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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE LETRAS
MARIA ALICE SABAINI DE SOUZA
A POESIA DE FLORBELA ESPANCA E SUA RECEPÇÃO: IMAGEM E CENÁRIO
COMO FORMA DE REVELAÇÃO LÍRICA
Maringá
2008
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MARIA ALICE SABAINI DE SOUZA
A POESIA DE FLORBELA ESPANCA E SUA RECEPÇÃO: IMAGEM E CENÁRIO
COMO FORMA DE REVELAÇÃO LÍRICA
Trabalho apresentado ao Programa de Pós-
Graduação em Letras, Mestrado em Letras, da
Universidade Estadual de Maringá, para obtenção
do título de Mestre em Letras (Área de
Concentração: Estudos Literários).
Orientação: Profa. Dra. Clarice Zamonaro Cortez
MARINGÁ
2008
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MARIA ALICE SABAINI DE SOUZA
A POESIA DE FLORBELA ESPANCA E SUA RECEPÇÃO: IMAGEM E CENÁRIO
COMO FORMA DE REVELAÇÃO LÍRICA
Dissertação de mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Letras da
Universidade Estadual de Maringá, requisito
parcial para obtenção do título de Mestre em
Letras, área de concentração: Estudos
Literários.
Aprovado em
BANCA EXAMINADORA
Prof.ª Dra. CLARICE ZAMONARO CORTEZ
Presidente da banca - orientadora (UEM)
Prof.°
Dr. PEDRO CARLOS LOUZADA FONSECA (UFG).
Membro convidado (UFG)
Prof.
a
Dra. ALICE ÁUREA PENTEADO MARTHA
Membro do corpo docente (UEM)
4
Dedico esta dissertação a todos aqueles que me auxiliaram direta
ou indiretamente em sua escrita. A todos, muito obrigada!
5
AGRADECIMENTOS
A Deus, força e inspiração, sem o qual esta conquista não teria sido possível.
Ao Alecs, meu noivo, cuja cumplicidade e apoio estão presentes em cada página desta
dissertação.
Aos meus queridos pais, Maurício e Laerte, que sempre compartilharam comigo os esforços,
os fracassos e os êxitos não só neste momento, mas também em toda a minha vida.
À querida professora Clarice Zamonaro Cortez, orientadora, pela orientação segura, pela
amizade, pelo incentivo e pela confiança em minha capacidade. Sua presença e ensinamento
inspiraram-me e fortaleceram-me durante este percurso.
À professora Alice Áurea Penteado Martha, que tão prontamente aceitou colaborar com seu
conhecimento e com suas sugestões valiosas para o aprimoramento da versão final da
dissertação.
Ao professor Pedro Carlos Louzada Fonseca, pela leitura precisa e cuidadosa, fundamental
para a conclusão da pesquisa.
Ao programa de Pós-Graduação da Universidade Estadual de Maringá (UEM), à coordenação
e aos professores, pelo conhecimento adquirido durante o curso e pelo incentivo à pesquisa.
À Capes, pela bolsa de estudos concedida.
6
O que mata um jardim não é
Abandono...
O que mata um jardim é esse olhar
Vazio....
De quem passa por ele indiferente.
(Mário Quintana)
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SUMÁRIO
Resumo.......................................................................................................................................................08
Abstract ......................................................................................................................................................09
Considerações iniciais.................................................................................................................................10
1. No meio do caminho, o leitor................................................................................................................17
1.1 Leitor: um novo enfoque.......................................................................................................................18
1.1.1 Princípios teóricos da Estética da Recepção ...............................................................................21
2. Lírica: a poesia ganha caráter de gênero ................................................................................... 28
2.1 O gênero lírico ......................................................................................................................................28
2.2. Retórica e Estilística: instrumentalização de leitura de poemas .................................................... 41
2.3 O espaço como categoria da poesia ............................................................................................. 47
3. Espaço de revelação: uma abordagem da poética florbeliana ..................................................... 55
3.1 Contexto histórico-literário do final do século XIX e início do XX .....................................................55
3.2 Florbela Espanca: flor entre pedras ....................................................................................63
3.3 Trocando Olhares, Livro de Sóror Saudade, Charneca em Flor – interação eu-lírico e espaço..........71
3.3.1 Trocando Olhares: o espaço identificador do ser ..............................................................................71
3.3.2 O Livro de “Sóror Saudade”: o espaço do exílio que revela a alma ...............................................91
3.3.3 Charneca em Flor: o espaço libertador do ser ...............................................................................102
4. Considerações finais............................................................................................................................121
Referências...............................................................................................................................................126
8
RESUMO
O estudo reflexivo da literatura relacionada com outras artes requer, primeiramente, a
percepção do leitor. Por se tratar de produção humana, espelha visões do eu-lírico acerca de
temas universais, em uma interação do texto literário com o cenário e o sentimento que o
invade, suscitando no leitor a possibilidade da criação de imagens surgidas do próprio texto.
Pretendemos verificar, partindo dessa idéia, de que forma a natureza, considerada cenário dos
sonetos da poetisa portuguesa Florbela Espanca, influenciou no estado de espírito do eu-lírico,
em alguns textos das obras poéticas Trocando Olhares (1915-1917), Sóror Saudade (1923) e
Charneca em Flor (1931). A dissertação objetivou compreender quais são os recursos
responsáveis pela relação do texto com a imagem e sua capacidade de revelar o estado de
espírito do eu-lírico, bem como sua ação como fator extensivo. Florbela Espanca inicia suas
publicações entre 1915 e 1917 e, segundo a crítica especializada, ela é “uma poesia viva” e
admirável, porque se constrói, antes de qualquer coisa, pelo poder da verossimilhança,
expressando a sua alma nas planícies do Alentejo. Observamos, claramente, a paisagem
exterior e a paisagem interior em seus sonetos, as quais permitem ao leitor a construção de
imagens como produtoras de sentido, configurando a conceituação acima apresentada. A
importância de instituirmos uma leitura sob a vertente texto/imagem deve-se ao fato de que a
literatura, ao estabelecer relação com as demais artes, propicia, por meio da linguagem
imagística e dos recursos da retórica e da estilística, uma visão mais atualizada. De acordo
com Joly (1996), vivemos na era da imagem e na visão mais aprofundada do texto, pois não
nos detemos apenas na sua superfície, mas também naquilo que nos possibilita visualizar. A
leitura ganha um caráter contemplativo, ao transpassar o papel e ao provocar a geração de
imagens. A dissertação desenvolveu-se a partir de uma recuperação dos contextos
socioculturais de Portugal no final do século XIX e no início do século XX, para melhor
compreensão dos corpora selecionados, destacando-se os recursos retórico-estilísticos
presentes nos sonetos. O suporte teórico são os pressupostos da Estética da Recepção
(H.R.Jauss e W.Iser), as noções teóricas sobre o gênero lírico e o espaço poético, de acordo
com M. Blanchot e G. Bachelard. Ocorre nos sonetos uma oscilação do espaço revelador
(Trocando Olhares) para o espaço-refúgio (Livro de “Sóror Saudade”) e, por fim, para o
espaço que liberta (Charneca em Flor). O cenário e os elementos noturnos são substituídos
pela claridade e pela vivacidade dos elementos diurnos como o sol, as flores e os campos de
trigo. A imagem e o cenário apresentam-se como forma efetiva de revelação lírica.
Palavras-chave: Florbela Espanca, poesia, cenário, recepção, revelação lírica.
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ABSTRACT
A reflexive study of the literature related to other arts requires, firstly, the reader's
perception. Due to both of them be a human production; reflect visions of the self-lyric about
universal themes, in an interaction of the literary text with the scenery and the feeling that
invades it, raising for the reader the possibility of creating images arise from the text. The
intention was to verify, from this idea, how the nature, considered as the scenery of the
sonnets of the portuguese poetess Florbela Espanca, influenced the self-lyric spirit, in some
texts of the poetical works Trocando Olhares (1915-1917), Livro de “Sóror Saudade” (1923)
and Charneca em Flor (1931). The goal of the dissertation was to comprehend which are the
responsible resources for the text relation with the image and its capacity of manifesting the
self-lyric spirit, as well as its action as an extensive factor of it. Florbela Espanca begins her
publications between 1915 and 1917. Her poetical work, according to the specialized critique,
is "a live poetry" admirable because it is built, before any other thing, by the power of the
verisimilitude, expressing its soul in the Alentejo plain. External landscape and internal
landscape were clearly observed in her sonnets, permitting to the reader the images
construction as sense producers, configurating the above presented evaluation. The
importance of instituting a reading under the text/image slope is due to the fact that the
literature, when establishing the relation with the other arts, provides, through the image
language and the resources of the rhetoric and stylistic, one more updated vision. According
to Joly (1996) we live in the image era and in the deeper vision of the text, because we should
not stay only in its surface, but in what makes possible to visualize it. The reading gains a
contemplative character when passes over the role and provokes the image generation. The
dissertation has been developed from the recovery of the social-cultural contexts of Portugal
in the end of the XIX century and the beginning of the XX century for a better comprehension
of the rhetoric-stylistic resources present in the sonnets. The theoric supports are the pretexts
of the Reception Esthetic (H.R.Jauss e W.Iser), the theoric notions about the lyric gender and
the poetical space, according to M. Blanchot and G. Bachelard. There is an oscillation of the
revealer space in the sonnets (Trocando Olhares) for the space-refuge (Livro de "Sóror
Saudade") and, at last, the space that sets free (Charneca em Flor). The scenery and the
nocturnal elements are replaced by the clarity and vivacity of the elements of the day like the
sun, flowers and the wheat fields. The image and the scenery present themselves as an
effective form of lyric revelation.
Keywords: Florbela Espanca, poetry, scenery, reception, lyric revelation.
10
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O vínculo entre Portugal e Brasil existe desde a época do descobrimento e perpetua-se
até os dias de hoje, não só devido ao processo de globalização, mas também às atividades
artísticas, culturais e literárias existentes entre os dois países. A Literatura Portuguesa, em
decorrência da excelência e da qualidade de seus autores e respectivas obras, há muito
desperta o interesse dos acadêmicos brasileiros.
Prova desse interesse e dessa interação entre os estudiosos luso-brasileiros é a
crescente produção das pesquisas nos cursos superiores e nas associações que estudam e
comparam escritores dos dois países. Os estudos da Literatura Portuguesa no Brasil têm sido
alvo de elogios por parte de professores e de estudiosos portugueses que incentivam não
com a sua presença em congressos literários, mas também com a exposição de suas pesquisas
e de obras recentemente publicadas em Portugal. Nesse relacionamento, configura-se o que
Fernando Pessoa (apud Saraiva, 2004) denomina de “estreitamento de inteligências”.
Entre os escritores portugueses contemporâneos que se evidenciam nesse
estreitamento, está Florbela Espanca, que se destaca por sua produção poética, pela escolha da
temática e pela retomada dos sonetos como forma adequada de organizar os sentimentos do
eu-lírico, que, por vezes, confunde-se com os da própria poetisa.
Sua poética também propõe uma reflexão inquietante que, na visão de Magalhães
(1997), subverte alguns valores literários da sua época e propõe inovações, como a proposta
temática de um amor que se mostra inconstante em suas manifestações, capaz de expressá-lo
não somente ao outro, mas também a si próprio e ao espaço selecionado. Esse tipo de amor se
revela, em sua obra, pela recorrência freqüente à paisagem alentejana. A respeito dessa
relação sujeito-paisagem, Martinho (1997, p.51) reconhece que, na poética florbeliana,
“prevalece a experiência que o sujeito tem do objeto, a paisagem da alma, sobre o objeto da
experiência”.
Com relação ao momento em que a produção literária de Florbela se insere, destacam-
se dois momentos distintos: as tendências herdadas do Simbolismo e as características do
Modernismo (em menor escala), nos quais são encontrados os elementos ideais para a
expressão e a busca da transcendência de seu espírito poético, bem como sua relação com os
elementos espaciais, a dificuldade de ser sujeito e de ter uma identidade única.
Simões (1997, p.79) assim comenta tal fusão entre o Simbolismo e o Modernismo:
11
A imagética profusa (ou seja, o complexo quadro de referências metafóricas
que tanto contribui para a singularidade do mundo poético de Florbela)
acompanha, assim, insistentemente, as manifestações da idéia de cisão
interior, significando uma vertente modernista.
A fim de esclarecer a posição literária de Florbela, Nuno Júdice (apud Magalhães,
1997) reconhece na poetisa um estilo de linguagem simbolista configurado na utilização de
vocábulos que evocam textos decadentista-simbolistas, tais como: cristais, prata, torre de
marfim, ouro, púrpura, roxo e lilás. Nessa mesma vertente, outros críticos concordam com
Júdice no que tange ao fato de a poesia florbeliana possuir traços simbolistas inseridos
cronologicamente em um contexto tardio, quase alheio ao Modernismo.
Júdice, no entanto, contesta o fato de Florbela ter ignorado o Modernismo, porque
ela compartilha com Sá-Carneiro a temática existencialista e modernista da multiplicação do
eu. Nesse sentido, o crítico reconhece que a poética florbeliana se apresenta marcada por um
desejar além e por um sentir-se aquém. O sentimento de exílio, a recorrente ascensão e queda
e o ritmo da construção textual são outros fortes indícios da recorrência dos elementos
estéticos modernistas na obra poética florbeliana.
A evolução de sua obra se deve à adoção de uma linguagem que revela tanto o cenário
no qual se insere quanto e, principalmente, o eu interior poético. Essa relação exterior/interior
faz parte das propostas contemporâneas e sugere uma linguagem introspectiva, de forma que
o poema o se limita a comentar a realidade interior; ele também promove a fusão entre o
poeta e a sua poesia. Para realizar essa junção, o poema recorre ao imaginário, atribuindo
novos sentidos à linguagem poética.
Nosso principal objetivo nesta dissertação é analisar e interpretar, no corpus de
poemas escolhidos, a interação entre o espaço exterior e o eu poemático da poesia de Florbela
Espanca. A leitura do cenário como elemento influenciador no estado de espírito do eu-lírico,
a revelação do amor à natureza e à pátria, por intermédio das imagens construídas no texto,
conduzem o leitor à compreensão da criação e do imaginário poético de Florbela. A relação
com o espaço na poesia florbeliana é, sobremaneira, tão intensa que Dumas (1997, p.201)
chega a afirmar, reforçando a idéia de Bessa-Luís (1979), que não é exatamente um homem
que ela amou, mas a cidade natal, as ruas em que andou, as árvores que lhe deram fruto”.
De acordo com Junkes (1983), pela linguagem, pela imagística e pelo abstracionismo,
os sonetos de Florbela Espanca guardam nítida filiação com o Simbolismo, o que possibilita o
realce da presença de imagens de excepcional criação poética, em uma verdadeira
12
transfiguração da arte para o real, no sentido em que tal poetisa faz uso da poesia como
manifestação artística para retratar sua realidade interior.
Segundo o crítico, Florbela recebe forte influência de Fernando Pessoa, quando as
palavras remetem à descrição da paisagem natural. Um apontamento solto, sem data e escrito
pelo poeta, publicado na primeira edição da obra poética pela Editora Nova Aguilar, 1981,
apresenta os Princípios para a compreensão do Cancioneiro, como uma nota preliminar:
1. Em todo o momento de atividade mental acontece em nós um duplo
fenômeno de percepção: ao mesmo tempo em que temos consciência dum
estado de alma, temos diante de nós, impressionando-nos os sentidos que
estão virados para o exterior, uma paisagem qualquer, entendendo por
paisagem, para conveniência de frases, tudo o que forma o mundo exterior
num determinado momento da nossa percepção.
2. Todo o estado de alma é uma paisagem. Isto é, todo o estado de alma é
não representável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma
paisagem. em nós um espaço interior onde a matéria da nossa vida física
se agita. Assim uma tristeza é um lago morto dentro de nós, uma alegria um
dia de sol no nosso espírito. E - mesmo que se não queira admitir que todo o
estado de alma é uma paisagem - pode ao menos admitir-se que todo o
estado de alma se pode representar por uma paisagem. Se eu disser "Há sol
nos meus pensamentos", ninguém compreenderá que os meus pensamentos
são tristes.
3. Assim, tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior e do nosso
espírito, e sendo o nosso espírito uma paisagem, tem ao mesmo tempo
consciência de duas paisagens. Ora, essas paisagens fundem-se,
interpenetram-se, de modo que o nosso estado de alma, seja ele qual for,
sofre um pouco da paisagem que estamos vendo num dia de sol uma alma
triste como num dia de chuva e, também a paisagem exterior sofre do
nosso estado de alma é de todos os tempos dizer-se, sobretudo em verso,
coisas como que “na ausência da amada o sol não brilha”, e outras coisas
assim. De maneira que a arte que queira representar bem a realidade terá de a
dar através duma representação simultânea da paisagem interior e da
paisagem exterior[...]
PESSOA, Fernando. Obra Poética. Seleção, Organização e Notas de Maria
Aliete Galhoz. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1981, p.35.
Trata-se de uma proposição de leitura para os seus textos poéticos. Esse processo,
denominado interseccionismo, está presente em vários textos do Cancioneiro. Sob a
influência do Cubismo, nada mais é do que o produto de várias sensações mescladas. De fato,
para Pessoa, são faces do Cubismo interseccionista: a sensação do universo exterior; a
sensação do objeto de que se toma conhecimento naquele momento; as idéias objetivas (ou
subjetivas) associadas com o objeto; o temperamento e a base mental da entidade perceptiva e
o fenômeno abstrato da consciência.
13
Nos sonetos florbelianos, ocorrem fenômenos semelhantes aos encontrados nos
sonetos de Pessoa, principalmente, a sensação do universo exterior associada às idéias
subjetivas, ao seu temperamento e, nomeadamente, à abstração de sua consciência poética.
Para verificarmos o processo de interação entre a natureza que se apresenta de forma
dinâmica e o eu-lírico (especificamente, a oscilação desse espaço/cenário e a revelação do
refúgio, exílio ou libertação do eu-lírico), selecionamos três antologias para a composição do
corpus, cronologicamente consideradas pela crítica: Trocando Olhares (1915-1917, anexo 1),
Sóror Saudade (1923, anexo 2) e Charneca em Flor (1930, anexo 3).
A escolha de Trocando Olhares justifica-se por ser o primeiro manuscrito poético com
que Florbela se apresenta como poetisa no mundo das letras portuguesas. Evidencia-se a
interlocução com as obras de poetas como Américo Durão e sua tradição poética, com Antero
de Quental e a questão existencial, e com Antonio Nobre, de quem herda a capacidade de usar
a dor para poetisar e a necessidade de amar com grande intensidade que o olhar pode
absorver. Constrói-se, desse modo, uma relação de olhares cúmplices no compartilhamento da
dor e da solidão do eu-lírico florbeliano.
O Livro de Sóror Saudade”, publicado em 1923, continuidade a essa
interatividade entre homem/espaço iniciada em Trocando Olhares. O espaço é mais opressor
e, de certa forma, indiferente à dor sentida pelo eu-lírico. Observa-se a revelação de uma
reflexão íntima, solitária e dolorida experimentada, e não uma exposição daquilo que lhe
aflige. Para tanto, os elementos naturais têm a tonalidade negra ou roxa e, muitas vezes, se
desfazem, reforçando a solidão expressa nos versos dos poemas. O eu-lírico, que se
apresentou, muitas vezes, na condição de uma monja, não consegue abolir do seu coração o
desejo de ser amada.
Charneca em Flor, escrita em 1930 – ano fatal do suicídio de Florbela Espanca –, teve
sua publicação póstuma em 1931. Essa obra resgata, de forma muito mais viva e dinâmica, a
relação entre o homem e o espaço. Por meio dessa relação, o eu-lírico liberta-se do traje de
monja e do controle de seus sentimentos e explode em alegria, a caminhar pela charneca
1
alentejana, que a recebe alegre para reiniciar o panteísmo animizado em Trocando Olhares.
Esse recobrar do ânimo faz reviver a natureza e o espaço, interagindo e fechando, dessa
forma, os ciclos de vida e o poético de Florbela Espanca.
Desse modo, em nossa dissertação, descrevemos e analisamos os recursos lingüísticos
e poéticos responsáveis pela construção do cenário e sua influência no estado de espírito do
1
Charneca: terreno árido e inculto onde nascem somente plantas rasteiras e silvestres.
14
eu-lírico. Buscamos, assim, na leitura dos poemas que compõem o corpus da pesquisa, uma
reflexão sobre as seguintes questões:
confirma-se, na poesia de Florbela Espanca, a natureza como elemento influenciador
do estado de espírito do eu-lírico?
os recursos lingüísticos (retóricos e estilísticos) presentes na poesia florbeliana
possibilitam ao leitor a construção de imagens?
as imagens que emanam do texto permitem estabelecer uma aproximação entre a
linguagem poética imagética e o sentido do texto?
Nossa pesquisa, desenvolveu-se a partir de uma recuperação dos contextos
socioculturais de Portugal, no final do século XIX e no início do século XX, para
contextualizarmos o corpus, atentando-nos para suas manifestações artísticas. Em seguida,
destacamos, como elementos fundamentais para a aproximação da imagem que decorre do
texto e da construção de sentido, os recursos retórico-estilísticos presentes nos poemas (o
cenário e o uso do cromático).
Quanto ao estado da questão, a partir de pesquisas em bancos de dados e em
bibliotecas, observamos que a leitura do cenário como elemento modificador do estado de
espírito do eu-lírico florbeliano não tem sido priorizada nos estudos sobre a obra de Florbela
Espanca. Outros temas relevantes, porém, foram elencados:
Dicléia Schaffel. Florbela Espanca e a poesia da dor. Universidade Federal do
Paraná, 1984. Dissertação de Mestrado;
Suilei Monteiro Giavara. A poética do espetáculo: uma análise dos procedimentos
dramáticos nos sonetos de Florbela Espanca. Universidade Estadual de Campinas,
2007. Tese do Doutorado;
Renata Junqueira. Sob os sortilégios de Circe: ensaio sobre máscaras poéticas de
Florbela Espanca..Universidade Estadual de Campinas. 1992. Dissertação de
Mestrado; e, da mesma autora, A Estética da teatralidade: leitura da prosa de
Florbela Espanca. Universidade Estadual de Campinas, 2000. Tese de Doutorado;
Cleonice Nascimento da Silva. A busca da identidade feminina na poesia de Gilka
Machado e Florbela Espanca. Universidade Estadual Paulista, Campus de Assis,
2003. Tese de Doutorado;
15
Zina Maria Bellodi Silva. Florbela Espanca: Discurso do outro e imagem de si.
Universidade Estadual Paulista, campus de Araraquara, 1987. Tese de Doutorado.
No que tange às publicações editoriais, não encontramos, no âmbito nacional,
trabalhos relativos ao corpus escolhido e ao enfoque dado à pesquisa. De acordo com Paiva
(1995, p.13),
Florbela Espanca tem sido popularizada como a poetisa do amor, do
erotismo, da liberação dos instintos, da sensualidade e de certo modo ao
donjuanismo feminino... e de aspectos vários que conotam estes ou outros
semelhantes. E é verdade, mas não só: [...]. É a poetisa das cores e das flores,
de uma tristeza, profunda tornada ainda maior pela incessante angústia das
frustrações, da vida não realizada, dos desencontros [...].
De caráter bibliográfico, a pesquisa foi realizada a partir de leituras e de resenhas
críticas de materiais disponíveis teóricos críticos e analíticos. O suporte teórico, embasado
nos pressupostos da Teoria da recepção e do Efeito, propiciadoras de novos sentidos de
leitura, permitiu que a recepção da poética florbeliana fosse resgatada.
Nossa dissertação esdividida da seguinte forma: no primeiro capítulo, intitulado No
meio do caminho, o leitor, apresentamos considerações teóricas sobre a Estética da Recepção,
de Hans Robert Jauss e de outros teóricos que refletiram acerca dessa teoria. Nosso interesse
nesses teóricos decorre da necessidade de contextualizarmos a recepção florbeliana, atentando
para sua mudança de atribuição valorativa por parte da crítica, além de oferecer base para
análise.
No segundo capítulo Lírica: a poesia ganha caráter de gênero, priorizamos o estudo
do gênero lírico, sob a perspectiva de diversos autores que teorizaram a evolução e suas
características. Abordamos as noções sobre a Retórica e a Estilística, ressaltando sua
importância na análise dos poemas do corpus e na abstração de elementos que promoveram a
linguagem imagética da poesia e seu efeito de sentido. A imagética centra-se na perspectiva
do espaço literário, enquanto categoria narrativa que a poética absorve como elemento
imprescindível na interação homem/espaço. Nesse sentido, o último tópico desse capítulo
teoriza sobre a carga simbólica das imagens do texto poético.
No terceiro capítulo O espaço de revelação: uma abordagem da poética florbeliana,
apresentamos, inicialmente, o contexto histórico no qual se insere Florbela Espanca,
atentando para o valor de sua contribuição poética no panorama da Literatura Portuguesa do
século XX. A seguir, tecemos considerações acerca do processo recepcional da obra
16
florbeliana tanto na perspectiva da crítica conservadora quanto da crítica literária
propriamente dita. Em nossa análise das antologias florbelianas, priorizamos a construção do
cenário e do espaço como elemento modificador do estado de espírito do eu-lírico.
Nas considerações finais, retomamos as principais idéias expostas na pesquisa e as
relações de contraste e de correspondência entre as obras, o que nos possibilitou a elaboração
de um quadro comparativo da relação homem/espaço e seu efeito de sentido.
Pretendemos, com isso, contribuir com a fortuna crítica dos estudos sobre a produção
poética de Florbela Espanca, abrindo espaço para novas leituras.
17
1. NO MEIO DO CAMINHO, O LEITOR
A sucessão das escolas literárias tem demonstrado, por meio de suas idéias, que os
anseios do homem estão pautados na contradição e na negação, pois aquilo que era postulado
como primordial para que a literatura fosse eficaz, no momento seguinte começa a ser
colocado em um segundo plano, para, em seguida, ser rejeitado e substituído por um novo
conjunto de normas que até, então, não fazia parte daquilo que era valorizado.
A esse respeito, Candido (1975) esclarece que, ao longo da história literária e humana,
o homem, constantemente, oscila entre posições antagônicas. Um exemplo claro desse
extremismo se entre o Romantismo e o Realismo, sobretudo, no tocante à dicotomia
subjetividade e objetividade. O primeiro volta-se ao sentimento individual e à interioridade do
ser, ao passo que o segundo centra-se no exterior e em uma descrição tal qual pretende
retratar. Nesse sentido, o autor realista preocupa-se mais em apontar as mazelas sociais do que
em revelar a sua angústia mais íntima.
Essa posição dualista também se revelou em outro eixo da literatura, não mais nas
escolas literárias, e sim na teoria crítica, a ponto de os próprios críticos debaterem acerca de
qual elemento da tríade literária autor, obra e público deveriam priorizar. Alguns
escolheram privilegiar a obra; outros elegeram o autor ou preferiram o leitor, que estava
esquecido ou com participação reduzida como mero consumidor daquilo que os autores
publicavam.
Essa tríade literária foi proposta pela primeira vez por M. H. Abrams (apud
Compagnon, 2003, p. 139), que descrevia a comunicação literária como “um triângulo, cujo
centro era ocupado pela obra e os três ápices correspondiam ao mundo, ao autor e ao leitor.”
As abordagens, por sua vez, valeram-se dos elementos da comunicação literária, de
modo que cada uma delas priorizou um deles: a abordagem objetiva focalizou a obra, a
expressiva interessou-se pelo artista e a pragmática, pelo leitor.
A mudança de foco entre esses três elementos, no entanto, não aconteceu rapidamente
e nem de forma passiva, mas, assim como na sucessão dos períodos literários, ela foi fruto,
sobretudo, de intensos debates e de uma conscientização coletiva e gradativa da necessidade
de se reconhecer a importância deste ou daquele elemento da tríade (autor, obra e leitor) no
processo da comunicação literária.
Diante desse contexto conflituoso, no qual leitor e autor parecem disputar a primazia
na interpretação de uma obra, Aguiar e Silva (1993) enuncia a existência de um leitor. Para o
18
autor, mesmo quando o emissor escreve sob o domínio de um impulso confessional ou com o
anseio de autocatarse, este não descarta a instância do leitor.
Este capítulo tem por objetivo, em um primeiro momento, fazer uma recuperação das
teorias que iniciaram a reflexão acerca da importância do leitor e sua relação com o modo
como o autor via a obra literária. A necessidade de retomar as idéias dessas teorias se deve à
influência que elas exerceram na formação da Estética da Recepção, proposta por Hans
Robert Jauss e por Wolfang Iser, na Teoria do Efeito.
O conceito de leitura se faz necessário, também, devido ao fato de ser por intermédio
da mudança de sua conceituação que se inicia a reflexão sobre a importância do leitor como
construtor de sentido e divisor de águas pela capacidade que tem de fazer que as teorias
repensem sua função e reconheçam sua participação na permanência, na valorização e, até
mesmo, na atribuição de significado da obra.
1.1 Leitor: um novo enfoque
A Estética da Recepção despontou, em 1970, em oposição à Estética Fenomenológica,
da Teoria da Comunicação, da Semiótica e da Teoria do Texto, buscando a valorização da
função do receptor/leitor na investigação literária. Jauss propôs essa teoria em 1967, em sua
aula inaugural realizada em Constança, na Alemanha. Ele exigiu a renovação da história da
literatura e deu prioridade analítica ao aspecto da recepção sobre os da produção e os da
representação.
A criação dessa teoria contrapôs-se, de um lado, à reflexão formalista e estruturalista
interessada apenas na imanência do texto, que compreendia a produção como organização de
estruturas, e, de outro, à estética marxista da representação, que tomava apenas o reflexo
como a tarefa legítima da literatura. Contra o caráter fechado da obra literária, a Estética da
Recepção propõe a abertura do horizonte de significação da literatura e da contribuição do
receptor que, antes de qualquer coisa, realiza e articula essa abertura.
É interessante notar que essas propostas de Jauss estão centradas nas falhas que ele
reconhece tanto no formalismo como no marxismo, sobretudo em relação ao modo como
essas teorias viam o leitor. Em sua visão, o marxismo tratava tanto o leitor como o autor da
mesma maneira, ou seja, procurava enquadrá-los em uma estratificação social da qual
pudessem ser representantes. A escola formalista, por sua vez, reconhecia o leitor apenas
como o sujeito da percepção, que compreendia o texto pela sua imanência, mas que não
interagia com ele por este ser auto-suficiente. Jauss (1967) reconhece que esses dois métodos
19
fracassaram, porque ignoraram o papel do leitor como destinatário da obra com a qual dialoga
por meio de um jogo de perguntas e de respostas que lhe permite obter dela implicações
históricas e estéticas. À medida que se estabelecia o papel próprio da recepção, não
considerado nem pelo formalismo nem pelo marxismo, a literatura, especialmente a do
passado, passou a se mostrar sob uma nova perspectiva: a da comunicação literária
estabelecida entre leitor e obra.
Lima (1979) esclarece que, em Jauss, a recepção é sempre um momento de um
processo receptivo, cujo início é marcado pelo horizonte de expectativa do público a partir do
movimento de uma lógica hermenêutica de pergunta e de resposta, que relaciona a leitura do
primeiro receptor com a dos seguintes, a fim de resgatar o significado potencial da obra. A
respeito desse significado, Stierle (apud Lima, 1979, p.134) comenta que, na obra literária,
“ele é apreensível não pela análise isolada da obra, nem pela relação da obra com a realidade,
mas somente pela explicitação analítica da recepção”.
A necessidade dessa teoria está pautada nas revoluções universitárias ocorridas
durante toda a década de 60. O estabelecimento da relação entre os protestos estudantis
decorrentes de uma interpretação imanentista está baseado, sobretudo, no New Criticism
(década de 50), no Estruturalismo (década de 60) e no Formalismo Russo, que precedeu
aquelas duas correntes. Todas essas teorias consideram o texto algo auto-suficiente, cujo
sentido vem somente da sua organização interna.
Ao deslocar o foco do estudo para o leitor, a Estética da Recepção questiona a idéia de
que apenas as interpretações feitas por críticos de literatura são as únicas leituras corretas de
um texto. Dessa forma, propõe a possibilidade de existência de diferentes leituras válidas,
resultantes, sobretudo, do sentido que cada um atribui ao texto que lê.
No Brasil, a Estética da Recepção chega em 1979, quando Luiz Costa Lima organiza
uma coletânea constituída de ensaios de importantes membros da escola de Constança.
Zilberman (1989, p.30) reconhece que nos anos 80 “uma ampla discussão se deu em torno da
leitura, em resposta, de um lado, à crise do ensino e do outro, à necessidade de rever e
submeter a um novo crivo um estudo repleto de dissimulações”.
Com relação ao conceito de recepção, Stierle (apud Lima, 1979, p.135) cita que “a
recepção abrange cada uma das atividades que se desencadeia no receptor por meio do texto,
desde a simples compreensão à diversidade das reações por ela provocadas”. Nesse sentido, a
tarefa de uma teoria da recepção deve formular esse potencial recepcional,
independentemente da sua atualização particular e condicionada por interesses mutáveis. Com
base nessa afirmativa, podem-se reconhecer dois tipos de recepção, ou seja, a recepção como
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constituição e a recepção como processamento do que está constituído. Varga ressalta a
importância da recepção anterior para provar que o significado do texto não é único e nem
permanente, mostrando que é “falso aplicar ao texto literário o código unívoco da vida
cotidiana e contribui para a ambigüidade significativa” (1981, p.158).
Para que se chegasse a essa possibilidade, a Estética da Recepção recebeu influência,
segundo Zilberman (1989), de três grandes campos intelectuais que compõem o ramo da
teoria da literatura, centradamente preocupados com a questão relativa à percepção. São elas:
Sociologia da Leitura
A Sociologia da Leitura estuda o público como fator ativo do processo literário, uma
vez que as mudanças de gosto e de preferência interferem não apenas na circulação, mas
também na produção dos textos. Ela contesta a crença de que a arte é uma entidade autônoma
indiferente aos fenômenos sociais e históricos. Além disso, ela permite compreender o fato no
cotidiano da existência caracterizada por sua circulação e consumo. Sob esse aspecto, o leitor
exerce um papel relevante (é ele que consome e que compra os livros).
A Estética da Recepção critica o fato de a Sociologia da Leitura reduzir as
transformações históricas às mudanças de gosto e de fundamentar a história da literatura aos
fatos sociais. Além disso, ela, a Sociologia da Leitura, limita o campo de ação unicamente ao
consumo e à venda dos livros, meios de concretização da leitura.
O estruturalismo tcheco
O estruturalismo tcheco elaborou conceitos básicos que descrevem o fato literário na
sua relação com o leitor, por meio da noção de estranhamento, de Chklovsky, conforme
esclarece Zilberman (1989, p.20). Graças a ela (à noção de estranhamento tensão entre o
sujeito da percepção e o objeto estético, caracterizada, principalmente, pela desfamiliarização
e desautomatização do processo de percepção de uma obra), um texto pode ter suas estruturas
formais mobilizadas, ou seja, interpretadas e lidas de diferentes formas por diferentes
indivíduos leitores, em diversas condições histórico-sociais. Concebe o recebedor como uma
consciência ativa, com um papel determinante, ao facultar a passagem da obra da condição de
coisa inerte a objeto significativo. Dessa forma, o recebedor não é entendido como um
indivíduo particular, mas sim como uma consciência coletiva. A percepção da obra de arte
não se de modo direto, interpondo-se entre o sujeito e o objeto estético, um código que
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possibilita a concretização do segundo pelo primeiro. O estruturalismo tcheco, rico em
sugestões do receptor como personagem indispensável no processo da constituição do objeto
estético e foco a partir do qual cabe revisar a história da literatura, quase se converteu, por sua
própria conta, em uma Estética de Recepção.
O Reader-Response Critcism
O Reader-Response Critcism é uma corrente teórica contemporânea da Estética da
Recepção, que, inclusive, compartilha com esta alguns de seus integrantes, como Iser. Essa
linha critica a metodologia do New-Critcism, visto que busca a criação de uma tipologia ideal
de leitor, que leria uma obra exatamente da maneira como seu autor esperava que a obra fosse
lida. O Reader-Response Criticism acaba rompendo com as teorias do New-Critcism, quando
passa a ver (a partir dos estudos de Stanley Fish) o leitor como o construtor do sentido daquilo
que ele está lendo, por meio das operações mentais que se passam com o leitor
(Zilberman,1989, p.27). Com isso, o leitor torna-se um ser real, que interpreta uma obra a
partir de suas próprias idéias e conhecimentos. Outro ponto da influência dessa corrente sobre
a Estética da Recepção encontra-se na ruptura da crença de auto-suficiência da obra literária.
1.1.1 Princípios teóricos da Estética da Recepção
Abordadas as principais correntes de estudos literários que influenciaram a Estética da
Recepção e as divergências entre esta última e aquelas, podemos ter uma noção do que os
estetas da recepção propunham. Primeiramente, como ficou marcado, a Estética da
Recepção interessa-se por uma reflexão sobre o receptor da obra de arte, por sua experiência
estética e por sua forma de compreendê-la e de interpretá-la. A Estética da Recepção
condensa duas concepções do leitor: uma é a do leitor “indivíduo”, que interpreta o objeto
estético guiado pelos seus sentimentos, pelas suas impressões e pelas suas experiências; a
outra é a do leitor como entidade coletiva, ou seja, como membro integrante de um coletivo,
inserido em um determinado período histórico, social, cultural e temporal. Por isso, fatores
como sexo, idade e religião podem ser considerados também fatores determinantes para a
atribuição de sentido a uma obra. Não há, entretanto, a visão impressionista do receptor de
uma obra.
