência, p. 26
116
As cisões começam a ocorrer quando separação entre o conhecedor e o
conhecido, o pensador e o pensamento, o sujeito e o objeto.
255
Na antiguidade, o fenômeno da filosofia grega como um todo nos dá a
impressão que seu interesse contemplava o que estava além do mundo visível. As
reflexões desses filósofos eram, fundamentalmente, metafísicas. Atualmente, essa
suposição demonstra a “projeção da realidade da psique, por trás da existência
sensível e concreta”.
256
Sócrates, na antiguidade, atribuía à essência do homem a sua psyqué,
introduzindo seu significado nos estudos sobre a natureza humana. A psique se
tornou uma das principais concepções da psicologia.
257
Em 1967, Maslow, seguindo o raciocínio de James, nos alertava dizendo: “(...)
é razoável presumir que, em praticamente cada ser humano, uma vontade ativa
em direção à saúde, um impulso em direção ao crescimento, ou em direção à
realização das potencialidades humanas. Mas, ao mesmo tempo, somos
confrontados com a percepção muito triste de que tão poucas pessoas o fazem.
258
Maslow (1964) denomina o sentido de libertação e sentimento de presença
como “experiências de pico” êxtases ou experiências transcendentes nas
experiências místicas de revelações ou iluminações.
259
As experiências de pico ou “culminantes” são consideradas como “momentos
de especial júbilo e excitação na vida de todo indivíduo”. A experiência
transcendente se inclui no conceito central de auto-realização – ou, individuação
260
caracterizando a pessoa auto-realizadora.
Maslow esclarece que “podemos estudar hoje o que aconteceu no passado e
que, naquela ocasião, só era explicável em termos sobrenaturais”.
261
A chamada “Cognição do Ser”, nomeada por Maslow, está em contraste com
a chamada “cognição organizada pelas necessidades por deficiência do indivíduo”.
A primeira traz a “clareza consciente, aguda e penetrante da percepção”. Portanto,
255
Ibid, p. 26.
256
EDINGER, Edward F., A psique na antiguidade, Livro Um, São Paulo: Cultrix, 1995, p. 12.
257
REALE, Giovanni e ANTISSERI, Dario, História da filosofia vol.1, p. 87.
258
MASLOW, A. H., Neurosis as a Failure of Personal Growth in the Farther Reaches of Human Nature, Nova
York: Penguim, 1976, pp. 24 – 25.
259
MASLOW, A. H. Religions, values and peak-experiences, Ohio State University Press, Columbus, Ohio,
1964, p. 283.
260
MASLOW, A. H., Introdução à psicologia do ser, Rio de Janeiro: Eldorado Tijuca, s/data, pp. 102 – 125.
261
MASLOW, A., A experiência do âmago ou transcendente, p. 283.
117
“as pessoas capazes de individuação estão mais aptas a demonstrar uma percepção
egotranscendente, altruística e mais carente de ego”.
262
É um dado importante destacado por Wilber a reintegração do nível de
consciência espiritual aos outros níveis, como condição transcendente do ser
humano, e suas possibilidades de realizar seu encontro interno e profundo com o
divino.
Uma das questões mais delicadas a ser tratada neste capitulo se refere a
espiritualidade. Para Wilber, falar sobre espiritualidade é muito complexo, pois se
trata de um fenômeno amplo.
263
Por isso, traremos outras concepções de outros
pensadores, para dialogar sobre espiritualidade e o divino.
A abordagem da psicologia do espectro de Wilber possibilita um entendimento
em torno do que ele chamou de “sistema operacional integrado”, que permite um
conhecimento inter e multidisciplinar, através de elementos denominados de
quadrantes, níveis, linhas de desenvolvimento, estados e tipos que abarcam os
aspectos internos e externos do individuo, tanto os psicológicos, como os sociais e
culturais.
264
Essa visão traz um modelo mais integralizado para o pensamento humano na
pós-modernidade e que nos faz refletir sobre a necessidade de investir em um
empreendimento para a construção de um ser humano mais inteiro, através de um
trabalho que implica em ações de um desenvolvimento mais ativo da consciência.
Esse desenvolvimento melhor integrado dos níveis de consciência humano poderá
resultar em ações mais profícuas na conduta dos indivíduos, destes para a
coletividade, até refletir em mudanças para uma sociedade melhor.
Wilber indica caminhos que nos orientam a buscar respostas, soluções,
escolhas e decisões significativas e importantes para nossa existência, para viver os
valores mais “essencialmente humanos”, adquirir conhecimentos não apenas como
“um meio de vida”, mas como “experiências transformadoras de vida”; considerar
“seu semelhante como a si mesmo”; tratar pessoas como “pessoas” e não como
“coisas”; enxergar que, “entre o capital e a produção”, existe o “elemento humano” e,
que todos precisam ser educados, conscientizados, considerados e valorizados
como “colaboradores” nesse processo.
262
MASLOW, A. H., Introdução à psicologia do ser, pp. 102 – 125.
263
WILBER, Ken, Psicologia integral, pp. 146 – 147.
264
WILBER, Ken, Espiritualidade integral, São Paulo: Aleph, 2006, p. 14.
118
Wilber, em sua teoria sobre o espectro do desenvolvimento humano, traz
comentários sobre as abordagens ocidentais mais conservadoras que trabalham em
torno do fortalecimento do ego, da correção da auto-imagem, confiança em si
mesmo, metas realistas, etc. As abordagens orientais trabalham mais no sentido de
transcender o ego, mais do que simplesmente fortalecê-lo. Mesmo diante dessas
questões um tanto díspares, torna-se importante explorar um nível de consciência
que ofereça liberdade e liberação das causas principais dos sofrimentos, para dar
lugar à verdadeira natureza da realidade.
265
As teorias e pesquisas pós-modernas mais recentes trazem a questão da
consciência como um fator importante ao desenvolvimento humano, como ao
desenvolvimento de suas potencialidades, inclusive para além do ego e da
individualidade.
Para Wilber (2000), buscar pela libertação implica em buscar pelo
entendimento do nível da mente, depois de uma normalização do nível do ego e do
nível existencial que poderão se tornar muito proveitosos nesse processo. A redução
das tensões oriundas do fato de sermos um ego parece facilitar a transcendência.
266
Wilber retoma um esclarecimento importante de James, para a compreensão
da importância do nível da mente ou do Absoluto dentro do espectro do
desenvolvimento da consciência. Nas palavras de James:
267
(...) o mundo da nossa consciência atual é apenas um do muitos
mundos da consciência existentes, e os outros mundos hão de
conter experiências que também tem um significado para nossa
vida; e, embora, na maior parte das vezes, suas experiências e as
deste mundo se mantenham discretas, as duas se mostram
contínuas em certos pontos, e energias mais altas são filtradas
para o interior.
Wilber ainda ressalta que o nível da mente não se constitui em apenas uma
idéia, mas sim, numa experiência intensamente íntima, numa interpretação
psicológica da “philosophia perennis”. A consciência vai “para a interioridade da
nossa experiência espiritual, que o pode ser analisada intelectualmente sem
envolver contradições lógicas”.
268
265
WILBER, Ken, O espectro da consciência, p.21.
266
WILBER, Ken, O espectro da consciência, p. 20.
267
JAMES, William, apud WILBER, Ken, O espectro da consciência, p. 22.
268
WILBER, Ken, O espectro da consciência, p. 24.
119
Principalmente, nas ultimas décadas, tem se buscado uma maneira mais
abrangente em torno dos potenciais humanos, contemplando modelos e sistemas
conhecidos de desenvolvimento e crescimento, desde os antigos xamãs e bios,
até as descobertas modernas e revolucionárias da ciência cognitiva e as pesquisas
com a consciência.
Mesmo diante de situações ainda confusas e que escorregam facilmente na
interpretação de conceitos, torna-se importante ressaltar que diferenças de
interpretar o conceito de dualidade com a ambigüidade; de diferenciação com a
dissociação, assim por diante.
Parece-nos, portanto, que o senso de interpretação se constitui num fator
importante e significativo ao entendimento e melhor discernimento de certos
conteúdos complexos e subjetivos que estamos tratando.
O homem se distanciou do seu senso de unidade, da sua condição de
microcosmo - um ser-em-si e um ser-no-mundo, contido num macrocosmo e do
senso cosmogênico da criação – na relação homem/Absoluto, homem/Deus.
Wilber (2000) questiona a questão da realidade reduzida à idéia de
mensuração, de quantidade, adotadas pela ciência moderna, opondo-lhe os
sistemas de pensamento de experiência subjetiva religiosa e filosófica, anteriores ao
pensamento cartesiano. Neste sentido, diz Wilber
269
:
A realidade final era o que poderia ser medido (...) a realidade era
objetiva e podia ser verificada. Todo o conhecimento seria
reduzido a dimensões objetivas, às qualidades objetivas
“primárias” (...) ao passo que os aspectos subjetivos, as
qualidades “secundárias” das emoções, dos sentidos e das
intuições seriam exterminadas, pois eram fundamentalmente
irreais (...). A pergunta do dualismo do sujeito e do objeto não foi
respondida pela nova ciência, foi simplesmente evitada: o sujeito
proclamou-se irreal.
A questão da realidade sugere que o problema esteja na relação que o
homem estabelece com ela. Esse questionamento, per se, nos leva também para
além da ciência pura.
Um estudioso da filosofia grega na primeira metade do século passado
John Burnet, estabelece uma relação entre o homem e a realidade desde a
antiguidade, considerando que a questão da realidade na antiguidade é dominada
269
WILBER, Ken, O espectro da consciência, p. 29.
120
pela “realidade metafísica”, tocando no mesmo ponto da questão sobre a psique,
com a pergunta de sempre: “O que é real?”...
270
A revolução quântica surge em torno do questionamento do dualismo de
sujeito e objeto. Sullivan, físico das quanta, disse: “não podemos observar o curso
da natureza sem perturbá-la”. Outro físico das quanta, Andrade, faz eco a Sullivan,
dizendo: “observação significa interferência no que estamos observando... a
observação perturba a realidade”.
271
Em meados do culo XX, as novas descobertas da física demonstram que
os átomos, definidos por Newton como o “bloco construtor do mundo material”, são
compostos por partes menores e mais elementares, até as subatômicas.
272
Grof (1994), a partir das novas experiências da física e da ciência, demonstra
que essa exploração do micromundo revela que o universo é, na realidade, uma
“complexa teia de relações e eventos unificados”. E complementa, fazendo alusão à
consciência, que esta “não reflete o mundo material objetivo de maneira apenas
passiva, mas sim, ela tem um papel ativo na criação da própria realidade”.
273
As mais recentes descobertas, em diversas áreas da ciência, contando com a
física, a neurologia, psicofisiologia, biologia molecular, parapsicologia, têm trazido
contribuições significativas para pesquisas do cérebro e da consciência, sobretudo,
fundamentando a própria psicologia transpessoal e a visão de realidade no mundo
contemporâneo.
274
Ornstein (1972) analisou dois modos ou estilos de consciência relacionados
aos hemisférios cerebrais. Ele diz
275
:
O hemisfério esquerdo está relacionado principalmente com as
funções verbais e matemáticas (...) operando de forma analítica,
seqüencial, lógica e racional. (...) ao contrário, o hemisfério direito
encontra-se mais envolvido com a orientação espacial, a
percepção ou criação estética, auto-imagem, etc. É emocional,
intuitivo e holístico.
