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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Valéria Centeville
Ciúme patológico masculino: reflexões sob a ótica junguiana
MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
como exigência parcial para obtenção do título de
MESTRE em Psicologia Clínica pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, sob a
orientação do Prof. Doutor Durval Luiz de Faria.
SÃO PAULO
2008
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Valéria Centeville
Ciúme patológico masculino: reflexões sob a ótica junguiana
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
como exigência parcial para obtenção dotulo
de MESTRE em Psicologia Clínica pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
sob a orientação do Prof. Doutor Durval Luiz
de Faria.
Banca Examinadora:
__________________________________________
Prof. Dr. Durval Luiz de Faria
__________________________________________
Prof
a
. Dr
a
. Liliana Liviano Wahba
__________________________________________
Prof
a
. Dr
a
. Marion Gallbach
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Para o meu pai e minha irmã.
AGRADECIMENTOS
Ao prof. Dr. Durval Luiz de Faria.
À prof
a
. Dr
a
. Liliana Liviano Wahba.
À prof
a
. Dr
a
. Marion Gallbach.
A todos os professores do núcleo de estudos junguianos.
Ao meu pai, minha irmã e à Edna (minha madrasta).
À minha mãe (in memoriam).
Ao meu namorado (Rogério).
Ao Alexandre Schmitt e à Luísa de Oliveira.
Ao Alexandre Magnus Mountfort.
A todos os meus amigos do núcleo de estudos junguianos.
A todas as pessoas que contribuíram, direta ou indiretamente, para a realização deste trabalho.
RESUMO
Os objetivos deste estudo são: compreender como o ciúme patológico masculino se expressa
na cultura patriarcal e entender os aspectos psicológicos envolvidos na dinâmica do ciúme
patológico, especialmente os complexos. O resultado do levantamento bibliográfico mostrou
que existem muitos trabalhos que associam o ciúme masculino à violência contra a mulher,
especialmente no contexto doméstico. Foram pesquisadas definições de ciúme formuladas por
autores importantes como Adler (1967), Alberoni (1988), Freud (1976), Klein e Riviere
(1975) e do DSM-IV - manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (1995). Livros
e artigos de autores junguianos e neo-junguianos foram pesquisados, tendo sido encontrada
uma única definição de ciúme nesta abordagem teórica, conceituada por Carlos Byington
(2006), criador da chamada Psicologia Simlica. Foi encontrado um artigo científico
junguiano sobre ciúme patológico masculino, de Grinberg (2000). Na última etapa do
levantamento bibliográfico, o termo “ciúme” foi pesquisado nas obras completas de Carl
Gustav Jung. Para ilustrar o ciúme patológico masculino, foram selecionados e assistidos
alguns filmes, tendo sido escolhido o que melhor representa esta patologia no gênero
masculino - “Ciúme, o inferno do amor possessivo” (1994) - de Claude Chabrol. A ilustração
foi analisada com base na abordagem da Psicologia Analítica, assim como nas informações
que contextualizam a cultura patriarcal. Conclui-se que as características e emoções mais
comumente associadas ao ciúme patológico masculino são: poder e posse, desejo de domínio
sobre o ser amado, amor e rivalidade amorosa, medo da perda, desejo de exclusividade
amorosa e sentimentos de inferioridade. A não superação do complexo de Édipo enquanto
estrutura, a presença de complexo materno e/ou paterno, a repressão do princípio feminino e o
conseqüente desequibrio pquico são fatores associados ao ciúme patológico masculino.
Este afeto é encontrado com mais freqüência na paranóia. Considera-se a hipótese de que a
cultura e os valores patriarcais, se unilaterais, intensificam o ciúme patológico, pois o que se
mostra exagerado no ciumento patológico é a necessidade de dominar e controlar quem ele
acredita possuir.
Palavras-chave: Psicologia Anatica. Ciúme. Cultura patriarcal. Patriarcado. Violência contra
a mulher.
ABSTRACT
The objectives of this study are to comprehend how male pathological jealousy expresses
itself in a patriarchal culture and also to understand psychological aspects involved in the
dynamics of such disturbance, especially the emotional complexes. The bibliographical
research has revealed the existence of many essays linking male jealousy to violence against
women particularly in a domestic context. Definitions of jealousy from important authors
such as Adler (1967), Alberoni (1988), Freud (1976), Klein and Riviere (1975) and the
American Psychiatric Association’s DSM-IV - Diagnostic and Statistical Manual of Mental
Disorders (1994) have been researched. Books and articles of Jungian and neo-Jungian
scholars were also examined, only to find Carlos Byington (2006), the creator of the Symbolic
Psychology, description of jealousy. Still based on this theoretical approach to male
pathological jealousy I came across Grinberg’s essay (2000). In the last stages of the
bibliographical research specific attention was given to how the term “jealousy” was
accounted for throughout Carl Gustav Jung’s work. To illustrate such a condition certain
films were considered and selected, Claude Chabros 1994 production L'enfer being the most
representative. It was interpreted based on Jungs Analytical Psychology and on the
information pertaining to the patriarchal culture. Allowing us to conclude that the
characteristics and emotions most commonly associated with the male pathological jealously
are: power and possession, the desire for dominion over the loved one, love and rivalry, fear
of loss, exclusive love and feelings of inferiority; the inability to surmount the Oedipus
complex as a structure, the presence of a maternal and/or paternal complex, the repression of
the feminine principle and the resulting psychic disequilibrium are the constituent factors
associated with the male pathological jealousy. This kind of affection is generally related to
paranoia. I propose to consider the hypothesis that culture and patriarchal values, when
unilateral, intensify pathological jealousy since what’s most revealing of the psychotic jealous
extreme behavior is precisely the need to control others and maintain dominance over them.
Keywords: Analytical Psychology; Jealousy; Patriarchal Culture; Patriarchy; Violence against
Women.
ANEXO
ANEXO - TRANSCRIÇÃO DA ILUSTRAÇÃO: CIÚME, O INFERNO DO AMOR
POSSESSIVO...................................................................................................................115
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO.....................................................................................................................9
2 OBJETIVOS........................................................................................................................17
3 MÉTODO.............................................................................................................................18
4 CONCEITO DE CME....................................................................................................21
4.1 Ciúme do ponto de vista da Psicanálise..........................................................................22
4.2 Ciúme do ponto de vista da Psicologia Analítica...........................................................24
4.3 Ciúme patológico do ponto de vista psiquiátrico...........................................................32
5 CIÚME E HISTÓRIA........................................................................................................39
6 O MASCULINO E O HOMEM NA CULTURA PATRIARCAL.................................49
7 MITOLOGIAS E LITERATURA SOBRE O CIÚME...................................................60
7.1 Cenas de ciúme presentes na mitologia grega...............................................................60
7.1.1 Ciúme de Hefesto em relão à Afrodite....................................................................60
7.1.2 Ciúme de Zeus em relação à Deméter........................................................................61
7.1.3 Ciúme de Apolo em relão à Ártemis e Coronis......................................................61
7.1.4 Ciúme de Ares em relação à Afrodite.........................................................................61
7.2 Literatura sobre o ciúme.................................................................................................62
8 CONCEITOS JUNGUIANOS...........................................................................................69
8.1 Complexos........................................................................................................................69
8.2 Sombra e persona............................................................................................................77
8.3 Anima e animus................................................................................................................79
9 ILUSTRAÇÃO: ANÁLISE DO FILME “CIÚME, O INFERNO DO AMOR POSSESSIVO”....83
10 DISCUSSÃO...................................................................................................................103
11 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................106
REFERÊNCIAS..................................................................................................................108
9
1 INTRODUÇÃO
Sempre observo relacionamentos amorosos entre casais que são marcados pelo ciúme,
ora manifestado pelo homem, ora pela mulher ou mesmo por ambos. Em alguns casos, este
afeto é expresso de maneira explícita, enquanto que em outros, velada.
Certa vez, uma colega de sala pediu para eu comprar um lanche para ela na cantina, no
horário do intervalo, o que atendi, naturalmente. Visto que esta solicitação se repetia com
freqüência, perguntei-lhe por que ela mesma não ia à cantina de vez em quando, já que
poderia distrair-se um pouco ao caminhar até lá e mesmo encontrar outras pessoas, de outros
cursos. Ela respondeu (em voz baixa) que não ia por causa do namorado dela, que era muito
ciumento e a havia proibido de descer até a cantina da universidade. Achei aquilo um absurdo
e a questionei tentando compreender por que ela namorava tal sujeito tão inadequado. Ao que
parece, ela considerava o comportamento dele um sinal de amor e achava absolutamente
normal. Perguntei a outras amigas o que achavam daquilo e elas disseram considerar estranho
para elas, mas que era algo comum para outras pessoas.
Há mais ou menos três anos, também ouvi falar de uma colega que não podia mais
cumprimentar nem conversar com os amigos da faculdade, devido ao ciúme do namorado. Ou
seja, o ciúme pode provocar isolamento das pessoas “vítimas” dele.
Por outro lado, o ciúme feminino também deixa suas marcas. Lembro-me quando
estava conversando com amigos e o telefone de um deles tocou. O outro disse que era a
polícia e eu fiquei olhando sem entender. Logo compreendi que era a sua namorada, que
telefonava muitas vezes com o intuito de vigiá-lo e evitar que ele a traísse.
Em minha experiência como psicóloga clínica, o ciúme também é um tema
freqüentemente discutido e analisado. Parece estar presente na maioria dos relacionamentos
afetivos entre casais, seja em maior ou menor grau, sendo percebido em ambos os gêneros.
10
Algo marcante relacionado ao ciúme é o valor atribuído a ele. Enquanto algumas
pessoas o consideram índice de amor e, conseqüentemente, um afeto positivo, outras o
avaliam como algo abominável. ainda aqueles que dizem ser o ciúme uma manifestação
emocional tanto positiva quanto negativa, causando felicidade e tristeza, ao mesmo tempo ou
alternadamente. Ou seja, uma mesma emoção pode ser experimentada como boa, ruim ou
contraditória, dependendo das circunstâncias, do contexto social e afetivo de quem a
manifesta ou dela é vítima.
Considero este estudo importante porque o ciúme pode causar inúmeros transtornos no
contexto de um relacionamento amoroso, podendo prejudicar, inclusive, outros âmbitos da
vida de uma pessoa, como o social, o profissional, o familiar e o íntimo, provocando, por
vezes, sérios conflitos.
Desta maneira, o ciúme é capaz de destruir um relacionamento amoroso e, às vezes, a
mesmo uma família, com todos os danos resultantes de uma separação para os filhos e o casal.
Em Freud e a psicanálise (1989), Jung tratou o ciúme como uma manifestação afetiva
e como uma defesa em relação ao objeto visado. Consideramos o ciúme patológico um afeto
ou emoção porque ele é intenso, atraindo a atenção do ego para o que estiver relacionado a
ele, de maneira que o ciumento patológico pode até mesmo ignorar e distorcer os fatos da
realidade externa. Existem diversos graus de ciúme, sendo que o patológico é aquele que
causa maiores prejuízos ao ciumento e à sua companheira devido à sua intensidade exagerada.
A relevância desta pesquisa baseia-se no fato de que, ao estudar o ciúme patológico, é
possível compreender melhor sua dinâmica psíquica e de que maneira ele interfere no
relacionamento amoroso de um casal. Pode-se, assim, obter mais subsídios para se trabalhar
em uma terapia de casal ou mesmo individual.
O estudo da dinâmica do ciúme patológico possibilitará lidar melhor com ele em
vários contextos, especialmente o psicoterápico, o que certamente irá beneficiar muitas
11
timas deste problema e aquelas que convivem com ciumentos patológicos, especialmente
esposas e filhos.
Muitos trabalhos mostram que o tipo de ciúme está relacionado ao gênero. Eles
sugerem que as mulheres sentem mais ciúme emocional, ou seja, seu maior medo é que seu
parceiro se apaixone por outra mulher, enquanto que para os homens, o ciúme sexual é mais
intenso, ou seja, a traição sexual é sentida como mais ameaçadora e humilhante.
Vários estudos relacionaram o ciúme masculino à violência contra a mulher.
Pesquisadores da Universidade de Chicago revelaram que o ciúme sexual masculino é um dos
fatores de risco para que a mulher seja submetida à vioncia pelo parceiro. Outras variáveis
relacionadas à agressividade física e verbal são crenças patriarcais, baixo estrato econômico e
consumo de álcool (PARISH et al., 2004).
Outra pesquisa, realizada na Dinamarca, revelou que a maioria das mulheres
assassinadas por armas de fogo durante o período de 1985 a 1994 morreram em seus domicílios,
sendo que os autores dos crimes foram seus próprios maridos, por ciúme (HOUGEN et al., 2000).
Em sociedades caracterizadas pela chamada “cultura da honra”, como a brasileira, a
violência doméstica contra mulheres é aceita, de maneira impcita, de acordo com os resultados
apontados por uma pesquisa realizada por Vandello e Cohen (2003). Em casos de infidelidade
feminina ou simplesmente de ciúme masculino, a violência é justificada pelo fato da mulher ter
ofendido a reputação masculina, seja na realidade ou na fantasia (do homem). A agressão é
considerada uma maneira de restaurar parte da reputação masculina e existe uma expectativa de
que as mulheres sejam leais quando a violência esrelacionada ao ciúme, aceitando-a.
Segundo Corrêa e Souza (2006), a Constituição brasileira de 1988 ressalta a igualdade
entre homens e mulheres e escreve que, juridicamente, não existe a iia de honra conjugal,
visto que ela é um atributo exclusivamente pessoal e intransferível. Assim, em termos
jurídicos, quando a mulher trai seu marido ou companheiro, apenas ela fica desonrada, não
12
afetando em nada a honra do marido. Na prática, contudo, muitos homens ainda praticam
homicídios e lesões corporais contra suas companheiras em nome da defesa de sua própria
honra e, quando alegam a tese de legítima defesa da honra, muitos ainda são absolvidos. É o
que mostram os exemplos a seguir:
Apelação criminal n. 3.129/99, Cuiabá, 22.08.2000.
Resumo: o acusado foi absolvido da tentativa de homicídio praticada contra sua
namorada, mediante vários golpes de faca, motivado por suspeita de traição da
vítima. (CORRÊA e SOUZA, 2006, p. 127).
Apelação Criminal n. 01.018426-5, Turvo, 30.10.2001.
Resumo: desconfiado da traição da mulher, o réu teria desferido-lhe um tiro pelas
costas, após ter anunciado a separação, circunstância que lhe rendeu a absolvição
por acolhimento da tese de legítima defesa da honra pelo júri popular. (CORRÊA e
SOUZA, 2006, p. 116).
Apelação Criminal n. 048019000354, Comarca da Capital - Juízo da Serra,
07.11.2001.
Resumo: o réu foi absolvido da acusação de homicídio praticado contra sua esposa
porque teria agido imbdo de ciúme em razão de sua traição. (CORRÊA e SOUZA,
2006, p. 124).
Estes exemplos mostram que práticas culturais patriarcais ainda são marcantes na
cultura brasileira, ainda que a legislação tenha mudado em favor da igualdade entre os gêneros.
Outro estudo, realizado por Adeodato et al. (2005), identificou o ciúme masculino
como um fator desencadeante de agressão contra mulheres em suas residências. Os objetivos
da pesquisa foram avaliar a qualidade de vida e a depressão nas mulheres vítimas da violência
doméstica e estabelecer o perfil socioeconômico da mulher agredida pelo parceiro e as
particularidades das agressões sofridas.
Os resultados desta pesquisa mostraram que o perfil da mulher agredida é: jovem,
casada, católica, com filhos, pouco tempo de estudo e baixa renda familiar. Álcool e ciúme
foram os fatores mais referidos como desencadeantes das agressões, tendo 84% das mulheres
sofrido agressão sica e 72% delas apresentaram quadro sugestivo de depressão clínica. A
análise dos dados indicou que a violência doméstica está associada a uma percepção negativa
da saúde mental da mulher.
13
Taquette et al. (2003) conduziram um estudo com o objetivo de verificar se o
relacionamento afetivo com violência está associado a um maior risco de doenças
sexualmente transmissíveis (DSTs), incluindo a AIDS, em adolescentes. A justificativa para a
realização da pesquisa foi que o perfil epidemiológico da AIDS apresenta uma tendência à
juvenilização e que as causas dessa tendência precisam ser melhor estudadas. O tratamento
dado às informações coletadas foi qualitativo, agrupando as respostas e dados de entrevistas e
posteriormente interpretando-os.
Os principais resultados aos quais esta pesquisa chegou foram que a violência faz
parte do cotidiano dos jovens estudados. Os fatores identificados como geradores de violência
foram: falta de dinheiro e de emprego, uso de drogas e álcool, ciúme e infidelidade. E o ciúme
é o motivo mais freqüente de discussão entre namorados.
Outra pesquisa foi realizada com quinhentas mulheres e teve como objetivo
compreender os motivos pelos quais elas não adotavam comportamentos preventivos em
relação ao HIV no seu cotidiano. De acordo com os resultados, elas não usavam preservativos
por medo de provocar suspeitas de infidelidade e porque isto poderia levar à separação do
casal. As mulheres relataram que os relacionamentos com seus parceiros eram difíceis por
causa da falta de diálogo e que o homem sempre dava a palavra final. Embora as mulheres
estivessem informadas a respeito da AIDS, elas não se preveniam em relacionamentos com
parceiros estáveis porque não tinham o poder de decisão (HEBLING e GUIMARÃES, 2004).
Segundo um trabalho realizado por Torres et al. (1999), o ciúme patológico pode ser um
sintoma do transtorno obsessivo-compulsivo (TOC), pois inclui rituais de verificação e obsessão
característicos desta síndrome. Foram selecionados 4 casos clínicos de TOC com sintomas de
ciúme patológico do serviço de psiquiatria da faculdade de medicina de Botucatu, da
Universidade Estadual de São Paulo (UNESP). O critério de escolha priorizou os casos mais
representativos de TOC com ciúme patológico, seguido de descrição e discussão de suas
14
características. Os sujeitos receberam o mesmo tratamento médico oferecido a outros pacientes
diagnosticados como obsessivo-compulsivos e, segundo os pesquisadores, apresentaram melhora.
Os resultados desta pesquisa indicaram que foi aberta uma nova alternativa de
abordagem terapêutica do ciúme patológico, que até bem recentemente se restringia a duas
condutas quase opostas: a internação com o uso de neurolépticos e as abordagens
psicodinâmicas exclusivas. Segundo os autores, tal fato permite um maior otimismo em
relação ao seu prognóstico, pois sendo o ciúme patológico em geral uma condição que
envolve muito sofrimento e que é notoriamente difícil de se tratar, a possibilidade de sucesso
em certos casos com outras abordagens, como as específicas para TOC, é relevante.
O ciúme patológico também foi estudado por Michael et al. (1995) com o objetivo de
melhor compreender a relação deste sintoma com o alcoolismo. Foram pesquisados 207
pacientes heterossexuais do sexo masculino, dependentes de álcool e que estavam casados ou
em um relacionamento estável. As principais conclues da pesquisa foram que o alcoolismo
parece não ser o causador do ciúme patológico. E detectar os casos em que o ciúme mórbido
(sinônimo de patológico) se manifesta apenas quando o paciente está alcoolizado tem sua
utilidade em processos preventivos.
Através desta revisão bibliográfica, é possível perceber que o ciúme é uma emoção
complexa, que precisa ser estudada mais detalhadamente e atualizada constantemente, já que
mudanças culturais certamente interferem na maneira como este afeto se manifesta e nos
significados atribuídos a ele.
A relevância desta pesquisa baseia-se no fato de que o ciúme é uma das motivações
masculinas para o exercício da violência doméstica contra a mulher e filhos. Muitas vezes,
homens que apresentam o sintoma de ciúme patológico perdem a noção da realidade exterior
e o controle sobre suas próprias emoções, terminando por agredir suas parceiras. Sendo assim,
este estudo trará mais subsídios para o tratamento psicológico de casos de ciúme patológico,
15
beneficiando o paciente, sua família e a sociedade como um todo, já que um homem possuído
por este afeto pode cometer atos criminosos como, por exemplo, seqüestrar a mulher e matar
o suposto amante, como ouvimos freqüentemente em notícias de jornais.
Os filmes são produções culturais muito ricas para análise, possibilitando a apreensão
do fenômeno de maneira dinâmica. A visualização das cenas propicia uma compreensão
interessante sobre o ciúme patológico e sua progreso ao longo do tempo, de maneira que o
espectador pode ter acesso à imaginação do personagem, facilitando a empatia com ele,
sentindo como ele provavelmente sente e vendo a realidade como ele parece ver.
Para ilustrar o ciúme patológico masculino, selecionamos e assistimos a alguns filmes
com personagens ciumentos doentios deste gênero. Escolhemos o filme mais representativo
dessa patologia para o gênero masculino: Ciúme, o inferno do amor possessivo”. Nesta obra
cinematográfica, pudemos observar o fenômeno do ciúme patológico e sua evolão, tal como
freqüentemente é visto em casos clínicos.
O critério de escolha da ilustração foi a capacidade de representar claramente o
fenômeno do ciúme patológico e sua evolução, o que possibilita que o expectador veja
claramente como é a evolução do quadro patológico.
Este trabalho tem como objetivo compreender os aspectos psicológicos e culturais do
ciúme patológico masculino, tendo como referencial de análise a Psicologia Analítica.
Para tanto, estruturamos a dissertação da seguinte forma:
No capítulo 2 - “Objetivos” - apresentaremos os objetivos deste trabalho.
No capítulo 3 - “Método” - explicitaremos a metodologia utilizada.
No capítulo 4 - “Conceito de ciúme” - mostraremos o conceito de ciúme do ponto de
vista de outras abordagens teóricas, da Psicologia Analítica e da psiquiatria.
16
No capítulo 5 - “Ciúme e história” - veremos como as manifestações do amor e do
ciúme variam de acordo com os contextos histórico e social, pois para a Psicologia Anatica
estas dimensõeso importantes para a compreensão do ser humano.
No capítulo 6 - “O masculino e o homem na cultura patriarcal”, estabeleceremos
relações entre o princípio masculino e o homem na cultura patriarcal.
No catulo 7 - Mitologias e literatura sobre o ciúme” - iremos mencionar alguns
mitos e obras literárias relevantes existentes dentro do tema do ciúme patológico masculino,
com o objetivo de ampliar a compreensão deste femeno.
O capítulo 8 - “Conceitos junguianos” - tem como objetivo familiarizar o leitor que
desconhece a Psicologia Analítica com seus conceitos teóricos e dar embasamento para se
compreender a análise da ilustração e as reflexões realizadas ao longo do trabalho.
No capítulo 9 - “Ilustração: análise do filme ‘Ciúme, o inferno do amor possessivo’” -
faremos uma análise do filme escolhido.
Apresentaremos a discussão e as considerações finais nos capítulos 10 e 11,
respectivamente.
17
2 OBJETIVOS
O objetivo geral deste trabalho é compreender os aspectos psicológicos e culturais do
ciúme patológico masculino, tendo como referencial de análise a Psicologia Analítica.
Os objetivos específicos são:
a) Compreender como o ciúme patológico masculino se expressa na cultura patriarcal;
b) Compreender os aspectos psicológicos envolvidos na dinâmica do ciúme patológico
masculino, especialmente os complexos.
18
3 MÉTODO
Esta pesquisa é teórica, realizada a partir de levantamento bibliográfico. Este
levantamento constituiu-se de três etapas.
Na primeira etapa, realizamos uma revisão bibliográfica sobre a questão, na qual foram
pesquisados os trabalhos científicos sobre ciúme produzidos nos últimos cinco anos. Entre os
estudos científicos encontrados, havia um na abordagem junguiana: “A traição de Bentinho: um
estudo sobre a psicopatologia do ciúme e da traição”, de Luiz Paulo Grinberg (2000), publicado
na revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Anatica. Pesquisamos bibliotecas nacionais e
sites tanto nacionais quanto internacionais, incluindo o portal da CAPES e o site Scielo.
Na segunda etapa, concentramos o levantamento bibliográfico no ciúme masculino e
no contexto de relacionamentos amorosos. O resultado mostrou que existem muitos trabalhos
que associam o ciúme masculino à violência contra a mulher, especialmente no contexto
doméstico. Questões de gênero e culturais como, por exemplo, crenças patriarcais e definição
de papéis tradicionais para homens e mulheres têm sido abordadas freqüentemente, assim
como relacionamentos sexuais arriscados, sem o uso de preservativos, também têm sido
associados ao ciúme e à infidelidade. Outra questão colocada é a separação entre ciúme
emocional e ciúme sexual. Também foram incldos na coleta materiais da área de medicina,
que se referem ao ciúme patológico e que enfocam abordagens medicamentosas.
Os autores destes trabalhos encontrados foram: Parish et al. (2004), Hougen et al.
(2000), Vandello e Cohen (2003), Corrêa e Souza (2006), Adeodato et al. (2005),
Taquete et al. (2003), Hebling e Guimarães (2004), Nascimento et al. (2000), Torres et
al. (1999) e Michael et al. (1995).
Na segunda etapa, também foram pesquisadas as definições de ciúme de autores
importantes como Adler (1967), Alberoni (1988), Freud (1976), Klein e Riviere (1975). Além
19
disto, consideramos importante investigar e inserir no trabalho a definição coloquial de ciúme,
encontrada no Novo Dicionário Aurélio (1986).
As patologias às quais o ciúme patológico está associado também foram
pesquisadas, tendo sido incluídas informões contidas no livro O ciúme patológico, de
Cavalcante (1997) e tamm no DSM-IV (1995). A paranóia foi o transtorno mais
comumente associado ao ciúme patológico.
Na terceira etapa do levantamento bibliográfico, pesquisamos livros e artigos de
autores junguianos e neo-junguianos. Ou seja, o critério para a seleção das obras, nesta etapa,
foi a abordagem teórica. Encontramos apenas uma definição de ciúme, conceituada por Carlos
Byington, criador da chamada Psicologia Simlica.
O termo “ciúmefoi pesquisado nas obras completas de Carl Gustav Jung, tendo sido
encontrado nas seguintes obras: Freud e a psicanálise (1989), Psicologia do inconsciente
(1995), O desenvolvimento da personalidade (2006b), Os arquétipos e o inconsciente coletivo
(2006a) e Psicogênese das doenças mentais (1986). Nestas obras, não foi encontrada
nenhuma definição de ciúme.
Para ilustrar o ciúme patológico masculino, selecionamos e assistimos a alguns filmes:
“A vida secreta dos dentistas” (2005), “Dom” (2003), “Closer” (2004), “Lua de fel” (1992),
“Atração fatal” (1987), “Lolita” (1961), “Dormindo com o inimigo” (1991),Infidelidade”
(2002),O preço da traição” (1996), “Sexo, amor e traição” (2004) e “Pão, amor e ciúme”
(1954). Escolhemos o filme mais representativo desta patologia para o gênero masculino:
“Ciúme, o inferno do amor possessivo” (1994). Nesta obra cinematográfica, pudemos
observar o femeno do ciúme patológico e sua evolução, tal como freqüentemente é visto em
casos cnicos. Posteriormente, a ilustração foi transcrita.
A transcrição do filme “Cme, o inferno do amor possessivo” (anexo) envolveu a
descrição dos cenários e o registro de quase todas as falas dos personagens, excluindo-se
20
apenas algumas consideradas pouco significativas, com o intuito de propiciar maior fluidez ao
texto, sem, contudo, prejudicar a integridade dos dados a serem analisados. Algumas falas
foram narradas, ao invés de terem sido transcritas literalmente. As cenas foram separadas e
numeradas seqüencialmente; as pausas e as entonações das falas, assim como as imagens
descritivas foram explicitadas sempre que consideradas relevantes.
A ilustração foi analisada com base na abordagem da Psicologia Anatica que forma o
corpo teórico do trabalho, assim como nas informações que contextualizam a cultura
patriarcal. Ao longo da análise, foram utilizadas outras referências que se fizeram necessárias,
tendo sido devidamente explicitadas no texto da análise.
21
4 CONCEITO DE CIÚME
De acordo com o Novo Dicionário Aurélio (1986), o ciúme possui cinco significados:
1. sentimento doloroso que as exigências de um amor inquieto, o desejo de posse da
pessoa amada, a suspeita ou a certeza de sua infidelidade, fazem nascer em alguém;
zelos. [Nesta acepç. é m. us. no pl.] 2. Emulação, competição, rivalidade. 3.
Despeito invejoso; inveja. 4. Receio de perder alguma coisa; cuidado, zelo: Guardou
o retrato com ciúme. (NOVO DICIONÁRIO AURÉLIO DA LÍNGUA
PORTUGUESA, 1986, p. 414).
Para Adler (1967), o ciúme é um traço de caráter e, ao mesmo tempo, uma maneira de
lutar para manter a dominação. Ele aparece sob formas diversas: desconfiança, preparação de
armadilhas, críticas aos colegas e no medo constante de ser preterido. Gostar de ser desmancha-
prazeres, opor-se sem motivo, restringir a liberdade do outro e conseguir domi-loo outras
manifestações do ciúme. O ciumento pode estabelecer regras de amor para o parceiro:
Fixar para outrem uma série de regras de conduta é um dos expedientes prediletos
do ciúme. É este o padrão característico de procedimento que uma pessoa adota,
quando intenta ditar jeitosamente algumas regras de amor ao cônjuge, quando cerca
de muralhas a pessoa a quem ama, e lhe determina para onde deve olhar, que deve
fazer e como deve pensar. (ADLER, 1967, p. 200-2001).
A finalidade do ciúme é roubar a liberdade do outro, fazê-lo andar em determinado
trilho ou mantê-lo acorrentado (ADLER, 1967, p. 198-201).
Podemos entender que o ciúme descrito por Adler é característico da cultura patriarcal,
na qual o homem vê a mulher como propriedade sua, dominando-a e controlando-a.
Para Alberoni (1988), o ciúme surge quando uma pessoa percebe que o ser amado se
sente atraído e fascinado por algo que ela não possui e que outra pessoa tem. Este autor
entende que o ciúme significa reconhecer que outra pessoa possui algo de valor para o ser
amado, que a própria pessoa não tem. Diante desta atração do ser amado por algo de outra
pessoa, o indivíduo enamorado sente seu próprio valor anulado, sendo tirado o mérito daquilo
que ele é. Este autor ainda escreve que:
Se o ciúme aparece no enamoramento, eno significa que um dos dois, na realidade,
não quer se enamorar ou não está enamorado. Se o ciúme é infundado - porque o
22
outro está realmente enamorado - , então significa o nosso medo, o nosso não querer
amar, o nosso não querer acreditar, o nosso não querer abrir-nos à confidência do
estado nascente. Na verdade, o ser amado nada encontra de irresistível no outro ou
nos outros; estes não têm poder sobre ele. Sentimos esse poder porque não temos
confiança no nosso eu, não acreditamos no valor da nossa individualidade.
