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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Fábio Santos de Andrade
Cotidiano, trajetórias e políticas públicas:
crianças e adolescentes em situação de rua em Vitória da
Conquista, Bahia (1997-2007)
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
SÃO PAULO
2008
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Fábio Santos de Andrade
Cotidiano, trajetórias e políticas públicas:
crianças e adolescentes em situação de rua em Vitória da
Conquista, Bahia (1997-2007)
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora como exigência parcial para
obtenção do título de MESTRE em Ciências
Sociais (área de concentração: Sociologia),
sob a orientação da Professora Doutora Ana
Amélia da Silva.
SÃO PAULO
2008
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Banca Examinadora:
AGRADECIMENTOS
Uma dissertação de mestrado nos remete para caminhos, trilhas e atalhos
importantes, num tecido de apoios e amizades fundamentais, sem os quais as tarefas árduas
da pesquisa e da escrita não se viabilizariam.
Agradeço inicialmente aos meus familiares cujo apoio, carinho e afeto foram
cruciais nesta caminhada. A Elisângela, companheira de todas as horas que me
acompanhou nesta trajetória e cujo apoio irrestrito, afeto e suporte emocional respondem
por muito do que aqui foi alcançado. Aos nossos familiares pela torcida e apoio
incondicional.
Um agradecimento especial aos professores do Programa de Estudos Pós-
Graduados em Ciências Sociais, pelo acompanhamento e compreensão durante a jornada
do mestrado. À minha orientadora, professora Ana Amélia da Silva, cujo rigor nas leituras
dos capítulos e sugestões ao longo desses dois anos, instigaram novas reflexões. Às
professoras Leila da Silva Blass e Silvana Maria Correa Tótora, pelas observações durante
o exame de qualificação. Devo um agradecimento especial à professora Leila Blass pela
atenção e carinho durante a elaboração da dissertação, para além de sua participação na
banca de qualificação e na disciplina ministrada.
Agradeço ainda à professora Ethel Voltzon Kosminsky, da UNESP de Marília, todo
apoio durante à elaboração do projeto de mestrado.
Ao professor e amigo João Diógenes Ferreira dos Santos, da UESB, em Vitória da
Conquista, agradeço a prontidão em me ouvir e aconselhar.
Aos técnicos, agentes sociais e coordenadores dos vários projetos e programas
sociais dirigidos às crianças e adolescentes em situação de risco, de Vitória da Conquista,
que se dispuseram a conceder entrevistas, muitas delas subtraídas às suas inúmeras tarefas:
Programa Conquista Criança, Programa Agente Jovem, Programa de Erradicação do
Trabalho Infantil (PETI), Projeto Juventude Cidadã, Conselho Municipal dos Direitos da
Criança e do Adolescente, Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social. Os
agradecimentos são extensivos aos técnicos do Arquivo Público Municipal e Museu
Regional de Vitória da Conquista.
Agradeço, também aos “educadores de rua”, companheiros de lutas em busca de
maior justiça social para as crianças e adolescentes que vivem nas ruas da cidade.
Um agradecimento todo especial ao Programa Internacional de Bolsas de Pós-
Graduação da Fundação FORD (International Fellowship Program – IPF), pelos recursos
financeiros e suporte que permitiram os estudos e a pesquisa realizada. À toda a equipe da
Coordenação do Programa Bolsa, da Fundação Carlos Chagas, que administra a bolsa, e
que esteve presente em todo o processo.
Finalmente, e mais importante, a todos adolescentes que vivem nas ruas de Vitória
da Conquista, e que se dispuseram a contar suas histórias, trajetórias e vivências num
universo de desigualdades, onde a perspectiva de sua “descartabilidade” se torna tão
presente, e por isso mesmo, mobiliza o estudo e a formulação urgente de políticas públicas
que garantam a dignidade de suas vidas como sujeitos de direitos.
RESUMO
Esta dissertação teve por objetivo analisar o cotidiano e as trajetórias de crianças e
adolescentes em situação de rua, bem como as políticas públicas municipais em Vitória da
Conquista (Bahia). A pesquisa centrou-se no período de 1997 a 2007, que corresponde a
dois mandatos do governo municipal e, um terceiro, em curso, todos sob o comando do PT
– Partido dos Trabalhadores. Voltou-se para análise de programas e projetos dirigidos à
população infanto-juvenil do município, destacando-se a
Unidade de Educação de Rua
,
levando-se em conta alguns marcos históricos do país. Verificou-se que, mesmo com a
implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, desde os anos 1990, alguns
dos programas e projetos implementados em Vitória da Conquista, embora objetos de
premiações importantes, disputam significado com outros, desativados ou inoperantes. Isto
leva à reflexão sobre as perspectivas focalizadas ou compensatórias, assim como aos
conflitos de competências entre esferas governamentais. A análise procurou destacar uma
tendência acirrada em tempos de política econômica orientada pela ideologia neoliberal, de
que resultam políticas públicas e programas sociais voltados, principalmente, para a
“administração da pobreza”.
Palavras-chave: 1. Crianças e adolescentes em situação de rua; 2. Pobreza; 3. Estratégias
de sobrevivência; 4. Políticas públicas; 5.Violência; 6. Vitória da Conquista (BA).
ABSTRACT
This dissertation aimed to analyze the every day life and the trajectories of children and
youth in the street situation, as well as the municipal public politics in Vitória da Conquista
(Bahia). This research focused on the period between 1997 to 2007, that covers two
mandates of the municipal govern and, a third one, in course, all under the command of the
PT – Partido dos Trabalhadores. It intended to analyze the programs and projects driven to
the young population of the city, standing out the Street Education Unit, considering some
outstanding historical facts in the country. It was verified that, besides the implement of the
Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, since 90’s, some of the programs and
projects implemented in Vitória da Conquista, although objects of important awards,
dispute significance with others, deactivated or useless. This led to the reflection about the
focused or compensatory perspectives, as well as about the conflicts of competences
between governmental spheres. The analysis aimed to detach a tendency, toughen up in
ages of economic politics driven by the neoliberal ideology, from which public politics and
social programs are mainly directed to the results of the “administration of poorness”.
Keywords: 1. Children and Youth in street situation; 2. Poorness; 3. Strategies of survival;
4. Public politics; 5.Violence; 6. Vitória da Conquista (BA).
LISTA DE SIGLAS
AABB Associação Atlética Banco do Brasil
ASSEV Associação de Educação para a Vida
ABESC Associação Beneficente Santa Cruz
ACIDE Associação Conquistense de Integração do Deficiente
APAE Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais
BCC Programa Brasil Criança Cidadã
CACA Coordenação de Assistência à Criança e ao Adolescente
CDL Câmara de Dirigentes Lojistas
CEASA Central de Abastecimento de Alimentos
CECA Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente
CEFET Centro Federal de Educação Tecnológica
CIEE Centro de Integração Empresa Escola
CMDCA / COMDICA Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente
CONANDA Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
CREAME Centro de Recuperação e Amparo ao Menor
CSU Centro Social Urbano
EAM Escola de Aproveitamento de Menores
ECA Estatuto da Criança e do Adolescente
FAINOR
Faculdade Independente do Nordeste
FAMEC Fundação Educacional de Vitória da Conquista
FEBEM Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor
FTC Faculdade de Tecnologia e Ciências
FUNABEM Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor
Fundo DCA Fundo dos Direitos da Criança o do Adolescente
Fórum DCA Fórum de Defesa da Criança o do Adolescente
FUNDAC Fundação Estadual da Criança e do Adolescente
IDH Índice de Desenvolvimento Humano
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
JTS Juvêncio Terra Superior
MPAS Ministério da Previdência Social
OG Organização Governamental
ONG Organização Não-governamental
ONU Organização das Nações Unidas
PETI Programa de Erradicação do Trabalho Infantil
PIB Produto Interno Bruto
PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro
PMVC Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista
PNBM Política Nacional do Bem-Estar do Menor
PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
PROAC Projeto de Assistência à Criança
PT Partido dos Trabalhadores
SAM Serviço de Assistência a Menores
SEAS Secretaria de Estado da Assistência Social
SEMDES Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social
SESI Serviço Social da Indústria
SETRAS Secretaria do Trabalho, Assistência Social e Esporte
SMED Secretaria Municipal de Educação
SMS Secretaria Municipal de Saúde
SUAS Sistema Único da Assistência Social
UER Unidade de Educação de Rua
UESB Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
UFBA Universidade Federal da Bahia
SUMÁRIO
Introdução................................................................................................................... 12
Capítulo I
Alguns elementos teóricos e perspectivas interpretativas sobre crianças e
adolescentes em situação de rua. ..............................................................................
29
1.1. Caminhos da desqualificação do trabalhador assalariado brasileiro e a
sobrevivência no espaço público urbano. ...................................................................
33
1.2. Da situação de pobreza e da “responsabilidade social capitalista”. .................... 39
1.3. O discurso brasileiro sobre cidadania e as novas políticas sociais. ..................... 41
1.4. Crianças e adolescentes em situação de rua: a viração nos espaços urbanos. ..... 45
1.5. Um panorama das origens de crianças e adolescentes em situação de rua. ........ 51
1.6. Um panorama sobre as legislações concernentes à criança e ao adolescente. .... 56
Capítulo II
A criança e o adolescente em situação de rua: uma análise do município de
Vitória da Conquista (Bahia). ...................................................................................
64
2.1. A formação história do município. ...................................................................... 64
2.2. Vitória da Conquista: crescimento demográfico e ampliação da pobreza. ......... 68
2.3. A política de atendimento à criança e ao adolescente em situação de rua na
administração do Partido dos Trabalhadores – PT (1997 e 2007). ............................
77
Capítulo III
A sociabilidade da rua: trajetórias, sobrevivência e percepções. .......................... 91
3.1. Cotidiano e trajetórias das crianças e adolescentes em situação de rua. ............. 97
3.2. Percepções e expectativas. .................................................................................. 130
Capítulo IV
Políticas públicas, programas e projetos para a população infanto-
j
uvenil em
Vitória da Conquista. ................................................................................................
133
4.1. O Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. .................... 135
4.2. O Programa Conquista Criança. .......................................................................... 143
4.3. O Programa de Erradicação do Trabalho Infantil. .............................................. 147
4.4. O Programa Agente Jovem. ................................................................................ 152
4.5. O Projeto Juventude Cidadã. ............................................................................... 156
4.6. A Coordenação de Assistência à Criança e ao Adolescente. .............................. 160
Considerações Finais. ................................................................................................ 164
Referências Bibliográficas. ....................................................................................... 170
INTRODUÇÃO
Durante a história do Brasil Republicano, crianças e adolescentes pobres sempre
foram envolvidos em uma carga de preconceitos que os caracterizava como seres
inferiores, dignos de piedade e vítimas das violências
1
por parte da sociedade. Durante a
vigência do Código de Menores
2
, tornaram-se responsabilidade do Estado que os incluía
numa Doutrina de Situação Irregular. Esse Código caracterizou-se como uma das
primeiras tentativas do Estado para sanar a problemática que envolvia crianças e
adolescentes, denominados durante este período como “menores”.
Desde o Código de Menores de 1927 até a Política Nacional do Bem-estar do
Menor, correspondente à reformulação do Código de Menores de 1979, decorreram mais
de sessenta anos, em que foi empregada a prática de internação de crianças e adolescentes,
independentemente do regime político democrático, ou autoritário, respectivamente,
educação para integração social, ou correção de comportamento.
Cabe ainda ressaltar que, desde a chegada dos portugueses ao Brasil no século
XVI
3
, os dirigentes brasileiros vêm enfrentando problemas envolvendo crianças e
adolescentes em situação de risco. No entanto, a expansão das ações governamentais
1
Segundo Meserani (2001: 15), “Violar significa transgredir, desrespeitar, não cumprir uma norma ética ou
as leis da natureza”. Neste trabalho, opta-se também pela definição de Michaud (1989: 10), que afirma que
“Há violência quando, numa situação de interação, um ou vários atores agem de maneira direta ou indireta,
maciça ou esparsa, causando danos a uma ou várias pessoas em graus variáveis, sejam em integridade física,
em sua integridade moral, em suas posses ou em suas participações simbólicas ou culturais”.
2
O Código de Menores foi elaborado pelo jurista Mello Mattos em 1925 e aprovado sob a Lei nº. 17.343/A,
em 12 de outubro de 1927. Este Código foi reformulado em outubro de 1979 pela Lei nº. 6.697.
3
Veja-se o trabalho de Leite (2001).
12
através de políticas públicas só ocorreu durante as duas ditaduras: o Estado Novo, de 1933
a 1945, e os Governos Militares, 1964 a 1984. Antes desses períodos, porém, o governo já
havia tomado algumas medidas, na tentativa de “proteger” e “punir” os “menores”.
Somente com a Constituição Federal de 1988 é que foram inseridos, no Brasil, os
Direitos Internacionais da Criança, proclamados pela ONU desde 1950. Ademais, foi com
a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
4
que o Estado assumiu sua
responsabilidade sobre o atendimento integral às crianças e adolescentes, considerando-os
sujeitos de direitos, deveres e saberes. Extinguiu-se o termo “menor” e passou a vigorar a
expressão “crianças e adolescentes em situação de risco”
5
, como nos afirma Gregori, em
seu estudo sobre a experiência de meninos nas ruas:
[...] Aboliram-se, como se sabe, o conceito de menor e o conteúdo
estigmatizante que o caracterizava. Foi criada a expressão “criança e
adolescente em situação de risco”, estabelecendo uma distinção mais
nítida do segmento carente em relação ao que comete infrações e àquele
que é composto pelos meninos de rua. A palavra risco, neste caso, não
tem uma conotação moral direta. Seu sentido parece indicar uma situação
de vulnerabilidade e um perigo de vida (GREGORI, 2000: 65).
4
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal nº. 8069), foi aprovado pela Câmara e pelo Senado e
sancionado, sem votos, pelo presidente Fernando Collor de Mello em julho de 1990.
5
Será entendido, nesse trabalho, situação de risco como a possibilidade de ocorrências danosas, no plano
físico, mental ou social, àqueles sujeitos, que, vivendo as condições próprias da imaturidade, necessitam de
medidas de proteção e defesa especiais, garantidas pela Lei 8069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente –
ECA). O termo situação de risco refere-se, principalmente, às crianças e adolescentes oriundos das classes
subalternas. Segundo Santos (2007: 12), estas “‘são mais vulneráveis à violência, por não terem acesso aos
bens materiais e culturais e nem às garantias dos direitos, estabelecidos legalmente’. Neste sentido,
apresentam-se aqui, em consonância com o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, as principais
situações de risco: ‘abandono da família, abuso, negligência e maus tratos nas famílias e nas instituições;
trabalho abusivo e explorador, dependência de substâncias químicas e álcool, violência e exploração sexual,
conflito com a lei, em razão de cometimentos de atos infracionais, entre outras’”. No entanto, Ramos (1999:
82), ressalta que o termo “situação de risco” abrange “crianças e jovens de todas as classes sociais,
violentadas no seio da família, adolescentes expostos a ambientes prejudiciais, crianças cujo
desenvolvimento está comprometido pelas próprias pessoas e instituições que deveriam protegê-las”.
13
Mesmo com a vigência do Estatuto e com a mudança das denominações, muitas
crianças e adolescentes convivem ainda hoje com a privação de seus diretos básicos, o que,
muitas vezes, obriga-os a abandonar as atividades educativas pertinentes à sua faixa etária
e a encarar a condição de adulto, responsável pela sobrevivência pessoal e/ou familiar.
Assim, o número crescente de crianças e adolescentes em situação de rua pode ser
percebido facilmente nas Praças, Avenidas, supermercados, restaurantes, em suma, por
toda parte. Esse aumento é, na maioria dos casos, o reflexo do desemprego crescente em
nosso país que atinge, sobretudo, a população de baixa renda. Inseridos nesta discussão
estão os princípios neoliberais que, orientando a política econômica brasileira, sobretudo a
partir do governo de Fernando Collor (1990-1992)
6
, contribuíram para o aumento da
pobreza
7
do povo brasileiro, aprofundando a desigualdade. Neste período, tornou-se visível
o desemprego estrutural, a negação de direitos e o aumento da violência. O país passou a
viver o que Francisco de Oliveira chama de “era de indeterminação”
8
.
Segundo Santos (2007:19), tendo como base as reflexões de Francisco de
Oliveira, a negação dos direitos da população infanto-juvenil na cidade de Vitória da
Conquista (Bahia), se revela na medida em que “as diretrizes do receituário neoliberal, [...]
adotadas no país na década de 90, se acirraram a partir de 1995, no governo de Fernando
Henrique Cardoso, configurando o ‘desmonte das anteriores invenções’”.
6
O governo de Fernando Collor durou apenas dois anos, devido ao seu impeachment. Mesmo com seu
afastamento, os ideais do neoliberalismo, intensificados neste governo, tomariam corpo nas gestões
seguintes. Segundo Francisco de Oliveira (2003b: 201), foi o governo de Fernando Henrique Cardoso que
aprofundou, “num grau insuspeitado, o desmanche iniciado”.
7
Segundo Melo (2005: 07), “Nos últimos anos houve uma evolução das concepções de pobreza para além da
carência de renda, na direção de conceitos mais abrangentes tais como: desigualdade, exclusão social e
vulnerabilidade. A desigualdade proveniente da estrutura econômica continua sendo a primeira razão da
pobreza”.
8
A expressão “era de indeterminação” é utilizada por Francisco de Oliveira e pode ser melhor aprofundada
em seu artigo “Política numa era de indeterminação: opacidade e reencantamento” (Cf. 2003b).
14
A política social do neoliberalismo confina a massa trabalhadora e os
desempregados nos serviços sociais públicos decadentes e obriga parte da classe
trabalhadora a enviar seus filhos desde cedo ao mercado informal de trabalho. Gaudêncio
Frigotto (1995:15), em artigo que analisa as relações entre trabalho e educação, afirma que
“Essas crianças precisam adquirir desde cedo o conhecimento e, sobretudo, o hábito e a
tradição do trabalho penoso a que se destinam. Não podem, portanto, perder tempo nas
escolas”.
Neste contexto, a rua configura-se como um local que possibilita a sobrevivência
de muitas crianças e adolescentes chamados de “menores de rua” ou “meninos de rua”
9
.
No entanto, neste trabalho, utilizaremos o termo crianças e adolescentes em situação de
rua
10
, respeitando as características peculiares a cada faixa etária e, sobretudo, ao Estatuto
da Criança e do Adolescente
11
.
Talvez não seja demais enfatizar que as crianças e adolescentes em situação de rua
não estão reduzidos ao contingente dos que apenas dormem na rua, mas sim, a milhares
que estão distribuídos pelos espaços públicos, ocupando-os de diversas maneiras e
9
A expressão “meninos de rua” foi criada na década de 1970, “[...] para designar crianças e adolescentes dos
estratos pobres que passam parte considerável de suas vidas sobrevivendo nas ruas das grandes cidades
brasileiras. Com essa expressão, foi identificado e nomeado um segmento social que, mais do que a mera
familiaridade ou o convívio esporádico com a rua, faz dela o lugar que ordena seu cotidiano, suas relações e
sua identidade. Assim, a rua passa a ser o ambiente que substitui o espaço doméstico, e as relações com
transeuntes, comerciantes, policiais, assistentes sociais, educadores, religiosos etc. passam ocupar a posição
de familiares, vizinhos, amigos” (GREGORI, 2000: 15). Sabe-se que o termo “meninos e meninas de rua” é
pejorativo e carregado de preconceitos por assimilar-se ao termo “menor”. O termo também denota pertença
à rua, e durante o período de vigência do Código de Menores, todos os que estavam em situação de rua eram
considerados abandonados ou desvalidos (assim também considerados “de rua”) e deveriam ser assumidos
pelo Estado como “Filhos do Governo”. Sobre esse tema, veja-se Kosminsky (1993); Silva (1998).
10
A utilização do termo “situação de rua” diferencia-se de “meninos de rua” ou “menores de rua”, por
considerar-se a permanência das crianças e adolescentes na rua como uma condição temporária, e não
definitiva.
11
Conforme o Estatuto de Criança e do Adolescente (Art. 2º. e Parágrafo único), “Considera-se criança, para
os efeitos da Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos
de idade”. Em casos expressos em lei, o Estatuto será aplicado, excepcionalmente, “às pessoas entre dezoito e
vinte e um anos de idade”.
15
desenvolvendo atividades variadas, retornando ou não para suas casas ao término das
atividades. São diversos os fatores que levam as crianças e adolescentes a estarem nas ruas,
a desligarem-se de suas famílias e a não freqüentarem a escola. No entanto, a má
distribuição de renda existente em nosso país destaca-se como o principal gerador da
situação de pobreza.
Partindo-se dessas reflexões sobre o cotidiano dessas crianças e adolescentes em
situação de rua, é possível afirmar que elas se agrupam em duas categorias: as que mantêm
vínculo com a família e que vão à rua desenvolver várias atividades, a fim de contribuir
com a renda familiar, e as que perderam os vínculos familiares, tomando a rua como
moradia. Observa-se que esses grupos desenvolvem diversas atividades (trabalham,
mendigam, roubam, são explorados sexualmente, vendem e usam drogas). Para estes, a rua
é um lugar de dinâmicas variadas, que oscilam entre o legal e o ilegal. Para muitos, a rua
passa a substituir a própria família, impondo, em seu cotidiano, novos códigos e regras.
Desse modo, a sobrevivência dessas crianças e adolescentes, e, muitas vezes, a de seus
familiares, está diretamente ligada às estratégias para obterem ganhos e driblarem
problemas graves em suas existências.
Apesar de os problemas que envolvem os jovens em situação de rua serem
latentes, cabe ainda notar que, somente após a implementação do Estatuto da Criança e do
Adolescente, muitas cidades começaram a pensar em políticas públicas que viabilizassem a
garantia dos direitos daqueles que se encontram em situação de rua, vítimas
inquestionáveis do sistema imposto por governos anteriores e da ideologia neoliberal,
pautada numa política de exclusão. Com isso, alguns municípios começaram a desenvolver
políticas públicas voltadas à garantia dos direitos de tais crianças e adolescentes.
16
Entre estes municípios está Vitória da Conquista. Situado na micro-região do
Planalto da Conquista (Sudoeste do Estado), configura-se como um dos principais
municípios do interior da Bahia e tem população de 262.494 habitantes (IBGE, 2000). É
um município de porte médio do Nordeste brasileiro, beneficiado por um grande
entroncamento rodoviário, composto por três rodovias estaduais (BA 263, BA 407 e BA
415) e por uma federal (BR 116). Polariza uma região com cerca de 80 municípios. Seus
indicadores apontam um IDH de 0,708 (PNUD, 2000), o PIB de R$ 1.036.178.000,00
(IBGE, 2004), e uma renda per capta de R$ 3.678,51 (IBGE 2004).
É preciso evidenciar que, somente a partir de 1997, ano em que se iniciou a
primeira gestão do Partido dos Trabalhadores (PT)
12
, é que Vitória da Conquista passou a
viver uma fase ímpar no que se refere ao atendimento às crianças e aos adolescentes em
situação de risco pessoal e social. Intensificaram-se os trabalhos realizados pelos orgãos de
garantia de direitos das crianças e adolescentes, como o Conselho Municipal dos Direitos
da Criança e do Adolescente, o Conselho Tutelar, a Vara da Infância e da Juventude, e
criou-se a Rede de Atenção e Defesa da Criança e do Adolecente
13
, com o objetivo de
articular as diversas instituições governamentais e não-governamentais de ação educativa
complementar, existentes no município. Os resultados destas políticas e programas
possiblitaram que o munícipio de Vitória da Conquista recebesse, em 1999 e 2003, o
Prêmio Prefeito Criança, concedido pela Fundação Abrinq e que, a partir do ano de 2000,
12
O município de Vitória da Conquista já está na terceira gestão do Partido dos Trabalhadores (PT). A
primeira gestão inicia-se com a eleição do prefeito Guilherme Menezes de Andrade, para o mandato de 1997-
2000; o mesmo prefeito é reeleito para o segundo mandato (2001-2004), e renuncia para se candidatar ao
cargo de Deputado Federal. O vice-prefeito, José Raimundo Fontes, assume a prefeitura e é eleito para a
terceira gestão (2005-2008).
13
Segundo Rizzini (2006: 112), o conceito de Rede vem sendo construído no Brasil “[...] baseado nas
experiências dos grupos sociais que se organizam para melhor atender às necessidades da vida social,
cultural, material e efetiva. As redes são formações dinâmicas e flexíveis, com continuada renovação dos
participantes, o que requer certos cuidados para a sua continuidade. Ela abrange espaços geográficos,
políticos e sociais específicos que, contudo, tendem a ter mobilidade, na medida em que as redes devem estar
atentas ao movimento dos grupos e das organizações sociais”.
17
fossem implantados os projetos federais: Programa de Erradicação do Trabalho Infantil
(PETI)
14
, Projeto Sentinela
15
, este atendendo às crianças e adolescentes vitímas de abuso e
exploração sexual, Programa Agente Jovem
16
e Programa Juventude Cidadã
17
. Como
projeto municipal, destaca-se o Programa Conquista Criança
18
, que tem funcionado no
município de Vitória da Conquista desde 1997, atendendo em suas unidades centenas de
crianças e adolescentes em situação de risco.
Dentre as unidades que compunham o Programa Conquista Criança, destacamos
a Unidade de Educação de Rua, por destinar-se a atender crianças e adolescentes em
situação de rua, principal categoria de estudo deste trabalho. Conhecida como Educação de
Rua, foi criada com base em uma metodologia que se adequasse às peculiaridades da
região, visando a despertar o desejo da criança e do adolescente, em situação de rua, para
um processo de “educação para a cidadania”, processo que se desenvolvia nos espaços
públicos freqüentados pelos mesmos. Destaca-se aí a figura do educador social como o
principal meio de se compreender e acompanhar o cotidiano do público atendido.
14
O PETI é um programa federal de transferência de renda para famílias de crianças e adolescentes na faixa
etária dos 07 aos 15 anos, envolvidos no trabalho precoce, em especial em atividades consideradas perigosas,
penosas, insalubres ou degradantes. A implantação do PETI no Brasil teve início no ano de 1996, com o
projeto piloto executado nas carvoarias do Estado do Mato Grosso do Sul. Em 1997, a Secretaria de
Assistência Social estendeu este projeto em âmbito nacional. Em Vitória da Conquista, o PETI foi
implantado através do Convênio 392/00 de 26 de junho de 2000. Inicialmente, atendia a 204 crianças e
adolescentes, na faixa etária de 7 a 14 anos residentes no município que se encontravam em situação de
exploração do seu trabalho. O PETI será mais bem detalhado no Capítulo IV.
15
O Programa Sentinela é uma ação do governo federal de combate ao abuso e exploração sexual infanto-
juvenil. Foi criado durante a segunda gestão de Fernando Henrique Cardoso (1999-2003), sob a coordenação
da então Secretaria de Estado da Assistência Social (SEAS), do Ministério da Previdência e Ação Social
(MPAS). Este Programa foi instalado no município de Vitória da Conquista em novembro de 2001, mediante
uma parceria com a Secretaria Estadual do Trabalho, Assistência Social e Esporte (SETRAS) (Cf. SANTOS,
2007).
16
O Projeto Agente Jovem de Desenvolvimento Social e Humano é uma ação federal de assistência social
destinada a atender jovens, na faixa etária de 15 a 17 anos, vulnerabilizados pela pobreza e pela exclusão
social, preferencialmente, os egressos de outros programas sociais. Este projeto será mais bem detalhado no
Capítulo IV.
17
O Projeto Juventude Cidadã foi criado pelo governo federal e inserido na política do primeiro emprego,
objetivando a formação profissional dos jovens, com idades entre 16 e 24 anos. Este projeto será mais bem
detalhado no Capítulo IV.
18
O Programa Conquista Criança e a Unidade de Educação de Rua serão tratados com mais detalhes nos
capítulos seguintes.
18
Foi neste Programa que nos inserimos em 1999, para um trabalho junto à
população infanto-juvenil. Por compor o quadro de educadores sociais, deparávamos-nos
cotidianamente com um número cada vez maior de crianças e adolescentes em situação de
rua. O que mais nos surpreendia era o fato de que a maioria destes já havia freqüentado
instituições de ação educativa complementar e/ou escola, não se adaptando às normas, o
que era simplesmente caracterizado como evasão. Devido a essa realidade, questionávamo-
nos sobre as possibilidades de desenvolvimento de ações que realmente possibilitassem a
saída desses sujeitos da rua, e a construção de uma nova história de vida fundamentada nos
direitos estabelecidos pelo ECA.
Partindo deste questionamento, é que surgiu nosso interesse em pesquisar o
cotidiano, as trajetórias e as políticas públicas referentes às crianças e adolescentes em
situação de rua em Vitória da Conquista, durante o período correspondente às três gestões
do Partido dos Trabalhadores, na tentativa de compreender sua realidade social e propiciar
os fundamentos para a implantação de novos programas e projetos.
Para o desenvolvimento da pesquisa e construção da dissertação, mobilizou-se o
conceito de sociabilidade, entendido enquanto relações sociais que as crianças e os
adolescentes desenvolvem entre si e com os adultos, formando grupos e traçando
estratégias que possibilitem sua sobrevivência frente às barreiras impostas pelo cotidiano
da rua, possibilitando, ainda, o enfrentamento das dificuldades e a sobrevivência
individual, grupal e/ou familiar.
Cabe ainda mencionar que a análise da sociologia da vida cotidiana torna-se
fundamental para o desenvolvimento deste trabalho. Assim, partindo de orientações de
José Machado Pais, pôde-se traçar um percurso para o desenvolvimento desta pesquisa.
19
Conforme este autor (2003b: 29), a vida cotidiana segue um caminho marcado por rotinas
e rupturas e é por esse caminho que “passeia” a sociologia do cotidiano “[...] passando um
pente fino, procurando os significados mais do que significativos, juntando-os como quem
junta pequenas peças de sentido num sentido mais amplo”. Ainda, segundo o autor, são
essas rotas da vida cotidiana que denunciam os “múltiplos meandros da vida social”.
Trilhar esse caminho faz com que o pesquisador perceba que a lógica da sociologia do
cotidiano reside no “ato de descobrir”.
O grande desafio da sociologia do cotidiano, segundo Pais (2003b: 31), é o de
“revelar a vida social” embrenhada na rotina diária, que, muitas vezes, parece camuflar
fatos importantes. Nesta trilha, é necessário investigar este cotidiano e desvendá-lo. Quanto
ao método que orienta a sociologia do cotidiano, conforme Pais (Idem: 33):
[...] o método que nos deve orientar é [...] o de trotar a realidade, passear
por ela em deambulações vadias, indicando-a de forma bisbilhoteira,
tentando ver o que nela se passa mesmo quando “nada se passa”. Neste
sentido sociológico, como se advinha, importa fazer da sociologia do
cotidiano uma viagem e não um porto.
Percorrer o caminho da sociologia do cotidiano é o mesmo que trilhar um
caminho de descobertas. Cada contato com as fontes de pesquisa revela novos enigmas e
caminhos. Assim, o pesquisador tem que saber como penetrar neste universo “para melhor
poder sair dele e, acima de tudo, para melhor o compreender” (Idem: 63). O cotidiano
apresenta-se como um campo privilegiado para a análise sociológica no momento em que
revela seu funcionamento, suas transformações e seus conflitos.
As afirmações de Pais permitem compreender a sociologia do cotidiano como
uma opção metodológica capaz de orientar essa pesquisa, tendo em vista de que se trata de
uma imersão no cotidiano de crianças e adolescentes em situação de rua. Portanto, os
20
caminhos metodológicos trilhados por esta pesquisa encontram-se distribuídos em duas
etapas que se complementam. Durante a primeira, realizaram-se levantamentos
bibliográficos e documentais, que proporcionaram o aprofundamento teórico sobre a
questão das crianças e adolescentes em situação de rua, e sobre temáticas correlatas que
influenciam diretamente o cotidiano dos mesmos. Pôde-se analisar importante bibliografia
que trata de temáticas referentes à situação do trabalhador, da pobreza que afeta grande
parte da população, e das estratégias de manutenção da vida e minimização da pobreza,
que têm nos espaços públicos sua área de maior visibilidade.
No que se refere especificamente à bibliografia que aborda a questão de crianças e
adolescentes em situação de rua, recorremos às várias dissertações, teses, livros, dentre
outros, que denunciam a situação socioeconômica em que se encontram. Nessas fontes,
eles, são quase sempre destacados enquanto vítimas, ou violadores do sistema político-
administrativo brasileiro, que tenta “gerar o bem-estar social”.
Entretanto, o objetivo da presente pesquisa ultrapassou o campo da denúncia,
focando crianças e adolescentes em situação de rua, não apenas como indivíduos dotados
de direitos e de deveres, mas, principalmente, de saberes que possibilitam sua
sobrevivência cotidiana. Com isso, percebeu-se a necessidade de coletarmos, por meio de
entrevistas com crianças e adolescentes em situação de rua, dados que revelassem sua
verdadeira situação e problemas enfrentados a partir de sua experiência cotidiana.
Percebeu-se, também, a necessidade de se compreender a rotina de alguns programas
governamentais existentes em Vitória da Conquista e os motivos que os limitam no
atendimento pleno dos direitos de crianças e adolescentes em situação de rua.
21
O caminho trilhado na primeira etapa da pesquisa possibilitou a delimitação das
técnicas que seriam utilizadas durante a pesquisa de campo, objetivando facilitar a coleta
de dados quantitativos e principalmente qualitativos (sendo estes últimos a fonte para a
análise dos dados). Assim, tornou-se possível o aprofundamento no estudo do cotidiano da
população infanto-juvenil vivendo na rua, no município de Vitória da Conquista.
Partindo desses resultados, iniciou-se a segunda etapa da pesquisa, onde, após a
elaboração do roteiro de entrevistas, optou-se pela realização de um período de observação
participante
19
em duas áreas em que se concentram as crianças e adolescentes em situação
de rua. A primeira, compreendendo a Avenida Siqueira Campos, a Praça Barão do Rio
Branco e o Mercado Municipal do bairro Brasil, concentra um grande número de crianças,
adolescentes e “trecheiros”
20
, que dormem nas ruas e estão constantemente sob o efeito de
drogas. A segunda área, compreendendo o terminal urbano da Avenida Lauro de Freitas, a
Praça Nove de Novembro e a Praça da Bandeira, concentra as crianças e adolescentes que
vão à rua apenas para trabalhar, retornando às suas casas à noite. A partir da observação
participante, foram delimitados aqueles que seriam entrevistados. Optou-se pelo recurso
metodológico de entrevistas semi-estruturadas, realizadas com nove adolescentes, o que
possibilitou a coleta de dados significativos para análise
21
.
19
Situação na qual a entrevista (ou discurso do ator) é aprofundada, graças ao envolvimento direto e
prolongado do observador com a comunidade que estuda (CAMARGO, 1984: 10). Segundo Howard Becker
(1999: 47), “O observador participante coleta dados através de sua participação na vida cotidiana do grupo ou
organização estudada. Ele observa as pessoas que está estudando, para ver as situações com que se deparam
normalmente e como se comportam diante delas. Entabula conversação com alguns ou com todos os
participantes desta situação e descobre as interpretações que eles têm sobre os acontecimentos que
observou”.
20
Denominação dada aos moradores de rua que não têm residência fixa e circulam entre as cidades.
21
Na pesquisa exploratória evidenciaram-se as dificuldades de entrevistar crianças entre as idades de 8 a 12
anos, por motivos vários, entre eles, uma dispersão, o fato de que, irrequietas, não mobilizaram atenção às
entrevistas e, também, desistem das mesmas rapidamente. Este o motivo pelo qual a amostra compreendeu
apenas adolescentes de vários perfis e idades, descritos adiante.
22
No contato com os entrevistados, foram seguidas as orientações de Feffermann
(2006: 104) que, ao analisar a realidade dos jovens envolvidos no tráfico de drogas na
cidade de São Paulo, afirma:
O entrevistado é um protagonista que possui identidade, dinamismo e
história. Seus atos são dotados de intenções e significações na relação
dialética constante de sua realidade de vida. A entrevista permite uma
maior interação entre sujeito e entrevistador, facultando o processo de
coleta de informações.
Assim, para a conclusão da segunda etapa, foi crucial a experiência junto à
Unidade de Educação de Rua, e as relações mantidas com as crianças e adolescentes, o
que facilitou a penetração do pesquisador ao seu “mundo fechado”. Sem a experiência do
trabalho nesta Unidade seria extremamente difícil penetrar no cotidiano dos jovens em
situação de rua, tendo em vista sua capacidade de elaborar rápida e habilmente histórias
fictícias que não condizem com sua realidade, mas que transportam o pesquisador a uma
irrealidade sobre o que seja a “vida na rua”, comprometendo, assim, o resultado da
pesquisa. A criação dessas ficções se deve ao fato de o pesquisador ser, na maioria das
vezes, uma figura estranha, não digna de confiança aos olhos das crianças e adolescentes
que estão nas ruas, em que, freqüentemente, emergem estratégias de autodefesa que
encorajam o silêncio quanto à realidade.
A pesquisa de campo desdobrou-se em duas fases. Na primeira, ocorrida durante o
ano de 2006, realizou-se a pesquisa exploratória, onde foram identificados os acervos,
delimitado o número daqueles que seriam entrevistados e mapeadas as áreas de
concentração das crianças e adolescentes em situação de rua. Foram, também, mantidos os
primeiros contatos com agentes governamentais do município que atuaram nos diversos
programas.
23
Com base neste mapeamento, a segunda fase da pesquisa de campo dirigiu-se às
entrevistas com adolescentes em situação de rua, realizadas durante o segundo semestre de
2007. Neste momento, lidou-se com a primeira dificuldade que foi a de realizar as
entrevistas nos locais onde os adolescentes desenvolvem suas atividades, pois, além de ser
quase impossível encontrar determinado grupo sem estar sob qualquer efeito de drogas, o
que compromete a qualidade da entrevista, era difícil mantê-los concentrados por tempo
suficiente para a conclusão das entrevistas. Para a realização das entrevistas, foi preciso
aguardar a oportunidade certa, o que se deu, principalmente, no momento em que
pernoitavam na Unidade de Acolhimento Noturno
22
.