22
A Estética da Recepção considera que o sentido da obra é principalmente do leitor.
Isso não significa, porém, que quaisquer interpretações são válidas para uma determinada
obra. Na verdade, a Estética da Recepção propõe que toda e qualquer atribuição de sentido
que se ao texto deve ser norteada, comprovada pelo próprio texto. Sendo assim, em última
análise, a mudança do foco de estudo do objeto estético para o seu receptor não implica que
este tenha uma predominância sobre aquele, e vice-versa. O que ocorre é uma equivalência: a
obra é tão importante quanto aquele que a interpreta no âmbito de produção de sentido. Com
isso, a Estética da Recepção não chega a negar as teorias imanentistas, que estabeleciam o
sentido de um texto com base exclusiva na sua materialidade, mas mostra as limitações dessas
teorias ao evidenciar que a presença do leitor é indispensável para a construção de sentido da
obra.
Em face disso, Jauss (1967) afirma que o texto pode ser comparado a uma partitura: o
intérprete da música tenta colocar nela suas próprias emoções e sentimentos, mas o que vai
determinar o que será tocado é a própria partitura. Assim também é a obra de arte: ela pode
gerar diferentes interpretações, mas estas poderão ser produzidas a partir daquilo que é
passível de compreensão na própria obra. No que tange à relação entre texto e leitor, Lima
(1979, p.22) aponta uma ressalva na teoria de Jauss: “o interesse de Jauss no autor como leitor
real ou imaginário, testemunha sua orientação centrada no autor”.
Ao falar de um leitor coletivo e histórico, foi necessário que os teóricos da Estética da
Recepção deixassem de reconhecer a historicidade da literatura como uma simples sucessão
de modelos de gênero e de estéticas, em um estudo linear, reduzido à vida e à obra de grandes
autores (Zilberman, 1989, p.31). Na Estética da Recepção, concebe-se a história da literatura
como algo dinâmico, que envolve questões muito mais profundas: as transformações sociais e
o modo como elas ocorrem também são analisados; não apenas os fatos históricos como
fenômenos isolados.
Sendo assim, a produção artística não pode ser vista como seqüência de obras isoladas
no tempo e no espaço: ela se faz de relações permanentes entre artistas, “intérpretes” (com
todas as especificidades), obras, sociedades, épocas e culturas. São esses laços que permitem a
afirmação de que a obra, de acordo com tais relações, pode ter uma série de interpretações
perfeitamente válidas, se respeitarem os limites estabelecidos pela “partitura”, ou seja, pela
própria obra.
Feitas essas considerações acerca da Estética da Recepção, necessário é observar as
contribuições dessa teoria, especificamente no âmbito da produção literária. Nesse sentido,
23
serão pontuados os principais conceitos relacionados à metodologia da interpretação de um
texto, a saber: os horizontes de leitura e as três leituras da hermenêutica literária.
Os horizontes de leitura
Para Jauss (apud Zilberman, 1989, p.62), “a história das interpretações de uma obra de
arte é uma troca de experiências, ou, se quisermos, um jogo de perguntas e respostas”. As
perguntas que um texto oferece não estão inscritas ou impressas em um texto de forma direta.
Elas surgem, na realidade, no pensamento do leitor, enquanto ele realiza a leitura do referido
texto e estabelece conexões entre o(s) sentido(s) que este permite que seja(m) percebido(s) e
as experiências de vida e de leitura que aquele possui. Dessa forma, o texto suscita perguntas
que o destinatário, durante a leitura (que é compreendida por Jauss como o próprio ato de
encontrar respostas e de devolver perguntas), percebe e tenta responder, encontrando as
respostas dentro do texto lido.
O que gera o jogo de perguntas e respostas são as atribuições de valores que o leitor dá
ao texto e os posicionamentos que o leitor toma no momento da leitura. Podemos notar,
assim, que um texto não pode ser visto como algo que tem em si mesmo um sentido único. Ao
oferecer perguntas com suas respectivas respostas, o texto “pede” alguém que esteja apto a
encontrá-las e, desse modo, compreendê-lo e interpretá-lo. A esse respeito Jauss (1994, p.9)
comenta que
As citações não constituem apenas um apelo a uma autoridade com o
propósito único de sancionar determinado passo no curso da reflexão
cientifica Elas podem também retomar uma questão antiga visando
demonstrar que uma resposta tornada clássica não se revela mais
satisfatória, que essa própria resposta faz-se novamente histórica,
demandando de nós uma renovação da pergunta e da solução.
Essa citação comprova que o leitor participa da obra, dá-lhe um novo sentido e
promove a sua atualização, à medida que a interpreta de acordo com o contexto no qual está
inserido. Essa atualização, contudo, não se de forma livre, mas obedece a uma estrutura de
apelo que o próprio texto possui, por conta das lacunas que ele apresenta e que devem ser
completadas pelo leitor. A existência dessa estrutura que mantém a interpretação atada às
pistas que o texto oferece cria uma espécie de ilusão com relação à importância do leitor na
interpretação do texto, visto que a obra e seus esquemas de construção de sentido regulam a
entrada do leitor no texto.
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As três leituras da hermenêutica literária
A divisão das etapas da interpretação de um texto proposta por Jauss, adaptada à
proposta da hermenêutica literária resgatada por Gadamer, é meramente metodológica e foi
realizada para que o autor pudesse explicar, de forma mais satisfatória, as etapas por meio das
quais o efeito de uma obra atinge o leitor. Por isso, não se pode ter a idéia equivocada de que
essas etapas da leitura ocorram separadamente, uma após a outra. Sua ocorrência é
simultânea; uma fase relaciona-se com as outras. A divisão, apesar de ser forçada e fingida,
apresenta-se relativamente eficaz para a compreensão da teoria.
Antes que se estude cada uma das etapas da leitura, é importante reconhecer o
significado de horizontes de leitura. Jauss esclarece que novos horizontes de leitura são
abertos de acordo com a “passagem” de uma etapa de leitura à outra.
Nesse sentido, horizontes de leitura referem-se à visão que o leitor terá de uma obra a
partir do ponto de encontro entre o texto e a sua experiência. Esse encontro ocorre quando o
efeito estético do texto é compreendido e interpretado pelo leitor, gerando novas expectativas
em relação ao texto, expectativas que, por sua vez, poderão (ou não) possibilitar a abertura de
novos horizontes, ou seja, a geração de novas expectativas em torno de suas personagens, da
trama, da mensagem, da forma, e/ou do conteúdo etc.
Essa criação de expectativas é possibilitada a partir do momento em que o texto (ou
parte dele) é compreendido pelo leitor. As expectativas acabam se tornando suposições acerca
do texto lido, suposições que, até o final da leitura, poderão ter sido confirmadas ou negadas
pelo texto. Por outro lado, Jauss atenta para o fato de que a compreensão do texto não pode
ser entendida como a simples criação de expectativas em relação a ele. Compreendê-lo,
conforme dissemos, é entendê-lo como resposta a uma pergunta. A compreensão advém,
portanto, das perguntas que o leitor faz ao texto e das respostas que o texto lhe dá perguntas
cujas respostas se encontram no texto –, mas que são formuladas pelo leitor. São três as etapas
de leitura: percepção estética, retrospectiva e leitura histórica (na hermenêutica tradicional,
essa divisão é feita em compreensão, interpretação e aplicação).
A leitura de percepção estética que remete à compreensão, na hermenêutica, é aquela
empreendida pelo leitor em seu primeiro contato com o texto e, por isso, seus aspectos
formais exercerão um papel primordial na formação de expectativas do leitor. Jauss (apud
Lima, 1983, p. 308) afirma que “a interpretação de um texto (...) sempre pressupõe a
percepção estética como compreensão prévia; se devem concretizar significados que
25
parecem ou poderiam ser possíveis ao intérprete no horizonte de sua leitura anterior”. A
leitura que antecede todas as outras é a de percepção estética; portanto, só se pode interpretar
um texto de maneira eficaz e plausível a partir das noções, das idéias e das impressões que o
intérprete formula no seu contato com o artefato do texto (artefato que não é visto como mero
“enfeite” de um texto, mas sim algo formal de sua forma que remete diretamente ao(s)
sentido(s) da obra).
Cabe aqui uma breve explicação do termo “concretização”, criado por Ingarden,
amplamente utilizado por Iser e adotado por Jauss, inclusive na citação acima. O termo
ingardiano refere-se à construção do sentido que o leitor formula acerca do texto; uma
verdade que o intérprete percebe na obra. Convém ressaltarmos que a elaboração dessa
verdade é indicada e produzida também pelo texto, não pelas impressões que o intérprete
tem daquilo que lê.
A primeira leitura permite ao leitor participar da gênese do objeto estético. Por isso, a
percepção estética é vista como “compreensão prévia”, que tem função reconhecedora
(reconhecimento perceptivo), mas não requer interpretação imediata.
Anteriormente, foi mencionado que o texto provoca no leitor perguntas e respostas.
Essa aptidão não se refere às competências interpretativas de um leitor ideal, um “super
reader”, que, conforme sugere Riffatere (apud Lima, 1983, p.310),
deve não apenas estar equipado com a soma do conhecimento histórico-
social (...) disponível, mas também deve ser capaz de registrar
conscientemente cada impressão estética e de ancorá-la numa estrutura de
efeito do texto. O leitor, na concepção de Jauss, deve ser capaz de
“surpreender-se por vezes durante a leitura (...) e de expressar essa surpresa
por meio de perguntas”, suspendendo, por ora, “sua competência histórico-
literária ou lingüística”.
Dessa forma, a percepção estética da primeira leitura decorre, basicamente, da
sensibilidade do intérprete frente ao texto, e essa mesma percepção vai, não de forma
exclusiva, mas, primordialmente, determinar a surpresa do leitor diante do texto. na
primeira leitura, pode ocorrer o preenchimento do que Iser chama de “lugares vazios” do
texto. Esses “lugares vazios” se referem às brechas” que o texto apresenta; aquilo que,
propositalmente, não é fornecido para que o leitor tire suas próprias conclusões no momento
em que interage com a obra. Entretanto, somente a partir da segunda leitura, esses
preenchimentos são feitos de forma mais aprofundada, pois podemos dizer que a primeira
26
leitura tem a função de limitar os espaços que poderão ser preenchidos e de que maneira isso
poderá ocorrer.
A primeira leitura deixa ver o significado em aberto, sem permitir a visualização de
detalhes; ela abre as portas para a segunda leitura de interpretação retrospectiva ou
compreensão interpretativa (interpretação, na hermenêutica tradicional). Aqui, a experiência
subjetiva encontra-se com a experiência estética que o intérprete teve na primeira leitura, o
que leva à produção e à compreensão do sentido do texto. No ato da compreensão
interpretativa, o leitor pode concretizar um significado da obra que seja relevante para ele
dentre tantos outros possíveis, sem excluir a validade dos significados que outros intérpretes
depreendem da obra (Lima, 1983, p. 311).
A terceira leitura é a leitura histórica. Ela condiciona a produção e a recepção da obra
literária ao momento histórico em que essas duas ocorrem. Nessa terceira leitura, evidencia-se
o caráter coletivo do intérprete, caráter aparentemente contrário às duas leituras anteriores,
nas quais se mais relevância à percepção e à interpretação do destinatário como indivíduo.
Entretanto as três leituras, no momento da atribuição de sentido(s) ao texto, são dissociáveis.
A primeira e a segunda leitura não são, portanto, apenas individualizadas, pois, além das
particularidades que o leitor possui, também nele a influência de todo o meio histórico-
social em que vive. Tal influência também determina a atribuição de um determinado sentido
ao texto. No que diz respeito aos chamados horizontes de leitura explicados anteriormente,
pode-se dizer que eles coincidem, de certa forma, com as três leituras conforme se mostrará a
seguir.
O primeiro é o horizonte perceptivo e dá-se no ponto de partida da leitura, ou seja,
quando o leitor começa a compreender o texto, ainda na primeira leitura. O segundo
horizonte, interpretativo, abre-se no momento em que o leitor se aprofunda na depreensão de
sentido do texto por meio da segunda leitura. O terceiro é o horizonte histórico, aberto pela
terceira leitura. A abertura desse horizonte possibilita a atualização da obra, pois permite que,
mediante o diálogo interativo (texto leitor coletivo), a obra seja lida e compreendida em
diferentes épocas.
Partindo desse princípio de que a obra se concretiza na relação do texto com o
leitor, Iser propõe a Teoria do Efeito, que dá continuidade às idéias de Jauss e que consolida a
importância de Ingarden. Antecessor de ambos, contribuiu com o conceito de pontos de
indeterminação, por meio dos quais o leitor entra no texto e o concretiza, atribuindo-lhe
sentido. Este estudo tratará dessa teoria formulada por Iser, como instrumento da análise dos
27
poemas florbelianos, nos quais se verificará o efeito da linguagem visualista e da constituição
do cenário como forma de revelação lírica.
28
2. LÍRICA: A POESIA GANHA CARÁTER DE GÊNERO
2.1 O gênero lírico
Em sua origem, a palavra lírica está ligada à lyra, instrumento de corda que os gregos
usavam para acompanhar os versos poéticos. A partir do século IV a.C, o vocábulo sofre uma
mudança em seu significado e a lírica passa a substituir o canto ou a melodia para indicar
poemas pequenos por meio dos quais os poetas exprimem seu sentimento. Segundo
D`Onofrio (1995, p.56),
O gênero lírico, portanto, em suas origens, está profundamente ligado à
música e ao canto. Mesmo mais tarde, quando a poesia rica deixa de ser
composta para ser cantada e passa a ser escrita para ser lida, ainda conserva
traços de sonoridades através dos elementos nicos do poema, tais como:
metros, acentos, rimas, aliterações, onomatopéias.
A definição tradicional do lírico sugere que se trata de um gênero literário que se
pauta, desde o seu início, em duas características: a musicalidade e o subjetivismo. Na poesia
lírica, a música da linguagem adquire enorme importância, pois, graças a ela, o leitor pode
deleitar seu espírito e experimentar a liberdade de transitar do mundo para o espírito do
homem.
Nesse sentido, a musicalidade auxilia a transitividade do ser. De acordo com Lyra
(1992, p. 8), não são as coisas por si mesmas que provocam o ser humano, mas apenas os
aspectos transitivos das coisas através dos quais elas se exteriorizam e se manifestam numa
provocação aos nossos sentidos, à nossa sensibilidade ou à nossa consciência”. Ainda a
respeito da relação da lírica com a música, Staiger (1972, p.53) acrescenta que
A palavra desaparece e soa o tom da sensibilidade. Um sentimento
misterioso nos domina, [...]; uma força mágica do poeta, do recitador torna-
nos crianças de novo. Não houve reflexão nem pensamento como base,
apenas lei da natureza, por meio da qual a sensibilidade deve transportar a
criatura em sintonia para o mesmo tom.
No lírico, é satisfeita a necessidade (do sujeito) de desabafar e de perceber a
disposição interior na exteriorização de si mesmo. Essa junção do interior com o exterior faz
que o gênero lírico ganhe, na concepção de Staiger (1972), o caráter de recordação, porque o
íntimo refere-se ao recordado, que não está, naquele momento, diante dos olhos, mas pode ser
sentido pelo coração.
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A partir dessa definição, percebe-se como característica mais peculiar da lírica a
emocionalidade, elemento ressaltado na proposta de Staiger (1972, p.52), para quem o gênero
lírico é um estado de alma, uma disposição sentimental que o eu poético exprime por meio
de palavras fluidas, aparentemente sem nexo lógico”.
Nota-se, então, que a subjetividade, assim como a musicalidade, faz parte do gênero
lírico e deve mostrar o reflexo das coisas e dos acontecimentos na consciência individual. No
entanto é importante ressaltar que a poesia não revela a verdade sobre o sentimento do autor,
porque ela tem caráter subjetivo. Segundo Staiger (1972, p.53),
O poeta lírico diz quase sempre eu. Mas o emprega diferentemente de um
autor de autobiografia. Só se pode escrever sobre a própria vida quando a
época abordada ficou para trás e o eu pode ser visto ou descrito de um ponto
de observação mais alto. O autor lírico não se descreve porque não se
compreende.
O emissor procura exprimir um sentimento, um estado da alma por meio da atitude
lírica, servindo-se, para isso, da palavra e de todas as possibilidades expressivas que ela pode
oferecer, tanto no nível do significado quanto no nível do significante. O discurso deixa de ser
utilizado como material expressivo; a palavra abandona o caráter designativo da realidade
exterior e passa a ter a função expressiva de uma realidade interior e, por isso mesmo, um
caráter predominantemente subjetivo.
Essa relação entre o poeta e a lírica, discutida por Hamburger (1975), descreve o eu-
lírico como um sujeito-de-enunciação, um enunciador fictício, cuja existência é duplamente
implicada na comunicação: como autor do enunciado e como sujeito da experiência que é
objeto dele. É importante frisar que o eu-lírico não é o emissor real, nem o eu do enunciado;
ele é o emissor estrutural, postulado pelo enunciado lírico por causa da sua ficção existencial.
A respeito do eu-lírico, Hamburger (apud Achcar, 1994, p.48) acrescenta que
[...] o sujeito lírico não toma como conteúdo do seu enunciado o objeto da
experiência, mas a experiência do objeto. Certamente a experiência pode ser
fictícia no sentido de invenção, mas o sujeito da experiência e com ele o
sujeito da enunciação pode ser real. Pois ele é o elemento estrutural e
constitutivo da enunciação lírica.
De acordo com Barreto (1997, p.20), no texto rico o emissor projeta a sua
subjetividade sobre o mundo subjetivo, passando a ser um objeto mediado de que a própria
linguagem vai se servir para a projeção dessa vivência íntima.
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Perdendo o seu caráter objetivo, o discurso lírico como que ignora a
componente pragmática e material que a palavra comporta na sua origem:
ganha significações novas, deixa de ser um designante unívoco, se
estabelece nos seus contornos de significação, reflete a fluidez e a
ambigüidade, a quase imaterialidade, que a expressão do eu condiciona.
A enunciação lírica traduz, desse modo, uma interpenetração da alma com a realidade
objetiva; a palavra dilui-se na sua significação e, por isso mesmo, contagia e contagia-se de
uma quase imponderabilidade significativa; perde os seus contornos de designação; se
enriquece de valores que lhe são emprestados pela carga emotiva do momento. A atitude lírica
corresponde, habitualmente, à expressão de uma situação presente. O enunciado lírico procura
hipervalorizar o presente, dá-se como que uma fixação de uma vivência momentânea.
Desse modo, o processo de produção da poesia não deve ser compreendido como um
processo individual, particular a esse poeta, explicável biograficamente, mas unicamente do
ponto de vista lógico-lingüístico, como o processo que ocorre dentro da correlação sujeito-
objeto enunciado lírico. Como tal, ele naturalmente tem inúmeras formas diferenciadas que
produzem as possibilidades infinitas da expressão lírica e das conseqüentes obras de arte.
Somente nesse sentido individual ele é o processo em relação aos diferentes poemas líricos e
poetas líricos, bem como em relação aos estilos da época.
Bense (apud Hamburger,1975, p.30) esclarece que
para uma poesia as palavras não são pretextos para os objetos, mas os
objetos são pretextos para as palavras. Fala-se, de certo modo, de costas
para as coisas, sobre palavras, metáforas, contextos, versos, sons, morfemas
e fonemas. Trata-se da poesia em nível meta lingüístico, de poesia de um
mundo particular.
Pode ser levantada aqui a questão de que a linguagem e a maneira de descrever as
coisas, indubitavelmente novas e radicais, são apenas as últimas conseqüências da estrutura
lírica sujeito-objeto. Quando as palavras se apresentam como pretexto para objetos, temos o
primeiro caso, ao passo que o inverso designa o segundo. Em ambas as formulações, as
palavras são o fator decisivo.
O recurso do sujeito-de-enunciação rica descreve o objetivo e deve-se ter em vista
que os poemas não transformam a coisa simplesmente, tornando-a transparente, mas
descrevem a coisa em si mesma. Não é mero acaso que tais poemas se ofereçam facilmente à
31
designação de “textos” e agrupem-se ao redor da fronteira que corre entre a enunciação lírica
e a informacional.
Para concluirmos nossa análise da estrutura-lírica sujeito-objeto, cabe-nos esclarecer
por que a poesia lírica é um enunciado da realidade, embora não tenha função em um contexto
real. Ao examinarmos a experiência de um poema lírico, parece-nos que, primeiramente,
vivenciamos um enunciado de realidade; em segundo lugar, quando analisamos o sentido de
uma enunciação lírica, completamos essa experiência imediata, retificando que dela não
aprendemos uma realidade objetiva ou uma verdade. O que esperamos aprender ou
experimentar não é nada objetivo, mas algo significativo.
O sujeito-de-enunciação sempre é idêntico ao autor de um documento real, razão pela
qual o sujeito lírico é idêntico ao poeta, tanto quanto o sujeito-de-enunciação de uma obra
histórica e científica é idêntico ao seu respectivo autor. A identidade lógica não significa aqui
que todo enunciado de um poema deva coincidir com uma experiência real do sujeito poeta.
Essa relação do poeta com o seu poema é uma questão muito pertinente no tocante à
lírica. A identificação do eu-lírico com o poeta é ainda muito freqüente, apesar de ser
refutada, tendo em vista que é errôneo o entendimento da sinceridade como correspondência
entre o eu-lírico e a experiência de vida do poeta. Com base nessa idéia, Hamburger (1975, p.
195) afirma que, “enquanto a história da literatura mais antiga, mais ingênua não hesitava em
identificar o eu-lírico com o poeta, hoje em dia tem-se muito cuidado em cortar toda a relação
entre o eu do poema e o eu do poeta”.
Essa concepção romântica de sinceridade como verdade poética, na qual a poesia é
verdadeira, porque corresponde ao estado de espírito do poeta, não foi totalmente abandonada
por parte da crítica literária. A esse respeito, Achcar (1994, p. 43) comenta que “Ainda hoje
as vidas e quase sempre as personalidades dos poetas antigos são deduzidas linearmente em
seus poemas. Essa maneira de ler é completamente inadequada”. Ainda com relação a esse
biografismo, o autor refere-se ao conceito de fides (termo da Retórica Antiga), que se
aproxima de sinceridade, fidelidade. Como termo técnico, descreve uma relação de lealdade,
não entre o autor e a obra, mas entre esta e o público. Nessa perspectiva, Achcar (1994, p.44)
ressalta que fides designa um efeito da mimese bem realizada e não corresponde à idéia de
sinceridade no que esta possa ter de extrapolação psicológica ou biografista”.
Quando o eu mentiroso ou sonhador coloca-se como eu-lírico, ele se retira de seu
poema e liberta, dessa forma, a enunciação de qualquer finalidade ou obrigação para com a
realidade objetiva. Dedicamos aqui uma breve explicação ao conceito de vivência, em relação
à natureza do eu-lírico e ao conceito do lirismo vivencial, que é empregado para designar o
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lirismo do sentimento pessoal, contrastando com o lirismo convencional, de cunho social. O
conceito de vivência refere-se ao psicológico e ao biográfico e relaciona-se aos processos da
consciência, na medida em que equipara consciência e vivência.
Apesar disso, o sujeito-de-enunciação lírico diferencia-se do o-lírico, não somente
pelo seu procedimento em relação ao objeto-de-enunciação, mas também pelo fato de ser
mais diferenciado e sensível do que o sujeito-de-enunciação informacional. O eu-lírico pode
apresentar-se como um eu-individual-pessoal de tal modo que não temos a possibilidade de
decidir sua identidade com o poeta.
Goethe (apud Hamburger, 1975, p.195) formulou a seguinte experiência poética: “No
poema não um traço que não seja vivenciado, mas nenhum traço é vivenciado como foi”.
Isso vale também para o lírico, porque proíbe a negação da identidade do eu-lírico com o eu
do poeta e estabelece a identidade da enunciação lírica configurada com a vivência real.
A questão da natureza do eu-lírico, porém, torna-se mais irrelevante, visto que se
apresenta impessoal e vaga, de modo que nem determinada situação poética nem uma
referência pessoal do conteúdo ao eu da enunciação integra-se no conteúdo ou no efeito
vivencial do poema.
Quando Hegel (apud Hamburger, 1975, p.199) propõe o conceito poema-vivência
como noção formal “uma espécie de poema no qual processos são representados na forma
de uma vivência” –, parece justo, em vista das infinitas matizes de significados, integrar o
poema-vivência no conceito de vivência estrutural mais amplo.
Para finalizar a questão da natureza do eu-lírico, pode-se afirmar que a diferença ou
identidade entre o eu-lírico e o eu do poeta pertence também ao seu caráter indefinido. A
enunciação de um sujeito real como a do sujeito-lírico procede de modo diferente do não-
lírico e constitui a relação de sujeito-objeto
Staloni (2001, p.151), outro estudioso da lírica, voltou suas reflexões às mudanças de
definições de tal gênero. A esse respeito, descreve que
A poesia destinava-se a ser cantada com o acompanhamento musical da lira
de onde deriva o lirismo. Foi a figura de Orfeu, legendário inventor da
cítara, que serviu de modelo à voz encantada que encanta animais e seduz a
natureza.
No sentido moderno do termo, o lirismo será definido como a expressão
pessoal de uma emoção demonstrada por vias ritmadas e musicais. O elo
com o canto não é rompido, tal como se entende pela legendária declaração
de Valéry. “O lirismo é o desenvolvimento de um grito”. Mas convém
acrescentar a essa particularidade uma outra, o lirismo é a emanação de um
eu. Olympio é o porta-voz de Vitor Hugo e o “tu” de “zone é uma parte do
“eu” de Apolinaire.
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A relação com o canto (ou com o grito), bem como o conteúdo confidencial,
duas características dominantes do texto lírico, acarretam o recurso a
estruturas ritmadas, encantatórias, a figura da exaltação e da grandeza, a um
léxico rebuscado e simbólico. O verso e o poema de forma fixa serão os
meios favoritos do lirismo. Os grandes sentimentos individuais serão seus
temas privilegiados.
Evidencia-se, desse modo, que o gênero lírico não é algo imutável e não se enquadra
em esquemas constituídos e em modelos classificatórios. Nesse sentido, uma dificuldade
apresenta-se com relação a uma teoria que se adapte a essas mudanças, uma vez que a teoria
prefere amplos esquemas. Essa tensão entre lírica e teoria foi gradativamente resolvida,
quando Cara (1998) dividiu a lírica em quatro períodos: Antiguidade, Renascimento,
Romantismo e período moderno:
Na Antigüidade, vemos o nascimento de uma poesia de expressão pessoal,
diretamente ligada à música a poesia lírica -, que o principal teórico da
época, Aristóteles praticamente deixou passar ao largo. Os neoclássicos do
Renascimento fizeram uma releitura da poética de Aristóteles, privilegiando
uma visão mais normativa e dando ênfase aos grandes esquemas
classificatórios, onde a poesia lírica encontrou lugar. No período romântico
uma revolução no conceito de poesia e o poeta adquire uma nova função
na sociedade. Mas a crise radical do poeta vai acontecer um pouco mais
tarde quando este poeta moderno desloca sua atenção para os modos
possíveis do eu se relacionar com a realidade, valorizando a linguagem. Com
a crise do poeta no período moderno entra em crise o conceito de lirismo
como “expressão pessoal”. (Cara, 1998, p. 6)
Fica claro que, ao contrário do poeta romântico, acredita-se na poesia lírica como
expressão do eu; o poeta moderno se projetado no mundo exterior, sabendo que desse
mundo poderá fazer apenas uma tradução parcial. A poesia torna-se, desse modo, crítica da
sociedade, e o lirismo, que era um tipo de consciência emocional, na visão de Merquior
(1996) firma-se como emoção ante um mundo-problema:
A lírica na qualidade de literatura problemática é crítica social das mais
fecundas, e proposta militante de valores novos e de formação coletiva, é
livre exame seu ser ultrapassado. A sua visão se aplicaria milagrosamente a
visão hegeliana da poesia como alegre desprendimento do passado, do dado
e do objetivo rotineiro pela marcha do espírito que se propõe o novo liberado
em si, não vinculado ao material exteriormente sensível. (MERQUIOR,
1996, p. 203)
Essa nova lírica tem interesse na tensão ética, na qual a cada momento a sociedade se
investiga. Por isso, a linguagem torna-se o mais importante da criação, visto que é o
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instrumento pelo qual essa investigação se dá. Mas ela não se basta em um mero moralismo; é
evidente que não chegará a valor algum fora da íntima compreensão do social nem sabe
propor uma formação criadora sem interpretação histórica concreta. No entanto o fato de
haver uma lírica mais engajada com o social não é o suficiente para que a lírica voltada à
emoção desapareça. Acerca da relação e da convivência das duas críticas, Merquior (1996, p.
204-205) esclarece que
Líricas pessoais de menor alcance têm absoluto direito de existir dentro da
nova arte. Além do mais, o novo homem não pode ser formado sem uma
nova poesia lírica. Mas, para criá-la o próprio poeta deve sentir o mundo de
uma nova maneira. Seria infantil pensar que toda classe pode criar inteira e
plenamente a sua própria arte de dentro de si mesma
Essas reflexões sobre a poesia lírica são importantes para que se possa compreender a
instigante poesia finissecular, visto que, a partir do final do culo XIX, a poesia lírica sofreu
grandes modificações no plano da estética e do estilo. A respeito dessas mudanças, Friedrich
(1976, p.17) comenta:
Pode se falar de uma dramaticidade agressiva do poetar moderno. Ela
domina na relação entre os temas ou motivos que são mais contrapostos do
que justapostos, além disso, domina na relação entre esses e um
comportamento inquieto do estilo que separa tanto quanto possível, os sinais
do significado. Mas ela determina também a relação entre poesia e leitor,
gera um efeito de choque, cuja vítima é o leitor. Este não se sente protegido,
mas, sim, alarmado. É verdade que a linguagem poética sempre foi distinta
da função normal da língua, ou seja, de ser comunicação.
A transformação da poesia moderna alterou dois de seus elementos essenciais: a
musicalidade e o seu sentido. A musicalidade passou a ser obtida por uma elaboração especial
do ritmo e das propriedades sonoras do verso nos seus aspectos rítmico, métrico e estrófico.
As idéias foram alteradas devido a uma linguagem renovada e ao desvio da norma gramatical,
buscando-se, intencionalmente, o obscurecimento e o equívoco, levando a língua a perder sua
firmeza semântica.
Nesse sentido, a poesia moderna caracteriza-se pela antidiscursividade (que tenta
romper com as imposições dos procedimentos sintáticos usuais da construção), pela parataxe
(que corresponde às orações independentes e coordenadas para dar uma melhor idéia da
disposição afetiva) e pela alogicidade (que parece romper com os estatutos da realidade
controlada pela razão).
No que se refere a essas modificações, Friedrich, 1976, p.16 postula que,
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A princípio, não se poderá aconselhar outra coisa a quem tem boa vontade
do que procurar acostumar seus olhos a obscuridade que envolve a lírica
moderna. Por toda parte observamos nela a tendência de manter-se afastada
o tanto quanto possível da mediação dos conteúdos inequívocos. A poesia
quer ser ao contrário uma criação auto-suficiente, pluriforme na significação,
consistindo em um entrelaçamento de forças absolutas, as quais agem
sucessivamente em estados pré-racionais, mas também deslocam em
vibrações as zonas de mistério dos conceitos.
As características expostas por Friedrich (1976) servem para indicar o aspecto auto-
suficiente e pluriforme da poesia moderna e encontram-se diretamente relacionadas ao tipo de
subjetividade dos poetas finisseculares. A subjetividade da lírica moderna é marcada pela
presença de elementos da vida empírica no universo ficcional, a partir do qual se pode
construir uma imagem fragmentária do sujeito, além de criar uma concepção aberta do relato
de vida.
Vistas as questões que teorizam acerca da lírica, cabe aqui a distinção entre essa forma
de lirismo, voltada para os elementos que o compõe (eu-lírico, subjetividade e musicalidade
da forma da poesia como gênero lírico), e a lírica, cujo enfoque recai na capacidade de o
poema oferecer elementos para o leitor visualizar imagens do próprio texto. Bosi (1977), Paz
(1992) e Júdice (1998) são três dos teóricos que abordam tal capacidade poemática.
Para Bosi (1977), a imagem é tão importante quanto a linguagem, visto que ela a
antecede e liga-se à sensação visual, por meio da qual o ser vivo tem a primeira noção da
realidade que o circunda, a partir das formas que seus olhos reconhecem como objetos que,
posteriormente, serão nomeados por intermédio da linguagem. A imagem nunca é um
elemento e nem se apresenta em sua totalidade. Apesar de ser apreendida como tal, ela possui
uma finitude, um passado que a constituiu e um presente que a mantém viva e que permite a
sua recorrência por meio do imaginário. Nesse sentido, ela não é somente dada como matéria,
mas também é imaginada e construída como forma para o sujeito.
Além desse caráter finito, a imagem apresenta mais dois aspectos que a caracterizam
como tal: a simultaneidade e o hiato. Bosi (1977, p.17) esclarece que aquela decorre do fato
de ser um simulacro da natureza dada: “A imagem de um rio dará a fluidez das águas, mas
não sob as espécies da figura que é, por força de construção, um todo estável. A finitude do
quadro, a espacialidade cerrada da cena tem algo de sólido que permite à memória o ato da
representação”.
O caráter de hiato imagético, por sua vez, vem de Santo Agostinho (apud Bosi, 1977,
p.17), para quem “o olho é o mais espiritual dos sentidos, pois capta o objeto sem tocá-lo.
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Intui e compreende sinteticamente, constrói imagens não por assimilação, mas por similitudes
e analogias”. Daí o caráter de hiato, de distância muito presente que a imagem detém; daí o
fascínio com que o homem procura achegar-se à sua enganosa substancialidade.
Com relação à poesia, esse hiato também se faz presente, visto que ela proporciona ao
leitor a sensação de um intervalo entre a imagem e o som. A diferença é que o código verbal
parece mover-se, no poema, em função da aparência-parecença. Esse aparecer é um aparecer
construído, em um segundo momento, e a semelhança do som-imagem resulta de um
encadeamento de relações no qual já não se reconhece a mimese inicial própria da imagem. A
esse respeito, Bosi (1977, p. 23- 24) acrescenta que
O homem que aprendeu a ler e interpretar o mundo silabando vê-se, pelo
instrumento mediador que é a linguagem e suas leis próprias apartado da
plenitude imediata do que os olhos podem ver e busca o caminho da volta,
trata de lograr uma apreensão plena do mundo concreto.
Na poesia coexistem sombras da matriz à tona, de explorar as suas
entranhas, de comunicá-la. Os meios visam a compensar a perda do
imediato, perda fatal no ato de falar. O discurso tende a recuperar a figura
mediante um jogo de idas e voltas; séries de re(o)corrências. Se assim não
fosse a linguagem morreria logo depois de proferido um grito original.
Na disposição dos sintagmas, sobre a qual se assentam todo e qualquer discurso e sua
estratégia de ir e de vir, estão sua força e sua fraqueza, pois ele é forte devido à sua
capacidade de perseguir, de surpreender e de abraçar relações inerentes ao objeto e ao
acontecimento. De outro modo, ficaria oculta a percepção, mas o discurso também é frágil, se
comparado ao efeito da imagem que seduz com a sua pura presença. Sobre a força da
imagem, Bosi (1977, p. 25) esclarece que ela “impõe, arrebata. O discurso pede a quem o
profere, e a quem o escuta, alguma paciência e a virtude da esperança”.
O crítico faz uma última observação quando se trabalha com o poema no limite da
lógica. Ele esclarece que, no momento em que a lei interna de contínuas diferenciações for
ultrapassada, a fantasia estará instaurada; o discurso é sempre um arranjo de enunciados, os
quais se comportam como processos integradores de níveis diferentes, cujos extremos são o
simbólico e o sonoro.
Jakobson (apud Bosi, 1977) afirma que o discurso poético é a “projeção do eixo das
semelhanças no eixo das contigüidades”. O poema como contínuo simbólico-verbal não
apresenta a estrutura simples de espelho da natureza. Para desenhar a mais perfeita figura,
superpõem-se, em um mesmo espaço, vários elementos poéticos. Depois que o enunciado está
composto, basta reconhecer as reiterações e as simetrias. É como se o poema fosse organizado
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para que a linguagem se encaixasse em um esquema de paradigma. Nesse sentido, a imagem
frásica é um momento de chegada ao discurso poético, sobretudo pela analogia que recupera o
sabor da imagem, desde os nomes concretos até os procedimentos que contribuem para evocar
aspectos sensíveis ao referente. A respeito do uso extensivo do vocábulo imagem, Bosi (1977,
p.29) afirma que
Tal uso, extensivo, do termo imagem supõe claramente que se admite um
caráter motivado nos processos semânticos em jogo. Será um critério válido
para acentuar as virtudes miméticas ou expressivas da onomatopéia e da
metáfora, mas sempre discutível enquanto parece confundir a natureza
lingüística da figura com a matéria mesma, visual ou onírica, da imagem.