(ALBERONI, 1988, p. 66-67).
A seguir, veremos o conceito de ciúme do ponto de vista da Psicanálise.
4.1 Ciúme do ponto de vista da Psicanálise
Para Freud (1976), o ciúme é um estado emocional normal. No caso de pessoas que
aparentam não experimentar este estado, pode-se inferir que ele foi reprimido e que atua mais
intensamente a partir do inconsciente.
Os três graus do ciúme podem ser descritos como: competitivo ou normal,
projetado e delirante.
O ciúme normal é composto por pesar, sofrimento devido a pensamentos de perda do
objeto amado; sentimentos de inimizade em relação ao rival bem sucedido; e pela autocrítica,
que procura responsabilizar o ego do sujeito pela perda.
Apesar de ser chamado de normal, este tipo de ciúme não é completamente racional,
ou seja, derivado da situação real, nem é completamente controlado pelo ego, pois está
enraizado no inconsciente e é uma continuação das primeiras manifestações da vida emocional
da criança. O ciúme normal tem sua origem no complexo de Édipo do primeiro período sexual.
O ciúme projetado tem sua origem no próprio desejo do sujeito de ser infiel. Os impulsos
para a traição (dirigidos ao sexo oposto) são reprimidos e projetados no parceiro amoroso. À
medida que o sujeito focaliza sua atenção na infidelidade de seu parceiro, seus próprios impulsos
para traição são ignorados, permanecendo inconscientes. Quando a pessoa traiu seu parceiro, o
ciúme pode servir para acalmar suas autocensuras em relação à sua própria infidelidade.
23
O ciúme delirante constitui-se numa defesa contra impulsos homossexuais reprimidos.
No caso masculino, o homem nega que deseja outro homem, atribuindo este desejo à sua
mulher (FREUD, 1976, p. 271-276).
Para Klein e Riviere (1975), o ciúme ocorre no contexto de rivalidade amorosa,
representando uma reação de agressividade e ódio devido a uma perda ou ameaça dela. A
pessoa ciumenta sempre se sente humilhada e inferiorizada, além de indigna, deprimida e
culpada. Estas emoções decorrem da seguinte lógica: se ela não é amada ou não se sente
amada, é porque não é digna de amor, e que é odiável, por não ter sido suficientemente boa.
A sensação de desvalia e depressão, provocada pela noção de ser indigna de ser
amada, é insuportável, de maneira que o rival é condenado e odiado, atenuando esta
sensação. Desta maneira, ainda que infundado, o ciúme tem a finalidade de descarregar a
própria maldade da pessoa sobre o rival, razão pela qual é experimentado com tanta
freqüência (KLEIN e RIVIERE, 1975).
Quando um homem perde a mulher que ama ou acredita que irá perdê-la, ele está
reagindo não apenas à perda do seu amor ou de sua posse, mas também à perda de seu valor
diante dele mesmo. Isso porque um parceiro sexual é considerado uma prova da
preponderância do bem sobre o mal, que é buscada por todos. O parceiro sexual é considerado
um dos símbolos de bondade que têm como objetivo contrabalançar a maldade que existe
dentro da pessoa. Assim, no amor, o companheirismo possibilita a satisfação dos instintos
vitais harmonizadores, autopreservadores e sexuais, intensificando a segurança contra os
impulsos destrutivos (KLEIN; RIVIERE, 1975).
24
4.2 Ciúme do ponto de vista da Psicologia Analítica
De acordo com Schmitt (2006), Jung não estabelece uma diferença entre emoção e
afeto, considerando estes termos como sinimos. Mas distingue estes vocábulos de
sentimento, entendendo que este último poderia estar disponível voluntariamente à
consciência, enquanto que o afeto não estaria. As emões influenciam a consciência, de
maneira que o pensamento afetivamente carregado é enfatizado, em detrimento dos outros.
As emoções são definidas por Jung como “[...] reações instintivas, involuntárias que
perturbam a ordem racional da consciência com suas irrupções elementares.” (JUNG, 2006a,
§ 497, p.272), afirmando, ainda, que o afeto é tanto mais patológico quanto mais violento ele
for. Neste caso, um ou mais complexos invadem a consciência e o ego é subjugado.
Ao analisarmos as características do afeto (ou emoção), podemos entender que o
ciúme patológico é um afeto, já que ele é intenso, atrai a atenção do ego para o que estiver
relacionado a ele, de forma que até mesmo os fatos da realidade externa podem ser ignorados
e distorcidos pelo ciumento patológico. Assim, prevalecem na consciência conteúdos
fantasiosos, relacionados ao complexo patológico e às emoções por ele evocadas. Podemos
observar que o ciumento patológico enxerga a realidade por meio das lentes dos seus
complexos sombrios não integrados que o fazem ver traição onde existem apenas fatos
corriqueiros. O ciúme não está sob o seu controle egóico e por isso não poderia ser
considerado um sentimento. Neste estudo, portanto, iremos considerar o ciúme um afeto ou
emoção, entendendo estes termos como sinônimos.
Jung não define o ciúme, mas menciona este afeto ao longo de seus escritos. A seguir,
iremos mostrar em quais contextos de suas obras este vocábulo é citado.
Ao discutir o conceito de libido do ponto de vista freudiano, ele trata o ciúme como
uma manifestação afetiva:
25
Mas deveríamos admitir também que tudo quanto recai no âmbito do conceito mais
amplo de sexualidade, acima explicado, já estaria presente, em forma reduzida
como, por exemplo, todas aquelas manifestações afetivas da psicossexualidade
como a necessidade de carinho, o ciúme e muitas outras manifestações afetivas e,
não em menor grau, as neuroses infantis. (JUNG, 1989, § 259, p.124 grifo nosso).
Quando questiona o complexo de Édipo, Jung caracteriza o ciúme como uma defesa
em relação ao objeto visado:
A denominação complexo de Édipo não quer dizer que se considere este conflito em
sua forma adulta, mas em sua dimensão enfraquecida e reduzida, própria da infância.
Antes de tudo quer significar apenas que as solicitações de amor da criança se
dirigem ao pai e à mãe, e à medida que essas solicitações tiverem atingido certa
intensidade, a ponto de defenderem com ciúme o objeto visado, podemos falar de
um complexo de Édipo. (JUNG, 1989, § 343, p. 155, grifo nosso).
Em Psicologia do inconsciente, Jung analisa o caso de uma paciente que sonhou
que sua mãe havia morrido. Ele entende que a filha estaria apaixonada pelo pai e teria
o desejo inconsciente de afastar a mãe, mencionando seu “impulso infantil de ciúme”
(JUNG, 1995, § 22, p. 15).
O ciúme entre irmãos é relatado em O desenvolvimento da personalidade. No início
do livro, Jung usa o termociúme infantil”, para referir-se ao caso de uma menina de quatro
anos que acabava de saber que ganhara um irmãozinho (JUNG, 2006b, § 11, p. 16). No final
da obra, ele comenta que um menino de sete anos sentia ciúme de seu irmão mais novo. O
paciente tinha dificuldade para falar, andar e era vesgo, enquanto o irmão menoro
apresentava estes problemas, sendo admirado por realizar tarefas com facilidade. Ele se
irritava com seus próprios insucessos e tinha acessos de raiva (JUNG, 2006b, § 213, p. 126).
Neste contexto, podemos estabelecer uma relação entre ciúme e complexo de inferioridade, já
que podemos imaginar que o menino de sete anos se sentia inferior ao irmão mais jovem,
competindo com ele pela atenção e aprovação dos pais. Esta observação é importante porque
o ciúme patológico está intimamente relacionado com o complexo de inferioridade, uma vez
que o ciumento acredita - consciente ou inconscientemente - que seu rival (real ou imaginário)
é superior a ele em um ou mais aspectos.
26
O cme de filhos adultos também é mencionado por Jung. No livro Os arquétipos e o
inconsciente coletivo, ele fala sobre o ciúme da filha em relação ao pai. Descreve mulheres
que apresentam uma relação incestuosa com o pai e sentem prazer em destruir casamentos
(JUNG, 2006a, § 168, p. 98). No parágrafo 170 da mesma obra, Jung traça o perfil de uma
mulher que possui um complexo materno:
Seu lema é: qualquer coisa menos ser como a mãe! Trata-se, por um lado, de um
fascínio que no entanto nunca se torna uma identificação, e, por outro, de uma
exacerbação do eros que se esgota porém numa resistência ciumenta contra a mãe.
Tal filha sabe tudo o que não quer, mas em geral não tem certeza acerca do que
imagina ser seu próprio destino. (JUNG, 2006a, § 170, p. 100, grifo nosso).
Em outro livro, Freud e a psicanálise, Jung descreve o caso de uma paciente histérica
que se sentiu indecisa entre se casar ou permanecer na casa dos pais. Ela brigou com seu
pretendente e rompeu o relacionamento. Após este acontecimento, passou a se sentir
constantemente irritada, prejudicando o relacionamento dela com seus pais. Também passou a
sentir ciúme da irmã mais nova, que estava prestes a se casar (JUNG, 1989, § 386, p. 172).
Nesta mesma obra, Jung menciona o ciúme sentido pela amiga de sua paciente que
havia sido traída por ela e pelo próprio marido. Ele escreve: “Este jogo estranho não escapou
aos olhos perspicazes do ciúme feminino. A Sra. A, sua amiga, percebeu o segredo e
martirizava-se por isso; crescia seu nervosismo. Chegou ao ponto de ter que procurar a cura
em outro país.” (JUNG, 1989, § 360, p. 162).
No final do livro, ele critica os pais que dominam os filhos e acabam por prejudicar a
vida afetiva deles: “[...] as mães que, já no berço, excitam seus filhos com exagerado carinho,
que os transformam depois em bonecos escravos e, ao final, estragam a vida amorosa deles
por ciúmes [...](JUNG, 1989, § 730, p. 306).
No parágrafo 743 da mesma obra, Jung fala sobre o aspecto negativo do arquétipo
paterno: “Asmodeu representa o papel de um pai ciumento que não deseja entregar sua filha
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querida e só concorda quando pensa em seu próprio aspecto positivo e, como tal, presenteia
Sara com um noivo adequado. (JUNG, 1998, § 743, p. 310).
Em Psicogênese das doenças mentais , ao elucidar como funcionam os mecanismos de
compensação, escreve sobre o ciúme sentido pelo alcoólatra:
Outro exemplo da forma particularmente característica de compensação inconsciente
é a paranóia do alcoólatra. Ele deixa de amar sua mulher: a compensação
inconsciente tenta trazê-lo de volta para o seu dever. Como ele passa a sentir um
ciúme exacerbado da mulher, a compensação se dá parcialmente. Sabemos que
uma pessoa pode levar seu ciúme ao extremo, a ponto de matar a mulher e a si
próprio. Em outras palavras: o amor pela mulher não morreu inteiramente, apenas
tornou-se inconsciente, só poderá aparecer, no âmbito da consciência, sob a forma
de ciúme. (JUNG, 1986, § 461, p. 192, grifo nosso).
Podemos entender que, neste caso, o ciúme do alcoólatra seria uma expressão de amor,
de acordo com as explicações de Jung. Pensamos que também poderia ser interpretado como
uma expressão de posse, mais que de amor.
Segundo Aldo Carotenuto (2004), o ciúme surge sempre no contexto da traição e o
importa se está fundado na realidade ou não, já que ele resiste tenazmente a qualquer
redimensionamento. O ciumento observa os gestos da pessoa amada para confirmar suas
suspeitas, embora sua vontade consciente deseje que a hitese de traição seja negada.
A pessoa ciumenta não consegue manter uma relação de objetividade com os fatos, de
maneira que eles são interpretados a partir de uma perspectiva obsessiva, favorável às
suspeitas. Quando a pessoa percebe que perdeu o controle sobre o outro, isso significa que a
relação terminou (CAROTENUTO, 2004).
De acordo com Carotenuto (2004), o ciumento possui uma fantasia inconsciente de
trair para afirmar sua autonomia em relação à pessoa amada. Assim, é difícil diferenciar a
acusação de traição da projeção do próprio desejo de trair. No relacionamento amoroso, cada
parceiro sente necessidade de controlar o outro e o ciúme pode funcionar como uma
justificativa para exercer este controle e vigilância, quando não existem outros pretextos
plausíveis (CAROTENUTO, 2004).
28
Para Carotenuto (2004), existem casos em que um dos parceiros assume
constantemente um comportamento sedutor para provocar ciúme. E comumente um indivíduo
potencialmente ciumento se apaixona exatamente por aquela pessoa que apresenta uma
atitude sedutora. Isto ocorre porque o traidor precisa da pessoa ciumenta, pois esta i
controlar seus impulsos de traição, que são resultantes de sua auto-estima frágil, o que faz
com que o traidor necessite de constantes provas de que é desejado.
Os sentimentos de posse e exclusividade em relação ao outro podem estar relacionados
ao modelo familiar que a pessoa teve. Segundo Araujo (2005), a criança que foi criada por
pais que focalizaram toda sua atenção nela, deixando de lado outros papéis em sua vida (como
o de marido, esposa, profissional, por exemplo), terá dificuldades para se relacionar com mais
de uma pessoa. Assim, ela tenderá a se relacionar apenas com uma pessoa, vivendo em função
dela e exigindo exclusividade, o que dificultará sua socialização e relacionamento amoroso, já
que sentirá ciúme sempre que seu parceiro se relacionar com outras pessoas além dela
(ARAUJO, 2005, p. 32-34).
Para Carotenuto (1994), o ciúme é gerado pelo medo de perder o objeto de amor e
provoca muita angústia. Ele recria a necessidade de um afeto ilimitado e exclusivo, que é uma
expressão vital na criança. O sofrimento gerado pelo ciúme decorre do fato de que o ciumento
sente que só pode crescer junto com o ser amado e que, sem ele, sua vida não tem significado.
O que provoca a angústia do ciumento é o medo de perder o que o elemento erótico representa
na relação e não a infidelidade sexual em si.
O ciúme pode expressar o desejo de ser o centro das atenções e geralmente
expressões muito intensas e irrealistas revelam problemas psicológicos. Mesmo assim,
Carotenuto afirma que um indivíduo que não sente ciúme do seu parceiro não é
autêntico. A pessoa só se dá conta de si mesma e tem a possibilidade de se conhecer e de
29
compreender mais profundamente que tipo de relação tem com o ser amado quando se
confronta com afetos como o ciúme (CAROTENUTO, 1994).
Para Carotenuto (1994), o encontro é colocado em crise pelo ciúme. Antes do
surgimento deste afeto, o casal vive na ilusão da eternidade, acreditando que o campo
psicológico constrdo entre eles duraria para sempre.
Grinberg (2000) fez um estudo sobre a psicopatologia do ciúme e da traição,
analisando a obra Dom Casmurro, de Machado de Assis. Segundo ele, o ciúme, numa
situação normal, tem a função de regular a possessividade e onipotência do indivíduo diante
do outro, fazendo-o perceber que ele não pode ter o outro de “maneira eterna, perene e
incondicional.” (GRINBERG, 2000, p. 69).
Rinne (1999) faz uma análise da personagem mítica Medéia, traçando um histórico
sobre a feminilidade, os relacionamentos e o ciúme. Na versão do dramaturgo Eurípedes,
Medéia era uma princesa da Cólquida, prudente, com poderes mágicos e curadores. Ela se
apaixonou por Jasão, líder dos Argonautas, que foi à sua terra para conquistar o velocino de
ouro. Medéia ajudou Jasão, opondo-se ao seu próprio pai e fugiu com ele para se casar e viver
em outro lugar. Ambos juraram fidelidade e amor eterno, casaram-se e tiveram filhos. Após
muitos anos de matrimônio, Jasão abandonou-a e se casou com outra mulher, permitindo que
Medéia fosse exilada junto com seus filhos. Ela se vingou matando a amante de Jasão e seus
próprios filhos (que tivera em seu casamento).
Na prática clínica, observamos que muitas mulheres dedicam suas vidas ao marido e
casamento, sentindo ciúme e ódio quando o relacionamento é ameaçado ou termina. Como o
ódio não é considerado feminino na cultura patriarcal, é comum que fiquem deprimidas, ao
dirigirem esta emoção para dentro de si mesmas.
Para Rinne (1999), o ciúme consiste numa mistura de afetos negativos, tais como:
[...] medo de perder o amor e a intimidade; inveja da maior liberdade e do
sentimento mais forte de autovalorização que se imagina que o parceiro ou rival tem;
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dúvidas sobre si próprio; sentimento de impotência, de depenncia e da própria
falta de valor. (RINNE, 1999, p. 69-70).
De acordo com Rinne (1999), o cerne do ciúme, para ambos os sexos, é a diminuição
do sentimento de seu próprio valor e do respeito por si mesmo. O ciúme passou a significar
perda de prestígio e, por isto, as pessoas passaram a evitar sua causa, envolvendo-se menos
com seus parceiros. Este é um modelo masculino de relacionamento que começou a ser
adotado pelas mulheres também.
Negar e reprimir o ciúme não é a melhor alternativa, pois ele é um afeto de proteção
que indica que aconteceu uma mudança no relacionamento e na imagem que se tem de si
mesmo. Com a ajuda desta emoção, é possível constatar mudanças que ocorreram na relação e
que não foram percebidas por não se querer admiti-las (RINNE, 1999).
Na prática clínica, é possível observar que, atualmente, os homens parecem sentir
tanto ciúme quanto antes, ou até mais, já que as mulheres independentes dos pontos de vista
financeiro e emocional, podem abandoná-los a qualquer momento caso descubram que estão
sendo traídas ou que o parceiro não está correspondendo às suas expectativas.
Também observamos homens que temem não corresponder às expectativas femininas
e que ficam avaliando seus próprios desempenhos sexual e profissional, acreditando que uma
performance negativa poderá gerar uma traição ou mesmo abandono por parte da parceira.
Até agora, vimos o que Jung e alguns autores pós-junguianos escreveram sobre o
ciúme. A seguir será mencionado um autor neo-junguiano importante para este trabalho.
De acordo com Byington (2002) - criador da Psicologia Simbólica - o ciúme pode
tanto promover o desenvolvimento do indiduo quanto estagná-lo ou dificul-lo,
dependendo da maneira como o ego lida com este afeto.
[...] Na Psicologia Simbólica, as funções estruturantes podem atuar de forma
criativa, na formação da Consciência, ou de forma defensiva, na formação da
sombra. [...] as mesmas funções estruturantes, como por exemplo, inveja,
agressividade, transgressão, ciúme, vergonha, ambição, criatividade e tantas outras,
podem atuar para o Bem ou para o Mal, dependendo da elaboração simbólica.
(BYINGTON, 2002, p. 20, grifo nosso).
31
Em seu livro intitulado Inveja criativa, a inveja é caracterizada como uma função que
tem o objetivo de motivar o indivíduo a desenvolver aspectos psíquicos até então
negligenciados, integrando-os em sua consciência. Ela funciona, assim, como um símbolo
que, ao ser elaborado, possibilita a transformação de energia inconsciente em energia
consciente, disponível ao ego. Sendo assim, “Estigmatizar e reprimir a inveja é limitar o
estímulo que o desenvolvimento do Outro proporciona ao ego e, assim, mutilar uma das
funções mais importantes da vida psíquica.” (BYINGTON, 2002, p. 13).
A identidade do ego é estruturada através de duas poderossimas funções
estruturantes: o amor e o poder. Estas funções são auxiliadas por outras: ciúme e inveja. O
ciúme “esclarece para a consciência até onde o amor tem direitos e deveres e mostra quando
ele transgride suas fronteiras e torna-se defensivo, ou seja, inadequado, possessivo e
destrutivo.” (BYINGTON, 2006, p.50).
Para Byington (2006), devido a um distúrbio no processo de elaboração simlica, as
funções estruturantes se tornam fixadas e, conseqüentemente, defensivas. Nestes casos,
passam a expressar a sombra, que contém a inadequação, os sintomas, o erro e o crime.
Sintomas como tristeza, desânimo e depressão com freqüência são expressões da função
estruturante do amor que foi deformada por uma defesa. A psicoterapia simbólica propõe que a
função estruturante que se tornou defensiva seja elaborada, de maneira que seus componentes
fixados sejam resgatados e liberados, para que possam agir plenamente na consciência.
O ciúme normal é uma função que cuida e protege o amor, alertando a consciência sobre
seus diferentes estados e limites. Ele faz pensar sobre a beleza, a profundidade, a criatividade e
as maravilhas do amor. O ciúme deve ser respeitado, pois assim o amor é cultivado e
preservado. Para Byington, amor e ciúme estão intrinsecamente relacionados, já que o ciúme é o
32
guardião do amor, que o guia e delimita seu território. Em outras palavras, quando não se sente
mais ciúme de uma pessoa, isso significa que ela não é mais amada (BYINGTON, 2006).
De acordo com Byington (2006), quando o ciúme é simplesmente desqualificado e
reprimido, ele passa a operar na sombra, tornando-se inadequado e destrutivo. Assim, uma
pessoa pode se mostrar intolerante, possessiva, obsessiva e agressiva, o que faz com que o
nculo amoroso seja destruído.
4.3 Ciúme patológico do ponto de vista psiquiátrico
De acordo com o DSM-IV, o manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais
(1995), os critérios diagnósticos para o transtorno da personalidade paranóide são:
A. Um padrão de desconfiança e suspeitas invasivas em relação aos outros, de modo
que seus motivos são interpretados como malévolos, que começa no início da idade
adulta e se apresenta em uma variedade de contextos, como indicado por pelo menos
quatro dos seguintes critérios:
(1) suspeita, sem fundamento suficiente, de estar sendo explorado, maltratado ou
enganado pelos outros
(2) preocupa-se com dúvidas infundadas acerca da lealdade ou confiabilidade de
amigos ou colegas
(3) reluta em confiar nos outros por um medo infundado de que essas informações
possam ser maldosamente usadas contra si
(4) interpreta significados ocultos, de caráter humilhante ou ameaçador, em
observações ou acontecimentos benignos
(5) guarda rancores persistentes, ou seja, é implacável com insultos, inrias ou
deslizes
(6) percebe ataques ao seu caráter ou reputação que não são visíveis pelos outros e
reage rapidamente com raiva ou contra-ataque
(7) tem suspeitas recorrentes, sem justificativa, quanto à fidelidade do cônjuge ou
parceiro sexual
B. Não ocorre exclusivamente durante o curso de Esquizofrenia, Transtorno do
Humor Com Aspectos Psicóticos ou outro Transtorno Psicótico, nem é decorrente
dos efeitos fisiogicos diretos de uma condição médica geral. (DSM-IV: MANUAL
DIAGNÓSTICO E ESTATÍSTICO DE TRANSTORNOS MENTAIS, 1995, p.
601).
Este transtorno é o que mais se aproxima das características do ciúme patológico
masculino.
33
O psiquiatra Mourão Cavalcante (1997) realizou um estudo sobre o ciúme patológico,
escolhendo pacientes que apresentavam este sintoma, e chegou às conclusões que serão
explicitadas a seguir.
O ciúme patológico é encontrado em diversas doenças psiquiátricas, manifestando-se de
forma peculiar, condizente com a patologia. Mesmo assim, existe algo comum em todas as
manifestações: o fato de que o transtorno atinge a esfera da ideação e da afetividade. A afetividade é
a maneira como o homem se sente e reage aos variados acontecimentos (CAVALCANTE, 1997).
Segundo Cavalcante (1997), o ciúme patológico pode aparecer nas psicoses delirantes
crônicas, que têm como característica a presença de idéias delirantes permanentes, devido a uma
alteração na estrutura da personalidade. A vida afetiva do paciente e seus relacionamentos ficam
prejudicados, pois seu sistema de idéias fica perturbado por ilusões e interpretões que
destoam da realidade. Muitos dos pacientes acometidos por esta patologia conseguem manter
uma relativa adaptação ao mundo exterior por um longo tempo. Existem pacientes que são
capazes de manter um relativo equilíbrio e reconhecimento profissional, embora o
relacionamento afetivo com a esposa seja bastante patológico e cause grande sofrimento.
A paranóia é o transtorno mais comumente associado ao ciúme patológico, constituindo-
se de delírios paranóicos sistematizados. A personalidade paranóica é caracterizada pelos
seguintes traços: orgulho, desconfiança, rigidez psíquica e falsidade de julgamento. O paranóico
é intolerante, desafiante e fechado em si mesmo. O delírio de ciúme (patológico) começa a
partir da suspeita de infidelidade do cônjuge ou parceira, baseado na percepção de um gesto,
olhar ou simples aperto deo que são julgados como inlitos e logo se tornam uma
convicção de traição. O paranóico tem a certeza absoluta de que foi ou está sendo trdo, o que
deduz a partir de simples coincidências, passando a interrogar constantemente sua companheira
e a vig-la, atendo-se altiplos detalhes (CAVALCANTE, 1997).
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Além disso, o indivíduo paranóico acredita que existe um complô contra ele, que o estaria
enganando e ajudando a esposa a tr-lo. O próprio médico, além dos vizinhos, pode ser acusado
de cumplicidade com a mulher ou mesmo de serem amantes dela. (CAVALCANTE, 1997).
De acordo com Cavalcante (1997), o ciúme patológico também aparece nas psicoses
alucinatórias crônicas, entre elas a parafrenia, esquizofrenia e esquizofrenia paranóide. Os pacientes
evoluem na doença estruturando temas de perseguição, de grandeza e de ciúme. A partir de dados
alucinatórios, o delírio é elaborado, incorporando elementos da imaginação e racionalizações.
As parafrenias são caracterizadas por falsas lembranças e acontecimentos que o
paciente diz para si mesmo e para os outros. São histórias extraordinárias e sedutoras,
embora às vezes sejam incoerentes ou contraditórias, sendo delirantes e possuindo um
fundo fantasioso (CAVALCANTE, 1997).
Segundo Cavalcante (1997), a esquizofrenia é particularmente caracterizada pela
dissociação da personalidade, além de predominarem idéias delirantes, ambivalência, incoerência
entre o que se pensa e se diz, autismo e alucinações mal sistematizadas. A indiferença e a
estranheza dos sentimentos também fazem parte do quadro no qual existem perturbações afetivas.
A evolução da doença é crônica, existindo a possibilidade de remissão total.
Na vida afetiva do esquizofrênicooharmonia, mas sim contradição,
ambivalência afetiva e desagregação. O paciente não é capaz de discernir se ama ou
odeia (CAVALCANTE, 1997).
Para Cavalcante (1997), a esquizofrenia paranóide é uma das possibilidades de
evolução da esquizofrenia. Nela, o delírio é permanente e a personalidade vai se degradando.
A atividade delirante é vaga, sem que haja um eixo temático mais importante, de maneira que
o conteúdo contaminado é disperso emrios temas. A tendência é que o paciente tenha
delírios cada vez menos compreensíveis e vá se retraindo autisticamente.
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A diferença entre a paranóia e a esquizofrenia paranóide é que o delírio do paranóico é
mais estruturado e consolidado, enquanto que o esquizofrênico paranóide apresenta
neologismos e iias de inflncia que o paranóico não apresenta (CAVALCANTE, 1997).
Segundo Cavalcante (1997), além da esquizofrenia e da paranóia, o quadro de
alcoolismo também pode apresentar ciúme patológico. A chamada psicose delirante crônica
dos alcoolistas é uma doença grave que se expressa quase sempre através de temas recorrentes de
infidelidade e ciúme. Antes do surgimento da psicose, o paciente já apresenta reões paranóides
como desconfiança, ressentimento e orgulho. Depois que abusa do álcool, fica censurador,
irritável e mais desconfiado, justificando idéias de infidelidade e ciúme (supostamente da
parceira) com argumentos ingênuos e absurdos. Na medida em que o delírio progride, o paciente
acusa sua mulher de infidelidades cada vez mais freqüentes e de ter cada vez mais amantes.
O uso de drogas ilícitas como maconha e cocaína também pode agravar ou fazer surgir
um quadro patológico, no qual o ciúme mórbido poderá estar presente (CAVALCANTE, 1997).
De acordo com Cavalcante (1997), no caso dos psicopatas, também pode haver
fantasias persecutórias e de ciúme, embora seu traço mais marcante seja o fato de não aceitar
a contrariedade. Ele pode, por exemplo, agredir a esposa que não satisfez sua vontade
imediata. Pode não se tratar do amor ferido nem mesmo de ciúme patológico, mas sim da
pouca resistência a ser contrariado. Este tipo de patologia é caracterizado por um
indivíduo anti-social, que não respeita regras éticas e apresenta distúrbios de conduta.
Embora possa ser inteligente, não é influenciável por procedimentos médicos nem
educacionais. Alternativas corretivas ou curativas apresentam resultados insignificantes
com estes indivíduos (CAVALCANTE, 1997).
O bom ciúme seria aquele que cuida e protege, zelando pelo ser ou objeto amado. Por
outro lado, o ciúme patológico seria aquele baseado na fusão e na posse. O ciumento
patológico vive na ilusão de que o parceiro é uma parte dele mesmo e, quando a mulher não
36
corresponde mais à imagem que o homem idealizou, ao expressar sua autonomia e identidade,
começam as suspeitas e os conflitos (CAVALCANTE, 1997).
Pensamos que um relacionamento baseado no amor é marcado pelo compartilhamento
e pela troca entre egos com um certo grau de autonomia e integridade. Através de observações
cotidianas e de casos clínicos, podemos hipotetizar que, quando o homem confia nele mesmo,
tende a confiar no mundo e na esposa. Por outro lado, se não tiver esta confiança,
provavelmente irá projetar sua desconfiança no mundo (e na companheira), o que pode ser um
dos fatores contribuintes para o surgimento da paranóia, que é a patologia mais comumente
associada ao ciúme patológico, embora existam outras. Disso decorre que existem vários tipos
de ciúme patológico, dependendo da história individual do paciente e, portanto, as
expectativas de evolução, as propostas terapêuticas e o prognóstico são variados.
Entendemos que, até em um mesmo indivíduo as manifestações do ciúme mudam de
acordo com as circunstâncias ambientais, alternando entre fases de calmaria e outras mais
agudas. Ou seja, o sintoma de sentir ciúme não é linear, assim como a psique também não é.
Pasini (2006) cita o exemplo de um homem que é paranóico e ciumento patológico,
embora não seja violento com sua esposa. Neste exemplo, o paciente é um cabeleireiro que
fica desconfiado de que a esposa tem um amante nos períodos em que o trabalho vai mal.
Nestes períodos de maior insegurança, ele acredita que a companheira sai à noite para ter
encontros com o amante. Por isto, espalha farinha de trigo no piso da escada que fica entre
o apartamento e o salão de beleza. Na manhã seguinte verifica se há pegadas e se,
portanto, a mulher saiu de casa. Também pensa que a mulher se comunica com seus
amantes usando uma espécie de código secreto. Após um ano, acaba por vender o negócio
e mudar de cidade, para defender a sua honra.