270
BURNET, John, apud EDINGER, Edward F., A psique na antiguidade, p. 12
271
SULLIVAN, J. W. N. e ANDRADE, E. N. da C., apud WILBER, Ken, O espectro da consciência, pp. 31 –
32.
272
GROF, Stanislav, A mente holotrópica, p. 19.
273
Ibid, p. 19.
274
TABONE, Marcia, A psicologia transpessoal, pp. 28 – 29.
275
ORNSTEIN, Robert E., apud TABONE, Marcia, A Psicologia Transpessoal, pp. 29 – 30.
121
Einsten, em sua teoria da relatividade, considera que o espaço não é
tridimensional, nem o tempo linear. Para ele, espaço e tempo não são entidades
separadas. São integradas num continuum quadrimensional, que chama de “espaço-
tempo”.
276
Nesse diálogo entre diversos pensadores, em diferentes épocas da história da
humanidade, vamos encontrando também a aproximação cultural entre o ocidente e
o oriente.
Wilber (1999) destaca o desenvolvimento da espiritualidade se desdobrando
em estágios de acordo com os níveis de consciência. Fazendo eco a Wilber, vários
teóricos orientais e ocidentais apresentam evidencias nesse sentido, principalmente
pela prática e caminho da meditação.
277
Os estudos e pesquisas de Daniel P. Brown e Jack Engler em torno dos
estágios do desenvolvimento meditativo foram evidenciados em estudos
interculturais. Os resultados demonstram que a meditação e seus respectivos
estágios têm aplicabilidade universal e intercultural, estabelecendo um senso comum
de espiritualidade, através da prática da meditação oriental.
278
Marcia Tabone (2001), em sua obra A psicologia transpessoal, contempla
várias visões sobre a importância da própria psicologia transpessoal, e também
manifesta sua visão sobre a aproximação das concepções do oriente com o
ocidente, considerando que essas se constituem em “diferentes formas de
apreensão da realidade, revelando que os dois modos de conhecimento não são
ainda auto-suficientes”.
279
O que nos parece cada vez mais significativo encontra-se na interação, no
diálogo, na compreensão de que concepções diferentes não sejam contraditórias,
mas sim, que se torna importante buscar por uma complementação dessas visões,
apesar de suas diferenças e de acordo com as diferentes funções psicológicas do
ser humano.
Neste sentido, vale lembrar as palavras do psiquiatra Assagioli (1982),
considerado como um importante pensador da psicologia transpessoal, ao tratar
276
EINSTEN A., ao se referir à teoria do continuum espaço-tempo, que a física moderna considera a matéria
fazendo intercâmbio com a energia, apud GROF, Stanislav, A mente holotrópica, pp. 19 – 20.
277
WILBER, Ken, Psicologia integral, pp. 148 – 149.
278
BROWN e ENGLER, referencias a estudos do desenvolvimento da consciência com o uso da meditação
como prática das antigas tradições orientais, apud WILBER, Ken, Psicologia integral, p. 149 e Transformações
da consciência, capítulos 1, 6, 7 e 8.
279
TABONE, Marcia, A psicologia transpessoal, p. 30.
122
sobre as diferentes funções psicológicas do ser humano e, ao mesmo tempo, da
importância de suas interações e complementariedade
280
:
A limitação que também se aplica a todas as outras técnicas e
ao uso de todas as outras funções, mas que tem que ser reiterada
é que o uso separativo de qualquer função pode dar
resultados limitados e unilaterais. É na cooperação e uso sintético
de todas as funções humanas que pode ser alcançado o êxito, em
cognição ou ação. Portanto, por mais valiosa que a intuição possa
ser (...), por exemplo, ela deve ser usada concomitantemente com
as outras funções psicológicas.
Vemos nas explanações sobre a consciência (item III. 2), a importância de
considerar e discernir tantos os aspectos racionais, lógicos, quanto aqueles que
fazem parte de nossas experiências e, portanto, complexos e subjetivos. Nossa
responsabilidade repousa em aprender a interagir e, se possível, integrar esses
elementos, à luz de uma consciência capaz desses feitos.
Segundo Wilber (2000), “o pensamento dualístico pode trazer divisões
ilusórias, criando dois mundos a partir de um só”. E continua: “precisamos de uma
fusão sem confusão que, na verdade, existe no nível de consciência da
mente”.
281
Nessa fase, segundo Wilber, “há uma consciência da realidade sem
dualidades, mas não sem relações”.
282
São essas relações estabelecidas, internamente, com os outros e com o
mundo, que permitem chegar a uma consciência dessa realidade sem dualidades,
pois todos esses processos acabam por se resumir em uma única realidade: aquela
que estamos vivendo naquele momento, interagindo e integrando seus aspectos,
sem esquecer que há um senso de unidade sempre onipresente.
Mesmo que vivenciemos as questões duais em nossa vida, uma busca
pela conscientização das mesmas, de tal maneira que em suas interações seja
possível até encontrar complementaridades.
É em nossas funções psicológicas básicas pensar, sentir, agir - que
ocorrem interações, transportadas através de nossas ações conscientes, que são
manifestas na conduta do individuo.
280
ASSAGIOLI, Roberto, Psicossíntese, p. 230.
281
WILBER, Ken, O espectro da consciência, p. 87
282
Ibid, p. 87.
123
Para uma melhor compreensão desse processo, salientamos a importância,
mais uma vez, do autoconhecimento e da individuação, como caminho para a
humanização e transcendência.
Para tanto, utilizamos um modelo simplificado, desenvolvido por Wilber, em
suas publicações desde 1997 até recentemente, destacando suas diferentes fases
também nesse processo.
Esse modelo trabalha, principalmente, cinco níveis de consciência: matéria,
corpo, mente, alma e espírito. Esse modelo foi descrito por Plotino (ocidente) e
Aurobindo (oriente) com até dez ou doze níveis de consciência (com alusão à
“Grande Cadeia do Ser”)
283
, podendo existir outros mais, de acordo com pesquisas
mais recentes.
De maneira simplificada, colocaremos esses cinco níveis básicos de
consciência em chamados “quadrantes” (WILBER, 1997). Embora “A Grande
Cadeia do Ser” contenha uma hierarquia, cada um dos níveis mais elevados
transcende, mas também inclui seus predecessores, com suas respectivas
hierarquias, lidando com o interior e o exterior do ser humano.
284
Eis a descrição simplificada de Wilber (1997) sobre o desenvolvimento da
consciência, segundo seus quatro principais quadrantes
285
:
1- Quadrante Esquerdo Superior: que corresponde ao nível de
Consciência Interior/Individual (Intencional) do indivíduo (QES);
2- Quadrante Esquerdo Inferior: que corresponde ao nível de
Consciência Interior/Coletivo (Cultural) do indivíduo (QEI);
3- Quadrante Direito Superior: que corresponde ao nível de
Consciência Exterior/Individual (Comportamental) do indivíduo
(QDS);
4- Quadrante Direito Inferior: que corresponde ao nível de
Consciência Exterior/Coletivo (Social) do indivíduo (QDI).
Wilber procurou interagir e integrar seus principais conceitos e os colocou nas
cinco principais categorias matéria, corpo, mente, alma e espírito - que têm como
objetivo simplificar os elementos essenciais como facilitadores para a evolução
humana. Esses cinco elementos estão contidos nos denominados “quadrantes,
níveis, linhas, estados e tipos”, disponíveis em nossa percepção.
286
283
WILBER, Ken, A união da alma e dos sentidos, pp. 13 – 15.
284
Ibid, pp. 54 – 58.
285
Ibid, pp. 56 – 57.
286
WILBER, Ken, Espiritualidade integral, p. 14.
124
Observamos que em cada um desses quadrantes se encontram as principais
esferas da vida de um indivíduo. Cada um de nós e cada qual à sua maneira estão
vivenciando suas próprias condições de vida e respectiva evolução, através desses
quatro quadrantes.
No sentido evolutivo para o processo de humanização e transcendência,
procuramos esclarecer cada quadrante, partindo do Quadrante Direito Inferior e
Superior (QDI e QDS), até chegar ao Quadrante Esquerdo Inferior e Superior (QEI e
QES), lembrando que cada etapa do desenvolvimento psicológico humano se faz
abarcando os níveis de consciência considerados inferiores, interagindo e
agregando-se aos níveis superiores. Nessa hierarquia, portanto, como foi dito acima,
“cada um dos níveis mais elevados transcende, mas inclui seus predecessores”,
segundo Wilber (1997).
287
O conceito de hierarquia foi concebido por Arthur Koestler, a partir de holon
que se refere a “inteiros/partes” – inteiros que o, simultaneamente, partes de
outros inteiros e que ocorrem, mesmo que virtualmente, em todas as hierarquias
naturais. Koestler propõe, então, o uso do termo holarquia, em lugar de
hierarquia.
288
Os quatro tipos de hierarquias, nomeados por Wilber de “quadrantes”,
constituem apenas um esquema para uma amostra representativa dessas
hierarquias principais, depois de estudos e pesquisas realizadas pelo autor.
Uma das mais importantes heranças de nossos ancestrais gregos é A Grande
Cadeia do Ser, considerada como uma “filosofia perene”.
Nas palavras de Wilber: “(...) é fascinante notar que tanto a religião pré-
moderna quanto a ciência moderna possuem uma hierarquia definidora, ambas são
compostas de ninhos envolventes de progressiva abrangência (desenvolvimento que
é envolvimento)”.
289
Nosso objetivo é tentar relacionar esse esquema de hierarquias com o
desenvolvimento do processo de humanização e transcendência.
Ao nos reportar mais uma vez à antiguidade ancestral grega, percebemos que
a mesma também faz parte da nossa melhor tradição espiritual. São essas raízes
287
WILBER, Ken, A união da alma e dos sentidos, pp. 54 – 62.
288
KOESTLER, Arthur, ao conceber holons que revelam uma ordem crescente de integridade, unidade e
integração funcional em todas as holarquias naturais, a menos que ocorra alguma alteração patológica. Apud,
WILBER, Ken, A união da alma e dos sentidos, p.58.
289
WILBER, Ken, A união da alma e dos sentidos, pp. 54 – 55.
125
que permitem que não sejamos meros seres humanos efêmeros”, segundo Edinger
(1995) em sua obra A psique na antiguidade.
290
Os antigos gregos, como nossos ancestrais culturais, articulavam idéias e
imagens centrais que podem ser encontradas até hoje como se fossem “impressões
digitais psicológicas” projetadas e contidas na psique do homem ocidental.
291
Essas imagens e idéias antigas e arcaicas, por sua vez, formaram suas
hierarquias responsáveis pela estruturação e funções psicológicas encontradas nos
quatro quadrantes citados.
Na teoria junguiana, essas “impressões digitais psicológicas” são
responsáveis pela formação arquetípica do indivíduo – o inconsciente coletivo -
considerada como “estratos geológicos durante a evolução da psique humana”.
Traçando outro paralelo, seria algo como “a ontogenia recapitulando a filogenia”.