As imagens, quando assumidas e recodificadas pelo discurso, dão a ele uma textura
cujas abstrações se colocam entre o puro pensamento e a intuição da natureza. Ao
pensamento, se devem as operações narrativas e conceituais; à intuição, os materiais
substantivos que a imagem traz à fala. No entanto, na visão de Bosi (1977, p.35), o discurso e
a imagem, no poema, sofrem entre si uma tensão na qual “o discurso fiel às relações contém
em si uma dinâmica tão alta que, se deixado a si próprio, poderia abafar, senão abolir a
imagem. Neste a imagem resiste potenciando-se com as armas da figura”.
Octávio Paz foi outro crítico que se aprofundou na crítica sobre a imagística na poesia.
Em Signos em Rotação (1992), ele apresenta um capítulo inteiro dedicado ao estudo da
imagem e discorre sobre as imagens como produtos imaginários, tendo em comum a
preservação da pluralidade de significados das palavras, sem que essa pluralidade de
significação possa incluir até mesmo significados opostos e contraditórios. Segundo ele
(1992, p. 38), “Cada imagem ou cada poema composto de imagens – contém muitos
significados contrários ou díspares, ou quais abarca ou reconcilia sem suprimi-lo”.
No entanto, apesar de seus significados díspares, a imagem tem a capacidade de
promover a junção de realidades opostas entre si, empobrecendo-as pela pluralidade do real.
O mesmo não ocorre com a poesia, pois o poeta nomeia elementos contrastantes, juntando-os,
sem empobrecimento algum das figuras de linguagem. Os elementos não perdem seu caráter
concreto e singular; a imagem poética, por sua vez, não aspira ao real; centra-se no
verossímil, visto que revela não o que é, mas o que deveria ser.
De acordo com Paz (1992), pode-se entender que a imagem abriga e exalta todos os
valores das palavras. Isso porque ela faz algo mais do que dizer a verdade; ela cria realidades
que possuem uma verdade - a de sua própria existência. Nesse sentido, Paz (1992, p.45)
afirma que “as imagens poéticas têm a sua própria lógica e ninguém se escandaliza de que o
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poeta diga que a água é cristal. Percebe-se que o aparente contra-senso do dizer poético
contém sentido”.
Por fim, pode-se dizer que a pluralidade e a ambigüidade do real redimem-se no
sentido, ou seja, a imagem poética reproduz a pluralidade da realidade e, ao mesmo tempo,
atribui a ela unidade.
Júdice (1998), por sua vez, ao tratar do caráter imagético do poema, parte da idéia do
conceito de poesia, que, durante séculos, foi visto apenas como diferenciador da prosa. A
poesia se prestava como referência à classificação de uma obra que não fosse prosa; não
importavam os seus dois significados assumidos na sua origem grega: os de criar e de fazer.
Diante desse duplo sentido, não havia a distinção entre o mundo real e o mundo poético,
como propôs Paz (1992).
Não se pode negar que a palavra transporta a característica poética, no instante em que
produz efeitos e vale-se de recursos da poesia para desfazer os duplos sentidos, apesar de essa
interpretação estar relacionada com a subjetividade e com a imaginação do discurso. No
tocante à interpretação, Júdice (1998, p.11) aponta três atitudes distintas que ela assume
perante o fenômeno poético:
Uma primeira concentra no espaço da linguagem esses efeitos de sentido,
considerando meros efeitos da construção retórica, estando codificados nos
parâmetros formais dessa disciplina todos os desvios da norma discursiva -
classicismo.
Uma segunda, estabelecendo a associação entre a linguagem e o mundo,
abre caminho a uma objetualização do universo poético, permitindo analogia
com as outras artes – barroco.
Uma terceira, remete ao espaço do indizível no plano último da significação
poética, colocando a verdade da poesia numa dimensão abstrata (o sublime)
que se poderá atingir através de uma identificação ritual do leitor com o
poeta - mediador da divindade – no instante cerimonial da comunhão poética
– Romantismo.
Depreende-se que a capacidade que o poema possui de suscitar imagens não é
novidade; existe desde o Classicismo. No entanto parte sempre de um raciocínio, segundo o
qual a afirmação poética se impõe por si só, visto que não precisa de explicação alguma, por
assentar-se em vários tipos de figuras, cuja principal é a analogia.
Essa figura, em retórica, chama-se comparação figurativa, isto é, uma comparação
figurativa na qual a escolha do comparante é submetida à noção, expressa ou subentendida,
que se quer desenvolver a propósito do comparado. As imagens visam, desde o início, ao
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envolvimento de um objeto que é o centro do poema. Desse modo, esse objeto determina a
escolha dessas imagens, porque elas devem se aproximar do assunto ou do tema do texto.
De acordo com Júdice (1998), o princípio analógico exige a presença de duas imagens;
no entanto, no decurso da leitura, uma vai se confirmando, ao passo que a outra vai se
excluindo. Dessa forma, a evolução do poema a partir de uma imagem resulta desse esforço
imagético, cuja lógica se pode determinar a partir da reconstituição do jogo de imagens e da
sua relação com o poema.
Todo esse processo de associação deve, no momento da produção, obedecer a uma
lógica que, no poema, é marcada pelas regras precisas do código; caso contrário, o leitor pode
fazer uma interpretação equivocada. A imagem, por sua vez, torna possível a fixação de uma
identidade da figura que transporta de tal forma que permite ver qual o universo cultural em
que se inscreve e, a partir daí, começar a encontrar os nexos lógicos da rede figurativa do
poema. A imagem serve para que o próprio poeta defina-se em um espaço cultural, pois ele
escolhe um tipo de imagem que tende ao impressionismo; desse modo, sua poética rejeitará
outras formas possíveis de representação.
Nesse sentido, Júdice (1998) defende a idéia de que o poema produz imagens
características, que o diferenciam dos textos abstratos, e aponta dois tipos de imagens: as que
se ligam à memória, ou seja, estão na coincidência vivencial do poeta-leitor, na sua
motivação, e as que são criativas e exigem do leitor esforço para entrar no imaginário e viver
uma nova experiência.
A imagem constitui-se na introdução de um segundo sentido, analógico, simbólico e
metafórico, em uma porção de texto delimitada e muito curta. No instante em que se tem
acesso a esse lado abstrato da imagem, isto é, a um pensamento sobreposto à figura, o espaço
em que o poeta corta a tradição é o da harmonia ou o do equilíbrio entre as duas partes do
poema, as quais valorizam o aspecto racional ou intelectual da criação poética.
Pode-se considerar, com base em Júdice (1998), que dois momentos evidenciam-se na
efetivação do poema: o da sua leitura, que envolve a execução fônica e sonora, em que
intervêm elementos da natureza material e lingüística, e o da sua significação, quando se
privilegia o elemento do significado do texto. A respeito do significado, Júdice (1998, p. 30)
explicita que ele
[...] não decorre de um significante arbitrário, como no código da língua,
sendo que pode haver uma relação determinante entre ambos situada na
esfera do que se designa como efeitos de sentido. A sugestão que o leitor
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retira da leitura decorre de operações inconscientes assentes na construção
material do texto.
Esse tipo de operações, no caso da poesia, procede de um modo particular.
Sendo a linguagem poética expressa através de palavras e de imagens
individualizadas, em que cada um desses elementos vale por si [...], a
significação vai ser o resultado de uma soma, ou re-união de significados
parcelares.
O leitor tem papel primordial nesse processo da leitura, posto que põe em jogo a sua
experiência, juntamente com o conhecimento que dispõe a fim de tentar reconstruir essa
totalidade por intermédio da junção dos elementos parciais. Desse modo, o significado do
texto coincide com aquilo que ele mesmo fornece, uma vez que o nível informativo dos
códigos deve ser deduzido dele mesmo; não é possível acrescentar dados que não estejam no
texto.
Ao se enfocar a poesia de Florbela Espanca sob as luzes da teoria dos neros
literários, percebe-se que sua obra pertence a um caso de difícil classificação. Tal dificuldade
se deve ao fato de que predominam, nos seus poemas, elementos ricos ao lado de elementos
típicos dos diálogos dramáticos; o eu-lírico dirige-se a pessoas, a animais e a elementos da
flora. O épico aparece quando a poetisa trata de temas universais, como a tentativa de
autoconhecimento e o homem perante a dor e quando apresenta problemas inerentes à
condição feminina.
Mesmo diante dessa dificuldade de classificação, reconhece-se na poesia florbeliana o
predomínio do lírico pela preocupação com a forma, pelas rimas que conferem musicalidade à
poesia e pela linguagem intimista e subjetiva, que se vale de figuras de retórica para revelar o
sentido das imagens que a leitura permite construir.
A partir da relação do texto com a imagem presente nos poemas florbelianos, Junkes
(1983) explica que os sonetos guardam nítida filiação com o Simbolismo, pela linguagem,
pela imagística e pelo abstracionismo, e possibilitam que sua linguagem seja realçada pela
presença de imagens de excepcional criação poética, em uma verdadeira transfiguração da
arte para o real.
2.2 Retórica e Estilística: instrumentalização de leitura de poemas
De acordo com Tringali (1988), a Retórica limita-se a ser uma arte de escrever e de
falar bem, uma teoria da composição e do estilo válida para qualquer que seja o texto. Com o
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advento da estilística, com a qual se equivale a retórica clássica, a retórica perde a razão de
sua existência e passa a interessar apenas como precursora da estilística.
Além disso, na Retórica, a teoria das figuras desenvolve-se em uma escala que acaba
por reduzir a elocução às figuras. A partir dessa redução, Tringali (1988) afirma que nem a
retórica clássica nem a das figuras são retóricas verdadeiras, pois a primeira pertence à
estilística, ao passo que a segunda constitui-se em uma disciplina autônoma: a teoria das
figuras.
A Retórica Clássica consolida-se na Renascença, mas tem antecedentes na própria
Retórica Antiga, que apresenta duas vertentes: uma deriva de Aristóteles e privilegia a
invenção, ou seja, a busca de provas para persuadir; outra remonta aos sofistas, a Sócrates e a
Cícero, que realçam a elocução, mas não negam a eficácia de outras partes.
Para Tringali, a Retórica Clássica recebeu influência do contexto histórico no qual se
manifestou. A respeito disso, o autor argumenta que “termina a era dos manuscritos, de ser
uma aldeia primitiva de contatos diretos e se formam as grandes nações, nas quais a imprensa
se impõe como meio de comunicação” (1988, p.20). Tal amplificação corresponde, na
Retórica Antiga, à função poética e artística da linguagem e realiza-se por meio das figuras e
dos ornamentos lingüísticos. Ela tem a finalidade de expor, para convencer e comover.
Os manuais de Retórica Clássica dividem-se em duas partes: uma geral, comum à
prosa e à poesia, e outra especial, dedicada à teoria do verso e do poema. Como teoria da
composição, ela compreende as duas partes da Retórica Antiga: a invenção e a disposição. Na
invenção, orienta-se o aprendiz a adquirir o material por meio do estudo. Como teoria de
estilo, a tendência é tratar de palavras isoladas e na frase. Começa-se obedecendo aos
preceitos da gramática e, depois, escolhem-se e combinam-se todos os recursos da língua.
Nas relações entre poética e retórica, Tringali (1988) elenca duas fases: poetização da
retórica e retorização da poesia. Temporalmente, a poesia precede a prosa. De fato, primeiro
despontam as grandes obras em verso e, posteriormente, as em prosa. A Poética de Aristóteles
surge como uma teoria estética da literatura, especialmente em verso. A prosa, por sua vez, só
se torna artística depois da poesia e à custa da poesia; é dentro da retórica que isso acontece,
na qual os poetas cativam e fascinam os oradores e referem-se aos encantos da elocução.
A respeito disso, o autor comenta que “não interessa que divirjam de propósitos. A
retórica pretende persuadir, convencer e agradar. Enquanto os poetas se preocupam em
agradar. Com eles os oradores aprendem a elaborar os discursos com elegância. A retórica
depende da Poética” (TRINGALI, 1988, p.23).
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Na segunda fase, a da retorização da poesia, os poetas vão à escola dos oradores e a
retórica forma tanto um quanto outro. Mas tal influência vai além, porque o poeta não só
adquire a formação literária com os oradores, mas também deixa a poesia impregnar-se de
retórica. Dessa forma, o conceito de Poética evolui em função do conceito de Retórica. A
respeito da evolução da Retórica, Tringali (1988, p.25) afirma que,
No princípio, a Poética equivale a uma estética rudimentar da criação
literária, em verso, em oposição à Retórica, que faz uma teoria do discurso,
em prosa. Aos poucos se serve da Poética como instrumento para modelar a
prosa artística. Em contrapartida a Retórica se retoriza.
Quando, na Renascença, a Retórica toma o lugar da Poética, como teoria geral da
criação, a segunda vai além de uma teoria do verso e do poema. E, juntas, a Retórica e a
Poética formam a antiga teoria da literatura. Com o advento da Estilística, no campo do século
XX, a palavra “Poética” fica disponível e, novamente, volta a ter o sentido da teoria da
criação artística, particularmente literária e mesmo no sentido que, a rigor, deveria ser o único
de teoria do poema e do verso.
Em seguida a essa discussão acerca da evolução da retórica, o autor questiona a
respeito da possibilidade de a oratória ser literatura. No intuito de averiguar tal relação, ele
afirma que literatura é uma arte, uma das belas artes que compreende textos artísticos. Um
texto artístico é um signo e, portanto, apresenta um nível da expressão e um nível do
conteúdo. No nível da expressão, deve dominar a função poética ou estilística da linguagem,
mas a linguagem como fim, não como meio. No nível do conteúdo, deve ser ficção, que se
define como a criação do espírito, em um jogo igual entre fantasia e entendimento,
independentemente da verdade e da falsidade, da realidade e da irrealidade.
No tocante ao estilo e à composição, a Estilística é vista como disciplina autônoma,
como teoria e prática do estilo, no começo do século XX, com Bally e Vossier (apud Tringali,
1988). Mas o estilo existia; apenas não era estudado em disciplina alguma. Quando surge a
Retórica Clássica, a elocução absorve toda a Retórica, cujo objetivo é a elocução. Com isso, o
problema do estilo avulta.
Estilo origina-se da palavra latina stillus, que significa estilete, espécie de ponteiro que
servia para escrever e cuja parte posterior servia para apagar. Do sentido de instrumento de
escrever, passa a significar o modo individual de cada língua, sentido que continua básico e
fundamental. O estilo realiza o que hoje se chama função poética da linguagem. Ele é uma
atividade que se realiza no plano da expressão como atividade verbal; caracteriza-se, ainda,
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como uma atividade de escolha e de combinação; supõe a liberdade de escolher e de combinar
entre recursos permitidos e facultativos da ngua; visa sempre provocar efeitos, causar
estranhamentos, quebrar a automatização do modo comum de falar (Tringali, 1988). O
problema do estilo liga-se ao problema da composição, composição no sentido de definição,
de meio e de fim, com unidade temática e estrutura.
Luckács (apud Martins, 2000) reúne as definições de estilo em três grupos: as que
consideram o estilo como um desvio de norma; as que o julgam como elaboração e as que o
entendem como conotação. Enkvisk (apud Martins, 2000) as distribui em cinco grupos: estilo
como adição, estilo como escolha, estilo como conjunto de características individuais, estilo
como conjunto de características coletivas; estilo como resultado da relação entre unidades
lingüísticas formuláveis em texto.
Tomando o lugar deixado pela Retórica, a Estilística surge nas primeiras décadas do
século XX, graças a dois mestres que lideram duas correntes de grande importância: Bally
(Estilística da língua) e Leo Spitzer, figura exponencial da Estilística literária. Ampliando o
campo de estudo de Saussure, Bally (apud Martins, 2000) volta-se para o estudo da língua
falada, mas gramaticalizada, e condena o ensino da língua baseada apenas na gramática
normativa. Bally distingue duas faces da linguagem: a lógica e a afetiva, e estuda os efeitos da
afetividade no uso da língua.
A Estilística literária, por sua vez, foi iniciada por Sptizer e é também conhecida como
idealista (por se prender à filosofia idealista), psicológica (pelo interesse na psicologia do
escritor) e genética (por pretender chegar à gênese da obra literária). Martins (2000, p.7) cita
que “a Estilística Literária parte da reflexão de cunho psicologista sobre os desvios da
linguagem em relação ao uso comum, pois uma emoção provoca o afastamento do uso
lingüístico. O estilo do escritor reflete o seu mundo interior”.
Martins (2000) concebeu um método de estilo que denomina “círculo filológico”, que
consistia em, inicialmente, ler e reler os textos de um grande autor, pois a escolha do autor
pressupunha valorização. Graças à intuição, encontrava-se um ponto estilístico que servia
como ponto de partida para a penetração na obra, isto é, o espírito do autor que o levara à
apreensão do princípio do criador deveria ser confirmado pelos aspectos da obra. Ao se referir
à intenção do autor, ele afirmava que ela é “algo específico e encontrável (Martins, 2000,
p.07).
Alonso (apud Martins, 2000, p. 8) tem como enfoque a diferença entre fala usual e
literária, pois a obra literária caracteriza-se pela unicidade e encerra um mistério cuja
compreensão depende da intuição. Para ele, “a obra move entre duas intuições: a intuição
44
criadora do autor e a atualizadora do leitor”. Ele apresenta três modos de compreender a obra
literária: o primeiro centra-se no leitor comum, que não procura analisar nem exteriorizar sua
impressão, a intuição totalizadora do autor que deu origem à obra. Essa leitura, cujo princípio
é o prazer, é o fundamento dos outros conhecimentos. O segundo grau de compreensão é o do
crítico, que tem uma capacidade receptiva mais intensa e extensa e comunica as imagens
intuitivas recebidas. O terceiro grau de compreensão de uma obra é o da tentativa de
desvendar os mistérios dessa obra e dos seus efeitos sobre os leitores.
Esse autor atribui conceitos diferentes de Saussure para significado e significante. Para
ele, o significado não é apenas a imagem acústica, mas também o som físico; não é um mero
conceito, mas uma carga psíquica, que pode incluir emoção. Como significante total, têm-se a
obra, o poema, a estrofe, o verso, o vocábulo, e, como significados parciais, o acento, a sílaba,
o ritmo e a entoação:
O significado total é a representação da realidade e os parciais são os
múltiplos elementos sensoriais, afetivos e conceituais. A primeira função da
Estilística é investigar as relações entre os elementos parciais e selecionar os
mais relevantes. A Estilística da linguagem cuida dos recursos expressivos
de natureza lingüística do lado afetivo, imaginativo e valorativo. Ela é a base
da Estética Literária que examina como é constituída a obra e considera o
prazer estético que ela provoca no leitor o que interessa à Estilística Literária
é a natureza poética do texto. (Martins, 2000, p.10).
O conceito de sentido comporta a mesma duplicidade. Em sentido restrito, o estilo é
conceituado como uso especial do idioma pelo autor; em sentido amplo, ele é definido como
toda revelação do artista e do homem.
Em meados do século XX, a Estilística desenvolveu-se nos estudos de Jakobson. Ela é
vista como funcional a partir de tal perspectiva, quando se vincula às funções de linguagem, e
é concebida como estrutural, quando se encontra relacionada aos elementos do texto: emissor,
destinatário, contexto, mensagem, canal e código.
A função poética, de acordo com Jakobson (apud Martins, 2000), centra-se na
mensagem e considera a obra poética aquela em que a função poética é predominante. Dessa
forma, considera a poética como parte da linguagem que trata de tal função em suas relações
com as demais funções. Nesse ponto, Jackobson diferencia-se de Bally, para quem a
Estilística concentra-se na função emotiva e não na função poética. Para explicar a realização
da função poética, Jackobson (apud Martins, 2000, p.12) entra na estruturação da frase e do
texto e lembra os dois modos de comportamento verbal: a seleção e a combinação. Ele
formula o princípio da função poética: “A função poética projeta o princípio da equivalência
45
do eixo da seleção sobre o eixo da combinação”. Esquematizando-se a doutrina de Jakobson,
têm-se as estruturas do signo que são paradigmáticas (categorias do sistema lingüístico) e
sintagmáticas (posição no texto). A Estilística pode tratar dos meios expressivos em potencial
na língua e dos efeitos alcançados no seu uso no texto.
Para Martins (2000, p.24), a retórica é um conjunto de desvios susceptíveis de
autocorreção, isto é, modifica o nível normal de redundância da língua, transgredindo regras.
O desvio é percebido pelo leitor graças a uma invariante. O conjunto dessas operações produz
um efeito estético específico: o ethos.
diversos tipos de Estilísticas: a primeira é a Estilística de expressão, que considera
o fenômeno como objeto de pesquisa em si mesmo; a segunda, a Estilística literária, considera
o fenômeno estilístico um meio privilegiado de acesso ao interior do escritor. O caráter
científico da Estilística advém do seu objetivo de explicar os usos da linguagem, os quais
ultrapassam a função puramente denotativa, com maior exatidão e sem o caráter normativo
que caracteriza a Retórica. Entretanto, além de não se ter chegado ainda a um método rigoroso
que assegure sua condição de ciência, o seu objeto também não está satisfatoriamente
limitado.
A estilística do som também é chamada Fonoestilística, conforme Martins (2000), e
trata dos valores expressivos de natureza sonora observáveis nas palavras e nos enunciados.
Fonemas e prosodemas (acento, entonação, altura e ritmo) constituem um complexo sonoro
de extraordinária importância na função emotiva e poética.
O mais importante fator de afetividade na concepção de Martins (2000) é certamente o
emprego da linguagem figurada, seja da metáfora e da metonímia, com as quais as palavras
assumem um sentido mais afastado do significado fundamental, seja das figuras de construção
e de pensamento, com as quais as palavras assumem um relevo ou uma conotação especial. A
metáfora (considerada a figura mais importante) é definida pela Retórica como os braços,
como as formas mais ou menos notáveis de um efeito feliz, pelos quais os discursos, na
expressão das idéias, dos pensamentos, afastam-se mais ou menos do que teria sido a
expressão simples e comum, e que a Neo-Retórica, mais simplificadamente, considera
alterações da linguagem.
Bally (apud Martins, 2000) defende a tese de que as raízes da linguagem literária
mergulham no falar do todo, no qual ela vem se abeberar como em uma fonte da juventude.
Explica o lingüista suíço que as figuras de linguagem resultam da necessidade expressiva e
devem-se à incapacidade de nosso espírito de abstrair os objetos da nossa percepção, porque é
o único meio de que dispomos para delas tomar conhecimento e torná-las inteligíveis aos
46
outros. A metáfora é vista como uma comparação por meio da qual o espírito, induzido pela
associação de duas representações, confunde em um só termo a noção caracterizada e o objeto
sensível tomado como ponto de comparação.
Bally (apud Martins, 2000) agrupa em três tipos as expressões figuradas, em que o
elemento sensível, concreto, apresenta-se em graus diferentes:
a) imagens concretas, imaginativas: evocam um quadro que a imaginação individual
completa à sua vontade;
b) imagens afetivas: tem-se o vago sentimento de uma imagem; há uma expressão
produzida; ainda que se imagine um quadro, uma espécie de resíduo efetivo que salva a
imagem e a impede de desfazer-se na abstração;
c) imagens mortas: não mais imagem nem sentimento de imagem, a não ser do
ponto de vista histórico; estamos em uma abstração pura.
Em resumo, as imagens concretas são apreendidas pela imaginação; as efetivas, pelos
sentimentos, e as mortas, por uma operação intelectual. O autor trata, ainda, das imagens
detalhadas: quanto mais uma imagem é complicada em pormenores, mais ela é concreta,
sensível, imaginativa, mais repousa em uma criação individual. Ele ainda acrescenta que a
imagem gasta pode ser renovada pelo artista.
Bally e Bousõno usam o termo imagem com o mesmo sentido de metáfora. Ulmann
(apud Martins, 2000), por sua vez, toma o termo imagem como o mais geral, abrangendo
metáfora e símile, e aponta as seguintes características da imagem:
deve ter uma qualidade concreta e sensível; ou os dois termos são concretos, ou um é
abstrato e o outro, concreto;
deve ter algo de surpreendente e de inesperado; deve produzir um efeito de assombro,
pela revelação de algo comum entre duas experiências aparentemente díspares;
deve ter certo frescor e novidade, ainda que não seja necessário que a imagem seja
absolutamente original.
A metáfora é o emprego de um significado com um signo secundário ou a
aproximação de dois ou mais significados, estando, nos dois casos, os significados associados
por semelhança, por contigüidade, por inclusão (Martins, 2000). A metáfora resulta de uma
busca da qual participam a sensibilidade e a imaginação, ambas controladas pelo espírito
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crítico do poeta e sintetiza o sensível, o afetivo e o mental, e nela se encontra todo o
maravilhoso da sensibilidade e da linguagem.
Quer no símile, quer na metáfora, temos duas representações, dois elementos
relacionados por traços significativos mais ou menos comuns. No símile, essas representações
se apresentam com muita independência; na metáfora, elas aparecem estritamente
relacionadas e podem ocorrer com substantivo, com adjetivo e com verbo. É a metáfora de
substantivo, todavia, que se apresenta em formulações diversas (Martins, 2000).
2.3 O espaço como categoria da poesia
Tendo em vista a ênfase que se ao espaço como categoria do romance e não da
poesia (gênero textual do objeto desta pesquisa), faremos as ponderações necessárias acerca
da visualidade do espaço poético na tentativa de observarmos como esses conceitos narrativos
de ambientação, de manifestação, de tipologia e de relação com a personagem se comportam
quando assimilados pela poesia. Para tanto, relacionaremos tais conceitos com as idéias de
alguns teóricos que se voltaram mais restritamente ao espaço poético, como Santos (2001),
Oliveira (2001), Blanchot (1987) e Bachelard (1978).
A necessidade de separar o espaço narrativo do espaço poético se deve ao fato de
ambos terem a função de situar a personagem/eu-lírico, revelando-a ao leitor, e ao fato de a
sua significação se dar diferentemente nos dois gêneros. Santos e Oliveira (2001, p.74)
pontuam essa diferença ao afirmarem que,
Nas narrativas literárias, o espaço tende a estar associado a referências
internas ao plano ficcional mesmo que a partir desse plano sejam
estabelecidas relações com espaços extratextuais [...]. O texto poético pode
eleger a própria palavra como um espaço: O signo verbal não é apenas
decodificado intelectualmente, mas também sentido em sua concretude.
Sobretudo, é possível explorar na poesia escrita, a visualidade da palavra: o
signo verbal como imagem.
Santos e Oliveira (2001), no entanto, atentam para a problemática existente com a
similaridade estabelecida entre o objeto em si e sua imagem. Tal problematização baseia-se
em dois aspectos: primeiro, a imagem apenas reproduz algumas condições da percepção do
objeto, mas não o constrói como ele verdadeiramente é; segundo, as imagens visuais são
figurativas e nem sempre representam algo. Com base nesses dois aspectos, pode-se pensar a
questão da similaridade sob duas perspectivas: a da referência, que considera o objeto anterior
48
ao signo, e a da perspectiva de significação, na qual o objeto é criado pela imagem. Para os
autores, a poesia estaria inserida na primeira perspectiva, porque a palavra reproduz alguma
característica do objeto em si.
Blanchot (1987, p.23), ao refletir sobre o espaço poético, parte de uma visão mais
geral do que a estudada pelos autores acima citados, visto que não toma o espaço do vocábulo
como base do seu estudo, mas volta-se, inicialmente, para o espaço que a literatura constrói,
pois ela é solitária e exige certa solidão do leitor:
A obra não é acabada nem inacabada: ela é. [...]. Aquele que vive na
dependência da obra, seja para escrevê-la, seja para lê-la, pertence à solidão
do que a palavra ser exprime: palavra a linguagem obriga dissimulando-a
ou faz aparecer quando se oculta no vazio silencioso da obra.
O autor, portanto, reconhece que a escrita tem um papel relevante, porque faz eco ao
que não se pode calar. O escritor torna-se sensível e cala-se para que a linguagem se converta
em imagem e resulte em um profundo significado ao leitor. É interessante notar que Santos e
Oliveira (2001) compartilham com Blanchot (1987) a idéia de que o texto poético gera
imagens. O poeta seria aquele que, ao ouvir a fala da obra, torna-se seu intérprete, mas não
consegue fazer brotar o sentido real da palavra. Por isso, é necessário que a obra se torne
íntima não do seu escritor, mas também do seu leitor para que seja considerada uma obra
de fato: “o poeta é aquele que ouve uma linguagem sem entendimento” (p.45).
Com relação à fala poética, Blanchot postula que
A fala poética deixa de ser fala de uma pessoa: nela, ninguém fala e o que
fala não é ninguém, mas parece que somente a fala “se fala”. A linguagem
assume então toda a sua importância; torna-se essencial; [...] e é por isso que
a fala confiada ao poeta pode ser qualificada de fala essencial.
(BLANCHOT, 1987, p.35)
No entanto, ao se referir a Kafka, o autor inicia o primeiro dos dois temas centrais de
sua obra: a morte e a noite. Kafka escreve para não sucumbir com a morte, pois poderia se
perpetuar em sua obra; ele faz desse desespero diante do seu desaparecimento total o motivo
de sua escrita; visualiza o ato de escrever como proteção do mundo, no qual agir é difícil.
Devido a essa dificuldade, Kafka cria, por meio do ato de escrever, um mundo irreal sobre o
qual reina soberanamente a esperança de perpetuar-se, podendo, então, morrer em paz, já que
sua obra permanecerá. A partir dessa idéia de “morte contente” e de sua relação com o poeta,
Blanchot (1987, p. 89) explica: “ele esquiva-se ao mundo para escrever, e escrever para
49
morrer em paz”. Ao referir-se ao aspecto do suicídio como uma dessas formas de morrer em
paz, o ser humano escolhe o melhor momento de ”sair de cena”. Blanchot (1987) salienta que
esse recurso seria uma forma de o homem exercer sua liberdade, de equiparar-se a Deus e de
comprovar realmente a teoria de Nietzche, de que realmente Deus estaria morto, pois o
homem pode escolher se quer morrer ou não. Sendo assim, o homem passa para um plano que
Blanchot denomina de “o outro lado”, onde deixa de ser uma representação e passa a ser ele
próprio, atingindo a plena liberdade, uma vez que, nesse espaço, não mais limites. Desse
modo, esclarece que,
Pela morte, os olhos mudam de direção e essa viragem é um outro lado, e o
outro lado é o fato de viver desviado, mas redirecionado, introduzido agora
na intimidade da conversão, não privado de consciência, mas pela
consciência, estabelecido fora dela, lançado no êxtase desse movimento.
(Blanchot, 1987, p. 132)
Depreende-se um ponto interessante da obra de Blanchot: ele discute o desvio que
ocorre tanto no sentido de uma exteriorização da angústia, culminando no suicídio, quanto no
sentido de um retrocesso do eu“ para uma intimidade mais profunda do seu interior. Pela
conversão do exterior para o interior, o indivíduo encaminha-se para significações mais
elevadas e exigentes, distanciando do vazio e transmutando as coisas que se tornam interiores
a si próprias. É com base nessa interiorização gerada pela conversão que se a
transformação do visível em invisível e do invisível em cada vez mais invisível. Sobre essa
transformação, ele esclarece que,
No mundo, as coisas são transformadas em objetos a fim de serem
apreendidas, utilizadas, tornadas mais seguras, na firmeza distinta de seus
limites e na afirmação de um espaço homogêneo e divisível – mas, no
espaço imaginário, transformadas no inapreensível, nos introduz sem reserva
num espaço onde nada nos retêm. [...] o espaço interior “traduz as coisas”.
Fá-las passar de uma linguagem para outra, da linguagem exterior para uma
totalmente interior. O espaço [que] nos supera e [que] traduz as coisas é,
portanto, o transfigurador, o tradutor por excelência. (BLANCHOT, 1987,
p.139)
O papel transfigurador e transcendental do espaço, portanto, ocorre na medida em que
promove a interiorização dos elementos, abrindo as portas para a formação de um espaço
imaginário.
Além do “outro lado” como prefiguração da morte e do acesso ao imaginário,
Blanchot aponta a existência do “lado de fora”. Refere-se à noite, quando tudo desaparece e
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torna a aparecer, e a experiência da impossibilidade concretiza-se no momento em que o poeta
se torna um “por vir” ou um ainda não”, na perspectiva de um amanhã mais rico de sentido.
A esse respeito, Viesenteiner (2005), na leitura que faz da obra de Blanchot, expõe sobre os
dois sentidos da impossibilidade:
O poeta existe na impossibilidade quando vive como pressentimento de si
mesmo, abandono inexorável na torrente trágica do de vir. Não tem morada
nem fixação e, portanto, nomadismo em que resta ao poeta a existência
sempre extemporânea, nunca localizada, eternamente por vir. [...]. O
segundo sentido de existir na impossibilidade é precisamente a sintonia de
dependência entre poema e poeta, num curso de temporalidade que não se
deixa captar pela história, pois se trata de um outro tempo. (Viesenteiner,
2005, p. 95)
Esse tempo, no qual a impossibilidade se evidencia, é próprio da noite, pois decorre do
sono, do sonho e da imaginação, por meio dos quais o poeta é arrebatado. No entanto esse
arrebatamento nem sempre é acolhedor, intimista e inspirador, proporcionando repouso. Ele
pode ser, por vezes, não-acolhedor, impenetrável e impuro, porque traz à tona a lembrança
sem repouso do que o ser tem de mais repugnante. O autor ressalta que uma diferença de
sentido entre a noite em si e aquilo que denomina “a outra noite”. Segundo ele, a primeira
noite é aquela que marca a consumação do dia, ou, ainda, a noite, em um movimento inverso,
seria algo que o dia deveria dissipar e, por fim, nesse jogo de dia e noite, àquele caberia não
somente dominá-la, mas também apropriar-se dela. Como continuação do dia, a noite
representava para os gregos o equilíbrio, por isso submetiam-se ao destino escuro.
A ”outra noite”, por sua vez, não é descrita como um momento de tranqüilidade, nem
como algo natural que sucede o dia. Ela ganha uma conotação mais conflituosa, porque
oferece o perigo de que o dia possa revelar o segredo mais obscuro do ser, considerando que o
dia é apaixonado por ela. Ao indivíduo, todavia, é dado o direito de vivenciá-la no dia da
morte, quando a ”outra noite” descobre-se como o amor que rompe todos os laços e deseja se
unir ao abismo para que possa se encontrar com o dia, pois, sem a morte, essa união seria
impossível.
Segundo Blanchot (1987, p.168),
...na noite, aquilo que é impossível à união, é a repetição que não acaba a
saciedade que nada tem a cintilação do que é sem fundamento e sem
profundidade. A armadilha da “outra noite” é a primeira noite em que se
pode penetrar, onde se entra certamente pela porta da angústia, mas onde a
angústia vos ocupa e onde a insegurança se torna abrigo.
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Ao entrar no âmbito da relação poesia e arte, Blanchot (1987) reconhece que a arte é
uma necessidade no exercício da poesia, que se torna um estágio de domínio do espírito:
“para se escrever um verso é preciso ter esgotado a arte, é necessário ter esgotado a vida”
(p.85). Os versos são, em sua visão, experiências ligadas a uma abordagem viva que se
concretiza no trabalho da vida.
Ao afirmar que “depois do objeto viria a imagem Blanchot (1987, p.257) parece,
inicialmente, discordar de Bosi (1977) anteriormente citado para quem a imagem seria o
princípio do reconhecimento do objeto materializado. Segundo Blanchot (1987, p. 257), “a
imagem, segundo a análise comum, está depois do objeto: ela é sua continuação; vemos,
depois imaginamos. “Depois” significa que cumpre, em primeiro lugar, que a coisa se
distancie para deixar-se recapturar”.
Duas possibilidades de imagens se apresentam: a que surge a partir do contato com o
objeto e aquela recapturada e adaptada para atribuição de sentido. Nessa dualidade, a imagem
recebe o poder da magia de transformar-se, ao ser absorvida no vazio (de sentido) do seu
reflexo e ao aproximar-se da consciência para que seja reconstruída no íntimo do leitor.
Segundo Blanchot (1987, p. 263 e 264),
Íntima é a imagem, porque ela faz de nossa intimidade uma potência exterior
a que nos submetemos passivamente: fora de nós, no recuo do mundo que
ela provoca, situa-se desgarrada e brilhante, a profundidade de nossas
paixões. [...].
O paradoxo da magia da imagem aparece evidente: ela pretende ser
iniciativa e dominação livre, enquanto que para constituir-se aceita o reino
da passividade, esse reino onde não existem fins. Mas a sua intenção
continua sendo instrutiva: o que ela quer é agir sobre o mundo (manobrá-lo),
a partir do ser anterior do mundo, o aquém eterno em que a ação é
impossível.
Para o autor, a imagem constitui-se o elo entre o exterior e a intimidade; somente
quando ela se torna íntima ao leitor é que ela o fascina e atribui um novo sentido ao vocábulo.
Bachelard, ao estudar o assunto, postula que a imagem transcende o causalismo para revelar
um novo sentido que não pode ser explicado por nenhum psiquismo anterior:
Quando tivermos que mencionar a relação de uma imagem poética nova
comum arquétipo adormecido no inconsciente, será necessário
compreendermos que essa relação não é propriamente causal. A imagem
poética não está submetida a um impulso Não é eco de um passado. É antes
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o inverso: pela explosão de uma imagem o passado longínquo ressoa em
ecos e não mais em que profundidade esses ecos vão repercutir e cessar.
Por sua novidade, por sua atividade a imagem poética tem um ser próprio
um dinamismo próprio. (BACHELARD, 1978, p. 183)
Reconhece-se nessas idéias que a imagem poética não se constitui, na mentalidade do
leitor, algo ofertado. É fruto de “ressonâncias íntimas” que, pouco a pouco, revelam seu
mistério. Por isso, a repercussão da imagem é essencial para determinar o seu ser,
considerando que, para Bachelard (1978), a “percussão imagética oferece uma sonoridade do
ser”, fazendo que a imagem seja sentida pelo leitor que determina a sua existência.
