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MÁRIO ROGÉRIO DA SILVA BENTO
CLASSIFICAÇÃO RACIAL: ENTRE A IDEOLOGIA E A TÉCNICA
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
SÃO PAULO
2008
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ii
MÁRIO ROGÉRIO DA SILVA BENTO
CLASSIFICAÇÃO RACIAL: ENTRE A IDEOLOGIA E A TÉCNICA
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
ÀREA DE CONCENTRAÇÃO: SOCIOLOGIA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção do título de Mestre em
Ciências Sociais, sob a orientação da Prof.
ª
Dr.ª Teresinha
Bernardo
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
SÃO PAULO
2008
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iii
Banca Examinadora
________________________________
________________________________
________________________________
iv
AGRADECIMENTOS
Os meus mais sinceros agradecimentos:
Ao meu pai, João Bento (in memorian) e à minha mãe, Ruth da Silva
Bento, a quem tudo devo.
A minha querida irmã e amiga Maria Aparecida da Silva Bento (Cida
Bento), a quem devo a iniciação e engajamento neste tema.
Ao Prof. Dr. Hédio Silva Jr., amigo e parceiro de trabalho, companheiro
dedicado no desenvolvimento desta dissertação.
Aos meus amigos, a equipe do CEERT e aos professores que
participaram de minha formação, em especial a Prof.ª Dra. Teresinha
Bernardo, que ao longo desses anos ajudaram a aprofundar meus
conhecimentos.
v
RESUMO
Esta dissertação focaliza a temática da classificação racial, relacionando-a ao
modelo brasileiro de relações raciais, histórico da classificação, suas implicações
ideológicas, metodológicas e técnicas, bem como a relevância do tema para a
implementação de políticas de promoção da igualdade racial.
Examina as categorias empregadas para distinguir preconceito racial de
“marca” e de “origem”, e compara o sistema de classificação racial no Brasil e nos
Estados Unidos, relacionando a lógica e o funcionamento do preconceito racial em
função de origem e intensidade da cor, e os critérios de classificação racial. Também
refere-se ao período escravista, ao modelo brasileiro de relações raciais, ao mito da
democracia racial e à miscigenação, entre outros.
Além disso, problematiza a invisibilidade do racismo como um dos maiores
obstáculos à sua compreensão e enfrentamento a ausência da informação sobre
cor, sua importância para a visibilização da desigualdade racial, as ações do
Movimento Negro, bem como para implementar políticas públicas igualitaristas.
A relação entre política e informação sobre cor, a supressão da cor do censo
de 1970 e da certidão de nascimento, em 1975, também são analisadas.
Ao final, um exame da experiência de introdução do quesito cor no projeto
Gestão Local, Empregabilidade e Eqüidade de Gênero e Raça: uma Experiência de
Políticas Públicas na Região do ABC Paulista. Tal experiência permitiu estudar e
analisar, em profundidade, as características, desafios e problemas dos processos
contemporâneos de introdução da informação sobre cor, métodos e técnicas
empregados, o envolvimento da comunidade, a consistência dos bancos de dados,
as análises possíveis e os subsídios para o desenho de políticas públicas.
PALAVRAS CHAVES CLASSIFICAÇÃO RACIAL, QUESITO COR E POLÍTICAS PÚBLICAS
vi
ABSTRACT
This dissertation is focused on the subject of racial classification, relating it to
the Brazilian model of racial relations, classification background, its ideological,
methodological and technical implications, as well as the relevance of the issue to set
up promotional policies of racial equality.
It examines the categories used to distinguish racial prejudice of “brand and
of “origin”, and compares the system of racial classification in Brazil and in the United
States, relating the logic and the functioning of racial prejudice in terms of origin and
intensity of color, and the criteria of racial classification. It also refers to the period of
slavery, to the Brazilian model of racial relations, to the myth of racial democracy and
miscegenation, among others.
Besides this, it creates a problem for the invisibility of racism as one of the
major obstacles for its understanding and facing the absence of information on
color, its importance for the visibility of racial inequality, actions of the black
movement, as well as for setting up equalizing public policies.
The relation between politics and information on color, suppression of color in
the census of 1970 and birth certificate, in 1975, are also analyzed.
Finally, a study of the experience of introducing the subject of color in the
project Local Management, Usability and Equality of Gender and Races: an
Experience of Public Policies in the Region of the São Paulo ABC. This experience
enabled the in-depth study and analysis, the characteristics, challenges and
problems of the contemporary introduction processes of information on color,
methods and techniques employed, involvement of the community, consistence of
the database, the possible analyses and subsidies for the outline of public policies.
WORDS KEY - RACIAL CLASSIFICATION, SUBJECT OF COLOR AND PUBLIC POLICIES
vii
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS................................................................................................ IV
RESUMO.................................................................................................................... V
ABSTRACT............................................................................................................... VI
LISTA DE TABELAS .............................................................................................. VIII
LISTA DE GRÁFICOS ............................................................................................ VIII
LISTA DE ANEXOS................................................................................................ VIII
INTRODUÇÃO ............................................................................................................1
CAPÍTULO I A MARCA DA COR ............................................................................6
1.1 Breve digressão histórica....................................................................................6
1.2 A transição do trabalho escravo para o trabalho assalariado ...........................10
1.3 O 13 de maio .................................................................................................... 13
1.4 A resistência negra após a abolição ................................................................. 15
1.5 A invisibilidade do racismo................................................................................23
1.6 A reivindicação da informação sobre cor como instrumento de visibilização.... 27
CAPÍTULO II DILEMAS DA CLASSIFICAÇÃO RACIAL......................................35
2.1 Panorama dos censos sob o ângulo da classificação racial .............................36
2.2 A supressão da cor do censo de 1970..............................................................45
2.3 A reação negra à estratégia do silêncio a reivindicação da informação sobre
cor..................................................................................................................... 51
CAPÍTULO III CLASSIFICAÇÃO RACIAL: MARCOS LEGAIS, CONCEITOS,
MÉTODOS E EXEMPLOS ........................................................................................ 53
3.1 Significados de raça, cor e etnia.......................................................................55
3.1.1 Raça.....................................................................................................55
3.1.2 Etnia.....................................................................................................60
3.1.3 Afro-brasileiros/afrodescendentes........................................................ 61
3.1.4 Cor .......................................................................................................62
3.1.5 Autoclassificação versus heteroclassificação....................................... 64
3.2 A classificação racial nos documentos públicos ............................................... 67
3.3 Um exemplo de classificação racial no setor privado: o caso da Febraban......73
CAPÍTULO IV EXPERIÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DE IMPLEMENTAÇÃO DO
QUESITO COR OS CASOS DE BELO HORIZONTE, SANTO ANDRÉ E SÃO
PAULO......................................................................................................................75
4.1 Considerações preliminares..............................................................................75
4.2 A transformação da reivindicação em políticas governamentais: a experiência
pioneira da Prefeitura de São Paulo ................................................................. 76
4.3 O reconhecimento público da expertise do CEERT na implementação do
quesito cor ........................................................................................................79
4.3.1 A reação dos respondentes..................................................................81
4.3.2 A estratégia empregada para superar as resistências ......................... 84
4.3.3 Atividades de sensibilização e capacitação ......................................... 86
viii
4.3.4 A preparação dos atendentes/coletores............................................... 89
CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................92
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................... 96
ANEXOS .................................................................................................................100
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 Entrada de imigrantes europeus no Brasil...............................................11
Tabela 2 Preconceito de origem e marca, segundo Oracy Nogueira.....................18
Tabela 3 Cronologia da coleta para os censos. .....................................................40
Tabela 4 - Distribuição das respostas à auto-identificação de cor. ...........................42
Tabela 5 - Instituições Publicas com ação afirmativa................................................70
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1 Inclusão do quesito cor nos instrumentos censitários.............................41
Gráfico 3 - Perfil dos usuários do sistema.................................................................91
Gráfico 2 - Monitoramento da coleta do quesito cor..................................................90
Gráfico 4 - Monitoramento do aproveitamento das vagas oferecidas segundo
cor/raça.....................................................................................................91
LISTA DE ANEXOS
Prontuário civil - Polícia do Distrito Federal.............................................................102
Planilha para cadastramento de interessados nacionais em adoção, perfil do
requerente...............................................................................................................103
Planilha para cadastramento de interessados nacionais em adoção, perfil da
criança.....................................................................................................................104
Tela do sistema SIGAE do Ministério Trabalho e Emprego para cadastramento do
trabalhador. .............................................................................................................105
Formulário de cadastramento único de beneficiários dos Programas do Governo
Federal. ................................................................................................................... 106
Registro de nascimento com a classificação da cor do registrando conforme Lei
6015/73 parcialmente revogada em 1975. ..............................................................107
ix
Registro de nascimento sem a classificação da cor do registrando conforme a Lei
6216/75. .................................................................................................................. 108
Registro de nascimento com a classificação da cor do registrando durante
transição dos procedimentos entre a Lei 6015/73 e a lei 6216/75. ......................... 109
Declaração de Óbito................................................................................................110
Ficha modelo de qualificação do adolescente, dados processuais e decisões do
Juízo da infância e da juventude. ............................................................................111
Ficha de identificação civil, para registros de ocorrências criminais para polícias
civis de todo o país..................................................................................................111
Ficha registro de empregados.................................................................................113
Ficha de alistamento militar..................................................................................... 114
Formulário de alistamento militar Consulado Geral do Brasil em São Francisco .115
Certificado de dispensa de incorporação ................................................................116
Ficha de perfil social, Prefeitura de Santo André Secretaria de Inclusão social e
Habitação ................................................................................................................ 117
Lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973...............................................................118
Resolução CEPE 565 Processo seletivo 2008 - UFSCAR...................................119
Resolução CEPE 543 Processo seletivo 2008 - UFSCAR...................................120
1
INTRODUÇÃO
Esta dissertação focaliza a temática da classificação racial, relacionando-a ao
modelo brasileiro de relações raciais, histórico da classificação, suas implicações
ideológicas, metodológicas e técnicas, bem como a relevância do tema para a
implementação de políticas de promoção da igualdade racial. O interesse pelo tema
resulta da minha experiência profissional como técnico e pesquisador de uma ONG
1
que, dezessete anos, pesquisa e intervém na área das relações raciais. Mas uma
razão pessoal impulsionou-me para esta empreitada: além da minha vivência
constante com a discriminação racial, desde tenra idade, em 1998 fui vítima da
truculência de um colega que não admitia um executivo negro na mesma empresa.
Retomando o objeto da dissertação, vale lembrar que a classificação racial
está em prática oficialmente no Brasil desde 1872
2
, data do primeiro censo nacional.
A rigor, trata-se de fenômeno presente desde a chegada dos europeus: a técnica de
classificação racial por meio do critério fenotípico foi a chave que permitiu à figura do
escravo ser associada a uma determinada cor o homem branco não poderia
mais, como no passado, ser escravizado.
Por força do assim denominado mito da democracia racial
3
, a sociedade
brasileira foi, historicamente, projetada como a mais harmoniosa da América quanto
às relações raciais. É neste contexto, de três séculos e meio de tráfico transatlântico,
associado à presença indígena, à ocupação européia e, ainda, ao fluxo de diferentes
povos e culturas, que o tema da classificação racial assume uma configuração
complexa e tortuosa.
Ao contrário do que postula o senso comum, a classificação racial de pessoas
está muito tempo presente nos recenseamentos, mas também em alguns
importantes cadastros públicos.
1
CEERT Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades. Criado no ano de 1990.
2
PIZA, Edith; ROSEMBERG, Fúlvia. Cor nos censos brasileiros. Revista da USP, São Paulo, n. 40, dez/fev.
1998/1999, p. 123-137.
3
CHAUI, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. 1 ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
2000, p. 8.
2
São exemplos disso a certidão de nascimento (até 1975), o formulário de
alistamento militar, de identificação civil, os cadastros das áreas de segurança
pública e justiça
4
.
Assim, a inclusão do quesito cor em cadastros de pessoas é desigual e
desorganizada, pois, se de um lado despertou o interesse dos órgãos de segurança
pública, por outro não chamou a atenção dos gestores das áreas de saúde,
educação e trabalho, por exemplo. Eis aqui o eixo principal da pesquisa: tudo indica
que onde a inclusão da informação sobre cor pudesse colocar em dúvida o discurso
da democracia racial, tratou-se, cuidadosamente, de omiti-la
5
. Minha hipótese,
portanto, é que a supressão dessa informação obedeceu à lógica do silenciamento,
do não-dito, um dos pilares do mito da democracia racial. Daí surge uma intrigante
relação entre estatística e ideologia racial. Foi assim que, nos anos 70, o Movimento
Negro brasileiro empunhou a bandeira de tal inclusão em todos os cadastros
públicos, visando diagnosticar e monitorar as relações raciais, viabilizar análises e,
inclusive, revelar situações ocultas pela ausência da informação da cor, a partir do
que estariam criadas as condições para intervenção e superação do problema.
Nos anos 90
6
, a discussão sobre classificação racial volta à tona com
intensidade, devido à adoção de cotas nas universidades públicas, de políticas
antidiscriminatórias e do debate na Câmara dos Deputados, referente ao projeto de
lei do Estatuto da Igualdade Racial, que propõe medidas especiais. Se adotadas
pelo governo federal, tais medidas assegurarão alguns dos direitos fundamentais à
população afro-brasileira.
Na retomada dessa discussão, argumentando contra a classificação racial,
autores
7
revelam preocupação com uma suposta dificuldade em fazer tal
classificação, devido à miscigenação. Esse argumento trata a classificação racial
como se fosse uma prática inédita que, teoricamente, teria surgido com a adoção de
cotas nas universidades, ignorando que ela existe oficialmente mais de 135 anos.
4
SILVA JR., dio. Direito de igualdade racial aspectos constitucionais e penais, doutrinas e
jurisprudências. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002, p. 16.
5
ROSEMBERG, Fúlvia; PINTO, Regina P. Trajetórias escolares de estudantes brancos e negros. In: Educação
e Discriminação de Negros, 1988,. Belo Horizonte: IRHJP Instituto de Recursos Humanos João Pinheiros
/FAE/MEC, p. 31.
6
SILVA BENTO, M. A. da, SILVA JR., dio; LISBOA, M. T. O crepúsculo das ações afirmativas. São
Paulo. [s.n], 2006.
7
Yvonne Maggie, Peter Fry, entre outros.
3
Outra preocupação desses autores é a utilização da expressão “raça”, fora do
domínio da biologia. De acordo com Ellis Cashmore, este termo, aplicado aos grupos
de organismos vivos, foi usado pelo menos em quatro sentidos diferentes. No
primeiro, em biologia, refere-se a subespécies, ou seja, a uma variedade de
espécies que desenvolveram características distintas por meio do isolamento.
Atualmente os biólogos preferem a palavra subespécie ou linhagem.
No segundo sentido, “raça” é sinônimo de espécie, como na expressão “raça
humana”. no terceiro é usado como sinônimo do que costumamos chamar de
nação ou grupo étnico, como “raça francesa” ou “raça alemã”. Finalmente, raça pode
significar pessoas socialmente unificadas numa determinada sociedade que
considera marcadores físicos, como pigmentação da pele, textura do cabelo, traços
faciais, estatura e coisas do gênero. Para evitar confusão, algumas pessoas
especificam “raça social” quando utilizam raça no quarto significado
8
.
É interessante observar que especialmente a quarta categoria não deixa de
manter proximidade com o critério do marcador físico, originalmente definido pela
biologia. A novidade é que uma matéria, tanto tempo vinculada à Biologia, nos
últimos anos assumiu contornos que a transferem para a área das Ciências Sociais,
pois a noção de raça é, cada vez mais, considerada uma construção social.
O termo “raça perdeu o status de algo com características e traços estáveis
e passou a ser concebido como um fenômeno mutável. A questão predominante
agora é o discurso; a idéia de raça começa a ser investigada menos pelo conteúdo
que se possa descrever e mais pelo aspecto funcional, pelos diversos usos que se
faz dela.
A validade de raça, como conceito, passa a depender de seu emprego.
Cashmore afirma que a principal questão não é o que vem a ser raça, mas sim como
o termo é empregado
9
.
Segundo Kabengele Munanga, os conceitos e classificações servem de
ferramentas para operacionalizar o pensamento. Em qualquer operação de
classificação, é preciso estabelecer critérios objetivos com base nas diferenças e
semelhanças
10
.
8
CASHMORE, Ellis. Dicionário de relações étnicas e raciais. São Paulo: Summus, 2000, Selo Negro, p. 453-
456.
9
Idem.
10
MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia.
Cadernos PENESB. Niterói: EdUFF, 2004.
4
Munanga assevera que os naturalistas dos séculos XVIII e XIX não limitaram
seus trabalhos somente à classificação dos grupos humanos em função das
características físicas, mas se deram o direito de hierarquizar, isto é, estabelecer
uma escala de valores entre as chamadas raças.
Observando uma sociedade como a brasileira, na qual as desigualdades mais
persistentes referem-se à característica de raça/cor dos diferentes grupos, autores,
dentre eles Rafael Guerreiro Osório, Marcelo Paixão e Hédio Silva Jr., consideram
extremamente importante a classificação como forma de compreender e explicitar a
hierarquização racial dos grupos
11
.
Registrados os marcos históricos e conceituais que me inspiraram na
elaboração dessa pesquisa, passarei, então, à organização dos capítulos.
O capítulo 1 aborda as categorias empregadas por Oracy Nogueira para
distinguir preconceito racial de “marca” e de “origem”, comparando o sistema de
relações raciais no Brasil e nos Estados Unidos, relacionando a lógica e o
funcionamento do preconceito racial em função de origem e intensidade da cor, e os
critérios de classificação racial
12
.
Também serão tratados o período escravista, o modelo brasileiro de relações
raciais, o mito da democracia racial, a miscigenação, entre outros.
Será problematizada, ainda, a invisibilidade do racismo como um dos maiores
obstáculos a sua compreensão e enfrentamento a ausência da informação sobre
cor, sua importância para a visibilização da desigualdade racial e ações do
Movimento Negro, bem como para a implementação de políticas públicas
igualitárias.
No capítulo 2, uma análise das iniciativas de classificação racial, das
diferentes categorias historicamente empregadas, a inconstância das categorias dos
censos gerais, a generalização do uso da cor (fenótipo) para a classificação racial
dos brasileiros
13
.
A relação entre política e informação sobre cor, e a supressão da cor no
censo de 70 e na certidão de nascimento, a partir de 1975, também serão
analisadas.
11
PIZA, Edith; ROSEMBERG, Fúlvia, op. cit., p. 123-37.
12
NOGUEIRA, Oracy. Tanto preto quanto branco: estudos de relações raciais. São Paulo: T.A. Queiroz Editor
Ltda., 1985, p. 67-93.
13
PIZA, Edith; ROSEMBERG, Fúlvia, op. cit.
5
Serão abordadas, ainda, as técnicas de classificação de cor utilizadas no
Brasil contemporâneo, acompanhadas dos conceitos de raça, etnia, racismo,
discriminação, afrodescendência.
Nesta linha, A cor denominada, de Jose Luis Petruccelli, traz os diversos
aspectos dos processos de construção e utilização das categorias de classificação
das pessoas, segundo as características de cor ou raça
14
.
O capítulo 3, no contexto dos estudos de Hédio Silva Jr., investiga a coleta e
utilização do dado cor como prática recorrente nos cadastros de segurança pública,
alistamento militar, entre outros. Este dado indica as escolhas feitas pela sociedade
para determinar onde seria imprescindível, ou dispensável, essa informação
15
.
No capítulo 4, a análise da experiência de introdução do quesito cor no
projeto Gestão Local, Empregabilidade e Eqüidade de Gênero e Raças: uma
Experiência de Políticas Públicas na Região do ABC Paulista, coordenado por Maria
Aparecida da Silva Bento. Tal experiência possibilitou estudar e analisar, em
profundidade, as características, os desafios e problemas dos processos
contemporâneos de introdução da informação sobre cor, métodos e técnicas
empregados, o envolvimento da comunidade, a consistência dos bancos de dados,
as análises possíveis, os subsídios para o desenho de políticas públicas
16
.
Neste ponto, houve a oportunidade de articular os aspectos conceituais e
teóricos com uma análise empírica, cujo resultado poderá constituir-se numa
contribuição a um dilema atual das Ciências Sociais: sistematizar um modelo útil
para a classificação racial das pessoas, certamente não para fins de violação de
direitos, mas como instrumento de promoção da cidadania. Movido por compromisso
ético e pessoal, escrevi essa dissertação.
14
PETRUCCELLI, Jose Luis. A cor denominada estudos sobre a classificação racial. Coleção Políticas da
Cor, Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2007.
15
SILVA JR., dio, op. cit.
16
SILVA BENTO, Maria Aparecida da. O papel da cor raça/etnia nas políticas de promoção da igualdade,
anotações sobre a experiência do município de Santo André. São Paulo: CEERT, 2003.
6
CAPÍTULO I A MARCA DA COR
1.1 Breve digressão histórica
Entre 1550 e 1850, pelo menos 10.000.000 (dez milhões) de africanos
escravizados desembarcaram nas Américas: 40%, no Brasil; 50%, no Caribe e 5%,
nos Estados Unidos. Estima-se que os cerca de 4.000.000 (quatro milhões) de
africanos eram oriundos de diversas regiões, entre Angola e Costa do Marfim.
Estava em curso o sistema colonial.
17
Através da navegação marítima, a expansão mercantilista européia
incorporou e subordinou novos territórios. As colônias, que deveriam fornecer
matéria-prima e produtos agrícolas à metrópole, possibilitavam, também, a abertura
de novos mercados. Assim, o escravismo foi a fórmula encontrada para explorar as
terras americanas, fonte de sustentação do capital mercantil europeu e potencial
mercado consumidor das manufaturas das metrópoles. Neste sistema econômico,
baseado na extração e exploração, em larga escala, das riquezas naturais das
colônias, a escravização dos africanos constituiu um dos pilares mestres.
A lógica do escravismo colonial passava pela necessidade de mão-de-obra
abundante e de baixíssimo custo. Inicialmente, tentou-se escravizar os habitantes
das terras descobertas, isto é, os índios, contudo, a baixa densidade dessa
população, as epidemias e campanhas contrárias reduziram as possibilidades e a
rentabilidade de tal mão-de-obra. Ainda assim, paralelamente à escravização dos
africanos, funcionou nos engenhos de açúcar do nordeste, entre 1560 e 1620, um
sistema escravista baseado na captura de índios. No entanto, predominou a
escravização de africanos, seu tráfico e comércio
18
.
Entre 1550 e 1850, consolida-se o sistema escravista com diversificadas
características
19
, como a produção para exportação, salvo produção de subsistência;
o tráfico internacional e triangular de escravos; e a subordinação da economia
colonial à metrópole, que impossibilitava uma acumulação de capital que pudesse
favorecer a passagem do escravismo ao capitalismo, sendo essa uma característica
bastante marcante.
17
MOURA, Clóvis. Quilombos rebeliões da senzala. 2. ed., Rio de Janeiro: Conquista, 1972, passim.
18
AZEVEDO, Célia Marinho. Onda negra medo branco. São Paulo: Paz e Terra, 1987, passim.
19
MOURA,Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Ática, 1988, p. 220-221.
7
Outras características que devem ser ressaltadas: o latifúndio escravista como
propriedade; a legislação repressora, violenta e sem apelação contra os escravos,
por um lado; e, por outro, a luta incessante dos africanos escravizados.
Cabe destacar, ainda, que o escravismo instala-se e consolida a chamada
economia de plantation, cujas características principais eram
20
: a dedicação
prioritária, e em grande escala, à atividade agrícola de monocultura ou de
exportação; mão-de-obra escrava abundante; investimento alto e disposição dos
produtos no grande mercado oceânico.
Deste modo, durante quase quatro séculos da história do nosso país, os
trabalhadores escravizados foram os principais produtores da riqueza que sustentou
o desenvolvimento nacional, as fortunas da metrópole e contribuiu para o surgimento
do capitalismo industrial na Europa.
A escravidão estava disseminada por todas as áreas da vida econômica da
colônia.
Pode-se observar que os trabalhadores escravos participavam não apenas
colhendo e plantando, mas desenvolvendo técnicas e profissões exigidas para a
prosperidade e o dinamismo dos engenhos.
No caso das minas, constatava-se a presença do Estado (através de leis,
etc.) o caráter temporário da extração de minérios e a voracidade da metrópole
resultavam na necessidade de explorá-las com rapidez, incentivando assim a
produtividade.
Quanto à pecuária, havia menos escravos, porém, maior pobreza e condições
mais duras.
No que tange ao território urbano, os escravos desfrutavam de maior
liberdade de movimento, numa sociedade mais variada do que a rural. Eles tinham
acesso a diversos tipos de atividade: artesãos, carregadores, escravos de aluguel,
vendedores, etc.
Os escravos domésticos usufruíam de alguma vantagem em relação aos
demais, contudo, estavam submetidos à vigilância constante dos senhores brancos.
20
CARDOSO, Ciro Flamarion S. A Afro-América: a escravidão no novo mundo. São Paulo: Brasiliense, 1982,
p. 31-44.
8
Cabe salientar, ainda, que autores como Raymundo Nina Rodrigues, Oliveira
Vianna, Euclides da Cunha, dentre outros, justificaram a escravidão dos negros,
conferindo à abordagem um status “científico”. Suas teses apoiaram-se em
pesquisas nas áreas da Biologia
21
e Antropologia Física, que criaram a idéia de raça
baseada na investigação de diferenças físicas.
Estudos de Raymundo Nina Rodrigues dedicaram-se a medir o crânio e a
largura do nariz para explicar as alegadas tendências inatas dos negros para a
criminalidade. Forneceu, desse modo, as bases para a idéia do negro como um ser
estranho e, conseqüentemente, estigmatizado. Ele defendia, por exemplo, a
existência de dois códigos criminais: um para negros, outro para brancos, que
correspondessem aos diferentes graus de evolução de ambos os grupos. “Não pode
ser admissível em absoluto a igualdade de direitos, sem que haja ao mesmo tempo
igualdade na evolução”, afirmava, em um artigo da Gazeta Médica da Bahia, em
1906
22
.
Na obra Casa grande & senzala
23
, publicada em 1933, mesmo ano em que
Adolf Hitler assumiu o poder na Alemanha, Gilberto Freyre atacou as idéias racistas
e o determinismo climático, e desafiou a pretensa primazia dos brancos, afirmando a
superioridade técnica do negro sobre o indígena e, inclusive, sobre o branco
24
.
Neste livro, Freyre relata a importância dos pensadores e estudiosos,
destacando, entre eles, Franz Boas, que separa os traços de raça e herança
genética da influência da cultura e do meio em que se vive, dentro das relações
sociais.
Foi o estudo de Antropologia, sob a orientação do professor Boas, que primeiro
me revelou o negro e o mulato no seu justo valor, separados dos traços de raça e
os efeitos do ambiente ou da experiência cultural. Aprendi a considerar
fundamental a diferença entre raça e cultura, a discriminar entre os efeitos de
relações puramente genéticas e os de influências sociais, de herança cultural e
de meio. Neste critério de diferenciação fundamental entre raça e cultura assenta
todo o plano deste ensaio
25
.
21
Com base nos estudos darwinianos publicados na obra A origem das espécies, realizados com animais e
vegetais, pensadores, como o francês Joseph-Auguste de Gobineu, o alemão Richard Wagner e o inglês Houst
Stewart Chamberlain, utilizavam a teoria de seleção natural para tentar explicar a sociedade humana. Concluíram
que alguns grupos humanos eram fracos (os dominados) e outros, fortes (os dominadores).
22
SILVA Jr., op. cit., p. 19-23.