Algo desse mesmo tipo é o que ocorre no desenvolvimento psicológico.
292
Tomando como exemplo os quadrantes de Wilber, os holons inteiros/partes
estão presentes, inicialmente, na formação dos quadrantes inferiores:
esquerdo/interior como herança cultural e o direito/inferior como herança social de
nossas hierarquias ao longo de nossa existência, mesmo que em condições
potenciais e/ou inconscientes na psique.
De acordo com as condições operacionais dos níveis de consciência do
indivíduo, esses conteúdos irão estruturar o quadrante esquerdo e direito superior,
que correspondem ao eu interior/individual e ao eu/exterior individual.
293
Outro modelo ou esquema a considerar, para nossa melhor compreensão, se
encontra no trabalho de Assagioli (1982). Em seu modelo oval, ele nos apresenta
sua representação total da psique:
294
1- Inconsciente Inferior: que representa o passado psicológico do
indivíduo (complexos reprimidos e memórias esquecidas);
2- Inconsciente Médio: que representa o local em que estão
habilidades e estados da mente (que podem ser trazidos para
nossa consciência de forma livre);
3- Inconsciente Superior ou Super Consciente: que traz nosso futuro
de evolução (ser, conhecer, sentir);
290
EDINGER, Edward F., A psique na antiguidade livro um, p. 09.
291
Ibid, p. 07.
292
Ibid, p. 08.
293
WILBER, Ken, A união da alma e dos sentidos, pp. 56 – 57.
294
ASSAGIOLI, Roberto, ao demonstrar seu modelo dentro da teoria da psicossíntese e da psicologia
transpessoal para o desenvolvimento humano, apud TABONE, Marcia, A psicologia transpessoal, pp.78 – 81.
126
4- Consciência: parte da personalidade com percepção direta e
possibilidade analítica e de julgamento (fluxo de sensações,
sentimentos, pensamentos, imagens, desejos e impulsos);
5- Eu Consciente/Self Pessoal: com suficiência para o senso de
identidade consciente e predomina no nível da individualidade;
6- Eu Superior/Self Transpessoal: ocorrência mais rara para pessoas
com experiências “culminantes” (Maslow), que corresponde ao
processo de individuação (Jung);
7- Inconsciente Coletivo: intercambio do Self Individual com outros
seres e elementos de naturezas diferentes/opostas de estruturas
arcaicas e primitivas, assim como atividades superiores
futurísticas (caráter Super Consciente).
Para o nosso processo de humanização e transcendência, esses esquemas
revelam a importância, o significado e o potencial que somos e temos à nossa
disposição para esse empreendimento tão necessário ao nosso desenvolvimento e
crescimento como pessoas.
Em resumo, ao nascer trazemos uma bagagem de conteúdo inconsciente,
contendo um potencial em direção à auto-realização e ao exercício do livre arbítrio,
que possibilita-nos transcender o meio em que vivemos.
295
Pela alternância e o
constante desenvolvimento entre o Ego e Si-Mesmo (Self)
296
, podemos
estabelecer os níveis iniciais de consciência entre o eu (interno) Inferior e o eu
(interno) Superior, relacionando-os com os níveis de consciência exterior
(comportamental e coletivo) do indivíduo, através do continuum
inconsciente/consciente.
297
Por mais que nos pareçam complexos e subjetivos esses conteúdos e
conceitos, e embora se submetam a interpretações diferenciadas, neles
encontramos uma lógica, pois a mente estabelece interações entre eles.
Mediante esses conteúdos, abre-se o caminho à transcendência, ao divino, à
experiência religiosa do indivíduo, re-ligadas, unidas, possibilitando o processo de
humanar-se e civilizar-se na condição pós-moderna.
Retomamos James (1902) ao se referir ao termo “divino”: “(...) a palavra divino
está relacionada à divindade imanente nas coisas, à estrutura essencialmente
espiritual do universo (...)”. Em referência à experiência religiosa
295
MASLOW, A. H. , Motivacion and Personality, pp. 153 – 174.
296
EDINGER, Edward F., Ego e arquétipo, pp. 23 – 26.
297
WILBER, Ken, A união da alma e dos sentidos, pp. 54 – 62.
127
(transcendente/espiritual) do indivíduo, James completa: “(...) a religião, seja ela qual
for, é a reação total de um homem à vida”.
298
Para May (1969), falar do divino é também falar de amor... Apesar dos efeitos
“sombra” (arquétipo junguiano) e da “disputa de poder” ainda vigentes e tão
acentuados atualmente, temos caminhos construtivos. Ao expressar suas visões de
um passado recente, e olhando para um futuro promissor, diz Rollo May:
299
(...) é do homem, temeroso júbilo, benção e maldição que ele
possa tornar-se cônscio de si mesmo e do mundo. Pois a
consciência surpreende o significado em nossos atos atos que,
caso contrário, pareceriam absurdos. Eros, ao impregnar o todo,
acena-nos, graças ao seu poder, com a promessa de que poderá
tornar-se o nosso poder. Intencionalmente, consistindo na
consciência aprofundada do nosso próprio eu, é o meio que
dispomos para pôr em ação o significado surpreendido pela
consciência... Pois em cada ato de amor e vontade e, em última
instância, ambos estão presentes em cada ato genuíno
moldamos-nos a nós próprios e ao nosso mundo,
simultaneamente. É isso o que significa abraçar o futuro...
A ressalva feita por May (1969) com relação aos efeitos da “sombra” e da
“disputa de poder” merecem algumas considerações.
Embora a meta seja o amor e o divino, a fragmentação e o dualismo estão
presentes em nossa existência, assim como as suas conseqüências. Jung se refere
à sombra como “o problema do mal em nosso tempo”, a partir do que chama de
“uma arrogância da consciência”, uma ameaça dos excessos que surgiram no
século XI com as primeiras investigações científicas na era medieval. Essa ameaça
pode ser resumida na afirmação: “Nada é maior do que o homem e seus feitos”,
afastando o homem completamente de sua transcendência.
300
May se refere “aos perigos da inocência” com relação à “responsabilidade
pelas conseqüências de nossas intenções” que, às vezes, podem ser más e
projetadas nos outros, ao invés de aceitá-las em nós mesmos e transformá-las.
301
Redfield (1998), psicólogo americano, em pesquisas realizadas em torno das
interações humanas, identifica e explica que uma “tendência dos seres humanos
a competir entre si e dominar uns aos outros por causa de uma profunda angustia
existencial”. Essa competição e disputa são consideradas como uma “disputa de
298
JAMES, William, Variedades da experiência religiosa, pp. 32 – 34.
299
MAY, Rollo, Amor e vontade, Rio de Janeiro: Vozes, pp. 324 – 325.
300
JUNG, C. G., apud ZWEIG Connie e ABRAMS Jeremiah (orgs.), Ao encontro da sombra, p. 192.
301
MAY, Rollo, Amor e vontade, pp. 195 – 196.
128
poder” de uns sobre os outros. Os esclarecimentos que vieram do oriente nos
trazem uma melhor compreensão sobre o processo psicológico subjacente a essa
fenômeno, como também os efeitos da “sombra”.
302
Jung (1999), ao se referir sobre os embates da “sombra”, declara: “onde o
amor impera, não vontade de poder; e onde o poder predomina, o amor está
ausente. Um é a sombra do outro”.
303
Diante da presença constante da sombra, a busca do divino, pelos estágios
de consciência, convida o homem contemporâneo a se envolver nesse processo,
transformando-o em experiências de vida em busca da humanização, que significa
incorporar e agregar espiritualidade e transcendência em sua experiência religiosa,
como complementação de seu ciclo existencial.
Wilber não está só nessa empreitada.
Lembramos M. Eliade em suas idéias e em seus princípios metodológicos,
traz esclarecimentos sobre o caráter do sagrado.
Segundo Eliade: “não existem fenômenos religiosos puros, nem
exclusivamente religiosos”. Para ele, a religião e as experiências religiosas também
abarcam fatores sociais, lingüísticos, econômicos. Afinal, esses fatores também
fazem parte de uma vida coletiva.
304
Essa contribuição de Eliade nos reporta aos quatro quadrantes de Wilber -
principalmente, os dois Quadrantes Direitos (Inferior e Superior) e ao Esquerdo
(Inferior) que são fundamentais para a formação do Quadrante Superior Esquerdo:
O Eu Individual/Interior do indivíduo.
305
Nesse sentido, lembramos também a importância do inconsciente coletivo de
Jung e as disposições de Assagioli em seu esquema (diagrama) sobre a evolução
psicológica do ser humano, considerando os fatores coletivos em sua vida.
306
Observamos, na construção das teorias desses vários autores, idéias que
agregam o valor da experiência do sagrado, do divino, ao sentimento do amor, cujo
valor deve prevalecer no âmbito pessoal e coletivo.
Transcender o ego é realizar a nossa própria capacidade de amar e
transformar “sombra em luz”; aceitar nossas imperfeições e operar mudanças
302
REDFIELD, James, A visão celestina, Rio de Janeiro: Objetiva, 1998, p. 72.
303
JUNG, C. G., apud ZWEIG, Connie e ABRAMS, Jeremiah, Ao encontro da sombra, p. 84.
304
ELIADE, M., apud TERRIN, Aldo Natale, O sagrado off limits, pp. 38 – 39.
305
WILBER, Ken, A união da alma e dos sentidos, pp. 56 – 57.
306
ASSAGIOLI, Roberto, Psicossíntese, pp. 30 – 34.
129
necessárias sob a iluminação da consciência; interagir com discernimento em
nossos opostos que possam vir a se tornar complementares.
As experiências transcendentais nos reportam, constantemente, a um
aprendizado contínuo de amor e consciência.
Embora o ser humano possa navegar em condições obscuras, um novo
paradigma que emerge, abrindo oportunidades de melhoria dentro das limitações e
das incertezas da condição pós-moderna.
É necessário ter presente que o campo da experiência religiosa navega entre
o fascinante, o obscuro e o incompreensível. Nas várias tentativas científicas de
explicar a psique e a experiência religiosa, esses fenômenos permanecem
indecifráveis com fronteiras e limites a serem desvendados.
307
Einsten, neste sentido, afirma claramente: “A mais bela coisa que podemos
sentir é o mistério. Ele é a fonte de toda verdadeira arte e ciência”.
308
Jung encara a religião como “uma atitude do espírito humano”. E, acrescenta,
“toda experiência religiosa se funda na experiência do numinoso e na fidelidade da
fé (...) e na mudança de consciência que daí resulta”.
309
É perceptível a impossibilidade de separar o ser humano de sua natureza
transcendente. Também é necessário alertar que situações que beiram às
“patologias tratadas como transcendentes”, inclusive no campo religioso.
Voltando a Wilber (1977) e à sua teoria sobre o espectro da consciência,
aprendemos que a religião e as experiências religiosas estão relacionadas a
determinados níveis de consciência da pessoa e do seu desenvolvimento.
310
Desta forma, os quatro quadrantes se relacionam também aos quatro
principais níveis de consciência do indivíduo nível do ego, nível existencial, nível
transpessoal e nível da mente até atingir uma melhor consciência do sentido de
Unidade.