Com base na dicotomia imagem/sentir que consolida o fazer poético bachelardiano,
torna-se impossível refletir acerca da imagem poética de forma objetiva. A relação que a
imagem poética estabelece com a interpretação pessoal constrói-se em cada psiquismo de
forma diferente. Bachelard (1978, p. 185) explica que “a imagem poética é essencialmente
variacional”, porque pode se referir ao não-vivido tanto pelo poeta quanto pelo leitor. Essa
imagem do não-vivido exige que o indivíduo seja criativo para receber o interstício da
linguagem.
Ao tratar do poeta, no entanto, Bachelard (1978) o reconhece como o criador da
novidade imagética que origina a linguagem. A imagem antecede o pensamento devido a sua
capacidade de ser gerada na alma antes de chegar ao espírito. É importante esclarecer que essa
dualidade entre alma/espírito, em algumas filosofias lingüísticas, quase não é marcada. Na
filosofia da poesia, todavia, a divergência entre tais vocábulos não deve ser simplificada,
porque a palavra alma tem conotação de algo imortal e poder ser dita, de acordo com
Bachelard (1978), com a convicção de animar o poema.
Compartilhando dessa idéia, Jouve (apud Bachelard, 1978, p.187) afirma que “a
poesia é a alma inaugurando uma forma”. É necessário recorrer à repercussão, uma vez que a
ressonância, como pontua Bachelard (1978), é mais generalizada por dispersar-se nos
diferentes campos da nossa vida social, enquanto a repercussão volta-se para o
aprofundamento individual. A ressonância permite ao leitor ouvir o poema, ao passo que a
repercussão desperta a criação poética na alma do leitor, que pode ler o poema e senti-lo.
Nesse sentido, a imagem é decorrente de dois processos. Em um primeiro momento,
ela está isolada no verso ou na frase que a revela, fazendo-a, no momento seguinte, brilhar no
espaço da linguagem por meio do seu movimento, que faz que a imagem escoe da linha do
verso para a imaginação do leitor. Esse percurso formador da imagem leva Bachelard (1978,
p. 191) a constatar que “Não nos parece mais um paradoxo dizer que o sujeito falante está
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inteiramente contido na imagem poética, pois se ele não se entregar a ela sem reserva não
entrará no espaço da poética da imagem”. Bachelard (1978) apresenta, desse modo, uma
condição para que o leitor tenha acesso à imagem poética, recebendo-a abertamente e sem
preconceito.
Heidegger (2004), outro pesquisador que estuda a importância do homem inserido no
espaço, absorvendo o mundo circundante, delimita, primeiramente, a presença do homem,
partindo do conceito de interioridade, que se refere ao seu modo de ser no espaço, visto que,
na concepção heideggeriana, o homem e os elementos que o circundam são ambos dados pelo
espaço. Cria-se, dessa forma, um espaço homogêneo no qual ser humano e cenário se inserem
igualmente no espaço. Com base nessa relação entre ser e mundo, Heidegger (2004, 149)
explica que “na medida em que o ente intramundano está igualmente no espaço também a sua
espacialidade acha-se numa ligação ontológica com o mundo”. No entanto cabe ao homem
dar existência relevante aos elementos espaciais, pela proximidade que estabelece com eles.
Essa proximidade é relevante na perspectiva heideggeriana, porque ela não se limita a medir
distâncias entre ser e objeto circundante. Refere-se também ao fato de que ele não ocupa
meramente uma posição no espaço, mas está estrategicamente disposto para funcionar como
instrumento do homem, na medida em que este, ao olhá-lo, atribui-lhe existência e torna-o
próximo de si. Esclarece que “a presença existe segundo o modo da descoberta do espaço
inerente à circunvisão, no sentido de se relacionar num contínuo distanciamento com os entes
que lhe vêm ao encontro no espaço”. (p.157)
Compreende-se, então, que, enquanto ser espacial, o homem estabelece sua relação
com o mundo circundante por meio de dois mecanismos: o distanciamento e a
direcionalidade. O distanciamento, na visão heideggeriana, dá-se por meio da proximidade,
visto que, ao se aproximar de determinado elemento espacial, o ser se distancia de outro que,
nesse momento, desaparece por não estar em contato com ele. O direcionamento, contudo, é
próprio do distanciamento, porque, ao distanciar-se de alguns elementos, o ser precisa
direcionar-se a outros para lhes atribuir existência por meio da aproximação direcionada.
As idéias de Heidegger contribuíram na pesquisa para visualizar o homem como um
ser no espaço, que pode atribuir valor de existência ou não aos demais elementos espaciais
que o circundam. Essa contribuição, entretanto, não avança para o modo como o homem
estabelece relação com o cenário que o circunda, atribuindo-lhe valores e interagindo com ele.
Eliade (2001) estuda a ligação entre o homem e a natureza, que se transforma ao longo
do tempo, de tal modo que a natureza era considerada uma manifestação do sagrado e, por
isso, influenciava sobremaneira na vida humana. Essa idéia foi perdendo seu valor e passou a
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ser considerada um simples pano de fundo, com o qual o homem não interage mais, posto que
apenas o assimila e não encontra, no cenário circundante, uma significação diferenciada para
determinado elemento. Eliade (2001) reconhece que esse processo promoveu a
dessacralização dos elementos espaciais pelo homem moderno, visto que esse espaço se
tornou homogêneo. Todos os elementos do cenário apresentavam o mesmo valor e nenhum
tinha relevância perante seu olhar. Nas sociedades arcaicas, contudo, o homem apresentava a
tendência de viver cada vez mais perto do objeto que considerava sagrado. Por isso,
aproximou-se mais da natureza sacralizada; os objetos eram vistos como manifestações do
sagrado e tornavam-se “outra coisa” sem deixar de ser aquilo que na essência eram. Com
relação a essa íntima relação do homem com o espaço, esclarece que
À terra pertence o dar a vida aos mortais bem como de tomá-la de volta [...]
A crença de que os homens foram paridos da Terra espalhou-se
universalmente. Em várias línguas o homem é designado como aquele que
nasceu da terra [...] Até entre os europeus dos nossos dias sobrevive o
sentimento obscuro de uma solidariedade mística com a terra natal. É a
experiência religiosa de autoctomia: as pessoas sentem-se gente do lugar
[...]. Ao morrer deseja reencontrar a Terra-Mãe, ser enterrado no solo natal.
(ELIADE, 1991, p. 117-118)
A relevância que certos elementos têm como manifestações do sagrado permitem que
o espaço sacralizado obtenha um ponto central, como é o caso de uma pedra que se sobressai
às demais, pelo fato de ser objeto de construção de um altar. Na visão profana do espaço, não
ponto algum de referência, porque objeto algum é ressaltado e o espaço é relativizado. A
delimitação desses modos de ver o mundo e de se posicionar diante dele não é tão demarcada
quanto parece, como aponta Eliade (2001, p.28): “nessa experiência do espaço profano ainda
intervêm valores que lembram a não homogeneidade específica da experiência religiosa do
espaço”. É o caso de lugares privilegiados que se sacralizam dentro de um universo privado.
Na poética florbeliana, essa relação com a terra apresenta-se bem evidente em poemas
que exaltam Portugal, a tal ponto de o eu-lírico desejar permanecer nessa região, mesmo
depois da morte. Ademais, percebe-se que os elementos espaciais, sobretudo os referentes à
noite, são, do mesmo modo, relevantes na leitura dos poemas.
As considerações sobre o espaço poético e sua importância na formação do texto
imagético e na influência do estado de espírito do eu-lírico serão aplicadas, a seguir, nos
corpora escolhidos, compostos por três antologias: Trocando Olhares (1915-1917), Livro de
“Sóror Saudade” (1923) e Charneca em Flor (1931).
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3. ESPAÇO DE REVELAÇÃO: UMA ABORDAGEM DA POÉTICA FLORBELIANA
3.1 Contexto histórico-literário do final do século XIX e início do XX
Segundo Moisés (1967), a geração de 70 evoluíra para uma visão menos cientificista
da realidade, o que significava o atenuamento dos ímpetos revolucionários e o encontro, ou o
reencontro, com verdades morais e espirituais negadas até à época. O Ultimatum inglês
aumentou a onda de insatisfação perante o futuro a que Portugal parecia destinado. Nessa
atmosfera em que desembocam ainda várias correntes estéticas e ideológicas de origem
francesa e alemã, era de esperar franca e decisiva reviravolta: foi exatamente o que aconteceu.
Para Mendonça (1973), a partir de 1890, uma nova mentalidade começa a opor-se à
estética realista: uma nova concepção de homem e de existência. Essa nova geração buscava,
na visão de Amora (1969), tomar posição perante o novo problema que culminaria na
revolução republicana: o Ultimatum, que despertou o país para a consciência da gravidade da
crise política nacional e para a necessidade da implantação da república como única saída
para essa situação.
. Essa mudança de postura da nação portuguesa, no entanto, não se deu somente no
plano político por intermédio da instauração da república. Amora (1969) elenca mais três
aspectos responsáveis por essa mudança: o mental, o moral e o literário. A transformação
mental é marcada pelo fim das verdades absolutas e pela adoção da espiritualidade que
explorava até os limites da alma humana, transcendendo o mundo interior. Segundo Amora
(1967, p. 19),
[...] o que se procurou realizar, durante a Época do Simbolismo, não foi a
observação, a análise, o estudo dos condicionamentos e das limitações bio-
sociais do Homem, mas a compreensão dos mistérios, da transcendência do
seu mundo interior e por outro lado, o significado tomado pelo mundo
exterior dentro do mundo interior do indivíduo, Foi o caso do subjetivismo
doloroso de Florbela Espanca.
Vistos os aspectos político e mental, passamos para o de cunho moral, pois, com tanta
necessidade de se recuperar a noção de pátria perdida pelo Ultimatum inglês, o povo
português começa a investir em uma campanha nacionalista. Essa campanha colaborou em
dois sentidos: na revisão e na análise da realidade nacional e na conotação religiosa, que se
mostrou um caminho por meio do qual o povo português se livrou da crise que o acometia
como nação.
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Por fim, o aspecto literário também sofreu alterações por meio da retomada da
valorização do mundo subjetivo e da revalorização do estilo. A nova geração, nascida ou
formada no clima de saturadas indisposições ou de abatidos desalentos, segue-se, com o
peculiar entusiasmo reformador, fazendo centro, inicialmente, em duas revistas acadêmicas de
Coimbra. As revistas Os Insubmissos e Boêmia Nova, publicadas em 1889, propõem, de
acordo com Seabra (1980), a valorização da ruptura do novo, pela inquietude espiritual e pela
opção esteticista que priorizava o vago, a sutileza e a complexidade. A respeito das
modificações da poesia finissecular, Seabra (1980, p.145) afirma que
[...] os detalhes rítmicos e versificatórios, as estranhezas frásticas,
vocabulares e sufixais ganham nos textos programáticos e nas realizações
primiciais, nas questões sobre a cotação relativa de cada personalidade a
representatividade do novo estilo epocal.
Devido ao uso de uma linguagem transcendente, as origens remotas do movimento
simbolista devem ser procuradas no Romantismo, sobretudo na França, onde remonta a
Baudelaire: início de um processo de modernização da poesia (Moisés, 1967).
A obra baudelaireana Flores do Mal (1857) e a teoria das correspondências inauguram
uma revolução poética de que se originaram o Simbolismo, o Decadentismo, o Surrealismo,
entre outros. A partir de 1882, começa a ser usado o nome decadente para indicar esse gênero
novo de poesia. Moisés (1967) explica que o termo deriva do artigo La Nouvelle Reveil, de
Paul Bourget, em que o autor procura chamar a atenção para a decadência na poesia de
Baudelaire, derivada do soneto Langueur de Verlaine, evocando imagens da decadência
romana e pregando os desgostos da ação e a certeza de que a vida não vale a pena ser vivida.
Os decadentes, como passaram a ser chamados os poetas da geração nova, seguindo os
passos de Baudelaire, preconizavam a anarquia, o satanismo, as perversões, as morbidezes, o
pessimismo, a histeria, o horror da realidade banal, ao mesmo tempo em que cultuavam os
neologismos e os vocábulos preciosos. Eles entendiam que lhes restava criar quimeras
brilhantes, visto que viviam entediados em definitiva decadência. Nesse aspecto,
assemelhavam-se aos realistas-naturalistas, que também pintavam e combatiam a sociedade
do tempo, por considerá-la em plena decomposição. Essa semelhança se desfaz quando o
Decadentismo transforma-se em Simbolismo. Entre 1971-73, segundo Moisés (1967),
Verlaine concebe sua arte poética na qual relacionava poesia e música.
Em 1886, Moreás publica Un manifeste Litteraire, no qual define, pela primeira vez, o
que chama de Simbolismo, que substitui o Decadentismo, uma vez que este se revelara
insuficiente para englobar as manifestações desconexas da poesia, então dita decadente. Com
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tal manifesto, estava instalado o Simbolismo na França, e de se espalharia pelo resto do
mundo. De acordo com Moréas (apud Moisés, 1967), a poesia simbolista procura vestir a
idéia de uma forma sensível.
Concorre para a formação da atmosfera simbolista uma séria de influências estéticas:
de um lado, Baudelaire, mestre dos simbolistas, por seu espírito rebelde e original, sacerdote
de cultos satânicos que desvendam mundos interiores e exteriores; de outro, o influxo
exercido pela filosofia, de Hartmann, que explicava o mundo pela existência de um espírito
inconsciente a que tudo reagia onipotentemente. Mais ainda, a filosofia de Schopenhauer,
centrada sobre a idéia de que o mundo é uma “representação”; a invasão de novas teorias
idealistas e metafísicas do romance russo e da música de Wagner. Conforme Moisés (1967), a
pintura impressionista agora domina amplamente e vai-se rarefazendo aos poucos, adquirindo
luminosidade e fixando estranhas paisagens que logo se assemelham às idéias simbolistas, até
aparecer uma pintura simbolista ao pé-da-letra.
O simbolismo é antipositivista, antinaturalista e anticientificista; prega e busca efetuar
o retorno à atitude de espírito assumida pelos românticos; o eu volta a ser objeto de atenção.
Os simbolistas voltam-se para dentro de si à procura de zonas mais profundas, iniciando uma
viagem interior, ultrapassando o subconsciente e mergulhando no caos e na anarquia a que se
reduz a vida interior de cada um. Para Seabra (1980), essa interiorização do homem
manifesta-se também na tendência ruralista como forma de regressão compensatória ad
ulterum naturae, posto que o ser se encontra desequilibrado e pervertido e a natureza mantém-
se harmoniosa e indiferente a tudo.
Para se expressarem, os simbolistas criam os meios de expressão apropriados: uma
gramática psicológica, uma sintaxe psicológica e um vocabulário adequado. Para tanto,
defendiam que as palavras deveriam evocar e sugerir, cabendo-lhes tentar uma aproximação
com realidades inefáveis, no esforço de encontrarem expressões que lhes sugerissem o
contorno e o conteúdo sem lhes alterar a fisionomia. Espécie de correspondência entre o
mundo material e o espiritual, acabou desaguando no símbolo, à medida que queria assinalar
apenas a tentativa de simbolizar, por meio de metáforas polivalentes, todo o conteúdo difuso e
multitudinário do mundo interior do artista. Em conclusão, o símbolo é um esforço de
apreensão do impalpável e, por isso, funciona como múltiplo e rápido sinal luminoso de uma
complexa realidade espiritual.
Quando a sondagem interior atinge estratos ainda mais fundos, dá-se o encontro
involuntário entre o subconsciente individual e o que Jung (apud Moisés, 1967) viria a
chamar subconsciente coletivo’: o artista descobre uma assombrosa identidade entre o
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conteúdo e o subconsciente a que pertence inalienavelmente. Ao procurar exprimir suas
vivências, o artista está procurando comunicar todo o conteúdo espiritual coletivo nele
refletido, como se se tornasse porta-voz de multidões inteiras que passam a vida sem
descobrir-se por dentro ou sem poder transmitir os dados de seu “eu” profundo quando
conseguem captá-lo.
Os primeiros anos do século XX europeu acusam profundas e amplas transformações
culturais e estéticas, muitas das quais tinham se desenvolvido lentamente ao longo do século
XIX. Quase se poderia dizer que as mutações anteriores apenas serviram de ensaio para
alguma coisa de novo a declarar-se explosivamente na alvorada desta centúria. Como sempre,
Portugal procurou adaptar-se ao ritmo europeu e beneficiar-se do progresso cultural em curso,
embora se reduzisse à sua medida enquanto povo, história e mentalidade. Tanto é que,
hipertrofiando uma tendência que vinha do Realismo, avoluma-se a onda de insatisfação
contra o regime monárquico. A ditadura de João Franco, com toda a sua corte de injustiças,
acirra mais ainda os ânimos contra a monarquia reinante, até que, culminando a atmosfera de
tensão que crescia incontrolavelmente, o Rei D. Carlos é assassinado por um homem do povo
em 1908. Generaliza-se a desordem e a sanguinolência e, em decorrência do atentado,
também falece o príncipe herdeiro do trono, D. Luis Felipe, o qual é substituído,
imediatamente, por D. Manuel II, que, em clima de turbulência, ascende ao poder ainda jovem
e equilibra-se até 1910.
Precisamente no dia 04 de outubro, instala-se a República em Portugal. D. Manuel II
exila-se na Inglaterra, onde falece em 1932. Proclamado o novo regime, convocam Teófilo
Braga para assumir, provisoriamente, as responsabilidades do governo. Duas facções opostas
no modo como encaram a nova situação se formam: uma delas, satisfeita, ou conformada com
a República, procura dar-lhe bases, uma doutrina portuguesa; a outra, a dos inconformados,
dos insatisfeitos com o novo estado da estrutura sociopolítica, assume um caráter contra-
revolucionário e aglutina-se em torno de Antônio Sardinha, formando o grupo de Integralismo
Português, que resulta no Estado Novo, em 1926.
Segundo Moisés (1967), esse grupo buscava criar um novo Portugal, ou melhor,
ressuscitar a Pátria Portuguesa, arrancá-la do túmulo onde se sepultam alguns séculos de
obscuridade física e moral, em que os corpos definharam e as almas amorteceram. Passando
pelo exame da alma portuguesa, chega finalmente ao seu destino: a Saudade, que é o próprio
sangue espiritual da raça, o seu estigma divino, o seu perfil eterno. É a saudade no seu sentido
profundo, verdadeiro, essencial, isto é, o sentimento-idéia, a emoção refletida, onde tudo que
existe atinge a sua unidade divina. Eis a saudade vista na sua essência religiosa, e não no seu
59
aspecto superficial de simples gosto dos infelizes. E, mais categoricamente, é na saudade
revelada que existe a razão da nossa Renascença original e criadora.
Em 1915, Mário de Carneiro, Fernando Pessoa e outros lançam a revista Orpheu,
com que tem início o Modernismo em Portugal, significando o rompimento com o passado,
inclusive com o Simbolismo. Por outros termos, corresponde a um momento em que as
consciências se elevam para planos de universal indignação para a verificação de uma
angústia geral, fruto da crise que engolfa a Europa e o mundo. A guerra de 1914 é a
manifestação nítida dessa crise pela necessidade de abandonar as velhas e tradicionais formas
de civilização e de cultura e de buscar novas formas substitutivas. O homem vê-se diante do
espelho, sozinho, frente à própria imagem e angustia-se, porque vive uma quadra de
desdeificação do mundo, de ausência de Deus ou de qualquer verdade absoluta capaz de
explicar-lhe a incoerência visceral e a falta de razão em existir. O reino da anarquia absoluta
instala-se como fruto do relativismo nascido com a grande viagem histórica representada pela
cultura romântica, de que o Modernismo é legítimo caudatário. Está-se no ápice do processo,
ou no início de um estágio mais avançado, como os anos posteriores vieram mostrar. Nasce o
desespero, a instabilidade social, porquanto os padrões estão em mudança ou devem ser
mudados. Nessa atmosfera, a poesia substitui o mito, transformando-se, ela própria, em um
mito.
Para Fidelino de Figueiredo (1966), a época literária da história portuguesa, que vai de
1865 a 1900, integra um conjunto de fatos grandes que Portugal realizara no século XIX,
quando haviam passado as veleidades imperialistas do Oriente e da América; longe do
predomínio das velhas caravelas, o país parecia recluir-se ao isolamento provinciano, sem
qualquer função de superior interesse humano. Entretanto esse pequeno povo perplexo e
duvidoso ante à difusão de ideais políticos e estéticos, limitada a sua ação pela competição de
nações estranhas e pela inferioridade desesperadora dos governantes, pode, ainda no decurso
desse século, realizar três grandes feitos.
O primeiro foi a luta pela liberdade, drama de heroísmo, de idealismo e de fé.
Principia em 1809, com o martírio de simpatizantes das idéias francesas, falsamente
identificados pela plebe em cólera como partidários do invasor, e termina em 1851, com o
movimento de Regeneração de Saldanha. Quarenta anos de luta armada e intelectual, em que
uma conjuntura das forças tradicionalistas defendia os ideais obsoletos, a plebe ignota apoiava
essa reação ou fazia fracassar com sua própria adesão ao estilo novo.
O segundo diz respeito à literatura, pois esta (no século XIX) é um documento vivo do
idealismo português; gloriosas plêiades de escritores oitocentistas brotaram em um meio que
60
não oferecia os estímulos compensadores da popularidade e da retribuição generosa, nem
sequer a consagração de uma alta crítica interpretadora. Proporcionava unicamente o
sentimento de emoção e de dor de que nasce a arte.
O terceiro foi a cooperação prestada ao reconhecimento geográfico do continente
negro, à sua ocupação militar e à organização administrativa na zona arbitrada a Portugal,
quando a Europa fixou a África e a adotou para vazão de seu excesso de gente, de potencial
técnico e de dinheiro. Nesses derradeiros vinte anos do século, fim do reinado de D. Luís I e
primeiro decênio de D. Carlos I, os exploradores lançaram as bases de um terceiro império
ultramarino. Os triunfos africanos do final do século fizeram nascer no espírito português a
veleidade do “mapa-cor-de-rosa” ou de um império do oceano Atlântico ao Índico. Com o
ultimatum inglês, todavia, tal sonho foi desfeito. O descontentamento corporizou-se na ânsia
de demolir um regime político. A tendência pessimista da literatura fez-se negação,
combate, cólera iconoclasta. Grande parte da literatura realista contraiu cor partidária e alguns
de seus autores pertencem tanto à história das idéias e dos sentimentos políticos quanto à das
letras.
Apesar de tudo, esses três fatos foram balizas do espírito português a fixar-lhe rumos.
O primeiro ensinou que a liberdade não se aceita pronta para ser servida, como conserva em
lata; conquista-se, defende-se, merece-se. O segundo delimitou um ideário nacional e
aumentou o ascendente do idioma. O terceiro acontecimento equivaleu ao descobrimento de
um novo fulcro para a vida portuguesa. Passadas a crise da república e as preocupações
restritamente locais e políticas dos últimos anos, é de se esperar que os portugueses
percebessem que a África do Sul é o seu grande destino para os cem anos vindouros.
Nesse ambiente de valores, surgiu a nova literatura simbolista e anti-realista do fim do
século. O gosto público, já na fase de popularização, portanto da adulteração, identificava arte
literária em prosa e em verso com ação social política e social imediata, verdade estética com
fidelidade realista e com preferência pelos aspectos amargos da vida. Entretanto a nova
literatura novecentista opunha o puro esteticismo aos propósitos de ação imediata, à fotografia
fiel, se não servil, do realismo, à interpretação alógica do conteúdo; os valores e os motivos
nacionais refluíam para um aproveitado nacionalismo.
Em 1910, não houve um choque violento entre os dois sistemas de ideais literários;
houve apenas um encontro sorridente. As letras do século XIX tiveram seus historiadores e
seus críticos monográficos nacionais e estrangeiros, mas as letras do século XX não sofreram
ainda esse trabalho de organização. O escritor não quer que o louvem, quer que lhe
61
arbitrem determinado louvor, na forma e na caracterização que ele mesmo concebeu como a
mais certeira ou a mais justa, pelo menos quanto às suas intenções artísticas.
Na avaliação dos decênios do Simbolismo e do nacionalismo, logo impressiona a
perda de superior vibração humana, de sentido universal; é a renúncia exercida na Espanha e
no Brasil pelos grandes autores da época realista.
Conforme Figueiredo (1966), pela sua literatura novecentista Portugal perdeu o seu
ascendente, perda essa que se deveu, principalmente, ao caráter de hermetismo da nova
literatura, que entristeceu a alma nacional e procurou recompor das polêmicas ruínas do
Realismo o espírito português. Os créditos do passado foram restabelecidos; os valores
cotizados e a arte, livre da poeira da guerra e das paixões revolucionárias, restituída à sua
pureza estética. Esses dez anos, que vão do fim do século XIX à proclamação da República,
são o período sereno dessa “desintoxicação política da literatura”. Iniciam-no Antônio Nobre,
Eugênio de Castro, Júlio Brandão, todos trazendo novos ritmos, motivos e atitudes estéticas,
metaforismos audaciosos e curiosidades de novo rumo em torno da pátria, livre da
deformação sátira e de todas as limitações do positivismo.
Antônio Nobre, autor da obra , foi o mais querido influenciador na obra poética de
Florbela Espanca. Sob sua influência, formou-se uma legião de imitadores e de continuadores.
A sua própria crítica foi elogio comovido, como propósito deliberado para uma compreensão
melhor. Vinte anos depois de seu desaparecimento, o poder de fascinação de Antônio Nobre
estava intacto, salienta Figueiredo (1966).
O advento da República não podia deixar de trazer uma comoção profunda no
acentuado caráter anti-histórico e esquerdista que tomou desde seu primeiro instante. Era em
boa parte fruto legítimo da literatura demolidora do Realismo, mas, em breve, estaria em
franco desacordo com as tendências da juventude, a qual passaria, pelos estímulos das
decepções, para além dos mesmos planfetários do Realismo. E foi com a pleberização deste
que se fez a propaganda do novo regime.
Esse duplo caráter da república recém-chegada, atual para uns e retardatária para
outros, resultou na causa emocional para duas opostas direções intelectuais: a dos espíritos
conformes (que queriam dar-lhe cérebro, compor-lhe uma doutrina e uma literatura) e a dos
espíritos inconformes (que queriam aproveitar as idéias do passado), uns e outros obedecendo
as suas espontâneas inclinações e ambições políticas. E aquela pureza aristocrática da
literatura como arte desinteressada da ação desfez-se como um sonho.
A organização do grupo Renascença Portuguesa foi obra dos conformes. Pascoais foi
o fundador do saudosismo, reação estética ante o positivismo realista. Ainda que em forma
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obscura e pensamento mal expresso, era uma aguda introspecção do caráter português na sua
zona mais indiferenciada. Depois se tornou uma das principais figuras literárias do grupo e
levou às terras vizinhas as vibrações novas do velho lirismo (Figueiredo, 1966).
No segundo período da República esquerdista (1919-1926), que se separa do primeiro
pelo consulado de Sidônio Pais, a Renascença Portuguesa transformou-se na Seara Nova,
grupo literário e político (mais político do que literário) que afirmou um sincero desejo de
reforma dos métodos governativos, mas desgastou-se em polêmicas estéreis e quis estabelecer
um pequeno terror na república literária. Com esse grupo, mantiveram afinidades alguns
nomes ilustres das letras: Raul Brandão, Teixeira Gomes e o romancista Aquilino Ribeiro.
A república de 1910, com toda a sua agitação, e a ditadura de 1926, com
desenvolvimento de sentido oposto, não foram as únicas comoções políticas da vida
portuguesa que poderiam frutificar em literatura. Muitos livros produziram também a Grande
Guerra, por não se crer que outras mais destruidoras e sangrentas pudessem desencadear.
Segundo Figueiredo (1966), apesar de a intervenção portuguesa na guerra ter sido
modesta, isso não excluiu sacrifício nem heroísmo nem uma funda emoção nas almas mais
sensíveis, tudo bastante para inspirar uma literatura da guerra com obras de crucial
sinceridade na pintura do sofrimento inútil. Um traço bem evidente na fisionomia dessa
moderna literatura é a vasta cooperação feminina, principalmente na poesia subjetiva, no
teatro e no romance. Com relação à poesia, Figueiredo (1966) cita Florbela Espanca,
atentando para a sua morte ao afirmar que, com o seu falecimento, Portugal teria perdido a
sua poesia mais dramaticamente sincera no seu narcisismo amargo. No versar sobre esse
conflito existencial, Florbela Espanca busca, de início, a estabilidade. No tocante ao teatro,
Junqueira (2003) afirma que, nesse período, o homem passava por um drama contemporâneo
de autoconhecimento e de desejo de fixar-se em decorrência das mudanças políticas e
econômicas que estava vivenciando.
Na visão de Lopes e Saraiva (1973, p.955), o Simbolismo conceitua-se como uma
“corrente cosmopolita e pouco definida com projeção social bastante tardia, que se verifica
quando, ao longo da década de 30, aflora na consciência do público leitor um sentimento de
crise”. Os temas recorrentes desse período remetem ao sonho, à intuição, à mística oculta, à
estilística dos símbolos e à sinestesia. Nesse sentido, Seabra (1980, p.150) reconhece que
O Simbolismo finissecular é a arte que corresponde à primeira tentativa de
superação da crise que começara a lavrar em torno do paradigma cientista-
progressista [...]. O simbolismo concebia a poesia como a suprema atividade
63
cognitiva do Homem, e considerava a poesia autotélica, autônoma perante
valores ético-religiosos e sócio-políticos.
A partir dessa poesia, o movimento modernista projeta-se na Literatura Portuguesa,
sobretudo, com a publicação da revista Orpheu, em 1915. Essa idéia da relação de
continuidade do Simbolismo no Modernismo é defendida, como expõe Guimarães (1990), por
vários teóricos, como Octávio Paz, para quem a vanguarda do início do século XX confluiria
como Simbolismo francês. Pedro da Silveira, contudo, não compartilha dessa idéia, mas
também explicita o enraizamento desse Modernismo na poesia simbolista ao propor que 1889
fosse o início da tendência modernista. Para Guimarães (1990, p.7),
A palavra continuidade pode ser entendida em dois sentidos bem diferentes.
Por um lado, significaria algo que aplainaria a própria realidade textual ao
nível de um denominador comum de natureza temática ou estilística. Por
outro lado, apontaria para a realização de uma leitura renovada dos textos
por um discurso que acabaria por se tornar homólogo.
Essa relação de continuidade dificulta a classificação da obra poética florbeliana,
considerando a presença de algumas características simbolistas: a linguagem sugestiva
permeada de musicalidade, na qual a palavra poética transfigura em imagens; a adjetivação
expressiva e simbólica, além da preocupação formal, da recorrência ao subjetivismo, ao
mundo imaginário e vago, que, cronologicamente, insere-se no Modernismo.
3.2 Florbela Espanca: flor entre pedras
Após as considerações sobre o contexto histórico no qual Florbela Espanca se insere,
são necessários alguns apontamentos sobre a recepção da crítica moralista e da crítica
literária. Ao primeiro grupo crítico, pertencem as pessoas influenciadas pelos valores
conservadores da época. Segundo Alonso (1997), Portugal era, do ponto de vista cultural, um
país bem mais atrasado do que a França e a Inglaterra. Além disso, era um país de
subsistência agrícola com alto índice de analfabetismo e totalmente influenciado pelo
catolicismo. Essa crítica biográfica não reconhecia o valor da obra florbeliana ou, quando lhe
atribuía algum valor, este era colocado de forma muito simplista e superficial. No entanto,
desde sua morte em 1930, outro grupo crítico desponta na tentativa de tecer um parecer crítico
literário mais sério, levando em conta a obra poética, e não somente os valores por ela
transmitidos.
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Ao se dividir em dois grupos biográfico e literário –, a crítica florbeliana recupera
alguns fatores da história portuguesa que fizeram o primeiro grupo avaliar a produção de
Florbela Espanca como imoral e o segundo, atribuir-lhe o real valor somente após a sua
morte. Essa contextualização é necessária, para a reconstrução do horizonte de expectativa no
exato momento em que a obra foi publicada. A importância da leitura histórica reside na
possibilidade de se traçar um histórico da recepção da obra ao longo dos diferentes contextos.
No caso da poesia florbeliana, a mudança da apreciação crítica é visível, porque ela deixa de
ser vista de modo pejorativo pelas convenções dos leitores e críticos da época de seu
surgimento. Esse público se encontrava atrelado à política salazarista e à visão conservadora
da Igreja, que via como absurda e prejudicial qualquer manifestação literária do desejo
feminino.
No dia 11 de junho de 1911, reunia-se a Assembléia Nacional Constituinte para
decidir as leis que regeriam a Constituição Republicana, publicada em 21 de agosto do mesmo
ano. A formação de três partidos – e sua conseqüente agitação na tentativa de assumir o poder
– prejudicou a estabilidade do governo, levando-o à adesão da ditadura. Em decorrência de tal
imposição, os partidos rebelaram-se e depuseram o então presidente, fazendo que Portugal,
durante algum tempo, não conseguisse fixar governo algum, prejudicando a vida do país. Em
meio a esse caos, destaca-se Sidônio Pais, que, revoltado com a situação política de Portugal,
instaura novamente a ditadura em 5 de dezembro de 1917. Tal atitude revoltou os portugueses
e incitou os atentados contra a vida do então presidente, que acabou assassinado. Com isso, o
país iniciou uma séria crise política, que o levou à inevitável decadência.
Ocorre a Revolução de 1926, para a qual o povo foi conclamado a lutar pela
dignidade, pela honra e pela liberdade do país. Gomes da Costa oferece à pátria doente um
governo forte que pudesse lutar contra seus inimigos internos e externos. Com essa oferta, a
revolução chega ao fim e inicia-se uma nova era na história de Portugal, conhecida como
Estado Novo. Dois dias depois, subia ao governo, como Ministro das Finanças, Antonio
Oliveira Salazar, que, desde cedo, deu entrada na reconstrução econômica de Portugal,
diminuindo, consideravelmente, o custo de vida no país, aumentando os depósitos bancários,
estabilizando a moeda e diminuindo a dívida pública. Graças a essas benfeitorias, Salazar
toma o poder em 5 de julho de 1932 e passa a orientar toda a vida do país.
Inicia-se o Estado Novo, regime autoritário e repressivo identificado em muitos
aspectos com os regimes instituídos por Benito Mussolini na Itália e por Adolf Hitler na
Alemanha. Pode-se dizer que se tratou de um regime quase fascista, autoritário e corporativo
de inspiração integralista ("nacionalismo integral"). Nesse contexto insere-se a obra de
65
Florbela e, por isso, foi duramente criticada com uma visão preconceituosa no que diz
respeito à manifestação dos desejos e dos sentimentos femininos presentes nos sonetos. Essa
necessidade de versar sobre os sentimentos íntimos que somente era permitido aos homens fez
que os receptores da poesia de Florbela se dividissem em duas posições: os que reconheciam a
vivacidade de sua poesia e adotavam sua audácia na luta contra o autoritarismo masculino,
que fazia calar a voz feminina, e a crítica defendida pela Igreja, que via na produção
florbeliana uma ameaça à moralidade da época, considerando-a muito à frente de seu tempo.
Para que se compreenda a inadaptação de Florbela a seu tempo e o reflexo desse
desconforto perante o mundo da poesia, é importante pontuar alguns momentos da sua vida.
Florbela d`Alma da Conceição Espanca nasceu na madrugada de 8 de dezembro de 1894, em
Vila Viçosa. Seu primeiro drama começa no momento em que o pai, João Espanca, a registra
como filha ilegítima, visto que ela era fruto de um romance de seu pai com a amante. Quando
jovem, estudou quatro anos no Liceu de Évora (1908-1912) e, em 1913, casou-se com Alberto
Moutinho. Em meados de abril de 1916, seleciona, entre a sua produção, cerca de 30 peças
produzidas a partir de 10 de maio de 1915, com as quais inaugura o projeto e o manuscrito
Trocando Olhares, terminado em 1917. No ano seguinte, inicia a produção da obra Livro de
Mágoas, publicando-o em 1919. Divorcia-se em 1921 e casa-se, pela segunda vez, agora com
António Guimarães, em 29 de junho do mesmo ano. Em 1923, publica a antologia Livro de
“Sóror Saudade”. Casa-se pela terceira vez em 15 de outubro de 1925.
O ano de 1927 é decisivo na vida e na obra da poetisa, pela produção do livro
Charneca em Flor e porque começa a trabalhar como tradutora de romances franceses, na
cidade do Porto, preparando seu primeiro livro de contos Dominó Preto. Nesse mesmo ano,
morre Apeles, seu irmão, em um acidente de hidroavião no rio Tejo. Apesar de ter reagido
aparentemente bem à morte do irmão e de lhe dedicar o livro de contos Máscaras do Destino,
sente-se deprimida, fraca e desiludida. Sem o reconhecimento da crítica e sem dinheiro para
publicar o livro de poemas Charneca em Flor, comete o suicídio no dia em que completaria
trinta e seis anos. No ano seguinte, é publicado o livro Charneca em Flor e Florbela tem o tão
esperado e desejado reconhecimento que essa publicação lhe traria.