23
FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala. 47. ed. São Paulo: Global, 2003.
24
VENTURA, Roberto. Casa grande & senzala, São Paulo: Publifolha, 2000, p. 20-29.
25
Prefácio à primeira edição de Casa grande & senzala, op. cit., p. 32.
9
É sempre importante lembrar que muitos estudos sobre o período colonial e o
sistema escravista procuraram minimizar a violência e a capacidade de resistência e
luta do contingente de escravos. Porém, as expressões da luta travada, no Brasil,
durante o regime escravocrata, estão registradas nas diversas formas de resistência
dos trabalhadores. Da resistência individual e insurreições urbanas, até a criação de
quilombos, tudo foi tentado
26
.
Das expressões coletivas, os quilombos são as mais conhecidas. Bahia,
Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pernambuco, Paraíba, Região Amazônica,
Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e Sergipe
conheceram e conviveram com esses agrupamentos de ex-escravos evadidos das
cidades e fazendas. O mais importante deles, o Quilombo de Palmares Zumbi é a
sua expressão máxima , resistiu durante um século e materializou um tipo de
sociedade democrática, com a presença de índios e brancos pobres, além dos
negros. A preservação da cultura também desempenhou papel essencial na
resistência coletiva, através das manifestações musicais, dos ritmos, da
indumentária africana e da complexa estrutura cultural do Candomblé
27
.
Entretanto, as expressões individuais desempenharam papel mais importante,
pois, impedidos de se organizar coletivamente, os escravos foram obrigados a
recorrer a modos bastante engenhosos e radicais de resistência. A recusa em
desempenhar determinados tipos de atividades (eles não tinham direito de escolha)
mostra a importância da resistência individual como estratégia de negação e
confronto com os senhores de engenho. E, na sua forma mais extrema, o suicídio, o
assassinato de senhores, dos filhos, seguido pelo suicídio das mães, as fugas, foram
outras tantas formas de tentar negar a desumanização pretendida pelo
escravismo
28
.
É na tentativa de desumanizar os escravos, por parte dos senhores, e na
tentativa de os escravos manterem intacta a sua condição de ser humano, que
parece residir a imensa contradição do regime escravocrata.
26
SILVA BENTO, Maria Aparecida da. Cidadania em preto e branco: discutindo relações raciais. 3. ed., São
Paulo, 2001, passim.
27
Idem.
28
Idem.
10
A história desta resistência, com todas as suas nuances, ainda está para ser
contada e muito recentemente despertou o interesse em resgatá-la. No entanto, é
sobre ela que se constrói a história econômica do país.
1.2 A transição do trabalho escravo para o trabalho assalariado
O empreendimento cafeeiro abalado fortemente em 1850 e sob crescente
pressão social e política, por um lado, e as rebeliões dos negros (às vezes,
armados), por outro precisou encontrar uma fórmula que substituísse o trabalho
escravo
29
.
A partir de 1869, a Assembléia Legislativa da Província de São Paulo tornou-
se palco de acalorados discursos que exaltavam a mão-de-obra européia como ideal
para substituir o escravo e o liberto. Inicia-se a campanha imigrantista com a
valorização do imigrante branco e de convencimento da necessidade desse
trabalhador, a fim de promover o progresso no país, formando efetivamente uma
nacionalidade e uma cidadania brancas. Nos anos seguintes, a Assembléia recebeu
vários projetos que avaliavam os tipos ideais de trabalhadores asiáticos, chineses
e africanos foram considerados inferiores ou incapazes
30
.
Intelectuais e filhos de fazendeiros que haviam estudado na Europa não
escondem a sua simpatia pelas teorias racistas emergentes nesse continente. A
eugenia (higiene racial), a teoria de Darwin transplantada para as sociedades
humanas, os estudos do francês Joseph Auguste Gobineau (sobre as desigualdades
das raças humanas) ecoam nas discussões e nos projetos sobre a formação da
nação. A conclusão era cristalina: a nação teria de ser formada com o “sangue
superior dos europeus
31
.
Nesta perspectiva, pode-se afirmar que a campanha imigrantista visava não
apenas criar mão-de-obra abundante, mas, sobretudo, substituir o liberto e o ex-
escravo pelo imigrante europeu. Não foram somente razões de natureza econômica
que levaram à exclusão do trabalhador nacional, especialmente o negro, das
transformações econômicas e políticas que se avizinhavam, mas, principalmente,
razões ideológicas raciais. Estas razões sustentaram os discursos que
29
FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Ática, v. I e II, 1978.
30
AZEVEDO, op. cit., passim.
31
SILVA BENTO, op. cit.
11
apresentavam o liberto e o ex-escravo os mesmos que durante quase quatro
séculos haviam produzido as riquezas da colônia como incapazes e incompetentes
para as tarefas impostas pelo regime assalariado.
Tabela 1 Entrada de imigrantes europeus no Brasil
32
Períodos Entrada de europeus
1851 1860 Proibição do tráfico 121.747
1861 1870 Lei do Ventre Livre 97.571
1871 1880 Movimento abolicionista 219.128
1881 1890 Abolição total 525.086
1891 1900 Apogeu da imigração européia 1.129.315
1851 1900 2.092.847
Fonte: Morais, Octávio Alexandre de. Imigration in to Brasil: a statical estatement
and related aspects. In: Bates, M. The migration of people to Latin America. The
Catholic University of America Press, 1957
O discurso predominante entre os imigrantistas apregoava, abertamente, a
incapacidade do negro para o trabalho livre, a passividade dos nacionais exceção
da elite, naturalmente) e outros princípios não menos racistas. Vários estudos
demonstram que o processo imigracionista integrava um projeto que pretendia,
efetivamente, apagar, eliminar a população negra do passado e do futuro que se
descortinava, com o objetivo de embranquecer a sociedade brasileira
33
.
Contudo, os primeiros imigrantes sofreram com os resquícios da escravidão
mantidos pelos senhores do café. Os primeiros contratos, feitos sem a intervenção
do Estado, obrigavam os imigrantes a trabalharem durante cinco anos, no mínimo,
para pagar os custos da viagem.
Em 1857, em Ibiacaba, houve a primeira revolta de colonos imigrantes contra
as condições de trabalho impostas pelos senhores. O tratamento dado aos primeiros
imigrantes motivou conflitos diplomáticos entre os governos italiano e brasileiro, que
foi obrigado a responder pelos maus tratos infligidos aos imigrantes. Porém, a
campanha imigrantista não parou de crescer
34
.
32
MOURA,Clóvis, op. cit, p.83.
33
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças cientistas, instituições e questão racial no Brasil
1870/1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 11-28.
34
MARAM, Sheldon Leslie. Anarquistas, imigrantes e o movimento operário brasileiro 1890-1920. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, Coleção Estudos Brasileiros, 1979, v. 34, p. 28.
12
Em 1881, o governo de São Paulo passa a pagar metade dos custos de
transporte, devendo o restante ser saldado pelo imigrante ao fazendeiro que o
importara; em 1884, começa a reembolsar integralmente os gastos com passagens
e, a partir de 1885, subsidia diretamente o custo de transporte desses trabalhadores.
Conforme Moura, entre 1851 e 1870 aportaram no Brasil 219.318 (duzentos e
dezenove mil, trezentos e dezoito) europeus
35
.
Entre 1871 e 1920, 3.390.000 (três milhões, trezentos e noventa mil)
imigrantes chegaram ao país, dos quais 1.373.000 (um milhão, trezentos e setenta e
três) italianos, 901.000 (novecentos e um mil) portugueses e 500.000 (quinhentos
mil) espanhóis, dentre outros
36
.
No ano de 1893, os imigrantes contabilizavam 55% dos habitantes de São
Paulo; 84% dos empregados da indústria manufatureira e artística; 81% dos
trabalhadores do ramo de transporte e 72% dos empregados no comércio. Em 1901,
um estudo sobre a indústria paulista calculou que apenas 10% dos operários
industriais eram brasileiros. Isto significa que ao trabalhador nacional restavam as
funções subalternas, as atividades nas zonas decadentes do café ou o
subemprego
37
.
Estava consolidada, assim, a exclusão praticamente absoluta do ex-escravo e
do liberto das mudanças econômicas e das oportunidades criadas pela
industrialização crescente. A construção ideológica que caracterizava o negro como
biologicamente inferior e que justificara, em parte, o escravismo após a abolição
formal da escravatura, reorientou a sociedade, isentando-a de práticas
discriminatórias. Pela lógica dessa ideologia, a culpa do destino dado à população
negra era do próprio negro que, tendo sido escravo, não era agora capaz de encarar
os desafios das novas exigências do capitalismo emergente, no final do século XIX.
Não era a sociedade que discriminava o negro, mas sim a sua incapacidade
natural”, que o levava a se afastar da sociedade industrial
38
.
Neste período, grande parte da literatura especializada em relações raciais
apresenta a construção ideológica da democracia racial, partindo da idéia de que o
Brasil teria sido o único país do mundo onde as relações entre escravos e senhores
35
MOURA, op. cit., p. 35.
36
MARAM, op. cit., p.13.
37
Idem, p.15-22.
38
SILVA BENTO, Maria Aparecida da. Psicologia social do racismo. Petrópolis: Vozes, 2002, passim.
13
foram “abrandadas pela convivência na “casa grande”, e que esta convivência
favoreceria a formação de uma sociedade racialmente democrática. As inúmeras
versões e a utilização dessa literatura cunharam o mito da democracia racial
brasileira que projetava, com base na suposta convivência harmoniosa entre negros
e brancos, e na propalada tolerância racial da população branca brasileira, a
ausência de discriminação e racismo
39
.
Outra abordagem, desenvolvida nos anos 50 por pesquisadores da
Universidade de São Paulo, reconhecia a natureza violenta do escravismo brasileiro
e a persistência de práticas discriminatórias após 1888, mas acreditava que o
socialismo transformaria negros e brancos em operários tratados igualmente. A
história não comprovou esta hipótese
40
.
1.3 O 13 de maio
A partir de meados de 1800, por pressão das metrópoles que agora
consideravam os países agrícolas compradores de seus produtos o sistema
escravocrata entrou em declínio. A Inglaterra, por exemplo, passa a condicionar as
relações políticas e econômicas com o Brasil ao fim do tráfico de escravos, o que
ocorre em 1850, devido à pressão por mão-de-obra livre e à decadência do mercado
mundial de açúcar e a derrocada da indústria açucareira.
O café surge como nova cultura e com uma dinâmica surpreendente. A mão-
de-obra demandada é tão grande quanto a da fase açucareira, porém, sem o tráfico
legal de africanos. Inicia-se, então, o chamado tráfico interprovincial, isto é, a
importação de negros de outras províncias, como Pernambuco, Bahia e Ceará. Tais
deslocamentos desarticulam, novamente, a população negra e, muitas vezes,
fragmentam famílias, pois seus membros podiam ser vendidos para diferentes
senhores.
Entre 1860 e 1870 crescem assustadoramente as fugas em massa e os
assassinatos de senhores de escravos. Como conseqüência, aparecem as leis
protetoras, pois o capital investido no escravo deveria ser protegido. Surgem a Lei
dos Sexagenários, a Lei do Ventre Livre, a extinção da pena de açoite, a proibição
39
HASENBALG, Carlos A. Discriminação e desigualdades sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
40
FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Ática, 1978, v. I e II.
IANNI, Octávio. Raças e classes sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.
14
de vender, como escravos, membros de uma mesma família para diferentes
senhores, e outros mecanismos que mais protegem a propriedade do senhor do que
a pessoa do escravo. A Lei dos Sexagenários, segundo Clóvis Moura, “serviu para
descartar a população escrava não produtiva, que apenas existia como sucata e
dava despesas aos seus senhores. A Lei do Ventre Livre praticamente condicionava
o ingênuo a viver até os 20 anos numa escravidão disfarçada, trabalhando para o
senhor
41
.
Do ponto de vista econômico, o capital das nações européias mais
desenvolvidas no instalado sistema capitalista industrial investia em países como
o Brasil, em áreas fundamentais (transporte, iluminação, portos e bancos),
instituindo o trabalho assalariado e acirrando a contradição entre trabalho livre e
escravo.
A crise do sistema escravista abre dois caminhos para a sociedade brasileira
branca da época: de um lado, os senhores da decadente e estagnada região
norte/nordeste, com uma economia condenada e escravos que mais oneravam do
que produziam. De outro, os fazendeiros do café de parte de Minas, São Paulo e Rio
de Janeiro, que entravam agressivamente no mercado mundial e respiravam os ares
do capitalismo industrial em expansão.
A partir de 1871, surge o movimento abolicionista, formado por intelectuais
influenciados por idéias liberais mais radicais. Os caifazes de Antonio Bento
chegaram a organizar fugas de escravos e a apoiar as revoltas e fugas em massa,
que ocorriam sem o auxílio de ninguém
42
.
Aumentavam as pressões sobre a escravidão. As revoltas de maior vulto; as
fugas das fazendas, que prejudicavam a produção; a propaganda favorável,
formulada pelos abolicionistas, e o aumento do apoio popular definiam o dilema: ou
se fazia a abolição por cima ou a abolição viria pelas mãos dos próprios negros,
através de medidas radicais, como a divisão das terras senhoriais.
Em 13 de maio de 1888, a princesa assina a Lei Áurea, abortando um
vigoroso movimento de massas que se alastrava assustadoramente, e libertando,
41
MACHADO, Maria Helena P.T. Crime e escravidão. São Paulo: Brasiliense, 1987.
42
SILVA, Eduardo. As camélias do Leblon e a abolição da escravatura: uma investigação de história cultural.
São Paulo: Companhia das Letras, 2003, passim.
15
formalmente, menos de 20% dos negros, pois a maioria havia conquistado a
liberdade através das leis anteriores, de fugas, ou tinha nascido livre.
1.4 A resistência negra após a abolição
Vinte anos depois da abolição formal do trabalho escravo, a população negra
reafirmava a sua trajetória de luta.
Em 1910, liderados por João Cândido, o Almirante Negro, os marinheiros da
esquadra apontavam os seus canhões para o Rio de Janeiro, em protesto contra os
castigos corporais e as más condições de trabalho
43
.
Cinco anos depois, em 1915, nasce O Menelick, propulsor de um fenômeno
singular: a imprensa negra em São Paulo. Em 1916, surgem os periódicos: A Rua e
o Xauter; em 1918, O Alfinete e O Bandeirante; em 1919, A Liberdade; em 1920, A
Sentinela; em 1922, O Kosmos; em 1923, O Getulino; em 1924, O Clarim da
Alvorada e o Elite; em 1928, o Auriverde, O Patrocínio e o Progresso; em 1932, a
Chibata; em 1933, A Evolução e a Voz da Raça; em 1935, O Clarim, O Estímulo, a
Raça e a Tribuna Negra; em 1936, A Alvorada; em 1946, O Senzala; em 1950, O
Mundo Novo; em 1954, Novo Horizonte; em 1957, Notícias de Ébano; em 1958, O
Mutirão; em 1960, O Hífen e Níger; em 1961, Nosso Jornal e em 1963, Correio
d'Ébano
44
.
Segundo Clóvis Moura, “esse conjunto de periódicos que se sucedem durante
quase cinqüenta anos influirá significativamente na formação de uma ideologia
étnica do negro paulista e irá influir, de certa maneira, no seu comportamento”
45
.
Mantidos pelos próprios negros que os editavam, com a colaboração de
membros da comunidade que se cotizavam para ajudá-los, esses jornais constituem
um fato único no Brasil: revelam a determinação em manter um espaço ideológico e
informativo independente e de servir como veículo organizacional dos negros.
As discussões travadas em suas páginas, a colocação permanente dos
problemas da comunidade negra, as denúncias contra o racismo e a violência
policial contra esses indivíduos resultam na criação de um grande movimento
43
SILVA BENTO, op. cit.
44
MOURA, , op. cit., p. 204-217.
45
Idem
16
político: a Frente Negra Brasileira, com seus informativos O Clarim da Alvorada e
Voz da Raça.
Criada no dia 16 de setembro de 1931, na Rua da Liberdade, em São Paulo,
pelos negros Francisco Lucrécio, Raul Joviano do Amaral e o famoso líder José
Correia Leite, a Frente Negra teve caráter nacional, com repercussão internacional.
Abrigou milhares de negros e, em face dos êxitos, resolveu transformar-se em
partido político, em 1936. O registro foi concedido, mas em 1937 o golpe de estado
deflagrado por Getúlio Vargas dissolveu todos os partidos, entre eles a Frente Negra
Brasileira. O Estado Novo força um recuo nas organizações democráticas, através
da ação permanente dos órgãos de repressão e vigilância. Nesse período, surgem
os clubes de lazer, dançantes e esportivos
46
.
Em 1944, o senador Abdias do Nascimento cria o Teatro Experimental do
Negro, que dinamizou a consciência de negritude e editou o jornal Quilombo. Em
1945 surge, no Rio de Janeiro, o Comitê Democrático Afro-brasileiro, que tentou
influir na Assembléia Constituinte com uma ampla plataforma democrática. Anos
depois, em 1949, realiza-se a Conferência Nacional do Negro
47
.
Por essa mesma época (1936), o poeta Solano Trindade, ex-militante da
Frente Negra cria, em Pernambuco, o Centro de Cultura Afro-brasileira, e em 1945,
no Rio de Janeiro, o Teatro do Povo. Em 1948 forma, com Haroldo Costa, o Teatro
Folclórico Brasileiro. Nesse período, os clubes de lazer proliferaram no interior de
São Paulo em Campinas, Sorocaba, Piracicaba, São Carlos, Jundiaí, Araraquara,
Catanduva e outras
48
.
Em 1954, é organizada a Associação Cultural do Negro, com a participação
de José Correia Leite, que editou um Caderno de Cultura Negra. Quatro anos
depois, esta entidade centrou suas atividades nos setenta anos da Abolição,
contando com a participação do Teatro Experimental do Negro, do Teatro Popular
Brasileiro (de Solano Trindade), da Associação Paulista dos Amigos do Homem do
Norte e do Nordeste, do Grêmio Estudantil Castro Alves, da Sociedade José do
Patrocínio e do Fidalgo Clube. Um debate interessante, travado nesta época, dizia
respeito à ideologia que deveria ser adotada pelos negros.
46
SILVA BENTO, op. cit., p. 74-75.
47
LEITE, José Corrêa; Cuti, E disse o velho militante José Corrêa Leite. São Paulo, Secretaria Municipal da
Cultura, 1992, p.145-178.
48
BARBOSA, Marcio. Frente Negra Brasileira: depoimentos. São Paulo, Quilomhoje, 1998.
17
Com o golpe militar de 1964, mais uma vez assiste-se ao recuo das
organizações negras e de outros movimentos populares brasileiros, que voltam a
ganhar impulso em meados dos anos 70. Nesse período, surge uma série de
entidades negras, em São Paulo e no Rio de Janeiro e, no dia 18 de junho de 1978,
durante um protesto nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, é criado o
Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, posteriormente
denominado Movimento Negro Unificado MNU
49
.
Assim, manteve-se, através dos tempos, o histórico de resistência e luta da
comunidade negra brasileira que mais de quatrocentos anos vem lutando, de
todas as formas. Esta luta, entretanto, como a outra, durante a escravidão, não é
sempre um confronto direto com as forças do capital. Trata-se de uma luta surda,
visceral, disseminada por todas as camadas sociais, em todas as instâncias da vida.
No trabalho, na educação, no lazer, os negros confrontam-se com a discriminação e
o preconceito.
Vale ressaltar, em síntese, que esta breve digressão histórica realça uma
nítida tentativa das elites brasileiras, no final do século XIX, de literalmente
branquear o país. É preciso lembrar que, durante três séculos e meio, cerca de
4.000.000 africanos entraram no Brasil, ao passo que, em cinqüenta anos, entre
1850 e 1900, entraram 2.092.847 europeus.
Segundo Hédio Silva Jr., a República foi marcada, inclusive, pela criação de
leis abertamente discriminatórias
50
. O 13 de Maio resolveu, teoricamente, o
problema do trabalho escravo, mas manteve intactos o racismo, a discriminação e o
preconceito. Diversos autores debruçaram-se sobre este fato. Dadas as
características singulares da obra de Oracy Nogueira, parece-me relevante uma
breve visita aos seus postulados.
Segundo este pensador
51
, no período pós-abolição a produção acadêmica
sobre a “situação racial” brasileira, no que se refere especificamente ao negro, pode
49
CARDOSO, Marcos Antônio. O Movimento Negro em Belo Horizonte: 1978-1998. Belo Horizonte: Mazza
Edições, 2002, p. 40.
50
SILVA JR., dio. Direito Penal e Igualdade Étnico-Racial in Ordem Jurídica e Igualdade Étnico-Racial.
Coordenado por Flávia Piovesan e Douglas de Souza. Brasília: Secretaria Especial de Promoção da Igualdade
Racial da Presidência da República, 2006, p345-381.
51
Estudo apresentado originalmente ao XXXI Congresso Internacional de Americanistas, em São Paulo, de 25 a
30 de agosto de 1954, no Symposium Etno-sociológico sobre Comunidades Humanas no Brasil, organizado por
Florestan Fernandes,
18
ser dividida em três correntes
52
:
1. Trabalhos sobre aculturação, de Nina Rodrigues e Arthur Ramos;
2. Produção de estudos históricos, nos quais se procura mostrar como o negro
ingressou na sociedade brasileira, a receptividade que encontrou e o destino
que nela tem tido. Gilberto Freyre é o principal representante dessa corrente;
3. Investigações para desvendar as relações entre os componentes brancos,
negros e indígenas, que tiveram, dentre seus desbravadores, o próprio Oracy
Nogueira.
O autor destaca que certos estudiosos recusavam-se a aceitar que o
problema do preconceito racial” fosse uma questão central nos estudos das
relações raciais.
Afirma, ainda, que a expressão “preconceito de marca” é uma reformulação
da expressão “preconceito de cor”.
“Considera-se como preconceito racial uma disposição (ou atitude) desfavorável,
culturalmente condicionada, em relação aos membros de uma população, aos
quais se tem como estigmatizados, seja devido à aparência, seja devido a toda
ou parte da ascendência étnica que se lhes atribui ou reconhece. Quando o
preconceito de raça se exerce em relação à aparência, isto é, quando toma por
pretexto para as suas manifestações, os traços físicos do indivíduo, a fisionomia,
os gestos, o sotaque, diz-se que é de marca; quando basta a suposição de que o
indivíduo descende de certo grupo étnico, para que sofra conseqüências do
preconceito, diz-se que é de origem”
53
.
Tabela 2 Preconceito de origem e marca, segundo Oracy Nogueira
54
Preconceito
Marca Origem
Modo de atuar
Determina uma preterição Exclusão incondicional do grupo
discriminado
bro
do grupo
Critério fenotípico ou aparência
racial
Proporção hereditária da
ascendência
Carga afetiva
Intelectivo e estético Emocional e intensidade na
atribuição da inferioridade
Efeito sobre as rela
-
ções interpessoais
As relações de amizade cruzam
facilmente a fronteira de cor
As relações são restritas por tabus e
sanções de caráter negativo
Ideologia
Ao mesmo tempo assimila-
cionista e miscigenacionista
Segregacionista e racista
Distinção entre dife
-
rentes minorias
O dogma da cultura prevalece
sobre o de raça
O dogma de raça prevalece sobre o
da cultura
52
NOGUEIRA, op. cit., p.72-73.
53
NOGUEIRA, op. cit., p.78.
54
Idem, p.79-91.
19
Preconceito
Marca Origem
Etiqueta
Enfatiza o controle do
comportamento para evitar
suscetibilidade e humilhação
Enfatiza o controle do
comportamento do grupo
discriminado para conter a
agressividade do grupo discriminador
Efeito sobre o grupo
dominador
Consciência da discriminação
tende a ser intermitente
Consciência da discriminação tende a
ser contínua e obsedante
Reação do grupo
discriminado
A reação tende a ser individual A reação tende a ser coletiva
Efeito de variação
proporcional do
contingente minori-
tário
A tendência é se atenuar nos
pontos em que maior propor-
ção dos indivíduos discriminados
A tendência é se agravar nos pontos
em que o grupo discriminado é
majoritário
Estrutura social
A probabilidade de ascensão
social está na razão inversa da
intensidade das marcas
Os grupos discriminador e
discriminado permanecem
rigidamente separados, como se
fossem duas sociedades paralelas
Movimento político
A luta do grupo discriminado
tende a se confundir com a luta
de classes
O grupo discriminado atua como
minoria nacional coesa e, portanto,
capaz e propensa à ação conjugada
Entre o preconceito racial de marca e o preconceito racial de origem,
conforme o quadro acima, serão abordadas algumas diferenças apontadas:
1. Quanto ao modo de atuar:
O preconceito de marca é determinado pela preterição. Esse desprezo é
conseqüência do preconceito e da noção de inferioridade do outro, que
coloca o discriminado como um outsider. Permite-se a sua participação,
desde que “compense a desvantagem da cor” por uma habilidade, como
inteligência, educação e situação econômica, entre outras.
o preconceito de origem é determinado por uma exclusão
incondicional dos membros do grupo atingido, em relação a situações ou
recursos pelos quais venham a competir com os membros do grupo
discriminador. Esta categoria não condiciona as escolhas dos membros
à superioridade de instrução, à profissão, etc. eles sempre serão
vedados quando pretenderem usufruir dos bens restritos ao grupo
dominante.
2. Quanto à definição de membro do grupo discriminador e do grupo
discriminado:
20
Para o preconceito por marca, o critério é o fenótipo ou aparência racial,
e varia, subjetivamente, ao olhar de quem observa, devido ao grau de
deferência, amizade, região, classe, etc.
o preconceito de origem nos Estados Unidos, por exemplo, por mais
completo que seja o branqueamento cabelos loiros, pele alva, nariz
afilado, olhos verdes, sem nenhuma característica que possa ser
considerada negróide o mestiço continuará sendo negro. Não importa
qual seja a sua aparência, por três gerações ele trará a origem do grupo
discriminado e não pode associar-se ao grupo discriminador.
3. Quanto à carga afetiva:
O preconceito de marca tende a ser mais intelectivo e estético, ou seja,
sua intensidade varia na proporção dos traços negróides que,
detectados em uma pessoa por quem se tem deferência, amizade ou
simpatia, causam o mesmo pesar que causaria uma deficiência.
Desde cedo, incute-se na criança branca a noção de que as
características negróides enfeiam e tornam o seu portador indesejável
para o casamento
55
.
O preconceito de origem tende a ser mais emocional e irracional, e
assumir o papel de ódio intergrupal, tornando as suas manifestações
mais conscientes e a forma de exclusão, ou segregação, intencional. Ela
será mais intensa no que se refere à atribuição de inferioridade ou traços
indesejáveis aos membros do grupo.
4. Quanto aos efeitos sobre as relações interpessoais:
No preconceito de marca, relações pessoais de amizade e deferência
que cruzam facilmente a fronteira de raça. Quando o preconceito é de
origem, as relações entre os grupos discriminador e discriminado são
restringidas, por exemplo, por meio de sanções, no caso de matrimônio
inter-racial.
5. Quanto à ideologia:
55
NOGUEIRA, op. cit., p. 82.
21
No preconceito de marca, a ideologia será assimilacionista e
miscigenacionista. Onde o preconceito é de origem, tende-se a uma
ideologia com característica segregacionista e racista.
Entretanto, ao contrário do muito que se falou a respeito de uma suposta
inexistência de discriminação racial no Brasil, em função da inegável miscigenação,
a obra de Oracy demonstra que a marca da pele, nomeadamente a pele diferente da
branca, continuará definindo lugares sociais/não lugares sociais.