A fim de obter os dados que contemplassem as duas categorias de crianças e
adolescentes em situação de rua – os que mantêm vínculo com a família e que vão à rua
desenvolver atividades, de modo a contribuir com a renda familiar, e os que perderam os
vínculos familiares, tomando a rua como moradia, foram entrevistados 9 adolescentes do
sexo masculino com idades entre 13 e 17 anos. Estes correspondiam à seguinte divisão: 3
estavam em situação efetiva de rua, mantendo contatos esporádicos com a família; 2
estavam na rua e pernoitavam alguns dias na Unidade de Acolhimento Noturno; e 2
revezavam a moradia entre casa e rua; 2 permaneciam em suas casas, indo diurnamente
para a rua desenvolver atividades de trabalho
23
. Dentre os entrevistados, apenas 2 não eram
oriundos de Vitória da Conquista. No entanto, todas as famílias pesquisadas, incluindo as
destes, residem nos bairros periféricos ou na zona rural. Todos os adolescentes já tiveram
algum vínculo com a escola, sendo que somente 4 deles mantiveram uma freqüência, ainda
que bem precária, às aulas.
22
Unidade que compõe o Programa Conquista Criança.
23
As entrevistas, tanto dos adolescentes quanto dos agentes governamentais (a serem detalhadas mais
adiante), totalizaram 11 horas de gravação, cuja transcrição atingiu cerca de 130 laudas.
24
Cabe ressaltar que muitos jovens se recusaram a conceder entrevistas por não
acreditarem que se tratava de pesquisa para um trabalho acadêmico. Situações semelhantes
também foram vivenciadas por Santos e Feffermann. O primeiro afirma que “[...] Alguns
adolescentes recusaram-se a fornecer seus relatos ao pesquisador, entendendo que se
tratava de uma investigação, e não de uma pesquisa para um trabalho acadêmico”
(SANTOS, 2007: 31). A segunda relata que, apesar de muito desconfiados, os jovens
passavam aos poucos a falar sobre suas vidas, mas “[...] quando a proposta era gravar a
conversa, a situação mudava: a desconfiança e o medo tomavam conta do cenário e muitos
se afastavam” (FEFFERMANN, 2006: 104).
Por outro lado, importa ainda ressaltar que não foi possível entrevistar
adolescentes do sexo feminino, pela total recusa em fornecer seus relatos. Notava-se,
durante o contato com as adolescentes, e nas tentativas de entrevistas, que elas têm
dificuldade em falar sobre seu cotidiano para um entrevistador do sexo masculino. Assim,
o silêncio imperava durante a conversa, o que impossibilitava a gravação.
Tal reação pôde também ser evidenciada durante as ações da Unidade de
Educação de Rua. Priorizava-se que as duplas de trabalhos fossem formadas por um
homem e uma mulher, considerando a necessidade de conseguir-se dialogar com as
crianças e adolescentes de ambos os sexos. Notava-se também que os jovens do sexo
masculino tinham maior facilidade em dialogar com os educadores, e os de sexo feminino
com as educadoras. Cada um deles acreditava que encontraria maior compreensão de suas
informações por aqueles do mesmo sexo, ao mesmo tempo em que alguns evitariam o
ciúme de seus parceiros. Assim, as informações sobre as crianças e adolescentes do sexo
feminino, contidas neste trabalho, foram obtidas junto aos adolescentes do sexo masculino
ou extraídas dos arquivos da Unidade de Educação de Rua.
25
Tendo em vista que a identificação dos entrevistados pode comprometer sua
segurança e fere o Estatuto da Criança e do Adolescente no momento em que os expõe,
optou-se, nesta dissertação, pela utilização de nomes fictícios. Foi também, mediante esse
“contrato”, que muitos jovens se dispuseram a conceder a entrevista.
Também, durante esta fase da pesquisa, e objetivando compreender as ações
governamentais, foram realizadas entrevistas com o presidente do Conselho Municipal dos
Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), e com representantes dos principais
programas governamentais de atendimento às crianças e aos adolescentes em situação de
risco, e que poderiam destinar-se a atender os que estão em situação de rua: coordenadora
de Assistência à Criança e ao Adolescente, coordenador do Programa Conquista Criança,
coordenador do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), coordenadora do
Programa Agente Jovem e coordenadora de comunicação do Projeto Juventude Cidadã.
Durante a apresentação dos resultados, os nomes dos entrevistados foram preservados,
sendo estes identificados apenas pelos cargos que ocupam.
Após as entrevistas, passou-se à análise de seu conteúdo. Ao trabalhar com a
oralidade, consideramos não apenas a linguagem verbal, mas também outras manifestações
corporais representadas pelos silêncios, exaltações, movimentos gestuais etc. Depois de
sistematizados os dados das entrevistas, estes foram somados aos coletados em relatórios,
atas e ofícios dos órgãos e programas governamentais, bem como em documentos contidos
nos arquivos do Museu Regional e no Arquivo Público Municipal de Vitória da Conquista,
onde estão arquivados jornais e revistas editadas na região.
26
Para a análise dos dados coletados, destacou-se uma especial atenção às
orientações de Pollak (1989: 200), sobre memória e identidade social, apontando
elementos constitutivos da memória, individual ou coletiva. Assim, observa-se que,
[...] são acontecimentos vividos pessoalmente; são acontecimentos
vividos pelo grupo ou coletividade da qual o informante faz parte; são
acontecimentos em que o informante nem sempre participou, mas que, no
imaginário, tomaram uma considerável importância que o impossibilita
de saber se participou ou não (Idem).
Tendo como base a pesquisa realizada, foi possível a construção final deste
trabalho, que será apresentado em quatro capítulos. No primeiro capítulo, buscou-se um
diálogo com diversos autores voltados para a realidade do trabalhador brasileiro (tendo
aqui trabalho como sinônimo de emprego), e das relações entre Estado e mercado
capitalista no mundo do trabalho. Foram analisadas as causas da situação de pobreza em
que se encontra grande parte da população urbana brasileira, os novos campos de trabalho
urbano, sobretudo no contexto compreendendo trabalho em seu sentido amplo. Analisou-
se, também, como esta realidade interfere no cotidiano de crianças e adolescentes em
situação de rua.
No segundo capítulo, é apresentado um histórico do município de Vitória da
Conquista. Assim, é feito um resgate histórico, abordando o seu desenvolvimento político,
econômico e social, bem como as ações por ele desenvolvidas, na tentativa de garantir
direitos das crianças e adolescentes em situação de rua. Destaca-se uma atenção especial às
ações desenvolvidas durante as gestões do Partido dos Trabalhadores correspondentes aos
dois primeiros quadriênios (1997-2000 e 2001-2004) e aos três primeiros anos da terceira
gestão (2005 a 2007), tendo em vista que, durante esse período, foram implantados os
principais programas destinados a atender às crianças e adolescentes em situação de risco.
27
O terceiro capítulo centra-se no conteúdo das entrevistas e analisa o cotidiano e as
trajetórias de crianças e adolescentes em situação de rua, destacando atenção especial às
estratégias que utilizam para driblar as ações governamentais, e dominar os espaços
públicos urbanos. Serão analisadas também, as relações sociais que as crianças e
adolescentes em situação de rua mantêm com seus pares e com a comunidade em geral, e a
objetividade e importância das atividades de sobrevivência individual e grupal. Serão
verificadas, ainda, partindo da ótica das crianças e dos adolescentes, a dinâmica da rua e as
políticas públicas implementadas, à luz de pesquisas realizadas por outros pesquisadores.
No quarto e último capítulo, é apresentada uma análise dos dados e discursos dos
agentes governamentais, dando-se ênfase às políticas públicas implementadas no
município de Vitória da Conquista, durante as gestões do PT, e que objetivam “educar para
a cidadania” e integrar as crianças e os adolescentes em situação de risco à sociedade.
Partindo-se dessa análise, traça-se um comparativo com os dados obtidos junto aos
adolescentes em situação de rua e às fontes escritas.
As Considerações Finais buscam refletir sobre os resultados do trabalho e
apontam veredas que possibilitarão a continuidade da pesquisa e a ampliação da reflexão
sobre a temática que envolve crianças e adolescentes em situação de rua.
28
Capítulo I
Alguns elementos teóricos e perspectivas interpretativas sobre crianças e
adolescentes em situação de rua
A rua só presta se você souber cair nela, se souber lutar, viver, como por
exemplo, quando eu caí na rua eu não tinha amizade, eu não conhecia
ninguém. Agora a gente é unido assim, se eu consigo uma coisa todo
mundo vai comer. Se um tem um dinheiro assim, eles compra um
negócio pra todo mundo. Se come e fica de marra a gente não deixa, todo
mundo é irmãozinho (LEITE, 1998: 168).
Esse comentário, extraído de uma entrevista feita por Lígia Costa Leite com um
adolescente de 15 anos de idade que se encontrava nas ruas da cidade do Rio de Janeiro, no
final da década de 1990, permite compreender as características peculiares ao cotidiano da
rua, em que se destaca o acolhimento grupal aos novos freqüentadores, a liberdade
diretamente ligada à solidariedade, os códigos morais que conduzem à sobrevivência e,
principalmente, à relação familiar instituída no grupo. São essas características, presentes
no trabalho da mesma autora
24
, que permitem a visualização dessas crianças e adolescentes
como “invencíveis” e como seres que são dotados de uma sabedoria constituída a partir de
sua vivência na rua. É essa sabedoria que motiva esta pesquisa e poderá ser desvendada por
meio da análise de suas estratégias de sobrevivência.
24
Trata-se de um livro de Lígia Costa Leite, intitulado A razão dos invencíveis: meninos de rua – o
rompimento da ordem (1554-1994).
29
Neste sentido, este trabalho apresentará uma análise sociológica de um fenômeno
que, segundo Gregori (2000: 214)
25
, é antigo e persistente na sociedade brasileira, que é a
situação de rua em que se encontram muitas crianças e adolescentes. Cabe ressaltar que,
apesar da escassa literatura que trata sociologicamente da questão referente à criança e ao
adolescente em situação de rua, esta pesquisa busca em áreas, como Serviço Social,
Antropologia, Educação, Psicologia Social, dentre outras, subsídios teóricos que
possibilitaram sua fundamentação. Para tanto, conceitos que elucidam a problemática, tais
como trabalho, pobreza, situação de rua, estratégias de sobrevivência, relações de poder e
liberdade, são de fundamental importância.
Compreender o mundo em que vivem essas crianças e adolescentes em situação
de rua implica numa imersão investigativa de seu cotidiano, suas trajetórias e as políticas
públicas implementadas. Dessa forma, é necessário inserir a análise de programas e
propostas governamentais no contexto político, econômico e social brasileiro, abordando
as interferências deste na ampliação do número de crianças e adolescentes em situação de
rua. Assim, essa discussão pode ser enriquecida pela análise de temas correlatos que
envolvem a constante desvalorização do trabalhador pelo sistema capitalista, e o
crescimento da pobreza brasileira, fatores de grande influência na vida dessas crianças e
adolescentes, obrigando-os a desenvolver, nas ruas, estratégias de sobrevivência,
impróprias à sua idade e que desafiam as políticas governamentais.
Inserida nesta discussão, Blass (2006), em artigo que analisa o ato de trabalhar e
suas múltiplas faces, aponta para a noção de trabalho reinventada na modernidade
ocidental, quando “[...] as atividades de trabalho aparecem separadas e automatizadas do
conjunto das atividades sociais”. Arendt (2004) afirma que o trabalho das mãos está ligado
25
Nesta obra Maria Filomena Gregori analisa o cotidiano das crianças e adolescentes em situação de rua na
cidade de São Paulo, durante a década 1990.
30
ao esforço físico transformado em suor. Sobre essa afirmação, Blass (2006) acrescenta que
esse conceito desaparece nas sociedades modernas, onde o trabalho aparece reduzido ao
labor. Neste contexto, a noção de trabalho passa a vincular-se ao emprego formal, pois
aquele, oriundo de outros vínculos, passa a ser visto como não-trabalho
26
.
Por outro lado, quando o trabalho é inserido em um contexto mais amplo, que
extrapola as barreiras do emprego, passa a englobar outras atividades, como as estratégias
de sobrevivência. Buscar o significado do trabalho, neste contexto, seria situá-lo no campo
do não-trabalho. Dessa maneira, as atividades desenvolvidas pelas crianças e adolescentes
em situação de rua podem ser consideradas trabalho, tendo em vista que essas atividades
exigem um exercício físico e mental dos executores, que adaptam a natureza a si próprios
através das estratégias que desenvolvem para satisfazerem suas necessidades humanas no
mundo capitalista. Essa afirmação encontra sustentação em outra reflexão de Blass (2004a:
472), em que argumenta que a noção de trabalho, compreendida de forma alargada, “[...]
recobre um conjunto amplo de práticas que a noção de emprego ou trabalho assalariado
não abrange”. Pensar o trabalho dentro do contexto contemporâneo é assumir que o mesmo
se manifesta de diversas formas e em diversos lugares
27
.
Para o capitalismo, é o trabalho que define a essência humana. Portanto, o
homem, para continuar existindo, precisa estar continuamente produzindo sua própria
existência através do trabalho; isso faz com que sua vida seja determinada pelo modo como
produz sua existência. Logo, o trabalho garante muito mais que a sobrevivência das
26
Conforme assinala Blass (2004a: 472), “A noção moderna de trabalho, enquanto categoria de análise, é
elaborada para se desvendar esse cenário histórico, sendo a idéia de trabalho associada à execução de tarefas
de caráter profissional, pagas, assalariadas e exercida predominantemente por homens adultos nas fábricas e
na esfera pública. O mundo do trabalho distancia-se da casa, da família, do local de moradia e as atividades,
antes integradas no cotidiano da vida, são consideradas como não trabalho porque elas se desenrolam fora do
tempo definido para a venda da força-de-trabalho, ou seja, das atividades de emprego que se desenrolam nas
fábricas”.
27
Essa discussão pode ser ainda mais aprofundada no trabalho de Blass, intitulado “Nas interfaces do
trabalho, emprego e lazer” (2004b).
31
crianças e adolescentes, garante seu reconhecimento como sujeitos produtivos da
sociedade, na qual o trabalho é algo extremamente valorizado
28
. Desse modo, as atividades
conceituadas como estratégias de sobrevivência devem ser vistas como novas formas de
trabalho, mesmo que sejam, em alguns casos, consideradas ilícitas, ou que desafiem a
ordem social estabelecida pelo Estado. Trabalho normalmente é considerado o oposto a
tempo livre; sendo assim, enquanto mantenedores da vida, o ato de pensar, criar
estratégias, executar e dividir o lucro do roubo e da mendicância não podem ser
caracterizados como tempo livre, e tampouco como lazer.
Essas afirmações permitem a compreensão dessas crianças e adolescentes
enquanto trabalhadores livres, pois suas estratégias são pensadas e executadas de forma
individual e/ou grupal sem cumprimento de carga horária estabelecida, sem produção
mínima determinada ou salário estipulado. Contudo, não se pode desconsiderar que sua
independência e motivação estão ligadas ao capitalismo. Tais crianças e adolescentes são,
ao mesmo tempo, “patrões e empregados”, sobrevivendo no sistema capitalista.
Desse modo, com base na reflexão sobre as comunidades pobres, e,
principalmente, sobre as estratégias de manutenção da vida, evidencia-se que as crianças e
adolescentes em situação de rua consideram o que é lícito ou ilícito, não apenas por meio
dos códigos, ou normas estabelecidas pelo Estado, mas sim pela situação em que estas
comunidades se encontram, e pelos tipos de atividades que sua condição de vida lhes
impulsiona a desenvolver.
28
Essa discussão pode ser enriquecida com as afirmações de Saviani (1998) e Bonamigo (1996).
32
1.1. Caminhos da desqualificação do trabalhador assalariado brasileiro e a
sobrevivência no espaço público urbano
A partir da discussão sobre a desqualificação do trabalhador assalariado, torna-se
perceptível que seu cotidiano tem sido controlado pelo tempo, códigos, símbolos e signos
da sociedade, o que, para Oliveira (2000a: 56), em artigo que trata “os sentidos da
democracia”, se dá desde a institucionalização do Estado de Bem-Estar, em que os sujeitos
privados e o mercado de trabalho, passaram a ser “‘regulados por fora’, por uma
racionalidade que Habermas chamou de ‘administrativa’” (Idem). Inserido neste contexto,
o trabalhador passa a ter sua sobrevivência medida por sua renda, o que limita seu nível de
consumo tanto de produtos necessários para a sua sobrevivência quanto de bens culturais.
Com isso, tornou-se cada vez mais descartável e, conseqüentemente, mais pobre.
Schwartzman (2004:13), em trabalho que analisa as causas da pobreza, complementa o
raciocínio acima, ao afirmar que a pobreza tem causas estruturais diretamente relacionadas
à exploração do trabalhador pelo sistema capitalista que o paralisa e aliena, impedindo-o de
ter consciência dos seus próprios problemas e necessidades.
Importa ainda ressaltar que a penetração do capitalismo nas economias pré-
industriais tinha como objetivo subordiná-las ao seu controle. O Brasil, enquanto mercado
de penetração do capital teve que se subordinar às regras impostas pelo mercado externo;
logo, a sua situação de subdesenvolvimento tornou-se inevitável, pois o “sub-
desenvolvimento” é, precisamente, uma “produção” da expansão do capitalismo, como
afirma Oliveira (2003a: 33), em artigo que trata do desenvolvimento do capitalismo e do
processo de acumulação pós-1930. Essa situação coloca não só o Brasil, como os demais
países da América Latina, em condição de dependência absoluta e de desenvolvimento
monitorado pelo mercado externo. São as exigências do capitalismo internacional que
33
passaram a ditar tanto a legislação trabalhista quanto as normas de convivência social do
trabalhador. Este se torna obrigado a submeter-se à situação de exploração por questões de
sobrevivência. Ou seja, a situação de subdesenvolvimento em que o Brasil sempre se
encontrou foi estrategicamente pensada pelo mercado capitalista.
Nesse contexto de crescente industrialização, o Estado que deveria garantir os
direitos dos trabalhadores, tornou-se tutelar, criando uma legislação trabalhista que, em
suma, apenas condicionava o trabalhador à exploração capitalista. Segundo Oliveira
(2003a: 37), essa legislação interpretou o salário mínimo como “salário de subsistência”.
Partindo-se desse comentário, é possível afirmar que o salário mínimo servia (e ainda
serve) apenas para manter um padrão de vida necessário para que o trabalhador tivesse
condições de sobreviver e reproduzir-se, aumentando o exército de reserva. Isto, tendo em
vista que os critérios de fixação deste salário “levavam em conta as necessidades
alimentares para um padrão de trabalhador que deveria enfrentar certo tipo de produção,
com certo tipo de uso de força mecânica, comprometimento psíquico etc” (Idem). Essas
eram características de um Brasil que seguia um modelo de modernização estipulado pelo
capitalismo. Todo avanço apenas constituía bases para o emergente capitalismo industrial.
A partir disso, todas as ações do Estado e do mercado capitalista, referentes aos
trabalhadores, apenas os reprimiram e os isolaram em seus “guetos” – ambientes próprios à
sua classe social.
A expansão industrial provocou a criação de um comércio de serviços dentro das
comunidades, destinado a abastecer essa população pobre. Dessa forma, os baixos salários
dos trabalhadores geravam novas formas de empregos, porém era a condição de compra
dos trabalhadores que definia o nível de ganho dos pequenos comerciantes. Conforme
34
Oliveira (2003a: 69), essa situação criava “bolsões de subsistência no nível das populações
de baixo poder aquisitivo”.
Os principais reflexos do poder de controle e exploração do capital foram sentidos
principalmente a partir da segunda metade do século XX, sobretudo com a deterioração do
salário mínimo, que se agravou após 1964. Nesse período, a abertura de novas rodovias
interestaduais possibilitou a migração para o Estado de São Paulo, principal centro da
industrialização brasileira na época, de um grande contingente de novos trabalhadores,
constituído principalmente de migrantes nordestinos que abandonavam o defasado setor
agrícola e buscavam sua sobrevivência como trabalhadores da indústria.
Essa população migrante via São Paulo apenas como o espaço temporário de
trabalho que lhes possibilitaria acumular valores que lhes garantiriam uma melhor
condição de vida ao retornarem para seus locais de origem. Seguindo essa trilha, pode-se
afirmar que o alto número de migrantes transformou-se em poupança rentável para o
capital, tendo em vista que, com o aumento do “exército industrial de reserva”, era possível
reduzirem-se ainda mais os salários devido à ampla oferta de mão-de-obra.
Ainda segundo Oliveira (2003a), a conservação de uma população pobre e mal
remunerada, submetida às péssimas condições de vida, tornou-se responsável pela
manutenção do subdesenvolvimento brasileiro. Esse subdesenvolvimento pode ser
considerado como uma estratégia do capital internacional, objetivando a permanência do
Brasil como país subordinado.
Os principais efeitos da devastação capitalista no Brasil podem ser vistos com
mais intensidade após 1980, quando o grande contingente do “exército de reserva”
possibilitou ao capital determinar que tipo de trabalhador seria aproveitado pelo mercado, e
35
quais se tornariam obsoletos. Isso fez crescer a concorrência e o desejo de superação entre
os trabalhadores. Nem mesmo a Constituinte de 1988, que garantiu foros de direito às
reivindicações dos trabalhadores, conseguiu frear a exploração capitalista. Agora era a
formação de cada trabalhador e a assimilação dos códigos, símbolos e signos da sociedade
capitalista que determinavam seu grau de competência.
Nota-se que, nesse novo contexto de exploração, a substituição do emprego pela
ocupação e o crescimento da desestruturação salarial se ampliaram pelo Brasil. Segundo
Schwarz,
em introdução feita ao livro de Oliveira (2003a: 13), essa nova relação,
capital/trabalho, leva ao “desmanche dos direitos”
29
conquistados anteriormente, e
possibilita o crescimento do número de trabalhadores informais no Brasil.
Esse “desmanche” intensificou-se com a ideologia neoliberal pós-1990, inserindo
o país no que Oliveira (2003b), denominou como “era da indeterminação”. Nesta trilha,
Santos (2007: 69), tendo como base os trabalhos de Oliveira, assinala que o “receituário
neoliberal intensificou um ‘permanente estado de exceção’”.
Seguindo esse pensamento, onde os direitos são encolhidos ou desmantelados,
torna-se possível visualizar o espaço público urbano sendo tomado por ambulantes que
tentam, através da venda de produtos, manterem sua sobrevivência. A ação destes “novos
trabalhadores” pode ser considerada como “grito de alerta” contra a violência que atinge o
trabalhador, uma vez que o ato de desafiar as regras estatais configura-se como denúncia à
exploração. Nessa luta, muitos desses trabalhadores são reprimidos, por estarem
trabalhando ilegalmente, sem licença e sem pagarem impostos. Do ponto de vista
governamental, eles não geram capital financeiro para o Estado por não pagarem impostos.
29
Expressão criada por Francisco de Oliveira. Ver Oliveira (2003b).
36
Todavia, para o mercado capitalista globalizado, eles são importantes, pois fazem escoar
seus produtos, gerando lucro.
Neste caminho, Telles (2006c: 109), em artigo em que dialoga com outros
pesquisadores sobre essa temática, afirma que a tentativa de controle dos trabalhadores que
ocupam o espaço público urbano esbarra nos acertos obscuros com os fiscais do Estado,
que “tentam sem sucesso regular o comércio clandestino e o uso irregular dos espaços
urbanos”. Para Oliveira, isso serve apenas aos processos de acumulação do capital, por
exemplo:
Um dia de futebol no Brasil (ou em qualquer parte do mundo) quando
milhões de pessoas vão a campos de futebol. Ali, os vendedores
ambulantes estão vendendo Coca Cola, Guaraná, cerveja, etc. Alguém vai
me dizer que isso não é relevante para o movimento do capital, para a
Coca Cola, Antártica, Brahma, Skol? O movimento nesse dia é maior do
que durante toda a semana (OLIVEIRA, 2002: 93).
Esse comentário, seguindo as considerações de Oliveira, permite compreender que
o capitalismo encontrou uma forma de extrair mais-valia do trabalhador sem,
necessariamente, precisar mantê-lo em um emprego formal e sem controlar sua força de
trabalho. Assim, o capitalismo extrai valor através de desorganização do trabalho/emprego.
Essa nova forma de trabalho, porém, não retira este trabalhador da situação de pobreza,
apenas possibilita-lhe desenvolver estratégias para manter sua sobrevivência. Essa situação
de pobreza, classificada como “caos”, era percebida como exceção, só podendo ser
normalizada com a ascensão do capitalismo. Entretanto, para Oliveira (apud. TELLES,
2006b: 42), a situação de pobreza transformou-se em regra, pois as desigualdades sociais, a
pobreza urbana, o desemprego, o trabalho “sem forma” dos ambulantes que ocupam os
37
espaços urbanos permanecerão. Essa problemática mantida pelas ações do Estado pode ser
denominada, ainda com base em Oliveira, como “administração da exceção”.
Tais afirmações evidenciam que essa pobreza existente no Brasil, massacrando
grande parte da população, vem constituindo o alvo da agenda do governo durante anos.
No entanto, essa mazela ainda não foi suficiente para a mobilização da opinião pública,
gerando políticas eficazes. Dessa forma, considera-se, neste trabalho, a pobreza e o
desemprego causas primordiais da existência da situação de rua, pois, como nos afirma
Barros (2004: 23),
[...] as mudanças ocorridas no mundo do trabalho, a reestruturação
produtiva e o enxugamento do parque produtivo do país nos últimos vinte
anos são a causa imediata do aumento de pessoas vivendo em “situação
de rua”. A equação é simples (não simplória): diminuição dos postos de
trabalho, rotatividade intensa de inserção dos trabalhadores na produção
(seja ela formal ou não) e a baixa qualificação da mão-de-obra geram
desemprego em massa e com isso o sair para a rua.
Para a autora (op. cit.: 24), o “sair para a rua” é conseqüência direta do
desemprego e da desarticulação “real e simlica” do que isto representa na vida dos
trabalhadores e que, por conseguinte, dão a seus filhos o mesmo destino. Assim, o alto
número de crianças e adolescentes em situação de rua não é fruto das ações dos governos
atuais, mas sim de fatores que marcaram a história do Brasil, principalmente no que se
refere à condução de certo grupo de trabalhadores “à condição de desqualificados,
obsoletos e miseráveis, em suma, ‘descartáveis’”.
38
1.2. Da situação de pobreza e da “responsabilidade social capitalista”
Devido aos baixos salários, os trabalhadores foram obrigados a viver nas
periferias
30
, que se expandiam como problema urbano, pois estavam desprovidas de água e
esgoto, repletas de doenças epidêmicas que ameaçavam converter-se em catástrofes
31
.
Mas, para esses trabalhadores, não havia outra alternativa senão a de isolar-se nessas
periferias, construindo moradias adequadas à sua condição social de vida.
De acordo com Telles (2006a: 82), conforme trabalho que trata dos direitos
sociais, a pobreza brasileira nada mais é que o “sinal de uma população na prática
destituída de seus direitos”, uma sociedade “que se fez moderna e que não consegue
traduzir direitos proclamados em parâmetros mais igualitários de ação”. Atualmente,
segundo Oliveira (2003b: 204), tomando como base São Paulo, “‘O cinturão da pobreza’
alargou-se para incluir mais de 50% da população, e um terço vive abaixo do que se
convencionou chamar de ‘linha da pobreza’”. Assim, esse pobre passa a incorporar um
imaginário que o fixa numa pobreza, inferiorizando-o e descredenciando-o de seus direitos.
Ainda, como aponta Telles (2006b: 36), referindo-se ao pós-64, verifica-se uma “anulação
das vozes das classes populares”.
Essa realidade atinge o trabalhador explorado e destituído de direitos e faz com
que o sistema capitalista introduza no cotidiano o compromisso com o despertar da
“vocação” filantrópica, ou nova forma de “desmercantilização”, como classificou Oliveira
(2002:10), em entrevista em que abordou o tema. Na tentativa de assumir sua
30
Eduardo Marques (2006: 102), ao pesquisar a cidade de São Paulo, define periferia como: “[...] um lugar
não apenas mais distante do centro, mas com renda diferencial baixa ou próxima do zero, com conteúdos
sociais muito precários, habitada por uma população mal inserida no mercado de trabalho, em boa parte
desempregada, vivendo em condição de pauperização e submetida a condições de vida muito precárias,
muitas vezes associada à inexistência de ação Estatal”.
31
Essa discussão pode ainda ser enriquecida em Telles (2006b).
39
“responsabilidade social”, o capitalismo induz à criação de um “cidadão socialmente
responsável”, que deve apoiar a iniciativa privada que investe em Organizações Não-
Governamentais (ONG´s) destinadas à garantia de direitos, como educação, vida,
dignidade, trabalho, entre outros, substituindo o Estado nas suas obrigações políticas e
sociais. O Estado, por sua vez, estimula o “cidadão” à responsabilidade social, destacando
a importância de se doar parte do tempo livre ao trabalho voluntário. Para Oliveira (op. cit.:
101),
É uma coisa fantástica alguém trabalhar voluntariamente. O trabalho
voluntário aparece como solidariedade, quando numa sociedade
capitalista isso é impossível. O trabalho voluntário só pode ocorrer
quando existe ócio. Enquanto os gregos usavam o ócio para filosofar, o
capitalismo quer que se use o ócio para trabalhar. Mas, só setores muito
privilegiados da sociedade podem ter ócio para converter em trabalho.
Com base nessa afirmação, visualizam-se grupos da sociedade, financiados pelas
grandes empresas, ocupando seu lugar na luta contra as desigualdades sociais. Com isso,
surgem as ONG’s financiadas pelo mercado capitalista, que passou a enxergar no excluído,
no marginal
32
, uma via de manutenção do controle dos mecanismos de domínio e
exploração, pois quem é socialmente responsável conquista mais mercado. Isso é o que
Gomes (1995: 48), na trilha do pensamento marxiano, aponta nas relações sociais, como “o
trabalho vivo transformando o trabalho morto em valor, em capital”. Essas ações espelham
a condição de país subdesenvolvido, ao mesmo tempo em que evocam as possibilidades de
crescimento econômico, o que talvez possa brindar com seus “benefícios” os “deserdados
da sorte”
33
.
32
Marginal é entendido enquanto indivíduo que está à margem da sociedade, não sendo considerado cidadão.
33
Veja-se Telles (2006a: 86).
40
Partindo da análise das condições em que se encontrava a classe trabalhadora de
meados do século XX, é possível perceber que a mesma estava completamente entregue ao
controle capitalista, tendo no Estado um aliado que desmobilizava e conduzia à exploração.
Essa discussão pode ser enriquecida com pensamento de Machado, que, ao introduzir a
obra de Foucault (2005: XVII), afirma que o poder disciplinador exercido pelo Estado
capitalista trabalha o corpo dos homens, manipulando seus elementos e fabricando o
homem necessário ao funcionamento e manutenção da sociedade capitalista.
1.3. O discurso brasileiro sobre cidadania e as novas políticas sociais
A discussão sobre cidadania intensificou-se pelo Brasil durante a década de 1990,
e fez com que se tornassem evidentes os discursos que ressaltam a necessidade de
“educação para a cidadania”, da “conquista da cidadania”, do “exercício da cidadania”,
referindo-se, normalmente, a essa classe trabalhadora e pobre. Logo, tornou-se muito
difícil definir o que é cidadania.
De acordo com Oliveira (2000b), o caminho não é definir cidadania como
ausência ou carência, mas sim como plenitude. Para ele, a cidadania seria:
[...] uma espécie de estado de espírito em que o cidadão fosse alguém
dentro da sociedade – evidentemente não haveria cidadão fora dela -,
fosse alguém que estivesse em pleno gozo de sua autonomia, e esse gozo
de sua autonomia não fosse um gozo passivo, mas sim um gozo ativo, de
plena capacidade de intervir nos negócios da sociedade, e através de
outras mediações, intervir também nos negócios do Estado que regula a
sociedade da qual ele faz parte. Isso na concepção ativa de cidadania, não
apenas de quem recebe, mas na verdade de ator que usa recursos
econômicos, sociais, políticos e culturais para atuar no espaço público.
41
Tendo como base essa discussão, é possível afirmar que a condição de cidadania é
estabelecida por meio de regras institucionalizadas. São os direitos traduzidos em códigos,
símbolos e signos da sociedade que condicionam o padrão de cidadão, que, por sua vez,
dialoga cotidianamente com esses códigos, símbolos e signos, alterando-os sempre que
necessário. Todavia, quando as instituições passam a ser politicamente controladas pela
minoria, o modelo de cidadão é imposto, e a maioria é condicionada a obedecer-lhe,
desconstruindo princípios básicos de acesso aos direitos e à justiça social.
Atualmente, evidencia-se um período em que se acentua o “desmanche dos
direitos”, e onde, segundo Telles (2006a: 100), o pobre é lançado num mundo onde
discriminação e exclusões se processam. Dessa forma, torna-se impossível falar em
direitos sociais, pois:
Falar em direitos sociais seria falar de sua impotência em alterar a ordem
do mundo, impotência que se arma no descompasso entre a grandiosidade
dos ideais e a realidade bruta das discriminações, exclusões e violências
que atingem maiorias. Além disso, e talvez o mais importante, não
poderíamos ir muito além do que constatar – e lamentar – os efeitos
devastadores das mudanças em curso no mundo contemporâneo,
demolindo direitos que mal ou bem garantem prerrogativas que
compensam a assimetria de posições nas relações de trabalho e poder, e
fornecem proteções contra as incertezas da economia e os azares da vida
(Idem: 174).
Segundo Oliveira (2000b), a população pobre vive em um período em que há
tentativas efetivas de “desconstrução da cidadania”, e essas tentativas “podem vir por meio
do Estado, por meio do setor privado ou dos próprios movimentos que chamamos de
sociedade civil”. Assim sendo, cidadão passa a ser aquele que consegue adaptar-se e
obedecer a tais códigos, símbolos e signos, não o que participa da sua formulação. Os que
42
não lhes obedecem tornam-se “marginais” que buscam a justiça social por meios que,
muitas vezes, desembocam na violência.
A condição de pobreza impulsiona o trabalhador a tornar-se violador dos códigos,
símbolos e signos impostos pelo Estado. No entanto, são estes que, verdadeiramente,
violentam o trabalhador pobre, pondo-o numa situação de desigualdade e injustiça. Desse
modo, a violência contra a população pobre começa quando o capitalismo nega seus
direitos básicos de sobrevivência
34
.
Essa discussão pode ainda ser enriquecida com o pensamento de Santos, quando
afirma que:
O capital para se reproduzir pressupõe um processo econômico, político e
social desigual. Essa lógica, historicamente constituída, produziu a
exploração, a fome, a pobreza e a miséria que marcam a “questão social”
(2007:13).
Essa população pobre torna-se vulnerável por ser discriminada pela ação de outros
agentes sociais que anulam os seus direitos
35
. O Estado, na tentativa de controlar as
manifestações reivindicatórias que possam surgir da população pobre e de minimizar as
atrocidades causadas pela pobreza, cria uma série de políticas assistencialistas que apenas
garantem o que Oliveira vai chamar de “funcionalização da pobreza
36
”. Munido de um
discurso que enfatiza a preocupação com o bem-estar de sua população, o Governo cria
uma série de programas e projetos sociais: “Bolsa-família, Bolsa-escola, Vale-gás, Fome
Zero, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil”, aos quais poderíamos acrescentar o
Programa Agente Jovem, o Programa Jovem Aprendiz, o Programa Juventude Cidadã,
34
Veja-se Santos (2007: 13).
35
Conforme Oliveira (2000: 10) e Santos (2007: 14).
36
Termo utilizado por Francisco de Oliveira e citado por Telles (2006a).
43
entre outros. Todos esses programas e projetos têm apenas servido para concentrar a
população pobre em seus “guetos”, servindo como uma versão atualizada da
“administração da exceção” e fixando definitivamente o pobre nos “territórios da
pobreza”
37
. Como afirma Oliveira (apud SANTOS, 2007: 69),
[Em] Um Estado de Exceção. Todas as políticas do Estado são de
Exceção: bolsa-família, por reconhecer que o salário é insuficiente, mas
não pode ser aumentado; vale-gás, por reconhecer que o gás de cozinha é
insubstituível, mas não se tem dinheiro para comprá-lo; bolsa-escola, para
melhorar o salário insuficiente e evitar a evasão escolar, que ao mesmo
tempo pode punir o pai que não manda o filho para a escola; fome-zero
por reconhecer que não se pode zerar a fome. Vale-transporte já vem de
longe. E o salário mínimo não pode aumentar porque arromba as contas
da previdência
.
“Atualmente o governo brasileiro comemora os resultados quantitativos referentes
à educação, que apontam que 90% da população estão na escola”. Realmente são dados
importantes e dignos de comemoração, no entanto, se levarmos em conta a atual
conjuntura brasileira, essa população escolarizada continua sendo descartável a ponto de o
mercado de trabalho “[...] poder se dar ao luxo de escolher universitários para funções mais
banais” (OLIVEIRA, 2002: 99).
A condição em que se encontrava a população trabalhadora brasileira do século
XX, também foi responsável pelo agravamento da pobreza, obrigando tanto
desempregados, quanto algumas crianças e adolescentes em situação de risco social,
também vítimas da crescente exploração do capitalismo, a perambular pelas ruas das
cidades, desenvolvendo atividades visando à manutenção de sua sobrevivência, tornando-
se, assim, um incômodo para o Estado. Na tentativa de solucionar essa problemática, o
37
Veja-se Telles (2006c: 103).