Dal Farra (1999) inicia sua crítica sobre Florbela Espanca atentando para o fato de que
a poetisa não pôde desfrutar de todo o seu talento, porque somente foi reconhecida pela crítica
depois de morta, ficando obscurecida e ignorada durante toda a sua vida. Eram raros os
jornais que comentavam a respeito de sua produção, apesar de reconhecerem que havia uma
grande contribuição no fato de haver cada dia mais crescente um grupo de senhoras que
66
faziam versos. Em parte desse grupo, Florbela Espanca era esparsamente citada. Dal Farra
(1999) assim comenta esse fato:
Ignorada por completo pela crítica e pelo público leitor, sua obra havia sido
vagamente saudada na altura, pelos comentaristas de plantão, como uma das
mais abundantes e inexpressivas flores do galante ramalhete de poetisas de
salão. (...). Deveras, o Correio da Manhã parabenizava alegremente através
de Florbela, o contingente de poetisas que cresce dia-a-dia, aclamando-as e
considerando-as sempre, bem-vindas quando, como esta, saiba versejar.
(DAL FARRA, 1999, p. IX)
Depreende-se que a autora trata da questão da recepção não somente da crítica, mas
também do público que não valorizava sua obra. Até o momento de seu suicídio, havia
conseguido publicar, com seus próprios recursos, a pequena tiragem de duzentos exemplares
dos seus dois volumes de poesia: o Livro de Mágoas (1919) e o Livro de “Sóror Saudade”
(1923).
O primeiro livro foi aplaudido por Gastão Bitencourt, escritor do jornal Azeitonense,
que o descreveu como “um missal de amargura que a nossa alma compreende, sente e
partilha, subindo numa ascensão maravilhosa em que suavíssimos cânticos nos envolvem”.
Os recortes desse e de outros jornais que comentavam sobre sua obra atestavam a impressão
que o livro havia causado: uma formosíssima estréia no mundo das letras” (apud Dal Farra,
1999, p. X). Tal contentamento que o jornal Século da Noite expressou em relação ao
primeiro livro que Florbela Espanca publicou mantém-se no segundo, intitulado Sóror
Saudade”. Com relação a essa obra, o periódico registra que se tratava de uma obra de ternura
e de bondade, um pouco dolorosa e impregnada de uma tristeza de renúncia.
No entanto o recebimento acolhedor da crítica jornalística foi interrompido por um
jornal católico de Lisboa, cujo jornalista, valendo-se do pseudônimo “Nemo”, descreve as
poesias florbelianas como revoltantes, pagãs e dignas de serem recitadas à Vênus impudica.
Na visão desse jornalista, a poetisa blasfema, tem atitude de requintada voluptuosidade de
típica escrava do harém, porque nem sequer chegou a descobrir o tesouro do evangelho. Ele a
aconselhou a purificar-se com carvão ardente e a pedir perdão a Deus, apesar de seus lábios se
acharem manchados pelo pecado de ter feito mau uso do dom de escrever que Deus havia lhe
concedido. O crítico conclui seu artigo definindo Sóror Saudade como um livro
desmoralizador, ou seja, o tradicionalismo clerical inicia, a partir de então, seu combate à
poesia florbeliana.
67
Nota-se que, desde o princípio, a obra florbeliana atinge ora a admiração do leitor, ora
o seu repúdio, seja ele um crítico ou não, porque sua poesia consegue, em determinadas
leituras, atingir o horizonte de expectativas e proporcionar prazer literário. Em outros
momentos, todavia, a visão preconceituosa do leitor e suas convenções não permitem que ele
interaja com a obra, porque não é capaz de se entregar à sua fruição e ao lirismo do seu texto.
Dal Farra (1999) atenta para o fato de que Florbela Espanca tem conhecimento de que,
para ter leitores e para ser reconhecida por seu trabalho, sua produção deveria preocupar-se
com o mercado e a ele vincular-se. Essa noção adquirida por intermédio das críticas perturba-
a, ao tomar conhecimento de que suas publicações não vendem. Passa a viver, então, um ciclo
conflituoso entre o desejo de vender e o de ser apreciada, mas depara-se sempre com o
fracasso devido à moral conservadora dos leitores e ao comportamento imposto pelo contexto
salazarista. Segundo Dal Farra (1999, p. XXI),
Contestada também no nível político pelos processos de difamação, seus
amigos chegaram ao cúmulo de invocar trechos de suas cartas, distorcendo-
os apenas para provar que ‘Florbela não foi inimiga do Estado Novo, e, ao
contrário, foi sua precursora’. Eis o que o desesperado José Emídio Amaro,
publicaria em 1949.
Em 1930, Florbela conhece Guido Battelli, professor de italiano que se encanta com
seus poemas e se oferece para ajudá-la a editar suas últimas produções. Florbela aceita
prontamente a proposta, visto que se achava doente e desestruturada emocionalmente, em
decorrência de seus três casamentos e de dois divórcios, e não tinha mais dinheiro para
investir em seus livros como havia feito com os dois primeiros.
Em decorrência do suicídio precoce, contudo, Florbela não pôde contemplar o
extraordinário boom editorial obtido por sua terceira obra Charneca em Flor, que é, segundo
Dal Farra (1999), inédito na história da imprensa portuguesa. Em pouco mais de uma semana,
a edição de janeiro de 1931 esgota-se, acontecendo o mesmo com as edições posteriores. Ou
seja, o público finalmente reconhece, ainda que postumamente, o talento inato da poetisa.
A respeito da transformação pela qual a obra florbeliana passou e da apreciação de sua
vida por Guido Batelli e tantos outros, Dal Farra (1999) comenta:
Ora, se a obra de Florbela passou, a partir de seu falecimento por inúmeras
apropriações ideológicas tanto da parte dos aficionados como dos detratores
imagine-se, pois o que aconteceu com a biografia da poetisa, assim tão
atrelada por Battelli à sua produção. (...). Nunca ninguém teve sua vida tão
vasculhada a sua intimidade, em busca de provas tanto a favor quanto contra
como essa mulher insurrecta! Rainha sim, mas as duras penas (...). À
68
proporção que, ano a ano, se tornava best-seller, mais ataques lhe eram
dirigidos no sentido de evitar o risco de ser tomada como exemplo para as
gerações femininas criadas a sombra do salazarismo. (DAL FARRA, 1999,
p. XX-XXI)
Essa citação expressa bem a resistência dos leitores da época com relação à produção
florbeliana e à influência que o público teve em sua transformação. Sua obra recebeu
modificações e um novo juízo de valor para que pudesse ser lida e, posteriormente, apreciada
pela crítica literária, livre dos ditames religiosos e políticos.
Na tentativa de aproveitar-se do sucesso póstumo que Florbela passa a fazer com o
público, Battelli entusiasma-se e publica tudo o que encontra de Florbela. Reúne do volume
Reliquiae os poemas esparsos divulgados na mocidade da poetisa, reedita os dois livros de
poesias, acrescentando Charneca em Flor e uma seção, que chamou de Reliquiae.
Aproveitando a boa receptividade do público, ele também editou o livro de contos inéditos,
intitulado As máscaras do destino. Essas publicações, ironicamente, são enumeradas por Dal
Farra (1999), por terem sido publicadas durante o ano posterior à morte de Florbela (1931),
restando apenas o livro de contos O Dominó Preto e o Diário do Último Ano, editados,
respectivamente, em 1982 e 1983.
Quase quarenta anos depois da morte de Florbela Espanca, quando Augustina Bessa-
Luís publica, em 1979, o seu livro Florbela Espanca a vida e a obra, chegam ao
conhecimento do público os disparates que Guido Batelli havia cometido com relação às
mudanças feitas nos originais. Ele excluiu alguns trechos das cartas da poetisa, por julgá-los
indiscretos, mudou datas e confundiu os originais, em uma demonstração de que havia se
apropriado da obra de Florbela Espanca, deixando-a a seu contento para criar outras
produções usando o nome da poetisa.
A crítica de Bessa-Luís (1979) muda de tônica, pois não enfatiza a indiferença sofrida
por Florbela Espanca em relação ao público e à própria crítica. Entretanto é mais intimista e
detalhada quando se propõe a narrar sua vida e seus conflitos não só em relação ao mundo que
a cercava, mas também em relação ao seu próprio interior. Por isso, sua crítica tem caráter de
relato. Acreditando que a astúcia feminina de Florbela fosse herança céltica, a autora inicia
sua obra com uma comparação do bardo celta com o poeta ocidental. Tal relação contrastiva
demonstra que o bardo é aquele que oscila entre dois estados, ou seja, entre a morte e o seu
renascimento. Segundo o bardo celta, manifestado na poesia lírica, tudo que o homem
aprende ele também pode crer. Bessa-Luís (1979, p.13) esclarece que “as imagens semeadas
no seu pensamento durante a vida são fecundadas no espírito que a acompanha na morte”.
69
Com base nessa afirmativa, o eu-lírico florbeliano é envolvido pelo profundo sofrimento que
o acompanhará mesmo após a morte.
Por sua vez, o poeta ocidental, segundo Bessa-Luís, possui a mentalidade do sonhador,
e o sonho lhe força para viver (o que resta do bardo celta). Nesse sentido, a história de
Florbela pode ser descrita como a de um bardo; ocorre a passagem do sonhador para a
realidade, uma vez que, na compreensão de seus versos obscuros e na sua canção, há,
claramente, o desejo de atingir a libertação do medo e de ascender como ser humano. Tal
anseio pode ser exemplificado nos versos do poema Charneca em Flor (1931):
Anseio! Asas abertas! O que trago em mim?
Em mim eu oiço bocas silenciosas
Murmuram-me as palavras misteriosas
Que perturbam bem meu ser como um afago!
E, nessa febre ansiosa que me invade
Dispo a minha mortalha o meu burel
E, já não sou, Amor, Sóror Saudade.
Segundo Bessa-Luís (1979), outro ponto de conexão com o caráter conflituoso,
próprio dos poemas florbelianos, é o fato de a poetisa desconhecer sua filiação; ela ignora a
identidade da sua mãe e, no seu registro de nascimento, consta, apenas, que é filha ilegítima
daquele que chamaria de pai. Para a autora, a poesia de Florbela é melancólica e sua grande
força emotiva está nos sonetos, forma poética de composição perfeita para expressar os
sentimentos. Por esses motivos, sua produção é marcada pela profunda tristeza que a
imobiliza progressivamente a uma apatia mortal.
Bessa-Luís (1979) a define como um gênio na arte de poetar, embora essa visão seja
considerada incompleta por Dal Farra, que atribui sempre um caráter muito feminino à poesia,
característica o reconhecida por Bessa-Luís. O fragmento a seguir retrata os sentimentos de
Bessa-Luís em relação à obra de Florbela:
Não me interessava Florbela e achei-a um tanto desprezível, porque me
escrevera que do meu livro viera o seu. Tem um tom donjuanesco e trivial;
finge proteger uma mulher que antes tinha caluniado a pouco por orgulho,
despeito, desejo vão. Mas na carta a mim endereçada um súbito arranque
de palavras que a recuperam de toda a vulgaridade. ‘Deixa-me dizer pela
última vez que eu não tenho recordações. Ninguém guarda lembrança do que
profundamente despreza’. Esta era a autêntica Florbela, sem muita piedade
no coração, mas uma grande mulher (...). As mulheres, se não a admiravam,
liam-lhe, no entanto, os versos com certa paixão nervosa que prescinde do
70
agrado. Não lhe perdoavam nada, mas aceitavam o dom da infalibilidade
(BESSA-LUÍS, 1979, p. 40 e 41)
Após essa exposição das diferentes recepções dos poemas de Florbela, faz-se
necessário retomar a contribuição maior da crítica de Bessa-Luís: o aparecimento de Guido
Battelli na vida da poetisa, em Matosinhos, quando ele tinha sessenta e dois anos. Apesar de
bem mais jovem, Florbela não tinha mais o gosto pela vida, pois não publicava algum
tempo em decorrência da falta de dinheiro; morava com os sogros, encontrava-se muito
doente, quase à beira da morte. A presença de Guido Battelli foi, naquele momento,
providencial, principalmente, pelo fato de se oferecer para publicar o livro Charneca em Flor.
Devido à amabilidade com que ele a tratava, inicia-se uma correspondência, uma troca de
segredos e o surgimento de um possível amor.
Segundo Bessa-Luís (1979, p. 165), Guido Battelli estava ligado a Florbela Espanca,
porque ele era um “homem desiludido com as letras”; um homem que se agarrava
“desesperadamente à importância de amar uma mulher rara. Porque ele sabe o quanto bela e
extraordinária ela era, mas é o seu talento que ele cobiça como a riqueza que ele não possui”.
Com a morte de Florbela, ele altera os escritos da poetisa e passa a ganhar dinheiro à custa do
talento florbeliano. Na concepção de Bessa-Luís (1979, p. 127), Florbela é
uma das mais admiráveis poetisas portuguesas de todos os tempos apesar de a
divulgação de sua obra ter sido tardia, como a de qualquer outro que, entre os
remédios procurados para o caso humano, esquece o filtro com que o passou à
posteridade.
José Régio, outro poeta e crítico renomado, compartilhou com Bessa-Luís as mesmas
opiniões sobre o reconhecimento da poesia de Florbela Espanca, marcada incondicionalmente
pelas características do narcisismo, do donjuanismo e do hermafroditismo psicológico.
Segundo Dal Farra (1999, p.XXV), Régio é visto como “um dos primeiros críticos a se
dedicarem não à causa política que Florbela representava, mas também a seus poemas”.
Régio inicia sua crítica lamentando o fato de só ter conhecido a obra de Florbela tardiamente:
“como autor do presente ensaio, com vergonha e pesar confesso que mais tarde a conheci.
Ao conhecê-la mais cedo quero crer que não me teria passado despercebido a quem leia seus
versos” (RÉGIO, 1944, p.170). Ele reconhece, na condição de crítico e de poeta, que a poesia
florbeliana nasce, vibra e alimenta-se do seu caso real e humano. Essa relação entre obra e
realidade, percebida por Régio e retomada por Bessa-Luís; provoca agrado e reconhecimento
71
dos participantes da Revista Presença
2
, que combatiam a literatura livresca e apreciavam uma
literatura viva.
Vale dizer que a proposta da Revista Presença, como folha de arte e crítica, era
defender o direito que assiste a cada um de seguir o seu caminho. Nesse sentido, segundo
Régio (1944, p. 171), “A obra de Florbela é a expressão literária tanto quanto possível de um
caso humano, visto que Florbela viveu a fundo esses estados, quer de depressão, quer de
exaltação, que na sua poesia atinge tão vibrante expressão”. Régio enfatiza, desse modo, a
representatividade da poesia florbeliana para a crítica presencista, que reconheceu nela a
“literatura viva” tão valorizada pelo seu grupo. Reconhece o valor da poesia de Florbela que,
segundo ele, chega a dilacerar o coração e fazer da dor a matéria-prima de seus versos”.
Livre da opressão do salazarismo, da distância estética e da mudança de valores, a crítica
posterior às publicações de 1931, diferentemente das anteriores, confere à obra poética
florbeliana uma apreciação baseada no seu caráter atual, sobretudo no que tange à postura da
mulher no meio artístico e literário.
3.3. Trocando Olhares, Livro de “Sóror Saudade”, Charneca em Flor - interação eu-lírico
e espaço
Essas três antologias marcam uma importante trajetória na produção poética de
Florbela Espanca. A primeira, Trocando Olhares, foi escrita entre 1915 e 1917; o Livro de
Sóror Saudade”, em 1923, e Charneca em Flor, escrita em 1927, mas publicada apenas em
1931, portanto uma obra póstuma, mas responsável pela projeção da poetisa na Literatura
Portuguesa.
A escolha desses corpora justifica-se não somente para registrar a recepção da sua
produção poética pela crítica, mas também para exprimir o tipo de relação que a arte moderna
estabelece com a natureza. De acordo com Klee (apud Rosa, 1963, p.44), “não é uma relação
exterior, mas íntima”. Nosso objetivo, portanto, é verificar como ocorre a influência do
espaço circundante no estado de espírito do eu-lírico florbeliano e como se desenvolve esse
processo, cronologicamente, nos corpora selecionados.
3.3.1 Trocando Olhares: o espaço identificador do ser
2
O primeiro número Revista Presença foi publicado em Coimbra, em 1927, subintitulada “Folha de Arte e
Crítica”. Era dirigida por Branquinho da Fonseca, por João Gaspar Simões e por José Régio, doutrinador do
grupo.
72
Em 10 de maio de 1915, Florbela Espanca inicia o seu primeiro caderno de poesias:
Trocando Olhares. Devido às dificuldades econômicas que a obrigaram a mudar-se para a
casa do pai com o seu primeiro marido, Alberto Moutinho, começa a ministrar aulas em um
colégio, o que a faz interromper esse seu caderno, retomando-o em novembro do mesmo ano.
No período de um ano e meio, escreve 144 poemas, uma dedicatória em verso e três contos: A
Oferta do Destino, Amor de Sacrifício e Alma de Mulher. Dessa produção, apenas quatro
poemas e três contos foram publicados: O Livro D'Ele, A Minha Terra e O Meu Amor.
Dal Farra assim descreve esse primeiro caderno:
O primeiro manuscrito conhecido de Florbela Espanca, o intitulado
Trocando Olhares, compreende um caderno retangular longo de 32,2 por 11
cm contendo uma capa dura e apresentando suas 47 folhas, além das de
guarda quase inteiramente preenchida. Encerra 88 poemas (ou, mais
precisamente, 145, se incluo nesse cômputo os diferenciados em quatro
grandes grupos poemáticos) e mais três contos. Trata-se, portanto de um
montante de produção que se manteve inédito até 1985 e encontra-se
depositado na Seção de Reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa.
(1992, p.17)
A citação acima revela dois pontos interessantes: primeiramente, a forma como Dal
Farra obteve conhecimento dos detalhes da obra de Florbela; em segundo lugar, o
distanciamento entre a data da produção (1915-1917) e a data da publicação (1985), de acordo
com a sua cronologia interna. A autora relata que ainda estagiava na Biblioteca Nacional de
Lisboa quando tomou conhecimento de um significativo espólio que havia sido ali
depositado. Entretanto, como esse material ainda não estava catalogado, ela pôde conhecer a
aquisição da obra vendida por Rui Guedes à Biblioteca, em 21 de novembro de 1984. Decidiu
aguardar a publicação para, posteriormente, debruçar-se sobre o estudo dos poemas. Quando,
finalmente, a edição foi publicada e ela iniciou seus estudos, percebeu que havia diferenças
entre as obras. A respeito dessas alterações, a pesquisadora comenta:
Assim, quando veio à luz a edição do manuscrito em questão, o Trocando
Olhares, quis me socorrer dela e somente então pude avaliar o que ali se
perpetrara. Dentre inúmeros fatos que não vale nem a pena expor o
empresário tinha, por exemplo, mudado a disposição original do manuscrito,
e ‘decidido’, como ele mesmo declarara, e transcrever os poemas em ordem
cronológica (sic) para facilitar qualquer abordagem futura, que para fazer
isso teve que colocar datas em poemas que... não as têm! [...] Além disso,
fato ainda mais grave juntara duas quadras em tetrassílabos com dois
tercetos em decassílabos, sem se lembrar que entre as tais quadras e os tais
73
tercetos, folhas haviam sido arrancadas, de maneira que denominara a tal
estrambótico acasalamento – ‘soneto’! (DAL FARRA, 1992, p.12).
Percebe-se que a antologia vendida por Guedes à Biblioteca Nacional apresentava
algumas falhas na sua estrutura e na sua organização. No entanto Dal Farra foi favorável ao
estudo da criação poética florbeliana, o que lhe permitiu compará-la com a edição original e,
posteriormente, publicar o trabalho de reparação da obra que Rui Guedes possuía,
organizando os poemas corretamente e cuidando para não misturá-los. A finalidade de seu
trabalho foi se modificando de forma gradativa e adquiriu outras funções com as quais foi
convivendo. No início, parece ter-se concentrado mais em um manual de leitura, mas,
recentemente, ela tem se prestado a orientar os leitores por demonstrar intimidade com a obra
poética, revelando as formas poéticas mais propícias e a intenção da poetisa com seus
poemas. Sobre esse percurso, Dal Farra (1992, p.18) comenta que,
Tendo perdido, então, a função inaugural de coisa pública, esmerada e sem
borrões, o manuscrito deve ter começado em seguida a desempenhar-se de
modo distinto: tornou-se depositário tanto de poemas que iam sendo aos
poucos compostos, quanto de outro tipo de produção esparsa. [...].
Convertido, assim em arquivo de poemas, gradualmente foi se
transformando também em registro dos destinos conferidos àqueles [...]. A
seguir, ele teria recebido anotações.
Essas anotações às quais Dal Farra (1992) se refere fazem parte de uma tentativa de
Florbela Espanca em melhorar seus poemas e em esforçar-se para que ganhassem
independência do manuscrito e se projetassem em sua obra futura. O êxito com relação a tal
esforço se comprova quando se reconhece que dessa obra irradiam composições que
integrarão o Livro de Mágoas, de 1919 e o Livro de “Sóror Saudade”, de 1923. Esse caderno
poético organizado cronologicamente divide-se, na visão de Dal Farra (1992), em três
momentos: o primeiro que vai até o trigésimo poema; o segundo que se estende do trigésimo
primeiro ao octogésimo oitavo, e o terceiro, aos poemas não-datados e apenas assinados pela
poetisa.
Trocando Olhares é, portanto, uma antologia que evidencia certa dispersão e, segundo
a crítica, uma ambição na excelente abertura do soneto “Crisântemos” e nas quadras de “As
quadras dele (I)”. Observa-se a influência da poesia neo-romântica que surge tocada de
castidade e que evolui claramente do decadentismo de fim de culo, presente no soneto “A
Doida”, mas que não tem seguimento nos demais poemas da antologia.
74
Estilisticamente, a obra compreende três grandes conjuntos de quadras, em redondilha
maior, intituladas “As quadras dele”, onze poemas em redondilha maior, três quadras em
decassílabos, uma quadra em eneassílabos, três quintilhas em redondilha maior e nove
sonetos. Nota-se uma preferência pelas quadras e pelas redondilhas maiores. Vale, contudo,
fazer uma ressalva com relação à adoção das quadras, que aparecerão nessa obra. Florbela
Espanca privilegiará o soneto em suas produções seguintes.
Com relação a essa preferência, Bessa-Luís (1979) esclarece que a intenção da poetisa
incide na delimitação de versos, cujo objetivo é a redução das palavras para dar lugar ao
crescimento e à intensidade do sentimento. Para a estudiosa, “o soneto é a composição
perfeita do sentimento. Mas, se o sentimento se tornar demasiado frágil, aparecem as suas
limitações, que são o veneno que agita o espírito. Isso se descobre em Florbela” (p.29).
No aspecto temático, Florbela aborda desde o início o papel e a importância do amor,
sua faceta de religiosidade e a tristeza de ser poeta temas presentes nos sonetos “Saudades”
e “Amarguras e Poetas”. Revela também um acentuado desejo de evasão (influência neo-
romântica), evidenciado em “Nunca Mais!”, e a consciência firme de um destino pouco
venturoso, como se constata no poema “O fado”.
também um enorme fervor patriótico, o amor e o deslumbramento que sente por
Portugal e por suas paisagens, expostas em “Paisagem” e nas quadras de “No Minho”,
levando o leitor a um passeio aos lugares mais tradicionais e pitorescos. Ao mesmo tempo em
que tenta se libertar do tom confessional, Florbela demonstra sinais da emancipação literária
feminina, subvertendo o erotismo tradicional, que era centrado no masculino em um erotismo
feminino que se afirmará cada vez mais.
Em Trocando Olhares, Florbela mostra-se uma poetisa muito singular e já anuncia sua
maturidade. Aponta para uma unidade entre os trinta primeiros poemas, enfatizando a questão
do olhar que, nos poemas seguintes, será acrescentado ao eixo temático do amor revelado pelo
ser amado e pela pátria amada que a acolhe e a inspira.
A temática do olhar, além de ser um motivo recorrente, constitui um foco de ligação
entre o primeiro e o trigésimo poema, anunciando os acontecimentos como fruto desse olhar
dirigido ao ser amado, fechando o ciclo temático. A poetisa reafirma a inspiração que o olhar
lhe concedeu para a criação de seus versos.
A questão do tulo da obra também é relevante e apresenta-se como um vazio que o
leitor preencheao longo do processo de leitura, visto que o sentido não se todo de uma
vez ao receptor, mas vai sendo por ele construído. Nesse caso, o leitor perceberá que o título
se liga inteiramente aos trinta primeiros poemas que compõem a obra, uma vez que a “troca
75
de olhares” ocorre até entre eles, emitindo e recebendo progressões da temática e da
convivência na proporção de seu crescimento. A presença desse tema é tão relevante que se
personifica na obra como algo que age sobre os seres, não somente sobre o amado, mas
também sobre o cenário que o cerca, em uma perfeita interação.
Nessa perspectiva, o olhar observa e absorve o exterior e transmuta o interior daquele
que se encontra próximo a ele. A proximidade é relevante na perspectiva heideggeriana; ela
não se limita a medir distâncias entre ser e objeto circundantes, referindo-se ao fato de ele não
ocupar meramente uma posição no espaço, mas de estar estrategicamente disposto a funcionar
como instrumento do homem. Ao olhá-lo, atribui-lhe existência e torna-o próximo de si.
Segundo Heidegger (2004, p.157), “espacial é a presença que existe segundo o modo da
descoberta do espaço inerente à circunvisão, no sentido de se relacionar num contínuo
distanciamento com os entes que lhe vêm ao encontro no espaço”.
Após essa breve exposição acerca da antologia Trocando Olhares, da qual serão
extraídos os sonetos para a leitura deste capítulo, objetivamos investigar o processo de relação
da natureza como revelação lírica do estado de espírito do eu-lírico. A análise voltar-se-á para
os eixos temáticos selecionados da poética florbeliana: o cenário noturno e a exaltação da
terra.
O cenário noturno
Na poesia florbeliana, o cenário noturno é recorrente, visto que a noite tem a
capacidade de acolher, de entender, de compartilhar da dor do eu-lírico e de libertá-lo de suas
angústias por meio do sonho. Iniciamos o estudo da relevância da noite com o poema “Num
Postal” e com duas estrofes do poema “Sonhando”, ambos da obra Trocando Olhares (1915):
Luar! Lírio branco que se esfolha... É noite pura e linda. Abro a minha janela
Neve, que do céu anda perdida, E olho suspirando o infinito céu,
Asas leves d`anjo que pairando Fico a sonhar de leve em muita coisa bela
Reza pela terra adormecida... Fico a pensar em ti e neste amor que é teu!
(Num Postal)
3
(Sonhando)
No primeiro fragmento, composto de quatro versos brancos, observamos o uso de uma
pontuação expressiva e o cromatismo centrado na cor branca: “Luar!”; “lírio branco”; “Neve”
e “Asas leves d’anjo”. Essa recorrência ao branco é uma referência à pureza do texto e ao
3
Os poemas transcritos neste trabalho pertencem à obra Poemas de Florbela Espanca, edição preparada por
Maria Lúcia Dal Farra. São Paulo: Martins Fontes, 1996. Estarão disponíveis no Anexo desta dissertação.
76
novo olhar que o eu-lírico assume por meio da linguagem lírica diante do anoitecer. Esse
novo olhar é um convite para que o leitor também aprecie as imagens e a recorrência ao
imaginário que elas propõem.
Observamos a evocação que a poetisa faz aos anjos (“pairando”) como entidades
sagradas e dotadas de poder de proteção (“Reza pela terra adormecida”). Essa referência ao
ente sobrenatural permite que o leitor estabeleça uma relação entre o espaço material (“terra
adormecida”), no qual o eu-lírico está inserido, e o espaço cósmico (o luar, o céu e as asas do
anjo), recurso utilizado por muitos poetas do final do século XIX e início do século XX, na
tentativa de encontrar o sonho e a evasão.
Nos versos do soneto “Sonhando”, a noite possui um significado não mais de
acolhimento e de proteção, mas de intimismo e de fuga; a permissão ao sonho e à
concretização do amor. A noite configura-se como sinônimo de evasão dos sentimentos mais
ocultos, da contemplação e da inspiração. O espaço marcado nos versos é o da transcendência
que provoca no eu-lírico a liberdade, à medida que o desvincula do mundo real e o projeta
para um espaço cósmico do “infinito céu”, em uma elevação de pensamento. A presença da
janela é muito significativa (“abro a minha janela”) e sugere que o “outro mundo” poderá ser
alcançado.
A dicotomia entre pensar e sonhar ressalta ainda mais a diferença entre os dois
espaços, uma vez que o sonho leva à imaginação e à falta de limites. O ato de pensar anula o
sonho, em um retorno à realidade e à razão, impedindo vislumbrar as “coisas belas” e
confirmando o sentimento (“amor que é teu”). A presença do pronome “teu” marca a
individualidade do sentimento – somente o eu-lírico ama.
A necessidade da escuridão é marcante. A atitude do eu-lírico é a de fechar os olhos
para sonhar com o luar e com as almas que passam pela noite. A conotação positiva da noite
se deve à permissão do subconsciente de liberar-se por meio do sonho. A esse respeito,
Chevalier (2006, p.565) esclarece que a Lua é também o símbolo do sonho e do inconsciente,
bem como dos valores noturnos.
D’olhos fechados sonho. A noite é como elegia
Cantando brandamente um sonho todo d’alma
E enquanto a lua branca o linho bom desfia
Eu sinto almas passar na noite linda e calma.
No sonetoSó”, concretiza-se a identificação do eu-lírico com a lua:
77
Eu tenho pena da Lua!
Tanta pena, coitadinha,
Quando tão branca, na rua
A vejo chorar sozinha!...
As rosas nas alamedas,
E os lilases cor da neve
Confidenciam de leve
E lembram arfar de sedas...
Observamos, nos versos em redondilha maior, uma constante musicalidade nas rimas
(Lua! / rua coitadinha / sozinha!), além de uma pontuação expressiva e o uso do diminutivo
afetivo (“coitadinha”). O cromatismo presente nos versos destaca a cor branca da lua
(“Quando tão branca, na rua”) e das flores, que lembram delicadeza e suavidade das sedas
(sinestesia): “as rosas nas alamedas” e os “lilases cor da neve” (...) e remetem ao “arfar de
sedas” que “confidenciam de leve”. Nesse sentido, a brandura e a solidão do cenário noturno
provocam imensa tristeza e melancolia no estado de espírito do eu-lírico que, juntamente com
a lua, chora e permanece sozinha:
Só a triste, coitadinha...
Tão triste na minha rua
Lá anda a chorar sozinha...
Eu chego então à janela
E fico a olhar pra lua!...
E fico a chorar com ela!...
Essa solidão se insere na perspectiva heideggeriana de que cabe ao homem assimilar o
mundo circundante e chamar à existência apenas o elemento que lhe é necessário. Nesse caso,
a recorrência à lua possibilita a identificação que se intensifica a cada verso do soneto.
uma total assimilação com o mundo exterior que, de admirado, passa a ser sentido de modo
intenso a ponto de compartilhá-lo com a tristeza e a solidão. A janela, mais uma vez, está
presente na última estrofe, reiterando a idéia do elo que se estabelece com o cenário noturno e
o espaço cósmico, a liberdade.
Outro soneto em que observamos essa recorrência ao cenário noturno a ponto de
conceder o mesmo valor da existência é o “Noivado Estranho”. As rimas apresentam uma
musicalidade marcante na alternância de sons abertos e fechados: Jesus / luz
4
; inteira /
laranjeira; balada / desfolhada; lareira/laranjeira nos quartetos, alternados com sons
4
O grifo é nosso.
78
nasalizados e abertos, mais sonoros, nos tercetos; longe / monge; feiticeira / laranjeira;
cansado / noivado para expressar o saudosismo e a lenda contada pelas avós:
O Luar branco, um riso de Jesus
Inunda a minha rua toda inteira,
É a Noite é uma flor de laranjeira
A sacudir as pétalas de luz...
O Luar é uma lenda de balada
Das que avozinhas contam à lareira,
E a Noite é uma flor de laranjeira
Que jaz na minha rua desfolhada...
O Luar vem cansado vem de longe
Vem co’a terra, a feiticeira
Que enlouqueceu d’amor o pobre monge...
O Luar empalidece de cansado...
E a Noite é uma flor de laranjeira
A perfumar o místico noivado!...
Os adjetivos destinados à descrição do luar remetem à pureza e à tradição das histórias
ouvidas na infância: “Luar branco”, que se compara ao “riso de Jesus”; uma “lenda de balada”
(talvez uma canção de ninar, repetida inúmeras vezes) e esse luar “vem cansado” por existir
muitos séculos. A beleza da noite é associada à “flor de laranjeira”, branca e perfumada
(metáfora e sinestesia): “E a Noite é uma flor de laranjeira”, verso repetido nos quartetos e no
último terceto. O campo semântico da flor de laranjeira traduz a beleza delicada de suas
pétalas brancas e o seu perfume marcante que exala na noite, na rua, e traz a lembrança da
lenda contada pela avó na infância. O Luar e a Noite, personificados, representam o espaço
místico e cósmico que ilumina a rua, o espaço real. Nessa visão, o luar é o elemento espacial
escolhido para atualizar a lenda e destacar a melancolia do eu-lírico.
É interessante notar que a Noite e o Luar compõem o mesmo cenário e recebem
atribuições diferentes. O Luar (branco) inunda a rua com seu brilho e a Noite iluminada,
segundo a lenda, casa-se com a Terra (“a feiticeira”) e perfuma (“é uma flor de laranjeira”) a
rua (“desfolhada”) em um misterioso noivado. Consegue, dessa forma, uma atmosfera fluida e
mística que se identifica com o seu estado de espírito. Resta ainda lembrar que a Terra,
“feiticeira”, pertence ao gênero feminino e o Luar, ao masculino, comparado ao “riso de
Jesus” e ao monge seduzido pela Terra (“Que enlouqueceu d’amor”). A metáfora da noite
como “flor de laranjeira” decorre do fato de ser a laranja, de acordo com Chevalier (2006, p.
79
536), o mbolo da fecundidade por possuir vários caroços. Na Grécia antiga, a fruta era
oferecida às moças como pedido de casamento.
No soneto “Noite Trágica”, observa-se um diferente enfoque da noite: os versos
referem-se a uma angústia existencial decorrente do fato de estar no mundo e de desejar
transcender. Esse sentimento decorre de um anseio de equilíbrio do seu íntimo, sempre
conturbado e ameaçado pelo medo e pela angústia:
O Pavor e a Angústia andam dançando....
Um sino grita endechas de poentes...
Na meia-noite d´hoje, soluçando,
Que presságios sinistros e dolentes!...
Tenho medo da noite!... Padre nosso
Que estais no céu.... O que minh’alma teme
Tenho medo da noite!... Que alvoroço
Anda nesta alma enquanto o sino geme!
As rimas alternadas anunciam o conflito expresso nos versos do soneto: dançando /
soluçando; poentes / dolentes; nosso / alvoroço; teme / geme, nos quartetos, prevalecendo os
sons nasalizados e os sibilantes, os quais revelam tristeza e melancolia. O eu-lírico
florbeliano, nesses versos, deixa evidente o temor que a noite lhe causa. Os substantivos
“Pavor” e “Angústia” conferem desespero, sentimento que se intensifica desde o primeiro
verso, criando uma estranha atmosfera. Os sinos dobram trovas melancólicas (“endechas”):
“Um sino grita endechas de poentes...” – o verbo gritar intensifica a exteriorização do
sentimento de angústia e o sino anuncia os maus pressentimentos que a noite traz ao eu-lírico.
Os adjetivos “sinistros” e “dolentes” reforçam a atmosfera angustiante. Nos tercetos, as rimas
apresentam-se misturadas (emparelhadas e interpoladas): triste / resiste; parece / ‘squece;
sudário / Calvário, sons sibilantes e fechados que reportam à melancolia e à angústia:
Jesus! Jesus, que noite imensa e triste!
A quanta dor a nossa dor resiste
Em noite assim que a própria Dor parece...
Ó noite imensa, ó noite do Calvário
Leva contigo envolto no sudário
Da tua dor a dor que me não ‘squece!
Na segunda estrofe, percebe-se um tom mais subjetivo e intimista em um crescendo.
o uso da primeira pessoa do singular, para afirmar o medo da noite, que se inicia com a
80
oração do Pai-Nosso (“Padre nosso / Que estais no céu...”) e culmina no clamor a Jesus:
“Jesus! Jesus, que noite imensa e triste! / A quanta dor a nossa dor resiste (...) Ó noite imensa,
ó noite do Calvário / Leva contigo envolto no sudário / Da tua dor a dor que me não
‘squece!”.
O medo, o pavor e a angústia evidenciam-se desde os presságios (“sinistros e
dolentes”) até à declaração explícita: “Tenho medo da noite!”, que se repete no primeiro e
terceiro versos da segunda estrofe. Nos tercetos, a dor existencial instala-se: “A quanta dor a
nossa dor resiste / Em noite assim que a própria Dor parece...” e está relacionada à dor do
Calvário, que cresce, que se avoluma: “Ó noite imensa, ó noite do Calvário”. Essa conotação
angustiante e pavorosa da noite refere-se ao espaço noturno que Blanchot (1987) descreve
como “a outra noite”, na qual os pensamentos mais doloridos e tortuosos vêm atormentar a
mente.