Não obstante, autores como Gilberto Freyre lançam um olhar sobre esta
mesma realidade, concluindo que a miscigenação seria um atestado de inexistência
do preconceito racial.
No processo de formação social brasileiro, Freyre valorizou fatores como
ambiente, doenças e hábitos alimentares. É, talvez, o primeiro autor a “valorizar” as
técnicas produtivas e o comportamento físico/corporal dos escravos/negros.
Freyre trouxe importantes contribuições ao pensamento sobre a vida privada
na sociedade patriarcal através do relacionamento, na casa grande, entre senhores
e escravos. De forma inédita, focaliza a intimidade dessa relação e as marcas
deixadas por ela.
“[...] tendência genuinamente portuguesa e brasileira, que foi sempre no sentido
de favorecer o mais possível à ascensão social do negro”
56
.
“[...] encontramos em CGS um vigoroso elogio da confraternização entre negros e
brancos, também é possível descobrir numerosas passagens que tornam
explícito o gigantesco grau de violência inerente ao sistema escravocrata, que
chega a alcançar parentes do senhor, mas que é majoritária e regularmente
endereçada aos escravos”
57
.
Por outro lado, por meio do elogio à miscigenação, Gilberto Freyre (1980, p.
649) foi um dos principais defensores da idéia de que, no Brasil, a escravidão teria
sido suave e amena; os escravos, dóceis e passivos; e os senhores, generosos e
afetuosos em relação aos escravos, fertilizando a idéia (mito) de uma democracia
racial que por muito tempo inspirou o discurso acadêmico e o imaginário social
brasileiros.
“Ao falarmos em mito, nós o tomamos não apenas no sentido etimológico da
narração pública de feitos lendários da comunidade (isto é, no sentido grego da
palavra mythos), mas também no sentido antropológico, no qual essa narrativa é
56
FREYRE, op. cit, p. 503.
57
BENZAQUEN Araújo, Ricardo de. Guerra e paz Casa Grande & Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos
anos 30. Rio de Janeiro, Editora 34, 1994, p. 48.
22
a solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram
caminhos para serem resolvidos no nível da realidade
58
.
Num exercício de aproximação dessas duas teorias de um lado, Nogueira
afirma que a miscigenação funde as origens, mas mantém intactas as marcas; e de
outro, Freyre, para quem a fusão das origens eliminaria as marcas criam-se as
condições para o surgimento de uma idéia cara ao país: a negação da problemática
racial. Esta negação será expressa no discurso das elites na historiografia, nas
Ciências Sociais e na identidade dos descendentes de africanos. Passa a prevalecer
a idéia que o não falar, não ver, não visibilizar seria a solução para a estrutura
racializada que marca a história brasileira. Assim, a invisibilização passa a ser uma
estratégia para o modelo brasileiro de relações raciais.
Convém lembrar que, no plano acadêmico, o mito da democracia racial sofreu
um forte abalo em 1950, quando a Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), a propósito de um programa para
eliminar o racismo no mundo desenvolvido encomendou estudos que apontassem
uma “fórmula” brasileira para esta suposta harmonia entre as raças o resultado
mostrou a face das desigualdades raciais.
Teve início, então, a mudança na imagem das relações entre negros e
brancos. O grupo de cientistas responsável por tais estudos foi coordenado por
Roger Bastide e Florestan Fernandes, com a participação de Octávio Ianni,
Fernando Henrique Cardoso e outros. Eles procuraram contextualizar a situação do
trabalhador negro e começaram a desmitificar a ideologia da democracia racial
brasileira.
“Há, assim, uma crença generalizada de que o Brasil (...) é um país sem
preconceitos raro o emprego da expressão mais sofisticada ‘democracia
racial’) desconhecendo discriminação de raça e de credo. E praticando a
mestiçagem como padrão fortificador da raça. A força persuasiva dessa
representação transparece quando a vemos em ação, isto é, quando resolve
imaginariamente uma tensão real e produz uma contradição que passa
despercebida. É assim por exemplo que alguém pode afirmar que os índios são
ignorantes, os negros indolentes, os nordestinos atrasados, os portugueses
burros, as mulheres são naturalmente inferiores, mas simultaneamente, declarar
que se orgulhar de ser brasileiro por que somos um povo sem preconceito e uma
nação nascida da mistura das raças”
59
.
58
CARDOSO, Marco Antonio. O Movimento Negro em Belo Horizonte: 1978-1998/ Marcos Antônio Cardoso,
Belo Horizonte: Mazza Edições, 2002, p. 96.
59
CHAUI, op. cit., p. 8.
23
Trabalhos das últimas duas décadas vêm revelando que, com a evolução da
sociedade de classes, as desigualdades não se mantiveram como, em alguns
casos, no Sudeste, por exemplo, recrudesceram. Desmancham-se velhos credos
que atribuíam as desigualdades raciais atuais apenas a um difuso legado do
passado escravista e sua pretensa superação às transformações do sistema
capitalista. É factual que o sistema capitalista é um dos principais mediadores do
racismo, criando e recriando, persistentemente, condições propícias à sua
reprodução. O que não significa que se possa reduzir tudo a uma questão de
classes.
Certo é que, seja em função da tentativa de se negar cabalmente o racismo,
seja pela tentativa de subordiná-lo ao debate sobre classes, a invisibilidade
acompanha a trajetória do racismo brasileiro.
1.5 A invisibilidade do racismo
Em pleno século XXI, o racismo prossegue, ampliando a sua projeção sobre
as timas como um mecanismo eficaz de produção de desigualdade e
estigmatização.
O que torna a questão racial difícil de ser tratada em qualquer ambiente? Até
que ponto a invisibilidade do racismo contribui para fomentar a resistência ao
debate?
O conceito de invisibilidade social tem sido aplicado, em geral, quando se
refere às pessoas socialmente invisibilizadas, seja pela indiferença, seja pelo
preconceito, o que nos leva a perceber que a invisibilidade atinge,
preferencialmente, aqueles que estão à margem da sociedade.
A invisibilidade projetada pelo preconceito destitui a pessoa da sua condição
humana e, quando rebaixado, este novo ser torna-se invisível.
O preconceito provoca a invisibilização na medida em que projeta, no outro,
um estigma que anula, esmaga e substitui a sua individualidade por uma imagem
que nada tem a ver com ela.
A imagem do outro é observada através de um vidro escurecido escuro que
distorce a visão e condiciona o olhar do observador: preconceitos sociais e culturais,
preferências psicológicas, distorções mentais.
24
Através de um sentimento de superioridade, o preconceito tende a
desconsiderar a individualidade, atribuindo aprioristicamente aos membros de
determinado grupo estigmatizado características geralmente grosseiras.
Assim, os componentes básicos do preconceito pressupõem um sistema
social no qual a etiqueta racial tem relevância na distribuição dos lugares sociais, da
mesma forma que tal sistema pressupõe agentes que operem as desigualdades
raciais.
Em alusão à desigualdade, o racismo tem mantido os privilégios
60
e ampliado
os mecanismos de exclusão, aponta Zygmunt Bauman. Para ele, é possível
observar que este processo está conectado ao sonho de ordem e pureza.
Segundo Bauman, não como pensar na pureza sem associá-la
imediatamente à "ordem", ou seja, sem determinar os lugares "justos" e
"convenientes" das coisas. O oposto da pureza, o sujo, o poluído, refere-se às
coisas que estão fora do lugar: “Sapatos magnificamente lustrados e brilhantes
tornam-se sujos quando colocados na mesa de refeições. Restituídos ao monte dos
sapatos, eles recuperam a prístina pureza. Uma omelete, uma obra de arte culinária
que água na boca quando no prato do jantar, torna-se uma mancha nojenta
quando derramada sobre travesseiro?”
61
.
Pelo que se pode apreender do pensamento de Bauman, pureza e ordem
estão intrinsecamente ligadas. No entanto, ele chama a atenção para o fato de que
nem tudo tem um lugar certo, para certas coisas ou tipos de pessoa não foi pensado
nenhum lugar, desta forma, eles sempre estarão fora de lugar.
Estas pessoas são consideradas um obstáculo à harmonia do ambiente,
pertencem a uma categoria de seres humanos que sempre é tratada como sujeira,
uma vez que o ambiente foi planejado sem reconhecer a sua existência. Estas
pessoas não fazem parte do padrão, são estranhas ao grupo, não se encaixam na
ordem vigente, não lugar para elas.
É por isso que, segundo ele, “a chegada de um estranho tem o impacto de um
terremoto... O estranho despedaça a rocha sobre a qual repousa a segurança da
vida diária. Ele vem de longe; não partilha as suposições locais.... e, desse modo,
60
SILVA BENTO, Maria Aparecida da. Psicologia social do racismo. Petrópolis: Vozes, 2002, passim.
61
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p.14.
25
"torna-se essencialmente o homem que deve colocar em questão quase tudo o que
ali parece ser inquestionável para os membros do grupo abordado. Ele "... não tem
nenhum status.... e mesmo se tentasse dar o melhor e se fosse bem-sucedido... o
grupo não lhe concederia o crédito da retribuição do seu ponto de vista
62
.
Este mundo sem estranhos, que não tolera o diferente e o novo, é o mundo
das ideologias totalitárias, conhecidas pela tendência para localizar o misterioso, o
que não se define, e buscar a destruição do que não consegue controlar.
No entanto, atualmente, quando se fala da necessidade de respeitar o
diferente e valorizar a diversidade, é preciso outra lógica para lidar com o estranho.
Esta lógica pode gerar um tipo de respeito e convivência com a alteridade que, de
certa forma, acentua o racismo.
E o desconforto frente à necessidade de conviver com a alteridade emerge. O
problema não é como se livrar dos estranhos e do diferente, de uma vez por todas,
mas como viver com a alteridade, diária e permanentemente.
Pode-se reconhecer, aí, a força dos movimentos totalitários: "Os racistas
reconhecem a diferença e querem a diferença", diz Julius Evola sobre o movimento
neofascista italiano
63
.
É outra roupagem do discurso racista que vai caracterizar o que se entende
por racismo diferencialista: “... Não misturarás o que as culturas, em sua sabedoria,
separaram. Ajudemos, antes, as culturas qualquer cultura a seguir seus
separados e, melhor ainda, inimitáveis caminhos. O mundo, então, será tão mais
rico...
64
.
Martin Luther King Jr. preocupava-se com este aspecto, pois havia
compreendido que as relações raciais e étnicas se deteriorariam intensamente se o
valor cultural da integração diminuísse, como aconteceu nos Estados Unidos.
Bauman cita em seu livro
65
Alfred Schütz, para quem estabelecer os padrões
para incluir e excluir o outro chama-se “fundo de conhecimento à mão” ou sabedoria
de senso comum, aquilo em que acreditamos, sem pensar.
62
BAUMAN, op. cit, p.19.
63
Idem, p. 44.
64
TAGUIEFF, Pierre-André. In: BAUMAN, op. cit, p. 44.
65
Idem, passim.
26
Estigmatizar os traidores ou expulsar os estranhos parece provir do mesmo
motivo de preservação da ordem, de tornar ou conservar o ambiente compreensível
e propício, no caso, de uma única cor/raça.
Todas as sociedades produzem seus estranhos. Mas cada espécie de
sociedade produz sua própria espécie de estranhos e o faz à sua maneira, de modo
inimitável. Os seres humanos que transgridem os limites dos modelos convertem-se
em estranhos.
Neste caminho, Bauman utiliza os conceitos de Lévi-Strauss, trazendo duas
estratégias alternativas: a antropofágica e a antropogêmica. A primeira é uma
estratégia de assimilação tornar a diferença semelhante, abafar as distinções
culturais e sufocar as tradições. E a outra seria a estratégia de exclusão confinar
os estranhos dentro de paredes visíveis dos guetos, o que configuraria segregação
explícita ou, ao revés, integrá-los apenas aparentemente, mantendo-os confinados
por paredes invisíveis ou, ainda, expulsar os estranhos para além das fronteiras do
território administrável e, quando isto não for possível, simplesmente destruí-los.
No Brasil, o mundo do trabalho, como os outros espaços da vida social, é um
locus onde podemos observar as principais questões que envolvem a invisibilização,
estigmatização e exclusão. A relação social está historicamente marcada pela
desigualdade e discriminação racial. Contudo, as distâncias que separam negros de
brancos resultam não somente da discriminação ocorrida no passado, mas também
de um processo ativo de preconceitos e estereótipos raciais que legitimam,
permanentemente, procedimentos discriminatórios, garantindo a sua exclusão e
asseguram o fortalecimento dos estereótipos, como num ciclo vicioso.
Estes estereótipos baseiam-se no fenótipo. Segundo Oracy Nogueira
66
, o
racismo brasileiro manifesta-se segundo a aparência este é o elemento através do
qual a sociedade brasileira acentua ou reduz o efeito do racismo, ou seja,
estereotipando os traços visíveis da diferença entre negros e brancos.
O mais notório dado de aparência, ou fenótipo, é a cor da pele. Embora esta
seja definida por maior ou menor quantidade de melanina, em grupos oriundos de
regiões intensamente quentes ou de clima frio e moderado, dentro dos sistemas
sociais modernos e contemporâneos ela é, talvez, o mais potente definidor de
66
NOGUEIRA, op. cit.
27
lugares sociais, de forma que, como foi dito no início deste texto, o estigma gera a
exclusão. Tais lugares sociais são sustentados, no imaginário brasileiro, pelo
estigma de “raça” que, mesmo sem fundamento biológico, tem sido usado para
hierarquizar os grupos sociais. Por isso, o conceito raça/cor, como construção social,
é utilizado pela sociedade em processos discriminatórios, mas é negado como
elemento que deve ser reconhecido nas pesquisas como forma de diagnosticar as
diferenças sociais.
Segundo Edith Piza e Fúlvia Rosemberg, no texto Baile da cor
67
: “Nas coletas
censitárias e cadastros de instituições públicas e privadas, a ausência da coleta de
cor confere neutralidade aos dados coletados, como se todos os brasileiros, brancos
e negros, experimentassem a educação, a saúde, o trabalho, os salários, a
natalidade, a mortalidade e os direitos de cidadania da mesma forma. Se a cor
aparece como dado, uma súbita revelação de quão diferente são as trajetórias de
cada grupo, principalmente no interior de outros quesitos coletados e instituídos
como invariantes: sexo, escolaridade, trabalho emprego/desemprego”
68
.
1.6 A reivindicação da informação sobre cor como instrumento de
visibilização
Considerando-se que raça/cor é um construto subjacente ao controle e
hierarquia sociais, e que apenas o reconhecimento de sua existência, como
realidade social, permite a apreensão da complexidade do racismo, é igualmente
necessário demonstrar a sua existência e o racismo operante através de estratégias
específicas. Uma delas, a mais efetiva e, talvez, eficaz, é a utilização do dado
estatístico, que não deixa margem a argumentos sobre uma suposta “igualdade
social”, da qual a população negra não se apropriaria por uma alegada “inferioridade
natural”.
Neste contexto, a introdução do quesito cor nos cadastros públicos e privados
ganhou destaque. É uma forma ímpar de combater os estigmas, pois permite
evidenciar que o problema não é dos grupos discriminados, mas da sociedade
discriminadora.
67
PIZA, Edith; ROSEMBERG, Fúlvia. Cor nos censos brasileiros. Revista da USP, São Paulo, n. 40, p. 123-37,
dez/fev. 1998/1999.
68
PIZA, Edith & ROSEMBERG, Fúlvia. A cor dos censos brasileiros. In: CARONE, Iray; SILVA BENTO,
Maria Aparecida da (org.). Psicologia social do racismo. Rio de Janeiro: Vozes, 2002.
28
A ausência desse dado confere uma neutralidade aos diagnósticos, como se
mulheres e negros experimentassem as condições de trabalho, saúde e educação
de maneira similar. E não é esta realidade que as investigações realizadas pelos
principais órgãos de pesquisas brasileiros revelam quando focalizam as relações
raciais.
A quase inexistência da informação sobre cor/raça nos cadastros de pessoas,
empregados, servidores e usuários de serviços públicos dificulta a coleta de
subsídios que ajudem a formular e operacionalizar políticas públicas de promoção da
igualdade racial.
A questão racial tem importância significativa na estruturação das
desigualdades sociais e econômicas no Brasil. A demanda por reparações originou-
se de processos de quantificação das desigualdades, da visibilização do racismo e
levou a políticas de promoção da igualdade.
O objetivo destas políticas é fazer com que o Estado e a sociedade tomem
medidas para ressarcir os descendentes de africanos negros dos danos
psicológicos, materiais, sociais, políticos e educacionais sofridos durante e após o
regime escravista.
Observa-se que, atualmente, a defesa das ações afirmativas e a promoção da
igualdade racial são visíveis nas ações do governo. Além disso, rompem os limites
da retórica, das declarações solenes, passando a ser traduzidas em iniciativas
potencialmente tangíveis, articuladas.
Medidas administrativas palpáveis desde 2001, especialmente na esfera do
governo federal, embora desprovidas de política de natureza governamental,
começaram a proliferar, fortalecendo a reivindicação por providências positivas
voltadas à promoção da igualdade, anos pleiteada pelo Movimento Negro
69
.
No bojo desta movimentação destaca-se a inclusão da informação sobre cor
em todos os cadastros públicos.
A rigor, trata-se de um fenômeno que ganhou relevância a partir de 1995,
quando as principais entidades e lideranças do Movimento Negro entregaram um
documento ao Presidente da República com um diagnóstico pormenorizado da
69
SILVA BENTO, M. A. da, SILVA Jr., H., & LISBOA, M. T. O crepúsculo das ações afirmativas. São Paulo.
[s.n] 2006
29
situação dos negros no Brasil e passaram a assumir, abertamente, a reivindicação
por políticas de promoção da igualdade racial.
Em novembro de 1995, os principais jornais do país registravam a mais
notável manifestação contemporânea de rua organizada pelo Movimento Negro
Brasileiro: a Marcha Zumbi dos Palmares Contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida
que, em 20 de novembro daquele ano, reuniu cerca de 30.000 (trinta mil) pessoas
em Brasília, quando os coordenadores do evento encontraram-se com o Presidente
da República e entregaram a ele um documento pactuado entre as principais
organizações e lideranças negras do país. Nesse documento pode-se ler:
“Democratização da Informação inclusão do quesito cor em todo e qualquer
sistema de informação sobre a população, cadastro do funcionalismo, usuários de
serviços internos em instituições públicas, empregados, desempregados, inativos e
pensionistas, e, particularmente, nas declarações de nascimentos, prontuários e
atestado de óbito para que se conheça o perfil da morbidade e da mortalidade da
população negra no país. A criação desta base de dados da população negra é
fundamental para a formulação de políticas públicas específicas para todas as áreas
de interesse da questão racial”
70
.
Fato é que a Marcha representou não apenas um promissor momento de
ação unificada do conjunto da militância, como também marcou a eleição da
proposta de políticas de promoção da igualdade como um tema de consenso no
discurso da liderança negra.
Algumas ações resultaram destes processos, como o Decreto 1.904, de 13 de
maio de 1996, que instituiu o Programa Nacional de Direitos Humanos, com duas
proposições ligadas à temática das políticas de promoção da igualdade: 1. Inclusão
do quesito cor em todos e quaisquer sistemas de informação e registro sobre a
população, e bancos de dados públicos; 2. Criação de um banco de dados sobre a
situação dos direitos civis, econômicos e culturais da população negra na sociedade
brasileira, que oriente políticas afirmativas para a promoção dessa comunidade
71
.
Em setembro de 2000, a Presidência da República instituiu um comitê
paritário, composto por representantes de órgãos governamentais, intelectuais e
70
CARDOSO, Edson Lopes. Por uma política nacional de combate ao racismo e à desigualdade racial:
Marcha Zumbi contra o racismo, pela cidadania e a vida. Brasília: Cultura Gráfica e Editora Ltda., 1996, p. 24.
71
CARDOSO, Fernando Henrique. Brasil, presidência, cartilha-programa nacional de direitos humanos.
Brasília, Ministério da Justiça, 1996, p. 29-30.
30
lideranças negras, com a função de promover o debate no plano interno, representar
o país nos foros internacionais pertinentes e elaborar o documento que seria
encaminhado à Conferência sul-africana.
A despeito de todo o debate registrado nos últimos anos, o ingresso das
políticas de promoção da igualdade racial/cotas na mídia, nas casas legislativas e
nos órgãos públicos foi, inquestionavelmente, o processo preparatório da
participação brasileira na Conferência de Durban, cujo auge ocorreu no segundo
semestre de 2001.
O Relatório do Comitê Nacional para a Preparação da Participação Brasileira
na III Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e
Intolerância Correlata registra as seguintes formulações, entre outras:
x inclusão do quesito raça/cor nos formulários oficiais, nacionalmente padronizados como
Declaração de Nascidos Vivos e de Declaração de Óbito.
x inclusão do quesito raça/cor nos formulários de informação e registro do RAIS/CAGED
(Relatório Anual de Informações Sociais) e formulário do público beneficiário do
PLANFOR, em ambos os casos, sob a responsabilidade do Ministério do Trabalho e
Emprego
72
.
Do conjunto das propostas, a idéia de cotas nas universidades mereceu
destaque especial por parte da mídia, e serviu de estopim para deflagrar um
acalorado debate público.
É assim que, em 2001, irrompe no espaço público e na agenda política do
país um vigoroso debate acerca da oportunidade, necessidade e tipologia de
políticas públicas de promoção da igualdade racial na sociedade brasileira.
A mobilização interna, voltada para a Conferência de Durban, as iniciativas
oficiais e as do Movimento Negro, acrescidas da adoção das propostas de “cotas”,
centralizou sobremaneira a atenção da mídia. Assim, não será exagero afirmar que
nunca houve debate tão intenso nos meios de comunicação.
Refletindo as reivindicações sobre a informação referente à cor/raça, o
relatório da aludida Conferência de Durban contemplou uma rica formulação sobre o
tema:
72
Brasil, Ministério da Justiça, Secretaria de Estado dos Direitos Humanos. Relatório do Comitê Nacional para a
Preparação da Participação Brasileira na III Conferência Mundial das Nações Unidas contra o Racismo,
Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, 2001, p. 27-28.
31
92. Insta os Estados a coletarem, compilarem, analisarem, disseminarem e
publicarem dados estatísticos confiáveis em veis local e nacional e a tomarem
todas as outras medidas necessárias para avaliar, periodicamente, a situação de
indivíduos e grupos que são vítimas de racismo, discriminação racial, xenofobia e
intolerância correlata.
a) Tais dados estatísticos devem ser desagregados de acordo com a legislação
nacional. Toda e qualquer informação deve ser coletada com o consentimento
explícito das vítimas, baseada na auto-identificação e de acordo com as
disposições dos direitos humanos e liberdades fundamentais, tais como normas
de proteção de dados e garantia de privacidade. Estas informações não devem
ser usadas de forma inapropriada;
b) As informações e dados estatísticos devem ser coletados com o objetivo de
monitorar a situação de grupos marginalizados, bem como o desenvolvimento e
avaliação da legislação, das políticas, das práticas e de outras medidas que
visem prevenir e combater o racismo, discriminação racial, xenofobia e
intolerância correlata, bem como para o propósito de determinar se quaisquer
medidas tenham impacto involuntário desigual nas vítimas. Para este fim,
recomenda-se o desenvolvimento de estratégias voluntárias consensuais e
participativas no processo de coleta, elaboração e uso das informações;
c) As informações devem levar em conta os indicadores socioeconômicos,
inclusive, quando for apropriado, os de condições de saúde, mortalidade
materno-infantil, expectativa de vida, alfabetização, educação, emprego, moradia,
propriedades de terra, saúde física e mental, água, saneamento, energia e
serviços de comunicação, pobreza e média de rendimentos disponíveis para se
elaborar políticas de desenvolvimento socioeconômico, visando r um fim nas
diferenças existentes entre condições sociais e econômicas;
Duas conclusões podem ser imediatamente registradas com base nestas
normas da ONU: 1. a relevância do monitoramento para a sociedade civil e os
movimentos sociais, visto que permite à militância aquilatar a correspondência, a
coerência entre discurso e prática dos gestores públicos, oferecendo subsídios para
a mobilização social e a pressão política; 2. a relevância do monitoramento como
subsídio para a própria ação governamental, visto que oferece uma perspectiva
global dos programas e ações, permitindo correções e ajustes.
A duplicidade das vantagens que podem ser auferidas com o monitoramento
de políticas públicas deve demarcar a atuação da sociedade civil, pois,
independentemente de partidos políticos e/ou pessoas que estejam à frente dos
órgãos públicos, interessa fortalecer a ação dos movimentos sociais tanto quanto
colaborar, sempre que possível, com o trabalho de gestores públicos efetivamente
comprometidos com a execução das políticas.
Convém sublinhar que o exercício de monitoramento de políticas de
promoção da igualdade racial no Brasil, nas três esferas de governo, defronta-se
com dois obstáculos. O primeiro tem a ver, justamente, com a ausência da
informação sobre cor/raça dos beneficiários das políticas públicas, ou, o que é pior, a
inclusão equivocada desta informação.
32
Exemplo deste “novo” problema detectado pelo CEERT foi o formulário de
identificação de pessoas, empregado no cadastramento único para programas
sociais, do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, que utiliza
cinco categorias para identificar a raça/cor dos beneficiários: branca, negra, parda,
amarela e indígena.
Trata-se, é evidente, da junção de categorias fenotípicas com uma categoria
política (negro), adotada pelo Movimento Negro brasileiro para identificar todos os
descendentes de africanos e cujo fenótipo os sujeita à discriminação racial. É
dispensável afirmar que a categoria “negra”, do referido cadastro, não se confunde
com a categoria “preta”, empregada pelo IBGE e demais instituições de pesquisa
que desagregam a variável racial.
Além disso, a ausência da informação sobre cor nos cadastros das áreas de
educação e saúde, por exemplo, impedem o desenho de indicadores que captem o
impacto de programas de transferência de renda no acesso dos beneficiários
àqueles serviços públicos, dificultando, assim uma apreensão do empoderamento
(parte essencial dos objetivos do programa Bolsa Família, por exemplo) sobre os
grupos raciais.
Não é difícil perceber os problemas resultantes, seja do emprego equivocado
de categorias no cadastramento, seja da inexistência da informação sobre cor nos
serviços previstos nas condicionalidades impostas pelo Bolsa Família.
O segundo obstáculo interposto ao monitoramento refere-se à inexistência de
uma cultura legislativa e administrativa que assegure a previsão orçamentária para
programas e ações que possuam recorte de raça e/ou diversidade.
A inexistência de previsão orçamentária tende a realimentar a velha política
do favor, por meio da qual, não raro, o Movimento Negro é tratado como
mendicante: o administrador de plantão sente-se livre e desimpedido para agir ou
não com “benevolência”, atendendo o pleito ou não, implementando ou não
determinada política, mesmo que prevista em lei.
-se, assim, que a inexistência de rubricas orçamentárias específicas
desvirtua os termos da relação sociedade/Estado, Movimento/Estado, deslocando a
sociedade do seu devido lugar, isto é, titular e destinatária do poder.