44
Estado criou legislações específicas de atendimento a esse público, dentre as quais,
destacamos o Código de Menores e o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Com base na análise anterior, fica evidenciado que a modernidade imposta pelo
capitalismo interfere negativamente na sociabilidade da população de baixa renda. A falta
de emprego tem forçado várias famílias a utilizar seus filhos pequenos como instrumentos
de geração de renda. Crianças e adolescentes, em número significativo dentro dessas
famílias, utilizam a rua para arranjar dinheiro. Para isso, procuram dominar o espaço
público através de suas estratégias de sobrevivência. Dessa maneira, tornou-se comum
encontrar-se em diversas cidades brasileiras, um número considerável de crianças e
adolescentes em situação de rua, bem como a elaboração e execução de diversas políticas
que tentam dar conta dessa problemática.
1.4. Crianças e adolescentes em situação de rua: a ocupação dos espaços urbanos
Todo esse processo, político, administrativo e social que envolveu o Brasil no
século XX, e que afetou sobremaneira as crianças e adolescentes em situação de risco não
se limitou aos grandes centros urbanos, fazendo-se presente em várias cidades que
passavam por um processo de desenvolvimento econômico. Somente após a promulgação
do Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estado assumiu sua responsabilidade sobre a
assistência a crianças e adolescentes desvalidos, considerando-os sujeitos de direitos,
45
deveres e saberes, retirando-os da situação de irregularidade e procurando inseri-los na
condição de prioridade absoluta
38
.
Entretanto, neste contexto nacional, rua ainda torna-se um local de vivência para
milhares de pessoas que desenvolvem diversas atividades e até dormem na mesma. Entre
tais pessoas estão os “meninos de rua”
39
. Segundo Gregori (2000), conforme obra já
citada, essa expressão surgiu no Brasil, no fim da década de 1970, publicada em livro de
Ferreira (1979), “difundindo-se rapidamente por toda a sociedade” (GREGORI, 2000:
227). Carregava um leque de preconceitos que classificam crianças e adolescentes pobres
como seres inferiores, dignos de piedade e vítimas de violências por parte da sociedade.
Por estarem na rua, pertenciam a ela (daí a expressão “de rua”), tornando-se
responsabilidade do Estado que os incluía numa Doutrina de Situação Irregular imposta
pelo Código de Menores. Após a Criação do Estatuto da Criança e do Adolescente, na
década de 1990, extinguiu-se essa doutrina e esses sujeitos começaram a ser incluídos na
Doutrina da Proteção Integral, segundo a qual, passaram a ser identificados como crianças
e adolescentes em “situação de rua”, gerada por uma série de problemas pessoais e/ou
sociais. Por essa razão, emprega-se, neste trabalho, a expressão “crianças e adolescentes
em situação de rua”.
Essa discussão pode ainda ser enriquecida com as contribuições de Rosemberg
(1994: 32), que, tendo como base seu estudo sobre crianças e adolescentes em situação de
38
O artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente determina que: “É dever da família, da comunidade,
da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos”
nele estabelecidos.
39
A expressão “meninos de rua” foi criada na década de 1970, para designar crianças e adolescentes dos
estratos pobres que passam parte considerável de suas vidas sobrevivendo nas ruas das grandes cidades
brasileiras. Com essa expressão, foi identificado e nomeado um segmento social que, mais do que a mera
familiaridade ou o convívio esporádico com a rua, faz dela o lugar que ordena seu cotidiano, suas relações e
sua identidade. Assim, a rua passa a ser o ambiente que substitui o espaço doméstico, e as relações com
transeuntes, comerciantes, policiais, assistentes sociais, educadores, religiosos etc. passam a ocupar a posição
de familiares, vizinhos, amigos (GREGORI, 2000: 15).
46
rua na cidade de São Paulo, afirma que o estar em “situação de rua” é uma condição
temporária, e não definitiva, para muitas crianças e adolescentes. Estar em situação de rua
é “resultado de uma interação entre suas necessidades e o que o espaço público oferece
para satisfazê-las”.
A sobrevivência das crianças e adolescentes em situação de rua, e, muitas vezes, a
de seus familiares, está diretamente ligada às estratégias de sobrevivência por eles
praticadas. Gregori (2000) as denomina de “viração”, ou seja, o ato de conquistar recursos
para a sobrevivência. Ainda, segundo a autora, os jovens que estão em situação de rua “se
viram, o que significa, em muitos casos, tornarem-se pedintes ou ladrões ou prostitutos ou
‘biscateiros’”. A “viração” não pode ser simplesmente traduzida como o ato de sobreviver,
pois, há nela uma “tentativa de manipular recursos simbólicos e ‘identificatórios’, para
dialogar, comunicar e se posicionar, o que implica a adoção de várias posições de forma
não excludente” (Idem: 31). Crianças e adolescentes transitam entre a infância e a fase
adulta, comportando-se como “menor”, “marginal”, “trombadinha”, “avião”, “carente”,
“sobrevivente”, “coitadinho” etc.
Estes comentários permitem compreender que o manguear
40
utilizado pelas
crianças e adolescentes em situação de rua é um tipo de “viração” que envolve a aquisição
de bens via mendicância ou roubo. No roubo, há uma simetria na elaboração do plano de
ação, e na mendicância, uma operação dos recursos da linguagem articulada, tendo em
vista que eles sabem, como afirma Gregori (op. cit.: 45), “o que o cidadão comum quer
ouvir”, criam “uma imagem de si mesmo que combine com a figura de menino de rua, de
40
Segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, “manguear” significa “tentar enganar com
manhas ou artifícios” (FERREIRA, 2004:1266). No contexto dos moradores de rua de Vitória da Conquista,
“manguear” é a denominação das ações, lícitas ou ilícitas, de aquisição de alimento ou dinheiro.
47
um mundo que não é seu, empregando conteúdos de retórica política” que objetivam
conquistar o interlocutor.
Para Pais (2003a: 17), em seu estudo sobre os jovens portugueses, as estratégias
de sobrevivência, chamadas por ele de “desenrascaço”, “correspondem a processos nos
quais os jovens colocam em jogo sua pluralidade de estratégias que expressam a sua
capacidade de gerar formas próprias de ganhar dinheiro ou de ganhar a vida”. Configuram-
se como meio de ocupação do espaço público urbano em busca de recursos. Essa ocupação
do espaço público urbano, segundo Rosemberg (1994: 32), não se dá de forma aleatória –
as crianças e adolescentes se concentram ou circulam por áreas que oferecem
possibilidades de geração de renda, abrigo e diversão.
Partindo-se das afirmações de Gregori (2000), Pais (2003a) e Rosemberg (1994),
percebe-se que essas crianças e adolescentes em situação de rua possuem uma sabedoria
única, fruto da labuta diária e aprimorada por meio das atividades que desenvolvem como
estratégias de sobrevivência. Operações matemáticas, leitura de símbolos, dramaturgia,
entre outras, são sabedorias adquiridas e aprimoradas nas ruas. Para Gregori (2000: 31),
essa estratégia de sobrevivência, “material e mediadora de posicionamento simbólico”,
exige que as crianças e adolescentes em situação de rua aprendam a lidar com os diferentes
tipos de imagens elaboradas sobre elas e que essas imagens façam sentido nas relações
estabelecidas com o mundo e com seus pares.
Normalmente, essas estratégias de sobrevivência exigem uma convivência grupal
entre os usuários do espaço urbano, o que possibilita a otimização do seu tempo e promove
a eficácia da ação executada por eles. Deste modo, podemos dividir as crianças e
adolescentes em dois grupos: os que perderam os vínculos familiares, tomando a rua como
48
moradia (trabalhadores de rua independentes)
41
; e os que mantêm vínculo com a família,
indo à rua desenvolver atividades, a fim de contribuírem com a renda familiar ou de
gerarem-na (trabalhadores de rua com base familiar)
42
. São diversas as atividades
desenvolvidas por esses dois grupos – trabalho, mendicância, furto, brincadeiras, uso de
drogas, entre outras. Para eles, a rua se torna um lugar de dinâmicas variadas.
Cabe salientar que a vida grupal é norteada pelas regras e códigos morais e éticos
que atuam como princípios de convivência, e a vida em sociedade pressupõe a limitação da
liberdade individual. A partir do momento em que o indivíduo vive em grupo, os seus
desejos e princípios tornam-se coletivos, e ele passa, assim, a conviver sob normas de
conduta que o condicionam a agir moderadamente. Entretanto, muitas regras e códigos que
deveriam conduzi-lo à convivência harmoniosa dependem, para a sua execução, da posse
de bens materiais e culturais por parte desse indivíduo. Para a população pobre,
principalmente crianças e adolescentes, seguir essas regras e códigos é, muitas vezes,
condenar-se à morte, devido à falta de garantia de condições básicas de sobrevivência por
parte do Estado. Isso faz com que esse grupo crie novos códigos e regras, levando em
consideração a sua vida cotidiana. O Estado, que deveria garantir as condições básicas para
a sobrevivência e igualdade social da população, não cumpre seu papel, criando uma
separação entre discurso e prática. É importante, aqui, lembrar Arendt (2004: 212), “O
poder só é efetivado quando a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são
vazias e os atos não são brutais”.
41
São crianças que trabalham de forma independente. O laço com a família começa a ser rompido pelas mais
diversas razões, tais como a distância de casa, abuso de que são vítimas em casa ou falta de comida. Essas
crianças envolvem-se profundamente com a cultura da rua; periodicamente dormem nas ruas, e seu
envolvimento com atividades ilegais e consumo de drogas é mais expressivo (CARVALHO, 2004: 103).
42
São crianças que trabalham nas ruas e mantêm vínculos familiares. A sua ida às ruas é motivada pela
necessidade de trabalho, normalmente em regime de meio-expediente para poderem freqüentar a escola
(CARVALHO, 2004: 103).
49
Segundo Craidy (1998), baseada em seu estudo sobre “meninos de rua e
analfabetismo”, a rua em que transitam as crianças e adolescentes não é a mesma dos
transeuntes comuns que saem a passeio ou para o trabalho; é uma rua invisível para a
maioria da população. Crianças e adolescentes em situação de rua constroem nela as
relações definidoras de suas existências, redefinem o espaço, erguem paredes invisíveis,
numa partilha minuciosa dos locais. Nota-se que um “poder paralelo” se ergue dentro das
paredes invisíveis da rua, o que se configura, como nos afirma Foucault (2005: 30), como
uma nova forma de poder local, considerada como periférica ou molecular, e que ainda não
foi absorvida pelo Estado. A circulação de crianças e adolescentes em situação de rua “[...]
guarda certa demarcação de territorialidade: há um circuito claro, formado por pontos em
uma localidade, no qual se desdobra o seu cotidiano” (GREGORI, 2000: 103).
Não somente os jovens, como também todos os adultos que utilizam o espaço da
rua para ganhar a vida, são rotulados como vítimas, por sua situação de pobreza, ou
marginais, pelo fato de não se encontrarem inseridos no mundo do trabalho (entendendo-se
trabalho como sinônimo de emprego). Segundo Gregori (Idem), essas rotulações são
dicotômicas, já que a primeira desperta piedade e a última, ódio, tendo em vista a relação
estabelecida pelos transeuntes. As imagens estabelecidas sobre as crianças e adolescentes
em situação de rua oscilam entre “monstruosidades sociais”, “bandidos em potencial” e
“carentes” vitimados pela desigualdade social.
Cabe ainda notar que a vida cotidiana desses sujeitos é marcada pela carência de
estruturas básicas capazes de possibilitar sua sobrevivência, tais como saúde, educação,
infra-estrutura urbana, saneamento básico, entre outras. No entanto, é com base nessas
carências que surgem as estratégias capazes de promover a manutenção de suas vidas,
tornando o seu cotidiano “um espaço revelador de determinados processos de
50
funcionamento e de transformação da sociedade e dos conflitos que atravessam” (PAIS,
2006a: 72). Entende-se esse cotidiano como algo vivenciado apenas pelos que estão em
situação de rua. Assim, serão focalizadas, neste trabalho, as crianças e adolescentes em
situação de rua e sua sociabilidade.
1.5. Um panorama das origens de crianças e adolescentes em situação de rua
Em 1550, chegaram, então, à província de São Vicente dez ou doze
órfãos. [...] em carta a seu superior em Portugal, Anchieta descreve esses
jovens como “um bando de moços perdidos, ladrões e maus, que aqui
chamam de patifes”. Isso porque, escreve ele, “em pouco tempo,
assediados pelas índias, não resistiram à tentação, fugindo com elas [...] é
a gente mais perdida desta terra e alguns piores mesmo que os índios”.
Esses jovens vindos de Portugal, ao fugirem com as índias, tornaram-se
os primeiros meninos de rua de nossa história (LEITE, 2001:10).
Essa citação, extraída de outro trabalho de Lígia Costa Leite sobre a “Infância
abandonada no Brasil colônia”, descreve a chegada dos jovens órfãos vindos de Portugal
para o Brasil no ano de 1550. A vinda desses órfãos tinha por objetivo criar um vínculo
que aproximasse os jovens portugueses dos jovens curumins. Devido às dificuldades que
os portugueses tinham de se aproximar dos índios, acreditava-se que, trazendo-se de
Portugal jovens que estavam em situação de rua, e misturando-os com os curumins, seria
possível, após algum tempo de convivência, que os jovens portugueses tivessem condições
de integrar os índios aos portugueses, evitando-se os conflitos e possibilitando-se a
catequização. Acreditava-se que a criatividade adquirida nas ruas pelos jovens portugueses
seria o suficiente para que estes conseguissem se integrar de forma harmoniosa às tribos
indígenas, adquirindo seus costumes e línguas. No entanto, a maioria dos jovens
51
portugueses passou a conviver com os índios, e como índios, abandonando o objetivo para
o qual foram trazidos ao Brasil. Segundo Leite (op. cit.), esses jovens foram caracterizados
como as primeiras crianças e adolescentes em situação de rua, do Brasil.
Desde a chegada dos portugueses até os dias atuais, a problemática que envolve
crianças e adolescentes em situação de rua sempre incomodou os governantes que
buscaram diversas formas para saná-la. Durante quase cinco séculos, optou-se pelas ações
religiosas ou pela caridade da população como estratégias de atendimento às crianças e
adolescentes abandonados. Nos primeiros séculos de colonização do Brasil, a maioria dos
abandonados (expostos ou enjeitados)
43
originava-se de relações extraconjugais ou da
gravidez de moças solteiras.
Com o objetivo de minimizar o número de abandonados, em 1738, os portugueses
instalaram a Casa dos Expostos (ou Casa da Roda), localizada inicialmente nas Santas
Casas. Nesta foi instalada a Roda dos Expostos (ou enjeitados)
44
, que consistia em um
instrumento feito de madeira em forma de tonel giratório que unia a rua ao interior da
Casa. Ali eram depositadas as crianças sem que o acolhedor soubesse quem fora o
depositante. A Roda não era um instrumento criado apenas para minimizar o sofrimento
dos órfãos pobres, servia como instrumento que contribuía para a manutenção da moral.
Sobre isso, Motta (2005: 54), em seu estudo intitulado “Mães abandonadas”, argumenta
que a Roda era alimentada não só pela miséria “[...] uma vez que mulheres brancas de boa
43
Conforme afirma Venâncio (1999: 18), “[...] o que hoje chamamos criança abandonada nossos
antepassados utilizavam os termos enjeitado ou exposto”.
44
Sobre essa temática, Marcílio (2003: 53-54) afirma que a Roda dos expostos foi um instrumento inventado
na Europa medieval. “Seria ele um meio encontrado para garantir o anonimato do expositor e assim estimulá-
lo a levar o bebê que não desejava para a roda, em lugar de abandoná-lo pelos caminhos, bosques, lixo,
portas de igreja ou casas de famílias, como era o costume, na falta de outra opção. Assim procedendo, a
maioria das criancinhas morriam de fome, de frio ou mesmo comidas por animais, antes de serem
encontradas e recolhidas por almas caridosas”. Sobre essa temática veja-se, também, Rodrigues (2003);
Marcílio (2006).
52
estirpe também enjeitavam os filhos num gesto que resultava da condenação moral social
vigente na época e de suas conseqüências para a mulher”. Ressalta-se que, com o passar
dos anos a Roda se tornou um instrumento que servia, na maioria das vezes, apenas para
acobertar os crimes morais. Este argumento pode ser enriquecido com a pesquisa de Motta,
na qual afirma que “Havia predomínio de expostos brancos na Roda de Salvador” (op. cit.:
55). Nota-se que a mulher branca de posição modesta, ao assumir um filho ilegítimo,
ficava sujeita à condenação moral e religiosa
45
, o que não acontecia com as negras. Cabe
ainda notar que, até o Século XIX, a maioria absoluta das mulheres negras eram escravas,
o que impossibilitava a entrega de seus filhos à Roda. “Daí pode-se supor que os enjeitados
no Brasil colonial tenham sido, em grande parte, resultado de relações ilícitas de mulheres
de condição social elevada” (Idem).
Na mesma via de raciocínio, Venâncio (1999: 167), em seu estudo sobre as
crianças abandonadas no Rio de Janeiro e em Salvador durante os Séculos XVIII e XIX,
comenta sobre o declínio da Casa da Roda, afirmando que este só se inicia ao longo da
segunda metade do Século XIX, com o surgimento de clínicas pediátricas e orfanatos. Com
isso, a Casa da Roda passou a funcionar como abrigo para crianças filhas de escravos,
devido à publicação da Lei do Ventre Livre em 1871. Seguindo esta chave interpretativa,
Venâncio (Idem: 169) afirma que:
Em 1871, o novo perfil racial da instituição foi até mesmo definido por
Lei. Segundo a medida que libertava os filhos de escravas, uma vez
comprovado o mau tratamento infligido à criança cativa, o Juiz de Órfãos
deveria enviá-la “à Casa dos Expostos”.
45
Conforme Venâncio (1999: 19), referindo-se aos Séculos XVIII e XIX, “Abandonar a própria prole
consistia em impiedade, em desrespeito aos mandamentos católicos”. Veja-se também: Vainfas (1989).
53
A crise do sistema escravista contribuiu sobremaneira para o declínio da Casa
dos Expostos. Contudo, a mesma só passou a ser legalmente desativada após 1927. A
última Casa foi fechada no ano de 1938, na cidade do Rio de Janeiro.
Ressalta-se que a população pobre brasileira do início do século XX era, em sua
maioria, negra ou mestiça. Ao analisar-se a situação da criança e do adolescente em
situação de rua, no Brasil, nota-se que a maioria destes sempre estivera incluída nestas
categorias, já que os negros, junto com os mestiços, representavam cerca de 2/3 da
população brasileira do século XIX. A maior parte da população negra brasileira sempre
esteve em péssimas condições de vida, e, com o fim do tráfico de escravos em 1850 e,
conseqüentemente, o fim da escravidão em 1888, os negros e seus descendentes formaram,
majoritariamente, a classe pobre do Brasil
46
.
As condições de vida a que estavam submetidos os negros e migrantes
possibilitaram a geração de uma classe miserável no início do século XX. Era composta de
homens, principal força de trabalho, e mulheres, que também compuseram a classe
trabalhadora do campo e da fábrica. Mas, também seus filhos, que, no campo, eram
obrigados a trabalhar nas lavouras e, na cidade, quando não trabalhavam nas fábricas,
desenvolviam outras atividades nos centros urbanos. Isso lhes garantia a denominação de
menores de rua ou menores abandonados. Sobre o trabalho nas fábricas, Rizzini (2004:
377), com base em seu artigo sobre “Pequenos trabalhadores do Brasil”, afirma:
[...] muitas crianças e jovens eram recrutados nos asilos de caridade,
alguns a partir dos cinco anos de idade, sob a alegação de proporcionar-
lhes uma ocupação considerada mais útil, capaz de combater a
46
Sobre essa temática, veja-se CRUZ (1996).
54
vagabundagem e a criminalidade. Trabalhavam 12 horas por dia em
ambientes insalubres, sob rígida disciplina
47
.
Quanto à discussão sobre as atividades desenvolvidas na rua, ela pode ainda ser
enriquecida com a contribuição de Santos (2004: 218), que, em artigo sobre a “Criança e a
criminalidade no início do século” XX, ressalta que o Menor:
[...] era iniciado precocemente nas atividades produtivas que o mercado
proporcionava, tais como fábrica e oficinas, também o era nas atividades
ilegais, numa clara tentativa de sobrevivência numa cidade que
hostilizava as classes populares. Desta maneira, o roubo, o furto, a
prostituição e a mendicância tornaram-se instrumentos pelos quais estes
menores proviam a própria sobrevivência e a de suas famílias.
Esta citação permite ainda problematizar uma questão referente ao termo
“menor”. Importa ressaltar que este termo sempre fora usado de forma preconceituosa,
para caracterizar as crianças e adolescentes pobres. Sobre esse tema, Drexel (1994: 24), em
seu estudo sobre “criança e miséria”, afirma que:
A palavra “menor”, antônimo de “maior”, passa a idéia de pequeno,
ainda por formar-se, que não é sujeito pleno, que depende de um maior,
sob cuja tutela e custódia deveria estar. Porém, o termo “menor”, nesse
sentido, tem sido aplicado apenas às crianças e jovens de famílias bem-
constituídas e estáveis.
O termo “menor”, compreendido no sentido exposto por Drexel, era, durante a
vigência do Código de Menores, negado às crianças e adolescentes pobres, abandonados
ou internos em orfanatos; a palavra ”menor” assumia uma conotação pejorativa,
considerando-se estes como “marginais”. Sobre isso, Passetti (1987: 37), assevera que
“Menor é aquele que em decorrência da marginalidade social se encontra, de acordo com o
47
Grifo nosso.
55
Código de Menores, em situação irregular”. Desse modo, o termo “menor” era, e ainda
continua sendo, usado de forma preconceituosa
48
.
Foi essa caracterização marginal, somada aos incômodos causados pelas crianças
e adolescentes que ocupavam os espaços públicos urbanos, que fez com que o Estado se
tornasse o principal responsável pela educação desses jovens, criando, no Século XX,
legislações específicas a esse grupo.
1.6. Um panorama sobre as legislações concernentes à criança e ao adolescente
Segundo Passetti (2004: 347), o início do século XX foi marcado pela crueldade
no tratamento às crianças e adolescentes pobres. Crueldades estas advindas do Estado, que
criou políticas sociais e legislações específicas para atendê-los, substituindo as ações
praticadas prioritariamente pelas instituições religiosas. Assim, ao percorrer a literatura que
abrange essa temática, foi possível constatar que o Código de Menores (1927) configurou-
se como uma das primeiras tentativas do Estado Brasileiro, de sanar a problemática que
envolve a criança e o adolescente em situação de risco. Quando o Código foi aprovado,
visando ao atendimento aos “menores infratores”, nele previa-se, conforme relata
Bierrenbach em seu estudo sobre política e planejamento social, a criação de:
[...] “celas especiais”
49
para menores delinqüentes, onde os mesmos eram
submetidos a corretivos, considerados necessários para suprimir o
48
Essa discussão pode ainda ser enriquecida com os argumentos de Marcílio (2006: 224): “Com a República,
a distinção entre criança pobre e criança rica ficou bem delineada. A primeira é alvo de atenções e das
políticas públicas da família e da educação, com o objetivo de prepará-la para dirigir a sociedade. A segunda,
virtualmente inserida nas ‘classes perigosas’ e estigmatizada como ‘menor’, deveria ser objeto de controle
especial, de educação elementar e profissionalizante, que a preparasse para o mundo do trabalho”.
56
comportamento delinqüencial. [...] abrigo para os desfavorecidos ou
considerados inadaptados e menores abandonados que eram considerados
perigosos. Nesse período, não era considerado menor abandonado apenas
os que não tinham pai, mãe ou parentes responsáveis, mas, todos os que
não receberam os cuidados necessários à sua formação de caráter, à
saúde, à educação e à sua iniciação na vida. [...] regulamentava o trabalho
infantil que antes era proibido, o governo acreditava que integrando o
menor ao mercado de
trabalho tiraria-o da delinqüência submetendo-o à
obediência. E foi criado também o 1º. Juizado de Menores. Apesar das
normas existentes sobre o menor conterem um caráter eminentemente de
proteção, não havia condições satisfatórias para sua implementação
(BIERRENBACH, 1987: 78).
Sobre o Código de Menores, Passetti (2004: 354) acrescenta que, a partir de sua
publicação, o Estado tornou-se responsável pela “[...] internação, responsabilizando-se pela
situação de abandono e propondo-se a aplicar os corretivos necessários para suprimir o
comportamento delinqüencial”.
Cabe ressaltar que, antes da criação do Código de Menores, a União Internacional
Save the Children já havia elaborado um documento que ficou conhecido como Declaração
de Genebra, que apontava os princípios básicos da proteção à infância. Esse documento foi
redigido em 1923, foi aprovado em 1924 na 5ª Assembléia da Sociedade das Nações, com
normas para os países que foram seus signatários.
O Brasil parece não ter dado importância à Declaração de Genebra, já que as
medidas de atendimento às crianças e adolescentes pobres implementadas aqui
objetivavam a punição destes. Com o alto número de crianças e adolescentes
perambulando pelas ruas das grandes cidades, o Governo brasileiro logo pôs em prática, no
49
Ainda segundo Bierrenbach, as “celas especiais” eram algo que só existia no Código de Menores de 1927,
onde se admitia o recolhimento de menores junto às delegacias de polícia. “Na realidade o ‘especial’ se
constituiu, na maioria das vezes, em puro eufemismo” (1987: 81).
57
Estado de São Paulo, ações de recolhimento e “limpeza” dos centros urbanos, com a
criação do Serviço Social de Assistência e Proteção do Menor em 1935. Segundo
Bierrenbach (1987: 83), nesse período “Os menores apreendidos nas ruas, por qualquer
causa, eram levados ao abrigo de triagem do serviço social de menores, onde eram
separados por idades”, único critério observado no momento da triagem.
Ainda em 1941, o Decreto-Lei nº 3.799 criou o Serviço de Assistência a Menores
(SAM), que pretendia amparar, em nível nacional, todos os “menores” desvalidos e
infratores. Gradativamente, surgiam novas leis e decretos que regulamentavam a “prisão”
de adolescentes, como o Decreto-Lei nº. 6.026, de 24 de dezembro de 1943, que
regularizava a internação de menores de 18 anos que praticavam atos infracionais. Essa
prática já era prevista desde o Decreto-Lei nº. 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Para
Bierrenbach (op. cit.: 87), tal prática de prisões se justificava pelo fato de o menor não ser
mais visto apenas como desvalido ou delinqüente, mas por ter passado a ser considerado
perigoso.
É preciso ainda mencionar que, nesse mesmo período, os países que compunham
a Organização das Nações Unidas (ONU), preocupados com o aumento progressivo do
número de crianças e adolescentes em situação de risco, que afetava diversos países em
desenvolvimento, dentre os quais o Brasil, aprovaram em 1959, em Assembléia Geral, a
Declaração Universal dos Direitos da Criança
50
. O Brasil assinou a Declaração, mas o
Golpe Militar de 1964 impediu que esta fosse posta em prática no país.
Com o Governo Militar (1964), surgiu a Política Nacional do Bem-Estar do
Menor (PNBM), abrangendo todos os que tinham menos de 21 anos, independentemente
50
Essa Declaração foi firmada em Genebra em 1924 e tornada lei no Brasil em 20 de novembro de 1959.
58
da procedência de classe social. Com a PNBM, foi criada a Fundação Nacional do Bem-
Estar do Menor (FUNABEM)
51
. Assim, posteriormente, o governo criou a FEBEM (casas
de isolamento), justificando que crianças e adolescentes pobres precisavam ser educadas
por serem consideradas não adaptadas à sociedade. Destinava-se a ser um local para a
educação do “menor infrator”, e não um lugar de repressão. No entanto, como relata Costa
(1999: 11), tendo como base sua experiência como coordenador de uma unidade, a
FEBEM era “um desses depósitos de crianças e jovens que foram criados em todo o País,
sob o rótulo pomposo de ‘Programas sócio-terapêuticos’”, que se mostrou como um local
de tortura e espancamento. Todo o período em que vigorou o Regime Militar foi marcado
pelo desrespeito aos direitos humanos e pela prática de ações violentas desencadeadas
contra a população.
Com a reformulação do Código de Menores, ocorrida em 1979, foi introduzida no
Brasil a Doutrina da Situação Irregular
52
, na qual a conduta jurídica invocava as condições
sociais e pessoais da infância e da adolescência, e não o sistema que as gerava, para definir
seu destino. A Doutrina da Situação Irregular modificou o regimento da FEBEM e criou
um sistema de internação que marginalizava e excluía ainda mais os considerados
“menores”. A internação de crianças e adolescentes em situação de risco sempre foi a
forma mais eficaz encontrada pelo Governo para acabar com esse problema social, porém
as medidas repressivas adotadas agravaram ainda mais a situação.
A internação em instituições assistenciais com suas rotinas opressivas
contribuiria, segundo vários autores, para que a criança incorporasse as
características de “menor”: Uma pessoa na qual não se pode confiar, nem
51
A FUNABEM foi criada por meio da Lei Federal nº. 4.513, de 1º de setembro de 1964.
52
“Durante a Doutrina da Situação Irregular, o ‘menor’ era equiparado ao criminoso adulto, o advogado de
defesa precisava da aprovação dos diretores das unidades para visitarem os menores internados: a lei também
legitimava a permanência de menores em dependências policiais, o que anteriormente ocorria à revelia”
(BIERRENBACH, 1987: 82).
59
investir em educação, mas apenas controlar e reprimir (VIOLANTE apud
KOSMINSKY, 1993: 160).
O Regime Militar, que aumentou o índice de maus tratos aos “menores”, só
findou em 1985, período marcado por uma crise nacional, pela alta inflação, pela dívida
externa, pelo baixo índice de escolaridade e pela fragilidade das instituições. Tais fatores
provocaram uma reação da sociedade civil, que impulsionou a criação de uma Assembléia
Nacional Constituinte, o que culminou com a aprovação da nova Constituição Federal de
1988.
A retratação aos males causados às crianças e aos adolescentes começou a
acontecer no final da década de 1980. A partir da Convocação da Assembléia Nacional
Constituinte, surgiu a possibilidade de alterar de forma definitiva a legislação voltada à
criança e ao adolescente. Com tal alteração, o Estado deveria extinguir a Doutrina da
Situação Irregular e gerar a Doutrina da Proteção Integral, cuja base vinha sendo
discutida em âmbito mundial desde 1979. Em 1988, por meio da Constituição brasileira,
surgiu a perspectiva de que os direitos desses jovens começassem a serem garantidos.
Assim, a Constituição ganhou o Artigo 227
53
, que implementa a Doutrina da Proteção
Integral e o Princípio da Prioridade Absoluta para o atendimento às crianças e aos
adolescentes.
Essa nova visão adotada pelo Brasil, voltada à criança e ao adolescente, já era
praticada em outros países desde a Declaração Universal de 1959, e, quando esta fez
cinqüenta anos, ao mesmo tempo em que se comemorava o décimo aniversário do Ano
53
Conforme o artigo: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente,
com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade, e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda
forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (Art. 227 da Constituição
Brasileira).
60
Internacional da Criança, a assembléia geral da ONU aprovou o texto da Convenção
Internacional dos Direitos da Criança. Isto se deu em conformidade ao texto da
Convenção, tendo o Congresso Nacional Brasileiro aprovado o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA).
O ECA ampliou e definiu os compromissos da família, da comunidade e do poder
público com os direitos da criança e do adolescente. Tanto o Estatuto quanto a Convenção
garantem às crianças e aos adolescentes os mesmos direitos que têm os adultos, além dos
direitos especiais aplicáveis à sua idade. A base doutrinária do ECA utiliza um sistema de
garantias que consiste na ação conjunta da sociedade civil organizada através do
cumprimento de deveres da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder
público
54
. Com a promulgação do ECA, extinguiu-se o Código de Menores, e com isso, o
termo “menor”. Assim, os diretamente beneficiados pelo Estatuto, independentemente de
sua condição social, passaram a ser tratados por “crianças e adolescentes”.
O Estatuto da Criança e do Adolescente cria uma rede que envolve agentes sociais
e públicos, responsáveis pela divulgação e garantia dos direitos por ele estabelecidos (pais,
responsáveis, Conselhos de Direitos
55
, Conselhos Tutelares, polícias, Ministério Público,
Defensoria Pública, advogados e Juizado da Infância e Juventude). Cabe ressaltar que,
segundo o ECA, os Conselhos de Direitos que devem funcionar em três níveis, nacional
(CONANDA), estadual (CECA) e municipal (CMDCA), têm a função de projetar ações,
54
Sobre essa temática, veja-se RAMOS (1997).
55
Órgãos que fazem parte das diretrizes das políticas de atendimento, constantes do Livro II, art. 88, do
Estatuto da Criança e do Adolescente.
61
para garantir, a médio e longo prazo, o atendimento aos direitos fundamentais das crianças
e dos adolescentes
56
.
O Estatuto criou também os Conselhos Tutelares, que devem atuar como
sentinelas, permanentemente atentos ao pleno cumprimento da lei, zelando pela proteção e
defesa de todas as crianças e adolescentes. Os Conselhos Tutelares têm por obrigação
resolver os problemas do cotidiano desses indivíduos, no âmbito da família e da
comunidade, além de conhecer e divulgar o Estatuto, no qual tem seu trabalho
fundamentado. O ECA também abriu um grande espaço para que o sistema capitalista se
tornasse “socialmente responsável” pela educação das crianças e adolescentes em situação
de risco, através das ações sociais, das Organizações Não-Governamentais e do Fundo da
Criança e do Adolescente (Fundo DCA). É importante ainda enfatizar que, após a criação
do ECA, surgiu, um novo grupo social formado por empresários, políticos, eclesiásticos e
intelectuais, voltados para a garantia dos direitos das crianças e adolescentes
57
.
No entanto, apesar de apresentar uma nova forma de compreensão sobre os
direitos das crianças e do adolescente, após 17 anos de implementação, o ECA vem
penetrando vagarosamente na sociedade, com o intuito de defender a criança e o
adolescente. Isso faz com que se encontrem, nos dias atuais, práticas que ainda se
assemelham às respaldadas pelos Códigos de Menores.
56
Os Conselhos de direitos devem ser criados nos âmbitos Federal, Estadual e Municipal, de acordo com o
Artigo 88 do Estatuto da Criança de o Adolescente. Conforme o inciso II deste artigo, os Conselhos de
Direitos são “órgãos deliberativos e controladores das ações em todos os níveis, assegurada a participação
popular partidária por meio de organizações representativas, segundo leis federais, estaduais e municipais”.
Os conselhos devem, ainda, acompanhar a situação dos jovens no município, no estado e no país e trabalhar
para a formulação e manutenção das políticas públicas e serviços sociais básicos, sendo, por esta função,
denominados órgãos deliberativos. Possuem a competência para deliberar, controlar, articular e gerenciar
recursos e são compostos por representantes, em igual número, dos movimentos sociais e dos órgãos
públicos, daí serem chamados paritários.
57
Sobre esse assunto, veja-se Frigotto (1998).
62
Foi em virtude da problemática supracitada, que surgiu o interesse em pesquisar o
cotidiano das crianças e adolescentes em situação de rua, após a implementação do ECA,
delimitando o município de Vitória da Conquista (BA) como campo de pesquisa.
63
Capitulo II
A criança e o adolescente em situação de rua: uma análise do município
de Vitória da Conquista (Bahia)
2.1. A formação história do município.
Vitória da Conquista é um município de porte médio do Nordeste brasileiro,
beneficiado por um grande entroncamento rodoviário, composto por três rodovias
estaduais (BA 263, BA 407 e BA 415) e por uma federal (BR 116). Polariza uma região
com cerca de 80 municípios.
O território onde se localiza o município de Vitória da Conquista fora habitado no
passado por povos indígenas: os Mongoyós (ou Kamakan), os Pataxós e os Ymborés (ou
Botocudos). As aldeias desses povos se espalhavam por uma extensa faixa conhecida como
Sertão da Ressaca, que vai das margens do Rio Pardo até o Rio das Contas.
Segundo Tanajura (1992: 33), em sua pesquisa sobre a história do município, o
surgimento de “Vitória da Conquista está ligado às descobertas das minas de Arassuay e à
exploração dos rios Doce e São Mateus”. Localizada numa região conhecida como Sertão
da Ressaca, a cidade começou a ser construída no ano de 1752, quando a tropa do mestre
de campo João da Silva Guimarães iniciou o combate aos índios que ali residiam. Como os
soldados começaram a esmorecer, por serem inferiores em número aos combatentes
indígenas e por não disporem das armas de fogo, devido ao uso excessivo destas durante
64
todo o dia, Guimarães, para tentar ganhar a batalha, animou seus companheiros, invocando
a proteção de Nossa Senhora da Vitória. “Animados pela intercessão da santa, os soldados
lutam corpo a corpo com os índios, usando facões e outras armas brancas” (Idem: 34). Os
índios que sobreviveram à guerra foram dizimados com o passar do tempo por meio de
envenenamento, doenças contagiosas e escravidão.
Após a vitória dos bandeirantes sobre os indígenas, a região conquistada ficou sob
a direção de João Gonçalves da Costa, genro de João da Silva Guimarães, que iniciou a
abertura de estradas, ligando-a ao interior e ao litoral. Em homenagem à vitória sobre os
índios, com a intercessão de Nossa Senhora da Vitória, surgiu o Arraial da Conquista,
primeiro nome dado à cidade nos fins do século XVIII. Em 1808, foi erguida, no local da
batalha, a Igreja de Nossa Senhora da Vitória, como pagamento da promessa feita à santa.
Posteriormente, como afirma Tanajura (1992: 45), “esta se tornou Matriz pelo decreto nº
124 de 19 de maio e 1840, quando o Arraial da Conquista se tornou Vila com o nome
pomposo de Imperial Vila de Nossa Senhora da Vitória”.