Após oito anos, o mesmo paciente acreditava haver manchas de esperma na beira de
sua cama. A partir de então, instalou um alarme que avisava quando alguém entrava na casa
37
pela porta. Passou a acreditar que o amante entrava pela janela e mudou a estratégia de defesa,
passando a ter relações sexuais com a esposa até duas vezes por dia, acreditando que dessa
maneira ela não teria vontade nem energia para se interessar por outros homens. Depois,
passou a trocar seu prato pelo da mulher, por acreditar que ela o envenenava. Também pensou
que havia um complô entre a esposa e a zeladora, contra ele e ofereceu dinheiro para a última,
que chamou a polícia. Ele foi levado para a delegacia por ter um revólver antigo escondido no
armário e, posteriormente, a um hospital psiquiátrico (PASINI, 2006).
É interessante notarmos que o ciúme apareceu quando a atividade profissional
começou a ir mal, provavelmente porque ele associava virilidade com desempenho
profissional, sentindo-se insuficiente em termos sexuais quando não conseguia atingir suas
expectativas profissionais. De acordo com este raciocínio, o ciúme surgiu, portanto, a partir
desta sensação de inferioridade experimentada pelo paciente ao acreditar que outros homens
eram mais potentes do que ele durante os períodos de baixos rendimentos financeiros.
Cavalcante (1997) menciona que não existe ciumento feliz, pois ele vive mergulhado
na dúvida e incerteza, sofrendo muito e tentando construir certezas para si mesmo. Podemos
observar isso até mesmo no título do filme usado como ilustração (“Ciúme, o inferno do amor
possessivo”), pois a palavra “inferno” já descreve o estado psíquico do ciumento. Paul vivia
cheio de dúvidas a respeito da fidelidade de Nelly e se sentia muito infeliz.
Através desta revisão bibliográfica, percebemos que as características comumente
associadas ao ciúme são: poder e posse, desejo de domínio sobre o ser amado ou possuído,
amor e rivalidade amorosa, medo da perda, desejo de exclusividade amorosa e sentimentos de
inferioridade. Estes aspectos e afetos relacionados ao ciúme serão vistos na análise da
ilustração. O modelo familiar também foi destacado por Araujo (2005) como tendo um papel
fundamental na formão do ciumento patológico.
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No próximo capítulo, veremos como o ciúme pôde se manifestar de diferentes
maneiras ao longo da história.
39
5 CIÚME E HISTÓRIA
As manifestações do amor e do ciúme, assim como de outros afetos e estados
emocionais, variam de acordo com o gênero e com os contextos histórico e social, já que, ao
longo da história, as regras dos relacionamentos foram se transformando, possibilitando
diferentes expressões para homens e mulheres.
A partir da observação da história humana, Pasini (2003) concluiu que o ciúme sempre
existiu. O homem sempre se considerou dono do corpo da mulher, o que ele supõe ser
também uma precaução em relação ao risco de ter que criar filhos que não são seus, em
termos biológicos. O ciúme tinha, portanto, uma função preventiva. Aos poucos, no decorrer
do tempo, ele se distanciou desta função e passou a fazer parte do orgulho masculino,
relacionado à posse e exibição da mulher conquistada.
De acordo com Novais (1998), até meados do século XIX, a mulher e o homem
estavam destinados a cumprir rígidos papéis sociais. O homem deveria ser forte, viril, capaz
de sustentar a família, controlar a mulher e os filhos, que deveriam obedecê-lo. A mulher, por
sua vez, deveria desempenhar bem os papéis de mãe, esposa e dona-de-casa, sendo
considerada a rainha do lar, o que a limitava a este âmbito, pois não lhe era permitido se
aventurar nas ruas desacompanhada. A mulher que saísse na rua sem seu marido, irmão ou
pai, na companhia de outro homem, era considerada imoral e manchava sua honra e de sua
família. Na verdade, ela era considerada uma propriedade do homem.
Naquele contexto, entendemos que o papel masculino era cuidar de suas propriedades
e de sua honra, cuidando de sua esposa para que ela não saísse de casa desacompanhada, o
que poderia aumentar a probabilidade de traição, na medida em que ela teria oportunidade de
ver homens nas ruas e outros locais públicos. Além disso, segundo Novais (1998), o homem
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deveria manter seus filhos sob seu controle, impondo sua autoridade para que eles
obedecessem às suas ordens e não saíssem do seu domínio.
Podemos imaginar que o homem que não se comportasse desta maneira era
considerado fraco, menos viril, estando sujeito a ser ridicularizado publicamente. O ciúme
deve ter desempenhado um papel importante na vida masculina, pois deixar a mulher livre
poderia ter como conseqüência a perda da honra masculina e familiar, o que era (e ainda é, em
muitas famílias) algo extremamente valorizado.
Pensamos que, possivelmente, até mesmo homens não ciumentos em sua esncia,
tenham mantido a imagem de ciumentos e controladores com o objetivo de parecerem viris,
especialmente aqueles que duvidavam de sua própria masculinidade, de forma que o
comportamento deles pode ter atuado como um mecanismo compensatório de defesa.
O Código Civil de 1916 continha vários preceitos que legitimavam a superioridade do
marido em relação à esposa. Ao homem cabia a chefia da família, a administração dos bens e
o direito de decidir onde morar. A mulher devia obedecer às ordens do marido, submetendo-
se às suas decisões. A mulher casada só podia trabalhar fora do lar se o marido permitisse ou,
em alguns casos, dependia de autorização de um juiz (NOVAIS, 1998).
Segundo Novais (1998), ao homem cabia decidir onde os filhos iriam estudar e quais
profissões iriam seguir, assim como poderia utilizar vioncia se considerasse necessária para
estabelecer a ordem ou retomá-la. A coerção física praticada pelo homem sobre a mulher, em
casos de desobediência, era legitimada pelos costumes, embora não fosse pela lei.
As justificativas para os homens assumirem a chefia da família mudaram ao longo do
tempo: primeiro, dizia-se que este era seu direito natural, depois, passou a ser justificado pela
“fragilidade” da mulher e, posteriormente, o argumento passou a ser o fato de que ele era o
mais apto para esta função, devido ao seu gênero e sua profissão (NOVAIS, 1998).
41
Durante a década de 1950, as mulheres eram ensinadas a dar liberdade aos seus maridos,
que não deveriam ser incomodados com perguntas e ciúme delas. Elas eram aconselhadas a
permitir que eles saíssem com os amigos e deveriam procurar atraí-los para a vida conjugal com
afeto e agradando-os para conservarem a estabilidade conjugal. A mulher que não se enquadrasse
no ideal de boa esposa corria o risco de perder o marido, pois ele teria que buscar fora de casa a
tranqüilidade e a harmonia que ela não soubesse lhe proporcionar (NOVAIS, 1998).
Segundo Novais (1998), a infidelidade do marido poderia ser justificada quando a
mulher fosse descuidada, dominadora ou queixosa. Em caso de separação, a mulher perdia
seu reconhecimento social, o que fazia com que muitas mantivessem o casamento a qualquer
custo. Esta realidade nos faz imaginar que as mulheres daquela época reprimiam o ciúme que
sentiam em relação ao marido para não perdê-lo.
O homem esperava que sua esposa se vestisse de maneira recatada, que não fosse
muito vaidosa nem chamasse a atenção dos outros para si, limitando seus passeios quando o
esposo estivesse ausente para não provocar ciúme nele. Ela deveria se mostrar bonita para ele,
mas não para os outros (PRIORE, 1997).
Segundo Cavalcante (1997), o homem ciumento acredita que a mulher esteja se
insinuando para outros homens através do uso de roupas sensuais. Ele raciocina da seguinte
maneira: tradicionalmente, a mulher só deve se enfeitar (o que inclui qualquer adorno e
maquiagem, am da vestimenta) para seduzir um homem. E a mulher casada já possui um
homem. Através desta lógica, ele deduz que, se sua esposa está saindo enfeitada ou bem
vestida fora do lar, então ela está querendo seduzir outro homem. Qualquer mudança na
maneira de se vestir ou alteração do visual como, por exemplo, cortar o cabelo, cirurgia
plástica ou simplesmente cortar as unhas pode fazer com que o ciumento patológico se sinta
ameaçado de perder seu objeto amado.
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Segundo Priore (1997), o ideal que regia a cultura patriarcal rezava que o homem não
deveria ser incomodado pela mulher enquanto estivesse lendo jornal e ela deveria entender
que era natural que ele desse mais importância ao seu trabalho do que ao relacionamento
familiar, pois ele não o fazia por mal, mas sim porque era da natureza dele. Ela deveria
compreendê-lo e aceitá-lo, entendendo que ele a amava mesmo assim.
O ideal de mulher dizia que ela deveria estar sempre bem-humorada, colocar os
interesses do marido e da família em primeiro plano, conhecer vários assuntos para saber
conversar com o marido, sem, contudo, contestar ou opinar sobre suas decisões. Ela
poderia manifestar opinião contrária à dele se ele fosse realmente incapaz. Se este não fosse o
caso, ela deveria incentivá-lo nos seus projetos e obedecê-lo (PRIORE, 1997).
Em meados do século XX, o amor era considerado um elemento importante para a
felicidade no casamento, mas não era suficiente para sua manutenção, de maneira que a
opinião e aprovação da família eram muito importantes para uma união conjugal. Desta maneira,
as uniões fora dos padrões estabelecidos eram desencorajadas. Diferenças de classes sociais,
econômicas e raciais causavam muitos conflitos entre casais que tentavam se unir através do amor
(PRIORE, 1997). Ainda observamos este tipo de problema na sociedade contemponea.
De acordo com Priore (1997), ainda na década de 1950, romantismo e sensibilidade
eram características consideradas femininas, mas a paixão deveria ser ajuizada e não poderia
violar as leis da ordem e da moral. Ou seja, entendemos que a mulher poderia se apaixonar e
ser romântica, mas o com qualquer homem.
Segundo Priore (1997), até mesmo os homens deveriam almejar o casamento; do
contrário, eram mal vistos pelas mulheres, que deveriam desprezá-los. Os “bons partidos”
eram aqueles homens honestos que respeitavam suas namoradas, trabalhavam e pretendiam se
casar. Caso quisessem ter relações sexuais antes do casamento, deveriam procurar serviços de
prostituição, as chamadas “mulheres da vida”.
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As expectativas sociais rezavam que a mulher deveria ser firme com seu namorado,
não permitindo carícias íntimas antes do casamento. Caso permitisse, poderia ser considerada
garota “fácil” e o namorado certamente desistiria de se casar com ela, pois acreditaria que não
seria uma boa esposa nem fiel a ele (PRIORE, 1997).
De acordo com Priore (1997), o tempo de namoro não deveria ser muito longo, senão
levantaria suspeitas sobre as verdadeiras intenções do rapaz e também não poderia ser um
tempo muito curto, pois a decisão de se casar teria que ser séria e definitiva, não podendo ser
precipitada. Um namoro ou noivado muito longo feria a reputação de uma moça “de família”,
que se tornava alvo de fofocas. Não se podia namorar sem objetivar o casamento, que era a
maior realização na vida da mulher, incluindo os filhos que viriam posteriormente.
Ainda na década de 1950, a participação feminina no mercado de trabalho cresceu,
surgindo mais oportunidades em áreas como enfermagem, magistério, medicina, assistência
social e comércio, entre outras. As mulheres passaram, então, a estudar mais, a exercer
trabalho remunerado, mudando, conseqüentemente, sua posição social (PRIORE, 1997).
Podemos imaginar que os homens ciumentos se sentiram incomodados com esta mudança.
Segundo Priore (1997), mesmo assim, o trabalho feminino fora do ambiente doméstico
era visto de maneira preconceituosa, já que os papéis femininos de esposa, dona-de-casa e
mãe eram os mais valorizados. Acreditava-se que as mulheres que trabalhavam fora de casa
descuidavam do lar e de suas obrigações domésticas, maternais e familiares, o que era visto
como uma ameaça à estabilidade do matrimônio.
Ainda que a mulher trabalhasse fora de casa para auxiliar o sustento familiar, esta
ocupação era mal vista, pois significava que o marido não conseguia mantê-la financeiramente
por conta própria. Com a chegada do primeiro filho, muitas mulheres interrompiam seu trabalho
remunerado para cuidar dele e serem “preservadas da rua” (PRIORE, 1997).
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Segundo Priore (2005), caso a mulher manifestasse desconfiança do marido, ela seria
acusada de não o estar tratando como deveria e, portanto, aconselhada a cuidar melhor dele para que
ele não procurasse fora o que estava faltando em casa. Entendemos que esta submissão feminina ao
poder masculino pode ser comparada àquela dos religiosos em relação aos seus deuses, isto para não
mencionarmos o direito masculino à poligamia - que ocorre em algumas culturas.
Nas sociedades poligâmicas, o ciúme se manifesta em relação aos presentes que os
homens dão às mulheres, entre outras coisas (PASINI, 2003).
De acordo com Priore (1997), até por volta de 1950, o divórcio não era bom para o
homem, pois ele teria que pagar pensão à mulher e aos filhos, além do fato de que as
expectativas sociais sinalizavam que a dissolução do casamento significava um fracasso, tanto
para o homem quanto para a mulher, embora para a mulher o estigma da separação fosse
maior. Am disso, os filhos também sofriam com o estigma de “filhos de pais separados”, o
que era ruim para toda a família, portanto.
É interessante destacarmos que o ciúme masculino pode se manifestar tanto em
relação à esposa quanto à amante. É comum observarmos que o homem casado que mantém
relações extraconjugais sinta ciúme e controle não apenas a esposa, mas também a(s)
amante(s) e se sinta ofendido caso alguma de “suas” mulheres flertem ou se relacionem com
outros homens. Lembremos que, historicamente, os homens foram incentivados a se
relacionarem sexualmente com muitas mulheres, o que significava (e ainda significa, em
alguns contextos) virilidade.
Além disso, segundo Priore (1997), a grande quantidade de filhos (provenientes do
casamento ou não), também era indício de masculinidade. O poder do patriarca era avaliado
não apenas por seus recursos financeiros e propriedades, mas também pela esposa e filhos que
mantinha em casa sob seu comando.
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Para Giddens (1992), tradicionalmente, considerou-se que os homens têm
necessidade de variedade sexual para manter sua saúde física. Geralmente, tem sido
aceitável que os homens tenham encontros sexuais ltiplos antes de se casarem. E
mesmo após o casamento, a infidelidade masculina tem sido aceita. A feminina, ao
contrio, tem sido altamente condenada e punida.
De acordo com Santos (2003), no contexto da religião judaico-cristã, os seres humanos
não devem sentir ciúme, pois é considerado um pecado. Contudo, Deus é apresentado como
único e que não aceita nenhum outro além dele. Ele é tão ciumento que aplica punições
severas aos transgressores das suas regras (os pecadores), sendo bondoso e misericordioso
com quem o ama acima de tudo e o obedece rigorosamente. Assim, podemos observar que o
ciúme está presente na cultura brasileira - que é predominantemente católica - sendo uma
manifestação emocional aceita (quando parte do líder supremo, Deus) e, ao mesmo tempo,
condenada (quando advém do ser humano comum).
Entre as leis de Moisés, existe uma lei chamada “Lei sobre o ciúme”, que se refere ao
ciúme provocado tanto pelo flagrante de infidelidade quanto pela sua simples suspeita. O
homem que desconfiar que sua mulher o esteja traindo ou o traiu, pode submetê-la a um ritual
complexo, de maneira que a esposa deverá ingerir uma mistura de cevada, areia e água benta.
Segundo a crença religiosa, se a mulher tiver traído o marido, seu ventre iinchar e
arrebentar e sua coxa irá apodrecer. Caso tenha sido fiel, nada de mal lhe acontecerá após a
ingestão da mistura (que ela é obrigada a consumir). Além de todas estas punições, a esposa
será ainda apedrejada, caso seja considerada culpada. Caso seja inocente, nada acontecerá ao
marido que a acusou injustamente (SANTOS, 2003).
No Japão, a infidelidade feminina era punida afogando-se a mulher em água fervente.
Em algumas tribos indígenas da América do Norte, o corpo da suposta infiel era marcado a
fogo (PASINI, 2003).
46
Nos anos 1970, ocorreram muitas transformações nos costumes e na vida privada. O
advento dalula anticoncepcional, o feminismo, os movimentos das minorias, o aumento de
uniões livres e a nudez presente na mídia modificaram a vida das pessoas e a maneira como
elas percebiam o amor (PRIORE, 2005).
Pasini (2003) afirma que a revolução dos costumes provocou uma desvalorização da
fidelidade e do ciúme, rotulando-os como conceitos antigos da burguesia. Assim, o ciúme
passou a ser considerado vergonhoso e escondido dos outros. Ao negar e reprimir esta
manifestação emocional, o homem pode passar a expressá-lo através do corpo, adoecendo.
O dircio só passou a fazer parte das leis brasileiras na década de 1970, tendo sido
considerado freqüentemente maléfico para a estabilidade social, já que enfraquecia a
instituição familiar ou então era considerado propiciador do amor livre (PRIORE, 1997).
Entendemos que, atualmente, estamos vivendo uma fase de transição, na qual
predominam valores patriarcais (hierarquia, por exemplo), mas já existem aqueles da ordem
da alteridade (igualdade, por exemplo). Disso decorre que devem existir diversos tipos de
relacionamentos e, conseqüentemente, várias formas de expressar ciúme. Por exemplo, o
homem machista que acredita que a esposa é propriedade dele e que precisa vigiá-la para
preservar sua honra irá expressar ciúme de forma diferente do homem que vê sua companheira
como uma pessoa com quem ele se relaciona afetivamente de maneira igualitária.
Pessoas de ambos os gêneros têm sido conduzidas a mudarem seus pontos de vista e
seus comportamentos em relação uns aos outros, para se adaptarem a um mundo crescente em
termos de igualdade entre gêneros, ainda que esta não seja completa (GIDDENS, 1992).
Consideramos que muitos homens se sentem constrangidos, ameaçados e enciumados
quando a mulher busca trabalho fora de casa para se tornar financeiramente independente,
especialmente se ela nunca tiver trabalhado. Além disto, quando os rendimentos da mulher são
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maiores do que os do homem, ou passam a ser, muitos também se sentem desonrados, passando
a criar conflitos por este motivo ou simplesmente começando a criticar o trabalho dela.
Para Cavalcante (1997), o ciúme tende a aumentar na sociedade brasileira, pois nossa
cultura valoriza excessivamente o ter, o saber e sentir que “isso é meu”. Neste contexto de
exaltação da possessividade, a tendência é que as pessoas vigiem e zelem para não perderem o
que pensam possuir.
O que atenua a possessividade é que as coisas também são consideradas descartáveis,
de maneira que quando o relacionamento se torna sufocante, a tendência é achar que é mais
fácil terminá-lo. Porém, é comum que mesmo após o divórcio, o ex-cônjuge continue
tentando controlar e vigiar a mulher, muitas vezes condicionando o pagamento da pensão ao
comportamento da ex-esposa. Geralmente, fica revoltado e até desesperado (em casos de
ciúme doentio) se a ex-mulher começa a namorar outro homem (CAVALCANTE, 1997).
Pasini (2003) menciona alguns casos de homens ciumentos. Um deles o aceitava o
fato de que a mulher havia perdido a virgindade com outro homem. Além disto, ficava
imaginando se sua esposa se casaria novamente após a morte dele e se ela sentiria vontade de
se relacionar sexualmente com outro homem. Também pensava sobre a possibilidade de que
viesse a sentir maior prazer neste relacionamento que poderia acontecer.
Pasini (2003) ainda escreve que Picasso era bastante ciumento e infiel. Ele escondia os
sapatos da mulher para que ela não saísse de casa. O resultado deste comportamento foi que
ela se apaixonou por outro homem e fugiu do lar. Ou seja, entendemos que o que ele
provavelmente mais temia, aconteceu.
O ciúme, tanto masculino quanto feminino, parece ser um afeto que sempre existiu,
embora sua manifestação esteja condicionada à cultura e às peculiaridades da personalidade
de cada indivíduo.
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Neste capítulo, observamos como o ciúme masculino se expressa na cultura patriarcal.
Historicamente, a mulher tem sido considerada propriedade do homem e seu comportamento,
associado à honra dele e de toda a família.
Homens e mulheres estiveram e ainda estão, em sua maioria, presos a papéis de
neros fixos, embora estejamos vivendo numa fase de transição, na qual já existe
flexibilização das funções masculinas e femininas em alguns contextos. Ao homem tem sido
delegada a tarefa de prover o sustento familiar, governar a família, administrar os bens e
tomar decisões importantes. À mulher têm sido destinadas as tarefas de obedecer às regras
masculinas e cuidar do lar, dos filhos e do marido, deixando seus interesses pessoais e
profissionais em segundo plano.
Na cultura patriarcal, que ainda predomina na sociedade ocidental, o homem expressa
seu ciúme através da vigilância e do controle sobre o comportamento de sua companheira,
sentindo-se dono dela e dominando-a.
Atualmente, em alguns contextos, os homens já podem expressar seus sentimentos e
fraquezas, cuidar da casa e dos filhos, o que revela que houve mudanças. Observamos
relacionamentos entre gêneros nos quais predominam a igualdade e a liberdade de expressão,
mas este modelo não é o predominante.
A seguir, veremos como o princípio masculino e o homem estão inseridos na cultura
patriarcal.
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6 O MASCULINO E O HOMEM NA CULTURA PATRIARCAL
De acordo com os valores patriarcais, o princípio masculino é superior ao
feminino, as relações são hierarquizadas, baseadas no poder e na dominação. De acordo
com os valores da ordem da alteridade, as relações são simétricas, democráticas, não
existindo hierarquia. A base da alteridade é levar em consideração a opinião do outro,
incluindo-o nos grupos e na sociedade (BOFF, 1997).
Em alguns contextos, o padrão de masculinidade já não é tão homogêneo nem rígido,
possibilitando aos homens novas possibilidades de expressão de sua individualidade, sem que
sejam considerados menos viris quando mostram ter características antes consideradas
essencialmente femininas.não existem mais pais sociais tãogidos para os gêneros em
muitos contextos e culturas.
No mundo atual, os papéis masculino e feminino não se encontram delineados como
em gerações passadas, e podemos observar as profundas mudanças por que passou a
posição da mulher na sociedade, assumindo papéis anteriormente considerados
masculinos. (MATOS, 1997, p. 193-194).
Para Boff (1997), a crise do masculino está relacionada às próprias características do
paradigma dominante na cultura patriarcal. A atitude baseada no poder e na dominação existe
desde o Neotico, quando os homens começaram a dominar a Terra, aproveitar-se de seus
recursos, conquistar outros povos e domi-los.
A partir do século XVI, com a modernidade, começou a ser montada a máquina
mercantilista e industrialista e o modelo baseado no poder e na dominação se tornou mais
expressivo. Tanto no homem quanto na mulher, o poder é uma das características
fundamentais do princípio masculino. Na sociedade patriarcal predomina este prinpio, pois
as relações hierarquizadas e baseadas no poder estão presentes em todos os âmbitos: familiar,
profissional, social, potico e até de lazer (BOFF, 1997).
50
Segundo Boff (1997), no Brasil, o extremo do donio do masculino se manifestou
por meio da ditadura, que dominou e coagiu as pessoas usando o medo como forma de
controle e a tortura como punição para quem discordasse do sistema de dominação
estabelecido. Boff (1997) afirma que:
[...] a questão do masculino nos dias de hoje é o feminino negado, reprimido ou não
integrado. Para ser humano plenamente, o homem precisa reanimar nele o seu
feminino e reeducar seu masculino. Somente então podem ambos, homem e mulher,
entreter relações civilizatórias, humanitárias e realizadoras do mistério humano
feminino-masculino. (BOFF, 1997, p. 102).
A maior tarefa da civilização atual é resgatar o princípio feminino, de acordo com
Boff (1997), o que já está começando a acontecer. A partir do início do século XX, o
paradigma científico cartesiano (baseado no princípio masculino) começou a entrar em crise.
Ele ainda predomina na cultura e na ciência, mas paulatinamente está cedendo espaço para um
modelo baseado no princípio feminino: holístico, sistêmico, inclusivo e espiritual.
De acordo com essa nova visão, tudo está relacionado com tudo e o todo não é
simplesmente a soma das partes, mas é caracterizado por relacionamentos mais complexos. A
ligação entre os seres e a natureza, a interdependência, a mesma origem e destino dos seres
que come este universo constituem a marca desta nova visão de mundo. A partir dessa
perspectiva, o universo é um todo relacional (BOFF, 1997).
Para Boff (1997), o novo paradigma (sistêmico) é guiado pelo princípio feminino que
agrega as diferenças, que tolera, cuida e nutre. Ele respeita a natureza, os animais, os homens,
as mulheres, enfim, todos os seres vivos, pois sabe que todos estão relacionados entre si. Ele é
inclusivo e integra o masculino, respeitando suas peculiaridades. Esta nova postura diante da
vida, que integra feminino e masculino na conscncia de homens e mulheres está,
lentamente, ganhando força, o que pode ser observado através dos movimentos ecológicos e
sociais, além das mudanças nos relacionamentos entre gêneros.
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Entendemos que, em alguns contextos, os homens estão exercendo papéis sociais que
anteriormente estavam restritos ao gênero oposto, como cuidar dos filhos, por exemplo. Eles
já estão começando a ver e expressar o princípio feminino em sua consciência, o que era
muito raro anteriormente. Ou seja, estão descobrindo eros, o prazer do relacionamento
emocional com as pessoas, a liberdade de poder expressar seus sentimentos e fraquezas, o que
antes era “proibido” pelas normas culturais.
Observamos que, em certos contextos, não é mais “feio” para um homem lavar a louça
e cuidar dos afazeres domésticos, não é mais humilhante chorar emblico, embora na
maioria dos contextos ainda prevaleçam as regras morais patriarcais. Algumas mulheres até
preferem se relacionar com homens que dividem as tarefas domésticas e expressam
abertamente seus sentimentos, pois são mais capazes de empatia e compreensão,
características muito importantes para que um relacionamento seja satisfatório a longo prazo.
Matos (1997) ilustra como essas mudanças se refletem no relacionamento entre pais e filhos:
Acredito que vem surgindo uma nova forma de interação por força das
circunstâncias, na qual o homem já não necessita canalizar para o trabalho a maior
parte de seu investimento libidinal como antes, podendo, assim, se voltar para um
contato mais estreito e afetivo com os filhos. (MATOS, 1997, p. 194).
Para Boechat (1997), historicamente, o homem ocidental tem sido regido pelo
arquétipo de Crono (o pai devorador da mitologia grega) que devorava os filhos ao nascerem
devido ao medo de que eles lhe roubassem o poder quando crescessem. Assim, este homem
cresceu num ambiente dominado pelos princípios da competição e do poder. Entendemos que,
tomados como exclusivos na consciência, estes princípios prejudicam o desenvolvimento dos
filhos, que são os homens de amanhã. A unilateralidade nunca é saudável, pois gera
desequilíbrio, o que é prejudicial à psique dos homens e também das mulheres, que podem
receber a projeção da sombra masculina e serem hostilizadas e/ou consideradas inferiores,
como acontece no patriarcado.
52
Segundo Monick (1993b), o sistema patriarcal sempre esteve intacto e aparentemente
seguro na padronização social. As regras do patriarcado determinam que o masculino é
superior ao feminino e hierarquiza os homens de acordo com seu poder (sico, econômico,
intelectual). Atualmente, as mulheres e os homens oprimidos têm se fortalecido, enquanto os
pressupostos patriarcais têm sido abalados.
Monick (1993b) ressalta que patriarcado não é sinônimo de masculinidade e que na
medida em que existem regras de conduta rígidas sobre o papel masculino criadas pela cultura
patriarcal, o homem ocidental tem sido castrado, pois teve que reprimir seus desejos para se
adaptar às normas externas. Entendemos que tudo o que é negado e reprimido vai acumulando
energia no inconsciente, formando um ou mais complexos que tendem a ficar cada vez mais
energizados, caso não sejam percebidos e integrados à consciência.
As idéias de Monick (1993b) nos levam a pensar que na cultura patriarcal, o homem
ficou identificado com a persona do que acreditava significar masculinidade, desprezando
suas aspirações individuais e sofrendo com isso. Seus desejos reprimidos, relegados a um
segundo plano, formaram complexos sombrios que passaram a invadir a consciência do
homem na forma de fúria, em ataques autoritários aos mais fracos, àqueles que tinham menos
poder na estrutura patriarcal.
Chinen (1998) afirma que estamos vivendo uma fase de turbulência desde que os
modelos tradicionais de masculinidade desmoronaram. As feministas denunciaram a vioncia
presente no patriarcado e o desprezo dos patriarcas pelo universo feminino. Os pacifistas
fizeram uma advertência contra os ideais guerreiros, que podem aniquilar a escie humana
com o advento da bomba nuclear. Os ecologistas se pronunciaram contra a destruição da
natureza em nome doprogresso” material. Ou seja, o patriarcado está em crise e muitos
homens estão perdidos sem um modelo único para seguir.
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Chinen (1998) nos sugere que estão sendo criados modelos para o masculino, mas
aindao estão bem estabelecidos, o que gera insegurança nos homens. Eles sentem muito
medo de não conseguirem afirmar sua masculinidade e é presumível que muitos se apeguem
ao estereótipo patriarcal antigo por saberem que é um modelo conhecido que afirmou a
masculinidade por longo período, o que gera a falsa sensão de segurança. Entendemos que
ela é enganosa porque este tipo de comportamento é neurótico na medida em que nada garante
que o que funcionou no passado tamm se bem sucedido no presente, especialmente porque
o modelo de virilidade patriarcal já não é mais tão bem aceito pela sociedade contemporânea.
Chinen (1998) relata e analisa contos de homens de diferentes culturas,
mostrando que existem modelos de masculinidade que apresentam os princípios
masculino e feminino convivendo pacificamente na psique masculina e,
conseqüentemente, nos relacionamentos entre gêneros.
Para Samuels (1992), apesar de o homem e a mulher serem diferentes, não podemos
admitir que o funcionamento psicológico seja diferente neles. Ele escreve:
As diferenças que vemos no papel de sexo e da identidade sexual podem então ser
examinadas como se tivessem surgido da mesma maneira. Os processos
psicológicos através dos quais um homem se transforma num executivo agressivo, e
uma mulher numa dona-de-casa submissa e protetora,o os mesmos, e é preciso
não se deixar iludir pela diferença do produto final. (SAMUELS, 1992, p.123).
Masculino e feminino referem-se ao substrato biológico do comportamento e à
anatomia. Já os gêneros masculino e feminino são relativos, flexíveis e passíveis de mudança,
pois vêm, em parte, das observações e identificões realizadas na família, sendo
considerados termos culturais ou psicológicos (SAMUELS, 1992).