Nos dois últimos versos do soneto, ocorre uma mudança de modo verbal, do indicativo
para o imperativo: “Leva contigo noite) envolto no sudário / Da tua dor a dor que me não
‘squece!”, uma necessidade imperiosa de identificar a dor do eu-lírico (a dor existencial) com
a dor sentida por Cristo no Calvário. Essa idéia de que a noite amedronta e atormenta o
pensamento e o estado de espírito é, contudo, uma exceção na poética florbeliana. Em outros
textos da mesma antologia, há um posicionamento diferente, como no soneto (I) “Desalento”:
Às vezes oiço rir, ‘ma agonia
Queima-me a alma como estranha brasa.
Tenho ódio à luz e tenho raiva ao dia
Que me põe n’alma o fogo que m’abrasa!
(...)
Eu não gosto do Sol, eu tenho medo
Que me vejam nos olhos o segredo
De só saber chorar, de ser assim...
Vemos, nesse soneto, idéias opostas às do soneto anteriormente comentado, cuja dor
existencial explícita vincula-se ao medo da noite e, consequentemente, à morte. Nos versos
acima, o eu-lírico declara o seu “ódio à luz” e sua “raiva ao dia”. Os desejos na claridade do
dia queimam e provocam agonia e desespero em sua alma (“Queima-me a alma como
estranha brasa / (...) Que me põe n’alma o fogo que m’abrasa!”). Daí a declaração nos versos
do primeiro terceto: “Eu não gosto do Sol” (...), contradizendo o medo que sente da noite, no
soneto anterior.
81
O Sol, por sua vez, provoca-lhe também o medo de que seus segredos sejam revelados
nos seus olhos que choram e guardam certo segredo: “... eu tenho medo / Que me vejam nos
olhos o segredo / De só saber chorar, de ser assim...”.
No último terceto, a adjetivação é expressiva, quando se declara amante da noite:
Gosto da noite, negra, triste, preta
Como esta estranha e doida borboleta
Que eu sinto sempre a voltejar em mim!
Evidencia-se, nessa estrofe, a importância dos adjetivos negra, triste, preta”, em uma
gradação que expõe a ausência total de luz e de vida: entre “negra” e “preta” está a palavra
“triste”. Nos últimos versos, constrói uma comparação: “Como esta estranha e doida
borboleta”. Tal como ela, a borboleta também é apreciadora da noite; ela é “estranha e doida”,
tal como se sente. A linguagem retórica presente no soneto, além de expressiva, também é,
portanto, visualista e cromática, no sentido de que a noite que, era branca, iluminada e
perfumada, passa a ser negra, triste e estranha. Trata-se de visões contraditórias que revelam a
influência do cenário noturno no estado de espírito do eu-lírico, revelando sentimentos
contraditórios.
Essa dupla visão da noite completa-se com o momento da passagem do dia para a
noite – o pôr-do-sol, momento preferido pelos poetas do Simbolismo, no século XIX, e
explorado por inúmeros outros poetas do século XX.
Sol posto. O sino ao longe dá Trindades.
Nas ravinas do monte andam cantando
As cigarras dolentes... E saudades
Nos atalhos parecem dormitando...
É esta a hora em que suave imagem
Do bem que já foi nosso nos tortura
O coração no peito, em que a paisagem
Nos faz chorar de dor e d’amargura...
É a hora também em que cantando
As andorinhas vão p’lo meio das ruas
Para os ninhos, contentes, chilreando...
Quem me dera também, amor, que fosse
Esta a hora de todas a mais doce
Em que eu unisse as minhas mãos às tuas!...
(Sol posto)
82
Florbela retoma, nesse soneto, a imagem saudosista do sino que tange ao longe e o
toque das ave-marias (“Trindades”). Essa sugestão de musicalidade presentifica-se ao longo
dos versos. A natureza compõe esse cenário, diferentemente das situações anteriores: “nas
ravinas do monte andam cantando / As cigarras dolentes... (...) / As andorinhas vão p’lo meio
das ruas / Para os ninhos, contentes, chilreando”.
Repete-se também nas rimas o saudosismo e a sugestão da musicalidade: “Trindades /
saudades; cantando / dormitando; imagem / paisagem; tortura / d’amargura”, nos quartetos
e nos tercetos: cantando / chilreando; ruas / tuas; fosse / doce. Os sons alternam-se em
abertos (em a), em nasalizados (ndo) e em sibilantes (fosse), reforçando a idéia da “hora” (o
sol posto) que traz a saudade e o choro dos bons momentos vividos ao lado do ser amado.
É na segunda estrofe, porém, que ocorre a identificação do eu-lírico com o momento
do anoitecer: “É esta a hora em que a suave imagem / Do bem que já foi nosso nos tortura / O
coração no peito, em que a paisagem / Nos faz chorar de dor e de amargura”. A idéia continua
até o final do texto, com a repetição do substantivo “hora” (no segundo quarteto e nos
tercetos), desejando a presença do ser amado para completar o momento. É possível dividir o
texto em dois núcleos distintos: os elementos da natureza (a paisagem) e o momento do “sol
posto”, ao som do tanger dos sinos (a hora), e o que ambos refletem no estado de espírito do
eu-lírico: a saudade e a melancolia.
O primeiro núcleo, a paisagem, provoca uma sensível mudança não no que o eu-
lírico contempla, mas também no que sente. A liberdade e a alegria do canto das cigarras
(dolentes) e das andorinhas (contentes) expressam o desejo e a esperança de unir suas mãos às
do amado naquela “hora” (“Esta a hora de todas a mais doce / Em que eu unisse as minhas
mãos às tuas!...”). Configura-se o tom de tristeza e de saudosismo nos adjetivos atribuídos ao
sol, que está posto, ao sino que toca as ave-marias e às cigarras lamentosas, que cantam nas
encostas do monte. Os verbos no gerúndio (cantando / dormitando; cantando / chilreando)
remetem à permanência consumada da paisagem e da saudade do ser amado; os do presente
do indicativo sugerem tristeza; os do futuro, a incerteza, contrariamente à natureza, que
encontra no presente a alegria do cantar, sensação muito presente no segundo núcleo.
A possibilidade de se construir imagens por meio de palavras deve-se, nesse soneto, à
descrição da natureza e dos desejos do eu-lírico. Ao descrever a paisagem do entardecer,
evidencia-se a vivacidade da linguagem visualista que cria imagens mediante a adjetivação
expressiva, o uso variado do tempo verbal, a pontuação expressiva (reticências e exclamação)
83
e o ritmo, que oscila entre as sílabas forte, fraca, aberta e fechada. Comprovam-se a tristeza e
a melancolia interior, sentimentos provocados pela suavidade da paisagem.
O último poema que se refere ao eixo temático do cenário noturno, em Trocando
Olhares, é o soneto “Noites da minha terra”:
Anda o luar espalhando fios de prata
Pelos campos fora... Lírios a flux
Lança o azul do céu... e a terra grata
Transforma em mil perfumes toda a luz!
As estrelas cadentes vão ’spalhando
Lírios brancos também... agora a terra
Parece noiva linda, que sonhando
Caminha pelo altar, além da serra...
É meia-noite agora. Tudo quieto
Na noite branda, dorme... Entreaberto
Vai esfolhando o lírio do luar.
As alvas folhas, que cobrindo o céu,
E todo o mar e toda a terra, um véu
Branco, de noiva, lembra a palpitar!...
Florbela retoma, nesse soneto, mais uma vez, o cenário noturno, a simbologia do luar e
das estrelas cadentes como elementos caracterizadores do espaço celeste. Nos quartetos, o
leitor pode observar um cenário em movimento e em completa harmonia de sons e de cores.
Novamente, o uso do cromático incide na cor branca e ilumina com a luz do luar prateado os
campos, a terra, o céu e o mar. As rimas são interpoladas e emparelhadas e a sonoridade
alterna sons abertos, fechados e nasalizados: prata / grata; flux / luz; ‘spalhando / sonhando;
terra / serra. A adjetivação é expressiva: (luar) “fios de prata”; (terra) “grata”; (estrelas)
“cadentes”; (lírios) “brancos” e os verbos alternam-se do presente: “anda”; “lança”;
“transforma”; “parece”; “caminha” para o gerúndio: “espalhando” e “sonhando”. ainda a
presença dos lírios (“brancos”) que, em profusão (“a flux”), espargem luz, azul e (“mil”)
perfumes, do mesmo modo que as estrelas espalham os lírios e a terra assemelha-se a uma
noiva (“linda”). O espaço cósmico é um cenário harmônico, cuja descrição apresenta certo
suspense expresso pelas reticências.
Na terceira estrofe, ocorre a demarcação do tempo: “É meia-noite agora”. O
movimento apresentado nos quartetos está ausente e o espaço noturno dorme (“Tudo quieto /
Na noite branda, dorme”). O luar transforma-se em lírio e suas pétalas brancas cobrem,
84
silenciosamente, o mar e a terra: “As alvas folhas, que cobrindo o céu, / E todo o mar e toda a
terra, um véu / Branco, de noiva, lembra a palpitar!...”.
De acordo com Eliade (2001), uma sacralização dos elementos, visto que céu e
terra não estão postos como elementos inertes, mas metamorfoseiam-se em noivos, ou seja,
assumem uma outra condição, que não a de costume. O eu-lírico, apesar de apenas descrever
essa transformação subjetivamente, não participa do evento, apenas o visualiza e comove-se
com ele. Nesse sentido, pode-se dizer que, para Florbela, esses devaneios identificam-se com
o que Bachelard (1979) chama de “concha”, porque caracteriza um momento de
tranqüilidade, de segurança e de paz.
Antes de analisarmos o segundo eixo temático, que se refere à exaltação da terra, é
necessário examinarmos como essa questão é inserida nos poemas florbelianos. Para tanto,
Bessa-Luís (1979) é uma referência importante, pois reconhece que “a natureza na produção
de Florbela Espanca tem um lado de dentro”, fato que a aproxima de Pessoa, que afirmava
compreender a natureza por fora e não por dentro. Na tentativa de explicar melhor essa
expressão, a pesquisadora recorre às palavras do teólogo Silesius, autor do pensamento: “Sem
mim, Deus é incapaz de criar nem que seja um verme. Se eu não me entender com ele, ele
terá imediatamente que perecer”. Esse entendimento ocorre dentro da natureza. Se ela for sua
imagem, sucumbe e não existe. Esse sentido de existência recupera a concepção
heideggeriana, segundo a qual só existe o elemento, considerando-se o momento e o valor que
o homem lhe atribui.
Corral (1994) também analisa a natureza como manifestação do dualismo florbeliano,
visto que reconhece que os elementos naturais m um papel importantíssimo em sua obra,
entre os quais é extraída a maior parte dos símbolos utilizados para expressar-se a si próprio.
Esse dualismo remete aos dois pensamentos encontrados no eu: o gosto pela terra e o desejo
de elevação. O primeiro decorre de elementos, tais como: o campo, o mar e as flores, ao passo
que a idéia de elevação se manifesta por meio de elementos, tais como: a lua, as estrelas, o
céu e as aves. Esses elementos, contudo, tão comuns a todos os lugares, ganham um caráter
particularizante na poética florbeliana: referem-se a Portugal, mais propriamente à região do
Alentejo, sua terra natal. Faz-se necessária, portanto, uma breve descrição sobre esse espaço
tão recorrente ao longo de sua obra.
A região do Alentejo, em Portugal, compreende integralmente os distritos de
Portalegre, de Évora e de Beja, e a metade sul dos distritos de Setúbal e de Santarém. Limita-
se ao norte com a Região Centro-Noroeste e com a Região de Lisboa, a leste com a Espanha,
ao sul com o Algarve e a oeste com o Oceano Atlântico. A extensão territorial é de 152km²
85
(33% do Continente) e a população estimada em 2007 foi de 770.265 habitantes (8% do
Continente). Compreende cinco sub-regiões estatísticas: Alentejo Central, Alentejo Litoral,
Alto Alentejo, Baixo Alentejo e Lezíria do Tejo. O Alentejo compreende 58 concelhos
5
(18,8% do total nacional).
Nota-se que essa divisão não coincide com a antiga região tradicional do Alentejo (que
não constituía uma província por si, embora muitos se referissem ao Alentejo como a reunião
das duas províncias do Alto e Baixo Alentejo), a qual era ligeiramente menor que a atual.
Incluía apenas os distritos de Évora e de Beja (na sua totalidade), praticamente todo o distrito
de Portalegre (exceto o concelho de Ponte de Sôr, que fazia parte do Ribatejo) e a metade sul
do de Setúbal (os concelhos desse distrito que fazem parte da atual região do Alentejo Litoral,
a saber: Alcácer do Sal, Grândola, Santiago do Cacém e Sines). Além disso, o município de
Olivença, que, até 1801, pertenceu à antiga comarca do Alentejo (outrora chamada entre Tejo
e Odiana e Além-d’Odiana), desde então se encontra ocupado pela Espanha.
De acordo com Santos (1936), o Alentejo é uma província que tem servido de berço a
indivíduos que se destacaram em determinadas situações e em diferentes campos de
atividades, seja na ciência, na política, nas conquistas e nos descobrimentos, seja nas artes e
nas letras. Sua preocupação maior, porém, é com o trabalho na terra. Graças à sua
fecundidade, oferece alimento bastante e necessário para uma grande parte da nação, pelas
mãos dos obreiros que trabalham cantando e têm um modo de viver e uma psicologia toda
própria, apesar de terem a pele seca e rachada pelo sol.
Além dessa sucinta descrição feita por Santos (1936), Bessa-Luís (1979) também
colabora, ressaltando que essa região possui uma incapacidade de expansão geográfica. Para o
povo que nela reside, a sua colônia é a sua terra, o seu sistema econômico e sua alma; não é
possível movê-lo além das terras que tocam sua planície; suas idéias não se transformam, e a
terra molda o caráter de seus habitantes; seu povo não tem necessidade nem vontade de
mudança e valoriza ainda a técnica rudimentar.
Florbela, em seus versos, compartilha com esse povo o sentimento do presente como
realidade consumada; não sente o mundo como vontade, mas como vida pessoal e história
imediata. Ela quer existir e não vencer, uma vez que o espaço não significa “o campo de
tensões”, mas, simplesmente, o lugar em que se nasce e morre-se.
Outro ponto que desperta em Florbela o amor pela terra portuguesa é o fato de
pertencer ao grupo de líricos, para quem o amor se torna uma forma de representação da
5
O mesmo que município, uma das divisões do distrito, em Portugal.
86
unidade do lugar como o solo em que nasceu. A esse respeito, Bessa-Luís (1979, p.51) afirma
que “não é exatamente um homem que ela ama, mas a cidade natal, as ruas em que andou”.
O cenário da terra portuguesa
No poema No Minho”, há o início da exaltação da terra como temática, ressaltando a
capacidade que a terra tem de elevar o homem ao espaço transcendente e fantástico, ou seja,
valendo-se de um cenário real ele é capaz de sonhar. Essa recorrência ao fantástico provocado
pelo devaneio evidencia-se nos versos:
Casitas brancas do Minho
Onde guardam os tesouros,
As fadas d’olhos azuis
E lindos cabelos loiros
Filtros de beijos em flor,
Corações de namoradas
Nas casas brancas do Minho
Guardam ciosas fadas.
Trata-se de um poema composto por duas quadras com versos em redondilha maior,
cujas rimas se apresentam irregulares, com exceção das do segundo e quarto versos das
quadras: tesouros / loiros; namoradas / fadas. O eu-lírico vale-se de um elemento do espaço
real (”casitas brancas do Minho”) para referir-se às histórias infantis (“os tesouros”) e às fadas
que fazem parte do imaginário fantástico: “As fadas d’olhos azuis / E lindos cabelos loiros;
(...) Nas casas brancas do Minho / Guardam ciosas as fadas”. Pode-se entender também que o
habitante do Norte, o Minho, possui esse tipo físico: pele e olhos claros.
Esse espaço é descrito por Bachelard (1978) como o da intimidade. Traz à tona as
lembranças da infância que, no plano do devaneio, permanecem vivas e podem ser
poeticamente úteis; auxiliam o eu-lírico a fugir dos desgostos, oferecendo-lhe proteção, uma
vez que as fadas (seres bons por excelência) guardam os segredos dos corações enamorados
dentro das “casitas brancas”, porque o que é mais íntimo não se dá a conhecer.
As casas brancas (“casitas”, diminutivo afetivo) são, no entanto, uma recorrência
metonímica na descrição do Alentejo, visto que caracterizam essa região. Ao valer-se desse
cenário puro, belo, fantástico e acolhedor, o eu-lírico ressalta toda a beleza de Portugal.
Bachelard (1978, p.208), a respeito da colocação da casa da terra natal, esclarece que “as
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casas oníricas são mais duráveis que os sonhos presentes e dispersos na casa natal. Esses
sonhos se comunicam por meio do devaneio de alma para alma”.
No soneto “Paisagem”, o eu-lírico descreve a beleza da paisagem campesina,
construindo uma tela: os bezerritos que bebem nas correntes de água do moinho, um par de
namorados que falam de amor e o canto de uma criança:
Uns bezerritos bebem lentamente
Na tranqüila levada do moinho.
Perpassa nos seus olhos, vagamente,
A sombra duma alma cor do linho!
Junto deles um par. Naturalmente
Namorados ou noivos. De mansinho
Soltam frases d’amor... e docemente
Uma criança canta no caminho!
Um trecho de paisagem campesina,
Uma tela suave, pequenina,
Um pedaço de terra sem igual!
Oh, abre-me em teu seio a sepultura,
Minha terra d’amor e de ventura,
Ó meu amado e lindo Portugal!
Essa exaltação a Portugal evidencia-se nas rimas interpoladas e emparelhadas nos
quartetos (abba): lentamente / vagamente; moinho / linho; naturalmente / docemente;
mansinho / caminho. Destacam-se os sons nasalizados em e/i/o para a composição da
delicada paisagem. E, diferentemente, nos tercetos campesina / pequenina; igual / Portugal;
sepultura / ventura, os sons se apresentam em i/a/u, acompanhados de consoantes nasais,
laterais e vibrantes. A adjetivação é expressiva para louvar a beleza da terra: “tranqüila” é a
levada do moinho; a alma é “cor do linho”; a paisagem é “campesina”, que se assemelha a
uma tela “suave”, “pequenina”, e Portugal é “amado” e “lindo”. A cor branca também está
presente: “A sombra duma alma cor do linho!” para completar a paisagem.
A última estrofe atinge o auge do encantamento pela terra, quando o sujeito lírico
mostra em seu primeiro verso o desejo de permanecer para sempre nessa terra, em forma de
vocativo: “Oh, abre-me em teu seio a sepultura, / Minha terra de amor e de ventura”. A
poetisa considera-se parte integrante da terra, ao entregar-se totalmente ao espaço real a
pátria – que encanta e ama: “Ó meu amado Portugal!”
88
Os adjetivos constroem um ambiente de paz, e a tranqüilidade do cenário é confirmada
pelos advérbios “docemente”, “lentamente”, “vagamente” e “naturalmente”, os quais
permitem a criação das imagens, fazendo que o leitor sinta a paz e a tranqüilidade expressas
na paisagem.
A poesia de Florbela pode ser lida como um texto que suscita imagens. A disposição
dos elementos descritivos possibilita a construção da paisagem por meio da linguagem
figurativa, cujo detalhe rico de significado não pode ser desprezado. O fato de escolher
elementos com cores quentes, por exemplo, pode reportar à paixão e à alegria para contrastá-
los com adjetivos que configuram a idéia de tranqüilidade e de paz. É possível perceber
nitidamente a relação das cores com o seu estado de espírito. Florbela tende a usar cores
quentes quando deseja demonstrar algo que lhe causa satisfação e contentamento; a usar roxo
e verde, ela demonstra angústia e tristeza. O cromatismo, portanto, tem relevância em sua
poesia devido à sua capacidade de descrever os diferentes cenários. Os versos do primeiro
quarteto do soneto “O meu Alentejo” exemplificam essa idéia:
Meio-dia. O sol a prumo cai ardente,
Doirando tudo... Ondeiam nos trigais
D’oiro fulvo, de leve... docemente...
As papoilas sangrentas, sensuais...
Evidenciamos o emprego do recurso descritivo para a fixação das imagens e a
recorrência do amarelo (“Meio-dia. O sol a prumo cai ardente, / Doirando tudo...(...) trigais /
D’oiro fulvo”) e do vermelho (“papoilas sangrentas”) nos versos. Chevalier (2006) esclarece
que, na cosmologia mexicana, o amarelo é a cor nova da terra no início da estação de chuva.
Dessa forma, trata-se da cor da terra fértil. O vermelho, por sua vez, é considerado o princípio
da vida pelo seu poder e pelo seu brilho; ele é vivo, diurno, solar e incita a ação; é a imagem
de força impulsiva, de ardor e de beleza, de juventude, de saúde e de riqueza. Nos versos
acima, ao associar o vermelho e o amarelo à descrição de uma paisagem portuguesa, Florbela
recorda toda a riqueza eterna que Portugal terá para os seus cidadãos e demonstra que aquela
terra é fértil, bela e abençoada por Deus, despertando nela a atitude de escrever e de ressaltar
sua beleza. O eu-lírico sente-se invadido por tal magnificência e compartilha de todo o seu
esplendor. O soneto propõe a criação de um ambiente de leveza e de harmonia, tal como é
concebido o cenário português. No entanto não busca apenas descrever uma paisagem
alentejana, mas também construir uma atmosfera proveniente do campo. Por meio de uma
visão sensível, a natureza capta as cores e as luzes dos elementos que a constituem e que dela
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são indissociáveis o sol, o ar, o vento, a terra. Nesse ambiente harmônico, as partes da
natureza são extensões dos seres que por elas passam e com elas interagem. Essa interação se
comprova na segunda estrofe do poema:
Andam asas no ar; e raparigas,
Flores desabrochadas em canteiros
Mostram, por entre o oiro das espigas
Os perfis delicados e trigueiros...
Essa estrofe demonstra uma fusão entre o mundo circundante e aqueles que por ele
caminham. Por exemplo, a descrição das raparigas como flores desabrochadas, livres e
naturais, como a própria vegetação com a qual compartilham. Esse cenário permeado pela
sutileza e pela castidade da criação divina coloca, em um mesmo plano, o homem, Deus, a
natureza e a arte, os quais, juntos, corroboram para uma sensação de prazer. No soneto
“Vozes do mar”, Florbela descreve o encontro do sol com as águas, demonstrando a intenção
de o sol descobrir o que o mar ‘fala’ com a terra, quando derrama a sua luz dourada:
Quando o sol vai caindo sobre as águas
Num nervoso delíquio d’oiro intenso,
Donde vem essa voz cheia de mágoas
Com que falas à terra, ó mar imenso?
Essa mesma imagem também se apresenta no soneto “Noites da minha terra”, no
momento em que o luar espalha seus fios de prata sobre o campo (cenário noturno). Mais uma
vez, ocorre a fusão do céu com a terra. É importante observar que, ao se referir ao cenário
diurno, registra-se o revestimento de uma luz dourada que provém do sol, contrariamente à
noite, que adquire uma tonalidade prateada e branca proveniente da lua. Essa união entre o
amarelo e o prateado evidencia uma “extravagância” das cores e das atitudes e, de acordo com
Chevalier (2006, p.40), “os raios de sol, atravessando o azul celeste, manifestam o poder da
divindade do além” e são, igualmente, indicadores da terra fértil e da eternidade, assim como
o ouro. A cor prata pertence à cadeia simbólica lua-água (símbolo da pureza, pela brancura e
pela luminosidade) e marca o princípio feminino em oposição ao sol. No entanto, para
caracterizar o dia, Florbela escolhe o sol e seu brilho intenso como aqueles que atravessam os
céus e aquecem a terra, como nos versos transcritos no quarteto acima.
Na estrofe seguinte, o eu-lírico recorda as glórias conquistadas no mar pelos
portugueses. O mar relembra os “(...) festins e cavalgadas / De cavalheiros errantes ao luar? /
Falas de caravelas encantadas / Que dormem em seu seio a soluçar?” Ou seja, Florbela
90
recorda a época gloriosa dos descobrimentos, período em que Portugal representava a maior
potência marítima da Europa. Entretanto um parâmetro entre o passado glorioso e o presente
real é estabelecido, deixando saudade:
Tens cantos d’epopéias? Tens anseios
D’amarguras? Tu tens também receios
Ó mar cheio de esperança e majestade?!
O mar como elemento personificado possui receios e chora as amarguras das epopéias
que falam de um Portugal majestoso de outrora, que guarda na lembrança o desejo de
renovados dias de glória. O poema mergulha em um saudosismo patriótico e pergunta ao mar
qual é a voz que se propaga, lembrando com saudade a voz de Camões: “Donde vem essa voz,
ó mar amigo?... / ....Talvez a voz do Portugal antigo, / Chamando por Camões numa
saudade!” Florbela, sem dúvida, perscruta a natureza para com ela entrar em harmonia e
redescobre, aí, o mito do saudosismo.
Ainda com relação à temática da saudade que a terra desperta, destaca-se o soneto
“Saudade”, no qual a poetisa expõe a alma e a nacionalidade portuguesas. Observamos que a
subjetividade estende-se do individual ao coletivo, visto que o sonho e a tristeza estão
presentes em todos os corações portugueses; ambos são considerados “filhos” do povo. A
tristeza e o sonho personificados no soneto vestem-se de roxo, cor simbólica do luto e do
pesar. Essas idéias se apresentam na estrofe do primeiro quarteto:
És a filha dileta de noss’alma
Da noss’alma de sonho e de tristeza
Andas de roxo sempre, sempre calma
Doce filha da gente portuguesa!
O saudosismo presente no decorrer de todo o texto configura-se nas rimas: alma /
calma; tristeza / portuguesa, seguindo a mesma linha na segunda estrofe: Portugal / missal;
suavidade / saudade. A presença expressiva dos adjetivos “dileta” e “doce” caracteriza a
palavra saudade (o tulo do soneto), que é a “filha” querida da alma (e da língua portuguesa)
dividida entre o sonho e a tristeza.
A palavra saudade, ao longo da história de Portugal, tem sido tema da poesia e da
música popular, o fado. Na segunda estrofe, essa idéia é retratada de forma magistral:
Em toda a terra do meu Portugal
Te sinto e vejo, toda suavidade
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Como nas folhas tristes dum missal
Se sente Deus! E tu és Deus, saudade!...
Nos tercetos, essa revelação é identificada com os olhos tristes das raparigas e com os
sentimentos dos namorados. Nos últimos versos, considerados “chave de ouro”, a
revelação da saudade como “pátria qu’rida” do eu-lírico florbeliano:
Andas nos olhos negros, magoados
Das frescas raparigas. Namorados
Conhecem-te também, meu doce ralo!
Também te trago n’alma dentro em mim,
E trazendo-te sempre, sempre assim,
É bem a pátria qu’rida que o embala.
uma perfeita interação entre a terra, o povo e seus sentimentos como geradores de
sua criação poética saudosista. Observamos a perfeita fusão entre aquela que gera e,
concomitantemente, embala seus filhos. O poema retrata a dicotomia do ver e do sentir,
presente na poética florbeliana. Segundo Bessa-Luís (1979, p.17), “no plano das sensações,
Florbela é uma extrovertida. O seu ideal é a realidade.” O seu amor baseia-se na atração do
objeto no sentido sensorial; não se trata de uma sensibilidade primária, mas de uma
sensualidade estética que pode atingir abstração. A descrição de Portugal sugere uma tristeza
que se vislumbra na metáfora de que esse espaço seria como as tristes páginas de um missal.
O espaço se sacraliza de tal forma que, naquele chão, sente-se a presença de Deus que
também se transforma em saudade, sentimento capaz de transitar dos objetos e da paisagem
para as almas e os olhos (“negros” e “magoados”) das (“frescas”) raparigas que absorvem
toda essa tristeza. uma universalização da dor e da saudade que emana do espaço e que se
projeta tanto na alma portuguesa como nos leitores florbelianos.
3.3.2 O Livro de “Sóror Saudade”: o espaço do exílio que revela a alma
O Livro de “Sóror Saudade”
6
foi publicado em 1923, marcando mais um momento da
trajetória literária de Florbela Espanca, que havia se iniciado em 1919, com o Livro de
Mágoas, no qual a poetisa “tende a constituir-se numa via arguta de busca de identidade” (Dal
Farra, 1999, p. XXXV).
6
DAL FARRA (1999) esclarece que o título do livro e o do poema entre aspas foi conservado da primeira
edição.
92
Nessa busca do autoconhecimento, o Livro deSóror Saudade” representa um avanço:
não mais a presença conflituosa da dicotomia entre o poeta e a mulher, ambos parecem
fundir-se em um mesmo eu-poemático. Logo no primeiro poema, observamos que a
divergência interior, presente no terceiro soneto do Livro de Mágoas, intitulado Eu,
desaparece. Essa desarmonia se confirma na comparação das primeiras estrofes dos poemas
Eu e Sóror Saudade:
Eu... “Sóror Saudade
A Américo Durão
Eu sou a que no mundo anda perdida Irmã, Sóror Saudade me chamaste...
Eu sou a que na vida não tem norte, E na minh’alma o nome iluminou-se
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte Como um vitral ao sol, como se fosse,
Sou a crucificada... a dolorida A luz do próprio sonho que sonhaste.
Esses dois quartetos marcam, em um primeiro momento, a inconstância do eu-lírico e
o seu questionamento sobre sua própria identidade. Nas denominações que se referem tanto
ao campo onírico quanto ao campo terrestre, gradativamente, predominam as idéias de dor e
de morte. Ao contrastarmos as estrofes acima, depreendemos da leitura dos versos de Eu... um
dramatismo e a idéia negativa da identidade do eu-lírico que (...) anda perdida / (...) que na
vida não tem norte, / (...) a crucificada... a dolorida”, posicionamento que difere do de Sóror
Saudade”, em que demonstra um contentamento com a designação recebida de Américo
Durão: “Irmã, Sóror Saudade me chamaste... / E na minh’alma o nome iluminou-se / Como
um vitral ao sol (...)”.
No Livro de “Sóror Saudade”, essa ligação entre Florbela e Américo Durão é real e,
de acordo com Franco (1997), a reciprocidade textual é antiga e muito anterior à publicação
da obra. Desde o primeiro manuscrito conhecido da poetisa, uma dedicatória “ao grande
poeta Américo Durão”, que, reciprocamente, refere-se a ela como “Sóror Saudade”.
Na antologia, as figuras preferidas e privilegiadas por Florbela remetem à temática do
saudosismo e da dor. Coincidentemente, Américo Durão também desenvolve a mesma
temática em suas obras, ressaltando, sobretudo, a idéia antitética de que possuir é perder e de
que perder é possuir. A saudade na visão do poeta é uma aquisição sem posse, que se
manifesta na ausência. Para Florbela, a saudade revela-se em três momentos diferentes: a) o
passado à distância e, por isso, desejado; b) o presente que faz sentido e que é intimamente
vivido; c) o sonho que estabelece relação com o ideal almejado, reconforto que permite
93
vislumbrar o fim da saudade que a tortura. A manifestação saudosista pode ser observada nos
seguintes versos da poesia de Durão e de Florbela, respectivamente:
Irmã, Sóror Saudade... Ah, se eu pudesse Irmã, Sóror Saudade, me chamaste...
Tocar de aspiração a nossa vida! E a minh’alma o nome iluminou-se
Fazer do mundo a Terra Prometida, Como um vitral ao sol, como se fosse
Que em sonho ainda às vezes me aparece! A luz do próprio sonho que sonhaste.
Os versos de Durão demonstram que a saudade é decorrente das coisas que em sonho
parecem possíveis, mas que na realidade são apenas aspirações; não se pode fazer do mundo a
Terra Prometida, senão pelo sonho. Para Florbela, a saudade refere-se ao mais concreto, pois
a denominação de Sóror Saudade é real e manifesta-se como a realização de um sonho e de
um reencontro. Durão avalia o Livro de Sóror Saudade como a expressão de uma atividade
verbal cada vez mais emancipada de seus referentes mais imediatos. Os conceitos sobre amor,
primeiro termo da dialética dos contrários, possibilitam a utilização de uma linguagem
interiorizada.
Franco (1997 p. 62) define o Livro de Sóror Saudade como uma das mais
importantes obras da segunda geração saudosista”, não pelo adorno do tulo, mas pelos
achados verbais que o configuram.
O tema da dor, do mesmo modo, apresenta-se recorrente no Livro de Sóror Saudade.
Ela apresenta diversas caracterizações imagéticas por se distinguir como “um convento ideal”
ou, de forma mais presencial, como um “visitante" que passa à porta da poetisa e traz consigo
o pavor, a tortura, a mágoa, o dio e a angústia. Essas ocorrências de personificação da dor
assinalam um dramatismo particular como revelam os versos do soneto Ruínas:
Deixa tombar meus rútilos castelos!
Tenho ainda mais sonhos para erguê-los
Mais alto do que as águias pelo ar!
Configura-se a existência de um descontentamento com situações que conduzem ao
isolamento em castelos imaginários. Entretanto é apresentada ao leitor uma perspectiva de
melhora devido à presença dos sonhos que reerguerão castelos mais altos. A manutenção do
ciclo construção/destruição quebra a perspectiva de evolução da dor, pois a permanência de
castelos cada vez mais altos sugere isolamento e drama contínuos.
Segundo Dal Farra (1999), no Livro de Sóror Saudade”, a poesia florbeliana registra
os passos da travessia para o comportamento social destinado à mulher. A identidade do eu-
lírico, na visão da pesquisadora, encontra-se disponível até o momento em que um homem
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(Américo Durão) atribui-lhe o título de “Sóror Saudade”. Tal batismo literário evidencia a
superioridade masculina e coloca no coração do eu-lírico feminino a necessidade de se isolar
e de esperar por esse redentor. Mais do que uma visão mística e sacralizada dessas figuras,
existe a crença na libertação do amado por intermédio de uma construção infantilizada de
ambos os sexos: o príncipe encantado e a princesa. Esse batismo lhe concede um privilégio
fantástico e permite sua recuperação e sua expansão de traços anteriores à sua poética.
Florbela descobre, na sua vestimenta de monja e no espaço do convento, que seu hábito não
passa de uma mortalha, cuja única experiência amorosa conferida é a da morte, presente nos
versos do poema Renúncia:
A minha mocidade outrora eu pus
No tranqüilo convento da Tristeza;
Lá passa dias, noites, sempre presa
Olhos fechados, magras mãos em cruz
[...]
Gela ainda a mortalha que te encerra
Enche a boca de cinzas e de terra,
Ó minha mocidade toda em flor!
Os fragmentos desse poema relatam a tristeza e a dor do eu-lírico por estar duplamente
preso: primeiramente, à roupa descrita como uma mortalha e, posteriormente, ao espaço que é
o próprio convento portador de uma tristeza permanente, que se intensifica com o passar dos
dias, em uma figuração da morte e de um ser cadavérico e fantasmagórico. Esse processo de
depreciação do ser humano é atestado nos versos: “Olhos fechados, magras mãos em cruz” /
“Gela ainda a mortalha que te encerra”, “Enche a boca de cinza e de terra”.
A imagem de monja na obra se deve, de acordo com Alonso (1997, p.141), “ao
conflito na mente de Florbela entre a sua inata sensualidade e o dever interiorizado”. Durante
séculos, a sociedade patriarcal criara uma imagem de mulher como desejável, se fosse passiva
e espiritual, mas pecadora, se o seu perfil fosse abertamente sexual. Explica-se a razão do
aprisionamento em um espaço (convento ou castelo) e a caracterização da freira como
estratégia para conter os desejos carnais. Tal escolha, por um lado, representa uma punição a
si própria, por sentir tão vivamente o amor, e, por outro, manifesta uma espécie de redenção
propiciada pelo isolamento e pela reflexão do seu interior. Com base nessa contenção do
amor, Bessa-Luís (1779, p. 112) explica que “Sóror Saudade é o símbolo de uma fuga ao
95
prazer, fuga que estará implícita até nos casamentos de Florbela Espanca. A apatia dos seus
últimos anos culmina com esse desejo de autopunição”.
O cenário noturno no Livro de “Sóror Saudade”
O primeiro soneto do Livro de Sóror Saudade, acima referido, além de revelar ao
leitor o nome de “Sóror Saudade”, recebido do poeta Américo Durão, sugere também o
espaço onírico a partir do instante da revelação de seu nome. Os versos iniciais do soneto
registram esse momento:
Irmã, Sóror Saudade me chamaste...
E na minh’ alma o nome iluminou-se
Como um vitral ao sol, como se fosse
A luz do próprio sonho que sonhaste.
A presença da luz marca a metamorfose do espaço que transcende do âmbito terreno
para o onírico: “(...) o nome iluminou-se
7
/ Como um vitral ao sol, como (...) a luz do
próprio sonho”. Blanchot (1987) ilustra que o espaço do sonho marca o isolamento e a fuga
do eu, onde este pode vislumbrar os desejos mais íntimos que possui.
Na segunda estrofe, o espaço real é a “tarde de outono”, temática recorrente na obra
poética de Florbela. Tal como as fases da lua, as estações do ano são símbolos universais do
nascimento, da maturidade e da morte, ciclos naturais da vida humana. Na tradição da arte
ocidental, as estações do ano são representadas pelos deuses da Antigüidade. O outono pode
ser concebido como uma figura com cachos de uva ou uma vinha, ou como Baco (Dionísio),
deus do vinho. Desde a Antigüidade, as estações têm sido assemelhadas às quatro idades do
homem, e o outono é o período em que a maturidade é atingida e não mais o fervor da
mocidade. A expressão “Numa tarde de outono” também expõe as características próprias da
estação: céu nublado e triste, cujo clima mediano provoca a queda constante das folhas e as
árvores ficam desprovidas de beleza. No texto em questão, o eu-lírico revela que o nome
“Sóror Saudade” provocou, ao mesmo tempo, ternura e tristeza: “Toda mágoa do outono ele
me trouxe; / Com ele bem mais triste me tornaste”:
Numa tarde de outono o murmuraste;
Toda a mágoa do Outono ele me trouxe;
Jamais hão de chamar outro mais doce;
7
O grifo é nosso.