Após a Proclamação da República Brasileira, em 15 de novembro de 1889, a
Imperial Vila da Vitória passou a chamar-se Cidade de Conquista; por fim, em 1943,
através do Decreto de Lei nº. 141, de 31 de dezembro de 1943, ganhou o nome atual de
Vitória da Conquista. Seu crescimento e desenvolvimento econômico e comercial
aconteceram atrelados aos Estados do Rio de Janeiro e São Paulo após a construção da BR
116 (RIO-BAHIA), na década de 1940. A abertura dessa estrada, que objetivava interligar
as cidades do Rio de Janeiro e São Paulo aos Estados do Nordeste, possibilitou a circulação
de cargas e o aumento do número de migrantes na cidade de Vitória da Conquista.
Consoante artigo publicado no Jornal O Fifo em 09 de novembro de 1977:
65
O setor urbano amplia-se na referida década e, para usar palavras de um
observador do tempo, “vieram as primeiras casas comerciais dignas desse
nome”. As ligações rodoviárias com outros centros e a Segunda Guerra
Mundial auxiliaram grandemente o desenvolvimento da cidade.
Com o rápido desenvolvimento econômico da cidade, na década de 1940, surgiu
um grande número de migrantes, através da RIO-BAHIA e de estradas regionais que, sem
trabalho e dinheiro, ampliavam a classe pobre que residia na cidade. Ainda conforme
Tanajura (1992: 18), na década de 1940, Vitória da Conquista tinha uma população
estimada de 33.554 habitantes. Esse número, de acordo com o artigo publicado no jornal O
Fifó, apresentou mudanças impressionantes nas décadas seguintes. Enquanto crescia a
população urbana, diminuía a rural, caracterizando a fuga do campo para a cidade.
TABELA 1
Dados populacionais.
Município de Vitória da Conquista.
Período entre 1940 e 1960.
Anos Pop. Rural Porcentagem Pop. Urbana Porcentagem Total
1940 24.910 74,3% 8.644 25,7% 33.554
1950 26.993 58,4% 19.463 41,6% 46.456
1960 31.401 39,3% 48.712 60,7% 80.113
1970 41.569 32,5% 85.959 67,5% 127.528
Fonte: Jornal O Fifó, Vitória da Conquista, 11 out. 1977.
A grande seca ocorrida na década de 1950 agravou ainda mais o êxodo rural,
provocando a migração para a cidade. Segundo Tanajura (1992: 74), a “grande migração
de sertanejos fugidos de áreas onde a incidência da seca, na primeira metade da década de
50” favoreceu o crescimento do município, aumentando seu contingente populacional.
Desta forma, destaca-se o acúmulo de mendigos nas ruas da cidade, entre eles crianças e
adolescentes”.
66
Apesar da diminuição da população rural, o município de Vitória da Conquista
sempre foi caracterizado pela agricultura de subsistência baseada no trabalho familiar. Na
década de 1970, despontou por ter o café como principal produto agrícola, chegando a ser
conhecido como a “terra do café”. Com a crise cafeeira da década de 1980, o êxodo rural
provocou o aumento da população que se concentrava na periferia da cidade. Nesse
período, o município passou a ampliar os investimentos no seu pólo de serviços,
expandindo, assim, a educação, a rede de saúde e o comércio. Vitória da Conquista passou
a ter a terceira economia do interior baiano.
Atualmente, o município, considerado o terceiro da Bahia em número de
habitantes, destaca-se como pólo de educação e pesquisa contando com um campus da
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), e outro da Universidade Federal da
Bahia (UFBA); três faculdades particulares: Faculdade de Tecnologia e Ciências (FTC),
Faculdade Independente do Nordeste (FAINOR), e Faculdade Juvêncio Terra (JTS); uma
unidade do Centro Federal de Educação Tecnológica (CEFET), além de uma ampla rede
pública e particular de ensino fundamental e médio. Ampliou a rede de atendimento à
saúde a partir da municipalização da saúde, ocorrida em 1997. Desenvolveu também seu
pólo comercial e industrial com a implantação de indústrias nacionais e o crescimento das
macro e pequenas empresas.
Devido a esse crescimento, a cidade passou a atrair cada vez mais a população dos
municípios vizinhos, o que aumentou também os problemas sociais que demandaram a
implantação de diversas ações no decorrer de sua história.
67
2.2. Vitória da Conquista: crescimento demográfico e ampliação da pobreza
Esse rápido crescimento trouxe vários problemas – a falta de trabalho levou
centenas de pessoas à mendicância, dentre as quais crianças e adolescentes, facilmente
notados nas ruas da cidade, como descreve o jornalista Leôncio Basbaum, que visitou a
cidade em 1956 e teceu um comentário sobre os habitantes.
[...] o que realmente me impressionou foi o grau de miséria em que a
população vivia mergulhada. Mendigos por toda a parte, nas esquinas, na
igreja, no mercado ou na feira, pelas estradas, à beira das calçadas. São
andrajosos, esquálidos, de aspecto doentio. Eles não têm aquela picardia
dos mendigos das cidades grandes, nem a sua agressividade encontrada
mesmo em algumas cidades da região do polígono. São mansos,
humildes, como se pedissem desculpas por serem tão pobres. [...] Alguns
têm um chapéu na mão, outros nem isso. Nem erguem a voz para
implorar, salvo quando se trata de algum estranho à cidade, que pareça ter
dinheiro. Ficam apenas silenciosos, nem olham para a gente, com a mão
entreaberta esperam que alguém lhes lance uma moeda. A maioria nem
agradece. E são de todas as idades, com a diferença de que os menores,
crianças de 4 ou 5 anos, são mais agressivos, correm atrás da gente e
puxam pelo paletó e, quando recebem alguma coisa, correm para o pai ou
a mãe, que está semi-inconsciente, em algum canto de esquina, exibindo
a nota como se fosse um troféu conseguido (BASBAUM, 1976: 55).
Esse comentário permite visualizar a existência de crianças e adolescentes em
situação de rua mendigando pela cidade durante o período de sua expansão. Por outro lado,
ainda segundo Basbaum (Idem: 56):
O mais interessante ainda é verificar quem dá esmolas. São pessoas que
somente se distinguem dos mendigos por estarem de pé e terem menos
remendos ou furos na camisa. Toda a população, mais da metade,
conforme me pareceu, anda descalça, a roupa é velha e rasgada e
raramente é limpa. [...] O que torna mais impressionante ainda o aspecto
68
dessa população sem esperanças, sobretudo de Jequié e Vitória da
Conquista, é o número de aleijados, como se fosse uma lei sociológica do
capitalismo. Quanto maior a população, maior o número de mendigos,
marginais, doentes de toda a espécie. Mas em Vitória da Conquista e
Jequié, essa percentagem me dava a impressão de ser pelo menos de
cinqüenta por cento.
Com o rápido aumento populacional, os diversos problemas detectados, em nível
nacional relacionados ao elevado número de pobres e mendigos que circulavam pelos
centros urbanos em busca de alimentos, entre eles crianças e adolescentes, estendiam-se
para Vitória da Conquista. Assim, surgiram as primeiras campanhas assistencialistas que
objetivavam amenizar o sofrimento dessas pessoas, sobretudo de crianças e adolescentes
em situação de risco.
No dia 31 de março de 1949, foi fundada, em Vitória da Conquista, a Associação
de Proteção à Maternidade e à Infância, que visava a desenvolver atividades em favor da
maternidade, da infância e da adolescência. Tal associação surgiu apoiada pelo
Departamento Nacional da Criança, pelo Ministério da Educação e Saúde, por autoridades
locais e era dirigida por um grupo de senhoras da cidade. Antes da criação da Associação
de Proteção à Maternidade e à Infância, Vitória da Conquista já contava com outras
instituições que prestavam atendimento aos pobres (inclusive a crianças e adolescentes em
situação de risco), dentre as quais a Santa Casa de Misericórdia, a Loja Fraternidade
Conquistense, o Abrigo dos Filhos do Calvário e o Centro de Adaptação Social. De acordo
com o artigo publicado no jornal O Combate (21/07/1949: 11):
[...] a exemplo de outros lugares, Vitória da Conquista, atravessa uma das
fases mais promissoras no que diz respeito à Assistência Social, programa
felizmente tão bem cuidado e em parte executado pelo Governo do
Estado. Vitória da Conquista, hoje, possui Instituições que têm se
dedicado inteiramente a estas causas, de certo, dentro de suas
69
possibilidades, mas vêm amparando dentro do possível a classe sofredora
da terra.
A década de 1950 também é caracterizada pelo surgimento de três instituições de
extrema importância para o atendimento a crianças e adolescentes em situação de risco. A
primeira, o Centro de Assistência Social de Vitória da Conquista, foi fundada no final da
década de 1940 por parte da população conquistense com o apoio do Governo Estadual.
Destinava-se a promover ações que visavam à melhoria do atendimento médico-hospitalar
da cidade de Vitória da Conquista. Pretendia a criação de hospitais, maternidades, postos
de saúde e creches com verbas que seriam conseguidas também através do Governo
Estadual. Eram seus objetivos administrar e fiscalizar as ações desenvolvidas pelas
instituições de saúde e apresentar relatórios aos órgãos competentes. Apesar da idéia da
criação desse Centro ter surgido no ano de 1949, este só começou a desenvolver suas
atividades em janeiro de 1951, prestando atendimento a “menores” carentes da cidade
(apenas aos do sexo masculino). Para a manutenção do Centro de Assistência Social, era
cobrada de cada sócio (advogados, médicos, comerciantes etc) uma anuidade de sessenta
cruzeiros (dinheiro da época), com a qual foi criado um fundo social que mantinha as
despesas normais da tesouraria e da secretaria.
A segunda, o Orfanato Santa Catarina de Sena, que, na década de 1960, passou a
se chamar Lar Santa Catarina de Sena, formou-se a partir de uma escola criada pelas irmãs
da Congregação das Irmãs dos Pobres de Santa Catarina de Sena, no dia 15 de setembro de
1954, em uma antiga capela da Santa Casa de Misericórdia. Essa escola objetivava ensinar
catecismo para crianças pobres que circulavam pelo centro da cidade. A construção do
Orfanato foi iniciada no ano de 1957, e seu funcionamento teria por objetivo atender
crianças e adolescentes pobres e/ou órfãos do sexo feminino em regime de internato.
70
O Clube da Amizade constitui a terceira e última instituição a ser aqui
considerada. Fundado em 05 de julho de 1958 por iniciativa da senhora Lisete Pimentel
Mármore, destinava-se às obras sociais e era um suporte para outras instituições. Era
formado por senhoras da elite conquistense que faziam bazares, festas, feiras e rifas em
beneficio da comunidade carente e de outras instituições. Esse grupo também era
responsável pela campanha do frio, realizada nas épocas de inverno.
A situação de pobreza na cidade Vitória da Conquista agravava-se a cada dia, o
que fez com que, em 1962, o jornalista Créssio Alves, inconformado com o descaso que
sofriam crianças pobres e principalmente as que estavam em situação de rua, lançasse uma
nota criticando as atitudes dos governantes, afirmando que:
Não podemos conceber um país civilizado, tendo crianças morrendo de
fome e frio. Não cremos num povo quando seus seres inocentes se
desenvolvem na sarjeta. Não cremos numa civilização, onde a criança
vive descalça e desnuda. Não cremos na viabilidade das reformas
apresentadas, quando a infância é educada no vício e na miséria. [...] Ao
tratarmos a questão da criança, não dirijamos as nossas palavras àquela
que tem a felicidade do amparo e da orientação dos seus pais. O problema
para o qual chamamos a atenção é o da criança pobre. Dessa infância que,
na sua maioria, enche as ruas (Jornal O Combate, 15/10/1962:
02).
Tendo como base o artigo de Créssio Alves, nota-se que Vitória da Conquista
enfrentava diversos problemas com o aumento do número de crianças e adolescentes
pobres que circulavam pelas ruas da cidade.
Nesse período, Vitória da Conquista se encontrava em pleno crescimento
econômico e demográfico, o que possibilitou, como relatado anteriormente, o aumento
paulatino do número de crianças e adolescentes em situação de rua, que, incomodavam a
elite conquistense. Contava com apenas uma instituição que retirava esses “menores” das
71
ruas, o Orfanato Santa Catarina de Sena, que atendia apenas meninas, deixando os meninos
sem atendimento, logo, perambulando pela cidade, desenvolvendo diversas atividades
(pedindo, roubando, trabalhando). Na tentativa de sanar esse problema e, em conformidade
com a Política Nacional do Bem-Estar do Menor, o Centro de Assistência Social, em
parceria com o Juiz de Menores e com o Conselho Municipal de Menores, criou, em 1965,
a Escola de Aproveitamento de Menores
58
, inaugurada em 1967, destinando-se a atender
os “menores” encaminhados pelo Juiz de Menores ou pelo Conselho Municipal de
Menores que estivessem em perigo ou “erro” social, prestando-lhes educação moral,
profissional e intelectual. Essa instituição, porém, só pôde receber os primeiros educandos
no ano de 1970. O atendimento era feito em regime de internato, semi-internato e
externato, conforme deliberação judicial. Os “menores” atendidos tinham a faixa etária
entre 05 e 18 anos. Aos que estavam no internato, só era permitida a saída da instituição
sob autorização do Conselho Municipal de Menores. Essa regra contemplava até mesmo os
atendimentos médicos.
Com a inauguração no dia 1º. da Escola de Aproveitamento de Menores
(EAM) não se pode alegar que não há na cidade um lugar para
internamento de menores que vivem enchendo as nossas ruas e Praças,
exibindo esta situação que causa desolação, dando lugar também às
críticas de quem nos visita (Jornal de Conquista, 25/07/1970: 04).
Era comum encontrar, em jornais da época, artigos que se referissem às atividades
exercidas pela Escola de Aproveitamento de Menores como meio de integração social,
como foi afirmado no Jornal de Conquista: “Os menores que ali se encontram e que foram
58
A Escola de Aproveitamento de Menores passou a ser chamada, na década de 1980, de Fundação de
Assistência ao Menor Carente (FAMEC) e, na década de 1990, de Centro Educacional de Vitória da
Conquista, nome que permanece atualmente. No entanto, ainda é conhecida e denominada pela comunidade
como FAMEC.
72
apanhados já na quase marginalidade estão se aperfeiçoando e no amanhã serão homens
úteis à pátria” (Jornal de Conquista, 05/12/1970: 04).
A Escola de Aproveitamento de Menores e o Orfanato Santa Catarina de Sena
representaram as principais instituições de atendimento a crianças e adolescentes pobres
até a década de 1980. Entretanto, no período em que se findava o Regime Militar
brasileiro, o município de Vitória da Conquista modificava sua política de atendimento às
crianças e adolescentes pobres, ampliando o número de instituições de atendimento a eles,
entre as quais estão o Grupo de Apoio ao Adolescente da Creche Vivendo e Aprendendo,
fundado em 06 de setembro de 1982, o Centro de Recuperação e Amparo ao Menor
(CREAME), criado em abril de 1985, a Pastoral do Menor da Paróquia Nossa Senhora das
Graças, também criada em 1985, e a Associação dos Amigos da Pastoral do Menor, criada
em 1987.
Em meados da década de 1980, o governo municipal já demonstrava preocupação
com a garantia dos direitos das crianças e adolescentes, e na tentativa de melhorar a
situação dos mesmos, criou, em 1987, o Projeto Recriança, para atender crianças e
adolescentes pobres, com idades entre 10 e 17 anos, residentes nos bairros periféricos. A
essas crianças e adolescentes eram oferecidos alimentação, atividades esportivas, artísticas
e profissionalizantes. Esse projeto era executado em núcleos da cidade: Centro Social
Urbano (CSU), localizado no bairro Brasil (Zona Oeste da cidade); Estádio Edivaldo
Flores, localizado no bairro Alto Maron, e no Ginásio de Esportes Raul Ferraz, localizado
no Centro da cidade (ambos Zona Leste). Em 1989, o então prefeito Murilo Mármore
(PMDB), optou pela desativação do Projeto Recriança, substituindo-o pelo Projeto
Trabalhador Mirim. Para o governo municipal, os adolescentes precisavam de condições
de trabalho, para poder contribuir com a renda familiar. Assim, ao tempo em que era criado
73
o Estatuto da Criança e do Adolescente, o governo municipal de Vitória da Conquista
executava o Projeto Trabalhador Mirim que distribuía carrinhos de mão e caixas de
engraxate para os adolescentes pobres, para que os mesmos trabalhassem nos espaços
públicos da cidade.
Cabe ressaltar que Vitória da Conquista entrou, durante a década de 1990
59
, em
uma fase de estagnação no que se refere à políticas públicas direcionadas à criança e ao
adolescente. A única política sobrevivente era o Projeto Trabalhador Mirim, que trilhava
um caminho inverso ao proposto pelo ECA. Todavia essa ação também foi abandonada
durante a gestão do prefeito José Pedral Sampaio (1993-1997), também do PMDB
60
.
A década de 1990 caracterizou-se pela ausência de diálogos por parte dos
governos municipais com a comunidade e por ações que tentavam cercear as manifestações
populares que lutavam pelos direitos das crianças e dos adolescentes. Neste contexto,
começou a se fortalecer o Movimento em Defesa das Crianças e dos Adolescentes. Sob
essa ótica, Santos (1997: 191), afirma que, a partir do isolamento do governo, o
Movimento:
[...] passou a pautar suas reivindicações com base na criação dos
Conselhos e do Fundo, percebendo que, por estas instâncias, a relação
com a prefeitura poderia modificar, pois o movimento poderia expressar
suas idéias e subsidiar a elaboração das políticas que atendessem às
demandas da infância e da adolescência.
59
Cabe ainda ressaltar que, durante a década de 1990, foram criados, em Vitória da Conquista, vários orgãos
de garantia dos direitos das crianças e adolescentes, como o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e
Adolescente, o Conselho Tutelar, a Vara da Infância e da Juventude e a Rede de Atenção e Defesa da
Criança e Adolescente que articula as diversas instituições de ação educativa complementar existentes no
munícípio. Ampliou-se também o número de instituições não-governamentais com a criação do Projeto
Pequeno Ofício da Pastoral do Menor da Paróquia Nossa Senhora de Fátima, em 1994, e da Pastoral do
Menor da Paróquia Nossa Senhora Aparecida, em 1995.
60
Para uma análise mais detalhada sobre esses governos, veja-se Santos (2007).
74
Mudanças significativas só surgiram a partir de 1997, após a vitória do médico
Guilherme Menezes de Andrade (PT), que disputava o cargo de prefeito. O novo prefeito
deu início às políticas governamentais de garantia dos direitos das crianças e adolescentes,
criando, em 1997 o Programa Conquista Criança
61
. Esse Programa iniciou suas
atividades como um projeto piloto atendendo a 32 crianças e adolescentes que
desenvolviam atividades nas ruas da cidade.
A partir 1998, o Programa passou a funcionar com Unidades distintas: Unidade
Central, funcionando em um imóvel do SESI (Serviço Social da Indústria), localizado no
bairro Cidade Modelo, onde são desenvolvidas atividades culturais, artísticas, esportivas,
profissionalizantes, acompanhamento e reforço escolar para crianças e adolescentes entre
07 e 18 anos; Unidade de Acolhimento Noturno, que funciona em um imóvel municipal no
Centro da cidade, objetivando atender crianças e adolescentes do sexo masculino em
regime de pernoite e desenvolvendo atividades educativas; Unidade de Educação de Rua,
funcionando em áreas distribuídas em espaços públicos da cidade, objetivando manter
contato direto com as crianças e adolescentes em situação de rua, desenvolvendo
atividades educativas e realizando encaminhamentos; a Unidade da Zona Oeste, instalada
em 1999 nos vestiários do Estádio Municipal da Zona Oeste, com o objetivo de atender,
durante o dia e através de atividades esportivas, artísticas e profissionalizantes, as crianças
e adolescentes que pernoitavam na Unidade de Acolhimento Noturno e os encaminhados
pela Unidade de Educação de Rua.
Com a criação da Unidade da Zona Oeste, o Programa Conquista Criança
separou o atendimento prestado às crianças e adolescentes em situação de rua do prestado
61
O Programa Conquista Criança é executado pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social
(SEMDES), e foi criado por meio da parceria entre a Prefeitura Municipal, o governo estadual (convênio
FUNDAC/SETRAS) e o federal (BCC/MPAS).
75
às demais crianças e adolescentes em situação de risco. No entanto, o governo municipal,
optou por desativar a Unidade da Zona Oeste no ano de 2000, transferindo o atendimento
das crianças em situação de rua para a Unidade Central, o que, posteriormente, contribuiu
para a crise no atendimento às crianças e adolescentes em situação de rua
62
.
Em 2004, o Programa Conquista Criança voltou a funcionar com quatro unidades
a partir da criação do Núcleo de Produção, instalado em 2004, com o objetivo de capacitar
profissionalmente jovens a partir de 17 anos. Cabe ainda ressaltar que, durante as gestões
do Partido dos Trabalhadores também foram implantados no município os projetos
federais: Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), Projeto Sentinela, (de
atendimento a crianças e adolescentes vitímas de abuso e exploração sexual), Programa
Agente Jovem e Programa Juventude Cidadã. Além dos programas governamentais o
munícipio conta, atualmente, com mais 27 instituições de atendimento à criança e ao
adolescente cadastradas no CMDCA
63
.
62
Essa problemática será abordada adiante.
63
As intituições cadastradas são: Associação Beneficente Santa Cruz – ABESC, Associação Conquistense de
Integração do Deficiente – ACIDE, Associação de Amigos da Pastoral do Menor, Associação de Pais e
Amigos dos Excepcionais – APAE, Associação Desportiva Primeiro Passo, Associação dos Amigos do
Bairro Bela Vista, Centro de Integração Empresa Escola – CIEE, Clube de Mães – Creche Criança
Esperança, Creche Bela Vista, Creche Escola Mei-mei, Creche Joana D’arc, Creche Jurema, Creche União e
Força, Creche Criança Feliz, Creche Vivendo e Aprendendo / Grupo de Apoio ao Adolescente, Fundação
Educacional de Vitória da Conquista – FAMEC, Lar Santa Catarina de Sena, Organização Não-
governamental Griot, Programa Integração AABB Comunidade, Centro de Recuperação e Amparo ao Menor
– CREAME, Pastoral da Criança, Pastoral do Menor da Paróquia Nossa Senhora das Graças, Projeto de
Assistência à Criança – PROAC, Projeto Pequeno Ofício, União de Mulheres de Vitória da Conquista,
Pastoral do Menor da Paróquia Nossa Senhora Aparecida e Associação de Educação para a Vida – ASSEV.
76
2.3. A política de atendimento à criança e ao adolescente em situação de rua na
administração do Partido dos Trabalhadores – PT (1997 e 2007)
A criança e o adolescente em situação de rua sempre foi vítima de exploração e
violência durante a história do Brasil. Essa situação só começou a ser modificada após a
criação do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990. Em Vitória da Conquista,
mesmo com a implantação do CMDCA em 1991, as exigências do Estatuto só alcançaram
maior projeção a partir do ano de 1997, quando se iniciou a primeira gestão do Partido dos
Trabalhadores. Após várias tentativas de inserção dessas crianças e adolescentes em
situação de rua nas instituições próprias para atendê-las, percebeu-se que o número dos que
voltavam às ruas, por não se adaptarem às normas institucionais, era bem superior ao dos
que permaneciam institucionalizados. Notou-se, então, que as instituições não ofereciam
atrativos maiores, apesar de oferecerem a possibilidade de sua saída da rua e construção de
um futuro mais promissor.
A rua configurava-se como um espaço amplo e de atividades diferenciadas, onde
as regras existentes eram elaboradas pelas próprias crianças e adolescentes. Configurava-se
também como um espaço de fácil aquisição de dinheiro e alimentos, graças à política de
assistencialismo preferida pela população. Nem mesmo a violência policial, ou da
população, afastava as crianças e adolescentes das ruas. Estar em situação de rua era
incomparavelmente melhor do que estar em casa, já que esta, por sua situação de miséria,
não oferecia condições de sobrevivência quando comparadas às da rua.
A partir dos problemas detectados em Vitória da Conquista (Mapa 1) e do
agravamento da situação de miséria em todo o país, conforme tratado no capítulo I, tornou-
se necessário iniciar o trabalho com estas crianças e adolescentes que se encontravam nas
77
ruas da cidade. Devido a essa situação, o governo municipal, ainda na primeira gestão do
prefeito Guilherme Meneses de Andrade, com base na experiência do Projeto Axé
64
da
cidade Salvador (BA), resolveu criar em 1998 a Unidade de Educação de Rua integrada ao
Programa Conquista Criança, objetivando desenvolver atividades de educação de rua,
com vistas a sensibilizar as crianças e adolescentes nesta situação para o restabelecimento
dos vínculos familiares, educacionais, comunitários e sociais.
Mapa 1. Áreas de maior concentração de crianças e adolescentes em situação de rua em 1999.
Fonte: Programa Conquista Criança/Unidade Educação de Rua, 2004.
Os dados mostrados no mapa 1 apontavam uma grande concentração de crianças e
adolescentes que trabalhavam. Cabe ressaltar que a maioria não estava em situação efetiva
de rua, retornando para suas casas ao final do dia. Os que se localizavam no bairro
Campinhos desenvolviam trabalhos de fabricação de farinha, os que estavam no bairro
Zabelê trabalhavam recolhendo materiais recicláveis no aterro sanitário; e os que estavam
64
O Projeto Axé foi criado em 1990, com a finalidade de absorver, em processo formativo, crianças e
adolescentes em situação de risco pessoal e social, os então denominados meninos de rua (Cf.
RODRIGUES, 2001).
78
na região A trabalhavam nos areais. As demais crianças e adolescentes que trabalhavam
65
se concentravam nos Bairros Centro, Brasil e Patagônia, onde se localizam as feiras e/ou
centros comerciais de grande movimento.
Havia, também, uma grande concentração de usuários de drogas (thinner
66
e cola)
numa área ao lado da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SEMDES),
localizada no Centro da cidade, onde também funciona a sede do CMDCA, e onde
funcionava a sede do Conselho Tutelar; havia outro grupo na reserva ambiental do “Poço
Escuro”. Durante a noite, muitos desses usuários, de ambos os grupos, se deslocavam para
a Avenida Siqueira Campos. Os roubos também aconteciam nas imediações da SEMDES,
onde localiza-se o CEASA, e ampliavam-se para as áreas da Praça Barão do Rio Branco,
terminal de ônibus e Avenida Siqueira Campos, todas localizadas no Centro da cidade. A
mendicância acontecia no Centro e nos bairros Recreio e Candeias, ambos de classe média.
Com base nesses dados, o Programa Conquista Criança iniciou o trabalho de
implantação da Unidade de Educação de Rua com a seleção e capacitação dos
profissionais que atuariam nesta Unidade. Tal capacitação foi feita por técnicos do Projeto
Axé e contou com um estágio dos educadores no referido Projeto, na cidade de Salvador
(BA). A Unidade de Educação de Rua nasceu com o princípio fundamental da educação
para o “exercício da cidadania”, respeitando o Estatuto da Criança e do Adolescente
(1990), e caracterizou-se pela recusa a uma ação assistencialista, pelo combate ao trabalho
infantil e pela valorização da criança e do adolescente como sujeitos de direitos.
65
Considerou-se trabalho, durante o mapeamento, as atividades: lavar carro, guardar carro, vender doces,
vender picolé, engraxar sapatos, pegar carretos e vender ímãs para geladeira.
66
Solvente que se adiciona a uma tinta com o intuito de torná-la menos viscosa (FERREIRA, 2004: 1956).
79
A proposta pedagógica da Educação de Rua surgiu baseada na mesma
metodologia do Projeto Axé, a “Pedagogia do Desejo”, estruturada em suas três fases:
paquera pedagógica, namoro e aconchego. Fundamentado no princípio ético-pedagógico, o
trabalho desenvolvido pela Educação de Rua deveria ser de caráter diferenciado, de acordo
com as peculiaridades das crianças e adolescentes em situação de rua
67
.
A retaguarda de apoio da Educação de Rua era formada pelas seguintes entidades:
Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, Conselho Tutelar,
Secretaria Municipal de Educação, Secretaria Municipal de Saúde, Juizado da Infância e da
Juventude, Promotoria Pública e Rede de Atenção e Defesa da Criança e do Adolescente.
Em 1999, o trabalho começou com seis educadores, divididos em três duplas, e
um supervisor que acompanhava o grupo em reuniões de planejamento das atividades,
visitas domiciliares, análise da prática e supervisão de área. Inicialmente, foi realizado um
trabalho de observação que apontou a necessidade da formação de três áreas de trabalho: 1)
Centro, compreendendo a Praça Tancredo Neves, a Praça Barão do Rio Branco, a Praça
Nove de Novembro, a Praça da Bandeira, o terminal de ônibus da Avenida Lauro de
67
Tal metodologia, implantada pelo Projeto Axé, objetiva, por meio do educador, estimular as crianças e os
adolescentes a tomarem consciência de sua condição no mundo e a se perceberem enquanto sujeitos de
direitos e deveres. Esta metodologia divide-se em três etapas. A primeira etapa, denominada “paquera
pedagógica”, consiste em conhecer o cotidiano das crianças e adolescentes em situação de rua, identificando
suas ações e observando o seu ambiente. Esta é a fase do início da construção do vínculo do educador com o
educando e visa a suscitar no primeiro a curiosidade em conhecer o segundo. É este o momento que
possibilita as primeiras ações educativas, como, por exemplo, jogos e brincadeiras. A fase seguinte, “namoro
pedagógico”, é o momento do fazer pedagógico que leva o educando a dar início ao seu próprio projeto de
vida. É a fase em que a relação educador/educando prossegue com mais confiança e em que se dá o maior
conhecimento e acolhimento por parte do educador das primeiras demandas, dos primeiros desejos do
educando. É o período de maior sistematização das atividades e de programações mais detalhadas, em que
são construídos os projetos pedagógicos. Também são feitos os primeiros encaminhamentos e mantidos os
primeiros contatos entre os educadores e a família. No “aconchego pedagógico”, terceira e última etapa, o
educando integra-se totalmente ao projeto da Educação de Rua, buscando a cada dia a consolidação do seu
próprio projeto de vida. Neste momento, já se encontra mais maduro e preparado para fazer suas escolhas,
podendo, assim, ser encaminhado a instituições que possam acolhê-lo em suas atividades. Para tanto, é
preciso que o mesmo tenha retornado à família ou, na impossibilidade disto, encaminhado ao Conselho
Tutelar.
80
Freitas e mediações do Fórum João Mangabeira; 2) Ceasa, compreendendo a Central de
Abastecimento, a Avenida Crescêncio Silveira e a Praça Victor Brito; 3) Candeias,
compreendendo a Avenida Brasil, a Avenida Rosa Cruz, a Avenida Olívia Flores, as
imediações do Parque de Exposições Teopompo de Almeida e a Praça Guadalajara. Essas
áreas foram divididas de acordo com a concentração e o perfil do público a ser atendido.
As ações da Educação de Rua eram sempre desenvolvidas nas Praças públicas, utilizando-
se os mesmos espaços do cotidiano das crianças e adolescentes.
Na primeira fase de atuação, a Unidade de Educação de Rua funcionou entre
março de 1999 e abril de 2001, e, nesse período, atendeu a 369 crianças e adolescentes.
Cabe notar que, por tratar-se de uma experiência nova de atendimento implantada no
município e direcionada aos que estavam em situação de rua, a Unidade recebeu diversas
críticas por parte da sociedade civil e da administração municipal. A primeira considerava
que o trabalho apenas atraía um número maior de “marginais” para os espaços públicos,
impedindo que “pessoas de bem”
68
pudessem freqüentá-los com segurança; acreditavam
que a melhor forma de resolver o problema seria criar centros de recuperação isolados da
cidade, onde essas crianças e adolescentes deveriam ser inseridos. A última, preocupada
com o aspecto físico da cidade, exigia que os encaminhamentos dos jovens deveriam
acontecer de forma imediata sem um trabalho prévio de educação de rua
69
. Com isso, a
Unidade de Educação de Rua, por ser um projeto que visava a alcançar resultados a médio
e longo prazo devido à sua metodologia, encontrava dificuldades para desenvolver suas
ações, já que estas iam de encontro às exigências da administração municipal. Logo, a
mesma administração municipal que criou a Unidade de Educação de Rua optou pela sua
68
Os termos “marginais” e “pessoas de bem” são utilizados por parte da sociedade e do poder público para
separar as crianças e adolescentes em situação de rua do restante da sociedade.
69
Todos os dados aqui descritos foram obtidos pelos mapeamentos da Unidade de Educação de Rua,
arquivados na Unidade Central do Programa Conquista Criança.
81
desativação gradativa, que se consolidou em maio de 2004, em decorrência do corte de
recursos e da redução do seu quadro de educadores, sem novas contratações.
Importa destacar que, segundo os dados referentes aos atendimentos da Unidade
de Educação de Rua, no ano de sua criação (1999), existiam 211 crianças e adolescentes
com idades entre 06 e 17 anos em situação de rua. Dentre estes, 17% eram do sexo
feminino, e 38% dormiam nas ruas. Ao findar-se o ano de 2000, a Unidade já havia
catalogado 330 crianças e adolescentes em situação de rua, notificando que a porcentagem
de mulheres havia reduzido para 16% e a dos que dormiam na rua, para 33%.
Após a desativação da Unidade de Educação de Rua, a falta de atenção à criança
e ao adolescente em situação de rua fez com que o aumento do número destes se tornasse
mais evidente. Devido a essa problemática, a administração municipal solicitou que o
Programa Conquista Criança mapeasse as crianças e adolescentes que estavam nas ruas.
Embora a Unidade de Educação de Rua estivesse legalmente desativada entre
2001 a 2003, os educadores de rua, ainda ligados ao Programa Conquista Criança,
realizaram dois mapeamentos
70
no perímetro urbano da cidade de Vitória da Conquista,
com duração de três semanas cada um. No primeiro, realizado em 2002, foram
identificadas 161 crianças e adolescentes em situação de rua com idades entre 06 e 17
anos; dentre estas, apenas 3% eram do sexo feminino e 15% dormiam na rua. No que se
refere à educação formal, 81% estavam na escola. O mapeamento também demonstrou que
89% das crianças e adolescentes trabalhavam, e 11% mendigavam. Entre os que
trabalhavam e os que mendigavam 23% usavam drogas e/ou roubavam.
70
Dados obtidos junto aos documentos da Unidade de Educação de Rua, arquivados na Unidade Central do
Programa Conquista Criança.
82
TABELA 2
Mapeamento das crianças e adolescentes em situação de rua.
Vitória da Conquista.
Período: 2002.
NÚMEROS
ÁREAS
ABRANGÊNCIA
Matutino Vespertino Noturno
CENTRO
Terminal de ônibus, Praça Nove de
Novembro, Praça Barão do Rio
Branco, Praça da Bandeira, Praça
Tancredo Neves e Prefeitura.
15 20 07
CEASA
Praça Vítor Brito, Central de
Abastecimento, Avenida Crescêncio
Silveira e Avenida Regis Pacheco.
18 13 00
CANDEIAS
Avenida Brasil, Avenida Rosa Cruz e
Avenida Olívia Flores.
01 06 08
BOM PREÇO
Avenida Vivaldo Mendes e Avenida
Siqueira Campos, e Praça
Guadalajara, Praça do Gil e Fórum.
05 09 21
BRASIL
Avenida Alagoas, Avenida Frei
Benjamim, Avenida Brumado e o
Mercado Municipal.
07 06 12
PATAGONIA
Avenida Frei Benjamim, BR 116,
Terminal Rodoviário e Mercado
Municipal.
06 07 00
Fonte: Unidade de Educação de Rua/Programa Conquista Criança/PMVC – Elaborada pelo pesquisador.
Durante o segundo mapeamento, realizado no ano de 2003, foram identificadas
155 crianças e adolescentes em situação de rua com faixa etária entre 07 e 17 anos, dentre
os quais 16% eram do sexo feminino e 13% dormiam nas ruas. Apenas 52% estavam na
escola. Ainda, 51% trabalhavam, 38% mendigavam e 24% faziam uso de drogas e/ou
furtavam. Quando se observa os dois mapeamentos, percebe-se que, entre os anos de 2001
e 2003, a percentagem de crianças e adolescentes do sexo feminino subiu de 3% para 16%,
o número dos que estavam fora da escola subiu de 9% para 48%, enquanto a quantidade
dos que trabalhavam diminuiu de 89% para 51%. Em contrapartida, a mendicância subiu
de 11% para 38%.
83
TABELA 3
Mapeamento das crianças e adolescentes em situação de rua.
Vitória da Conquista.
Período: 2003.
NÚMEROS
ÁREAS
ABRANGÊNCIA
Matutino Vespertino Noturno
CENTRO
Terminal de ônibus, Praça Nove
de Novembro, Praça Barão do
Rio Branco, Praça da Bandeira,
Praça Tancredo Neves e
Prefeitura.
32 17 12
CEASA
Praça Vítor Brito, Central de
Abastecimento, Avenida
Crescêncio Silveira e Avenida
Regis Pacheco.
11 10
Não
realizado
CANDEIAS
Avenida Brasil, Avenida Rosa
Cruz e Avenida Olívia Flores.
02 08
Não
realizado
BOM PREÇO
Avenida Vivaldo Mendes e
Avenida Siqueira Campos, e
Praça Guadalajara, Praça do Gil
e Fórum.
Não
realizado
09 12
BRASIL
Avenida Alagoas, Avenida Frei
Benjamim, Avenida Brumado e
o Mercado Municipal.
02 14 16
PATAGONIA
Avenida Frei Benjamim, BR
116, Terminal Rodoviário e
Mercado Municipal.
07 03
Não
realizado
Fonte: Unidade de Educação de Rua/Programa Conquista Criança/PMVC – Elaborada pelo pesquisador.