33
Retomando as deliberações de Durban, pode-se verificar a preocupação
crescente com o monitoramento de políticas públicas compreendidas não como
exercício de fiscalização, mas como instrumento de contínuo aperfeiçoamento da
gestão dos serviços públicos; vejamos uma outra deliberação da aludida conferência
de Durban:
93. Convida os Estados, as organizações governamentais e as organizações não
governamentais, as instituições acadêmicas e o setor privado a aperfeiçoarem os
conceitos e métodos de coleta e análise de dados; a promoverem pesquisas,
intercâmbios de experiências e de práticas bem sucedidas e a desenvolverem
atividades promocionais nesta área; a desenvolverem indicadores de progresso e
de participação de indivíduos e dos grupos em sociedade que estão sujeitos ao
racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata;
94. Reconhece que as políticas e os programas que visam o combate ao
racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata devem estar
baseados em pesquisas qualitativas e quantitativas, às quais se incorpore uma
perspectiva de gênero. Tais políticas e programas devem levar em conta as
prioridades definidas pelos indivíduos e grupos que são vítimas ou que estão
sujeitos ao racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata
73
;
De um lado, representantes governamentais, e de outro, algumas das
principais lideranças do Movimento Negro, esmeravam-se em pronunciamentos
públicos, quase semanalmente, fomentando o debate na sociedade.
Vinculada à Presidência da República, e com status de ministério, foi criada,
no dia 21 de março de 2003, a Secretaria Especial de Políticas da Promoção da
Igualdade Racial, um notável marco de intervenção institucional do Movimento
Negro brasileiro.
Inicialmente por meio de medida provisória, convertida posteriormente na lei
federal 10.678, esta secretaria representa a sinalização do Estado brasileiro para
instituir políticas estáveis e sustentadas de promoção da igualdade racial.
Vejamos a relevância conferida pela secretaria à democratização da
informação sobre cor:
Incluir o quesito raça/cor e etnia em todos os instrumentos de coleta de dados,
registros, pesquisas e formulários públicos, para a conformação de um sistema
de informação das relações étnico-raciais no Brasil
74
.
73
Brasil, Ministério da Cultura, Fundação Cultural Palmares, III Conferência Mundial de Combate ao Racismo,
Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, Declaração de Durban e Plano de Ação Traduzidos
em Língua Portuguesa, p. 65-67.
74
Brasil, Presidência da República, Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Plano
Nacional.
34
Finalizando este primeiro capítulo, vale lembrar que a luta por acesso à
informação sobre cor/raça dos brasileiros remete o pesquisador para o histórico da
inclusão/supressão do dado da cor. Segundo Oracy, a miscigenação não significou a
dissolução das cores dos africanos e imigrantes que formaram a nacionalidade
brasileira.
Nos capítulos seguintes, será examinada a ambigüidade do tratamento
conferido pelo Estado brasileiro a este tema: ora a informação é incluída, ora é
suprimida. Como se fosse possível, conforme prognosticou Florestan Fernandes,
que a omissão do dado sobre a cor eliminasse automaticamente o problema.
Em entrevista publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, em 13 de maio de
1979, Florestan Fernandes enfrentava uma interessante indagação: “É possível
estimar a população negra e mulata do Brasil hoje?”.
Respondeu Florestan: “Não. Até 1950, isso ainda era possível, porque as
pessoas respondiam sobre sua cor nos recenseamentos. Quer dizer, o entrevistado
poderia dizer que era branco, preto, amarelo, a cor que ele achasse que era a sua.
Depois, a questão foi retirada. Cortaram a pergunta como se, com isso, cortassem o
problema (grifo meu)
75
.
Não o problema não foi cortado, a despeito do esforço de invisibilização,
como também, atualmente, a luta por igualdade racial configura uma das questões
mais candentes da sociedade brasileira.
Não se pode, entretanto, desenhar qualquer política de igualdade racial sem o
suporte da informação sobre cor. Democratizar essa informação implica tocar numa
ferida exposta, revelando as minúcias da condição de ser negro e ser branco no
Brasil, no passado, conforme relatado, e certamente também no futuro. Portanto,
o próximo capítulo pretende enfocar duas dimensões da classificação racial: a
político-ideológica, relacionada à ambigüidade da inclusão da informação sobre cor;
e a político-metodológica, referente à inconstância das categorias empregadas pela
demografia para proceder à classificação racial.
75
FERNANDES, Florestan. Significado do protesto negro. o Paulo: Cortez Editora/Autores Associados, 1989,
p. 98.
35
CAPÍTULO II DILEMAS DA CLASSIFICAÇÃO RACIAL
O silêncio não são as palavras silenciadas
que se guardam no segredo, sem dizer.
O silêncio guarda um outro segredo que o
movimento das palavras não atinge.
(M. Le. Bot)
Neste capítulo, pretende-se responder a uma questão que poderia ser
formulada nos seguintes termos: quais razões teriam levado o Estado brasileiro a
incluir, ou omitir, a informação sobre cor em determinados cadastros?
Vale anotar, ainda, que até março de 1975 a Lei dos Registros Públicos
determinava que na certidão de nascimento deveria constar a informação sobre cor.
Dois registros podem ser sublinhados a partir desses dados: 1) além dos
recenseamentos, que não identificam o declarante, décadas o Brasil instituiu
sistemas de classificação racial individualizados; (2) a cor, isto é, o fenótipo,
predomina como critério empregado para a classificação racial.
Trata-se de informações extremamente úteis, para não dizer imprescindíveis,
a uma abordagem da classificação racial, o que será feito adiante. Por ora, interessa
colocar em destaque o movimento pendular dos censos em relação à informação
sobre cor, bem como a natureza das categorias utilizadas.
Vale assinalar que na perspectiva de Oracy Nogueira, o racismo brasileiro
manifesta-se pela cor, pelo fenótipo, o que terminou informando os métodos e
técnicas de classificação racial historicamente empregados no Brasil
76
.
A bibliografia sobre o tema não indica o emprego de critérios genéticos como
base para tais classificações. Tanto a demografia quanto os cadastros públicos
utilizaram-se invariavelmente da marca visível a cor para o exercício
classificatório.
A seguir, uma breve visita aos recenseamentos no Brasil.
76
NOGUEIRA, op. cit.
36
2.1 Panorama dos censos sob o ângulo da classificação racial
A partir de 1750, a Coroa Portuguesa decidiu fazer um levantamento da
população livre e adulta, apta a ser convocada para a defesa do território. Antes do
censo nacional, houve vários outros, de caráter local ou municipal, como os
realizados no Rio de Janeiro em 1799, 1821, 1838, 1849, 1856, e 1870; em São
Paulo, em 1765, 1777, 1798 e 1836; além de outras cidades brasileiras
77
.
O primeiro regulamento censitário no Brasil data de 1846, e definiu o caráter
periódico do censo demográfico, fixando um intervalo de oito anos. Em 1850, o
governo teve orçamento para uma operação do porte de um censo demográfico. O
primeiro, então, foi programado para 1852.
Entretanto, a população revoltou-se contra o decreto 797, de junho de 1851,
então conhecido como a lei do cativeiro. Acreditava-se que era uma medida
governamental, com o objetivo de reescravizar os homens de cor. Este episódio foi
suficiente para adiar por mais 20 anos a realização do primeiro censo.
Em 1870, a lei 1.829, de 09/09/1870, determinou que os censos deveriam, a
cada dez anos, cobrir todo o território nacional.
O primeiro recenseamento nacional no país ocorreu em 1872 e recebeu o
nome de Recenseamento da População do Império do Brasil, que coletou a variável
raça como subtópico da condição social, então dividida entre homens livres e
escravizados. As categorias apresentadas foram branco, preto, pardo e caboclo (os
indígenas e seus descendentes);
x 1880 Não houve coleta censitária;
x 1890 Houve coleta censitária com levantamento da variável raça para a
população geral, desagregada somente no quesito estado civil. As cores
estabelecidas foram branco, preto, caboclo e mestiço; caboclo (indígenas e
brancos) e mestiço (indígenas e pretos). Como traço negativo desse censo,
pode-se mencionar o fato de que, na época, não se deu publicidade aos
dados coletados sobre raça;
x 1900 Houve coleta censitária, mas não foi coletada a variável raça da
população;
x 1910 Não houve coleta censitária;
77
Site IBGE www.ibge.gov.br. História do Censo do Brasil, 30/01/2008
37
x 1920 Houve coleta censitária, mas o foi coletada a variável raça da
população, cuja exclusão foi assim explicada: (a) supressão do quesito
relativo à cor explica-se pelo fato das respostas ocultarem em grande parte a
verdade, especialmente quanto aos mestiços, muito numerosos em quase
todos os estados do Brasil e, de ordinário, os mais refratários a declarações
inerentes à cor originária da raça que pertencem
78
;
x 1930 Não houve coleta censitária;
x 1940 IBGE
79
foi o novo responsável pelo censo, houve coleta censitária e
passou-se a levantar a cor dos entrevistados, e não mais a raça, com
levantamento da informação desagregada para todos os quesitos da
população. As categorias utilizadas foram branco, preto e amarelo, e os
pardos, categoria criada a posteriori, foram computados os casos de
inadequação com as categorias anteriores, ou quando não responderam à
pergunta, que as cores foram tanto auto quanto heterodeclaradas;
x 1950 Houve coleta censitária com levantamento da informação cor
desagregada para todos os quesitos da população. Os termos definidores
foram: branco, preto, pardo e amarelo; o pardo voltou a aparecer, mas como
um item específico, no caso, todos aqueles que se identificavam como
mestiços (mulato, cafuzo, mameluco, etc.; e todos os indivíduos que
pertencessem a grupos indígenas)
80
. As instruções para coleta eram
explícitas quanto à autoclassificação.
x 1960 Foi o primeiro recenseamento processado eletronicamente e que
utilizou uma amostra de 25% do total dos domicílios. Essa inovação tornou
possível expandir o número de perguntas do questionário. Por outro lado, a
partir desse momento ocorreu um retrocesso na investigação da variável cor
(que, de resto, manteve as categorias anteriores, branca, preta, amarela e
parda) que esta passou a ser investigada somente nos domicílios da
amostra, deixando de cobrir todo o universo entrevistado. Na verdade, esse
limite perdura até hoje. As categorias do dado cor não variaram em relação ao
censo de 1950.
78
Recenseamento de 1920, apud REGUEIRA: 2004:67. In: PAIXÃO, Marcelo, CARVANO, Luiz M. A.
Variável cor ou raça nos interior dos sistemas censitários brasileiros, p. 14.
79
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (fundado em 1938)
80
PAIXÃO, op cit., p.14.
38
x 1970 Houve coleta censitária, mas sem o dado cor. A ditadura militar
contribuiu com esta decisão, seja por ter perseguido e cassado as principais
lideranças do Movimento Negro e pesquisadores críticos da realidade racial
brasileira (Guerreiro Ramos, Florestan Fernandes, Fernando Henrique
Cardoso, Octávio Ianni), seja por ter colaborado para reforçar o mito da
democracia racial. Assim, após debates no interior do comitê assessor do
levantamento censitário, optou-se pela não inclusão da variável: A
classificação de cor na sociedade brasileira, por força da miscigenação, torna-
se difícil, mesmo para o etnólogo ou antropólogo. A exata classificação
dependeria de exames morfológicos que o leigo não poderia proceder. Até
mesmo com relação aos amarelos, é difícil caracterizar o indivíduo como
amarelo apenas em função de certos traços morfológicos, os quais
permanecem até a e gerações, mesmo quando cruzamentos. Com
relação ao branco, preto e pardo a dificuldade é ainda maior, pois o
julgamento do pesquisador está relacionado com a ‘cultura’ regional.
Possivelmente o indivíduo considerado como pardo no Rio Grande do Sul,
seria considerado branco na Bahia. Considero as informações sobre cor muito
deficiente. A sua exclusão poderia provocar alguns protestos de sociólogos.
Talvez, convenha correr o risco de ser mais realista
81
;
x 1980 Seguindo os padrões da década de 1960, utilizou-se a auto-
classificação da cor e presença do quesito em uma amostra de 25% do total
de domicílios. Nesse caso é importante mencionar a importância do
Movimento Negro e de pesquisadores do tema, que dentro de um contexto de
redemocratização do país, lograram obter o retorno do quesito cor no
questionário censitário. Vale, finalmente, mencionar que a partir deste
recenseamento igualmente ocorreu a redução da amostra para 10% dos
domicílios (relembrando que a variável cor faz parte desse questionário
específico) As categorias do dado cor não variaram em relação ao censo de
1950;
x 1991 Cor para a população geral. Incluíram-se neste censo os indígenas,
com a instrução de ser aplicada apenas aos que residissem em reservas;
81
Recenseamento de 1920, apud REGUEIRA, op. cit.
39
x 2000 Houve coleta censitária com levantamento da informação cor para a
população geral. As categorias do dado cor não variaram em relação ao
censo de 1991, com a instrução aos coletores de que a categoria indígena
não seria mais restrita somente aos que residissem em reservas.
40
Tabela 3 Cronologia da coleta para os censos.
Ano
censo
decenal
Houve
recenseamento?
Houve
coleta
do
quesito
cor?
VARIÁVEL
INDAGADA
Técnica de coleta?
Categorias
utilizadas?
1872 Sim Sim Raça
autoclassificação e
heteroclassificação
branco,
preto,
pardo e
caboclo
1880 Não Não - - -
1890 Sim Sim Raça
autoclassificação e
heteroclassificação
branco,
preto,
caboclo e
mestiço
1900 Sim Não - ̛ ̛
1910 Não Não - ̛ ̛
1920 Sim Não - ̛ ̛
1930 Não Não - ̛ ̛
1940 Sim Sim Cor
autoclassificação e
heteroclassifcação
branco,
preto,
amarelo e
pardo
1950 Sim Sim Cor autoclassificação
branco,
preto,
pardo e
amarelo
1960 Sim Sim Cor autoclassificação
branco,
preto,
pardo e
amarelo
1970 Sim Não - ̛ ̛
1980 Sim Sim Cor autoclassificação
branco,
preto,
pardo e
amarelo
1991 Sim Sim
Cor ou
Raça
autoclassificação
branco,
preto,
pardo,
amarelo e
indígena
2000 Sim Sim
Cor ou
Raça
autoclassificação
branco,
preto,
pardo,
amarelo e
indígena
41
Gráfico 1 Inclusão do quesito cor nos instrumentos censitários.
Quesito cor nos censos nacionais Brasil
73%
27%
Coletado =>1872, 1890,1940, 1950, 1960, 1980, 1991, 2000
o coletado => 1900, 1920, 1970
Observando o processo histórico da introdução do quesito cor nos censos,
deve-se destacar que, nos primeiros recenseamentos, houve uma forte tendência
para a inclusão de categorias genotípicas (caboclo, mestiço) ao lado de fenotípicas
(preto, branco, pardo). É preciso ressaltar, ainda, a não-inclusão do grupo indígena,
ao passo que, logo no início dos anos 50, quando tem início a imigração japonesa, o
IBGE cuidou de incluir a categoria amarelo.
Pode-se observar então que, desde o censo nacional de 1872, a
classificação racial utiliza dois critérios na coleta da informação: um deles aponta
para as categorias cromáticas “branco”, “preto” e “pardo”, e o outro remete à
ascendência ou origem racial “caboclo” (ameríndios e descendentes), “mestiço”
(descendentes da união de pretos e brancos), “amarelo” (para a imigração japonesa)
e “indígena”
82
.
As categorias “branco” e “preto” foram apresentadas como opções desde o
censo de 1872 até 2000. A categoria pardo também tem uma longa trajetória,
porém, em 1890, data do segundo censo nacional, foi substituída pela categoria
mestiço e retornou em 1940, no terceiro recenseamento, mantendo-se até 2000. A
categoria “amarelo” foi acrescentada no recenseamento em 1940 para atender à
migração japonesa, e a categoria indígena foi incluída em 1991, apenas para a
população residente em reservas no censo de 2000 esta restrição foi eliminada.
82
PETRUCCELLI, José Luis. A cor denominada: estudos sobre a classificação étnico-racial. Rio de Janeiro:
DP&A Editora, 2007, p. 23.
42
Por fim, pode-se observar abaixo que, quando o quesito cor é coletado por
meio de pergunta aberta, as categorias branca, preta, amarela e parda estão entre
as escolhas mais freqüentes.
Jose Luis Petruccelli
83
relata que a coleta da informação sobre cor, através da
pergunta aberta
84
, resultou em 143 categorias diferentes. Destas, 77 apareceram
somente uma vez, e 12 referiam-se à nacionalidade, unidade da federação e/ou
origem geográfica.
Estas 143 respostas diferentes ainda incluem variações de categoria que,
segundo o autor, poderiam ser agrupadas sem temor de impugnar a variabilidade
encontrada, citando o exemplo de “morena branca”, “branca morena” e “branca
morena clara”. Há, ainda, outra categoria que merece análise, de acordo com
Petruccelli a categoria “branco” com 16 variações, diferenciações hierárquicas do
branco “puro”. Seguindo esta proposta, ele agrupou as 143 classificações em 27
grupos de categoria.
Tabela 4 - Distribuição das respostas à auto-identificação de cor.
Critérios de agregação da variável cor para as categorias agrupadas e
distribuição das respostas à auto-identificação de cor (pergunta
aberta)
85
Categoria PME 98
% Acumulado
Branca
54,24% 54,24%
Morena
20,89% 75,13%
Parda
10,40% 85,53%
Preta
4,26% 89,79%
Negra
3,14% 92,93%
Morena clara
2,92% 95,85%
Amarela
1,11% 96,96%
Mulata
0,81% 97,77%
Clara
0,78% 98,55%
Morena escura
0,45% 99,00%
Escura
0,38%
Indígena
0,13%
Brasileira
0,12%
Mestiça/mista
0,08%
Loira
0,05%
83
PETRUCCELLI, op. cit., p. 25.
84
PME/98 que alcançou 34.045.265 pessoas.
85
PETRUCCELLI, op. cit.,p27 e 53.
43
Categoria
PME 98 % Acumulado
Branca+ **
0,04%
Sarará
0,04%
Marrom chocolate 0,03%
Cabo Verde
0,02%
Jambo 0,02%
Vermelha
0,02%
Cabocla 0,02%
Canela
0,01%
Castanha 0,01%
Galega
0,01%
Cafuzo 0,01%
* Não são considerados
,
na an
á
lise
,
os sem respostas, que alcanç
aram
0,26%
** Nesta categoria foram incluídas as respostas que qualificavam a cor
branca com algum outro termo complementar
Por fim, convém notar que Clóvis Moura havia identificado 136
denominações fornecidas pelos brasileiros, no censo de 1980
86
: “O total de 136
cores bem demonstra como o brasileiro foge de sua verdade étnica, procurando,
através de simbolismos de fuga, situar-se o mais possível próximo do modelo branco
tido como superior”
87
.
Trata-se, conforme demonstrado, de afirmação que deve ser vista com o
máximo de cautela, haja vista que o total de cores diminuiria sensivelmente se fosse
agrupado em cinco grandes categorias.
De todo o modo, cabe realçar que o branco aparece como designação da
condição humana, universal, não-racializado, como se fosse possível um sistema
econômico e político engendrado durante séculos, e que articulava três grandes
grupos étnicos (indígenas, africanos e europeus), ter racializado somente um dos
três segmentos citados.
Cabe resgatar o conceito de invisibilização referido no capítulo 1, com o qual
se pretendeu demonstrar que a retirada da informação sobre cor pode ter obedecido
a uma lógica de invisibilização da própria presença da população negra no país, e
do impacto que o problema racial causa na vida das pessoas. No entanto, a locução
86
ALZUGARAY, Domingo; ALZUGARAY, Catia. Retrato do Brasil. São Paulo: Editora Três, v. 1, 1973 p.
112.
87
MOURA, Clóvis. A herança do cativeiro. In: ALZUGARAY, Domingo; ALZUGARAY, Catia. Retrato do
Brasil. São Paulo: Editora Três/ Política Editora, n.º 10, 1984, p. 112.
44
“homem de cor
88
, usada como sinônimo de negro, relativiza o conceito aqui
abordado, que neste caso o que se pretende é a invisibilização do branco.
Decerto, um dos efeitos da locução “homens de cor”, evidentemente
falaciosa, é a invisibilização do branco como grupo étnico/racial, ao qual se
vinculavam interesses econômicos e políticos, sem falar, ainda, do aspecto
identitário. Ao pressupor que a racialização seria condição exclusiva dos negros,
pretendia-se invisibilizar o papel desempenhado pelos brancos como grupo de
interesse. Como diz Carlos Hasembalg, a ocultação da figura do branco cumpria o
importante papel de culpabilizar os próprios negros pela sua condição histórica,
econômica e social. Assim, a expressão “problema racial”, “questão racial” é
substituída por “problema do negro”, como se negro e branco não fossem
construções sociais, como se o fenômeno não estivesse associado e como se os
brancos não tivessem a sua cota de responsabilidade na solução do problema.
De outra parte, é igualmente interessante observar que, a despeito do uso de
determinadas categorias fenotípicas, nos recenseamentos e documentos públicos, o
ativismo negro não aderiu àquela nomenclatura, preferindo expressões como “gente
negra”, “mocidade negra”, “a raça”, ou metáforas como “níger” e “ébano”
89
.
A aparente contradição é que, se de um lado as categorias empregadas em
classificação, inspiradas em Oracy Nogueira, expressavam elementos fenotípicos, a
nomenclatura adotada no discurso da militância parecia orientada por um critério
essencialmente político: eram negros todos os descendentes de africanos, conforme
expressamente propugnava o jornal Tribuna Negra da quinzena de setembro de
1935, cuja capa estampava: Pela União Social e Política dos Descendentes da
Raça Negra (grifo meu)
90
.
Trata-se, aliás, de demarcação que se mantém até os nossos dias, visto que
enquanto o IBGE utiliza os termos preto e pardo, o Movimento Negro
contemporâneo prefere os vocábulos “negro”, “afro-brasileiro”, “afrodescendentes”,
entre outros, que serão objeto de exame no capítulo seguinte.
Com estas considerações, pretende-se chamar a atenção para o fato de que
método e técnicas de classificação racial foram, historicamente, marcados por
88
LEITE, op. cit., p.32.
89
Idem, p. 84, 92, 180, 101, 124.
90
Idem, p. 124
45
concepções muitas vezes distanciadas da opinião da população negra a respeito da
sua identificação eles foram formados mais por razões político-ideológicas dos
grupos de poder.
2.2 A supressão da cor do censo de 1970
A década de 70 pode ser considerada um marco no tratamento dispensado
pelo Estado à questão da informação sobre cor, pelo menos por duas razões: 1. a
supressão da cor no recenseamento geral; 2. a supressão da cor na certidão de
nascimento.
Segundo Karin Sant’Anna Kössling: “Como parte da estratégia do escamotear
do racismo no Brasil, o item cor não fez parte dos recenseamentos do IBGE durante
duas décadas, uma vez que os governantes entendiam não haver racismo no Brasil,
‘o brasileiro não tem cor, todos são iguais perante a lei e têm acesso a todas as
oportunidades’. Da mesma forma, o IBGE não teria divulgado dados referentes à
presença do racismo nas relações de trabalho, segundo matéria do jornal Folha de
S. Paulo, de 22/01/82. A reportagem denunciou que o IBGE tinha conhecimento,
desde 1980, sobre o racismo no mercado de trabalho, com dificuldades na
contratação e salários menores para os negros e pardos, mas essa pesquisa do
Departamento de Estudos e Indicadores Sociais foi mantida em sigilo. Essas
medidas revelam a preocupação de sigilo que o regime militar manteve em relação
aos movimentos negros que, por certo, se tivesse conhecimento desses dados,
fortaleceriam os seus argumentos e a sua própria luta
91
.
Juana Elbein dos Santos também registra a associação entre o acesso à
informação sobre cor e as reivindicações sociais: “Tendo sido queimados os
documentos e os arquivos referentes ao tráfico dos escravos, e sendo interdita nos
recenseamentos oficiais a discriminação segundo a cor da pele, é difícil proceder à
apreciação exata da evolução e da importância da população de ascendência
africana no Brasil”
92
.
91
As lutas anti-racistas de afrodescendentes sob vigilância do Deops/SP 1964-1983. Karin Sant’Anna
Kössling. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas. Departamento de História. Pós-graduação em História Social. São Paulo, 2007, p. 112 e 113.
(v. notas, 445, 446, 447)
92
ELBEIN DOS SANTOS, Juana. Os nagôs e a morte: pàde, àsèsè e o culto égun na Bahia. (trad.)
Universidade Federal da Bahia. Petrópolis: Vozes, 1986, p. 27.
46
Neste mesmo período, outra decisão política importante foi tomada pelo
regime militar, a supressão da informação sobre cor da certidão de nascimento.
Tratou-se da edição da lei 6.015, de 30 de junho de 1975, que, entre outras
alterações impostas à Lei dos Registros Públicos, suprimiu o dado da cor, visto que,
até então, a lei apresentava a seguinte redação: “O assento de nascimento deverá
conter: item 2
o
. o sexo e a cor do registrando”.
Com a nova redação, o quesito cor foi cuidadosamente eliminado do texto
legal.
Assim, a sua larga utilização limitou-se aos formulários das áreas de
segurança pública e sistema prisional certamente não por mera coincidência.
Os objetivos eram nítidos, evidentes, patentes: ocultar o racismo e, ao mesmo
tempo, enfraquecer a luta anti-racista.
No dizer de Teresinha Bernardo, “as características do mito da democracia
racial, que constitui uma outra dimensão do racismo, à medida que encobre, desfoca
a discriminação, criando a ilusão da harmonia racial”
93
.
De seu turno, ao debruçar-se sobre a tipologia dos movimentos sociais, no
livro A Produção da Sociedade
94
, o filósofo Alain Touraine identifica três
componentes essenciais: a identidade, que é a definição que os agentes têm de si
mesmos; a oposição, isto é, o conflito, que distingue os adversários; e a totalidade,
que refere o campo de domínio posto em disputa.
Quanto mais explícita e visível for a tensão que origem a um movimento,
maiores serão as suas probabilidades de acentuar identidades coletivas, conquistar
base de sustentação e se afirmar como expressão política de demandas de um
grupo social.
Vale lembrar que nos EUA, em 1865, mesmo ano da aprovação da 13
a
Emenda à Constituição, que aboliu formalmente o trabalho escravo, os
confederados sulistas derrotados na Guerra de Secessão criaram a Ku-Klux-Klan,
que não apenas assumiu um discurso abertamente racista, como empreendeu ações
terroristas responsáveis pelo enforcamento de cerca de 5.000 negros. Na África do
93
BERNARDO, Teresinha. Negras, mulheres e mães: lembranças de Olga de Alaketu. São Paulo: EDUC, Rio
de Janeiro: Pallas, 2003, p. 158.
94
TOURAINE, Alain. Production de la société. Paris: Seuil, 1993.
47
Sul, o apartheid inscreveu na própria Constituição, com todas as letras, o princípio
da alegada superioridade branca.
No Brasil, o mito da democracia racial cuidava de tornar invisível, o máximo
possível, a discriminação, isolando a luta contra o racismo e robustecendo a idéia de
que, se houvesse um problema em nosso país, este seria de natureza social e não
racial.
Estava em cena o espetáculo da ocultação, do acobertamento, do
encobrimento.
A referida ocultação evidencia a relevância do não-dito, ou, noutras palavras,
a importância do silêncio no discurso da democracia racial brasileira.
“Não constitui exagero afirmar que estudos e pesquisas sobre a educação de
populações brasileiras têm se caracterizado pela negação da discriminação racial
através do silêncio: silencia-se sobre o tema como estratégia de negação da
existência de diferenças raciais. Reforça-se, assim, o mito, acarinhado pelas
populações brancas brasileiras, de que vivemos numa democracia racial. Se, de
acordo com o mito, conseguimos a implantação terrestre do paraíso racial, se o
povo brasileiro, também de acordo com o mito, é destituído de preconceito racial,
por que então diferenciarmos nas estatísticas oficiais o que, em princípio e de
acordo com o mito, é igual? Se a constituição do país reza em seu artigo que
somos iguais perante a lei, independentemente de sexo, classe, raça, religião,
por que nos preocuparmos com as diferenças na condição de vida de negros e
brancos?