Ainda de acordo com Samuels (1992), a anatomia não é um destino e as definições de
mulher e homem mudam ao longo do tempo. Por exemplo, até o final do século XVIII, o
homem aparecia chorando nas representações literárias e dramáticas, diferentemente das
representações do século XX, nas quais os meninos não choram.
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Hollis (2004) afirma que os homens sofrem por terem que se adaptar às ideologias (da
família, do grupo étnico, da nação), o que oprime a alma, roubando-lhes a liberdade de se
desenvolverem.
As definições do que significa ser homem - os papéis e as expectativas masculinas, a
competição e a animosidade, a humilhação e a desvalorização de muitas das
melhores qualidades e capacidades dos homens - conduzem à esmagadora opressão.
Esse fardo sempre esteve presente, porém hoje em dia os homens estão começando a
questionar a necessidade de viver sob esse jugo. (HOLLIS, 2004, p. 13).
A maioria dos homens tem sido motivada pelo medo e feriu a si mesma e aos outros,
sob o donio do sistema patriarcal. Hollis (2004) aponta os oito segredos masculinos:
a) os homens têm sua vida regida por expectativas sociais restritivas sobre o papel que
devem desempenhar, assim como as mulheres;
b) o medo governa a vida dos homens;
c) o poder do feminino é enorme na organização pquica masculina;
d) existe um acordo de silêncio entre os homens para reprimir a verdade emocional
deles;
e) os homens precisam abandonar a mãe (o lar, o conhecido) e ir além do complexo
materno; por isso é necessário que sejam feridos;
f) a vida masculina é violenta porque as almas dos homens foram violadas;
g) todos os homens anseiam pelos seus pais e pais tribais;
h) a cura masculina acontece quando os homens conseguem ativar dentro deles o que
não receberam do exterior.
Os mais pesados lemas dos homens dominados pelo patriarcado são: o trabalho, a
guerra e a preocupação com o sustento e a proteção da família.
Hollis (2004) afirma que atualmente estão faltando ritos de passagem do homem para
a idade adulta, o que prejudica o seu desenvolvimento, fazendo com que permaneça por muito
tempo na casa dos pais e “preso” no complexo materno, sem enfrentar a vida adulta e
amadurecer. Segundo ele, o rito é um movimento que conduz à profundidade do ser e, como
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não temos ritos significativos na sociedade ocidental, a vida deixa de ter profundidade, ou
seja, o homem fica alienado de si mesmo, seguindo apenas padrões externos, o que faz com
que tenha uma vida sem significado.
A solução seria, de acordo com Hollis (2004), que os homens refletissem sobre o que
era oferecido por essas experiências de iniciação, já que os ritos de passagem quase
desapareceram da nossa cultura, fazendo com que poucos homens possam se separar e
crescer. Os estágios da experiência iniciatória, segundo este autor, são seis: separação, morte,
renascimento, ensinamentos, provação e retorno.
O primeiro estágio nos ritos de passagem era (e ainda é, nas culturas onde são
praticados) a separação física do homem em relão à sua família de origem, que provocava
tamm a separação psicológica. O menino não tinha escolha, pois era “raptado” de seus pais
pelos homens mais velhos da tribo que usavam scaras ou pintavam o rosto (simbolizando
deuses ou demônios), no meio da noite. Esta violência era necessária porque os meninos não
renunciariam ao conforto e à segurança do lar espontaneamente (HOLLIS, 2004).
No segundo estágio (morte) o menino passava por um túnel escuro e era lançado na
escuridão. Este estágio representava a morte simbólica da dependência infantil, vivenciando a
perda do lar, de acordo com Hollis (2004).
A cerimônia de renascimento marcava o terceiro estágio. Em alguns ritos, o menino
mudava de nome, o que mostrava claramente o nascimento de um novo ser (HOLLIS, 2004).
No quarto estágio, segundo Hollis (2004), ele aprendia a atuar como adulto. Eram
ensinadas habilidades como caça, pesca e pastoreio. O jovem também era introduzido pelos
mais velhos nos mistérios, passando a participar da esfera transcendental, aprendendo sobre a
espiritualidade. O novo homem era situado no contexto mítico, adquirindo uma identidade
adulta ao saber que participava de uma estrutura maior, cósmica.
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Para Hollis (2004), a provação era o quinto estágio. As práticas variavam, mas sempre
o jovem sofria para se separar do conforto e da proteção do lar. Ele tinha que aprender a lidar
com a solidão e desenvolver recursos próprios para enfrentar os desafios da vida.
No último estágio, o jovem retornava para a comunidade, agora na condição de adulto. Esta
chegada marcava a entrada do novo homem no mundo masculino, na cultura (HOLLIS, 2004).
Hollis (2004) ainda sustenta que, com a dissolução destes ritos de iniciação, os
homens ficaram perdidos e passaram a seguir modelos de identidade vazios, que não levam
em consideração as profundezas da alma. Assim, podemos entender que ele faz menção a um
homem que se identifica totalmente com a persona, reduzindo-se a ela e, por isto,
constantemente insatisfeito. Podemos ir além, refletindo sobre a hipótese de que este homem
pode investir tudo na imagem, acreditando que assim se sentirá realizado, o que não ocorre
porque sua persona está desvinculada do Self. Ele consome produtos, passeios e tudo o que
sua condição financeira permite, acreditando que obterá uma satisfação permanente quando,
na verdade, sempre é efêmera porque não está enraizada em sua alma.
De acordo com as colocações de Hollis (2004), a vida dos homens regidos pela tirania
do patriarcado é muito negativa, pois eles competem entre si diariamente, humilhando-se
reciprocamente. Os homens são, assim, impulsionados e feridos pelo complexo do poder,
sendo esta a força central na vida deles. Entendemos que agem assim para terem sua persona,
que acreditam ser sua identidade, exaltada e afirmada no mundo, seja no ambiente acadêmico,
empresarial, marítimo ou num campo de batalha.
Segundo Hollis (2004), uma solução para este estado psíquico seria o homem
reconhecer seu medo de ser humilhado, de não conseguir corresponder às expectativas que a
sociedade tem dele. A masculinidade do homem no patriarcado é medida de acordo com sua
produtividade: quanto mais produtivo, mais viril é considerado o homem, portanto (HOLLIS,
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2004). Observamos tamm que ele sente muito medo de ser considerado “marica”, pois perderia
a identidade masculina que conquistou, ainda que esta seja frágil, já que é baseada na persona.
Muitos sentem mais medo do fracasso e da humilhação do que da própria morte, de
acordo com Hollis (2004). Este autor afirma:
Governado como é pelo medo, incapaz de admitir este fato até para si próprio, para
o perder o controle sobre as coisas, sem coragem de compartilhar o que sente com
os companheiros para não ser humilhado, procura compensar isto. O homem que se
vangloria do seu carro, da sua casa enorme, ou do seu cargo ou posição importante
certamente está tentando compensar seu sentimento de inferioridade. (HOLLIS,
2004, p. 34).
Para Wyly (1994), os pressupostos da cultura patriarcal criaram a necessidade de inflar
as dimenes e a natureza do masculino, de maneira que a masculinidade passou a ser medida
através de aspectos físicos (altura e peso) e poder de cada homem. Assim, quanto mais alto, pesado
e poderoso fosse o homem, mais masculino ele seria considerado. Este processo teve como
resultado a busca cada vez maior de poder, a competição sem limites, o machismo e a violência.
Enquanto o homem vive nesta ilusão, segundo Wyly (1994), ele não se desenvolve
nem amadurece. Em vez disso, sua energia se projeta nos objetos que possui: carro, bens
materiais, status e até mesmo na família. Desta maneira, ele imagina que estes objetos e
pessoas fazem parte do seu ego, o que faz com que se preocupe muito em não perdê-los, já
que assim acredita que estaria perdendo parte de si mesmo, que se encontra projetada.
Ainda de acordo com Wyly (1994), para amadurecer e resgatar seu significado
genuíno este homem precisa sofrer uma deflação, que costuma acontecer através de perdas e
humilhações. Assim, quando o homem perde o emprego, o carro, o status ou qualquer tipo de
poder, ele começa a ter uma noção mais realista de si mesmo, do seu próprio tamanho.
A partir da desilusão, o ego masculino pode deixar de se identificar com uma persona de
poder e começar a olhar para suas raízes profundas, acessando a energia e as potencialidades que
estão dentro dele, construindo uma identidade mais significativa para sua vida (WYLY, 1994).
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Entendemos que, no sistema patriarcal, o homem aprendeu regras sobre o que podia ou
não fazer. O estereótipo masculino ficou preso à idéia de que homem não podia chorar nem
demonstrar sentimentos, deveria ser ousado, parecer sempre forte, sustentar a família, ter
autonomia e independência psicológica e financeira. Este modelo determinava que o homem não
podia cuidar diretamente dos filhos nem de tarefas domésticas, pois eram “coisas de mulher”. Ele
também deveria ser o chefe da casa, controlando sua esposa e filhos, tomando sempre as decisões
mais importantes. O homem não podia sequer dar vazão aos seus sentimentos em relação à
esposa, pois correria o risco de ficar “dependente” emocionalmente dela ou parecer fraco. O
homem que ousasse não seguir essas normas culturais corria sério risco de ser ridicularizado pela
sociedade e considerado menos viril, perdendo status e poder perante os outros.
Compreendemos que, tanto o prinpio feminino quanto as mulhereso reprimidos na
cultura patriarcal. A sensibilidade, os sentimentos, a fraqueza, a vulnerabilidade, a
passividade (mesmo no sentido de “deixar acontecer”), a tolerância, o cuidado, a natureza, a
solidariedade e a criatividade provinda do princípio feminino são aspectos psíquicos negados
e oprimidos pelo patriarcado.
Observamos que muitas mulheres tradicionais” (entenda-se, que seguem rigidamente
as regras patriarcais) têm estes tros no seu ego e são extremamente subjugadas, humilhadas
e muitas vezes até agredidas (fisicamente e/ou psicologicamente) por homens, os chamados
patriarcas. Eles impõem regras de conduta e convincia para a família, esperando ser
obedecidos e nunca contestados. Acreditam que a sua maneira de viver (baseada na cultura
patriarcal) é a correta, não permitindo que a criatividade feminina dê sugestões e reprimindo
qualquer tentativa de fazê-lo.
De acordo com a nossa interpretação, estes homens dominados pelo patriarcado
sentem muito medo do feminino (projetado nas mulheres) e por isto, atacam-nas diante de
qualquer desobediência ou tentativa de mudar as normas estabelecidas. Em suas exploes
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emocionais (“ataques de anima”), estes homens regidos pelo patriarcado culpam as mulheres
pela sua irritação e labilidade emocional, afirmando e talvez mesmo acreditando que as
mulheres são as culpadas porque os desobedecem. Ou seja, eles pensam que se as mulheres
fossem exatamente como eles desejam, não ficariam irritados.
Pensamos que estamos vivendo uma fase de transição na qual deixou de existir um
modelo único capaz de simbolizar virilidade. Os homens contemporâneos tendem a valorizar
mais os relacionamentos afetivos do que antes, as emoções e os sentimentos, podendo olhar
para dentro de si. Assim como as mulheres estão acessando mais facilmente seu animus, os
homens estão fazendo o mesmo com sua anima, tanto no sentido de enxergar e realizar sua
alma quanto no sentido de permitir a coexistência dos princípios feminino e masculino na sua
consciência masculina.
Entendemos que um ego genuíno (não identificado com a persona) e em processo de
realização verdadeira (conectado ao Self) saberá lidar de maneira mais saudável com o ciúme
em relação às suas posses e às pessoas que ama, pois elas serão por ele consideradas em suas
individualidades e o como extensão da própria imagem. Assim, podemos depreender que as
principais questões do masculino na atualidade são: a integração da anima na psique
consciente do homem e a realização do seu Self, o que certamente aumentará sua auto-estima
e, conseentemente fará com que ele se sinta mais seguro nos relacionamentos com as
mulheres, sentindo menos cme delas, am de ter melhores vínculos afetivos. O
entendimento das principais questões do masculino na época contemporânea é importante
para aumentar a compreensão do ciúme patológico masculino e suas manifestações.
60
7 MITOLOGIAS E LITERATURA SOBRE O CIÚME
Neste capítulo, veremos alguns mitos e obras literárias relevantes existentes dentro do
tema do ciúme patológico masculino, com o objetivo de ampliar a compreeno deste fenômeno.
7.1 Cenas de ciúme presentes na mitologia grega
A seguir, iremos descrever cenas de ciúme e/ou traição presentes na mitologia grega.
7.1.1 Ciúme de Hefesto em relação à Afrodite
Segundo López-Pedraza (1999), Afrodite era casada com Hefesto e estava tendo um
caso com Ares. O Sol soube e contou para Hefesto que, enciumado, preparou uma armadilha:
uma cadeia invisível com elos que não poderiam ser rompidos ou desmanchados. Ele colocou
a armadilha em sua cama e fingiu que ia para Lemnos. Ares e Afrodite deitaram-se na cama e
ficaram aprisionados, de forma que não conseguiam mais se mover. O Sol avisou Hefesto,
que voltou para sua casa e, ao ver os amantes, gritou muito alto, de maneira que os deuses
ouviram e foram até lá para ver o que estava acontecendo. Hefesto exigiu de volta os
presentes que havia dado a Zeus quando pediu para se casar com Afrodite e ameaçou deixar
os amantes presos enquanto Zeus não o fizesse.
As deusas ouviram os gritos de Hefesto, mas ficaram todas em casa, contidas por sua
modéstia. Quando viram o que aconteceu, começaram a rir incontrolavelmente. Apolo
perguntou para Hermes se ele gostaria de se deitar na cama com Afrodite, apesar de preso
pelas algemas impossíveis de serem quebradas. Hermes respondeu que não havia nada que ele
desejasse mais, ainda que fosse o triplo da quantidade de correntes e que todos estivessem
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vigiando. Diante desta afirmação, todos os deuses riram, com exceção de Poseidon. Este
convenceu Hefesto a libertar Ares, com a promessa de que se Ares se esquivasse de seu
débito, o próprio Poseidon o pagaria (LÓPES-PEDRAZA, 1999).
7.1.2 Ciúme de Zeus em relação à Deméter
Zeus fulminou Iaison com um relâmpago quando descobriu que ele estava tendo um
caso com Deméter, que era amante de Zeus (BOLEN, 2002).
7.1.3 Ciúme de Apolo em relação à Ártemis e Coronis
Segundo Bolen (2002), Apolo sentiu ciúme de Ártemis (sua irmã), que amava um
caçador chamado Órion. Por isso, fez uma armadilha para eliminá-lo: desafiou a deusa a
atingir um minúsculo ponto no mar. Quando Ártemis atingiu o alvo, descobriu que era a
cabeça de Órion, que estava tão distante que ela não foi capaz de perceber o que era.
De acordo com Bolen (2002), Apolo designou um corvo branco para vigiar Coronis,
que estava grávida de seu filho. O corvo disse a Apolo que Coronis o enganava. Ele
transformou em negras as penas brancas do corvo. Apolo arrancou o filho do ventre da mãe e
depois a matou queimada. Ele deu o filho para Quíron (o centauro) criar e se arrependeu de
ter assassinado Coronis, mas já era tarde.
7.1.4 Ciúme de Ares em relação à Afrodite
Ares era amante de Afrodite. Quando ele soube que a deusa estava apaixonada por
Adônis, Ares transformou-se num javali que matou o rapaz.
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7.2 Literatura sobre o ciúme
No âmbito nacional, consideramos a obra Dom Casmurro, de Machado de Assis, como
a mais importante dentro do tema abordado. Grinberg (2000) fez um estudo sobre a
psicopatologia do ciúme e da traição, analisando a obra Dom Casmurro, de Machado de
Assis. Segundo ele, o ciúme, numa situação normal, tem a função de regular a possessividade
e a onipotência do indivíduo diante do outro, fazendo-o perceber que ele não pode ter o outro
de “maneira eterna, perene e incondicional.” (GRINBERG, 2000, p. 69).
De acordo com Grinberg (2000), Bentinho - protagonista de Dom Casmurro - perdeu o
pai aos três anos de idade e se lembrava dele através de seus olhos num retrato na parede, que
o assombravam desde pequeno, caracterizando a projeção negativa de sua imago paterna. Sua
mãe, Dona Glória, também perdeu um filho (um natimorto), antes de Bentinho.
Provavelmente, vivia um luto patológico e desenvolveu uma relação simbiótica com
Bentinho, que era um filho submisso e frágil. Ele admirava Capitu, sua vizinha, pois ela era
mais madura que ele. Casou-se com ela e teve um filho. Ela foi depositária da projeção
negativa do arquétipo da anima, pois era sentida como ameaçadora, já que o aproximava do
seu mundo instintivo e inconsciente (GRINBERG, 2000).
Bentinho sentia inveja de Escobar (amigo do casal) por causa da virilidade dele e
começou achar que seu filho e de Capitu, Ezequiel, era muito parecido com Escobar, o que o
levou a acreditar que sua esposa e o seu amigo o haviam traído e que Ezequiel não era seu
filho (GRINBERG, 2000).
Entendemos que a baixa auto-estima de Bentinho provocou seu ciúme, de maneira que
passou a fantasiar seu suicídio e o assassinato de Ezequiel e Capitu. Para Grinberg (2000), por
causa deste afeto, houve a separação do casal e a morte do filho (de febre tifóide), a quem foi
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transferido seu ódio. Capitu foi exilada para a Europa e Bentinho, incapaz de elaborar o
ciúme, termina a história casmurro e solitário.
Bentinho poderia ter admitido a inveja que sentia de Escobar por sua virilidade e de
Capitu (por sua maturidade) e utilizado seu complexo de inferioridade como um estímulo para
seu desenvolvimento (GRINBERG, 2000).
Otelo é a obra literária internacional mais significativa sobre o ciúme patológico
masculino. Por isto ela será resumida a seguir. Todo o resumo foi baseado na obra de William
Shakespeare (1997), traduzida e adaptada para o português por Hildegard Feist.
Entendemos que esta peça de teatro, escrita entre 1602 e 1604, mostra como o ciúme
pode atuar numa pessoa com baixa auto-estima e conduzir a tragédias.
Na obra de Shakespeare (1997), Otelo era um mouro nascido na África e capturado
numa guerra. Graças à sua competência e coragem para lutar, ele conquistou espaço e se
tornou general da República de Veneza, no norte da Itália. Embora fosse reconhecido por
todos pelas suas façanhas heróicas na arte da guerra e por sua lealdade, ele era discriminado
por ser estrangeiro, negro, mouro e pobre. Não possuía cultura, educação nem dinheiro como
a alta sociedade veneziana, nem sabia dançar. Ele percebia que as mulheres brancas e ricas
olhavam-no com desprezo e que seus pais não o queriam como genro, embora o admirassem
como militar e defensor de Veneza.
Iago era o alferes (ou segundo-tenente) de Otelo e esperava ter sido promovido a
primeiro-tenente quando o amigo de Otelo (que ocupava este cargo) faleceu. Iago sentiu-se
ofendido porque sempre havia dado provas de coragem e lealdade, enquanto Cássio (que foi o
escolhido) era um simples soldado, sem nenhum destaque na arte da guerra. Na opinião de
Iago, Cássio só sabia fazer cálculos (era matemático) e correr atrás de moças. Iago queria se
vingar da ofensa (SHAKESPEARE, 1997).
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Na peça de Shakespeare (1997), Desdêmona era uma jovem muito bonita e rica, filha
do senador e respeitado comerciante chamado Brabâncio. Ele estava velho e preocupado em
casar a moça com um homem rico que a protegesse, talvez um potico ou um grande
comerciante como ele. Mas Desdêmona rejeitava seus pretendentes, pois estava namorando
Otelo, sem que seu pai soubesse. Ela fugiu de casa e Iago teve a iia de dizer a Brabâncio
que o general a havia raptado, esperando que houvesse uma briga entre os dois e terminasse
com a morte de Brabâncio e a destituição de Otelo.
Esta vingança falhou, pois a própria Desdêmona contou a todos que havia fugido para
se casar com o mouro por vontade própria, porque o amava. Brabâncio, quando esteve a sós
com Otelo, disse para que ele tomasse cuidado com Desdêmona, pois ela poderia enganá-lo,
assim como enganou o próprio pai, namorando Otelo escondido dele e fugindo de casa
(SHAKESPEARE, 1997).
De acordo com a obra de Shakespeare (1997), Iago tratou de armar uma nova armadilha.
Desta vez pretendeu prejudicar tanto Otelo quanto Cássio, fazendo com que Otelo pensasse que
Cássio e Desdêmona eram amantes. Cássio era um homem muito bonito, jovem, fino, rico,
educado e mulherengo; quis seguir a carreira militar por causa do espírito de aventura. Era
primo em segundo grau de Desdêmona eo flertava com ela; eram apenas parentes.
Após vencer os turcos numa guerra matima, Otelo foi nomeado governador de
Chipre. Para comemorar a vitória veneziana, os habitantes da ilha deram uma festa. Otelo
havia ordenado que seus subordinados, incluindo Cássio e Iago, vigiassem discretamente a
população para que não houvesse brigas, já que muitos estariam embriagados e, nesta
condição, seria muito fácil ocorrerem atritos (SHAKESPEARE, 1997).
Segundo a peça de Shakespeare (1997), Otelo havia proibido seus subordinados de
beberem álcool e Cássio estava seguindo a ordem do governador de Chipre, recusando-se a
beber quando os habitantes da ilha lhe ofereciam bebida para acompanhar a comemoração.
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Iago estava junto com Cássio e fingia ser seu amigo. Aos poucos, foi influenciando Cássio
para que este se embriagasse, dizendo que se não aceitasse as bebidas, as pessoas se sentiriam
ofendidas com a recusa. Iago, no entanto, apenas fingia que bebia.
O resultado desta armadilha de Iago foi que Cássio se embriagou e não foi capaz de
acalmar uma briga provocada discretamente por Iago. Os ilhéus brigaram entre si e ninguém
percebeu que Iago havia auxiliado o início do conflito. Quando o general chegou, viu toda a
confusão de homens se batendo e fez com que eles parassem. Percebeu que Cássio estava
bêbado e o destituiu do cargo por ter desobedecido à sua proibição (SHAKESPEARE, 1997).
De acordo com a obra de Shakespeare (1997), Cássio ficou muito chateado por ter
perdido seu cargo e Iago, fingindo ser seu amigo, influenciou-o para que ele falasse com
Desdêmona. Iago disse a Cássio que a demissão foi injusta, pois ele havia cometido apenas
uma falha em seis anos. Cássio, seguindo a idéia que o suposto amigo teve, foi pedir para
Desdêmona convencer o general a lhe dar uma nova chance. Otelo não poderia saber que
Cássio havia feito este pedido para Desdêmona; por isso, Iago combinou de avisar Cássio
quando o general estivesse por perto. Quando Cássio estava fazendo o pedido a Desdêmona,
Iago esperou que Otelo visse e só depois avisou Cássio sobre a chegada do general. Assim,
ele saiu correndo, o que fez parecer que estava fazendo algo errado.
Iago, provocando a curiosidade de Otelo e fingindo-se amigo de Cássio, acabou
contando para o mouro que viu Cássio beijando a mão de Desdêmona e pedindo para que ela
intercedesse por ele junto ao general. Iago queria que Otelo pensasse que Cássio e Desdêmona
estavam tendo um caso amoroso (SHAKESPEARE, 1997).
Segundo a peça de Shakespeare (1997), Desdêmona não percebeu que Otelo a tinha
visto conversando com Cássio no jardim. Mais tarde, tentou convencer o marido a dar uma
nova oportunidade para Cássio; Otelo perguntou se havia sido o primo que pediu para que ela
intercedesse. Desdêmona negou, dizendo que Cássio não tinha solicitado nada e nem estado no
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jardim. Diante da mentira, o general ficou tão nervoso que, quando Desdêmona foi enxugar seu
suor, jogou longe o leo que havia dado de presente para a esposa ao se casarem.
Este lenço era uma relíquia que havia passado através de gerações. Otelo ganhou de
sua mãe que, por sua vez, recebeu da mãe dela, avó de Otelo. O lenço branco simbolizava o
amor do casal e carregava um feitiço feito por uma cigana; se a mulher mantivesse o lenço
junto a si, sempre teria o amor do marido; caso o perdesse ou se separasse dele, ficaria sem o
marido (SHAKESPEARE, 1997).
De acordo com a obra de Shakespeare (1997), o leo ficou no gabinete de Otelo e
Iago o encontrou por acaso. O alferes teve a iia de colocar o lenço no alojamento de Cássio
para que o mouro pensasse que Desdêmona o deu para o primo. Além dessa idéia, Iago
também escreveu uma carta de amor falsa de Desmona para Cássio. Para isso, pegou uma
poesia que sua esposa (Emília) havia recebido de Desdêmona. Emília era empregada de
Desdêmona e ambas eram amigas verdadeiras. Por isso, Iago teve que pegar a carta escondido
de Emília. Ele forjou a letra de Desdêmona e colocou a carta junto com os pertences de Cássio.
Sempre se passando por amigo de Cássio e de Otelo, Iago disse ao general (fingindo
ser contra sua vontade) que havia ouvido Cássio chorando por Desdêmona e que também
havia visto o lenço dela nos aposentos de Cássio (SHAKESPEARE, 1997).
De acordo com a peça de Shakespeare (1997), Otelo quis ir até o alojamento de Cássio
para ver a prova concreta do que Iago dizia. Ele e Iago foram até lá quando Cássio estava
ausente e Otelo viu que era realmente o lenço que ele havia dado a Desdêmona como o
primeiro presente. Além disso, viu a carta falsa de Desdêmona para Cássio, que havia sido
escrita por Iago. Completamente fora de si, Otelo pegou o punhal que Iago havia deixado cair
propositadamente e foi até o castelo. Quando viu Desdêmona, cravou-lhe o punhal no peito. Ela
morreu na hora. Otelo ficou segurando o lenço e a falsa carta, olhando para a esposa falecida.
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As pessoas foram chegando e a farsa foi sendo desfeita. Emília desvendou a armadilha
feita pelo marido (Iago) ao general. Ela se lembrou de que Iago havia roubado o leo do
gabinete de Otelo. Lembrou-se também de que Iago havia pegado o poema que Desdêmona
tinha dado à Emília e entendeu que ele o usou para copiar a letra da esposa do general. Emília
havia tentado falar ao general que Iago estava em posse do lenço, mas não conseguiu porque o
alferes permaneceu o tempo todo com Otelo e ela precisaria dizer isto a sós com o general.
Emília havia pressentido que Iago estava planejando algo maléfico, mas não sabia o quê. O
mistério estava então desvendado. Ela viu a carta e percebeu que não era a mesma letra de
Desdêmona. Otelo não percebeu antes porque estava muito nervoso, transtornado pelo ciúme
e pela idéia de ter sido traído (SHAKESPEARE, 1997).
Segundo a obra de Shakespeare (1997), após a revelação de Emília, Otelo pensou e
percebeu que havia sidotima de uma cilada preparada por Iago, viu que a letra da carta não
era a de Desdêmona e lembrou-se de que havia jogado longe o lenço quando sua esposa
tentara enxugar suas lágrimas, ou seja, o lenço havia ficado no gabinete dele e Desdêmona
não o tinha dado para Cássio. Diante da percepção de que havia assassinado a esposa
inocente, Otelo se suicidou, cravando o punhal em sua garganta.
Se Otelo tivesse recolhido informações precisas sobre o que estava acontecendo na
vida de Desdêmona, teria se livrado de suas fantasias ciumentas. Ele se permitiu ser seduzido
por uma realidade falsa, não investigou nem fez as perguntas certas. Se Otelo praticasse a
prudência, poderia ter salvado as pessoas que o cercavam e a si mesmo. Devemos duvidar,
acima de tudo, de nós mesmos e de nossas percepções (RUGE e LENSON, 2006).
Percebemos que, na mitologia referida, o ciúme aparece associado às seguintes situações:
a) preparação de armadilha:
Hefesto preparou uma armadilha para flagrar Afrodite e Ares.
68
Apolo preparou uma armadilha para eliminar Órion, que era amado por sua ir
Ártemis.
b) ridicularização:
Tanto os deuses quanto as deusas riram ao ver o flagrante de adultério de Afrodite
com Ares.
c) violência e morte:
Zeus fulminou Iaison quando descobriu que ele estava tendo um caso com Deméter,
que era amante de Zeus.
Apolo preparou uma armadilha que matou Órion. Ele também matou Coronis, que
estava grávida de seu filho, por acreditar que ela o traía.
Ares matou Adônis, quando soube que Afrodite (sua amante) estava apaixonada por este.
Nas obras literárias relatadas, o ciúme aparece associado a sentimentos de baixa auto-
estima, inveja do rival (Bentinho), suspeita de traição, suicídio (Bentinho na fantasia e Otelo
na realidade), assassinato do rival (fantasia de Bentinho), homicídio da companheira
(Bentinho na fantasia e Otelo na realidade) e solidão (Bentinho).
Tanto na literatura quanto na mitologia, observamos que o ciúme é representado de
maneira trágica, levando, freqüentemente, à morte do rival, da mulher amada e/ou possuída e
ao suicídio do personagem ciumento. Pensamos que, nestes casos de violência extrema,
ocorre que um ou mais complexos autônomos invadem a consciência e dominam o ego,
conduzindo o ciumento a comportamentos violentos e impulsivos, muitas vezes.
Após termos feito essa passagem pela mitologia e literatura, iremos rever alguns
conceitos junguianos que serão utilizados na alise da ilustração.
69
8 CONCEITOS JUNGUIANOS
8.1 Complexos
Neste capítulo, iremos rever alguns conceitos da Psicologia Analítica que serão
utilizados para aprofundar a questão do ciúme e analisar a ilustração.
De acordo com Stein (2005), a psique é formada por vários conteúdos, como os
complexos. O ego é o complexo central que rege a consciência, é o que dá ao indivíduo sua
noção de eu. O ego “é um dado complexo formado primeiramente por uma percepção geral de
nosso corpo e existência e, a seguir, pelos registros de nossa memória.” (JUNG, 1996, § 18, p. 7).
Segundo Jung (1996), o ego se destaca porque é o único complexo consciente, sendo o
ponto de referência dos elementos conscientes: “... o ego é uma espécie de complexo, o mais
próximo e valorizado que conhecemos. É sempre o centro de nossas atenções e de nossos
desejos, sendo o cerne indispensável da consciência.” (JUNG, 1996, § 18, p. 7).
Para Stein (2005), cada complexo é formado a partir de um núcleo central: o
arquétipo. Através da interação com o meio ambiente físico e psicológico (incluindo as
pessoas), os complexos se estruturam. São constituídos por lembranças, pensamentos,
imagens e fantasias. A emoção é o que une os elementos associados do complexo. As
experiências carregadas de afetoo sendo aglutinadas ao redor do complexo durante o
percurso da vida. Jung escreve: “Um complexo é um aglomerado de associações - espécie de
quadro de natureza psicológica mais ou menos complicada - às vezes de caráter traumático,
outras, apenas doloroso e altamente acentuado.” (JUNG, 1996, § 148, p.66).