O mapeamento também revelou os perigos a que estavam expostas as crianças e
adolescentes, tais como as situações de trabalho e consumo de drogas (antes mais limitado
ao uso de cola de sapateiro e, posteriormente, abrangendo substâncias mais agressivas,
como crack e cocaína). Com base nos resultados obtidos, também foi possível redefinir o
mapa da cidade (mapa 1), focalizando as áreas de maior risco e as atividades desenvolvidas
pelas crianças e adolescentes. Os dados mostrados no mapa 2, quando comparados com os
do mapa 1, apontam uma diminuição nas áreas onde se concentram as crianças e
adolescentes que trabalham. Nessa direção, as áreas Campinhos, Zabelê e Areal tiveram
uma grande redução no número de crianças e adolescentes devido à atuação dos Programas
84
PETI e Recicla Conquista
71
. No entanto, não houve alteração nas demais áreas. Os
usuários de drogas saíram das imediações da SEMDES, após a implantação de um Posto
Policial no local, e da reserva ambiental do “Poço Escuro”, e passaram a se concentrar nas
proximidades do Ginásio de Esportes Raul Ferraz, do Mercado Municipal do Bairro Brasil.
Permanecia, entretanto, o uso de drogas na Avenida Siqueira Campos durante à noite.
O uso de cola diminuiu devido à ampla fiscalização realizada nas lojas que
comercializam o produto, sendo substituído pelo da maconha e do crack, que passaram a
ser usados em locais públicos juntamente com o thinner. A aquisição da maconha e do
crack generalizou-se, tendo em vista que estes podem ser adquiridos nos pontos de
distribuição conhecidos como “bocas”. Ainda cabe ressaltar que não houve alteração nos
locais de roubo, e a mendicância que acontecia no Centro e nos bairros Recreio e Candeias
ampliou-se para o Bairro Brasil, em decorrência do deslocamento dos usuários de drogas
para esta área.
71
Programa de Reciclagem, implantado em Vitória da Conquista em 2002, objetivando organizar em
cooperativa os trabalhadores que atuavam no aterro sanitário.
85
Mapa 2. Áreas de maior concentração de crianças e adolescentes em situação de rua em 2002.
Fonte: Programa Conquista Criança / Unidade Educação de Rua, 2004.
O resultado apresentado voltou a preocupar o poder público, já que as políticas
assistencialistas implantadas e as instituições de ação educativa complementar não
conseguiam manter as crianças e adolescentes em situação de rua em suas atividades.
Devido a essa problemática, o grupo técnico do Programa Conquista Criança
72
sugeriu à
administração municipal que reativasse a Unidade de Educação de Rua, o que foi feito
pelo poder municiapl no ano de 2003.
Após a reativação da Unidade de Educação de Rua (final de 2003), foram
registradas, no ano de 2004, 165 crianças e adolescentes em situação de rua, dentre os
quais 8% eram do sexo feminino, 63% mendigavam e 39% usavam drogas e dormiam na
rua. Nota-se, com base nos dados, que, apesar do número de crianças e adolescentes que
estavam em situação de rua, durante os períodos de catalogação, oscilar com muita
72
Grupo formado por coordenadores das diversas áreas de atuação do Programa que planejavam, executavam
e avaliavam as ações desenvolvidas.
86
freqüência, o número dos que estavam fora da escola, dos que mendigavam e/ou usavam
drogas aumentava consideravelmente. Esse aumento justifica-se pela atuação do PETI e da
Unidade Central do Programa Conquista Criança, que absorvem os que estão em situação
de rua, mas que ainda mantêm vínculo familiar e não dormem na rua. Todavia, são
justamente os que tomam a rua como moradia que representam a grande parcela de
mendigos e infratores.
Usando a mesma metodologia de trabalho da primeira fase, a Unidade de
Educação de Rua, apesar da apresentação de resultados qualitativos, voltou a enfrentar a
mesma crise que provocou sua desativação em 2001, e agora com um agravante: era a
segunda gestão do Partido dos Trabalhadores, e para a nova administração, a criança e o
adolescente deixavam de ser a “prioridade absoluta” do município, como acontecera na
primeira gestão.
Com as mudanças ocorridas nos cargos de secretariado do município, a Unidade
de Educação de Rua passou a enfrentar as seguintes dificuldades: falta de compreensão do
seu trabalho por parte de vários setores da administração municipal; falta de compreensão
do seu trabalho por comerciantes e comunidade em geral; dificuldades em atender toda a
demanda de crianças e adolescentes em situação de rua; falta de retaguarda de apoio por
parte dos órgãos de garantia de direitos.
A Unidade funcionou no ano de 2004 em duas áreas da cidade no turno vespertino
(Centro e Praça Victor Brito), dando assistência a outras áreas com grande concentração de
crianças e adolescentes. Mesmo com todas as dificuldades apresentadas, a Unidade
funcionou até setembro de 2005, quando foi desativada por completo. Com base nos dados
87
coletados junto aos arquivos da Unidade de Educação de Rua, foi possível reformular o
mapa da situação das crianças e adolescentes em situação de rua no ano de 2005 (Mapa 3).
Mapa 3. Áreas de maior concentração de crianças e adolescentes em situação de rua em 2005.
Fonte: Programa Conquista Criança/Unidade Educação de Rua, 2005.
Os dados contidos no mapa 3 não apontam mudanças nas áreas de trabalho.
Todavia surgiu um novo grupo de trabalhadores formado pelos “malabaristas” que fazem
performances nos semáforos, utilizando frutas, bolas ou pinos. Não houve alteração nas
áreas de roubo, entretanto, ampliaram-se as áreas de mendicância, contemplando agora a
Avenida Frei Benjamim, tanto no bairro Brasil quanto no bairro Patagônia. Ampliaram-se
também as áreas de uso de drogas com o surgimento da área denomina “lage”,
funcionando no bairro Felícia, nas construções do centro de treinamento do clube de
futebol Serrano.
88
Quanto aos bairros de origem dessas crianças e adolescentes, catalogados entre
1999 e 2005, 61% ficam localizados na Zona Oeste
73
da cidade, onde se concentra a
maioria da população pobre. Dentre os bairros da zona oeste, os que mais agregam os
familiares das crianças e adolescentes em situação de rua são: Patagônia, Cidade Modelo,
Antônio Brito, Coveima I e II, Brasil, Nossa Senhora Aparecida, Bruno Bacelar, Kadija,
Recanto das Águas, Henriqueta Prates, Miro Cairo e Jardim Valéria. Em decorrência do
fato de a zona oeste da cidade concentrar o Centro e a maioria dos bairros de classe média,
a população pobre reside nos bairros das extremidades, dentre eles: Petrópolis, Pedrinhas,
Alto Marom, Panorama, Jardim Sudoeste, Urbis VI, Guarani, Renato Magalhães e Vila
América. Contudo, as ruas mais freqüentadas pelas crianças e adolescentes são as do
Centro, das feiras e de alguns bairros de classe média: Recreio e Candeias, ambos na zona
leste.
Nota-se que essa situação que envolve o município de Vitória da Conquista
demonstra que a saída das crianças e a adolescentes de suas casas para a rua é uma
conseqüência da desestrutura familiar, da má distribuição de renda e da infra-estrutura
precária dos bairros. Esses problemas são reflexos da situação nacional que, mesmo com a
implementação de uma nova legislação e de várias políticas assistencialistas, têm
perdurado até os dias atuais.
Os dados demonstram que a precariedade da condição de vida familiar detona a
saída de casa de muitas crianças e adolescentes que têm que se dirigem para a rua em
busca de atividades de ganho de dinheiro e alimento que amenizem os seus problemas. Por
outro lado, quando essas crianças e adolescentes se deparam com as vantagens que a rua
lhes proporciona e que são, incomparavelmente superiores às da sua moradia, alguns
73
A cidade de Vitória da Conquista é dividida em zona oeste e zona leste por um antigo trecho da BR 116,
também conhecida como Rio-Bahia. Após a construção do Anel Viário, que desviou a BR por uma área
externa à cidade, esse trecho passou a ser denominado Avenida da Integração.
89
preferem não retornar à miséria e à violência familiar, tomando a rua como seu espaço de
moradia e passando a conviver com outros moradores.
Atualmente, não há em Vitória da Conquista nenhuma instituição ou programa que
atenda diretamente à criança e ao adolescente em situação de rua, desde a desativação da
Unidade de Educação de Rua no ano de 2005. Isso justificou a necessidade de pesquisar o
cotidiano dessas crianças e adolescentes.
90
Capítulo III
A sociabilidade da rua: trajetórias, sobrevivência e percepções
As crianças e adolescentes em situação de rua sempre foram obrigados a buscar
estratégias para a manutenção de sua vida, que, para eles, está diretamente ligada a um
vínculo com uma atividade de trabalho. Essa realidade se evidencia em diversas cidades do
Brasil. No entanto, esta pesquisa centra-se nas ações dos jovens em situação de rua da
cidade de Vitória da Conquista, durante o período de 1997 a 2007, buscando identificar,
com base na sua experiência, as características intrínsecas ao seu cotidiano e pouco
visualizadas por muitos dos que os cercam. A partir da pesquisa de campo e da análise dos
arquivos do Programa Conquista Criança, especialmente da Unidade de Educação de Rua
(UER), foi possível coletar dados significativos para a compreensão do cotidiano dos
jovens em situação de rua no município.
Nos documentos analisados (projetos, atas, ofícios, relatórios e circulares), não
foram encontrados dados referentes ao número de crianças e adolescentes em situação de
rua durante os anos de 1997 e 1998. Tais dados só puderam ser encontrados a partir do
primeiro mapeamento realizado pela UER no ano de 1999 – ano em que esta Unidade fora
criada.
A partir dos dados coletados junto aos arquivos da Unidade de Educação de Rua e
das entrevistas realizadas com os adolescentes em situação de rua, foi possível traçar um
91
perfil destes grupos na cidade de Vitória da Conquista, destacando algumas de suas
atividades de sobrevivência, e suas relações com os órgãos de garantia de direitos.
Os resultados da pesquisa demonstraram que a maioria das famílias das crianças e
adolescentes em situação de rua em Vitória da Conquista reside nos bairros periféricos
acima destacados, excluindo-se apenas as que residem na zona rural ou em outros
municípios, e que todas vivem em situação economicamente precária e com carência de
infra-estrutura urbana necessária para a manutenção de uma boa qualidade de vida. Esses
resultados se justificam pelo fato de Vitória da Conquista ser uma cidade de porte médio,
atraindo um grande contingente de novos moradores vindos da zona rural e de outros
municípios. Essas pessoas vão à Vitória da Conquista fugindo da pobreza e buscando
melhores condições de vida. O que pode ser visualizado nos relatos dos adolescentes:
Faz tempo que nós tá aqui. Nós morava na Gameleira
74
, ai nós veio pra
cá. Lá tava muito ruim. Meu pai não tinha emprego, ai ele vendeu lá e
nós veio morar no Bruno
75
, ai eu vim pra rua (José, 15 anos).
Faz tempo não que nós veio para cá. Quando viemos pra Vitória da
Conquista, fomos morar no bairro Cidade Modelo
76
. Meus pais morreram
lá em Feira de Santana
77
. Nós vendeu a casa lá em Feira de Santana, aí
nós tinha uns parente aí, lá na Cidade Modelo, aí nós veio pra cá. Eu vim
com minha avó e meus sete irmão. Minha vó ela tinha um filho lá que ele
tinha duas casa aí ele pegou e deixaram nós ficar em uma. Aí depois o
dinheiro que ela vendeu a casa lá em Feira de Santana ela pegou e
comprou a outra casa lá perto (Marcos, 16 anos).
74
Região localizada na zona rural de Vitória da Conquista.
75
Bairro localizado no alto da Serra do Periperi, zona oeste da cidade de Vitória da Conquista.
76
Bairro periférico localizado na zona oeste da cidade de Vitória da Conquista.
77
Município baiano localizado na zona de planície entre o recôncavo e os tabuleiros semi-áridos do nordeste
baiano.
92
Conforme dados obtidos sobre a moradia das famílias, a maioria vive em casas de
adobe ou em barracos feitos com sobras de materiais (papelão, madeira, ferro ou plástico);
não há água potável em muitas casas, o que faz com que as famílias dependam da caridade
dos vizinhos, que lhes cedem água, ou que busquem a mesma em chafariz ou cisterna;
nesta última, a água é consumida sem nenhum tipo de tratamento.
Em algumas casas, também é possível perceber a inexistência de energia elétrica,
sendo a iluminação feita por velas, candeeiros a querosene ou óleo automotivo, que é
adquirido nas oficinas de troca de óleo. Nessas casas, é notória a carência de aparelhos
eletrônicos, limitando-se, em alguns casos, à mera existência de um rádio à bateria. As
residências que contam com energia elétrica dividem-se entre as que possuem energia via
instalação própria e as que possuem instalação clandestina, o chamado “gato”. Todas as
residências são carentes de móveis ou aparelhos eletrônicos novos. Os que existem, em
pequena quantidade, são normalmente velhos ou mal conservados. Nota-se também que as
residências são pequenas, as famílias se amontoam em um cômodo subdividido em quarto,
sala e cozinha. Cabe ressaltar que a maioria das residências amplas limitam-se aos bairros
Vila América e Recanto das Águas, onde foram construídas casas populares. Algumas
residências ainda utilizam fogão à lenha e, devido à impossibilidade de se coletar lenha nas
matas conquistenses e ao fato de que as famílias não têm recursos para comprar lenha, a
manutenção do mesmo é feita com restos de madeiras coletados junto às madeireiras,
marcenarias ou depósitos de lixo.
É importante ressaltar que todos os bairros de Vitória da Conquista contam com
escolas públicas em suas proximidades e transporte coletivo. Por outro lado, ainda há
carência de espaços de lazer, pavimentação das ruas e iluminação pública. Percebeu-se
também o alto índice de violência, principalmente nos conjuntos habitacionais criados pela
93
prefeitura. Cabe enfatizar que essa realidade a que os bairros estão submetidos torna-se
fator detonador da ida de crianças e adolescentes às ruas.
Os dados demonstraram também que todas as famílias são normalmente formadas
por desempregados e trabalhadores autônomos ou temporários, comumente chamados de
biscateiros. Essa relação trabalhista implica na inexistência de carteira de trabalho assinada
ou em direitos trabalhistas.
Muitas das famílias são desestruturadas e/ou compostas por cinco ou mais
pessoas. Segundo um dos adolescentes entrevistados, ele não conhece o pai, pois dos seis
filhos que sua mãe teve quatro são de pais diferentes. Segundo Kosminsky (1993: 164), a
figura do pai ou padrasto, normalmente, é inconstante na ligação com os jovens, “[...] ao
contrário das mães, presença fundamental e decisiva na vida dos filhos”. São, muitas
vezes, as escolhas conjugais da mãe que provocam o afastamento do filho. Ainda a esse
respeito, outro jovem entrevistado revela um tipo freqüente de desestruturação familiar:
Eu moro com minha tia, meus pais morreram já. Eu tenho dois irmãos
que moram no Rio. Minha irmã tem casa própria já. Meu irmão mora
com minha irmã. Já morei no Rio, lá num deu muito certo não, aí eu vim
pra qui. Aqui a convivência com minha tia é boa, eu me entendo com ela
(João, 14 anos).
Outro fator que impulsiona a saída das crianças e adolescentes para a rua é a
violência familiar. A violência, normalmente, acontece de duas maneiras, ou ela serve para
expulsar a criança e o adolescente de casa ou, am alguns momentos, serve como meio para
mantê-los em casa, como narra um adolescente:
Eu saí de casa porque minha vó, em casa, me amarrava, me acorrentava,
porque eu não sabia o que era nada: como que era a rua, como que era
94
dinheiro, dinheiro pra mim era 10 centavos em diante, 5 centavos , por aí.
Aí depois eu comecei vê o que era dinheiro. Comecei sair pra rua, pra ver
se eu ganhava o dinheiro, comecei, aí fiquei na rua. Dinheiro agora pra
mim é uma quantia que a pessoa pode comprar quase tudo que quer. Pra
mim, dinheiro mesmo é na faixa de uns mil e num sei quantos reais.
Estou na rua desde 2002, eu acho. Eu fugia de casa direto aí comecei
dormir na rua. Em casa minha avó me amarrava com cadeado, corrente,
um bocado de coisa pra eu não sair pra rua. Eu fugi de casa, dizia que eu
ia pra escola, da escola eu fugia. Na rua, não tinha só dinheiro, tinha
outras coisa lá, tinha coisa divertida pra brincar, algum canto pra ficar.
Igual hoje, hoje eu tô aqui, eu jogo videogame, uma coisa que eu num
largo é de jogar videogame (Paulo, 13 anos).
De acordo com os dados coletados junto às famílias
78
, os principais motivos que
levam as crianças e adolescentes a estarem nas ruas é a situação econômica familiar, o que
se confirma no depoimento de um dos adolescentes entrevistados, que afirma que sua ida
para a rua deu-se porque ele “tinha que vender vale-transporte pra ajudar dentro de casa,
porque faltava dinheiro” (Pedro, 16 anos).
Para outro entrevistado, sua família teve grande influência na sua ida para a rua,
tendo em vista que seu primeiro contato com a rua aconteceu junto com seus pais e irmãos,
que se deslocavam para o Centro da cidade para mendigar comida e dinheiro. Segundo
Gregori (2000: 68), “Para boa parte das famílias das quais esses meninos trabalhadores são
egressos, a rua é freqüentemente o espaço de trabalho não só dos meninos, mas também
dos outros membros da família”. Tal afirmação também pode ser enriquecida com o relato
de outro entrevistado, que afirma:
78
Dados obtidos junto aos documentos da Unidade de Educação de Rua, arquivados na Unidade Central do
Programa Conquista Criança.
95
Eu fui com 11 anos. Eu fui acompanhando meu irmão. Ele me chamou,
eu fui. Ele tava no Rio de Janeiro, aí ele voltou pra cá aí me chamou, aí a
gente foi pra rua, aí eu peguei fui atrás dele, com ele. Eu fiquei 2 anos na
rua. Eu tinha contato com minha família, visitar a minha família. Eu
voltei, depois eu gostei de ficar aqui na rua (João, 14 anos).
Esse “gosto pela rua”, acima expresso, pôde ser percebido em todas as outras
entrevistas. A rua é um espaço de lazer; muitas crianças e adolescentes encontram nela a
diversão que não têm em casa nem nos bairros de origem, o que torna mais fácil o
abandono destes. A rua, quando comparada à situação vivenciada pelas crianças e
adolescentes em suas famílias onde, freqüentemente, impera a violência, pode se
apresentar como uma nova casa.
A rua era um pouco divertida, porque na rua você tá ali, vai a qualquer
lugar, num sabe que hora que vai chegar, sai assim é bom. Na rua tem
diversão. A rua é um lugar bom, assim dependendo, é um lugar bom,
porque muitas pessoas ficam em casa e são agredidos, assim, pela
família. Aí tem muitas pessoas que prefere ir pra rua, acha que é um lugar
melhor, já num tem muitas pessoas que vai ficar agredindo, tem gente
que prefere ir pra rua do que ficar em casa (João, 14 anos).
Mesmo reconhecendo os perigos de se permanecer na rua, todos os entrevistados
disseram gostar da rua e alguns afirmaram que a rua é melhor que a casa. Gregori (2000:
87), também se deparou com um cotidiano semelhante, em que um jovem entrevistado
afirmou que a rua era melhor que a casa. Segundo ele, na rua há “[...] liberdade pra andar,
comer, acordar na hora que quiser, brincar, zoar”, o que também pode ser constatado no
relato de um adolescente conquistense:
Quando eu era pequeno, eu pensava assim: na rua eu faço o que eu quero,
na minha casa não, você tem que estudar, tem que seguir as regras da
casa. Por isso que eu desviei pros lado da rua, pela influência dos colegas.
96
Apesar de que a polícia achava a gente, batia, a gente se achava mais vivo
na rua, a gente fazia o que quisesse mesmo que era arriscado, mas a gente
fazia o que quisesse. Nesse momento, é melhor tá na rua do que na casa.
Quando tava na rua, gostava que a gente era livre, fazia o que quisesse.
Quando era pequeno, era bom, melhor. Em casa, era cheio de regra, e, na
rua, não tem regra nenhuma (Lucas, 17 anos).
O relato acima, além de expor a atração que os jovens sentem pela rua, apresenta
uma característica importante: quanto mais novo em idade, mais fácil fica conseguir
esmolas. As políticas de caráter assistencialista atendem, prioritariamente, aos mais novos,
excluindo os adolescentes, conforme o avanço de sua idade.
3.1. Cotidiano e trajetórias
Segundo dados da UER, 43% das crianças e adolescentes tornam-se moradores de
rua dormindo em Praças públicas, em frente às casas comerciais e em barracos. Esses 43%
normalmente pertencem a grupos que dormem nos mesmos espaços que adultos e jovens
de ambos os sexos. Existe um vínculo de amizade muito forte entre os que estão em
situação de rua, e é comum haver vários membros de uma só família dormindo nos
mesmos espaços.
São muitos os locais escolhidos pelas crianças e adolescentes para pernoitarem e
desenvolverem suas atividades de sobrevivência. Normalmente os locais de pernoite são
escolhidos, de modo que possam fornecer o mínimo de estrutura capaz de acolhê-los.
Nós dormia nas calçada. Arrumava assim umas coberta, tinha vez que nós
dormia desembruiado, ficava com frio, por causa que um puxa de lá,
outra hora puxava de cá, o cobertor não era suficiente. Pra forrar o chão,
97
botava papelão. Antigamente, quando eu era menor, eu dormia na rua,
por causa que a minha mãe ela bebia, aí não tinha como levar nós pra
casa, ai nós dormia na rua, ela ficava bêbada e deixava nós lá na rua.
Num sei dizer com quantos anos fui para a rua não, eu era muito pequeno
(Pedro, 16 anos).
O relato deste adolescente mostra não apenas a precariedade dos espaços de
pernoite na rua, como também a desestruturação familiar, representada pelo abandono da
mãe alcoólatra. A maioria dos que estão em situação de rua pernoita em lugares insalubres,
cobertos apenas por marquises. Suas camas são caixas de papelão distribuídas sobre o
chão, e a única proteção contra o frio são os cobertores doados. Em muitos casos, de
acordo com a sorte de cada grupo, é possível encontrar lugares mais aconchegantes para
dormir, como relata outro entrevistado: “A gente dorme num banco, dentro do banco que é
quente. Nós entra escondido, tem uns guarda que num fica lá não” (Marcos, 16 anos).
Além do frio que maltrata as noites de Vitória da Conquista, os pernoites na rua
revelam perigos que fazem com que muitas crianças e adolescentes voltem a sentir falta de
suas casas.
Num foi não bom ir para a rua. Lá num tem um lugar bom pra dormir.
Pode dormir, uma pessoa pode fazer uma maldade, polícia pega, bate. Em
casa não, você está seguro, dormindo quentinho, tem lugar pra comer; na
rua, você num tem (João, 14 anos).
No entanto, mesmo com tantos perigos, a rua ainda continua a atrair diversas
crianças e adolescentes. Suas qualidades superam as dificuldades, o que impede que muitas
famílias consigam fazer com que seus filhos voltem para casa. De acordo com um dos
entrevistados:
98
A família sempre me procurava na rua. Sempre me encontrava, ficava
preocupada comigo, porque eu num tinha nenhum motivo de ir pra rua,
mas pela influência dos amigos acabei entrando nesse mundo. Na rua, eu
não mantinha contato com a família, me isolei completamente (Lucas, 17
anos).
Segundo este e outros relatos, o desejo de permanecer na rua provoca a fuga e o
distanciamento da família, o que faz com que muitas crianças e adolescentes percam
completamente os vínculos familiares.
Os problemas enfrentados pelas famílias pobres em seus bairros de origem fazem
com que normalmente os recursos para amenização dos problemas sejam buscados em
outros bairros onde se concentram pessoas de classe média ou nos centros comerciais, onde
se pode apelar para a caridade até mesmo de pessoas de baixa renda. Assim, muitas
crianças e adolescentes passam a buscar nas ruas os recursos necessários para a
sobrevivência. O primeiro contato com a rua freqüentemente é fascinante para os jovens, e,
aos poucos, estes assumem o que denominam “vantagens de se tornar um menino ou
menina de rua”.
A rua é um pouco divertida, porque, na rua você tá ali, vai a qualquer
lugar, num sabe que hora que vai chegar. Sair assim é bom, na rua tem
diversão. A rua é um lugar bom, assim dependendo, é um lugar bom.
Muitas pessoas ficam em casa e são agredidos, assim, pela família, aí tem
muitas pessoas que preferem ir pra rua, acha que é um lugar melhor, já
num tem muitas pessoas que vão ficar agredindo. Tem gente que prefere
ir pra rua do que ficar em casa (João, 14 anos).
Gregori (2000: 71) assinala que o perigo enfrentado “ordinariamente nas ruas”,
muitas vezes, torna-se pequeno quando comparado às manifestações de violência que se
apresentam no universo familiar e nos bairros onde residem, “[...] no qual a violência física
não é só virtual”. A autora afirma ainda que:
99
Embora a rua exija “esperteza” e “coragem”, nem sempre ela é
necessariamente mais violenta do que a família, a casa ou o bairro, e,
muitas vezes esses jovens saem de casa, porque se envolveram (ou foram
envolvidos) em situações nas quais continuar na rua ou no bairro significa
correr risco (Idem: 97).
Outra questão refere-se ao apelo caritativo, em forma de esmolas e ajudas várias.
A caridade da população, que extrapola os limites do assistencialismo, pode ser encontrada
em cada canto do grande centro. Na rua, é possível encontrar até pessoas dispostas a levar
crianças e adolescentes para suas casas, para pernoitarem, proporcionando-lhes uma noite
em um “lar decente”.
Aos poucos, estes jovens vão descobrindo formas variadas de conseguir
sensibilizar a população caridosa. Assim, surgem “grandes” vendedores que, com seu
discurso, conseguem convencer o transeunte a comprar suas balas, vales-transportes, ímãs
para geladeira, picolés, entre outros.
Já ganhei 500,00 numa semana vendendo doce. Na rua alguns ganham
muito mais do que os outros, os outros, tem vez, que ganhava mais do
que alguns. Ganham na faixa de 100 por dia, se juntar de todo mundo.
Cada um ganha 20 reais, 30 por dia. No Natal, eu ganhei 45 reais num dia
só vendendo doce. Numa caixa só, eu ganhei 45 (Paulo, 13 anos).
Nas ruas, também surgem os malabaristas que certamente encantam alguns
motoristas que esperam a luz verde do semáforo acender. Surgem os “atores” que, com
seus discursos e histórias, conseguem levar o ouvinte a um mundo, muitas vezes
imaginário, de compaixão e piedade, e, assim, conseguem sensibilizar e obter ganhos. Aos
poucos, de acordo com o domínio das habilidades necessárias para adquirir dinheiro, as
crianças e adolescentes vão penetrando no “mundo da rua” e dominando suas regras,
códigos e símbolos. Vão se surpreendendo com a quantidade de recursos que podem
100
adquirir quando atuam desta forma. São esses recursos adquiridos na rua que vão propiciar
uma renda extra nos sempre precários recursos familiares.
Olha, no domingo, tem vez que eu ganho 10, 12 reais pegando carrego.
Vendendo passe, eu ganhava menos de 10 reais. O dinheiro eu mando pra
casa, pra comprar alimento pra nós. Eu levo o dinheiro pra casa e minha
tia compra as coisas, aí eu participava na hora de comer, assim num falta
comida (Pedro, 16 anos).
Importa ressaltar que, os recursos obtidos são gastos com alimentação, compras
em lojas, lanchonetes e lan houses
79
que vendem, por minuto, o acesso aos jogos digitais.
Um adolescente entrevistado detalha a forma como é gasto o dinheiro,
Alguns de nós comprava lanche, ia pro vídeo game, jogava, voltava, ia
dormir já com a barriga cheia, comprava refrigerante, pão, mortadela,
queijo, um bocado de coisa. Nós dava lanche pro vigia na porta do banco
(Paulo, 13 anos).
Tais atividades se intensificam nos períodos festivos, como Natal, São João, dia das
mães, dia das crianças etc. É nestes períodos que a cidade passa a receber um número
altíssimo de consumidores. As lojas criamrias estratégias de vendas que atraem os
consumidores, a Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL) e o Governo Municipal decoram as
ruas com grandes bonecos, luzes coloridas, bandeirinhas e levam às Praças do centro
comercial diversas atrações musicais e peças teatrais que seduzem os transeuntes. Tudo
parece se transformar em uma grande festa que tanto encanta as crianças e adolescentes em
situação de rua, como propicia a eles espaço de maior obtenção de dinheiro. As festas,
muitas vezes, podem terminar altas horas da noite, impedindo o retorno das crianças e
79
Lojas que vendem acesso a computadores. Normalmente o acesso é cobrado por hora de utilização das
máquinas. Em Vitória da Conquista, o valor cobrado varia entre um e três reais por hora, a depender da lan
house.
101
adolescentes para casa, obrigando-os a ficar brincando com seus amigos nas ruas, ou
procurando um lugar para dormir.
Nos períodos que intercalam as festas, também é possível conseguir dinheiro,
basta que cada criança ou adolescente se disponha a sair batendo de porta em porta nas
grandes casas do Centro ou dos bairros de classe média, contar sua miserável história de
vida e esperar pela caridade do proprietário. Podem ainda desenvolver atividades nas feiras
livres, trabalhando como carregadores de feira, vendedores ambulantes autônomos ou
vendedores comissionados, circulando pela feira vendendo frutas e verduras.
Diante destas perspectivas, crianças e adolescentes montam suas estratégias,
utilizando o dinheiro para vários fins. As drogas e vídeo games consomem boa parte dos
ganhos; as padarias, supermercados e outras lojas consomem o restante. Pais (2006: 12),
em artigo intitulado “Buscas de si: expressividades e identidades juvenis”, reflete sobre a
necessidade que o jovem, independentemente da classe social, tem de usufruir de jogos
eletrônicos. Segundo ele, os jovens, “[...] nos jogos de computador ou vídeo, exercitam seu
poder performático: ao utilizarem um simulador de vôo sentem-se pilotos; como jogadores,
interiorizam a missão de um herói” tentando vencer o inimigo. Muitas vezes, os jovens
transferem para o jogo parte dos problemas vivenciados, ao mesmo tempo em que se
divertem.
Na rua, é mais fácil gastar o dinheiro arrecadado com divertimento e drogas, uma
vez que a alimentação pode ser conseguida por outra via - há restaurantes e lanchonetes
que, após o expediente, sempre distribuem o que sobra, há grupos ligados a igrejas e
indivíduos que distribuem sopa, chocolate quente e biscoito durante a noite e cobertores e
102
roupas nos períodos mais frios. E, no Natal e Dia das Crianças, alguns recebem diversos
presentes de palhaços ou do Papai Noel.
Não se pode generalizar, afirmando-se que todas as crianças e adolescentes em
situação de rua dormem na rua. Muitos, devido aos fortes vínculos familiares, às diversas
recomendações de seus responsáveis ou ao fato de estarem nas ruas acompanhados da
família, conseguem retornar todo fim de tarde para casa. Contudo, a rua ainda continua a
exercer forte atrativo, ainda que pese a violência nela gerada.
Cabe ressaltar que a rua possibilita que cada criança ou adolescente se identifique
com seus pares provenientes do mesmo universo de miséria e que também buscam ali sua
sobrevivência, formando grupos onde brincam, trabalham, em suma, a vida coletiva da rua
começa a substituir os vínculos familiares. Sobre isso, Gregori (2000: 67) afirma que o
rompimento dos vínculos familiares possibilita a composição de outros laços “[...] agora
com o universo das ruas e, em particular, com as turmas que nelas são formadas”. Assim,
complementa a autora “[...] a infância e a família são substituídas pelos grupos de pares nas
ruas”.
Carvalho (2004: 103), em seu estudo sobre “Crianças e adolescentes em situação
de rua e consumo de drogas”, apresenta dois tipos de grupos de crianças e adolescentes que
estão em situação de rua, os que trabalham nas ruas e mantêm vínculos familiares,
retornando para casa e freqüentando a escola em outro turno, e os que trabalham de forma
independente, que romperam os laços familiares envolvendo-se com a cultura da rua,
dormindo periodicamente nas ruas e envolvendo-se com atividades ilegais e uso de drogas.
Em Vitória da Conquista, esses dois grupos se fazem visíveis no cotidiano. No
primeiro, há crianças e adolescentes que vendem picolé, vale-transporte, objetos, legumes,
103
hortaliças, carregam pacotes e sacolas dos clientes das feiras e mendigam. Podem ser
encontrados com muita facilidade durante o dia no terminal de ônibus da Avenida Lauro de
Freitas, nas feiras do bairro Brasil e Patagônia, ou no CEASA, em frente às lojas ou Praças
do Centro, nas portas das casas dos bairros Candeias e Recreio. À noite, podem ser vistos
coletando materiais recicláveis com seus familiares pelas ruas do Centro. Apesar de
usarem roupas velhas, nota-se que há um cuidado em não se aparentarem como
maltrapilhos e de estarem limpos, o que, para eles, é bem significativo e evita que sejam
confundidos com os “cheira-thinner”. Essas crianças e adolescentes são vistos
normalmente em pequenos grupos ou acompanhados pelos pais ou responsáveis, retornam
para casa todos os dias e a maioria freqüenta a escola. Situação semelhante também foi
vivenciada por Gregori (2000: 67), que, em sua pesquisa, constatou que “trabalhar nas ruas
não implica na quebra de vínculos com a formação escolar, com as brincadeiras e
tampouco com a família”. Dentro deste contexto, pode-se afirmar também que a maior
parte do que é arrecadado por esse grupo é convertido em ganhos para a família. Segundo
dados da UER, as famílias dessas crianças e adolescentes normalmente são bem
estruturadas e não apresentam índices de violência doméstica.
O segundo grupo (denominado pelo primeiro grupo como “cheira-thinner”),
apresenta altos índices de violência e alcoolismo na família, principais fatores que
possibilitam a quebra do vínculo familiar e a adoção da rua como moradia. Anda, muitas
vezes, maltrapilho e sujo, não apenas porque tomar banho é coisa rara, mas porque
freqüentemente vende as roupas que ganha. Pode ser encontrado mendigando e furtando no
Centro e nas feiras livres ou jogando malabares nos semáforos. Sai para manguear, na
maioria das vezes, em subgrupos que contam com a presença de trecheiros ou adultos, e se
aglomeram em áreas isoladas dos bairros para repartir os roubos, comer ou usar drogas. De
acordo com Feffermann (2006: 177), conforme trabalho mencionando anteriormente, os
104
jovens se agrupam “[...] na busca de identidade. Mas se, num primeiro momento, essa é a
finalidade, percebe-se que muitos destes grupos transformam-se e passam a ter como
propósito, implícito ou explícito, a manutenção das condições sociais”.
Estes grupos não têm locais fixos para concentração, ora podem ser encontrados
nas imediações do Ginásio de Esportes Raul Ferraz, ora próximos à feira do bairro Brasil,
ora na Avenida Siqueira Campos ou nas Praças do Gil, Vitor Brito e Barão do Rio Branco.
Dormem sempre juntos nas Praças, nas portas das casas comerciais ou em lugares que lhes
apresentem segurança. Em algumas ocasiões, chegam até a construir barracos feitos com
sobras de materiais (lona plástica, madeira e papelão) em terrenos baldios no Centro ou nos
bairros de classe média.
A vida em grupo possibilita-lhes “romper barreiras” – aos poucos, a rua começa a
se tornar sua casa, os vínculos familiares começam a se romper e uma “nova família”
começa a se formar pelos laços de amizade. Conforme Craidy (1998: 26), “a busca do
grupo, isto é, da solidariedade dos iguais é um elemento forte da cultura da rua”.
O grupo formava assim: nós conhecia os cara depois eles pedia pra ficar
andando junto, assim, onde a gente ia o povo ía atrás também. Não existia
regras pra fazer parte do grupo, era só num ficar esculhambando. Tem
gente que gosta de andar esculhambando, jogando pedra na casa dos
outro, aí é ruim que o povo chama a polícia e fica tirando satisfação da
gente (João, 14 anos).
105
Estas práticas de grupo podem, por vezes, configurarem-se como uma grande
“aventura”, em que os perigos se tornam banais. Cria-se uma auto-estima que ajuda a
matizar as dificuldades
80
, como afirma um dos adolescentes entrevistados:
No grupo, tinha meus amigos. Oxe nós brincava, fazia um bocado de
coisa. Nós aprontava, chamava a mulher de gostosa e saía correndo,
perturbava, nós tomava xinga. Dia de domingo assim, que não tem
ninguém na rua, nós batia na porta, nós apitava as casa, xingava os povo,
nós atentava e saía correndo. O grupo tinha regras, tinha que respeitar,
não pegar na bunda do colega (Marcos, 16 anos).
Nesta direção, e apesar de todos os entrevistados não reconhecerem a existência
de um líder nos grupos, apontam para alguns que se destacam assumindo a liderança.
Normalmente, estes jovens elegem aquele que seguirão de acordo com a idade. Quanto
mais velho, mais garantia de proteção traz consigo, e com esperteza e criatividade
potencialmente resolve situações complicadas.
Não existia líder no grupo, só os maior que ficava responsável, porque o
maior ele defende a gente. Se alguma pessoa quiser bater na gente, aí ele
defende a gente. Aí ele num deixa brigar não (João, 14 anos).
Os maior é que defende o grupo. Se tiver só os pequeno, os outros grupos
batem e roubam (Carlos, 13 anos).
Não existia líder no grupo, mas, se tinha um que ia pra um lugar, você
tinha que ir mais ele. Tem uns que era mais inteligente que nós, sabia
mais, tinha mais tempo que a gente na rua (Lucas, 17 anos).
Eu mesmo tinha uma idéia boa, assim pra gravar mesmo, falava: vamos
menino, vamos comprar tal coisa, comer, vamos juntar o dinheiro. Mas
eu não era o líder (Paulo, 13 anos).