Revendo a documentação nacional sobre a população negra, nota-se a
persistência do ocultamento das desigualdades raciais, isto é, das vantagens e
privilégios da população branca e da discriminação social, econômica e simbólica
que sofre a população negra”
95
.
Trata-se de um discurso, como se sabe, que serviu ao propósito de
propagandear, nos planos interno e externo, a versão segundo a qual, no Brasil, não
existiria preconceito ou discriminação raciais contra a população negra. No entanto,
estudiosos desse tema, atentos às entrelinhas das palavras, percebem que a
construção do discurso usado para implantar, justificar e legitimar a idéia de paraíso
racial alicerçou-se em informações omitidas, silenciadas ou projetadas, de modo
estereotipado, ao longo da história. Fatos relevantes da história social brasileira
foram apagados, evidenciando que o discurso poderia ter outra composição, caso
viessem à tona elementos outros, como a resistência negra à escravidão, no
passado, ou a reação negra, no presente.
95
ROSEMBERG, Fúlvia, PINTO, Regina P. Trajetórias escolares de estudantes brancos e negros. In: Seminário
Educação e Discriminação de Negros. Belo Horizonte: IRHJP Instituto de Recursos Humanos João Pinheiros
/FAE/MEC, 1988, p. 31.
48
Ao se evidenciar a ocultação, o silêncio, é possível estudar o discurso a partir
do não-dito, em que o não dizer equivale a dizer algo para que outro algo não seja
dito. Assim, ao investigar o não-dito, mostrando o que foi omitido e, ao mesmo
tempo, o que se pretendeu omitir, pretende-se contribuir para o desvelamento do
arsenal argumentativo/discursivo da democracia racial.
Vale lembrar que a preocupação com o fenômeno do silêncio é crescente e
facilmente localizada na produção contemporânea sobre relações raciais no Brasil.
Ricardo Henriques afirma que “a desigualdade racial, em particular, é
desconsiderada ou ocultada pelo confortável manto do silêncio. Silêncio enraizado
no senso comum de uma sociedade convencida da pretensa cordialidade nacional e
do mito da democracia racial. Silêncio que oculta a enorme desigualdade racial a
que estão submetidos os brasileiros”
96
.
Eliane Cavalleiro observa, em seu trabalho, que a “omissão e o silêncio das
professoras diante dos estereótipos e dos dogmas impostos às crianças negras são
a tônica de sua prática pedagógica”
97
. No mesmo percurso, Maria Aparecida Silva
Bento parte da premissa de que “a sociedade reproduz as desigualdades ao longo
dos séculos com ampla participação da população, quer intencional, quer
inconscientemente, seja através de ações discriminatórias, seja da omissão frente às
práticas racistas”
98
. Para Kabengele Munanga, o racismo brasileiro “é caracterizado
por um silêncio criminoso que, além da exclusão sistemática dos negros em vários
setores da vida nacional, prejudica fortemente o processo de formação da identidade
coletiva da qual resultariam a conscientização e mobilização de suas vítimas”
99
.
Não será mera casualidade a preocupação recorrente dos intelectuais com a
questão do silêncio. O modelo de relações raciais construído na experiência
brasileira prescindiu, ao menos teoricamente, de regras formais, escritas,
organizadas. Esse modelo, por sinal, funda-se em regras informais, não-escritas,
mas, de algum modo, por todos conhecidas. Essa afirmação admite a conclusão de
que o silêncio, o não-dito, muito mais do que o dito, serviu de veículo de
transmissão, balizamento e normatização da conduta discriminatória.
96
HENRIQUES, Ricardo. Desigualdade racial no Brasil. IPEA, Texto para discussão n. 807, 2001.
97
CAVALLEIRO, Eliane. Do Silêncio do Lar ao Silêncio Escolar: Racismo, Discriminação e Preconceito na
Educação Infantil. Editora Contexto, São Paulo, 2000.
98
SILVA BENTO, SILVA Jr.& LISBOA op.cit.
99
MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia.
Cadernos PENESB. Niterói: EdUFF, 2004.
49
Outro conceito igualmente importante é o do silenciamento, que consiste no
apagamento da presença negra na história brasileira.
Enni Puccinelli Orlandi fala sobre o silêncio e a exclusão, focalizando outro
apagamento: o do indígena. Ela se pergunta: “Como o índio foi excluído da língua e
da identidade nacional brasileira?
100
.
De fato, assegura Orlandi, o índio é silenciado, não fala nos textos tomados
como documentos. No entanto, é mencionado pelos missionários, cientistas e
políticos. Para compreender o silêncio, é preciso compreender o discurso destes
atores ao longo da história (500 anos), ou seja, é pela historicidade que se poderá
compreender o discurso e o silêncio
101
.
Sobre a política do silêncio, Orlandi destaca que, ao dizer algo, apagamos
outros sentidos indesejáveis: “... Assim, fala-se sobre sobre o outro, para que ele
não fale, pois ele, ao falar, pode distorcer o sentido do discursso que nos
interessa
102
.
Isto significa que na política do silêncio está a interdição do dizer, o
impedimento da sustentação de outro discurso
103
.
É exatamente o que se observa no ato dos militares de suprimir o quesito cor
no censo de 1970 não se coleta e não se fala no assunto, não existe racismo no
Brasil, vivemos numa democracia racial.
Neste caso, o silêncio é, acima de tudo, aquilo que foi apagado, colocado de
lado, excluído
104
.
O romance O guarani
105
é um interessante exemplo de apagamento da
presença e contribuição negra na formação da nação brasileira.
No momento anterior à abolição, nomes como Luiz Gama valiam-se do texto
literário para manifestar a sua subjetividade e condição peculiar no mundo. No
entanto, apagou-se da literatura o nome de Maria Firmino, contemporânea de Gama,
100
ORLANDI, Enni Puccinelli. As formas do silêncio no movimento dos sentidos. Campinas: Editora da
Unicamp, 1995, p. 59.
101
ORLANDI, op cit., p. 58.
102
ORLANDI, op cit., p. 60.
103
Idem, p. 76.
104
Idem, p. 106.
105
ALENCAR, José. O guarani. 25 ed., São Paulo: Ática, 2002.
50
que publicou Úrsuala em 1859, o primeiro romance abolicionista e um dos primeiros
escritos por uma brasileira, segundo Eduardo de Assis Duarte (UFMG)
106
.
No campo da temática étnico-racial, o desafio não poderia ser maior.
Diferentes teorias a respeito de racismo e relações raciais no Brasil são
constantemente revisitadas por pesquisadores contemporâneos, na tentativa de
entender não somente o porquê, mas como a nação conseguiu sustentar, durante
séculos, a imagem de democracia racial em meio à recorrente desigualdade.
É neste momento que se cruzam os conteúdos da semiótica e das relações
raciais. Como uma teoria do percurso gerativo do sentido, a semiótica não se
interessa pelo resultado final, o significado; mas sim como algo se organiza para
significar o que significa. Da mesma forma, procedem as teorias da análise do
discurso de matriz francesa.
Assim, parece mais apropriado trabalhar com a idéia de como a sociedade
está organizada para sustentar o mito da democracia racial, ao invés de perguntar
por que o Brasil não se reconhece racista, nem institucional nem cotidianamente. Ao
traçar o percurso das oportunidades do que ora é silenciado, ora alimenta
estereótipos mostra-se o discurso que foi estrategicamente apagado para que
outro se sobressaísse. Também a semiótica orienta o caminho, posto que
sentido na e pela relação entre, pelo menos, dois elementos. Em outras palavras,
um discurso constitui-se, não raro, em oposição a outro discurso
107
.
A Lingüística e a Semiótica têm papel fundamental na (re)construção
discursiva desse debate. Atualmente surgem, aqui e acolá, trabalhos pioneiros, que
tentam trazer à superfície o que a linguagem (leia-se, o discurso) não ousou
pesquisar. Mais comum, no entanto, é empreender esforços para continuar a
legitimação de escritores canônicos, sem deixar que novos elementos venham
desestabilizar o confortável manto da normalidade, supostamente acadêmica.
106
LEITE, op. cit., p. 87.
107
MANGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. 3 ed. Campinas: Editora da
Unicamp, 1997.
51
2.3 A reação negra à estratégia do silêncio a reivindicação da
informação sobre cor
Mais do que ocultar o racismo e silenciar a luta contra o racismo, é possível
afirmar que a ditadura temia, verdadeiramente, o potencial representado pela
conscientização e organização política da população negra.
Possivelmente indignadas com a supressão da informação sobre cor no
recenseamento de 1970, as entidades e fóruns de discussão passaram a reivindicar
a democratização e o acesso àquele dado, como estratégia de desmascaramento do
racismo e do fortalecimento da luta anti-racista.
Em 1990, por influência da militância negra e de pesquisadores negros, o
IBASE Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas, então liderado por
Betinho, lança a campanha “Não deixe sua cor passar em branco”, visando mobilizar
e conscientizar a população negra da importância do recenseamento e da
demografia na luta por um país igualitário.
Desde então, o tema da informação sobre cor tem merecido ampla atenção e
vem sendo inserido de forma cada vez mais vigorosa nas formulações do Movimento
Negro, de setores da academia, centros de pesquisas, órgãos governamentais e,
inclusive, no setor privado.
Vale lembrar que o Movimento Negro, um dos mais antigos movimentos
sociais brasileiros, é formado por entidades urbanas e rurais, políticas, culturais,
quilombolas, mulheres, jovens, etc. Todas têm, em comum, duas bandeiras
principais: a luta contra o racismo e igualdade racial, e a defesa da cultura e da
identidade negras.
Nos últimos anos, o Movimento Negro enraizou-se em todo o país e, hoje,
está presente nas capitais e nas cidades grandes, médias e pequenas de todo o
território nacional.
Muitas são as conquistas políticas obtidas pelo Movimento Negro, como:
. desmascaramento do mito da democracia racial;
. criminalização do racismo, tornando-o crime imprescritível e inafiançável;
. mudanças significativas na publicidade, propaganda e televisão, em que se tornou
cada vez mais freqüente a inserção de imagens positivas de negros e negras em
peças publicitárias;
52
. introdução da temática do racismo e da intolerância religiosa na agenda dos
direitos humanos;
. divulgação do caráter eurocêntrico do ensino no Brasil;
. desmistificação do vestibular e conquista de políticas de inclusão de jovens negros
e pobres no ensino superior;
. introdução de informações sobre cor, racismo, discriminação e desigualdades
raciais nos principais centros de pesquisa e de demografia do país;
. introdução do debate sobre racismo em sindicatos, na academia, nos partidos
políticos, em instituições públicas e privadas.
Hoje em dia, como resultado da ação do Movimento Negro, a maioria do povo
brasileiro reconhece a gravidade do racismo e aprova as medidas que vêm sendo
tomadas para superá-lo, como a inclusão do quesito cor em todos os cadastros
públicos e privados. Assinale-se que esta inclusão vem crescendo na última década,
embora num ritmo aquém do esperado.
Conforme será visto nos capítulos seguintes, o Brasil assiste, atualmente, a
dois fenômenos inovadores no campo da informação sobre cor: a tomada deste
tema como bandeira política, por parte do Movimento Negro, e sua utilização como
ponto de partida para a produção de políticas públicas de promoção da igualdade
racial.
53
CAPÍTULO III CLASSIFICAÇÃO RACIAL: MARCOS LEGAIS, CONCEITOS,
MÉTODOS E EXEMPLOS
Basta ser um pouco negro para sê-lo
totalmente, mas para ser branco é necessário
-lo totalmente.
Kabengele Munanga
No momento em que esta dissertação está sendo escrita, ações judiciais
isoladas buscam questionar as políticas de cotas nas universidades, utilizando o
argumento da suposta ilegalidade do procedimento de classificação racial, inclusive
disseminando a idéia de que as cotas inaugurariam tal procedimento no país, o que
pode ser facilmente contraditado pelos fatos arrolados no capítulo anterior.
Por esta razão, parece oportuna uma incursão, mesmo breve, nos marcos
legais da classificação racial, antes de se adentrar no território das técnicas e
conceitos.
O sistema jurídico nacional indica diferentes critérios para demarcar a
diversidade que caracteriza a população brasileira. Assim, a Constituição da
República faz menção expressa à cor, raça, etnia bem, como ao adjetivo pátrio “afro-
brasileiro
108
.
A mesma tendência pode ser observada nas declarações e convenções
internacionais:
. a Declaração Universal dos Direitos Humanos emprega os vocábulos cor e
raça (art. 2
o
)
109.
. a Declaração sobre raça e preconceito racial também utiliza os termos cor e
raça (art. 1
o
)
110
.
. a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial
111
faz uso das palavras cor e raça (art. 1
o
)
112
.
108
SILVA JR., dio. Direito de igualdade racial: aspectos constitucionais, civis e penais: doutrina e
jurisprudência. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002, p. 12,13,30.
109
Adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de
dezembro de 1948.
110
Aprovada e proclamada pela Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura, reunida em Paris em sua 20ª reunião, em 27 de novembro de 1978.
54
No campo da jurisprudência, isto é, das interpretações fixadas pelos tribunais,
duas decisões chamam a atenção.
A primeira, datada de 2003, foi tomada pelo Supremo Tribunal Federal no
famoso caso Ellwanger, no qual um editor foi acusado de racismo porque editava
livros que negavam a existência do holocausto judeu e apontavam os alemães como
as verdadeiras vítimas do nazismo.
Neste julgamento, a Corte Suprema acolheu o entendimento de que “raça é,
sobretudo, uma construção social, negativa ou positiva, conforme o objetivo que se
lhe queira dar. Assim, o problema não está na existência ou não de raças, mas no
sentido que se ao termo. Se atribuirmos caracteres inerentes, naturais e
inescapáveis, às diferenças físicas, psíquicas, lingüísticas ou etno-religiosas de
qualquer população, estaremos sendo racistas, quase sempre para o mal
113
.
A segunda decisão judicial, mais antiga, de 1992, foi tomada pelo Tribunal de
Alçada Criminal de São Paulo, num julgamento que confirmou uma sentença
condenatória fundamentada em prova de reconhecimento pessoal, na qual a vítima
teria reconhecido o autor de roubo não por seus traços fisionômicos, mas
unicamente pela cor de sua pele. O Tribunal entendeu que a cor da pele do acusado
seria elemento suficiente para sustentar o reconhecimento e, conseqüentemente,
manter a condenação de um indivíduo pelo fato perfeitamente simples de ele ser
negro.
Assim manifestou-se o Tribunal: “Reconhecimento pessoal Identificação
baseada somente na cor Validade Entendimento: 66(b) A afirmação da vítima
de não encontrar condições para reconhecer os agentes não conflita com a
afirmação de ser um deles de cor negra e reconhecê-lo, que o reconhecimento se
pela segura memorização visual de diversos traços característicos de uma
pessoa, ou de um somente, a cor
114
.
111
Adotada pela Resolução 2.106-A da Assembléia das Nações Unidas, em 21 de dezembro de 1965. Aprovada
pelo Decreto Legislativo 23, de 21/06/1967. Ratificada pelo Brasil em 27 de março de 1968. Entrou em vigor no
Brasil em 04/01/1969. Promulgada pelo Decreto 65.810, de 8/12/1969. Publicada no D.O. de 10/12/1969.
112
SILVA JR., op. cit., p. 26.
113
Supremo Tribunal Federal. Crime de racismo e anti-semitismo: um julgamento histórico no STF: Hábeas-
corpus 82.424/RS. Brasília: Supremo Tribunal Federal, 2004, p. 31.
114
Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo. Apelação 753.603/3, Julgado em 21/09/1992, 12
a
Câmara,
Relator: Afonso Faro, RJDTACRIM 16/141.
55
Deixando-se de lado as várias considerações provocadas por um julgado
deste teor, cumpre assinalar que, no caso, o acusado foi classificado racialmente
pelo Escrivão de Polícia, e, uma segunda vez, pela vítima, do que resultou sua
condenação em um processo-crime. Trata-se, portanto, de um antecedente
jurisprudencial que ratifica a legalidade da classificação racial.
Destes marcos legais e decisões judiciais, dois registros poderiam ser
sublinhados: 1. a cor, isto é, o fenótipo, previsto expressamente na legislação
nacional e na normativa internacional, predomina como critério para a classificação
racial e inclusive conta com respaldo jurisprudencial; 2. além de declarar
formalmente a legalidade da cor como critério de classificação, o Poder Judiciário
brasileiro, por meio de sua mais alta Corte, admite a idéia de que raça não encontra
fundamento na genética, mas sim em fatores socialmente construídos.
Neste ponto, emerge uma indagação preliminar: em quê consistem os termos
raça, cor, etnia, afro-brasileiros?
3.1 Significados de raça, cor e etnia
3.1.1 Raça
O termo raça, ao menos sob o prisma científico, biológico, é inapropriado para
seres humanos.
As variações biofisiológicas na espécie humana limitam-se ao plano da
aparência física os fenótipos e decorrem de necessidades orgânicas (condições
ambientais ou climáticas, proteção dos raios solares), inscritas na cadeia genética de
grupos da espécie espalhados por todas as regiões e respectivos tipos de clima do
planeta.
Embora não tenha validade científica, a idéia de raça integra o senso comum,
sobretudo nas sociedades nas quais a raça (cor) das pessoas influencie a
distribuição das oportunidades e dos lugares sociais.
Deste modo, a impropriedade científica do uso da categoria raça para
classificar seres humanos não impede que o fenótipo dos indivíduos seja
socialmente tratado como atributo racial, o que exige que as políticas de diversidade,
para fins de promover a igualdade, levem em conta a idéia de raça.
56
Cashmore ajuda a compreender o conceito de raça, principalmente
considerando a sua historicidade
115
.
Raça definiria um grupo ou categoria de pessoas conectadas por uma origem
comum. Desde o início do século XVI, ela vem sendo usada para se referir a carac-
terísticas comuns, oriundas de uma mesma ascendência. As pessoas desenvolvem
crenças a respeito de raça, assim como a respeito de nacionalidade, etnia e classe,
buscando construir identidades grupais.
As mudanças no uso da palavra “raça mostram as alterações na
compreensão popular das causas das diversidades físicas e culturais. Pelo menos
até o século XVIII, a explicação para a diversidade vinha do Antigo Testamento.
Segundo Volney J. Berkenbrock, no Brasil colonial, a Igreja Católica recorria à
Bíblia para justificar a escravização do africano. Uma das passagens bíblicas mais
utilizadas era de nesis, capítulo 3, versículos 17 e 19. Adão é condenado por
Deus, por causa de seu pecado, a ganhar o seu sustento, e o de sua mulher, com o
penoso cultivo da terra. Os escravos simbolizam, na sociedade cristã, a realidade
desta condenação
116
.
As diversidades no fenótipo puderam, então, ser interpretadas de uma das
três seguintes formas: como um desígnio de Deus, como resultado das diferenças
ambientais, independentemente de questões morais, e como fruto de diversos
ancestrais originais. O sentido principal da palavra raça era o de ascendência. No
começo do século XIX, a partir da influência de George Cuvier, anatomista
comparativo francês, considerava-se a diversidade uma expressão de tipos.
Entendia-se que estes eram permanentes, que essa era uma visão pré-
darwiniana da natureza. O termo “raça” passou a ser usado no sentido de tipo,
definindo seres humanos distintos, tanto pela constituição física quanto pela
capacidade mental. Essa concepção continua até hoje e informa as doutrinas
designadas como “racismo científico”.
O trabalho de Darwin sobre o reino animal inspirou a interpretação de que as
diversidades físicas, entre as pessoas, seriam provenientes de sua diferente herança
genética. O estabelecimento da genética e a teoria da seleção natural, como um
115
CASHMORE, op. cit.
116
BERKENBROCK, Volney J. A experiência dos orixás: um estudo sobre a experiência religiosa no
candomblé. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 106-107.
57
campo de pesquisa experimental, tiveram implicações revolucionárias para o estudo
das diversidades raciais, mas, meio século depois da publicação de A Origem das
espécies, em 1859, os antropólogos continuaram a propor classificações raciais do
Homo sapiens, entendendo que assim a natureza das diversidades poderia ser mais
bem compreendida.
Paula Monteiro concorda com o fato de que o estudo das diferenças
humanas, a partir da divisão em raças bem distintas, surge em meados do século
XIX
117
.
Em 1935, sir Julian Huxley e A. C. Hadon afirmaram que, na Europa, os
grupos habitualmente chamados de raças seriam mais bem designados como
grupos étnicos”.
Poucos seguiram o seu conselho. Em diferentes países, o termo “raça é
usado como construção social. Nos Estados Unidos, por exemplo, uma pessoa de,
digamos, um oitavo de ancestralidade africana e sete oitavos de européia pode se
autodeclarar negra e ser descrita assim pelos outros. Essa designação segue uma
regra social e não genética. Na maioria dos outros países, essa pessoa não seria
classificada como negra.
Na Grã-Bretanha, assim como em outras nações, a lei proíbe a discriminação,
por motivos de ordem racial” e oferece proteção à “pessoas que não sejam do
mesmo grupo racial
118
.
3.1.1.1 Raça” - como significante
“Raça” é um significante que se transforma, que significa diferentes coisas
para diferentes pessoas em diferentes lugares na história
Descentralizar o conceito desse modo necessariamente modifica a maneira
de analisá-lo.
Henry L. Gates
119
afirma que “raça tomou-se “um conjunto de diversidades
entre culturas, grupos lingüísticos ou adesões a sistemas de crenças específicas [...]
117
MONTEIRO, Paula. Globalização, identidade e diferença. São Paulo: Novos Estudos, CEBRAP, 49,
nov./1997.
118
CASHMORE, op. cit., p. 447-450.
119
Race”, writing and difference, organizado por Henry L. Gates (University of Chicago Press, 1986), reúne
vários artigos publicados anteriormente no volume 12 de Critical Inquiry e aborda aspectos da importância e
58
e muito arbitrária na sua aplicação. O conceito abarca crenças vagas e incoerentes
a respeito da supremacia branca, ao funcionar como sinônimo de cor de pele e
outras características fenotípicas relacionadas a desvios e inferioridade.
O uso da palavra na nossa ngua e, portanto, no nosso discurso, possibilita
focalizar o sentido da diversidade natural em nossas formulações.
O foco recai, então, na língua, mas, como um símbolo de diversidade cultural
e biológica, é um modo de manter a distância entre os grupos soberanos e os
subordinados. A língua é tanto um meio quanto um constituinte ativo do processo de
racialização”.
As culturas nunca são impermeáveis e o significante “raça aparece em várias
culturas de resistência às ordens coloniais e racistas.
Nas concepções contemporâneas, “raça” aparece como um modo de
entender e interpretar a diversidade por meio de marcadores inteligíveis.
Problematizar” o conceito desse modo possibilita desestabilizar as bases
intelectuais sobre as quais ele repousou por muito tempo
120
.
3.1.1.2 A tentativa de ressurreição do critério biológico
A despeito da habitualidade e da velhice dos procedimentos de classificação
racial adotados pelo Estado brasileiro, e à revelia da legislação, da jurisprudência e
da produção acadêmica contemporânea sobre o tema, uma edição da revista Veja
ilustra o vigor de um movimento que tenta ressuscitar a noção de raça biológica
121
.
Segundo a revista, pesquisas coordenadas pelos geneticistas Sérgio Danilo
Pena, da Universidade Federal de Minas Gerais, e Maria Cátira Bortolini, da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, concluíram que os negros brasileiros
por parte de pai têm mais genes europeus do que africanos
122
.
Uma leitura da matéria, mesmo superficial, não deixa dúvidas do substrato
ideológico: desqualificar as políticas de inclusão racial e empregar supostos critérios
biológicos para tentar definir identidade racial e direitos da população negra
brasileira.
influência da “raça”, uma presença persistente, porém, implícita na literatura do século XX.
120
CASHMORE, op. cit., 450-453.
121
Revista Veja, ed. 2011, de 6 de junho de 2007, p. 82 a 88.
122
Idem, p. 88.
59
a revista Carta Capital
123
apresentou a análise do genoma humano, que
proporciona diagnósticos mais precisos de doenças genéticas, teste de paternidade,
técnicas forenses e a promessa de novas terapias.
No entanto, além de servir à medicina, a genealogia genética tornou-se a
mania da vez. Conforme a referida matéria, estima-se que de 600 a 700 mil pessoas
fizeram testes de ancestralidade genética até o fim de 2007 número que cresce em
100 mil por ano em busca de suas raízes, da etnia da qual seriam descendentes.
Tal informação leva alguns a formar comunidades com “irmãos de etnia” nos EUA ou
na África e fazer doações à pátria dos supostos ancestrais africanos ou etnia de
origem.
O geneticista italiano Luigi Luca Cavalli-Sforza
124
explica que, na genealogia
genética, uma coisa é lidar com grandes amostras para definir movimentos regionais
de migrações, o que pode ser confrontado com evidências lingüística, arqueológica
e histórica. Porém, a conclusão de que cada portador individual desse marcador
genético deve ser considerado descendente de quem viveu na região é arriscada,
pois esta análise representa somente um fio de uma trama imensa que envolve toda
a humanidade.
Vale lembrar, a título de comparação, que em 1982 o Coronel Ivan Zanoni
Hausen, então assessor da Fundação Nacional do Índio FUNAI, foi severamente
criticado por diversos setores da sociedade, exatamente por tentar aplicar a genética
para identificar “índios puros” entre a etnia Xakriabá.
Veja-se, a propósito, o depoimento de Paulo Suess, então Presidente do
Conselho Indigenista Missionário CIMI: “Quem reduz a questão da ‘identidade
étnica’ a uma questão genética e se esquece dos fatores culturais, sociais, políticos
e históricos, não resta dúvida, é racista (grifo nosso)
125
.
No mesmo sentido, a nota publicada pela Comissão Nacional dos Bispos do
Brasil, CNBB, no dia 28 de abril de 1982: Repudiamos energicamente a aplicação
de quaisquer ‘critérios biológicos de sangue’ em populações indígenas para verificar
sua identidade étnica. Com antropólogos do país, consideramos tal procedimento
123
COSTA, Antonio Luiz M.C., Em busca do pedigree, Carta Capital, ano XIV, ed. 479, de 23 de janeiro de
2008, p. 8-12
124
CAVALLI-SFORZA, Luigi Luca. Genes, povos e línguas. São Paulo: Cia. das Letras, 2003 (uma das
primeiras obras de divulgação sobre o tema).
125
Jornal Porantim em defesa da causa indígena, ano IV, n. 39, Brasília, maio de 1982, p. 4-5.
60
como racista, lembrando métodos nazistas e ofendendo princípios éticos e cristãos
(grifo nosso)
126
.
É intrigante constatar que este mesmo método, quando aplicado à população
negra brasileira, não gerou nenhum tipo de protesto, apenas da militância negra e
anti-racista e de uns poucos acadêmicos comprometidos com a defesa da igualdade
racial.
3.1.2 Etnia
O conceito de etnia baseia-se em atributos culturais compartilhados por
membros de um determinado agrupamento e se refere a um conjunto de dados,
como língua, religião, costumes alimentares, comportamentos sociais.
Os grupos indígenas, ciganos, a comunidade judaica, a comunidade islâmica,
entre outras, podem ser citados como grupos étnicos presentes em nosso país.
Trata-se, pois, de um fenômeno cultural, mesmo sendo baseado,
originalmente, numa percepção comum e numa experiência de circuntâncias
materiais desfavoráveis.