O complexo materno, por exemplo, se origina a partir das vincias com a mãe ou com
quem exerceu a função materna (que pode ter sido, inclusive, mais de uma pessoa), sendo
acrescido de novas representões carregadas pela mesma tonalidade afetiva (STEIN, 2005).
70
É importante ressaltar, segundo Stein (2005), que o complexo da mãe é diferente da
mãe real, pois é uma estrutura subjetiva, que existe dentro da psique do indivíduo e foi por ela
processada e armazenada. Os filhos também são diferentes uns dos outros e despertam
sentimentos diferentes nos pais; por isto, eles podem ter complexos bastante heteroneos,
ainda que tenham tido a mesma mãe e o mesmo pai.
Sendo estruturados a partir das experiências com o meio, é natural que existam
complexos similares em pessoas de uma mesma família e/ou cultura. Assim, podem ser
encontradas reações parecidas em membros de grupos que convivem ou conviveram juntos
durante um tempo prolongado (STEIN, 2005).
Para Stein (2005), a partir de um determinado estímulo (interno ou externo), um
complexo - originado muitas vezes de experiências traumáticas reprimidas - pode invadir o
ego e perturbá-lo, ou até mesmo dominá-lo. Os efeitos da invasão dependerão de quão forte
for o ego e suas defesas, além da carga energética do complexo inconsciente. Neste embate de
forças, o ego pode perder o controle do campo da consciência e o indivíduo poderá se
comportar de maneira muito diferente da habitual, reagindo, por exemplo, com agressividade
ou até mesmo violência física.
O estímulo que provoca o complexo pode ser insignificante ou grande, de longa ou
breve duração, mas os seus efeitos sobre a psique podem continuar por extensos
períodos de tempo e chegar à consciência em ondas de emoção ou ansiedade.
(STEIN, 2005, p. 53).
De acordo com Stein (2005), a maioria das pessoas possui um ego suficientemente
capaz de conter uma parcela da energia provinda do complexo, de maneira que acaba
conseguindo minimizar os repentinos impulsos físicos e emocionais do complexo. Esta
energia do ego é popularmente conhecida como vontade, que é a capacidade que o ego tem
para lutar pelos seus objetivos e exercer o livre artrio. Essa liberdade de escolha pode ser
limitada tanto pela fraqueza do ego quanto pela força de um ou mais complexos.
71
Os complexos também podem ser considerados como fragmentos da personalidade ou
como subpersonalidades. Sendo assim, na esquizofrenia e em casos graves, a personalidade
pode se desintegrar e o ego pode se identificar com um ou mais complexos sombrios que
invadem a consciência, acreditando temporariamente que seus valores e comportamento
coincidem com os do complexo não integrado à consciência (STEIN, 2005). Jung escreve:
“... os complexos têm um certo poder, uma espécie de ego; na condição
esquizofrênica eles se emancipam em relação ao controle consciente, a ponto de
tornarem-se visíveis e auveis. Aparecem em visões, falam através de vozes que se
assemelham às de pessoas definidas. (JUNG, 1996, § 150, p. 67).
Quando um complexo é constelado, segundo Stein (2005), a consciência é perturbada,
podendo ficar confusa e desorientada. Contudo, normalmente, os complexos estão
subordinados a um ego integrado e a consciência egóica costuma ser mantida no momento em
que um complexo é constelado. Geralmente, o ego possui mais energia do que os complexos,
de maneira que eles conseguem manifestar pouca consciência própria.
Para Jacobi (1990), o complexo pode aparecer nas seguintes formas:
a) o complexo é inconsciente, mas já bloqueia o fluxo psíquico natural. Nesta forma,
ainda não é percebido como uma vontade própria ou como uma parte autônoma;
b) o complexo já é autônomo, embora ainda seja inconsciente. O indivíduo sente como
se estivesse entre dois fluxos de vontades opostas. O complexo atua como um segundo
eu” que se opõe ao “eu” consciente;
c) pode acontecer o femeno da dupla personalidade”, quando o complexo se separa
da estrutura psíquica e se torna aunomo;
d) o ego se identifica parcialmente ou completamente com o complexo, pois este está
muito carregado de energia e puxa o ego para o seu campo magnético, dominando-o.
Quando ocorre a identificação parcial, há uma perda relativa do sentido da realidade,
perturbando a adaptação do indivíduo. Quando acontece a identificação total, são
72
observados sinais de uma grave inflação, como é o caso de pessoas que se identificam
com Deus ou o diabo;
e) o complexo aparece de forma projetada, como se fosse um objeto ou pessoa da realidade
externa. Este é o caso das idéias de perseguição e da paranóia, na qual um complexo
inconsciente é projetado para fora e adquire o caráter de uma entidade ameaçadora;
f) o complexo é conhecido pelo ego, mas apenas de forma intelectual. Por isto, ele continua
atuando com muita foa até que seja vivenciado emocionalmente e integrado na consciência.
Segundo Jacobi (1990), o ego pode se comportar de quatro maneiras em relação ao
complexo: ser inconsciente da sua existência, estar identificado com ele, percebê-lo de forma
projetada e confrontá-lo. Na análise da ilustração, dividiremos a história do filme em quatro
momentos, tendo como base o relacionamento do ego com o complexo patológico.
Stein (2005) coloca que os complexos materno e paterno são muito importantes para a
constituição e o desenvolvimento do psiquismo, tanto masculino como feminino. Para Kast
(1997), o ego deve se desenvolver além dos complexos materno e paterno, diferenciando-se
deles. Caso esta separação não ocorra na idade adequada (a partir da adolescência), estes
complexos passarão a impedir o desenvolvimento do indivíduo. O desligamento adequado
depende não apenas dos pais concretos e dos complexos, mas também da força e integridade
do ego. Assim, quanto mais frágil for o ego, mais difícil será este processo.
O complexo materno é formado a partir das experiências que o indivíduo tem com sua
mãe ou com quem exerce as funções maternas de cuidado, proteção, carinho e nutrição (KAST,
1997). Podemos dividir o complexo materno em duas modalidades importantes para este estudo.
Na primeira modalidade, a figura materna é superprotetora e o homem permanece
ligado a ela além da idade adequada. Neste caso, ele pode permanecer infantilizado,
identificado com o arquétipo do puer, esperando que o mundo reconheça seu valor e lhe dê
73
atenção, carinho, nutrição e reconhecimento, tal como a figura materna lhe deu. Também é
possível que o complexo materno deste homem seja transferido para sua namorada e
companheira, com todas as suas expectativas implícitas (KAST, 1997).
Segundo Lima Filho (2002), “A mesma mãe boa que se mostra amorosa e provedora
pode se transformar na Mãe Terrível ao dissolver as tentativas ativas que o filho faz de se
manifestar e de se estabilizar como Eu sistematizado. (LIMA FILHO, 2002, p. 114).
Na segunda modalidade, o complexo materno é formado a partir de vivências
conflituosas com a figura materna, de abandono e/ou negligência, além de possíveis maus-
tratos. A pessoa que não teve suas necessidades de amor, aceitação e nutrição
adequadamente satisfeitas tende a sentir o mundo e a si mesma como ruins, sentindo-se
também culpada por isso. Ela não sente um incontestável direito à existência, desconfia
dos outros e sente medo. Por isto, costuma se apegar excessivamente à mãe ou a quem
estiver projetado seu complexo materno, esforçando-se para controlar os passos desta
pessoa e do ambiente, na tentativa de se sentir segura (KAST, 1997).
Kast (1997) ilustra bem como funciona esta dinâmica psíquica:
A desconfiança primordial, associada à experiência de precisar, na infância,
inspecionar minuciosamente a situão em casa a fim de poder afastar as situações
demasiado perigosas ou de poder aproveitar para seu bem-estar situações mais
favoráveis faz com que toda expressão emocional, toda ínfima mudança emocional de
outros indivíduos chamem a atenção destas pessoas e sejam interpretadas no sentido
do complexo dominante, geralmente no sentido da repulsa, ou sejam consideradas
como rejeição, ofensa. A isto elas reagem com grande fúria, que, apesar de tudo, pelo
menos expõe seu âmago emocional, mostra onde elas ainda estão vivas, ou reagem
com fúria contida, com agressões passivas. O trato com agressões geralmente não é
bem aprendido neste sistema tamm. (KAST, 1997, p. 173-174).
Outra tentativa de compensar um complexo materno é buscando se afirmar no âmbito
da produtividade para supostamente ganhar um direito à existência. Assim, a pessoa se
esforça para ser útil e conquistar o sentimento de auto-estima, de valor para si mesma. O
problema desta compensação é que ela é desfeita quando a pessoa não consegue ser tão
produtiva quanto gostaria. Neste caso, suas desconfianças em relação aos outros aumenta e ela
volta a sentir que é ruim, que o mundo é ruim e aumenta seu sentimento de desconfiança e
74
desamparo. Ela deseja alcançar um sentimento de estar viva e quer poder se entregar à vida
confiantemente, mas não consegue satisfazer estes anseios (KAST, 1997).
Segundo Kast (1997), um caminho para um homem elaborar este complexo materno
seria estabelecer uma boa relação com uma mulher significativa. O problema é que o homem
com esta marca costuma esperar sempre o pior das mulheres e por isto não costuma ser capaz
de estabelecer um vínculo positivo transformador com ela. Entendemos que, se ele espera o
pior de uma mulher, irá desconfiar dela e tentar controlá-la e ela, provavelmente, irá reagir
negativamente a este comportamento, impossibilitando uma relação sadia.
O complexo paterno é formado a partir das experiências do indivíduo com seu pai ou
com quem exerce o papel paterno de estabelecer regras, ordem e limites, possibilitando sua
inserção na cultura e na sociedade. Além disto, a figura paterna também é responsável pela
separação entre o filho e a mãe (KAST, 1997). No caso do homem, o complexo paterno pode
ser dividido em duas modalidades de interesse para este estudo, que veremos a seguir.
Na primeira modalidade, o homem, desde pequeno, idealiza seu pai ou figura paterna e
segue suas orientações sem questionamento, permanecendo obediente às normas paternas
além do tempo que deveria. Esta identificação com o complexo paterno por um período
prolongado é prejudicial ao seu desenvolvimento, pois dificulta a expressão do seu Self e sua
evolução no processo de individuação (KAST, 1997).
Na segunda modalidade, a figura paterna é autoritária, negligente, agressiva e/ou
ausente e o filho se sente obrigado a seguir o caminho que este lhe preparou para ter direito à
existência, sentindo-se desencorajado a seguir seu próprio caminho. Ele é extremamente
exigente consigo mesmo e com os outros, estabelecendo para si mesmo metas inalcançáveis e,
por isto, sentindo-se fracassado, já que não consegue atingi-las (KAST, 1997).
75
O homem marcado por um complexo paterno como o descrito acima, de acordo com
Kast (1997), tende a se sentir inseguro e com baixa auto-estima, ainda que se esforce muito
para seguir as regras estabelecidas pelo pai. Ele almeja receber a aprovação paterna e sente
que não é o filho que o pai desejou para si. Geralmente, o filho é expulso como pessoa,
tornando-se um receptor das ordens do pai e tendo que ser como ele para ser tolerado, nunca
conseguindo ser aceito. Ele é desconsiderado na sua individualidade.
A figura paterna é percebida como representante de uma lei vigente. O filho se sente
manipulado pelo pai poderoso e pode desenvolver iias de perseguição. Ele tende a ficar
preso num círculo vicioso que alterna entre dominar e ser dominado, ser superior e inferior,
sendo muito difícil manter a auto-estima. Neste sistema não há espaço para o amor, pois as
relações são estabelecidas por meio do poder. O filho rivaliza com o pai, sente culpa e
vergonha por não conseguir atender às demandas dele nem superá-lo (KAST, 1997).
De acordo com Kast (1997), o homem marcado por este tipo de complexo paterno
sente muita necessidade de ser reconhecido pelos outros homens, mas quando eles o fazem,
este homem desconfia e desvaloriza o reconhecimento obtido. Esta marca de complexo
também faz com que o homem se sinta sempre cansado, exigindo muito de si mesmo, sendo
incapaz de desfrutar seu sucesso.
Segundo Kast (1997), estas pessoas “[...] estão correndo, com a língua para fora, atrás
de um espectro, um espectro de como elas deveriam ser (aos olhos do pai) e como nunca
poderão ser.” (KAST, 1997, p. 193).
Como este homem é excessivamente exigente com os outros, também apresenta
dificuldade de relacionamento com as mulheres, sendo difícil construir um vínculo positivo
com sua anima. Mesmo com tantos sentimentos negativos que o filho experiencia na sua
relação com a figura paterna, ele tem muita dificuldade de se desligar do pai, pois se sente
76
muito inseguro e sem valor. Enquanto estiver dependente da aprovão paterna, não
conseguirá sua autonomia psicológica (KAST, 1997).
Para Kast (1997), a mãe poderia ser um modelo que possibilitaria o desenvolvimento
do homem marcado por este tipo de complexo paterno. O problema é que neste sistema,
normalmente a mulher e o feminino são desvalorizados, o que torna inviável o
estabelecimento de uma maneira amorosa para lidar consigo mesmo.
Para Neumann (2000), o caráter transformador do Feminino é experienciado pelo
indivíduo do sexo masculino como algo que traz mudança e pressiona em ambos os sentidos,
o bom e o mau. Ele escreve:
A essência do “caráter transformador” do Feminino repousa num status de igualdade
com o indivíduo do sexo masculino como parceiro. A tarefa do homem adulto é
entrar num relacionamento com sua contraparte como um “tu” feminino
inteiramente desenvolvido, mas essencialmente diverso. Somente quando um
homem relacionado com seu Self pode colaborar com a estranheza e a alteridade de
outro Self, e entrar em conflito com elas, ou com uma faceta diferente de seu Self
representada por uma mulher, é que um relacionamento pode dar o fruto do
autêntico encontro de dois indivíduos. (NEUMANN, 2000, p. 242-243).
De acordo com Neumann (2000), é freqüente que, no desenvolvimento de ambos os
gêneros, o caráter essencial do elemento materno ainda esteja vinculado ou fundido com o caráter
transformador do Feminino. Extrair e libertar o Feminino como um tu autônomo e independente
do domínio da mãe no relacionamento primal é uma das tarefas da batalha do herói.
1
Quando o ego masculino tem seu desenvolvimento perturbado, estando fixado na mãe
e não tendo alcançado a combatividade necessária ao ego heróico, ele responde com medo e
na defensiva a cada exigência de desenvolvimento no sentido de algo desconhecido e distante
de tudo aquilo que lhe proporciona segurança (NEUMANN, 2000).
Segundo Neumann (2000), uma vez que o caráter transformador invariavelmente pede
algo novo e incomum, a anima é a faceta da psique masculina associada ao Feminino que atrai
o homem à conquista daquilo que é novo e à aventura. Mas também está associada de forma
negativa à ilusão e desilusão e, de fato, significa um perigo real, como a loucura.
1
Feminino foi redigido com inicial maiúscula, em respeito à grafia da obra de Neumann.
77
O medo do caráter transformador do Feminino faz com que este seja excluído da cultura
patriarcal. A insegurança do ego, o sentimento de não ser páreo para o Feminino, quando o
masculino não é suficientemente desenvolvido, faz com que sejam criadas as formas de auto-
proteção masculina, incluindo a ideologia patriarcal do Feminino negativo (NEUMANN, 2000).
De acordo com Neumann (2000), como resultado da postura patriarcal unilateral,
temos um homem não integrado que é atacado e muitas vezes dominado pelo seu lado
reprimido. Ele escreve:
Nunca devemos nos esquecer de que, para o homem, o Feminino como
“inteiramente outro” significa e deve significar algo numinoso, e sem o confronto
inevitável com este numinoso, com esta outra metade do mundo, nenhuma vida pode
alcançar seu potencial de maturidade e inteireza (e isto, é claro, é igualmente válido
para a mulher). (NEUMANN, 2000, p. 250).
Devido ao seu medo, o homem rejeita o contato transformador com uma mulher de
mesmo status que o seu, pois quer continuar sendo exclusivamente masculino. A
negativização do Feminino faz com que o homem não experiencie a mulher como um Tu de
mesmo status, embora diferente, evitando, assim, que ele entre em acordo com ela. Como
conseqüência, estes homenso conseguem fazer contato genuíno com o Feminino, ou seja,
tanto com uma mulher real quanto com o Feminino em si, com a anima (NEUMANN, 2000).
8.2 Sombra e persona
Para Stein (2005), a sombra e a persona são estruturas complementares que podem
auxiliar ou prejudicar a adaptação egóica, dependendo de sua funcionalidade e grau de
integração na consciência.
A persona e a sombra são constitdas a partir da formação do ego. À medida que o
indivíduo estrutura sua personalidade, ele constrói uma persona que irá mostrar alguns aspectos
dele e esconder outros para que ele possa interagir com o mundo social, com as pessoas. A
persona tem a função de propiciar a adaptação do indivíduo à sociedade (STEIN, 2005).
78
O perigo que existe em relação à persona é quando o ego se identifica totalmente com
ela e passa a acreditar que é somente a mesma, segundo Stein (2005). Entendemos que um
homem que, por exemplo, se identifica completamente com o papel desempenhado por ele
numa empresa e mantém este mesmo papel em todos os ambientes e contextos, certamente
terá dificuldades de adaptação e perderá seu senso de identidade, caso seja demitido. Um
médico que não sabe quem ele é fora do seu papel profissional também está identificado com
sua persona, pois o ego é o senso de identidade que não é composto apenas pelo que a persona
mostra, mas também por outras qualidades que vão além da persona.
Outra possível dificuldade é a falta de estruturação da persona, que é o caso de pessoas
que interagem muito mal com o mundo, cometendo gafes e se revelando ora demais, ora de
menos, sendo socialmente inadequadas. O ideal é ter uma persona funcional, flexível, que o ego
usa para interagir adequadamente com o ambiente sem se identificar com ela (STEIN, 2005).
De acordo com Stein (2005), os aspectos que não são aceitos na persona são
reprimidos e formam a sombra (inconsciente pessoal), que pode mudar ao longo da vida, à
medida que ela for sendo integrada na consciência e também de acordo com as mudanças da
persona. “A sombra é caracterizada pelos traços e qualidades que são incompatíveis com o
ego consciente e a persona.” (STEIN, 2005, p. 100).
Segundo Stein (2005, p. 101), “A sombra pode ser pensada como uma
subpersonalidade que quer o que a persona não permitirá.”. Entendemos que a sombra se
projeta no mundo e nas pessoas que possuem similaridade com ela na tentativa de ser vista
pelo sujeito e integrada à sua consciência. Uma vez aceita e integrada, a sombra revela-se
fonte de criatividade e a consciência se amplia. Caso seja muito reprimida e negada, torna-se
inimiga do ego, aparecendo nos momentos mais impróprios e atrapalhando a atividade egóica.
79
8.3 Anima e animus
Segundo Stein (2005), anima e animus são estruturas psíquicas que vinculam o ego à
camada mais profunda da psique, isto é, à experiência e à imagem do si-mesmo. São
complementares à persona, uma vez que esta faz a mediação entre o ego e o mundo externo,
enquanto a anima e o animus fazem a ponte entre o mundo interno profundo e a consciência egóica.
Stein (2005) afirma também que “Anima e animus são personalidades subjetivas que
representam um nível do inconsciente mais profundo do que a sombra.” (STEIN, 2005, p. 116).
Entendemos que a diferença é que a sombra está mais próxima da consciência,
fazendo parte do inconsciente pessoal. Ela é formada por conteúdos que foram reprimidos no
processo de formação do ego e adaptação social, sendo, por isto, mais acessível e próxima da
consciência do que a anima e o animus.
De acordo com Jung e a teoria junguiana clássica, os homens são masculinos no ego e
na persona e, conseqüentemente, femininos em seu lado interior, inconsciente, garantindo o
equilíbrio psíquico.Geralmente na atitude externa do homem predominam ou são
consideradas ideais a lógica e a objetividade, nas mulheres predomina o sentimento. Na alma,
pom, a situão se inverte: o homem sente e a mulher delibera.” (JUNG, 1991, § 759, p. 392).
As mulheres manifestam o princípio feminino predominantemente na consciência e o
masculino, em sua maior parte, é constelado no inconsciente. Assim, relacionam-se
facilmente com as pessoas, sendo receptivas e nutridoras em sua persona, enquanto no seu
lado inconsciente existe firmeza, razão, lógica e linearidade, entre outras características do
princípio masculino (STEIN, 2005).
Mulher muito feminina tem alma masculina; homem muito masculino tem alma
feminina.“ (JUNG, 1991, § 759, p. 392). Entendemos que uma mulher muito feminina
provavelmente iria se apaixonar por um homem muito masculino, já que seu inconsciente se
80
projetaria e seu ego poderia ver no outro suas características inconscientes e poderia integrá-
las na sua psique consciente, de maneira que seu sistema psíquico se tornaria mais
equilibrado. Assim, o fascínio da paixão e do amor poderiam possibilitar que as polaridades
fossem integradas na psique consciente.
Com o homem acontece o mesmo processo, ou seja, um homem com um ego e
persona muito masculinos (muito lógico, competitivo, firme, sistemático, entre outras
características do princípio masculino) terá uma anima proporcionalmente feminina, marcada
pela compaixão, tolerância, desejo de unidade (na sua polaridade positiva), que são
características do princípio feminino (STEIN, 2005).
De acordo com Stein (2005), quando um homem está muito polarizado em um aspecto
na consciência, apresentando uma persona muito intelectual, racional, lógica e reprimindo
muito seus sentimentos e emoções, ele tende a sofrer um “ataque” de sua própria anima. Isto
acontece porque tudo o que é excessivamente reprimido acaba por formar um complexo
psíquico cada vez mais energizado. Se o ego for frágil ou se as suas defesas se mostrarem
insuficientes para conter a libido que foi reprimida, a anima invade o ego e o homem fica mal-
humorado, vulnevel, sensível demais e excessivamente sentimental, podendo se mostrar
magoado com um acontecimento banal.
Segundo Stein (2005), isto ocorre porque sua atitude consciente unilateral provoca
um desequilíbrio no sistema, constelando uma anima inferior, profundamente inconsciente
e carregada de energia. Uma vez que ela é pouco ou quase nada diferenciada e
desenvolvida, quando vem à tona (consciência) não sabe como agir, como lidar com a
realidade. A anima que possui o ego desta maneira, ao invés de favorecer seus
relacionamentos, os prejudica. Em outras palavras, o que emerge é o afeto indiscriminado
que nunca foi aceito na vida psíquica consciente. Entendemos que o homem acaba, assim,
sendo obrigado a aceitar e ver este lado seu da pior maneira.
81
De acordo com Stein (2005), quando este tipo de anima (pouco desenvolvida,
rejeitada) se projeta na mulher, o homem pode maltratá-la, vendo nela aquilo que rejeita
dentro de si mesmo. Entendemos que ele pode até mesmo violentá-la ou matá-la, na tentativa
de eliminar esta parte de si mesmo que não tolera.
Uma profissão socialmente valorizada, que proporciona status e poder pode atrair um
homem que se sente frágil, na tentativa de compensação, assim como ele pode ter uma anima
forte que se projeta numa mulher e ele pode se apaixonar por ela (STEIN, 2005).
Esta revisão de conceitos junguianos mostrou que a psique é formada pelos
complexos, aglomerados energéticos quem os arquétipos como núcleos centrais. O ego se
destaca porque é o único complexo consciente e proporciona ao indivíduo a noção de quem
ele é. O ego é o centro da consciência.
Vimos que entre os principais complexos estão o materno e o paterno, estruturados a
partir da interação do indivíduo com as figuras parentais, respectivamente. Também
entendemos que um complexo inconsciente pode invadir o ego e perturbá-lo ou até dominá-
lo. O que determina os efeitos da invasão são as defesas e a força egóica, comparada à força
do complexo invasor.
Também vimos os conceitos de sombra e persona. Entendemos que o homem
unilateral, excessivamente masculino, identificado com a persona machista que despreza
totalmente o prinpio feminino existiu e ainda existe ainda hoje: é o típico homem do sistema
patriarcal. De acordo com Neumann (2000), os homens desta cultura temem o Feminino e seu
potencial transformador; por isto, criaram defesas contra ele. Graças a esta polarização e
hostilidade a tudo o que esteja relacionado ao princípio feminino, muitas mulheres foram
timas de violência, freqüentemente sem saber por quê.
82
Após esta revio de conceitos da Psicologia Analítica, a análise da ilustração se
realizada no próximo capítulo.
83
9 ILUSTRAÇÃO: ANÁLISE DO FILME “CIÚME, O INFERNO DO AMOR
POSSESSIVO”
O filme “Ciúme, o inferno do amor possessivo” (L’ Enfer) foi escrito por Henri-
George Clouzot em 1964. Este diretor francês faleceu em 1977. Claude Chabrol reescreveu o
roteiro deste filme, dirigiu-o e o lançou em 1994.
Segundo Furucho (2007), Chabrol “decidiu filmá-lo no estilo do velho diretor, não
deixando, entretanto, de colocar sua marca na direção: planos longos, caracterização
psicológica marcante e moral provinciana.”
A ilustração mostra como o ciúme patológico destruiu a harmonia de um jovem casal
feliz e recém-casado. Paul (François Cluset) e Nelly (Emmanuelle Béart) possuíam um hotel-
fazenda à beira de um lago, onde moravam e de onde retiravam seu sustento. Eles tinham um
filho pequeno e viviam bem, até que Paul começou a sentir ciúme de Nelly, passando a vigiá-
la constantemente e a controlar seus passos. O ciúme e a necessidade de controle cresciam a
cada dia até que se tornaram insuportáveis. A legenda “Sem fim” que aparece no final sugere
que a situação infernal vivida por Paul e Nelly devido ao ciúme doentio dele não teria fim.
Em nossa análise queremos colocar alguns aspectos que merecem ser alvo de reflexão.
O primeiro aspecto é o de relacionar características do personagem de filme, que encarna o
ciúme patológico, com atitudes e traços psicológicos valorizados na cultura patriarcal.
A cultura patriarcal na qual vivemos, que é também o contexto do filme analisado,
recompensa a frieza emocional e a conquista do poder. Segundo Bolen (2002),... o poder e a
paranóia costumam andar juntos.” (BOLEN, 2002, p. 107). Seguindo este raciocínio,
podemos pensar em Paul como um personagem que expressa os valores desta cultura e que
mostra traços de paranóia exacerbados. Ele se comportava de forma competitiva com todos os
84
homens, inclusive com seu próprio filho (cena 5). Ao longo da história, percebemos a
desconfiança de Paul aumentar, manifestando-se em relação aos hóspedes, funcionários do
hotel, médico (Arnoux) e a qualquer homem que se aproximasse de Nelly.
Além da distância emocional e do poder, a razão e o controle são muito valorizados e
praticados no patriarcado. Segundo Bolen (2002), o deus grego Apolo é o que mais
representava os valores da cultura patriarcal; era o deus da lei, da razão e da ordem. Entre os
valores apolíneos inscritos no seu templo (Delfos), estava um que dizia para manter as
mulheres sob controle.
A partir da cena 6, Paul começou a demonstrar necessidade de controlar Nelly.
Quando ela ia sair com Vicent, ele perguntou se iria voltar logo. Na cena 7, Paul não quis que
Nelly fosse esquiar com os amigos e disse para Marilyn (amiga de Nelly) não chamá-la,
justificando que ela deveria trabalhar. A necessidade de vigilância e controle do protagonista em
relação à sua esposa era crescente e pode ser observada em todas as cenas desde a sexta até a
última, em que Paul amarrou Nelly em sua ppria cama, com medo de que ela pudesse traí-lo.
Na cena 21, Paul demonstrou excessiva preocupação com sua imagem, algo
característico das culturas patriarcais, nas quais o homem deve mostrar segurança,
autocontrole e controle da parceira, que é responsável pela manutenção da honra da família.
Nelly contou a Paul que havia telefonado para Martineau e solicitado para que ele não
voltasse ao hotel. Paul ficou preocupado, achando que as pessoas iriam descobrir que ele
sentia medo de ser traído e também que iriam pensar que ele mandava recados através de
Nelly, isto é, que não era suficientemente viril para encarar pessoas e situações. Suas
preocupações revelam que ele desejava manter uma persona de homem seguro e que fala
diretamente com quem deve falar; no caso, seria com Martineau. Paul acreditava que todos o
achariam ridículo, devido à sua baixa auto-estima. Ou seja, uma vez que se sentia inferior,
tinha necessidade de manter uma persona impecável, já que estava identificado com ela.
85
Na cena 10, ao ser questionado por Nelly, Paul desconversou, disse estar cansado,
escondendo suas desconfianças em relação à fidelidade da esposa. Este comportamento
masculino de esconder a fragilidade é comum na cultura patriarcal, pois se exige que o homem
demonstre força e poder, reprimindo suas emoções. Também é possível que Paul não quisesse
revelar seus pensamentos a Nelly para poder investigá-la melhor, sem que ela desconfiasse.
Devido à sua fragilidade egóica, Paul se mostrou bastante influenciável às opiniões e
comentários alheios. Na cena 30, por exemplo, ele chegou ao hotel e percebeu que havia
acabado a energia elétrica. A preocupação maior do protagonista foi descobrir onde Nelly
estava. Paul perguntou para a recepcionista, que respondeu que não tinha visto Nelly. Ele
começou a procurar a esposa pelo hotel, entrou numa sala onde estavam Vicent e Duhamel e
perguntou por Nelly. Duhamel respondeu que ela devia ter se perdido no escuro, e este
comentário provocou ainda mais a desconfiança de Paul.
Na cena 31, quando o hotel estava sem energia elétrica, Nelly distribuiu velas aos
hóspedes enquanto Paul a espionava do corredor. Um deles a convidou para entrar no quarto e
ela se recusou. Ela entrou no quarto de outro hóspede para lhe entregar a vela. Percebemos
que Paul não parava de vigiar a esposa, e isto prejudicava cada vez mais seu desempenho
profissional. Em vez de vigiar Nelly, ele poderia tê-la ajudado a distribuir velas aos hóspedes
e contribuir para um melhor atendimento aos clientes. Uma hóspede passou por Paul,
esbarrando nele, e disse que os hóspedes estavam tarados, achando que era por causa do
temporal. Paul pareceu ficar ainda mais desconfiado depois de ouvir o comentário.
Percebemos que, mais uma vez, ele se deixou influenciar por opiniões alheias.
Segundo Bolen (2002), o deus grego Poseidon era aquele que sacudia a terra, que
provocava maremotos. O equivalente psíquico deste deus seria o complexo carregado
emocionalmente que, ao ser ativado, domina o ego, desestruturando-o. Podemos estabelecer
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uma conexão entre as explosões emocionais deste deus e as de Paul que, ao ser invadido por
seu complexo sombrio, manifestava comportamentos irracionais como os das cenas 23 e 35.