80
Tal afirmação pode ser enriquecida com a de Feffermann (2006: 178), que, ao tratar dos jovens envolvidos
no tráfico de drogas, assevera que “O sentimento de pertencer a algo, de proteção, são as razões que fazem o
jovem se integrar a uma gangue. As gangues se caracterizam pelo forte elo entre os seus integrantes,
protegendo-se e ajudando-se uns aos outros”.
106
Contudo, segundo Rodrigues (2001: 96), “No interior desses grupos pode-se
verificar um contínuo estabelecimento de relações de poder”, conquanto não se possa
afirmar a existência de “uma liderança fixa”.
Essa vida em grupo também é marcada pela rivalidade e pela violência, que pode
acontecer dentro do grupo ou entre grupos rivais.
Um dos principais problemas da rua é briga. Alguma pessoa do mesmo
grupo, tem vez que alguns briga (Paulo, 13 anos).
Sempre existe rivalidade nos grupos, sempre quando encontra tem aquela
rivalidade (Lucas, 17 anos).
Um bate no outro, quer tomar o thinner, se não dá, ele pode até matar
(Carlos, 13 anos).
O lado sombrio da rua se revela principalmente no período da noite, quando as
lojas fecham, as ruas se esvaziam e moradores de rua começam a aparecer. A noite traz a
necessidade da proteção do grupo. Estar sozinho durante a noite é estar duplamente sujeito
ao perigo. Revela-se também, durante a noite, o aparecimento de adultos, como é o caso
dos trecheiros.
Segundo um adolescente entrevistado, “Os trecheiros são aqueles que ficam
dormindo na rua, fica bebendo, roubando. Eles vêm de outra cidade e acabam ficando na
rua, muitos era menino de rua” (Sérgio, 17 anos).
Outro assim se expressa:
Tem muito trecheiro na rua. A convivência com eles é muito difícil.
Alguns trecheiros são violentos, quando bebe. Alguns bebe, oferece
cachaça pra mim e para os meninos. Nós tava viajando, nós foi lá em
Salvador, os cara tava bebendo cachaça, ofereceu, só eu num bebi. [...]
107
Tinha trecheiro, um índio e um outro cara lá. Mas também os dois
trecheiro se lascô. Nós tinha um amigo que chamava Santana, ele era
dono de uma carreta, aí quantas vezes ele passava num canto e via nós,
ele dava carona pra onde nós quisesse ir. Aí nós tava em Feira de
Santana, nós viu ele no posto pediu uma carona, ele deu uma carona até
Salvador (Paulo, 13 anos).
Normalmente só os adultos são denominados trecheiros. São pessoas sem
endereço fixo e, logo, transformam-se em nômades, vagando de cidade em cidade. São
normalmente usuários de drogas e alcoólatras. Sobrevivem da caridade da população ou
vendendo artesanato. Muitos trecheiros são ex-crianças e adolescentes em situação de rua,
que, ao atingirem dezoito anos de idade, perderam suas vantagens e espaços. Além disso,
com o aspecto de adulto, torna-se difícil mendigar, não despertando a mesma “piedade”
que uma criança consegue despertar na população. Assim, crianças potencialmente obtêm
mais ganhos na rua.
Os trecheiros vêem nas crianças e adolescentes que estão em situação de rua um
meio de conseguir ganhos. Eles são adultos que, na maioria das vezes, acompanham estes
jovens, fornecem-lhes proteção e, por serem mais velhos, compram as drogas.
Pra comprar o thinner é assim: a pessoa só compra se tiver com os
documento, os menino de rua arruma uma pessoa de maior pra comprar
pra eles. Pode ser os trecheiros. O thinner compra é o litro. Eu já
experimentei thinner, não gostei, passei mal (Paulo, 13 anos).
Pode-se afirmar que os trecheiros se tornam mais dependentes, financeiramente,
das crianças e adolescentes devido ao fato de estes terem mais facilidades de conseguir
dinheiro. Logo, as crianças e adolescentes comumente são vítimas de roubo por parte dos
trecheiros, conforme relata o adolescente:
108
Relação não era boa não. Quando eles via a gente, se a gente tivesse uma
coberta, eles tomava. Era maior que a gente né? Eles mandava a gente
roubar para eles assim, se a gente num fazia o que eles quisesse, eles
batia. Era complicado (Lucas, 17 anos).
Por outro lado, ter adultos junto ao grupo representa mais segurança para crianças
e adolescentes. São eles que lhes protegem dos outros grupos e impedem os roubos.
Segundo um dos entrevistados, “se o menino é dos que consegue ganhar muito dinheiro os
trecheiros protegem ele, só pra ele não ir embora” (Carlos, 13 anos).
É também durante a noite que a maioria das crianças e adolescentes tem seus
primeiros contatos com as drogas. É quando o grupo se reúne para conversar e dormir que
surgem os primeiros tragos no cigarro de maconha, no cachimbo do crack ou as primeiras
cheiradas de thinner ou cola.
A droga mais usada é o crack. Os adolescentes consegue comprar crack
81
com muita facilidade. Só tem que ser uma pessoa de maior assim, com
14 pra cima poderia. Uma pedra de crack custa uns 10 reais pra cima.
Uma só dava pra três pessoas. Tem o thinner e a maconha também, o
thinner comprava na loja de construções (João, 14 anos).
Apesar de usarem drogas durante o dia, é a noite que aumenta o seu consumo. As
drogas podem ser usadas algumas vezes como paliativos ao frio conquistense. Entretanto
também são bastante utilizadas como estimulantes para o roubo e a mendicância e, depois
de algum tempo, para saciar o vício.
Segundo os adolescentes entrevistados, as drogas podem ser adquiridas com muita
facilidade, até mesmo por crianças.
81
Segundo Feffermann (2006: 282), “[...] o crack, por suas características, sua potência e elevado grau de
produzir dependência, impulsiona os usuários a todo tipo de atitude, a fim de obterem a droga”.
109
Qualquer um podia comprar droga, mesmo os que tem menos de 18 anos
conseguia, tinha facilidade. Qualquer droga era fácil, num perguntava
idade, só basta tá com dinheiro na mão, que a gente comprava (Lucas, 17
anos).
Os pontos de distribuição se espalham pela cidade. O thinner e a cola podem ser
encontrados em lojas que comercializam tintas e materiais para construção. Para efetivar-se
a compra nestas lojas, é necessária a mediação dos trecheiros, conforme visto acima, tendo
em vista à fiscalização da venda destes produtos para maiores de 18 anos
82
. No entanto,
ainda existem muitas lojas que burlam a legislação. O thinner também pode ser adquirido
nas oficinas de reparo que utilizam o produto como solvente para tintas.
O thinner compra nas oficina de carro ou bicicleta. É só chegar com o
dinheiro que eles vendem. Eles compra pra limpar peça e mexer tinta, aí
nós vai lá e fala que tá precisando de um pouco pra limpar uma tinta e
eles vende (Sérgio, 17 anos).
As outras drogas, como crack, maconha, consideradas ilícitas e com venda
proibida, são adquiridas nas “bocas” que se espalham, cada vez mais, pela cidade.
Pra comprar aí, tem o ponto. Na cidade, tem um bocado de ponto. É só ir
nos bairro mais perigoso, tu compra. Pedrinhas, Alto Maron, Bruno, um
bocado de bairro aí. Qualquer um pode comprar, criança, pode ser
qualquer uma pessoa. Uma pedra custa 5 reais e a maconha custa 2 real a
grama (Paulo, 13 anos).
Os relatos acima revelam o quanto a droga penetra o universo da vida destes
adolescentes. A maior parte do dinheiro ganho é gasto com drogas. Somente aqueles que
retornam para casa conseguem priorizar o gasto do dinheiro arrecadado com alimentação e
82
Segundo o Artigo 81 (incisos II e III) do ECA, é proibida a venda à criança ou ao adolescente de bebidas
alcoólicas e de produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica, ainda que por
utilização indevida.
110
ajuda à família. Dentre estes, alguns chegam a afirmar: “Nunca usei droga” (Pedro, 16
anos
).
No entanto, é necessário frisar que relatos sobre drogas e violência são
interditados ao entrevistador, por medo, receio ou vergonha. Em seu rico estudo,
Feffermann (2006: 104) também revela as dificuldades enfrentadas durante a pesquisa com
adolescentes usuários de drogas, que, ao perceberem que suas falas seriam gravadas, se
afastavam por medo ou vergonha.
Cabe ressaltar que o consumo de drogas acontece com mais freqüência no período
da noite e em lugares isolados, ou com pouca movimentação. “A gente usava mais lá no
Poço Escuro
83
, lá não tem fluxo de polícia” (Lucas, 17 anos). Devido ao alto consumo de
drogas por parte destas crianças e adolescentes em situação de rua (consumo que chega a
surpreender outros membros do grupo), a necessidade de conseguir dinheiro para efetuar a
compra se torna imprescindível. Assim, o consumo de drogas torna-se um estimulador dos
roubos.
Tinha um grande lá. Chamava P, andava mais nós lá, o bicho tava feio de
tanto cheirar thinner e cola. Tinha vez que saia da gente e ia comprar.
Dava 20 centavo e molhava. Aí nós falava: ué não vai dá para nós senti
não. Cada molhada custava 20, 25 centavos. Você é doido, ele cheirava
muito. Um dia nós tava caçando passarinho, ele tava lá bem dentro do
matão lá, cheirando cola, todo lombrado, nós passou direto, só cheirava
cola e thinner. Tinha hora que ele comprava na mão dos cheira thinner
mesmo porque vendia assim pra ele e ia interar pra comprar outras. Os
cheira-thinner são os que fica na rua, os povo que rouba aí (pausa) pra
comprar droga. É ladrão, rouba até casa e o dinheiro é pra comprar droga
e latinha de cerveja. É só roubar e comprar, num importa a hora. O que
83
Reserva ambiental localizada entre o bairro Petrópolis, zona leste, e a Serra do Periperi.
111
num falta é coisa pra eles roubar ali, quando quer usar é só eles roubar
(Marcos, 16 anos).
A necessidade do consumo de drogas envolve diversas estratégias: roubo,
mendicância, lavagem de automóveis e até mesmo relações sexuais. No entanto, no que se
refere ao roubo, conforme Leite (2001: 59), “para os meninos de rua roubar não é um
crime, e sim um ato de muitos significados: é uma forma de conseguir dinheiro para
alguma necessidade imediata, de causar terror, de se divertir, e até mesmo uma
brincadeira”.
Outra questão diz respeito ao convívio entre os jovens. Um adolescente
entrevistado, ao comparar meninos e meninas, afirma que “As meninas são muito
diferentes, se alguém oferece thinner para elas, elas deita e já fica muito doida e começa
oferecer outras coisas” (Paulo, 13 anos).
As relações sexuais entre os grupos que estão em situação de rua são intensas;
trecheiros, adultos, crianças e adolescentes de ambos os sexos mantêm relações sem
nenhum tipo de proteção, ficando vulneráveis às doenças sexualmente transmissíveis. Para
além disto significa uma enorme violência.
Quando encontrava assim, elas ficava mais a gente e sempre tinha essa
briga assim pra ver quem ficava com a menina. Aí sempre tinha relações
assim meia arriscada e quando elas engravidava elas, perdia o filho
porque elas usava droga (Lucas, 17 anos).
No que se refere às atividades desenvolvidas por meninos e meninas, o
adolescente acrescenta:
112
Elas desenvolvem atividades também, mas existe diferença, porque nós
os homens é mais ágil, mais rápido, principalmente pra roubar assim.
Elas não, fica mais pedindo, é difícil roubar (Lucas, 17 anos).
O cotidiano da rua não cria privilégios entre sexos, masculino ou feminino: “Se tá
na rua tem que pedir, tem que roubar” (Sérgio, 16 anos). Outro afirma ainda:
Elas fazem as atividades. Não tem diferença não. É a mesma coisa, se tá
na rua, roubam e usa drogas também (Marcos, 16 anos).
Não há divisão de atividades, as meninas fazem as mesmas atividades,
roubam (Paulo, 13 anos).
Mesmo com as afirmações de que as meninas desenvolvem as mesmas atividades
que os meninos, de acordo com Gregori (2000: 129), “As meninas não são protegidas ou
poupadas na dinâmica do cotidiano. [...] Contudo, existem tarefas que apenas as meninas
realizam – como lavar roupa ou cuidar dos menores”. Esta situação também é constatada
no cotidiano conquistense.
Nas relações sexuais, as mulheres são o alvo das disputas. As brigas pela
conquista das adolescentes acontecem cotidianamente. Encara-se que o “vencedor” tem
direito de tentar conquistá-la primeiro. Se for bem sucedido, ganha o respeito do grupo que
não interfere no relacionamento. No entanto, seu sucesso só acontece com a permissão da
escolhida.
Quando um menino ficava com uma menina, aí os outro respeitava, num
ficava, assim sabe, com ousadia não pro lado da menina, eles respeitava.
Aí a pessoa ficava, aí quando a pessoa num ficava mais com a menina,
outra pessoa nova chegava e ficava com ela. Quando a gente ficava muito
tempo com uma menina, eles falava que a gente já tava junto um tempo.
Uma vez, um menino ficou quase dois, não, quatro ano com a menina na
rua, aí o povo já falava que eles ia casar e tudo (João, 14 anos).
113
É comum encontrar adolescentes e pessoas adultas gestando crianças em situações
sub-humanas. Essas crianças, quando não são abortadas, são geradas na precariedade da
rua e depois cedidas para adoção, ou apreendidas pelo Conselho Tutelar que as
encaminham ao Juizado da Infância e da Adolescência. Este, posteriormente, encaminha-as
aos familiares dos pais ou para adoção.
A maioria de garota que tem filho elas dão, dá mais pra esse povo que
tem dinheiro, que tem condição de criar. Tem gente que tá na rua que usa
droga aí num quer que o filho quando crescer use droga também, aí eles
pega e prefere dá pra uma pessoa que possa ter cuidado, carinho com a
criança. O menino deixa a menina dá o filho. Eles também num vai ter
condição de criar, ter um lugar pra levar a criança pra poder ficar, aí eles
pega e dá (João, 14 anos).
As crianças que conseguem permanecer com as mães são normalmente utilizadas
como recurso para mendicância ou são alugadas para outras mulheres que as utilizam nesta
prática. Durante a noite, essas crianças recebem os cuidados maternos em um ambiente
insalubre e com odores fortes de drogas.
Muitas ganha dinheiro por causa disso, pega o filho, vai pedir, fala que é
pra comprar leite, mas, na realidade, nem compra leite nem nada, é tudo
pra comprar droga. A criança fica em situação de risco também (Lucas,
17 anos).
Neste universo, as adolescentes incorporam a figura da mãe que necessita manter
a sobrevivência de sua prole. É esta imagem que tentam passar para seus fregueses
84
, no
intuito de conseguir esmolas.
84
Denominação dada pelas crianças e adolescentes que estão em situação de rua a todos os que lhes fornece
dinheiro, alimento ou objetos.
114
Apesar de estarem em menor número, as adolescentes conquistam seu espaço
junto aos homens. Entretanto, considerando-se os relacionamentos que acontecem no
cotidiano da rua, a mulher ainda é vista como uma pessoa submissa, que deve respeito ao
companheiro, aceitando suas ordens. De acordo com Gregori (2000: 129), quando a vida
cotidiana envolve as relações sexuais e/ou afetivas, “[...] é possível verificar a reprodução
dos mesmos padrões que, fora do universo da rua, regem (desigualmente) as relações entre
homens e mulheres”.
Independentemente do sexo, todas as crianças e adolescentes se deparam,
cotidianamente, com a necessidade de arrecadar dinheiro para suprir suas despesas. Para
tanto, a prática do manguear torna-se a principal atividade de manutenção da vida, ou seja,
parafraseando Gregori (Idem: 18), eles “se viram” para sobreviver. Deste modo,
Manguear é quando está precisando comprar alguma coisa, está faltando
comida, está querendo uma roupa, está querendo usar droga. Aí sai pra
manguear, nós pede dinheiro, se não conseguir, arruma outro jeito. Pode
roubar uma coisa aí nós vende e compra o que precisa. Na maioria das
vezes, compra droga (Sérgio, 16 anos).
O manguear representa a principal forma de “viração” na rua, incluindo as
atividades de ganho, sejam de roubo, de mendicância ou de venda de algum produto.
Normalmente, só os que moram na rua denominam suas atividades como “manguear”, os
que ainda retornam às suas casas chamam as atividades que desenvolvem de trabalho.
Cabe notar que o ato de manguear demonstra a criatividade das crianças e
adolescentes em situação de rua ao analisarem suas atividades de sobrevivência e sua
relação com os códigos estipulados pelo Estado. Por todo o Brasil, percebe-se sua
capacidade de adaptarem-se às peculiaridades da rua e criarem novas formas de
115
sobrevivência. Até a década de 1990, crianças e adolescentes em situação de rua podiam
ser divididos entre os que roubavam e os que mendigavam. No entanto, as mudanças
ocorridas no cotidiano dos espaços públicos urbanos obrigam os que estão em situação de
rua a criarem novas estratégias de sobrevivência, colocando em prática seu poder criativo.
Atualmente é possível visualizar, nas vias públicas, grandes “artistas” que encantam os
seus fregueses. São malabaristas que equilibram, de forma precisa ou desajeitada, cocos,
laranjas, bolas, pinos, tochas, dentre outros, objetivando o ganho de trocados. Além dos
malabaristas, surgem os mágicos que, com truques de ilusionismo fazem desaparecer
moedas e lenços sob o olhar do freguês. O simples vendedor de doces, que antes tentava
despertar a piedade dos consumidores, agora domina as características do produto
comercializado e tenta convencer seu freguês a adquiri-lo, levando em consideração suas
qualidades.
Os pequenos ladrões de objetos que tinham apenas a velocidade como
instrumento de fuga, hoje contam com estratégias grupais que enganam a vítima e a
polícia. Os mendicantes deixaram de usar a tática da pequena mão suja estendida em troca
de moedas e passaram a ocupar trens, ônibus, bancos, órgãos públicos, portas dos
supermercados etc, distribuindo rapidamente textos digitados e xerocopiados com que
tentam sensibilizar o freguês. Com essa estratégia, podem otimizar o seu tempo, reduzir o
discurso e atingir um número maior de pessoas. Normalmente, encontramos vários textos
com histórias fictícias, dentre as quais, destacamos dois tipos utilizados em algumas
cidades brasileiras:
116
Sou um garoto muito pobre, estou pedindo ajuda para meus 8 irmãos, nós
não temos o que comer. Serve qualquer ajuda de refeição. Deus abençoe
e multiplique a vocês todos. Uma boa viagem!
85
Venho de uma família de 6 irmãos, meu pai está desempregado e minha
mãe está grávida. Meu irmão mais novo é deficiente mental e não temos
dinheiro para comprar comida e remédios. Venho pedir sua ajuda. Que
Deus lhe pague.
86
Estas atividades generalizadas por várias cidades, exigem das crianças e
adolescentes em situação de rua planejamento e execução que culminem na obtenção de
bens materiais, inserindo-os no mercado de compras, de modo a comportarem-se como
consumidores de produtos que os transportem para um mundo onde os bens materiais
necessários para a vida podem ser adquiridos, mesmo que, para isso, carreguem o rótulo de
pobres infratores.
A pobreza em que vivem esses jovens agrega não só o coitadinho e o carente
honesto, não possuidor de bens, como também os que abandonam este rótulo e passam a
ser caracterizados enquanto infratores. Antes considerava-se a pobreza como
desprovimento de bens e valores morais, porém percebe-se que a modernidade tende a
fazer desaparecer este conceito através de seus ideais de consumo. Zaluar (1994: 181),
destaca que:
A pobreza perdeu o seu sinal positivo mais forte e adquiriu, mais
claramente, o sentido negativo de falta, estendida também ao plano
moral, fazendo desaparecer as fronteiras entre o “pobre honesto” e o
“marginal” ou “criminoso”. Não ter dinheiro para consumir os bens cada
vez mais oferecidos no mercado equivale, para os pobres, [...]
85
Texto distribuído por uma criança num metrô da cidade de São Paulo no dia 09 de maio de 2007.
86
Texto distribuído por uma criança numa das ruas centrais da cidade de Vitória da Conquista no dia 20 de
agosto de 2007.
117
principalmente os despojados “meninos de rua”, a ser objetos de suspeita
de cometer atos ilegais ou ilícitos ou, pior, de ser agente de violência.
Viver na rua é extremamente difícil e exige estratégias de “viração” desenvolvidas
por essas crianças e adolescentes, entre elas: carregamento de sacolas e pacotes dos
clientes das feiras, vigilância de carros, mendicância, apresentação de malabarismos e
roubo. Alguns até se revezam entre essas atividades, aproveitando os horários em que são
mais rentáveis.
Meu melhor canto de olhar carro é no Hiper [supermercado] do lado de
fora. Pra ganhar dinheiro, eu vou pra porta do Chame-chame
[panificadora], ganho o dinheiro, depois do Chame-chame, eu vou direto
pro Hiper ganhar mais dinheiro. Na porta do Chame-chame, eu olho carro
também, lá pára muito carro. Pedir eu peço de vez em quando na porta do
mercado. [...] Eu falava: hoje vou ficar aqui no sinal jogando bolinha,
outros ficava em outros também, tipo igual eu, ficava no Hiper sempre
olhando carro, outros já cassava outro jeito de pedir. Aí, um cara que
ficava aqui ensinou nós jogar bolinha. Ele aprendeu lá no Rio de Janeiro.
Pra mim, num acho muito difícil, aprender jogar bolinha, não. Também
não sei muito, sei jogar de duas apenas, morrendo [risos] (Paulo, 13
anos).
O relato acima é um exemplo dos “malabarismos” que estes jovens desenvolvem
para sua permanência na rua, alternando sempre atividades precárias de “bicos”, jogos,
roubos e mendicância.
Muitas crianças e adolescentes, antes de estarem em situação de rua, já
experimentaram atividades de trabalho informal. Muitas famílias acreditam que o vínculo
com um trabalho, mesmo que “informal”, seja a melhor forma de educar as crianças e
adolescentes, mesmo que isto desrespeite a legislação vigente
87
, e as crianças e
87
Cf. capítulo V do Estatuto da Criança e do Adolescente.
118
adolescentes percebem que, ao desenvolverem uma atividade entre as consideradas
“trabalho”, lucram, ganham status entre os próprios moradores de rua e tornam-se
consumidores.
Até meio-dia, dava pra ganhar uns 60 reais jogando bolinha. Olhando
carro, num dava muito não, dava uns 20 reais mais ou menos. Jogando
bolinha, ganhava mais. De manhã até meio-dia, ganhava 30 reais, ai a
gente ia pegava pra comprar café, assim, comprar pão na padaria, depois
a gente jogava vídeo game. À tarde, ganhava logo no começo 10 reais, aí
a gente pegava ia lá na lanchonete comprava 1 litro de iogurte, comprava
um bolo, aí tomava o café, o restante do dinheiro eu guardava pra hora
que precisar. Os outros comprava coisa pra eles, comprava droga...
Comprava, de vez em quando, roupa pra eles vestir, essas coisa (João, 14
anos).
Na rua, a gente ganha dinheiro. Um dia só, dá pro cara tá fazendo uns 30
conto ali no sinal como malabarista jogando laranja. Nós só jogava era
mais no sinal, no de trás na Siqueira Campos que ganha mais dinheiro, é
só ali, porque lá é marcado [referindo-se à panificadora Chame-chame]
(Marcos, 16 anos).
Os espaços para desenvolvimento dessas atividades são escolhidos levando-se em
consideração o fluxo de pessoas e carros, observando-se os horários de maior movimento.
Segundo um dos entrevistados, “a gente procura os lugar que tem mais pessoas, tipo
padaria, mercado. E pra jogar bolinha é no sinal da Siqueira Campos
88
”. As escolhas dos
locais são feitas a partir das experiências dos membros do grupo. Estes se espalham pelas
ruas centrais e mapeiam os lugares onde atuar. Como nos afirma outro adolescente, “Para
escolher o lugar de ganhar dinheiro, nós pegava e fazia assim, cada um espalhava num
lugar, cada um ficava num lugar pra ganhar dinheiro”.
88
O entrevistado refere-se à Avenida Siqueira Campos, região central da cidade.
119
Crianças e adolescentes gastam todo seu dinheiro na rua. Suas compras são
alimentos, roupas, calçados, DVDs, aparelhos eletrônicos e principalmente drogas, jogos
de vídeo game e acesso à internet.
Aí quando a gente pegava dinheiro, às vezes como a gente pedia e num
conseguia, aí tinha que comprar comida, às vezes tava com a barriga
cheia, usava droga, comprava droga, muitos usava thinner. Num cheguei
a experimentar thinner não, mas já usei maconha (Lucas, 17 anos).
Nós ganha na rua e o dinheiro nós joga vídeo game, internet. Quando nós
tinha [dinheiro], ia ali na feirinha do bairro Brasil, ali dia de domingo, ia
naquele meio ali que só tem coisa barata, comprava uma coisa... Nós
comprava coisa lá de 1 real. Comprava DVD (Marcos, 16 anos).
Gastava mais dinheiro com vídeo game. Ficava de manhã até meio-dia
jogando bolinha, à tarde, jogava, vídeo game. Gastava quase todo o
dinheiro com vídeo game (João, 14 anos).
Nota-se que as atividades desenvolvidas durante o dia também oferecem riscos
concentrados principalmente na violência da população.
É arriscado jogar bolinha lá no sinal, porque a pessoa [o motorista],
muitas vez, num respeita o sinal não, aí passa direto, se a pessoa tiver lá
jogando bolinha, aí tem umas pessoa que quer passar por cima. O cara
tava jogando bolinha, aí o cara num queria, aí acelerou o carro. Aí
denunciou ele e teve que pagar coisa pra criança que tava no hospital
(João, 14 anos).
Outra estratégia de sobrevivência muito comum na rua é o roubo, praticado
principalmente pelos adolescentes. Seus alvos mais comuns são os aposentados e
pensionistas, comerciantes e mulheres, quando se dirigem às agências bancárias para
receberem proventos.
120
No meu grupo, alguns já roubaram, alguns, não. Eles roubavam um
bocado de coisa aí. Celular, isso aqui, oh! [MP3]. Tinha alguns que
roubava em outros canto, loja, mercado. Tem uns que rouba bicicleta pra
vender, tem outros que faz outra coisa. Tem uns que pega dinheiro de
outra pessoa (Paulo, 13 anos).
Nós conseguia as coisa assim, nós roubava lá, só que parou de roubar.
Roubar, Oxe! Se tinha uma coisa pegava assim. Pegava um radinho,
roubava na barraca. Se for um radinho, eles fica pra eles, pra ficar
ouvindo, agora se for outra coisa, eles vai lá e vende. Dinheiro é difícil
pra roubar. Rouba os aposentados, mais num dá nem pra vê a hora que
rouba (Marcos, 16 anos).
Alguns mais audaciosos roubam casas e lojas que comercializam jóias e aparelhos
celulares. Assim como ocorre com a mendicância, todo dinheiro ganho no roubo é gasto na
rua, mais precisamente com o consumo de drogas, jogos e internet.
Robava e vendia pra poder pegar o dinheiro pra comprar alguma coisa.
Quando ia roubar na casa, esperava, assim, quando num tinha mais
ninguém dento de casa, assim, sábado e domingo, o povo sai pra almoçar
fora, aí eles robava. Robava era mais aparelho de DVD... som...
dinheiro... coisa de jóia, coisa que vale caro, aí essas coisa assim. Na rua,
robava só celular e bicicleta, de vez em quando, pra vender (João, 14
anos).
O roubo ainda configura-se como uma das principais atividades destes
adolescentes, e é por causa dele que se dão os embates com comerciantes e policiais. Cabe
ressaltar que as atividades desenvolvidas demonstram o poder que crianças e adolescentes
têm sobre o espaço da rua. As atividades ora servem para despertar a caridade da
população – a utilização adequada da dramaturgia resulta na comoção do público e na
recompensa material, o que demonstra o poder de persuasão desses jovens –, ora servem
para demonstrar sua superioridade tanto sobre aquele que detém melhor condição
121
financeira, que se torna vítima de roubos, quanto sobre os mecanismos públicos e privados
de segurança e repressão. No cotidiano da rua, violência e caridade caminham juntas.
Percebe-se que muitos projetos não se atentaram para as potencialidades das
crianças e adolescentes e nem para o processo educativo que ocorre na rua, classificando-
os sempre como carentes ou infratores. Nesta linha de pensamento, Arantes (2000: 117),
afirma que “[...] ‘carente’ e ‘infrator’, enquanto categorias técnicas, longe de se referirem a
uma natureza dos jovens, são ‘perfis’ construídos muito mais em cima de traços
estigmatizadores desses jovens pobres”, o que implica diretamente nas ações sociais que
ora se apresentam como caritativas, ora punitivas.
No que tange às questões referentes à caridade, observa-se que o tratamento da
sociedade conquistense para com estes jovens varia entre preconceito, compaixão,
caridade, medo, ameaça e agressão física e verbal. As reações se dividem entre a caridade e
a violência. Dentre os que recorrem às práticas caritativas de esmolas ou fornecimento de
alimento, encontram-se os donos de restaurantes e moradores dos bairros centrais que
atendem este cotidiano precário da rua.
Pra comer, nós vai ali nas casa. Apertava a fome, bora ali pedir comida
ali nas casa. Nas casa, tem os freguês. Nós chama assim: os freguês. Nós
ia ali nos lugares e já dava para nós já... restaurante. Pedia, eles falava:
espera aí! Esperava e dava comida pra nós, comida boa! (Marcos, 16
anos).
Ganhava dinheiro, tinha vez que ganhava roupa. Os povo conhecido dava
pra nós. Dava lanche pra mim, que eu trabalhava lá no Centro direto.
Ganhava roupa e as que num cabia pra mim eu dava pro meu irmão.
Ganhava alimento, era, assim, um lanchinho, assim, de vez em quando de
tarde, lá no Centro (Pedro, 16 anos).
122
As práticas caritativas de que tratam estas crianças e adolescentes adentram as
noites conquistenses, quando os grupos religiosos “invadem” as ruas distribuindo sopa,
chocolate, biscoito, cobertores e roupas, acreditando que, com essas ações, amenizam o
sofrimento das crianças e adolescentes em situação de rua. Segundo Gregori (2000: 71), a
rua se configura como “agasalhadora da miséria”, principalmente após a “proliferação de
organismos não-governamentais, entidades religiosas e organismos públicos, como por um
sem-número de ações individuais e isoladas de comerciantes e cidadãos bem-
intencionados”. Tal afirmação pode ser corroborada pela afirmação de um jovem
entrevistado, que, ao se referir às ações da população, afirma: “Tem pessoa que pega e dá
conselho pra pessoa sair dali, fala que num é lugar bom pra ficar, pra procurar a família, dá
conselho” (João, 14 anos).
Ainda pode-se apontar que, comumente, os moradores da cidade envolvem-se
com diversas campanhas contra o frio, contra a fome, entre outras. Apesar de importante,
cabe considerar tais práticas como reiteração da miséria, em seu caráter paliativo que se
desresponsabiliza pelo problema. Contribuem, assim, para um “estuário perverso”, onde a
ausência de políticas sociais para esses grupos se encontram com práticas que transferem o
problema para um “não-lugar”
89
, um território sem significados, o que remete para a
questão da desresponsabilização e do papel do Estado, a ser considerado no próximo
capítulo.
Às vez, o povo dava pra gente lá na feirinha. De vez em quando, passava
um carro, já umas 11 hora da noite, quando num dava toddy, dava sopa,
cachorro-quente, aí de vez em quando eles pegava e já trazia um bocado
89
Expressão utilizada por Marc Auge, o “não-lugar” é o oposto ao lar, ao espaço familiar, ao espaço
personalizado. O não-lugar é representado pelos espaços públicos de rápida circulação, marcado pela relação
entre o indivíduo e os símbolos da supermodernidade. “O espaço do não-lugar não cria identidade singular
nem relação, mas solidão e similitude” (AUGÉ, 1994: 95).
123
de coberta e dava pras pessoa que tava na rua. Eles dava mais, de vez em
quando, era roupa pra gente (João, 14 anos).
Ao lado destas ações paliativas, emerge – e com face cruel – a violência, praticada
principalmente por quem deveria “protegê-las”. Ou seja, a polícia, é considerada pela
maioria como a maior ameaça existente na rua.
Hoje o que tem de mais perigoso é a polícia. Sempre que ela pega a
gente, bate. Às vezes quando encontra com droga, derrama na gente tudo
assim, num sabe trabalhar da maneira correta, pensa que batendo que vai
acontecer uma coisa. Pois é o maior risco na rua é a polícia. Sempre
quando ela encontra a gente assim, ela bate, num é muito boa a relação
não, a gente sempre quando vê ela assim de longe, a gente tenta evitar
ela, passa outro canto. Muitos amigos já foram espancados, eu próprio já
fui espancado por motivo nenhum, a gente num tava com droga com
nada, tava dormindo. Aí eles já chegou já batendo na gente, mandou a
gente sair de lá, tomou a coberta, bateu um bocado, depois que bateu
soltou a gente, sem a gente fazer nada (Lucas, 17 anos).
De acordo com os adolescentes entrevistados, a polícia recorre ao estereótipo de
exclusão que cria um modelo padrão para este contingente em situação de rua. Ou seja,
para a polícia, toda criança ou adolescente que está em situação de rua é infrator. É essa
visão que conduz suas ações. Enquanto mecanismo de defesa dos princípios do ECA, a
polícia torna-se um de seus maiores violadores, como nos afirma o adolescente
entrevistado:
Tem polícia que é ruim, que agride. Bruno (nome fictício) foi agredido
por um policial, um policial civil que disse que ele tinha acusado de ter
matado aí um pai com 3 filho esses dia aí. Aí depois levou ele pra um
sítio, aí bateu nele, botou a corda no pescoço dele. Ele é branco, aí deixou
ele amarrado, aí quando soltou ele, tava com aquela marcona de corda no
pescoço, num tava nem podendo andar direito, de tanto que apanhou da
polícia (João, 14 anos).
124
Segundo Feffermann (2006: 290), “A polícia, ao ser responsabilizada por todos os
problemas que ocorrem no sistema repressor, se vinga no jovem, dirigindo para ele toda a
raiva que não pode ser extravasada de outro modo”. Na visão dos adolescentes, a polícia
agride com base apenas na aparência física: “Nem todo mundo que tá na rua é
trombadinha, tem muita gente boa que não faz mal a ninguém” (José, 15 anos). Para eles, a
polícia utiliza sua antiga tática de bater primeiro, e perguntar depois. Logo, muitas crianças
e adolescentes são agredidos sem terem cometido qualquer tipo de infração, passando-se
ao largo de qualquer consideração. Feffermann (Idem) acrescenta a esta discussão a
seguinte afirmação: “[...] se os jovens são inscritos como foras-da-lei, ao representante da
lei é permitido apenas prender, encaminhar para os órgãos competentes e não maltratá-
los”. Ainda que tivessem cometido alguma infração, deveriam ser apreendidos e
submetidos a alguma medida sócio-educativa
90
. “Meus colegas foi um bocado morto pela
polícia. Não lembro quantos já foram mortos, mais de cinco já foi. Pra mim num tem coisa
perigosa na rua não, não sendo polícia” (Marcos, 16 anos).
Certamente, não se pode restringir a ação da polícia à violência, pois os próprios
adolescentes reconhecem que, dentro do corpo de polícia, existem os que se preocupam
com o bem-estar daqueles em situação de rua, procurando contemplar o ECA: “Tem muita
polícia boa, pega a gente, dá conselho, fala que a gente tá fazendo coisa errada, que num
pode. Tem polícia que vê que na rua não é bom para gente, tira nós, leva para o Conselho
Tutelar” (Sérgio, 16 anos).
A polícia é apenas um dos grupos agressores. Uma parcela da população parece
estar incomodada com a existência das crianças e adolescentes em situação de rua. Como é
90
Cf. Capítulo IV do Estatuto da Criança e do Adolescente.
125
o caso de comerciantes que visam expulsá-los dos centros comerciais. Para tanto, a
violência chega ao extremo da morte.
Fora a polícia tem uns caras que, se roubar e os cara pegar, também mata.
Por exemplo: eu vou roubar ali, eles pega e mata os cara, os que roubar
deles. Quem mata é o dono de loja (Marcos, 16 anos).
A necessidade que os lojistas têm de se protegerem dos roubos faz com que os
mesmos contratem empresas de segurança privada.
Tenho muitos amigos que apanhou. Na rua, tem mais gente que bate: a
Tecnoguard, Tecnoar, Ant, Sercop [empresas privadas de segurança]. A
Tecnoguard um dia deu um choque em Wagner [nome fictício], com sete
volts e o menino chegou desmaiar (Paulo, 13 anos).
Além da polícia e dos lojistas, existem os grupos não-identificados, que agem
durante a noite ou ao amanhecer do dia, quando a cidade se encontra semi-deserta,
abordando violentamente os que estão dormindo nas ruas. Esses grupos agridem e matam a
socos, pauladas, tiros, facadas e até mesmo ateiam fogo sobre os corpos que dormem
enrolados em cobertores.
[...] a pessoa num sabe se vai dormir, se vai acordar vivo, se num vai.
Pode tá dormindo ali, outra pessoa botar fogo na perna ou te queimar
todo. Eu tava dormindo, aí parou um carro e aí botou gasolina, picou
fogo, aí na hora que a pessoa assim acordou, quase na hora que os pé tava
pegando fogo, ele saiu se queimando ainda. Ele foi pro hospital que já
tava todo se queimado. Não foi a polícia, foi outras pessoas assim que
passa de carro assim de noite... de madrugada (João, 14 anos).