311
Importante lembrar também com Wilber a tradição da Grande Cadeia do Ser,
geralmente apresentada como matéria, corpo, mente, alma e espírito. Wilber
entretanto alerta que a Cadeia do Ser deve ser lida no contexto das diversas
307
TERRIN, Aldo Natale, O sagrado off limits, p. 115.
308
EINSTEIN, Albert apud WILBER, Ken, A espiritualidade integral, p. 107.
309
JUNG, C. G., Psicologia e religião, p. 10.
310
TABONE, Marcia, A psicologia transpessoal, p. 83.
311
Ibid, pp. 86 – 89.
130
culturas. Em síntese, essa cadeia representa uma “grande holarquia de ser e
saber”.
312
Nosso objeto de pesquisa oferece possibilidades para um caminho de
desenvolvimento do processo de humanização e transcendência na condição pós-
moderna, e a psicologia transpessoal abre diversos caminhos e possibilidades.
Todos eles convergem para a meta de superar as fragmentações ocorridas
ao longo da história, e principalmente, para uma melhor concentração da
consciência humana e suas ações mentais com vistas a uma vida mais saudável.
Atualmente, a explosão da tecnologia e do consumo tende a adormecer as
potencialidades de humanização no reservatório inconsciente. Adormecidas,
persistem, porém, em nossa natureza e no continuum consciente/inconsciente. Se
deixamos de acessá-las à nossa consciência e gerar a conscientização, o processo
humanizador se trunca.
Talvez um maior poder de comunicação, interesse, motivação e criatividade
para veicular as idéias, teorias e contextos tornaria mais acessível o conhecimento e
a experiência humana individual e coletiva dessas questões, principalmente a
explicitação dos valores nelas contidos.
As mais recentes pesquisas científicas no campo da psicologia
(principalmente, da psicologia transpessoal), das neurociências, da física,
psicofisiologia, biologia molecular, das ciências da religião, ampliam as
possibilidades para a pesquisa da consciência e para o caminho da humanização e
transcendência.
313
A arqueologia da consciência tem sido um caminho promissor de mudanças e
transformações significativas na vida humana, tanto individual, quanto coletiva.
Wilber (1998) menciona que “os antigos místicos como São Boaventura e
Hugo de São Vítor, já enfatizavam a importância de interagir a ciência com a
religião”. Os relatos e estudos místicos já revelavam que “o ser humano possui, pelo
menos, três tipos básicos de conhecimento: o olho da carne, o olho da mente e o
olho da contemplação (da gnose ou do conhecimento espiritual)”.
314
Algumas questões, portanto, podem ser levantadas para que haja um
desenvolvimento do processo de humanização e transcendência. São elas: as
312
WILBER, Ken, Espiritualidade integral, pp. 269 – 271.
313
TABONE, Marcia, A psicologia transpessaol, p. 28.
314
WILBER, Ken, apud MARINO Jr., Raul, A religião do cérebro, p. 16.
131
pessoas, no mundo de hoje, têm desenvolvido e utilizado conscientemente seu
conhecimento? As disposições fragmentárias dos indivíduos estão sujeitas a uma
defasagem nesse sentido? Existem possibilidades, caminhos, que podem vir a
superar essas defasagens?
Estas e muitas outras questões requerem respostas. A psicologia
transpessoal não é uma panacéia para todos os problemas. É uma proposta geral
para um empreendimento de humanização no plano pessoal e coletivo nessa era em
construção.
A neurociência revela que “possuímos, hoje, razoável evidencia cientifica que
existem áreas do cérebro humano responsáveis pela geração de uma consciência
espiritual (...), ali instalada pela própria natureza ou por seu Criador”.
315
Isso leva a crer que existam também inúmeras áreas do cérebro humano que
possam evidenciar experiências e atividades com padrões eletromagnéticos desse
imenso “oceano fluídico” em que vivemos. A consciência, portanto, apresenta
inúmeras possibilidades para a melhoria do ser humano.
É importante, nessa questão, a posição de Wilber (1999) quando discorre
sobre a distinção entre os conceitos de diferenciação e dissociação.
316
A sua leitura
possibilita esclarecer que, embora existam diferentes estruturas e funções nesses
“padrões eletromagnéticos” e suas ações, conscientes ou não, na vida humana,
cada pessoa torna-se responsável pelas possíveis dissociações que o
acarretadas. Essas dissociações, portanto, originam as fragmentações
demonstradas nas condutas dos indivíduos.
Michael A. Persinger, importante pesquisador no campo das neurociências,
demonstrou a possibilidade de isolar estímulos que controlam e evocam quaisquer
experiências, incluindo também a experiência transcendental do divino.
317
Pesquisas atuais, portanto, também evidenciam a possibilidade de um
encontro do humano com o divino, desde que haja condições propícias, no
transcurso do processo de humanização e transcendência.
315
MARINO, Raul Jr., A religião do cérebro, p. 89.
316
WILBER, Ken, A Psicologia integral, pp.75 – 77.
317
PERSINGER, Michael, A., em relato de experiência científica de laboratório em 1983, realizada com
pacientes para monitorar efeitos da meditação transcendental, apud MARINO, Raul, Jr., A religião do cérebro,
pp. 89 – 91.
132
As funções mentais, comandadas pela sábia estrutura cerebral, realizam um
trabalho notável nem sempre conhecido e até negligenciado. Essas funções trazem
propriedades intrínsecas de um universo real, e perceptível em nossa existência.
318
Ao lado desse desenvolvimento notável que a tecnologia e as ciências têm
proporcionado, que ressaltar a importância do desenvolvimento humano e as
possibilidades que a trajetória de vida tem de desenhar sua arquitetura própria, tanto
individual, quanto coletiva.
A consciência, como foco central terapêutico na psicologia transpessoal, se
constitui em objeto e instrumento de mudanças e transformações de comportamento
e ações mentais do indivíduo.
319
A conscientização, obtida pela auto-reflexão consciente do indivíduo, se
constitui na essência basal do ser humano.
320
A potencialidade humana da psique contém em si conteúdos de sua própria
natureza e uma bagagem existencial, mesmo que ainda em condições
inconscientes. Nossa tarefa básica e empreendimento pessoal é aprender a utilizar a
consciência para “desvendar” esses conteúdos que, como diz Wilber, “estão
disponíveis em nossa percepção”.
321
Um trabalho paralelo consiste em iluminar nossa consciência em relação aos
padrões e condicionamentos que vão sendo aprendidos através de nossas
experiências com o meio, incluindo aquisições de conhecimentos e saber, e realizar
interações que agreguem valores significativos e coerentes para nossas ações
mentais, atitudes e comportamentos. Muitas vezes, se torna necessário rever esses
padrões, o que resulta em mudanças e transformações, visando benefícios ao
indivíduo.
A sabedoria oriental, em suas bases essenciais, as antigas tradições
filosóficas, assim como a ciência ocidental e a psicologia, têm se constituído nos
alicerces fundamentais da psicologia transpessoal, contemplando “uma nova ciência
e um novo modo de experimentar e viver”.
322
318
MARINO, Raul, Jr., A religião do cérebro, pp. 91 – 92.
319
VAUGHAN, Walsh, S. em referencia aos benefícios terapêuticos do trabalho com a consciência pela
psicologia transpessoal, apud TABONE, Marcia, A psicologia transpessoal, p. 104.
320
VAUGHAN, Walsh, apud Ibid, p. 104.
321
WILBER, Ken, Espiritualidade integral, p. 14.
322
TABONE, Marcia, A psicologia transpessoal, p. 107.
133
A “evolução do espectro da consciência” pode encontrar obstáculos. A
subjetividade pode incluir posições dualistas que, não raras vezes se transformam
em dissociações que obscurecem a realidade.
323
Wilber (2000) afirma que a evolução para a humanização ocorre a cada
momento, não no passado. Esclarece: “à semelhança de uma espiral ascendente, o
homem continua executando sua fragmentação através de suas próprias dualidades,
de tal maneira a gerar dissociações que, às vezes, nem se reconhece em seu
próprio corpo, facilitando transferências constantes para o ego”.
324
Isso vale a dizer que facilmente transferimos para o ego questões
significativas para a nossa auto-reflexão, que são condições básicas e essenciais à
nossa existência. E, assim vamos “deixando a vida nos levar”... Trata-se de uma
maneira tão comum de viver nos dias atuais.
O’Donnell, ao se referir à inversão de valores atualmente, diz: “uma das
principais causas da vida de quantidade, e não de qualidade, de muitos feitos e
pouco retorno de felicidade, é que em último lugar consideramos o nosso próprio
estado interior”.
325
Tabone alerta para o fato que tantos modos de conhecimento e suas
respectivas formas de apreensão da realidade, ainda não sejam auto-suficientes
para uma maior compreensão dessas questões tão subjetivas.
326
Dentre esses caminhos, com Wilber e outros cientistas, propomos a via de
humanização e transcendência pelas veredas da psicologia transpessoal. Embora o
empreendimento requeira labor, cremos que, além de ser fascinante, desperte nas
pessoas uma disponibilidade em busca do autoconhecimento e, sobretudo, do
desenvolvimento humano com foco na evolução da consciência. O trabalho é árduo
mas exeqüível pelas potencialidades existentes em nossa psique e pelo fato que o
divino é inerente a nossa natureza.
Ferguson (1980) identifica diversos grupos que, principalmente a partir da
década de sessenta do século XX, realizavam manifestações revolucionárias para
aquele período, com influências em várias áreas do saber. Esses grupos foram
chamados de “Conspiradores Aquarianos”, em referência à chamada nova era que
323
WILBER, Ken, O espectro da consciência, p.87.
324
Ibid, p. 87.
325
O’DONNELL, Ken, A alma no negócio, São Paulo: Editora Gente, 1992, p. 47
326
TABONE, Marcia, ao se referir à aproximação cultural entre oriente e ocidente sobre pesquisas do cérebro e
consciente, Cf, A psicologia transpessoal, p. 30
134
despontava como a “Era de Aquário” ou pós-modernidade. Em sua obra A
conspiração aquariana, ela afirma:
327
legiões de conspiradores. Eles estão em, praticamente, todos
os segmentos da vida humana. (...) também milhões de outros
que nunca pensaram em si mesmos como participantes de uma
conspiração, mas que sentem que suas experiências e lutas
fazem parte de algo maior, de uma transformação social mais
ampla que se torna cada vez mais visível, contanto que se saiba
para onde se deve olhar.
A sabedoria oriental, juntamente com as descobertas da física quântica no
ocidente, considera que cada pessoa se constitui num campo de energia, composto
pelo “conjunto de teorias e crenças, que se irradiam e influenciam tudo ao seu redor,
até o mundo”. E as coisas, tudo ao redor e o mundo, retornam às pessoas, como
condição de “causa e efeito” dessas mesmas energias.
328
Essas “energias” são expressas através de nossos pensamentos,
sentimentos e ações, funções básicas do indivíduo.
Wilber (2000) inicia o prefácio da obra O espectro da consciência dizendo:
“Não existe uma ciência da alma sem uma base metafísica e sem remédios
espirituais à sua disposição”.