96
Com ele bem mais triste me tornaste...
Os dois estados de espírito, apesar de antagônicos, estão unidos pela mesma idéia
um nome –, marcando uma inconstância de sentimentos e de identidade. O advérbio “jamais”
amplia a importância do nome e do momento, assim como os advérbios “bem” e “mais” , que
intensificam o estado de tristeza do eu-lírico. A imagem luminosa do vitral, associada à
comparação onírica, cede lugar à “mágoa de Outono”. Nos tercetos, a temática intensifica-se:
E baixinho, na alma da minh’alma,
Como bênção de sol que afaga e acalma,
Nas horas más de febre e de ansiedade,
Como se fossem pétalas caindo,
Digo as palavras desse nome lindo
Que tu me deste: irmã, “Sóror Saudade”...
No primeiro verso da terceira estrofe, a expressão “na alma da minh’alma” expressa o
desejo de atingir o mais abissal do ser – o mais íntimo da alma. Bachelard (1984) explica esse
desejo como uma necessidade que o indivíduo tem de se expressar quando a razão não é
capaz de fazê-lo. Retoma a luz como “bênção de sol”, uma graça recebida nas horas
consideradas difíceis. Nos versos finais, o nome mítico evocado suaviza tal sensação, como
exprimem as comparações da “bênção de sol e da queda de pétalas, contribuindo para o
crescimento da interiorização e do intimismo. A presença do sol e da claridade, cenário
diurno, contrasta com o cenário noturno, tão privilegiado por Florbela na antologia anterior.
O soneto intitulado Fumo retoma a temática da ausência do ser amado e a da
referência à paisagem desoladora, fruto da saudade e da distância que reflete um estado de
alma triste e de um vazio interior. A expressão “Longe de ti”, nos três primeiros versos,
reforça a idéia de ausência e de solidão. Bachelard (1984) postula que é fechado na sua
solidão que o ser de paixão prepara suas explosões, tais como nos quartetos:
Longe de ti são ermos os caminhos,
Longe de ti não há luar nem rosa
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dia sem calor, beirais sem ninhos!
Meus olhos são dois velhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas...
Abertos, sonham mãos cariciosas,
Tuas mãos doces, plenas de carinhos!
97
Comprovam os versos que a distância do ser amado desfaz toda a beleza da natureza,
posto que, sem sua presença, “...são ermos os caminhos” / “...não luar nem rosa” / “...
noites silenciosas” / “Há dias sem calor, beirais sem ninhos”, ou seja, não há vida. Tal
recorrência ao cenário é marcada por vocábulos, tais como: “luar”, “rosa, “noite” e “beirais”,
os quais fazem parte de um esquema que permite vislumbrar o grande vazio da alma do eu-
lírico. A esse respeito, Bessa-Luís (1979, p.113) esclarece que “toda vida de Florbela é uma
permanente reivindicação. Nada lhe basta nada a satisfaz.” Na concepção de Chevalier
(2006), não sonho nem inconsciente (simbologia do luar), assim como não uma
realização perfeita do amor e da vida (simbologia da rosa).
A musicalidade das rimas nos quartetos registra o desconforto provocado pela
distância e pela ausência da pessoa amada: caminhos
8
/ rosas / silenciosas / ninhos;
pobrezinhos / invernosas / cariciosas / carinhos. Está presente, também, a antítese noite / dia,
que contrasta os cenários: as noites são silenciosas e invernosas, ou seja, ausência de vida,
e os dias são sem calor, sem a claridade do sol. Daí o título “Fumo”, que se relaciona aos dias
nublados, escuros, transitórios.
A segunda estrofe inicia-se por uma metáfora, por meio da qual o eu-lírico compara os
seus olhos a dois velhos pobrezinhos que se perdem na noite de inverno. O uso de uma
adjetivação expressiva destaca-se nos versos: “velhos pobrezinhos”; “noites invernosas”;
“mãos cariciosas”; “mãos doces”, objetivando representar metonimicamente o ser ausente.
Bachelard (1984, p.224) ilustra que a escolha pela estação do inverno, “a mais velha
das estações”, remete a um passado distante que deposita tempo às lembranças. A presença do
sonho é uma forma que o eu-lírico usa para fugir do espaço real e para adentrar em um espaço
íntimo, construindo, desse modo, uma situação imaginária. Essa utilização do devaneio muda
a perspectiva triste do texto, projetando-o para uma possibilidade de melhora decorrente do
sonho. Nos tercetos, gradativamente, a paisagem identifica-se com os dias característicos de
outono:
Os dias são outonos: choram... choram...
Há crisântemos roxos que descoram...
Há murmúrios dolentes de segredos...
Invoco o nosso sonho! Estendo os braços!
E ele é, ó meu Amor, pelos espaços,
8
O grifo é nosso.
98
Fumo leve que foge entre os meus dedos!...
A metáfora “os dias são outonos” revela o pessimismo que se intensifica pela
repetição do verbo “chorar” e da pontuação expressiva (“choram... choram...”), evidenciando
uma profunda e permanente tristeza. A escolha do crisântemo e da cor roxa
9
sugere
sentimentos de tristeza e de melancolia dos dias chuvosos, cenário outonal. A permanência da
tristeza, todavia, é inevitável, e a natureza conspira para isso, à medida que a chuva descora
até mesmo a cor das flores. Figurativamente, o outono é marcado pela transformação da
natureza que adquire tons pálidos e sem vivacidade, semelhantemente à idade do homem, que
perde o seu vigor da juventude, tal como os crisântemos roxos descorados.
A atitude de estender os braços como em um clamor, por meio das exclamações e da
invocação (“ó meu Amor”), é a busca de forças no próprio sonho que se evade entre os dedos,
tal como o fumo, transitório, passageiro. A presença da fumaça remete não à relação entre
a terra e o céu, mas também ao sacrifício com o qual se homenageiam as entidades divinas.
Todo o sonho se desfaz e toda tentativa de amenizar a dor do eu-lírico é em vão; ao final do
poema, nada sobra do sonho e da paisagem: “Fumo leve que foge entre os meus dedos!”
O soneto A noite desce... retoma o enfoque do cenário noturno apresentado na
antologia Trocando Olhares, anteriormente apresentada:
Como pálpebras roxas que tombassem
Sobre uns olhos cansados, carinhosas,
A noite desce... Ah! doces mãos piedosas
Que meus olhos tristíssimos fechassem!
Assim mãos de bondade me embalassem!
Assim me adormecessem, caridosas,
E em braçadas de lírios e mimosas,
No crepúsculo que desce me enterrassem!
Os primeiros versos comparam o cair da noite com “pálpebras roxas e carinhosas”,
fechando-se sobre olhos cansados. A imagem expressiva do anoitecer revela a tristeza da
alma. Em um nível simbólico, a noite representa o desejo de se isolar da realidade e de
adentrar no espaço onírico, no qual o eu-lírico pode encontrar sua intimidade e expor seus
anseios. Assim sendo, o espaço noturno apresenta-se como influenciador de um estado de
espírito triste e desejoso da morte: “... meus olhos tristíssimos fechassem!”. Não se limita, no
9
De acordo com a simbologia das cores, o roxo (ou púrpura) é a cor que une a vitalidade do vermelho, as
energias da terra, a espiritualidade do azul, a sabedoria do céu. É a cor da sobriedade, da fé, da alquimia, da
meditação, da elevação da consciência; é a cor da inspiração.
99
horizonte do texto, à denotação, abrindo-se a apreensões e a suposições por parte do leitor, a
quem cabe estabelecer as relações entre o ser e o lugar (Santos e Oliveira, 2001).
A adjetivação presente nesse poema indica o desânimo e a identificação do cenário
com o eu interior. Esse fato se comprova pela descrição do cair da noite, comparado às
pálpebras roxas que abatem os olhos cansados. Comunga com o desejo de fugir da realidade e
de transcender por meio do sonho. Os adjetivos concernentes a olhos (“cansados”,
“tristíssimos”) e a pálpebras (“roxas” e “carinhosas”) contrastam com “doces” e “piedosas”,
referentes ao substantivo “mãos”, que reforçam a melancolia do eu-lírico. Os verbos “tombar”
e “fechar”, presentes no primeiro e no último verso da primeira estrofe, evidenciam uma
gradação crescente no anseio da morte, que se estende à segunda estrofe: há o desejo expresso
de se entregar à noite que, com suas mãos, gradativamente, (“carinhosas”, “piedosas”, “de
bondade” e “caridosas”) fechem os olhos (“tristíssimos”), embalem, adormeçam e enterrem os
“olhos cansados”. Os verbos no pretérito imperfeito significam a incerteza e a hipótese de que
a morte poderia resolver a angústia. A presença das flores (“lírios” e “mimosas”) completa a
idéia do ritual da morte no uso gradativo dos verbos “tombassem”; “fechassem”;
“embalassem”; “enterrassem”. O recurso imagético é também relevante a visualização da
imagem da noite (o crepúsculo) relacionada à da morte que chega devagar e com suas mãos
fecham os olhos (“cansados”) e revelador do momento depressivo do eu-lírico e do cenário
noturno.
Para Chevalier (2006), o crepúsculo está estreitamente ligado ao ocidente, à direção
para onde o sol se declina e morre. Exprime o fim de um ciclo, que, no caso do poema, é o da
própria vida. O lírio, por sua vez, é sinônimo de brancura, de pureza e de inocência, virtudes
almejadas para alcançar a paz restituída na sua primitividade e o bem-estar de sentir-se
refugiado, fechado em si mesmo e escondido dos demais. Nesse sentido, ao propiciar a morte
ou o devaneio, a noite seria, na visão de Bachelard (1984), um ninho que acolhe, que protege
e que acalma. Na estrofe seguinte, a noite, tão vivamente descrita nas estrofes anteriores, se
desfaz “em sombra e fumo” e reforça a idéia da efemeridade do momento:
A noite em sombra e fumo se desfaz...
Perfume de baunilha ou de lilás,
A noite põe-me embriagada, louca!
Os vocábulos “sombra” e “fumo” atestam a transformação do cenário que, na
concepção da sombra, representa as coisas fugidias irreais e mutantes, chegando a ser
considerada, por alguns povos, “a segunda natureza dos seres e das coisas que está ligada à
100
morte”. (Chevalier, 2006, p.842). A fumaça representa não o sacrifício, mas também a
relação que se estabelece entre a terra e o céu, entre o sonho e a morte. No segundo verso
dessa estrofe, temos a sinestesia, que mistifica e suaviza o cenário com o “perfume de
baunilha ou de lilás”, fragrâncias suaves e doces que trazem lembranças e confirmam a
mudança de estado de espírito do eu-lírico e do cenário noturno. A imagem gradativa da noite
que chega, bem como a pontuação expressiva, compõe a atmosfera amorosa: “A noite
desce...”; “No crepúsculo que desce...”; “A noite (...) se desfaz...”; “A noite põe-me
embriagada, louca!”; “E a noite vai descendo, muda e calma...”. Os últimos versos registram o
estágio de euforia provocado pela presença da noite, que embriaga e convida ao amor,
substituindo, assim, a realidade pela idéia. Essa mudança de sentimentos recupera a idéia da
apreciação e da comunhão que o eu-lírico florbeliano já possuía com os elementos da noite na
antologia Trocando Olhares.
A linguagem plástica presente nos sonetos da antologia em questão constrói imagens
extraordinárias da vida que pulsa. Essas imagens produzidas poeticamente são consideradas
as mais belas para Bachelard (1984) e a relação do homem com a natureza, para Eliade
(2001), é a recuperação do homem no seu estágio mais primitivo.
Florbela privilegia, na maioria dos sonetos, o cenário do entardecer, considerando-o
um retorno ao espírito romântico, especificamente às fantasias oníricas, princípios do
Simbolismo, corrente que valorizou as imagens sonoras e coloridas e também as atmosferas
de sonho. A poetisa, todavia, acrescentou o confessionalismo e a emoção na maioria dos
sonetos que compôs para o Livro de “Sóror Saudade”, em uma atitude indiferente à estética
dos padrões da moda. Ela cultiva a forma poética fixa, de origem italiana e petrarquista, na
esteira de Antônio Nobre, de Eugênio de Castro e de Camilo Pessanha, poetas simbolistas.
O tom triste, presente e marcante do Livro de “Sóror Saudade”, mantém-se em todos
os textos. Desde a primeira estrofe, cria-se um quadro melancólico do pôr-do-sol, que remete
à devoção religiosa e afirma a identidade que recebe a denominação de “Sóror Saudade”. O
costume português de rezar as ave-marias, sempre às seis horas da tarde, estabelece a
comunhão entre o cenário e os sentimentos: o sol morre, mas deixa suas marcas coloridas no
céu, até a chegada da noite, que chega trazendo a nostalgia, a lembrança da morte e da
felicidade no amor, tão ardentemente desejada.
A presença do dia também recebe significativa ênfase na obra, devido ao fato de a
poetisa ser portuguesa e de amar a terra e a paisagem do Alentejo apresentada, sempre de
forma metafórica, com a presença do sol quente (agente metonímico da luz) sobre a planície e
as casas brancas, em uma busca ansiosa de identidade.
101
O cenário da terra portuguesa
O soneto Alentejano, tal como o título expressa, retoma a paisagem da terra – o
Alentejo:
Deu agora meio-dia; o sol é quente
Beijando a urze triste dos outeiros.
Nas ravinas do monte andam ceifeiros
Na faina, alegres, desde o sol nascente.
Cantam as raparigas brandamente,
Brilham os olhos negros, feiticeiros;
E há perfis delicados e trigueiros
Entre as altas espigas d’oiro ardente.
De acordo com Chevalier (2006), a fonte de luz, do calor da vida, é uma espécie de
influência celeste que vivifica as coisas pelo seu brilho, tornando-as perceptíveis e mostrando
sua extensão. A paisagem da terra e a cena de trabalho, na primeira estrofe, marcam o período
do sol quente, “meio-dia”, que, com seu calor, “beija” e queima a urze, vegetação baixa e
agreste das elevações ou outeiros. A urze é uma espécie de uva branca, campestre, da região
do Douro. A paisagem é desoladora, mas abriga os ceifeiros que trabalham nos barrancos do
monte, desde o nascer do dia: “Na faina, alegres, desde o sol nascente”.
Na visão de Eliade (2001), o sol se torna sagrado ao estabelecer a interação da
natureza com o homem (os ceifeiros e as raparigas que cantam). As personagens que
compõem a cena são “alegres”, diferentemente daqueles apresentados nas obras dos escritores
neo-realistas, como Alves Redol
10
, que denunciou esse tipo de trabalho e descreveu a mesma
paisagem agreste.
No poema em questão, a adjetivação expressiva revela a beleza das ceifeiras de “olhos
negros” e “feiticeiros”, que cantam “brandamente” com seus “perfis delicados e trigueiros”
(morenos, da cor do trigo maduro), castigados pela exposição constante ao sol quente e que se
destacam na seara dourada dos trigais: “Brilham os olhos negros e feiticeiros; / E perfis
delicados e trigueiros / Entre as altas espigas d’oiro ardente”.
10
Escritor português (1911-1969), autor de Gaibéus, romance introdutor do movimento denominado Neo-
Realismo, em 1939.
102
O soneto recria o cenário mediante o emprego de recursos estilísticos importantes para
a caracterização da paisagem alentejana. No primeiro terceto, a preferência por palavras que
traduzem a tonalidade amarela pode ser notada a partir da expressão inicial do poema, que
marca o tempo – “meio-dia; o sol é quente” – momento em que as espigas de trigo apresentam
a cor dourada intensa (“as altas espigas d’oiro ardente”), formando uma “cabeleira loira dos
trigais”, em um interessante contraste com a pele morena dos trabalhadores, castigada pelo
sol:
A terra prende aos dedos sensuais
A cabeleira loira dos trigais
Sob a bênção dulcíssima dos céus.
Há também a imagem metafórica da terra, que prende os pés de trigo (semelhantes aos
dedos sensuais), os quais, no conjunto, assemelham-se a uma imensa cabeleira. Está presente,
igualmente, o uso expressivo do advérbio “dulcíssima”, em alusão à bênção dos céus, à
acolhida dos s de trigo pela terra. Para Eliade (2001), a terra que acolhe e gera seus filhos
personifica uma divindade.
No último terceto, o canto suave transforma-se em “gritos arrastados”, marcando o
final do texto, da paisagem e do trabalho dos ceifeiros: “Há gritos arrastados de cantigas...”.
No segundo verso, configura-se o processo de identificação do eu-lírico com as moças que
trabalham no campo: “E eu sou uma daquelas raparigas...”, reafirmando suas raízes também
plantadas na terra alentejana.
O fim do soneto se dá quando surge alguém que passa e comove-se com o canto e com
a cena, elevando o seu pensamento a Deus, em uma breve oração: “E tu passas e dizes:
“Salve-os Deus!” Concluímos que, na ausência do dramatismo tão comum na obra
florbeliana, esse soneto pode ser considerado um exemplo perfeito de sensibilidade poética e
de paz interior.
A antologia termina com o soneto Exaltação, uma consagração à vida (Viver!...Beber
o vento e o sol!...), ao amor que a poetisa tanto desejou viver, à criação poética e à pátria:
(“Trago na boca o coração dos cravos!”). Acena uma esperança de vida que terminaria logo a
seguir, em 1930.
3.3.3 Charneca em Flor: o espaço libertador do ser
103
Como afirma Bessa Luís (1979), após a publicação do livro de Sóror Saudade, em
1923, a produção poética de Florbela Espanca ficou estagnada. De 1924 a 1928, Florbela
quase não fazia versos e, durante esse período, não escreveu soneto algum, mas iniciou sua
obra em prosa. No entanto, essa esterilidade poética, tal como é descrita, não se confirma,
porque, de acordo com Dal Farra (1999, LIV), Florbela “dá notícias de Charneca em Flor,
que diz ter pronto, e de um livro de contos que está preparando, provavelmente O Dominó
Preto”.
Florbela apresentava, porém, dificuldade financeira para custear a publicação de
Charneca em Flor, e seu pai não mais desejava investir em sua obra. Em 18 de junho de
1930, inicia sua correspondência com Guido Battelli, que a auxilia financeiramente, além de
contribuir com a leitura e a tradução de seus escritos. Logo após enviar os manuscritos e se
certificar da publicação de Charneca em Flor, ela registra o desejo de ver o livro pronto e o
pressentimento de sua morte, fatalidade confirmada três dias após a última correspondência
com Batelli. Há, em torno de sua morte, um mistério criado pelo próprio Battelli na campanha
publicitária e no lançamento de Charneca em Flor, como um atrativo para o sucesso da obra,
apesar das manifestações contrárias da família do marido. Nessa tentativa desesperada de
promover a poetisa, ainda que postumamente, ele o se conta de que, em um contexto
social no qual a moral impera e o salazarismo domina, a obra de Florbela poderia ser
interditada. Para o professor italiano, interessava, unicamente, ser o porta-voz de tudo o que
estivesse ligado à poetisa, principalmente daquilo que era desconhecido.
O extraordinário boom editorial de Charneca em Flor fez que Battelli, no intuito de
manter a vendagem, modificasse a obra, retirando de suas cartas trechos julgados indiscretos e
extraindo datas para confundir os leitores e a crítica. Enfim, como explica Dal Farra (1999, p.
XVII), “Guido Battelli se apropria do manancial de Florbela Espanca, que lhe pende dos céus
e, inevitavelmente, o veste como uma luva que ganha as marcas de suas digitais, fabricando
também outras tantas que a sua fantasia lhe queria imprimir”.
A obra foi publicada em janeiro de 1931, logo após a morte de Florbela. Trata-se, na
visão de Alonso (1997), de uma coletânea na qual a poetisa se liberta, finalmente, da imagem
de monja interiorizada durante tanto tempo, melhor revelada em Sóror Saudade. A crítica
privilegiou, porém, a imagem de poetisa romântica, criada por Guido Battelli. Para comprovar
essa afirmação, Alonso (1997) transcreve um excerto de Irmã de Ariel, de autoria de Battelli,
para retratar a luta de Florbela na procura de um ideal mais elevado, interpretando a morte
como o auge das aspirações:
104
Irmã de Ariel, que tanto sofreste da solidão e da incompreensão do mundo,
que contanto ansioso anelo procuraste a divina nascente da verdade e da luz,
que cantaste a tua dor com melodioso canto do rouxinol, e as tuas raras
alegrias com ímpeto canoro da cotovia que se levanta no azul do céu. Tu
foste verdadeiramente a heroína do Ideal, cantada por Emerson. Parecem
escritas por Ti as palavras fatídicas do grande sábio americano: “Vive,
combate, sofre pelo Ideal, e para o conquistar, paga-lhe o seu tributo: a
morte!” (Battelli apud Alonso, 1997, p. 189)
Tematicamente, Charneca em Flor assemelha-se, em alguns pontos, ao livro de Sóror
Saudade, mas distingue-se da coletânea anterior pela ousadia do seu tom. Dal Farra (1999)
reconhece que essa semelhança se deve à pura explosão do erotismo que, testado pelo lado
adverso, adensa e irrompe em Charneca em Flor. A contenção é provocada pelo fato de seu
corpo estar enlaçado ao hábito de monja na obra anterior, Sóror Saudade, mas força latente
dessa poética se precipita e seus versos recuperam o panteísmo e a imagem da natureza
animizada em Charneca em Flor. O título do livro aponta para o renascimento da mulher e da
alma, ambas presas sentimentalmente, mas que agora se abrem em espaços sem limites, em
pura alegria e interação absoluta com a natureza, tal como se comprova no soneto Primavera:
É Primavera agora, meu Amor!
O campo despe a veste de estamenha;
Não há árvore nenhuma que não tenha
O coração aberto, todo em flor!
[...]
Também despi meu triste burel pardo
E agora cheiro a rosmaninho e a nardo
E ando agora tonta, à tua espera...
A mediação da natureza para a inovação do corpo e do desejo não deixa, de um lado,
de ser sintoma do pudor traduzido pela convivência com a Sóror, mas também se impõe como
o mais eficaz meio de sedução. Na visão de Dal Farra (1999), Charneca em Flor é a mais
significativa produção florbeliana, porque, por meio dela, Florbela alcançou a liberdade e o
direito de abrir ou de fechar os seus desejos. Pôde, enfim, alcançar sua maioridade poética,
como lembra Alonso (1997), apontando para o fato de que ela soube transformar o sofrimento
(tão evidente na antologia anterior) em fonte de poder e de grandeza evidenciada na primeira
coletânea, sistematicamente, na imagem da princesa dos contos de fada exilada no seu próprio
reino.
O cenário noturno
105
O poema de abertura, intitulado Charneca em Flor, explicita “uma reescrita do
anterior retrato do Livro de Sóror Saudade” (Alonso, 1997, p. 175), no qual o eu-lírico adota
a postura de uma monja e tenta tornar-se indiferente à sua sexualidade. Em Charneca em
Flor, pelo contrário, uma completa receptividade ao mundo exterior e aos movimentos
internos do seu ser, adotando uma atitude pagã e amoral para sua época e colocando-se como
representação de uma natureza fértil e geradora de vida. Nesse sentido, a imagem de freira,
anteriormente apresentada, é descartada.
As primeiras duas estrofes do soneto Charneca em Flor apresentam as sensações de
receio e de excitação experimentadas pelo eu-lírico, revelando o surgimento de um sentimento
novo, inominável que lhe invade a alma, que provoca alegria:
Enche o meu peito, num encanto mago,
O frêmito das coisas dolorosas...
Sob as urzes queimadas nascem rosas...
Nos meus olhos as lágrimas apago...
Anseio! Asas abertas! O que trago
Em mim? Eu oiço bocas silenciosas
Murmurar-me palavras misteriosas
Que perturbam o meu ser como um afago!
O hipérbato presente no primeiro verso põe o verbo “encher” em evidência ao
expressar a oposição direta do esvaziamento dos sentimentos que auxiliam na construção da
imagem casta em Sóror Saudade, revelando a importância dos elementos “terra” e “cinza”
que preenchiam sua alma e seus sentimentos, simbolizando a própria a morte. Tudo aquilo
que enche o seu peito não é, contudo, desprovido de sofrimento, visto que se coloca como “o
frêmito das coisas dolorosas”, insinuado não só pelo adjetivo que acompanha a palavra
“coisas”, mas também pela pontuação expressiva, a idéia de continuidade do pesar. Seja como
for, aquilo que invade o eu-lírico talvez lhe cause sofrimento, mas, contrariamente, enche-o de
encanto, como denota a expressão “no encanto mago”. Os versos a seguir preenchem o vazio
do texto com relação ao sentimento inominável que se apresenta no primeiro momento como
novo para o eu-lírico e como indecifrável ao leitor. O terceiro e quarto versos da primeira
estrofe esclarecem tal sentimento, nomeando-o como um processo de renascimento:
Sobre as urzes queimadas nascem rosas...
Nos meus olhos as lágrimas apago...
106
O processo de renascer coincide com o processo natural do brotar das rosas, sendo
sublinhado pela comparação implícita com a natureza: da mesma forma que as rosas podem
florir entre arbustos destruídos (as urzes), o eu-lírico pode deixar desabrochar a vida presente,
apesar de seu passado infrutífero. Nesse processo de florescimento por meio da interação do
seu estado de espírito com o cenário, o renascimento é sentido, mas não nomeado. Em uma
tentativa de decifrar os sentimentos novos dentro de si, o eu-lírico procura indícios e os
oferece ao leitor como forma de chamá-lo às sínteses e às seleções de hipóteses dos mistérios
do seu inconsciente:
Anseio! Asas abertas! O que trago
Em mim? Eu oiço bocas silenciosas
Murmurar-me as palavras misteriosas
Que perturbam meu ser como um afago!
O primeiro terceto do poema anuncia uma explosão da voz interior e a rejeição total de
sua vida de abnegação. A imagem que confirma essa idéia é o ato de despir-se das convenções
e dos preconceitos até então vividos. O verbo despir” desvenda a indisposição com sua
imagem anterior e apresenta a nova identidade, apenas revelada no final do poema:
E, nesta febre ansiosa que me invade,
Dispo a minha mortalha, o meu burel,
E, já não sou, Amor, Sóror Saudade...
Os versos demonstram o eu-lírico liberto de uma personalidade imposta, a de Sóror
Saudade. É o momento de despir a “mortalha” e o “burel” para beber os “êxtases de amor”,
em uma “febre ansiosa”, que faz apagar as lágrimas e abrir as asas, em uma comunhão íntima
com a Natureza da qual faz parte.
Na última estrofe, o eu-lírico atinge o seu deslumbramento e assiste ao fato de que
tudo o que fora suprimido anteriormente ganha vida: “Boca a saber a sol, a fruto, a mel: / Sou
a charneca rude a abrir em flor!”, traduzindo, definitivamente, a imagem primaveril de uma
esperança de vida, em um cenário alentejano carregado de conotações românticas.
No soneto Tarde no Mar, a paisagem que compõe o cenário é uma tarde luminosa e
quente à beira mar: “A tarde é de oiro rútilo: esbraseia, / O horizonte: um cacto purpurino”.
Encontramos metáforas tradutoras de tonalidades quentes: o amarelo ouro ardente e o
vermelho brilhante nas palavras “oiro”, “rútilo”, “esbraseia”, “cacto”, “purpurino”.
Reveladores da intensa luz e calor emanados pelo sol em brasa, esses elementos tornam o
107
horizonte vermelho semelhante ao cacto (solitário), identificando o calor do sentimento
amoroso que, como o cenário, aquece o corpo e a alma. Nos versos seguintes, o mar completa
e movimento à cena: E a vaga esbelta que palpita e ondeia, / Com uma frágil graça de
menino, / Pois o manto de arminho na areia / E vai, e segue ao seu destino!”. Nesses
versos, observamos o uso de uma adjetivação expressiva: “vaga esbelta”; “frágil graça”;
“manto de arminho”, para descrever o movimento da onda (a “vaga”), que, ao chegar à areia,
transforma-se em um manto “de arminho” (pele valiosa de cor branca), que cobre a areia,
também da mesma cor.
A cor predominante na paisagem alentejana está presente nas casas pintadas de branco
e iluminadas pela luz solar intensa: “E o sol, nas casas brancas que incendeia”. No verso
seguinte, essa luz se intensifica e cria o movimento do sol, que “desenha” com sua luz e calor
“mãos sangrentas de assassino”. Um nítido contraste do branco com o vermelho cor de sangue
(a intensidade do sol que arde em fogo) sugere uma idéia de destruição pela luz e pelo calor
intenso. É a vida que pulsa de forma agressiva, desconstruindo a idéia de fragilidade da
natureza e dos sentimentos.
Nos tercetos, o cenário caminha para o seu final, assim como a tarde que se encerra em
uma combinação das cores, apontando seu efeito sobre o estado de espírito do eu-lírico:
Que linda tarde aberta sobre o mar!
Vai deitando do céu molhos de rosas
Que Apolo se entretém a desfolhar...
E, sobre mim, em gestos palpitantes,
As tuas mãos morenas, milagrosas,
São as asas do sol, agonizantes...
Depreende-se dos versos que a luz intensa do sol perde o seu vigor e o cenário adquire
as cores do entardecer. A tarde transforma-se em algo místico, sublime e onírico, quando o sol
encontra o mar e lhe presenteia rosas desfolhadas pelo deus Apolo que, na narrativa
mitológica, simboliza a luz e a beleza. O cenário recupera, assim, o seu encanto (“Que linda
tarde aberta sobre o mar!”) e esse mesmo sol que ardeu sobre as casas e o mar identifica-se
com as mãos do ser amado: “morenas, milagrosas (...) agonizantes”. A presença do gestual
encerra o texto: os gestos são emocionantes e transformam-se em “asas do sol, agonizantes...”
e, por que não dizer, protetoras. Há uma perfeita interação entre a tarde iluminada e quente do
cenário com o estado de espírito do eu-lírico, a partir de uma significativa mudança na
108
escolha das cores que, até então, recaía sobre o roxo, o violeta e o cinza para manifestar a
fragilidade interior.
Da tarde quente e ensolarada, o cenário apresenta-se chuvoso e sombrio, no soneto
Mistério, modificando, substancialmente, o estado de espírito do eu-lírico desde o primeiro
quarteto:
Gosto de ti, ó chuva, nos beirados,
Dizendo coisas que ninguém entende!
Da tua cantilena se desprende
Um sonho de magias e pecados.
O primeiro verso enfatiza a chuva por meio do vocativo “ó chuva”, colocando-a no
centro do verso, atribuindo, assim, a importância que o fenômeno natural tem no poema. A
presença desse sintagma não é um dado irrelevante, e sim um elemento natural que convida o
eu-lírico a sonhar, a libertar e a purificar os pecados. Há uma evidente animização da natureza
na referência ao barulho da chuva que se transforma em uma “cantilena” (canto suave e
monótono) ao bater nos beirais da casa. A musicalidade presente no final das palavras: -ado; -
ende, nos quartetos, e -io, -io, -osas, nos tercetos, sugere a tristeza de um dia chuvoso e a
melancolia da alma. Observamos nas rimas um conflito na combinação das palavras nos
tercetos: frio / arrepio / mistério / cemitério; dolorosas / rosas, que possibilita a entrada do
eu-lírico (e do leitor) no espaço imaginário e onírico do sonho e do desejo de libertar-se.
Na segunda estrofe, porém, a adjetivação expressiva se faz presente, bem como a
personificação, intensificando o tema:
Dos teus pálidos dedos delicados
Uma alada canção palpita e ascende,
Frases que a nossa boca não aprende,
Murmúrios por caminhos desolados.
As gotas de chuva são “pálidos dedos delicados”, imagem personificada com total
ausência de cor e de vida, contrariamente ao soneto anterior. No segundo verso, o cair da
chuva identifica-se a uma canção suave que sobe no ar (“alada”), mas é inteligível (“a nossa
boca não aprende”) e causa desolação na alma (“caminhos desolados”). Nos tercetos,
referência à cor branca, que, contrariamente ao soneto anterior, provoca uma sensação
fúnebre, a da morte: “Pelo meu rosto branco, sempre frio / Fazes passar o lúgubre arrepio /
das sensações estranhas, dolorosas...”. Configura-se a influência do cenário no estado de
espírito do eu-lírico, centrando-se nas conseqüências da interação da natureza com o ser. No
109
soneto, há uma visão triste e melancólica da chuva que, além de provocar o “lúgubre arrepio”,
sugere o desejo de desvendar os mistérios da natureza e da vida: “Talvez um dia entenda o teu
mistério... / Quando, inerte, na paz do cemitério, / O meu corpo matar a fome às rosas”. Essa
possibilidade se evidencia pela presença do advérbio “talvez” que, mesmo não dando certeza
do fim do enigma, vislumbra uma provável solução. A respeito dessa solução construída em
torno da descoberta da linguagem da chuva, a morte e o retorno (dramático) à terra são
possibilidades de sua materialização, porque, desse modo, o eu-lírico se transfigurará em um
elemento do cenário e poderá interagir com ele de forma plena: “O meu corpo matar a fome
às rosas!”. Nesse sentido, Blanchot (1987) reconhece que a morte, vista como transmutação
do ser em algo novo, é uma morte contente, pois ela não é o fim, mas o início de um
conhecimento inesgotável que a vida mostra apenas parcialmente.
No poema Noitinha, o diminutivo presente no título marca um processo de transição
entre o final da tarde e o início da noite. Do mesmo modo que o cenário modifica o estado de
espírito do eu-lírico, o início da noite simboliza a volta ao indeterminado, momento em que se
misturam pesadelos e monstros e em que o inconsciente se liberta. A chegada da noite liberta
a alma e lhe desperta a sensibilidade: “ir ao encontro da liberdade que me torna livre do ser e
me permite escapar do desafio e superar-me ao passar para o mundo dos outros”
(BLANCHOT, 1987, p. 164). Depreende-se que a função libertadora da noite, por meio do
sono, retira o ser do seu próprio mundo e o faz transcender a outro estágio de vida dominado
pelo imaginário, o próprio sonho.
Na primeira estrofe, os versos iniciais descrevem, metaforicamente, a chegada da noite
ao encontro de duas pessoas: “A noite sobre nós se debruçou... / Minha alma ajoelha, põe as
mãos e ora!”. O período do dia sugere a hora da devoção religiosa que une as pessoas
(“Noitinha”), idéia confirmada na imagem personificada da alma que, ajoelhada, ora com as
mãos postas. Nos versos seguintes, o cenário da noite se completa com o luar despontando
das colinas, inundando a paisagem com sua luz, semelhantemente à água que escorre de um
vaso de boca estreita (“gomil”) sobre a terra, purificando-a: “O luar, pelas colinas, nesta hora,
/ É água dum gomil que se entornou...”. Na estrofe seguinte, o primeiro verso intensifica a
beleza do luar e da cor prateada que ilumina a noite: “Não sei quem tanta pérola espalhou!”
Completam o cenário as flores do campo (“humildes”) adormecidas, cujos olhos foram
fechados pela chegada da noite (personificação), e a voz dos pássaros (“rouxinóis”) nos
salgueirais, os quais elevam o estado de espírito do eu-lírico na tranqüilidade do anoitecer:
110
Flores do campo, humildes, mesmo agora,
A noite, os olhos brandos, lhes fechou...
Fumo beijando o colmo dos casais...
Serenidade idílica de fontes,
E a voz dos rouxinóis nos salgueirais...
Tranqüilidade... calma...anoitecer...
Num êxtase, eu escuto pelos montes
O coração das pedras a bater.
Os vocábulos “fontes”, “rouxinóis” e “salgueirais” compõem um cenário bucólico,
expressando a paz e o misticismo, os quais, ao anoitecer, momento mágico da natureza,
provocam no estado de espírito do eu-lírico. Todas essas imagens insinuam o harmonioso
transcorrer da vida que se mantém na última estrofe, quando, no primeiro verso, a pontuação
expressiva mostra o permanecer sereno e calmo do tempo que não se detém. Os dois últimos
versos do soneto (a “chave de ouro”) criam a imagem metafórica da vida que pulsa na
natureza, em um deslumbramento profundo, completando o cenário: “Num êxtase, eu escuto
pelos montes / O coração das pedras a bater”.
A mesma paisagem se repete no soneto Outonal. A escolha pelo outono se justifica
pela tendência simbolista de Florbela, considerando que era a estação do ano preferida dos
adeptos dessa escola literária, pelas imagens tradutoras de uma atmosfera vaga, triste e
misteriosa. O texto em questão, em um tom narrativo, apresenta uma imagem carregada de
desolação: Caem as folhas mortas sobre o lago; / Na penumbra outonal (...)”. Evidencia-se,
desde o primeiro verso, uma adjetivação expressiva, anunciando uma atmosfera de
encantamento, seguida de metáforas que se completarão com as lembranças amorosas do eu-
lírico, no final do poema. A presença de uma pontuação expressiva, com reticências e
exclamações, também ocorre ao longo do texto:
Caem as folhas mortas sobre o lago;
Na penumbra outonal, não sei quem tece
As rendas do silêncio... Olha, anoitece!