O termo é oriundo do grego ethnikos, adjetivo de ethos, e se refere a povo ou
nação. “Étnico” descreve um grupo que tem algum grau de coerência e
solidariedade, composto por pessoas conscientes, ao menos de modo latente, de ter
origens e interesses comuns. Um grupo étnico é um conjunto de pessoas unidas ou
proximamente relacionadas por experiências compartilhadas.
O termo define, portanto, a característica predominante de um grupo que se
reconhece, de algum modo (normalmente, vários), distinto. A consciência de
pertencer a um grupo étnico assume uma característica, que é passada de geração
para geração. Diferentes línguas, crenças religiosas e instituições políticas tornaram-
se parte de uma bagagem étnica, e as crianças são criadas para aceitar isso.
Cashmore conclui que: (1) etnia é o termo utilizado para abarcar vários tipos
de respostas de diferentes grupos; (2) o grupo étnico baseia-se nas apreensões
subjetivas comuns, seja das origens, dos interesses, seja do futuro (ou, ainda, uma
combinação destes); (3) a privação material é a condição mais propícia para o
126
Jornal Porantim, op. cit.
61
crescimento da etnia; (4) o grupo étnico não tem de ser uma “raça”, no sentido de
ser considerado, pelos outros, como algo inferior apesar de haver uma forte
superposição desses dois conceitos e muitos grupos que se organizam etnicamente
serem, freqüentemente, designados por outros como “raça”, (5) a etnia pode ser
usada para vários propósitos diferentes algumas vezes, como manifesto
instrumento político, outras, como simples estratégia de defesa diante da
adversidade; (6) a etnia pode vir a ser uma linha divisória cada vez mais importante
na sociedade, embora nunca esteja inteiramente desconectada dos fatores de
classes
127
.
3.1.3 Afro-brasileiros/afrodescendentes
Extraída da Constituição Federal, mais precisamente do adjetivo pátrio afro-
brasileiro, esta expressão tem a característica de valorizar o laço comum de
procedência geográfica/cultural, do continente de origem dos membros da
população negra brasileira, independentemente de aparência, atributos fenotípicos,
tom da pele, etc.
É interessante notar que a literatura aponta o espaço religioso afro-brasileiro
como locus de surgimento desta expressão. Com efeito, Cida Nóbrega e Regina
Echeverria afirmam que entre os dias 10 e 19 de janeiro de 1937 ocorreu, no
Terreiro do Gantois, o Congresso Afro-brasileiro o primeiro foi realizado por
Gilberto Freyre, em 1934. Deste segundo congresso participaram Babalaô
Martiniano do Bonfim, Mãe Menininha, Mãe Aninha (Ilê Opo Afonja), Bernardino da
Paixão (nação Angola), Procópio (Ogunjá) e Manoel Falefá, da Formiga
128
.
O fato destacado pelas autoras permite inferir que a expressão afro-brasileiro
pode ter surgido como resposta a duas questões: 1) demarcar a matriz africana do
Candomblé, religião cuja liturgia, em terras brasileiras, guarda extraordinária
analogia com aquela ainda hoje praticada no continente africano; 2) agregar, sob a
rubrica “afro”, os três principais segmentos religiosos legados dos africanos: as
nações Ketu, Angola e Jêje. É assim que a semântica pode ter servido para
equacionar duas reivindicações de natureza essencialmente política, ainda que
127
CASHMORE, op. cit., p.196-203.
128
NÓBREGA, Cida e ECHEVERRIA, Regina. Mãe Menininha do Gantois uma biografia, Salvador,
corrupio. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006, p. 94.
62
situadas no campo religioso a pertença à Africa e a indivisibilidade das teologias
dos diferentes segmentos do Candomblé.
Atualmente empregado como sinônimo de negro, o termo afrodescendente
não exige a presença, ou mensuração, de caracteres físicos comuns à população
negra, visto que enfoca não o aspecto da aparência, e sim a marca de ascendência,
designando, portanto, a identidade do conjunto dos brasileiros baseada na
ascendência africana.
A título de ilustração, vale realçar que a expressão em foco configura,
também, uma espécie de antídoto interposto pela militância à tentativa de segmentar
a população negra, com base na cor da pele. A exemplo da provocativa e
significativa frase “100% negro”, afro-brasileiro designa não uma categoria
geográfica, cromática ou genética, mas sim uma categoria política: é negro quem é
tratado socialmente como tal. Ou, em outra perspectiva, sendo descendente de
africano, negro é.
3.1.4 Cor
A cor da pele, dos olhos, dos cabelos é um dos aspectos que varia na espécie
humana, e está ligada à quantidade de melanina existente no organismo, devido à
necessidade do organismo de se proteger das características climáticas das
diferentes regiões do planeta.
No entanto, em determinado período histórico, a cor foi fortemente associada
à idéia de evolução. Esta associação ocorreu em meados do século XIX, quando
Johann-Friedrich Blumenbbach (1752-1840) definiu os tipos raciais: caucasiano,
mongol e etíope, aos quais foi acrescentado o americano e malásio
129
.
As culturas foram hierarquizadas em termos de saturação de cor da mais
escura (primitiva) à mais clara (civilizada), definindo as suas unidades culturais
(australiana, taitiana, asteca, chinesa, italiana) no interior do espectro conhecido de
raças humanas
130
.
A cor ficou vinculada à idéia de evolução. Uma das características do homem
primitivo era a pele escura e a pequena estatura, as suposta feiúras e
129
MONTEIRO, op. cit.
130
Idem.
63
promiscuidade, e a violência. Esta representação negativa da pele escura pode ser
observada em diferentes partes do mundo. Fanon,
131
psicanalista negro, escreveu:
Quando a civilização européia entrou em contato com o negro... todo o mundo
concordou: esses negros eram o princípio do mal... negro, o obscuro, a sombra, as
trevas, a noite, os labirintos da terra, as profundezas abissais...”
132
.
Maria Aparecida da Silva Bento
133
destaca que na representação do negro
brasileiro este fenômeno é transparente, conforme pode-se observar nos estudos de
Otávio Ianni
134
, Fúlvia Rosemberg
135
, Célia Silva
136
e muitos outros que se ocupam
do tema. Tais estudos revelam que na, comunicação visual, o negro aparece
estigmatizado, depreciado, desumanizado, adjetivado pejorativamente, ligado a
figuras demoníacas.
Constata-se assim que, como em outras partes do mundo, no Brasil a cor da
pele é largamente empregada como critério de classificação das pessoas.
E, provavelmente, pela força desta característica fenotípica, amplos debates
sobre o significado da cor da pele sempre sacudiram nossa sociedade, e ainda que
de maneira instável, desde 1872, data do primeiro recenseamento geral, os
brasileiros vêem sendo classificados segundo diferentes categorias cromáticas.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE, responsável pelo
censo da população, tem utilizado categorias para classificar a raça/cor das
pessoas: branco, preto, pardo, amarelo, indígena. Embora ainda polêmicas, essas
categorias originam-se de pesquisas feitas com a população e são utilizadas pelos
principais institutos de pesquisa do país.
Segundo o IBGE, brancos são considerados os de aparência e pele branca;
pretos são aqueles que têm pele bem escura; pardos, os de pele mais clara porque
são mestiços filhos de brancos e pretos, de indígenas e brancos ou de indígenas
e pretos; amarelos são os asiáticos japoneses, chineses, coreanos; e indígenas
131
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Rio de Janeiro: Fator, 1980.
132
Idem, p. 154.
133
SILVA BENTO, op. cit.
134
IANNI, op cit.
135
ROSEMBERG, Fúlvia. Literatura infantil e ideologia. São Paulo: Global, 1985.
136
SILVA, Ana Célia da. Cor e posição simbólica: o lugar do negro na modernidade. Caxambu, 1991. (Mimeo)
[Trabalho apresentado no GT Temas e Problemas da População Negra no Brasil, no XV Encontro Anual da
ANPOCS, Caxambu, 15 a 18 de outubro de 1991]
64
são os descendentes dos índios brasileiros cabelos muito lisos, pele bronzeada,
traços mais acentuados dos olhos
137
.
No entanto, surge uma questão fundamental quando se pensa em
classificação pela cor: quem faz esta classificação o coletor da informação ou
quem vai passar por um processo de classificação?
3.1.5 Autoclassificação versus heteroclassificação
Embora haja recomendações internacionais para que se adote sempre a
autoclassificação em pesquisas ou registros que coletam o dado raça, etnia ou
outras características ligadas à identidade dos indivíduos, existe uma vasta
discussão se esse método de identificação seria adequado ao Brasil. Segundo
Rafael Guerreiro Osório
138
, essa discussão nasceu principalmente do trabalho de
intelectuais dos EUA que estudam países da América Latina, especialmente o Brasil
e a Colômbia, para empreender análises comparativas sobre o caráter das relações
raciais nestes e em seu país. A polêmica centra-se na categoria parda. Alguns,
como bem resumem Telles & Lim
139
, postulam que na América Latina os mulatos
seriam menos discriminados do que nos Estados Unidos, gozando de uma posição
intermediária entre os pretos e os brancos. Dessa forma, a dicotomia racial
importante seria entre pretos e não pretos, em vez de entre brancos e não brancos.
Obviamente, esta perspectiva interessa a muitos: o problema das relações raciais no
Brasil instala-se entre os próprios negros e não entre negros e brancos.
Uma ampla literatura afirma que a autoclassificação é imprecisa porque a
ascensão social tende a embranquecer as pessoas. Assim, as pessoas que
carregam menos traços negros em sua aparência tenderiam a se considerar
brancas, bem como as pessoas mais abastadas, igualmente, tenderiam à escolha do
branco. Osório questiona: se, por exemplo, a grande diferença nas médias da renda
domiciliar per capita de negros (pretos ou pardos) e brancos fosse considerada,
seria possível perguntar quanto dessa diferença, na verdade, deve-se ao fato de a
137
PIZA e ROSEMBERG, op. cit.
138
OSÓRIO, Rafael Guerreiro. O sistema classificatório de cor ou raça” do IBGE. Brasília: IPEA, 2003.
139 139
TELLES, E. E.; LIM, N. Does it matter who answers the race question? Racial classification and income
inequality in Brazil. Demography, v. 35, n. 4, nov. 1998.
65
reivindicação da brancura ser maior entre os mais ricos, e menor entre os mais
pobres
140
.
Uma possível forma de se contornar esse problema e que, à primeira vista,
poderia conferir maior objetividade à classificação, seria a classificação da cor dos
sujeitos pelos entrevistadores ou outros responsáveis pelo registro da informação,
aponta o autor. Eles poderiam ser treinados para reconhecer os diferentes
“fenótipos” e classificá-los, sem recorrer à identidade racial subjetivamente
construída e percebida pelo sujeito da classificação. Entretanto, se os problemas
relativos à autoclassificação são ocasionados pelas características particulares da
ideologia racista brasileira, que permitiria a mudança da cor para os mais abastados
e/ou para os que possuem poucos traços da ascendência africana, não nenhuma
garantia, a priori, de que os entrevistadores também não venham a branquear os
entrevistados mais ricos e os tipos de aparência limítrofe. No fundo, a escolha pela
autoclassificação ou heteroclassificação é uma opção entre subjetividades: a do
sujeito da classificação ou a do observador externo.
Portanto, a heteroclassificação não é, necessariamente, mais objetiva do que
a autoclassificação, conclui Osório. Ele afirma que há, pelo menos, três
levantamentos que permitem comparar a composição racial da população, obtida
pela auto e heteroclassificação. Foi possível avaliar as relações entre ambas, em
situações nas quais entrevistados e entrevistadores não viam, no quesito, algo
capaz de trazer vantagens ou desvantagens pessoais
141
.
A primeira pesquisa que possibilitou a comparação entre hetero e
autoclassificação intitula-se “As eleições de 1986 em São Paulo” e se baseou em
uma amostra pequena (573 casos) e restrita a São Paulo (capital), em 1986. Os
resultados da comparação foram analisados por Valle Silva
142
.
Cabe salientar que os dois métodos de determinação da cor concordaram em
76% dos casos. No segundo estudo, um levantamento do Datafolha, em 1995,
140
VALLE SILVA, baseado em trabalhos pregressos que constatam a variação socioeconômica da
autodeclaração de cor, também considera que “se as observações dos pesquisadores que têm trabalhado a
questão da identidade racial brasileira, de Wagley a Sansone, são corretas e socialmente significativas, então o
quadro que hoje temos sobre as diferenças socioeconômicas entre os grupos de cor pode ter sido pintado em
cores excessivamente fortes” (1999a, p. 117).
141
Ou seja, consideram-se fidedignas e sinceras ambas as classificações, mesmo quando discordantes.
142
VALLE SILVA, op. cit.
66
igualmente foi possível estabelecer uma comparação. O grau de concordância entre
os dois registros de cor também foi elevado 72%.
Finalmente, Osório destaca
143
um terceiro levantamento que permite estudar
os dois métodos de identificação a Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde
(PNDS), de 1996, na qual o grau de concordância entre as respostas foi ainda mais
elevado 89%.
O fato de, em todos os levantamentos, haver um alto grau de concordância é
esperado, uma vez que entrevistadores e entrevistados compartilham, em algum
grau, as mesmas percepções sobre raça. A experiência internacional, segundo
Osório, mostra resultados similares, mesmo que relacionada a classificações de raça
bem diferentes. Smith
144
, por exemplo, ao analisar o mesmo problema no contexto
da Pesquisa Social Geral (GSS) dos EUA, constatou níveis de concordância ainda
maiores: no mínimo 94% entre a classificação do entrevistado e a do entrevistador.
É interessante notar, ainda, que o sentido da discordância é invariavelmente o
do embranquecimento dos entrevistados, pelos entrevistadores.
Silva Bento trata a questão do embranquecimento de um ângulo que vem de
encontro do que foi colocado aqui. São os olhares sobre o negro que ascende, ou
que tem uma escolaridade mais elevada, que buscam embranquecê-lo: “Não é por
acaso que todos os estudos que tratam da problemática do branqueamento, aqui
entendido como desejo de ser branco, manifestado pelo negro, associam-no ao
desejo de ascensão social. Branqueamento e ascensão social aparecem como
sinônimos quando relacionados ao negro. Parece-nos que isso decorre do fato de
que essa sociedade de classes se considera como um mundo dos brancos no qual
o negro não deve penetrar”
145
.
Mais à frente, ela afirma: “Estudos publicados pelo INSPIR Instituto Sindical
Interamericano pela Igualdade Racial são contundentes em revelar que, quanto mais
aumenta a escolaridade do negro, mais a discriminação se revela nos diferenciais de
remuneração entre negros e brancos. Ou seja, são os momentos em que o negro vai
ascender, ou trocar de lugar com o branco. O negro fora de lugar. Isso pode
143
OSÓRIO, op. cit.
144
SMITH, T. W. Measuring race by observation and self-identification. Chicago: National Opinion Research
Center, 1997 (GSS Methodological Reports, 89).
145
SILVA BENTO, op. cit., p. 52.
67
significar que esse negro fora de lugar, isto é, ocupando o lugar que o branco
considera exclusivamente dele, foi escolhido como alvo preferencial de análises
depreciativas o negro que embranquece nos estudos sobre relações raciais”
146
.
Nogueira
147
explica este fato, a partir do ideal de brancura
148
: o
embranquecimento poderia ser interpretado como uma “gentileza” dos
entrevistadores com os entrevistados, à luz da ideologia racial. Finalizando esta
breve abordagem sobre auto e heteroclassificação racial, Osório enfatiza que,
aparentemente, a autoclassificação parece engendrar uma distribuição de cor mais
acurada do que a heteroclassificação, embora os resultados desta não desautorizem
o seu uso.
3.2 A classificação racial nos documentos públicos
Como mencionado, em sete documentos públicos, no mínimo, os
brasileiros são classificados racialmente com base na cor da pele:
. cadastro do alistamento militar; cadastro de identificação civil RG, (SP, DF,
etc.); formulário de adoção das varas da infância e adolescência do estado de São
Paulo; cadastro das áreas de segurança pública e sistema penitenciário; cadastro
dos adolescentes presos; certidão de óbito; certidão de nascimento (a cor era
assinalada até 1975).
O IBGE classifica os brasileiros em pretos, pardos, amarelos, brancos e
indígenas.
Desde a primeira metade do século passado, o decreto-lei
149
que dispõe
sobre as estatísticas criminais prescreve, ainda que de modo semidissimulado
150
, a
classificação racial de vítimas e acusados, por meio do critério da cor. A propósito,
146
Idem, p. 53.
147
NOGUEIRA, op. cit.
148
O uso de moreno como um eufemismo para não se referir a pessoas como negras, pretas ou pardas é a
expressão perfeita dessa etiqueta das relações raciais. É comum as pessoas se referirem a fulano, que é negro,
como “aquele moreno”, ainda que fulano não tenha o menor problema em se declarar negro, preto ou pardo. É
uma espécie de concessão polida para não “depreciar” o sujeito pela alusão ao que se entende como sua condição
racial.
149
Decreto-lei 3.992, de 30 de dezembro de 1941
150
Tal adjetivação justifica-se pelo fato de que, ao enumerar os dados a serem coletados, o referido diploma
normativo omite cuidadosamente a informação sobre cor. Contudo, nos modelos de formulários anexos ao
decreto, a cor está rigorosamente presente em todos eles.
68
este mesmo critério é empregado na classificação racial dos autores de ato
infracional (adolescentes)
151
.
Observando o Anexo de tal decreto-lei, não restam dúvidas de que compete
ao escrivão de polícia identificar os caracteres individuais contemplados nos
formulários, ou seja, o referido decreto determina a heteroclassificação racial. Trata-
se, portanto, de um precedente legal que autoriza a heteroclassificação.
Mais recentemente, atendendo solicitação de entidades do Movimento
Negro
152
, foi incluída a informação sobre cor/raça dos empregados nos formulários
da Relação Anual de Informações Sociais – RAIS e no Cadastro Geral de
Empregados e Desempregados CAGED. Neste caso, não orientação quanto à
técnica a ser utilizada na coleta dessa informação.
Também devido a reivindicações das entidades negras
153
, está prevista a
“inclusão do quesito cor em todos e quaisquer sistemas de informação e registro
sobre a população e bancos de dados públicos”, sem que nenhuma referência seja
feita à técnica a ser utilizada.
Há, contudo, outro banco de dados, no qual o método empregado é o da
autoclassificação: o Cadastro Nacional de Identificação Civil
154
, a partir do qual é
emitida a cédula de identidade, o Registro Geral das pessoas naturais conhecido
popularmente como RG. A cor é lançada, em regra, pelas próprias pessoas
(autoclassificação).
Este cadastro poderá tornar-se uma solução objetiva, viável e disponível para
a solução do problema da classificação racial. Isto porque as propostas em
tramitação no Congresso prevêem, no plano imediato, a autoclassificação e, a médio
prazo, a inclusão da informação sobre cor nas certidões de nascimento. Trata-se,
contudo, de uma técnica que pode ser facilmente atacada sobretudo judicialmente
pela insegurança jurídica que dela decorreria, pela carga de subjetividade na
informação lançada e pela alta possibilidade de ocorrência de fraudes. No limite,
tendo em vista a altíssima probabilidade de ações judiciais referentes ao critério da
cor, terminaria sendo delegado ao próprio Estado Poder Judiciário a palavra final
151
Segundo o disposto no Comunicado n
o
373/97, de 3 de junho de 1997, editado pela Corregedoria Geral de
Justiça do Estado de São Paulo. Publicado no Diário Oficial do Estado, no dia 05 de junho de 1997.
152
DOU de 27/10/99.
153
O decreto 1.904, de 13/05/96, que institui o Programa Nacional de Direitos Humanos.
154
Disciplinado pela lei 9.454/97.
69
sobre classificação racial (por meio da cor) dos indivíduos. A título de ilustração,
basta pensar que, em princípio, qualquer pai ou mãe poderia registrar seu filho como
preto ou negro.
De outra parte, o formulário do qual deriva o denominado Certificado de
Alistamento Militar (CAM), emitido pelos três ramos das Forças Armadas, também
contém a informação sobre a cor do alistando. Nesse caso, a pergunta aberta,
usada na área de Segurança Pública, é substituída por categorias predeterminadas,
cabendo ao funcionário das Juntas de Alistamento Militar proceder ao
enquadramento em uma das seguintes categorias cromáticas: branca, morena,
parda, parda clara, parda escura e preta.
Via de regra, os projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional adotam
o método da autoclassificação racial. O famoso projeto de lei 3.198, de 2000, do
senador Paulo Paim, denominado Estatuto da Igualdade Racial, que defende os que
sofrem preconceito ou discriminação devido à etnia, raça e/ou cor, propõe a
reinclusão da informação da cor nas certidões de nascimento, por meio de uma
alteração na Lei dos Registros Públicos.
O uso de documentos públicos como critério para a classificação racial
A fórmula adotada pela Universidade de Brasília e Universidade Federal de São
Carlos
Matéria publicada no jornal Folha de S. Paulo, do dia 8 de janeiro de 2008,
informava que 51% das universidades estaduais adotam ações afirmativas”, sendo
que o subtítulo destacava a questão da classificação racial: “O critério mais utilizado
pelas instituições é o da autodeclaração, ou seja, a cor da pele ou etnia é definida
pelo próprio aluno
155
.
Segundo o jornalista Antônio Góis, autor da matéria, um levantamento feito
pelo Laboratório de Políticas Públicas da Uerj (Universidade do Estado do Rio de
Janeiro) mostra que 51 instituições públicas oferecem, por meio de cotas ou
bonificação no vestibular, vantagens a alunos negros, pobres, de escola pública,
deficientes ou indígenas
156
.
155
Folha de S. Paulo. Edição de 8 de janeiro de 2008, caderno Cotidiano, p. 5.
156
Idem.
70
A matéria destacava as seguintes instituições:
Tabela 5 - Instituições Publicas com ação afirmativa
Estados e universidades públicas
Tipo de ação
afirmativa Estados e universidades públicas
Tipo de ação
afirmativa
Rio de Janeiro
Bahia
Uerj (Universidade do Estado do Rio de
Janeiro)
(C) (N)
UEFS (Uni
versidade Estadual de Feira
de Santana)
(C) (N)
UENF (Universidade do Norte
-
Fluminense)
(C) (N)
UFBA (Universidade Federal da Bahia)
(C) (N)
Uezo (Centro Universitário Estadual da
Zona Oeste)
(C) (N)
UFRB (Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia)
(C
) (N)
Faetec (Fundação de Apoio à Escola
Técnica do Rio de Janeiro)
(C) (N)
Uesc (Universidade Estadual de Santa
Cruz)
(C) (N)
UFF (Universidade Federal Fluminense)
(B)
Uneb (Universidade do Estado da Bahia)
(C) (N)
Minas Gerais
Cefet
-
BA (Centro Fe
deral de Educação
Tecnológica da Bahia)
(C) (N)
UEMG (Universidade Estadual de Minas
Gerais)
(C) (N)
Maranhão
Unimontes (Universidade Estadual de
Montes Claros)
(C) (N)
UFMA (Universidade Federal do
Maranhão)
(C) (N)
UFJF (Universidade Federal de J
uiz de
Fora)
(C) (N)
Paraíba
São Paulo
UEPB (Universidade Estadual da
Paraíba)
(C)
Unifesp (Universidade Federal de São
Paulo)
(C) (N)
Pernambuco
Unicamp (Universidade Estadual de
Campinas)
(B) (N)
UPE (Universidade Estadual de
Pernambuco)
(C)
Famerp (Faculdade de Medicina S.J. do
Rio Preto)
(B) (N)
UFRPE (Universidade Federal Rural de
Pernambuco)
(B)
USP (Universidade de São Paulo)
(B)
Cefet
-
PE (Centro Federal de Educ.
Tecnológica de Pernambuco)
(C)
UFABC (Universidade Federal do ABC)
(C
) (N)
Rio Grande do Norte
Fatec (Faculdade de Tecnologia
-
São
Paulo)
(B) (N)
UFRN (Universidade Federal do Rio
Grande do Norte)
(B)
Facef (Centro Universitário de Franca)
(C) (N)
Cefet
-
RN (Centro Federal de Educ. Tec.
do Rio Grande do Norte)
(C)
UF
SCar (Universidade Federal de São
Carlos)
(C) (N)
Piauí
Espírito Santo
UFPI (Universidade Federal do Piauí)
(C)
Ufes (Universidade Federal do Espírito
Santo)
(C)
Sergipe
Amazonas
Cefet
-
SE (Centro Federal de Educação
Tecnológica do Sergipe)
(C)
UEA (Universidade do Estado do
Amazonas)
(C)
Paraná
UFPR (Universidade Federal do Paraná)
(C) (N)
71
Estados e universidades públicas
Tipo de ação
afirmativa
Estados e universidades públicas
Tipo de ação
afirmativa
Pará
UEPG (Universidade Estadual
de Ponta
Grossa)
(C) (N)
UFPA (Universidade Federal do Pará)
(C) (N)
UEL (Universidade Estadual de
Londrina)
(C) (N)
Ufra (Universidade Federal Rural da
Amazônia)
(C)
UTFPR (Universidade Tecnológica
Federal do Paraná)
(C)
Tocantins
Rio Grande do Su
l
UFT (Universidade Federal do
Tocantins)
(C)
UFRGS (Universidade Federal do Rio
Grande do Sul)
(C) (N)
Distrito Federal
UERGS (Universidade Estadual do Rio
Grande do Sul)
(C)
UnB (Universidade Federal de Brasília)
(C) (N)
UFSM (Universidade Feder
al de Santa
Maria)
(C) (N)
ESCS
-
DF (Escola Superior de Ciências
da Saúde)
(C)
Santa Catarina
Goiás
UFSC (Universidade Federal de Santa
Catarina)
(C) (N)
UEG (Universidade Estadual de Goiás)
(C) (N)
USJ (Centro Universitário de São José)
(C)
Mato
Grosso
Tipo de ação afirmativa
Unemat (Universidade do Estado de
Mato Grosso)
(C) (N)
(C) = Cotas (sistema
no qual
reserva
de um percentual de vagas na
universidade para um determinado grupo)
Mato Grosso do Sul
(B) = Bônus (política que ofere
ce a um grupo específico pontos
a mais no vestibular, mas sem reservar um percentual de
vagas)
UEMS (Universidade Estadual de Mato
Grosso do Sul)
(C) (N)
(N) = Beneficia negros (universidades que, em
uma
ação
afirmativa, optaram por fazer um corte racial em favor dos
estudantes pretos ou pardos)
Alagoas
Ufal (Universidade Federal de Alagoas)
(C) (N)
No entanto, o respeitado jornalista deixou de sublinhar os casos da
Universidade de Brasília e da Universidade Federal de São Carlos, nos quais a
autodeclaração, uma vez questionada, é substituída pela apresentação de
documentos, seguindo orientação dada pelo Centro de Estudos das Relações de
Trabalho e Desigualdades CEERT.
Preocupadas com possíveis questionamentos judiciais da autodeclaração, a
UnB e a UFSCar solicitaram um parecer técnico do CEERT, elaborado pelo jurista
Hédio Silva Jr., que desenvolveu uma fórmula que combina a autodeclaração com a
utilização de registros públicos de cor/raça.
72
Por exemplo, nos termos da resolução
157
que dispõe sobre a implantação da
reserva de vagas aos cursos de graduação da UFSCar, no Programa de Ações
Afirmativas
158
, o critério adotado na identificação da cor (raça) dos candidatos
negros (pretos e pardos) e indígenas será a autodeclaração, seguindo-se a
classificação adotada pelo IBGE
, desde advertindo que a dúvida aludida no edital
refere-se à cor autodeclarada pelo aluno:
Artigo 19. Qualquer cidadão, candidato ou não, também poderá suscitar dúvida
quanto às declarações ou informações prestadas por candidato ao processo
seletivo, mediante manifestação consubstanciada, encaminhada por escrito à
Pró-Reitoria de Graduação, no prazo de até 3 (três) dias úteis contados a partir
do último dia assinalado para a matrícula da respectiva chamada.