329
Segundo a tese inicial de Wilber, “a consciência é pluridimensional”
composta de muitos níveis que, em suas interações, trazem também seus
respectivos níveis de energia, até o “organismo total, o eu transpessoal, até,
finalmente, a consciência cósmica (fonte e sustentação de todos os demais)”.
330
Nossos ancestrais gregos, em suas tradições de sabedoria, juntamente aos
grandes sábios orientais de Buddha a Krishnamurti chegando até as novas
gerações desses “conspiradores aquarianos”, têm nos contemplado com uma
herança cultural ímpar.
Diz Grof, referindo-se ao paradigma transpessoal (1994):
331
As experiências transpessoais desafiam a crença de que a
consciência humana é limitada pelo alcance de nossos sentidos e
pelo ambiente que encontramos ao nascer. (...) os pesquisadores
327
FERGUNSON, Marilyn, apud, TABONE, Marcia, A psicologia transpessoal, pp. 23 – 24.
328
REDFIELD, James, A visão celestina, p. 73.
329
WILBER, Ken, O espectro da consciência, p. 11.
330
WILBER, Ken, O espectro da consciência, p. 11.
331
GROF, Stanislav, A mente holotrópica, p. 106.
135
transpessoais mostram a evidencia de que, sob certas
circunstancias, temos acesso a fontes de informações
virtualmente ilimitadas sobre o universo que pode, ou não, ter
complementos do mundo físico.
Diante do mistério constante que permeia a nossa existência, caminhos
possíveis de serem percorridos e iluminados pela nossa consciência, transformados
em experiências enriquecedoras de vida.
As questões humanas no campo transpessoal podem trazer “dimensões
ocultas e ainda sem limites demarcados”, mas nos trazem direções.
332
A consciência, uma vez aceita como ponto de partida e um ponto final infinito,
pode penetrar as profundezas do pensamento e do sentimento humano. Assim, ela
traz clareza, ilumina o entendimento e o discernimento de nossas ações, condutas e
comportamentos.
A psicologia transpessoal não pretende levar a uma “arrogância da
consciência”. O seu trabalho científico desemboca em profundas questões
existenciais: Onde nos inserimos nesse processo? Com o quê nos identificamos?
Para quê estamos no mundo e vivemos? Como estamos em nosso processo de
humanização e transcendência? O que buscamos?... Afinal, o que cada um “está
realizando” em seu processo, e o que buscamos e queremos para nossa vida?!
Quem se embrenha pelo paradigma transpessoal coloca-se em busca de
respostas a essas questões. Não negligencia as experiências, o aprendizado, o
conhecimento e a evolução da consciência diante deste universo de indagações que
descortina seus contornos no dia-a-dia de nossa existência.Não permite fechar
nossos olhos diante de tantos estudos, pesquisas e do garimpo necessário de tantas
informações.Dedica um tratamento especial a essas questões tão importantes sobre
o homem, humanismo e humanização, que permeiam a sua história.Abre-se para
um novo despertar sobre si mesmo, os outros e a própria vida!Reflete sobre
conceitos, pré-conceitos, crenças e paradigmas construídos pelos nossos
condicionamentos e padrões antigos, conservadores e rígidos que vêm destruindo a
vida, em suas manifestações naturais e, com ela, o planeta em que vivemos.Capta
as vozes clamando por compreensão, discernimento e luz que desenvolvem nossa
332
SUTICH, Anthony J., fundador do Journal of transpersonal psycology, em referência às dimensões da
psicologia transpessoal, apud texto em apostila da Dra. Marcia Tabone traduzido para o português.
136
consciência e recolhe as contribuições desde a antiguidade até nossos tempos, no
clima da pós-modernidade.
Viver transpessoal é adotar a postura de Sócrates, que dizia: a “ignorância”
está diretamente relacionada ao mal, pois degrada “a alma e a própria inteligência
do homem”.
333
Na proposta transpessoal, cada pessoa vivencia diferentes estágios ou níveis
de consciência. Resta-lhe tornar mais conhecido aquilo que, antes, ainda se fazia
tão desconhecido a si mesma, e se dar à tarefa de abrir sua consciência, suas
funções psicológicas básicas e as próprias ações mentais, de tal forma que a
conduta , as atitudes se tornem passos em busca da transcendência e do divino.
O sujeito que adentra pela transpessoalidade tem consciência de viver imerso
num oceano de dualidades, navegando entre o doloroso e o sombrio, entre os
aspectos positivos e as alegrias que invadem constantemente a existência.
334
Mesmo alcançando os mais altos níveis de consciência, ele não se torna
insensível e alheio ao sofrimento seu e do outro e sempre se questiona: quem nunca
sentiu uma dor?... Quem vive mais das sombras do que da luz?... Ele projeta
constantemente seu mundo interno sombrio nas circunstâncias e assume suas
próprias responsabilidades... E procura superar o “mal do nosso tempo”, a perda da
consciência do mal...
335
Ciente das suas angustias existenciais, evita mascará-las e
projetá-las nos outros sem cair na ilusão de que o mal venha de fora para dentro.
Nietzsche, sobre a questão do mal, traz uma significativa contribuição: ”Os
grandes momentos na nossa vida são aqueles em que temos a coragem de
rebatizar a nossa maldade como o melhor que em nós existe”.
336
O sujeito transpessoal sabe lidar com a presença da sombra que envolve até
religião e espiritualidade, e tem sempre presente as palavras de Wagner (1999):
“Uma vida espiritual não lhe poupará o sofrimento da sombra”.
337
Segue também o
que ensina Wilber (1999): “no ato de desfazer uma projeção, ampliamos nossa área
de identificação ao recuperar aspectos de nós mesmos”. E continua, “o passo
333
TAYLOR, A. E., ao se referir à alma como sendo a própria inteligência do homem, com base nos
ensinamentos de Sócrates, apud REALE e ANTISSERI, História da filosofia, vol. 1, p. 87.
334
TABONE, Marcia, A psicologia transpessoal, pp. 156 – 157.
335
KRISHNAMURTI, sobre a afirmação: “O mal do nosso tempo é termos perdido a consciência do mal”, apud
ZWEIG, Connie e ABRAMS, Jeremiah (orgs.), Ao encontro da sombra, p.01.
336
NIETZSCHE, Friedrich, apud ZWEIG, Connie e ABRAMS, Jeremiah (orgs.), Ao encontro da sombra, p.
260.
337
WAGNER, Suzanne, em referência ao mal nas questões espirituais e religiosas, apud ZWEIG, Connie e
ABRAMS, Jeremiah, Ao encontro da sombra, p. 150.
137
fundamental consiste sempre em percebermos que as coisas que julgávamos que o
meio ambiente fazia para nós de maneira mecânica são, na verdade, coisas que
estamos fazendo para nós mesmos – coisas pelas quais somos responsáveis”.
338
Embora a psicologia transpessoal ainda seja uma escola que está se
firmando nos meios acadêmicos e científicos, sua metodologia está evoluindo na
pós-modernidade, e tornam-se cada vez mais reconhecidas as suas importantes
contribuições ao campo do saber e da ciência.
Os paradigmas da psicologia ocidental, ainda vigentes, parecem fazer eco
aos sistemas e modelos dominantes entre os séculos XVII e meados do século XX,
que expusemos nos capítulos anteriores e no inicio deste. Mas mudanças
ocorreram, significativas, profundas e importantes durante esse período.
Na pós-modernidade, ainda em construção, buscam-se caminhos que
possam propiciar uma humanidade em melhores condições de qualidade de vida,
desde o âmbito pessoal, incluindo o coletivo, até proporcionar transformações em
sua cultura, em busca de uma sustentabilidade da vida ainda deficiente.
O caminho da humanização e sua relação com a transcendência pode vir a se
tornar uma das tantas veredas para a humanidade na pós-modernidade.
Esse trabalho quer agregar sua parcela de contribuição a todos aqueles que
se intitulam “amantes do saber e do conhecimento” transformados em experiência
de vida. A estes dirijo as palavras de um dos meus grandes mestres durante minha
formação profissional e pessoal:
“A todos aqueles que se sentem marcados pelo gosto do humano, um
convite: o de servir à vida”. (Nelson Cassiano, professor da Universidade São
Francisco))
338
WILBER, Ken, ao se referir sobre as projeções do indivíduo, apud ZWEIG, Connie e ABRAMS, Jeremiah
(orgs.), Ao encontro da sombra, p. 299.
138
Conclusão
A proposta de trabalhar sobre o processo da humanização e transcendência,
pelo encontro do humano com o divino, através do viés da psicologia transpessoal,
demonstrou ser um dos caminhos importantes na condição pós-moderna.
As concepções de Ken Wilber, em suas diferentes fases de construção
teórica, se constituíram num suporte muito importante como alicerce para a hipótese
que levantamos na Introdução.
Todos os demais pensadores citados neste trabalho, desde os clássicos da
filosofia antiga, até os autores mais contemporâneos, nos trouxeram contribuições
valiosas, principalmente, pela possibilidade de diálogos com nosso autor principal.
As suas visões enriqueceram nosso objeto de estudo.
Esses diálogos, citações, contribuições, foram relevantes para desenvolver as
veredas da trilogia homem, humanismo e humanização, no intuito de uma melhor
compreensão dos caminhos que foram trilhados por esses pensadores em torno das
questões humanas.
A psique, abordagem central dos estudos e pesquisas no campo da
psicologia, esteve presente, no primeiro capítulo, e foi resgatada, em sua
profundidade e significado, por pensadores ao longo de toda história da
humanidade, desde os mitos, até os clássicos e os modernos e sua recepção na
atualidade pelas psicologias em evolução.
Os mitos exerceram grande influência na religião dos povos orientais e
estabeleceram uma estreita relação entre o homem e a natureza.
339
A psicologia transpessoal veio resgatando muitas dessas visões e foi
acrescentando, em sua abordagem, concepções e pesquisas contemporâneas,
principalmente em torno da consciência humana e do continuum inconsciente-
consciente, além de integrar também concepções clássicas das escolas de
sabedoria do oriente com seus mitos e símbolos.
Essas áreas do conhecimento e do saber nos possibilitaram compreender
melhor que a psique humana vem trazendo, em suas profundezas, uma visão de
caráter universal, e que o cosmos, mesmo inatingível, tem permeado e estabelecido
seus padrões no universo interior do ser humano.
339
CHAUI, Marilena, Convite à filosofia, pp. 33 – 35.
139
Desde os pré-socráticos, a physis, como princípio da natureza primordial, era
considerada em sua totalidade como causa e principio da existência e das
transformações de todas as coisas. Na physis, estava presente o ser humano,
com sua própria natureza, integrando a natureza como um todo.
340
O principio da physis era tido como principio primeiro de todas as coisas,
eterno, imperecível e imortal.
341
A psyqué foi descoberta por Sócrates, como sendo a “essência do homem” e
pelo seu principio clássico do “Conhece-te a ti mesmo” e da alma como sendo a
essência do homem num sentido elevado espiritual.
342
Embora essas e tantas outras concepções sobre a psyqué tenham sido
abortadas durante um longo período de obscurantismo elas foram nomeadas como
uma “filosofia perene” pela própria ciência moderna e são resgatas até hoje por
muitas mentes especulativas em seus estudos e pesquisas sobre a psique humana.