De acordo com os adolescentes, esses grupos são formados por pessoas de classe
média. Essa identificação é feita tendo como base os modelos de carros utilizados pelos
agressores. Como nos afirma João (14 anos), “Além da polícia, tem muitas pessoa que tem
126
muito dinheiro. Aí passa, muitas vez, já de manhã na rua com o carro, aí vê a pessoa lá,
junta assim o grupo, aí bate”.
No ano de 2004, a Unidade de Educação de Rua entrevistou 28 pessoas da
comunidade, perguntando sobre os principais problemas enfrentados pelas crianças e
adolescentes em situação de rua, podendo ser apresentada mais de uma hipótese. Os dados
obtidos revelaram que 48% responderam que o principal problema é a violência, 16%
destacaram a morte como fator principal, 72% atribuíram a culpa às drogas, 48%
destacaram a fome, 32% destacaram as doenças e 56% disseram que é o preconceito o
principal problema.
Perguntou-se também sobre o que poderia ser feito pela comunidade para ajudar
as crianças e adolescentes em situação de rua, obtendo-se as seguintes respostas: 32%
responderam que deveria dar comida, 36% que deveria dar dinheiro, 28% acreditavam que
a comunidade deveria fazer doações nos bairros, 40% acreditavam que a sociedade deveria
encaminhar todos eles para a escola e 48% acreditavam que se deveriam cobrar mais ações
dos governantes. Percebe-se aqui que grande parte da sociedade ainda vê no
assistencialismo o caminho para amenizar o sofrimento apresentado pelos que estão na rua.
No entanto, muitos visualizam na escola e nas demais ações governamentais o caminho
para a amenização dos problemas a que estão submetidas as crianças e adolescentes em
situação de rua.
No que se refere à escola, nota-se que as atividades desenvolvidas pelas crianças e
adolescentes em situação de rua burlam os códigos e normas impostas pelo Estado através
do sistema de educação que, segundo Sodré (1992: 67), “apenas educa para a submissão e
não para a formação de pessoas questionadoras, criativas e empreendedoras”. Os jovens
127
conhecem as normas e códigos fornecidos pelo Estado, mas só os respeitam quando lhes
fornecem algum benefício.
Segundo pesquisa feita por Ataíde com crianças e adolescentes em situação de rua
na cidade de Salvador, muitos vão à escola em busca de atividades diferentes das
consideradas educativas, o que acaba por provocar um conflito entre as prioridades
estipuladas por professores e alunos:
A professora era muito bruta, xingava muito e me chamava de retardado e
sujo. Um dia, briguei com uns filhinhos de papai, porque eles me
chamaram de “negro fedido”. Bati neles e fugi. Eles deram queixa na
escola. A diretora chamou minha mãe para dar queixa de mim. Aí nunca
mais voltei lá. Fiquei triste, porque perdi a merenda, mas, da escola, nem
senti falta (ATAIDE, 1996: 18).
Para quem vive acostumado à liberdade das ruas, inserir-se em uma escola
(vendo-se obrigado a ficar, durante horas, preso em uma sala de aula, obedecendo às
normas escolares às quais ainda não está acostumado), pode ser algo extremamente
desestimulante, sendo razão, para alguns, de abandono escolar. Muitos jovens ingressam
na escola no início de cada ano letivo. Entretanto, segundo Rizzini (1995: 95), sua
realidade interfere na permanência escolar e no final de cada ano a maioria ou desistiu “ou
foi aconselhada pela escola a voltar no ano seguinte para tentar novamente”. Sabe-se
também que outras crianças e adolescentes não freqüentam ou nunca freqüentaram a
escola, muitos por falta de tempo, devido às atividades da rua e outros por não gostarem.
As famílias compostas, na maioria, por analfabetos, deixam a escola para segundo plano
frente à prioridade que é a sobrevivência.
Fato semelhante é visualizado quando a análise se refere aos programas de ação
educativa complementar:
128
O Conselho [Tutelar] pegava e conversava, perguntava por que a gente
tava na rua, conversava normalmente assim. Num pegava na força pra
levar sem a pessoa querer. A gente tentava, a gente ia, fazia um esforço,
mas num tinha jeito – a gente voltava pra rua, sempre voltava (João, 14
anos).
O relato trata da ação do Conselho Tutelar e do encaminhamento para os
programas de ação educativa complementar. No entanto, importa ressaltar que os
programas governamentais, mesmo reconhecendo que crianças e adolescentes em situação
de rua devem usufruir de todos os direitos estabelecidos pelo ECA, configuram-se como
políticas públicas que funcionam de forma precária, e não contam com uma rede de
garantia de direitos capaz de atender de forma qualitativa às crianças e adolescentes em
situação de rua.
Despertar o desejo de mudança nesses jovens, de modo que os mesmos construam
seu projeto de futuro longe da rua, torna-se inviável quando não há mecanismos que
possibilitem a prática desses desejos. Verifica-se em Vitória da Conquista que os próprios
projetos destinados a atender às crianças e adolescentes em situação de rua acabam por
excluí-los. Como relata um adolescente:
Eu acho que muitos não ficam no Programa Conquista Criança é por
causa que já ta tão viciado em droga, e num consegue muito viver assim,
já é livre. Vive livre, num é costumado viver com o pessoal do projeto e
deve ter muitos também que desfaz, porque a pessoa usa, e tem uns que
num usa; os que é de família, que também faz parte do projeto, sempre
critica, fica xingando “olá o cheira thinner”, isso e aquilo. Aí ele fica
revoltado e torna voltar pra rua. No projeto, há um preconceito bem
grande. Sempre, vira e mexe, tem um discriminando o outro, em vez de
ajudar, acolher, ficar discutindo e tudo. Aí ele revolta e volta pra rua, e às
vezes, volta pior (Lucas, 17 anos).
129
Cabe ressaltar que a não-compreensão das características dos que estão em
situação de rua por parte dos programas de ação educativa complementar é, muitas vezes, a
responsável pelo insucesso das inúmeras políticas públicas executadas pelo governo,
impossibilitando o alcance de resultados qualitativos.
Vale destacar que essa não-permanência das crianças e adolescentes nos
programas e sua ocupação dos espaços públicos urbanos denunciam os problemas sociais
existentes no Brasil e que, muitas vezes, ficam esquecidos nas periferias
91
. No momento
em que as crianças e adolescentes abandonam os internatos, os programas da ação
educativa complementar, os abrigos e as escolas, e passam a transitar nos centros urbanos,
tornam-se “grandes outdoors” denunciando os problemas sociais e forçando a elaboração
de políticas públicas direcionadas à população pobre.
3.2. Percepções e expectativas
Durante a pesquisa, os adolescentes também foram indagados sobre suas
expectativas para o futuro. Pode-se perceber que todos fazem planos para um futuro longe
da rua. Esta é uma questão crucial para a análise no próximo capítulo, pois entre as suas
prioridades estão: trabalhar, estudar, conseguir uma moradia digna. Todavia, para as
crianças e adolescentes, esse futuro é jogado para o horizonte etário, só quando atingirem
18 anos, fase em que almejam adentrar o mundo do trabalho.
O que eu pretendo fazer na minha vida é assim: arrumar qualquer coisa
assim, chegar os 18 anos, arrumar um emprego que dá pra mim, podia ser
91
Sobre essa afirmação, veja-se Leite (2001).
130
de serigrafia ou então de outra coisa, outra pra ganhar o dinheiro (Pedro,
16 anos).
Mesmo havendo embates com a polícia e a não-adaptação aos programas de ação
educativa complementar, muitas crianças e adolescentes ainda sonham em compor estes
grupos no futuro. Muitos pensam em ser policiais ou educadores sociais.
O futuro pra mim é estudar e se formar pra ser um bombeiro, pode ser
polícia, pode ser qualquer coisa. Num sei por que quero ser polícia, tem
uns que morre, que eles quer ser muito machão... Pode ser médico, o que
Deus quiser que eu seja eu posso ser, médico, policial ou outra coisa
(Paulo, 13 anos).
Eu quero é estudar mais pra poder chegar na frente arrumar um emprego
bom, comprar uma casa pra mim morar, num ficar muito dependendo da
minha família. Depender da família é meio ruim, eu quero aprender uma
profissão pra poder arrumar um emprego bom. Meu sonho é ser mestre de
capoeira, pra dar aula de capoeira pra outras pessoas. Aprender, ensinar
aquilo que eu aprendi. Eu quero ter filhos, mas eu não quero que eles
fiquem na rua (João, 14 anos).
O futuro dessas crianças e adolescentes está diretamente ligado às políticas
públicas implantadas no município. Por estes relatos, foi possível perceber a inexistência
ou precariedade das políticas públicas municipais que realmente tragam mudanças
significativas para as famílias e para as crianças e adolescentes em situação de rua. A
violência a que são submetidos faz com que a exclusão social crie raízes cada vez mais
fortes, tornando esse cotidiano de exclusão a regra quase permanente. A violência, muitas
vezes, traz fim para muitos sonhos. Segundo Feffermann (2006: 204), para muitos jovens,
devido às situações inusitadas, “[...] o momento presente é o único tempo que lhes é
possível” e seu futuro é, muitas vezes marcado pela morte.
131
Observou-se, durante a pesquisa, a violação contínua do Estatuto da Criança e do
Adolescente, principalmente por parte daqueles a quem cabe seu cumprimento. Assim, o
próximo capítulo dedica-se a analisar o discurso do poder público municipal, no que se
refere ao atendimento à criança e ao adolescente em situação de rua, tendo por base as
entrevistas feitas com os agentes sociais.
132
Capítulo IV
Políticas públicas, programas e projetos para a população infanto-juvenil
em Vitória da Conquista
O partido (PT) quer, pretende e está fazendo as transformações dentro do
marco da democracia representativa, dentro do marco das instituições
liberais do Estado brasileiro. Isso exige paciência. São mudanças no
comportamento, nas instituições. A capacidade de atender materialmente
um contingente de pessoas é limitada. Mas a opção preferencial pelos
pobres, com política de inclusão para conter a barbárie, a saúde pública,
programa de habitação, o combate à fome, o programa de agricultura
familiar, essas políticas vão ter um efeito extremamente positivo na
condição de amplas massas de brasileiros. Nossa expectativa é que
crescentemente continue esse repasse de renda e de riqueza para a
população, porque é a condição histórica do nosso modelo ser
sustentável, do nosso projeto ser mais duradouro, independente de perder
ou não as eleições em algum momento.
92
Os dados contidos no capítulo anterior, referentes às crianças e aos adolescentes
em situação de rua, apontam que as ações dos órgãos de garantia de direitos continuam
lentas e que, muitas vezes, ao invés de protegê-los, continuam violentando-os, ignorando o
Estatuto da Criança e do Adolescente e agindo com se fossem conduzidos à luz do extinto
Código de Menores.
92
Trecho da entrevista concedida pelo Prefeito José Raimundo Fontes à Agência Carta Maior, no dia
07/12/2004. Esta entrevista nos foi gentilmente cedida pelo Prefeito.
133
No entanto, os mesmos dados também demonstram que os órgãos de garantia de
direitos têm conseguido ganhar credibilidade junto às crianças e adolescentes em situação
de rua. Segundo informações da Unidade de Educação de Rua (UER), no final da década
de 1990, até meados de 2005, crianças e adolescentes em situação de rua não conseguiam
visualizar os órgãos de garantia de direitos como mecanismos de proteção. Desta forma, a
maioria não os procuravam em caso de violação de seus direitos por parte da sociedade em
geral.
Dados levantados no ano de 2004 pela UER detectaram diversos problemas na
ação dos órgãos que deveriam garantir os direitos à população infanto-juvenil. A UER,
enquanto a única ação governamental de atendimento direto existente na cidade, tinha,
muitas vezes, seu trabalho impossibilitado pela polícia, devido à forma agressiva e violenta
com que esta os trata, desrespeitando a legislação que deveria cumprir.
Cabe ressaltar que as crianças e adolescentes em situação de rua não têm sido
atendidos pelos órgãos que deveriam garantir seus direitos. Por isso, esta pesquisa
objetivou investigar alguns órgãos ligados ao Governo Municipal. Assim, foram realizadas
entrevistas com representantes do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do
Adolescente (CMDCA), da Coordenação de Assistência à Criança e ao Adolescente
(CACA), do Programa Conquista Criança, do Programa de Erradicação do Trabalho
Infantil (PETI), do Programa Agente Jovem e do Projeto Juventude Cidadã.
134
4.1. O Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente
A escolha do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente
(CMDCA)
93
como fonte de pesquisa deu-se por conta de ser o responsável pelo
acompanhamento de todas as ações referentes às crianças e adolescentes realizadas pelo
Conselho Tutelar. Assim, por meio do CMDCA, foi possível levantar dados importantes.
O CMDCA (conhecido no município como COMDICA), foi criado, em Vitória da
Conquista, no dia 08 de novembro de 1991, pela Lei Municipal Nº 607/91. Junto com ele,
foi criado também o Fundo Municipal da Infância e da Adolescência.
Como nos afirma Santos (2007:199), o CMDCA só foi instalado oficialmente em
Vitória da Conquista no ano de 1995, através da edição da Lei Municipal N° 792/95, do dia
03 de julho de 1995. Esta Lei revogou alguns artigos da Lei N° 607/91 e criou o Conselho
Tutelar. Estabelecia o número de 24 conselheiros, distribuídos paritariamente entre
representações governamentais e não-governamentais. As funções atribuídas aos membros
dos Conselhos são consideradas de interesse público relevante e não podem ser
remuneradas
94
.
Entretanto, durante o período de implantação do CMDCA até o ano de 1996, as
gestões dos prefeitos Murilo Pimentel Mármore (1989-1992) e José Fernandes Pedral
Sampaio (1993-1996), ambos do PMDB, não possibilitaram o funcionamento pleno e,
conseqüentemente, inviabilizaram o funcionamento do Conselho Tutelar, tendo em vista
este estar diretamente ligado ao CMDCA. Santos (op. cit.) aponta que os governos citados
93
Os Conselhos de direitos devem ser criados no âmbito federal, estadual e municipal, conforme o Artigo 88
do Estatuto da Criança de o Adolescente. Segundo o inciso II deste artigo, os Conselhos de Direitos são
“órgãos deliberativos e controladores das ações em todos os níveis, assegurada a participação popular
partidária por meio de organizações representativas, segundo leis federais, estaduais e municipais”.
94
Cf. artigo 89 do Estatuto da Criança de o Adolescente.
135
não aceitavam a participação das organizações populares, centralizando o controle do
CMDCA na administração pública municipal, impossibilitando seu real funcionamento. De
acordo com a Presidente da Associação dos Amigos do Bairro Conquistinha e São Luis,
“Eles (os prefeitos) não nos ouviam, não nos consideravam como pessoas que tinham
propostas e compromissos com as crianças, não aceitavam nossa presença na mesa deles”
(Apud SANTOS, 2007: 198). Cabe ressaltar que não havia também uma preocupação com
as crianças e adolescentes em situação de rua, como noticiava a imprensa local:
Conquista começa a apresentar sintoma de desajuste social dentro do seu
espaço urbano, particularmente no que diz respeito ao grande número de
menores abandonados que trafegam no centro da cidade, transitam nos
bairros periféricos, dormem sob marquises à noite e saem pelas ruas da
cidade durante o dia mendigando, roubando e até mesmo se envolvendo
com drogas. A nossa “Candelária” também existe, ainda que em
proporções diferentes – aqui os meninos de rua, ou menores abandonados
não têm direitos à educação, à saúde, à moradia e até o mais básico de
todos, à alimentação. [...] Outra causa da mortalidade infantil que já está
chegando em Conquista é o abandono em que estão as crianças de rua.
São crianças pobres que fogem de casa ou são abandonadas pelos pais.
Para sobreviverem (arranjar comida e roupa), elas aprendem a roubar e
furtar e são violentadas por marginais ou presas pelos policiais, que
muitas vezes espancam os meninos de rua. Não tendo onde morar,
dormem debaixo de marquises, nas portas das lojas, envoltas em jornais e
papelões (Jornal Hoje, 23/11/1994: 02).
O surgimento do CMDCA, que deveria trazer um novo panorama à garantia dos
direitos infanto-juvenis, otimizando programas sociais, poucas mudanças significativas
trouxeram, mantendo as crianças e adolescentes pobres em espaços, via de regra,
excludentes.
136
Tanto o CMDCA quanto o Conselho Tutelar só passaram a funcionar
efetivamente a partir do ano de 1997, durante a primeira gestão do prefeito petista
Guilherme Menezes de Andrade (1997-2000). Isto se deu, fundamentalmente, ao se
abrirem os programas do governo para a participação dos movimentos populares. Assim, o
CMDCA teve participação importante na agenda do governo e na implantação da política
de atenção à criança e ao adolescente iniciada no ano de 1997. Foi criado o Programa
Conquista Criança e, a partir da articulação das instituições governamentais e não-
governamentais que compunham o CMDCA, criou-se a Rede da Atenção e Defesa da
Criança e do Adolescente, instituindo uma política conjunta e coerente de atenção às
crianças e adolescentes.
Inicialmente, a antiga formação do CMDCA, estabelecida pela Lei Municipal N°
792/95, foi alterada em 2006 pela Lei Municipal N° 1328/06. Assim, o número de
conselheiros passou de 24 para 12, paritariamente distribuídos entre governamentais e não-
governamentais
95
. Anteriormente, o quadro de conselheiros do CMDCA era formado, em
sua maioria, por entidades que não representavam as crianças e adolescentes. Na nova
composição, que segue orientações do CONANDA, os conselheiros estão divididos em
dois grupos. Governamentais, compreendendo as secretarias de Educação, Saúde, Cultura,
Esporte e Lazer Desenvolvimento Social, Econômica e Comunicação. Não-
governamentais, representados pelas pastorais, creches, instituições de atendimento a
95
“Os 24 cargos de conselheiros criados pela Lei Municipal N° 792/95 estavam assim distribuídos: (a)
Governamentais – quatro da Prefeitura Municipal, dois de órgãos estaduais com sede no município, um da
Junta Militar, um da Polícia Militar, um do INSS, um da Delegacia do Trabalho e dois representantes da
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia; (b) Não-governamentais – Associação Comercial e Industrial
de Vitória da Conquista, Sindicato do Comércio Varejista e Atacadista de Vitória da Conquista, Lojas
Maçônicas de Vitória da Conquista, União Espírita, Federação Municipal das Associações de Moradores,
Diocese de Vitória da Conquista, Creches Comunitárias, Associação dos Evangélicos de Conquista,
Associação Médica, Ordem dos Advogados do Brasil (Sub-seção de Vitória da Conquista), Comissão Pró-
CUT (Regional de Vitória da Conquista), Sindicato dos Jornalistas da Bahia (Seção de Vitória da
Conquista)”. Cf. Santos (2007: 200.
137
portadores de necessidades especiais, instituições para cumprimento de medidas sócio-
educativas, entre outras.
De acordo com o Presidente do CMDCA
96
, nos últimos anos, compreendendo o
final da segunda e início da terceira gestão do PT, o CMDCA passou a enfrentar uma série
de dificuldades, tanto na manutenção de sua estrutura física quanto na execução de ações
deliberativas. Apesar de ter uma ampla rede de atendimento à criança e ao adolescente, a
maioria dos membros das instituições e programas desconhecem as funções do CMDCA e
são muitos destes que compõem o quadro de Conselheiros. Ainda, segundo o Presidente:
A própria estrutura do Conselho é um problema, pois o conselheiro chega
sem saber qual é realmente o seu papel, e a maioria infelizmente não se
empenha na busca de conhecimento, estudar, saber como funciona o
Conselho enquanto instância deliberativa, e isso vem dificultar os
trabalhos. A prova disso é que, em abril de 2006, nos deparamos com a
dificuldade de montar um projeto de ação.
Nota-se, com base no relato acima, que o Estatuto da Criança e do Adolescente
continua sendo pouco divulgado, o que se reflete no despreparo dos agentes sociais. Pode-
se afirmar também, com base em Oliveira (2003b), que a “vocação” filantrópica
introduzida pelo capitalismo possibilitou o crescimento do número de empregos na área
social, o que, no entanto, não supre a falta de pessoas capacitadas. A ausência de
capacitação acarreta a má qualidade dos atendimentos. Nota-se também que o governo
neoliberal, que assumia a postura de “Estado mínimo” e incentivava a criação de
organizações não-governamentais, atualmente investe na criação de diversos programas
sociais, “inchando” as redes de garantia de direitos e acirrando a disputa por espaços de
trabalho. Para o presidente, houve um retrocesso na implantação da política de atenção à
96
Entrevista realizada com o Presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente,
em Vitória da Conquista, no dia 04 de setembro de 2007.
138
criança e ao adolescente após a chegada dos programas federais: “Quando chegam esses
programas federais, tudo passa a girar em torno deles. De certo modo, nós temos uma
crítica dentro do próprio Conselho”. Desta forma, os programas federais assumiram o
desenvolvimento de um trabalho que antes só era feito pelas esferas não-governamentais.
Mesmo o Conselho sendo composto paritariamente por representantes de órgãos
governamentais e não-govenamentais, segundo o presidente, ainda há dificuldades de
diálogos entre ONG´s e administração municipal. Existem setores do Governo que não
reconhecem o trabalho exercido pelo CMDCA, e esse não-reconhecimento interfere na
aplicação de recursos necessários ao seu funcionamento.
No que se refere à atenção às crianças e aos adolescentes, somente no ano de
2006, iniciou-se uma pesquisa para diagnosticar sua situação no município. Assim, o
Conselho não conta, atualmente, com dados significativos sobre este grupo, e
principalmente sobre aqueles que estão em situação de rua.
Cabe ressaltar que o CMDCA reconhece a existência de um grande número de
crianças e adolescentes em situação de rua no município e a carência de programas de
atendimento a eles. Mesmo estando há mais de uma década em funcionamento, o
Presidente do CMDCA revela que, o conselho só poderá pensar em ações de atendimento
após encerrado o seu diagnóstico, o que está previsto para 2008. Conforme ele, o
diagnóstico apontará que tipo de adequação precisará acontecer nas instituições e
programas para que possam atender às crianças e adolescentes em situação de rua. Por
tratar-se de uma instância deliberativa, a execução de ações não faz parte das competências
do CMDCA, logo, o Conselho trabalha para que um plano de ação seja formulado.
139
É como instância deliberativa que o CMDCA realiza, de dois em dois anos, a
Conferência Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. Esta produz relatórios
que indicam a problemática do município e apontam as prioridades que devem ser
inseridas na agenda do governo. Tais informações deveriam servir de base para a
construção do plano de ação do CMDCA. No entanto, tais discussões parecem findar-se
após a conferência nacional
97
, voltando a ser retomada na conferência seguinte. Nota-se o
desrespeito às deliberações das conferências. Segundo o presidente, o CMDCA
encaminhou, em 2007, um relatório da Conferência para o Ministério Público, Governo
Municipal e Juizado da Infância e da Juventude, no intuito de que as deliberações nela
tomadas fossem reconhecidas.
Os resultados das conferências já apontaram a não existência de instituições de
atendimento às crianças e adolescentes em situação de rua. Assim, de acordo com o
presidente, o “CMDCA tem cobrado do Governo Municipal melhor estruturação das
instituições, para este atendimento [...] já que o Conquista Criança não atende às
necessidades do público”. Todavia, não há previsão de quando, ou se algo será feito.
Conforme dados do próprio CMDCA, o número de crianças e adolescentes em
situação de rua violentados no município tem crescido muito, e o próprio presidente
reconhece que essa violência parte, muitas vezes, dos próprios órgãos que deveriam
promover a sua segurança. Afirma que:
[...] nos últimos tempos, tem crescido o número de execução de crianças
e adolescentes [...] e nós propomos que o próprio Ministério Público
acompanhe mais de perto. Mas aí nós ainda temos aquela grande falha:
não tem delegacia especializada, não tem área especializada para infância
97
No mesmo ano, são realizadas as conferências municipal, estadual e nacional. Os resultados da conferência
municipal são levados para a discussão na estadual, que também elabora um relatório para a conferência
nacional.
140
e juventude. [...] O que nós fizemos, então, enquanto Conselho, foi fazer
uma espécie de reunião com todos os órgãos de segurança [...] para que
pudéssemos tratar um pouco dessa situação. Mas o que vimos é que,
dentro das próprias corporações, não existe vontade de mudar aquela
atitude, atitude de repressão, de bater e tal, por aí vai.
Este relato só elucida as afirmações feitas pelos adolescentes no capítulo anterior:
os policiais são os grandes violadores dos direitos das crianças e adolescentes em situação
de rua. Parece haver um desprezo por parte dos policiais em relação ao ECA e aos direitos
que este estabelece. Esta afirmação se evidencia no trabalho de Abramovay (2004:158),
que, ao estudar as relações entre polícia e ECA, conclui que “[...] os policiais dizem que
muitos adolescentes manipulam o Estatuto, aproveitando-se da sua condição de
menoridade para praticar crimes e delitos que não podem ser devidamente punidos”. O
mais impressionante é que os órgãos que representam o ECA possuem dados
comprobatórios dessa violência, mas pouco têm feito para solucionar este problema. Até
meados do ano de 2007, já haviam sido executadas mais de 20 crianças e adolescentes, e se
desconhece a maioria dos autores. Somando-se os anos de 2006 e 2007, o número já
ultrapassa 37, sem contabilizar crianças e adolescentes que desapareceram da cidade, não
podendo ser determinados como óbito
98
.
Sobre essa problemática, Zaluar (2004: 214), ressalta que:
As pesquisas mais recentes confirmam o que vinha sendo reiterado em
vários trabalhos sobre as mortes violentas entre adolescentes acima de 14
anos de idade, em sua maioria assassinados provavelmente por outros
jovens da mesma idade e por policiais corruptos.
Existe, em Vitória da Conquista, uma Vara da Infância e da Juventude, uma
Promotoria da Infância da Juventude, um CMDCA, um Conselho Tutelar, uma Rede de
98
Dados fornecidos pelo Presidente do CMDCA durante a entrevista.
141
Atenção e Defesa da Criança e do Adolescente, além de diversas outras instituições e
programas de defesa dos direitos das crianças e adolescentes. No entanto, parece existir um
abandono dos jovens em situação de rua. Após 17 anos de implementação do ECA, o
CMDCA mostra-se ineficiente como afirma o presidente:
Por incrível que pareça, a gente não entrou ainda com nenhuma ação
purgativa. [...] Nós estamos ainda naquela da conversa e fazer reunião
com juiz e tudo, mas não oficializada. [...] E talvez hoje o Conselho
peque por isso, para fazer a política da “boa vizinhança” e não bater de
frente. [...] As poucas ações de garantia de direitos das crianças e
adolescentes em situação de rua originam-se do Conselho Tutelar.
Entretanto, a ação do Conselho Tutelar é, muitas vezes, interrompida pela falta de
infra-estrutura de funcionamento e pela carência de instituições que formem uma
retaguarda de apoio.
O próprio Conselho Tutelar tem dificuldades de acompanhar, [...] é uma
dificuldade imensa. Em um município com 300 mil habitantes, hoje era
para nós termos, no mínimo, três Conselhos Tutelares e nós só temos um,
e com deficiência de equipamentos (Presidente do CMDCA).
O Conselho Tutelar deveria ser um órgão de garantia de direitos, de
acompanhamento às ações de atendimento e de cumprimento do ECA. A ausência de
estrutura reforça o fato de que o poder local tem grandes dificuldades em cumprir a
legislação
99
. “Então, é difícil, mas a gente espera que, logo logo, possa dar um
encaminhamento para que isso mude” (Presidente do CMDCA).
99
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Título V, Capítulo I: Artigo 132) determina que “Em cada
município, haverá, no mínimo, um Conselho Tutelar composto de cinco membros, escolhidos pela
comunidade local para mandato de três anos, permitida uma recondução. Parágrafo Único – Constará na Lei
Orçamentária Municipal previsão dos recursos necessários ao funcionamento do Conselho Tutelar”.
142
4.2. O Programa Conquista Criança
Segundo dados do governo municipal, durante seus 10 anos de existência, o
Programa Conquista Criança buscou consolidar sua ação, assegurando a manutenção da
qualidade do atendimento e a ampliação do número de crianças e adolescentes atendidos.
Nesta direção, buscou estabelecer parcerias com programas e instituições (Programa
Sentinela, Conselho Tutelar, Juizado da Infãncia e da Juventude, Conselho Municiapal da
Defesa da Criança e do Adolescente, Rede de Atenção e Defesa da Criança e do
Adolescente e Programa de Erradicação do trabalho Infantil). Nos últimos anos,
estebeleceram-se mais duas parcerias: com o Projeto Juventude Cidadã e com o Programa
Agente Jovem.
Atualmente, o Conquista Criança atende a cerca de 400 crianças e adolescentes
na Unidade Central, excluídos deste total os jovens atendidos no Núcleo de Produção e na
Unidade de Acolhimento Noturno.
Ao ser criado, em 1997, o Conquista Criança destinava-se exclusivamente a
atender às crianças e adolescentes em situação de rua nas unidades Central e Acolhimento
Noturno. Devido à necessidade de ampliação do atendimento, passou, em 1998, a atender a
todos os que estavam em situação de risco.
Objetivando continuar a atender às crianças e adolescentes em situação de rua,
criou-se em 1999, a Unidade de Educação de Rua, o que possibilitaria um trabalho prévio
que integraria crianças e jovens às demais Unidades. Assim, o Programa Conquista
Criança continuaria a atender, na Unidade Central, a crianças e adolescentes com
problemas variados. Notada a dificuldade de atendimento aos que provinham da situação
de rua e aos que mantinham vínculo familiar na mesma Unidade, optou-se, em 1999, em
143
criar a Unidade da Zona Oeste. Esta visava a atender, exclusivamente, às crianças e
adolescentes em situação de rua. No entanto, a desatenção governamental para com o
grupo infanto-juvenil em situação de rua provocou a desativação da Unidade da Zona
Oeste em 2000, mesmo período em que a Unidade de Educação de Rua passava a
enfrentar dificuldades que culminaram em sua desativação.
Nota-se que o programa governamental que havia sido criado para atender
exclusivamente às crianças e adolescentes em situação de rua mudou seu foco de
atendimento. Atualmente, o Programa Conquista Criança justifica não ter condições de
atendimento, o que se evidencia na afirmação da Coordenadora de Assistência à Criança e
ao Adolescente
100
:
[...] quando ele surgiu há 10 anos atrás, surgiu exatamente para atender
esse perfil. Ao longo desses anos, esse objetivo foi mudando, pela vinda
dos outros programas, pela ampliação do próprio Conquista Criança. Aí
o resultado é que, durante esses dez anos, esse trabalho foi deixando de
ser feito, deixou de existir educação de rua.
A Unidade de Acolhimento Noturno é a única ação do Programa Conquista
Criança que atende a crianças e adolescentes em situação de rua. No entanto, segundo a
Coordenadora de Assistência à Criança e ao Adolescente, a Unidade trata-se de “uma casa
de passagem”, trabalhando com demanda espontânea, onde depende das crianças e
adolescentes a procura de atendimento. Ou devem ser encaminhados pelo Conselho Tutelar
ou qualquer outra instituição da Rede. Cabe ressaltar que o atendimento prestado pela
Unidade de Acolhimento Noturno é em regime de abrigo. Assim, algumas crianças e
adolescentes a utilizam apenas para pernoitar, voltando à rua no dia seguinte.
100
Entrevista com a coordenadora de Assistência à Criança e ao Adolescente do município de Vitória da
Conquista, realizada no dia 10 de setembro de 2007.
144
Esta Unidade foi, muitas vezes, considerada uma extensão da família, para onde
as crianças e adolescentes em situação de rua iam se alimentar, tomar banho, assistir à
televisão, criar animais de estimação e dormir. A “Casa de Acolhimento, muitas vezes, já
foi vista como uma casa mesmo, casa de família para aqueles meninos e eu penso que isso
vai muito de quem está à frente, na direção” (Coordenadora de Assistência à Criança e ao
Adolescente). Para as crianças e adolescentes, a Unidade de Acolhimento Noturno servia
apenas como abrigo ou refúgio. Após pernoitar na Unidade, todos retornam à rua. Todavia,
é importante ressaltar que, muitas vezes, a mesma fica deserta por falta de demanda
espontânea.Tais informações apenas evidenciam que a rua apresenta-se mais atrativa do
que os programas existentes.
A pesquisa mostrou também que a bolsa-auxílio apresenta-se como o principal
atrativo do Programa Conquista Criança. No início do funcionamento do programa era a
exigência de freqüência para o recebimento da bolsa que mantinha a assiduidade dos
educandos. Atualmente, como afirma o coordenador do Programa
101
, há um incentivo do
Governo, “[...] para que, cada vez mais, os educandos sejam cadastrados dentro do
programa de bolsas federais [...] eles recebem as bolsas mesmo sem estarem participando
das atividades do Programa”.
Com isso, muitas famílias não se importam se o filho está ou não participando de
um programa de ação educativa complementar. O importante é o recebimento da bolsa que
os fixa cada vez mais naquilo que Oliveira (2003: 103) denominou como “territórios da
pobreza”.
101
Entrevista com o coordenador do Programa Conquista Criança, realizada no dia 23 de agosto de 2007.
145
Todas as mudanças do sistema de atendimento impulsionadas pelos projetos
federais, fizeram com que Programa Conquista Criança repensasse sua metodologia de
trabalho, avaliando principalmente os objetivos de sua criação. De acordo com o
coordenador,
O Programa tem que ser reinventado, mas, ao mesmo tempo, se ele for
tão reinventado, tão modificado, ele se desfaz, porque há uma estrutura
que foi formada e ele precisa ser pensado com responsabilidade. O
Programa Conquista Criança tornou-se uma política sólida e assim, ele
ainda existirá por muitos anos. O desafio para dez anos é que o Conquista
Criança se reinvente.
A reinvenção do Programa Conquista Criança tem como principal finalidade a
adequação às exigências do governo federal, tendo em vista que boa parte dos recursos que
mantém o Programa provém das parcerias com programas federais, como o PETI e o
Agente Jovem.
Essa nova política de atendimento distancia cada vez mais o Programa Conquista
Criança dos jovens em situação de rua. Segundo o coordenador, o Programa não dispõe de
estrutura para atender às crianças e os adolescentes em situação de rua, e o atendimento a
este público não pode ser considerado de exclusividade do Programa, mas sim uma
responsabilidade de todo o município.
[...] é preciso trabalhar em rede. Eu acho, cada vez mais, que esse é o
caminho, trabalhar com a escola [...] a Igreja, as instituições, o Estado, a
sociedade em geral. Essas instituições trabalham muito isoladas, e esse é
o desafio: trabalhar em rede.
146
Assim como os demais programas, o Conquista Criança tem se configurado como
uma política pontual e tem tido bons resultados naquilo que objetiva, mas, ainda não se
propõe a atender aos que estão em situação de rua, como afirma o coordenador:
[...] a rua começa a ser deixada de lado. A rua não é priorizada. O espaço
da rua não é visto como um espaço produtivo do ponto de vista de
educação. Eu não vejo ninguém, na política municipal, que efetivamente
defenda hoje uma proposta de política de educação na rua.
De acordo com o coordenador, “[...] esse é o grande desafio da administração
municipal, conseguir gerar essa política de atenção à criança e ao adolescente”. Afirma
ainda que já se discute uma nova proposta de trabalho de educação de rua, devido a sua
extrema necessidade.
Sobre essa afirmação, a Coordenadora de Assistência à Criança e ao Adolescente
garante que já se discute o retorno ao atendimento das crianças e adolescentes em situação
de rua no Programa Conquista Criança, o que depende apenas de articulações que devem
ser feitas no âmbito da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SEMDES).
Todavia, percebe-se que não há previsão de que isso venha a acontecer a curto prazo.
4.3. O Programa de Erradicação do Trabalho Infantil
O Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) é um programa de
transferência direta de renda do governo federal para as famílias de crianças e adolescentes
147
que sofrem algum tipo de exploração do trabalho infantil
102
. Esse repasse de renda é feito
através de co-financiamento das três esferas de governo: federal, estadual e municipal.
O objetivo geral do PETI é combater toda e qualquer forma de exploração do
trabalho que envolva crianças e adolescentes, na faixa etária dos 7 aos 15 anos,
possibilitando sua saída destas atividades. Em substituição às atividades de trabalho, o
PETI oferece uma bolsa de incentivo financeiro e exige que as famílias mantenham as
crianças e adolescentes freqüentando a escola. No turno oposto ao da Escola, são
oferecidas atividades de ação educativa complementar dentro de suas jornadas ampliadas.
Essas atividades
[possibilitam] aos educandos a oportunidade de desenvolverem suas
potencialidades, através das atividades Sócio-Educativas de Vivência que
lhes possibilitem uma formação para o exercício da cidadania,
proporcionando às famílias apoio e orientação por meio de ações socio-
educativas e ofertando projetos de geração de trabalho e renda
103
.
Compreendendo-se as atividades das crianças e adolescentes que estão em
situação de rua enquanto trabalho, estes se tornaram alvos inquestionáveis das ações do
PETI, já que são priorizadas as situações de trabalho, consideradas degradantes, em que se
encontram as crianças e adolescentes
104
.
102
Segundo o ECA (Artigo 60), “É proibido qualquer trabalho a menores de quatorze anos de idade, salvo na
condição de aprendiz”. A emenda constitucional nº 20, de 16 de novembro de 1998, estabelece que somente
os adolescentes entre 16 e 18 anos podem ingressar no mercado de trabalho, em atividades que não sejam
perigosas, insalubres ou noturnas.
103
Texto extraído do relatório anual do PETI, referente ao ano de 2006.
104
Para o PETI, são consideradas degradantes as seguintes atividades de trabalho: “trabalhos em feiras,
trabalho ambulante, trabalho em lixões, trabalho como engraxate, trabalho como flanelinhas, distribuição e
venda de jornais e revistas, venda de drogas, trabalho na agricultura, trabalho em pedreiras, trabalho em
salinas, trabalho em olarias, trabalho em madeireiras, trabalho em tecelagem, trabalho na fabricação de
farinha e outros cereais, trabalho na pesca, trabalho em carvoaria, entre outros” (Texto extraído do relatório
anual do PETI, referente ao ano de 2006). O coordenador ainda acrescenta a mendicância e a venda de drogas
enquanto trabalhos reconhecidos pelo PETI.