Poseidon não respeitava os desejos de mulheres e deusas, assim como Paul fazia com
Nelly nos momentos em que estava tomado pelo complexo patológico. Na cena 35, Paul
estuprou Nelly. De acordo com Bolen (2002), este deus perseguiu Deméter, que se tornou uma
égua e entrou no meio de cavalos para despistar Poseidon. Diante disso, ele se transformou num
garanhão e a estuprou. Além de Deméter, este deus também estuprou Anfitrite.
É possível que Paul tenha reprimido excessivamente suas emoções, o que levou à
formação de um complexo patológico carregado de energia que passou a invadir sua consciência.
O mundo feminino, as emoções, o reino místico, o êxtase, o terror, a espontaneidade e
a loucura estão associados ao deus Dioniso, que representa valores opostos aos aponeos. Em
alguns mitos, as pessoas que o rejeitavam ficavam loucas e violentas. O rei Licurgo ficou
louco e matou o próprio filho com um machado, pensando que estava abatendo uma parreira,
após ter rejeitado Dioniso. Este deus foi espancado e forçado a mergulhar no mar e as mulheres
que o cultuavam também apanharam quando fugiam, em pânico (BOLEN, 2002, p. 362-374).
Podemos pensar que as pessoas que reprimem excessivamente suas características
“dionisíacas” - tal como Paul fez e como os homens são ensinados a fazer no patriarcado
- se arriscam a ficar loucas, a ser tomadas por explosões emocionais, devido à
unilateralidade da consciência.
Paul e Nelly parecem representar polaridades opostas. Paul é sisudo, reservado,gido,
sério, controlador, praticamente não sorri e se veste de maneira sóbria. Nelly é simpática,
sensual, exuberante, bonita, espontânea, sedutora e inconstante. Ela se veste com roupas
vermelhas, usa sapatos de salto alto, batom vermelho e pinta as unhas da mesma cor. Ela
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apresenta características de puella, enquanto Paul representa o senex em sua polaridade negativa,
sendo muito rígido, excessivamente preocupado, tendo idéias fixas e fantasias paranóides.
A paixão entre Paul e Nelly provavelmente ocorreu para que cada um pudesse ver no
outro seus aspectos inconscientes e integrá-los em sua consciência. O ideal seria que Paul
visse seus aspectos infantis projetados em Nelly e, aos poucos, fosse recolhendo esta
projeção, integrando-a em sua consciência para se tornar uma pessoa mais equilibrada.
O segundo aspecto que gostaríamos de apontar na análise é a relação entre ego e os
complexos do personagem com momentos do filme. No primeiro momento, supostamente o
complexo estaria inconsciente, pois não foi possível observar nenhuma manifestação dele. No
segundo momento, observamos a projeção do complexo e a identificação do ego com ele, que
ocorre de forma amena. No terceiro momento, a identificação do ego com o complexo e a
projeção deste acontecem de maneira intensa. No quarto momento, observamos a
desintegração psíquica do protagonista.
No primeiro momento, o complexo estava inconsciente e, por isto,o foi possível
observar suas manifestações. Este vai da cena 1 à 4.
No segundo momento, da cena 5 à 8, ocorrem a projeção do complexo patológico e a
identificação do ego de Paul com ele, em baixa intensidade. Na situação triangular formada
por Paul, Nelly e Vicent, ele demonstrou extrema irritação quando o filho começou a chorar e
sua esposa foi ao seu quarto para ver o que estava acontecendo. Paul pareceu se sentir
abandonado por Nelly, tendo que dividir a atenção dela com Vicent. Parecia querer ter a
atenção de Nelly somente para si o tempo todo, de maneira que o próprio filho passou a ser
visto como um rival.
A situação triangular pode ter reativado na mente de Paul o complexo de Édipo, que
parece não ter sido superado enquanto estrutura. Podemos levantar a hipótese de que a
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interdição paterna não se mostrou eficaz e Paul permaneceu ligado à sua mãe, transferindo,
mais tarde, este vínculo para o relacionamento com Nelly. Ou seja, a rivalidade que Paul
sentiu em relação ao seu pai pode ter sido transferida para seu filho.
Na cena 6, Paul transmitiu a impressão de ser uma pessoa cordial com seus hóspedes,
tratando-os bem. Quando Nelly disse que ia sair com Vicent e Paul perguntou se ela iria voltar
logo, ele demonstrou não apenas necessidade de controlar os passos da esposa, mas também
pareceu ter dificuldade para se separar de Nelly. Esta dificuldade de separação e necessidade
de controle - provavelmente devido ao medo da perda - que se repete ao longo do filme,
costuma estar relacionada à existência de um complexo materno.
Na cena 7, quando o médico diagnosticou a doença de Vicent como sendo apenas uma
amigdalite, Nelly criticou Paul, que pensara ser umncer. Este exagero demonstrou
dificuldade de controle de suas próprias emoções e pensamentos. Paul apresenta a tendência
de ampliar os fatos no sentido tgico, imaginando logo o pior, o que costuma estar
relacionado à existência de um ou mais complexos. Esta tendência pode ser observada ao
longo da história, pois cada vez que Paul via Nelly perto de algum homem ou ficava sabendo
que ela esteve perto de algum, já imaginava que a esposa o havia trdo.
Na seqüência da cena 7, Paul se sentiu incomodado quando ficou sabendo que Nelly
passou a manhã na praia na companhia de sua amiga Marilyn e de hóspedes. Ficou irritado
quando Martineau - um hóspede jovem e bonito - disse que a manhã foi muito boa. Ele
impediu Marilyn de chamar Nelly para passear de novo, alegando que a esposa tinha que
trabalhar. Nesta cena podemos observar claramente o ciúme de Paul. Ele aparentemente não
queria que Nelly se aproximasse de ninguém, muito menos de um homem bonito como
Martineau. Este exagero indica que há um complexo patológico constelado.
Na cena 7 ainda, ao conversar com o médico (Arnoux) Paul se mostrou bastante
irritado e se incomodou exageradamente com os hotéis concorrentes, questionando se era
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justo que os outros tentassem roubar sua clientela. Ele parecia se sentir vivendo em um
mundo injusto, como se este lhe devesse algo, o que é característico de uma personalidade
com complexos parentais.
Talvez Paul associasse virilidade com desempenho profissional. É possível que o hotel
não estivesse indo tão bem quanto ele gostaria, embora estivesse caminhando dentro do
previsto. Ao que tudo indica, a fragilidade egóica de Paul estava sendo compensada por uma
persona inflada, baseada em um ótimo desempenho profissional, status e poder.
Na cena 8, Paul surpreendeu Nelly e Martineau assistindo a um filme na sala de
projeções, no escuro. Ele já estava irritado com Martineau porque este havia dito que a manhã
com Nelly havia sido muito boa e, quando Paul viu os dois sozinhos, juntos no escuro, teve
uma reação emocional exagerada, provavelmente por ter imaginado que estivessem fazendo
algo proibido, traindo-o. Quando Paul acendeu a luz, bruscamente, viu que eles estavam
apenas assistindo ao filme. Percebemos a dificuldade de Paul para lidar com sua própria
afetividade, o que sugere que este aspecto do princípio feminino não está integrado em sua
consciência, ou seja, é algo reprimido e pouco desenvolvido, que permanece no inconsciente.
A reação emocional exagerada também é um indicativo de que um complexo foi ativado na
psique de Paul. A situação edípica não elaborada de Paul parece ter se projetado nesta cena,
de forma que ele viu Martineau como um rival, competindo pelo amor de Nelly.
Nelly se mostrou tão ingênua como uma criança, pois apesar de Paul ter ficado
visivelmente perturbado, ela caminhou até ele para lhe dar um beijo, como se nada tivesse
acontecido. Este tipo de comportamento sugere a expressão do arquétipo da puella, sendo
ingênuo demais para uma pessoa da sua idade.
Na seqüência da cena, Paul apareceu totalmente absorvido por suas próprias emoções
negativas, ao ponto de pouco enxergar as pessoas que passavam ao seu redor. Este comportamento
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de estar tomado pelas próprias emoções sugere que um complexo patológico invadiu a consciência
de Paul, perturbando seu ego. Houve uma perda relativa do sentido da realidade.
A cena 9 marca o início do terceiro momento, no qual observamos que a identificação
e a projeção do complexo patológico de Paul se intensificam. A identificação parcial ou total
com o complexo patológico pode ser observada nas seguintes cenas: 9, 13, 14 e 27, 34, 35 e
36. A projeção do complexo pode ser notada nas cenas 23, 25, 26, 29, 31, 32, 33, 35 e 36.
Na cena 9, observamos a invasão do complexo patológico: Paul conversava consigo
mesmo. Um lado dele dizia que Nelly não parecia culpada enquanto outro afirmava que ela
não era boba, induzindo a crer que Nelly o havia traído com Martineau. Observamos que ocorreu
uma dissociação patológica e o ego mostrou-se parcialmente identificado com o complexo.
Na cena 13, Nelly leu uma carta que recebeu de seu irmão e Paul fez perguntas sobre
ele, além de manifestar interesse e ler a carta, aparentemente com o objetivo de investigar se
a carta era mesmo do irmão dela. Nelly afirmou ter dito no dia anterior que iria visitar sua
mãe naquele dia, enquanto Paul demonstrou que não tinha ouvido, o que mostra o quanto
ele andava focado em seus próprios pensamentos, ignorando aspectos da realidade externa.
Este também pode ser entendido como um indício de que sua consciência estava sendo
afetada por um ou mais complexos patológicos. É possível perceber que o ego de Paul
estava perdendo sua conexão com a realidade externa. O ego apresentava-se parcialmente
identificado com o complexo patogico. Quando Nelly saiu para ir à casa de suae, Paul
continuou buscando incios de traição, analisando a carta de Nelly, o que mostrou o quanto
estava ocupado com suas investigações.
Na cena 14, Paul seguiu, com seu carro, o ônibus onde Nelly estava, até que ela desceu
e ele estacionou, passando a segui-la a pé, sem que percebesse. Nelly encontrou com Marilyn
na loja desta e Paul disse para si mesmo que era um álibi. Ele estava tomado pelo complexo
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autônomo que invadiu sua consciência, pois via a realidade distorcida, interpretando-a de
acordo com seus conteúdos emocionais. Seu ego se mostrou muito frágil e pouco integrado,
pois não conseguiu impedir que o complexo atuasse em sua consciência. Percebemos que
houve uma identificação parcial do ego com o complexo patológico.
Na seqüência da cena, Paul continuou a seguir Nelly. Ela caminhava nas proximidades
da oficina de Martineau e Paul ficou desesperado, ao que tudo indica, pensando que Nelly foi
se encontrar com o hóspede. Paul parecia procurar ter certeza de que Nelly o estava traindo,
pois dizia para si mesmo que se Nelly não estivesse na casa da mãe, ele teria certeza,
referindo-se, ao que tudo indica, à suposta traição da esposa com Martineau.
Paul foi até a casa da mãe de Nelly, que havia saído. Ele encontrou sua esposa sentada
na praça de alimentação, ao lado da casa. Quando caminhou até Nelly, quase foi atropelado
por uma bicicleta, o que mostrou o quanto estava fixado em seus próprios pensamentos e o
quanto estava alheio aos aspectos da realidade externa. Isto ocorreu devido à atuação do
complexo patogico.
Nelly e Paul conversaram na praça de alimentação. Ele continuava a investigar os
passos da esposa, interrogando-a, até que ela percebeu que foi seguida e se incomodou. Paul
tentou esconder o fato, perguntando se teria razões para segui-la. Nelly afirmou que ele não
tinha razões, mas se continuasse, as teria.
Na cena 23, Paul viu Nelly e Martineau se beijando e se tocando quando olhou para o
filme que Duhamel havia feito e estava exibindo. Ele se descontrolou e gritou, pedindo para
parar o filme. Esta cena mostra que o complexo invadiu a consciência de Paul e ele teve uma
alucinação, ou seja, ao ver Nelly e Martineau no filme, ele imaginou que eles estavam se
beijando e se tocando. As outras pessoas não viam as mesmas cenas que ele. Depois,
imaginou Nelly conversando pelo telefone com Martineau e combinando de se encontrarem
na cidade, às escondidas. Nesta cena, percebemos que houve uma projeção do complexo
92
patológico sobre a realidade externa. Observamos também o comportamento paranóico do
protagonista, que acreditava que a esposa e Martineau estavam contra ele, enganando-o. Paul
saiu da sala e Nelly foi atrás, recebendo, em seguida, um tapa em seu rosto. Percebemos que o
complexo patológico invadiu a consciência de Paul de maneira pior do que nas outras vezes,
ou seja, a cada invasão ele atuava com mais força e intensidade, o que significa que não
estava sendo integrado à consciência de Paul.
Na cena 25, Paul e Nelly estavam no quarto fumando e ele foi até a janela para jogar
fora o cigarro. Paul disse que, às vezes, queria se atirar pela janela. Este comentário revelou a
profunda angústia que o ciúme estava lhe causando. Nelly afirmou que preferiria apanhar de
Paul a vê-lo assim. Ele perguntou “O que isso mudaria? Está na minha cabeça, eu sei disso!”.
Esta afirmação de Paul revelou um momento de lucidez a respeito do seu problema.
Percebemos que, mesmo enxergando que o ciúme estava na mente dele, Paul não conseguia
ter controle sobre suas explosões emocionais, o que sugere que a maior parte da energia do
complexo era inconsciente e que seu ego não conseguia conter. Percebemos que Paul tinha
algum conhecimento do complexo, mas apenas de forma intelectual, o que não impedia este
de continuar atuando com sua força.
Na cena 26, Paul e Nelly estavam no quarto com a luz apagada. Nelly estava quase
dormindo e Paul perguntou se ela o havia visto mais o Martineau. Ela respondeu que não,
que havia ligado para ele pedindo para que não fosse mais lá. Paul achou que ela havia feito
isto porque lá no hotel era perigoso e que eles passaram então a se encontrar na cidade. Ele
fantasiou e disse que tinha lógica. Nelly afirmou que tinha lógica, mas não era verdade. Paul
queria que ela provasse, mas Nelly não sabia como. Ela prometeu não ir nunca mais à cidade,
aparentemente tentando resolver o problema da forma mais prática possível, na tentativa de
diminuir o ciúme de Paul. Nelly perguntou se estava satisfeito e ele respondeu que sim.
Pensou um pouco e disse “Bem, quase.” Esta resposta sugere que ele deve ter pensado que,
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mesmo assim, de alguma maneira, sua esposa iria traí-lo. Ou seja, independentemente do
comportamento de Nelly, Paul continuava a acreditar que seria traído. O complexo doentio
estava sendo projetado na realidade externa, sob a forma de paranóia.
A cena 27 mostra Nelly e Paul acordados, à noite, discutindo sobre o passeio na ilha
que Nelly fez com Martineau. Paul insistia em saber tudo o que Nelly havia feito e em quais
horários. Ela afirmou não ter deitado na grama com Martineau, mas Paul achou que era
mentira. Isto sugere que ele havia visto cenas que não existiram na realidade ou que Nelly
estaria mentindo. Paul se irritou, achando que Nelly estava mentindo e a puxou pelos braços,
pressionando-a contra a parede. Percebemos que o grau de descontrole de Paul aumentou,
chegando a prender Nelly (fisicamente) temporariamente. O complexo patológico invadiu a
consciência de Paul, com mais intensidade. Ele estava identificado com o complexo.
Nelly se cansou e afirmou ter “transado” com Martineau em vários lugares, ou seja,
disse o que Paul temia ouvir. Aparentemente, ela disse isto porque não agüentava mais negar
e não ser ouvida; podemos pensar que ela se descontrolou e, irritada com Paul, disse tudo o
que ele não queria ouvir. Depois Nelly se trancou no banheiro e Paul ficou desesperado, disse
que agiu mal com ela, que a amava e pediu para que ela abrisse a porta; Nelly abriu e o
chamou de idiota. Paul pressionou Nelly e, quando notou que a havia magoado, pediu
desculpas, provavelmente devido ao medo de perdê-la.
Na cena 29, Paul viu Nelly conversando com um hóspede e imediatamente foi até
onde ela estava. Percebemos a projeção do complexo patológico de Paul, causador do seu
comportamento paraico.
Na cena 32, Paul questionou sua esposa sobre a ida dela ao porão. Nelly disse que
havia ido até lá para checar os fusíveis e Paul afirmou que Jullien - um funcionário do hotel -
havia dito que tinha feito isto. Quando Nelly informou que eles haviam ido juntos, Paul
imediatamente imaginou sua esposa e o funcionário tendo uma relação sexual no porão. Ou
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seja, Paul acreditava que Nelly aproveitava todas as oportunidades para traí-lo, mesmo sem
nunca tê-la flagrado. Mais uma vez, percebemos a projão do complexo patológico sobre a
realidade externa, causando a paranóia de Paul.
Na cena 33, Paul foi até o sótão e encontrou no chão a pulseira que ele havia dado a
Nelly. Paul ouviu uma voz que dizia “Todos a possuíram.” e, em seguida, imaginou Nelly
maquiada, com batom vermelho e um copo de bebida na mão, olhando para os hóspedes de
maneira sensual e os seduzindo, um a um. Percebemos, novamente, o complexo patogico
atuando na mente de Paul, cada vez mais carregado em termos energéticos. Se antes Paul via
Nelly, em sua imaginação, se relacionando sexualmente com um homem, nesta cena ele
passou a vê-la com vários; e se comportava como se isto realmente tivesse acontecido. O
comportamento paranóico estava cada vez mais intenso. E a voz que Paul ouvia era uma
manifestação do complexo autônomo que estava atuando na sua psique, como se fosse um
outro “eu”. Ou seja, o complexo apresentava-se dissociado.
Na cena 34, Paul questionou Nelly sobre sua ida ao sótão e sobre a pulseira, que Nelly
afirmava ter perdido. Ele o se satisfazia com as respostas e chamava a esposa de mentirosa.
Nelly respondeu que mentia porque estava cheia dos “chiliques” de Paul e porque devia ter
cuidado com o que dizia. Paul tentou segurá-la e ela se soltou. Percebemos novamente que o
complexo patológico estava dominando a mente de Paul. Ele estava identificado com o
complexo. Nelly continuou, afirmando que dizia qualquer coisa para pôr fim às perguntas de
Paul e concluiu dizendo: “Eu minto e não me importo de mentir para você.. Novamente,
percebemos que Nelly terminou dizendo o que Paul mais temia ouvir.
Paul perguntou a Nelly se ela o odiava. Ela respondeu que, se pudesse sustentar sua
mãe e Vicent, não ficaria mais lá. Paul perguntou se era por isso que Nelly ficava com ele e
ela respondeu que havia se casado com ele por este motivo. Esta resposta é um indício de que
Nelly tinha sua alma prostitda, tendo se casado com Paul por interesse financeiro. Ele
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pensou e disse que não acreditava, que não podia acreditar. Um lado dele parecia acreditar
que Nelly o amava, enquanto outro pensava que ela o tra. Este era a manifestação do
complexo patológico dissociado.
Na cena 35, Paul acordou e não encontrou Nelly na cama. Ele se levantou e foi
procurá-la. Entrou no quarto de Vicent, depois caminhou pelo corredor do hotel. Angustiado,
abriu o quarto de um hóspede que estava dormindo, e viu que Nelly não estava lá. Fechou a
porta. Entrou no quarto de Duhamel e o ouviu cantando no banheiro. Ospede se
surpreendeu ao vê-lo. Ele discutiu com Duhamel, pois viu que havia copos sujos de vinho, o
que indicava que alguém havia passado pelo quarto do hóspede. Paul disse: “Acha que por ter
grana pode transar com a mulher do dono?”. Duhamel tentou explicar a Paul que Nelly não
tinha passado por lá, mas acabou perdendo a paciência e expulsando Paul do quarto quando
este disse que no dia seguinte iria “enxotar” todos do hotel. Percebemos que o complexo
patológico invadiu a consciência de Paul com tamanha intensidade que ele teve um
comportamento absurdo e prejudicou seu próprio negócio, expulsando mais um cliente do
hotel. E ameaçando expulsar outros. Paul estava identificado com seu complexo patológico,
de maneira que seu ego foi subjugado
Paul voltou ao seu quarto e encontrou Nelly. Perguntou aonde ela havia ido e se ela
tinha estado com Duhamel. Ela disse que tinha ido abrir a porta para o gato e não havia estado
com Duhamel. Paul bateu a porta de seu quarto, gritou com Nelly, dizendo que ela queria
todos e a segurou pelos braços, empurrando-a contra a parede. Ele atacou Nelly sexualmente,
dizendo que era a vez dele. Ela chorou, pedindo, por favor, para que ele parasse. Paul ouviu
uma voz que dizia “Não se deixe enganar.”. Novamente, o complexo patológico estava
atuando em sua mente, dominando-o. Nelly gritou para que Paul parasse e ele ouviu a mesma
voz dizendo “Não deixe essa puta enganá-lo.”. Paul gritouPiranha!”. Percebemos que houve
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a projeção da alma prostituta de Paul sobre Nelly e a manifestação do complexo dissociado
sob a forma de uma segunda voz, como se fosse um outro “eu”.
Na cena 36, Paul foi ao consultório médico. Ele entrou na sala de Arnoux e perguntou
onde o médico a havia escondido. Paul ameou o médico, dizendo que ele podia ser
responsabilizado por abandono de domicílio conjugal. Percebemos que, na medida em que o
filme se desenrolava, Paul progressivamente sentia como se o mundo estivesse contra ele, o
que é característico da paranóia. Paulatinamente, ele começou a achar que os hóspedes e
mesmo os funciorios do hotel estavam tendo relações sexuais com Nelly, ou seja, ele sentia
como se praticamente todos estivessem contra ele: concorrência profissional (hotéis), hóspedes,
funcionários, amiga de Nelly, médico e a ppria esposa, como se existisse um complô contra
ele com o objetivo de humilhá-lo e arruiná-lo. Percebemos que o complexo sombrio se
projetava na realidade externa, cada vez mais intensamente, provocando a paranóia.
Arnoux chamou Nelly, que estava na sala ao lado e Paul disse: “O senhor também?
Obrigado. Quanto lhe devo?”, o que sugere que Paul acreditava que Nelly o havia traído até
com o médico. Arnoux respondeu que o comentário de Paul não tinha graça e que ele a tinha
ferido, por isso Arnoux teve que examiná-la. Paul continuou com comentários inicos,
dizendo que, pelo visto, o médico a havia examinado bem. Arnoux ameaçou internar Paul se
ele não parasse.
Paul afirmou que era Nelly quem estava doente, e que se Arnoux pensava que iria
enganá-lo, se daria muito mal, pois ele conhecia muito bem seus direitos e internação
arbitrária era um delito muito grave. Paul afirmou que Nelly era uma mentirosa patológica e
que havia mentido para o médico assim como também mentia para o marido. Percebemos que
Paul estava totalmente identificado com o complexo patológico, pois realmente acreditava no
que ele mesmo estava dizendo, tendo perdido o contato com a realidade. O médico afirmou
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que Paul havia batido nela e ele disse que só tinha dado um tapa em seis anos de casamento e
que se tivesse que repetir, seria naquele momento.
Arnoux disse que Paul quase a havia aleijado. E Paul continuou, afirmando que no
início havia acreditado nela, depois tinha entendido tudo e a perdoado. Paul disse: “Mas
quando sua mulher transa no sótão, é imperdoável. Ela se levanta às 2:00h. para se deitar com
os hóspedes. O que faria?”.
Paul contou ao médico que levou um tempo para “pegar” Nelly, pois ela era esperta e
fazia de conta que dormia, mas ele se programava: acordava e encostava nos pés dela, que
estavam frios, ou seja, ela tinha se levantado. O médico respondeu: “Claro.”, concordando
com Paul. Nesta cena, percebemos duas possíveis interpretações. A primeira delas é que
Arnoux tenha se identificado com Paul, colocando-se no lugar dele e acreditando no que ele
estava dizendo. A segunda é que Arnoux tenha fingido acreditar em Paul para conseguir que
ele fosse até a clínica e lá fosse internado. Podemos observar que Paul se expressou de
maneira lógica e bem articulada, o que é característico da paranóia. Ele poderia, de fato, ter
convencido alguém sobre aquilo que disse. Afinal, ele próprio tinha certeza sobre o que dizia,
devido à identificação com o complexo doentio. Neste ponto, cabem algumas reflexões: estas
duas possibilidades poderiam acontecer na realidade? A segunda interpretação seria ética? O
que poderia ser feito para entender melhor a situação do casal (Paul e Nelly) e evitar uma
avaliação precipitada?
Nelly olhou para ambos espantada, parecendo não acreditar no que estava ouvindo, e
disse: Mas, doutor...”. Arnoux pediu para que ela deixasse Paul falar, pois era muito
interessante. Paul continuou: “Não é culpa dela. Sei que ela me ama, à sua maneira. Mas
quando isso nela, pode ser hóspede, mecânico, garçom... ela está doente... olhe para ela.”.
O médico olhou. Nelly olhou para baixo, desolada.
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O marido de Nelly disse que ela estava estragando a saúde: “Veja a aparência!”. E de
fato, Nelly estava bastante abatida devido aos maus tratos de Paul. Observamos como Paul via
a realidade distorcida de acordo com sua imaginação.
Paul afirmou que Nelly era histérica e Arnoux disse que acreditava em Paul. Nelly
disse baixinho para si mesma: “Isso é monstruoso... ele enlouqueceu! Ele está louco!”.
Aparentemente, diante desta situação, Nelly não sabia o que fazer e decidiu ficar quieta.
Paul continuou, falando para o médico: “Agora ela quer me internar. É a prova final.”.
Ou seja, ele via tudo através da ótica paranóica. Arnoux disse que Paul tinha razão e que iriam
cuidar daquilo. O médico telefonou para um psiquiatra, disse para este que tinha um caso de
histeria para ele, que o marido havia feito um relato significativo e que era urgente. Nelly
tampou seus ouvidos com as mãos, como quem se recusa a ouvir aquilo.
Arnoux combinou com o outro médico, dizendo que passaria no dia seguinte, cedo,
para pegar os dois (Nelly e Paul). Paul ouviu a conversa e disse que nem ele nem Nelly iriam
a nenhuma clínica. Arnoux olhou para Nelly e disse: “Sei que é duro, Nelly, mas não há outra
solução. Coragem!”. Nelly não disse nada. Paul falou para Nelly não ligar para o médico, que
ele (Paul) a defenderia e que o médico não tinha o direito. Arnoux disse que apanharia os dois
às 7:00h. Paul se voltou contra o médico, como se este estivesse tentando roubar Nelly dele,
como se fosse um rival. Percebemos mais uma vez seu comportamento paranóico se
manifestando.
O quarto momento da história teve início na cena 37 e foi marcado pela desintegração
psíquica de Paul. Na última cena (38), Paul já havia perdido as referências egóicas de tempo e
espaço e já não conseguia separar realidade interna e externa. Elas se confundiram, gerando
delírios e alucinações.
Na cena 37, Paul olhou pela janela e viu uma ambulância chegando. Foi até o banheiro
e se olhou no espelho. Enquanto isso, ouviu a voz de Nelly dizendo: “Alô, doutor? Chegaram.
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Ele nos trancou. A chave está sob o tapete. Ele está louco. Quando dormir, abrirei para eles.”.
Paul saiu do banheiro e foi para o quarto. Ele a olhou. Ela estava na cama, dormindo, o que
sugere que a voz dela falando ao telefone tinha sido fruto da imaginação dele. Paul disse para
si mesmo, olhando para ela:É um animal perigoso. É preciso amarrá-la.”. Nelly continuou
dormindo profundamente. Paul dirigiu-se a ela, que permaneceu dormindo. Paul perguntou à
esposa se ela queria abrir para eles. Ela não respondeu, pois estava dormindo. Ele pegou uma
fita e começou a amarrar Nelly na cama, prendendo seus braços. Ela não acordou. Paul gritou:
“Foi você que pediu, piranha!”. Percebemos que o ego de Paul havia perdido muito a conexão
com a realidade externa, ao ponto de ouvir o que não existia.
Nelly gemeu em voz baixa, sem abrir os olhos. Talvez inconscientemente tivesse
percebido a agressão. Paul ouviu alguém batendo na porta. Olhou para a janela e viu dois
homens vestidos de branco (aparentando serem enfermeiros) saindo de uma ambulância e
posicionando-se na frente da mesma, de braços cruzados e com expressão facial fechada. Ao
que tudo indica, esta era mais uma projeção de inimizade de Paul.
Paul ouviu batidas na porta. Aproximou-se para abri-la e ouviu a voz de Nelly falando
ao telefone: “Doutor, ele me amarrou.”. Em seguida, ele viu o telefone fora do gancho, caído
em cima da cama. Paul olhou novamente pela janela eo viu mais a ambuncia nem os
enfermeiros, o que nos leva a crer que eles eram uma projeção de sua imaginação. Ficou
pensativo e caiu no chão. Bateu a cabeça e ela se feriu. Escorreu um pouco de sangue.
Percebemos o quanto ele estava mal. Neste momento, observamos que, além de ouvir o que
não existia, ele também via o que não existia. Ou seja, percebemos a projeção do complexo
doentio na realidade externa se manifestando através de um derio de Paul.
Na última cena (38), Paul acordou Nelly, chamando-a de Meu amor”. Ele a
desamarrou e a conduziu até o banheiro, afirmando que já eram seis horas e que eles deviam
se preparar para esperar o Dr. Arnoux. Nelly percebeu que Paul havia se machucado e ele
100
disse que não tinha sido nada, que depois explicaria. Nelly disse que estava escuro e
chovendo. Ela tinha medo de chuva. Paul assegurou que dirigiria devagar. Ele pediu para que
Nelly se apressasse e que passasse um pano molhado no rosto para despertar. Disse que
prepararia o banho dela. Conforme veremos adiante, esta cena se passou na imaginação de
Paul. Uma interpretação simbólica sugere que a situação psíquica estava difícil, pois Paul
estava com um machucado, Nelly estava muito sonolenta e o tempo era chuvoso, ou seja,
existiam várias dificuldades para serem superadas antes de chegarem ao socorro médico.
Na seqüência do delírio de Paul, Nelly pediu para que ele não a apressasse e para que a
deixasse despertar. Paul passou espuma de barbear no rosto. Nelly riu, olhando para ele. Paul
se surpreendeu com o olhar e perguntou por que ela o estava olhando, dizendo que parecia
que ela nunca o havia visto. Nelly respondeu: “Como esta manhã, não. Faz tanto tempo... parece
um sonho. Se fosse verdade.... Paul respondeu: “Meu amor, é verdade. Não dá para ver?”.