A consciência humana foi se colocando diante de muitas mudanças e
transformações que vieram ocorrendo desde então.
Como afirmou Edinger, “a quem quer que tenha tentado viver em
concordância com os filósofos gregos, a sugestão de que eles eram intelectualistas
deve parecer ridícula”.
343
Edinger ainda continua: “pelo contrário, a filosofia grega se fundamenta na
de que a realidade é divina e de que a única coisa necessária é que a alma,
aparentada ao divino, entre em comunhão com ele”.
344
Pensando em toda essa sabedoria clássica antiga foi importante como
preâmbulo ao estudo sobre humanização e transcendência, essa visão retrospectiva
em torno do homem, do humanismo, e da humanização em seu processo histórico
até a pós-modernidade.
Essas mentes brilhantes elaboraram suas concepções em condições
rudimentares sem o avanço instrumental e tecnológico que dispomos nos momentos
atuais.
340
CHAUI, Marilena, Convite à filosofia, pp. 38 – 40.
341
Ibid, pp. 38 – 40.
342
REALE, Giovanni e ANTISSERI, Dario, História da filosofia vol. 1, p. 87
343
EDINGER, Edward F., A psique na antiguidade livro um, p.171.
344
Ibid, p. 171.
140
O ser humano percorreu períodos difíceis e conturbados nessa trajetória.
Mas, as questões do homem, estiveram sempre presentes, ao longo das novas
conquistas que, em cada período da história, vieram se afirmando.
As ciências avançaram na época helenística, que traz Zenon e Filon como
importantes representantes, pela aproximação da alma com a razão como heranças
dos filósofos anteriores, principalmente pelos estudos de Platão e Aristóteles.
345
Uma época importante, que foi ressaltada, foi o neoplatonismo que traz
Plotino, como um de seus expoentes.
Foi possível perceber a importante contribuição de Plotino à psicologia
transpessoal. Ele parece ter percebido a estrutura da psique interpretada através do
universo.
346
A psicologia transpessoal, como demonstrado, considera a auto-
transcendência como uma evolução do psiquismo, no decurso da história em
interação com seus diversos veis de consciência, rumo ao sentido da Unidade do
Universo.
Em tempos de era cristã, pudemos observar conflitos significativos no cenário
da humanidade. Esses conflitos, possivelmente, surgiram na transição entre a
filosofia grega como concepção universal da realidade e a visão cristã, cuja
explicação teológica suplantou as explicações racionais, sensíveis e metafísicas.
Os conflitos entre razão e se tornaram acentuados neste período, com
relevância à nova doutrina que estava se estabelecendo, com influências marcantes
na vida do homem, pelas mudanças ocorridas.
Segundo Edinger, foi a partir desse período que ocorreram transformações
significativas na psique humana, principalmente pela efervescência de mudanças
arquetípicas.
347
Esses reflexos, possivelmente, foram influenciando, significativamente, tanto
as concepções que vieram a seguir, como também trazendo outras significativas
influencias para futuras construções da ciência moderna que despontava no cenário
da humanidade.
Do século II ao século VII, a filosofia patrística ocupou o cenário com os
padres da igreja e sua nova doutrina, formando escolas com bases espirituais e
345
EDINGER, Edward F., A psique na antiguidade livro um, p. 120.
346
Ibid, p. 154
347
EDINGER, Edward F., A psique na antiguidade livro dois, p. 201.
141
intelectuais do cristianismo, influenciando o pensamento filosófico dos gregos e
romanos.
Aqui, as idéias cristãs eram tidas como “verdades reveladas por Deus”, cujos
veículos de disseminação eram a Bíblia e os santos, responsáveis pelos decretos
divinos, como verdades irrefutáveis e inquestionáveis.
Um dos expoentes da filosofia patrística latina foi Santo Agostinho que, junto
a outros pensadores da época, introduziu o chamado “humanismo religioso”, abrindo
novos horizontes ao pensamento dessa época.
Agostinho investiu na descoberta da pessoa e a metafísica da interioridade,
onde a fé não substituía a inteligência e a capacidade racional humana.
Em certo sentido, Agostinho “foi um místico que cultivou a vida interior da
oração e da contemplação”, o que o diferenciou como um “divisor de águas” da
idade média.
348
Para Jung, esse período foi marcado por uma importante cisão no
pensamento do homem. Segundo ele: “quando a imagem-de-Deus passou à psique
humana, ela também induziu a humanidade a uma vasta soberba, uma valorização
excessiva do ego humano (...) a era cristã é a era da cisão dos opostos; um oposto
prevaleceu no primeiro milênio, o outro no segundo”.
349
Do século VI ao século XIV, o domínio marcante ficou por conta do domínio
da igreja romana na Europa, a chamada era medieval. Nesse período o pensamento
subordinava-se ao chamado “principio da autoridade”, método criado pela
escolástica para fundamentar idéias filosóficas dessa época.
350
Para a visão junguiana, como de maneira semelhante para a psicologia
transpessoal, apesar de todas as mudanças ocorridas na era cristã, “o homem
interior continuou intato e, portanto, inalterável. Sua alma não está em sintonia com
suas crenças exteriores (...), apesar dos desenvolvimentos exteriores”.
351
Para a psicologia transpessoal, na visão de Wilber as alterações que
ocorreram em cada nível de consciência do individuo e, por influencia externa,
podem ter acarretado alguma dissociação e ter quebrado algum elo em suas
relações interiores como processo.
352
348
Ibid, p. 181.
349
JUNG, C.G., apud EDINGER, Edward F., A psique na antiguidade livro dois, pp. 203 – 204.
350
CHAUI, Marilena, Convite à filosofia, pp. 47 – 48.
351
EDINGER, Edward F., A psique na antiguidade livro dois, p. 210.
352
WILBER, Ken, Psicologia integral, p. 80.
142
Do ponto de vista da transcendência, quando a “função religiosa não é
experienciada em nossa própria alma, nada de alguma importância aconteceu”,
alertou Edinger.
353
O elo que estabelecia o encontro do humano com o divino pode
ter sofrido algumas dissociações.
Em outras palavras, Edinger continuou alertando: “quando, como no mundo
ocidental de hoje, uma imagem-de-Deus em funcionamento morre, decai de sua
projeção metafísica, ela não está mais disponível para resguardar alguém do
numinoso”.
354
Um exemplo na idade média considerável foi de Santo Tomás de Aquino, que
viveu conflitos íntimos e intelectuais, como característicos de sua época, embora
tenha sido considerado um grande metafísico e fundamentado seu sistema
teológico-filosófico no paradigma aristotélico.
355
As primeiras investigações cientificas da era medieval ocorreram com o
surgimento de uma filosofia experimental, que mesclava a teologia, a mística e a
metafísica da antiguidade.
Seus fundamentos, baseados, principalmente, em Roger Bacon (século XIII),
colocavam a busca da verdade através da vereda da experiência interna e externa
da humanidade.
A sabedoria dos filósofos dessa época girava em torno do conhecimento o
saber -, principalmente pelo domínio da língua. Esse movimento originou a chamada
ciência moderna.
356
Após muitos conflitos e discussões em torno da relação entre razão e fé, a
idade média se encerrou no século XIV, rompendo com essa relação. A razão se
tornou o eixo principal da capacidade intelectual humana na busca pela verdade,
enquanto os dogmas da fé, mantidos pela igreja, davam origem ao processo da
Inquisição e do Santo Ofício.
357
No século XIV, a cultura moderna se expandiu para os países da Europa e,
nascida na Itália, iniciou o movimento conhecido como humanismo, num período
conhecido como Renascimento.
353
EDINGER, Edward F., A psique na antiguidade, p. 210.
354
Ibid, p. 211.
355
AQUINO, Tomás de, Vida e obra, Coleção Os pensadores, São Paulo: Nova cultural, 1996, pp. 06 – 07.
356
REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario, História da filosofia vol. 1, pp. 591 – 597.
357
CHAUI, Marilena, Convite à filosofia, pp. 195 – 197.
143
O humanismo passou a ser conhecido como qualquer movimento filosófico
que trouxesse, em seus fundamentos, a natureza humana e os limites e interesses
do homem.
358
O homem se tornou, então, durante o humanismo, “a medida das coisas”,
forjando um redimensionamento nas tendências filosóficas.
359
O humanismo se multifacetou em suas concepções, pois, segundo descrições
antropológicas, subordinou o homem exclusivamente à sua liberdade pessoal, e os
saberes filosóficos deixaram de ter uma visão mais unitária em seus propósitos de
uma efetiva intenção humanística.
360
A era moderna teve seu apogeu entre meados do século XVI e final do século
XVII, quando ocorreu uma revolução cientifica e o homem se tornou objeto de
investigação.
A matriz física, norteada, principalmente, pela matemática e geometria, teve
como expoentes, de um lado, Copérnico, Kepler e Galileu, e, de outro, Isaac
Newton, Francis Bacon e René Descartes.
A chamada ciência moderna se caracterizou pela concepção, sobretudo,
racionalista, rejeitando as proposições essencialistas aristotélicas, e enfatizando a
função do saber.
Esse novo tipo de saber contemplou a pesquisa cientifica experimental
moderna, validando as teorias através dos experimentos comandados por operações
instrumentais, fundindo a teoria à técnica. Seus expoentes são Bacon e Desacartes.
Esse novo tipo de saber centralizado no homem e na racionalidade humana,
com criticas à herança cultural, filosófica e cientifica anterior, em torno do ser e em
Deus, acabava enfatizando o critério das convicções matemáticas.
No viés da psicologia transpessoal, pela visão de Wilber (1999), “a
modernidade assinalou a morte de Deus, a morte da Deusa, a mercantilização da
vida, a fragmentação da vida mundial e a disseminada falta de sentido, pelas
diferenciações que se transformaram em dissociação, fragmentação e alienação”.
361
358
ABBAGNANO, Nicola, Dicionário de filosofia, pp. 518.
359
Ibid, pp. 518 – 519.
360
CABRAL, Roque, Enciclopédia luso-brasileira de filosofia, Lisboa/São Paulo: Editorial Verbo, 1990, pp.
1214 – 1217.
361
WILBER, Ken, Psicologia integral, pp. 75 – 76.
144
Pudemos observar até esse período de era moderna que, os modelos
racionais newtonianos-cartesianos foram os que nortearam as construções
cientificas dos principais pensadores desta fase.
Também observamos que as “novas ciências” foram criadas tendo como base
esse modelo, apesar de qualquer ciência ter trazido o homem em seu escopo, assim
como as atividades humanas como suas próprias criações.
As contestações em torno dos resultados obtidos pelo modelo experimental e
matemático para com os problemas humanos considerarvam que a subjetividade
humana estava perdendo sua riqueza ao se reduzir a fenômenos quantificáveis e
experimentos de laboratório.
Com essas contestações, surgiu outro paradigma para a psicologia,
sociologia, história e para a própria filosofia. Desta forma, surgiram as ciências
hipotética-indutivas ou positivas, inaugurando uma nova fase que foi a do
Positivismo.
362
No século XVIII, iniciou-se um movimento chamado de Iluminismo, junto à
corrente que se firmava no Positivismo, ocupando entre os séculos XVII e XIX.