148
Atualmente, o PETI de Vitória da Conquista funciona com 40 núcleos,
subdivididos em 100 jornadas ampliadas. Os 40 núcleos funcionam em espaços físicos
alugados (unidades alugadas, espaços de igrejas, associações, escolas etc), atendendo, em
média, a 2800 crianças e adolescentes. Sua meta é atender a 3034 no ano de 2008. Segundo
o Coordenador do PETI, o ingresso das crianças no Programa respeita um cadastro do
Programa Bolsa-Família (CadÚnico), “porque lá já é feita visita e já tem todo perfil de
cada família, aquela que sofreu algum tipo de exploração sexual, aquela que sofre
exploração do trabalho”
105
.
No que se refere às crianças e adolescentes em situação de rua, suas atividades são
reconhecidas pelo PETI enquanto trabalho. Conforme o coordenador, com “A ida do filho
para rua, para mendigar, para poder conseguir recursos, muitas vezes, a família não tem
uma outra opção a não ser essa”, e isso se configura como trabalho. Afirma ainda que a
ida das crianças e adolescentes para a rua se dá, muitas vezes, por exploração da família,
tendo em vista a facilidade que eles têm em ganhar dinheiro. “Porque para sociedade é
muito mais sensível quando chega uma criança pedindo do que um adulto forte”.
Ainda, segundo o coordenador, muito recai sobre os ombros da família:
[...] o que a gente tem como concepção é o entendimento de deixar claro
para as famílias que, independente da sua condição social, a
obrigatoriedade da responsabilidade pela criança e pelo adolescente é do
pai e da mãe. Se não há condicionalidade para que eles possam estar
desenvolvendo esse atendimento, aí entram os programas, [...] para que
possa amenizar a situação de pobreza.
105
Dados obtidos em entrevista realizada com o coordenador do PETI em Vitória da Conquista, no dia 10 de
setembro de 2007.
149
Essa afirmação apenas contribui com o pensamento de Oliveira (2003) e situa o
PETI como uma política de “manutenção da pobreza”, ou de “amenização da pobreza”.
Complementa também o pensamento de Melo (2005:12), quando ela, em seu artigo sobre
“Gênero e Pobreza no Brasil”, assevera que um dos desafios “das políticas públicas anti-
pobreza é o de [...] impedir que as pessoas morram de fome”.
Para o Coordenador do PETI, o governo municipal tem se preocupado em atender
às crianças e adolescentes em situação de rua, quando prioriza o atendimento às famílias. O
trabalho está focalizado na prevenção
[...] é por isso que hoje o município desenvolve uma série de ações
buscando ofertar a essas famílias, e o PETI vem fazendo isso, [...]
formação nas áreas de pintura, de artesanato, de crochê, de macramé,
fabricação de sabão, para possibilitar às famílias uma oportunidade, para
que elas possam também angariar recursos. Aí a pergunta é: “Isso
resolve?” A gente ainda não mediu, mas eu tenho certeza que ajuda.
Nota-se que tal ação configura-se como um trabalho de prevenção e não de
erradicação, no que se refere aos que estão em situação de rua.
Tais informações, quando somadas às anteriores, apenas reforçam a teoria de que
não existe uma política pública de qualidade, direcionada às crianças e adolescentes em
situação de rua no município de Vitória da Conquista. No entanto, enquanto gestor público,
o coordenador afirma que tal política existe “ela é muito bem clara, até, por exemplo, a
estrutura que existe hoje foi criada em função dessa política”. Para corroborar sua
afirmação, cita o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), que agrega todos os
benefícios sociais, como principal referência de desta política, mesmo que os dados
demonstrem a inexistência de resultados positivos.
150
Pode-se afirmar que o governo instrumentaliza as famílias, possibilitando-lhes
condições de sobrevivência, mas não as retira dos “territórios de pobreza”.
[...] porque hoje a família ela passa a ter dignidade no sentido de ela ter
seu próprio cartão, ter uma data definida, não precisa estar pegando fila,
aguardar se o município vai ou não fazer o pagamento. Naquele mês, o
dinheiro já cai na conta dela de forma direta (Coordenador do PETI).
Talvez as razões do insucesso no atendimento às crianças e adolescentes em
situação de rua residam nesse modo de pensar a política pública municipal.
O coordenador enumera dois motivos para o não-atendimento às crianças e
adolescentes em situação de rua pelo PETI: 1) para serem atendidos, precisam estar
cadastrados no CadÚnico; 2) precisam de um atendimento que envolve uma estrutura
diferenciada da que o PETI disponibiliza. Quando o PETI verifica que uma das crianças ou
adolescentes está em situação de rua, é realizada a seguinte ação:
[...] Nesses casos, a gente tem encaminhado todos pro Programa
Conquista Criança, porque lá ele passa a ter um acompanhamento; no
turno oposto, ele vai para a escola e, no terceiro turno, [quando não há
possibilidade de retorno à família], ele vai para a Casa de Acolhimento.
Importa ressaltar que o Programa Conquista Criança não dispõe de condições
para atender a este público. Assim, conclui-se que as crianças e adolescentes em situação
de rua permanecem sem atendimento.
151
4.4. O Programa Agente Jovem
O Programa Agente Jovem de Desenvolvimento Social e Humano é uma ação do
Governo federal, implantada no município de Vitória da Conquista no ano de 2006, com o
objetivo de formar jovens lideranças que atuem dentro de suas comunidades em prol da
garantia de direitos
106
. Trabalha também criando mecanismos que possibilitem que tais
jovens freqüentem a escola que outrora fora por eles abandonada, devido às dificuldades
financeiras das famílias.
Diversos fatores fazem com que os adolescentes abandonem a escola, entre os
principais destacam-se o trabalho e a gravidez. Essa realidade fez com que o Programa
Agente Jovem definisse como seu principal objetivo atender aos:
[...] meninos que desistiram da escola, porque tiveram que trabalhar (ou
por outros motivos), meninas que engravidaram, tiveram filho muito
cedo. A gente trabalha na reinserção desses meninos na rede de ensino,
para que eles voltem a estudar, para que eles sejam modificadores tanto
dentro da escola, como dentro da comunidade, a partir das atividades que
a gente desenvolve no Programa
107
.
Ainda, segundo a coordenadora, as atividades desenvolvidas não se configuram
enquanto trabalho, mas possibilitam aos adolescentes a aquisição de saberes significativos
para sua vida comunitária, despertando seu desejo de permanecer na escola. Suas
atividades artísticas e culturais, desenvolvidas nos bairros de origem ou nas proximidades
das moradias dos adolescentes, pretendem envolvê-los no cotidiano da sua comunidade,
106
O Programa configura-se como uma ação de assistência social destinada a jovens com idades entre 15 e
18 anos, visando ao seu desenvolvimento pessoal, social e comunitário. A estes jovens é fornecida uma bolsa
de auxílio financeiro no valor de 75 reais por mês, para que abandonem as atividades de trabalho e
dediquem-se à escola.
107
Entrevista com a coordenadora do Programa Agente Jovem do município de Vitória da Conquista,
realizada no dia 05 de setembro de 2007.
152
possibilitando que os mesmos, com base na sua formação, transformem-se em agentes
capazes de mudar sua realidade local.
Os resultados do Programa Agente jovem são quantificados através das metas que
são estipuladas pelo Governo Federal.
[...] o Governo federal já manda as metas a serem atingidas, aqui no
município é de 200 jovens. No ano de 2006, nós cadastramos, 200 jovens,
sendo que, com freqüência regular até o final do projeto, nos só tivemos
146. Esse ano, nós também temos a meta de 200 adolescentes
(Coordenadora do Programa Agente Jovem).
Nota-se aqui uma preocupação com dados quantitativos também presente nos
demais programas. No entanto, diferentemente de outros programas, o adolescente não
precisa estar na escola para poder fazer parte do Agente Jovem, basta que, posteriormente,
seja inserido na rede regular de ensino e desenvolva as atividades do Programa no turno
oposto. Conforme a coordenadora, durante a seleção dos adolescentes, são sempre
priorizados os que têm baixa renda. O Programa não estabelece nenhuma condição para
que os adolescentes ingressem em suas atividades, com exceção da idade: “se não for
encaminhado por outro projeto aí a gente leva em consideração a renda” no momento do
ingresso.
Devido à estrutura do Programa Agente Jovem, verifica-se que este projeto
poderia atender aos adolescentes em situação de rua, tendo em vista que estes vêm de um
grupo de baixa renda. No entanto, como salienta a coordenadora, o Programa reconhece a
necessidade de efetuar um trabalho com os jovens em situação de rua e até já houve
tentativas de atendê-los,
153
Mas, como se sabe que, para aqueles meninos da rua participarem de um
programa, de um projeto, eles não conseguiriam se adaptar. O Programa
tem algumas normas de estar sempre no lugar, todo dia, naquele horário,
eles tiveram muita dificuldade com isso. Eu acho que isso é a falta de um
trabalho mais temático
(Coordenadora do Programa Agente Jovem).
O Programa Agente Jovem justifica a falta de estrutura para atender aos
adolescentes em situação de rua e a coordenadora afirma que os educadores não têm
capacitação para trabalhar com esse público. Para trabalhar com esses adolescentes,
[...] a gente sabe que tem que ter todo um cuidado, não é a mesma coisa
de se trabalhar com um adolescente que tem uma estrutura dentro de casa.
[Eles] podem dar alguns problemas para alguns educadores que num
sabem ainda lidar com eles. Então, eu acho que precisaria capacitar um
pouco mais os educadores para estar trabalhando, acolhendo esses
meninos (Coordenadora do Programa Agente Jovem).
Verifica-se que o Programa Agente Jovem, mesmo destinando-se a atender aos
adolescentes em situação de rua, vai priorizar o atendimento daqueles que ainda têm um
vínculo familiar. Em suas experiências, o Programa só principiou a atender aos
adolescentes em situação de rua que pernoitavam na Unidade de Acolhimento Noturno,
não conseguindo dar continuidade ao trabalho.
Não houve também por parte da Prefeitura uma capacitação dos profissionais que
atuariam no Programa Agente Jovem. Esta foi uma iniciativa dos funcionários:
[...] ao começar esse trabalho, houve toda uma preocupação da gente estar
fazendo estudos, e inclusive estudo sobre educação de rua, de como ela
funcionava e isso ajudou muito na hora da prática, porque tem
profissionais que vieram da saúde, da educação, mas que não tinham
experiência efetiva com turma ou com meninos de rua. Então, esses
154
estudos possibilitaram discussões com o grupo que ajudaram muito
(Coordenadora do Programa Agente Jovem).
Faz-se importante ressaltar que a falta de estrutura para o atendimento aos
adolescentes em situação de rua se dá por falta da aplicação efetiva de recursos que cabe ao
município. A contratação de profissionais sem experiência e a não capacitação dos mesmos
impedem que estes tenham condições de atender ao público em situação de rua. Faltam
também espaços públicos nos bairros, para que as atividades sejam desenvolvidas e faltam
recursos para deslocar os adolescentes para as áreas onde são desenvolvidas as atividades.
De acordo com a coordenadora, o fornecimento de locais adequados para o
desenvolvimento das atividades deveria ser uma contrapartida do Governo Municipal.
Esta faz criticas ao modelo de seleção dos educadores executado pelo governo
municipal, o que prejudica a ação do Programa,
[...] nem sempre, quando se trabalha em um projeto, é feita essa seleção
criteriosa dos profissionais. [...] às vezes, tem as indicações e isso, para
mim, atrapalha muito, porque você fica de mãos atadas. Alguém indicou
e você, de certa forma, tem que aceitar a indicação e nem sempre essa
indicação atende ao perfil. [...] nem sempre essa pessoa que vem indicada
tem condições de estar trabalhando (Coordenadora do Programa Agente
Jovem).
Cabe ainda ressaltar que a falta de estrutura para o atendimento aos adolescentes
em situação de rua se dá por falta da aplicação efetiva de recursos que cabe ao município.
Faltam também espaços públicos nos bairros, para que as atividades sejam desenvolvidas,
e faltam recursos para deslocar os adolescentes para as áreas onde são desenvolvidas as
atividades. Segundo a coordenadora, o fornecimento de locais adequados para o
desenvolvimento das atividades deveria ser uma contrapartida do Governo Municipal.
155
No que se refere ao investimento do Governo Federal, segundo a coordenadora,
“essa parte é cumprida. A gente sabe que vem uma verba, a gente sabe o quanto a gente
pode estar comprando”. Entretanto, é por causa da não-efetivação da contrapartida do
município que o atendimento aos adolescentes em situação de rua não acontece de forma
efetiva. Assim, o Programa Agente Jovem afirma que, pelo fato de seu público alvo estar
classificado em uma categoria de risco, que é muito mais ampla do que a que envolve os
que estão em situação de rua, o atendimento a esse público deveria ser efetuado pelo
Programa Conquista Criança, destinado a esse fim. Para ela, cada programa delimita que
público irá atender e, assim, acabam excluindo os que estão em situação de rua. Mesmo
que o Programa Agente Jovem tenha o perfil para atender aos que estão em situação de
rua, é preferível que eles sejam encaminhados para o Programa Conquista Criança.
4.5. O Projeto Juventude Cidadã
O Projeto Juventude Cidadã “A Conquista do Futuro” foi criado pelo Governo
Federal e inserido na política do primeiro emprego, objetivando a formação profissional
dos jovens com idades entre 16 e 24 anos, tirando-os das ruas. Tal Projeto foi implantado
em Vitória da Conquista no ano de 2006, vinculado à Agência de Desenvolvimento,
Trabalho e Renda
108
. Visa a profissionalizar os jovens:
[...] oriundos de famílias carentes, especialmente aqueles que vivem em
situação de maior risco social, como negros, jovens mulheres chefes de
108
Órgão da Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista.
156
família, remanescentes dos programas sociais, deficientes e educandos da
Rede de Atenção e Defesa da Criança e do Adolescente, entre outros
109
.
Segundo a coordenadora de comunicação
110
, atualmente, muitos jovens
conseguem emprego, mas, por não terem a formação exigida, são impossibilitados de
assumi-lo.
[...] aí surgiu esse projeto com essa idéia de ser um projeto de 9 meses
com várias etapas, que o jovem saísse dele não só com formação
meramente profissional, mas também com formação social, com a
formação de vida, para que ele consiga segurar o emprego, porque,
muitas vezes, o jovem tem capacidade, mas não sabe se relacionar.
Durante o ano de 2007, o Projeto Juventude Cidadã atendeu a três mil jovens,
proporcionando a eles capacitação para o trabalho e encaminhamento para postos de
emprego. A princípio, foram cadastrados dez mil jovens, para, depois, serem selecionados
os três mil que permaneceriam no Projeto. Para esta seleção, o Governo Federal
estabeleceu como critérios: a escolaridade – o jovem que não estivesse na escola, teria um
prazo de 90 dias, após ser selecionado, para ingressar na rede regular de ensino; a renda
per capita, não poderia ultrapassar 175 reais; e, o fato de não ter trabalhado anteriormente,
já que o Projeto destinava-se à formação para o primeiro emprego.
Em Vitória da Conquista, foi adotada como escolaridade mínima a 6ª série para a
zona urbana e a 5ª série para a zona rural. Depois de selecionados, os três mil jovens
integraram um projeto que teria nove meses de duração e que fora dividido em 4 etapas:
formação em cidadania e direitos humanos, prestação de serviço civil voluntário,
109
Fonte: Jornal Conquista Cidadã. Edição do mês fevereiro de 2007: 03. Esse jornal é editado pelo Governo
Municipal,
110
Entrevista com a coordenadora de comunicação do Projeto Juventude Cidadã do município de Vitória da
Conquista, realizada no dia 13 de setembro de 2007.
157
qualificação profissional e inserção no mercado de trabalho
111
. A única exigência para que
o jovem continuasse no projeto era de que ele permanecesse na escola, com freqüência e
aprovação.
Nota-se uma preocupação em gerarem-se políticas governamentais de inserção do
jovem no mercado de trabalho. Segundo Blass (2006: 62), essas políticas governamentais
expressam “[...] uma visão linear e prescritiva da transição dos jovens para a vida adulta,
que se volta, basicamente, para a obtenção de rendimentos, seja através do trabalho, seja
através da conquista de um emprego”.
Nesta linha, a coordenadora destaca que um dos pontos positivos do projeto é a
adesão do empresariado de Vitória da Conquista.
[...] hoje esse empresário liga pra gente falando “Eu quero um jovem do
Juventude Cidadã. Eu estou precisando de 10 jovens, de 5 jovens. Eu
quero treinar o jovem aqui, quero ver se esse jovem realmente tem
capacidade”.
Com isso, até o mês de setembro de 2007, já haviam sido inseridos no mercado de
trabalho 380 jovens, dentro de uma meta de 900 que se encerraria no mês de novembro.
Não é um projeto perfeito, porque, quando a gente tem que colocar o
jovem, tem que usar todos esses critérios e você acaba, de certa forma,
111
Na primeira etapa, os 3 mil jovens foram treinados em cidadania e direitos humanos pelo Programa de
Educação pela Vida (ONG de Vitória da Conquista), para que tivessem condição de passar para a próxima
etapa tendo conhecimento dos objetivos do Projeto Juventude Cidadã. Nessa etapa de cidadania e direitos
humanos, foram montadas 74 salas de aula, com professores de todas as matérias que dizem respeito à
cidadania e direitos humanos. Foi fornecida toda a estrutura para que os jovens pudessem permanecer:
lanche, fardamento, material didático, bolsa de 120 reais. Durante o serviço civil voluntário, o jovem presta
serviço voluntário em uma instituição, com carga horária de 125 horas. “Foi muito importante essa etapa de
serviço civil voluntário, tanto que muitos jovens procuraram depois as entidades pra continuar fazendo o
serviço civil voluntário, como no caso do albergue, do Bolsa-família, porque ele se sentiu uma pessoa
importante”. Na etapa de qualificação profissional, foram montadas 79 salas de aulas onde aconteciam 49
tipos de cursos profissionalizantes, a serem escolhidas pelo jovem. A última etapa é de inserção no mercado
de trabalho, onde o Projeto busca mecanismos para aproximar os profissionais formados do mercado de
trabalho (Dados fornecidos pela coordenadora de comunicação do Projeto Juventude Cidadã).
158
ficando um pouco triste, porque sabe que tem jovens que também
precisam, mas que não concluíram a 6ª, tem jovens que precisam, mas
que não têm a idade mínima ou já ultrapassaram a máxima. Esses
critérios acabam por afunilar um pouco o projeto (Coordenadora de
Comunicação do Projeto Juventude Cidadã).
A partir de 2008, há a perspectiva de que o Projeto Juventude Cidadã se torne o
Projeto ProJovem
112
.
O ProJovem, ele já vai atender os nossos anseios, ele já começa com uma
meta de 15 a 29 anos; é o mesmo traçado do Juventude Cidadã. A
diferença é que ele é dividido em fases, então, você tem o ProJovem
Rural – trabalhando com as Secretarias de Educação, Agricultura e
Desenvolvimento Social – e o ProJovem Trabalhador, com a Secretaria
do Trabalho (Coordenadora de Comunicação do Projeto Juventude
Cidadã).
Mesmo com toda a sua infra-estrutura de atendimento, o Projeto Juventude
Cidadã não contemplou em suas ações os adolescentes em situação de rua. Isso se deu
devido às exigências de seleção e porque a primeira etapa do projeto não havia sido
planejada para atender a esse público. Questionada se, durante essa nova fase, o ProJovem
objetivaria atender aos adolescentes a partir de 15 anos que estão em situação de rua, a
coordenadora responde:
112
“O governo federal lançou em setembro de 2007 o Programa Nacional de Inclusão de Jovens (ProJovem),
que vai beneficiar pessoas de baixa renda entre 15 e 29 anos. O novo ProJovem nasceu da unificação de seis
programas do Governo voltados para a juventude: Agente Jovem, ProJovem, Saberes da Terra, Consórcio
Social da Juventude, Juventude Cidadã Cristã e Escola de Fábrica. Dividido em quatro modalidades -
ProJovem Adolescente, ProJovem Urbano, ProJovem Campo e ProJovem Trabalhador. O Programa vai
garantir integração ao gerenciamento de iniciativas direcionadas à juventude e a continuidade ao acesso a
outros programas federais, como o Brasil Alfabetizado e o Programa Universidade para Todos (ProUni).
Além disso, o valor do auxílio financeiro oferecido pelas iniciativas será fixado em R$100 e a carga horária e
os currículos dos cursos serão unificados. O ProJovem vai oferecer aos jovens a oportunidade de voltar à
escola ou nela permanecer, concluir o ensino fundamental, participar de cursos de formação e qualificação
profissional e de ações comunitárias. O programa terá gestão compartilhada entre a Secretaria-Geral da
Presidência da República e os ministérios do Trabalho e Emprego, da Educação e do Desenvolvimento Social
e Combate à Fome.” Fonte: Informativo Em questão, Editado pela Secretaria de Comunicação Social da
Presidência da República. Nº 543 - Brasília, 5 de setembro de 2007.
159
[...] eu creio que tem que atender sim, porque, antes de mais nada, o
Juventude Cidadã, o ProJovem é projeto de inclusão social e ele não seria
se deixasse de fora os adolescentes que estão na rua, que estão em
situação de rua, porque a gente sabe que esses jovens pertencem à Vitória
da Conquista, que eles têm residência em Vitória da Conquista, mas, por
causa da desintegração dentro da família, eles acabam buscando uma
integração na rua.
O único problema percebido pela coordenadora para a inclusão destes
adolescentes na próxima etapa do projeto está na exigência da 6ª série como escolaridade
mínima, o que pode ser solucionado a partir de um planejamento antecipado. “eu acho que
toda regra tem exceção, e, se a gente pretende incluir esses jovens na sociedade,
precisamos dar condição para que eles se ajustem dentro do projeto”.
4.6. A Coordenação de Assistência à Criança e ao Adolescente
A Coordenação de Assistência à Criança e ao Adolescente do município de
Vitória da Conquista surgiu no ano 2004, vinculada à Secretaria Municipal de
Desenvolvimento Social (SEMDES). Devido à constante necessidade de ampliação dos
programas governamentais (o que, conseqüentemente, aumentou gastos da SEMDES) e à
chegada dos Programas Federais, houve a necessidade de criar-se essa coordenação, com o
objetivo de integrar os programas sociais de atendimento à criança e ao adolescente ligados
à Secretaria, ou seja, um trabalho similar ao que a Rede de Atenção e Defesa da Criança e
do Adolescente
113
se propôs no ato de sua criação. O único diferencial é que esta
Coordenação envolveria apenas os programas governamentais.
113
Nesta pesquisa, optou-se por investigar a Coordenação de Assistência à Criança e ao Adolescente
(CACA), e não a Rede de Atenção e Defesa da Criança e do Adolescente, devido ao fato de a CACA agregar
160
Esta Coordenação serve, como articuladora dos programas sociais, acompanhando
seu cotidiano, e estabelece o elo entre estes e a SEMDES, responsável pelo
acompanhamento do Programa Conquista Criança, do PETI e do Programa Agente
Jovem. Somente o Projeto Juventude Cidadã não está ligado a esta Coordenação, por
vincular-se à Agência de Desenvolvimento Trabalho e Renda.
Dada a importância desta Coordenação e de seu papel articulador das ações dos
programas governamentais, a coordenadora foi questionada sobre o não-atendimento às
crianças e adolescentes em situação de rua pelos programas governamentais. Em resposta,
a mesma assume a não-existência de atendimento a tal público desde que a Unidade de
Educação e Rua foi desativada em 2005. Com a implantação dos programas federais, o
governo municipal limitou-se a investir apenas no Programa Conquista Criança,
reduzindo sua abrangência de atendimento. Assim, o atendimento às crianças e
adolescentes passou a ser feito preferencialmente pelos programas federais.
Pode-se notar aqui uma inversão na política de atendimento à criança e ao
adolescente. O governo, que começou a montar uma rede de atenção a crianças e
adolescentes em 1997, abandonou a proposta de articulação e passou a trabalhar com
projetos pontuais, com metodologias e metas impostas pelo governo federal e com
incerteza de continuidade. Devido à existência dos programas federais e ao investimento
na formatação atual do Conquista Criança, o governo municipal diminuiu investimentos
em ações que garantiriam direitos de crianças e adolescentes em situação de rua. De acordo
com a coordenadora,
todas as instituições governamentais. Cabe notar que, durante o período da pesquisa, a Rede de Atenção e
Defesa da Criança e do Adolescente se encontrava em uma fase de redefinição de suas funções.
161
[...] os programas federais vêm com uma política muito fechada, as
verbas vêm muito detalhadas de como você pode usar e a dificuldade do
município é exatamente essa. [O município] mantém um programa com
verba própria, que é o Conquista Criança, que atende a 400 crianças e
adolescentes e que tem um gasto muito grande, e justifica que não tem
verba para poder investir nessa área de educação de rua
114
.
Não existem, em Vitória da Conquista, programas federais de atendimento às
crianças e adolescentes em situação de rua, o que amplia os problemas municipais, já que o
atendimento principal está centrado nos programas federais. O governo federal ainda não
implantou nos municípios um programa que atenda especificamente às crianças em
situação de rua e este município também abandonou essa proposta de atendimento.
Gestores municipais responsabilizam o Programa Conquista Criança por essa atenção, e
este, por outro lado, afirma não ter condições de atender a essas crianças e adolescentes em
situação de rua.
O Programa Conquista Criança surgiu com a finalidade de atender às crianças e
adolescentes em situação de rua, porém esse objetivo foi alterado durante os seus dez anos
de existência, o que acarretou na desativação da Unidade de Educação de Rua.
O rompimento com a educação de rua foi a grande perda, uma das
grandes perdas que o Conquista Criança teve nesses dez anos. [...] Hoje
percebemos que só não estamos numa situação melhor dentro da
assistência à criança e ao adolescente por causa dessa “quebra” da
educação de rua (Coordenadora de Assistência à Criança e ao
Adolescente).
114
Entrevista com a coordenadora de Assistência à Criança e ao Adolescente do município de Vitória da
Conquista, realizada no dia 10 de setembro de 2007.
162
A Coordenação afirma que há interesse em montar-se uma nova Unidade de
Educação de Rua, com parâmetros diferentes, mas isso só acontecerá por meio de uma
possível emenda parlamentar do ex-prefeito (agora deputado federal) Guilherme Menezes
de Andrade. O trabalho com crianças e adolescentes em situação de rua “é uma política
que foi quebrada no município há um tempo atrás, há anos atrás, e precisa ser resgatada”.
Conforme a coordenadora, existe uma discussão de como será a nova formatação da
Unidade de Educação de Rua. Pensa-se em criar uma Unidade que esteja articulada não só
com a SEMDES, mas também, com as demais Secretarias que prestem atendimento a
crianças e adolescentes, principalmente à de Saúde (SMS), devido à carência de
atendimento médico, e à de Educação (SMED), devido à exclusão deste público. Todavia,
tais projetos ainda se encontram em discussão e sem data para serem efetivados, pois ainda
estão condicionados ao possível recurso de emenda parlamentar.
Com essa afirmação, percebemos que o trabalho com crianças e adolescentes em
situação de rua não foi interrompido por problemas financeiros da gestão municipal e sim
por concepções de prioridade. Podemos concluir que as mudanças na forma de
atendimento às crianças e adolescentes em situação de risco no município de Vitória da
Conquista, durante as três gestões do PT, têm a ver com a prioridade de execução das
ações. Assim, por opções de Governo, o que era prioridade, ou prioridade absoluta, como
tem que ser o atendimento às crianças e adolescentes, passou a ser secundarizado da
primeira para a terceira gestão do Partido dos Trabalhadores.
163
Considerações Finais
Esta dissertação buscou analisar o cotidiano e as trajetórias das crianças e
adolescentes em situação de rua, bem como os programas e projetos sociais implementados
no município de Vitória da Conquista, no período correspondente aos três mandatos do
governo municipal sob a liderança do Partido dos Trabalhadores – PT, 1997 a 2007.
Os quatro capítulos deste trabalho objetivaram analisar e interpretar a realidade
nacional no que diz respeito ao tema pesquisado, apontando os problemas sociais
vivenciados pelo Brasil e, posteriormente, inserindo o município de Vitória da Conquista
neste contexto. Tendo como base os estudos dos autores destacados, principalmente no
primeiro capítulo, nota-se que o quadro da política nacional, cada vez mais agrava os
problemas sociais, afetando diretamente o cotidiano da população de baixa renda. Tais
problemas refletem-se claramente no cotidiano da cidade de Vitória da Conquista, devido à
sua localização geográfica e suas características econômicas, políticas e sociais.
Percebeu-se ainda, no decorrer da pesquisa, que o Brasil passou, da década de
1920 à de 1980, por um processo de transformações relacionadas ao atendimento às
crianças e aos adolescentes em situação de risco, os chamados “menores”. Essas
transformações, decorrentes dos Códigos de Menores de 1927 e 1979, que, teoricamente,
justificavam-se por oferecerem melhoria na qualidade de vida dos “menores”, na prática,
apenas os retiravam das ruas e os “trancafiavam” em instituições, submetendo-os a
situações dolorosas, justificadas pela educação por meio do “trabalho e do castigo”.
Essa situação só se modificou ao final da década de 1980, quando o país passou
por um processo de “redemocratização”, em que a sociedade civil se mobilizou na defesa
164
da garantia e da igualdade de direitos. Com base nessa mobilização, emergiu a
Constituição Brasileira de 1988, cujo artigo 227, compreendia todas as crianças e
adolescentes sem quaisquer distinções. Foi a partir desse artigo que se originou, em 1990,
o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, considerado como uma das mais modernas
leis direcionadas à questão da criança e do adolescente, servindo de referência para vários
países do mundo, pois considerava crianças e adolescentes como sujeitos de direitos,
independente de sua condição social.
Cabe ressaltar que, mesmo com a implementação do ECA, a prática de estratégias
de sobrevivência continuam freqüentes, impulsionando, a cada dia, a ida de crianças e
adolescentes às ruas, ocupando os espaços públicos, desenvolvendo atividades variadas.
Essas práticas presentes nos espaços públicos urbanos, tornaram-se freqüentes desde que
os princípios capitalistas neoliberais, que orientam a política econômica brasileira,
impulsionaram o aumento da pobreza do povo brasileiro, aprofundando as desigualdades
sociais.
No cotidiano de crianças e adolescentes pobres, observou-se o encolhimento de
seus direitos, característico à “era da indeterminação” descrita por Francisco de Oliveira
(2003b). Trata-se de um poder manifesto tanto pela violência quanto pelas políticas
compensatórias. As crianças e adolescentes, por sua vez, colocam em prática seu poder de
resiliência
115
, criando novas estratégias de sobrevivência e de resistências às políticas
governamentais.
As mudanças que ocorreram no Brasil, principalmente a partir da década de 1990,
também afetaram o município de Vitória da Conquista. No entanto, somente a partir da
115
Segundo Vanistendael (1999: 06), “Resiliência é a capacidade de uma pessoa fazer bem as coisas, apesar
das condições adversas da vida”.
165
primeira gestão do Partido dos Trabalhadores (1997-2000), é que foram realmente
efetivados alguns programas e projetos de proteção e garantia de direitos da população
infanto-juvenil. O município inicia a criação de uma grande rede de defesa composta pelo
Programa Conquista Criança, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil - PETI,
Programa Sentinela, entre outros, mobilizando instituições e entidades voltadas para esse
segmento.
A principal ação governamental de atendimento às crianças e adolescentes em
situação de rua do município, a Unidade de Educação de Rua, surgiu em 1999, ligada ao
Programa Conquista Criança. Devido à sua metodologia de trabalho, caracterizou-se
como um projeto que visava a alcançar resultados a médio e longo prazo. No entanto,
apesar dos resultados positivos, a Unidade passou a enfrentar dificuldades, principalmente
tendo em vista que o poder municipal almejava resultados a curto prazo. Tais dificuldades
tornaram impossível a realização do trabalho de educação de rua, e o projeto sofre sua
primeira desativação no ano de 2001.
No entanto, mesmo com os bons resultados alcançados pelo município no que se
refere a outros programas de garantia de direitos das crianças e adolescentes, notou-se a
emergência de diversos problemas durante o segundo mandato do PT (2001-2004), devido
ao aumento crescente de crianças e adolescentes em situação de rua. Diante dessa
realidade, o governo municipal reiniciou, em 2003, os trabalhos da Unidade de Educação
de Rua, por acreditar que esta população infanto-juvenil, em situação de rua, deveria ter
acesso aos direitos inerentes à sua faixa etária, demandando uma metodologia de trabalho
negadora da caridade e da violência, através de uma ação diferenciada dos demais órgãos
de garantia de direitos.
166
Entretanto, além de funcionar de forma precária, sem recursos e com número
reduzido de educadores, a Unidade deparou-se com instituições de ação educativa
complementar que não conseguiam atender, em suas atividades, às crianças e adolescentes
em situação de rua. Desse modo, a Educação de Rua foi novamente desativada em 2005,
durante a terceira gestão, ainda em curso, do PT (2005-2008). Com a desativação,
visivelmente considerada inapropriada para o projeto do governo, nenhuma outra ação a
substituiu, ficando o atendimento às crianças e adolescentes em situação de rua a cargo das
já existentes.
Cabe ressaltar que as instituições existentes na cidade não conseguem absorver os
jovens em situação de rua em suas atividades, pois pretendem submetê-los ao cumprimento
de horários e normas com as quais elas ainda não estão familiarizados, e por não
oferecerem também atrativos maiores que os da rua. Dessa forma, evidencia-se que retirar
energicamente uma criança ou um adolescente da rua como um ato de caridade, e esperar
que se adaptem às normas rígidas, mantendo-os até quatro horas “presos entre quatro
paredes”, é algo quase impossível, considerando-se as relações que eles mantêm na rua. O
cotidiano da rua exerce grande influência na vida dessas crianças e adolescentes, o que faz
com que, muitas famílias pobres da periferia, não consigam mantê-los em seus bairros.
Estes não oferecem espaços de lazer adequados, ou qualquer outro atrativo. Tampouco
encontram apoio em suas casas, em decorrência de diversos casos de violência familiar e
consumo de drogas por parte dos familiares. Na rua, consegue-se dinheiro fácil, comida
farta, sexo, drogas e uma liberdade por eles privilegiada. Assim, torna-se quase impossível
para uma criança ou adolescente em situação de rua, que criou fortes vínculos naquele
espaço, adaptar-se às normas institucionais, às escolares ou à rotina do seu bairro, mesmo
que estas apresentem alguns atrativos. Nem mesmo as bolsas pagas pelo Governo e
167
utilizadas como instrumentos de manutenção da pobreza conseguem superar o que se
obtém na rua.
A partir das análises das ações governamentais, percebeu-se que o atendimento às
crianças e adolescentes em situação de rua, após 17 anos de implantação do ECA, ainda
configura-se como um plano para o futuro e sem previsão de início. Enquanto isso, o
abandono das crianças e adolescentes torna-se norma municipal. Cabe aqui destacar
Graciane (2005: 279), quando afirma, em trabalho que analisa o cotidiano das crianças e
adolescentes em situação de rua na cidade de São Paulo, que as
[...] crianças vivendo nas ruas são a manifestação mais explícita de
incompetência da sociedade brasileira em promover o desenvolvimento
econômico, a distribuição de renda, a igualdade de oportunidades, as
políticas públicas de direitos humanos.
Importa destacar que Vitória da Conquista é, inegavelmente, uma cidade com um
amplo avanço no que se refere à garantia de diretos das crianças e adolescentes,
destacando-se como uma das principais, em âmbito nacional. Tais avanços podem ser
visualizados principalmente durante as gestões do PT.
A ampla rede de garantia de diretos, formada no município e ligada
principalmente à Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, consegue atuar em
diversas áreas de proteção e garantia de direitos, além de estabelecer um diálogo contínuo
com o poder judiciário. No entanto, de um modo geral, não foi possível detectar, em
Vitória da Conquista, uma política pública eficaz de atendimento às crianças e
adolescentes que permanecem “esquecidos” pelas ruas da cidade. Nota-se que este descaso
administrativo com relação a estes jovens aconteceu principalmente durante a segunda
gestão do PT, permanecendo durante a sua terceira gestão. Esta realidade aponta que a
168
efetivação das políticas de atenção aos que estão em situação de rua passa, principalmente,
pela vontade política dos dirigentes no estabelecimento de prioridades, ou observando
aquilo que a legislação estabelece como “prioridade absoluta”.
Segundo os dados coletados junto aos gestores municipais, o poder público tem a
intenção de criar uma política pública de atendimento aos jovens em situação de rua,
retomando o pensamento iniciado durante a sua primeira gestão. Todavia, suas ações atuais
o têm afastado do projeto inicial de 1997. A cada dia, o governo de Vitória da Conquista
assimila rapidamente as políticas federais, criando novas estratégias de “administração da
pobreza”, no sentido de um paradoxo: a ampliação do número de instituições e de
atendimentos revela, gradativamente, a amplitude da pobreza.
No entanto, este é um processo ainda em curso. Importa ressaltar que, através
desta pesquisa, foi possível perceber que a situação de rua em que se encontram os jovens
conquistenses apresenta-se como um ciclo mantido pela precariedade de políticas públicas
concretas e eficazes, sobretudo no enfrentamento dos conflitos de competências entre
programas, projetos e ações de diversas instituições e entidades, governamentais ou civis.
Nesta direção, as trilhas abertas por esta pesquisa recolocam novas inquietações
que, certamente, pautam um caminho a ser percorrido no necessário aprofundamento das
reflexões e estudos.
169
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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