Artigo 20. No caso de decisão do Pró-Reitor de Graduação ou de dúvida
suscitada por terceiros, quanto ao enquadramento de candidato no ingresso por
reserva de vagas, será assegurado ao candidato cuja inscrição é questionada o
direito de apresentar documentação idônea que comprove a veracidade de suas
declarações, tais como o prontuário do alistamento militar, o registro de
nascimento ou o prontuário de identificação civil, dele próprio ou de seus
ascendentes diretos (pai ou mãe), ou ainda outro documento dotado de pública
no qual esteja consignada cor diversa de branca, amarela ou indígena.
§1º. O candidato deverá instruir as razões de recurso, ou a contestação à dúvida
suscitada, com certidão ou cópia autenticada de, no mínimo, um dos documentos
referidos no caput deste artigo.
§2º. A apresentação de, ao menos, um documento satisfazendo a condição
aludida no caput deste artigo fará prova suficiente para resolver a controvérsia,
assegurando a matrícula em vaga destinada a negros (pretos e pardos).
§3º. A não apresentação, no prazo de 5 (cinco) dias a partir da notificação, de
documento que satisfaça a condição aludida no caput deste artigo implicará na
perda do direito de ingresso por reserva de vagas destinadas a negros (pretos ou
pardos).
Trata-se, evidentemente, de fórmula que aproveita os bancos de dados sobre
cor/raça dos brasileiros para evitar que questionamentos sobre critérios de
classificação sirvam de pretexto para paralisar a implementação de políticas de
promoção da igualdade racial.
Uma vez que estas informações foram coletadas pelo próprio Poder Público,
elas adquirem o atributo de “fé pública”, isto é, presunção de verdade.
Duas observações: 1. a primeira diz respeito ao raciocínio empregado para a
classificação, ou seja, a dedução se o documento público não certificar hipótese
de pessoa branca, amarela ou indígena, ela será considerada negra para fins das
políticas de ação afirmativa; 2. a segunda é que tal dedução estende-se por uma
geração ainda que o candidato não tenha registros públicos que o identifiquem
157
Resolução CEPE nº 565/07, de 05 de dezembro de 2007, Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da
Universidade Federal de São Carlos.
158
Idem, artigo 6º, inciso III, parágrafo .
73
como negro, ele será considerado negro se aqueles registros assim identificarem
seus pais, independentemente de sua aparência e/ou fenótipo.
3.3 Um exemplo de classificação racial no setor privado: o caso da
Febraban
Neste ponto, cabe ressaltar que não apenas o setor público vem se
ocupando, cada vez mais, da temática da classificação racial.
Em maio de 2007, a Federação Brasileira de Bancos FEBRABAN assinou
um contrato de prestação de serviços com o CEERT, com o intuito de estabelecer as
bases para o desenvolvimento de um programa nacional de valorização da
diversidade. Um dos principais pressupostos era a realização de um recenseamento
geral dos cerca de 430 mil empregados do setor, desagregando-se a cor, dentre
outras informações.
Um exame dos termos do aludido contrato, bem como do projeto anexo,
oferece elementos interessantíssimos de reflexão, inclusive pelo ineditismo da
proposta.
A política de valorização da diversidade é definida como um conjunto de
medidas que visam promover a inclusão e a igualdade de oportunidades e de
tratamento aos membros de grupos discriminados em função da cor, raça, etnia,
origem, sexo, deficiências, idade, religião e orientação sexual, cujo principal objetivo
é garantir o desenvolvimento sustentável das corporações.
A execução da referida política de valorização da diversidade assenta-se em
quatro diretrizes fundamentais:
. a identificação e revogação de quaisquer práticas administrativas
incompatíveis com a valorização da diversidade, bem como a remoção de quaisquer
fontes de discriminação, direta ou indireta;
. a adoção de orientações e normas escritas voltadas à valorização da
diversidade, com o objetivo de inscrever tal política como valor duradouro da cultura
organizacional;
. o estabelecimento de objetivos e indicadores que possibilitem o
monitoramento do impacto e da eficácia da política de valorização da diversidade;
74
. a aplicação da política na relação com a cadeia produtiva, com a
comunidade, com o terceiro setor, etc.
A política de valorização da diversidade é também relacionada com a própria
riqueza ambiental e cultural brasileira e em valores éticos fundados na busca da
igualdade e da justiça. Destaca-se que, além de ser um aspecto da responsabilidade
social, representa, igualmente, um interesse corporativo orientado para os objetivos
do negócio.
Ao menos três considerações são invocadas como fundamentos de validade
da referida política de valorização da diversidade:
. a responsabilidade social do setor bancário reconhece que a sociedade
brasileira necessita empreender medidas concretas para superar práticas
discriminatórias que dificultam a inclusão social de homens e mulheres prejulgados
devido à cor, raça, etnia, origem, sexo, deficiências, idade, religião e orientação
sexual;
. experiências levadas a efeito em outros países, em diferentes corporações,
demonstram que a valorização da diversidade aglutina desempenho, inovação,
criatividade, versatilidade e agilidade, favorecendo a realização do negócio e
melhorando a imagem da empresa;
. a valorização da diversidade deve ser assumida como um compromisso
permanente da cultura organizacional dos bancos, como instrumento de erradicação,
a longo prazo, dos preconceitos e discriminações presentes na sociedade brasileira.
Concluindo, cabe destacar que a classificação racial estará amparada por
uma ampla campanha de comunicação corporativa, por meio de várias mídias, como
vídeos, cartazes, folders, visando preparar os bancários para responderem
corretamente à indagação sobre cor/raça. A técnica empregada, de
autoclassificação, utiliza as mesmas categorias do IBGE.
Por último, mas não em último, vistos os aspectos históricos, as implicações
políticas e ideológicas, as lutas sociais em torno do tema, além dos parâmetros
legais, conceituais, metodológicos e, ainda, os exemplos contemporâneos de
classificação racial, será examinado, a partir do próximo capítulo, os desafios e
possibilidades de experiências concretas de implementação da informação sobre cor
no âmbito de prefeituras municipais.
75
CAPÍTULO IV EXPERIÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS DE IMPLEMENTAÇÃO DO
QUESITO COR OS CASOS DE BELO HORIZONTE, SANTO
ANDRÉ E SÃO PAULO
4.1 Considerações preliminares
Neste capítulo abordarei experiências contemporâneas de implementação do
quesito cor em agências públicas.
Trata-se de experiências das quais participei ativamente como técnico do
Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades CEERT, conforme
mencionado na introdução deste trabalho.
Por esta razão, ao escolher os procedimentos metodológicos e técnicos
159
desta investigação, procurei adotar, como balizas, as preciosas lições de Teresinha
Bernardo: “O fato de existirem tais relações entre mim e os sujeitos da pesquisa em
nada diminui nem aumenta os acertos ou erros de minhas interpretações. Nunca
acreditei na neutralidade científica, mesmo quando esse princípio vigorava no
mundo acadêmico, no interior das ciências humanas. Penso que neutralidade, para
muitos cientistas sociais, significava poder. Em outras palavras, ser neutro era
qualidade que poucos possuíam, ou seja, somente os verdadeiros cientistas, pois
estava ligada à aquisição de saber verdadeiro. Ademais, ninguém duvida da relação
traçada por Foucault entre saber e poder
160
.
Também valiosos os ensinamentos de Antônio Joaquim Severino: Qualquer
pesquisa, em qualquer nível, exige do pesquisador um envolvimento tal que seu
objetivo de investigação passa a fazer parte de sua vida’; a temática deve ser
realmente uma problemática vivenciada pelo pesquisador; ela deve lhe dizer
respeito. Não, obviamente, num nível puramente sentimental, mas no nível da
avaliação da relevância e da significação dos problemas abordados para o próprio
pesquisador, em vista de sua relação com o universo que o envolve. A escolha de
159
Entende-se por métodos os procedimentos mais amplos de raciocínio, enquanto técnicas são procedimentos
mais restritos que operacionalizam os métodos, mediante emprego de instrumentos adequados”; sobre
metodologia, o autor refere as metodologias epistemológicas mais gerais, quais sejam, “positivista,
neopositivista, estruturalista, fenomenológica e dialética”. V. Antônio Joaquim Severino. Metodologia do
trabalho científico, p. 162 e 150, respectivamente.
160
BERNARDO, Teresinha. Mulher vento: lembranças de campo. Ciências sociais na atualidade: realidade e
imaginários. São Paulo: Paulus, 2007, p. 255-256.
76
um tema de pesquisa, bem como a sua realização, necessariamente é um ato
político. Também, neste âmbito, não existe neutralidade”
161
.
Tendo em mente estas diretrizes recomendadas por dois cientistas sociais
brasileiros, optei, neste capítulo, por uma pesquisa com base numa série de
relatórios produzidos pelo CEERT
162
acerca das experiências focalizadas, bem como
em relatos e análises constantes de livros e artigos assinados por integrantes
daquela instituição.
Certamente, não como controlar um componente propriamente empírico
que, às vezes, irá emergir não como resultado de trabalho de campo realizado com
a finalidade específica desta monografia, mas como conseqüência inevitável da
minha participação direta e prolongada no planejamento, execução e relatoria das
atividades que geraram os documentos analisados. Afinal, o sujeito, um dos
protagonistas da experiência focalizada, agora debruça-se sobre ela na condição de
pesquisador.
A partir deste estágio, portanto, acrescentarei às retomadas históricas,
contextualizações e pesquisa bibliográfica uma pesquisa documental, visando
robustecer a demonstração dos pressupostos político-ideológicos subjacentes à
temática da informação sobre cor.
Antes, porém, impõe-se um breve resgate histórico, incluindo um panorama
da experiência pioneira de implementação do quesito cor na atualidade aquela
realizada na Prefeitura de São Paulo, no início dos anos 90.
4.2 A transformação da reivindicação em políticas governamentais: a
experiência pioneira da Prefeitura de São Paulo
A Prefeitura de São Paulo, durante a gestão de Luiza Erundina (1989-1992),
protagonizou a primeira iniciativa contemporânea de implementação do quesito cor.
Pelo menos dois fatores contribuíram de forma mais decisiva para este
evento: 1. a inscrição da informação sobre cor como uma reivindicação social,
bandeira política cada vez mais presente no discurso e na prática do Movimento
161
Citação direta do Severino, ao lado de citação indireta de A.M.M. Cintra (SEVERINO, Antônio Joaquim.
Metodologia do trabalho científico. 22 Ed. São Paulo: Cortez, 2002, p. 145)
162
Pesquisa: gestão local, empregabilidade e eqüidade de gênero e raça. Um experimento de política pública na
região do ABC Paulista. São Paulo, CEBRAP, 2000. [Relatório de Pesquisa]
77
Negro
163
; 2. a presença de ativistas e pesquisadores negros na administração
municipal, nomeadamente na área de saúde, o que permitiu uma ação, no interior do
governo, comprometida com a democratização da informação sobre cor.
Vejamos alguns dos principais marcos cronológicos desta experiência
164
:
Março de 1990 Criação do Centro de Epidemiologia, Pesquisa e Informação
(Cepi);
Maio de 1990 Realização do seminário Quadro Negro de Saúde Implantação do
Quesito Cor no Sistema Municipal de Saúde, cujo objetivo foi sensibilizar os
profissionais da área e definir como deveria ser feito o registro do quesito cor dos
usuários do Sistema Municipal de Saúde. Um grupo de trabalho (GT) informal foi
criado para este fim;
1991 Distribuição de cartazes e cartilhas relativas ao tema, produzidos pelo grupo,
com divulgação no Jornal do Ônibus e no Boletim Saúde Informa, da Secretaria
Municipal da Saúde. Houve, também, atividades locais sobre o tema e a distribuição
de textos selecionados, visando embasar a discussão. Foram realizados, ainda, dois
seminários: na Administração Regional de Saúde ltaquera/Guaianazes, que
envolveu funcionários e a população da região, e no distrito de Ermelino Matarazzo;
Março de 1992 Publicação da Portaria 492/92 que oficializa o Grupo de Trabalho
responsável pelo quesito cor, coordenado por Penha Lúcia Valério e constituído
pelos seguintes órgãos e pessoas: Centro de Epidemiologia, Pesquisa e Informação
(Cepi) Penha Lúcia Valério Ramos e Rosa Maria Tomaz, com colaboração de
Marcos Drumond Júnior; Centro de Orientação e Atenção à Saúde (Coas) Edna
Roland; Centro de Formação dos Trabalhos em Saúde (Cefor) Edna Muniz de
Souza e Maria do Carmo Sales Monteiro; Coordenadoria Especial do Negro (Cone)
Maria Aparecida de Laia; Distritos de Saúde Arlete Lourdes lzidoro e Roseli de
Oliveira; Administrações Regionais de Saúde. Coube ao GT do quesito cor captar as
demandas dos Distritos de Saúde e Administrações Regionais de Saúde; promover
o retorno das discussões, em nível regional, acompanhar tecnicamente as análises e
estudos provenientes da coleta de dados do Sistema Municipal de Informação de
163
Vale lembrar que o Programa de Ação do Movimento Negro Unificado (uma importante organização negra
nascida em 1978) de 1984, não fazia menção à informação sobre cor. No entanto, dois anos depois, os jornais
editados pelo Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de São Paulo
referiam aquela reivindicação no catálogo das bandeiras políticas. Movimento Negro Unificado. Programa de
Ação. São Paulo, 1984 (mimeo).
164
BATISTA, Luís Eduardo e KALCKMANN, Suzana (org.) Seminário Saúde da População Negra de São
Paulo 2004, São Paulo, Instituto de Saúde, 2005, texto Maria Aparecida da Silva Bento, p 133 a 154.
78
Saúde SP (Simis); expandir a discussão para outros setores do governo e
comunidade, a partir das articulações existentes em nível local.
Dezembro de 1992 Realização do seminário É Preto no Branco: Vencendo a
Conspiração do Silêncio, no qual foi lançado o caderno É Preto no Branco e relatado
o trabalho inicial de implantação do quesito cor no Sistema Municipal de Saúde;
Esta experiência pioneira padece, no entanto, de registros significativos no
que se refere aos dados coletados.
Maria Aparecida Silva Bento
165
desenvolveu uma análise cuidadosa deste
experimento, a partir da percepção das ativistas e técnicas que pressionaram a
administração a implementar o quesito cor, destacando-se, sobretudo, o processo
político que resultou naquela implementação.
Vale realçar, no entanto, que o pioneirismo da Prefeitura de São Paulo
estimulou a replicação da experiência em outros lugares e serviu como plataforma
para a elaboração de métodos e técnicas adequados à inclusão do quesito cor.
A experiência de implementação do quesito cor ocorreu na área de saúde,
quando o Sistema de Informação da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo
redefinia os seus indicadores socioeconômicos por meio do reconhecimento das
condições de saúde da população. Esta redefinição tinha por objetivo identificar as
necessidades mais prementes da população em relação à saúde, o que permitiria
desenvolver e adequar as ações de planejamento e gerenciamento dos serviços de
saúde às suas necessidades (cadernos-Cefor, 1992).
Assim, a coleta e análise do quesito cor, pelo Sistema de Informação da
Secretaria Municipal de Saúde, permitiram observar, em princípio, o peso das
condições socioeconômicas de saúde dos diferentes grupos raciais. Por outro lado,
possibilitou identificar a importância da variável racial na incidência de doenças,
segundo os diferentes grupos, pois dados relativos a outros países multirraciais
demonstraram que essa variável é associada a incidência de doenças, como
diabetes, hipertensão e miomas
166
.
165
BATISTA; KALCKMANN, op. cit., p. 136-138.
166
Idem, p. 138-139.
79
4.3 O reconhecimento público da expertise do CEERT na
implementação do quesito cor
A segunda experiência contemporânea de implementação do quesito cor
ocorreu na Prefeitura de Belo Horizonte, na gestão do prefeito Patrus Ananias, atual
(01/2008) Ministro de Estado do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.
Merece destaque a valiosa contribuição prestada pelo seu Secretário de Governo,
Luis Soares Dulci, que ocupa o cargo de Ministro Chefe da Secretaria Geral da
Presidência da República.
Com a finalidade de implementar a Convenção 111 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT)
167
, a Prefeitura de Belo Horizonte assinou convênio
com o CEERT em fins de 1995
168
, iniciando um programa voltado ao diagnóstico das
desigualdades de raça que pudesse orientar a elaboração de políticas de promoção
da igualdade, bem como estimular a valoração positiva da diversidade étnico-racial.
O programa subdividiu-se em três áreas distintas: educação, saúde e
trabalho.
O objetivo específico do projeto foi introduzir o recorte das relações raciais
nas políticas públicas das referidas áreas, destacando-se, particularmente, a área da
saúde, na qual procedeu-se a introdução do quesito cor, a capacitação de 220
gestores, a realização de campanha (folders e cartazes) voltada aos usuários, a
produção de materiais educativos e o desenvolvimento de estratégia de
comprometimento da instituição com o princípio da igualdade racial.
Belo Horizonte destaca-se, também, pela contratação de uma ONG, situada
em São Paulo, para oferecer subsídios técnicos à implementação do quesito cor.
É precisamente neste período que o CEERT passa a ser reconhecido pelo
acúmulo de conhecimento e expertise na implementação do quesito cor.
Desde o seu nascimento, em 1990, o CEERT realiza pesquisas e intervenção
focalizadas na valorização da diversidade e na superação de todas as formas de
discriminação no trabalho, nos serviços públicos e no acesso à Justiça.
167
Ratificada pelo Brasil por meio do decreto 62.150, de 23 de janeiro de 1968, foi solenemente ignorada até
1992, data em que o CEERT elaborou uma reclamação, denunciando o seu descumprimento pelo governo
brasileiro, reclamação esta encampada e encaminhada à OIT pela CUT Central Única dos Trabalhadores. A
Convenção 111 trata da discriminação em matéria de emprego e profissão.
168
SILVA BENTO, Maria Aparecida. O papel da cor raça/etnia nas políticas de promoção da igualdade,
anotações sobre a experiência do município de Santo André. São Paulo, CEERT, 2003.
80
Com ênfase na temática racial e de gênero, mas contemplando também
outras formas de discriminação, como a deficiência, idade e orientação sexual, o
CEERT acumula experiência na produção de conhecimento e no desenvolvimento
de métodos e técnicas apropriados à execução de projetos de inclusão de grupos
socialmente desfavorecidos.
Inicialmente, o trabalho voltava-se à capacitação de dirigentes sindicais,
treinamento de funcionários do Ministério do Trabalho, sensibilização e mobilização
de empresas, estudos qualitativos sobre discriminação no emprego, elaboração de
cláusulas de promoção da igualdade em acordos coletivos de trabalho.
O resgate da Convenção 111 da OIT, aludido no item anterior, traduziu-se, no
plano político, na organização de uma campanha nacional pela implementação dos
direitos previstos naquele tratado.
A instituição promoveu uma série de pesquisas qualitativas, focando a
introdução da informação sobre cor em cadastros de pessoal, procedimentos para a
coleta desta informação, instrumentos para diagnósticos de discriminação direta e
indireta no trabalho, campanhas de sensibilização e conscientização, técnicas de
mobilização e co-responsabilização de gestores e empregados, preparação de
ambientes para políticas de diversidade.
A partir de 1996, a entidade passou a buscar convênios e contratos com
órgãos públicos, visando introduzir a informação sobre cor em cadastros de usuários
de serviços públicos, bem como o desenvolvimento de programas voltados à
promoção da igualdade na gestão de recursos humanos. Parcerias e prestação de
serviços resultaram em projetos inovadores nos municípios de Belo Horizonte,
Recife, São Paulo, Campinas, Jundiaí, entre outros.
Ao acúmulo anterior, vieram somar-se as lições aprendidas com a experiência
de Belo Horizonte e, posteriormente, Santo André.
Percebe-se que a implementação do quesito cor tem implicações que vão
muito além da simples inscrição de “quadrinhos” com categorias nos quais o
respondente assinala um “x”.
Grosso modo, pode-se dizer que aquela medida ensejo a três ordens de
problemas: 1. resistência por parte dos agentes públicos responsáveis pela coleta da
informação; 2. resistência por parte dos usuários dos serviços examinados
81
(respondentes); 3. necessidade de medidas educativas, capazes de criar um
ambiente favorável a uma correta compreensão e resposta ao quesito cor.
Vejamos cada um deles.
4.3.1 A reação dos respondentes
Na avaliação do processo de coleta do quesito cor, seja na experiência
mineira, seja também em Santo André
169
, eram visíveis as dificuldades provenientes
da pergunta “Qual é a sua cor?” (por parte dos atendentes) e, como conseqüência,
das respostas (por parte dos usuários). Os atendentes apontaram a perplexidade
dos usuários com a pergunta e o não-envolvimento com o processo, o que
freqüentemente resultava em grande número de abstenções nessa declaração. Por
parte dos atendentes, ficou evidente o constrangimento e o restrito conhecimento
sobre a questão racial no Brasil.
“Como definir quem é negro e quem é branco no país? Como determinar a cor,
quando não se fica para sempre negro no Brasil, quando se ‘embranquece por
dinheiro e se ‘empretece por declínio social? É certo que, nos momentos de
atrito, nos contatos diários com a polícia ou com a discriminação, a cor é definida
pelo costume e passa longe da teoria. Mesmo assim, no país se joga com a cor’,
de maneira a utilizá-la como instrumento em diferentes situações sociais e
mesmo políticas
170
.
Diante disso, estimulou-se a reflexão sobre a razão da coleta desta
informação. Algumas respostas a esta pergunta foram:
x . conhecer melhor a população a ser atendida;
x . direcionar as políticas para os diferentes segmentos;
x . orientar campanhas pedagógicas.
As fichas preenchidas pelos atendentes
171
permitiram coletar dados sobre as
percepções e dificuldades com a coleta do quesito cor, entre as quais:
169
Refiro-me ao projeto de implementação do quesito cor na Central de Trabalho e Renda CTR (agência
pública de emprego) de Santo André. A CTR tem por finalidade contribuir para a (re) inserção do trabalhador no
mercado de trabalho por meio de ações do Sistema Público de Emprego, de maneira integrada e articulada ,
visando o fortalecimento da cidadania. Faz o cadastramento e encaminhamento de trabalhadores a postos de
emprego, orientação e capacitação profissional, estímulo à geração de renda e orientação sobre direitos
trabalhistas. O projeto teve início em 1999 e terminou em 2003.
170
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Racismo no Brasil. São Paulo: Publifolha, 2001 (Folha explica) p. 66.
171
Pesquisa: gestão local, empregabilidade e eqüidade de gênero e raça. Um experimento de política pública na
região do ABC Paulista. São Paulo, CEBRAP, 2000. [Relatório de Pesquisa]. (mimeo)
82
x Dúvidas sobre o critério de classificação adotado pelo IBGE, percebidas
por meio de comentários como: “Quem são os pardos?” Ou “Raça amarela
inclui todos os tipos de orientais chineses, japoneses, coreanos?”.
x O conceito de autoclassificação não estava bem compreendido para o
usuário, nem para os atendentes;
x A abordagem do tema gerava constrangimento para alguns atendentes, o
que era explicitado por meio de perguntas do tipo: “Como solicitar ao
trabalhador que diga a sua cor, sem que isso pareça preconceito contra
trabalhadores (as) negros (as), ou cause indignação nos brancos (as)?
O tempo de atendimento também constituiu foco de preocupação,
principalmente quando o trabalhador pedia explicações ou questionava a razão da
pergunta sobre a cor.
Algumas das perguntas mais freqüentes:
Isso não é preconceito contra o trabalhador negro?
Isso não é preconceito contra o trabalhador branco?
Mas o que será feito com esses dados?
O preconceito sempre existiu e não vai mudar, não adianta.
Essa pesquisa vai ter interferência no oferecimento da vaga? O trabalhador negro
vai ter mais vantagem?
E quem tem mais de 40 anos também não consegue entrar no mercado de trabalho.
O preconceito não é com o negro.
Empregador é dono e tem o direito de escolher quem quiser para ser o seu
empregado.
Em uma ocasião, uma mulher negra disse que, se concorresse a uma vaga
com uma branca e não fosse escolhida, não seria em razão do preconceito, mas
simplesmente porque o empregador não achou que tivesse capacidade para ocupar
aquela vaga. Ela não associava o fato de estar desempregada (ou ter sido preterida)
à sua cor.
Nos plantões coordenados pela equipe do CEERT nos postos de coleta da
informação sobre cor, também foi possível identificar que o fato de a pergunta “Qual
é a sua cor?” aparecer logo na primeira tela do formulário do cadastramento,
juntamente com os dados de identificação pessoal (nome, endereço, estado civil),
causava uma reação imediata de espanto no usuário.
83
A grande maioria dos trabalhadores, ao ser abordada, identificava-se como
“moreno”, no caso de resposta espontânea. O interessante é que essa resposta
vinha carregada de dúvidas. A partir do momento em que o atendente apresentava o
cartão com as opções de cor, o trabalhador pensava bastante antes de responder e
terminava se classificando como pardo. Mas era muito comum o questionamento
quanto ao uso desse termo. Muitos afirmavam desconhecer essa classificação,
achavam que era utilizada apenas para definir “a cor do papel de pão”.
Alguns trabalhadores pardos (segundo o olhar do plantonista), ao serem
questionados sobre qual era a sua cor/raça, devolviam a pergunta ao atendente: “O
que você acha?”. O atendente mostrava o cartão. O trabalhador dizia que, na sua
certidão, estava pardo. O atendente refazia a pergunta: “Então, o(a) senhor(a) se
classifica como pardo?”, e o trabalhador respondia: “Não, sou branco”. É
interessante notar que havia uma tendência muito forte de o trabalhador
172
migrar
para o quesito que achava mais conveniente na situação, numa espécie de
argumento: “Já que posso escolher, vou ser branco”, talvez acreditando que a sua
resposta fosse interferir na conquista da vaga.
O trabalhador branco respondeu, diversas vezes, com ironia, deixando
explícito, nas entrelinhas, algo como: “Não está vendo?” ou: “Sou branco, quero uma
vaga de emprego, não tenho nada a ver com essa campanha”.
Alguns atendentes, quando o usuário se classificava como moreno, não
explicavam que a classificação deveria ser feita de acordo com as definições do
formulário. Limitavam-se a classificá-lo como pardo.
Os atendentes ficavam constantemente constrangidos diante do trabalhador
negro. Estes, por sua vez, demonstravam receio em responder, mas quando eram
informados da campanha, respondiam sem grandes questionamentos.
Os trabalhadores que mais questionavam eram aqueles que, socialmente,
são considerados brancos, mas que, no momento do atendimento, se deparavam
com o termo pardo. Muitos achavam a pergunta ofensiva e preferiam classificar-se
como “moreno”, mas como esse termo não fazia parte da classificação, “aceitavam”
a classificação de pardo.
172
Constata-se que o tempo do cadastramento é curto para uma reflexão sobre a cor do trabalhador é possível
supor que ele nunca havia sido questionado sobre isso antes.
84
4.3.2 A estratégia empregada para superar as resistências
Em face das tensões observadas nas experiências de Belo Horizonte e de
Santo André, iniciou-se, então, um processo de capacitação e monitoramento do
trabalho dos funcionários da Central de Trabalho e Renda na coleta da pergunta
“Qual é a sua cor?”, simultaneamente à organização de uma campanha informativa
voltada aos usuários dos serviços oferecidos pela CTR.