O Iluminismo criou a “razão iluminista”; o sujeito pela razão e o conhecimento
dominando e controlando a natureza e todas as atividades humanas. O
individualismo, possivelmente, também tenha sido uma herança do iluminismo e do
“sujeito da razão”.
No século XIX a concepção positivista tornou-se uma das correntes mais
influentes na psicologia, afirmando seu objeto não na psique e nem na consciência,
mas sim, no comportamento humano observável, utilizando-se do método
experimental das ciências naturais.
O Iluminismo e o Positivismo tiveram influencias na teoria de Freud e a
Psicanálise, com bases nas ciências naturais e revalorizando o corpo, o instinto, o
desejo, apesar de não desqualificar a razão, o consciente e inconsciente.
Para Wilber, a modernidade teve seus méritos. Porém, com sua perspectiva
empírico-científica também produziu dissociações, contribuindo para fragmentar e
até desintegrar as verdades subjetivas, a introspecção, a arte, a consciência, a
beleza, a ética, os valores substantivos, um reducionismo em que o mundo interior
se explicava por questões puramente exteriores.
363
362
CHAUI, Marilena, Convite à filosofia, pp. 226 – 227.
363
WILBER, Ken, Psicologia integral, pp. 85 – 86.
145
Uma revolução epistemológica ocorreu no século XX, assim como alterações
no modelo até então vigente, inaugurando a construção pós-moderna, nomeada por
alguns autores, inicialmente, como o período das humanidades.
Entrou para o cenário das ciências, a chamada fenomenologia, introduzindo
seus novos conceitos, a noção de essência ou significação e diferenciando
internamente uma realidade de outras realidades, na busca por um melhor sentido
entre a essência natureza e a essência homem.
Em meados do culo XX surgem as escolas de orientação humanista,
projetando a liberdade essencial do homem e o poder criador do individuo, exaltando
a dignidade como um valor substantivo à liberdade interior e à criatividade
humana.
364
Os movimentos humanistas se agregaram ao existencialismo, trazendo a
“terceira força em psicologia”, depois do behaviorismo e da psicanálise.
Seus princípios sicos se constituíam pela responsabilidade, envolvimento e
ação do individuo, somados à sua potencialidade de escolha e crescimento (pelo
seu desenvolvimento humano). Essas orientações valorizavam o eu-em-processo
interiormente experienciado; o ser-em-si e o ser-no-mundo.
365
A psicologia, assim como a filosofia, a sociologia, e outras ciências,
contribuíram também para o processo de humanização e transcendência na
construção pós-moderna. Lembramos aqui, as ciências da religião e sua grande
contribuição para uma melhor compreensão do homem em sua construção história e
para os espaços necessários de serem preenchidos nas outras ciências.
Nos anos sessenta do século XX surgiu, nos Estados Unidos, a psicologia
transpessoal, inicialmente como um movimento revolucionário ao velho paradigma
newtoniano-cartesiano, penetrando nos meios acadêmicos e científicos como a
“quarta força em psicologia”.
366
A consciência humana tem sido o principio fundamental da psicologia
transpessoal, através de estudos e pesquisas que tem seu considerável avanço
reconhecido em várias áreas do conhecimento e das ciências.
367
364
GREENING, Thomas C. (org.), Psicologia existencial humanista, Rio de Janeiro: Zahar, 1975, pp. 33 – 44.
365
Ibid, pp. 33 – 34.
366
TABONE, Marcia, A psicologia transpessoal, p. 18.
367
Ibid, p. 18.
146
As teorias de W. James, de Jung, de Maslow, de May e tantos outros
pensadores importantes, tiveram, em suas importantes contribuições, significativas
influencias para as construções dos teóricos da psicologia transpessoal.
Mais atualmente, a psicologia transpessoal foi fazendo notáveis avanços
acadêmicos e científicos, nos estudos e pesquisas e nas práticas de algumas
correntes psicológicas, principalmente, através de Assagioli, de Grof, de Wilber, de
Tabone, de Marino Junior, e outros tantos que vieram trabalhando na construção de
novos paradigmas nesse início de milênio.
O processo de humanização e transcendência vem tendo na psicologia
transpessoal, um suporte importante, em razão do trabalho com os níveis de
consciência e suas relações com o próprio processo da humanização e o encontro
do homem com o divino.
A abordagem transpessoal tem demonstrado comportar o trabalho de
interação e, da busca pela integração, dos diferentes níveis de consciência e sua
relação com as ações conscientes dos indivíduos de maneira ativa, ao lidar com as
questões e problemas humanos.
Afinal, desde a modernidade, com ênfase aos conflitos que construíram
precedentemente essa era, notamos uma bagagem que vem sendo carregada,
desde então, permeada de fragmentações, dicotomias, possivelmente, criadas como
heranças desses conflitos.
Em meados do século XX começou a se delinear uma nova época, com o
advento da psicologia existencial humanista e, a seguir, com a psicologia
transpessoal, trazendo novos e promissores paradigmas para a construção da era
pós-moderna na vida humana.
A modernidade trouxe seus avanços, mas também, suas contradições.
As esferas de valor, até então levadas adiante, começaram a sofrer
separações. A ciência, a arte, a moral, como bases das esferas dos valores que
permeavam a vida humana, tomaram, cada qual, seu rumo, possivelmente
contribuindo para a ocorrência de fragmentações e dicotomias, pela separação
dessas esferas de valores.
O individualismo operante, desde o iluminismo e positivismo, se tornou
marcado pelas dicotomias influentes, levando os indivíduos a tomarem posições
narcisistas e até niilistas.
147
Essas posições contribuíram para criar identidades individuais
desencontradas, ora por demonstrações de inflações do ego, ora por desinflações
desse mesmo ego.
Estudos e pesquisas na psicologia profunda analítica vieram demonstrando
que, todo ego inflado sempre esconde um ego desinflado, em condições potenciais
de se alternarem de acordo com as circunstâncias, podendo obter bons resultados
ou não.
As acentuadas alternâncias entre as condições do ego de cada indivíduo
demonstraram ocorrências de uma falta de sentido, de coerência, que foram
apontadas como fragmentações nas condutas e comportamentos dos indivíduos.
As confusões que, ainda nos dias atuais, têm sido feitas entre diferenciações
e dissociações, vieram demonstrando que são conceitos distintos.
Enquanto as diferenças têm sido demonstradas como condições normais em
torno das questões humanas, as dissociações, porém, receberam de Wilber um
tratamento que denotou fragmentação.
O conceito de dissociação tem sugerido que, entre as diferenciações
existentes, como ocorrências naturais em qualquer processo, as dissociações, por
sua vez, vieram criando distancias, separações, partilhas, principalmente, em
relação às esferas de diferenciação de valores.
Nas palavras esclarecedoras de Grof, esses acontecimentos contribuíram
para afirmações como essa: ”o que Weber denominou como desencanto do mundo;
Nietzsche chamou de a morte de Deus, Wilber nomeou como desastres da
modernidade”, podem vir constatando que essas dissociações, influenciadas pelo
modelo materialista vigente, têm sido responsáveis pelos conflitos, fragmentações e
dicotomias vividas até hoje.
368
Ainda segundo Grof, “seguindo a lógica do modelo materialista, a consciência
humana, a inteligência, a ética, a arte, a religião, e a própria ciência, acabaram
sendo considerados como subprodutos de processos materiais que ocorrem dentro
do cérebro”.
369
Como percebemos, pelos estudos e pesquisas realizados, os valores
substanciais e essenciais humanos, foram se dissociando e se afastando de seus
primordiais desígnios.
368
GROF, Stanislav, A mente holotrópica, p. 16.
369
Ibid, p. 16.
148
E, a liberdade essencial do homem, baseada e norteada por esses valores,
também foram sofrendo interpretações e significados desnorteados, fragmentando-
se em suas composições fundamentais.
Além dessa liberdade essencial, também seu poder criador, valores de
dignidade e outros tantos valores essenciais e substanciais do ser humano, foram se
desqualificando, se desviando, se dissociando e criando uma falta de sentido à
própria vida.
A questão religiosa, como experiência da consciência e profundidade do
divino, veio colocando a religião sem a pertença fundamental do humano, assim
como também, o humano sem qualquer senso de religião, por parte de muitos
indivíduos.
370
O divino da imagem-de-Deus, não veio tomando formas e identidades
humanas, garantindo formas soberbas do ego, como também se enveredou por
estratégicas empresariais de monopólio de um “mercado religioso” observado a céu
aberto nas comunidades sociais.
Os avanços tecnológicos geraram um fascínio irresistível nas jovens
mentalidades, principalmente, dos anos 80 e 90 do século XX, informando muita
coisa e, formando com escassez de humanização, as intelectualidades fecundas,
que se perdiam pelo universo da melhor utilização de tanto instrumental
disponibilizado.
A observação desses feitos não desqualificou o avanço tecnológico, mas sim,
nos fez refletir “como” esse manancial poderia estar sendo mais bem utilizado e, que
ganhos e benefícios, trariam ao ser humano.
Observando a diversidade na construção pós-moderna, nos deparamos com
a realidade de que não ocorreram revoluções, transformações em relação aos
sistemas da modernidade, em vários segmentos da atividade humana. Como diz o
pensador da pós-modernidade, J. J. Queiroz: “estamos na era do efêmero e do
descartável, que vai dos objetos de consumo até o ser humano”.
371
Dentre as grandes áreas que, basicamente, alicerçam as questões e os
problemas humanos; duas delas se sobressaíram por apresentar ainda precárias
condições para a humanização e transcendência: a educação e a saúde.
370
BENTO, Fábio Régio, Cristianismo, humanismo e democracia, pp. 223 – 224.
371
QUEIROZ, José J., apud Deus e crenças no discurso filosófico pós-modenro. Linguagem e religião, artigo
publicado na Revista REVER, São Paulo: Pontifícia Universidade Católica.
149
A primeira, pelas condições ainda ineficientes à formação humanística dos
indivíduos, através de disciplinas que vieram sendo abortadas do currículo escolar
neste sentido, assim como também pela falta de programas de educação continuada
que contemplem essa mesma formação, acrescida à suas grades. As ofertas são
poucas, e a procura insipiente.
A segunda, como certa conseqüência da primeira, por causar amputações
significativas no trato com o ser humano, comprometendo a humanização nas
instituições, assim como em seus próprios profissionais.
Essas ocorrências, por se apresentarem muito abrangentes, foram gerando
dificuldades e limitações para implantar processos que envolvam a humanização e
transcendência como caminho de transformações.
O médico neurofisiolista Antonio Damásio (1998) resume muito bem essa
situação, ao afirmar: “há uma amputação do conceito de natureza humana na
medicina (...) as conseqüências do corpo sobre a mente merecem uma atenção mais
efetiva na medicina”.
372
Muito ainda existe por estudar e pesquisar sobre essas duas importantes
áreas da vida humana e, muito ainda que se possa acrescentar na busca por
integrar essas duas áreas através de uma “educação para a saúde”.
Embora o processo de humanização e transcendência tenha sido de
responsabilidade de cada individuo e, de acordo como cada pessoa vem operando
seus níveis de consciência, para seus melhores resultados, também uma
preocupação que vem girando em torno de nossas instituições e, como as mesmas
têm contribuído para esse processo.