Nelly chorou e disse que fazia tanto tempo, que pensou que estivesse tudo perdido.
Esta verbalização de Nelly sugere que a psique de Paul ainda era capaz de ver possibilidade
de realização e de vida, ainda que o ego estivesse fragmentado, desorganizado e perdido.
Nelly parecia representar a anima de Paul.
Na seqüência do delírio, Nelly chorou e disse estar feliz. Paul a convidou para
recomeçar tudo quando voltassem de Clermont (onde estava localizada a cnica). Nelly
perguntou se então o marido queria ir e ele respondeu que queria muito, o quanto antes, pois
desejava ficar em segurança.
Paul se barbeava com uma navalha. As imagens das supostas traições de Nelly
passaram por sua mente. Em seguida, imaginou que estava cortando o pescoço dela com a
navalha. A imagem ficou embaçada. Percebemos o ódio que Paul sentia de Nelly devido às
supostas traições que ela havia cometido.
101
Paul se olhou no espelho e disse para si mesmo: “Sua ferida abriu de novo, veja.” No
espelho, viu sua imagem. Havia um corte sangrando, na sobrancelha direita. Ele saiu do
banheiro e foi até o quarto. Viu Nelly amarrada à cama, dormindo. Disse para si mesmo
Veja... mas eu a tinha desamarrado!”. Nesta passagem percebemos que a cena se passou na
mente de Paul e não na realidade do filme, conforme foi dito anteriormente. A abertura da
ferida sugere que Paul tinha uma ferida psíquica que não havia cicatrizado, o que pode ser
interpretado como a não resolução da situação triangular infantil. Enquanto este problema não
for superado, encontrando uma resolução adequada para a evolução no processo de
individuação, a ferida de Paul continuará se abrindo e ele provavelmente continuará preso em
umrculo vicioso, ao invés de seguir numa espiral evolutiva. Paul ainda não havia constrdo
uma identidade masculina forte, baseada em seu Self e este é um dos motivos pelos quais se
sentia ameaçado por todos, constantemente.
Devido à fragilidade egóica, Paul construiu uma persona inflada, representada por um
homem bem sucedido financeiramente, casado com uma mulher muito bonita, sério e sisudo.
Ele se preocupava excessivamente com sua honra, exatamente por não ter constrdo uma
identidade masculina forte. A excessiva preocupação com sua própria imagem perante os
outros revela que Paul estava identificado com sua persona. De acordo com esta interpretação,
qualquer ameaça à persona seria sentida como se fosse uma ameaça ao próprio ego.
Na seqüência da cena, Paul se aproximou de Nelly e se perguntou “O que está
acontecendo comigo? O que houve?”. Ele tentou entender, através do raciocínio lógico, o que
era real, mas não conseguiu e se perdeu nos próprios pensamentos: “Vejamos, pouco nos
preparávamos para ir à clínica, em Clermont, nós dois. Ainda estamos aqui, como antes.
Como antes o quê? Não sei mais. Eu me perco. Só espero que ela não pretenda...”. Paul
parecia cada vez mais aflito.Preciso por as idéias no lugar. Preciso ter cuidado. Eu não
102
devo... não devo... se alguma vez...”. Ele encostou a cabeça na janela, olhando para baixo.
“Bem... vamos ver...”.
Apareceu a legenda Sem fim.”. Nessa passagem percebemos a desorganização
psíquica de Paul e a desintegração de seu ego. Ele não conseguia mais separar a realidade
interna da externa e entrou em colapso. A legenda sugeriu que Paul estava preso em um
rculo vicioso infinito e que não conseguiria sair dele.
No próximo catulo, faremos uma discuso sobre o ciúme patológico masculino.
103
10 DISCUSSÃO
Na cultura patriarcal, o ciúme patológico masculino se expressa através da
preocupação do homem com sua honra, da necessidade de vigilância e controle da mulher e
da identificação com uma persona inflada para compensar a baixa auto-estima.
Consideramos a hipótese de que o sistema patriarcal, ao priorizar valores do princípio
masculino em detrimento daqueles relacionados ao princípio feminino, fica desequilibrado e
pode provocar intensificação do ciúme patológico masculino, na medida em que valores como
possessividade e competitividade são exaltados. A integração do princípio feminino se faz
necessária na cultura patriarcal para que ela se equilibre e deixe de ser unilateral.
Esta integração já está começando a acontecer. Percebemos que em alguns contextos a
afetividade e a exposição das fraquezas já são permitidas aos homens, assim como realizar
tarefas que antes eram exclusivamente destinadas às mulheres. As definições novas de
masculinidade coexistem com as antigas, o que gera insegurança em muitos homens.
A insegurança, a fragilidade do ego, a baixa auto-estima e a não superação da estrutura
edipiana estão associadas ao ciúme patológico. Além disto, complexos parentais também são
observados nesta patologia.
Um homem que apresenta uma atitude consciente unilateral com uma persona muito
racional, lógica e intelectual, constela uma anima inferior, profundamente inconsciente e
carregada de energia que pode invadir o ego, fazendo emergir o afeto indiscriminado,
prejudicando seus relacionamentos.
O comportamento de se vingar da traição com a morte do rival e/ou da suposta
traidora foi um tema recorrente encontrado na mitologia e na literatura. É comum ouvirmos
casos assim na cultura patriarcal. Os fatos mitológicos e literários refletem o que comumente
acontece nesta cultura.
104
O ciúme patológico masculino é caracterizado pela atuação de um ou mais complexos
patológicos sobre o ego. No início, o complexo é inconsciente, mas já age como um fluxo de
vontade oposta à do ego. Progressivamente, ocorre identificação parcial e total do ego com o
complexo e este também se projeta na realidade externa, sob a forma de alucinações e
delírios. No grau extremo do ciúme mórbido, ocorre dissociação psíquica e desintegração
egóica, impossibilitando a separação clara entre realidade interna e externa.
A identificação com uma persona masculina inflada caracterizada pela busca de status
e poder, a sombra formada pelo princípio feminino reprimido e a projeção desta última sobre
as mulheres também fazem parte da dinâmica do ciúme patológico masculino. A paraia é o
transtorno mais comumente associado ao ciúme mórbido.
De acordo com o que foi exposto, o ciúme patológico pode ser um sintoma que aponta
para a existência de uma unilateralidade na consciência. Valores do princípio feminino como
união, aceitação, tolerância, amor e afetividade precisam ser vistos e integrados na cultura
patriarcal, assim como na psique do ciumento patológico para que ele deixe de se sentir
ameaçado pelos seus conteúdos reprimidos, relacionados ao princípio feminino.
Entendemos que, com o resgate e integração do princípio feminino, a mente masculina
ficaria mais equilibrada. Pensamos que, provavelmente, o ciúme masculino teria uma
expressão diferente da atual.
Apresentamos os seguintes questionamentos para reflexão: será que no futuro o
modelo baseado no princípio feminino irá predominar? Caso isto ocorra, o ciúme patológico
deixará de existir como é atualmente? Seria o ciúme patológico masculino um sintoma
cultural que traduz os mecanismos de controle do patriarcado e aponta para a necessidade de
mudança do paradigma do poder (baseado no princípio masculino)? Este modelo
hierarquizado de dominação não teria contribuído significativamente para criar sujeitos com
105
tendência à paranóia e ao ciúme patológico, que necessitam controlar tudo para se sentirem
seguros, já que se sentem constantemente ameaçados?
Segundo Carotenuto (2004), conforme vimos, a percepção da perda do controle sobre
o outro significa que a relação já terminou. Questionamos se nos relacionamentos existe
sempre o controle de um parceiro sobre o outro e se isto é necesrio. Ou esta seria uma
interpretação baseada no paradigma do poder? Será que um parceiro precisa controlar o outro
quando o relacionamento é baseado no amor e na confiaa?
106
11 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho possibilitou uma reflexão sobre as relações existentes entre a cultura
patriarcal e o ciúme patológico masculino. O desequilíbrio desta cultura que valoriza
excessivamente o princípio masculino em detrimento do feminino certamente afeta as pessoas
que vivem neste sistema. Os homens que vivem no patriarcado aprenderam a associar sua
própria honra ao comportamento de suas mulheres (companheiras, esposas, filhas) e por isto
passaram a vigiá-las e controlá-las, subtraindo-lhes a liberdade.
A sociedade capitalista na qual vivemos também valoriza excessivamente o ter, a
competitividade e o poder (características do princípio masculino), o que faz com que, muitas
vezes, pessoas sejam tratadas como objetos. Esta mentalidade está tão enraizada na cultura
que muitas vezes observamos que a honra e o orgulho se sobrepõem ao amor. Um exemplo
disto é quando um homem se preocupa muito mais com o que vão dizer dele do que com o
que sente em relação à sua mulher. É freqüente ouvirmos notícias de que uma mulher foi
assassinada ou violentada pelo marido ou namorado porque terminou seu relacionamento com
ele. Este tipo de comportamento masculino comumente encontrado na cultura patriarcal
mostra como o amor e a tolerância - valores do princípio feminino - ficaram relegados ao
segundo plano.
Consideramos que nestes casos de extrema violência certamente existem fatores
psicológicos envolvidos também, tais como a não superação da estrutura do complexo de
Édipo, baixa auto-estima, fragilidade egóica e complexos parentais patológicos. Mesmo
assim, percebemos que a excessiva valorização do poder, da posse e da honra masculina
influencia no comportamento do ciumento mórbido.
Segundo Wyly (1994), a construção de uma identidade masculina baseada apenas nas
expectativas sociais e desconectada do Self traz insatisfação e fúria nos homens, o que
107
podemos observar na prática clínica e no cotidiano. Pensamos que para formar cidadãos mais
felizes a cultura precisa se modificar, incluindo uma tolerância maior às difereas entre as
pessoas. Um homem que se sente livre para construir sua identidade enraizada em seu Self
será mais feliz e equilibrado do que outro que se sente pressionado para atender a um papel
social rígido. E um homem mais feliz e equilibrado provavelmente tem menor tendência a
desenvolver patologias.
A Psicologia Analítica pode contribuir no sentido de facilitar a conexão do homem
com seu Self, viabilizando a expressão de uma personalidade genuína. Ao apontar para a
necessidade de integração do princípio feminino nos âmbitos cultural e individual, ela
também está contribuindo para o equilíbrio da cultura e das pessoas que nela vivem.
No contexto clínico, esta pesquisa aponta para a necessidade de propiciar condições
para que o homem que sofre de ciúme patológico possa rever seus complexos parentais, a
conexão entre seu ego e Self, sua auto-estima, seus valores, sua definição de masculinidade e
também superar sua estrutura edípica, elaborando suas feridas psíquicas.
Esta pesquisa teórica teve como objetivos compreender de que maneira o ciúme
patológico masculino se expressa na cultura patriarcal e também os aspectos psicológicos
envolvidos na dinâmica desta patologia. Seria interessante que este estudo teórico fosse
complementado por pesquisas que estudassem a evolução do ciúme patológico masculino na
prática clínica, observando o que faz com que esta patologia se desenvolva para melhor ou
para pior. Concluímos este estudo com duas questões lançadas para futuros pesquisadores: A
integração de aspectos femininos reprimidos provoca diminuição do ciúme patológico
masculino? Como este processo pode ser realizado de maneira eficaz na prática clínica?
108
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113
ANEXO - TRANSCRIÇÃO DA ILUSTRAÇÃO: CIÚME, O INFERNO DO AMOR
POSSESSIVO
Filme: Ciúme: o inferno do amor possessivo
Dir. Claude Chabrol
França, 1994
Cena 1
O hotel está sendo construído. Nelly chega, de bicicleta, feliz e sorridente com sua
amiga. Paul mostra a elas como está o andamento da construção. Lá dentro, há um quarto
quase pronto. O espaço é grande e existem vários quartos. Paulo diz que vai construir seu
apartamento com dois quartos de criança.
Nelly senta na cama e diz que é confortável. Ela pergunta a Paul onde ele arrumou
tanto dinheiro.
Paul: Trabalho aqui quinze anos. Tenho minhas economias. Mae me deixou um
pouco, mas 4/ 5 vem de um empréstimo bancário. Estou todo endividado.
Cena 2
É o casamento de Paul e Nelly. Eles parecem muito felizes, dançam e se divertem.
A festa do casamento chega ao fim com eles em um pedalinho (um barco onde eles
pedalam para se locomoverem) numa lagoa.
Cena 3
O hotel está pronto e em funcionamento. Nelly chega, conduzindo um carrinho de
bebê, onde está seu filho (Vicent).
Cena 4
114
O menino (filho de Paul e Nelly) está comando a andar. Paul o chama para caminhar
até onde ele está.
Paul: Venha, pequeno.
Venha, filhote, assim...
O menino vai até ele.
Paul, muito feliz, o pega no colo. E grita para Nelly.
Paul: Nelly, ele está andando!
Ela vem e responde alegremente.
Nelly: Eu sei.
Cena 5
É noite e eles estão no quarto. Desligam a televisão e se abraçam, em um clima de
romance e erotismo. O filho deles coma a chorar.
Paul (irritado): De novo não!
Nelly ri muito, como uma criaa.
Paul: E você acha graça?
Nelly: Quer que eu chore?
Paul: O que ele tem?
Nelly: É só um pesadelo. Já volto.
Ela se levanta e vai até o quarto do filho.
Paul se levanta (tenso), coloca a o no peito e caminha até uma sala próxima. Ele se
olha no espelho e coma a conversar consigo mesmo.
Paul: Não consigo dormir com o choro. Sério, não tenho conseguido dormir.
Nelly chega.
Nelly: O que faz aqui?
Paul: O que ele tinha?
115
Nelly: Só um pesadelo. Vamos dormir.
Nelly volta para o quarto de dormir.
Nelly: Venha se deitar.
Ela o abraça e percebe que há algo errado.
Nelly: Perdeu o interesse (erótico, de beijar, abraçar...)?
Paul: Não conseguirei dormir.
Nelly (confiante): Vai dormir sim. Vou trazer um tranilizante.
Ela traz e o comprimido e o coloca na boca de Paul, com água.
Nelly: Você trabalha muito, Paul. Está exausto, por isso fica tenso. Com o
tranqüilizante, vai dormir.
Nelly acaricia a cabeça (testa e cabelo) de Paul, como uma mãe. Eles se abraçam e
apagam a luz.
Cena 6
Nelly e o filho estão tomando café da manhã no restaurante do hotel. Paul chega e diz
bom dia, dando um beijo na esposa. Ele cumprimenta um casal de hóspedes e pergunta se
dormiram bem. Após uma breve conversa agradável com eles, Paul volta para a mesa onde
está Nelly e o filho.
Nelly vai sair com Vicent e o marido pergunta se ela irá voltar logo.
Nelly: Não, vou a alguns lugares.
Paul: Para o hotel?
Nelly: Não, para mim.
Cena 7
Nelly, Paul e o médico (Arnoux) estão no quarto de Vicent. Arnoux examina a
garganta do menino e diz que é apenas uma amigdalite.
Nelly (falando para Paul, tranqüila e sorridente): Não disse?
116
Nelly (falando para o médico): Ele já achava que era câncer. Fez um bicho-de-sete-
cabeças sem motivo algum.
Paul (sério): o me divirto com isso.
Nelly (em tom de censura): Não descansa nenhum pouco.
Paul sai junto com o médico. Ele vai buscar os remédios para o filho. Nelly fica
com o menino.
Após descer a escada, Paul tem uma breve conversa com a recepcionista do hotel e
descobre que Nelly havia passado a manhã na praia. Ele se incomodou com o fato.
Paul e o médico caminham para fora do hotel e encontram alguns hóspedes.
Marilyn (a amiga de Nelly) pergunta sobre Nelly e Vicent.
Marilyn: Chamarei a Nelly.
Paul: Não, ela deve ficar com ele (filho).
spede (um homem): Queríamos esquiar com ela.
Martineau (um hóspede muito bonito, aparentando aproximadamente trinta
anos): Esta manhã foi muito boa.
Paul: Fica para outra vez, certo?
Merilyn: Vou ver minha amiga.
Paul: Ela tem que trabalhar. Divirtam-se.
Paul e o médico caminham em direção ao carro de Arnoux, pois o carro de Paul está
sendo consertado na oficina de Martineau. Paul i até a cidade de carona com o médico.
Arnoux: É seco com os hóspedes.
Paul: É uma amiga.
Arnoux: Espero que ela saiba.
Paul está visivelmente tenso. Eles saem de carro e conversam. Arnoux dirige.
Paul: Vicent está mesmo bem?
117
Arnoux: Você é que me preocupa com os soníferos.
Paul: Preciso deles.
Arnoux: Tome cuidado. Bebe muito?
Paul: Um drinque casual faz parte do trabalho.
Arnoux: Está com problemas?
Paul: Problemas?
Arnoux: Dinheiro, como todos. O hotel vai bem?
Paul: Dentro do previsto.
(pausa) Não estou doente, doutor.
Arnoux: A concorncia o prejudica?
Paul: São amadores.
Arnoux: Estão se saindo bem, não?
Paul: Sim, eles se viram. Dão bebida aos motoristas e servem má comida aos clientes.
(expressando raiva). Você dá duro o ano todo para montar um bom negócio e quando
começa a dar certo tentam roubar sua clientela. Acha isso normal? Acha isso justo?
Cena 8
Paul chega ao hotel. Um hóspede aparentando aproximadamente quarenta e cinco anos
(Duhamel) o filma logo na entrada.
Paul entra no hotel, conversa com a recepcionista e vai levar o remédio ao filho. Está
subindo a escada quando percebe algo na sala de projeção de deo. Vai até a sala e abre a
porta, repentinamente e bruscamente. Lá estão Nelly e Martineau, no escuro. Paul acende a luz.
Martineau: O que há, Paul?
Paul está visivelmente perturbado.
Nelly (tranqüila): Ele está mostrando uns slides.
Paul: No escuro?
118
Nelly: Fica bem melhor no escuro. Trouxe os remédios?
Paul: Já são 20:15 horas. Esperam-na para o jantar.
Nelly (surpresa): Já?
Nelly caminha até Paul, para lhe dar um beijo. Ele permanece sério e aborrecido. Ela
faz uma careta e sai para a sala, saltitante, para ir jantar. Paul e Martineau ficam sozinhos na
sala de projeção. O carro de Paul estava na oficina de Martineau.
Martineau: Pegou seu carro?
Paul (seco): Sim, peguei.
Paul vira as costas e sai da sala. Caminha para fora do hotel. Um casal de hóspedes
fala com ele, dizendo que o dia está lindo. Ele parece passar pelo casal sem vê-los,
aparentando estar extremamente focado nos seus próprios pensamentos. Ele parece só ter
percebido que o casal estava falando com ele depois de certo tempo. E responde que sim, que
o dia estava lindo, sem olhar para eles. Paul continua caminhando, focado nos seus
pensamentos e emoções.
A recepcionista procura Paul.
Cena 9
Paul está parado, em frente a uma grande lagoa. Ele fala consigo próprio.
Paul: Já sabe o que esperar agora?
Ela não parecia culpada. Não parecia.
Isso o tranqüiliza?
No salão...
Ela não é boba. Nada boba.
Cena 10
Nelly atende os clientes do restaurante do hotel. Paul chega.
Nelly: Onde estava?
119
Paul: Dando uma volta. Não me sentia bem.
Nelly: O que você tem?
Paul: Cansaço, mas já passou.
Cena 11
Nelly e Duhamel descem do ônibus. Ela chega do centro. Duhamel se oferece para
ajudar a carregar as sacolas. Nelly não quer ajuda.
Nelly: Não, é tudo meu. Hoje fiz umas loucuras!
Nelly corre para dentro do hotel, feliz com as compras.
Duhamel (falando com Paul): É um privilégio das mulheres bonitas: arruinar-nos!
Chegando lá dentro do hotel, Duhamel pega um dos pacotes de Nelly.
Duhamel (falando com Nelly): Isso é seu. Aposto que é uma camisola.
Nelly: Transparente.
Duhamel: Oh!
Nelly: Obrigada pela companhia.
Duhamel: Foi um prazer. Nas próximas compras, basta me chamar.
Paul assiste a conversa e aparenta não gostar. Assim que o hóspede sai, Paul fala com Nelly.
Paul (em voz baixa): Não está exagerando?
Nelly (em voz baixa): Está sendo gentil, e aproveitei. Que mal há nisso?
Ela beija Paul.
Cena 12
Nelly está dando banho no filho. Paul chega.
Paul: Foi pagar o impressor?
Nelly: Logo depois do almoço.
Paul: Ele ligou às 15:00 horas, cobrando.
Nelly: Então devo ter passado em seguida.
120
Paul: Ficou na sua mãe até às 15:00 horas?
Nelly: Claro que não.
Paul: Não ia almoçar com ela?
Nelly: Com sua aula de piano?o.
Tomei um lanche com Marilyn na loja.
Após ter dado banho em Vicent, Nelly diz ao menino para que ele jantar. Ela e Paul
ficam no banheiro.
Nelly: Vou tomar banho. Vem comigo?
Paulo vai.
Paul: E quanto aos clientes?
Nelly: Que clientes?
Paul: Enquanto comiam na loja.
Nelly: Não tinha ninguém. Dia fraco.
Paul: Até às 15:00 horas?
Nelly: Não passo o dia olhando a hora.
(pausa)
Espere. Deixe-me ver. Deixe-me ver. Aqui na luz.
(Nelly o puxa para um lugar mais iluminado)
Não acredito!
Paul: O que foi?
Nelly: Está com ciúme!
Paul: Ciúme...
Nelly sorri e o abraça.
Nelly: Gosto disso. É sinal que me ama.
Imagine!
121
Nelly vai tomar banho.
Nelly (em tom de brincadeira): Ciumento!
Ela fecha a porta do banheiro. Paul fica no quarto e começa a mexer na bolsa de Nelly.
Depois abre um dos pacotes que ela havia comprado. Encontra uma bolsa amarela e abre.
Nelly chega do banho, enrolada numa toalha.
Nelly: Remexendo minhas coisas?
Paul: Desculpe, pura curiosidade.
Nelly (referindo-se à bolsa): É linda, não?
Paul: Deve custar uma nota!
Nelly: Adivinha.
Paul: Cinco mil.
Nelly: Acha que pagaria cinco mil? Esfregue forte, em vez de dizer bobagem.
Paul começa a esfregar as costas de Nelly com a toalha. Ela parece gostar.
Paul: Quanto pagou pela bolsa?
Nelly: Quando põe algo na cabeça, não tira. Foi mil e quinhentos. Surpreso?
Paul: Sim.
Nelly: Foi duro negociar com o velho. Vamos, esfregue.
Cena 13
Na sala, Nelly está lendo uma carta.
Paul: Recebeu uma carta?
Nelly: Do meu irmão.
Paul: Onde ele está agora?
Nelly: Na Alemanha, em Koblenz.
Darei o selo para o filho da costureira na passagem.
Nelly arranca o selo da carta.
122
Paul expressa, através de gestos, que quer ver a carta. Nelly entrega a ele.
Paul: Aonde vai?
Nelly: Para a casa da mamãe.
Paul: Outra vez?
Nelly: Ontem eu disse que a ajudaria.
Paul: Disse isso para mim?
Nelly: O doutor tem razão.o anda bem.
Paul amassa a carta que está na mão dele.
O ônibus buzina lá fora.
Nelly: Meu ônibus! Diga que estou descendo!
Nelly desce e entra no ônibus.
Paul abre a carta que amassou. Analisa-a e depois a joga fora. Ele pega, do lixo, a
embalagem onde estava a bolsa e faz uma ligação telefônica.
Cena 14
Paul, dirigindo seu próprio carro, segue o ônibus onde Nelly está sendo transportada.
Quando ela desce do ônibus, Paul começa a segui-la, a pé, sem que ela perceba.
Nelly encontra Merilyn numa loja.
Paul diz para si mesmo: Álibi.
Nelly abre a bolsa e pega uma carta. Ela mostra à amiga. Elas olham para a carta e
riem, felizes. Paul observa tudo. Elas se despedem e Nelly continua sua caminhada. Paul
continua a segui-la. Ele a perde de vista e seu olhar vai de encontro à oficina Martineau (do
hóspede jovem e bonito, que havia andado de jet-ski com Nelly, Marilyn e outro hóspede do
sexo masculino). Paul vê Nelly reforçando seu batom vermelho. Ela caminha próxima à
oficina Martineau e Paul fica desesperado, dizendo para si mesmo: Não Faça isso! Tome
cuidado!”
123
Paul corre e perde Nelly de vista. Ele diz para si mesmo: Se ela não estiver com a
mãe, terá certeza.”
Ele toca a campainha da casa da mãe de Nelly. Uma vizinha chega e diz: “Ela foi dar
uma aula. Devia levantar mais cedo.
Nelly está sentada numa praça de alimentação que fica ao lado. Ela vê Paul e grita: “Paul!”
Ele caminha até Nelly. Não olha antes de atravessar a rua e quase é atropelado por
uma bicicleta.
Nelly: Está no mundo da lua, amor.
Paul senta na cadeira, dividindo a mesa com Nelly.
Paul: O que faz aqui?
Nelly: Espero mamãe.
Paul: Ela não estava doente?
Nelly: Está, mas não para quieta!
E você, o que faz aqui? (preocupada) Vicent está doente?
Paul: Só estava passeando.
Nelly: O que veio fazer aqui?
Paul: Tinha que ir ao Crédit Hôtelier.
Nelly: Sinto contrariá-lo, mas fica do outro lado da cidade. Onde está o carro?
Paul: Na praça Jeanne d’Arc.
Nelly: Na rodoviária? (desconfiada) Está me seguindo, Paul?
Paul: Por que? Tenho razões para isso?
Nelly: Não. Mas se continuar, você as terá.
Cena 15
Eles voltam de carro, juntos. Enquanto está dirigindo, Paul imagina como foi a
traição” de Nelly. Na imaginação dele, Nelly chega e entra no carro de Martineau, que a
124
espera. Ela o beija e sorri. Depois de ter passado algum tempo com Martineau, Nelly chega à
praça de alimentação, onde Paul a encontrou.
Na realidade do filme, eles estão no carro enquanto Paul está imaginando a “traição. Neste
momento, Nelly quebra o silêncio entre ela e Paul, com a intenção de se reconciliar com ele.
Nelly: É bobagem. Não se fala mais nisso!
Diga algo amável.
Paul: Seu irmão ainda está na Alemanha?
Nelly: Mandou lembraas.
Paul: O que mais? Leia a carta dele para mim.
Nelly abre a bolsa e procura a carta.
Nelly: Esqueci com a mamãe!
Paul: Ela não tinha saído?
Nelly: Deixei na caixa do correio.
Paul: Tem sempre uma desculpa, como a da bolsa. Pagou quatro mil. Eu telefonei.
Nelly (irônica): Obrigada pela confiança.
Na verdade, ganhei no turfe.
Paul: Você aposta?
Nelly: Às vezes.
Paul: Por que não me disse?
Nelly: Joguei com a Merilyn. Comoo gosta dela...
Paul: Onde jogou?
Nelly: Ali no café, passando a ponte.
Cena 16
Paul vai até o café, sozinho. O local está fechado. Um homem chega e diz: “Ficará
fechado até quarta ou quinta. O avô morreu. Mas é mais por problema de encanamento.
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Cena 17
Paul está em frente à lagoa. Ele olha para a lagoa e vê Nelly e Martineau se divertindo
num barco motorizado e corre por um bosque até chegar ao lugar onde acreditava que eles
estavam. Paul vê o barco parado. Depois vê Nelly e Martineau chegando e subindo no barco.
Cena 18
Nelly está na janela de sua casa, fumando, abatida. É noite. Paul chega caminhando e
Nelly o vê de longe.
Nelly: Paul, Paul, é você?
Ele não responde. Paul entra no hotel e sobe a escada, todo sujo de terra e
despenteado.
Nelly: O que há com você? Teve um acidente?
Paul: (tom áspero) Quieta.
Nelly: Responda-me, diga algo.
Ele sobe a escada e caminha até seu quarto, fechando as portas que ficam para atrás.
Nelly o segue.
Nelly: De onde está vindo? Está me assustando.
Ele vira as costas para ela.
Nelly: Posso ajudá-lo?
Ele não responde.
Nelly: Quer ficar sozinho?
Ela tira os sapatos de Paul.
Nelly: O que há, Paul? Procuramos você em todo lugar. Na estrada, perto do lago...na
cidade, na delegacia, no hospital...não larguei o telefone. Não parei de chorar. Todos os
hóspedes o procuravam...e nada. Quando voltavam, nem ousava perguntar. Depois anoiteceu.
Paul permanece em silêncio. Sentado na cama, olha para o chão, angustiado.
126
Nelly: Droga!
Ela busca uma toalha e começa a limpar o rosto dele.
Nelly: Agora está aqui...
Paul: Pare com isso, Nelly. Vi você com o Martineau no rio.
Nelly: E daí?
Paul: Não quero falar nisso. Segui vocês, isso basta?
(com raiva, contendo um impulso de agredi-la fisicamente) Desceram na ilha para
jogar baralho?
Vi vocês. (deita na cama) Eu vi.
Nelly: Mas o que viu? Foi por isso que sumiu sozinho como um louco? Por isso tremi o
dia todo? Por isso ficou nesse estado? Paramos na ilha, sim, mas foi apenas para eu descansar.
Paul (irônico): Deitada na grama.
Nelly (irritada): Não, sobre um pé só!
Olhe para mim, seu imbecil!
Ela o puxa, fazendo com que ele olhe para ela e, olhando nos olhos dele, diz:
Nelly: Não vê que o amo, que sou sua mulher?
Viu meus olhos? Estão bonitos, né? Foi por você que chorei!
Eu pensava: o que será de mim sem ele? Sem ele, não sou nada.
Se não me ama mais, me deixe em paz!
Paul chora, angustiado, e tenta tocar na mão dela. Ela o afasta num primeiro momento
e depois segura a mão dele.
Paul: Se não a amasse, eu não estaria aqui. Também quis morrer, está me ouvindo?
Eles se abraçam, chorando.
Nelly: Dói tanto! Agora acabou. Estou aqui.
Paul: Venha, meu anjinho...
127
Eles se tocam eroticamente e acabam por adormecer.
Paul acorda e olha para Nelly.
Paul: Com que está sonhando?
Nelly ouve, vira para o lado e chora.
Paul a abraça.
Paul: Pronto, já passou!
Cena 19
Paul e Nelly estão juntos na lagoa, passeando de pedalinho. É um dia ensolarado.
Depois, namoram na grama.
Cena 20
Paul presenteia Nelly com uma pulseira de ouro.
Numa conversa com a recepcionista, Nelly informa que existe um quarto vazio, pois
Martineau foi embora do hotel.
Cena 21
Paul e Nelly estão no quarto.
Paul: Quando Martineau ligou?
Nelly: Fui eu que liguei...pedi parao vir mais. Melhor assim, não?