- Brumas longínquas do País do Vago...
Veludos a ondear... Mistério mago...
Encantamento... A hora que não esquece,
A luz que pouco a pouco desfalece,
Que lança em mim a bênção dum afago...
111
Florbela retoma, nesse contexto, a paisagem de final de tarde, definindo a estação do
ano o Outono. Diferentemente do soneto Noitinha, a paisagem outonal traz à lembrança as
“noites voluptuosas” de amor que provocam soluços e relembram os delírios de amor. Na
construção do cenário, a metáfora “rendas do silêncio”, no terceiro verso, traduz a delicadeza
do silêncio da tarde, momento mágico da passagem do dia para a noite, observado na
expressão vocativa: “Olha, anoitece!” e nos versos “A luz que pouco a pouco desfalece, / Que
lança em mim a bênção dum afago”.
Nos versos seguintes, a magia e o encantamento se estendem, revelando, por meio de
construções sinestésicas, as cores do entardecer: do amarelo dourado do pôr-do-sol às
tonalidades avermelhadas do damasco, dos brocados e da cor púrpura, vermelho escuro
requintado de antigas vestimentas régias. também referência ao veludo, extremamente
macio ao tato, representante da opulência do outono. A luz solar, aos poucos, “desfalece”,
vestindo a terra de beleza. Observamos, ainda, o uso do diminutivo afetivo: “tardinhas
silenciosas”, que contrasta com a dupla adjetivação para as noites outonais, “magníficas” e
“voluptuosas”, ou seja, noites que encerram prazer, deleite e sensualidade.
Foneticamente, essa visão do outono é intensificada por meio das aliterações em [d] e
[p], nas linhas 9-10, e em [t], na linha 11. O esplendor consolida a idéia de sensualidade do
outono que se prolongará no âmbito amoroso. O amor, diferentemente do Livro de Sóror
Saudade, não é mais contemplativo, e sim materializado.
Nos tercetos,
Outono dos crepúsculos doirados,
De púrpuras, damascos e brocados!
- Vestes a terra inteira de esplendor!
Outono das tardinhas silenciosas,
Das magníficas noites voluptuosas
Em que eu soluço a delirar de amor...
o verbo “soluço”, contrariamente à indicação de dor, desconstrói essa perspectiva negativa ao
expressar o delírio de amor sentido, da experiência do amor físico, lembrança trazida pela
beleza de uma noite de outono.
No poema Alvorecer, registra-se a chegada de um novo dia e, novamente, o seu
declínio, com a chegada do luar, completando o seu ciclo. Logo no primeiro verso do poema,
o dia se consolida no verbo “Alvorecer”. Duas imagens contrárias dão continuidade ao
processo: o barulho da água da fonte (o “gargalhar”), que se opõe à “cidade muda” – imagens
112
do dia que começam a ganhar nova vida. A metáfora (...) “o horizonte / É uma orquídea
estranha a florescer” (orquídea, flor de rara beleza; daí, “estranha”) reflete o mistério do ciclo
noite / dia e seu processo. Na segunda estrofe, o cenário se completa com a chegada das
andorinhas, com os galos que gritam alegres e com o sol que desponta a vida pulsa. É
interessante observar que no espaço natural tudo obedece a uma lógica harmônica, pois cada
elemento do cenário tem sua função e seu sentido na constituição do poema:
A noite empalidece. Alvorecer...
Ouve-se mais o gargalhar da fonte...
Sobre a cidade muda, o horizonte
É uma orquídea estranha a florescer.
Há andorinhas prontas a dizer
A missa d’alva, mal o sol desponte.
Gritos de galos soam monte em monte
Numa intensa alegria de viver.
As rimas comprovam a idéia da explosão de vida, nos vocábulos: alvorecer... /
florescer; fonte / horizonte; dizer / viver / desponte / monte. A escolha dos verbos “alvorecer”
e “florescer” (que abrem e fecham o primeiro quarteto) justifica-se na descrição do nascer do
dia. Bachelard (1978), atentando para a dicotomia do abrir e do fechar, ao analisar a
simbologia do cofre, esclarece que a abertura representa a descoberta de algo que, até então,
encontrava-se oculto e apenas apresentava a sua aparência no mundo exterior. Com a
abertura, o externo não significa mais nada e a novidade toma o seu lugar.
Nos tercetos, ocorre uma mudança de perspectiva – um novo elemento se apresenta na
expressão: “um vulto que se esvai”, contrastando com a paisagem clara e alegre em uma
substancial mudança de tom. Foram criadas imagens que traduzem mistério na escolha das
palavras e na pontuação expressiva: “Passos ao longe... um vulto que se esvai...”.
Depreendemos que não são meros adereços do texto, mas servem para contrastar a vida que
nasce com a aurora, com o mundo da noite e dos sonhos que se desvanecem. Nesse momento,
a imagem utilizada cumpre a função que lhe atribui Bachelard (1978), porque estabelece uma
cooperação do real das duas primeiras estrofes com o irreal dos dois últimos tercetos, nos
quais o espaço vivido se transforma em espaço sonhado:
Passos ao longe... Um vulto que se esvai...
Em cada sombra Colombina trai...
Anda o silêncio em volta a querer falar...
113
E o luar que desmaia, macerado,
Lembra, pálido, tonto, esfarrapado,
Um Pierrot, todo branco, a soluçar...
nos versos a presença da sombra que representa a chegada da noite. As imagens
não são nítidas e a alegria do dia e o canto dos pássaros cedem lugar ao silêncio e à
imaginação. O cenário ilumina-se com a chegada do “luar que desmaia, macerado”
(mortificado), lembrando a figura de um Pierrot branco, pálido, tonto e esfarrapado, que chora
decepcionado pela traição da Colombina.
A divisão apresentada pelo poema, contemplando o cenário real e o cenário onírico,
constitui o que Bachelard (1978) denomina de crisálida, por meio da qual se conjugam os
sonhos do descanso e do refúgio (as duas primeiras estrofes) e o desabrochar do ser (os dois
últimos tercetos). Tal processo, no qual o eu-lírico se a conhecer, dinamiza a imaginação
do leitor no momento em que, pela leitura, pode penetrar nos dois universos.
O cenário da terra portuguesa
O soneto a seguir, Árvores do Alentejo, é dedicado a Guido Batelli. O texto apresenta-
se dividido em duas partes distintas: nos quartetos, a descrição de uma paisagem
desoladora e castigada pelo sol quente e, nos tercetos, as exclamações e o apelo identificam o
sofrimento das árvores castigadas pela seca com a dor sofrida pelo eu-lírico que, também com
sede, pede a Deus a nção da água. O cenário descrito é portador de vida e de significado,
expressando com propriedade a relação íntima com os elementos da natureza:
Horas mortas... Curvadas aos pés do Monte
A planície é um brasido... e, torturadas,
As árvores sangrentas, revoltadas,
Gritam a Deus a bênção duma fonte
A expressão “Horas mortas” que abre o soneto indica a existência de um silêncio
profundo, como se o tempo estivesse paralisado e a cena descrita fosse atemporal. A paisagem
alentejana a planície assemelha-se a uma grande porção de brasas (“brasido”) pela intensa
e quente luz do sol. A imagem é revelada por meio de uma adjetivação expressiva, por vezes
dupla, como nos versos: “As árvores sangrentas, revoltadas,” que estão “curvadas aos pés do
Monte / (...) torturadas, / [As árvores] Gritam a Deus a bênção duma fonte”. A pontuação é
significativa: reticências e exclamações configuram a dramaticidade e a realidade do cenário
desolador. Na segunda estrofe, observa-se a presença da cor amarela do sol (“posponte”) e das
114
flores amarelas dos arbustos (“oiro a giesta”). A idéia de solidão e de desolação repete-se na
referência às estradas “esfíngicas” e “desgrenhadas”, adjetivação binária que completa a
composição dramática do horizonte que “arde” com a luz intensa do sol, na “manhã alta”:
E quando, manhã alta, o sol posponte
A oiro a giesta, a arder, pelas estradas,
Esfingicas, recortam desgrenhadas
Os trágicos perfis do horizonte!
Nos tercetos, evidencia-se uma interação manifestada entre o eu-lírico e o cenário. Essa
interação pode ser reconhecida pelo leitor desde o início do poema, pelo tom dramático e pela
escolha dos vocábulos que descreve o cenário. O vocativo “Árvores!” inicia o primeiro verso
dos tercetos, apresentando a palavra “almas” repetidamente: “almas que choram”; “almas
iguais a minha”; “almas que imploram” denotando angústia e sofrimento do eu-lírico, na
gradação verbal “choram” / “imploram”:
Árvores! Corações, almas que choram,
Almas iguais à minha, almas que imploram
Em vão remédio para tanta ansiedade!
Árvores! Não choreis! Olhai e vede:
- Também ando a gritar, morta de sede,
Pedindo a Deus a minha gota de água!
Em um apelo dramático, vai buscar em Deus o refúgio para a agonia (“Também ando a gritar,
morta de sede”), nos versos que encerram o poema.
No soneto Panteísmo, dedicado a Botto de Carvalho, o cenário se repete o mesmo
sol e a tarde de brasa”. Diferentemente do soneto anterior, o dramatismo e a consternação
desaparecem para dar lugar ao panteísmo, filosofia religiosa com a qual o eu-lírico se
identifica. Essa visão recupera a concepção de religiosidade proposta por Eliade (2001), que
aponta o panteísmo como uma das formas de reconhecimento do sagrado, da relação íntima
que o homem estabelece com a natureza, na qual reconhece a prefiguração do divino.
Etimologicamente, o termo panteísmo deriva das palavras gregas pan ("tudo") e teísmo
("crença em deus"), sustentando a idéia da crença em um Criador que está presente em tudo
ou a de muitos deuses representados pelos múltiplos elementos divinizados da natureza e do
universo.
115
Na primeira estrofe, o eu-lírico apresenta a construção de um cenário que, desde o
primeiro verso, é descrito com imagens que denotam uma luminosidade intensa devido à
imagem de uma “tarde de brasa a arder”, que é reforçada pela presença do sol ardente de
verão. O verbo “cingir”, que faz menção ao sol, encontra-se no gerúndio, evidenciando
ininterrupção da claridade que inunda o espaço e o horizonte. O adjetivo que qualifica o sol é
“voluptuoso”, referindo-se ao prazer que sua presença causa na natureza e também a um
possível erotismo que perpassa pelo poema. A perfeita interação eu-lírico / cenário torna-se
evidente pelo uso da primeira pessoa verbal nos quartetos: “sinto-me”, “vejo-me”, “oiço-me”,
“penso” e “cismo”:
Tarde de brasa a arder, o sol de verão
Cingindo, voluptuoso, o horizonte...
Sinto-me luz e cor, ritmo e clarão
Dum verso triunfal de Anacreonte!
uma referência a Anacreonte
11
, que não é meramente ilustrativa. O eu-lírico revela
o seu desejo íntimo de identificação com um dos maiores poetas da Grécia antiga. A luz do
sol, metaforicamente, desperta-lhe o desejo de identidade com o verso do poeta grego,
cantando de modo “triunfal” o prazer e as qualidades do verso perfeito: luz, cor e ritmo. A
segunda estrofe faz referência ao panteísmo, que se completa nos tercetos:
Vejo-me asa no ar, erva no chão,
Ouço-me gota de água a rir, na fonte,
E a curva altiva e dura do Marão
É o meu corpo transformado em monte!
Os versos acima apontam para uma imagem poética portadora de alegria, de vida e de
felicidade no processo de personificação que se complementa na Serra do Marão, a sexta
maior elevação de Portugal, que mede 1415m de altitude e 689m de proeminência
topográfica. Situa-se na região de transição do Douro Litoral para o Alto Douro, região norte
de Portugal. Essa referência a Serra do Marão e aos versos de Anacreonte permite a
construção de uma visão elevada de si mesmo a tal ponto que, no momento seguinte, ocorre a
constatação de sua grandiosidade, quando o corpo se transforma em monte, em uma
harmonização perfeita entre a realidade e o sonho. A adjetivação é expressiva e binária ao
11
Poeta lírico grego, nascido em Téos, entre os séculos VI-V a.C. Poucos fragmentos de sua obra são
conhecidos. Seus poemas cantam os prazeres das musas, as artes, Afrodite e o amor.
116
referir-se às curvas da serra e à dureza da pedra: “E a curva altiva e dura do Marão / É o meu
corpo transformado em monte!”.
A terceira estrofe apresenta uma visão singular do eu-lírico, visto que na condição de
monte, completa o panteísmo desejado: a terra “de bruços” em uma completa interação
(“penso e cismo”) a alma torna-se túmulo dos deuses antigos na metáfora: “A minha alma é
o túmulo profundo / Onde dormem, sorrindo, os deuses mortos!” Para Eliade (2001), a terra é
a deusa mais grandiosa de todas porque acolhe e gera todos os seus filhos:
E de bruços na terra penso e cismo
Que, neste meu ardente panteísmo,
Nos meus sentidos postos, absortos
Nas coisas luminosas deste mundo,
A minha alma é o túmulo profundo
Onde dormem, sorrindo, os deuses mortos!
A interação entre o ser e o espaço é relevante e atribui ao texto uma espécie de magia.
As imagens íntimas convidam o leitor a entregar-se ao texto e a prender-se de tal forma que
possa interagir com ele e encantar-se com suas imagens (Blanchot, 1987). O tom imaginário
concede, segundo o autor, o caráter de sonho, despertando o mítico, o vazio e o vago, além de
perder-se nos sonhos e nos conceitos de verdade. Aproxima-se daquilo que
“verdadeiramente” não pode ser e que, por isso, relaciona-se com o que é semelhante. Esse
devaneio é, no entanto, concebido por Bachelard (1984) como a figurativização de uma
concha. Explica o autor que o espaço se mostra seguro, mas, se não for possível descrevê-lo
fielmente, poderá ser desenhado pelas imagens que apresenta. A presença do “eu” em meio a
esse cenário preenche um espaço, um esconderijo. Entretanto o leitor conhece esse refúgio por
intermédio do verso “É o meu corpo transformado em monte!”, demonstrando o
aprisionamento às formas geométricas sólidas da serra do Marão. Nos últimos versos do
poema, todavia, os sentidos acabam espalhados no horizonte iluminado (“Nas coisas
luminosas deste mundo”), em uma atitude de libertação. Sem forma definida, a alma
transforma-se em “túmulo profundo”.
No último soneto selecionado da obra Charneca em Flor, intitulado Pobre de Cristo,
Florbela expressa o desejo de voltar à terra natal, o Alentejo, para reencontrar suas origens,
seu espaço primitivo. Esse desejo de retorno que lhe devolverá o bem-estar, quando inserido
em seu espaço primitivo, é definido por Bachelard (1984) como “ninho”. É nesse espaço que
117
o sentimento de refúgio provoca o fechamento em si mesmo, procurando esconder-se dos
demais para que, na solidão, possa desvendar o seu interior, como expressam os versos:
Ó minha terra na planície rasa,
Branca de sol e cal e de luar,
Minha terra que nunca viste o mar,
Onde tenho o meu pão e a minha casa.
Minha terra de tardes sem uma asa,
Sem um bater de folha... a dormitar...
Meu anel de rubis a flamejar,
Minha terra moirisca a arder em brasa!
Observa-se uma emocionada exaltação à terra natal (“Ó minha terra... / Minha terra...
onde tenho o meu pão e a minha casa / (...) Minha terra de tardes sem uma asa / (...) Minha
terra moirisca a arder em brasa!”). De acordo com Bachelard (1984), estão presentes também
os valores oníricos que a memória e a imaginação não deixam dissociar, mas trabalham
mutuamente, constituindo a comunhão da lembrança e da imagem que se concentra na terra
vista como a casa. Lembranças e imagens interagem na formação desse espaço mítico ora
real, ora imaginário.
Definida como “planície rasa”, a referência é a região do Alentejo, que possui
planícies a perder de vista, as quais combinam com o sol e com o calor, impondo um ritmo de
vida lento e compassado (“... a dormitar...”). O verso “Branca de sol e cal e de luar” refere-se
às casas térreas, brancas caiadas que compõem os cenários diurno (“Branca de sol e cal”) e
noturno (“... e de luar”) da planície alentejana. O sol identifica-se com um “anel de rubis a
flamejar” e com a brasa, lembrando a cor vermelha e o calor que aquece e brilha: “Minha
terra moirisca a arder em brasa!”. De acordo com Chevalier (2006), o rubi simboliza a
felicidade e a superação de todas as pedras preciosas, visto que luz alguma consegue apagar o
seu brilho. O verso refere-se também à herança deixada pelos mouros, que ocuparam a
Península Ibérica por mais de oito séculos.
Esse dar-se a conhecer apresenta dois obstáculos postulados por Blanchot (1987): o
primeiro refere-se ao limite temporal ou espacial das recordações dos seres, e o segundo
relaciona-se à dificuldade de desligamento dos limites temporal e espacial, a busca da
intimidade fechada. Esses obstáculos se relacionam ao fato de que não existe ponto algum no
espaço que signifique, simultaneamente, intimidade e exterioridade. Essa dificuldade de
delimitação espacial e íntima mostra-se no soneto, sobretudo, nos tercetos:
118
Minha terra onde meu irmão nasceu,
Aonde a mãe que eu tive e que morreu
Foi moça e loira, amou e foi amada!
Truz... truz... truz... – Eu não tenho onde me acoite,
Sou um pobre de longe, é quase noite,
Terra, quero dormir, dá-me pousada!...
A terra natal de Florbela, nesse soneto, deixa de ser um longínquo reino imaginário e
passa a ser um espaço real (o Alentejo), que, apesar de apontar a realidade do espaço, devido
às informações verídicas da vida de Florbela (como a morte da mãe e o nascimento do irmão
presentes nesse soneto) torna-o simultaneamente mítico em decorrência da sua extrema
alvura: “Ó minha terra na planície rasa, / branca de sol e cal e de luar,”.
Fica evidente para o leitor que lembranças e devaneios entrelaçam-se nessa descrição
do espaço marcado pela atemporalidade (sem um bater de folha..., a dormitar) e pela
preciosidade (meu anel de rubis a flamejar), características próprias do espaço, mas que
imageticamente se mostram de forma diferente ao leitor.
Contrastando fortemente com o porto de abrigo que a terra natal representa para o eu-
lírico, o terceto final evoca o estado de infidelidade da terra mediante a pobreza espiritual
extrema em que o eu-lírico se encontra. Cansado de sofrer, procura um lugar para descansar
quando morrer. Os versos finais são mais do que uma revelação sobre seu deslocamento do
mundo e podem ser interpretados como um exemplo da relação da obra com o seu autor, no
sentido em que o soneto prenuncia a morte de Florbela.
Para concluir o capítulo, elaboramos um quadro comparativo das três antologias
estudadas e cotejamos os dois tipos de cenário estudados: o noturno e o da terra portuguesa
como forma de revelação lírica, considerando as identidades e as diferenças. Esses cenários
revelam o estado de espírito do eu-lírico florbeliano, provocando-lhe sentimentos diversos,
tais como: solidão, tristeza, exílio, opressão, liberdade, aconchego, saudade da terra natal,
entre outros.
119
A) O cenário noturno
Trocando Olhares Livro de “Sóror Saudade” Charneca em Flor
O cenário noturno está
marcadamente presente nessa
antologia, retratando a extrema
necessidade do eu-lírico de
sonhar e de buscar a satisfação
de seus desejos expressos em
seus devaneios.
A identificação do eu-lírico
com a Lua, que nunca encontra
o Sol, é relevante, porque o
espaço interage com os
sentimentos de solidão e de
tristeza que não podem ser
revelados nem reconhecidos em
seu olhar.
A noite representa a solidão, o
acolhimento e compartilha da
dor do eu-lírico, libertando-o de
suas angústias por meio do
sonho, além de criar um clima
propício para refletir sobre o
sofrimento da alma.
Observamos, nos sonetos, a
simbologia da cor branca na
presença da lua, dos lírios
brancos, da neve, das asas de
anjos, das flores de laranjeira.
As cores escuras, como o negro
e o preto, também estão
presentes em contraste de
cenário, não menos belo, mas
triste, como o canto das
cigarras, imagem puramente
saudosista presente nos sonetos.
O cenário noturno, nessa
antologia, enfatiza, de forma
especial e evidente, a noite,
principalmente, no momento de
sua chegada, o crepúsculo, o
entardecer. Esse é o momento
mágico de encontro do eu-lírico
consigo mesmo, em um espaço
de exílio, momento em que se
distancia totalmente dos demais
seres reais do espaço exterior.
A escolha
nesse caso, decorre do espaço
fechado, no qual, de forma
idêntica, a alma do eu-lírico
revela, principalmente, um
constante estado de espírito
melancólico. Daí a extrema
dificuldade de retratar a
claridade do dia.
O cenário noturno, na maioria
das vezes, refere-se à estação do
Outono e a toda sua simbologia,
seu colorido esmaecido, que
torna os dias tristes,
melancólicos e cinzentos.
O Livro de “Sóror Saudade”
pode ser considerado uma obra
de transição à esperança de vida
revelada nos versos de
Charneca em Flor.
Os sonetos desvendam, por
meio da paisagem outonal, um
estado de espírito que anuncia
uma atmosfera própria do
sujeito, agora mais envolvido
pela sedução dos caminhos da
felicidade, declaradamente
desejada.
Nessa antologia, o cenário
noturno identifica-se com as
imagens da noite acolhedora,
anteriormente revelada em sua
primeira obra poética Trocando
Olhares.
O entardecer, diferentemente,
não é cinzento, mas apresenta
uma claridade ímpar, portadora
de graça e de tranqüilidade.
O Outono também compõe o
cenário, mas, diferentemente de
Sóror Saudade, a escuridão que
ele provoca não traz tristeza,
mas sim atribui um tom
misterioso ao poema, deixando
transparecer as características
do movimento simbolista na
poesia florbeliana.
A presença do dia, a alegria e a
esperança que ele confere ao
eu-lírico, incita-o a contemplá-
lo, desde o momento do
alvorecer, passando pelo meio-
dia, quando o sol queima com
seu calor as casas brancas da
planície, vislumbrando a
possibilidade de um eterno
recomeço.
120
B) O cenário da terra portuguesa
Trocando Olhares Livro de “Sóror Saudade” Charneca em Flor
O cenário que exalta a terra
portuguesa está presente na
descrição das paisagens de duas
diferentes regiões de Portugal: o
Minho e o Alentejo.
Evidenciam-se a revelação do
amor à terra e o desejo de voltar
sempre para o seu aconchego
em busca de tranqüilidade e de
paz, sentimentos expressos nos
versos dos sonetos.
Essa recorrência ao cenário de
Portugal, pátria da poetisa,
constrói, no imaginário do
leitor, um espaço poético
onírico composto de rosas, de
crisântemos, de cravos, de
planícies com casas brancas e
pequenos animais, convidando
a sentir a liberdade irrestrita e a
alegria, que poderão ser
recuperadas.
Ao retratar e exaltar as
paisagens alentejanas, recupera-
se, também, o passado de
glórias de Portugal. Esse
sentimento é transmitido e
rememorado nas caravelas e nas
paisagens encantadoras.
O leitor, por sua vez, vive em
um mundo cada vez mais
conturbado pela neurose
coletiva, causada pela
insegurança das propostas
materiais e culturais de uma
civilização materialista e
consumista.
Desse modo, a terra natal e o
cenário alentejano acenam para
a imagem primaveril de uma
esperança de vida carregada de
conotações românticas para a
época. Evidencia-se a busca
ansiosa da identidade própria e
o eu-lírico chega a expressar o
seu desejo de ser enterrado
nesse solo querido.
A exaltação da terra
portuguesa está presente nos
sonetos que compõem a
antologia, mas aparecem em
menor número. Há, todavia, a
radical mudança de tom, porque
o que importa é ressaltar a
atmosfera própria do sujeito que
luta para alcançar a tão desejada
felicidade. A paisagem é
opressora tal como a figura do
eu-lírico, que se apresenta como
uma monja enclausurada ou
como uma princesa presa em
um castelo.
Desaparecem, aqui, as glórias
conquistadas, as manhãs e as
tardes ensolaradas e as casinhas
brancas na planície. Revelam-se
a solidão da paisagem e a
saudade, sentimentos que
destacam o estado de alma triste
e enclausurado, tal como o
título anuncia ao leitor: “Sóror
Saudade”. Nos poucos
momentos em que exalta a
terra, os versos descrevem-na
com dramaticidade e com
grande pesar de quem sofre.
No que tange à terra
portuguesa, a beleza do cenário
alentejano presentifica-se em
quase todos os sonetos de
Charneca em Flor.
A cor amarela dos campos
revestidos de sol emana calor
sobre as casas brancas da
planície alentejana, revelando o
amor e o desejo de exaltar a
terra.
No entanto, na maioria dos
sonetos, na presença do cenário
português, fica implícita a
recorrência a alguns de seus
monumentos, o mar, por
exemplo.
É, sobretudo, na apresentação
da beleza desse cenário e na
manifestação da natureza que o
eu-lírico interage como
cúmplice dessa terra natal,
expressando poeticamente sua
maturidade e o testemunho de
sua libertação.
121
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A relação do homem com o espaço vivido e construído por meio dos recursos
lingüísticos e poéticos, como as figuras, a adjetivação e a pontuação expressiva nas antologias
selecionadas Trocando Olhares (1915-1917), Livro de “Sóror Saudade” (1923) e Charneca
em Flor (1931, póstuma), revelou a mudança de ânimo de uma alma em auto-exposição
constante, aliada à expressão pessimista e nostálgica de sua experiência de vida.
Tendo em vista o objetivo proposto, no capítulo 1, discorremos sobre a Estética da
Recepção, de Hans Robert Jauss, e sobre a Teoria do Efeito, de Wolfang Iser. Apresentamos
uma recuperação das idéias de Ingarden, sobretudo de sua colaboração com a Estética da
Recepção e a proposta dos conceitos de concretização em determinação do texto. Com relação
às teorias de Jauss e de Iser, enfatizamos o novo enfoque dado ao leitor, os princípios teóricos
norteadores da Estética da Recepção e o conceito de terceira leitura pelo seu viés histórico
propiciador da reconstrução do horizonte de expectativa e da atualização que o leitor é capaz
de fazer quando conhece as recepções anteriores da obra.
O capítulo 2 volta-se para a história da poesia, chegando até o momento em que esse
gênero literário ganha um caráter de gênero lírico. Para tanto, a rica foi abordada sob a
perspectiva de diversos autores com o intuito de sistematizar sua evolução, suas
características e seus embasamentos teóricos. Destacamos a Retórica e a Estilística, cuja
importância está centrada na análise dos poemas selecionados para os corpora e na abstração
dos elementos que promoveram a linguagem imagética da poesia e seu efeito de sentido.
Discutimos, também, o papel do espaço na poesia, destacando sua importância o como
um espaço físico, mas também como estruturas do imaginário, idéia proposta pelos teóricos
Gaston Bachelard e Maurice Blanchot.
No capítulo 3, apresentamos a contextualização de Florbela Espanca no panorama da
Literatura Portuguesa, salientando a evolução pela qual passou sua obra. Na leitura dos
poemas que compuseram os corpora, destacamos as semelhanças e as diferenças entre os
textos em relação à temática, à estrutura poética, à linguagem, à simbologia e à interação
homem-espaço, as quais, posteriormente, foram sistematizadas em um quadro comparativo.
Confirmou-se que a produção florbeliana sofreu alterações da crítica durante sua
evolução, pois seu início foi inexpressivo para a crítica, que tentou reconhecer em seus
poemas traços de moralidade condizentes com o regime ditatorial e com a imposição religiosa
da época. Da rejeição à consagração, foram necessárias várias leituras em contextos
diferentes, confirmando a importância da teoria de Jauss como reconhecedora do processo de
122
atualização da obra pelo leitor. Nas três antologias, uma interação entre os elementos
naturais do cenário e o estado de espírito do eu-lírico, fato que confirma a possibilidade da
análise do par dicotômico eu-lírico / cenário. Essa temática pautada na linguagem imagética é
transfigurada pelo código literário: determinados sintagmas no texto correspondem a certos
temas florbelianos, como o cenário noturno e a exaltação da terra portuguesa. Vale lembrar,
no entanto, que, de acordo com Iser (1996), o texto literário não copia algo dado, mas
seleciona elementos, normas e convenções do mundo, combinando-os de uma maneira
particular. Na relação do eu-lírico com os elementos naturais que o circundam, formando um
espaço, observa-se uma íntima comunicação, visto que esses elementos se tornam cúmplices
da tristeza ou da alegria do eu-lírico, identificando-se com ele. Tal relacionamento se
sempre de forma subjetiva e particularizada, porque não nenhuma outra pessoa com a qual
o eu-lírico possa partilhar esse momento.
Na primeira antologia, essa relação é mais direta, devido ao fato de o eu-lírico não se
exilar, fazendo que os sentimentos sejam mais intensos e a interação seja mais visível e
constante, posto que, a todo momento, os poemas relatam a experiência de identificação do
cenário com a sua dor interior. Nos poemas em que a exaltação da terra, contudo, o leitor
pode perceber, a partir do lirismo e da linguagem imagética, a paixão do eu-lírico por sua
terra natal e o desejo de manter-se para sempre ligado a ela, mesmo sofrendo com a sua
decadência. No Livro deSóror Saudade”, porém, observamos dois momentos distintos dessa
relação eu-lírico e espaços. Primeiramente, a descrição de uma passível e acolhedora
receptividade de tais elementos, que parecem afagar o seu íntimo e aliviar a sua dor. Por isso,
a presença de sintagmas que sugerem a luminosidade é marcante. Essa receptividade que
inicia a antologia e que provoca uma alegria breve no eu-lírico é abandonada ao longo de toda
a obra, sendo recuperada somente no poema final, em que o eu-lírico antecipa para o leitor a
sua libertação e o seu desejo de interagir sem reservas com o cenário, como se confirma na
antologia seguinte.
O segundo momento que descreve a relação do eu-lírico com o espaço não propicia
mais o contentamento, e sim o desolamento, o pesar e o findar das coisas. Nesse sentido, o
contato do eu-lírico com o cenário é restrito ao entardecer e ao cair da noite, até mesmo
porque o estado de isolamento em que ele se encontra não condiz com uma paisagem clara e
alegre. Nos poucos momentos em que essa paisagem clara consegue romper as paredes do
convento ou do castelo, que a imaginação do eu-lírico construiu para o seu isolamento, o
leitor nota uma sublimação do texto para o campo onírico.
123
Em Charneca em Flor, o eu-lírico recupera sua condição inicial, tal como era em
Trocando Olhares, e, liberto, abre-se para interagir com os elementos que, independentemente
do período do dia em que se encontram, adquirem diante de seus olhos uma beleza ímpar.
Essa receptividade apreciativa revela o contentamento, ainda que aparente, do eu-lírico.
Ocorre uma interação quase que total do eu-lírico com a natureza, a tal ponto de ele
reconhecer-se, em um dado momento, adepto do panteísmo. Sendo assim, ao longo das três
antologias analisadas, nota-se uma nuance no comportamento do eu-lírico em relação ao
espaço que o circunda de identificação no início, de isolamento posterior, de comunhão e
libertação final.
Com relação aos eixos norteadores dessa relação ser/espaço, destacamos dois eixos: o
cenário noturno e a exaltação à terra portuguesa. Em Trocando Olhares, o cenário noturno é
decorrente da necessidade que o eu-lírico tem de sonhar, de buscar a satisfação de seus
desejos contidos no devaneio. A identificação do eu-lírico com a Lua que nunca encontra o
Sol também é relevante. O espaço interage com a solidão e a tristeza, as quais revelam a
existência da decepção no seu olhar. A noite é ideal por partilhar com o eu-poemático a
solidão e por criar o clima propício para que ele possa refletir, sofrer e sonhar sem ser
incomodado.
A temática da descrição e da exaltação da terra portuguesa, por sua vez, é evidente e
ganha o caráter descritivo, ao retratar as paisagens do local como lugar de aconchego, de
tranqüilidade e de paz. Em alguns momentos, a recorrência a esse cenário constrói,
paralelamente a ele, um espaço onírico de contentamento. Ao retratar as paisagens
alentejanas, recupera, em alguns casos, o passado de glórias de Portugal e permite que o
poema interaja com o leitor, que, por meio das estratégias textuais, pode preencher os vazios e
participar da restituição desse passado glorioso.
No Livro de “Sóror Saudade”, conserva-se a recorrência à noite, mas não à noite
escura, e sim à chegada tranqüila do crepúsculo, do entardecer, momento de encontro do eu-
lírico consigo mesmo, em um espaço de exílio por meio do qual se distancia totalmente dos
demais seres reais que povoam o espaço exterior a ele. A escolha do cenário noturno, nesse
caso, parece ser decorrente do espaço fechado no qual o eu-lírico se encontra e do seu estado
de espírito melancólico. Por esse motivo, torna-se difícil retratar a claridade do dia. Apesar de
esse período ser mencionado em alguns sonetos, ele sempre vem acompanhado da estação do
outono que torna os dias cinzentos.
Esta obra pode ser vista como de transição, porque, mesmo retratando o dia, torna-o
escuro como a noite. É importante apontar que a oscilação entre os dias cinzentos e a chegada
124
da noite é quebrada no início e no fim da antologia, pois os poemas que a iniciam e a enceram
sugerem a presença da claridade.
Os sonetos que exaltam a terra reduzem-se, consideravelmente; o eu-lírico opta por se
apresentar como uma monja enclausurada” ou como uma “princesa presa a um castelo”.
Independentemente da maneira como se apresenta, encontra-se preso. Nos poucos momentos
em que exalta a terra, descreve-a com a dramaticidade e com o pesar de quem sofre muito.
Em Charneca em Flor, finalmente, uma retomada da noite acolhedora e libertadora
presente em Trocando Olhares, desde o crepúsculo que, nesse caso, não é cinzento, mas
possuidor de uma claridade ímpar, revelando a graça e a tranqüilidade que trazem um
significativo contentamento. O Outono também é apresentado nos poemas, diferentemente de
Sóror Saudade, em que a escuridão que a estação provoca não traz tristeza, mas atribui ao
poema um tom misterioso, funcionando com uma estratégia simbolista da poetisa.
A presença do dia é, por sua vez, propiciadora de alegria e de esperança para quem
contempla o dia que nasce e para quem tem esperança de um recomeço. O cenário alentejano
é enfatizado, sobretudo, nas tonalidades do amarelo dos campos e do sol, contrastando com o
branco das casas espalhadas na planície. A terra torna-se, assim, cúmplice da sua maturidade e
testemunha de sua libertação.
Concluiu-se que, segundo os pressupostos heideggerianos, o olhar humano constrói o
mundo circundante; afinal, o homem não é indiferente ao espaço onde se encontra. Com
efeito, o eu-lírico florbeliano apresenta-se muito atento ao seu espaço circundante,
descrevendo, pois, imagens dotadas de sensibilidade. O olhar tão minucioso para o exterior
relaciona-se com a sua descoberta interior. No espaço circundante, inúmeros símbolos
aparecem em relação direta com o seu estado de espírito. A lua e o sol simbolizam, em
momentos diferentes, a cumplicidade e a revelação. As paredes do convento e do castelo,
ainda que imaginárias, simbolizam a incomunicabilidade e o isolamento do eu-lírico com
relação ao outro, como acontece nos versos do Livro de Sóror Saudade”, cuja comunicação
com o mundo exterior praticamente se restringe a sua imaginação. A neve e o branco do luar e
dos lírios simbolizam, nos versos de Trocando Olhares, a presença do novo e do puro,
contrastando com o anterior, em que predomina o tom escuro do roxo e do preto, remetendo à
presença da morte e ao descontentamento profundo. A noite em Trocando Olhares é
acolhedora e cúmplice, no entanto, no Livro de “Sóror Saudade”, ela é reveladora da dor da
qual o eu-lírico tenta fugir e busca esconder dos outros. em Charneca em Flor, ela é
libertadora, visto que retira o ser do mundo e o faz transcender à esfera do imaginário e do
sonho.
125
Dentre os símbolos estudados, destacam-se a janela e a casa. A janela aberta permite
contato com o mundo exterior, provocando o deleite ou a depressão ao observá-lo. A casa é
símbolo de proteção em Trocando Olhares, de prisão em Sóror Saudade e de alegria em
Charneca em Flor. Os símbolos são, muitas vezes, ambivalentes; desse modo, as relações
com o espaço dependem da subjetividade do olhar que, no texto poético, recria tudo.
É possível constatar, então, que o ser nunca se relaciona apenas concretamente com o
espaço. No caso do eu-lírico florbeliano em diferentes posições, uma relação ativa com o
espaço, fazendo dele a própria extensão do seu íntimo, selecionando os elementos que o
constituem, criteriosamente. Nessa identificação como mundo, reinventa o sintagma e seu
sentido, pelo lirismo da linguagem e pela utilização da palavra-imagem, cujos efeitos o leitor
nem sempre pode descrever.
A leitura apresentada é apenas uma das inúmeras possibilidades e resultou das
seleções e combinações feitas entre os segmentos textuais, aos quais foram acrescentados os
conhecimentos extratextuais publicados em artigos e em leituras de outros gêneros da
produção florbeliana, como suas cartas e prosas.
A escolha pela obra de Florbela se justifica pelo poder de levar o leitor a reencontrar,
no tesouro da sua vida, as grandes motivações da felicidade.
126
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