Para essa campanha, elaborou-se um material explicativo com as seguintes
informações: “A Central de Trabalho e Renda quer conhecer melhor a população
andreense. Este trabalho visa a promoção de igualdade de direitos, oportunidades e
tratamento para grupos da população historicamente discriminados. Para isto é
necessário conhecer melhor a distribuição e composição dos moradores da cidade,
principalmente quanto a sua cor/raça. Assim, no momento do atendimento, é
importante que você responda qual é a sua cor, da mesma forma que é respondido
qual o seu sexo, estado civil, RG. Você pode ajudar nisso. Responda corretamente
os dados para o preenchimento do cadastro”.
Esse trabalho exigiu esforço para mobilizar os agentes envolvidos na
pesquisa, bem como para organizar reuniões, seminários e palestras, considerados
formas efetivas de assegurar o envolvimento dos funcionários e gestores em todas
as etapas do projeto, além da formação dos técnicos na metodologia utilizada. As
reuniões e seminários possibilitaram, ainda, um processo contínuo de discussão e
amadurecimento dos temas entre os funcionários e gestores, ampliando a reflexão
sobre a importância de políticas públicas voltadas à superação das desigualdades
de gênero e raça, na região.
Vale lembrar que, devido às dificuldades de reconhecer as desigualdades
raciais e o racismo no Brasil, coletar a cor dos usuários do serviço público não é uma
tarefa fácil. A experiência na CTR e os referenciais de outros municípios mostram
que se trata de um procedimento embaraçoso e complexo, que se manifesta na falta
de informação dos funcionários, gestores e usuários sobre a importância de se obter
esse dado como uma estatística na elaboração de políticas públicas.
Assim, visando assegurar a disponibilização de informação e a adequada
capacitação desses três atores no tema, a iniciativa da CTR considerou o acúmulo
das lições obtidas com os erros e acertos observados em experiências anteriores de
85
implementação do quesito cor em administrações municipais, como a da Prefeitura
de São Paulo (1989-1992) e a de Belo Horizonte (1993-1996).
Essas experiências não tiveram continuidade, pelo menos nos propósitos
iniciais de implementar o quesito em uma área-piloto, a saúde, para depois expandi-
las para outras áreas.
Desenvolver tal trabalho exigiu um longo processo de aproximação com os
servidores públicos e o estabelecimento de parcerias com setores da sociedade civil.
Além disso, campanhas difundiram as informações e o envolvimento da comunidade
que iria responder ao quesito sobre cor.
As experiências foram bastante significativas na ampliação do debate e na
definição de novos parâmetros para as políticas públicas. Com isso, reforça-se a
necessidade de coletar o quesito cor em todos os organismos sociais que prestem
serviços ou empreguem pessoal um importante definidor de condições sociais,
junto com o quesito sexo. Porém, esse trabalho deve vir, sempre, acompanhado de
um rigoroso processo de capacitação, assim como da acuidade no tratamento
estatístico e na divulgação dos resultados.
Na segunda fase do desenvolvimento do projeto-piloto, os eixos para as
atividades tiveram, pois, caráter formativo, informativo, organizativo e de articulação,
especialmente com relação aos diversos atores envolvidos no processo de
implementação do quesito cor na área escolhida, a CTR.
Esse processo exigiu o envolvimento não apenas dos funcionários da CTR,
mas também dos gestores de várias áreas da PMSA
173
, já citadas, sob a
coordenação do CEERT.
A fim de reforçar o trabalho com o banco de dados da CTR, propôs-se uma
bolsa de treinamento técnico
174
, cujo objetivo era integrar e preparar um profissional
da área de informática para colaborar no manuseio e na tabulação dos dados
coletados, bem como no controle e monitoramento do percentual de cor (não
declarada).
Contribuíram também para as atividades, sobretudo na capacitação de
coletores e gestores, outros profissionais do CEERT com formação em diferentes
173
Prefeitura Municipal de Santo André.
174
SILVA BENTO, Mário Rogério da. Relatório de bolsa de treinamento técnico. FAPESP, 2002.
86
áreas das Ciências Humanas e experiência em projetos de políticas públicas, e na
implementação do quesito cor na Prefeitura de Belo Horizonte.
4.3.3 Atividades de sensibilização e capacitação
Em Santo André, a primeira atividade de sensibilização, cujo objetivo era o
envolvimento de atores no processo que se iniciava, foi o seminário Quesito Cor e a
Experiência de Implementação na Prefeitura de Belo Horizonte, no dia 8 de
novembro de 2001, que contou com a participação de 40 pessoas, representantes
de diferentes áreas da Prefeitura, dos movimentos de mulheres e negros, e
representantes da CTR.
Posteriormente, três workshops temáticos destinaram-se a um público misto:
funcionários e gestores da CTR, representantes das diferentes áreas da PMSA e
instituições parceiras, totalizando cerca de 100 pessoas, cada um
175
. Este público
compunha-se de pessoas de nível técnico e universitário, que ocupavam posições
hierárquicas diferenciadas.
O primeiro workshop, Usos (e Desusos) do Quesito Cor no Brasil, ocorreu em
22 de fevereiro e de março de 2002, com o intuito de deslanchar o processo de
implementação do quesito cor na CTR.
O segundo workshop, Monitoramento da Implementação do Quesito Cor,
aconteceu nos dias 4 e 5 de julho de 2002, com os seguintes objetivos: dar
continuidade ao monitoramento da implementação do quesito cor; avançar no
processo de capacitação dos funcionários da CTR, funcionários e gestores da
PMSA; avaliar a primeira etapa de implementação do quesito cor.
O terceiro workshop, Avaliação do Projeto, aconteceu nos dias 22 e 23 de
novembro de 2002 e teve, como principal objetivo, avaliar todo o processo de
implementação e monitoramento na CTR, além das mudanças que haviam sido
diagnosticadas no banco de dados, prenunciando o sucesso da campanha.
Pretendeu, também, formular propostas para políticas públicas de eqüidade de
gênero e raça na região do ABC Paulista.
175
Para facilitar a participação e não prejudicar o atendimento aos usuários da CTR e PMSA, os workshops
foram realizados em dois dias, garantindo a mesma pauta para os dois grupos distintos.
87
A programação dos workshops contemplou temas diferenciados, visando
despertar a reflexão por meio de conhecimentos adquiridos e também de estímulo
a novos aprendizados, de acordo com a seguinte estrutura:
1. Integração e entrosamento grupal. Jogos interativos permitiram integrar o
grupo e ampliar as potencialidades individual e coletiva. Como recurso,
utilizou-se a música, que estimula a expressão da emoção, integrada ao
movimento, e facilita a comunicação e reflexão sobre o assunto a ser
abordado. A programação desenvolveu-se com aquecimento físico,
apresentação lúdica dos participantes e uma breve reflexão sobre o
envolvimento de cada um com o tema. Entre as exposições teóricas houve
jogos de descontração e relaxamento, o que possibilitou maior
participação do grupo.
2. Reflexões sobre referenciais históricos e teóricos da questão racial. Houve
debates sobre a questão racial, por meio de exposição dialogada,
utilização de vídeos e aplicação de técnicas de grupo, com o intuito de
estimular a visão crítica dos participantes. Em cada workshop, as questões
levantadas eram diversificadas; no entanto, em todos enfatizou-se o
histórico sobre as relações raciais, lutas e conquistas para garantir a
cidadania e os direitos. Como referencial para a implementação do quesito
cor, foram apresentadas experiências anteriores em administrações
públicas e nas empresas. Focalizou-se, ainda, o tratamento da questão
racial no cotidiano, a partir da reflexão sobre a discriminação
institucional
176
.
3. Exercícios de classificação da cor. Consistiu no estímulo aos participantes
para que exercitassem a definição da cor das pessoas por meio de fotos
ou da autoclassificação. Com isso, pretendeu-se debater o significado da
hetero e autoclassificação, bem como as dificuldades de um e outro
procedimento. Acima de tudo, objetivou-se refletir sobre a inexistência de
critérios científicos rígidos para esse procedimento, acentuando que a
autoclassificação é a técnica mais ética e eficaz, considerando-se a
realidade brasileira.
176
Como as instituições operam com base em linhas racistas sem admiti-lo, ou até mesmo reconhecê-lo, e como
tais operações podem persistir mesmo em face das políticas oficiais geradas para a remoção da discriminação.
88
4. Avaliação continuada. Significou um momento muito importante do
trabalho, pois permitiu a expressão dos sentimentos, dúvidas e
dificuldades. Foi possível redesenhar o trabalho, de acordo com as
perspectivas apontadas pelo grupo.
Tomados estes conteúdos em perspectiva, fica nítido que o que se pretendia
era desvendar as implicações decorrentes da implementação do quesito cor como
um dado a ser compulsoriamente coletado, de forma a quebrar argumentos
restritivos à coleta que nascem do desconhecimento de sua importância, e da idéia
preconcebida de que não é necessário treinar os sujeitos.
A convivência diária com a questão da cor, no espaço profissional, pode
diminuir, ou mesmo desfazer, em usuários e servidores, o “medo de falar sobre
cor/raça/etnia, e provocar a perspectiva de tratar essa temática como objeto de
interesse público.
Assim, o processo de treinamento que envolveu oficinas sobre os conceitos
básicos (discriminação, racismo, preconceito, estereótipo), a história das relações
raciais no Brasil e as estatísticas da discriminação, em diferentes áreas, parece ter
sido fundamental para alavancar o debate dentro da instituição. A abordagem de
temas delicados, como os processos de identificação racial, o significado de ser
branco no Brasil, o fracasso das instituições em garantir tratamento igualitário a
todos os brasileiros foi feito num contexto participativo, que possibilitou uma nova
compreensão para negros e brancos.
Com o avançar do processo e a introdução concreta do quesito cor no
sistema de informação, surgiram as primeiras estatísticas comparativas da condição
de negros e mulheres. Nesta etapa, as oficinas com funcionários tornaram-se mais
propositivas, uma vez que estes ofereceram excelentes sugestões de ações de
combate às desigualdades no cotidiano de trabalho e/ou de promoção da igualdade.
Assim, a experiência demonstrou que a quebra do silêncio institucional sobre
relações raciais configura-se como o primeiro passo na implementação do quesito
cor.
89
4.3.4 A preparação dos atendentes/coletores
A partir do primeiro workshop de capacitação dos atendentes da Central de
Trabalho e Renda, eles foram orientados a fazer a pergunta “Qual é a sua cor?” para
todos os usuários (no primeiro atendimento e no retorno), de acordo com o que
constava na ficha de atendimento. No retorno, a orientação era para que
perguntassem apenas àqueles que não tivessem declarado a cor nos atendimentos
anteriores a 27 de maio de 2002 (ou seja, aos usuários atendidos até o dia do
primeiro workshop, em cuja ficha constava “cor não declarada”).
Para facilitar o contato, os usuários recebiam um “cartão” com as alternativas
de classificação de cor, igual àquelas que constam nos formulários. O usuário
escolhia, então, uma das alternativas, que o atendente registrava no sistema para
inserir ou atualizar o dado.
Solicitou-se a todos os atendentes/coletores que lessem os textos básicos
sobre o tema: (a) a inclusão do quesito cor nas coletas de perfil de funcionários de
empresas e usuários de serviços públicos e privados (O Baile da Cor)
177
; (b)
informação é a melhor arma contra o racismo e a discriminação (Manual para
Coletores do Quesito Cor). Também disponibilizou-se uma espécie de “minibiblioteca
circulante” sobre o tema
178
. Cada um dos exemplares podia ser emprestado por
uma semana. Outros materiais, como cartazes, folhetos e banners, foram criados
pela equipe de pesquisa (com apoio do GT da Prefeitura e acompanhamento do GT
Quesito Cor) e utilizados como suporte à campanha com os usuários da CTR.
Os atendentes dispunham, ainda, de uma ficha de monitoramento, elaborada
com o intuito de sistematizar as informações de ocorrências semanais, que era
preenchida e devolvida todas as sextas-feiras para análise e encaminhamentos
posteriores.
A responsabilidade cotidiana de acompanhar o trabalho dos atendentes ficou
a cargo de integrantes da CTR. No entanto, a avaliação continuada do trabalho foi
feita por meio de reuniões mensais e workshops, coordenados pelo GT Quesito Cor.
177
PIZA, Edith; ROSEMBERG, Fúlvia. Cor nos censos brasileiros. Revista da USP, São Paulo, n. 40, p. 123-
37, dez/fev 1998/1999.
178
Composta por textos e/ou livros que são referências sobre o tema.
90
As reuniões mensais aprofundaram os temas relativos à questão racial e
coleta do quesito cor, de acordo com as temáticas dos workshops, descritos.
O quesito cor fazia parte do perfil para cadastrar os usuários no banco de
dados SIGAE
179
em julho de 2002 (início do monitoramento). Porém, nos registros
anteriores à implementação do projeto, o dado cor fora coletado de forma
inadequada, considerando-se o grande volume de “Não declarados”.
Os dados para este estudo foram obtidos a partir do banco de dados da
unidade de Santo André da Central de Trabalho e Renda, no período de 07/2002 a
10/2002 (relativo ao atendimento realizado em cada mês). Para avaliação dos dados
históricos, utilizou-se o banco de dados geral da Central de Trabalho e Renda.
A eficácia da estratégia de superação das resistências pode ser aferida por
números incontestáveis: em Santo André, no início do processo, havia 67,4% de
respostas na categoria “cor não declarada”; no final, este número havia caído para
3,5%
.
A coleta adequada do quesito cor possibilitou uma visão mais precisa dos
usuários da CTR, bem como avaliar a situação da população não-branca no
mercado de trabalho do município.
179
Sistema de Gestão das Ações de Emprego (Ministério Trabalho e Emprego).
0
1 0
2 0
3 0
4 0
5 0
6 0
7 0
C o r / R a ç a n ã o d e c la r a d a
N a o d e c la ra d a
N a o d e c la ra d a
6 7 .4 4 0 . 5 3 1 .6 2 3 . 2 3 . 5
H is to r i
c o
J u l-0 2
A u g -
0 2
S e p -
0 2
O c t- 0 2
.
Gráfico 2 - Monitoramento da coleta do quesito cor.
91
Gráfico 3 - Perfil dos usuários do sistema
COR / RAÇA SANTO ANDRÉ 10/2002
Parda
Negra
Nao declarada
Indigena
Branca
Amarela
Foi possível avaliar o resultado dos encaminhamentos de candidatos para as
vagas disponíveis e o impacto da raça/cor nas escolhas e colocação efetiva do
trabalhador. O gráfico a seguir aponta, de forma evidente, que os negros e pardos,
com o mesmo perfil dos brancos e amarelos, têm um menor aproveitamento dos
encaminhamentos.
Gráfico 4 - Monitoramento do aproveitamento das vagas oferecidas segundo cor/raça.
12,50%
13,00%
13,50%
14,00%
14,50%
15,00%
15,50%
16,00%
Branca
Indigena
Negra
Parda
% de aproveitamento dos Encaminhamentos
10/2002
Colocão
92
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As experiências de implementação do quesito cor, em Belo Horizonte e Santo
André, confirmam que o tratamento deste tema não pode prescindir de uma
consideração óbvia, apenas aparentemente: o impacto do racismo. Vale dizer, o
impacto que a temática da discriminação racial tende a causar no plano das
subjetividades possui alto potencial de influência, positiva ou negativa, no ânimo dos
atendentes, respondentes e gestores.
Com Hannah Arendt, aprendemos que “os homens são seres condicionados:
tudo aquilo com o qual eles entram em contato torna-se imediatamente uma
condição de sua existência. (...) O que quer que toque a vida humana, ou entre em
duradoura relação com ela, assume imediatamente o caráter de condição da
existência humana. É por isto que os homens, independentemente do que façam,
são sempre seres condicionados. Tudo o que espontaneamente adentra o mundo
humano, ou para ele é trazido pelo esforço humano, torna-se parte da condição
humana. O impacto da realidade do mundo sobre a existência humana é sentido e
recebido como força condicionante. A objetividade do mundo o seu caráter de
coisa ou objeto e a condição humana complementam-se uma à outra; por ser uma
existência condicionada, a existência humana seria impossível sem as coisas, e
estas seriam um amontoado de artigos incoerentes, um não-mundo, se estes artigos
não fossem condicionantes da existência humana”
180
.
Neste mesmo diapasão, Max Weber, analisando a ação humana, registra
quatro modalidades básicas:
tradicional (orientada pelos hábitos vigentes);
afetiva (orientada pelas emoções);
racional com relação a valores (feita por convicção, ou dever); e
racional com relação a fins (em que a racionalidade reúne
estrategicamente meios e fins).
Para o sociólogo alemão, nenhuma das quatro motivações incide
isoladamente sobre a ação humana, mas sim concorrentemente, destacando que “é
um fato conhecido que os indivíduos se deixem influenciar fortemente em sua ação
180
ARENDT, Hannah. A condição humana. 10 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 2001, p. 17.
93
pelo simples fato de estar incluídos numa ‘massa’ especialmente limitada (objeto das
investigações da ‘psicologia de massas’, à maneira dos estudos de Le Bon); trata-se
pois, de uma ação condicionada pela massa. Esse mesmo tipo de ação pode se dar,
também, com um indivíduo sob influxo de uma massa dispersa (por intermédio da
imprensa, por exemplo), influxo este percebido por esse indivíduo como proveniente
da ação de muitas pessoas”
181
.
Em referência à matéria, acentua Miguel Reale: “O primeiro dever do
estudioso, ao aplicar o método fenomenológico, é procurar afastar de si todos os
preconceitos, todos os prejuízos porventura formados a respeito do mesmo
fenômeno, notadamente quanto à sua transcendência, ou realidade fora da
consciência (‘epoqué’ fenomenológica). Devemos colocar-nos em um estado de
disponibilidade perante o objeto, no sentido de procurar captá-lo, na sua pureza,
assim como é dado na consciência, sem refrações que resultem de nosso
coeficiente pessoal de preferências, para poder descrevê-lo integralmente, com
todas as suas qualidades e elementos, recebendo-o ‘tal como se oferece
originariamente na intuição (descrição objetiva)’
182
.
Levando-se em conta que a consciência individual apresenta-se enlaçada à
consciência social (Weber), ou os efeitos do condicionamento social a que todo o ser
humano está submetido (Arendt), é possível conjeturar que a exposição dos
indivíduos, desde tenra idade, à reiterada veiculação de representações distorcidas
das relações raciais (seja por meio da linguagem, da educação, seja dos meios de
comunicação) pode dificultar uma apreensão racional da relevância da informação
sobre cor, terminando por dar ensejo a preconceitos e ilações.
Portanto, uma premissa a ser permanentemente levada em consideração é
que os agentes envolvidos nestes processos devem estar sempre alertas, vigilantes,
atentos para que os seus credos e predileções não aflorem, a ponto de comprometer
a consistência e qualidade do seu trabalho. Daí a extraordinária importância da
informação, da reflexão, da sensibilização.
Se, no passado, o racismo ocultou a informação sobre cor, no presente o
manuseio daquela informação pressupõe necessariamente uma visão mesmo
panorâmica da complexidade e do caráter estruturante do racismo no Brasil.
181
WEBER, Max. Economia y sociedad. México, Fondo de Cultura Economica, v. I, 1974, p. 5.
182
REALE, Miguel. Filosofia do direito. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 362.
94
A título de conclusão, vale lembrar alguns dos marcos que podem ser
inferidos desta dissertação, no que se refere ao tratamento da temática da cor.
Com a história, aprendemos que a mesma ambivalência e ambigüidade que
caracterizam o modelo brasileiro de relações raciais alcançam os domínios da
informação, ou desinformação, sobre cor. Os três grandes grupos étnicos
responsáveis pela fundação da nação podem ser associados a grupos de cores se
adotarmos o fenótipo para a classificação destes. A condição de ser branco nunca
foi objeto de dúvidas, controvérsias, disputas técnicas ou metodológicas. Conforme
ensina Maria Aparecida da Silva Bento, parece que a condição de ser branco teria
sido encapsulada pela condição humana. O branco é o humano, o universal. Por
isto, tantas vezes a expressão homem de cor pressupunha que os brancos não
fossem portadores de cores.
a condição de ser negro parece ter, historicamente, incomodado a
sociedade brasileira, seja pela pluralidade de sinônimos, seja pelos infindáveis
debates sobre a miscigenação como uma possível diluição das fronteiras de cores.
Miscigenação que, como vimos, criou um amplo espectro de gradação de cores,
mas nem por isso fez desaparecer os três grupos originais de cores.
Nas sociedades em que a cor da pele não possui relevância na distribuição
de oportunidades e no exercício de direitos, certamente pouco sentido na
associação entre a cor da pele e a noção de raça. Já naquelas em que
determinados grupos de “cores” estão concentrados em lugares sociais previsíveis,
a noção de raça emerge não como constructo científico, mas como construção social
ancorada nas evidências do cotidiano.
Como o discurso da democracia racial tentava fazer crer que a miscigenação
teria suprimido as fronteiras raciais, ao mesmo tempo em que postulava ampla
igualdade de oportunidade a todos os grupos raciais, a informação sobre cor passou
a ser vista como ameaça à estabilidade discursiva da democracia racial. Mas, ainda
assim, determinados cadastros, como na área de segurança pública, não seguiram
aquela tendência, instituindo um silencioso, mas eficiente, sistema de classificação
racial.
A outra contradição é que se, historicamente, o Brasil possui sistemas de
classificação racial, este tema ganhou relevância no momento em que a
95
população negra passou a exigir os seus direitos, isto é, enquanto poderia ter sido
utilizada para violar direitos, a classificação racial “ia muito bem, obrigado”. Quando
passou a ser invocada para o exercício de direitos, o que era supostamente natural
passou a ser visto como um drama.
É neste contexto que a classificação racial é assumida por setores da
sociedade civil como bandeira política, diante da qual o Estado passa a ser obrigado
a dar respostas. A experiência contemporânea demonstra que não se pode
compreender as nuances e implicações da classificação racial sem ter uma noção
básica do fenômeno do racismo.
Se o Estado ainda hesita em instituir uma política nacional voltada para a
classificação, a sociedade civil, sobretudo ONG’s como o CEERT, produzem
conhecimento, orientam experiências, difundem informação, disponibilizam técnicas
e métodos aproveitados, inclusive, pelo setor privado.
As profundas transformações pelas quais o Brasil passou nos últimos anos,
em termos de reconhecer a gravidade do racismo e adotar fórmulas práticas para
sua superação, recolocaram na agenda do Movimento Negro, como também na da
própria academia, o complexo, intrigante e desafiador tema da classificação racial.
Ao concluir este trabalho, espero ter destacado alguns dos fatos históricos,
dos marcos conceituais, políticos, legais e metodológicos que perpassam o ato
inevitavelmente arbitrário de classificação de pessoas. Se o debate puder ser
alimentado com algo além de impressões pessoais e/ou preconceitos, considero
realizada a missão de demonstrar a complexidade que envolve a matéria. Se, no
passado, silenciaram a informação sobre cor, no presente o diálogo, a reflexão, o
confronto de idéias afiguram-se como única via por meio da qual a sociedade
estabelecerá as convenções aptas a garantir que todos os brasileiros usufruam da
igualdade de oportunidade e de tratamento.
96
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1974.
100
ANEXOS
101
Prontuário civil - Polícia Distrito Federal
102
Prontuário civil - Polícia do Distrito Federal
103
Planilha para cadastramento de interessados nacionais em adoção, perfil do
requerente.
104
Planilha para cadastramento de interessados nacionais em adoção, perfil da criança.
105
Tela do sistema SIGAE do Ministério Trabalho e Emprego para cadastramento do
trabalhador.
106
Formulário de cadastramento único de beneficiários dos Programas do Governo
Federal.
107
Registro de nascimento com a classificação da cor do registrando conforme Lei
6015/73 parcialmente revogada em 1975.
108
Registro de nascimento sem a classificação da cor do registrando conforme a Lei
6216/75.
109
Registro de nascimento com a classificação da cor do registrando durante transição
dos procedimentos entre a Lei 6015/73 e a lei 6216/75.
110
Declaração de Óbito
111
Ficha modelo de qualificação do adolescente, dados processuais e decisões do
Juízo da infância e da juventude.
Ficha de identificação civil, para registros de ocorrências criminais – para polícias
civis de todo o país.
112
113
Ficha registro de empregados
114
Ficha de alistamento militar
115
Formulário de alistamento militar – Consulado Geral do Brasil em São Francisco
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES
EXTERIORES
CONSULADO-GERAL DO BRASIL EM
SAN FRANCISCO
FORMULÁRIO DE ALISTAMENTO
MILITAR
(Preencher a máquina ou em letra de
forma)
(PLEASE TYPE OR PRINT)
DADOS PESSOAIS:
Nome / Name_________________________________________________________________
Ocupação/ Occupation____________________ Estado Civil / Marital Status _______________
Escolaridade / Highest Education Degree___________________________________________
Nascimento / Date of Birth: ______/_________/________ _________________ _____
Dia/Day Mês/Month Ano/Year Cidade/City Estado/State
Endereço residencial Nos Estados Unidos / Residential Address in the US:
________________________________________________________________________________
Número, Avenida/Rua, Apto./Number, Street/Ave., Apt. #
_____________________ ______________ _________________ ________________
Cidade/City Estado/State Código Postal/ZIP Code País/Country
Nome dos pais/Name of Parents:
__________________________________________________________
Nome do pai / Father’s Name
___________________________________________________________
Nome da mãe / Mother’s Name
Altura/Height: ___________ ___________
Metros/Meters centímetros/centimeters
Cor da pele/Skin Color___________________
Cor dos cabelos _____________________ Cor dos olhos/Eyes Color_________________
Sinais particulares (se houver)/Birth marks, scars (if any)_____________________________________
_____________________________________
Telefones para contato / Telephone numbers: (_____) _______________ (_____) ______________
Residência/Home Trabalho/Work
Data/Date _______/_________/______ ______________________________________
Dia/Day Mês/Month Ano/Year Assinatura do declarante / Signature
116
Certificado de dispensa de incorporação
117
Ficha de perfil social, Prefeitura de Santo André – Secretaria de Inclusão social e
Habitação
118
Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973.
Art. 54. O assento do nascimento deverá conter: (Renumerado do art. 55, pela Lei nº 6.216, de
1975).
1°) o dia, mês, ano e lugar do nascimento e a hora certa, sendo possível determiná-la, ou
aproximada;
2º o sexo e a cor do registrando;
2º) o sexo do registrando; (Redação dada pela Lei nº 6.216, de 1975).
3º) o fato de ser gêmeo, quando assim tiver acontecido;
4º) o nome e o prenome, que forem postos à criança;
5º) a declaração de que nasceu morta, ou morreu no ato ou logo depois do parto;
6º) a ordem de filiação de outros irmãos do mesmo prenome que existirem ou tiverem existido;
7º) Os nomes e prenomes, a naturalidade, a profissão dos pais, o lugar e cartório onde se
casaram, a idade da genitora, do registrando em anos completos, na ocasião do parto, e o domicílio
ou a residência do casal.
8º) os nomes e prenomes dos avós paternos e maternos;
9º) os nomes e prenomes, a profissão e a residência das duas testemunhas do assento.
9
o
) os nomes e prenomes, a profissão e a residência das duas testemunhas do assento, quando
se tratar de parto ocorrido sem assistência médica em residência ou fora de unidade hospitalar ou
casa de saúde.(Redação dada pela Lei nº 9.997, de 2000)
119
Resolução CEPE 565 – Processo seletivo 2008 - UFSCAR
RESOLVE
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120
Resolução CEPE 543 – Processo seletivo 2008- UFSCAR
……………………………………………………………………………………………
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