Disse que era gentil, mas que não gostávamos de sua arrogância. Acho que ele
entendeu.
Paul: Ficou louca? O que pensarão de mim agora? Ele contará a todo mundo que
tenho medo de ser corneado...(irritado) e que mando recados por você.
Nelly: Estava aí se roendo...
Paul: Agora, todos me acharão riculo.
Nelly: Imagine, ele não ficará espalhando isso pra todo mundo.
Paul: É o que pensa.
128
Nelly: É isso que o preocupa? A opinião dos outros? Belo amor, o seu.
(irritada) Fique com suas jóias!
Nelly tenta tirar a pulseira que Paul lhe deu.
Nelly: Ajude-me! (a tirar a pulseira)
Paul: Desculpe, agi mal!
Paul segura os braços de Nelly e ela se solta.
Nelly: o consigo mesmo tirar...(ela ri e eles se beijam)
Cena 22
Nelly está na parte de fora do hotel e vê um menino (hóspede) com sua boneca.
Nelly: Quem deixou pegar minha boneca?
Ela tira a boneca das mãos do garoto.
Menino: Maldosa!
Nelly: Você que é danado!
Paul: Crianças! Não pode lhe emprestar seus brinquedos?
Nelly: É minha.
Paul a abraça. Duhamel (hóspede) focaliza neles a câmara filmadora. Paul se lembra
da suposta traição de Nelly com Martineau e sai repentinamente. Nelly se desculpa com
Duhamel.
Cena 23
Paul, Nelly e os hóspedes estão na sala de projeção de filmes. Está passando o filme
que Duhamel fez com sua câmara. Paul está em pé, próximo ao bar, bebendo uma bebida
alcoólica. Ele parece ter alucinações, de maneira que suas fantasias de ter sido traído se
projetam na tela. Paul olha para a tela de projeção e vê Nelly num barco motorizado,
passeando pela lagoa com Martineau. Nesta fantasia de Paul, Nelly e Martineau se olham e se
acariciam de maneira erótica. Depois, na grama, Paul vê Nelly em cima de Martineau,
129
passando seu pé sobre ele sensualmente. Em seguida, as pessoas riem. A cena transmite a
impressão de que Paul sentiu como se as pessoas tivessem rido dele, por ele ter sidotraído”.
Ele olha novamente e sua esposa lambendo o peito de Martineau, na grama. Paul
desvia seu olhar da tela e aparece, no plano de fundo, o filho dele no filme, o que sugere que o
que ele está vendo é fruto de sua imaginação.
Paul olha para a tela de projeção novamente e vê Nelly fechando a janela do seu
quarto, de maneira muito sensual. Depois, ele a vê se deitando na cama e falando com
Martineau no telefone: “Quase fomos pegos, amor. Não pode vir mais, ele nos vigia. Vejo
você na cidade. Conto qualquer coisa, e ele cai. Avisarei a Marilyn. (pausa) Pare...também
desejo você...”
Paul ainda vê, em sua imaginação, que Nelly desliga o telefone e depois beija
Martineau num quarto.
Paul se descontrola e grita.
Paul: Parem! Por Deus, parem!
Duhamel: Ainda não acabou!
Paul (gritando): Mandei parar!
Nelly se aproxima de Paul.
Nelly (dizendo para Paul): Pare! O que deu em você?
Paul sai da sala de projeção. Nelly o segue.
Nelly: Aonde você vai?
Paul dá um tapa no rosto dela. Depois sobe a escada correndo e vai para seu quarto.
Cena 24
Paul está no quarto, sentado numa cadeira, e fala consigo mesmo.
Paul: Perdoe-me. Agora já fez. (pausa) Perdoe-me.
Nelly entra no quarto.
130
Nelly (irritada): Orgulhoso do que fez? O que acha que pensarão? Está pouco
ligando,o?
Duhamel estava indo embora. Vai ficar, mas não por sua causa. Falei que bebeu
demais. Mas a mim, deve uma explicação. (cada vez mais impaciente) Você vai falar, Paul!
Vamos, estou ouvindo!
(pausa)
Paul: Tenho ciúme.
Nelly: Ciúme? De quem? Do que?
Paul: o sei...mas o ciúme está me matando.
Cena 25
Paul e Nelly estão na cama, fumando. Ele vai até a janela e joga o cigarro para fora.
Paul: Às vezes, quero me atirar pela janela.
Nelly o abraça.
Nelly: o quero-lo assim. Se quiser, me esbofeteie, me bata. Prefiro assim.
Paul: O que isso mudaria? Está na minha cabeça, eu sei disso!
Nelly: Está exausto, venha dormir.
Paul: Acha que conseguirei dormir?
Nelly: Sim, acho.
Nelly o abraça.
Nelly: Relaxe, solte-se!
Cena 26
Paul está na cama, de olhos fechados. Ele abre os olhos.
Paul: o viu mais o Martineau?
Nelly (com voz de sono): Por favor, Paul...estou dormindo.
Paul: Você o viu?
131
Nelly: Não vi. Não disse que liguei dizendo para não vir mais?
Paul: Porque aqui é perigoso. Vocês se encontram na cidade. Tem lógica.
Nelly: Tem lógica, mas não é verdade.
Paul: Pode provar?
Nelly: Como quer que eu prove?
Ouça, se não quer ser sensato, serei por nós dois. Não gosta que eu à cidade? Pois
bem, não vou nunca mais.
Paul: Nunca mais?
Nelly: Nunca mais. Satisfeito?
Paul: Sim. (pensa um pouco) Bem, quase.
Cena 27
Nelly está no chão do quarto, sentada, no escuro.
Nelly (angustiada): O que mais posso fazer?
Paul: Agora é tarde, já está feito.
Nelly: Mas o que eu fiz?
Paul: Ainda pergunta? Passeou na ilha.
Nelly: Não recomece. Já disse, parei lá para descansar.
Paul enche um copo com bebida alcoólica.
Nelly: Está bebendo muito.
Paul: Estou com frio.
Nelly: Eu também.
Paul: Quer? (oferecendo a bebida)
Ela olha para baixo e não responde.
Paul: Então você descansou?
Nelly: Sim
132
Paul: Durante meia hora?
Nelly: Não. Cinco minutos.
Paul: Mentira! Partiram às 11: 30h. e eu cheguei ao meio-dia.
Nelly: Ouça...pela última vez. Partimos às 11: 30h., fomos até a bóia e descansei na
volta. Na ilha, é verdade, mas porque eu estava cansada.
Paul: Por isso deitou na grama?
Nelly: Não deitei na grama.
Paul: Está mentindo! Estou cheio de suas mentiras. (gritando) Vai me responder!
Ele puxa Nelly pelos braços e a pressiona contra a parede.
Nelly (gritando): Solte-me!
Paul (gritando): Diga a verdade!
Nelly, cansada, olha nos olhos de Paul.
Nelly (gritando): Pois bem, transei com o Martineau!
Na ilha, no carro dele...na casa dele e aqui, quando não estava. Satisfeito?
Ela se solta, sai correndo e bate a porta, fechando-a.
Paul bate na porta, pedindo para que Nelly abra.
Paul (suplicante): Agi mal com você. Agora já acabou. Acabou, meu amor, eu te
amo!
Abra...não seja tola, abra.
Nelly abre a porta, chorando.
Nelly: Idiota.
Cena 28
Paul chega ao hotel. Ao vê-lo, seu filho grita: “Papai!”
Paul olha pra ele, sem dar muita importância. Parece tenso.
O cozinheiro pergunta se ele trouxe o cordeiro. Ele informa que esqueceu no açougue.
133
Paul: Droga, esqueci no açougue. Vou ligar para lá. Esqueço tudo!
Paul entra no hotel. Um casal de hóspedes está indo embora. Eles dizem que ouviram
a barulheira ontem à noite. Paul parece não se importar muito. Ele vai até o restaurante do
hotel e ouve os comentários de alguns hóspedes.
Duhamel: Bebeu muito, entendo. Mas com uma mulher tão linda...
Paul se senta numa mesa. Nelly chega e vai até a mesa de Duhamel.
Duhamel: Como vai, querida?
Nelly: Tudo bem.
Outro hóspede: Parece que não dormiu bem.
Nelly: Acontece.
Nelly vai se sentar junto com Paul e Vicent.
Nelly: Levará Vicent até a minha mãe?
Paul: Eu?
Nelly: Já que não posso sair...
Paulo responde.
Cena 29
Paul está com Duhamel numa sala, bebendo. Da janela, Paul vê Nelly conversando
com outro hóspede e fica incomodado.
Paul: Beba à vontade. Oferta da casa.
Duhamel: Que gentileza! Isso é raro.
Paul sai apressadamente de lá e vai até onde está Nelly.
Paul: Passeando?
Nelly (irritada): Tentando respirar. Espero que seja permitido.
Ela anda mais rapidamente, nervosa.
Nelly: Não posso ver mamãe. A Marilyn, nem pensar. Passear é um drama.
134
Há quinze dias não larga do meu pé, quinze dias que agüento calada.
Paul: Espere, Nelly...
Nelly: o agüento mais, Paul. Quer fazer cena? Pois terá motivos para isso.
Quer ser traído? Pois então será. Não sei com quem nem como, mas juro que o trairei!
Nelly sai correndo.
Cena 30
Está chovendo. Paul está dirigindo. Ele chega ao hotel e entra. Os hóspedes conversam
alegremente na sala.
Hóspede: Acabou a luz. Vai diminuir nossa dria?
Paul: Pensarei a respeito.
Ele pergunta ao garçom se foi apenas uma parte e este responde que não, que foi a
região toda. Diz que é por causa do temporal. Paul se irrita. Um dos hóspedes o convida para
beber, mas ele recusa o convite, dizendo que tem que resolver o problema da falta de energia.
Uma hóspede reclama. Paul pergunta para a recepcionista se ela viu Nelly. Ela
responde que não a viu e Paul começa a procurar sua esposa pelo hotel. Ele entra numa sala e
encontra seu filho tocando piano. Pergunta por Nelly e o menino reponde que não sabe onde
ela está. Duhamel também está lá e diz que ela deve ter se perdido no escuro. Paul fica mais
desconfiado após ouvir a suposição.
Cena 31
O hotel ainda está escuro, sem energia elétrica.
Nelly distribui velas aos hóspedes. Um deles a convida para entrar no quarto e ela se
recusa.
Paul se posiciona num lugar do corredor e espiona Nelly, sem que ela perceba. Nelly
entra no quarto de outro hóspede para lhe entregar a vela.
135
Uma mulher (hóspede) passa por Paul, esbarrando nele. Ela diz que os hóspedes estão
tarados e conclui afirmando que acha que é por causa do temporal. A mulher desce a escada.
Paul parece ficar ainda mais desconfiado depois de ouvir o comentário.
Nelly sai do quarto do hóspede.
Nelly: Que susto! Já Voltou?
Paul: O que fazia aí?
Nelly: É o novo hóspede, o capitão. Fui levar uma vela para ele.
Paul: Por que entrou?
Nelly: Porque ele pediu.
Paul: Não entrou nos outros.
Nelly: Ele estava deitado.
Paul: Deitado?
Nelly: Eu não sabia. Vai continuar?
Paul: O que ele fazia deitado?
Nelly se cansa.
Nelly: Estava me esperando.
Ela começa a descer a escada, mas decide voltar. Aproxima-se dele, como se estivesse
arrependida do que acabara de dizer.
Nelly: Não acabou, Paul?
Paul: Tem razão, é tolice.
Ela o beija e diz que o ama. Em seguida, desce a escada.
A energia elétrica volta. Paul desce a escada e encontra Nelly.
Paul: Tem cera no vestido.
Nelly: Onde?
Paul: Atrás.
136
Nelly: Deve ter sido no porão.
Cena 32
Nelly e Paul estão na casa deles. Ela alimenta o filho.
Paul: Foi até o porão?
Nelly: Fui checar os fusíveis.
Paul: Jullien disse ter ido.
Nelly: Fomos juntos.
Paul imagina Nelly fazendo sexo com Jullien no porão.
Cena 33
Está chovendo. Paul vai até o sótão para fechar a janela e encontra a pulseira de Nelly
no chão. Ele ouve uma voz que diz Todos a possuíram.”. Paul vê, em sua imaginação, Nelly
maquiada, com batom vermelho e um copo de bebida na mão, olhando para os hóspedes de
maneira sensual e os seduzindo, um a um.
Cena 34
Paul e Nelly estão no quarto.
Paul: Subiu no sótão hoje?
Nelly: Não, por quê?
Paul: Mentira. Reflita. Subiu no sótão hoje?
Nelly: Não. (pausa) Ah, sim, para procurar lâmpadas.
Paul: Sozinha?
Nelly: Sim.
Paul: Está mentindo. Onde está sua pulseira?
Nelly: Que pulseira?
Paul: A que lhe dei.
Nelly: Perdi.
137
Paul: Quando?
Nelly: Há uns três dias. Deve ter caído.
Paul: Mentirosa...mentirosa...está mentindo...eu a encontrei no sótão.
Ele procura a pulseira nos bolsos de sua calça.
Paul: Onde está? Onde está essa droga?
Nelly: Ficou louco.
Paul: Cale-se. Só abre a boca para mentir.
Nelly: Minto porque estou cheia dos seus chiliques...porque devo ter cuidado com o
que digo (Paul tenta segurá-la)...não me toque...não me toque!
Digo qualquer coisa para pôr fim às perguntas. Eu minto e não me importo de mentir
para você.
Paul: Você me odeia?
Vamos, diga, me odeia?
Nelly: Se eu pudesse sustentar mamãe e Vicent, não ficaria mais aqui.
Paul: Não é possível. Não é verdade. É por isso que fica comigo?
Nelly: Por isso que me casei com você.
Ele pensa um pouco e se senta no sofá.
Paul: Não acredito. Não posso acreditar.
Nelly: Desculpe. Não agüento mais. Deite-se e durma.
Cena 35
Paul acorda e não encontra Nelly na cama. Ele se levanta e vai procurá-la. Entra no
quarto de Vicent, caminha pelo corredor do hotel. Angustiado, abre o quarto de um hóspede,
que está dormindo, e vê que Nelly não está lá. Fecha a porta. Entra no quarto de Duhamel e o
ouve cantando no banheiro. O hóspede se surpreende ao vê-lo.
Paul (gritando): O passarinho voou!
138
Duhamel: Que passarinho?
Paul: Sem essa!
Paul reprime um impulso para agredir Duhamel fisicamente.
Duhamel dirige-se a Paul, tocando nos braços dele, amistosamente, como se quisesse
que Paul “acordasse”.
Duhamel; O que há, meu amigo? Não percebe?
Paul: Acha que por ter grana pode transar com a mulher do dono?
Duhamel: Acalme-se! O que há? Onde está sua esposa?
Paul: Quer que eu lhe quebre a cara? O que é isso? (Paul aponta para uma mesa onde
copos sujos de vinho e garrafa de vinho)
Duhamel (calmamente): Não é nada...Lenoir esteve aqui...Veio jogar após o jantar.
Deixe disso...
Paul: Falo sério, isso já foi longe demais! Enquanto eu trabalho fora, todos se
divertem aqui. Aman enxoto todo mundo. Está claro?
Duhamel (sério e incomodado): Ouça, meu amigo, está começando a me aborrecer.
(ele se aproxima de Paul) Amanhã, bem cedo, irei embora daqui...e não pretendo
voltar. (gritando) Agora saia daqui!
Paul: Se eu me der um tiro na cabeça, isso pesará na sua consciência.
Paul sai do quarto.
Duhamel (amistosamente): Paul,o banque o idiota. Seja sensato, por Deus!
Paul continua caminhando pelo corredor e entra em seu quarto. Encontra Nelly.
Nelly: Onde estava?
Paul (desconfiado): E você, onde estava?
Nelly: Fui abrir a porta para o gato.
Paul (irônico): E passou no quarto do Duhamel.
139
Paul bate a porta, fechando-a. Pega Nelly pelos braços, agressivamente.
Paul: Não negue, vim de lá!
Nelly: Você enlouqueceu!
Paul (gritando): Até o Duhamel! Hoje quer todos?
Paul segura os braços de Nelly e a encosta na parede, com os braços para cima.
Paul: Os jovens, os velhos, os empregados...e então?
Paul a ataca sexualmente.
Paul: Então também tenho direito. (gritando) É minha vez! É minha vez!
Nelly tenta fugir. Ele a joga no chão, segura seus braços e a ataca sexualmente de
maneira grosseira.
Nelly chora.
Nelly (suavemente): Paul, Paul, por favor...
Paul ouve uma voz que diz: “Não se deixe enganar
Nelly: Pare...
Paul ouve a mesma voz dizendoNão deixe essa puta enganá-lo.”
Paul (gritando): Piranha!
Paul tenta beijá-la à força, segurando-a. Nelly grita.
Cena 36
Paul chega ao consultório médico.
Paul (falando com Arnoux, o médico): Sei que ela veio aqui. Deixou isso no
travesseiro. (Paul mostra um papel que trouxe) Onde a escondeu?
Dr. Arnoux: Sente-se, Sr. Prieur.
Paul: Sabia que pode ser responsabilizado por abandono de domicílio conjugal?
(gritando) Posso acu-lo de cumplicidade. Estamos entendidos?
Paul olha ao redor, no aposento, aparentemente procurando por Nelly.
140
Dr. Arnoux: Sente-se.
Paul se senta na cadeira, visivelmente perturbado.
Paul: Sei que não devo ficar nervoso. Mas se ela me deixar, nada terei. Não posso
viver sem ela, entende?
Dr. Arnoux: Entendo. Acalme-se.
Paul: Por favor, devolva-a para mim.
O médico abre uma porta e chama Nelly, que está num aposento.
Dr. Arnoux: Venha, Nelly. Não tenha medo.
Paul: O senhor também? Obrigado. Quanto lhe devo?
Dr. Arnoux: Não tem graça, Paul. Você a feriu e tive que examiná-la.
Paul (tom irônico): Pelo visto, examinou bem.
Dr. Arnoux (gritando): Pare com isso ou o interno!
Paul: Ela está doente e é a mim que quer internar? Essa é boa. Se pensa que vai me
enganar, vai se dar muito mal! Contrariamente ao que pensa, conheço muito bem meus
direitos. Internação arbitrária é um delito muito grave, certo?
Não entendeu que ela mente para você como para mim? É uma mentirosa patológica.
Dr. Arnoux: Você bateu nela, Paul.
Paul: Bati? Só dei um tapa em seis anos de casamento. Se eu tivesse que repetir, seria
agora.
Nelly ouve tudo, sentada numa cadeira, de cabeça baixa, sem olhar para eles. Paul olha
para ela de maneira agressiva, como se quisesse espancá-la.
Dr. Arnoux: Quase a aleija.
Paul: O senhor não sabe o que eu sofri. No início, acreditei nela. Depois, entendi tudo.
E a perdoei. Perdoei. (pausa) Mas quando sua mulher transa no sótão, é imperdoável. Ela se
levanta às 2:00h. para se deitar com os hóspedes. O que faria?
141
Acredite, levei um tempo para pegá-la, pois é esperta. Fazia de conta que dormia. Mas
eu me programava. Eu acordava e encostava nos pés dela. Estavam frios, entende?
Ou seja, ela tinha se levantado.
Dr. Arnoux: Claro.
Nelly olha para eles, espantada, parecendo não acreditar no que ouve.
Nelly: Mas, doutor...
Dr. Arnoux: Deixe-o falar. É muito interessante.
Paul: Não é culpa dela. Sei que ela me ama, à sua maneira. Mas quando dá isso nela,
pode ser hóspede, mecânico, gaom...ela está doente...olhe para ela.
O médico olha. Nelly olha para baixo, desolada.
Paul: Está estragando a saúde. Veja a aparência!
Isso é histeria. Ela é histérica.
Nelly parece não acreditar no que está ouvindo.
Paul: Caro amigo, talvez agora lhe pareça difícil acreditar.
Dr. Arnoux: Não. Eu acredito, Paul.
Nelly diz para si mesma, em voz baixa: “Isso é monstruoso...ele enlouqueceu! Ele está
louco!
Paul: Agora ela quer me internar. É a prova final.
Dr. Arnoux: Tem razão. Cuidaremos disso agora mesmo.
Nelly olha para o médico, assustada.
Paul se dirige a Nelly: Viu?o falei?
O médico pega o telefone e faz uma ligação.
Dr. Arnoux: Ligo para a clínica.
Paul: Clínica? Para q?
Dr. Arnoux: Ela precisa de um psiquiatra.
142
Dr. Arnoux (falando ao telefone): Dumesnil? Arnoux. Tenho um caso para você,
como o do ano passado. Histeria. O marido fez um relato significativo. Entendeu? (pausa)
Sim, é urgente. É realmente urgente.
Nelly tampa os ouvidos com as mãos, como quem se recusa a ouvir aquilo.
Dr. Arnoux (conversando ao telefone): Passo amanhã cedo para pegar os dois.
(pausa) Certo.
Paul: Não irei a nenhuma clínica, nem ela.
O médico dirige-se a Nelly, que olha para baixo.
Dr. Arnoux: Sei que é duro, Nelly, mas não há outra solução. Coragem!
Paul: Não ligue para ele. Defenderei você. Ele não tem o direito.
Dr. Arnoux: Apanho os dois às 7:00h.
Cena 37
Paul e Nelly estão no quarto.
Nelly: Acordarei às 6:00h.
Paul: Se isso a diverte...
Nelly: Não me diverte. Temos que levantar cedo.
Paul olha para Nelly e toca delicadamente no rosto dela.
Paul: Ora essa...talvez eu devesse lhe dar uma chance. Eu perdôo você. Você faz de
conta que nada aconteceu. Mas cuidado. Serei severo. Da próxima vez, trancarei você.
Nelly, desolada, faz sinal com a cabeça, concordando.
Nelly: Pode me dar dois soníferos?
Paul (desconfiado): Soníferos? Para quê?
Nelly: Preciso dormir.Você devia fazer o mesmo.
Paul: Não preciso de conselhos de ninguém.
Nelly (amedrontada): Como quiser.
143
Ele traz os soníferos e os entrega a Nelly.
Paul: Disseram para não me contrariar?
Nelly: Quem?
Paul: Quem...Arnoux.
Nelly: Não, Paul. Passei a tarde aqui.
Paul: Pode ter ligado para ele.
Nelly toma os remédios e faz sinal com a cabeça, negando.
Nelly: Acorde a Clothilde (recepcionista), pergunte a ela. Venha, vamos acordá-la.
Nelly se dirige à porta e, ao tentar abri-la, percebe que está trancada. Puxa a maçaneta,
tentando abrir, o que faz barulho. Paul pede silêncio.
Paul: Fui eu que tranquei a porta.
Paul mostra a chave, que está com ele.
Paul: Posso? Posso tomar minhas precauções?
Podia voltar a transar por aí. Há uma hora me aconselha a dormir. Entendi sua jogada.
Nelly: Ouça, Paul. Vicent está com febre; preciso vê-lo. Abra a porta.
Paul pensa um pouco.
Paul: Tem dois minutos.
Ele abre a porta e Nelly sai.
Nelly: Dê-me a chave.
Paul: O quê?
Nelly: Dê-me ou eu grito.
Paul se aproxima dela.
Nelly (amedrontada): Mais um passo e peço socorro.
Paul: Já não fez escândalo suficiente?
Nelly (incisiva): Dê-me.
144
Paul: Pobre Nelly...Arnoux tem razão.o está bem.
Nelly abre a mão, esperando receber a chave.
Nelly: Estou esperando.
Paul: Muito bem.
Ele entrega a chave e ela sai para o corredor. Paul entra no quarto.
Paul: Ela vai ver só!
Ele pega um copo com água e dois comprimidos. Coloca tudo em cima do criado-
mudo. Nelly volta.
Nelly: Viu? Pode confiar em mim. Não demorei. Não perguntará do Vicent?
Paul: Ele está bem?
Nelly: Sim. Está bem.
Paul: Agora não seja teimosa. Dê-me a chave.
Nelly senta na cama e tira seu próprio sapato.
Nelly: Estou cansada.
Paul: Então não se incomodará se eu trancar e eu dormirei tranqüilo.
Nelly vê os comprimidos no criado-mudo.
Nelly: Não tomei os soníferos?
Paul: Parece que não. Dê-me! (pedindo a chave)
Nelly: O quê?
Nelly toma mais dois comprimidos de sofero.
Paul: A chave!
Ela nega com um sinal de cabeça.
Paul: Está bem. Dormirei na poltrona, em frente à porta.
Nelly (tom irônico): Estará em forma para ir amanhã.
Paul: Mas eu não sairei daqui.
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Nelly: Vou sozinha?
Paul: Não. Você também não vai.
Nelly: Mas se estou doente...
Paul: Sua doença se cura em casa...com uma boa surra! Pra quê uma clínica? Queria
ficar nua diante dos médicos? Dessa vez, não. Se Arnoux não gostar, dane-se!
Nelly se deita na cama, sonolenta.
Nelly: Explique amanhã para ele.
Paul: Não explicarei nada porque não o verei.
Num impulso, Nelly tira o telefone do gancho. Ele impede, afastando a mão dela.
Paul: Telefone confiscado!
Ela parece não saber o que fazer.
Paul: Está com medo?
Nelly: Não.
Paul: o estou louco, anjo. Ponha isso na cabeça. Não sou monstro, nem louco.
Nelly (muito sonolenta): Eu sei, Paul.
Paul: Então por que chamar um dico no meio da noite?
Nelly está deitada, extremamente sonolenta.
Nelly: o agüento mais...
Paul (desconfiado): Bela tentativa, a clínica.
Nelly vira de lado, praticamente dormindo.
Paul: Estou falando com você! Achou que eu iria? Caiu nessa?
(gritando) Eu não cairei nessa! Lutarei contra isso!
Passe logo essa chave. Onde está essa maldita chave?
Nelly (extremamente sonolenta): O que você quer, Paul?
Paul a sacode.
146
Paul: Onde está a chave?
Nelly: No corredor, sob a estatueta.
Paul, de forma estúpida, a larga na cama. Sai para o corredor, dizendo para si mesmo:
Ela está mentindo...se for mentira...”
Ele encontra a chave exatamente no lugar onde Nelly havia afirmado que estava. Volta
ao quarto e o tranca por dentro. Esconde a chave embaixo do tapete. Coloca o telefone no
gancho.
Paul olha pela janela e vê uma ambulância chegando. Vai até o banheiro e se olha no
espelho. Enquanto isso, ouve a voz de Nelly dizendo: “Alô, doutor? Chegaram. Ele nos
trancou. A chave está sob o tapete. Ele está louco. Quando dormir, abrirei para eles.”.
Paul sai do banheiro e vai para o quarto. Ele a olha. Ela está na cama, dormindo, o que
sugere que a voz dela falando no telefone era fruto da imaginação dele. Paul diz para si
mesmo, olhando para ela:É um animal perigoso. É preciso amarrá-la.”
Nelly continua dormindo profundamente. Paul dirige-se a ela, que permanece
dormindo.
Paul: Quer abrir para eles?
Ela não responde, já que está dormindo. Ele pega uma fita e começa a amarrar a
esposa na cama. Ela não acorda.
Paul (gritando): Foi você que pediu, piranha!
Nelly geme em voz baixa, sem abrir os olhos. Talvez inconscientemente tenha
percebido a agressão. Paul amarra os dois braços dela na cama. Ele ouve alguém batendo na
porta. Olha para a janela e vê dois homens vestidos de branco (aparentando ser enfermeiros)
saindo da ambulância e posicionando-se na frente da mesma, de braços cruzados e com
expressão facial fechada.
147
Paul ouve mais batidas na porta. Aproxima-se para abri-la e ouve a voz de Nelly
falando ao telefone: “Doutor, ele me amarrou.”. Em seguida, ele vê o telefone fora do gancho,
caído em cima da cama.
Paul olha novamente pela janela e não mais a ambuncia nem os enfermeiros. Fica
pensativo e cai no chão. Bate a cabeça e ela se fere. Escorre um pouco de sangue.
Cena 38
Paul: Meu amor, meu amor...acorde, amor.
Ele a desamarra.
Paul: Já são 6:00h.. Está me ouvindo?
Nelly (sonolenta): Deixe-me. Estou morta de sono.
Paul a puxa, fazendo com que ela se sente na cama.
Paul: Venha, dormirá no carro. Temos que nos preparar. Não há tempo.
Ele a puxa da cama, fazendo com que ela fique em pé. Ela nem abre os olhos, de tanto sono.
Paul: Abra os olhos. O Dr. Arnoux chegará logo. Vamos.
Nelly abre os olhos.
Nelly: Você se machucou?
Paul: Não foi nada. Depois explico.
Paul abraça Nelly e a leva para o banheiro.
Nelly: Está escuro e chovendo. Tenho medo de chuva.
Paul: Está chovendo, mas não se preocupe. Dirigirei devagar.
Apresse-se. Passe isso (um pano molhado) no rosto, assim despertará. Prepararei seu
banho.
Paul: Ande logo, amor.
Nelly: Não me apresse, Paul. Deixe-me despertar.
Paul passa espuma de barbear no rosto. Ela ri, olhando para ele.
148
Paul: Por que está me olhando? Parece que nunca me viu.
Nelly: Como esta manhã, não. Faz tanto tempo...parece um sonho. Se fosse verdade...
Paul: Meu amor, é verdade. Não dá para ver?
Nelly: Faz tanto tempo! Pensei que estivesse tudo perdido...(chorando)
Paul: Não precisa chorar.
Nelly: Não estou chorando. Estou feliz, não estou chorando.
Paul: Vamos recomeçar tudo. Quando voltarmos de Clermont.
Nelly: Agora quer ir?
Paul: Muito. O quanto antes.
Nelly: É verdade, Paul?
Paul: Quero ficar em segurança.
Paul se barbeia com uma navalha. As imagens das supostas traições de Nelly passam
por sua mente. Em seguida, imagina que está cortando o pescoço dela com a navalha. A
imagem fica embaçada.
Paul se olha no espelho e diz para si mesmo: “Sua ferida abriu de novo, veja.
No espelho, vê sua imagem. Há um corte sangrando, na sobrancelha direita. Ele sai do
banheiro e vai até o quarto. Vê Nelly amarrada na cama, dormindo. Diz para si mesmo:
Veja...mas eu a tinha desamarrado!”
Ele se aproxima dela.
Paul: O que está acontecendo comigo? O que houve? (pausa)
Vejamos, há pouco nos preparávamos para ir à clínica, em Clermont, nós dois.
Ainda estamos aqui, como antes. Como antes o quê?
o sei mais. Eu me perco.
Só espero que ela não pretenda...
(Paul parece cada vez mais aflito)
149
Preciso por as idéias no lugar. Preciso ter cuidado. Eu não devo...não devo...se alguma vez...
Ele encosta a cabeça na janela, olhando para baixo.
Paul: Bem...vamos ver...
Aparece a legenda “Sem fim.”
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