Como lembra Wilber, “a falta de uma melhor interação entre as áreas do
conhecimento facilita um mundo que ficou ligeiramente louco”.
373
É importante lembrar que, na psicologia transpessoal, a noção do todo,
operando pelas suas partes, se torna fundamental nesse processo. Assim como as
transformações de “dentro para fora” podem contribuir para as transformações
externas e, vice versa.
A humanização na construção s-moderna começou a ser reconhecida
como um caminho importante de reconstrução humana. Também ficou demonstrado
372
DAMÁSIO, Antonio R., O erro de Descartes, emoção, razão e cérebro humano, São Paulo: Companhia da
letras, 1996, p. 287.
373
WILBER, Ken, citação introdutória, apud O olho do espírito, 1995.
150
que o eixo central desse processo tem contado com o desempenho ativo dos níveis
de consciência, desde a matéria até o espírito.
Essas concepções têm buscado “impedir que se sucumba à moléstia da
autoconsciência obsessiva da imaginação moderna (...) à egogratificação narcisista,
como também à agressividade pela luta de poder, reveladora de seu niilismo”.
374
Em meados do século XX, em meio à disseminação da psicologia humanista,
Carl Rogers considerava que “a psicologia e outras ciências do comportamento
estavam adquirindo seus direitos”.
375
Levamos, praticamente, meio século tentando exercer esses mesmos direitos
e que, nesse mesmo tempo contávamos com a abordagem transpessoal, vindo
enriquecer o campo da psicologia.
A teoria do espectro da consciência de Wilber se constituiu nos fundamentos
básicos da psicologia transpessoal para compor nosso trabalho.
Constatamos que, durante algum tempo, trabalhando com pessoas
submetidas ao processo psicoterápico, assim como, em trabalhos de seminários e
treinamentos em universidades e empresas (privadas e públicas), a aplicação prática
de conteúdos da psicologia humanista e transpessoal se mostraram eficientes, com
resultados muito satisfatórios.
Observamos também que, durante esses processos, havia acentuado
interesse e motivação dos indivíduos num empreendimento dessa natureza, pela
melhoria em suas condições pessoais e coletivas, com um perceptível
desenvolvimento em seus níveis de consciência, constatados na prática de suas
vidas.
A humanização, portanto, tem demonstrado ser um caminho de
desenvolvimento e transformações internas significativas e, que a transcendência,
acaba se tornando um fator inclusivo nesses processos, como encontros reveladores
com a essência divina das pessoas.
O método psicológico de trabalhar com “diferentes modos de conhecer e suas
correspondências com os respectivos níveis de consciência” desempenhados pelos
indivíduos em suas ações mais conscientes, demonstraram existir ocorrências
importantes em novas maneiras de viver.
374
WILBER, Ken, A união da alma e dos sentidos, p. 33.
375
ROGERS, Carl, apud COULSON, William (org.) O homem e a ciência do homem, p. 55.
151
Essas novas maneiras de viver permitiram que muitos conhecimentos
pudessem ser transformados em experiência de vida.
Essas evidências tiveram escopo em estudos e pesquisas, algumas bastante
recentes, em torno da consciência e o papel importante que representam para a
existência humana.
Grof afirmou que “a pesquisa moderna de consciência revela que nossa
psique não tem limites reais e absolutos (...) somos parte de um campo infinito de
consciência que engloba tudo que existe.
376
E, Wilber complementa dizendo: ”(...) o que a consciência é vai por traz das
palavras e símbolos”.
377
As afirmações de Grof e Wilber demonstraram que mudanças na percepção e
nos comportamentos dos indivíduos se modificam, a partir de uma compreensão e
discernimento que vai além da simples observação, mas pode atingir limites que
ainda desconhecíamos. Mas, com o desenvolvimento dessa consciência, podemos
atingir melhores níveis de autoconhecimento, auto-realização e autotranscendência.
É possível que essas constatações vivenciadas pelos indivíduos, em
diferentes situações e circunstâncias, sejam um caminho revelador tanto para a
humanização, quanto para sua relação com a transcendência, estabelecendo o
encontro do humano com o divino.
Quando R. Otto se referia ao numinoso como “uma existência ou efeito
dinâmico não causado por um ato arbitrário”
378
, é possível que estaria se referindo a
esse encontro do humano com o divino.
Outra demonstração do processo de humanização e transcendência ,
contemplaram vivencias em que os indivíduos se referiram às suas experiência
pessoais de transformação, como também a melhoria em suas relações
interpessoais no meio que viviam, trazendo sua compreensão de que existiriam
estágios possíveis para uma melhor compreensão das questões que transcendem
os limites do individuo, de suas relações, tocando a consciência espiritual, ou como
nomeou James, de “ consciência cósmica”.
379
376
GROF, Sanislav, A mente holotrópica, p. 244.
377
WILBER, Ken, O especrto da consciência, p. 24.
378
OTTO, Rudolf, apud JUNG, C.G., Psicologia e religião, p. 09.
379
WEIL, Pierre, apud JAMES, William, As variedades da experiência religiosa, p. 07.
152
As potencialidades e capacidades do individuo de ir além do ego,
demonstraram permitir uma possibilidade de inclusão da experiência transcendente,
pelo encontro do humano com o divino.
Essas possibilidades se mostraram presentes quando a pessoa demonstrou,
em sentido de realidade, que “um sentimento de presença, uma percepção de
que há algo mais ali”, mais profundo e mais geral do que qualquer um dos sentidos”.
380
Maslow denominou o senso humano de libertação e sentimento de presença
como “experiências de pico ou culminantes”
381
. Essas experiências poderiam ocorrer
a qualquer momento, diante de uma vivencia humana de liberdade, dignidade e
amor. Essas referências dizem respeito a sentimentos agregados de valores
autênticos e espontâneos vivenciados pelos indivíduos em situações especiais de
abertura e liberdade responsável
Wilber considerou “importante explorar um nível de consciência que ofereça
liberdade e liberação inclusive em situações de sofrimento para dar lugar à
verdadeira natureza da realidade”.
382
A natureza da realidade tem parecido residir no desenvolvimento das
capacidades humanas para além do ego e da individualidade.
A libertação, mesmo que momentânea e que pode se estender implica em
buscar pelo entendimento do que estivesse ocorrendo ao nível da mente, depois de
normalizar o nível do ego e o nível existencial, que facilitariam experimentar o nível
espiritual ou transcendente.
383
O que Wilber buscou esclarecer é que precisamos “nos libertar” dos níveis do
ego e do existencial, para podermos experimentar o nível da mente e transcender ao
nível espiritual.
As abordagens orientais nos trouxeram grandes ensinamentos neste sentido.
Pela técnica de estados meditativos, por exemplo, se tornou possível experimento
em níveis de transcendência dos indivíduos.
Os experimentos do Dr. Raul Marino Junior, demonstraram modificações
cerebrais de acordo com as condições dos pacientes em estado sedativo, portanto,
de alguma maneira, libertos, de acordo com ocorrências em nível de realidade.
380
JAMES, William, As variedades da experiência religiosa, p. 47
381
MASLOW, A.H., Religions, values and peak-experiences, p. 283.
382
WILBER, Ken, O espectro da consciência, p. 21.
383
Ibid, p. 20.
153
Essas demonstrações científicas, teóricas e de aplicabilidade prática, têm
provado como as potencialidades humanas, quando em condições satisfatórias,
estariam propensas a experiências evolutivas dessas mesmas potencialidades,
capacitando os indivíduos a experimentá-las, desde que também, em condições
favoráveis a essas finalidades.
Porém, qualquer situação que nos liberte das questões do nível do ego e do
nível existencial meramente, se mostraram possíveis de uma vivencia interior de
transcendência.
Importante salientar, porém, que os indivíduos, de maneira geral, trazem
potencialidades diferentes, assim como condições de condicionamentos e padrões
adquiridos ao longo de sua existência, somados ao conteúdo inconsciente.
São todos esses potenciais que estariam participando de um processo de
humanização e transcendência. Portanto, importante tecer considerações de que,
nem todas as questões que foram abordadas aqui, possam se aplicar a todos os
indivíduos.
Essas dificuldades têm se apresentado ao longo da história do homem, do
humanismo e também da humanização.
muito ainda por se fazer. muito ainda que estudar, pesquisar,
transformar e, construir.
Sutich, um dos grandes pensadores da psicologia transpessoal, nos alerta:
“as questões humanas no campo transpessoal podem trazer dimensões ocultas e
ainda sem limites demarcados, mas nos trazem direções”.
384
Nosso trabalho de pesquisa demonstrou que precisamos ficar atentos a
algumas questões.
Dentre elas e, apesar de tantas outras, a projeção, a sombra e a persona,
como arquétipos junguianos, nos pareceram muito pertinentes. E, cada uma delas
pode levar ao outro, que pode levar ao outro e, assim sucessivamente. Afinal,
viemos seguindo um raciocínio de “cadeia e entrelaçamentos”.
Os seres humanos, como foram demonstrados, lutam pelo poder e
compensam-se pela alternância da inflação e desinflação de ego. Essas condições
estariam colocando o indivíduo em condições niilistas e narcisistas. Essas
circunstâncias têm se demonstrado muito comuns na construção pós-moderna.
384
SUTICH, Anthony J., Journal of transpersonal psycology, apud TABONE, Marcia em texto com referencias
às dimensões da psicologia transpessoal.
154
Segundo pesquisas recentes, em várias áreas do conhecimento, essas
condições vieram considerando que cada pessoa se constitui num campo de
energia, composto pelos seu diferentes níveis de consciência que, trazem inclusivos,
seu conjunto de crenças, hábitos e condutas, que se irradiam e podem influenciar
tudo ao seu redor, até chegar aos níveis do universo.
Essas energias, segundo o psicólogo americano Redfield, são expressas
através de nossos pensamentos, sentimentos e ações – consideradas por Jung
como as três funções básicas do individuo e, que retornam às essas pessoas que
as emitiram, como “causa e efeito” dessas mesmas energias.
385
Estudos e pesquisas mais aprofundados sobre o funcionamento deste vasto
“oceano fluídico” e suas implicações nos processos de “causa e efeito” vivenciadas
pelos indivíduos, juntamente com o aprofundamento sobre o arquétipo sombra
desenvolvido pela teoria junguiana – poderiam vir a ser importantes indicadores para
futuras pesquisas e estudos, agregando-os aos níveis de consciência do ser
humano e também suas implicações nas relações interpessoais.
Essas sugestões implicam também, questões relacionadas à “persona”
como máscara social e às projeções muito comuns nos indivíduos, em função
ainda de seu desconhecimento acerca de suas próprias questões internas e,
respectiva necessidade de “iluminar” a consciência e seus níveis, o que na falta
dessas condições, os indivíduos projeta-as nos outros e no meio.
Contamos que, com esses esclarecimentos e considerações finais, tenhamos
trabalhado nosso objeto proposto, assim como os problemas levantados, as
hipóteses devidamente demonstradas e também certas limitações pertinentes às
próprias condições dessa era pós-moderna em construção.
385
REDFIELD, James, A visão celestina, p. 73.
155
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